Pelos Olhos Das Crianças Uma Etnografia Da Favela Do Gonzaga
Pelos Olhos Das Crianças Uma Etnografia Da Favela Do Gonzaga
Pelos Olhos Das Crianças Uma Etnografia Da Favela Do Gonzaga
SÃO CARLOS
2008
2
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós – Graduação em
Antropologia Social da Universidade
Federal de São Carlos, como parte
dos requisitos para obtenção do
título de Mestre em Antropologia
Social.
Orientador: Luiz Henrique de
Toledo.
SÃO CARLOS
2008
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária da UFSCar
C 4
\\
Universidade ~ e d e r ade
l São Carlos IUFSCar
4
Prof. Df. Ronaldo Rdmulo Wchado de Almeida
Universidade Estadual de CampinasIUNICAMP
5
Agradecimentos
Para iniciar e concluir esse trabalho foi preciso apoio e paciência de muitas
pessoas as quais gostaria de agradecer. Em primeiro lugar, agradecer ao Kike, meu
orientador, por me dar apoio e respaldo necessário sempre que precisei e mais, por
acreditar em mim e em meu trabalho. E agradecer também a FAPESP por ter acreditado
em meu projeto e por tornar essa pesquisa viável.
Gostaria de agradecer aos responsáveis pelo meu ingresso em uma Universidade
como esta, meu pai Paulo e minha mãe Ana Luiza, que sempre me deram total apoio em
todos os momentos de minha vida, que sempre lutaram muito para me dar uma boa
formação e educação e que estavam sempre dispostos a conversar sobre qualquer coisa
que eu precisasse. Pai, mãe, meu muito obrigada a vocês. Agradecer minhas irmãs
Débora e Isabela pelo amor e pelo carinho e me desculpar por minhas faltas. Queria
agradecer também meus padrinhos, tio Iko e tia Terezinha e minhas primas Dai, Dani e
meu primo Caju.
Agradecer minhas amigas de Araras por todo o carinho e interesse em minha
pesquisa, em especial a Fernanda que esteve muito presente me dando apoio, força e
entendendo minha ausência.
Agradeço o pessoal de São Carlos que são muitas pessoas, sendo difícil
mencionar um por um. Aos meus amigos de mestrado, Claudia, Juliana, Delega, Victor
Hugo, uma turma especial, deixo meus sinceros agradecimentos e um grande beijo a
todos. Sou grata a “Mansão Wayne” onde fiz sinceras amizades que levarei para toda a
vida. Queria agradecer aos meus amados amigos Lucila, Marina e Júnior por tudo que
passamos juntos, momentos que com certeza ficarão guardados para sempre!
Agradecer a todos os professores que sempre foram muito acessíveis, dispostos a
conversar e ensinar e que de forma ou outra me auxiliaram nesse trabalho.
Por fim, agradecer as crianças do Gonzaga que tornaram possível meu acesso ao
bairro e pelas quais desenvolvi grande afeto. Obrigada!
7
RESUMO
Essa pesquisa teve por objetivo ampliar e a aprofundar a análise sobre periferia,
tomando como objeto de estudos a favela do Gonzaga, localizada na cidade de São
8
Carlos, interior do estado de São Paulo, bairro estigmatizado pela população são-
carlense, que o vê como um “bairro problema”, local em que reside a maioria dos
criminosos que atuam na cidade, pois é um dos bairros que abriga a população de baixa
renda. Através da etnografia focalizada num estudo de caso, a favela do Gonzaga,
problematizei a relação co-extensiva entre dois universos geracionais: o adulto e o
infantil, investigando a sociabilidade no bairro, tomando como objetos de análise, a rua,
a relação entre as crianças, a relação das crianças com os pais e com a parentela. Em
suma, investiguei através da pesquisa de campo, da observação participante, da
etnografia como as crianças estão comprometidas com a configuração e a rede de
práticas sociais no bairro e como isso está representado e reproduzido no
comportamento e na sociabilidade infantil e nas suas práticas lúdicas. Nesse trabalho de
pesquisa as crianças ocuparam lugar central, por isso o texto é a partir do ponto de vista
das crianças, elas são interlocutoras da pesquisa. Dessa forma, as crianças foram
tratadas como sujeitos capazes de representar e significar suas experiências, como atores
e agentes sociais que significam e não apenas resignificam seu mundo social, que
apreendem o mundo e o representam a sua maneira. Enfim, essa pesquisa mostra como
as crianças da favela do Gonzaga representam e significam o bairro em que vivem e,
através das crianças conhecemos a experiência de vida daquelas pessoas que moram em
periferias ou em favelas que é diferente daquela veiculada por meio da mídia ou de
jornais, que não percebem a multiplicidade de sujeitos que moram nesses bairros.
ABSTRACT
This research had the objective to enlarge and to deepen the suburb analysis,
using as an object the Gonzaga shantytown, located in São Carlos, in the countryside of
9
the state of São Paulo, and a neighborhood spotted by the population of the city as a
troubled one, and the home of most of the criminals operating in the city, since it’s one
of the neighborhoods where most inhabitants have low incomes. Through the
ethnography focused on the study of a case, the Gonzaga shantytown, I have revised the
co-extensive relation between two generation universes: the adult and the infantile,
investigating the sociability in the neighborhood, using as objects, the street, the
relationships among the children, and also the relationships between the children, their
parents and their relatives. In sum, I have investigated through the field research, the
participating observation, the ethnography as the children are committed with the
configuration, and the net of social activities in the neighborhood and how all that is
represented and portrayed in the children’s behavior and sociability, as much as in their
ludic activities. In this research, the main role is played by the children, therfore the text
was built from the children’s point of view; they are interlocutors. Thus, the children
were treated as subjects, capable of representing and signifying their own experiences,
as actors and social agents that signify, and not merely re-signify their social
environment, and that perceive the world and represent it in their own way. At last, this
research shows how the Gonzaga shantytown’s children represent and signify the
neighborhood where they live in, and, because of the children, we are able to know the
life experience of those who live in the suburbs or in shantytowns, which is different
than the one presented by the tv channels and the newspapers, medias that do not realize
the diversity of inhabitants in these neighborhoods.
ÍNDICE
Introdução………………………………………………………………………………11
Capítulo 1 – Opções teóricas e Metodológicas………………………………………...14
1. Pesquisa de campo e observação participante…………………………………….....14
1.1 “Os estabelecidos e os outsiders” (Elias – Scotson)………………………………..15
1.2 Observação participante: problemas e perspectivas………………………………..18
2. A infância e a crianças nas Ciências Sociais………………………………………...23
Capítulo 2 – O acesso ao bairro………………………………………………………...28
1. Características gerais………………………………………………………………...28
2. Trajetórias de uma aproximação indireta……………………………………………33
2.1 O universo do bairro visto pelo “de fora” e pelo “de dentro”……………………...36
Capítulo 3 – A favela do Gonzaga……………………………………………………..41
1. Um bairro periférico………………………………………………………………....41
2. O universo das crianças……………………………………………………………...44
2.1 O cotidiano das crianças……………………………………………………………50
2.2 Brincar como antigamente………………………………………………………….57
3. O contato com os moradores………………………………………………………...63
4. Intervenções municipais voltadas para crianças e adolescentes……………………..69
5. O tráfico de drogas e suas relações…………………………………………………..72
6. As invasões policiais………………………………………………………………...76
Considerações finais…………………………………………………………………...80
Referências bibliográficas……………………………………………………………..83
11
INTRODUÇÃO
1
Essa pesquisa resultou na produção da monografia de conclusão de graduação em Ciências Sociais na
Universidade Federal de São Carlos e contou com o apoio da PIBIC/CNPq no período de agosto de 2004
a julho de 2005.
2
Essa pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal de São Carlos que resultou nessa dissertação de mestrado e contou com o apoio da Fapesp de
abril de 2006 a março de 2008.
12
3
O professor Jorge foi minha banca na qualificação de mestrado, leu cuidadosamente meu trabalho, fez
críticas e muitas sugestões que procurei responder nesse trabalho. Ele me auxiliou muito nessa mudança
de foco do trabalho, indicando diversos textos para me suscitar idéias, embora ele não seja responsável
pelos possíveis erros que aqui cometi.
4
No capítulo 1 há um tópico que explica como as crianças foram e são estudas e tratadas nas pesquisas.
13
Porém, Malinowski (1978) não fez grandes formulações teóricas a respeito dos
povos estudados, o que pretendia era estudar uma sociedade em sua totalidade,
totalidade que só poderia ser reconstruída a partir de fragmentos, ou seja, a partir da
observação de cada fato da vida social. O autor pretendia reconstruir a realidade dos
trobriandeses através da interpretação daquilo que via e ouvia, pois acreditava que os
nativos não pudessem reconstruir numa totalidade a experiência fragmentária de suas
vidas.
Através de um breve relato das idéias centrais de Norbert Elias e de John
Scotson em “Os estabelecidos e os outsiders”, procurarei mostrar como o uso da
observação participante numa reconstrução analítica de foco sócio-historiográfico pode
contribuir para se ter acesso a realidade delimitada do objeto, no caso, um bairro por
eles pesquisado. Em seguida mostrarei algumas vantagens e algumas dificuldades da
utilização da observação participante utilizando para isso exemplos de algumas autoras
5
Pra o autor, havia uma série de fenômenos de suma importância que não poderiam ser registrados
apenas com o auxílio de questionários ou documentos estatísticos, mas que deveriam ser observados em
sua plena realidade. Além disso, o trabalho de campo deveria produzir uma “visão autêntica da vida
tribal”.
15
da Antropologia Urbana feita no Brasil: Eunice Durham (1986), Ruth Cardoso (1986),
Alba Zaluar (1986) e Mariza Peirano (1995).
Porém, sempre deixando explícita minha opção pela observação participante,
pois além dos ganhos para a pesquisa, ela também proporciona repensar os pressupostos
teóricos do pesquisador, pois “os etnógrafos são modificados pela experiência de
campo”. (GOLDMAN, 1995). Além disso, a etnografia, método de excelência em
Antropologia, é considerada por vários autores6 como chave para entender o processo
de participação das crianças na vida social, objetivo maior desse trabalho, pois “apenas
as crianças podem nos dar acesso ao que elas sabem sobre o mundo e as pessoas, e o
que elas sabem podem dar-nos elementos para uma compreensão analítica que não
podem ser obtidos de nenhum outro modo”. (TOREN apud CARVALHO & NUNES,
2007, p. 22).
6
Como Nunes (2007), Carvalho (2007), Cohn (2005), Toren (2002), por exemplo.
16
A zona 1 era vista como a melhor parte de Winston Parva, era vista como
símbolo de ascensão social. Seus moradores não mantinham muitas relações com o
pessoal do bairro, pois ficavam mais dentro de suas casas, típico de famílias de classe
média. Uma característica marcante, segundo os autores, é que durante as entrevistas,
nenhum dos moradores dessa zona mencionou ter parentes na zona 3. “Seu status de
zona hierarquicamente mais alta entre as três era francamente reconhecido na Zona 2 e
admitido com má vontade na Zona 3”. (ELIAS & SCOTSON, 2000, p.73).
A zona 2 diferia da zona 1 em sua aparência externa, a zona 1 tinha ruas largas e
casa grandes enquanto que na zona 2 as ruas eram estreitas e as casas de meias-águas.
Essa era a zona mais antiga e era conhecida como “aldeia”. Era também solidamente
unida e parecia ter um alto grau de uniformidade, principalmente quando o assunto era o
loteamento (zona 3). Os laços de vizinhança eram muito fortes, isso porque havia
muitas gerações de famílias que ali viviam. Havia um forte sentimento de pertencimento
ao lugar e também uma necessidade de mostrar ostensivamente que adotavam os
padrões da aldeia. Nessa zona as respostas eram padronizadas, os moradores ansiavam
por apresentar uma postura idêntica e causar uma boa impressão.
A zona 2 é a zona do grupo dos estabelecidos, daqueles que moram há muito
tempo no bairro, e é a coesão social que forma esse grupo e o tempo de ocupação que
protege suas identidades.
A zona 3 é formada em sua maioria por estrangeiros, recém-chegados que
moravam em Winston Parva em data relativamente recente. Nessa zona quase não há
laços de parentesco nem de vizinhança. “... apesar de serem vizinhas, tinham costumes,
padrões e estilos diferentes, os quais não raro pareciam estranhos e levantavam
17
Assim como Durham (1986), ela também acredita que os pesquisadores estão se
tornando muito subjetivos ao utilizarem a observação participante. A autora acredita que
muitos dos pesquisadores estão abandonando a reflexão teórica nos caminhos da
observação participante, o que é desvantajoso, pois teoria e empiria devem sempre
caminhar juntas.
Porém, ressalto que os pesquisadores que se utilizam da observação participante,
convivendo diariamente com seus “nativos”, participando de sua vida social e coletiva e
muitas vezes até morando com a população escolhida para a pesquisa, diferente do que
pensa a autora, não têm a pretensão de se tornarem nativos. O pesquisador está com a
população para poder ter maior acesso aos seus códigos, valores, comportamentos e
para conhecer “de perto” a realidade pesquisada. Até porque os próprios “nativos”
sempre encontram termos desconhecidos quando querem excluir o pesquisador de
alguma conversa, sinalizando que aquele não é o universo do pesquisador. Apesar de
estar observando e participando da vida do seu “objeto de pesquisa”, o pesquisador sabe
que continua sendo um estranho.
21
7
Grifo meu
8
A antropologia interpretativa, desenvolvida principalmente por Geertz a partir dos anos 70, surgiu no
contexto da desconfiança de alguns antropólogos com relação aos modelos clássicos de explicação e
representação. (SILVA, 2006).
