Dissertação de Mestrado Arquivo Arthur Ramos
Dissertação de Mestrado Arquivo Arthur Ramos
Dissertação de Mestrado Arquivo Arthur Ramos
VERSÃO CORRIGIDA
São Paulo
2018
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
De acordo
12 de setembro de 2018
VERSÃO CORRIGIDA
São Paulo
2018
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Aprovado em:
Banca Examinadora
Com esta tese, busca-se refletir sobre o trabalho desenvolvido pelo médico alagoano
Arthur Ramos (1903-1949) frente ao Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM),
no recorte temporal de 1934 a 1939, período que corresponde tanto à fundação e
término do Serviço quanto ao tempo em que Ramos foi seu diretor. Almeja-se entender
qual foi o papel desempenhado por ele no Serviço: de sua criação ao seu término,
passando por sua construção operacional, metodologia de trabalho, equipe, métodos
teóricos utilizados, abordagem realizada e os trabalhos desenvolvidos. Sustenta-se a
hipótese de que o SOHM foi criado e funcionou como um serviço auxiliar à reforma
educacional Anísio Teixeira no intuito de normalizar os escolares matriculados nas
escolas experimentais, lócus da reforma, classificados como desajustados. Para alcançar
estes objetivos, utilizou-se como fontes os escritos de Ramos; as fichas ortofrênicas dos
alunos assistidos pelo SOHM e o Diário de uma das alunas. Estas séries documentais
possibilitaram uma compreensão daquela instituição em sua integridade, abarcando seus
objetivos, realizações e como as crianças foram inseridas em todo o processo. Para
analisar estes materiais, utilizou-se do método indiciário de Ginzburg, tencionando
"ver" a presença das crianças e de suas famílias para além do que registrava o SOHM,
por meio dos vestígios que resistiram e foram impressos. Como aporte metodológico
complementar, foi utilizada a estatística descritiva, objetivando sistematizar as
informações textuais e transformá-las em valores numéricos, gerando médias e
percentuais, que possibilitaram uma análise geral do grupo de alunos.
TAMANO, Luana Tieko Omena. “Keep normal the normal child and adjust the misfit":
Arthur Ramos and the Service of Orthophrenia and Mental Hygiene, 1934-1939. 2018.
351f. Thesis (PhD in History) - Faculty of Philosophy, Letters and Human Sciences -
University of São Paulo, São Paulo, 2018.
This thesis aims to reflect on the work developed by the doctor from the state of
Alagoas Arthur Ramos (1903-1949) on the Service of Orthophrenia and Mental
Hygiene (SOMH), in the temporal cut from 1934 to 1939, a period that corresponds
both to the foundation and the end of the Service and also to the time when Ramos was
its director. It is longed to understand the role played by him in the Service: from its
creation to its completion, through its operational construction, work methodology,
staff, theoretical methods used, approach carried out and the works developed. It is
hypothesized that SOMH was created and functioned as an auxiliary service to the
Anísio Teixeira educational reform in order to normalize the students enrolled in the
experimental schools, the locus of the reform, classified as misfits. To achieve these
objectives, the writings of Ramos were used as sources; the orthophrenic records of the
students assisted by the SOHM and the Diary of one of the students. These documentary
series enabled an understanding of that institution in its integrity, encompassing its
goals, achievements and how children were inserted throughout the process. To analyze
these materials, the Ginzburg index method was used, intending to "see" the presence of
the children and their families to beyond to what the SOMH recorded, through the
traces that resisted and were printed. As a complementary methodological contribution,
descriptive statistics were used, aiming to systematize textual information and transform
them into numerical values, generating averages and percentages, which made possible
a general analysis of the group of students.
Tabela 5. Caracteres não citados nenhuma vez e os citados entre uma e quatro
vezes nas fichas de acompanhamento das crianças pelo Serviço de Ortofrenia e
312
Higiene Mental (SOHM), obtidas pela sistematização de informações constantes
nas fichas (n = 134).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................. 13
3.3 O Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental e os trabalhos desenvolvidos por Arthur 213
Ramos..............................................................................................................................
5. CONCLUSÃO............................................................................................................... 318
INTRODUÇÃO
Com esta tese, aborda-se o Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM), por
meio da atuação do médico alagoano Arthur Ramos, entre os anos de 1934 e 1939. Este
Serviço foi criado pelo Departamento de Educação do Distrito Federal, em 1933,
iniciando suas atividades no ano seguinte. Sua criação foi possível devido a presença do
educador baiano Anísio Teixeira frente aquele Departamento, tendo sido o responsável
pelo programa educacional que foi iniciado com a reforma que levou seu nome, além do
convite a Ramos para chefiar o SOHM. O Serviço foi um dos componentes desta
reforma educacional, estando ligado ao Instituto de Pesquisas Educacionais (IPE). Teve
como objetivo a prevenção, precipuamente, e correção dos desvios de ordem mental dos
escolares matriculados nas escolas experimentais, lócus de ação dos vários órgãos que
fizeram parte do Departamento. Estes desvios eram considerados por Ramos como os
responsáveis pelos problemas comportamentais e de aprendizagem do alunado.
Pelas metas de trabalho elaboradas pelo SOHM e por sua própria fundação,
tornou-se imprescindível entender como a higiene mental foi alçada à categoria de tema
central na discussão acerca do país, congregando em torno de si defensores de áreas
diversas, para além da medicina, como educadores, literatos, jornalistas e políticos. Por
essa razão, o primeiro capítulo desta tese foi dedicado a essa reflexão, tencionando
compreender como foi a recepção da psiquiatria no Brasil, a luta por sua
institucionalização, como a loucura passou a ser identificada enquanto uma doença
mental e, por fim, como a higiene mental passou a prevalecer no discurso médico.
da saúde pública que se desenvolve a partir dos anos (19)30 está intimamente
entrelaçado à trajetória pessoal e profissional desse grupo de atores" 1.
1
FONSECA, Cristina M. O. Trabalhando em saúde pública pelo interior do Brasil: lembranças de uma
geração de sanitaristas (1930-1970). Revista Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, 2000. p.
395.
16
2
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. São Paulo: Vozes, 1999. p. 166.
3
Idem. O poder psiquiátrico: curso dado no Collège de France (1973-1974). Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 67.
19
acerca da abordagem para com eles. Assim, consegue-se conhecer a maneira como eles
se posicionaram frente a estes setores, suas negociações e resistências.
da prevenção, que elas se tornassem desviantes. Ramos imprimiu neste serviço uma
visão ambientalista, na qual a família, suas condições econômicas e o ambiente em que
a criança vivia, incluindo sua estrutura física, foram contemplados como centrais para o
seu bom desenvolvimento ou não. Assim, mesmo em meio a um momento histórico em
que os determinismos, enfaticamente raciais, continuavam a ser discutidos, se fazendo
presentes, enquanto ideias e práticas em serviços, inclusive públicos, o SOHM
descentralizava o orgânico e buscava compreender os problemas apresentados pelos
escolares como consequências de seus ambientes de vida, trazendo para a discussão a
desigualdade social.
CAPÍTULO 1
4
SONTAG, Susan. Doença como metáfora: aids e suas metáforas. Tradução de Paulo Henrique Britto e
Rubens Figueiredo. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
5
FOUCAULT, Michel. História da loucura: na Idade Clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Neto.
São Paulo: Perspectiva, 2013.
23
6
ENGEL, Magali. Delírios da razão: médicos, loucos e hospícios. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001. p. 203
(grifo nosso).
7
Ibid., p. 49.
24
8
Ibid., p. 25.
9
O Hospício iniciou suas atividades em dezembro de 1852, contando com 144 alienados: 76 provenientes
do Hospital da Misericórdia (41 homens e 35 mulheres) e 68 da enfermaria provisória da Praia Vermelha
(33 homens e 35 mulheres) (Ibid., p. 202). Conforme Juliano Moreira, o serviço médico estava a cargo do
Dr. Antônio José Pereira das Neves e do Dr. Lallemant. MOREIRA, Juliano. Notícias sobre a evolução da
assistência a alienados no Brasil. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v.
14, n. 4, 2011, p. 736.
10
ENGEL, 2001, p. 119.
11
MOREIRA, op., cit., p. 730
12
PESSOTTI, Isaías. O século dos manicômios. São Paulo: Editora 34, 1996. p. 145.
25
ponto, os embates foram vultosos e intensos, principalmente com os juristas, uma vez
que, segundo os médicos psiquiatras, aqueles não estavam aptos a julgar acerca da
loucura ou qualquer outra doença mental de um possível infrator. As querelas foram
longas, com as reclamações dos juristas não só com relação à autonomia sobre os
diagnósticos (e tratamentos), mas também no que dizia respeito às leis civis e penais.
Não foram raras as interferências dos médicos no que dizia respeito aos assuntos ligados
à alienação presentes na legislação.
Quando a loucura foi pleiteada pelos psiquiatras como um campo de estudo - e
de sua responsabilidade -, tornando-se uma doença mental e depois um tipo de doença
mental, ela caiu no domínio de uma área médica que detinha um controle cada vez mais
ampliado. A intervenção deveria ser do psiquiatra, médico devidamente instruído e
preparado para lidar com um campo de análise que enganava os olhos dos "comuns".
O estudo da psiquiatria no Brasil nas Faculdades de Medicina (Rio de Janeiro e
Bahia) só começou a ser efetivamente realizado na segunda metade do século XIX. Já
havia um interesse pelo assunto e alguns escritos médicos, principalmente sob a forma
de teses acadêmicas. Entretanto, o estudo efetivo a título de formação, com cátedra
específica, ocorreu somente em 1879, por meio do decreto n° 7.247, que incluía o curso
de Clínica Psiquiátrica na secção de Ciências Médicas de ambas Faculdades de
Medicina do país. Todavia, as solicitações dos médicos relativas à necessidade de
inclusão de cadeiras sobre o área de estudo nas faculdades eram antigas.
Os médicos alienistas se queixavam da não utilização do HPII pela Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro (FMRJ) enquanto lócus experimental para o ensino. Isso
perdurou até o início dos anos 1880, quando, conforme Engel, foi criado o curso sobre
moléstias mentais ministrada pelo Dr. Nuno de Andrade, então diretor do serviço
sanitário do referido Hospício 13. Com isso, os escritos e a formação acadêmica foram
enriquecidos pela observação de casos clínicos e saiu da esfera puramente teórica ou
baseada nos exemplos de casos estrangeiros. Essa prática foi intensificada com a criação
do Pavilhão de Observação, no HPII, em 1892. Este Pavilhão era anexo ao Hospício
(que nessa data já havia mudado de nome para Hospital Nacional de Alienados - HNA)
e estava sob a direção do lente da clínica psiquiátrica e de moléstias nervosas da
FMRJ14. Aquele Pavilhão era destinado exclusivamente aos indigentes. Esses
indivíduos, destituídos de seus direitos - incluindo seus corpos -, serviram de cobaias
13
ENGEL, 2001, p. 134.
14
Ibid., p. 136.
26
15
Ibid., p. 273.
16
Conforme Pessotti, inicialmente foram os asilos os locais que acolheram os loucos, com administração
do poder público e de religiosos. Posteriormente, os hospícios foram criados, tendo sido administrados
predominantemente por religiosos, porém ainda sem o propósito defendido pelos psiquiatras anos mais
tarde. Foram os manicômios, no século XIX, os locais que passaram a se dedicar ao tratamento médico
sistemático e especializado dos doentes mentais. PESSOTTI, 1996, p. 152.
17
CAPONI, Sandra. Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2012. p. 48.
18
PESSOTTI, op., cit., p. 68.
27
desequilíbrio, Pinel não tirava a posse da razão do indivíduo, podendo, inclusive, existir
a loucura lúcida, ou seja, aquela sem distinção do julgamento e sem delírio. O
tratamento se daria na reeducação das ideias e hábitos.
O uso da camisa de força nem sempre era a forma envidada para acalmar os
doentes em crise. Uma das críticas mais enfáticas dos médicos com relação aos
cuidados dos enfermeiros e das irmãs de caridade da Santa Casa era o uso e abuso da
violência para com os doentes mentais. A palavra cuidado deve ser compreendida não
no sentido de tomar conta ou zelar, mas de intervir. Esse era um dos motivos para o
requerimento dos médicos com relação à necessidade da separação do Hospício da
Santa Casa. Mas, deve-se ter em mente que tampouco com a administração dos
psiquiatras, a violência despareceu por completo.
Antes da fundação do HPII, os indivíduos acometidos pela loucura eram
enviados para a Santa Casa ou para prisão. Aqueles de família opulenta recebiam, quase
sempre, os cuidados em casa. Entretanto, os pobres ou miseráveis que não tinham a
quem recorrerem, acabavam sendo enviados, quando perturbavam a ordem social ou
cometiam delitos, para os locais supracitados19. Quando na Santa Casa, ainda que em
19
Durante o período colonial, conforme Juliano Moreira, "os alienados, idiotas, imbecis, foram tratados
de acordo com as suas posses. Os abastados, se relativamente tranquilos, eram tratados em domicílio, e,
às vezes, enviados para a Europa [...] Se agitados, punham-nos em algum cômodo separado, soltos ou
amarrados, conforme a intensidade da agitação. Os mentecaptos pobres tranquilos vagueavam pelas
cidades, aldeias ou pelo campo entregues às chufas da garotada, mal nutridos pela caridade pública. Os
28
local inapropriado para os cuidados que a sua moléstia necessitava, como afiançou
Engel, os doentes recebiam certos cuidados médicos20. A reclusão em um hospital já
denota a percepção sobre a loucura enquanto uma doença, mesmo antes dela ser
considerada uma doença mental.
As queixas contra a administração da Santa Casa aumentaram ao longo dos anos
de 1880. Os médicos requeriam autonomia sobre a loucura e o louco e é sempre
importante salientar que não era qualquer médico, mas o especialista que começava a se
impor- o alienista. Os cuidados daquela instituição não estavam voltados para a loucura
como uma doença específica. Desse modo, não havia médicos destinados aos seus
cuidados (e sim às enfermidades de maneira geral), não havia separação entre os
doentes por sexo e nem o isolamento necessário. O isolamento era pensando tanto no
âmbito da construção do hospício - fora dos centros urbanos - quanto do contato com os
familiares e entre os próprios enfermos. O que os psiquiatras solicitavam era um local
exclusivo para tratar uma doença específica, cuja responsabilidade pertencia a uma
especialidade médica que ia se firmando e afirmando cada vez mais.
A construção de um hospício exigia certos critérios. No caso do HPII, tais
critérios tiveram como base a observação das instituições notadamente europeias e as
teorias e experimentações dos grandes alienistas europeus. Destarte, a necessidade desse
espaço asilar respondia a parâmetros precisos, não podendo ser construído e
administrado como qualquer outro reduto de doentes. A construção deveria ser feita em
local distante das cidades e o espaço interno deveria contemplar a divisão por sexo 21.
Com relação à admissão, haveria o espaço destinado aos acolhidos gratuitamente
(indigentes, escravos de senhores que não possuíam mais de um e sem meios de pagar
seu tratamento e marinheiros de navios mercantes) e aos pensionistas22. Estes últimos
eram divididos em três classes: os de primeira classe tinham direito a quarto separado e
tratamento especial pelo valor pago de 2$000; os de segunda classe dividiam o quarto
com mais um interno, gozando de tratamento especial, pagando a quantia de 1$600; e os
de terceira classe não tinham nenhum privilégio, ficando nas enfermarias gerais: pessoa
livre ao custo de 1$000 e escravos a cifra de $80023. Havia outra divisão que
contemplava o comportamento, na qual os indigentes e os de terceira classe eram
agitados eram recolhidos às cadeias onde barbaramente amarrados e piormente alimentados muitos
faleceram mais ou menos rapidamente". MOREIRA, 2011, p. 730.
20
ENGEL, 2001, p. 187.
21
Art. 18°, Do Serviço Sanitário, Capítulo IV - Decreto n° 1.077, 4 de dezembro de 1852.
22
Art. 5°, Da Admissão e Saída dos Alienados, Capítulo III - Decreto n° 1.077, 4 de dezembro de 1852.
23
Art. 7°, Da Admissão e Saída dos Alienados, Capítulo III - Decreto n° 1.077, 4 de dezembro de 1852.
29
24
Art. 19°, Do Serviço Sanitário, Capítulo III - Decreto n° 1.077, 4 de dezembro de 1852. Estas
informações também podem ser encontradas em ENGEL, 2001, p. 206.
25
As Colônias da Ilha do Governador (Conde de Mesquita e São Bento) foram criadas em 1890, após
insistentes pedidos dos psiquiatras a fim de diminuir e/ou minimizar os sérios problemas da superlotação
na secção Pinel. Esta última abrigou ainda, em 1917, a secção Lombroso, então destinada aos internos
mais perigosos enviados pela polícia, sob a direção do Dr. Heitor Carrilho. Esse médico veio a dirigir o
Manicômio Judiciário, criado em 1921, cujo intuito era "retirar da seção Lombroso [...] os pacientes
considerados perigosos". Os criminosos-loucos passaram então a ser enviados para lá. Com o falecimento
de Carrilho, em 1954, o manicômio passou a se chamar Manicômio Judiciário Heitor Carrilho.
FACCHINETTI, Cristiana et al. No labirinto das fontes do Hospício Nacional de Alienados. História,
Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 17, suplemento 2, 2010. p. 735. Sobre este manicômio
judiciário ver MACIEL, Laurinda R. "A loucura encarcerada": um estudo sobre a criação do Manicômio
Judiciário do Rio de Janeiro. 1999. 189f. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de História,
Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 1999.
26
Esta secção também sofria com a superlotação. Devido a isso, em 1911, foi fundada a Colônia de
Alienadas de Engenho de Dentro para onde foram remanejadas as enfermas excedentes daquela secção.
Tal Colônia passou a ser denominada Colônia de Alienados de Engenho de Dentro, em 1918, uma vez
que passou a admitir homens, já sob a direção de Gustavo Riedel. Ela abrigou um serviço heterofamiliar
de assistência extra-hospitalar e o Instituo de Profilaxia Mental, em 1921. Neste período, as preocupações
com a higiene mental ganhavam impulso e instituições, a exemplo do Serviço citado. Além dele, foi
instaurado, pela Colônia, o primeiro ambulatório psiquiátrico do país - Ambulatório Rivadávia Correia. Já
na década de 1930, sob a gestão do Dr. Ernani Lopes, que substituíra Riedel, a Colônia foi ampliada e
transformada em Colônia Gustavo Riedel destinada a ambos os sexos (1937). Um ano depois, em 1938,
foi novamente remodelada tornando-se o Centro Psiquiátrico Nacional, que, por sua vez, substituiu o
Hospício Nacional em 1943. FACCHINETTI et al, op., cit., p. 734-735.
27
O Pavilhão de Admissão, criado em 1892, passou a integrar o Instituo de Neuropatologia em 1911,
conjuntamente com o Pavilhão de Doenças Nervosas e o de Psicologia Experimental. Este Instituto
serviria para a admissão dos indivíduos suspeitos de alienação mental, conforme o decreto n° 8834 de
julho de 1911. Segundo Engel, este Instituto foi transformado no Instituto de Psicopatologia ou Instituto
Teixeira Brandão, em 1927, e conforme o decreto n° 17805 de maio de 1927, tinha como finalidade
admitir os indivíduos suspeitos de perturbação mental enviados pela polícia e que deveriam ser recolhidos
à Assistência a Psicopatas. Quanto ao Pavilhão de Psicologia Experimental, o parágrafo 7, do artigo 57 do
30
referido decreto, afirma que nele seriam realizadas as experiências necessárias para melhor elucidação do
diagnóstico e pesquisas de psicologia normal e patológica. O decreto ainda informa que nos pavilhões que
compunham o Instituto Teixeira Brandão seriam ministradas as aulas da clínica respectiva da Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro e que a Clínica psiquiátrica teria, além dos auxiliares dos serviços
escolares, um assistente incumbido dos serviços eletroterápicos. ENGEL, 2001, p. 273.
28
Este Pavilhão era destinado somente para crianças e buscava ofertar um tratamento específico para elas.
Antes alocadas nas dependências do HNA, agora elas tinham um local adequado e exclusivo. Separados
por sexo, contava com uma escola, sala de aparelhos de ginástica e jardim. Da mesma maneira que as
outras secções, o Pavilhão Bourneville sofria com a superlotação, sendo relevante o fato de ser
exclusivamente formado por crianças. Ver ENGEL, op., cit. e FACCHINETTI et al., 2010.
29
BENCHIMOL, Jaime. Pereira Passos: um Haussmann tropical. A renovação urbana da cidade do Rio
de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1992. p. 115.
31
30
MOREIRA, 2011, p. 730.
31
FACCHINETTI; MUÑOZ. Emil Kraepelin na ciência psiquiátrica do Rio de Janeiro. História,
Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, 2013. p 245.
32
32
Ibid., p. 246.
33
CAPONI, 2012, p. 123.
34
Ibid., p. 124.
35
FACCHINETTI; MUÑOZ, op., cit., p. 249.
33
cunho organicista que o influenciaram foram por ele 'convertidas' num discurso
antideterminista, contrário à inexorabilidade dos males gerados por nosso clima ou
constituição racial"36. De fato, em "As doenças mentais em climas tropicais" (1906),
artigo escrito com Afrânio Peixoto, ele foi enfático ao afirmar que "não existem doenças
mentais climáticas, ou, mais particularmente, que em climas quentes não se observa
nenhuma forma patológica que seja estranha à neuropsiquiatria dos outros climas" 37.
Entusiasta do pensamento sanitarista, viria a bradar a necessidade e importância do
ensino - nas escolas, casernas, oficinas - na verdade, em todas as coletividades, dos
preceitos de higiene mental "que tornará efetiva a melhor profilaxia contra os fatores de
degradação dessa mesma gente, e tudo isso sempre sem ridículos preconceituosos de
cores e castas [...]"38.
Dessa forma, no cenário brasileiro, é de se pensar como os psiquiatras nacionais
leram essas teorias e como negociaram com elas. Diante de uma gama de teorias no
âmbito da alienação, aqueles homens tinham que pensá-las dentro do contexto local,
vislumbrando saídas aos postulados que condenavam o país. Como avaliou Engel, "os
psiquiatras brasileiros produziriam e difundiriam um conhecimento profundamente
eclético, marcado por muitas ambiguidades e contradições". No entanto, ainda segundo
essa autora, eles buscaram "alinhavar uma coerência não apenas por meio de sua
aplicação prática no âmbito especificamente médico, mas, sobretudo, das possibilidades
de intervenção política e social abertas por (e para) esse saber específico"39.
As reflexões acerca dos postulados teóricos no âmbito da psiquiatria foram
publicadas nas revistas médicas e, posteriormente, nas especializadas. É de se ressaltar
que a imprensa também foi utilizada pelos médicos como meio de divulgação daquela
área de estudo, bem como serviu de veículo para as críticas ao sistema de cuidados
mentais da capital nacional e para os casos policias/jurídicos que contemplassem
alguma insanidade mental. Dentre as revistas especializadas destacaram-se os Arquivos
Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins, criado em 1907 por Juliano
Moreira e Afrânio Peixoto. As discussões também eram realizadas nos eventos
científicos e nas sessões da Academia de Medicina e nas da Sociedade Brasileira de
36
VENÂNCIO, Ana. Doença mental, raça e sexualidade nas teorias psiquiátricas de Juliano Moreira.
Physis: Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 283-305, 2004. p. 299.
37
MOREIRA; PEIXOTO. As doenças mentais nos climas tropicais. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 8, n. 4, 2005. p. 796.
38
MOREIRA, Juliano. Noticiário: A contribuição da higiene mental no 2° Congresso Brasileiro de
Higiene. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 1, 1925. p. 196-197.
39
ENGEL, 2001, p. 161.
34
40
A Assistência aos Alienados passou a se chamar Serviço de Assistência a Psicopatas, em 1927, e
passou a abranger todo o país. A partir de 1931, a Assistência saiu do Departamento de Saúde Pública
(DNSP) e passou a integrar o Ministério de Educação e Saúde Pública (MESP). Ela era composta pelo
Serviço de Assistência a Psicopatas, de âmbito nacional, e a Divisão de Assistência a Psicopatas do
Distrito Federal. FACCHINETTI et al., 2010, p. 735-736. Em 1941, a Assistência foi substituída pelo
Serviço Nacional de Doenças Mentais que passou a ser composta pelo Gabinete do Diretor, Secção de
Administração, Secção de Cooperação, Centro Psiquiátrico Nacional, Escola de Enfermagem Alfredo
Pinto, Manicômio Judiciário e Colônia Juliano Moreira. VENÂNCIO, Ana. Da colônia agrícola ao
hospital-colônia: configurações para a assistência psiquiátrica no Brasil na primeira metade do século
XIX. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 18, suplemento 1, 2011. p. 44-45.
41
Artigo 13 do decreto 206-A de 15 de fevereiro de 1890.
35
Juliano Moreira reclamou por melhorias e reformas desde o início de sua gestão
frente ao Hospital. Exigia a construção de anexos voltados às doenças específicas e a
edificação das colônias agrícolas. Essas últimas eram pensadas, como afirmou
Venâncio, como um modelo institucional para o tratamento de diversas doenças, e no
caso das mentais, atendia ao tratamento moral, uma vez que o isolamento fazia parte
daquela terapêutica42. Além do isolamento, a vida campestre era vislumbrada como
meio de tratamento, principalmente pelas possibilidades de execução de trabalho rural a
ser realizado pelos doentes. Com a instalação do regime republicano, a construção das
primeiras colônias no Rio de Janeiro - Conde de Mesquita e São Bento - que
compunham as Colônias da Ilha do Governador, foram efetuadas. Essas colônias
começaram a funcionar em 1890. Suas fundações objetivaram aliviar a superlotação do
HNA. Elas seriam compostas pelos indigentes transferidos do HNA, que eram "capazes
de trabalharem no serviço de lavoura, incontestavelmente o melhor meio de ocupar as
atividades de muitos dentre eles", como afiançava Moreira 43.
No entanto, diante de alguns fatores importantes, tais como o fato do Estado não
ser o proprietário do terreno onde estavam assentadas as colônias e da péssima
qualidade do solo, Moreira impetrou que se pensasse acerca da transferência daquelas
colônias para outro local que fosse mais fértil e de preferência no continente, com a
facilidade de comunicação por meio da linha férrea44. As Colônias da Ilha apresentavam
sérios problemas de infraestrutura, o que ampliava a discussão quanto a necessidade de
transferência. Por fim, em 1921, começou a construção da Colônia de Psicopatas-
Homens, em Jacarepaguá, inaugurada em 1924. Essa, por sua vez, veio a ser rebatizada
como Colônia Juliano Moreira, em 1935, em homenagem póstuma ao antigo diretor do
HNA.
Pretendia-se instalar na Colônia o serviço de assistência familiar, baseado no
convívio entre os enfermos e as famílias dos trabalhadores, o que constituía a
assistência heterofamiliar, defendida por Moreira e outros. Para que essa assistência
pudesse ser realizada, a Colônia deveria conceder casas para os seus funcionários. Afora
os problemas estruturais que ainda a afligia, os planos para a expansão do trabalho
agrícola e para o tratamento heterofamiliar eram promissores, consoante Venâncio 45.
Essa autora afiançou ainda que a Colônia passou a se configurar como hospital-colônia
42
VENÂNCIO, 2011, p. 36.
43
MOREIRA, 2011, p. 741.
44
Ibid., p. 749.
45
Ibid., p. 41.
36
46
VENÂNCIO, 2011, p. 48.
47
MOREIRA, 2011, p. 742.
37
internações a partir do início do decênio de 1890, como evidenciou Engel 48. Ainda
segundo essa autora, a superlotação comprometia o tratamento, proporcionava a mistura
entre os internos (de sexos, de classes, de idade e de moléstias), piorava as condições de
higiene, aumentava o número de doenças contagiosas, prejudicava o controle
ocasionando fugas, agressões e suicídios, afora os baixos salários e o número restrito de
profissionais, cuja competência era severamente contestada.
Os médicos psiquiatras buscaram demarcar as fronteiras de sua especialidade
frente, inclusive, às outras áreas da medicina, em nome de um conhecimento específico
que exigia uma formação igualmente específica. No século XIX, as tensões entre a
medicina e a psiquiatria ficavam, cada vez mais, intensas com a segunda pleiteando
espaço e autonomia. O trato com as doenças e os doentes mentais necessitava todo um
arcabouço teórico e prático, e a execução deveria ser realizada com precisão, exigindo
dos funcionários um preparo, atenção, cuidado e controle rígidos. Pautados sobre a
perspectiva do hospício enquanto instrumento de cura, como defendiam Pinel e
Esquirol, o trabalho das irmãs e dos enfermeiros constituíam elementos fundamentais
para a terapêutica. Desse modo, enquanto agentes responsáveis pelas atividades naquele
espaço, suas atuações foram alvos de críticas, principalmente aquelas executadas pelos
enfermeiros.
Os médicos criticavam o uso da violência feito pelos enfermeiros e por esse
motivo declaravam a necessidade de vigilância sobre eles. As irmãs de caridade tinham
seus trabalhos elogiados, porém o poder que detinham no hospício causava dissabores
na classe médica que, ao longo dos anos de 1880, passou a contestar sua administração.
Quando o HNA se tornou independente da Santa Casa, as religiosas foram excluídas do
hospital. Insatisfeitas com a perda da autoridade, acabaram abandonando-o, o que
causou sérios problemas no setor de recursos humanos 49. Dessa forma, foi criada, por
intermédio do decreto n° 791 de 27 de setembro de 1890, a Escola Profissional de
Enfermeiros e Enfermeiras (EPEE) do HNA. Como afirmaram Lima e Batista, surgia a
"primeira tentativa de sistematização do ensino de enfermagem no país 50.
Pelo referido decreto, ficou instituída no HNA uma escola destinada a preparar
enfermeiros e enfermeiras para os hospícios e hospitais civis e militares. Se antes de sua
fundação, os cuidados com os doentes estavam a cargo das irmãs de caridade, logo, sob
48
ENGEL, 2001, p. 282.
49
LIMA, Thaísa; BAPTISTA, Suely. Circunstâncias de criação das escolas de enfermagem do estado do
Rio de Janeiro. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, 2000. p. 199.
50
Ibid., loc. cit.
38
a autoridade religiosa; com a sua criação eles passaram a ser regidos pelas enfermeiras
formadas em uma escola vinculada a um Hospital Psiquiátrico, sob a tutela dos médicos
psiquiatras. Dessarte, eram iniciadas as disputas entre os psiquiatras e as enfermeiras
frente à direção e diretrizes do ensino da enfermagem. Os médicos psiquiatras não
apenas monopolizavam o ensino na EPEE como dirigiram a escola. Este cenário
somente foi modificado com a sua reorganização, em 1943, quando, pela primeira vez
ficou sob a responsabilidade de uma enfermeira diplomada. A regulamentação do
ensino de enfermagem no país foi realizada em 1949, por meio da Lei 775 de 06 de
agosto daquela ano. Vale destacar que o quadro docente da agora Escola de
Enfermagem Alfredo Pinto (1942) passou a contar com professoras enfermeiras quando
houve, em 1942, o aumento das disciplinas correspondentes às técnicas de enfermagem.
com a sua reorganização 51.
Ao longo dos anos de 1920, com um enfoque cada vez maior sobre a prevenção,
o que levou a uma reorganização da assistência psiquiátrica no país, houve uma
reestruturação da EPEE. Pelo regimento interno aprovado em 1921, foi estabelecida a
duração do curso em dois anos e a divisão da Escola em três secções: uma mista, no
HNA; uma masculina, que não veio a funcionar; e uma feminina, na Colônia Gustavo
Riedel.
A Fundação Rockefeller teve participação significativa na criação de serviços de
enfermagem no Brasil. Desde 1916, concedeu bolsas de estudos para os brasileiros na
Universidade Johns Hopkins em Baltimore (EUA), influenciando-os e fazendo com que
aqueles concretizassem no Brasil a sua concepção de saúde pública, baseada "na
educação sanitária e na formação de profissionais na área de saúde pública" 52.
Conforme Faria, tratava-se de uma proposta de intervenção sanitária representada pelos
Centros de Saúde (Health Centers), cujo modelo ofertava às visitadoras sanitárias e às
enfermeiras papel de destaque. Esse modelo foi adotado pelo Brasil, cujas bases
estavam centradas na assistência educativa materno-infantil, atendimento aos
tuberculosos, educação sanitária, higiene pré-natal, infantil e rural e análises
laboratoriais53.
51
AMORIN; BESS. Aspectos da formação profissional na escola de enfermagem Alfredo Pinto (1943-
1949). Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, 2006. p. 65.
52
FARIA, Lina. Educadoras Sanitárias e Enfermeiras de Saúde Pública: identidades profissionais em
construção. Cadernos Pagu, São Paulo, v. 27, 2006. p. 184.
53
Ibid., loc., cit.
39
54
Ibid., loc., cit.
55
Ibid., p. 57.
56
Ibid., p. 180.
40
57
LAURIANO; BARREIRA. Reconfiguração do serviço de enfermagem de saúde pública na cidade do
Rio de Janeiro na virada da década de 20 para a de 30. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de
Janeiro, v. 6, n. 1, 2002. p. 41/43.
58
KIRSCHBAUM, Débora. Análise histórica das práticas de enfermagem no campo da assistência
psiquiátrica no Brasil, no período compreendido entre as décadas de 20 e 50. Revista latinoamericana de
Enfermagem, São Paulo, v. 5, 1997. p. 26.
59
AMORIN; BARREIRA. As circunstâncias do processo de reconfiguração da escola profissional de
assistência a psicopatas do Distrito Federal. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v.
10, n. 2, 2006. p. 57.
60
Entre os requisitos básicos para tal equiparação estava a exigência da direção estar sob a competência
de uma enfermeira diplomada, ainda que a EPEE continuasse sob o jugo dos médicos psiquiatras. Tal fato
evidencia uma grande conquista das profissionais de enfermagem, haja vista o até então predomínio dos
médicos na gerência do ensino. AMORIN; BESS, 2006, p. 65.
41
não se encaixava. A negativa desta escola, então sob a direção de Bertha Lucile Pullen,
enfatizou as divergências e embates entre os médicos psiquiatras e as enfermeiras que
litigavam espaço e autonomia em sua área de atuação61.
As enfermeiras enfrentaram, desde o início, o sexismo imposto à profissão e a
perspectiva preconcebida de seu ofício como uma ocupação menor, subordinada à
medicina e aos médicos. A percepção da enfermagem enquanto atividade feminina foi
consolidada ao longo do tempo. As disputas pelo campo de atuação profissional com os
homens, enfermeiros e médicos, fizeram parte do prélio pela "demarcação de um
território de decisões e atuações que não fosse tutelado pela profissão médica" 62.
Às enfermeiras eram solicitados atributos que a sociedade daquela época
considerava próprios de seu sexo: doçura, paciência, afetividade, solicitude,
companheirismo, piedade, bondade etc63. Tais predicados precisavam ser equilibrados e
a conduta para com o doente deveria variar conforme a moléstia sofrida por aquele. Ao
atuar no âmbito da higiene mental, elas precisariam possuir dotes físicos, mentais e
intelectuais, conforme afiançou o Dr. Plínio Olinto em "Aptidões e deveres da
enfermeira de higiene mental" (1934).64
Nos trabalhos de visitação, acompanhamento do doente e nos serviços de
higiene infantil, as mulheres eram consideradas as mais indicadas, tendo em vista as
características "inerentes" ao seu sexo. Com a higiene infantil, o espírito maternal vinha
somar a favor das mulheres que "ganhavam" mais uma esfera de atuação. O espaço -
fora de casa - conquistado por elas adveio de um conjunto de transformações políticas,
61
Sobre os conflitos entre os médicos psiquiatras e as enfermeiras, ver AMORIN; BARREIRA. O jogo
de forças na reorganização da Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras. Revista Brasileira de
Enfermagem, Brasília, v. 60, n. 1, p. 55-61. 2007.
62
FARIA, 2006, p. 179.
63
Com relação aos atributos então considerados como próprios e naturais ao sexo feminino, ver
MARTINS, Ana. A feminilização da filantropia. Gênero, Niterói, v.15, n.2, p. 13 - 28, 2015.
64
Considerando que os serviços de higiene mental compreendiam a prática de consultório, a domiciliar e
a hospitalar, o médico Plínio Olinto destacou qual deveria ser a atuação da enfermeira em cada ambiente
listado: nos consultórios, receberiam carinhosamente o doente, confeccionariam sua ficha, assistiriam ao
exame e o acompanharia à saída, fornecendo-lhe as últimas instruções sobre o remédio e o regime a
seguir. Na prática domiciliar, ela se tornava uma monitora. Na visita, deveria ser menos expansiva, mais
discreta e severa. Deveria ainda anotar tudo na ficha familiar, observando o meio em que vivia o doente e
fornecer instruções de higiene mental. Dr. Olinto finalizou seu texto afirmando que na visita, a monitora
deveria realizá-la de maneira breve, sem intimidades, conservando-se de pé, não devendo aceitar nenhum
favor. Por fim, no hospital, elas voltariam a ser enfermeiras e suas funções compreenderiam o
acompanhamento do doente (administração de remédios, banhos, alimentação etc), incluindo o
sofrimento que deveria compartilhar com o enfermo. Diante do apresentado, o autor do artigo concluiu
que o papel da enfermeira "é, frequentemente, quase tão importante como o do médico" e que, com tais
responsabilidades cresce em importância "o exercício de uma profissão que no momento atual é talvez a
mais nobre que se possa entregar nas mãos de uma mulher". OLINTO, Plínio. Aptidões e deveres da
enfermeira de higiene mental. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, 2000.
p. 164-165.
42
65
FONTENELLE, José. Noticiário: A contribuição da higiene mental no 2° Congresso Brasileiro de
Higiene. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 1, 1925. p. 194. Todas os artigos
utilizados nesta tese referentes aos Arquivos da LBHM foram adquiridos no site do Grupo de Estudos e
Pesquisas Higiene Mental e Eugenia (GEPHE) no sítio http://old.ppi.uem.br/gephe/index.php/arquivos-
digitalizados
66
Noticiário da Liga, n. 1, 1929. p. 23-24. Um desses cursos foi ofertado pelo Dr. Ernani Lopes, membro
da Liga, cujas aulas foram realizadas, em sua grande maioria, na biblioteca daquela instituição. Tal curso
foi ministrado entre os meses de março e abril de 1929, e esteve voltado para as enfermeiras diplomadas,
com a realização de exercícios práticos e a visita ao Pavilhão Bourneville e à secção de psicanálise da
Secção Esquirol, ambos pertencentes ao HNA. Segundo o referido noticiário, as lições versaram sobre os
seguintes pontos: generalidade sobre higiene mental e eugenia; valor dos métodos de higiene mental em
particular dos métodos de psicologia aplicada; noções de psicopatologia; higiene das funções psíquicas,
em particular da atenção e da memória; a fadiga mental e sua profilaxia; educação das crianças anormais;
assistência hospitalar e extra-hospitalar aos psicopatas; formação da hábitos sadios na criança e no adulto;
a colaboração da enfermeira na campanha antialcoólica.
43
circunscrito aos manicômios, passou a ser alargado para além de seus muros. A
psiquiatria ampliou seu espaço de atuação.
A hereditariedade tinha uma importância muito significativa no pensamento e
estudos dos médicos alienistas. Era nesse sentido que o esquadrinhamento do indivíduo
- e por extensão da família - se justificava. A ideia era, sobretudo, prevenir. Prevenir a
eclosão da doença sobre o indivíduo, mas principalmente proteger o meio que o
circundava. Essa teoria "permit(ia) deslocar o eixo das doenças às condutas, das
patologias às anomalias, dos sintomas indicativos de lesões orgânicas às síndromes de
degeneração"67.
Para os higienistas, o ideal que regia esse olhar sobre a família era o da
prevenção. Palavra essa repetidamente proferida e defendida, uma vez que o primado
básico era cuidar da saúde e não da doença, como asseverou Afrânio Peixoto, em 1928.
Ele distinguiu a atuação do médico da atuação do higienista, pois enquanto o primeiro
tratava "a reação orgânica, que é a doença"; o segundo impedi-a de atuar no organismo
por meio da prevenção68.
A higiene se destacou como a redentora da (provável) calamidade futura. Ela
acometeu a tudo e a todos. Tudo que dizia respeito ao todo: família, comportamento,
educação, hábitos, alimentação, condição financeira, sentimentos, enfim. Esse todos
referenciado acima chama a atenção, pois não se tratava mais apenas do doente
(diagnosticado) ou do provável doente (suspeito), mas do indivíduo "normal". A priori,
todo ser "normal" era um doente em potencial! O campo de ação da higiene mental foi
ampliado. Em 1935, quando publicou pela primeira vez Saúde do Espírito, o médico
alagoano Arthur Ramos já asseverava que o alienado não era mais o seu campo
exclusivo. Além disso, "já não (era) apenas a prevenção da doença mental o seu
objetivo. Ela estuda o homem 'normal' em todos os seus aspectos, até nos graus tênues
de conflito e desajustamento à sociedade" 69.
A higiene mental passou a ter uma importância capital como maneira de garantir
o futuro, cuidando dos "desajustados" e reinserindo-os (quando possível) novamente no
convívio social. Se a ideia primeira era prevenir, o ideal era que tal ação fosse realizada
o quanto antes. Isto posto, a infância passou a ter uma atenção especial. O Serviço de
67
CAPONI, 2012, p. 26.
68
PEIXOTO Apud BOARNI, Maria. A infância higienizada. In: ______ (org.). Higiene Mental: ideias
que atravessaram o século XX. Maringá: Eduem, 2012. p. 26.
69
RAMOS, Arthur. Saúde do espírito. 6° ed. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde/Serviço Nacional de
Educação Sanitária, 1955. p. 20.
44
Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM), que será analisado no terceiro capítulo desta tese,
tinha como preocupação precípua esse olhar atencioso (e intervencionista) para a
infância. No caso, nos escolares do município do Rio de Janeiro, entre 1934 e 1939,
período em que esteve em atividade. Atrelado à educação, sua função era realizar um
trabalho de higiene mental preventiva do escolar, o que não excluía os exames
orgânicos, tencionando corrigir (daí Ortofrenia) os desajustamentos.
Com o ideal de prevenir doenças, as fronteiras da anormalidade foram ampliadas
e com elas um controle abusivo sobre o indivíduo foi impulsionado. Assuntos antes
estritamente pessoais, reservados à esfera privada, passaram a ser alvos de investigação
- científica -. Antes da reflexão sobre as doenças estar voltada enfaticamente para a
esfera mental, ela foi pensada enquanto responsável pela situação de calamidade em que
se encontrava o país.
Por muito tempo considerados os grandes culpados pelo "atraso" nacional, raça,
clima, natureza, mestiçagem, sofreram uma releitura no decênio de 1910. Esse marco
temporal não significou uma ruptura estanque. Apenas projetou novos elementos para
se pensar tal "atraso", com destaque para as doenças. As críticas ao abandono
governamental, principalmente com relação ao interior do país, efetuadas pelos
sanitaristas, insidiam sobre os políticos e o Estado, cobrando-os uma atuação efetiva e
responsabilizando-os pelo estado de calamidade em que se encontrava o país, como será
abordado a seguir.
A ideia de prevenir doenças no Brasil teve seu grande marco inicial com o
movimento sanitarista. Na década de 1910, a preocupação passou a ser o interior do
país. Até então, a atenção estava direcionada prioritariamente sobre o sanitarismo
urbano, com destaque à cidade do Rio de Janeiro e aos portos. O interior passou a ser
esmiuçado. Adentrar nesse novo e "desconhecido" ambiente para observar e
compreender a sua situação sanitária, buscando soluções, foram metas estabelecidas
pelos médicos sanitaristas que embarcaram nesta tarefa. Eles encontram em seu trajeto,
sobretudo, doenças endêmicas que exigiam ações permanentes.
A realidade encontrada por aqueles médicos desfez a imagem idílica do homem
do interior. As imagens românticas da vida interiorana não condiziam em nada com o
que viram ao longo de suas viagens. Era urgente mostrar para todo o país a verdadeira
45
situação de vida destas populações. Por meio de suas falas públicas e das publicações
com tais experiências, tornaram seus moradores visíveis para o país, notadamente para
os grandes centros urbanos, e, desta feita, chocaram, incomodaram e exigiram medidas
que mudassem o panorama encontrado.
Nesse momento, o ideal nacionalista era forte e a publicação dos relatórios dos
médicos, verdadeiros relatórios-denúncias, suscitaram calorosos debates e discussões no
plano político, haja vista a incongruência em exaltar o nacional diante da calamidade em
que vivia a maior parte da população. Como salientou Hochman, a busca do Movimento
pela construção da identidade nacional passava também pela construção do poder
público, que, por meio dele, integraria todo o país 71.
O contato estabelecido com o interior do país foi realizado com as expedições
dos médicos do/enviados pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC) 72. Desde 1905, o IOC já
70
PENNA, Belisário Apud SANTOS, Ricardo. Pau que nasce torto nunca se endireita! E quem é bom já
nasce feito?: esterilização, saneamento e educação: uma leitura do eugenismo em Renato Kehl (1917-37).
2008. 256 f. Tese (Doutorado em História Social) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2008. p. 55 e 61.
71
HOCHMAN, Gilberto. A saúde pública em tempos de Capanema: continuidades e inovações. In:
BOMENY, Helena (org.). Constelação Capanema: intelectuais e política. Rio de Janeiro; Bragança
Paulista, SP: FGV; Edusf, 2001. p. 132.
72
Em 1900 foi criado o Instituto Soroterápico cujo objetivo era produzir soros e vacinas para a cura da
peste bubônica. A intenção era substituir a importação dos soros e vacinas vindos da Europa. A indicação
46
realizava incursões pelo país, com inspeções sanitárias em portos e campanhas contra
doenças, como peste, malária ou febre amarela. Lima assinalou a presença de ações
sanitárias, na primeira década do século XX, em 23 portos: na capital maranhense, no
interior de São Paulo e Minas Gerais e na Baixada Fluminense 73. É preciso destacar o
fator econômico como grande elemento para a execução e expansão das inspeções
sanitárias nos portos brasileiros. O desbravamento dos sertões atendia a necessidade de
comunicação interna que viabilizasse a economia nacional, tal como a construção de
linhas férreas e telegráficas. Nesse sentido, Lima afirmou que as "primeiras expedições
destinaram-se aos trabalhos profiláticos que acompanharam as ações relacionadas às
atividades exportadoras, base da economia do país [...]"74.
A expedição de maior destaque na historiografia, devido a sua ampla
repercussão pública e pela observação do entorno social, foi a realizada por Belisário
Penna e Arthur Neiva em 1912. Esta expedição ultrapassou os seus objetivos iniciais.
Além de registrarem as condições médico-sanitárias, os médicos analisaram também os
aspectos sociais. Seus registros acabaram abarcando os aspectos econômicos,
alimentares e culturais daquelas populações.
