Desafios para Moçambique 2011 - IESE PDF

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DESAFIOS PARA MOÇAMBIQUE 2011

O IESE é uma instituição comprometida com in- Reflectindo a decisão editorial tomada no início da série, o livro reúne tra- AUTORES

DESAFIOS
vestigação social e económica pluralista, interdisci- balhos de investigadores permanentes e associados do IESE e contribuições
plinar e heterodoxa, com enfoque no rigor e qua- de outros autores de reconhecido mérito, numa construção única, mas rica de António Francisco
lidade académica e na relevância e compromisso
diferentes experiências, abordagens e posições sobre algumas das grandes
social do seu trabalho, aberta à colaboração e coo- Aslak Orre
peração e dedicada a contribuir para o desenvolvi- questões que a sociedade moçambicana enfrenta ou deve enfrentar. Assim, são

PARA
mento de redes de investigadores e organizações de tratados temas como a descentralização, os desafios do financiamento do Es- Carlos Muianga
investigação associadas sobre Moçambique e o seu tado e da economia, a economia política das opções económicas em contexto
enquadramento na África Austral e no Mundo. de dependência da ajuda externa, a protecção social, o HIV-SIDA, o papel Carlos Nuno Castel-Branco
das economias emergentes no sector agrícola, economia política da ajuda ex-
Domingos do Rosário

MOÇAMBIQUE
terna e a dinâmica regional na construção da segurança pública.
Existe um fio condutor que liga o conjunto dos artigos: o desafio da cons- Fernanda Massarongo
trução de um Estado democrático. Naturalmente, o entendimento do que sig-
nifica ‘um Estado democrático’ abre o campo para muitas posições diferen- João Paulo Borges Coelho
tes e a identificação desse fio condutor não significa que sobre o assunto exista
José Óscar Monteiro

2011
no livro uma linha de pensamento e de análise única, partilhada por todos os
autores. Pelo contrário, estamos perante uma diversidade de pressupostos teó- Luís de Brito
ricos, de abordagens e de metodologias de análise que, sobretudo, contribuem
para alimentar um debate aberto e plural sobre as escolhas e opções que ca- Nelsa Massingue
racterizam as políticas públicas e que dependem dos interesses, por vezes con-
organização
traditórios, que são inerentes à vida social. Luís de Brito | Carlos Nuno Castel-Branco | Sérgio Chichava | António Francisco Rogério Ossemane

Rosimina Ali

Salvador Cadete Forquilha

Sandra Manuel

Sérgio Chichava

Sofia Amarcy

Yasfir Ibraimo

Zaqueo Sande (1977-2010)

ISBN

www.iese.ac.mz
DESAFIOS
PARA
MOÇAMBIQUE
2011 organização
Luís de Brito | Carlos Nuno Castel-Branco | Sérgio Chichava | António Francisco

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DESAFIOS
PARA
MOÇAMBIQUE
2011 organização
Luís de Brito | Carlos Nuno Castel-Branco | Sérgio Chichava | António Francisco

www.iese.ac.mz

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TÍTULO
DESAFIOS PARA MOÇAMBIQUE, 2011

ORGANIZAÇÃO
LUÍS DE BRITO, CARLOS NUNO CASTEL-BRANCO, SÉRGIO CHICHAVA, ANTÓNIO FRANCISCO

EDIÇÃO
IESE

COORDENAÇÃO EDITORIAL
MARIMBIQUE – CONTEÚDOS E PUBLICAÇÕES, LDA

EDITOR EXECUTIVO
NELSON SAÚTE

DESIGN GRÁFICO
ATELIER 004

PAGINAÇÃO
ZOWONA - COMUNICAÇÃO E EVENTOS

FOTOGRAFIA DA CAPA
JOÃO COSTA (FUNCHO)

REVISÃO
OLGA PIRES

IMPRESSÃO E ACABAMENTO
NORPRINT

NÚMERO DE REGISTO
6922/RLINLD/2011

ISBN
978-989-8464-04-0

TIRAGEM
2500 EXEMPLARES

ENDEREÇO DO EDITOR
AVENIDA PATRICE LUMUMBA, N. 178, MAPUTO, MOÇAMBIQUE
[email protected]
WWW.IESE.AC.MZ
TEL.: +258 21 328 894
FAX : + 258 21 328 895

MAPUTO, MARÇO DE 2011

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Este livro é dedicado à memória de Zaqueo Sande (1977-2010),
colega e amigo que nos deixou.

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O IESE AGRADECE O APOIO DE:
Agência Suíça de Cooperação para o Desenvolvimento (SDC)

Departamento para o Desenvolvimento Internacional do Governo Britânico (DFID)

Embaixada Real da Dinamarca

Ministério dos Negócios Estrangeiros da Finlândia

Ministério dos Negócios Estrangeiros da Noruega

Ministério dos Negócios Estrangeiros da Irlanda (Cooperação Irlandesa)

Centro de Integridade Pública (CIP)

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AUTORES

António Francisco
Director de investigação do IESE e Professor Associado da Faculdade de Economia da
Universidade Eduardo Mondlane, é doutorado em Demografia pela Universidade Nacion-
al da Austrália. [email protected]

Aslak Orre
Investigador do Chr. Michelsen Institute (CMI), é doutorado em Ciência Política pela
Universidade de Bergen, Noruega. As suas principais áreas de pesquisa são partidos
políticos, processos de democratização, descentralização e governação local em Angola e
Moçambique. [email protected]

Carlos Muianga
Assistente de Investigação do IESE e Assistente na Faculdade de Economia da Universidade
Eduardo Mondlane, é licenciado em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade
Eduardo Mondlane. As suas áreas de pesquisa estão ligadas a recursos naturais, indústria ex-
tractiva e ligações intersectoriais. [email protected]

Carlos Nuno Castel-Branco


Director de investigação, Director do IESE e Professor Associado da Faculdade de Economia
da Universidade Eduardo Mondlane, é doutorado em Economia (Economia Política da Indus-
trialização e Política Industrial) pela Universidade de Londres. [email protected]

Domingos do Rosário
Investigador Associado do IESE e Professor Auxiliar da Faculdade de Letras e Ciências Sociais
da Universidade Eduardo Mondlane, é doutorado em Ciência Política pela Universidade de
Bordeaux, França. [email protected]

Fernanda Massarongo
Assistente de Investigação no IESE e Assistente na Faculdade de Economia da Universidade
Eduardo Mondlane, é licenciada em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade
Eduardo Mondlane. As suas áreas de pesquisa são relativas a opções de financiamento ao
Estado, dinâmicas do sector financeiro em Moçambique e ligações com a base produtiva. fer-
nanda. [email protected]

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João Paulo Borges Coelho
Professor Associado da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo
Mondlane e Investigador do Centro de Estudos Sociais Aquino de Bragança (CESAB), é dou-
torado em História Económica e Social pela Universidade de Bradford.

José Óscar Monteiro


Membro do Comité de Peritos de Administração Pública das Nações Unidas de 2002 a 2008,
Professor na Universidade de Wits, Membro do Governo de Moçambique de 1974 a 1991. Pre-
sidiu ao Comité de Direcção do Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano e ao mesmo
Relatório Regional para a África Austral.

Luís de Brito
Director de investigação do IESE e Professor Associado da Universidade Eduardo Mondlane,
é doutorado em Antropologia (Antropologia e Sociologia da Política) pela Universidade de
Paris VIII. [email protected]

Nelsa Massingue
Assistente de investigação do IESE e Assistente na Faculdade de Economia da Universidade
Eduardo Mondlane, é licenciada em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade
Eduardo Mondlane. As suas áreas de pesquisa estão ligadas a ajuda externa, indústria extractiva
e desenvolvimento rural. [email protected]

Rogério Ossemane
Investigador do IESE e Assistente na Faculdade de Economia da Universidade Eduardo
Mondlane, é mestre em Desenvolvimento Económico pela Universidade de Londres. A sua
área de investigação é: comércio e finanças internacionais. [email protected]

Rosimina Ali
Assistente de investigação do IESE e Assistente na Faculdade de Economia da Universidade
Eduardo Mondlane, é licenciada em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade
Eduardo Mondlane. As suas áreas de pesquisa são: desigualdade, pobreza, protecção social,
desenvolvimento rural e desenvolvimento económico. [email protected]

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Salvador Cadete Forquilha
Investigador associado do IESE e Oficial do Programa de Governação da Agência Suíça para
Desenvolvimento e Cooperação, é doutorado em Ciência Política pela Universidade de Bor-
deaux, França. As suas áreas de pesquisa são: processos de democratização, descentralização e
governação local. [email protected]

Sandra Manuel
Doutoranda em Antropologia na School of Oriental and African Studies, Universidade de Lon-
dres. Docente e pesquisadora no Departamento de Arqueologia e Antropologia da Universi-
dade Eduardo Mondlane. Efectua pesquisa nas áreas de sexualidade, juventude e antropologia
urbana. [email protected]

Sérgio Chichava
Investigador do IESE, é doutorado em Ciência Política pela Universidade de Bordeaux, França.
As suas áreas de pesquisa são: processos de democratização, governação e relações entre a
China e a África lusófona.. [email protected]

Sofia Amarcy
Investigadora do IESE e Assistente na Faculdade de Economia da Universidade Eduardo
Mondlane, é mestre em Desenvolvimento Económico pela Universidade de Londres. A sua
área de investigação é: dinâmicas de expansão do sector financeiro em Moçambique e ligação
com a base produtiva. [email protected]

Yasfir Ibraimo
Assistente de investigação do IESE, é licenciado em Economia pela Faculdade de Economia
da Universidade Eduardo Mondlane. As suas áreas de pesquisa são: mercado de trabalho, em-
prego, pobreza e protecção social. [email protected]

Zaqueo Sande (1977-2010)


Investigador do IESE à data do seu falecimento prematuro em Dezembro de 2010, tinha
obtido o Mestrado em Economia (2008) pela Universidade de Stellenbosch (África do Sul).
Era coordenador do projecto de partilha de informação sobre governação e monitoria e
trabalhava na investigação da problemática das finanças locais.

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ÍNDICE
INTRODUÇÃO
Luís de Brito 15

PARTE I POLÍTICA 21

ESTADO, DESCENTRALIZAÇÃO E CIDADANIA


EQUAÇÃO POSSÍVEL OU IMPERATIVA?
José Óscar Monteiro 23

“TRANSFORMAÇÕES SEM MUDANÇAS?”