22
9
Esse é um dos objetivos do meu projeto de doutorado que será desenvolvido no Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais, na Universidade Federal de São Carlos. “Jardim Ângela e Jardim
Gonzaga: análise antropológica comparativa de duas periferias”.
23
outras coisas, mas que não poderão ser encontradas em outras camadas ou
configurações sociais.
10
Entrei em contato com a bibliografia sobre infância e crianças depois que apresentei trabalho na 31ª
Anpocs em 2007, que foi muito importante para mim. Participei do Seminário Temático 14: Do ponto de
vista das crianças: pesquisas recentes em Ciências Sociais, coordenado por Clarice Cohn e Antonella
Tassinari. Depois de expor meu trabalho, ambas me falaram sobre a possibilidade de trabalhar minha
pesquisa pelo ponto de vista das crianças, pois segundo elas as crianças foram mais que centrais em
minha pesquisa. A Fapesp, financiadora dessa pesquisa, também me chamou atenção a esse fato no
primeiro parecer do meu relatório. O Prof Dr. Jorge Mattar Villela também enfatizou que eu deveria fazer
uma etnografia a partir do ponto de vista das crianças e foi assim que passei a conhecer essa bibliografia e
tentei buscar “o ponto de vista” das crianças do Gonzaga.
11
Phillippe Ariès (1978) contribui muito para isso.
24
12
As crianças mais abastadas é que assumiram um novo lugar, pois as crianças do povo, os filhos dos
camponeses e dos artesãos, continuaram a viver entre os adultos, conservavam o antigo modo de vida,
segundo Áriès.
25
ao mundo adulto, que estabelece uma ruptura entre dois contextos de experiências
sociais”. (SARAIVA, 2007, p. 17).
Margaret Mead, na década de 60, foi pioneira em tomar as crianças e
adolescentes como centrais nas pesquisas e seus trabalhos as situaram em termos
contextuais e culturais, porém de acordo com as reflexões de Cohn (2005):
A autora ainda afirma que uma antropologia da criança foi possível a partir de
uma revisão dos conceitos até então estudados e que a infância, bem como as crianças
estiveram sempre presentes nos trabalhos na área de Ciências Sociais, mas não de forma
central. Grande parte dos trabalhos sobre infância enfocava os estudos sobre exploração
do trabalho infantil, exploração sexual, precarização das condições de vida, “menor
infrator”, acesso à educação, saúde etc., sem levar em conta o contexto social de
experimentação da infância. Mead (1963), como já mencionei, foi pioneira ao colocar as
crianças como objetos centrais de suas pesquisas, mas ainda tratava as crianças como
apenas reprodutoras de uma cultura adquirida, considerando-as como seres imaturos.
A cultura vista como um sistema simbólico e o contexto social como um
conjunto de relações e interações entre os indivíduos alterou significativamente o olhar
metodológico sobre a infância. Dessa forma, as crianças deixaram de ser vistas como
seres incompletos e passaram a seres sociais plenos, inseridas numa província de
significados própria e em relação a outras. Cohn reconhece o papel ativo das crianças
em seus contextos, pois elas não são apenas produzidas pelas culturas, mas também
produtoras de cultura, e contrapondo-se à Mead (1963), perceberá que a criança não
ocupa a posição de somente reproduzir a cultura que adquiriu, mas reconhece que são
agentes atuantes. Enfim, reconhece nas crianças “um objeto legítimo de estudo”.
Assim, as crianças são vistas como atores e agentes sociais que significam o
mundo, assim como os adultos, sendo que “a diferença entre as crianças e os adultos
não é quantitativa, mas qualitativa; dessa forma, a criança não sabe menos, sabe outra
coisa”. (COHN, 2005, p. 33). E sendo um fenômeno plural, construído social, cultural e
historicamente as análises devem levar em conta o contexto social em que vivem, pois
elas não são, não agem e nem significam o mundo ao redor igualmente, independente de
onde vivem.
Marina Saraiva (2007) estudou como as crianças de condomínios fechados de
luxo, em Alphaville, São Paulo e Fortaleza, viam e representavam a cidade e como
construíram esse “ponto de vista” que está além dos muros. Percebeu que muitas
crianças conheciam Nova Yorque, por exemplo, e desconheciam a própria cidade em
que moravam, isso porque “tudo se restringe na circunferência batizada por mecanismos
físicos e simbólicos, que delimitam a área destinada exclusivamente para o uso e
ocupação desses indivíduos”. (SARAIVA, 2007, p. 4). As crianças não precisam sair
dos condomínios para nada, pois freqüentam as escolas dos condomínios, há muitos
aparatos de lazer, quadras de esportes, piscinas, cinemas, pequenos shoppings. Diferente
por exemplo, das crianças do Gonzaga13, no bairro não há equipamentos de lazer e
ofertas do tipo das descritas acima, são as crianças que recriam seus próprios espaços,
brinquedos e brincadeiras, freqüentam escolas próximas ou distantes do bairro e que
representam a cidade em que vivem de maneira mais negociada com a esfera pública.
Enfim, as crianças dos condomínios são apartadas, separadas do mundo e
“protegidas” em demasia, diferente das crianças do contexto como o jardim Gonzaga,
que gozam de certa “autonomia” 14. Assim, segundo Cohn (2005), antes de entendermos
o ponto de vista das crianças, como se pudéssemos tomá-lo como unívoco, precisamos
entender o que significa ser criança no contexto a qual ela está inserida, de acordo com
valores e condições sociais.
Maria Rosário de Carvalho e Angela Nunes (2007) também propõem uma
abordagem metodológica na qual tentam aproximar as pesquisas com adultos e as
13
Mais dados sobre essas crianças poderão ser vistos no decorrer desse trabalho.
14
Isso poderá ser visto ao longo do trabalho, utilizei apenas como exemplo para poder contrapor às
crianças de condomínios para demonstrar como o contexto é muito importante ao estudar crianças.
27
1. Características gerais
15
A cidade de São Carlos está localizada no interior de São Paulo, distante 230 quilômetros da capital
paulista. A cidade tem uma população estimada em 218.708 habitantes de acordo com o IBGE 2007.
16
Esses dados priorizam só as faltas não revelando nada sobre ele. Esses índices apenas mostram pobreza
e miséria, porém não é isso que encontramos no bairro, como será demonstrado no decorrer do trabalho.
17
Acompanhei as notícias de dois jornais de São Carlos durante dois anos.
29
na forma de favela, com seus terrenos sendo invadidos e urbanizados dentro da lógica
da autoconstrução destinada aos moradores de baixa renda18.
Toda essa imagem estereotipada em torno do bairro faz com que muitos
moradores ocultem suas procedências na hora de conseguirem emprego, pois grande
parte dos empregadores não acredita que eles possam ser “trabalhadores e honestos19”.
Dessa forma, pode-se perceber que a cidade criminaliza o bairro e sua fala sobre ele, ou
seja, suas visões e representações quase sempre depreciativas pautadas pelo
espalhamento do medo.
Eu e essa amiga morávamos juntas naquela época e havia uma simpática senhora
que trabalhava em nossa casa, a Dona Cida23, que morava no Presidente Collor, um dos
bairros que compõem o Cidade Aracy24, muito próximo ao Gonzaga, que nos auxiliou
como chegar até o bairro.
18
Inúmeras vezes, enquanto esperava o ônibus para ir ao bairro ficava conversando com as pessoas no
ponto e aproveitava para fazer perguntas genéricas sobre o Gonzaga. A maioria respondia falando mal do
bairro e também tinham aqueles que sequer ouviam falar no bairro.
19
Palavras da moradora do Gonzaga, Dona Cássia.
20
Disciplina oferecida pelo Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos em
2004 e que foi ministrada pela professora Dra. Valquíria Padilha. Na época eu cursava o 3º ano de
graduação em Ciências Sociais na mesma Universidade.
21
De acordo com a classificação da Prefeitura da cidade de São Carlos o bairro é denominado como
Jardim Gonzaga, porém, os moradores o chamam de favela do Gonzaga. Como todos os moradores se
referiam ao bairro como favela do Gonzaga, adotei essa denominação.
22
Deveríamos desenvolver o projeto em dupla.
23
Dona Cida sempre me contava as “fofocas” do Gonzaga, assim recebia informações privilegiadas dessa
senhora que tinha muitos conhecidos no bairro.
24
O Cidade Aracy é composto pelos bairros: Cidade Aracy I, Cidade Aracy II, Presidente Collor e
Antenor Garcia. O Cidade Aracy também é um bairro considerado periférico, de acordo com os dados
estatísticos, e é vizinho do Gonzaga. Ávila (2006) estudou como os moradores do Cidade Aracy
representavam a relação entre o bairro e a cidade de São Carlos.
30
O que nos intrigou era que o nosso tema eram as ofertas e os equipamentos de
lazer no bairro, mas não havia ofertas de nosso ponto de vista etnocêntrico, ao menos
aquelas compartilhadas por outros setores da sociedade, tais como cinemas,
lanchonetes, danceterias, nem equipamentos destinados ao lazer no bairro. Os únicos
equipamentos existentes estavam em fase de construção: uma quadra poliesportiva e um
parque infantil, iniciativas da Prefeitura Municipal27.
25
Descobrimos depois, conversando com a Dona Zezinha, que tínhamos ido à casa de Dona Tereza,
responsável pela paróquia do Gonzaga.
26
Todos os nomes utilizados são fictícios.
27
O prefeito Newton Lima, do Partido dos Trabalhadores foi o responsável por esse projeto.
28
O professor Dr. Luiz Henrique de Toledo, professor de Antropologia do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal de São Carlos, que atua em diversas áreas de pesquisa. Entre elas:
Antropologia Urbana, Teoria Antropológica, Antropologia do Esporte e Antropologia da juventude.
29
Essa foi nossa primeira pesquisa no bairro intitulada: “A experiência da infância e da juventude no
Jardim Gonzaga: práticas de lazer e sociabilidade infanto-juvenil num bairro periférico”, financiada
pelo PIBIC/CNPq entre agosto de 2004 e julho de 2005.
31
Assim, tendo visto algumas das suas características na pesquisa inicial, e para
um maior controle metodológico o bairro será tratado como periferia, mas não como
uma realidade em si mesma dotada de significação intrínseca, pois,
30
Nossa segunda pesquisa “Gerações em conflito: análise antropológica da sociabilidade num bairro de
periferia”, contou com o apoio da Fapesp entre abril de 2006 e março de 2008.
32
Já Alba Zaluar (2000) repensa a noção de periferia pela via das instituições
populares (“vicinais”, tal como nomeava nos trabalhos anteriores), como dimensão
política expressiva de organização do modo de vida nas periferias. Como o samba31, por
exemplo, que reunia os moradores de Cidade de Deus32 de diferentes gerações, para a
autora uma atividade de lazer, de modo que os valores e regras locais e da classe se
transmitiam de uma geração para a outra.
31
Um dos temas retratados pela autora em “A Máquina e a Revolta”.
32
Conjunto habitacional localizado no Rio de Janeiro apontado como um dos principais focos do tráfico
de maconha na época em que Alba Zaluar o estudou.
33
Embora minha pesquisa trate de um estudo sobre uma periferia de uma cidade
do interior de São Paulo, acredito que poderá ser comparado aos estudos sobre periferias
de grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro. Apesar de alguns autores
discordarem, como é o caso de Ávila (2006), por exemplo, que acredita que as periferias
interioranas possuem uma lógica própria, dada à história de implantação desses núcleos
habitacionais, seus contingentes populacionais de origem etc., não sendo, portanto,
meras reproduções das periferias metropolitanas, pois nelas não há tanta pobreza e nem
excesso populacional tal como verificado nas periferias de metrópoles. Porém, penso
que podemos encontrar nelas configurações semelhantes no que se refere a
sociabilidade. E, sendo as periferias interioranas reproduções ou não das grandes
periferias, Durham (1986) já havia apontado, o que em parte ainda vale, sobre a
necessidade de ampliar os estudos sobre o fenômeno da periferia em municípios
interioranos, pois há na literatura sócio-antropológica um acúmulo de estudos sobre
periferias de grandes cidades, capitais, e quase nada sobre as periferias de cidades do
interior. A autora fez uma pesquisa em Rio Claro, Marília e São José dos Campos33 e
comparou tais contextos com aqueles encontrados nas grandes cidade.
Voltando ao Gonzaga, para dar maior credibilidade à pesquisa, e para conquistar
a confiança das mães das crianças pesquisadas, isso porque acreditava que elas
ofereceriam maior resistência em permitir que seus filhos pudessem participar de uma
pesquisa, optei, num primeiro momento, por uma aproximação indireta com o bairro, ou
seja, preferi chegar a ele por vias institucionais e por outros agentes, tais como
educadores e políticos. Depois dessa aproximação indireta é que comecei efetivamente
estabelecer um contato mais detido com o bairro e, como escolhi desenvolver esse
trabalho pela via Antropológica, segui uma linha metodológica de pesquisa bastante
consolidada, que é a pesquisa de campo, conforme justifiquei no início desse texto.
Penso que tal descrição preliminar poderá iluminar as escolhas que fiz de antemão e as
dificuldades reais que enfrentei no contexto específico de pesquisa.
33
As três cidades estão localizadas no estado de São Paulo.
34
sobre o Gonzaga. Porém, chegando lá, mal fui recebida pelos funcionários que diziam
não haver nenhuma informação que pudesse me ajudar, mas depois que revelei minha
inserção institucional como aluna da UFSCar34 o tom esquivo e pouco interessado
mudou. Sugeriram que eu fosse à Câmara dos Vereadores.
