A Condição Feminina em Mornas Eram As Noites

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 13

p-ISSN:

e-ISSN:1807-1112
24481939
p-ISSN:
e-ISSN: 1807-1112
2448-1939

Recebido em: 11 de fevereiro de 2018


Aprovado em: 02 de junho de 2018
Sistema de Avaliação: Double Blind Review
RPR | a. 15 | n. 2 | p. 133-145 | jul./dez. 2018
DOI: https://doi.org/10.25112/rpr.v2i0.1657

A CONDIÇÃO FEMININA EM
MORNAS ERAM AS NOITES, DE
DINA SALÚSTIO

WOMEN’S CONDITION IN WRARN WERE THE


NIGHTS, BY DINA SALÚSTIO

Demétrio Alves Paz


Doutor em Lingüística e Letras (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/Brasil).
Professor na Universidade Federal da Fronteira Sul (Cerro Largo/Brasil).
E-mail: [email protected].

Mithiele da Silva Scarton


Graduanda em Letras - Português e Espanhol (Universidade Federal da Fronteira Sul/Brasil).
Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul, FAPERGS, Brasil.
E-mail: [email protected].

Revista Prâksis | Novo Hamburgo | a. 15 | n. 2 | jul./dez. 2018


133
Demétrio Alves Paz e Mithiele da Silva Scarton
p-ISSN: 1807-1112
e-ISSN: 2448-1939

RESUMO
O presente trabalho, relacionado ao estudo desenvolvido pelo projeto de pesquisa intitulado Mulheres
fortes: O conto africano de língua portuguesa de autoria feminina (PROBIC/FAPERGS), tem por objetivo
analisar a condição feminina presente em nove contos da obra Mornas eram as noites, de autoria da
escritora cabo-verdiana Dina Salústio. A partir da leitura de obras críticas de especialistas nas literaturas
africanas de língua portuguesa, como Maria Aparecida Santilli (2007), Manuel Ferreira (1987), Pires
Laranjeira (1995) e Simone Caputo Gomes (2006; 2013), assim como em artigos publicados em revistas
acadêmicas, revisamos a fortuna crítica da autora com o intuito de conhecer seus temas. Nas nove
narrativas, observamos que há figuras femininas diferenciadas, representando um amplo apanhado de
todas as classes sociais e de diferentes idades. A grande maioria das histórias é narrada em primeira
pessoa, o que aproxima o leitor da condição feminina e também funciona como uma espécie de pedido
de cumplicidade por parte das narradoras para sentir-se parte desse emaranhado de sentimentos e
situações em que elas se encontram.
Palavras-chave: Literatura de autoria feminina. Conto. Literatura cabo-verdiana. Dina Salústio. Condição
feminina.

ABSTRACT
This article, related to the study developed in the research project Strong Women: African short stories
written by women writers (PROBIC/FAPERGS), aims to to analyze the women’s condition in 9 (nine) short
stories in Warm were the nights, by the Cape Verdean writer Dina Salústio. From the reading of critical
works by scholars of African Literature in Portuguese Language such as Maria Aparecida Santilli (2007),
Manuel Ferreira (1987), Pires Laranjeira (1995) e Simone Caputo Gomes (2006, 2013), as well as articles
in academic journals, we revised the critical works about the author to get a better knowledge of her
themes. In the nine narratives, we noted that there are differentiated feminine figures, representing a
broad view of all social classes and different ages. The majority of stories were narrated in the first person,
which connect the reader to the women’s condition as well as it works as a kind of asking for partnership
by the narrators to feel part of this connection of feelings and situations in which the characters are
involved.
Keywords: Women’s writing. Short story. Cape Verdean Literature. Dina Salústio. Women’s condition.

Revista Prâksis | Novo Hamburgo | a. 15 | n. 2 | jul./dez. 2018


134
Demétrio Alves Paz e Mithiele da Silva Scarton
p-ISSN: 1807-1112
e-ISSN: 2448-1939

1 INTRODUÇÃO
No que diz respeito às literaturas africanas de língua portuguesa, mais especificamente a de autoria
feminina, Dina Salústio é uma das escritoras que problematiza a condição feminina em suas obras. Em
Mornas eram as noites (2002), a autora incorpora inúmeros aspectos da feminilidade em Cabo Verde,
opondo-se a uma cultura patriarcal e androcêntrica, que não vê a mulher como parte ativa dela, mas
submetida àqueles que são mais “fortes”.
As narradoras dos contos presentes na obra aqui analisada impressionam ao transmitir cada
sentimento de angústia, medo ou, ainda, de estranheza à própria essência do “ser” mulher. Nesse sentido,
ao questionar o que é ser mulher, ocorre a busca por uma escrita que incorpore a alma feminina e seus
segredos. Assim, encontramos uma autora capaz de descobrir diferentes nuances e dilemas da mulher
contemporânea.
O presente ensaio tem por objetivo analisar a condição feminina em nove contos da obra Mornas eram
as noites (2002), de autoria da escritora cabo-verdiana Dina Salústio. Percebemos que a forma como a
mulher é apresentada acaba mostrando anseios e discussões no íntimo de seu pensamento, procurando
o descobrir-se, o revelar-se forte.