OS CONSELHOS LOCAIS E O DESAFIO DA INSTITUCIONALIZAÇÃO
DEMOCRÁTICA EM MOÇAMBIQUE
Salvador Cadete Forquilha | Aslak Orre 35

DESCENTRALIZAÇÃO EM CONTEXTO DE PARTIDO “DOMINANTE”


O CASO DO MUNICÍPIO DE NACALA PORTO
Domingos do Rosário 55

REVISÃO DA LEGISLAÇÃO ELEITORAL


ALGUMAS PROPOSTAS PARA O DEBATE
Luís de Brito 91

PARTE II ECONOMIA 109

DESAFIOS DA MOBILIZAÇÃO DE RECURSOS DOMÉSTICOS


REVISÃO CRÍTICA DO DEBATE
Carlos Nuno Castel-Branco 111

DESAFIOS DE EXPANSÃO DAS RECEITAS FISCAIS EM MOÇAMBIQUE


Rogério Ossemane 133

FINANCIAMENTO DO ESTADO COM RECURSO À DÍVIDA


PROBLEMAS E DESAFIOS
Fernanda Massarongo | Carlos Muianga 161

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DESAFIOS DA EXPANSÃO DE SERVIÇOS FINANCEIROS EM MOÇAMBIQUE
Sofia Amarcy | Nelsa Massingue 185

“7 MILHÕES”
REVISÃO DO DEBATE E DESAFIOS PARA DIVERSIFICAÇÃO DA BASE PRODUTIVA
Zaqueo Sande 207

PARTE III SOCIEDADE 229

TER MUITOS FILHOS, PRINCIPAL FORMA DE PROTECÇÃO SOCIAL NUMA


TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA INCIPIENTE
O CASO DE MOÇAMBIQUE
António Francisco 231

PROTECÇÃO SOCIAL FINANCEIRA E DEMOGRÁFICA


DESAFIOS PARA UMA SEGURANÇA HUMANA DIGNA EM MOÇAMBIQUE
António Francisco | Rosimina Ali | Yasfir Ibraimo 283

POLÍTICAS DE HIV E SIDA E DINÂMICAS SOCIOCULTURAIS EM MOÇAMBIQUE


NOTAS PARA REFLEXÃO
Sandra Manuel 333

PARTE IV MOÇAMBIQUE NO MUNDO 353

SADC
COOPERAÇÃO E SEGURANÇA PÚBLICA
João Paulo Borges Coelho 355

AS ECONOMIAS “EMERGENTES” NO SECTOR AGRÍCOLA MOÇAMBICANO


LEITURAS, IMPLICAÇÕES E DESAFIOS
Sérgio Chichava 371

DEPENDÊNCIA DE AJUDA EXTERNA, ACUMULAÇÃO E OWNERSHIP


CONTRIBUIÇÃO PARA UM DEBATE DE ECONOMIA POLÍTICA
Carlos Nuno Castel-Branco 401

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INTRODUÇÃO

Este é o segundo número da série “Desafios para Moçambique”, iniciada pelo


IESE no ano de 2010, e que tem como objectivo primeiro contribuir para o debate
público sobre temas relevantes da vida do país. Reflectindo a decisão editorial to-
mada no início da série, este livro reúne trabalhos de investigadores permanentes
e associados do IESE e contribuições de outros autores de reconhecido mérito,
numa construção única, mas rica, de diferentes experiências, abordagens e posições
sobre algumas das grandes questões que a sociedade moçambicana enfrenta, ou
deve enfrentar. Na sua introdução ao volume inicial da série, Carlos Nuno Castel-
-Branco sublinhava que “o desafio será tornar o debate tão abrangente, inclusivo,
pluralista, multidisciplinar, heterodoxo, inovador e útil quanto possível” e concluía
afirmando que tal é “um dos papéis fundamentais dos intelectuais e investigadores
na luta pela conquista, construção e exercício da cidadania em Moçambique”. A
forma como foi acolhida a publicação e o interesse que despertou, nomeadamente
entre jovens universitários de Maputo e de algumas províncias onde houve a opor-
tunidade de fazer a sua apresentação, foi tanto mais encorajadora quanto constitui
ainda uma realidade balbuciante na jovem democracia moçambicana a tradição de
discussão aberta e de aceitação da diversidade de opiniões, que deve caracterizar
uma sociedade aberta, uma sociedade de liberdade e responsabilidade, é ainda
apenas uma realidade balbuciante na jovem democracia moçambicana. As nume-
rosas intervenções registadas nessas ocasiões mostraram que, particularmente no
seio dos jovens, a preocupação com os problemas do país alimenta o espírito de
cidadania, não obstante um aparente desinteresse pela coisa pública.
A recente onda de revoltas cívicas que se vem desenvolvendo a partir de
alguns países da África do Norte, mas também as chamadas “revoltas do pão”
que antes atingiram muitos outros países africanos e não pouparam Moçambique,
mostram que os cidadãos esperam – e, sobretudo, começam a exigir – que os Esta-

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dos e as suas lideranças políticas respondam às necessidades do conjunto da socie-
dade e não apenas aos interesses de um pequeno grupo. Evidentemente, isso não
é possível a não ser dentro de um quadro de real responsabilidade democrática.
O Estado e o poder que lhe está associado ocupam, pois, um lugar central
na vida das sociedades e enfrentam hoje desafios acrescidos naquelas que, por di-
ferentes razões históricas, incluem vastos sectores da população excluídos dos be-
nefícios do desenvolvimento. Os artigos que formam a primeira parte deste livro,
dedicada à “política”, abordam alguns destes aspectos. O primeiro artigo, partindo
de uma breve reflexão sobre a artificialidade histórica da construção estatal em
África, essencialmente resultante da imposição externa de poderes centrais - os
coloniais, mas não só - sobre as sociedades locais, frequentemente juntando gru-
pos que viviam separados e separando outros que estavam juntos, interessa-se pela
descentralização numa perspectiva nova, a do empoderamento das comunidades
locais, como forma de avançar para uma construção do Estado, de alguma forma,
“a partir de baixo” e tendo o cidadão como centro do processo, no sentido de uma
“refundação do Estado”, nos termos do autor. A este artigo, que se desenvolve
em forma de reflexão e propostas, seguem-se dois outros que analisam aspectos
concretos da experiência de descentralização, dos seus problemas, limitações e,
consequentemente, desafios. Um analisa a formação do sistema de partido domi-
nante depois da introdução do multipartidarismo e algumas das suas consequên-
cias em termos de participação no quadro dos conselhos locais. O estudo suscita
duas questões principais: como evitar que esses conselhos sejam meros órgãos de
consulta e fazer com que se tornem efectivamente espaços de participação cidadã,
e como responder ao desafio de inclusão num ambiente de partido dominante. O
outro analisa a luta pelo poder municipal em Nacala Porto, mostrando, por um
lado, uma Frelimo com dificuldade em aceitar a alternância política no município
e, por outro, como a Renamo, não obstante uma tentativa inicial de governação
tecnocrática e relativamente aberta, acabou por se inscrever numa lógica política
clientelista. O artigo conclui que, num contexto de partido dominante, o papel do
governo central é decisivo em relação à governação local e tem sido um obstáculo
ao desenvolvimento do pluralismo político. O último artigo é uma contribuição
para o actual processo de revisão da legislação eleitoral e apresenta algumas pro-
postas em relação a quatro aspectos centrais: a composição e o processo de forma-
ção da Comissão Nacional de Eleições, o recenseamento eleitoral, as assembleias
de voto e a votação e a contagem e apuramento de resultados.

16 Desafios para Moçambique 2011

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A segunda parte do livro, dedicada à “economia”, apresenta cinco artigos que
prolongam a discussão sobre a construção do Estado, que era a linha condutora
da primeira parte, para o terreno das opções económicas a diferentes níveis, num
contexto de grande dependência da ajuda externa. Um contexto em que a decisão
sobre políticas não é independente do financiamento externo, quando não é mes-
mo directamente condicionada, o que provoca uma alienação da cidadania. Cria-
-se, assim, uma situação em que o governo tende a ser mais reactivo e prestador
de contas à “comunidade doadora” que aos seus cidadãos e, consequentemente,
o Estado reforça, perante a sociedade, a sua tradição histórica de exterioridade.
O conjunto dos artigos mostra que, no que se refere a questões de desen-
volvimento, não se trata nunca de uma simples procura de soluções “técnicas”
capazes de resolver “problemas”, mas da confrontação de opções de política, que
respondem a – e reflectem diferentemente – interesses de grupos sociais. Daqui a
importância do debate aberto sobre os assuntos que afectam a vida dos cidadãos,
por um lado, e, por outro, a responsabilidade do Estado de promover as condições
apropriadas para o estabelecimento de um amplo consenso social, que, embora
sendo sujeito a permanente negociação, pode evitar situações críticas de destabi-
lização ou violência social.
Um dos principais tópicos desenvolvidos nesta parte do livro refere-se, pois, à
problemática do financiamento do Estado. Para além do artigo inicial que faz uma
síntese do debate sobre a questão das diversas alternativas de mobilização de recur-
sos domésticos, o segundo artigo, depois de analisar comparativamente o contributo
e o potencial de vários impostos para as receitas fiscais, mostra que a tributação
dos rendimentos do capital, em especial das grandes empresas que beneficiam de
significativos privilégios fiscais, é a via mais lógica na situação actual para aumentar
as receitas do Estado. O terceiro artigo concentra-se numa outra alternativa para o
financiamento do Estado, que é o recurso ao endividamento. São aqui estudados os
desafios que diferentes tipos de endividamento implicam, seja o recurso a emprésti-
mos concessionais, a empréstimos não-concessionais, ou à dívida interna mobiliária.
O quarto artigo traz uma reflexão sobre a expansão do sistema financeiro no país,
caracterizando-a em termos de abrangência territorial, de profundidade financeira
e de meticalização da economia. O último artigo desta parte interessa-se por um
dos aspectos mais comentados actualmente no que diz respeito à actuação do Es-
tado: os chamados “7 milhões”, um fundo que tem sido questionado politicamente,
apontado como instrumento de construção de uma rede clientelista destinada a

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promover uma aliança entre o partido no poder e as elites locais e, representando
apenas uma parte ínfima do orçamento do Estado, considerado inadequado para
dinamizar as economias locais de maneira consistente. O autor identifica e analisa
criticamente, no seu texto, as principais abordagens desenvolvidas em relação ao
assunto e questiona sobre o papel deste fundo na “diversificação, articulação e alar-
gamento da base produtiva”.
A terceira parte do livro, composta por três artigos, é consagrada às ques-
tões de “sociedade”. Os dois primeiros tratam da problemática da protecção
social. Mais uma vez, aqui o que está em questão é a natureza do Estado, a sua
capacidade e vontade de criar as condições mínimas para uma vida digna para
todos os cidadãos. Uma das linhas de argumentação aqui desenvolvidas chama
a atenção para um aspecto que tem sido ignorado na formulação de políticas
de protecção social, o factor demográfico. Em Moçambique, país que apenas
iniciou a sua transição demográfica, as redes sociais familiares e comunitárias,
bem como outras formas de entreajuda, configuram uma importante forma de
protecção social que os autores designam de “demográfica”. É esta que, de algu-
ma maneira, colmata o vazio resultante do tipo de intervenção do Estado, prati-
camente confinada ao “sector formal”. Para os autores, é “importante tornar vi-
sível o domínio da protecção social associado aos componentes demográficos e
reprodutivos, a fim de mostrar como ele é socialmente mais relevante do que os
mecanismos de protecção social assentes nos sistemas financeiros”. Este seria um
ponto de partida realista para discutir as perspectivas da protecção social clássi-
ca que, nas actuais condições económicas do país, apenas abrange um pequeno
grupo de beneficiários, não podendo ser devidamente expandida sob pena de se
tornar insustentável. Daí que, na óptica dos autores, a discussão deva também
incidir sobre a natureza da economia nacional e o modelo de desenvolvimento
e as transformações que a esse nível se impõem. O terceiro artigo aborda um
dos mais prementes problemas de saúde pública no país, o HIV-SIDA. A autora
sustenta que as políticas e estratégias que têm sido adoptadas na luta contra este
flagelo vêem a sua eficácia reduzida por não serem devidamente adaptadas à
diversidade sociocultural do país e nota que, no plano estratégico que agora se
inicia, esta orientação já está presente, ficando como desafio conseguir que esta
nova abordagem seja devidamente implementada.
A última parte do livro, sobre “Moçambique no mundo”, tem três artigos.
No texto inicial, o autor explora alguns aspectos relativos ao desenvolvimento, ao

