A Narrativa Ficcional de Samuel Rawet - Luciano de Jesus Gonçalves PDF
A Narrativa Ficcional de Samuel Rawet - Luciano de Jesus Gonçalves PDF
A Narrativa Ficcional de Samuel Rawet - Luciano de Jesus Gonçalves PDF
Três Lagoas - MS
2012
LUCIANO DE JESUS GONÇALVES
Três Lagoas - MS
2012
LUCIANO DE JESUS GONÇALVES
COMISSÃO EXAMINADORA
-
____________________________________
_
Orientador Prof. Dr. Antônio Rodrigues
Belon
Universidade Federal do Mato Grosso de
Sul
____________________________________
-
Prof. Dr. Arnaldo Franco Junior
Universidade Estadual de São Paulo –
UNESP – Rio Preto
____________________________________
_
Prof. Dr. Éverton Barbosa Correia
Universidade Federal do Mato Grosso de
Sul
Ao longo dos dois últimos anos, fase em que realizei esse trabalho, contei com o
apoio de muitas pessoas. Correndo o risco de cometer algumas omissões, aproveito a
oportunidade para agradecer a algumas delas:
Aos amigos Clayton, Jakeline, Jacqueline, Maurício, Renatu, Rosemara, Maria
da Luz, por dividir os momentos e angústias mais críticas.
À Aline Sena, amiga e comparsa de todos os crimes.
À amiga Célia Regina, pela sopa divida em três partes.
A Rodrigo, João, Vanilda e Paulão, família negra.
Aos amigos de Três Lagoas, André e Jorge, pelo suporte e hospitalidade.
Aos amigos de jornada Cícera, Raquel, Bianca, Samuel, Mirian, Adriana, Ana
Paula e Leidi Laura, pelos momentos coletivos de construção do conhecimento.
Ao senhor Claudionor, secretário do programa de Pós-Graduação em Letras da
UFMS/CPTL, pela educação e presteza constantes.
Aos professores Danglei, Sales e Rauer pelos ensinamentos, repreensões e
oportunidade de ouvi-los. Por todos esses motivos e pela participação na banca de
qualificação, agradeço à professora Kelcilene Gracia-Rodrigues.
Ao professor Éverton, pelas ponderações e contribuições durante a qualificação
e disponibilidade para participar da defesa.
Ao professor Arnaldo Franco Junior, em primeiro lugar, pelas ricas
contribuições feitas ao projeto em sua fase inicial, durante evento do Programa de Pós-
Graduação em Letras da UFMS/CPTL, ainda em 2010. Em segundo lugar, pelo aceite
gentil em participar da banca de defesa.
À Cleusa Aparecida Sampaio, mãe de coração.
À professora Tania Maria Baibich, pelo presente tão útil.
À minha mãe, Maria Zélia, pelo suporte primeiro. À minha irmã, Marineide, por
acreditar e torcer.
À Coordenação de Pessoal de Nível Superior – CAPES, cujo auxílio concedido
tornou possível a realização do trabalho.
Começo exatamente pela palavra. Simples. Elementar. Pela
palavra manifesto meu ódio, meu amor, minha agressividade,
minha culpa, meu remorso. Pela palavra que julgo ouvir dos
outros manifesto apenas minha afetividade, e ignoro, na
verdade, que eu dirijo a palavra a mim, através do outro. E como
resolvi no momento abandonar qualquer forma de consciência
desligada da palavra, verifico que posso exercitar, através da
palavra vinculada, a transformação da consciência.
Transformação que é PRAXIS autêntica, trabalho autêntico, o
verdadeiro trabalho, único elemento real de desalienação
(RAWET, 2008, p. 61, grifos no original).
RESUMO
ABSTRACT
The work aims at presenting the last collection of short stories by Samuel Rawet, Que
os mortos enterrem os seus mortos (1981), taking as a starting point its inclusion on the
contemporary Brazilian literature. Thus, idiosyncrasies, similarities and differences of
this book are pointed in the panorama of the national tale, with a definition of a
paradigmatically date: the year 1956 with the release of Contos do Imigrante. In
consequence of this initial process, verifies and locates the importance of the selection
on the fictional narrative of Samuel Rawet, read as structurally cohesive whole,
specifically, in his five books of short stories. Then, through narratological procedures,
which make up the internal reading, shows examples of these aspects taken out from
passages from six tales of the collection. In conclusion, without the expectation that the
research object in question was set like as a linear advance with respect to the first
works of Rawet and hence of the Brazilian tale, concludes that the book may be
considered in its peculiarities: the insertion of new themes, until then, beyond the
attention of the storyteller, the subtle treatment and referential of the aspects of Jewish
culture and the extreme exploitation of linguistic codes.
INTRODUÇÃO.............................................................................................................12
3.1. As dissertações.......................................................................................................72
3.2. As teses...................................................................................................................92
3.3 Alguns dados sobre a recepção acadêmica de Rawet...........................................134
ANEXO C – “Moira”....................................................................................................218
ANEXO D – “Trio”.......................................................................................................220
1
Em nosso trabalho, vários estudos utilizam a expressão “contemporânea” para designar a produção
literária, teórica e ou crítica correlatas aos seus contextos de produção. Na medida do possível, e sempre
14
Até este ponto, ressalta-se, sobre a utilização desses níveis de análise, que “é
conveniente não confundir essa posição metodológica com a realidade e a totalidade dos
funcionamentos textuais [...]. Nenhum texto pode fazer sentido sem as suas remissões
aos outros textos e às realidades do mundo” (REUTER, 2007, p. 153). Resulta dessa
ressalva a definição que o estudioso emprega para o processo denominado
“textualização”. Em nosso trabalho, esse nível é contemplado em conjunto com o
segundo e, de forma conclusiva, na leitura da narrativa ficcional de Rawet, explorada de
forma mais evidente no recorte escolhido.
Destaca-se que, nesta análise, com relação às categorias narrativas, recorremos à
elaboração de Genette (1995). Tal obra configura-se como referência inicial de outros
teorizadores da narrativa, a exemplo de Reis e Lopes (1989), Reuter (1997) e de Nunes
(1998) e, assim que necessários, cotejados em nossa realização.
No aspecto referente à interpretação ou análise dos dados estruturais dos contos,
o trabalho fundamentar-se no método estruturalista genético aplicado aos estudos
literários, o que implica a utilização de dados teóricos, críticos e historiográficos. Nesse
sentido, o estudo apresenta as conclusões decorrentes das análises e sínteses da
investigação do objeto citado, tendo em vista que o método a ser utilizado concebe, de
início, o conjunto de fatos humanos de uma maneira unitária e, depois, configura-se, ao
mesmo tempo, como compreensivo e explicativo, pois a elucidação de uma estrutura
significativa constitui um processo de compreensão, ao passo que a sua inserção em
uma estrutura mais vasta é, em relação a ela, um processo de explicação, como postula
Goldmann (1967, p. 212-213).
Em nossa pesquisa nos propomos a verificar, através das análises de elementos
estruturais (internos) da narrativa ficcional de Samuel Rawet, quais escolhas compõem
essa literatura, assim como os motivos que justificariam uma boa acolhida,
exemplificada de forma exaustiva no segundo – que compreende a fortuna crítica do
artista – e no terceiro capítulos – em que nos detemos aos trabalhos acadêmicos, teses e
dissertações, que evidenciam o tratamento conferido ao escritor na Pós-Graduação
brasileira. Verificamos, a partir desses estudos, a inserção dessa literatura no contexto
histórico e social da literatura brasileira contemporânea.
Em meio a esse cenário, a nossa pesquisa se configura como elemento de
rememoração do nome de um contista que, no hiato entre 1981, ano da publicação de
Que os mortos enterrem os seus mortos, e 2004, de Contos e novelas reunidos,
respectivamente, desconheceu publicação em língua portuguesa. Essa retomada é
15
sustentada, conforme demonstramos no segundo capítulo, por uma crítica elogiosa e por
um registro historiográfico respeitoso.
Por outro lado, e ainda estamos no âmbito da elaboração de argumentos que
justificam a presente pesquisa, percebe-se que, devido às distâncias temporais, o livro
em questão, Que os mortos enterrem os seus mortos, não costuma ser contemplado nas
análises críticas e nos levantamentos historiográficos. Ao longo dos anos, esse livro
permanece ignorado pela crítica e, mais ainda, pela academia. A afirmação será
desenvolvida no terceiro capítulo.
Através da análise estrutural, pretende-se verificar a hipótese inicial de que os
elementos utilizados na construção das dezoito narrativas diversas de Rawet, com
personagens, distintas, no entanto, apresentam um foco narrativo semelhante. Em
alguns casos, a paragrafação, os números de páginas e as disposições gráficas são,
praticamente, iguais. Mesmo assim, os efeitos obtidos pelo contista são distintos em
cada conto. Nos limites dessa distinção, origem, articulação e fim, é que se situa a nossa
preocupação com o conto de Rawet disposto em tal obra.
Garantimos, assim, que o resultado valorativo de uma literatura capaz de
prender, surpreender, encantar, chocar, iludir o leitor, resulta do trabalho elaborado
desses aspectos estruturais. Quais são esses elementos e as maneiras pelas quais são
utilizados, procurarmos identificar em nossa leitura. A respeito da inserção social e
histórica dos contos de Rawet na literatura brasileira contemporânea, leva-se em conta,
ainda, que “as relações entre a obra verdadeiramente importante e o grupo social que –
por intermédio do criador – se conclui ser, em última instância, o verdadeiro sujeito da
criação, são da mesma ordem que as relações entre os elementos da obra e o seu todo”
(GOLDMANN, 1967, p. 206-7, grifos no original).
O trabalho é divido em quatro capítulos. No primeiro deles, verificamos a
entrada de Samuel Rawet em trabalhos de cunho historiográfico. Em decorrência da
semelhança no trato da obra do contista, o item destaca, desses estudiosos, o nome de
Alfredo Bosi (1985; 2006), em textos que permitem, além de traçar um panorama do
tratamento que a produção rawetiana recebe no registro historiográfico da literatura
brasileira, pontos de análises ricos de sugestões para a pesquisa dessa obra.
O segundo capítulo apresenta as motivações históricas que justificam a
imigração de famílias de judeus poloneses ao Brasil no início do século 20. O resultado
dessa apresentação é a reconstrução breve do surgimento da pequena aldeia em que o
escritor nasce em 23 de julho de 1929. O capítulo passa a destacar, depois disso, o
16
surgimento oficial de Rawet como escritor, o que não ocorre desvencilhado de algumas
lembranças de seus dados biográficos, assim como a recepção crítica de sua narrativa
ficcional, o que compreende, inclusive, trabalhos produzidos em face de sua morte,
recriando, assim, a vida do escritor, antes mesmo de seu surgimento e o acompanhado
até a sua morte em 1984.
O terceiro capítulo cobre parte do processo do renascimento de Rawet aos olhos
da crítica acadêmica. Para isso, são elencados os trabalhos desenvolvidos nos programas
de pós-graduação brasileiros de 1989 a 2011. Além de proporcionar uma visão sobre
esse aspecto da fortuna crítica do escritor, a intenção é oferecer a sistematização que
poderá facilitar futuras pesquisas, na medida em que apresentamos tais trabalhos.
O quarto capítulo conclui o nosso trabalho realizando a apresentação da
narrativa ficcional de Que os mortos enterrem os seus mortos. Síntese da proposta dessa
pesquisa, nessa parte, reside o ponto em que apresentamos a nossa contribuição para o
estudo do autor que, sob diversos aspectos, merece ser pesquisado e, sobretudo, lido.
17
2
Em nota de rodapé, o historiador reforça que a redação da História Concisa da Literatura Brasileira
data de 1968-69 (BOSI, 2006, p. 386).
18
a esse cenário, o período de transição pelo qual o gênero passa no lapso que compreende
da produção modernista até a contemporaneidade: é nesse último ponto da trajetória que
encontramos – a partir da leitura das duas obras, podemos pontuar isso – a figura de
Samuel Rawet, tendo em vista o marco inicial de 1956, com o lançamento de sua
primeira coletânea, em Contos do imigrante3.
O tratamento incipiente do contista em obras historiográficas (MOISÉS, 1989;
PICHIO, 1997) e a relação exclusiva da literatura de Rawet com os problemas da
imigração, foram decisivos na nossa escolha específica dessas duas obras de Bosi.
Embora revestidos de uma aura tímida, os dois trabalhos de Bosi são ricos em imagens
analíticas e, por isso, serão detalhados em nossa apresentação historiográfica, como
abertura de nosso trabalho.
3
Para uma verificação do panorama do conto brasileiro anterior aos modernistas, cf. Variações sobre o
conto (LIMA, 1953).
19
[...] tem consciência dos riscos a que se expõe quem faz uma relação, ainda
que sumária e apenas exemplificadora, da ficção contemporânea. Os últimos
vinte anos foram marcados por um crescente movimento editorial, de modo
que só uma pesquisa aturada poderia dar conta da mole de publicações
registradas. Assim, as lacunas não significam omissão voluntária, mas
impossibilidade material de cobrir toda área de documentos a analisar (BOSI,
2006, p. 420).
4
Nesse sentido, Menezes (1978, p. 262) aponta o romance A famosa revista, de 1945, como fruto da lavra
dupla dos dois artistas.
20
[...] a trama narrativa e o manejo da frase de cada um dos contos desses livros
representativos da ficção brasileira obedeceram a certos processos imanentes
à prosa moderna, muito mais próximos do despojamento neo-realista, ou de
22
É curioso notar que, em mais de uma oportunidade, Lins foi apontado por Rawet
como um exemplo a ser perseguido na literatura.
Voltando ao estudo de Bosi, depois de reproduzir um trecho de A Legião
Estrangeira, de Clarice, exemplificando tais definições, a referência textual ao nome de
Samuel Rawet ocorre:
forma única, mas atrelada ao nome de outra contista, Nélida Pinõn. O que se retira das
palavras de Bosi a respeito da produção de Rawet, a definição de uma retórica do
imaginário, no entanto, servirá de trilha na leitura de sua obra, o que ficará mais
evidente em nosso quarto capítulo.
Seguindo o caráter de historiador dessa literatura, Bosi encerra seu ensaio
definido duas grandes tendências de modo geral.
Desse modo, define os processos que essa literatura enfrenta em tal período:
É muito provável que o conto oscile ainda por muito tempo entre o retrato
fosco da brutalidade corrente e a sondagem mítica do mundo, da consciência,
ou da pura palavra. Essas faces do mesmo rosto talvez componham a máscara
estética possível para os nossos dias; e a literatura, enquanto literatura-para-a-
literatura, não tem meios de superá-la. Poderá representá-la, exprimi-la,
significá-la. E vivê-la e sofrê-la, até desafiá-la. Arrancá-la, não (BOSI, 1985,
p. 22).
A leitura das duas obras de Alfredo Bosi nos permite entender, além dos
métodos empregados pelo estudioso, o funcionamento de um trabalho que atua na
constituição de um cânone literário da literatura brasileira. Pela extensão e objetivos
desse trabalho, não discutimos os motivos que justificam tais seleções.
24
Sobre o tratamento recebido por Samuel Rawet e sobre a sua aceitação nesse
cânone, percebemos, em meio às passagens, que estas – embora sejam menções breves
–, se configuram como comentários respeitosos sobre o autor e sua obra.
Com relação às duas obras, talvez não seja possível estabelecer muitas
diferenças nesse tratamento, mesmo quando temos em vista a estruturação e os
objetivos distintos dos dois trabalhos de Bosi.
No caso de História Concisa da Literatura Brasileira, cuja própria denominação
adianta o caráter historiográfico da mesma, as três menções ao nome do contista Samuel
Rawet, discretas – duas delas em forma de notas –, podem ser apontadas como positivas
na medida em que valorizam os planos da expressão do escritor e a maneira pela qual,
com a utilização de temas não inovadores, ele consegue efeitos de um intimismo
enxuto, objetivo e pungente.
Em O Conto Brasileiro Contemporâneo, a leitura de “Gringuinho” nos dá uma
medida dos aspectos formais da literatura de Rawet. No caso da crítica de Bosi, mais
uma vez, reforçamos que são esses aspectos formais os responsáveis pela acolhida
positiva desta escrita, merecedora de ser lembrada na compilação.
Nessa coletânea, também, pode-se dizer que esse tratamento apresenta dados
positivos. A afirmação pode ser justificada, apenas, se pensarmos na estrutura da obra.
Para compô-la, o estudioso utiliza a sua experiência e minúcia no trato do texto literário
e seleciona dezoito contistas que, segundo ele, representam os novos caminhos tomados
pelos contistas contemporâneos.
Nesta obra, as duas ocorrências que se referem ao nome de Rawet nos dão conta
de que este compõe um grupo onde se percebe que a experiência estética, ocorrida no
Modernismo, não foi se deu em vão. A referência elogiosa se baseia no tratamento que
esse grupo apresenta nos níveis expressivos e no arranjo da linguagem, mesmo quando
esta é usual, cotidiana.
As belas e, mais uma vez, discretas definições que o contista recebe de Bosi – a
exemplo daquela em que o teórico define seu trabalho como dotado de um caráter
“especulativo da linguagem” – são empregadas de forma comparativa e, às vezes, com o
intuito de ampliar o entendimento do seu leitor para as definições que vem
desenvolvendo para outros contistas, como Clarice Lispector, por exemplo. É com esta
última, igualmente, imigrante e de ascendência judaica, que Rawet divide a informação
de que sua literatura compõe uma “retórica do imaginário”.
25
Pensar nos companheiros que são citados ao lado de Rawet, por um lado, pode
nos munir de argumentos para dizer que o mesmo não encontrou tratamento de primeira
ordem – na História Concisa da Literatura Brasileira, pelo menos – e, por outro, nos dá
a medida de seu quilate na literatura e, pensando assim, este seria um aspecto da boa
recepção que todas as ocorrências encontradas nas duas obras de Bosi constroem a seu
respeito.
Há que se apontar, nesse sentido, o tratamento tímido recebido por Rawet e sua
obra em outra História da Literatura Brasileira, inicialmente, destinada ao público
italiano, de autoria de Luciana Stegagno-Picchio (1997, p. 643). Nesse trabalho, na
única menção ao nome do contista, há uma relação breve dessa produção com a
problemática do imigrante, o que acontece de maneira semelhante em Moisés (1989).
Nesses casos, a falta de destaque e o olhar pragmático são mais algumas mostras da
necessidade de se rediscutir historiograficamente Rawet.
26
5
Em Klidzio (2007), há a ocorrência de outra grafia: Klimontóv. A opção pelo termo escrito com “W” se
deve ao fato de ser esta possibilidade a mais recorrente no trabalho citado.
27
No entanto, o castelão Klemens ficou pouco tempo no poder da sede, já que foi
morto em batalha, em defesa do território, contra investida dos tártaros. Em seguida, a
administração da localidade foi sucedida por seu filho, também de nome Klemens, até
ser adquirida pelos Ossolinski, representados pelo grande senhor de terras Jan; depois,
por Pawel e o filho Hieronin, este último, calvinista fervoroso e líder protestante no sul
da Polônia, responsável por abrir congregações calvinistas no País, sendo Klimontów
uma delas. Em 1576, a cidade entra em decadência.
Em 1614, ano de construção da primeira igreja católica, Hieronim morre e é
substituído por seu filho, Ziebgniew, responsável pela ampliação de posses do território
e por fundar, de fato, uma cidade com as terras que a localidade possuía. Klimontów, a
primitiva localidade, surge como cidade, conservando o nome antigo, em 2 de janeiro de
1604 (KLIDZIO 2007, p. 14). O tratado que reconhecia a antiga localidade como
cidade, que assegurava a formação da mesma por pessoas livres, sem restrições de
doutrinas, deu início a um processo de crescimento local, pautado em benefícios aos
seus moradores.
O desenvolvimento e a prosperidade da nova cidade provocaram, por sua vez, o
interesse de novos habitantes. Data desse período, a chegada dos judeus em tal
território. Os mesmos “eram muito conhecidos na Polônia, por suas habilidades de
artesãos, de negociantes e de usurários. O espírito de tolerância, instalado em
Klimontów, permite também a tranqüila instalação destes no local” (KLIDZIO 2007, p.
15).
28
Vale destacar que o quadro definido por Mazurek refere-se à Polônia como um
todo. Em Klimontów, a situação esboçou uma melhora com o final da primeira guerra
mundial, em 1918. Em 1920, a cidade registra 600 habitantes, sendo que, destes, 80%
são judeus e se mantêm com características rurais.
O que acontecia com a pequena cidade seguia uma tendência nacional, pois a
Polônia havia recuperado a sua soberania com o final da guerra. Neste período, os
judeus, o mais numeroso grupo étnico do país, encontrava-se, mais uma vez, com seus
direitos amparados, legalmente, em decorrência do Tratado das Minorias, assinado na
Conferência da Paz, em Versalhes, 1919:
Comecei a estudar muito cedo, como era comum numa cidade pequena da
Europa Central. A escola funcionava ao lado da sinagoga. O primeiro
alfabeto que aprendi foi o ídiche – não aprendi o hebraico propriamente.
Aprendi as rezas, alguém me traduzia a frase toda, a prece, o versículo.
Tenho lembranças da vida na aldeia, lembranças do inverno, da vida
religiosa, da convivência com os parentes, lembranças inclusive de um
mundo que não existe mais e que mais tarde passou a me interessar por ser
um mundo – não sei me localizar bem – talvez da Idade Média, ou do século
XVII. Um grupo judaico que se organiza em determinada região, mesmo
quando a religião não tem um caráter muito forte, possui mais um sentido de
tradição. Por isso, alguns detalhes de vida do dia-a-dia, ligados ao
nascimento, a qualquer formalidade da vida civil, me marcaram muito. Só
muito tempo depois fui dá importância àquilo, que estava ligado a um
movimento que Martin Buber andou estudando – o Hassidismo – um
movimento religioso da Europa Oriental, e que chegou a ter uma importância
enorme para mim, filosófica, inclusive (COSTA, 1990, p. 142).
31
começou a escrever para teatro aos quinze, dezesseis anos, época em que
assistia a teatro intensamente, empolgado com as atuações de Bibi Ferreira,
de Paulo Porto, da Companhia “Os Comediantes” e, principalmente, com a
introdução no Brasil do teatro expressionista alemão, por Zigmund Turkov e
Ziembinski. Neste período escreveu mais de 10 peças [...] (KIRSCHBAUM,
2000, p. 08).