2 VIDA, OBRA E FORTUNA CRÍTICA


Cabo Verde possui uma tradição narrativa que inicia com Baltasar Lopes e Manuel Lopes, passa por
Teixeira de Sousa, Manuel Ferreira, António Aurélio Gonçalves, Luís Romano, Teobaldo Virgínio, Gabriel
Mariano, Orlanda Amarilis e deságua em Germano de Almeida, Dina Salústio, Fátima Bettancourt e outros
escritores ligados à revista Ponto e vírgula. (FERREIRA, 1987; LARANJEIRA, 1995; SANTILLI, 2007).
Bernardina de Oliveira Salústio, nascida na Ilha de Santo Antão, Cabo Verde, em 1941, é autora das
obras Mornas eram as noites (1994), A louca de Serrano (1998), A estrelinha Tlim, Tlim (1998), O que os olhos
não veem (2002), Filha do Vento (2009) e Filhos de Deus (2018). Além de escritora foi professora, jornalista
e assistente social.
Tal como Simone Caputo Gomes (2008) tão bem destacou, as obras da autora são um desvendar de
Cabo verde. A cultura, as pessoas, a insularidade, o mar, as mulheres, tudo que diz respeito a esse país é
constantemente abordado nas obras de Salústio que refletem o que é viver nas ilhas, principalmente em
Santo Antão, ilha onde nasceu.
No que diz respeito à crítica de especialistas nas literaturas africanas de língua portuguesa, a partir
das pesquisas realizadas tanto em revistas acadêmicas quanto em obras individuais e coletivas, sobre a
obra de Dina Salústio ainda não foi possível encontrar tantos estudos. No entanto, podemos citar Simone
Caputo Gomes como a maior especialista na obra da escritora cabo-verdiana.

Revista Prâksis | Novo Hamburgo | a. 15 | n. 2 | jul./dez. 2018


135
Demétrio Alves Paz e Mithiele da Silva Scarton
p-ISSN: 1807-1112
e-ISSN: 2448-1939

Sobre a obra de contos aqui analisada, Gomes (2008, p. 219) explica a importância do título ao destacar
que

O título de sua coletânea de contos reitera a associação da prosa com o poético ao dar
relevo à morna, modalidade musical típica de Cabo Verde, que veicula a poesia oral.
Tradicionalmente canto de mulher, o entendimento do lugar cultural da morna no mundo
cabo-verdiano pode derramar outras luzes sobre a significação do título: “música eram
as noites” é uma leitura para Mornas eram as noites. Música de mulheres, em que a mulher
é a peça principal. Para além, música de nacionalidade e identidade. Como preâmbulo à
coletânea, a autora assinala: “De como elas se entregam aos dias”.

Dessa forma, nos contos, as mulheres são não só a principal peça, mas também a que adquire voz,
pois a maior parte das narrativas está em primeira pessoa, em um foco narrativo feminino. Ainda em
relação às mornas, Maria Teresa Salgado (2008, p. 38) percebe o gênero como “verdadeiras crônicas
vivas e expressivas da vida do cabo-verdiano, podendo exprimir a dor, a alegria, a nostalgia, os problemas
existenciais, a esperança”, temas que aparecem em diferentes contos do livro. Assim, o gênero musical,
como outras formas artísticas, também é uma representação da identidade do país.
A partir do momento em que a leitura dos contos se inicia, entendemos a importância dada ao título,
pois a extrema delicadeza com que a noite chega e a relevância da morna em Cabo Verde se associam ao
papel feminino na obra. A mulher, que tantas vezes sofre pela dor, pelos vícios, pelos amores e por tudo
que a vida lhe destina, está comumente presente nos contos, assim como as decisões constantemente
delicadas de lidar com esses problemas. A feminilidade, aqui, torna-se forte ou sucumbe pelas difíceis
decisões tomadas.
As mulheres cabo-verdianas, segundo Gomes (2008), estão inseridas em diferentes contextos sociais,
e dominam, pela quantidade, os setores em que estão inseridas, seja a agricultura, seja nas poucas
indústrias presentes ou, ainda, como donas de casa. Essas mesmas mulheres estão constantemente
vulneráveis não somente em Cabo Verde, mas na maioria dos países onde a mulher é vista como objeto,
ou, como sempre, inferior ao homem, que acaba por usar de sua força ou “capacidade” para estar sempre
à frente da mulher. Em Cabo Verde, uma das questões que é trazida por Gomes (2008) é o grande
número de mulheres que são chefes de família, que sustentam os filhos sozinhas, que trabalham fora
em serviços de construção civil e em tantos outros setores, mas que, apesar de sua persistência, ainda
sofrem descaso por grande parte da sociedade.
A questão da violência de gênero é constante nas ilhas, Dina Salústio trata desse assunto em alguns
dos contos presentes em Mornas eram as noites, o que reflete a incapacidade humana de amar. A temática