Assim, fui à Câmara dos Vereadores. Quando cheguei procurei conversar com o
assessor de um vereador35, pois nesse dia nenhum deles se encontrava no recinto. Esse
assessor me recebeu amistosamente, relatando alguns “problemas” enfrentados pelos
moradores do Gonzaga e os elencava de maneira mecânica, a pobreza, a violência, o
tráfico de drogas, o preconceito sofrido pelos moradores, dentre outros. Classificou o
bairro como um “bairro problema” e se ofereceu para me acompanhar na pesquisa, pois
segundo ele, não era aconselhável ir sozinha ao bairro, ainda mais na condição de
mulher de classe média, universitária. De certo modo, o assessor reiterava a visão
negativa que se tem do bairro, embora o conhecesse e retirasse dele as vantagens
políticas. Pois, durante a pesquisa de campo fui saber que esse homem trabalhava para o
vereador mais votado pelo Gonzaga.
Mas para o bom andamento da investigação sobre a sociabilidade infanto-juvenil
no bairro não queria que seus moradores me associassem à figura de um político,
indivíduo por demais visibilizado, por que não hostilizado, e do qual se têm opiniões
(representações) bastante consolidadas, então achei que deveria fazer isso sem o
acompanhamento de “autoridades”.
Esse assessor disse que eu encontraria dados sobre o bairro em um trabalho feito
pelo Orçamento Participativo36 de São Carlos, e que talvez pudesse ser útil para a minha
pesquisa. Mas, para minha surpresa, quando fui ao Orçamento Participativo fui
informada que não tinham nada sobre o Gonzaga, e que a Secretaria de Cidadania é que
havia feito um projeto para melhorar as condições de moradia desse bairro. O projeto
era intitulado Programa Habitar Brasil-BID, desenvolvido por iniciativa da Prefeitura
Municipal em 2002 e que ainda estava em fase de implantação37.
34
Aluna do Departamento de Ciências Sociais e na época me encontrava no terceiro ano da graduação.
35
Preferi não mencionar seus nomes para evitar qualquer desavença.
36
Esse órgão foi implantado na cidade de São Carlos em 2000, pelo prefeito Newton Lima do Partido dos
Trabalhadores (PT). De acordo com os informativos da prefeitura que foram distribuídos para a
população, com o Orçamento Participativo (OP) a população poderia participar das decisões sobre o
orçamento público da cidade e garantia de maior acesso à equipamentos e serviços urbanos. Como não
pesquisei a fundo sobre esse tema, coloquei as características de sua concepção original.
37
Os objetivos desse projeto serão detalhados no próximo tópico: “Jardim Gonzaga: um breve panorama
histórico”.
35
38
Todos os dados mencionados foram retirados do Programa de urbanização integrado volume 3:
trabalho e participação comunitária, maio de 2002. Nesse projeto faltavam informações óbvias, como o
número de habitantes do Gonzaga, aliás, nem no IBGE pude encontrá-lo.
36
2.1 O universo do bairro visto pelo “de fora” e pelo “de dentro” 41
39
Sabemos que isso é praticamente impossível devido a quantidade de pessoas que precisariam sair de
suas casas.
40
Os moradores, tal como constatei, saíram de suas casas e se comprometeram a morar nos prédios
construídos para abrigar essas famílias removidas. Porém, sublocaram seus apartamentos e voltaram a
morar próximo de onde suas casas foram removidas, pois nos prédios não havia espaço para o número de
moradores da casa e nem dava para ter criação (porco, galinha) e ficavam longe dos amigos.
41
“De fora” refiro-me às pessoas que não moram no bairro ou àquelas que moram no bairro, mas que não
se sentem parte dele. “De dentro” refiro-me aqueles que moram no bairro.
37
Assim que cheguei, me alertou que poderia falar comigo apenas por alguns
minutos, mas já começava a me acostumar com essas esquivas que a pesquisa nos
proporciona. Lourdes disse que havia uma evasão escolar muito grande, pois as crianças
precisavam trabalhar para ajudar os pais, mas também que havia pouco interesse para os
estudos e os pais não incentivavam os filhos, tornando a situação ainda mais
complicada. Em sua opinião, os alunos iam à escola para “passear”, e que o espaço da
escola servia como um tipo de lazer, para fazer amigos e namorados. Além disso,
segundo essa educadora, os pais e as crianças viam a escola como obrigação, pois caso
as crianças não freqüentassem a escola, os pais não recebiam o Bolsa Família42, um
programa de transferência direta de renda com condicionalidades, que beneficiava
famílias em situação de pobreza para ampliar aos cidadãos aos seus direitos sociais
básicos, em especial os relativos a saúde e a educação. Para receber esse auxílio, uma
das condições era que a criança freqüentasse a escola, caso contrário os pais não
recebiam o dinheiro. Segundo Dona Lourdes, muitos pais deixavam seus empregos
quando passavam a receber o Bolsa Família, pois como tinham vários filhos e recebiam
dinheiro com esse programa preferiam ficar em casa sem trabalhar, pois o dinheiro
ganho através do Bolsa Família era suficiente para o sustento da casa. Essa era mais
uma visão preconceituosa e de senso comum da educadora, pois em toda pesquisa não
encontrei no bairro famílias que haviam abandonado seus trabalhos ou empregos para
viverem do Bolsa Família, esse programa era uma renda a mais para as famílias.
Dona Lourdes enfatizou que ocorriam muitas brigas e que os alunos eram muito
agressivos ao mesmo tempo em que eram muito carentes. Outro dado muito relevante,
dito pela diretora, e que aponta para as representações que os próprios moradores fazem
do bairro, foi a de que eu não deveria denominar o bairro como Jardim Gonzaga, como
eu fazia até o momento, mas “favela do Gonzaga43”, pois na visão dos alunos, isso
confere certo status, remetendo a identidade/orgulho. Os jovens da favela se utilizam
dessa classificação para levantarem a bandeira do bairro, para que através das músicas
que criam para o grupo de rap “Sem medo do Medo”, existente na favela, possam
mostrar para outras pessoas o que eles pensam e como vivem. Assim, essa idéia de
identidade e orgulho é todo o arcabouço simbólico que hoje mobiliza os jovens via hip
hop e outras manifestações que repensam a noção de periferia. Para exemplificar:
42
Criado pelo Governo Lula.
43
Como já mencionei utilizando Guasco (2000) no início desse capítulo.
38
“Cada vez mais, a periferia toma conta de tudo. Não é mais o centro
que inclui a periferia. A periferia agora inclui o centro. E o centro, excluído
da festa, se transforma em periferia da periferia... O Central da Periferia44
não quer falar por esses ídolos e projetos periféricos, mas sim amplificar as
múltiplas vozes da periferia, para que elas conversem finalmente com o
Brasil inteiro. Você não precisa gostar de nada do que o Central da Periferia
vai mostrar. Você só não pode ignorar que isso tudo está acontecendo, e que
essa é a realidade cultural da maioria, em todo o Brasil”. (Hermano Vianna,
jornal Lance! 08/04/2006) 45
Para finalizar meus contatos indiretos com o bairro, tinha que me aproximar
daquele que, no momento, julgava muito importante, a Pastoral da Criança, pois através
dela a relação poderia tornar-se direta e meu primeiro passo nessa direção foi ir à casa
de Tereza, a responsável pela igreja do bairro, com quem havia conversado em minha
primeira visita. Ela poderia apresentar-me a chefe da pastoral, Dona Cássia.
Quando fui à casa de Tereza, ela pediu que sua afilhada me acompanhasse à casa
de Cássia. Porém, esta não estava, mas sua filha deu o número do telefone da casa para
que eu pudesse entrar em contato.
Então, chegou o dia de encontrar-me com a chefe da Pastoral do bairro, Dona
Cássia, que me contou toda a história da Pastoral da Criança, quando surgiu e como
funcionava. O intuito maior dessa Pastoral era alimentar crianças desnutridas ou abaixo
do peso de zero a seis anos e, depois que elas conquistavam o peso ideal, ela e suas
ajudantes, faziam um controle mensal do peso das crianças.
Além disso, a Pastoral oferecia cursos para gestantes, explicando tudo aquilo que
se devia fazer e como cuidar de um bebê. Mas Dona Cássia disse que apesar da
quantidade de adolescentes grávidas no bairro, eram poucas as que queriam alguma
informação e, que nenhuma menina se cuidava, e mais: “alguém precisava combater as
adolescentes, elas engravidam muito” (palavras de D. Cássia).
44
Programa apresentado por Regina Casé transmitido pela Rede Globo de Televisão. Esse programa era
transmitido uma vez por mês aos sábados à tarde no ano de 2006.
45
Hermano Viana escreveu esse texto que saiu na contra capa de diversos jornais, falando sobre o
Programa Central do Brasil, apresentado por Regina Case na Rede Globo de Televisão. Em cada
programa uma periferia do Brasil era retratada, evidenciando os aspectos positivos de cada uma dessas
periferias não a pobreza.
39
Relatou também que já tinha visto muita coisa durante todos os anos em que
estava na Pastoral, que tinha muitas “mães porcas” e “sujas” que não cuidavam da
higiene dos filhos. “Não é porque é pobre que tem que ser sujo, né?” (palavras da
mesma informante).
Em sua opinião, a maioria dos pais não se importava com a educação dos filhos,
e que além de bagunceiras, as crianças eram muito carentes, o que tornava mais fácil
minha primeira aproximação com elas e, que as mães em nenhum momento iriam se
opor, pois as crianças só ficavam na rua, o que segundo Cássia era a pior coisa que
existia. Cássia mora no bairro há mais de vinte anos, porém, como sua casa fica
localizada há uma quadra do “descidão”, em uma das ruas asfaltada há bastante tempo,
ela se considera “diferente” das outras pessoas que moram no bairro. “Tem de tudo lá
em baixo, ladrão, bandido, assassino, traficante, também tem trabalhador, mas eu não
me misturo”. (palavras de D. Cássia).
Embora pertencendo territorialmente ao bairro e atuando sobre ele, em sua visão,
ela está fora do bairro. Estabelecendo assim, uma distância simbólica em relação ao
bairro, porque mesmo morando no Jardim Gonzaga não se sente parte dele. Em todas
as nossas conversas, ela enfatizou os aspectos negativos do bairro, como a violência, o
perigo, o tráfico de drogas, a presença de criminosos. Dizia que “lá embaixo” as pessoas
só ficavam nas ruas, fazendo fofocas, mas que ela não, que só ficava em sua casa
cuidando de sua família. Ela se considera superior aos outros moradores e não tem outro
contato com eles a não ser pela Pastoral, porque através desse projeto de alguma forma
contribui para melhorias no bairro.
Diferente do que propôs Magnani (2003), aqui não encontramos o pertencimento
ao “pedaço” por parte dessa moradora, já que “a noção de pedaço (...) supõe uma
referência espacial, a presença regular de seus membros e um código de reconhecimento
e comunicação entre eles”. (MAGNANI, 2002, p. 20). Diverso do comportamento de
Dona Cássia, pois para ela não há “um manejo de um código comum, laços de
vizinhança, preferências esportivas e de lazer”, evidenciando assim um não
pertencimento, compartilhamento de valores e nem vínculos de sociabilidade. Ela
estabeleceu assim, uma distância moral em relação a favela do Gonzaga, pois mesmo
morando no bairro há trinta anos ela não traz em si mesma sinais de pertencimento,
conforme nos remete a noção de pedaço. Dona Cássia apenas atua sobre a favela, mas
não desenvolve outras relações além dessa.
40
Dessa forma, depois de ter tido contato com as instituições referidas e com uma
moradora do bairro que ocupava certa posição institucional, poderia iniciar de fato
minhas pesquisas de campo. Pois havia obtido algumas informações que poderiam me
orientar no início da pesquisa e muitas ressalvas sobre o bairro, como as visões
estigmatizadas e o distanciamento por parte dos representantes institucionais, que
sempre enfatizavam os aspectos negativos do bairro, como a violência, o perigo, o
tráfico de drogas e a presença de bandidos.
41
1. Um bairro periférico
46
Isso será mais bem explicado ao longo do trabalho.
47
A manhã seguinte era dois de fevereiro de 2005.
48
Cabe aqui uma ressalva. Eu ia de ônibus ao bairro e todas às vezes que ia “descer” no bairro, os
motoristas indagavam se eu ia mesmo “descer” naquele bairro. E o mesmo acontecia com os cobradores
do ônibus, pois me perguntavam o motivo de ir tantas vezes ao bairro. Logo, tanto motoristas como
cobradores, nutriam certo receio pelo bairro. Com o passar dos anos a situação havia mudado, pois eu
passei a conhecer todos os motoristas e cobradores daquela linha de ônibus que conversavam bastante
comigo até me deixarem no bairro, porém sempre me questionavam se esse trabalho valia a pena, pois
aquele bairro já estava perdido.
42
em apenas três incursões no bairro, havia muitas crianças brincando nas ruas do
Gonzaga.
Fomos conversando durante todo o trajeto do ônibus e quando eu desci, ela disse
que estaria me esperando na manhã seguinte para tomarmos um café e para que eu
pudesse conhecer seu marido e suas filhas.
Assim, fui à casa de Madalena como havia combinado. Fui bem recebida por
todos, que disseram estar à minha espera. A conversa foi se desenrolando de uma
maneira muito boa e bem informal e os temas eram as dificuldades, problemas e
alegrias na vida. Madalena fazia sabão em pedra para vender e também trabalhava como
empregada doméstica e seu marido era aposentado por invalidez, pois foi atropelado no
próprio bairro, o que o deixou sem condições para trabalhar porque não conseguia
caminhar sozinho. Porém, ele fazia cela para cavalos como terapia indicada pelo médico
e para ajudar no orçamento familiar. Na casa também morava um cunhado de Madalena
que trabalhava como servente de pedreiro para ajudar com as despesas da casa.