Esses dois sanitaristas faziam parte da equipe a serviço da Inspetoria das Obras
contra a Seca (IOCS), criada em 1909, cujo intuito era o de estudar "as condições
meteorológicas, geológicas, topográficas e hidrológicas" da região Nordeste (e o estado
de Goiás), bem como "a conservação ou reconstituição das florestas; a construção de
estradas de rodagem ou ferrovias e, principalmente, de poços e açudes públicos ou
particulares"75. É importante destacar que ações de combate à seca já eram
implementadas desde o Império, notadamente a construção de açudes. Nas viagens
empreendias sob a tutela do IOCS, no início do século XX, além do IOC, houve a
de Oswaldo Cruz para assumir a chefia da Diretoria Geral de Saúde Pública, em 1903, possibilitou novos
rumos para o Instituto, com a construção do prédio de Manguinhos e a expansão da fabricação de
produtos biológicos, pesquisas médico-experimentais e o ensino da bacteriologia. Em 1907, buscou-se
transformar o Instituto Soroterápico em Instituto de Medicina Experimental, com negativas do Congresso.
Tal meta foi alcançada no final do mesmo ano, devido, em grande medida, ao prestígio alcançado por
Oswaldo Cruz na Exposição de Higiene e Demografia, realizado em Berlim, sendo o Brasil não apenas o
único representante americano, como o vencedor do primeiro prêmio. Retornando ao país com glórias,
Cruz conseguiu a sanção federal que transformou o Instituto Soroterápico em Instituto de Patologia
Experimental, por fim nomeado Instituto Oswaldo Cruz em março de 1908. THIELEN, Eduardo et al. A
ciência a caminho da roça: imagens das expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz ao interior do
Brasil entre 1911 e 1913. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002.
73
LIMA, Nísia. Uma brasiliana médica: o Brasil Central na expedição científica de Arthur Neiva e
Belisário Penna e na viagem ao Tocantins de Julio Paternostro. História, Ciência, Saúde - Manguinhos,
Rio de Janeiro, v. 16, supl. 1, 2009. p. 232.
74
Ibid., p. 233.
75
THIELEN et al., 2002, p. 53.
47
76
SANTOS, Cláudia. As comissões científicas da Inspetoria de Obras contra a seca na gestão de Miguel
Arrojado Ribeiro Lisboa (19091912). 2003. 107f. Dissertação (Mestrado em História das Ciências) -
Programa de Pós-graduação em História das Ciências da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro,
2003.
77
Ibid., p. 14.
48
Com o DNSP houve uma reforma na saúde pública brasileira, marcada pela
maior capacidade do governo federal em intervir nas localidades do interior do país. A
Constituição de 1891 estabelecia, no âmbito da saúde, a autonomia dos estados. Em
vista disso, era responsabilidade deles a prestação dos serviços de saúde. A proposta de
uma centralização, uma nacionalização da saúde, feria o princípio do federalismo. Os
convênios firmados entre os estados e o governo federal "viabilizaram a ação do poder
central nos estados, que negociavam suas respectivas autonomias garantidas pela
Constituição em troca dos benefícios da ação federal" 80.
Os postos de profilaxia de doenças endêmicas nas áreas rurais foram os
principais resultados dos acordos estabelecidos entre os estados e o DNSP, os quais
eram administrados pelos serviços sanitários federais. Na perspectiva de Hochman,
esses convênios constituíram a regra que possibilitou a reforma sanitária na Primeira
República, uma vez que o estabelecimento do convênio dependia da "escolha" dos
78
HOCHMAN, Gilberto. Saúde Pública e federalismo: desafios da reforma sanitária na Primeira
República. In: HOCHMAN; FARIA (orgs). Federalismo e Políticas Públicas no Brasil. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2013. p. 308.
79
Ibid., p. 305.
80
Ibid., p. 311.
49
estados, era voluntário 81. Por meio de um contrato, os custos com as ações de saúde nos
estados seriam assumidos pelo governo federal que estabeleceria um prazo para o
ressarcimento, ou teria parte dos custos divididos com os estados contratantes no ato do
contrato. Ao aceitarem os convênios, os estados automaticamente aceitavam sua
subordinação, no campo da assistência à saúde, à administração federal.
A fundação do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP), em novembro
de 1930, foi realizada em meio a um processo político de grandes transformações. A
"revolução" de 1930, abalizada como uma ruptura com o modelo antigo de governo,
laureada como a "Nova" República, assinalava, dentro dessa perspectiva do novo, um
recomeço da história nacional82. Por conseguinte, os governos passados eram vistos
como atrasados, fracos, inoperantes, ineficazes, marcados pelo liberalismo e por uma
visão eurocêntrica do brasileiro. Uma "Nova" República se construía e determinava,
periodizando-se a história do país, um Brasil que não foi. Notadamente o Estado
"Novo", em 1937, imprimiria essa ruptura, edificada pelos intelectuais e políticos
engajados na concepção de um projeto político, que se consagrava como, de fato,
moderno e progressista.
O MESP simbolizava os anseios do movimento sanitarista, se não da forma que
pensaram, ao menos de maneira parcial. O Ministério teve três diferentes ministros -
Francisco Campos, Belisário Penna e Washington Pires - antes de Gustavo Capanema
assumir sua direção em 1934. Até o final do Governo Provisório (1930-1934) não teve
objetivos definidos em sua estrutura administrativa, como afiançou Hochman 83. As
diretrizes de atuação do Ministério só foram, de fato, definidas com a reforma
Capanema, em 1937. Com a instauração do estado ditatorial, os ideais de centralização
política foram ampliados e efetivados, minando as autonomias estaduais, o que, no
81
Estes convênios foram firmados pelos estados do Paraná, Minas Gerais e Maranhão, entre 1918 e 1920.
Ao final do governo Epitácio Pessoa, em 1922, já eram 15 o número de estados contratantes. Em 1924,
passaram a ser 17. Ibid., p. 312.
82
Como avaliou Ângela de Castro Gomes, a polêmica em torno do termo "revolução", no que tange ao
seu autêntico caráter revolucionário, enquanto um movimento de transformação das estruturas
socioeconômicas, não altera "a centralidade do evento, nem o 'nome' com o qual é identificado, ainda que
esse "nome" não seja muito adequado a 'coisa' que nomeia". GOMES, Ângela. Introdução. In: ______
(coord.). História do Brasil nação: 1808-2010. Olhando para dentro: 1930-1964. v. 4. São Paulo; Madrid:
Objetiva; Mapfre, 2013. p. 24. O período pós-1930 e as políticas ideológicas do Estado Novo serão
melhor trabalhadas no segundo capítulo desta tese.
83
HOCHMAN, Gilberto. Reformas, instituições e políticas de saúde no Brasil (1930-1945). Revista
Educar, n. 25, 2005. p. 130.
50
84
Sobre o Ministério, a reforma Capanema e a saúde pública no governo Vargas, ver FONSECA, Cristina
M. O. Saúde no Governo Vargas (1930-1945): dualidade institucional de um bem público. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2007 e HOCHMAN, 2005.
85
FONSECA, C., 2000, p. 395.
86
SANTOS; FARIA. O ensino da saúde pública no Brasil: os primeiros tempos no Rio de Janeiro.
Revista Trabalho, Educação e Saúde. v. 4, n. 2, 2006. p. 292.
87
O Laboratório de Higiene foi fundado em 1918, por meio do convênio firmado entre o Estado de São
Paulo e a Fundação Rockefeller, vindo a funcionar como cadeira na Faculdade de Medicina e Cirurgia de
São Paulo. Segundo Faria, a Rockefeller "incentivou a criação desse Laboratório como um centro para o
51
92
Dentre as funções que o Instituto de Higiene deveria cumprir estavam a propaganda e a educação
higiênica. As propagandas sanitárias tinham como objetivo "alertar a população sobre a natureza e as
causas da infecção, modos de transmissão e métodos adequados para a erradicação da doença". As
publicações em jornais e revistas fortaleciam a transmissão de informações e foram bem utilizadas pelo
Instituto. FARIA, 1999, p. 189.
93
Ibid., p. 294.
94
WANDERBROOCK Jr. Durval. A educação sob medida: os testes psicológicos e o higienismo no
Brasil (1914-1945). 2007. 178f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação,
Universidade Estadual de Maringá. Paraná, 2007. p. 18.
95
Ibid., p. 20.
96
RAMOS, 1955, p. 07.
53
que o não cuidado com a mente levaria ao crime, às neuroses e psicoses, fatigava o
corpo e minava o desenvolvimento do indivíduo e, por conseguinte, da nação.
Desta maneira, a higiene precisava estar em consonância com a vida cotidiana e
deveria fazer parte dos hábitos de todos. O seu raio de ação deveria ser ampliado. Novas
práticas surgiram e passaram a ser usadas, como a educação higiênica, muitas vezes
imposta. Em artigo dedicado à análise da educação higiênica, na visão ótica de
Belisário Penna, Santos abordou como os preceitos higiênicos foram impostos às
populações pobres da cidade do Rio de Janeiro 97. O autor apresentou em seu texto um
relatório, de 1905, apresentado por Penna, na ocasião inspetor sanitário, a Oswaldo
Cruz, então dirigente da Diretoria Geral de Saúde Pública, no qual aquele inspetor
transcreve as "práticas educativas e/ou coercitivas que os inspetores utilizavam para
obter os objetivos". Santos destacou os modos persuasivos utilizados por Penna para
cumprir o código sanitário, como ameaças de prender os oposicionistas em hospitais ou
multas aos que não cumprissem as profilaxias higiênicas 98.
A educação foi pensada por Penna, e muitos outros de sua época, como elemento
capaz de criar uma consciência higiênica. Ser um país civilizado e moderno era,
necessariamente, ser composto por indivíduos sadios e fortes. Porém, essa educação,
como ressaltou o sanitarista, não estava limitada a ler e escrever, incluindo também a
convicção "de que deve construir a sua habitação de acordo com os preceitos da higiene,
quando aprender a alimentar-se, a beber água limpa, a defender-se de insetos e parasitas
transmissores e causadores de doenças, quando se dispuser à prática das virtudes
higiênicas do asseio e da sobriedade"99.
Nesse mesmo relatório, o sanitarista mineiro relatou as dificuldades encontradas
para executar as suas funções, enquanto inspetor sanitário. Tais dificuldades provinham
da resistência popular às medidas profiláticas delineadas pelo governo. A imposição foi
uma das formas utilizadas para a aplicação de tais preceitos, uma vez que o povo era
97
Penna foi nomeado inspetor sanitário em maio de 1904 e dentre as áreas de sua responsabilidade
compreendia uma "zona de pequeno comércio e inúmeros cortiços". SANTOS, Ricardo dos. O plano de
educação higiênica de Belisário Penna 1900-1930. Revista Dynamis, v. 32, n. 1, 2012. p. 55.
98
Afirmou Penna a esse respeito: "O inspetor é quem está em contato direto e imediato com a população;
quem executa o regulamento; quem aplica penas; quem atende em primeiro lugar as reclamações, cabe a
maior responsabilidade na execução da lei, que é benéfica em seus efeitos, mas dura na aplicação. O
povo, em geral, tem aversão à remoção para hospitais de isolamento, e esse sentimento, aliás
injustificável e filho apenas da sua ignorância absoluta em matéria de higiene, foi um elemento por mim
aproveitado para conseguir vacinações (....) O povo, em geral, é obediente e submisso, aceitando os
conselhos e determinações da autoridade sanitária, que vai cumprindo sem grande dificuldade o
regulamento sanitário, notando eu com grande satisfação que as condições sanitárias melhoraram
sensivelmente" PENNA, Belisário Apud SANTOS, R., op., cit., p. 56 (grifos nossos).
99
Ibid., p. 57.
54
visto e tratado como massa ignorante (e foco de doenças). Todavia, vale ressaltar que
nem sempre a imposição foi o que prevaleceu para que essa população passasse a
aceitar determinados preceitos sanitários. A sua consciência frente as benesses que tais
medidas lhes trariam foi também o motivo para que viessem a ser aplicadas. Isso
significa dizer que ela não era uma massa ignorante meramente passível à imposição,
mas que ela tinha a capacidade de pensar, analisar, avaliar. E, dessa maneira, aceitar e
mesmo requerer certas benfeitorias não apenas pelo aspecto estético, mas, sobretudo,
higiênico, como bem destacou Santos100. Há de se ressaltar ainda, conforme a autora,
que aqueles preceitos médicos "estavam de acordo não somente com os padrões de
higiene, mas igualmente com os valores modernos". Uma modernidade na qual vivia "e
compartilhava das suas contradições [...]. Por mais excluídas que as pessoas fossem,
elas jamais poderiam estar completamente fora dos processos modernizantes da
sociedade, das suas invenções, influências e trocas culturais" 101.
Portanto, mesclando aceitação e recusa, as populações pobres, alvo prioritário
das campanhas sanitárias, reagiram de maneiras diversas. A sua negativa igualmente se
processou de variadas formas: recusa de recebimento em suas casas (incluindo pedidos
jurídicos de habeas corpus), negativa de aplicação, a expulsão dos representantes do
governo de suas áreas de convivência etc102. Para aplicar tais medidas, o auxílio policial
era, em alguns casos, requisitado e a sua presença era mais um agravante para a
negativa às ações médico-sanitárias.
O projeto de educação higiênica proposto por Belisário Penna contemplava, com
ênfase, o controle dos hábitos sociais. Para ele, "a educação higiênica orientaria a
constituição de uma ordem social, a qual presidiria a higiene das escolas, lares e
cidades"103. Fica perceptível que o intuito de modelar a população, forçando o
aprendizado e práticas de novos hábitos, modificando suas vidas e interferindo
100
"Certa parcela da população de bairros pobres, residente em ruas sem infraestrutura, ou habitantes de
subúrbios com construções urbanas desiguais, iam aos jornais pedir a limpeza de determinadas áreas, a
visita de sanitaristas a fim de combater possíveis doenças que assolavam a região e acometiam vizinhos, a
capinagem e a retirada de lixo dos logradouros para evitar o aparecimento de moléstias, o calçamento de
uma alameda para acabar com o lamaçal". SANTOS, P., 2018, p. 141.
101
Ibid., p. 142.
102
Mota e Santos analisando a resistência popular na cidade de São Paulo, abordaram o caso de Astolpho
Ferreira de Oliveira que, em 1905, tentou obter habeas corpus para impedir a entrada de agentes
sanitários em sua casa, por se sentir "ameaçado de sofrer constrangimento ilegal por ter sido intimado
pelo inspetor sanitário Dr. Álvaro Motta para frequentar a entrada de sua casa". Seu pedido foi negado,
pois a ação visava um bem coletivo e "a ninguém é lícito fazer de sua casa um foco epidêmico, pondo em
perigo de vida os que nela habitam e a outrem". MOTA; SANTOS. Entre algemas e vacinas: medicina,
polícia e resistência popular na cidade de São Paulo (1890-1920). Revista Novos Estudos, n. 65, 2003. p.
164.
103
SANTOS, R., 2012, p. 60.
55
literatos, educadores, cientistas etc) giravam em torno do que fazer com o país, naquela
altura já composto por um enorme contingente de mestiços. O movimento sanitarista
esboçou mudanças interpretativas acerca do "atraso" nacional, propondo novas maneiras
de ver e ler a história do país. A figura emblemática do Jeca Tatu de Monteiro Lobato
simbolizava a regeneração.
Sempre presente em análises sobre o movimento sanitarista no Brasil ou do
período em apreço, o Jeca Tatu representa a mudança pessoal de um indivíduo
degenerado, totalmente esgotado, em um ser forte e empreendedor. O texto foi
originalmente publicado no O Estado de São Paulo e reunido com outros textos no livro
Problema Vital. O título - "Ressurreição" - já evidencia os propósitos do autor. A
caracterização do Jeca é a de um homem que "passava os dias de cócoras, pitando
enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma", um "gravíssimo
preguiçoso".... "além de vadio, bêbado". Com o diagnóstico de que, na verdade, sofria
de ancilostomíase, conforme o Dotô, realizou o tratamento receitado e ressurgiu.
Confiou na ciência, tomou remédios, passou a usar botina e não bebia mais (atentar para
o conselho de não ingerir álcool, uma frente defendida pelo movimento, pelas ligas de
higiene e pela eugenia). O caso do Jeca não podia ser uma exceção. A própria
personagem se conscientiza de que precisa - é seu dever - passar adiante os
conhecimentos adquiridos: "O meu patriotismo é este. Minha divisa: curar gente.
Abaixo a bicharia que devora o brasileiro". Ao final do texto, Lobato incita um conselho
aos leitores. Não qualquer leitor, mais os meninos que "nunca se esqueçam desta
história; e, quando cresceram, tratem de imitar o Jeca". Afinal, tal postura era um dever
patriótico e um ganho financeiro, dado que veriam "o trabalho dessa gente produzir três
vezes mais"108. É válido atentar para o fato de que esse discurso já era o da medicina.
108
LOBATO, Monteiro. Problema vital, Jeca Tatu e outros textos. São Paulo: Globo, 2010. p. 102 a 111.
57
109
RIEDEL, Gustavo. Atas e trabalhos da Liga Brasileira de Higiene Mental. Arquivos Brasileiros de
Higiene Mental, Rio de Janeiro, ano I, n. 1, 1925. p. 210. Beers foi um médico norte-americano que, nos
idos de 1900, foi internado em alguns sanatórios públicos e particulares para doentes mentais, em virtude
de alguns problemas psicológicos que o acometeram. Sua experiência nestes sanatórios resultou na edição
de seu livro A mind that found itself, no qual se opôs e criticou os tratamentos realizados naquelas casas.
A partir de sua experiência, lançou as bases do movimento da higiene mental, cujo objetivo foi modificar
a forma como o doente mental era visto e tratado, possibilitando uma assistência condigna. Além disso,
buscou prevenir a eclosão das doenças mentais. Seu trabalho foi a base para a higiene mental enquanto
proposta para a melhoria da assistência aos alienados. Em 1909 ele criou o Comitê Nacional de Higiene
Mental, cuja proposta foi disseminada mundo afora nas fundações de Ligas/Sociedades de Higiene
Mental.
110
REIS, José. Higiene mental e eugenia: o projeto de "regeneração nacional" da Liga Brasileira de
Higiene Mental (1920-1930). 1994. 353f. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade de Campinas, Campinas, SP, 1994. p. 43.
111
LOPES, Ernani. Ata da primeira reunião. In: Actas e Trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de
Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929. p. 13. No referido congresso de eugenia, a Liga recebeu uma
homenagem do evento, por meio de um voto de congratulações pela ação que então desenvolvia em prol
da eugenia.
112
Os Arquivos foram lançados em 1925 e tinham como objetivo "orientar os que deseja(ssem) colaborar
na campanha pela higiene mental [...]". No ano seguinte, 1926, sua publicação foi interrompida devido à
falta de recursos financeiros, retornando somente três anos depois, em 1929. Manteve-se regular até 1935
quando novamente ficou fora de circulação, retomando suas publicações em 1938 e findando
definitivamente em 1947. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 1, 1925. [s.p].
58
113
RIEDEL, 1925, p. 213.
114
CALDAS, Mirandolino. A higiene mental no Brasil. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de
Janeiro, ano III, n. 3, 1930. p. 74. Ao longo da leitura dos Arquivos, nas secções Noticiário e/ou Atas e
trabalhos da Liga, os redatores abordam as dificuldades encontradas em vários momentos, o que
evidencia que os problemas financeiros eram corriqueiros.
115
No editorial do segundo número dos Arquivos de 1932, cuja autoria não é identificada, afirma-se que a
Liga tinha como plano criar uma "clínica de hábitos" para pré-escolares e escolares, isso como "coisa
futura". Ela, segundo o redator, foi a única a pôr em prática tal ideia, quando, em 1925, "esboçou, em seu
efêmero serviço ambulatório de então, uma organização com o mesmo objetivo" Arquivos Brasileiros de
Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 2, 1932. p. 02.
116
O presidente interino da Liga, Dr. Faustino Esposel, relatou ter organizado um plano pormenorizado
para o serviço ambulatório de psiquiatria preventiva, na sede da Liga, dentro dos seguintes moldes.
Segundas-feiras: Prevenção dos acidentes nervosos da infância. Conselhos às mães e às amas, pelo Dr.
Gustavo de Rezende; Clínica de toxicômanos. Conselhos às suas famílias, pelo Dr. I. Cunha Lopes.
Terças-feiras: Assistência profilática aos pequenos nervosos, pelo Professor Maurício de Medeiros.
Quartas-feiras: Tratamento e prevenção das reações anti-sociais da infância, pelo Dr. Heitor Carrilho.
Quintas-feiras: Pesquisas genealógicas destinadas a orientar a higiene mental, pelo Dr. Floriano de
Azevedo. Sextas-feiras: As mesmas consultas das segundas-feiras. Sábado: Exames médicos periódicos,
visando a conservação da saúde mental, pelo Dr. Murillo Campos. Como complemento das consultas
dentro de curto prazo seria comissionado um médico para a assistência social em domicílio, ao qual
oportunamente prestariam auxílio vários assistentes sociais. Seria igualmente criado um consultório de
eugenia, a cargo de reputado especialista, que responderia por escrito, a consultas sobre questões sexuais
e profilaxia matrimonial. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 2, 1925. p. 149.
117
CALDAS, Mirandolino Apud REIS, 1994, p.70 a 71.
59
118
LOPES, Ernani. In: Caldas, Mirandolino. A Clínica de Eufrenia. Arquivos Brasileiros de Higiene
Mental, Rio de Janeiro, ano V, n. 2, 1932. p. 80.
119
ROXO, Henrique. Entrevista do professor Henrique Roxo ao O Globo em 01/11/1932. In: Caldas,
Mirandolino. A Clínica de Eufrenia. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, ano V, n. 2,
1932. p. 88.
120
CALDAS, Mirandolino. A eufrenia: ciência da boa cerebração. Arquivos Brasileiros de Higiene
Mental, Rio de Janeiro, ano V, n. 2, 1932. p. 65.
60
121
Ibid., loc. cit.
122
REIS, 1994, p. 249.
61
em termos de cultura e não de raça. Esse posicionamento diferia do da Liga que, cada
vez mais, enfatizava o aspecto hereditário, biológico, racial.
Na mesma perspectiva aventada por Reis, acreditamos que a falta de apoio da
prefeitura com relação aos trabalhos da Liga se conecta as diferenças na orientação
teórica da higiene mental. Em 1934, ano de ocorrência de tais fatos, a prefeitura estava
sob a administração de Pedro Ernesto, conhecido por seu trabalho direcionado à saúde,
educação e trabalho, e que detinha uma considerável aceitação popular. Por indicação
do novo prefeito, a Instrução Pública foi atribuída ao educador baiano Anísio Teixeira.
As ideias de Teixeira se distanciavam das da Liga, e tal como para Ramos, a
hereditariedade não detinha o peso dado pelos membros daquela congregação aos
problemas do país. Pedro Ernesto realizou obras em prol da saúde pública, como a
construção de hospital e prestou assistência à mulher gestante e à infância, além de ter
criado, em 1935, a Secretaria Geral de Saúde e Assistência. Esse trabalho da prefeitura
pode sinalizar a falta de interesse (e muito provavelmente de verbas, já que estava
investindo nesta área) em auxiliar a Liga, como avaliou Reis 123.
A infância foi uma descoberta profícua feita pela psiquiatria que encontrou um
lócus para exercer seus trabalhos. Quando o adulto apresentava problemas de ordem
mental, era na projeção do retrospecto que a criança surgia. A criança - "anormal" -
precisava ser preventivamente analisada, definida, separada e classificada, para assim
poder ser reordenada. Aqui uma hipótese da presente tese se impõe: a de que o SOHM
atuou como um sistema disciplinar suplementar para recuperar os indivíduos
desajustados, no caso, os escolares que apresentavam problemas comportamentais e de
aprendizagem que, para Ramos, tinha como substrato problemas psíquicos. Pode-se
aventar que o Serviço pensou e localizou as crianças por ele assistidas na categoria do
que Foucault chamou de resíduos, ou seja, os inclassificáveis a toda disciplina 124.
Com a compreensão de que os preceitos higienistas deveriam fazer parte da vida
das pessoas, a infância passou a ser um espaço privilegiado de intervenção. Põem-se em
relevo que a infância a ser esquadrinhada, a princípio, era aquela que incomodava, a que
estava nas ruas, a que era visível. Dessa maneira, eram as crianças pobres o foco
principal daquelas políticas. Crianças que eram vistas, de antemão, por suas origens
123
Ibid., p. 248-250.
124
FOUCAULT, 2006, p. 67. Foucault afirmou que esses resíduos acarretam "evidentemente o
aparecimento de sistemas disciplinares suplementares para poder recuperar esses indivíduos, e isto ao
infinito".
62
125
RAMOS, 1955, p. 15.
63
esse aluno ideal era, muito fortemente, a criança de família abastada. E elas não eram,
precipuamente, o público alvo das ações do Serviço, ainda que não estivessem
totalmente excluídas, haja vista ser um serviço de higiene mental. O foco principal
daquele órgão eram as crianças pobres.
O objetivo em pensar a criança como o adulto ajustado de amanhã era o mesmo
da Liga, porém, com distinções com relação à linha de abordagem: ambientalista para o
Serviço e organicista para a Liga 126. Mas essa agremiação tinha outras metas. Os dois
primeiros artigos de seu estatuto enunciam:
a) Atuar junto aos poderes públicos federal, estadual e municipais sugerindo medidas e
obtendo realizações;
126
Em carta enviada ao Jornal do Brasil (RJ), publicada no dia 15 de agosto de 1934, Arthur Ramos fez
uma correção sobre uma informação destinada à imprensa pelo IPE concernente ao SOHM, na qual se
afirmou ter sido o Serviço "o primeiro criado na América do Sul". Esclarece, então, ter sido "o primeiro
serviço oficial de ortofrenia e higiene mental à serviço da educação, funcionando num departamento
pedagógico". "A nota não se refere a prioridades de Serviços de Higiene Mental no Brasil. Isso é tão
óbvio, que afirmar o contrário seria desconhecer a existência da Liga Brasileira de Higiene Mental, [...] à
qual me honro de pertencer, na qualidade do mais modesto dos seus membros titulares. O nosso Serviço
de Ortofrenia e Higiene Mental, o primeiro criado oficialmente num Departamento de Educação, mantém
perfeita identidade de vistas e constantes intercâmbios de ideais com a Liga Brasileira de Higiene Mental
nas suas novas secções, de que destaco os trabalhos de higiene infantil sob a esclarecida orientação do
meu prezado colega Dr. Mirandolino Caldas". Ainda que Ramos afirme que o SOHM mantenha perfeita
identidade de vistas com a LBHM, não o percebemos dessa maneira, pois, como enfaticamente afirmado,
a base de trabalho do Serviço não tinha no biológico a sua sustentação, sendo, inclusive, crítico a isso.
Com relação ao intercâmbio realizado com aquela instituição, o Jornal do Brasil, de 4 de outubro de
1934, estampou a reportagem "VII Semana Anti-Alcoólica - o trabalho da LBHM", na qual a Liga
destaca que o dia será destinado à propaganda nos meios escolares. Em comunicação com Anísio
Teixeira, este recomendou as professoras que incluíssem em suas lições do dia ensinamentos temperantes
aos alunos. Houve ainda um "entendimento" com o chefe do SOHM, e a Liga sugeriu que fosse realizada
nas quatro escolas experimentais, clássicas experiências do ensino antialcoólico.
64
As metas traçadas pela Liga permitem antever como elas foram de amplo
alcance: prevenção, cuidados com quem entrava e com quem saía dos manicômios e/ou
asilos, e, como consta no item quatro, a realização de um programa de higiene mental e
eugenia que englobava o plano individual, escolar, profissional e social, deixando
poucas esferas de fora. No individual leia-se a família e demais círculos de relações; no
escolar amplie para todos os funcionários da escola, os próprios alunos e, por extensão,
toda a sua família; no profissional toda a estrutura que lhe sustentava e cercava; e no
social, absolutamente tudo o que lhe flanqueava.
A Liga era composta por doze secções de estudo, cada qual com até dez
membros128. Em decorrência da enorme dificuldade de reunir tais membros para as
discussões de trabalho, foi realizada a reforma no Estatuto, em fevereiro de 1928 129. Nos
Arquivos foram feitas algumas considerações a respeito dos trabalhos realizados
naquelas secções de estudo, dentre as quais se destacou a parte teórica em detrimento da
prática130. O artigo destacou a "aptidão para o letargo que a maioria das secções de
estudo tem revelado", sublinhando que "trabalham com brilho algum tempo, e em
seguida, num hábito muito latino, deixam-se estar longo prazo em adinamia. Tão longo
prazo é esse, às vezes, que, não raro, finda o mandato da diretoria da secção, e eis esta
acéfala". Nesta publicação, foram cobradas tarefas não realizadas, a exemplo da secção
I (Dispensários e Assistência Social), que recebeu um projeto de estatutos para o
127
Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 1, 1925. p. 223 a 234.
128
Eis as secções por ordem numérica, após a reforma do Estatuto: Dispensários e egressos dos
manicômios, Assistência hospitalar aos psicopatas, Legislação social, Medicina legal e prevenção da
delinquência, Educação e trabalho profissional, Ensino e vulgarização da neuropsiquiatria, Higiene
mental militar, Propaganda e publicidade, Higiene mental infantil, Medicina geral e especializada em suas
relações com o sistema nervoso, Cirurgia geral e especializada em suas relações com o sistema nervoso,
Psicologia aplicada e psicanálise.
129
O Estatuto reformado foi publicado nos Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 1,
1929. p. 39 a 47.
130
Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 2, 1932. p. 108 a 115.
65
patronato dos egressos e não o levou adiante. Entretanto, também são relatadas as ações
realizadas pelas demais secções.
Aquela instituição utilizou os Arquivos como meio de divulgação de seus
trabalhos, existindo, para isso, a secção Atas e trabalhos da Liga Brasileira de Higiene
Mental e a secção Noticiário, presentes em todos os números da revista, nas quais foram
expostas todas as notícias referentes à Liga, tais como palestras no Brasil e no exterior
proferidas por seus membros. A partir de 1929, duas novas secções passaram a integrar
a publicação: a Secção de informações bibliográficas e a Secção de informações
neuropsiquiátricas. Ambas foram criadas para atender o público (notadamente médico)
com suas dúvidas a respeito de bibliografias, tratamentos, diagnósticos, atualizações
médicas etc.
No que tange à Secção de informações bibliográficas, consta no periódico um
pequeno quadro a ser preenchido e enviado para a Liga, cujas respostas seriam dadas na
mesma secção do número seguinte da revista. Na Secção de informações
neuropsiquiátricas, consta que, caso os médicos desejassem "trocar ideias com os
especialistas da Liga, sobre casos de sua clínica, pod(iam) escrever para esta secção".
Para obterem as respostas, os interessados deveriam remeter à revista "um resumo da
história clínica do doente, salientando os pontos duvidosos do diagnóstico e declarando
qual a terapêutica até então empregada" 131. Se o caso fosse urgente, a resposta seria
enviada o quanto antes, via carta.
Os cursos ofertados pela Liga foram igualmente referenciados nos Arquivos. O
segundo número de 1932 traz um item só para abordar os cursos, conferências,
congressos científicos e propagandas feitas pela imprensa. Esta listava vários desses
trabalhos já realizados. A campanha antialcoólica foi outra frente defendida pela Liga.
Desde o primeiro número dos Arquivos, o tema esteve presente, ganhando, inclusive,
uma secção permanente intitulada Trabalhos de antialcoólismo. Parte desses artigos não
possui autoria, outros são transcrições de falas sobre o assunto ocorridas em eventos, a
exemplo da pronunciada pelos médicos Miguel Couto e Juliano Moreira na secção
inaugural da Semana Antialcoólica em outubro de 1929. Mesmo quando a referida
secção não constava no exemplar, havia artigos relacionados ao tema.
A Liga se empenhou em divulgar informações sobre os malefícios do álcool no
corpo e na mente, e dos sérios problemas que causava para o convívio social. Em
131
Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 1, 1929. p. 18.
66
virtude disso, não economizou energia em prol da proibição legal da venda de álcool no
país. Inicialmente defendeu o proibicionismo, como alentou Miguel Couto, ao invés da
lei seca imediata, em decorrência "da necessidade de começar por medidas de
transição"132. Outra solução paliativa cogitada foi encarecer a bebida para assim
diminuir o consumo, como propôs Leitão Cunha, cuja fala foi, igualmente a de Couto,
transcrita na secção Trabalhos de Antialcoolismo nos Arquivos133.
Com relação à proibição, um fator agravava a sua eficácia e mesmo a sua
implantação: a indústria e o comércio. Os comerciantes, segundo Ernani Lopes, eram
frequentemente chamados como testemunhas de crimes, cuja causa era o álcool que eles
vendiam, sem sofrerem qualquer penalidade legal134. Mirandolino Caldas declarou a
existência de um projeto elaborado pelo deputado Plínio Marques que se encontrava na
Câmara dos Deputados e estava à espera de se tornar lei. Esse projeto propunha "taxar
proibitivamente o álcool-bebida e proibir a venda dos inebriantes nos domingos e
feriados"135. A venda da bebida nos períodos festivos foi fortemente combatida, haja
vista o temor frente ao aumento no número de alcoolizados a perambular pela cidade
causando distúrbios à ordem pública, práticas condenadas não somente pela Liga.
O meio aventado como o mais eficaz para impedir a proliferação de alcoólicos
foi a conscientização. Esta seria alcançada por intermédio da publicidade e da educação.
Juliano Moreira alertou que a enorme quantidade de analfabetos no país consistia um
obstáculo considerável136. Por isso, clamou pela educação do povo e pela necessidade
de convencimento das crianças "de que (era) preciso dar combate aos fatores
deseugenizantes da espécie, sobretudo o álcool e outros tóxicos [...]". Essa
conscientização antialcoólica deveria começar com as crianças, o que explica o fato do
tema ser frequente nas escolas. Ernani Lopes declarou que o mais importante era
"educar nos princípios abstêmios as novas gerações" e isto significava que o ensino
antialcoólico deveria ser instituído "desde as escolas primárias em todos os Estados da
Federação"137.
A ingestão e abuso do álcool geraram muitas discussões médicas e políticas.
Envolveu o comércio, a legislação, o lazer, hábitos e gostos, a manutenção da ordem
132
Ibid., p. 14.
133
Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, n. 1, 1929.
134
LOPES, Ernani. Noticiário. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, ano I, n. 1, 1925.
p. 162.
135
CALDAS, Mirandolino. As nossas campanhas. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de
Janeiro, ano II, n. 2, p. 57-60, 1929. p. 58 a 59.
136
MOREIRA, 1925, p. 196 a 197.
137
LOPES, 1925, p. 200.
67
pública e dos bons costumes. A população foi chamada para atuar junto à Liga e a ela
foram dirigidos conselhos. Além disso, alguns concursos foram criados por ela, a
exemplo do "melhor hino antialcoólico", cujo prêmio foi entregue ao Sr. Renato
Lacerda, em 1935138.
Com relação ao álcool, o agrônomo acriano Octávio Domingues manteve
opinião contrária à defendida pela Liga. Afirmou que, se apenas o que estava no plasma
germinativo era herdado, e se as condições do meio só exerciam influência sobre
aptidões herdadas, era um erro supor que o combate ao alcoolismo significaria ausência
desse mal na prole. O alcoolismo, segundo ele, era o efeito e não a causa. Efeito porque
já estava codificado no gen dos indivíduos. Por isso, reiterou que o combate ao
alcoolismo "não somente (era) um equivoco ao distinguir as causas do fenômeno e seus
efeitos - como (era) fazer tudo, menos Eugenia" 139. Para outros estudiosos da época, a
bebida foi identificada como uma doença social. Em vista disso, o combate ao seu uso
foi pensado como uma "longa jornada de regeneração social" e, por esse motivo, uma
luta que envolvia a todos140.
O álcool foi indicado como um traço degenerativo, de caráter hereditário, para
grande parte dos integrantes da Liga. Para Ramos, seu uso estava ligado ao meio, às
frustrações, aos conflitos íntimos do homem. O álcool seria, segundo ele, um derivativo
para as "decepções, lutas, problemas de ordem afetiva e econômica" vivenciadas pelo
indivíduo141. Era uma fuga da realidade. Com relação às campanhas antialcoólicas (não
citando a LBHM), ele, então membro daquela agremiação, afirmou pouco adiantar listar
os males do álcool e os seus perigos (ações da Liga), "em campanhas cheias de
pateticismo", se as suas causas não fossem estudadas: "conflitos sentimentais,
pauperismo, subalimentação"142.
138
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 11 jul. 1935. Mundanidades, Homenagens, p. 07.
139
DOMINGUES, Octávio. A hereditariedade em face da educação. São Paulo: Biblioteca de educação,
1929. p. 144.
140
CALDAS, 1929, p. 57.
141
RAMOS, 1955, p. 30-31.
142
Ibid., loc., cit. A convite da LBHM, tornou-se membro titular da Secção de Estudos de Psicologia
Aplicada e Psicanálise, em 4 de setembro de 1933. Como consta em seu currículo, ao receber tal convite,
proferiu a conferência "A psicanálise infantil e sua importância na pedagogia e na higiene mental".
Publicou nos Arquivos Brasileiros de Higiene Mental os seguintes artigos: "A técnica da psicanálise
infantil" no circular número 3, ano VI de 1933 e "Os furtos escolares", número 3, ano VII de 1934.
Assinou algumas resenhas na secção Resenhas e Análises do referido periódico (Ano VI, n° 3, 1933; Ano
VII, n° 1, 2, 3 e 4, 1934; Ano VIII, n° 1, 2, 3 1935) e uma nota biográfica intitulada "Precursores e
pioneiros da higiene mental na América - Nina Rodrigues (1862-1906)", no circular números 1, 2, 3, Ano
VIII, 1935. Essas informações podem ser encontradas no Currículo Vitae de Arthur Ramos, [s.d.t], 1945,
p. 42, 27 e 29.
68
143
RAMOS, 1955, p. 31.
144
Ibid., loc., cit.
145
CARRILHO, Heitor. Considerações sobre profilaxia mental e delinquência. Arquivos Brasileiros de
Higiene Mental, Rio de Janeiro, ano I, n. 1, 1925. p. 134.
146
LOPES, Ernani. Menores incorrigíveis. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de Janeiro, ano
III, n. 7, 1930. p.246.
147
DOMINGUES, 1929, p. 96.
69
148
RAMOS, 1955, p. 21.
149
RIEDEL, 1925, p. 212.
150
LIMA; HOCHMAN. Pouca saúde e muita saúva: sanitarismo, interpretações do país e ciências sociais.
In: HOCHMAN; ARMUS (orgs.). Cuidar, Controlar, Curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na
América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. p. 501.
70
Em 1869, o inglês Francis Galton publicou seu livro Hereditary Genius (o gênio
hereditário) promovendo, nas palavras de Souza "as discussões sobre o controle da
reprodução humana e o papel da seleção social na preservação das 'boas gerações'".
Ainda segundo esse autor, "com esta obra, Galton introduziu um conjunto de ideias que,
em 1883, ele denominou de eugenia, 'a ciência da hereditariedade humana'" 151. Como
avaliou Carvalho, "a criação do termo parecia uma ânsia por buscar uma palavra que
sintetizasse suas ideias que vinham sendo formuladas há quase duas décadas" 152.
A preocupação com a reprodução de indivíduos sãos e fortes antecede a Galton,
bem como as ideias de eliminação dos inadequados. O controle e seleção reprodutivos
passaram a ganhar importância no mundo; e as tabelas, gráficos e a estatística ofereciam
provas (numéricas) de que era preciso agir em prol do coletivo, mais uma vez acionado.
O contingente de inaptos, doentes e inviáveis aterrorizava por sua própria existência e
pela reprodução de seus vícios e deformações, consoante o pensamento da época. Se a
151
SOUZA, Vanderlei. A política biológica como projeto: a "eugenia negativa" e a construção da
nacionalidade na trajetória de Renato Kehl (1917-1932). 2006. 220f. Dissertação (Mestrado em
História) - Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz. Rio
de Janeiro, 2006. p. 09.
152
CARVALHO, Leonardo. A eugenia no humor da Revista Ilustrada Careta: raça e cor no Governo
Provisório (1930-1934). 2014, 316f. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Ciências e
Letras, Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2014. p. 58.
71
153
CONT, Valdeir. Francis Galton: eugenia e hereditariedade. Revista Scientla e Studia, v. 6, n. 2, 2008.
p. 204.
154
Ibid., p. 208.
155
Ibid., p. 203 a 204.
72
156
CASTAÑEDA, Luzia. Eugenia e Casamento. História, Ciência, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro,
v. 10, n. 3, 2003.
157
CONT, 2008, p. 209.
158
Renato Kehl publicou dois livros voltados à escolha do (da) parceiro (a) ideal: Como escolher um bom
marido (1923) e Como escolher uma boa esposa (1924). Os livros estavam destinados às mulheres e aos
homens na busca pelo parceiro (a) ideal, deixando claro o dever de cada um na hora da escolha. Os
antecedentes familiares eram de grande importância e valor, devendo o interessado buscar conhecer a
família do pretendente.
159
CASTAÑEDA, 2003, p. 925.
73
160
Ibid., p. 917 e 921.
161
Sociedade Alemã para a Higiene Racial (1905, Alemanha), Sociedade para Educação sobre Eugenia
(1907, Inglaterra), Escritório de Registros de Eugenia (1910, EUA), Sociedade Eugênica Francesa (1912,
França). STEPAN, Nancy. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina, Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2005. p. 45.
162
Ibid., p. 36.
163
SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-
1930. São Paulo: Cia das Letras, 2008. p. 61.
74
164
CARVALHO, L., 2014, p. 114.
165
Ibid., p. 51.
75
166
KEHL, Renato. A eugenia no Brasil: esboço histórico e bibliográfico. In: Actas e Trabalhos do
Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929a.
167
Ibid., p. 53.
168
Ibid., loc., cit.
169
A Comissão Central Brasileira de Eugenia (CCBE) foi criada em 1931. O intuito com esta fundação
foi, conforme seu fundador, "intensificar o estudo e propaganda da eugenia no Brasil". Porém, não se
limitou a isso, uma vez que também se prontificou a "colaborar em qualquer projeto governamental que
vis(asse) interesses eugênicos ou para-eugênicos", incluindo os relativos à "imigração, povoamento,
saneamento, educação sexual, às exigências modernas pré-matrimoniais, à fundação de estabelecimentos
ou laboratórios para estudos galtonianos". Kehl relatou que, embora a divulgação da eugenia estivesse
ocorrendo no país, faltava-lhe uma organização científica permanente, o que foi sanado com aquela
Comissão. Esta foi composta por dez membros e tinha como propósito: 1) Manter no país o interesse
pelo estudo das questões de hereditariedade e eugenia; 2) propugnar pela difusão dos ideais de
regeneração física, psíquica e moral do homem; 3) Prestigiar ou mesmo auxiliar os empreendimentos
científicos ou humanitários de caráter eugênico e digno de apreço. Além destas informações, o Boletim de
Eugenia apresenta o estatuto da CCBE e a transcrição da entrevista concedida por Kehl ao Jornal do
Brasil, onde se arguiu o porquê da fundação da Comissão. KEHL, Renato. Uma nova entidade científica
que aparece: A Comissão Central Brasileira de Eugenia. Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, ano III, n.
27, 1931. p. 01. É salutar destacar que o interesse em fundar um centro de estudos eugênicos antecede a
fundação da CCBE. Desde 1919, segundo Reis, os psiquiatras brasileiros pretendiam criar um "Centro
Eugenético" na Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal. Ainda segundo este
autor, ao criar o Ambulatório Rivadávia Corrêa, Gustavo Riedel afirmou que seu objetivo era transformá-
lo em um "Instituto Eugênico destinado como é a profilaxia das doenças mentais e nervosas. REIS, 1994,
p. 42.
76
em 13 de abril de 1917, na Associação Cristã dos Moços em São Paulo. O seu objetivo
com a criação de uma associação desse gênero era congregar "médicos, advogados e
outros interessados no estudo e difusão das questões biológicas e sociais em benefício
da nacionalidade"170. Em 15 de novembro de 1918, foi inaugurada a Sociedade
Eugênica de São Paulo.
A Sociedade se reunia no salão nobre da Santa Casa de Misericórdia, contava
com cerca de 140 membros e além de promover secções ordinárias e extraordinárias e
ser um veículo de propaganda, "ainda concorreu para a formação de núcleos
eugenizadores entusiastas em alguns países sul-americanos"171. Embora sediada em São
Paulo, contou com membros de outros estados como Belisário Penna, Juliano Moreira e
Afrânio Peixoto, todos, na época, radicados no Rio de Janeiro. Além de contar com
associados de outros estados da federação, a Sociedade foi composta por representantes
de variados campos de formação e atuação, contando também com políticos em suas
cadeiras.
A divulgação de seus trabalhos foi feita por meio da imprensa e por intermédio
dos Anais de Eugenia (1919), publicado pela editora da Revista do Brasil, de
propriedade de Monteiro Lobato. A imprensa foi uma aliada para muitos eugenistas que
publicaram suas interpretações sobre variados assuntos ligados à eugenia. O fato de
alguns jornais e revistas serem propriedades de entusiastas do assunto, como O Estado
de São Paulo que pertencia a Júlio de Mesquita, facilitou as publicações.
O médico paulista Arnaldo Vieira de Carvalho, na época diretor da Faculdade de
Medicina de São Paulo, teve destacada importância para a fundação e manutenção
daquela Sociedade172. A sua morte foi um dos motivos que ocasionou o fim da
Sociedade, ou a entrada em estado de latência como afirmou Kehl, somada à ida deste
eugenista para o Rio de Janeiro 173. Apesar de seus esforços para mantê-la em atividade,
"ninguém quis arcar com os encargos de a manter em atividade" 174. O autor de Lições
de Eugenia referenciava Carvalho como um entusiasta e grande apoiador do estudo da
Eugenia.
A transferência de Kehl para o Rio de Janeiro permitiu uma maior divulgação da
eugenia, com a ampliação de espaços dedicados ao debate e de adeptos à causa. Kehl
170
KEHL, 1929a, p. 53.
171
Ibid., loc., cit.
172
Sobre Arnaldo Vieira de Carvalho, ver DANTES; SILVA (orgs). Arnaldo Vieira de Carvalho: e a
história da medicina paulista (1687-1920). Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2014.
173
Kehl, op., cit., p.56.
174
Ibid., loc., cit.
77
chegou a um Rio de Janeiro já seduzido pelo assunto, portanto, campo fértil para a
continuidade de seus esforços e trabalhos iniciados na capital paulista. A publicação do
Boletim de Eugenia, em 1929, demonstra esta continuidade. Esta publicação pertencia a
Kehl, era mensal e dirigida por seu proprietário. Na capa do periódico, há a informação
de que ele era editado em propaganda do Instituto Brasileiro de Eugenia 175. Seu
conteúdo era composto por pequenos artigos, notas, publicidade, resenhas, indicações
bibliográficas e informações gerais relativas ao assunto (no Brasil e no mundo), tudo
numa linguagem simples e clara, como enfatizou seu diretor. Ainda que modesto, com
seu pequeno formato e poucas páginas, o Boletim fora criado com o intuito de, nas
palavras de Kehl, "auxiliar a campanha em prol da Eugenia entre os elementos cultos e
entre os elementos que, embora de mediana cultura, desejam, também, orientar-se sobre
o momentoso assunto"176.