Revista Prâksis | Novo Hamburgo | a. 15 | n. 2 | jul./dez. 2018


136
Demétrio Alves Paz e Mithiele da Silva Scarton
p-ISSN: 1807-1112
e-ISSN: 2448-1939

de gênero é constantemente trazida por Chimamanda Ngozi Adichie, participante ativa de movimentos
contra violência e preconceitos de gênero, raça ou cor, ao nos recordar que

O feminismo faz, obviamente, parte dos direitos humanos de uma forma geral – mas
escolher uma expressão vaga como “direitos humanos” é negar a especificidade e
particularidade do problema de gênero. Seria uma maneira de fingir que as mulheres
não foram excluídas ao longo dos séculos. Seria negar que a questão de gênero tem
como alvo as mulheres. Que o problema não é ser humano, mas especificamente um
ser humano do sexo feminino. Por séculos, os seres humanos eram divididos em dois
grupos, um dos quais excluía ou oprimia o outro (ADICHIE, 2015 p. 42-43).

Nos 35 contos presentes em Mornas eram as noites, encontramos um olhar de descoberta de Cabo
Verde pelos olhos, pelo sentir e pela necessidade de conhecer diferentes condições femininas por meio
de histórias ricas em epifanias. Conforme Spínola (1998, p. 206), Salústio “capta os pequenos nadas
que se geram no nosso íntimo, as grandes contradições a que diariamente somos sujeitos e os fluídicos
pensamentos desconcertantes que nos assaltam constantemente”. Nesse sentido, percebemos que a
obra nos faz sentir, ou ainda reconhecer emoções que estão atreladas às nossas vivências diárias. Para
Spínola (1998, p. 206),

Um sopro de existencialismo perpassa pelos seus contos indissociáveis de uma ponta


de mística filosofia, prenhe das grandes contradições humanas e da questão essencial
do existir, que se exsuda de todas as suas prosas. Ela foca as coisas pelo lado mais
inesperado e, muitas vezes, do inconsciente humano, numa dimensão que com
pertinência consegue desvendar.

Narrar em primeira pessoa é transmitir ao leitor uma maior cumplicidade ao que está sendo dito.
Deixamo-nos levar pelas palavras que são, em sua maioria, ditas por mulheres. São histórias que expõem
a mulher e suas várias facetas. Em entrevista a Simone Caputo Gomes (2008, p. 218), a autora relata que
o livro surgiu da

[...] Necessidade de publicar as inúmeras histórias de mulheres, histórias de vida que


passam por mim [...]. Não são ficção, é cá um encontro que é verdade, um momento
só. [...] Não fiz uma selecção desses textos, só o primeiro foi intencional, para querer
mostrar o meu reconhecimento a estas mulheres cabo-verdianas que trabalham duro,
que fazem o trabalho da pedra, que carregam água, que trabalham a terra, que têm a
obrigação de cuidar dos filhos, de acender o lume. Quis prestar uma homenagem a esta
mulher. [...] falo de todas as mulheres que dão alguma coisa, e que eu tenho alguma
coisa delas. [...] em Cabo Verde, quando nasce uma menina, ela já é uma mulher.

Revista Prâksis | Novo Hamburgo | a. 15 | n. 2 | jul./dez. 2018


137
Demétrio Alves Paz e Mithiele da Silva Scarton
p-ISSN: 1807-1112
e-ISSN: 2448-1939

A homenagem que Dina Salústio apresenta na sua escrita reflete o que a sua pequena ilha espera
das mulheres que lá nascem, e são essas mulheres que permanecem fortes. Lutam para não serem
levadas pelo mar de estereótipos a que são submetidas. Lê-se, a partir de sua escrita, mulheres mães,
mulheres filhas, mulheres sofridas ou que ainda carregam em seus ombros o peso de uma vida difícil e
que depende tão somente delas encontrar caminhos que as levem para, talvez, uma realidade distinta.
Segundo GOMES (2008, p. 237),

Junto com Orlanda Amarilis, Vera Duarte, Sara Almeida e Fátima Bettencourt, Dina vai
delineando, em solo crioulo, uma escritura feminina, pintando e tecendo, através da
experiência e do caminho de auto-conhecimento, quadros vivos do seu povo e do seu
país que nos permitem reconhecer um pouco mais do modus vivendi no arquipélago.
E vai além, na assunção de uma consciência da condição mulher e na reavaliação da
condição humana.