Nesse ensejo, a sua peça Os amantes foi encenada pela companhia de Nicete
Bruno e Paulo Goulart. Aos dezesseis anos, é aprovado em um concurso da Rádio
Ministério da Educação, onde, mais tarde, atua em rádio-teatro e na redação de
pequenos programas. Os contos começariam a ser publicados a partir de 1951, quando o
escritor já contava com 22 anos. É desconhecida a crítica à sua produção dessa época
(KIRSCHBAUM, 2000, p. 08).
Estamos atentos ao fato de que, antes de 1956, Samuel Rawet publicou alguns
textos literários, especificamente, peças de teatro e contos. Por outro lado, a nossa
delimitação, que privilegia a data inicial de 1956, objetiva, ao final do capítulo, a
apresentação das obras, coletâneas de contos e novelas, que compõem a narrativa
33
ficcional de Rawet. Ressalta-se que, a respeito do quarto período definido por Santos
(2008a), a data final de 2008 será estendida, no caso de nossa dissertação, ao ano de
2011. Por este período figurar no momento de conclusão deste trabalho, é possível a
ocorrência de omissões.
Por volta de 1951, Samuel Rawet, aos vinte e dois anos, começava a publicar, de
forma espaçada, seus contos no suplemento literário do “Diário Carioca”. Esse tipo de
veículo, aos novos escritores, era acessível e muito utilizado na divulgação de suas
obras.
No já citado depoimento a Flavio Moreira da Costa, Rawet situa a sua produção
em meio a este mecanismo: “aqueles tempos, todo jornal tinha um suplemento. A
grande emoção era sábado à noite ficar tomando chope com os amigos até de
madrugada, pra esperar o jornal de domingo às quatro da manhã a fim de ver se o conto
havia saído ou não. Era uma farra” (COSTA, 1990, p. 145).
Mais adiante, o autor destaca o momento da publicação de sua primeira
coletânea de contos, obtida a partir do contato com o mesmo jornal:
A vida profissional a que se refere Samuel Rawet seria a sua atuação como
engenheiro na Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil - NOVACAP. O
profissional, à época, calculava o monumento dos Pracinhas. Esse período é marcado
pelo contato com o poeta Joaquim Cardozo.
Para Santos, a crítica que compreende o lançamento do primeiro livro de Rawet
“levantou o problema do escritor com o espaço público, reivindicando alguns a adesão
34
O conto é mais fácil que seus irmãos maiores porque requer a fixação de um
momento e a suficiente penetração psicológica que lhe revelará a essência,
tudo num pequeno número de páginas, enquanto a novela ou o romance
exigem, além dessas qualidades, a capacidade de se prolongar a atmosfera da
história e a própria história por muitas páginas, quando a uniformidade
estilística poderá romper-se com ou os protagonistas se sucederem
desarticulados e frouxos (JOBIM, 2008, p. 67).
6
A ligação das produções de Rosa e Rawet será mencionada, de forma breve, por Appel (2008, p. 113) e,
de maneira mais intensa, nos trabalhos de Brasil (1969; 1973; 1975a, 1975b; 1979; 1980 e 1995b). Por
conta dessa recorrência, analisamos os trabalhos de Brasil destacando as proximidades literárias que, aos
olhos do estudioso, caracterizam os dois artistas como representantes da “Geração de 1956”
(GONÇALVES, 2011, p. 439-461). No caso dessa dissertação, essa questão será tratada adiante, ainda
neste capítulo.
36
Eis que é um mundo amargo e fascinante, esse dos Contos do imigrante, com
sua poesia heróica, sua tragédia anônima, seu desempenho surdo. Um mundo
que se achava à espera de um talento novo e corajoso, como o de Samuel
Rawet, para tentar o mergulho e a sondagem. Este livro é daqueles de que
saímos um pouco chamuscados (CUNHA, 2008, p. 52).
A frase do poeta português Cesário Verde teria sido escutada pelo seu amigo,
jornalista e poeta, Silva Pinto, em uma das visitas ao túmulo do amigo. De acordo com a
história literária, a frase de Verde motivou Pinto editar O livro de Cesário Verde, em
1887. De qualquer forma, o exemplo, utilizado para analisar para Rawet, soa
anacrônico.
Ao definir a coletânea, a jornalista reproduz alguns aspectos utilizados por
Cunha (2008) para apresentar a obra. Embora com objetivos opostos, no nível da
caracterização da literatura de Rawet, os trabalhos apresentam uma regularidade na
definição de uma narrativa que desestrutura a noção aristotélica de tempo, investe na
linguagem enxuta, na força dos diálogos, e se filia a grandes nomes da literatura
mundial.
A escritora, porém, finaliza o seu texto dizendo que o livro é digno de ser
aplaudido. A ensaísta encontra forças para, de forma picaresca, atribuir ao seu amigo
Heráclito Sales o direito e o dever de analisar o livro de Samuel Rawet. Uma proposta
de minimizar seus comentários? Talvez.
A historiografia de Samuel Rawet, em 1956, registra outra resenha, esta, de
Reginaldo Jardim. Desse escrito, destacamos o trecho em que seu autor sinaliza os
motivos do possível distanciamento entre a obra do primeiro e seu público leitor. Para o
analista, o aspecto de maior valor da obra é responsável por outro que a torna menos
atraente:
Rawet. Aqui, é possível pensar que o tratamento exigido por Jardim seria responsável
pela criação de outra obra, não Contos do Imigrante.
Para fechar o ano de 1956, escolhemos as palavras daquela que sempre foi uma
referência literária e pessoal para Samuel Rawet: Dinah Silveira de Queiroz. Em “Carta
sobre os Contos do Imigrante”, a escritora, embevecida pela estreia de seu irmão mais
novo de ofício, saúda o escritor e sua obra.
A estratégia utilizada pela artista consiste em iniciar seu texto com as
recordações do dia em que recebeu o amigo, depois de efetuada a publicação do livro.
Ao descrever o encontro de Rawet “com seu primeiro filho” (QUEIROZ, 2008, p. 56),
Queiroz traça um panorama do estado geral daquilo que representa esse momento na
vida de um escritor.
A escritora aproveita para destacar, sobre a origem étnica de seu amigo, que não
o julga, muito menos o entende
[...] como um ser dilacerado entre dois mundos, em que tudo se define com
adesão ou repulsa, como o Fausto, o Canabrava, ou qualquer nosso primo ou
parente. É curioso, como se define para nós um estrangeiro: no homem que
não sabe rir conosco, que não pega as nossas “piadas” acrescentando a essas
melhores anedotas comovido se falássemos de um amigo morto, que
pertencia ao nosso clã, pela fala e pelo coração (QUEIROZ, 2008, p. 56-57).
7
Sobre a amizade e o carinho dispensado por Dinah a Rawet e outros novos escritores, em Café da
Manhã, coletânea de crônicas, encontra-se a seguinte dedicatória da escritora: “Dedico estas crônicas aos
meus queridos amigos Fausto Cunha, Renard Perez, Luiz Canabrava, Samuel Rawet, Nathaniel Dantas,
39
Fábio Lucas, Teresinha Éboli, Leda Barreto, à memória de Jones Rocha e a outros escritores que deram a
maior honra já recebida por esta cronista: a iniciação nas letras através da coluna ‘Café da Manhã’,
exatamente há vinte anos” (QUEIROZ, [1979], p. 09).
8
Para exemplificar a sua fala, Guinsburg não cita autores e obras anteriores a Rawet. Alguns exemplos
dessa produção podem ser encontrados em Breve história dos judeus no Brasil (SEREBRENICK;
LIPINER, 1962). A obra divida em duas partes, de autoria, respectivamente, de um dos estudiosos,
reserva, na segunda, sob a responsabilidade de Elias Lipiner, um curto panorama da “produção literária
judaica no Brasil” (p. 35). Curiosamente, de suas datas marco, 1925 a 1959, não encontramos a citação do
nome de Rawet. Conferir, especialmente, da página 135 a 140.
40
expressiva e pessoal, com tanto zelo artístico que, de nossa parte, não
hesitamos em situá-lo entre os melhores expoentes do tema. Numa antologia
do conto internacional sobre a emigração judaica o seu nome não deveria
faltar (GUINSBURG, 2008, p. 77).
Para exemplificar a sua tese, aproxima o que define como “[...] o ambiente onde
fulguram as intuições de um romance [de Virginia Woolf, por exemplo, com] a
realidade modulada subjetivamente que serve de transfundo aos poemas de Mallarmé”
(MARQUES, 1957, p. 148-149). Obtidos pelos aspectos formais do stream of
conciousness, essa literatura, ainda para Marques,
Para justificar os dois aspectos, Marques afirma que a obra de Rawet deixa uma
impressão final não de dificuldade, mas de turvação, provocada pelo conteúdo mental
das personagens. A linguagem elíptica, os verbos na terceira pessoa, quase sempre sem
sujeitos explícitos, e o discurso indireto foram responsáveis pela criação de um efeito
perturbador: “[...] tive mais de uma vez a sensação de achar-me perdido
irremediavelmente” (MARQUES, 1957, p. 153-154).
Antes de concluir, o pesquisador sinaliza uma constante em todos os contos: “o
insulamento das personagens em situações especiais, de jeito a lhe permitirem mais
facilmente o desnudamento da consciência destas” (MARQUES, 1957, p. 156). As
42
9
A partir deste ponto, nos referimos à obra, apenas, como Viagens de Ahasverus.
43
Ainda neste ponto, o prefaciador tem como parâmetro a primeira obra de Rawet.
Para concluir o seu texto, não perde de vista tal parâmetro: “Se, no volume anterior,
havia ainda vagas frestas de luz, esta nova obra não nos dá a menor contemplação. É um
livro amargo da primeira à última página, porque a compreensão nunca se realiza. Para
o autor, o ‘diálogo’ não existe” (PEREZ, 2008a, p. 104). O prefácio de Perez e o tom
escolhido pelo prefaciador nos ajudarão a entender uma tendência de parte da crítica de
Rawet, muito impressionada com a sua primeira obra, responsável por uma crítica que
utilizará sempre de Contos do Imigrante como parâmetro. O risco dessa opção é não
evidenciar as particularidades que o conto de Rawet apresenta ao longo de sua
produção.
A economia linguística fundamentando o paroxismo das narrativas de Rawet
será alertada, igualmente, por Appel, em ensaio já citado: “Desligado de todos os
elementos circunstanciais, o tema é levado ao seu paroxismo; a história parece liberada
de todos os seus acessórios, o conto se fazendo presente em sua essência mesma, em sua
pureza nua, infinita” (APPEL, 2008, p. 118).
Mas os parâmetros do ensaísta parecem ser os mesmos de um conto mais
tradicional que, ao ser comparado com o de Rawet, parece mais completo, afinal, com a
depuração obtida por este contista, surge o problema de seu livro: “[...] é certo que o
conto depende mais da maneira de contar do que da coisa a ser contada. Haveria apenas
uma deslocação do eixo, nada mais. Falta em Diálogo a outra metade do conto: o
assunto, a situação, o personagem” (APPEL, 2008, p. 118). A afirmativa de Appel
desconsidera toda a movimentação moderna pela qual, não só o conto, mas a narrativa,
de modo mais amplo, esboçou no início do século 19, e as novas formas de pesquisar,
na literatura, uma “realidade objetiva” (AUERBACH, 2004, p. 483).
Mais adiante, aventando uma influência de Clarice Lispector, Appel parece
responder àquilo que o próprio chamou de defeito:
45
10
Em obras posteriores, o crítico acrescenta um quarto pilar: a crítica literária, representada pelo
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil/SDJB.
49
Para ler Rawet é preciso também uma certa metamorfose, pouco dolorida. Ou
uma série de metamorfoses, se o leitor quiser participar realmente da obra,
integrando-se nela. Não garantimos, mas talvez você saia renovado após
participar das viagens de Ahasverus, apesar mesmo do cansaço que estas 65
páginas são capazes de provocar nos menos avisados. Um cansaço inerente a
todas as obras conscientes e, por isso mesmo, perturbadoras (TROSS, 2008,
p. 227).
11
A respeito da produção ensaística de Rawet, em 2007, a editora Civilização Brasileira publicou Samuel
Rawet: Ensaios reunidos, sob os cuidados de Rosana Khol Bines e Leonardo Tonus, obra que organiza
essa vertente da produção intelectual do escritor. É dessa obra a primeira epígrafe citada em nosso
trabalho.
52
possível encontrar uma menção elogiosa a Rawet: aqui, conseguimos reunir quatro
pequenos textos (entre artigos, resenhas e ensaios) e dez livros.
Sob a égide de A nova literatura, em 1973, o crítico piauiense lança aquela que
seria a sua história crítica da literatura brasileira. Nesse sentido, encontramos quatro
volumes dedicados ao romance, a poesia, ao conto e à crítica, respectivamente.
O autor parte do pressuposto de que o cenário da literatura brasileira vivencia,
naquele ponto, uma fase “nova”, adjetivo que será utilizado com exaustão no título dos
volumes, na divisão e classificação dos autores que serão estudados. A fase
caracterizada como tal tem como ponto de partida a crítica estabelecida por Brasil aos
“críticos desinformados” e aos “leitores apressados”. Sobre esses críticos, a pecha de
“desinformados” se deve ao fato de que, segundo Brasil, os mesmos, postulavam, até
então, que “[...] depois de João Guimarães Rosa nada mais aconteceu na ficção
brasileira” (BRASIL, 1973, p. 15). Aqui, o teórico se refere, especificamente, à prosa.
Para o estudioso, em um plano geral, a construção de seu pensamento vai de
encontro ao “[...] brado que se ouve, bastante alarmante, [...] de que a literatura entrou
em crise ou está, o que é pior, estagnada” (BRASIL, 1973, p. 15). Em meio a esta
discussão, Brasil admite a existência de uma “crise” nos meios de divulgação da
literatura, mas, a este aspecto, não dá vazão. Por outro lado, prefere
[...] falar em uma crise positiva, pois todo o surgimento de uma nova
“escola”, nova “onda”, ou novo “gênero”, se processa através de uma crise
do já feito, do já experimentado, do já visto e repetido. E o artista, sempre
como um visionário, vai à crista dessa crise, sai ao encontro de um novo
mundo. Suas armas? Por vezes a ingenuidade ou a pureza do criador, nu
diante do mundo que ele quer reinventar (BRASIL, 1973, p. 16, grifos no
original).
12
Em seu Dicionário prático de literatura brasileira, depois de arrolar algumas informações biográficas
sobre o escritor Samuel Rawet, assim como uma breve descrição estética de sua produção contística,
Brasil relembra os três marcos da Geração de 1956, destacando que, nestes, ocorre “[...] uma pesquisa de
formas e de linguagens nunca empreendida antes” (BRASIL, 1979, p. 288).
54
A ligação estética realizada por Brasil, entre Rawet e Rosa, embora esteja
tratando de um romance e de uma coletânea de contos, expõe uma aproximação das
construções narrativas dos dois escritores e o efeito semelhante provocado numa crítica
despreparada para analisar tais obras. Antes de passar para o volume dedicado à poesia,
encontramos um estudo de Brasil, publicado em 1974, em que esta relação estética entre
as obras de Rawet e Rosa são o ponto de partida para a construção da apresentação do
primeiro13.
Depois do ensaio Guimarães Rosa (1969), em que registra o nome de Rawet
como uma das três referências básicas para a renovação da nossa literatura, Brasil
retoma o assunto e, mais uma vez, reforça que seria Rawet “[...] uma espécie de
pioneiro, de visionário das novas conquistas e conquistas do conto brasileiro hoje”
(BRASIL, 2008c, p. 281).
Na medida em que apresenta o material literário de Rawet publicado até então,
Brasil rebate o tom da crítica predominante nesse período quando se trata da análise de
tal obra: a ideia de que a literatura rawetiana seria uma transposição da vida real. A esse
respeito, é exemplar a afirmação do crítico sobre Viagens de Ahasverus:
Porém, antes que seu leitor desvie de seu foco e se perca, Brasil alerta que
quando se refere ao artista que vive a sua arte, não quer dizer que “[...] a biografia do
artista seja a sua própria obra, mas tão somente deixar claro que certas ‘imposições’
culturais levam o artista a ser ‘intérprete’ de sua própria raça ou seu próprio destino”.
(BRASIL, 2008c, p. 285-286). Essa interpretação, obviamente, reside de forma
específica no tratamento estético que recebe as palavras na configuração de uma
linguagem literária.
13
Nas referências, a data do ensaio é 2008c.
55
Para exemplificar com outros nomes, Brasil rememora Kafka, James Joyce e
Hermann Hesse, em um plano internacional, e Guimarães Rosa, no plano da literatura
brasileira. Mais adiante, explica seu ponto de vista sobre Rawet alertando que
14
Em obra mais recente, Teoria e prática da crítica literária, o estudioso rememora os dois nomes, o de
Rosa e o de Lispector, no momento em que traça os “Aspectos históricos do conto”. Para o crítico, os dois
“são os nossos revolucionários no conto novo: alto nível literário da linguagem, síntese criativa, técnica
aprimorada. Já não contam propriamente uma história, criam um clima, uma tensão, transpondo a sua
prosa para a fronteira da poesia”. (BRASIL, 1995a, p. 246).
15
Essa ideia poderá ser encontrada, mais uma vez, em Brasil (1980, p. 240).
57
Na resenha sobre Rawet, Assis Brasil afirma que o escritor foi “uma espécie de
pioneiro, de visionário das novas conquistas e pesquisas do conto brasileiro de hoje”
16
(BRASIL, 1975b, p. 67) . Sobre esta primeira coletânea, mais uma vez,
comparativamente com Grande Sertão: Veredas, ocorreu o que o estudioso, agora,
definiu como “[...] desorientação momentânea da crítica em relação a seus valores
estéticos” (BRASIL, 1975b, p. 67), o que já tinha afirmado no primeiro volume,
dedicado ao romance, sem detalhar muito seu pensamento.
Depois de mais algumas informações sobre Contos do Imigrante (1956), Assis
Brasil ainda menciona outras obras de Rawet, tais como Diálogo (1963), Abama (1964),
Sete Sonhos (1967), Viagens de Ahasverus (1970). Por fim, destaca que é importante
não esquecer O Terreno de uma Polegada Quadrada (1969). Sobre este último livro,
reforça que se trata de “[...] uma experiência de Rawet à procura de situar o ‘espaço’ do
humano, num mundo caótico e sem meta. A técnica empregada aqui é caótica, bem
realizada, e o trabalho se destaca como um de seus mais inventivos” (BRASIL, 1975b,
p. 72). Para concluir, afirma que, devido à má divulgação da boa literatura, o grande
público desconhece esse que, “[...] embora ainda jovem, está no nível de nossos
melhores ficcionistas” (BRASIL, 1975b, p. 72). Em mais esse caso, Brasil tem em vista
o conto mundial, especificamente, o europeu.
Com o objetivo de analisar o motivo da viagem na obra de Rawet publicada até
o ano de 1977, composta por quatro novelas e mais de quarenta contos, Silverman
defende uma semelhança constante em tal produção devido à utilização desse aspecto.
Neste conjunto, “enredo, conteúdo e forma são utilizados para produzir um movimento
espontâneo fluido, ora circular, ora não, mas sempre um movimento em que a fuga se
torna multidimensional: psicológica, fisiológica, sociológica, geográfica – até
lingüística” (SILVERMAN, 2008, p. 345).
De acordo com o estudioso,
16
Termos utilizados no ensaio citado de 1974. Em nosso caso, utilizamos a versão publicada em 2008c.
58
passagem: “[...] seu corpo longo e magro, ideal também atingido de pureza e
sensibilidade, encovava-se numa poltrona, e de pernas cruzadas lançava os pensamentos
para o além de um cotidiano aborrecido e estéril” (RAWET, 2004, p. 164, grifos
nossos) 17. Nesse conto, numa manhã, a personagem principal, um homem sem maiores
caracterizações, reflete sobre o ovo da galinha de Colombo, enquanto recorda cenas
ocorridas no dia anterior no escritório em que trabalha.
Nesse sentido, sobre os trabalhos analíticos da obra de Rawet, data de 1977, a
resenha escrita por Beth Brait em face da publicação da segunda edição da coletânea
Diálogo. De acordo com a estudiosa:
17
A partir desse ponto, todas as citações literárias de Rawet são referenciadas, apenas, com o número da
página.
59
18
Os trabalhos são: “A experiência do trágico (Recordando Rawet...)”, de Gilda Salem Szklo; “Rawet,
solitário nas obras e na morte”, sem autoria, publicado no jornal O estado de São Paulo; e, por último,
”Rawet, a solidão, na vida e na morte”, de Carlos Menezes. Os três escritos datam de 1984, ano da morte
do artista.
19
Embora, neste ponto, não seja possível afirmar, com segurança, o local e o ano exatos de publicação do
ensaio “Morreu o grande escritor”, é possível depreender de sua leitura e dos objetivos de Teoria e
prática da crítica literária – dar seguimento aos estudos do pesquisador de A nova literatura (em seus
quatro volumes), agora, tendo vista a literatura brasileira da década de 1980 –, que tal ensaio foi escrito,
imediatamente, depois da morte de Rawet.
61
João Guimarães Rosa tinha extrapolado, por alguma razão oculta, o fechado
círculo da vida literária, talvez pela polêmica que motivou sua obra, talvez
por ser do Itamarati e conseguir abrir algumas portas, talvez por ter sido
chamado de “equívoco” e de “gênio” ao mesmo tempo. O certo é que ele teve
manchete na primeira página de jornal quando morreu, como esses políticos
menores e medíocres tem sempre (BRASIL, 1995b, p. 278).
20
Segundo Bazzo (1997, p. 27), em 26 de agosto de 1984, o jornal Correio Brasiliense publicou entre as
suas matérias, a seguinte nota, reproduzida em sua formatação original, em itálico:
O engenheiro e escritor Samuel Rawet, de 56 anos, foi encontrado, na noite de sexta feira, morto
em sua residência, em Sobradinho, vítima de um aneurisma cerebral. Especialista em cálculos, Rawet foi
um dos responsáveis pelos mais importantes edifícios de Brasília e também dedicava-se às letras. Entre
suas obras, destaca-se (sic) Contos do imigrante - 1956, Diálogo – 1963, a novela Abama 1964, Sete
Sonhos – 1967 e vários ensaios.