O Boletim foi um importante veículo de propaganda da ciência galtoniana no
Brasil. Sua aquisição era gratuita, bastando apenas solicitar um exemplar. Esta
gratuidade perdurou até a publicação do número 6-7, referente aos meses de junho e
julho de 1929. A partir desses meses, passou a ser separata da Medicamenta e sua
assinatura anual passou a custar 5$000177. A publicação do Boletim permitiu a Kehl a
divulgação não apenas da eugenia, como também de seu nome. Tanto no Brasil quanto
no exterior, ele já era referenciado como uma autoridade no assunto. Utilizou o
175
Tal Instituto não existia. Era uma aspiração de Kehl que "um dia, talvez, se torn(asse) realidade". Na
edição de fevereiro de 1929 do Boletim, na primeira página, ele escreveu um pequeno artigo sobre o
assunto, destacando os fins do Instituto. Afirmou neste texto que não bastavam boa vontade e intenção
para levar adiante um Instituto de Eugenia. Segundo ele, o intuito com o referido Instituto "se limitará a
lançar somente a semente, até que um milagre se faça - surgindo, então, o novo templo, onde se cuidará
da nacionalidade brasileira [...]". Para que os leitores pudessem ter uma ideia do que seria este Instituto,
ele elaborou um resumido esboço. Teria três secções distintas: uma de propaganda, uma de atividade
prática e outra de estudos científicos. A primeira estaria incumbida de organizar e de manter inteligente e
constante propaganda de educação higiênica pelas revistas e jornais profanos, a distribuir folhetos e
cartazes com ensinamentos a popularizar. A segunda estaria encarregada de promover a execução das
medidas propostas para melhorar as condições das proles, esforçando-se junto às autoridades constituídas
para o estabelecimento de medidas legais de combate aos fatores de degeneração. E a terceira seria
responsável pela organização de um arquivo genealógico e dos estudos compreendendo a hereditariedade,
a genética, a biométrica, a estatística, as pesquisas biológicas e sociais relativas aos problemas eugênicos.
KEHL, Renato. Instituto Brasileiro de Eugenia: ligeiro esboço, fins do Instituto, o que é necessário fazer.
Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, v .1, n. 2, 1929b. p. 1.
176
KEHL, Renato. Boletim de Eugenia e "Medicamenta". Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, ano I, n. 6-
7, 1929b. p. 01.
177
Na edição de junho/julho de 1929, quando o Boletim se uniu à Medicamenta (revista médica), há uma
nota escrita por Kehl explicando tal aliança. A convite do amigo Theophilo de Almeida, Kehl "não
hesit(ou) em incorporar o (seu) modesto 'Boletim' como suplemento da 'Medicamenta', uma das mais
acatadas e apreciadas revistas médicas brasileiras". Tal união permitiu uma divulgação maior da Eugenia,
objetivo máximo de Kehl com o Boletim, uma vez que "além da tiragem independente e anual de mil
exemplares [...]", seria possível "alcançar todos os leitores (da Medicamenta) que se espalham de norte ao
sul do país" Ibid., p. 1.
78
178
PENNA, Belisário. Eugenia e Eugenismo. Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, ano I, n. 10, 1929. p.
03.
79
povo, produzindo saúde, vitalidade e bem estar, ou doenças, vícios e decadência, do que
a raça e as condições naturais de salubridade ou insalubridade regional" 179.
Dois meses antes da publicação de Eugenia e Eugenismo por Penna, Kehl havia
escrito um artigo, exatamente com o mesmo título, igualmente publicado no Boletim.
Nesse texto, ele buscou desfazer a confusão que se fazia entre eugenia e eugenismo.
Assumindo uma mea culpa, afirmou que no início da divulgação da eugenia no país,
não foi muito claro quanto as suas delimitações e propósitos. Desse modo, foi dito que
"educar era eugenizar" e "sanear era eugenizar". Entretanto, julgava já ser o momento
de esclarecer melhor o que era a eugenia, distinguindo-a do eugenismo para evitar as
confusões e generalizações até então estabelecidas. Para isso, era preciso deixar muito
claro que a eugenia possuía fronteiras bem delimitadas. Ela propunha a melhoria e
proteção da espécie, garantidas pela preservação e favorecimento das boas disposições
hereditárias. A sua finalidade era permitir a reprodução das boas heranças. Tudo aquilo
que pudesse auxiliar a prática eugênica, seria o eugenismo: "aplicação prática, social e
individual das medidas que concorrem para o melhoramento humano" 180. Nesse campo
estavam incluídas a educação, o saneamento, a higiene, o esporte.
Os posicionamentos diferentes desses dois pensadores demonstram a
coexistência de duas visões que diferentes, embora aparentemente contraditórias, não se
anulavam. Imbuídos pelos ideais sanitários, considerável parte da intelectualidade
brasileira leu a eugenia como uma proposta que se casava bem com os princípios acima
citados. Por essa razão, ela foi, muitas vezes, compreendida como sinônimo de higiene.
As discussões e trabalhos na esfera sanitária já estavam consolidadas no país.
Este fato não podia ser ignorado. Como declarou Stepan, nas duas primeiras décadas do
século XX, o Brasil era líder em ciências biomédicas e saneamento na América
Latina181. O país já detinha certo respeito e mesmo reconhecimento no exterior. Assim,
nas palavras de Carvalho, a eugenia "encontrou-se como mais uma vértebra para toda
discussão que se desencadeava de traçar um projeto nacional" 182. No entanto, ainda que
as apropriações da eugenia tenham sido largas no Brasil, com devidas seleções de
abordagens por variadas vertentes do pensamento nacional, como bem destacou Engel,
179
Ibid., loc., cit..
180
KEHL, Renato. Eugenia e Eugenismo. Boletim de Eugenia, Rio de Janeiro, ano I, n. 8, 1929b. p. 01.
181
STEPAN, Nancy. Eugenia no Brasil, 1917-1940. In: HOCHMAN; ARMUS (orgs.). Cuidar, controlar,
curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Fiocruz,
2004. p. 20.
182
CARVALHO, L., 2014, p. 109.
80
183
ENGEL, Magali. Os intelectuais e a Liga de Defesa Nacional: entre a eugenia e o sanitarismo? (RJ,
1916-1933). Revista Intellèctus, Rio de Janeiro, v. XI, 2012. p. 24.
184
A título de exemplificação, é possível citar nomes como os de Ernani Lopes, presidente da LBHM, a
partir de 1929, do deputado e médico Oscar Fontenelle, Porto-Carrero, Pacheco e Silva, Xavier de
Oliveira, Azevedo Amaral, Octávio Domingues, entre muitos outros.
185
KEHL, Renato. A esterilização os grandes degenerados. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio
de Janeiro, ano I, n. 2, 1925. p. 69.
186
CARNEIRO, Levi. Educação e eugenia. In: Actas e Trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de
Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p. 107-116, 1929. p. 113.
187
RIEDEL, Gustavo. O dispensário psiquiátrico como elemento de educação eugênica. In: Actas e
Trabalhos do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929. p. 306.
81
Kehl de forma isolada. Ele não acreditava que ela, por si só, daria origem, em suas
palavras, à "elite eugênica". Em sua perspectiva, ela seria uma das medidas
complementares da política eugênica. O eugenista paulista assegurou que "a Eugenia
não quer(ia) a esterilização à marreta, como não pretend(ia) a prática de medidas à
Licurgo", ainda que considerasse maior crueldade "assistir impassível, à multiplicação
de desgraçados que sofrem o calvário de uma cegueira, de uma surdo-mudez, arrastado
pela vida afora"188. Para ele, a esterilização dos degenerados e criminosos deveria passar
por um critério que "deveria estar fundamentado em elementos cuidadosamente
verificados, em demonstrações positivas de herança patológica", lembrando que havia
casos em que era indispensável uma rememoração familiar, "a fim de estabelecer a
procedência da tara hereditária 189.
Na concepção dos eugenistas, a adoção de práticas eugênicas significava tanto
um melhoramento biológico humano, quanto uma diminuição nos gastos públicos com
a construção de manicômios, asilos, prisões e albergues. Esses eram ambientes que
congregavam os indivíduos "que dificulta(vam) e onera(vam), pesadamente, a parte sã e
produtiva da sociedade"190. Pensando no dinheiro a ser poupado pelo Estado, na
perspectiva da higiene mental, Arthur Ramos também afirmou que o cuidado, desde a
infância, poderia prevenir o aparecimento de conflitos e desajustamentos nos adultos.
Esse cuidado possibilitaria que estas crianças crescessem e se tornassem "adultos
harmônicos, sem conflitos de adaptação, ajudando a comunidade, em vez de perturbar o
ritmo coletivo e pesar nos orçamentos públicos" 191. No entanto, ainda que pensando no
mesmo assunto sublinhado por Kehl - a economia financeira -, Ramos não defendeu a
necessidade de eliminação ou controle sobre determinados indivíduos (degenerados)
como propugnou aquele.
Ramos tinha ciência de que os estudos sobre a hereditariedade já haviam
comprovado ligações entre a herança e algumas doenças mentais. Todavia, ponderava
que o meio ambiente creditava influências sobre a formação da personalidade, muito
mais do que a herança biológica. Em virtude disso, criticou o repúdio à realização da
mestiçagem feito por aqueles que defendiam uma higiene racial. Para ele, o país não
precisava de cruzamentos eugênicos, apenas melhorar o que se tinha, eliminando "os
188
KEHL, 1925, p. 71.
189
Ibid., p. 72.
190
KEHL, Renato. A campanha da Eugenia no Brasil. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de
Janeiro, ano IV, n. 2, 1931. p. 93.
191
RAMOS, 1955, p. 18.
82
deficits ambientais de toda natureza". Ele compreendia que os males que se creditavam
à raça, provinham, na verdade, "de condições higiênicas deficitárias: subalimentação,
pauperismo, doenças, alcoolismo..."192.
Ao pensar numa melhora biológica, no contexto europeu e norte-americano, os
adeptos da ciência eugênica vislumbravam frear o aumento dos degenerados. O temor
era a degeneração. No contexto brasileiro, a leitura foi feita pelo viés da regeneração. A
eugenia chegou ao Brasil como um baluarte da regeneração. Para alguns intelectuais da
época, esta seria possível por intermédio de um ambiente favorável, com acesso à saúde
e educação de qualidade; para outros, a solução seria o impedimento da reprodução dos
considerados degenerados. Mesmo os que pensavam nesta segunda chave, não
descartavam a interferência do meio ambiente sobre o indivíduo, porém, não
acreditavam em sua função regeneradora, uma vez que as ações ambientais não influíam
no plasma germinativo. Todavia, como seria possível determinar os que poderiam
procriar e os que não? Como seria feita esta seleção, haja vista a miscigenação ser alta
no Brasil? A dificuldade em responder a estas questões, fez com que as medidas
eugênicas mais radicais sofressem mais críticas, tornando as propostas preventivas mais
atrativas e fáceis de serem debatidas. Pensar em ações higiênicas e educacionais como
maneiras de regenerar a nação era mais comumente aceita. Entretanto, é preciso
destacar que as medidas mais enérgicas, como já afirmado, também estiveram em
circulação e discussão em solo nacional.
A craniometria e a frenologia foram teorias, com status científico, que
propugnaram a hierarquia das raças193. Os brancos foram considerados os representantes
da estirpe superior humana, sendo, por essa razão, indicados como os responsáveis pela
regeneração dos julgados decaídos. Essa regeneração ocorreria tanto por meio dos
cruzamentos entre eles (brancos), que desta maneira ampliariam a sua linhagem, quanto
pelo cruzamento entre eles e os não brancos, no intuito de, aos poucos, depurarem a
raça. Há de se destacar que esse depuramento também logrou questionamentos, haja
vista o pensamento também presente de que tal cruzamento diluiria o sangue branco,
tornando-os fracos e incapazes. Foi sob a alegação desta segunda proposição que a
política do branqueamento foi defendia no Brasil.
192
Ibid. p. 30.
193
Uma boa análise sobre estas teorias poder ser encontrada em SCHWARCZ, 2008; GOULD, Stephen.
A falsa medida do homem. Tradução de Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 1999 e
HERMAN, Arthur. A ideia da decadência na história ocidental. Tradução de Cynthia Azevedo e Paulo
Soares. Rio de Janeiro: Record, 1999.
83
194
Um século para o país se tornar branco foi a projeção feita pelo médico João Batista de Lacerda,
diretor do Museu Nacional (1895-1915) e representante brasileiro no Primeiro Congresso Universal das
Raças, sediado em Londres, no ano de 1911. Lacerda apresentou o trabalho “Sobre os mestiços no
Brasil”. Este artigo tratava da mestiçagem no Brasil e do branqueamento de sua população. Levou
consigo o quadro de Modesto Broccos, Redenção de Cam, que não foi encomendado para ser levado e
apresentado neste Congresso, tendo sido pintado em 1895. Resumidamente, o quadro apresentava a
imagem de uma anciã negra, uma jovem de tez mais clara com um bebê branco no colo e um homem
branco. Pelo contexto histórico no qual o quadro foi confeccionado, por seu título e pelas intenções de
Lacerda ao utilizá-lo como referencial, pode-se interpretar tal imagem como a realização do
branqueamento do brasileiro, simbolizado, no caso, pela criança que não por acaso está no centro da
pintura. Vale destacar o papel patriótico exercido pelas personagens em tela, ao ficar claro seus
relacionamentos com indivíduos brancos, clareando assim suas proles. Tanto que a imagem do avô da
criança se faz dispensável, uma vez que sua mãe já tem a pele mais clara que a de sua avó negra. A mãe,
por sua vez, buscou um pai branco para sua filha. Assim, no curso de três gerações seria possível o Brasil
se tornar uma nação branca. Um prazo que foi criticado por Sílvio Romero que o achava muito otimista,
enquanto outros o achava muito longo. Sobre a presença de Lacerda no referido Congresso ver SOUZA;
SANTOS. O congresso universal das raças, Londres, 1911: contextos, temas e debates. Bol. Mus. Pará
Emílio Goeldi Cienc. Hum, Belém, v. 7, n. 3, 2012; SCHWARCZ, Lilia. Previsões são sempre traiçoeiras:
João Baptista de Lacerda e seu Brasil branco. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro:
Fundação Oswaldo Cruz, v. 18, n. 1, 2011; LACERDA, João. O Congresso Universal das Raças reunido
em Londres (1911): apreciação e comentários. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1912; SEYFERTH,
Giralda. João Batista de Lacerda: a antropologia física e a tese do branqueamento da raça no Brasil.
[s.d.t]. Sobre o quadro de Broccos, ver CARDOSO, Rafael. A arte brasileira em 25 quadros (1790-1930).
Rio de Janeiro: Record, 2008.
84
nacional" 195. Segundo esta autora, o discurso racial esteve presente, sobretudo, nas
discussões acerca da imigração articulada com o povoamento e nas questões referentes à
assimilação196. A ideia da assimilação foi ganhando força diante da necessidade que se
impunha de branquear a população brasileira, sendo a imigração uma possibilidade real.
Para isso, os imigrantes tinham que ser selecionados e deveriam estar abertos ao
processo de assimilação, dificuldade apresentada pelas colônias alemãs no Sul do país,
então homogêneas em sua cultura e hábitos e, por isso, fortemente criticadas. O
imigrante ideal deveria ser branco, saudável e assimilável.
As teses eugênicas endossaram tal princípio, determinando os que podiam ou
não entrar no país, por meio de suas listas de desejáveis e indesejáveis. E nesta
classificação, ainda que bastante importante, o fator racial não era o único item levado
em consideração, pois a saúde e disposição para trabalhar também estavam incluídas. Já
no governo Imperial houve o apoio com relação a vinda de imigrantes ao país que
possuíssem um perfil agrícola, e que tivessem a intenção de ocupar as terras "vazias" e
desenvolver a agricultura familiar. Segundo Seyferth, a preocupação e a ênfase do
governo brasileiro era sobre a qualidade e experiência agrícola do imigrante 197.
Xavier de Oliveira, médico e membro da LBHM, em artigo publicado nos
Arquivos asseverou que um número grande e crescente de imigrantes lotavam os
hospitais e manicômios do país, isto ocorrendo em decorrência da falta de seleção por
parte do governo nacional. Para ele, esse era um problema grave que progredia "com a
cumplicidade de um governo de homens cultos e patriotas, mas que, embora estadistas,
desconhecem as conquistas da ciência moderna e não ouvem os conselhos dos seus
cultores maiores"198. Da mesma maneira, o também médico Pacheco e Silva bradou a
necessidade dos políticos ouvirem a ciência quando esta postulava a seleção legal dos
imigrantes. Alertou que se o seu protesto "não fo(sse) ouvido pelos legisladores,
195
SEYFERTH, Giralda. Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. Revista USP, São Paulo, n.
53, 2002. p. 118.
196
Conforme Seyferth, "Nos idos de 1850 ou 1860, assimilar significava adequação do estrangeiro à
formação latina e católica do país, mantendo-se, por certo, a opção preferencial pelos brancos, agora da
Península Ibérica e da Itália. Protestantes e nações avessas à assimilação (como os alemães) passaram à
condição de indesejáveis, especialmente quando o conceito incorporou uma dimensão racial, qual seja,
um ideal específico de miscigenação associado à imigração branca". Ibid., p. 129.
197
SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de
imigração e colonização. In: MAIO; SANTOS (orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro:
Fiocruz/CCBB, 1996. p.47.
198
OLIVEIRA, Xavier de. Da profilaxia mental dos imigrantes. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental,
Rio de Janeiro, ano V, n. 1, 1932. p. 30.
85
ninguém poder(ia) dizer, mais tarde, [...] que os psiquiatrias brasileiros se descuidaram
do assunto e que a Liga Brasileira de Higiene Mental não cumpriu o seu programa 199.
A preocupação em torno da imigração esteve presente na agenda das ligas e
sociedades científicas nacionais, envolvendo personalidades reconhecidas
nacionalmente como o médico Miguel Couto. Em discurso proferido em junho de 1928,
em comemoração ao 99° aniversário da Academia Nacional de Medicina, Couto
afirmou saltar aos olhos "a importância do problema imigratório, capaz só ele de
frustrar por contaminação todas as conquistas obtidas pelo esforço e a ciência em prol
da raça que habita o nosso solo"200.
A imigração foi pensada por alguns eugenistas como necessária, porém, com
ressalvas ao tipo do imigrante. E isso porque, segundo Juliano Moreira, o Brasil não
podia aceitar qualquer um e acabar como um escoadouro de emigrado indesejável 201.
Porém, é necessário destacar que para este psiquiatra brasileiro, o cuidado era com o
imigrante indesejável sob o ponto de vista mental. Muitos estudiosos do assunto
solicitaram restrições legais a determinados imigrantes em decorrência da raça. A
preocupação de Moreira era, sobretudo, com a sanidade ou a insanidade mental
daqueles que queriam viver no país.
Moreira buscou demonstrar a necessidade de seleção para imigrantes por meio
da estatística. Em seu artigo A seleção individual de imigrantes no programa de higiene
mental, apresentou dados estatísticos de dez anos (1905-1914) de pacientes admitidos
no Hospital Nacional de Alienados para tratamento de doenças mentais. Com os
referidos dados, verificou que dos 7212 alienados homens, 2258, isto é, mais de 31%
eram estrangeiros202. Ao abordar sobre os custos que esses doentes geravam para o país,
destacou a importância dos manicômios e outros estabelecimentos de assistência à
psicopatas na profilaxia de doenças nervosas e mentais. Nesse último aspecto, Gustavo
Riedel corroborou com a mesma opinião ao enfatizar a importância e necessidade dos
dispensários psiquiátricos enquanto um local de profilaxia e de educação 203. No artigo
mencionado, Moreira solicitou aos legisladores e homens de Estado do país que
199
SILVA, Pacheco e. Imigração e higiene mental. Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, Rio de
Janeiro, ano I, n. 2, 1925. p. 35.
200
COUTO, Miguel. Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. In: Actas e Trabalhos do Primeiro
Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, p. 07-10, 1929. p. 07.
201
MOREIRA, 1925, p. 109.
202
Ibid., p. 111.
203
RIEDEL, 1929, p. 306.
86
204
MOREIRA, op., cit., p. 114.
205
Ibid., p.115.
206
AMARAL, Azevedo. O problema eugênico da imigração. In: Actas e Trabalhos do Primeiro
Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, v. 1, 1929. p. 337.
207
Ibid., p. 336.
208
Ibid., loc., cit.
87
interrompido por Roquette-Pinto ao declarar que "todo o progresso do Brasil foi feito
por essa gente proveniente de cruzamentos, ora taxados de inferiores". Ao abordar sobre
a produção anual brasileira, comparando-a à Argentina, Fontenelle afirmou que ela era
inferior devido a raça brasileira, tendo sua exposição mais uma vez interrompida por
Roquette-Pinto que declarou não ser a raça e sim as doenças (ancilostomíases, malária
etc) as responsáveis pela inferioridade na produção. Na mesma ocasião, o professor
Fernando de Magalhães afirmou que a eugenia não excluía a humanidade e que as
restrições impostas à imigração eram uma injustiça, uma vez que todo o passado
nacional se fundava no mestiço. Diante do fervor de posicionamentos frente à questão,
Amaral pediu que esta conclusão fosse retirada, o que foi negado pelo presidente Levi
Carneiro ao afirmar que assim procedendo, um assunto relevante seria omitido. Posta
novamente em votação, tal conclusão foi rejeitada pelos participantes do Congresso por
25 votos a 17209.
A discussão em torno da imigração foi ampla, com os intelectuais pressionando
os políticos a tomarem medidas enérgicas na seleção do imigrante desejável. A pressão,
no entanto, não se limitou somente a esse assunto. Na ocasião do Congresso Brasileiro
de Eugenia, em 1929, os palestrantes enfatizaram a necessidade de levar suas ideias à
Câmara. A interferência no âmbito político e jurídico foi uma prática realizada por
muitos dos estudiosos da época. Os projetos de leis pela obrigatoriedade do exame pré-
nupcial e do combate ao álcool e outros tóxicos exemplificam esta afirmação. No
âmbito da educação, afirmou Levi Carneiro em sua explanação sobre Educação e
Eugenia que "o Estado precisa contrabalançar toda a sua própria influência nefasta,
consagrando em lei, erigindo em dogmas imperativos, os ditames dos eugenistas,
fixando, sob a orientação deles a sua organização educacional" 210.
Os eugenistas apresentaram a educação enquanto espaço privilegiado para a
aplicação das teses eugênicas e como meio de difusão de seus princípios. Mesmo os
adeptos de uma leitura mendeliana, caso de Octávio Domingues, não a descartaram
como uma via poderosa para "melhorar tendências e desenvolver inteligências
medíocres", ressaltando, no entanto, que aquela não poderia "mudar, modificar a
constituição hereditária do indivíduo"211. Se a educação somente conseguiria despertar
aquilo que era herdado, Domingues afiançou seu maior aproveitamento quando aplicada
209
Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, Rio de Janeiro, 1929. p. 16 a 22.
210
CARNEIRO, 1929, p. 115.
211
DOMINGUES, 1929, p. 124.
88
aos indivíduos com maior aptidão intelectual, moral e física. Para ele, no âmbito da
prática das medidas eugênicas, a educação tinha uma função "das mais necessárias e
primordiais", que era o convencimento, no caso, realizado pelo educador212. Esse
convencimento poderia ser alcançado ao ensinar "a todos os humanos a beleza das
uniões eugênicas, e pregar o horror à reprodução entre os tipos cuja herança biológica
claudicante (fosse) uma ameaça total à descendência". A instrução, advinda com a
educação, conscientizaria o indivíduo que, "convicto de que sua herança é má, e a sua
descendência, um escárnio, (faria) tudo por evitar essa descendência" 213.
É perceptível que algumas bases foram comuns aos sanitaristas, higienistas,
eugenistas e educadores para a edificação de seus projetos: a escola enquanto o melhor
espaço para a ação, a criança enquanto público dessa ação, a infância na condição de
fase propícia para as práticas ensejadas e a família como membro e extensão de todo
trabalho projetado. Por essa razão, interessa-nos entender como as três últimas
categorias foram sendo transformadas em lócus de trabalho, uma vez que elas também
funcionaram como um tripé sobre o qual se estruturou não apenas o SOHM, como toda
a reforma anisiana.
212
Ibid., p. 143.
213
Ibid., p. 144.
214
Ver ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da infância. Tradução de Dora Flaksman. 2 ed. Rio
de Janeiro: Guanabara, 1986.
89
215
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil: 1890-1930. 2. edição. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 120.
216
FERLA, Luis. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo (1920-1945).
São Paulo: Alameda, 2009. p. 42.
217
RIZZINI, Irene. Salvar a criança. In: ______. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas
para a infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011. p. 83.
90
218
Ibid., p. 91.
219
FREIRE; LEONY. A caridade científica: Moncorvo Filho e o Instituto de Proteção e Assistência à
Infância do Rio de Janeiro (1899-1930). História, Ciência, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 18,
supl. 1, 2011. p. 201.
220
CUNHA; BOARINI. A infância sob a tutela do Estado: alguns apontamentos. Psicologia: teoria e
prática, São Paulo, v. 12, n. 1, 2010. p. 212.
221
RIZZINI, 2011, p. 89.
222
FERLA, 2009, p. 264. "A Escola Positiva de direito penal, também chamada de italiana, moderna ou
científica, surgiu e se difundiu nas últimas décadas do século XIX, a partir dos trabalhos do italiano
Cesare Lombroso [...]. A escola se caracterizava por um discurso médico-científico que patologizava o
ato anti-social. Dessa forma, o delinquente seria um doente; o crime, um sintoma; a pena ideal, um
tratamento". Essa escola é conhecida também como antropologia criminal, "ainda que não tenha
precisamente o mesmo significado".
223
"Na criança de um ano é, às vezes, possível já reconhecer o futuro criminoso. É na primeira infância,
ou na puberdade, que se revelam as primeiras tendências para as atitudes anti-sociais, que se concretizam
e agravam progressivamente, sob a influência geral do ambiente. Existem, na criança, os chamados 'sinais
91
Para esse médico, como para muitos outros no decênio de 1930, a educação poderia
corrigir e eliminar tendências criminosas apresentadas pela criança, ao passo que para
Lombroso isso era impossível, haja vista o criminoso nato ser um incorrigível, como
abonou Ferla. Ainda segundo esse autor, no tempo de Ribeiro o conceito de
predisposição tinha mais sentido do que os conceitos deterministas da época de
Lombroso. Portanto, trabalhando com o de predisposição, as crianças se tornavam alvo
de um estudo individual e minucioso por estarem predispostas ao crime, alcançando
assim a sua profilaxia 224.
A Escola Positiva entendia que a biologia regia as atitudes do indivíduo, por essa
razão o livre-arbítrio não tinha sentido. Já a Escola Clássica, não só acreditava como
defendia a tese do livre-arbítrio, entendendo que o criminoso deveria pagar por seus
crimes, tendo por base a sua livre escolha em realizá-lo. Porém, quando o crime era
realizado por um menor, essa tese se tornava mais questionável fazendo com que as
ideias dos adeptos da primeira escola se tornassem preferíveis às da segunda, conforme
Ferla225. Dessa querela adveio o embate pelo reconhecimento da menoridade enquanto
uma categoria específica que, por essa natureza, teria um regimento e tratamento
igualmente específicos. Em 1927, com o Código de Menores, o menor de 18 anos
passou a se submeter a uma autoridade competente. A ideia era de que, protegendo a
criança se estaria salvando a nação, fosse de sua presença e consequências de seus atos,
se reportando aqui ao menor criminoso, fosse por intermédio de ações que os tornassem
bons cidadãos.
Essa preocupação com a criança envolveu médicos, políticos, juristas,
educadores brasileiros no começo do século XX, mas era de abrangência global. A
mortalidade infantil foi, inicialmente, o grande problema que chamou a atenção para a
necessidade de cuidados com a infância. Sempre sob a ótica de salvaguardá-la em nome
da nação, teve-se a criação do Instituto de Proteção à Infância no Rio de Janeiro, em
1899, posteriormente com filiais pelo país, a ampliação da puericultura, criação de
secções específicas a elas em agremiações, a exemplo da LBHM, criação do
Departamento da Criança no Brasil, em 1919, do Departamento Nacional da Criança,
em 1940, além de eventos e publicações voltadas para o assunto.
de alarme' de tais predisposições e tendências ao crime, sinais que podem ser de natureza morfológica,
funcional ou psíquica". Leonídio Ribeiro, Apud FERLA, op., cit., p. 264.
224
Ibid., p. 266.
225
Ibid., loc., cit.
92
Esse modelo patriarcal que retratava o perfil de família ideal não era
unanimidade, como posto. E, tratando das famílias das crianças assistidas pelo SOHM,
fica evidente essa assertiva: pais divorciados, casais amasiados, presença de padrastos
e/ou madrastas, mães solteiras, mães abandonadas, mães e pais viúvos, crianças
226
Sobre o Congresso, ver Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, [s.d.t], p. 122.
Disponível pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Higiene Mental e Eugenia:
http://old.ppi.uem.br/gephe/index.php/inicio
227
SAMARA, Eni. A família no Brasil: história e historiografia. História Revista, Goiás, v.2, n.2, 1997.
p. 10.
228
RAGO, 1987, p. 74.
93
adotadas, órfãs, enfim. Fugindo desse modelo, no qual o patriarcado era a regra,
considerável parte das famílias humildes tinha nas mulheres as principais bases
sustentadoras da família. O trabalho assalariado dessas mulheres merece destaque.
Todavia, "ironicamente, apesar de ser evidente que em muitos casos a mulher trazia o
sustento principal da casa, o trabalho feminino continuava a ser apresentado pelos
advogados e até pelas mulheres como um mero suplemento à renda masculina" 229.
229
FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: DEL PRIORI, Mary (org.). História das mulheres
no Brasil. 8 ed., São Paulo: Contexto, 2006. p. 517.
230
FREIRE, Maria. "Ser mãe é uma ciência": mulheres, médicos e a construção da maternidade científica
na década de 1920. História, Ciência, Saúde - Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 15, supl., 2008. p. 154.
231
Idem. Mulheres, mães e médicos. discurso maternalista em revistas femininas (Rio de Janeiro e São
Paulo, década de 1920). 2006. 333f. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em
História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 2006. p. 51.
94
A intervenção médica e a sua fala de que as mães não sabiam cuidar de seus
filhos, precisando, por essa razão, de suas orientações - o que fundamentava a criação
de revistas, folhetos e cartilhas -, foi larga e alcançou grande êxito. E as ações do
SOHM, delimitando a questão a esta tese, demonstram como esse discurso era operante
na década de 1930 e em meio a um projeto educacional. Como veremos no quarto
capítulo, por intermédio das fichas dos alunos, o Serviço atuava diretamente no
convívio familiar, por meio das visitadoras sociais, e prescrevia orientações do que fazer
e do que não fazer na frente dos filhos, como se portar, como educar, como deveria ser a
oferta de afeto, a alimentação, a dormida, o lazer, a instrução sexual, enfim, uma gama
enorme de preceitos. É válido destacar que quando as famílias se negavam a seguir tais
conselhos, eram responsabilizadas pelos desvios de toda ordem de seus rebentos e
desqualificadas na arte de educar. Portanto, fica claro como o Serviço utilizava seu
poder institucional para imprimir uma adesão.
A luta por direitos que assegurassem uma proteção materno-infantil foi uma das
demandas do movimento feminista que alcançou vitórias importantes concernentes à
questão. A maternidade esteve presente na agenda feminista de maneira bem incisiva
nos séculos XIX e XX, ainda que houvesse controvérsias entre as correntes feministas.
Essas controvérsias, segundo Freire, existiam quanto ao fato da maternidade enquanto
função fisiológica ou como trabalho, e com relação às conquistas, se como uma "ação
'paternalista' de proteção ou como ação 'maternalista' de garantia de direitos" 232. A sua
atuação se manifestou de maneira ativa, cuidando de seus filhos e cuidando dos das
outras. Quando a mulher foi chamada para assumir a responsabilidade de ser mãe,
transpondo para o público o que lhes competia no meio privado do lar, ela ganhou as
ruas e a possibilidade de lutar por direitos e espaços na política e no mercado de
trabalho.
232
Ibid., p. 52.
95
dominante para alcançar outras demandas que eram fins a que almejavam chegar233.
Nesse sentido, concordamos com Soihet quando sustenta que "ao se utilizarem dessas
imagens, embora aceitando certas diretivas estabelecidas para as mulheres pela ordem
vigente, (as feministas) busca(vam) sua instrumentalização com vistas a ampliar seu
espaço de atuação, o que acreditavam inviável de outra forma" 234. Não ir contra às
concepções da época acerca da mulher, bem como contra a Igreja e os políticos não
significa, ao nosso ver, resignação, mas uma tática de luta, na qual criavam a
possibilidade de falarem e serem ouvidas e, nessa operação, se tornavam capazes de
conduzirem suas reivindicações.
233
Entendemos por tática a designação de Michel de Certeau que a definiu como "um cálculo que não
pode contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade
visível". Como ela não tem lugar, depende do tempo para alcançar uma "possibilidade de ganho", tem-se
"constantemente que jogar com os acontecimentos para os transformar em 'ocasiões'". Aproveita-se das
condições postas e impostas para conseguir seus objetivos, aproveitando brechas e manipulando-as.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 3ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. p. 46 a 47.
234
SOIHET, Rachel. A pedagogia da conquista do espaço público pelas mulheres e a militância feminista
de Bertha Lutz. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 15, 2000. p. 106.
235
Artigo 121 da Constituição de 1934.
96
da Mulher fosse criada236. Segundo Lôbo, a Comissão, cuja presidência coube a Lutz,
estava "encarregada da regulamentação dos dispositivos constitucionais que trata(vam)
dos diretos assegurados à mulher nos parágrafos 1° e 3° do Art. 121 e no artigo 138 que
confer(ia) às três esferas do poder público a incumbência de amparar a maternidade e a
infância"237.
236
LÔBO, Yolanda. Bertha Lutz. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Ed. Massangana, 2010. p. 79. Lutz
havia ficado como suplente do deputado Candido Pessoa nas eleições de 1933. Com a sua morte em 1936,
ela assumiu a vaga, tornando-se deputada.
237
Ibid., p. 82.
238
BARBOSA, Michele. A proteção à maternidade e à infância: o Departamento Nacional da Criança
(DNCR) e a consolidação de suas propostas durante o Estado Novo. In: Anais do Colóquio Nacional de
Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, [s.d.t], p. 685.
97
modelo de família patriarcal. Apesar dos esforços, o Estatuto não veio a ser aprovado
em decorrência do golpe de Estado em 1937 que fechou o Congresso 239.
A Igreja teve uma atuação marcante nos trabalhos caritativos e buscou nas
mulheres o apoio às suas causas, fosse doando verbas, desempenhando funções nas
instituições de caridade ou as fundando. Ainda assim, esse empenho religioso, na visão
de Martins, não é suficiente "para se entender a feminilização da filantropia ocorrida
entre o século XIX e XX. A ideologia da domesticidade e a valorização moral das
mulheres através dos cuidados e da maternidade constituem o pano de fundo para a sua
visibilidade pública"241. Se, por um lado, essa concepção acerca da maternidade acabou
239
Estatuto da Mulher Apud LÔBO, 2010, p. 115 a 126.
240
MARTINS, 2015, p. 22.
241
Ibid., p. 24 a 25.
98
enfatizando uma hierarquia de gênero, por outro lado, ela possibilitou às mulheres um
certo poder sobre assuntos de seu interesse, porém, não considerados de sua alçada 242.
No Brasil dos anos 1920, houve sobre a maternidade uma exigência na qual
muitas variantes foram totalmente desconsideradas, a exemplo das condições
econômicas, do abandono dos pais com relação à família, da expulsão de casa a que
muitas mulheres com seus filhos foram expostos etc. Chamadas para assumirem o
compromisso da maternidade, lhes eram ditados que atendessem a sua biologia,
acreditassem em seu instinto materno, que não bastava, que ouvissem os médicos, que
executassem os preceitos por eles recomendados, que se tornassem ativas. A saúde e
bem estar da família é o que simbolizaria a sua dedicação e êxito.
Elas precisavam estar atentas aos seus lares e o que antes configuravam
atividades cotidianas, como a amamentação, alimentação artificial, brincadeiras, higiene
corporal, o vestuário, enfim, passaram a ser ações cientificamente norteadas. Porém,
nem todas as mães podiam atender a este chamado, notadamente as pobres, fosse em
decorrência da necessidade de estarem ausentes da casa ou por falta de instrução. Nesse
sentido, livros e cartilhas passaram a ser confeccionados para atender a esse público
que, contudo, não era específico, uma vez que estava destinado a todas as mães. Muitos
dos autores eram médicos e escreviam de maneira clara e objetiva os preceitos a serem
242
Ver MARTINS, op., cit., e FREIRE, 2006.
99
243
MARTINS, Ana. "Vamos criar seu filho": os médicos puericultores e a pedagogia materna no século
XX. História, Ciência, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, n. 1, 2008. p. 137.
244
Ibid., loc., cit.
245
Ibid., p. 141.
246
RIZZINI, Irene. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente.
Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyala, 2004. p. 22 e 24.
100
247
BARBOSA, [s.d.t], p. 680.
248
Decreto-Lei n° 24.278 de 22 de maio de 1934.
249
Ibid., p. 30 a 31.
250
FONSECA, Cristina. A saúde da criança na política social do primeiro governo Vargas. Physis -
Revista de saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, 1993. p. 98.
101
251
Segundo Fonseca, "a origem das escolas-hospitais estava associada ao atendimento de crianças
aleijadas e tuberculosas e à influência do ambiente sobre o seu tratamento" (Ibid., p. 107). Já existiam em
outros países desde o século XVIII, tendo sido inaugurada no Brasil em 1938, por intermédio do médico
piauiense Oscar Clark, no Rio de Janeiro, precisamente ás margens da lagoa de Araruama. A ideia mestre
era de que o ambiente poderia contribuir na cura de certas doenças, daí a localização da unidade. Com um
perfil voltado para os cuidados com as crianças, incluindo a sua retirada da família quando julgasse
pertinente, a Escola-Hospital Dr. José de Mendonça demonstrava a sua aliança discursiva com o Estado,
principalmente por acreditar poder proporcionar "as condições favoráveis para que as crianças se
desenvolvessem de forma equilibrada, com saúde, educação e preparadas para o trabalho". Ibid., p. 109.
252
SILVA, Renato. "Abandonados e Delinqüentes”: A infância sob os cuidados da medicina e do Estado
– O Laboratório de Biologia Infantil (1935-1941), 2003, 131f. Dissertação (Mestrado em História)
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro,
2003. p. 53.
253
FONSECA, C., op., cit., p. 113.
102
254
VARGAS, Apud SILVA, Gustamara. Educação, saúde e assistência no Estado Novo: o Departamento
Nacional da Criança, [s.d.t], [s.p].
255
Decreto-Lei n° 2.024 de 17 de fevereiro de 1940, Capítulo II: Dos órgãos administrativos federais
relativos à proteção à maternidade, à infância e à adolescência.
103
256
SILVA, G., [s.d.t], [s.p].
257
Conforme Barbosa, a Assistência Obstétrica Familiar esteve voltada para as gestantes, auxiliando os
partos domiciliares. Já as Gotas de Leite consistiam na doação de leite para as mães pobres e necessitadas,
com a distribuição sendo realizada pelos Postos de Puericultura, que eram estruturas administradas pelos
municípios. Também era de sua incumbência a orientação às mães com relação à amamentação. As
Missões da Infância Feliz, por sua vez, destinavam-se à distribuição de alimentos nutritivos, além de
prestar orientação às mães sobre o que preparar para seus filhos. BARBOSA, [s.d.t], p. 687 a 688.
258
RIBEIRO, Lidiane. Puericultura e políticas públicas de assistência materno-infantil: o Instituto de
Puericultura da Universidade do Brasil, 1937-1954. In: XXVIII Simpósio de História: lugares dos
historiadores - velhos e novos desafios. 2015, Florianópolis: UFSC, 2015. p. 6. Grifo nosso.
104
autora citada, as conferências contavam com 16 aulas teóricas, cada qual com duração
de uma hora259.
259
As conferências insidiam na parte teórica, cujos temas eram: "definição do conceito de puericultura;
particularidades anatômicas do recém nascido; os primeiros cuidados com o recém nascido; vantagem de
alimentação ao seio e perigos alimentares; princípios fundamentais da alimentação artificial; noções sobre
vitamina na alimentação infantil; o desmame e a alimentação da criança dos seis meses aos dois anos de
idade; profilaxia das doenças agudas e a vacinação; natimortalidade e a puericultura pré-natal; o cuidados
especiais com os recém nascidos prematuros; causas da mortalidade infantil; noção de higiene mental na
infância; a proteção legal da maternidade e da infância e a proteção médico-social à maternidade e à
infância e seu valor na luta contra a mortalidade infantil". Já a parte prática abarcava: "o estado nutritivo
do lactente; diluições do leite de vaca, processo de esterilização doméstica e preparo prático da ração;
leites ácidos e leite de cálcio, preparo e manejos; leite condensado e em pós, preparo e manejo; mingaus e
misturas; emprego dos vegetais na alimentação do lactente". Boletim do Instituto de Puericultura, Apud
RIBEIRO, 2015, p. 8.
260
Decreto-Lei n° 98 de 23 de dezembro de 1937.
105
O que ficou bem definido neste capítulo é que a escola, criança, infância e
família passaram a constituir campos para que os ensinamentos higiênicos e eugênicos
fossem propagados. O enfoque projetado pelos eugenistas sobre o meio escolar, as
crianças e seus familiares esteve pautado sobre um viés organicista, sobre as heranças
genéticas de cada um, preponderantemente. Interessa-nos pensar como os objetivos do
SOHM se coadunaram, ou não, com esses ideais, importando, igualmente, refletir como
a reforma educacional de 1931 leu esses princípios eugênicos. Essas indagações serão
analisadas nos capítulos seguintes.
106
CAPÍTULO 2
261
SHUELER; MAGALDI. Educação escolar na Primeira República: memória, história e perspectivas de
pesquisa. Revista Tempo, Rio de Janeiro, n. 26, 2009. p. 37-38.
107
262
Ibid., loc., cit.
263
LAHUERTA, Milton. Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização. In:
LORENZO; COSTA (orgs). A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: Unesp, 1997.
p. 93.
264
MATOS, Hebe. A vida política. In: SCHWARCZ, Lilia (coord.). A abertura para o mundo: 1889-
1930. Madrid; Rio de Janeiro: Fundação Maphre; Objetiva, 2013. p. 127.
108
265
Ibid., p. 128.
266
GOMES; ABREU. A nova "Velha" República: um pouco de história e historiografia. Apresentação.
Tempo, Rio de Janeiro, n. 26, 2009. p. 02.
109
267
Sobre as reformas de Instrução Pública, ver CARVALHO, Marta. Reformas da Instrução Pública. In:
LOPES; FARIA FILHO; VEIGA (orgs). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica,
2000.
268
Vale ressaltar que para os pioneiros da educação nova, a interferência do Estado se dava no domínio
da coordenação das iniciativas educacionais, como asseverou Xavier, porém, sendo conduzidas por
pessoas capazes para tais tarefas. A educação não poderia ser usada para determinados interesses
políticos. Ela deveria se manter como campo autônomo. XAVIER, Libânia. O debate em torno da
nacionalização do ensino na Era Vargas. Revista Educação, Porto Alegre, v. 30, n. 2, 2005. p. 108.
269
BOMENY, Helena. Novos talentos, vícios antigos: os renovadores e a política educacional. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v. 06, n. 11, 1993. p. 27.
110
era externo, buscando um ideal nacional estrangeiro, sobretudo, eurocêntrico. Com este
intento foi elaborado o Brasil mestiço.
Como afirmou Lilia Schwarcz, "a partir desse momento, o ‘mestiço vir(ou)
nacional’, paralelamente a um processo crescente de desafricanização de vários
elementos culturais, simbolicamente clareados em meio a esse contexto”275. Há de se
assinalar que essa desafricanização da cultura popular não foi alcançada, podendo,
ainda, sustentarmos que se tratou de um projeto fracassado. Pensamos a cultura popular
em termos de pluralidade e em cada manifestação cultural há a presença da cultura afro-
brasileira. Por maior que tenha sido o empenho do Estado Varguista e de seus
ideólogos, incluindo até mesmo a violência e a proibição, como no caso da religiões de
matriz africana, não foi possível desafricanizá-las. A elevação, feita pelo próprio
Estado, da capoeira enquanto esporte nacional (e não mais crime), por exemplo, ou do
carnaval como uma festa brasileira evidenciam que nem mesmo ele conseguiu se
desvencilhar da cultura negra fortemente presente na vida nacional, já que parte
constituinte da nação.
A positivação da mestiçagem, a busca pela identidade nacional, a defesa da
existência de uma democracia racial no país foram intensamente realizadas no decênio
de 1930. Houve um interesse crescente pelo estudo da formação social do país. Uma
leitura da história nacional passou a ser feita pelo viés culturalista, com a chegada do
pensamento de Franz Boas. Contudo, apesar dos estudos passarem a se voltar para a
cultura enquanto "alternativa" para o fatalismo racial e da acolhida de Boas entre parte
da intelectualidade brasileira, o biologismo determinante não desapareceu do discurso.
Além disso, outras vias interpretativas, para além da cultura, foram acionadas por
pensadores brasileiros e anteriores ao decênio de 1930, tal como a higiene, educação e o
sanitarismo.
274
DUTRA, Eliana. Cultura. In: GOMES, Ângela (coord.). Olhando para dentro: 1930-1964. Rio de
Janeiro: Objetiva; Madrid: Mapfre, 2013. p. 229.
275
SCHWARCZ, Lilia. Complexo de Zé Carioca: Notas sobre uma identidade mestiça e malandra.
Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, n. 29, 1995. p. 56 e 57.
112
Arthur Ramos foi um dos intelectuais que trabalhou com a cultura enquanto
chave explicativa para o "atraso" nacional. Esse tipo de abordagem se alinhava bem
com os interesses de um Estado que afirmava a identidade por meio da valorização da
raça, da mestiçagem, da cultura. Não afirmamos que Ramos tenha trabalhado para ou
com o Estado "Novo", mas que seus escritos responderam a uma perspectiva que
passava a ser, cada vez mais, valorizada. Enfatizamos que suas obras condenavam o
determinismo racial, as teorias raciais e seu uso ainda vigente no país e a concepção da
miscigenação como uma degeneração. Com as leituras do filosofo francês Lévy-Bruhl,
aderiu a sua teoria da mentalidade primitiva, depositando nessa hipótese a explicação
para o "atraso" referido 276. Dessa maneira, retirou da raça e da prática da mestiçagem o
peso até então dado enquanto responsável pelos problemas do país.
A nacionalidade e a valorização do trabalho e do trabalhador foram dois eixos
fundamentais da política Varguista. No período dos decênios de 1930 e 1940 houve
políticas voltadas ao trabalhador, entendido como uma síntese do povo brasileiro, como
asseverou Gomes, que lhes garantiu benefícios e direitos sociais inéditos: carteira de
trabalho, férias remuneradas, carga horária regulamentada, salário mínimo, entre outros.
Todavia, não se pode creditar a conquista de tais benefícios como os únicos motivos
pelos quais os trabalhadores apoiaram Vargas, pois, assim procedendo, elimina-se a
capacidade daqueles sujeitos de pensarem e de seu poder de decisão, tornando-os
submissos a uma troca. A obediência política proveniente desses ganhos simbólicos só
pode ser assim caracterizada se por ela "ficar entendido o reconhecimento de interesses
e a necessidade de retribuição"277.