18 Desafios para Moçambique 2011

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estado actual e às perspectivas da cooperação em segurança pública na região da
SADC. O autor destaca o papel de uma organização semi-autónoma, a Organiza-
ção de Coordenação dos Chefes de Polícia da Região da África Austral (SARPC-
CO), como “a primeira semente de uma verdadeira cooperação regional no do-
mínio da segurança pública” e aponta a necessidade de reforma e capacitação de
forças policiais que, em muitos casos, ainda se caracterizam pela falta de transpa-
rência, uso desproporcionado da força e desrespeito pelos direitos humanos, num
processo que se apoie também na participação de organizações da sociedade civil,
especialmente nas que têm como missão actuar no domínio dos direitos humanos.
O segundo artigo faz uma abordagem do tema da cooperação entre alguns
países emergentes (neste caso a China, a Índia e o Brasil) e Moçambique no domí-
nio da agricultura, procurando caracterizar as semelhanças e diferenças da ajuda
e dos investimentos desses países neste sector. O autor constata que, embora a
agricultura seja uma área prioritária para a cooperação destes países com a África,
na realidade, em Moçambique, e até ao momento, os seus investimentos estão
principalmente direccionados para a indústria extractiva e a construção.
O último texto discute o campo do debate que coloca a questão da depen-
dência da ajuda externa e ownership, primeiro em termos gerais e depois usando
como terreno de reflexão o caso moçambicano, e conclui levantando alguns pon-
tos sobre as “implicações deste debate para a análise de políticas”. A tese defendida
no artigo é que para reduzir e, eventualmente, eliminar a dependência de ajuda
externa, ela própria teria de ser usada de forma a criar capacidades produtivas in-
ternas “diversificadas, articuladas e sustentáveis, capazes de alimentar a economia
e satisfazer as necessidades objectivas do consumo social”, cabendo ao Estado um
papel de direcção estratégica do processo. Ora, a solução para este desafio não é
evidente, pois o modelo de economia dependente da ajuda, numa certa medida,
resulta – e reproduz-se - num contexto em que grupos de interesse nacionais dele
tiram dividendos e, portanto, podem não estar prioritariamente interessados na
mudança.
Como se pode perceber através da rápida apresentação do conteúdo das
quatro partes do livro, existe um fio condutor que liga o conjunto dos artigos: o
desafio da construção de um Estado democrático. Naturalmente, o entendimento
do que significa ‘um Estado democrático’ abre o campo para muitas posições
diferentes e a identificação desse fio condutor não significa que sobre o assunto
exista no livro uma linha de pensamento e de análise única, partilhada por todos

Desafios para Moçambique 2011 19

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os autores. Pelo contrário, estamos perante uma diversidade de pressupostos teóri-
cos, de abordagens e de metodologias de análise, que, sobretudo, contribuem para
alimentar um debate aberto e plural sobre as escolhas e opções que caracterizam
as políticas públicas e que dependem dos interesses, por vezes contraditórios, que
são inerentes à vida social.

Luís de Brito
Fevereiro de 2011

20 Desafios para Moçambique 2011

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PARTE I
POLÍTICA

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ESTADO, DESCENTRALIZAÇÃO E
CIDADANIA
EQUAÇÃO POSSÍVEL OU IMPERATIVA?
José Óscar Monteiro

Nos finais do ano de 2010, um navio moçambicano foi sequestrado no Canal de


Moçambique por piratas somalis. O fenómeno da pirataria somali tem dado lugar a
notícias sobre vários assuntos (a frota anti-pirataria, as negociações sobre resgates, as
ameaças ao comércio internacional, incluindo em áreas vitais como o aprovisionamento
energético, as cumplicidades locais, etc.). Mas pouco abordam o que está por detrás,
que é o colapso do Estado somali que dura há mais de década e meia.
No entanto, a tese dos Estados fracassados (failed states) tem sido uma constante
nas análises de questões africanas. E o número de conflitos em África parece corroborar
esta asserção. Seja de notar que a proliferação destas questões, de que o exemplo mais
vivo é o da Côte d´Ivoire, tem menos a ver com ideologia e mais com a questão da
construção da nação. E poderemos discutir se o modelo de Estado em África, com
fronteiras que não correspondem a etnias, não tem o seu peso nesta questão.
O caso da Somália vem chamar a atenção sobre um outro ponto que é o da
necessidade ou da importância do Estado como regulador social e garantia de
condutas, papel de onde decorrem outros efeitos como a ética das relações com
os outros, a noção de legítimo e do ilegítimo, a manutenção da ordem pública, a
segurança nacional – e agora internacional.
A Somália era um dos poucos Estados africanos que possuía unidade étnica e
linguística. Portanto, o colapso do Estado somali não tem a ver com a etnia. Por um
momento pareceu que a Somália iria sobreviver sem Estado, pelo menos em parte.
Ora a pirataria – amanhã será outra coisa! – demonstra que os países continuam
a ter necessidade de uma forma de organização que garanta o respeito das regras
de conduta. Mais, que ignorar a “não ordem” interna já não é possível porque tem
efeitos imediatos, fulminantes nas relações mundiais. À velocidade das lanchas
rápidas dos piratas.

Estado, Descentralização e Cidadania Desafios para Moçambique 2011 23

Desafios.indb 23 3/29/11 4:53 PM


O que tem isto a ver com o nosso tema, a descentralização?
A história de África é uma história particular. Os Estados ora existentes são
uma realidade imposta do exterior. Não é demais repeti-lo, porque os esforços
estrénuos que exigiram e continuam a exigir a manutenção e funcionamento desse
Estado exterior tendem a fazer esquecer a realidade que lhe subjaz. Criados de
cima para baixo, incompletamente estendidos e imperfeitamente articulados com
as formas organizativas das populações, os Estados e realidades jurídico-formais
africanas são, por um lado, muito superficiais: podiam subjugar no passado ou ser
respeitadas no presente, mas pouco penetram e sobretudo pouco se sustentam no
âmago da sociedade.
São realidades muito diversas que ainda não foram conhecidas e integradas.
O próprio conceito de autoridade tradicional é variável, coexistindo ou não, ou
fundindo-se mesmo, com o poder mítico ou religioso, legítimo ou comprometido.
Sobre esta realidade existencial inseriram-se traumatismos como o das secessões
inspiradas do exterior que levaram ao que poderíamos chamar o síndroma do Bia-
fra e a reacções defensivas e excessivas segundo as quais todo o reconhecimento
de especificidade era um caminho para a fragmentação. Veja-se como foi preciso
chegar aos dias de hoje para se aceitar como natural que se constituísse desapai-
xonadamente o Estado independente do Sudão do Sul.
A desagregação da Somália, com o Botswana, um dos dois Estados etni-
camente unos em África, mostra a importância do problema do Estado, muito
tempo encoberto ou limitado apenas às questões do “nation building”: para além
da construção da identidade nacional, a organização da coisa pública e da sua boa
gestão permanecem questões primordiais.

A questão que se continua a pôr – e quem o ignorar vai pagar o custo – é a


da construção do Estado, se vista do estreito ponto de vista do Estado moderno.
O esforço ingente que fizeram as primeiras gerações da independência africana
para manter e depois fazer chegar o Estado “para baixo” por pressão, não teve o
resultado esperado. As palhaçadas de um Bokassa ou a corrupção de ditadores,
tolerada em troco da sua submissão servil às ex-potências coloniais, tiveram o
inconveniente adicional de atribuir a estes factores os fracassos do Estado. Numa
segunda fase, coronéis e generais formados nas academias coloniais foram apre-
sentados como garantes da unidade nacional para, na maior parte dos casos, se
tornarem em instrumentos de ditadura pessoal e enriquecimento e opressão e, por

24 Desafios para Moçambique 2011 Estado, descentralização e cidadania

Desafios.indb 24 3/29/11 4:53 PM


sua, vez saírem de cena. Foi também o tempo de outras entidades morais extra
estatais, tais como personalidades e outras entidades morais ou espirituais, como
as igrejas. Talvez essa fase não tenha ainda terminado.
O que é relevante é que, em todos os casos, foi preciso recorrer a entidades na-
cionais externas ao Estado ou mesmo ao País, como as Nações Unidas, para escorar
a legitimidade dos Estados africanos, como se eles próprios, no seu sentido amplo de
coisa pública, de res publica, não possuíssem, dentro de si, capacidade de reconstru-
ção e regeneração. Como se não houvesse capital social sob forma de preocupações
com a gestão pública, acções locais, experiências de governação no país capazes de
inspirar e refundar a construção do Estado, quer as mais antigas quer as mais recen-
tes, obscurecidas pela visibilidade encandeante das acções do Estado.
E as soluções no geral consistiram em erigir processos eleitorais que, em
grande parte, tiveram o condão de aquietar os espíritos e definir um processo de
escolha legitimado. Reentrada do povo na história, pois, por via da legitimação
das escolhas maioritárias! Mas as maiorias numéricas não resolvem outros proble-
mas, nomeadamente o da gestão e coexistência de outras afirmações identitárias.
Por outras palavras, os processos eleitorais supõem um grau de coesão – todos
partem da noção de nação – que nem sempre existe. Ainda antes da vaga multi-
partidária de 1990, lembremos como, no caso do Zimbabwe, as eleições criaram
uma maioria mas não resolveram os problemas étnicos subjacentes com o ciclo de
reacção e contra-reacção que tragicamente se seguiram no Matabeleland.