Desde 1947 radicado no Brasil, o judeu-polonês, segundo amigos íntimos, era uma pessoa
extremamente retraída o que, comentavam, dificultava a divulgação de seu trabalho literário. Entretanto,
era, reconhecidamente, sensível contista, sensibilidade que o isolou nos últimos anos de vida, por
renegar padrões do mundo contemporâneo.
Em Brasília era uma pessoa só. Não aceitava nem os laços familiares. Mesmo assim sua
ausência foi notada por seus vizinhos que chamaram a polícia, que encontrou o corpo já em estado de
decomposição. Segundo o laudo médico, Rawet já estava morto há quatro dias.
Rawet era, nos últimos tempos, funcionário da Novacap [Companhia Urbanizadora da Nova
Capital do Brasil] e morava em Sobradinho há dois anos. Entre as diversas atividades que exerceu em
Brasília, foi professor do departamento de Arquitetura da UnB [Universidade de Brasília] e membro da
Associação Nacional dos Escritores.
Considerado como renovador do conto entre os escritores de Brasília, Samuel Rawet nasceu em
Klimontose (sic) na Polônia, em 1929. Aos 7 anos veio para o Brasil graduando-se em 1953 pela escola
de engenharia na antiga Universidade do Brasil. Como engenheiro calculista integrou a equipe do
também engenheiro e poeta Joaquim Cardozo, nos primeiro tempos de Brasília (CORREIO
BRASILIENSE apud BAZZO, 1997, p. 27). Sobre a causa mortis, a informação do aneurisma é colocada
sob dúvida por Kirschbaum, que aventa uma segunda versão para o falecimento do escritor, o suicídio
(KIRSCHBAUM, 2004, p. 6).
62
Mais uma vez, pensar na postura de um filão de escritores atuais que não se
deixa intimidar com a exposição pública, e que faz disso parte da divulgação de suas
obras faz de Rosa um escritor mais atento a esses processos. Isso não significa dizer que
o mesmo empregou os mesmo métodos que um escritor da linhagem de Paulo Coelho
na divulgação de seu material, mas que, a seu modo, soube divulgar o seu trabalho. Por
outro lado,
O primeiro desses estudos, assinado por Gilda Salem Szklo, pretende uma breve
apresentação da obra do contista e, para tanto, a divide em três grandes áreas temáticas:
(a) A experiência do trágico. O drama do imigrante judeu; (b) os dramas familiares; e,
(c) O imaginário e a realidade. A condição precária do indivíduo e o sentido da busca.
Na primeira parte, a autora concentra a sua atenção mais especificamente a
Contos do Imigrante, e, em menor medida, a Diálogo e Viagens de Ahasverus. A
respeito da primeira coletânea, afirma que:
Com trechos como esse, o que seria uma apresentação da obra, se transforma na
apresentação da vida de Rawet. A passagem abaixo, em que inclui o nome do contista
em um dos nomes do título de um de seus livros, acentua essa abordagem:
O que se verifica é que, da forma que está posta, a análise da obra de Rawet,
motivação anunciada no início do escrito, se reveste da insígnia de psicanalista para
67
[...] viveu solitário, como a absoluta maioria dos personagens de seus contos.
E foi por esse motivo que apenas no final de semana passada se soube de sua
morte – o corpo de Samuel Rawet já se encontrava em estado de
decomposição há alguns dias, numa casa na cidade-satélite de Sobradinho,
21
A esse respeito, cf. Passos (2001, p. 67-91), especialmente a parte conclusiva do ensaio intitulada
“Intersecção entre o conto e outros conhecimentos”.
22
O trecho destacado por Szklo foi retirado de Viagens de Ahasverus. Cf. Rawet (2004, p. 473), onde se
lê a mesma passagem com os itálicos do autor: “mas o horizonte que justifica o aqui e o agora”.
68
Tratando a figura de Rawet como personagem que optou por viver na solidão, o
texto se concentra em relembrar sumariamente alguns dados de sua obra, no entanto,
foca mesmo no aspecto solitário da figura rememorada, a exemplo de mais essa
passagem: “Para quem dizia, também, que sua fonte de inspiração era Gorki,
contraditoriamente a este, a solidão ficava cada vez mais marcada. Sua casa em
Sobradinho era um verdadeiro claustro. E seus personagens habitantes desse claustro”
(O ESTADO DE..., 2008b, p. 409).
Publicado alguns dias depois, o texto de Menezes (2008) é, curiosamente,
parecido com o anônimo, veiculado no Estado de São Paulo. Os aspectos nos quais se
assemelham são muitos, a exemplo da escolha da mesma passagem da entrevista de
Rawet concedida a Danilo Gomes (2008a). Evocando a notícia da morte, proferida por
Renard Perez, Menezes separa as informações sobre dados biográficos e pinceladas
sobre a obra de Rawet.
Nesse segundo aspecto, evoca a aproximação vida/obra como processos de causa
e efeito, a exemplo do que se segue: “[...] na sua vida real, também, o escritor se sentiu,
constantemente, num mundo de grande solidão, o que o levava a explorações
angustiadas” (MENEZES, 2008, p. 413). Para concluir, utiliza-se de uma afirmação de
Caio Fernando Abreu em que este define Rawet, em conjunto com Clarice Lispector,
como principal renovador do nosso conto nas décadas de 1950 e 1960.
Na verificação do volume de cartas de Caio Fernando Abreu (2002), não foi
possível encontrar tal passagem a respeito dos dois escritores. No conjunto de três
correspondências em que manteve contato com a escritora Hilda Hilst, no ano de 1969,
encontramos duas menções ao nome de Rawet. Na primeira, o emissor cobra de sua
interlocutora suas impressões sobre alguns livros emprestados. Das obras, apenas a
coletânea Sete Sonhos, de Rawet, é citada:
Nesse Os sete sonhos, ele está bem mais fraco que nos livros anteriores e
com a temática um pouco fixada no problema homossexual. Mas mesmo
assim, é bom. Maura Lopes Cançado tem o mesmo problema de temática
fixa: nela, é a loucura. Deixando de lado isso, ambos têm um nível de
linguagem excelente e são das melhores coisas no conto brasileiro (basta
você lembrar dos premiados do Paraná) (ABREU, 2002, p. [361]).
69
Tens razão quando falas na importância das coisas terem sangue: Fuentes não
tem, Rawet é elaborado demais, a Cançado ainda não se recuperou da
temporada no hospício e a Barroso ainda insiste nas tias, nos solares e coisas
quetais. Mas é o melhor que temos, não é trágico? (ABREU, 2002, p. [369],
grifo nosso).
O estilo ácido de Abreu fica evidente em todo o volume. Nesse caso, além dos já
citados Rawet e Cançado, ele se refere a Carlos Fuentes, escritor nascido no Panamá e
de nacionalidade mexicana, e ao seu livro Aura, e a Maria Alice Barroso, sem
mencionar uma obra específica, mas que, naquela altura, havia lançado os romances Os
posseiros, 1955; História de um casamento, 1960; Um simples afeto recíproco, 1962;
Um nome para matar, 1967; Quem matou Pacífico?, 1969; e a novela Um dia vamos rir
disso tudo, 1976. A análise que Abreu estabelece da obra de Rawet é construída na
ideia dúbia de que a qualidade atrapalha na divulgação e na fruição da literatura
rawetiana.
23
O tópico relacionado à inscrição dupla de Rawet tinha sido apontado por Paes (1999), em estudo que
será citado adiante, no terceiro capítulo.
72
3.1 As dissertações
24
Os bancos de dados pesquisados foram: Banco de Teses e Dissertações da CAPES,
<http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/>, Thesaurus Brasileiro da Educação (Brased),
<http://www.inep.gov.br/pesquisa/thesaurus/> e Biblioteca Brasileira Digital de Teses e Dissertações, <
http://bdtd.ibict.br/pt/inicio.html>. Além de consultas regulares durante os dois anos de pesquisa, uma
última verificação foi realizada no dia 24 de janeiro de 2012.
73
25
O acesso à dissertação só foi possível através de uma cópia reproduzida de um exemplar da biblioteca
central da UNB. Pelo auxílio em Brasília, agradecemos a Jakeline Souza Costa.
74
desconhecido, bem como a sua expansão do interesse provocada pela leitura de Contos
do Imigrante, o que nos acometeria mais de duas décadas depois.
Nesse primeiro momento, o estudo fará uma apresentação das cinco coletâneas
de contos de Rawet (I.1 Contos do Imigrante; I.2 Diálogo; I.3 Os sete sonhos; I.4 O
terreno de uma polegada quadrada; e, I.5 Que os mortos enterrem os seus mortos). Na
parte I.4, uma subdivisão de três tópicos, não sinalizados no sumário, especifica os
temas recorrentes na obra em questão, ou seja, a 1. Criação; o 2. Exílio; e a 3. Loucura.
Em seguida, conclui a apresentação temática de O terreno de uma polegada quadrada
com um tópico que repete a numeração “3”, intitulada “Os pontos e contrapontos
temáticos da narrativa”. Essa divisão confunde a leitura e a verificação das partes do
estudo.
Seguindo, na apresentação de Que os Mortos enterrem os seus mortos, agora,
devidamente, sinalizada como o tópico I.5, a autora afirma que a coletânea possui
dezessete contos, quando, na verdade, possui dezoito. Aqui, destaca a ocorrência dos
animais como grande metáfora de Rawet na descrença no ser humano (VERDI, 1989, p.
86) 26. Para seguir na sua apresentação, a estudiosa resenha seis contos da coletânea:
“Moira”, “Que os mortos enterrem os seus mortos”, “A linha”, “Nem mesmo um anjo é
entrevisto no terror”, “As palavras” e “BRRKZNG: pronúncia – bah!”. Algumas das
informações apresentadas, no caso dos três contos que coincidem com a nossa escolha,
serão utilizadas por nós no nosso quarto capítulo.
O segundo capítulo, “A vida na obra – A ensaística”, é o momento em que a
estudiosa se atém aos ensaios de Rawet para justificar o que já disse e o que irá dizer
sobre as recorrências, as obsessões temáticas, na obra literária do artista. Através desse
conjunto de textos, a mesma construirá a sua investigação de uma personalidade
psicótica.
Dividido em três partes, o capítulo realiza, na primeira delas, “Limite e
estranheza”, um adendo de que os textos de Rawet não são, apenas, exposição de
“fantasmas” ou explosões frutos de comportamentos “esquizoides”, mas
26
A esse respeito, conferir a capa da primeira edição do livro em que os urubus ganham os planos de
visualização de toda a figura ilustrativa.
75
[...] nenhuma dessas obras foi escrita com o propósito de “fazer literatura”, de
ter como marco diretivo a estética, daí que, mesmo em seus “belos”
momentos, elas nos ferem, nos incomodam, nos desvelam o que não
27
Vale ressaltar, nesse ensejo, a importância da publicação dos ensaios reunidos de Rawet, sob os
cuidados de Rosana Kohl Bines e José Leonardo Tonus, pela civilização brasileira. Nessa publicação,
Consciência e valor aparece como a primeira das seis partes de Alienação e Realidade. É possível, no
entanto, encontrar uma edição separada dessa coletânea, de 1969. Não sabemos ao certo, se se tratam de
duas obras distintas.
76
Tais obsessões são, assim, fruto de “[...] uma interioridade especialmente diversa
e impressionantemente inconsciente de sua diversidade, conformam uma produção
ímpar, que não merece ser esquecida na literatura brasileira” (VERDI, 1989, p. 212). O
merecimento de atenção dessa obra se deve, para a autora, à forma que o autor apresenta
a figura do imigrante (judeu, negro, italiano) e a do psicótico em nossa literatura.
Sobre o material encontrado, um hiato de uma década separa o primeiro estudo e
a realização de Tania Fortes, “Samuel Rawet e o mito de Ahasverus”, de 199928. Nesta
data, referindo-se ao cenário acadêmico, a autora pode iniciar o seu estudo, sinalizando
o paradoxo que envolvia a obra do autor estudado: o reconhecimento pela crítica e a
indiferença dos estudos, responsáveis, segundo ela, pelo “‘esquecimento’ perante o
público de leitores” (FORTES, 1999, p. 1, grifo no original).
Nessa pesquisa, a condução dos capítulos privilegiará o desenvolvimento
temático. Portanto, a estudiosa não perderá de vista alguns dados da vida do escritor.
“Apesar de não ser a linha deste trabalho analisar a obra através da biografia do autor,
não podemos deixar de notar que o protagonista de ‘Crônica de um vagabundo’ e
também o próprio personagem Ahasverus, têm semelhanças com Rawet” (FORTES,
1999, p. 6).
Por outro lado, nota-se que, ao longo de sua exposição, Fortes exemplifica tais
semelhanças com vasta bibliografia sobre e de Samuel Rawet. Desse modo, a mesma
foge da postura determinista que a passagem a cima parece denunciar.
No momento de explicitar os seus objetivos, a estratégia utilizada é clara e
direta. Na delimitação do recorte, a estudiosa explica que utilizará “Viagens de
Ahasverus como objeto de análise central, por ser uma referência na obra do escritor,
uma vez que esta capta um dos leitmotiv utilizados por Rawet em seus demais livros: a
do homem em busca constante do seu destino” (FORTES, 1999, p. 11). Esse resultado
será obtido a partir da observação das intertextualidades presentes na obra de Rawet.
Em sua leitura, há a percepção de que Rawet irá reger a narrativa com técnica
pós-moderna, atribuindo à narrativa o caráter de metaficção historiográfica, composta
por conceitos como mundo figurado, extratextualidade e intertextualidade, ambos
28
O nosso acesso a esse trabalho se deve a uma cópia reproduzida por Lidiane Kasiorowski Borges e
Clayton Garcia Silva, a quem aproveitamos a oportunidade para agradecer. A reprodução é autorizada
pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
77
desenvolvidos por Linda Hutcheon (1991). O estudo será divido em dois capítulos, “O
mito do judeu errante” e “Viagens de Ahasverus”, além da “Apresentação”,
“Introdução” e “Considerações Finais”.
Mais adiante, a pesquisadora se empenha na definição teórica e metodológica de
sua pesquisa, tendo como base a classificação da obra como um romance pós-
modernista, onde predomina a metaficção historiográfica. Pensando nos conceitos de
Hutcheon (1991) e na obra a ser analisada, Fortes afirma que:
A esse respeito, nota-se que a autora não realiza uma explicitação sobre o
preterimento da categoria novela, por exemplo. De tal conceituação romanesca, uma
dúvida permanece: tal proposição apresenta uma noção supervalorizada de romance, da
qual seriam o conto e a novela duas formas menores?
Por outro lado, concordamos com a ideia de que, na análise dos textos de Rawet,
é verificável uma “[...] semelhança na caracterização de suas personagens, na
configuração espacial, e na temática” (FORTES, 1999, p. 17). Esta afirmativa, de fato,
pode ser comprovada, por exemplo, na leitura de “Crônica de um vagabundo” e no livro
que Fortes analisa. A recorrência não para aí, em nosso estudo, por exemplo, o
aparecimento das três personagens do conto “Trio”, que será analisado em nosso quarto
capítulo, ocorre, primeiramente, em Viagens de Ahasverus, o que pretendemos
demonstrar como utilização consciente da própria literatura como uma faceta da
construção do projeto estético de Rawet. Esse reaproveitamento dos três tipos que
aparecem em Viagens de Ahasverus é lembrado em outros trabalhos sobre a obra do
contista29.
O outro pressuposto básico para a realização desse trabalho será o de que:
29
Cf. Verdi (1989, p. 179) e Fortes (1999, p. 13 e p. 123-127).
78
30
É possível encontrar a recensão do mito em trabalhos de mais fácil acesso. No verbete de Unterman
(1992, p. 140), num primeiro momento, há a definição a partir dessa versão mais popular. Em seguida, o
autor realiza uma relação deste com a história bíblica de Caim, que se torna errante após o pecado de
assassinar o próprio irmão. Menos sucinto que o de Unterman é o verbete disposto em Brunel (p. 1997, p.
665-672). Aos interessados no assunto, um resumo objetivo das obras específicas e, em sua maioria,
escritas em inglês, é apresentado por Fortes (1999), o que demonstra uma investigação exaustiva por parte
da mesma.
79
Eles serão parte da escatologia cristã coletiva. Eles serão aceitos no reino do
céu, com a volta de Jesus. Daí surge a idéia de que é permito humilhar o
judeu e persegui-lo, mas não matá-lo, porque ele é parte do mundo cristão,
apesar de ser estranho a ele e ser errante dentro dele (FORTES, 1999, p. 38).
[...] o leitor não é levado a pensar que todo o sobrevivente do nazismo que
veio para o Brasil ao encontro de familiares foi recebido com indiferença,
que todos os ortodoxos foram escarnecidos por seu arcaísmo, que todos os
refugiados que não tinham parentes ou amigos aqui foram despachados para
um subúrbio, um cortiço qualquer, forçados a prover seu próprio sustento
num ambiente inóspito. Absolutamente, Rawet não trata de generalizar,
reduzir (KIRSCHBAUM, 2000, p. 67).
31
Como no caso de Verdi (1989), o acesso a esta dissertação só foi possível através de uma cópia
reproduzida de um exemplar da biblioteca central da Universidade de Brasília - UNB.
83
Nessa parte, utiliza-se dos ensaios de Benjamin sobre Baudelaire, além de sua
produção da década de 1930. A dissertação é concluída com o reforço da ideia de que a
obra de Rawet não está isenta da degradação generalizada da experiência que atinge a
sociedade moderna.
O estudo de Stella Montalvão Ferraz (2004), Representando o preconceito: eu e
o outro em contos brasileiros contemporâneos, segue a linha dos estudos da
representação social de grupos marginalizados, de vitimizados pelos estigmas etc. Para
a estudiosa, “[...] essas vertentes surgem da necessidade, que os grupos marginalizados
começam a impor à sociedade brasileira, de dar voz a esses que, juntos, formam a
grande maioria do povo brasileiro” (FERRAZ, 2004, p. 12). O estudo foi realizado na
UNB.
Em meio a esse contexto, a estudiosa esclarece que a proposta de seu trabalho
reside em analisar a representação dos preconceitos que atingem as minorias sociais em
obras de autores contemporâneos:
Sobre esse trecho, é curioso notar que a única obra de Kierkegaard referenciada
pela estudiosa é The Concept of Anxiety, 1980. Por outro lado, a citação acima retoma
uma obra de 1999.
Ainda sobre o excerto a cima, não é fácil depreender o que torna esse material
elegível como objeto. A informação de que se trata de narrativas curtas dificulta nossa
compreensão porque a autora não esclarece sobre qual conceituação de conto e de
novela está trabalhando. Até que ponto e sob quais parâmetros Abama poderia ser
considerada uma narrativa curta?
Mais adiante, Duarte (2006) explicita o que poderia ser o motivo de união desses
quatro textos de Rawet: a recorrência do aparecimento da figura do outsider. Neste
ponto, ela se aproxima de Ferraz (2004) na busca pelos estigmatizados sociais que
subjazem a obra de Rawet, assim como suas personagens, denominado outsider. No
entanto, Duarte explica que não busca
Nota-se que parte da teorização escolhida para sustentar a análise coincide com a
de Ferraz (2004): “Estaremos também retomando alguns conceitos pertinentes
encontrados nas narrativas de Rawet como o desajuste, o ‘estrangeirismo’, o ódio e a
revolta, tendo como alicerces teóricos os estudos de autores como Erving Goffman,
Julia Kristeva, Georg Simmel e Albert Camus” (DUARTE, 2006, p. 14).
87
Essa violenta pedagogia parece assinalar a vida do escritor de tal maneira que
alguns pesquisadores de sua obra, em particular, do conto “Gringuinho”, [...],
acreditam ser essa narrativa uma possível autobiografia de sua dura infância.
[...] Contudo, rompeu com a comunidade, melindrado, principalmente, pelo
fato de lançar a coletânea Contos do imigrante e não ser, segundo seu ponto
de vista, reconhecido pela comunidade como escritor, mas como um simples
aspirante (COELHO, 2008, p. 84-86).
Para desenvolver essa ideia, assim como o primeiro, este capítulo é divido em
mais cinco partes: “A filosofia das ruas”; “As cidades e suas práticas”; “A noite”;
“Abama” e “Sôbolos rios que vão”. Para Antunes, o cenário dessa produção de Rawet,
apresentada nos dois últimos tópicos, é o envolvimento do contista no trato de questões
filosóficas, tanto nos ensaios, quanto nos textos selecionados para o segundo capítulo.
O terceiro capítulo, “As metamorfoses híbridas”, centra-se na figura de
Ahasverus, sinônimo de errância em, praticamente, todas as versões que envolvem o
mito. A leitura, neste caso, privilegia a ambiguidade como força máxima no
desenvolvimento do núcleo temático da obra (ANTUNES, 2011, p. 16). Nesta parte,
92
3.2 As teses
34
Segundo Scliar, no prefácio do livro, “o auto-ódio é um fenômeno doentio, uma espécie de
fundamentalismo em que o inimigo diabólico é o próprio grupo a que a pessoa pertence.” (SCLIAR,
2001, p. x).
35
Utilizado na fundamentação de Baibich, Vieira (1995a, p. 62), parece relativizar a ligação Rawet-Auto-
ódio, ao afirmar que “he was capable of dramatizing the arena of conflit that produced his feelings” [“ele
foi capaz de dramatizar a arena do conflito que produziu seus sentimentos”. A tradução é de Baibich
(2007, p. 193)].
94
Vale lembrar que, em alguns casos, é na forma que se verificam os meios mais
significativos de “expressão do autor”. Esse não seria o caso da literatura rawetiana, em
que a forma é, quase sempre, vítima de intensas experimentações?
