De Deo Socratis - A Demonologia No Império Greco-Romano - Luiz Karol

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Desalinho

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De deo Socratis:
a demonologia no Império Greco-Romano
Luiz Karol

1ª Edição – Copyright© 2018 Desalinho e Luiz Karol


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Luiz Karol

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


De deo Socratis: a demonologia no Império Greco-Romano / Luiz Karol. —
Rio de Janeiro: Desalinho, 2018.
184 p.; 24 cm
ISBN: 978-85-92789-06-0
1. Apuleio. 2. Demonologia. 3. Platonismo Médio. I. Título.
CDD 184
CDU 141
Sumário
Apresentação [9]
Prólogo [15]
Introdução [17]
Sobre o texto [21]
Elaboração deste trabalho [22]
Divisão [22]
Sobre a tradução [23]
1. O autor em seu tempo [25]
1.1. Apuleio: vida, obra e panorama histórico [28]
1.2. Contexto literário do século II d.C. [44]
2. O autor e sua obra [53]
2.1. Obras filosóficas e gerais [53]
2.2. Descrição das obras [55]
3. Demonologia [83]
3. 1. A demonologia na Antiguidade [83]
3.2. A demonologia antes de Platão [85]
3.3. Platão [88]
3.4. Seguidores e continuadores de Platão [89]
3.5. A demonologia em Roma [90]
4. Introdução a De Deo Socratis [93]
4.1. Síntese descritiva da obra [93]
4.2. Estrutura, análise e comentários [99]
5. De deo Socratis [123]
5.1 Texto e tradução [123]
6. Conclusão [173]
7. Bibliografia [177]
Sobre o autor [183]
À minha avó, Amélia (in memoriam)
A meus pais (in memoriam)
Graça, Isis e Felipe
Georgina Marçal
Naira Sampaio.
Ao meu orientador
Anderson Martins Esteves.
À banca examinadora,
Amós Coêlho, Arlete Mota,
Claudia Martins e Ricardo Nogueira,
meus sinceros agradecimentos.
[9] Apresentação
RICARDO DE SOUZA NOGUEIRA

Aguns termos da Antiguidade adquirem todo um campo semântico que,


pela sua complexidade e pluralidade de ideias, chega a perpassar por
civilizações e culturas, gerando o fascínio de intelectuais da atualidade que se
colocam a estudá-los nos seus vários contextos históricos e sociais, que são as
molas de ampliação dos conceitos surgidos. A palavra grega daímon, -onos,
transferida para o latim como daemon, -onis, é um desses termos que vão a
cada momento ampliando os seus significados, em meio à literatura de
autores de talento incomensurável, tal como Apuleio, criador da obra
filosófica De deo Socratis, O deus de Sócrates, que se encontra traduzida,
inserida em seu contexto histórico e social e ainda analisada nesta inestimável
publicação, denominada ‘De deo Socratis: a demonologia no Império Greco-
Romano’, empreendida pelo latinista Luiz Karol, Professor Doutor de Língua
e Literatura Latina da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ. É importante frisar ainda que os resultados constantes neste
livro foram desenvolvidos durante a pesquisa de doutorado do autor na Linha
de Pesquisa O Discurso Latino Clássico e Humanístico do Programa de Pós-
graduação em Letras Clássicas da UFRJ.
As duas civilizações aqui envolvidas, a grega e a romana, definem,
sintetizam e relacionam os dois espaços intelectuais da Antiguidade
remontados no tocante ao assunto do livro ora apresentado: a Atenas Clássica
de Sócrates e Platão e o Platonismo Médio de Apuleio, mais precisamente no
âmbito de construção de seu escrito filosófico De deo Socratis. O primeiro a
pensar sobre o daímon do filósofo ateniense Sócrates foi seu próprio
discípulo Platão, que ressuscita seu [10] mestre por meio de seus diálogos,
concedendo ao seu personagem uma espécie de consciência-divindade (ou
gênio), que, transitando entre o divino e o mundo dos homens, lhe concedia a
capacidade de estar preparado para dialogar com seus interlocutores em
qualquer situação. Repensando o daímon ou daímones, no plural, em um
tempo bem posterior, Apuleio traz ao estudo a sua originalidade, ao construir
o seu próprio conceito do termo, definindo-o em meio a uma obra (na
verdade, uma palestra para ser proferida a uma audiência) que, por sua forma
e conteúdo, se assemelha a um verdadeiro tratado sobre os daímones e, mais
especificamente, sobre o daímon socrático, em uma linguagem de proposta
intelectual que visa a desvelar e explicar o tema.
Poucos estudiosos conseguem ser tão organizados como Luiz Karol em
seu livro e perscrutar, de maneira tão eficiente, um autor da Antiguidade, seu
momento e suas obras. Após uma introdução em que o pesquisador antecipa
resumidamente o conteúdo a ser trabalhado e explana como esse todo se
organiza, mencionando ainda informações sobre o texto latino traduzido,
apresentam-se cinco capítulos que são compostos de preciosas e prazerosas
letras que enchem de saber o leitor ao farfalharem em cada virada de página,
em uma estruturação harmoniosa e perfeita para transmitir tudo o que é
necessário para conhecer a fundo, e na medida do possível, Apuleio, seu
tempo, suas obras, o tema a ser discutido (a demonologia) e, finalmente, a
obra De deo Socratis, em tradução exemplar para o português, com a
presença ainda do texto latino para o cotejamento dos estudiosos entre o texto
editado original e as soluções do autor, apresentadas na língua de chegada.
O primeiro capítulo, denominado O autor em seu tempo, é dedicado ao
homem Apuleio e aos fenômenos históricos que, de alguma maneira,
contribuíram tanto para a existência de tal autor, que se definia como
philosophus Platonicus, quanto para o estabelecimento, em pleno século II
d.C., de uma filosofia que, buscando suas bases na Grécia Clássica em meio à
filosofia platônica e passando por Aristóteles e pelas primeiras manifestações
do epicurismo e estoicismo, soube ser original, ao expressar um momento
posterior que muito bem explica o mundo surgido após o Período
Alexandrino. Se, nesse momento bem distante das póleis gregas, o
entendimento do homem como cidadão do mundo, criatura comum
pertencente a uma gê oikouméne, terra habitada, [11] se mantém, deve-se
salientar que o seu espaço será repensado pela nova filosofia surgida. O
pesquisador Luiz Karol, de maneira clara e didática, fornece dados
inestimáveis para compreensão desse mundo e para a inserção de Apuleio em
seu âmbito, mais notadamente, nos dois subcapítulos dessa parte inicial, a
saber, o primeiro, intitulado Apuleio: vida, obra e panorama histórico e o
segundo, Contexto literário do século II d.C..
No segundo capítulo, que foi nomeado de O autor e sua obra, Luiz Karol
brinda o leitor com um raro apanhado geral das obras de Apuleio,
comentando detalhadamente cada uma delas e apontando onde se insere a
obra De deo Socratis, que sabiamente não é debatida nesse capítulo, uma vez
que se prestará a foco de análise no decorrer de toda a parte restante do livro.
Esse material encontra-se organizadamente dividido em dois subcapítulos
que visam a esgotar as informações sobre a totalidade das obras do autor
latino: o primeiro foi denominado Obras filosóficas e gerais, e o segundo
Descrição das obras.
No terceiro capítulo, intitulado Demonologia, Luiz Karol se lança por
completo ao tema central de seu livro: o estudo da demonologia antiga. O
autor faz uma investigação de seu fugaz objeto de estudo, partindo da
Antiguidade anterior a Platão para evidenciar todo o processo gerador de
conceitos e visões a respeito do daímon até chegar a Roma. Nessa parte
fundamental, foi possível estabelecer a relação entre Grécia e Roma e trazer
para o âmbito de discussão a filosofia platônica, como fonte primeira de
processos que foram se agrupando para formar a visão de demonologia em
Roma, essencial para se compreender a obra de Apuleio em pauta. Dessa
maneira, tal capítulo, em divisão mais extensa que os dois primeiros,
encontra-se seccionado em cinco partes cujo objetivo é apresentar, de modo
lógico e preciso, a ponte a respeito do daímon que perpassa por ambos os
pólos de interesse da Antiguidade Clássica. Primeiramente, há o subcapítulo
A demonologia na Antiguidade, seguido por A demonologia antes de Platão;
Platão; e Seguidores e continuadores de Platão. O subcapítulo A
demonologia em Roma finaliza o substancial trajeto de informações
históricas, sociais e filosóficas que se encerram na totalidade dessa parte.
O quarto capítulo, denominado Introdução a De deo Socratis, focaliza
unicamente o estudo da obra De deo Socratis, de Apuleio, sendo que
justifica, na verdade, a existência de todos os outros capítulos antecedentes,
uma vez que foram compostos com vista a desembocar na [12] explicação e
entendimento dessa obra da Antiguidade. Essa parte se divide em dois
subcapítulos que funcionam como um verdadeiro guia de leitura para a
complexidade da obra a ser apreciada pelos leitores. O primeiro, de caráter
mais descritivo, tem o título de Síntese descritiva da obra, e o segundo, de
cunho mais analítico e com o objetivo se apresentar a estruturação do texto,
denomina-se Estrutura, análise e comentários da obra.
Após instruir o seu leitor desde o início de sua publicação, o pesquisador
Luiz Karol deixa chegar, por fim, o tão aguardado momento de expor aos
olhos e mentes de todos a sua esplendorosa tradução da obra De deo Socratis,
no capítulo homônimo. Por motivos de se alçar à forma de uma organização
eficiente, essa parte encontra-se dividida em um único subcapítulo,
denominado Texto e tradução, que apresenta todos os 24 livros que compõem
a obra, com cada um deles contendo o texto latino original seguido da
tradução para o português, o que permite ao leitor, sobretudo aquele que é
conhecedor da língua latina, a melhor apreciação possível do texto em latim
em relação com a proposta de tradução construída, uma vez que poderá, a
todo o momento, durante a leitura de cada livro, cotejar, refletir e aprimorar o
seu conhecimento a respeito das informações apresentadas pelo autor latino,
já que esse leitor se encontra centrado em cada bloco (latim e português),
havendo a possibilidade do afã de resolvê-los por vez e em ordem.
O extenso e primoroso trabalho realizado pelo pesquisador Luiz Karol se
fecha com uma conclusão, que visa a evidenciar questões pontuais acerca do
estudo desenvolvido, e com uma meticulosa bibliografia sobre livros
importantes que, de alguma maneira, elucidam o tema de seu livro ainda
muito pouco estudado no Brasil. Após essas partes finais, lançando-se um
olhar sobre o todo, pode-se perceber o quanto é inquestionável a organização
do presente livro para fins didáticos, seja para latinistas interessados no
assunto, seja para leitores leigos que amam e buscam, como os filósofos, o
aprendizado.
De resto, deve-se apenas louvar a excelência de um trabalho que, por si
mesmo, dignifica as pesquisas desenvolvidas nas Universidades e justifica a
necessidade de tais espaços, e, em especial, do reservado à universidade
pública, como ambiente de aprimoramento e construção do saber. Sendo um
dos mais competentes e originais estudos pretendidos sobre o tema
discorrido, afirma-se, sem sombra de dúvida, que [13] o presente livro é uma
grande contribuição aos estudos clássicos em solo nacional e motivo de
orgulho para latinistas e helenistas, sobretudo para aqueles envolvidos, de
alguma maneira, na realização desta publicação.
Dr. Ricardo de Souza Nogueira
Professor de Língua e Literatura Grega da UFRJ
Coordenador do Programa de Pós-graduação
em Letras Clássicas da UFRJ
[15] Prólogo

O segundo século de nossa era foi um momento ímpar na história da


humanidade, pelo menos no que tange ao Império Romano, que, por
assimilar e proteger a herança da cultura grega, tornara-se aquilo que Paul
Veyne designa por Império Greco-romano. Mesmo tutelados pelo poder
romano, os gregos desse período tentam restabelecer a grandiosidade de suas
πόλεις. Trata-se então do período conhecido como a Segunda Sofística, em
que oradores gregos percorrem todo o Império disseminando o saber
filosófico mediante apresentação de palestras. Coexistem as vertentes do
Epicurismo, Estoicismo e Platonismo Médio, temperadas com um pouco de
Aristotelismo. Das três vertentes, a última sempre foi muito pouco estudada,
pelo menos no que tange à Literatura Latina. Apuleio de Madaura, em suas
próprias palavras, um filósofo platônico, a exemplo dos sábios da Segunda
Sofística, tornara-se um orador de concerto de muito sucesso em Cartago e
legou-nos três obras sobre filosofia platônica. Nosso trabalho versará sobre
uma delas, De deo Socratis, palestra proferida em latim sobre um dos mais
instigantes assuntos do Platonismo Médio, os daemonēs. Trata-se do único e
mais abrangente documento em latim a tratar do assunto, ao contrário dos
demais documentos, em grego e latim, que o tratam somente como assunto
subalterno. O presente trabalho parte da tradução do original latino, acrescida
de uma contextualização histórica, literária, comentários e notas sobre o
texto.
[17] Introdução

De deo Socratis é um dos textos mais curiosos sobre o amálgama que foi
a civilização grego-romana nos primeiros séculos de nossa era. Não se trata
de um tema muito conhecido, embora há muito já existisse uma profusão de
referências textuais a ele. Desde Heráclito a Plotino, passando
obrigatoriamente por Platão, fala-se no daemōn, de várias formas e maneiras.
Em outras palavras, essa figura perpassa todo pensamento filosófico-religioso
dos gregos, desde Heráclito e Hesíodo, até os neoplatônicos, mas,
curiosamente, e principalmente em virtude do desenvolvimento do
cristianismo, o assunto permaneceu nas sombras até final do século XIX1,
quando o texto que resolvemos estudar foi traduzido em inglês2 e, no século
passado, em francês3 e italiano4. Lembramos que os estudos sistemáticos
sobre esse texto datam apenas do século passado quando começaram a
aparecer estudos5 e edições críticas6.Sobre o autor, cumpre-nos elucidar a
escolha e o caminho até ele: no terceiro capítulo de À rebours, de Huysmans
[18] (1903, p. 34), lido há muitos anos, o autor descreve, com uma
adjetivação profusa, suas impressões sobre Apuleio, especificamente sobre a
obra Metamorfoses:

Esse africano o7 deleitava; a língua latina alcançava o auge8 em suas


Metamorfoses; ela revolvia o lodo, variadas águas, provenientes de todas as
províncias, e todas se misturavam, se confundiam num matiz caprichoso, exótico,
quase novo; maneirismos, novos detalhes da sociedade latina confluíam em
neologismos criados para as necessidades da conversação num recanto romano da
África; de resto, sua jovialidade de homem evidentemente gordo, sua exuberância
meridional divertiam9.

Lançando-nos à leitura, descobrimos que, por trás de todo esse espetáculo


de linguagem, havia uma segunda mensagem, quase iniciática, de redenção,
que descrevia, mediante a utilização do personagem-asno Lúcio, o mesmo
caminho, mutatis mutandis, dos habitantes da caverna de Platão em direção à
luz, ou seja, ao conhecimento. Esse paralelismo nos levou, primeiramente, a
uma breve pesquisa sobre a obra publicada de Apuleio e à sua aquisição; em
seguida, à separação dos textos que versavam sobre Filosofia, e, finalmente, à
escolha do texto mais agradável e instigante sobre o assunto. Daí a escolha de
De deo Socratis. Único texto latino que aborda o assunto da demonologia
medioplatônica de forma abrangente e minuciosa. O preciosismo linguístico
[19] apontado por Huysmans, indicando o afastamento entre o latim de
Cícero e de Apuleio, constituiu, da mesma forma, um motor de nossa
curiosidade sobre o madaurense.
A relevância do estudo, evidentemente, além do fato de esta ser o único
texto supérstite em latim sobre o assunto, reside principalmente em duas
motivações importantes: o fato de a figura do daemōn ser um elemento de
introdução de racionalidade nas estruturas de pensamento do Platonismo
Médio e também a nossa curiosidade sobre como o modus cogitandi latino se
apodera desses fenômenos. Além do mais, todos os autores desse período em
que viveu Apuleio, trataram desse assunto, e ele, como se arrogava o título de
philosophus platonicus, além de ter escrito o tratado, mais genérico, De
Platone et eius dogmate, em que cita os daemonēs, escreveu também um
tratado, na forma de discurso epidíctico, em que essas entidades tornam-se o
assunto principal, à diferença de outros autores, como Plutarco, que o faz
assunto subalterno às suas necessidades discursivas. Segundo Beaujeu (2002,
p.5 ss.), Margagliotta (2012, p.67) e Timotin (2012, p.112), trata-se do mais
completo “manual” sobre o assunto, apesar de suas pequenas imprecisões de
detalhe. Além disso, debruçar-se sobre o segundo século de nossa era reveste-
se de grande importância para o desenvolvimento e atualização dos estudos
clássicos no Brasil, uma vez que nele se realiza verdadeiramente a síntese dos
espíritos helênico e latino, naquilo que Paul Veyne chama de O império
greco-romano10.
Mas o que são os daemonēs? São entidades divinas intermediárias
(mediōximī) responsáveis pelo contato dos homens com os deuses superiores:

Em todos os países, em todos os tempos, acha-se comumente disseminada a crença


em seres sobrenaturais, de uma categoria inferior à dos deuses, intervindo
diretamente no rumo das coisas e especialmente dos negócios humanos, seres
benéficos, maléficos ou indiferentes, com quem o homem busca conciliar-se
mediante práticas religiosas ou mágicas; é o povo temível [20] e inumerável dos
espíritos, demônios, anjos e gênios de toda espécie, invisíveis, ativos e
perturbadores.11 (BEAUJEU, 2002, p. 184)

Tratava-se originalmente de um mito popular, simples entidades invisíveis


que estavam por toda parte observando os homens e, às vezes, se
intrometendo em seus negócios, ajudando ou atrapalhando. Os poetas e
filósofos desde muito cedo se apropriaram desse mito: Homero, Hesíodo,
Heráclito, Platão. Os filósofos, porém, tinham de ajustar as características
desses entes tanto aos seus propósitos pedagógicos quanto à sua metafísica
ou, mais propriamente, à sua teologia. Platão os apresenta no Banquete, na
Apologia de Sócrates, nas Leis e na República, sem nunca, entretanto,
dedicar-lhes uma obra específica, isto é, sem estabelecer uma demonologia
sistemática ou, pelo menos, as suas bases. Como dissemos acima, Apuleio faz
do daemōn o assunto principal de seu discurso. Em que pese o título, De deo
Socratis, o autor primeiramente faz uma brevíssima descrição do universo
segundo sua própria visão dos textos platônicos, passa a uma descrição dos
daemonēs em geral, em seguida a uma descrição do daemōn de Sócrates e,
finalmente, a um elogio da filosofia. Embora lhe seja negado, às vezes, o
título de filósofo, não se lhe pode negar o título de pensador e de platônico,
mais especificamente de pensador medioplatônico, tanto que Dillon (1996,
p.306 ss.), no que talvez seja a obra definitiva sobre o Platonismo Médio,
reserva ao nosso autor um extenso e minucioso capítulo.
Nosso objetivo, por conseguinte, é examinar a demonologia do
Platonismo Médio, do ponto de vista do modus cogitandi latino, conforme
apresentada por Apuleio em De deo Socratis. Com vistas a esse propósito,
empreendemos a tradução do texto original.
[21] SOBRE O TEXTO

De deo Socratis é uma palestra sobre os daemonēs para um público culto


de língua latina, ministrada provavelmente em Cartago por volta dos anos
150. Pode-se concebê-lo também como um manual que se propõe a
apresentar a esse público, de forma sistemática, o conjunto de conhecimentos,
populares e filosóficos, sobre esses seres transmitidos pela tradição platônica.
Apuleio tenta dar ordem às confusas ideias disseminadas sobre essas
entidades pelo Platonismo, Pitagorismo e pelas religiões de mistério,
mediante uma completa e articulada classificação dos daemonēs. Pode-se
afirmar então que a obra é um manual do que os homens esclarecidos da
época precisavam saber sobre os daemonēs. Friedrich Andres (apud
Margagliotta, 2012, p.67) afirma que De deo Socratis12 “pode ser
considerado superior em relação a todos os demais tratados da Antiguidade
Clássica a respeito desse assunto13”. Todos estes autores citados são
unânimes em afirmar que o texto se mostra mais conciso e sistemático que
De genio Socratis, de Plutarco, e mais elegante e rico que as Dialexeis de
Máximo de Tiro. Essa dissertação, pois, não se apresenta como um tratado
rigoroso. É antes de tudo um discurso destinado a esclarecer conceitos
religiosos e filosóficos, na sua forma popular, apresentando um estilo fluente,
leve e cheio de elementos retóricos que o afastam da gravidade, quase
aspereza, de um tratado filosófico.
Embora lhe falte o rigor característico desse tipo de tratado, a obra
mostra-se bem estruturada pela divisão em quatro seções principais, em
forma de narrativa, com poucas intervenções de um interlocutor imaginário.
Na introdução, o autor nos fala de deuses e homens; começando pela
tripartição dos deuses superiores, apresenta os deuses visíveis, isto é, os
astros, passando aos deuses invisíveis e terminando com os homens. Na
primeira parte, o autor descreve os daemonēs em sua generalidade, seu papel,
sua localização, características e classificação. Na segunda, trata
especificamente do daemōn de Sócrates, em que faz uma distinção entre
sabedoria e adivinhação definindo seus campos e a utilidade de cada uma
para o filósofo grego [22] e, por extensão, para todos os homens. Na última
parte, a conclusão, Apuleio dirige-se ao público em uma exortação à prática
da filosofia e culto do daemōn individual, fazendo também um curioso elogio
reabilitante do personagem homérico Ulisses.
ELABORAÇÃO DESTE TRABALHO

Esta obra é resultado de uma tese de doutorado defendida junto ao


Programa de Pós-graduação de Letras Clássicas, em outubro de 2016, tendo
como orientador principal do Prof. Dr. Anderson Martins Esteves. Em sua
composição foi fundamental, pari passu com a tradução do texto, a leitura
genérica de artigos e de autores que versam sobre Apuleio ou sobre a
demonologia no Platonismo Médio, a saber: Dillon (1996), com o estudo
pormenorizado dessa corrente filosófica intermediária, sendo considerada a
obra mais completa, quiçá definitiva, sobre o assunto; Beaujeu (1971), com o
texto estabelecido e a contextualização da obra dentro da evolução, embora
resumida, da demonologia; Harrison (2008), com a contextualização do autor
em seu tempo e seu espaço geográfico, e a análise dos aspectos particulares
da obra; Fletcher (2014), com a relação entre a filosofia e sua representação
em Apuleio; Margagliotta (2012), com um trabalho comparativo entre a
descrição do daemōn de Apuleio e de Plutarco, e finalmente Timotin (2012),
com o trabalho mais completo sobre esses seres na atualidade.
DIVISÃO

Nosso trabalho está dividido em sete partes, além desta Introdução: O


autor e seu tempo, em que falamos especificamente da vida do autor inserida
no grande panorama do complexo que foi o Império Greco-romano do século
II de nossa era, pontuando principalmente as características do espírito do
tempo (Zeitgeist) que poderiam, segundo nossa ótica, ter influenciado
Apuleio, ou, pelo menos, ter-se manifestado em seus escritos. Nesse mesmo
capítulo esboçamos os problemas referentes ao levantamento dos dados
biográficos do autor, sem, porém, buscar resolvê-los, haja vista que tal tarefa
exclui-se do escopo [23] deste trabalho. O autor e sua obra, em que
relacionamos a produção literária do autor, seguida de comentários julgados
necesários e pertinentes à construção do perfil literário do autor. No terceiro
capítulo, A demonologia, apresentamos um panorama histórico da
demonologia, desde os precedentes, anteriores a Platão, até sua manifestação
em Roma. No quarto capítulo, Introdução a De deo Socratis, à guisa de
prolegômenos à tradução, sumarizamos a obra em aspectos que julgamos
necessários à sua contextualização e intelecção, bem como apresentamos dela
uma análise e comentários mais pormenorizados dos aspectos relevantes da
obra. No quinto capítulo, Texto e tradução, incluímos o texto original e nossa
tradução. Segue-se o sexto e último capítulo, com a conclusão.
SOBRE A TRADUÇÃO

A tradução revelou-se uma tarefa um tanto árdua, haja vista o léxico


muito específico, às vezes único, adotado pelo autor, bem como os
significados discrepantes do sentido normal, na acepção estatística, que
alguns vocábulos tomam sob sua pena. Nesse aspecto, os dicionários Gaffiot,
Oxford Latin Dictionary (OLD) e Saraiva foram fundamentais, durante o
processo de tradução, por apresentar os sentidos específicos que alguns
vocábulos tomam na obra de Apuleio, mais especificamente em De deo
Socratis.
No texto em questão, procuramos seguir o lema atribuído pela tradição a
Eusébio Jerônimo de que a tradução tem de ser tão fiel quanto possível e tão
livre quanto necessária. Dessa forma, em pontos diversos, ora buscamos mais
reproduzir o estilo original do autor, na medida do possível, ora optamos por
maior inteligibilidade e fluência mais próxima da nossa língua. Frise-se aqui
que, apesar da autoridade da tradução do texto principal com que cotejamos,
em alguns momentos, discordamos em questões de detalhes, sem, todavia,
deixar de buscar fundamentação de plausibilidade nos demais comentaristas,
principalmente Timotin. Como exemplo, utilizamos vírgulas em passagens
em que o texto latino é direto; acrescentamos conjunções, principalmente
coordenativas, onde se apresentam vírgulas; inserimos anafóricos, seja
substantivos, seja pronomes, onde a coesão em [24] língua portuguesa ficava
prejudicada pela ausência dos aspectos morfossintáticos específicos das
flexões casuais latinas, mas sempre com parcimônia e muita cautela. Enfim,
sempre que possível, visamos o máximo possível a não destoar do texto
original latino.
Quanto aos nomes de personagens míticos, históricos e topônimos em
latim, procuramos seguir o Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa
da Academia das Ciências de Lisboa (1940) e a obra de referência Índices de
Nomes Próprios Gregos e Latinos (1995). Convém ressalvar, porém, que, em
virtude da diferença de acentuação gráfica entre o português brasileiro e o
europeu, tivemos de adaptar algumas grafias, trocando, por exemplo, os
acentos agudos das sílabas tônicas de algumas palavras proparoxítonas por
acento circunflexos, como é de norma no Brasil.
Além dos dicionários acima citados, valemo-nos em nossa tradução, do
Dicionário Oxford de literatura clássica, do Dicionário da mitologia grega e
romana (2005), de Pierre Grimal, do Dicionário Mítico-Etimológico da
Mitologia Grega (1991) e do Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia e
Religião Romana (1993) de Junito Brandão.
Como texto-base, adotamos a edição crítica de Jean Beaujeu (2002),
publicada pela Societé d’édition Les Belles Lettres, sem deixar de consultar
as edições de Chrystian Lütjohann (1878) e Theodore Alois William Bucley
(1844), além da própria editio princeps de Francesco de Asula (1521), não
sem alguma dificuldade. Cumpre notar nesta última uma introdução
considerada atualmente apócrifa pelos editores críticos e estudiosos (Beaujeu,
Harrison, Margagliotta e Timotin). Comparando as referidas edições,
concluímos que a edição de Beaujeu é aquela que, onde se faz necessário,
resume, amplia, comenta e desenvolve os aspectos mais importantes da obra
e da crítica, sendo apontada, explícita ou implicitamente, como a edição mais
importante pelos três outros estudiosos citados acima. Tomamos o cuidado
especial de buscar diferenças de interpretação nos autores, sem, entretanto,
notar quaisquer discrepâncias, mesmo de detalhes, entre eles.
[25] 1. O autor em seu tempo

Embora floresça sob o reinado de Antonino Pio e não se tenha notícias


dele depois de Marco Aurélio, Apuleio de Madaura nasce sob o principado
do sucessor de Trajano, Adriano, imperador cosmopolita, viajante incansável,
acima de tudo um imperador romano e comandante de um exército romano.
Esse imperador compartilhava as durezas da vida de campanha e exigia das
tropas uma vigorosa disciplina e alto padrão profissional. Chefe do serviço
público cuja atividade dirigia atenta e diretamente nos locais que visitava por
todo Império. Pode parecer-nos certo que a personalidade do imperador não
influenciasse o homem comum, visto que este muito estava afastado daquele,
mas Adriano, em sua ação político-administrativa, traz ao Império Romano
lei, ordem e segurança. Com que mais sonharia o homem comum? Com mais
nada, certamente. E o homem de letras? Decerto com algo mais, visto que a
todos estavam acessíveis as informações da grandeza alcançada e mundos
desconhecidos e novos, fato instigador das angústias humanas. Lei, ordem e
segurança, urbi et orbi, respondem não só a um anseio popular, mas também
àquele anseio de universalidade que, em meados do século anterior, já agitava
as mentes romanas e cujo exemplo mais eloquente é Plínio Velho, com a
coleta de exemplaria documentata provindos de todo o mundo que o Império
Romano abrangia. É a necessidade de dominar o mundo físico pela
compreensão. Mas que dizer do supramundo, o inefável além-vida? Se
elementos de razão prática, os escritos, nos apresentam os teste [26] munhos
do mundo além-mares e além-montes, que outros elementos poderão trazer os
testemunhos do mundo além-vida? Aqueles, pelos cinco sentidos, poderão ser
alcançados, e estes?
Nosso autor de nada mais pôde se valer que dos escritos e da razão de seu
tempo, cuja dominante é o Platonismo Médio, corrente coexistente com a
Segunda Sofística, e que já incorpora aos ensinamentos de Platão, cuja
principal característica é a necessidade de transcendência universalizante;
elementos aristotélicos, ou seja, a necessidade de sistematização, bem a gosto
dos romanos, e influências pitagóricas, isto é, a necessidade de racionalizar
matematicamente o cosmos. Esse amálgama de concepções encontra no texto
escolhido, logo na primeira linha do primeiro parágrafo, uma âncora textual
na expressão trifariam divisit (DDS, 1). Se o fundo, entretanto, clama em sua
maior parte pelo criador da Academia, a forma é inteiramente romana —
língua e retórica. Mas se o fundo clama, o autor atende plenamente? Em
parte, uma vez que são épocas e visões de mundo diferentes. Enquanto os
gregos flertam com o apeíron14, a ausência de limites, os romanos sempre se
apegaram ao limes e principalmente ao finis (Eco, 1989). Enquanto os gregos
vivem de um passado glorioso que tentam reviver nas letras, e somente nelas
o podem, Roma conhece o um grande apogeu. Talvez, influenciado por esse
movimento das letras e esse espírito do tempo, o nosso autor, romano de
província, em oposição aos gregos que escreveram sobre o assunto
dispersamente — Platão, Xenofonte, Plutarco e Máximo de Tiro — tenha
concentrado em um único escrito todo conhecimento da época sobre os
daemonēs: em vez de apresentá-lo como assunto subalterno aos conceitos e
fatos históricos veiculados pelos escritos daqueles autores, ao contrário,
torna-o o principal conteúdo de sua dissertação em latim, para um público de
língua e pensamento latino. Centralidade e esgotamento do tema, como
características latinas; referência a todo cosmo, como característica grega, e,
finalmente, amor à filosofia, ainda que de forma simplesmente epidíctica,
como característica do Império Greco-romano. Procuraremos, portanto, ver
como a retórica romana se apropria do assunto e como o apresenta. Vale
lembrar que o adjetivo provinciano, aplicado a nosso autor, não é gratuito,
pois, em sua gênese, as províncias eram os estados não itálicos cujos
habitantes estavam sob a administração de [27] Roma, pagando impostos,
fato que lhes confere uma “mentalidade híbrida”, haja vista que a
administração aludida mostrava uma tolerância muito grande com a língua e
a religião dos estrangeiros (STROH, 2013, p. 32). Podemos então conceder a
essa “relativa liberalidade” do estado pagão romano a personalidade
multifacetada, ou, no mínimo, bifronte, de nosso autor.
Sobre a Segunda Sofística, é necessário fazer uma pequena digressão,
uma vez que nosso autor pode se enquadrar naquilo que “Ludwig
Radermacher chamou, com uma expressão insuperável, ‘oradores de
concerto’” (LESKY, 1995, p.872), homens que se sobressaíam em público
pela improvisação e pela declamação cuidadosamente preparada. Desde
Isócrates e Platão, apesar do antagonismo de filosofia e retórica, ou até
mesmo por causa dele, esses dois campos, lutando pela hegemonia
pedagógica, determinam o panorama educativo nos séculos posteriores à
Academia e ao Liceu. Houve, de um lado e de outro, excessos, mas também
tentativas de conciliação entre filosofia e retórica, visto que ambas
reclamavam para si o direito exclusivo de intervir na formação da pólis e da
urbs. No período enfocado, século II d.C., as velhas e as novas escolas
filosóficas, já há algum tempo, eram suficientemente fortes para afirmarem
seus direitos, haja vista que grandes oradores como Cícero, por exemplo, três
séculos antes, já haviam tentado conciliar as duas partes. Na época imperial,
com o afastamento da filosofia de amplos setores dos campos contestados do
conhecimento, instalou-se de forma geral a retórica no tratamento, no
domínio e na determinação do saber, da instrução e da literatura. Isso se deu
de forma bem marcante, mesmo que por um curto espaço de tempo, antes que
o Neoplatonismo dominasse e desse novo movimento à vida cultural do
império greco-romano. Em outras palavras, a rixa platônica entre filosofia e
retórica havia se esvaecido, convivendo as duas em relações de boa
vizinhança, cada uma cuidando de sua “parte” do universo, como já
preconizara Aristóteles, e até mesmo vindo em auxílio recíproco. Como
dissemos, nosso autor se enquadra naqueles “oradores de concerto”, cuja
tradição pretende-se que remonte a Górgias, quer seja pela improvisação,
quer seja pela declamação cuidadosamente preparada. Segundo Lesky (1995,
p.872), não é difícil imaginar, “O culto de que estes homens eram objeto, só
se pode comparar como o prestado às ‘estrelas’ dos nossos dias.” Por
‘declamação cuidadosamente preparada’ não se deve entender, entretanto, o
empolamento [28] cultivado nas escolas asiáticas (ou asiânicas), mas
exatamente o cuidado em que as antigas formas e o excessivo cuidado com o
estilo sejam considerados como ultrapassados, peças de museu. Deve-se levar
em conta também que autores tão díspares, como Plutarco e Cícero, vivendo
o espírito dessa reação às duas correntes, aticista e asiânica, não se rendam
totalmente a uma ou outra escola. Se de um lado, Cícero, um século antes,
procura estabelecer um equilíbrio entre as duas, Plutarco, por outro, busca,
mesmo com recurso às formas populares da koiné, abrandar a exuberância da
corrente asiática e a aridez da ática. Mesmo assim, o tempo deste último é a
época das grandes e admiradas exibições de rétores famosos, da luta
interminável entre os dinastas filosóficos, da penetração incessante do
irracional sob a forma de misticismo, da evasão do mundo pela superstição
banal. Essa época, dos Antoninos, tanto foi o tempo de um homem, Apuleio,
que com tudo isso compactuava, seja pelo culto dos daemonēs, seja pelo
sacerdócio de Ísis, quanto o tempo de outro que a tudo isso acompanhava
com o riso corrosivo, com o ceticismo duro e, principalmente, com a sátira
mordaz, Luciano de Samósata. Tempos ricos em que a astrologia, a crença
nos daemonēs e o novo misticismo de nosso autor, de um lado, podiam
conviver pacificamente com a crítica cética de seu contemporâneo, de outro.
Neste primeiro módulo do trabalho, falaremos sobre o contexto histórico
do autor, sobre a história cultural, a literatura e o Império Greco-romano. No
segundo, do autor propriamente dito e sua produção. No terceiro, do daemōn
. No quarto, do texto, mediante tradução e comentários.
1.1. A PULEIO: VIDA, OBRA E PANORAMA HISTÓRICO

Retirando-se todo anedotário e conjecturas, somente duas fontes sobre o


autor existem de fato: ele mesmo e Agostinho de Hipona, outro escritor do
Norte da África, que certamente conhecia bem os escritos de Apuleio.
Somente as obras de ambos lançam luzes sobre alguns pontos da vida do
primeiro, ficando, entretanto, muitos outros ainda na penumbra. O único
detalhe confiável é o nomen, enquanto o praenomen, Lucius, atribuído ao
autor em manuscritos medievais e [29] renascentistas, jamais foi encontrado
em fontes da Antiguidade Clássica. A hipótese mais verossímil que se afigura
é a de que os copistas e comentaristas posteriores, na Idade Média e
Renascença, o tenham intuído da aparente semelhança que se sugere entre o
autor e seu personagem, Lúcio de Corinto, no final das Metamorfoses:

Nam sibi uisus est quiete proxima, dum magno deo coronas exaptat, …et de eius
ore, quo singulorum fata dictat, audisse mitti sibi Madaurensem, sed admodum
pauperem, sui statim sua sacra deberet ministrare; nam et illi studiorum gloriam et
ipsi grande compendium sua comparari prouidentia. (Met., 11.27).

Pois na noite anterior, ele teve um sonho, enquanto dispunha guirlandas para o
sumo deus, …e de sua boca, pela qual se dita o destino dos indivíduos, ouviu que
ser-lhe-ia mandado um madaurense, mas muito pobre, e que ele deveria
imediatamente ministrar-lhe os sacramentos15, pois sua providência não só lhe
reservara a glória literária como também uma grande remuneração.