Outro fato interessante é que eles fizeram questão de ressaltar que não
mantinham vínculos com o bairro, pois só eram amigos de uma família, apesar de
morarem no local há bastante tempo, e também enfatizaram que não permitiam que suas
filhas brincassem na rua ou freqüentassem a casa de alguém, pois as crianças dali não
tinham educação nem formação familiar e eram “mau exemplo” para suas filhas.
Portanto, assim como Dona Cássia49, essa família não tinha relações de amizade nem de
vizinhança com o bairro. Este não era para eles um local de sociabilidade, um local a
que se sentiam pertencidos, pois não tinham laços com o bairro. “Morar aqui não é
nada bom, mas todo mundo respeita minha família, eles sabem que é honesta”
(palavras de Madalena). Eles justificaram que morar no Gonzaga não havia sido da
escolha deles, mas que era a única opção, devido os aluguéis baratos e facilidade de
compra da casa. A intenção do casal era morar no bairro alguns anos para “juntar”
dinheiro e comparar uma casa melhor em outro bairro da cidade, mas devido o acidente
do marido, o rendimento da família diminuiu ficando impossível se mudar do bairro,
pois era Dona Madalena que sustentava a casa.
Esse fato me aproxima das abordagens etnográficas de Cláudia Fonseca (2000)
em Porto Alegre nos anos 80 e 90 sobre dois bairros de Vila do Cachorro Sentado e Vila
São João. O primeiro bairro, segundo a autora, é muito pobre e em sua etnografia retrata
49
Conforme salientei no capítulo anterior.
43
consensual o fato de todos, tanto ricos como pobres, quererem “subir na vida”, isto é,
ascender na escala social.
Durante todo o relato sobre essa vila, enfatizou as disputas entre os moradores
do bairro, pois estes querem diferenciações; os ricos não querem ser confundidos com
os pobres e os pobres sempre se recusando a ter contato com os ricos. É uma disputa
pelo bairro e pelo prestígio, pois é necessário diferenciar-se “do outro”. Da mesma
forma em que em minha pesquisa Madalena relatou ao dizer que não se sentia parte do
bairro e que sua família era diferente das outras. “Não consigo me adaptar aqui. É uma
justaposição, uma malocagem. Não saio nunca. Para fazer rancho, espero meu marido,
que me leva de carro. Não me dou com os vizinhos. Nenhum deles”. (FONSECA, 2000,
p.98).
Assim, para Madalena, a maioria dos que vivia no bairro não prestava e era
“sem-vergonha”, mas ela não tinha medo de ninguém: “O que mais tem aqui é safado,
ladrão e gente que não presta, é um horror”. Novamente aparece aqui a questão do
distanciamento simbólico, pois apesar de morar no bairro ela não se sentia parte dele,
retomando novamente a mesma concepção que a chefe da Pastoral tem do Gonzaga.
No meio da conversa sua filha Danila, de dez anos, começou a falar sobre o que
mais gostava de fazer, que era assistir televisão, já que não era permitido a ela ficar na
rua. A menina listou em um pedaço de papel tudo que gostava e não gostava de fazer.
Suas preferências eram jogar futebol, assistir televisão, como foi dito anteriormente,
jogar vôlei, brincar de boneca, de casinha, ouvir música, porém não gostava de estudar
ou arrumar a casa, mas tinha que ajudar com essa tarefa, pois sua mãe trabalhava fora, e
a casa ficava sob sua responsabilidade. Assim, cabia a ela não apenas estudar ou
brincar, mas também auxiliar nas tarefas domésticas. Durante minha pesquisa fiz visitas
constantes a essa família para conversar com as meninas já que nunca as encontrava na
rua. Essa família não compartilhava os valores e nem tinha laços de vizinhança com o
bairro e pareciam compartilhar de certa forma com as visões preconceituosas do bairro,
perpetuando o estigma, apesar de morarem no Gonzaga.
Por outro lado, na casa de Dona Francisca moravam quinze pessoas, sendo que
nenhuma delas trabalhava. Só fui perceber este fato no meio da minha pesquisa, pois
45
estava tão concentrada nas crianças que não havia parado para pensar a respeito.
Mulher, marido, filhos, enteados, noras, cunhados, primos, amigos, enfim, todos no
mesmo espaço. Uma casa em que nunca me convidaram para entrar, o que me deixava
bastante intrigada, porém mais tarde fui saber que essa casa era uma das “bocas de
fumo” mais famosas no bairro.
A parte que eu podia conhecer era a área da frente, lugar em que foi feita grande
parte da minha pesquisa, pois foi aqui que tive meus primeiros contatos com as crianças
e com outros moradores do bairro. Quando eu cheguei, no dia combinado com Dona
Francisca, as crianças já estavam avisadas de que eu iria e chamaram outras para que
também pudessem “brincar”. Fui recebida com muito entusiasmo e não sabiam o que
fazer para despertar a minha atenção.
Para poder me aproximar das crianças resolvi levar papéis e lápis, pois desta
forma eu poderia conquistar alguma confiança e observar o que desenhavam e também
estabelecer um contato mais espontâneo. “Tendo o desenho em mãos, o pesquisador
pode pedir às crianças que os comentem, ou mesmo que elaborem histórias a seu
respeito”. (CONH, 2005, p. 46). O que deu muito certo, pois conforme desenhavam,
elas iam conversando comigo, embora algumas ainda hesitassem.
Um fato relevante foi observar que desenhavam seu universo mais imediato que
estava a sua volta. O primeiro desenho que Heitor fez foi um homem assaltando um
banco para comprar maconha, o que me deixou, de início, um pouco apreensiva. As
crianças costumavam fazer também muitos desenhos de tatuagens, o que me colocou
numa situação desconfortável durante toda a pesquisa de campo. Isso porque numa
ocasião eu estava sentada e o filho mais velho de Dona Francisca, observou que eu tinha
uma tatuagem e começou a me dizer que a maioria das pessoas achava que ter tatuagem
era coisa do demônio, ou mesmo ter o próprio demônio no corpo e que outras pessoas
acreditavam ser coisa de presidiário ou de mulher que não prestava. Isso fez com que
todos os dias que eu ia ao bairro, as crianças pedissem para ver minha tatuagem e,
quando passeávamos pelas ruas, as meninas diziam para eu mostrá-la para os homens
que ali ficavam.
Logo fui identificada pelo termo classificatório “tia” e a todo o momento as
crianças queriam me beijar, abraçar, pentear meus cabelos. Assim, logo fui aceita e
acabei me tornando uma amiga para as crianças, que sempre me queriam por perto. Esse
termo nativo “tia”, ora revelava a consideração por alguém que se está próximo e com
quem sustentavam um apego, pois, “tio” e “tia” são comumente utilizados no
46
tratamento com adultos e servem não apenas para diminuir a distância imposta pela
idade ou função dessas pessoas, como ademais para estabelecer, com elas, algum tipo de
relação preferencial” (MAGNANI, 2003, p. 116), ora significava afastamento, pois
certa vez as crianças estavam brincando com cal e começaram a passar no rosto. Depois
de pintadas disseram que estavam parecidas comigo e ficaram andando pintadas de
branco pelo bairro e, evidentemente, os moradores observaram e riram da situação.
Isso tudo transpareceu certa rejeição a minha pessoa, pois exibiam em seus
corpos e gestos que acompanhavam a “máscara”, os sinais da diferença e, portanto,
rejeitavam aquilo que eu representava: “Cor surge, assim, a um só tempo, como regra de
integração, mas também como forma de distinção”. (SCHAWAREZ, 2007, p. 21).
Diversas vezes em situações corriqueiras de conflito e no meio das discussões
diárias que travavam comigo, porque achavam que eu “protegia” ou “dava mais
atenção” a uma ou outra criança, me acusavam de “branquela”, falavam que tinham
“nojo” de mim e que não era mais para eu aparecer no bairro, mas logo em seguida se
desculpavam e me tratavam com carinho.
No início da pesquisa muitas crianças se reuniam comigo e com o passar do
tempo totalizaram umas vinte, o que tornou o trabalho de campo mais ampliado e
sistemático, pois assim pude ter um contato ainda mais direto e permanente com as
mesmas pessoas. O regime de confiabilidade possibilitou um destravamento maior nas
relações e possibilitou maior abertura aos temas considerados pessoais. Muitas das
meninas conversavam comigo a respeito de sexo. Elas me contavam sobre suas
experiências, que se iniciavam em torno dos dez anos, e diversas vezes me pediam
conselhos sexuais, também me contavam sobre o uso de drogas, quando haviam fumado
maconha pela primeira vez, quem a oferecia, sobre as dificuldades familiares, entre
outras coisas.
Esse grupo50 era formado por meninos e, na maioria, meninas que brincavam
juntos, dadas às proximidades da vizinhança. Termo este, que segundo autores como
Park (1987), constitui uma unidade social que gera padrões e condutas e que desperta
um sentimento de pertencimento ao lugar. Portanto era dentro deste grupo que se dava
a sociabilidade dessas crianças51, até porque grande parte delas freqüentava a mesma
escola, sendo que algumas estavam na mesma classe. A faixa etária variava de cinco a
50
Utilizo a palavra grupo apenas para me referir as crianças com quem eu tinha mais contato em minha
pesquisa de campo.
51
Já mencionei que utilizo os conceitos de Simmel (1983) ao falar de sociabilidade.
47
doze anos, mas todas brincavam juntas, estabelecendo certas hierarquias dentro do
grupo. As mais velhas escolhiam a brincadeira e as outras tinham que aceitar e
participar, caso quisessem permanecer no grupo, senão ficavam de fora, apenas
olhando. Na minha presença, toda vez que decidiam alguma brincadeira eu tinha que
participar. Dentro desse universo infantil, formado por relações de vizinhança, as
brincadeiras mais comuns eram polícia e ladrão, corre lenço, pega-pega, boca de forno,
bolinha de gude, empinar pipa, casinha, boneca, brincadeira do silêncio, entre outras.
Em todas as brincadeiras aconteciam muitas brigas. Certa vez as crianças
decidiram fazer um concurso de desenhos e queriam que eu fosse jurada, mas não
aceitei, pois achei melhor que outra pessoa o fizesse, acreditando evitar possíveis
confrontos. Pedi para que Daniela, uma menina de doze anos, participasse em meu
lugar. Todas desenhavam entusiasmadas e queriam saber logo do resultado. O desenho
escolhido foi de Priscila, nove anos, que levantou e começou a comemorar. Diante
disso, André, sete anos, foi ao encontro dela e lhe deu um soco na boca e disse que sua
mãe era uma “vagabunda”, pois “dava” para todo mundo e que tinha catorze filhos de
pais diferentes. A boca da menina começou a sangrar e ela chorava muito, mas apenas
pediu água para limpar o machucado e em seguida voltou a comemorar sua vitória e
disse: “pode mexer comigo, mas não mete minha mãe no meio”.
Diferente do esperado por mim, ela não saiu pedindo socorro para sua mãe ou
para seu pai, nem sequer mencionou seus nomes. Este fato me levou a suspeitar da
hipótese de que muitos dos conflitos que acontecem na rua as crianças resolvem ali
mesmo, sem nenhuma interferência mais direta dos adultos, o que revela uma
autonomia que, no plano etnográfico confirma as hipóteses trabalhadas pelos autores
que tratam do universo infantil, ou seja, de que ali se constroem sistemas de ordenação
do mundo que não simplesmente mimetizam ou estão à mercê do universo adulto. Isso
confirma também que as crianças são diferentes de acordo com seu contexto social,
talvez uma criança moradora de condomínios (Saraiva, 2007), pedisse a intervenção de
um adulto, já que têm cuidados em demasia e são bastante dependentes de seus pais.
Quando perguntei a ela sobre o fato dela não ter ido pedir ajuda de seus pais, ela
responde: “acha tia, se chamasse eles, eu ia apanhar mais ainda”.
Num outro dia o mesmo fato se repetiu. Dois meninos começaram a brigar por
causa de uma bicicleta, pois um havia ficado mais tempo andando com a mesma. Um
dos meninos tirou um canivete do bolso e ameaçou furar o pescoço do amigo. Começou
aquela gritaria, uns dizendo para parar e outros torcendo pelo pior. Tudo terminou bem,
48
pois uma menina de oito anos conseguiu pegar o canivete. Mais uma vez, ninguém
ameaçou chamar os pais. Eu fiquei muito apreensiva com a situação, não sabia o que
fazer porque era a primeira vez que presenciava esse tipo de entrevero mais sério, mas
fui me adaptando e percebendo que as crianças do Gonzaga gozavam de certa
“liberdade” e se responsabilizavam por tudo o que aconteciam a elas quando estavam na
rua.
Com elas utilizei-me do recurso lúdico dos desenhos para ampliar o espaço
representacional de observação, pois “tendo os desenhos em mãos, o pesquisador pode
pedir às crianças que os comentem, ou mesmo que elaborem histórias a seu respeito”.
(COHN, 2005, p. 46). Proporcionando assim um maior rendimento dos dados, pois
várias vezes enquanto as crianças desenhavam, me contavam sobre suas famílias e sobre
os conflitos familiares. Algumas elogiavam a maneira com que seus pais as tratavam,
mas a maioria reclamava de alguma coisa. As reclamações e demandas eram as
mesmas: não queriam ajudar nas tarefas domésticas nem apanhar por qualquer motivo.