O conceito de “descentralização” tem uma conotação favorável. Evoca di-


ferença, florescimento, multiplicidade, participação. Em contrapartida, centrali-
zação é palavra à partida carregada de sentidos negativos, evoca autocracia, não
consulta, dirigentes distantes, desligados dos problemas reais. O debate sobre a
descentralização tem esta dimensão psicológica.
Nos tempos modernos, e mais especificamente no quadro do consenso de
Washington, a descentralização fez parte da panóplia crítica dos poderes exces-
sivos do Estado, da sua intervenção despropositada na economia, ao lado da pri-
vatização, e da terciarização de serviços. Como acontece em movimentos globais
deste género, estas ideias - cada uma delas em si acertada - utilizadas de forma
crescente na gestão privada com bons resultados e, diríamos, todas elas já prati-
cadas, foram transformadas num pacote e foram dogmatizadas. Como todos os
dogmas, o princípio começa a prevalecer sobre a realidade. Legiões de peritos

Estado, Descentralização e Cidadania Desafios para Moçambique 2011 25

Desafios.indb 25 3/29/11 4:53 PM


armados destas ideias simples desceram como nuvens sobre os novos Estados
para espalhar a boa nova.
Descentralização também é transformação de estilo de governação: quem
descentraliza passa a exercer a sua autoridade de forma indirecta, através de nor-
mas, metodologias, formação e inspecção, o que pode ser difícil para quem se ha-
bituou ao decisionismo central. É preciso que o processo prepare os intervenientes
para um novo estilo de direcção.
Finalmente, a descentralização é também geradora de receios de fragmen-
tação. Mecanismos de habituação e certificação têm de ser pensados para que o
processo siga uma marcha sustentada, mesmo se por vezes mais lenta. O país não
vai fugir, disse alguém.

Uma linha de pensamento bastante difundida identifica descentralização


com autarcização. Esta é a forma acabada da descentralização na medida em que
consagra “poderes” locais.1 É uma descentralização democrática electiva. E certamen-
te há bons argumentos nesse sentido: a autarcização atribui competências especí-
ficas em regra sobre os chamados assuntos de “vizinhança”,2 define um território,
consagra poderes próprios e, sobretudo, define processos de escolha de dirigentes
por uma população determinada por um processo independente de outra entida-
de. O corolário lógico desse raciocínio são avaliações quantitativas e mensuráveis:
assim, o nível de cometimento pela descentralização depende do ritmo de criação
das autarquias. Moçambique começou com um número limitado de autarquias e
o seu número vem crescendo de forma sincopada.
Criar um quadro constitucional-legal para a organização dessa vontade é
função constitucional do Estado. No nosso caso, as balizas constitucionais são
claras: as autarquias são de dois tipos, os municípios nas cidades e vilas e as povo-
ações nas sedes dos postos administrativos.3

1
A expressão poderes, emprestada de outras práticas, é um pouco forçada, reconheça-se, num país
como Moçambique em que as autarquias não reconhecem poderes existentes mas constituem
uma mera atribuição de funções por desígnio e no formato decidido pelo centro. Se quere-
mos falar em “poderes”, ou pelo menos em formas naturais, endógenas de organização, devemos
procurá-los fora do quadro formal moderno e urbano, nas comunidades locais.
2
Acessos, serviços básicos, gestão de resíduos, regras de convivência…
3
Não confundir com a povoação/unidade territorial, inferior à localidade, consagrada com o mes-
mo nome que a povoação/autarquia, quiçá por distracção.

26 Desafios para Moçambique 2011 Estado, descentralização e cidadania

Desafios.indb 26 3/29/11 4:53 PM


Até hoje temos 43 autarquias locais. Para preencher o quadro constitucional
faltam 99 que são sedes distritais e simultaneamente postos administrativos-sede
e 266 que são simplesmente sedes de postos administrativos. Como avançar na
ingente tarefa de criar as 365 autarquias que faltam?
Neste momento, o processo é iniciado pelo Governo e negociado em sede
parlamentar. É um processo que vem de cima para baixo e é um sistema compro-
vado. Mas será o único? Será a vontade do Estado o factor determinante na cons-
tituição das autarquias? Porque não dar maior relevo à vontade popular dentro dos
marcos constitucionais?
Se assim for, o principal factor para determinar o ritmo da descentralização
será a maior ou menor vontade dos cidadãos de se organizarem para tomarem
conta dos seus assuntos.
Como fazê-lo? Será possível encorajar os cidadãos a tomarem a iniciativa do
processo e acolher as demandas populares para a autarcização formuladas pelos
próprios residentes?
Se respondermos positivamente a esta questão, considerando que existe um
direito constitucional à autarcização, direito dos residentes de gerir os assuntos da
vida quotidiana que lhes dizem respeito, coloca-se uma segunda questão. Bastará
a simples demanda? Existe o risco de multiplicar instituições que apenas servem
para criar mais titulares de órgãos autárquicos que irão exigir remunerações e ins-
talações, mas mortas à nascença.
A essência da autarcização é a vontade dos cidadãos de se organizarem para re-
solver os seus problemas. O direito à autarcização tem de ser ganho. Isto implica que a
autarcização só é garantida àqueles cidadãos que demonstrem a sua vontade genuína
de se organizar para resolver os seus problemas. Esta capacidade pode ser avaliada
pelas actividades de carácter comunitário já empreendidas como gestão de resíduos,
reparação de estradas, criação de escolas comunitárias. Tal constituiria uma garantia
de que a nova autarquia nasce com uma base sustentada, vai ajudar a resolver proble-
mas e não representa apenas uma despesa ou a mera satisfação de orgulhos locais.
Por outro lado, pode acontecer que os cidadãos de uma determinada co-
munidade sejam capazes ou estejam dispostos a exercer algumas, mas não todas,
funções que competem às autarquias. Será que deveremos ater-nos sempre ao
modelo acabado de autarquia previsto na lei ou não deveremos admitir formas
autárquicas em que os cidadãos apenas exercem as funções para as quais se sen-
tem habilitados? Ou seja, uma descentralização parcial, do ponto de vista material.

Estado, Descentralização e Cidadania Desafios para Moçambique 2011 27

Desafios.indb 27 3/29/11 4:53 PM


Até aqui estamos a falar da totalidade do território das autarquias previstas
constitucionalmente. Mas pode acontecer que certos bairros, ou conjuntos de bair-
ros, já estejam motivados e organizados do ponto de vista cívico, mas não a totali-
dade do território autárquico. Será possível conceber uma autarcização parcial do
ponto de vista territorial como passo para a sua extensão para o território através do
efeito de contágio? Claro que, nesse caso, será necessária toda a cautela para evitar
que a autarcização seja uma forma de agudizar diferenças de estatutos de riqueza.
Isto conduz a ver a autarcização - e veremos mais adiante a descentralização
no seu conjunto - como um processo simultâneo de gestão assumida crescente-
mente pelos cidadãos e crescentemente reconhecido pelo Estado que, através de
um processo objectivo e cuidadoso, lhes transfere meios crescentes, forma e habi-
lita, empodera (em suma) estas pré-autarquias.
Esta questão do voluntariado e da participação chama uma outra que é a
da participação dos cidadãos na vida das autarquias. Existe o perigo, sobretudo
nas grandes aglomerações, de que a participação cívica se reduza largamente ao
momento das eleições. A partir daí, tudo é resolvido nas sessões dos órgãos com-
petentes. Que as decisões tenham de vir desse nível macro está bem entendido
porque soluções globais por vezes são inviáveis a nível inferior. Mas é através de
escalões mais próximos dos utentes/cidadãos que se podem resolver muitos pro-
blemas: o que coloca os problemas das chamadas sub-autarquias nos grandes mu-
nicípios como instâncias mais próximas dos cidadãos e encarregadas de resolver
um certo nível de problemas (como manutenção de estradas, jardins, colecta local
de resíduos sólidos). Experiências existem.
Uma autarcização de horizontes largos dirige-se mais aos cidadãos enquanto
pessoas com interesses locais – boa recolha do lixo, boas estradas, ambiente são,
escolas sem vícios como a droga, entre outras – do que a grandes filosofias e ideo-
logias. A legislação já acolhe candidaturas independentes. Mas importa distinguir
independentes, que também são “políticos”, e cidadãos interessados em contribuir
para resolver os problemas dos seus “vizinhos”. Os autarcas não são “políticos em
regime de destacamento”, são bons cidadãos que se empenham na vida colectiva.
São estes que importa ganhar para a gestão autárquica de modo a alargar a base
social das nossas instituições, educar na cidadania, inovar no desenvolvimento.
Não se trata de uma contradição, mas antes de uma complementaridade: alguns
destes “homens bons” poderão evoluir para a política partidária. Mas esse deve
ser um ponto de chegada e não de partida, um caminho para o rejuvenescimento

28 Desafios para Moçambique 2011 Estado, descentralização e cidadania

Desafios.indb 28 3/29/11 4:53 PM


constante da classe política. A partidarização total das eleições locais responde à
lógica dos partidos, mas tem o risco de não trazer à superfície os melhores dirigen-
tes dos assuntos locais. Os partidos, por um lado, e os independentes, por outro,
têm de ser rigorosos nas suas escolhas, privilegiando quem melhor sabe gerir,
participativamente, as autarquias. Há exemplos.

Mas que dizer das zonas de população dispersa ou de pequenas aglome-


rações? A prática já mostrou que é aí que reside o espantoso capital social das
sociedades africanas e da sociedade moçambicana em particular. A experiência
prematuramente encerrada das assembleias do povo mostrou o potencial de par-
ticipação e decisão dos cidadãos. Como capitalizar estes talentos na gestão dos
assuntos públicos?
Existe a tendência para considerar que apenas a descentralização autárquica
é descentralização. Tudo o que envolve gestão pelo Estado é excluído do campo
da descentralização. Talvez tenhamos contribuído para isso quando reproduzimos
a distinção da teoria administrativa francesa entre descentralização e desconcen-
tração. Importa uma clarificação preliminar. Há uma forma de desconcentração bu-
rocrática, mera transferência de competências entre escalões territoriais, que não
constitui descentralização: é quando, por exemplo, se concede a um Governador
Provincial ou Administrador de Distrito competência para nomear funcionários.
Já é diferente quando a desconcentração, sem ser electiva, porque os diri-
gentes são nomeados, é, no entanto, largamente participativa. Ela pode assumir
diferentes formas e os crescentes poderes dos conselhos consultivos (ou conselhos
locais) representam um caminho prometedor. Para tal, muito contribuiu o prece-
dente criado pela legislação progressista adoptada em matéria de terras, florestas
e fauna bravia, pescas, minas e meio ambiente, que consagram o papel das co-
munidades na gestão dos seus recursos. Assim, importa desdobrar o conceito de
desconcentração em dois sub-conceitos: desconcentração burocrática e descentra-
lização administrativa participada.
Não se trata de mero exercício semântico: é que, enquanto a desconcentra-
ção burocrática visa melhorar a eficiência da administração enquanto tal, a des-
centralização administrativa participada é um exercício de cidadania. Em última
análise, é o caminho para a democracia com todos os seus conteúdos. Primeiro,
participação associada à competência crescente; numa segunda fase, a escolha
democrática electiva.

Estado, Descentralização e Cidadania Desafios para Moçambique 2011 29

Desafios.indb 29 3/29/11 4:53 PM


Os Conselhos Consultivos já se tornaram em órgãos com duas funções: con-
sultivos nas matérias de competência central e decisórios nas matérias que envol-
vem interesses próprios, como foi o caso das decisões relativas aos “7 milhões”.
Nada impede que o processo de escolha dos seus membros se desenvolva para
modalidades cada vez mais democráticas, incluindo as eleições, que não precisam
de ser custosas e podem ser feitas como, já se fez, em reuniões abertas e salvaguar-
dada a livre escolha como, por exemplo, o voto em urna.
A combinação de poderes com recursos torna eficaz a democracia local.
Sem entrar nos méritos do processo de alocação de prioridades dos “7 milhões”,
possíveis irregularidades na atribuição, pude constatar, numa visita que fiz a 33
lugares no Sul, Centro e Norte, que o poder de disposição de recursos teve dois
efeitos: dar um sentido de utilidade à participação – ter meios para implementar
decisões vitaliza as organizações; mais importante, identifica os cidadãos com o
Estado; os dinheiros públicos são também para nós e não apenas para “eles”, para
a administração! Esta forma de participação dos cidadãos na gestão pública cons-
titui também uma modalidade de descentralização.