Ferreira analisou a leitura que os trabalhadores fizeram do Estado "Novo" e de
sua ideologia política por meio das cartas que enviaram ao presidente Vargas,
evidenciando a consciência que os remetentes tinham acerca do novo regime político e
de como utilizaram o conhecimento em proveito próprio: um aumento salarial, um
emprego, uma intervenção contrária a uma demissão, enfim. Em tom de agradecimento
276
No segundo item do terceiro capítulo desta tese, dedicado ao pensamento de Arthur Ramos com
relação à psicanálise e à educação, o conceito de mentalidade primitiva, bem como a interpretação de
Ramos concernente a esta teoria, será analisado. Por ora, antecipamos que esta teoria, de autoria do
filosofo francês Lucien Lévy-Bruhl, afirmava que todo indivíduo possuía uma mentalidade primitiva,
independente da raça. As representações de ideias deveriam ser apreendidas com base na objetividade. A
mentalidade primitiva não compreendia o mundo dessa maneira, com base racional, uma vez que o lado
emocional influenciava toda e qualquer concepção de vida e mundo. Essa mentalidade possuiria uma
lógica particular, impregnada pela interferência direta e constante das potências invisíveis que regiam
suas vidas e mortes.
277
GOMES Apud FERREIRA, Jorge. A cultura política dos trabalhadores no primeiro governo Vargas.
Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, 1990. p. 191.
113
278
Ibid., p. 188.
279
OLIVEIRA, L.,1989, p. 181.
280
DELEUZE; FOUCAULT. Os intelectuais e o poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder.
São Paulo: Graal, 2013. p. 131.
114
povo era apresentado como uma massa homogênea, incapaz de pensar e agir por si só,
precisando de condutores que falassem em seu nome.
Homens de ciência ou homens das letras, a intelectualidade nacional se
posicionava como essa entidade de fala. Todavia, com o implantação do Estado "Novo"
houve um esforço maior por parte do regime político para atrair a classe com fins de
trabalho conjunto. A função do intelectual foi questionada e, como avaliou Velloso,
houve um "confronto entre o papel dos intelectuais no final do século passado e no
regime do Estado Novo". Isso porque aquele intelectual que se resguardava no alto de
sua "torre de marfim", "tendo como único objetivo a preocupação literária" foi criticado
pelo governo que passava a exigir destes indivíduos uma atuação política, um
engajamento social281.
O Estado "Novo" conclamou estes intelectuais a pensarem e se engajarem no
projeto de construção da nação na esfera política. Mas se tratava de uma convocação
aos seus ideais de nação. Alguns deles, a exemplo de Azevedo Amaral, Oliveira Vianna
ou Cassiano Ricardo, se tornaram ideólogos do regime e estiveram a seu serviço,
conforme sua ideologia. Neste momento, havia a cobrança para que os intelectuais se
tornassem indivíduos de pensamento, mas também, ou sobretudo, de ação. Com a
ressalva de ser uma ação dirigida pelo próprio Estado. Não era, portanto, todo
intelectual bem vindo.
As reformas educacionais ocorridas no país na década de 1920, que ficaram
restritas a alguns estados e em caráter isolado, tiveram a oportunidade de ser ampliadas
no decênio seguinte. Havia a possibilidade real de serem realizadas. A criação do
MESP, tendo sido um dos primeiros atos do Governo Provisório, gerou grandes
expectativas nos educadores não apenas pela oportunidade concreta de efetivação de
reformas, mas também pela esperança de se tornarem personagens centrais na
construção da nação e desse novo homem brasileiro que se exigia. Os educadores
projetavam sobre o Ministério a esperança de que com ele se organizasse a educação
nacional em todos os níveis, do primário ao universitário.
Na concepção de Fernando de Azevedo, um dos efeitos imediatos e mais
fecundos da "revolução" de 1930 foi a facilitação e intensificação da circulação de
ideias e de trocas culturais. O educador paulista chamou a atenção para a ausência de
281
VELLOSO, Mônica. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: Cpdoc,
1987. p. 7 a 8. Obviamente que não se afirma aqui que os intelectuais não se posicionavam politicamente,
até mesmo porque as obras de muitos deles já representam, por si só, um espaço de crítica, de resistência,
oposição, de colocação e embates políticos.
115
282
AZEVEDO, Fernando de. A renovação e unificação do sistema educativo. In: ______. A cultura
brasileira. São Paulo: Edusp, 2010. p. 708 e 709.
283
Ibid., p. 711.
284
CARVALHO, Marta. Molde nacional e fôrma cívica: higiene, moral e trabalho no projeto da
Associação Brasileira de Educação (1924-1931). Bragança Paulista, SP: Edusf, 1998.
285
Ibid., p. 31.
286
Ibid., p. 35.
116
287
Nesta pesquisa, compreendemos povo enquanto um grupo heterogêneo de indivíduos, tanto no âmbito
cultural quanto econômico. A elite intelectual que compunha a ABE, e que tinha um espaço e força
política bem considerável, pensava povo enquanto categoria menor, passível de sua ajuda e comando.
Este pensamento de que o povo necessita de condução por incapacidade de pensar e se articular,
sobretudo, de não possuir uma consciência política foi historicamente construído, fazendo parte do
universo mental da intelectualidade brasileira de maneira geral, não se restringindo a ABE. Este tipo de
concepção destituí dessa categoria tão complexa - povo - não apenas a sua competência de compreensão e
interpretação dos fatos políticos, como também lhe retira ou minimiza a sua capacidade de ação.
288
ABE Apud CARVALHO, M., op., cit., p. 54-55.
289
Ibid., p. 59.
290
Ibid., loc., cit.
291
Ibid., loc., cit. Em 1941 houve a Primeira Conferência Nacional de Educação organizada pelo
Ministério da Educação. A que nos referimos no corpo do texto foi organizada pela ABE. São duas
Conferências distintas. Sobre a Conferência de 1941 ver HORTA, José. A I Conferência Nacional de
Educação ou de como monologar sobre educação na presença de educadores. In: GOMES, Ângela (org.).
Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro: Cpdoc, 2000.
292
Alagoas (Renato de Alencar); Amazonas (Altamirano Nunes Pereira); Bahia (Jayme Junqueira Ayres);
Ceará (Antônio Moreira de Souza Filho); Distrito Federal (Pedro Deodato Moraes); Espírito Santo
(Ubaldo Ramalhete Maia); Goiás (Abacílio Reis); Maranhão (Luis Cesar); Mato Grosso (Frederico G.
Cartens); Pará (Oswaldo Orico); Paraná (Lysimaco Ferreira da Costa); Pernambuco (Oswaldo Orico);
117
Piauí (João de Oliveira Franco); Rio de Janeiro (Paula Achilles e Leoni Kassef); Rio Grande do Norte
(Nestor Lima); Rio Grande do Sul (Raul Bittencourt); Santa Catarina (Orestes Guimarães); São Paulo
(Lourenço Filho). Esta lista consta em COSTA; SEHNA; SCHIMIDT. I Conferência Nacional de
Educação. Brasília: Inep, 1997, p. 16. Os delegados do Pará e Pernambuco são indicados como sendo a
mesma pessoa ou pessoas homônimas.
293
Ibid., loc.,cit.
294
LOURENÇO FILHO, Manoel. Um registro do evento. In: COSTA; SEHNA; SCHIMIDT, op., cit., p.
692.
295
CARVALHO, M., 1998, p. 61.
118
296
Ibid., p. 66-70.
297
NUNES, Clarice. Historiografia comparada da escola nova: algumas questões. Revista da Faculdade
de Educação, São Paulo, v. 24, n. 1, 1998.
298
É salutar destacar que essa dicotomia é muito simplista e não dá conta das diversidades de opiniões e
posicionamentos dos grupos indicados. De fato, tais termos acabam sendo apresentados de uma forma
naturalizada e polarizada, carecendo de precisões, como evidenciaram Shueler e Magaldi. Esta dicotomia
também "biparte o movimento em dois campos nitidamente diferenciados e antagônicos", e, neste caso, é
bom lembrar que estes planos "moviam-se num mesmo campo de debates". As propostas de ambos
coincidiam no projeto da educação como via para a construção da nacionalidade e, embora seus projetos
apresentassem pontos de vistas diferentes, isso não significa que não flertassem ou apresentassem
semelhanças. Todavia, embora houvesse uma pluralidade de organizações, restringimos a análise a tais
associações em função dos laços que a ligam a esta pesquisa. SCHUELER; MAGALDI, 2009, p. 47.
119
299
CARVALHO, Marta. O manifesto dos pioneiros da educação nova e a IV conferência nacional de
educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 96, 2015. p. 91.
300
CUNHA. Nóbrega da Apud CUNHA, Marcus. O Manifesto dos Pioneiros de 1932 e a cultura
universitária brasileira: razão e paixões. Revista Brasileira de História da Educação, v. 1, 2008. p. 127.
301
Ibid., loc., cit.
302
CARVALHO, M., 2015, p. 94.
120
303
Ibid., p. 96
304
O título da obra foi A reconstrução educacional no Brasil: ao povo e ao governo. Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova. A introdução foi redigida por Azevedo ao longo de 24 páginas. O
Manifesto propriamente dito foi formulado em 44 páginas: Movimento de renovação educacional;
Diretrizes que se esclarecem; Reformas e a reforma; Finalidade da educação; Valores mutáveis e valores
permanentes; O Estado em face da educação (A educação, uma função essencialmente pública, A questão
da escola única, A laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducação); A função educacional (A
unidade da função educacional, a autonomia da função educacional, a descentralização); O processo
educativo (o conceito e os fundamentos da educação nova); Plano de reconstrução educacional (as linhas
gerais do plano, o ponto nevrálgico da questão, o conceito moderno de universidade e o problema
universitário no Brasil, o problema dos melhores); A unidade de formação de professores e a unidade de
espírito; O papel da escola na vida e a sua função social; A democracia um programa de longos deveres.
O apêndice foi composto por uma breve biografia dos signatários do manifesto; um artigo de autoria de
C. M (Cecília Meireles) nomeado "O valor dos manifestos"; o comunicado da diretoria geral de
informações, estatística e divulgação do MESP, intitulado "A palavra oficial"; um texto sem autoria
publicado no jornal O Estado de São Paulo, denominado "'O Estado de São Paulo' e o manifesto"; artigo
assinado por Menotti Del Picchia no jornal Folha da Manhã, de São Paulo, cognominado "Reconstrução
educacional" e , por fim, um artigo rubricado por Azevedo Amaral n'O Jornal, do Rio de Janeiro, titulado
"O Estado e a educação". AZEVEDO, Fernando de. A reconstrução educacional no Brasil: ao povo e ao
governo. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1932.
305
CUNHA, M., 2008, p. 130.
306
Como afiançou Le Goff, todo documento é um monumento no sentido de que "resulta do esforço das
sociedades históricas para impor ao futuro - voluntária ou involuntariamente - determinada imagem de si
próprias". Mais do que isso, ele é um instrumento de poder. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento.
In: ______. História e Memória. São Paulo: Unicamp, 2013. p. 497. Neste sentido, o Manifesto se
apresenta como um documento-monumento na medida em que foi confeccionado para determinar um
espaço de ideias, saberes e de poder, sobretudo, de um grupo específico - os escolanovistas - que se
apresentava como paladino da educação nacional. A sua publicação sob a forma de livro evidencia, mais
uma vez, a sua condição de documento-monumento, haja vista a intenção de se fazer duradouro,
tornando-se uma memória histórica e, desta maneira, permitindo a sua revisitação, determinando e
mantendo perpétua a imagem do grupo que o criou e os seus postulados. Além de legitimar aquele grupo
e ainda na categoria de um Manifesto avulso, ele surgiu "carregado de um verdadeiro arsenal simbólico
que atua no imaginário social, construindo uma memória educacional que tem (nele) próprio o marco da
renovação educacional no Brasil". XAVIER, Libânia. Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova como
divisor de águas na história da educação brasileira [s.d.t], 2002.
121
307
AZEVEDO, 2010, p. 722.
308
Ibid., loc., cit.
309
Nunes destacou não apenas a Igreja Católica como opositora ao Manifesto e os integralistas,
apoiadores da Igreja, como também os políticos. A Igreja por razões claras e já arroladas. Já os políticos
se opuseram pelo fator financeiro, uma vez que as escolas representavam bons rendimentos em
decorrência dos aluguéis de seus prédios, e pelo fator da politicagem, já que elas também funcionaram
como postos de distribuição de empregos e alternativa de captação de votos. Vale lembrar que a Igreja
lutou não somente na arena religiosa, mas também na econômica, uma vez que perderia muito dinheiro,
caso o ensino se tornasse incumbência do Estado, como prescrevia o Manifesto, que deveria garanti-lo de
forma gratuita. NUNES, Clarice. O manifesto dos pioneiros da educação nova (1932): o compromisso
com uma sociedade educada. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 96, 2015. p. 58.
122
310
Ver XAVIER, 2002.
311
CARVALHO, M., 1998, p. 71.
312
AZEVEDO, 1932, p. 42.
123
a natureza nas suas funções biológicas" 313. A defesa era formar uma "hierarquia
democrática" por meio da "hierarquia das capacidades"314.
Os grupos católico e reformista apresentaram muitas divergências de ideias,
ideologias, crenças e posicionamentos. Todavia, houve tópicos em comum acordo.
Ambos acreditavam viver em um mundo em crise, cuja solução estaria nas mãos da
elite. Esta certeza se fez presente no Manifesto, quando Azevedo explicou o que era este
documento: "um programa completo de reconstrução educacional, que será mais cedo
ou mais tarde a tarefa gigantesca das elites coordenadoras das forças históricas e sociais
do povo"315. A maneira como esta intervenção se daria foi encarada de forma distinta
pelos dois grupos. Para os reformadores, a via era a ciência; para os católicos, o
caminho era por meio da religião.
Ana Maria Magaldi chamou a atenção para a concordância dos católicos, e a
aplicação em suas escolas, de algumas ideias da Escola Nova, a exemplo da prática
pedagógica do "como ensinar"316. Da mesma forma que os escolanovistas, a Igreja
também se preocupou com a formação dos professores, entendendo-a como crucial para
a melhoria e boa condução da educação do país. No entanto, cada qual pautado por uma
orientação própria. Para ambos, a educação era a via de desenvolvimento nacional e
igualmente a formação docente era julgada imprescindível. Para os primeiros, a missão
era desenvolver a crítica, o debate, a reflexão, com um tom científico. Para os segundos,
a divulgação da fé e a doutrinação religiosa eram percebidas como missões que, a rigor,
deveriam ser conjugadas com os ensinamentos científicos.
A Igreja não ignorou as novas ideias pedagógicas que então eram apresentadas.
Porém, recusou aquelas concepções que se confrontavam com seus princípios seculares.
Não poupou esforços para dirigir o professorado. Suas publicações tiveram como foco
os aconselhamentos aos docentes católicos, seduzindo, inclusive, os professores
católicos das escolas públicas. Com estes últimos, ganhou um grande aliado para rebater
e resistir aos propósitos da Escola Nova com os quais não concordava. Carvalho
313
Ibid., p. 43 a 44.
314
Ibid., p. 48. Sobre esta visão a respeito do Manifesto, ver MERCADANTE, Jefferson. A psicanálise
entre a higiene mental e a escola nova na obra de Arthur Ramos: contribuições à História da educação
no Brasil. 2014. 155f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2014 e VEIGA, Cynthia. Escola de alma branca. Educação
em Revista, Belo Horizonte, 2000.
315
AZEVEDO, 1932, p. 24.
316
MAGALDI; NEVES. Valores católicos e profissão docente: um estudo sobre representações em torno
do magistério e do "ser professora" (1930-1950). Revista Brasileira de História da Educação, n. 15,
2007. p. 103.
124
317
CARVALHO, Marta. Fernando de Azevedo, pioneiro da educação nova. Revista Instituto de Estudos
Brasileiros, São Paulo, n. 37, 1994. p. 76.
318
Sobre as discussões no âmbito da educação ocorridos na Assembleia Nacional Constituinte em 1933-
1934, ver BITTENCOURT, Circe. Os problemas educacionais na Assembleia Nacional Constituinte de
1934. Revista da Faculdade de Educação, v. 12, 1986 e JESUS, Wellington. O "problema nacional": a
história de uma emenda que transformou o financiamento da educação no Brasil. Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 88, n. 220, 2007.
319
AZEVEDO, Fernando de. A nova política educacional: esboço de um programa educacional extraído
do Manifesto. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 96, 2015. p. 231.
320
CARVALHO, M., 1994, p.74.
125
ABE foi apresentada como um espaço para o debate aberto e a livre circulação de
ideias, o que desagradou a alguns abeanos que reclamavam o apartidarismo da
agremiação.
O grupo católico já havia criado a revista A ordem, em 1921, e o Centro Dom
Vital, um ano depois, para defender os princípios católicos e arregimentar forças em
prol de sua causa. A fundação da Liga Eleitoral Católica (LEC), em 1932, veio somar-se
àquelas agremiações, tendo como secretário geral o jurista Alceu Amoroso Lima. A
LEC foi apresentada como apartidária, estando aberta a apoiar todos aqueles candidatos
que se identificassem e se comprometessem com os seus ideários. Na Constituinte, em
1933, esta Liga obteve número significativo de votos, resultando em uma posição
favoravelmente destacada, onde alcançou "pelo menos dois terços dos votos em todas as
questões do seu programa"321. Com isso, a Igreja se rearticulou e se fortaleceu perante a
sociedade e a política. A LEC simbolizou, conjuntamente com as outras irmandades
católica citadas, um espaço de arregimentação política e ideológica, na qual se
aglutinaram os católicos e simpatizantes de seus ideais. Na mesma proporção, os
reformadores construíram suas zonas de influências e debates, buscando angariar
partidários e impor suas ideias. O fato, em comum, é que ambos se organizavam.
Na Constituinte, o debate entre católicos e escolanovistas, ainda que amplo,
centrava-se, pode-se dizer, sobre três pontos crucias: a laicidade do ensino, a
coeducação dos sexos e o monopólio da educação pelo Estado. Outros pontos foram
igualmente importantes para o debate, tal como o financiamento da educação, a
gratuidade e obrigatoriedade. A educação foi considerada um direito de todos, com o
ensino primário integral gratuito e de frequência obrigatória, com uma tendência à
gratuidade do ensino ulterior ao primário, liberdade de ensino e no que dizia respeito ao
ensino religioso, este foi permitido de maneira facultativa.
A rearticulação católica garantiu uma maioria na Constituinte, como visto, e,
como destacou Nunes, os reformadores acabaram ficando isolados dentro e fora do
governo322. A disputa foi intensa e envolveu embates políticos e ideológicos. Entre
ganhos, perdas e negociações, os católicos conseguiram inserir o ensino religioso
(facultativo) na Constituição de 1934, mas não o controle dos sindicatos. A Carta
Constitucional sancionou a "normatização da escola secundária pela reforma de 1931,
321
NUNES, Clarice. O Estado Novo e o debate educacional nos anos trinta. In: FREITAS, Marcos Cezar
de (org.). Memória intelectual da educação brasileira. Bragança Paulista, SP: Edusf, 1999. p. 37.
322
Ibid., p. 39.
126
323
Ibid., p. 40.
324
Ibid., p. 41.
325
NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 16,
2001. p. 09. Com a acusação de ser comunista, Anísio Teixeira teve seu projeto de reforma
descaracterizado e em muitos pontos descartado, bem como suas ações em prática interrompidas. Curiosa
a imputação de comunista que recebeu, pois o educador baiano, como apontou Bomeny, "não só criticava
o modelo socialista, como fazia pública sua admiração pela experiência norte-americana". BOMENY,
1999, p. 32.
326
NUNES, Clarice. As políticas públicas de educação de Gustavo Capanema no governo Vargas. In:
BOMENY, Helena (org.). Constelação Capanema: intelectuais e política. Rio de Janeiro: FGV; Bragança
Paulista: Edusf, 2001. p. 112.
127
327
Sobre a reforma Capanema de 1942 e as novas diretrizes pedagógicas que foram estabelecidas visando
a conformação desse indivíduo trabalhador ver SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA. Tempos de
Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra; FGV, 2000S. Especificamente o capítulo seis da terceira parte do
livro.
328
CAPANEMA, Gustavo Apud HORTA, 2000, p. 144.
128
329
DUTRA, 2013, p. 243.
330
Ibid., loc., cit.
331
Ibid., p. 244.
129
332
Ibid., p. 249.
333
OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. Sinais de modernidade na Era Vargas: vida literária, cinema e rádio. In:
FERREIRA; DELGADO (Org.). O Brasil Republicano: o tempo do nacional-estatismo: do início da
década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 337.
334
DUTRA, 2013, p. 250.
335
VELLOSO, 1987, p. 62.
130
336
BOMENY, Helena. Três decretos e um ministério: a propósito da educação no Estado Novo. In:
PANDOLFI, Dulce. Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1999. p. 141.
337
Ibid., p. 145.
131
seriam celebradas em seu dia, em todas as escolas do Brasil"338. A celebração das festas
cívicas, a instituição de algumas datas consideradas importantes como o dia da raça ou o
aniversário de Vargas, as manifestações patrióticas de rua, a exaltação dos "grandes
homens da nação", estiveram presentes nesse regime que buscou consolidar uma
memória coletiva por meio das lembranças selecionadas e da criação de tantas outras
manifestações.
A nacionalização do ensino foi outro assunto discutido que se tornou item
presente na agenda do governo. Era uma preocupação estatal unificar o ensino de forma
a liquidar as escolas construídas pelos imigrantes no país, com ênfase maior as de
nacionalidade alemã. O plano de nacionalização da educação já vinha sendo discutido
desde o início do século, sendo implementado no governo Vargas. As escolas de
imigrantes, principalmente no Sul do país, simbolizavam uma ameaça na concepção
desse regime. Todavia, havia um grave problema: o número diminuto de escolas
ofertadas pelo Estado nestas localidades. Assim, havia a urgência em organizar o
sistema educacional, planejando-se compor um programa comum, com grade curricular,
atividades escolares e ensino padronizados. Além disso, era preciso construir escolas
públicas para compensar as particulares fechadas, o que demandaria gastos
orçamentários. Segundo dados do relatório empreendido pelo Instituto Nacional de
Estudos Pedagógicos (INEP), em 1940, ao passo que foram fechadas 774 escolas nos
estados do Rio Grande do Sul (103), Santa Catarina (298), Paraná (78), São Paulo (284)
e Espírito Santo (11), foram abertas 876 escolas oficiais, respectivamente 238, 472, 70,
51 e 45339.
A nacionalização do ensino passava por três aspectos, segundo Schwartzman: o
primeiro seria estabelecer e difundir um conteúdo nacional à educação, com ênfase
sobre a história dos heróis, a prevalência da língua portuguesa, o orgulho sobre as
instituições nacionais e o culto às autoridades. O segundo seria a padronização do
ensino, com o detalhamento do que seria ensinado por todos, baseado em um currículo
mínimo obrigatório, com livros didáticos pré-estabelecidos e de uso uniformizado,
tendo como referências as unidades-modelos - universidades, escolas secundárias e
técnicas. E o terceiro seria a aniquilação das minorias étnicas, linguísticas e culturais
existentes no país340.
338
CAPANEMA, Gustavo Apud HORTA, 2000, p. 161.
339
BOMENY, 1999, p. 160.
340
SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000, p. 157.
132
341
Carta de Anísio Teixeira para Pedro Ernesto. In: TEIXEIRA, Anísio. Educação para a democracia:
introdução à administração educacional. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. p. 35 a 36.
342
Conforme a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, circular de 05 de dezembro de 1935, pediram
demissão, em solidariedade a Anísio Teixeira, os seguintes colaboradores: Mauro Paulo de Britto (Diretor
da Escola Secundária do Instituto de Educação e da Universidade do Distrito Federal); Antonio Carneiro
Leão (Diretor do Departamento de Educação da Secretaria Geral de Educação e Cultura), Gustavo de
Lessa (Diretor do Instituto de Pesquisas Educacionais do Departamento de Educação), Paulo de Assis
Ribeiro (Chefe da Divisão de Prédios e Aparelhamentos Escolares), Afrânio Peixoto (Reitor da
Universidade do Distrito Federal), Celso Octavio de Prado Kelly (Diretor do Instituto de Artes da
Universidade do Distrito Federal), Edgard de Castro Rebello (Diretor da Escola de Filosofia e Letras),
Villa Lobos (Superintendente da Educação Musical e Artística), Cecília Meireles (Professora na
Universidade do Distrito Federal). Gazeta de Notícias, 1935, p. 1. Este jornal encontra-se na Biblioteca
Nacional e pode ser consultado por meio do site da hemeroteca da referida Biblioteca.
343
A participação (ou não) de intelectuais na esfera política antecede este período da história nacional e
sempre esteve envolvida em uma atmosfera de críticas, negação, sobretudo, inquietações, arquitetadas por
eles próprios. Mas, se essa atuação prática não foi uma novidade estadonovista, não há como negar o
protagonismo deste Estado nessa operação e, muito menos, a presença significativa de intelectuais no
MESP, que juntos compuseram a "constelação Capanema". BOMENY, Helena. Infidelidades seletivas:
intelectuais e política. In: ______ (org.). Constelação Capanema: intelectuais e política. Rio de Janeiro:
FGV; Bragança Paulista: Edusf, 2001. p. 15.
133
344
NUNES, 2015, p. 55/81.
345
VIDAL, Diana. Escola Nova e processo educativo. In: LOPES; FARIA FILHO; VEIGA (orgs). 500
anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 497 a 498.
346
LOURENÇO FILHO, Manoel. Introdução ao estudo da escola nova. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002. p.
57 a 58.
134
347
TEIXEIRA, Anísio. Porque "Escola Nova"?. Bahia: Livraria e Typographia do Commercio, 1930,
[s.p].
135
em uma estrutura política coronelista348. Suas duas viagens aos Estados Unidos, na
década de 1920, lhe possibilitaram leituras e vivências que foram cruciais para a área de
atuação profissional que decidiu seguir: a educação. Dos escritos e pensamento do
educador norte-americano John Dewey extraiu algumas concepções educacionais, como
indicou Nunes, que buscou aplicar na reforma no Distrito Federal: a criança como
centro irradiador do processo de ensino e aprendizagem, a crença na democracia, a
filosofia liberal, a confiança na educação enquanto meio possível para a liberdade da
capacidade individual349.
A ida para o Rio de Janeiro, em 1931, ocorreu sem promessas de trabalho na
capital federal. Em outubro daquele ano se tornaria, com resistências e críticas dos que
lhe consideravam um estrangeiro na direção de um órgão carioca, diretor-geral da
Instrução Pública do Distrito Federal. Para sua contratação, e a realização da reforma, a
nomeação de Pedro Ernesto, feita por Vargas, como prefeito do município do Rio de
Janeiro foi fundamental. Todavia, o programa partidário redigido por Anísio foi de
grande importância para a vitória de Pedro Ernesto como primeiro prefeito eleito da
cidade, em 1934.
Pedro Ernesto enfatizou os campos da saúde e educação como pontos chaves de
sua plataforma de governo, o que lhe permitiu angariar o apoio e simpatia popular. No
entanto, mesmo com esse apoio, o prefeito e seus aliados tiveram que trabalhar em meio
a um ambiente marcado por antigos vícios de uma mentalidade que até então reinava na
administração local. Os atritos, discussões, críticas e resistências à sua gestão foram
grandes, haja vista a perda de espaço e poder dos antigos políticos que reivindicavam,
assim, maior participação nas decisões governamentais. Estas divergências levaram à
cisões dentro do Partido Autonomista, que elegera Pedro Ernesto, dividindo-o e
enfraquecendo-o.
Anísio Teixeira substituíra Fernando de Azevedo na direção da Instrução
Pública do Distrito Federal. A reforma empreendida pelo primeiro vinha na sequência
daquelas desenvolvidas por Carneiro Leão, em 1922, e por Fernando de Azevedo, em
1927, cada qual guiada pelas diferentes estratégias adotadas na idealização e, sobretudo,
na concretização de ideias. O novo Diretor aproveitou os feitos que aqueles dois
educadores introduziram na educação em prol da reforma que pretendia realizar. À vista
348
A biografia de Teixeira e suas ações enquanto diretor na Instrução Geral de Ensino da Bahia podem
ser encontradas em NUNES, 2000.
349
Ibid., p. 143-170.
136
350
Fernando de Azevedo enfrentou o Conselho Municipal e amargurou a demora de repasse de verbas e
da votação de seu projeto de reforma. Xavier afirmou que o ponto capital da discórdia entre ele e o
Conselho foi "a demissão dos professores contratados sem concurso público e a negativa do reformador
em contratar os professores 'apadrinhados' pelos vereadores". Em decorrência destas e outras discórdias, a
reforma que propunha só foi aprovada ao final de seu primeiro ano de mandato, em dezembro de 1927.
Foi substituído pelo companheiro de ideias e ideais, Anísio Teixeira, que contou com sua ajuda (ao longo
da vida) nos trabalhos em prol da educação nacional. XAVIER, Libânia. A reforma do ensino do Distrito
Federal (1931-1935): experimentalismo e liberalismo em Anísio Teixeira. Caderno de História da
Educação, Uberlândia, n. 6, 2007. p. 147.
351
NUNES, 2000, p. 234, 279 e 373.
352
TEIXEIRA, Anísio. Aspectos da reconstrução escolar do Distrito Federal. Boletim de Educação
Pública. Rio de Janeiro, jan-jun 1934. p. 08
137
353
Ibid., p. 11
138
354
NUNES, 2000, p. 256.
355
TEIXEIRA Apud BORTOLOTI; CUNHA. Anísio Teixeira e a psicologia: o diálogo com a
psicanálise. Revista História da Educação, Porto Alegre, v. 17, n. 41, 2013. p. 46.
356
TEIXEIRA, Anísio. O problema da assistência à infância e à criança pré-escolar. Boletim de Educação
Pública, Rio de Janeiro, ano III, n. 7-8, 1933. p. 09.
357
Ibid., p. 17
139
comparações, eles teriam os olhos e condutas treinados para verem e interferirem nos
problemas apresentados por suas crianças.
Ao abordar sobre a assistência à infância e à criança pré-escolar, Anísio Teixeira
criticou a visão fatalista que se tinha sobre elas. Havia o fatalismo biológico, com os
determinismos hereditários, e o fatalismo com relação à infância enquanto uma prisão
para o destino do indivíduo. O educador baiano compreendia que a ação do meio era tão
valiosa quanto a força da herança, e que considerações acerca da infância só poderiam
ser feitas mediante o estudo desta fase da vida. Porém, a atenção dedicada à criança, que
então se intensificava na reforma, não estava voltada para as pré-escolares.
Quando Teixeira iniciou o trabalho que propunha com a reforma, encontrou uma
evasão escolar alta, um elevado índice de repetência, alunos em séries irregulares, um
número reduzido de estabelecimentos de ensino, muitas escolas sem infraestrutura
mínima funcionando em casas de alugueis, uma dualidade de ensino conforme a classe
social do aluno e uma mentalidade que concebia a escola como um espaço privado. Os
inquéritos que solicitou tinham como meta permitir uma compreensão da real situação
das escolas e da escolaridade na cidade do Rio de Janeiro, para que dessa maneira, fosse
possível resolver os problemas apresentados.
No planejamento de sua gestão, criou alguns órgãos regulares para uma melhor
administração do setor educacional que, segundo ele, não estava devidamente
aparelhado. Faltavam-lhe divisões de matrículas e frequências escolares, programas
escolares, promoção e classificação de alunos, prédios e aparelhamentos escolares, além
de inspeções especializadas de ensino 358. Até então, a Diretoria Geral contava apenas
com a Subdiretoria Administrativa, com funções burocráticas, e a Subdiretoria Técnica,
responsável por todos os problemas técnicos de todos os níveis de ensino - primário,
secundário e normal. Esta estrutura administrativa não conseguia responder às
exigências tão amplas, não sendo capaz de consolidar em prática suas próprias
diretrizes. Dessa forma, havia funcionários sobrecarregados de trabalho e realizando
funções que, na verdade, não eram de sua competência.
Diante desse quadro, Teixeira reorganizou a Diretoria Geral criando serviços
especializados e articulando-os ao diretor geral359.
358
TEIXEIRA, 2007, p. 129 a 130.
359
Ibid., p. 132 a 133.
140
360
Ibid., p. 136.
361
Ibid., p. 139 a 140.
141
O ensino deveria seguir um modelo geral, que seria destinado a todas as escolas
da cidade. Cabia ao Serviço de Programas Escolares esta função. Antes, os programas
eram entregues aos professores que os realizavam conforme suas possibilidades,
incluindo nesta assertiva a não execução. A centralização do ensino, com um
planejamento comum a todas as escolas, exigia prestação de contas por parte do
professorado, inspetores e diretoras escolares, o que causou desconforto e resistências,
como já asseverado.
Após algumas alterações, o Departamento de Educação, antiga Diretoria Geral
de Instrução Pública, ficou organizado da seguinte maneira362:
362
Ibid., p. 150 a 155.
142
363
Informações acerca das Secções e suas subdivisões podem ser encontradas em TEIXEIRA, 2007 e
NUNES, 2000.
364
MACEDO, Roberta. O Instituto de Pesquisas Educacionais do Distrito Federal nos anos de 1930.
2013. 156f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade Católica.
Rio de Janeiro, 2013. p. 49 e 50.
365
Ibid., p. 50.
366
TEIXEIRA, op., cit., p. 180 e 194. No art. 8 do referido decreto informa-se que: "Fica o Diretor
Geral de Instrução autorizado a instalar até cinco Escolas Experimentais, para ensaio de renovação
escolar, designando livremente os professores ou professores-adjuntos que as dirigirão ou nelas
trabalharão, diretamente subordinados à sua fiscalização e orientação ou a de quem para isto designar"
Apud PINHEIRO, José. O diário de Dalila: poética, testemunho e tragédia na formação escolanovista do
indivíduo moderno (1933-1934). 2015. 293. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação,
145
a) Primeiro tipo: com duas salas de aula e uma de oficina, destinado aos centros de
população escolar bem reduzida;
b) Segundo tipo: com doze salas comuns e um parque escolar;
c) Terceiro tipo: com doze salas comuns de classe e quatro especiais para auditório,
música, recreação e jogos, ciências e ciências sociais, próprio para a educação
elementar;
d) Quarto tipo: seis salas de aula e seis salas especiais. A distribuição dentre as
especiais era a seguinte: leitura e literatura (com biblioteca anexa), ciências
sociais, desenho e artes industriais (com oficinas), auditório, música e recreação
e jogos, uma para ciências;
e) Quinto tipo: com doze salas comuns de classe, doze especiais e amplo
ginásio368.
Universidade Federal da Paraíba. Paraíba. 2015. p. 44. Nossas fontes de pesquisa não nos permitem
informar os motivos que levaram a escolha dessas escolas em específico para se tornarem experimentais.
367
CARDOSO, Silmara. "Viajar é inventar o futuro": narrativas de formação e o ideário educacional
brasileiro nos diários e relatório de Anísio Teixeira em viagem à Europa e aos Estados Unidos (1925-
1927). 2011. 158f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São
Paulo, 2011. p. 119.
368
TEIXEIRA, 2007, p. 237.
146
369
OLIVEIRA Apud CARDOSO, S., 2011, p. 121.
370
NUNES, 2000, p. 373.
147
MANHÃ
TARDE
371
TEIXEIRA, Anísio. Aspectos americanos de educação. Salvador: Tip. De São Francisco, 1928.
Disponível em: http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/artigos/aspamerieducacao/indice.htm. Acesso em
outubro de 2015. p. 64.
148
372
GUIMARÃES, Helena Apud ALMEIDA, Adir. Viajando pelo agridoce toque da ciência (O Serviço
de Ortofrenia e Higiene Mental no Rio de Janeiro de 1930: seus efeitos na escola, família, comunidade).
2010. 325f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2010.
p. 132 a 133.
373
Sobre a Escola Argentina, em específico, ver os trabalhos de CHAVES, Miriam. A educação integral e
o sistema 'platoon': a experimentação de uma nova proposta pedagógica no antigo Distrito Federal nos
anos 30. Educação em Foco, Juiz de Fora, v. 7, n. 2, p. 115-125, 2003; Idem. Um estudo sobre a cultura
escolar no Rio de Janeiro dos anos de 1930 pelas lições de história. Revista Brasileira de História da
Educação, Rio de Janeiro, v. 11, p. 71-100, 2006; Idem. A Escola Argentina no antigo Distrito Federal
durante os anos de 1930: um torrão argentino em solo brasileiro. Revista Brasileira de Educação, Rio de
Janeiro, v. 12, n. 35, p. 253-267, 2007. Sobre a Escola Bárbara Ottoni ver SIQUEIRA; COUTINHO;
PORTILHO. Escola Experimental Bárbara Ottoni. Revista Tessituras, Rio de Janeiro, n. 3, [s.p], 2011.
Em nossas pesquisas não foram encontrados outros trabalhos que abordassem as escolas experimentais, o
que impede maiores informações e análises acerca delas.
149
378
NUNES, 2000, p. 293.
379
TEIXEIRA, 2007, p. 106.
380
Ibid., p. 107.
381
Ibid., p. 106.
382
Ibid., p. 108.
151
outros programas laterais que viessem a atender alunos com aptidões e interesses
diversos. Esta mudança de organização possibilitaria a diversificação da dualidade então
preponderante entre ensino profissional e ensino cultural. Uma dualidade que em sua
concepção "se reflet(ia) em nossa organização social por uma divisão antidemocrática
de categorias de classe" e de raça, acrescentamos383. Com esta perspectiva, haveria o
fim da organização de ensino profissional primário, pois este passaria a integrar o
ensino secundário que poderia se desenvolver em escolas técnicas superiores destinadas
à formação de ocupações mais especializadas.
O educador baiano concordava com a existência de uma unidade de objetivos a
reger as escolas, porém, discordava da obrigatoriedade de sua uniformização. Em sua
visão, não só as diferenciações provenientes da variedade de programas e cursos, como
os ensaios de seriações, métodos e planos de estudos deveriam ser permitidos, desde
que bem fiscalizados. As escolas ganhariam assim uma autonomia, sendo incumbência
da administração central a fiscalização estimuladora do ensino. Para ele, esse sistema de
organização era o "único compatível com o caráter democrático que deve(ria ser) dado
às escolas, se (se quisesse) fazê(-las) progressivas e cônscias de suas
responsabilidades"384. Considerava que a uniformização imposta pelo governo central às
escolas, as tornavam rotineiras e ineficientes, uma vez que as engessavam. A
descentralização que pensava destinava-se, também, a se ensinar o que fosse local,
regional, particular. Dessa maneira, haveria um ajustamento da escola às necessidades
do aluno. A administração central poderia substituir a uniformização, então confundida
com unidade, por programas mínimos e sugestões.
Na dualidade do ensino, como já evidenciado, a escola primária e as
profissionais estiveram destinadas ao povo - educação para o trabalho -, enquanto a
escola secundária e os cursos superiores foram designadas para uma elite - educação
para a cultura. Criticando essa polaridade segregacionista, Teixeira a entendia enquanto
uma classificação social dos alunos que definia aqueles que seriam os dirigentes e os
que seriam os dirigidos. Em sua interpretação, cultura e trabalho não poderiam ser
separados. Objetivando esse fim, as escolas profissionais foram reformadas e a primeira
medida empreendida foi em relação à legislação que as regiam. A dualidade se
estabelecia também na legislação, na qual a educação acadêmica ou secundária estava
subordinada à legislação federal, e a profissional ou do trabalho às legislações estaduais.
383
Ibid., p. 109.
384
Ibid., p. 111.
152
A sua proposta e ação foi criar instituições mistas, com objetivos das duas legislações.
Dessa maneira, haveria a transferência dos programas das escolas secundárias para as
profissionais, o que significaria também a transferência de seu prestígio social.
A escola secundária técnica do Distrito Federal, instituída por sua reforma,
tencionava possibilitar um "ambiente de cultura científica, aplicação técnica, realização
industrial e formação artística e social indispensável ao homem brasileiro moderno" 385.
Para se alcançar tal objetivo, seria preciso reconstruir os programas, métodos de ensino
e a vida escolar, de forma que houvesse a fusão dos elementos que compunham o
ensino profissional e o cultural. Nesse sentido, a formação do professor tinha uma
importância capital, bem como a dos mestres e contramestres. Havia a preocupação em
oferecer a estes dois últimos profissionais um tratamento idêntico ao dispensado aos
professores, mediante o seu aperfeiçoamento que poderia ser alcançado nos cursos de
aperfeiçoamento. Houve uma seleção rigorosa do professorado secundário, via concurso
público, além da promoção salarial e da busca pela criação, de fato, da categoria e
profissão de professor secundário 386.
385
Ibid., p. 207.
386
Ibid., p. 207-214.
153
CURRÍCULOS
Cada escola poderá ter, portanto, concomitantemente, alguns ou todos os cursos abaixo
relacionados, e ainda outros que venham a ser criados.
Curso Secundário
Cursos Secundários
Geral Curso Secundário Curso Secundário
(equiparados e não
(equiparado ao Industrial Artístico e Musical
equiparados)
Pedro II)
387
TEIXEIRA, Anísio. Organização do Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Prefeitura do Distrito Federal, 1932. p. 26.
388
CARDOSO, S., 2011, p. 124.
389
TEIXEIRA, op., cit., p. 22.
156
discente, separando-os por nível, o que gerava uma estratificação com consequências
tanto para os considerados excelentes, diante da pressão constante para se manterem
neste patamar, quanto pelos considerados medianos ou ruins390.
A Escola de Professores ofertava cursos "nitidamente profissionais para o
preparo do mestre". Teixeira destacou como primeira necessidade desse preparo
profissional a diferenciação dos programas: para o preparo do professor dos três
primeiros graus - primários de ensino - e para as dos dois últimos - intermediários. Esta
diferenciação se impunha, ainda em suas palavras, não apenas "como uma necessidade
de organização escolar diversa em um e outro período, como ainda pela mudança
psicológica e de desenvolvimento físico dos alunos"391.
Conforme publicação feita pela Diretoria Geral de Instrução Pública acerca da
Organização do Instituto de Educação, o ingresso no Instituto exigia, como condição
geral, que o matriculando não sofresse de doença transmissível ou defeitos que tornasse
inconveniente seu convívio com outros alunos. Para a matrícula no curso complementar,
necessário para o ingresso na Escola de Professores, eram exigidas condições especiais
de idade, saúde, inteligência e personalidade, fixadas, por sua vez, por normas
estabelecidas pela diretoria do Instituto. O corpo docente da Escola Secundária era
composto por professores e professores assistentes. Os primeiros eram escolhidos - por
merecimento (julgado por quatro professores sob a presidência do diretor da escola) -
dentre os assistentes. Estes, por sua vez, eram admitidos por meio de concurso com
provas escrita, oral e prática.
O Instituto conformava um conjunto que devia abranger oito anos de estudos
assim divididos: cinco anos de ciclo fundamental, um ano de ciclo complementar na
Escola Secundária e dois anos na Escola de Professores. Nesta, não havia a divisão
clássica de cadeiras, como afirmou Teixeira, "mas um agrupamento de matérias sob
títulos de conjunto", pois somente assim o IE poderia ser "o laboratório de
experimentação e ensaio para o aperfeiçoamento progressivo da preparação dos nossos
futuros mestres"392. Segundo Accácio, o primeiro ano de estudos da Escola de
390
Ibid., p. 127.
391
Ibid., p. 24.
392
Ibid., p. 25
157
393
ACCÁCIO, Liéte. A escola de professores do Instituto de Educação do Rio de Janeiro: o currículo do
curso de formação de professor. In: IX Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas, 2012, João Pessoa.
"História, Sociedade e Educação no Brasil" João Pessoa: Ufpb, 2012. p. 1344.
394
TEIXEIRA, 1932, p. 25
395
Ibid., p. 24. Esta grade curricular consta em Lopes. Segundo a autora a fonte foi o histórico escolar de
uma das alunas - A. G. - e encontra-se no periódico Arquivos do Instituo de Educação, de 1934, Arquivo
Lourenço Filho. LOPES, Sônia. A estrutura curricular da Escola de Professores do Instituto de Educação
do Rio de Janeiro (1932-1939): representações acerca de uma nova cultura pedagógica. Revista Educação
em Questão, Natal, v. 28, n. 14, 2007. p. 102.
396
FILHO LOURENÇO, 2002, p. 112.
158
psicologia e dos testes tanto para os escolares, quanto para a formação dos professores.
Esta perspectiva não era a mesma de Teixeira. Enquanto o primeiro, como afirmou
Nunes, intentava a psicologização do espaço escolar, o segundo "repuxava o seu esforço
de compreensão para uma visão sociológica e antropológica das instituições sociais" 397.
Anísio Teixeira almejava, nas palavras de Nunes, uma formação técnica
alicerçada na filosofia, nas ciências e nas artes398. Somente a técnica não atendia aos
seus anseios que eram o da formação integral do educador. A teoria e a prática deveriam
estar conectadas, e o interesse do aluno a fomentar o desejo de aprender por meio da
experimentação. Suas aspirações quanto ao IE iam além da formação do professor,
visava também torná-lo "uma escola de pesquisas educacionais e de cultura superior" 399.
A incorporação do Instituto à Universidade do Distrito Federal (UDF) respondeu a este
anseio.
A UDF foi criada em abril de 1935, por meio do decreto n° 5513, com início das
aulas em julho do mesmo ano 400. Não possuía sede própria e funcionou em locais
diferentes, como no Instituto de Educação, na Escola Politécnica, nas escolas
municipais José de Alencar e Rodrigues Alves, Escola Superior de Agricultura, Museu
Nacional e Departamento Nacional de Tecnologia 401. Era composta pelos seguintes
órgãos e respectivos diretores: Instituto de Educação com Lourenço Filho; Escola de
Ciências com Roberto Marinho de Azevedo; Escola de Economia e Direito com Hermes
Lima; Escola de Filosofia e Letras com Edgardo Castro Rebello; e pelo Instituto de
Artes com Celso Octavio do Prado Kelly. Compondo sua estrutura havia a Biblioteca
Central de Educação, Escola-Rádio, Escola Secundária, Elementar e Jardim de Infância
do IE, Escola Secundária Técnica, Escola Elementar Experimental, Escola Maternal
Experimental, Laboratórios e Clínicas dos hospitais do Distrito Federal. Nomes já
consagrados no cenário intelectual nacional compuseram o seu quadro docente, a
exemplo de Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Cândido Portinari, Heitor Villa-Lobos,
Cecília Meireles, Sergio Buarque de Holanda, Afrânio Peixoto (que em 1935 viajou
para Europa a fim de captar professores para a UDF), dentre outros.
397
NUNES, 2000, p. 386.
398
Ibid., p. 382.
399
TEIXEIRA, 1932, p. 26.
400
Sobre a UDF, ver FÁVERO, Maria. Anísio Teixeira e a Universidade do Distrito Federal. Revista
Brasileira de História da Educação, n° 17, p. 161-180, 2008.
401
NUNES, 2000, p. 317 e VINCENZI, Lectícia. A fundação da Universidade do Distrito Federal e seu
significado para a educação no Brasil. Revista Forum Educacional, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, 1986. p.