“Eu num gosto da minha mãe. Ela gosta de roubar. Quando ela sai da cadeia
não fica um dia fora porque já sai roubando. No meu aniversário ela sempre manda
uma cartinha lá da cadeia pra mim, mas eu não gosto dela. Uma vez tia, quando eu era
pequenininha ela tentou me matar enfiando um saquinho plástico na minha cabeça,
mas minha tia não deixou. Ela queria que eu morresse. Hoje quem cuida de mim são
meus padrinhos, mas estou sempre com meu pai que você conhece. Mas ele está sempre
bêbado e eu não suporto isso”. (Francini, nove anos).
Outro depoimento é de Bernardo, nove anos, que tem quatro irmãos. Ele dizia
que sua mãe era muito nervosa e que ele e seus irmãos apanhavam todos os dias,
principalmente seu irmão menor que tinha dois anos. “Minha mãe espanca ele tia, ela
fala que ele tem o demônio no corpo, ele vai apanhando da sala até o quarto”. Luiz
Fernando Duarte (1986) fez um trabalho muito interessante sobre os processos de
subjetivação focando as classes trabalhadoras a partir da linguagem do nervoso. Para ele
as representações em torno dos nervos tecem a ligação entre o corpo físico e o moral,
definindo a pessoa nervosa e, além disso, mostrou que o sistema nervoso era um bom
lugar para fazer uma analogia com as classes sociais, pois cada classe estabelece um
tipo de relação com o corpo. Como foi o caso desse menino que justifica o
comportamento da mãe por ser muito nervosa, atributos morais viabilizados por um
determinado comportamento físico.
49
As crianças relatam sobre suas vidas não poupando os detalhes e trazem com
clareza a rede de relações que estão inseridas. Laura, seis anos, conta que seu irmão
estava internado numa “clínica de drogados”, mas que ele era um menino muito bom,
mas que a favela e suas companhias tinham deixado ele viciado. “Qualquer que seja a
classe social, as pessoas parecem compartilhar da idéia de que más influências se
propagam facilmente”. (CALDEIRA, 2000, p.95). Conforme salientou a menina. “Ele
fumava maconha e cheirava pó, ele fedia pó ficava louco todo dia”. Ficamos
conversando por um longo tempo e as crianças sabiam de tudo aquilo que se passava no
bairro e a maioria dos fatos de que tomava ciência vinham de seus relatos, ativas
observadoras e partícipes das redes de relações sociais que configuram a vida do
Gonzaga.
Conversamos sobre quem estava preso, quem estava foragido, quem era
traficante e sempre se reportando aos “outros” como traficantes ou ladrões, poupavam
os próprios pais, num duelo verbal contrastivo que muitas vezes acaba expondo os pais
a partir dos conflitos deflagrados, tal como vimos mais acima. Essa cumplicidade dos
filhos com os pais foi trabalhada por Fernanda Bittencourt Ribeiro (2007) ao analisar
como as crianças residentes, sob determinação judicial, numa instituição de proteção à
criança, localizada na ilha d’ Yeu, na França, se posicionam na situação em que seus
pais estão sob suspeita em relação à capacidade de educá-los. As crianças do Centro
Autogestado de Vela e Animação Local (CAVAL) 52 freqüentam as mesmas escolas que
outras crianças residentes da ilha e são estigmatizadas por morarem na instituição e por
terem os pais como suspeitos. Por isso são vítimas de muitos falatórios e brincadeiras na
escola, em que outras crianças falam mal de suas mães. As crianças do CAVAL, por sua
vez, saem em defesa das mães, mesmo conhecendo a situação. No Gonzaga as crianças
também aparecem como cúmplices de seus pais, pois acusam o pai dos outros e
protegem os seus, tanto é que nenhuma criança me falou que seus pais eram traficantes.
Voltando ao Gonzaga, depois de conversar, as meninas foram me ajudar a
guardar os materiais escolares que eu levava no bairro para as crianças desenharem.
Percebemos muitos materiais tinham “desaparecido”. Fiquei muito chateada porque
nunca esperava que as crianças fizessem isso, não pensei que fossem capazes de me
roubar e as crianças me advertiram: “É tia, aqui na favela é assim, tem que ter cuidado
senão os meninos levam tudo”. Nesse momento percebi que as crianças interiorizam os
52
Instituição de proteção a criança.
50
53
Grifo meu.
51
Desse modo, constata-se que o trabalho infantil nesse contexto não esse traduz
simplesmente numa forma de exploração, como diversas vezes pode ser visto, mas
como forma de aprendizagem, de sociabilidade e de ludicidade, mostrando outros
aspectos em torno do trabalho. Mais uma é salientada a idéia de que devemos estudar
crianças de acordo com seu contexto e suas particularidades54.
54
Participei da VII Ram (Reunião de Antropologia do Mercosul) em 2007 apresentando trabalho no
Grupo de Trabalho 33: Memória, Família e Relações Geracionais, coordenado por Ricardo Iacub e Maria
Cristina Caminha de Castilhos França. Nesse Grupo pude perceber que o que está em voga hoje em dia
52
nos estudos sobre família são os valores modernos e tradicionais presentes nela e os estudos sobre os
idosos nas famílias vêm ganhando destaque. Outro fator importante que foi analisado foi sobre a
dificuldade de fazer uma etnografia nas famílias, por ser uma esfera de intimidade. Além disso, o tema da
memória da família também está ganhando espaço. Sobre as relações geracionais não houve muita
discussão, pois fui a única a levar esse tema para debate. Outra questão discutida foi gênero, apenas
mulheres apresentaram trabalhos sobre família
53
grupo social que possui ao menos três características: tem a origem no casamento
(qualquer tipo que seja ele, uniões legais ou consensuais), composto por marido, esposa
e filhos, além de outros parentes e os membros da família estão unidos por obrigações
legais, direitos e obrigações econômicas, religiosas etc., uma rede de direitos e
proibições sexuais, além de sentimentos tais como amor, afeto, temor.
No Gonzaga a maioria das uniões é consensual, e encontramos poucos casais
unidos legalmente. Mas casar e ter filhos, enfim, constituir família, faz parte dos
projetos de futuro das crianças e dos jovens do bairro55. Um casamento sem filhos ainda
é visto como uma união incompleta. “Possuir uma família completa é um valor no
sentido de que revela uma forma de sucesso e de superioridade”. (DA MATTA, 1987).
Para mostrar a importância de ter filhos na união, exemplificarei com um dos mal
entendidos que passei.
Certo dia, eu e as crianças estávamos sentados em uma pracinha em frente ao bar
da Zezinha56, quando um homem me abordou perguntando se eu era uma jornalista, o
nome dele era Rafael. Expliquei-lhe um pouco sobre minha pesquisa e ele se mostrou
muito interessado e se ofereceu para uma entrevista57, pois queria me contar um pouco
sobre sua vida. Fiquei muito empolgada, pois durante toda a pesquisa de campo, nunca
ninguém tinha se oferecido para tal coisa.
Assim, marcamos a entrevista. Entretanto, Paula, treze anos, disse que me
acompanharia no dia marcado porque a mulher dele não iria gostar de me ver na casa
dela, e me alertou que deveria ter cuidado e que nas palavras de Paula, “aquela lá é uma
nega barraqueira”.
Voltei ao bairro como o combinado e na hora marcada. Passei na casa da Paula
que me acompanhou até a de Rafael. Chamamos por ele durante algum tempo. Quando
nos atendeu disse que estava muito ocupado naquele momento e não poderia nos
receber, mas pediu para que voltássemos uma outra hora quando sua mulher estivesse
em casa, pois Rafael me disse que estava organizando suas “encomendas58”.
Diante da frustração da entrevista não realizada fui para o ponto de ônibus para
voltar para casa. Enquanto esperava, a mulher do Rafael foi conversar comigo. Quando
55
A minha situação era inconcebível para eles, pois tinha vinte e três anos, solteira e sem filhos. Eu era
uma forte candidata a ficar para “titia”, solteirona.
56
Principal bar do bairro, onde nos finais de semana há apresentação de grupos de pagode e de rap.
57
Isso porque fazer entrevistas fazia parte do meu método de pesquisa até então.
58
Rafael estava repartindo, embrulhando alguma droga para ser distribuída para os compradores ou para
outro traficante. Os moradores do bairro utilizavam a expressão “encomenda” para se referir a essa
atividade de separação e organização de drogas, pois segundo eles essa expressão não chamava a atenção
daqueles que não sabiam sobre suas atividades.
54
fomos conversar com ele, a esposa não estava na casa, mas certamente alguém da
vizinhança acusou a minha presença. Alessandra, esposa de Rafael, já chegou me
ofendendo e gritando para que eu não fosse procurá-lo e ameaçou me bater caso isso
acontecesse novamente. “Ele já tem dona e eu não quero uma baranga59 atrás do meu
macho”. (palavras de Alessandra).
Todos que estavam naquela rua ficaram olhando para nós e comentando em voz
baixa, a rua ficou em silêncio e só se ouvia os gritos de Alessandra. Fui tomada por um
enorme desespero nessa hora, queria chorar e me explicar, dizer os motivos pelos quais
eu havia ido até a casa dele, mas ela não permitia. Entendi o recado e não voltei a
procurá-lo, mas percebi que ainda não sabia muitas coisas sobre aquele universo tão
complexo e significativo das relações entre os adultos e que “meu lugar” era mesmo
com as crianças.
Fiquei com essa situação em minha cabeça, procurava respostas ou
entendimento sobre o ocorrido e isso me remeteu ao trabalho de Fonseca (2000):
“Ademais, a mulher sem marido perturba a paz da comunidade; ela desafia a virilidade
dos homens e atiça o ciúme das mulheres”. (FONSECA, 2000, p. 32). Porém, eu
precisava descobrir se essa era também uma questão relevante no bairro e se essa
suposta “ameaça” das mulheres solteiras era apenas daquelas provenientes “de fora” do
bairro, no caso eu, ou se valia para as solteiras moradoras do Gonzaga. Mais tarde fui
saber, pelas crianças, que não era por ciúme que a mulher havia agido daquela maneira,
mas porque eles ainda não tinham filhos o que não dava tanta estabilidade a relação,
fazendo com que Alessandra agisse assim com qualquer mulher que se aproximasse de
seu marido, pois a dificuldade de engravidar era uma ameaça para o casamento, que se
intensificava com a aproximação de qualquer mulher. Assim, ter filhos é um
diferenciador em relação aos outros casais sem filhos. As crianças, ao que parece,
fornecem uma barreira segura entre eles (casais) havendo mais respeitabilidade no caso
de uma família em relação aos casais sem filhos, pois estes casais ainda são projetos de
família60.
De acordo com seus valores predominantes no Gonzaga, o caminho para alguém
ser realizado era o casamento, que estava muito além da ordem material. Isso porque,
através do casamento a mulher tem a possibilidade de sair da casa dos pais e obter certo
59
Baranga: mulher feia.
60
Dessa forma, só depois de entender a dinâmica familiar é que percebi a reação de Alessandra, aquela
mulher que pensou que eu estivesse “dando em cima” do marido dela.
55
status dentro do bairro, porque deixa de ser solteira e passa a ter sua própria família.
Dessa forma, não encontrei no bairro a idéia de que a necessidade econômica tem lugar
primordial na realização do “casamento”, como constatou Lévi-Strauss (1980), pois
quando casavam, continuavam morando no bairro e o que modificava era apenas o
status social, pois deixavam de ser solteiros.
Enfim, crianças e jovens planejam casar e engravidar cedo, diziam que
desejavam engravidar aos dezessete ou dezoito anos, porque essa é uma “boa idade” e
que depois disso fica difícil arrumar um marido. Como salientou Gilberto Velho (1987),
a idéia de casamento e de construir sua própria família, pode ser classificado como um
projeto de vida, projeto este, construído de acordo com o contexto social dos indivíduos.
Convém ressaltar que, pelo que pude perceber, algumas famílias são matrifocais,
portanto, centradas na figura das mulheres, pois são as provedoras da casa, ou seja, “...
na estrutura familiar matrifocal, a propriedade é dada ao laço entre mãe e criança, irmão
e irmã, ao passo que o laço conjugal é considerado menos solitário e menos intenso
afetivamente”. (SMITH apud FONSECA, 2000, p.64). Matrifocalidade é denominada
por alguns autores como uma mulher com uma prole, em geral de mais de um pai.
Segundo Delma Neves (1983) essas mulheres não desistem de recompor a familia
nuclear. Como também pode ser visto no Gonzaga, pois freqüentemente vi mulheres
com filhos de pais diferentes morando todos juntos que ainda procurava um marido para
“ajudar em casa”.
Porém, muitas mulheres são as provedoras da família e não dependem dos
61
maridos, dos pais para sustentar a casa, não havendo aqui a “ética do provedor”
(ZALUAR 2000). Não são somente os homens que sustentam a casa, as mulheres o
fazem também e nem são apenas as mulheres que cuidam da casa, muitas vezes, como
já mencionei, essa tarefa caba as filhas. Muitos membros da família ajudam no sustento
da casa. Quanto mais dinheiro entrar para o orçamento familiar, melhor. Todos se
61
Mulheres como chefes de família não é um tema novo, os estudiosos é que não haviam dado atenção a
isso.
56
ajudam mutuamente, pois “A família pobre se constitui como uma rede e não como um
núcleo”. (SARTI, 1996, p. 48). Além da família, vizinhos também se ajudam.
