A Narrativa Ficcional de Samuel Rawet - Luciano de Jesus Gonçalves PDF

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LUCIANO DE JESUS GONÇALVES

QUE OS MORTOS ENTERREM OS


SEUS MORTOS: A NARRATIVA
FICCIONAL DE SAMUEL RAWET

Três Lagoas - MS
2012
LUCIANO DE JESUS GONÇALVES

QUE OS MORTOS ENTERREM OS


SEUS MORTOS: A NARRATIVA
FICCIONAL DE SAMUEL RAWET

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Letras (área de concentração:
Estudos Literários) do Campus de Três
Lagoas da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul – UFMS, como requisito final
para a obtenção do título de Mestre em
Letras.
Orientador: Prof. Dr. Antônio Rodrigues Belon.

Três Lagoas - MS
2012
LUCIANO DE JESUS GONÇALVES

QUE OS MORTOS ENTERREM OS SEUS


MORTOS: A NARRATIVA FICCIONAL DE
SAMUEL RAWET

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Letras – Estudos
Literários, da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre, sob a
orientação do Prof. Dr. Antônio Rodrigues
Belon.

COMISSÃO EXAMINADORA

-
____________________________________
_
Orientador Prof. Dr. Antônio Rodrigues
Belon
Universidade Federal do Mato Grosso de
Sul
____________________________________
-
Prof. Dr. Arnaldo Franco Junior
Universidade Estadual de São Paulo –
UNESP – Rio Preto

____________________________________
_
Prof. Dr. Éverton Barbosa Correia
Universidade Federal do Mato Grosso de
Sul

Três Lagoas - MS, 28 de Março, de 2012.


A Antônio Rodrigues Belon, meu orientador, pelos
ensinamentos, confiança, amizade e suporte em todos os
momentos;

Aos meus avôs, Alcina e João, pelo carinho incondicional;

A Eder Ahmad, por motivos inumeráveis...


AGRADECIMENTOS

Ao longo dos dois últimos anos, fase em que realizei esse trabalho, contei com o
apoio de muitas pessoas. Correndo o risco de cometer algumas omissões, aproveito a
oportunidade para agradecer a algumas delas:
Aos amigos Clayton, Jakeline, Jacqueline, Maurício, Renatu, Rosemara, Maria
da Luz, por dividir os momentos e angústias mais críticas.
À Aline Sena, amiga e comparsa de todos os crimes.
À amiga Célia Regina, pela sopa divida em três partes.
A Rodrigo, João, Vanilda e Paulão, família negra.
Aos amigos de Três Lagoas, André e Jorge, pelo suporte e hospitalidade.
Aos amigos de jornada Cícera, Raquel, Bianca, Samuel, Mirian, Adriana, Ana
Paula e Leidi Laura, pelos momentos coletivos de construção do conhecimento.
Ao senhor Claudionor, secretário do programa de Pós-Graduação em Letras da
UFMS/CPTL, pela educação e presteza constantes.
Aos professores Danglei, Sales e Rauer pelos ensinamentos, repreensões e
oportunidade de ouvi-los. Por todos esses motivos e pela participação na banca de
qualificação, agradeço à professora Kelcilene Gracia-Rodrigues.
Ao professor Éverton, pelas ponderações e contribuições durante a qualificação
e disponibilidade para participar da defesa.
Ao professor Arnaldo Franco Junior, em primeiro lugar, pelas ricas
contribuições feitas ao projeto em sua fase inicial, durante evento do Programa de Pós-
Graduação em Letras da UFMS/CPTL, ainda em 2010. Em segundo lugar, pelo aceite
gentil em participar da banca de defesa.
À Cleusa Aparecida Sampaio, mãe de coração.
À professora Tania Maria Baibich, pelo presente tão útil.
À minha mãe, Maria Zélia, pelo suporte primeiro. À minha irmã, Marineide, por
acreditar e torcer.
À Coordenação de Pessoal de Nível Superior – CAPES, cujo auxílio concedido
tornou possível a realização do trabalho.
Começo exatamente pela palavra. Simples. Elementar. Pela
palavra manifesto meu ódio, meu amor, minha agressividade,
minha culpa, meu remorso. Pela palavra que julgo ouvir dos
outros manifesto apenas minha afetividade, e ignoro, na
verdade, que eu dirijo a palavra a mim, através do outro. E como
resolvi no momento abandonar qualquer forma de consciência
desligada da palavra, verifico que posso exercitar, através da
palavra vinculada, a transformação da consciência.
Transformação que é PRAXIS autêntica, trabalho autêntico, o
verdadeiro trabalho, único elemento real de desalienação
(RAWET, 2008, p. 61, grifos no original).

Toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a


humanidade em consonância com as idéias e aspirações, as
necessidades e as esperanças de uma situação histórica
particular. Mas, ao mesmo tempo, a arte supera essa limitação e,
dentro do momento histórico, cria também um momento de
humanidade que promete constância no desenvolvimento
(FISCHER, 1987, p. 17).

Literatura, gosto de ti.


Longe morreria embora
não viva disso
nem conviva contigo
à vontade, como nesta sala
ou
quando tomo
um copo de água
(ALMINO, 1991, p. 96).
GONÇALVES, Luciano de Jesus. Que os Mortos Enterrem os seus Mortos: A narrativa
ficcional de Samuel Rawet. 2012. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Federal do Mato Grosso do Sul.

RESUMO

O trabalho objetiva a apresentação da última coletânea de contos de Samuel Rawet, Que


os mortos enterrem os seus mortos (1981), tendo como ponto inicial de investigação a
sua inserção na literatura brasileira contemporânea. Desse modo, destaca
idiossincrasias, similitudes e distanciamentos dessa contística no panorama do conto
nacional, na definição de uma data-marco: o ano de 1956, com o lançamento de Contos
do Imigrante. Em consequência desse processo inicial, verifica e localiza a importância
da obra, objeto desta apresentação, em meio à narrativa ficcional de Samuel Rawet, lida
como conjunto estruturalmente coeso, especificamente, em seus cinco livros de contos.
Em seguida, por meio de procedimentos narratológicos, que configuram a leitura
interna, realiza a exemplificação de tais aspectos por meio de passagens exemplares,
retiradas entre seis contos dispostos na coletânea. Conclui, sem a expectativa de que o
objeto de pesquisa em questão se configure como um avanço linear com relação às
primeiras obras de Rawet e, consequentemente, do conto brasileiro, que a obra pode ser
considerada em suas particularidades: na inserção de novas temáticas, até então, alheias
ao contista, no tratamento sutil e, apenas, referencial de aspectos relacionados à cultura
judaica e na exploração extrema dos códigos linguísticos.

Palavras-chave: Conto. Literatura brasileira contemporânea. Judaísmo.


GONÇALVES, Luciano de Jesus. Que os Mortos Enterrem os seus Mortos: A narrativa
ficcional de Samuel Rawet. 2012. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Federal do Mato Grosso do Sul.

ABSTRACT

The work aims at presenting the last collection of short stories by Samuel Rawet, Que
os mortos enterrem os seus mortos (1981), taking as a starting point its inclusion on the
contemporary Brazilian literature. Thus, idiosyncrasies, similarities and differences of
this book are pointed in the panorama of the national tale, with a definition of a
paradigmatically date: the year 1956 with the release of Contos do Imigrante. In
consequence of this initial process, verifies and locates the importance of the selection
on the fictional narrative of Samuel Rawet, read as structurally cohesive whole,
specifically, in his five books of short stories. Then, through narratological procedures,
which make up the internal reading, shows examples of these aspects taken out from
passages from six tales of the collection. In conclusion, without the expectation that the
research object in question was set like as a linear advance with respect to the first
works of Rawet and hence of the Brazilian tale, concludes that the book may be
considered in its peculiarities: the insertion of new themes, until then, beyond the
attention of the storyteller, the subtle treatment and referential of the aspects of Jewish
culture and the extreme exploitation of linguistic codes.

KEYWORDS: Tale. Contemporary Brazilian literature. Judaism.


LISTA DE QUADRO

QUADRO 1– Distribuição dos contos em sua ordem de disposição no livro


(RAWET, 2004)......................................................................................................136
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................12

1. SAMUEL RAWET EM ALFREDO BOSI.............................................................17

1.1. A história concisa da literatura brasileira......................................................18


1.2. O conto brasileiro contemporâneo.................................................................20
1.3. Bosi, leitor de Rawet.......................................................................................23

2. “O ILUSTRE ANTÍPODA”: UMA VIDA E UMA MORTE, UMA


LITERATURA E UMA FORTUNA CRÍTICA.........................................................26

2.1. Tecendo os primeiros fios: Do gringuinho de Klimontów ao contista


brasileiro........................................................................................................................26
2.2. A constituição de uma fortuna crítica ...................................................................32
2.2.1. Entre as teorias, a historiografia e a crítica, as leituras ...............................33
2.2.2. O arremate inexorável: Os necrológios de Samuel Rawet...........................60
2.2.3. O retorno de Samuel Rawet.......................................................................69

3. SAMUEL RAWET NA ACADEMIA......................................................................72

3.1. As dissertações.......................................................................................................72
3.2. As teses...................................................................................................................92
3.3 Alguns dados sobre a recepção acadêmica de Rawet...........................................134

4. “A RETÓRICA DO IMÁGINÁRIO”: A NARRATIVA FICIONAL DE


SAMUEL RAWET......................................................................................................136

4.1. Pontos de partida..................................................................................................136


4.1.1. No campo das objetividades textuais.........................................................136
4.1.2. Aspectos do campo das objetividades textuais..........................................137
4.1.3. Síntese ficcional combinada dos dezoito contos........................................140
4.1.4. Do levantamento à interpretação: Os temas e aspectos formais como critérios de
escolha...........................................................................................................................145

4.2. Configurações e inserções dos objetos.................................................................147


4.2.1. A arquitetura da vingança: “O riso do rato”...............................................148
4.2.2. Memórias de uma flor-negra: “O casamento de Bluma Schwartz”...........155
4.2.3. A rua, personagem perfeita: “Moira”.........................................................163
4.2.4. Os tipos populares e a vocação humana: “Trio”........................................168
11

4.2.5. Em busca do contato possível: “Nem mesmo um anjo é entrevisto no


terror”...................................................................................................................173
4.2.6. A maravilhosa fábrica de palavras mágicas: “BRRKZNG: pronúncia -
bah!”.....................................................................................................................179
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................194
REFERÊNCIAS...........................................................................................................199
ANEXOS.......................................................................................................................210
ANEXO A – “O riso do rato”........................................................................................211
ANEXO B – “O casamento de Bluma Schwartz”.........................................................215

ANEXO C – “Moira”....................................................................................................218
ANEXO D – “Trio”.......................................................................................................220

ANEXO E – “Nem mesmo um anjo é entrevisto no terror”.........................................222

ANEXO F – “BRRKZNG: pronúncia - bah!”...............................................................225


INTRODUÇÃO

As figuras marginalizadas de bêbados, prostitutas, homossexuais, assassinos,


loucos, notívagos, migrantes, operários, pedintes, desterrados, donas de casa, artistas, ou
mesmo, burocratas, industriais, e empresários, são constantes na produção contística do
escritor polonês, Samuel Urys Rawet, naturalizado brasileiro desde os sete anos de
idade. No caso de Que os mortos enterrem os seus mortos, de 1981, última coletânea de
contos e última publicação em livro, Samuel Rawet foge do relato explícito dos tipos
elencados.
Nessa obra, a tematização desabrida dos tipos injustiçados, ou mesmo o relato
rasgado dos conflitos vivenciados por imigrantes judeus em terras brasileiras – tão
presentes em seu livro de estreia, Contos do Imigrante, de 1956, como o próprio nome
adianta –, abre espaço para o relato sutil de problemas e conflitos imbricados na
condição humana. Esses conflitos, diante das atmosferas introspectivas apresentadas,
ainda de forma sutil, são determinados por contextos sociais e históricos passíveis de
definição.
Tais personagens e contextos, nos dezoito contos dispostos na coletânea,
levando-se em conta a narrativa econômica de Rawet, aperfeiçoada durante toda a sua
carreira (e, aqui, não pretendemos pensar a sua última obra como ápice de uma evolução
ascendente de sua literatura), podem ser definidos a partir das sugestões de alguns dados
históricos, de referências a lugares reais, como igrejas, cinemas, hotéis, motéis, ruas,
avenidas etc. Ao leitor, quase sempre, é negada a utilização de um pacto de leitura – a
expressão é inexata, confessamos, mesmo porque o gesto de leitura, por si só, configura
um pacto entre leitor e escritor, cuja mediação se dá através da obra – como muleta para
a construção de sentidos a partir dos textos do escritor.
De seus narradores, todos em terceira pessoa, este mesmo leitor receberá o relato
cortado, elíptico e, sempre, sugestivo. Das suas personagens, resta a difícil tarefa de
extrair dos seus silêncios sentidos para os eventos narrativos.
O objetivo geral de nossa intervenção é, desse modo, investigar os contos de
Que os mortos enterrem seus mortos (1981), coletânea de Samuel Rawet, dos pontos de
vista estrutural e da inserção histórica e social no contexto da literatura brasileira
13

contemporânea1. Em nossa pesquisa, o objetivo mais amplo será esmiuçado em mais


dois objetivos específicos: (a) organizar e analisar parte da fortuna crítica do contista, no
que se refere à discussão dos aspectos estruturais de sua obra, bem como dos temas
suscitados por essas estruturas, especificamente, nos trabalhos de cunho historiográfico
e acadêmico; e (b) identificar, mapear e analisar categorias estruturais recorrentes nos
contos da coletânea; verificando os modos pelos quais os narradores de Samuel Rawet,
a partir dos dados estruturais apresentados nos contos, se inserem social e
historicamente no contexto da literatura brasileira contemporânea.
Tendo em vista tais metas a serem percorridas, o presente trabalho propõe a
análise dos contos de Que os mortos enterrem os seus mortos, dos pontos de vista
estrutural e da inserção histórica e social no contexto da literatura brasileira
contemporânea. Tal análise, empregada em uma literatura como a descrita acima, supõe
a cautela e o respeito para com o objeto literário, na medida em que deve considerar os
dados apresentados pelo próprio texto, na construção dos sentidos extraídos da
interpretação ou síntese desses mesmos dados, o que, a priori, configura uma análise
narratológica.
Nesse caso, sobre a expressão “dados estruturais”, o trabalho se guiará pela
abordagem de Reuter (2007), em Análise da narrativa, e seus três níveis de análise: a
ficção, a narração, e a textualização.
A primeira categoria, a “ficção”, “designa o universo encenado pelo texto: a
história, as personagens, o espaço-tempo. Ela se constrói progressivamente, seguindo o
fio do texto e de sua leitura” (REUTER, 2007, p. 27). Por conta da caracterização dos
contos de Rawet e a (falsa) impressão que os eventos ficcionais não possuem
importância na construção final do conto, optamos pela utilização deste nível na breve
apresentação dos dezoito contos em tópico específico do quarto capítulo.
A segunda definição estabelecida por Reuter, a “narração”, “designa as grandes
escolhas técnicas que regem a organização da ficção na narrativa que a expõe”.
(REUTER, 2007, p. 59). É aqui que reside o maior destaque em nossa análise dos
contos, pois, seleciona-se, tendo em vista a extensão de nosso trabalho, seis contos a
serem apreciados com o cotejamento dessa definição. Em nossa apresentação, seria este
nível o mais destacado pelo contista, utilizando-se dos dados ficcionais, nos termos de
Reuter, é neste aspecto que serão agrupados, também, a textualização.

1
Em nosso trabalho, vários estudos utilizam a expressão “contemporânea” para designar a produção
literária, teórica e ou crítica correlatas aos seus contextos de produção. Na medida do possível, e sempre
14

Até este ponto, ressalta-se, sobre a utilização desses níveis de análise, que “é
conveniente não confundir essa posição metodológica com a realidade e a totalidade dos
funcionamentos textuais [...]. Nenhum texto pode fazer sentido sem as suas remissões
aos outros textos e às realidades do mundo” (REUTER, 2007, p. 153). Resulta dessa
ressalva a definição que o estudioso emprega para o processo denominado
“textualização”. Em nosso trabalho, esse nível é contemplado em conjunto com o
segundo e, de forma conclusiva, na leitura da narrativa ficcional de Rawet, explorada de
forma mais evidente no recorte escolhido.
Destaca-se que, nesta análise, com relação às categorias narrativas, recorremos à
elaboração de Genette (1995). Tal obra configura-se como referência inicial de outros
teorizadores da narrativa, a exemplo de Reis e Lopes (1989), Reuter (1997) e de Nunes
(1998) e, assim que necessários, cotejados em nossa realização.
No aspecto referente à interpretação ou análise dos dados estruturais dos contos,
o trabalho fundamentar-se no método estruturalista genético aplicado aos estudos
literários, o que implica a utilização de dados teóricos, críticos e historiográficos. Nesse
sentido, o estudo apresenta as conclusões decorrentes das análises e sínteses da
investigação do objeto citado, tendo em vista que o método a ser utilizado concebe, de
início, o conjunto de fatos humanos de uma maneira unitária e, depois, configura-se, ao
mesmo tempo, como compreensivo e explicativo, pois a elucidação de uma estrutura
significativa constitui um processo de compreensão, ao passo que a sua inserção em
uma estrutura mais vasta é, em relação a ela, um processo de explicação, como postula
Goldmann (1967, p. 212-213).
Em nossa pesquisa nos propomos a verificar, através das análises de elementos
estruturais (internos) da narrativa ficcional de Samuel Rawet, quais escolhas compõem
essa literatura, assim como os motivos que justificariam uma boa acolhida,
exemplificada de forma exaustiva no segundo – que compreende a fortuna crítica do
artista – e no terceiro capítulos – em que nos detemos aos trabalhos acadêmicos, teses e
dissertações, que evidenciam o tratamento conferido ao escritor na Pós-Graduação
brasileira. Verificamos, a partir desses estudos, a inserção dessa literatura no contexto
histórico e social da literatura brasileira contemporânea.
Em meio a esse cenário, a nossa pesquisa se configura como elemento de
rememoração do nome de um contista que, no hiato entre 1981, ano da publicação de
Que os mortos enterrem os seus mortos, e 2004, de Contos e novelas reunidos,
respectivamente, desconheceu publicação em língua portuguesa. Essa retomada é
15

sustentada, conforme demonstramos no segundo capítulo, por uma crítica elogiosa e por
um registro historiográfico respeitoso.
Por outro lado, e ainda estamos no âmbito da elaboração de argumentos que
justificam a presente pesquisa, percebe-se que, devido às distâncias temporais, o livro
em questão, Que os mortos enterrem os seus mortos, não costuma ser contemplado nas
análises críticas e nos levantamentos historiográficos. Ao longo dos anos, esse livro
permanece ignorado pela crítica e, mais ainda, pela academia. A afirmação será
desenvolvida no terceiro capítulo.
Através da análise estrutural, pretende-se verificar a hipótese inicial de que os
elementos utilizados na construção das dezoito narrativas diversas de Rawet, com
personagens, distintas, no entanto, apresentam um foco narrativo semelhante. Em
alguns casos, a paragrafação, os números de páginas e as disposições gráficas são,
praticamente, iguais. Mesmo assim, os efeitos obtidos pelo contista são distintos em
cada conto. Nos limites dessa distinção, origem, articulação e fim, é que se situa a nossa
preocupação com o conto de Rawet disposto em tal obra.
Garantimos, assim, que o resultado valorativo de uma literatura capaz de
prender, surpreender, encantar, chocar, iludir o leitor, resulta do trabalho elaborado
desses aspectos estruturais. Quais são esses elementos e as maneiras pelas quais são
utilizados, procurarmos identificar em nossa leitura. A respeito da inserção social e
histórica dos contos de Rawet na literatura brasileira contemporânea, leva-se em conta,
ainda, que “as relações entre a obra verdadeiramente importante e o grupo social que –
por intermédio do criador – se conclui ser, em última instância, o verdadeiro sujeito da
criação, são da mesma ordem que as relações entre os elementos da obra e o seu todo”
(GOLDMANN, 1967, p. 206-7, grifos no original).
O trabalho é divido em quatro capítulos. No primeiro deles, verificamos a
entrada de Samuel Rawet em trabalhos de cunho historiográfico. Em decorrência da
semelhança no trato da obra do contista, o item destaca, desses estudiosos, o nome de
Alfredo Bosi (1985; 2006), em textos que permitem, além de traçar um panorama do
tratamento que a produção rawetiana recebe no registro historiográfico da literatura
brasileira, pontos de análises ricos de sugestões para a pesquisa dessa obra.
O segundo capítulo apresenta as motivações históricas que justificam a
imigração de famílias de judeus poloneses ao Brasil no início do século 20. O resultado
dessa apresentação é a reconstrução breve do surgimento da pequena aldeia em que o
escritor nasce em 23 de julho de 1929. O capítulo passa a destacar, depois disso, o
16

surgimento oficial de Rawet como escritor, o que não ocorre desvencilhado de algumas
lembranças de seus dados biográficos, assim como a recepção crítica de sua narrativa
ficcional, o que compreende, inclusive, trabalhos produzidos em face de sua morte,
recriando, assim, a vida do escritor, antes mesmo de seu surgimento e o acompanhado
até a sua morte em 1984.
O terceiro capítulo cobre parte do processo do renascimento de Rawet aos olhos
da crítica acadêmica. Para isso, são elencados os trabalhos desenvolvidos nos programas
de pós-graduação brasileiros de 1989 a 2011. Além de proporcionar uma visão sobre
esse aspecto da fortuna crítica do escritor, a intenção é oferecer a sistematização que
poderá facilitar futuras pesquisas, na medida em que apresentamos tais trabalhos.
O quarto capítulo conclui o nosso trabalho realizando a apresentação da
narrativa ficcional de Que os mortos enterrem os seus mortos. Síntese da proposta dessa
pesquisa, nessa parte, reside o ponto em que apresentamos a nossa contribuição para o
estudo do autor que, sob diversos aspectos, merece ser pesquisado e, sobretudo, lido.
17

1. SAMUEL RAWET EM ALFREDO BOSI

Neste capítulo, a utilização de duas obras do estudioso, crítico literário e


historiador da literatura Alfredo Bosi cobre um período longo da história da literatura
brasileira. Partindo de História Concisa da Literatura Brasileira, obra publicada, pela
primeira vez, em 1970, temos, no início desse panorama, a literatura produzida nos idos
de 19302.
Tendo em vista os objetivos de analisar o tratamento conferido ao contista
Samuel Rawet nas obras do teórico, a leitura desse livro nos obriga a essa retomada. A
obrigação reside no fato de que, ao ler tal estudo, o método dialético e, de certo modo,
comparatista de Bosi implica o estabelecimento de relações anteriores ao contista
Rawet.
Verificamos que a lembrança de Rawet ocorre, nos três casos encontrados na
História Concisa da Literatura Brasileira, atrelada a outros nomes representativos. Sua
obra sinalizada, Contos do Imigrante, 1956, vem, no mesmo sentido, rememorada em
ligação estreita com outras não, propriamente, de mesmo tom, mas que apresentam
ressonâncias de um intimismo à moda da “escola do olhar”, a exemplo de Doramundo,
de Geraldo Ferraz, cuja primeira publicação coincide com a da obra de Rawet.
Esse panorama se completa até meados da década de 1970, com O conto
contemporâneo Brasileiro, 1975. Desta obra, que conta com seleção de textos,
introdução e notas bibliográficas de Bosi, utilizamos, de forma específica, o seu ensaio
“Situação e Formas do Conto Brasileiro Contemporâneo”. Nele, é possível verificar o
papel que o estudioso atribui ao contista como um dos dezoito exemplos dessa ficção,
tendo como advento o calar das vozes modernistas de Mário de Andrade, Antônio
Alcântara Machado, Aníbal Machado e João Alphonsus.
Ao verificar os caminhos percorridos pelos contistas contemporâneos, Bosi
especifica e segmenta o trabalho iniciado com a História Concisa da Literatura
Brasileira. No entanto, agora, priorizando aqueles que produziram as novas tendências
do conto brasileiro. O saldo final, obtido com a leitura dessas duas obras, é a
oportunidade de assinalar, a partir desses trabalhos básicos no estudo da literatura
brasileira e, consequentemente, na investigação da inserção do conto nacional em meio

2
Em nota de rodapé, o historiador reforça que a redação da História Concisa da Literatura Brasileira
data de 1968-69 (BOSI, 2006, p. 386).
18

a esse cenário, o período de transição pelo qual o gênero passa no lapso que compreende
da produção modernista até a contemporaneidade: é nesse último ponto da trajetória que
encontramos – a partir da leitura das duas obras, podemos pontuar isso – a figura de
Samuel Rawet, tendo em vista o marco inicial de 1956, com o lançamento de sua
primeira coletânea, em Contos do imigrante3.
O tratamento incipiente do contista em obras historiográficas (MOISÉS, 1989;
PICHIO, 1997) e a relação exclusiva da literatura de Rawet com os problemas da
imigração, foram decisivos na nossa escolha específica dessas duas obras de Bosi.
Embora revestidos de uma aura tímida, os dois trabalhos de Bosi são ricos em imagens
analíticas e, por isso, serão detalhados em nossa apresentação historiográfica, como
abertura de nosso trabalho.

1.1 A História concisa da literatura brasileira

História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, se divide em oito


partes dedicadas, respectivamente, à “Condição Colonial”, aos “Ecos do Barroco”, à
“Arcádia e Ilustração”, ao “Romantismo”, ao “Realismo”, ao “Simbolismo”, ao “Pré-
Modernismo e Modernismo” e, por último, às “Tendências Contemporâneas”. Em cada
uma delas, o historiador elenca autores representativos, dados de ordem bibliográfica
(trechos de obras), assim como uma apreciação crítica de cada nome.
Em nosso caso, a leitura da obra possui um princípio básico: a análise do
tratamento conferido pelo estudioso ao contista Samuel Rawet. Essa premissa define
como foco de nossa atenção a última parte da obra. Nesta História Concisa da
Literatura Brasileira, um índice de nomes nos sinaliza que Bosi cita Samuel Rawet em
três momentos.
No primeiro deles, na parte em que trata das tendências contemporâneas da
ficção (a análise começa em 1930), Rawet é citado em um grupo composto por Geraldo
Ferraz, Autran Dourado, Maria Alice Barroso, Louzada Filho e Osman Lins, grupo a
que nomeia “escola do olhar” e cuja marca expressiva é a força do monólogo interior.
Este grupo representa, para Bosi, as novas experiências para este tipo de monólogo
(BOSI, 2006, p. 393).

3
Para uma verificação do panorama do conto brasileiro anterior aos modernistas, cf. Variações sobre o
conto (LIMA, 1953).
19

Seguindo, temos a apresentação de autores e obras representativos dessa ficção


produzida a partir de 1930. No tópico “As trilhas do romance: uma hipótese de
trabalho”, separadamente, dez autores serão estudados, a saber: José Américo de
Almeida, Raquel de Queirós, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado,
Érico Veríssimo, Marques Rebelo, José Geraldo Vieira, Lúcio Cardoso e Cornélio Pena.
Em seguida, realiza uma lista com “Outros narradores intimistas”. Aqui, serão
contemplados Cyro dos Anjos, Otavio Faria, Dionélio Machado, João Alphonsus e
Telmo Vergara. A respeito desse grupo, Bosi esclarece que “firmando-se nas décadas de
[19]40 e [19]50, temos um grupo vario de romancistas e contistas que atestam, em
conjunto, a maturidade a que chegou a nossa prosa de tendências introspectivas” (BOSI,
2006, 420). Nesse ponto, o autor nos remete a uma nota onde explica que

[...] tem consciência dos riscos a que se expõe quem faz uma relação, ainda
que sumária e apenas exemplificadora, da ficção contemporânea. Os últimos
vinte anos foram marcados por um crescente movimento editorial, de modo
que só uma pesquisa aturada poderia dar conta da mole de publicações
registradas. Assim, as lacunas não significam omissão voluntária, mas
impossibilidade material de cobrir toda área de documentos a analisar (BOSI,
2006, p. 420).

Para exemplificar sobre o conto, de maneira específica, o autor menciona a sua


antologia O Conto Brasileiro Contemporâneo, e seus dezoitos contistas escolhidos,
dentre eles, Samuel Rawet. Realiza-se, assim, a segunda menção ao nome de Rawet, em
tal obra.
Depois, a terceira referência acontece no trecho em que trata de aspectos da
ficção egótica e suprapessoal, no qual estuda Clarice Lispector (Perto do Coração
Selvagem, 1944, A Paixão segundo G. H., 1964, Uma Aprendizagem ou O livro dos
Prazeres, 1969), menciona, além de Rawet (Contos do Imigrante, 1956), os escritores
Geraldo Ferraz (Doramundo, 1956, cuja autoria é atribuída, também, a Patrícia Galvão,
escritora e esposa de Ferraz4); Maria Alice Barroso (História de um casamento, 1960, e
Um Simples Afeto Recíproco, 1962); Nélida Piñon (Mapa de Gabriel Arcanjo, 1961, e
Madeira Feita Cruz, 1963); Olympio Monat (Um Homem sem Rosto, 1964); Louzada
Filho (Dardará, 1965); José Jacinto Pereira Veiga, ou J.J. Veiga (Os cavalinhos de
Platiplanto, 1959, A Hora dos Ruminantes, 1966, e A Máquina Extraviada, 1968);
Raduan Nassar (Lavoura Arcaica, 1976); Rubem Fonseca (A Coleira do Cão, 1965, e

4
Nesse sentido, Menezes (1978, p. 262) aponta o romance A famosa revista, de 1945, como fruto da lavra
dupla dos dois artistas.
20

Lúcia McCartney, 1969); e João Antônio (Malagueta, Perus e Bacanaço, 1963),


considerando-os “exemplos que valem como sintomas de crise da ficção introspectiva e
signos de que esta vem entrando numa era de pesquisa estética e de superação de um
‘realismo’ menor, convencional” (BOSI, 2006, p. 423). O panorama estabelecido por
Bosi aponta para um quadro diverso e rico. Em muitos casos, esses nomes precisam de
revisão critica e de estudos que atestem a necessidade de leitura de suas obras.

1.2 O conto brasileiro contemporâneo

Na obra O Conto Brasileiro Contemporâneo, Alfredo Bosi atua na seleção,


organização e feitura de notas bibliográficas em prol das tendências contemporâneas de
nossa literatura, especificadas por tal gênero. E mais, o organizador antepõe à sua lista
de nomes e contos, que compõem essas tendências, um breve ensaio intitulado
“Situação e Formas do Conto Brasileiro Contemporâneo”, no qual realiza um balanço
sobre tais tendências, justificando-as com suas escolhas.
O volume é divido em dezoito capítulos formados, cada um deles, pela breve
apresentação biográfica e bibliográfica de um escritor destacado como contista, e, em
seguida, com a reprodução de textos significativos dos mesmos. O número de contos
reproduzidos vai de um até quatro, a depender da extensão dos mesmos.
Para organizar esse rol, o teórico disponibiliza os nomes de acordo com a data de
nascimento. Sendo assim, Guimarães Rosa, nascido em 15 de novembro de 1915, inicia
a coletânea. O mineiro Luiz Vilela, nascido em 1943, encerra a lista. Samuel Rawet, que
nasceu em 1929, aparece como o décimo terceiro da listagem. Curiosamente, Bosi
omite a data de nascimento das três contistas presentes: Lygia Fagundes Telles, Clarice
Lispector e Nélida Piñon.
No ensaio, Bosi alerta para a variedade que o conto representa na literatura,
seguindo, a seu modo, os destinos da ficção contemporânea brasileira. Das expressões
do estudioso, possíveis de serem utilizadas na tentativa de categorizações desse gênero,
destacamos as de que tal produção pode ser definida como “quase documento
folclórico”, “quase-crônica da vida urbana”, “quase-drama do cotidiano burguês”,
“quase-poema do imaginário às soltas”, ou, enfim “[...] grafia brilhante e preciosa volta
às festas da linguagem” (BOSI, 1985, p. 7). Em todas essas definições formais, pairam
21

as produções e conquistas de muitos cotistas modernistas. Alguns deles serão nomeados


adiante.
Em tal estudo, a intenção do pesquisador é “[...] reconhecer alguns dos caminhos
que os contistas percorreram entre nós depois que se calaram as vozes fortes do
Modernismo ou dos seus arredores [...]” (BOSI, 1985, p. 7). O escritor se refere aos
nomes de Mario de Andrade, Antônio Alcântara Machado, Aníbal Machado e José
Alphonsus.
Nesse ensaio, num primeiro momento, em que analisa as conquistas temáticas de
nossos contistas, destacando alguns nomes pelo trabalho com as situações, Bosi não faz
menção ao nome de Rawet. Em outro, no momento em que destaca “[...] os trabalhos da
expressão”, mudando o foco de sua análise, partindo das vertentes temáticas para as
conquistas formais, o teórico destaca que, em se tratando dos contistas contemporâneos,
“não se deu em vão a intensa a experiência estética que foi o Modernismo” (BOSI,
1985, p. 14).
O autor principia esta discussão destacando que, nesses escritores, o
experimento verbal é apenas discreto (BOSI, 1985, p. 15). Por outro lado, a sua
anotação se volta para a recorrência assídua em duas últimas produções de Guimarães
Rosa, Primeiras Estórias e Tutaméia, de 1962 e 1967, respectivamente. Os dois livros
são, para o estudioso, “obras que conheceram uma formação peculiaríssima, que não
pode servir de modelo a – histórico para entender ou julgar experiências díspares”
(BOSI, 1985, p. 15). Nesse rol de experiências díspares, encontramos a referência a
Samuel Rawet – novamente, com Contos do Imigrante –, em conjunto com Laços de
Família, 1960, de Clarice Lispector; Nove Novena, 1966, de Osman Lins; O Ex-Mágico,
1947, de Murilo Rubião; O retrato na gaveta, 1962, de Otto Lara Resende; O cemitério
de Elefantes, 1964, de Dalton Trevisan; Lucia McCartney, 1969, de Rubem Fonseca; Os
cavalinhos de Platinplanto, 1959, de J. J. Veiga; Caminhos e Descaminhos, 1965, de
Bernardo Elis; Solidão Solitude, 1972, de Autran Dourado; História de Desencontro,
1958, de Lygia Fagundes Telles; As Vozes do Morto, 1963, de Moreira Campos; O
Carnaval dos Animais, 1968, de Moacyr Scliar e, Malagueta, Perus e Bacanaço, 1963,
de João Antonio (BOSI, 1985, p.15-16).
E, sobre esses autores e livros representativos, alerta que

[...] a trama narrativa e o manejo da frase de cada um dos contos desses livros
representativos da ficção brasileira obedeceram a certos processos imanentes
à prosa moderna, muito mais próximos do despojamento neo-realista, ou de
22

uma sóbria e tensa auto-análise, do que de livres expressões neobarrocas


(BOSI, 1985, p.15-16).

Em mais este momento, a relação dialética entre forma e conteúdo, nesses


artistas citados, é constituída a partir de processos caros aos modernistas. O contraponto
diferencial residiria em Guimaraes Rosa, que, para Bosi, “se encaminhou com decisão,
naqueles seus últimos contos, para o texto estranho e o plurissenso, a palavra nova, e a
surpresa sintática, que lembram precisamente a mais complexa tradição maneirista”
(BOSI, 1985, p. 16). Segundo o teórico, é nesse aspecto que reside, também, estratégia
de Rosa para transcender o maneirismo dos contos publicados a partir de 1937, com
Sagarana.
A segunda e última referência ao nome de Samuel Rawet vem atrelada a mais
uma análise que o estudioso faz de Clarice Lispector, neste caso, comparativa com
Osman Lins. Afirma Bosi:

Primeiro, o que haveria de comum: a agudeza quase dolorosa da atenção, a


linguagem escada no sujeito que percebe o objeto e se percebe no objeto.
Mas as diferenças são notáveis. O período de Osman luta para repousar na
forma dominada: é uma técnica que aspira à classicidade, ao termo justo. O
lápis na lápide lapidar. A prosa de Clarice faz-se aos poucos, move-se junto
com seus exercícios de percepção, e tacteia, e não pode nem quer evitar o
lacunoso, ou o difuso, pois o seu projeto de base é trazer as coisas à
consciência, à consciência e a si mesma. O que resulta em um andamento
penoso, ingrato, onde o vagamente banal alterna com revelações súbitas, mas
decisivas. É uma prosa que atinge de raro em raro a “expressão feliz”; e
quando o faz, a conquista vem antes de um puro e sofrido pensamento que da
ação do virtuose bem logrado (BOSI, 1985, p. 19-20).

É curioso notar que, em mais de uma oportunidade, Lins foi apontado por Rawet
como um exemplo a ser perseguido na literatura.
Voltando ao estudo de Bosi, depois de reproduzir um trecho de A Legião
Estrangeira, de Clarice, exemplificando tais definições, a referência textual ao nome de
Samuel Rawet ocorre:

Partilham com Clarice Lispector esse caráter especulativo da linguagem


alguns textos de Samuel Rawet e de Nélida Piñon, cujas frases, porém, se
emaranham, nas teias de uma retórica do Imaginário; a manipulação do
frenesi impede a palavra de comungar com a pureza viva dos seres, passo
dados pelos momentos altos da Paixão segundo G. H. (BOSI, 1985, p. 20,
grifos nossos).

Com relação ao trecho, nota-se que, ao estender os recursos utilizados para


clarear o seu pensamento sobre Lispector, a referência ao nome de Rawet não se dá de
23

forma única, mas atrelada ao nome de outra contista, Nélida Pinõn. O que se retira das
palavras de Bosi a respeito da produção de Rawet, a definição de uma retórica do
imaginário, no entanto, servirá de trilha na leitura de sua obra, o que ficará mais
evidente em nosso quarto capítulo.
Seguindo o caráter de historiador dessa literatura, Bosi encerra seu ensaio
definido duas grandes tendências de modo geral.

De um lado, o processo modernizador do capitalismo tende a pôr de parte o


puro regional, e faz estalarem as sínteses acabadas, já clássicas, do neo-
realismo, que vão sendo substituídas, por modos fragmentários e violentos de
expressão. Esta é a literatura verdade que nos convém desde os anos de 60, e
que responde à tecnocracia, à cultura para massas, às guerras de napalm, às
ditaduras feitas de cálculo e sangue. De outro lado, a ficção introspectiva,
cujos arrimos foram sempre a memória e a auto-análise, ainda resiste como
pode a anomia e ao embrutecimento, saltando para universos míticos ou
surreais, onde a palavra se debate e se dobra para resolver com as suas
próprias forças simbólicas os contrastes que a ameaçam (BOSI, 1985, p. 16,
grifos no original).

Desse modo, define os processos que essa literatura enfrenta em tal período:

É muito provável que o conto oscile ainda por muito tempo entre o retrato
fosco da brutalidade corrente e a sondagem mítica do mundo, da consciência,
ou da pura palavra. Essas faces do mesmo rosto talvez componham a máscara
estética possível para os nossos dias; e a literatura, enquanto literatura-para-a-
literatura, não tem meios de superá-la. Poderá representá-la, exprimi-la,
significá-la. E vivê-la e sofrê-la, até desafiá-la. Arrancá-la, não (BOSI, 1985,
p. 22).

Diante das palavras de Bosi, as definições e processos constituintes do conto


contemporâneo, não estão divergentes do que, geralmente, se espera de uma
manifestação literária: representação, expressão, significação, vivência, arrebatamento,
conflito e desafio. Em mais uma oportunidade, alertamos que o contexto de análise é o
do período da literatura do período posterior ao modernismo brasileiro.

1.3 Bosi, leitor de Rawet

A leitura das duas obras de Alfredo Bosi nos permite entender, além dos
métodos empregados pelo estudioso, o funcionamento de um trabalho que atua na
constituição de um cânone literário da literatura brasileira. Pela extensão e objetivos
desse trabalho, não discutimos os motivos que justificam tais seleções.
24

Sobre o tratamento recebido por Samuel Rawet e sobre a sua aceitação nesse
cânone, percebemos, em meio às passagens, que estas – embora sejam menções breves
–, se configuram como comentários respeitosos sobre o autor e sua obra.
Com relação às duas obras, talvez não seja possível estabelecer muitas
diferenças nesse tratamento, mesmo quando temos em vista a estruturação e os
objetivos distintos dos dois trabalhos de Bosi.
No caso de História Concisa da Literatura Brasileira, cuja própria denominação
adianta o caráter historiográfico da mesma, as três menções ao nome do contista Samuel
Rawet, discretas – duas delas em forma de notas –, podem ser apontadas como positivas
na medida em que valorizam os planos da expressão do escritor e a maneira pela qual,
com a utilização de temas não inovadores, ele consegue efeitos de um intimismo
enxuto, objetivo e pungente.
Em O Conto Brasileiro Contemporâneo, a leitura de “Gringuinho” nos dá uma
medida dos aspectos formais da literatura de Rawet. No caso da crítica de Bosi, mais
uma vez, reforçamos que são esses aspectos formais os responsáveis pela acolhida
positiva desta escrita, merecedora de ser lembrada na compilação.
Nessa coletânea, também, pode-se dizer que esse tratamento apresenta dados
positivos. A afirmação pode ser justificada, apenas, se pensarmos na estrutura da obra.
Para compô-la, o estudioso utiliza a sua experiência e minúcia no trato do texto literário
e seleciona dezoito contistas que, segundo ele, representam os novos caminhos tomados
pelos contistas contemporâneos.
Nesta obra, as duas ocorrências que se referem ao nome de Rawet nos dão conta
de que este compõe um grupo onde se percebe que a experiência estética, ocorrida no
Modernismo, não foi se deu em vão. A referência elogiosa se baseia no tratamento que
esse grupo apresenta nos níveis expressivos e no arranjo da linguagem, mesmo quando
esta é usual, cotidiana.
As belas e, mais uma vez, discretas definições que o contista recebe de Bosi – a
exemplo daquela em que o teórico define seu trabalho como dotado de um caráter
“especulativo da linguagem” – são empregadas de forma comparativa e, às vezes, com o
intuito de ampliar o entendimento do seu leitor para as definições que vem
desenvolvendo para outros contistas, como Clarice Lispector, por exemplo. É com esta
última, igualmente, imigrante e de ascendência judaica, que Rawet divide a informação
de que sua literatura compõe uma “retórica do imaginário”.
25

Pensar nos companheiros que são citados ao lado de Rawet, por um lado, pode
nos munir de argumentos para dizer que o mesmo não encontrou tratamento de primeira
ordem – na História Concisa da Literatura Brasileira, pelo menos – e, por outro, nos dá
a medida de seu quilate na literatura e, pensando assim, este seria um aspecto da boa
recepção que todas as ocorrências encontradas nas duas obras de Bosi constroem a seu
respeito.
Há que se apontar, nesse sentido, o tratamento tímido recebido por Rawet e sua
obra em outra História da Literatura Brasileira, inicialmente, destinada ao público
italiano, de autoria de Luciana Stegagno-Picchio (1997, p. 643). Nesse trabalho, na
única menção ao nome do contista, há uma relação breve dessa produção com a
problemática do imigrante, o que acontece de maneira semelhante em Moisés (1989).
Nesses casos, a falta de destaque e o olhar pragmático são mais algumas mostras da
necessidade de se rediscutir historiograficamente Rawet.
26

2 “O ILUSTRE ANTÍPODA”: UMA VIDA E UMA MORTE, UMA


LITERATURA E UMA FORTUNA CRÍTICA

Não só com escritores canonizados deve sonhar o leitor. Ler Machado de


Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector é preciso. Mas não se esquecer de
ler Campos de Carvalho, Samuel Rawet, e Uílcon Pereira também é
necessário. Não deixar para trás Maura Lopes Cançado, José Agrippino de
Paula e outros que (muitas vezes por culpa, não da falta de talento, mas de
um temperamento arredio) não tiveram a sorte de gozar da merecida
popularidade, é fundamental (OLIVEIRA, 2002, p. 8, grifos nossos).

O segundo capítulo, em primeiro lugar, remonta ao século 13, período em que é


possível detectar os primeiros processos econômicos, históricos e sociais de formação
da aldeia polonesa Klimontów, local de nascimento do escritor Samuel Rawet. Em
seguida, após discutir aspectos relacionados à imigração de judeus poloneses ao Brasil,
assim como os seus primeiros anos de vida e formação escolar inicial, já no Rio de
Janeiro, se empenha na discussão de sua fortuna crítica (os estudos teóricos e críticos de
sua obra), dos textos publicados em face de sua morte, em Sobradinho, e a repercussão
desta nos meios intelectuais brasileiros. A conclusão aponta para o renascimento da
obra do autor, principalmente nos meios acadêmicos, aspecto específico do terceiro
capítulo, e para a consolidação do nome de Rawet entre os grandes contistas da
literatura brasileira, assim como para a necessidade de (re) leitura e discussão de sua
obra.

2.1. Tecendo os primeiros fios: Do gringuinho de Klimontów ao contista brasileiro

O tópico se inicia com breve panorama que apresenta o território polonês


Klimontów5, as circunstâncias histórico-sociais que antecedem a sua formação enquanto
cidade, o seu desenvolvimento e retorno ao status de pequena aldeia. Em seguida,
localiza a figura do escritor Samuel Rawet, em meio a este contexto, discute as
circunstâncias de seu nascimento, mudança e estabelecimento no Brasil.
Segundo Natalia Inês Klidzio, professora no Instituto de Estudos Ibéricos e
Ibero-Americanos da Universidade de Varsóvia, pesquisadora responsável por pesquisa
que investigou os itinerários da vida e obra de Rawet, da Polônia ao Brasil,

5
Em Klidzio (2007), há a ocorrência de outra grafia: Klimontóv. A opção pelo termo escrito com “W” se
deve ao fato de ser esta possibilidade a mais recorrente no trabalho citado.
27

Klimontów surgiu nas terras da região de Sandomierz, fundada pelos irmãos


Ossolínski, cuja estirpe tinha o seu berço nos arredores – Ossolin. É
conhecida por historiadores da arte interessados nos estudos de monumentos
arquitetônicos (KLIDZIO, 2007, p. 12).

Localizada no vale Koprzywanka, a região é conhecida por suas igrejas. A sua


origem remonta ao século 13 e liga-se a duas localidades estendidas às margens do rio
Koprzywianka, Sandormierz e Opatów. Politicamente, à época de seu surgimento, o
país estava divido em regiões e sendo partilhado devido à disputa da dinastia Piast:

A localidade de Klimontów foi, naquele século, fundada pelo castelão


Klemens da raiz do brasão dos Gryk, cracoviano, amigo confidente e
conselheiro do rei Boleslaw, o Tímido (Wstydliwy). A denominação da
localidade como Klimontów procede, assim, do nome do castelão Klemens,
que desta forma a batizou, por volta do ano de 1240. Era um nome ligado ao
cristianismo (KLIDZIO, 2007, p. 13).

No entanto, o castelão Klemens ficou pouco tempo no poder da sede, já que foi
morto em batalha, em defesa do território, contra investida dos tártaros. Em seguida, a
administração da localidade foi sucedida por seu filho, também de nome Klemens, até
ser adquirida pelos Ossolinski, representados pelo grande senhor de terras Jan; depois,
por Pawel e o filho Hieronin, este último, calvinista fervoroso e líder protestante no sul
da Polônia, responsável por abrir congregações calvinistas no País, sendo Klimontów
uma delas. Em 1576, a cidade entra em decadência.
Em 1614, ano de construção da primeira igreja católica, Hieronim morre e é
substituído por seu filho, Ziebgniew, responsável pela ampliação de posses do território
e por fundar, de fato, uma cidade com as terras que a localidade possuía. Klimontów, a
primitiva localidade, surge como cidade, conservando o nome antigo, em 2 de janeiro de
1604 (KLIDZIO 2007, p. 14). O tratado que reconhecia a antiga localidade como
cidade, que assegurava a formação da mesma por pessoas livres, sem restrições de
doutrinas, deu início a um processo de crescimento local, pautado em benefícios aos
seus moradores.
O desenvolvimento e a prosperidade da nova cidade provocaram, por sua vez, o
interesse de novos habitantes. Data desse período, a chegada dos judeus em tal
território. Os mesmos “eram muito conhecidos na Polônia, por suas habilidades de
artesãos, de negociantes e de usurários. O espírito de tolerância, instalado em
Klimontów, permite também a tranqüila instalação destes no local” (KLIDZIO 2007, p.
15).
28

De modo geral, os judeus chegavam à Polônia vindos da Europa Oriental e eram,


comumente, conhecidos como “velhos testamentos” (MAZUREK, 2007, p. 27). Da
insígnia social, atribuída com base no fato de que tal grupo étnico era seguidor da
religião talmúdica, uma caracterização generalizadora daqueles que imigravam para a
região.
Com a morte Zibgniew, em 1623, e assunção de seu filho Jerzy Ossolinski, de
28 anos, a presença e a importância dos judeus aumentam no território. Devido à
ostentação mantida em suas viagens diplomáticas, e ao fato de que o mesmo era
desprovido de economias pessoais para tais gastos, a coroa polonesa se vê obrigada a
tomar empréstimos dos judeus de outra região, Lvov, para manter tais despesas. O
governo de Jerzy dura até 1650, ano de sua morte. Excetuando-se a gastança, o seu
governo foi marcado pela valorização da educação e da ciência, como a construção de
escolas e asilos.
O período seguinte é marcado por uma forte crise econômica, não só em
Klimontów, mas em toda a Polônia. Nesse cenário, em 1663, dentre os 530 habitantes
das cidades, 124 eram judeus, presença que se manteve e se multiplicou ao longo dos
anos. “A redução judaica local enriqueceu ao ponto de, em 1846, construírem a
sinagoga, sendo que, de um lado desta, a casa do rabino, banheiros, hospital, duas
escolas e, de outro, o cemitério” (KLIDZIO, 2007, p. 18).
Com o fim do mandato de 120 anos dos Ledóchowki, em 1881, as terras de
Klimontów vendidas para o senhor feudal Stanislaw Karski, e delegadas ao seu filho,
Zysman, mudaram de mãos. O que se vê, a partir de então, é, por um lado, o início do
processo de urbanização da cidade, a exemplo dos serviços de saúde mantidos pelo
médico judeu Jakub Zysman, o crescimento da escola local e a criação de uma sede do
corpo de bombeiros, e por outro lado, a continuação da pobreza do povoado.
Por essa época, pelo menos em Klimontów, católicos e judeus, ligados pela
pobreza em comum, viviam tranquilamente. Porém, o quadro de degradação desses
últimos se intensifica quando se esmiúça outros aspectos desse quadro social:

A maioria dos judeus vegetava na miséria e na ignorância, ocupando-se do


pequeno comércio e artesanato; eram marceneiros, sapateiros, alfaiates,
costureiros, peleiros, funileiros, vendendo seus produtos no local e em outros
povoados. Os que eram comerciantes, vendiam objetos de metal (ferro) e
produtos agrícolas. Em algumas casas, tinha lugar o comércio clandestino de
cachaça e o jogo de cartas (baralho) (KLIDZIO, 2007, p. 19-20).
29

Os processos históricos, sociais e econômicos rememorados até então, que


resultaram na manutenção da pobreza da população de Klimontów, justificaram as
grandes levas de imigrantes que procuravam na América dias melhores. Dos países
americanos, o Brasil foi um dos mais procurados, o que se intensificou com a primeira
guerra mundial, em 1914, quando a Polônia se encontrava sob o monopólio da Rússia,
transformando-se em campo de batalha ocupado pela resistência austríaca. Processo
denominado de “a febre brasileira”, essa onda imigratória cresceu a partir dos anos 90
do século 19. Na época, “o Brasil era muito pouco conhecido para a então Polônia.
Evidentemente, os homens, atropelados pela fome de terra, não sabiam que se passava
no outro lado do Oceano. Não liam jornais, quanto mais os relatórios dos agentes”
(MAZUREK, 2007, p. 34).
Mazurek (2007, p. 34-5) destaca que parte desse movimento decorre da
divulgação de informações pelos administradores das rotas de transportes marítimos,
interessados em realizar o traslado de pessoas. A este tipo de negócio, o período era
propício com as notícias que se divulgavam sobre a doação de terras no Brasil, em face
de sua Proclamação da República:

Fascinava-os o tamanho da colônia doada e a fertilidade da terra. Sobre o fato


de que faltavam lá cidades e comércio, não queriam acreditar. Não podiam
imaginar que existisse um país não habitado. Os esclarecimentos sobre este
tipo aspecto ou tema eram recebidos por eles como intrigas objetivadas a lhes
impedir a oportunidade de se tornarem independentes (MAZUREK, 2007, p.
35).

Vale destacar que o quadro definido por Mazurek refere-se à Polônia como um
todo. Em Klimontów, a situação esboçou uma melhora com o final da primeira guerra
mundial, em 1918. Em 1920, a cidade registra 600 habitantes, sendo que, destes, 80%
são judeus e se mantêm com características rurais.
O que acontecia com a pequena cidade seguia uma tendência nacional, pois a
Polônia havia recuperado a sua soberania com o final da guerra. Neste período, os
judeus, o mais numeroso grupo étnico do país, encontrava-se, mais uma vez, com seus
direitos amparados, legalmente, em decorrência do Tratado das Minorias, assinado na
Conferência da Paz, em Versalhes, 1919:

Por força deste, a Polônia comprometeu-se com a concessão de plena


liberdade do exercício de cidadania aos judeus (assim como às demais
minorias étnicas). Os princípios de liberdade aos judeus igualavam-se em
direitos e deveres aos de todos os cidadãos da República da Polônia. Foi lhes
30

garantida a liberdade de credo, o direito de uso de sua própria língua (neste


caso, o jidisz), igualdade de acesso à educação, direito de abertura e
participação de associações, de possuírem suas próprias organizações sociais,
profissionais e representações políticas (MAZUREK, 2007, p. 29-30).

Os processos intrínsecos às movimentações imigratórias que envolviam a


Polônia, à época do fim da primeira Guerra Mundial, podem ser apontados como os
semelhantes em diversas partes do mundo. Em nosso caso, por exemplo,

[...] apesar de não estar militarmente envolvido, o Brasil sofreu com a


escassez e a transformação do mercado de capitais, que deixaram cicatrizes
em uma situação social e econômica já conturbada. Porém, uma mudança
mais discreta e sutil também teve lugar com a proximidade da guerra
mundial. Por toda a América, fluxos de imigrantes haviam escoado da
Europa para as novas terras prometidas foram represados (LESSER, 1995, p.
43).

Em depoimento a Flávio Moreira da Costa, Rawet revela dados de sua infância


nesse contexto, ao mesmo tempo em que confirma as informações de Klidzio (2007). O
cenário recriado é o mesmo seu nascimento:

Minha família não era nem camponesa, nem pequeno – burguesa. A


cidadezinha que nasci era praticamente de judeus poloneses, e meus pais
eram judeus de pequeno comércio, muito pobres. Eu tinha uns quatro anos
quando meu pai veio tentar a vida no Brasil e nós ficamos lá, esperando. Com
sete anos, eu vim pra cá (COSTA, 1990, p. 142).

Em outro trecho do mesmo depoimento, no qual recorda os primeiros anos de


vida na Polônia, Rawet recria o início de sua vida escolar e passagens vividas no seio de
sua família. O período são os idos de 1930, no qual o território começava, mais uma
vez, a desfrutar de certa estabilidade:

Comecei a estudar muito cedo, como era comum numa cidade pequena da
Europa Central. A escola funcionava ao lado da sinagoga. O primeiro
alfabeto que aprendi foi o ídiche – não aprendi o hebraico propriamente.
Aprendi as rezas, alguém me traduzia a frase toda, a prece, o versículo.
Tenho lembranças da vida na aldeia, lembranças do inverno, da vida
religiosa, da convivência com os parentes, lembranças inclusive de um
mundo que não existe mais e que mais tarde passou a me interessar por ser
um mundo – não sei me localizar bem – talvez da Idade Média, ou do século
XVII. Um grupo judaico que se organiza em determinada região, mesmo
quando a religião não tem um caráter muito forte, possui mais um sentido de
tradição. Por isso, alguns detalhes de vida do dia-a-dia, ligados ao
nascimento, a qualquer formalidade da vida civil, me marcaram muito. Só
muito tempo depois fui dá importância àquilo, que estava ligado a um
movimento que Martin Buber andou estudando – o Hassidismo – um
movimento religioso da Europa Oriental, e que chegou a ter uma importância
enorme para mim, filosófica, inclusive (COSTA, 1990, p. 142).
31

A passagem remonta a uma questão importante na literatura rawetiana: a sua


ligação com o movimento hassídico e a sua relação com Martin Búber. Ao longo de
nosso trabalho, serão mencionados alguns estudos que investigam essas relações na
obra de Rawet.
Segundo Klidzio, atualmente, Klimontów é um lugar silencioso, quase uma
aldeia, sem o status de cidade, o que foi mantido por plebiscito assinado por sua
população, cujas construções arquitetônicas, que abrigam suas belas igrejas, continuam
fascinando àqueles que as visitam (KLIDZIO, 2007, p. 23). No entanto, a situação
relacionada aos judeus é outra, demarcada pela inexistência do grupo nos registros
oficiais:

Populares, ao serem perguntados, categoricamente, não vacilam em


responder que não conhecem nenhum judeu no local. A sinagoga ainda
existe, embora em estado precário de conservação, o que os locais lamentam.
Segundo ainda os populares, uma vez ao ano, judeus de outros lugares vêm à
sinagoga para rituais. Não há, entretanto, uma data fixa para tal (KLIDZIO,
2007, p. 24).

De acordo com a pesquisadora, a ausência é motivo de consternação para


visitantes e moradores do local. No entanto, parte da memória ainda pode ser resgatada
no Cartório de Registro Civil da cidade:

No livro de Registros de Nascimentos, casamentos e Mortes do ano de 1929,


no ato de número 37, encontramos a declaração feita e assinada por Szapsa
Rawet, comerciante, 38 anos, morador permanente de Klimontów, de que sua
esposa Sury-LaiBokser, 31 anos, deu á luz uma criança do sexo masculino, às
dez horas da manhã, do dia vinte e três de julho de mil novecentos e vinte e
nove. A criança recebeu o nome de Szmul-Urys (KLIDZIO, 2007, p. 24).

O processo de emigração da família de Samuel Rawet se iniciou no ano de 1933,


ano em que seu pai emigra para o Brasil. Em 1937, Rawet chega ao Brasil com o
restante de sua família, que desembarca no Rio de Janeiro. Nesta cidade, Rawet viveu a
maior parte do tempo nos bairros de Leopodina, Olaria e Ramos. Vem do subúrbio
carioca parte do aprendizado e das experiências utilizadas para a construção de sua obra
intelectual, a literária e a ensaística.
32

2.2 A constituição de uma fortuna crítica

Neste tópico, a organização e discussão dos estudos críticos referentes à obra do


escritor Samuel Rawet seguirá a divisão estabelecida por Santos (2008a), em Samuel
Rawet: fortuna crítica em jornais e revistas, livro em que divulga o resultado de um
projeto patrocinado pela Petrobras – Petróleo Brasileiro S/A. Em tal obra, o autor
retoma textos de jornais, revistas, orelhas e prefácios que remotam, especialmente, ao
primeiro lançamento oficial do contista, 1956, à sua morte, em 1984. Há, no volume,
textos que ultrapassam tal limite tendo em vista a discussão contemporânea da obra de
Rawet, objetivando, segundo o organizador, maior “consistência à historiografia crítica
da recepção” (SANTOS, 2008b, p. 19) da mesma.
A divisão proposta por Santos apresenta-se em quatro partes, formadas por
períodos que demarcam o aparecimento, o desenvolvimento da obra, a morte e a
retomada do escritor em trabalhos de crítica literária. As partes delimitadas por Santos
são: 1. (1956-1960); 2. (1961-1970); 3. (1971-1984) e 4. (1985-2008).
Sobre essa periodização, é importante o alerta de Kirschbaum que destaca o fato
de ser a atividade literária de Rawet anterior a Contos do imigrante. O estudioso afirma
que o escritor

começou a escrever para teatro aos quinze, dezesseis anos, época em que
assistia a teatro intensamente, empolgado com as atuações de Bibi Ferreira,
de Paulo Porto, da Companhia “Os Comediantes” e, principalmente, com a
introdução no Brasil do teatro expressionista alemão, por Zigmund Turkov e
Ziembinski. Neste período escreveu mais de 10 peças [...] (KIRSCHBAUM,
2000, p. 08).

Nesse ensejo, a sua peça Os amantes foi encenada pela companhia de Nicete
Bruno e Paulo Goulart. Aos dezesseis anos, é aprovado em um concurso da Rádio
Ministério da Educação, onde, mais tarde, atua em rádio-teatro e na redação de
pequenos programas. Os contos começariam a ser publicados a partir de 1951, quando o
escritor já contava com 22 anos. É desconhecida a crítica à sua produção dessa época
(KIRSCHBAUM, 2000, p. 08).
Estamos atentos ao fato de que, antes de 1956, Samuel Rawet publicou alguns
textos literários, especificamente, peças de teatro e contos. Por outro lado, a nossa
delimitação, que privilegia a data inicial de 1956, objetiva, ao final do capítulo, a
apresentação das obras, coletâneas de contos e novelas, que compõem a narrativa
33

ficcional de Rawet. Ressalta-se que, a respeito do quarto período definido por Santos
(2008a), a data final de 2008 será estendida, no caso de nossa dissertação, ao ano de
2011. Por este período figurar no momento de conclusão deste trabalho, é possível a
ocorrência de omissões.

2.2.1 Entre as teorias, a historiografia e a crítica, as leituras

Por volta de 1951, Samuel Rawet, aos vinte e dois anos, começava a publicar, de
forma espaçada, seus contos no suplemento literário do “Diário Carioca”. Esse tipo de
veículo, aos novos escritores, era acessível e muito utilizado na divulgação de suas
obras.
No já citado depoimento a Flavio Moreira da Costa, Rawet situa a sua produção
em meio a este mecanismo: “aqueles tempos, todo jornal tinha um suplemento. A
grande emoção era sábado à noite ficar tomando chope com os amigos até de
madrugada, pra esperar o jornal de domingo às quatro da manhã a fim de ver se o conto
havia saído ou não. Era uma farra” (COSTA, 1990, p. 145).
Mais adiante, o autor destaca o momento da publicação de sua primeira
coletânea de contos, obtida a partir do contato com o mesmo jornal:

Mandei o primeiro, eles aceitaram. Quando fui levar o segundo, Prudente de


Moraes Neto, diretor do suplemento, me perguntou se eu tinha mais coisas,
disse que sim. Ele então me pediu que juntasse os contos e levasse para ele.
Assim fiz e ele não me disse nada; quando fui procurá-lo mais uma vez, ele
me levou até a Ed. José Olympio, me apresentou lá e dois anos o livro era
publicado. [...] Da repercussão, não posso me queixar. Tive, claro,
conhecimento de artigos que arrasaram o livro, que “aquilo” não era conto,
que não era isso, não era aquilo. Mas confesso que o que me chocou mais –
porque eu não estava preparado – foram os artigos que elogiaram o livro.
Principalmente um artigo de Jacó Guinsberg [sic] publicado em “Para
Todos”, acho que em 1958. Os elogios me deixaram meio desconcertado, eu
não estava mais vinculado a ele e, frustrado em relação ao teatro, me
entregara furiosamente a vida profissional (COSTA, 1990, p. 145).

A vida profissional a que se refere Samuel Rawet seria a sua atuação como
engenheiro na Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil - NOVACAP. O
profissional, à época, calculava o monumento dos Pracinhas. Esse período é marcado
pelo contato com o poeta Joaquim Cardozo.
Para Santos, a crítica que compreende o lançamento do primeiro livro de Rawet
“levantou o problema do escritor com o espaço público, reivindicando alguns a adesão
34

do ficcionista ao gosto do leitor comum” (SANTOS, 2008b, p. 19). Aqui, o pesquisador


se refere a nomes como Renato Jobim (2008), em seu artigo “Um jovem contista – por
dentro e por fora”.
Há, em Jobim, uma série de afirmações de caráter pessoal que denotam uma
análise equivocada dos processos de criação ficcionais. Tendo em vista a estreia de
Samuel Rawet e defendendo a ideia de que um ficcionista deve estrear, justamente, com
o conto, preterindo a novela e o romance, Jobim esclarece seu ponto de vista com a
seguinte afirmação:

O conto é mais fácil que seus irmãos maiores porque requer a fixação de um
momento e a suficiente penetração psicológica que lhe revelará a essência,
tudo num pequeno número de páginas, enquanto a novela ou o romance
exigem, além dessas qualidades, a capacidade de se prolongar a atmosfera da
história e a própria história por muitas páginas, quando a uniformidade
estilística poderá romper-se com ou os protagonistas se sucederem
desarticulados e frouxos (JOBIM, 2008, p. 67).

Discordando do pensamento métrico de Jobim, não adotaremos, aqui, o que seria


para o mesmo o oposto de sua concepção de narrativa: a ideia que muitos estudiosos
defendem de que “[...] o conto é gênero mais difícil, na ficção” (JOBIM, 2008, p. 68).
No texto citado, encontra-se a defesa de uma concepção que apregoa que, para
se entender a “criatura”, é preciso entender o “criador”. Tal premissa incorre no
determinismo crítico, sem, necessariamente, avançar na compreensão da obra em
questão: no caso, a coletânea Contos do Imigrante.
O exemplo do determinismo citado não demora a aparecer no texto de Jobim.
Em seu ensaio, por exemplo, a parte que utiliza para apresentar alguns dados
biográficos de Rawet é seguida da seguinte afirmação: “o introito acima foi preparado
na intenção de esclarecer, ‘grosso modo’, porque o Sr. Samuel Rawet escreveu um livro
difícil, na opinião de quase todos os publicistas que sobre ele se manifestaram. É porque
ele próprio é uma mente difícil e complicada” (JOBIM, 2008, p. 69). A frase,
exemplificação clara do determinismo de que falávamos, há pouco, é rebatida por
Kirschbaum quando este afirma que “[...] não obstante Jobim mencionar, no texto, que
‘Samuel Rawet escreveu um ‘livro difícil’, na opinião de quase todos os publicistas que
sobre ele se manifestaram’, não pude identificar quem eram esses publicistas”
(KIRSCHBAUM, 2008, p. 44). Em sua dissertação de mestrado, Kirschbaum será
responsável por sinalizar parte significativa da fortuna crítica de Rawet
(KIRSCHBAUM , 2000). A dissertação será mencionada mais adiante.
35

No entanto, reside nas desaprovações de Jobim um aspecto que será reavaliado


pela crítica de Rawet: a manipulação da língua em uma dimensão pioneira na literatura
brasileira. Nesse grupo, Jobim utiliza-se de Guimarães Rosa para acentuar o descarte
das inovações obtidas por Rawet em sua produção:

Um ou outro prosador tendeu para o pseudoletrismo, como Guimarães Rosa,


cujo último livro foi considerado por muitos como charada cuja única
singularidade era ser cumprido demais. Com seu livro de estréia, incorpora-se
o Sr. Samuel Rawet à novíssima família dos escritores brasileiros que
manipulam a língua numa dimensão diferente à que estamos acostumados
(JOBIM, 2008, p. 69).

O livro a que se refere Jobim é Corpo de Baile, lançado em 1956, em dois


volumes que, juntos, somam 822 páginas. Grande Sertão: Veredas (“o diabo na rua, no
meio do redemoinho...”), com 594 páginas, também, foi lançado em tal ano. No entanto,
a partir das passagens em que Jobim faz uma analogia entre Corpo de Baile e Contos do
Imigrante, acreditamos que o primeiro é o livro a que se refere Jobim em seu texto.
Mais tarde, em 1960, o livro passa a ser editado em três volumes independentes: 1º:
Manuelzão e Miguilin (uma Estória de Amor e Campo Geral); 2º No Urubùquaquá do
Pinhém; e, 3º Noites do Sertão (Lão-Dalalão Buriti) 6.
O texto de Jobim é concluído com a menção ao prefácio do livro de Rawet,
assinado por Fausto Cunha. Neste último, encontramos como motivação inicial de seu
texto um panorama biográfico de Samuel Rawet como argumento básico da
apresentação: “sua arte conserva traços indeléveis da origem, que, à maneira de
Wassermann, Rawet procura acentuar em toda a sua tragicidade” (CUNHA, 2008, p.
52). Na passagem, Cunha se refere a Jakop Wassermann (1873-1834), escritor alemão
de ascendência judaica que se dedicou com afinco ao romance e à novela.
Neste ponto, define o caráter de dificuldade que as narrativas, ora prefaciadas,
apresentam:

O estilo, por vezes hermético, a linguagem sincopada, a trama aparentemente


fugidia, a marcação teatral de várias cenas e episódios, a maneira indireta
indicar, e até sugerir, certos fatos; os planos alternados, de que usa com

6
A ligação das produções de Rosa e Rawet será mencionada, de forma breve, por Appel (2008, p. 113) e,
de maneira mais intensa, nos trabalhos de Brasil (1969; 1973; 1975a, 1975b; 1979; 1980 e 1995b). Por
conta dessa recorrência, analisamos os trabalhos de Brasil destacando as proximidades literárias que, aos
olhos do estudioso, caracterizam os dois artistas como representantes da “Geração de 1956”
(GONÇALVES, 2011, p. 439-461). No caso dessa dissertação, essa questão será tratada adiante, ainda
neste capítulo.
36

freqüência, a fusão que opera, amiúde, entre a realidade e a memória, a


retomada intermitente do “leitmotiv”, a pontuação psicológica extremamente
carregada – são, entre outras, algumas dificuldades ante as quais esbarrará
qualquer leitura rápida e desprevenida (CUNHA, 2008, p. 52).

Sem arriscar tentativas de conceituações sobre a narrativa ou definições


preconceituosas, Cunha finaliza o seu prefácio com o belo resumo e chamamento ao
leitor, uma espécie de convite poético de leitura da obra prefaciada:

Eis que é um mundo amargo e fascinante, esse dos Contos do imigrante, com
sua poesia heróica, sua tragédia anônima, seu desempenho surdo. Um mundo
que se achava à espera de um talento novo e corajoso, como o de Samuel
Rawet, para tentar o mergulho e a sondagem. Este livro é daqueles de que
saímos um pouco chamuscados (CUNHA, 2008, p. 52).