28.
159
402
VINCENZI, 1986, p. 40.
403
NUNES, 2001, p. 117.
404
TEIXEIRA, 2007, p. 119.
405
Ibid., p. 121
160
definiu Vincenzi. Portanto, dentro da lógica de pensamento vigente, ela precisava ser e
foi eliminada.
Anísio Teixeira se exilou no interior da Bahia e de longe recebia parcas notícias
do Rio de Janeiro, tomando conhecimento do desmonte de sua reforma e a
desvalorização de todo esforço empregado em sua realização. Não somente dele, mas de
muitos colaboradores que, motivados pelos ideais propostos, igualmente se dedicaram à
causa educacional. Teixeira obteve êxito ao ampliar a rede escolar, incluindo um
número maior de crianças nos bancos escolares; abriu a escola e possibilitou a
escolaridade para a uma significativa parcela da população ignorada e afastada por sua
classe social e raça; articulou o ensino primário ao universitário; imprimiu novas
relações entre os profissionais da educação que passaram a prestar contas à
administração geral acerca de seu trabalho; implementou métodos e didática
"padronizados" pondo fim a autonomia das escolas e seus diretores; criou a escola
técnica secundária; regulamentou a carreira de professor, bem como a valorizou;
instituiu órgãos e serviços administrativos, organizando assim o sistema educacional.
Se, por um lado, a reforma anisiana buscou implementar um projeto de
modernização, ampliando a escolaridade e abrindo-a às classes menos abastadas, no
ímpeto da democratização da educação, da liberdade de pensamento e da circulação
livre de ideais; por outro lado, e mesmo ressaltando o contexto, enquadrou a população
escolar em classificações advindas dos testes, mesmo quando estes foram relativizados,
trabalhou com os princípios de normalidade e anormalidade, buscando ordenar as
crianças consideradas anormais e empregou ideais higiênicos na grade curricular, no
convívio escolar e nas práticas escolares.
dos médicos psiquiatras enquanto uma novidade no trato da psique humana, ela não
chegou a atingir o conhecimento psiquiátrico da época, como afiançaram Facchinette e
Ponte, e nem as concepções eugênicas em voga naquele momento, das quais muitos
daqueles médicos partilhavam406.
A princípio, o que prevaleceu no Brasil foi a sua divulgação com "caráter
descritivo e explicativo"407. Suas teorias, com ressalvas e/ou interpretações subjetivas,
foram utilizadas pela intelectualidade local como meio para se pensar a realidade
nacional. Conceitos como inconsciente e recalque passaram a ser acionados como
indícios explicativos para o "atraso" do país. Percebe-se como sempre se esta pensando
em vias de explicar um "atraso" e maneiras de resolvê-lo. Novas teorias, novas ciências,
novos momentos históricos e a permanência de um problema comum que se almeja
solucionar. A psicanálise permitiria, então, analisar o passado nacional, refletindo a
respeito do material recalcado do brasileiro - mestiço -, encontrando assim respostas e
indicando soluções.
406
FACCHINETTE; PONTE. De barulhos e silêncios: contribuições para a história da psicanálise no
Brasil. Psyché, São Paulo, v. 7, n. 11, 2003. p. 63.
407
MOKREJS, Elisabete. A psicanálise no Brasil: as origens do pensamento psicanalítico. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1993. p. 15.
408
RUSSO, Jane. Raça, psiquiatria e medicina-legal: notas sobre a "pré-história" da psicanálise no Brasil.
Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano IV, n. 9, 1998. p.86.
409
Ibid., loc., cit.
162
Enquanto que no Rio de Janeiro a psicanálise foi inserida por meio da medicina
e dos médicos entusiastas ligados à Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e
Medicina Legal e à Liga Brasileira de Higiene Mental, como asseverou Ponte, em São
Paulo sua difusão foi processada por intermédio da medicina e das artes. Marcondes
buscou apoio junto aos modernistas, congregando em torno de si e da Sociedade nomes
como Menotti del Picchia e Tarsila do Amaral. A secção carioca buscou manter entre
seus membros apenas os médicos, ao passo que a paulista sustentou a possibilidade, e
efetivação, de adesão de não médicos, abrindo, dessa maneira, a Sociedade para os
artistas em geral. Esta diferença marcou de maneira profunda, segundo Ponte, o
desenvolvimento da psicanálise nestes dois estados412.
412
PONTE, 1999, p. 73.
413
Conforme Ponte, foi neste congresso, ocorrido em 1925, que a sistematização da formação
psicanalítica projetada pelo Instituto Psicanalítico de Berlim foi oficializada. Essa profissionalização
compreendia três fases: a análise didática, ensino teórico e trabalho clínico supervisionado. O referido
Instituto se tornou referência para o movimento psicanalítico internacional, um modelo para as clínicas
das sociedades psicanalíticas filiadas à IPA. Sobre este assunto e a respeito da IPA, ver PONTE, op., cit.,
p. 62-69.
414
MARCONDES, Durval Apud FACCHINETTE; PONTE, 2003, p. 66.
164
Somente em 1936 foi possível alcançar aquele objetivo, com a vinda da alemã
Adelheid Koch. Por intermédio de Ernest Jones, presidente da IPA, Marcondes
conseguiu trazer a primeira analista para o país. Koch se estabeleceu em São Paulo e no
ano seguinte iniciou as análises do próprio Marcondes. A sua atuação teve grande
importância para o reconhecimento do grupo paulista pela IPA. Inicialmente este grupo
obteve da IPA um reconhecimento provisório, em 1945, alcançando sua filiação oficial
somente em 1951, tornando-se Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Saber quem poderia praticá-la e se ela deveria estar circunscrita somente aos
médicos passou a ser um questionamento frequente. A Sociedade Psicanalítica do Rio
de Janeiro e a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo admitiram, no início, o
ingresso em suas fileiras de não médicos em seus Institutos de formação 419. Esta
admissão estava de acordo com os regimentos da IPA, na medida em que esta
Associação admitia que as Sociedades decidissem quanto ao credenciamento de não
médicos. No entanto, como asseverou Ponte, "a legitimidade da formação de
psicanalistas não médicos (transformava-se) em um elemento complicador para aqueles
que desejavam estabelecer, em termos legais, um domínio médico sobre o novo saber e
sua prática"420. A querela entre médicos e não médicos pela habilitação em psicanálise
419
PONTE, 1999, p. 98.
420
Ibid., p. 99.
167
421
A respeito da legalização da profissão de psicanalista, sobre as discussões, inclusive no âmbito político
e jurídico, da prática da psicanálise estar restrita aos médicos ou aberta aos "leigos", e com relação à
disputa com os psicólogos em específico, ver PONTE, 1999, p. 105-134.
422
RAMOS, Arthur. O negro brasileiro: etnografia religiosa. Rio de Janeiro: Graphia, 2001.
423
Sobre o uso da teoria psicanalítica feito por Ramos, ver TAMANO, Luana. Abolindo a lógica racial?
Arthur Ramos e sua concepção de atraso na cultura negra. In: SANTOS, Gildo (org.). O progresso e seus
desafios: uma perspectiva histórica da ciência e técnica no Brasil. São Paulo: Alameda, 2017. p. 301-321.
424
RUSSO, 2002, p. 53.
168
425
Ibid., p. 120.
426
FACCHINETTI, Cristiana. Psicanálise para brasileiros: história de sua circulação e sua apropriação no
entre-guerras. Culturas Psi, v. 1, 2012. p. 53. Sobre o movimento modernista e a leitura realizada por seus
integrantes das teorias de Freud ver FACCHINETTE, 2003; 2012.
427
RUSSO, 1998, p. 86-87.
169
428
ABRÃO, Jorge. As influências da psicanálise na educação brasileira no início do século XX.
Psicologia: teoria e pesquisa, Brasília, v. 22, n. 2, 2006. p. 235.
429
Ibid., loc., cit. e MOKREJS, 1993, p. 139.
430
ABRÃO, op., cit., p. 235.
431
ABRÃO, Jorge. As origens da psicanálise de crianças no Brasil: entre a educação e a medicina.
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 14, n. 3, 2009. p. 426 e 428. Este autor afirmará ainda que um trabalho
específico de psicoterapia psicanalítica começou a surgir, sobretudo, nas décadas de 1940 e 1950, em
170
instituições voltadas ao atendimento da criança. Portanto, não se limitando mais apenas às orientações aos
pais e ao diagnóstico. Neste trabalho destacou a Clínica de Orientação Infantil do Serviço de Higiene
Mental Escolar, em São Paulo; a Clínica de Orientação Infantil do Departamento Nacional de Saúde
Mental do Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro; e a Clínica de Orientação Infantil do Instituto de
Psiquiatria da Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro.
432
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Análise fragmentaria de uma histeria
("o caso Dora") e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2016. p.
72.
171
433
FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das
Letras, 2011. p. 76.
434
Ibid., p. 23
435
KUPFER, Maria. Freud e a educação: o mestre do impossível. São Paulo: Scipione, 2000. p. 50 e 74.
436
Ibid., p. 59 e 97.
437
Em Freud e a Educação Dez anos Depois, Kupfer passou a afirmar que era possível uma utilização
prática da psicanálise na educação, no caso, de crianças especiais. Afirmou que Freud propôs a criação de
outros meios para tratar estas crianças que apresentavam transtornos graves, que teriam o mesmo objetivo
de uma análise, porém, de natureza educativa ou reeducativa. A autora partiu de experiências realizadas
junto à Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, pertencente ao Instituto de Psicologia da USP, para
justificar seu posicionamento e fundamentar a ideia de que uma educação psicanaliticamente orientada é
possível, afastando-se, como afiançou, dos limites apresentados em Freud e a Educação. Assim, ela se
172
Arthur Ramos foi não apenas um dos entusiastas da psicanálise no Brasil, como
também um precursor da psicanálise de crianças no país. Abrão destacou duas fases no
que diz respeito ao uso da psicanálise no campo educacional feito pelo médico
alagoano: a primeira, voltada à divulgação de informações psicanalíticas no meio
educacional brasileiro; e a segunda, dedicada ao desenvolvimento de um trabalho
prático destinado ao atendimento de crianças com dificuldades escolares. Ainda
segundo este autor, Ramos conseguiu migrar da teoria de seus livros para a efetivação
da prática, “introduzindo uma modalidade de atendimento à criança fundamentada em
princípios psicanalíticos”438.
distanciou da afirmação feita no referido livro de que a psicanálise se limitava apenas à formação do
professor, não podendo ir adiante. Sobre esta nova abordagem e sobre a experiência no Lugar de Vida,
ver KUPFER, Maria. Freud e a educação, dez anos depois. Revista da Associação Psicanalítica de Porto
Alegre, Porto Alegre, ano IX, n. 16, 1999. p. 14-26.
438
ABRÃO, Jorge. A introdução das ideias relativas à psicanálise de crianças no Brasil através da obra de
Arthur Ramos. Memorandum, Belo Horizonte, n.14, 2008. p. 38 -39.
173
CAPÍTULO 3
439
Este currículo foi confeccionado como requisito para o concurso prestado na Faculdade Nacional de
Filosofia para a cadeira de Antropologia e Etnologia que já ocupava interinamente desde 1939.
440
A biografia de Ramos pode ser encontrada em BARROS, Luitgarde. Arthur Ramos e as dinâmicas
sociais do seu tempo. Maceió: Edufal, 2005; CAMPOS, Maria. Arthur Ramos: luz e sombra na
antropologia brasileira. Uma versão da democracia racial no Brasil nas décadas de 1930 e 1940. 2002.
281f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002; GUSMÃO, Marilu. Arthur Ramos: o homem e a obra.
Maceió: DAC/MEC, 1974 e TAMANO, Luana. Arthur Ramos e A Mestiçagem no Brasil. Maceió:
Edufal, 2013.
441
RAMOS, Arthur. Estudos de psicanálise. Bahia: Casa editora, 1931. p. VI.
174
442
DUARTE, Luiz. Arthur Ramos, antropologia e psicanálise no Brasil. In: RIBEIRO, Marcus (ed.).
Seminário Diários do Campo: Arthur Ramos, os antropólogos e as antropologias. Anais da Biblioteca
Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v. 119, 1999. p. 20.
443
Ainda que Nina Rodrigues tenha trabalhado com outros assuntos, a vertente escolhida por Ramos foi
aquela referente aos estudos sobre os negros. Quando ocupou a diretoria da Editora Civilização Brasileira,
em 1934, Ramos reeditou apenas obras de Nina que tratavam daquelas populações, caso de O animismo
fetichista dos negros baianos, O alienado no direito civil brasileiro e As coletividades anormais, pois,
segundo ele, a intenção da biblioteca era, entre outras, atualizar os estudos sobre o problema do negro no
Brasil. RAMOS, Arthur, Prefácio. In: Novos Estudos Afro-Brasileiros. Trabalhos apresentados ao 1°
Congresso Afro-Brasileiro do Recife. Segundo tomo. Rio de Janeiro: Biblioteca de Divulgação Científica,
Civilização Brasileira, 1937. p. 13. Essa seletividade realizada por ele foi declarada por Mariza Corrêa
como a responsável pela criação do Nina Rodrigues especialista na questão racial. Segundo essa autora,
as preocupações com a saúde pública é que foram a grande preocupação do médico maranhense desde
que foi transferido para a cadeira de Medicina Pública, em 1891. CORRÊA, Mariza. Raimundo Nina
Rodrigues e a ‘garantia da ordem social’. Revista USP, São Paulo, n. 68, 2005-2006. p. 136. Sobre as
apropriações de Ramos com relação ao pensamento de Nina Rodrigues, incluindo a criação da Escola
Nina Rodrigues, ver CORRÊA, op., cit. e CORRÊA, Mariza. Ilusões da liberdade. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2013.
175
Com o convite de Anísio Teixeira para chefiar o SOHM, transferiu-se para o Rio
de Janeiro em 1933. A ida para a capital nacional tornou seus trabalhos mais conhecidos
e permitiu que ele passasse a circular e a fazer parte do cenário intelectual brasileiro
com maior intensidade. Chegou àquela cidade já como um estudioso da psicanálise, que
incursionava por outras áreas do conhecimento, como a antropologia, o que, cremos,
444
RAMOS, Arthur. Convidando uma geração a depor. O Jornal, 14/04/1935. Entrevista concedida a
Rosário Fusco. In: Arquivo pessoal, seção de manuscritos, Fundação Biblioteca Nacional.
445
CAMPOS, 2002, p. 16. Além de O negro Brasileiro, publicou O folclore negro no Brasil (1935), As
culturas negras no Novo Mundo (1937), Aculturação negra no Brasil (1942).
446
Sobre os trabalhos apresentados no I Congresso e a disputa referida vide RAMOS, 1937. Sobre a
Escola ver CORRÊA, 2013.
176
veio a corroborar para o referido convite feito por Teixeira. As suas concepções acerca
da psicanálise, que fundamentavam suas posições a respeito da educação e cultura,
puderam ser colocadas em práticas no trabalho executado no SOHM. A mescla teórica
realizada por ele ficou evidente tanto no Serviço, que lhe possibilitou migrar da teoria
para a prática, quanto em suas pesquisas e escritos publicados.
Esta rede de contatos foi tecida por ele desde os tempos de graduação e foi
ampliada ao longo de sua carreira acadêmica. A sua estadia nos Estados Unidos, entre
1941 e 1942, possibilitou-lhe maior contato com os estudos culturalistas447. A
permanência naquele país incluiu conferências e cursos ofertados por ele em algumas
universidades norte-americanas: Universidade do Estado da Louisiana, para cursos
sobre relações raciais; Universidades de Stanford, Yale, Howard, Califórnia, Uthat,
onde proferiu conferências e na Universidade de Northwestern, por intermédio de
Melville Herskovits que o convidou para a realização de palestras. O impacto dessa
viagem foi enorme para a carreira de Ramos e para os desdobramentos de seus estudos,
passando a enfatizar aqueles concernentes às relações raciais no Brasil.
447
Em 1937, Ramos enviou um projeto para a Fundação Rockefeller e, em 1938, para a John Simon
Guggenheim Memorial Foundation, solicitando uma bolsa de estudos. Todavia, não obteve sucesso.
Segundo Cunha, uma explicação para a negativa da bolsa foi a “posição vacilante do Brasil com relação
ao Eixo [que] deixou seus intelectuais de fora dos primeiros grupos de professores e estudantes latino-
americanos que foram enviados aos Estados Unidos”. CUNHA, Olívia. Minha adorável lavadeira: uma
etnografia mínima em torno do Edifício Tupi. In: RIBEIRO, Marcus (ed.). Seminário Diários do Campo:
Arthur Ramos, os antropólogos e as antropologias. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional, v. 119, 1999. p. 73. Em 1940, as bolsas foram estendidas ao Brasil. Ramos
conseguiu uma bolsa pela Fundação Guggenheim e embarcou para os EUA em 1941. Em 1939, o chefe
do Departamento de Sociologia da Universidade do Estado da Louisiana, T. Lynn Smith, visitou o Brasil.
Esta visita resultou em um trabalho de intercâmbio cultural com a Universidade de Louisiana, conforme
Ramos, que recebeu de Smith um convite para ofertar um curso sobre raça e culturas no Brasil, e um
seminário sobre contatos de raças e culturas. RAMOS, Arthur. Prefácio. In: SMITH, T. Lynn. Sociologia
da vida rural. Rio de Janeiro: Casa do Estudante Brasileiro, 1946.
177
Ramos foi ficando, cada vez mais, conhecido e seus trabalhos reconhecidos fora
do Brasil. Apresentando-se e sendo apresentado como um antropólogo, acabou tendo
"um grande papel histórico na construção das Ciências Sociais no Brasil", vindo a se
empenhar, sobretudo após o retorno dos EUA, pela consolidação da antropologia
enquanto ciência e pelo incentivo e desenvolvimento da pesquisa 448. A fundação da
Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia (SBAE), em 18 de junho de 1941, foi
outro projeto que buscou arregimentar profissionais e interessados pelos estudos
antropológicos brasileiros em torno de um espaço de discussão. Esta foi a primeira
organização de antropólogos no país, estava circunscrita à cadeira de Antropologia e
Etnologia da FNFi e teve Ramos como seu presidente até sua extinção em 1949.
448
CAMPOS, 2002, p. 23. Ver este trabalho de Campos e BARROS, Luitgarde. Mesa redonda. In:
RIBEIRO, Marcus (ed.). Seminário Diários do Campo: Arthur Ramos, os antropólogos e as
antropologias. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v. 119, 1999.
449
AZEREDO, Roberto. Antropólogos e pioneiros: a história da Sociedade Brasileira de Antropologia e
Etnologia. São Paulo: FFLCH, 1986. p. 70. Sobre a SBAE ver também o primeiro capítulo de TAMANO,
2013.
178
2- O exame das relações que várias disciplinas conexas apresentam com a antropologia
e a etnologia, visando à unificação de vistas no estudo das ciências do homem e da
cultura;
450
BARROS, 1999, p. 130.
179
454
STOLCKE, Verena. Brasil: uma nação vista através da vidraça da raça. In: RIBEIRO, Marcus (ed.).
Seminário Diários do Campo: Arthur Ramos, os antropólogos e as antropologias. Anais da Biblioteca
Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v. 119, 1999. p. 111.
455
Ibid., loc., cit.
456
Ibid., loc., cit.
457
Chor Maio traz, em sua tese, um depoimento do sociólogo Costa Pinto a respeito das ciências sociais
realizadas em São Paulo e no Rio de Janeiro, em termos comparativos. Dizia Costa Pinto que os
professores da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras (FFCL) da USP, “[...] tinham o apoio da
universidade em que ensinavam. Nós não tínhamos nenhum, praticamente nenhum. O próprio Ramos se
queixava disso. Ele, quando foi chefiar o Departamento de Ciências Sociais da UNESCO, foi exatamente
buscando um ambiente de trabalho que aqui ele não tinha”. PINTO, Luis Apud MAIO, Marcus Chor. A
história do projeto Unesco: estudos raciais e ciências sociais no Brasil. Rio de Janeiro, 1997. 346f. Tese
(Doutorado em Ciência Política) – Instituo Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Universidade
Estadual do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 1997. p. 99. De fato, Ramos se queixava não só da falta de
estrutura/incentivo para pesquisa, como para o ensino de forma geral. Além da ausência de
comprometimento estatal, ele se queixava da burocracia, inclusive a que encontrou na Unesco. Ao aceitar
o convite de Bodet, pediu licença, em maio de 1949, à Universidade do Brasil para poder assumir o cargo
em Paris. No entanto, a FNFi não lhe concedeu. Mesmo sem obtê-la, embarcou para França. Sua viagem
foi bem turbulenta: primeiro, porque não conseguiu a licença; e segundo, pelo desentendimento com a
diretora do Museu Nacional, Heloisa Alberto Torres. Esse desentendimento foi causado pela carta
enviada pela diretora a Ramos pedindo para assumir a cadeira de Antropologia e Etnologia, da qual
Ramos era catedrático. As atividades da disciplina ficaram sob a responsabilidade de Marina São Paulo
de Vasconcellos até o retorno de Ramos. As cartas podem ser encontradas em Azeredo, op., cit., p. 210-
211. Em 22 de outubro de 1949, escreveu uma carta para sua secretária Marina Vasconcelos, pedindo-lhe
que, conforme Barros, acompanhasse o Diário Oficial para avisá-lo de sua licença. Em carta endereçada à
Marina dizia: “Estou aqui sacrificando minha saúde, e de Luiza, num trabalho exaustivo, procurando
181
Apesar dos trabalhos desenvolvidos por Ramos, quer tenham sido seus escritos,
a docência, a fundação da SBAE, os intercâmbios buscados com outras instituições de
ensino e pesquisa, o empenho pela consolidação das ciências sociais no país e da
elevar o nome de nosso país, e nossa Universidade não me fornece as condições de tranquilidade
indispensáveis. Estou começando a ficar preocupado com esta demora de uma solução legal, única legal,
de modo que estou resolvido a voltar. Por mais que o trabalho seja interessante e por maiores que fossem
os benefícios com o desenvolvimento de estudos, em abril, se meu programa for aprovado em Florença,
nada compensará o desgaste de esforço físico e mental acrescido deste background que me prepararam aí.
Eu posso demitir-me a qualquer tempo mesmo depois do pedido de probation, mesmo arcando com as
despesas decorrentes de meu ato, mas a cátedra e nossos trabalhos aí, em primeiro lugar. Desculpe este
desabafo, mas não precisa (ilegível). Se minha licença obrigatória não for dada, eu voltarei imediatamente
[...] O frio começa e minha pressão está subindo, mas prefiro que a caldeira arrebente no Brasil”.
BARROS, 2005, p. 176 e 177. Ramos morreu nove dias após o envio dessa carta, de edema pulmonar.
458
RAMOS, Apud MAIO, 1997, p. 32.
182
459
Na investigação sobre esse esquecimento, Luiz Duarte o considera um "enterro intelectual", análise
com o qual concordamos, principalmente ao considerar que suas obras raramente foram, e continuam não
sendo, sequer mencionadas quando se estuda sobre a história nacional, enfaticamente os anos 1930. Esse
autor destacou dois artigos assinados por Florestan Fernandes (um sobre psicanálise, de 1954; e outro
sobre Lévy-Bruhl de 1956), como responsáveis - porém não isolados - por esse processo. Naqueles,
segundo Duarte, o sociólogo paulista declarou que a "importância possível, tanto da psicanálise quanto de
Lévy-Bruhl, era exclusivamente metodológica". Com isso "engendr(ou) uma desautorização quase
completa de sua obra", haja vista os temas dos artigos terem sido fundamentais para o pensamento de
Ramos. Todavia, Duarte ressalva que "não se pode atribuir o silenciamento das relações entre a
psicanálise e as ciências sociais, totalmente a essa intervenção de Florestan Fernandes [...], mas é certo
que ela era emblemática de uma transformação muito mais ampla do horizonte intelectual brasileiro", no
caso, "a entrada em cena da sociologia e da economia - como saberes universalizantes, objetivas - que se
tornam muito mais empáticas com o modo pelo qual se passa a representar a nação". Foi neste momento,
prossegue o autor, que "Inaugur(ou)-se a época do desenvolvimentismo, da análise baseada nas classes,
com o desprezo sistemático do culturalismo como possibilidade de interpretação do Brasil. E nisso,
também, o desprezo da psicanálise como recurso da compreensão da cultura brasileira" (DUARTE, 1999,
p. 21).
460
Verena Stolcke apresenta ainda o "veredicto negativo do passado escravagista" feito por Ramos como
"certamente uma razão pela qual seu trabalho foi esquecido, em contraste com a persistente popularidade
e contínua reavivação do quadro idílico e pacífico do Brasil pintado por Freyre" (STOLCKE, 1999, p.
114). Aliás, a menção a Freyre não foi apresentada como motivo para o seu esquecimento somente por
Stolcke. Para Campos, Freyre tinha vocação para autopromoção e a morte prematura de Ramos parece ter
facilitado para o sociólogo pernambucano a construção de si mesmo como a pedra fundamental das
ciências sociais no Brasil (CAMPOS, 2002, p. 42). Já Barros acredita que isso se deu pelo fato de Freyre,
diferente de Ramos, ter frequentado um curso de ciências sociais institucionalizado, sendo o primeiro
cientista social formado em instituição estrangeira como mestre e doutor em antropologia e sociologia, na
medida em que Ramos foi um autodidata na antropologia, sendo, por formação, médico (BARROS, 1999,
p. 126).
183
Ilustração 05. Arthur Ramos aos 17 anos de idade - Ilustração 06. Arthur Ramos em Paris – outubro de
Pilar, 1920. In: Acervo Arthur Ramos da 1949. Uma de suas últimas fotos.
Universidade Federal de Alagoas.
Ilustração 07. Arthur Ramos e Luiza Ramos - Rio de Janeiro, 1942. In: Acervo Arthur Ramos da
Universidade Federal de Alagoas.
185
Ilustração 08. Arthur Ramos, de branco com a mão sobre o joelho, repousando no meio do trajeto de uma
perícia. In: Acervo Arthur Ramos da Universidade Federal de Alagoas.
Ilustração 09. Arthur Ramos, agradecendo homenagem prestada da Federação Alagoana pelo Progresso
Feminino - Maceió AL, 1934.
186
Na época em que Arthur Ramos viveu e produziu, era comum e aceitável que os
profissionais migrassem entre diversos campos do conhecimento sem que houvesse a
necessidade de diplomas específicos. Verdadeiros pioneiros, estes intelectuais, mesmo
sem formação acadêmica precisa, se propuseram a pensar sobre a vida social, política,
econômica, cultural, institucional e científica do país. A grande maioria desses homens
de ciência era bacharel em medicina, direito ou engenharia, geralmente os cursos
possíveis no Brasil do século XIX e início do XX. Antes da institucionalização da
ciência, por intermédio das universidades, era possível e comum que médicos,
engenheiros, juristas, leigos e curiosos se transformassem em antropólogos, etnólogos,
geólogos, biólogos, sociólogos461. Por esse motivo, médico por formação acadêmica,
Ramos também é considerado antropólogo, psicólogo, etnólogo, higienista, educador e
folclorista. Atuando nessas áreas, legou à posteridade algumas publicações sobre cada
uma dessas vertentes do conhecimento462.
Com a nomeação para assumir interinamente as funções de médico assistente no
Hospital São João de Deus, na Bahia, iniciou suas pesquisas psiquiátricas 463. No âmbito
da psiquiatria, empenhou-se pela criação de um manicômio judiciário naquele estado,
vindo a ser comissionado pela Secretaria de Segurança Pública, em 1928, para estudar
os planos de construção desse tipo de manicômio. Além disso, esforçou-se pela
reinstalação da Sociedade de Medicina Legal, Criminologia e Psiquiatria da Bahia, para
a qual foi eleito segundo secretário. Neste mesmo ano de 1928, tornou-se, por meio de
concurso, professor da Faculdade de Medicina da Bahia na cátedra de Clínica
Psiquiátrica.
461
LOPES, Maria. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século
XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.
462
Antropologia e folclore. O negro brasileiro, 1934; O folclore negro no Brasil, 1935; As culturas
negras no Novo Mundo, 1937; A aculturação negra no Brasil, 1942; Guerra e relações de raça, 1943; As
ciências sociais e os problemas de após-guerra, 1944; Introdução à antropologia brasileira vol 1 e vol 2,
1943 e 1947; A organização dual entre os índios brasileiros, 1945; A renda de bilros e sua aculturação
no Brasil, 1948; Estudos de folclore, 1951; A mestiçagem no Brasil, 1952; O negro na civilização
brasileira, 1956 - estes três últimos foram publicações póstumas. Psicologia e Psicanálise: Introdução à
psicologia individual, 1936; Primitivo e loucura, 1926; A sordíce nos alienados, 1928; Estudos de
psicanálise, 1931; Psiquiatria e psicanálise, 1933; Freud, Adler, Jung..., 1933. Higiene Mental e
Educação: A higiene mental nas escolas, 1935; Saúde do espírito, 1939; Pauperismo e higiene mental,
1939; A criança problema, 1939; Educação e psicanálise, 1934.
463
Ramos não explicita quais foram essas experiências, apenas menciona a sua realização em seu
Curriculum. Em Primitivo e loucura ele fez duas referências a dois internos do Hospital São João de
Deus. Porém, esta publicação data de 1926, um ano antes dele começar a trabalhar no referido hospital.
Sobre as citações, ver RAMOS, Arthur. Primitivo e loucura. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1926. p.
60 e 65.
187
464
Ibid., p. 03.
465
Ibid., p. 04.
466
Ibid., loc., cit.
188
467
Ibid., p. 04 e 07.
468
Ibid., p. 13.
189
O alienista italiano Tanzi foi uma das influências mais destacadas por Ramos em
seu pensamento. Em Primitivo e loucura, ele foi referenciado como o "primeiro, dentre
os alienistas, que estabeleceu o cotejo entre os documentos etnológicos e
demopsicológicos e os psiquiátricos", e isso muito antes da psicanálise 470. Conforme
Ramos, Tanzi considerava que o germe do delírio estava presente em todos os seres
humanos, haja a vista ser herdado de seus antepassados. Este atavismo na paranoia
defendido por ele foi fortemente criticado por Juliano Moreira e Afrânio Peixoto, que o
consideravam uma grande fantasia. Ainda que concordasse com as críticas tecidas pelos
dois alienistas baianos supracitados no que dizia respeito a teoria do atavismo aplicado à
paranoia, considerado como quadro nosológico, Ramos acreditava que o erro de Tanzi
foi aplicar os materiais etnológicos e folclóricos ao quadro da paranoia, com a sua teoria
etio-patogênica desta psicose. Isso porque já havia sido provado que "alguns dos
exemplos, buscados na etnologia e no folclore, como símiles de sintomas delirantes, já
não pertenc(iam) à paranoia, e muitos deles, a maior parte, (eram) comuns dessa psicose
e outros quadros mórbidos". Todavia, "o fato essencial é que esses quadros mórbidos
existem e não pode ser negada a sua analogia com certas manifestações do primitivo" 471.
469
RAMOS, 1931, p. 97 e 102.
470
RAMOS, 1926, p. 16.
471
Ibid., p. 40.
472
Ibid., p. 40-41.
190
toda e qualquer concepção de vida e mundo. Essa mentalidade possuiria uma lógica
particular, impregnada pela interferência direta e constante das potências invisíveis que
regiam suas vidas e mortes.477 No caso da religião negra no Brasil, segundo Ramos, as
crenças fetichistas confirmavam a ação dessa mentalidade sobre os negros. A religião
foi considerada por ele como um dos meios mais profícuos para penetrar na psicologia
de um povo, pois "leva(va) diretamente a esses estratos profundos do inconsciente
coletivo, desvendando-nos essa base emocional comum, que é o verdadeiro dínamo das
realizações sociais"478.
Ramos encontrou nos trabalhos de Nina Rodrigues o fio condutor para os seus
estudos acerca da população negra, destacando que foi em decorrência de sua profissão
de médico legista e clínico que se pôs em contato, na Bahia, "com as classes negra e
mestiça da sua população, indo surpreender a muito custo e após tenaz e paciente
477
LÉVY-BRUHL, Lucien. A mentalidade primitiva. São Paulo: Paulus, 2008.
478
RAMOS, 2001, p. 28 e 29.
479
Na primeira edição do livro, de 1934, publicado pela Civilização Brasileira, há a presença do subtítulo
- etnografia religiosa e psicanálise. Na segunda edição, de 1940, publicado pela Companhia Editora
Nacional, somente a primeira parte do subtítulo foi mantida. Essa edição foi revisada e aumentada pelo
autor que acrescentou um apêndice no qual rebateu as críticas que recebeu concernentes ao uso da
psicanálise na análise da etnografia religiosa. A terceira edição, também publicada pela Companhia
Editora Nacional, porém sem datação, igualmente manteve apenas - etnografia religiosa - como subtítulo.
Utilizamos nesta tese a publicação de 2001, realizada pela editora Graphia, que reproduz a segunda
edição, de 1940.
480
RAMOS, op., cit., p. 15.
481
Ibid., p. 17 a 18.
192
esforço, todos os mistérios das religiões negras e as formas de todo esse cerimonial
mágico-religioso de origem africana". Essa pesquisa continuou no Rio de Janeiro, onde,
paralelo aos trabalhos desenvolvidos no SOHM, pôs-se a "estudar a população dos
morros do Rio de Janeiro e por aí, progressivamente penetr(ou) nos recônditos das
macumbas e dos centros de feitiçaria". É importante destacar de onde esse homem
partia para realizar tais pesquisas, no caso, da medicina.
482
Ibid., p. 35.
483
Ibid., p. 313.
484
Ibid., p. 180.
193
coito". Ele chamou a atenção para o fato desse conteúdo erótico-místico das danças
evocatórias dos orixás ter sido destacado por muitos escritores sem que esses se
atentassem para a
485
Ibid., p. 313.
486
Ibid., p. 83 a 84.
487
Ibid., p. 113 e 114.
488
Ibid., p. 123.
489
Usou o conceito de aculturação conforme proposto pelo Sub-Committee of the Social Science Research
Council, em 1936, formado pelos professores Robert Redfield, Ralph Linton e Melville Herskovits.
Segundo esse grupo, aculturação seria o "fenômeno que resulta quando grupos de indivíduos de diferentes
culturas chegam a um contato, contínuo e de primeira mão, com mudanças consequentes nos padrões
originários de cultura de um ou de ambos os grupos". A resultante do processo aculturativo poderia se dar
em três campos: aceitação, que seria a "apropriação da maior porção de outra cultura, e perda da maior
parte da herança cultural mais velha"; adaptação (a que ele preferiu chamar de sincretismo) que se
verificaria quando "ambas as culturas, a original e a estranha, combinam-se intimamente, num mosaico
cultural, num todo harmônico"; e reação, quando surgem "movimentos contra-aculturativos, ou por causa
da opressão, ou devido aos resultados desconhecidos de aceitação dos traços culturais estranhos",
indicando os malês, na Bahia, como exemplo, uma vez que não aceitaram traços culturais nem dos
brancos e nem dos outros negros. TAMANO, 2017, p. 315.
194
490
RAMOS, op., cit., p. 122 a 123.
491
Ibid., p. 235.
492
Em O animismo fetichista dos negros baianos, originalmente de 1900, Nina Rodrigues destinou um
capítulo para abordar As ilusões da catequese no Brasil. Afirmou que entre os negros crioulos ou
mestiços "há uma tendência manifesta e incoercível a fundir essas crenças (fetichista e católica)", ao
passo que entre os negros africanos há uma "justaposição das ideias religiosas bebidas no ensino católico,
às ideias e crenças fetichistas trazidas da África". Declarou que a equivalência realizada entre os orixás e
os santos católicos correspondia "a mais completa harmonia de sentimentos religiosos, na adoração
prestada aos deuses dos dois cultos. E é precisamente este fato que dá a ilusão da conversão católica dos
negros. Sem renunciar aos seus deuses ou orixás, o negro baiano tem, pelos santos católicos, profunda
devoção levada até ao sacrifício e ao fanatismo. Mas esse sacrifício e esse fanatismo não podem ser se
não essencialmente fetichistas; os santos católicos e até mesmo as invocações do filho de Deus
constituem para os negros outros tantos orixás". Logo, mediante seus estudos e as pesquisas nos terreiros,
Rodrigues chegou a conclusão de que "continuar a afirmar [...] que os negros baianos são católicos e que
tem êxito no Brasil a tentativa da conversão, é, portanto, alimentar uma ilusão que pode ser cara aos bons
intuitos de quem tinha interesse de que as coisas se tivessem passado assim". RODRIGUES, Raimundo.
Ilusões da catequese. In: O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional,
2006. p. 109, 112 e 121. Ramos afirmou em O negro brasileiro que a obra lenta da cultura podia
conseguir o que a catequese não alcançou. Segundo ele, este era "um trabalho demorado de várias
gerações, visando a substituição dos elementos místicos e pré-lógicos da mentalidade primitiva por
elementos racionais, novas formas de pensamento, onde o logro, a abusão, os fantasmas ... fiquem
sepultados no domínio do subjetivo e não cavalguem a realidade, participando das suas funções"
RAMOS, op., cit., p.152.
493
RAMOS, Arthur. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional, 1942. p. 222 a
224.
195
Afirmou ter sido Freud o primeiro a tentar fazer um "trabalho de conjunto sobre
a mentalidade primitiva, interpretando, à luz da psicanálise, certas manifestações da
vida e hábitos mentais do primitivo: o totemismo, o tabu, o animismo e a magia".
Asseverou ainda que o sistema totêmico teria nascido das condições do complexo de
Édipo. Haveria, segundo ele, um princípio que regia os processos mentais primitivos
que, para Freud, seria a “onipotência das ideias” então semelhante a lei de participação
de Lévy-Bruhl. Ramos argumentou que era pela força inconsciente do seu narcisismo
que o homem conseguia, por meio da magia, submeter os fenômenos da natureza à sua
vontade495. No estudo dos mitos religiosos, ele buscou aplicar as teorias freudianas,
utilizando o complexo de Édipo para analisar o mito de nascimento de Iemanjá e, por
conseguinte, dos orixás que irromperam de seu ventre496. O complexo edipiano esteve
igualmente presente em sua análise sobre o ciclo do pai: os orixás fálicos, destacando a
história de Xangô e sua punição por ter roubado os atributos paternos, o falo 497.
Em sua leitura, cria que para se escrever a história do Brasil era necessário
compreender a psique coletiva do brasileiro. Isso somente seria possível analisando a
mentalidade primitiva que passara ao inconsciente folclórico. Tão importante quanto a
494
RAMOS, 2001, p. 226.
495
Ibid., p. 306.
496
"Estudando mais profundamente o mito de Iemanjá nas fontes originais, é que vamos encontrar
nitidamente os motivos edipianos. Na mitologia iorubana, segundo as observações de A. B. Ellis,
Obatalá, o céu, uniu-se a Odudua, a terra, e desta união nasceram Aganju e Iemanjá, respectivamente,
Terra e Água. Iemanjá desposou seu irmão Aganju, de quem teve um filho, Orungã. Apaixonou-se este
por sua mãe e começou a persegui-la, até que um dia, aproveitando-se da ausência paterna, violentou-a.
Pôs-se Iemanjá a correr, perseguida por Orungã, que lhe propunha viver com ela. Ia a alcançá-la e pôr-
lhes as mãos em cima, quando Iemanjá cai ao chão, de costas. Então o seu corpo começou a dilatar-se, a
crescer desmesuradamente, até que dos seus seios começaram a jorrar duas correntes d’água, que se
reúnem até formar um grande lago. O ventre rompe-se e dele saem os seguintes deuses: Dada, Xangô,
Ogum, Olokum, Oloxá, Oiá, Oxum, Oba, Orixá Okô, Oxóssi, Oké, Ajê Xaluga, Xapaña, Orum, Oxu".
Ibid., p. 252.
497
"Psicanaliticamente, o mito pode ser traduzido assim: Xangô, que se tornou tão poderoso porque
roubou os atributos paternos (o falo), deve ser punido. 'Perde-se na floresta', a 'zona mágica', onde vai
começar as peripécias de sua punição. Suicida-se, quer dizer, o Super-Ego ergue-se violentamente contra
o Ego, e elimina-o, numa autopunição pelo crime de castração. Xangô some-se debaixo da terra e, uma
vez sacrificado, redimi-se e recobra os atributos fálicos: torna-se o orixá dos trovoes e dos relâmpagos,
sendo o fogo um símbolo conhecidíssimo da psicanálise [...]. Temos aqui o tema do 'deus ressuscitado',
após a 'descida aos infernos', que Th. Reik aplicou ao problema psicanalítico de Jesus. Nesta deificação
de Xangô, ocorre mesmo o sentimento de culpa coletivo, expresso pelos seus súditos: ninguém queria ser
o responsável pela sua morte, por isso erigiram-lhe um tempo, proclamando sua divindade... É o velho
motivo da deificação daquele que se sacrifica em holocausto ao remorso coletivo pela morte do pai e, por
sua vez, originando novo sentimento de falta, origem das religiões". Ibid., p. 268 a 269.
196
religião, o folclore foi definido por ele como um dos meios ideais para o estudo dessa
mentalidade coletiva, já que era uma sobrevivência emocional, sendo "a conservação de
elementos pré-lógicos que persist(iam) no esforço das culturas pela sua afirmação
conceitual"498.
498
RAMOS, 2003, p. 23.
197
cultura, entendendo que tais representações coletivas existiam em qualquer tipo social
"atrasado" em cultura. Esse quadro podia ser modificado por meio da educação, desde
que ela descesse "aos degraus remotos do inconsciente coletivo" e soltasse "as amarras
pré-lógicas a que se acha acorrentado". Este ponto de vista validava a necessidade de se
conhecer tais modalidades do pensamento primitivo, objetivando "corrigi-lo, elevando-o
a etapas mais adiantadas"499. Fica claro que a sua perspectiva estava pautada no
princípio evolutivo, mantendo uma hierarquia. Sustentar a necessidade da análise do
inconsciente justificava a importância do uso da psicanálise enquanto método de estudo
a ser aplicado no SOHM.
499
Ibid., p. 32.
500
No prefácio da tese há um agradecimento feito por Ramos ao professor Mario Leal, na ocasião diretor
do Hospital São João de Deus, e aos seus auxiliares que puseram à sua disposição os casos clínicos de que
necessitava para o estudo. RAMOS, Arthur. A sordicie nos alienados. Bahia: livraria e tipografia do
comércio, 1928. p. VI.
501
Ibid., p. V.
502
Ibid., loc. cit.
503
Ibid., p. 13.
198
504
RAMOS, Arthur. As novas diretrizes da psiquiatria. Separata da Revista Médica da Bahia, n. 2, 1933.
p. 03.
505
RAMOS, 1931, p. 20.
506
Ibid., p. 16.
507
Ibid., p. 05.
508
Ibid., p. 61.
199
tratamento deve ser completado com uma orientação reeducativa". Essa, por sua vez, se
dava da seguinte maneira: "Na primeira fase, a nevrose é denunciada como uma ficção,
e o terapeuta desce às origens infantis do sentimento de inferioridade, que deve ser
reconhecido, pelo doente, como um engano ou uma 'soma de erros'. Depois é que a
reeducação vem completar o tratamento"513. Ele considerava a psicologia individual
como importante para a pedagogia por ela permitir a correção dos erros da educação
familiar e escolar. Por intermédio dela era possível estudar a criança difícil, "desviando
a linha de formação das nevroses e fornecendo-lhes um plano normal de vida,
inoculando-lhes o verdadeiro sentido das relações com a comunidade" 514.
O ensino coletivo deveria, então, ser substituído pelo ensino individual. Nessa
operação, o mestre se tornava um guia e não um saber supremo e absoluto, tendo que
estar atento à criança em sua individualidade, na qual seus interesses despertariam os
assuntos a ser estudados, o conhecimento a ser adquirido. Preceitos defendidos pela
Escola Nova, como já abordado. Essas novas diretrizes que deveriam reger a moderna
pedagogia, dirigiria esse aluno em prol da sociedade, permitindo que suas habilidades e
aptidões fossem desenvolvidas. Assim, o seu máximo rendimento social seria
alcançado. Em todo esse processo, a psicanálise emergia como um instrumento de ação
que agiria como "um trabalho de libertação negativa, que ser(ia) completado por um
trabalho de reorganização positiva, que é propriamente o domínio da pedagogia
geral"516. Fundamentava, assim, a justificativa para essa aliança.
513
Ibid., p. 82.
514
RAMOS, Arthur. Educação e psicanálise. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1934. p. 54.
515
Ibid., p. 12.
516
Ibid., p. 15 a 16.
201
517
Ibid., p. 16.
518
Ibid., p. 24 e 25.
519
RAMOS, 1955, p. 32.
520
Ibid., p. 33.
202
521
Na Orientação destinada a aluna A.T., ficha n°106, Escola Bárbara Ottoni, se afirma um diagnóstico:
trata-se de uma criança narcísica. A seguir, aconselha-se as maneiras para "corrigir-lhe as tendências
narcísicas" que são: "dando-lhe trabalhos de gradual responsabilidade" e "instruir cuidadosamente os pais,
mostrando-lhes os inconvenientes dos excessos de mimos". Em outra ficha, a do aluno M.D.C.B., n° 103,
Escola Bárbara Ottoni, afirma-se, igualmente na secção Orientação da ficha, se tratar de uma criança
mimada. "Caso clássico do filho único, mimado em excesso". É prescrito que se converse
"cuidadosamente com os pais, mostrando-lhes os inconvenientes da demasia mimos ao filho. Fazer-lhe
ver a necessidade de, aos poucos, a criança ir conquistando a personalidade [...] Dizer tudo isso de modo a
não ferir a suscetibilidade dos pais, quase sempre cegos ou escotomizados, quando se trata de filho único.
(grifos nossos).
522
RAMOS, Arthur. A criança problema: a higiene mental na escola primária. Rio de Janeiro, Casa do
Estudante do Brasil, 1959. p. 53.
523
Ibid., loc., cit.
203
524
Ibid., p. 61.
525
Ibid., p. 165.
526
Ibid., p. 67.
527
Ibid., p. 67.
528
Ibid., p. 80.
529
Ibid., p. 140.
204
se referem a elas, podiam apresentar os mesmos problemas 530. E, com relação ao poder
aquisitivo, mesmo famílias mais abastadas não estavam de fora das críticas do SOHM.
Elas também precisavam, na ótica do Serviço, serem aconselhadas e terem algumas
ações repreendidas.
Na leitura que realizamos dos textos de Ramos não encontramos uma fala
ancorada na proposta de um trabalho específico em decorrência da cor/raça, mas sim da
classe social. Uma ação particularizada deveria ser destinada às crianças pobres, como
alimentação nutritiva, remédios, produtos de higiene, orientação de higiene pessoal,
enfim. Coisas que, em virtude do baixo poder aquisitivo e de instrução, precisavam ser
abordadas pelo SOHM, o que as crianças em famílias de melhor condição financeira,
muitas vezes, dispensavam. O que destacamos é que não há, em seus escritos, essa
demarcação racial, no qual houvesse a necessidade de uma ação específica. Isso não
530
Cometem frutos: fichas n° 37, N.M., Escola General Trompowski: Cor preta; n° 46, A.L.V., Escola
México: Cor branca. Desobedientes: fichas n° 90, M.L.S., Escola General Trompowski: Cor preta; n° 82,
Z.S., Escola General Trompowski: Cor branca. Mentem: fichas n° 141, D.P., Escola Bárbara Ottoni: Cor
preta; n° 319, A.B.S., Escola Bárbara Ottoni: Cor branca.