Simone Caputo Gomes (2008) destaca que 60% da população do arquipélago é feminina. Esse dado,
além de deixar claro que a maioria da população é de mulheres, também reforça questões sobre a
participação desta na vida em sociedade, porque a cultura é transmitida por meio das suas cantigas, a
educação tem base nos ensinamentos passados de mãe para os filhos, e, além disso, há participação
ativa da mão de obra feminina na base econômica do país, que é a agricultura.
Quando essa realidade reforça o poder feminino frente a um país, percebe-se que a discriminação
dessa mulher é de cunho sexista e interfere para o desenvolvimento de uma sociedade igualitária e ainda
mais forte. Gomes reforça essa questão ao dizer que “A mulher Cabo-Verdiana, no seu trabalho anônimo,
não é apenas transmissora de cultura, mas o instrumento essencial das instituições, o fundamento sobre
o qual repousa o edifício social”. Essa afirmação representa a sua força e a garantia de um país que deve
sua cultura, educação e desenvolvimento ao trabalho de mulheres fortes, que além de lutar pela própria
sobrevivência ainda enfrentam o drama de serem desvalorizadas. Entretanto,

Depois de 1975 e, sobretudo, a partir dos anos noventa, a voz feminina, silenciada pela
História da Literatura em Cabo Verde, tem propiciado o aparecimento de uma temática
centrada na mulher, em suas ocupações, preocupações, dilemas e novas posturas
(cumplicidade, curiosidade, liberdade, loucura, bruxaria, bebedeira, lesbianismo,
prostituição, maternidade precoce, violência conjugal, abuso e prostituição infantis,
pedofilia, machismo são linhas constantemente desenvolvidas pelas autoras) (GOMES,
2008. p. 155).

Essa nova mulher, tema e personagem na obra de Dina Salústio, além de estar relacionada à identidade
de gênero, também está aliada à identidade nacional (GOMES, 2008). Ao analisarmos o próprio título da

Revista Prâksis | Novo Hamburgo | a. 15 | n. 2 | jul./dez. 2018


138
Demétrio Alves Paz e Mithiele da Silva Scarton
p-ISSN: 1807-1112
e-ISSN: 2448-1939

obra, que remete a um estilo musical (Morna), cantado por mulheres e parte importante da cultura de
Cabo Verde, percebemos um país que precisa repensar o papel da mulher, que luta e vive nesse país de
vários rostos e vozes. As obras de autoras cabo-verdianas, tais como Orlanda Amarílis, Dina Salústio e
Fátima Bettancourt, ajudam a pensar a mulher contemporânea e a sua contribuição para a construção da
nacionalidade, da política e da cultura contemporânea de sua nação.
Dina Salústio, para Gomes (2008, p. 220), “Inaugura uma nova forma de comunicar e um novo modo
de percepção do mundo” na ficção cabo-verdiana. Esse novo modo de comunicar está relacionado ao
enfoque que a autora proporciona à própria mulher não só relacionada à cultura, mas também às situações
sociais e existenciais cristalizadas ou estagnadas no país. Sobre a condição da mulher, principalmente
referente à participação econômica, Simone Caputo Gomes relata:

A mulher é normalmente chamada a realizar tarefas na agricultura, como a sementeira,


a colheita, o descasque e a transformação do produto; por vezes, faz trabalhos pesados,
como carregar pedregulhos ou latões de cascalhos à cabeça na frente de abertura de
estradas na rocha, ajudando o homem, ao mesmo tempo em que se desdobra para
cumprir tarefas domésticas, como cuidar do filho pequeno, transportar lenha, recolher
água (para o que precisa percorrer grandes trajetos), ou fazer funcionar o grande fogão
de pedra (GOMES, 2008, p. 162).

Sobre as tradições e costumes que são passados de geração em geração, GOMES (2008) afirma que

A importância das mulheres na sociedade crioula como transmissoras de cultura é o


primeiro ponto que devemos examinar. São elas que se ocupam da educação das
crianças na época da aquisição da linguagem; através delas se dá a transmissão de
uma série de práticas e comportamentos: as tradições da comunidade, os costumes, a
religião, as crenças, a culinária, a música, etc. (GOMES, 2008, p. 161).