Outra certeza é a data aproximada e local de nascimento: por volta de 120


d.C., em Madaura ou Madauros16, atual M’Daourouch, província de Souk
Ahras, Argélia, uma cidade do interior da província romana da África Pró-
consular, situada nos aclives sulistas do monte Atlas, a cerca de 230 km a
sudoeste de Cartago, atual Túnis, na Tunísia.
Sobre essa cidade, os registros são quase inexistentes, portanto seus
primórdios são obscuros. Apuleio relata na Apologia que, à época da terceira
guerra púnica, a cidade pertencia aos domínios de um rei númida chamado
Sífax, que, depois de alguma indecisão, aliou-se a Cartago na luta contra
Roma. Derrotados os cartagineses em 203 a.C., a cidade passou para os
domínios do rei Massinissa, aliado de Cipião, cujos descendentes reinaram
sobre a Numídia até 46 a.C. Então, o monarca Juba I, aliado de Pompeu na
guerra civil, foi deposto por César, [30] que instituiu a província romana de
Africa Nova, em lugar do reino independente anterior, para aumentar a já
existente província romana da África baseada em Cartago. Após um mal
sucedido retorno ao status de reino vassalo, sob Juba II, protegido de
Augusto, entre 29 e 25 a.C., a Numídia foi unida à antiga província da África
para formar a África Pró-consular, num sistema que durou até a repartição de
Sétimo Severo. A própria Madaura foi restaurada, no período dos
imperadores Flavianos, como uma colônia romana, com o título de Colonia
Flavia Augusta vetenarorum Madaurensium. No decorrer dos dois séculos
seguintes, a cidade floresceu, como atestam suas grandes ruínas, ainda hoje,
objeto de escavações.
Apuleio refere-se à sua pátria nestes termos:

De patria mea uero, quod eam sitam Numidiae et Gaetuliae in ipso confinio meis
scriptis ostendi scis, quibus memet professus sum, cum Lolliano Auito C.V.
praesente publice dissererem, Seminumidam et Semigaetulum: non uideo quid
mihi sit in ea re pudendum, haud minus quam Cyro maiori, quod genere mixto fuit
Semimedus ac Semipersa. Non enim ubi prognatus, sed ut moratus quisque sit
spectandum, nec qua regione, sed qua ratione uitam uiuere inierit, considerandum
est… (Apol. 24, 1-3)
Quanto ao meu lugar de origem, na verdade, pelos meus escritos sabeis que ele
está situado nesse mesmo limite da Numídia e da Getúlia, acerca das quais
declarei, quando apresentei uma conferência pública na presença de Loliano Avito,
que eu mesmo sou seminúmida e semigétulo: quanto a mim, não vejo nisso o que
haja para envergonhar-se, não menos que o grande Ciro, porque, quanto à origem
miscigenada, era meio medo e meio persa. De fato, não onde nasceu, mas de que
costumes cada um é dotado deve-se observar, nem em que região, mas por que
modo de pensar terá adotado para viver sua vida, deve ser considerado…

[31] Nec hoc eo dixi, quo me patriae meae paeniteret, etsi adhuc Syfacis oppidum
essemus. Quo tamen uicto ad Masinissam regem munere populi Romani
concessimus ac deinceps ueteranorum militum nouo conditu splendidissima
colonia sumus, in qua colonia patrem habui loco principis duumuiralem cunctis
honoribus perfunctum; cuius ego locum in illa re publica, exinde ut participare
curiam coepi, nequaquam degener pari, spero, honore et existimatione tueor. (Apol.
24, 7-9)

E não falei disso para que me envergonhasse de minha pátria17, mesmo se


fôssemos ainda a cidade de Sífax. Depois que este foi vencido, passamos, pelo
favor do povo romano, ao poder do Rei Massinissa, e mais tarde, com um novo
assentamento de soldados veteranos, somos uma colônia florescentíssima, lugar
em que meu pai exerceu o cargo principal de duúmviro, tendo exercido antes toda
a carreira pública; lugar de quem, mesmo naquele governo, desde que comecei a
participar da cúria, de modo algum da mesma forma indigno, espero, conservo
com honra e consideração. (Apol. 24)

Como era de se esperar, a língua e a cultura dos cartagineses


permaneceram fortes, tanto naquela área, quanto em outras partes da África
do Norte Romana. É muito provável que Apuleio falasse púnico como sua
primeira linguagem vernacular, da mesma forma que outros de origem
similar, como seu enteado Pudens (Apol. 98) de Ea na Africa Tripolitana
(moderna Líbia), e o imperador Sétimo Severo, nascido uma geração depois
de Apuleio em Leptis Magna, não longe de Ea. Esse fato,
compreensivelmente, não é informado em suas obras em latim. Embora o
púnico pudesse ser o vernáculo de uma colônia da África do Norte, o latim
era a linguagem de toda literatura formal e discurso jurídico. Frontão, escritor
oriundo de uma colônia similar, Cirta, uma geração antes de Apuleio, da
mesma forma, não menciona o púnico em seus escritos, embora tivesse sido,
provavelmente também, seu primeiro vernáculo. É importante, para uma
legítima apreciação de Apuleio, entender que ele pertence não a uma linha
subalterna africana, [32] mas à principal tendência da cultura e literatura
latina, com sua muito alardeada fluência em grego como deveria ser para um
romano bem educado. Essa é a diferença óbvia, mas fundamental que separa
Apuleio e outras figuras literárias romanas, com interesses sofísticos, das
figuras gregas contemporâneas da segunda sofística, que, por outro lado,
parecem igualar-se a Apuleio em seus interesses em performance retórica e
filosófica. Embora ele, como Frontão, possa falar ligeiramente de seus
antecedentes africanos, Apuleio, por seu nome, cultura literária e educação, é,
quanto à identidade cultural, um falante e escritor fundamentalmente romano,
expressando-se pela língua e retórica latina.
A data de nascimento nos anos 120 d.C. é comumente deduzida de
diversas passagens de suas obras. Em Florida (16), o autor declara ter sido
um companheiro de estudos de Estrabão Emiliano, que provavelmente foi um
contemporâneo próximo e teria provavelmente cerca de trinta e dois anos à
época de seu consulado em 156 d.C.; na Apologia (89), declara ainda que sua
esposa, Pudentila, teria cerca de quarenta anos à época do julgamento18 (158-
9 d.C.), e que ela seria um pouco mais velha que ele (Apol. 27),enquanto ele
aparenta ser mais velho que o filho dela, Ponciano, que julga ser Apuleio um
par apropriado para sua mãe (Apol. 72) e com o qual tinha estudado em
Atenas. Portanto é razoável que Apuleio contasse por volta de trinta anos,
mas não menos, à época da Apologia, e que ele nascera em meados de 120
d.C. Isso o faz contemporâneo de Aulo-Gélio, a quem pode ter conhecido
pessoalmente, bem como dos gregos Galeno, Luciano e Élio Aristides. Dessa
forma, sua vida decorre no apogeu da renovação intelectual grega da Segunda
Sofística, em que os escritores gregos tentaram de forma denodada reviver as
glórias passadas de sua cultura nas ricas cidades do Mediterrâneo grego, sob
a proteção do governo romano. Como suas obras de cunho filosófico
sugerem, as escolhas da carreira e do gênero literário de Apuleio foram
fundamentalmente influenciadas pelo que estava acontecendo aos seus
contemporâneos no mundo grego.
Quanto ao ambiente familiar, seu pai alcançara o cargo de duumvir, que
era a mais alta magistratura da colonia, amealhando uma fortuna que chegou
a dois milhões de sestércios na ocasião de sua morte, pouco antes de 158 d.C.
(Apol. 24.9), quantia que proporcionou aos dois [33] filhos uma vida sem
maiores problemas, podendo então começar uma carreira pública de
prestígio. Como cidadão de uma colonia, ele deveria ter a cidadania romana e
os três nomes usuais nesse período, mas somente o nome da gens é certo: o
nome Apuleius encontra-se em quatro diferentes inscrições de Madaura e,
embora nenhuma delas possa ser solidamente datada, exceto as do período
imperial, esse número sugere que a família era, até certo ponto, muito bem
situada (Harrison, 2008, p.4).
As origens da família, entretanto, podem ser apenas objeto de conjecturas.
Muitas famílias naquela região derivaram seus nomes de senadores romanos
que haviam outorgado direito de voto a famílias nativas após ajuda militar,
nas guerras púnicas (Harrison, 2008, p.4). É possível, então que a família do
autor fosse de origem local e tivesse recebido o nome e a cidadania da gens
Appuleia, notável na antiga república romana e conhecida mais tarde por um
de seus membros que se casou com a irmã mais velha de Augusto. Não há,
entretanto, nenhum ramo africano atestado desse Apuleio ou de ninguém de
sua família. Outra hipótese, segundo Harrison, é de que a família do escritor
teria vindo para Madaura, numa das levas de colonos da Itália, ou de qualquer
outro lugar, quando a Colonia Flaviana foi criada, ou possivelmente como
antigos soldados das campanhas de Vespasiano ou Tito. A autodescrição do
escritor como seminumidam et semigaetulum (Apol. 24), todavia, parece mais
se referir à posição geográfica de sua cidade, Madaura, no limite da Numídia
e Getúlia, que à sua própria origem étnica. Mas, mesmo sem referência à
etnia, a África romana era uma região em que muitos proeminentes
aristocratas clamorosamente reivindicavam origens locais, quando na verdade
eram, pelo menos em parte, descendentes de colonizadores. Embora a
questão da origem da família pareça intrincada, haja vista todas as referências
e as fontes, três fatos essenciais acerca de Apuleio são claros: era cidadão
romano de nome latino, pertencia a uma família importante na colonia e era
pessoalmente rico, pelo menos à época da morte do pai, tudo o mais são
conjecturas.
Como jovem abastado, foi-lhe garantido acesso a um estudo de alto nível,
pois a educação literária da elite era então, como por toda a antiguidade, a
condição de se manter a prosperidade, e as circunstâncias de Apuleio eram
similares às das demais figuras literárias do período [34] no que diz respeito a
isso. Mais de dois séculos depois, Madaura ainda era um centro de ensino,
como nos revela Agostinho de Hipona, que aprendera literatura e retórica lá:

et anno quidem illo intermissa erant studia mea, dum mihi reducto a Madauris, in
qua uicina urbe iam coeperam litteraturae atque oratoriae percipiendae gratia
peregrinari, (Conf. 2.3.5)
e nesse mesmo ano, tinham sido interrompidos meus estudos, quando de meu
afastamento de Madaura, cidade vizinha em que já começara a me deslocar por
conta de assistir aulas de literatura e oratória.

Apuleio, ao contrário, sugere que seus estudos começaram em Cartago, a


capital da província e sede pró-consular, onde ele fez seu ensino básico em
letras, gramática e retórica e declara também que lá começara sua instrução
em filosofia platônica.

Ita mihi et patria in concilio Africae, id est uestro, et pueritia apud uos et magistri
uos et secta, licet Athenis Atticis confirmata, tamen hic19 inchoata est, et uox mea
utraque lingua iam uestris auribus ante proxumum sexennium probe cognita. quin
et libri mei non alia ubique laude carius censentur quam quod iudicio uestro
comprobantur. (Flor. 18, 15-16)

E então minha pátria na agremiação da África é a mesma vossa, e a minha infância


foi entre vós, e meus mestres fostes vós, e minha escola filosófica, embora na ática
Atenas consolidada, aqui, entretanto, foi iniciada, e a minha voz, em qualquer das
duas línguas, já por vossos ouvidos antes, nos seis últimos anos, é muito bem
conhecida. Ainda mais meus livros, em toda parte não são considerados por outro
louvor mais precioso que o fato de serem aprovados pelo vosso julgamento.

[35] Sapientis uiri super mensam celebre dictum est: “Prima”, inquit, “creterra ad
sitim pertinet, secunda ad hilaritatem, tertia ad uoluptatem, quarta ad insaniam.”
Verum enimuero Musarum creterra uersa uice quanto crebrior quantoque meracior,
tanto propior ad animi sanitatem. Prima creterra litteratoris rudimento20 eximit,
secunda grammatici doctrina instruit21, tertia rhetoris eloquentia armat. Hactenus a
plerisque potatur. (Flor. 20, 1-3)

De um sábio existe um célebre dito sobre a mesa: “A primeira taça”, adverte, “diz
respeito à sede; a segunda à alegria; a terceira, à volúpia; a quarta à insanidade.”
Na verdade, porém, a taça das musas é o inverso, quanto mais abundante e quanto
mais pura, tanto mais própria à sanidade do espírito. A primeira, do mestre-escola,
livra da condição rústica; a segunda, a do gramático, instrui pela doutrina; a
terceira, do rétor, provê de armas pela eloquência. Somente até aqui pela maioria é
saboreada.

Há que lembrar, entretanto, que seus testemunhos acerca de Cartago em


Florida dirigem-se a um auditório cartaginês, para quem tais declarações
seriam obviamente agradáveis. Continuando o relato, ele nos informa que a
sequência dos estudos o levara a Atenas, onde, declara ele sem nenhuma
modéstia, teria estudado e absorvido poesia, geometria, música, dialética e
filosofia geral:

Ego et alias creterras Athenis bibi: poeticae commentam, geometriae limpidam,


musicae dulcem, dialecticae austerulam, iam uero uniuersae philosophiae
inexplebilem scilicet et nectaream. (Flor. 20, 4)

[36] Eu mesmo também outras taças em Atenas bebi: da invenção poética, da


clareza geométrica, da suavidade musical, do brando vigor da dialética, mas
sobretudo a taça inesgotável do néctar, ou seja, da filosofia universal.

Essas matérias, juntamente com sua autodescrição, e a posterior reputação


de philosophus Platonicus mostram que ele obviamente estudou dentro da
tradição platônica da época:

Sed Aemilianus… negat id genus uorsus Platonico philosopho


competere. Etiamne, Aemiliane, si Platonis ipsius exemplo doceo factos? (Apol.
10, 6-7)

Mas Emiliano… diz que não corresponde a um filósofo platônico essa espécie de
verso. Mesmo se acaso, Emiliano, eu ensine as ações mediante o exemplo do
próprio Platão?
Apuleio fala desses estudos e das meditações acadêmicas mas não dá
nome de nenhum de seus mestres:

Porro noster Plato, nihil ab hac secta uel paululum deuius, pythagorissat22 in
plurimis; aeque et ipse ut in nomen eius a magistris meis adoptarer, utrumque
meditationibus academicis didici, et, cum dicto opus est, impigre dicere, et, cum
tacito opus est, libenter tacere. (Flor. 15.26)

Além disso, nosso Platão, pouquíssimo ou nada desviado dessa doutrina, muito
pensava como Pitágoras; da mesma forma também eu mesmo poderia, em nome
dele (i.e., chamado de platônico), pelos meus mestres ser adotado, e uma e outra
coisa pelas meditações acadêmicas aprendi, não só, quando era necessário o dizer,
dizer corajosamente, como também, quando era necessário o silêncio, de bom
grado calar.

[37] Os estudos filosóficos do autor refletem claramente a renovação do


Platonismo no segundo século, especialmente sendo ele o autor do De
Platone, que tem um evidente estreito relacionamento com outros manuais da
doutrina platônica, tão disseminados nessa época no Mediterrâneo.
Outro aspecto digno de nota são “a longa peregrinação e os estudos
duradouros” (longa peregrinatione et diutinis studiis) 23, empreendidos antes
de 158-9. Isso é em parte a autoapresentação como um intelectual itinerante à
maneira dos grandes sofistas gregos da época, mas independente dos estudos
em Atenas, tudo indica que ele despendeu um tempo em Roma: “Com esse
propósito, sempre desde a tenra idade, as belas artes diligentemente cultivei, e
o bom nome dos costumes e dos estudos, tanto em nossa província, como
também em Roma entre os amigos teus…” (Ad hoc ita semper ab ineunte
aevo bonas artes sedulo colui, eamque existimationem morum ac studiorum
cum in provincia nostra tum etiam Romae penes amicos tuos…)24, onde ele
poderia ter-se encontrado com Aulo-Gélio, e estava a caminho de Alexandria
à época dos eventos que desembocaram na Apologia: “Como as coisas
estivessem nesse estado, entre o segundo casamento da mãe e o medo do
filho, por acaso, ou pelo destino, eu chego [em Ea], estando a caminho de
Alexandria” (Cum in hoc statu res esset inter precationem matris et metum
fili, fortene an fato ego aduenio pergens Alexandream.)25. Assim ele
conheceu, em primeira mão, alguns dos maiores centros intelectuais da
Segunda Sofística. Parece que ele também esteve em Samos:

Samos Icario in mari modica insula est – exaduersum Miletos – ad occidentem eius
sita nec ab ea multo pelagi dispescitur; utramuis clementer nauigantem dies alter in
portu sistit. Ager frumento piger, aratro inritus, fecundior oliueto, nec uinitori nec
holitori scalpitur… Ceterum et incolis frequens et hospitibus celebrata. Oppidum
habet, nequaquam pro gloria, sed quod fuisse amplum semiruta moenium8
multifariam in [38] dicant. Enimuero fanum Iunonis antiquitus famigeratum; id
fanum secundo litore, si recte recordor uiam, uiginti haud amplius stadia oppido
abest. (Flor. 15.1-4)

Samos é uma ilha média no mar de Ícaro – diante de Mileto – situada a ocidente
desta, e não está separada por muito mar; para uma ou outra navegando, o dia
seguinte termina no porto. Um campo pobre em trigo, inútil para o arado, mais
fecundo para a oliveira, nem pelo vinicultor, nem pelo hortelão é capinada…
Quanto ao mais, é populosa e frequentada pelos estrangeiros. Tem uma cidadela,
de modo algum célebre, mas, porque tivesse sido, indicam-no amplamente em
muitos lugares os semiarruinados das muralhas26. Seguramente é o santuário de
Juno um lugar muito famoso desde a antiguidade, esse santuário, em seguida à
costa, se bem me recordo do caminho, não dista da cidade mais que vinte estádios.

Seria temerário supor a reprodução de fontes de testemunhos de viajantes


que não o autor, em virtude da ocorrência da forma verbal recordor. E em
Hierápolis, na Frígia: “Eu mesmo vi na Frígia, próximo a Hierápolis” (vidi et
ipse apud Hierapolim Phrygiae)27. Ele provavelmente também visitou os
grandes centros sofísticos da Ásia Menor, tais como Pérgamo, Esmirna e
Éfeso. Quanto a Samos e Hierápolis, entretanto, a falta de referências
concretas acerca do autor nessas cidades mostra exatamente o contrário. O
seu evidente interesse por Esculápio nos Florida e na Apologia pode
relacionar-se mais ao sincretismo dessa divindade com alguma divindade
fenícia de Cartago do que a uma visita a Pérgamo:

…uestros etiam deos religiosius ueneror. Nunc quoque igitur principium mihi apud
uestras auris auspicatissimum ab Aesculapio deo capiam, qui arcem nostrae
Carthaginis indubitabili numine propitius respicit. Eius dei hymnum Graeco et
Latino carmine uobis etiam canam [iam] illi a me dedicatum. (Flor. 18.36-8)

[39]…vossos deuses da mesma forma muito piedosamente venero. Neste


momento, por conseguinte, da mesma forma, começarei eu, perante vós, sob os
melhores auspícios dimanados do deus Esculápio, que benévolo para a cidadela de
nossa Cartago, como indubitável poder divino, volta os olhos. Cantarei agora para
vós também um hino desse deus, em verso grego e latino, a ele por mim dedicado.

Cabe lembrar, porém, que a cidade era muito frequentada e o culto local
de Esculápio muito assistido pelos intelectuais gregos daquela época. Em
outras palavras, Apuleio, mesmo falando grego, mas incapaz de competir
eficientemente com os grandes sofistas helênicos da época no próprio
território deles, parece apenas ter tido algum conhecimento das atividades
sofísticas e de seus centros, mas não a ponto de se juntar ao espetáculo
sofístico do Leste Grego. Escolheu, em vez disso, uma vida de conferencista
e orador público em latim, no Norte da África. Na Apologia, provavelmente a
mais antiga ocorrência que temos, ele aparece, com idade de trinta anos,
como um apresentador público totalmente pronto para voar sozinho,
declamando De maiestate Aesculapii em Ea:
Nec hoc ad tempus compono, sed adhinc ferme trienium est, cum primis diebus
quibus Oeam ueneram publice disserens de Aesculapii maiestate eadem ista prae
me tuli et quot sacra nossem percensui. (Apol. 55)

E não se trata de uma história arranjada pela circunstância: há aproximadamente


três anos, nos primeiros dias em que cheguei a Ea, falando em público sobre a
majestade de Esculápio, declarei as mesmas coisas e apresentei todos os mistérios
que eu conhecia.

Fazendo a própria autopromoção na Apologia, considerada como muita


justiça uma obra prima da Segunda Sofística.
Durante o período de estudos em Atenas, por volta do início dos 150, ele
teria partilhado o alojamento com um companheiro de estudos chamado
Ponciano, como ele próprio, originário da África do Norte [40] romana, mais
especificamente de Ea, a moderna Trípoli, na Líbia28. As consequências disso
são bem conhecidas na Apologia. Naturalmente, dos eventos, temos somente
a versão judicial tendenciosa do próprio Apuleio naquele famoso discurso.
Em seu resumo, ele nos diz que, muitos anos depois do primeiro contato com
Ponciano, por volta do final de 156, empreendeu uma longa viagem a
Alexandria, e no caminho fez uma pausa com os amigos em Ea. Lá, ele
recebeu a visita de Ponciano, que o persuadiu a ficar um ano inteiro e
possivelmente desposar sua mãe Pudentila, uma rica viúva, com o propósito
de resguardar a fortuna dela para seus filhos. O casamento parece ter
acontecido no final de 157 ou início de 158. Posteriormente, no decurso de
uma representação de sua esposa na sessão do tribunal pró-consular, em um
processo referente à disputa de propriedade, Apuleio foi acusado, por
diversos parentes de Pudentila, de tê-la induzido a casar-se com ele mediante
magia. Esse processo foi relatado, presumivelmente durante as mesmas
seções, em Sabathra, próximo a Ea, pelo procônsul Claudio Máximo,
aparentemente no final de 158 ou início de 159. Embora não esteja registrado
em nenhum lugar, está claro que Apuleio foi absolvido; a publicação de
semelhante façanha como a Apologia não é procedimento de uma parte
perdedora e constitui uma impressionante propaganda dos talentos de
Apuleio como um orador popular.
As atividades retóricas de Apuleio também podem ser comprovadas pelos
Florida, a coleção sobrevivente de vinte e três excertos dos seus discursos.
Alguns desses discursos, claramente, foram pronunciados em Cartago29. Dois
excertos são de discursos apresentados na presença de autoridades pró-
consulares da África30. Todos os cômputos de data extraídos dos Florida
indicam a década de 160 como o limite de suas atividades como orador
público bem sucedido em Cartago. Outros registros de interesse são o fato de
que seu status como orador chegara a tal ponto de o senado e o povo de
Cartago lhe terem votado uma estátua, após uma carreira de seis anos, e ele
ter sido eleito sumo sacerdote da Província da África Pró-consular:

[41] Priusquam uobis occipiam, principes Africae uiri, gratias agere ob statuam,
quam mihi praesenti honeste postulastis et absenti benigne decreuistis… Immo
etiam docuit argumento suscepti sacerdotii summum mihi honorem Carthaginis
adesse. (Flor. 16)

Antes que comece, varões governantes de África, a agradecer pela estátua que, a
mim presente, como honraria, propusestes e, ausente, benevolamente votastes…
Pois bem, ele [Emiliano Estrabão] ainda deu a entender por argumento que o cargo
de sacerdote confirmado [pelo voto do senado] confere a mim a maior honraria de
Cartago

Essa honraria é confirmada por Agostinho de Hipona em suas Epístolas:


Apuleius…. An forte ista, ut philosophus, voluntate contempsit, qui sacerdos
provinciae, pro magno fuit ut munera ederet, venatoresque vestiret, et pro statua
sibi apud Oeenses locanda, ex qua civitate habebat uxorem, adversus
contradictionem quorumdam civium litigaret? (Epist. 138.19).

Apuleio… Acaso se dirá que, como filósofo, menosprezou, por sua própria
vontade, essas coisas, quando, sendo sacerdote da província, teve em grande
apreço que celebrasse os jogos, munisse os caçadores e, em favor de uma estátua
sua, a ser erigida entre os Eaenses, cidade da qual tinha sua mulher, litigasse contra
a oposição de alguns cidadãos?

Tudo isso aponta para o fato de que tanto os sofistas grego quanto
Apuleio não só tinham uma formação sólida como também incrementaram
seu status social mediante atividades retóricas dentro das comunidades em
que residiam. Nos anos 160 ele pertence claramente à comunidade de
Cartago, graças aos seus talentos oratórios, e sem dúvida por causa de sua
riqueza, pois somente os ricos podiam arcar com as despesas da liturgia de
um sacerdócio provincial.
[42] Passando do autor ao ambiente das províncias à época, podemos
dizer que nelas havia um pouco mais de liberdade de pensamento, desde que
não obstasse aos recolhimentos de impostos e provimento de trigo para
Roma. Há várias hipóteses para explicar essa liberdade relativa, das quais não
nos ocuparemos. Como já dissemos, a Pax Romana se estendeu sobre a
Africa Proconsular, e, segundo os registros da Historia Augusta, a região foi
submetida sem maiores contratempos a um governador civil. A população era
densa, em sua maioria trabalhadora e sem sonhos de independência.
Problemas havia somente nas fronteiras com os desertos, onde tribos
nômades, atraídas pela pilhagem aparentemente fácil, às vezes incursionavam
em território romano. De qualquer forma, os efetivos militares na área eram
pequenos, mas suficientes para fazer face a esse problema, e tanto a distância
quanto os efetivos proporcionavam às principais cidades da província bem-
estar e segurança necessários a um desenvolvimento econômico suficiente
para sustentar uma burguesia local bem abastada e, por conseguinte, um
fomento a escolas e agremiações culturais e religiosas. Em Cartago e
Madaura, como reconhece quase um século depois Agostinho de Hipona,
existiam centros de estudo de gramática e retórica para onde migravam os
jovens abastados. Quanto a Cartago, tratava-se da residência oficial do
governador, e por isso a cidade exercia uma espécie de primazia, de caráter
um tanto mais moral que jurídico-administrativo, sobre todas as demais
comarcas, atraindo, mesmo assim, os melhores nomes da região. Madaura,
apesar de cidade importante, estava, do ponto de vista político-
administrativo, ligada ao propraetor, estabelecido na ‘capital’ Ammaendara,
na Numídia, e esta, teoricamente, ao governador de Cartago. Apesar disso,
essa dependência da Africa Proconsular era um pouco fictícia, pois o
propraetor dependia somente do Princeps como administrador e juiz. Isso
dava a essa província uma característica de liberdade única em seu gênero: o
chefe tinha poderes militares fora de seu governo e, ainda que legatus,
atribuições civis bem específicas numa região em que chegara a Pax Romana.
Por outro lado, Cirta, a antiga capital dos reis númidas, e seus vizinhos mais
modestos também gozavam de uma ampla autonomia administrativa. Tudo
isso se opõe à ideia de um Imperium Romanum autocrático e centralizador,
mas põe em relevo principalmente a inteligente e extrema flexibilidade do
regime romano. Nessa repartição, nessa variedade, não houve segundas
intenções políticas de dividir [43] para governar melhor, nem mesmo de
impedir a formação de um espírito nacional. Na verdade, Roma, à medida
que anexava territórios, criava novas engrenagens, ou adaptava as existentes,
segundo as necessidades administrativas imediatas, ou conforme as
expectativas que se colocavam nas novas áreas assimiladas.
Com o crescimento de Roma, Grécia, Pérsia e demais impérios similares,
no mundo antigo, criou-se, quase que naturalmente, a forma de colonização
por povoamento. A Grécia estendeu-se pelas províncias da Ásia Menor, em
direção à Pérsia, os romanos pela Itália, Ibéria e Gália. Modelo de
colonização que perdurou até as potências imperialistas de França e
Inglaterra, a partir da Idade Moderna. A colonização do Norte da África pelos
romanos, entretanto, não tem exatamente esse caráter de povoamento, visto
que se deu depois da derrota dos cartagineses. Se de início o domínio dessa
região foi política e estratégica, para assegurar o controle do Mediterrâneo,
mais tarde, com a permissão de permanência dos povos autóctones, com sua
língua púnica e aparelhamento das elites administrativas, pôde-se caracterizar
essa colonização como de exploração moderada, haja vista que mesmo
Boissier (apud Chapot, 1951, p.311) reconhece que os nomes romanos nas
inscrições epigráficas não designam sempre romanos de nascimento e certos
textos atribuem inclusive expressamente uma filiação indígena a nomes que
possuíam os tria nomina. Isso nos leva a pensar em casamentos mistos, que
provavelmente havia, conforme atesta a epigrafia, e, dando asas à
imaginação, podemos imaginar que nossa personalidade miscigenética nada
mais é que a assimilatio romana rediviva.
Essa “liberdade prática” e combinação de elementos certamente se
refletiriam na mentalidade dos círculos e indivíduos da província, tanto que,
nessa época, são das províncias que provêm as mais belas flores da
romanidade.
[44] 1.2. CONTEXTO LITERÁRIO DO SÉCULO II D.C.

Apuleio se insere perfeitamente no ambiente cultural e literário do


segundo século d.C., pois, como sinalizamos acima na contextualização
histórica, o projeto pessoal levado a cabo pelo imperador Adriano em seu
reinado (117-138) elevou o Império Romano ao seu máximo estágio de
progresso material. A sucessão de felizes projetos administrativos: Nerva,
Trajano, Adriano, Antonino Pio e Marco Aurélio, conhecidos como os cinco
bons imperadores, estendeu as grandes conquistas do macrocosmo imperial
ao microcosmo individual. Poderíamos, numa digressão, dizer então que ali
começa a construção da individualidade, sem que isso queira dizer
individualismo. A época desses imperadores, pois, foi caracterizada
principalmente por ter assegurado, como nunca, um incremento intenso da
vida sociocultural. Principalmente com Adriano, as riquezas conquistadas por
Trajano foram distribuídas pelas cidades de todo império, resultando na
multiplicação de espaços, físicos e jurídicos, destinados ao enriquecimento
espiritual dos indivíduos. Como espaços físicos devemos entender as
bibliotecas, museus, escolas, salas públicas de exposições e conferências, os
espaços de diversão, ginásios e termas, enfim, todos aqueles que facilitassem
e promovessem a comunicação e a convivência dos cidadãos romanos. Como
espaços jurídicos, devemos entender tanto a proteção quanto os privilégios
concedidos aos mestres, professores e eruditos, que resultava num
impressionante esforço voltado para a educação e instrução. Tudo isso fazia
parte de um grande programa de proporcionar uma base cultural sólida
àqueles destinados a ocupar os cargos numa grande máquina administrativa
detentora de várias frentes e várias especificidades. Necessitava-se de
indivíduos que atingissem um largo espectro de conhecimento com variadas e
diversas competências. A esse ambiente de pluralismo cultural responde
nosso autor com estudo dedicado, enciclopédico, produção copiosa nos mais
diversos campos do conhecimento humano da época.
Apesar de Platão em Górgias opor a filosofia à retórica, o evoluir
posterior da filosofia, a começar por Aristóteles, apagou, ou pelo menos
minimizou muito, essa oposição, principalmente no que tange ao dedutivo e
indutivo. O estagirita, em sua sistematização, estabelece que a ciência poderá
contar com dois eixos “ortogonais”: as artes dedutivas, características das
ciências exatas, das questões universais, [45] como queria Platão, e as
indutivas, mais aproximadas às ciências que tratam dos aspectos acidentais da
realidade. As dedutivas e exatas servem-se mais do silogismo; as indutivas e
sociais, da retórica. Mas nenhuma das duas abandonará os preceitos básicos
da identidade, não contradição e terceiro excluído. Lembre-se também que,
mesmo Platão, muitas vezes, se utiliza de estruturas do discurso retórico em
seus diálogos. Afinal, a todo homem culto desse largo período que
conhecemos como Antiguidade Clássica era obrigatório o domínio do que
mais tarde na Idade Média veio a se chamar de triuium: gramática, lógica e
retórica. O peso inicial que se deu à filosofia, seja em virtude do
deslocamento da ciência dos mundos universais para os particulares, seja pela
própria necessidade de convencimento dos concidadãos e sua consequente
adesão, talvez tenha feito paulatinamente acontecer, num primeiro momento,
a convivência das duas, filosofia e retórica, e, posteriormente, a primazia
desta sobre aquela, cabendo a esta última a função de pautar a nova
orientação da cultura grega nessa época. Citroni considera Apuleio como o
mais lídimo representante latino da Segunda Sofística, talvez, segundo nosso
juízo, o único latino que mereça, de fato, ser incluído nesse movimento:
Apesar de os interesses filosóficos desempenharem um papel importante, foi à
retórica que coube a função por que se pautou a nova orientação da cultura grega
nesta época. É costume dar-se o nome de “segunda sofística” a esse movimento
que floresceu especialmente em Atenas e nas cidades gregas da Ásia Menor. Tal
designação reflecte o facto de o movimento trazer à memória vários aspectos
característicos da figura do sofista proposta, no século V a. C., por autores como
Górgias, Protágoras e seus sequazes. Era comum a esses autores o facto de
representarem a figura do intelectual como alguém que se profissionalizara na arte
da palavra, e que, para deleite do público, tinha a capacidade de discorrer sobre
qualquer assunto, desde os mais exigentes aos mais fúteis, de tal modo que as suas
doutrinas, as suas argumentações subtis e a sua eloquência causassem o maior
assombro diante do público. A intensa circulação cultural desta época era
incarnada por estas figuras de retóricos-conferencistas bem remunerados,
aclamados como artistas do espetáculo, e estavam sempre prontos a exibir-se [46]
tanto em Roma como em Atenas ou em qualquer outra cidade do império. O
modelo arreigou-se também na cultura latina, e teve como um dos seus mais
lídimos representantes a figura de Apuleio. (CITRONI, 2006, p.967)

Mas o que foi esse movimento, que, em muitos momentos, se confunde


com o Platonismo Médio e ora parece se distanciar, ora parece ser
subalterno?
Em uma síntese muito concisa, visto que não é escopo deste trabalho
apresentar um estudo aprofundado de filosofia, podemos dizer simplesmente
que o Platonismo Médio foi um movimento que, em seus dois séculos de
duração, agrupou várias figuras de notável relevo. Desenvolveu-se a partir da
“quinta Academia”, representada pelo eclético Antíoco de Ascalão, e findou
com a chegada do Neoplatonismo. Essa escola, ou movimento, oferece
características muito semelhantes ao Neopitagorismo, dando também ampla
acolhida a elementos procedentes de outras escolas, com exclusão da
epicurista, que se mantém isolada de todo contato exterior. Os principais
expoentes dessa escola, Ático, Calvísio Tauro, Harpocracião, Nicóstrato e
Celso, formam uma reação contra a excessiva interpretação que tomara conta
da Academia pós-Platão, buscando voltar ao platonismo ortodoxo sem
contaminações, atendo-se o mais possível aos textos originais do mestre. Mas
nem sequer estes estão livres de influências estranhas, especialmente estoicas,
principalmente em moral, para as quais mais se inclina, ainda que ressalte
como fim da vida humana a fórmula platônica da “assimilação a Deus
(enquanto possível) pelo homem” (ὁμοίωσις τῷ θεῷ κατὰ τὸ συνατόν).
Podemos dizer que essa reação ao ecletismo exagerado resultou numa
assimilação moderada das demais escolas. É muito sintomático que diversos
cultores da filosofia dessa época insistissem no caráter purificatório da
ciência, distinguindo-a em cinco graus: 1) purificação matemática; 2) noções
de lógica, física e política; 3) ascensão ao mundo inteligível das Ideias; 4)
aquisição da capacidade de ensinar; 5) assimilação a Deus. Essa gradação
baseia-se na República (527d) e considera as ciências inferiores como
preparação para chegar à dialética.
Avançando ao século II, um filósofo de nome Gaio acentua a tendência ao
ecletismo, tentando combinar os ensinamentos de Platão com os de
Aristóteles, principalmente pela composição de um [47] Compêndio dos
dogmas platônicos, mais tarde resumido por seu discípulo Albino, e pelos
comentários de vários diálogos de Platão. Nenhuma dessas obras sobreviveu
senão em referências de Albino, Apuleio e de um comentarista anônimo do
Teeteto. Segundo os testemunhos, Gaio estabelecia como ideal moral a
santidade, que consistia na justiça, na qual estavam contidas todas as
virtudes. Na justiça realiza-se a harmonia entre o amor de Deus, o de si
mesmo e o dos demais. Podemos notar que essa orientação é partilhada pelo
madaurense. Albino, posterior a Apuleio, discípulo e continuador de Gaio,
mais tarde mestre do imperador Galiano, é um exemplo típico de ecletismo.
Combina elementos platônicos, aristotélicos, teofrásticos e estoicos.
Considera, da mesma forma que os demais, as ciências, ditas inferiores, como
uma preparação purificatória para a suprema, que é a Dialética, mas esta
entendida no sentido de Teologia ou ciência do divino. Distingue três níveis
de divindade: um primeiro Deus (πρῶτος θεός), supraceleste (ὑπερουράνιος),
que nem se move a si mesmo, nem move as coisas; abaixo dele o segundo
Deus, infraceleste (ἐρουράνιος), que é a Inteligência (Νοῦς), em que estão
contidas as Ideias exemplares de todas as coisas, e que é o criador do mundo,
e, finalmente, o terceiro, que é a alma do mundo (ψυχή). Admite também
uma extensa série de deuses astrais (οἱ γενητοὶ θεοί) móveis. Assinala como
finalidade da Filosofia “a separação da alma em relação ao corpo” (λύσις καὶ
περιαγωγή ψυχής ἀπὸ σώματος). E como fim da vida a assimilação a Deus
(ὁμοίωσις τῷ θεῷ κατὰ τὸ συνατόν).
Podemos perceber nesse movimento uma tendência semelhante à
representada por Apuleio, inclusive, na literatura especializada, este é sempre
citado, da mesma forma que Albino, como discípulo, ou pelo menos
correligionário, de Gaio, partilhando da mesma orientação eclética,
cultivando principalmente o gosto pelo estudo das diversas ciências. Essa
mesma literatura o considera muito brilhante como divulgador, mas pouco
profundo do ponto de vista filosófico, enfatiza e destaca ainda a importância
do seu tratamento do conceito dos seres intermediários entre a suprema
divindade e o mundo, ou seja, os daemonēs, bem como seu conceito do
filósofo como um intermediário entre os homens e a divindade. Essas duas
contribuições, por si só, já garantem seu lugar nos compêndios e manuais de
história da filosofia. Já do ponto de vista literário, podemos dizer que Apuleio
é o último [48] grande escritor da literatura latina pagã, com ele morre essa
literatura, pois os posteriores contentam-se apenas em repetir as fórmulas e
ideias antigas, sem viço, cor ou mesmo vida:
À medida que o Império excede a cidade romana, a literatura latina estiola-se. Em
contraste com a renovação então experimentada pela expressão da língua grega,
Roma está cada vez mais dependente da influência do Oriente. Já não existe,
verdadeiramente, um pensamento romano autónomo, paralelamente ao pensamento
grego — há apenas sobrevivências moribundas. Os governadores de províncias, os
administradores, os magistrados, os comerciantes têm familiares sofistas (é a
época, no Oriente, da “segunda sofística”), retóricos, filósofos, artistas. Antigos
escravos de origem oriental ocupam cargos de grande responsabilidade. E, nesta
simbiose do Oriente e do Ocidente, a literatura de expressão latina apresenta-se
como secundária. Uma única obra, em meados do século II, testemunha ainda
alguma vitalidade. Fruto desse meio espiritual complexo, exprime-o mesmo nos
seus contrastes e paradoxos. Trata-se do singular romance escrito pelo africano
Apuleio que, na infância, aprendera a falar e a escrever as duas línguas de cultura,
o latim e o grego. O título, As Metamorfoses, é grego; grego também o mundo
onde se desenrolam as aventuras contadas, mas muitas vezes o pensamento, o meio
espiritual, as maneiras de sentir denotam os hábitos romanos. (Grimal, 2009,
p.171)

Uma figura como nosso autor representava perfeitamente o ambiente de


intensa circulação cultural do seu tempo. Os oradores de espetáculo,
conferencistas muito hábeis em retórica, eram aclamados, bem remunerados e
cumulados de honras. Esse talvez seja um dos motivos por que tanto houve
multiplicação desse tipo de profissional da palavra como também sua
circulação por todo Império Romano, sempre pronto a se apresentar, de
preferência, em Roma e Atenas. Apuleio encarna perfeitamente esse tipo de
personagem. Outro fato, além dos já expostos, para essa mescla de culturas,
foi o filo-helenismo patente dos imperadores, sobretudo de Adriano. A
cultura do império na [49] época dos Antoninos era bilíngue, portanto era
necessário ao orador ou escritor ter a capacidade de se comunicar, escrita e
fala, em latim e grego.
É notório o acolhimento que os altos círculos sociais romanos davam aos
intelectuais gregos de renome, principalmente na capital do império. Lá esses
profissionais sempre encontraram plateias prontas a aclamar suas exibições,
bem como havia a possibilidade de estadas longas nos círculos mais
esclarecidos. É fácil imaginar que autores latinos apresentassem reações
contraditórias a essa ‘superioridade’ grega, almejavam o mesmo prestígio e
glória dos helênicos, mas de certo não se sentiam confortáveis diante da
“orgulhosa consciência que os Gregos ostentavam sobre o imenso patrimônio
das sua tradições” (CITRONI, 2006, p.969). Mas, se de um lado os romanos
tinham os gregos em alta conta, de outro, os gregos responderam, nesse
mesmo século de Apuleio, com uma copiosa produção de obras de tema
romano em grego, como, por exemplo, as biografias de Plutarco e os escritos
históricos de Dion Cássio. Isso demonstra o reconhecimento tácito, nunca
explicitado pelos gregos, da importância que o Império Romano tomara
diante da Grécia. Não podemos esquecer o Panegírico de Roma de Élio
Aristides, obra de encomenda, mas sincera.
A época dos Antoninos, 138 a 192 d.C., apresenta uma característica que,
à primeira vista, pode se configurar num paradoxo: há grandes e
diversificados fomentos à vida cultural, espiritual e filosófica. O interesse
pelo novo, pelos mistérios da natureza, pelo homem, pela magia, se espalha
por todo império. O resultado na literatura, porém, mostra-se pífio, a
literatura sofre uma cisão esquizofrênica, perdoem-nos o neologismo, de
fundo e forma: esta chega ao seu máximo, aquela se empobrece; ao lado de
uma profusão de manualistas e resumidores, a literatura conta somente com
Apuleio, “o único autor de primeira categoria que foi capaz de traduzir os
problemas e as vivências culturais do seu tempo numa obra original e de
grande valor artístico e literário” (CITRONI, 2006, p.969). Um grande
progresso material nas bases do império correspondendo a uma produção
intelectual medíocre.
Para resumir o espírito da época, pode-se dizer que uma volta ao passado
ou a tentativa de uma nova literatura se contentava apenas com o
levantamento de curiosidades de erudição, criação de exercícios linguísticos,
mesmo que resvalasse para a futilidade, desde que resultasse num produto de
fino apuro estilístico e impressionasse [50] pelos artifícios retóricos. A
historiografia renuncia às grandes empresas e se contenta somente em tornar
a informação dos fatos em mais um elemento de erudição e demonstração de
conhecimento, grandes análises, como as guerras de César, Salústio, como as
Historiae de Tácito, as biografias de Suetônio, são substituídas por
compêndios de informação simples e rápida, de escasso valor intelectual. A
obra mais significativa do período, atribuída a Floro, chama-se Epítome de
Tito Livio, que separa os acontecimentos por categorias: guerras internas,
externas, etc.