O prefácio de Cunha parece ter chamado a atenção de seus contemporâneos.


Além de Jobim (2008), no citado artigo, outra ensaísta se valeu de seus argumentos para
apresentar da obra primeira de Rawet destacando alguns de seus defeitos: a jornalista
paraense Eneida de Morais, pesquisadora do carnaval carioca, popularmente, conhecida
como Eneida.
A escritora inicia o seu texto destacando as origens étnicas de Samuel Rawet,
assim como a sua assimilação cultural ao novo país: “[...] o menino de ontem era
polonês, o homem de hoje é brasileiro” (ENEIDA, 2008, p. 63). A jornalista explica
que, ao ler um livro, possui como método a leitura posterior de prefácios e lombadas.
No caso do livro resenhado, Contos do Imigrante, a mesma reproduz algumas passagens
do texto de Cunha (2008), para, depois, açoitar a produção de Rawet.
Dessas passagens, grifamos aquela em que Fausto Cunha afirma que “[...] há, em
todos os contos de Samuel Rawet, o empenho férreo de obrigar o leitor a pensar linha
por linha, a entender o trabalho como um todo, dir-se-ia mesmo um desafio a que ele
penetre a zona de luz que por trás da aparente obscuridade da narração” (CUNHA,
2008, p. 53). A jornalista, ainda, fará menção à parte final do prefácio de Cunha, em que
se apega à expressão “chamuscados”, para, agora, discordar deste: “Diz ainda a
lombada que se saí do livro de Rawet ‘um pouco chamuscado’; aí estou em desacordo.
Quando se saí do livro de Rawet é esmigalhado, atordoado” (ENEIDA, 2008, p. 64).
Adiante, Eneida explica o que não a agrada nos contos de Rawet, dispostos em
tal coletânea:
37

[...] é a falta de planos, ontem, hoje e amanhã se misturando e se confundido,


a “linguagem sincopada”, a visível marcação teatral das cenas que tornam o
livro difícil quando é um livro tão belo. Influências, dirão naturalmente os
doutos. De quem? Katherine Mansfield? Proust? Não sei; creio antes que
Rawet esteja tentando contar de maneira diferente, esquecido de que o bom
mesmo é contar de maneira simples e comum. Simples e comum: duas coisas
muito complicadas. Cesário Verde aconselhou: “Sê natural, meu amigo, sê
natural” (ENEIDA, 2008, p. 65).

A frase do poeta português Cesário Verde teria sido escutada pelo seu amigo,
jornalista e poeta, Silva Pinto, em uma das visitas ao túmulo do amigo. De acordo com a
história literária, a frase de Verde motivou Pinto editar O livro de Cesário Verde, em
1887. De qualquer forma, o exemplo, utilizado para analisar para Rawet, soa
anacrônico.
Ao definir a coletânea, a jornalista reproduz alguns aspectos utilizados por
Cunha (2008) para apresentar a obra. Embora com objetivos opostos, no nível da
caracterização da literatura de Rawet, os trabalhos apresentam uma regularidade na
definição de uma narrativa que desestrutura a noção aristotélica de tempo, investe na
linguagem enxuta, na força dos diálogos, e se filia a grandes nomes da literatura
mundial.
A escritora, porém, finaliza o seu texto dizendo que o livro é digno de ser
aplaudido. A ensaísta encontra forças para, de forma picaresca, atribuir ao seu amigo
Heráclito Sales o direito e o dever de analisar o livro de Samuel Rawet. Uma proposta
de minimizar seus comentários? Talvez.
A historiografia de Samuel Rawet, em 1956, registra outra resenha, esta, de
Reginaldo Jardim. Desse escrito, destacamos o trecho em que seu autor sinaliza os
motivos do possível distanciamento entre a obra do primeiro e seu público leitor. Para o
analista, o aspecto de maior valor da obra é responsável por outro que a torna menos
atraente:

Indagaríamos se seria possível tornar mais maleável o texto, mais acessível


portanto, sem que perdesse sua força expressiva. Se isso é possível Samuel
Rawet nos teria dado além de um livro de alta classe artística, um livro de
boa aceitação popular, pois os assuntos abordados pelo autor que agora
estréia são dos mais interessantes (JARDIM, 2008, p. 62).

O trecho acima, conclusão da resenha de Jardim, é mais uma produção que


comprova o tom que parte substancial de estudiosos seguiu na crítica inicial da obra de
38

Rawet. Aqui, é possível pensar que o tratamento exigido por Jardim seria responsável
pela criação de outra obra, não Contos do Imigrante.
Para fechar o ano de 1956, escolhemos as palavras daquela que sempre foi uma
referência literária e pessoal para Samuel Rawet: Dinah Silveira de Queiroz. Em “Carta
sobre os Contos do Imigrante”, a escritora, embevecida pela estreia de seu irmão mais
novo de ofício, saúda o escritor e sua obra.
A estratégia utilizada pela artista consiste em iniciar seu texto com as
recordações do dia em que recebeu o amigo, depois de efetuada a publicação do livro.
Ao descrever o encontro de Rawet “com seu primeiro filho” (QUEIROZ, 2008, p. 56),
Queiroz traça um panorama do estado geral daquilo que representa esse momento na
vida de um escritor.
A escritora aproveita para destacar, sobre a origem étnica de seu amigo, que não
o julga, muito menos o entende

[...] como um ser dilacerado entre dois mundos, em que tudo se define com
adesão ou repulsa, como o Fausto, o Canabrava, ou qualquer nosso primo ou
parente. É curioso, como se define para nós um estrangeiro: no homem que
não sabe rir conosco, que não pega as nossas “piadas” acrescentando a essas
melhores anedotas comovido se falássemos de um amigo morto, que
pertencia ao nosso clã, pela fala e pelo coração (QUEIROZ, 2008, p. 56-57).

Depois de sinalizar alguns contos do livro, responsáveis por maior comoção,


Dinah afirma que a obra de Rawet “[...] não trata de uma tese política sobre os judeus,
mas da realidade dolorida da pátria espiritual perdida ou reconquistada” (QUEIROZ,
2008, p. 57).
A escritora cita, ainda, a parte final da orelha escrita por Fausto Cunha,
lembrando que, “[...] em geral, ninguém leva a sério esta literatura, pela qual todos os
editados se transformam em gênios autênticos. Mas a que foi feita sobre o seu livro é
absolutamente certa e objetiva” (QUEIROZ, 2008, p. 56-57).
Pensando nas palavras de Cunha, e na sua descrição sobre as dificuldades que tal
obra provocaria nos leitores desatentos, a missivista encerra: “[...] isso significa que
você, como nosso sempre lembrado Jones [Rocha], exige como indispensável a
colaboração da inteligência do leitor. E, para nós, irmãos mais velhos de ofício”
(QUEIROZ, 2008, p. 58) 7.

7
Sobre a amizade e o carinho dispensado por Dinah a Rawet e outros novos escritores, em Café da
Manhã, coletânea de crônicas, encontra-se a seguinte dedicatória da escritora: “Dedico estas crônicas aos
meus queridos amigos Fausto Cunha, Renard Perez, Luiz Canabrava, Samuel Rawet, Nathaniel Dantas,
39

De 1957, outro ensaio marcaria a recepção da primeira obra de Rawet: o


mencionado pelo contista no depoimento a Flavio Moreira da Costa (1990), escrito por
Jacó Guinsburg (2008). O texto de Guinsburg é o primeiro a assinalar a importância e o
ineditismo do enfoque temático que a obra de Rawet apresenta. Segundo o estudioso,
“[...] com efeito, esta coletânea focaliza, em algumas de suas histórias, aspectos da
imigração judaica no Brasil e, na verdade, assinala o surgimento de jure deste assunto
em nossas letras” (GUINSBURG, 2008, p. 75).
Guinsburg é cauteloso ao afirmar que, por outro lado, antes de tal obra, o
tratamento temático obtido por Rawet foi perseguido em outras ocasiões. No entanto,
destaca que, nesses casos,

[...] faltou, porém, a seus autores, quando não o talento, ao menos a


maturidade necessária para arrancá-las de um pretenso realismo que oculta,
de um lado, uma propensão à apologia do grupo [...] e, de outro, uma
experiência alheia não inteiramente captada pela sensibilidade artística. [...]
Por isso, podemos afirmar que, afora outros méritos amplamente salientados
pela crítica, Samuel Rawet foi o primeiro a dar ao assunto a amplitude e o
nível requeridos para integrá-lo nas letras nacionais (GUINSBURG, 2008, p.
75-76) 8.

Para expandir tal discussão e chegar ao cerne da defesa de sua argumentação – a


valoração do trabalho de Rawet – Guinsburg cria dois polos opostos dessa produção
literária. Por um lado, “[...] uma literatura de protesto e militância que, apesar dos
matizes do estilo e temperamento dos autores, estruturava o temário decorrente do
fenômeno imigratório na fórmula geral da reivindicação socializante” (GUINSBURG,
2008, p. 77) – neste caso, entendemos a posição de Guinsburg na medida em que o
mesmo tenta destacar a falta de tratamento estético dessa produção ressalvando, no
entanto, que sua posição sobre uma literatura “panfletária” é passível de discussão –;
por outro lado, teríamos a produção de Rawet, pois:

O jovem não só introduziu em nossa ficção o imigrante judeu, mas também o


apresentou em seu ângulo mais atual. E ainda mais: fê-lo de maneira tão

Fábio Lucas, Teresinha Éboli, Leda Barreto, à memória de Jones Rocha e a outros escritores que deram a
maior honra já recebida por esta cronista: a iniciação nas letras através da coluna ‘Café da Manhã’,
exatamente há vinte anos” (QUEIROZ, [1979], p. 09).
8
Para exemplificar a sua fala, Guinsburg não cita autores e obras anteriores a Rawet. Alguns exemplos
dessa produção podem ser encontrados em Breve história dos judeus no Brasil (SEREBRENICK;
LIPINER, 1962). A obra divida em duas partes, de autoria, respectivamente, de um dos estudiosos,
reserva, na segunda, sob a responsabilidade de Elias Lipiner, um curto panorama da “produção literária
judaica no Brasil” (p. 35). Curiosamente, de suas datas marco, 1925 a 1959, não encontramos a citação do
nome de Rawet. Conferir, especialmente, da página 135 a 140.
40

expressiva e pessoal, com tanto zelo artístico que, de nossa parte, não
hesitamos em situá-lo entre os melhores expoentes do tema. Numa antologia
do conto internacional sobre a emigração judaica o seu nome não deveria
faltar (GUINSBURG, 2008, p. 77).

Em mais esse caso, as tentativas de apresentação e compreensão da obra de


Rawet ocorrem de forma atrelada à leitura de uma literatura mundialmente consagrada.
A dimensão universalizante da obra de Rawet é, igualmente, defendida por
Borges em resenha, também, de 1957:

Sem tese ou panfleto, exemplifica o autor o absurdo de toda a discriminação


entre seres humanos, convencendo de que a comunidade de onde destacou
seus personagens é tão apaixonadamente contraditória quanto qualquer outra
parcela da humanidade. Seus pungentes retratos ressumam um agudo
sentimento trágico da existência que tem sido a marca do talento de alguns
dos melhores ficcionistas de todas as literaturas (BORGES, 2008, p. 85).

Voltando ao texto de Guinsburg, neste ponto, parece responder a Reynaldo


Jobim, quando este último classificou Rawet e sua obra como problemáticos:

Esta criatura, extremamente sensível às relações do meio externo e


consciente de seus conflitos, capaz de subjetivá-los pela “sensação de que o
mundo deles era bem outro” (“O profeta”), defronta-se não com seres de
porte psicológico idêntico ao seu, mas com o meio, a parede em que os
demais homens perdem suas características pessoais e se transformam em
tijolos das incompreensões coletivas (GUINSBURG, 2008, p. 81-82, grifo no
original).

A citação reitera a nossa afirmativa de que, neste ponto inicial, quando se


verifica o estabelecimento de pensamentos opostos à obra de Rawet, por outro lado, é
possível extrair desses trabalhos recorrências no trato formal/temático do artista.
Seguindo, em estudo sobre a obra de estreia de Rawet, Marques (1957)
estabelece duas dificuldades iniciais para a concretização de sua leitura: (a) uma própria
do estudioso e (b) outra motivada pela obra. Segundo o pesquisador, (a) a primeira
dificuldade foi imposta por si mesmo porque

[...] condicionado pelos lineamentos ortodoxos do gênero conto, queria a viva


força que as páginas dadas a lume por Samuel Rawet se conformasse a um
molde preestabelecido, muito embora – tal é o poder do hábito – eu soubesse
de antemão que não desejava ele outra coisa senão romper com esses moldes!
Só me dei conta do descaminho ao determinar de modo claro a extensão de
meu equívoco: na realidade o que saiu da pena do jovem escritor foram
composições poemáticas e de modo algum contos. Encontrava-me, portanto,
de todo desfocado para apreender o sentido legítimo da obra (MARQUES,
1957, p. 148, grifos no original).
41

Para exemplificar a sua tese, aproxima o que define como “[...] o ambiente onde
fulguram as intuições de um romance [de Virginia Woolf, por exemplo, com] a
realidade modulada subjetivamente que serve de transfundo aos poemas de Mallarmé”
(MARQUES, 1957, p. 148-149). Obtidos pelos aspectos formais do stream of
conciousness, essa literatura, ainda para Marques,

[...] é menos um reflexo da consciência das personagens do que uma


reconstrução lírica. Por outro lado, a palavra é trabalhada de preferência com
base nos seus efeitos tonais, seus halos conotativos, diluída, quase de todo,
sua função denotadora. É freqüente o emprego das transferências sinestésicas
– situações oriundas de certos sentidos, transpostas para outro nível sensorial,
– bem como das figuras de retórica de maior uso na poesia, como a metáfora,
a personificação, a anáfora, o anacoluto, o hipérbato. A própria estrutura da
frase se desarticula, se fluidifica, despojada dos elos discursivos, para imitar
a natureza proteiforme dos eventos psíquicos (MARQUES, 1957, p. 149,
grifo no original).

O trabalho de definição da obra de Rawet, nesse caso, funciona como


construção de um conto formalmente emblemático. Destaca-se, por outro lado, que
Marques não cita, nesses trechos, a palavra conto, guardando, em suas afirmações,
espécie de valorização do conto tradicional.
A (b) segunda dificuldade de leitura da coletânea, motivada pela própria obra,
reside em dois aspectos:

1) a circunstância de Samuel Rawet ainda não haver criado o seu sistema de


convenções próprio, o seu mecanismo pessoal de sinalização, destinado a
guiar o leitor por entre o Dédalo do fluxo de consciência; e 2) a ausência
nele, aliás perfeitamente compreensível num autor no limiar de sua carreira
literária, de um completo domínio do idioma, quer do ponto de vista
gramatical, quer do expressivo (MARQUES, 1957, p. 152, grifo no original).

Para justificar os dois aspectos, Marques afirma que a obra de Rawet deixa uma
impressão final não de dificuldade, mas de turvação, provocada pelo conteúdo mental
das personagens. A linguagem elíptica, os verbos na terceira pessoa, quase sempre sem
sujeitos explícitos, e o discurso indireto foram responsáveis pela criação de um efeito
perturbador: “[...] tive mais de uma vez a sensação de achar-me perdido
irremediavelmente” (MARQUES, 1957, p. 153-154).
Antes de concluir, o pesquisador sinaliza uma constante em todos os contos: “o
insulamento das personagens em situações especiais, de jeito a lhe permitirem mais
facilmente o desnudamento da consciência destas” (MARQUES, 1957, p. 156). As
42

recorrências estruturais e linguísticas não seriam responsáveis por apontar, em certa


medida, o trabalho daquele que escreve?
Em sua conclusão, agora, de maneira declarada, em forma de elogio, a marcação
de que tal obra

[...] só é vulnerável a restrições num plano superior. Como estréia, nada


apresenta das hesitações da prosa bisonha. Se não revela o artista plenamente
amadurecido, nos convence da presença de uma invulgar sensibilidade
centrada no cerne do humano. É um livro que, desde a frase inicial, fere a
nota grave, patética, que fica ressoando dentro de nós até a última página.
Sua qualidade básica, porém, é ser substancialmente vivido. Advinha-se que
o chão onde Samuel Rawet cultiva os seus poderes inventivos é fertilizado
com o húmus de uma experiência profunda. Ele é desses poucos que se
impõem logo ao nosso respeito. É dos que nos encorajam a atirar-lhes
desafios que reservamos para os que têm fôlego (MARQUES, 1957, p. 158,
grifo no original).

A citação de Marques (1956) encerra a nossa apresentação do primeiro período


que compreende a recepção da obra de Rawet nos idos de 1956 até 1960. O saldo dessa
construção é a introdução à fortuna crítica do contista, assim como a apresentação do
seu primeiro livro, Contos do Imigrante.
Entre uma crítica removida pela obra de arte, aponta-se, entre as contradições
promovidas nos estudos, uma série de recorrências estruturais, formais e temáticas. O
trabalho com a linguagem sincopada e a sua consequente leitura dificultada, por
exemplo, são comumente mencionados. Os primeiros passos oficiais de Rawet na
contística brasileira abririam caminho para o seu conto nas próximas décadas.
Concluído o período inicial da recepção crítica da obra de Rawet, partimos para
aquele que representa o segundo momento de avaliação de sua obra, que compreende
entre 1961 e 1970. Esse é o momento em que, na narrativa, encontramos o aparecimento
de Samuel Rawet em cinco oportunidades: em 1963, com o livro de contos Diálogos;
em 1964, com a novela Abama; em 1967, com Os sete sonhos; e em 1969, com O
terreno de uma polegada quadrada, sendo esses dois últimos, novamente, coletâneas de
contos; e em 1970, com Viagens de Ahasverus à terra alheia em busca de um passado
que não existe porque é futuro que já passou porque sonhado 9 , mais uma novela.
Dessas obras, destaca-se que “Crônicas de um vagabundo”, de Os sete sonhos, e “O
terreno de uma polegada quadrada”, da coletânea homônima, apresentam características
de novelas curtas.

9
A partir deste ponto, nos referimos à obra, apenas, como Viagens de Ahasverus.
43

Para Santos, nesta fase, os estudos continuariam a situar Rawet como


desencadeador de algo novo em nossa história literária:

[...] a recepção dos anos de 1960 continua a destacar a superação do


modernismo de 1920 e 1930, nas suas ficções curtas, além da fixação da
temática do imigrante, do “estrangeiro”, os problemas da adaptação, do
desenraizamento, a marcação teatral das narrativas, a alternância de planos, o
tratamento literário da experiência, as neuroses derivadas da cotidianidade, a
crescente interiorização (SANTOS, 2008b, p. 21).

Os exemplos em que o pesquisador comprovará essa afirmativa quase dobram


nessa segunda parte. É notável que o que seriam oito trabalhos, agora, com relação ao
primeiro período, somam quinze estudos. O aumento da produção de Rawet aumenta as
ocorrências críticas, pelo menos, nos registros organizados por Santos.
Renard Perez (2008a), ao prefaciar o segundo livro de Rawet, Diálogo, se utiliza
da resenha do primeiro. Para tanto, se vale do prefácio de Fausto Cunha para introduzir
a sua apresentação. De acordo com Perez, a apresentação de Cunha “[...] definia
exatamente a literatura de Samuel Rawet. Uma literatura difícil e amarga, sim, mas uma
grande literatura” (PEREZ, 2008a, p. 102).
Sobre o segundo livro, explica que se trata

Igualmente, de um livro difícil. Na verdade, o escritor não mudou muito


nesse intervalo, pelo menos não transigiu um milímetro em sua literatura. O
que aconteceu foi, somente, a sua depuração. Se já não existe aqui, como
constante, a temática do imigrante, dos dramas da incompreensão, básicos em
sua literatura, subsistem – agora, até, numa dimensão maior e mais mágica.
Porque dessa vez é o drama da incompreensão do Homem, desligado
daqueles elementos circunstanciais (PEREZ, 2008a, p. 103).

O destaque que se faz importante na citação de Perez é o alargamento conferido


nos contos do tratamento da problemática da imigração. Embora não abandone essa
tônica, Rawet apresentará matizes diferenciadas no trato dessas questões ao longo de
sua produção. Em nosso caso, de forma específica, em Que os mortos enterrem os seus
mortos, chegará ao que estamos denominando de falso abandono da cultura judaica.
Perez expande, mais adiante, o seu pensamento sobre os processos de depuração
na obra de Rawet. Para o primeiro, nos contos do segundo, tais processos são
encontrados não apenas no plano formal, mas, igualmente, no plano do conteúdo:

Se naquela – mantidos em princípio, os mesmos elementos básicos da técnica


e estilo – procura e atinge o núcleo, numa economia de meios que dá a essas
44

páginas uma idéia de descarnamento que é principalmente pureza, a história


se liberta de todos os acessórios para fixar-se na sua essência mesma, pura,
nua, terrível essência. Como o pintor que, figurativo, despojando-se cada vez
mais do supérfluo, acabasse insensivelmente no abstrato, temos o drama no
seu fulcro, a tragédia em si, sua força cósmica. Dái o clima de paroxismo a
que chega a revolta desses personagens desses contos, na sua ruminação
castigada. O drama do cansaço gerado pelo grito sem ressonâncias. E a
revolta que borbulha surdamente, e que, se às vezes jamais sobe à tona, pode
súbito impelir aos gestos extremos (PEREZ, 2008a, p. 103-104).

Ainda neste ponto, o prefaciador tem como parâmetro a primeira obra de Rawet.
Para concluir o seu texto, não perde de vista tal parâmetro: “Se, no volume anterior,
havia ainda vagas frestas de luz, esta nova obra não nos dá a menor contemplação. É um
livro amargo da primeira à última página, porque a compreensão nunca se realiza. Para
o autor, o ‘diálogo’ não existe” (PEREZ, 2008a, p. 104). O prefácio de Perez e o tom
escolhido pelo prefaciador nos ajudarão a entender uma tendência de parte da crítica de
Rawet, muito impressionada com a sua primeira obra, responsável por uma crítica que
utilizará sempre de Contos do Imigrante como parâmetro. O risco dessa opção é não
evidenciar as particularidades que o conto de Rawet apresenta ao longo de sua
produção.
A economia linguística fundamentando o paroxismo das narrativas de Rawet
será alertada, igualmente, por Appel, em ensaio já citado: “Desligado de todos os
elementos circunstanciais, o tema é levado ao seu paroxismo; a história parece liberada
de todos os seus acessórios, o conto se fazendo presente em sua essência mesma, em sua
pureza nua, infinita” (APPEL, 2008, p. 118).
Mas os parâmetros do ensaísta parecem ser os mesmos de um conto mais
tradicional que, ao ser comparado com o de Rawet, parece mais completo, afinal, com a
depuração obtida por este contista, surge o problema de seu livro: “[...] é certo que o
conto depende mais da maneira de contar do que da coisa a ser contada. Haveria apenas
uma deslocação do eixo, nada mais. Falta em Diálogo a outra metade do conto: o
assunto, a situação, o personagem” (APPEL, 2008, p. 118). A afirmativa de Appel
desconsidera toda a movimentação moderna pela qual, não só o conto, mas a narrativa,
de modo mais amplo, esboçou no início do século 19, e as novas formas de pesquisar,
na literatura, uma “realidade objetiva” (AUERBACH, 2004, p. 483).
Mais adiante, aventando uma influência de Clarice Lispector, Appel parece
responder àquilo que o próprio chamou de defeito:
45

Influenciado por Clarice Lispector, que configura pessoas e situações em


limites extremos e imprecisos, Samuel Rawet ultrapassa-os e vai mais longe:
dilui as fronteiras do conto. Destrói os princípios que o caracterizam como
gênero e adota uma posição crociana. Mas, pelo resultado, o autor deve haver
percebido não ser possível diluir as características básicas do conto sem diluir
também a própria obra (APPEL, 2008, p. 119).

Resta-nos questionar se esta diluição da obra não se relaciona diretamente com o


trabalho de uma crítica descompassada com as novidades no campo da narrativa, o que
seria mais provável, no caso de Rawet.
O aspecto da incomunicabilidade será um dos destaques que Lemos dará a esta
segunda obra de Rawet. Esclarecendo que o mesmo não estaria fazendo Franz Kafka,
anos depois, ou mesmo reproduzindo o nouveau roman:

Sua simbologia econômica e sobretudo seu apuro formal estão a serviço do


homem, da tentativa de esclarecê-lo em suas perspectivas mais humanas. O
diálogo, isto que não acontece, e mais: cuja inexistência deflagra a
consciência da morte [...] é a meta mais direta e mais diária, o único resgate
possível. E este é o seu personagem, o homem que conhece o quanto lhe é
hostil o que simplesmente não é ele. Não há humor no que no humor pode ser
frouxidão, mas no que há de distensão no humor, de sardônico no riso, como
do “gag” ao trágico não precisa haver transição [...]. O primeiro de Rawet,
Contos do Imigrante, pode ser lido. Este Diálogo deve (LEMOS, 2008, p.
110-111).

O comentário de Lemos se insere em um seguimento da recepção de Rawet que


sempre parte de Contos do Imigrante para tratar da obra rawetiana. Porém, aqui, ao
contrário de muitos outros estudos, há o favorecimento da obra posterior do artista.
A crítica de Geir Campos segue a linha de pensamento do prefácio de Perez,
citado acima, quando afirma que “Samuel Rawet escreve tudo com minúcias, ora
abordando a seqüência dos fatos, ora passando a falar em nome dos personagens. Os
enredos são rodos trágicos, mais do que dramáticos. Mais dramáticos e trágicos do que
em seu livro de estréia [...]” (CAMPOS, 2008, p. 108). No entanto, Campos não
diferencia, nos contos, o autor real (Samuel Rawet) de suas instâncias narrativas, como
seus narradores (autores textuais) (REIS; LOPES, 1988, p. 16).
Embora na tentativa de elogiar o escritor, sua conclusão parece mais que
discernir autor e obra, entender os dois elementos como constituinte de um processo
movido por causa e efeito:

Há uma incontestável seriedade no que Samuel Rawet escreve. Ele não é um


paladino do brilho fácil, não é bebericador de uísques e discursos em
reuniões de autógrafos, não vive de citações em colunas especializadas nos
46

jornais. É um escritor, isto é, um homem que joga a própria “carreira (no


sentido vulgar) para dar seu depoimento. Claro que se trata de um escritor
muitas vezes amargo. O livro Diálogo reflete isso (CAMPOS, 2008, p. 108).

Por outro lado, as descrições relacionadas à personalidade discreta e arredia de


Rawet vão se confirmando ao longo de sua vida longe dos holofotes.
Em 1964, Samuel Rawet publica a sua primeira novela: Abama, cuja ação
decorre em apenas uma noite. O texto completo, que compreende 83 páginas, é disposto
em um parágrafo único. Em entrevista a Farida Issa, o autor define esta produção como
dotada de uma “estrutura do poema sinfônico” (ISSA, 2008, p 213).
Na auto definição do artista, a consciência do trabalho com a forma é evidente.
A aproximação com a música e a poesia segue a linha experimental sinalizada por
Marques (1956) em Contos do Imigrante. A referência ao poema sinfônico, composição
musical em um ato, inspirada em uma obra literária, nos remete a nomes como Debussy,
Stravinsky Schenberg e Hindemith, para ficarmos nos exemplos musicais, responsáveis
por repudiar a música sensível do século 19.
Tratando desses compositores e se referindo à obra de arte de maneira geral,
Hauser verifica nesse conjunto de artistas uma “[...] luta sistemática contra o uso dos
meios de expressão” (HAUSER, 1982, p. 1120). Essas ligações, estabelecidas a partir
do comentário de Rawet, servem para situar a discussão em torno de um projeto estético
desenvolvido no âmbito das conquistas da arte moderna.
Retomando a literatura de Rawet, para Renard Perez, os temas chave de Rawet
são a inexistência do diálogo humano, a incompreensão e crueldade humanas. No
entanto, de acordo com o estudioso, esses temas se ampliam. Em Abama, por exemplo,
“o problema é aprofundado, acabado por atingir, simbolicamente, o próprio trágico
destino da raça” (PEREZ, 2008b, p. 218-219). Em questão, mais uma vez, o tratamento
de um aspecto particular, o judaico, cedendo espaço para um aspecto mais geral,
relativo ao próprio Homem. Pretendemos demonstrar, por outro lado, que esse
tratamento não ocorre de maneira automática, pois o artista, ao longo de sua produção,
encontra meios diversos para tratar seus temas. A temática judaica, por exemplo, não
será abandonada de todo nesses contos, revelando mais um tratamento diverso, sutil e
irônico do que indiferente.
Em resenha intitulada “A dilaceração metafísica”, Luiz Carlos Villaça (2008) se
dedica à apresentação de Os sete sonhos, publicado por Rawet em 1967. Levando em
conta os dois livros anteriores, de acordo com Villaça, o contista Samuel Rawet
47

[...] parte de um pequeno fato, de um pormenor, de uma observação mínima,


de uma fatia do real, ou da circunstância. Parte do meramente factual, para
mergulhar na angústia e no absurdo. Não se prende nunca ao linear ou ao
superficial. A matéria, que constitui a linearidade, é puro pretexto para o salto
no abismo (VILLAÇA, 2008, p. 125).

Nesta apresentação, a utilização do trivial, por parte do artista, na composição de


sua narrativa, não é utilizada como demérito, mas como estratégia criativa.
Relembrando Jean Paul Sartre, em passagem em que diz que “[...] toda realidade
humana é uma paixão inútil” (SARTRE apud VILLAÇA, 2008, p. 126), para o
resenhista, as personagens de Rawet “[...] são prisioneiras de si mesmas, são
redemoinhantes, seres em surdina, que caminham em direção ao país da absurdidade,
seu reino verdadeiro. Elas parecem girar em torno de si mesmas, fluídicas, embebidas
de um crispado pessimismo, todavia humilde” (VILLAÇA, 2008, p. 126).
Para concluir, Villaça afirma que considera Rawet uma das maiores vozes da
literatura brasileira contemporânea. Para justificar este destaque, os seus motivos não
são poucos: “[...] pela autenticidade, pela sinceridade, pela pesquisa formal, pelos
valores metafísicos ou simplesmente humanos, que se cruzam em seus contos, como
correntes subterrâneas, invisíveis, mas poderosas” (VILLAÇA, 2008, p. 127). E
reproduz a polêmica definição atribuída ao, também contista, Cornélio Pena: “Cornélio
Pena disse, com excesso: ‘No princípio, era o nada depois, apareceu Machado de Assis;
depois, foi o nada o outra vez’... Samuel Rawet vem contestar em seus contos, de
grande e bela densidade, a quase-brincadeira de Cornélio Pena” (VILLAÇA, 2008, p.
127). Se, por um lado, a lembrança de Pena pode suscitar uma discussão infindável
sobre a importância e o papel dos dois outros contistas citados, o que esconderia muitos
outros nomes significantes, por outro, vale discutir a chancela que Rawet recebe de seu
companheiro de profissão que, falecido em 1958, se referia provavelmente, ao primeiro
livro de Rawet.
Em outra resenha dedicada ao livro Os sete sonhos, Laís Correa de Araújo,
afirma que este último, “[...] como os demais, não se revela ou se entrega à primeira
leitura, mas exige uma certa maneira de ver e sentir o universo ou, melhor, exige de nós
a compreensão da maneira de ver e sentir o universo, o oco do mundo, que a do escrito
Samuel Rawet” (ARAÚJO, 2008, p. 133). Da definição, subjaz a ideia de que a obra de
Rawet continua convocando uma leitura árdua aos seus leitores.
48

O mesmo livro e, mais especificamente, o conto intitulado “Os sete sonhos”


motiva uma nota de Hélio Pólvora (2008a) em face de sua premiação no concurso João
Guimarães Rosa de 1968, promovido pelo governo do Paraná. Além de Rawet, naquele
ano, dentre outros escritores, foram premiados Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles
e Luiz Vilela.
À época, Pólvora escreveu que “Rawet, como Trevisan, vem mantendo em sua
obra de contista uma impressionante unidade de estilo e de temática. São dois escritores
de forma apurada, para quem a estória curta é um desafio decomposição. Trevisan conta
estórias, Rawet descreve instantes vivenciais” (PÓLVORA, 2008a, p, 123-124).
Mais adiante, explica seu ponto de vista, justificando-o numa dada influência
kafkiana: “O conto de Rawet, de notória influência kafkiana, tem feição de atmosferas.
Armada uma situação, ele parte para a alegoria, a fábula. Distorcendo a realidade
convencional, consegue marcá-la ferozmente através da projeção dramática”
(PÓLVORA, 2008a, p, 124).
Sobre a recepção crítica de Rawet, o ano de 1969 registra a primeira
manifestação escrita que se tem notícia da importância do mesmo e de sua obra sob a
pena de Assis Brasil, considerado, por muitos estudiosos, o crítico mais influente da
obra de Rawet (SANTOS, 2008a, p. 25; BINES 2007, p, 58): o ensaio Guimarães Rosa,
publicado pelas Organizações Simões, componente de uma coleção mais ampla na qual
o estudioso publicaria Adonias Filho, Clarice Lispector e Graciliano Ramos, no mesmo
ano.
É nesta obra que, para apresentar o escritor mineiro Guimarães Rosa, Brasil
sinaliza para o ano de 1956, como marco de uma tomada estética na literatura brasileira.
Outra data marco seria, para a construção do pensamento de Brasil, o ano de 1922, pois
o que se via em nossas letras, depois de então, poderia ser classificado como inovador
ou, como afirma o próprio, “[...] assim queremos, para o que chamamos de ‘novo’ na
literatura brasileira, um marco genuinamente estético e não motivações que vão a
reboque de movimentos político-partidários” (BRASIL, 1969, p. 15).
Neste ensaio, encontramos o famoso esquema representativo desse movimento
na literatura brasileira. Inicialmente, o esquema é composto por três aspectos. A
proposta do teórico é contemplar a poesia, o conto e o romance produzidos depois do
movimento modernista 10 . Para expor o esquema e suas partes, Brasil elege como

10
Em obras posteriores, o crítico acrescenta um quarto pilar: a crítica literária, representada pelo
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil/SDJB.
49

representativos dessa geração: a) o surgimento da Poesia Concreta; b) a estreia de


Samuel Rawet com o livro Contos do Imigrante; e o aparecimento de dois romances:
Doramundo, de Geraldo Ferraz, e Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa
(BRASIL, 1969, p. 15-16).
Sendo este último, Guimarães Rosa, o alvo de análise detalhada, Brasil reserva,
logo na introdução de seu trabalho, as justificativas para tais escolhas. Sobre Rawet,
encontra em Contos do Imigrante os motivos para o destaque estético porque este “[...]
quebrava, de chofre, as normas do nosso conto, impondo uma nova maneira de conceber
o gênero – elimina a tradição da história ‘curta’ por uma valorização do antigo
episódico. Ele não mais conta ‘casos’, situa flagrantes e momentos da alma humana”.
(BRASIL, 1969, p. 17-18). Esta tese será desenvolvida exaustivamente em outros
trabalhos, como veremos adiante. Verifica-se que, neste ponto, o parâmetro de Brasil só
inclui até Os sete sonhos.
Em 1970, Samuel Rawet lançaria outro livro, cujo nome chama muita atenção.
Trata-se de Viagens de Ahasverus, uma novela em que, segundo Sergio Tross, o contista
“[...] em uma viagem fantástica em busca do homem – mas não como Diógenes, em
busca do homem perfeito. Rawet busca, em sua sondagem, o homem total, o homem de
todas as épocas, o homem de cada época e lugar, o humano” (TROSS, 2008, p. 227).
Dessa definição, a obra parece sintetizar as preocupações estéticas formuladas a partir
de Diálogo.
As palavras conclusivas de Tross destacam o trabalho do contista e atribuem ao
leitor papel fundamental na fruição de tal obra:

Para ler Rawet é preciso também uma certa metamorfose, pouco dolorida. Ou
uma série de metamorfoses, se o leitor quiser participar realmente da obra,
integrando-se nela. Não garantimos, mas talvez você saia renovado após
participar das viagens de Ahasverus, apesar mesmo do cansaço que estas 65
páginas são capazes de provocar nos menos avisados. Um cansaço inerente a
todas as obras conscientes e, por isso mesmo, perturbadoras (TROSS, 2008,
p. 227).

O comentário de Tross encerra a nossa súmula sobre o segundo período


componente da linha temporal que constitui os estudos sobre a obra de Rawet. Esse
período pode ser apontado como ponto de consagração de Rawet na literatura brasileira.
Quadro que, também, por questões biográficas, sofreria alguns abalos nos anos
seguintes.
50

Seguimos com a apresentação e discussão da fortuna crítica de Samuel Rawet


tendo em vista, a partir desse momento, o período que marca o excessivo aparecimento
e concessão de entrevistas, a acentuação do isolamento social do escritor, seguido de
seu desaparecimento em sobradinho, cidade satélite de Brasília. Os estudos
apresentados datam de 1971 até 1984.
A respeito dessa fase, Santos alerta a necessidade de não se confundir a solidão
trabalhada nos contos de Rawet, com o isolamento do contista, o que pode ser
percebido, até mesmo, nos títulos de alguns trabalhos sobre o escritor. Sobre o período,
é importante destacar o alerta que Santos estabelece sobre o interesse que o nome de
Rawet desperta na análise da crítica de tal fase. Negando o que chama de “recepção na
perspectiva da psiquiatria”, aponta que seu interesse se volta para

[...] a solidão como “mal-estar da civilização”, o isolamento inscrito na


sociedade e na cultura contemporânea, principalmente neste momento de
capitalismo tardio, quando a neurose encontra-se disseminada como doença
da cultura, atingindo subjetividades, inclusive as experiências literárias
(SANTOS, 2008b, p. 24).

Para o organizador, os textos produzidos nesse período sobre a obra de Rawet


“[...] discutem questões básicas sobre a inserção e enquadramento numa tradição
literária, literatura étnica [...], a censura, vida literária, ensaio na ficção, a precariedade
no nosso sistema intelectual, e a exclusão do espaço público” (SANTOS, 2008b, p. 25).
Destaca-se que, em muitos desses estudiosos, a exemplo de Hélio Pólvora (2008b),
ocorre a leitura de aspectos da obra de Samuel Rawet, com algumas ressonâncias do
estudo “A nova narrativa”, de Candido, sobre a ficção brasileira de 1970.
A respeito desse trabalho de Candido, embora o ensaísta cite muitos nomes
representantes de uma “literatura do contra” – muitos deles já relacionados por parte
significativa da crítica aqui arrolada ao nome de Samuel Rawet –, como representativos
das décadas de 1960 e 1970, herdeiros, em parte, dos modernistas, o mesmo não é
citado no ensaio (CANDIDO, p. 1982, 212). A verificação do “sequestro” de Rawet,
nesse breve ensaio caberia uma investigação mais aprofundada.
Para apresentar O terreno de uma polegada quadrada, obra de 1969, Pólvora
(2008b) esclarece que, nos últimos três livros de contos de Samuel Rawet, o tema
encontrado é um só: o bicho homem. Reforça, no entanto, que agora, continuando a
desenvolver um conto abstrato e inconsútil, esta obra
51

[...] surpreende-o em plena transposição desse propósito depurador ou


apurador. Não estou interessado em debater aqui os méritos desses quatro
livros. Ignoro, por enquanto, se houve quebra eventual de qualidade literária
ou se ele levou adiante a expectativa da estréia. Literatura é um exercício de
teoria e prova. A teoria me fascina. Nesse vago minifúndio, que bem pode ter
uma polegada quadrada, cabem todas as definições e flutuam todos os
equívocos. Aí um escritor se afirma – e para isso não precisa ser
artisticamente sofrido. Rawet concentra em seus escritos as dores de criar e
as de conviver, as próprias e as alheias – e, nessa caixa de ressonância,
quanto mais densa e limitada a análise, mais ampla a percepção, porque
alimentada de essências (PÓLVORA, 2008b, p. 263, grifo no original).

Pólvora atribui a essa obra as insígnias de mais espontânea, agressiva,


contundente e, por vezes, chocante na lavra de Rawet. E justifica:

Estou certo que os contos nasceram da observação impiedosa e constante


desse terrível espectador da vida que é Samuel Rawet. A literatura imaginada
cede lugar definitivamente à literatura constatada, ao material apanhando em
estado bruto e submetido, então, à análise especulativa (PÓLVORA, 2008b,
p. 266).

Da conclusão de Pólvora, é possível extrair dessa sua concepção literária a


exemplificação na obra de Rawet daquilo que o primeiro classificou, anteriormente, de
literatura constatada:

Até onde vai a vivência do autor e onde principia exatamente o artifício


literário? Ambos parecem entranhados naquela interseção – o ato (de
escrever) e o objeto (o tema). Não admira que, paralelamente aos seus contos
e novelas, Rawet esteja escrevendo ensaios. É coincidência demais. Os
últimos títulos de sua obra ficcional podem ser considerados ensaios nada
convencionais sobre o comportamento humano (PÓLVORA, 2008b, p. 266)
11
.

Lembramos que é nesse período que encontramos os primeiros contos em que


Rawet acentua a sua preocupação formal. Em Os sete sonhos e O terreno de uma
polegada quadrada, a própria forma vira tema dos contos rawetianos. O que, de certo
modo, já havia sido prenunciado em Diálogo.
Seguindo uma linha historiográfica, a década de 1970 presencia a consolidação
da obra de Samuel Rawet e o nome de Assis Brasil como um dos mais influentes e
ferrenhos defensores. Quando pensamos na importância e papel do teórico em meio ao
estudo de tal obra, salta a olhos vistos, por exemplo, o número de obras em que é

11
A respeito da produção ensaística de Rawet, em 2007, a editora Civilização Brasileira publicou Samuel
Rawet: Ensaios reunidos, sob os cuidados de Rosana Khol Bines e Leonardo Tonus, obra que organiza
essa vertente da produção intelectual do escritor. É dessa obra a primeira epígrafe citada em nosso
trabalho.
52

possível encontrar uma menção elogiosa a Rawet: aqui, conseguimos reunir quatro
pequenos textos (entre artigos, resenhas e ensaios) e dez livros.
Sob a égide de A nova literatura, em 1973, o crítico piauiense lança aquela que
seria a sua história crítica da literatura brasileira. Nesse sentido, encontramos quatro
volumes dedicados ao romance, a poesia, ao conto e à crítica, respectivamente.
O autor parte do pressuposto de que o cenário da literatura brasileira vivencia,
naquele ponto, uma fase “nova”, adjetivo que será utilizado com exaustão no título dos
volumes, na divisão e classificação dos autores que serão estudados. A fase
caracterizada como tal tem como ponto de partida a crítica estabelecida por Brasil aos
“críticos desinformados” e aos “leitores apressados”. Sobre esses críticos, a pecha de
“desinformados” se deve ao fato de que, segundo Brasil, os mesmos, postulavam, até
então, que “[...] depois de João Guimarães Rosa nada mais aconteceu na ficção
brasileira” (BRASIL, 1973, p. 15). Aqui, o teórico se refere, especificamente, à prosa.
Para o estudioso, em um plano geral, a construção de seu pensamento vai de
encontro ao “[...] brado que se ouve, bastante alarmante, [...] de que a literatura entrou
em crise ou está, o que é pior, estagnada” (BRASIL, 1973, p. 15). Em meio a esta
discussão, Brasil admite a existência de uma “crise” nos meios de divulgação da
literatura, mas, a este aspecto, não dá vazão. Por outro lado, prefere

[...] falar em uma crise positiva, pois todo o surgimento de uma nova
“escola”, nova “onda”, ou novo “gênero”, se processa através de uma crise
do já feito, do já experimentado, do já visto e repetido. E o artista, sempre
como um visionário, vai à crista dessa crise, sai ao encontro de um novo
mundo. Suas armas? Por vezes a ingenuidade ou a pureza do criador, nu
diante do mundo que ele quer reinventar (BRASIL, 1973, p. 16, grifos no
original).

A partir daí, no campo da crítica, a atenção de Brasil se volta para o processo


que classifica como “verdadeiro tabu” em torno do que foi produzido na literatura
brasileira depois de 1945. Esta crítica, que impede o leitor de saber quais rumos tomou
as últimas gerações, seria motivada pelo “[...] medo dos escritores vivos? Medo dos
comprometimentos?” (BRASIL, 1973, p. 21), questiona-se.
O teórico, em seguida, reforça que 1922, 1930 e 1945 são “datas-marcos” que
registram as fases históricas do movimento modernista. Aqui, expõe mais claramente o
que acredita:
53

Defendemos em várias ocasiões e em trabalho sobre João Guimarães Rosa,


que já é tempo de se objetivar estudo e registrar fatos, em relação ao que
aconteceu “depois” daquela trindade histórico-literária. E situar romancistas,
poetas e contistas que, do ponto de vista estético, nada têm a ver com aquelas
“correntes” ou “fases” do Modernismo já estratificadas e inseridas em nossa
história literária (BRASIL, 1973, p. 22).

O trabalho ao qual Brasil se refere é o ensaio Guimarães Rosa (1969), já citado


por nós. Mais adiante, o crítico não titubeia em declarar o fim do Modernismo:

É preciso que se afirme que o Modernismo já morreu, que já cumpriu sua


“meta” de atualização da literatura brasileira. Se quiserem o número da pedra
tumular, está aqui: 1945. Tivemos ainda uma década de “exumação”
neoparnasiana e depois a eclosão do verdadeiramente novo [...] como
veremos mais adiante (BRASIL, 1973, p. 22).

O que se segue à afirmação polêmica e, de certo modo, jocosa, é a definição


histórica da configuração do “novo”. Desse modo, para sustentar o que afirmou há
pouco, o estudioso elenca “três pontos básicos [...] de natureza genuinamente estética”
(BRASIL, 1973, p. 23) para a formação dessa geração:
Reforçando que nesta classificação localiza-se a renovação do romance, da
poesia, do conto e da crítica, o teórico alerta que o “novo” não começou exatamente em
195612. Tal data está sendo utilizada como orientação: as publicações de Guimarães
Rosa, Grandes sertão: veredas; Geraldo Ferraz, Doramundo; em conjunto, o
surgimento da poesia concreta e do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB);
e a estreia de Rawet, com Contos do Imigrante:

Há escritores que vieram de um pouco antes e outros que só surgiram alguns


anos depois, mas devem ser observados e estudados dentro daquele espírito
do novo, cujas três referências estéticas, assinaladas atrás, servem de
orientação ao crítico e ao historiador (BRASIL, 1973, p. 24).

O que se segue é o momento em que, de forma rápida e introdutória, Brasil irá


justificar os motivos de suas três sinalizações. Ao que mais nos interessa – a verificação
das aproximações estéticas entre as obras de João Guimarães Rosa e Samuel Rawet –,
destacamos um trecho em que Brasil define o conto deste último como constituído pela

12
Em seu Dicionário prático de literatura brasileira, depois de arrolar algumas informações biográficas
sobre o escritor Samuel Rawet, assim como uma breve descrição estética de sua produção contística,
Brasil relembra os três marcos da Geração de 1956, destacando que, nestes, ocorre “[...] uma pesquisa de
formas e de linguagens nunca empreendida antes” (BRASIL, 1979, p. 288).
54

[...] quebra da estrutura do conto tido por tradicional – história de começo,


meio e fim, enredo certinho, personagens delineadas psicologicamente,
diálogos convencionais, etc. E esta estrutura seria revolvida, de maneira mais
radical, por Samuel Rawet, com o livro Contos do Imigrante, que também
com o Grande Sertão: Veredas, deixou a crítica desaparelhada sem critérios
de julgamento (BRASIL, 1973, p. 26).

A ligação estética realizada por Brasil, entre Rawet e Rosa, embora esteja
tratando de um romance e de uma coletânea de contos, expõe uma aproximação das
construções narrativas dos dois escritores e o efeito semelhante provocado numa crítica
despreparada para analisar tais obras. Antes de passar para o volume dedicado à poesia,
encontramos um estudo de Brasil, publicado em 1974, em que esta relação estética entre
as obras de Rawet e Rosa são o ponto de partida para a construção da apresentação do
primeiro13.
Depois do ensaio Guimarães Rosa (1969), em que registra o nome de Rawet
como uma das três referências básicas para a renovação da nossa literatura, Brasil
retoma o assunto e, mais uma vez, reforça que seria Rawet “[...] uma espécie de
pioneiro, de visionário das novas conquistas e conquistas do conto brasileiro hoje”
(BRASIL, 2008c, p. 281).
Na medida em que apresenta o material literário de Rawet publicado até então,
Brasil rebate o tom da crítica predominante nesse período quando se trata da análise de
tal obra: a ideia de que a literatura rawetiana seria uma transposição da vida real. A esse
respeito, é exemplar a afirmação do crítico sobre Viagens de Ahasverus:

É o ponto nodal do homem e do artista. Em Rawet o homem parece estar


“diluído” no artista – ele é um dos raros escritores que “vive” a sua arte, a sua
experiência criadora. Mais uma vez, o mito do judeu errante aflora em sua
obra, e em Ahasverus o mito é cristalizado mais objetivamente (BRASIL,
2008c, p. 285-286, grifos no original).

Porém, antes que seu leitor desvie de seu foco e se perca, Brasil alerta que
quando se refere ao artista que vive a sua arte, não quer dizer que “[...] a biografia do
artista seja a sua própria obra, mas tão somente deixar claro que certas ‘imposições’
culturais levam o artista a ser ‘intérprete’ de sua própria raça ou seu próprio destino”.
(BRASIL, 2008c, p. 285-286). Essa interpretação, obviamente, reside de forma
específica no tratamento estético que recebe as palavras na configuração de uma
linguagem literária.

13
Nas referências, a data do ensaio é 2008c.
55

Para exemplificar com outros nomes, Brasil rememora Kafka, James Joyce e
Hermann Hesse, em um plano internacional, e Guimarães Rosa, no plano da literatura
brasileira. Mais adiante, explica seu ponto de vista sobre Rawet alertando que

[...] ele não é um simples contador de casos ou determinadas situações – é um


escritor que se situa a além das peripécias técnicas e lingüísticas. A sua meta
é o homem, e para encontrar o homem, ele como grandes artistas, procura ver
o mundo de uma maneira nova, pessoal, criadora. E em função desse mundo
cria a sua linguagem, que é o próprio mundo ao nível da expressão artística
[...] (BRASIL, 2008c, p. 287).

Em seguida, no segundo volume da coleção intitulada História Crítica da


Literatura Brasileira, dedicado a poesia, Brasil inicia a obra com a repetição do
esquema tripartido dos marcos históricos de 1956 (BRASIL, 1975a, p. 3). Rawet e Rosa
serão citados, agora, sem maiores esclarecimentos, mesmo porque tal volume irá tratar
das novidades no campo da produção lírica.
Antes de passarmos para o terceiro volume de A Nova Literatura, faz-se
necessário uma pausa para que comentemos outro ensaio de Brasil, intitulado “Geração
de 1956”, que dá nome a essa seção de nosso trabalho. A pausa refere-se, apenas, às
verificações que estamos fazendo nas sequências da coletânea citada, mesmo porque,
como se verá adiante, tematicamente, não estaremos distantes do bojo dessa discussão.
Em tal ensaio, Assis Brasil (1982) irá analisar, basicamente, dois outros
trabalhos, de outros dois conhecidos estudiosos da crítica literária brasileira: um artigo
de José Guilherme Merquior, publicado na revista Tempo Brasileiro, em que trata sobre
a nova poesia brasileira; e uma síntese, publicada nesta mesma revista, de uma antologia
em que Heloisa Buarque de Holanda seleciona 26 poetas hoje. Na medida em que
analisa tais estudos, o crítico utiliza-os como contraponto para a definição de seu
pensamento sobre a dita “geração de 1956”.
Na obra que se relaciona, especificamente, ao conto, a terceira da coletânea A
nova literatura, Assis Brasil irá elencar, novamente, os três eventos estéticos basilares
que marcaram 1956. Neste volume, porém, Brasil destacará que, “[...] depois da poesia,
o conto foi o gênero que sofreu o maior impacto de renovação entre nós” (BRASIL,
1975, p. 15).
Mais uma vez, pensando na recepção crítica de Contos do Imigrante e, por
extensão, de Grande Sertão: Veredas, o estudioso define o conto de Rawet e a posição
de mal estar da crítica diante desse material:
56

[...] aquela história linear, de começo, meio e fim, prima-pobre da novela e


do romance, quebrara sua feição tradicional em busca de outros valores
formais [...] o conto adquiria uma forma autônoma, não mais ligado ao
convencional do enredo (BRASIL, 1975b, p. 15).

A repetição dos argumentos de Brasil é baseada em nossa preocupação de


estabelecer um panorama das recorrências de aparições do nome de Rawet em suas
obras. Desse trecho, reforçamos que o argumento de Brasil procura desestabilizar as
noções de conto empregadas pela crítica de então.
Avançando na construção de seu pensamento, o próximo passo é estabelecer as
características do conto moderno brasileiro. Destacando o papel de Machado de Assis,
irradiante por trás da produção dos bons contistas que surgiram nos anos próximos a
1922 – aqui, se referindo a Adelino Magalhães, Alcântara Machado, João Alphonsus e
Mário de Andrade –, Brasil reforça que, a esta época, “[...] procurava-se o conto de
flagrante e os escritores estrangeiros da moda, Tchecov e Mansfield, começavam a
exercer influência” (BRASIL, 1975b, p. 48).
Depois de destacar mais algumas contribuições importantes, Brasil aponta em
João Guimarães Rosa e Clarice Lispector, que surgiram em 1946 e 1944,
respectivamente, dois responsáveis pela revitalização da história curta, no Brasil, “[...]
que se arrastava moribunda” (BRASIL, 1975b, p. 48). No caso de Rosa,
especificamente, Brasil aponta que “[...] ele vinha revitalizar a linguagem literária e dar
14
maior liberdade ao criador” (BRASIL, 1975b, p. 48) . Da passagem, há que se
destacar o esforço de Brasil na leitura desses contistas e o desejo de definir os seus
papeis na literatura brasileira.
Com os estreantes Murilo Rubião, Brenno Accioly e Jones Rocha, encontramos
os “autores que iriam ‘ligar’ o conto moderno às melhores experiências no gênero”
(BRASIL, 1975b, p. 48) 15. Nesse sentido, “[...] com o aparecimento de Samuel Rawet,
o conto brasileiro deixava de vez as influências e largava mão o ‘lastro’ machadiano e
ainda o aspecto naturalista da ficção. Aqui, o conto moderno dá lugar a um novo conto,
com outras e ricas preocupações estéticas” (BRASIL, 1975b, p. 49).

14
Em obra mais recente, Teoria e prática da crítica literária, o estudioso rememora os dois nomes, o de
Rosa e o de Lispector, no momento em que traça os “Aspectos históricos do conto”. Para o crítico, os dois
“são os nossos revolucionários no conto novo: alto nível literário da linguagem, síntese criativa, técnica
aprimorada. Já não contam propriamente uma história, criam um clima, uma tensão, transpondo a sua
prosa para a fronteira da poesia”. (BRASIL, 1995a, p. 246).
15
Essa ideia poderá ser encontrada, mais uma vez, em Brasil (1980, p. 240).
57

Na resenha sobre Rawet, Assis Brasil afirma que o escritor foi “uma espécie de
pioneiro, de visionário das novas conquistas e pesquisas do conto brasileiro de hoje”
16
(BRASIL, 1975b, p. 67) . Sobre esta primeira coletânea, mais uma vez,
comparativamente com Grande Sertão: Veredas, ocorreu o que o estudioso, agora,
definiu como “[...] desorientação momentânea da crítica em relação a seus valores
estéticos” (BRASIL, 1975b, p. 67), o que já tinha afirmado no primeiro volume,
dedicado ao romance, sem detalhar muito seu pensamento.
Depois de mais algumas informações sobre Contos do Imigrante (1956), Assis
Brasil ainda menciona outras obras de Rawet, tais como Diálogo (1963), Abama (1964),
Sete Sonhos (1967), Viagens de Ahasverus (1970). Por fim, destaca que é importante
não esquecer O Terreno de uma Polegada Quadrada (1969). Sobre este último livro,
reforça que se trata de “[...] uma experiência de Rawet à procura de situar o ‘espaço’ do
humano, num mundo caótico e sem meta. A técnica empregada aqui é caótica, bem
realizada, e o trabalho se destaca como um de seus mais inventivos” (BRASIL, 1975b,
p. 72). Para concluir, afirma que, devido à má divulgação da boa literatura, o grande
público desconhece esse que, “[...] embora ainda jovem, está no nível de nossos
melhores ficcionistas” (BRASIL, 1975b, p. 72). Em mais esse caso, Brasil tem em vista
o conto mundial, especificamente, o europeu.
Com o objetivo de analisar o motivo da viagem na obra de Rawet publicada até
o ano de 1977, composta por quatro novelas e mais de quarenta contos, Silverman
defende uma semelhança constante em tal produção devido à utilização desse aspecto.
Neste conjunto, “enredo, conteúdo e forma são utilizados para produzir um movimento
espontâneo fluido, ora circular, ora não, mas sempre um movimento em que a fuga se
torna multidimensional: psicológica, fisiológica, sociológica, geográfica – até
lingüística” (SILVERMAN, 2008, p. 345).
De acordo com o estudioso,

[...] o motivo da viagem é o núcleo do cosmos de Rawet – um cosmos às


vezes fatalista, mas sempre determinista. É o barco pilotado, lingüística e
tematicamente, por uma humanidade introspectiva e egotista; e passa através
de um ‘cotidiano aborrecido e estéril’ (SILVERMAN, 2008, p. 345).

Sobre a citação de Silverman e a sua passagem entre aspas, há uma referência ao


conto “A galinha de Colombo”, da coletânea Os sete sonhos, onde se lê a seguinte

16
Termos utilizados no ensaio citado de 1974. Em nosso caso, utilizamos a versão publicada em 2008c.
58

passagem: “[...] seu corpo longo e magro, ideal também atingido de pureza e
sensibilidade, encovava-se numa poltrona, e de pernas cruzadas lançava os pensamentos
para o além de um cotidiano aborrecido e estéril” (RAWET, 2004, p. 164, grifos
nossos) 17. Nesse conto, numa manhã, a personagem principal, um homem sem maiores
caracterizações, reflete sobre o ovo da galinha de Colombo, enquanto recorda cenas
ocorridas no dia anterior no escritório em que trabalha.
Nesse sentido, sobre os trabalhos analíticos da obra de Rawet, data de 1977, a
resenha escrita por Beth Brait em face da publicação da segunda edição da coletânea
Diálogo. De acordo com a estudiosa:

Somadas as qualidades e subtraídos os deslizes da composição é possível


aceitar a idéia de que “Rawet não despertou ainda no público o interesse que
sua literatura merece”. Num tempo em que se proíbe Joyce e Rubem
Fonseca, José Loureiro e Dalton Trevisan, é necessário destacar da
mediocridade permitida os trabalhos que de alguma maneira contribuem de
forma positiva para o pano [sic] geral da literatura contemporânea (BRAIT,
2008, p. 343).

No ano seguinte, em 1978, a segunda edição do Dicionário literário brasileiro


registraria algumas linhas sobre Rawet. Do verbete de Menezes, destaca-se, com relação
ao nome do contista, três datas-marcos: 1929, 1936 e 1954, respectivamente, o ano de
nascimento, o de chegada ao Brasil e o de formatura em Engenharia pela Escola de
Engenharia, da universidade do Brasil. Sobre a obra, a notação de que o mesmo “[...]
cultivava a literatura de ficção” (MENEZES, 1978, p. 566).
O primeiro texto que a historiografia literária registra sobre a obra que servirá de
base para a nossa leitura da narrativa ficcional de Rawet, Que os mortos enterrem os
seus mortos, aparece em 1981, em publicação do jornal O Estado de São Paulo, sem
autoria explícita. Intitulada “O retorno de Rawet, após uma década”, o escrito apresenta
a obra como “uma coletânea de 18 contos, escritos nos últimos dois anos, que revelam
uma intensa vivência emocional e reafirmam um estilo claro e vigoroso que, desde
1956, com Contos do Imigrante, foi reconhecido pela crítica”. O texto prossegue com
alguns dados biográficos de Rawet, breve trecho do depoimento a Esdras do
Nascimento, e encerra-se com a menção a outros livros de Rawet e sua relação
conflituosa com outros escritores (O ESTADO DE..., 2008a, p. 366-367).

17
A partir desse ponto, todas as citações literárias de Rawet são referenciadas, apenas, com o número da
página.
59

Um ano depois, em 1982, encontra-se outra resenha, agora de Dez contos


escolhidos, publicado neste mesmo ano, intitulada “A negação do passado”, de autoria
da jornalista Vivia Wyler. Sem maiores novidades na análise da obra de Rawet, de
modo geral, a autora afirma que o contista “[...] transpôs para a literatura a concisão, o
ritmo abrupto, de frases curtas, como parcelas de uma longa, interminável soma. E a
experiência dos que, habituados a lidar com estruturas, percebem na realidade do dia-a-
dia as barreiras intransponíveis do relacionamento humano” (WYLER, 2008, p. 369-
370).
No prefácio dessa coletânea, embora inicie a apresentação evocando, na obra de
Rawet, “[...] um clima, um pathos, um quê dostoiewiskiano (sic), de grande amargura
existencial” (GOMES, 2008b, p. 373, grifos no original) capazes de causar prazer
estético e inibição, tudo, ao mesmo tempo, Danilo Gomes advoga para si, na
oportunidade, a qualidade de leitor impressionista. Desse modo, sintetiza as suas
impressões a respeito do conjunto de contos que ora prefacia:

Ressuma das páginas, como outros já perceberam, o pathos próprio da ficção


desse importante autor brasileiro: a solidão, a incompreensão entre os seres
humanos; a carência constante de afinidades eletivas; os passos que se
distanciam, sozinhos; a ânsia de fuga sufocante realidade circundante; o
homem ilhado em si mesmo – metálico, egocêntrico; a angústia da adaptação
a ambientes alienígenas. Vez por outra, contudo, permite-se o autor uma
breve comunhão com o humor ou com o lirismo (GOMES, 2008b, p. 383-
384).

Das palavras de Gomes, destaca-se que a obra de Rawet, de modo geral, e a


coletânea Que os mortos enterrem os seus mortos, de modo específico, apresentam
lapsos de marcações humorísticas, e, em maior recorrência, marcações líricas. A noção
de humor apresentada por Gomes não admite uma dimensão trágica desse aspecto.
Outras considerações mais voltadas para o trabalho de Rawet com o conto,
podem ser citadas quando Gomes sinaliza que, “[...] preocupa-se o autor, sobremaneira,
com seu texto. E com vigor expressional consegue sustentar a alta qualidade literária de
seu texto, sem decaídas!” (GOMES, 2008b, p. 384). Aqui, o resenhista destaca a
precisão e o cuidado mantidos por Rawet nesse tipo de produção literária.
O hiato que separa esse texto de Gomes e as próximas ocorrências do nome de
Rawet na mídia brasileira (e na crítica especializada) apresenta um evento importante
nesse percurso: a morte do escritor, ocorrida em 1984. Sobre a ocorrência das
publicações específicas sobre esse fato, realizamos uma discussão no tópico seguinte.
60

2.2.2. O arremate inexorável: Os necrológios de Samuel Rawet

A morte de Samuel Rawet não provocou comoção nacional, o que não


surpreende, tendo em vista que a mesma ocorreu no ponto máximo de retraimento
social do escritor. A obra organizada por Francisco Venceslau dos Santos, Samuel
Rawet: fortuna crítica em jornais e revistas, sinaliza a ocorrência de três textos
veiculados na mídia em decorrência de tal acontecimento18.
Curiosamente, não citado pela fortuna crítica de Santos, sobre o
desaparecimento do contista, Assis Brasil, coerente com a postura construída ao longo
de mais de duas décadas de estudos teóricos, é um dos nomes a homenagear Rawet,
com o ensaio “Morreu o grande escritor”. Este texto necrológio seria publicado em
Teoria e prática da crítica literária, no ano de 1995. O nosso acesso a essa obra se deve
à menção que a mesma recebe na bibliografia organizada por Seffrin (2004, p. 483-
486). Esta mesma edição é a utilizada neste trabalho. É possível encontrá-lo, ainda, em
uma edição do livro Contos do Imigrante, da Ediouro. A edição que possuímos desta
última obra não registra ano de publicação19.
O texto de Brasil, elaborado em homenagem a Rawet, inicia com uma lembrança
de outra morte: a de João Guimarães Rosa, em 1967. Brasil relembra a manchete de um
grande jornal, “Morreu o grande escritor”, se referindo ao assunto. Outro nome
rememorado, pelo estudioso, é o do escritor e jornalista Nelson Rodrigues, que, se
espantou com tal manchete, pois achara um “exagero ou fora atingido em sua vaidade
pessoal” (BRASIL, 1995b, p. 278). A menção ao nome de Rodrigues e ao seu caráter,
supostamente, vaidoso, não é casual, pois servirá de contraponto na definição do
homenageado.
Neste ponto, explica o que para ele serve de justificativa para a repercussão da
morte de Rosa:

18
Os trabalhos são: “A experiência do trágico (Recordando Rawet...)”, de Gilda Salem Szklo; “Rawet,
solitário nas obras e na morte”, sem autoria, publicado no jornal O estado de São Paulo; e, por último,
”Rawet, a solidão, na vida e na morte”, de Carlos Menezes. Os três escritos datam de 1984, ano da morte
do artista.
19
Embora, neste ponto, não seja possível afirmar, com segurança, o local e o ano exatos de publicação do
ensaio “Morreu o grande escritor”, é possível depreender de sua leitura e dos objetivos de Teoria e
prática da crítica literária – dar seguimento aos estudos do pesquisador de A nova literatura (em seus
quatro volumes), agora, tendo vista a literatura brasileira da década de 1980 –, que tal ensaio foi escrito,
imediatamente, depois da morte de Rawet.
61

João Guimarães Rosa tinha extrapolado, por alguma razão oculta, o fechado
círculo da vida literária, talvez pela polêmica que motivou sua obra, talvez
por ser do Itamarati e conseguir abrir algumas portas, talvez por ter sido
chamado de “equívoco” e de “gênio” ao mesmo tempo. O certo é que ele teve
manchete na primeira página de jornal quando morreu, como esses políticos
menores e medíocres tem sempre (BRASIL, 1995b, p. 278).

O destaque dado ao processo de extrapolação do círculo da vida literária


destacado por Brasil ganha, nos dias atuais, tons mais complexos. A participação de
escritores em eventos, congressos e feiras literárias (ou não) é cada vez mais
corriqueira.
Introduzindo seu comentário por conjunção adversativa, em seguida, o crítico
começa a falar de seu homenageado: “Mas quando Samuel Rawet morreu – tão
importante – quanto João Guimarães Rosa – mereceu apenas três linhas na ‘vala-
comum’ de um necrológio num canto de jornal” (BRASIL, 1995b, p. 278) 20.
Em seguida, relembrando o espanto, por parte de alguns amigos do escritor
falecido, e reafirmando o seu não espanto, Brasil afirma categórico que, Samuel Rawet,

20
Segundo Bazzo (1997, p. 27), em 26 de agosto de 1984, o jornal Correio Brasiliense publicou entre as
suas matérias, a seguinte nota, reproduzida em sua formatação original, em itálico:

Engenheiro é encontrado morto

O engenheiro e escritor Samuel Rawet, de 56 anos, foi encontrado, na noite de sexta feira, morto
em sua residência, em Sobradinho, vítima de um aneurisma cerebral. Especialista em cálculos, Rawet foi
um dos responsáveis pelos mais importantes edifícios de Brasília e também dedicava-se às letras. Entre
suas obras, destaca-se (sic) Contos do imigrante - 1956, Diálogo – 1963, a novela Abama 1964, Sete
Sonhos – 1967 e vários ensaios.
Desde 1947 radicado no Brasil, o judeu-polonês, segundo amigos íntimos, era uma pessoa
extremamente retraída o que, comentavam, dificultava a divulgação de seu trabalho literário. Entretanto,
era, reconhecidamente, sensível contista, sensibilidade que o isolou nos últimos anos de vida, por
renegar padrões do mundo contemporâneo.
Em Brasília era uma pessoa só. Não aceitava nem os laços familiares. Mesmo assim sua
ausência foi notada por seus vizinhos que chamaram a polícia, que encontrou o corpo já em estado de
decomposição. Segundo o laudo médico, Rawet já estava morto há quatro dias.
Rawet era, nos últimos tempos, funcionário da Novacap [Companhia Urbanizadora da Nova
Capital do Brasil] e morava em Sobradinho há dois anos. Entre as diversas atividades que exerceu em
Brasília, foi professor do departamento de Arquitetura da UnB [Universidade de Brasília] e membro da
Associação Nacional dos Escritores.
Considerado como renovador do conto entre os escritores de Brasília, Samuel Rawet nasceu em
Klimontose (sic) na Polônia, em 1929. Aos 7 anos veio para o Brasil graduando-se em 1953 pela escola
de engenharia na antiga Universidade do Brasil. Como engenheiro calculista integrou a equipe do
também engenheiro e poeta Joaquim Cardozo, nos primeiro tempos de Brasília (CORREIO
BRASILIENSE apud BAZZO, 1997, p. 27). Sobre a causa mortis, a informação do aneurisma é colocada
sob dúvida por Kirschbaum, que aventa uma segunda versão para o falecimento do escritor, o suicídio
(KIRSCHBAUM, 2004, p. 6).
62

igualmente, merecia “uma manchete em todos os jornais: ‘Morreu o grande escritor’”


(BRASIL, 1995b, p. 278). Embora utilize os mesmos recursos empregados na
construção da matéria, um caráter de exclusividade entre a qualidade de “grande” e o
escritor homenageado, o texto de Brasil seguirá de forma lúcida na tentativa de
rememorar passagens e feitos da vida de Rawet, incluindo, para isso, outros “grandes”
escritores. O resultado é sempre o esforço de divulgar para o grande público um nome
quase desconhecido.
Mais adiante, sem questionar os valores estéticos de Rosa, Brasil estabelece mais
diferenças e aproximações entre este e Rawet. No comentário que se segue, Brasil
começa pela figura deste último:

A sua vida não foi a de um carteirista, um deslumbrado pela medalha e pelo


elogio – João Guimarães Rosa, talvez por feitio pessoal, adotava uma certa
postura de auto-exibição, de autopromoção, sem que isso implicasse em
diminuir a qualidade de sua obra. JGR chegava a bajular os críticos, a fazer-
lhe bilhetinhos e dedicatórias encomiásticas. Isso ajudava, fazia parte do seu
jogo na vida literária (BRASIL, 1995b, p. 278).