Esses diferentes retratos de mulher veremos nos contos de Dina Salústio.

3 A CONDIÇÃO FEMININA EM MORNAS ERAM AS NOITES


Para a análise da obra, escolhemos os seguintes contos: “Liberdade adiada”, “A oportunidade do grito”,
“E porque havia de não gostar”, “Mãe não é mulher”, “Forçadamente mulher, forçosamente mãe”, “Álcool
na noite”, “Please come back to me”, “O que é isso de liberdade?” e “Conversas de comadres”. Daniel
Spínola soube sintetizar bem o que a escrita de Dina Salústio transmite:

Parece-me que a escrita para ela é uma necessidade premente de estabelecer uma
ponte entre o interior das personagens que cria e a realidade do leitor, muitas vezes
ultrapassando pelos pormenores aparentemente insignificantes e desconexos

Revista Prâksis | Novo Hamburgo | a. 15 | n. 2 | jul./dez. 2018


139
Demétrio Alves Paz e Mithiele da Silva Scarton
p-ISSN: 1807-1112
e-ISSN: 2448-1939

que o rodeia. É uma necessidade humana de utilizar a linguagem como veículo de


comunicação e de revelar a energia da atividade, da existência, e também como uma
forma de preencher o vazio, ou um meio de compensação. Ela é, pois, participante,
cúmplice e denunciadora da sociedade em que vive, dos seus agravos e realidade, na
medida em que nunca se aliena do real gritante, malgrado as transfigurações que às
vezes experimenta (SPÍNOLA, 1998, p. 206).

Assim, percebe-se na obra da escritora cabo-verdiana uma necessidade de representar o seu país,
seus problemas e suas mulheres.
No primeiro conto da obra, “Liberdade adiada”, já é perceptível a trajetória de uma mulher esgotada
com as dores que carrega dentro de si: “Sentia-se cansada. A barriga, as pernas, a cabeça, o corpo todo
era um enorme peso que lhe caía irremediavelmente em cima.” (SALÚSTIO, 2002, p. 5). Pensa em se
atirar de um barranco, pois já não aguentava mais a vida que levava. Pensa nos filhos, aqueles filhos
que odiava e “o barranco olhava-a, boca aberta, num sorriso irresistível, convidando-a para o encontro
final” (SALÚSTIO, 2002, p. 5). Apesar de pensar em suicídio, é a lembrança de seus próprios filhos que
desencadeia a mudança, ao serem recordados com amor: “Como ela os amava, Nossenhor!” (SALÚSTIO,
2002, p. 6). Eles são a única razão para que a sua liberdade fosse adiada. No conto, a morte é uma
representação da liberdade para esta mulher, porém a lembrança dos filhos faz ela adiar a sua libertação.
Em “A oportunidade do grito”, Elsa precisa vencer a tristeza e para isso tem uma amiga que luta,
briga para superar as fraquezas. A narradora, amiga de ambas, observa a discussão das duas. Nessa
comparação entre uma mulher vencedora e uma que se entrega, temos, nos próprios conselhos, a
necessidade de ser forte: “Pedes a Deus? Idiota! Tens é que discutir com ele. Enfrenta-o como mulher.
Mostra-lhe as tuas razões. Grita se for preciso” (SALÚSTIO, 2002, p. 8). A condição da mulher como
inerte frente às circunstâncias da vida é inaceitável, pois, no final do conto, o prazer com que a narradora
apresenta o desfecho da discussão das duas: “De repente eu percebi que ela era uma mulher vencedora
por que enfrentava com garra todas as situações, mesmo que a situação se chamasse Deus. Encostei-me
a mim mesma gozando o prazer da descoberta”. A narradora tem uma epifania, de tal modo que aquilo
que estava sendo dito pela dita “vencedora” (o nome dela não é revelado) fosse algo novo à condição
demonstrada pelas outras personagens.
Dos nove contos selecionados para análise, o único com narrador heterodiegético (GENETTE, 2017) é
“E porque havia de não gostar”. Nele, há o eterno confronto entre passado versus presente, sonhos versus
realidade. Sete amigas refletem sobre desejos e o que ficou para trás: “Sete mulheres. Nenhuma delas
médica, nenhuma pianista, nenhuma atriz, nenhuma assunto de notícia. Possivelmente nenhuma delas
mulher má” (SALÚSTIO, 2002, p. 28). Todas desejaram algo, mas não concretizaram e não conseguem