O fenômeno paradoxal do depauperamento da produção literária numa época de


grandes investimentos culturais pode-se explicar melhor, se se tiver em conta que a
civilização da época de Adriano e dos Antoninos centrara as suas admiráveis
realizações na administração, no modelo cultural da competência erudita e da
especialização. Aquilo que floresceu foi, portanto, uma cultura de professores que
tendia à sua própria autorreprodução, e que atribuía à doutrina e à arte da palavra o
valor de bagagem indispensável para a nova classe dirigente. (CITRONI, 2006,
p.970)

Esse definhar literário, todavia, foi acompanhado de um grande


desenvolvimento das ciências jurídicas, ou pelo menos de sua codificação,
afinal o ius romanum era o conhecimento intimamente ligado, e suporte, de
todas as funções de gestão e organização do funcionamento do império desde
a sua criação. Por conseguinte essa era foi considerada a era de ouro da
jurisprudência latina, graças principalmente ao empenho pessoal dos
imperadores Adriano e dos Antoninos.
Principalmente em nosso autor, encontramos, ao lado do gosto pelo
neologismo, uma acentuada preferência por vocábulos raros arcaicos. Nesse
particular, ele se insere no movimento arcaísta que distingue a literatura do
século II d.C. Esse movimento se caracteriza pelo interesse por palavras
arcaicas da literatura do passado, já em desuso, pelo estudo filológico dos
textos latinos arcaicos, pelo estudo dos monumentos do passado, com vistas à
erudição histórica. Tudo isso se traduz numa curiosidade extravagante e no
gosto por formas [51] rebuscadas. A língua literária latina chega a um estado
sui generis em sua expressão, uma profusão pirotécnica que rivaliza com a
riqueza dos espetáculos mundanos, língua como ícone do tempo.
Embora nosso autor pertença a um tempo considerado quase como vazio,
podemos dizer que, se, de um lado, ele cede ao espírito dessa época, fazendo
manuais, traduções, compêndios e discursos populares, de outro, ele se
mostra muito sincero em seu ideal ético nas recomendações de De deo
Socratis. Mostra-se também muito criativo nas Metamorfoses, obra em que
apresenta um retrato fidedigno do pensamento relacionado à vida privada de
seu tempo, com grande originalidade e, como já se disse aqui, valor artístico.
Ademais, enquanto os autores romanos da época tendiam mais para o estilo
asiático, com suas pirotecnias, talvez mesmo em contraposição aos autores
gregos da Segunda Sofística, que propugnavam pelo estilo mais próximo do
estilo retórico ático, seco e breve, nosso autor, como discípulo indireto de
Cícero, busca um estilo médio, embora tendendo um pouco, na verdade, para
o asiático. Nisso tudo ele revela uma originalidade de que escapam os demais
autores do seu tempo, e os supera.
[53] 2. O autor e sua obra

2.1. OBRAS FILOSÓFICAS E GERAIS

Apuleio é mais conhecido pelo romance O asno de ouro ou


Metamorfoses, entretanto essa obra é somente um capítulo breve, embora
belíssimo, de um homem que dedicou seus esforços a disseminar a
sofisticada sabedoria da filosofia do Platonismo Médio, num dos movimentos
mais instigantes e florescentes da Antiguidade Clássica tardia.
Relacionaremos, em seguida, a produção intelectual do autor com breves
comentários.
Das principais obras que sobreviveram, Apologia, Florida, Metamorfoses,
De Deo Socratis, De Platone et eius dogmate e De Mundo, as três primeiras
mencionadas derivam de um único manuscrito do século XI, enquanto as
demais derivam de um conjunto de publicações tradicionais que parecem
remontar a uma edição das obras reunidas de Apuleio (Harrison, 2008, p.10),
e foram reunidas em um corpus único apenas no século XIV (BEAUJEU,
2002, p.xxxv). Embora não haja discussão quanto à autoria das quatro
primeiras, incluindo De Deo Socratis, a das duas últimas, De Platone et eius
dogmate e De Mundo, tem sido questionada, mas os estudiosos se inclinam
mais a conceder autoria ao madaurense, em virtude dos paralelismos de
definições que se encontram nessas obras, excetuando-se, por motivos
óbvios, Metamorfoses. Por uma questão didática, essas obras são distribuídas
em três grupos: 1) obras oratórias, De magia ou Pro se de magia (mais
conhecida pelo nome de Apologia), e Florida; 2) o romance
Metamorphoseon libri XI (mais conhecido como Asinus aureus); 3) tratados
filosóficos, De Plato [54] ne et eius dogmate libri II, De Mundo, De deo
Socratis. Além dessas obras, podemos citar um quarto grupo que engloba
duas obras cuja autoria é contestada, Περὶ ἑρμηνείας e Ascreplius, e um
quinto, obras apenas citadas por Apuleio, ou por outros escritores, que não
chegaram até nós.
Em Florida, nosso autor diz ter se dedicado aos mais diversos tipos de
escritos:

Prorsum enim non eo infitias nec radio nec subula nec lima nec torno nec id genus
ferramentis uti nosse, sed pro his praeoptare me fateor uno chartario calamo me
reficere poemata omnigenus apta virgae, lyrae, socco, coturno, item satiras ac
griphos, item historias varias rerum nec non orationes laudatas disertis nec non
dialogos laudatos philosophis, atque haec et alia eiusdem modi tam graece quam
latine, gemino voto, pari studio, simili stilo. (Flor. IX, 27-29)

Em suma, pois, não vou contestar que nem a lançadeira, nem a sovela, nem a lima,
nem o torno, nem as ferramentas desse gênero eu soubesse usar, mas, em vez
dessas, declaro solenemente preferir uma pena de escrever, de todos os gêneros
compor poemas apropriados à batuta épica, à lírica, ao borzeguim e ao coturno, da
mesma forma sátiras e enigmas, histórias variadas dos assuntos, discursos
louvados pelos peritos, diálogos louvados pelos filósofos, e estas e outras, da
mesma forma tanto em grego quanto em latim, com a mesma devoção, igual
dedicação, estilo semelhante.

Canit enim Empedocles carmina, Plato dialogos, Socrates hymnos, Epicharmus


modos, Xenophon historias, Crates satiras: Apuleius vester haec omnia novemque
Musas pari studio colit (Flor. XX, 5)
Empédocles, com efeito, compôs poemas; Platão, diálogos; Sócrates, hinos,
Epicarmo, mimos; Xenofonte, histórias; Crates, sátiras: vosso Apuleio todos esses
e as nove musas com a mesma dedicação cultiva.

[55] Embora boa parte de suas obras não tenha sobrevivido, e essa perda,
segundo Beaujeu (1971, p.XVIII), seja pouco lamentável, como philosophus
platonicus e orador de espetáculo, Apuleio precisava fazer publicidade de
seus escritos, para garantir o status de homem de vastos e profundos
conhecimentos, em virtude dos privilégios que tal fama garantia, durante o
reinado dos Antoninos, aos homens de letras
2.2. DESCRIÇÃO DAS OBRAS

Obras supérstites genuinamente de Apuleio são: um romance:


Metamorfoses (siue Asinus aureus); três obras de divulgação filosófica: De
deo Socratis, De mundo, De Platone et eius dogmate; duas obras retóricas:
Apologia (siue Pro se de magia), Florida.

Metamorphoseon libri XI (siue Asinus aureus)

Nesse romance, o autor informa inicialmente que acalentará os ouvidos do


leitor com breves histórias milésias, ao modo dos argutos papiros egípcios
escritos com cálamo nilótico, e lança-nos imediatamente na aventura, com
uma viagem do nosso protagonista Lúcio à Tessália; Aristômenes,
companheiro de caminhada, narra as desventuras de um amigo de nome
Sócrates, vítima dos malefícios de uma feiticeira. Lúcio chega à casa de
Milão, sua mulher feiticeira, Pânfila, e a escrava Fótis. Mesmo tendo sido
avisado pela irmã de leite de sua mãe, Lúcio, levado pela cusiositas, inicia
seduz Fótis, que lhe franqueia as poções da domina. Lúcio, querendo se
transformar em pássaro, símbolo da consciência, unta-se com um preparado
que o transforma em asno, símbolo de Seth, arqui-inimigo de Ísis. Nesse
momento começam as vicissitudes de um ser que se precipitou em sua
própria ruína por sua imprevidência: lança-se ele no reino da Fortuna caeca,
onde, de atribulação em atribulação, Lúcio tem de pensar em seu destino,
visto que mantém a alma humana. − Não seria isto uma metáfora do corpo
como prisão da alma? O asno passa de mão em mão, inicialmente por roubo,
depois, sucessivamente por venda, até o momento em que, no final do livro
IX, passa às mãos de um soldado. Este é o ponto [56] de inflexão da obra:
Lúcio, à custa de sofrimento e reflexão, havia evoluído e alcançado sua
redenção. Seu foco não é mais a curiositas, que lança o homem no mundo da
sorte cega, mas a manutenção de um estágio superior, mesmo à custa da
própria vida. E o asno passa a donos mais humanos que lhe descobrem os
talentos e os exibem aos curiosos; neste ponto do mesmo livro, graças às suas
qualidades, ele é levado a participar de uma série de jogos públicos, em que
ele está destinado a promover o suplício de uma mulher triplamente
criminosa — Novamente a trindade. Enquanto espera o momento, Lúcio
pensa na condenada, nos seus crimes e decide não se contaminar com o
contato desse tipo de pessoa, pois, mesmo que ela mereça castigo, não pode
ser à custa de sua ignomínia. Com toda a reflexão, mesmo pondo em risco
sua própria vida, o nosso herói foge: prefere a liberdade incerta à desonra
certa. Não seria exatamente essa a estrutura do ordálio iniciático: escolher
entre uma situação cômoda medíocre ou infamante e uma incerta, porém
digna? Exatamente, com a fuga ao contágio de sua pureza, nosso herói torna-
se digno do perdão de Ísis, a Fortuna vidente e previdente, que no livro
seguinte lhe aparece em sonho e mostra finalmente o caminho da salvação.
Talvez a palavra mais adequada para essa obra seja alegria, mas séria,
consciente, consequente, a verdadeira alegria guiada pela busca do verdadeiro
saber e derivada dele, e não pela curiosidade insensata. Essa obra sempre foi
estudada em total separado das demais, constituindo, por isso, sempre um
grande enigma para os estudiosos a ruptura entre o último livro e os
anteriores, entretanto o estudo conjunto com De deo Socratis e De Platone et
eius dogmate revela a clara natureza parenética desse romance. Em outras
palavras, a inserção consciente de ideologia em escritos literários não é
apanágio do Romantismo.

Obras filosóficas

As obras filosóficas de Apuleio são: De deo Socratis, De Mundo e De


Platone et eius dogmate.
[57] De deo Socratis

Conferência de divulgação filosófica em que Apuleio expõe em resumo


elaborado e completo de todo o conhecimento existente sobre os daemonēs
no século II d.C. Será tratada adiante nos capítulos quatro, cinco e seis.

De mundo

Trata-se de uma tradução, com um grau bem acentuado de liberdade, do


tratado pseudoaristotélico homônimo, Περὶ κόσμου, devidamente adaptado
para um público de leitores latinos. O autor começa, no prefácio, falando das
virtudes da filosofia, de seu poder como ferramenta investigativa dos
fenômenos naturais, em que insere uma passagem de Favorino de Arles sobre
os ventos. Não se sabe por que motivo Apuleio fez essa tradução, uma vez
que esse tratado era de leitura corrente nos círculos de estudos atenienses à
época em que o autor lá estudava e a obra não apresenta nenhuma das
características da exuberância estilística do autor.

De Platone et eius dogmate

Síntese das doutrinas platônicas, provavelmente uma reelaboração das


anotações das aulas de filosofia assistidas pelo autor quando de sua estada em
Atenas, traz uma visão geral da filosofia platônica à sua época, no que tange,
pelo menos, à física e à ética de Platão. Embora afirme no início que tratará
de todos os campos do pensamento do fundador da Academia, Apuleio omite
a lógica, por achar esse assunto árido e desconfortável, ou o correspondente
capítulo se perdeu.
De inicio ele apresenta uma biografia resumida de Platão, por achar útil
essa contextualização. Em seguida, passa à Física, dividindo-a em: 1)
Teologia e cosmologia; 2) Antropologia (Ciência do homem). Depois à Ética,
dividindo-a em: 1) Moral teórica; 2) Caminhos do progresso [58] moral; 3)
Graus da moralidade, e 4) Organização das cidades. Cada um desses itens é
subdividido em tantos outros cuja enumeração aqui foge ao propósito deste
capítulo.
Um dos argumentos para a não apresentação de um capítulo destinado à
lógica seria o fato de Apuleio chamar a atenção do leitor, no capítulo inicial
sobre a vida de Platão, que este estudara a dialética dos eleatas, fundindo-as,
em toda sua obra, em um todo harmonioso com a física e a moral. A lógica,
portanto, não teria razão de ser apresentada em um capítulo em separado.
Em todo o conjunto dessa obra, é importante lembrar que Apuleio se atém
ao espírito e mesmo aos ensinamentos da doutrina platônica, tal como
aprendera em Atenas, embora, graças a pequenos laivos de criatividade, dê
um relevo particular a alguns detalhes dessa doutrina. Como diretrizes
básicas, ele nunca se afasta da tríade mais cara à inspiração original do
Platonismo: a transcendência do deus supremo, a importância dos daemonēs
e a exortação à perfeição moral com vistas a uma ascensão em direção a
Deus.

Apologia (siue Pro se de Magia)

Trata-se do único discurso judiciário do segundo século de nossa era que


nos chegou completo. Em sua estrutura e disposição, ele pode ser resumido
como segue, com indicação dos capítulos divididos segundo a tradição dos
editores: Exórdio (1-3); Refutação da acusação de magia (4-24); Síntese
refutação da acusação de magia (25.1-25.4); Introdução à refutação das
acusações “menores” de magia (25.5-28); Refutação das acusações
“menores” de magia (29-65); Introdução à refutação das acusações “maiores”
referentes ao casamento de Pudentila (66-67); Refutação das acusações
“maiores” referentes ao casamento de Pudentila (68-101); Síntese da resposta
à acusação e peroração31 (102-103).
Em síntese, Apuleio, a caminho de Alexandria, viu-se, de repente, retido
em Ea, onde reatou a amizade com um antigo colega de estudos em Atenas,
de nome Ponciano, filho da rica viúva Pudentila, [59] que, com o fito de
resguardar a herança dos filhos, há muito recusava as investidas de
pretendentes. Ponciano convenceu Apuleio a casar-se com a mãe. Por ter
frustrado os projetos dos parentes da viúva, esse casamento valeu a Apuleio
um processo, sob a alegação de utilizar artes mágicas para seduzi-la. O autor
primeiramente se esforça em mostrar que essa acusação não passa de uma
campanha de maledicências e difamação. Trata-se aqui do exórdio.
Como principal estratégia para refutar a acusação de magia, tendo em
vista uma campanha difamatória anterior, nosso autor, expõe que os dados de
sua vida privada, isto é, sua eloquência, beleza, seus poemas eróticos, dos
quais nos dá amostras, a posse de um espelho, a libertação de escravos, sua
pobreza e suas origens numa classe média emergente, nada mais são que
fatos corriqueiros isentos de culpa perfeitamente compatíveis com a vida e as
atitudes daqueles que se entregam à profissão da filosofia e, em cada uma
delas, aproveita para mostrar seu conhecimento filosófico-científico, como
por exemplo, no caso do espelho, falando sobre o fenômeno da reflexão, que
muito interessava aos matemáticos na época.
Daí Apuleio passa às acusações menores: seu interesse por peixes, o caso
dos epiléticos, seu “talismã”, alegados sacrifícios e cerimônias noturnos,
posse de uma estatueta de Mercúrio. Seu argumento é de que esses fatos não
têm nada que ver com magia, senão uma semelhança nas aparências e
pergunta se se é mágico por estudar a natureza, praticar a medicina à luz do
dia por puro altruísmo ou render aos deuses um culto piedoso e constante.
Em seguida, Apuleio chega ao cerne da questão do processo, relaciona as
acusações maiores com seu casamento com Pudentila, em outras palavras, ele
sugere que o verdadeiro propósito da causa não era punir um feiticeiro, mas
atacar o homem que se tornara marido da rica viúva. Ele narra os principais
acontecimentos anteriores ao casamento, desmascara o ardil da carta forjada
atribuída a ele, fala do casamento no campo, em virtude da animosidade dos
parentes dela, refuta a acusação de interesses financeiros, narra os
acontecimentos posteriores ao enlace e, finalmente, como refutação final dos
alegados interesses financeiros, Apuleio faz ler o testamento da esposa, que
nomeia como herdeiros somente os filhos. Além disso, o contrato nupcial
[60] mostra que ele não teve nenhuma vantagem material. Termina pois o
discurso com uma síntese das respostas à acusação e passa à peroração.
Não houve dificuldade para Apuleio em demonstrar que a magia nada
influiu em seu casamento, mas foi muito difícil fazer a imagem de feiticeiro,
tão bem aproveitada pelos seus adversários, sair da cabeça de seus
contemporâneos e da posteridade. Deixou atrás de si essa reputação que
perdurou por séculos.
Por seu conteúdo de ostentação de conhecimentos múltiplos essa defesa
se enquadra indiscutivelmente na classificação de discurso sofístico, em que
o orador, como todos os demais da Segunda Sofística, mostra-se ansioso por
impressionar a audiência pela vastidão de seus conhecimentos e erudição,
mesmo que sejam somente espetáculos derivados de sumários e epítomes, em
vez de apresentações calcadas em próprias elaborações originais. Entretanto
há que se fazer justiça ao fato de que, em contraposição a esse fundo
emprestado, a forma apresenta originalidade quando mescla argumentação
forense e digressões de duas ordens: epidíctica e didática, uma arquitetura
que deriva muito mais do cálculo premeditado do orador que exatamente dos
modelos disponíveis à época.
Florida

A melhor definição dos Florida está em Citroni (2006, p.1001), “Uma


eloquência ‘de pompa e circunstância’”. Escritos que atestam muito bem a
atividade de Apuleio como conferencista de sucesso no mundo latino inserido
na Segunda Sofística. Uma eloquência dirigida principalmente ao público
mundano seja em privado ou em cerimônias oficiais, como celebrações ou
homenagens a personalidades públicas de relevo.
Trata-se de uma antologia dos discursos proferidos por Apuleio nos
últimos anos de sua vida depois de voltar definitivamente a Cartago, embora
não se saiba se essa coletânea foi coligida pelo próprio autor ou por um
posterior interessado. Em vinte e três excerpta, de variável extensão, o autor
toma como assunto desde a filosofia, os sentimentos de piedade para com
locais ou divindades, as viagens de [61] Pitágoras, até mesmo os
gimnosofistas hindus, ou sobre um pássaro exótico de que somente ouvira
falar. Enfim, um anedotário que por vezes chega à futilidade.
Como principal característica aponta-se o virtuosismo oratório do autor,
que, com extrema versatilidade, se propõe, como já dissemos acima, a
discursar sobre todo tipo de tema que se lhe apresentasse. Entretanto o texto
deixa transparecer claramente a superficialidade de um tratamento em que o
mais valorizado não era a profundidade do tratamento, mas o deleite da
plateia, o entretenimento e mesmo o simples maravilhamento de um público
não especializado mundano que acorria para as salas de conferências. Essa é
uma das mais evidentes marcas da Segunda Sofística, isto é, a primazia da
eloquência sobre os demais aspectos científicos ou culturais. Não havia tema
em que esses “oradores de concerto” não se sentissem habilitados a tratar
com virtuosismo estilístico.
Citroni (2006, p.1001) assim diagnostica os Florida:
A avaliar por aquilo que os Florida permitem entrever, era rara a ocasião em que
Apuleio se abstinha de exibir – por vezes de modo incontrolado – quer as
capacidades de expressão da sua retórica, quer o seu talento em urdir uma prosa
cheia de floreios. A língua é extremamente heterogênea: não lhe repugnam quer os
neologismos quer o abuso do léxico poético. O estilo recorre sem hesitação a
artifícios como as assonâncias e as rimas internas. Apuleio mostra-se plenamente
consciente das suas aptidões como retórico, e não para de as exibir. No entanto,
tanto alarde de virtuosismo acaba por se afigurar – pelo menos ao leitor moderno –
enfadonho e alambicado.

Περὶ Ἑρμηνείας e Asclepius

Além das três obras filosóficas mencionadas, existem duas outras


atribuídas ao nosso autor, Περὶ Ἑρμηνείας e Asclepius. A primeira é uma
resumida versão em latim da teoria lógica de Aristóteles, com linguagem
tecnicamente seca e de interesse literário e estilístico muito exíguo. Os
argumentos apresentados pelos defensores da autoria [62] podem ser
utilizados, do mesmo modo, pelos que a contestam, quer seja a citação do
nome do autor nos exemplos, quer seja a aparente complementação do
material contido no terceiro livro do De Platone, hoje perdido. No entanto,
pode-se argumentar, em defesa dos contestadores, que a transmissão do texto
pela tradição se deu em separado dos demais textos do autor. Todos esses,
portanto, podem servir como argumentos em favor de uma posterior
composição do texto, não por Apuleio, mas por um seguidor, talvez um
discípulo, tentando sumarizar as obras do mestre, ou ainda tentando inserir
nelas as suas próprias elaborações. Harrison (2008, p.12) argumenta que essa
obra não apresenta o vocabulário arcaico e poético encontrado até mesmo nas
obras mais secas como De Platone e De mundo, embora a autoria por nosso
autor não seja coisa absolutamente impossível. A segunda, Asclepius, é uma
versão de um tratado hermético grego perdido em sua maior parte, que,
embora tradicionalmente incluído no conjunto das obras de Apuleio,
dificilmente pode ser-lhe atribuído, porque nunca é citado, nem nos
manuscritos do autor, nem nos comentários de Agostinho de Hipona, bem
como, da mesma forma que o texto anteriormente citado, apresenta
divergências profundas com a linguagem em Apuleio. Segundo Harrison
(2008, p.12), a importância de Esculápio na obra de Apuleio pode ter sido
uma forte motivação para que um editor da Antiguidade tardia tenha incluído
esse livro no corpus apuleiano.

Περὶ ἑρμηνείας

Trata-se de uma breve tradução em latim da lógica aristotélica em


linguagem técnica e seca, de pouco interesse estilístico ou literário. Como
tradição textual, separa-se das demais obras de Apuleio, mas lhe foi atribuído
pela transmissão do manuscrito e nas referências indiretas desde a
antiguidade tardia. A prova da autoria seria ele usar o nome de Apuleio em
vários exemplos, e suprir o campo lógico do terceiro livro perdido do De
Platone. Esse argumento, entretanto, serviria também perfeitamente para
indicar uma complementação do material, mais tarde, por outro autor, talvez
um discípulo tentando seguir a doutrina do mestre. Marciano Capela, no
século IV, apropria-se do texto sem citar autoria. Cassiodoro, apud Isidoro de
Sevilha, o cita. Todos os argumentos de autoria, cuja exposição não é caso
aqui, tanto [63] servem aos que a defendem quanto aos que a negam. O único
argumento plausível, mas fraco, é de que, sendo mera tradução de um tratado
técnico em língua grega, não comportaria o mesmo tratamento estilístico das
demais obras do autor. Do pondo de vista do estilo, esse texto oferece muito
poucos parâmetros para comparação com as demais obras de Apuleio. A
importância desse texto, porém, reside no fato de ter desempenhado um
importante papel na transmissão da lógica aristotélica na Idade Média.
Asclepius

Asclepius, como o nome parece indicar, seria uma versão de um tratado


hermético grego em grande parte perdido. Essa obra foi transmitida junto
com as obras filosóficas de Apuleio, mas existem argumentos para se excluir
a autoria. Primeiramente a atribuição: nenhum manuscrito que o contém o
atribui ao madaurense. Em segundo, Agostinho de Hipona, que muito bem
conhecia o corpus Apuleianum, ao citar esse texto, não o atribui a Apuleio.
Finalmente, a obra apresenta grande divergência com os usos linguísticos do
nosso autor. Segundo Harrison (2008, p.12), a atribuição poderia ter sido
motivada, como no caso de Περὶ ἑρμηνείας, por um interesse em aumentar o
já variado cânon apuleiano com apropriação de obras apócrifas ou anônimas.
O destaque dado a Esculápio por Apuleio em sua obra é motivo bem
plausível para que um compilador ou editor antigo, mais tarde, juntasse o
Asclepius ao corpus Apuleianum. Cumpre notar que na Apol. 55.8 temos
Aesculapii; em Flor. 18.37, Aesculapio; em Flor. 18.42, Aesculapii, e em
DDS, 15.154, Aesculapius. Por que o autor tão afeito às religiões místicas,
cujo apreço pelo nomen-numen é notório, divergiria de todos seus escritos
exatamente num título? Segundo ainda Harrison (2008, pág. 12, n.49), nas
quarenta e oito páginas da edição de Helm do Asclepius (Teubner, 1959), o
pretenso autor não utiliza as palavras comuníssimas nas obras genuínas de
Apuleio, ou seja: ceterum, commodum, eiusmodi, ferme, frustra, igitur, immo,
interdum, interim, item, licet impessoal, longe, mox, namque, negare, ne…
quidem, oppido, paene, partim, plerumque, plerusque, praeterea, profecto,
prorsus, protinus, rursum/rursus, saltem e sane. Cita [64] também a ausência
de cur, em um diálogo estruturado como perguntas a um deus e suas
respectivas respostas. Outro fato digno de nota é o uso livre de itaque, coisa
rara em Apuleio fora das Metamorfoses.32.
Ambas as obras mostram a capacidade de escritores posteriores
comporem obras inspiradas em Apuleio ou ainda anexá-las ao corpus
Apuleianum. Segundo Harrison (2008, p.13) “tais adições pseudoepigráficas
são particularmente comuns em escritores do período da Segunda Sofística
com uma larga e variada produção, que convidam a aposições desse tipo33.”

Fragmentos diversos e referências esparsas

Há referência a muitas obras de Apuleio em gramáticos, principalmente


no século IV de nossa era, como Carísio, Nônio, Prisciano, Sérvio Honorato,
e comentadores diversos, Fulgêncio, Isidoro, Paládio. Tamanha profusão de
comentaristas aponta, no mínimo para a importância de seus escritos na
posteridade.

Ludicra

O termo se reporta ao adjetivo ludicer, “que tem relação com o


jogo/brincadeira”; substantivado em ludicrum (Ernout & Meillet, 1939, s.u.
ludus).
O gramático Nônio Marcelo (séc. IV) cita em De compendiosa doctrina34,
o seguinte septenário jâmbico: “Abstemius:… Apuleius in libro Ludicrorum:
sēd fuīstī quōndam Athēnīs pārcus ātque ābstēmius” (Mas outrora, em
Atenas, eras econômico e abstêmio). Pode-se creditar à tendência arcaizante
de Apuleio a utilização desse verso arcaico utilizado, mas muito raramente,
por Plauto e Terêncio em suas comédias.
[65] Na Apologia (6, 3), Apuleio cita uma passagem em que comenta o
envio de dentifrício para Calpurniano:

Calpurniane, salue properis uersibus.


Misi, ut petisti, [tibi] munditias dentium,
nitelas oris ex Arabicis frugibus,
tenuem, candificum, nobilem puluisculum,
complanatorem tumidulae gingiuulae,
conuerritorem pridianae reliquiae,
ne qua uisatur tetra labes sordium,
restrictis forte si labellis riseris.

Calpurniano, por estes versos lépidos, salve!


mandei-te, como requisitaste, artigos de higiene dos dentes
e o brilho da boca, extraídas das plantas arábicas,
um pozinho branqueador fino e nobre,
um aplainador da gengivazinha inchadinha,
um varredor dos restinhos do dia anterior,
para que não seja vista uma escura mancha de sujeira,
se, por acaso, com os labiozinhos apertados rires.

Esse fragmento faz alusão direta ao poema 39 de Catulo, peça que fala do
riso fácil de Egnácio e termina fazendo alusão à sua higiene bucal, aqui ele
faz o contrário, começa pela higiene e termina pelo riso apertado, sorriso
amarelo talvez, do representante da parte contrária no julgamento de magia.
Embora se refira a Catulo, como o próprio Apuleio cita pouco adiante, o
poema é mais característico do madaurense pelo uso de criações em cima de
modelos arcaicos: nitela, candificus, complanatorem, converritorem, e os
diminutivos: pulvisculus, tumidulus, gingivula, com efeito cômico-sarcástico.
Na Apologia 9.12, encontramos outro fragmento do que seria uma dessas
ludicra:

Et Critias mea delicia est et salua, Charine,


pars in amore meo, uita, tibi remanet.
Ne metuas, nam me ignis et ignis torreat ut uult;
hasce duas flammas, dum potiar, patiar.
[66] Hoc modo sim uobis, unus sibi quisque quod ipse est;
hoc mihi uos eritis, quod duo sunt oculi.

Sim, Crícias35 é a minha delícia, mas está guardada, Carino,


a parte do meu amor, minha vida, que a ti pertence.
Não temas, pois o fogo com fogo queima como quer,
essas duas chamas, enquanto gozar, sofrerei.
Desse modo seja eu para vós, o que cada um é para si;
assim para mim vós sereis aquilo que são os dois olhos

Em 9.14, encontramos o seguinte fragmento que igualmente pertenceria


às Ludicra:

florea serta, meum mel, et haec tibi carmina dono,


carmina dono tibi, serta tuo genio,
carmina uti, Critia, lux haec optata canatur,
quae bis septeno vere tibi remeat,
serta autem, ut laeto tibi tempore tempora vernent,
aetatis florem floribus ut decores.
tu mihi des contra pro verno flore tuum ver,
ut nostra exsuperes munera muneribus;
pro implexis sertis complexum corpore redde,
proque rosis oris savia purpurei.
quod si animam inspires donaci, iam carmina nostra
cedent victa tuo dulciloquo calamo.

As guirlandas de flores, meu doce, e estes cantos te ofereço,


os cantos ofereço a ti, as guirlandas ao teu genius;
as poesias, Crícias, para que essa luz desejada seja cantada,
que duas vezes sete com a primavera torna,
as guirlandas, porém, para que a ti a alegre estação nas frontes [floresça,
para que a flor da idade com flores decores.
Dá-me, em troca por essa flor primaveril, a tua primavera,
que em nossa retribuição superes em muito o tributo original;
[67] pelos ramos entrelaçados retribui com o corpo entrelaçado,
e pelas rosas, os teus beijos suaves purpúreos.
Porque se inspiras uma alma ao cálamo, já nossos cantos
se rendem vencidos à tua suaviloquente flauta.

De proverbis

Desse livro existem somente alguns fragmentos, um citado por Carísio, de


autenticidade não contestada: mutmut non facere audet [ut Apuleium
Platonicum de proverbis scriptum est libro II] (não ousa abrir o bico), que se
encontra também em autores mais antigos como Ênio, e cinco outros
fragmentos, de autoridade contestável, constantes de um manuscrito do
século XVII: principius vitae… obitus meditatio est (o principio da vida… é a
preparação para a morte); non uult emendari peccare nesciens (não deseja
corrigir-se o que não tem consciência do pecar); immoderata ira est genetrix
insaniae (a ira desmedida é a mãe da loucura); pecuniam amico credens fert
damnum duplex/ argentum enim et sodalem perdidit simul (o dinheiro
emprestado ao amigo traz o duplo dano:/ a prata, pois, e a amizade ao mesmo
tempo perdeu).
Desde os tempos remotos, as máximas moralizantes em versos curtos
eram a forma preferida de comunicação e propagação, entre e para o povo, da
ideologia comunitária desejada, vejam-se, nesse caso, as sententiae de
Publílio Siro e os Disticha Catonis. Esses exemplos remetem-nos a
conhecidos excertos do Fedro de Platão, de Epicuro, de Sêneca e de Plauto.
A autoria desses fragmentos, porém, deve ser tomada com cautela, haja vista
sua fonte, embora a tradição paremiográfica tanto fazia parte da tradição
filosófica grega, da qual Apuleio se dizia representante genuíno, quanto do
uso romano, pois os provérbios eram ferramentas utilíssimas como
ornamento retórico para os escritores de todos os tempos, seja qual for a
língua em que escreviam, bem como, e, principalmente, para os oradores que
falavam de improviso. Da importância, lembremos ainda que Aristóteles,
Teofrasto, Diógenes Laércio, Favorino, Zenóbio, debruçaram-se, como
muitos outros, sobre os provérbios.
Mutatis mutandis, para o orador latino, o provérbio é o análogo do epíteto
do aedo homérico.

[68] Hermagoras

Em Beaujeu (2002, p.171) encontramos seis fragmentos, que podem ser


compulsados nos fac-símiles das edições críticas disponíveis atualmente na
internet.

Fiunt comparatiua… ab aduerbis siue praepositionibus, ut… “penitus penitior”.


Apuleius in I Hermagorae: visus est et adulescens honesta forma quasi ad nupcias
exornatus trahere [se] in penitiorem partem domus.36

Fazem-se os comparativos… a partir dos advérbios ou das preposições, como…


“profundamente, no mais profundo”. Apuleio no primeiro livro de Hermágoras:
pareceu ver também um jovem de bela forma, adereçado como que para núpcias,
arrastar-se para o mais profundo da casa.

Apuleius tamen in I Hermagorae: verum infirma scamillorum obice fultae fores.37

Apuleio, no primeiro livro de Hermágoras: mas na verdade as portas apoiadas


por uma barreira de frágeis bancos.

“scio scius” – sic Apuleius in primo Hermagorae.38

“sei, sabido” – assim como Apuleio no primeiro livro de Hermágoras.


[69] Antiqui tamen etiam “ninguis” dicebant, unde Apuleius in I Hermagorae:
aspera hiems erat, omnia ningue canebant.39

Os antigos, todavia, diziam também “ninguis” (= nix)… donde Apuleio no


primeiro livro de Hermágoras: era um inverno tormentoso, tudo embranquecia de
neve.

Antiqui tamen et “posiui” protulisse inueniuntur… Apuleius in I Hermagorae: et


cibatum, quem iucundum esse nobis animadvertant, eum adposiuerunt.40

Os antigos, todavia, parecem também ter utilizado “posiui” (= pus)… Apuleio no


primeiro livro de Hermágoras: e o alimento, que agradável para nós julgam, o
puseram.

Pollinctores dicti sunt quasi pollutorum unctores, id est cadauerum curators, unde
et Apuleius in Ermagora ait: pollincto eius funere domuitionem paramus.41

São chamados de pollinctores (que embalsamam, amortalham), como se


pollutorum unctores (untadores dos [corpos] sujos), donde Apuleio no livro
Hermágoras diz: feita a unção do cadáver dele, preparamos a volta para casa.

Entre os estudiosos e pesquisadores da obra, é consenso de que se tratava


de uma publicação em mais de um volume. Segundo Harrison (2008, p.22),
os primeiros estudiosos sugerem que seria um diálogo do tipo platônico,
contudo a reconstrução de Ben Edwin Perry de 1924, como um romance de
bas-fond, à moda de Petrônio, mostrou-se muito mais plausível, haja vista
seus detalhes indicarem um cenário [70] romântico (Frag. 3), um cômico
bloqueio de uma porta (Frag. 6), uma refeição (Frag. 7) e um funeral (Frag.
8). O vocabulário arcaico, ao lado das situações que podem sugerir o
picaresco apresentam paralelismos que poderiam indicar mais uma obra de
Apuleio na forma de romance, a ser posta ao lado das Metamorfoses.
O título faz alusão a Hermágoras de Temnos, o mais importante retórico
do período helenístico, e, como sugere Perry, a obra satirizaria os rétores em
geral e a retórica, da mesma forma que eles são o maior alvo de Petrônio. Se
não existissem somente tão poucos fragmentos, essa obra, se confirmada
como romance satírico, proporcionaria um excelente contraste com o
romance As Metamorfoses de Apuleio.

Phaedo

Com dois fragmentos em Prisciano (GLK 2, 511 e 2, 520), essa tradução


do Fédon aponta claramente tanto para a obra de Platão quanto para uma
tradição iniciada por Cícero com a tradução do Timeu.

“Compesco compescui” et “dispesco dispescui” et “posco poposci” et “disco


didici” a praesenti tempore faciunt supinum mutatione o in i et aditione “tum”:
disco discitum”. Vnde Apuleius participium futuri protulit in Phaedone De anima:
sic auditurum, sic disciturum qui melius sit haec omnia et singula sic agere aut
pati, ut patiuntur atque agunt42. [~ Fédon. 97e-98a]

Compesco compescui (= “detenho”, “detive”), dispesco dispescui (= “separo”,


“separei”), posco poposci (= “peço”, “pedi”) e disco didici (= “aprendo”,
“aprendi”) do tempo presente fazem o supino pela mudança do o em i e adição de -
tum: disco discitum (= “aprendo”, “para aprender”). Daí o particípio futuro
empregado por Apuleio no Fédon, sobre a alma: assim estou pronto a ouvir,
pronto a aprender, que é melhor que todos (os corpos), também individualmente,
agir e sofrer assim como eles (de fato) agem e sofrem.

[71] “ostendo” quoque ab eo (= tendo) compositum similiter facit “ostentum” et


“otensum”… Apuleius in Phaedone: et causam gignendi ostensurum et
immortalitatem animae reperturum43.
“ostendo” (= “mostro”) da mesma forma composto dessa palavra (tendo), deriva
similarmente “ostentum” e “otensum” (= “para mostrar”)… Apuleio no Fédon:
estou prestes a mostrar a causa da geração e descobrir a imortalidade da alma.

Essas traduções muito livres são muito importantes para alguém que se
dizia philosophus Platonicus, traduziu em latim como De Mundo o tratado
pseudoaristotélico Περὶ κόσμου e escreveu um tratado doutrinário, De
Platone. Embora muito breves, esses fragmentos apresentam características
do estilo de Apuleio, os isócolos em rima: sic auditurum, sic disciturum bem
como et… ostensurum… et… reperturum, e o arcaísmo poético gignendi, cuja
forma gignitur encontramos na Apologia 8.

Epitoma Historiarum
Alia uero omnia eiusdem terminationis correptae similem habent genetiuum
nominatiuo, ut “hic collis huius collis”… Excipiuntur… “haec cuspis cuspidis”,
“semis semidis” – Apuleius in Epitoma: sed tum sestertius dipondium semissem,
quinarius quinquessis, denarius decussis valebat44.

Em contrapartida todas as outras palavras têm a mesma terminação reduzida (= is)


do genitivo ao nominativo, por exemplo hic collis, huius collis (= “esta colina,
desta colina”) Exceptuam-se… haec cuspis, cuspidis (= esta ponta, da ponta),
semis, semissis [72] (= “meio asse, do meio asse”) – Apuleio no Epítome: mas
então o sestércio valia dois asses e meio (= dipondium semissem); o quinário,
cinco asses; o denário, dez asses.

Fac deriuatiuum ab eo quod est Aeneas. Possessiuum Aeneius Aeneia Aeneium, et


secundum Apuleium Aeneanicus Aeneanica Aeneanicum: sic enim ponit in
Epitomis historiarum: “Aeneanica gens”45
Forma-se o derivado daquilo (da palavra) que é “Aeneas. O possessivo “Aeneius,
Aeneia, Aeneium” (de Eneias), e, segundo Apuleio “Aeneanicus, Aeneanica,
Aeneanicum” (de Eneias): é assim que constrói no Epítome das histórias: povo
eneânico.

Embora não haja especificação do período histórico, o primeiro fragmento


traz informação sobre um valor monetário romano, sugerindo que a obra seria
uma sinopse da história romana de inspiração varroniana, principalmente no
que se refere às antiqualhas. Beaujeu (1973, p.174) apresenta um paralelo
muito próximo entre os dois. Apuleio, haja vista as necessidades de sua época
no que se refere à produção de educação de massa, certamente utilizou-se de
um ou vários autores para compendiar o conhecimento de forma a utilizá-lo
prontamente em suas apresentações. O segundo, ao utilizar um hápax no
sintagma Aeneanica gens, sugere que a obra trate, em algum ponto, da
história lendária primeva de Roma. O autor constrói esse adjetivo dessa
forma analogamente a graecanicus, etc. Epítomes, resumos, compêndios e
demais obras de divulgação de ciência, filosofia e história, eram muito
comuns no segundo século d.C., haja vista a grande demanda de textos para
instrução estendida a todo império, de volume de escritos de performances
retóricas, tudo isso levou a um tipo de aprendizado resumido de várias
formas. A obra de Floro, um relato em dois livros das guerras de Roma desde
a fundação até os tempos de Augusto, resumindo Lívio e outras fontes,
provavelmente escrita no reinado de Adriano, é um exemplo similar do que
deve ter sido essa obra de Apuleio.