Mais uma vez, pensar na postura de um filão de escritores atuais que não se
deixa intimidar com a exposição pública, e que faz disso parte da divulgação de suas
obras faz de Rosa um escritor mais atento a esses processos. Isso não significa dizer que
o mesmo empregou os mesmo métodos que um escritor da linhagem de Paulo Coelho
na divulgação de seu material, mas que, a seu modo, soube divulgar o seu trabalho. Por
outro lado,

Rawet era arredio, desconfiado, talvez por conhecer melhor – e se importar


com isso – a hipocrisia humana, a baba na gravata do traidor. Ele carregava
nas costas um sortilégio étnico e uma feroz incompreensão familiar em
relação a ser um escritor [...]. Sem família e sem pátria [...] sentia-se, como
mesmo declarava, e retratava em seus personagens, um vagabundo, um
errante, e toda a sua obra, de ficção e ensaística é uma procura de identidade.
Homem culto, como o foi João Guimarães Rosa, espírito superior e
universalista, do porte de um Borges e de um Beckett, exilado num país de
fachada dúbia e primária (BRASIL, 1995b, p. 279).

Aos problemas de relacionamento, Brasil destaca o bem sucedo início na


carreira de engenheiro, após a sua formatura na Escola Nacional de Engenharia, no
Largo de São Francisco, no Rio de janeiro, na equipe do poeta (e engenheiro) Joaquim
Cardozo, ao lado de outros nomes como Oscar Niemayer e Lucio Costa, responsáveis
pela construção de Brasília. Afetivamente, o escritor esteve envolvido com os membros
63

da Revista Branca, especialmente, Fausto Cunha e Renard Perez, todos arregimentados


pela figura matriarcal de Dinah Silveira de Queiroz.
O que se lê, em seguida, é o relato de alguns feitos de Rawet no campo da
engenharia, uma síntese de sua produção literária e passagens biográficas em que o
contista pôde demonstrar um caráter arredio, excêntrico. Na conclusão de seu texto,
reforçando que o literato conseguiu se situar no panorama da literatura brasileira, Brasil
retoma sua tese sobre a Geração de 1956, e, ao relembrar Rawet, convoca, novamente,
Rosa:

Ele conseguiu e é responsável pela renovação do nosso conto, após a fase


30/45 do nosso Modernismo. Quando estreou, em 1956, com Contos do
Imigrante – ano da publicação de Grande Sertão: Veredas, de João
Guimarães Rosa, e Doramundo, de Geraldo Ferraz – a crítica situou os três
livros como responsáveis por uma nova perspectiva criativa da nossa ficção,
por um novo tempo estético no Brasil, deflagradores, enfim, de uma nova
literatura (BRASIL, 1995b, p. 281).

Essa ideia, como vimos, é reproduzida em outras obras de Brasil.


Concluindo, sem perder a oportunidade, faz justiça ao seu homenageado:
“Samuel Rawet morreu: morreu um grande escritor” (BRASIL, 1995b, p. 281). Note-se
que, da manchete reducionista, o estudioso retira o artigo definido, responsável por uma
drástica redução de sentido. Em seu caso, a utilização do artigo vem sob a forma da
indefinição, abrindo a sua análise para um ponto de vista mais generalizador.
Aproximando-nos da conclusão deste tópico, nos valemos das palavras de
Kirschbaum (2007), quando este analisa a presença de Samuel Rawet na literatura
brasileira, tendo em vista o período que sucede o ano de 1984. Para Kirchbaum, neste
período, o escritor

[...] desapareceu da cena literária, sua obra ficou esquecida, restando a


memória de sua excentricidade na lembrança de alguns intelectuais que o
conheceram de perto ou que cruzaram com ele em algum encontro, algum
congresso de escritores; que tentaram comunicar-se com ele e foram
rejeitados rispidamente (KIRSCHBAUM, 2007, p. 48).

Os outros três estudos, denominados de necrológios em nosso trabalho,


apresentam um conceito subjacente de literatura como representação da realidade. Paira,
nesses escritos, a ideia de que Samuel Rawet transpôs, em vida, os problemas de sua
existência para a sua narrativa ficcional, especificamente, e intelectual de modo geral.
64

O primeiro desses estudos, assinado por Gilda Salem Szklo, pretende uma breve
apresentação da obra do contista e, para tanto, a divide em três grandes áreas temáticas:
(a) A experiência do trágico. O drama do imigrante judeu; (b) os dramas familiares; e,
(c) O imaginário e a realidade. A condição precária do indivíduo e o sentido da busca.
Na primeira parte, a autora concentra a sua atenção mais especificamente a
Contos do Imigrante, e, em menor medida, a Diálogo e Viagens de Ahasverus. A
respeito da primeira coletânea, afirma que:

[...] a temática da imigração e da assimilação possibilita várias interpretações


de peso social e histórico. É o caso, por exemplo, da associação entre
fenômeno da migração européia no período entre as duas guerras e a análise
de suas conseqüências, quais sejam, a afirmação de uma classe média judio-
brasileira, razoavelmente segura, integrada nos seus estilos de vida, sem
cultura judaica própria, sem que isto signifique a perda da ligação emocional
com os valores da tradição (SZKLO, 2008, p. 386).

A estudiosa reforça os sentimentos ambivalentes que a terra prometida causaria


no imigrante judeu do Leste da Europa. Desse modo, entender a violência histórica nos
“pogroms da Rússia tzarista” (SZKLO, 2008, p. 387) contribuiria para o entendimento
do “[...] desajuste e a marginalidade do imigrante no processo de aculturação ao solo
brasileiro” (SZKLO, 2008, p. 387).
Destaca-se que, dos três textos sinalizados por Santos (2008a), publicados em
ocorrência da morte de Rawet, o de Szklo pode ser apontado como o mais empenhado
no estabelecimento da relação de um conceito de literatura como veículo de
transposição do real. Talvez resida nesse aspecto um dos motivos para que Santos
(2008a) enquadre nesse grupo, além da motivação fúnebre inicial, o tom subjacente que
o mesmo irradia na medida em que não especifica o trabalho de Rawet como
manipulação dos artefatos da linguagem. O reconhecimento de um trabalho estético, é
suplantado pelas motivações histórico-sociais do imigrante violentado. O escritor seria
um fruto do nazismo vigente na época e que, não se sabe por que, também, escrevia. O
que dissemos, por ser comprovado em trechos com o da passagem:

O cenário do Rio de Janeiro – isto é, o subúrbio carioca onde Rawet passou


parte de sua infância e adolescência – é apresentado pelo lado de dentro das
personagens, através das emoções, dos recalques, dos anseios que
compunham o instante psicológico das suas vidas (SZKLO, 2008, p. 387).
65

Com trechos como esse, o que seria uma apresentação da obra, se transforma na
apresentação da vida de Rawet. A passagem abaixo, em que inclui o nome do contista
em um dos nomes do título de um de seus livros, acentua essa abordagem:

A tendência à tendência, que se poderia também chamar de sublimação do


sofrimento (Viagens de [Rawet] Ahasverus à terra...), a fusão do
encantamento do sonho com uma consciência da realidade, a fé pelo
desconhecido e a percepção do limite, da fragilidade (“A porta”, em Diálogo
– p. 37 e todo o contexto de Os sete sonhos) se manifestam na sociedade
moderna pelo desejo de recuperar o equilíbrio perfeito: o mito de um paraíso
primordial (SZKLO, 2008, p. 392).

A estudiosa menciona, com tal inclusão, a passagem do livro em o narrador de


Samuel Rawet, jocosamente, afirma:

E Ahasverus foi Samuel Rawet com plenitude, escreveu VIAGENS DE


AHASVERUS À TERRA ALHEIA EM BUSCA DE UM PASSADO QUE
NÃO EXISTE MAIS PORQUE É FUTURO E DE UM FUTURO QUE JÁ
PASSOU PORQUE SONHADO, e como Samuel Rawet sondou o mundo
(RAWET, 2004, p. 476, grifos no original).

O que, analisando apenas como transposição, empobrece e determiniza o objeto


literário.
A segunda parte da apresentação de Szklo é dedicada ao aspecto dos dramas
familiares na obra de Rawet. Nesta parte, a exemplo da primeira, o destaque segue para
as primeiras coletâneas de Rawet. Nesses núcleos familiares, segundo a autora, “[...]
predominam a mentira, a dissimulação, a insolência, e a submissão” (SZKLO, 2008, p.
394).
Mais adiante, alerta, no entanto que: “Em geral, as situações descritas nos contos
não escamoteiam uma situação de luta, de conflito interior (o espaço mental das
personagens incluindo suas reações psicológicas) e exterior (uma situação de dominação
que vai ao questionamento social)” (SZKLO, 2008, p. 394).
Depois de alegar, mais uma vez, uma aproximação com Clarice Lispector, tendo
em vista o seu Laços de família, 1960, concluindo essa parte e comentando o livro
Diálogo, a utilização do termo “psicanalítico” pode nos conduzir, ainda mais, para a
leitura de Szklo determinista em sua análise:

A percepção do caráter ritualístico das relações entre indivíduos se converte


em surpreendente processo, ou motivo de encontro psicanalítico, onde
desvendam-se as zonas de bloqueio e repressão. São as relações em que
66

predominam amor e ódio, culpa e remorso, arrogância e piedade, sem


nenhuma preocupação com a harmonia (SZKLO, 2008, p. 397).

A lembrança de Clarice expande a generalização de uma ideia de que a produção


desses escritores é motivada única e exclusivamente pelos traumas proporcionados pela
movimentação nazista.
Em sua terceira parte trata de duas categorias, imaginário e realidade. Aqui,
convoca Kafka para definir Rawet: “As estórias de Rawet trazem o tema do labirinto,
tão familiar a Kafka, aos seus heróis (estrangeiros) que procuram seu ponto de inserção
na vida” (SZKLO, 2008, p. 399). A novidade é que, aqui, acrescenta informações sobre
Abama e Os sete sonhos. A lembrança de Kafka segue nos padrões da de Clarice,
confirmando o que dissemos há pouco.
O texto intensifica a confusão na medida em que a autora afirma que “[...]
poderíamos fazer uma análise dos contos de Rawet paralela a esta que estamos
desenvolvendo, onde entrariam a discussão em torno do bem e do mal, do pecado e da
pureza, do aspecto moral e a sua provável vinculação com o ‘ser religioso’ do autor”
(SZKLO, 2008, p. 399).
Mais adiante, a estudiosa pede licença para estabelecer um parêntese, explicando
este ponto de vista:

O afastamento de Rawet da religião judaica desde 1977, o seu isolamento e a


sua renuncia aos valores da tradição, dentro daquele seu espírito contraditório
e polêmico, daquela sua riqueza de pensamento e liberdade espiritual (aflitiva
e indagadora), poderiam ser interpretados não simplesmente como um ato de
rebeldia – uma negação da luta, mas como a busca de si; um ato de
transfiguração, através dessa nudez dramática, desse despojamento de tudo
que leva à plenitude, e constitui, noutras palavras, o itinerário espiritual de
Rawet (SZKLO, 2008, p. 400).

Na passagem que se segue, a pesquisadora explica seu método biografizante:

Tudo se passa, mesmo na história de vida de Samuel Rawet, como se até no


final, com sua própria morte – solitária como foi sua própria vida –
permanecesse aquela coerência brutal que ele consegue manter em suas
estórias, sem uma preocupação em ser coerente, lógico mas antes de tudo
espontâneo e autentico. E a isto ele chega por caminhos tortuosos sem
dúvida, atravessando o lado amargo, sombrio, violento sem condescendência
das relações humanas, para conhecer o seu outro lado – o da riqueza, o do
mistério, na sua infinitude (SZKLO, 2008, p. 400).

O que se verifica é que, da forma que está posta, a análise da obra de Rawet,
motivação anunciada no início do escrito, se reveste da insígnia de psicanalista para
67

reduzir a própria Psicanálise e os seus vários procedimentos empregados na leitura do


texto literário21.
Em seguida, postula uma receita para a boa leitura da obra de Rawet:

[...] a melhor maneira de ler Rawet não é racionalmente, não é intelectualizar.


Devemos entrar na obra quase telepaticamente, penetrar na sua essência
através da sua linguagem, dos movimentos, das pausas, dos gestos que são
sinais e evidências das motivações das personagens. Requer de nós uma
empatia natural, aquilo que Goethe chamou de “afinidades eletivas”
(SZKLO, 2008, p. 400).

A penetração irracional utilizaria, por outro lado, apenas elementos concretos


utilizados na construção das narrativas de Rawet. Adiante, justifica a receita: “As
fronteiras entre o real e o imaginário (o presente da fabulação nas suas associações com
o passado) são aqui bem tênues. As personagens são como chamas que, do início ao
fim, exprimem sentimentos do autor” (SZKLO, 2008, p. 400).
O que se segue é a reprodução de passagens das novelas Abama e Viagens de
Ahasverus, justificando, todas elas, aspectos da vida do autor. Vale notar que, em
nenhum momento, a autora, ao estabelecer sua leitura, por um lado, sedutora, mas, por
outro alienante, se refere em seu texto a uma instância narrativa que, agora sim,
naturalmente, comporia uma narração: o narrador, por exemplo.
Para concluir, em prol de seu entendimento, desafia, epistemologicamente, as
teorias da narrativa ao afirmar que: “[...] o sofrimento de Rawet Ahasverus o redime. A
perda e a dor não são fatos a lamentar, ‘mas o horizonte que justifica o aqui e o agora’
[...]: a fluidez do presente e o caráter transitório da morte, na sua permanente tensão
com a vida” (SZKLO, 2008, p. 405) 22.
Depois da atenção exacerbada ao primeiro texto, provocada, em parte, pelo tom
sedutor que o mesmo apresenta, o segundo estudo a que nos referimos, publicado sem
autoria explícita em O Estado de São Paulo, estrutura-se como nota necrológica
propriamente dita. Na abertura do escrito, a informação de que Samuel Rawet:

[...] viveu solitário, como a absoluta maioria dos personagens de seus contos.
E foi por esse motivo que apenas no final de semana passada se soube de sua
morte – o corpo de Samuel Rawet já se encontrava em estado de
decomposição há alguns dias, numa casa na cidade-satélite de Sobradinho,

21
A esse respeito, cf. Passos (2001, p. 67-91), especialmente a parte conclusiva do ensaio intitulada
“Intersecção entre o conto e outros conhecimentos”.
22
O trecho destacado por Szklo foi retirado de Viagens de Ahasverus. Cf. Rawet (2004, p. 473), onde se
lê a mesma passagem com os itálicos do autor: “mas o horizonte que justifica o aqui e o agora”.
68

próxima à Brasília que ele ajudou a planejar. Tinha 55 anos e segundo os


legistas foi vítima de um aneurisma cerebral (O ESTADO DE..., 2008b, p.
407).

Tratando a figura de Rawet como personagem que optou por viver na solidão, o
texto se concentra em relembrar sumariamente alguns dados de sua obra, no entanto,
foca mesmo no aspecto solitário da figura rememorada, a exemplo de mais essa
passagem: “Para quem dizia, também, que sua fonte de inspiração era Gorki,
contraditoriamente a este, a solidão ficava cada vez mais marcada. Sua casa em
Sobradinho era um verdadeiro claustro. E seus personagens habitantes desse claustro”
(O ESTADO DE..., 2008b, p. 409).
Publicado alguns dias depois, o texto de Menezes (2008) é, curiosamente,
parecido com o anônimo, veiculado no Estado de São Paulo. Os aspectos nos quais se
assemelham são muitos, a exemplo da escolha da mesma passagem da entrevista de
Rawet concedida a Danilo Gomes (2008a). Evocando a notícia da morte, proferida por
Renard Perez, Menezes separa as informações sobre dados biográficos e pinceladas
sobre a obra de Rawet.
Nesse segundo aspecto, evoca a aproximação vida/obra como processos de causa
e efeito, a exemplo do que se segue: “[...] na sua vida real, também, o escritor se sentiu,
constantemente, num mundo de grande solidão, o que o levava a explorações
angustiadas” (MENEZES, 2008, p. 413). Para concluir, utiliza-se de uma afirmação de
Caio Fernando Abreu em que este define Rawet, em conjunto com Clarice Lispector,
como principal renovador do nosso conto nas décadas de 1950 e 1960.
Na verificação do volume de cartas de Caio Fernando Abreu (2002), não foi
possível encontrar tal passagem a respeito dos dois escritores. No conjunto de três
correspondências em que manteve contato com a escritora Hilda Hilst, no ano de 1969,
encontramos duas menções ao nome de Rawet. Na primeira, o emissor cobra de sua
interlocutora suas impressões sobre alguns livros emprestados. Das obras, apenas a
coletânea Sete Sonhos, de Rawet, é citada:

Nesse Os sete sonhos, ele está bem mais fraco que nos livros anteriores e
com a temática um pouco fixada no problema homossexual. Mas mesmo
assim, é bom. Maura Lopes Cançado tem o mesmo problema de temática
fixa: nela, é a loucura. Deixando de lado isso, ambos têm um nível de
linguagem excelente e são das melhores coisas no conto brasileiro (basta
você lembrar dos premiados do Paraná) (ABREU, 2002, p. [361]).
69

Esta carta é datada de 13 de abril de 1969. É desse ano a publicação de O


terreno de uma polegada quadrada. Sobre o livro citado e sobre os premiados do
Paraná, Abreu se refere ao fato de que o conto “Os sete sonhos” havia sido premiado no
II Concurso de Contos da Fundepar – Fundação Educacional do Paraná, em Curitiba, no
ano de 1968.
A referência a Cançado, autora de Hospício é Deus, 1965, meio romance, meio
autobiografia, retoma, provavelmente, um dos contos da coletânea O sofredor do ver,
lançado em 1968 (SCARAMELLA, 2010). Em tempo, assim como Rawet, este nome
figura como um dos pontos delicados para crítica literária brasileira, carecendo de mais
leitura e estudos, como afirma Oliveira (2002, p. 8), em epígrafe que abre esse capítulo.
Vinte e seis dias após essa primeira mensagem, Abreu escreve uma segunda
carta. Diante de uma resposta de Hilst, a aprovação do comentário a que não temos
acesso:

Tens razão quando falas na importância das coisas terem sangue: Fuentes não
tem, Rawet é elaborado demais, a Cançado ainda não se recuperou da
temporada no hospício e a Barroso ainda insiste nas tias, nos solares e coisas
quetais. Mas é o melhor que temos, não é trágico? (ABREU, 2002, p. [369],
grifo nosso).

O estilo ácido de Abreu fica evidente em todo o volume. Nesse caso, além dos já
citados Rawet e Cançado, ele se refere a Carlos Fuentes, escritor nascido no Panamá e
de nacionalidade mexicana, e ao seu livro Aura, e a Maria Alice Barroso, sem
mencionar uma obra específica, mas que, naquela altura, havia lançado os romances Os
posseiros, 1955; História de um casamento, 1960; Um simples afeto recíproco, 1962;
Um nome para matar, 1967; Quem matou Pacífico?, 1969; e a novela Um dia vamos rir
disso tudo, 1976. A análise que Abreu estabelece da obra de Rawet é construída na
ideia dúbia de que a qualidade atrapalha na divulgação e na fruição da literatura
rawetiana.

2.3.1 O retorno de Samuel Rawet

Antes de concluir o capítulo, o período demarcado por Santos (2008a) que


compreende os anos de 1984 até 2008 apresenta, além de intelectuais, a crescente
participação de docentes universitários na investigação de ângulos inovadores na obra
70

de Rawet. Nota-se, em decorrência da leitura desses trabalhos, igual ressurgimento de


Rawet junto ao público acadêmico.
É nesse período que surge a publicação dos Contos e novelas reunidos, com
edição e prefácio de André Seffrin. Na ocasião, o evento foi celebrado por Chiarelli:
“Escritor pouco conhecido da maioria do público leitor, Rawet nunca deixou de ter
admiradores empenhados na busca de exemplares em sebos, bibliotecas ou antologias
dispostas a recuperar algum conto do autor” (CHIARELLI, 2008a, p. 555).
Além da celebração, a lembrança de que, daqui para frente, a afirmativa de que a
omissão ao nome de Rawet, dificilmente, ocorrerá em nossas histórias literárias. Para a
estudiosa, o ressurgimento do interesse pela figura do escritor pode ser associado ao
momento de receptividade dos estudos da alteridade. Outra possibilidade seria o
interesse na produção e leitura de materiais de cunho autobiográfico. Rawet, no entanto,
posto que explora de forma singular as experiências da imigração, deu a esta um
tratamento diferenciado em sua obra (CHIARELLI, 2008a, 557).
A estudiosa conclui reforçando a necessidade do contato do leitor
contemporâneo com a obra de Rawet. O ostracismo, afirma, não pode ser a principal
marca da obra rawetiana (CHIARELLI, 2008a, 560).
A exemplo de Chiarelli (2008a), a incompletude de uma história moderna de
nossa literatura que omitir o nome de Samuel Rawet é alegada por Santiago (2008).
Avulta de sua escrita a definição hiperbolizada de que seria Rawet um mártir em muitos
aspectos:

[...] na sua apaixonada arte de tentar compreender o elemento humano sob o


signo da solidão. Foi mártir na própria forma com que viveu. Foi duplamente
mártir na difícil tarefa de contornar a realidade do mundo, para, finalmente,
criar uma obra ficcional arrancada diretamente da realidade esmagadora do
mundo frio e indiferente (SANTIAGO, 2008, p. 443).

O ensaio da professora Maria Consuelo Cunha Campos (2008) apresenta uma


revisão do significado do conto e uma análise intra e intertextual de textos de Clarice
Lispector, Jorge Luiz Borges e Samuel Rawet. Em um primeiro momento, o estudo é
dedicado à conceituação do conto. Depois, realiza a leitura dos contos “Relatório da
coisa”, de Lispector, e “O Zahir”, de Borges. Em seguida, interpreta “A quinta história”,
ainda da escritora, e “Fé de Ofício”, de Rawet, utilizado para a complementação da
ideia defendida com a leitura dos dois primeiros contos: a ocorrência de “[...] vários
sentidos em vários planos narrativos” (CAMPOS, 2008, p. 464).
71

Ainda encontramos o trabalho de Xavier (2008), filiando a escrita de numa


corrente pós-modernista. Em busca do conto interrogativo de Rawet, a estudiosa
apresenta alguns dos principais textos do contista filiando-o aos seguidores de Poe
(XAVIER, 2008, p. 482).
Desse período, é importante destacar a sinalização que Santos realiza sobre os
trabalhos de Nelson H. Vieira (2008), Berta Waldman (2003a; 2003b) e Kirschbaum
(2008), estudos que “tratam da dupla inscrição do escritor brasileiro de descendência
judaica, ou seja, o pertencimento étnico à comunidade judaica e à cultura brasileira”
(SANTOS, 2008a, p. 31)23.
Parte do que afirmamos neste trabalho sobre a filiação de Rawet com os
escritores que se agruparam em torno da figura de Dinah Silveira de Queiroz será
tratado por Dantas (2008). Dantas elenca diversas curiosidades da vida de Rawet, como
a satisfação do amigo ao urinar no túmulo de seus desafetos; a articulação dos novos
contistas no jornal matutino A manhã, cuja página seria nomeada “Jornal dos Novos”,
sob a liderança de Fausto Cunha; as leituras em conjunto da obra de Proust; o interesse
único de Rawet pelo teatro; e as visitas ao “Night and Day”, antigo “Dance Brasil”, casa
noturna localizada próxima da Cinelândia.
Nesse capítulo, o passeio por parte da fortuna crítica empreendida à obra de
Samuel Rawet serviu como panorama da apresentação da narrativa de Rawet contida em
jornais, revistas, orelhas, prefácios e livros específicos ou não para os estudos literários.
A vasta produção a respeito do escritor modaliza a timidez das obras historiográficas, no
sentido restrito do termo, como vimos no primeiro capítulo. A leitura desse material no
presente capítulo enceta discursos em torno da necessidade de leitura e pesquisa desse
conjunto de estudos e da obra literária em questão.
A disposição temporal desses estudos possui outra função: a apresentação
sistemática da narrativa ficcional de Samuel Rawet via estudos críticos. Nesse sentido, o
próximo capítulo verifica a recepção desse conjunto nos programas de pós-graduação
brasileiros e o processo de efetiva retomada do nome de Rawet, cuja responsabilidade,
em sua maior parte, verificamos nas realizações dessas pesquisas acadêmicas.

23
O tópico relacionado à inscrição dupla de Rawet tinha sido apontado por Paes (1999), em estudo que
será citado adiante, no terceiro capítulo.
72

3. SAMUEL RAWET NA ACADEMIA

O sujeito que sente, pensa e escreve não é um eu abstrato, posto fora ou


acima da história concreta de seus semelhantes. Ele percebe e julga as ações e
objetos através de um dado construído ao longo de anos de experiência social
(BOSI, 1998a, p. 279, grifo no original).

Para compreender melhor o objeto de estudo e como procederam outras


pesquisas a respeito da obra de nosso autor, levantou-se em quatro bancos de dados24as
dissertações e teses de doutorado que se relacionam ao descritivo “Samuel Rawet”:
dezesseis pesquisas se relacionam com o nome e/ou a obra de Rawet. Para fins
comparativos, e, especificamente, com relação ao Banco de Teses da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, o escritor mineiro Rubem
Fonseca, entre teses e dissertações, possui cento e quarenta e quatro estudos. Para não
falar em Clarice Lispector, com sua lista de trezentos e setenta e dois trabalhos.
Quanto aos estudos sobre Rawet, das nove dissertações de mestrado, cinco
foram produzidas na Universidade de Brasília – UNB e duas na Universidade de São
Paulo - USP. As outras seriam defendidas na USP e na Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, sendo duas defesas em cada uma das universidades.
Das sete teses de doutorado, defendidas entre 1989 e 2011, que relacionam
Rawet e/ou sua obra, uma foi defendida na UNB, duas na Universidade de São Paulo,
outras quatro no Rio de Janeiro: sendo duas na Pontifícia Universidade Católica – PUC-
RIO, e duas na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Segundo Bazzo (1997),
há rumores de que Rawet, em vida, tenha lecionado na UNB. Esses rumores não foram
confirmados pelo autor em sua Rapsódia a Samuel Rawet.

3.1 As dissertações

A primeira dissertação dedicada à obra de Samuel Rawet foi defendida na


Universidade de Brasília – UNB, em 1989, sob o título de Obsessões temáticas: Uma
leitura da obra de Samuel Rawet, de autoria de Maria Lúcia Ferreira Verdi. Depois

24
Os bancos de dados pesquisados foram: Banco de Teses e Dissertações da CAPES,
<http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/>, Thesaurus Brasileiro da Educação (Brased),
<http://www.inep.gov.br/pesquisa/thesaurus/> e Biblioteca Brasileira Digital de Teses e Dissertações, <
http://bdtd.ibict.br/pt/inicio.html>. Além de consultas regulares durante os dois anos de pesquisa, uma
última verificação foi realizada no dia 24 de janeiro de 2012.
73

desse trabalho, a pesquisadora não possui outros estudos acadêmicos. Durante a


investigação, não foi possível, por exemplo, obter quaisquer dados sobre a autora, já que
o arquivo de seu trabalho não consta nos bancos de dados pesquisados25.
A introdução do trabalho de Verdi (1989) é divida em três partes. Na primeira
delas, a estudiosa situa o estudo, teoricamente, no referencial que a mesma caracteriza
como contraditório: a Psicocrítica, criada por Charles Mauron, e as obras que aliam essa
corrente ao estruturalismo e à Psicanálise, cujo nome destacado é o de Jean Pierre
Richard (VERDI, 1989, p. 5). Na segunda parte da introdução, afirma que Rawet é um
autor menor, o que dificulta a sua escolha e, ao mesmo tempo, aumenta o fascínio pela
busca do tom justo para analisar tal obra (VERDI, 1989, p. 10).
Além dos supostos altos e baixos do artista como escritor, a pesquisadora cita os
seus ensaios como comprovação dos infernos, notadamente, os surtos psicóticos, com
os quais Rawet se confrontou em vida. A esse respeito, neste trecho, a estudiosa se
questiona: “Seria, então, esta obra radical, contraditória, labiríntica, excessiva e hiante
um caso ‘clínico’ ou um caso ‘literário’? Ambas as coisas [...]” (VERDI, 1989, p. 10,
grifos no original). Com esta passagem, situa a obra que irá estudar. Na terceira parte da
introdução, conclui com a recensão do referencial psicanalítico a ser estudado,
estabelecendo que, na linguagem rawetiana, recuperar-se-á, além dos temas obsessivos,
recorrentes em determinados textos literários, a realidade do psicótico, colocado como
anti-herói nas narrativas.
Em síntese, o estudo se propõe a investigar os temas recorrentes através da
observação pelas “palavras-valor”, marcas textuais, pelas associações que essas
imagens, formadas pelas palavras, sugerem, e pelos erros que, vez por outra, ocorrem
nos textos (VERDI, 1989, p. 20).
A informação de que o método escolhido é o “[...] mais apropriado à exegese da
obra rawetiana, obra que, se não for encarada com grande liberdade crítica, permanecerá
quase inacessível” (VERDI, 1989, p. 20), não pode ser analisada, apenas, como
presunçosa, pois, na época de realização da sua pesquisa, a autora estava só no estudo
acadêmico da obra em questão.
No primeiro capítulo, “O universo dos contos rawetianos”, explica o como se
deu o contato inicial com a obra de Rawet, o espanto pela novidade provocada por nome

25
O acesso à dissertação só foi possível através de uma cópia reproduzida de um exemplar da biblioteca
central da UNB. Pelo auxílio em Brasília, agradecemos a Jakeline Souza Costa.
74

desconhecido, bem como a sua expansão do interesse provocada pela leitura de Contos
do Imigrante, o que nos acometeria mais de duas décadas depois.
Nesse primeiro momento, o estudo fará uma apresentação das cinco coletâneas
de contos de Rawet (I.1 Contos do Imigrante; I.2 Diálogo; I.3 Os sete sonhos; I.4 O
terreno de uma polegada quadrada; e, I.5 Que os mortos enterrem os seus mortos). Na
parte I.4, uma subdivisão de três tópicos, não sinalizados no sumário, especifica os
temas recorrentes na obra em questão, ou seja, a 1. Criação; o 2. Exílio; e a 3. Loucura.
Em seguida, conclui a apresentação temática de O terreno de uma polegada quadrada
com um tópico que repete a numeração “3”, intitulada “Os pontos e contrapontos
temáticos da narrativa”. Essa divisão confunde a leitura e a verificação das partes do
estudo.
Seguindo, na apresentação de Que os Mortos enterrem os seus mortos, agora,
devidamente, sinalizada como o tópico I.5, a autora afirma que a coletânea possui
dezessete contos, quando, na verdade, possui dezoito. Aqui, destaca a ocorrência dos
animais como grande metáfora de Rawet na descrença no ser humano (VERDI, 1989, p.
86) 26. Para seguir na sua apresentação, a estudiosa resenha seis contos da coletânea:
“Moira”, “Que os mortos enterrem os seus mortos”, “A linha”, “Nem mesmo um anjo é
entrevisto no terror”, “As palavras” e “BRRKZNG: pronúncia – bah!”. Algumas das
informações apresentadas, no caso dos três contos que coincidem com a nossa escolha,
serão utilizadas por nós no nosso quarto capítulo.
O segundo capítulo, “A vida na obra – A ensaística”, é o momento em que a
estudiosa se atém aos ensaios de Rawet para justificar o que já disse e o que irá dizer
sobre as recorrências, as obsessões temáticas, na obra literária do artista. Através desse
conjunto de textos, a mesma construirá a sua investigação de uma personalidade
psicótica.
Dividido em três partes, o capítulo realiza, na primeira delas, “Limite e
estranheza”, um adendo de que os textos de Rawet não são, apenas, exposição de
“fantasmas” ou explosões frutos de comportamentos “esquizoides”, mas

[...] elaborações artísticas que nascem da “consciência da infelicidade”, como


nos disse Blanchot, e não de uma simples compensação da infelicidade
(como o faz literatura de mero desafogo), ou de uma patológica compensação
(os textos dos psicóticos a quem se lhes deu papel; as telas dos alienados que

26
A esse respeito, conferir a capa da primeira edição do livro em que os urubus ganham os planos de
visualização de toda a figura ilustrativa.
75

meramente expõem a nudez de sua cisão). (VERDI, 1989, p. 103, grifos no


original).

A segunda parte, “O Judeu polonês-brasileiro, ensaísta”, investiga a parte dessa


produção em que o mesmo trata dos conflitos advindos da dupla filiação cultural: a
judaica e a brasileira. Na terceira, “A falta. A hiância. A coisa”, a estudiosa conclui a
sua verificação dos ensaios de Rawet ligando-os às categorias psicanalíticas que o título
da parte anuncia.
Na sua bibliografia, a autora arrola apenas três ensaios de Rawet Alienação e
Realidade, 1970, Eu-Tu-Ele, 1972 e Angústia e Conhecimento, 1978, embora apresente,
brevemente, Consciência e Valor e Homossexualismo, sexualidade e valor, 197027 .
No último capítulo, “A trilogia”, talvez a mais importante contribuição do
estudo, a estudiosa apresenta as novelas Abama e Viagens de Ahasverus, entremeadas
pelo conto “Crônica de um vagabundo”, tratando-as como uma grande trilogia narrativa
e metáforas temáticas do ser errante. Sobre a obra de Rawet, no geral, destacamos o
alerta que a estudiosa faz para o tratamento de índices de animalidade já em Abama,
com a excessiva utilização do termo garras (VERDI, 1989, p. 133) como um processo a
ser extremado em sua última coletânea, conforme já dissemos.
Ainda neste capítulo, mais uma vez, ocorre um problema na estruturação do
trabalho: a autora não aponta em seu sumário a subdivisão que sofre a apresentação de
Viagens de Ahasverus, em sua pesquisa, disposta como a seguir: I. A personagem
Ahasverus; II. Camadas Temáticas; II. [1] Deus e o judeu errante. Deus e o ser errante;
II. 2 Autor-Narrador-Personagem: a questão do ser no tempo-espaço da narrativa; II.3
Sexualidade, Culpa e Poder em Viagens de Ahasverus; II. 4 A questão da Loucura; III. 4
Conclusão. Esta numeração segue a disposição no trabalho de Verdi (1989). Sobre este
último tópico, trata-se, provavelmente, apenas do numeral III.
Extraímos, das conclusões da autora, a afirmativa polêmica de que

[...] nenhuma dessas obras foi escrita com o propósito de “fazer literatura”, de
ter como marco diretivo a estética, daí que, mesmo em seus “belos”
momentos, elas nos ferem, nos incomodam, nos desvelam o que não

27
Vale ressaltar, nesse ensejo, a importância da publicação dos ensaios reunidos de Rawet, sob os
cuidados de Rosana Kohl Bines e José Leonardo Tonus, pela civilização brasileira. Nessa publicação,
Consciência e valor aparece como a primeira das seis partes de Alienação e Realidade. É possível, no
entanto, encontrar uma edição separada dessa coletânea, de 1969. Não sabemos ao certo, se se tratam de
duas obras distintas.
76

queremos verdadeiramente ver: a angustiante situação do homem enquanto


desconhecedor de sua causa e de seu fim (VERDI, 1989, p. 203).

Tais obsessões são, assim, fruto de “[...] uma interioridade especialmente diversa
e impressionantemente inconsciente de sua diversidade, conformam uma produção
ímpar, que não merece ser esquecida na literatura brasileira” (VERDI, 1989, p. 212). O
merecimento de atenção dessa obra se deve, para a autora, à forma que o autor apresenta
a figura do imigrante (judeu, negro, italiano) e a do psicótico em nossa literatura.
Sobre o material encontrado, um hiato de uma década separa o primeiro estudo e
a realização de Tania Fortes, “Samuel Rawet e o mito de Ahasverus”, de 199928. Nesta
data, referindo-se ao cenário acadêmico, a autora pode iniciar o seu estudo, sinalizando
o paradoxo que envolvia a obra do autor estudado: o reconhecimento pela crítica e a
indiferença dos estudos, responsáveis, segundo ela, pelo “‘esquecimento’ perante o
público de leitores” (FORTES, 1999, p. 1, grifo no original).
Nessa pesquisa, a condução dos capítulos privilegiará o desenvolvimento
temático. Portanto, a estudiosa não perderá de vista alguns dados da vida do escritor.
“Apesar de não ser a linha deste trabalho analisar a obra através da biografia do autor,
não podemos deixar de notar que o protagonista de ‘Crônica de um vagabundo’ e
também o próprio personagem Ahasverus, têm semelhanças com Rawet” (FORTES,
1999, p. 6).
Por outro lado, nota-se que, ao longo de sua exposição, Fortes exemplifica tais
semelhanças com vasta bibliografia sobre e de Samuel Rawet. Desse modo, a mesma
foge da postura determinista que a passagem a cima parece denunciar.
No momento de explicitar os seus objetivos, a estratégia utilizada é clara e
direta. Na delimitação do recorte, a estudiosa explica que utilizará “Viagens de
Ahasverus como objeto de análise central, por ser uma referência na obra do escritor,
uma vez que esta capta um dos leitmotiv utilizados por Rawet em seus demais livros: a
do homem em busca constante do seu destino” (FORTES, 1999, p. 11). Esse resultado
será obtido a partir da observação das intertextualidades presentes na obra de Rawet.
Em sua leitura, há a percepção de que Rawet irá reger a narrativa com técnica
pós-moderna, atribuindo à narrativa o caráter de metaficção historiográfica, composta
por conceitos como mundo figurado, extratextualidade e intertextualidade, ambos

28
O nosso acesso a esse trabalho se deve a uma cópia reproduzida por Lidiane Kasiorowski Borges e
Clayton Garcia Silva, a quem aproveitamos a oportunidade para agradecer. A reprodução é autorizada
pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
77

desenvolvidos por Linda Hutcheon (1991). O estudo será divido em dois capítulos, “O
mito do judeu errante” e “Viagens de Ahasverus”, além da “Apresentação”,
“Introdução” e “Considerações Finais”.
Mais adiante, a pesquisadora se empenha na definição teórica e metodológica de
sua pesquisa, tendo como base a classificação da obra como um romance pós-
modernista, onde predomina a metaficção historiográfica. Pensando nos conceitos de
Hutcheon (1991) e na obra a ser analisada, Fortes afirma que:

[...] os romances que são intensamente auto-reflexivos e paradoxalmente se


aproximam dos acontecimentos e personagens históricos estão na categoria
de metaficção historiográfica. Isto porque a narrativa passa a ser a base para
repensar as formas e os conteúdos do passado, ao mesmo tempo que
incorpora sua autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como
criações humanas. Em outras palavras, a metaficção historiográfica é essa
reelaboração crítica de fatos históricos apresentados no texto ficcional
(FORTES, 1999, p. 14).

A esse respeito, nota-se que a autora não realiza uma explicitação sobre o
preterimento da categoria novela, por exemplo. De tal conceituação romanesca, uma
dúvida permanece: tal proposição apresenta uma noção supervalorizada de romance, da
qual seriam o conto e a novela duas formas menores?
Por outro lado, concordamos com a ideia de que, na análise dos textos de Rawet,
é verificável uma “[...] semelhança na caracterização de suas personagens, na
configuração espacial, e na temática” (FORTES, 1999, p. 17). Esta afirmativa, de fato,
pode ser comprovada, por exemplo, na leitura de “Crônica de um vagabundo” e no livro
que Fortes analisa. A recorrência não para aí, em nosso estudo, por exemplo, o
aparecimento das três personagens do conto “Trio”, que será analisado em nosso quarto
capítulo, ocorre, primeiramente, em Viagens de Ahasverus, o que pretendemos
demonstrar como utilização consciente da própria literatura como uma faceta da
construção do projeto estético de Rawet. Esse reaproveitamento dos três tipos que
aparecem em Viagens de Ahasverus é lembrado em outros trabalhos sobre a obra do
contista29.
O outro pressuposto básico para a realização desse trabalho será o de que:

[...] ao recompor a trajetória do seu personagem como Ahasverus (o judeus


que amaldiçoou Jesus no caminho da crucificação, e que, por isto, foi

29
Cf. Verdi (1989, p. 179) e Fortes (1999, p. 13 e p. 123-127).
78

condenado a ser errante), Rawet enveredou por um capítulo delicado da


história do povo judeu, onde o estigma de os judeus terem sidos (sic)
coniventes com a crucificação de Jesus, gerou anti-semitismo e perseguições
ao longo dos séculos (FORTES, 1999, p. 17).

Para fundamentar esse pensamento, realiza o mais completo levantamento sobre


o mito do judeu errante em um estudo acadêmico sobre a obra de Samuel Rawet. No
primeiro capítulo, “O mito do judeu errante”, ao mesmo tempo em que expõe as
diversas versões da passagem mitológica, reforça que sua origem mais conhecida é
aquela que conta a conduta do sapateiro amaldiçoado por Jesus30.
A vantagem da leitura do estudo de Fortes, fruto desse levantamento completo, é
a contemplação de informações sólidas, o que amplia as possibilidades de leitura da
obra. Em certo ponto, por exemplo, encontramos a informação de que “[...] na língua
inglesa, o termo judeu errante aparece na botânica e é nome de plantas trepadeiras que
sobrevivem em situações difíceis” (FORTES, 1999, p 27), ou a que nos informa que em
Espumas flutuantes, de Castro Alves, nos poemas “Ahasverus e o gênio” e “Mocidade e
Morte”, o poeta se utiliza de uma das versões do mito para compor sua poesia.
Da exposição e análise das versões do mito do judeu errante, a autora conclui
que o mesmo pode ser entendido como parte de variações de um arquétipo universal.
Ou seja, a depender do contexto cultural e histórico, “[...] o errante que tem vida eterna.
[mesmo no século 19], ele é visto como combatente do materialismo, representante da
idéia da evolução e também como um homem perdido, que não tem esperança”
(FORTES, 1999, p. 32).
Ainda sobre essa parte da dissertação de Fortes (1999), a sua leitura permite a
percepção de que algumas de nossas práticas podem ser entendidas com o estudo do
mito. O resultado é a possibilidade de estabelecer sentidos histórico-sociais a partir
literatura de Rawet:

Na Alemanha, alguns costumes atuais ainda conservam as estruturas do


passado, mas com algumas modificações, de acordo com as novas crenças.
Por exemplo, o costume de celebração da vitória dos deuses germânicos
sobre os titãs, as antigas forças da natureza, com a queima de uma boneca

30
É possível encontrar a recensão do mito em trabalhos de mais fácil acesso. No verbete de Unterman
(1992, p. 140), num primeiro momento, há a definição a partir dessa versão mais popular. Em seguida, o
autor realiza uma relação deste com a história bíblica de Caim, que se torna errante após o pecado de
assassinar o próprio irmão. Menos sucinto que o de Unterman é o verbete disposto em Brunel (p. 1997, p.
665-672). Aos interessados no assunto, um resumo objetivo das obras específicas e, em sua maioria,
escritas em inglês, é apresentado por Fortes (1999), o que demonstra uma investigação exaustiva por parte
da mesma.
79

gigante, deu origem à cerimônia de “malhação” de Judas, quando um boneco


simbolizando Judas é linchado e incinerado (FORTES, 1999, p. 32).

Além do costume revestido de uma aura lúdica e ingênua, do mito surgem,


também, motivações antissemitas, pois “[...] ele é o arquétipo coletivo do errante eterno,
e representa o cristianismo a figura que não era capaz de aceitar Jesus” (FORTES, 1999,
p. 32). Durante muito tempo, os franciscanos chegaram a pedir ao papa que negasse a
história de Ahasverus, pois, para os primeiros, o mito revelaria uma face maldosa e
vingativa de Jesus Cristo.
Essa configuração do pensamento justifica, ainda hoje, a manutenção de práticas
de crimes de ódio, originárias de motivações medievais. De acordo com tais ideias, o
significado da existência dos judeus é muito claro:

Eles serão parte da escatologia cristã coletiva. Eles serão aceitos no reino do
céu, com a volta de Jesus. Daí surge a idéia de que é permito humilhar o
judeu e persegui-lo, mas não matá-lo, porque ele é parte do mundo cristão,
apesar de ser estranho a ele e ser errante dentro dele (FORTES, 1999, p. 38).

A leitura da obra de Rawet é contemplada no segundo capítulo, “Viagens de


Ahasverus”. A autora estabelece uma leitura minuciosa do objeto literário, sempre
fazendo uso de referências historiográficas no intuito de ampliar o entendimento do
texto. Na medida em que a análise da obra avança, Fortes explicita seus objetivos
interpretativos:

É interessante notar que as idéias configuradas no discurso passam de temas


cabalísticos para o sexual, ou mesmo histórico para sexual, continuamente,
demonstrando que, ao percorrer vários ramos do conhecimento – como o
religioso, filosófico, sociológico, etc – o texto vai sempre chegar ao motivo
da sexualidade, que é, na verdade, a verdadeira busca do protagonista
(FORTES, 1999, p. 82).

A seguir, realiza a exemplificação da afirmativa de que os tópicos “da


sexualidade, da fertilidade, da dualidade, da androginia, da imortalidade e da divindade
passam, assim, a configurar a metáfora estrutural de sua obra” (FORTES, 1999, p. 82).
A conclusão sobre a inclusão pelo narrador de uma personagem de nome Samuel
Rawet, passa longe de uma visão biografizante. No encerramento do livro, é Rawet que
se transforma em Ahasverus. Por isso, “chegamos à constatação de que, muito além de
uma mera criação, Ahasverus passa a ser mais do que o duplo de Rawet, personificando
o seu próprio ‘eu’, em suas muitíssimas transmutações” (FORTES, 1999, p. 131-132,).
80

Ancorada no levantamento histórico do mito e na explicitação na obra de Rawet das


referências intertextuais que compõem a obra, a dissertação cumpre a proposta inicial de
construir uma leitura e, sempre que possível, justificá-la durante seu desenvolvimento.
Um ano mais tarde, ainda na USP, Kirschbaum conclui Samuel Rawet: Profeta
da Alteridade, pesquisa focada na análise da primeira coletânea de Rawet, Contos do
Imigrante. Segundo o estudioso, sua realização buscou-se estabelecer o lugar da
produção literária de Rawet “[...] sob duas óticas concomitantes e convergentes: a da
literatura judaica produzida no Brasil e a da literatura brasileira no gênero que Rawet
privilegiou, o conto” (KIRSCHBAUM, 2000, p. 4, grifos no original).
Assim como Fortes (1999), Kirschbaum (2000) tem como objetivo alertar “[...]
para a indiferença dos analistas em meio a tantos estudos de aprovação”
(KIRSCHBAUM, 2000, p. 5). A dissertação é dividida em cinco capítulos: “Fortuna
Crítica de Samuel Rawet”; “Uma Autobiografia”; “Narratividade, Linguagem,
Exclusão”; “A Responsabilidade Social” e “Bibliografia Geral”.
O pesquisador realiza uma apresentação completa da obra. No terceiro capítulo,
analisa cinco contos em que há o tratamento explícito de personagens de origens
judaicas. No quarto, os outros cinco contos restantes, analisa os textos “‘não-judaicos”
em que verifica “[...] o surgimento da consciência social no jovem Samuel Rawet, na
medida em que se sente, cada vez, mais um pensador brasileiro” (KIRSCHBAUM,
2000, p. 5, grifos no original).
Na leitura dos primeiro contos, o estudioso demonstra o papel da literatura de
Rawet apresenta em seu estudo, o que significa afirmar que as ideias de que a mesma
pode ser utilizada, puramente, como crítica à comunidade judaica, e que seria fruto de
uma percepção doentia, não serão levadas a cabo: “O que me interessa é o fenômeno
literário, ou seja, observar como a imagem que Rawet tinha daquela comunidade se
reflete em sua obra ficcional de juventude (os Contos do Imigrante foram escritos entre
1951 e 1954, entre os 22 e 25 anos do autor)” (KIRSCHBAUM, 2000, p. 38-39).
O tom modalizador de Kirschbaum, verificável nos textos literários trabalhos,
destoa de outros rawetianos: a dissertação de Verdi (1989) e outras que serão citadas
adiante (FERRAZ (2004); DUARTE (2006) e COELHO (2008), por exemplo). Nesses
últimos, a exaltação teórico-analítica supera a análise e o estudo do texto literário.
Sobre as personagens da coletânea, frutos do trabalho do contista, alerta que não
estamos tratando de meros estereótipos. Na obra,
81

[...] o leitor não é levado a pensar que todo o sobrevivente do nazismo que
veio para o Brasil ao encontro de familiares foi recebido com indiferença,
que todos os ortodoxos foram escarnecidos por seu arcaísmo, que todos os
refugiados que não tinham parentes ou amigos aqui foram despachados para
um subúrbio, um cortiço qualquer, forçados a prover seu próprio sustento
num ambiente inóspito. Absolutamente, Rawet não trata de generalizar,
reduzir (KIRSCHBAUM, 2000, p. 67).

Além dessa preocupação em não reduzir tematicamente suas personagens, outro


ponto a ser destacado em tal estudo é a leitura sensível do intelectual Samuel Rawet. O
pesquisador segue uma linhagem de estudiosos que não justificam a escrita, o projeto
estético e intelectual de Rawet baseados, apenas, em passagens biográficas e/ou
psiquiátricas. Exemplo desta postura é a sua lembrança de que, sobre o artista,

[...] talvez a atividade intelectual desordenada que desenvolve a partir dos


quinze anos, que passa por algumas tentativas incipientes de escrever teatro,
tenha representado um esforço, com os poucos recursos de que dispunha,
para lidar com o desmoronamento de seu mundo religioso, para voltar a ter
uma visão coerente do mundo, não dicotomizada (KIRSCHBAUM, 2000, p.
73).

Perto de concluir, dos motivos que justificam o tratamento positivo de maior


parte da crítica dispensada à obra de Rawet, Kirschbaum afirma que não é somente o
destaque temático dessa produção que justifica uma pesquisa, mas, “[...] exatamente
esse hibridismo de técnicas narrativas e de temáticas que caracterizam [...] a obra de
Samuel Rawet como inovadora [...]” (KIRSCHBAUM, 2000, p. 92).
Para sustentar o adjetivo que carrega o aspecto de pioneirismo na obra de Rawet,
relembra os argumentos de Assis Brasil e a sua formulação da geração de 1956, bem
como a conhecida afirmação de Guinsburg (2008) de que o livro atesta o surgimento de
jure do assunto imigração judaica na literatura brasileira. Estudos desses dois
pensadores foram abordados em nosso segundo capítulo.
O último capítulo, dedicado à organização de referências bibliográficas sobre a
obra de Rawet, representa a primeira grande sistematização da fortuna crítica de Rawet
em um estudo de tal porte. Embora o autor o classifique como incompleto, trata-se do
maior esforço de sinalização da recepção da obra rawetiana, até então, ponto de partida
para muitas pesquisas sobre o assunto, inclusive a nossa. No fim, a proposta de
Kirschbaum, cumprida com a realização de todas as promessas anunciadas em seus
objetivos, se mostra a mais acabada entre os estudos de Rawet, de modo específico, e na
realização de uma pesquisa acadêmica, de modo geral.
82

Dois anos mais tarde, o estudo de Fernandes (2002), Narrativa e experiência na


obra de Samuel Rawet, traria, novamente, o nome do artista para a Universidade de
Brasília31. Com o objetivo de analisar parte da obra ficcional do escritor sob o enfoque
da crise da experiência, conceito benjaminiano, e a sua representação literária na
modernidade, o estudioso parte do pressuposto de que, na obra escolhida, a
impossibilidade de narrar seria a situação extrema do problema a ser investigado.
Na introdução, dividida em mais duas partes, “Vida e obra de Samuel Rawet” e
“A crise da experiência na modernidade: Samuel Rawet e Walter Benjamin”, o estudo
apresenta a figura de Rawet estabelecendo um breve balanço historiográfico sobre o
tratamento que o mesmo recebe no campo da literatura brasileira. O cenário é, ainda, o
da dificuldade de se encontrar os livros do escritor, com a exceção de Contos do
Imigrante, reeditado em 1972, pela José Olympio, e em [1990], pela Tecnoprint. É
importante destacar que, além da coletânea de estreia, outros livros de Rawet tiveram
uma segunda edição, a saber: Diálogo, pela Vertente, em 1976 e Os sete sonhos, em
1971, pelo Arquivo/INL, o que não alterou a dificuldade de encontrar tais obras.
O estudo destaca a intransigência de Rawet quanto ao processo criativo literário,
o que o levou a desdenhar dos padrões de consumo e das exigências estéticas das
literaturas consagradas deda então. Para Fernandes, “seu compromisso radical com
alguns princípios éticos individuais e com uma continua pesquisa estética levou-a
transformar a ficção em uma espécie de laboratório, em que não teve receio de
experimentar, questionar e até ironizar a sua escrita” (FERNANDES, 2002, p. 9).
Finalizada a primeira parte da introdução, em que realiza o resumo biográfico da
vida de Rawet, na segunda, o estudioso estabelece a discussão em que relaciona a obra
de Rawet à teoria benjaminiana. Para o pesquisador, o lugar ocupado por Rawet, na
literatura brasileira é o de uma posição marginal, sem que, no entanto, as questões de
sua obra possam ser consideradas marginais nas discussões acadêmicas, mesmo no
início do século 21. Ou seja:

Envolvendo problemas complexos e múltiplas ramificações, em seus


aspectos mais extremos e inquietantes, ela [a obra de Rawet] leva a literatura
em particular a colocar em xeque a sua própria existência. Diante de eventos
catastróficos do século XX, sem precedentes na história, e de um modo de
vida urbano que tornou comuns as experiências traumáticas, o silêncio surgiu
como um limite a ser pensado de modo sério e consequente por uma ética da
escrita (FERNANDES, 2002, p. 17).

31
Como no caso de Verdi (1989), o acesso a esta dissertação só foi possível através de uma cópia
reproduzida de um exemplar da biblioteca central da Universidade de Brasília - UNB.
83

A utilização de Benjamim, segundo Fernandes, se deve ao fato de que o primeiro


foi um dos pensadores modernos que melhor vislumbrou que tais características das
experiências traumáticas acabariam por influenciar nos modos de representação
artística, literária e historiográfica. O pesquisador explica, por outro lado, que não se
trata de transpor uma teorização para o estudo do texto literário. Pelo contrário, o seu
objetivo é “[...] promover um diálogo, partindo do pressuposto de que a obra de Samuel
Rawet elaborou de um modo particular, dentro dos seus próprios limites, o problema da
crise da experiência que Benjamim teve em seus ensaios” (FERNANDES, 2002, p. 21).
Outro aspecto que não perderá de vista é o fato de que Rawet parte sempre de
uma realidade de um país capitalista periférico e que a sua obra será marcada pela
coexistência entre os modos de vida das sociedades tradicionais versus sociedades
capitalistas (FERNANDES, 2002, p. 21).
Em seu primeiro capítulo, “Fazer a América e depois: os narradores mudos”,
trabalha com seis contos dos dois primeiros livros de Rawet (“O profeta”, “Réquiem
para um solitário” e “Salmo 123”, de Contos do Imigrante, e “Diálogo”, “Natal sem
Cristo” e “Parábola do filho e da fábula”, da coletânea Diálogo). A proposta do
estudioso é situar os narradores de Rawet no âmbito do narrador moderno, tendo em
vista as conceituações de Benjamim no ensaio “O narrador”. Em parte introdutória a
este capítulo, realiza a recensão do texto de Benjamin, explicando os processos
históricos levados em conta para a sua construção. Escrito em 1936, alguns anos depois
da primeira Guerra Mundial, o trabalho atestava a condição de pobreza dos soldados
quanto às suas experiências comunicáveis depois dos eventos bélicos.
Na parte “A sabedoria arruinada dos profetas”, o estudo enfatiza que os modelos
das narrativas tradicionais já não mantém vínculo social com as experiências
fragmentárias e destituídas de sentido no mundo contemporâneo (FERNANDES, 2002,
p. 22). Na realização desse tópico, todos os contos são protagonizados por personagens
judias. A segunda parte do primeiro capítulo, “A tradição esfacelada: assumindo a
pobreza da experiência”, será dedicada aos contos de Diálogo na exposição dessa
narrativa como sintoma da crise da narração.
O segundo capítulo da dissertação, “A trilogia dos andarilhos solitários”, a
leitura comparada de “Crônica de um vagabundo”, Abama e Viagens de Ahasverus, uma
sugestão de Verdi (1989), se dá com o objetivo de
84

[...] mostrar como nessas histórias o problema da comunicabilidade e da


representação narrativa das experiências traumáticas e degradantes dos
indivíduos nos grandes centros urbanos recebe um enfoque mais radical, por
meio do delineamento de um novo tipo de anti-heroi da ficção de Samuel
Rawet: o andarilho solitário (FERNANDES, 2002, p. 22).

Nessa parte, utiliza-se dos ensaios de Benjamin sobre Baudelaire, além de sua
produção da década de 1930. A dissertação é concluída com o reforço da ideia de que a
obra de Rawet não está isenta da degradação generalizada da experiência que atinge a
sociedade moderna.
O estudo de Stella Montalvão Ferraz (2004), Representando o preconceito: eu e
o outro em contos brasileiros contemporâneos, segue a linha dos estudos da
representação social de grupos marginalizados, de vitimizados pelos estigmas etc. Para
a estudiosa, “[...] essas vertentes surgem da necessidade, que os grupos marginalizados
começam a impor à sociedade brasileira, de dar voz a esses que, juntos, formam a
grande maioria do povo brasileiro” (FERRAZ, 2004, p. 12). O estudo foi realizado na
UNB.
Em meio a esse contexto, a estudiosa esclarece que a proposta de seu trabalho
reside em analisar a representação dos preconceitos que atingem as minorias sociais em
obras de autores contemporâneos:

Assim, a base dessa pesquisa é a análise da forma como os autores constroem


o foco narrativo e as personagens, com ênfase no conflito que se configura
entre eles, procurando fazer emergir os diversos tipos de mecanismos de
construção do preconceito e estigmatização e as relações de poder
justificadas pela construção de representações que os validam na sociedade
(FERRAZ, 2004, p. 12).

A teorização para sustentar tal proposta será elaborada a partir de Pierre


Bourdieu, em Distinction – a social critique of the judgment of the taste, de 1984, Sobre
a televisão, de 1997, A economia das trocas lingüísticas, 1998, A dominação masculina,
1999, O campo econômico – a dimensão simbólica da dominação, 2000, e O poder
simbólico, 2001; Norbert Elias, em Os estabelecidos e os outsiders, 2000; e Erving
Goffman, em A representação do eu na vida cotidiana, 1985, e Estigma – notas sobre a
manipulação da identidade deteriorada, 1988. Esse arcabouço é responsável pela
condução teórica de toda a dissertação.
Explicando os critérios de seleção de seu corpus, a autora afirma que centrou nos
contistas que fixaram suas raízes na literatura brasileira a partir de 1960, a sua seleção
inclui textos produzidos em meados de 1950 e final da década de 1970. Assim, foram
85

escolhidos os seguintes contos: “O profeta”, de Samuel Rawet, 1956; “História natural”,


de Autran Dourado, entre 1956-1957; “O espartilho”, de Lygia Fagundes Telles, 1965;
“Sem rumo”, de Salim Miguel, 1973; e “Eu, um homem correto”, Murilo Carvalho,
1977.
Sobre o conto de Rawet, em certo ponto, estabelece a conclusão de que “é
pertinente, portanto, atribuir ao protagonista desse conto a condição de desacreditado, já
que ele, visivelmente, faz parte de algumas das categorias sociais profundamente
estigmatizadas na sociedade brasileira: é idoso, judeu e estrangeiro” (FERRAZ, 2004, p.
74, grifo no original).
Mais adiante, a conclusão sobre o conto de Rawet não explicita quais
mecanismos utilizados no texto justificam a ideia de que

[...] embora o conto esteja baseado em uma vivência trágica do protagonista –


a vida de um judeu prisioneiro em um campo de concentração – é possível
perceber, a partir da nossa análise, que o drama por que ele passa não se
refere diretamente a esse fato, mas a sua condição de diferente, sendo,
portanto, o drama de todo aquele que carrega um estigma. Ser estrangeiro, ser
idoso, ser negro, ser mulher, ou seja, pertencer a um grupo de alguma forma
estigmatizado, desacreditado, normalmente já se constitui motivo suficiente
para que se sofra a marginalização e que lhe seja negado a possibilidade de
comunicação (FERRAZ, 2004, p. 86-87, grifos no original).

De acordo com esse entendimento, pertencer a um grupo estigmatizado (não só


de estrangeiros judeus, mas de idosos, por exemplo) já se constitui motivo de
marginalização e, consequentemente, de negação da possibilidade de comunicação
social.
Na conclusão, aponta como possível desdobramento da pesquisa a

[...] busca de novas representações dos grupos geralmente estigmatizados e


de espaços de convívio do eu e do outro, a partir de um recorte que
privilegiasse a vida metropolitana contemporânea, em que a pluralidade é
elemento intrínseco a sua própria identidade, e novos autores já fixados
nesses grandes espaços urbanos, poderia ampliar esse debate e, talvez, indicar
alternativas para uma convivência solidária entre diferenças (FERRAZ, 2004,
p. 119, grifos no original).

Novamente da UNB, o trabalho de Daniela Bordalo Duarte, Transgressões


Cotidianas- O outsider das trincheiras na Literatura de Samuel Rawet, 2006, alerta em
suas páginas iniciais que o estudo está inserido na área de pesquisa denominada
“Literatura e suas Fronteiras”, linha que se preocupa em suscitar diálogos com outras
86

áreas do conhecimento tais como a Sociologia, a Teoria da Comunicação e a Filosofia


(DUARTE, 2006, p. 06).
Como recorte, a dissertação analisa quatro obras de Rawet: os contos “A porta”,
“A fuga” e “O aprendizado” e a novela Abama. Como justificativa para o recorte e
motivação teórica, o pressuposto de que

[...] as narrativas curtas selecionadas de Samuel Rawet apresentam outsiders


marcados por indagações infinitas e por uma vontade dúbia e tênue de
rebelião e renúncia. Sofrem do mal-estar exposto pelo filósofo cristão Sören
Kierkegaard (1999) caracterizado por um excesso de energia intelectual
aliado a uma capacidade nula de ação (DUARTE, 2006, p. 10).

Sobre esse trecho, é curioso notar que a única obra de Kierkegaard referenciada
pela estudiosa é The Concept of Anxiety, 1980. Por outro lado, a citação acima retoma
uma obra de 1999.
Ainda sobre o excerto a cima, não é fácil depreender o que torna esse material
elegível como objeto. A informação de que se trata de narrativas curtas dificulta nossa
compreensão porque a autora não esclarece sobre qual conceituação de conto e de
novela está trabalhando. Até que ponto e sob quais parâmetros Abama poderia ser
considerada uma narrativa curta?
Mais adiante, Duarte (2006) explicita o que poderia ser o motivo de união desses
quatro textos de Rawet: a recorrência do aparecimento da figura do outsider. Neste
ponto, ela se aproxima de Ferraz (2004) na busca pelos estigmatizados sociais que
subjazem a obra de Rawet, assim como suas personagens, denominado outsider. No
entanto, Duarte explica que não busca

[...] analisar a condição judaica estudada por diversos pesquisadores da obra


do autor, por acreditarmos que ela não contribui de forma decisiva para a
compreensão do tema do outsider dentro da prosa de Rawet. Ser judeu e não
se sentir afiliado aos valores e crenças da comunidade judaica é apenas uma
das características do inconformismo, da revolta e do mal-estar desse autor
arredio e polêmico [...] (DUARTE, 2006, p. 12).

Nota-se que parte da teorização escolhida para sustentar a análise coincide com a
de Ferraz (2004): “Estaremos também retomando alguns conceitos pertinentes
encontrados nas narrativas de Rawet como o desajuste, o ‘estrangeirismo’, o ódio e a
revolta, tendo como alicerces teóricos os estudos de autores como Erving Goffman,
Julia Kristeva, Georg Simmel e Albert Camus” (DUARTE, 2006, p. 14).
87

Concluímos que a estudiosa não cumpre a promessa de relacionar essa figura do


outsider com as outras formas de arte anunciadas. Em suas “Considerações finais”, cita
um dos filmes evocados, A noite dos desesperados, de Sidney Pollack, baseado no
romance homônimo de Horace McCoy, e passa a repetir a recensão dos conceitos
teóricos anunciados na introdução.
O que se vê, com o desenrolar do texto, é a inclusão excessiva de referências
culturais e artísticas, supostamente, relacionadas com a obra de Rawet. Aquelas que
recebem maior contextualização, o filme de Luís Sérgio Person, São Paulo, S. A; ou o
conto de Amílcar Bettega Barbosa, intitulado Exílio, destacadas em um parágrafo
(DUARTE, 2006, p. 44). Finalizemos com mais um exemplo da própria autora: “Dentro
da música anglo-americana, outsiders e losers se misturam como se tratassem do
mesmo personagem, assim como podemos atestar nos trechos das canções do grupo de
rock Green Day e do cantor Beck, intituladas Outsider e Loser, respectivamente”
(DUARTE, 2006, p. 25). Uma curiosidade, aliás, dispensável no atendimento da
proposta inicial.
Em 2008, com a dissertação intitulada Olhares imigrantes na literatura
brasileira: Meir Kucinski, Jacó Guinsburg e Samuel Rawet, Elizabete Chaves Coelho
pode ser responsável por inovar na relação entre os três nomes dispostos como alvo de
análise. No entanto, no estudo da obra de Samuel Rawet, não apresenta, propriamente,
novidades.
A proposta da pesquisa, porém, é muito bem demarcada. Objetiva-se, com a
realização, “[...] traçar um panorama da produção literária brasileira de caráter judaico
no princípio do século XX” (COELHO, 2008, p. 116). Para realizar este objetivo, são
estudados dois contos de três escritores representativos do período, ou seja: “Mona
Lisa” e “Kádish: a oração pelos mortos”, de Kucinski; “O que foi que ela disse?” e “O
retrato”, de Guinsburg; “Gringuinho” e “A prece”, de Rawet.
A intenção é verificar nesses contos, que tratam da presença judaica no Brasil,
possíveis marcas deixadas pelos imigrantes na sociedade e na literatura brasileiras.
Sobre esse corpus, a pesquisadora reforça que interessa avaliar “[...] este grupo humano,
em suas múltiplas condições de viagem, que, retratado na ficção, aparece, em diferentes
situações, assimilado ou aculturado no Brasil” (COELHO, 2008, p. 09).
Adiante, a autora explica a forma pela qual a sua análise será construída:

[...] através de uma revisão de representações historiográficas que se


mesclam à criação ficcional. Após se fazer um apanhado geral da produção
88

científica sobre a trajetória da comunidade judaica no Brasil, será realizada


uma seleção e uma análise dos contos, propriamente ditos. O exame das
obras literárias dar-se-á a partir de critérios cronológicos norteados pela data
de nascimento de cada um dos escritores. Assim, o primeiro autor focalizado
será Meir Kucinski (1904-1976), em seguida, Jacó Guinsburg (1921) e, para
finalizar, Samuel Rawet (1929-1984) (COELHO, 2008, p. 10).

A dissertação realiza um excelente panorama da imigração de judeus ao Brasil


no primeiro capítulo e se completa com mais três capítulos subsequentes, dedicados
cada um a um dos autores. No caso de Rawet, a pesquisadora escolhe duas “minorias”,
as crianças e as mulheres, para defender no estudo de tais contos. No item “Conclusão”
a informação de que para tal escolha, “[...] foi priorizada a questão relativa à adaptação
ou não das personagens à sociedade brasileira” (COELHO, 2008, p. 110). Em Contos
do Imigrante, há mais três contos cujos protagonistas são judeus: “O profeta”, “Judith”
e “Réquiem para um solitário”.
Nota-se que a autora ignora os estudos acadêmicos que investigam a condição
do imigrante na obra de Rawet. Como temos verificado ao longo desse levantamento,
quase todos os estudos anteriores a Coelho extraem ou mencionam, de algum modo,
essa relação. Um exemplo claro do que dissemos, há pouco, é uma das conclusões a que
chega a pesquisadora, pensando nos seus três autores escolhidos. Para Coelho, esses
autores, a partir da representação ficcional, “[...] mostraram a importância da presença
dos imigrantes judeus no Brasil e de suas marcas na literatura brasileira” (COELHO,
2008, p. 45).
Em algumas passagens da apresentação biográfica do contista, a mesma deixa
transparecer sua visão de literatura, apenas, como transfiguração da vida real:

Essa violenta pedagogia parece assinalar a vida do escritor de tal maneira que
alguns pesquisadores de sua obra, em particular, do conto “Gringuinho”, [...],
acreditam ser essa narrativa uma possível autobiografia de sua dura infância.
[...] Contudo, rompeu com a comunidade, melindrado, principalmente, pelo
fato de lançar a coletânea Contos do imigrante e não ser, segundo seu ponto
de vista, reconhecido pela comunidade como escritor, mas como um simples
aspirante (COELHO, 2008, p. 84-86).