95
36
Segue a passagem de Scliar: “Eu participava numa das mesas-redondas, e nesta ocasião me foi
perguntado sobre literatura judaica no Brasil. Falei então, e com grande entusiasmo, sobre o livro de
Rawet. Terminado o debate, alguém me disse que ele estava presente. Fui procurá-lo e, disse as coisas
habituais: que tinha grande admiração por sua obra, que há muito deseja conhece-lo, etc. A reação foi
inesperada e violenta. Aos berros, Samuel Rawet disse que não queria conhecer ninguém, que estava farto
de judeus e que queria ser deixado em paz. [...] o Samuel está louco, é o que as pessoas diziam. Acho que
loucura é um rótulo pobre, e até certo ponto injusto, para descrever a atitude de Samuel Rawet, em
relação àqueles que, afinal, eram sua gente. Importante é caracterizar a forma que esta perturbação
emocional nele tomou, a do auto-ódio judaico” (SCLIAR apud BAIBICH, 2007, p. 191).
97
Jorge Luis Borges já foi adepto de Pinochet; Ezra Pound colaborava com os
nazistas. Samuel Rawet era o seu elo sadio com a vida, aquilo que o mantinha
à tona. Quando a paranoia triunfou, ele não mais pôde escrever. O que
produziu, contudo, é mais que suficiente para garantir seu lugar na literatura e
para demonstrar que o judaísmo, como o judaísmo, como a humanidade, é a
soma de várias realidades, algumas delas muito tristes (SCLIAR, 1985, p.
103).
37
No final de 2011, a versão em livro do trabalho foi publicada sob o título Viagens de um caminhante
solitário: Ética e estética na obra de Samuel Rawet.
99
38
Segundo Unterman, o termo halachá é originário do hebraico e significa “caminho” ou “trilha” e se
refere à “Tradição legalística do judaísmo, que se confronta geralmente com a teologia, a ética e o
folclore da AGADÁ. Decisões haláchicas determinam a prática normativa, e onde há divergência, tais
decisões, ao menos em teoria, seguem a opinião da MAIORIA dos rabinos [...]” (UNTERMAN, 1992, p.
112, grifos no original).
100
caracterizada como não engajada: “Não obstante, sua profunda sensibilidade ao apelo
do Outro, o imigrante, o pobre, o doente terminal, o solitário, o excluído, aproximam-no
dessa infinita responsabilidade da qual falam Levinas e Blanchot” (KIRSCHBAUM,
2004, p. 35-36, grifo no original).
Outra constatação de Kirschbaum, lendo os ensaios e entrevistas de Rawet, é a
tentativa de construção de uma imagem anti-intelectual, de filósofo amador etc. O
pesquisador demonstra, por outro lado, que o contista estaria longe dessa imagem. Um
exemplo disso é comprovado quando demonstra a relação intelectual de Rawet com
Buber e Spinoza.
Sobre as possíveis motivações para a construção dessa imagem de diletante,
Kirschbaum aponta como possibilidade o interesse de Rawet em manter a crítica focada,
apenas, em sua obra. Essa estratégia será utilizada nos escritos ficcionais do autor
através de elipses e de recursos voltados para a ironia, responsáveis por desviar a
atenção do leitor para questões triviais:
negativa do judaísmo ocorre com uma estratégia que pode ser classificada como
judaica, o que relativiza a ideia de um Rawet antissemita.
Mais adiante, o tratamento do texto literário será discutido de forma mais aberta.
Além de investigar a estrutura dos textos e a visão de mundo que delas transparece, a
pesquisa buscou na obra de Rawet “[...] os elementos que compõem seu ‘fazer literário’,
as estratégias discursivas e narrativas de que se vale para atingir seus objetivos”
(KIRSCHBAUM, 2004, p. 41).
O objetivo do segundo, “Rawet-Buber: O não-encontro como modo de ser”, será
a investigação sobre as formas pelas quais o pensamento filosófico de Buber encontra-
se incorporado no texto ficcional de Rawet. A análise do conto “Diálogo” será lastreada
pela leitura do livro Eu e Tu, de Buber, 1977; além de Eu-Tu-Ele, 1971 e Angústia e
Conhecimento, 1978, ensaios do próprio Rawet.
Kirschbaum destaca que, em certa medida, os dois pensadores podem ser
considerados contemporâneos:
[...] sentiu com mais intensidade essa condição; ao se decidir por escrever
contos e novelas curtas, tornou-se uma espécie de porta-voz dos desterrados,
dos deslocados, dos marginais. Não estou afirmando que sua vontade de
ceder a voz aos oprimidos o trouxe para a literatura; mas sim que, chamado à
literatura seja lá por qual processo, sua auto-imagem de imigrante o fez optar
pela temática dos oprimidos (KIRSCHBAUM, 2004, p. 82).
39
Em nota de rodapé, Kirschbaum se questiona: “Será o filósofo neoplatônico e poeta Shlomo ben
Yehuda Ibn Gabirol (~1021-1050 ou 1052 ou 1070), conhecido como Avicebron?” (KIRSCHBAUM,
2004, p. 106).
103
Nota-se que, por vias diversas, na conceituação que concebe o sujeito como
constituinte da História e que apresenta como processo que liga esses dois elementos
104
Esse procedimento será tratado por nós, por exemplo, como o falso abandono da
cultura judaica, o que reflete na abordagem, apenas referencial, das personagens
possivelmente judias.
Para concluir o capítulo, Kirschbaum afirma que a obra pode ser lida
40
Nos bancos de dados, não foi encontrado o arquivo da tese, concluída em 2005. Todas as citações
referem-se à publicação em livro.
106
Rawet trabalha com o conto, gênero narrativo que recusa a idéia de uma
totalidade sugerida pelo romance. Caracterizada pela brevidade, a narrativa
curta, se comparada à novela e ao romance, condensa e potencia no seu
espaço todas as possibilidades da ficção (CHIARELLI, 2007, p. 47).
configuração como narrativa curta, são questionadas com a apresentação dos próprios
objetos literários, a exemplo de “BRRKZNG: pronúncia – bah!”, de Rawet.
Pulando, deliberadamente, o segundo capítulo – específico na apresentação da
narrativa de Hatoum – do terceiro, dedicado a Rawet, destacamos a afirmativa de que
“[...] controversa e desafiadora, a literatura de Rawet passa indiscutivelmente por um
momento de revalorização. Esquecida por décadas, conhece atualmente a possibilidade
de ser apreciada por novos leitores” (CHIARELLI, 2007, p. 97). Além do crescente
interesse acadêmico pela obra de Rawet, o cenário inclui o recente lançamento dos
contos e novelas do autor, pela Civilização Brasileira.
Neste ponto, sintetiza a importância da coletânea a ser analisada, Contos do
Imigrante:
Nos contos que compõem a obra, traz novidade, tanto no conteúdo quanto na
forma dada à narrativa. Privilegiando os instantes, abandona a tradicional
linearidade do relato e funde tempos narrativos. O caráter de ruptura e de
isolamento da condição do imigrante judeu adquire aqui máxima
importância, aprofundando a temática antes referida nas obras de autores
como Mario de Andrade e Alcântara Machado [...] (CHIARELLI, 2007, p.
98).
Nota-se, até aqui, que o pensamento de Chiarelli estabelece uma crítica muito
alicerçada nos argumentos de Assis Brasil. Em mais esse trecho, sinaliza para um modo
de abordagem de Rawet e de sua obra, negando a contribuição dos estudos que utilizam
do grau de maldição do escritor como critério de valor na apreciação dos seus escritos e
a impressão de que a sua proposta irá promover o resgate redentor de sua obra. Trata-se,
por outro lado, de modos de apresentá-lo aos novos leitores: “É urgente promover o
debate em torno dos escritos de Rawet, a reflexão sobre seus contos, novelas, peças de
teatro e ensaios filosóficos, sem se ater tanto ao rótulo outsider que recebeu”
(CHIARELLI, 2007, p. 100). Neste trecho, a estudiosa parece responder aos critérios e
escolhas metodológicas de Baibich (2001), que, por sua vez, ancora-se em Igel (1997) e
Scliar (1984; 1985). Parte dessa crítica, segundo Chiarelli, é muito rigorosa quanto às
atitudes do escritor:
Ressalta-se, por outro dado, que a obra do mesmo é muito vasta, o que amplia as
suas áreas de atuação41. O tratamento da condição do imigrante judeu é, apenas, uma
das diversas faces de sua produção.
Na definição da linguagem de Rawet, a autora cria um conceito: linguagem
pedra. “Em Rawet, a linguagem assume feição árida, ensejando a dureza que me
motivou a nomeá-la de linguagem pedra, dado o grau de resistência, de impossibilidade
que transmite” (CHIARELLI, 2007, p. 115, grifos no original).
A estudiosa se refere ao que denomina influências, para destacar que, levando-se
em conta o momento de produção dos textos de Rawet, o momento de produção de sua
literatura é pautado por categorias modernas. Por isso, defende uma maneira de leitura
dessa produção:
[...] parece-me mais rentável, do ponto de vista histórico e literário, ler a obra
de Rawet a partir da perspectiva moderna, sem entretanto abdicar de
verificar que no bojo de sua temática estão presentes questões
contemporâneas, a exemplo do tópico da intolerância, da estrangeiricidade e
da diáspora (CHIARELLI, 2007, p. 116).
A autora afirma ainda que acredita “ter contribuído para construir uma ponte
teórica que facilite o acesso a esses textos, considerando que existem apenas tentativas
tateantes de se aproximar de alguns dilemas que atravessam as obras estudadas”
(CHIARELLI, 2007, p. 155). Tratando dos estudos sobre a obra de Rawet, esse
110
comentário final desconsidera muitos daqueles que aqui foram apresentados. Algumas
dessas pesquisas, em nenhum aspecto, podem ser consideradas tateantes.
Os objetivos do estudo de Engellaum (2006) são “fazer renascer o interesse pela
leitura da obra de Samuel Rawet [...] e despertar nos meios acadêmicos o desejo de
melhor entendê-la” (ENGELLAUM, 2006, p. 6). A realização de Verdi (1989) nos
mostra que esse desejo esteve adormecido, pelo menos academicamente, por dez anos, o
que se modificou com o trabalho de Fortes (1999). Desde então, com exceção de 2003,
encontra-se, pelo menos, um trabalho defendido sobre Rawet ao ano.
Em sua apresentação, justifica as motivações para a escolha do autor
relacionadas às suas origens judaicas. Antes, destaca que estudou em seu mestrado
Moacyr Scliar: “Scliar foi descoberta; Scliar é constante revelação. Rawet é descoberta,
revelação de seu ‘eu’ e de meu próprio eu. Rawet é a constante problematização do
judeu e da condição humana de maneira geral” (ENGELLAUM, 2006, p. 6). Adiante, a
autora define sua relação com a literatura desses dois escritores como “formas de
reviver esse psiquismo, de me auto-explicar tantas coisas, de enxergar em mim virtudes
e neuroses, minha paranóia judaica etc” (ENGELLAUM, 2006, p. 11).
Sobre o possível questionamento do porquê de estudar, agora, Samuel Rawet, os
motivos passam a ser determinados depois da leitura de duas de suas obras:
Para tanto, as obras escolhidas serão Abama e Viagens de Ahasverus, livros que
compõem, com relação ao conjunto da produção de Rawet, juntamente com Crônicas de
um vagabundo, uma trilogia, de acordo com a estudiosa. Aqui, a mesma não atribui à
Verdi (1989) a elaboração da ideia sobre a possibilidade de leitura das obras de Rawet
como uma trilogia, o que servirá, mais tarde, como mote para a realização de um dos
capítulos da dissertação de Fernandes (2002), igualmente ignorado por Engellaum. A
justificativa do recorte ocorre adiante:
No trecho que se segue, a mesma insere Rawet numa visão psicologizante que,
durante muito tempo, prevaleceu nos estudos literários: “Sintetizando, o que há em
essência de comum entre os autores românticos e Rawet é viver realmente a dor e o
ostracismo de seus personagens” (ENGELLAUM, 2006, p.14). Nesse caso, a visão de
parte da crítica desenvolvida no século 19, deveria, ao menos, ser modalizada42.
A “Seção 1”, abordagem teórica, apresenta e situa os movimentos históricos e
sociais que envolveram os primeiros anos de vida do escritor. Ênfase especial é dada ao
período da era Vargas, em seu primeiro governo, que durou entre 1930 e 1945.
O pós-guerra e o surgimento da Geração de 45, de acordo com a autora,
demarcaram, na literatura, forte experimentação técnica, que desembocaria em 1956, no
lançamento de Contos do Imigrante. Nos anos 1960, com as imagens do
desenvolvimento industrial projetadas pela televisão, novidade tecnológica, e com a
construção de Brasília, viria a culminância desse processo de efervescência
desenvolmentista.
Os cenários sociais e históricos muito bem recriados pela pesquisadora irão
justificar, segundo ela, a ideia de que: “[...] toda esta instabilidade social, política e
econômica, alternada por momentos de democracia e períodos ditatoriais que vimos
anteriormente, se expressa de maneira bastante peculiar na obra de Rawet”
(ENGELLAUM, 2006, p. 19). Desse modo, o panorama social e histórico do período é
traçado para que a estudiosa justifique o entendimento de que:
42
A esse respeito, conferir o estudo de Hansen (1998).
112
Se para as pessoas em geral esse conflito torna o ego social diferente do id,
para os setores minoritários, que vivem em constante processo de
readequação, particularmente na etnia judaica o estranhamento social e o
113
O próximo passo, ainda nesta seção teórica, é estabelecer uma conexão entre
Rawet, sua obra e a identidade problemática que vem sendo definida nas seções
anteriores. O que segue é a exemplificação em Viagens de Ahasverus dos porquês de tal
definição. Esse processo ocorre, por exemplo, quando a mesma afirma que, nesta
novela, simbolização da lenda do judeu errante:
Herói que se aventura por obscuros labirintos, que evidencia em sua escritura
o intenso convívio com material inconsciente, Rawet é inseparável de suas
personagens; sua vida é de tal forma próxima ao que se poderia imaginar
como a de um anti-herói trágico, que poderemos até mesmo dizer que é
possível, através de seus escritos, ensaios, contos, novelas, buscar uma trilha
única na literatura brasileira (ENGELLAUM, 2006, p. 39).
Aqui, sinaliza para um responsável por todo o processo descrito acima: a falta
absoluta de identificação com o pai: “[...] sendo o lugar do pai um lugar vazio, nada
mais natural do que passar a odiar seu povo, rejeitar sua cultura” (ENGELLAUM, 2006,
p. 42).
Depois de dedicar dois tópicos à leitura da obra ensaística de Rawet, a quarta
seção, “Abama: Obra representativa”, é dedicada à leitura desta novela. O grande
esforço empreendido na análise de tal obra resulta na sua vasta apresentação. A autora,
para facilitar a sua exposição, divide a seção em quatro sequências e se detém na
verificação das mesmas. Utiliza-se, para isso, uma nomenclatura voltada para a leitura
da narrativa, ancorada em Genette, em Discurso da narrativa, em edição de 1997.
115
Ahasverus é uma obra síntese de Rawet, não só pela reunião dos temas
obsessivos, mas sobretudo pelo fôlego com que é desenvolvida a narrativa. É
um texto de referências explícitas em seu intertexto a suas obras já criadas, é
portanto uma intertextualidade consigo próprio, melhor colocando, com sua
própria criação (ENGELLAUM, 2006, p. 76).
Nota-se que tais conclusões são a base do estudo de Fortes (1999), brevemente
descrito por nós, entre as dissertações sobre Rawet. Este último estudo, por sinal, não é
mencionado por Engellaum em nenhum momento de sua pesquisa.
Seguindo a perspectiva adotada na análise de Abama, Engellaum (2006),
novamente, divide a análise em tópicos. Dessa vez, contempla, em um primeiro
momento, a personagem Ahasverus; em seguida, as categorias autor, narrador e
personagem, a fim de investigar o ser no tempo e espaço da narrativa; e, no terceiro
momento, chegar a discussão temática da sexualidade, culpa e poder na obra; e, por fim,
a questão da loucura. O que se obtém é um resultado abrangente, didático e claro da
leitura realizada do texto literário.
As conclusões giram em torno da impossibilidade de desvincular Rawet de sua
obra, pois, “suas personagens angustiadas, solitárias, com uma permanente
incomunicabilidade com o outro, nos levam a deduzir esta possibilidade e talvez
possamos denominar o protagonista presente de Ahasverus/Rawet” (ENGELLAUM,
2006, p. 79). A análise diagnóstica conclui que a personagem Ahasverus “é exposição
perturbadora da condição do ser solitário que, por isso, aproxima-se da esquizofrenia,
ser que, como se sabe, tem uma relação muito especial consigo, com o mundo, com a
religião, podendo verdadeiramente sentir-se o próprio Deus” (ENGELLAUM, 2006, p.
79).
A esse respeito, a estudiosa, porém, faz um aparte:
Para valorar o autor, Engellaum aponta como única responsável pelo papel
destacado que Rawet possui na literatura, a transposição na escrita dos problemas
advindos de uma condição judaica. A inserção inusitada da loucura faz parte desse
processo de destaque. A condição de judeu errante agruparia Rawet com intelectuais do
porte de Benjamim e Kafka.
Mais adiante, retrocede toda essa argumentação:
Não estamos, de forma alguma, afirmando que as obras de nosso autor sejam
meramente frutos de alucinações e delírios. Mas o que é possível supor é que
sua personalidade, marcada por traços significativos de neurose, aliada ao seu
desgarramento de sua família e comunidade, que, por sua vez, se conjugam a
uma inteligência arguta, tenham todos esses fatores contribuído para a
criação de uma escritura altamente original e inovadora (ENGELLAUM,
2006, p. 86).
Entre sério e jocoso, Paes explica que a configuração do país em suas questões
de imigração, favorece o estudo. Por outro lado, poucos estudiosos tiveram a
sensibilidade e o talento para realizar tal trabalho. Não deixamos de notar que,
textualmente, o ensaísta cita todos os autores escolhidos por Gamal (2009) como alvo
de sua pesquisa. As obras citadas, no entanto, são Lavoura Arcaica, Relato de um Certo
Oriente, Contos do Imigrante, e “Leo”, provavelmente, um conto, de Scliar. O ensaísta
ressalta a possibilidade da existência de outros exemplos claros em que a ocorrência do
anfíbio cultural possa ser verificada (PAES, 1999, p. 68).
Igualmente interessante é vislumbrar a forma pela qual a leitura do pequeno
ensaio motiva a realização da tese. Ou seja, reaproveitando o conceito de Paes, Gamal
entende que:
43
Nas palavras do próprio Santiago: “Por um lado, o trabalho literário busca dramatizar objetivamente a
necessidade do resgate dos miseráveis a fim elevá-los à condição de seres humanos (já não digo à
condição de cidadãos) e, por outro lado, procura avançar – pela escolha para personagens da literatura de
120
primeiro, “[...] a definição de literatura anfíbia é aquela que transita entre a Arte
(maiúscula dele) – na verdade entre o que ele entende por arte – e os antagonismos
políticos e socioeconômicos da sociedade brasileira” (GAMAL, 2009, p. 20).
O estudioso conclui a disputa teórica com Santiago no trecho a seguir, afirmando
que, no contexto em que definiu a nossa cultura como “anfíbia”, uma palestra no
exterior cujo público era composto, em sua maioria, por estrangeiros, a fala tornou-se
“[...] uma exposição generalizadora [que] depõe contra a tradição de diversidade sempre
presente em nossa literatura desde os primórdios de sua formação, ainda no não tão
distante século XIX” (GAMAL, 2009, p. 23).
Esclarecendo a conceituação generalizadora de Santiago (2004), a hipótese de
trabalho de Gamal seria, então:
pessoas do círculo social dos autores – uma análise da burguesia econômica nos seus desacertos e
injustiças seculares. Dessa dupla e antípoda tônica ideológica – de que os escritores não conseguem
desvencilhar-se em virtude do papel que eles, como vimos, ainda ocupam na esfera pública da sociedade
brasileira – advém o caráter anfíbio da nossa produção artística” (SANTIAGO, 2004, p. 66, grifo no
original).
121
trato social, que justifica o seu isolamento pessoal e profissional. Antes disso, há a
diferenciação entre dois tipos de imigrantes: “[a] aquele que mais cedo ou mais tarde, de
certa forma, adapta-se ao país onde desembarcou; e [b] o que nunca o consegue. O novo
país passa ser, para esse último, estranho por toda a vida” (GAMAL, 2009, p. 177). De
acordo com Gamal, as personagens de Rawet estariam contemplados no segundo grupo.
Concluindo a apresentação ficcional do primeiro conto, “O profeta”, Gamal
afirma que o mais importante na narrativa de Rawet é a atitude de recusa: “Seus
personagens jamais se entregam, mesmo antevendo o fim. A literatura acaba por
traduzir essa recusa. Uma vez que não há lugar para esses seres deserdados, a sua
condição essencial é ocupar a margem” (GAMAL, 2009, 183). O efeito obtido, ao final,
é a aproximação dessa prosa com o lugar da poesia.
Há na leitura de Gamal a lembrança de que é possível realizar a divisão entre
contos “judaicos” e “não judaicos” (GAMAL, 2009, p. 195), representados pelos cinco
primeiros e cinco últimos contos da coletânea, esquema que, nos parece, foi destacado
pela primeira vez por Kirschbaum (2000). Ao concluir as análises, retira de sua leitura
um denominador comum entre os contos: “A duplicidade, através das perspectivas
temporais passado / futuro, mostra o tráfego anfíbio da literatura de Rawet em toda sua
grandeza” (GAMAL, 2009, p. 200).
No tópico dedicado às conclusões, afirma que os contos “[...] tematizam,
sobretudo, a inviabilidade do refugiado judeu, mostrando que não existe remédio à dor
advinda do Holocausto. É como se o autor afirmasse: depois dos campos de extermínio
a humanidade tornou-se inviável” (GAMAL, 2009, p. 242).
Como conclusão, um discurso modalizador e convidativo sobre a literatura
apresentada ao longo da tese:
12). No caso de Rawet, a ideia subjacente a esta citação é que a imagem do judeu em
sua obra é uma só.
A estudiosa explica que sua motivação não é, apenas, acadêmica, profissional e
intelectual, mas pessoal e emocional: “Sou pesquisadora e pertencente a uma
comunidade científica, mas exibo a ela um laço com a comunidade judaica, algo que
teoricamente deveria ficar restrito a uma experiência individual e coletiva fora dos
muros universitários” (LILEBAUN, 2009, p. 13, grifo no original).