Revista Prâksis | Novo Hamburgo | a. 15 | n. 2 | jul./dez. 2018


140
Demétrio Alves Paz e Mithiele da Silva Scarton
p-ISSN: 1807-1112
e-ISSN: 2448-1939

viver o presente sem uma certa nostalgia. Uma delas chega a dizer: “– Somos o passado e por isso
rejeitamos o presente” (SALÚSTIO, 2002, p. 28). E essa rejeição do presente desencadeia uma letargia
nelas, incapacitando-as de vislumbrar um futuro diferente.
Há duas histórias em “Mãe não é mulher”. A primeira é a de um jovem que leva um tapa da mãe e
acredita que nunca terá barba, pois, segundo seus amigos, “bofetada de mulher na cara de rapaz impedia
a barba de crescer” (SALÚSTIO, 2002, p. 33). A agressão materna reverbera no homem ao ficar sem
barba. Contudo, busca nas histórias de Maria, que sua mãe tanto se identificava, assim como as ilustrava
para comparar com a vida que levava. O imberbe acaba justificando assim: “Se Jesus dizia que mãe podia
bater na cara, mulheres é que não, então não havia motivo para preocupações” (SALÚSTIO, 2002, p. 34).
A segunda história é a da narradora que esclarece o título do conto: “Ao contar-vos esta história,
lembro-me de uma vez que um dos meus filhos, ainda adolescente e confuso, me perguntou: Mãe, se tu
fosses mulher, tu gostavas de mim?” (SALÚSTIO, 2002, p. 34). Em ambas narrativas, a maternidade não
condiz com a feminilidade, de tal forma que parecem ser antagônicas pela visão de cada um dos filhos
tanto na primeira como na segunda história.
“Forçadamente mulher, forçosamente mãe” é um conto cíclico em que a primeira oração é também a
última, demonstrando que o tempo passa, mas certas condições não mudam. Paula, assim como milhares
de outras adolescentes em Cabo Verde será mãe, sozinha e despreparada. A jovem, tal como o título
do conto, transforma-se, forçadamente, em mãe e mulher. A metamorfose é rápida e extremamente
dolorida, pois não há preparação, muito menos vontade. O início do conto é bem ilustrativo disso:

Em setembro fará calor. Para setembro Paula terá seu filho. Ainda há dias ela ria e
dançava pelos cantos. E juntava conchinhas cor de rosa na praia. E colecionava sonhos.
Que é das conchinhas? Que é dos sonhos? Hoje carrega penosamente uma barriga
enorme (SALÚSTIO, 2002, p. 35).

Muitas meninas têm de trocar os sonhos da adolescência pelo peso da criação de um filho. E Paula é
mais uma delas. Segundo GOMES (2008), essa é uma realidade em Cabo Verde.

É elevado o número de mulheres donas-de-casa, assim como altíssima a taxa de


analfabetismo na faixa de mulheres com idade superior a 25 anos (entre 80 e 90% na
década de 1980). A maternidade precoce, a alta taxa de aborto clandestino, o alcoolismo
e a prostituição, aliados ao analfabetismo, são entraves significativos à emancipação
feminina neste contexto (GOMES, 2008, p. 163).

O álcool é uma fuga, uma possibilidade de esquecer problemas e responsabilidades, ainda que
momentaneamente, tal como ocorre no conto “Alcool na noite”. O narrador observa a noite, que estava