A passagem sinaliza uma postura crítica rebatida pelo trabalho de Kirschbaum


(2000, p. 92): a da visão supervalorizada que os dados biográficos recebem em algumas
leituras de Rawet.
A conclusão de pesquisa de Coelho aponta que os contos dos três autores
estudados tratam do tema dos imigrantes judeus, aportados no Brasil a partir do século
20, de modos semelhantes:
89

Eles mostraram em suas representações o processo de adaptação


experimentado pelos imigrantes, desde o momento em que eles deixaram a
Europa até a chegada ao Brasil. Também, a maneira como as estratégias de
adaptação ou não dos personagens influenciaram na possibilidade ou não do
encontro deles com a nova cultura. De modo gradual, as narrativas de
Kucinski, Guinsburg e Rawet partiram de um mesmo foco, porém, a
experiência de imigração que criaram ficcionalmente para cada personagem
deixa vislumbrar a riqueza das histórias de vida desses imigrantes
(COELHO, 2008, p. 110-111).

Como dissemos, sobre a obra de Rawet, já em 1956, ano de publicação de


Contos do Imigrante, essa relação já tinha sido apontada. A vasta lista de estudos
elencados aqui comprava isto.
O estudo de Michel Azara (2010), Nomadismos: Crônica de um Vagabundo, de
Samuel Rawet, e Alice nas cidades, de Wim Wenders: errantes urbanos, apresenta como
objetivo a análise conjunta do conto Crônica de um vagabundo e do filme Alice nas
cidades, do cineasta alemão Wim Wenders, a partir da temática do nomadismo
(ÁZARA, 2010, p. 07). Justificando a sua abordagem, o pesquisador destaca que, com
relação à obra de Rawet, “[...] outras perspectivas, outras abordagens de sua obra
também são possíveis, uma vez que este apresenta uma escrita fragmentada, singular,
nômade e reflexiva” (ÁZARA, 2010, p. 11). A pesquisa foi realizada na UFMG.
O estudo pretende resgatar a figura do flâneur, desenvolvida por Walter
Benjamim, para, depois, inseri-la na crônica de Rawet e, paralelamente, verificar essa
mesma inserção no filme estudado. A personagem que caminha pela Paris moderna será
a mesmo que, anacronicamente, vaga pelas páginas “pós-modernas” de Rawet? Parece-
nos que sim, na medida em que verificamos as passagens do próprio estudo. Citando um
trecho inicial da crônica e a atmosfera de viagem criada pelo narrador, o estudioso
argumenta que “esse ato de caminhar sem saber para onde, sem um destino preciso,
retoma uma das atitudes principais do flâneur Benjaminiano [sic], que é o andar sem
rumo” (ÁZARA, 2010, p. 24). A teorização sobre tal figura ganha espaço e sufoca uma
possível exemplificação de sua apropriação pelo narrador de Rawet.
Destacamos da dissertação a passagem em que Ázara afirma que é “[...] na
exacerbação dos processos da fragmentação contidos na modernidade, e na
radicalização da flânerie Baudelairiana que se configura a narrativa de Samuel Rawet”.
(ÁZARA, 2010, p. 28). Desta passagem, reforçamos que uma grande dificuldade no
estudo é identificar o que o estudioso considera como modernidade ou pós-
modernidade. O trabalho e a junção de alguns dos ditos representantes desses dois
90

entendimentos contribuem para aumentar a confusão. A este respeito, esta passagem da


dissertação pode ser mais eloquente: “foram considerados outros aspectos presentes no
conto de Samuel Rawet, que levam em conta a condição desterritorializante do sujeito
moderno, ou até mesmo pós-moderno” (ÁZARA, 2010, p. 34).
Depois de utilizar do pensamento de Georg Lukács, em Teoria do romance, o
pesquisador define a sua concepção de conto:

A forma novelesca e o conto podem ser tomados, em alguns casos, como um


desdobramento consecutivo do romance, uma forma de apresentação
sintética, condensada, de alguns questionamentos presentes na forma
romanesca. Nesse sentido, a narrativa de Samuel Rawet, como na Crônica de
um vagabundo, pode ser lida como um mini-romance, ou até mesmo uma
novela, com a apresentação de um personagem reflexivo, que parte em uma
busca, em direção a uma espécie de autoconhecimento [...] (ÁZARA, 2010,
p. 51).

Mais do que evitar qualquer especificidade do conto enquanto gênero, a citação


constrói um pensamento de inferiorização do conto diante de outros gêneros “maiores”.
Sob o pretexto da leitura do conto de Rawet e o filme de Wim Wenders, o
pesquisador arrola, de forma pacífica e conciliatória, os conceitos de Roland Barthes,
Zygmunt Bauman, Walter Benjamin, Maurice Blanchot, Michel de Certeau, Gilles
Deleuze, David Havey, Michael Lowy, George Lukács, Michel Manffesoli, e Jean Paul
Sartre, para ficar, apenas, nos mais divulgados. A concisão do trabalho não permite o
desenvolvimento dessa junção de teóricos, nem as leituras dos objetos em questão.
Neste tópico, o mais recente trabalho sobre a obra de Rawet fecha o ciclo inicial
do nosso percurso com uma dissertação concluída em abril de 2011, na UNB. A escrita
errante de Samuel Rawet, de Gabriel Antunes Magalhães Ramos da Silva, ou Gabriel
Atunes, conforme assina, nona dissertação rawetiana, foi encontrada no site do
Programa de Pós-graduação em Literatura, <www.poslit.unb.br>, enquanto
consultávamos os itens “Produção Intelectual”, “Dissertações”. O registro do trabalho
não constava nos bancos consultados.
A dissertação investiga a escrita errante de Samuel Rawet tendo por base três
contos (“O profeta” e “A prece”, de Contos do Imigrante, além de “Sôbolos rios que
vão”, de Os Sete Sonhos) e duas novelas (Abama e Viagens de Ahasverus). O estudioso
explica que o alvo principal do estudo são os textos literários, embora tenha sido
inevitáveis as relações com a vida do autor, estabelecidas a partir dos ensaios e
91

entrevistas de Rawet (ANTUNES, 2011, p.10-11). Excetuando-se as partes introdutória


e conclusiva, a dissertação apresenta três capítulos.
A seguir, explica que o objetivo do trabalho é investigar os tipos psicológicos e
os motivos de descentramento e errância das personagens rawetianas, classificadas
como sobreviventes (das guerras e das ruas) ou que carregam as marcas da figura do
judeu errante (ANTUNES, 2011, p.12). A respeito dos sobreviventes das guerras, a
investigação apontará como índice importante a influência do silêncio nas artes do
século 20, ancorado no estudo da ensaísta americana Susan Sontag, “A estética do
silêncio”.
O primeiro capítulo, “O silêncio dos imigrantes”, apresenta como objetivo
“pensar a situação específica do imigrante judeu em solo brasileiro e como o silêncio
que acompanha essas personagens é, ao mesmo tempo, uma impossibilidade e um
motivo de errância” (ANTUNES, 2011, p. 20). Esse passo será alcançado, segundo o
autor, com a investigação de como Rawet constrói os meios de expressão em sua obra.
O capítulo se divide em cinco partes: “A página em branco”; “A estética do
silêncio”; “A marca irreversível”; “O profeta” e “A prece”, essas duas últimas, em
forma de pequenos ensaios, apresentam os contos de mesmo nome.
O segundo capítulo, “os notívagos”, trata dos sobreviventes das ruas. Para o
estudioso, o ódio e a revolta contra o sistema, a ignorância e o ressentimento formam
um conjunto de sentimentos que motiva e aniquila as personagens desse grupo:

Os vagabundos têm uma relação intrínseca com esses sentimentos, mas


também com a noite e as ruas da cidade ― em vários momentos, inclusive, as
ruas e as personagens são indissociáveis. Tudo isso feito de uma forma tal
que desarticula os estereótipos e preconceitos em que estão envoltos
(ANTUNES, 2011, p. 20).

Para desenvolver essa ideia, assim como o primeiro, este capítulo é divido em
mais cinco partes: “A filosofia das ruas”; “As cidades e suas práticas”; “A noite”;
“Abama” e “Sôbolos rios que vão”. Para Antunes, o cenário dessa produção de Rawet,
apresentada nos dois últimos tópicos, é o envolvimento do contista no trato de questões
filosóficas, tanto nos ensaios, quanto nos textos selecionados para o segundo capítulo.
O terceiro capítulo, “As metamorfoses híbridas”, centra-se na figura de
Ahasverus, sinônimo de errância em, praticamente, todas as versões que envolvem o
mito. A leitura, neste caso, privilegia a ambiguidade como força máxima no
desenvolvimento do núcleo temático da obra (ANTUNES, 2011, p. 16). Nesta parte,
92

explica que a metamorfose será concebida em processo ambíguo com a metáfora.


Estruturalmente, é dividido em quatro itens: “Ahasverus na tradição cristã e literária”;
“Metáfora e Metamorfose”; “O corpo híbrido”; e “Revigorado e maldito [,] continuou
seu caminho à procura de Deus”.
Em sua conclusão, adota também a divisão para organizar o seu pensamento.
Encontramos nesta parte os tópicos “As múltiplas faces do autor” e “A morte”. No
primeiro deles, destaca o caráter diverso da literatura de Rawet e a sua intensa pesquisa
estética. No segundo, reforça a ideia de que avulta nessa produção o caráter da falta de
consciência do humano no tocante à sua insignificância no mundo e, consequentemente,
da morte, o que evidenciaria, para Rawet, a não existência do homem num presente,
mas num futuro por devir32.
O estudioso conclui dizendo que o seu recorte específico buscou “entender a
literatura como um ato de errância de deslocamentos e deslocados” (ANTUNES, 2011,
p. 17). Para o pesquisador, é na errância que surgem os temas de Rawet e, como
componentes dessa errância, atuam em sua formação o silêncio e o ódio.

3.2 As teses

O estudo de Baibich, O auto-ódio na literatura brasileiro-judaica


contemporânea, concluído em 2001 33 , realizado na Universidade de São Paulo, no
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, é o único trabalho sobre Rawet não
defendido em um programa em Letras. A tese apresenta por objeto de análise as obras
ficcionais de autores brasileiros judeus. Como pressuposto,

[...] entende-se que a experiência dos autores, membros assumidos ou não


deste grupo étnico, ao ser filtrada pela literatura, possa revelar, relativamente
livre dos bloqueios racionais mais consolidados a presença deste sentimento
em suas diferentes formas de manifestação (BAIBICH, 2007, p. 02).

De acordo com a estudiosa, o pertencimento a um duplo exílio deixa marcas nas


expressões literárias. São essas expressões que serão investigadas pela tese. Para isso, as
obras contempladas são: A hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector; Contos do
32
Cf. a entrevista de Rawet concedida a Farida Issa (2008, p. 207-214).
33
A data da referência utilizada por nós, no entanto, será 2007, ano de publicação da primeira edição do
estudo em livro. A ausência da tese nos bancos de dados nos moveu a entrar em contato com a autora que,
gentilmente, nos enviou um exemplar de sua obra intitulada, agora, Fronteiras da identidade: o auto-ódio
tropical.
93

Imigrante (1956), de Samuel Rawet; Os deuses de Raquel (1975), de Moacyr Scliar; e,


Variações Goldman (1998), de Bernardo Ajzenberg. As análises das obras,
desenvolvidas cada uma em capítulo específico, vêm antecipadas por dois capítulos
teóricos: “O estrangeiro por excelência” e “O Auto-ódio: Ferida na identidade”.
Mais adiante, explica que a tese defendida é a de que:

Independentemente da forma pela qual o autor do texto de ficção assume sua


identidade judaica, o sentimento de Auto-ódio, da debilidade identitária e da
falta de instrumentos adequados para reconhecer e lidar com a perseguição
real e a possível, se impõe, de modos distintos, aos membros da coletividade
judaica como vítima, sentimento este que o autor traduz no texto ficcional
(BAIBICH, 2007, p. 3) 34.

Esse sentimento, definido como uma “ferida na alma”, em um dos capítulos


teóricos, manifesta-se na literatura de maneiras diversas. Nesse sentido, sua realização
tem como objetivo central evidenciar as manifestações de sentimentos e
comportamentos que componham o processo formado pelas personagens judias e pelos
mitos do preconceito nutrido pelas personagens que representam as maiorias
psicológicas (BAIBICH, 2007, p. 4).
Dentre as outras metas que pretende atingir, a estudiosa aponta que o trabalho
objetiva analisar as obras literárias dos autores citados “[...] sob um prisma distinto do
realizado até hoje; enfocando o preconceito de quem é vítima dele contra si próprio”
(BAIBICH, 2007, p. 4). A afirmativa de que a perspectiva da pesquisa é nova é válida
quando pensamos nos trabalhos acadêmicos encontrados por nós.
No caso específico de Rawet, a impressão que se tem é que a autora partirá dos
ensaios do escritor para defini-lo como antissemita. Diante dessa definição, o próximo
passo será comprovar a insígnia na narrativa rawetiana (BAIBICH, 2007, p. 191-192)
35
.
Neste ponto, justifica a escolha pela literatura como objeto de investigação, no
fato de que tal escolha se deve à consideração de que “[...] a abstração, a cultura, e,
muito notadamente, a palavra escrita têm como pilares do ‘Povo do Livro’. A própria

34
Segundo Scliar, no prefácio do livro, “o auto-ódio é um fenômeno doentio, uma espécie de
fundamentalismo em que o inimigo diabólico é o próprio grupo a que a pessoa pertence.” (SCLIAR,
2001, p. x).
35
Utilizado na fundamentação de Baibich, Vieira (1995a, p. 62), parece relativizar a ligação Rawet-Auto-
ódio, ao afirmar que “he was capable of dramatizing the arena of conflit that produced his feelings” [“ele
foi capaz de dramatizar a arena do conflito que produziu seus sentimentos”. A tradução é de Baibich
(2007, p. 193)].
94

denominação ‘Povo do Livro’ deve-se a importância atribuída à Bíblia, livro em que se


preservaram sua história sacra e seus valores éticos” (BAIBICH, 2007, p. 5).
A proposta reside no entendimento de que os narradores irão imprimir, mesmo
que inconscientemente, marcas de seu tempo, conferindo ao texto literário o caráter de
testemunho da história. Reforçando que o que se pretende investigar não foi realizado
de forma sistemática, a pesquisadora afirma que, para atingir as metas estabelecidas,
recorrerá “[...] à leitura interpretativa do texto ficcional, com base na Psicologia Social,
na Sociologia, na Antropologia e na História, respeitada a natureza da ficção, buscando
nela as manifestações sem-tempo e sem-lugar do sentimento de Auto-ódio judeu”
(BAIBICH, 2007, p. 09).
A escolha metodológica implica a leitura dos textos literários cotejados com as
entrevistas dos autores. A estudiosa explica que em seu método e objetivos não há a
proposta de antepor a história do antissemitismo e do conceito de Auto-ódio nos textos
literários em questão. Por outro lado,

[...] trata-se, sim, de elevar a perspectiva histórico-social e o arcabouço


teórico ao lugar da produção tanto do texto literário quanto de sua
interpretação, elevação esta que se coloca ao mesmo tempo para o autor do
texto e para seu intérprete; é, destarte, uma firme recusa à metodologia que
valoriza o texto literário em si mesmo, vinculada às vezes a uma certa
hermenêutica empobrecida, outras vezes a um tipo de estruturalismo
formalístico e outras ainda a um epistemologia cartesiana (BAIBICH, 2007,
p. 13).

A afirmativa dá margem para um entendimento que, à priori, exclui as


contribuições formalistas na constituição dos estudos literários. De acordo com a
estudiosa, para sustentar sua proposta de leitura:

A história e a teoria constituem suportes conceituais capazes de obter do


texto literário que ele diga não só o que está dito explicitamente, como que
fale por seu oculto, ou seja, que as possibilidades ou impossibilidades de
expressão do autor, que o que diz por ser dito ou por ser não dito, encontra-se
no texto e que a leitura deste não pode se restringir a sua mera forma
(BAIBICH, 2007, p. 13).

Vale lembrar que, em alguns casos, é na forma que se verificam os meios mais
significativos de “expressão do autor”. Esse não seria o caso da literatura rawetiana, em
que a forma é, quase sempre, vítima de intensas experimentações?
95

Como resultado desse processo, explicita-se que a análise será ancorada em


categorias analíticas da história e da teoria e que seu objetivo será: “A leitura do que o
texto tem a dizer para as perguntas que se tem a formular” (BAIBICH, 2007, p. 13).
Quando se trata das categorias narrativas, realiza um adendo:

[...] para efeitos deste estudo, a personagem não é necessariamente o autor,


que a narrativa não é necessariamente sua história. Porém, a personagem não
fala por si: é o autor quem fala. Fala sobre o que observa, sobre o que sente,
sobre o que se ouviu, e também pelo seu inconsciente individual e coletivo,
pela sua história, de vida e pela sua história (BAIBICH, 2007, p. 14).

Do trecho que se segue, depreende-se a noção de narrativa que o estudo


apresenta: “Nem mesmo o mais genial autor de ficção escreve a partir do nada: toda e
qualquer obra está enraizada em condições definidas, consciente e inconscientemente,
objetiva e subjetivamente” (BAIBICH, 2007, 14-15). O reforço que deseja estabelecer é
o de que não se pode negar que o autor está inserido indiretamente na personagem e que
a história desse autor se encontra embutido na narrativa.
Nesta passagem, a pesquisadora parece definir um caminho de conciliação sobre
o papel que a narrativa de Rawet encontra em sua pesquisa. No trecho, a autora
modaliza o entendimento de que é este mesmo autor o responsável pela criação da voz
narrativa em seu texto.
Na análise propriamente do livro de Rawet, Baibich se utiliza do ensaio “Kafka
e a Mineralidade Judaica ou a Tonga da Mironga do kaburetê” para confirmar em
Contos do Imigrante a leitura desejada. Segundo a estudiosa: “[...] uma forte atitude
anti-semita é explicitada nesse artigo com um estresse na vinculação de caráter gemelar
entre judeus e o materialismo, aspecto do ‘amor inconteste ao dinheiro’: diga-se de
passagem, traço preponderante do estigma do judeu” (BAIBICH, 2007, p. 189-190).
Outro questionamento se impõe, no caso de Rawet: as formas ensaísticas e contísticas,
adotadas pelo escritor não implicam no tratamento específico desses textos?
Outra referência a ser utilizada será a entrevista a Danilo Gomes (2008a), já
citada neste trabalho, na qual, para a estudiosa, “Rawet manifesta sem meias palavras
um anti-semitismo virulento, que contém em si o Auto-ódio de forma explícita”
(BAIBICH, 2007, p. 190). No entanto, a autora alerta para o fato de que esta posição
implicou numa enxurrada de posicionamentos na tentativa de explicar, defender ou
desmentir a condição do contista de anti-semita, a exemplo da passagem em que Alberto
Dines se questiona: “Rawet um anti-semita? Os judeus mudaram tanto que o seu
96

inventor na moderna literatura brasileira é visto como um anti-semita?” (DINES apud


BAIBICH, 2007, p. 190).
Ancorando-se, basicamente, em Scliar (1984), na passagem em que o mesmo
relata um encontro seu com Rawet36, Baibich é irresoluta na defesa da relação Rawet-
Auto-ódio:

[...] ainda que, tomando em consideração o peso das questões emocionais na


conduta de Rawet, bem como sua caracterização do “bom judeu”, seja ele um
Einstein, um Maimonides ou uma Clarice Lispector, além do fato inconteste
de sua importância como inventor da literatura judaico-brasileira, não aprece
possível fugir a categorização de seu comportamento como um
comportamento de anti-semitismo e de Auto-ódio (BAIBICH, 2007, p. 192).

A adjetivação de pioneirismo atribuída à Rawet será modalizada pela estudiosa


na medida em que a reproduz com aspas, sem tecer qualquer comentário de aprovação
ou reprovação, o que pode indicar, inclusive, um tratamento irônico da fala de Dines.
Em A condição judaica – Das tábulas da lei à Mesa da Cozinha, Scliar (1985),
mais uma vez, mencionará a relação de Samuel Rawet com o Auto-ódio. O momento é
o de estabelecer uma diferença na produção literária entre os Estados Unidos e o Brasil,
a respeito do número de escritores que abordam temas judeus em suas obras. No Brasil,
Scliar reafirma o caráter de pioneiro de Rawet. Contudo, relembra que:

No final de sua vida, Rawet escreveu vários textos anti-semitas resultantes,


creio, de auto-ódio judaico, da percepção do judaísmo como uma asfixiante
conspiração que, baseada em laços afetivos, visa na realidade a interesses
políticos, econômicos, outros. Os judeus que, como Rawet, atacam esta
“conspiração”, sabem que estão atacando a si mesmos, porque o judaísmo é
algo mais profundo que a vinculação a um grupo de interesses. Daí o
desespero que se manifesta por uma agressividade impressionante (SCLIAR,
1985, p. 102-103).

Na conclusão do capítulo, o décimo sexto dos dezoito que a obra apresenta, o


escritor tenta-se redimir, alegando ingenuidade daqueles que confundem o escritor com
suas opiniões:

36
Segue a passagem de Scliar: “Eu participava numa das mesas-redondas, e nesta ocasião me foi
perguntado sobre literatura judaica no Brasil. Falei então, e com grande entusiasmo, sobre o livro de
Rawet. Terminado o debate, alguém me disse que ele estava presente. Fui procurá-lo e, disse as coisas
habituais: que tinha grande admiração por sua obra, que há muito deseja conhece-lo, etc. A reação foi
inesperada e violenta. Aos berros, Samuel Rawet disse que não queria conhecer ninguém, que estava farto
de judeus e que queria ser deixado em paz. [...] o Samuel está louco, é o que as pessoas diziam. Acho que
loucura é um rótulo pobre, e até certo ponto injusto, para descrever a atitude de Samuel Rawet, em
relação àqueles que, afinal, eram sua gente. Importante é caracterizar a forma que esta perturbação
emocional nele tomou, a do auto-ódio judaico” (SCLIAR apud BAIBICH, 2007, p. 191).
97

Jorge Luis Borges já foi adepto de Pinochet; Ezra Pound colaborava com os
nazistas. Samuel Rawet era o seu elo sadio com a vida, aquilo que o mantinha
à tona. Quando a paranoia triunfou, ele não mais pôde escrever. O que
produziu, contudo, é mais que suficiente para garantir seu lugar na literatura e
para demonstrar que o judaísmo, como o judaísmo, como a humanidade, é a
soma de várias realidades, algumas delas muito tristes (SCLIAR, 1985, p.
103).

As passagens de Scliar poderiam ser desnecessárias, caso o pensamento do


escritor não sintetizasse as ideias de um seguimento dos estudos sobre Samuel Rawet.
Mais do que servir de apoio teórico para Baibich (2007), na tese aqui apresentada, o
estudioso e contista sintetiza parte significante do conhecimento produzido sobre Rawet
e sua obra. Sobre a ingenuidade apontada, em alguns momentos, o trabalho de Baibich,
de forma deliberada, trata como causa e efeito a literatura do escritor e suas opiniões.
Voltando à tese, no intuito de extrair as formas de auto-preconceito contra o
judeu, “[...] por parte do Outro, de seus iguais, dele contra o Outro ou contra seus
iguais” (BAIBICH, 2007, p. 195), refletidas em Contos do Imigrante, a pesquisadora
escolhe os cinco primeiros contos que apresentam um caráter de identidade comum: “O
profeta”; “A prece”; “Judith”; “Gringuinho” e “Réquiem para um solitário”. A análise
dos mesmos ocorre em tópicos específicos a cada um dos textos.
Já em suas considerações, retiramos a ideia de que

[...] a literatura não deixando de ser considerada em sua realidade subjetiva,


ficcional e emocional de seu criador, é, ao mesmo tempo, tomada como
experiência vivencial alicerçada em uma realidade histórica e social
determinada [...]. O discurso, ainda que ficcional, contém verdades que
escapam ao narrador, sendo, portanto, às vezes ‘testemunhal sem o saber’
[...], e outras sabendo-o. As ‘feridas étnicas’ são mostradas também na arte
(BAIBICH, 2007, p. 304-305).

Baseando-se nesse entendimento, a investigação buscou na literatura as


simbolizações das marcas do drama coletivo nos dramas individuais. Por fim, reforça
que o trabalho defende “[...] a tese de que em distintas formas e proporções, o
sentimento de Auto-ódio, é retratado na literatura de escritores brasileiros judeus
contemporâneos, independentemente da forma pela qual se relacionem com sua
condição judaica” (BAIBICH, 2007, p. 311).
Concluindo o estudo iniciado em 1996, que culminou na defesa de mestrado em
2000, a tese de Kirschbaum (2004) atua no estabelecimento das conexões entre os
aspectos éticos e os literários na obra de Rawet. Com exceção da introdução e
98

conclusão, o trabalho é divido em cinco capítulos: “Samuel Rawet: Ética e Literatura”,


“Rawet-Buber: O não-encontro como modo de ser”, “A Literatura no Espelho:
“Parábola do Filho e da Fábula”, “Emigrantes, Imigrantes: Alguns comentários sobre a
experiência de exílio nas obras de Stefan Zweig e Samuel Rawet” e “Que os mortos
enterrem os seus mortos?” 37.
Como hipótese, o estudioso explica que “[...] não há como pensar em ética e
literatura sem algum esforço para situar o relacionamento entre esses dois assuntos
historicamente e estabelecer um quadro conceitual de referência” [...] (KIRSCHBAUM,
2004, p. 2). O que é realizado no primeiro capítulo, tendo por base a comparação da
obra de Platão e a Dante, a introdução crítica de Adorno à literatura engajada, além da
breve exposição do pensamento de Emanuel Levinas, cujo trabalhos estão empenhados
na investigação da literatura enquanto suporte para um discurso ético.
Kirschbaum destaca que a apreciação da ética na obra de Rawet ocorrerá a partir
dos aspectos temáticos e formais. Distinguindo os processos de elaboração de sua
dissertação de mestrado, aponta maiores dificuldades na elaboração da tese porque,
neste caso, o problema era enfrentar as questões literárias e não somente o que a
literatura dizia sobre questões filosóficas:

Porque, se a escrita de Rawet é desconcertante, intrigante, até enigmática,


não é óbvia sua importância para a literatura brasileira. O que dizer, então, de
sua importância para a literatura judaica da diáspora, já que, em princípio, os
próprios judeus o olham com desconfiança, uma vez que Rawet rompeu com
o judaísmo? (KIRSCHBAUM, 2004, p. 6).

O trabalho de Baibich (2007) seria um exemplo claro desse tipo de perspectiva


desconfiada. Por outro lado, o ponto de partida do estudo de Kirschbaum é o texto de
Theodor Adorno, “Engajamento”, em que o teórico rediscute o conceito de “literatura
engajada”, fruto das obras e da teorização de Sartre a Brecht, e propõe uma função para
o texto literário: resistir pela forma. No caso de Rawet, defende que o mesmo não deve
ser visto, simplesmente, como o louco, o estrangeiro ou mesmo o devasso de múltiplas
predileções sexuais:

Passei a perceber que as preocupações literárias de Rawet são centradas nas


questões éticas. Apesar de sua forte e declarada admiração por Buber, uma
preocupação ética até mais próxima da de Emmanuel Levinas, com sua
posição heteronômica radical de abandonar qualquer ideal transcendente para

37
No final de 2011, a versão em livro do trabalho foi publicada sob o título Viagens de um caminhante
solitário: Ética e estética na obra de Samuel Rawet.
99

propor uma ética baseada não na liberdade ontológica do Eu mas na infinita


responsabilidade pelo Outro. E que o fazer literário de Rawet era de tal forma
condicionado por essa opção ética que a própria literatura acabava por ser
tematizada em sua ficção, pois incumbia discutir o papel da literatura face à
necessidade de proferir um discurso ético. Sem prejuízo desse vínculo, seu
fazer literário está no extremo oposto do panfletário. Rawet domina com
perfeição técnicas muito sofisticadas, como ironia, ritmo da narrativa,
discurso indireto livre, fluxo de consciência (KIRSCHBAUM, 2004, p. 7).

A longa citação antepõe uma postura metodológica que considera o texto


literário em suas múltiplas especificidades. A leitura de outros gêneros produzidos por
Rawet não será responsável pelo condicionamento apriorístico da interpretação dessa
obra. E mais, sobre a ruptura pública de Rawet com o judaísmo, o pesquisador explica
que o escritor

[...] oferece a alternativa de um judaísmo vivencial, não-haláchico, em que o


nascimento, por si só, não garante uma pertença judaica vitalícia. De forma
que a judeidade passa a ser uma questão de “estar” e não de “ser”, de “ligar-
se à grande tradição ética”, evitando “mineralizar-se”. De compreender a
condição judaica não como atributo particular e privativo de um determinado
povo, mas como o extremo oposto de seu extremo oposto, o pensamento
nazista (KIRSCHBAUM, 2004, p. 7).

Em busca desse judaísmo não-haláchico38, analisa o conto “Diálogo”, em um


paralelo com a filosofia de Martin Buber; depois, “Parábola do Filho e da Fábula”,
considerando que a personagem principal é a própria literatura; depois, Viagens de
Ahasverus, na esteira dos relatos de experiência de exílio de Stefan Zweig; em seguida;
e, por último, “Que os mortos enterrem seus mortos”, considerando as referências
intertextuais utilizadas por Rawet, como passagens bíblicas ou de trabalhos de Spinoza
e Marx. A cada análise, é dispensado um capítulo da tese.
Embora alinhados, cronologicamente, cada capítulo apresenta uma unidade
própria. O objetivo final será “[...] saber se a obra de Rawet ‘abre um acesso ao fundo
obscuro da existência’, se nela ‘vive-se a verdadeira vida que está ausente’”
(KIRSCHBAUM, 2004, p. 35).
A investigação parte de um pressuposto, verificável na vida e na obra do escritor
analisado, tendo em vista que o mesmo nunca se pôs a serviço de partido político,
agrupamento religioso ou qualquer ideal transcendente, podendo, inclusive, ser

38
Segundo Unterman, o termo halachá é originário do hebraico e significa “caminho” ou “trilha” e se
refere à “Tradição legalística do judaísmo, que se confronta geralmente com a teologia, a ética e o
folclore da AGADÁ. Decisões haláchicas determinam a prática normativa, e onde há divergência, tais
decisões, ao menos em teoria, seguem a opinião da MAIORIA dos rabinos [...]” (UNTERMAN, 1992, p.
112, grifos no original).
100

caracterizada como não engajada: “Não obstante, sua profunda sensibilidade ao apelo
do Outro, o imigrante, o pobre, o doente terminal, o solitário, o excluído, aproximam-no
dessa infinita responsabilidade da qual falam Levinas e Blanchot” (KIRSCHBAUM,
2004, p. 35-36, grifo no original).
Outra constatação de Kirschbaum, lendo os ensaios e entrevistas de Rawet, é a
tentativa de construção de uma imagem anti-intelectual, de filósofo amador etc. O
pesquisador demonstra, por outro lado, que o contista estaria longe dessa imagem. Um
exemplo disso é comprovado quando demonstra a relação intelectual de Rawet com
Buber e Spinoza.
Sobre as possíveis motivações para a construção dessa imagem de diletante,
Kirschbaum aponta como possibilidade o interesse de Rawet em manter a crítica focada,
apenas, em sua obra. Essa estratégia será utilizada nos escritos ficcionais do autor
através de elipses e de recursos voltados para a ironia, responsáveis por desviar a
atenção do leitor para questões triviais:

O que importa, então, é o não-dito. Exatamente por instaurar o silêncio, as


questões relevantes não poderão ser encontradas no texto. Na verdade, o
silêncio deixa apenas traços, vestígios, marcas de apagamento. Por isso, a
tarefa do leitor crítico será [...] encontrar essas marcas e tentar recuperar seus
significados (KIRSCHBAUM, 2004, p. 39).

Da citação acima, depreende-se a importância do silêncio como fruto da junção


dos diversos recursos formais na obra estudada, o que vale para toda a produção literária
de Rawet. A seguir, Kirschbaum aponta o caráter de ambiguidade na relação de Rawet
com o judaísmo. Sobre esse aspecto, a questão ética se faz presente na medida em que

Rawet se sente chamado a refletir sobre a eticidade da comunidade em que


vive. Por um lado, ele rompe formalmente com a comunidade judaica, recusa
ser visto como judeu, localiza nos judeus toda a sordidez do mundo, até
mesmo se declara anti-judeu. Faz críticas pesadas à Bíblia, negando-lhe tanto
originalidade quanto elevação (KIRSCHBAUM, 2004, p. 39-40).

O estudioso aponta que esses escritos passam a ideia de Rawet de que, ao se


declarar não judeu, deixará de ser visto como um judeu: “Curiosamente, o uso do
silêncio como forma de expressão pode ser vista como marca do povo judeu (e também
de outros povos com histórico de opressão), resultado das várias situações de
silenciamento a que foi submetido durante séculos” (KIRSCHBAUM, 2004, p. 40). A
101

negativa do judaísmo ocorre com uma estratégia que pode ser classificada como
judaica, o que relativiza a ideia de um Rawet antissemita.
Mais adiante, o tratamento do texto literário será discutido de forma mais aberta.
Além de investigar a estrutura dos textos e a visão de mundo que delas transparece, a
pesquisa buscou na obra de Rawet “[...] os elementos que compõem seu ‘fazer literário’,
as estratégias discursivas e narrativas de que se vale para atingir seus objetivos”
(KIRSCHBAUM, 2004, p. 41).
O objetivo do segundo, “Rawet-Buber: O não-encontro como modo de ser”, será
a investigação sobre as formas pelas quais o pensamento filosófico de Buber encontra-
se incorporado no texto ficcional de Rawet. A análise do conto “Diálogo” será lastreada
pela leitura do livro Eu e Tu, de Buber, 1977; além de Eu-Tu-Ele, 1971 e Angústia e
Conhecimento, 1978, ensaios do próprio Rawet.
Kirschbaum destaca que, em certa medida, os dois pensadores podem ser
considerados contemporâneos:

Buber escreveu Eu e Tu em 1923, aos 45 anos. Rawet começou sua carreira


literária em 1956, quando Buber já contava 78 anos. Em 1965, quando
poderiam ter se encontrado, Rawet estava com 36 anos incompletos, e Buber
chegava ao fim de sua longa carreira, aos 87 anos (KIRSCHBAUM, 2004, p
74).

A morte de Buber ocorreria alguns meses depois, em Jerusalém, em 13 de junho


de 1965.
No terceiro capítulo, “A Literatura no Espelho: ‘Parábola do filho e da fábula’”,
analisa o conto que empresta nome ao subtítulo. Pensando em sua dissertação de
mestrado e descrevendo os primeiros anos de imigração da família do artista, a leitura
desse texto será permeada pela ideia de que o contista

[...] sentiu com mais intensidade essa condição; ao se decidir por escrever
contos e novelas curtas, tornou-se uma espécie de porta-voz dos desterrados,
dos deslocados, dos marginais. Não estou afirmando que sua vontade de
ceder a voz aos oprimidos o trouxe para a literatura; mas sim que, chamado à
literatura seja lá por qual processo, sua auto-imagem de imigrante o fez optar
pela temática dos oprimidos (KIRSCHBAUM, 2004, p. 82).

Em nenhum momento o estudioso defenderá que o trabalho do contista será o de


generalizar ou mesmo o de transpor uma condição doentia para a sua literatura.
No capítulo dedicado às Viagens de Ahasverus, “Emigrantes, Imigrantes: Alguns
comentários sobre a experiência de exílio nas obras de Stefan Zweig e de Samuel
Rawet”, o estudioso procura vislumbrar os pontos que aproximam os dois escritores,
102

judeus nascidos na Europa, colocados em condições de exílio, em consequência do


mesmo fenômeno: o recrudescimento do antissemitismo. No caso de Zweig, a
implantação do Nacional-socialismo na Alemanha e a conquista da Áustria pelo
nazismo. No caso da família de Rawet, a crise econômica que assolava os judeus
poloneses em decorrência desses processos.
Essa busca não perde de vista o ponto central do estudo: o relacionamento entre
Ética e Literatura. Para tanto, o livro de referência de Zweig será Uma Consciência
contra a Violência, 1936. A leitura de Viagens de Ahasverus sinaliza que:

A inutilidade das transformações de Ahasverus aponta [...] para a própria


impossibilidade de o judeu se escolher não-judeu, de abandonar sua condição
de judeu. De metamorfosear-se em não-judeu como quem se livra de uma
roupagem incômoda (KIRSCHBAUM, 2004, p. 105).

Na literatura, esse efeito é obtido no trato do texto. As questões referentes ao


silêncio no qual as personagens se encontram removidas são um exemplo desse
trabalho.
Ao destacar a epígrafe da obra Viagens de Ahasverus, “Deus espera tudo de
mim. Eu nada espero de Deus”, atribuída por Rawet a Ibn-Gabicebron39, Kirschbaum
reforça a necessidade de se investigar a importância da ideia de Deus na obra de Rawet:

Se Deus fosse concebido como fonte primeira e garantia da eticidade, da


bênção e da maldição, da vida e da morte, então um mundo “vazio de Deus”,
um mundo do qual Deus tivesse se retirado, seria um mundo a-ético. Como
expressou Dostoievski, “se Deus está morto, tudo é permitido”. A meu ver,
no entanto, ao se apropriar do dito “Deus tudo espera de mim”, Rawet está a
ponto de propor uma inversão radical: ao invés de pensar um Deus
infinitamente justo e perfeito a codificar o comportamento correto do
homem, talvez tenhamos que admitir que o homem, por ser dotado de um
sentimento ético inato, é capaz de conceber um Deus infinitamente justo e
perfeito (KIRSCHBAUM, 2004, p. 107).

Mais adiante, sinaliza um ponto comum entre as obras de Zweig e de Rawet: a


inscrição da responsabilidade que afeta o pensador: “apontar para o que já está
acontecendo mas ainda não é visível; perceber, antes que os demais, a aproximação do
momento de perigo de que fala Benjamin na tese VI” (KIRSCHBAUM, 2004, p. 109).

39
Em nota de rodapé, Kirschbaum se questiona: “Será o filósofo neoplatônico e poeta Shlomo ben
Yehuda Ibn Gabirol (~1021-1050 ou 1052 ou 1070), conhecido como Avicebron?” (KIRSCHBAUM,
2004, p. 106).
103

O exemplo serve aos objetivos propostos por Kirschbaum. Para o estudioso, em


Viagens de Ahasverus, é perceptível a manifestação ética de Rawet em seu fazer
literário:

[...] por meio da criação de um narrador confinado à mente do protagonista e


que, em vista do silenciamento que lhe é imposto pelas circunstâncias
narradas, dedica àquele, incondicionalmente, todo o espaço necessário para
que se expresse, estratégia narrativa que encontra sua realização plena no
discurso indireto livre (KIRSCHBAUM, 2004, p. 113).

Essa manifestação ética é obtida no tratamento formal que o objeto literário


apresenta. No caso de Viagens de Ahasverus, outra intervenção importante é aquela
realizada pelo escritor na forma da lenda que, diferentemente, da versão mais
tradicional, não contribui para a união da comunidade, mas para o apontamento das
origens de sua dispersão. Trata-se, no caso de Rawet, de uma lenda que marca os
deslocamentos temporais e espaciais das personagens, e que nunca as leva rumo à
estabilização: “É, assim, a própria literatura que está em questão, em sua capacidade
instrumental, em sua vocação de meio de expressão de um ideal transcendente, religioso
ou filosófico ou histórico” (KIRSCHBAUM, 2004, p. 114).
Com a leitura da obra e, especialmente, de uma das últimas metamorfoses de
Ahasverus em Samuel Rawet, Kirschbaum conclui que a personagem se constitui no
autor da obra que está sendo lida: “Está rompida a hierarquia causal e instalada uma
circularidade. O ‘autor’ é nada mais que um dos aspectos da personagem, aquele que
resume sua longa peregrinação” (KIRSCHBAUM, 2004, p. 115).
Para confirmar a tese, o estudioso afirma que:

Samuel Rawet, escritor, é a somatória, a confluência de todas as


metamorfoses de Ahasverus. Ahasverus, a própria imagem do exílio, é então
metáfora da literatura. A memória do eterno exílio do povo judeu, que é
narrativa, constitui Samuel Rawet em escritor, capaz, enfim, de narrar essa
história e, por meio dessa narrativa, efetuar a derradeira metamorfose.
Ahasverus que, no final de sua longa trajetória, se metamorfoseia em
Ahasverus, simboliza o povo judeu que, através da narrativa, da recuperação
de sua memória, poderia voltar a identificar-se consigo mesmo, já que
História é narração, e a capacidade narrativa é atributo do sujeito da História.
Mas o esforço frustra-se, a narrativa é impossível, Ahasverus é um
personagem silenciado (KIRSCHBAUM, 2004, p. 115).

Nota-se que, por vias diversas, na conceituação que concebe o sujeito como
constituinte da História e que apresenta como processo que liga esses dois elementos
104

(Sujeito + História) à condição de narrar, Kirschbaum se aproxima de Baibich (2007).


Porém, o tratamento que a literatura recebe nesses dois trabalhos é diverso.
Na conclusão do capítulo, Kirschbaum reforça que a maior característica da obra
reside no sentimento de exílio, na ética da literatura e na responsabilidade do autor.

A “maior tentação” de Ahasverus é “a exigência interna do ser, e o


estabelecimento de um sentido pessoal de ética”. Como “tentação”, na
tradição grega, evoca o canto das sereias da Odisséia de Homero (e o próprio
Ahasverus se diz “envolvido pelo poder encantatório da melopeia”, p. 23),
encerro (deixo aberto) esse capítulo com uma questão: para onde viaja
Ahasverus? Levinas marca seus conceitos de “grego” e de “judeu” - sua
posição entre filosofia ocidental e pensamento judaico - observando que,
enquanto as viagens de Ulisses o levam de volta, para casa, Abrahão deixa a
casa de seus pais para sempre, rumo a uma terra ainda desconhecida. Em
outras palavras, o “grego” sai de si apenas para voltar a si - Ulisses tem para
onde voltar; enquanto o “judeu” sai de si em direção ao Outro sem mais
retornar ao Mesmo (KIRSCHBAUM, 2004, p. 115-116).

O último capítulo de análises, dedicado a “Que os mortos enterrem os seus


mortos”, inicia-se com a defesa do distanciamento do contista do trato explícito dos
temas judaicos: “O que sobra então? Sobra o homem e sua condição humana, suas
angústias, seus ódios, sua sexualidade. Suas necessidades mais primárias, tais como
alimento, abrigo e (Rawet incluirá) vingança” (KIRSCHBAUM, 2004, p. 122), o que
pode ser exemplificado no conto “O riso do rato”, por exemplo.
Aqui, traça o que entende pelas estratégias do contista no trato dessa literatura:

O procedimento empregado por Rawet, então, consiste em um progressivo


apagamento dos traços paradigmáticos de suas personagens, para se
aproximar do ser humano tout court; lembra a pintura abstrata, na qual o
artista parte da representação do mundo físico e sucessivamente busca ocultar
esse modelo real apagando seus traços distintivos, seus contornos, sem nunca
porém atingir o completo apagamento – sempre é possível reconhecer a
figura original, o ponto de partida, o real por trás do abstrato. Também Rawet
não retira os limites do apagamento (KIRSCHBAUM, 2004, p. 124).

Esse procedimento será tratado por nós, por exemplo, como o falso abandono da
cultura judaica, o que reflete na abordagem, apenas referencial, das personagens
possivelmente judias.
Para concluir o capítulo, Kirschbaum afirma que a obra pode ser lida

[...] como uma tentativa literária de prospectar o “fundo obscuro da


existência” – Rawet nos apresenta um ser humano escravizado por suas
paixões, em estado de servidão, mas que procura formar, de suas paixões,
uma idéia clara e distinta; a meu ver, explicitando o relacionamento entre
literatura e ética (KIRSCHBAUM, 2004, p. 135).
105

No item dedicado às conclusões, reforça a esperança de ter demonstrado essa


característica através de duas outras fundamentais: “[a] sua profunda preocupação ética
que repercute até mesmo em seu fazer literário, desdobrado metalingüisticamente, e [b]
seu relacionamento particularmente difícil com o judaísmo” (KIRSCHBAUM, 2004, p.
139). O estudioso afirma que esses dois polos são aspectos de um mesmo fenômeno. No
caso da citada metalinguagem, se refere ao conto “Parábola do Filho e da Fábula” e à
novela Viagens de Ahasverus.
Assim, uma noção de literatura se constrói: “Se a literatura é profecia, então o
ato de escrever é uma exigência ética, e a função do escritor é berrar, ou seja,
denunciar, resistir, apontar para as fissuras que ameaçam, antes mesmo que elas se
tornem visíveis” (KIRSCHBAUM, 2004, p. 145, grifos no original). Contrariando a
ideia de que a literatura seria legítima se portasse em seu bojo a missão, ou a renuncia
da liberdade em prol dos oprimidos, para, assim, produzir a literatura engajada, “Samuel
Rawet defendeu a não-utilidade da literatura, conseqüência imediata da não-
transcendentalidade do sentimento ético no ser humano” (KIRSCHBAUM, 2004, p.
145, grifos no original). Segundo Kirschbaum, o autor rejeita a ideia de obrigação em
ser útil, ou de conformar as ações a conjuntos de regras morais alinhando-se às
propostas de Adorno, nas questões sobre a literatura engajada.
Como conclusão, assinala que, como evidência de que Ética e Literatura,
somadas ao relacionamento difícil com o judaísmo concreto (haláchico), são faces do
mesmo fenômeno: “[...] essa mesma resistência é empregada por Rawet para se opor à
vida comunitária, à transmissão mecânica de uma tradição que vê como vazia,
despojada de significado, deixando emergir um judaísmo em crise” (KIRSCHBAUM,
2004, p. 146). Esse judaísmo em crise foi definido por Kirschbaum como não-
haláchico, ou seja, em que apenas o fato de se ter nascido judeu não garante a pertença
vitalícia ao judaísmo (KIRSCHBAUM, 2004, p. 146).
Na tese de Chiarelli (200740), as discussões se voltam para o estudo da literatura
de base ou sobre a imigração. A ideia é destacar aspectos da experiência imigratória em
autores que agregam novos ângulos à discussão: Rawet e Milton Hatoum, “[...] nomes
obrigatórios para aqueles que desejam vislumbrar a representação da alteridade na
literatura brasileira” (CHIARELLI, 2007, p. 15). Desse modo, serão contempladas as

40
Nos bancos de dados, não foi encontrado o arquivo da tese, concluída em 2005. Todas as citações
referem-se à publicação em livro.
106

seguintes obras: Contos do Imigrante, de Rawet; e Relatos de um certo oriente e Dois


irmãos, de Hatoum.
A estudiosa afirma que sentiu a necessidade de iniciar a sua pesquisa “[...]
promovendo uma espécie de diálogo, situando as estratégias narrativas de Samuel
Rawet e Milton Hatoum para lidar com a questão da tradução cultural” (CHIARELLI,
2007, p. 17). Além da introdução e das considerações finais, o estudo apresenta mais
três capítulos: “I – Samuel Rawet e Milton Hatoum: Estratégias para Lidar com a
Diferença”, “II – O Relato Híbrido do Imigrante”, “III – Palavra-Pedra ou uma Leitura
de Cicatrizes”.
A reivindicação a uma localização teórica se faz presente logo nas primeiras
páginas. Para ler as narrativas, serão levadas em conta as questões referentes ao duplo
pertencimento e à diferença:

Ainda que determinadas contribuições desse tipo de abordagem se façam


presentes na análise dos textos, sobretudo para uma compreensão do sentido
político do trabalho intelectual, é no universo dos Estudos Culturais que situo
o meu estudo, nos movimentos internos, da subjetividade, em resposta às
marcas identitárias (CHIARELLI, 2007, p. 18-19).

Com esta passagem, a pesquisadora é a primeira a situar um estudo sobre Rawet


no campo dos Estudos Culturais. Metodologicamente, e com referência à análise da
coletânea de Rawet, a autora destaca que partirá da leitura dos contos. Desse modo, irá
problematizar “[...] questões específicas trazidas pela escrita de Rawet, a exemplo da
crise da experiência, do tópico da literatura de testemunho e da idéia de uma literatura
menor”. (CHIARELLI, 2007, p. 21). Esses aspectos serão analisados à luz do panorama
literário da estreia oficial de Rawet em nossa literatura.
É do primeiro capítulo que destacamos a lembrança que a estudiosa faz dos
aspectos formais na literatura do contista:

Rawet trabalha com o conto, gênero narrativo que recusa a idéia de uma
totalidade sugerida pelo romance. Caracterizada pela brevidade, a narrativa
curta, se comparada à novela e ao romance, condensa e potencia no seu
espaço todas as possibilidades da ficção (CHIARELLI, 2007, p. 47).

A estudiosa, acima, está pensando nos conceitos de Bosi (1985), em estudo


resenhado por nós no primeiro capítulo. No entanto, é importante alertar que tal noção
serve, apenas, como ponto de partida, afinal de contas, a brevidade do conto, e sua
107

configuração como narrativa curta, são questionadas com a apresentação dos próprios
objetos literários, a exemplo de “BRRKZNG: pronúncia – bah!”, de Rawet.
Pulando, deliberadamente, o segundo capítulo – específico na apresentação da
narrativa de Hatoum – do terceiro, dedicado a Rawet, destacamos a afirmativa de que
“[...] controversa e desafiadora, a literatura de Rawet passa indiscutivelmente por um
momento de revalorização. Esquecida por décadas, conhece atualmente a possibilidade
de ser apreciada por novos leitores” (CHIARELLI, 2007, p. 97). Além do crescente
interesse acadêmico pela obra de Rawet, o cenário inclui o recente lançamento dos
contos e novelas do autor, pela Civilização Brasileira.
Neste ponto, sintetiza a importância da coletânea a ser analisada, Contos do
Imigrante:

Nos contos que compõem a obra, traz novidade, tanto no conteúdo quanto na
forma dada à narrativa. Privilegiando os instantes, abandona a tradicional
linearidade do relato e funde tempos narrativos. O caráter de ruptura e de
isolamento da condição do imigrante judeu adquire aqui máxima
importância, aprofundando a temática antes referida nas obras de autores
como Mario de Andrade e Alcântara Machado [...] (CHIARELLI, 2007, p.
98).

Nota-se, até aqui, que o pensamento de Chiarelli estabelece uma crítica muito
alicerçada nos argumentos de Assis Brasil. Em mais esse trecho, sinaliza para um modo
de abordagem de Rawet e de sua obra, negando a contribuição dos estudos que utilizam
do grau de maldição do escritor como critério de valor na apreciação dos seus escritos e
a impressão de que a sua proposta irá promover o resgate redentor de sua obra. Trata-se,
por outro lado, de modos de apresentá-lo aos novos leitores: “É urgente promover o
debate em torno dos escritos de Rawet, a reflexão sobre seus contos, novelas, peças de
teatro e ensaios filosóficos, sem se ater tanto ao rótulo outsider que recebeu”
(CHIARELLI, 2007, p. 100). Neste trecho, a estudiosa parece responder aos critérios e
escolhas metodológicas de Baibich (2001), que, por sua vez, ancora-se em Igel (1997) e
Scliar (1984; 1985). Parte dessa crítica, segundo Chiarelli, é muito rigorosa quanto às
atitudes do escritor:

A literatura de Rawet gera sempre uma espécie de incomodo que torna


problemática a abordagem desses textos por não participar de uma dita
“literatura judaica”, vale dizer, que represente valores específicos que visem
à percepção de estereótipos ou mesmo à institucionalização da origem que
reforça a identidade (CHIARELLI, 2007, p. 104).
108

Mais adiante, nomeia parte desse seguimento da crítica:

Leituras como a de Regina Igel ou de Moacyr Scliar sugerem essa faceta


desconfortável na recepção do autor por parte da comunidade, sobretudo no
que se refere ao rompimento radical com os laços judeus, fato muitas vezes
associado única e exclusivamente aos já comprovados distúrbios mentais que
acometeram o escritor no final da vida (CHIARELLI, 2007, p. 104).

No caso de Scliar, Chiarelli se refere ao citado A condição judaica para extrair


essa crítica. Em outro momento, justificando seu ponto de vista sobre o escritor, lido
como teórico, esclarece que, filho de imigrantes judeus de ascendência russa, nascido
em Porto Alegre, em 1937:

Moacyr Scliar é amplamente conhecido por incluir em suas obras a figura do


imigrante e a temática judaica. Entretanto, o escritor aborda o assunto em
perspectiva radicalmente distinta daquela de Samuel Rawet: a experiência da
imigração, ainda que por vezes dolorosa, é vista em aspectos mais positivos,
talvez pelo fato de o autor pertencer à segunda geração de imigrantes
(CHIARELLI, 2007, p. 105).

Ressalta-se, por outro dado, que a obra do mesmo é muito vasta, o que amplia as
suas áreas de atuação41. O tratamento da condição do imigrante judeu é, apenas, uma
das diversas faces de sua produção.
Na definição da linguagem de Rawet, a autora cria um conceito: linguagem
pedra. “Em Rawet, a linguagem assume feição árida, ensejando a dureza que me
motivou a nomeá-la de linguagem pedra, dado o grau de resistência, de impossibilidade
que transmite” (CHIARELLI, 2007, p. 115, grifos no original).
A estudiosa se refere ao que denomina influências, para destacar que, levando-se
em conta o momento de produção dos textos de Rawet, o momento de produção de sua
literatura é pautado por categorias modernas. Por isso, defende uma maneira de leitura
dessa produção:

[...] parece-me mais rentável, do ponto de vista histórico e literário, ler a obra
de Rawet a partir da perspectiva moderna, sem entretanto abdicar de
verificar que no bojo de sua temática estão presentes questões
contemporâneas, a exemplo do tópico da intolerância, da estrangeiricidade e
da diáspora (CHIARELLI, 2007, p. 116).

Já como parte do desenvolvimento de suas análises, a exemplo de Kirschbaum


(2004), afirma que “Samuel Rawet demonstra que sua literatura é algo vivido com uma
41
Sobre o tratamento da condição judaica na obra de Scliar, cf. Waldman (2003b) e Vieira (1998b).
109

manifestação intrinsecamente ética, inseparável de seu posicionamento como ser


humano frente às questões de seu tempo” (CHIARELLI, 2007, p. 139).
Como conclusão da parte dedicada às análises dos contos de Rawet, referindo-se
às personagens do livro, reforça que as mesmas

[...] compõem distintas maneiras de se relacionar com o legado cultural de


que fazem parte. Questionar, aceitar, profanar, constituem posturas possíveis
diante dessa herança cultural. Por meio de figuras sofridas e conflituadas,
Rawet problematiza os impasses de identidades marcadas pela constante
redefinição de valores e territórios (CHIARELLI, 2007, p. 150).

Aproximando-se das considerações finais, Chiarelli defende que sua realização,


uma leitura comparativa, demarcou as principais distinções entre as obras dos dois
autores sobre a representação do imigrante na literatura brasileira.
No caso específico de Rawet, os resultados obtidos pendem para as conclusões
de Kirschbaum (2004):

A literatura rawetiana insiste em denunciar o acanalhamento dos sentidos, em


um contexto de ideologias esvaziadas, de falta de ética, do cinismo e da
solidão. Sua obra não propõe o reencantamento do mundo; ao contrário,
parece gritar o dilaceramento da existência humana, marcada pela falta
constante. Ainda assim, o escritor se agarrou à literatura com unhas e dentes,
instalando-se nesse território nem sempre hospitaleiro, mas na medida do
possível, acolhedor (CHIARELLI, 2007, p. 153).

Mais adiante, resume a relação do escritor com a tradição judaica:

Reafirmando em seus escritos a impossibilidade de perpetuar a transmissão


da experiência, o autor questiona o papel da memória, cujo culto é
fundamental nessa tradição. Dessa maneira, se desconecta de todo e qualquer
vínculo: desprovido voluntariamente de laços sociais, familiares ou culturais,
Rawet encarna o romântico papel do maldito ou excluído. Perpetuar tal
abordagem não agrega nenhuma contribuição à leitura crítica do autor, daí
minha opção por atritar, em determinados momentos, seus escritos aos de
outros escritores brasileiros. Penso que, em minha leitura da obra rawetiana,
está presente o gesto de aproximar Rawet de seus pares, evitando, dessa
forma, que ainda uma vez o isolamento seja a marca de sua obra
(CHIARELLI, 2007, p. 154-155).

A autora afirma ainda que acredita “ter contribuído para construir uma ponte
teórica que facilite o acesso a esses textos, considerando que existem apenas tentativas
tateantes de se aproximar de alguns dilemas que atravessam as obras estudadas”
(CHIARELLI, 2007, p. 155). Tratando dos estudos sobre a obra de Rawet, esse
110

comentário final desconsidera muitos daqueles que aqui foram apresentados. Algumas
dessas pesquisas, em nenhum aspecto, podem ser consideradas tateantes.
Os objetivos do estudo de Engellaum (2006) são “fazer renascer o interesse pela
leitura da obra de Samuel Rawet [...] e despertar nos meios acadêmicos o desejo de
melhor entendê-la” (ENGELLAUM, 2006, p. 6). A realização de Verdi (1989) nos
mostra que esse desejo esteve adormecido, pelo menos academicamente, por dez anos, o
que se modificou com o trabalho de Fortes (1999). Desde então, com exceção de 2003,
encontra-se, pelo menos, um trabalho defendido sobre Rawet ao ano.
Em sua apresentação, justifica as motivações para a escolha do autor
relacionadas às suas origens judaicas. Antes, destaca que estudou em seu mestrado
Moacyr Scliar: “Scliar foi descoberta; Scliar é constante revelação. Rawet é descoberta,
revelação de seu ‘eu’ e de meu próprio eu. Rawet é a constante problematização do
judeu e da condição humana de maneira geral” (ENGELLAUM, 2006, p. 6). Adiante, a
autora define sua relação com a literatura desses dois escritores como “formas de
reviver esse psiquismo, de me auto-explicar tantas coisas, de enxergar em mim virtudes
e neuroses, minha paranóia judaica etc” (ENGELLAUM, 2006, p. 11).
Sobre o possível questionamento do porquê de estudar, agora, Samuel Rawet, os
motivos passam a ser determinados depois da leitura de duas de suas obras:

Ele expressa em sua trajetória meus mais profundos conflitos, meus


profundos temores. Enquanto lia Os sete sonhos e Abama, passei a respirar, a
viver minha ancestral melancolia judaica, e estas são as melhores obras,
sejam filmes, livros ou músicas, aquelas que nos levam aos nossos limites.
Este o sentido mais panorâmico da leitura revelação (ENGELLAUM, 2006,
p. 11).

A autora define a sua abordagem como social e psicológica, o que será


desenvolvido na primeira seção do trabalho, “Abordagem teórica”. Desse modo, a
reflexão será sustentada por três pilares:

Inicialmente, o momento histórico da chegada de Rawet no Brasil, e a época


em que aqui viveu. O segundo pilar apoia-se na visão da identidade judaica,
como complexa, multifacetada, na qual a melancolia está sempre presente,
combinada ao estranhamento e à solidão, elementos que marcam
intensamente a obra de nosso escritor. O terceiro pilar remete-nos à afinidade
da visão de mundo de Rawet com existencialistas e o plano maravilhoso que
pontua a obra de Franz Kafka. Entre muitas obras de escritores judeus que
conhecemos, o absurdo e as marcas do surreal podem ser encontradas, uma
expressão do estranhamento de si e do mundo (ENGELLAUM, 2006, p. 13).
111

Para tanto, as obras escolhidas serão Abama e Viagens de Ahasverus, livros que
compõem, com relação ao conjunto da produção de Rawet, juntamente com Crônicas de
um vagabundo, uma trilogia, de acordo com a estudiosa. Aqui, a mesma não atribui à
Verdi (1989) a elaboração da ideia sobre a possibilidade de leitura das obras de Rawet
como uma trilogia, o que servirá, mais tarde, como mote para a realização de um dos
capítulos da dissertação de Fernandes (2002), igualmente ignorado por Engellaum. A
justificativa do recorte ocorre adiante:

As duas [novelas] que pinçamos são talvez as mais significativas da


abordagem, da solidão, da dor e a decorrente incomunicabilidade,
universalizadas pelo autor através de personagens marginais, que assim o são
ou por opção ou por condições concretas de nossa sociedade
(ENGELLAUM, 2006, p. 13).

No trecho que se segue, a mesma insere Rawet numa visão psicologizante que,
durante muito tempo, prevaleceu nos estudos literários: “Sintetizando, o que há em
essência de comum entre os autores românticos e Rawet é viver realmente a dor e o
ostracismo de seus personagens” (ENGELLAUM, 2006, p.14). Nesse caso, a visão de
parte da crítica desenvolvida no século 19, deveria, ao menos, ser modalizada42.
A “Seção 1”, abordagem teórica, apresenta e situa os movimentos históricos e
sociais que envolveram os primeiros anos de vida do escritor. Ênfase especial é dada ao
período da era Vargas, em seu primeiro governo, que durou entre 1930 e 1945.
O pós-guerra e o surgimento da Geração de 45, de acordo com a autora,
demarcaram, na literatura, forte experimentação técnica, que desembocaria em 1956, no
lançamento de Contos do Imigrante. Nos anos 1960, com as imagens do
desenvolvimento industrial projetadas pela televisão, novidade tecnológica, e com a
construção de Brasília, viria a culminância desse processo de efervescência
desenvolmentista.
Os cenários sociais e históricos muito bem recriados pela pesquisadora irão
justificar, segundo ela, a ideia de que: “[...] toda esta instabilidade social, política e
econômica, alternada por momentos de democracia e períodos ditatoriais que vimos
anteriormente, se expressa de maneira bastante peculiar na obra de Rawet”
(ENGELLAUM, 2006, p. 19). Desse modo, o panorama social e histórico do período é
traçado para que a estudiosa justifique o entendimento de que:

42
A esse respeito, conferir o estudo de Hansen (1998).
112

[...] a época se expressa de maneira singular no conjunto da obra de nosso


autor, pois em nenhum momento de sua vida e em sua produção artística
Rawet cedeu às ilusões de euforia da era JK, apesar de ter se envolvido
profissionalmente no projeto mais ambicioso deste presidente, a construção
de Brasília. Rawet também não compactuou em vida e em sua arte com as
ilusões do milagre da ditadura militar, e esta dignidade não decaiu no período
em que sua família se beneficiou do Milagre Brasileiro (ENGELLAUM,
2006, p. 19).

Esse quadro afetaria na escolha do tom melancólico dos textos de Rawet.


Engellaum destaca que Rawet não deixou um conjunto de textos, especificamente,
voltados para aspectos políticos, ao contrário de Antônio Callado e Graciliano Ramos.
Mesmo assim, “[...] deu voz àqueles que, por opção ou por falta de saída, se colocaram
à margem das roldanas sociais, principalmente os vagabundos, que na sua forma de
existência são uma afronta e uma denúncia desse maquinismo apodrecido”
(ENGELLAUM, 2006, p. 19). Por outro lado, a falta de tratamento abertamente político
dessa literatura não exclui o seu potencial politizador, se estamos nos termos de atribuir
uma função específica para esta arte.
A fundamentação segue na investigação a respeito da identidade judaica. A
conclusão da estudiosa é que

[...] a necessidade de situar outra vez o judaísmo nesta virada de século


assemelha-se, para o povo hebreu, em sua devida medida, ao impacto que a
chegada à América provocou no continente europeu, que se viu necessitado
de elaborar novas categorias para conhecer o mundo recém descoberto
(ENGELLAUM, 2006, p. 23).

Em seguida, se detém na investigação dessa identidade na contemporaneidade e


constata a impossibilidade da definição unívoca da identidade judaica, além de sua
permanência viva, porém, fragmentária, como nos tempos idos do povo hebreu.
Resenhando Freud, em Mal-estar na civilização, afirma que “todo homem sofre uma
coerção social para que a civilização possa se estabelecer, as pulsões primitivas
precisam ser reprimidas pelo superego para que a sociedade não mergulhe num estado
de animalidade” (ENGELLAUM, 2006, p. 25). O resultado será o agravamento desse
conflito:

Se para as pessoas em geral esse conflito torna o ego social diferente do id,
para os setores minoritários, que vivem em constante processo de
readequação, particularmente na etnia judaica o estranhamento social e o
113

auto-estranhamento, esse conflito é mais agudo e gritante (ENGELLAUM,


2006, p. 25).

O próximo passo, ainda nesta seção teórica, é estabelecer uma conexão entre
Rawet, sua obra e a identidade problemática que vem sendo definida nas seções
anteriores. O que segue é a exemplificação em Viagens de Ahasverus dos porquês de tal
definição. Esse processo ocorre, por exemplo, quando a mesma afirma que, nesta
novela, simbolização da lenda do judeu errante:

[...] não há exatamente um enredo bem contornado, o que vemos são as


metamorfoses do protagonista situadas em lugares diversos. Essas
transmutações permanentes expressam o intenso estranhamento de
Ahasverus/Rawet, diante de si e perante o mundo que o cerca, as
transmutações são tantas e algumas são fantásticas (ENGELLAUM, 2006, p.
25).

Até a conclusão do sub tópico, a estudiosa esquece-se, porém, de realizar a


justificação a respeito de Abama, anunciada em momento anterior.
A leitura social e psicológica de Rawet continua:

Se Lowy define o pensamento de Kafka como expressão de um socialismo


romântico, podemos, de nossa parte, afirmar que o legado de Rawet contém
um conteúdo também libertário, porém não de cunho romântico, mas sim
uma busca desesperada e corrosiva da alma de romper as correntes que a
aprisionam. Se há algo que aproxima Rawet dos primeiros escritores
românticos é a fusão entre vida e obra; em Rawet, as angústias e buscas
desesperadas de seus personagens se confundem com o que foi a busca que
marcou sua vida e seu trágico fim (ENGELLAUM, 2006, p. 28).

No excerto acima, a estudiosa continua transpondo para o estudo de Rawet certa


visão psicologizante de um seguimento da crítica atribuída à produção romântica.
A aproximação comparativa com Kafka pretende estabelecer uma agregação de
valor a Samuel Rawet, pois os dois vivenciaram as tragédias das formas autoritárias e
expressaram a reificação da condição humana, ambos os processos no âmbito da
modernidade:

O pessimismo de ambos expressa uma intensa inquietude, não só do judeu


excluído, mas a inquietude universal do ser no mundo moderno.[...] Se na
obra de Kafka encontramos uma poética próxima do maravilhoso, em Rawet
encontramos uma obra que associa o maravilhoso ao corrosivo
estranhamento (ENGELLAUM, 2006, p. 28-29).

A seção dois é dedica à fortuna crítica do autor. A leitura dessa parte e a


verificação dos críticos arrolados, no entanto, nos permitem afirmar que a pesquisadora
114

pinçou, somente, os estudiosos mais conhecidos da obra de Samuel Rawet. Nesse


período, se, por um lado, foi impossível consultar uma obra que organizasse parte da
fortuna crítica do pesquisado, por outro, as leituras de Seffrin (2004) ou mesmo
Kirschbaum (2000), seriam capazes de sinalizar para outros materiais críticos sobre o
seu objeto.
Na seção seguinte, “Confrontando vida e obra”, modaliza o próprio discurso:

[...] os textos de Rawet não são apenas exposições de “fantasmas” ou


explosões irreprimíveis de “fendas” esquizóides: são elaborações artísticas
que nascem da “consciência da infelicidade”, como nos disse Blanchot, e não
de uma simples compensação da infelicidade (como o faz a literatura de mero
desafogo), ou de uma patológica compensação (os textos dos psicóticos a
quem se lhes deu papel; as telas dos alienados que meramente expõem a
nudez de sua cisão) (ENGELLAUM, 2006, p. 38).

No trecho seguinte, explicita a forma que a literatura de Rawet está sendo


considerada para a construção da análise: “produto de diversos tipos de exílio e procura
demonstrar o quanto a página em branco é o cenário ideal para que contracenem as
múltiplas vozes de nosso autor” (ENGELLAUM, 2006, p. 39).
Excetuando-se o caráter generalizador de algumas afirmações, as noções de
Engellaum (2006) parecem maximizar alguns dos posicionamentos de Baibich (2007).
Adiante, a categoria heroi será utilizada na descrição de Rawet:

Herói que se aventura por obscuros labirintos, que evidencia em sua escritura
o intenso convívio com material inconsciente, Rawet é inseparável de suas
personagens; sua vida é de tal forma próxima ao que se poderia imaginar
como a de um anti-herói trágico, que poderemos até mesmo dizer que é
possível, através de seus escritos, ensaios, contos, novelas, buscar uma trilha
única na literatura brasileira (ENGELLAUM, 2006, p. 39).

Aqui, sinaliza para um responsável por todo o processo descrito acima: a falta
absoluta de identificação com o pai: “[...] sendo o lugar do pai um lugar vazio, nada
mais natural do que passar a odiar seu povo, rejeitar sua cultura” (ENGELLAUM, 2006,
p. 42).
Depois de dedicar dois tópicos à leitura da obra ensaística de Rawet, a quarta
seção, “Abama: Obra representativa”, é dedicada à leitura desta novela. O grande
esforço empreendido na análise de tal obra resulta na sua vasta apresentação. A autora,
para facilitar a sua exposição, divide a seção em quatro sequências e se detém na
verificação das mesmas. Utiliza-se, para isso, uma nomenclatura voltada para a leitura
da narrativa, ancorada em Genette, em Discurso da narrativa, em edição de 1997.
115

Na seção cinco, realiza a leitura analítica de Viagens de Ahasverus. Para a


estudiosa, a obra, produzida na década de 1970, corrobora o pensamento de que, com
relação ao escritor, “seu corpo, suas percepções, seus sentimentos constituem a base
empírica a partir da qual o autor especula a realidade em seus ensaios, bem como
elabora seu universo ficcional” (ENGELLAUM, 2006, p. 75).
Mais adiante, a afirmativa de que:

Ahasverus é uma obra síntese de Rawet, não só pela reunião dos temas
obsessivos, mas sobretudo pelo fôlego com que é desenvolvida a narrativa. É
um texto de referências explícitas em seu intertexto a suas obras já criadas, é
portanto uma intertextualidade consigo próprio, melhor colocando, com sua
própria criação (ENGELLAUM, 2006, p. 76).