205
significa dizer que ela estivesse ausente na prática, no cotidiano do Serviço, na escola,
nas relações interpessoais entre os atores envolvidos no processo (alunos, família,
professoras, visitadoras), como pudemos demonstrar em algumas das fichas dos alunos
analisadas nesta pesquisa531.
531
Estes casos serão trabalhados no próximo capítulo destinado às fichas.
532
RAMOS, 1955, p. 36.
206
533
RAMOS, 1934, p. 150 a 151.
534
Ramos fala do encaminhamento dos casos graves para um profissional, no caso, um psicanalista.
Contudo, somente em 1936, com a vinda da psicanalista alemã Adelheid Koch para São Paulo, é que os
primeiros psicanalistas foram formados. Ramos, ao que demonstrou nossa pesquisa, era o único médico
"psicanalista" do SOHM. Assim, o encaminhamento de que ele fala seria para ele mesmo? Nem mesmo
Ramos era um psicanalista formado, conforme os preceitos da IPA.
535
RAMOS, 1935, p. 10.
207
A orientação psicanalítica era, cada vez mais, ampliada. Ela também não estava
restrita aos educadores, uma vez que "o ideal seria a formação psicanalítica de todos os
responsáveis pelo desenvolvimento mental da criança, pais, nurses e educadores, em
estabelecimentos apropriados [...]"539. A orientação dessa natureza aos pais foi um
536
RAMOS, 1934, p. 141.
537
Ibid., p. 151.
538
Ibid., p. 157.
539
Ibid., p. 169 a 170.
208
É perceptível como os pais foram, nas palavras de Ramos e nas ações do SOHM,
considerados passíveis de orientação quanto à maneira de se portarem para, assim,
poderem educar seus filhos. Os escolanovistas viam a família como um membro
auxiliar, arrolavam a sua importância no processo educativo de seus filhos,
considerando-a insubstituível, como asseverou Anísio Teixeira. Ela era colocada como
parceira, tinha seu papel e relevância valorizados, porém, a ênfase recaía, ainda assim,
na certeza de seu despreparo, como deixou claro Cecília Meireles, uma das entusiastas
do movimento: "Por muito boa vontade que tenham certos pais, não devem acreditar
que entendem também de pedagogia, porque isso vem realmente prejudicar de maneira
grave e irremediável quer o trabalho do professor quer a própria situação do aluno" 541.
Ao mesmo tempo em que o movimento, a reforma e o SOHM qualificavam a família
como despreparada para educar, precisavam e, em alguns casos, dependiam dela para
realizarem os seus trabalhos.
540
RAMOS, 1936, p. 15.
541
MEIRELES, Cecília Apud MAGALDI, Ana. Lições de casa: discursos pedagógicos destinados à
família no Brasil. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2007. p. 96.
542
RAMOS, 1955, p. 50.
543
RAMOS, 1939a, p. 04. Ao afirmar que a partir "de hoje" o Serviço começaria a se dirigir aos pais,
pensa-se que esse deveria ser um escrito antigo de Ramos, posto que essa ação não seria iniciada no ano
209
1. A escola e a família
Essa criança-problema era um problema para a escola e para a família. Ela era,
principalmente, da família enquanto origem. Havia casos em que o Serviço solicitava a
retirada da criança do lar, ou seja, pleiteava a supressão do pátrio poder. Em 3 das 134
fichas analisadas por nós, houve a indicação de retirada da criança do lar e, somente em
uma, houve a indicação para onde ela deveria ser encaminhada, no caso, o aluno J.D.,
ficha n° 3, da Escola General Trompowski. Esse aluno apresentava problemas de
agressividade e desobediência. Tinha problemas orgânicos, cuja solução estava sendo
final de existência daquela secção, dada a importância dos pais no processo. Em seu Currículo, publicado
em 1945, Ramos manteve que essa publicação foi de 1939.
544
O filho amado e o filho odiado, Jornal de Alagoas, Ano XXXII, n. 55, Maceió, 06 de agosto de 1939b;
Família e a escola, Jornal de Alagoas, Ano XXXII, n. 25, Maceió, 02 de julho de 1939a; Os irmãos e os
conflitos familiares, Jornal de Alagoas, Ano XXXII, n. 66, Maceió, 20 de agosto de 1939c; A vida da
criança no lar, Jornal de Alagoas, Ano XXXII, n. 43, Maceió, 23 de julho de 1939d; O ambiente parental
e a criança pré-escolar, Jornal de Alagoas, Ano XXXII, n. 34, Maceió, 13 de julho de 1939e; A habitação
e a higiene mental, Jornal de Alagoas, Ano XXXII, n. 37, Maceió, 16 de julho de 1939f; Os irmãos e os
conflitos familiares, Jornal de Alagoas, Ano XXXII, n. 66, Maceió, 20 de agosto de 1939g. A formação
mental dos pais e dos educadores. Boletim de educação pública, Rio de Janeiro: Cia editora nacional, n. 1
e 2, jan-jun 1936.
210
545
Em sua ficha, no campo Caráter, constam as seguintes adjetivações: alegre, insociável, nervoso,
agitado, dócil às vezes, valente, egoísta, agressivo, "aderente", irascível, orgulhoso, desconfiado,
fanfarrão, bulhento, malvado.
211
Ao aluno W.W., n° 24, Escola Bárbara Ottoni, foi solicitado por Ramos nas
Orientações a sua retirada do lar se as recomendações não resolvessem o problema.
Diagnosticado como um caso típico de criança mimada, pela madrasta, agravado pelo
fato de ser filho único, pede-se que a família evite os mimos em excesso. Se a
prescrição não fosse atendida, considerava conveniente a retirada de W. de casa,
inicialmente por um tempo, recomendando uma temporada na casa do tio, mas, indicava
como "último caso", um internato. Esse caso desperta interesse pelo motivo aventado
para a supressão do pátrio poder.
Todavia, diante do motivo pelo qual a recomendação foi feita, a ausência de qualquer
posicionamento do Serviço chama a atenção. Trata-se do aluno L.A.A.S., n° 233, Escola
Bárbara Ottoni. Por recomendação do médico da família, foi residir com a avó paterna.
O motivo aventado foi a proximidade da casa dos pais da praia, porque ficava muito
agitado. "A conselho médico assistente mudou-se de Copacabana onde passou 4 anos,
por apresentar manifestações nervosas". Da mesma maneira que a ficha de W.W., acima
mencionada, os dados apresentados na de L. demonstram que a sua vida familiar era boa
e tranquila. Não há referências de violência doméstica; a moradia era boa (com
acomodação para a criança, quintal grande, boa vizinhança), afirmando-se ainda que a
"vida no lar (era) calma" e a "vida matrimonial feliz". Também não são mencionados
problemas significativos no período gestacional, nascimento e desenvolvimento da
criança.
O silêncio do SOHM com relação a retirada dessa criança do seu núcleo familiar
primário, frente ao motivo aventado pelo médico familiar, é, no mínimo curioso, diante
da importância que dava à família e pelo fato de não haver, na ficha, menção a
existência de problemas de natureza grave. Na Orientação, Ramos não se manifesta,
nem as visitadoras em momento algum, aconselhando apenas que se investigasse se
teria havido algum acontecimento em casa ou na escola, que influísse sobre a criança,
determinando-lhe uma mudança de comportamento e que fossem colhidas maiores
informações sobre a sua vida em casa.
546
RAMOS, Arthur. A vida da criança no lar. Jornal de Alagoas, Maceió, ano XXXII, n. 43, 23 jul.
1939d. p. 7.
213
agir na formação dos hábitos das crianças 547. Se a mãe era a condensadora de energias
psíquicas, o pai era o "seletor de emoções" que contrabalancearia a influência materna.
Ele era "o símbolo da autoridade e do poder que se interpõe para exercer a sua função
de censura". O papel do pai na formação da personalidade da criança era tão importante
quanto o da mãe, devendo ele, igualmente, dosar o afeto. O complexo de Édipo, para os
freudianos, ou o protesto viril, para os adlerianos, foram invocados por Ramos para
entender e explicar essa fase da vida humana e a importância fundamental dela e da
relação estabelecida com os pais para uma formação sadia, ou não, do indivíduo.
547
RAMOS, 1955, p. 46.
548
MOKREJS, Elisabete. Psicanálise e educação. Arthur Ramos - um episódio da educação no Brasil.
Revista Faculdade de Educação, São Paulo, v. 13, n. 1, 1987. p. 98. DAVID, Juliana. Pela criança, para
a família: a intervenção científica no espaço privado através do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental
(1934-1939). 2012. 105f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade
Estadual do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2012; ALMEIDA, 2010.
549
A afirmação é a seguinte: "Ao sair a público a primeira edição deste livro, já o seu autor havia deixado
a direção do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental, que fundara. RAMOS, 1959, p. 07 Em A higiene
214
Teixeira e, cremos, idealizado pelo próprio educador baiano, responsável pelo convite a
Ramos para chefiar aquele órgão, ainda em 1933550. No entanto, é fato que o médico
alagoano influenciou, pensou e projetou os pontos de trabalho a serem executados pelo
Serviço, além de ter elaborado a documentação formal de sua institucionalização.
Anísio Teixeira definiu o SOHM como a secção que tinha por fim organizar os
trabalhos de higiene mental preventiva do pré-escolar, prevenindo e corrigindo os
desajustamentos psíquicos no lar e na escola 551. Esta conceituação se aproxima muito
das concepções de Ramos, principalmente no que diz respeito à investigação psíquica.
As semelhanças de seu pensamento com o de Anísio Teixeira vão ficando cada vez mais
evidentes ao longo da leitura de seu Educação e Psicanálise. Ambos acreditavam que
ao se dirigir para o indivíduo, a educação visava toda a sociedade. Essa perspectiva,
igualmente defendida por Anísio Teixeira, a quem Ramos recorreu, propunha que:
1. A escola deve ter por centro a criança e não os interesses e a ciência dos adultos;
2. O programa escolar deve ser organizado em atividades, "unidades de trabalho",
ou projetos, e não em matérias escolares;
3. O ensino deve ser feito encima da intenção de aprender da criança e não da
intenção de ensinar do professor;
4. A criança, na escola, é um ser que age com toda a sua personalidade e não uma
inteligência pura, interessada em estudar matemática ou gramática;
5. Os seus interesses e propósitos governam a escolha das atividades, em função do
seu desenvolvimento futuro;
6. Essas atividades devem ser reais (semelhança com a vida prática) e reconhecidas
pelas crianças como próprias552.
mental na escola, Ramos afirma que o SOHM foi criado pela recente reforma do Sr. Diretor Geral do
Departamento de Educação, DF (Anísio Teixeira). RAMOS, 1935, p. 03.
550
Saber quem fundou o SOHM, como se deu a sua organização prática, bem como a documentação de
maneira geral, tem grande relevância para esta tese. Na pesquisa efetuada no Centro de Referência da
Educação da Cidade do Rio de Janeiro, Arquivo da Cidade e Arquivo Nacional, todos no Rio de Janeiro,
não conseguimos encontrar nenhuma documentação acerca do Serviço. A Biblioteca Nacional,
especificamente o Arquivo Arthur Ramos, é o único local onde se pode encontrar/consultar materiais
referentes ao SOHM. Por essa razão, não podemos afirmar quem fundou a Secção, apenas conjecturar por
meio das fontes disponíveis que pudemos analisar.
551
TEIXEIRA, 2007, p.152. As cinco escolas experimentais que serviam de campo de ação para todas as
seções da reforma não eram pré-escolares. O SOHM contou com uma escola experimental pré-escolar,
afora as outras cinco, que foi a General Trompowski. Todavia, não sabemos, pautando-se na pesquisa
empreendida nesta tese, se esta última serviu apenas à Secção de Ortofrenia e Higiene Mental ou a todas
as demais.
552
TEIXEIRA, Anísio Apud RAMOS, 1934, p. 13 a 14.
215
A ortofrenia era uma das frentes em que o SOHM atuava: tornar a criança-
problema uma criança "normal", o que evidencia o seu propósito normalizador. Mas o
que seria esse "normal"? Em que consistia? Para Ramos, no plano psíquico, ela
corresponderia à adaptação social, logo, anormalidade seria a sua perda 553. A meta,
então, era fazer com que ela saísse da categoria de desviante para entrar na de
normalidade. Ainda que não fossem "anormais", sob o ponto de vista orgânico, fugiam
da normalidade. Estavam entre as crianças "anormais" e as "normais". Quais os motivos
então que as levavam a ser "problema"? O ambiente funcionaria como base
justificadora554. A família não entrava nesta operação por sua biologia, ou só por sua
biologia, mas por seu comportamento, sua mentalidade, seus complexos, suas
frustrações.
553
RAMOS, 1935, p. 6.
554
Como ficará mais claro no capítulo posterior, as crianças-problema, em sua grande maioria,
apresentavam problemas de cunho orgânico. Somente pelas análises das fichas (cópias compradas na BN
e não as que estão anexadas no livro A criança problema, vale a ressalva) foi possível averiguar,
principalmente pelo tópico Orientação Ortofrênica, esse dado. Em grande número se pede a realização de
exame clínico, se detecta doenças, inclusive hereditárias, e se propõe tratamentos. Assim, mesmo que
havendo a possibilidade de cura, elas não deixavam de apresentar problemas orgânicos. Ao ampliar o
escopo de análise, passando a considerar as condições sociais das famílias, problemas orgânicos como a
desnutrição, por exemplo, se tornava compreensível em vista da falta ou pobreza nutricional dos
alimentos. Mas esse era um problema de fácil resolução, no sentido de que o acesso a uma alimentação
adequada seria o suficiente para resolver, ainda que os danos já instalados não pudessem ser mais
remediados. Problemas dessa natureza, ainda que orgânicos, não eram tratados como uma tara biológica
determinista.
216
O Serviço foi criado para auxiliar a tarefa pedagógica, como asseverou seu
diretor, que acreditava ser aquela a primeira experiência brasileira de instalação de
clínicas de higiene mental nas escolas, articulada com a tarefa pedagógica 556. Ainda que
tenha mencionado os trabalhos desenvolvidos pela LBHM, afirmou ter cabido ao
SOHM a prioridade do reconhecimento oficial da instalação de clínicas de higiene
mental nas escolas municipais do Distrito Federal557. O seu programa de ação foi assim
resumido por Ramos558:
559
RAMOS, 1935, p. 9.
560
RAMOS, 1959, p. 22.
561
RAMOS, op., cit., p. 9.
218
562
Ibid., p. 10.
563
Em seu Curriculum Vitae, Ramos elencou os cursos sobre higiene mental que ministrou no IPE e nas
escolas experimentais (ainda que não indique o público alvo), de março à dezembro dos anos de 1934 a
1939. Nesse mesmo período do ano de 1936 indicou ainda continuar as pesquisas sobre higiene mental e
ortofrenia e ter fundado as Clínicas de Orientação de Hábitos para pré-escolares no SOHM. Consta ainda
ter ofertado o Curso de caracterologia escolar, realizado no IPE, nos anos de 1934 e 1935; ter realizado
uma série de palestras na PRD-5, Seção de Radio-Difusão do IPE, sobre A família e a escola. Conselhos
de higiene mental aos pais, de 1934 a 1935; ter proferido palestras e conferências sobre Higiene Mental
do Escolar realizada nas escolas experimentais do Distrito Federal, nos anos de 1934 a 1938 e de ter
ofertado o Curso sobre Higiene Mental do Escolar, nos Cursos de Férias promovidos pelo Departamento
de Educação do Estado do Rio de Janeiro de Janeiro a fevereiro de 1943 e outro sobre Tratamento
Educacional da Criança Problema, igualmente no Curso de Férias referido, no ano de 1944. Esses últimos
dois cursos chamam a atenção pelo fato de terem sido realizados no período do Estado "Novo", sobre o
qual teceu críticas e desacordos no que dizia respeito à educação no prefácio de A criança problema.
RAMOS, 1945, p. 42 e 43. A caracterologia, segundo Ramos, "estuda qualitativamente as variações
psíquicas individuais, e entrega à higiene mental e à ortofrenia o cuidado de prevenir e corrigir os
transtornos caraterológicos que impliquem uma perda ou uma diminuição de rendimento social". Por essa
razão, ela era tão importante e indispensável nas fichas. Os transtornos podiam ser pequenos ou mais
graves e, dependendo do caso, pedia a intervenção do Serviço para sua correção, visto que podiam evoluir
na formação da personalidade.
564
No circular de 5 de julho de 1934, do Jornal do Brasil (RJ) comunica-se "à Superintendente D.
Arteobela Frederico e às professoras das escolas experimentais Bárbara Ottoni, Argentina e EUA, que as
aulas do curso de Higiene Mental escolar e Caracterologia escolar, a cargo do professor Dr. Arthur
Ramos, terão início amanhã, 5 do corrente, às 15 horas, no auditório do Instituto de Educação". Pinheiro
informou que às quintas não havia aula, uma vez que era o dia em que as professoras frequentavam os
cursos ofertados por Ramos. PINHEIRO, op., cit., p. 105. Em 16 de agosto de 1934, o mesmo Jornal do
Brasil estampava uma chamada do Serviço às professoras da 1°, 2°, 3° e 4° Escolas Experimentais para
comparecerem ao IPE, às 15:00, afim de receberem as instruções do chefe do SOHM.
219
565
DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura. São Paulo: Unesp, 2006. p. 69.
566
NUNES, 2000, p. 366.
567
TEIXEIRA, 2007, p. 135.
220
Ramos afirmou que em 1934 foram fundadas as clínicas ortofrênicas nas escolas
experimentais e que há dois anos já funcionava a primeira Clínica de Hábitos no Serviço
de Pré-escolares. Declarou que esta última foi fundada a instâncias do Serviço e com a
colaboração da diretora Consuelo Pinheiro e da professora Marília Hasselmann Rosa e
Silva570. A Escola General Trompowski era a única unidade pré-escolar inserida no
SOHM, mas não há informação se o serviço mencionado estava ligado à ela. Portanto,
afora as cinco escolas experimentais que faziam parte da reforma anisiana e que
serviram de campo de ação para todas as secções que a compunham, havia a General
Trompowski para os pré-escolares. Contudo, não se pode afirmar se esta escola serviu
às outras secções também, ou se somente ao SOHM.
Essas Clínicas de Higiene Mental instaladas nas escolas não foram criadas,
conforme Ramos, para que a escola "se liberasse desses escolares (reputados
"anormais"), à primeira dificuldade encontrada, mas para recebê-los, compreendê-los e
ajustá-lo (sic) 571. Eram nessas Clínicas que as crianças eram examinadas do ponto de
vista médico-orgânico, primeira etapa de trabalho do SOHM572. Elas deveriam
568
Pelas pesquisas realizadas, cremos que cada serviço contasse com suas próprias fichas. As secções
eram específicas em suas funções, porém, muito provavelmente, as informações sobre os alunos
circularam entre elas. Com relação às fichas do SOHM, sabemos que parte delas se encontra no Arquivo
Arthur Ramos pertencente à Biblioteca Nacional (BN). Segundo Ramos, o SOHM confeccionou cerca de
2000 fichas dos alunos das escolas experimentais. Este total não se encontra em seu Arquivo e não
sabemos sua localização, uma vez que não encontramos informações sobre o seu destino. Cópias dessas
fichas, que serão analisadas no quarto capítulo desta tese, foram adquiridas, via compra, pela
pesquisadora no referido Arquivo. É por meio desse último e graças ao trabalho de compilação e
conservação feito por Luiza Ramos, secretária e esposa do médico alagoano e pelo próprio Arthur Ramos,
que é possível ter acesso às fichas, até então, as únicas existentes. Além, é claro, do trabalho de guarda da
BN.
569
FOUCAULT, 1999, p. 215.
570
RAMOS, 1959, p. 25.
571
Ibid., p. 383.
572
Ibid., p. 384.
221
573
Ibid., p. 385.
574
Nas fichas em si não há menção à subalimentação. Existe o campo referente à Alimentação, na qual
estavam concentradas informações sobre a quantidade de refeições realizadas, local onde era efetuada (se
na mesa, no chão etc), com quem a criança realizava a refeição (se com os pais, irmãos, avós etc), quais
os tipos de alimentos consumidos, os preferidos por ela, se havia recebido assistência médica e como era
a variedade dos alimentos. No campo alusivo à saúde há indicação do peso e altura das crianças, porém,
não em todas as fichas. Somente no livro há a informação sobre determinada criança ser subalimentada o
que pode ter sido possível a Ramos mediante a posse de outros dados sobre a criança ou a realização de
(outros) exames médicos.
575
RAMOS, 1959, p. 385 a 386.
576
Ibid., p. 386.
577
Ibid., p. 7.
578
Pode-se conjecturar que a clínica de pré-escolares a que se refere Ramos nesta frase seja o Serviço de
pré-escolares mencionado mais acima. Assim, de fato, este Serviço estaria ligado a General Trompowski.
222
579
RAMOS, op., cit., p. 387.
580
Ibid., p. 384.
581
Ibid., p. 384.
223
582
Ibid., p. 225. Pelas fichas ortofrênicas analisadas, sabemos que havia um espaço médico dentro da
escola e que as crianças eram examinadas. Quando havia queixas de dor ou problemas de natureza física,
elas eram encaminhadas para o setor para serem clinicadas. Em alguns casos, o médico as encaminhavam
a um hospital para a realização de exames ou algum tratamento. Nestas fichas há, ainda, indicação de
tratamentos e medicações que eram realizados na escola.
583
Ibid., p. 26 e 384.
584
Ibid., p. 13
585
MERCADANTE, 2014, p. 93.
224
o nosso ponto de vista, deve definir a noção de um 'desvio'" 586. Em nossa perspectiva, o
indivíduo não aparece nas considerações de Ramos apenas sob um viés orgânico. Ele
surge como sujeito contextualizado, imerso em um ambiente social e em uma cultura,
sendo produto da sua civilização e da sua sociedade587.
A família e as relações familiares foram sim pontos capitais em seu pensamento,
mas não em uma abordagem eugênica como afiançou Mercadante. Esse autor afirma
que ao pensar no ambiente como uma das causas para os desajustes dos infantes, Ramos
estaria responsabilizando o indivíduo para isentar o Estado, considerando ainda que ele
fez, na verdade, um "rearranjo ideológico que (o afastou) das teorias raciais, mas (que
manteve) a culpa no indivíduo"588. Ramos, de fato, não elaborou críticas sistematizadas
ao Estado, se por isso se espera um texto específico para esse fim. Mas, quando ele
falou do ambiente, este não se limitou ao lar. Englobava, igualmente, a escola, por
exemplo, ou o acesso à saúde. Ambas eram obrigações do Estado. Uma das grandes
preocupações e empenho de Anísio Teixeira foi a construção de prédios escolares
devidamente planejados para atender o corpo discente, enfatizando a necessidade
fundamental de janelas para ventilação adequada, de iluminação, espaço aberto para o
lazer, enfim. Houve, portanto, uma exigência da presença do Estado durante toda a
reforma, na qual o SOHM estava incluído.
No prefácio de A criança problema, Ramos teceu críticas aos Estados, de
maneira geral, ao se posicionar contra a guerra, e ao Estado "Novo", particularmente,
que desmontara não apenas o SOHM, como toda reforma anisiana e suas conquistas já
concretizadas. Mencionou o quanto "tudo andou realmente para trás" e a dificuldade
atual de trabalho para a higiene mental, diante das "próprias condições deficitárias, no
Brasil, [...]. Crise alimentar. Crise de habitação. Índices assustadores de mortalidade e
morbilidade infantis". Aumento nos fatores deficitários em todos os sentidos, "que
vieram complicar tremendamente o problema da assistência aos menores. E a
delinquência infantil? E o menor abandonado?". Diante desse quadro, "nunca a higiene
mental teve de lidar com tantos fatores primários, que converteram a capital do país em
um grande feudo urbano, desprotegido e entregue à sua própria sorte", o que
significava dizer com a ausência do Estado589.
586
RAMOS, op., cit., p. 19.
587
Ibid., p. 37.
588
MERCADANTE, op., cit., p. 93 e 95.
589
RAMOS, 1959, p. 8.
225
Pela análise das fichas comportamentais, podemos sustentar que essa inserção do
Serviço no lar afetava a vida das crianças em si, de sua relação com a família e da
relação da família entre si. As primeiras, na medida em que perscrutava toda a sua
existência, incluindo a fase gestacional, observando-a constantemente por meio das
professoras em sala e pelas visitadoras, tanto em casa quanto na escola. Era um olhar
vigilante onipresente. Todas as suas ações e comportamentos eram observados,
anotados, analisados e reportados aos pais, aos médicos, aos educadores. As fichas
foram construídas pelo olhar e voz codificados das visitadoras e professoras, mas há
fichas em que a voz do escolar aparece, porém, a escrita não lhe pertence.
É importante destacar que havia um julgamento das ações da família para com a
criança, feito pela escola e também pelo SOHM, como é evidente nas fichas. Buscava-
se explicar aos pais os males que suas atitudes causavam naquelas, mas não realizavam
226
uma autoanálise sobre a intervenção que efetuavam sobre elas. As suas práticas podiam
acarretar problemas nas crianças, como foi o caso de D., uma das escolares que se
mostrou bastante afetada pela fala de sua professora quanto a sua "deficiência
intelectual". Mediado pelo diário de D., sabe-se que a docente a preveniu quando lhe
entregou seu diário pedindo que ela não se afligisse. Logo, tinha ciência do que quanto
suas palavras iriam afetar a menina 590. D. afirmou em seu diário que:
Uma cópia deste diário foi adquirido no Arquivo Arthur Ramos. Encontra-se
datilografado, é composto por 77 páginas e intitulado Diário de uma menina de 14
590
Diário de uma menina de 14 anos, redigido em 14 de julho de 1933, página 36. In: Arquivo Arthur
Ramos, Secção de Manuscritos - Biblioteca Nacional. Segundo a filha de D., N.C., a idade de sua mãe foi
aumentada em aproximadamente dois anos. Assim, quando escreveu o diário, deveria ter entre 12 e 13
anos e não 14 como consta. D. faleceu em 15 de março de 2010, prestes a completar 94 anos de idade. In:
PINHEIRO, 2015, p. 60.
591
Ibid., p. 37 e 38. A primeira parte foi redigida em 15 de julho de 1933 e a segunda em 17 de julho de
1933.
227
anos592. A estudante, cuja escola e ano não foram informados, chamava-se D593. Houve
a preocupação, por parte de quem o datilografou, de manter o anonimato da aluna, suas
colegas e professoras citadas. Porém, houve falhas e alguns nomes, incluindo o seu, foi
mencionado por extenso. A menina afirmou "passar a limpo os diários" e que era ela
quem transcrevia a fala de algumas professoras que estão textualmente presentes, com
suas críticas e conselhos, além de relatar fatos ocorridos com colegas. Em nenhuma
publicação de Ramos houve referência a este diário ou a qualquer outro. No próprio
Diário de D. há sugestões de que ele compunha uma das atividades escolares,
circunscrito à disciplina de Linguagem. D. apenas menciona os de suas colegas meninas
e, como o diário era visto como uma atividade feminina, pode-se supor que esta tarefa
escolar não estivesse estendida a todos os alunos. Esses cadernos de diários eram
confeccionados pelas alunas e entregues à professora responsável que, após a correção,
os devolvia.
O objetivo com este exercício era que as alunas escrevessem sobre seus dias,
suas atividades na escola e extraescolar, suas angústias, incluindo a indicação de que
poderiam abordar "as impressões de casa"594. Crê-se que o diário tenha sido uma prática
exigida pela escola e não pelo SOHM. Mas, pelos princípios norteadores deste, sua
composição lhe era bastante interessante, uma vez que possibilitava analisar a criança
mediante suas próprias experiências, suas relações com os colegas e mestres, as falas e
ações destes últimos, agora mediadas por um aluno, diferente das fichas, acrescentando
ainda a vida em família.
Ele era lido por muitas pessoas, das professoras que por ele se interessassem aos
colegas da escola. Em alguns casos, há menção de que tal professora pediu para lê-lo e
que foi concedido por D., mas em outros não. Motivo que desagradava a menina que se
policiava e não escrevia tudo o que gostaria. O fato de outros colegas poderem ler o
592
A autora relata, em 10 de junho de 1933, estar surpresa por seu diário ter agradado tanto a professora,
já que ela o mostrou para a Inspetora da Escola e que esta queria levá-lo para o Diretor de Instrução. Se,
de fato, foi entregue a Anísio Teixeira, este pode o ter repassado para Ramos, por ser tão interessante para
o Serviço, frente as conexões facilmente percebidas com o trabalho desenvolvido por ele. É uma hipótese
que pode explicar o fato de estar datilografado e o porque de estar em seu arquivo pessoal. Outra
suposição válida é de que o diário, uma cópia dele, foi diretamente entregue a Ramos. As ações do
Serviço eram efetuadas nestas escolas, por seu corpo de funcionários. Entendendo os interesses do
Serviço, as próprias professoras podem o ter entregue ao seu diretor.
593
Pinheiro sustenta que D. foi aluna da Escola Manoel Bonfim, do 5° ano primário. PINHEIRO, op., cit.,
p. 11.
594
"D.D.... disse que também podíamos escrever nos diários as impressões de casa. Mas isso só seria
possível se os pudesse fazer e guardar só para mim... Porque não quero me expandir, mas havia de ser
uns diários tão.... Não, não devo dizer, preciso muita cautela, porque se não vou dizendo tudinho, tudinho
e sem querer". Diário de uma menina de 14 anos. Redigido em 28 de julho de 1933, página 46.
228
diário foi um dos motivos que lhe levou a censurar a professora quando esta escreveu
que ela possuía "deficiência intelectual", pois mesmo achando não deveria ter registrado
"e ainda mais, naquele caderno, sabendo que não só eu como outro qualquer aluno,
podia ler. É triste, porque acho que diário é uma coisa íntima e que não deve ser lido por
ninguém"595.
595
Ibid. Redigido em 21 de julho de 1933, página 41
596
"Que eu fui arranjar para fazer hoje! que coragem a minha! Fugir da escola na hora da merenda! Mas
que horror! Nunca pensei que eu fosse capaz de fazer uma coisa dessa. Mas também quando eu vi meu
caderno de diários do lado de fora da escola e ainda mais nas mãos de quem não o devia ler, não vi mais
nada, parecia que eu tinha enlouquecido e quando pude ponderar sobre o que estava fazendo, achei-me na
rua, com o meu caderno". Ibid. Redigido em 30 de junho de 1933, página 26.
597
"O que D. L... falou de R... foi tão cruel e injusto que esta não se conteve e caiu em copioso pranto e
eu, gostando imensamente dela, também compartilhei de sua magoa". Ibid. Redigido em 24 de maio de
1933, página 2.
598
"Penso que D. L... não gosta de mim e, chegando a minha vez, ela começou a dizer que eu também lhe
havia respondido com malcriação, num dia de prova (cousa que garanto que não fiz). Acho que ela me
julga má educada e má". D. oscila em suas opiniões, fato que não descredencia sua fala. Com relação a
afirmação de D.L de que foi malcriada assevera que, "na verdade sou um pouco indisciplinada, (acho
muito natural para um escolar) mas não mal educada. Enquanto não se dissipar essa impressão continuo a
pensar que a única solução é sair da Escola". Dias depois, "convenci-me de que D.S...não faz mau juízo
de minha educação. Não tenho mais vontade alguma de sair da escola". Ibid. A primeira citação foi
redigida em 24 de maio de 1933, página 2 e a segunda em 25 de maio de 1933.
599
"D.L... riu-se muito de Aida, no número: Mártires da fogueira, porque ela executou seu papel sem
graça nenhuma. Aborreci-me com isto e acho que ela em vez de rir devia ter ensinado". Ibid. Redigido em
14 de junho de 1933, página 15.
600
"Palavras de D.D....: "Ah! tolinha.... Quantas vezes eu tenho vontade de te abraçar (nenhuma D.D....)
carinhosamente ... e não o faço (por que não tem vontade, não é?) por causa do seu feitiozinho dengoso!".
Ibid. Redigido em 28 de julho de 1933, página 73 (grifos nossos).
229
ao fato da expressão estar presente em várias páginas sucessoras à data do ocorrido 601.
Em agosto, em decorrência do mau desempenho no teste de matemática, declarou que
"Cada vez me convenço mais de que não sirvo para nada! Nada vezes nada. Sou mesmo
de toda obtusa. D.L... teve razão em dizer que possuo 'deficiência intelectual' [...]" e
acrescenta, "Estou tristíssima! Cheguei a perder o animo de estudar! Como poderei
estudar e me sair bem nos estudos com essa deficiência intelectual?" 602. No próprio
diário, D. relata suas tristezas em várias páginas e este era lido pela professora que o
replicava. Assim, aquela ficava a par da situação e D. se dizia feliz porque assim ela
poderia saber como aquela escrita a magoou. Outra professora tentou convencê-la do
contrário, ao que ela não se convenceu, permanecendo "impressionada com minha
deficiência intelectual", ainda que "contentinha" com o fato desta parecer "reprovar a
severidade de D.D."603. O que buscamos destacar aqui é que quem causou o dano foi a
própria escola, que não hesitaria em culpabilizar a família caso a fala tivesse sido
proferida no lar, por um familiar.
A relação da criança com sua família e desta última entre si eram igualmente
afetadas pela presença do Serviço em seu espaço privado de convivência. Os pais eram
responsabilizados por problemas apresentados por seus filhos, demonstrando como este
tipo de visão, compactuada pelo SOHM, continuava a operar no imaginário e prática de
serviços voltados à assistência familiar. As orientações feitas eram passadas às famílias
na condição de serem aplicadas. O Serviço transmitia alguns conhecimentos que parte
da população assistida, majoritariamente pobre, pelas fichas por nós analisadas, não
detinha. Informar sobre a importância da alimentação e como ela afetava o
desenvolvimento da criança, bem como a necessidade de asseios higiênicos regulares e
como efetuá-lo, por exemplo, era uma ação efetivada pelo SOHM, cujo teor era
positivo. O acesso a estas informações podia ser bem difícil para grande parcela dessas
pessoas. Por essa razão, algumas famílias solicitavam a presença do Serviço e/ou
601
Nossas considerações a respeito dos males causados pela fala da professora na vida de D. foi ratificado
por Pinheiro. Eis a fala da filha de D. acerca do ocorrido: "Eu acho que o comentário que ela leu da tal
professora teve um impacto imenso sobre a mamãe. Ela comentou isso diversas vezes comigo. Que foi
um choque terrível. Imagine, eu já era grandinha, casada, e ela ainda falava nisso. Depois de uma viagem
que fizemos (eu e a Zazá) à Europa, quando eu morava em Portugal, lembro da mamãe derramando
lágrimas na cama quando a Zazá (irmã que ela mais gostava, Julieta) lembrou sobre o colégio delas". "Ela
chorou e eu fiquei tão chocada que não tive coragem de perguntar nada. Imagine, isso já foi nos anos
90...". Ainda segundo a filha de D. sua mãe não chegou a concluir o que hoje é chamado de educação
fundamental. PINHEIRO, 2015, p. 293.
602
Diário de uma menina de 14 anos. Redigido em 15 de agosto de 1933, página 59.
603
Ibid. Redigido em 18 de julho de 1933, página 39.
230
ficavam bastante gratas por seu trabalho e interesse por seus filhos. O que não se pode
deixar de perceber é que essa relação era mediada por interesses mútuos.
Afirmar que algumas ações do SOHM, como as citadas acima, eram positivas e
benéficas para muitas daquelas pessoas, não significa negar a sua intromissão no lar, nas
relações pessoais, nos hábitos e comportamentos familiares. Ainda que alguns hábitos
precisassem, de fato, ser mudados: a ingestão exacerbada de bebidas alcoólicas ou os
cuidados com a saúde de maneira geral. Acenar a importância de uma alimentação
adequada é diferente de apontar a sua ausência como uma negligência dos pais,
desconsiderando o acesso a ela, frente as condições sociais das famílias. Entretanto,
como será demonstrado no capítulo a seguir, as visitadoras, principalmente, acabavam,
em alguns momentos, desconsiderando algumas dessas variáveis sociais, deixando isso
bem patente em seus julgamentos transcritos.
604
RAMOS, 1959, p. 390 (grifos nossos).
231
tinha sobre a mulher (dócil, paciente, atenciosa, solicita etc), quanto pela visão sobre o
labor em apreço ser uma espécie de extensão dos afazeres domésticos.
O trato com a família, a observação sobre o asseio da casa, a higiene dos seus
habitantes, a educação destinada aos filhos, os conselhos sobre o matrimônio e as
relações familiares, enfim, eram apresentados como já presentes no universo doméstico.
Logo, essas profissionais estariam executando nos lares alheios ações de seu domínio.
As funções que exerciam eram consideradas pela sociedade da época e pelo corpo
médico como auxiliares ao trabalho médico. Nessa perspectiva, realizavam um trabalho
que não competia aos médicos, menos por motivos de capacitação, e mais por questões
de hierarquia e prestígio profissional.
Ayres afirmou não ter encontrado indícios documentais de que já existissem
enfermeiras visitadoras no Rio de Janeiro no final da década de 1910 605. O surto de
tuberculose na capital nacional, neste período, forçou o Estado a formar e capacitar
agentes para o atendimento domiciliar aos enfermos. A autora citada informa ainda que
coube a Cruz Vermelha, na figura de Amaury de Medeiros, a instituição do Curso de
enfermeira visitadora no Brasil em julho de 1920. Com J. P. Fontenelle houve, por parte
do DNSP, um esforço para a formação das enfermeiras visitadoras, junto a Inspetoria de
Profilaxia da Tuberculose. Havia uma disputa entre este Departamento e a Cruz
Vermelha, na qual se buscava legitimar poderes na esfera da saúde pública,
determinando a quem competia a formação daquelas enfermeiras. No intuito de
consolidar tal formação, Carlos Chagas, diretor do DNSP, buscou ajuda junto a
Rockefeller, como já informado neste trabalho.
Estas considerações demonstram que as funções exercidas pelas visitadoras não
foram uma novidade do SOHM. Os Arquivos da LBHM estão cheios de menções às
visitas domiciliares realizadas pelas enfermeiras. Essas visitas foram desempenhadas
objetivando-se uma profilaxia mental e o acompanhamento dos egressos dos
manicômios. Segundo Mai e Couto, elas foram a intermediação entre o médico e o
sujeito em foco, fosse um doente, uma criança, um menor infrator, a família ou a
comunidade geral606. As enfermeiras visitadoras tinham como função a
605
AYRES, Lílian et al. As estratégias de luta simbólica para a formação da enfermeira visitadora no
início do século XX. História, Ciência, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, 2102. p. 866.
606
MAI; COUTO. Capacitação e atuação profissional da enfermagem na perspectiva dos higienistas. In:
BOARINI, Lucia (org.). Higiene Mental: ideias que atravessaram o século XX. Maringá: Eduem, 2012. p.
308.
232
607
Em nossas leituras não encontramos informações sobre a formação das visitadoras sociais. Algumas
eram educadoras, mas não sabemos se todas tinham formação nessa área. Não fica claro também se o
trabalho era executado somente pelas docentes das escolas experimentais que desempenhavam esta
função (além da docência) ou se eram contratadas apenas para exercerem essa atividade. Na ficha do
aluno A.L.V., n° 46, Escola México, há toda uma explanação feita pela visitadora com relação a ele:
"Confirmo todas as observações. Coincidem com as minhas. Impressiona-me a inquietude dessa criança
que segundo o que depreendi é demasiadamente maliciosa. Muito amoroso no entanto. D. G.". D. G. era
professora da Escola Manoel Bomfim. Por ser professora de outra escola que não a do aluno em questão,
acredita-se que elas transitavam entre as escolas.
608
CALDAS, n. 2, 1932, p. 69.
609
REIS, 1994, p. 232. LIMA, Ana. A "criança-problema" e o governo da família. Revista Estilos da
Clínica, São Paulo, v. XI, n. 21, 2007. p. 129.
233
610
RAMOS, 1959, p. 24.
611
Ibid., loc., cit.
612
Ibid.., p. 23.
613
"Função psi, isto é, a função psiquiátrica, psicopatológica, psicossociológica, psicocriminológica,
psicanalítica etc. E quando digo 'função', entendo não apenas o discurso mas a instituição, mas o próprio
indivíduo psicológico". Sempre que o indivíduo se mostrasse incapaz de seguir a disciplina imposta, a
"função psi" intervinha. "E intervinha com um discurso no qual ela atribuía à lacuna, ao enfraquecimento
da família, o caráter indisciplinável do indivíduo", ou seja, a família era responsabilizada. FOUCAULT,
2006, p. 105.
614
RAMOS, op., cit., p. 22 e 23 (grifos nossos).
234
615
ABRÃO, Jorge. As contribuições de Júlio Pires Porto-carrero à difusão da psicanálise de crianças no
Brasil nas décadas de 1920 e 1930. Memorandum, Minas Gerais, 20, 2011. p. 124.
616
Ibid., loc., cit.
617
RAMOS, 1959, p. 23
618
Ibid., loc., cit.
235
O trabalho realizado no SOHM chegou ao seu fim em 1939. Ainda que Anísio
Teixeira tenha saído da direção do Departamento de Educação em 1935, o Serviço
619
FERLA, 2003, p. 78.
620
Ibid., p. 106.
236
621
RAMOS, 1959, p. 08 (grifo nosso). Como já afiançado nesta tese, as informações sobre o SOHM são
bem restritas e os escritos de Ramos são, invariavelmente, as fontes para os pesquisadores que estudam
sobre o Serviço. Dessa forma, não há maiores esclarecimentos, nas pesquisas que empreendemos, sobre o
término do SOHM. Mesmo nos escritos de Teixeira não encontramos referências sobre o assunto. Tais
fatos limitam uma análise mais aprofundada que nos permita cotejar as informações ofertadas por Ramos.
237
daqueles escolares. Pelos princípios da Escola Nova, que fundamentava toda a reforma
anisiana, a educação tinha como base a liberdade do aluno, porém, ela deveria ser
vigiada para que fosse possível saber se estava sendo utilizada de maneira saudável, e,
em caso contrário, pudesse ser ordenada, corrigida, regrada. Todo o trabalho
desenvolvido no Serviço tinha como base essa liberdade vigiada, anunciada por seu
diretor como princípio norteador e fundamental para a sua realização. Segundo
Almeida, o SOHM "foi substituído, em 1940, pelo Serviço de Ortofrenia e Psicologia
(SOP) com a reformulação do IPE (que passou a se chamar Centro de Pesquisas
Educacionais – CPE), funcionando com atividades aparentemente próximas ao SOHM,
mas com concepções diferentes"622.
O SOHM foi uma instituição normalizadora, cujo ideal, desde sua fundação, foi
prevenir e normalizar as crianças consideradas desajustadas. E, pela análise realizada
por nós, ratificamos não apenas esse ideal enquanto objetivo, mas enquanto prática. E
todo esquadrinhamento, provado com as análises das fichas a ser feita no capítulo
seguinte, se justificava perante aquele anseio que fundamentava e validava a existência
de um serviço com aquelas metas, ligado a um sistema educacional público.
622
ALMEIDA, 2010, p. 19.
238
CAPÍTULO 4
AS FICHAS OROTFRÊNICAS
623
Com exceção das utilizadas do livro A criança problema, cuja citação foi devidamente feita, todas as
demais fichas utilizadas nesta tese estão lotadas no Arquivo Arthur Ramos, Secção Manuscritos,
Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
624
Ibid., p. 61.
625
FOUCAULT, 2006.
626
SALIBA, Elias. Aventuras modernas e desventuras pós-modernas. In: PINSKY; LUCA (org.). O
historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011. p. 323.
239
"como um meio para superar as aparências e alcançar uma compreensão mais profunda
da realidade" e ouvir as vozes dos escolares, no caso, por meio dos vestígios que
resistiram e foram impressos nas fichas 627.
A leitura das fichas traz consigo vários questionamentos que, mesmo diante da
impossibilidade de responder alguns deles, direciona a análise e permite conjecturas. Há
pistas ao longo delas, pequenos vestígios dos alunos em falas com aspas, diálogos ou a
presença de materiais anexos. Não somente dos alunos, mas também das famílias,
professoras, das próprias visitadoras, do datilógrafo. São sinais aparentemente avulsos,
que, em alguns casos, sem uma organização determinada, desafia o leitor que procura
nelas mais do que apressadamente expõem. É preciso inquirir o documento, entender os
propósitos de sua confecção, os porquês de sua arquitetura, os motivos para
627
Ibid., loc., cit. A obra de Ginzburg sobre a noção de estranhamento é Estranhamento: pré-história de
um procedimento literário. In: GIZNBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
240
A presença de certos itens na pasta de um aluno, afora a ficha que lhe confere
um número e um caso, a exemplo de um desenho, uma cartinha de desculpas, um
questionário respondido, ou mesmo um componente delas que, inadvertidamente,
consta em sua pasta, falam muito, aguardando um leitor para desvendá-los. Trabalhando
com intuição e faro, utiliza-se na análise deste material o método indiciário apresentado
por Ginzburg628. Com ele, os sentidos se ampliam e se pode ir além do simples relato,
desvendando, por meio do uso de variados dados encontrados, uma nova história,
abrindo possibilidades.
As fichas trazem consigo a história do SOHM. São partes dele. Nasceram com,
por causa e para ele. A sua existência só foi possível por existirem aqueles alunos; mas,
ela também deu vida a eles, tornando-os visíveis e permanentes. Eles foram
transformados em um caso de estudo, um exemplo prático, um número. A relação é
628
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Cia das Letras, 2003.
629
KARNAL; TATSCH. A memória evanescente. In: PINSKY; LUCA (org.). O historiador e suas
fontes. São Paulo: Contexto, 2011. p. 21.
241
Essas fichas não são uniformes, seu conteúdo e número de páginas variam
muito. Há tópicos padrões, mas as informações coletadas são diversas, havendo fichas
bem completas e outras com grandes lacunas, sem que os motivos destas últimas sejam
especificados. Por vezes, algumas informações parecem mecanicamente repetidas, ficha
por ficha, para vários alunos, sem aparentar uma análise mais acurada. Outras vezes, há
minúcias que permitem concluir que as visitadoras realmente imergiram na análise
pretendida.
630
SALLA; BORGES. Prontuários de instituições de confinamentos. In: RODRIGUES, Rogério (Org.).
Possibilidades de pesquisa em História. 1ed. São Paulo: Contexto, 2017. p.120. Esses autores abordam os
prontuários médicos manicomiais. Todavia, sua inserção é totalmente válida para as fichas.
631
RAMOS, 1935, p. 19.
242
todas apresentam a totalidade desses pontos. A ficha modelo pode ser examinada nas
páginas seguintes632.