Revista Prâksis | Novo Hamburgo | a. 15 | n. 2 | jul./dez. 2018


141
Demétrio Alves Paz e Mithiele da Silva Scarton
p-ISSN: 1807-1112
e-ISSN: 2448-1939

calma e convidativa a contemplar estrelas. De repente, ele ouve algo que parece “sair dos intestinos de
algum bicho do que de uma garganta humana” (SALÚSTIO, 2002, p. 47). Na verdade, são duas mulheres
cantando. Ao chegarem mais perto, ele percebe que ambas estão bêbadas, são jovens e mantêm-
se equilibradas uma na outra. Escuta, igualmente, uma voz de criança perguntando: “– Mamã, es tu
mamã?” (SALÚSTIO, 2002, p. 48). E a resposta da mãe: “– Que mania essa de andares atrás de mim
feito cachorro? Qualquer dia te desfaço.” (SALÚSTIO, 2002, p. 48). O narrador, após presenciar as cenas
descritas, questiona o porquê de uma abordagem desigual para as mulheres. Esse olhar para o outro
como distinto e ver que há um tratamento diferenciado faz com que o leitor também se questione a
respeito da condição e da percepção que os homens têm das mulheres.
A narradora autodiegética de “Please come back to me” conta a sua história de amor com John. Há
um casal, duas línguas: ela falava português, ele inglês, dois mundos diferentes, mas uma linguagem em
comum: a paixão. Ela, que assume ter péssimo conhecimento de inglês, quer agradar seu amado. Uma
noite, ao pedir-lhe (em inglês) que a abraçasse, ele inicia a bater nela, indo embora em seguida e nunca
mais procurando-a.
Alguns dias depois do ocorrido, ao encontrar um amigo em comum, ela conta o que aconteceu naquela
fatídica noite. Ele, compreendendo agora o que, de fato, se passou entre o casal, explica que, ao invés de
dizer abraça-me, ela tinha dito bata-me. Após compreender que tudo não passou de um problema de
comunicação, ela tenta aprender inglês para melhor se comunicar com ele. Contudo, a guerra no Golfo
inicia e ela perdera o contato, não podendo falar a única coisa que aprendera em cinco meses de aulas:
“Por favor, volta para mim?” (SALÚSTIO, 2002, p. 44).
O reencontro de duas amigas que há anos não se viam é a premissa de “O que é isso de liberdade?”. A
narradora encontra uma amiga que fala sobre sua liberdade depois do divórcio. Antes, ela sentia-se presa
pelo marido, agora, após a separação, constata que pode fazer aquilo que sempre quis. A narradora percebe
como a outra emagreceu e parecia realmente melhor, mas estranha algo: “Enquanto falava, vi-a inteligente,
batalhadora, realizada. Então por que todo aquele vazio?” (SALÚSTIO, 2002, p. 52). A amiga relata que mudou
completamente de vida: sentia-se livre por não ter mais de fazer as vontades do ex-marido. Entretanto, a
narradora, dias depois do encontro, questiona-se: “Terá dançado na passagem do ano ou apenas abriu a
janela para imaginar a vida lá fora?” (SALÚSTIO, 2002, p. 52). O título, em forma de pergunta, deixa claro que
a liberdade não se conquista facilmente, requer mais do que palavras e mudanças de hábitos: necessita de
ações e uma tranquilidade que não é perceptível na personagem do conto.
Ao descobrir “uma verdade grande, bonita e tão minha que a escondia de toda a gente” (SALÚSTIO,
2002, p. 73), a narradora de “Conversas de comadres” passa a ser motivo de preocupação de suas amigas.

Revista Prâksis | Novo Hamburgo | a. 15 | n. 2 | jul./dez. 2018


142
Demétrio Alves Paz e Mithiele da Silva Scarton
p-ISSN: 1807-1112
e-ISSN: 2448-1939

Qual seria o motivo de tanta felicidade? “- Estamos preocupadas, porque já não és mais a mesma e
damos conta de que algo de grave se passa contigo” (SALÚSTIO, 2002, p. 73). Em um chá com as amigas,
reunidas, ao que parece, exclusivamente para sondá-la a respeito da sua mudança, ela percebe que todas
querem uma parte da sua felicidade. Depois de mentir sobre o motivo de tanto deleite, ela percebe que as
amigas estavam privando-a da sua descoberta. Dessa forma, a narradora age radicalmente: “Levantei-
me e arrastei-me para a vida, quase sem ela” (SALÚSTIO, 2002, p. 74).
As narrativas de Mornas eram as noites possuem algo de documental, isto é, apresentam problemas
reais de Cabo Verde, de tal forma que Spínola (1998) concebe que

São contos, ou talvez crónicas. Crónicas do dia a dia, vividas e não-vividas, imaginadas
e não-imaginadas, ora de plangências profundas, ora de deleitantes constatações
ou reimpressões de factos. [...] são também histórias, histórias do quotidiano, reais
e virtuais, imaginários deste mundo nosso, concêntrico e circular, enrolado sobre si
mesmo e sobre suas vísceras (SPÍNDOLA, 1998, p. 207).

Tanto as vivências narradas quanto o modo como Dina Salústio apresenta a realidade dessas mulheres
fazem com que a crônica seja um dos pontos positivos para recriar e fortalecer ainda mais as dificuldades
de reconhecimento e emancipação dessas mulheres, sendo possível um olhar mais atento ao contexto
histórico-social de Cabo Verde. A partir desse pensamento de construção de uma realidade igualitária
e de toda condição feminina analisada nos contos da obra, percebemos que há algum progresso frente
à desconstrução de uma sociedade pautada tão fortemente sobre a desigualdade de gênero. Houve a
criação, por volta de 1981, de uma associação que cuide dos interesses da mulher. Especifica GOMES
(2008, p. 163):

Uma associação destinada à luta pela emancipação da mulher, através do aprimoramento


das práticas que a colocam como centro gerador da cultura crioula. A 27 de março
funda-se a OMCV (Organização das Mulheres de Cabo Verde), cujo trabalho pudemos
acompanhar em visita recente às delegações das ilhas de São Vicente e Santo Antão.
A OMCV entende a emancipação como processual, como conquista gradual do espaço
feminino na sociedade, criando condições objetivas e subjetivas que permitam à mulher
participar nas transformações de suas condições de vida, bem como na promoção de
sua plena integração no desenvolvimento do país.