Nota-se que tais conclusões são a base do estudo de Fortes (1999), brevemente
descrito por nós, entre as dissertações sobre Rawet. Este último estudo, por sinal, não é
mencionado por Engellaum em nenhum momento de sua pesquisa.
Seguindo a perspectiva adotada na análise de Abama, Engellaum (2006),
novamente, divide a análise em tópicos. Dessa vez, contempla, em um primeiro
momento, a personagem Ahasverus; em seguida, as categorias autor, narrador e
personagem, a fim de investigar o ser no tempo e espaço da narrativa; e, no terceiro
momento, chegar a discussão temática da sexualidade, culpa e poder na obra; e, por fim,
a questão da loucura. O que se obtém é um resultado abrangente, didático e claro da
leitura realizada do texto literário.
As conclusões giram em torno da impossibilidade de desvincular Rawet de sua
obra, pois, “suas personagens angustiadas, solitárias, com uma permanente
incomunicabilidade com o outro, nos levam a deduzir esta possibilidade e talvez
possamos denominar o protagonista presente de Ahasverus/Rawet” (ENGELLAUM,
2006, p. 79). A análise diagnóstica conclui que a personagem Ahasverus “é exposição
perturbadora da condição do ser solitário que, por isso, aproxima-se da esquizofrenia,
ser que, como se sabe, tem uma relação muito especial consigo, com o mundo, com a
religião, podendo verdadeiramente sentir-se o próprio Deus” (ENGELLAUM, 2006, p.
79).
A esse respeito, a estudiosa, porém, faz um aparte:

[...] essas personagens nem sempre vivem em absoluto estado psicótico ou


esquizóide, o que podemos atribuir ao estado de profunda consciência, que
faz a alma doer e sangrar. No autor, como já vimos, ele sangra seus demônios
116

em forma de uma escritura tão dolorosa quanto nossa condição no mundo.


Produz eventualmente delírios, que não são desconexos, ao contrário,
carregam lucidez e inteligência (ENGELLAUM, 2006, p. 84).

Para valorar o autor, Engellaum aponta como única responsável pelo papel
destacado que Rawet possui na literatura, a transposição na escrita dos problemas
advindos de uma condição judaica. A inserção inusitada da loucura faz parte desse
processo de destaque. A condição de judeu errante agruparia Rawet com intelectuais do
porte de Benjamim e Kafka.
Mais adiante, retrocede toda essa argumentação:

Não estamos, de forma alguma, afirmando que as obras de nosso autor sejam
meramente frutos de alucinações e delírios. Mas o que é possível supor é que
sua personalidade, marcada por traços significativos de neurose, aliada ao seu
desgarramento de sua família e comunidade, que, por sua vez, se conjugam a
uma inteligência arguta, tenham todos esses fatores contribuído para a
criação de uma escritura altamente original e inovadora (ENGELLAUM,
2006, p. 86).

Nas conclusões, afirma que o trabalho evidenciou uma unidade entre


protagonistas, pois todos se caracterizam como errantes em busca de sua identidade. O
resultado pode ter sido consciente ou não.
A análise confunde os objetivos de autor e personagens. Reforça que, ao
investigar essas últimas, encontrou “a mesma busca do autor, que expressa, por meio de
suas narrativas, a descida vertiginosa nos abismos da alma que sangra. Seu mito eixo é o
homem como ser errante e apartado do mundo, o exilado, o melancólico”
(ENGELLAUM, 2006, p. 87). A propósito, no título da tese, a alma que sangra é a de
Samuel Rawet.
Concluindo, afirma que o trabalho constatou que existem duas grandes vertentes
que influenciam a obra de Rawet:

[primeira] seu estranhamento em relação à sociedade, durante sua infância,


desenvolvida sob os auspícios da ditadura getulista [e; segunda,] já no
escritor adulto, vemos seu total exílio social diante da política
desenvolvimentista do governo JK, que cria uma hipócrita euforia social nos
setores mais favorecidos (ENGELLAUM, 2006, p. 88).

Sobre as obras analisadas, conclui que estas são, em última análise,

No conjunto das obras rawetianas reside a verdade do inconsciente coletivo


do homem que rejeitou ou mesmo daqueles que compactuam com a barbárie
neoliberal. Neste lugar não há Lei, não há Tempo, há apenas um aparente
ilogismo e todos os espaços se intercomunicam (ENGELLAUM, 2006, p.
90).
117

Para a autora, as imagens construídas por essa literatura se assemelham às do


surrealismo. A outra conclusão seria que, em nenhum dessas obras, Rawet pretende
bajular o leitor.
A tese de Gamal (2009) tem por objetivo estudar a representação do anfíbio
cultural na prosa de ficção brasileira. A definição dessa categoria é oferecida pelo
próprio estudioso: “Entende-se por anfíbio cultural a questão da temática do estrangeiro,
discutida por escritores, sobretudo, binacionais, oriundos dos movimentos de imigração
ocorridos no Brasil durante o século XX” (GAMAL, 2009, p. 04). Nesse sentido,
recorre-se às literaturas de Raduan Nassar, Per Johns, brasileiro de origem
dinamarquesa, Milton Hatoum, Samuel Rawet e Moacyr Scliar, respectivamente. O alvo
da pesquisa é a investigação, da representação de personagens com experiências
bilíngues ou binacionais.
Os capítulos da tese estruturam-se no sentido de contemplar cada um dos
autores. Na ordem, serão analisados, de Raduan Nassar, Lavoura Arcaica; de Per Johns,
Aves de Cassandra e Cemitérios marinhos às vezes são festivos; de Milton Hatoum,
Relatos de um certo oriente e Dois irmãos; de Samuel Rawet, Contos do Imigrante, e,
por último, de Moacyr Scliar, A Majestade do Xingu. Pelos objetivos de nosso estudo,
nos deteremos ao quarto capítulo.
Partindo da definição biológica do termo “anfíbio”, o estudioso esclarece que a
intenção “[...] é utilizá-lo ainda em outro significado: a representação literária do
escritor que vivenciou ou vivencia duas línguas-culturas de raízes diferentes” (GAMAL,
2009, p. 10). Essa vivência bi cultural será definida mais adiante.
A noção será aplicada, então, para dois grupos distintos:

[primeiro] os que tiveram a formação na terra em que nasceram, mas


receberam cultura e língua dos pais imigrantes; [segundo] aqueles que
vieram, ainda crianças, de país estrangeiro e cujas famílias se estabeleceram
em nova pátria, permitindo acesso à outra visão de mundo através da língua e
cultura locais. A integração ao mundo que os cerca, na maioria das vezes, se
dará de forma difícil e dolorosa. Haverá até aqueles que nunca se adaptarão
(GAMAL, 2009, p. 10).

Diante da definição desses dois grupos e dos processos históricos e culturais de


formação do país, um adendo importante é feito pelo próprio autor, na justificativa de
seu recorte e sustentação de sua categoria teórica:
118

Poder-se-ia discutir também o caráter anfíbio dentro da ramificação de


culturas oriundas do latim, isto é, entre as novas culturas românicas ou
neolatinas. Mas nosso objetivo nessa pesquisa é colocar em questão o anfíbio
cultural de culturas exteriores ao espaço ocupado por nações cujas línguas
tiveram como ancestral a língua de Roma (GAMAL, 2009, p. 11).

Depois de um balanço histórico, demonstra a ocorrência de processos de


influência das origens latinas na produção de nossas letras, em períodos e escritos bem
definidos. Um exemplo desse processo é o romantismo e, mais especificamente, José de
Alencar, responsável por vasta utilização de termos advindos do francês. Gamal reforça,
no entanto, que “[...] somente com escritores oriundos, uns de tradição nórdica, outros
de judaica centro e norte europeias e mais outros de origem árabe, nossas letras
receberiam sopro exterior ao círculo que sempre a gerou e ao qual pertenceu”
(GAMAL. 2009, p. 14).
Destacando a importância do seu estudo, o pesquisador afirma que a mesma
reside em duas constatações. Primeira: para que se perceba o reflexo do sentimento
“estrangeiro” na obra literária; e, segunda, para que se verifiquem suas influências e
características nessa literatura de origens portuguesas, mas com patamares universais.
O estudioso destaca que não irá negar que os escritores contemplados sofreram
algum tipo de influência da cultura ibérica e neolatina. Por outro lado, a tese tem por
intuito enfatizar que “[...] a duplicidade cultural produz vivências e visões de mundo
diversas e consequentes representações artísticas também diversas; isso nos permite
vislumbrar acréscimos à cultura a que pertencemos” (GAMAL, 2009, p. 15). Configura-
se nesta citação um dos objetivos centrais da tese. Para atingir este objetivo, a pesquisa
tem como objetos “[...] a literatura, a arte de representação chamada romance, as
questões que o gênero pode estabelecer e o trabalho estético com a linguagem”
(GAMAL, 2009, p. 17).
O autor sinaliza para a ocorrência da noção de anfíbio cultural em José Paulo
Paes (1999). Nesta obra, o último apresenta o ensaio “Os dois mundos do filho
pródigo”, em que analisa Aves de Cassandra e Cemitérios marinhos às vezes são
festivos, romances de Per Johns, e sinaliza para a necessidade da crítica brasileira
estudar os autores que produzem no contexto de duas línguas e culturas diversas. É
curioso perceber, com a leitura do ensaio, a visão de Paes sobre o potencial para a
pesquisa que esse grupo de escritores possui:
119

Não sei se a algum doutorando ou doutorável das inúmeras Faculdades de


Letras desta nação, onde se ensina tanta literatura e se mostra tão pouco
apreço por ela, já ocorreu estudar a representação do anfíbio cultural em
nossa prosa de ficção. Anfíbio [...] no sentido próprio de quem foi criado
dentro de duas línguas-culturas diversas (PAES, 1999, p. 68).

Entre sério e jocoso, Paes explica que a configuração do país em suas questões
de imigração, favorece o estudo. Por outro lado, poucos estudiosos tiveram a
sensibilidade e o talento para realizar tal trabalho. Não deixamos de notar que,
textualmente, o ensaísta cita todos os autores escolhidos por Gamal (2009) como alvo
de sua pesquisa. As obras citadas, no entanto, são Lavoura Arcaica, Relato de um Certo
Oriente, Contos do Imigrante, e “Leo”, provavelmente, um conto, de Scliar. O ensaísta
ressalta a possibilidade da existência de outros exemplos claros em que a ocorrência do
anfíbio cultural possa ser verificada (PAES, 1999, p. 68).
Igualmente interessante é vislumbrar a forma pela qual a leitura do pequeno
ensaio motiva a realização da tese. Ou seja, reaproveitando o conceito de Paes, Gamal
entende que:

O trânsito entre duas culturas, sobretudo a partir de autores oriundos do


movimento migratório, traz à literatura brasileira um dado novo, que só vem
enriquecê-la. Esse migrante, fruto do próprio movimento (emigração), ou
nele envolvido através da herança familiar, acaba por refletir em sua obra o
sentimento de precariedade, independentemente da língua-cultura em que se
encontra (GAMAL, 2009, p. 18).

O estudioso explica que, ao objetivar a representação romanesca, deixará de lado


os aspectos biográficos do escritor. Mas, por outro lado, pesquisará o que uma cultura
anfíbia apresenta de diverso de uma cultura de predominância unívoca: “Sabemos das
implicações dessa visão, talvez por habitarmos um mundo onde as influências se
cruzam e constatamos a inexistência de qualquer tipo de ‘purismo’ a respeito de
qualquer uma das culturas” (GAMAL, 2009, p. 18).
Gamal aponta como inovador em sua pesquisa o entendimento sobre a literatura
brasileira contemporânea lida como “[...] um sistema predominantemente de diversidade
cultural” (GAMAL, 2009, p. 19). Outra distinção a ser feita surge através da expressão
de Santiago (2004), que em palestra proferida nos Estados Unidos, em 2002, afirmou
43
que possuímos uma “cultura anfíbia” . Para Gamal, explicando o pensamento do

43
Nas palavras do próprio Santiago: “Por um lado, o trabalho literário busca dramatizar objetivamente a
necessidade do resgate dos miseráveis a fim elevá-los à condição de seres humanos (já não digo à
condição de cidadãos) e, por outro lado, procura avançar – pela escolha para personagens da literatura de
120

primeiro, “[...] a definição de literatura anfíbia é aquela que transita entre a Arte
(maiúscula dele) – na verdade entre o que ele entende por arte – e os antagonismos
políticos e socioeconômicos da sociedade brasileira” (GAMAL, 2009, p. 20).
O estudioso conclui a disputa teórica com Santiago no trecho a seguir, afirmando
que, no contexto em que definiu a nossa cultura como “anfíbia”, uma palestra no
exterior cujo público era composto, em sua maioria, por estrangeiros, a fala tornou-se
“[...] uma exposição generalizadora [que] depõe contra a tradição de diversidade sempre
presente em nossa literatura desde os primórdios de sua formação, ainda no não tão
distante século XIX” (GAMAL, 2009, p. 23).
Esclarecendo a conceituação generalizadora de Santiago (2004), a hipótese de
trabalho de Gamal seria, então:

[...] verificar como ocorre a transfiguração ficcional do anfíbio cultural, como


o definimos acima; de que modo as representações estéticas, ideológicas e
estruturais se manifestam em nossa prosa de ficção. Não seriam objeto de
estudo vivências anfíbias, mas a obra resultante em autores de tal procedência
(GAMAL, 2009, p. 24).

Na descrição do corpus, no momento em que situa a escolha de Contos do


Imigrante, o pesquisador afirma que a obra mostra a dor extrema do anfíbio diante da
inviabilidade do novo espaço em que aporta:

Sobrevivente do Holocausto, não consegue estabelecer a mesma linguagem


com os familiares que o recebem, restando a alternativa de estar
constantemente partindo; quando estabelecido na nova pátria, vive
mergulhado na solidão, ou no total isolamento. Em seus contos e novelas, ser
estrangeiro é quase como ser inviável (GAMAL, 2009, p. 26).

Gamal aponta um caráter generalizador, no bom sentido, que torna as obras


escolhidas como recorte para a análise um grupo coeso: “Todos esses livros, de um
modo ou de outro, permitem a abordagem da temática do emigrante e suas consequentes
questões no âmbito da diversidade cultural que o Brasil apresenta” (GAMAL, 2009, p.
26).
Na análise de Contos do imigrante, o estudioso utiliza os primeiros parágrafos
na construção de um prelúdio biográfico, demonstrando a relação da vida de Rawet no

pessoas do círculo social dos autores – uma análise da burguesia econômica nos seus desacertos e
injustiças seculares. Dessa dupla e antípoda tônica ideológica – de que os escritores não conseguem
desvencilhar-se em virtude do papel que eles, como vimos, ainda ocupam na esfera pública da sociedade
brasileira – advém o caráter anfíbio da nossa produção artística” (SANTIAGO, 2004, p. 66, grifo no
original).
121

trato social, que justifica o seu isolamento pessoal e profissional. Antes disso, há a
diferenciação entre dois tipos de imigrantes: “[a] aquele que mais cedo ou mais tarde, de
certa forma, adapta-se ao país onde desembarcou; e [b] o que nunca o consegue. O novo
país passa ser, para esse último, estranho por toda a vida” (GAMAL, 2009, p. 177). De
acordo com Gamal, as personagens de Rawet estariam contemplados no segundo grupo.
Concluindo a apresentação ficcional do primeiro conto, “O profeta”, Gamal
afirma que o mais importante na narrativa de Rawet é a atitude de recusa: “Seus
personagens jamais se entregam, mesmo antevendo o fim. A literatura acaba por
traduzir essa recusa. Uma vez que não há lugar para esses seres deserdados, a sua
condição essencial é ocupar a margem” (GAMAL, 2009, 183). O efeito obtido, ao final,
é a aproximação dessa prosa com o lugar da poesia.
Há na leitura de Gamal a lembrança de que é possível realizar a divisão entre
contos “judaicos” e “não judaicos” (GAMAL, 2009, p. 195), representados pelos cinco
primeiros e cinco últimos contos da coletânea, esquema que, nos parece, foi destacado
pela primeira vez por Kirschbaum (2000). Ao concluir as análises, retira de sua leitura
um denominador comum entre os contos: “A duplicidade, através das perspectivas
temporais passado / futuro, mostra o tráfego anfíbio da literatura de Rawet em toda sua
grandeza” (GAMAL, 2009, p. 200).
No tópico dedicado às conclusões, afirma que os contos “[...] tematizam,
sobretudo, a inviabilidade do refugiado judeu, mostrando que não existe remédio à dor
advinda do Holocausto. É como se o autor afirmasse: depois dos campos de extermínio
a humanidade tornou-se inviável” (GAMAL, 2009, p. 242).
Como conclusão, um discurso modalizador e convidativo sobre a literatura
apresentada ao longo da tese:

Os escritores pesquisados, oriundos da imigração, expandem os limites da


cultura brasileira. Mas – é importante afirmar – por terem abordado tal
temática não significa que sejam superiores a quaisquer outros autores de
ficção ou de poesia que trilharam caminhos linguísticos e temáticos diversos.
(GAMAL, 2009, p. 242).

Diante da conclusão de sua pesquisa, a originalidade das abordagens e das


construções dessa ficção foi apontada no trabalho de Gamal como uma judicação para
os futuros leitores de Samuel Rawet.
O estudo de Lilebaun (2009) se diferencia de todas as teses apresentadas até
então porque a autora adota o que poderia ser chamado de romance de tese para
122

estruturar o trabalho. Com o objetivo de investigar a relação entre escrita e judaísmo, no


contexto da literatura brasileira, elege três nomes: Samuel Rawet, Moacyr Scliar e
Cíntia Moscovich, esta última, uma novidade no campo estabelecido nos estudos sobre
Rawet.
Os objetivos da investigação são elaborados a partir das imagens de escritor e de
judeu que podem ser depreendidas das obras desses escritores. Ou seja, “[...] busca-se
traçar as diferentes possibilidades de tradução de um legado ancestral como o judaico”
(LILEBAUN, 2009, p. 06). A expressão “tradução” nos remete ao trabalho de Chiarelli
(2007). Lilebaun seria, então, a segunda a apontar a utilização de um referencial voltado
para os Estudos Culturais no estudo da literatura de Rawet. Neste contexto, a literatura
será considerada como fruto de uma tensão direta entre ficção e autobiografia, o que,
também, a aproxima dos estudos de Baibich (2007) e Engellaum (2006).
A seguir, descreve o tratamento que essa produção recebe na tese:

As vozes narrativas, nascidas da tensão entre a ficção e a autobiografia,


expressam uma busca por uma identidade sempre provisória e passível de
traição em diferentes graus, o que gera uma constante reflexão sobre a
herança judaica e sua conexão com a palavra e com a trajetória profissional e
pessoal da pesquisadora (LILEBAUN, 2009, p. 6).

A tese é dividida em oito partes. O primeiro capítulo, “O início: uma busca em


espiral ou uma judia ashkenazi autofágica perdida em terras literárias”, é misto de
introdução do estudo intercalado com um memorial da pesquisadora. O segundo,
“Glossário da busca em espiral – ou rede para o mergulho em espiral”, configura-se na
organização de um glossário com dezessete termos que serão utilizados na leitura de tais
obras. Nele, contempla categorias como arquivo, identidade, judaísmo etc. O terceiro,
“Procurando caminhos”, seria a articulação dessas categorias, num arranjo teórico,
preparatório para as análises. Os três capítulos seguintes serão dedicados aos autores
escolhidos e levam os seus nomes. O sétimo é dedicado às considerações finais e, o
último, às referências.
O primeiro pressuposto será o de que os três escritores são judeus em suas
escritas. Melhor dizendo, num processo de causa e consequência: os mesmos serão
tratados como judeus por causa de suas escritas. Outro pressuposto será pensar que “[...]
o campo da escrita é, para eles, a dupla e paradoxal possibilidade de dar continuidade à
tradição e de traduzi-la, modificá-la, criando, nesse fazer, a sua imagem peculiar de
judeu, a qual depende, em certa medida, da imagem de escritor” (LILEBAUN, 2009, p.
123

12). No caso de Rawet, a ideia subjacente a esta citação é que a imagem do judeu em
sua obra é uma só.
A estudiosa explica que sua motivação não é, apenas, acadêmica, profissional e
intelectual, mas pessoal e emocional: “Sou pesquisadora e pertencente a uma
comunidade científica, mas exibo a ela um laço com a comunidade judaica, algo que
teoricamente deveria ficar restrito a uma experiência individual e coletiva fora dos
muros universitários” (LILEBAUN, 2009, p. 13, grifo no original).
Ao possível questionamento sobre como inserir tal pesquisa em um programa de
pós-graduação em literatura brasileira, responde que “[...] tal qual faz parte de minha
identidade ser judia e brasileira – ou talvez a ordem dos adjetivos deva ser brasileira e
judia. Estou num espaço entre fronteiras, um entre-espaço, e é este espaço dúbio, dentro
e fora ao mesmo tempo, que constitui meu solo de enunciação” (LILEBAUN, 2009, p.
13).
Reforça que a representação do judeu não é única, o que não seria diferente no
início do século 21. Destacamos, de parte desse alerta, a passagem em que a mesma cita
três grandes grupos étnicos judeus:

De fato, é difícil para um judeu ashkenazi (da Europa) enxergar suas


semelhanças com um judeu sefaradi (da Península Ibérica e regiões da
África), e é ainda mais difícil que os dois se identifiquem com os judeus
negros, os Falashas, uma tribo isolada na Etiópia até o início de 1980,
quando foi montada uma gigantesca operação para levá-los a Israel
(LILEBAUN, 2009, p. 15).

Rawet e sua família pertenciam ao primeiro grupo. O excerto modaliza a nossa


impressão de que a estudiosa possui uma visão estereotipada dos judeus, ou seja, de si
mesma.
O processo de escrita dos três autores selecionados seria movido pela tradução
cultural. Esse processo apresenta diversos tipos de judaísmo no contexto atual
brasileiro: “A tradução é, sob esse prisma, uma escrita especial e paradoxal, pois cria
algo já existente e ao mesmo tempo inédito – a tradução é cópia, mas igualmente
criação” (LILEBAUN, 2009, p. 17).
Em seu terceiro capítulo, estabelece uma metodologia: admite que essa parte de
seu trabalho pode ser considerada uma demonstração de como não estudar os escritores:

Essa é uma parte que, sob uma ótica ortodoxa, poderia ser excluída. No
entanto, sua permanência obedece a uma opção específica de não apagar
124

caminhos de estudo, sob a justificativa de que, ainda que não perfeita e


vitoriosa, constitui uma construção de conhecimento (LILEBAUN, 2009, p.
19, grifo no original).

Sobre os capítulos dedicados aos autores, afirma que os mesmos são diversos
nas estruturas e nas extensões, uma demonstração do seu desejo de que a tese se adapte
aos escritos analisados:

Com base em textos selecionados, investigarei os mecanismos da escrita que


formam (ou deformam) a imagem desses autores como judeus. O objetivo
não é comprovar que os autores produzem uma escrita que os identifica como
judeus na vida real. A hipótese é mais sutil: demonstrar como a escrita cria
uma determinada imagem daquele autor como judeu, independentemente
dessa imagem corresponder à realidade (LILEBAUN, 2009, p. 19).

A união dos três nomes, atrelados aos objetivos da investigação, pode ser
viabilizada de dois modos:

[a] por uma identificação dessa imagem do escritor como oriundo do


judaísmo, o que o torna uma espécie de porta-voz desse legado e passível de
ser colocado no rótulo literatura judaica (para o bem ou para o mal), ou [b]
por uma identificação com a crença nas relações estritas entre escrita e
judaísmo, crença ligada ao mito dos judeus como povo do livro (LILEBAUN,
2009, p. 19, grifos no original).

O trabalho é realizado em um contexto cujo estatuto da ciência “[...] permite


flexibilidade na produção de conhecimento, o que se configura como um chamado
sedutor para tentativas menos ortodoxas, desejosas de seguir um caminho próprio”.
(LILEBAUN, 2009, p. 20). A auto-ficção, procedimento de que se vale, na elaboração
da tese seria “um passo além e uma interseção da ficção e da biografia, em que o
escritor parece borrar as fronteiras, jogando de se esconder e de se revelar”
(LILEBAUN, 2009, p. 27).
Ainda no terceiro capítulo, apresenta uma impressão inicial dos escritores com
breves passagens biográficas dos três contemplados.
A escolha pelo romance de tese, baseado na definida auto-fição, resulta em
passagens como esta:

E fico a imaginar o que Rawet falaria para mim se me conhecesse. Soltaria


um sonoro palavrão? Ou andaríamos lado a lado – e ele, com pernas mais
longas e com uma experiência real e literária de andarilho, me deixaria para
trás? Ou talvez sentássemos em algum canto do Catete para um café, e ele
escutaria atenciosamente minha conversa de judia não-judia doutoranda,
muito interessada em sua obra praticamente esquecida. Sim, talvez ficasse
125

feliz. Mas, em algum momento, me cortaria, irônico, e criticaria essa


conversa de judia não-judia: por acaso você comeu carne de porco à la
Deutscher em cima de umtúmulo no shabat? Você escreveu algo como Kafka
e a mineralidade judaica oua tonga da mironga do kabuletê? Ah, não me
venha com essa conversa, sua rata... Desinfete! (LILEBAUN, 2009, p. 70,
grifos no original).

A escolha estrutural da tese abre margem para um tratamento informal e


inventivo em alguns pontos do relatório de pesquisa. A passagem acima é um dos
exemplos claros disso.
O capítulo quarto começa com uma carta que seria enviada a Rawet. A estudiosa
afirma que, para Scliar e Cintia, bastaria um e-mail. A sua escolha resulta no
preterimento de outras possibilidades metodológicas:

Eu poderia fazer um close reading fantástico e sufocante dos seus textos,


sabia? Com a exceção de um ou outro, acredite, é possível inventar um mapa.
Mas acho que não quero. Andei lendo Ana Cristina Chiara e ela
definitivamente me convenceu que não quero apenas tomar posse, mas
também ser possuída (LILEBAUN, 2009, p. 82).

Na passagem, refere-se aos Ensaios de possessão (irrespiráveis), de Ana


Cristina Chiara, que analisam obras de Ana Cristina Cesar, Clarice Lispector, Carolina
Maria de Jesus, Alejandra Pizarnik, Hilda Hilst e Laura Erber, lançado em 2006 pela
Editora Caetés, para justificar a sua escolha metodológica.
Lilebaun passa a comentar a primeira obra de Rawet e depois Abama. Em
seguida, trata do tema da tese: “Se Rawet abandona idéias e estruturas pela metade,
posso ser tão abusada quanto ele. Vamos esquecer a questão do silêncio, da afasia, do
imigrante. Ou quase. Vamos para a autofagia. Para a devoração. E vamos para o
judaísmo” (LILEBAUN, 2009, p. 85).
O que se segue é exemplificação desse entendimento com base nas passagens da
obra de Rawet. Serão mencionados os contos “Lisboa a noite”, de O terreno de uma
polegada quadrada, “Uma velha lenda chinesa”, Os sete sonhos, “BRRKZNG:
pronúncia – bah!”, Que os mortos enterrem seus mortos, e a novela Viagens de
Ahasverus, além da já mencionada Abama.
Mas para atender aos seus objetivos, a estudiosa atenta-se que é preciso escolher
o que se analisar da obra de Rawet: “Dessa forma, em alguns momentos, trarei
informações mais gerais, enquanto em outros optarei por leituras mais detalhadas de
textos específicos. Privilegiarei aqueles que favoreçam a busca pela imagem de escritor
e de judeu” (LILEBAUN, 2009, p. 92).
126

Mais adiante, alerta que a realização:

É, antes, uma teia de palavras que tenta se enrolar na teia rawetiana, no


desejo de mimetizar seu estilo e sua intensidade, incluindo o aparente desdém
que o autor mantém por seu leitor. Há, inclusive, um acerto de contas, na
medida em que não desejei me lamentar frente ao desafio que sua escrita
impõe. Penso que todos que estudam literatura, se o fazem, é devido à paixão
pelo desafio (LILEBAUN, 2009, p. 92).

Reforçando a dificuldade em se estudar os contos de Rawet, destaca que buscará


outros meios, e não apenas os textos literários, ou seja, os ensaios e entrevistas como
partes essenciais da obra:

Nesse jogo entre ficção e ensaio, cria-se uma espécie de holograma da


imagem do escritor Samuel Rawet. Na tensão entre a criação de uma escrita
ficcional e outra mais biográfica, acredito estar a invenção do próprio Samuel
Rawet como escritor judeu (ou anti-judeu, como ele se afirmava)
(LILEBAUN, 2009, p. 95).

Em seguida, realiza importante levantamento temático da obra tendo em vista as


categorias elaboradas pela mesma. Seria a obra de Rawet responsável, em alguns
contos, pela construção da imagem do escritor. Para justificar esse arrazoado textual, a
pesquisadora afirma que:

Em contos e ensaios, há a ampla presença de referências metatextuais:


discute-se como escrever, o que escrever, as dificuldades da tarefa e a crença
em uma ética da escrita. A voz que narra reflete constantemente sobre o ato
da escrita, criando a imagem de um escritor auto-consciente e auto-reflexivo,
atento ao seu fazer (LILEBAUN, 2009, p. 95).

Para Lilebaun (2009), a coletânea Os sete sonhos seria o exemplo disso. Esse
tratamento ocorre, especialmente, nos contos “A raiz quadrada de menos um”, “Fé de
ofício” e “Kelevim” e “Sete sonhos”. A leitura em close reading, expressão muito
utilizada pela estudiosa, ocorre, nesses quatro contos.
O tópico seguinte trata da desconstrução da imagem do judeu na obra de Rawet.
Serão citados Contos do Imigrante, Abama e Viagens de Ahasverus: “Ao longo da vida
e das obras, Rawet se distancia da comunidade judaica e destila veneno contra aqueles
que ele chamará, em muitos textos, de ratos. É principalmente nos ensaios que
assistiremos a uma crescente repulsa aos judeus” (LILEBAUN, 2009, p. 122, grifo no
original). O que segue, então, é a verificação dessa desconstrução na produção
ensaística de Rawet.
127

É importante destacar o comentário que a estudiosa realiza sobre uma passagem


de Igel (1997) a respeito de Rawet: “Embora Rawet tenha sofrido distúrbios mentais no
final da vida, considero reducionista e confortável creditar apenas a esse problema sua
rejeição ao judaísmo” (LILEBAUN, 2009, p. 125-126).
Mais adiante, toma partido, mesmo que para modalizar, do entendimento de que
Samuel Rawet era movido por auto-ódio:

Ser escritor e ser judeu são duas imagens que não se sobrepõe [sic] uma à
outra, mas digladiam com ferocidade. Ora o escritor parece abraçar algo do
judaísmo, ora o escritor parece romper definitivamente com o que ele vê
como mineralidade. Embora tal conflito se dê no palco da vida, ele é
trabalhado no palco da escrita para nós, leitores. A autofagia é um drama
encenado na escrita, para além dos distúrbios biográficos. É como se o
espaço da vida não bastasse para duelar com as convenções: era preciso
atingir um novo espaço, ocupá-lo e devorá-lo – a escrita (LILEBAUN, 2009,
p. 128, grifo no original).

A passagem retoma a ideia da relação não convencional de Rawet com a


halachá, a norma, aspecto mencionado por nós anteriormente. Realiza o que alguns dos
estudiosos elencados aqui já fizeram: a leitura de Rawet à luz da figura intelectual e
literária de Moacyr Scliar:

[...] Scliar está em uma linha já desbravada da literatura brasileira. No


entanto, pode ser considerado desbravador no que toca à literatura étnica, e
especificamente à judaica. Havia autores judeus anteriores a Scliar; contudo,
o alcance público era restrito. Contos do imigrante, de Samuel Rawet,
poderia ter aberto as portas para a temática, em 1956, considerando-se os
elogios recebidos pela crítica; contudo, o autor, além de se distanciar do
judaísmo, distanciou-se também do público. Sendo assim, podemos dizer que
Scliar se fez e abriu, praticamente sozinho, as portas: o escritor é uma espécie
de self-made writer, pois foi realmente o primeiro autor que, tratando do
judaísmo, atingiu um público considerável no Brasil. Além disso, o escritor
adquiriu o respeito de seus pares, como demonstra sua eleição para a ABL
[Academia Brasileira de Letras] em 2003 (LILEBAUN, 2009, p. 135).

Além de toda a extensa passagem, e sua explicação equivocada sobre o processo


de canonização social dos escritores, nota-se que, o uso da eleição da ABL como
argumento da prova de respeito literário soa ingênuo. Há muito que a eleição para
membro dessa instituição tem sido questionada.
Como conclusão, aponta que a imagem do judeu, nas obras estudadas, é formada
por duas instâncias diferentes: ou a voz narrativa se identifica como judaica, ou a cria
personagens e atmosferas judaicas pelas quais se veiculam visões específicas sobre o
judaísmo: “Nenhuma das escritas estudadas projeta única e exclusivamente uma
128

imagem de judeu clichê, seja tal clichê o construído pela comunidade judaica ou o
construído pelo grupo maior” (LILEBAUN, 2009, p 214).
O legado de Rawet, obtido pela investigação, será o fato de que:

[...] sua obra projeta a imagem do escritor experimentalista, avesso às


questões do consumo, livre de amarras e imposições mercadológicas,
disposto a uma escrita que gira em torno de si mesma de maneira alucinante.
Samuel Rawet cria o escritor Samuel Rawet como um artista abusado,
corajoso, disposto a encarar a escrita como uma aventura muito séria. Seu
manejar labiríntico da língua e sua erudição convivem com o seu sarcasmo, o
primeiro dos vários atritos que marcam sua obra (LILEBAUN, 2009, p. 215).

Esse momento modaliza a longa citação, aqui reproduzida há pouco, em que a


estudiosa define Rawet à sombra de Scliar. No final, a escritora relativiza a utilização,
ou a apreciação biográfica do escritor por parte de seus leitores:

É curioso pensar que, para o grande público, a imagem do escritor e judeu


Rawet talvez seja mais sedutora do que a escrita em si; essa imagem, obra em
paralelo, de apelo mais universal e mais acessível, é o que acaba por atrair o
leitor. Não apreciamos quando a vida de um artista – ou o que pensamos que
ela seja – se torna mais atraente do que a própria obra. Todavia, no caso de
Rawet, essa vida foi cunhada – inventada – em seu próprio texto. O judeu
proscrito é o judeu escrito. Logo, é a escrita que, ao final, a meu ver, acaba
por estar em foco (LILEBAUN, 2009, p. 216)

Defendendo em Viagens de Ahasverus o ápice dessa produção, a estudiosa


afirma que a erudição da obra, por outro lado, afasta os leitores. Mais adiante, sinaliza
que Rawet carrega em sua obra muitas questões de cunho modernista, a exemplo da
oposição entre arte e consumo e a experimentação (LILEBAUN, 2009, p. 219).
Na apreciação final sobre os três autores estudados, destaca o papel da palavra,
manifestação linguística, tendo em vista que esses nomes são componentes do povo que
escreve, que cria livros: “Creio que o fascínio que tal expressão causa, de maneira
diferente, em cada autor, se deve mais ao sentimento de pertencimento à irmandade da
escrita do que à irmandade dos judeus” (LILEBAUN, 2009, p. 220). Para a estudiosa,
tais escritas geram identidades provisórias, mas admite que a criação dessas identidades
se dá a partir da palavra.
A tese de Reis (2009) investiga, em oito contos de Rawet, o contato possível
com o outro. Para isso, leva em conta a trajetória dessas personagens no tempo e no
espaço narrativos.
129

Como aporte teórico, “os conceitos de temporalidade em Heidegger e de


nomadismo em Deleuze e Guattari são mobilizados no intuito de compreender a
possibilidade de comunicação autêntica entre os seres rawetianos” (REIS, 2009, p. 5).
Destaca que, até então, a crítica se debruçou em destacar os aspectos relacionados à
incomunicabilidade, tom predominante nos estudos da obra de Rawet.
No caso de Reis, verifica-se que:

O narrador que apresenta estes personagens é apresentado e analisado


juntamente com o acontecimento, visto aqui no momento pretérito, como
aquele que influencia a temporalidade dos personagens no presente. Abre-se
na tese o espaço de uma aproximação ao outro que quebra o isolamento
(REIS, 2009, p. 5).

Metodologicamente, a análise partirá dos contos com o intuito de estabelecer


conceitos sobre o tempo que as personagens encaram e os percursos no espaço que os
levarão à questão do outro e do contato:

A busca pela existência ou não de uma comunicação que vá além do


conhecimento superficial vai se aproximar da narrativa de Rawet para
postular algo diferente do isolamento completo que caracteriza estes
personagens (REIS, 2009, p. 7).

O adendo sobre a figura de Rawet no contexto da literatura brasileira trata da


permanência de um caso mal resolvido. O cenário atual é de uma época em que o
interesse por sua obra apresenta um reavivamento. Desse modo, “repensar o caso Rawet
é também lançar um olhar para as limitações de nosso panteão literário e abrir novas
possibilidades para a literatura brasileira” (REIS, 2009, p. 07).
Esse reavivamento, segundo Reis (2009, p. 07), pode ser percebido no campo da
crítica com os estudos de Igel (1997), Waldman (na obra Entre passos e rastros,
referenciada em nosso trabalho em dois de seus capítulos: 2003a e 2003b) e no
acadêmico, exemplificando com as realizações recentes de: Kirschbaum (2004; 2007),
Chiarelli (2007), Duarte (2006) e Lilebaun (2006).
Sobre a obra rawetiana, a perspectiva a respeito do isolamento e da falta de
comunicação será estabelecida de maneira diversa da leitura consagrada do narrador que
mostra personagens em recusa de uma aproximação. Na sua tese, Reis afirma que irá
“[...] investigar como estes seres chegaram a tal afastamento para examinar o
distanciamento que eles vivenciam” (REIS, 2009, p. 08). O resultado será a descoberta
130

dos impulsos do despojamento do cotidiano e a caracterização desse isolamento nas


personagens.
Segundo o estudioso, pensar a figura de Rawet em nossa literatura apresenta
dificuldades. No estabelecimento de sua teorização, caracteriza o artista como dotado de
olhar original para a literatura brasileira, empenhada, por muito tempo, na construção
positiva de uma brasilidade: “Aqui temos o olhar que é tecido por aquele que vem de
fora e revela aí o Brasil visto pelo estrangeiro, mas acima de tudo um Brasil enfrentado
e confrontado; tudo isso aponta para um autor surpreendentemente brasileiro [...] e
crítico de nossa realidade” (REIS, 2009, p. 09).
Mais adiante, responde às concepções que caracterizam a literatura de Rawet
como fruto de delírios inconscientes e/ou obsessões psiquiátricas. Nessa produção, nada
é fortuito e “[...] toda a interrupção de frase ou salto narrativo tem um efeito dentro da
totalidade da narrativa. Os enredos mínimos e as conflituosas manifestações da
inteligibilidade dos personagens são apresentados em uma maestria que exclui [...] a
inexperiência” (REIS, 2009, p. 11). O efeito dessa elaboração complexa é uma narrativa
carregada de imprevisão e originalidade.
As lembranças biográficas, juntamente com os aspectos relacionados à recepção
crítica do escritor, aparecem cautelosamente:

Depois de uma recepção atenta, a crítica [...] cada vez mais ignora sua obra e
ressalta o caráter estrangeiro e hermético de Rawet. Ao mesmo tempo os
contos se radicalizam e se tornam mais sintéticos e difíceis. Este silêncio e
esta distância dos personagens, constantemente interpretados como recusa,
devem ser investigados para entender a dinâmica do que Rawet vislumbra em
sua escrita. Este elemento literário é acompanhado pelo isolamento cada vez
maior de Rawet nos últimos anos de sua vida (REIS, 2009, p. 12)

Longe de apresentar uma postura determinista sobre a obra e o artista, destaca-se


que, metodologicamente, sua análise não partirá de concepções preestabelecidas,
determinadas por características físicas, psicológicas, e sociais daquele que escreve, que
produz literatura. Mesmo assim, “[...] podemos pensar este caráter antípoda da escrita
de Rawet como uma das causas de seu esquecimento, pois a insistência em uma
temática calcada num mergulho profundo na interioridade humana o afasta de uma
temática social” (REIS, 2009, p. 12).
No entanto, aponta que o afastamento pode ser provocado pelas leituras
apressadas. Negar que na obra de Rawet não estão presentes aspectos sociais, é o
mesmo que não enxergar o trato implícito obtido pelo artista dessas questões. Ou seja:
131

“Em Samuel Rawet, são os detalhes que podem revelar mais do que qualquer aspecto
que pareça ser evidente em uma primeira leitura. Como pensar uma inclusão literária de
um autor que se contrapõe ao cânone tão fortemente?” (REIS, 2009, p. 12). O nome de
Rawet é, para o estudioso, um indício da necessidade de renovação dos padrões
literários nacionais e das perspectivas que caracterizam o estudo de nossa literatura.
O estudioso afirma que a análise dos contos será entremeada com a leitura de
alguns teóricos, o que será realizado na medida em que a leitura avança. Outro adendo
refere-se à possibilidade de se encontrar outros objetos literários que sirvam de
exemplificação da tese que ora se defende (REIS, 2009, p. 12-13).
O primeiro capítulo, “Trajetórias (ou Trajetória)”, é composto pela análise do
conto “A Trajetória”, de Que os mortos enterrem seus mortos, 1981. Segundo Reis, esta
parte buscará uma aproximação com o modo de narrar especial de Rawet:

O conceito de trajetória é usado para pensar os deslocamentos no tempo e no


espaço do personagem do conto. Este conceito é fundamental, pois nos levará
a uma esquematização básica da perspectiva dos personagens, além disso, faz
a ponte com os próximos capítulos em que irei estudar a questão do espaço e
do tempo na obra de Rawet (REIS, 2009, p. 13).

No segundo capítulo, “Espaços rawetianos. Deslocamentos pela cidade”, se


debruça na discussão sobre a categoria espaço narrativo. Para tanto, dois contos serão
analisados, o que lhe permitirá duas vias de análise. Com “Gringuinho”, verifica a ideia
do “estrangeiro” e a sua dificuldade de adaptação em uma terra estranha; com “Crônica
de um vagabundo”, realiza o estudo da rua como protagonista no percurso da
personagem que vaga sem direção em uma cidade na qual acaba de chegar. Sobre esses
dois contos, destaca-se a importância que a noite e a rua apresentam como
possibilidades espaciais surpreendentes, o que poderá ser conferido em nossa análise do
conto “Moira”, por exemplo.
O terceiro capítulo, “Temporalidades estacionárias. Momentos congelados”,
privilegia a questão do tempo na construção da vida das personagens. Serão analisados,
assim, “Moira”, “Um homem morto, um cavalo morto, um rato morto” e “Que os
mortos enterrem seus mortos”, ambos do último livro de Rawet. Para Reis, “[...] vítimas
do mal, os personagens estão ainda presos ao que passou e se tornam incapazes de viver
o presente. Toda a sua percepção é direcionada ao passado e eles passam a ver o mundo
em uma interpretação distorcida que atualiza este passado a cada instante” (REIS, 2009,
p. 14).
132

O estudioso, filósofo de formação, explica que, neste capítulo, a filosofia


aparece de forma mais evidente para pensar o tempo que congela as personagens: “O
tempo que os petrifica é um tempo cotidiano e impessoal em que a angústia se apodera
dos personagens e em que a morte é encarada sem medo e como parte da própria
existência” (REIS, 2009, p. 14).
O último capítulo, “O olhar e o não dito. O contato possível”, encerra a tese com
a leitura de mais dois contos. Na primeira delas, a do conto “Diálogo”, o estudioso “[...]
pensa num encontro decisivo de pai e filho numa comunicação que possa superar os
abismos existentes entre eles” (REIS, 2009, p. 14), a análise será pautada na noção de
Jean Baudrillard que caracteriza uma alteridade radical; na segunda, lendo “O profeta”,
“[...] o contato é caracterizado de forma mais intensa. Na troca que existe entre o velho
Profeta e seu sobrinho-neto, existe afetividade e comunicação entre humanos, o que
oferece um momento de trégua para o personagem exasperado” (REIS, 2009, p. 14).
Pensando na trajetória escolhida para a disposição dos contos, percebe-se que, ao
dispor “O profeta”, retirado da primeira coletânea de Rawet, como o último texto a ser
analisado, Reis alinha a leitura do texto literário para comprovar a tese anunciada.
Afinal de contas, nesse conto, finalmente, surge “[...] um encontro autêntico em que o
outro é recebido e troca afetos e humanidade na obra de Samuel Rawet. Assim termina
o percurso da tese, com um encontro que rompe barreira e alivia as conseqüências do
mal no personagem ainda que provisoriamente” (REIS, 2009, p. 14).
Ao destacar o privilégio do texto literário como eixo norteador de todos os
conceitos teóricos, afirma que: “Esta proeminência do literário faz com que a literatura
apareça como um discurso capaz de questionar as teorias e oferecer um pensamento de
primeira mão que não é um mero reflexo de outros discursos” (REIS, 2009, p. 15).
O estudioso, não busca preterir a teorização pela análise do texto literário. O
fará, por outro lado, nas oportunidades em que o texto permitir tal utilização.
Mais adiante, no estabelecimento da teorização, defende que, de todas as
caracterizações possíveis de serem extraídas do texto de Rawet, a sua escolha recai
sobre a do nômade:

Esta categoria se liga à idéia de trajetória do conto anterior e permite um


mapeamento dos deslocamentos dos personagens em associação com as
idéias de rizoma, acontecimento, devir e desterritorialização. Quando
utilizadas, as demais denominações estão sendo referidas com o sentido
comum do dicionário e não como categorias como no caso de nômade (p.
REIS, 2009, p. 39).
133

Em outro momento, assumirá o caráter sedutor que possui o paralelo entre a vida
de Rawet e sua obra, ambos marcados pelo isolamento. Afinal de contas, no trabalho do
artista, o narrador se vale de grande intimidade para com as ruas e paisagens,
especialmente, as do Rio de Janeiro e de outras localidades de difícil localização: “Nesta
atmosfera ele apresenta personagens perplexos e que não alcançam o outro, trafegando
numa incomunicabilidade raramente quebrada. Seres solitários que vagam num oceano
de distâncias e perplexidades” (REIS, 2009, p. 43).
Como prosseguimento desse trecho, o estudo se presta a estabelecer uma
diferenciação em relação ao nômade e ao imigrante. O primeiro é aquele que percorre
um espaço marcado pelas alternâncias. Na medida em que o migrante “[...] vai sempre
em direção a um ponto fixo, o nômade pensa e trafega a própria jornada em si como
constitutiva. O migrante traça uma via que tem um início e um fim precisos, enquanto o
nômade alterna em diversos percursos sem laços fixos” (REIS, 2009, p. 44).
A literatura de Rawet privilegiaria a segunda categoria, pois a ausência de
pertencimento de suas personagens mostra que os mesmos não realizam trajetos
fechados de migrantes ou imigrantes. Depois de analisar uma série de categorias
narrativas nos contos de Rawet, Reis conclui que:

Podemos então pensar a existência de uma temporalidade congelada em que


seres solitários de Rawet trafegam sem superar o passado. O momento de sua
ferida é carregado como se ainda fosse o presente e apenas na possibilidade
de sua superação é que fica caracterizada a existência de uma temporalidade
novamente aberta ao devir. Enquanto a ferida do passado do personagem
ainda se sobrepuser ao que é presente, o futuro fica impedido por esta fratura
(REIS, 2009, p. 92)

Chegando a suas conclusões, Reis admite que “[...] o texto de Rawet ressalta a
atitude contrária à aproximação, e uma visão crítica da sociedade em geral; mas ao
mesmo tempo, abre para a possibilidade de um encontro que supere o impessoal
cotidiano e firme tênues laços de compartilhamento” (REIS, 2009, p. 162).
O papel do silêncio, em meio a essa construção, não é esquecido. Para Reis, na
literatura de Rawet, a personagem redunda ao silêncio pela incapacidade de utilizar da
linguagem corrente para expressar o vivido: “Este silêncio não é recusa, mas
incapacidade de formulação na linguagem formal do mais fundamental” (REIS, 2009, p.
168).
134

Por outro lado, o tratamento do silêncio compõe o processo comunicativo nesta


obra:

A comunicação e o contato possíveis na obra de Samuel Rawet não são um


fim de jornada, mas parte do processo de assimilação de um acontecimento
que marca e determina mudanças nas vidas de seus personagens.
Caracterizado pela ausência da linguagem verbal, estes encontros são
momentos fugazes e não conclusivos, mas ainda assim significativos (REIS,
2009, p. 179).

Desse modo, a tese confirma a hipótese inicial sobre o contato possível nas
narrativas de Samuel Rawet. O que significa dizer que o encontro se destaca como
momento fundamental, mas inquietante na vida das personagens:

São momentos de quebra em sua cotidianidade marcada pela solidão e pelo


passado ainda presente. Encontros autênticos com que estas trajetórias
solitárias se deparam e que rompem com suas vidas de nômades. Não
significam uma mudança total em sua solidão, que persevera, nem se
configuram como redenções de vidas solitárias, que seguem seus rumos. Não
obstante, resplandecem como instantes especiais, irrompem de surpresa e
sugerem encontros em bases autênticas, em que uma humanidade comum que
havia sido perdida pode ser recuperada, mesmo que por instantes transitórios
(REIS, 2009, p. 180).

Mais do que destacar os louros obtidos por alucinações, a conclusão de Reis é


coerente com o entendimento desenvolvido ao longo de toda a tese de que o texto
rawetiano, a cada nova leitura, se revela dotado de profunda concisão, fruto da
perspectiva de um escritor maduro, consciente e que, na sua escrita, nada é acessório.

3.3 Alguns dados sobre a recepção acadêmica de Rawet

A realização deste capítulo nos mostra que, mesmo tendo sido colocada no
ostracismo da falta de publicação após a sua morte, hiato que durou pouco mais de vinte
anos, a obra de Rawet não deixou de ser discutida, mesmo que por uns poucos. Ainda
que timidamente, nos estudos acadêmicos, o processo iniciado por Verdi (1989) se
acentua a partir da realização de Fortes (1999).
Por outro lado, o alto número de estudos sobre a obra de Rawet, específicos ou
que fazem referência significativa, seja escolhendo na sua inteireza ou alguns de seus
contos como corpus, seja resumindo a sua recepção crítica com os dados atribuídos à
135

Contos do Imigrante, pode ser um indício de que alguns estudos atuam atrelados a uma
crítica ora empenhada na interpretação, ora embasbacada com a produção inicial de
Rawet. Outro fator resultante desse processo, ler a obra somente em sua fase inicial,
mesmo em estudos mais recentes (ANTUNES, 2011), sinaliza-nos que, até certo ponto,
o tratamento conferido a Rawet é o do estrangeiro, do imigrante de ascendência judaica,
na maioria das vezes (BINES, 2008). Esse processo é recorrente, ainda que a própria
coletânea apresente cinco contos, metade de seus textos, que não se relacionam
exclusivamente com a condição do imigrante judeu.
Em menores casos, a ousadia das propostas das dissertações impede a realização,
o cumprimento das propostas anunciadas. Em casos específicos, o que se propõe no
mestrado é mais geral do que quase todas as teses lidas aqui. Estamos pensando que,
geralmente, os prazos dos programas de pós-graduação e das agências de fomento dobra
para a realização do doutorado, o que, em tese, dificultaria a realização de tais
propostas.
Na maior parte dos casos, sempre que possível, tais estudos lançam mão de
outros materiais para entender a obra de Rawet, a exemplo de ensaios e entrevistas
concedidas pelo autor. Em casos específicos, a leitura desse material desvia o foco das
propostas e acarreta em interpretações globais de toda a produção de Rawet, ainda que
esteja sendo lida, apenas, a sua escrita ensaística, por exemplo. Isso é realizado,
sobremaneira, nas pesquisam que delineiam um perfil doentio para o escritor Samuel
Rawet.
Em mais uma oportunidade, reforçamos que a realização de um capítulo como
este seria possível em todos os casos. Insistimos em realizá-lo com o objetivo de
verificar o panorama do reavivamento do interesse pela obra de Rawet. Nesse ensejo, os
estudos acadêmicos cumprem um papel decisivo.
A leitura dessa produção, que enceta objetivos tão diversos em seus bojos, serve
para que possamos ter medida exata da maneira pela qual o nosso próprio estudo se
insere na recepção acadêmica de Samuel Rawet. Esperamos, por outro lado, que a
sistematização realizada aqui atue como muito desses estudos atuaram na realização de
nosso trabalho: revelando dados, servindo como suporte de investigação e consulta.
Vale ressaltar que, mais do que rechaçar tais estudos, a proposta mais importante
é a da apresentação das realizações investigativas. Muitas das contribuições desses
trabalhos serão utilizadas em nosso próximo capítulo. Na medida do possível, as fontes
sempre serão apontadas.
136

4. “A RETÓRICA DO IMAGINÁRIO”: A NARRATIVA FICCIONAL DE


SAMUEL RAWET

As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu
silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha
escapado ao seu canto; mas do seu silêncio certamente não. Contra o
sentimento de tê-las vencido com as próprias forças e contra a altivez daí
resultante – que tudo arrasta consigo – não há na terra o que resista (KAFKA,
2008, p. 104).

4.1. Pontos de partida

O tópico inicia o capítulo que objetiva a análise do corpus representativo da


narrativa de ficção de Samuel Rawet, sinaliza, a partir de dados estruturais dos dezoitos
contos, uma análise combinada que antecede àquela específica na leitura de seis contos
da obra Que os mortos enterrem os seus mortos. Adianta-se que, metodologicamente,
tal apresentação macroestrutural, além de oferecer um panorama da obra como
organismo estrutural, nos auxilia na escolha e defesa dos contos selecionados para ser
analisados em seus pormenores nos tópicos seguintes.
Ressaltamos que alguns desses contos foram publicados entre 1969 e 1974.
Além de “Trio”, “Nem mesmo um anjo é entrevisto no terror” e “BRRKZNK:
pronúncia – bah!”, que fazem parte do nosso recorte, foram publicados em outras
oportunidades “A lenda do abacate”, “A linha”, “Marinha”, e “Que os mortos enterrem
os seus mortos”.

4.1.1. No campo das objetividades textuais

A partir deste ponto, a apresentação do quadro e dos dois tópicos seguintes tem
por objetivo a organização das informações estruturais dos contos. De certo modo,
apresentamos, brevemente, os outros contos que não entrarão no recorte. Os tópicos do
mapa foram elaborados a partir de Reuter (1997).

QUADRO 1
Distribuição dos contos em sua ordem de disposição no livro (RAWET, 2004)

CÓDIGO CONTO PÁGINA INICIAL/ FINAL


C01 “O riso do rato” 345/349
“O casamento de Bluma
C02 350/353
Schwarts”
C03 “A oração” 354/356
137

C04 “Moira” 357/359


C05 A trajetória 360/361
“Que os mortos enterrem os seus
C06 362/363
mortos”
C07 “Trio” 364/365
“Nem mesmo um anjo é
C08 366/368
entrevisto no terror”
C09 “Marinha” 369/370
C10 “Certeza” 371/372
C11 “A linha” 373/375
C12 “As palavras” 376/377
C13 “O alquimista” 378/379
“Um homem morto, um cavalo
C14 380/381
morto, um rato morto”
C15 “A lenda do abacate” 382/385
C16 “O rato e o pombo” 386/388
C17 “Prisioneiro da nuvem” 389/391
C18 “BRRKZNK: pronúncia – bah!” 392/404
Legenda: O código referente aos contos da coletânea é composto por dois elementos: (a) o primeiro a
letra “C”, referente à palavra conto; e, o segundo, ao número de disposição no livro. Ou seja, o código
C01, se refere ao primeiro conto disposto na obra. Fonte: GONÇALVES, 2012.

4.1.2. Aspectos do campo das objetividades

O tópico seleciona aspectos objetivos dos contos da obra de Rawet (2004). A


elaboração desses aspectos resultou das leituras prévias dos dezoito textos. Neste
sentido, o presente tópico atua em consonância com o tópico que se segue. O resultado
dos dois itens será o arranjo de uma visão global dos aspectos ficcionais que a coletânea
apresenta.
Os aspectos verificáveis nos contos, aqui agrupados em um campo de
objetividades, foram elaborados a partir da materialização dos contos, como a
estruturação adotada na edição e ligações intertextuais possibilitadas por essas leituras.
Nesse último item, é possível que existam outros elementos não apontados. A seguir,
dispomos de dezesseis categorias temático-formais em que pretendemos apreender tais
objetividades:

a. Títulos substantivados: C01; C02; C03; C04; C05; C07; C09; C10; C11; C12;
C13; C14; C15; C16; C17; C18. Ressalta-se que, além dos contos nomeados
apenas com um substantivo, a exemplo de “Moira”, destacamos aqueles que são
constituídos com orações nominais, “O riso do rato”. Nesses casos, as ações não
apresentam o destaque que um verbo pode conotar/denotar.
138

b. Títulos compostos: C01; C02; C03; C05; C06; C08; C11; C12; C13; C14; C15;
C16; C17; C18. Tratamos dos contos que possuem mais de um elemento,
mesmo que um nome precedido de um artigo, como em “As palavras”, por
exemplo.

c. Estrutura em um parágrafo: C01; C02; C03; C04; C06; C08; C09; C11; C12;
C13; C14; C15; C17; C18. Os contos agrupados estão dispostos em um bloco
ininterrupto de palavras. Podem ocupar 4.396 espaços com caracteres, no caso
de “Moira”, ou 30.759, como em “BRRKZNK: pronúncia – bah!”.

d. Estrutura em mais de um parágrafo: C05; C07; C10. Os três contos que


apresentam outra possibilidade de disposição, além da predominante em bloco
único.

e. Nos parágrafos que se somam, quais elementos compõem os contos? (C05, uma
oração final: “o tempo abolido pela culpa – uma maneira de continuar a amá-
las” (p. 361)); (C07, possui oito parágrafos. A estrutura é formada por uma frase
que define a personagem, falada em primeira pessoa. Depois, outro parágrafo,
em terceira pessoa, no qual se define a ação, a origem e a atividade dessa mesma
personagem. Isso ocorre em três momentos. O sétimo parágrafo marca a união
das personagens. O último, apresenta a frase que os aproximam: “Eram
analfabetos” (p. 365)); (C10, uma frase inicial que funciona como interjeição,
“Que mulher!” (p. 371), expressão proléptica na medida em que pode adiantar o
possível alvo de preocupação das duas personagens masculinas).

f. Número de páginas: (C01/04); (C02/03); (C03/02); (C04/02); (C05/ 1 e meia);


(C06/ 1 e meia); (C07/ 1 e meia); (C08/2 e meia); (C09/1 e meia); (C10/1);
(C11/02); (C12/ 1 e meia); (C13/1 e meia); (C14/ 1 e meia); (C15/03); (C16/
02); (C17/02); (C18/13). A visualização global do potencial de preenchimento
das páginas por esses textos.

g. Utilização de epígrafes: (C17, Frase de Rimbaud: Quellevie! La vraie vie est


absent. Nous ne sommespasau monde (RIMBAUD apud RAWET, 2004, p.
389). Em tradução livre: Que vida! A vida real está ausente. Nós não somos do
mundo.).

h. Referências intertextuais: (C02, “Com uma pisadela e um beliscão” (p. 352),


Bluma Schwartz deixou o futuro marido apaixonado. Aqui, uma referência ao
romance Memórias de um sargento de milícias, 1852-1853, de Manuel Antônio
de Almeida); (C03, “como quem desperta de um sonho” (p. 356, destaque no
original)); (C04, Freud, com a pulsão de morte e a pulsão de vida; a Bíblia,
Willian Shakespeare em Hamlet; Peça de Edward Albee, Quem tem medo de
Virginia Woolf?); (C05, episódios do livro de Gênesis); (C06, “literatura
introspectiva de cordel de livrarias de luxo” (p. 362-363)); (C09, episódios do
livro de Gênesis); (C13, uma fórmula matemática); (C15, “era uma personagem
de conto de Hemingway” (p. 382). Menção à caracterização das personagens nos
contos de Ernest Hemingway); (C17, “a morte, uma ficção”(p. 391)).
139

i. Ambientes retratados: (C01, churrascaria, praça); (C02, sala, quarto de hotel);


(C03, escritório da fábrica, sala de jantar, praia, hotel); (C04, sobrado com
quarto-sala, banheiro, rua, palco); (C05, telhado, bar, barbearia, entrada do
edifício, local do acidente, hospital, lugar aberto com banco, areia, asfalto,
parece ambiente de praia); (C06, ruas, banco na praça, frente de um edifício);
(C07, estação, delegacia, rua); (C08, ruas, mictório, pequena oficina de
camisas); (C09, praia, sala de uma casa, loja); (C10, restaurante); (C11, calçada,
meio fio, rua, uma linha de giz); (C12, uma sala de cinema, o banheiro do
cinema, sala de casa, quarto, rua, café); (C13, um muro, local de estudo, quarto
ou escritório); (C14, charutaria, ruas, praia, padaria); (C15, um bar, ruas, hotel);
(C16, sala de visitas de um apartamento); (C17, ruas); (C18, ambientes
domésticos, banheiro, quarto, sala, cozinha, varada etc). Os ambientes foram
depreendidos na leitura textual dos termos ou através das movimentações das
personagens.

j. A (s) personagem (s) protagonista (s); (C01, professor); (C02, ex-funcionária de


um escritório, senhora casada); (C03, sócio de uma fábrica, escritor da oração);
(C04, um ator); (C05, pai de família, um tipo de terno, gravata e pasta na mão,
frequenta lugares distintos); (C06, um homem); (C07, Pedro (pedinte), Paulo
(artesão, casado, bêbado) e Pedro Paulo, dono de um tabuleiro de cocadas
brancas e pretas, do candomblé (?)); (C08, costureiro homossexual); (C09,
homem, vendedor de eletrodomésticos, casado); (C10, dois homens); (C11, um
homem idoso que, na madrugada, risca à giz uma linha do meio fio à parede de
sua casa. Imigrante); (C12, homem de cinquenta anos, bissexual); (C13, alguém
que estuda, que conhece matemática); (C14, de difícil definição, trata-se de uma
personagem que toma café e peregrina por alguns pontos do Rio de Janeiro. O
sentimento de dor o acompanha); (C15, um judeu (?) dono de um bar, em
Brasília para um evento); (C16 dois amigos de infância, empresário e escultor);
(C17, um pedinte); (C18, um homem, sapateiro).

k. Protagonistas judeus (?): (C01, os irmãos Kugelman); (C02, Bluma Schwartz);


(C15, Schlimazel Mensch); (C16, o empresário vai mandar o filho para Israel,
viver num kibutz, comunidade).

l. Denominação das personagens secundárias: (C01, a vítima de um estupro, o


filho de Eliezer Kugelman); (C02, a cunhada, a empregada, o porteiro, o
primeiro amante, o marido); (C03, contador, sócio, esposa do sócio, esposa,
filhos do sócio, recepcionista do hotel); (C04, a rua) (C05, mulher, filha, três
crianças, ciclista ); (C06, mulata, o outro, a esposa e o filho do outro); (C07, um
comprador, vários tipos sociais são citados); (08, motorista em um automóvel,
negro magro, o chefe, um rapazote, um homem à espera de ônibus, um
mulatinho, o velho da banca); (09, a tia, a esposa); (C10, um casal:
homem/mulher); (C11, “um casal colado a uma reentrância do portão” (p. 375));
(C12, a mulher, seus dois filhos, os pais, os sogros, os amigos, o amante, um
careca gordo e um crioulo); (C13, um lagarto); (C14, não há); (C15, loura, chefe
140

dos garções, mulato magro, dois policiais, três efeminados, crioulo, pederasta,
uma das mulheres habituais, outra mulher, um policial trabalhando); (C16, a
esposa do empresário); (C17, Um tipo barrigudo, uma velha, um adolescente,
uma gorda, um menino); (C18, uma galinha).

m. Possíveis categorias temáticas: (C01, vingança, abuso sexual); (C02, ambição,


calculismo) (C03, cotidiano familiar burguês); (C04, amargura, solidão); (C05,
culpa); (C06, vingança, covardia, ódio); (C07, humanidade, injustiça); (C08,
volúpia, desejo, solidão); (C09, escapismo e cansaço do dia-a-dia, do trabalho
mal remunerado); (volúpia, desejo); (C10, o caráter ambíguo da sexualidade
humana); (C11, solidão, isolamento social, imigração); (C12, crise de idade);
(C13, vontade de saber, de descobrir); (C14, dor); (C15, covardia); (C16, ódio,
hipocrisia); (C17, suicídio); (C18, a destruição/construção da linguagem).

n. Ocorrência de pacto de leitura: (C10, uma frase inicial que funciona como
interjeição, “Que mulher!”, cria-se um efeito de humor, surpresa ou, pelo menos,
de ampliação das possibilidades de sentidos do conto, na medida em que o leitor
está considerando que os dois personagens observam e excitam-se, apenas, com
a figura feminina);

o. Nomes de Lugares: (C01, Praça da República, Esquina da Senhor dos Passos,


Campo de Santana, Ministério da Guerra, Rádio do Ministério da Educação,
Casa da Moeda, Benedito Hipólito, Regente Feijó); (C02, zona industrial
suburbana, hotéis da serra, estrada de Petrópolis); (03, bares do calçadão); (04,
Largo do Machado); (C06, ruas do Catete, Machado de Assis, Barão do
Flamengo, Senador Vergueiro, Marquês de Abrantes, Conde de Baepende, Praça
José de Alencar e Casa da Banha); (C07, igreja do Largo do São Francisco);
(C08, O Metro, o comércio, o Palácio, Lapa, Cine Colonial, Bairro de Fátima,
Rua do Passeio, Almirante Barroso, Praça Quinze, Praça Mauá, Rua da Lapa,
Monumento aos Mortos, Banco de Sangue, Aterro); (C09, serra e litoral); (C11,
Largo); (C14, Largo do Machado, Dois de Dezembro, prédio da União Nacional
dos Estudantes - UNE e Hotel Mundo Novo); (C15, arcadas da Dom Bosco, rua
do Hospital, Hotel Nacional, canteiro central da W3).

p. Referências históricas: (C01, “derrubaram Getúlio”, “guerra”, tanques de guerra


no Rio de Janeiro).

4.1.3. Síntese ficcional combinada dos dezoito contos

O que se segue, em dezoito tópicos, é a síntese ficcional combinada dos contos


dispostos na coletânea. Essa escolha, em primeiro lugar, visa a apresentação
macroestrutural da obra, e; em segundo, o atendimento do primeiro nível de leitura
141

disposto em Reuter (1997). O segundo motivo reside na constatação de que, em tais


contos, esse nível de leitura, o da “ficção”, pode ser minimizado em importância, no
sentido de que, à primeira vista, não seria esse o destaque maior empregado pelas
escolhas do contista.

C01. Uma personagem deseja matar outra personagem. O possível assassino deseja
matar Eliezer Kugelman. Manuel e Elias são irmãos. A personagem que planeja o crime
possui um filho que, por sua vez, é amigo de uma vítima de algo não informado.
Eliezer, Manuel e Elias são irmãos e, este último, é classificado como “idiota”. O filho
de umas personagens está internado. O pai tentou violentar sexualmente o filho. Há a
notação de tanques no Rio de 1980. A protagonista é professor. Hipótese de marcação
temporal: Getúlio Vargas foi derrubado. O conto se passa em um período
imediatamente após uma guerra. Uma dúvida: os irmãos violentam sexualmente o
“idiota”? O filho vê e sofre convulsão. Kugelman acusa o outro, o professor, de
violentar o seu filho. A vingança não se concretiza: para o vingador, esta só faz sentido
quando envolve a condição humana.

C02. Alguém geme no quarto, Bluma, sentada numa poltrona pensa sobre seu
casamento. Sua cunhada acabou de sair. Pensa no momento da visita. Ouve, atualmente,
os gemidos. Procura fixar imagens antigas, mas não consegue. O marido está doente.
Possuem cinco filiais e um escritório próprio. Uma empregada à espreita. Com seu
primeiro homem, relembra, realizou um aborto forçado. Caso com o dono de uma
pequena fábrica de colchões de mola, casado, três filhos. A sua memória é alternada:
Ela procurou a clínica. O homem havia ameaçado-a, no dia anterior, com um revólver.
A empregada serve suco de laranja. Ela vai sair de casa. Possui um porteiro. Marcação:
os gemidos que vêm do quarto. Ela o conheceu há cinco meses, na casa de amigos.
“Com uma pisadela e um beliscão”, o deixou apaixonado. Ele: quase cinquentão,
inseguro, bom nos negócios, impotente, com necessidade de aparecer com mulher e
filhos. Encontros no hotel de serra. Ela questiona a sua heterossexualidade. Em um mês,
transa com muitos homens e, ao constatar a gravidez, o convida para hotel de sempre.
Consegue uma semi-ereção e um orgasmo breve. No mês seguinte, anuncia a gravidez e
o casamento é marcado. Em quarenta e poucos dias, o reduz a um trapo entregue a um
grupo de psiquiatras. Ela utiliza várias medicações: laxantes de ação rápida, soporíferos
no café da manhã e no almoço, estimulantes e anti-hipnóticos a noite. A cerimônia
ocorreu no mais perfeito ritual.

C03. Alguém pede para que o outro lhe mostre a oração. O outro corta a alface e a
cebola. A oração foi composta em dois dias por aquele que come a salada. Alguém
telefonara para casa dizendo para a mulher que ia almoçar com o sócio. Possui filhos.
Uma fábrica com três homens: o contador e dois sócios. Um dos sócios avisa a mulher
que o outro irá jantar em sua casa. Os planos são dois: o do convite e o do jantar. O
sócio promete passar na confeitaria. Promete a oração para depois da sobremesa. O
contador sai para pegar o ônibus. Os sócios possuem carros. A mulher serviu o jantar.
142

Os filhos foram a um torneio de pingue-pongue. O visitante observa a mulher do sócio.


Pensa nas dificuldades encontradas para escrever nos dois dias anteriores. Bebe e come.
A mulher cobra a oração ao servir a sobremesa. O casal lê sua oração. Ao sair do jantar,
toma o caminho da praia. No hotel, entende a sua oração. Qual a origem da palavra
oração?