O trabalho, qualquer que seja ele é valorizado pelos moradores e pelas crianças,
porque é através do trabalho que tiram o sustento. Trabalhando podem colocar comida
na mesa e se consideram “ricos” por isso, afinal não passam fome. O bem material para
se considerarem ricos é a comida, é claro que os moradores, como me contaram,
gostariam poder comprar mais roupas, eletrodomésticos ou comprar “bobagens” no
supermercado, mas a comida é a prioridade. “Hoje me considero rica porque não passo
mais fome e nem tenho que comer comida estragada que a gente pegava no lixo”.
(palavras de Mariza). O trabalho não apenas garante a moral dos pobres, como estudou
Zaluar (2000), mas garante a “riqueza”, a possibilidade de saciar a fome. Assim,
trabalho e riqueza caminham juntos.
Durante todas as conversas que eu tinha com os moradores em suas casas62, eles
faziam questão de me oferecer alguma coisa para comer e se ofendiam caso eu
recusasse. Muitas vezes quando eu chegava em suas casas, as mulheres corriam preparar
alguma coisa para eu comer. Ou então, quando estava com as crianças, depois que
finalmente estabeleci contato com suas mães, elas disputavam entre si o lugar em que eu
faria um lanche da tarde63, porque para eles eu estava sempre com fome.
“Não ter o que comer, a fome, significa não apenas a brutal privação
material, mas a privação da satisfação de dar de comer, que vem da
realização de um valor moral, deste “repartir o pouco que se tem” e também
da necessidade de exibição de um bem tão fundamental, cuja ameaça de
falta paira sempre no ar”. (SARTI, 1996, p. 41).
62
Deixo claro que freqüentava as casas por intermédio das crianças que faziam questão que eu visitasse
suas casas para me apresentarem seus pais.
63
Nesse momento era alvo de disputa, pois as crianças queriam que eu experimentasse a comida de suas
mães ou avós. Quando eu escolhia um lugar para comer, as outras crianças ficavam criticando minha
escolha e diziam que a mãe de fulana fazia comida “podre” estragada”.
64
Bairro pobre também e próximo ao Gonzaga, como já mencionei.
57
amigos dele sempre pediam para que ele levasse encomendas de drogas do bairro, assim
todas as vezes que o namorado ia visitá-la, ia embora com muita droga. “Meu
namorado fumava maconha, mas não era viciado. Eu mesma dei uns “peguinhas” com
ele, mas levar cocaína para os amigos não dava, aí eles passavam a noite toda muito
loucos”. (palavras de Bruna).
Outra reclamação das meninas é que quando namoram alguém de fora começam
a ficar iludidas com aquela vida e passam a gastar muito dinheiro com roupas e sapatos
porque querem se vestir como as amigas do namorado, pois essas ficam comentando
sobre suas vestimentas. “Gastei R$ 500,00 no cartão da minha mãe e ainda não paguei,
agora que larguei, as roupas estão lá, nem uso mais”. (palavras de Lívia). Quando
namoram rapazes do bairro os programas são mais acessíveis, pois ficam em casa, saem
para comer um lanche e tomar cerveja ou ficam no Posto da XV65.
Dentro desse grupo infantil formado por relações de vizinhança, com o qual
estabeleci contato, as brincadeiras mais comuns eram polícia e ladrão, corre lenço, boca
de forno, pega-pega, taco, bolinha de gude, empinar pipa, casinha, boneca, estátua,
brincadeira do silêncio e contar histórias de assombrações. As brincadeiras mais
significativas e que mais se repetiam serão explicadas detalhadamente.
Como pude observar são brincadeiras antigas, muitas consideradas como
folclóricas, que passaram de geração para geração, como disse Florestan Fernandes
(1979), pois algumas crianças aprenderam com os adultos e as menores com as mais
velhas. “As relações de vizinhança... é o que permite analisar melhor as influências
socializadoras do folclore infantil e das atividades a ele associadas”. (FERNANDES,
1979, p.19). São essas brincadeiras folclóricas, emprestando o termo utilizado por
Fernandes (1979), que sobrevivem nas classes populares, sendo que a maioria delas
desapareceram ou deixaram de serem praticadas pelas crianças de classe média ou alta,
como dizem Ana Carvalho e Fernando Pontes (2000), pois “É raro um menino
paulistano de classe média nascido a partir da década de 1970 que saiba empinar pipa e
65
Esse posto de combustível fica situado no centro da cidade e pelo que soube muitos jovens do bairro
ficam lá tomando cerveja e conversando nos finais de semana. Tanto é que muitos jovens de São Carlos
não vão nesse posto porque “dá muito baiano”.
58
muito mais raro um que saiba como construí-la”. (CARVALHO & PONTES, 2000,
p.19).
Porém, para as crianças do Gonzaga essas brincadeiras tradicionais, ou
folclóricas sobrevivem e são reproduzidas a cada dia. A maioria se assemelha às
brincadeiras descritas e estudadas por Fernandes (1979). O livro deste autor serviu de
base para o desenvolvimento dessa parte da pesquisa.
A brincadeira de polícia e ladrão é muito comum, principalmente pela relação
conflituosa que o bairro tem com a polícia em virtude do intenso tráfico de drogas, mas
também porque o imaginário televisivo está repleto de heróis. Brincam tanto meninos
quanto meninas, porém a discussão é extensa sobre quem vai ser quem. Todos querem
ser o ladrão, ninguém deseja ser a polícia, isso porque o ladrão é alguém que elas
conhecem, com quem estabelecem algum tipo de contato. A polícia não, ela é de “fora”,
não é alguém do bairro, é uma pessoa estranha que não merece confiança e “por isso
dizem preferir, entre o policial e o bandido, a este último, que conhecem e com quem
podem conversar”. (ZALUAR, 2000, p. 157).
As crianças pegam sucatas e pedaços de pau que ficam nas ruas e os utilizam
como armas. Se puderem passam o tempo todo nessa brincadeira, cujo objetivo, para
eles é fugir ou matar aquele que for a polícia.
A próxima brincadeira a ser relatada se chama corre lenço, que inicia com uma
música:
Corre cutia
Na casa da tia
Corre cipó
Na casa da vó
Lencinho na mão
Caiu no chão.
Essa música que deve ser cantada pela criança que for o mestre. As crianças
formam uma roda e o mestre deve ficar correndo em torno dessa roda enquanto as
outras crianças ficam cantando. Geralmente o primeiro mestre é a pessoa mais velha que
está participando. Então, o mestre tem que correr e escolher uma criança, atrás da qual
deverá colocar um lencinho. Essa criança deve correr atrás do mestre e tentar pegá-lo,
este deve correr ainda mais, pois se for pego irá para o meio da roda, onde as crianças
ficam cantando: “pata choca, pata choca”, sinal de reprovação por parte dos amigos,
59
para ver que não foi um bom mestre. A maioria das que eram pegas começavam a
chorar, pois não tinham conseguido mostrar sua habilidade na brincadeira.
A outra brincadeira é chamada de boca de forno, que também tem uma música
que faz parte dela. E que também faz parte de uma das brincadeiras folclóricas
estudadas por Fernandes (1979, p. 43 e 44).
Vaca amarela
Cagou na panela
Quem falar primeiro
Come toda a bosta dela.
Para provocar o riso dos amigos, quem está coordenando a brincadeira; a escolha
desta criança respeita a hierarquia da idade, como em quase todos os casos, faz cócegas
e gracinhas. Quem não consegue manter o silêncio “paga” o castigo e tem que ficar
agüentando as piadinhas das outras crianças.
Ficou claro que nessas três últimas brincadeiras está envolvida uma grande
noção de competitividade, a intenção de todas é ganhar e, quem perde recebe uma
punição, que elas chamam castigo, para entenderem que não é bom perder, que devem
60
se esforçar para que isso não se repita. “Através do folguedo folclórico a criança não só
“aprende algo”, como adquire uma experiência societária de complexa significação para
o desenvolvimento de sua personalidade”. (FERNANDES, 1979, p.16).
Outra brincadeira muito praticada pelos meninos do Gonzaga é o jogo das
bolinhas de gude, pois suas ruas sem calçamento facilitam a brincadeira66. Ele é
praticado por meninos com idade entre oito e dez anos, nesse grupo estudado não há
nenhuma menina que o pratique. O jogo de bolinhas não deixa de ser um jogo de
competição, como as outras brincadeiras já citadas, porém, além de ser uma disputa
entre os meninos pelas bolinhas é uma disputa por “mulheres”, conforme estudou José
Jorge Carvalho (1990).
Esse autor fez uma etnografia do jogo das bolinhas com a intenção de mostrar
como era um jogo rico em simbolismo social e cultural. Durante sua pesquisa verificou
que no jogo das bolinhas estavam presentes diversos componentes do modelo de
masculinidade: ensina os meninos a exercitarem a atividade financeira (administração
das bolinhas), mostrarem sua superioridade e habilidades (ganhar mais bolinhas), que
não devem ser passivos, mas arriscarem durante o jogo e terem espírito de competição.
“... o jogo é uma batalha por auto-afirmação, dominação e autonomia e uma defesa
contra o risco de ser dominado e subjugado, seja técnica, econômica ou
psicologicamente”. (CARVALHO, 1990, p.214).
Nos jogos do Jardim Gonzaga a aquisição de novas bolinhas de gude parece o
principal objetivo, pois toda vez que alguém adquiria uma bolinha de gude vinha me
mostrar e se autodenominavam com muito orgulho dizendo o quanto eram bons nesse
jogo. O clima de competição era bastante intenso, pois havia uma disputa pelas bolinhas
azuis com manchas brancas. Estas eram as mais difíceis de encontrar ou ganhar em um
jogo. Quando um menino aparecia com uma bolinha dessas, até as meninas se
manifestavam e diziam que este era um bom jogador. Remetendo a Carvalho (1990),
este fato mostrou que esse menino foi considerado “superior” aos outros pela aquisição
de uma bolinha rara e pôde se destacar entre os outros na visão das meninas. E, as
meninas também funcionavam como indicadoras ou juízas do prestígio em jogo. Assim,
o jogo de bolinhas seria uma metáfora da vida adulta, que na brincadeira vai
socializando ou preparando essas crianças, como foi colocado por Carvalho (1990).
66
As ruas não eram asfaltadas até início de 2006, atualmente há asfalto em todas elas, mas os meninos
continuam brincando de bolinhas de gude nas praças do bairro.
61
-O bom da pipa não é mostrar aos outros, é sentir individualmente a pipa, dando ao céu
o recado da gente.
-Que recado? Explique isso direito!
João olhou-me com delicado desprezo.
-Pensei que não precisasse. Você solta o bichinho e solta-se a si mesmo.
Ele é sua liberdade, o seu eu,
girando por aí, dispensando de todas as limitações.
67
Havia três meninas que gostavam de empinar pipa.
62
Durante muito tempo da minha pesquisa, as mulheres não falavam comigo. Elas
nem olhavam para mim, era como se eu não estivesse presente no bairro, porém de
alguma forma acabei sendo útil para elas e encontraram um lugar para mim na
economia das relações ali estabelecidas. Meu contato se restringia às crianças, era com
elas que convivia. Diversas vezes as mulheres iam conversar com seus filhos, para dar
bronca, para tomar banho ou para se alimentar e simplesmente me ignoravam. Porém,
fui saber, uma das crianças foi quem me contou, que toda vez que não aparecia no
bairro, as mães de algumas crianças sentiam falta, pois enquanto eu tomava conta dos
seus filhos elas podiam cuidar da casa, dos “encomendas”, namorar, conversar com as
amigas, entre outras coisas. As mulheres participam das atividades do tráfico ajudando
seus familiares, maridos, pais, irmãos, a vender drogas. À elas cabia a organização,
embalagem, divisão das drogas, mas não a negociação de preços ou entrega de
mercadoria, mas na ausência de alguém responsável por essas atividades, elas as faziam.
68
Coloquei esse exemplo para mostrar como a rua pode ser vista de diferentes maneiras e de acordo com
o contexto social, embora saiba que ruas de condomínios fechados não é a rua levada em questão por Da
Matta (1997).
64
Porém, o mais comum era pedir que o comprador voltasse em momentos adequados
para a compra.
Retomando aos problemas de estabelecimento de relações, com os homens a
situação era diferente, eles sempre me cumprimentavam e se dirigiam verbalmente a
mim com um: “bom dia”, “boa tarde”, “bem vinda”, “olá”, ou expressando opiniões,
“você é muito querida pelas crianças”, “ah, como essa criançada gosta dessa tia”.
Respeitosos ao extremo, nunca me “cantaram” ou disseram nada que os colocassem
numa postura de inquisidores ou assediadores, diferente do tratamento reservado às
mulheres do bairro. Esse respeito extremo com quem é “de fora” parece revelar a falta
de respeito com as mulheres e as crianças “de dentro”. Diferente do que acontecia
comigo, quando mulheres ou jovens passavam pela rua os homem se insinuavam e
diziam jocosidades. Porém, as mulheres gostavam, pois essas brincadeiras as
envaideciam.
As adolescentes do bairro também me ignoravam ou faziam alguma coisa para
que eu me sentisse mal. Elas queriam mostrar que eu não pertencia aquele lugar, que
aquele “mundo” não era o meu. Acredito que elas faziam isso para hierarquizar, mostrar
o lugar que eu não ocupava naquele meio. Uma vez eu estava “brincando” com as
crianças na frente da casa de Dona Francisca, onde não havia portão, mas apenas uma
lona preta que era utilizada para este fim. De repente, entraram duas moças que ficaram
me olhando e rindo. Uma delas disse “você é boy”, e ficou insistindo nisso um bom
tempo e eu dizia que não e explicava a elas o que eu fazia no Gonzaga, mas elas não
estavam interessadas em me ouvir. Mas repetia que tudo em mim era de boy, da minha
cabeça aos meus pés e que eu era “uma mina fresca”. Eu não sabia mais o que fazer e
nem o que responder.