[73] De Republica
Celocem dicunt genus nauicellae modicissimum, quod bamplum dicimus, unde et
Apuleius in libro De re Publica ait: qui celocem regere nequit, onerariam petit.46
Chamam de celox (bergantim) uma espécie de barquinho
pequeníssimo, que chamamos de bamplum, donde também Apuleio no livro A
República diz: quem não pode nem pilotar um bergantim, procura um navio de
carga.

Tão pequeno é o fragmento que não se pode dizer se tem alguma relação
com as obras homônimas de Platão e de Cícero. Parece tratar-se de uma
invectiva contra a presunção dos ignorantes. Na época era comum, para
mostrar espírito cívico, que os rétores se ocupassem de preceitos dirigidos
especificamente aos governantes, não exatamente tratados como os dos
autores retrocitados, mais de acordo com a época, entretanto, máximas,
anexins ou mesmo pequenas anedotas de cunho educativo. É importante
lembrar que Plutarco, por exemplo, escreveu um pequeno manual de
orientação política: Praecepta Gerendae Rei Publicae.

De Medicinalibus
Excipitur unum indeclinabile in singulari numero, “hoc cepe huius cepe” —
Apuleius in medicinalibus: cepe sucum melle mistum — quod in plurali numero
femininum est primae declinationis47.

Excetua-se um (vocábulo) indeclinável no singular, “hoc cepe huius cepe” (esta


cebola, desta cebola) — Apuleio nos (livros) medicinais: sumo de cebola
misturado com mel — que no plural é um feminino da primeira declinação.

[74] Plínio, em sua Historia Naturalis 20.39–43, fala dos poderes


curativos da cebola nos casos de mordidas de cães, cobras e ainda para
inflamações de garganta. É interessante notar que a crença nos poderes
curativos da cebola sobreviveu até o século XX, em populações de baixa
escolaridade. Sua enunciação reflete claramente a tradição romana na
utilização de remédios de origem botânica, que remonta a Catão (De
Agricultura 70–3). Lembremos de que Apuleio na Apologia declara-se
medicinae nec instudiosus neque imperitus (nem o que não tem propensão à
medicina nem o imperito nela), e também de que no segundo século há uma
tradição de médicos ligados à prática da filosofia e filósofos ligados à prática
da medicina, veja-se, por exemplo, Galeno, que escreveu obras de filosofia
platônica, lógica e medicina, muito de acordo com a atividade sofística.

De Re Rustica

O único fragmento faz parte da obra Opus Agriculturae, de Paládio.


Segundo Harrison (2008, p.26), não se tem comprovação do título (De Re
Rustica) em qualquer referência, embora pareça apropriado: adversus mures
agrestes Apuleius adserit semina bubulo felle maceranda, antequam
spargas48 (contra os ratos silvestres, Apuleio afirma que é necessário macerar
as sementes em fel de boi antes de semear). Mais uma vez o autor exerce seu
eruditismo e enciclopedismo de polígrafo, seguindo os passos de Catão e
Varrão, ou talvez de Plínio o Velho.

De Arboribus

Hanc (= “felicem malum” quam Media gignit) plerique citrum uolunt;


quod negat Apuleius in libris quos De arboribus scripsit et docet longe aliud
esse genus arboris49 (A maior parte (dos autores) pretendem que essa (árvore
= “macieira feliz”, que a Média produz) é a cidreira, o que Apuleio nega num
dos livros que escreveu, As árvores, e [75] informa que é de longe outra
espécie de árvore. O título, juntamente com a citação, pode sugerir que o
livro fosse um manual de classificação de árvores que propriamente uma obra
dedicada ao cultivo delas, mas é somente conjectura, embora a principal fonte
de Apuleio nessa área, e dos demais eruditos, seja Plínio o Velho, que dedica
boa parte de sua Historia Naturalis à classificação das plantas50.
Eroticus (Ἐρωτικός51)

Existe somente uma referência em grego a esse Livro do amor, em que


Apuleio, certamente em latim (Ἀπουλήιος ὁ Ρωμαῖος φιλόσοφος), numa de
suas passagens descreve o episódio de Hércules e Ônfale. Nesse caso,
Apuleio segue a tradição do ἐρωτικὸς λόγος platônico baseado no Banquete e
no Fedro, diálogos que discutem as formas possíveis de amor, hétero e
homossexual.

Astronomica52

Ioannes Lydus, no século VI d.C., nas obras De Mensibus e De Ostentis,


cita quatro passagens de uma obra de Apuleio muito longas para serem aqui
reproduzidas, sem, entretanto, citar o nome dessa obra. Pela descrição de
Ioannes, a obra contém nomes e informações de cometas, meteoros,
relâmpagos e presságios solares e lunares, e, ao que tudo indica, é largamente
baseada na Historia Naturalis, fonte muito conveniente dos escritos
científicos de Apuleio, que mostra um grande interesse nessa área quando
escreve, ou traduz, o De Mundo. O [76] conhecimento dos fenômenos
celestes era de grande apreço no século II d.C., que viu vir à luz diversas
obras sobre o assunto como o Almagesto de Cláudio Ptolomeu.

Obras sobre zoologia

Embora Beaujeu não enumere essas obras, na Apologia 38, chama a


atenção para pelo menos uma das obras de Apuleio que trata de animais, a
expressão naturalium questionum nos leva ao título de Sêneca, Quaestiones
naturales, bem como aos Φυσικὰ Προβλήματα, de largo emprego na tradição
grega:
Prome tu librum e Graecis meis, quos forte hic amici habuere sedulique53,
naturalium quaestionum, atque eum maxime, in quo plura de piscium genere
tractata sunt. (Apol. 36.8)

Toma um livro, dos meus escritos em grego, que, por acaso, amigos e zelosos
trouxeram aqui, das investigações sobre a natureza, e de preferência um em que
muitas coisas sobre a espécie dos peixes são tratadas.

Et memento de solis piscibus haec uolumina a me conscripta, qui


eorum coitu progignantur, qui ex limo coalescant, quotiens et quid
anni cuiusque eorum generis feminae subent, mares suriant54, quibus
membris et causis discrerit natura uiuiparos eorum et ouiparos — ita
enim Latine appelo quae Graeci ζῳοτόκα et ᾠοτόκα … Pauca etiam de
Latinis scribtis meis ad eandem peritiam pertinentibus legi iubebo…
(Apol., 38.2-5)

E lembre-se de todos esses volumes por mim escritos somente sobre


peixes, quais deles se procriam pelo coito, quais da lama nascem,
quantas vezes e em que épocas do [77] ano as fêmeas do gênero estão
no cio, os machos estão no cio, por que membros (= constituição
física) e causas a natureza deles separou em vivíparos e ovíparos —
dessa forma então, em latim nomeio as [palavras] que os gregos
[utilizam]: ζῳοτόκα et ᾠοτόκα… Gostaria de pedir também que fossem
lidas umas poucas [passagens] de meus escritos em latim pertinentes
ao [mesmo] conhecimento…

O bilinguismo ostentado por Apuleio cumpre duas funções,


primeiramente impressionar a audiência e os magistrados presentes no
tribunal e, com isso, cooptá-los pela cultura e colocá-los do seu lado, em
contraposição aos seus acusadores, com gente inculta e rude; em segundo,
correlata dessa primeira, mostrar a todos que, ideologicamente, ele próprio
faz parte daquele grande império greco-romano tão incentivado pelos
Antoninos e seus legados por toda sua extensão. Se fazem parte de obras
diferentes ou se constituem uma só obra, que poderia muito bem ter o nome
de Naturales quaestiones, não é muito claro. Parece que Apuleio escreveu um
trabalho maior em latim, de que essas citações seriam excertos, e algumas
obras menores, em grego e em latim, falando igualmente somente sobre os
peixes. É o que o autor deixa entrever em Florida e Apologia. Mais uma vez
vemos o espírito classificatório, tanto de Aristóteles quanto de Plínio, o
Velho, emergir nas obras dos escritores latinos do século II d.C.

Quaestiones conuiuiales

Dois testemunhos existem dessa obra: Sidônio (Epist. 9. 13. 3): a


Platonico Madaurensi saltim formulas mutuare convivalium quaestionum (do
platônico madaurense ao menos podes pedir emprestadas as regras de
questões de convívio), e em Macróbio:

suadeo in conuiuiis in quibus laetitiae insidiatur ira… et magis quaestiones


conuiuales uel proponas uel ipse dissoluas. Quod genus ueteres ita ludicrum non
putarunt, ut et Aristoteles de [78] ipsis aliqua conscripserit et Plutarchus et uester
Apuleius, nec contemnendum sit, quod tot philosophantium curam meruit. (Sat.
7.3.23–4)

sugiro à mesa dos banquetes, nos quais a ira arma ciladas à alegria… que, de
preferência, proponhas ou então resolva as questões relativas à convivência. Coisa
que os antigos não julgaram como de brincadeira, como também Aristóteles sobre
os mesmos algumas coisas escreveu, e Plutarco, e o vosso Apuleio, não se pode
desdenhar aquilo que mereceu o cuidado de tantos que filosofaram.
Esses excertos indicam que havia uma obra de Apuleio em que as
questões eram apresentadas e respondidas (Προβλήματα) na tradição
aristotélica. Macróbio atesta a seriedade da obra e a palavra conuiuales na
certa se refere a simpósios.

De Musica

Cassiodoro (Inst. 2.V.10) faz rapidamente alusão a uma obra de Apuleio


sobre música: fertur etiam Latino sermone et Apuleium Madaurensem
instituta huius operis (= musica) effecisse (diz a tradição que, da mesma
forma, em língua latina Apuleio de Madaura também tinha composto
ensinamentos dessa arte). Não é de admirar que Apuleio tenha escrito pelo
menos uma obra sobre música, muito de acordo com o renascimento grego
contemporâneo, haja vista que o século II d.C. foi pródigo em tratados
musicais gregos, como os Harmonica, de Ptolomeu, o De Musica, de pseudo-
Plutarco.

De Arithmetica

Cassiodoro (Inst. 2.IV.7) traz um testemunho sobre a atividade de Apuleio


no campo da matemática:

[79]…arithmetica disciplina, quam apud Graecos Nicomachus diligenter


exposuit. Hunc primum Madaurensis Apuleius, deinde magnificus vir Boetius
Latino sermone translatum Romanis contulit lectitandum.

…aritmética, da qual Nicômaco [de Gérasa] tratou cuidadosamente entre os gregos.


Primeiro Apuleio de Madaura, depois Boécio, homem eminente, trouxeram aos
romanos essa tradução em língua latina, para que estes lessem várias vezes.
Isidoro de Sevilha (Etim. 3.2.1.) apresenta a mesma informação, mas tudo
indica que é apenas uma citação da obra de Cassiodoro.

De maiestati Aesculapii (discurso)

Conforme citado anteriormente (pág. 36), Apuleio nos fala (Apol. 55) de
um discurso pronunciado em Ea, por volta de 156, provavelmente com vistas
a ratificar sua piedade e seu status intelectual.
Esculápio, um daemōn segundo os escritos de Apuleio, era uma divindade
muito cultuada na África do Norte e na Grécia, especificamente em Pérgamo,
grande centro sofístico e local em que se situava o conhecido Asclepeion. O
título nos sugere que se tratava de um discurso encomiástico, que tanto
poderia tomar parte nos cultos religiosos quanto nas competições musicais.
Um testemunho da popularidade dessa divindade é o hino e a série de
discursos sagrados dedicados a ela por Élio Aristides, contemporâneo de
Apuleio.

Sobre uma estátua (dois discursos)

Há indícios de que Apuleio tenha pronunciado, em Ea, um discurso


reivindicando o cumprimento de um voto da comunidade dessa cidade para
que se lhe fosse erigida uma estátua. Ao que tudo indica os parentes de
Pudentila, derrotados na causa descrita na Apologia, levantaram uma
oposição à honraria e conseguiram, pelo menos por um tempo, suspendê-la.
No mundo grego da Segunda Sofística, era [80] comum erigir estátuas para
os sofistas de fama, assim como para todos os membros da elite local. Em
Flor. 16, Apuleio agradece por outra estátua que lhe foi votada pelo senado
de Cartago.

Loliano Avito (discurso)


Apuleio, na Apol. 24, informa ter declamado um discurso diante de
Loliano Avito, procônsul em 157-8.

Elogio de Cipião Órfito

Em Flor. 17, Apuleio menciona um panegírico do procônsul acima no


final de seu mandato.

Hino a Esculápio

Em Flor. 18, conforme citado anteriormente (pág. 35), Apuleio menciona


um hino de louvor a Esculápio, do qual nada sobreviveu.

Herbarius

Um tratado acerca do uso medicinal das ervas. Embora em seu prefácio


reivindique a autoria de Apuleio, é-lhe unanimemente negada a autoria, tendo
sido provavelmente escrita no século quarto de nossa era. Provavelmente foi
atribuída ao madaurense em virtude de seu prestígio crescente e por uma obra
sobre botânica medicinal, hoje perdida.

[81] Physiognomonia

Um longo tratado de fisiognomia, atribuído ao nosso autor, talvez pelo


mesmo motivo do Herbarius e por tratar de um assunto particular de muito
interesse no segundo século d.C. Ainda mais que o próprio Apuleio mostra
alguma ligação com esse assunto. Embora tenha sido escrito no terceiro ou
quarto século, a atribuição de autoria desse longo tratado data somente do
século dezenove. Um estudo um pouco detalhado mostra que a atribuição é
falsa.
O exame dessa longa lista de obras ainda existentes e perdidas leva a
vários questõss. Primeiramente, a produção literária de Apuleio mostra uma
extraordinária variedade e versatilidade. Parece não ter havido quase nenhum
ramo do conhecimento antigo pelo qual o autor não tivesse se interessado,
quase não há nenhum gênero sobre o qual ele não tenha escrito. De fato, tem
sido sugerido que tal número de trabalhos didáticos representam o
remanescente de um todo enciclopédico montado por ele na forma das
Disciplinae de Varrão ou as Artes de Celso (HARRISON, 2008). A favor
disso está o fato de que várias obras discutidas acima caem nas categorias
abrangidas pelos nove livros das Disciplinae de Varrão: grammatica,
dialectica, rhetorica, geometria, arithmetica, astronomia, musica, medicina e
architectura. Contra uma enciclopédia está o fato de que todos os livros são
sempre citados individualmente, e que nunca nos foi transmitido um título de
uma obra global. Isto parece decisivo. Se Apuleio pretendeu uma forma de
discussão enciclopédica, foi através de uma série de obras separadas, ao invés
de um único magnum opus.
Também é evidente, pelo número de obras, que Apuleio mais se apresenta
como um compilador de materiais existentes do que um investigador original.
Seus livros didáticos geralmente se referem a uma tradição literária
perfeitamente reconhecível, sendo frequentemente traduções latinas ou
versões de obras gregas e forneceram um caminho fácil para a reputação de
polímata que Apuleio promove principalmente na Apologia e em outros
lugares. O claro intuito didático sugere que Apuleio tenha escrito muitas de
suas obras para fins educacionais, bem como para autopromoção e
autoexibição; Flor; 18 sugere que ele tinha alunos em Cartago, e como quase
todos os sofistas gregos contemporâneos é provável que se envolvesse em
instrução, além de em apresentações (HARRISON, 2008), mas isso é
somente conjectura.
[82] Finalmente, o alcance e a natureza das obras de Apuleio o definem
firmemente como um produto intelectual de seu tempo. Quase todo trabalho
conhecido dele encontra um análogo na literatura contemporânea grega ou
latina e especialmente nas produções da Segunda Sofística grega. Sua
exibição muito abundante reflete o caráter de uma época em que a
aprendizagem e sua demonstração foram necessárias para o sucesso literário e
mundano. Mas tal sucesso, alcançado durante a vida, parece que estava
limitado à sua base domiciliar escolhida de Cartago. O Norte da África
romano, apesar de Cartago em si ser em muitos aspectos uma cidade
cosmopolita, era claramente um remanso cultural quando comparado a Roma
ou às grandes cidades do Mediterrâneo grego. No entanto, isso deu a Apuleio
muitas vantagens. Ele é capaz de apresentar-se como o provedor de cultura
intelectual grega para um público para quem ele próprio é a principal fonte de
tal material; e embora claramente houvesse intelectuais rivais de espetáculo
em Cartago, ele lá poderia evitar muitos dos problemas da competição afiada
entre sofistas contemporâneos no mundo grego. Um desses problemas foi
proclamar a si mesmo como um sofista ou um filósofo; falando de um modo
geral, a maioria dos intelectuais sofísticos gregos sentiu-se obrigada a
escolher uma denominação ou outra. Apuleio, por outro lado, embora ele
nunca use a palavra sophista para si mesmo, pode livremente ser comparado,
tanto implícita quanto explicitamente, com os grandes sofistas do século V,
pois toda uma elaboração sofisticada se apresenta em sua obra, enquanto
preserva, da mesma forma, seu status de philosophus Platonicus. Isso sempre
foi claramente admissível no Ocidente latino, onde as polêmicas culturais do
Mediterrâneo grego encontraram apenas um eco distante. Mas embora
Apuleio tenha se proclamado um filósofo, seu status como um orador de
espetáculo em Cartago, sua autopromoção e o culto de sua própria
personalidade e a sua poligrafia literária e científica prodigiosamente exibida
nos permitem designá-lo claramente como um legítimo representante da
Segunda Sofística na literatura latina (HARRISON, 2008, LESKY, 1995).
Por tudo isso, o autor se apresenta como um perfeito exemplar daqueles
oradores desse período literário, perfeitamente integrado à sua época e à sua
comunidade intlectual.
[83] 3. Demonologia

3. 1. A DEMONOLOGIA NA ANTIGUIDADE

Do ponto de vista do estudo da psicologia das religiões, podemos dizer


que Apuleio descreve um arquétipo junguiano. A questão do daemōn era de
interesse muito especial para o Platonismo Médio, haja vista que referências e
descrições aparecem em Plutarco, Xenócrates, Xenofonte e Máximo de Tiro.
É nosso autor, entretanto, que descreve mais completamente esse fenômeno,
tomando-o como assunto central da obra e, partindo de uma representação da
estrutura geral do universo, semelhante àquela encontrada em De mundo e De
Platone, chega ao caso particular do daemōn de Sócrates, sem deixar de
passar pelas características pormenorizadas e pelas atribuições gerais desses
entes fantásticos.
Segundo Jung e Eliade o fenômeno religioso se caracteriza por
semelhanças estruturais desde a organização até a mitologia. No caso dos
daemonēs, verifica-se que estes apresentam as características de serem
intermediários entre deuses e homens, guardiões dos individuais e,
finalmente, psicopompos, como os anjos (malach), na religião hebraica, o
arcanjo Miguel, no cristianismo ortodoxo, o deus Hermes ou Mercúrio, na
Antiguidade Clássica, os exus, nas religiões africanas da costa ocidental e
Azrail, na religião islâmica. Os exemplos se multiplicam com a diversidade
do fenômeno religioso.
Outro fato a se salientar é a tentativa de fundir filosofia e religião,
beirando o supersticioso, uma característica da época em que se desenvolve o
Platonismo Médio, que não poderia deixar de influenciar [84] nosso autor,
haja vista a múltipla e crescente existência dos cultos iniciáticos e a
disseminação das religiões de mistérios. Esse fato é descrito, não sem críticas,
de forma clara ou velada, nas Metamorfoses, pela menção aos sacerdotes de
Cibele e pela menção velada ao rito de esmagamento dos peixes (TEIXEIRA,
2000, p.48), no episódio quase burlesco das Metamorfoses 1.27.
O próprio Platão, no fim da vida, impressionado pelo avanço da
impiedade e das religiões obscuras de mistério, teria se voltado para uma
religiosidade mais sólida, acorde com as tradições populares. Embora as
indicações dessa religiosidade sejam tomadas por alguns como simples
exemplos pragmáticos, os seus discípulos jamais teriam desenvolvido e
disseminado, depois da morte do mestre, uma teoria acerca dos daemonēs, se
este assunto não fizesse parte de seus ensinamentos enquanto vivo.
Enfocando a diretriz assumida, do ponto de vista do fundo, em oposição à
forma, percebe-se que o autor muito bem se insere no panorama do
Platonismo Médio, antes de Plotino, por incorporar em todas as suas obras a
simbiose entre religião e filosofia mais característica dos sucessores de
Platão.
Outro ponto a ser enfocado é o pressuposto da Psicologia Analítica de que
tanto o fenômeno religioso quanto o mental abarcaria a incorporação do
número em sua estruturação. Ora, Apuleio, atribuindo o pensamento a Platão,
divide o mundo em três planos: o éter, plano dos sumos deuses, alguns
alcançáveis somente pela vista, outros somente pelo intelecto; o ar, plano das
entidades intermediárias, os daemonēs, contatáveis pelo culto ou, às vezes,
pelos sentidos, e, finalmente, o mundo infralunar, plano terreno, dos seres
sensíveis. Entenda-se sensível aqui na forma passiva, alcançável pelos cinco
sentidos. Pode-se também aduzir do texto as três funções principais dos
daemonēs, acima descritas: a) guardião e defensor do individuo, b)
psicopompo, que leva as almas ao outro mundo para julgamento, c)
mensageiro, intermediário entre homens e deuses, ou, se quisermos, entre
homens e o Sumo Deus. Note-se que aqui tanto poderíamos ver a tríade
sagrada indo-europeia, quanto a aplicação da divisão geral do cosmo num de
seus segmentos menores, conforme as leis do hermetismo pitagórico.
Esse assunto importante para a compreensão do Platonismo Médio, e
mesmo para a filosofia platônica, viveu nas sombras durante muito tempo e
somente no ultimo quartil do século passado um [85] bom número de
descobertas e pesquisas enriqueceu e renovou nossos conhecimentos sobre os
daemonēs na Antiguidade (BEAUJEU, 2002, p.183). Direta ou
indiretamente, os autores que se debruçam sobre Apuleio esboçam em maior
ou menor grau, acuradamente ou não, um resumo da demonologia
neoplatônica.
Como já dissemos na introdução, os seres cósmicos intermediários
sempre povoaram a imaginação religiosa em todo o mundo:

Em todos os países e em todos os tempos, encontra-se comumente disseminada a


crença em seres sobrenaturais, de uma classe inferior à dos deuses, que interveem
diretamente no curso das coisas e especialmente nos assuntos humanos, seres
benfazejos, maléficos ou indiferentes, com quem o homem procura se conciliar
mediante práticas religiosas ou mágicas; é o povo inumerável e temível dos
espíritos, demônios, anjos e gênios de toda espécie, invisíveis, ativos e obsessores.
(BEAUJEU, 2002, p.184) 55
3.2. A DEMONOLOGIA ANTES DE PLATÃO

A mais remota antiguidade grega conhecia as Κῆρες, espíritos femininos


da morte, aladas, de garras aduncas, monstros devoradores que arrastavam os
heróis pelos calcanhares quando estes tombavam: “pois que a abominável
Quere,/ a que me obteve por sorte ao nascer (grifo nosso), abriu as fauces
para devorar-me” (Il., XXIII, 78sqq, apud BRANDÃO, 2000, 352), e mais
adiante:

[86] Sua função, todavia, não se restringe ao papel de Valquírias dos


campos de batalha. Já na Ilíada surgem como aglutinadas,
“destinadas” a cada ser humano, personificando-lhe não só o gênero e
a “época” da morte, mas também o tipo de vida a que é predestinado.
Nesse sentido talvez se pudesse afirmar que as Queres são emanações da
própria Moîra, as executoras do que foi por esta prefixado (grifo
nosso). Assim Aquiles “pôde” escolher entre duas Queres: uma lhe
proporcionaria na pátria uma vida longa e tranqüila, mas inglória;
outra, a que ele escolheu, lhe daria um nome imperecível, mas cujo
preço era a morte prematura. (BRANDÃO, 2000, p.352)

Vemos nesses seres terríveis já algumas semelhanças com o que se


chamará mais tarde δαίμων, quer seja a predestinação, quer seja o “sorteio”,
quer seja o arbítrio de segui-la ou não. Hesíodo fala em uma ou em várias
Κῆρες na Teogonia, tendo em vista o caráter popular vago desses seres. A
Ilíada atribui uma aos aqueus, outra aos troianos, devido talvez ao fato de ter
o termo, às vezes, um valor coletivo, conforme sugere Brandão. Alguns
aspectos desses seres, como dissemos acima, incorporam também as
características dos δαίμονων, as Κῆρες, no apogeu da civilização grega, são
consideradas gênios malévolos, enquanto os δαίμονες, seres ambivalentes.
Entre os romanos, havia os lemures, espíritos malfazejos dos mortos que
invadiam a cidade por volta do dia nove de maio e nesse dia eram
apaziguados com ritos apotropaicos e exorcismos diversos (Ovídio, Fasti,
419-492). A par das crenças em almas que davam vida aos corpos, tanto os
gregos quanto os romanos, reconheciam uma multidão de divindades
presidindo os fenômenos naturais e dirigindo os atos e circunstâncias da vida:

O termo δαίμων aparece nos poemas homéricos, onde ele é frequentemente


empregado para designar os mesmos personagens divinos θεός; na Odisseia,
parece que uma distinção tende [87] a se estabelecer entre os Olímpicos
fortemente caracterizados pela mitologia e os δαίμωνες, que conservam os traços
arcaicos da divindade. (BEAUJEU, 2002, p.185)56

Os δαίμονες para Hesíodo já se apresentam como seres intermediários


entre homens e deuses, ora almas elevadas, ora semideuses, passo que
evoluirá em uma nova direção durante o VIº e Vº séculos a.C. Ao lado das
almas dos mortos, concebe-se um δαίμων pessoal que, apegado a cada
homem, toma conta dele e de seu destino, de sua sorte. Essa ideia ainda se
expande para o εὐδαίμων, que poderia ser assimilado ao bom gênio, e o
κακοδαίμων, ao mau gênio, em relação à influência exercida em cada mortal;
muitos acreditavam estar sempre o homem sob a influência de um εὐδαίμων
ou κακοδαίμων que lhe cabia por sorte na hora do nascimento. Por outro lado
alguns chegaram mesmo a crer que os homens eram frequentemente
disputados por dois δαίμονες, um bom e outro mau, ideia que se expande
entre os séculos V e IV a.C.
Nessa época, os pitagóricos, segundo muitos indícios, concedem grande
espaço à teoria dos δαίμονες. Denominavam assim todas as almas em
suspenso no ar, acreditavam que elas podiam mostrar-se aos vivos e exercer
influência sobre os atos humanos. Tendo em vista que, segundo testemunhos,
Pitágoras teria dito que os δαίμονες pertenciam a uma categoria de seres
superiores aos homens e inferiores aos deuses, tendo em comum com eles a
natureza divina, porém miscigenada, ficando na hierarquia de culto abaixo
dos deuses e acima dos heróis, e estes acima dos homens. Enquanto as teorias
pitagóricas até hoje se mostram envolvidas em algum mistério, os demais
filósofos acolhem muito bem, mas sob formas muito diferentes, a teoria dos
daemonēs em seus sistemas (BEAUJEU, 2002, p.186). Cabe-nos a
lembrança, entretanto, de que um pouco dessa percepção variada talvez
advenha do caráter polissêmico das duas palavras θεός e δαίμων, que
indistintamente tanto são utilizadas para se referir aos deuses olímpicos em
suas aparições aos humanos quanto aos daemonēs nas mesmas [88]
condições. O próprio Apuleio, utiliza indistintamente o termos deus, genius e
daemōn . Os dois primeiros são mais utilizados, supomos, em virtude de
serem mais compreensíveis pelos auditórios romanos que o termo grego.
Com os historiógrafos da filosofia não foi muito diferente: uns acreditam que,
para Sócrates, tratava-se somente de uma voz daimônica, uma revelação
interior da divindade acerca da solução de problemas; outros, que o filósofo o
considerava um ser real invisível e, em geral imperceptível, que se
encarregava de sua segurança, conduzindo suas atitudes, ao exprimir a
vontade dos deuses (BEAUJEU, 2002, p.187).
3.3. PLATÃO

Embora Platão apresente em alguns diálogos a figura dos daemonēs e


deles se sirva para seus propósitos pedagógicos, não chega o filósofo a
desenvolver uma teoria geral sobre esses seres, mas somente apresenta
noções comuns esparsas, especulações e alguma fantasia de próprio cunho.
Como não poderia deixar de acontecer, as contradições nessas exposições não
deixam de se mostrar. Podem-se distinguir em seus escritos três categorias de
daemonēs: o daemōn-guardião, ser divino superior e guia da alma humana
durante a vida, o qual era designado por sorte no ato do nascimento e jamais
se afastava de seu protegido, conduzindo-o, da mesma forma, depois da
morte à frente dos juízes para avaliação de suas ações; o daemōn-alma, alma
racional dada ao homem quando de seu nascimento, o animus dos estoicos, e,
finalmente, o daemōn semideus, fruto de um deus e uma mortal. Seja qual for
a estrutura do daemōn apresentado, todos têm um papel essencialmente
mediador entre deuses e homens, comunicando-nos os desígnios celestes, seja
pelo uso do intelecto, como no segundo tipo, seja por meios divinatórios e
religiões de mistérios. Neste último tipo, Platão inclui a “divindade” Amor,
retratada no Banquete, nas palavras de Diotima, cuja ideia foi muito bem
assimilada por Apuleio no conto central das Metamorfoses, Eros e Psiquê.
[89] 3.4. SEGUIDORES E CONTINUADORES DE PLATÃO

Após a morte de Platão, como dissemos, diversas correntes que se


filiaram ao seu pensamento, discípulos ou não, desenvolveram uma teoria
filosófica dos daemonēs com maior ou menor fidelidade ao mestre. Duas
inovações importantes são introduzidas por volta do século IV a.C: a
localização dos seres intermediários no éter e no ar, e a sujeição deles às
mesmas paixões humanas. O jovem Aristóteles, recém-saído da Academia
após a morte do fundador, segundo Clemente de Alexandria, diz que “todos
os homens têm um daemōn que os acompanha durante todo o tempo que a
alma está ligada ao corpo”. Entretanto o estagirita, na medida em que seu
pensamento evolui na direção de um naturalismo mais estrito, parece recuar
diante da ideia dos daemonēs guardiões conforme Platão havia concebido
(BEAUJEU, 2002, p.190). Nessa primeira fase, Aristóteles sustenta a
existência de seres vivos na região do fogo, em analogia à existência de seres
vivos característicos de cada elemento. Mais tarde, porém, à medida que seu
pensamento evolui para um naturalismo mais rigoroso afasta-se de Platão,
deixando de lado o pensamento por analogias e, por conseguinte, negando a
existência de animais no ar e no fogo, embora identifique os daemonēs
pessoais como causa dos sonhos.
Xenócrates, sucessor de Espeusipo à frente da academia, reúne as noções
esparsas nos diálogos do fundador da Academia, sistematizando-as e
transformando a demonologia em peça central da filosofia. Ordena os seres
divinos de acordo com as partes-elementos constituintes do κόσμος: para o
fogo, Zeus; para o ar, Hades; para o elemento úmido, Posídon; para a terra,
Deméter. Introduz a noção de daemonēs bons e maus, já existente nas crenças
populares desde, pelo menos, a época de Heráclito57. Segundo Beaujeu (pág.
192), se os diálogos de Platão constituem a Bíblia da demonologia, os
escritos de Xenócrates constituem seu catecismo, haja vista a sistematização
escolástica dos elementos esparsos naquelas obras.
Os estoicos apresentam uma contradição interna em seu sistema de
pensamento, ao mesmo tempo que admitem que o deus supremo, Zeus,
“vive” em sociedade participando do devir do mundo através do λόγοι
σπερματικοί, admitem também a existência de daemonēs [90] suspensos no
ar, ligados aos homens pela σιμπάθεια. Segundo Crissipo, da mesma forma,
existem daemonēs maus (κακοδαίμονες), que são designados pela divindade
para punir os homens maus. Posidônio acreditava que o ar estava cheio de
daemonēs-almas com os quais, durante o sono, os homens podiam se
comunicar e saber o futuro: é bem conhecido o reflexo dessa crença, pelo
menos literariamente, no “Sonho de Cipião”, de Cícero. No SVF58 3.654,
afirma-se que Crisipo dizia serem tanto a mântica quanto a adivinhação o
conhecimento teórico dos sinais com que os deuses e daemonēs se dirigem
aos homens. Ao contrário de seus correligionários, o filósofo de Apameia
acreditava na preexistência da alma, à moda platônica. Curiosamente, os
estoicos romanos, mesmo Cícero, não fazem desse assunto centro de suas
discussões e, embora não encontrem eco em Apuleio, compartilham com este
a noção do status de divindades intermediárias e regentes dos sinais
proféticos.
3.5. A DEMONOLOGIA EM ROMA

Em Roma, dado o caráter sincrético e assimilador do povo romano, às


antigas crenças em manes, numina e genii, durante o império, pôde-se
sobrepor a crença nos daemonēs. Lúcilio, em uma de suas Sátiras, e Varrão,
em seus escritos e Sátiras Menipeias, com meio século de diferença, falam
sobre o fenômeno: Lucílio, apresentando a teoria dos dois daemonēs
pessoais, emprestada de Euclides de Mégara; Varrão, seguindo Antíoco de
Ascalão, os apresenta vagando entre a terra e a lua, assimilando-os aos heróis,
larvas59 e gênios. Há uma diferença fundamental, porém: os manes diferem
da alma individual (daemonēs-alma) e se identificam com os daemonēs
pessoais, que Varrão assimila com o [91] genius. A multiplicidade filosófica
da demonologia grega reduz-se um pouco diante do pragmatismo e
praticidade do espírito latino, retendo este, sobretudo, a noção dos gênios-
satélites, que perambulavam pelo espaço infralunar durante o sono dos
humanos. Mas cabe-nos lembrar que, mesmo com toda disseminação no
território do império, não havia grande interesse pela demonologia em Roma,
uma vez que lá predominava o pensamento estoico. Há que se pensar que,
enquanto para o espírito do estoicismo grego não havia problema em fazer
coexistir divindades atuantes superiores e subalternas agindo da mesma
forma — isso era um desafio metafísico —, no estoicismo de Roma, não
havia porque pensar em divindades subalternas com os mesmos atributos de
ação das superiores, pois tanto na língua quanto na vida, os latinos
eliminavam o supérfluo. Mas há que se levar em conta também que, fora da
Vrbs, principalmente nas províncias do oriente e africanas, graças a grande
influência grega, o misticismo, dentro do Platonismo, era muito bem aceito.
Em outras palavras, enquanto em Roma a demonologia era secundária, nas
províncias africanas e orientais era mais estudada.
[93] 4. Introdução a De Deo Socratis