Ao possível questionamento sobre como inserir tal pesquisa em um programa de
pós-graduação em literatura brasileira, responde que “[...] tal qual faz parte de minha
identidade ser judia e brasileira – ou talvez a ordem dos adjetivos deva ser brasileira e
judia. Estou num espaço entre fronteiras, um entre-espaço, e é este espaço dúbio, dentro
e fora ao mesmo tempo, que constitui meu solo de enunciação” (LILEBAUN, 2009, p.
13).
Reforça que a representação do judeu não é única, o que não seria diferente no
início do século 21. Destacamos, de parte desse alerta, a passagem em que a mesma cita
três grandes grupos étnicos judeus:
Essa é uma parte que, sob uma ótica ortodoxa, poderia ser excluída. No
entanto, sua permanência obedece a uma opção específica de não apagar
124
Sobre os capítulos dedicados aos autores, afirma que os mesmos são diversos
nas estruturas e nas extensões, uma demonstração do seu desejo de que a tese se adapte
aos escritos analisados:
A união dos três nomes, atrelados aos objetivos da investigação, pode ser
viabilizada de dois modos:
Para Lilebaun (2009), a coletânea Os sete sonhos seria o exemplo disso. Esse
tratamento ocorre, especialmente, nos contos “A raiz quadrada de menos um”, “Fé de
ofício” e “Kelevim” e “Sete sonhos”. A leitura em close reading, expressão muito
utilizada pela estudiosa, ocorre, nesses quatro contos.
O tópico seguinte trata da desconstrução da imagem do judeu na obra de Rawet.
Serão citados Contos do Imigrante, Abama e Viagens de Ahasverus: “Ao longo da vida
e das obras, Rawet se distancia da comunidade judaica e destila veneno contra aqueles
que ele chamará, em muitos textos, de ratos. É principalmente nos ensaios que
assistiremos a uma crescente repulsa aos judeus” (LILEBAUN, 2009, p. 122, grifo no
original). O que segue, então, é a verificação dessa desconstrução na produção
ensaística de Rawet.
127
Ser escritor e ser judeu são duas imagens que não se sobrepõe [sic] uma à
outra, mas digladiam com ferocidade. Ora o escritor parece abraçar algo do
judaísmo, ora o escritor parece romper definitivamente com o que ele vê
como mineralidade. Embora tal conflito se dê no palco da vida, ele é
trabalhado no palco da escrita para nós, leitores. A autofagia é um drama
encenado na escrita, para além dos distúrbios biográficos. É como se o
espaço da vida não bastasse para duelar com as convenções: era preciso
atingir um novo espaço, ocupá-lo e devorá-lo – a escrita (LILEBAUN, 2009,
p. 128, grifo no original).
imagem de judeu clichê, seja tal clichê o construído pela comunidade judaica ou o
construído pelo grupo maior” (LILEBAUN, 2009, p 214).
O legado de Rawet, obtido pela investigação, será o fato de que:
Depois de uma recepção atenta, a crítica [...] cada vez mais ignora sua obra e
ressalta o caráter estrangeiro e hermético de Rawet. Ao mesmo tempo os
contos se radicalizam e se tornam mais sintéticos e difíceis. Este silêncio e
esta distância dos personagens, constantemente interpretados como recusa,
devem ser investigados para entender a dinâmica do que Rawet vislumbra em
sua escrita. Este elemento literário é acompanhado pelo isolamento cada vez
maior de Rawet nos últimos anos de sua vida (REIS, 2009, p. 12)
“Em Samuel Rawet, são os detalhes que podem revelar mais do que qualquer aspecto
que pareça ser evidente em uma primeira leitura. Como pensar uma inclusão literária de
um autor que se contrapõe ao cânone tão fortemente?” (REIS, 2009, p. 12). O nome de
Rawet é, para o estudioso, um indício da necessidade de renovação dos padrões
literários nacionais e das perspectivas que caracterizam o estudo de nossa literatura.
O estudioso afirma que a análise dos contos será entremeada com a leitura de
alguns teóricos, o que será realizado na medida em que a leitura avança. Outro adendo
refere-se à possibilidade de se encontrar outros objetos literários que sirvam de
exemplificação da tese que ora se defende (REIS, 2009, p. 12-13).
O primeiro capítulo, “Trajetórias (ou Trajetória)”, é composto pela análise do
conto “A Trajetória”, de Que os mortos enterrem seus mortos, 1981. Segundo Reis, esta
parte buscará uma aproximação com o modo de narrar especial de Rawet:
Em outro momento, assumirá o caráter sedutor que possui o paralelo entre a vida
de Rawet e sua obra, ambos marcados pelo isolamento. Afinal de contas, no trabalho do
artista, o narrador se vale de grande intimidade para com as ruas e paisagens,
especialmente, as do Rio de Janeiro e de outras localidades de difícil localização: “Nesta
atmosfera ele apresenta personagens perplexos e que não alcançam o outro, trafegando
numa incomunicabilidade raramente quebrada. Seres solitários que vagam num oceano
de distâncias e perplexidades” (REIS, 2009, p. 43).
Como prosseguimento desse trecho, o estudo se presta a estabelecer uma
diferenciação em relação ao nômade e ao imigrante. O primeiro é aquele que percorre
um espaço marcado pelas alternâncias. Na medida em que o migrante “[...] vai sempre
em direção a um ponto fixo, o nômade pensa e trafega a própria jornada em si como
constitutiva. O migrante traça uma via que tem um início e um fim precisos, enquanto o
nômade alterna em diversos percursos sem laços fixos” (REIS, 2009, p. 44).
A literatura de Rawet privilegiaria a segunda categoria, pois a ausência de
pertencimento de suas personagens mostra que os mesmos não realizam trajetos
fechados de migrantes ou imigrantes. Depois de analisar uma série de categorias
narrativas nos contos de Rawet, Reis conclui que:
Chegando a suas conclusões, Reis admite que “[...] o texto de Rawet ressalta a
atitude contrária à aproximação, e uma visão crítica da sociedade em geral; mas ao
mesmo tempo, abre para a possibilidade de um encontro que supere o impessoal
cotidiano e firme tênues laços de compartilhamento” (REIS, 2009, p. 162).
O papel do silêncio, em meio a essa construção, não é esquecido. Para Reis, na
literatura de Rawet, a personagem redunda ao silêncio pela incapacidade de utilizar da
linguagem corrente para expressar o vivido: “Este silêncio não é recusa, mas
incapacidade de formulação na linguagem formal do mais fundamental” (REIS, 2009, p.
168).
134
Desse modo, a tese confirma a hipótese inicial sobre o contato possível nas
narrativas de Samuel Rawet. O que significa dizer que o encontro se destaca como
momento fundamental, mas inquietante na vida das personagens:
A realização deste capítulo nos mostra que, mesmo tendo sido colocada no
ostracismo da falta de publicação após a sua morte, hiato que durou pouco mais de vinte
anos, a obra de Rawet não deixou de ser discutida, mesmo que por uns poucos. Ainda
que timidamente, nos estudos acadêmicos, o processo iniciado por Verdi (1989) se
acentua a partir da realização de Fortes (1999).
Por outro lado, o alto número de estudos sobre a obra de Rawet, específicos ou
que fazem referência significativa, seja escolhendo na sua inteireza ou alguns de seus
contos como corpus, seja resumindo a sua recepção crítica com os dados atribuídos à
135
Contos do Imigrante, pode ser um indício de que alguns estudos atuam atrelados a uma
crítica ora empenhada na interpretação, ora embasbacada com a produção inicial de
Rawet. Outro fator resultante desse processo, ler a obra somente em sua fase inicial,
mesmo em estudos mais recentes (ANTUNES, 2011), sinaliza-nos que, até certo ponto,
o tratamento conferido a Rawet é o do estrangeiro, do imigrante de ascendência judaica,
na maioria das vezes (BINES, 2008). Esse processo é recorrente, ainda que a própria
coletânea apresente cinco contos, metade de seus textos, que não se relacionam
exclusivamente com a condição do imigrante judeu.
Em menores casos, a ousadia das propostas das dissertações impede a realização,
o cumprimento das propostas anunciadas. Em casos específicos, o que se propõe no
mestrado é mais geral do que quase todas as teses lidas aqui. Estamos pensando que,
geralmente, os prazos dos programas de pós-graduação e das agências de fomento dobra
para a realização do doutorado, o que, em tese, dificultaria a realização de tais
propostas.
Na maior parte dos casos, sempre que possível, tais estudos lançam mão de
outros materiais para entender a obra de Rawet, a exemplo de ensaios e entrevistas
concedidas pelo autor. Em casos específicos, a leitura desse material desvia o foco das
propostas e acarreta em interpretações globais de toda a produção de Rawet, ainda que
esteja sendo lida, apenas, a sua escrita ensaística, por exemplo. Isso é realizado,
sobremaneira, nas pesquisam que delineiam um perfil doentio para o escritor Samuel
Rawet.
Em mais uma oportunidade, reforçamos que a realização de um capítulo como
este seria possível em todos os casos. Insistimos em realizá-lo com o objetivo de
verificar o panorama do reavivamento do interesse pela obra de Rawet. Nesse ensejo, os
estudos acadêmicos cumprem um papel decisivo.
A leitura dessa produção, que enceta objetivos tão diversos em seus bojos, serve
para que possamos ter medida exata da maneira pela qual o nosso próprio estudo se
insere na recepção acadêmica de Samuel Rawet. Esperamos, por outro lado, que a
sistematização realizada aqui atue como muito desses estudos atuaram na realização de
nosso trabalho: revelando dados, servindo como suporte de investigação e consulta.
Vale ressaltar que, mais do que rechaçar tais estudos, a proposta mais importante
é a da apresentação das realizações investigativas. Muitas das contribuições desses
trabalhos serão utilizadas em nosso próximo capítulo. Na medida do possível, as fontes
sempre serão apontadas.
136
As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu
silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha
escapado ao seu canto; mas do seu silêncio certamente não. Contra o
sentimento de tê-las vencido com as próprias forças e contra a altivez daí
resultante – que tudo arrasta consigo – não há na terra o que resista (KAFKA,
2008, p. 104).
A partir deste ponto, a apresentação do quadro e dos dois tópicos seguintes tem
por objetivo a organização das informações estruturais dos contos. De certo modo,
apresentamos, brevemente, os outros contos que não entrarão no recorte. Os tópicos do
mapa foram elaborados a partir de Reuter (1997).
QUADRO 1
Distribuição dos contos em sua ordem de disposição no livro (RAWET, 2004)
a. Títulos substantivados: C01; C02; C03; C04; C05; C07; C09; C10; C11; C12;
C13; C14; C15; C16; C17; C18. Ressalta-se que, além dos contos nomeados
apenas com um substantivo, a exemplo de “Moira”, destacamos aqueles que são
constituídos com orações nominais, “O riso do rato”. Nesses casos, as ações não
apresentam o destaque que um verbo pode conotar/denotar.
138
b. Títulos compostos: C01; C02; C03; C05; C06; C08; C11; C12; C13; C14; C15;
C16; C17; C18. Tratamos dos contos que possuem mais de um elemento,
mesmo que um nome precedido de um artigo, como em “As palavras”, por
exemplo.
c. Estrutura em um parágrafo: C01; C02; C03; C04; C06; C08; C09; C11; C12;
C13; C14; C15; C17; C18. Os contos agrupados estão dispostos em um bloco
ininterrupto de palavras. Podem ocupar 4.396 espaços com caracteres, no caso
de “Moira”, ou 30.759, como em “BRRKZNK: pronúncia – bah!”.
e. Nos parágrafos que se somam, quais elementos compõem os contos? (C05, uma
oração final: “o tempo abolido pela culpa – uma maneira de continuar a amá-
las” (p. 361)); (C07, possui oito parágrafos. A estrutura é formada por uma frase
que define a personagem, falada em primeira pessoa. Depois, outro parágrafo,
em terceira pessoa, no qual se define a ação, a origem e a atividade dessa mesma
personagem. Isso ocorre em três momentos. O sétimo parágrafo marca a união
das personagens. O último, apresenta a frase que os aproximam: “Eram
analfabetos” (p. 365)); (C10, uma frase inicial que funciona como interjeição,
“Que mulher!” (p. 371), expressão proléptica na medida em que pode adiantar o
possível alvo de preocupação das duas personagens masculinas).
dos garções, mulato magro, dois policiais, três efeminados, crioulo, pederasta,
uma das mulheres habituais, outra mulher, um policial trabalhando); (C16, a
esposa do empresário); (C17, Um tipo barrigudo, uma velha, um adolescente,
uma gorda, um menino); (C18, uma galinha).
n. Ocorrência de pacto de leitura: (C10, uma frase inicial que funciona como
interjeição, “Que mulher!”, cria-se um efeito de humor, surpresa ou, pelo menos,
de ampliação das possibilidades de sentidos do conto, na medida em que o leitor
está considerando que os dois personagens observam e excitam-se, apenas, com
a figura feminina);
C01. Uma personagem deseja matar outra personagem. O possível assassino deseja
matar Eliezer Kugelman. Manuel e Elias são irmãos. A personagem que planeja o crime
possui um filho que, por sua vez, é amigo de uma vítima de algo não informado.
Eliezer, Manuel e Elias são irmãos e, este último, é classificado como “idiota”. O filho
de umas personagens está internado. O pai tentou violentar sexualmente o filho. Há a
notação de tanques no Rio de 1980. A protagonista é professor. Hipótese de marcação
temporal: Getúlio Vargas foi derrubado. O conto se passa em um período
imediatamente após uma guerra. Uma dúvida: os irmãos violentam sexualmente o
“idiota”? O filho vê e sofre convulsão. Kugelman acusa o outro, o professor, de
violentar o seu filho. A vingança não se concretiza: para o vingador, esta só faz sentido
quando envolve a condição humana.
C02. Alguém geme no quarto, Bluma, sentada numa poltrona pensa sobre seu
casamento. Sua cunhada acabou de sair. Pensa no momento da visita. Ouve, atualmente,
os gemidos. Procura fixar imagens antigas, mas não consegue. O marido está doente.
Possuem cinco filiais e um escritório próprio. Uma empregada à espreita. Com seu
primeiro homem, relembra, realizou um aborto forçado. Caso com o dono de uma
pequena fábrica de colchões de mola, casado, três filhos. A sua memória é alternada:
Ela procurou a clínica. O homem havia ameaçado-a, no dia anterior, com um revólver.
A empregada serve suco de laranja. Ela vai sair de casa. Possui um porteiro. Marcação:
os gemidos que vêm do quarto. Ela o conheceu há cinco meses, na casa de amigos.
“Com uma pisadela e um beliscão”, o deixou apaixonado. Ele: quase cinquentão,
inseguro, bom nos negócios, impotente, com necessidade de aparecer com mulher e
filhos. Encontros no hotel de serra. Ela questiona a sua heterossexualidade. Em um mês,
transa com muitos homens e, ao constatar a gravidez, o convida para hotel de sempre.
Consegue uma semi-ereção e um orgasmo breve. No mês seguinte, anuncia a gravidez e
o casamento é marcado. Em quarenta e poucos dias, o reduz a um trapo entregue a um
grupo de psiquiatras. Ela utiliza várias medicações: laxantes de ação rápida, soporíferos
no café da manhã e no almoço, estimulantes e anti-hipnóticos a noite. A cerimônia
ocorreu no mais perfeito ritual.
C03. Alguém pede para que o outro lhe mostre a oração. O outro corta a alface e a
cebola. A oração foi composta em dois dias por aquele que come a salada. Alguém
telefonara para casa dizendo para a mulher que ia almoçar com o sócio. Possui filhos.
Uma fábrica com três homens: o contador e dois sócios. Um dos sócios avisa a mulher
que o outro irá jantar em sua casa. Os planos são dois: o do convite e o do jantar. O
sócio promete passar na confeitaria. Promete a oração para depois da sobremesa. O
contador sai para pegar o ônibus. Os sócios possuem carros. A mulher serviu o jantar.
142
C04. Questionamentos. Homens a sua volta. Está num quarto. Abre a janela para um
pátio. Chove. Cinza é seu sentimento. Próximo do Largo do Machado. No banheiro,
limpa a maquiagem. Fuma. Palavras de marcação: MUNDO. MORTE. PALAVRAS.
Existe consolo no suicídio? Cruza a sala, vai para o banheiro. Nostalgia da infância.
Questionamentos. Quem tem medo de Virgínia Woolf, 1962, de Eduard Albee. A
personagem atua em um espetáculo. É ator. Fotografia como Creon e Édipo. Troca de
roupa. A rua, personagem perfeita. Moira? A inexorabilidade da morte, destacada como
primeira palavra em caixa-alta, tem relação com as referências às tragédias gregas?
C05. Visão alternada dos voos de um pombo e dos movimentos de um pardal. Olhar
reflexivo. No bar, a personagem observa. Visões de sua própria face em diversos
espelhos. A informação de que um acidente matara esposa e filha. Marcação: o vôo do
pombo, o deslocamento do pardal. Uma reflexão existencial. Um conflito, por meio da
memória, entre passado e presente. Outra marcação: a lembrança dos rostos no espelho.
A perspectiva de visão da personagem muda os planos de observação. Visão de outras
pessoas realizando atividades cotidianas. O sol se põe. Aspectos físicos e psicológicos.
O movimento dos animais. O acidente, mais uma vez. A culpa, única maneira de amá-
las novamente. Referência ao Gênesis. Trajetória, palavra marcada por mais duas:
tempo e morte.
C07. Três personagens: o que sofre pelo mundo, o que quer criar o mundo e o que pensa
o mundo. Respectivamente, Pedro (pedinte), Paulo (artesão, casado, bêbado) e Pedro
Paulo (dono de um tabuleiro de cocadas brancas e pretas, adepto do candomblé ou
umbanda (?)). Os três falam. Os três gargalham. Os três foram presos na saída da
estação. Os três eram analfabetos. Embora diferentes, de alguma forma, sempre é
possível se reconhecer no outro, enquanto humano. Trata-se de uma das últimas
metamorfoses do Ahasverus de Rawet (em Viagens de Ahasverus).
143
C09. Alguém, na areia da praia, sendo tocado pelas ondas. Trata de um “corpo-
músculo-nervo” (p. 369). Este alguém está cansado. Essa expressão, “corpo-músculo-
nervo”, atua como marcador. Em outro horizonte de serras e litoral, a lembrança de um
ambiente doméstico. Seu retrato na mesa ao lado da compoteira, uma cristaleira,
herança da tia. Descrição de um ambiente doméstico e familiar. A personagem parece,
por um momento, desprezar tal espaço. Lembrança do trabalho como vendedor de
eletrodomésticos. No fim, a personagem se levanta da areia. Foco nos grãos que caem
de sua mão.
C10. Dois homens almoçam num restaurante. Um é baixo, gordo e calvo, o outro,
magro, calvo e baixo. Um casal (homem-mulher) adentra o recinto. Os dois param de
almoçar, parecem contemplar a mulher. O gordo observa o casal de forma mais intensa
e detida. O magro é tímido, mas concorda que a mulher é bonita. Descrição do casal em
silhueta. Ele, elegância padronizada de crediário. Ela, bem vestida, um tipo gostosa e
elegante. Os homens voltam ao almoço. A figura do acompanhante se impôs entre os
dois. Excitavam-se.
C11. A personagem, com um giz, traça uma linha do meio fio a parede. É noite. Parara
de chover antes das nove. Rememora sua vida pregressa em um país estrangeiro.
C12. Um homem em um cinema. Não se interessa pelo filme, fuma. Lembrança de que,
nos últimos meses, não tem conseguido manter o equilíbrio cotidiano. Lembrança de
um porre em seu aniversário de cinquenta anos. Na festa, a mulher, seus dois filhos, os
pais, os sogros, os amigos e o amante. Vive uma vida dupla. É viril. No dia seguinte,
relembra que tentou se embriagar na casa do amante. Cena entre os dois. Misto de
sensualidade, desejo e ódio. Não responde como no passado, à ereção do membro do
amante. O foco se volta para o cinema. Um casal abandona a sala rindo, comportamento
que o irrita. Questiona-se. Sai do cinema à procura de um café. Surpreende um trecho de
144
uma conversa: Marcação em caixa alta: UM HOMEM DEVE. Toma café entre um
careca gordo e um crioulo. Há. Haveria diferença entre os planos marcados pelo “dever”
em oposição ao definido pela existência material (seja material, psicológica, emocional,
conceitual etc, como pode denotar o verbo haver na terceira pessoa do presente do
indicativo, no caso “há”? Pensar no termo verbal em sua possibilidade narrativa na
primeira pessoa do singular torna a questão mais complexa.
C13. Movimentos de um lagarto. Alguém observa, ao mesmo tempo em que tem em sua
mesa uma equação a ser resolvida, os movimentos do bicho em um muro. Rasga a
folha. Marcação: A, B, C, a, b, c. Providencia e observa outra folha. Enquanto rasga
folhas, oscila entre o amor e o ódio. Procura o lagarto, não encontra. Acende um fósforo
na direção dos olhos e observa o movimento do fogo. Poalha, poeira leve que se
mantém suspensa no ar.
C14. Alguém que sofre. Verifica papeis e contas pagas. Bebe café numa charutaria.
Deseja um guardanapo. A imagem de um porco-espinho se impõe. Outras imagens:
“Um homem morto, um cavalo morto, um rato, morto”. Marcação: “Um homem morto,
um cavalo morto, um rato, morto”, que, também será o título do conto. Desce pela
Largo do Machado e pela Dois de Dezembro até a praia. Pouco mais de 10 da manhã.
Pessoas em frente ao prédio da UNE. Templo nublado. “Um homem morto, um cavalo
morto, um rato, morto”. Pensa em como utilizar o guardanapo. Fixa imagens a partir da
lua. Compra um brioche numa padaria antes das grades do palácio do catete. Pessoas se
movem na rua, em frente ao Hotel Mundo Novo. “Um homem morto, um cavalo morto,
um rato, morto”.
C15. Schlimazel Mensch (homem pudim, em ídiche), num bar onde se toca uma
seresta, duas e meia da madrugada. Uma loura. O chefe dos garçons do Hotel Nacional,
sem o ar profissional, possui face de uma personagem dos contos de Hemingway.