Foi então que uma delas levantou a minha blusa e começou a passar a mão nas
minhas costas, no meu corpo, uma situação um tanto desconfortável. Mas eu não
conseguia reagir, fiquei imóvel. Fizeram isso para saber como eu era e para ver se
minha pele era macia, bem tratada, queriam saber como era a pele de alguém “de fora”,
como elas mesmas disseram, mas também para que eu me sentisse mal e para mostrar
que realmente eu não era igual a elas. Na seqüência, as duas jovens abriram minha bolsa
e jogaram tudo o que tinha dentro dela no chão e riam muito. Diante disso eu comecei a
recolher minhas coisas que estavam espalhadas, mas uma das meninas se aproximou e
começou a me cheirar e dizia que meu cheiro era muito bom. Então, chamou algumas
65
pessoas que estavam na rua para me cheirar, eu me sentia muito mal. Depois soltaram o
meu cabelo e colocaram em cima da cabeça de todas as meninas que estavam ali para
verem como elas ficariam se tivessem o meu cabelo, e disseram: “cuidado para não
pegar piolho”. Antes de irem embora uma delas pegou meu braço bem forte me olhou e
disse que aquele lugar não era para mim69. Percebi então que não era bem vinda, porém
não desisti e continuei indo ao Gonzaga diariamente.
As crianças também manipulavam o meu corpo, mas para representar outro tipo
de relação, pois faziam carinho, queriam fazer massagem nas minhas costas, pentear
meu cabelo, me abraçar e me beijar. Todas às vezes ocorriam brigas e discussões para
saber qual a criança que deveria segurar minhas mãos para um passeio. Era sempre um
pouco cada criança, caso contrário havia os choros.
O interessante é que o meu corpo se tornou uma via de acesso para eles ao meu
próprio universo sócio-cultural, meu corpo foi um instrumento de sociabilidade, algo
que, para nós só fica mais explícito numa esfera de maior intimidade. Ali não, o corpo é
algo “aberto” ao social e às imprevisibilidades que as relações impõem. Essa questão do
corpo é muito relevante, pois é um tema muito precioso para a Antropologia, pois “O
corpo é uma matriz de símbolos e um objeto de pensamento”. (SEEGER, 1979) Muitos
autores se dedicaram aos estudos do corpo, sobre seus usos e significados em diversas
sociedades, Marcel Mauss (2005) foi um deles.
Para Mauss (2005), nas sociedades há uma adequação dos corpos dos indivíduos
a um fim social e gradativamente adquirem condicionantes para realização de
determinadas atividades, assim “cada sociedade têm atitudes corporais que lhe são
próprias” e pensando o corpo podemos pensar a “sociedade” em questão. Portanto, é
pelo corpo que os indivíduos se diferenciam e se identificam. Para mostrar a
69
Chegando em casa percebi que realmente estava com piolho.
66
importância do corpo enunciarei a seguir alguns exemplos de trabalhos que tiveram essa
questão como objetos centrais de suas pesquisas70.
Pierre Clastres (1978) estudou o uso do corpo nas sociedades ameríndias. O
autor defendeu a tese de que essas sociedades não são sociedades sem Estado, mas sim
sociedades que reconhecem a existência de um princípio de divisão que seria capaz de
romper as relações de reciprocidade e segregar o poder do próprio corpo social, e que
possuiriam uma ideologia da chefia que, por sua vez, negaria tal princípio de separação
do poder, posicionando-se, portanto, contra o Estado.
Diante disso, o autor enfatiza a tortura71, pois esta é o mecanismo utilizado para
negar a possibilidade de separação do poder do corpo social. A tortura serviria assim
para deixar uma marca nos indivíduos, mostrando que todos são iguais e que ninguém é
mais que ninguém, pois a memória do grupo fica marcada nas pessoas.
A sociedade escreve na pele das pessoas suas leis e seus códigos sociais, é uma
escrita sobre o corpo e a produção social da dor é partilhada, todos da sociedade passam
por ela enquanto outros membros assistem a essas torturas. Assim, a tortura seria o
locus no qual se inscreve o poder. “Tu não terás o desejo de poder, nem desejarás ser
submisso. E essa lei não-separada só pode ser inscrita num espaço não-separado: o
próprio corpo”. (CLASTRES, 1978, p. 131).
Já Maria de Nazareth Hassen (2001), trata da maneira como a condição de
aprisionamento do companheiro se reflete na vida da mulher e como ocorre uma
mudança na hierarquia do casal e do papel da mulher do presidiário pelo dispositivo da
visita íntima.
70
Entrei em contato com essa bibliografia quando fiz a disciplina Estágio de Docência na Graduação I,
em 2006, ministrada pela Prof. Dra. Marina Cardoso, na Universidade Federal de São Carlos. O objetivo
da disciplina foi oferecer aos alunos a oportunidade de participar de atividades relacionadas a docência na
graduação. Para isso acompanhamos um professor em uma disciplina de graduação e depois discutimos as
experiências em aula com o professor responsável pelo estágio. Acompanhei a disciplina Comportamento
e Cultura junto ao Prof. Dr. Luiz Henrique de Toledo. Ministrei duas aulas na ausência do professor que
estava fora do país. Ter tido essa oportunidade foi muito importante para o meu processo de
aprendizagem no mestrado.
71
Enfoquei essa discussão a partir do capítulo: “Da tortura nas sociedades primitivas”.
67
Isso porque o papel do homem no encontro íntimo pode ser considerado mais
passivo na medida em que é ele que aguarda a mulher, que passa a definir e agendar a
relação, tanto na disponibilidade de ir até a prisão, como provedora da casa na ausência
do marido. A autora fez entrevistas com quatro mulheres de presidiários e todas se
mostraram mais felizes com seus novos papéis, pois elas se sentiam mais úteis e mais
amadas pelos companheiros, assim como podiam tomar suas decisões sozinhas. Assim,
de acordo com o texto dessa autora, o corpo passa a ser um veículo de transformações
de papéis sociais.
Michael Foucault (1996) escreveu sobre a história das condenações e como ela
foi se modificando ao longo do tempo72. Há o desaparecimento dos suplícios, as
punições deixaram de ser espetáculos públicos em que os penitenciados sofriam as mais
terríveis investidas em seus corpos. As penas passaram a ter um caráter punitivo, sendo
menos diretamente físicas e mais sutis e veladas, subjetivadas ou interiorizadas, e o
corpo, dessa forma, deixou de ser o alvo principal da repressão penal. “... o essencial é
procurar corrigir, reeducar, “curar”; uma técnica de aperfeiçoamento recalca, na pena, a
estrita expiação do mal, e liberta, os magistrados do vil ofício de castigadores”.
(FOUCAULT, 1996, p. 15). Os carrascos foram substituídos pelos médicos, guardas,
educadores, psicólogos e, a arte das sensações insuportáveis foi substituída pelos
direitos suspensos.
O corpo é colocado em um sistema de privações e obrigações, mas a punição é
direcionada à alma e as punições são para controlar os indivíduos, não mais sobre o que
fizeram, como no tempo dos suplícios, mas sobre o que serão ou poderão vir a ser. Para
o autor em questão, essas novas punições adequaram os corpos às novas solicitações do
poder que deixa de encenar publicamente suas formas de coerção.
Essas novas formas punitivas, erroneamente tomadas como por humanitárias,
produzem efeitos extraordinários de poder e uma maior eficácia e controle. Acredita
assim, que a vigilância se tornou mais eficaz que a punição.
Enfim, esses foram alguns exemplos de como o corpo pode se tornar uma
questão relevante para pensarmos os “objetos” de pesquisa. Mas voltando ao ocorrido
com as adolescentes, outro fato interessante é o uso da categoria nativa boy, utilizada
pelas duas sem distinção de gênero; tanto para homens quanto para mulheres, foi
utilizada para designar alguém que não pertencia àquele universo, que tem uma vida
72
Referi-me a Foucault de maneira bem resumida, sabendo que o autor é muito mais rico em suas
proposições teóricas do que a maneira como o retratei.
68
boa, que não passa pelas mesmas dificuldades deles. O termo boy, playboy também é
utilizado nas letras de rap, em que da mesma forma é usada para se referir tanto ao
gênero masculino quanto ao feminino. “... o playboy é aquele que vem de fora e, quando
presente na periferia, é tido como uma espécie de aberração, como algo completamente
fora de seu contexto”. (GUASCO, 2001, p.89), como era meu caso no bairro em
questão.
Em vista de tudo que foi relatado até o momento, ficou claro o papel complexo
desempenhado por mim no bairro. Embora estivesse ali como pesquisadora, para os
adultos me tornou uma espécie de babá ou empregada que “cuidava” das crianças, com
as adolescentes havia o conflito e para as crianças era uma confidente, uma amiga,
alguém que “brincava” com elas, posições na estrutura social que me revelavam para
muito além da condição enunciada em princípio, a de pesquisadora. Porém, aproveitei
essa confusão de papéis e deixei de reafirmar a condição de pesquisadora, antropóloga,
porque isso rendia para o meu campo73.
Devido aos conflitos constantes com as jovens no início das minhas pesquisas,
procurei utilizá-los de maneira positivada, tirando proveito para o meu trabalho, pois
como defende Georg Simmel (1983b), “há no conflito algo positivo e ele pode ser
também uma forma de sociabilidade”. E foi dessa forma que finalmente pude
estabelecer um contato mais próximo com as jovens do Gonzaga. Confesso que não ter
tido acesso mais sistemático ao universo “adulto” me incomodava, pois achava que sem
a presença da fala adulta a pesquisa poderia apenas reproduzir um viés unilateral sobre o
Gonzaga “74.
Com o passar do tempo e com a retomada da pesquisa de campo75, percebi que,
excetuando as crianças, os moradores haviam mudado o tratamento em relação a mim.
As mulheres que ignoravam minha presença passaram a conversar comigo, embora
algumas me ainda hostilizassem. Os homens, que por muito tempo se dirigiam a mim
com exagerado respeito, começaram a me paquerar, fazer brincadeiras na rua e mandar
73
Isso me foi sugerido quando apresentei trabalho na Reunião Equatorial de Antropologia - X Reunião de
Antropólogos Norte e Nordeste, em 2007, no qual apresentei trabalho no Grupo de Trabalho 14:
Etnografia arriscada: Dos limites entre vicissitudes e “riscos” no fazer etnográfico contemporâneo. Esse
Grupo foi coordenado por Alinne Bonetti e Soraya Fleischer.
74
Até o momento não havia percebido como as crianças eram centrais nessa pesquisa e o quanto elas me
davam acesso ao “universo adulto”, fato que a Fapesp, meu orientador e o Jorge Mattar Villela me
chamaram a atenção.
75
Fiquei um ano afastada do Gonzaga porque estava cursando disciplinas na Pós – Graduação em
Ciências Sociais na Universidade Federal de São Carlos para depois poder me dedicar integralmente às
pesquisas no bairro.
69
76
Os moradores denominavam o maior traficante da favela como “chefe”, como a pessoa que mandava na
favela e que era respeitado pelos moradores.
77
Há um tópico explicando como eram as invasões policiais na favela.
70
78
Resultado do Projeto Habitar Brasil. Na ECO há uma quadra poliesportiva, um campo de futebol, um
Posto de Saúde da Família, uma creche que ainda não foi inaugurada e um parquinho para as crianças.
79
A Associação dos Pais e Amigos dos excepcionais (APAE), disponibiliza um veículo para levar seus
alunos até o bairro.
80
Bairro que já mencionei anteriormente.
71
crianças da rua. Segundo as crianças, esse projeto não tinha finalidade, era só um
passatempo, pois “para que aprender malabaris? Para ficar no semáforo?” (palavras
de Diego).
Há também o projeto de Futebol e de Dança que aconteciam na parte da manhã e
o objetivo deles era o mesmo que os descritos anteriormente, retirar as crianças e jovens
da rua. Além desses projetos, existe o Grupo de Sexualidade com meninas adolescentes,
que também conta com uma participação ínfima.
Havia também outro projeto social, o que tinha mais participantes e do qual
sempre ouvi falar muito bem pelas crianças. “Vivências em Atividades Diversificadas
de Lazer” atuava junto as crianças e adolescentes sendo que “visa resgatar a cultura
popular (...) através de brincadeiras e jogos que foram esquecidos e substituídos pela
televisão e pelos brinquedos industrializados e, mais recentemente pelos jogos
eletrônicos”. (SANTOS, 2005, p. 5). Porém, as crianças do Gonzaga não substituíram as
brincadeiras antigas, como demonstrei no tópico “Brincar como antigamente”, por
outras brincadeiras, o máximo que acontecia era uma mistura das brincadeiras
tradicionais e modernas.
Voltando ao projeto, os participantes se reuniam com os coordenadores e
decidiam em conjunto quais seriam as brincadeiras da semana seguinte. Assim,
brincavam daquilo que havia sido combinado na semana anterior e decidiam a
brincadeira da próxima semana. “Todos os participantes podiam escolher, criar regras,
inventar jogos, enfim participar das decisões do processo educativo... podendo haver
mudanças caso o grupo demonstrasse interesse em outras atividades”. (SANTOS, 2005,
p. 34). Assim, as crianças decidiam o que queriam fazer, pois conforme nos mostrou
Matheus Santos (2005), um dos coordenadores do projeto, mesmo que combinavam as
brincadeiras com antecedência, as crianças acabavam fazendo aquilo que queriam.