C04. Questionamentos. Homens a sua volta. Está num quarto. Abre a janela para um
pátio. Chove. Cinza é seu sentimento. Próximo do Largo do Machado. No banheiro,
limpa a maquiagem. Fuma. Palavras de marcação: MUNDO. MORTE. PALAVRAS.
Existe consolo no suicídio? Cruza a sala, vai para o banheiro. Nostalgia da infância.
Questionamentos. Quem tem medo de Virgínia Woolf, 1962, de Eduard Albee. A
personagem atua em um espetáculo. É ator. Fotografia como Creon e Édipo. Troca de
roupa. A rua, personagem perfeita. Moira? A inexorabilidade da morte, destacada como
primeira palavra em caixa-alta, tem relação com as referências às tragédias gregas?

C05. Visão alternada dos voos de um pombo e dos movimentos de um pardal. Olhar
reflexivo. No bar, a personagem observa. Visões de sua própria face em diversos
espelhos. A informação de que um acidente matara esposa e filha. Marcação: o vôo do
pombo, o deslocamento do pardal. Uma reflexão existencial. Um conflito, por meio da
memória, entre passado e presente. Outra marcação: a lembrança dos rostos no espelho.
A perspectiva de visão da personagem muda os planos de observação. Visão de outras
pessoas realizando atividades cotidianas. O sol se põe. Aspectos físicos e psicológicos.
O movimento dos animais. O acidente, mais uma vez. A culpa, única maneira de amá-
las novamente. Referência ao Gênesis. Trajetória, palavra marcada por mais duas:
tempo e morte.

C06. Questionamentos sobre ódio, coragem e covardia. A personagem esconde uma


arma. Não chove. A personagem sente frio, apesar de estar suando. Caminha, na noite,
por ruas do Rio de Janeiro. Marcação: as frases em que questiona o papel do ódio
naquele momento de sua vida. No banco molhado da Praça da São Salvador reflete
sobre a vingança. Pensa e nos informa alguns dados: a mulher do outro teve um filho,
que, por sua vez, tem a idade de seu ódio. Rumina as formas adequadas de vingança.
Chora, ainda no banco, pensando que seu corpo necessita de vingança. Desistiu diante
da certeza de que a melhor vingança seria matá-lo. Relembra a visita ao edifício: o
menino, que segurava o braço do outro, se solta e se enrola em seus joelhos. Desiste da
vingança.

C07. Três personagens: o que sofre pelo mundo, o que quer criar o mundo e o que pensa
o mundo. Respectivamente, Pedro (pedinte), Paulo (artesão, casado, bêbado) e Pedro
Paulo (dono de um tabuleiro de cocadas brancas e pretas, adepto do candomblé ou
umbanda (?)). Os três falam. Os três gargalham. Os três foram presos na saída da
estação. Os três eram analfabetos. Embora diferentes, de alguma forma, sempre é
possível se reconhecer no outro, enquanto humano. Trata-se de uma das últimas
metamorfoses do Ahasverus de Rawet (em Viagens de Ahasverus).
143

C08. Marcação: “Nem mesmo um anjo é entrevisto no terror”. 01h10min no relógio da


Mesbla. Madrugada fria. A personagem ronda o Passeio Público. Segue, só e a pé, rumo
à Lapa. Um carro para um negro magro e alheio. O carro se afasta. A personagem segue
por locais de baixo meretrício. Sente falta do mictório. Por ali, antigamente, terminava
suas noites em busca de outra presença. Morava em quarto de portugueses. Trabalha em
uma pequena oficina de camisas. Lembra do trabalho e do detalhe antevisto,
aproveitado por uma publicação francesa, que havia sido ignorado por seu chefe, pensa
no modelo de camisa social elaborado e, mais uma vez, ignorado por todos. O rechaço
dos companheiros lhe tolhia a criatividade e a elaboração de novos modelos. Visualiza
um rapazote. Referência a Giuliano Gemma, ator italiano, andando na Avenida de
Tulsa, provavelmente, em referência a um dos seus filmes. O jovem despreza um velho.
Por extensão, se sente humilhado. Um homem no ponto de ônibus e mais uma negativa
imposta sem palavras. Destaca um mulatinho. Observa um mal entendido com o homem
casado e o mulatinho, que segue para a Lapa. O velho da banca os observa. Continua só,
com seu corpo em um vazio. 02h45min no relógio da Mesbla. “Nem mesmo um anjo é
entrevisto no terror”. A ação se passa em 01h:35min.

C09. Alguém, na areia da praia, sendo tocado pelas ondas. Trata de um “corpo-
músculo-nervo” (p. 369). Este alguém está cansado. Essa expressão, “corpo-músculo-
nervo”, atua como marcador. Em outro horizonte de serras e litoral, a lembrança de um
ambiente doméstico. Seu retrato na mesa ao lado da compoteira, uma cristaleira,
herança da tia. Descrição de um ambiente doméstico e familiar. A personagem parece,
por um momento, desprezar tal espaço. Lembrança do trabalho como vendedor de
eletrodomésticos. No fim, a personagem se levanta da areia. Foco nos grãos que caem
de sua mão.

C10. Dois homens almoçam num restaurante. Um é baixo, gordo e calvo, o outro,
magro, calvo e baixo. Um casal (homem-mulher) adentra o recinto. Os dois param de
almoçar, parecem contemplar a mulher. O gordo observa o casal de forma mais intensa
e detida. O magro é tímido, mas concorda que a mulher é bonita. Descrição do casal em
silhueta. Ele, elegância padronizada de crediário. Ela, bem vestida, um tipo gostosa e
elegante. Os homens voltam ao almoço. A figura do acompanhante se impôs entre os
dois. Excitavam-se.

C11. A personagem, com um giz, traça uma linha do meio fio a parede. É noite. Parara
de chover antes das nove. Rememora sua vida pregressa em um país estrangeiro.

C12. Um homem em um cinema. Não se interessa pelo filme, fuma. Lembrança de que,
nos últimos meses, não tem conseguido manter o equilíbrio cotidiano. Lembrança de
um porre em seu aniversário de cinquenta anos. Na festa, a mulher, seus dois filhos, os
pais, os sogros, os amigos e o amante. Vive uma vida dupla. É viril. No dia seguinte,
relembra que tentou se embriagar na casa do amante. Cena entre os dois. Misto de
sensualidade, desejo e ódio. Não responde como no passado, à ereção do membro do
amante. O foco se volta para o cinema. Um casal abandona a sala rindo, comportamento
que o irrita. Questiona-se. Sai do cinema à procura de um café. Surpreende um trecho de
144

uma conversa: Marcação em caixa alta: UM HOMEM DEVE. Toma café entre um
careca gordo e um crioulo. Há. Haveria diferença entre os planos marcados pelo “dever”
em oposição ao definido pela existência material (seja material, psicológica, emocional,
conceitual etc, como pode denotar o verbo haver na terceira pessoa do presente do
indicativo, no caso “há”? Pensar no termo verbal em sua possibilidade narrativa na
primeira pessoa do singular torna a questão mais complexa.

C13. Movimentos de um lagarto. Alguém observa, ao mesmo tempo em que tem em sua
mesa uma equação a ser resolvida, os movimentos do bicho em um muro. Rasga a
folha. Marcação: A, B, C, a, b, c. Providencia e observa outra folha. Enquanto rasga
folhas, oscila entre o amor e o ódio. Procura o lagarto, não encontra. Acende um fósforo
na direção dos olhos e observa o movimento do fogo. Poalha, poeira leve que se
mantém suspensa no ar.

C14. Alguém que sofre. Verifica papeis e contas pagas. Bebe café numa charutaria.
Deseja um guardanapo. A imagem de um porco-espinho se impõe. Outras imagens:
“Um homem morto, um cavalo morto, um rato, morto”. Marcação: “Um homem morto,
um cavalo morto, um rato, morto”, que, também será o título do conto. Desce pela
Largo do Machado e pela Dois de Dezembro até a praia. Pouco mais de 10 da manhã.
Pessoas em frente ao prédio da UNE. Templo nublado. “Um homem morto, um cavalo
morto, um rato, morto”. Pensa em como utilizar o guardanapo. Fixa imagens a partir da
lua. Compra um brioche numa padaria antes das grades do palácio do catete. Pessoas se
movem na rua, em frente ao Hotel Mundo Novo. “Um homem morto, um cavalo morto,
um rato, morto”.

C15. Schlimazel Mensch (homem pudim, em ídiche), num bar onde se toca uma
seresta, duas e meia da madrugada. Uma loura. O chefe dos garçons do Hotel Nacional,
sem o ar profissional, possui face de uma personagem dos contos de Hemingway.
Referência a uma frase de Hemingway: “nada nosso que estás no nada [, nada seja o
vosso nome, nada a nós o vosso reino e seja nada a vossa vontade, assim no nada como
no nada”]. O escritor se suicidou em 1961, após algumas crises depressivas. Os
presentes comem. Está sem fome, mas com água na boca. Bebe conhaque. Três
efeminados reclamam da perversidade humana. Madrugada quente de julho. Observa
um crioulo que vem comprar cerveja. Lembrança de cenas envolvendo sexo e
prostituição. Mais umas doses de conhaque e começa a vagar entre a dor, a ironia e a
lucidez. Questionamentos. Lembra-se que está hospedado no Hotel Nacional. Há um
amigo de Porto Alegre no mesmo hotel. Veio à cidade para um evento: O I Encontro
Nacional de Proprietário de Bares. Lembranças de turistas americanos e alemães.
Encontrão com um cão. Passeia por algumas ruas, compra cigarros. Então, ela surge.
Está se prostituindo. Some num Opala. O policial não se assusta com sua presença.
Continuar a caminhar e a relembrar a figura feminina. Excita-se. Lenda o abacate?

C16. Ódio. Levanta-se da poltrona, conserta a persiana. Seu amigo de infância, presente,
é escultor e lhe deve algo. O escultor presenteou o amigo com a figura de sua mulher.
145

Gostava da vista, mais pelo seu trabalho que pelo amigo. A esposa do outro lhe traz um
café. Ambos, marido e esposa, não tomam a bebida. Calam-se sobre a dívida.

C17. Frase de Rimbaud: Quellevie! La vraie vie est absent. Nous ne sommespasau
monde. A tradução livre: “Que vida! A vida real está ausente. Nós não somos do
mundo”. Uma espécie de pedinte. Alguém lhe atira um pedaço de bolo enrolado em
papel. Chovera e o ônibus lançara-lhe um traço de lama. A manhã de domingo promete
sol. Uma travesti. Um tipo barrigudo empurra um carrinho de carga. Uma velha,
abraçada a um adolescente. Uma gorda com um menino. Lembrança do sonho de
infância, agarrado a um gato feroz. Come o bolo. A lembrança de um sonho: um grupo
de três homens humilha outro. A travesti contaminada pela umidade da manhã. Outros
tipos populares. Ergue-se. A morte, uma ficção.

C18. A personagem deseja criar uma palavra mágica. Para tanto, interage com
elementos de sua decoração, a exemplo de samambaias, ou com animais como galinhas
que se bicam. O seu objetivo é investigar a combinação perfeita para criar aquela que
seria a palavra mágica.

4.1.4. Do levantamento à interpretação: Os temas e aspectos formais como critérios


de escolha

O tópico objetiva a apresentação das análises dos dados acima. Neste ponto,
começa-se a justificar a escolha dos seis contos e não escolha dos demais.
De início, levaremos em conta a sutileza na caracterização, definição das
personagens e ambientes retratados. Por exemplo, segundo Kirschbaum, nesta coletânea

[...] podemos suspeitar que uma personagem é judia por seu nome (tal como
Eliezer Kugelman em “O riso do rato”, Bluma Schwartz em “O casamento de
Bluma Schwartz”, Schlimazel Mensch, em “A lenda do abacate”, nomes que,
de fato, são caricaturais, remetendo ao afastamento da comunidade judaica
que Rawet se impusera, e evidenciando que o conflito continuava vivo e
intenso), ou talvez pela lembrança de um passado que evoca uma pequena
aldeia judaica na Europa oriental, uma sinagoga e um cemitério, como no
conto “A linha”, mas em nenhuma das narrativas o judaísmo e suas linhas de
força habituais, o holocausto, o exílio, a errância judaica, a assimilação, são
tematizados (KIRSCHBAUM, 2004, p. 122) 44.

44
Essa observação, com relação aos nomes, encontra-se, ainda, em Reis (2009, p. 21) e em Lilebaun, que,
ao citar Eliezer Kugelman e Bluma Schwartz, acrescenta Nehemias Goldenberg, Yehoshua Cohen,
Yehuda Bitterman, Israel Bamberg. Sobre o resultado das utilizações desses nomes, no conto de Rawet,
aponta que “há um esvaziamento da temática judaica que aparecia no tema da imigração do primeiro
livro. As novelas, no entanto, trazem algumas pistas para a imagem dos judeus que Rawet constrói”
(LILEBAUN, 2009, p. 120).
146

Em nosso caso, a realização do trabalho dissertativo exigiu a seleção de um


recorte específico. Ao mesmo tempo em que exemplar no sentido de oferecer uma visão
global desses dezoitos contos acima resenhados, a escolha deveria expressar uma
relação progressiva entre o elemento macro (a própria coletânea) e o elemento micro (o
corpus que seria adotado para a análise mais detalhada).
É importante reforçar que, embora o fator afetivo se configure como elemento
que permeia o trabalho crítico, seria ingenuidade insistir apenas neste aspecto. A
afetividade motivadora de empatia na leitura e interpretação do texto literário de
maneira fundamentalista desmerece o trabalho crítico que a empreitada exige e
desconsidera longa tradição nos estudos do texto literário.
A escolha dos seis contos representativos da narrativa ficcional de Samuel
Rawet, tendo como campo de visualização a coletânea Que os mortos enterrem os seus
mortos, tem por base aspectos temáticos e formais (internos) dos mesmos. Esta
visualização, possível com a análise dos quadros de sínteses e observações dos aspectos
objetivos, é responsável por justificar o quadro que ora se estabelece com os seguintes
textos: “O riso do rato”, “O casamento de Bluma Schwartz”, “Moira”, “Trio”, Nem
mesmo um anjo é entrevisto no terror” e “BRRKZNG: pronuncia – bah!”.
Por outro lado, é possível propor uma apresentação da coletânea tendo em vista
a leitura empregada na realização da dissertação, bem como do estabelecimento de
alguns pontos de direcionamento e sustentação da mesma. Em um primeiro momento, a
leitura sustentada por uma argumentação específica será responsável, em seguida, pela
exemplificação e defesa de um corpus representativo de seis contos.
Em “O riso do rato”, temos o tratamento da vingança, temática nova na obra de
Rawet. O texto serve de exemplificação máxima com a focalização dupla.
Em “O casamento de Bluma Schwartz”, o perfil de elaboração da personagem
feminina destoa da maior parte dos outros contos em que se destaca o conflito de
personagens masculinas. A heroína solitária da coletânea é utilizada no aspecto
referente às personagens (possivelmente) judias, o que também acontece com os irmãos
Kugelman do primeiro conto.
O conto “Moira” apresenta o conflito de uma personagem cuja atividade
profissional sempre agradou a Samuel Rawet: o teatro. Espécie de libelo da
interpretação, o conto apresenta, ainda, a singularidade de ser um dos mais concisos da
coletânea.
147

“Trio” foi selecionado devido à sua configuração intertextual com a novela


Viagens de Ahasverus. Diferentemente dos outros contos da coletânea, o trabalho com a
focalização contempla três personagens. Outro aspecto que o diferencia seria a não
adoção do bloco de parágrafo único, muito presente na coletânea.
“Nem mesmo um anjo é entrevisto no terror” apresenta como protagonista um
costureiro homossexual. Presente desde os seus primeiros contos e, de forma mais
destacada em seus ensaios, os temas da homossexualidade não abandonam a obra de
Rawet, mesmo que os mesmos não resumam ou impliquem nos conflitos de suas
personagens. Assim como no caso da personagem feminina, aqui não ocorre a redução
determinista de um seguimento social, mas o relato entrecortado de figuras
universalizadas.
Em “BRRKZNG: pronúncia – bah!”, a linguagem aparece como tema de
investigação e do desejo subversivo da protagonista. Configura-se num exemplo de
como o contista poderia se estender no tratamento de um tema (o conto é o mais longo
da coletânea) e na inserção de micronarrativas em uma narrativa primeira. Exemplar da
preocupação do artista com a própria linguagem, disposto no final de sua obra e,
simbolicamente, de sua vida literária.

4.2. Configurações e inserções dos objetos

No estabelecimento de uma base teórica e metodológica, (a) consideramos que a


ficção, construída, progressivamente, ao longo do texto, é constituída de história,
personagem, espaço e tempo; (b), que a narração está ancorada nas grandes escolhas
técnicas do contista; e, (c), que textualização nos remete às grandes remissões que o
conto faz a outros textos e outras realidades textuais ou não, preceitos estabelecidos por
Reuter (2007).
O presente tópico, composto de mais seis itens correspondentes às análises
específicas dos contos que formam o recorte do objeto de nossa pesquisa, a narrativa
ficcional de Rawet tem por objetivo a organização de nossa análise dos níveis narração
e textualização (REUTER, 2007).
148

4.2.1. A arquitetura da vingança: “O riso do rato”

O texto abre a coletânea Que os mortos enterrem os seus mortos. Trata-se de um


conto com ação na Praça Onze e suas adjacências, no Rio de Janeiro. A ação ocorre por
volta de 1945 (RAWET, 2008b, p. 261-262).
A frase que o nomeia não adianta uma referência explícita aos personagens. De
qualquer modo, a composição nominal reforça o aspecto animalesco de um ser, muitas
vezes, relacionado ao sentimento de asco: o rato.
A construção que inicia o conto, em forma de prolepse, adianta alguns eventos.
O efeito final desses eventos será a materialização de uma vingança, empreendida pela
protagonista, a ser concretizada pela morte do outro, mencionado como “aquele
homem”. A perspectiva adotada é a da personagem que projeta o ato vingativo.
Em “sua intenção era matar aquele homem hoje, de qualquer modo” (p. 345),
encontramos a evidência de que o conto não demarcará de forma aristotélica as noções
de tempo em sua dimensão tripartida de passado, presente e futuro. Neste caso, por
exemplo, há a sugestão de um conflito não mencionado que motiva um plano de
vingança provocado por um sentimento sem nome. O não esclarecimento sobre o
surgimento temporal do desejo, nem da sequência lógica de sua execução corrobora
para a fusão dos tempos.
A seguir, demarcada no hoje, a repetição sistemática do verbo que irá confirmar
o caráter de planejamento do crime: “Viu-o de perfil, no espelho, enquanto ensaboava
as mãos, de volta do mictório. E viu seu rosto cansado, viu a própria exaustão de alguns
dias nos olhos inexpressivos, nas sucessivas barbas feitas com negligência” (p. 345,
grifos nossos).
Sobre a questão temporal, o narrador interpõe, por outro lado, eventos de
observações situados em um presente próximo denunciado pelas sucessivas “barbas
feitas com negligência” (p. 345). Do conflito não nomeado, das justificativas de uma
vingança iminente, não recebemos pistas adiante. Com a informação de que a
protagonista observa o homem pelo espelho, o narrador destaca a ação trivial de
higienização das unhas do vingador. O efeito de angustia provocado pela tensão daquilo
que já foi narrado até aqui se mantém. Expressões como: “ferindo-se às vezes” (p. 345)
e “raspou o intervalo entre a unha e carne” (p. 345), contribuem para a construção desse
efeito.
149

Adiante, a informação de que se trata de Eliezer Kugelman, o alvo de


observação da protagonista. O primeiro, “[...] era um homem baixo, o rosto balofo e
luzidio, os cabelos negros bem esticados para trás, um ventre médio, os braços e dedos
gordos e maneirosos agitavam-se sem necessidade” (345).
A informação de que o tempo do “hoje” localiza-se numa churrascaria é dada
sem alarde, por meio da observação da protagonista. A primeira menção ao riso vem
dessa observação e liga-se com o aspecto dos olhos apertados de Kugelman. Trata-se de
um “riso leve entre bochechas” (p. 345), mas que, reforça, não vem carregado de ironia
e/ou zombaria.
Mais adiante, o riso será retomado e, neste caso, sob uma nova perspectiva. Ao
fingir que esfrega e observa barba e bochechas, a protagonista, sob novo ângulo,
vislumbra um sentimento não nomeado: “O outro perfil lhe deu entre lábio e bochecha,
na linha do riso, um tom de desprezo, não bem definido” (p. 345). O desejo inicial de
vingança é mantido com uma análise paralela e minuciosa de Kugelman.
Ao cutucar um arranhão na orelha, responsável por um esboço de infecção, a
protagonista, ainda de costas e olhando pelo espelho, introduz mais dois elementos na
narrativa: “Os dois irmãos de Eliezer Kugelman estavam sentados num banco lateral, à
sombra de um grupo de troncos torcidos. Manuel Kugelman, um pouco mais moço que
Eliezer, e Elias Kugelman, o mais novo, o idiota” (p. 346).
Antes de prosseguir, com uma passagem em analepse na qual a protagonista
explicará o momento do encontro com os irmãos Kugelman, é importante destacar a
notação que o irmão mais novo recebe de “o idiota”, termo que ganha distinção mais
pejorativa no emprego do artigo definido. Esta identificação será repetida mais nove
vezes na narrativa, substituindo o próprio nome da personagem após a sua primeira
apresentação via perspectiva da protagonista.
Pensando que o termo carrega, mesmo nos tempos atuais, uma conotação
pejorativa, no conto essa conotação vem sempre reforçada pela perspectiva da família,
dos irmãos e, de forma mais específica, por Eliezer, que também dividirá a perspectiva
no conto. Quando a inscrição é veiculada pela protagonista, parece mais reprodução
daquilo que se escuta do que a visão da mesma sobre Elias, “o idiota”.
Após perceber os irmãos Kugelman na praça, ocorre o momento, através de uma
analepse a que nos referíamos, será responsável pela expansão da apresentação de Elias
e, em certa medida, pelo adiantamento da importância deste na narrativa:
150

Quando os conheceu, apenas um detalhe lhe despertara a atenção no idiota.


Nada falava, andava à toa, desligado, uma leve baba às vezes nos lábios,
quando em companhia dos outros dois. Cercavam-no de atenções, nunca o
deixavam só, ou quase nunca. As poucas vezes em que o encontrara sozinho,
ao dirigir-lhe a palavra, o rosto do idiota se iluminava e o diálogo, banal,
transcorria tranqüilo (p. 346).

O trecho que segue, ainda com a utilização do advérbio de tempo “quando”,


instaura mais uma analepse em relação ao momento presente, mas um avanço temporal
com relação aos eventos que demarcaram os primeiros contatos da protagonista com
Elias. Nota-se que mais duas figuras serão introduzidas na passagem abaixo, o filho da
protagonista e o filho de Eliezer: “Quando seu filho se tornou amigo do filho de Eliezer,
tornou-se amigo também do idiota” (p. 346). Esses dois elementos, somados ao
“idiota”, constroem um ponto de ligação entre a futura vítima e o seu algoz.
Vem da amizade a observação da protagonista o dado de que os três rolaram às
gargalhadas, ludicamente, no gramado. Por sinal, “a única vez em que vira o idiota
gargalhar” (p. 346).
A narrativa retoma o tempo presente ao focalizar a perspectiva da protagonista,
as suas mãos e o momento que volta à mesa. Até aqui, no tempo objetivo, obtemos a
narração de poucas ações em que a protagonista coloca-se diante do espelho, olha para
as imagens atrás de si, lava as de mãos e retorna ao seu assento.
Já sentada, a personagem percebe os mesmos traços na expressão de Eliezer, que
lhe ofereceu um cigarro depois do brinde. Neste ponto, a narrativa muda de perspectiva,
o que poderá confundir o leitor. O narrador irá fundir em seu relato, a visada de Eliezer,
aquele que, até então, poderá ser vítima de um gesto de vingança a qualquer momento:
“[...] encarou-o com os olhos neutros ao estender o isqueiro com a chama um pouco
exagerada” (p. 346).
O retorno analéptico retoma a noite anterior: “Quando recebeu o convite ontem à
noite para o almoço de hoje, sabia que a intenção daquele homem era matá-lo, e isso em
nada o perturbou” (p. 346). O que não tirou o seu apetite, afinal, agora, a perspectiva de
Eliezer é a do presente: “A um pequeno sinal seu alguns homens da polícia distribuídos
pelo salão resolveriam o problema. Em caso de necessidade um sinal do irmão Manuel
deixaria prevenidos dois outros postados na praça” (p. 346).
Tal analepse volta-se para um passado mais remoto que a noite anterior, a do
convite para o jantar. Nesta passagem, encontramos a informação de que, por polidez,
Eliezer acompanhou a protagonista à clínica que o seu filho estava internado. Note-se,
151

mais uma vez, que os eventos são rememorados de forma não linear. Porém, no relato
que segue, ainda na perspectiva de Eliezer, retiramos mais alguns dados que são úteis no
entendimento do incidente ocorrido com o filho da protagonista para, enfim, estabelecer
uma relação deste evento com o desejo de vingança que a protagonista vem
arquitetando:

Na queixa à polícia, e no pedido de proteção, alegara o desvario do pai


crápula, e a ameaça que representava para ele, Eliezer, pelo simples fato de
ter presenciado a cena chocante. Dissera à polícia que vira o pai tentar
violentar o filho, e o menino em estado de choque, selvagem, saíra correndo
pela rua, até cair exausto em convulsões (p. 346).

O quadro estabelecido até este ponto é o de um pai acusado de violentar o seu


filho. Então, a acusação aparece como motivação da vingança? Não necessariamente.
Na frase que segue, a informação sobre a atividade profissional da protagonista,
o ensino, e a sua própria ocupação, os negócios. Destaca-se que, ainda, estamos nos
referindo à perspectiva de Eliezer: “Não permitiria que esse professorzinho atrapalhasse
seus planos, como o idiota atrapalhara a operação com sua filial em Haifa, através de
um intermediário de Bruxelas” (p. 346). Além de se chamar Kugelman, a personagem
mantém um negócio em Israel.
Retorno ao presente, concretizado na degustação de um aperitivo e a expansão
das suas características no convívio social:

[...] detestava o álcool, e nunca ia além de um Martini seco antes da comida e


um uísque depois, o suficiente para manter uma certa cordialidade social nos
negócios. Não suportava nos outros o derrame sentimental de algumas doses,
e muito menos a língua destravada do bobalhão afetivo (p. 347).

A perspectiva retoma o presente na manifestação direta do narrador que nota


algumas frases trocadas entre os dois, mas logo volta para as reflexões de Eliezer,
depois que este corta um pedaço de maminha de alcatra. A volta à perspectiva de
Eliezer retoma um momento temporal mais distante ainda, os tempos de sua juventude.
O retorno à casa de seus pais foi marcado por um dia de trabalho estressante e pelo
cancelamento de sua aula devido ao “barulho de tanques” (p. 347), que impediu,
também, o seu passeio à praça da República com amigos.
Um incidente em seu trabalho, um estabelecimento de seu tio, foi responsável
por muita irritação:
152

Pagara-lhe a metade do salário combinado, ainda lhe avisou que descontaria


o prejuízo do vidro quebrado nos meses seguintes. Um vidro quebrado por
descuido enquanto ajudava o carregador a levar uma cômoda dos fundos para
a calçada. Antes de sair, tinha outra aula à noite, ainda olhou bem a cara do
tio, o rosto redondo, a calva central, os olhos matreiros, a enxugar um suor
eterno com um lenço eterno nas faces eternas em gestos lentos e meneios que
não sabia definir (p. 347).

Ainda desse passado remoto, a nomeação das ruas percorridas durante o


percurso denunciam o Rio de Janeiro, cidade não denominada no conto. Eliezer, ao sair
do trabalho, passa pela esquina da Senhor dos Passos e a Praça da República, contorna a
Campos de Santana, avista o Ministério da Guerra, fuma um cigarro observando uma
movimentação entre a Rádio do Ministério da Educação e a Casa da Moeda.
Volta para a primeira dimensão do passado remoto, o momento de sua chegada
em casa depois do trabalho e da mal fadada aula: “Oito e meia quando abriu a porta de
sua casa na Benedito Hipólito. O pai dormia, como de hábito, o que era melhor, evitava
a ranzinzice. Tirou o paletó, abriu o gás para esquentar as duas panelas, e tirou pratos e
talheres do armário da cozinha” (p. 347).
Sem alterar a dimensão temporal, passa a descrever a figura paterna:

Lesma na atividade de cobrador do clube do quarteirão, fera no resmungar e


lamentar sua condição de vítima eterna, vaidoso na exigência dos colarinhos
engomados na lavanderia da Regente Feijó, o pai não conseguia arcar com as
despesas da casa (p. 347).

Na atividade do ente, a falta de tino no trato da economia doméstica e na vida


profissional. Eliezer, ao contrário, torna-se um homem de negócios.
Na descrição da mãe, estabelecida em seguida, é possível afirmar que o efeito
narrativo é o de uma analepse, o que distancia a reflexão de Eliezer ainda mais dessa
primeira dimensão do passado, chegando a sua infância: “A mãe arranjara um trabalho
noturno, acompanhante de uma velha doente. Chegava de manhã, quando ele e os
irmãos saíam para a escola, passava o carão em todos, tomava café e ia dormir” (p.
347).
Retorno à primeira dimensão do passado remoto com a lembrança do jantar se
concretizando: “O feijão-branco e as batatas já tinham grudado no fundo da panela.
Derramou tudo no prato fundo que deixou de lado, e despejou o bife no prato raso.
Acabar de comer, tirar o resto da roupa e se atirar na cama, o maior desejo” (p. 347-
348).
153

Em meio a essas recordações, a menção breve ao quadro político vivido à época:


“Amanhã de manhã saberia se a notícia colhida na esquina da Rua Santana era
verdadeira. Derrubaram Getúlio. Teve a impressão de que desde que a guerra acabara,
há alguns meses, já ouvira esse boato algumas vezes” (p. 348). A menção ao ex-
presidente Getúlio Vargas localiza a narrativa historicamente no período próximo a
1945, fim de seu primeiro mandato em decorrência de um golpe militar. A referência à
Guerra, que acabara há alguns meses, seria outra pista desse cenário mencionado
sutilmente.
Outro evento ocorrido em decorrência do quadro exposto é narrado em seguida,
com a prisão de sua mãe:

A mãe estava presa e mandara um recado para os parentes. Na polícia viu-a


no meio de um grupo de mulheres do mangue esbravejando, protestando,
sacudindo as banhas e a corpulência no máximo de indignação. Nunca
chegou a comprender [sic] bem o olhar do policial, os olhos fixos nos seus,
quando lhe disse que podia retirar-se com a mãe, nada registraria. No
caminho ela não fez outra coisa a não ser repetir que estava apenas passando
pelo lugar quando foi envolvida na confusão, apenas passando, que era um
abuso, um desrespeito, por aí afora. Odiou-a mais pelo falatório (p. 348).

Salto para a primeira dimensão do passado remoto: “Ao se deitar, sem comer,
não suportou o cheiro da esporra dos irmãos que dormiam no mesmo quarto” (p. 348).
Mais tarde, o emprego do termo “esporra”, no sentido de que se masturbavam, ganhará
sentido mais amplo, podendo inclusive estar se referindo ao ato sexual praticado com o
“idiota”.
A conclusão do momento analéptico de Eliezer, que seria, num plano global,
toda a sua perspectiva narrativa dentro do conto, vem com uma menção explícita ao
irmão mais novo, Elias, “o idiota”: “Odiava o mais novo, os pais haviam decidido que
ele pagaria seus estudos” (p. 348).
A mesma conclusão encerra o período do flashback em que é possível extrair
uma série de vocábulos voltados para o mundo dos negócios. Este ponto é o momento
que separa as reflexões de Eliezer, situadas no meio da narrativa, com relação às da
protagonista.
O gesto de cortar a carne, narrado agora, demarca o retorno à perspectiva do
“professorzinho”:

Ao cortar a primeira fatia do filé ainda continuava intrigado com a linha do


riso entre lábio e bochecha. Espantou-se com sua própria serenidade, agora.
Por várias vezes naquela manhã, e ali mesmo na churrascaria, teve a
154

impressão de que ia desabar sobre si mesmo ou sobre o outro. A lembrança


do filho na clínica provocou-lhe um tipo novo de despertar interior (p. 348).

A última menção ao riso de Eliezer virá ligada à primeira análise de uma


mudança de comportamento, reforçada pela lembrança do filho hospitalizado. A
observação da expressão do inimigo, sentado à sua frente, o carrega para um ponto
anterior à internação do filho e, consequentemente, da formulação de seu ódio, seguido
para a formulação do plano de vingança: “O breve relato do filho, arrancado aos
pedaços, em meio a convulsões, antes do colapso, e que se resumia à sua frente em
letras invisíveis, como um luminoso de noticiário [...]” (p. 348).
A revelação do motivo do choque funde a perspectiva do pai e do filho:

[...] o idiota deitado nu no canto da sala, onde habitualmente dormia, e os


outros dois, Eliezer e Manuel Kugelman, chamando-o alternadamente,
sussurros e gritos, junto aos ouvidos, de todos os palavrões. Às vezes
mantinham-no deitado de costas, outras deixavam-no de bruços, o idiota
inerte, como se estivesse morto, e submetiam-no a uma permutação de
possibilidades sexuais (p. 349).

O evento seguinte parece ser divido entre o pai, o “professorzinho”, e o narrador:

O menino acordara e ao olhar da janela vira luz na sala dos vizinhos. A casa
era um pouco afastada do muro, em frente à sua, e o acesso à varanda se dava
por uma rampa de pedras que terminava na garagem. Atravessou a rua e do
lado de fora da janela presenciou a cena (p. 349).

Em mais uma oportunidade, o ato de cortar a carne, retoma a cena à narrativa


primeira, ao encontro na churrascaria: “Eliezer Kugelman cortava mais uma fatia de
maminha de alcatra e revolvia-a na farofa e no molho de cebola” (p. 349).
As palavras finais, reservadas ao professor, introduzidas em forma de epifania
pelo advérbio que atesta o repentino, revelam a falha do projeto de vingança da
protagonista:

Subitamente sua intenção de matar aquele homem hoje, de qualquer modo,


quando Eliezer ergueu a cabeça, fundiu-se à linha dos lábios às bochechas, e
percebeu que nada havia a fazer. Do fundo, quase em tom de prece, jorrou-
lhe o óbvio. Teve a impressão de que a vingança só tinha sentido quando
envolvia a condição humana (p. 349).

O evento proporcionado ao irmão “idiota” aproxima os outros dois de uma


condição oposta da humana. Na criança, o efeito instantâneo de um mal súbito
155

provocado pelo choque. No adulto, a racionalização inicial da violência e da vingança


cede espaço para o caráter de nulidade diante de um “animal”, rato que rir.

4.2.2. Memórias de uma flor-negra: “O casamento de Bluma Schwartz”

O conto deste tópico é constituído pelas reminiscências de Bluma Schwartz; no


passado, ex-secretária de pequeno escritório; no presente, proprietária de cinco
empresas. As lembranças irão compor um panorama de sua existência íntima e social.
Segundo conto na disposição da coletânea, “O casamento de Bluma Schwartz” é
o único a destacar em seu foco narrativo uma mulher como personagem principal. O
título, formado por uma oração simples, pode ser dividido em duas partes: na primeira,
como núcleo do sujeito, subjaz o ritual do casamento, destacado e definido pelo artigo
(“o”); na segunda, a predicação composta pelo nome e sobrenome de uma figura
feminina, o que denota uma linhagem identitária bem demarcada em uma obra cujas
personagens não costumam ser nomeadas. Nesses dois primeiros contos analisados, há a
nomeação das protagonistas.
Esta ordem poderia ser invertida se o objetivo da inscrição fosse demarcar que
Bluma se casou ou mesmo que irá se casar. Essas possibilidades podem ser obtidas na
inversão da ordem direta do discurso. No entanto, como está no título, a definição
obtida pelo artigo nos induz, principalmente, a pensar no ritual, na cerimônia, na
sacramentalização do matrimônio pela qual a personagem passou, passa ou irá passar,
ampliando as possibilidades, sem responder a quaisquer hipóteses.
Na medida em que a leitura avança, as suspeitas começam a ruir. Do nome
anunciado, algumas pistas apontam para a construção de uma personagem pautada pela
a ambiguidade: Bluma Schwartz, de acordo com a origem ídiche seria a denominação
para uma flor-negra (KIRSCHBAUM, 2004, p. 122). Destaca-se, nesse aspecto, a
quebra do possível efeito piegas que o termo “flor” poderia assumir quando em
composição com o adjetivo “negra”, utilizado em alguns casos para exprimir a maldade,
a falta de pureza etc.
Ainda na órbita do sentido ambíguo, segundo Igel, o nome da protagonista,
também, pode ser originário do alemão. Se a leitura, então, pender para a oposição da
origem onomástica estabelecida numa relação de oposição judeus x alemães, o nome
156

carregaria as duas marcas identitárias (IGEL, 1997, p. 205). Para estabelecimento desse
efeito, exclui-se a possibilidade de um alemão judeu.
Cabe, neste ponto, a menção à breve leitura que Igel realiza sobre o conto em
questão. Na quinta parte de sua obra, intitulada “Marginalidade e Sionismo”, tendo
como ponto de partida o livro No exílio, 1948, de Elisa Lispector, a estudiosa privilegia
a manifestação da marginalidade e reflexos do movimento sionista na literatura
brasileira. Sobre Rawet, entendendo a sua literatura como fruto do seu auto-ódio e que o
autor não cresceu odiando os judeus, sentimento que desenvolve em algum momento de
seus últimos anos, afirma que:

Enquanto em Contos do imigrante, seu primeiro livro publicado, o escritor


expressa certa medida de amor humano e até carinho pelos judeus
escorraçados, em publicações posteriores, como em Que os mortos enterrem
os seus mortos, ele já não distingue uns dos outros; aí, todos os personagens
judeus são alvo de humilhação e sarcasmo (IGEL, 1997, p. 205).

Sobre “O casamento de Bluma Schwartz”, a pesquisadora afirma que se trata de


um conto em que “uma noiva é caracterizada por atitudes de frieza e cinismo e atos
criminosos de vingança” (IGEL, 1997, p. 205). Por um lado, a nossa leitura não
descartará essa interpretação, mas, com base no próprio texto literário, procurará
expandir essa possibilidade de interpretação.
De posse desse ponto de vista, voltamo-nos ao conto. Na frase de abertura, a
expectativa na ação ritualística, provocada pelo título, começa de fato a se desfazer. A
descrição das cenas é concisa: no quarto, alguém geme; em uma sala, a heroína,
“encontrava-se na posição que mais lhe agradava depois do casamento. Mergulhada
voluptuosamente, sem volúpia alguma, na grande poltrona de veludo verde, o corpo
descontraído e os mínimos gestos bem estudados” (p. 350).
Percebe-se, desde então, que o ritual em si pode não significar muito para a
narrativa, no sentido de que não será destacado no flagrante narrativo. No entanto, é
instigante o questionamento sobre qual “casamento” o título se refere.
O hábito da ocorrência da mistura de tempos cronológicos e psicológicos
(NUNES, 1998, p. 18), nos contos Rawet, ainda gera a esperança que, em algum ponto,
tal ritual seja destacado. Talvez pela leitura calcada na presunção de que o processo
narrativo do conto será dotado de causa e efeito aparentes.
Avançando, a ambientação obtida é a de um espaço, se não luxuoso, dotado de
excessos decorativos: nas primeiras frases, por exemplo, a personagem se encontra em
157

uma grande poltrona de veludo verde, em frente a um espelho que ocupa um quarto da
parede da sala e, a seu lado, nota-se uma mesinha com cinzeiro e campainha de prata,
capaz de lhe poupar o esforço da voz, caso queira acionar a criadagem.
O tom de ostentação, anunciado pelos objetos, se confirma adiante na
reprodução da observação da personagem, com relação ao objeto argênteo: “ao perceber
o brilho do metal em meio à fumaça, um raio de sol repentino encontrou eco em espelho
e prata, sentiu a importância da campainha, sonho antigo de fartura e mando, e que
nem chegara a usar a pouco, durante a rápida visita da cunhada” (RAWET, 2004, p.
350, grifo nosso).
Seguindo, a referência a esta visitante introduz o que será mesclado durante toda
a narrativa: o presente, o tempo cronológico, formado pela contemplação na poltrona, e
o tempo psicológico, constituído pelo passado recente, composto por tal encontro, e por
um passado mais remoto ainda, composto pelos eventos rememorados a partir do
encontro familiar. Até aqui, temos o momento da contemplação da personagem e a
rememoração de sua atuação como aquela que acolheu uma visita há pouco.
Mais adiante, os motivos para o esquecimento do objeto são elencados:
sofrimento, desencanto e amargura. Naquilo que se segue, não obteremos uma
explanação sobre as razões que justificam esses sentimentos. Esses elementos são
responsáveis, em face de tal visita, por um aborrecimento momentâneo: “Havia uma
discordância lógica, foi ela mesma à cozinha trazer o copo e a garrafa da geladeira, e
com naturalidade, por outros motivos, derramou emocionada a água no tampo da mesa”
(p. 350). Com este trecho, intercala-se uma passagem da segunda possibilidade
temporal do conto: o passado recente, demarcado por esta visita, conforme
mencionamos.
O tempo presente é retomado pelo advérbio “agora”. No entanto, a narrativa
continua com a descrição de um momento composto por gestos aleatórios: “indiferente
ao gemido, a imagem no espelho, a esquerda levou o cigarro aos lábios e a direita
afagou a superfície polida com a intenção de fazê-la soar, gratuitamente” (p. 350). O
objeto prateado começa a tomar ares de elo entre os tempos na construção da
personagem.
A partir deste ponto, é possível ampliar a importância que os tais “gemidos”
possuem na narrativa. Em forma de refrão, o termo que, até aqui, foi mencionado duas
vezes, será evocado em mais três oportunidades.
158

Sobre os gemidos, estes “continuavam no mesmo tom, com os mesmos


intervalos, na mesma monótona sucessão sonora” (p. 350). O efeito da monotonia é
marcado pelo advérbio “mesmo”, e sua variante de gênero, “mesma”.
A ação não se desenvolve no campo físico, mas no nível da memória, da
recordação. O tempo presente encontra-se congelado. A personagem procura fixar as
imagens do passado. A tentativa, mais uma vez, se revela inútil:

Houve épocas em que conseguia rever com nitidez rostos, ruas, objetos, mal
esboçava a intenção de reexaminá-los. Com o tempo uma espécie de
encantamento se desfez. Rostos, ruas, objetos, surgiam, mas na hora e na
seqüência desejadas. Agora vinham com a rala consistência de frases que em
determinados instantes se tornava mais densa, quase sólida (p. 350-351).

Em seguida, uma informação que se refere ao título do conto: Bluma possui um


marido que, por sua vez, encontra-se enfermo. Seria esta personagem a responsável
pelos gemidos marcantes na narrativa. No caso da protagonista, o dado de que a
incapacidade do esposo altera a sua rotina nos é oferecido nesta passagem: “Com quase
dois meses de doença do marido, conseguia pouco a pouco controlar os gerentes das
cinco filiais e assumir o comando no escritório que administrava seus próprios imóveis
e interesses” (p. 351).
Novamente, o corte temporal é demarcado pelo som da campainha. Maiores
detalhes da vida conjugal, da cerimônia de casamento e/ ou da personalidade de Bluma
serão revelados adiante. Por ora, uma possível expectativa é abortada por mais um
gesto, aparentemente, sem sentido e importância dentro da narrativa: “Ouviu o som da
campainha e espantou-se com a própria mão acionando o cone de prata” (p. 351). Neste
ponto, o instrumento foi utilizado em mais uma oportunidade, tomando espaço dos
gemidos na marcação de uma espécie de estribilho na narrativa.
A próxima visão será o espanto de Bluma, provocado por sua empregada, que se
encontra à espera de uma ordem qualquer, lembrando à primeira personagem que,
mesmo aleatórios, seus gestos possuem ou provocam uma reação imediata. Entre
indiferente e indecisa, elabora uma a tentativa de resgatar, mesmo que mentalmente,
algum planejamento: “Nada programara, nada desejara, lembrou-se que poderia apenas
dar um pulo no escritório, apenas para sair de casa, e pediu um suco de laranja e um
café” (p. 351).
Aqui, é possível estabelecer mais alguns alicerces na tentativa de obtenção de
sentidos para uma interpretação: Trata-se de alguém que, no plano psíquico, não deseja,
159

mas que, no plano físico, possui o poder – materializado por um objeto, a campainha de
prata – de ordenar ações específicas. Ao fundo, um conflito não nomeado.
A fusão dos tempos pode dificultar a leitura, exigindo, já neste momento, um
pouco mais de atenção no foco narrativo. Esse processo irá se acirrar adiante com a
introdução de novas personagens.
Sobre Bluma, o que seria uma pista para o sofrimento atual, torna-se a negação
do ato de sofrer:

Passou quase quinze anos tentando recuperar alguma coisa que perdera com
o primeiro homem que a envolvera, alguma coisa que perdera com o aborto
forçado. Um dia percebeu que era inútil, que talvez até a perda fosse uma
ilusão, e se nada perdera, nada havia a recuperar. Uma secura visceral,
destituída de qualquer tonalidade afetiva (p. 351).

Ao aceitar que nos foi possível estabelecer um panorama parcial da condição


atual de Bluma – na configuração do tempo cronológico –, o narrador nos oferece mais
uma pílula homeopática a respeito do passado da heroína: “Trabalhava em um pequeno
escritório na zona industrial suburbana, e o mesmo ônibus que a deixava ali de manhã,
recolhia-a à noite para o regresso” (p. 351).
Na narrativa, este passado mais remoto, de súbito, é ironizado pela circunstância
atual: “Rememorado entre a fumaça do cigarro e o frio da prata polida, tudo parecia
contaminado pelos piores lugares-comuns” (p. 351). Na dimensão atual, o hoje
cronológico, a personagem pode contemplar, nonchalant, ao mesmo tempo em que
tenta rememorar o passado, a fumaça do próprio cigarro, momento interrompido pela
sensibilidade do toque no objeto de prata, a campainha. Caso precise de algo de fato,
terá algum empregado que o providencie.
Estas informações denotam a condição financeira para manter esse padrão de
vida. A narrativa, aos poucos, irá confirmar esse padrão.
Retomando a dimensão mais remota do passado, em que Bluma se encontra
ainda nos tempos de secretária, o narrador nos dá condição de perceber que os gestos da
personagem também se desenhavam, mas não de forma casual. O processo flagrado
configura uma trajetória diferente de uma ação não desenvolvida, fortuita. No evento,
quando a protagonista lança um olhar casual, este desperta um sorriso que, por sua vez,
provoca a oferta de carona, para, em seguida, desenhar um “semi-romance”.
O tipo, que irá lhe proporcionar uma “paródia lírico-sensual”, é proprietário de
pequena fábrica de colchões. Nas impressões de Bluma, o ar inicial de uma jovem que,
160

no mínimo, poderá ser classificada como observadora: “[...] pareceu-lhe obtuso, e era
obtuso, mas as atenções, os lanches, as voltas de carro, a afetação de frases galantes,
despertavam-lhe o riso e uma certa alegria de entrega. Era casado, tinha três filhos, e
largaria tudo se encontrasse, se encontrasse, se encontrasse” (p. 351, grifo no original).
O riso neste caso, diferentemente do primeiro conto, será utilizado como argumento de
aproximação social.
A narrativa parece deslanchar no seu nível informativo sobre a personagem.
Depois das informações sobre a primeira conquista de Bluma, mais uma novidade nos é
apresentada: os adjetivos que denotavam uma relação picaresca – esta ligação é
estabelecida por Corrêa (2007, p. 147) – parecem eclodir no dado que nos informa que,
aos dois meses de gravidez, a história de amor começa a mudar de rumo em um quarto
de hotel de beira de estrada: “Entravam apenas para discutir, nenhum contato mais,
nenhuma paródia mais de frases galantes. Deixasse de ser idiota, o romance acabara e
não permitiria que uma vagabundazinha qualquer estragasse sua vida” (p. 351).
A passagem que marca o nascimento e a derrocada do primeiro envolvimento
sentimental de Bluma ocorre de maneira econômica, sem maiores descrições, o que
segue a tônica da montagem de todo o conto. Na passagem acima, nota-se a
transferência do foco narrativo – de Bluma para o amante – iniciado pelo verbo
“deixasse”. Numa esquematização dialogada, seria possível dividir o trecho atribuindo
uma fala a cada uma das personagens.
Ao avançarmos na leitura, a relação descrita se complica com o passar do tempo:

Um dia em meio à discussão, no mesmo quarto de hotel, ele se lançou na


poltrona, abriu a pasta em silêncio e tirou um revólver. Ficaram sentados em
silêncio durante quinze minutos, ela na beira da cama, ele alisando a arma em
cima do couro. No dia seguinte ela procurou, por conta própria, a clínica (p
351-352).

Uma explicação mais detalhada sobre o ato inominado, forçado pelas ameaças, é
interrompida por uma ação no tempo cronológico: a aproximação da empregada e do
carrinho, que porta os seus desejos elaborados até então: o suco de laranja e o café,
desejos estes, cuja fruição é, prontamente, arruinada pela desatenção da funcionária:
“Reclamou com rispidez a falta da colher no açucareiro. A empregada desculpou-se
perturbada, gritou de dor ao bater com o ombro na porta da cozinha e quando regressou
com a colher viu nos olhos da patroa uma expressão de asco” (p. 352). As atitudes que
161

remetem à serviçal refletem na personalidade de uma patroa que imprime o caráter de


subserviência nos seus subordinados mesmo em silêncio.
O aborto só será mencionado um pouco antes, no trecho em que se questiona
sobre o que procura recuperar nos últimos quinze anos, desde o encontro com primeiro
homem que a envolvera. Bluma pensa na atitude tomada no passado e cogita que até a
perda poderia ser uma ilusão. A sua conclusão é mais desoladora ainda: “[...] se nada
perdera, nada havia a recuperar. Uma secura visceral, destituída de qualquer tonalidade
afetiva” (p. 351). A conclusão afasta-nos do conflito da personagem, conflito, aliás, não
nomeado no conto.
Retornando ao presente, Bluma elabora mais uma ordem: que a empregada
avisasse ao porteiro que este deveria retirar o carro da garagem. Após meio copo de
suco e uma xícara de café, a monotonia dos gemidos encaminha a reflexão da
personagem ao seu marido atual, descrito como um imbecil. “Sentiu o aspecto global há
cinco meses quando em casa de amigos ele lhe foi apresentado. A paródia da frase
galante num tom de semicafajestice [sic] empertigara-lhe o corpo e dera à voz uma
segurança não conhecida” (p. 352). Ela, por sua vez, “[...] foi meiga, dócil, mostrou-se
interessada e encantada, e intuiu que uns breves laivos de boçalidade em sua própria
expressão produziriam um efeito encantatório” (p. 352). Nesta oportunidade, Bluma
será mais bem sucedida.
A menção ao célebre romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de Um
Sargento de Milícias, 1854-1855, marca a passagem e o poder de planejamento e
conquista da Bluma, o passo seguinte é digno de uma heroína picaresca: “[...] quando a
vitrola sugeriu o grupo de dança no canto da sala, lembrou-se de uma leitura casual, um
episódio, e com uma piscadela e um beliscão deixara-o completamente enfeitiçado. Em
algumas semanas de encontros rotineiros conhecia-o por dentro” (p. 352). A passagem
introduz um momento descontraído na narrativa ao mencionar personagens consagradas
da tradição literária brasileira em um contexto específico.
Ampliando as descrições do pretendente, somos informados de que se trata de
um “[...] quase cinquentão, inseguro, solteiro, impotente, de uma feliz ferocidade nos
negócios, e de uma infeliz necessidade de se apresentar com a campânula de mulher e
filhos” (p. 352). Reforça-se a extensão das possibilidades que o vocábulo campânula
possui quando se trata de cobrir, proteger, esconder algo. No entanto, da passagem
citada, o que se obtém concretamente é a indireta do narrador de que a personagem
insinua algo a respeito da (homo) sexualidade do marido.
162

No plano mental, ela não precisa repetir para si o que já sabe, ou acredita já
saber. Ao leitor, resta o recurso de imaginar a partir das pistas dadas. Ao caracterizar a
necessidade do atual marido em mostrar-se socialmente com mulher e filhos como
“infeliz”, o adjetivo ganha uma dimensão analéptica. No entanto, a esta altura, é
impossível saber em que medida o desejo acarretará em sua infelicidade.
O desempenho sexual do futuro parceiro não altera as expectativas iniciais de
Bluma, forjadas com base na observação arguta:

Num dos encontros de hotel da serra, estavam nus os dois, ela cansada dos
esforços em conseguir-lhe uma semi-ereção, enquanto olhava pela janela a
mata densa e florida e aspirava um céu de frio e chuva recente, constatou que
até como homossexual era impotente (p. 352).

Bluma, ao denunciar a visão esquemática do marido, reforça o seu caráter


calcado em observação, planejamento e estratégia. Como parte do plano que já havia
projetado para ser imiscuído na visão esquemática do futuro esposo, “[...] durante um
mês manteve relações diárias com todos os homens que lhe era possível encontrar nos
intervalos do trabalho, e ao constatar a gravidez sugeriu um fim de semana no mesmo
hotel” (p. 352).
No próximo mês, com a gravidez anunciada, consegue marcar o casamento,
evento resumido nesta passagem:

Quarenta e poucos dias de casados lhe deram tempo suficiente para reduzi-lo
a um trapo entregue a um grupo de psiquiatras. Desmoralização orgânica
produzida por laxantes de ação rápida, soporíferos no café da manhã e no
almoço, estimulantes e anti-hipnóticos à noite. Instabilidade total, luta com
insônias pela madrugada, luta com o sono durante as atividades do cotidiano,
luta com as vísceras numa inversão alimentar (p. 352).

A desestabilização é obtida por medicamentos específicos: no café, soporíferos,


narcóticos responsáveis por provocar sono; à noite, anti-hipnóticos, para combater a
ação dos primeiros remédios, o que destaca o conhecimento de uma posologia
adequada, bem como a noção da aplicabilidade ideal da mesma na obtenção dos efeitos
colaterais desejados. No final, “[...] a ilusão, ainda, de alguma coisa perdida, ao ver a
empregada aparecer ao mesmo tempo em que envolvia com os dedos a campainha. O
frio da prata e da voz. A cerimônia do casamento se processara no mais perfeito
esquema ritual” (p. 353).
163

As recordações da protagonista, entremeadas pela melancolia e por uma atitude


picaresca, nos revelam, com os laivos memorialísticos, as estratégias utilizadas por tal
personagem em sua escalada social, marcada, ainda, por cinismo e vingança. Sem
construir um narrador maniqueísta ou mesmo misógino, Rawet obtém o relato humano e
universalizado de uma figura pautada, por um lado, pela capacidade de planejamento,
de raciocínio e de cálculo, e, por outro, por uma sensibilidade melancólica daquele que,
sem saber o porquê, sofre.

4.5.3. A rua, personagem perfeita: “Moira”

Visualmente, o texto em questão segue uma tendência presente na maior parte


dos dezoito contos dispostos na coletânea: é apresentado em parágrafo único, sem
outras marcações, tais como recuos, acentos etc. Em extensão, ocupa quase duas
páginas.
Em seguida, passamos ao título, “Moira”, que nos remete a uma utilização da
tragédia grega. Segundo o dicionário Caldas Aulete, trata-se da “personificação do
destino, da fatalidade, da sorte, do [que] cabe a cada um” (CALDAS AULETE, 2011),
sentido estendido pelo dicionário Houaiss, por sua acepção que afirma que tal
personificação abrange não só as pessoas, mas “todas as coisas do mundo” (HOUAISS,
2011). É este último que nos informa sobre a etimologia da palavra: “gr. moîra, as
‘parte destinada a cada um; sorte, destino’” (HOUAISS, 2011), bem como os sinônimos
que o verbete pode receber: “destino, fado, fortuna, mera, moura, sorte” (HOUAISS,
2011).
O conflito flagrado aqui é o de um artista, ao amanhecer, em seu sobrado
minúsculo. As reflexões existenciais, rememorações do passado e tentativas de
projeções futuras são entremeadas com gestos objetivos e triviais.
O conto, sem estabelecer qualquer tipo de “pacto de leitura” com o leitor –, aqui,
reconhecemos o mal entendido que a expressão pode provocar, mesmo porque uma
leitura qualquer não deixa de ser um pacto entre leitor e texto –, não faz concessões
quanto ao conflito da personagem e nos coloca, logo nas primeiras linhas, diante de dois
questionamentos: “Que sombra recrudesce a sua volta? Que áspera revolta se acumula
em instantes desfigurados e anula qualquer percepção de objetos como objetos?” (p.
357). O fluxo de consciência, elaborado por um narrador que maneja com destreza o
monólogo indireto livre, torna a leitura mais densa, carente de muita atenção. Neste
164

ponto, a voz do narrador aventa uma possibilidade de ser, igualmente, a voz da


personagem, efeito objetivo na disposição dos questionamentos em série.
A notação a seguir, sem as interrogativas expressas, segue no mesmo tom:
“Subitamente se identifica como receptor de imagens adulteradas, incapaz de um
encontro concreto, singular, imediato com o outro” (p. 357), o advérbio no início da
frase marca, textualmente, o efeito epifânico pelo qual a personagem passa ao mesmo
tempo em que serve de marcador para quem ler.
Assim como no caso de Bluma, a memória da personagem não se constitui
plenamente. As recordações são construídas a partir de imagens adulteradas.
Mais adiante, as justificativas para tal epifania: “Havia homens à sua volta, o seu
cotidiano era o cotidiano de todos, em aparência, tinha as suas exaltações e fúrias, mas
havia o tempo solidificado, estratificado, e era com dor que uma vaga impulsão de
fluxos se estabelecia” (p. 357). Neste trecho, mais uma (falta de) definição para as
reminiscências: “uma vaga impulsão de fluxos” (p. 357).
O verbo “chovia”, no pretérito imperfeito, marca o tom melancólico. O narrador
nos revela que igualmente cinza é o sentimento da personagem ao acordar. A terceira
acepção do termo, no dicionário Houaiss, nos revela que, por derivação metafórica,
cinza é “aquilo que evoca tristeza, desolação” (HOUAISS, 2011), ou, na seguinte, ainda
fruto da metaforização, é o “sentimento de lembrança, de saudade daquilo que passou”
(HOUAISS, 2011). O dicionário serve para amparar a nossa afirmação sobre a
atmosfera melancólica que o conto começa a construir.
O que se segue é a explicitação do narrador sobre a intervenção temporal
(passado, presente e futuro) pela qual a personagem vivencia. Nota-se que a mesma não
pode ser definida, muito menos sequenciada, o que, temporalmente, não parece lógico:
“recolheu mais uma vez em bloco sólido o passado” (RAWET, 2004, p. 357). O
silêncio da noite que marca o ambiente, o sobrado, é intensificado pelo barulho dos
carros no Largo do Machado.
Mais alguns gestos objetivos: toma café, acende um cigarro. Em paralelo, a
certeza de que o rosto deveria expressar um conflito: “Sabia que um jeito amargo
compunha suas feições, ou deveria compor. Vacilava ainda em reconhecer expressões
que nada traiam ou pensamentos que não se articulavam em figura e significado.
Representava o que?” (p. 357). A falta de percepção e a construção de uma noção vaga
dos aspectos físicos do próprio corpo reforçam o aspecto conflitivo, ao mesmo tempo
em que aéreo, da personagem. Neste último questionamento, a estratégia meta artística
165

do narrador em continuar traçando o conflito da personagem, além de oferecer pistas ao


seu leitor sobre a sua atuação enquanto ofício.
A necessidade do concreto persiste: “Foi ao banheiro, urinou lavou as mãos, no
espelho do armário viu marcas de maquilagem ainda. Poderia dormir” (p. 357). O
conflito, também: “Que procurava no sono? Que procurava no palco? Um modo de ser
no mundo, um modo de estar diante da morte? MUNDO. MORTE. PALAVRAS?” (p.
357, grifos no original). O fato de estar maquiado e a menção ao palco podem afunilar
as possibilidades profissionais da personagem.
Diante de mais três trivialidades (notar que sua unha foi cortada em excesso,
apertar o roupão e acender mais um cigarro), surge, na ideia do suicídio, uma
possibilidade:

Que espécie de consolo ou libertação procurava na idéia de suicídio. Uma


chantagem que fazia consigo mesmo? Uma irrupção do famoso instinto de
morte? Existia mesmo? Instinto oscilando entre criação e destruição,
vinculando ao fundo mais fundo de sua condição, ou da condição? (p. 358,
grifo no original).

Mais adiante, o espaço será utilizado pela personagem como tentativa de catarse
do seu conflito, a estratégia de se ancorar na concretude dos objetos, na percepção do
real, se mantém: “Cruzou várias vezes o quarto, olhou o armário, a cama, os tapetes.
Abriu o armário, revirou a roupa. De novo no banheiro. A pia. O chuveiro. A toalha. O
sabonete. Um cotidiano. O eterno cotidiano” (p. 358). A tentativa se revela falha.
Os questionamentos se intensificam, o que se percebe no extenso bloco
reproduzido a seguir:

O tempo. O fluxo do tempo. Um instante. Fração de quê? Entre passado e


futuro o presente estrangulado, compacto, quase ausente. A infância? O que
havia de belo na infância? Por que imaginar agora o que nem chegou a ser? A
comparação. Um sonho que se poderia ter sonhado, e que vem através do que
é visto? Ou a nostalgia da simples nostalgia, a saudade de uma forma prenhe
de possibilidades. Se... se... se... A irresponsabilidade? O senso lúdico puro?
Ou a infinita responsabilidade de ser no mundo que se oferece a uma angústia
em perpetua ampliação? Seria possível captar o desespero de uma criança
diante da saturação e opacidade das coisas? Seria possível imaginar a
crispação de sentidos diante da pura fruição de um organismo que se afirma
em sua gênese? De um organismo maior do que a pele? Da pele insatisfeita à
procura de sua forma? (p. 358).

O bloco interrompido por mais uma observação de um passado recente: a sua


atuação na peça Quem tem medo de Virginia Woolf?, cuja participação já durava quatro
166

meses: “Em meio à fala silenciara e se pôs a mirar a platéia. Queria ver a platéia. Queria
ser a platéia. Ator e um homem do público ao mesmo tempo. Uma simbiose. Uma
irrealidade produzida por duas em choque. Ironia. O caminho do humor” (p. 358). Aqui,
realça as nuances da interpretação sendo utilizadas para acentuar o conflito do ator (ser
humano).
O que se vê adiante, em meio ao que poderia ser mais uma constatação
filosófico-existencial da personagem, é uma referência explícita ao Hamlet de
Shakespeare: “O caminho de quê? Ser o que se é, o que se quer ser, e o que se deve ser.
Duas realidades? Três” (p. 358). Em tal passagem, destaca-se a possibilidade que a
personagem encontra entre o ser X interpretar.
Em seguida, uma afirmativa clara do narrador sobre a procura da personagem do
concreto como lenitivo de sua dor. Entre o álbum de fotografias, que registra sua
trajetória no teatro, “[...] percebeu que começava a perceber uma situação ambígua
forjada pela observação. E teve medo. Para distrair procurou refúgio no seu dia-a-dia”
(p. 358).
Ao contemplar sua figura, outro momento epifânico ao constatar ser ali o local
de sua “vocação”: “Não no palco. Ao representar era espontâneo. Ao ser esmera-se
sempre em artifícios. A simulação da convivência” (p. 358, grifos nossos).
Mais questionamentos: “E o diretor? E o autor? O cenógrafo? O iluminador? O
maquiador? O figurinista? O contra-regra? Um destino? Deus? Um nome, uma
realidade, uma possibilidade, um ser concreto à sua imagem e semelhança, ouvindo e
querendo ouvir? Um Tu?” (p. 358, grifo no original). E, mais uma ação concreta: “Veio-
lhe o horror ao se rever nas fotografias de Creon, Édipo” (p. 359).
A realidade presente mistura-se com reflexões e angústias: “A descarga
atravessou-lhe o corpo, sente-se imenso, imenso em sua grandeza e horror. Ao erguer a
mão percebe um leve tique hierático, uma certa pomposidade no gesto. O turbilhão se
manifesta em equilíbrio” (p. 359).
A dúvida persiste: “Representava, agora, para quem? Representava ou era?
Quem era? Eu?” (p. 359).
Depois de mais um gesto concreto, a (não) solução do conflito: “Trocou de
roupa. Olhou-se no espelho. Abriu a porta da rua. A rua. Personagem perfeita” (p. 359).
A literatura de Samuel Rawet, representada neste tópico pelo conto “Moira”,
desafia o leitor na sua estruturação que abandona “aquela história linear, de começo,
167

meio e fim, prima-pobre da novela e do romance (BRASIL, 1975b, p. 15). O conflito da


personagem, em seus contos, encontra-se em movimento e sem resolução.
Sobre o caráter vacilante entre espaço e personagem, destacamos as fotos das
personagens vividas pelo protagonista e espalhadas por todos os cantos de seu sobrado
minúsculo. Neste caso, uma das facetas da personagem que, seguindo o caráter de
surpresa45 provocado pelo narrador de Rawet, não é o de, no palco, representar, mas sim
o de viver. Demarcando um conflito, o efeito provocado pela mudança de sentido que os
verbos representar/ser recebem são responsáveis pela construção de uma linguagem
literária e poética.
Sobre o aspecto do espaço conotando uma situação social, embora os elementos
presentes na descrição do sobradinho da personagem principal, responsáveis pela
criação de uma ambientação que represente uma pessoa de poucos recursos financeiros,
o que se obtém com a disposição dos elementos, do tamanho reduzido das
dependências, dos poucos móveis encontrados, dos objetos utilizados, é a intensificação
do conflito da personagem, conflito, aliás, não definido. No final da narrativa, a
resolução desse conflito continuará no plano do não resolvido, pois a busca da
personagem não é definida. O espaço a ser valorizado é aquele a ser buscado,
percorrido: a rua.
A ambientação obtida pela narrativa de Rawet oscila entre a ambientação reflexa
e a ambientação dissimulada (LINS, 1976). Reflexa porque, para o estudioso, esta
definição define, perfeitamente, a narração em terceira pessoa, o que se explica pelo
objetivo de se manter o foco na personagem; dissimulada porque a personagem é ativa
na construção da narrativa e utilização dos dados espaciais. Em seu conflito, circular
pelo espaço mínimo, incrustado em um sobrado isolado em um dos subcentros do Rio
de Janeiro: o Largo do Machado.
No conto, a funcionalidade do espaço reside nos três aspectos definidos por
Lins. Ou seja, o espaço confirma, precisa e revela a personagem. Destaca-se, por outro
lado, que esse último aspecto é menos evidente, afinal, os conflitos são mais expostos
que revelados.
É possível pensar, na construção do conto, em dimensões físicas e psicológicas
para o espaço. Nesse sentido, reconhece-se o palco, resgatado por uma memória

45
Em Na sala de aula, definindo a configuração de uma linguagem poética, Candido estabelece como
componente da mesma a tríade formada pelos elementos divergência = ruptura = surpresa. (CANDIDO,
1989, p. 82).
168

perturbada como espaço cenário de parte da existência da personagem. Seguindo nessa


linha teatral, as referências evocadas pelo narrador, a textual Quem tem medo de
Virginia Woolf (1962) que acentua o conflito de um casal de intelectuais de meia idade,
Marta e George, norte americanos, que pode ser lida como uma crítica feroz à sociedade
pequeno burguesa da época, ou a indireta de Hamlet (entre 1599 e 1601) e o seu conflito
resumido pelo ser ou não ser, direciona o leitor a espaços de conflitos universalmente
conhecidos.
O tratamento dos elementos constitutivos do conto de Rawet, enquanto estrutura
narrativa, dentre eles o espaço, é responsável pela criação de uma atmosfera conflitiva
capaz de comover, prender a atenção, emocionar, provocar e questionar o leitor. A
ambientação forjada em cenário simples, pequeno, despojado de móveis luxuosos, em
certa medida, sufocante, revela e acentua o conflito da personagem. A resolução do
mesmo, antes de ser apontada como via final do enredo, se abre juntamente com a porta
da rua, única personagem perfeita na história.