Referência a uma frase de Hemingway: “nada nosso que estás no nada [, nada seja o
vosso nome, nada a nós o vosso reino e seja nada a vossa vontade, assim no nada como
no nada”]. O escritor se suicidou em 1961, após algumas crises depressivas. Os
presentes comem. Está sem fome, mas com água na boca. Bebe conhaque. Três
efeminados reclamam da perversidade humana. Madrugada quente de julho. Observa
um crioulo que vem comprar cerveja. Lembrança de cenas envolvendo sexo e
prostituição. Mais umas doses de conhaque e começa a vagar entre a dor, a ironia e a
lucidez. Questionamentos. Lembra-se que está hospedado no Hotel Nacional. Há um
amigo de Porto Alegre no mesmo hotel. Veio à cidade para um evento: O I Encontro
Nacional de Proprietário de Bares. Lembranças de turistas americanos e alemães.
Encontrão com um cão. Passeia por algumas ruas, compra cigarros. Então, ela surge.
Está se prostituindo. Some num Opala. O policial não se assusta com sua presença.
Continuar a caminhar e a relembrar a figura feminina. Excita-se. Lenda o abacate?
C16. Ódio. Levanta-se da poltrona, conserta a persiana. Seu amigo de infância, presente,
é escultor e lhe deve algo. O escultor presenteou o amigo com a figura de sua mulher.
145
Gostava da vista, mais pelo seu trabalho que pelo amigo. A esposa do outro lhe traz um
café. Ambos, marido e esposa, não tomam a bebida. Calam-se sobre a dívida.
C17. Frase de Rimbaud: Quellevie! La vraie vie est absent. Nous ne sommespasau
monde. A tradução livre: “Que vida! A vida real está ausente. Nós não somos do
mundo”. Uma espécie de pedinte. Alguém lhe atira um pedaço de bolo enrolado em
papel. Chovera e o ônibus lançara-lhe um traço de lama. A manhã de domingo promete
sol. Uma travesti. Um tipo barrigudo empurra um carrinho de carga. Uma velha,
abraçada a um adolescente. Uma gorda com um menino. Lembrança do sonho de
infância, agarrado a um gato feroz. Come o bolo. A lembrança de um sonho: um grupo
de três homens humilha outro. A travesti contaminada pela umidade da manhã. Outros
tipos populares. Ergue-se. A morte, uma ficção.
C18. A personagem deseja criar uma palavra mágica. Para tanto, interage com
elementos de sua decoração, a exemplo de samambaias, ou com animais como galinhas
que se bicam. O seu objetivo é investigar a combinação perfeita para criar aquela que
seria a palavra mágica.
O tópico objetiva a apresentação das análises dos dados acima. Neste ponto,
começa-se a justificar a escolha dos seis contos e não escolha dos demais.
De início, levaremos em conta a sutileza na caracterização, definição das
personagens e ambientes retratados. Por exemplo, segundo Kirschbaum, nesta coletânea
[...] podemos suspeitar que uma personagem é judia por seu nome (tal como
Eliezer Kugelman em “O riso do rato”, Bluma Schwartz em “O casamento de
Bluma Schwartz”, Schlimazel Mensch, em “A lenda do abacate”, nomes que,
de fato, são caricaturais, remetendo ao afastamento da comunidade judaica
que Rawet se impusera, e evidenciando que o conflito continuava vivo e
intenso), ou talvez pela lembrança de um passado que evoca uma pequena
aldeia judaica na Europa oriental, uma sinagoga e um cemitério, como no
conto “A linha”, mas em nenhuma das narrativas o judaísmo e suas linhas de
força habituais, o holocausto, o exílio, a errância judaica, a assimilação, são
tematizados (KIRSCHBAUM, 2004, p. 122) 44.
44
Essa observação, com relação aos nomes, encontra-se, ainda, em Reis (2009, p. 21) e em Lilebaun, que,
ao citar Eliezer Kugelman e Bluma Schwartz, acrescenta Nehemias Goldenberg, Yehoshua Cohen,
Yehuda Bitterman, Israel Bamberg. Sobre o resultado das utilizações desses nomes, no conto de Rawet,
aponta que “há um esvaziamento da temática judaica que aparecia no tema da imigração do primeiro
livro. As novelas, no entanto, trazem algumas pistas para a imagem dos judeus que Rawet constrói”
(LILEBAUN, 2009, p. 120).
146
mais uma vez, que os eventos são rememorados de forma não linear. Porém, no relato
que segue, ainda na perspectiva de Eliezer, retiramos mais alguns dados que são úteis no
entendimento do incidente ocorrido com o filho da protagonista para, enfim, estabelecer
uma relação deste evento com o desejo de vingança que a protagonista vem
arquitetando:
Salto para a primeira dimensão do passado remoto: “Ao se deitar, sem comer,
não suportou o cheiro da esporra dos irmãos que dormiam no mesmo quarto” (p. 348).
Mais tarde, o emprego do termo “esporra”, no sentido de que se masturbavam, ganhará
sentido mais amplo, podendo inclusive estar se referindo ao ato sexual praticado com o
“idiota”.
A conclusão do momento analéptico de Eliezer, que seria, num plano global,
toda a sua perspectiva narrativa dentro do conto, vem com uma menção explícita ao
irmão mais novo, Elias, “o idiota”: “Odiava o mais novo, os pais haviam decidido que
ele pagaria seus estudos” (p. 348).
A mesma conclusão encerra o período do flashback em que é possível extrair
uma série de vocábulos voltados para o mundo dos negócios. Este ponto é o momento
que separa as reflexões de Eliezer, situadas no meio da narrativa, com relação às da
protagonista.
O gesto de cortar a carne, narrado agora, demarca o retorno à perspectiva do
“professorzinho”:
O menino acordara e ao olhar da janela vira luz na sala dos vizinhos. A casa
era um pouco afastada do muro, em frente à sua, e o acesso à varanda se dava
por uma rampa de pedras que terminava na garagem. Atravessou a rua e do
lado de fora da janela presenciou a cena (p. 349).
carregaria as duas marcas identitárias (IGEL, 1997, p. 205). Para estabelecimento desse
efeito, exclui-se a possibilidade de um alemão judeu.
Cabe, neste ponto, a menção à breve leitura que Igel realiza sobre o conto em
questão. Na quinta parte de sua obra, intitulada “Marginalidade e Sionismo”, tendo
como ponto de partida o livro No exílio, 1948, de Elisa Lispector, a estudiosa privilegia
a manifestação da marginalidade e reflexos do movimento sionista na literatura
brasileira. Sobre Rawet, entendendo a sua literatura como fruto do seu auto-ódio e que o
autor não cresceu odiando os judeus, sentimento que desenvolve em algum momento de
seus últimos anos, afirma que:
uma grande poltrona de veludo verde, em frente a um espelho que ocupa um quarto da
parede da sala e, a seu lado, nota-se uma mesinha com cinzeiro e campainha de prata,
capaz de lhe poupar o esforço da voz, caso queira acionar a criadagem.
O tom de ostentação, anunciado pelos objetos, se confirma adiante na
reprodução da observação da personagem, com relação ao objeto argênteo: “ao perceber
o brilho do metal em meio à fumaça, um raio de sol repentino encontrou eco em espelho
e prata, sentiu a importância da campainha, sonho antigo de fartura e mando, e que
nem chegara a usar a pouco, durante a rápida visita da cunhada” (RAWET, 2004, p.
350, grifo nosso).
Seguindo, a referência a esta visitante introduz o que será mesclado durante toda
a narrativa: o presente, o tempo cronológico, formado pela contemplação na poltrona, e
o tempo psicológico, constituído pelo passado recente, composto por tal encontro, e por
um passado mais remoto ainda, composto pelos eventos rememorados a partir do
encontro familiar. Até aqui, temos o momento da contemplação da personagem e a
rememoração de sua atuação como aquela que acolheu uma visita há pouco.
Mais adiante, os motivos para o esquecimento do objeto são elencados:
sofrimento, desencanto e amargura. Naquilo que se segue, não obteremos uma
explanação sobre as razões que justificam esses sentimentos. Esses elementos são
responsáveis, em face de tal visita, por um aborrecimento momentâneo: “Havia uma
discordância lógica, foi ela mesma à cozinha trazer o copo e a garrafa da geladeira, e
com naturalidade, por outros motivos, derramou emocionada a água no tampo da mesa”
(p. 350). Com este trecho, intercala-se uma passagem da segunda possibilidade
temporal do conto: o passado recente, demarcado por esta visita, conforme
mencionamos.
O tempo presente é retomado pelo advérbio “agora”. No entanto, a narrativa
continua com a descrição de um momento composto por gestos aleatórios: “indiferente
ao gemido, a imagem no espelho, a esquerda levou o cigarro aos lábios e a direita
afagou a superfície polida com a intenção de fazê-la soar, gratuitamente” (p. 350). O
objeto prateado começa a tomar ares de elo entre os tempos na construção da
personagem.
A partir deste ponto, é possível ampliar a importância que os tais “gemidos”
possuem na narrativa. Em forma de refrão, o termo que, até aqui, foi mencionado duas
vezes, será evocado em mais três oportunidades.
158
Houve épocas em que conseguia rever com nitidez rostos, ruas, objetos, mal
esboçava a intenção de reexaminá-los. Com o tempo uma espécie de
encantamento se desfez. Rostos, ruas, objetos, surgiam, mas na hora e na
seqüência desejadas. Agora vinham com a rala consistência de frases que em
determinados instantes se tornava mais densa, quase sólida (p. 350-351).
mas que, no plano físico, possui o poder – materializado por um objeto, a campainha de
prata – de ordenar ações específicas. Ao fundo, um conflito não nomeado.
A fusão dos tempos pode dificultar a leitura, exigindo, já neste momento, um
pouco mais de atenção no foco narrativo. Esse processo irá se acirrar adiante com a
introdução de novas personagens.
Sobre Bluma, o que seria uma pista para o sofrimento atual, torna-se a negação
do ato de sofrer:
Passou quase quinze anos tentando recuperar alguma coisa que perdera com
o primeiro homem que a envolvera, alguma coisa que perdera com o aborto
forçado. Um dia percebeu que era inútil, que talvez até a perda fosse uma
ilusão, e se nada perdera, nada havia a recuperar. Uma secura visceral,
destituída de qualquer tonalidade afetiva (p. 351).
no mínimo, poderá ser classificada como observadora: “[...] pareceu-lhe obtuso, e era
obtuso, mas as atenções, os lanches, as voltas de carro, a afetação de frases galantes,
despertavam-lhe o riso e uma certa alegria de entrega. Era casado, tinha três filhos, e
largaria tudo se encontrasse, se encontrasse, se encontrasse” (p. 351, grifo no original).
O riso neste caso, diferentemente do primeiro conto, será utilizado como argumento de
aproximação social.
A narrativa parece deslanchar no seu nível informativo sobre a personagem.
Depois das informações sobre a primeira conquista de Bluma, mais uma novidade nos é
apresentada: os adjetivos que denotavam uma relação picaresca – esta ligação é
estabelecida por Corrêa (2007, p. 147) – parecem eclodir no dado que nos informa que,
aos dois meses de gravidez, a história de amor começa a mudar de rumo em um quarto
de hotel de beira de estrada: “Entravam apenas para discutir, nenhum contato mais,
nenhuma paródia mais de frases galantes. Deixasse de ser idiota, o romance acabara e
não permitiria que uma vagabundazinha qualquer estragasse sua vida” (p. 351).
A passagem que marca o nascimento e a derrocada do primeiro envolvimento
sentimental de Bluma ocorre de maneira econômica, sem maiores descrições, o que
segue a tônica da montagem de todo o conto. Na passagem acima, nota-se a
transferência do foco narrativo – de Bluma para o amante – iniciado pelo verbo
“deixasse”. Numa esquematização dialogada, seria possível dividir o trecho atribuindo
uma fala a cada uma das personagens.
Ao avançarmos na leitura, a relação descrita se complica com o passar do tempo:
Uma explicação mais detalhada sobre o ato inominado, forçado pelas ameaças, é
interrompida por uma ação no tempo cronológico: a aproximação da empregada e do
carrinho, que porta os seus desejos elaborados até então: o suco de laranja e o café,
desejos estes, cuja fruição é, prontamente, arruinada pela desatenção da funcionária:
“Reclamou com rispidez a falta da colher no açucareiro. A empregada desculpou-se
perturbada, gritou de dor ao bater com o ombro na porta da cozinha e quando regressou
com a colher viu nos olhos da patroa uma expressão de asco” (p. 352). As atitudes que
161
No plano mental, ela não precisa repetir para si o que já sabe, ou acredita já
saber. Ao leitor, resta o recurso de imaginar a partir das pistas dadas. Ao caracterizar a
necessidade do atual marido em mostrar-se socialmente com mulher e filhos como
“infeliz”, o adjetivo ganha uma dimensão analéptica. No entanto, a esta altura, é
impossível saber em que medida o desejo acarretará em sua infelicidade.
O desempenho sexual do futuro parceiro não altera as expectativas iniciais de
Bluma, forjadas com base na observação arguta:
Num dos encontros de hotel da serra, estavam nus os dois, ela cansada dos
esforços em conseguir-lhe uma semi-ereção, enquanto olhava pela janela a
mata densa e florida e aspirava um céu de frio e chuva recente, constatou que
até como homossexual era impotente (p. 352).
Quarenta e poucos dias de casados lhe deram tempo suficiente para reduzi-lo
a um trapo entregue a um grupo de psiquiatras. Desmoralização orgânica
produzida por laxantes de ação rápida, soporíferos no café da manhã e no
almoço, estimulantes e anti-hipnóticos à noite. Instabilidade total, luta com
insônias pela madrugada, luta com o sono durante as atividades do cotidiano,
luta com as vísceras numa inversão alimentar (p. 352).
Mais adiante, o espaço será utilizado pela personagem como tentativa de catarse
do seu conflito, a estratégia de se ancorar na concretude dos objetos, na percepção do
real, se mantém: “Cruzou várias vezes o quarto, olhou o armário, a cama, os tapetes.
Abriu o armário, revirou a roupa. De novo no banheiro. A pia. O chuveiro. A toalha. O
sabonete. Um cotidiano. O eterno cotidiano” (p. 358). A tentativa se revela falha.
Os questionamentos se intensificam, o que se percebe no extenso bloco
reproduzido a seguir:
meses: “Em meio à fala silenciara e se pôs a mirar a platéia. Queria ver a platéia. Queria
ser a platéia. Ator e um homem do público ao mesmo tempo. Uma simbiose. Uma
irrealidade produzida por duas em choque. Ironia. O caminho do humor” (p. 358). Aqui,
realça as nuances da interpretação sendo utilizadas para acentuar o conflito do ator (ser
humano).
O que se vê adiante, em meio ao que poderia ser mais uma constatação
filosófico-existencial da personagem, é uma referência explícita ao Hamlet de
Shakespeare: “O caminho de quê? Ser o que se é, o que se quer ser, e o que se deve ser.
Duas realidades? Três” (p. 358). Em tal passagem, destaca-se a possibilidade que a
personagem encontra entre o ser X interpretar.
Em seguida, uma afirmativa clara do narrador sobre a procura da personagem do
concreto como lenitivo de sua dor. Entre o álbum de fotografias, que registra sua
trajetória no teatro, “[...] percebeu que começava a perceber uma situação ambígua
forjada pela observação. E teve medo. Para distrair procurou refúgio no seu dia-a-dia”
(p. 358).
Ao contemplar sua figura, outro momento epifânico ao constatar ser ali o local
de sua “vocação”: “Não no palco. Ao representar era espontâneo. Ao ser esmera-se
sempre em artifícios. A simulação da convivência” (p. 358, grifos nossos).
Mais questionamentos: “E o diretor? E o autor? O cenógrafo? O iluminador? O
maquiador? O figurinista? O contra-regra? Um destino? Deus? Um nome, uma
realidade, uma possibilidade, um ser concreto à sua imagem e semelhança, ouvindo e
querendo ouvir? Um Tu?” (p. 358, grifo no original). E, mais uma ação concreta: “Veio-
lhe o horror ao se rever nas fotografias de Creon, Édipo” (p. 359).
A realidade presente mistura-se com reflexões e angústias: “A descarga
atravessou-lhe o corpo, sente-se imenso, imenso em sua grandeza e horror. Ao erguer a
mão percebe um leve tique hierático, uma certa pomposidade no gesto. O turbilhão se
manifesta em equilíbrio” (p. 359).
A dúvida persiste: “Representava, agora, para quem? Representava ou era?
Quem era? Eu?” (p. 359).
Depois de mais um gesto concreto, a (não) solução do conflito: “Trocou de
roupa. Olhou-se no espelho. Abriu a porta da rua. A rua. Personagem perfeita” (p. 359).
A literatura de Samuel Rawet, representada neste tópico pelo conto “Moira”,
desafia o leitor na sua estruturação que abandona “aquela história linear, de começo,
167
45
Em Na sala de aula, definindo a configuração de uma linguagem poética, Candido estabelece como
componente da mesma a tríade formada pelos elementos divergência = ruptura = surpresa. (CANDIDO,
1989, p. 82).
168
46
Anteriormente, o conto foi publicado em duas oportunidades: (a) na revista Ficção, nº 3, vol. III, em
março de 1976; e (b) na Escrita Livro, ano I, nº 1, em 1977.
169
inesperada, como o termo adianta, demarca a passagem entre ascensão e queda dessa
atmosfera lírica. No mesmo parágrafo, um imprevisto verossímil põe fim às (possíveis)
expectativas do leitor, conduzidas pelos parágrafos anteriores.
O conto pode ser resumido pelo esquema: Encontro de perdidos = transgressão
epifânica = prisão = libertação = a não assinatura= informação de que são analfabetos,
repassada na última frase, guardando o soco no estômago do leitor para o último
momento, no caso, última palavra do conto. A ordem esquemática segue os eventos
descritos na micronarrativa.
Edificada sob seus desejos, a tríade de Rawet se constitui em bases populares.
Acresce-se que, nas configurações desses desejos, materialmente, é a simplicidade e a
pobreza que marcam a santíssima trindade rawetiana.
Os três falam. Os três gargalham. Os três foram presos na saída da estação. Os
três eram analfabetos. Embora diferentes, sempre é possível se reconhecer no outro,
enquanto humano. Em alguns casos, o reconhecimento pode ser propiciado pelo
pragmatismo de questões social, econômica e historicamente construídas.
O conto que ora se destaca é um dos poucos a apresentar uma oração completa
como título. A frase abre e fecha a narrativa que possui a sua diegese demarcada
textualmente em 1h. 35min.
Desse título, a imagem ainda não construída de um quadro de terror no qual nem
mesmo um anjo é entrevisto, visto de passagem ou encontrado ao acaso. Vem de Verdi
(1989, p. 92) a lembrança de que a expressão “nem mesmo um anjo” abre o sentido da
construção, ampliando a possibilidade de entrevisão daquele não entrever nem mesmo
um anjo. A hipótese da estudiosa não deixa de ser curiosa:
Nenhum demônio, nem mesmo um anjo é entrevisto no terror, que está bem
mais perto da verdade do desejo do protagonista, tendo em vista que o que se
quer, em sua busca de hora e meia, não é um anjo que o salve, mas um
“demônio” que, auxiliando-o a perder-se momentaneamente, salve-o
(VERDI, 1989, p. 92, grifos no original).
47
O conto foi publicado, pela primeira vez, na revista José – Literatura, Crítica e Arte, nº 3, em setembro
de 1976.
174
Ressalta-se que, até este ponto, a diegese segue na medida em que a protagonista
caminha pelas ruas do Rio de Janeiro. Adiante, dados sobre as condições de moradia e
sobre a profissão dessa figura errante: “Os dias eram esplêndidos e terríveis entre o
quarto em casa de portugueses no Bairro de Fátima e a pequena oficina de camisas,
onde não encontrava condições para produzir em série os modelos sonhados” (p. 367).
Das condições modestas de vida, extraímos o dado do cerceamento profissional, que o
proíbe de inventar, sonhar.
Pensar no mictório, enquanto se mantém diante do Cine Colonial, traz à
memória um momento de consolo vivido na profissão:
O pior veio depois quando lhe pediram um novo tipo de camisa social. Foram
quinze dias de deslumbramentos e desmaios na tentativa de harmonizar
punhos, gola e bolsos, além do peito duplo com a intenção de esconder
botões e dobras; camisa social, de abotoar, com jeito de camisa esporte,
inteiriça. Dez dúzias foram feitas experimentalmente. Quinze dias depois
nenhuma saíra da prateleira, apesar dos vendedores, e hoje lá estavam como
estigma de seu fracasso. Quando ousava esboçar alguma coisa apontavam-lhe
o canto do armário onde as dúzias amarelavam. Com isso conseguiram a
tortura perfeita (p. 367).
A barra do blusão meio por fora meio atrás do cinto. O jeito alheado na calça
justa e sem vinco, as pernas mais tortas pela atitude no andar, Giuliano
Gemma entrando a pé na Avenida de Tulsa sorrindo de cem homens
escondidos atrás dos telhados com os fuzis engatilhados (p. 367).
O velho cruzou outra vez a pista, sem deixar de sorrir diante da voz
esganiçada e do corpo em desequilíbrio do homem. Conhecia esses tipos. Era
casado, tinha mulher, e filhos, tudo isso arrotado com meneios de macheza
duvidosa e terror. Quase gargalhou ao ouvir o vozeirão do mulatinho (p.
368).
diminutivo e a sua reação violenta, contrariando a sua condição física que não o
respaldaria na possibilidade de uma agressão.
A perspectiva da observação ainda é da protagonista, que observa o embarque do
homem no primeiro ônibus. Retoma a contemplação do cenário: “O trecho de calçada
tinge de sombras a visão de velhos troncos imbricados em sua dor. O chafariz, as
pirâmides, degraus abaixo, o Monumento aos Mortos do outro lado. Rala a tentação de
uma náusea que ainda seria um estímulo” (p. 368).
As ocorrências dos gatos aproximam os desejos frustrados das náuseas físicas:
“Um frêmito entre detritos. O pêlo branco entre avidez de patas. Um alimento vômito
sobre a pedra” (p. 368).
Assim, a certeza do fracasso em sua busca torna-se indelével: “Resta apenas a
nítida visão do vazio e o próprio corpo para enfrentá-lo ou sucumbir à sua recusa do
mundo” (p. 368).