Uma palavra sobre a administração de proximidade: o distrito apareceu du-


rante um certo tempo como o salto necessário, unidade-base da planificação ter-
ritorial. Nada aconselha de momento uma modificação desta estratégia ainda por
implementar completamente. Mas urge ir mais além.
O Posto Administrativo, concebido na gestão colonial como um momento de
controlo das populações, foi redefinido como o ponto de contacto do Estado com as
populações e de prestação de serviços. Existem no país pouco menos de 400 Postos
Administrativos (pese a infelicidade da designação!), o que daria uma média de 2 mil
quilómetros quadrados de território a gerir. Dadas as dificuldades de comunicação, pa-
rece dever ser este o escalão a privilegiar na execução, mas também no entrosamento
dos cidadãos com o Estado. O controlo popular, o acompanhamento das decisões do
Estado, a dinamização da iniciativa local parecem ser mais eficazes a este nível do que ao
nível do distrito que tem um território médio de 7300 km2. A estrutura do Posto Admi-
nistrativo deveria seguir a natureza da sua área, mas, como regra, a agricultura alimentar
(pescas, onde for o caso), os serviços básicos (escolas primárias e centros de saúde)
deveriam ser dirigidos por quadros polivalentes evitando-se a tentação de se colocar
delegados sectoriais. Os chefes das localidades, para os quais acaba de ser aprovada uma
equipa de suporte, poderiam começar por ser, antes de mais, facilitadores de processos

30 Desafios para Moçambique 2011 Estado, descentralização e cidadania

Desafios.indb 30 3/29/11 4:53 PM


sociais com competência específica no desenvolvimento local, desde logo com uma for-
mação de extensionistas. É por fazer coisas concretas que se afirma e se legitima o poder.

Até aqui estamos a falar de órgãos, instituições do sistema formal de organização


dos poderes públicos. Ora, a descentralização pode ser vista como mero exercício de
transferência de poderes dentro da máquina pública, central e autárquica, despida da
sua carnalidade que são as pessoas. Essa é uma visão possível. Porém, se considera-
mos a descentralização como um sistema que envolve autarquias, modalidades mais
abertas da sua criação, como as autarquias sob demanda e formas intermédias como
pré-autarquias, participação cidadã nas decisões dos órgãos locais do Estado, é impe-
rativo olhar para as comunidades como a base originária do Estado enquanto res publica.

CAIXA 1 QUE MIL MUSSAPAS DESABROCHEM

Bem longe dos lugares onde vivo, no meio do distrito de Sussundenga, avisam-nos que estamos a chegar.
Olho espantado para campos geometricamente lavrados por bois, onde crescia uma planta desconhecida e
bem verde. É cevada, dizem-me, produzida aqui e destinada à produção das fábricas de cerveja. Foi feito um
contrato e a produção é escoada regularmente. Já à entrada da aldeia de Mussapa, vejo à direita um grupo de
camponeses, maioritariamente senhoras, sentado sob uma árvore a trabalhar descascando e desbastando e
vergando ao fogo troncos de uma madeira branca. Com eles, uma pessoa de pele clara que ensinava a preparar
o que nos apercebemos serem cangas de bois. Parámos. Era um membro de uma organização americana, a
Tillers Association of America, lavradores organizados na modalidade, de que já ouvira falar, de “capitalismo so-
cial”. São empresas de agricultores e camponeses operando segundo as regras do mercado, mas distribuindo
os resultados entre os sócios trabalhadores, próximas do modelo cooperativo, mas com inúmeras modalida-
des. No conjunto dos Estados Unidos e Canadá representariam cerca de 25% da economia. O seu ramo inter-
nacional destaca membros, muitos deles reformados, para trabalhar com camponeses de outros países. En-
quanto vamos para a sala de reuniões, o grupo continua a trabalhar e no fim apresenta o resultado do trabalho.
Ao lado do local de reuniões, que era a escola, vejo um monte de pedras e tijolos. São a contribuição da
população para a construção de mais uma sala de aulas. Na reunião está presente um representante de
uma ONG. Originário de Inhambane, veio trabalhar por conta da ONG e fixou-se no local. Os dirigentes lo-
cais têm uma preocupação: melhorar a vida da população. O chefe da localidade tem uma motorizada que
usa para acompanhar a utilização dos sete milhões que se faz em comunidades ainda distantes do local. O
professor, um enorme e escuro mocetão, cheio de confiança e energia, fala dos planos e da confiança em
si próprios. O líder comunitário diz que a divisa ali é trabalhar: quem trabalha recebe ajuda, quem fica de
lado, fica. Wassala, wassala, dizia-se nas marchas longas durante a libertação. Quem fica, fica. Referem o
papel do senhor Gomes, um empresário local., também presente na reunião.
O senhor Gomes, contam, já trabalhou em vários locais da província, incluindo no Estado, e resolveu vir
melhorar a vida dos seus conterrâneos. Em Mussapa existe um curso de água de pequeno caudal mas per-
manente e com significativa diferença de nível, quase uma cascata. Lembrou-se que havia numa antiga
empresa estatal abandonada, uma velha moagem sem motor, conta-nos a nosso pedido e com relutante
modéstia. Decidiu utilizar a energia motriz da água. Fez os desvios necessários e instalou uma pequena
comporta manual que desvia a água para a moagem. Cobra um tanto por quilo moído, mas quem não pode
pagar não paga. Depois veremos... Não se queixam nem pedem nada. Só mostram o que fizeram. O entu-
siasmo dos dirigentes é tão grande que nos contagia. Lá vamos, sacrificando o resto do programa do dia.
Corrijo, não sacrificando nada, aprendendo, já no ocaso da vida, uma lição, diria um curso completo de
cidadania e de gestão. A bondade e o amor pelos outros – que há de mais nobre na cidadania, a solidarie-
dade internacional, internacionalista dizíamos outrora, o contar com as próprias forças, a solidariedade
da comunidade, a confiança no futuro.

Estado, Descentralização e Cidadania Desafios para Moçambique 2011 31

Desafios.indb 31 3/29/11 4:53 PM


A Constituição de 2004 já lhes dá enquadramento constitucional ao consa-
grar a noção de domínio público comunitário. Estas “autarquias naturais”, reposi-
tórios evolutivos dos valores culturais e da prática de participação da governação
moçambicana, têm de ser reconhecidas, desenvolvidas e articuladas com o sistema
político nacional. Uma lei das Comunidades teria em conta o seu papel institu-
cional, mas também o seu papel no desenvolvimento, na difusão dos cuidados
de saúde primários, na prevenção das calamidades, mas também na melhoria da
produção agrícola, conhecimento dos mercados, geminação de sementes, tracção
animal, conservação de alimentos, preparação da comercialização.
Temos, assim, que a descentralização deve ser vista como um continuum que
vai desde as comunidades às autarquias, das representações do Estado ao nível da
localidade até ao nível da província.

Finalmente algumas reflexões sobre o próprio processo de descentralização:

1. A descentralização, assim como a concebemos, como uma visão sistémica


que incorpora as práticas já em curso e lhes dá coerência e visão global,
acaba por constituir uma peça de uma paulatina refundação do Estado.

2. Pegar no conjunto da polity para a compreender, identificar as interacções,


buscar sinergias, aproveitar potencialidades ocultas é um exercício comple-
xo, mais de entendimento do que de acção. Como no judo, o segredo está
em aproveitar a força existente e ajudá-la a canalizar (como se diz moder-
namente, steering not rowing, guiar o leme mais do que fazer força a remar).

3. Tal constitui no essencial uma nova forma de fazer as coisas: enquanto a


forma tradicional de elaborar estratégias dá ênfase aos planos operacionais
e às metas, esta nova forma dá mais ênfase à compreensão dos processos e à
sua delicada condução.

4. Do ponto de vista processual, significa lidar finamente com realidades muito


diversas, quer do ponto vista da máquina administrativa quer sobretudo da
sua base societal. Culturas diversas subjazem à aparente uniformidade pre-
sente nas apresentações formais e nas grandes reuniões. Todos sabemos que a
verdadeira reunião se passa fora, nas visões, nas interpretações certas e erradas
ou nas visitas às aldeias e comunidades, depois de os visitantes saírem.

32 Desafios para Moçambique 2011 Estado, descentralização e cidadania

Desafios.indb 32 3/29/11 4:53 PM


5. Isso implica um processo conduzido por administradores públicos, conhece-
dores dos procedimentos e das leis mas abertos sobre a sociedade e dotados
dos instrumentos que, entre outras, a sociologia oferece para a compreensão
das sociedades e dos grupos. Uma geração de novos quadros deve ser formada
a partir do existente, capaz de conduzir o processo. A garantia do seu sucesso
está mais na qualidade, na capacidade, no empenho, na sua compreensão das
sociedades e da busca da solução válida naquele lugar, do que apenas num
texto legal ou num guião. Vasto programa!

CAIXA 2 EM CHICOMO, OUVIR PARA GOVERNAR

O caminho da sede do Posto Administrativo de Chicomo no distrito de Massinga, ainda é longo. Vamos
assistir à elaboração do plano da localidade. A metodologia nasce num projecto financiado pela GTZ. To-
mam a palavra os porta-vozes dos grupos. Alguns vêm de longe. Fala o responsável da agricultura, o da
ordem e segurança, o das escolas e hospitais, outros. Articulam eloquentemente e de forma pensada os
seus problemas, como só sabem fazer os camponeses que têm tempo para pesar e pensar.
E aqui duas surpresas: a primeira, os chefes dos grupos falam dos problemas e das soluções que estão
a implementar. A segunda, os funcionários, tomam nota e asseguram que todos os assuntos sejam trata-
dos segundo uma lista de questões identificadas na reunião anterior. De vez em quando alguém intervém
para recordar que determinado ponto referido em reunião anterior ainda não foi abordado. Os funcioná-
rios escutam, tomam notas.
Em toda a reunião, os funcionários que eu vira na sede do distrito atrás de secretárias pareciam trans-
formados. Ouviam com respeito, quase ternura, e certificavam-se de que era bem isso que estava ser dito.
Para registar nas suas notas. Não havia chefes a “dar orientações”.
No fim, um balanço geral. Todos ouvem as experiências dos outros. É um curso. É nesse momento que
os dirigentes do Estado comentam, apoiam, sugerem outros caminhos, recolhem ideias para os planos.
Era a descentralização administrativa participada em acção, era o buscado papel facilitador do Estado,
era a articulação Estado/cidadão. Moçambique está a mudar.