4.2.4. Os tipos populares e a vocação humana: “Trio”46

O tópico apresenta o conto “Trio” tendo em vista a elaboração do foco narrativo


do grupo das personagens dispostas no texto. O conto, formado por três tipos populares
– um morador de rua, um artesão e um dono de tabuleiro de cocadas, possivelmente,
adepto do candomblé, ou de uma variante religiosa afrodescendente – é utilizado na
realização de uma leitura sobre as reflexões relacionadas à dimensão humana, advindas
da construção estrutural dessas personagens. Esta dimensão é resumida nas
possibilidades de sofrer, criar e/ou pensar o mundo, adotadas, cada uma delas, por uma
das personagens. Verifica, por fim, que o narrador construído por Rawet sinaliza que,
em alguns momentos e contextos, os poderes de abstração, fantasia e crença humanos
podem ser invalidados pela falta de instrução formal: seja oral, na argumentação em
face de uma detenção injustificada; seja escrita, diante da imposição de assinatura de
algum documento que ateste a própria liberdade, por exemplo.
Antes de prosseguirmos nesse conto, é necessário um retorno ao ano de 1970,
data de publicação de Viagens de Ahasverus. A novela, apresentada em nosso segundo e

46
Anteriormente, o conto foi publicado em duas oportunidades: (a) na revista Ficção, nº 3, vol. III, em
março de 1976; e (b) na Escrita Livro, ano I, nº 1, em 1977.
169

terceiro capítulos via estudos críticos e acadêmicos, apresenta a metamorfose como


característica básica da protagonista, recriação rawetiana do mito do judeu errante.
Nesse caso, próximo de realizar a sua última transformação, aquela em que se
transmuta em si mesmo, o heroi errante se metamorfoseia em três tipos, cujas histórias
são descritas na passagem abaixo:

E era três, então. Um mendigo, um entalhador, um vendedor de cocadas. O


mendigo era negro, de carapinha branca; o entalhador, mulato, vigoroso e
mulherengo; o vendedor, branco, vestido de branco, médio, sóbrio, pederasta.
Vinha de longe o costume de encontrarem-se aos sábados. Aceitavam-se
como eram. Nenhum interferia no jeito do outro. O mendigo era casto, sem
saber por quê. O entalhador, beberrão e mulherengo, sem saber por quê. O
vendedor, controlado e pederasta, sem saber por quê. O mendigo contou um
dia que sofria com o sofrimento dos outros, e que tinha prazer em mendigar,
sem se humilhar, não era preguiçoso, mas gostava de se ver pedindo, de
despertar nos outros o sentimento do dar. O entalhador nunca ficou satisfeito
com seu trabalho, achava-o banal, bobo; entalhar peças de moveis, pequenas
imagens; seu sonho era entalhar uma parede inteira como a do Ministério da
Educação, de alto a baixo, com o que bem entendesse, florões, bichos, folhas.
O vendedor olhava e ruminava as coisas; a sensatez era produto de um longo
jogo de todas as possibilidades, e de um vasto sentimento que não sabia
definir, opressivo; tudo começou no dia em que principiou a imaginar que as
coisas poderiam ser de um modo diferente; sua inclinação pelos rapazes
vinha junto com o hábito de sugerir conselhos, nunca dá-los, e suas
preferências iam para os que que encontrava ao desamparo, perambulando
pela cidade. Seguiam os três pela avenida. Um carro de polícia encostou e
pediu documentos. Nenhum dos três tinha. Foram recolhidos, e no Distrito
verificaram que os três eram analfabetos. Ficariam na mesma cela até o
amanhecer. Mas no crepúsculo matinal os três que eram um só homem e
nenhum, trindade gerada e nutrida por uma ficção, talvez, um equívoco, no
crepúsculo matinal saíram com a claridade, e na forma de um cão vaguearam
pelas ruas (p. 476-477).

A respeito dessa transformação tripartida, a riqueza simbólica do número três é


explorada por Fortes que detalha a utilização universal do mesmo na expressão de
ordens intelectuais e espirituais em Deus, no cosmo e no homem. A conotação sexual
não estaria fora dessa carga simbólica com a leitura psicanalítica, com base em Freud
(FORTES, 1999, p. 123).
Há que se destacar, no imaginário cristão, a ideia de perfeição que o número
carrega na imagem da Santíssima Trindade, composta por pai, filho e espírito santo, e
que, por sua vez, formam um só Deus. Em Rawet, seguindo essa leitura do número três,
a imagem do divino vem atrelada à três figuradas vítimas da marginalização. A
recorrência das três personagens em duas obras diversas demonstra um trabalho
consciente estética e estruturalmente para a reelaboração no conto da história das
personagens desajustadas.
170

Voltando a nossa atenção ao conto, em primeiro lugar, com relação à expressão


“tipos”, utilizada no título desse tópico, estamos pensando na oposição estabelecida por
Moisés entre tipos e caricaturas. Aqui, a distinção é valida na medida em que,
encontramos a primeira categoria quando “a peculiaridade alcança o auge sem causar
deformação [e, a segunda;] quando a qualidade ou idéia única é dilatada ao extremo,
provocando uma distorção propositada a serviço da sátira ou do cômico” (MOISÉS,
2004, p. 349). O texto completa a ocorrência de três contos em que as personagens
recebem um nome. Dos seis escolhidos como corpus representativo da coletânea, outros
três não apresentam personagens nomeadas.
Formado pelas três personagens de Viagens de Ahasverus, o conto “Trio” é
estruturado de maneira que não nos permite maiores informações da vida pregressa das
mesmas. Seguindo uma marca da literatura de Rawet, o flagrante instantâneo do trio não
é elaborado com maiores descrições concessivas para facilitar uma visão pregressa
daquilo que se narra.
Em seu texto, o que Rawet nos apresenta é simples e contido. Trata-se de um
conto cujas personagens expressam o sofrimento, o desejo de criar e a constatação de
pensar mundo. Das poucas informações que se obtém, respectivamente, trata-se de
Pedro (pedinte), Paulo (artesão, casado, bêbado) e Pedro Paulo (dono de um tabuleiro
de cocadas brancas e pretas, adepto do candomblé (?)). Aqui, ampliando a passagem da
novela, o narrador concentra a história em quase duas páginas. A micronarrativa e a
caracterização das personagens servem para a recriação de um conto independente.
No conto, a cada personagem, estruturalmente, são destinados dois parágrafos: o
primeiro, em discurso direto, no qual cada um expõe o seu refrão que resume sua
condição humana; e, o segundo, em discurso indireto livre, a narrativa referente à
personagem e que, de certo modo, funciona como apresentação da mesma. Até que se
introduzam as três personagens, o conto irá se estruturar em um esquema de repetição,
reforçando uma atmosfera (falsamente) ingênua e simplória de uma narrativa de tipos
populares que se constrói.
O momento flagrado pelo narrador de Rawet condiciona-se ao entorno das
personagens. Diferentemente da passagem extraída da novela, em que o encontro aos
sábados é hábito comum, não há a indicação de encontros pregressos, nem de uma
justificativa para a reunião atual.
A frase inicial nos informa que Pedro chora emocionado porque, ao emitir a sua
máxima epifânica – “sofro pelo mundo” (p. 364) – dentre outras coisas, esperava uma
171

gargalhada e uma imprecação. Como a animosidade não se materializou, a resposta


recebida – “o fresco silêncio da madrugada” (p. 364) –, provocou o choro incontido e
eufórico. A castidade dessa personagem, anunciada na novela, é desenvolvida na
construção do conto sem qualquer expressão mais explícita.
Antes da passagem da primeira personagem para a segunda, a narrativa e
ambientação são marcadas pela falta de qualquer elemento que denuncie ostentação ou
luxo, pelo contrário, há dados de improvisação extrema diante de uma pobreza
maximizada pela corda utilizada como cinto para prender um farrapo de pano, tratado
como calça, que, por sua vez, cobre a cueca inexistente de Pedro. Uma diferença que a
personagem apresenta, agora, é o desejo expresso de despertar a solidariedade do outro
no ato de mendigar, como ocorre na novela. Neste caso, esse aspecto se resume à sua
capacidade de sofrer pelo outro.
Sobre a segunda personagem, Paulo, quando a passagem se dá e o brado
epifânico é emitido novamente, “Quero criar o mundo!” (p. 364), o que seria uma
preocupação com aspectos relacionados à falta de condições, volta-se para aspectos
ligados à alcoolização. Nesse sentido, até este momento, as duas personagens figuram
em planos, socialmente, desfavorecidos e, de certo modo, desprezados: a pobreza e o
vício.
A construção de Paulo, baseada no seu desejo de criar, é motivada pela venda
inesperada de quatro talhas. A negociação é propagadora do espírito de esperança do
mesmo. No desejo de criar o mundo, dando vida às imagens forjadas em madeira, surge
a elaboração da ideia do momento vivido em trio através de sua arte. A euforia flagrada
no recorte da vida dessa personagem que, assim como a primeira, reserva a resposta
transgressiva à realidade opressora, lhe permitirá, depois de eternizar a cena entre seus
iguais, comer “todas as mulheres... antes de dormir com a sua em casa” (p. 365). A
passagem da venda não existe na micronarrativa.
Os trechos referentes a esta passagem reforçam a atmosfera de efeitos do álcool
na vida da personagem: “Nem o vômito perturbou a amplidão das mãos estendidas.
Escorreu pelo peito, ramificou-se pelas coxas, e foi se empoçar entre as pernas” (p.
364). O que poderia ser motivo de isolamento social provocado pelo asco, torna-se
prova da capacidade dos outros dois de aceitar o alcoolista como igual: “Encolheu os
braços, eufórico com o azedo da boca e o silêncio dos outros. Ninguém disse merda” (p.
365). O momento vivenciado, marcado pelo desarranjo físico, carrega o fascínio e o
desejo de eternizar o momento através de sua arte.
172

Lendo a passagem de Viagens de Ahasverus, Fortes afirma que a função de


entalhador remete à de carpinteiro, profissão atribuída a Jesus. Outra ligação entre as
personagens e a figura cristã seria a prerrogativa de Pedro de sofrer o sofrimento alheio
(FORTES, 1999, p. 125).
Importante destacar a menção que Fortes faz ao nome de Candido Portinari, que
recebeu a incumbência, do então ministro da educação, Gustavo Capanema, para pintar
o Ministério da Educação, durante o governo ditatorial de Getúlio Vargas, o que
acontece entre 1936 e 1938 (FORTES, 1999, p. 126). Se, por um lado, a empatia de
Rawet para com os tipos populares pode ser apontada como mote dessa ligação (o
desejo de sua personagem de pintar as dependências da repartição citada), por outro, a
relação pode guardar uma séria reprimenda à postura do artista, subvencionado pela
instituição pública sabe-se lá a que preço.
A utilização do adjetivo “vigoroso” (p. 476) para caracterizar o mulato na novela
é suprimida do conto onde Paulo possui uma caracterização mais debilitada devido aos
efeitos provocados pelo álcool. O tom de insatisfação do mesmo para com a sua
produção também é atenuado no conto.
Socialmente, o pensar poderia estar num plano superior em nível comparativo às
outras duas dimensões. Nesse sentido, a relação entre personagens pode se configurar
vantajosa, pois, enquanto a primeira sofre, a segunda deseja (criar) e a terceira pensa.
Chegamos, desse modo, à última personagem, no nome, junção das duas primeiras.
A abordagem inicial de Pedro Paulo o distingue e o afasta dos demais. Na
descrição física, o rigor na escolha pelo branco, por exemplo, avulta. A escolha, além do
asseio, é justificada por motivos religiosos.
O caráter de pensador confere o tom humilde, transgredido, somente, pela
pretensão de sua frase: “E o mundo não desabou!” (p. 365), misto de comentário
narrativo e constatação da personagem diante de sua máxima “penso o mundo” (p. 365).
A alegada impressão de distinção não se mantém, pois esse mesmo homem
asseado é o que abraçará o bêbado coberto de vômito. E mais: o aspecto de pederasta
desse personagem, bem demarcado na novela, é suprimido do conto. A dimensão
sexual, minimizada neste caso, desvia o olhar mais subversivo que o mesmo apresenta
na novela, ainda que tal subversão seja modalizada pelo interesse da personagem nos
rapazes que perambulam errantes pela cidade.
Há, na construção dos três blocos, que nos informam sobre as personagens, uma
atmosfera transgressiva e poética. O “subitamente” do último parágrafo, de forma
173

inesperada, como o termo adianta, demarca a passagem entre ascensão e queda dessa
atmosfera lírica. No mesmo parágrafo, um imprevisto verossímil põe fim às (possíveis)
expectativas do leitor, conduzidas pelos parágrafos anteriores.
O conto pode ser resumido pelo esquema: Encontro de perdidos = transgressão
epifânica = prisão = libertação = a não assinatura= informação de que são analfabetos,
repassada na última frase, guardando o soco no estômago do leitor para o último
momento, no caso, última palavra do conto. A ordem esquemática segue os eventos
descritos na micronarrativa.
Edificada sob seus desejos, a tríade de Rawet se constitui em bases populares.
Acresce-se que, nas configurações desses desejos, materialmente, é a simplicidade e a
pobreza que marcam a santíssima trindade rawetiana.
Os três falam. Os três gargalham. Os três foram presos na saída da estação. Os
três eram analfabetos. Embora diferentes, sempre é possível se reconhecer no outro,
enquanto humano. Em alguns casos, o reconhecimento pode ser propiciado pelo
pragmatismo de questões social, econômica e historicamente construídas.

4.2.5. Em busca do contato possível: “Nem mesmo um anjo é entrevisto no horror”


47

O conto que ora se destaca é um dos poucos a apresentar uma oração completa
como título. A frase abre e fecha a narrativa que possui a sua diegese demarcada
textualmente em 1h. 35min.
Desse título, a imagem ainda não construída de um quadro de terror no qual nem
mesmo um anjo é entrevisto, visto de passagem ou encontrado ao acaso. Vem de Verdi
(1989, p. 92) a lembrança de que a expressão “nem mesmo um anjo” abre o sentido da
construção, ampliando a possibilidade de entrevisão daquele não entrever nem mesmo
um anjo. A hipótese da estudiosa não deixa de ser curiosa:

Nenhum demônio, nem mesmo um anjo é entrevisto no terror, que está bem
mais perto da verdade do desejo do protagonista, tendo em vista que o que se
quer, em sua busca de hora e meia, não é um anjo que o salve, mas um
“demônio” que, auxiliando-o a perder-se momentaneamente, salve-o
(VERDI, 1989, p. 92, grifos no original).

47
O conto foi publicado, pela primeira vez, na revista José – Literatura, Crítica e Arte, nº 3, em setembro
de 1976.
174

Diante desse quadro, a negativa da ação avulta e a impossibilidade impera.


A narração, temporalmente denunciada pelo relógio da Mesbla, inicia-se às 1h.
10min. Junto com ela, temos acesso ao traçado que está sendo percorrido pela
protagonista.
O clima descrito acentua o cansaço da personagem: “Não havia névoa, mas o
mormaço da madrugada punha nos olhos, sobre o cansaço, um esfumado de
percepções” (p. 366). A narração recorta uma parte de uma movimentação já iniciada,
conforme dissemos há pouco. Ao leitor, resta acompanhar a personagem deste ponto.
Da passagem que seguinte, extrai-se a pista de que se trata de alguém do sexo
masculino: “Rodeou uma vez mais o Passeio Público. Por vezes, exausto, recostava-se
na pedra, a aresta fina ferindo as nádegas, as verticais da grade se opondo às omoplatas.
Por onde exaurir a exaustão?” (p. 366, grifo nosso). As posições escolhidas intensificam
o desgaste físico.
Na medida em que a personagem caminha, a solidão e a exaustão, não apenas as
físicas, vão sendo intensificadas. Pelos trechos percorridos, até então, não havia “nem o
lirismo, mesmo vulgar, dos moleques vendendo amendoim” (p. 366). O percurso
transcorrido nesta noite é despojado até mesmo da poesia da atividade cotidiana do
mercador de salgadinhos.
Em frente ao Banco de Sangue, com a coluna encostada numa grade, a
simulação da dignidade e do equilíbrio físico, aspectos que bem poderiam ser íntimos,
de cunho psicológico, é seguida de um alento: “Ajeita os cabelos, ralos, ajusta a roupa.
Um automóvel diminui a marcha quase à sua frente e os olhos se acendem ao
vislumbrar a camisa vermelha, e uma cabeça de sombras” (p. 366). O campo do
possível, estabelecido no remedeio da aparência, abre espaço para a expectativa.
No entanto, o consolo dura pouco tempo: “Desloca-se para o meio-fio. Mas o
carro estaciona além, junto a um negro magro e alheado” (p. 366). Primeira derrota
daquele que busca, anseia. O quadro negativo, adiantado pelo título, começa a se
mostrar abertamente.
A narrativa segue a perspectiva da personagem que acompanha a movimentação
a sua frente. A visão destaca a movimentação daquele que será descrito fenotipicamente
como “o negro”:

Hesita. Coça a braguilha e uma cabeça se aproxima do vidro baixado. O


negro se curva, cumprimenta com a mão displicente, responde vago às
perguntas, aceita um cigarro, ergue os olhos em direção ao Aterro enquanto
175

de cotovelo na porta, curvado, ampara o corpo com uma idéia de equilíbrio


(p. 366).

Uma possível movimentação erótica vem carregada da sutileza de um toque


“despercebido”, a exemplo de um roçar na braguilha. A personagem que dirige o carro
responde à presença e atuação do “negro” com um toque, positivamente, sedutor: “A
mão lânguida, do interior, roça seus dedos e descansa no dorso, os dedos do negro se
agitam, gira a palma, e os dedos se entrelaçam O negro sorri. A feição austera se
dissolve, e a expressão moleque se ilumina numa expressão inaudível” (p. 366-367). A
repetição do vocábulo que, metonimicamente, resume a presença da personagem como
negro (característica da pele, uma parte do corpo, como o homem, na sua inteireza),
ganha ares de fetichização na repetição do narrador.
O caráter de sedução da cena, discreto e sutil, vem marcado por uma
previsibilidade proporcionada pelo ambiente, marcado pelo avançado da hora, pela
circulação de pedestres e carros por ruas ermas. A previsibilidade se refere a um
contexto da busca homossexual velada que, por sua vez, faz muito sentido em um
ambiente hostil a tais práticas e praticantes.
O destaque do narrador para o posicionamento físico da personagem, reforça o
desajuste emocional provocado por mais este evento: “A costela pressionada às grades
reprime um soluço interior, inveja de uma espontaneidade nunca vivida” (p. 367). O
encontro positivado diante de suas vistas provoca a reação torpe da inveja.
Com o afastamento do veículo, a sua jornada é retomada. É, agora, “um corpo
vinculado à pedra e grade entre irritação e dor” (p. 367)
Visualiza o largo, o pátio da igreja e a restauração do Cine Colonial. Havia,
ainda, uma possibilidade, o mictório, cuja atmosfera e funcionamento são assim
descritos: “Amônia e desinfetantes sufocando, às vezes, arrancando lágrimas, de corpos
mais ou menos imóveis, acariciando membros, em contemplação e masturbação” (p.
367).
O desejo, motivação para o movimento, vem descrito na reminiscência que o
local provoca:

Por ali terminava suas noites, antigamente, na expectativa de uma sucessão


de acasos que lhe permitisse enfim uma presença a dois em que toda a fome
afetiva se realizasse num contato sôfrego de dedos ou lábios, no intervalo de
uma presença e outra presença (p. 367).
176

Ressalta-se que, até este ponto, a diegese segue na medida em que a protagonista
caminha pelas ruas do Rio de Janeiro. Adiante, dados sobre as condições de moradia e
sobre a profissão dessa figura errante: “Os dias eram esplêndidos e terríveis entre o
quarto em casa de portugueses no Bairro de Fátima e a pequena oficina de camisas,
onde não encontrava condições para produzir em série os modelos sonhados” (p. 367).
Das condições modestas de vida, extraímos o dado do cerceamento profissional, que o
proíbe de inventar, sonhar.
Pensar no mictório, enquanto se mantém diante do Cine Colonial, traz à
memória um momento de consolo vivido na profissão:

Sentiu-se vingado, um dia, quando o chefe da oficina lhe mostrou a fotografia


de uma novidade francesa em lançamento; a gola era a sua, e quando a
sugeriu nem lhe deram atenção. Havia a desculpa, agora, o negócio era
francês, e francês quando manda para cá, já é coisa certa.

Em mais esta oportunidade, a satisfação é silenciada pelo sentimento torpe e,


moralmente, condenável. Com mais esta passagem, constatamos que o auge de
satisfação obtida pela personagem é o consolo da vingança diante das agruras vividas. O
alívio momentâneo durante a sua busca se inscreve em um sentimento, socialmente,
condenado, a vingança.
A memória ainda reside no aspecto profissional, a lembrança segue nos eventos
da profissão para retomar um evento mais grave, em decorrência de uma falha de
projeção de um modelo encomendado:

O pior veio depois quando lhe pediram um novo tipo de camisa social. Foram
quinze dias de deslumbramentos e desmaios na tentativa de harmonizar
punhos, gola e bolsos, além do peito duplo com a intenção de esconder
botões e dobras; camisa social, de abotoar, com jeito de camisa esporte,
inteiriça. Dez dúzias foram feitas experimentalmente. Quinze dias depois
nenhuma saíra da prateleira, apesar dos vendedores, e hoje lá estavam como
estigma de seu fracasso. Quando ousava esboçar alguma coisa apontavam-lhe
o canto do armário onde as dúzias amarelavam. Com isso conseguiram a
tortura perfeita (p. 367).

A importância que o evento possui para a personagem vem refletida na forma do


depoimento, jorrado sem pausa, de todo o conto. Ao quadro da busca solitária, soma-se
o ambiente hostil de trabalho. A crueldade do meio intensifica a impossibilidade do
sonho e da criação. O cenário de esforço e perspectiva, definido por “deslumbramentos”
177

e “desmaios”, é suplantado por outro de desolamento e violência materializado no


estigma do fracasso.
Um “rapazote”, vindo da direção da Rua do Passeio é o elemento que recobra a
narrativa primeira, a que gira em torno da busca do contato possível:

A barra do blusão meio por fora meio atrás do cinto. O jeito alheado na calça
justa e sem vinco, as pernas mais tortas pela atitude no andar, Giuliano
Gemma entrando a pé na Avenida de Tulsa sorrindo de cem homens
escondidos atrás dos telhados com os fuzis engatilhados (p. 367).

Na visão de mais um alvo, o destaque para a referência ao ator italiano de filmes


western spaghetti (Bang-bang à italiana), Giuliano Gemma, ideal de beleza física
masculina que arrebatou plateias entre as décadas de 1950 a 1970. Nascido em 1938, na
cidade de Roma, o homem alto, de olhos cor de mel e cabelos alourados, atuou como
heroi de sucessos como Una pistola per Ringo (“Uma Pistola para Ringo”), Un dollaro
bucato (“O Dólar Furado”) e I giorni dell'ira (“Dias de Ira”). Um dos fatores
responsáveis pelo sucesso era a sua boa forma física, comprovada pela elasticidade dos
movimentos realizados em cena.
Voltando à protagonista, vem de sua observação a denuncia de algumas relações
entre esse grupo de homens, localizado à margem da sociedade: “O rapazote meio que
para não para, olha o velho de viés e com desprezo prossegue. A lâmpada acentua o
volume nas virilhas” (p. 367-368). A construção de uma atmosfera erótica segue na
linha sutil, ancorada em detalhes. O “volume nas virilhas” encobre expressões mais
explícitas que podem descrever o órgão sexual masculino ereto ou, naturalmente,
avantajado.
Ainda dessas observações, a sinalização para a capacidade daquele que está à
margem possui para excluir, no caso do rapazote, justificado pelos atribuídos físicos: “O
desprezo vislumbrado humilhara-o. Não o seguiria. Conhecia esses artifícios de repulsa,
mas sentia-se humilhado. Não o seguiria. Mas ficou-lhe a nostalgia do volume nas
virilhas” (p. 368). Da humilhação, tomada de empréstimo, o sentimento de que o
desprezo também é prerrogativa dos marginalizados.
Diante desse quadro, pausa para a revisão das possibilidades: pelas poucas
alternativas, desiste da rua Almirante Barroso; pela falta de energia física, não considera
seguir até a Praça Quinze, junto às barcas; pela concorrência dos moradores da zona sul,
não iria até a Praça Mauá. Na descrição dessa última localidade, as relações e os
178

mecanismos de uma faceta do mundo homossexual clandestino, considerando os


moradores da zona sul: “Chegavam de carro, bem vestidos, doutores, coronéis, levavam
vantagem” (p. 368).
A reflexão perde importância para a visualização de um homem em um ponto de
ônibus. Após atravessar a pista e sondar o tipo, a conclusão de que obteria mais um
fracasso: “Sentiu que se insistisse mais um segundo ouviria um berro com a palavra
costumeira” (p. 368). O “não” ou as ofensas emudecidas delineiam a dificuldade da
empreitada da protagonista. A passagem revela que a exclusão cotidiana foi responsável
por desenvolver na protagonista alguns meios de se adiantar aos ataques repulsivos.
Mas o quadro continua no alvo de interesse com a introdução de mais um
elemento, a caracterização deste segue no tom metonímico adotado em todo o conto:
“Encostou-se na banca de jornais quando viu o mulatinho chegar ao ponto. O homem
indiferente despertou e a cabeça nervosa oscilou entre o velho da banca e o mulatinho.
O mulatinho enfiou as mãos nos bolsos, sorriu e se postou quase ao lado do homem” (p.
368).
O narrador via protagonista irá entrelaçar o diálogo que ocorrerá nesse encontro.
O resultado ganha ares picarescos. O primeiro a falar é o “homem”, despertado de seu
sono, em resposta violenta à presença do “mulatinho”: “Você está querendo o quê, eu
sou um homem casado, tenho mulher, tenho filhos, está pensando o quê” (p. 368). Os
elementos arrolados por aquele que se sente agredido são a base de uma família
tradicional que, na prática, poderá subverter ao frequentar o ambiente. A reação a essa
explosão, antes da resposta do interlocutor, “o mulatinho”, é antecedida pela reprodução
das reações de um terceiro:

O velho cruzou outra vez a pista, sem deixar de sorrir diante da voz
esganiçada e do corpo em desequilíbrio do homem. Conhecia esses tipos. Era
casado, tinha mulher, e filhos, tudo isso arrotado com meneios de macheza
duvidosa e terror. Quase gargalhou ao ouvir o vozeirão do mulatinho (p.
368).

Quando a terceira personagem se manifesta na narrativa, não há a pausa entre os


eventos, mesmo porque as impressões do “velho” são paralelas. “O mulatinho”, a seu
turno, mantém o tom violento da intervenção do “homem”: “E alguém lhe perguntou
alguma coisa, seu idiota!” (p. 366), questiona atravessando a segunda pista e dobrando
na Rua da Lapa. O ar picaresco é obtido com a caracterização da personagem no
179

diminutivo e a sua reação violenta, contrariando a sua condição física que não o
respaldaria na possibilidade de uma agressão.
A perspectiva da observação ainda é da protagonista, que observa o embarque do
homem no primeiro ônibus. Retoma a contemplação do cenário: “O trecho de calçada
tinge de sombras a visão de velhos troncos imbricados em sua dor. O chafariz, as
pirâmides, degraus abaixo, o Monumento aos Mortos do outro lado. Rala a tentação de
uma náusea que ainda seria um estímulo” (p. 368).
As ocorrências dos gatos aproximam os desejos frustrados das náuseas físicas:
“Um frêmito entre detritos. O pêlo branco entre avidez de patas. Um alimento vômito
sobre a pedra” (p. 368).
Assim, a certeza do fracasso em sua busca torna-se indelével: “Resta apenas a
nítida visão do vazio e o próprio corpo para enfrentá-lo ou sucumbir à sua recusa do
mundo” (p. 368).
O relógio da Mesbla anuncia 2h. 45min. Nem mesmo um anjo foi entrevisto no
terror. A trilha pelos bas-fonds da metrópole se revela inútil.

4.2.6. A maravilhosa fábrica de palavras mágicas: “BRRKZNG: pronúncia –


bah!” 48

O conto encerra a coletânea e, de forma simbólica, a carreira do contista Samuel


Rawet. Em muitos aspectos, chama à atenção, mesmo antes de sua leitura: o título
impronunciável, a disposição em um parágrafo que, em extensão, ultrapassa os outros
dezessete contos, além das muitas marcações em caixa alta e em itálico. Dentre tais
marcações, avultam os neologismos ou sequências de letras e sílabas desconhecidas em
português.
Desses aspectos objetivos, o título abre a sequência e cumpre perfeitamente o
papel de não informar, não dar pistas ao seu leitor. A primeira palavra, BRRKZNG, não
apresenta precedentes em língua portuguesa. Estaríamos diante de um neologismo? De
uma prosopopeia? A construção sem vogais liga-se a um segundo termo do título, o
substantivo abstrato “pronuncia” e a interjeição “bah”, servindo de base para uma
suspeita inicial de que se trata de uma investigação fonética/fonológica.

48
Conto publicado, pela primeira vez, na revista Escrita Livro, ano I nº I, em 1977.
180

Ao utilizar a interjeição em muxoxo, esse caminho investigativo retirado do


título apresenta o dado de encontrar-se, nesse ponto, malfadada. A expressão de enfado
encerra a construção do título. O “bah”, muito utilizado no Sul do Brasil, carrega em si
outras possibilidades: “originária do espanhol platino, a expressão seria sinônima de
“Barbaridade” (FERREIRA, 1986, p. 219) e pode denotar espanto, curiosidade,
indignação etc.
Ao passarmos o título, a frase de abertura nos remete ao cotidiano que será
interrompido por movimentos insólitos. O evento que quebra a sequência rotineira da
protagonista é uma topada do dedo mindinho no armário do banheiro. O palavrão
motivado pela dor, além de interromper a sequência casual dos gestos, surge como
lenitivo inesperado, mas confortante.
Depois de se vingar chutando o armário do banheiro com o dedão do outro pé,
“que também urrou” (p. 392), resolve levar adiante um projeto antigo: “[...] descobrir a
palavra mágica mais poderosa do que todas as palavras mágicas que conhecia, inclusive
abracadabra” (p. 392). A frase, ensaiada em frente ao espelho, será desenvolvida ao
longo da narrativa.
Na varanda, depois de mexer com algumas samambaias e estirar-se na
espreguiçadeira, a constatação de que a palavra mágica não seria palavra difícil. Aquela,
carregada de magia, seria mais difícil que esta. O objeto de descanso será um dos pontos
de retorno e ligação da narrativa primeira e das micronarrativas inseridas nesta narração.
Adiante, o esboço do projeto da palavra mágica: “Começou por achar que devia
ter mais de doze sílabas sem a tapeação do hífen. Fixou-se em vinte e duas sílabas,
simplesmente porque dois mais dois são quatro, e dois mais dois, sem o mais, são dois
dois, o que não é tão óbvio” (p. 392). Desse plano inicial, verificamos que, para criar
uma palavra mágica, será necessário questionar o próprio signo linguístico. A lógica
aparente deverá ser chamuscada em busca do objeto de pesquisa.
Como estamos no campo da magia, os efeitos provocados pela palavra mágica,
quebrar encantos e desfazer feitiços, nos remetem ao conto maravilhoso em uma de suas
variações: o conto de fadas49. Essa palavra, ignorando-se a pesquisa enciclopédica, seria
inventada:

49
Todorov (2003) apresenta outras variações do conto maravilhoso no terceiro capítulo de Introdução à
Literatura Fantástica. Cf., especialmente, p. 60-63.
181

Com vinte e duas sílabas e um bom arranjo de vogais e consoantes era


mínima a probabilidade de obter uma já existente em qualquer língua.
Primeiro porque as línguas que davam palavras mágicas não tinham lá tantas
sílabas juntas, e as que tinham estavam há muito tempo desmoralizadas
porque se mostraram chinfrins na matéria (p. 392-393).

A empresa não será de simples realização porque a palavra mágica, além de


mais difícil, é mais forte que qualquer outra.
Retorcendo na espreguiçadeira, a personagem continua o diálogo com a
samambaia e admite que a movimentação persecutória é complexa. Da movimentação
da planta, extrai uma sequência para a conversa com o vegetal: “As hastes se agitaram
de leve. Houve oscilações de folhas [...]. Compreendeu que a combinação de vogais e
consoantes tinha que ser ininteligível. Pensou em palavras simples, mesa, cadeiras, pão,
folha, irmão, pai, mãe” (p. 393).
Ao repassar o efeito pelas palavras já conhecidas, nota-se que, aos objetos mesa,
cadeira, ao alimento pão e, provavelmente, ao vegetal folha, somam-se três
componentes familiares: irmão, pai e mãe. Embora cite, mais uma vez, mesa e cadeira
para os definir no plano do comum, banal e sem graça, expressões em gradação, os
outros elementos recebem essa definição de forma aproximada, extensiva.
Na busca pela palavra mágica, a observação dos conceitos pré-estabelecidos
desconsidera uma visada sentimental. Outro aspecto: saber o significado da palavra
quando se ouve a palavra é uma característica inteligível da palavra. Nesse caso, o
conhecimento ganha uma qualidade de negação do encanto, que reside no
desconhecido.
Ainda no plano do ideal, a personagem chega a mais um efeito que a palavra
mágica deverá possuir: “o encanto de dissonâncias, de ruídos, de asperezas, tinha que
despertar nostalgias por exóticas complementaridades” (p. 393). Acrescenta-se a esse
efeito a abrangência sonora, sinestésico, que o termo possui e o poder de atuação dessa
qualidade na ativação da memória da protagonista.
No momento de definir os reinos maravilhosos, criados por essa palavra, cita
eventos naturais. As imagens, marcadas por beleza e simplicidade, compõem um quadro
de efeitos que se se espera dessa palavra mágica:

Qualquer coisa como uma nuvem vista em um amanhecer sobre a baía.


Claridade sobre as águas. Ondulações na superfície. Sucessão de reflexos nas
dobras líquidas. Uma nuvem cinza boiando no horizonte, enorme. Gradações
de cinza. Áreas compactas. Áreas ralas. Leve fumaça de nuvem nas bordas.
No canto inferior, à direita, um risco horizontal ilumina o vazio. No canto
182

superior à esquerda um círculo de luz avermelhada parodia o sol. E as dobras


da água se justapõem às dobras de nuvem, articulando cinza e fogo (p. 393).

Neste ponto, o corpo físico da personagem se mantem na espreguiçadeira. Em


tal passagem, nota-se que, pela primeira vez, os efeitos possíveis de uma nuvem
prendem a atenção da protagonista. Destaca-se que o vocábulo “nuvem” aparecerá em
outras passagens do texto, somando catorze ocorrências.
Mais adiante, outra definição: palavra mágica, além de ininteligível, deveria ser
outra coisa. Desse modo, realiza uma pausa para uma expansão da definição da palavra
inteligível. Assim como mesa, cadeira, pão, folha, irmão, mãe e pai, outras duas são
definidas nesta dimensão:

Copo, palavra. Copo, objeto. Copo, duas consoantes, duas vogais, um certo
som fácil de adivinhar. Copo, tronco de cone invertido, quase cilindro, de
vidro, um círculo de vidro no fundo, transparente, uma circunferência
lapidada em cima, tonalidades de cor em função da luz e dos objetos à volta.
Duas sílabas, vidro modelado pelo fogo. Laranja. Três sílabas, a mesma
vogal tripartida. Circunferência rugosa, casca irregular, manchas esparsas,
cor palavra de cor como revestimento de suco e bagaço, gomo e caroço (p.
393-394, grifos nossos).

Nesta passagem, mais uma vez, o teste do já conhecido e a verificação de que o


conhecimento pré-estabelecido se revelará inútil na invenção da palavra mágica se
realizam novamente.
A conclusão a que se chega é que a palavra inteligível, destituída de magia e
oposta à palavra mágica, possui diversos sentidos e significados. A referência ao
espelho, outro objeto muito presente no conto maravilhoso, é constante no conto de
Rawet. Desse modo, a personagem vai ao espelho do armário e escreve numa folha de
papel copo e laranja, em caixa alta. O experimento gira, agora, em torno das
possibilidades de leitura da imagem:

Achava que teria de ler o inverso do que punha diante da porta do armário.
Mas ao inverter o papel observou que leria a imagem de uma inversão.
Portanto OPOC era a imagem do inverso da palavra. A imagem de COPO
seria COPO, se o papel não tivesse espessura, e se escrevesse no próprio
espelho com o dedo ou com algum pincel. Não haveria distâncias entre
palavra e imagem. Ou a distância de uma infinita ilusão (p. 394).

O teste da visualidade e da texturização das palavras antigas provoca uma


reflexão responsável por retroceder a narrativa para uma cena ocorrida há dias, em uma
rodoviária: “[...] enquanto comprava a ficha do café foi atraído por um homem que
183

observava outro homem, e percebeu que o que observava esperava ouvir qualquer coisa
do outro. Ele esperou a espera do que observava a espera de qualquer coisa” (p. 394).
Nota-se que esta cena é a primeira micro narrativa inserida na narrativa primeira, a da
busca pela palavra mágica.
A citação acima serve para que possamos desenhar o quadro da cena inserida: o
primeiro homem, a protagonista, observa um segundo homem que, por sua vez, observa
um terceiro homem que, igualmente, observa algo.
Uma visão do terceiro homem, aquele que observa algo e que é o alvo de
observação do segundo homem e, por conseguinte, do primeiro, nos é dada a seguir:

O outro agitava-se, ajeitava a gola, deslocava a gravata, desabotoava o paletó,


virava-se de lado, ia até a banca de jornais, passava pelos guichês de
passagens, voltava ao ponto de partida em que qualquer coisa era esperada
por um homem que o observava enquanto ele era observado (p. 394).

São negadas maiores informações sobre as motivações das três personagens para
observar. Porém, o trecho seguinte é muito rico em possibilidades. Uma mulher se
aproxima do terceiro homem. Pela narração, esboçamos uma possibilidade: o primeiro
homem demonstra espanto e alegria, o segundo homem procura compreender o espanto
e a alegria do primeiro, além da gesticulação deste com a mulher, já denominados, pelo
narrador, de casal, termo que não especifica a relação mantida pelos dois. Subitamente,
o segundo homem deu as costas e se aproxima da escada. Antes de desaparecer, olha o
casal. Abaixo, encontramos a visão do segundo homem, via protagonista, cuja
perspectiva é guiada pelo narrador:

As mãos gesticulavam em posições precisas e os dedos se ajustavam numa


rápida sucessão de formas. Nenhum som. Alguma sílaba de homem,
invertida, uma letra de observar sem a preocupação de eufonias, um
fragmento de qualquer palavra que signifique mulher sem ser mulher, uma
transcrição sonora, pseudo-onomatopéia, porque silenciosa de espanto e
alegria, a escolha de algumas consoantes que as posições de mãos e dedos
possam sugerir (p. 394-395).

A visão da protagonista o remete à sua busca pela palavra mágica, relacionada à


cena que observa. O silêncio experimentado na cena presenciada, somado com o desejo
de descoberta, retoma a sua preocupação inicial. Além da já testada Memsfeoapbdq,
outras duas possibilidades surgem: Memesofeoapobediq e Qidebopacefosemem. A
utilidade das mesmas como palavras mágicas é rebatida de imediato, pois são lógicas
em excesso, de fácil estrutura de composição e, mais grave, não possui mistério. Dessas
184

constatações, surgem mais algumas características da palavra buscada: não é lógica em


excesso, talvez, não lógica, a estrutura de composição e decomposição é difícil e
possuem mistério. Neste ponto, está encerrada a inserção da micronarrativa ocorrida na
rodoviária.
A protagonista levanta-se e, pensando que se acrescentasse algum gesto poderia
inventar essa palavra, começa o teste rigoroso da primeira alternativa: “Tomou a
posição inicial de sentido e pronunciou memsfeoapbdq ao mesmo tempo em que a perna
esquerda recuou, a direita avançou, a barriga encolheu e as duas mãos se projetaram
para a frente” (p. 395, grifo no original).
O teste é seguido por um evento gravitacional: a queda de um fruto do mamoeiro
plantado no quintal. A personagem observa que a repetição do teste não provocou outra
queda dos mamões que “amarelavam nos mamoeiros” (p. 395). A palavra testada não é
capaz de repetir o efeito.
O evento da queda altera a sua percepção. Ao voltar para a espreguiçadeira,
observa materialidades a sua volta:

Olhou bem suas mãos e suas pernas, e olhou bem os dois mamoeiros, o do
canto e o outro. Percebeu rachaduras no reboco do muro caiado, e a ferrugem
da grade pontuda. O terreno entre a varanda e o muro era irregular, e nunca
tratara de acertá-lo. Montes de terra e um capim não tratado de há muito
dava-lhe feição de abandono, atenuado pelos mamoeiros, bananeiras e
mangueiras. Uma série de hastes verticais terminadas em ponta, e soldadas
por volutas de ferro mais fino, na horizontal, compunham a grade. Alguma
coisa com a grade. A grade. O mamoeiro do canto (p. 395).

O conto intensifica a contemplação das possibilidades perceptivas da


personagem. Nova tentativa e espera por um som. O evento investigativo não é bem
sucedido.
A algazarra provocada pela briga de duas galinhas toma a sua atenção. O
primeiro encontro com esse animal, abaixo narrado, marca a entrada do bicho que, mais
adiante, ganhará maior destaque na narrativa:

O homem não moveu o corpo. O olho da galinha sumiu de seu horizonte, e


ouviu patas e bico se arranharem na madeira e no cimento. Depois, parece, a
galinha da varanda resolveu atacar e disparou em cima da outra, ao lado do
degrau. O cacarejar sumiu pela direita, caminho de entrada dos fundos da
casa (p. 396).
185

A repetição será empreendida na procura da posição correta capaz de lhe


proporcionar a pronuncia da palavra mágica. O ritual será composto do deitar-se na
espreguiçadeira, erguer-se bruscamente, ficar de sentidos, pronunciar a palavra, recuar a
perna esquerda e avançar a perna direita. A cena se repete acompanhada pela
expectativa de um som vindo do mamoeiro.
A resposta estridente da cantilena de um amolador, “que devia estar na esquina”
(p. 396), o incomoda na medida em que frustra as suas expectativas. Quando não
esperava, mais um mamão se espatifa.
Ao deixar a espreguiçadeira, segue por um caminho de terras, entre moitas
baixas, em direção ao mamão. Em mais esse evento telúrico e sinestésico, utiliza-se do
mamão para a sua pesquisa:

Enquanto esmagava com os dedos algumas sementes ocorreu-lhe que nunca


vira antes mamão maduro cair de mamoeiro, tinha a impressão de que
mamão maduro apodrecia no pé. E o primeiro mamão, e este esborrachado
entre a areia e o capim? Deixou correr pela palma da mão o aglomerado de
bolotinhas brilhantes envolvido por uma pasta amarelada, gelatinosa. Estava
de cócoras, a cabeça à meia altura da grade (p. 396).

O evento interrompido pela visão do casario do outro lado da rua, que não
apresenta nada especial. Retorno ao mamão e ao contato com a terra vem em seguida:

O mato entre as rachaduras das calçadas reduzia-se a fiapos cinzentos de pó.


Introduziu dois dedos na fenda, abriu o mamão, e estirou-o em leque com
fatias irregulares. Alguns filetes leitosos escorriam sobre a casca esverdeada,
e empastavam-lhe os dedos como goma (p. 396-397).

A narração, construída com elementos descritivos precisos, é capaz de recriar os


efeitos do contato entre pele e mamão maduro.
A observação, experimentação e análise dos dados concretos continuam. Entre o
que já foi alvo de investigação, entra em cena a abóbora: “Se chamasse aquilo de
abóbora, teria algum sentido? E palavra mágica tem sentido?” (p. 397). Racionaliza que
o mamão caiu ao mesmo tempo em que alguém, dentro dele, pronunciou
Memsfeoapbdq, sendo essa a ligação com o mamão, não com a palavra mágica.
O homem ergue-se, mais uma vez, e recorda-se de uma lembrança recente: na
hora em que alguém pronunciou a palavra dentro dele, uma imagem da infância jorrou
da sua mente: “Uma colherada de sementes de mamão engolida aos oito anos, e o medo
de que aquelas sementes virassem mamoeiros em sua barriga com o tronco subindo pelo
186

peito e os galhos saindo da boca” (p. 397). O ritual macabro, aos olhos infantis,
relaciona-se à crença de que tais sementes podem ser utilizadas por suas substâncias
curativas no caso de diversas enfermidades, a exemplo daquelas provocadas por vermes
e lombrigas, o que não deixa de ter um respaldo na medicina vigente.
Retorna à espreguiçadeira, ergue-se, bruscamente, e repete o ritual. Mais uma
lembrança, agora, a de uma bicicleta e de suas mãos firmes ao guidão.
Estira-se na espreguiçadeira. A posição é confortável e a visão percorre o
ambiente: “No teto os cantos sujos pedindo uma vassourada, o globo cor de leite no
centro pedindo uma lavagem, uma pequena rachadura junto à verga da porta pedindo
pintura” (p. 397). A tentativa de recordar é entrelaçada com a visualização objetiva.
Mas as lembranças não surgem com facilidade. Cogita não as possuir mais.
Depois de mais alguns comentários mentais, uma lembrança irrompe, introduzindo mais
uma micronarrativa no conto: a história do sapateiro que morava do outro lado da rua:

Chegava-se à portinhola do sapateiro, cumprimentava, recebia um sorriso


bom de uma cabeça calva, miúda, os óculos um pouco afastados do nariz.
Apoiava-se um pouco nos rolos de couro junto à entrada, olhava as filas de
sapatos engraxados prontos para a entrega e dependurados sobre os rolos, os
cadarços, os saltos de borracha, e sentava-se no tamborete de tiras de couro.
Enquanto trocava algumas frases banais fixava-se nas mãos do italiano. Um
sapato sobre a fôrma de ferro ligada por uma haste à base. Nas bordas da sola
o couro se abria e cedia ao furo da sovela e ao gesto rápido da agulha de linha
grossa se deslocando em nó. Gostava de ver o amontoado de coisas sobre a
banca de trabalho. Latas de cola, tubos de graxa, pregos, martelos de alguns
tamanhos, tachinhas, rolos de linha, agulhas retas e curvas, pedaços de vela,
fatias de couro, tiras de borracha, cera de carnaúba (p. 397-398).

Mais adiante, uma breve menção ao ritual de trabalho do imigrante, a sua


perspectiva sobre o país natal, em guerra, e ao trato recebido na comunidade da qual,
agora, faz parte:

Antes de enfiar a linha na agulha, passava o fio pelos lábios, enrolava-o com
as duas mãos e atritava-o na massa de cera. Quando os jornais davam alguma
notícia de guerra, falava de sua aldeia, de comida, de bebida, de gente, da
grande cidade, dos conflitos, dos anarquistas. Perguntava pelos vizinhos, pelo
filho da lavadeira, pela filha da costureira, o sobrinho do dono da venda
parece que ia bem nos estudos, cabeça boa (p. 398).

A referência à guerra seria uma menção tênue a um evento histórico. Em mais


este caso, obtemos um exemplo do trato de uma questão recorrente na obra de Rawet.
Aqui, porém, a menção ao imigrante ocorre de forma casual, desviada do conflito
principal.
187

Toda essa recordação não é capaz de retomar, ao homem, o nome do italiano. A


efetivação da memória ocorre em momentos esparsos e de modo fragmentado. Em outra
lembrança, a introdução de duas figuras descritas sintética e estereotipadamente, como
“mulher gorda” e “ velha negra” aparece como mais um exemplo desse processo
caótico.
A “gorda” morava em rua paralela a sua e de esquina com a do sapateiro. A
visão é entrecortada e sobreposta:

[...] a lembrança nada tinha com a mulher gorda e sim com um terreno
enorme da mulher magra e miúda que tinha uma casa nos fundos, algumas
casas depois da mulher gorda. Sua cara pintada de tinta de amoras brancas e
pretas, seus dedos pegajosos de se agarrarem ao pé de abricó, seus joelhos
arranhados dos galhos da mangueira. A velha magra e miúda e que era a dona
do terreno, mas dominando a lembrança a mulher gorda que nada tinha com a
história, a mulher gorda que era antipática e feia, que era ranzinza e de pouca
fala, e que um dia lhe deu um presente. A mulher gorda tinha um nome. Que
nada tinha com a lembrança das tintas de amoras brancas e pretas (p. 398).

Embora entrecortada para a personagem, a adjetivação sucinta recria a atmosfera


rica de imagens simples, porém emblemáticas.
Depois dessas duas lembranças, a primeira sobre o país do sapateiro e a segunda
sobre as duas mulheres, outra melhor sucedida será citada, a de um sonho:

Em terras que nunca vira, em colinas por onde nunca andara, rolava pela
grama, via o sol entre os ramos de castanheiros, rolava pela grama, via o sol
entre os ramos de castanheiros, umedecia a camisa no chão enquanto catava
morangos, morangos enormes, vermelhos. E ao mesmo tempo, sem saber
como, caminhava por entre enormes plantações de beterrabas e cenouras, e
roubava e mastigava uma cenoura enorme de casca fina, adocicada, com todo
o estardalhaço que bons dentes fazem com uma cenoura (p. 398-399).

Corte na retomada da empresa. Repete o ritual. Volta a se espreguiçar.


A prosopopeia “Currrupacopaco”, pronunciada duas vezes, o interrompe. Trata-
se do papagaio da mulher do condutor, “numa das casas do outro lado da rua” (p. 399).
Mais um ensaio e a lembrança da origem dessa palavra:

Alguma sílaba de homem, invertida, uma letra de observar sem a


preocupação de eufonias, um fragmento de qualquer palavra que signifique
mulher sem ser mulher, uma transcrição sonora, pseudoonomatopéia,
porque silenciosa de espanto e alegria, a escolha de algumas consoantes que
as posições de mãos e dedos possam sugerir (p. 399, grifos no original).
188

Ainda no plano sonoro, o início da frase nos lembra men, o correspondente ao


plural de homem em inglês.
A protagonista questiona a existência da palavra em outra língua e chega a uma
conclusão que se soma às definições da palavra mágica: “palavra mágica andava sempre
ligada a um certo ritual, a uma disposição do corpo e do ambiente” (p. 399).
Por isso, a sua reflexão gira em torno da manutenção das vinte e duas sílabas e
dos testes com a expressão memsfeoapbdq, de afeição consolidada. A conclusão da
impossibilidade de verificar a existência da palavra em outros idiomas complica a
empreitada, inviabilizando a palavra desejada:

Depois de consultar todas as enciclopédias e todos os eruditos de línguas


vivas ou mortas, ainda restaria a hipótese de língua desconhecida, mal
estudada, tanto viva como morta, língua não registrada, ou de transcrição
difícil e duvidosa. Algum dialeto, alguma ilha da Polinésia, alguma gíria de
bas-fond de metrópole mais civilizada. Mesmo constatada a existência de
memsfeoapbdq a coincidência não seria total (p. 400, grifo no original).

Repete a origem da palavra e, novamente, uma galinha atravessa o seu caminho


tranquila e cacarejando em direção ao mamão esborrachado junto ao muro. Mais uma
vez, o “currupacopaco” e a lembrança da cantilena.
Destaque para a perspectiva da galinha:

Farta, a galinha deu meia-volta, escarvou a terra com as duas patas, sacudiu o
pescoço separando as penas do dorso, curvou a cabeça para trás e abriu o
bico como em gargarejo, a asa esquerda horizontal, a direita abaulada
tendendo para a vertical, e disparou em direção à varanda. Não subiu o
degrau de cimento. Ficou embaixo, com uma das patas no capim e a outra na
terra. A disposição era agressiva. Agitando as asas, marchando sem sair do
lugar, balançando o corpo em grande ansiedade, oscilando o pescoço em alta
freqüência, parecia que preparava um ataque (p. 400).

O confronto anunciado é o da galinha com o papagaio. Novamente, um grupo de


ocorrências da palavra nuvem: “Começou a mover a cabeça imitando o movimento da
cabeça da galinha, e estacou numa nuvem. A forma da nuvem era a da galinha. Sem se
mover a imagem agressiva da galinha, forma de nuvem, o agride” (p. 400-401).
A lembrança do ovo liga-o a outra, relacionada com a má sorte que as duas
gemas, supostamente, carregam em si: “Sentiu cheiro de manteiga, gosto de sal, ouviu
os estalidos de bolhas de clara, e insultos por queimadura de mão, e algumas noções
banais de um cotidiano banal se interpuseram silenciosamente entre sensações
compondo um mal-estar generalizado” (p. 401).
189

Volta a estirar-se. A reprodução da palavra mágica retoma. Neste ponto, o corpo


começa a ceder ao cansaço físico. A constatação de que Memsfeoapbdq era composto por
palavras de sua língua e a consciência de que não conhece outras línguas podem confirmar que
a busca segue inútil, hipótese já aventada. A tentativa de relacionar a palavra mágica com a
língua em uso, cotidiana, ajuda na continuação da pesquisa.
Relacionar a palavra copo com línguas, desconhecidas (o búlgaro, o javanês e o finês),
acaba servindo de mote na inserção de outra micronarrativa. A recordação envolve mais uma
galinha cuja cabeça aponta de um copo redefinido como uma sacola plástica. Esse episódio,
cuja galinha aparece como centro das atenções, envolve um mal entendido entre o animal e os
passageiros de um ônibus coletivo:

O corredor do ônibus estufava de passageiros por entre as poltronas; os que


estavam em pé junto aos assentos enfiavam a coxa ou a perna nos intervalos
das poltronas, ou comprimiam o corpo nos ombros dos que sentavam nas
pontas. No ponto um berro de mulher e um cacarejar. O último passageiro
que subira apertara os embrulhos da mulher equilibrada junto ao degrau e
revelara a galinha escondida no papel. O trocador fez parar o ônibus e queria
obrigar a mulher a descer: a galinha não viajava. A mulher insistia em dizer
que não havia galinha nenhuma enquanto a galinha cacarejava envolta em
papel, e o passageiro que subira pedia passagem para o corredor (p. 401-402).

Diante do quadro de impaciência geral, a rememoração desse quiproquó ganha


ares picarescos na reprodução dual do termo “galinha”, em menção ao uso popular do
termo no sentido de ofensa direcionada à proprietária do bicho. Nota-se, por outro lado,
que o termo é utilizado, embora em menor escala, para definir o homem “muito volúvel
que se entrega [deixa-se possuir sexualmente] com facilidade” (FERREIRA, 1986, p.
830-831).
A reprodução do vozerio seria esta: “Desce a galinha e fica a mulher, desce o
passageiro e fica a galinha, fica a mulher, fica o passageiro, desce o cacarejar” (p. 402).
O efeito bem humorado é obtido com a repetição dos verbos “fica” e “desce”, que
estabelecem um cenário confuso de muitas vozes. O episódio segue rumo à conclusão
evidenciando o tratamento jocoso recebido pela dona da galinha: “Uma voz
estereotipada de boçal levou o episódio ao máximo de tensão. A palavra galinha com
entonações cafajestes fez a mulher soltar um grito, e depois os soluços se mesclaram ao
cacarejar” (p. 402, grifo no original).
O episódio não faz com que a protagonista analise esse aspecto, mas este é
passível de discussão com relação aos efeitos práticos do emprego de uma palavra. No
caso, em forma de ofensa, o termo utilizado em diversos sentidos é capaz de provocar
190

uma reação imediata e desesperada naquela que ouve. Esse efeito é possível devido ao
caráter polissêmico do vocábulo e a configuração subjetiva daquela que a toma para si a
insígnia ofensiva de mulher fácil.
Voltando à protagonista, a lembrança dessa passagem liga-se à visualização da
nuvem que, do seu ponto de vista, ganha as formas de uma galinha. Os elementos
concretos, aliados a sua imaginação, estão na base das recordações e das tentativas de
buscar a palavra mágica.
Ao lembrar que a galinha não apareceu em toda a cena do ônibus (em trecho
citado anteriormente, a personagem insinua que a galinha apontou a cabeça para fora da
sacola), desequilibra-se na espreguiçadeira. O deslocamento provoca susto e excitação.
Diante da possibilidade de excitar-se, a personagem vai preenchendo as possibilidades
das sensações da existência humana em suas dimensões físicas, psicológicas,
fisiológicas e emocionais.
Na cena, a própria noção de espreguiçadeira como a de objeto utilizado para o
descanso, lenitivo para a preguiça, começa a ser reinventada: “A mesma armação de
madeira, o mesmo apoio dos pés, os mesmos dentes na parte de trás para regular a
altura, a mesma cor de listras, talvez. Acomodou-se melhor, abriu as pernas e firmou os
calcanhares sobre a última travessa de madeira encapada pela lona” (p. 402).
Nesse caso, a palavra será responsável pela condução da experiência:

Tentou isolar uma palavra na situação em que se encontrava, mas não


conseguiu. Eram torrentes de semifrases se superpondo em clima de tensão
mental e contração corporal, sem deslocamentos. Mistura de rompantes
líricos e palavrões em atmosfera de encantamento. A excitação composta de
todas as lembranças de excitações deixou-o num estado em que começou a
ser usado pelas palavras. Elas emergiam em blocos numa espécie de
imperativos de movimentos. Assustou-se com a simultaneidade de
imperativo e ação. Autômato perfeito. O corpo se sacudiu num transe
coreografado, interrompido apenas pela nuvem em forma de cabeça de
galinha (p. 402).

Finalizando esse evento com um palavrão, questiona, ainda uma vez, se a


palavra mágica pode ser um palavrão. E insiste: “Procurou ordenar os palavrões que
conhecia, e constatou que eram poucos. Pensou em incluir alguma coisa de gíria
pornográfica, mas invalidou o recurso” (p. 402). Assim, chega a mais uma característica
da palavra mágica: “[...] não poderia depender de flutuações locais [e] tem sempre
vinculação com o sobrenatural” (p. 402-403).
191

A protagonista, por outro lado, começa a modalizar o uso do palavrão como


palavra mágica com uma constatação que aquela possui certa eficácia. Em seguida,
dotado de mais um evento rememorado, exemplifica aquilo que está pensando:

Um palavrão bem pronunciado em hora certa não deixa de ter um certo


efeito mágico. Não conseguiu afastar o constrangimento. À entrada na casa
do amigo, há tempos, tropeçou numa pequena estante da sala de visitas, e
quando a mãe do amigo apareceu recebeu uma frase recheada de palavrões. A
pancada fora na canela e a expressão do rosto quando a velha entrou com a
mão estendida para o cumprimento era de extrema dor. A velha desmaiou e
ele ficou dançando numa perna só no centro da sala, uivando, segurando a
canela (p. 403).

Destaca-se que, ao mesmo tempo em que lhe provoca dor e prazer, a palavra
proporciona à mãe do amigo o constrangimento moral e a afetação física, extenuação
que a leva ao desmaio. Por outro lado, na protagonista, o efeito ganha um tom prazeroso
e quase se aproxima do efeito da palavra mágica.
A retomada de um evento que proporcionou dor prazerosa segue no âmbito do
erótico. A imaginação da protagonista toma como ponto de partida a nuvem:

O feminino e o masculino assumem atitudes e feições de dança frenética no


início e depois resvalam para movimentos em câmara lenta. Os palavrões se
sucedem, mas há entre eles um intervalo de pudor e raiva; surpreende-se
mesmo com a pronúncia silenciosa de alguns deles em intimidade terna e
lírica, recheada de diminutivos. As perversões se sucedem em lentidão
amorosa recobertas de um halo de terror que parece paralisar as palavras.
Fêmea e macho esplêndidos se desdobram e se envolvem em contrações de
membros e lábios. Fêmea e macho percorrem-lhe o corpo provocando
retração das pernas e intenso movimento que antecede o gozo sem permitir-
lhe o gozo (p. 403).

A experiência de gozo e de dor, não apenas do âmbito do psicológico, segue na


busca física e emprego de possibilidades corporais:

Gira na lona à procura de uma posição estável de bruços, impossível no


início, até que ergue os braços, os cotovelos dobrados na travessa superior, e
entrega o corpo à concavidade da lona retesada; as canelas doloridas
pressionam as travessas das pernas, e uma espécie de dor inversa sacode-lhe
o corpo, anulação de gozo. Lentamente se ergue, os movimentos alternados,
uma espécie de véu sobre os objetos, o espaço em volta com uma leve
consistência sólida. Ergue a mão para coçar o queixo, os dedos como facas
em massa pastosa (p. 403).
192

Concluído mais um ciclo de utilização da espreguiçadeira, volta para a varanda.


Depois, segue até o mamoeiro. Nessa passagem, ocorre a recordação de mais algumas
experiências marcadas pelo contato telúrico:

Estendeu a mão para baixo na intenção de recolher algumas sementes, mas


viu os dedos retesados acima de sua cabeça esfarelando o ar. Elevou-se um
pouco mais na ponta dos pés para arrancar uma folha do mamoeiro, e viu seu
corpo de cócoras e suas mãos dilacerando talos de capim. Baixou o joelho
esquerdo para apoiá-lo na terra, mas foi o direito que roçou os grãos de areia
e os pedruscos entre as moitas de capim ralo. Pensou que tinha acabado de
jogar fora o toco do cigarro, e viu suas mãos ocupadas com o maço e os
fósforos. Seus dedos lhe enfiaram um cigarro nos lábios e acenderam-no com
a chama quase raspando o queixo. Decidiu sentar-se na grama mas se viu de
pé. Resolveu ficar imóvel mas viu seu corpo se movendo tranqüilo pelo
quintal. Sentiu fome e lembrou-se de umas bananas que comera ao acordar.
Ainda havia algumas na cozinha. Vomitou com rapidez. Em meio à gosma
alguns pedaços de banana mal digeridos (p. 403-404).

Com o destaque da vivencia da fome e do asco, nota-se que o alimento


regurgitado é alvo de desejo de uma galinha que surge para beliscar os pedaços de
banana a seus pés:

Enxotou-a com um berro. Mas ela ergueu o pescoço, inflou, agitou as asas,
um pequeno anel de sombra se formou junto às penas que ligam com o corpo,
tiquetaqueou com a cabeça em todas as direções, e semi cerrando as
pálpebras começou a afagar suas pernas com o pescoço (p. 404).

Novamente, a sensação de dor experimentada no contato com o animal:


“Renovou o berro e sentiu o frêmito do corpo da galinha se enroscando em suas canelas.
Sussurrou irônico uma frase terna. Um uivo de dor acompanhou o cacarejar. Alisou a
barriga da perna vigorosamente bicada e enfrentou feroz os olhos cintilantes entre o
bico” (p. 404).
Ainda há tempo para a visualização da personagem da perspectiva da galinha:
“As asas abertas de penas bem separadas, o pescoço oscilando da esquerda para a direita
e da direita para a esquerda como à procura de ponto de ataque, as patas se revezando
no apoio e na posição de ataque, as garras enrijecidas pelo ódio” (p. 404).
A pena surge como outro sentimento experimentado: “Dominado por um
sentimento de pena disse apenas um vem cá tranqüilo. O corpo da galinha se relaxou de
súbito, ficou apática por instantes, deu meia-volta e se esgueirou pela lateral” (p. 404,
grifos no original).
Muda de posição, refletindo a leve mudança no seu estado de ânimo:
193

Um pouco mais senhor da situação ficou de frente para o muro dos fundos,
girou a cabeça e viu a espreguiçadeira bem atrás dele e os degraus da
varanda. Encarou o muro e resolveu esfregar o peito na pintura branca. Seu
corpo recuou com uma tranqüilidade espantosa, sem tropeço nos degraus, e
estirou-se calmo na espreguiçadeira (p. 404).