O relógio da Mesbla anuncia 2h. 45min. Nem mesmo um anjo foi entrevisto no
terror. A trilha pelos bas-fonds da metrópole se revela inútil.
48
Conto publicado, pela primeira vez, na revista Escrita Livro, ano I nº I, em 1977.
180
49
Todorov (2003) apresenta outras variações do conto maravilhoso no terceiro capítulo de Introdução à
Literatura Fantástica. Cf., especialmente, p. 60-63.
181
Copo, palavra. Copo, objeto. Copo, duas consoantes, duas vogais, um certo
som fácil de adivinhar. Copo, tronco de cone invertido, quase cilindro, de
vidro, um círculo de vidro no fundo, transparente, uma circunferência
lapidada em cima, tonalidades de cor em função da luz e dos objetos à volta.
Duas sílabas, vidro modelado pelo fogo. Laranja. Três sílabas, a mesma
vogal tripartida. Circunferência rugosa, casca irregular, manchas esparsas,
cor palavra de cor como revestimento de suco e bagaço, gomo e caroço (p.
393-394, grifos nossos).
Achava que teria de ler o inverso do que punha diante da porta do armário.
Mas ao inverter o papel observou que leria a imagem de uma inversão.
Portanto OPOC era a imagem do inverso da palavra. A imagem de COPO
seria COPO, se o papel não tivesse espessura, e se escrevesse no próprio
espelho com o dedo ou com algum pincel. Não haveria distâncias entre
palavra e imagem. Ou a distância de uma infinita ilusão (p. 394).
observava outro homem, e percebeu que o que observava esperava ouvir qualquer coisa
do outro. Ele esperou a espera do que observava a espera de qualquer coisa” (p. 394).
Nota-se que esta cena é a primeira micro narrativa inserida na narrativa primeira, a da
busca pela palavra mágica.
A citação acima serve para que possamos desenhar o quadro da cena inserida: o
primeiro homem, a protagonista, observa um segundo homem que, por sua vez, observa
um terceiro homem que, igualmente, observa algo.
Uma visão do terceiro homem, aquele que observa algo e que é o alvo de
observação do segundo homem e, por conseguinte, do primeiro, nos é dada a seguir:
São negadas maiores informações sobre as motivações das três personagens para
observar. Porém, o trecho seguinte é muito rico em possibilidades. Uma mulher se
aproxima do terceiro homem. Pela narração, esboçamos uma possibilidade: o primeiro
homem demonstra espanto e alegria, o segundo homem procura compreender o espanto
e a alegria do primeiro, além da gesticulação deste com a mulher, já denominados, pelo
narrador, de casal, termo que não especifica a relação mantida pelos dois. Subitamente,
o segundo homem deu as costas e se aproxima da escada. Antes de desaparecer, olha o
casal. Abaixo, encontramos a visão do segundo homem, via protagonista, cuja
perspectiva é guiada pelo narrador:
Olhou bem suas mãos e suas pernas, e olhou bem os dois mamoeiros, o do
canto e o outro. Percebeu rachaduras no reboco do muro caiado, e a ferrugem
da grade pontuda. O terreno entre a varanda e o muro era irregular, e nunca
tratara de acertá-lo. Montes de terra e um capim não tratado de há muito
dava-lhe feição de abandono, atenuado pelos mamoeiros, bananeiras e
mangueiras. Uma série de hastes verticais terminadas em ponta, e soldadas
por volutas de ferro mais fino, na horizontal, compunham a grade. Alguma
coisa com a grade. A grade. O mamoeiro do canto (p. 395).
O evento interrompido pela visão do casario do outro lado da rua, que não
apresenta nada especial. Retorno ao mamão e ao contato com a terra vem em seguida:
peito e os galhos saindo da boca” (p. 397). O ritual macabro, aos olhos infantis,
relaciona-se à crença de que tais sementes podem ser utilizadas por suas substâncias
curativas no caso de diversas enfermidades, a exemplo daquelas provocadas por vermes
e lombrigas, o que não deixa de ter um respaldo na medicina vigente.
Retorna à espreguiçadeira, ergue-se, bruscamente, e repete o ritual. Mais uma
lembrança, agora, a de uma bicicleta e de suas mãos firmes ao guidão.
Estira-se na espreguiçadeira. A posição é confortável e a visão percorre o
ambiente: “No teto os cantos sujos pedindo uma vassourada, o globo cor de leite no
centro pedindo uma lavagem, uma pequena rachadura junto à verga da porta pedindo
pintura” (p. 397). A tentativa de recordar é entrelaçada com a visualização objetiva.
Mas as lembranças não surgem com facilidade. Cogita não as possuir mais.
Depois de mais alguns comentários mentais, uma lembrança irrompe, introduzindo mais
uma micronarrativa no conto: a história do sapateiro que morava do outro lado da rua:
Antes de enfiar a linha na agulha, passava o fio pelos lábios, enrolava-o com
as duas mãos e atritava-o na massa de cera. Quando os jornais davam alguma
notícia de guerra, falava de sua aldeia, de comida, de bebida, de gente, da
grande cidade, dos conflitos, dos anarquistas. Perguntava pelos vizinhos, pelo
filho da lavadeira, pela filha da costureira, o sobrinho do dono da venda
parece que ia bem nos estudos, cabeça boa (p. 398).
[...] a lembrança nada tinha com a mulher gorda e sim com um terreno
enorme da mulher magra e miúda que tinha uma casa nos fundos, algumas
casas depois da mulher gorda. Sua cara pintada de tinta de amoras brancas e
pretas, seus dedos pegajosos de se agarrarem ao pé de abricó, seus joelhos
arranhados dos galhos da mangueira. A velha magra e miúda e que era a dona
do terreno, mas dominando a lembrança a mulher gorda que nada tinha com a
história, a mulher gorda que era antipática e feia, que era ranzinza e de pouca
fala, e que um dia lhe deu um presente. A mulher gorda tinha um nome. Que
nada tinha com a lembrança das tintas de amoras brancas e pretas (p. 398).
Em terras que nunca vira, em colinas por onde nunca andara, rolava pela
grama, via o sol entre os ramos de castanheiros, rolava pela grama, via o sol
entre os ramos de castanheiros, umedecia a camisa no chão enquanto catava
morangos, morangos enormes, vermelhos. E ao mesmo tempo, sem saber
como, caminhava por entre enormes plantações de beterrabas e cenouras, e
roubava e mastigava uma cenoura enorme de casca fina, adocicada, com todo
o estardalhaço que bons dentes fazem com uma cenoura (p. 398-399).
Farta, a galinha deu meia-volta, escarvou a terra com as duas patas, sacudiu o
pescoço separando as penas do dorso, curvou a cabeça para trás e abriu o
bico como em gargarejo, a asa esquerda horizontal, a direita abaulada
tendendo para a vertical, e disparou em direção à varanda. Não subiu o
degrau de cimento. Ficou embaixo, com uma das patas no capim e a outra na
terra. A disposição era agressiva. Agitando as asas, marchando sem sair do
lugar, balançando o corpo em grande ansiedade, oscilando o pescoço em alta
freqüência, parecia que preparava um ataque (p. 400).
uma reação imediata e desesperada naquela que ouve. Esse efeito é possível devido ao
caráter polissêmico do vocábulo e a configuração subjetiva daquela que a toma para si a
insígnia ofensiva de mulher fácil.
Voltando à protagonista, a lembrança dessa passagem liga-se à visualização da
nuvem que, do seu ponto de vista, ganha as formas de uma galinha. Os elementos
concretos, aliados a sua imaginação, estão na base das recordações e das tentativas de
buscar a palavra mágica.
Ao lembrar que a galinha não apareceu em toda a cena do ônibus (em trecho
citado anteriormente, a personagem insinua que a galinha apontou a cabeça para fora da
sacola), desequilibra-se na espreguiçadeira. O deslocamento provoca susto e excitação.
Diante da possibilidade de excitar-se, a personagem vai preenchendo as possibilidades
das sensações da existência humana em suas dimensões físicas, psicológicas,
fisiológicas e emocionais.
Na cena, a própria noção de espreguiçadeira como a de objeto utilizado para o
descanso, lenitivo para a preguiça, começa a ser reinventada: “A mesma armação de
madeira, o mesmo apoio dos pés, os mesmos dentes na parte de trás para regular a
altura, a mesma cor de listras, talvez. Acomodou-se melhor, abriu as pernas e firmou os
calcanhares sobre a última travessa de madeira encapada pela lona” (p. 402).
Nesse caso, a palavra será responsável pela condução da experiência:
Destaca-se que, ao mesmo tempo em que lhe provoca dor e prazer, a palavra
proporciona à mãe do amigo o constrangimento moral e a afetação física, extenuação
que a leva ao desmaio. Por outro lado, na protagonista, o efeito ganha um tom prazeroso
e quase se aproxima do efeito da palavra mágica.
A retomada de um evento que proporcionou dor prazerosa segue no âmbito do
erótico. A imaginação da protagonista toma como ponto de partida a nuvem:
Enxotou-a com um berro. Mas ela ergueu o pescoço, inflou, agitou as asas,
um pequeno anel de sombra se formou junto às penas que ligam com o corpo,
tiquetaqueou com a cabeça em todas as direções, e semi cerrando as
pálpebras começou a afagar suas pernas com o pescoço (p. 404).
Um pouco mais senhor da situação ficou de frente para o muro dos fundos,
girou a cabeça e viu a espreguiçadeira bem atrás dele e os degraus da
varanda. Encarou o muro e resolveu esfregar o peito na pintura branca. Seu
corpo recuou com uma tranqüilidade espantosa, sem tropeço nos degraus, e
estirou-se calmo na espreguiçadeira (p. 404).
O momento final, de um lirismo vazio, vem sem alarde: “Olhou para o céu e
onde antes vira uma forma da galinha havia apenas um amontoado de letras. Que se
ordenaram em uma palavra: nuvem” (p. 404, grifo no original). O efeito desejado pela
personagem não é obtido. As engrenagens da maravilhosa fábrica de palavras mágicas
não funcionam.
194
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ANEXOS
211
Sua intenção era matar aquele homem hoje, de qualquer modo. Viu-o de perfil,
no espelho, enquanto ensaboava as mãos, de volta do mictório. E viu seu rosto cansado,
viu a própria exaustão de alguns dias nos olhos inexpressivos, nas sucessivas barbas
feitas com negligência. Esfregou as palmas, as juntas dos dedos, tentou atingir a sujeira
concentrada nas unhas sem sucesso. Tirou do bolso a caixa de fósforos, transformou um
palito em estilete e conseguiu eliminar a linha preta da unha, ferindo-se às vezes. Ainda
com o estilete empurrou um pouco de sabão em espuma e raspou o intervalo entre a
unha e carne. Depois abriu a torneira. Enquanto a água escorria pelas unhas, atrás de sua
barba no espelho, examinou-lhe melhor o perfil. Eliezer Kugelman era um homem
baixo, o rosto balofo e luzidio, os cabelos negros bem esticados para trás, um ventre
médio, os braços e dedos gordos e maneirosos agitavam-se sem necessidade. Olhava a
churrascaria em torno, revirada o guardanapo, mexia nos talheres, na cesta de pão, na
manteigueira. Enquanto fechava a torneira viu em fração de segundo o rosto de Eliezer
de frente mas sem o aspecto de estar olhando o seu gesto de lavar as mãos. Os olhos
apertados, um riso leve entre as bochechas infladas. Nem ironia, nem zombaria. Fingiu
esfregar e observar a barba e as bochechas já tinham girado observando o outro lado do
salão. O outro perfil lhe deu entre lábio e bochecha, na linha do riso, um tom de
desprezo, não bem definido. Ao mudar um pouco a posição do corpo, um pequeno
arranhão junto à orelha, não percebido, começava a inflamar, viu refletida a porta de
entrada e a pequena praça em frente à churrascaria. Os dois irmãos de Eliezer Kugelman
estavam sentados num banco lateral, à sombra de um grupo de troncos torcidos. Manuel
Kugelman, um pouco mais moço que Eliezer, e Elias Kugelman, o mais novo, o idiota.
Passou o indicador pelo arranhão e percebeu que Manuel o observava do banco, e que a
mesa escolhida por Eliezer, à direita na faixa central, era vista com nitidez do canto da
praça ocupada pelos irmãos. Quando os conheceu, apenas um detalhe lhe despertara a
atenção no idiota. Nada falava, andava à toa, desligado, uma leve baba às vezes nos
lábios, quando em companhia dos outros dois. Cercavam-no de atenções, nunca o
deixavam só, ou quase nunca. As poucas vezes em que o encontrara sozinho, ao dirigir-
lhe a palavra, o rosto do idiota se iluminava e o diálogo, banal, transcorria tranqüilo.
Quando seu filho se tornou amigo do filho de Eliezer, tornou-se amigo também do
idiota. Os três se entendiam bem, e exultou mesmo quando os viu, um dia, rolarem na
212
grama, gargalhando. A única vez em que vira o idiota gargalhar. Enxugou as mãos e
voltou à mesa. Eliezer recebeu-o com o mesmo traço entre lábios e bochechas. O garção
deixara os aperitivos, e Eliezer ofereceu-lhe um cigarro, depois do brinde. E encarou-o
com os olhos neutros ao estender o isqueiro com a chama um pouco exagerada. Quando
recebeu o convite ontem à noite para o almoço de hoje, sabia que a intenção daquele
homem era matá-lo, e isso em nada o perturbou. Nem lhe tirou o apetite. A um pequeno
sinal seu alguns homens da polícia distribuídos pelo salão resolveriam o problema. Em
caso de necessidade um sinal do irmão Manuel deixaria prevenidos dois outros postados
na praça. Por polidez ainda o acompanhara à clínica onde o filho fora internado na
véspera; não o deixaram visitá-lo. Disseram-lhe que estava em observação. Na queixa à
polícia, e no pedido de proteção, alegara o desvario do pai crápula, e a ameaça que
representava para ele, Eliezer, pelo simples fato de ter presenciado a cena chocante.
Dissera à polícia que vira o pai tentar violentar o filho, e o menino em estado de choque,
selvagem, saíra correndo pela rua, até cair exausto em convulsões. Não permitiria que
esse professorzinho atrapalhasse seus planos, como o idiota atrapalhara a operação com
sua filial em Haifa, através de um intermediário de Bruxelas. Terminou o aperitivo,
forçado, detestava o álcool, e nunca ia além de um Martini seco antes da comida e um
uísque depois, o suficiente para manter uma certa cordialidade social nos negócios. Não
suportava nos outros o derrame sentimental de algumas doses, e muito menos a língua
destravada do bobalhão afetivo. Trocaram algumas frases sobre a qualidade da carne
enquanto eram servidos. E ao cortar a primeira fatia da maminha de alcatra, reviveu pela
milionésima vez a mesma cena. Chegara às oito e meia para jantar, um pouco mais
cedo, mas encontrou tudo na mesma. A aula fora encerrada com o barulho dos tanques,
e desistiu de rodar com os amigos pela Praça da República. Ninguém sabia ao certo o
que acontecera. Estava cansado e com sono. Estudara até tarde na véspera, a prova no
colégio de manhã fora exaustiva, o trabalho à tarde, na loja do tio, enervante, e o
comportamento do tio, à noitinha, levara-o ao máximo de irritação. Pagara-lhe a metade
do salário combinado, ainda lhe avisou que descontaria o prejuízo do vidro quebrado
nos meses seguintes. Um vidro quebrado por descuido enquanto ajudava o carregador a
levar uma cômoda dos fundos para a calçada. Antes de sair, tinha outra aula à noite,
ainda olhou bem a cara do tio, o rosto redondo, a calva central, os olhos matreiros, a
enxugar um suor eterno com um lenço eterno nas faces eternas em gestos lentos e
meneios que não sabia definir. Na esquina de Senhor dos Passos e Praça da República
tomou a direita, contornou o Campo de Santana, viu o Ministério da Guerra iluminado e
213
alguns tanques alinhados, parou um pouco na outra esquina para um cigarro, e enquanto
riscava o fósforo observou algum movimento no trecho entre a Rádio do Ministério da
Educação e a Casa da Moeda. Oito e meia quando abriu a porta de sua casa na Benedito
Hipólito. O pai dormia, como de hábito, o que era melhor, evitava a ranzinzice. Tirou o
paletó, abriu o gás para esquentar as duas panelas, e tirou pratos e talheres do armário da
cozinha. Lesma na atividade de cobrador do clube do quarteirão, fera no resmungar e
lamentar sua condição de vítima eterna, vaidoso na exigência dos colarinhos engomados
na lavanderia da Regente Feijó, o pai não conseguia arcar com as despesas da casa. A
mãe arranjara um trabalho noturno acompanhante de uma velha doente. Chegava de
manhã, quando ele e os irmãos saíam para a escola, passava o carão em todos, tomava
café e ia dormir. O feijão-branco e as batatas já tinham grudado no fundo da panela.
Derramou tudo no prato fundo que deixou de lado, e despejou o bife no prato raso.
Acabar de comer, tirar o resto da roupa e se atirar na cama, o maior desejo. Amanhã de
manhã saberia se a notícia colhida na esquina da Rua Santana era verdadeira.
Derrubaram Getúlio. Teve a impressão de que desde que a guerra acabara, há alguns
meses, já ouvira esse boato algumas vezes. Não tinha cortado o primeiro pedaço do bife
quando lhe trouxeram a notícia. A mãe estava presa e mandara um recado para os
parentes. Na polícia viu-a no meio de um grupo de mulheres do mangue esbravejando,
protestando, sacudindo as banhas e a corpulência no máximo de indignação. Nunca
chegou a compreender [sic] bem o olhar do policial, os olhos fixos nos seus, quando lhe
disse que podia retirar-se com a mãe, nada registraria. No caminho ela não fez outra
coisa a não ser repetir que estava apenas passando pelo lugar quando foi envolvida na
confusão, apenas passando, que era um abuso, um desrespeito, por aí afora. Odiou-a
mais pelo falatório. Ao se deitar, sem comer, não suportou o cheiro da esporra dos
irmãos que dormiam no mesmo quarto. Parecia que se masturbavam todas as noites.
Odiava o mais novo, os pais haviam decidido que ele pagaria seus estudos. Ao cortar a
primeira fatia do filé ainda continuava intrigado com a linha do riso entre lábio e
bochecha. Espantou-se com sua própria serenidade, agora. Por várias vezes naquela
manhã, e ali mesmo na churrascaria, teve a impressão de que ia desabar sobre si mesmo
ou sobre o outro. A lembrança do filho na clínica provocou-lhe um tipo novo de
despertar interior. Algo feito de espanto e alargamento interior. Olhou os movimentos
de Eliezer Kugelman sobre a mesa e a cabeça inclinada para a frente era vista como de
cima. Imaginou Manuel Kugelman e o idiota atrás dele no banco da praça. O breve
relato do filho, arrancado aos pedaços, em meio a convulsões, antes do colapso, e que se
214
Referência
RAWET, Samuel. O riso do rato. In: ______. Contos e novelas reunidos. Civilização
Brasileira, 2004, p. 345-349.
215
de hotel da serra, estavam nus os dois, ela cansada dos esforços em conseguir-lhe uma
semi-ereção, enquanto olhava pela janela a mata densa e florida e aspirava um céu de
frio e chuva recente, constatou que até como homossexual era impotente. A única visão
profunda do tipo era a visão esquemática. Durante um mês manteve relações diárias
com todos os homens que lhe era possível encontrar nos intervalos do trabalho, e ao
constatar a gravidez sugeriu um fim de semana no mesmo hotel. Desta vez conseguiu
uma semi-ereção, suficiente para uma união, e um breve orgasmo. No mês seguinte
anunciou-lhe a gravidez e o casamento foi marcado. Quarenta e poucos dias de casados
lhe deram tempo suficiente para reduzi-lo a um trapo entregue a um grupo de
psiquiatras. Desmoralização orgânica produzida por laxantes de ação rápida, soporíferos
no café da manhã e no almoço, estimulantes e anti-hipnóticos à noite. Instabilidade
total, luta com insônias pela madrugada, luta com o sono durante as atividades do
cotidiano, luta com as vísceras numa inversão alimentar. A ilusão, ainda, de alguma
coisa perdida, ao ver a empregada aparecer ao mesmo tempo em que envolvia com os
dedos a campainha. O frio da prata e da voz. A cerimônia do casamento se processara
no mais perfeito esquema ritual.
Referência
ANEXO C – “Moira”
Que sombra recrudesce a sua volta? Que áspera revolta se acumula em instantes
desfigurados e anula qualquer percepção de objetos como objetos? Subitamente se
identifica como receptor de imagens adulteradas, incapaz de um encontro concreto,
singular, imediato com o outro. Havia homens à sua volta, o seu cotidiano era o
cotidiano de todos, em aparência, tinha as suas exaltações e fúrias, mas havia o tempo
solidificado, estratificado, e era com dor que uma vaga impulsão de fluxos se
estabelecia. Abriu a janela para o pequeno pátio lateral. Chovia. E como todo dia de
chuva é cinza, e cinza seu sentimento ao despertar, recolheu mais uma vez em bloco
sólido o passado. Amanhecera há pouco. Do largo do Machado ruídos dos veículos. No
sobrado ainda o silêncio da noite. Tomou café e acendeu o cigarro. Sabia que um jeito
amargo compunha suas feições, ou deveria compor. Vacilava ainda em reconhecer
expressões que nada traiam ou pensamentos que não se articulavam em figura e
significado. Representava o que? Foi ao banheiro, urinou lavou as mãos, no espelho do
armário viu marcas de maquilagem ainda. Poderia dormir. Que procurava no sono? Que
procurava no palco? Um modo de ser no mundo, um modo de estar diante da morte?