Que desafios específicos enfrenta um processo de descentralização:


O primeiro desafio é passar a ver a descentralização como processo que vai
para além de mudanças entre escalões no seio do “aparelho” administrativo, e
olhar para a administração como algo que se insere nos cidadãos, com eles traba-
lha e nas comunidades se enraíza.
O segundo desafio é o superar os legítimos receios de fragmentação que
todas as descentralizações implicam através de um pensamento criador e acção
ousada.
O terceiro desafio reside na capacidade das estruturas intermédias como os
Governos Provinciais de passar para uma função de apoio, supervisão e delegação
dos escalões inferiores agora que no essencial realizaram a sua primeira missão

Estado, Descentralização e Cidadania Desafios para Moçambique 2011 33

Desafios.indb 33 3/29/11 4:53 PM


histórica de preencher o vazio administrativo e manter a administração em fun-
cionamento. O mesmo se pode dizer das estruturas distritais.
O quarto e maior desafio é saber se o discurso presidencial de empodera-
mento das comunidades por via dos mecanismos financeiros será capaz de -- mes-
mo se gradualmente -- vencer o peso da mentalidade dirigista.
Finalmente, processos desta dimensão não podem ser encetados sem con-
sensos, ambiente, meios e determinação.

34 Desafios para Moçambique 2011 Estado, descentralização e cidadania

Desafios.indb 34 3/29/11 4:53 PM


“TRANSFORMAÇÕES SEM MUDANÇAS?”
OS CONSELHOS LOCAIS E O DESAFIO DA
INSTITUCIONALIZAÇÃO DEMOCRÁTICA EM
MOÇAMBIQUE
Salvador Cadete Forquilha | Aslak Orre

INTRODUÇÃO1

As reformas políticas desencadeadas na maior parte dos países da África sub-


saariana nos finais dos anos 1980 e começos dos anos 1990 podem ser vistas num
contexto mais vasto da chamada terceira vaga de democratização (Huntington,
1991). Com efeito, entre os anos 1970 e 1990, assistiu-se a mudanças importantes
no que se refere a regimes políticos em diferentes partes do mundo, nomeadamen-
te a queda de regimes autoritários do Sul da Europa nos meados dos anos 1970, a
substituição das ditaduras militares por governos civis eleitos na América Latina
a partir dos finais dos anos 1970 e meados dos anos 1980, o colapso dos regimes
comunistas da Europa do Leste nos finais dos anos 1980, a constituição de 15
repúblicas pós-soviéticas em 1991, na sequência da queda da URSS, o declínio de
regimes de partido-único na África subsaariana e alguma tendência de liberaliza-
ção de alguns países do Médio Oriente nos anos 1990 (Carothers, 2002: 5).
Relativamente a Moçambique, essas reformas políticas foram marcadas essen-
cialmente pela introdução da nova Constituição da República em 1990 e pelo fim
da guerra civil em 1992, culminando com a realização das primeiras eleições mul-
tipartidárias em 1994, o que permitiu a abertura do espaço político e a criação de
novas instituições. Considerado como caso de sucesso, por ter conseguido fazer a
passagem não só da guerra para a paz como também de um regime de partido único
para um regime multipartidário, Moçambique embarcou, desde os meados dos anos
1990, no processo de criação e consolidação de instituições democráticas. Mas, se é

1
Este artigo foi essencialmente elaborado com base no trabalho de campo realizado no distrito de
Gorongosa em Abril de 2010, no contexto do projecto de investigação intitulado “The political
economy of decentralization and local state building in Mozambique”, sob a direcção de Ber-
nhard Weimer. Uma versão mais desenvolvida do artigo fará parte do livro a ser publicado no
âmbito do referido projecto.

“Transformações sem Mudanças?” Desafios para Moçambique 2011 35

Desafios.indb 35 3/29/11 4:53 PM


verdade que, no âmbito do processo de transição e consolidação democráticas, o
país conseguiu alguns avanços que permitiram a criação de espaços de participa-
ção para partidos políticos, organizações da sociedade civil e cidadãos em geral,
também não é menos verdade que os espaços criados no âmbito do processo de
democratização do país parecem estar cada vez mais controlados e até asfixiados
pelo sistema de partido dominante. Esse controlo apresenta-se como um desafio
para o processo de consolidação democrática, e consubstancia-se, entre outros
aspectos, nas sucessivas e sistemáticas revisões da lei eleitoral, na instabilidade
das instituições da administração eleitoral, na transformação dos conselhos locais
distritais em meros espaços de consulta, na ausência de uma política e estratégia
claras de descentralização, no lento processo de municipalização do país, enfim,
numa aberta partidarização do Estado e o consequente défice de inclusão política.
Este artigo procura analisar os desafios da institucionalização democrática em
Moçambique, olhando para as dinâmicas e lógicas de funcionamento dos espaços
de participação criados no âmbito do processo de democratização do país, parti-
cularmente ao nível dos distritos. O argumento principal do artigo sublinha a ideia
segundo a qual o funcionamento dos espaços criados na sequência do processo de
democratização é estruturado pelas dinâmicas do sistema de partido dominante. O
argumento é desenvolvido em dois momentos. Num primeiro momento faz-se uma
análise das dinâmicas do processo de transição política dos anos 1990 em Moçam-
bique e o regime que resultou desse processo; num segundo momento o artigo pro-
cura olhar para a constituição e funcionamento dos espaços de participação criados
na sequência do processo de democratização, particularmente nos distritos.

TRANSIÇÃO POLÍTICA EM MOÇAMBIQUE: DINÂMICAS E


CONFIGURAÇÃO DO CAMPO POLÍTICO

Diferentemente do que aconteceu em muitos países da África subsaariana, a


transição política em Moçambique nos finais dos anos 1980 e começos dos anos
1990 esteve profundamente ligada ao fim da guerra civil. Com efeito, os acordos
de paz assinados pelo governo da Frelimo e pela Renamo em 1992 colocaram as
bases políticas e jurídicas que moldaram significativamente o contexto subsequen-
te. Compostos por sete protocolos e quatro documentos (Lei 13/92), os acordos
de paz, na prática, eram uma carta de transição política para Moçambique, na

36 Desafios para Moçambique 2011 “Transformações sem Mudanças?”

Desafios.indb 36 3/29/11 4:53 PM


medida em que tratavam não só de questões militares, tais como o cessar-fogo, a
desmilitarização e a formação do novo exército, como também das bases do pro-
cesso de democratização do país, nomeadamente os critérios e modalidades de
formação dos partidos políticos, as questões eleitorais e a garantia das liberdades
fundamentais sob o plano constitucional. Neste sentido, o processo de transição
política dependia, em grande medida, do sucesso da pacificação do país, facto que
teve implicações significativas na estruturação do campo político pós-transição,
marcado por uma forte bipolarização política e por um lugar marginal para parti-
dos políticos, cuja génese não esteve directamente ligada à guerra civil.
Assim, a transição política em Moçambique foi, muitas vezes, confundida com a
gestão do processo de implementação dos acordos de paz. Alguns teóricos das tran-
sições políticas sublinham que se pode considerar uma transição completa quando
existe um entendimento sobre procedimentos eleitorais, um governo que chega ao
poder como resultado de voto livre e popular, e tem autoridade para gerar políticas, e
quando o poder executivo, legislativo e judicial, saído da nova democracia, não parti-
lha o poder de jure com outros órgãos (Linz e Stepan, 1996a: 3). As primeiras eleições
e a formação e funcionamento das novas instituições são assim colocadas como ele-
mentos cruciais na efectivação de um processo de transição, o que não quer dizer que
sejam a condição suficiente. Aliás, Linz e Stepan (1996b) reconhecem que, no período
pós-transição, antes que uma democracia possa ser considerada como consolidada,
ficam ainda muitas condições por estabelecer, muitos hábitos e atitudes por cultivar.
Para o caso de Moçambique, o período pós-transição foi, neste sentido, elucidativo.
Com efeito, se as primeiras eleições multipartidárias, em 1994, e as instituições que de-
las resultaram constituíram um aspecto fundamental do processo de transição política,
muito teve que ser feito depois, em termos de discussão, negociação e aprovação da
legislação adequada, para que as reformas levadas a cabo se tornassem efectivas (Brito,
2010). Foi o caso das sucessivas e sistemáticas revisões da lei eleitoral, a revisão consti-
tucional de 2004, as mexidas na legislação autárquica, entre outros aspectos.

DOS ACORDOS DE PAZ AO SISTEMA DE PARTIDO DOMINANTE

Com a gestão dos acordos de paz e a trajectória política pós-independência


como pano de fundo, o processo da transição política foi ditando a configuração
e correlação de forças no campo político. Após dois processos eleitorais (1994 e

“Transformações sem Mudanças?” Desafios para Moçambique 2011 37

Desafios.indb 37 3/29/11 4:53 PM


1999) em que a Frelimo e a Renamo mantiveram um relativo equilíbrio em termos
de resultados eleitorais, o cenário mudou significativamente a partir das eleições de
2004, em que a Frelimo se foi afirmando cada vez mais como partido dominante e a
oposição foi tendo um espaço cada vez mais reduzido. Vários factores concorreram
para este cenário, sendo, entre outros, a revitalização das estruturas partidárias da
Frelimo no meio rural, particularmente com a chegada de Guebuza à direcção do
partido em 2002 (Brito, 2010), a construção e consolidação de alianças político-
-partidárias com seguimentos outrora favoráveis à Renamo como, por exemplo, os
chefes tradicionais, a utilização da burocracia e recursos estatais para fins partidários
por parte da Frelimo, implicando um Estado cada vez mais ao serviço do partido
no governo. Todavia, estes factores não podem ser vistos de uma forma isolada, na
medida em que a predominância da Frelimo e a redução do espaço para a oposição
política têm também a ver com a erosão interna das estruturas partidárias da própria
Renamo, o maior partido da oposição, consubstanciada na fraca e quase inexistente
institucionalização do partido e num acentuado autoritarismo e clientelismo na ges-
tão partidária. Assim, num contexto de fraca separação entre o Estado e o partido
no poder, a chegada do Estado a zonas onde a Renamo, no passado, teve um apoio
considerável, traduziu-se igualmente na perda de alianças político-estratégicas por
parte da Renamo e na implantação e fortificação da Frelimo a nível local.
Neste contexto, tal como o gráfico 1 sugere, a Frelimo foi-se estabelecendo como
partido dominante. Existe, em ciência política, uma vasta literatura sobre sistemas de
partido dominante (Sartori, 1976; Carbone, 2007; Carbone, 2003; Ronning, 2010) –
um dos aspectos característicos de alguns sistemas políticos na África subsaariana,
no período pós-transição dos anos 1990. Tal como Ronning (2010) sublinha, sistema
de partido dominante significa um sistema em que, apesar de haver eleições mais ou
menos competitivas, o partido no poder domina e os partidos da oposição tendem a
enfraquecer de eleições em eleições e o partido no poder frequentemente comporta-
-se com um certo grau de auto-suficiência e arrogância, o que contribui para a apatia
dos eleitores e a abstenção (Ronning, 2010). Além disso, o partido no poder tem uma
grande influência sobre a comissão eleitoral, o que limita o campo de jogo eleitoral
e favorece fraudes eleitorais. Neste contexto, as eleições constituem um instrumento
de perpetuação de uma governação semi-autoritária (Ronning, 2010). Alguns autores
como Sartori (1976), Carbone (2007) consideram que é importante distinguir partidos
dominantes de hegemónicos. Neste sentido, partido dominante é aquele que conquista
consecutivamente o poder através de eleições genuínas em que os partidos da oposição

38 Desafios para Moçambique 2011 “Transformações sem Mudanças?”

Desafios.indb 38 3/29/11 4:53 PM


simplesmente não conseguem modificar a preferência dos eleitores (Carbone, 2007).
Diferentemente do partido dominante, o hegemónico conquista o poder num con-
texto de fraca competição eleitoral e inexistente possibilidade de alternância política.
Partido hegemónico é, assim, tido como sinónimo de partido dominante autoritário
(Carbone, 2007). Neste artigo, o conceito de sistema de partido dominante é usado na
sua versão de dominante autoritário, isto é, como sinónimo de partido hegemónico.