Certo dia, educadores e crianças tinham combinado de brincar de pega-pega americano,
“atividade de pega-pega, aonde quem for pego tem que ficar parado com as pernas
abertas. A pessoa pega só poderá voltar a se mover se algum colega que não estiver
pego passar debaixo de suas pernas”. (SANTOS, 2005, p. 22). Porém, não estavam mais
interessados nessa brincadeira e decidiram que não brincariam, mas que passariam a
manhã, horário do projeto, pegando jabuticabas.
Percebemos assim que nesse projeto as crianças têm possibilidade de ação, elas
podem decidir o que fazer e como fazer, interferindo ativamente no desenvolvimento do
projeto, podendo mostrar sua capacidade de agência. Os outros projetos eram vistos
72
pelas crianças como um lugar para lanchar e onde não tinham liberdade de decisão das
brincadeiras, pois os responsáveis pelos projetos eram quem impunham as brincadeiras,
já no projeto “Vivências em Atividades Diversificadas de Lazer”, as crianças tinham
força e eram ouvidas, pois decidiam o que fazer, aqui era reconhecida então suas
capacidades de agência.
Enfocar o tráfico de drogas não era inicialmente a intenção desse trabalho, mas
como apareceu como uma espécie de “fato social total” no bairro, e por ser total, minha
apreensão do fenômeno se fez necessária, vou tentar relatá-lo do ponto de vista das
crianças, que, por sua vez, apresentavam novos dados sobre essa atividade e insistiam o
tempo todo em falar sobre ele. Porém, antes de iniciar essa discussão, deixo claro que
no Gonzaga não há um comércio de drogas tal qual se apresenta nos grandes centros
urbanos, com visibilidade, inclusive midiática, e ao que parece não há a presença de
grupos disputando o comércio local, o que determina em parte dos aspectos vinculados
à violência armada. No Gonzaga as dimensões do tráfico é mais “discreta” e abastece
consumidores do “centro” e de algumas cidades vizinhas.
Antonio Rafael Barbosa81 explicou essa confusão e mal entendido sobre o
mercado de drogas mostrando que há uma imagem reificada produzida por vários
agentes, pois não existe o tráfico na sua universalidade, e para cada caso se tem uma
estruturação específica e há diferenças entre regiões. Outro mal entendido é pensar que
ele é nuclear, pelo contrário, ele é caracterizado por sua característica segmentar, por se
organizar em redes e não ter alguém controlando tudo. O tráfico de drogas também não
tem apenas grandes organizações que o controla, assim como podemos ver no Gonzaga,
por exemplo. Essa é uma visão de senso comum sobre o tráfico que a etnografia tenta
desconstruir.
Segundo as crianças, os motivos para o ingresso no tráfico são pobreza, vício,
falta de emprego, amizade, status, discurso que tomam dos mais velhos e está o tempo
todo na mídia Porém, não consideram que essa atividade seja fácil, pois apesar de
ganharem mais dinheiro do que qualquer outro trabalho que fossem desenvolver,
81
Antonio Rafael Barbosa deu uma palestra na Universidade Federal de São Carlos em 2007 explicando
o mercado de drogas e seus mal entendidos. Essa palestra fazia parte de um ciclo de atividades
organizadas pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social.
73
82
Palavras de Antonio Rafael Barbosa na palestra mencionada.
74
Traficar e consumir são coisas muito próximas no bairro, muitos traficam apenas
para garantir o seu próprio consumo e estes são chamados de traficantes pequenos. Os
traficantes ditos maiores abastecem muitos consumidores do “centro” e diversas vezes
presenciei estudantes, tanto homens como mulheres, das faculdades e universidades da
cidade comprando drogas, os reconheci porque usavam camisetas com os nomes de seus
cursos e respectivas faculdades. A passagem desses estudantes pelo bairro, apesar de ser
rápida é intensa e geralmente já chegam sabendo quem procurar. Quando esses
estudantes ficavam um tempo maior no bairro, devido a presença de policiais ou pela
demora dos traficantes que algumas vezes estavam em falta de determinada droga e
precisavam recorrer a outro traficante, eles fiavam próximo a mim e as crianças, pois
sabiam que ali era um lugar “seguro” contra as represálias policiais.
As “bocas” funcionam o dia todo, mas é quando começa a escurecer, em torno
das sete da noite, é que o movimento se intensifica. No início da pesquisa de campo eu
não percebia a movimentação em torno do tráfico, parecia não enxergá-lo de tão
discreta que parecia a movimentação, mas com a “familiarização83” do campo, tornou-
se mais explícito, sem contar que as crianças também sinalizavam a sua existência.
“Olha lá tia, olha o ... passando droga”. Eram jovens levando as “encomendas” de
bicicleta, passando drogas através do aperto de mãos, crianças escondidas atrás dos
muros passando a droga pelos buracos nesses muros.
Segundo as crianças, a família auxilia o traficante em sua atividade, todos se
ajudam, e a vizinhança também, pois ninguém dedura ninguém. Isso porque muitos
moradores têm medo e também porque várias pessoas do bairro participam do lucro do
“movimento”.
Há por parte dos moradores uma aceitação desse tipo de trabalho, o tráfico de
drogas, principalmente quando o fazem para sustentar a família, desse modo
“...relativiza-se também o valor moral do bandido, que passa a ser menos bandido se o
dinheiro (conseguido por meios ilícitos) for para dentro de casa, porque a moral do
trabalho se entrelaça com a moral as família”. (SARTI, 1995, p. 73). Porém, segundo
os moradores do Gonzaga não denominam os traficantes como bandidos, eles são só
traficantes. Para eles, bandido é aquele que mata por matar e rouba dos vizinhos, os
traficantes não são assim, se encaixam em outra categoria, da de pessoas que trabalham
para sustentar as famílias e ajudar a parentela e vizinhos.
83
Gilberto Velho (2004).
75
84
Eles eram avós de Tatiana, uma menina que estava sempre comigo no bairro.
76
tráfico, repassando a droga e se beneficiando dos lucros, mas ele não mencionaria isso
para mim, temerário de ser estigmatizado.
Diferente do que viu Zaluar (2000), no Gonzaga não há distinção entre
trabalhadores e bandidos, todos são trabalhadores, independente das atividades que
realizam, ninguém se sente superior a ninguém, o importante é ter o que oferecer às suas
famílias. Pois uma pessoa pode ser “trabalhadora”, mas fazer “bicos”, “correria” como
traficante, enfim são categorias que se misturam, ou como diria Barbosa (1998), que se
diluem nesses contextos.
Percebemos assim, que o tráfico é incorporado dentro de uma esfera da política
econômica familiar, digamos assim, embora no plano da moralidade pública seja até
passível de condenação, ocultação, vergonha e estigmatização.
6. As invasões policiais
85
A sigla EPTV significa Emissoras Pioneiras de Televisão e é uma das emissoras da Rede Globo de
Televisão. A EPTV é dividida em outras quatro emissoras: EPTV Campinas (Campinas), EPTV Ribeirão
(Ribeirão Preto), EPTV Central (São Carlos) e EPTV sul de Minas.
77
Assim, como percebeu a autora, o PCC é uma organização que prega a paz,
sendo suspensa apenas em condições extremas, pois “é uma instituição em que os
presos se apóiam para tentarem evitar os maus tratos e terem mais dignidade e justiça no
confinamento”. Biondi contrasta assim, o que acontece dentro das grades e o que marca
o senso comum e é noticiado pela imprensa.
Voltando as invasões e deixando de lado o parêntese feito para explicar o PCC,
os policiais já chegaram batendo nas pessoas, homens, mulheres e até em crianças, pois
bateram em uma mulher que carregava seu filho nos braços e acabaram acertando as
costas do menino de três anos com o cacetete. Nessa mesma família colocaram um dos
filhos do casal de ponta cabeça no meio da rua, segundo testemunhas, depois desse
ocorrido o menino permaneceu muito tempo dentro de sua casa porque estava em
choque.
Eles humilharam as mulheres as chamando de “putas”, “vagabundas” e
“porcas”, assim como bateram e machucaram muitas pessoas que não tinham nada a ver
com o tráfico. Segundo as crianças, isso que aconteceu foi abuso de poder por parte dos
policiais, pois eles poderiam ter recolhido as drogas sem fazer essas crueldades com as
pessoas. O camburão saiu cheio do bairro, tanto de traficantes como de consumidores.
“Por que eles não fazem isso lá no Rio de Janeiro? Lá sim é que deveriam, não aqui.
Aqui não tem guerra entre policiais e traficantes”. (palavras de Paula). Pela fala dessa
jovem, podemos perceber que em certos casos ela aceitaria esse tipo de reação policial,
ilustrando o Rio de Janeiro como local adequado. Isso porque diariamente a “guerra”
entre bandidos e traficantes nos morros cariocas tem sendo retratada pela imprensa e, de
acordo com esse depoimento, a menina não acredita que no bairro há a necessidade de
intervenção policial, “já que o tráfico do Gonzaga é muito menor que o do Morro do
Alemão86” (palavras de Paula).
Depois dessa invasão, as opiniões da maioria da população são-carlense em
relação ao bairro se agravaram, pois tomaram o partido dos policiais, já que esse fato,
como mencionei, foi televisionado com depoimentos de policiais e retratado em todos
os jornais da cidade de São Carlos. Os moradores do Gonzaga fizeram uma
manifestação em frente ao Fórum Municipal dois dias depois do ocorrido, alegando o
abuso policial dentro do bairro, porém precisaram se retirar do local porque a polícia
ameaçou uma pior invasão caso eles permanecessem ali. Percebemos assim que “em
86
Favela carioca dominada por policiais e bandidos.
79
São Paulo, assim como em outras cidades brasileiras, a polícia é parte do problema da
violência. O uso de métodos violentos, ilegais ou extralegais por parte da polícia é
antigo e amplamente documentado”. (CALDEIRA, 200, p. 135).
Depois dessa invasão, pude presenciar outras. Elas aconteciam durante a tarde.
O bairro era tomado por diversas viaturas e carros da DISE87, os policiais passavam
com as armas apontadas para fora dos veículos. Antes de entrar nos “barracos88” os
policiais batiam geral nas pessoas que estavam nas ruas, mas eu nunca fui revistada,
pois não era alvo disso e certamente esses policiais sabiam o que eu fazia no bairro.
Quando as invasões aconteciam, a maioria dos moradores ficava nas ruas, e era uma
correria, pessoas correndo o tempo todo. As crianças queriam saber qual casa estava
sendo invadida e corriam em direção ao local onde estavam os policiais para contar aos
mais velhos e as outras crianças. Os jovens ficavam sem saber o que fazer, impacientes
e pediam informações para as pessoas que transitavam para saber em que lugar os
policiais se encontravam. Muitos deles iam “brincar” comigo e com as crianças.
Geralmente os policiais invadiam os barracos pelas casas vizinhas, para tentar
pegar o pessoal em flagrante, mas dificilmente isso acontecia, pois os moradores
avisavam uns aos outros que o bairro estava “molhado”. Utilizam essa denominação
para informar a presença de policiais na área. Todas as vezes que presenciei as invasões,
em nenhuma delas a casa do “chefe” foi invadida, mas os barracos vizinhos eram.
Enfim, as crianças presenciavam o tráfico de drogas e as constantes invasões
policiais quase diárias no bairro, participando dessa forma do chamado “mundo adulto”,
pois ninguém escondia delas o que acontecia no bairro, até porque elas viam suas casas
serem invadidas e seus familiares presos. Constatei assim que a sociabilidade infantil
estava intrinsecamente ligada ao universo dos adultos, quase não havendo uma
segmentação ou descontinuidade entre esses universos geracionais, e as crianças
criavam seu próprio sistema de valores e comportamentos, significando seu contexto
social e reproduzindo, ao mesmo tempo em que produzindo, esse comportamento em
suas práticas lúdicas.
87
Delegacia de investigação sobre entorpecentes.
88
Era desse modo que as pessoas classificavam suas casas.
80
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No Gonzaga as crianças passam a maior parte do tempo nas ruas, lugar em que
conheciam as pessoas, que conheciam as regras que operavam ali, onde podiam se sentir
“seguras”, diferente dessa forma, da dicotomia casa e rua enunciada por Da Matta
(1997), para quem a rua é o lugar do perigo, do desconhecido, da insegurança.
Convém ressaltar mais uma vez que as crianças foram intermediárias durante a
pesquisa de campo, pois através delas tive acesso aos jovens, que foram intermediários
para meu contato com os adultos. Gradativamente fui conhecendo e me relacionando
com os moradores do bairro, sempre por meio de intermediários, passando de
sociabilidade a sociabilidade até chegar ao “chefe” do bairro. Percebemos assim a
centralidade das crianças na pesquisa, pois através dela tive acesso a coisas e pessoas
que jamais teria, caso me aproximasse do bairro por outra via, não a das crianças, como
é o caso do “chefe”, por exemplo. Só tive contato com ele porque seu filho fazia parte
do “grupo” de crianças que ficavam comigo, caso não tivesse contato com seu filho,
certamente não teria contato com ele e jamais teria o conhecido. Essas crianças
vivenciavam com naturalidade o tráfico de drogas que acontecia no bairro e em muitas
vezes dentro de suas casas, não o vendo de maneira negativa, como crime, como “vida
fácil”, mas como uma maneira que as famílias encontravam para dar uma vida melhor
aos filhos, uma renda familiar maior, apesar de todos os riscos que enfrentavam.
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Fonte: Prefeitura Municipal de São Carlos, Programa Habitar Brasil (BID) – Programa