4.1. SÍNTESE DESCRITIVA DA OBRA

Depois de um preâmbulo mínimo, em que atribui a Platão a divisão dos


seres animados em três níveis: deuses astrais, não astrais e homens, Apuleio
passa aos visíveis, ou seja, os astros (116-121), enumerando-os, e enfoca
rapidamente duas ideias correntes, discutidas pelos astrônomos da época: se a
lua tem ou não luz própria. Deixando esse desenvolvimento para mais tarde,
embora não concretize a promessa, o autor centra-se na universalidade da
atribuição de divindade (Graecus aut barbarus)60 aos astros, e passa
rapidamente aos deuses invisíveis (121-124), que, em oposição aos visíveis,
somente se atingem pela intelecção, especificamente pela filosofia. Essa
apresentação é muito necessária para que o autor se firme diante de sua
audiência tanto como philosophus platonicus, quanto como retórico, uma vez
que, de um lado, o filósofo ateniense considera a astronomia como a ciência
dos astros e dos deuses, uma verdadeira teologia astral (Rep. 527d), e, de
outro, a apresentação de diferentes argumentos, ou pontos de vista, sobre um
assunto, representa um dos mecanismos expositivos mais tradicionais da
retórica antiga. É necessário dizer, por outro lado, que, nessa época, a religião
fazia parte dos escritos e preocupações filosóficas, enquanto a filosofia [94]
dificilmente estava presente nos cultos religiosos. O autor aqui iguala
filosofia e religião verdadeira, opondo-as à superstição e ao desprezo cético.
Esses deuses máximos, que somente pela mente se alcançam, localizados no
extremo mais alto do universo (in sublimi aetheris uertice locatos), são
eternos, incorpóreos, essência pura sem nenhum contato com o mundo
perecível em que vivemos. Apuleio atribui ao sumo deus, cuja descrição a
palavra humana não pode alcançar, a criação dos demais deuses e de tudo que
existe, sem ter, porém, qualquer contato com os níveis inferiores. Temos
aqui, a ideia aristotélica do motor imóvel, que, mesmo tendo dado impulso a
todas as coisas, não se move. É curioso notar que o mesmo livro da
Metafísica que apresenta essa ideia, Livro XII, é o mesmo que apresenta a
ideia da divisão tríplice das essências (Met. XII, 1, 1069a 30 – 1069b 2).
Curiosamente, falando sobre esse mesmo deus, Apuleio compara o contato
dele com o intelecto do sábio a um lampejo intermitente de uma luz envolta
em trevas. Esse conceito lembra-nos a ideia plotiniana da emanação do ser.
Voltando rapidamente à tríplice divisão, faz-se mister dizer que ela jamais se
encontrou nos escritos de Platão, embora se aproxime bastante de diversas de
suas classificações. Ela se encontra, por outro lado, nos escritos pitagóricos
do século I a.C. e mostra-se como um bom exemplo de como pontos de vista
não sustentados pelo fundador da Academia tornaram-se bem aceitos pelo
movimento eclético e flexível que foi o Platonismo Médio no segundo século
d.C.
Dos deuses invisíveis, passa-se então a uma breve apreciação do gênero
humano (125-132), em que, com a ideia platônica do homem como rei dos
animais, ainda que decaído em crimes e erros, o autor tece, por antíteses, um
retrato em que as características humanas são enumeradas já em oposição às
divinas (inmortalibus animis, moribundis membris, leuibus et anxiis
mentibus, brutis et obnoxis corporibus). Essa preparação, conjugando o
sublime ao inferior, na essência do gênero humano, conduz-nos
inevitavelmente, essa é a intenção do autor, ao problema de dois seres
dotados de alma, mas completamente incomunicáveis: os deuses e os homens
(deos ab hominibus), com um vazio entre eles. Então o autor, mediante a
intervenção de um ouvinte hipotético, pergunta, chamando o testemunho de
Vergílio e a etimologia popular do termo iusiurandum, que valor teria a
religião, por que ou por quem jurar, se mais facilmente uma pedra nos ouviria
que um deus.
[95] Esse preâmbulo dramático serve para introduzir a descrição geral dos
daemonēs (132-156), cuja primeira parte se reserva ao papel deles (132-137).
De início, Apuleio assegura que somente do contato direto com os homens os
deuses estão apartados, e que existem divindades intermediárias (Ceterum
sunt quaedam diuinae mediae potestates), entre o sumo éter e as ínfimas
terras (inter summum aethera et ínfimas terras), localizadas no espaço
atmosférico intermediário entre os deuses e homens (in isto intersitae aeris
spatio), divindades que reportam nossos desejos e nossas ações aos deuses
supremos (per quas et desideria nostra et merita ad eos commeant) levando
daqui as preces e petições, trazendo de lá os benefícios e os auxílios. A essas
divindades, segundo nosso autor, os gregos denominavam daemonas.
Em continuação, Apuleio, citando o Banquete como fonte, atribui a essas
divindades a condução de todos os fenômenos que dizem respeito às
realizações dos magos, dos adivinhos e dos prodígios, sendo distribuídas não
só por área de atuação como também por região geográfica. A elas são
atribuídos a “criação” de sonhos, de fissuras nas entranhas das vítimas de
sacrifício, o governo do voo das aves e a inspiração dos adivinhos, tudo isso,
porém, sob o governo e mandado dos deuses superiores. Com alguns
exemplos da história e tradição romanas ele encerra essa parte, passando em
seguida à localização espacial dos daemonēs (137-145).
A cada um dos elementos “bem conhecidos” (notissima), Apuleio
relaciona uma “província” (cf. 134) da natureza e postula para cada uma delas
uma tipologia de seres vivos: para o fogo, os deuses; para o ar, os daemonēs;
para a terra e água, os animais (terrestria) e vegetais (terrena), cuja
simplificação pode ser: seres imortais, éter e ar; seres mortais, terra e água.
Note-se, porém, que tanto Platão quanto Aristóteles e Crissipo postulavam
que todos os seres vivos terrestes compunham-se dos quatro elementos em
proporções variáveis e não somente dos dois últimos. Para que não se pense
que as aves seriam os seres vivos do ar, o Apuleio lembra que elas devem ser
classificadas como terrestres, porque têm na terra abrigo e alimento. Assim,
excluídas as aves como seres vivos do ar, a razão do autor exige que se
concebam seres vivos no ar e do ar, sem nenhum elemento terrestre, porque
assim se projetariam ao chão, nem tampouco ígneo, porque assim seriam
atraídos para a esfera dos deuses. Pode-se ver nessa descrição um
conhecimento, mesmo que empírico, da densidade, tal como desenvolvido
por [96] Arquimedes de Siracusa. Compara a leveza dos daemonēs ao peso
das nuvens, sugerindo que a condensação destas, por estar “misturada a um
pouco de leveza” as mantém no ar como navios levados pelo vento,
aproximando-se da terra quando cheias de líquido, concluindo então a
natureza terrestre desse fenômeno, ao contrário dos daemonēs, que não são
formados “dessa nuvenzinha lodosa e úmida caligem” (ex hac faeculenta
nubecula et umida caligine), mas “daquele puríssimo líquido do ar e daquele
sereno elemento” (ex illo purissimo aeris liquido et sereno elemento). O
autor, portanto, na melhor tradição aristotélica, fundamenta seus argumentos
em uma física compatível com os conhecimentos da época, citando em seu
socorro Lucrécio (6, 96-98).
Com esses empréstimos da física dos corpos tênues de Lucrécio, passa-se
às características gerais dos daemonēs (145-150). Do ponto de vista físico, a
principal delas é a invisibilidade, podendo eles, porém, a mando dos deuses,
se manifestarem aos sentidos da visão e audição humanos. De um outro ponto
de vista, mais ontológico61, verifica-se a proximidade dos daemonēs com os
deuses. Emblematicamente, ao descrever essa semelhança, Apuleio cita o
testemunho dos poetas: “desse número de daemonēs, os poetas costumam
ordinariamente, de modo nenhum longe da verdade, conceber deuses”62,
fazendo clara alusão à teoria socrática da reminiscência, defendida por Platão
em seus primeiros diálogos, com intuito de não só começar a apresentar as
características dos daemonēs, como também fundamentá-las num
conhecimento transcendente. Nessa passagem, o autor diz claramente que os
daemonēs têm características humanas como os sentimentos de raiva, amor,
indignação, piedade, dor e prazer, todos alheios aos seres divinos superiores,
e, da mesma forma, por outro lado, características divinas. Com os seres
inferiores, a paixão; com os superiores, a imortalidade. Sujeitos, da mesma
forma que nós, a todos os sossegos e inquietudes da alma, podendo ser
tomados pela ira ou pela misericórdia. Realidades que o autor sintetiza em
uma única definição: [97] como espécie, são animais, isto é, dotados de alma;
de natureza, são racionais; quanto à alma, passivos, isto é, sujeitos à paixão;
quanto ao corpo, formados pelo ar; quanto à finitude da vida, eternos. As três
primeiras qualidades são partilhadas com os seres mortais, a última, com os
deuses, sendo apenas a composição dos corpos que os diferem tanto dos
deuses superiores quanto dos mortais.
A apresentação passa em seguida à classificação dos daemonēs. Segundo
Apuleio, estes se dividem em daemonēs-almas e daemonēs não encarnados.
Antes, porém, rapidamente, o autor fala das infinitas formas de observâncias
religiosas (148) e atribui essa variedade às diferenças de “personalidade” dos
daemonēs; ao mesmo tempo ele, introduzindo um matiz caracteristicamente
romano (unde etiam religionum diuersis obseruationibus et sacrorum uariis
suppliciis fides inpertienda est), haja vista que esse povo tinha como caráter
essencial a assimilação, além, claro, da obsessão pelo fines.
Primeiramente Apuleio fala sobre os daemonēs-almas (150-154), isto é, a
alma humana em um corpo situada (nam quodam significato et animus
humanus etiam nunc in corpore situs daemon nuncupatur), e, citando
Vergílio (En., IX, 184-185), tomando do grego a palavra eudaemonas,
pessoas de boa alma, assimila o genius latino ao daemōn pessoal, assumindo
inteiramente a responsabilidade pela interpretação; com ênfase de que nasce
com o homem, esse seria, segundo a classificação do Platonismo Médio, o
daemōn pessoal. Continuando a classificação dos daemonēs, o autor fala dos
que tiveram contato com um corpo e os assimila aos lêmures, dividindo-os
em deuses Lares e Larvae, os primeiros, em virtude de uma vida correta, têm
por missão velar pelos descendentes dentro de suas casas, as Larvae, almas
que, em virtude de desregramento ou crimes cometidos durante a vida no
corpo, tornam-se espíritos errantes, privados de morada, vãos espantalhos
para os homens de bem, mas castigo para os maus. Em seguida, o autor
distingue um outro tipo de daemōn numa forma romana: os deuses manes,
grandes homens que conduziram suas vidas dentro da sabedoria e justiça,
merecendo por isso o culto e a reverência dos demais homens em santuários,
com ritos e cerimônias específicos. Não é preciso dizer que de alguns
conservaram-se os nomes, enquanto outros são cultuados pela fórmula geral
dis manibus.63 Dentre os exemplos daqueles cujo [98] nome persistiu, o autor
cita Osíris, no Egito, que, da mesma forma é tido por Plutarco na categoria
dos daemonēs. No corpo do Platonismo Médio, esses daemonēs seriam os
guardiões dos mortais.
Os daemonēs independentes dos corpos constituem a última descrição
antes de entrar propriamente no daemōn de Sócrates (154-156). Essa classe
de daemonēs fornece a cada homem seu guardião individual e testemunha de
todos os atos. Sempre invisíveis, a não ser que uma situação especial exija o
contrário, desses daemonēs pessoais nada se pode esconder, pois tomam
conta de todos nossos atos e pensamentos. Sempre prontos a interferir, podem
fazê-lo mediante sonhos, sinais e mesmo pessoalmente, para desviar os males
e promover o bem, são os que dão ânimo ao espírito abatido, firmam os
passos vacilantes, aclaram as sombras, dirigem a boa fortuna, corrigem a má,
durante a vida. Após a morte, nos levam diante dos juízes, como advogados,
contradizendo, porém, alguma mentira e confirmando as verdades. Com esse
tipo de guardião, o homem não pode ter nenhum tipo de segredo. Trata-se,
pois, do daemōn pessoal. Essa estrutura do imaginário medioplatônico leva-
nos a perceber o quanto o caminho para o cristianismo já estava pavimentado.
Depois dessa algo breve descrição do daemōn pessoal, o autor passa a
uma descrição mais breve ainda do daemōn de Sócrates (157). Numa longa
pergunta ele questiona, primeiramente, se seria admirável Sócrates conhecer
e cultuar essa entidade, e aqui Apuleio insere uma cor romana ao equiparar,
ccom o devido cuidado, o daemōn pessoal de Sócrates de Sócrates ao “Lar
familiar”, apresentando, porém, um argumento pragmático muito aceitável
para o espírito latino: a convivência e culto sob o mesmo teto. Em segundo,
questiona se seria admirável o sábio consultar a divinação para resolver
problemas que transcendessem ao domínio do racional. Curiosamente vemos
aqui já uma separação entre razão e religião. Como fundamentação, chama o
testemunho de Homero para determinar os limites da sabedoria e adivinhação
(157-162).
O autor continua a descrição do daemōn de Sócrates primeiramente pela
necessidade da manifestação dessa divindade. Toda vez que a Sócrates falha
o auxílio da razão, socorre-lhe o sinal divino,sendo seguido sempre pelo
sábio, que, por isso, tornava-se cada vez mais querido pela divindade.
Segundo Apuleio, o sábio não precisava de impulso para agir, somente
algumas vezes de um freio, nestes casos [99] a voz divina se manifestava.
Essa manifestação do daemōn, segundo Apuleio, não se dava somente como
voz. O autor acredita que pelo menos uma vez, com certeza, Sócrates viu seu
daemōn pessoal, e cita como argumentos: uma passagem de Terêncio (Eun.
454); a crença pitagórica dos daemonēs suspenso no ar, que se manifestam
aos humanos individualmente pelo menos uma vez na vida, e finalmente a
autoridade de Aristóteles.
Uma vez apresentado o daemōn de Sócrates, o autor entra na conclusão
do texto de forma caracteristicamente epidíctica: conclama os homens a
cultivar a própria alma. Falando das ciências transitivas, ele diz que não há
porque nos envergonharmos de não as saber. Passando aos bens materiais e
físicos, mostra-lhes o caráter vão e passageiro. Numa curiosa analogia com a
compra de um cavalo, assunto bem a gosto dos nobres romanos, ele incita a
todos considerar apenas o homem, destituído de todos os aparatos acidentais,
e, antes de fazer o elogio de Ulisses, exorta a todos a se dedicarem ao estudo
da sabedoria.
Nas últimas linhas, como que para sedimentar a exortação ao estudo da
sabedoria, o autor encerra com um elogio de Ulisses. Segundo Harrison
(2008, p.171), no segundo século de nossa era, a figura de Odisseu foi
cuidadosamente purificada e apresentada como um modelo de herói na
tradição filosófica dos estoicos e dos escritores gregos da Segunda Sofística.
4.2. ESTRUTURA, ANÁLISE E COMENTÁRIOS

O início abrupto do texto, sem preparação da audiência sobre o assunto a


ser tratado, e o fecho igualmente repentino, sem uma conclusão formal
esperada pelos leitores acostumados aos demais textos de Apuleio, como, por
exemplo, Florida, leva-nos a concordar com Harrison (2008), quando este
levanta a possibilidade de terem-se perdido não somente o prefácio, como
também a conclusão, uma vez que essas lacunas são incompatíveis com uma
obra que se mostra equilibrada em seu todo.
[100] Embora Apuleio sempre se gabe de seu conhecimento da língua
grega, as referências do texto indicam de modo muito claro que ele se destina
exclusivamente a um auditório de falantes do latim. Primeiramente pela
indicação do orador: “Será preferível dissertar em latim” (Id potius
praestiterit Latine dissertare); em segundo, pelo fato de todas as citações,
que generosamente pontilham a dissertação, pertencerem a escritores latinos,
e, finalmente, porque, ao citar um excerto conhecidíssimo de Homero, o faz
mediante tradução latina de sua própria lavra: “O verso grego… em latim
enunciarei” (Versum Graecum… Latine enuntiabo). Mais ainda, se
prestarmos atenção às referências honrosas à África, Egito e ao deus
Esculápio, entidades bem conhecidas e muito prestigiadas na província
romana de Africa Nova, podemos entender claramente que o texto, assim
como Florida, se destina principalmente a um auditório cartaginês.
Claro está que não se deve negar ao autor esse conhecimento da língua
grega, haja vista os paralelismos que apresenta com as Dialexeis 8 e 9, de
Máximo de Tiro (Harrison, 2008, p.139):
Vós pareceis surpresos de que Sócrates tenha desfrutado a companhia de um
benevolente e profético daimonion, que era seu parceiro constante e quase
inseparável elemento de sua mente – apesar de ser um homem puro de corpo e
abençoado com uma alma virtuosa, escrupuloso na condução de sua vida, um
pensador sagaz, um orador eloquente, pio com os deuses e devotado em suas
relações com os homens.

que muito se assemelha a (DDS 156-7):

Igitur mirum, si Socrates, uir adprime (157) perfectus et Apollinis quoque


testimonio sapiens, hunc deum suum cognouit et coluit, ac propterea eius custos…
cuncta et arcenda arcuit [et] praecauenda praecauit et praemonenda praemonuit,
sicubi tamen interfectis sapientiae officiis non consilio sed praesagio indigebat, ut
ubi dubitatione clauderet, ibi diuinatione consisteret?

[101] É, portanto, de se admirar que Sócrates, o mais perfeito varão e também,


conforme o testemunho de Apolo, o mais sábio, conhecesse e cultuasse essa sua
divindade? E por isso seu guardião… afastasse tudo que devia ser afastado,
tomasse todas as precauções que deviam ser tomadas, advertisse antecipadamente
sobre tudo que devia ser avisado? Que em outro lugar, todavia, o filósofo se
refugiasse, quando, excluídos os deveres da sabedoria, necessitasse não de
deliberação, mas de presságio, como quando titubeasse em dúvida, e se apoiasse na
adivinhação?

Obviamente esses paralelismos, se não apontam para uma fonte grega


comum, indicam um bom conhecimento da língua grega por Apuleio.
Outro aspecto muito evidente é o caráter didático da obra, que faz muitas
alusões a Lucrécio, cujo poema De rerum natura pode ser considerado o
precursor, senão o modelo, das apresentações didáticas da filosofia grega
para falantes de latim.
De Deo Socratis divide-se claramente em quatro partes principais
(BEAUJEU, 2002, p.5; Harrison, 2008, p.144; Margagliotta, 2012, p.68): a
primeira (DDS 115 a 132) comportando a classificação inicial dos seres
animados64 em deuses, divididos em deuses superiores e daemonēs, e
homens; a segunda (132-156), uma descrição geral dos daemonēs; a terceira
(157-167), uma análise do fenômeno específico do daemōn de Sócrates, e, à
guisa de conclusão (168-178), uma curiosa exortação protréptica para seguir
o exemplo de Sócrates, mais especificamente na “prática” da filosofia moral.
Essa divisão aponta muito claramente para o fato de que o principal foco de
Apuleio, por um lado, é a apropriação didática da filosofia, e, por outro, a
exposição geral da teoria geral dos daemonēs, na visão contemporânea do
Platonismo Médio. Essa última asserção poderia esbarrar no título escolhido
pelo autor, mas, se nos detivermos na divisão da obra, veremos que a
discussão sobre o daemōn do Sócrates ocupa menos de um quinto da obra,
enquanto a demonologia ocupa, na mesma proporção, dois quintos dela. Essa
[102] proporção de um para dois, segundo Harrison (2008, p.145) e Timotin
(2012, p.112 ss.) é a mesma encontrada nas Dialexeis 8 e 9 de Máximo de
Tiro. Essa proporção pode apontar tanto, como já dissemos, para uma fonte
comum dos dois textos quanto para um modelo retórico geral a ser seguido
por quem quisesse discursar sobre esse assunto.
O texto de Apuleio, em contraposição aos de Plutarco e Máximo,
apresenta três momentos de originalidade: o tratamento latino do tema,
assimilando o daemōn pessoal ao genius romano:

Eum nostra lingua, ut ego interpretor, haud sciam an bono, certe quidem meo
periculo poteris Genium uocare, quod is deus, qui est animus sui cuique,
quamquam sit inmortalis, tamen quodam modo cum homine gignitur (DDS, 150),

e ao Lar familiaris:
Ex hisce ergo Lemuribus qui posterorum suorum curam sortitus placato et quieto
numine domum possidet, Lar dicitur familiaris (DDS, 152).

A identificação dele como daemōn das ideias divinas de Platão e,


analogicamente, do filósofo com a figura do daemōn, em relação às ideias
divinas: Proinde uos omnes, qui hanc Platonis diuinam sentenciam me
interprete auscultatis (DDS, 155); cur e[r]go nunc dicere exordiar, cum
Plato caelesti facundia praeditus, aequiperabilia diis inmortalibus disserens,
frequentissime praedicet… (DDS, 124). Bem como, na seção final, o
encorajamento de seu auditório à autocontemplação e à vida virtuosa, por
meio da filosofia, na forma de diatribe, seguindo o padrão do protréptico
exortativo.
Conforme apontamos na síntese descritiva, o texto inicia-se com a
apresentação de uma tripartição dos seres animados: deuses astrais, não
astrais e homens. É muito importante lembrar que essa estrutura tripartite não
aparece textualmente em Platão, mas somente é atribuída a ele pelos
platônicos e pitagóricos posteriores, principalmente no século I a.C., e essa
“assimilação” de pontos de vista não [103] sustentados pelo fundador da
Academia é um exemplo muito importante e característico de como se
desenvolveram as escolas platônicas principalmente pela incorporação de
ideias pitagóricas e aristotélicas.
Quanto aos deuses astrais, em sua enumeração, Apuleio cita o proêmio da
primeira Geórgica: …uos, o clarissima mundi/ lumina, labentem caelo quae
ducitis annum (I. 5-6) e, em seguida continua a sua apresentação da lua com
sintagmas nominais e oracionais articulados em vários níveis (DDS, 116-7),
seja pela morfologia, diei opificem lunanque, solis aemulam, noctis decus,
seja pelos conectivos em anáfora, seu… seu… seu… seu…, seja pelo
paralelismo dos correlativos em rima, quanto longius… tanto largius,
terminando com uma metáfora pelo encadeamento de termos que se remetem
à economia, incremento, auctibus, dispendiis e aestimans, seja, finalmente
pela utilização de vocábulos de sabor arcaico, opificem, facessat e
conlustrata. É muito proveitoso ainda confrontar os seguintes excertos: …qui
signorum ortus et obitus conperit (DDS, 120) ~ qui stellarum ortus comperit
atque obitus (Cat., 66, 2), como citação literária implícita, que não só aponta
para a erudição literária do autor, mas também estabelece o vínculo cultural
com o auditório. Todos esses elementos em conjunto, característica marcante
do discurso de Apuleio, além de acrescentarem ritmo e progressão ao texto,
sugerem ainda que a literatura, a retórica e a filosofia, do ponto de vista do
autor, devem formar um conjunto único e indissociável. Elas devem andar
sempre juntas, porque, assim como acontece em sua obra, todas têm igual
importância na transmissão da mensagem e na consolidação do didatismo do
texto. Vale lembrar que essa conjugação de exposição retórica e literária, de
um lado, e filosofia, de outro, é a mais clara evidência das preocupações
sofísticas do autor, bem como a inserção dele no movimento da Segunda
Sofística.
Por toda obra encontraremos os exemplos articulados pelo menos em uma
dessas formas. Logo em seguida, por exemplo, encontramos a mesma
utilização de ritmo, rima, anáfora e aliteração:

Varia quippe curriculi || sui specie, sed una semper || et aequabili pernicitate,||
tunc progressus, tunc uero regressus || mirabili uicissitudine || adsimulant pro situ
et flexu et instituto circulorum, quos probe callet qui signorum ortus et obitus
conperit (DDS, 120).

[104] Note-se adsimulant, em vez de assimilant, como recurso arcaizante


do texto, juntamente com o imperativo arcaico (locato) para apresentar o
trecho da Eneida (3, 516). O autor cita expressamente Ênio para passar aos
deuses não astrais.
Quanto aos deuses não astrais, vale-se de uma citação literária de Ênio
(Ann. 7.240-1), um fragmento cuja fonte mais antiga é o próprio Apuleio
(Harrison, 2008, p.147), para enumerar os deuses olímpicos. Em seguida, em
frases equilibradas e ritmadas, o autor desfere um ataque contra os ignorantes
que não adoram os deuses de forma correta (III. 122).

Ceterum || profana philosophiae || turba inperitorum, || uana sanctitudinis, || priua


uerae rationis, || inops religionis, || inpos ueritatis, || scrupulosissimo cultu, ||
insolentissimo spretu || deos neglegit, || pars in superstitione, || pars in contemptu
|| timida uel tumida.

É muito interessante notar que o ethos de homem piedoso e dotado do


perfeito conhecimento religioso e filosófico aparece, como é de se esperar,
numa defesa contra a acusação de prática de feitiçaria, não só durante todo o
decorrer da Apologia, como também no início dos Florida, em que Apuleio
se apresenta como um permanente peregrino religioso:

Vt ferme religiosis viantium moris est, cum aliqui lucus aut aliqui locus sanctus in
via oblatus est, votum postulare, pomum adponere, paulisper adsidere: ita mihi
ingresso sanctissimam istam civitatem, quamquam oppido festinem, praefanda
venia et habenda oratio et inhibenda properatio est. Neque enim iustius religiosam
moram viatori obiecerit aut ara floribus redimita aut spelunca frondibus inumbrata
aut quercus cornibus onerata aut fagus pellibus coronata, vel enim colliculus
saepimine consecratus vel truncus dolamine effigiatus vel cespes libamine
umigatus vel lapis unguine delibutus. Parva haec quippe et quamquam paucis
percontantibus adorata, tamen ignorantibus transcursa.

[105] At non itidem maior meus Socrates… (Flor. I)


Assim como é próprio dos costumes dos viajantes piedosos, quando se lhes
oferecem pelo caminho um bosque ou um lugar sagrados, um voto formular, um
fruto oferecer, frequentemente sentar-se, da mesma forma para o meu ingresso
nesta comunidade muito santa, ainda que me apresse para a cidade, é necessário
pedir permissões, pronunciar um discurso, inibir a pressa. Nem mais justamente,
de fato, um pequeno altar cingido de flores, ou uma gruta ensombreada de
folhagens, ou um carvalho carregado de chifres, ou uma faia encimada por peles de
animais interpõem uma parada piedosa ao viajante, quer ainda um pequeno outeiro
consagrado por uma sebe, quer um tronco com uma efígie gravado, quer um torrão
de relva com libação umidificado, quer uma pedra com unguento untada. Porque
essas pequenas coisas também, ainda que por poucos que se informam, adoradas,
(são) pelos ignorantes deixadas para trás.

Mas não dessa forma meu antepassado Sócrates…

Vemos aqui a mesma preocupação tanto com a literatura quanto com a


filosofia e, mais ainda, apresentar-se como piedoso filósofo que, pela
proximidade com Sócrates, ombreia-se com Platão. Em outra passagem de
DDS, Apuleio elevará Platão ao status divino, colocando-se como um
daemōn que traz aos ouvintes latinos as mensagens do mestre da Academia.
Essa é, como sugerimos no presente texto, exatamente a autocaracterização
de Apuleio não só nas obras retóricas, Apologia, Florida e DDS, bem como
nas Metamorfoses, obra em que se nota o profundo conhecimento dos rituais
egípicios — coisa que não é de admirar, dada a proximidade geográfica e o
espírito itinerante do autor — haja vista a insinuação do ritual de
esmagamento dos peixes, que ocorria no solstício de verão no Egito. Essa
reputação de homem santo foi tão bem construída pelo próprio autor que
Agostinho de Hipona preocupava-se denodadamente em refutá-la, tendo já
passado aproximadamente um século de morte do madaurense (Harrison,
2002, p.147).
[106] A descrição da natureza dos deuses segue o padrão platônico, tanto
do Timeu 28c, quanto do Fedro 246a, obras em que Platão assegura ser difícil
chegar ao “Causador” e “Pai” de todas as coisas, de cuja natureza, mesmo
que se o alcancem pelo intelecto, é impossível falar: “…aquilo que veio a ser,
como dissemos, veio a ser necessariamente por ação de alguma causa. Ora,
constitui uma tarefa e tanto descobrir o criador de pai (poieten kai patera)
deste universo (pantos) e mesmo que eu o descobrisse, anunciá-lo a todos
seria impossível.” (Platão, Bini, 2010, p.178) Fazemos ressalva, porém, de
que a categoria de “divino” e, por conseguinte, seu conceito em Platão são
muito difíceis de precisar, haja vista que o desenvolvimento de uma teologia
sistematizada começa somente com Aristóteles. Faz-se também necessário
lembrar que em Platão é inútil querer localizar a noção de um Deus pessoal,
transcendente e infinito. Temos de nos contentar com inúmeras
personificações finitas do “divino” (Fraile, 1990, p.349ss). De que nos
interessa isso? No momento em que Apuleio fala do ser divino perfeito, ele já
está imbuído da sistematização teológica operada por Aristóteles nos livros
da Metafísica, embora em seguida faça um recuo a Platão ao perguntar, numa
engenhosa praeteritio,65 por que ele discorreria sobre o assunto se nem
Platão, de eloquência divina, pode fazê-lo ou, pelo menos, ousou fazê-lo.
Cumpre notar nessa mesma passagem o matiz nitidamente lucreciano, visto
que nosso autor enfatiza tanto a separação entre homens e deuses quanto o
irracional medo supersticioso e o correto temor aos deuses.
Como vimos pelo excerto platônico, existe uma quase impossibilidade de
o homem alcançar a esfera divina. Apuleio então, numa engenhosa transitio
passa do mais alto deus aos humildes mortais com uma passagem encadeando
os assuntos (Missum igitur hunc locum faciam…) com uma série de três
expressões metafóricas que remetem ao léxico militar: Missum igitur hunc
locum faciam… longe superantibus receptui canam. A frase final desse
trânsito (tandemque orationem de caelo in terram deuocabo) faz referência a
Cícero (Tusc. 5, 10): Sócrates, entretanto, é que primeiro chamou a filosofia
do céu e não só nas comunidades a colocou, como também nos lares a
introduziu (Socrates autem primus philosophiam devocavit e caelo et in
urbibus conlocavit et in domus etiam introduxit). Vemos aqui, mais uma vez,
o autor na pretensão de ombrear-se com o [107] mestre de Platão, bem como,
por outro lado, de apresentar ao público sua erudição e conhecimento dos
textos clássicos, mediante essa citação indireta de Cícero, cujas obras
filosóficas, ao lado de DRN,66 são as pioneiras na introdução do gênero
literário filosófico em Roma, bem como na criação, principalmente por
Cícero, de um léxico filosófico em latim.
Em IV, no início, num trecho de belo colorido retórico pontuado por
antíteses, como em um esquema musical A-B-A-C, o autor destaca a
contradição inerente à condição humana, ao descrever os atributos dos
homens. Depois de caracterizá-los como senhores da razão e da palavra: A
(ratione gaudentes, oratione pollentes), desce às suas contradições: B
inmortalibus animis em oposição a moribundis membris, leuibus et anxiis
mentibus ao lado de brutis et obnoxiis corporibus, dissimillimis moribus
contraposto a similibus erroribus, peruicaci audacia ao lado de pertinaci spe,
e retorna com uma antítese de A (casso labore, fortuna caduca), e finalmente
propõe a síntese das antíteses em C (singillatim mortales com cunctim tamen
uniuerso genere perpetui; uicissim sufficienda prole mutabiles, uolucri
tempore, tarda sapientia, cita morte, querula uita). Rimas, aliterações,
juntamente com as antíteses, perpassam todo o trecho garantindo um colorido
retórico rico e expressivo, para caracterizar a fragilidade humana diante dos
deuses perfeitos, dos quais os homens estariam intransponivelmente
separados (Habetis interim bina animalia: deos ab hominibus…). É
importante salientar aqui que o termo oratione pollentes não é somente uma
rima para ratione gaudentes, mas cumpre o papel de apontar para o signo
linguístico que define o orador de concerto, poderoso e peça fundamental de
uma performance profissional, demiurgo da razão. Podemos também dizer
que se trata de incluir num pequeno sintagma do discurso o paralelismo, já
tantas vezes enfatizado por nós, entre a filosofia e a retórica.
Ainda em IV, no segundo parágrafo, esses homens frágeis estão
naturalmente separados dos deuses perfeitos, como Apuleio passa a
argumentar. Na verdade, os deuses são como os grandes homens do mundo
real, que são de difícil abordagem para o resto da humanidade, uma ilustração
dada em detalhe (128–9):

[108] inter homines, qui fortunae munere opulenti elatus et usque ad regni
nutabilem suggestum et pendulum tribunal evectus est, raro aditu sit, longe remotis
arbitris in quibusdam dignitatis suae penetralibus degens. parit enim conversatio
contemptum, raritas conciliat admirationem.

Apesar de citar homens elevados a categoria de reis como comparação aos


deuses, Apuleio empresta a essa comparação um tom caracteristicamente
romano. O vocábulo suggestus pode se aplicar tanto a um lugar elevado, que
é seu significado original, quanto ao estrado dos oradores no Forum
Romanum, os Rostra, tribunal se refere também ao estrado dos magistrados
no mesmo local: praetor Romanus conuentus agit: eo imperio euocati
conueniunt, excelso in suggestu superba iura reddentem… (O pretor romano
presidiu a reunião: por seu mando, vieram os chamados, em seu alto estrado
[ouviram-no] pronunciando julgamentos soberbos) (Tito-Lívio, AVC, 31.29).
Talvez por sua cultura, de origem púnica e romana, Apuleio não deixa de
fazer menção aos reis e magistrados, como figuras de difícil acesso, muito
curioso é que o fechamento desse trecho se dá quase na forma de um
conhecidissimo ditado popular: Parit enim conuersatio contemptum, raritas
conciliat admirationem.
Proseguindo em seu propósito didático, Apuleio introduz um oponente
imaginário: Quid igitur, orator, obiecerit aliqui (V. 129), que chama a
atenção para o óbvio, perguntando se os deuses, por sua grandeza, não podem
ter contato real algum com os homens, como diz Platão pelos lábios do
palestrante, a quem então se destinariam os sacrifícios, os juramentos e as
orações, num trecho ritmamente marcado pela anáfora com pronomes
interrogativos:

cui igitur preces allegabo? Cui uotum nuncupabo? Cui uictimam caedam? Quem
miseris auxiliatorem, quem fautorem bonis, quem aduersatorem malis in omni
uita ciebo? Quem denique…

É muito importante notar aqui que, em todo momento, da mesma forma


que em 128-9, acentua-se o tom romano pela ênfase que é dada ao juramento,
pois o autor transcreve tanto a cena do juramento de Ascânio (per caput hoc
iuro, per quod pater ante solebat?, Verg. En., 9, [109] 300), quanto a do
juramento vicioso de Mezêncio (dextra mihi deus et telum, quod missile
libro, Verg. En., 10, 773), personagem cujo interesse de Apuleio faz ser
citado também na Apologia 58. 7,9 e 89.2. Ademais um jogo de palavras,
Nam et ius iurandum Iouis iurandum dicitur, ut ait Ennius (Pois também o
termo ius iurandum significa Iouis iurandum, o que se deve jurar por Júpiter,
como diz Ênio), além de enfatizar o tom de romanidade, reforça a visão
tradicional de que os deuses estariam sempre preocupados com os juramentos
e intimamente ligados a todas as fases deles. Curioso é notar que, em De
Officiis 3.104, Cícero também estabelece uma relação entre as palavras ius e
Iouis.
Na seção VI (Non usque adeo…), começa a parte mais extensa da obra,
um catálogo dos daemonēs, que ocupa a parte central e constitui sua parte
mais importante. Divide-se em quatro partes, a saber: a primeira (132 a 138)
descreve a função geral dos daemonēs como seres intermediários entre a
divindade suprema e os homens; a segunda (138 a 145) trata da localização,
também intermediária, particular deles dentro do universo; a terceira (145 a
150) discorre sobre a característica de eles, ao contrário do deus supremo,
possuírem emoções semelhantes aos homens e sobre outras diferenças deles
com os deuses; a quarta (151 a 156) apresenta os vários tipos particulares.
Esta última serve de transição para finalmente falar sobre o daemōn de
Sócrates (157).
Na primeira parte (132 a 138), Apuleio se inspira na famosa descrição dos
daemonēs presente no célebre diálogo de Sócrates e Diotima, no Banquete
(202c-203a):

c Ela riu e disse: ‘Mas como, Sócrates, podem os que afirmam que [Eros] não é, de
modo algum, um deus concordar que é um grande deus?’

‘Mas quem afirma isso?’, indaguei.

‘De um lado tu’, ela respondeu, ‘do outro eu.’ ‘Mas como podes dizer tal
coisa?’, eu disse.

É fácil’, declarou ela, ‘não dirias que todos os deuses são felizes e belos? Ou te
atreverias a negar que todo deus é belo e feliz?’

[110] ‘Por Zeus! Não eu!’, exclamei.

‘E não classificas como felizes os possuidores de coisas boas e bel’as?’


d ‘Certamente.’

‘Admitiste, contudo, que Eros, na medida em que carece de coisas boas e


belas, deseja essas próprias coisas de que carece.’

‘Sim, admiti.’

‘Ora, como pode ser um deus se é desprovido de coisas belas e boas?’

‘Pelo que parece, de modo algum [o pode ser].’

‘Vês, portanto’, ela disse, ‘que não és alguém que considera Eros um deus!’

‘Bem, então o que poderia ser Eros?’, perguntei. ‘Um mortal?’

‘Isso está fora de questão.’

e ‘Então o quê?’

‘Como sugeri antes’, ela disse, ‘intermediário entre mortal e imortal.’

‘E ao que te referes, Diotima?’

‘A um grande dáimon, Sócrates, pois todo o daimônico está entre o divino e o


mortal.’

[111] ‘E qual é sua função?’, indaguei.

‘A de interpretar e transmitir coisas humanas aos deuses e coisas divinas aos


seres humanos; súplicas e sacrifícios que partem daqui para o alto e ordens e
dádivas que procedem do alto para cá. Estando a meio caminho, ele144
promove a suplementação recíproca, resultando em que o todo se combina em
um. Ele é o veículo de toda atividade divinatória e toda sacerdotal no que
respeita aos sacrifícios, rituais de iniciação, 203 encantamentos, e toda
profecia e magia. Deuses não se misturam com seres humanos, mas o
daimônico é o meio de toda associação e diálogo de seres humanos com
deuses e de deuses com seres humanos, estejam estes despertos ou
adormecidos. Todo aquele que possui, nessas matérias, um saber que o
habilita, é um homem espiritual,145 ao passo que aquele que possui um saber
que habilita em outras matérias, como nas artes ou ofícios manuais, é o
trabalhador manual. Esses dáimons são muitos e diversificados, um deles
sendo Eros.’ (Platão, O banquete, p.77-78)

Platão aqui define os daemonēs especificamente como seres divinos


inferiores pertencentes a uma raça de natureza intermediária, entre os homens
e os deuses olímpicos e pré-olímpicos. Sendo seres intermediários, isso se
manifesta em sua posição e atividade.
Ao imaginário opositor apresentado em 129 “deturpando” os
ensinamentos platônicos, portanto, Apuleio responde com a genuína doutrina
do mestre de Atenas, quase que literalmente, que o contato entre homens e
deuses, seja por preces ou adivinhação, dá-se por intermédio dos daemonēs.
A ideia de separação entre deuses e homens ganhou muita força e argumentos
na doutrina de Epicuro, cujo representante latino é Lucrécio, em quem
Apuleio pode ter se inspirado, como em outros lugares do DDS, haja vista as
passagens: seiunctos et alienatos a nobis deos… a cura rerum humanarum,
sed contrectatione sola remoui (132) [diuum natura] semota ab nostris rebus
seiunctaque longe ([a natureza dos deuses] separada de nossos assuntos e de
longe afastada). [112] Mas a identidade existe somente no plano de alguma
inspiração de palavras, visto que Apuleio conclui que os deuses, mediante o
concurso dos daemonēs, se preocupam com a humanidade.
A profecia, que no Banquete aparece somente em breve menção, adquire
em Apuleio uma outra apresentação ampliada, dirigida especificamente a um
público de cultura romana, cuja preocupação era muito grande com as formas
divinatórias em virtude de sua herança etrusca:

Eorum quippe de numero praediti curant singuli [eorum], proinde ut est cuique
tributa prouincia, uel somniis conformandis uel extis fissiculandis uel praepetibus
gubernandis uel oscinibus erudiendis uel uatibus inspirandis uel nubibus
coruscandis ceterisque adeo, per quae futura dinoscimus. (DDS, 134).

Além dos aspectos religiosos, cumpre notar que o autor nomeia as áreas
de atuação dos daemonēs com o termo provincia, inexistente fora do contexto
jurídico do Império Romano. Quanto aos aspectos religiosos, nessa
enumeração marcada por elementos rítmicos seja pela repetição da conjunção
(uel… uel… uel…), seja pelo paralelismo dos termos coordenados, Apuleio
serve-se dos termos que sempre remetem ao campo semântico dos augúrios
exclusivamente romanos, isto é, somniis, extis fissiculandis, praepetibus,
oscinibus, uatibus, fulminibus iaculandis, nubibus coruscandis. Note-se
principalmente que essa enumeração segue a divisão tríplice do
disciplinamento etrusco da adivinhação que se baseava na observação das
entranhas, do voo e do pio dos pássaros, e dos relâmpagos. Claramente, no
melhor estilo do Império Greco-romano de Veyne, nosso autor combina os
elementos do Banquete, intervenção dos daemonēs nos sonhos e inspiração
das profecias, com o sistema divinatório romano, reelaborando o primeiro e
conformando o segundo.
Seguindo em sua caracterização romana do texto, Apuleio apresenta, em
VII (135-136), como num breve interlúdio, uma série de momentos da
história romana em que os avisos divinos e os prodígios se fizeram presentes.
As descrições remetem ao período histórico mais antigo de Roma e à época
da segunda guerra púnica, apresentando mais formas romanas de
adivinhação: cuncta hariolorum praesagia, Tuscorum [113] piacula,
fulguratorum bidentalia, carmina Sibyllarum (DDS, 135). As fontes desse
trecho são bem conhecidas, Tito-Lívio e Cícero (De diuinatione). O autor,
porém, utiliza esses exemplos para demonstrar que tais intervenções divinas
seriam incompatíveis com a suma dignidade divina, pela quebra do sentido
de hierarquia, tão caro aos romanos, principalmente aos estoicos, estando,
portanto, a cargo de divindades subordinadas (136-137).
Apuleio, em seguida, no capítulo VIII, cuida da localização e substância
dos daemonēs. Já em Platão e Aristóteles, encontra-se a relação das várias
ordens dos seres com os quatro elementos, embora sejam Filão de Alexandria
e nosso autor os primeiros a localizar os daemonēs especificamente no ar
mais grosso (aer), encontrado entre a morada do homem e o ar mais fino e
ardente (aether), morada tradicional dos deuses (Harrison, 2008, p.152).
Sobre as criaturas oriundas do fogo, Apuleio chama a autoridade de
Aristóteles:

siquidem Aristoteles (138) auctor est in fornacibus flagrantibus quaedam [propria]


animalia, pennulis apta uolitare totumque aeuum suum in igni deuersari, cum eo
exoriri cumque eo extingui (DDS, 138)

Esse trecho faz referência, entretanto, a uma passagem de Cícero, em


virtude da semelhança muito grande: bestiarum… sunt quaedam etiam, quae
igne nasci putentur, appareantque in ardentibus fornacibus saepe uolitantes.
(dos animais… existem também alguns que no fogo podem nascer,
frequentemente aparecem volitando nas ardentes fornalhas) (ND, 1.103).
Semelhança muito maior que aquela com o texto aristotélico em alusão:
As que nascem da neve que se acumula na Média são grandes e brancas. Todas
elas se movem com dificuldade. Em Chipre, onde se fundem as pirites de cobre
pondo-as a queimar durante vários dias, aí se formam, do fogo, uns animais, um
pouco maiores do que as moscas grandes, com asas, que saltam e caminham
através do fogo. Estas larvas morrem se separadas umas do fogo, as anteriores da
neve. (Arist. Hist. An. V.19.552b, p.234)

[114] Ademais, diga-se de antemão, que, mais tarde, à medida que dava
uma direção mais empírica à sua ciência, Aristóteles renega o conteúdo dessa
passagem na Geração dos Animais 737a1. Coisa que passará desapercebida
tanto por Cícero quanto por Apuleio. Outra fonte que cita o mesmo fenômeno
é a Historia Naturalis (11.42), de Plínio o Velho.
Essa alusão, entretanto, cumpre o propósito estratégico de salientar a
impossibilidade de um dos elementos constitutivos do cosmos ser desprovido
de seus próprios seres vivos característicos, pois, se o aether é povoado pelos
deuses, a terra, pelos homens, e as águas, pelos peixes e outras criaturas,
porque o aer seria desabitado? Apuleio chama a atenção para o fato de as
aves não serem animais do ar, mas da terra, uma vez que nela nascem e
sempre voltam a ela, não passando, em voo, o limite do Monte Olimpo.
Sem provas científicas, pelo menos do modo como conhecemos, com um
argumento puramente retórico baseado em analogia e semelhança — aliás,
como podemos perceber, essa é a principal forma argumentativa apresentada
na obra — o autor conduz o público para o próximo estágio:

Quid igitur tanta uis aëris, quae ab humillimis lunae anfractibus usque ad summum
Olympi uerticem interiacet? Quid tandem? Vacabitne animalibus suis atque erit
ista naturae pars mortua ac debilis? (DDS, 140).

Que pensar então dessa enorme massa de ar que se encerra desde as mais baixas
circunvoluções da Lua até o sumo vértice do Olimpo? Que enfim pensar? Acaso
será ela desprovida de seus próprios seres animados, e até mesmo será essa parte
da natureza débil e morta?