GRÁFICO 1 MANDATOS NA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA DE 1994 A 2009

250

200
191
Número de Assentos

160
150
129
133
112 117
100
90

51
50

9
8
0 0 0
1994 1999 2004 2009

FRELIMO RENAMO Outros

Neste contexto, a Frelimo foi capturando cada vez mais o Estado através da
implantação/revitalização das células do partido nas instituições públicas, facto
reforçado particularmente a partir do IX Congresso realizado em Novembro de
2006, em que a militância activa nos locais de trabalho passou a ser obrigatória
para os membros, especialmente para aqueles que exercem algum cargo de chefia
nas instituições estatais a todos os níveis.

SISTEMA DE PARTIDO DOMINANTE E SUAS CONSEQUÊNCIAS

O sistema de partido dominante não só sufoca a competição eleitoral como


também enfraquece os poderes legislativo e judiciário, como resultado, por um lado,

“Transformações sem Mudanças?” Desafios para Moçambique 2011 39

Desafios.indb 39 3/29/11 4:53 PM


de um forte presidencialismo e, por outro lado, de um controlo do parlamento e
dos tribunais através da maioria parlamentar e da nomeação dos juízes. Por conse-
guinte, o sistema de partido dominante tende a acentuar a intolerância e a exclusão
políticas e a manter o funcionamento das instituições refém da agenda política do
partido no poder, facto que dificulta sobremaneira o processo da institucionalização
da democracia. Neste sentido, pode-se considerar que, em Moçambique, as trans-
formações políticas no âmbito da “transição democrática” não foram capazes de
trazer mudanças significativas nas lógicas de funcionamento das novas instituições.
Em muitos casos, a hegemonia política da Frelimo retira transparência, abertura e
inclusão no funcionamento das instituições públicas, tornando-as, em muitos aspec-
tos, semelhantes ao que eram durante a vigência do regime de partido único, com
consequências para a participação política em geral. Como Brito (2010) sublinha
na sua análise sobre a transição política em Moçambique: “depois de quase duas
décadas de ‘transição democrática’, a situação de Moçambique pode-se resumir as-
sim: uma participação eleitoral inferior a 50% nas duas últimas eleições gerais, uma
maioria qualificada de mais de dois terços para a Frelimo, partido no poder desde
a independência, a residência do chefe da Renamo, principal partido da oposição,
cercada pela polícia, na sequência do anúncio das manifestações…” (Brito, 2010: 6).
A transição política em Moçambique resultou, pois, no que alguns autores qua-
lificam de “anocracia”, caracterizada pela “concentração e ausência de separação de
poderes, corrupção endémica, clientelismo exacerbado, vazio de programas políticos,
anemia dos aparelhos administrativos, fraudes eleitorais repetidas, fraca legitimidade
das instituições…” (Pérouse de Montclos, 2010: 11). Todavia, é importante referir que
cenário semelhante se verifica igualmente em outros países da África subsaariana que
desencadearam processos de transição política nos anos 1990. Assim como Pérouse
de Montclos afirma, as “transições democráticas” na maior parte dos países da África
subsaariana resultaram hoje em “anocracias” (Pérouse de Montclos, 2010). No dizer
do autor, “no resto do continente, assiste-se mais à consolidação de regimes que não
são nem verdadeiramente ditaduras militares, nem verdadeiramente democracias par-
lamentares”. Relativamente a Moçambique, embora existam elementos importantes de
um regime democrático, como por exemplo, um espaço político para os partidos da
oposição, uma sociedade civil relativamente independente, continuação de reformas
políticas, bem como eleições regulares e uma constituição impregnada de princípios
e valores democráticos, o país parece apresentar ainda um sério défice democrático
cristalizado numa fraca representação dos interesses dos cidadãos, baixos níveis de

40 Desafios para Moçambique 2011 “Transformações sem Mudanças?”

Desafios.indb 40 3/29/11 4:53 PM


participação política, baixo nível de confiança dos cidadãos nas instituições do Estado,
particularmente nas instituições da administração eleitoral e de justiça.
O que é interessante verificar nesses países é a maneira como a trajectória
sócio-política de cada contexto estruturou a natureza das instituições criadas no
âmbito do processo da transição política. Para o caso de Moçambique, por exem-
plo, o funcionamento dos governos e parlamentos saídos das sucessivas eleições,
desde 1994, foi em grande medida influenciado pelo contexto político precedente
de partido único e de correlação de forças no âmbito da guerra civil. Por conse-
guinte, notou-se, em muitas dessas instituições, pouca abertura, pouco diálogo e
fraca inclusão política. No que se refere ao parlamento, por exemplo, as lógicas do
passado de confrontação militar entre os ex-beligerantes, muitas vezes, persistiram
na maneira como a própria instituição foi funcionando. O mesmo se diga dos ór-
gãos da administração eleitoral, nomeadamente, a Comissão Nacional de Eleições
e o Secretariado Técnico da Administração Eleitoral.
A nível local, a trajectória sócio-política, associada ao sistema de partido
dominante, tornou os espaços criados no âmbito do processo da descentralização
administrativa, nomeadamente os conselhos locais, menos abertos ao diálogo e
à inclusão política, o que, de alguma forma, reflecte o fraco grau de instituciona-
lização da democracia. Por institucionalização da democracia entende-se aqui o
processo pelo qual as instituições, as normas, os procedimentos criados no âmbito
da “transição democrática” se transformam em atitudes, hábitos e práticas que
estruturam o agir dos actores do jogo político no seu dia-a-dia (Schedler, 1997;
Schmitter, 1995). Esta realidade torna-se mais perceptível quando se analisa as
dinâmicas da constituição e o funcionamento dos conselhos locais.

CONSULTA E PARTICIPAÇÃO NUM CONTEXTO DE SISTEMA DE


PARTIDO DOMINANTE: O CASO DOS CONSELHOS LOCAIS

Um dos aspectos mais marcantes das reformas políticas a nível local nos
últimos anos em Moçambique foi a constituição e institucionalização dos chama-
dos conselhos consultivos.2 Inicialmente associados às experiências de planifica-
ção participativa na região norte do país, nos finais dos anos 1990, os conselhos

2
Neste artigo, usamos os termos conselhos consultivos, conselhos locais e IPCCs como sinónimos.

“Transformações sem Mudanças?” Desafios para Moçambique 2011 41

Desafios.indb 41 3/29/11 4:53 PM


consultivos vieram a ter mais tarde um enquadramento jurídico-legal, no âmbito
da Lei dos Órgãos Locais do Estado (LOLE) aprovada em 2003 (Lei 8/2003).
Apesar disso, na maior parte dos casos, a constituição dos conselhos locais data
apenas de 2006, num processo muito ligado ao Orçamento de Investimento de
Iniciativa Local (OIIL), hoje conhecido por Fundo de Desenvolvimento Distrital
(FDD). Tidos como espaços de participação e consulta comunitárias, os conse-
lhos locais foram constituídos e desenvolveram-se num contexto político profun-
damente marcado pelo sistema de partido dominante, que condicionou não só
o processo da sua constituição como também o seu funcionamento e natureza.
Este contexto, consequentemente, tem implicações no alargamento da base de
participação a nível local, na medida em que esta última fica muito circunscrita
à dinâmica de implantação das bases do partido dominante. Este facto torna-se
mais evidente quando se analisa não só as dinâmicas de representatividade como
também o próprio processo de participação dentro dos conselhos locais.

REPRESENTATIVIDADE DOS CONSELHOS LOCAIS: O DESAFIO


DA INCLUSÃO POLÍTICA A NÍVEL LOCAL

Apresentados no discurso político como a ilustração de espaços de consulta


e participação comunitárias, os conselhos locais são supostamente constituídos
na base de uma representatividade que procura reflectir o pluralismo a nível local.
Aliás, a LOLE e o seu respectivo regulamento são explícitos a este respeito ao
sublinhar que “integram os conselhos locais as autoridades comunitárias, os repre-
sentantes de grupos de interesse de natureza económica, social e cultural escolhi-
dos pelos conselhos locais ou fórum de escalão inferior em proporção da popu-
lação de cada escalão territorial… O dirigente de cada órgão local pode convidar
personalidades influentes da sociedade civil a integrar o conselho local, de forma a
assegurar a representação dos diversos actores e sectores” (Decreto 11/2005). Esta
ideia é retomada pelo guião sobre organização e funcionamento dos conselhos
locais nos seguintes termos: “os membros dos conselhos locais representam os
vários segmentos da população, quer numa base geográfica das várias localidades,
quer numa base social dos vários grupos populacionais e de interesse” (MAE/
MPD, 2008). Neste sentido, a representatividade é assumida como um princípio
da constituição dos próprios conselhos locais.