Estas aplicações experimentais são comuns nos trabalhos de coleta de dados nos
quais os questionários (estruturados, semiestruturados e abertos) são necessários e
servem para testar a eficácia do instrumento no registro das informações que se
pretendem buscar, identificando lacunas e dificuldades existentes. Estes testes iniciais
são importantes também para proporcionarem a devida capacitação à equipe que atua na
coleta de dados. Com isto, aprimora-se a versão preliminar, contornando as
problemáticas que surjam ou sejam percebidas durante estas primeiras aplicações. Após
esta experiência inicial, produz-se uma versão final que, a partir de então, torna-se
válida para a continuação dos registros pretendidos.
632
A ficha foi transcrita pela pesquisadora, haja vista a qualidade da imagem do livro estar inferior,
impossibilitando a leitura. In: RAMOS, 1935, p. 11 a 19.
243
II
FICHA DE ORTOFRENIA E HIGIENE MENTAL
INSTITUTO DE PESQUISAS EDUCACIONAIS
SEÇÃO DE ORTOFRENIA E HIGIENE MENTAL
A- Dados Gerais
Nome do Aluno...................................................................................................................
Sexo.................... Idade.................. Data da matrícula........................................................
Residência............................................................................................................................
Lugar de nascimento............................................................................................................
Naturalidade.........................................................................................................................
Problema..............................................................................................................................
B- Família
1 - Nome do pai...................................................................................................................
Idade........................... Lugar de nascimento.......................................................................
Naturalidade.........................................................................................................................
Ocupação...........................................Educação...................................................................
Condições econômicas........................................................................................................
Religião............................................... Partido político.......................................................
Data do casamento...............................................................................................................
Dados morfológicos aparentes (gordo, magro, alto, baixo...).............................................
Cor da pele...........................................Olhos......................................................................
Cabelos (cor e forma)..........................................................................................................
Outros dados morfológicos..................................................................................................
Traços aparentes de caráter (alegre, triste, calmo, sereno, enérgico, sorumbático,
taciturno, falastrão, sociável, risonho, colérico....)..............................................................
Outros dados de caráter.......................................................................................................
Saúde física e mental ..........................................................................................................
Observações.........................................................................................................................
2 - Nome da mãe.................................................................................................................
Idade........................... Lugar de nascimento.......................................................................
Naturalidade.........................................................................................................................
Ocupação atual....................................................................................................................
Ocupação antes de casada....................................................................................................
Educação.............................................Religião...................................................................
Ideias sociais........................................................................................................................
Dados morfológicos aparentes ............................................................................................
Cor da pele...........................................Olhos......................................................................
Cabelos (cor e forma)..........................................................................................................
Dados aparentes de caráter..................................................................................................
244
7 - Observações gerais.........................................................................................................
.............................................................................................................................................
C - Ambiente familiar
2 - Vida no lar......................................................................................................................
Hábitos familiares................................................................................................................
Passeios habituais................................................................................................................
Diversões preferidas............................................................................................................
Vida matrimonial.................................................................................................................
Visitas em casa....................................................................................................................
Observações.........................................................................................................................
D - História obstétrica
2 - Parto:
Nascimento a termo ou prematuro?.....................................................................................
Condições do parto (normal, forceps, passagem demorada?).............................................
.............................................................................................................................................
Respiração (normal ou artificial?).......................................................................................
Hemorragia do cordão umbilical?.......................................................................................
Deformações........................................................................................................................
3 - Recém-nascido:
Peso....................................................... Respiração............................................................
Malformações........................................Paralisia................................................................
Alimentação (ao seio materno ou mercenário, mamadeira, combinação)...........................
.............................................................................................................................................
Observações.........................................................................................................................
Linguagem:
Fala (quando começou?).......................................Dificuldades precoces
(gagueira, defeitos de enunciação, outros defeitos)...................................................
Estado atual...............................................................................................................
Escrita (quando começou).........................................................................................
Tipo de escrita...........................................................................................................
Observações.........................................................................................................................
6 - Alimentação:
Dificuldades precoces..........................................................................................................
Assistência médica..............................................................................................................
Estado atual:........................................................................................................................
Alimentos preferidos...........................................................................................................
Idiossincrasias......................................................................................................................
Número e tempo das refeições.............................................................................................
Qualidade e quantidade das refeições..................................................................................
Companheiros de mesa........................................................................................................
Atitudes dos pais..................................................................................................................
Observações.........................................................................................................................
246
7 - Ritmos fisiológicos:
a) Hábitos urinários (história pregressa, dificuldades)........................................................
Estado atual..........................................................................................................................
b) Intestinos (história anterior)............................................................................................
Estado atual..........................................................................................................................
Fatores nutritivos conduzindo ao mal ajustamento.............................................................
Observações:........................................................................................................................
9 - Brinquedos e jogos:
Observações pregressas (primeiros companheiros de brinquedos, companheiros e jogos
preferidos)............................................................................................................................
Atualmente: a que horas brinca em casa?............................................................................
Na escola..............................................................................................................................
Tipo de brinquedo fornecido...............................................................................................
Tipo de brinquedo preferido................................................................................................
Brinca só ou com outros companheiros?.............................................................................
Tendência a dominar ou ser dominado?..............................................................................
Atitudes em face ao outro sexo............................................................................................
Observações.........................................................................................................................
10 - Vita sexualis
Manifestações pregressas:
Onanismo...................................................................................................................
Inquirições e fantasias precoces.................................................................................
Outros hábitos ligados ao sexo...................................................................................
Atitude dos pais..........................................................................................................
Estado atual: .......................................................................................................................
Comportamento sexual........................................................................................................
Instrução sexual...................................................................................................................
Puberdade (manifestações pré-pubertárias).........................................................................
Atitude dos pais e educadores.............................................................................................
Observações.........................................................................................................................
F - Temperamento
(Face dinâmico-humoral)
G - Caráter
(face psíquica)
2- Funções psíquicas:
Orientação............................................................................................................................
Percepção.............................................................................................................................
Atenção................................................................................................................................
Afetividade..........................................................................................................................
Memória...............................................................................................................................
Associação de ideias............................................................................................................
Inteligência e julgamento.....................................................................................................
Imaginação...........................................................................................................................
Sugestibilidade.....................................................................................................................
Vontade................................................................................................................................
Conduta................................................................................................................................
Sentimento ético..................................................................................................................
Aprendizagem......................................................................................................................
Outros dados........................................................................................................................
.............................................................................................................................................
.............................................................................................................................................
I - Diagnóstico da personalidade
1 - Ciclotimico Hipomaníaco......................................
Sintono...............................................
"Pesadão"...........................................
2- Esquizotimico
Hiperestésico........................................
Intermédio...........................................
Anestésico...........................................
4 - Conclusões gerais...........................................................................................................
.............................................................................................................................................
J - Registros de observações
(10 páginas na ficha original)
.............................................................................................................................................
.............................................................................................................................................
K - Orientação ortofrênica
(10 páginas na ficha original)
.............................................................................................................................................
.............................................................................................................................................
249
Desta maneira, podemos afirmar que a arquitetura das fichas oscila conforme a
ficha a ser preenchida. Algumas são contínuas e outras divididas por tópicos. As
informações variam conforme o entrevistado: se com o aluno, pais ou algum parente, e
por quem foi feita: a professora ou a visitadora, uma ou mais de uma 633. No geral, os
seguintes pontos estão presentes nelas na condição de pergunta:
Nome da escola;
Número da ficha;
Data (nem sempre presente);
Dados pessoais do aluno: nome, sexo, idade, nacionalidade, local de nascimento,
residência e problema;
Dados da Família: nome dos pais, idade, nacionalidade, local de nascimento,
profissão, religião, dados morfológicos aparentes, saúde física e mental,
educação, instrução, dados caraterológicos (traços aparentes de caráter) e
observações;
Irmãos: nome, sexo, idade, se trabalham (em que), se casados (moram na mesma
casa, tem filhos). Inclui informações sobre abortos, natimortos, óbitos e se é
filho único;
Parentes: sem nomes, apenas indicação do parentesco (se avó ou avô, tio ou tia,
primo ou prima) e se materno ou paterno, se moram na mesma casa, se exercem
influências sobre a criança e se tem ou tiveram alguma doença, especificando-a;
Outras pessoas que possam ter exercido ou exerçam influências sobre a criança,
como um inquilino, um amigo, vizinho etc;
Trabalho: se a criança trabalha e, se sim, que tipo de atividade exerce, quer seja
em casa ou na rua;
Ambiente familiar:
Lar: casa alugada ou própria, de que tipo é (vila, coletiva, individual,
barracão), localização, aspecto, como é a aeração e iluminação, quantos
633
Algumas entrevistas foram realizadas com o próprio aluno, havendo, por isso, muitas lacunas ou
informações incompletas. Há um número considerável delas em que fica evidente a resposta/fala da
criança, principalmente quando para se certificar de uma afirmação feita pelos pais ou outros parentes. Na
ficha do aluno C.H., n° 92, Escola General Trompowski, o item Observações Gerais começa com a
afirmação de que "propositadamente iniciamos o fichamento procurando obter as informações da própria
criança", segue-se, então, uma dissertação feita por meio da oralidade de C. Em outras, afirma-se a
dificuldade de conseguir quaisquer informação com a criança, caso do aluno M.S., n° 60, Escola General
Trompowski.
250
634
RAMOS, 1934, p. 60.
253
AR: São dados sobre o tipo que tende a desempenhar o papel de herói.
10° Recordações mais antigas? Sonhos impressionantes ou repetidos?
(de voar, cair, estar paralisado, chegar tarde ao trem, carreiras, estar
preso, sonho de medo).
AR: Encontramos, além disso, frequentemente, tendência ao
isolamento, vozes que aconselham no sentido de uma excessiva
precaução, excitações cobiçosas, a preferência pela vida no campo,
etc.
11° Em que respeito está o menino descoroçoado? Sente-se
rebaixado? Reaciona favoravelmente às atenções e aos elogios?
Representações supersticiosas? Evita as dificuldades? Começa
diferentes coisas para abandoná-las em seguida? Mostra-se inseguro
pelo futuro? Crê nas influências desvantajosas da hereditariedade? É
descoroçoado sistematicamente pelas pessoas que o rodeiam?
Concepção pessimista do mundo?
AR: Isso ministra as provas mais importantes de que o menino perdeu
a confiança em si mesmo e busca seu caminho numa direção errônea.
12° Outros vícios, como fazer caretas, gesticular às tontas, infantil ou
comicamente?
AR: São intentos praticados pouco valorosamente para atrair a atenção
sobre si.
13° Tem defeitos de linguagem? É feio? Cambaio? Pernas em X ou
em O? Tem-se desenvolvido mal? Muito gordo? Anormalmente alto?
Anormalmente pequeno? Defeitos visuais ou auditivos? Atrasado
mental? Surdo? Ronca de noite? É belo de maneira notória?
AR: Trata-se aqui de dificuldades de vida que a criança supervalia.
Por aqui pode chegar a um persistente estado afetivo de covardia. Esse
desenvolvimento defeituoso pode encontrar-se muito amiúde, mesmo
em crianças belas. Caem na crença sugestiva que tudo se lhes
presenteia e que tudo devem receber sem esforço, e retardam por isso
sua adequada preparação para a vida.
14° Fala frequentemente de sua incapacidade, de seus dotes
defeituosos para a escola? Para o trabalho? Para a vida? Pensamentos
de suicídio? Há alguma relação temporal entre seus fracassos e suas
faltas? (negligência, organização de um bando). Supervalia seus êxitos
exteriores? Servil? De piedade afetada? Revoltoso?
AR: Mais formas de expressão da covardia; frequentemente se
apresentam depois de intentos inúteis de subir, que fracassam por
causa das inconveniências persistentes e também pela defeituosa
compressão do meio. Então busca satisfação compensadas num
cenário próximo ao da batalha.
15° Trabalhos positivos da criança.
AR: Indícios importantes, porque assinalam possíveis interesses,
inclinações e preparação do menino em outra direção, distinta da
seguida até aqui635.
635
Ibid., p. 60 a 64.
255
criança, incluindo sua família, tal como nas fichas e ações do SOHM. Alguma delas
podiam ser respondidas pela escola, na figura das professoras e visitadoras, por
intermédio da observação e outras somente pela família, como as relacionadas ao sono,
por exemplo.
Este questionário servia de base para tal caracterização, vindo a funcionar como
um leque de opções ao qual a professora/visitadora assinalava a correspondente ao
aluno. No anexo abaixo, pertencente ao aluno J.P.M., ficha n° 1, da Escola General
Trompowski, observa-se a existência de um "+" ou "x" ao lado de alguns termos que
remetem à personalidade da criança. Uma "segunda questão" é identificada como
"condições pessoais" e traz uma lista de adjetivações (56 numeradas e mais 28 não
numeradas), cuja utilização se dava da mesma forma que o item anterior.
256
estão, não raro, no masculino, o que sustenta a hipótese daquele questionário enquanto
um guia que, assinalado, era transposto para a ficha sem se atentar para o gênero/sexo
do aluno então fichado.
Mesmo que o planejamento a seguir pela redatora tenha sido arquitetado por
uma outra pessoa, no caso do SOHM, por seu diretor, àquela tinha o poder de decidir
como seria feita a abordagem, a sequência, selecionando e determinando a relevância
das perguntas, enfatizando pontos do questionário e/ou minimizando-os. As ausências
ou lacunas presentes podem evidenciar a afirmação quanto ao poder retido e
administrado pelas visitadoras sociais no momento em que recolhiam falas e as
transcreviam, como podem também elucidar a negativa da família quanto às perguntas.
636
Como já afirmado nesta tese, Ramos afirmou em A criança problema que foram confeccionadas 2000
fichas. Essa é a única informação concernente ao assunto. Como não sabemos o montante de alunos
matriculados nas escolas experimentais, não se pode saber se o valor apresentado por ele contempla todas
elas ou todo o período de existência do SOHM.
258
637
Pesquisas relativas à imigração (dados da nacionalidade dos pais); à ocorrência de doenças em
crianças; à realização de abortos naturais e provocados; ao trabalho feminino; aos problemas de
comportamento na escola, dentre outros.
638
GUEDES et al. (2005). Estatística descritiva.
Disponível em: https://www.ime.usp.br/~rvicente/Guedes_etal_Estatistica_Descritiva.pdf. Acessado em
fevereiro de 2018.
259
639
Com relação à ética em pesquisas com seres humanos, as primeiras normas reguladoras foram criadas
em 1947, com o Código de Nuremberg, após a Segunda Guerra Mundial, frente às experimentações
desumanas e abusivas executadas nos centros de concentração nazistas. Este Código foi revisto em 1964,
na 18ª Assembleia da Associação Médica Mundial, quando foi aprovada a Declaração de Helsinque. As
260
A sua composição podia levar dias, meses ou anos! Isso significa dizer que o
aluno e sua família estavam confinados em uma roda de observação contínua, sem data
para acabar. Algumas delas apresentam datas, não raro com o indicativo de anos
seguidos e, em alguns casos, quando as observações eram encerradas, há a afirmação de
Diretrizes Internacionais para Pesquisa Biomédica com Seres Humanos foi elaborada pelo Council for
Interntional Organization of Medical Sciences, na década de 1980, em conjunto com a Organização
Mundial de Saúde que veio a ter uma nova versão publicada em 1993. No Brasil, somente na década de
1980, é que foi criado o primeiro documento oficial visando tal normatização, por meio da Resolução
CNS 1, de 1988, do Conselho Nacional de Saúde. Em 1995, foi criado um Grupo Executivo de Trabalho,
cujo intuito foi a revisão das normas em pesquisa no país. Dessa reunião resultou a Resolução CNS
196/96 que criou os Comitês de Éticas em Pesquisa, vinculados às instituições de pesquisa, bem como a
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, ligado ao Ministério da Saúde. In: MARQUES FILHO, José.
Ética em pesquisa: dez anos da resolução CNS 196/96. Revista Brasileira de Reumatologia, v. 47, n.1,
São Paulo, 2007. p. 2-3.
261
que o aluno saiu da escola. Essa observação e composição contínuas podem ter sido
realizadas por mais de uma visitadora e datilógrafo(a). Não há indicação de quantos
destes profissionais havia trabalhando no Serviço, nem ao certo quem eram eles. Mas
são sempre mencionados por Ramos no plural. Pela quantidade de fichas elaboradas,
2000, conforme seu diretor, e pelo volume de trabalho que se exigia nestas confecções,
há de se considerar que a equipe deveria, de fato, ser composta por um número razoável
de pessoas.
Uma escrita realizada por várias mãos traz consigo concepções e maneiras de
trabalhar distintas, mesmo quando há um roteiro. E, se quem escreve inicialmente não é
a mesma pessoa que datilografa, mais subjetivações podem existir. Com a hipótese de
que essa diversidade de profissionais podia atuar até que uma mesma ficha fosse
originada, pode-se aventar que as lacunas ou as respostas incompletas apresentadas em
algumas delas provenham dessa multiplicidade de pessoas distintas que traziam consigo
seus próprios métodos de trabalho e abordagem. Isso significa dizer que a ausência de
respostas, sua incompletude ou, ainda, sua superficialidade não podem ser creditadas
apenas à negativa do entrevistado.
Há situações ainda que incluem a fala de pessoas que não são da família, dando
margem aos mexericos: "O marido é dominado pela mulher" 640. Esses registros, que
mais parecem fofocas, o disse me disse, estão presentes em algumas delas. É o caso da
ficha n° 60, Escola Bárbara Ottoni, do aluno A.C.A.R.P., na qual consta no tópico
Ambiente Familiar a seguinte observação: "pessoas íntimas contam que o marido é
muito exigente e ela muito ciumenta". A ficha era um documento oficial e se sabia que
seria uma compilação da vida de uma pessoa e que seria lida por outras pessoas. Se o
acesso por parte de terceiros aos dados pessoais de todos os que cercavam essa criança
já era invasivo, expondo-os em sua privacidade e intimidade, a presença de falas de
outrem a respeito de tema de foro íntimo, como a relação do casal, nesse caso, os
expunham ainda mais, para além do interesse inicial do que se pretendia obter com as
fichas.
640
Ficha n° 129, I.B.S. Escola Bárbara Ottoni.
263
Teria realizado visita à sua casa? A teria entrevistado na casa dos pais de W.? Teria
coletado tais informações com a madrasta da criança? O que se destaca é a inclusão
dessas pessoas, justificada pela aproximação com a criança, que parece ser feita à
revelia de seu conhecimento e/ou consentimento.
Mesmo quando o assunto não dizia respeito a criança em foco ou mesmo que
não tivesse uma relação secundária com ela, essa investigação era realizada. E isso não
estava circunscrito somente aos parentes. O fato de que para Ramos tudo e todos que
exercessem ou podiam exercer influência sobre a criança era importante, justifica os
motivos pelo quais essa inquirição amplificada acontecia. Por isso que dados dos
inquilinos, no caso das famílias que alugavam quartos de suas casas a outros, eram
também coletados: nomes, sexo, se casados ou não, se com filhos ou não, se tinham
contato com a criança641. Saber se a família recebia visitas e, se sim, com que
frequência, bem como quantas pessoas habitavam a residência tinha como objetivo
saber se a criança sofria influências destas pessoas, fossem amigos, parentes ou
vizinhos.
641
Era o caso dos inquilinos ou hospedes F.F. e A.F. que moravam com a família do aluno A.L.C., n°
254, Escola Argentina: "Outras pessoas: F.F., amiga da família que morava na mesma casa (Durante 5
anos). Moça, casada, lavadeira, boa, alegre, irascível. A.F. (marido), caixeiro de botequim, bom, alegre,
genioso. Embriagava-se às vezes e brigava com a senhora. E., 9 anos, fem.; C., fem., 7 anos e T., fem., 4
anos. Filhos do casal. Muito levadas todas. A mãe delas dava pancadas nelas, elas corriam (sic).
Separaram-se por causa das crianças que viviam brigando". Outras fichas indicam quando há sublocação
da casa: n° 12, J.V.M., Escola Argentina; n° 266, C.S.L., Escola Argentina; n°48, M.S., Escola Argentina.
264
aprendizado. Quando este não era satisfatório, buscava-se compreender sua insatisfação
da mesma maneira: se tinha raízes orgânicas ou ambientais. Entretanto, o que
predomina nas fichas são considerações em torno do comportamento. Sobre a
aprendizagem, só há menção no campo em que se indica o nível das funções psíquicas.
Quem mais poderia falar sobre o aprendizado eram as professoras. Mas, a fala delas
incide, prioritariamente, sobre o comportamento.
O castigo corporal realizado em casa e na escola foi definido por Ramos como
um "longo processo sádico de repressões", cuja existência persistia, como pôde observar
nos escolares assistidos pelo SOHM: castigos por pancadas, bordoadas, socos, chicotes,
cabo de vassoura, tamancos, correias, tábuas, prisão em cafuas, despir as calças da
criança para impedi-las de sair de casa, ficar de joelhos, privação da merenda, ficar em
pé etc642. A palmatória ainda era utilizada, e no interior de São Paulo registrou ainda o
uso da bola de cera643. Mesmo lembrando que os castigos corporais estavam sendo
substituídos pelos castigos "morais", os primeiros ainda eram frequentes, e em alguns
casos, afirmava ser o castigo moral tão desastroso quanto o físico.
Os castigos eram não apenas realizados pela família, como se cobrava da escola
atitudes enérgicas desse porte e até se autorizava que fossem empregados 644. Porém, há
de levar em consideração que este tipo de "educação" era a maneira como grande parte
daquelas pessoas foram criadas. Assim, em suas concepções, era um modo válido e
eficaz de educar, uma ideia e comportamento que foram construídos e se mantinham
operantes. Mudar tal mentalidade era uma das funções autoatribuídas pelo SOHM. Na
ficha do aluno M.P., n° 111, Escola México, afirma-se que a sua mãe e irmãos lhe
642
RAMOS, Arthur. Esplendor e decadência da palmatória. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos,
Brasília, v. II, n. 6, 1944. p. 457.
643
Uma bola de cera ficava presa por um barbante. Essa junção fabricava uma espécie de chicote. Ao
lançá-lo sobre a cabeça da criança a ser "corrigida", na verdade castigada, a cera ficava presa nos cabelos
que eram arrancados quando a professora puxava o chicote de volta. Ibid., loc., cit.
644
Ficha n° 31, A.N., Escola General Trompowski. "Autorizou até a bater na escola".
265
batiam constantemente com pancadas. Essa era a maneira aventada para corrigir erros,
ensinar algo. As informações acerca desse tipo de castigo são apresentadas quando se
trata dos Pais e nas Observações Gerais.
Indicações de que a mãe batia muito no(s) filho(s): A.L.C, n° 254, Escola Argentina é
apresentado pela mãe como uma criança "insuportável em casa", que vive "fazendo
desordens e desobedecendo-a. Não posso trabalhar, porque tenho que parar para bater
nos meninos porque eles vão para a rua e brigam, só obedecendo quando apanham" 645.
M.S., n° 60, Escola General Trompowski, é acordado pela mãe para apanhar, caso esta
receba queixas suas, obrigando-o a trazer "a correia para apanhar no terreiro. Os
vizinhos as vezes lhe tiram a correia".
Quando ambos os pais agrediam a criança: J.V.M., n° 12, Escola Argentina, que
costuma apanhar da mãe e levar correiadas do pai quando o desobedecia.
Quando o pai era o agressor e a mãe a atenuante: A.R., n° 437, Escola EUA, que tem na
mãe uma defensora aos castigos infligidos pelo pai com o uso de chinelos ou correias.
Pais que não consentiam que as mães batessem em seus filhos: R.S.M, n° 24, Escola
EUA.
Pais que agrediam os filhos e as esposas: E.A., n° 37, Escola Manuel Bonfim.
Relatos das próprias crianças sobre os castigos que sofriam em casa: I.J., n° 367, Escola
Manuel Bonfim.
Padrastos que espancavam seus enteados que criavam desde pequenos: W.R., n° 117,
Escola México que apareceu na escola com "dois enormes equimoses no rosto e
pescoço. Contou que o padrasto quase o matou. Era meia noite quando foi acordado só
para apanhar. A mãe tentou separar, mas foi agredida".
Crianças que fugiam para não apanhar: A.L.S., n° 45, Escola General Trompowski que
já foi agredido pelo pai com uma foice.
Crianças que apanhavam de toda família: J.D., n° 03, Escola General Trompowski, que
apanhava dos pais e irmãos; ou por outros parentes, a exemplo de G.S.N., n° 395,
Escola Bárbara Ottoni que era espancada pela tia. O campo das Observações da ficha
desta aluna traz a sua fala acerca dos espancamentos sofridos em casa. Segundo ela, a
tia a espancava, perseguia muito, era exigente, autoritária e má, mostrando aos colegas
da escola as equimoses provocadas pelos maus tratos. Há outras passagens nas quais
645
Ficha n° 254, A.L.C. Escola Argentina.
266
não fica claro como as informações foram coletadas, como a concernente a ocorrência
de um "verdadeiro escândalo" na casa de G.: a "tia brigou com uma de suas irmãs e em
consequência G. recebeu forte pontapé perdendo os sentidos. Aos gritos da tia,
populares invadiram a casa e a aglomeração foi grande na rua. Quando G. recuperou os
sentidos viu todos os objetos da sala partidos; a tia tivera um verdadeiro acesso de
loucura". As considerações acerca do comportamento da tia foram feitas pela própria G.
e pela professora que "conversando com a avó e a tia pôde perceber que a tia domina a
todos: quando ela falou, a avó calou-se imediatamente". Uma percepção da docente que
vem a corroborar com a fala da aluna. Seu registro funciona como um atestado de que,
de fato, a tia era autoritária. A presença da passagem sobre o "escândalo" na ficha serviu
para evidenciar não só os maus tratos sofridos pela criança, como também o ambiente
familiar.
Crianças surradas que precisavam de interventores em seu socorro: M.L.S., n° 90,
Escola General Trompowski, que é espancada pela mãe a ponto de morrer, segundo a tia
da criança. Esta é castigada pela mãe que declara a "pôr de joelhos com o livro aberto,
escrever frases como 'eu sou malcriada', reguadas nas pernas e, se suja a roupa que
mudou, fica no quarto com a roupa suja".
Em mais de uma ocasião houve a critica à escola que não fazia uso desse tipo de
"correção". Dentro da proposta escolanovista, esse recurso não estava incluído, sendo, a
propósito, bastante criticado. Esse ponto de vista da reforma em si com relação aos
castigos corpóreos era, sem dúvida, importante e muito positivo. Um tipo de
intervenção necessária. Mas, é preciso ressalvar que o corpo não é supliciado apenas
quando fisicamente afetado, em lesões, e as correções que o SOHM propunha, muitas
delas, igualmente afetavam o corpo. O escrutar a que eram sujeitados os alunos e suas
famílias já evidencia o quanto esses corpos eram tocados. "Mesmo quando utilizam
métodos 'suaves' de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata" 646.
Nas fichas analisadas não foram encontradas indicações de punições aos alunos
com mau comportamento pela escola ou pelo Serviço. As de caráter físico estão
completamente ausentes, no espectro analisado, mas há aconselhamentos por parte da
docente, e não de Ramos, o provável analista das fichas e responsável pela Orientação
Ortofrênica, de determinadas privações. Exemplo do aluno Z.S., n° 82, Escola General
Trompowski, cuja docente, por meio de bilhete encaminhado à sua mãe, diz que o
menino devia ser privado do cinema do dia seguinte, em virtude da falta dos seus
trabalhos de casa. Entretanto, o que prevalece é a orientação.
646
FOUCAULT, 1999, p. 28.
647
Ficha n° 3, J.D. Escola General Trompowski. Pelo fato do filho fugir de casa, o pai declara que "foi
obrigado a comprar uma correia com um cadeado e assim o prende algumas vezes em casa.
268
comportamento na sala; diz que é o único menino de quem não conseguiu uma atitude
satisfatória; continuamente tem que estar chamando-o à ordem". O menino era órfão de
pai, vivendo com a mãe e o padrasto que o "espancava horrorosamente", configurando
um "caso clássico do aluno-problema enteado". Na Orientação, este é o diagnóstico.
Afirma-se que a desobediência na escola e a falta de atenção apresentadas por W. eram
consequências do ambiente familiar, sendo uma reação à vida em casa, diante do
escorraçamento do padrasto. A orientação é única: conversar com os pais para
esclarecer a situação e com a docente, explicando-lhe o caso. Munida desse
esclarecimento, ela poderia entender o mau comportamento de W. e assim trabalhar
com ele de maneira a solucionar os problemas apresentados. Há uma preocupação em
deixar a professora a par dos motivos que levavam a criança a ter determinados
comportamentos.
Com relação à maneira como a ficha era redigida, o que passava a ser parte
integrante, ele não se pronunciou. Afirma-se que muito provavelmente foi Ramos quem
realizou a orientação ortofrênica pelo tipo de aconselhamento que é ofertado,
compatível com seu pensamento, afora o fato de ele ser o diretor do Serviço, seu
responsável. Da arquitetura das fichas, passando pelo o que deveria ser apreendido pelas
observadoras à orientação final, a sua presença é evidente. O que demonstra um
controle absoluto sobre o trabalho, no sentido de tudo estar ligado ao seu conhecimento
e concordância. Nada lhe escapava, ou, não deveria escapar.
Na ficha n° 266, O.M.C., Escola Bárbara Ottoni, é marcante a sua presença nas
Orientações. Trata-se de um aluno com preconceitos raciais: "tem ojeriza a negro; se
tivesse autoridade acabaria com todos os negros do Brasil". Aconselha-se, dentre outras
determinações, "destruir-lhe progressiva e habilmente os preconceitos antiraciais
(conversar com a professora de História e Ciências Sociais - para mostrar a influência
do negro em nossa formação etc)". Ramos, nesta época, já tinha estudos e publicações
acerca do negro e da temática racial no Brasil. A orientação, destacando a importância
de desfazer tais preconceitos por meio da educação, contando com o auxílio das
docentes e a ênfase dada à necessidade de que seja ensinado à O. a influência do negro
na formação do país é deveras compatível com seu pensamento.
M.C.C.M., s/n°, Escola Bárbara Ottoni, tem relatado em sua ficha que tem "uma
predileção espantosa pelas pessoas de cor. Disse-nos que prefere a companhia de
mulatos e pretos. Todas as suas amigas tem sido de cor". A predileção de M. é
condenada pela família, assustando-a, que chegou a demitir a ama Mercedes "rapariga
de cor, que exerceu sobre a criança tal influência que foi necessário dispensá-la,
separação que trouxe grande sofrimento a menina". O sofrimento de M. não foi levado
em consideração e nem suas atitudes bondosas para com as colegas. Consta que a
menina "é uma criança muito boa, gosta mais das colegas pobres e de cor. Diariamente
traz merenda para uma companheira, dando ainda, algumas vezes, parte da sua".
Quando a redatora menciona a melhora de M., visto que não usa mais o vocabulário que
costumava usar, acrescenta que "continua preferindo as colegas de cor as quais muito
protege dando passes de bonde e boas merendas". Essa sintaxe denota uma adversidade
frente a melhora, pois, ainda assim, continuou com tais predileções. A visitadora
enfatiza assim uma perspectiva bastante subjetiva, carregada de preconceitos e, em
alguns casos, de discriminação, demonstrando como eles faziam parte do universo que
cercava o SOHM, uma vez que inserido naquela sociedade e naquele tempo.
Anotações que denotam preocupações que eram de Ramos, com forte teor
psicanalítico, são recorrentes na escrita, o que indica não apenas a sua influência na
composição das fichas, mas também na orientação ofertada às visitadoras. Nesse caso, é
válido lembrar que elas tinham que realizar cursos de caracterologia e ter noções de
271
psicanálise para atuarem naquela secção. Percebe-se um esforço, por parte delas, em
registrar dados que obedeciam ao que parece um roteiro de atenção.
648
Um dos irmãos de J., A., que tinha 25 anos no ato do fichamento, relatou os castigos sofridos e o
episódio em que foi jogado numa vala pelo pai, sendo retirado ensanguentado e chorando, tendo, na
ocasião, 12 ou 14 anos.
649
RAMOS, 1959, p. 285.
650
Ibid., p. 264.
273
ao assunto: aceitar que existia uma sexualidade na infância; que a repressão exacerbada
levava à eclosão de problemas; e que era preciso reordenar a criança para que esta
pudesse ter uma vida "normal".
Ramos tecia críticas aos pais e mestres que lidavam com os problemas sexuais
de suas crianças de maneira errada: com repreensões e punições. Além disso, os pais
costumavam creditar à escola o surgimento de tais problemas ao que ele afirmava ser
um grande erro, pois "os dados da questão devem ser invertidos. A criança que
apresenta problemas de cor sexual na escola, geralmente já veio desajustada de casa",
casos das curiosidades insatisfeitas, das perguntas não respondidas ou respondidas de
maneira fantasiosa que, segundo ele, as impulsionavam "ao caminho da fantasia, das
mentiras, dos frutos". Neste ponto, é válido atentar para o fato de um problema possuir
uma gama ampla de causas, que só poderia ter sua exatidão mediante uma análise
profunda da criança. Se uma criança apresentasse como problema a realização de furtos,
este poderia tanto responder por sua condição financeira, como por uma necessidade de
atenção advinda de seu escorraçamento no lar por seus tutores, fossem os pais ou não,
como também como resultado de um desvio sexual.
651
Ibid., p. 265.
652
Ibid. p. 267.
653
Ibid., p. 281.
274
654
Grifos nossos.
275
O aluno O.M., s/n°, Escola Bárbara Ottoni, praticava furtos na escola e quando
indagado os motivos que o levavam a tal ação, respondia que não os tirava, achava-os.
Em sua ficha há a presença de falas da docente, aconselhando-o a não executar os
furtos, também recriminados pela mãe, conforme as palavras do próprio aluno. Aliás, há
vários relatos de roubos ocorridos na escola, dos quais as professoras eram as principais
vítimas. Relata-se que tentou furtar dinheiro que caíra da mesa. Foi delatado por um
colega à professora que "com habilidade e em particular, pediu-lhe o dinheiro dizendo-
lhe que o vira guardar". Segue-se um diálogo entre ambos:
Do caderno da professora:
Caráter mau, destruidor, egoísta. Atitude para com os colegas:
invejoso, irritado, grosseiro, gritador. Repele os colegas com socos no
ar. Para com o prof: indelicado, indiferente, oposicionista,
desobediente.
Tem método no trabalho. Obstinado, queixoso, áspero, inquieto,
excitado, caprichoso, deprimido.
Muitas vezes não quer fazer os trabalhos e só a muito custo os inicia,
aprontando-os com ligeireza e alguma perfeição.
Embora continue com os mesmos defeitos, já nota que erra e procura
corrigir-se por algumas horas, exclusivamente para ser agradável a
professora, por quem demonstra grande simpatia.
Quando por vezes, trata mal os colegas e a professora lhe chama
atenção ou lhe lança um olhar de reprovação, ele sorri, dizendo: "quer
que eu fique com modos? Vou ficar" E por muito tempo ninguém é
importunado por ele.
Com a professora mudou completamente atitude grosseira e
oposicionista, mostrando-se mesmo delicado. É bastante ciumento;
não consente que nenhum colega sirva à prof. estando sempre pronto a
atendê-la no que necessita.
Já reclama quando os colegas fazem barulho durante a aula e
mormente quando a prof. está falando. Gosta, entretanto, de se mostrar
mau quando há alguma pessoa de fora na sala de aula ou diante de
todos na hora da forma.
atitude carinhosa para com ele". A. gosta de sua professora, mudou suas atitudes frente
a ela e, por meio da transferência afetiva, ao que denota, sabiamente conduzida por ela,
estava modificando seu comportamento para com outras pessoas também. No entanto,
essa mudança foi prejudicada no ano seguinte quando mudou de professora. "A. não
tem a menor afetividade pela atual professora. Já nos tem dito algumas vezes não gostar
dela e acrescentou certa vez: 'eu já estudei aquela professora'".
logo, as informações prestadas pela docente quanto ao "meio em que vive" só podem
estar ancoradas na fala de outrem que conhecesse, de fato, seu ambiente de vida. Porém,
não era incomum a presença das professoras nas visitas domiciliares. Caso do aluno
Z.S, n° 82, Escola General Trompowski, cuja visita causou na mestre uma "péssima
impressão do ambiente familiar". Nesse caso, há referência da orientação que aquela
ofertou à mãe de Z., "sobre a maneira de obter melhor aproveitamento pedagógico por
parte da criança", evidenciando a participação coletiva das profissionais na prevenção
e/ou correção das crianças-problema. Outro exemplo é o aluno S.S., n° 313, Escola
EUA que foi chamado à sala da visitadora, que o convocou, por estar violento em sala e
por não atender aos apelos da professora. Por meio do diálogo, conseguiu acalmá-lo e
demonstrar como seu comportamento foi errado.
655
Exemplo da ficha n° 134, M.L.S., Escola México: "A mãe de M.L. procurou-nos na escola, para
queixar-se da filha e pedir nosso auxílio, pois trabalha fora e chega em casa muito tarde, não lhe sendo
possível uma fiscalização mais eficiente".
279
aceitando-as. Assim, estavam atuando nessa relação entre escola, SOHM e lar, mesmo
que esta relação se mostrasse de maneira assimétrica em vários momentos.
656
Grifo nosso.
657
FOUCAULT, 1999, p. 163.
280
O SOHM intentava tornar aquelas crianças e, por extensão, quem lhes cercavam,
corpos dóceis. Todavia, ser este um anseio e utilizando-se de mecanismos para alcança-
lo não significa dizer que conseguiram, muito menos automaticamente. Assim
pensando, aceita-se a prerrogativa daqueles pessoas como submissas ou incapazes de
pensar, negociar e/ou reagir. O que buscamos destacar aqui é a presença de forças
antagônicas que lutaram em determinando espaço para manterem suas maneiras de ver,
pensar, ler, atuar, fazer, tencionando avistar os escolares e suas famílias enquanto
indivíduos atuantes sobre suas próprias vidas e não como uma massa homogênea
passiva e muda.
658
Escola Argentina (4 fichas); Escola Bárbara Ottoni (68 fichas); Escola EUA (13 fichas); Escola
General Trompowski (17 fichas); Escola México (26 fichas) e Escola Manoel Bomfim (6 fichas). Diante
281
Questões Percentuais
Criança Mãe Pai
Média de idade (em anos) 10,59 Nt Nt
Sexo
Masculino 60,45 0,00 100,00
Feminino 39,55 100,00 0,00
Nacionalidade
Brasileira 91,79 76,12 56,72
Portuguesa 2,99 11,19 24,63
Outras 2,24 5,22 9,70
Não informa 2,99 7,46 8,96
Cor da pele
Branca 28,36 37,31 35,07
Preta 8,21 6,72 5,22
Morena 17,16 32,09 32,09
Parda 2,24 7,46 2,24
Outra 2,24 0,00 0,00
Não informa 41,79 16,42 25,37
Religião Nc
Católica 64,18 54,48
Espírita 1,49 1,49
Sem religião 0,75 3,73
Outras 2,24 4,48
Não informa 31,34 35,82
Trabalha?
Sim 26,12 96,75 92,62
Não 5,22 0,00 1,64
Não informa 68,66 3,25 5,74
Nt = Não tabulado para as análises estatísticas, mas consta nas fichas. Nc = Não consta nas fichas.
da necessidade de captar o maior número de fichas possíveis, a compra das cópias do material foi feita
tendo como critério as fichas que já estavam microfilmadas e a escolha de uma pasta com grande número
delas para as quais foi solicitada a microfilmagem. Com os exemplares adquiridos em mãos, foi efetuada
a triagem que teve como fundamento a quantidade de informações presentes e a qualidade da imagem,
haja vista um significativo percentual estar ilegível. Posteriormente, as fichas microfilmadas que estavam
legíveis foram digitalizadas.
282
como demonstrado no primeiro capítulo da tese, com ênfase sobre o tipo racial dos
imigrantes. Foi na gestão Vargas, 1930 a 1945, que houve um rigor maior para a
permissão (ou não) de entrada de imigrantes no Brasil. Das outras nacionalidades dos
pais dos alunos, havia ainda a espanhola659, alemã660, russa661, holandesa662, belga663,
síria664, italiana665, norteamericana666 e romena667. Ficou evidenciado que dos
matrimônios, quando não realizados entre casais de uma mesma nacionalidade, era mais
comum ocorrer entre estrangeiros com mulheres brasileiras, do que de homens
brasileiros com mulheres de outra nacionalidade. Dos brasileiros, havia uma quantidade
significativa dos provenientes de outros estados do país: baianos, alagoanos, mineiros,
capixabas, pernambucanos. Fato que exemplifica a migração interna.
O tópico Cor, assim como outros presentes na ficha, tem uma gama variável de
respostas. Não parece haver um quadro com opções a ser escolhida pelo entrevistado e,
em alguns momentos, fica a dúvida se as respostas advieram de uma autodeclaração ou
se foram captadas mediante a percepção da visitadora668. Nos registros aparecem as
cores branca, preta e parda, com gradações como morena, amorenada, amendoada.
Sempre que possível, foram agrupadas estas gradações: amorenada foi considerada
morena e clara foi considerada branca para efeito da análise estatística. A cor dos alunos
está em uma secção a parte, Temperamento, diferente da dos pais que vem na sequência
de seus dados. Foram classificados como brancos 28,36% dos alunos. Entretanto, na
inclusão da cor de suas peles há, frequentemente, composições como estas: pele clara e
fina669, pele clara, rosada e fina670, pele preta, cabelos muito crespos671, pele morena e
fresca672, pele morena com manchas esbranquiçadas 673, pele manchada e suja674, dentre
outras. Há ainda designações como pele oleosa 675 e pele boa676.
659
Ficha n° 51, C.M.S.M., Escola EUA (pai).
660
Ficha n° 131, N.W., Escola México (pai).
661
Ficha n° 111, S.L., Escola Bárbara Ottoni (pais).
662
Ficha n° 106, A.T., Escola Bárbara Ottoni (pai).
663
Ficha n° 106, A.T., Escola Bárbara Ottoni (mãe).
664
Ficha n° 117, C.R., Escola Bárbara Ottoni (pai); n° 27, J.C.N., Escola General Trompowski (pai); n°
37, E.A., Escola General Trompowski (pais).
665
Ficha n° 117, C.R., Escola Bárbara Ottoni (mãe); n° 394, M.Z., Escola Bárbara Ottoni (pai); n° 24,
R.S.M., Escola EUA (mãe); n° 135, H.C., Escola México (pai); n° 111, M.P., Escola México (pai).
666
Ficha n° 92, C.H., Escola General Trompowski (pais).
667
Ficha n° 27, A.S., Escola General Trompowski (pais).
668
Na ficha do aluno A.L.C., n° 254, Escola Argentina, há indicação do pai ser branco e, entre parênteses,
afirma ser moreno. O parêntese parece ser a opinião da visitadora.
669
Ficha n° 319, A.B.S., Escola Bárbara Ottoni.
670
Ficha n° 106, A.T., Escola Bárbara Ottoni.
671
Ficha n° 48, M.S., Escola Argentina.
672
Ficha n° 6, A.G.F., Escola Bárbara Ottoni.
283
Assim como para as crianças, a cor branca é mais frequente entre as mães
(37,31%) e os pais (35,07%). Na indicação do fenótipo dos pais, a cor da pele vem
seguida da cor e tipo dos cabelos (preto e liso, preto e encarapinhado etc) ou, quando se
trata de moreno, mulato, pardo ou preto, vem a seguinte designação: cabelos pretos e
característicos da raça677. Há considerável número de fichas sem a designação da cor
(41,79% das crianças, 16,42% das mães e 25,37% dos pais) e, entendendo que a
cor/raça era deveras importante para a época, somado ao fato de Ramos já ter grande
interesse pelos estudos raciais, chama a atenção essa ausência, além do fato dele não se
posicionar, textualmente, frente a lacuna.
673
Ficha n° 115, A.L.A. M., Escola Bárbara Ottoni.
674
Ficha n° 97, A.S.L., Escola Bárbara Ottoni.
675
Ficha n° 58, A.A., Escola Bárbara Ottoni.
676
Ficha n° s/n, O.M., Escola Bárbara Ottoni.
677
Ficha n° 313, S.S., Escola EUA.
678
Exemplo da ficha n° 12, O.M.G., Escola Barbara Ottoni. Sobre o tio materno da criança: "Parece-me
pessoa de má educação e pior caráter".
284
natimortos. Da saúde ou, no que é determinante nas fichas, as doenças, estas são
apresentadas de maneira bastante genérica. Fica perceptível que os registros sobre as
doenças foram feitos a partir de autodeclarações, não embasadas em diagnósticos. Isso
significa dizer que muitos perdiam seus entes familiares sem saberem a real causa da
morte, o que implica na ausência de um acompanhamento médico. É comum haver
afirmações como "sofre de nervoso", "tem dor do lado direito", "morreu de doença na
barriga" etc679. Entretanto, há também a indicação de doenças mais precisas, como
tuberculose, pneumonia, sífilis, incluindo os tratamentos realizados e possíveis curas ou
óbitos680. Em se tratando da saúde, a aparência também era frequente, com a
observadora informando que os pais aparentemente tinham boa saúde 681. Diante disso,
fica o questionamento, que não é solucionado pelas fichas, de como a saúde era
determinada? Na designação de boa ou má saúde física e/ou mental, qual era o
fundamento? Em que se baseava? Autodeclaração? Exame médico? 682.
Com relação à educação, há uma distinção entre ela e instrução. Pela segunda
fica subentendido formação escolar e pela primeira modos, polidez. Está presente
somente no espaço reservado aos pais e esta distinção só fica evidente quando as fichas
aplicadas as apresentam, pois na ficha modelo só consta educação 683.
679
Fichas n° 48, M.S., Escola Argentina; n° 423, S.F.E., Escola EUA.
680
Ficha n° 51, C.M.S.M., Escola EUA.
681
Ficha n° 122, A.A.B., Escola México.
682
Dentre muitos exemplos, citamos o da ficha n° 101, M.S.G.R., Escola Barbara Ottoni, cuja saúde
física da mãe é designada como regular e a mental como ótima, apenas.
683
Alguns exemplos: Ficha n° 254, A.L.C., Escola Argentina, cujos pais são analfabetos e possuem uma
má educação; n° 106, A.T., Escola Bárbara Ottoni, o pai possuí instrução superior e uma boa educação;
n° 60, A.C.A.R.P., Escola Barbara Ottoni, o pai tem instrução superior (advogado) e uma educação
regular; n° 54, L.A.N., Escola Barbara Ottoni, pai tem uma boa instrução (médico) e uma educação
péssima; n° 11, L.C.A., Escola Barbara Ottoni, pai possuí instrução secundária e ótima educação. A ficha
modelo mencionada é a que está presente em A higiene mental, de 1935, e anexada a esta tese nas páginas
243 a 248.
684
Ficha n° n° 45, A.L.S., Escola General Trompowski.