E responde: Quod si manifestum flagitat ratio debere propria animalia


etiam in aëre intellegi (Porém, se a razão manifestamente exige, deve-se
conceber também seres vivos permanentes no ar), em sequência ao
raciocínio.
O próximo passo será concluir que os seres nessa região intermediária
(aer), sendo intermediários entre homens e deuses, devem ter massa pesada o
suficiente, para que não sejam puxados pelo fogo [115] acima, e leve o
suficiente, para que não precipitem ao solo. Desprovido de comprovação
científica (logos), esse raciocínio se apoia no pacto entre orador e público,
especificamente pela utilização dos verbos na primeira pessoa do plural:
disseramus e mente formemus et gignamus animo. Para que não haja dúvida
de sua seriedade, Apuleio afirma sua “cientificidade” pela contraposição às
ficções literárias: Quod ne uobis uidear poetico ritu incredibilia confingere, e
começa uma comparação muito interessante com as nuvens pesadas nos
cimos das montanhas, apelando não só para uma citação de Lucrécio, como
também para sua forma vocabular: disseramus… (cf. DRN 1.55, disserere
incipiam et rerum primordia pandam, começarei a dissertar e desvendarei os
primórdios), termo muito usado pelo autor de DRN; et gignamus, visto que é
um termo arcaico muito recorrente em DRN. Para encerrar as remissões, em
145, Apuleio utiliza os conceitos da física de Lucrécio ao descrever a
composição corpórea delicada dos daemonēs:

fila corporum possident rara et splendida et tenuia usque adeo ut radios omnis
nostri tuoris et raritate transmittant et splendore reuerberent et subtilitate
frustrentur. (DDS, 145).

Possuem, todavia, as tessituras dos corpos rarefeitas, luminosas e tênues, ao ponto


que deixem passar, também em virtude da rarefação, os raios de todo nosso sentido
de visão; em virtude da luminosidade os reflitam, e, em virtude da sutileza, os
frustrem.

Que se pode comparar com DRN 3.383: nec nebulam noctu neque arani
tenuia fila obuia sentimus (nem névoa da noite, nem as teias tênues das
aranhas sentimos de encontro).
Como podemos ver, Apuleio, em DDS X (141-143) e XI (143-145), se
utiliza de citações de autoridade para fechar os capítulos finais da parte
consagrada à localização e constituição dos daemonēs, e passa então, no cap.
XII, à “psicologia” dos daemonēs.
Nos capítulos XII a XIV (145-150), Apuleio se concentra no que
poderíamos chamar de uma psicologia dos daemonēs e sua interação no
fenômeno religioso, que, como seres intermediários, participam tanto da
imortalidade e mobilidade dos deuses, quanto das paixões dos seres humanos,
podendo experimentar tanto simpatia e amor, [116] quanto animosidade e
ódio pelos seres humanos. A suscetibilidade dos daemonēs às emoções
contrasta-se com a impassibilidade e imperturbabilidade dos verdadeiros
deuses supernos, que no Platonismo tradicionalmente se apresentam como
totalmente livres do prazer, dor e emoções, realidades que constituiriam o
mundo fenomênico das aparências. Há um momento, porém, que o autor nos
parece aproximar mais os daemonēs dos homens, numa cadência rítmica
formada por um polissíndeto:

Nam proinde ut nos pati possunt omnia animorum placamenta uel incitamenta, ut
et ira incitentur et misericordia flectantur et donis inuitentur et precibus leniantur et
contumeliis exasperentur et honoribus mulceantur aliisque omnibus ad similem
nobis modum uarient. (DDS 147-148)
Pois do mesmo modo que nós, eles estão sujeitos a todos os apaziguamentos ou
todas as agitações da alma; assim pela ira são agitados e pela misericórdia são
abrandados; pelas oferenda são aliciados; pelas preces, abrandados; pelos ultrajes,
irritados; pelas homenagens, suavizados, e, por todas as coisas, de modo
semelhante a nós, eles variam.

Esse início, proinde ut nos, juntamente com o final, ad similem nobis


modum, numa colocação característicamente latina de limites (Eco, 1989),
reafirma a semelhança entre homens e daemonēs e expõe claramente a ideia
de aplacar os deuses ou levá-los a agir. Essa semelhança emocional dos
daemonēs com os homens, com supostas preferências particulares é utilizada
pelo autor para explicar a multiplicidade de religiões e formas de culto,
afirmando que todos eles merecem igual crédito, característica do paganismo
que seria descartada com a nova religião nascente.
Como nessa época a religião e filosofia muito se confundiam, Apuleio se
apresenta como profundo interessado e conhecedor dos aspectos religiosos de
seu tempo, ao enumerar, numa breve enunciação de colorido rítmico
característico de nosso autor, povos e ritos religiosos, mais estes que aqueles:

[117] uti Aegyptia numina ferme plangoribus, Graeca plerumque choreis, barbara
autem strepitu cymbalistarum et tympanistarum et choraularum.Itidem pro
regionibus et cetera in sacris differunt longe uarietate: pomparum agmina,
mysteriorum silentia, sacerdotum officia, sacrificantium obsequia; item deorum
effigiae et exuuiae, templorum religiones et regiones, hostiarum cruores et colores.
(DDS 149-150)

Assim como os deuses egípcios geralmente com os lamentos, os gregos com a


dança circular, os bárbaros com o estrépito dos tocadores de címbalo, timpanistas e
flautistas, da mesma forma, conforme as regiões, todo o restante, nas cerimônias
religiosas, difere muito em variedade: a multidão em marcha das procissões; as
obrigações dos sacrificantes, da mesma forma as imagens e os despojos dos
deuses; a consagração e a localização dos templos; as cores e as matanças das
vítimas.

Notem-se aqui os pares ritimicamente ordenados. Note-se também que


essa mesma pompa léxico-semântica são recorrentes na descrição do culto de
Isis no capítulo final das Metamorfoses.
Segundo o autor, essas múltiplas atitudes rituais podem ser acompanhadas
por um igualmente múltiplo número de erros ou omissões que incitariam a ira
ou, pelo menos, o desagrado dos daemonēs, portanto, para não cometer ele
mesmo o pecado da omissão, ele se exime de tentar enumerá-los todos e
passa ao assunto seguinte, os tipos de daemonēs.
Esse sumário começa com uma conhecida citação da Eneida: “…dine
hunc ardorem mentibus addunt, /Euryale, an sua cuique deus fit dira
cupido?”, cuja tradução ad litteram muito bem se adéqua à proposta do autor
de tomar a palavra daemōn como hipônimo de deus, bem como, quando se
faz uso de uma alusão épica muito conhecida, facilitar a captação de uma
ideia filosófica complexa ou não familiar a partir de um campo de
conhecimentos familar ao ouvinte. Cremos que Apuleio, mais por esse
motivo principalmente, pouco se remete às citações em grego, preferindo
inclusive, quando é o caso, apresentá-las literalmente em latim. A noção
veiculada aqui, de que a própria alma humana é um daemōn, se apresenta na
formulação latina do autor, quorum daemon bonus id est animus uirtute
perfectus est, e no Tim. 90c:

[118] E tanto quanto seja possível à natureza humana participar da imortalidade,


não deixará, de modo algum, de atingi-la; e na medida em que essa pessoa se
conserva cuidando de sua parte divina e ampliando apropriadamente o dáimon que
reside no seu interior, deverá realmente ser sumamente feliz. (Platão, 2010, p.261)
Apuleio, porém, como bom romano, associa a ideia do bom daemōn
platônico à do genius, espírito que, pelas crenças romanas, acompanhava
cada ser humano desde seu nascimento, e ao animus, caráter idiossincrático
do indivíduo de tendência racional e intelectual. Nisso reside o tom romano
da ideia platônica. Outro ponto muito característico da cultura romana é a
identificação dos vocábulos Genium e genua, que aponta para união do corpo
e da alma:

ut eae preces, quibus Genium et genua precantur, coniunctionem nostram


nexumque videantur mihi obtestari, corpus atque animum duobus nominibus
comprehendentes, quorum communio et copulatio sumus. (DDS, 151-152).

portanto aquelas preces, nas quais invocamos o gênio e os joelhos, parecem-me


atestar nossa conjunção e entrelaçamento, compreendendo corpo e alma em dois
nomes, cuja comunhão e reunião somos nós.

Essa identificação, de certa forma, se opõe à dogmática platônica, uma


vez que esta considera o homem somente como alma, forma transcendente do
ser humano, sendo o corpo mera “imagem fenomênica” dessa realidade. Tal
identificação estaria mais próxima de Lucrécio: nil tamem est ad nos qui
comptu coniugioque/ corporis atque animae consistimus uniter apti. DRN
3.845-6 (nada existe, finalmente, [nisso] que nos interesse, e pela disposição
e conjução do corpo e da alma sustentamo-nos em uma individualidade).
Podemos ver claramente em DDS XV.151 essa identificação:

[119] Eum nostra lingua, ut ego interpretor, haud sciam an bono, certe quidem
meo periculo poteris Genium uocare, (151) quod is deus, qui est animus sui
cuique, quamquam sit inmortalis, tamen quodam modo cum homine gignitur, ut
eae preces, quibus Genium et genua precantur, coniunctionem nostram nexumque
uideantur (152) mihi obtestari, corpus atque animum duobus nominibus
conprehendentes, quorum communio et copulatio sumus.

Em nossa língua, como eu mesmo traduzo, não saberia se de boa forma, ou de


modo certo na verdade, sob minha responsabilidade, podereis chamar de genius
(151), porque esse deus, que é o próprio ânimo de cada um, ainda que, de certo
modo, com o ser humano seja gerado, é, todavia, imortal; portanto aquelas preces,
nas quais invocamos o gênio e os joelhos, parecem-me (152) atestar nossa
conjunção e entrelaçamento, compreendendo corpo e alma em dois nomes, cuja
comunhão e reunião somos nós

Essas identificações, daemōn-animus-genius (almas encarnadas em


corpos), daemōn-lemures, Laruae, Lares e Manes (almas desencarnadas),
constituem a mais importante tentativa de interpretatio romana da
demonologia grega. Uma vez que, mesmo Varrão e Cícero, ao associar o
daemōn ao genius, não foram tão longe no sincretismo e na assimilação das
duas culturas. Varrão os chama de animae/dei aeriae, Apuleio, porém,
produz, quanto ao segundo tipo de daemon, uma escatologia
caracteristicamente romana, associada ao além-túmulo, de colorido remetente
à herança etrusca. Durante a evolução paralela dos conceitos gregos e
romanos, de um lado, temos uma tendência a fundir todos os seres somente
sob uma hoste, de outro, a tendência classificatória, mais presente entre os
romanos. Isso levou um pouco de confusão aos conceitos, mas Apuleio,
apesar de ceder à segunda tendência, mantém algumas distinções sutis.
Embora Laruae, Lares e Manes sejam postos sob a mesma rubrica dos
daemonēs desencarnados, estes últimos estariam muito mais próximos dos
daemonēs guardiões, ou dos grandes homens que chegaram por suas obras ao
estado de daemonēs, que dos Lares e, menos ainda, que das Laruae (DDS
XV.154). Essa é uma incoerência de detalhe legada pela evolução do
conceito.
[120] Recapitulando, segundo Apuleio, podemos dividir os daemonēs em
três grupos: almas encarnadas, almas desencarnadas e almas que nunca
encarnaram. As almas encarnadas seriam as almas dos homens; nas
desencarnadas, ou seja, em sua existência post mortem, encontraríamos os
daemonēs-lêmures: Lares, Laruae e Manes, e, finalmente Apuleio falará das
que nunca encarnaram, nessa categoria ele inclui o daemōn de Sócrates, ou
daemōn guardião (custos), assimilado ao genius romano, bem como Amor e
Somnus.
A descrição de Apuleio do daemōn guardião muito se assemelha à
concepção estoica encontrada em Epiteto:

Por que tu não sabes de onde vieste? Tu não queres se lembrar, quando comes,
quem tu és, tu que comes, e que tu nutres? Em tuas relações sexuais, quem tu és, tu
que te utilizas dessas relações? Em tua vida social, nos teus exercícios físicos, em
tuas conversas, não sabes que é um deus que nutres, um deus que tu exercitas (θεὸν
τρέφεις, θεὸν γυμνάζεις)? Tu levas Deus por toda parte contigo (θεὸν περιφέρεις),
infeliz, e tu o ignoras. Tu crês que falo de um deus exterior, de ouro ou de prata? É
contigo que tu o levas e não te apercebes que o maculas/desonras com teus
pensamentos impuros e por tuas ações desonestas. Diante de uma imagem de
Deus, não ousarias, na verdade, executar nenhuma das ações que executas. E
diante do próprio Deus presente em ti (αὐτοῦ δέ τοῦ θεοῦ παρόντος) e que vê e
escuta todas as coisas, não te envergonhas de cogitá-las e cumpri-las, homem
inconsciente de tua própria natureza, objeto da cólera divina!67

[121] Cujo correspondente próximo em Marco Aurélio é:


Mas se nada te parece melhor que o gênio que em ti estabeleceu sua morada (τοῦ
ἐνιδρυμένου ἐν σοὶ δαίμονος), que submete à sua autoridade os instintos pessoais
(τάς τε ἱδίας ὁρμὰς), que controla as representações do espírito (τὰς φαντασίας),
que se afasta com esforço, como diz Sócrates [Timeu 61 d], das provocações dos
sentidos (τῶν αἰσθητικῶν πείσεων), que se submete aos deuses e se liga aos
homens; se achas todo o resto muito pequeno e muito vil, não deixe lugar em ti a
nenhuma outra coisa (μηδενί χώραν δίδου ἑτέρῳ), porque uma vez que tu te
deixares inclinar e desviar por ela, tu não poderás mais sem descanso
(ἀπερισπάστως) honrar (προτμιᾶν) mais que tudo esse bem que é próprio a ti e que
é o bem68.

Essa noção do deus interior encontrara lastro tanto na poesia de Horácio:


Genius, natale comes qui temperat astrum, naturae deus humanae, mortalis
in unum quodque caput, uoltu mutabilis, albus et ater (O gênio, um
companheiro por nascimento que modera [a influência d]o astro [regente],
deus de natureza humana, mortal com cada indivíduo, de face mutável, alba e
negra, Epist. II, 2.187-189), quanto nas Antiquaria de Varrão (apud
Agostinho de Hipona): Genium dicit [Varro] esse uniuscuiusque animum
rationalem ([Varrão] diz que o gênio é a alma racional de cada um, De ciu.,
VII, 13). Esse conceito horaciano de mutabilidade vai se tornar mais preciso
posteriormente pela atribuição de dois daemonēs [122] ao homem, um bom e
um mau, o conceito de mortalidade, porém, é descartado. Assim, em outras
palavras, a assimilação do daemōn guardião platônico ao genius romano já
estava pavimentada desde o século I a.C.
Em seguida, Apuleio relaciona os daemonēs à ciência divinatória,
mostrando que, nos campos onde a razão e a sabedoria não podiam alcançar
ou penetrar, ali devia-se recorrer ao próprio daemōn. Embora pareça
obscurantista, temos de lembrar de que o culto do daemōn pessoal se faz não
com rituais, mas com buscar a filosofia, buscar a sabedoria, levar uma vida
pura e virtuosa. Assim, na verdade, o propósito do autor não é tanto converter
o ouvinte a um culto, quanto exortá-lo à prática da filosofia, convertê-lo a um
gênero de vida filosófico. Apuleio, assim como acontece em todo Platonismo
Médio, associa o daemōn de Sócrates ao βίος φιλοσοφικός e, sendo ele
“considerado como o filósofo por excelência, e sua conduta como o gênero
de vida ideal, seu daemōn torna-se a marca do ethos filosófico, sua identidade
religiosa. Estudar a natureza desse daemōn equivale então, por efeito de
retorno, a elucidar o próprio conteúdo da prática filosófica69.” (Timotin,
2012, p.259).
[123] 5. De Deo Socratis

5.1 TEXTO E TRADUÇÃO


[124] DE DEO SOCRATIS

I. Plato omnem naturam rerum70, quod eius ad (115) animalia praecipua


pertineat, trifariam diuisit censuitque esse summos deos. Summum, medium
et infimum fac intellegas non modo loci disclusione uerum etiam naturae
dignitate, quae et ipsa neque uno neque gemino modo sed pluribus cernitur.
Ordiri tamen manifestius fuit a loci dispositione. Nam proinde ut maiestas
postulabat, diis inmortalibus (116) caelum dicauit, quos quidem deos caelites
partim uisu usurpamus, alios intellectu uestigamus.
Ac uisu quidem cernimus

…uos, o clarissima mundi


lumina, labentem caelo quae ducitis annum;71

nec modo ista praecipua: diei opificem lunamque, solis aemulam, noctis
decus, seu corniculata seu (117) diuidua seu protumida seu plena sit, uaria
ignium face, quanto longius facessat a sole, tanto largius conlustrata, pari
incremento itineris et luminis, mensem suis auctibus ac dehinc paribus
dispendiis aestimans; siue illa proprio sed perpeti candore *pollens*, ut
Chaldaei arbitrantur, parte luminis conpos, parte altera cassa fulgoris, pro
circumuersione oris discoloris multiiuga * speciem sui uariat, seu tota proprii
candoris expers, alienae lucis (118) indigua, denso corpore sed leui ceu
quodam speculo radios solis obstipi uel aduersi usurpat et, ut uerbis utar
Lucreti, notham iactat de corpore lucem;72
[125] O DEUS DE SÓCRATES

I. Platão, no que se refere73 (115) aos seres superiores animados, dividiu


toda a natureza em três partes e declarou estarem os deuses acima de tudo.
Devem-se entender os níveis, superior, médio e inferior, não somente como
uma separação espacial, mas também como a magnificência natural a eles
inerente, a qual não se discerne, além disso, de uma ou de duas formas, mas
de muitas. Começar, porém, pela disposição do espaço foi mais evidente para
Platão. Pois, assim como lhes postulava a majestade, (116) consagrou o céu
aos deuses imortais, dos quais certamente percebemos uma parte pela visão e
outros encontramos pelo intelecto.
E74, na verdade, é pela visão que vos discernimos,

…ó claríssima luz do mundo,


vós que guiais pelo céu o ano que se escoa75;

e não somente percebemos esses seres superiores: o artífice do dia e a lua,


rival do Sol, glória e enfeite da noite, quer (117) em quarto crescente, quer
semiplena, quer quase inteiramente cheia, quanto mais longe se afasta do Sol,
tanto mais iluminada, com incremento igual de percurso e luz, determinando
o mês seguidamente com seus acréscimos e correspondentes decréscimos76;
ou antes, se ela muda sua aparência, com luz própria, mas permanente, como
os caldeus creem, brilhando — em um lado, senhora de sua luz, em outro,
privada de fulgor — conforme a circunvolução muito variada de sua face
discolor; ou ainda, se toda desprovida da própria luminescência, necessitada
da luz alheia (118), com denso corpo, mas leve, assim como um espelho,
vale-se dos raios do Sol oblíquo, inclinado ou oposto e, para que eu use as
palavras de Lucrécio: lança uma luz emprestada de seu corpo.
[126] II. utra[cum]que harum uera sententia est — nam hoc postea uidero
—, tamen neque de luna (119) neque de sole quisquam Graecus aut barbarus
facile cunctauerit deos esse, nec modo istos, ut dixi, uerum etiam quinque
stellas, quae uulgo uagae ab inperitis nuncupantur, quae tamen indeflexo et
(120) certo et stato cursu meatus longe ordinatissimos diuinis uicibus aeterno
efficiunt. Varia quippe curriculi sui specie, sed una semper et aequabili
pernicitate, tunc progressus, tunc uero regressus mirabili uicissitudine
adsimulant pro situ et flexu et instituto circulorum, quos probe callet qui
signorum ortus et obitus conperit. In eodem uisibilium deorum numero cetera
quoque sidera, qui cum Platone sentis, locato:

Arcturum pluuiasque Hyadas gemi[nosque Triones77

aliosque itidem radiantis deos, quibus caeli chorum (121) comptum et


coronatum suda tempestate uisimus, pictis noctibus seuera gratia, toruo
decore, suspicientes in hoc perfectissimo mundi, ut ait Ennius, clipeo miris
fulgoribus uariata caelamina.
Est aliud deorum genus, quod natura uisibus nostris denegauit, nec non
tamen intellectu eos rimabundi contemplamur, acie mentis acrius
contemplantes. Quorum in numero sunt illi duodecim [numero] situ nominum
in duo uersus ab Ennio coartati:

Iuno, Vesta, Minerua, Ceres, Diana, Venus, Mars,


Mercurius, Iouis, Neptunus, Vulcanus, Apollo78

ceterique id genus, quorum nomina quidem sunt (122) nostris auribus iam diu
cognita, potentiae uero animis coniectatae per uarias utilitates in uita agenda
animaduersas in iis rebus, quibus eorum singuli curant.
[127] II. Qualquer que seja, dessas duas, a verdadeira ideia, as
examinarei, pois, mais adiante. Todavia, nem a Lua (119), nem o Sol, seja
grego, seja bárbaro, nenhum deles duvidaria sem dificuldade que fossem
deuses, e não somente esses astros, como eu disse, mas também as cinco
estrelas, que, pelo vulgo e pelos ignorantes, são chamadas de errantes, e que,
entretanto, com um percurso inflexível, determinado e fixo, em movimentos
muitíssimo ordenados, em virtude de divinas alternâncias, eternamente
marcham. Na verdade, com aparência variada em sua órbita, mas sempre com
velocidade única e uniforme, simulam ora a progressão, ora também a
regressão, consoante a posição, a curvatura e o desenho dos círculos, nos
quais é muito versado aquele que conhece a fundo o nascer e o morrer dos
signos. Na mesma classe dos deuses visíveis, vós que concordais com Platão,
havereis de colocar, da mesma forma, os demais astros:

Arturo79, as Híadas80 chuvosas e as duas Ursas,

e, do mesmo modo, os outros deuses radiantes, com os quais o coro celeste


adornado e coroado, em claro tempo, contemplamos nas noites ornadas de
severa graça, grave ornamento, olhando para dentro desse perfeitíssimo,
como diz Ênio, escudo do mundo, variada cinzeladura de miríficos fulgores.
Existe81 outra categoria de deuses que a natureza denegou aos nossos olhares,
e acontece ainda que, atentos perscrutadores, os contemplamos mais
agudamente, pela via do intelecto, com o olhar penetrante da mente. Entre
eles estão aqueles doze enfeixados por Ênio em dois versos, mediante
disposição dos nomes:

“Juno, Vesta, Minerva, Ceres, Diana, Vênus, Marte83 ,


e todos os outros da mesma espécie, cujos nomes certamente são, aos nossos
ouvidos, já há muito tempo conhecidos: potências sem dúvida presumidas em
virtude dos vários benefícios observados naquilo por que sozinhos eles olham
no caminhar da nossa vida84.
[128] III. Ceterum profana philosophiae turba inperitorum, uana
sanctitudinis, priua uerae rationis, inops religionis, inpos ueritatis,
scrupulosissimo cultu, insolentissimo spretu deos neglegit, pars in
superstitione, pars in contemptu timida uel tumida. Hos namque cunctos deos
in sublimi aetheris uertice (123) locatos, ab humana contagione procul
discretos plurimi sed non rite uenerantur, omnes sed inscie metuunt, pauci
sed impie diffitentur. Quos deos Plato existimat naturas incorporalis,
animalis, neque fine ullo neque exordio, sed prorsus ac retro aeuiternas, [a]
corporis contagione suapte natura remotas, ingenio ad summam beatitudinem
perfecto, nullius extrarii boni participatione sed ex sese bonas et ad omnia
conpetentia sibi promptu facili, simplici, libero, absoluto. Quorum parentem,
(124) qui omnium rerum dominator atque auctor est, solutum ab omnibus
nexibus patiendi uiiquid gerendiue, nulla uice ad alicuius rei munia
obstrictum, cur e[r]go nunc dicere exordiar, cum Plato caelesti facundia
praeditus, aequiperabilia diis inmortalibus disserens, frequentissime praedicet
hunc solum maiestatis incredibili quadam nimietate et ineffabili non posse
penuria sermonis humani quauis oratione uel modice conprehendi, uix
sapientibus uiris, cum se uigore animi, quantum licuit, a corpore remouerunt,
intellectum huius dei, id quoque interdum, uelut in artissimis tenebris
rapidissimo coruscamine lumen candidum intermicare?
Missum igitur hunc locum faciam, in quo non mihi (125) [quidem]
tantum, sed ne Platoni quidem meo quiuerunt ulla uerba pro amplitudine rei
suppetere, [f]ac iam rebus mediocritatem82 meam [in] longe superantibus
receptui canam tandemque orationem de caelo in terram deuocabo. In qua
praecipuum animal homines sumus, quamquam plerique se incuria uerae
disciplinae ita omnibus erroribus ac piacularibus deprauauerint, sceleribus
inbuerint et prope exesa mansuetudine generis sui inmane (126) efferarint, ut
possit uideri nullum animal in terris homine postremius. Sed nunc non de
errorum disputatione, sed de naturae distributione disserimus.
[129] III. A multidão profana dos demais não iniciados na filosofia,
desprovida de caráter sagrado, privada da verdadeira razão, pobre de práticas
religiosas, incapaz no alcance da verdade, com minuciosíssimo culto, com
insolentíssimo desprezo, negligencia os deuses, parte por superstição, parte
por desprezo, tímida ou túmida85. Porém a todos esses deuses, localizados no
vértice sublime do éter, muitíssimo separados, pois, do contato humano,
muitos veneram, mas não religiosamente; todos os temem, mas
ignorantemente; poucos os negam, mas impiamente. Deuses que Platão julga
de naturezas incorpóreas, dotadas de alma, sem fim nem começo, mas no
passado e no futuro eternas86, afastadas do contato do corpo por sua própria
natureza; por sua perfeita inclinação à suprema beatitude, sem participação de
nenhum bem exterior, mas boas por si mesmas e com fácil, simples, livre e
absoluta disposição para todas as coisas que lhes convêm. Do pai destes, que
é senhor e também autor de todas as coisas, livre de todos os liames do sofrer
ou da obrigação de cuidar de algo, nunca restrito à execução de nenhuma
função, por que agora, pois, eu começaria a falar em público, visto que
Platão, investido de celeste eloquência, equiparável aos deuses imortais,
dissertando, muito frequentemente proclama que esse único deus majestoso,
de inefável e inaudita exuberância, não pode ser compreendido pela escassez
da palavra humana, ainda mais pelo discurso? Que o intelecto desse deus
dificilmente aos sábios, quando com vigor os intelectos deles se afastam do
corpo o quanto é permitido, também algumas vezes, como uma branca luz em
nigérrimas trevas, com rapidíssimo resplendor, brilha intermitentemente?
[131] Abandonarei87 então esse terreno88, para o qual nem para mim
somente, mas nem mesmo para o meu mestre Platão deixaram de se
apresentar quaisquer palavras para sua amplitude. Além disso, que esses
assuntos de longe superam25 a minha limitação22, recolhi25 a pena e
finalmente chamarei meu discurso do céu à terra, onde nós homens somos o
primeiro animal, ainda que a maior parte tenha se depravado pela incúria do
verdadeiro ensinamento, igualmente por todos os erros e até pelos sacrilégios,
impregnados de crimes, e próximo ao desumano, minada a doçura de sua
espécie, eles tenham se tornado ferozes, de modo que pode parecer que
nenhum animal na terra é mais desprezível que o homem. Mas agora não
discutiremos acerca dos erros, mas dissertaremos sobre a divisão da natureza.
[130] IV. Igitur hommes ratione gaudentes, oratione pollentes,
inmortalibus animis, moribundis membris, leuibus et anxiis mentibus, brutis
et obnoxiis corporibus, dissimillimis moribus, similibus erroribus, peruicaci
audacia, pertinaci spe, casso labore, fortuna caduca, singillatim mortales,
cunctim (127) tamen uniuerso genere perpetui, uicissim sufficienda prole
mutabiles, uolucri tempore, tarda sapientia, cita morte, querula uita, terras
incolunt.
Habetis interim bina animalia: deos ab hominibus plurimum differentis
loci sublimitate, uitae perpetuitate, naturae perfectione, nullo inter se
propinquo communicatu, cum et habitacula summa ab infimis tanta
intercapedo fastigii dispescat et uiuacitas illic aeterna et indefecta sit, hic
caduca et subsiciua, et ingenia illa ad beatitudinem sublimata sint, haec ad
miserias infimata. Quid igitur? Nullone conexu natura se uinxit, sed in
diuinam et humanam partem partitam se et interruptam ac ueluti debilem
passa est? Nam, ut idem Plato (128) ait, nullus deus miscetur hominibus, sed
hoc praecipuum eorum sublimitatis specimen est, quod nulla adtrectatione
nostra contaminantur. Pars eorum tantummodo obtutu hebeti uisuntur, ut
sidera, de quorum adhuc et magnitudine et coloribus homines ambigunt,
ceteri autem solo intellectu neque prompto noscuntur. Quod quidem mirari
super diis inmortalibus nequaquam congruerit, cum alioquin et inter homines,
qui fortunae munere opulenti elatus et usque ad regni nutabilem suggestum et
pendulum tribunal euectus est, raro (129) aditu sit, longe remotis arbitris in
quibusdam dignitatis suae penetralibus degens. Parit enim conuersatio
contemptum, raritas conciliat admirationem.
[131] IV. Os homens, por conseguinte, jubilosos com a razão, poderosos
pela palavra; de almas imortais e membros sujeitos à morte; de mentes leves,
e inquietas, de corpos brutos e vulneráveis; de costumes mutíssimo diferentes
e de erros iguais; de audácia muito viva e esperança pertinaz; de fadigas
inúteis e sorte frágil; individualmente mortais, mas em sua espécie inteira
perpétuos, sucessivamente mutáveis pela prole que os deve renovar; de tempo
volátil e sabedoria tardia; de morte prematura e lastimosa vida: eles habitam a
terra.
Tendes89, até então, dois seres dotados de alma: os deuses profundamente
afastados dos homens pela maior grandeza da localização diferente, pela
perpetuidade da vida, pela perfeição da natureza, sem nenhuma comunicação
recíproca, visto que um grande intervalo de dignidade aparta as moradas
supremas das inferiores, e lá a força vital seja eterna e imutável; aqui, frágil e
perecível; suas disposições naturais sejam elevadas à beatitude; as nossas,
rebaixadas às misérias. Que dizer então? Acaso por nenhum laço a natureza
não se ligou a si mesma, deixou-se partida em divina e humana parte, e
interrompida como se até mesmo fosse incompleta? Na verdade, como diz
ainda Platão, nenhum deus se mistura aos homens, mas essa é a principal
prova da sublimidade deles: que por nenhum contato nosso são
contaminados. Somente parte deles, como os astros, são contemplados pela
visão embotada, a tal ponto que os homens divergem sobre a grandeza e
as [133] cores deles; quanto aos demais deuses, todavia, somente podem ser
conhecidos pelo intelecto e não de imediato. Porque, na verdade, de modo
algum seria congruente admirar-se acerca dos deuses imortais, visto que,
aliás, também entre os homens, aquele que foi levado pelo favor opulento da
fortuna, foi alçado vacilante até o lugar elevado de um reino e foi
transportado a um tribunal instável, raramente seja, esse homem, de se
aproximar, consumindo seus dias em algum lugar muito íntimo, tendo
afastados de sua dignidade os expectadores. A convivência, na verdade, gera
o menosprezo, o distanciamento atrai a admiração.
[132] V. Quid igitur, orator, obiecerit aliqui, post istam caelestem quidem
sed paene inhumanam tuam sententiam faciam, si omnino homines a diis
inmortalibus procul repelluntur atque ita in haec terrae tartara relegantur, ut
omnis sit illis aduersus caelestes deos communio denegata nec quisquam eos
e caelitum numero uelut pastor uel equiso uel busequa ceu balantium uel
hinnientium uel mugientium greges interuisat, qui ferocibus moderetur,
morbidis medeatur, egenis opituletur? Nullus, (130) inquis, deus humanis
rebus interuenit: cui igitur preces allegabo? Cui uotum nuncupabo? Cui
uictimam caedam? Quem miseris auxiliatorem, quem fautorem bonis, quem
aduersatorem malis in omni uita ciebo? Quem denique, quod
frequentissimum est, iuri iurando arbitrum adhibebo? An ut Vergilianus
Ascanius

per caput hoc iuro, per quod pater ante solebat?90

At enim, o Iule, pater tuus hoc iure iurando uti poterat; inter Troianos
stirpe cognatos et fortasse an inter Graecos proelio cognitos; at enim inter
Rutulos recens cognitos si nemo huic capiti crediderit, quis pro te deus fidem
dicet? An ut (131) [se] ferocissimo Mezentio dextra et telum? Quippe haec
sola aduenerat, quibus propugnabat:

dextra mihi deus et telum, quod missile libro.91

Apagesis tam cruentos deos, dextram caedibus fessam telumque sanguine


robiginosum: utrumque idoneum non est, propter quod adiures, neue per ista
iuretur, cum sit summi deorum hic honor proprius. Nam et ius iurandum Iouis
iurandum dicitur, ut ait Ennius. Quid igitur censes? Iurabo (132) per Iouem
lapidem Romano uetustissimo rito? Atque si Platonis uera sententia est,
numquam se deum cum homine communicare, facilius me audierit lapis
quam Iuppiter.
[133] V. Que farei então, palestrante, objetaria alguém, depois deste, na
verdade celeste, mas quase inumano veredito, se de todo os homens estão
apartados para longe dos deuses imortais e, portanto, a este Tártaro terrestre
estão relegados, de tal maneira que lhes é recusado todo contato voltado aos
deuses celestes e nem mesmo algum ser da ordem dos habitantes do céu
visita os homens, do mesmo modo como o pastor, ou o amestrador de
equinos, ou o boieiro visitam os rebanhos que balem, que relincham, que
mugem, para que sejam contidos os furiosos, curados os doentes, ou seja
prestado socorro aos necessitados? Nenhum deus, dizes, intervém nos
negócios humanos: a quem, então, dirigirei as preces? A quem farei os votos
solenes? A quem imolarei uma vítima? Que auxílio aos infelizes, que
proteção aos bons, que inimigo dos maus, por toda vida invocarei? Quem
chamarei enfim — porque é o (caso) mais frequente — para testemunhar meu
juramento? Ou como Ascânio em Vergílio eu diria:

“…por esta alma92 eu juro, pela qual meu pai antes costumava jurar”?

Dir-se-ia, porém — Oh, Iulo, teu pai poderia usar desse juramento entre
os troianos aparentados pela estirpe e talvez porventura entre os gregos
irmanados pelo combate; mas entre os rútulos conhecidos há pouco tempo, se
ninguém desse crédito à tua cabeça, que [135] deus responderá por ti? Ou seria,
como para o ferocíssimo Mezêncio, jurar pela própria mão direita o e pelo próprio dardo?
Pois somente venerava estes, que usava para lutar.

A minha mão direita e o dardo que lanço é o meu deus.