MUNDO. MORTE. PALAVRAS? Aparou demais as unhas, apertou o cinto do roupão,
acendeu outro cigarro. Que espécie de consolo ou libertação procurava na idéia de
suicídio. Uma chantagem que fazia consigo mesmo? Uma irrupção do famoso instinto
de morte? Existia mesmo? Instinto oscilando entre criação e destruição, vinculando ao
fundo mais fundo de sua condição, ou da condição? Cruzou várias vezes o quarto, olhou
o armário, a cama, os tapetes. Abriu o armário, revirou a roupa. De novo no banheiro. A
pia. O chuveiro. A toalha. O sabonete. Um cotidiano. O eterno cotidiano. Uma frase. A
eterna frase. O tempo. O fluxo do tempo. Um instante. Fração de quê? Entre passado e
futuro o presente estrangulado, compacto, quase ausente. A infância? O que havia de
belo na infância? Por que imaginar agora o que nem chegou a ser? A comparação. Um
sonho que se poderia ter sonhado, e que vem através do que é visto? Ou a nostalgia da
simples nostalgia, a saudade de uma forma prenhe de possibilidades. Se... se... se... A
irresponsabilidade? O senso lúdico puro? Ou a infinita responsabilidade de ser no
mundo que se oferece a uma angústia em perpetua ampliação? Seria possível captar o
desespero de uma criança diante da saturação e opacidade das coisas? Seria possível
imaginara crispação de sentidos diante da pura fruição de um organismo que se afirma
em sua gênese? De um organismo maior do que a pele? Da pele insatisfeita à procura de
sua forma? Irrita-se de novo com a perturbação no espetáculo da véspera. O cansaço
com o papel começava a pesar-lhe. Quatro meses no mesmo tipo de Albee, quatro
meses de marido e mulher de reitor, quatro meses de ouvir a mesma canção. Quem tem
medo de Virginia Woolf? Em meio à fala silenciara e se pôs a mirar a platéia. Queria ver
a platéia. Queria ser a platéia. Ator e um homem do público ao mesmo tempo. Uma
simbiose. Uma irrealidade produzida por duas em choque. Ironia. O caminho do humor.
O caminho de quê? Ser o que se é, o que se quer ser, e o que se deve ser. Duas
realidades? Três. O álbum de fotografias atualizado. Um gosto pela ordem, pela
regularidade, um prazer em de vez em quando acompanhar sua trajetória. Rever uma
ascensão, ou uma queda. E a diferença? Percebeu que começava a perceber uma
situação ambígua forjada pela observação. E teve medo. Para distrair procurou refúgio
no seu dia-a-dia. E constatou ser ali o local de sua vocação. Não no palco. Ao
representar era espontâneo. Ao ser esmera-se sempre em artifícios. A simulação da
convivência. E o diretor? E o autor? O cenógrafo? O iluminador? O maquiador? O
figurinista? O contra-regra? Um destino? Deus? Um nome, uma realidade, uma
possibilidade, um ser concreto à sua imagem e semelhança, ouvindo e querendo ouvir?
219
Referência
RAWET, Samuel. Moira. In: ______. Contos e novelas reunidos. Civilização Brasileira,
2004, p. 357-359.
220
ANEXO D – “Trio”
e pretas, era a limpeza de seu coração nas encruzilhadas da cidade em que meditava
sereno. De preferência à noite. Ficava de pé, equilibrado, os braços cruzados, à turbante
branco centrado na cabeça, a respiração ritmada. E o mundo lhe vinha. Os compradores
não o perturbavam. Os homens, as mulheres, as crianças, os nascimentos, as mortes, os
prédios, os terrenos, os gritos dos vendedores de jornais, os estudantes, os viados, as
putas, os tiras, os caminhos que chegam e partem, o mar, os peixes, os céus, as estrelas,
os pássaros, o mato, as palmeiras, os morros, os crimes, as esmolas, a ternura, o ódio.
Mas nunca ousou dizer o que disse, era pretensão demais. Mas Pedro falou. Paulo falou.
E ele? Falou também. E o mundo não desabou.
Subitamente os três se ergueram e o abraço foi tão violento que desistiram de
esperar o trem. Pedro Paulo no centro, o braço esquerdo no ombro de Pedro, o esquerdo
no de Paulo, unidos numa gargalhada, os corpos em permanente fusão dinâmica, as seis
pernas oscilantes de um demônio tricéfalo, as vozes dissonantes, as seis pernas
oscilantes, se fundiram no refrão do último samba do carnaval que passou. Foram
presos à saída da estação, postos numa viatura da polícia, e aguardaram a manhã no
xadrez do distrito mais próximo. Houve um incidente ao saírem. Pediram que
assinassem qualquer coisa antes. Foi impossível.
Eram analfabetos.
Referência
RAWET, Samuel. Trio. In: ______. Contos e novelas reunidos. Civilização Brasileira,
2004, p.364-365.
222
um dia, quando o chefe da oficina lhe mostrou a fotografia de uma novidade francesa
em lançamento; a gola era a sua, e quando a sugeriu nem lhe deram atenção. Havia a
desculpa, agora, o negócio era francês, e francês quando manda para cá, já é coisa certa.
O pior veio depois quando lhe pediram um novo tipo de camisa social. Foram quinze
dias de deslumbramentos e desmaios na tentativa de harmonizar punhos, gola e bolsos,
além do peito duplo com a intenção de esconder botões e dobras; camisa social, de
abotoar, com jeito de camisa esporte, inteiriça. Dez dúzias foram feitas
experimentalmente. Quinze dias depois nenhuma saíra da prateleira, apesar dos
vendedores, e hoje lá estavam como estigma de seu fracasso. Quando ousava esboçar
alguma coisa apontavam-lhe o canto do armário onde as dúzias amarelavam. Com isso
conseguiram a tortura perfeita. Um rapazote vinha da Rua do Passeio. A barra do blusão
meio por fora meio atrás do cinto. O jeito alheado na calça justa e sem vinco, as pernas
mais tortas pela atitude no andar, Giuliano Gemma entrando a pé na Avenida de Tulsa
sorrindo de cem homens escondidos atrás dos telhados com os fuzis engatilhados. O
rapazote meio que pára não pára, olha o velho de viés e com desprezo prossegue. A
lâmpada acentua o volume nas virilhas. Estaca adiante como se à espera mas ele
permanece junto à grade. O desprezo vislumbrado humilhara-o. Não o seguiria.
Conhecia esses artifícios de repulsa, mas sentia-se humilhado. Não o seguiria. Mas
ficou-lhe a nostalgia do volume nas virilhas. Desistiu de uma caminhada até a
Almirante Barroso. Pouca probabilidade. Se tivesse energia chegaria até à Praça Quinze.
Junto às barcas. Ou mesmo os arredores da Praça Mauá. Era grande a concorrência
agora que os da zona sul descobriram o canto. Chegavam de carro, bem vestidos,
doutores, coronéis, levavam vantagem. Um homem à espera de ônibus. Atravessou a
pista e sondou o tipo. Sentiu que se insistisse mais um segundo ouviria um berro com a
palavra costumeira. Encostou-se na banca de jornais quando viu o mulatinho chegar ao
ponto. O homem indiferente despertou e a cabeça nervosa oscilou entre o velho da
banca e o mulatinho. O mulatinho enfiou as mãos nos bolsos, sorriu e se postou quase
ao lado do homem. Você está querendo o quê, eu sou um homem casado, tenho mulher,
tenho filhos, está pensando o quê. O velho cruzou outra vez a pista, sem deixar de sorrir
diante da voz esganiçada e do corpo em desequilíbrio do homem. Conhecia esses tipos.
Era casado, tinha mulher, e filhos, tudo isso arrotado com meneios de macheza
duvidosa e terror. Quase gargalhou ao ouvir o vozeirão do mulatinho. E alguém lhe
perguntou alguma coisa, seu idiota! O mulatinho atravessou a segunda pista e dobrou a
Rua da Lapa. O homem embarcou no primeiro ônibus. O trecho de calçada tinge de
224
Referência
RAWET, Samuel. Nem mesmo um anjo é entrevisto no terror. In: ______. Contos e
novelas reunidos. Civilização Brasileira, 2004, p. 366-368.
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Um dia acordou, cuspiu na pia, escovou os dentes, cuspiu outra vez, lavou o
rosto, e ao pegar a toalha, soltou um palavrão. O dedo mindinho do pé dava urros, o
dedo não ele. Dera uma topada no armário do banheiro. Como vingança chutou o
armário com o dedão do outro pé. Que também urrou. Aí o homem encontrou uma
saída. Ensaiou bem a cara no espelho e fez de superior em relação aos dedos do pé, o
mindinho e o dedão. Naquela hora resolveu levar avante um velho projeto: descóbrir a
palavra mágica mais poderosa do que todas as palavras mágicas que conhecia, inclusive
abracadabra. Foi à varanda, mexeu nas samambaias, e estirou-se na espreguiçadeira.
Que não era fácil inventar palavra mágica. Mais difícil do que palavra difícil. Começou
por achar que devia ter mais de doze sílabas sem a tapeação do hífen. Fixou-se em vinte
e duas sílabas, simplesmente porque dois mais dois são quatro, e dois mais dois, sem o
mais, são dois dois, o que não é tão óbvio. A palavra mágica deveria anular o efeito de
todas as outras e desfazer encantamentos, revirar feitiços, pau para toda obra no campo
milagreiro. Julgou inútil fazer um levantamento enciclopédico de todas as palavras
existentes no gênero, para não cair em repetição, ou em plágio. Inventaria a sua. Com
vinte e duas sílabas e um bom arranjo de vogais e consoantes era mínima a
probabilidade de obter uma já existente em qualquer língua. Primeiro porque as línguas
que davam palavras mágicas não tinham lá tantas sílabas juntas, e as que tinham
estavam há muito tempo desmoralizadas porque se mostraram chinfrins na matéria.
Palavra mágica não se inventa com tanta facilidade, muito menos palavra mágica mais
forte do que qualquer outra. Retorceu-se na espreguiçadeira, alisou com os dedos os
braços de madeira manchada e disse à samambaia que a tarefa era complexa. Disse à
samambaia. Quase se assusta. Não com o que disse. Coisa à-toa. Nem com a samam-
baia. Que nada tinha de causar espanto, samambaia comum, do tipo que gostava. Disse
à samambaia que a tarefa era complexa. E esperou comentários. As hastes se agitaram
de leve. Houve oscilações de folhas. Um pouco de terra veio misturada com a poeira.
Ventava. Compreendeu que a combinação de vogais e consoantes tinha que ser
ininteligível. Pensou em palavras simples, mesa, cadeiras, pão, folha, irmão, pai, mãe.
Eram inteligíveis. A gente ouvia e sabia logo o que era. Mesa, aquilo ali, cadeira, isto
aqui. Comum. Banal. Sem graça. Palavra mágica tinha que ter o encanto de
dissonâncias, de ruídos, de asperezas, tinha que despertar nostalgias por exóticas
complementaridades. Reinos fantásticos - o não-agora, o não-aqui. Uma consistência de
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retas e curvas, pedaços de vela, fatias de couro, tiras de borracha, cera de carnaúba.
Antes de enfiar a linha na agulha, passava o fio pelos lábios, enrolava-o com as duas
mãos e atritava-o na massa de cera. Quando os jornais davam alguma notícia de guerra,
falava de sua aldeia, de comida, de bebida, de gente, da grande cidade, dos conflitos,
dos anarquistas. Perguntava pelos vizinhos, pelo filho da lavadeira, pela filha da
costureira, o sobrinho do dono da venda parece que ia bem nos estudos, cabeça boa. O
italiano tinha um nome, mas o nome não era a lembrança toda. Ainda assim a lembrança
era lenta e não era. Vinha com dificuldade e não vinha. Pareceu-lhe despender um
esforço enorme para chegar a outra lembrança. Estava ligada a uma mulher gorda da
outra rua, paralela à que fazia esquina para o sapateiro. Mas a lembrança nada tinha com
a mulher gorda e sim com um terreno enorme da mulher magra e miúda que tinha uma
casa nos fundos, algumas casas depois da mulher gorda. Sua cara pintada de tinta de
amoras brancas e pretas, seus dedos pegajosos de se agarrarem ao pé de abricó, seus
joelhos arranhados dos galhos da mangueira. A velha magra e miúda e que era a dona
do terreno, mas dominando a lembrança a mulher gorda que nada tinha com a história, a
mulher gorda que era antipática e feia, que era ranzinza e de pouca fala, e que um dia
lhe deu um presente. A mulher gorda tinha um nome. Que nada tinha com a lembrança
das tintas de amoras brancas e pretas. E com facilidade, agora, em clima leve de êxtase
e encantamento, a lembrança de um sonho. Em terras que nunca vira, em colinas por
onde nunca andara, rolava pela grama, via o sol entre os ramos de castanheiros, rolava
pela grama, via o sol entre os ramos de castanheiros, umedecia a camisa no chão en-
quanto catava morangos, morangos enormes, vermelhos. E ao mesmo tempo, sem saber
como, caminhava por entre enormes plantações de beterrabas e cenouras, e roubava e
mastigava uma cenoura enorme de casca fina, adocicada, com todo o estardalhaço que
bons dentes fazem com uma cenoura. Sacudiu-se. Era recomeçar a empresa. Pronunciou
cinco vezes memsfeoapbdq. Inspirou. Expirou. E retomou o ímpeto. Apenas deixara o
mamoeiro. Seria a vez da galinha, qualquer uma. Ficou de sentido, encolheu a barriga,
esticou as duas mãos espalmadas para a frente, e pronunciou com um imperativo o
memsfeoapbdq. Abriu os olhos que havia fechado em quase transe. Nada. Repetiu a
cena carregando um pouco mais no imperativo. Nada. E aquele olho redondo da galinha
no seu olho esquerdo bem aberto quando visava os mamões. Modificou a posição das
pernas e das mãos. Levantaria a mão esquerda, na vertical, deixaria a direita na
horizontal, sem espalmar os dedos, a perna esquerda e a direita fariam forquilha, uma
para a frente e outra para trás. Com um pequeno artifício. Usaria, no tom da pronúncia,
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derivado e composto de palavras em sua língua. E palavra mágica teria alguma ligação
com a língua de uso, do dia-a-dia? Se isso não fosse verdade sua busca era inútil,
porque desconhecia totalmente outras línguas. O búlgaro, o javanês, o finês lhe eram
completamente estranhos. Ou cada língua tinha as suas próprias palavrinhas mágicas,
para uso interno, palavras completamente ineficazes em outras línguas? Palavra mágica
de chinês dita por um alemão dava em nada. A palavra copo em búlgaro, a palavra copo
em javanês, a palavra copo em finês, a palavra copo em chinês. Juntando as quatro,
invertendo, eliminando as vogais, partindo do princípio de que a seqüência era válida, e
pronunciando-a teria alguma coisa a ver com copo. A cabeça da galinha a princípio
parecia emergir de um copo, mas nem a galinha era a de há pouco, nem o copo tinha
nada a ver com as palavras que desconhecia. O corredor do ônibus estufava de
passageiros por entre as poltronas; os que estavam em pé junto aos assentos enfiavam a
coxa ou a perna nos intervalos das poltronas, ou comprimiam o corpo nos ombros dos
que sentavam nas pontas. No ponto um berro de mulher e um cacarejar. O último
passageiro que subira apertara os embrulhos da mulher equilibrada junto ao degrau e
revelara a galinha escondida no papel. O trocador fez parar o ônibus e queria obrigar a
mulher a descer: a galinha não viajava. A mulher insistia em dizer que não havia galinha
nenhuma enquanto a galinha cacarejava envolta em papel, e o passageiro que subira
pedia passagem para o corredor. Os outros se impacientavam, estavam atrasados, o
calor começava a incomodar. Desce a galinha e fica a mulher, desce o passageiro e fica
a galinha, fica a mulher, fica o passageiro, desce o cacarejar. Uma voz estereotipada de
boçal levou o episódio ao máximo de tensão. A palavra galinha com entonações
cafajestes fez a mulher soltar um grito, e depois os soluços se mesclaram ao cacarejar.
Em toda a cena do ônibus, que agora se fundia à imagem da nuvem em forma de
galinha, a galinha não apareceu. A lona da espreguiçadeira cedeu um pouco à direita e o
deslocamento do corpo assustou-o e excitou-o. A excitação de agora fundiu-se à
lembrança de excitação e cena erótica em espreguiçadeira. Idêntica. A mesma armação
de madeira, o mesmo apoio dos pés, os mesmos dentes na parte de trás para regular a
altura, a mesma cor de listras, talvez. Acomodou-se melhor, abriu as pernas e firmou os
calcanhares sobre a última travessa de madeira encapada pela lona. Tentou isolar uma
palavra na situação em que se encontrava, mas não conseguiu. Eram torrentes de
semifrases se superpondo em clima de tensão mental e contração corporal, sem
deslocamentos. Mistura de rompantes líricos e palavrões em atmosfera de
encantamento. A excitação composta de todas as lembranças de excitações deixou-o
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num estado em que começou a ser usado pelas palavras. Elas emergiam em blocos
numa espécie de imperativos de movimentos. Assustou-se com a simultaneidade de
imperativo e ação. Autômato perfeito. O corpo se sacudiu num transe coreografado,
interrompido apenas pela nuvem em forma de cabeça de galinha. A palavra gerada,
porém, foi um palavrão. Palavra mágica poderia ser palavrão? Procurou ordenar os
palavrões que conhecia, e constatou que eram poucos. Pensou em incluir alguma coisa
de gíria pornográfica, mas invalidou o recurso. Palavra mágica não poderia depender de
flutuações locais. Ordenou de novo os palavrões habituais, válidos em todas as regiões,
e de fácil identificação. Mas sempre desconfiado. Palavra mágica tem sempre
vinculação com sobrenatural. Formada de palavrões? Não podia afastar a constatação de
uma certa eficácia. Um palavrão bem pronunciado em hora certa não deixa de ter um
certo efeito mágico. Não conseguiu afastar o constrangimento. À entrada na casa do
amigo, há tempos, tropeçou numa pequena estante da sala de visitas, e quando a mãe do
amigo apareceu recebeu uma frase recheada de palavrões. A pancada fora na canela e a
expressão do rosto quando a velha entrou com a mão estendida para o cumprimento era
de extrema dor. A velha desmaiou e ele ficou dançando numa perna só no centro da
sala, uivando, segurando a canela. Cenas eróticas se sucedem entre a espreguiçadeira e a
nuvem. O feminino e o masculino assumem atitudes e feições de dança frenética no
início e depois resvalam para movimentos em câmara lenta. Os palavrões se sucedem,
mas há entre eles um intervalo de pudor e raiva; surpreende-se mesmo com a pronúncia
silenciosa de alguns deles em intimidade terna e lírica, recheada de diminutivos. As
perversões se sucedem em lentidão amorosa recobertas de um halo de terror que parece
paralisar as palavras. Fêmea e macho esplêndidos se desdobram e se envolvem em
contrações de membros e lábios. Fêmea e macho percorrem-lhe o corpo provocando
retração das pernas e intenso movimento que antecede o gozo sem permitir-lhe o gozo.
Gira na lona à procura de uma posição estável de bruços, impossível no início, até que
ergue os braços, os cotovelos dobrados na travessa superior, e entrega o corpo à
concavidade da lona retesada; as canelas doloridas pressionam as travessas das pernas, e
uma espécie de dor inversa sacode-lhe o corpo, anulação de gozo. Lentamente se ergue,
os movimentos alternados, uma espécie de véu sobre os objetos, o espaço em volta com
uma leve consistência sólida. Ergue a mão para coçar o queixo, os dedos como facas em
massa pastosa. Ao se dirigir para os degraus da varanda seu corpo se choca com a
parede atrás dele. Quanto mais se dirige para os degraus da varanda mais seu corpo
comprime a parede. Desiste. Melhor regressar à sala. A porta fica à sua direita. O corpo
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comprime a quina da varanda à sua esquerda. Sente uma coceira ao longo da espinha e
comprime as costas na parede. Por pouco não tropeça nos degraus e seu corpo só parou
junto ao mamoeiro do fundo. Estendeu a mão para baixo na intenção de recolher
algumas sementes, mas viu os dedos retesados acima de sua cabeça esfarelando o ar.
Elevou-se um pouco mais na ponta dos pés para arrancar uma folha do mamoeiro, e viu
seu corpo de cócoras e suas mãos dilacerando talos de capim. Baixou o joelho esquerdo
para apoiá-lo na terra, mas foi o direito que roçou os grãos de areia e os pedruscos entre
as moitas de capim ralo. Pensou que tinha acabado de jogar fora o toco do cigarro, e viu
suas mãos ocupadas com o maço e os fósforos. Seus dedos lhe enfiaram um cigarro nos
lábios e acenderam-no com a chama quase raspando o queixo. Decidiu sentar-se na
grama mas se viu de pé. Resolveu ficar imóvel mas viu seu corpo se movendo tranqüilo
pelo quintal. Sentiu fome e lembrou-se de umas bananas que comera ao acordar. Ainda
havia algumas na cozinha. Vomitou com rapidez. Em meio à gosma alguns pedaços de
banana mal digeridos. A galinha surgiu e começou a beliscar os pedaços a seus pés.
Enxotou-a com um berro. Mas ela ergueu o pescoço, inflou, agitou as asas, um pequeno
anel de sombra se formou junto às penas que ligam com o corpo, tiquetaqueou com a
cabeça em todas as direções, e semi cerrando as pálpebras começou a afagar suas pernas
com o pescoço. Renovou o berro e sentiu o frêmito do corpo da galinha se enroscando
em suas canelas. Sussurrou irônico uma frase terna. Um uivo de dor acompanhou o
cacarejar. Alisou a barriga da perna vigorosamente bicada e enfrentou feroz os olhos
cintilantes entre o bico. As asas abertas de penas bem separadas, o pescoço oscilando da
esquerda para a direita e da direita para a esquerda como à procura de ponto de ataque,
as patas se revezando no apoio e na posição de ataque, as garras enrijecidas pelo ódio.
Dominado por um sentimento de pena disse apenas um vem cá tranqüilo. O corpo da
galinha se relaxou de súbito, ficou apática por instantes, deu meia-volta e se esgueirou
pela lateral. Um pouco mais senhor da situação ficou de frente para o muro dos fundos,
girou a cabeça e viu a espreguiçadeira bem atrás dele e os degraus da varanda. Encarou
o muro e resolveu esfregar o peito na pintura branca. Seu corpo recuou com uma
tranqüilidade espantosa, sem tropeço nos degraus, e estirou-se calmo na
espreguiçadeira. Olhou para o céu e onde antes vira uma forma da galinha havia apenas
um amontoado de letras. Que se ordenaram em uma palavra: nuvem.
Referência
RAWET, Samuel. BRRKZNG: pronúncia - bah! In: ______. Contos e novelas reunidos.
Civilização Brasileira, 2004, p.392-404.