A emancipação feminina, que está em processo de conhecimento para as mulheres cabo-verdianas


não é só algo essencial à vida delas, mas sim de toda sociedade que carrega o pressuposto de que a
mulher não é capaz. A Cultura é uma das principais esferas que está em constante mudança. Sobre ela,
Chimamanda Adichie (2017, p. 48) ressalta que “A cultura não faz as pessoas. As pessoas que fazem

Revista Prâksis | Novo Hamburgo | a. 15 | n. 2 | jul./dez. 2018


143
Demétrio Alves Paz e Mithiele da Silva Scarton
p-ISSN: 1807-1112
e-ISSN: 2448-1939

a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então temos que
mudar nossa cultura”. A forte manifestação do mesmo pensamento nas obras de Dina Salústio nos fez
questionar acerca do poder dessas mulheres numa sociedade que é basicamente movida por elas, mas
que não as reconhece como verdadeiros pilares que sustentam tudo e todos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer da leitura de Mornas eram as noites, destacamos a condição feminina em Cabo Verde e tudo
o que as narrativas proporcionam de reflexões acerca da trajetória das personagens. Percebemos a força
com que essas mulheres enfrentam o mundo e as difíceis escolhas que têm de fazer ao seu redor. Em
quase todos os contos há um momento epifânico, em que as personagens descobrem algo, principalmente
o que é ser mulher. O sentimento de cumplicidade que o leitor estabelece com as personagens, por meio
da escolha dos narradores, põe em foco vivências que muitas vezes estão além do literário, estão, pois,
em nosso dia a dia, como a difícil realidade de ser mulher numa sociedade tradicionalmente patriarcal e
que evidencia esse não-pertencimento.
As mulheres de Dina Salústio são mães, são amigas, são adolescentes, mas são, acima de tudo,
fortes, mesmo que ainda sejam vítimas de violência, de descaso e de incompreensão. As personagens
contam uma história de Cabo Verde, falam da sociedade, dos sentimentos íntimos de mulheres, e nos
fornecem um pedacinho de pertencimento frente ao pouco que podemos conhecer da sua insularidade
e experiências (SALÚSTIO, 1998). Nessa multiplicidade de discursos, visto por mulheres de diferentes
idades e classes sociais, há uma visão panorâmica da condição feminina em Cabo Verde.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. Companhia das Letras: São Paulo, 2017.

FERREIRA, Manuel. Literaturas africanas de expressão portuguesa. São Paulo: Ática, 1987.

GENETTE, Gérard. Figuras III. São Paulo: Estação Liberdade, 2017.

GOMES, Simone Caputo. Mulher com Paisagem ao Fundo: Dina Salústio Apresenta Cabo Verde. In:
SEPÚLVEDA, Maria do Carmo; SALGADO, Maria Teresa. África & Brasil: letras em laços. São Caetano do
Sul: Yendis editora, 2006.

Revista Prâksis | Novo Hamburgo | a. 15 | n. 2 | jul./dez. 2018


144
Demétrio Alves Paz e Mithiele da Silva Scarton
p-ISSN: 1807-1112
e-ISSN: 2448-1939

GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde: literatura em chão de cultura. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.

LARANJEIRA, Pires. Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta, 1995.

SALGADO, Maria Teresa. Noites nada mornas de Dina Salústio: a oportunidade do diálogo. Abril, Niterói,
v. 1, n. 1, p. 36-40, ago. 2008.

SALÚSTIO, Dina. Insularidade na Literatura Cabo-verdiana. In: VEIGA, Manuel. (Org.). Cabo Verde:
Insularidade e Literatura. Paris: Karthala, 1998.

SALÚSTIO, Dina. Mornas eram as noites. Praia: INL, 2002.

SANTILLI, Maria Aparecida. Literaturas de Língua Portuguesa: Marcos e Marcas – Cabo Verde: Ilhas do
Atlântico em prosa e verso. São Paulo: Arte & Ciência, 2007.

SPÍNOLA, Daniel. Mornas eram as noites. In: VEIGA, Manuel (Org.). Cabo Verde: Insularidade e
Literatura. Paris: Karthala, 1998.

Revista Prâksis | Novo Hamburgo | a. 15 | n. 2 | jul./dez. 2018


145
Demétrio Alves Paz e Mithiele da Silva Scarton

Você também pode gostar