Para trás, deuses tão cruentos, a mão fatigada de matança e o dardo


vermelho de sangue: nem por um, nem por outro é adequado que jures, ou
que por eles seja feito um juramento; visto que é característica dos sumos
deuses essa honra. Pois também o termo ius iurandum significa Iovis
iurandum, o que se deve jurar por Júpiter, como diz Ênio. Que te parece
então? Juraria eu pela pedra de Júpiter segundo o antiquíssimo rito romano?
Todavia, se o pensamento de Platão é verdadeiro, de que nunca o deus se
comunica com o homem, mais facilmente a pedra que Júpiter me ouviria.
[134] VI. Non usque adeo — responderit enim Plato pro sententia sua
mea uoce — non usque adeo, inquit, seiunctos et alienatos a nobis deos
praedico, ut ne uota quidem nostra ad illos arbitrer peruenire. Neque enim
illos a cura rerum humanarum, sed contrectatione sola remoui. Ceterum sunt
quaedam diuinae mediae potestates inter summum aethera et infimas terras in
isto intersitae aëris spatio, per quas et desideria nostra et merita ad eos
commeant (133). Hos Graeci nomine daemonas nuncupant, inter [terricolas]
caelicolasque uectores hinc precum inde donorum, qui ultro citro portant hinc
petitiones inde suppetias ceu quidam utri[u]sque interpretes et salutigeri. Per
hos eosdem, ut Plato in Symposio autumat, cuncta denuntiata et magorum
uaria miracula omnesque praesagiorum species reguntur. Eorum quippe de
numero praediti curant singuli [eorum], proinde ut est cuique tributa (134)
prouincia, uel somniis conformandis uel extis fissiculandis uel praepetibus
gubernandis uel oscinibus erudiendis uel uatibus inspirandis uel fulminibus
iaculanclis uel nubibus coruscandis ceterisque adeo, per quae futura
dinoscimus. Quae cuncta caelestium uoluntate et numine et auctoritate, sed
daemonum obsequio et opera et ministerio fieri arbitrandum est.
[135] VI. Não93 chego a esse ponto — poderia responder Platão, por
minhas palavras, em defesa de seu pensamento — não a esse ponto proclamo
que os deuses estão separados ou afastados de nós, de modo que nenhum de
nossos votos eu julgue não alcançá-los. E na verdade não os apartei do
cuidado das coisas humanas, mas somente do contato direto. Contudo
existem algumas potestades divinas intermediárias nesse espaço de ar
intermediário, entre o sumo éter e as ínfimas terras, entidades através das
quais não só os nossos desejos bem como nossos méritos a eles, os sumos
deuses, frequentemente chegam. Os gregos as chamavam pelo nome de
daemonas (δαίμονας), mensageiros entre os terrestres e celícolas;
mensageiros das preces daqui e dos benefícios de lá, seres que portam, aquém
e além, as petições daqui e os auxílios de lá, assim como alguns (são)
intérpretes e encarregados de levar as saudações de um lado e de outro94. Por
esses mesmos, como afirma Platão no Banquete, regem-se todas as
revelações e os vários [137] prodígios dos magos e todas as espécies de
presságios. Sendo que cada um deles tem atribuições, como encarregados, de
acordo com sua classe. Assim, portanto, a cada um foi também atribuída uma
província, i.e., uma área de atuação, seja por dar forma aos sonhos, seja por
formar as fissuras nas entranhas das vítimas, seja por governar as aves que
voam, seja por instruir os agouros, seja por inspirar os videntes, seja por
desferir os raios, seja por fazer cintilar as nuvens com relâmpagos, e tudo o
mais por que das coisas futuras tomamos conhecimento. Atividades que,
todas juntas, deve-se reconhecer, são realizadas em virtude da vontade e força
e autoridade dos deuses celestes, mas mediante a obediência e o trabalho e a
intermediação dos daemonēs.
[136] VII. Horum enim munus atque opera atque cura (135) est, ut
Hannibali somnia orbitatem oculi commin[ar]entur, Flaminio extispicia
periculum cladis praedicant, Attio Nauio auguria miraculum cotis addicant;
item ut, nonnullis regni futuri signa praecurrant, ut Tarquinius Priscus aquila
obumbretur ab apice, Seruius Tullius fiamma conluminetur a capite;
postremo cuncta hariolorum praesagia, Tuscorum piacula, fulguratorum
bidentalia, carmina Sibyllarum. Quae omnia, ut dixi, (136) mediae quaepiam
potestates inter homines ac deos obeunt. Neque enim pro maiestate deum
caelestium fuerit, ut eorum quisquam uel Hannibali somnium fingat uel
Flaminio hostiam conruget uel Attio Nauio [n]auem uelificet uel Sibyllae
fatiloquia (137) uersificet uel Tarquinio uelit apicem rapere sed reddere,
Seruio uero inflammare uerticem nec exurere. Non est operae diis superis ad
haec descendere: mediorum diuorum ista sortitio est, qui in aëris plagis terrae
conterminis nec minus confinibus caelo perinde uersantur, ut in quaque parte
naturae propria animalia, in aethere uoluentia, in terra gradientia.
[137] VII. Pois esse é ofício, o trabalho, a incumbência deles. Que os
sonhos ameaçassem fortemente Aníbal quanto à órbita do olho. Que as
vísceras prevenissem Flamínio quanto ao perigo de um desastre. Que os
augúrios testemunhassem a Ácio Návio o prodígio da pedra de afiar. Assim
como para alguns chegam antecipadamente os sinais do reinado futuro, como
Tarquínio Prisco foi encoberto do alto pela sombra de uma águia, Sérvio
Túlio teve a cabeça iluminada por uma chama. Enfim, todos os presságios
dos adivinhos, os sacrifícios expiatórios dos etruscos, os lugares consagrados
pelos raios, os oráculos em verso das sibilas. Todas as coisas que, como já
disse, constituem alguns poderes médios que transitam de uma parte a outra
entre os homens e os deuses. Nem seria conveniente à majestade dos deuses
celestes, na verdade, que algum deles produzisse um sonho para Aníbal, ou
dispusesse as rugas nas vísceras95 de uma vítima para Flamínio, ou para
informar Ácio Návio guiasse o voo de um pássaro, ou versificasse as
previsões para a Sibila, ou para Tarquínio quisesse, não roubar-lhe o capuz,
mas devolvê-lo, ou para Sérvio, na verdade, inflamar-lhe a cabeça e não a
queimar. Não é característico da obra dos deuses superiores descer a essas
coisas: cabe aos deuses intermediários essa sorte, os quais, da mesma forma,
igualmente habitam as plagas do ar [139] fronteiriças da terra e não menos do
céu, como vivem os animais respectivos em cada parte da natureza: nos ares
os que voam, na terra os que andam.
[138] VIII. Nam cum quattuor sint elementa notissima, ueluti
quadrifariam natura magnis partibus disterminata, sintque propria animalia
terrarum, [aquarum], flammarum, — siquidem Aristoteles (138) auctor est in
fornacibus flagrantibus quaedam [propria] animalia, pennulis apta uolitare
totumque aeuum suum in igni deuersari, cum eo exoriri cumque eo extingui,
— praeterea cum totiuga sidera, ut iam prius dictum est, sursum in aethere, id
est in ipso liquidissimo ignis ardore, conpareant, cur hoc solum quartum
elementum aëris, quod tanto spatio intersitum est, cassum ab omnibus,
desertum a cultoribus suis natura pateretur, quin in eo quoque aëria animalia
gignerentur, ut in igni flammida, in unda fluxa, in terra glebulenta? Nam
quidem qui aues aëri attribuet, falsum sententiae meritissimo dixeris, quippe
[quae aues] nulla earum ultra Olympi uerticem sublimatur. Qui cum (139)
excellentissimus omnium perhibeatur, tamen altitudinem perpendiculo si
metiare, ut geometrae autumant, [decem] stadia altitudo fastigii non
aequiperat, cum sit aëris agmen inmensum usque ad citimam lunae helicem,
quae porro aetheris sursum uersus exordium est. Quid igitur tanta uis (140)
aëris, quae ab humillimis lunae anfractibus usque ad summum Olympi
uerticem interiacet? Quid tandem? Vacabitne animalibus suis atque erit ista
naturae pars mortua ac debilis? Immo enim si sedulo aduertas, ipsae quoque
aues [per] terrestre animal, non aërium rectius perhibeantur. Enim semper
illis uictus omnis in terra, ibidem pabulum, ibidem cubile, tantum quod aëra
proximum terrae uolitando transuerberant. Ceterum cum illis fessa sunt
remigia pinnarum, terra ceu portus est.
[139] VIII. Visto que, pois, existem quatro elementos bem conhecidos, do
mesmo modo que a natureza está demarcada em quatro grandes partes, e
existem os seres vivos próprios das terras, das águas e das chamas —
porquanto Aristóteles é de opinião que nas fornalhas chamejantes volitam
alguns animais especiais com pequenas asas e durante toda sua vida habitam
no fogo, com ele nascem e com ele se extinguem. Além disso, como tão
diversos astros se mostram, como antes já foi dito, acima no éter, isto é, no
mesmo ardor muito líquido de fogo, por que somente nesse quarto elemento
do ar, que está inserido em tanto espaço, a natureza admitiria vazio de tudo,
deserto de seus habitantes? Por que nele também seres vivos do ar não se
gerariam, como no fogo, os flamejantes, na onda, os fluidos, na terra, os do
solo? Pois dirias de alguém que ao ar as aves atribuísse, muito
merecidamente, que é falso de opinião, visto que nenhuma delas se eleva
além do vértice do Olimpo, monte, referido como o mais alto de todos, cuja
altitude do cume não alcança contudo dez estádios, se medires a altitude no
prumo, como dizem os geômetras, enquanto existe uma enorme quantidade
de ar até a muito próxima voluta da lua, que é o nível inferior do éter em
direção ao alto. Que pensar então dessa enorme massa de ar que se encerra
desde as mais baixas circunvoluções da Lua até o sumo vértice do Olimpo?
Que enfim pensar? Acaso será ela desprovida de seus próprios seres
animados, e até mesmo será essa parte da natureza débil e morta? Na
verdade, entretanto, se diligentemente prestares atenção, essas mesmas aves
devem ser classificadas mais acertadamente como seres terrestres e não dos
ares, pois passam toda a vida na terra, de lado a lado — nesse mesmo lugar
está a subsistência, nesse mesmo lugar o abrigo — porque somente passam
através dos ares volitando próximo à ela. Ademais, quando os remos das
plumas estão-lhes cansados, a terra é como um porto.
[140] IX. Quod si manifestum flagitat ratio debere propria animalia etiam
in aëre intellegi, superest ut, quae tandem et, cuiusmodi ea sint, disseramus.
Igitur terrena nequaquam — deuergant enim pondere — sed nec flammida,
ne sursum uersus calore rapiantur. Temperanda est ergo nobis pro loci
medietate media natura, ut ex regionis ingenio sit etiam cultoribus eius
ingenium. Cedo igitur mente formemus et gignamus animo id genus
corporum texta, quae neque tam bruta quam terrea neque tam leuia quam
aetheria, sed quodam modo (141) utrimque seiugata uel enim utrimque
commixta sint, siue amolita seu modificata utriusque rei participatione: sed
facilius ex utroque quam ex neutro intellegentur. Habeant igitur haec
daemonum corpora et modicum ponderis, ne ad superna inscendant, [et]
aliquid leuitatis, ne ad inferna praecipitentur.
[141] IX. Porém, se a razão manifestamente exige, deve-se conceber
também seres vivos permanentes no ar. Resta, em suma, que dissertemos
sobre quais e de que espécie sejam eles96. Em consequência disso, de modo
nenhum são terrestres, pois pelo peso cairiam, nem, todavia, de chama, para
que não sejam arrastados acima em direção ao calor. Logo devemos admitir
como média a natureza em virtude da condição mediana do local97, de modo
que, a partir das disposições naturais da região, os habitantes tenham o
mesmo espírito dela. Vamos, portanto, com a mente representar e com a
razão engendrar esses seres compostos dessa espécie de corpos, que nem tão
brutos quanto os terrestres nem tão leves quanto os etéreos, mas que sejam
em certo modo (141) de uma e de outra parte separados ou de ambas as partes
misturados, quer apartados, quer modificados pela participação de um ou de
outro elemento: é mais fácil, entretanto, serem entendidos como oriundos de
um e de outro, que de nenhum dos dois. Tenham, portanto, os corpos desses
daemonēs não só um pouco de peso, para que não ascendam aos altíssimos,
como também algo de leveza, para que não se precipitem abaixo.
[142] X. Quod ne uobis uidear poetico ritu incredibilia confingere, dabo
primum exemplum huius libratae (142) medietatis: neque enim procul ab hac
corporis subtilitate nubes concretas uidemus; quae si usque adeo leues forent
ut ea quae omnino carent pondere, numquam infra iuga, ut saepenumero
animaduertimus, grauatae caput editi montis ceu quibusdam curuis torquibus
coronarent. Porro si suapte natura spissae tam graues forent ut nulla illas
uegetioris leuitatis admixtio subleuaret, profecto non secus quam plumbi
rodus et lapis suopte nisu caducae terris inliderentur. Nunc enimuero
pendulae et mobiles huc atque illuc vice nauium in aëris pelago uentis
gubernantur, paululum inmutantes proximitate et longinquitate. Quippe si
aliquo umore fecundae sunt, ueluti ad fetum edendum deorsus degrassantur.
Atque ideo umectiores (143) humilius meant aquilo[nis] agmine, tractu
segniore[s]; sudis uero sublimior cursus est, cum lanarum uelleribus similes
aguntur, cano agmine, uolatu perniciore. Nonne audis, quid super tonitru
Lucretius facundissime disserat?

principio tonitru quatiuntur caerula caeli


propterea quia concurrunt sublime uolantes
aetheriae nubes contra pugnantibus uentis.98
[143] X. Para que não vos pareça inventar coisas inacreditáveis à moda
dos poetas, darei o primeiro exemplo dessa equilibrada (142) condição
mediana: e, de fato, não longe dessa tenuidade de massa, vemos as nuvens
condensadas, que se levíssimas fossem como aquelas coisas que carecem de
peso, nunca elas estariam oprimidas, como frequentemente temos visto,
abaixo da crista de uma montanha saliente, a qual cingem como um curvo
colar. Na verdade, se por sua própria natureza, tão espessas, tão pesadas
fossem que nenhuma mistura de leveza mais robusta as sublevasse,
certamente, não de outro modo, tal qual a força do chumbo e de uma pedra,
por seu próprio esforço, caídas, bateriam contra a terra. Porém efetivamente
penduradas e imóveis, aqui e acolá, à moda dos navios, no oceano do ar,
pelos ventos são levadas, muito pouco imutáveis na aproximação e no
distanciamento. De fato, se estão cheias de algum líquido, como para dar à
luz, para baixo arremetem. Principalmente por isso, as mais úmidas (143), de
carreira lenta, mais rasteiro passam ao curso do Aquilão; para as mais secas,
em contrapartida, mais alto é o caminho, visto que semelhantes a flocos de lã,
qual branca tropa, de voo ágil, se adiantam. Acaso não conheceis o que
acerca do trovão dissera tão eloquentemente Lucrécio:

“A princípio, pelo trovão são abalados os azuis do céu,


porque voando combatem no alto
as etéreas nuvens contra os ventos guerreiros”?
[144] XI. Quod si nubes sublime uolitant, quibus omnis et exortus est
terrenus et retro defluxus in terras, quid tandem censes daemonum corpora,
quae sunt concretio multo tanta subtilior? Non (144) enim ex hac faeculenta
nubecula et umida caligine conglobata, sicuti nubium genus est, sed ex illo
purissimo aëris liquido et sereno elemento coalita eoque nemini hominum
temere uisibilia, nisi diuinitus speciem sui offerant, quod nulla in illis terrena
soliditas locum luminis occuparit, quae nostris oculis possit obsistere, qua
soliditate necessario offensa acies inmoretur, sed fila corporum (145)
possident rara et splendida et tenuia usque adeo ut radios omnis nostri tuoris
et raritate transmittant et splendore reuerberent et subtilitate frustrentur. Hinc
est illa Homerica Minerua, quae mediis coetibus Graium cohibendo Achilli
interuenit. Versum Graecum, si paulisper opperiamini, Latine enuntiabo, —
atque adeo hic sit inpraesentiarum: Minerua igitur, ut dixi, Achilli moderando
iussu Iunonis aduenit:

soli perspicua est, aliorum nemo tuetur.99

Hinc et illa Vergiliana Iuturna, quae mediis milibus auxiliabunda fratri


conuersatur

miscetque uiris neque cernitur ulli100,

prorsus quod Plautinus miles super clipeo suo gloriatur,

praestringens oculorum aciem hostibus101.


[145] XI. Ora, se as nuvens voam alto, e para elas não só todo nascimento
é terreno, como também o escoamento de volta para as terras, o que afinal
pensas dos corpos dos daemonēs que são um agregado de tal sorte muito mais
sutil? Na verdade, (144) não são aglomerados dessa nuvenzinha espessa e da
úmida névoa escura, assim como a natureza das nuvens se constitui, mas são
formados por aquele puríssimo fluido e sereno elemento do ar, e por isso a
nenhum dos homens sem motivo se mostram visíveis, a não ser por efeito da
vontade divina, nem a imagem de si oferecem, porque nenhuma opacidade
terrena ocupará neles o lugar da luz, opacidade que possa formar obstáculo
aos nossos olhos, e na qual o olhar forçosamente atingido não perdure.
Possuem, todavia, as tessituras dos corpos (145) rarefeitas, luminosas e
tênues, ao ponto que deixem passar102, também em virtude da rarefação, os
raios de todo nosso sentido de visão; em virtude da luminosidade os reflitam,
e, em virtude da sutileza, os frustrem. A esse lugar pertence a famosa
Minerva homérica, que interveio na reunião dos gregos para conter Aquiles.
O verso grego, se aguardardes um pouco, em latim enunciarei, — e aqui está
agora: Minerva, como eu disse, chegou por ordem de Juno para conter
Aquiles:

somente para (ele) é completamente visível, nenhum dos demais a percebeu

Eis aí também a famosa Juturna de Vergílio, que circula entre os milhares


(de homens) para auxiliar o irmão:

e se mistura aos varões e não é vista por nenhum

exatamente como o soldado plautino se vangloriava de seu escudo:

que ofuscava a menina dos olhos dos inimigos.


[146] XII. Ac ne ceteros longius persequar, ex hoc ferme daemonum
numero poetae solent haudquaquam procul a ueritate osores et amatores
quorundam hominum deos fingere: hos prosperare (146) et euehere, illos
contra aduersari et adfligere; igitur et misereri et indignari et angi et laetari
omnemque humani animi faciem pati, simili motu cordis et salo mentis ad
omnes cogitationum aestus fluctuare, quae omnes turbelae tempestatesque
procul a deorum caelestium tranquillitate exulant. Cuncti enim caelites
semper eodem statu mentis aeterna aequabilitate potiuntur, qui numquam illis
nec ad dolorem uersus nec ad uoluptatem finibus suis pellitur nec quoquam a
sua perpetua secta ad quempiam subitum habitum demouetur nec alterius ui
— nam nihil est deo potentius — neque suapte natura — nam nihil est deo
perfectius. Porro autem qui potest uideri perfectus fuisse, qui a priore statu ad
alium rectiorem statum migrat, cum praesertim nemo sponte capessat (147)
noua, nisi quem paenituit priorum? Non potest enim subsequi illa mutata
ratio sine praecedentium infirmatione. Quapropter debet deus nullam perpeti
uel odii uel amoris temporalem perfunctionem et idcirco nec indignatione nec
misericordia contingi, nullo angore contrahi, nulla alacritate gestire, sed ab
omnibus animi passionibus liber nec dolere umquam nec aliquando laetari
nec aliquid repentinum uelle nel nolle.
[147] XII. Mas, para não ir mais longe com os demais exemplos, partindo
desse número de daemonēs os poetas costumam, de modo nenhum longe da
verdade, ordinariamente103 conceber deuses, os que detestam e os que amam
alguns homens, isto é, a uns favorecer (146) e conduzir, a outros ao contrário
estorvar e afligir; pois não só apiedar-se e indignar-se, como também
envaidecer-se e alegrar-se e experimentar todo aspecto da alma humana, com
semelhante emoção cordial e agitação da mente, flutuar em direção a todas as
inquietações do pensamento, todas perturbações e tempestades que longe
estão afastadas104 da tranquilidade dos deuses celestes. Na verdade, todos os
habitantes do céu gozam sempre do mesmo estado da mente de eterna
imutabilidade, estado que, para eles, nunca se afasta de seus limites, nem em
direção à dor, nem ao prazer, nem se desvia para nada afastado de seu sistema
de vida, para uma imprevista situação, nem por uma força contrária — pois
nada é mais potente que um deus — nem por sua própria natureza — pois
nada é mais perfeito que um deus. Todavia quem pode parecer que era
perfeito, se de um estágio anterior para outro mais elevado migra, quando
mormente ninguém por vontade própria procura (147) novas coisas, senão
quem se desagrada das anteriores? Pois um novo modelo não pode ser
seguido sem a invalidação dos precedentes. Por isso é que um deus por
nenhum exercício de função temporal, seja de contínuo ódio, seja de contínuo
amor, deve ser tocado e porque nem por indignação, nem por misericórdia,
por nenhuma aflição ser arrastado, nem por nenhum ardor alvoroçar-se, mas
livre de todas as paixões da alma, nem nunca sofrer, nem algumas vezes
alegrar-se, nem subitamente querer ou não querer.
[148] XIII. Sed et haec cuncta et id genus cetera daemonum mediocritati
rite congruunt. Sunt enim inter nos ac deos ut loco regionis ita ingenio mentis
intersiti, habentes communem eum superis inmortalitatem, cum inferis
passionem. Nam proinde ut nos pati possunt omnia animorum placamenta uel
incitamenta, ut et ira incitentur et misericordia flectantur et donis inuitentur et
precibus leniantur et contumeliis exasperentur et honoribus mulceantur
aliisque omnibus ad similem nobis modum (148) uarient. Quippe, ut fine
conprehendam, daemones sunt genere animalia, ingenio rationabilia, animo
passiua, corpore aëria, tempore aeterna. Ex his quinque, quae commemoraui,
tria a principio eadem quae nobis sunt, quartum proprium, postremum
commune cum diis inmortalibus habent, sed differunt ab his passione. Quae
propterea passiua non absurde, ut arbitror, nominaui, quod sunt iisdem,
quibus nos, turbationibus mentis obnoxii.
[149] XIII. Todas essas coisas juntas, entretanto, e as demais desse
gênero, estão exatamente de acordo com a natureza intermediária dos
daemonēs. Eles se situam entre nós e os deuses, tanto pelo local de sua região
quanto pela qualidade de seu espírito, possuindo em comum com os
superiores a imortalidade, com os inferiores a paixão. Pois do mesmo modo
que nós, eles estão sujeitos a105 todos os apaziguamentos ou todas as
agitações da alma; assim pela ira são agitados e pela misericórdia são
abrandados; pelas oferenda são aliciados; pelas preces, abrandados; pelos
ultrajes, irritados; pelas homenagens, suavizados, e, por todas as coisas, de
modo semelhante a nós, (148) eles variam. De fato, para abranger em uma
definição, os daemonēs são: de espécie, animais; de natureza, racionais; de
alma, passivos; de corpo, aéreos; de vida, eternos. Dessas cinco qualidades a
que fiz menção, as três primeiras são as mesmas nossas; a quarta, própria
deles, e a última os daemonēs compartilham com os deuses imortais, mas
aqueles diferem destes pela paixão. Por isso denominei, como acredito, não
absurdamente de passivas, porque esses mesmos seres estão sujeitos às
mesmas perturbações da alma como nós.
[150] XIV. Vnde etiam religionum diuersis obseruationibus et sacrorum
uariis suppliciis fides inpertienda est, esse nonnullos ex hoc diuorum numero,
qui nocturnis uel diurnis, promptis uel occultis, laetioribus uel tristioribus
hostiis uel caerimoniis uel ritibus gaudeant, uti Aegyptia numina ferme (149)
plangoribus, Graeca plerumque choreis, barbara autem strepitu
cymbalistarum et tympanistarum et choraularum. Itidem pro regionibus et
cetera in sacris differunt longe uarietate: pomparum agmina, mysteriorum
silentia, sacerdotum officia, sacrificantium obsequia; item deorum effigiae et
exuuiae, templorum religiones et regiones, hostiarum cruores et colores.
Quae omnia pro cuiusque more loci (150) sollemnia et rata sunt, ut
plerumque somniis et uaticinationibus et oraculis conperimus saepenumero
indignata numina, si quid in sacris socordia uel superbia neglegatur. Cuius
generis mihi exempla adfatim suppetunt, sed adeo celebrata et frequentata
sunt ut nemo ea commemorare adortus sit, quin multo plura omiserit quam
recensuerit.
Idcirco supersedebo inpraesentiarum in his rebus orationem occupare,
quae si non apud omnis certam fidem, at certe penes cunctos notitiam
promiscuam possident. Id potius praestiterit Latine dissertare, uarias species
daemonum philosophis perhiberi, quo liquidius et plenius de praesagio
Socratis deque eius amico numine cognoscatis.
[151] XIV. Daí igualmente resulta que os diversos cultos das religiões e
os vários sacrifícios das cerimônias religiosas merecem confiança. Que
existe, no número desses deuses, alguns que se alegram, de noite ou de dia,
em público ou privadamente, na alegria ou na tristeza, com as vítimas, com
as cerimônias ou com os ritos. Assim como os deuses egípcios (149)
geralmente com os lamentos, os gregos com a dança circular, os bárbaros
com o estrépito dos tocadores de címbalo, timpanistas e flautistas, da mesma
forma, conforme as regiões, todo o restante, nas cerimônias religiosas, difere
muito em variedade: a multidão em marcha das procissões; as obrigações dos
sacrificantes, da mesma forma as imagens e os despojos dos deuses; a
consagração e a localização dos templos; as cores e as matanças das vítimas.
Coisas que, todas, conforme o costume de cada local, (150) são solenes e
invariáveis, porque ordinariamente pelos sonhos, pelos vaticínios e pelos
oráculos conhecemos frequentemente as forças divinas que estão indignadas
se alguém por desleixo ou soberbia negligencia nos assuntos sagrados.
Exemplos de coisas dessa natureza, para mim, se fazem presentes em
profusão, mas de tal modo famosos e rebatidos são, que ninguém tentou
recordá-los sem que muito mais se tenha omitido que citado.
Por isso, abster-me-ei agora de ocupar meu discurso nessas coisas, as
quais, se não possuem uma firme crença no seio de todos, pelo menos
certamente possuem uma notoriedade disseminada por todas as pessoas104.
Será preferível dissertar em latim sobre as várias espécies de daemonēs
relatadas pelos filósofos, para que conheçais mais clara e plenamente acerca
da presciência de Sócrates e de sua divindade amiga.
[152] XV. Nam quodam significato et animus humanus etiam nunc in
corpore situs daemon nuncupatur:

… dine hunc ardorem m[entibus] a [ddunt,


Euryale, an sua cuique deus fit dira cupido?]105

Igitur et bona cupido animi bonus deus est. Vnde nonnulli arbitrantur, ut
iam prius dictum est, eudaemonas dici beatos, quorum daemon bonus id est
animus uirtute perfectus est. Eum nostra lingua, ut ego interpretor, haud
sciam an bono, certe quidem meo periculo poteris Genium uocare, (151)
quod is deus, qui est animus sui cuique, quamquam sit inmortalis, tamen
quodam modo cum homine gignitur, ut eae preces, quibus Genium et genua
precantur, coniunctionem nostram nexumque uideantur (152) mihi obtestari,
corpus atque animum duobus nominibus conprehendentes, quorum
communio et copulatio sumus.
Est et secundo significatu species daemonum animus humanus emeritis
stipendiis uitae corpore suo abiurans. Hunc uetere Latina lingua reperio
Lemurem dictitatum. Ex hisce ergo Lemuribus qui posterorum suorum curam
sortitus placato et quieto numine domum possidet, Lar dicitur familiaris; qui
uero ob aduersa uitae merita nullis (153) [bonis] sedibus incerta uagatione
ceu quodam exilio punitur, inane terriculamentum bonis hominibus, ceterum
malis noxium, id genus plerique Laruas perhibent. Cum uero incertum est,
quae cuique eorum sortitio euenerit, utrum Lar sit an Larua, nomine Manem
deum nuncupant: scilicet et honoris gratia dei uocabulum additum est; quippe
tantum eos deos appellant, qui ex eodem numero iuste ac prudenter curriculo
uitae gubernato pro numine postea ab hominibus praediti fanis et caerimoniis
uulgo aduertuntur, ut in Boeotia (154) Amphiaraus, in Africa Mopsus, in
Aegypto Osiris, alius alibi gentium, Aesculapius ubique.
[153] XV.108 Pois, em certo sentido, a própria alma humana, mesmo no
corpo localizada109, é denominada daemōn:

… os deuses acaso esse ardor à alma acrescentam,


Euríalo, ou torna-se um deus o desejo feroz de cada um? 110

Portanto também um bom desejo da alma é um deus bom. Daí algumas


pessoas acreditarem, como já foi dito anteriormente, chamarem-se
eudaemonēs às pessoas felizes, aquelas cujo daemōn é bom, isto é, um
espírito perfeito pela virtude. Em nossa língua, como eu mesmo traduzo, não
saberia se de boa forma, ou de modo certo na verdade, sob minha
responsabilidade, podereis chamar de Genium111 (151), porque esse deus, que
é o próprio ânimo de cada um, ainda que, de certo modo, com o ser humano
seja gerado, é, todavia, imortal; portanto aquelas preces, nas quais invocamos
o gênio e os joelhos, parecem-me (152) atestar nossa conjunção e
entrelaçamento, compreendendo corpo e alma em dois nomes, cuja
comunhão e reunião somos nós112.
Existe também num outro sentido uma espécie de daemōn: a alma
humana, que, depois de concluir os deveres da vida, renuncia a seu corpo. Na
antiga língua latina encontro esse daemon, muitas vezes, denominado como
lêmure. Logo, entre esses lêmures existe aquele que, escolhido para o
cuidado dos seus descendentes, como benévolo e tranquilo poder, ocupa a
casa. Chama-se Lar Familiar. Existe o que, em virtude de malfeitos em vida
(153), com ausência de boa pousada, com vagar incerto, como que numa
espécie de exílio, é punido: inútil espantalho para os homens bons, ao
contrário, nocivo para os maus. A essa espécie quase todos chamam de
Larvas. Quando, entretanto, há incerteza de que sorte a cada um deles tenha
cabido, um e outro, seja Lar ou Larva, tomam o nome de deus Mane.
Seguramente, por honra [155] da deidade, o vocábulo é-lhes agregado,
porquanto somente chama-se assim àqueles deuses que, daquela mesma
espécie, após terem conduzido justa e prudentemente o carro de sua vida, são
considerados pelos homens como divindades que presidem santuários e
cerimônias e são contempladas por todos: como na Beócia (154), Anfiarau;
na África, Mopso; no Egito, Osíris; outros, em outras nações; Esculápio, por
toda parte.
[154] XVI. Verum haec omnis distributio eorum daemonum fuit, qui
quondam in corpore humano fuere. Sunt autem non posteriore numero,
praestantiore longe dignitate, superius aliud, augustius genus daemonum, qui
semper a corporis conpedibus et nexibus liberi certis potestatibus curant.
Quorum e numero Somnus atque Amor diuersam (155) inter se uim
possident, Amor uigilandi, Somnus soporandi. Ex hac igitur sublimiore
daemonum copia Plato autumat [singulis] hominibus in uita agenda testes et
custodes singulis additos, qui nemini conspicui semper adsint arbitri omnium
non modo actorum uerum etiam cogitatorum. At ubi uita edita remeandum
est, eundem illum, qui nobis praeditus fuit, raptare ilico et trahere ueluti
custodiam suam ad iudicium atque illic in causa dicunda adsistere, si qua
commentiatur, redarguere, si qua uera dicat, adseuerare, prorsus illius
testimonio ferri sentenciam. Proinde uos omnes, qui hanc Platonis diuinam
sentenciam me interprete auscultatis, ita animos uestros ad quaecumque
agenda uel meditanda formate, ut sciatis nihil homini prae istis custodibus
nec intra animum nec foris esse secreti, quin omnia curiose (156) ille
participet; omnia uisitet, omnia intellegat, in ipsis penitissimis mentibus uice
conscientiae deuersetur. Hic, quem dico, priuus custos, singularis praefectus,
domesticus speculator, proprius curator, intimus cognicor, adsiduus
obseruator, indiuiduus arbiter, inseparabilis testis, malorum inprobator,
bonorum prohator, si rite animaduertatur, sedulo cognoscatur, religiose
colatur, ita ut a Socrate iustitia et innocentia cultus est, in rebus incertis
prospector, dubiis praemonitor, periculosis tutator, egenis opitulator, qui tibi
queat tum insomniis, tum signis, tum etiam fortasse coram, cum usus
postulat, mala auerruncare, bona prosperare, humilia sublimare, nutantia
fulcire, obscura clarare, secunda regere, aduersa corrigere.
[155] XVI113 Toda essa classificação desses daemonēs concerne, porém,
aos que outrora em corpo humano habitaram. Existe, entretanto, em número
não inferior, outra espécie de daemonēs mais sagrada e mais elevada, de
dignidade muito superior, que sempre livres dos grilhões e dos laços do
corpo, exercem determinadas funções. Entre esses daemonēs, o Sono e o
Amor (155) possuem poderes opostos entre si: o Amor, de tornar vigilante; o
Sono, de fazer adormecer. A respeito, pois, dessa legião mais sublime de
daemonēs, Platão se refere a eles como as testemunhas e guardiões postos
junto aos homens, individualmente, durante toda a vida, para que, nunca
expostos à vista de ninguém, sejam os árbitros, não só de todos os atos, como
também de todos os pensamentos114. Quando terminada, porém, a vida e
deve-se fazer o retorno115, aquele mesmo que nos fora designado,
imediatamente nos rapta e nos arrasta como seu prisioneiro para um
julgamento, e lá, na causa apresentada, presta-nos assistência: se alguém
mente, ele refuta, se diz a verdade, ele confirma. Em suma, pelo testemunho
dele, a sentença é conduzida. Assim todos vós, que, tendo-me como
intérprete, ouvis essa teoria de Platão, moldai, do mesmo modo, os vossos
espíritos para quaisquer ações ou quaisquer pensamentos, para perceberdes
que nada de secreto existe para o homem diante desses guardiões, nem dentro
nem fora do espírito, mas, ao contrário, ele participa de tudo com interesse
(156), tudo inspeciona, de tudo toma conhecimento e, como consciência,
habita no mais profundo [157] dessas mesmas mentes. Esse guardião
individual, de que falo, governante singular, vigia doméstico, curador
particular, íntimo conhecedor, assíduo observador, árbitro inseparável,
testemunha fiel, censor dos maus, aprovador dos bons, se pelo rito lhe é dada
atenção, conhecido com empenho, cultuado religiosamente, assim como por
Sócrates com justiça e inocência foi cultuado, é o providente nas situações
incertas; nas dúbias, o conselheiro; nas perigosas, o defensor; nas provações,
o auxílio, que em seu benefício, tanto pela visão noturna116, quanto pelos
sinais, até mesmo, às vezes, pela presença, quando a necessidade o exige,
pode afastar os males, promover o bem, engrandecer as pequenas coisas,
fortalecer as vacilantes, aclarar as sombrias, promover a boa sorte, corrigir a
adversa.
[156] XVII. Igitur mirum, si Socrates, uir adprime (157) perfectus et
Apollinis quoque testimonio sapiens, hunc deum suum cognouit et coluit, ac
propterea eius custos — prope dicam Lar contubernio familiaris — cuncta et
arcenda arcuit [et] praecauenda praecauit et praemonenda praemonuit, sicubi
tamen interfectis sapientiae officiis non consilio sed praesagio indigebat, ut
ubi dubitatione clauderet, ibi diuinatione consisteret? Multa sunt (158) enim,
multa de quibus etiam sapientes uiri ad hariolos et oracula cursitent.
An non apud Homerum, ut quodam ingenti speculo, clarius cernis haec
duo distributa, seorsus diuinationis, seorsus sapientiae officia? Nam cum duo
columina totius exercitus dissident, Agamemnon regno pollens et Achilles
bello potens, desideraturque uir facundia laudatus et peritia memoratus, qui
Atridae superbiam sedet, Pelidae ferociam conpescat atque eos auctoritate
aduertat, exemplis moneat, oratione permulceat, quis igitur tali in tempore me
ad dicendum exor[ta]tus est? Nempe Pylius orator, eloquio comis,
experimentis catus, senecta uenerabilis, cui omnes sciebant corpus annis
hebere, animum prudentia uigere, uerba dulcedine adfluere.
[157] XVII117. É, portanto, de se admirar que Sócrates, o mais perfeito
varão (157) e também, conforme o testemunho de Apolo, o mais sábio,
conhecesse e cultuasse essa sua divindade? E por isso seu guardião — eu
quase diria “Lar familiar”, haja vista a convivência — afastasse tudo que
devia ser afastado, tomasse todas as precauções que deviam ser tomadas,
advertisse antecipadamente sobre tudo que devia ser avisado? Que em outro
lugar, todavia, o filósofo se refugiasse, quando, excluídos os deveres da
sabedoria, necessitasse não de deliberação, mas de presságio, como quando
titubeasse em dúvida, e se apoiasse na adivinhação? Muitas são (158) as
coisas, na verdade, muitas, sobre as quais até mesmo os homens sábios
recorrem aos adivinhos e aos oráculos.
Acaso118 não é em Homero, como um grande espelho, que discernes mais
claramente essas coisas distribuídas em duas: de um lado os trabalhos da
sabedoria; de outro, os da adivinhação? Quando, pois, os dois pilares do
exército entram em total dissidência, Agamêmnon, poderoso pelo reinado,
Aquiles, forte pelo guerrear, e se deseja um varão louvado por sua
eloquência, renomado por sua perícia, que dobre a soberba do atrida, reprima
a ferocidade do pelidaure com autoridade os advirta, com exemplos os
aconselhe, com a palavra os abrande, quem [159] em tal ocasião se levantou?
Sem dúvida, o orador de Pilos119, amigo por sua eloquência, sábio por suas
experiências, venerável por sua velhice, do qual todos sabiam ter o corpo
enfraquecido pelos anos, mas o espírito estar vigoroso pela prudência, as
palavras afluir pela doçura.
[158] XVIII. Itidem cum rebus creperis et adflictis (159) speculatores
deligendi sunt, qui nocte intempesta castra hostium penetrent, nonne Vlixes
cum Diomede deliguntur ueluti consilium et auxilium, mens et manus,
animus et gladius? Enimuero cum ab Aulide desidibus et obsessis ac taedio
abnuentibus dificultas belli et facultas itineris et tranquilitas (160) maris et
clementia uentorum per fibrarum notas et alitum uias et serpentium escas
exploranda est, tacent nempe mutuo duo illa sapientiae Graiae summa
cacumina, Ithacensis et Pylius; Calchas autem longe praestabilis hariolari
simul alites et altaria et arborem contemplatus est, (161) actutum sua
diuinatione et tempestates flexit et classem deduxit et decennium praedixit;
non secus et in Troiano exercitu cum diuinatione res indigent, tacet ille
sapiens senatus nec audet aliquid pronuntiare uel Hicetaon uel Lampo uel
Clytius, sed omnes silentio auscultant aut ingrata auguria (162) Heleni aut
incredita uaticinia Cassandrae.
Ad eundem modum Socrates quoque, sicubi locorum aliena sapientiae
officiis consultatio ingruerat, ibi ui daemonis praesagiari egebat. Verum eius
monitis sedulo oboediebat coque erat deo suo longe acceptior.
[159] XVIII. Da mesma forma, quando nas circunstâncias difíceis e
aflitas, (159) é necessário escolher os batedores, para que nas horas mortas da
noite penetrem no acampamento dos inimigos, acaso não foram escolhidos
Ulisses com Diomedes, como a razão e o socorro, a mente e o braço, o
espírito e a espada? Em verdade, quando para os gregos, ociosos e sitiados
pelo tédio, recusando deixar Aulis, era necessário explorar a dificuldade da
guerra, a propriedade do itinerário, a tranquilidade (160) do mar e a
clemência dos ventos, pelas marcas das entranhas das vítimas, pela trajetória
das aves120 e pela comida das serpentes, calam-se mutuamente, convém
saber, aqueles dois ápices da sabedoria grega, o rei de Ítaca e de Pilos.
Calcas, o mais distinto dos adivinhos, ao mesmo tempo, os pássaros e os
altares e a árvore observou, (161) prontamente, com sua arte divinatória,
afastou as tempestades e fez a armada levantar ferros e predisse um decênio
[de guerra]; não de outra forma também no exército troiano, no momento em
que as circunstâncias exigem a adivinhação: cala-se o sábio senado e
ninguém ousa opinar, seja Hicateon, seja Lampo, seja Clítio; todos,
entretanto, em silêncio escutam atentamente os desagradáveis augúrios (162)
de Heleno e os vaticínios desacreditados de Cassandra.
Do121 mesmo modo, também Sócrates, se alguma vez fosse iminente uma
deliberação alheia aos âmbitos da sabedoria122, tinha ali a necessidade de
tomar os presságios mediante o poder do daemon. Todavia o sábio seguia
diligentemente os conselhos dele, o daemon, e dessa forma era pelo seu deus
muito mais querido.
[160] XIX. Quod autem incepta Socratis quaepiam daemon ille ferme
prohibitum ibat, numquam. adhortatum, quodam modo ratio praedicta est.
Enim Socrates, utpote uir adprime perfectus, ex (163) sese ad omnia
congruentia sibi officia promptus, nullo adhortatore umquam indigebat, at
uero prohibitore nonnumquam, si quibus forte conatibus eius periculum
suberat, ut monitus praecaueret, omitteret coepta inpraesentiarum, quae tutius
uel postea capesseret uel alia uia adoreretur.
In huiuscemodi rebus [dixit] uocem quampiam diuinitus exortam dicebat
audire — ita enim apud Platonem ne quisquam arbitretur omina eum uulgo
loquentium captitasse. Quippe etiam (164) semotis arbitris uno cum Phaedro
extra pomerium sub quodam arboris opaco umbraculo signum illud
adnuntium sensit, ne prius transcenderet Ilissi amnis modicum fluentum,
quam increpitu[m] indignatum Amorem recinendo placasset. Cum praeterea,
si omina obseruitaret, aliquando eorum nonnulla etiam hortamenta haberet, ut
uidemus plerisque usu euenire, qui nimia ominum superstitione non suopte
corde sed alterius uerbo reguntur ac per angiporta reptantes consilia ex (165)
alienis uocibus conligunt et, ut ita dixerim, non animo sed auribus cogitant.
[161] XIX. Por que motivo, entretanto, o daemon afastava alguns
empreendimentos de Sócrates, nunca os incentivava, de algum modo, a razão
já foi explicada. Sem dúvida, Sócrates, como varão acima de tudo perfeito,
por si mesmo pronto para todos os trabalhos que se lhe incumbiam, nunca de
nenhum concitador precisava, mas na verdade, algumas vezes de um
coibidor, se acaso em algumas das empresas dele um perigo se ocultava, para
que, avisado, se precavesse, abandonasse os planos do momento, os quais
retomasse com mais segurança ou mais tarde, ou por outra via abordasse.
Nas123 situações semelhantes, dizia ouvir uma espécie de voz da parte dos
deuses dimanada — seguramente como se lê em Platão —, que ninguém
pense que ele buscasse captar os presságios das palavras a torto e a direito.
Pois que, afastados os espectadores, fora dos limites da cidade, junto com
Fedro, sob uma árvore de sombra cerrada, ele percebeu o sinal prenunciador
de que não atravessasse o modesto curso do rio Ilisso antes que, cantando a
palinódia, aplacasse o Amor indignado pelas repreensões. Como, além disso,
em seguida, observasse alguns presságios, algumas vezes teria deles também
algumas exortações, como vemos acontecer a muitos, que se conduzem pela
desmesurada superstição das profecias, não pelo seu próprio coração, mas
pela palavra alheia, e pelas vielas se arrastando, reúnem os conselhos de
vozes estranhas e pensam, como assim eu diria, não pelo espírito, mas pelos
ouvidos.
[162] XX. Verum enimuero, ut ista sunt, certe quidem ominum harioli
uocem audiunt saepenumero auribus suis usurpatam, de qua nihil cunctentur
[de qua sciunt] ex ore humano profectam. At enim Socrates non uocem sibi
sed “uocem quampiam” dixit oblatam, quo additamento profecto intellegas
non usitatam uocem nec humanam significari. Quae si foret, frustra
“quaepiam”, quin potius aut “uox” aut certe “cuiuspiam uox” diceretur, ut ait
illa Terentiana meretrix:

audire uocem uisa sum modo militis.124

Qui uero uocem [quampiam] dicat audisse, aut (166) nescit undo ea
exorta sit, aut in ipsa aliquid addubitat, aut eam quiddam insolitum et
arcanum demonstrat habuisse, ita ut Socrates eam, quam sibi [ac] diuinitus
editam tempestiue accid[ere dic]ebat. Quod equidem arbitror non modo
auribus eum uerum etiam oculis signa daemonis sui usurpasse. Nam
frequentius non [prae]uocem sed signum diuinum sili oblatum prae se
ferebat. Id signum potest et ipsius daemonis species fuisse, quam solus
Socrates cerneret, ita ut Homericus Achilles Mineruam. Credo plerosque
uestrum hoc, quod commodum dixi, cunctantius credere et inpendio miraci
formam daemonis Socrati uisitatam. At enim [secundum] Pythagoricos
[contra] mirari oppido solitos, si quis se negaret umquam (167) uidisse
daemonem, satis, ut reor, idoneus auctor est Aristoteles. Quod si cuiuis potest
euenire facultas contemplandi diuinam effigiem, cur non adprime potuerit
Socrati optingere, quem cuiuis amplissimo numini sapientiae dignitas
coaequarat? Nihil est enim deo similius et gratius quam uir animo perfecte
bonus, qui hominibus ceteris antecellit, quam ipse a diis inmortalibus distat.
[163] XX. Todavia — como essas coisas são — certamente eles ouvem a
voz de um adivinho125, muitas vezes caída em seus ouvidos, da qual nada
duvidam, sobre a qual tenham certeza ter sido proferida por lábios humanos.
Sócrates, porém, não quis dizer uma voz que vem de fora para si, mas “uma
espécie” de voz, acréscimo que deve ser entendido perfeitamente significar
não uma voz corriqueira nem humana. Voz que, se fosse incorretamente
“uma espécie”, ou antes “uma voz”, ou certamente “a voz de alguém”, dir-se-
ia, como aquela cortesã de Terêncio:

“Parece-me ter ouvido a voz do meu soldado”.