285
685
Fichas n° 51, C.M.S.M., Escola EUA (a mãe teve um aborto); n° 288, H.B.A., Escola EUA (a mãe
teve um aborto por assustar-se com a morte da sogra); n° 41, N.O.C., Escola EUA (a mãe teve três
abortos sem motivo); n° 24, R.S.M., Escola EUA (a mãe teve um aborto); n° 313, S.S., Escola EUA (nega
abortos); n° 423, S.F.E., Escola EUA (nega abortos); n° 53, V.S., Escola EUA (a mãe teve um aborto); n°
327, V.C., Escola EUA (a mãe teve um aborto provocado); n° 437, A.R., Escola EUA (a mãe teve três
abortos); n° 20, C.S.M., Escola General Trompowski (a mãe teve um aborto); n° 37, N.M., Escola
General Trompowski (não teve abortos) ; n° 42, N.S., Escola General Trompowski (a mãe teve três
abortos); n° 111, M.P., Escola México (a mãe teve somente abortos provocados); n° 133, H.C.F., Escola
México (nega abortos); n°2, S.D.S., Escola México (a mãe teve um aborto); n°97, A.S.L., Escola Barbara
Ottoni (a mãe teve três abortos); n° 60, A.C.A.R.P., Escola Barbara Ottoni (a mãe tem provocado abortos,
e prontamente se restabelece); n° 37, M.R.C., Escola Barbara Ottoni (este aluno nasceu depois do 15°
aborto proveniente de sífilis); n° 3, J.D., Escola General Trompowski (a mãe teve dois abortos
espontâneos); n° 140, L.S.A.M., Escola México (a mãe teve um aborto provocado. Fez o possível também
para abortar os dois filhos, tomando toda espécie de drogas); n° 272, R.N., Escola Bárbara Ottoni (a mãe
tomou remédios para abortar, mas não conseguiu). A designação entre parênteses é a que consta na ficha.
686
Fichas n° 254, A.L.C., Escola Argentina; n° 48, M.S., Escola Argentina; n° 76, G.F., Escola Bárbara
Ottoni; n° 193, H.F., Escola Bárbara Ottoni; n° 126, H.N.S., Escola EUA; n° 73, J.P., Escola EUA; n° 41,
N.O.C., Escola EUA; n° 133, H.C.F., Escola México.
687
Fichas n° 266, C.S.L., Escola Argentina; n° 12, J.V.M., Escola Argentina; n° 32, F.S., Escola Bárbara
Ottoni; n° 342, G.D.L., Escola Bárbara Ottoni; n° 58, A.A., Escola Bárbara Ottoni; n° 97, A.S.L., Escola
Bárbara Ottoni; n° 16, I.M.R., Escola Bárbara Ottoni; n° 272, R.N., Escola Bárbara Ottoni; n° 31,
S.F.F.M., Escola Bárbara Ottoni; n° 268, M.Y.R.B., Escola Bárbara Ottoni; n° 110, P.C.C., Escola
Bárbara Ottoni; n° 51, C.M.S.M., Escola EUA; n° 64, J.G., Escola General Trompowski; n° 20, C.S.M.,
Escola General Trompowski; n° 272, E.A., Escola Manoel Bonfim; n° 336, S.D.E.B.F., Escola Manoel
Bonfim; n° 48, W.M., Escola México; n° 140, L.S.A.M., Escola México; n° 122, A.A.B., Escola México;
n° 135, H.C., Escola México; n° 13, Z.L.C., Escola Bárbara Ottoni; n° 272, S.M.B., Escola Manoel
Bonfim.
688
Fichas n° 69, F.M.L., Escola Bárbara Ottoni; n° 141, D.P, Escola Bárbara Ottoni; n° 169, A.S.C.,
Escola Bárbara Ottoni; n° 313, S.S., Escola EUA; n° 37, N.M., Escola General Trompowski; n° 134,
M.L.S., Escola México; n° 125, L.P., Escola México; n° 72, N.D.C., Escola Bárbara Ottoni.
286
689
Fichas n° 37, M.R.C., Escola Bárbara Ottoni; n° 79, M.H.M.R., Escola Bárbara Ottoni; n° 111, S.L.,
Escola Bárbara Ottoni; n° 82, Z.S., Escola General Trompowski; n° 131, N.W., Escola México; n° 109,
R.P., Escola México; n° 2, S.D.S., Escola México; n° 117, W.R., Escola México; n° 46, A.L.V., Escola
México; n° 88, A.C.S., Escola Bárbara Ottoni; n° H.C.C.M., Escola México.
690
Fichas n° 64, M.U.M.A, Escola México; n° 111 (mesmo n° da ficha do irmão M.P.), S.P., Escola
México; n° 12, N.T.F., Escola México; n° 82, J.P., Escola México; n° 27, A.S., Escola México; n° 56,
C.L.S., Escola México; n° 252, A.A.S.G., Escola Bárbara Ottoni; n° 4, A.L.M., Escola Bárbara Ottoni; n°
286, J.D.K., Escola Bárbara Ottoni; n° s/n°, O.M., Escola Bárbara Ottoni; n° 266, O.M.C., Escola Bárbara
Ottoni; n° 226, Z.M.H., Escola Bárbara Ottoni; n° 173, A.M.S., Escola Bárbara Ottoni; n° 327, V.C.,
Escola EUA; n° 53, V.S., Escola EUA; n° s/n°, A.G., Escola EUA; n° 437, A.R., Escola EUA; n° 288,
H.B.A., Escola EUA; n° 32, L.Z., Escola General Trompowski; n° 92, C.H., Escola General Trompowski;
n° 233, L.A.A.S., Escola Bárbara Ottoni; n° 213, N.M., Escola Bárbara Ottoni; n° 107, M.S.S., Escola
Bárbara Ottoni; n° 185, E.J.B., Escola Bárbara Ottoni; n° 106, A.T., Escola Bárbara Ottoni; n° 239,
I.A.C., Escola Bárbara Ottoni; n° 78, N.R., Escola Bárbara Ottoni; n° 164, O.S.A., Escola Bárbara Ottoni;
n° 44, M.S.F., Escola México; n° 6, A.G.F., Escola Bárbara Ottoni.
691
Fichas n° 102, C.G.T., Escola Bárbara Ottoni; n° 60, A.C.A.R.P., Escola Bárbara Ottoni; n° 59,
A.J.R.M., Escola Bárbara Ottoni; n° 115, A.L.A.M., Escola Bárbara Ottoni; n° 11, L.C.A., Escola
Bárbara Ottoni; n° 163, J.A.R.P., Escola Bárbara Ottoni; n° 53, M.M.V, Escola Bárbara Ottoni; n° 10,
M.C.A., Escola Bárbara Ottoni; n° 109, O.T., Escola Manoel Bonfim; n° 101, M.S.G.R., Escola Bárbara
Ottoni.
692
Fichas n° s/n°, M.C.C.M., Escola Bárbara Ottoni; n° 113, Z.W., Escola Bárbara Ottoni; n° 146, O.S.,
Escola EUA; n° 367, I.J., Escola Manoel Bonfim.
693
Fichas n° 42, N.S., Escola General Trompowski; n° 45, A,L.S., Escola General Trompowski; n° 33,
M.L. L., Escola México.
694
Ficha n° 42, E.P.L., Escola México.
695
Ficha n° 2, M.F., Escola General Trompowski.
696
Ficha n° 1, J.P.M., Escola General Trompowski.
697
Fichas n° 117, C.R., Escola Bárbara Ottoni (faz serviços domésticos e é costureira); n° 138, M.L.A.,
Escola Bárbara Ottoni (faz serviços domésticos e é costureira); n° 423, S.F.E., Escola EUA (lavadeira ou
arrumadeira. Faz serviços domésticos); n° 24, R.S.M., Escola EUA (doméstica e auxiliar do marido no
armazém); n° 90, M.L.S., Escola General Trompowski (cozinheira, doméstica - empregada); n° 3, J.D.,
Escola General Trompowski (doméstica e vende ovos); n° 27, J.C.N., Escola General Trompowski
(doméstica e costureira).
698
Inclui-se ainda as que precisaram trabalhar pelo fato dos maridos não terem um emprego. No caso da
mãe de M.F., n°2, Escola General Trompowski, o motivo foi o pai não "parar em emprego algum (assim,
ela) teve, por último, de arcar com a subsistência do lar".
287
Era preciso saber se exerciam alguma ocupação laboral, de que tipo, onde, com que
frequência, pois assim se poderia entender os motivos para seus cansaços,
desmotivações, dificuldades de aprendizagem, enfim. Aconselhava-se a família que
revogasse a atividade ou, não podendo, que diminuísse a sua intensidade.
_ D., você gostava tanto de estudar, de ler, de escrever, por que está
ficando vagarosa?
_ Eu ando cansada.
_ Cansada de que? Você brinca tanto?
_ Em casa eu trabalho muito.
_ Que você faz?
_ Ajudo a mamãe. Enquanto ela lava roupas dos fregueses, eu varro e
limpo os móveis. Depois lavo a roupa toda de casa e passo ferro.
Mamãe faz o almoço de véspera, à noite e pela manhã faz o jantar. Eu
também olho o fogo e as panelas, enquanto ela faz outros serviços.
_ Quando é que você brinca?
_ Só aos domingos à noite. Papai não deixa brincar nos outros dias.
Depois do jantar, quando guardo a louça que lavei, vou estudar com o
papai. [....].
699
Fichas n° 254, A.L.C., Escola Argentina; n° 48, M.S., Escola Argentina; n° 266, C.S.L., Escola
Argentina; n° 327, V.C., Escola EUA; n° 437, A.R., Escola EUA; n°51, C.M.S.M., Escola EUA; n° 288,
H.B.A., Escola EUA; n° 41, N.O.C., Escola EUA; n° 146, O.S., Escola EUA; n° 313, S.S., Escola EUA;
288
n° 423, S.F.E., Escola EUA; n° 20, C.S.M., Escola General Trompowski; n° 117, W.R., Escola México;
n° 42, E.P.L., Escola México; n° 135, H.C., Escola México; n° 12, N.T.F, Escola México; n°6, A.G.F.,
Escola Bárbara Ottoni; n° 97, A.S.L, Escola Bárbara Ottoni; n° 141, D.P., Escola Bárbara Ottoni; n° 32,
F.S., Escola Bárbara Ottoni; n° 125, L.P., Escola México.
700
Fichas n° 12, J.V.M., Escola Argentina; n° 73, J.P., Escola EUA; n° 24, R.S.M., Escola EUA; n° 2,
S.D.S, Escola México.
701
n° 45, A.L.S., Escola General Trompowski; n° 31, A.N., Escola General Trompowski; n° 9, J.J.S.,
Escola Bárbara Ottoni; n° 76, G.F., Escola Bárbara Ottoni.
702
A mãe era empregada doméstica em casa de família. Como os empregadores estavam viajando, seu
salário foi suspenso, uma vez que não estava executando a atividade.
289
J.S., mãe de M., como visto, trabalhava, passando grande parte do dia fora de
casa. Portanto, não podia atender a nenhuma das duas prerrogativas do Serviço. Foi
forçada a comparecer à escola, uma vez que M. foi impedido de entrar na escola "até o
dia em que pudesse vir". Essa proibição surtiu o resultado esperado, haja vista a
presença da mãe. J.S. teve que faltar um dia ou um horário de seu trabalho,
provavelmente, tendo perda salarial ou precisando repor as horas não trabalhadas. A
impossibilidade de estar à disposição do Serviço, mesmo que para ajudar o seu filho,
frente a necessidade de trabalhar era desconsiderada. Fato igualmente ocorrido com a
mãe de W.R., n° 117, Escola México, que não pôde comparecer à escola, que a havia
convocado, "pois sai para o trabalho às 7 horas e volta às 18 horas, almoçando no
próprio trabalho". Esta sintaxe justifica a ausência, dado o fato da mãe sair cedo de casa,
retornar após o término das aulas e ainda almoçar no trabalho, não podendo assim estar
presente em nenhum dos horários em que a escola estava funcionando.
703
Identificaram-se como espíritas 1,49% das mães e dos pais; apenas 2,24% das mães e 4,48% dos pais
eram apontados como seguidores de outras religiões e foi possível registrar que 0,75% das mães e 3,73%
dos pais não possuíam crença religiosa. É importante salientar que esta informação não constava nas
fichas para 31,34% das mães e 35,82% dos pais, fato que poderia implicar em mudanças significativas na
interpretação dos dados.
704
Em algumas fichas, nas Observações, há indicação de que o aluno fez a 1° comunhão, que reza antes
de deitar ou que foi à missa. Essas são as únicas menções com relação ao assunto.
705
RAMOS, 2001, p. 135. É ele quem define a macumba como "um termo genérico em todo o Brasil que
passou a designar não só os cultos religiosos do negro, mas várias práticas mágicas - despachos, rituais
diversos... que às vezes só remotamente guardam pontos de contato com as primitivas formas religiosas
transportadas da África para cá". Ibid., p. 143.
290
damas do high life ou pelas pessoas de classe baixa, como registrou João do Rio 706.
Ramos afirmou que esses centros eram frequentados "não só entre negros e mestiços,
como entre a própria população branca", evidenciando acreditar que entre os dois
primeiros seria algo normal, comum; ao passo que a presença dos segundos revelava
uma certa decadência ao se prestarem a tais práticas 707. Adivinhos, curandeiros,
feiticeiros, fosse o que fosse, as buscas por curas, explicações ou predições do futuro
com estes indivíduos eram atacadas como primitivas e vergonhosas. E quando
acionadas pela "gente boa" a vergonha era maior que a fé 708.
706
RIO, João do. As religiões no Rio. Editora Nova Aguilar, 1976. p. 74. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=7617.
707
RAMOS, 2001, p. 135.
708
Como atestaram Natividade e Perpétua de Machado em Esaú e Jacó. ASSIS, Machado de. Esaú e
Jacó. São Paulo: Cia das Letras, 2012. p. 26.
709
RAMOS, 1959, p. 95 e 98. Na ficha do aluno J.G., n° 64, Escola General Trompowski, que possuí
irmão na mesma escola, n° 63, J.G., informa-se que o pai é espírita (a mãe é católica, única vez em que
esta religião teve um sublinho. Uma maneira de destacá-la com relação àquela proferida pelo pai). Nas
Observações Gerais, destaca-se que o pai "preside as sessões do Centro Espírita, de 2° feira - 'é o dia em
que vai mais gente' (sic) [...]. Vai sempre com o pai, descreve com minúcia os fatos que ali se passam.
Conta que sonha e vê espíritos". Aqui fica explícito o porquê da negativa com relação a esta religião, pelo
místico que a envolvia e influência negativa sobre a criança, na acepção do SOHM, de Ramos, das
visitadoras e, pode-se acrescentar, de significativa parte da sociedade que alocava o espiritismo,
candomblé, umbanda e outras como crenças nefastas ou mesmo diabólicas.
710
GUIMBELLI, Emerson. O "baixo espiritismo" e a história dos cultos mediúnicos. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, n. 19, 2003. p. 252.
291
Consta na ficha do aluno A.L.C., n° 254, Escola Argentina, que sua mãe é
católica não praticante, porém, mais abaixo indica-se que frequenta sessões espíritas,
sem que haja nomeação da fonte e também de que espiritismo se está falando. A
possível mentira já deixa antever o receio e/ou desconforto em assumir uma crença que
não católica, cujo destaque no texto só ocorre, em raros casos, para contrapor-se à outra
mencionada pelo outro cônjuge. Os exemplos se estendem. O pai de C.G.T., n° 102,
Escola General Trompowski, cuja fala não foi registrada, e sim a de seu filho que
declarou ser ele católico não praticante, ao passo que D. Arteobela, madrinha da
criança, informou que o progenitor tinha "tendências espíritas". Na ficha de G.D.L., n°
342, Escola Barbara Ottoni, ambos os pais são católicos, com a negativa de G. que
afirma serem espíritas.
711
Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para
despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para
fascinar e subjugar a credulidade publica. Penas - de prisão celular por um a seis meses e multa de 100$ a
500$000. Decreto n° 847, de 11 de outubro de 1890.
292
Outras pessoas que tinham contato com a criança também eram questionadas
quanto à sua fé religiosa e quando esta era outra que não a católica, havia um registro
maior. É o caso de Bá, mulher que criara a mãe e o próprio aluno A.C.A.R.P., n° 60,
Escola Barbara Ottoni, que declarou tanto praticar "a religião católica (comunga,
confessa, vai diariamente à missa), como é medium, frequenta reuniões espíritas,
achando que não há mal algum".
O interesse do registro nas fichas era saber como as crenças destas pessoas
influíam na educação e criação da criança. Essa é geralmente a justificativa prestada.
Assim, se poderia descortinar alguns problemas cuja causa poderia ser a religião
proferida, como, por exemplo os medos dos infantes na hora de dormir, acarretando
prejuízos ao sono. E, ao realizar tal associação, o Serviço procuraria demonstrar à
família o quanto a religião adotada era nefasta para a criança. O intento era bem claro:
modificar crenças consideradas "atrasadas", por meio da educação.
712
Ficha n° 115, H.R., Escola México.
713
Ficha n° 103, M.D.C.B., Escola Bárbara Ottoni; n° 53, M.M.V., Escola Bárbara Ottoni; n° 92, C.H.,
Escola General Trompowski; n° 32, L.Z., Escola General Trompowski; n° 90, M.M.S., Escola General
Trompowski; n° 82, Z.S., Escola General Trompowski.
714
Ficha n° 32, L.Z., Escola General Trompowski; n° 82, Z.S., Escola General Trompowski; n° 53,
M.M.V., Escola Bárbara Ottoni; n° 60, M.S., Escola General Trompowski; n° 27, J.C.N., Escola General
Trompowski.
715
Ficha n° 126, H. N.S., Escola EUA.
716
Ficha n° 395, G.S.N., Escola Bárbara Ottoni; n° 78, N.R., Escola Bárbara Ottoni.
293
Questões Percentuais
Possui casa própria?
Sim 20,15
Alugada 71,64
Não informa 8,21
Tipo de habitação
Coletiva 13,43
Individual 17,91
Vila 5,97
Não informou 62,69
Condições de iluminação
Más 5,22
Regulares 2,99
Boas 56,72
Ótimas 4,48
Não informa 30,60
Condições de aeração
Más 4,48
Regulares 3,73
Boas 64,93
Ótimas 4,48
Não informa 22,39
Há local para brincar?1
Sim 75,37
Não 6,72
Não informa 17,91
Considera a vizinhança
Ruim 3,73
Regular 5,97
Boa 32,09
Não conhece 0,75
Não informa 57,46
1
Foram considerados como locais para brincar: quintais, jardins, varandas, pátios e salas, sempre que
relatadas nas fichas de acompanhamento dos alunos.
717
Ficha n° 9, J.J.S., Escola Bárbara Ottoni.
718
Ficha n° 144, N.M.M., Escola Bárbara Ottoni.
719
Ficha n° 122, A.A.B., Escola México.
294
Como elencado, a vizinhança não estava excluída. Ela está incluída na categoria
de boa, má, regular ou não conhece, de maneira corrida no texto. No item sobre
Brincadeiras, também há menção a ela, buscando-se saber se havia crianças nas
redondezas e se o indivíduo fichado brincava com elas. Ramos considerava o ato de
brincar uma atividade importante e necessária para a formação e desenvolvimento da
criança. Adepto do método Kleiniano, a brincadeira lhe servia como um instrumento
para a sua análise psicanalítica. Por isso, estava incluída na ficha, tendo espaço
destacado e estando presente em todas. Em A criança problema, afirmou que os jogos
infantis forneciam "um material esplêndido de exame das atitudes inconscientes da
criança", tal como formulado por Klein 720. E, por dar preferência a este tipo de
abordagem com crianças, considerava que as brincadeiras e jogos permitiam a análise
de maneira mais fácil. Por meio dos brinquedos, a criança vivia "num mundo simbólico
onde os trata como se fossem seres vivos. Desfilam, então, diante de sua imaginação,
mamãe, papai, os irmãos, etc"721.
No caso do SOHM, seu diretor afirmou estar colocando este método em prática
na Clínica de Pré-Escolares, portanto, na Escola General Trompowski, e que já chegara
a "avaliar a existência muito precoce de ciúmes e competições entre irmãos" 722. Como
esse trabalho foi desenvolvido não fez referência, nada é apresentado nas fichas
720
RAMOS, 1959, p. 147.
721
Ibid., loc., cit.
722
Ibid., loc., cit.
295
analisadas e, pelo o que elas trazem, nenhum trabalho desse porte poderia ser realizado,
dada a pouca quantidade de dados que exibem. A observação era necessária para se
alcançar tal êxito e ela precisava ser contínua e realizada por um analista e não por
várias pessoas, cada qual com uma perspectiva e formação. Saber se a criança domina
ou é dominada no ato de brincar, apenas isso, pode permitir algumas hipóteses, mas
sempre muito evasivas e baseadas em especulações. Uma análise de fundo psicanalítico
jamais se basearia nisso e apenas nisso.
O contato com crianças também era por ele reputado de grande relevância.
Aconselhava ser conveniente provocá-lo com outras da sua idade, o que podia ser
possível com a própria vizinhança ou parentes723. Porém, é recorrente em seus escritos a
prescrição quanto ao cuidado que os pais deveriam ter com relação ao contato de seus
filhos com a vizinhança, ou seja, não era qualquer uma a recomendável. Por essa razão,
as visitadoras também investigavam essa questão, sendo que em 32,09% das fichas a
vizinhança foi considerada boa, todavia, com a ausência desta informação em 57,46%
delas.
723
Ibid., p. 178.
724
Ficha n° 423, S.F.E. Escola Estados Unidos
725
Ficha n° 111, M.P. Escola México.
726
Ibid.
296
727
Exemplo da ficha n° 09, J.J.S., Escola Bárbara Ottoni: "Nenhum dado foi conseguido, por ser a mãe já
falecida e o pai não saber dar nenhuma informação".
728
Ficha n° 48, M.S., Escola Argentina: pés inchados, inquietações morais, doenças nervosas; n° 02,
M.F., Escola General Trompowski: vivia sobressaltada sob as ameaças do marido de a matar; n° 3, J.D.,
Escola General Trompowski: inquietações morais, foi abandonada pelo marido, durante a gravidez.
Quando voltou a criança já tinha 5 meses.
729
A maioria informa parto a termo e normal. Só houve um caso de cesárea, a ficha n° 266, C.S.L.,
Escola Argentina.
730
Fichas n° 20, C.S.M., Escola General Trompowski: "fez tratamento pré-natal, muito bem feito" e n°
32, L.Z., Escola General Trompowski: "fez tratamento pré-natal".
297
fichas manipuladas durante esta pesquisa, já que em poucas delas houve a afirmação do
aluno estar subnutrido 731. Ramos, muito provavelmente, realizou mais pesquisas sobre
este campo para tal assertiva, pois, com as informações que estão presentes nas fichas
não é possível fazê-la. Apenas considerando o número de refeições e os itens
alimentares consumidos pela criança, ainda que os relatos sejam, por exemplo, de
apenas duas refeições por dia com o consumo de itens de baixo valor nutricional, não é
possível a realização de um diagnóstico de subnutrição. Para um diagnóstico mais
preciso, seria necessário um exame clínico que, talvez, pudesse ter sido realizado por
ele. Porém, se houve ele não consta nas fichas, instrumentos que, por hora, temos
disponíveis para a análise.
731
n° 4, A.L.M., Escola Bárbara Ottoni : "A impressão da educadora é que tem faltado a essa menina,
mau grado os recursos monetários do pai, uma boa higiene alimentar. A criança é fraca porque é mal
alimentada"; n° 394, M.Z., Escola Bárbara Ottoni: "Desnutrido. Já iniciou tratamento tônico, recebe uma
merenda especial e está tratando os dentes".
298
Questões Percentuais
1
Hora que dormem 20h46min
Hora que acordam1 06h58min
Média de horas de sono 10h12min
Dorme só no leito?
Sim 53,73
Não 33,58
Não informou 12,69
Tem brinquedo no leito?
Sim 5,97
Não 48,51
Não informou 45,52
Tem participação dos pais?
Sim 2,99
Não 38,06
Não informou 58,96
Tem cerimônias especiais?
Sim 18,66
Não 29,10
Não informa 52,24
Dorme de portas fechadas?
Sim 37,31
Não 35,82
Não informa 26,87
Possui medos?
Sim 31,34
Não 54,48
Não informa 14,18
1
As horas em que as crianças dormiam e acordavam não foram informadas em 16,42 e 35,07% das fichas,
respectivamente.
Havia a participação dos pais para colocar a criança para dormir em apenas
2,99% dos casos e 18,66% delas possuía alguma cerimônia especial antes de ir para a
cama, como rezar, ler, ouvir histórias etc. Dormiam de portas fechadas 37,31% das
299
Ilustração 11: Gráfico 1. Medos das crianças durante o sono, quando os medos de escuridão e
isolamento aparecem individualmente (medo apenas de um deles) e agrupados (medo de ambos).
Todos os valores foram obtidos pela sistematização de informações constantes nas fichas (n = 134) de
acompanhamento de alunos do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM).
Ramos afirmava que a angústia era uma das últimas transformações do medo,
que podia ir do "pavor infantil de um quarto escuro até os sentimentos complexos do
adulto"732. Dizia ser ela a emoção básica da infância e o interesse em analisá-la se
justificava pelos problemas de ordem psíquica que poderia acarretar na vida, ainda na
infância, ou na fase adulta: neuroses ou mesmo neuroses fóbicas e obsessionais,
732
RAMOS, 1959, p. 311.
300
Todavia, o que transparece nas fichas é que foram dadas opções de medos, e não
que as crianças os declararam espontaneamente. Como é comum naquela obra, Ramos
sequencia sua fala com a presença de fichas como exemplos, donde destaca aquelas em
que ficaram patentes "medos simples" e outras em que se destacaram medos cujas
fachadas "já se complicam com a associação a outros desajustamentos, como
agressividade, problemas do sexo....". No entanto, a própria ficha anexada como
exemplo, por si só, não apresenta nada que permita essa relação e Ramos se limita a
"diagnosticar e ilustrar", ou faz a associação do medo com a agressividade, mentiras ou
irritabilidade da criança, quando estas características também respondem por outras
causas. O que está registrado na ficha, e somente por ela, não permite tais associações,
como pode ser comprovado com o exemplo abaixo.
733
Ibid., p. 315. A ficha do aluno J.C.N., n° 27, Escola General Trompowski traz o seguinte relato: "1938
- Tem estado pior que no ano anterior. Tem ideais de suicídio e segundo informações de uma irmã tentou
suicidar-se nas férias". Como essa ficha não traz a Orientação, presume-se que Ramos não tenha tido
contato com ela.
734
Pesquisa realizada por Arthur Jersild e Frances Holmes, do Instituto de Desenvolvimento da Criança
do Colégio de Professores da Universidade de Columbia. Ramos elenca as categorias de situações em que
ocorreram os medos infantis, que podem ser visualizados em RAMOS, op., cit., p. 313 a 315.
735
Ibid., p. 316.
301
Uma análise psicanalítica da criança era, pelo o que sugere a citação acima e as
leituras das fichas, realizada pelo o que se lê nelas, e que parece se bastar nessa única
fonte. Dessa maneira, associações eram feitas e uma espécie de diagnóstico era
apresentado sem que houvesse condições para isso, considerando que análises dessa
natureza requerem muito mais do que uma leitura mediada por outras pessoas, sem nem
mesmo a certeza de que foi a criança quem relatou seus medos. Todavia, na concepção
de Ramos, a análise era possível, no sentido de viabilidade, mediante "a simples
conversa com pais e professores". Somente nos casos em que não fosse possível, por
algum tipo de impedimento, ela então só poderia ser efetuada por meio de um
"tratamento de bases psicanalíticas". Nas fichas analisadas não há menção de como esse
tratamento seria realizado ou mesmo se foi executado em algum caso.
Chama a atenção o fato de, pelo o que nossa pesquisa apresentou, Ramos ser o
único psicanalista do SOHM. Em A criança problema, ele mencionou a existência de
um corpo médico do Serviço, composto por dois médicos e uma médica, mas não se
refere a especialidade deles. Pelos objetivos do Serviço, dentre os quais a psicanálise,
enquanto ferramenta de análise, tinha espaço destacado, e pelo volume de trabalho
exigido, não haver uma equipe de psiquiatras e psicólogos é no mínimo curioso. Essa
736
Ibid., p. 318 e 318.
302
Ramos concluiu que as crianças medrosas eram "aquelas que dormiram quase
sempre no mesmo quarto, e até no mesmo leito dos pais". Isso explica o porquê do
interesse em saber se havia quarto específico para a criança e se esta dormia sozinha no
leito. Consubstancia mais um caso em que a teoria ditava uma lógica, mas que a prática
não podia satisfazê-la, principalmente levando-se em conta as famílias pobres sem
condições de assim conduzirem a criação de seus filhos. E exemplos no SOHM não
faltam, o que faria de grande parte das crianças seres medrosos e angustiados.
737
Ramos, desde a graduação em Medicina, sempre se interessou pela psicanálise. E ela sempre esteve
presente em seus trabalhos, teóricos e práticos, como médico clínico. Ao dissertar sobre os medos e
angústias em A criança problema, trouxe exemplos de casos acompanhados por ele ainda na Bahia de
suicídios de menores (páginas 328 e 329). Fica evidente que ele não realizava apenas um trabalho clínico,
mas buscava obter informações sobre o paciente ou o morto, nesse caso, para construir um perfil
psicanalítico e assim entender os motivos que o levaram a ação (suicídio). Quando realizava consultas
médicas, buscava traçar esse mesmo perfil de seus pacientes, porque entendia que tudo o que lhe cercava
podia ter relação com o problema clínico que estava acometido. Dizia ele que todo médico deveria se
preocupar com tudo o que dissesse respeito ao paciente: seus costumes, alimentação, tradições, não se
limitando à doença. Seria esse um trabalho de etnólogo que o médico também deveria fazer, registrando
tudo em seus diários. BARROS, 2005, p. 129.
303
Ilustração 12. Gráfico 2. Levantamento do total de alunos que brinca. Todos os valores foram obtidos
pela sistematização de informações constantes nas fichas (n = 134) de acompanhamento de alunos do
Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM).
Ilustração 13. Gráfico 3. Atitude de dominância dos alunos durante as brincadeiras. Todos os valores
foram obtidos pela sistematização de informações constantes nas fichas (n = 134) de acompanhamento de
alunos do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM).
304
Ilustração 14. Gráfico 4. Levantamento do total de alunos que brinca em casa. Todos os valores foram
obtidos pela sistematização de informações constantes nas fichas (n = 134) de acompanhamento de
alunos do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM).
Ilustração 15. Gráfico 5. Levantamento do total de alunos que brinca na escola. Todos os valores foram
obtidos pela sistematização de informações constantes nas fichas (n = 134) de acompanhamento de
alunos do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM).
738
Manifestações pregressas: onanismo; inquirições e fantasias precoces; outros hábitos ligados ao sexo;
atitude dos pais e estado atual. Comportamento sexual; instrução sexual; puberdade - manifestações pré-
pubertárias; atitude dos pais e educadores; observações.
739
Na Orientação à aluna S.M.B., n° 272, Escola Manoel Bomfim, instruiu-se que fosse realizada uma
conversa com a mãe de S., "orientando-a no sentido de não angustiar a imaginação da criança", isso
porque a genitora não sanava as dúvidas da filha, explanando o assunto de maneira fantasiosa. Pede-se
para que haja "instrução sexual completa, sem fantasias inadequadas" para com o aluno A.C.A.R.P., n°
60, Escola Bárbara Ottoni.
306
Mais comum do que responder as questões feitas, esse tópico traz observações
das professoras, pais e visitadoras, além de fatos ocorridos, como, por exemplo, uma
dúvida sobre nascimento e a explicação dos pais. O caso do aluno A.C.A.R.P., n° 60,
Escola Bárbara Ottoni, que foi trabalhado mais acima, ao abordamos sobre a
transferência afetiva, é um dos exemplos de como a docente deveria proceder mediante
a observação de um comportamento ligado ao sexo. Todavia, existia situações em que
ela não agia conforme as orientações recebidas e a advertência vinha da visitadora e não
de Ramos, responsável pela Orientação que também trazia considerações sobre
possíveis erros de condução do trabalho. Fato ocorrido com a aluna N.R., n° 78, Escola
Bárbara Ottoni, que "manifestou nos 3 primeiros meses de aula uma estranha angústia
sexual, denunciada, frequentemente, por movimentos de atrito das partes genitais no
banco da carteira, acompanhadas de uma expressão fisionômica esquisita". Ao abordar
sobre a atitude da educadora, considera-se que esta atribuiu "erradamente, a um cacoete
de fundo nervoso", vindo a advertir N. "com energia". Na Orientação desta aluna,
Ramos limitou-se a aconselhar a realização de instrução sexual.
Como afirmado, os pais também eram orientados de como proceder com seus
filhos frente às manifestações de cunho sexual, não estando imunes das observações,
censuras e correções. O pai do aluno O.M.G., n° 12, Escola Bárbara Ottoni teve sua
atitude frente à prática de onanismo do filho reprovada pela visitadora que a considerou
"severa e incoerente", havendo, ainda, uma "instrução sexual precipitada e ministrada
inabilmente". Além disso, havia "diversas pessoas influindo sobre esta criança e que não
se harmonizam em pontos de vista pedagógico" o que vem a demonstrar a importância
dada ao conhecimento das pessoas que circundavam a criança, incluindo os inquilinos
ou os visitantes da família. Aqui fica claro que as visitadoras também corrigiam.
740
Eis alguns exemplos. Ficha n° s/n, A.G., Escola EUA: Pestaneja e roí as unhas; n° 64, J.G., Escola
General Trompowski: Contrai da face; n°3, J.D., Escola General Trompowski: caminha sempre volteando
sobre si mesmo; n° 46, A.L.V., Escola México: esgaravata o nariz; n° 135, H.C., Escola México: morde
os lábios; n° 115, A.L.A.M., Escola Bárbara Ottoni: Torce um cacho dos cabelos; n° 251, A.A.S.G.,
Escola Bárbara Ottoni: Tudo põe na boca, está sempre mastigando papel, lápis ou gravata, roí
desesperadamente as unhas; n° 09, J. J. S., Escola Bárbara Ottoni: Passa a mão no cabelo num gesto de
alisar o cabelo; n° 144, N.M.M., Escola Bárbara Ottoni: Está sempre segurando um dente.
741
Ficha n° 193, H.F., Escola Bárbara Ottoni.
308
Questões Percentuais
Como a criança se comporta?
Obediente 48,51
Desobediente 36,57
Não informou 14,93
Atormenta os colegas?
Sim 36,57
Não 41,04
Não informou 22,39
Chora facilmente?
Sim 24,63
Não 45,52
Não informou 29,85
É fanfarrão?
Sim 29,85
Não 34,33
Não informa 35,82
É tagarela?
Sim 52,99
Não 23,88
Não informa 23,13
É embirrante?
Sim 35,82
Não 35,07
Não informa 29,10
Furta?
Sim 13,43
Não 52,24
Não informa 34,33
Mente?
Sim 38,06
Não 36,57
Não informa 25,37
Tem tiques especiais?
Sim 25,37
Não 23,88
Não informa 50,75
Se a criança mentia, esse ato sempre responderia a uma fuga, a uma reação de
defesa de fundo ambiental, a um desajustamento desse ambiente. Ela requeria
tratamento e não punição. O tratamento deveria ser individual, corrigindo-se seu
ambiente e os adultos, mais do que a própria criança. Dessa maneira, a mentira era a
consequência de fatores sexuais, por exemplo, quando este conduzia à dissimulação e
esta à mentira, criando-se um ciclo 742. O fator sexual podia então deflagrar mentiras,
742
RAMOS, 1959, p. 342.
309
furtos e tiques. Uma causa para várias reações, cuja correlação podia, obviamente, estar
acertada, mas que necessitava muito mais do que uma ficha para ser feita. A critica aqui
incide sobre o modo como as análises psicanalíticas foram feitas, sobre quais elementos
ela se debruçou e se bastou.
Os furtos também foram pensados por Ramos na mesma lógica das mentiras,
direcionando para o ambiente o seu principal causador. Não necessariamente as
condições sociais, mas também a afetividade que ultrapassa as questões de classe.
Entendendo que eles surgiam como "compensações a traumas afetivos, em geral",
crianças escorraçadas em casa, vítimas de violência corporal e/ou verbal ou abandono,
encontravam no roubo uma maneira de compensar essa situação, no caso, de maneira
inadequada743.
A atitude dos pais é aqui igualmente central para corrigir a prática dos furtos:
sem escândalos, sem represálias, sem punições, tal como com a mentira e com a
sexualidade. Uma atitude exagerada poderia levar a criança a mentir, por medo da
punição, e assim negar o furto. Um efeito dominó era então instalado. Esse era o
motivo, segundo Ramos, para que furtos e mentiras se achassem intimamente ligados e
essa compreensão explica o porquê de estarem nas fichas sempre interligados744. Ele
afirmou que em uma revista geral dos casos de roubos ocorridos no SOHM, 80% deles
estavam associados à mentira 745. Entretanto, não disse o montante das fichas revisadas.
743
Ibid., p. 357.
744
Ficha n° 423, S. F.E., Escola EUA: É mentirosa e furta; n° 37, N.M., Escola General Trompowski:
Mente e furta.
745
RAMOS, op., cit., p. 374.
310
que corrobora com a afirmação de que Ramos tinha contato direto com algumas
crianças ou que a ele fosse reportada a informação por outro meio que não a ficha 748.
748
Fichas n°254, A.L.C., Escola Argentina: "Seu aspecto é desagradável, pouca higiene"; n° 51,
C.M.S.M., Escola EUA: "Não anda com o corpo asseado"; n° 20, C. S.M., Escola General Trompowski:
"Continua ainda muito sujo"; n° 69, J.P., Escola General Trompowski: "Apresenta-se muito sujo"; n° 46,
A.L.V., Escola México: "Apresenta-se muito sujo na escola"; n° 2, S.D.S., Escola México: "Pouco
asseado"; n° 133, H.C.F., Escola México: "Corpo sujo"; n° 97, A.S.L., Escola Bárbara Ottoni: "É pouco
asseada. Tem voltado muitas vezes à casa para limpar a cabeça e tomar banho"; n° 37, N.M., Escola
General Trompowski: "Apresenta-se sujo e cheirando mal"; n°3, J.D.,. Escola General Trompowski:
"Desasseuadissimo e por mais conselhos que receba (incluindo a doação de escova de dente, pente e pasta
feita por sua professora) não se consegue que tome banho e se apresente limpo". Neste caso, ressalta-se
que a família insiste que tome banho, ao que ele se nega; n° 60, A.C.A.R.P, Escola Bárbara Ottoni: "Bons
hábitos de limpeza"; n° 251, A.A.S.G., Escola Bárbara Ottoni: "Bons hábitos de limpeza"; n° 102, C.G.T.,
Escola Bárbara Ottoni: "Bons hábitos de limpeza"; n° 109, O.T., Escola Manoel Bomfim: "Bons hábitos
de limpeza"; n° 90, M.L.S., Escola General Trompowski: "Muito asseada sempre até hoje".
312
Tabela 5. Caracteres não citados nenhuma vez e os citados entre uma e quatro vezes nas
fichas de acompanhamento dos alunos pelo Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental
(SOHM), obtidas pela sistematização de informações constantes nas fichas (n = 134).
Número de
Caracteres citados nas fichas
Citações
749
Foram elas: apendicite, anorexia, anemia, bronquite, caxumba, difteria, escrofulose, feridas, gurpes,
nefrite, parotidite, pleuris, pneumonia, scabiose, t. ganglionar e tracoma.
315
Ilustração 17. Gráfico 7. Doenças dos alunos conforme aparecem nas fichas de acompanhamento do
SOHM. Todos os valores foram obtidos pela sistematização de informações constantes nas fichas (n =
134) de acompanhamento de alunos do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM).
750
Observações gerais - 15/4/1935 - Apresentou-se ao gabinete médico com forte dor do lado direito. O
médico escolar, presente no momento, examinou-o e encaminhou-o (com ordem escrita) para a
Assistência Municipal. Confirmado diagnostico de apendicite crônica. Foi enviado à Policlínica Infantil
que aconselhou aguardar novo acesso. Este se deu a 15 de maio quando na escola estava o médico do
Serviço que o enviou ao H. S Francisco de Assis. Muito bem atendido e examinado foi julgada necessária
a operação, porém, a mãe amedrontada não consentia que a fizesse. Está em tratamento fora da escola
(grifos nossos).
316
Ramos declarou que a grande maioria das crianças consideradas anormais eram,
na realidade, crianças-problema. Diante do problema e do exame clínico, se saberia em
qual das classificações alocá-las. Há muitos casos de alunos que apresentavam
problemas de natureza orgânica e ambiental, sem que ficasse determinada em qual das
duas opções estaria definido. A.L.C., n° 254, Escola Argentina consolida um desses
casos, em que se conclui ser "um caso mais de tratamento orgânico, higiene corpórea e
correção do ambiente familiar", conformando, assim, um quadro de criança anormal, do
ponto de vista orgânico, e problema, do ponto de vista ambiental (lar desajustado).
Normal, ajustada e ordenada eram, mais do que palavras, intentos projetados
pelo SOHM e que delinearam toda a sua atuação em seus cinco anos de existência.
Como visto ao longo de toda esta tese, a inquietação intelectual e política residia em
desenvolver o país, tornando-o uma nação forte e moderna. Para isso, era igualmente
necessária a construção do brasileiro apto a viver e produzir neste mundo do mercado e
da modernidade. A reforma anisiana tinha nesse objetivo sua base fundamentadora:
formar esse indivíduo capacitado e pronto. Foi em torno desses anseios que o SOHM foi
criado e toda a sua estrutura de trabalho foi pensada para esse fim, daí a sua máxima de
prevenir e corrigir.
Com tais princípios norteadores, a criança era, por lógica, o ponto de onde se
deveria partir. A escola era o campo ideal para observá-las e, assim, poder interferir,
conduzindo-a ao ajustamento que se esperava. Partindo desses ideais, o SOHM era um
dos espaços mais privilegiados da reforma, pois sua função era justamente observar,
compilar dados e intervir, ampliando o seu raio de ação, já que era um serviço de
higiene mental, com base ambientalista. Instruir era outra meta, costurada pelos mesmos
intentos, tanto que a reforma possuía uma rádio, nela foram criados os Círculos de Pais,
havia publicações instrutivas feitas pelo Departamento de Educação, palestras
proferidas por seu corpo de funcionário, além do empenho de Teixeira em abrir a escola
para a comunidade. E se a instrução de novos hábitos e comportamentos, que, não
necessariamente e automaticamente era negativa, era a maneira aventada para se chegar
às metas planejadas, nada mais coerente do que aliá-la à escola.
317
Como ficou demonstrado neste último capítulo, a começar pela construção das
fichas e por sua arquitetura, tão minuciosa por meio de um controle detalhado, a
vigilância foi intensa e prática. Não importava apenas observar a criança, mas também
desenvolver o que Foucault chamou de "margem de controle laterais", ou seja, incluir
aqueles que a rodeavam751. A finalidade era conhecer as crianças e suas famílias para
saber se os problemas apresentados pelas primeiras tinham relação com as segundas. E
pela perspectiva de Ramos, isso era, quase sempre, o ocorrido. O conhecimento advindo
das fichas visava, dentre outros desígnios, saber onde a família falhou.
Portanto, está claro que todo esse perscrutar tinha metas bem definidas:
normatizar. Ao trabalhar com as fichas, pôde-se melhor compreender a extensão dos
tentáculos do SOHM e os seus significados. As informações sobre o Serviço
sobreviveram, praticamente, devido a guarda de Ramos de seus documentos, afora a
publicação de alguns materiais, com ênfase ao livro A criança problema que é a
principal fonte sobre ele. O conhecimento das fichas e o seu manuseio também estão
praticamente restritos ao acesso à esta publicação. São mais de 200 anexadas naquela
obra, porém, resumidas. O manuseio das fichas propriamente ditas, por nós realizado,
permitiu uma visão muito mais ampla acerca do SOHM, de seus funcionários, público
alvo e trabalho; além de possibilitar a realização de uma análise estatística. O seu uso
permitiu uma leitura nas entrelinhas, um olhar diferenciado sobre as crianças e suas
famílias, uma compreensão macro sobre a vida daquelas pessoas, uma vez que o contato
foi imediato, sem intermediário, como ocorre com aquelas anexadas ao livro.
Ver a sua arquitetura, as anotações à mão, as falas das crianças, de seus
familiares e dos funcionários do Serviço e/ou da escola, tornaram a compreensão de
toda a estrutura operacional mais rica e clara. Alguns questionamentos e dúvidas que
iniciaram a tese puderam ser sanados somente com este contato direto. Todavia, tantos
outros surgiram ao longo dessa leitura sem que fossem respondidos. A utilização dessa
fonte foi fundamental para o tipo de abordagem feita nesta pesquisa, tendo elas
direcionado a sua confecção e revisão, haja vista ter sido a última etapa de todo esse
processo.
751
FOUCAULT, 1999, p. 234.
318
CONCLUSÃO
seu público alvo: as crianças, suas famílias, e também para o seu corpo de funcionários,
como exemplificamos na tese.
O problema da aplicação das suas ações tinha duas faces: de um lado, a sua
própria composição que era invasiva em dados e observações; do outro lado, a maneira
como as ações eram executadas. As negativas em atender um chamado da escola ou a
permissão de que as visitadoras realizassem a visita domiciliar eram entendidas menos
como uma resistência à essa intromissão ou a impossibilidade de estar presente em
virtude de outras necessidades, como um trabalho fora de casa, do que como um
descaso dos pais. Com o perfil ambientalista a fundamentar os trabalhos do SOHM, a
família foi colocada como central para a formação e desenvolvimento das crianças,
sendo, na grande maioria dos casos apresentados nas fichas, responsabilizadas
diretamente ou consideradas como fatores de intensificação dos problemas apresentados
por aquelas.
O tipo de ação desenvolvida não fazia, ao que demonstrou a análise das fichas,
distinção entre classes, no sentido de excluir classes mais abastadas. Orientações e
correções eram apresentadas a todas as famílias. Todavia, determinadas atuações só
ocorriam com as classes mais desfavorecidas, como uma merenda mais nutritiva, um
atendimento médico, doação de fardamento e/ou item de higiene pessoal. O que é
justificável. Pelo perfil do SOHM e suas exigências no que considerava necessário para
uma boa formação psíquica da criança, as famílias mais pobres eram as mais sujeitadas
às suas ações. Pontos como alimentação são facilmente compreensíveis, em virtude da
lógica, mas entravam outros fatores que acabam ampliando a reflexão, como a presença
da religião nas fichas e os motivos pelos quais estavam em sua composição.
Neste aspecto, as consideradas religiões "ruins" ou literalmente chamadas de
atrasadas, inclusive por Ramos, como a macumba e o baixo espiritismo, indicadas
textualmente por ele, eram sentenciadas como nefastas e, apesar de enfatizar a criança,
Ramos não se limitava a ela. Assim, a interferência se pautava em algo bem pessoal que
utilizava a influência sobre a formação da criança como justificativa para orientar uma
mudança. Quando ele afirmava que a educação era o meio pelo qual se poderia
"melhorar" culturas, deixava claro que se tratava de toda a sociedade e as suas palestras
e escritos mais didáticos, que já evidenciam um público alvo, vêm ao encontro dessa
nossa afirmação. Ramos não limitou as "culturas atrasadas" aos negros, alargou para
outros povos, que não citou, e aos pobres, entrando aqui outra categoria: a de classe.
321
norteou a análise das fichas, com as quais buscamos conectar toda a tese, demonstrando
como determinados conceitos e ideias - raça, eugenia, doença, saúde, educação - se
mantiveram presente em sua estrutura, variando a interpretação, mas amarrados em
ideais de formação e desenvolvimento de um brasileiro moderno.
324
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