O momento final, de um lirismo vazio, vem sem alarde: “Olhou para o céu e
onde antes vira uma forma da galinha havia apenas um amontoado de letras. Que se
ordenaram em uma palavra: nuvem” (p. 404, grifo no original). O efeito desejado pela
personagem não é obtido. As engrenagens da maravilhosa fábrica de palavras mágicas
não funcionam.
194

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa propõe a lembrança de um nome, há muito, valorizado e incluído,


por diferentes estudiosos em seus cânones literários particulares. O estudo se insere na
perspectiva de abordagem da literatura brasileira contemporânea. Mesmo que não seja o
objetivo central do trabalho, durante a realização, são oferecidos dados que podem ser
utilizados na investigação dos aspectos que configuram os cânones na
contemporaneidade.
No caso de Samuel Rawet, quando pretendemos situá-lo no panorama da
literatura brasileira, pairam alguns contra sensos: por um lado, a acolhida positiva no
início de carreira e a manutenção desse tratamento em suas obras seguintes, o crescente
avanço dos números de estudos acadêmicos dedicados a sua obra e, por outro, a falta de
interesse por parte das editoras em publicá-lo, o que se modificou em 2004, com a
publicação de suas narrativas ficcionais, por parte da Editora Civilização Brasileira.
Esse último dado interfere diretamente na divulgação e na possibilidade de se ter acesso
a tal obra.
Diante desse quadro, o nosso trabalho possui a intenção de rememorar o nome
do escritor e a manifestação de sua narrativa ficcional, em sua última coletânea
publicada em vida, nomeada Que os mortos enterrem os seus mortos. Esse intento
interferiu na elaboração e disposição do texto dissertativo em quatro capítulos. Em
todos eles, esse aspecto paira como fio condutor de nossa argumentação.
A apresentação inicial do escritor consta, naturalmente, em nosso primeiro
capítulo. Trata-se de um breve panorama da entrada historiográfica de Rawet no campo
da literatura brasileira. Dos trabalhos empenhados nesse filão, historiar a nossa
produção literária, destacamos os de Bosi (1985; 2006) como parâmetro investigativo.
Partindo do fato de que outros estudos, timidamente, citam o nome de Rawet,
estabelecendo uma relação exclusiva com os problemas da imigração (judaica), em Bosi
(1985; 2006), por outro lado, ainda que de forma discreta, vislumbramos uma
apresentamos menos reducionista e passível de desdobramentos teóricos, motivo que
nos moveu a centralizar a discussão inicial em suas obras. O fato de que essas obras,
ainda hoje, continuam sendo utilizadas de forma incansável no campo dos estudos
literários, o que mantém as mais de quarenta edições da História Concisa da Literatura
195

Brasileira, por exemplo, pode nos oferecer a dimensão da figuração historiográfica do


nome de Rawet na literatura brasileira.
Sobre a presença do escritor em obras que pretendem realizar um panorama
histórico da literatura brasileira, acrescenta-se, em alguns casos, a sua lembrança vem
atrelada à outros nomes, conhecidos e respeitados pela crítica e pela academia. As belas
e, mais uma vez, discretas definições que o contista recebe de Bosi, – a exemplo
daquela em que o teórico define seu trabalho como dotado de um caráter “especulativo
da linguagem” (BOSI, 1985, p. 16) – são empregadas de forma comparativa e, às vezes,
com o intuito de ampliar o entendimento do seu leitor para as definições que vem
desenvolvendo para outros contistas, como Clarice Lispector, por exemplo. É com esta
última, igualmente, imigrante e de ascendência judaica, que Rawet divide a informação
de que sua literatura compõe uma “retórica do imaginário” (BOSI, 1985, p. 16).
Depois da verificação historiográfica, o segundo capítulo divide a nossa
preocupação em apresentar dois aspectos sobre Samuel Rawet: sua vida e sua obra. O
primeiro deles é construído com base em informações históricas, sociais e econômicas
que envolveram a criação de Klimontów, aldeia polonesa na qual o escritor nasceu. Para
tanto, são cotejados alguns trechos de depoimentos responsáveis por introduzir a figura
do escritor no cenário da literatura nacional. Desse modo, o outro aspecto contemplado
no segundo capítulo, relativo à recepção do escritor, é obtido com a apresentação da
narrativa ficcional de Samuel Rawet, tendo em vista os trabalhos críticos dispensados à
esta obra.
O terceiro capítulo surge com o desenrolar da pesquisa em face do avanço do
número de estudos acadêmicos dispensados à obra de rawetiana. A ideia de reunir, num
só capítulo, as dissertações e teses sobre o autor ganhou espaço a partir da necessidade
de apresentarmos um panorama dos estudos acadêmicos dispensados ao autor na pós-
graduação brasileira.
No quarto capítulo, apresentamos a narrativa ficcional de Samuel Rawet em Que
os mortos enterrem os seus mortos. Os seis contos escolhidos apresentam a obra,
considerada organismo macro estrutural. Diante da definição pontuada de nosso objeto
de pesquisa – a narrativa ficcional de Samuel Rawet na coletânea Que os mortos
enterrem os seus mortos (1981) –, chegamos ao fim do itinerário dessa pesquisa, em
face do trabalho realizado nos dois últimos anos. Estamos conscientes, do caráter
provisório que algumas dessas escolhas possam assumir no traçado dessa trajetória
investigativa.
196

No entanto, a nossa proposição atua diretamente nos aspectos que se referem à


divulgação da obra, do artista, dos trabalhos empenhados nessa mesma tarefa e, talvez a
mais ufanista, no convite à leitura dos contos, novelas, ensaios e dramas de Samuel
Rawet. As possibilidades investigativas dessa produção são inúmeras. Nesse sentido, no
final dessa jornada, a possibilidade que a nossa realização possa contribuir com os
futuros estudiosos da literatura na decisão de estudar um desses aspectos – assim como
muitos trabalhos lidos, ainda na nossa fase de gestação da proposta, atuaram no
incentivo e na solidificação da vontade de realizar a pesquisa de mestrado sobre a obra
de Rawet –, configura-se como forte desejo.
Embora não produza uma literatura que generalize a condição do imigrante,
Rawet adota, já na sua estreia, os problemas e conflitos dos mesmos para tratar em sua
produção. O título que escolhe para marcar a sua entrada oficial na literatura brasileira é
um exemplo claro disso. O que não significa dizer que isso ocorra em todos os seus
contos. Naquele caso, não somente o judeu foi alvo de sua pena, mas, parte significativa
da crítica patina nessa relação para apresentar a obra do escritor. Em Que os mortos
enterrem os seus mortos, a insígnia do imigrante cede espaço para o (falso) abandono da
cultura judaica demonstrando um tratamento específico, agora mais sutil, encoberto,
dessa problemática, em um período que o cidadão Samuel Rawet mais atacou a
comunidade da qual não podia deixar de fazer parte.
A postura de um ensaísta desabrido em suas mágoas e achaques contra judeus e
literatos de maneira geral, perde espaço para um escritor cada vez mais refinado em
suas críticas. O contista de personagens sem nome, portadores de conflitos não
nomeados, dá lugar àquele que nomeia a sua heroína solitária sob a égide da
ambiguidade moral, psicológica, social e ética, como acontece com Bluma Schwartz,
sua flor-negra. É sob esse aspecto que Elias Kugelman, administrador de empresas, nos
é apresentado como um ser indigno de sofrer um gesto de vingança, equiparado
polissemicamente ao rato. A lembrança do animal hiperboliza o caráter desprezível da
personagem e de suas atitudes.
Assim como na sua estreia, aqui, o relato da personagem, possivelmente, judia
não ocorre de forma reducionista. A mudança de uma postura explícita na
caracterização e condução dessas personagens reforça a ideia de um autor consciente de
seu projeto literário.
Outra demonstração da consciência de Rawet no que se refere à sua obra
intelectual, não apenas a literária, mas a ensaística, cujos limites formais, também, são
197

colocados à prova, é o trabalho da recorrência intertextual dessa produção. Considerado


por parte da crítica síntese de sua literatura, a novela Viagens de Ahasverus aparece
citada no último trabalho de forma específica, contextualizada em um conto altamente
econômico intitulado “Trio”. A reutilização das três personagens, de parte de suas
caracterizações e do enredo de uma micronarrativa inserida quase no final da novela,
afastam a possibilidade de autoplágio e funcionam na construção de um belo conto, bem
à moda rawetiana no aspecto da empatia, desenvolvida ao longo de sua obra, para com
os desfavorecidos, pobres, vagabundos e desajustados de toda espécie.
O trabalho consciente de Rawet será colocado à prova, mais uma vez, em
“BRRKZNG: pronúncia - bah!”, em que a procura pela palavra mágica e pelos supostos
efeitos que a mesma possui servem de mote para a criação do conto mais extenso da
coletânea. De forma sutil, Rawet discute noções do maravilhoso e constrói um conto
bem humorado sobre experimentações linguísticas, o que sempre esteve presente em sua
narrativa ficcional, mas, agora, hiperbolizado pelo afã da busca pela palavra misteriosa,
testada ao longo de toda a diegese. Neste caso, a literatura, manifestação,
essencialmente, relacionada com a linguagem, continua na pauta de suas preocupações.
O trabalho com os contos selecionados visa, ao final da dissertação, a
apresentação global da narrativa de Rawet, afinal, essa mesma narrativa está sendo lida
como organismo macroestrutural. Os pontos de partida nos levam à compressão da
escolha e manutenção desses contos através de recorrências temáticas e formais. Com
relação a esse aspecto, temos como referência os livros de contos de Rawet e, em certa
medida, as novelas. Voltada para os aspectos interpretativos, realizamos uma subdivisão
tripartida para a amostragem global da coletânea Que os mortos enterrem os seus
mortos: (a) o falso abandono por parte do contista do tratamento de aspectos voltados
para a cultura judaica, tratamento este explícito em suas primeiras obras, cuja insígnia
de “imigrante”, do livro de estreia, nos atesta; (b) a recorrência intertextual na
construção de um projeto estético rawetiano, exemplificada em nosso trabalho com o
conto “Trio”, responsável pela reutilização de três personagens da novela Viagens de
Ahasverus, 1970; e (c) a utilização do signo linguístico como matéria para se produzir a
literatura, muito recorrente na produção narrativa de Rawet e, agora, extenuada com o
extenso e impronunciável “BRRKZNG: pronúncia - bah!”.
Reconhecendo a importância da filiação do nome de Rawet com outros
importantes escritores da literatura brasileira, a conhecida e citada no início de nossas
considerações, Clarice Lispector, ou da eterna “louca” e “assassina” Maura Lopes
198

Cançado, por exemplo, reforçamos a importância de se pesquisar tais nomes


emblemáticos. A revisão e o questionamento sobre os artistas que ganham unanimidade
crítica ao longo dos tempos, o que lhes permite pairar acima da vontade investigativa,
também não podem ser descartados da esfera da pesquisa literária. O efeito que constrói
obras-primas que, em longo prazo, passam a ser ignoradas, é parte desse processo
danoso e que, obviamente, também, necessita de investigação.
No entanto, e pensando em Rawet, as histórias da literatura, algumas delas
consultadas em nosso trabalho, são testemunhas de que a maior parte desses escritores
teve, em vida, ou depois de suas mortes, seus nomes, plenamente, reconhecidos. O
estudo e a reflexão a respeito do trabalho dos menos conhecidos, mas, nem por isso
inferiores, se impõem como desafios para a crítica acadêmica que tem se estabelecido
nas últimas três décadas e que, doravante, se estabelecerá.
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210

ANEXOS
211

ANEXO A – “O riso do rato”

Sua intenção era matar aquele homem hoje, de qualquer modo. Viu-o de perfil,
no espelho, enquanto ensaboava as mãos, de volta do mictório. E viu seu rosto cansado,
viu a própria exaustão de alguns dias nos olhos inexpressivos, nas sucessivas barbas
feitas com negligência. Esfregou as palmas, as juntas dos dedos, tentou atingir a sujeira
concentrada nas unhas sem sucesso. Tirou do bolso a caixa de fósforos, transformou um
palito em estilete e conseguiu eliminar a linha preta da unha, ferindo-se às vezes. Ainda
com o estilete empurrou um pouco de sabão em espuma e raspou o intervalo entre a
unha e carne. Depois abriu a torneira. Enquanto a água escorria pelas unhas, atrás de sua
barba no espelho, examinou-lhe melhor o perfil. Eliezer Kugelman era um homem
baixo, o rosto balofo e luzidio, os cabelos negros bem esticados para trás, um ventre
médio, os braços e dedos gordos e maneirosos agitavam-se sem necessidade. Olhava a
churrascaria em torno, revirada o guardanapo, mexia nos talheres, na cesta de pão, na
manteigueira. Enquanto fechava a torneira viu em fração de segundo o rosto de Eliezer
de frente mas sem o aspecto de estar olhando o seu gesto de lavar as mãos. Os olhos
apertados, um riso leve entre as bochechas infladas. Nem ironia, nem zombaria. Fingiu
esfregar e observar a barba e as bochechas já tinham girado observando o outro lado do
salão. O outro perfil lhe deu entre lábio e bochecha, na linha do riso, um tom de
desprezo, não bem definido. Ao mudar um pouco a posição do corpo, um pequeno
arranhão junto à orelha, não percebido, começava a inflamar, viu refletida a porta de
entrada e a pequena praça em frente à churrascaria. Os dois irmãos de Eliezer Kugelman
estavam sentados num banco lateral, à sombra de um grupo de troncos torcidos. Manuel
Kugelman, um pouco mais moço que Eliezer, e Elias Kugelman, o mais novo, o idiota.
Passou o indicador pelo arranhão e percebeu que Manuel o observava do banco, e que a
mesa escolhida por Eliezer, à direita na faixa central, era vista com nitidez do canto da
praça ocupada pelos irmãos. Quando os conheceu, apenas um detalhe lhe despertara a
atenção no idiota. Nada falava, andava à toa, desligado, uma leve baba às vezes nos
lábios, quando em companhia dos outros dois. Cercavam-no de atenções, nunca o
deixavam só, ou quase nunca. As poucas vezes em que o encontrara sozinho, ao dirigir-
lhe a palavra, o rosto do idiota se iluminava e o diálogo, banal, transcorria tranqüilo.
Quando seu filho se tornou amigo do filho de Eliezer, tornou-se amigo também do
idiota. Os três se entendiam bem, e exultou mesmo quando os viu, um dia, rolarem na
212

grama, gargalhando. A única vez em que vira o idiota gargalhar. Enxugou as mãos e
voltou à mesa. Eliezer recebeu-o com o mesmo traço entre lábios e bochechas. O garção
deixara os aperitivos, e Eliezer ofereceu-lhe um cigarro, depois do brinde. E encarou-o
com os olhos neutros ao estender o isqueiro com a chama um pouco exagerada. Quando
recebeu o convite ontem à noite para o almoço de hoje, sabia que a intenção daquele
homem era matá-lo, e isso em nada o perturbou. Nem lhe tirou o apetite. A um pequeno
sinal seu alguns homens da polícia distribuídos pelo salão resolveriam o problema. Em
caso de necessidade um sinal do irmão Manuel deixaria prevenidos dois outros postados
na praça. Por polidez ainda o acompanhara à clínica onde o filho fora internado na
véspera; não o deixaram visitá-lo. Disseram-lhe que estava em observação. Na queixa à
polícia, e no pedido de proteção, alegara o desvario do pai crápula, e a ameaça que
representava para ele, Eliezer, pelo simples fato de ter presenciado a cena chocante.
Dissera à polícia que vira o pai tentar violentar o filho, e o menino em estado de choque,
selvagem, saíra correndo pela rua, até cair exausto em convulsões. Não permitiria que
esse professorzinho atrapalhasse seus planos, como o idiota atrapalhara a operação com
sua filial em Haifa, através de um intermediário de Bruxelas. Terminou o aperitivo,
forçado, detestava o álcool, e nunca ia além de um Martini seco antes da comida e um
uísque depois, o suficiente para manter uma certa cordialidade social nos negócios. Não
suportava nos outros o derrame sentimental de algumas doses, e muito menos a língua
destravada do bobalhão afetivo. Trocaram algumas frases sobre a qualidade da carne
enquanto eram servidos. E ao cortar a primeira fatia da maminha de alcatra, reviveu pela
milionésima vez a mesma cena. Chegara às oito e meia para jantar, um pouco mais
cedo, mas encontrou tudo na mesma. A aula fora encerrada com o barulho dos tanques,
e desistiu de rodar com os amigos pela Praça da República. Ninguém sabia ao certo o
que acontecera. Estava cansado e com sono. Estudara até tarde na véspera, a prova no
colégio de manhã fora exaustiva, o trabalho à tarde, na loja do tio, enervante, e o
comportamento do tio, à noitinha, levara-o ao máximo de irritação. Pagara-lhe a metade
do salário combinado, ainda lhe avisou que descontaria o prejuízo do vidro quebrado
nos meses seguintes. Um vidro quebrado por descuido enquanto ajudava o carregador a
levar uma cômoda dos fundos para a calçada. Antes de sair, tinha outra aula à noite,
ainda olhou bem a cara do tio, o rosto redondo, a calva central, os olhos matreiros, a
enxugar um suor eterno com um lenço eterno nas faces eternas em gestos lentos e
meneios que não sabia definir. Na esquina de Senhor dos Passos e Praça da República
tomou a direita, contornou o Campo de Santana, viu o Ministério da Guerra iluminado e
213

alguns tanques alinhados, parou um pouco na outra esquina para um cigarro, e enquanto
riscava o fósforo observou algum movimento no trecho entre a Rádio do Ministério da
Educação e a Casa da Moeda. Oito e meia quando abriu a porta de sua casa na Benedito
Hipólito. O pai dormia, como de hábito, o que era melhor, evitava a ranzinzice. Tirou o
paletó, abriu o gás para esquentar as duas panelas, e tirou pratos e talheres do armário da
cozinha. Lesma na atividade de cobrador do clube do quarteirão, fera no resmungar e
lamentar sua condição de vítima eterna, vaidoso na exigência dos colarinhos engomados
na lavanderia da Regente Feijó, o pai não conseguia arcar com as despesas da casa. A
mãe arranjara um trabalho noturno acompanhante de uma velha doente. Chegava de
manhã, quando ele e os irmãos saíam para a escola, passava o carão em todos, tomava
café e ia dormir. O feijão-branco e as batatas já tinham grudado no fundo da panela.
Derramou tudo no prato fundo que deixou de lado, e despejou o bife no prato raso.
Acabar de comer, tirar o resto da roupa e se atirar na cama, o maior desejo. Amanhã de
manhã saberia se a notícia colhida na esquina da Rua Santana era verdadeira.
Derrubaram Getúlio. Teve a impressão de que desde que a guerra acabara, há alguns
meses, já ouvira esse boato algumas vezes. Não tinha cortado o primeiro pedaço do bife
quando lhe trouxeram a notícia. A mãe estava presa e mandara um recado para os
parentes. Na polícia viu-a no meio de um grupo de mulheres do mangue esbravejando,
protestando, sacudindo as banhas e a corpulência no máximo de indignação. Nunca
chegou a compreender [sic] bem o olhar do policial, os olhos fixos nos seus, quando lhe
disse que podia retirar-se com a mãe, nada registraria. No caminho ela não fez outra
coisa a não ser repetir que estava apenas passando pelo lugar quando foi envolvida na
confusão, apenas passando, que era um abuso, um desrespeito, por aí afora. Odiou-a
mais pelo falatório. Ao se deitar, sem comer, não suportou o cheiro da esporra dos
irmãos que dormiam no mesmo quarto. Parecia que se masturbavam todas as noites.
Odiava o mais novo, os pais haviam decidido que ele pagaria seus estudos. Ao cortar a
primeira fatia do filé ainda continuava intrigado com a linha do riso entre lábio e
bochecha. Espantou-se com sua própria serenidade, agora. Por várias vezes naquela
manhã, e ali mesmo na churrascaria, teve a impressão de que ia desabar sobre si mesmo
ou sobre o outro. A lembrança do filho na clínica provocou-lhe um tipo novo de
despertar interior. Algo feito de espanto e alargamento interior. Olhou os movimentos
de Eliezer Kugelman sobre a mesa e a cabeça inclinada para a frente era vista como de
cima. Imaginou Manuel Kugelman e o idiota atrás dele no banco da praça. O breve
relato do filho, arrancado aos pedaços, em meio a convulsões, antes do colapso, e que se
214

resumia à sua frente em letras invisíveis, como um luminoso de noticiário: o idiota


deitado nu no canto da sala, onde habitualmente dormia, e os outros dois, Eliezer e
Manuel Kugelman, chamando-o alternadamente, sussurros e gritos, junto aos ouvidos,
de todos os palavrões. Às vezes mantinham-no deitado de costas, outras deixavam-no
de bruços, o idiota inerte, como se estivesse morto, e submetiam-no a uma permutação
de possibilidades sexuais. O menino acordara e ao olhar da janela vira luz na sala dos
vizinhos. A casa era um pouco afastada do muro, em frente à sua, e o acesso à varanda
se dava por uma rampa de pedras que terminava na garagem. Atravessou a rua e do lado
de fora da janela presenciou a cena. Eliezer Kugelman cortava mais uma fatia de
maminha de alcatra e revolvia-a na farofa e no molho de cebola. Subitamente sua
intenção de matar aquele homem hoje, de qualquer modo, quando Eliezer ergueu a
cabeça, fundiu-se à linha dos lábios às bochechas, e percebeu que nada havia a fazer. Do
fundo, quase em tom de prece, jorrou-lhe o óbvio. Teve a impressão de que a vingança
só tinha sentido quando envolvia a condição humana.

Referência

RAWET, Samuel. O riso do rato. In: ______. Contos e novelas reunidos. Civilização
Brasileira, 2004, p. 345-349.
215

ANEXO B – “O casamento de Bluma Schwartz”

Ouviu os gemidos do quarto sem dar grande importância. Encontrava-se na


posição que mais lhe agradava depois do casamento. Mergulhada voluptuosamente, sem
volúpia alguma, na grande poltrona de veludo verde, o corpo descontraído e os mínimos
gestos bem estudados, em frente o espelho grande ocupando um quarto da parede da
sala, a decoração foi toda orientada, ao lado a mesinha com o cinzeiro e a campainha de
prata. Ao perceber o brilho do metal em meio à fumaça, um raio de sol repentino
encontrou eco em espelho e prata, sentiu a importância da campainha, sonho antigo de
fartura e mando, e que nem chegara a usar há pouco, durante a rápida visita da cunhada.
A feição de sofrimento, o tom de desencanto das palavras, a amargura do gesto de
fechar a porta do quarto, impediram-na de usar a campainha quando a cunhada pediu
água. Havia uma discordância lógica, foi ela mesma à cozinha trazer o copo e a garrafa
da geladeira, e com naturalidade, por outros motivos, derramou emocionada a água no
tampo da mesa. Enquanto a cunhada bebia, ela mesma trouxe um pano de pratos,
limpou a mesa, aguardou um pouco e levou copo e garrafa para a cozinha. Agora,
indiferente ao gemido, a imagem no espelho, a esquerda levou o cigarro aos lábios e a
direita afagou a superfície polida com a intenção de fazê-la soar, gratuitamente. Os
gemidos continuavam no mesmo tom, com os mesmos intervalos, na mesma monótona
sucessão sonora. Procurou fixar imagens antigas, nada conseguiu. Houve épocas em que
conseguia rever com nitidez rostos, ruas, objetos, mal esboçava a intenção de
reexaminá-los. Com o tempo uma espécie de encantamento se desfez. Rostos, ruas,
objetos, surgiam, mas não na hora e na seqüência desejadas. Agora vinham com a rala
consistência de frases que em determinados instantes se tornava mais densa, quase
sólida. Com quase dois meses de doença do marido, conseguia pouco a pouco controlar
os gerentes das cinco filiais e assumir o comando no escritório que administrava seus
próprios imóveis e outros interesses. Ouviu o som da campainha e espantou-se com a
própria mão acionando o cone de prata, espantou-se com a figura súbita da empregada
na porta da cozinha aguardando uma ordem qualquer. Nada programara, nada desejara,
lembrou-se que poderia apenas dar um pulo no escritório, apenas para sair de casa, e
pediu um suco de laranja e um café. Passou quase quinze anos tentando recuperar
alguma coisa que perdera com o primeiro homem que a envolvera, alguma coisa que
perdera com o aborto forçado. Um dia percebeu que era inútil, que talvez até a perda
fosse uma ilusão, e se nada perdera, nada havia a recuperar. Uma secura visceral,
216

destituída de qualquer tonalidade afetiva. Trabalhava em um pequeno escritório na zona


industrial suburbana, e o mesmo ônibus que a deixava ali de manhã, recolhia-a à noite
para o regresso. Rememorado entre a fumaça do cigarro e o frio da prata polida, tudo
parecia contaminado pelos piores lugares-comuns. Um olhar casual para o automóvel,
um sorriso, uma oferta de carona para logo mais, um semi-romance com o dono de uma
pequena fábrica de colchões de molas da área, uma paródia lírico-sensual. O tipo
pareceu-lhe obtuso, e era obtuso, mas as atenções, os lanches, as voltas de carro, a
afetação de frases galantes, despertavam-lhe o riso e uma certa alegria de entrega. Era
casado, tinha três filhos, e largaria tudo se encontrasse, se encontrasse, se encontrasse.
Com dois meses de gravidez viu-lhe os primeiros arreganhos num quarto de hotel na
estrada de Petrópolis. Entravam apenas para discutir, nenhum contato mais, nenhuma
paródia mais de frases galantes. Deixasse de ser idiota, o romance acabara e não
permitiria que uma vagabundazinha qualquer estragasse sua vida. As discussões se
prolongavam, se ramificavam, com as mesmas frases, acentuadas pela mudança de tom.
Um dia em meio à discussão, no mesmo quarto de hotel, ele se lançou na poltrona, abriu
a pasta em silêncio e tirou um revólver. Ficaram sentados em silêncio durante quinze
minutos, ela na beira da cama, ele alisando a arma em cima do couro. No dia seguinte
ela procurou, por conta própria, a clínica. A empregada se aproximou com o carrinho.
No tampo-bandeja um copo, a jarra com suco de laranja, o açucareiro, o bule de café, a
xícara, uma travessa com biscoitos, um prato de sanduíches. Reclamou com rispidez a
falta da colher no açucareiro. A empregada desculpou-se perturbada, gritou de dor ao
bater com o ombro na porta da cozinha e quando regressou com a colher viu nos olhos
da patroa uma expressão de asco. Ordenou-lhe que avisasse ao porteiro para tirar o carro
da garagem. Tomou meio copo de suco, e uma xícara de café. Os gemidos do quarto vi-
nham com a mesma monotonia. Imbecil. Sentiu o aspecto global há cinco meses quando
em casa de amigos ele lhe foi apresentado. A paródia da frase galante num tom de
semicafajestice empertigara-lhe o corpo e dera à voz uma segurança não conhecida. Foi
meiga, dócil, mostrou-se interessada e encantada, e intuiu que uns breves laivos de
boçal idade em sua própria expressão produziriam um efeito encantatório. Quando a
vitrola sugeriu o grupo de dança no canto da sala, lembrou-se de uma leitura casual, um
episódio, e com uma pisadela e um beliscão deixara-o completamente enfeitiçado. Em
algumas semanas de encontros rotineiros conhecia-o por dentro. Quase cinqüentão,
inseguro, solteiro, impotente, de uma feliz ferocidade nos negócios, e de uma infeliz
necessidade de se apresentar com a campânula de mulher e filhos. Num dos encontros
217

de hotel da serra, estavam nus os dois, ela cansada dos esforços em conseguir-lhe uma
semi-ereção, enquanto olhava pela janela a mata densa e florida e aspirava um céu de
frio e chuva recente, constatou que até como homossexual era impotente. A única visão
profunda do tipo era a visão esquemática. Durante um mês manteve relações diárias
com todos os homens que lhe era possível encontrar nos intervalos do trabalho, e ao
constatar a gravidez sugeriu um fim de semana no mesmo hotel. Desta vez conseguiu
uma semi-ereção, suficiente para uma união, e um breve orgasmo. No mês seguinte
anunciou-lhe a gravidez e o casamento foi marcado. Quarenta e poucos dias de casados
lhe deram tempo suficiente para reduzi-lo a um trapo entregue a um grupo de
psiquiatras. Desmoralização orgânica produzida por laxantes de ação rápida, soporíferos
no café da manhã e no almoço, estimulantes e anti-hipnóticos à noite. Instabilidade
total, luta com insônias pela madrugada, luta com o sono durante as atividades do
cotidiano, luta com as vísceras numa inversão alimentar. A ilusão, ainda, de alguma
coisa perdida, ao ver a empregada aparecer ao mesmo tempo em que envolvia com os
dedos a campainha. O frio da prata e da voz. A cerimônia do casamento se processara
no mais perfeito esquema ritual.

Referência

RAWET, Samuel. O casamento de Bluma Schwartz. In: ______. Contos e novelas


reunidos. Civilização Brasileira, 2004, p.350-353.
218

ANEXO C – “Moira”

Que sombra recrudesce a sua volta? Que áspera revolta se acumula em instantes
desfigurados e anula qualquer percepção de objetos como objetos? Subitamente se
identifica como receptor de imagens adulteradas, incapaz de um encontro concreto,
singular, imediato com o outro. Havia homens à sua volta, o seu cotidiano era o
cotidiano de todos, em aparência, tinha as suas exaltações e fúrias, mas havia o tempo
solidificado, estratificado, e era com dor que uma vaga impulsão de fluxos se
estabelecia. Abriu a janela para o pequeno pátio lateral. Chovia. E como todo dia de
chuva é cinza, e cinza seu sentimento ao despertar, recolheu mais uma vez em bloco
sólido o passado. Amanhecera há pouco. Do largo do Machado ruídos dos veículos. No
sobrado ainda o silêncio da noite. Tomou café e acendeu o cigarro. Sabia que um jeito
amargo compunha suas feições, ou deveria compor. Vacilava ainda em reconhecer
expressões que nada traiam ou pensamentos que não se articulavam em figura e
significado. Representava o que? Foi ao banheiro, urinou lavou as mãos, no espelho do
armário viu marcas de maquilagem ainda. Poderia dormir. Que procurava no sono? Que
procurava no palco? Um modo de ser no mundo, um modo de estar diante da morte?
MUNDO. MORTE. PALAVRAS? Aparou demais as unhas, apertou o cinto do roupão,
acendeu outro cigarro. Que espécie de consolo ou libertação procurava na idéia de
suicídio. Uma chantagem que fazia consigo mesmo? Uma irrupção do famoso instinto
de morte? Existia mesmo? Instinto oscilando entre criação e destruição, vinculando ao
fundo mais fundo de sua condição, ou da condição? Cruzou várias vezes o quarto, olhou
o armário, a cama, os tapetes. Abriu o armário, revirou a roupa. De novo no banheiro. A
pia. O chuveiro. A toalha. O sabonete. Um cotidiano. O eterno cotidiano. Uma frase. A
eterna frase. O tempo. O fluxo do tempo. Um instante. Fração de quê? Entre passado e
futuro o presente estrangulado, compacto, quase ausente. A infância? O que havia de
belo na infância? Por que imaginar agora o que nem chegou a ser? A comparação. Um
sonho que se poderia ter sonhado, e que vem através do que é visto? Ou a nostalgia da
simples nostalgia, a saudade de uma forma prenhe de possibilidades. Se... se... se... A
irresponsabilidade? O senso lúdico puro? Ou a infinita responsabilidade de ser no
mundo que se oferece a uma angústia em perpetua ampliação? Seria possível captar o
desespero de uma criança diante da saturação e opacidade das coisas? Seria possível
imaginara crispação de sentidos diante da pura fruição de um organismo que se afirma
em sua gênese? De um organismo maior do que a pele? Da pele insatisfeita à procura de
sua forma? Irrita-se de novo com a perturbação no espetáculo da véspera. O cansaço
com o papel começava a pesar-lhe. Quatro meses no mesmo tipo de Albee, quatro
meses de marido e mulher de reitor, quatro meses de ouvir a mesma canção. Quem tem
medo de Virginia Woolf? Em meio à fala silenciara e se pôs a mirar a platéia. Queria ver
a platéia. Queria ser a platéia. Ator e um homem do público ao mesmo tempo. Uma
simbiose. Uma irrealidade produzida por duas em choque. Ironia. O caminho do humor.
O caminho de quê? Ser o que se é, o que se quer ser, e o que se deve ser. Duas
realidades? Três. O álbum de fotografias atualizado. Um gosto pela ordem, pela
regularidade, um prazer em de vez em quando acompanhar sua trajetória. Rever uma
ascensão, ou uma queda. E a diferença? Percebeu que começava a perceber uma
situação ambígua forjada pela observação. E teve medo. Para distrair procurou refúgio
no seu dia-a-dia. E constatou ser ali o local de sua vocação. Não no palco. Ao
representar era espontâneo. Ao ser esmera-se sempre em artifícios. A simulação da
convivência. E o diretor? E o autor? O cenógrafo? O iluminador? O maquiador? O
figurinista? O contra-regra? Um destino? Deus? Um nome, uma realidade, uma
possibilidade, um ser concreto à sua imagem e semelhança, ouvindo e querendo ouvir?
219

Um Tu? Veio-lhe o horror ao se rever nas fotografias de Creon, Édipo. Um nome. A


descarga atravessou-lhe o corpo, sente-se imenso, imenso em sua grandeza e horror. Ao
erguer a mão percebe um leve tique hierático, uma certa pomposidade no gesto. O
turbilhão se manifesta em equilíbrio. Representava, agora, para quem? Representava ou
era? Quem era? Eu? Trocou de roupa. Olhou-se no espelho. Abriu a porta da rua. A rua.
Personagem perfeita.

Referência

RAWET, Samuel. Moira. In: ______. Contos e novelas reunidos. Civilização Brasileira,
2004, p. 357-359.
220

ANEXO D – “Trio”

- Sofro pelo mundo!


Pedro esperou a reação dos outros, assustado. No íntimo uma alegria nunca
pressentida. Os olhos se dilataram, as luzes esparsas da estação se imobilizaram diante
da ternura doída de sua voz, e ao sentir uma leveza de plenitude na cabeça, abraçou os
joelhos e apoiou os pés sobre o banco. Algumas moedas recebidas caíram dos bolsos, e
a corda que lhe servia de cinto, desfeito o laço, não conseguiu impedir que o farrapo de
calça descesse. Não usava cuecas. A camisa ensebada, sem cor, protegeu as nádegas.
Apoiou a cabeça sobre os dedos enlaçados e entregou-se ao pranto. Chorou um choro
manso, silencioso, contínuo, morno, um choro de alívio, terno, chorou de alegria por
conseguir chorar daquele jeito, e naquele lugar. Chorou porque esperava uma
gargalhada e uma imprecação e ouviu apenas o fresco silêncio da madrugada. Cessado o
pranto, não limpou os olhos, e pôs-se a mirar os trilhos, os bancos de espera, o telheiro,
a penumbra das casas próximas e viu tudo através do espelho de uma lágrima.
- Quero criar o mundo!
Paulo, sentado no meio, equilibrou a garrafa de cachaça no chão e abriu os
braços como se crescesse de repente. O corpo maior do que o corpo. A pele, uma jaula
para o tamanho que ia tomando. Nem o vômito perturbou a amplidão das mãos
estendidas. Escorreu pelo peito, ramificou-se pelas coxas, e foi se empoçar entre as
pernas. E a roupa era a roupa nova do dinheiro de algumas talhas vendidas na véspera.
Uma de iemanjá, uma de nossa senhora da conceição, uma de pescador de jangada, uma
de cangaceiro. Nem acreditou. Na calçada defronte à feira o homem se debruçou sobre
seus trabalhos. De longe o grito de carne, peixe, frutas, sabão, o cheiro de laranja
pisada. O homem olhou, olhou, separou uma, separou duas, separou três, separou
quatro. Quanto é? Pagou. Ia comprar umas toras enormes e começar um trabalho do
tamanho das portas da igreja do Largo de São Francisco. Encolheu os braços, eufórico
com o azedo da boca e o silêncio dos outros. Ninguém disse merda. Ia talhar o que vira
há pouco, a rua sete escura, a praça quinze no fundo, lâmpadas e estrelas, e eles três no
meio. Depois comeria todas as mulheres antes de dormir com a sua em casa.
- Penso o mundo!
Pedro Paulo um pouco afastado dos outros, no extremo do banco, esperou bem
uns cinco minutos antes de falar. Afastara-se mais pelo porre de Paulo. Prezava sua
roupa branca e bem engomada. Era a limpeza de seu tabuleiro, de suas cocadas brancas
221

e pretas, era a limpeza de seu coração nas encruzilhadas da cidade em que meditava
sereno. De preferência à noite. Ficava de pé, equilibrado, os braços cruzados, à turbante
branco centrado na cabeça, a respiração ritmada. E o mundo lhe vinha. Os compradores
não o perturbavam. Os homens, as mulheres, as crianças, os nascimentos, as mortes, os
prédios, os terrenos, os gritos dos vendedores de jornais, os estudantes, os viados, as
putas, os tiras, os caminhos que chegam e partem, o mar, os peixes, os céus, as estrelas,
os pássaros, o mato, as palmeiras, os morros, os crimes, as esmolas, a ternura, o ódio.
Mas nunca ousou dizer o que disse, era pretensão demais. Mas Pedro falou. Paulo falou.
E ele? Falou também. E o mundo não desabou.
Subitamente os três se ergueram e o abraço foi tão violento que desistiram de
esperar o trem. Pedro Paulo no centro, o braço esquerdo no ombro de Pedro, o esquerdo
no de Paulo, unidos numa gargalhada, os corpos em permanente fusão dinâmica, as seis
pernas oscilantes de um demônio tricéfalo, as vozes dissonantes, as seis pernas
oscilantes, se fundiram no refrão do último samba do carnaval que passou. Foram
presos à saída da estação, postos numa viatura da polícia, e aguardaram a manhã no
xadrez do distrito mais próximo. Houve um incidente ao saírem. Pediram que
assinassem qualquer coisa antes. Foi impossível.
Eram analfabetos.

Referência

RAWET, Samuel. Trio. In: ______. Contos e novelas reunidos. Civilização Brasileira,
2004, p.364-365.
222

ANEXO E – “Nem mesmo um anjo é entrevisto no terror”

Nem mesmo um anjo é entrevisto no terror. Uma e dez no relógio da Mesbla.


Não havia névoa, mas o mormaço da madrugada punha nos olhos, sobre o cansaço, um
esfumado de percepções. Rodeou uma vez mais o Passeio Público. Por vezes, exausto,
recostava-se na pedra, a aresta fina ferindo as nádegas, as verticais da grade se opondo
às omoplatas. Por onde exaurir a exaustão? Um ônibus arranca para o subúrbio, sem
passageiros. A calçada oposta às escuras. Fechado o Metro, o comércio, o Palácio. Só
junto ao café, entre a banca de jornais e a soleira, alguns homens. Segue em direção à
Lapa. Nem o lirismo, mesmo vulgar, dos moleques vendendo amendoim. Contorna, e
em frente ao Banco de Sangue ajusta a coluna à grade numa simulação de equilíbrio e
dignidade. Ajeita os cabelos, ralos, ajusta a roupa. Um automóvel diminui a marcha
quase à sua frente e os olhos se acendem ao vislumbrar a camisa vermelha, e uma
cabeça de sombras. Desloca-se para o meio-fio. Mas o carro estaciona além, junto a um
negro magro e alheado. Hesita. Coça a braguilha e uma cabeça se aproxima do vidro
baixado. O negro se curva, cumprimenta com a mão displicente, responde vago às
perguntas, aceita um cigarro, ergue os olhos em direção ao Aterro enquanto de cotovelo
na porta, curvado, ampara o corpo com uma idéia de equilíbrio. A mão lânguida, do
interior, roça seus dedos e descansa no dorso, os dedos do negro se agitam, gira a
palma, e os dedos se entrelaçam. O negro sorri. A feição austera se dissolve, e a
expressão moleque se ilumina numa expressão inaudível. A costela pressionada às
grades reprime um soluço interior, inveja de uma espontaneidade nunca vivida. O carro
se afasta. A calçada regressa a uma só presença, um corpo vinculado à pedra e grade
entre irritação e dor. Alterado o largo, mais belo, ganhou o pátio da igreja e a
restauração do Cine Colonial inundara de branco a noite, uma face ilusória de contrastes
e luz em obra medíocre, sempre uma regularidade simples de uma intenção ordenada.
Mas faltava o mictório. Amônia e desinfetantes sufocando, às vezes, arrancando
lágrimas, de corpos mais ou menos imóveis, acariciando membros, em contemplação e
masturbação. Por ali terminava suas noites, antigamente, na expectativa de uma
sucessão de acasos que lhe permitisse enfim uma presença a dois em que toda a fome
afetiva se realizasse num contato sôfrego de dedos ou lábios, no intervalo de uma
presença e outra presença. Os dias eram esplêndidos e terríveis entre o quarto em casa
de portugueses no Bairro de Fátima e a pequena oficina de camisas, onde não
encontrava condições para produzir em série os modelos sonhados. Sentiu-se vingado,
223

um dia, quando o chefe da oficina lhe mostrou a fotografia de uma novidade francesa
em lançamento; a gola era a sua, e quando a sugeriu nem lhe deram atenção. Havia a
desculpa, agora, o negócio era francês, e francês quando manda para cá, já é coisa certa.
O pior veio depois quando lhe pediram um novo tipo de camisa social. Foram quinze
dias de deslumbramentos e desmaios na tentativa de harmonizar punhos, gola e bolsos,
além do peito duplo com a intenção de esconder botões e dobras; camisa social, de
abotoar, com jeito de camisa esporte, inteiriça. Dez dúzias foram feitas
experimentalmente. Quinze dias depois nenhuma saíra da prateleira, apesar dos
vendedores, e hoje lá estavam como estigma de seu fracasso. Quando ousava esboçar
alguma coisa apontavam-lhe o canto do armário onde as dúzias amarelavam. Com isso
conseguiram a tortura perfeita. Um rapazote vinha da Rua do Passeio. A barra do blusão
meio por fora meio atrás do cinto. O jeito alheado na calça justa e sem vinco, as pernas
mais tortas pela atitude no andar, Giuliano Gemma entrando a pé na Avenida de Tulsa
sorrindo de cem homens escondidos atrás dos telhados com os fuzis engatilhados. O
rapazote meio que pára não pára, olha o velho de viés e com desprezo prossegue. A
lâmpada acentua o volume nas virilhas. Estaca adiante como se à espera mas ele
permanece junto à grade. O desprezo vislumbrado humilhara-o. Não o seguiria.
Conhecia esses artifícios de repulsa, mas sentia-se humilhado. Não o seguiria. Mas
ficou-lhe a nostalgia do volume nas virilhas. Desistiu de uma caminhada até a
Almirante Barroso. Pouca probabilidade. Se tivesse energia chegaria até à Praça Quinze.
Junto às barcas. Ou mesmo os arredores da Praça Mauá. Era grande a concorrência
agora que os da zona sul descobriram o canto. Chegavam de carro, bem vestidos,
doutores, coronéis, levavam vantagem. Um homem à espera de ônibus. Atravessou a
pista e sondou o tipo. Sentiu que se insistisse mais um segundo ouviria um berro com a
palavra costumeira. Encostou-se na banca de jornais quando viu o mulatinho chegar ao
ponto. O homem indiferente despertou e a cabeça nervosa oscilou entre o velho da
banca e o mulatinho. O mulatinho enfiou as mãos nos bolsos, sorriu e se postou quase
ao lado do homem. Você está querendo o quê, eu sou um homem casado, tenho mulher,
tenho filhos, está pensando o quê. O velho cruzou outra vez a pista, sem deixar de sorrir
diante da voz esganiçada e do corpo em desequilíbrio do homem. Conhecia esses tipos.
Era casado, tinha mulher, e filhos, tudo isso arrotado com meneios de macheza
duvidosa e terror. Quase gargalhou ao ouvir o vozeirão do mulatinho. E alguém lhe
perguntou alguma coisa, seu idiota! O mulatinho atravessou a segunda pista e dobrou a
Rua da Lapa. O homem embarcou no primeiro ônibus. O trecho de calçada tinge de
224

sombras a visão de velhos troncos imbricados em sua dor. O chafariz, as pirâmides,


degraus abaixo, o Monumento aos Mortos do outro lado. Rala a tentação de uma náusea
que ainda seria um estímulo. Os gatos. Um frêmito entre detritos. O pêlo branco entre
avidez de patas. Um alimento vômito sobre a pedra. Resta apenas a nítida visão do
vazio e o próprio corpo para enfrentá-lo ou sucumbir à sua recusa do mundo. Quinze
para as três no relógio da Mesbla. Nem mesmo um anjo é entrevisto no terror.

Referência

RAWET, Samuel. Nem mesmo um anjo é entrevisto no terror. In: ______. Contos e
novelas reunidos. Civilização Brasileira, 2004, p. 366-368.
225

ANEXO F- “BRRKZNG: pronúncia - bah!”

Um dia acordou, cuspiu na pia, escovou os dentes, cuspiu outra vez, lavou o
rosto, e ao pegar a toalha, soltou um palavrão. O dedo mindinho do pé dava urros, o
dedo não ele. Dera uma topada no armário do banheiro. Como vingança chutou o
armário com o dedão do outro pé. Que também urrou. Aí o homem encontrou uma
saída. Ensaiou bem a cara no espelho e fez de superior em relação aos dedos do pé, o
mindinho e o dedão. Naquela hora resolveu levar avante um velho projeto: descóbrir a
palavra mágica mais poderosa do que todas as palavras mágicas que conhecia, inclusive
abracadabra. Foi à varanda, mexeu nas samambaias, e estirou-se na espreguiçadeira.
Que não era fácil inventar palavra mágica. Mais difícil do que palavra difícil. Começou
por achar que devia ter mais de doze sílabas sem a tapeação do hífen. Fixou-se em vinte
e duas sílabas, simplesmente porque dois mais dois são quatro, e dois mais dois, sem o
mais, são dois dois, o que não é tão óbvio. A palavra mágica deveria anular o efeito de
todas as outras e desfazer encantamentos, revirar feitiços, pau para toda obra no campo
milagreiro. Julgou inútil fazer um levantamento enciclopédico de todas as palavras
existentes no gênero, para não cair em repetição, ou em plágio. Inventaria a sua. Com
vinte e duas sílabas e um bom arranjo de vogais e consoantes era mínima a
probabilidade de obter uma já existente em qualquer língua. Primeiro porque as línguas
que davam palavras mágicas não tinham lá tantas sílabas juntas, e as que tinham
estavam há muito tempo desmoralizadas porque se mostraram chinfrins na matéria.
Palavra mágica não se inventa com tanta facilidade, muito menos palavra mágica mais
forte do que qualquer outra. Retorceu-se na espreguiçadeira, alisou com os dedos os
braços de madeira manchada e disse à samambaia que a tarefa era complexa. Disse à
samambaia. Quase se assusta. Não com o que disse. Coisa à-toa. Nem com a samam-
baia. Que nada tinha de causar espanto, samambaia comum, do tipo que gostava. Disse
à samambaia que a tarefa era complexa. E esperou comentários. As hastes se agitaram
de leve. Houve oscilações de folhas. Um pouco de terra veio misturada com a poeira.
Ventava. Compreendeu que a combinação de vogais e consoantes tinha que ser
ininteligível. Pensou em palavras simples, mesa, cadeiras, pão, folha, irmão, pai, mãe.
Eram inteligíveis. A gente ouvia e sabia logo o que era. Mesa, aquilo ali, cadeira, isto
aqui. Comum. Banal. Sem graça. Palavra mágica tinha que ter o encanto de
dissonâncias, de ruídos, de asperezas, tinha que despertar nostalgias por exóticas
complementaridades. Reinos fantásticos - o não-agora, o não-aqui. Uma consistência de
226

sonhos, sem sono, de fusões de imagens em condensados hibridismos. Qualquer coisa


como uma nuvem vista em um amanhecer sobre a baía. Claridade sobre as águas.
Ondulações na superfície. Sucessão de reflexos nas dobras líquidas. Uma nuvem cinza
boiando no horizonte, enorme. Gradações de cinza. Áreas compactas. Áreas ralas. Leve
fumaça de nuvem nas bordas. No canto inferior, à direita, um risco horizontal ilumina o
vazio. No canto superior à esquerda um círculo de luz avermelhada parodia o sol. E as
dobras da água se justapõem às dobras de nuvem, articulando cinza e fogo. Uma palavra
mágica para uma nuvem daquelas podia ser tudo menos nuvem. Estava então nas vinte e
duas sílabas, sem saber como ordenar vogais e consoantes. Estirou o corpo, deixou
boiarem as letras, e sentiu que além de ininteligível palavra mágica tinha que ser outra
coisa. Copo, palavra. Copo, objeto. Copo, duas consoantes, duas vogais, um certo som
fácil de adivinhar. Copo, tronco de cone invertido, quase cilindro, de vidro, um círculo
de vidro no fundo, transparente, uma circunferência lapidada em cima, tonalidades de
cor em função da luz e dos objetos à volta. Duas sílabas, vidro modelado pelo fogo.
Laranja. Três sílabas, a mesma vogal tripartida. Circunferência rugosa, casca irregular,
manchas esparsas, cor palavra de cor como revestimento de suco e bagaço, gomo e
caroço. Fecha os olhos. Copo. Laranja. Som e imagem, não vistos. E entanto vistos.
Uma realidade dentro da realidade. Uma crosta fixa sobre crosta fixa. Palavra mágica,
espelho inverso de múltiplo espelho ilhado entre um infinito de espelhos em uma
circunferência imaginária. Um gesto de mão, simultaneamente infinitos gestos de mãos,
um joelho dobrado em movimento instantâneo fixado por joelhos dobrados em
movimento imóvel, porque sem repouso, um rosto infinitamente devolvido pelo avesso,
em permanente conflito com um rosto invisível permanentemente recriado. Palavra
mágica, o inverso da palavra. Foi ao espelho do armário e moveu as duas mãos. Apoiou
a esquerda sobre a imagem. Apoiou a direita sobre a imagem. Escreveu numa folha de
papel COPO e LARANJA, e tentou ler as imagens do que escreveu. Achava que teria de
ler o inverso do que punha diante da porta do armário. Mas ao inverter o papel observou
que leria a imagem de uma inversão. Portanto OPOC era a imagem do inverso da
palavra. A imagem de COPO seria COPO, se o papel não tivesse espessura, e se
escrevesse no próprio espelho com o dedo ou com algum pincel. Não haveria distâncias
entre palavra e imagem. Ou a distância de uma infinita ilusão. Por exemplo, uma
palavra não mágica para a cena presenciada há dias. Na rodoviária, enquanto comprava
a ficha do café foi atraído por um homem que observava outro homem, e percebeu que
o que observava esperava ouvir qualquer coisa do outro. Ele esperou a espera do que
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observava a espera de qualquer coisa. O outro agitava-se, ajeitava a gola, deslocava a


gravata, desabotoava o paletó, virava-se de lado, ia até a banca de jornais, passava pelos
guichês de passagens, voltava ao ponto de partida em que qualquer coisa era esperada
por um homem que o observava enquanto ele era observado. Uma mulher se
aproximou. O que observava mostrou espanto e certa alegria. Ele procurou compreender
o espanto e a alegria, e o gesticular do casal. Subitamente o que observava deu as costas
e se apressou em direção à escada. Ele olhou o casal. As mãos gesticulavam em
posições precisas e os dedos se ajustavam numa rápida sucessão de formas. Nenhum
som. Alguma sílaba de homem, invertida, uma letra de observar sem a preocupação de
eufonias, um fragmento de qualquer palavra que signifique mulher sem ser mulher, uma
transcrição sonora, pseudo-onomatopéia, porque silenciosa de espanto e alegria, a
escolha de algumas consoantes que as posições de mãos e dedos possam sugerir.
Memsfeoapbdq. Memesofeoapobediq. Qidebopacefosemem. Quibodefopaosemem.
Não, nenhuma delas servia. Excessivamente lógicas. Fácil a estrutura de composição,
decomposição, nenhum mistério. E palavra mágica destituída de mistério! Palavra
mágica destituída de mistério não funciona. Talvez se acrescentasse alguns gestos.
Levantou-se. Tomou a posição inicial de sentido e pronunciou memsfeoapbdq ao
mesmo tempo em que a perna esquerda recuou, a direita avançou, a barriga encolheu e
as duas mãos se projetaram para a frente. Ouviu um pequeno som: do mamoeiro do
canto um fruto se espatifou na terra. Ficou intrigado. Tomou posição de sentido outra
vez, pronunciou memsfeoapbdq, e ficou à escuta. Nada, nenhum mamão. Percebeu que
não se havia movido. Ficara na posição inicial. Tomou posição de sentido, pronunciou
memsfeoapbdq e movimentou o corpo. Nenhum mamão na terra. Uma das duas, ou o
que fizera não tinha nada a ver com mamão que cai de mamoeiro, ou na primeira
tentativa houve alguma coisa que não chegou a perceber e que se relacionava com
mamão caindo, e ainda assim, mamão caindo de mamoeiro de canto, porque o outro, um
pouco mais afastado do muro dos fundos, nada! E os mamões amarelavam nos cachos.
De novo a espreguiçadeira. Olhou bem suas mãos e suas pernas, e olhou bem os dois
mamoeiros, o do canto e o outro. Percebeu rachaduras no reboco do muro caiado, e a
ferrugem da grade pontuda. O terreno entre a varanda e o muro era irregular, e nunca
tratara de acertá-lo. Montes de terra e um capim não tratado de há muito dava-lhe feição
de abandono, atenuado pelos mamoeiros, bananeiras e mangueiras. Uma série de hastes
verticais terminadas em ponta, e soldadas por volutas de ferro mais fino, na horizontal,
compunham a grade. Alguma coisa com a grade. A grade. O mamoeiro do canto.
228

Memsfeoapbdq. Procurou se lembrar da posição exata, em relação à grade, do corpo na


hora em que pronunciou a palavra. Fixou-se na que lhe pareceu ideal. Ergueu-se len-
tamente, ficou de sentido, pronunciou a palavra, recuou a perna esquerda, avançou a
direita, encolheu a barriga e projetou as duas mãos para a frente. Não teve coragem de
olhar. Ficou à escuta, o canto do olho direito quase fechado e o do esquerdo aberto ao
máximo à espera de som. Um estrondoso cacarejar despencou pela esquerda, e duas
galinhas em perseguição se bicavam, zanzavam, se fustigavam com as asas, e uma delas
se refugiou na varanda, enquanto a outra rondava o degrau. O olho mais aberto da
esquerda só encontrou o olho bem aberto na cabeça da galinha, tiritando no pescoço
elástico. O homem não moveu o corpo. O olho da galinha sumiu de seu horizonte, e
ouviu patas e bico se arranharem na madeira e no cimento. Depois, parece, a galinha da
varanda resolveu atacar e disparou em cima da outra, ao lado do degrau. O cacarejar
sumiu pela direita, caminho de entrada dos fundos da casa. Silêncio. Fechou o olho
direito, abriu o esquerdo e girou com lentidão a cabeça. O mamoeiro na mesma.
Resolveu repetir a cena, em outro ritmo. Retornou à espreguiçadeira e ergueu-se
bruscamente. Ficou de sentido. Pronunciou a palavra. Recuou a perna esquerda.
Avançou a direita. Encolheu a barriga. Projetou as duas para a frente. Tudo isso em
menos de um segundo. Quase foi derrubado pela cantilena estridente do amolador, que
devia estar na esquina. Recuou e estirou-se na espreguiçadeira tapando os ouvidos.
Destapou os ouvidos e recomeçou a cantilena. Tapou os ouvidos. Ao mesmo tempo em
que um mamão se espatifava junto ao muro, não ele, mas alguém dentro dele, ou
alguma coisa, pronunciou memsfeoapbdq. E o mamão não era do mamoeiro do canto. A
cantilena do amolador, mais forte, agora, não o incomodou. Passava do agudo para o
grave com a intensidade suficiente para britar qualquer pedreira apenas com as vibra-
ções. Levantou-se, deixou a varanda, seguiu por um caminho de terra entre as moitas
baixas, e ajoelhou-se junto ao mamão. Enquanto esmagava com os dedos algumas
sementes ocorreu-lhe que nunca vira antes mamão maduro cair de mamoeiro, tinha a
impressão de que mamão maduro apodrecia no pé. E o primeiro mamão, e este
esborrachado entre a areia e o capim? Deixou correr pela palma da mão o aglomerado
de bolotinhas brilhantes envolvido por uma pasta amarelada, gelatinosa. Estava de có-
coras, a cabeça à meia altura da grade. Nada de especial no casario do outro lado da rua.
O longo período sem chuvas deixara a terra endurecida e a vala com um fio dágua. O
mato entre as rachaduras das calçadas reduzia-se a fiapos cinzentos de pó. Introduziu
dois dedos na fenda, abriu o mamão, e estirou-o em leque com fatias irregulares. Alguns
229

filetes leitosos escorriam sobre a casca esverdeada, e empastavam-lhe os dedos como


goma. Abóbora. Se chamasse aquilo de abóbora, teria algum sentido? E palavra mágica
tem sentido? Mas este mamão entre os dedos, mesmo que o chamasse de abóbora, caíra
ao mesmo tempo em que não ele, mas alguém dentro dele, ou alguma coisa pronunciou
memsfeoapbdq. Então a queda nada tivera a ver com mamão, e sim com memsfeoapbdq.
Pronunciado em silêncio, não por ele, e o mamoeiro sem ser mamoeiro, apenas raízes,
tronco, galhos, frutos junto a um muro. Ergue-se bruscamente. Lembrou-se súbito de
uma lembrança recente não percebida. Na hora em que não ele, mas alguém, coisa
dentro, pronunciou a palavra, uma imagem complexa jorrou-lhe instantânea. Uma
colherada de sementes de mamão engolida aos oito anos, e o medo de que aquelas
sementes virassem mamoeiros em sua barriga com o tronco subindo pelo peito e os ga-
lhos saindo da boca. Fora rápido, simultânea ao espatifar do fruto e à pronúncia da
palavra. Retornou à espreguiçadeira e ergueu-se bruscamente. Ficou de sentido.
Pronunciou a palavra. Recuou a perna esquerda. Avançou a direita. Encolheu a barriga.
Projetou as duas para a frente. E fixou a lembrança. Os mamões continuavam no pé. A
lembrança era de uma descida de calçada de bicicleta, as mãos firmes no guidão. O
corpo estirado na espreguiçadeira, os braços sobre os braços de madeira, a nuca atri-
tando na lona, a barriga da perna pressionando os dois paus roliços do descanso para os
pés. No teto os cantos sujos pedindo uma vassourada, o globo cor de leite no centro
pedindo uma lavagem, uma pequena rachadura junto à verga da porta pedindo pintura.
As lembranças vinham com dificuldade. A impressão era de que não tinha lembranças.
Como se tudo em volta estivesse mais rígido. Ou tudo dentro dele. No entanto alguma
coisa fluía, mas não lembranças. Comentários sobre os cantos sujos, vassouras, globo,
cor de leite, lavagem, rachadura, verga, porta, pintura. Uma lembrança irrompeu. Do
outro lado da rua, além da esquina da direita. Chegava-se à portinhola do sapateiro,
cumprimentava, recebia um sorriso bom de uma cabeça calva, miúda, os óculos um
pouco afastados do nariz. Apoiava-se um pouco nos rolos de couro junto à entrada,
olhava as filas de sapatos engraxados prontos para a entrega e dependurados sobre os
rolos, os cadarços, os saltos de borracha, e sentava-se no tamborete de tiras de couro.
Enquanto trocava algumas frases banais fixava-se nas mãos do italiano. Um sapato
sobre a fôrma de ferro ligada por uma haste à base. Nas bordas da sola o couro se abria
e cedia ao furo da sovela e ao gesto rápido da agulha de linha grossa se deslocando em
nó. Gostava de ver o amontoado de coisas sobre a banca de trabalho. Latas de cola,
tubos de graxa, pregos, martelos de alguns tamanhos, tachinhas, rolos de linha, agulhas
230

retas e curvas, pedaços de vela, fatias de couro, tiras de borracha, cera de carnaúba.
Antes de enfiar a linha na agulha, passava o fio pelos lábios, enrolava-o com as duas
mãos e atritava-o na massa de cera. Quando os jornais davam alguma notícia de guerra,
falava de sua aldeia, de comida, de bebida, de gente, da grande cidade, dos conflitos,
dos anarquistas. Perguntava pelos vizinhos, pelo filho da lavadeira, pela filha da
costureira, o sobrinho do dono da venda parece que ia bem nos estudos, cabeça boa. O
italiano tinha um nome, mas o nome não era a lembrança toda. Ainda assim a lembrança
era lenta e não era. Vinha com dificuldade e não vinha. Pareceu-lhe despender um
esforço enorme para chegar a outra lembrança. Estava ligada a uma mulher gorda da
outra rua, paralela à que fazia esquina para o sapateiro. Mas a lembrança nada tinha com
a mulher gorda e sim com um terreno enorme da mulher magra e miúda que tinha uma
casa nos fundos, algumas casas depois da mulher gorda. Sua cara pintada de tinta de
amoras brancas e pretas, seus dedos pegajosos de se agarrarem ao pé de abricó, seus
joelhos arranhados dos galhos da mangueira. A velha magra e miúda e que era a dona
do terreno, mas dominando a lembrança a mulher gorda que nada tinha com a história, a
mulher gorda que era antipática e feia, que era ranzinza e de pouca fala, e que um dia
lhe deu um presente. A mulher gorda tinha um nome. Que nada tinha com a lembrança
das tintas de amoras brancas e pretas. E com facilidade, agora, em clima leve de êxtase
e encantamento, a lembrança de um sonho. Em terras que nunca vira, em colinas por
onde nunca andara, rolava pela grama, via o sol entre os ramos de castanheiros, rolava
pela grama, via o sol entre os ramos de castanheiros, umedecia a camisa no chão en-
quanto catava morangos, morangos enormes, vermelhos. E ao mesmo tempo, sem saber
como, caminhava por entre enormes plantações de beterrabas e cenouras, e roubava e
mastigava uma cenoura enorme de casca fina, adocicada, com todo o estardalhaço que
bons dentes fazem com uma cenoura. Sacudiu-se. Era recomeçar a empresa. Pronunciou
cinco vezes memsfeoapbdq. Inspirou. Expirou. E retomou o ímpeto. Apenas deixara o
mamoeiro. Seria a vez da galinha, qualquer uma. Ficou de sentido, encolheu a barriga,
esticou as duas mãos espalmadas para a frente, e pronunciou com um imperativo o
memsfeoapbdq. Abriu os olhos que havia fechado em quase transe. Nada. Repetiu a
cena carregando um pouco mais no imperativo. Nada. E aquele olho redondo da galinha
no seu olho esquerdo bem aberto quando visava os mamões. Modificou a posição das
pernas e das mãos. Levantaria a mão esquerda, na vertical, deixaria a direita na
horizontal, sem espalmar os dedos, a perna esquerda e a direita fariam forquilha, uma
para a frente e outra para trás. Com um pequeno artifício. Usaria, no tom da pronúncia,
231

o imperativo negativo. Um pequeno requinte de efeito paradoxal. Ensaiou as posições


despreocupadamente, a mão esquerda, a direita, o pé esquerdo, o direito, o tom, a
cabeça, a posição da barriga. Estirou-se na espreguiçadeira, relaxou todos os músculos.
E num relance estava de pé, no gesto total. A esquerda retesada para cima, a direita para
a frente, os pés em forquilha, o tom exato, imperativo negativo. Currrupacopaco.
Currrupacopaco. O papagaio da mulher do condutor, numa das casas do outro lado da
rua. E a galinha? Mas se o papagaio respondera, em alguma coisa andou certo.
Papagaio, galinha, galinha, papagaio, bicos, penas, olho redondo. Ensaiou novamente.
Gesto total. Nem papagaio nem galinha. Alguma coisa na palavra? Memsfeoapbdq.
Memsfeoapbdq. Afeiçoara-se à palavra. Pronunciava-a com a perfeição de um professor
de fonética, distinguindo todos os sons. Relembrou a origem. Alguma sílaba de homem,
invertida, uma letra de observar sem a preocupação de eufonias, um fragmento de
qualquer palavra que signifique mulher sem ser mulher, uma transcrição sonora,
pseudoonomatopéia, porque silenciosa de espanto e alegria, a escolha de algumas
consoantes que as posições de mãos e dedos possam sugerir. Será que memsfeoapbdq já
existia em alguma língua, e por isso o efeito era nulo, nas circunstâncias? A não ser uma
ou outra em histórias infantis, palavra mágica andava sempre ligada a um certo ritual, a
uma disposição do corpo e do ambiente. Fumaça, cheiro, roupa, objetos, uma certa luz.
E as vinte e duas sílabas? Fora uma decisão, não havia garantia nenhuma de eficácia,
além do mais afeiçoara-se a memsfeoapbdq e isso lhe parecia mais importante do que a
decisão inicial. Um vínculo afetivo com a palavra mágica era muito mais importante do
que uma palavra mágica sem laço com quem a pronuncia. Não desistiu das vinte e duas
sílabas, mas não desistiu também de memsfeoapbdq. Descobrir realmente se
memsfeoapbdq já existia em outra língua era impossível. Depois de consultar todas as
enciclopédias e todos os eruditos de línguas vivas ou mortas, ainda restaria a hipótese de
língua desconhecida, mal estudada, tanto viva como morta, língua não registrada, ou de
transcrição difícil e duvidosa. Algum dialeto, alguma ilha da Polinésia, alguma gíria de
bas-fond de metrópole mais civilizada. Mesmo constatada a existência de memsfeoapbdq
a coincidência não seria total. A origem. Alguma sílaba de homem, invertida, uma letra de
observar sem a preocupação de eufonias, um fragmento de qualquer palavra que signifique
mulher sem ser mulher, uma transcrição sonora, pseudo-onomatopéia, porque silenciosa de
espanto e alegria, a escolha de algumas consoantes que as posições de mãos e dedos possam
sugerir. Tudo isso vinculado à cena da rodoviária. Sorriu lentamente. Dentro dele
memsfeoapbdq surgiu em clima de ternura. Balançando o corpo, pela direita, a galinha
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cacarejava tranqüila, em linha reta em direção ao mamão esborrachado junto ao muro.


Fechou o olho esquerdo quase que totalmente, abriu o direito o mais que pôde e viu o
bico da galinha estraçalhando casca, polpa, lambuzando a testa com as sementes.
Currupacopaco. A cantilena do amolador naquela manhã ainda não atingira aquela
intensidade de agudo. Farta, a galinha deu meia-volta, escarvou a terra com as duas
patas, sacudiu o pescoço separando as penas do dorso, curvou a cabeça para trás e abriu
o bico como em gargarejo, a asa esquerda horizontal, a direita abaulada tendendo para a
vertical, e disparou em direção à varanda. Não subiu o degrau de cimento. Ficou
embaixo, com uma das patas no capim e a outra na terra. A disposição era agressiva.
Agitando as asas, marchando sem sair do lugar, balançando o corpo em grande
ansiedade, oscilando o pescoço em alta freqüência, parecia que preparava um ataque. O
olho da direita não conseguia mais encarar com o olho da galinha. Parecia evitá-lo com
os movimentos verticais do pescoço, dando assim ao bico a dimensão da trajetória do
bico. Durante toda a preparação do ataque o papagaio e a cantilena do amolador ficaram
no mesmo nível sonoro. Começou a mover a cabeça imitando o movimento da cabeça
da galinha, e estacou numa nuvem. A forma da nuvem era a da galinha. Sem se mover a
imagem agressiva da galinha, forma de nuvem, o agride. Baixa os olhos. A galinha su-
mira. Ergue os olhos. A forma da nuvem o agride. Fecha os olhos. A forma da galinha o
agride. Conserva os olhos fechados. Já não a forma mas alguma coisa o agride. Alguma
coisa anterior à imagem de uma frigideira e de um ovo se partindo para deixar escapar
com a clara duas gemas. Espantou-se com o próprio espanto já que não sabia se a
imagem estava ligada a um fato concreto do passado, ou era simples ocorrência atual
vinculada à imagem agressiva da galinha, da forma de nuvem, da imagem da forma de
nuvem, ou simplesmente da galinha, ou ainda a alguma coisa. Ou simplesmente, à
galinha. De repente lembrou-se de que ovo com duas gemas dá azar. Fora dito por
alguém em algum lugar. E imagem de ovo com duas gemas dá azar? As claras
pipocavam na frigideira e as gemas imóveis em sua estabilidade gelatinosa brilhavam.
Sentiu cheiro de manteiga, gosto de sal, ouviu os estalidos de bolhas de clara, e insultos
por queimadura de mão, e algumas noções banais de um cotidiano banal se
interpuseram silenciosamente entre sensações compondo um mal-estar generalizado.
Claras, gemas, manteiga, sal, bolhas, insultos, frigideira. Estirou-se de novo na
espreguiçadeira. Todo o corpo parecia dominado por um cansaço doloroso, uma fadiga
de sensações. Os braços caíram dos apoios, as pernas desajeitadas em torno dos
calcanhares no chão. Um cansaço de hábitos. Memsfeoapbdq. Mas memsfeoapbdq fora
233

derivado e composto de palavras em sua língua. E palavra mágica teria alguma ligação
com a língua de uso, do dia-a-dia? Se isso não fosse verdade sua busca era inútil,
porque desconhecia totalmente outras línguas. O búlgaro, o javanês, o finês lhe eram
completamente estranhos. Ou cada língua tinha as suas próprias palavrinhas mágicas,
para uso interno, palavras completamente ineficazes em outras línguas? Palavra mágica
de chinês dita por um alemão dava em nada. A palavra copo em búlgaro, a palavra copo
em javanês, a palavra copo em finês, a palavra copo em chinês. Juntando as quatro,
invertendo, eliminando as vogais, partindo do princípio de que a seqüência era válida, e
pronunciando-a teria alguma coisa a ver com copo. A cabeça da galinha a princípio
parecia emergir de um copo, mas nem a galinha era a de há pouco, nem o copo tinha
nada a ver com as palavras que desconhecia. O corredor do ônibus estufava de
passageiros por entre as poltronas; os que estavam em pé junto aos assentos enfiavam a
coxa ou a perna nos intervalos das poltronas, ou comprimiam o corpo nos ombros dos
que sentavam nas pontas. No ponto um berro de mulher e um cacarejar. O último
passageiro que subira apertara os embrulhos da mulher equilibrada junto ao degrau e
revelara a galinha escondida no papel. O trocador fez parar o ônibus e queria obrigar a
mulher a descer: a galinha não viajava. A mulher insistia em dizer que não havia galinha
nenhuma enquanto a galinha cacarejava envolta em papel, e o passageiro que subira
pedia passagem para o corredor. Os outros se impacientavam, estavam atrasados, o
calor começava a incomodar. Desce a galinha e fica a mulher, desce o passageiro e fica
a galinha, fica a mulher, fica o passageiro, desce o cacarejar. Uma voz estereotipada de
boçal levou o episódio ao máximo de tensão. A palavra galinha com entonações
cafajestes fez a mulher soltar um grito, e depois os soluços se mesclaram ao cacarejar.
Em toda a cena do ônibus, que agora se fundia à imagem da nuvem em forma de
galinha, a galinha não apareceu. A lona da espreguiçadeira cedeu um pouco à direita e o
deslocamento do corpo assustou-o e excitou-o. A excitação de agora fundiu-se à
lembrança de excitação e cena erótica em espreguiçadeira. Idêntica. A mesma armação
de madeira, o mesmo apoio dos pés, os mesmos dentes na parte de trás para regular a
altura, a mesma cor de listras, talvez. Acomodou-se melhor, abriu as pernas e firmou os
calcanhares sobre a última travessa de madeira encapada pela lona. Tentou isolar uma
palavra na situação em que se encontrava, mas não conseguiu. Eram torrentes de
semifrases se superpondo em clima de tensão mental e contração corporal, sem
deslocamentos. Mistura de rompantes líricos e palavrões em atmosfera de
encantamento. A excitação composta de todas as lembranças de excitações deixou-o
234

num estado em que começou a ser usado pelas palavras. Elas emergiam em blocos
numa espécie de imperativos de movimentos. Assustou-se com a simultaneidade de
imperativo e ação. Autômato perfeito. O corpo se sacudiu num transe coreografado,
interrompido apenas pela nuvem em forma de cabeça de galinha. A palavra gerada,
porém, foi um palavrão. Palavra mágica poderia ser palavrão? Procurou ordenar os
palavrões que conhecia, e constatou que eram poucos. Pensou em incluir alguma coisa
de gíria pornográfica, mas invalidou o recurso. Palavra mágica não poderia depender de
flutuações locais. Ordenou de novo os palavrões habituais, válidos em todas as regiões,
e de fácil identificação. Mas sempre desconfiado. Palavra mágica tem sempre
vinculação com sobrenatural. Formada de palavrões? Não podia afastar a constatação de
uma certa eficácia. Um palavrão bem pronunciado em hora certa não deixa de ter um
certo efeito mágico. Não conseguiu afastar o constrangimento. À entrada na casa do
amigo, há tempos, tropeçou numa pequena estante da sala de visitas, e quando a mãe do
amigo apareceu recebeu uma frase recheada de palavrões. A pancada fora na canela e a
expressão do rosto quando a velha entrou com a mão estendida para o cumprimento era
de extrema dor. A velha desmaiou e ele ficou dançando numa perna só no centro da
sala, uivando, segurando a canela. Cenas eróticas se sucedem entre a espreguiçadeira e a
nuvem. O feminino e o masculino assumem atitudes e feições de dança frenética no
início e depois resvalam para movimentos em câmara lenta. Os palavrões se sucedem,
mas há entre eles um intervalo de pudor e raiva; surpreende-se mesmo com a pronúncia
silenciosa de alguns deles em intimidade terna e lírica, recheada de diminutivos. As
perversões se sucedem em lentidão amorosa recobertas de um halo de terror que parece
paralisar as palavras. Fêmea e macho esplêndidos se desdobram e se envolvem em
contrações de membros e lábios. Fêmea e macho percorrem-lhe o corpo provocando
retração das pernas e intenso movimento que antecede o gozo sem permitir-lhe o gozo.
Gira na lona à procura de uma posição estável de bruços, impossível no início, até que
ergue os braços, os cotovelos dobrados na travessa superior, e entrega o corpo à
concavidade da lona retesada; as canelas doloridas pressionam as travessas das pernas, e
uma espécie de dor inversa sacode-lhe o corpo, anulação de gozo. Lentamente se ergue,
os movimentos alternados, uma espécie de véu sobre os objetos, o espaço em volta com
uma leve consistência sólida. Ergue a mão para coçar o queixo, os dedos como facas em
massa pastosa. Ao se dirigir para os degraus da varanda seu corpo se choca com a
parede atrás dele. Quanto mais se dirige para os degraus da varanda mais seu corpo
comprime a parede. Desiste. Melhor regressar à sala. A porta fica à sua direita. O corpo
235

comprime a quina da varanda à sua esquerda. Sente uma coceira ao longo da espinha e
comprime as costas na parede. Por pouco não tropeça nos degraus e seu corpo só parou
junto ao mamoeiro do fundo. Estendeu a mão para baixo na intenção de recolher
algumas sementes, mas viu os dedos retesados acima de sua cabeça esfarelando o ar.
Elevou-se um pouco mais na ponta dos pés para arrancar uma folha do mamoeiro, e viu
seu corpo de cócoras e suas mãos dilacerando talos de capim. Baixou o joelho esquerdo
para apoiá-lo na terra, mas foi o direito que roçou os grãos de areia e os pedruscos entre
as moitas de capim ralo. Pensou que tinha acabado de jogar fora o toco do cigarro, e viu
suas mãos ocupadas com o maço e os fósforos. Seus dedos lhe enfiaram um cigarro nos
lábios e acenderam-no com a chama quase raspando o queixo. Decidiu sentar-se na
grama mas se viu de pé. Resolveu ficar imóvel mas viu seu corpo se movendo tranqüilo
pelo quintal. Sentiu fome e lembrou-se de umas bananas que comera ao acordar. Ainda
havia algumas na cozinha. Vomitou com rapidez. Em meio à gosma alguns pedaços de
banana mal digeridos. A galinha surgiu e começou a beliscar os pedaços a seus pés.
Enxotou-a com um berro. Mas ela ergueu o pescoço, inflou, agitou as asas, um pequeno
anel de sombra se formou junto às penas que ligam com o corpo, tiquetaqueou com a
cabeça em todas as direções, e semi cerrando as pálpebras começou a afagar suas pernas
com o pescoço. Renovou o berro e sentiu o frêmito do corpo da galinha se enroscando
em suas canelas. Sussurrou irônico uma frase terna. Um uivo de dor acompanhou o
cacarejar. Alisou a barriga da perna vigorosamente bicada e enfrentou feroz os olhos
cintilantes entre o bico. As asas abertas de penas bem separadas, o pescoço oscilando da
esquerda para a direita e da direita para a esquerda como à procura de ponto de ataque,
as patas se revezando no apoio e na posição de ataque, as garras enrijecidas pelo ódio.
Dominado por um sentimento de pena disse apenas um vem cá tranqüilo. O corpo da
galinha se relaxou de súbito, ficou apática por instantes, deu meia-volta e se esgueirou
pela lateral. Um pouco mais senhor da situação ficou de frente para o muro dos fundos,
girou a cabeça e viu a espreguiçadeira bem atrás dele e os degraus da varanda. Encarou
o muro e resolveu esfregar o peito na pintura branca. Seu corpo recuou com uma
tranqüilidade espantosa, sem tropeço nos degraus, e estirou-se calmo na
espreguiçadeira. Olhou para o céu e onde antes vira uma forma da galinha havia apenas
um amontoado de letras. Que se ordenaram em uma palavra: nuvem.
Referência

RAWET, Samuel. BRRKZNG: pronúncia - bah! In: ______. Contos e novelas reunidos.
Civilização Brasileira, 2004, p.392-404.

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