Quem na verdade afirma ter ouvido “uma espécie” de voz, ou não sabe de
onde ela tenha se originado, ou duvida um pouco dela, ou demonstra que ela
possuía algo de insólito e misterioso, assim como Sócrates dizia vir a ele, no
tempo oportuno, como que da parte dos deuses produzida. Por isso, quanto a
mim, julgo que não só pelos ouvidos, mas também pelos olhos, ele tomava
contato com os prognósticos de seu daimon. Pois muito frequentemente,
diante dele, não uma voz, mas um sinal divino manifestava-se do exterior.
Esse sinal pode ter sido a aparição do próprio daemon, que somente Sócrates
percebia, assim como Minerva para o Aquiles homérico. Creio que a maior
parte de vós tenha muita dificuldade em acreditar nisso que precisamente
acabo de dizer, e muito vos espantarem com essa forma do daemon que
visitou Sócrates. Dir-se-ia, porém, acompanhando os pitagóricos, pelo
contrário, pareceria extremamente perturbado aquele que negasse ter visto
alguma vez um daemon, pois suficientemente idôneo, segundo penso, é a
autoridade de Aristóteles. Porque se a qualquer um pode sobrevir a faculdade
de contemplar a imagem divina, por que não teria podido acontecer sobretudo
a Sócrates, que a eminência da sabedoria igualava em muitíssimo a qualquer
divindade? Nada é, de fato, mais semelhante e mais agradável a um deus que
um varão perfeitamente bom de alma, que aos demais homens sobrepuja, na
mesma medida em que ele próprio dos deuses imortais está distante.
[164] XXI. Quin potius nos quoque Socratis exemplo et commemoratione
erigimur ac nos seeundo studio philosophiae pari similitudini numinum
cauentes permittimus? De quo quidem nescio qua ratione detrahimur. Et nihil
aeque miror quam, (168) cum omnes et cupiant optime uiuere et sciant non
alia re quam animo uiui nec fieri posse quin, ut optime uiuas, animus
colendus sit, tamen animum suum non colant. At si quis uelit acriter cernere,
oculi curandi sunt, quibus cernitur; si uelis perniciter currere, pedes curandi
sunt, quibus curritur; itidem si pugillare ualde uelis, brachia uegetanda sunt,
quibus pugillatur. Similiter in omnibus ceteris membris sua cuique cura pro
studio est. Quod cum omnes facile perspiciant, nequeo satis mecum reputare
et proinde, ut res est, admirari cur non etiam animum suum ratione excolant.
Quae quidem ratio uiuendi omnibus aeque necessaria est, non ratio pingendi
nec ratio psallendi, quas quiuis bonus uir sine ulla animi uituperatione, sine
turpitudine, sine rubore contempserit. Nescio ut Ismenias tibiis canere, sed
non pudet me tibicinem non esse; nescio ut Apelles coloribus pingere, sed
non pudet me non esse significem; itidem in ceteris artibus, ne omnis
persequar, licet tibi nescire nec pudeat.
[165] XXI. Por que não nos elevamos, de preferência, ao exemplo e à
lembrança de Sócrates, e não nos permitimos o benfazejo estudo da filosofia,
furtando-nos da igualdade das divindades símiles? Sobre isso, na verdade,
não sei por que razão nos desviamos. E nada mais me admira que, como quer
que seja, os homens não cultivam seu espírito, quando todos desejam viver
muito bem e sabem que não se pode viver, ou nada ser possível, por outro
meio que não seja o espírito, ainda mais, para que vivas da melhor forma
possível, o espírito deve ser cutivado. Entretanto, se alguém quer enxergar
acuradamente, os olhos com que se enxerga devem ser cuidados; se queres
velozmente correr, os pés com que se corre devem ser cuidados; da mesma
forma, se queres lutar com força, os braços com que se luta devem ser
fortificados. Similarmente, em todos os demais membros, seu próprio
cuidado é digno de dedicação. Porque como todos facilmente perceberão, não
posso refletir bastante e igualmente, como é de costume, não me admirar por
que não cultivam também seu espírito com o instrumento da razão. Que na
verdade, uma regra racional de viver, é necessária igualmente a todos, não
como a regra de pintar, nem a de tocar cítara, regras que qualquer homem de
bem, sem nenhum drama de consciência, sem torpeza, sem rubor, poderia
desprezar. Não sei tocar flautas como Ismenias, mas não me envergonha não
ser flautista; não sei pintar com as cores como Apeles, mas não me
envergonha não ser desenhista; da mesma forma nas demais artes, não quero
enumerar todas, é permitido a ti ignorá-las e disso não se envergonhar.
[166] XXII. Enimuero dic, sodes: “nescio bene uiuere, ut Socrates, ut
Plato, ut Pythagoras uixerunt, nec pudet me nescire bene uiuere”; numquam
hoc dicere audebis. Sed cumprimis (170) mirandum est, quod ea, quae
minime uideri uolunt nescire, discere tamen neglegunt et eiusdem artis
disciplinam simul et ignorantiam detrectant. Igitur cotidiana eorum aera
dispungas: inuenias in rationibus multa prodige profusa et in semet nihil, in
sui dico daemonis cultum, qui cultus non aliud quam philosophiae
sacramentum est. Plane quidem uillas opipare extruunt et domos ditissime
exornant et familias numerosissime conparant. Sed in istis (171) omnibus
tanta adfluentia rerum nihil est praeterquam ipse dominus pudendum; nec
iniuria: cumulata enim habent, quae sedulo percolunt, ipsi autem horridi,
indocti incultique circumeunt. Igitur illa spectes, in quae patrimonia sua
profuderunt: amoenissima et extructissima et ornatissima deprehendas, uillas
aemulas urbium conditas, domus uice templorum exornatas, familias
numerosissimas et calamistratas, opiparam supellectilem, omnia adfluentia,
omnia opulentia, omnia ornata praeter ipsum dominum, qui solus Tantali uice
in suis diuitiis inops, egens, pauper non quidem fluentum illud fugitiuum
captat et fallacis undae sitit, sed uerae beatitudinis, id est secundae uitae et
prudentiae fortunatissimae, esurit et sitit. Quippe non intellegit aeque diuites
spectari debere ut equos mercamur.
[167] XXII. Ora, diz, se tens coragem: “Não sei viver bem como Sócrates,
como Platão, como Pitágoras viveram, e não me envergonha não sabê-lo.”.
Isso nunca ousarás dizer. Mas principalmente é de se admirar, por que essas
coisas, que minimamente os homens querem parecer ignorar, todavia
negligenciam aprender e rejeitam simultaneamente: rejeitam a disciplina da
mesma arte e não reconhecem a própria ignorância. Então suponhamos que
avalies as despesas cotidianas deles: acharás nas contabilizações muita coisa
destinada prodigamente, mas para si mesmo nada; com “si mesmo”, quero
dizer o culto do daemon, culto que não é outra coisa senão o sacramento da
filosofia126. Sem dúvida constroem custosamente casas de campo,
suntuosamente adornam as casas da cidade e adquirem criadagem em grande
número. Mas em tudo isso, com tanta abundância de bens, nada é mais digno
de vergonha que o próprio senhor, e não injustamente: pois possuem coisas
acumuladas para com as quais dedicadamente têm todas as atenções; eles
mesmos, ao contrário, broncos, ignorantes e incultos vagueiam127. Que olhes,
pois, aquelas coisas em que mergulharam o patrimônio: encontras as mais
aprazíveis, as mais edificadas e as mais ornamentadas. Casas de campos
construídas rivais de cidades, mansões quase tão ornadas quanto templos,
numerosíssimos empregados domésticos de cabelos frisados a ferro,
mobiliário esplêndido. Toda abundância, toda opulência, todas as coisas
adornadas, com exceção do próprio dono, que sozinho, quase um Tântalo
miserável dentro de suas riquezas, indigente, pobre, nem sequer consegue
agarrar aquele fluxo fugitivo e sente sede de uma onda128enganadora. Mas ele
vive na fome e na sede da verdadeira felicidade, isto é, de uma vida venturosa
e da mais afortunada sabedoria. Sem dúvida, não entende que deve-se
observar os ricos da mesma forma que compramos cavalos.
[168] XXIII. Neque enim in emendis equis phaleras consideramus et
baltei polimina inspicimus et ornatissimae ceruicis diuitias contemplamur, si
ex auro et argento et gemmis monilia uariegata dependent, si plena artis
ornamenta capiti et collo (173) circumiacent, si frena caelata, si ephippia
fucata, si cingula aurata sunt. Sed istis omnibus exuuiis amolitis equum
ipsum nudum et solum corpus eius et animum contemplamur, ut sit et ad
speciem honestus et ad cursuram uegetus et ad uecturam ualidus: iam primum
in corpore si sit

argutum caput, breuis aluus obesaque terga


luxuriatque toris animosum pectus honesti;129

praeterea si duplex agitur per lumbos spina: uolo (174) enim non modo
perniciter uerum etiam molliter peruehat.
Similiter igitur et in hominibus contemplandis noli illa aliena aestimare,
sed ipsum hominem penitus considera, ipsum ut meum Socratem pauperem
specta. Aliena autem uoco, quae parentes pepererunt et quae fortuna largita
est. Quorum nihil laudibus Socratis mei admisceo, nullam generositatem,
nullam prosapiam, nullos longos natales, nullas inuidiosas diuitias. Haec
enim cuncta, ut dico, aliena sunt. Sat Porthaonio gloriae (175) est, qui talis
fuit, ut eius nepotem non puderet. Igitur omnia similiter aliena numeres
licebit; “generosus est”: parentes laudas. “Diues est”: non credo fortunae.
[Nec] magis ista adnumero: “ualidus est”: aegritudine fatigabitur. “Pernix
est”: stabit in senectute. “Formosus est” expecta paulisper et non erit. “At
enim bonis artibus doctus et adprime est eruditus et, quantum licet homini,
sapiens et boni consultus”: tandem aliquando ipsum uirum laudas. Hoc enim
nec a patre hereditarium est nec [a] casu pendulum nec a suffragio anniculum
nec a corpore caducum nec ab aetate mutabile. Haec omnia meus Socrates
habuit et ideo cetera habere contempsit.
[169] XXIII. Comprando cavalos, não só não consideramos, na verdade,
os adereços como também não examinamos os colares dourados da cilha,
nem mesmo contemplamos as riquezas do pescoço muito enfeitado, se joias
variegadas de ouro e prata e pedras preciosas estão penduradas, se
abundantes ornamentos artísticos estão à volta da cabeça e do pescoço, se os
freios são cinzelados, se as selas são pintadas, se as correias são douradas.
Entretanto, afastados todos esses ornamentos, o próprio cavalo desnudo e
somente seu corpo e temperamento observamos, que seja bonito de aspecto,
vigoroso para corrida e robusto para tração: primeiramente, então, se no
corpo há

uma cabeça afilada, ventre pequeno, garupa roliça,


e sobressai pelos músculos o peito fogoso de nobre animal…

além disso, se a espinha dorsal se estende pelas costas em dupla linha, desejo
pois um animal que não só rápida mas também confortavelmente sirva de
transporte.
De forma semelhante, pois, também ao observar os homens, não avalia
aquelas coisas estranhas ao homem, mas considera profundamente ele
próprio, da mesma forma, dirige a atenção para meu querido Sócrates
despojado de bens. Qualifico, pois, de estranhas as coisas que os pais
adquiriram e que a sorte deu em grande quantidade. Nenhuma delas confundo
com os méritos de meu querido Sócrates: nenhuma nobreza de nascimento,
nenhuma linhagem, nenhuma origem antiga, nenhuma riqueza invejável.
Todas essas coisas juntas, na verdade, como digo, são alheias ao homem.
Tem suficiente glória Portáon, que de tal forma era, que não envergonhava o
neto dele. Será lícito, portanto, admitir que enumeres similarmente todas
essas coisas alheias. Com “Ele é de grande linhagem”, elogias os
antepassados. Com “Ele é rico”, não creio na sorte. Nem mais enumero entre
os bens essas coisas: “é saudável”, pela doença fatigar-se-á; “é altivo”,
estacionará na velhice; “é belo”, espera um pouco e não o será. “Mas na
verdade em belas artes é instruído e principalmente erudito e, o quanto é
permitido ao homem, sábio e prudente”, já então finalmente louvas o próprio
homem. Isso, entretanto, nem é herdado de pai, nem de uma incerteza do
acaso, nem dedependente de sufrágio anual, nem perecível como um corpo
caduco, nem mutável pela idade. Tudo isso [171] meu querido Sócrates
possuía e por isso desdenhava de possuir as demais coisas.
[170] XXIV. Quin igitur et tu ad studium sapientiae (176) accingeris uel
properas saltem, ut nihil alienum in laudibus tuis audias, sed ut, qui te uolet
nobilitare, aeque laudet, ut Accius Ulixen laudauit in Philocteta suo, in eius
tragoediae principio:

inclite, parua prodite patria,


nomine celebri claroque potens
pectore, Achiuis classibus auctor, (177)
grauis Dardaniis gentibus ultor,
Laertiade?130

Nouissime patrem memorat. Ceterum omnes laudes eius uiri audisti: nihil
inde nec Laërtes sibi nec Anticlia nec Arcisius uindicat: [nec] tota, ut uides,
laudis huius propria Vlixi possessio est. Nec aliud te in eodem Vlixe
Homerus docet, qui semper ei comitem uoluit esse prudentiam, quam poëtico
ritu Mineruam nuncupauit. Igitur hac eadem (178) comite omnia horrenda
subiit, omnia aduersa superauit. Quippe ea adiutrice Cyclopis specus introiit,
sed egressus est; Solis boues uidit, sed abstinuit; ad inferos demeauit et
ascendit; eadem sapientia comite Scyllam praeternauigauit nec ereptus est;
Charybdi consaeptus est nec retentus est; Circae peculum bibit nec mutatus
est; ad Lotophagos accessit nec remansit; Sirenas audiit nec accessit.
Sirenas audiit nec accessit.
XXIV. Por que então não te lanças também à prática da sabedoria, ou,ao
menos, não te apressas, para que nada de alheio ouças nos louvores a ti, mas
para que aquele que deseja te enobrecer, louve da mesma forma como Accio
louvou Ulisses na obra Filoctetes, no princípio da tragédia:

Oh, ínclito, nascido de pequena pátria


de nome célebre e nobre peito potente,
fundador da esquadra dos aqueus
forte vingador das gentes dardânidas,
filho de Laertes…?

Somente por último faz menção ao pai. De resto, todos os elogios a esse
varão ouviste: enfim, nada para si nem Laertes, nem Anticlia, nem Arcísio
reivindica, toda posse desses elogios é de Ulisses. E não outra coisa nesse
mesmo Ulisses te ensina Homero, que sempre para ele quis que a
companheira fosse a prudência, que pelo uso poético denominava Minerva.
Assim, com essa mesma companhia todos os horrores enfrentou, todas as
adversidades superou. No fim das contas, com a ajuda dela nos antros do
Ciclope adentrou, mas saiu. Os bois de Hélios viu, mas deles se absteve. Aos
infernos desceu, mas de lá ascendeu. Com essa mesma sabedoria
companheira ele navegou diante de Cila e não foi arrebatado. Foi cercado por
todos os lados por Caribde e não foi capturado. Bebeu do copo de Circe e não
se metamorfoseou. Aos lotófagos chegou e lá não permaneceu. As sereias
ouviu e delas não se aproximou.
[173] 6. Conclusão

Embora tenhamos ido somente até o tempo de Apuleio, a figura do


daemōn representa uma categoria religiosa da filosofia antiga que vai desde
os filósofos pré-socráticos até o Neoplatonismo de Plotino. O fenômeno da
demonologia platônica se manifesta num corpo de doutrinas sempre presente
que, desde a Antiga Academia, até os últimos comentadores de Platão,
incluindo neles nosso autor, sempre se renova pela constante reorganização
de todos os conceitos inerentes a essa dimensão do platonismo. Embora
sempre renovado em suas categorizações, o corpo doutrinal sempre apresenta
três linhas mestras, a saber: em primeiro lugar uma dimensão cosmológica
das questões inerentes ao daemōn e uma relação dessa dimensão com a
providentia, fato que se mostra disseminado na obra de Apuleio, mediante,
principalmente, o realce das relações do daemōn com a arte divinatória; em
segundo, a importância dessa “ciência” dos daemonēs nos aspectos
interpretativos e hermenêuticos da religião, fato presente na obra de Apuleio
pela explicação das diversas manifestações religiosas e a fundamentação de
suas diferenças pontuais, e, em terceiro, a figura do daemōn pessoal e sua
condição de agente principal na definição da vida filosófica, fato muito bem
descrito por nosso autor em sua descrição de Sócrates, uir adprime perfectus,
e sua relação com seu daemōn. Outro aspecto importante, mais ligado à
própria figura estudada na demonologia, principalmente a partir do Banquete
e do Timeu, é o fato de o daemōn sempre ser definido como um ser
intermediário entre os deuses e os homens, partilhando com estes a
passibilidade do sofrimento e das emoções (πάθος) e com aqueles o [174]
poder (δύναμις), estando, como intermediários, localizados sempre no espaço
sublunar, onde exercem a função de mensageiros entre homens e deuses. Essa
característica permitiu sua assimilação tanto aos deuses homéricos, por todos
os neoplatônicos, quanto aos Lares, Laruae e Manes, pelo nosso autor.
A figura do daemōn , portanto, é um elemento de introdução de
racionalidade nas estruturas de pensamento do Platonismo Médio, pois tanto
serve para explicar a razão da diversidade dos comportamentos religiosos
desconcertantes, e até mesmo excludentes, para o ponto de vista filosófico,
ou seja, deuses submetidos a paixões e limitações humanas. Especificamente
em DDS, utilizando-se do pensamento analógico, depois de isolar os deuses
superiores do contato humano, da mesma forma que os demais intérpretes de
Platão, Apuleio conclui que, havendo um espaço intermediário vazio, entre
homens e deuses, preenchido de ar, situado entre o mais leve elemento, o
fogo do empíreo, e os mais pesados, água e terra, esse espaço
obrigatoriamente teria de ser preenchido ou habitado por entidades
igualmente intermediárias, compostas desse mesmo elemento aéreo. Essa
disposição, além de responder à necessidade da filosofia grega de entender o
cosmo como um todo racional e único, responde igualmente ao modus
cogitandi latino segundo o qual não pode haver lacunas na natureza.
Toda essa racionalização, entretanto não se dá exatamente segundo os
ditames do núcleo duro da dialética platônica, em virtude de nosso autor
entender, assim como Aristóteles, que a filosofia não exclui a retórica, mas
ambas formam eixos “ortogonais” de produção de conhecimento humano.
Aquela, pela aplicação dos elementos da ciência dedutiva, aplicar-se-ia mais
às ciências exatas, como, por exemplo, a matemática; esta, pela aplicação de
mecanismos indutivos e analogias, mais se aplicaria às ciências do mundo
sensível em direção às generalizações. Apuleio entende, portanto, que a
filosofia e a retórica, ao contrário do que diz Platão em Górgias, devem andar
juntas, e desta muito se serve para se dirigir ao seu público em língua latina.
Entretanto é necessário deixar claro que ambas partilham de um núcleo
comum que remete à questão da identidade do ser e suas consequências
lógicas e ontológicas.
Em se tratando de filosofia, o contato com o mundo divino sempre foi
problemático para o homem, e, depois de Aristóteles, com a teoria do motor
imóvel, e dos epicuristas, com a negação da eficácia dos [175] cultos e dos
deuses insensíveis, a teoria da providência universal proposta pelos estoicos
vê-se comprometida, tanto pela racionalidade de seus opositores quanto pela
inacessibilidade de seus conceitos. O impasse é resolvido pela teoria dos
daemonēs, que reinterpreta os cultos e a mitologia, consegue estabelecer um
caminho do meio entre estoicos de um lado e aristotélicos e epicuristas de
outro. Nesse aspecto a própria teoria cumpriu um papel daimônico. Apuleio,
cioso dessa dificuldade, tem como principal objetivo apresentar uma
reelaboração pessoal da demonologia medioplatônica de modo muito
sistemático, mais a gosto da mentalidade romana, deixando, apesar do título,
o exemplo do daemōn de Sócrates em segundo plano. Esse procedimento
mostra-se muito de acordo com as necessidades pedagógicas da afirmação de
uma identidade greco-romana, com vistas à manutenção da unidade
ideológica do Império Romano à época. Essa afirmação tem como âncora
textual a passagem do Banquete traduzida literalmente por nosso autor: Nam,
ut idem Plato ait, nullus deus miscetur hominibus (DDS, 128).
Trata-se ainda de um termo cuja noção habita duas realidades de
convivência um pouco difícil, pois tanto participa do vocabulário religioso
quanto pertence ao léxico filosófico. É, portanto, um conceito que, de início,
se destinava a ser o principal instrumento de racionalização e unificação do
entendimento das práticas religiosas múltiplas e de sua definição filosófica e
teológica. O processo, iniciado na Grécia antiga, se desenvolve muito bem
entre os romanos, graças a escritores como Cícero e Horácio, em menor
escala, e a Varrão e Apuleio, mais detalhadamente. Graças ao empréstimo
que estes últimos fizeram da filosofia platônica, a noção do daemōn serve
para explicar a plêiade das figuras de mesma função na religião romana,
herança da formação que misturou aspectos etruscos, itálicos e indoeuropeus.
Um dos problemas mais instigantes, que nos levou a esta pesquisa, é o
fato de essa divindade ser a menos representada em todos os níveis da
religião, seja do ponto de vista imagético, seja do ponto de vista ritualístico.
Ao desenvolver os estudos, descobrimos que de outra forma não poderia ser,
uma vez que a característica desses seres é tanto a multiplicidade quanto a
individualidade, fato mais bem exposto na figura do daemōn guardião, que é
completamente individual, pois nasce com o homem e, principalmente, tem o
seu culto na vida voltada para a meditação e introspecção e para a prática da
virtude, [176] da justiça e da filosofia. Trata-se, a nosso ver, portanto, do
nascimento da subjetividade reflexiva, da individualidade sem
individualismo, um primeiro momento em que a mente volta-se sobre si
mesma na forma do ego, sem abrir mão de todas as implicações éticas
referentes à vida em sociedade. Especificamente, em Apuleio, na exortação
final à vida filosófica, a prática desta está associada a um gênero de vida sã, a
uma forma de religiosidade, de dedicação piedosa ao culto do daemōn
interior, pessoal, que corresponde, na verdade, simplesmente ao que
chamaríamos hoje de exame de consciência, ou diálogo interior, prática que
se baseia numa introspecção rigorosa, encontrada principalmente nas
codificações e sistematizações do Estoicismo da época imperial, conforme
testemunhado na obra de Marco Aurélio. A teologia dos daemonēs tem,
portanto, em Apuleio, uma forte conotação ética de condução de vida e das
atitudes do indivíduo.
[177] 7. Bibliografia

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Notas

1. Existem algumas edições francesas anteriores: Baron des Coutures, 1698, e Compains de
Saint-Martin, 1707, mas não se trata de edições críticas.
2. Londres: Frank H. Cilley, 1866
3. Paris: Garnier, Henri Clouard, 1933
4. Fogia: Bastogi Editrice Italiana, A. Corina, 1997
5. Rathke, 1911; Dillon, 1977
6. Clouard, 1933; Beaujeu, 2002
7. Trata-se aqui do protagonista do romance, Jean des Esseintes.
8. Grifo nosso.
9. Cet Africain le réjouissait ; la langue latine battait le plein dans ses Métamorphoses; elle
roulait des limons, des eaux variées, accourues de toutes les provinces, et toutes se
mêlaient, se confondaient en une teinte bizarre, exotique, presque neuve; des maniérismes,
des détails nouveaux de la société latine trouvaient à se mouler en des néologismes créés
pour les besoins de la conversation, dans un coin romain de l’Afrique ; puis sa jovialité
d’homme évidemment gras, son exubérance méridionale amusaient. (Todas as traduções
deste trabalho, francês, inglês, italiano e latim, são de nossa autoria, salvo menção em
contrário).
10. VEYNE, 2009.
11. Dans tous les pays et dans tous les temps, on trouve communément répandue la
croyance à des êtres surnaturels, d’un rang inférieur à celui des dieux, intervenant
directement dans le cours des choses et spécialement des affaires humaines, êtres
bienfaisants ou maléfiques ou indifférents, que l’homme cherche à se concilier par des
pratiques religieuses ou magiques; c’est le peuple innombrable et redoutable des esprits,
démons, anges et génies de toute sorte, invisibles, actifs et tracassants.
12. Doravante DDS.
13. “(a suo avviso) il De Deo Socratis può considerarsi superiore rispetto a tutti gli altri
trattati ell’età classica risguardanti questo tema che ci sono pervenuti”.
14. ἄπειρος, ον ilimitado, infinito, imenso, inumerável, inextrincável; inexperiente, não
experimentado, desconhecedor. [Bailly, s.u., trad.]
15. Isto é, iniciá-lo nos mistérios.
16. No aplicativo geográfico Google Maps, acha-se pelo primeiro nome, Madaura.
17. Literalmente: “E tanto mais não falei dessas coisas para que, por esse meio, me
envergonhasse de minha pátria”
18. Vide adiante, no capítulo 2.2 deste trabalho a descrição desse julgamento, no verbete
Apologia.
19. Grifo nosso.
20. Note-se aqui o jogo de palavras: rudimentum tanto pode significar rudimentos,
primeiras letras, quanto rudeza do espírito, junto a eximo, que pode signifcar afastar ou
libertar.
21. Novamente a polissemia, instruo pertence ao campo semântico de erguer, construir,
dotar de armas.
22. Note-se aqui o neologismo só encontrado em Apuleio.
23. Apol. 23
24. Flor. 17.4
25. Apol. 72.1
26. Enálage.
27. De Mundo, 17
28. Apol.72
29. Flor. 9, 15, 16, 17, 18
30. Flor. 4, 9, 16 e 17
31. Em retórica, parte final do discurso que geralmente tem dois propósitos: resumir os
pontos principais e apresentar a conclusão.
32. Quanto ao Aesculapius em Apuleio cf. Apol. 55, Flor. 18, DDS 15, e n. 23 acima.
33. “such pseudepigraphical additions are particulary common for writers in the period of
the Second Sophistic with a large and varied output, inviting accretions of this kind.”
34. Ed. Wallace Martin Lindsay, vol. I, pág. 96.
35. Nome masculino homônimo de um dos trinta tiranos de Atenas e de um estatuário
citado por Plínio, o naturalista.
36. Fr. 3. Prisciano, Gram. Lat., ed. Keil II, Leipzig, pág. 85:
https://archive.org/stream/grammaticilatin01hagagoog#page/n233/mode/2up, acesso em
08.7.2016.
37. Fr. 4. Ibidem, pág. 111.
38. Fr. 5. Ibidem, pág, 135:
39. Fr. 6. Ibidem, pág. 279.
40. Fr. 7. Ibidem, pág. 528
41. Fr. 8. Fulgentius Exp. Serm. Antiq. 3 ed. Helm, teubner 1898, pág. 112:
https://archive.org/stream/operafulg00fulguoft#page/112/mode/2up, acesso em 08.7.2016.
42. Fr. 9. Prisciano, Gram. Lat., ed. Keil II, Leipzig, pág. 511. Fédon 97e-98a: “E me
sentia preparado a ver-me diante de descobertas do mesmo modo”.
43. Fr. 10. Ibidem, pág. 520. Fédon 100b “…acredito poder indicar-te a causa, por via de
consequencia, e demonstrar que a alma é imortal.” (Platão, 2008, 252)
44. Fr. 11. Ibidem, pág. 250, ss.
45. Fr. 12. Ibidem, pág. 482, ss.
46. Fr. 13. Fulgentius Exp. Serm. Antiq. 3 ed. Helm, teubner 1898, pág. 122.
47. Fr. 14. Prisciano, idem, pág. 203.
48. Fr. 15. Palladius, Opus Agriculturae. 1. 35.9, ed. Scmitt, Teubner, 1898, pág.38:
https://archive.org/details/Palladius, acesso em 08.7.2016.
49. Fr. 16. Servius ad Verg. Georg. 2. 126.
50. Na compilação de Beaujeu, os fragmentos de número 17 a 20 são classificados como
Libri incerti, isto é, alusões que deixam muitas dúvidas se são de Apuleio ou apenas fazem
referência comparativa a ele, por esse motivo, deixamos de listá-los.
51. Fr. 21 Ioannes Lydus, De magistratibus III 64, ed. Wünsh, Teubner 1903
https://archive.org/details/magistratibuspo00lyduuoft, acesso em 08.7.2016.
52. Idem, De mensibus IV 116, ed. Wünsh, Teubner 1898:
https://archive.org/details/liberdemensibus00lydugoog, acessado em 08.7.2016.
53. Hendíadis.
54. Subo — surio: homonímia.
55. Dans tous les pays et dans tous les temps, on trouve communément répandue la
croyance à des êtres surnaturels, d’un rang inférieur à celui des dieux, intervenant
directement dans le cours des choses et spécialement des affaires humaines, êtres
bienfaisants ou maléfiques ou indifférents, que l’homme cherche à se concilier par des
pratiques religieuses ou magiques) c’est le peuple innombrable et redoutable des esprit
démons, anges et génies de toute sorte, invisibles, actifs et tracassants.
56. Le terme de δαίμων apparaît dans les poèmes homériques ou il est fréquemment
employé pour désigner les mêmes personnáges divins que θεός; dans l’Odyssée, il semble
qu’une distinction tende à s’établir entre les Olympiens fortement caractérisés par la
mythologie et les δαίμωνες qui conservent lés traits archaïques de la divinités.
57. O controverso frag. B119. ἦθος ἀνθρώπωι δαίμων, pode muito bem ser traduzido como
‘O dáimon é o caráter do homem’.
58. Stoicorum Veterum Fragmenta.
59. Em latim, Larva, plural Larvae, palavra de origem etrusca, designava originalmente o
espírito dos mortos, muito semelhante aos Lêmures, que perseguia os vivos. Em seguida
evoluíram para configurar as almas dos criminosos ou das pessoas que tiveram fim trágico.
Eram imaginadas como esqueletos e fantasmas de expressão sinistra, e não raro lhes era
conferida a função de torturadoras das almas do inferno e ocasionadoras de transtornos
psíquicos nos vivos. (BRANDÃO, 1993, 199)
60. Conforme o contexto da obra, podemos aqui interpretar Graecus como hiperônimo de
Platão e barbarus como referência aos caldeus, pois não é demais lembrar que os signos e
números caldaicos não só são citados nesta obra como também faziam parte dos interesses
do Platonismo Médio.
61. Preferi classificar de ontológica e não teológica simplesmente por questão de
preferência, visto que, em virtude dos exemplos utilizados pelo autor em poucas linhas
nessa passagem, fica muito difícil delimitar onde termina um campo e começa outro.
62. DDS, XII, 145: “ex hoc ferme daemonum numero poetae solent haudquaquam procul a
ueritate osores et amatores quorundam hominum deos fingere”.
63. Scil.: aos deuses manes
64. Entenda-se aqui animados como os entes dotados não só de anima, alma mais geral,
princípio vital comum a todos os seres vivos, como também de animus, o espírito pensante,
o intelecto, característico apenas dos seres humanos e divindades.
65. Figura de retórica que consiste basicamente em justificar por que se omite uma
explicação.
66. Lucrécio, De rerum natura, doravante DRN.
67. Pourquoi ne sais-tu pas d’où tu es venu? Ne voudras-tu pas te rappeler, quand tu
manges, qui tu es, toi qui manges, et qui tu nourris ? Dans tes rapports sexuels, qui tu es, toi
qui uses de ces rapports ? Dans ta vie sociale, dans tes exercices physiques, dans tes
conversations, ne sais-tu pas que c’est un dieu que tu nourris, un dieu que tu exerces (θεὸν
τρέφεις, θεὸν γυμνάζεις) ? Tu portes Dieu partout avec toi (θεὸν περιφέρεις), malheureux,
et tu l’ignores. Tu crois que je parle d’un dieu extérieur d’or ou d’argent? C’est en toi que
tu le portes et tu ne t’apercois pas que tu le souilles et par tes pensées impures et par tes
actions malpropres. Devant une image de Dieu, tu n’oserais en vérité accomplir aucune des
actions que tu accomplis. Et devant Dieu lui-meme présent en toi (αὐτοῦ δέ τοῦ θεοῦ
παρόντος) et qui voit et entend toutes choses, tu ne rougis pas de les penser et de les
accomplir, homme inconscient de ta propre nature, objet de la colère divine 127
EPICTETE. Entretiens, II, 8, 12–14. (Trad. Souilhe).
68. Mais si rien ne t’apparait meilleur que le genie qui en toi a etabli sa demeure, qui
soumet a son autorite les instincts personnels, qui controle les representations de l’esprit,
qui s’est arrache, comme le dit Socrate, aux incitations des sens, qui se soumet aux dieux et
aux hommes s’attache ; si tu trouves tout le reste plus petit et plus vil, ne laisse place en toi
a aucune autre chose, car une fois que tu te serais laisse incliner et detourner par elle, tu ne
pourrais plus sans relache honorer plus que tout ce bien qui t’ es propre et qui est
tien.MARC AURELE, III, 6, 2 (trad. Meunier).
69 …consideré comme le philosophe par excellence et sa conduite comme le genre de vie
idéal, son daimōn est devenu la marque de l’éthos philosophique, son identité religieuse.
Étudier la nature de ce daimōn revenait ainsi, par effet de retour, à élucider le contenu
même de la pratique philosophique.
70. Segundo tradutores como Agostinho da Silva e G. Ribbeck, a melhor tradução de
rerum natura é natureza e não natureza das coisas. Concordamos, haja vista a diferença da
visão de mundo da Antiguidade Romana e a evolução do conceito até a atualidade.
71. Verg., Georg. I, 5-6
72. Lucr. Rerum., 5, 575
73. Literalmente: ‘quanto ao que dela seja pertinente aos…’.
74. Na divisão de Beaujeu (2002, pág. 20), aqui começa o tópico ‘Os deuses visíveis’.
75. Verg. Georg. 1,5-6
76. Literalmente: ‘perdas’
77. Verg. Aen. 3, 516
78. Enn., Ann., 240-241
79. Arturo (α Boo, α Boötis, Alpha Boötis), também conhecida
como Arcturo ou Arcturus, é a estrela mais brilhante da constelação do Boieiro, ou Boötes,
visível somente no céu do hemisfério norte.
80. As Híades (Ὑάδες em grego) é um aglomerado estelar da constelação de Touro, cujas
estrelas mais brilhantes formam um “V” oblíquo em redor da estrelagigante Aldebarã (α
Tau), estrela mais brilhante no campo visual, a qual não faz parte desse aglomerado.
81. ‘Os deuses invisíveis’ cf. Beaujeu (2002, 22)
82. A palavra mediocritatem, no caso, teria como correspondente em português mediania,
que deixamos de usar em virtude do arcaísmo do termo.
83. Enn., An., 240-241.
84. Note-se que aqui o autor antecipa a definição dos daimonēs como distribuidores da
sorte e guardiões individuais do homem durante a vida.
85. ‘inchada de soberba’.
86. Literalmente ‘para diante e para trás eternas’.
87. ‘O homem’, cf. Beaujeu (2002,23),.
88. Note-se aqui a metáfora miliar: missum locum faciam, superantibus e receptui.
89. ‘Separação entre os homens e a natureza’, cf. Beaujeu (2002, 24)
90. Verg., Aen., 9, 300
91. Verg., Aen., 10, 773
92. Literalmente, cabeça.
93. O papel dos daemonēs.
94. Em nosso entender, o autor aqui faz uma referência à instituição de clientela e
patronato bem conhecida do povo romano, haja vista o vocábulo salutigeri, que geralmente
se refere ao secretário que acompanhava o patrono durante a salutatio dos clientes, ou
mesmo fazia uma “triagem” e organização preparatória da entrada dos interessados.
95. Uma das técnicas divinatórias etruscas, a haruspicina, consistia em observar o desenho
formado pelas rugas ou fissuras das entranhas dos animais sacrificados. Existe um
exemplar de um modelo em bronze de fígado de carneiro, encontrato em Placência em
1877, gravado com os nomes de quarenta divindades distribuídos dentro de divisões feitas
a buril.
96. Em outras palavras, sua essência e seus acidentes (N.T.)
97. Pode-se dizer que aqui Apuleio retoma, amplia e ratifica a proposição inicial que
estabelece a divisão do cosmos com seus respectivos habitantes, localizados no espaço
conforme sua hierarquia de poder ou excelência.
98. Lucr., 6, 96-98
99. Hom., Il., I, 198: οἴωι φαινομένη· τῶν δ᾽ ἄλλων οὔ τις ὁρᾶτο.
100. Verg., Aen., I, 440
101. Plauto, Mil., 4
102. Literalmente: de que deixem passar.
103. Ferme, poderia significar por aproximação, scil.: conceber os deuses por
aproximação (aos daemonēs).
104. Literalmente: desterradas.
105. Literalmente: podem sofrer.
106. apud omnis… penes cunctos… paralelismo por sinonímia.
107. Verg., Aen., IX, 184-185
108. Os daemonēs-alma.
109. Em termos platônicos, sepultada ou aprisionada.
110. In: VIRGÍLIO, Eneida, IX, 184-185 “Vem de alguma deidade este ardor, caro
Euríalo?/ Ou somos nós que o forjamos na mente, por simples cobiça?”, segundo a
tradução de Carlos Alberto Nunes, São Paulo: Editora 34, 2014.
111. Tendo em vista o caráter polissêmico da palavra gênio, em português, preferimos
manter a original latina.
112. Scilicet ‘formam nosso ser’.
113. Os daemonēs independentes dos corpos
114. Em todos os autores mais antigos, embora raramente enunciado, parece que as
divindades romanas se mantêm longe, não penetram no interior da alma dos pensamentos
dos seres humanos. Nesse particular, Apuleio apresenta os daemonēs com o poder de
prescrutar até o recôndido das almas, coisa alheia à religião tradicional romana.
115. Scilicet ‘ao plano das almas’.
116. Sonho.
117. Aqui se inicia a descrição do daemōn de Sócrates
118. Sabedoria e divinação
119. Nestor, filho de Neleu. Aqui Apuleio faz uma metáfora do poder da oratória.
120. Metonímia.
121. Intervenção do daemon na vida de Sócrates.
122. Filosofia.
123. “Uma espécie de voz divina”.
124. Ter. Eun. 454
125. Literalmente: um adivinho de presságios.
126. Note-se aqui a simbiose que se faz na Antiguidade Clássica da Filosofia com a
religião: a Filosofia como religião, que permeia todos os filósofos até a Idade Moderna,
com Descartes, Spinosa e Leibniz, por exemplo.
127. Temos aqui uma alusão à oposição nitidamente platônica entre os bens materiais e o
verdadeiro propósito do homem de libertar-se das cadeias da ilusão e adquirir a verdadeira
riqueza: o saber puro.
128. Metonímia
129. Verg., Geórg. III, 80-81
130. Acii, Trag. Rom. Frag. 520 ss Ribb
[183] Sobre o autor

Luiz Karol possui as licenciaturas de Filosofia (1982) e Língua e


Literatura Latina (2006), ambas pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, mestrado em Letras, Língua Portuguesa (2004), na mesma
instituição, e doutorado em Língua e Literatura Latina (2016), pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde é professor adjunto de Língua e
Literatura Latinas. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Letras
Clássicas, pesquisando principalmente sobre os seguintes temas: língua
latina, ensino de línguas on-line, literatura latina, ensino de línguas à
distância e cultura clássica. Pesquisador do Grupo NVMINA de Estudos de
Religiões da Antiguidade, integrado ao Espaço Interdisciplinar de Estudos da
Antiguidade — ATRIVM. ([email protected]).
Esta obra foi elaborada pela Desalinho nas tipologias Alegreya, Adobe Garamond Pro e
New Athena Unicode e impressa sob encomenda do autor no ano de 2018.

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