42 Desafios para Moçambique 2011 “Transformações sem Mudanças?”

Desafios.indb 42 3/29/11 4:53 PM


Tal como se pode constatar, quer no regulamento da LOLE, quer no guião
sobre organização e funcionamento dos conselhos locais, não se faz nenhuma
menção à representação de diferentes sensibilidades políticas dentro dos conse-
lhos locais. Pretende-se com isso sublinhar a ideia segundo a qual os conselhos
locais não são espaços de representação de interesses de partidos políticos. Aliás,
o anterior guião para organização e funcionamento dos conselhos locais punha
claramente esta ideia nos seguintes termos: “nenhum elemento será seleccionado
para representar algum partido político; contudo, ser membro de um partido po-
lítico não pode ser critério para exclusão de uma pessoa seleccionada por outros
critérios” (MAE/MADER/MPF, 2003: 17).
Embora os dispositivos legais vigentes sobre os conselhos locais façam trans-
parecer a inexistência de interesses político-partidários dentro destes espaços de
consulta e de participação comunitárias, na prática é possível identificar aspectos
importantes que cristalizam as lógicas de ocupação de espaço político dentro dos
conselhos locais. Um estudo sobre experiências de participação e consulta comuni-
tária na planificação distrital, levado a cabo em sete províncias de Moçambique em
2009, identifica quatro categorias de representantes no seio dos conselhos locais,
nomeadamente “governo, autoridades comunitárias, secretários do partido Frelimo,
sociedade civil no geral incluindo camponeses e pescadores, trabalhadores de saúde,
educação, indivíduos influentes, líderes religiosos, representantes do sector privado,
membros da OMM3, OJM4, ex-combatentes e outros (SAL–CDS e Massala, 2009:
16). Se se tomar em consideração que a OMM, a OJM e a associação dos antigos
combatentes são agremiações de carácter político-partidário, na medida em que
se trata de organizações filiadas ao partido Frelimo, pode-se dizer que a questão
da representação de grupos político-partidários dentro dos conselhos locais é uma
realidade. Embora a filiação partidária não seja um critério legalmente reconhecido
para a selecção de membros dos conselhos locais, na prática, acaba jogando um
papel de extrema importância, particularmente no que se refere à representação de
grupos específicos, nomeadamente mulheres ou jovens. Relativamente às mulheres,
por exemplo, alguns casos sugerem que a filiação partidária é um elemento crucial.
A este propósito, falando sobre a composição do conselho local do distrito de Go-
rongosa, por exemplo, F. V., membro da OMM e do conselho local, dizia:

3
Organização da Mulher Moçambicana.
4
Organização da Juventude Moçambicana.

“Transformações sem Mudanças?” Desafios para Moçambique 2011 43

Desafios.indb 43 3/29/11 4:53 PM


(…) quando a guerra começou, estive aqui em Gorongosa mas, quando as coisas começaram
a aquecer, fui para Beira como deslocada … nessa altura, na vila de Gorongosa, só havia
sofrimento, as pessoas sofriam muito … as pessoas não podiam ir às machambas porque era
perigoso por causa da guerra. Voltei para Gorongosa quando a guerra terminou. Quando
voltei, alguns anos depois, comecei de novo as minhas actividades de OMM. Eu sou filha da
Frelimo. Entrei na OMM logo depois da independência. Foi o secretário da Frelimo aqui em
Gorongosa que me puxou para a OMM … depois eu puxei também outras mulheres. Hoje
somos muitas aqui em Gorongosa … mesmo as mulheres que estão nos conselhos consultivos
aqui do posto administrativo de Nhamazi e do distrito são todas da OMM. Por exemplo, no
conselho consultivo do Posto Administrativo somos 6 mulheres, todas da OMM. Não existem
mulheres de outros partidos políticos nem no conselho consultivo do posto, nem do distrito.5

Em alguns casos, representantes de associações nos conselhos locais são tam-


bém membros da Frelimo. Na percepção destes representantes, a sua condição de
membro do partido no poder foi um factor determinante para a sua escolha para
o conselho local. Este é o caso, por exemplo, de C. H., membro da Associação
de Camponeses e Criadores de Gado Bovino e Caprino no distrito de Gorongosa:

Eu sou membro do conselho consultivo do distrito e do fórum local de Tambarara, aqui


na vila sede. Sou membro desde o ano passado de 2009 … sou membro activo da Freli-
mo e isso ajudou muito para eu ser escolhido para ser membro do conselho consultivo e
do fórum … aqui em Gorongosa, a Frelimo está a ganhar muitos membros … mesmo a
população do mato está a passar para a Frelimo. Na selecção dos membros dos conselhos
consultivos não era a população a escolher e por isso são todos membros da Frelimo …
mas agora, parece que as coisas vão mudar … estão a dizer para pormos mais membros
da população.6

O processo de constituição dos conselhos locais é, assim, em grande medida,


estruturado pela dinâmica do sistema de partido dominante, em que a ligação
com o partido no poder se transforma num elemento importante para a selecção
dos membros. A este propósito, é interessante verificar como a ligação que as
lideranças de duas associações de camponeses no distrito de Gorongosa têm com
a Frelimo condiciona a representação de cada uma das associações dentro dos
conselhos consultivos do Posto Administrativo e do Distrito. Trata-se da associa-
ção dos camponeses de Nhabirira e da associação dos camponeses de Nhauranga.
Embora as duas associações se localizem num e noutro lado da serra da Go-
rongosa, elas têm trajectórias sócio-históricas diferentes. A primeira – associação dos
camponeses de Nhabirira – é composta maioritariamente por ex-guerrilheiros da Re-

5
Entrevista com F. V., Gorongosa, 14 de Abril de 2010.
6
Entrevista com C. H. J., Gorongosa, 15 de Abril de 2010.

44 Desafios para Moçambique 2011 “Transformações sem Mudanças?”

Desafios.indb 44 3/29/11 4:53 PM


namo, que cultivam a terra que esteve durante vários anos sob o controlo da Renamo.
A segunda associação – a associação de Nhauranga – é composta maioritariamente por
pessoas que durante a guerra civil estiveram nos centros urbanos da região, tais como
Beira, Dondo, Chimoio e Tete, na condição de deslocados. Diferentemente dos seus
pares da associação dos camponeses de Nhabirira, que estiveram nas matas durante a
guerra civil e, por isso mesmo, distantes do Estado durante vários anos, os membros da
associação de Nhauranga nunca perderam o contacto com o Estado e muitos deles são,
de facto, membros da Frelimo. As duas associações gerem dois sistemas de regadios e
cultivam extensas áreas agrícolas nas encostas da serra da Gorongosa. Com 58 mem-
bros cultivando uma área de cerca de 64 hectares, a associação de Nhabirira não tem
representante em nenhum escalão dos conselhos consultivos do distrito de Gorongosa.
Contrariamente, a outra associação – de Nhauranga – que conta com 28 membros –
está representada no conselho consultivo distrital, através do seu presidente, ele próprio
antigo combatente e membro da Frelimo, tal como mencionou nas suas palavras:

(…) eu nasci aqui em Gorongosa e tenho 63 anos. Durante a guerra estive no Chimoio e re-
gressei para Gorongosa em 1994. Sou antigo combatente, membro da Frelimo … dois anos
depois do meu regresso do Chimoio, eu e outros camponeses fundámos esta associação e,
em 2003, com a ajuda da FAO, foi construído o nosso regadio. Sobre o conselho local, eu
sou membro desde 2003 … isso aconteceu assim: naquele ano [2003] eu estava em Tete
e fui escolhido pelo administrador para ser membro do conselho consultivo do distrito …
quando voltei de Tete, disseram-me que fui escolhido para ser membro do conselho consul-
tivo … lembro-me que, naquela altura, muitos foram escolhidos pelo administrador. Hoje a
nossa associação funciona bem e até já apresentámos um projecto que foi financiado pelos
7 milhões. A associação recebeu 125 mil meticais … o projecto foi aprovado pelo conselho
consultivo do distrito (…).7

A dinâmica da constituição dos conselhos locais está também ligada à ma-


neira como os actores locais, nomeadamente os administradores distritais, se
apropriam e interpretam a legislação referente à governação local. Assim, por
exemplo, no que se refere à representatividade da mulher (mínimo 30%), pouco
ou quase nunca se questiona sobre o grupo de proveniência dessas mulheres, facto
que muitas vezes resulta na quase exclusiva presença de mulheres provenientes
da OMM, tal como ilustra o caso de Gorongosa acima mencionado. Em outros
casos, nota-se um esforço em incluir nos conselhos locais representantes religio-
sos, particularmente das igrejas presentes a nível local. Mas, mesmo nestes casos,

7
Entrevista com D. N., Gorongosa 14 de Abril de 2010.

“Transformações sem Mudanças?” Desafios para Moçambique 2011 45

Desafios.indb 45 3/29/11 4:53 PM


é interessante verificar a maneira como a selecção desses representantes é condi-
cionada pelas lógicas de sistema de partido dominante. No caso de Gorongosa,
os dois pastores seleccionados para o conselho local do distrito são membros do
partido Frelimo e disseram terem sido chamados para fazerem parte do conselho
local pelo próprio administrador distrital, tal como um deles contou:

(…) sou pastor da Igreja Fé dos Apóstolos de Moçambique desde 1969. Quando a inde-
pendência chegou em 1975, eu estava aqui em Gorongosa. Até 1976, estava tudo bem, mas
a confusão começou em 1977 quando a Frelimo começou a fechar as igrejas. Nós tivemos
que ir rezar muito longe, cerca de 12 km fora de Gorongosa. Nunca abandonei Gorongosa,
mesmo durante a guerra, fiquei sempre aqui e nunca deixei de ser pastor e nunca aceitei ser
membro da Frelimo … mas as coisas mudaram em 2002. Em 2002, chamaram-me lá no
partido [sede do partido Frelimo] e disseram-me: ‘então, pastor, o senhor. é presidente do
Encontro Fraternal [associação das Igrejas a nível local], não acha melhor ser membro do
partido [Frelimo]? Nessa altura eles [Frelimo] estavam a desconfiar que eu estava para me
filiar à Renamo … Então, eu aceitei ser membro da Frelimo, porque eu achei melhor assim
para mim e para os crentes da minha Igreja. E os crentes disseram-me: pastor, foi melhor
assim porque isso vai facilitar a nossa vida com o partido [Frelimo] e com o governo. E em
2007, fui escolhido pelo administrador para ser membro do conselho consultivo do distrito.
Nessa altura, ele disse-me: como o pastor colabora bem com a Frelimo e é presidente do
Encontro Fraternal [associação das Igrejas a nível local], o senhor. vai passar a ser membro
do conselho consultivo do distrito … e eu aceitei (…).8

Como se pode constatar a partir do extracto de entrevista acima citado, a


presença do pastor no conselho consultivo surge como estando associada, por um
lado, à lógica de reforço de influência da Frelimo sobre diferentes grupos a nível
local e, por outro lado, à legitimação da ideia de representatividade de diversos
segmentos sociais dentro dos conselhos locais. Com efeito, não estando ligado a
nenhuma Instituição de Participação e Consulta Comunitárias (IPCC) dos níveis
inferiores (localidade ou posto administrativo), o pastor aparece dentro do con-
selho local do distrito como resultado da vontade do próprio administrador no
âmbito da sua prerrogativa de “propor personalidades influentes da sociedade civil
… de forma a assegurar a representatividade dos diversos sectores” (MAE/MPD,
2008). Mas, “a representatividade dos diversos sectores” a nível local é, neste con-
texto, filtrada pela dinâmica político-partidária. Assim, no caso acima mencio-
nado, por exemplo, a ligação do pastor com o partido no poder surge como um
aspecto fundamental, que condicionou o seu convite pelo administrador para ser
membro do conselho local do distrito. Neste contexto, a influência do partido no

8
Entrevista com F. A., Gorongosa, 15 de Abril de 2010.

46 Desafios para Moçambique 2011 “Transformações sem Mudanças?”

Desafios.indb 46 3/29/11 4:53 PM


poder sobre a constituição dos conselhos locais parece óbvia, facto que faz com
que os partidos da oposição, particularmente a Renamo, considerem os conselhos
locais como espaços controlados pela Frelimo. A este propósito, o presidente da
liga juvenil da Renamo ao nível do distrito de Gorongosa dizia:

(…) nós nunca conseguimos ter alguém da Renamo nos conselhos consultivos. O go-
verno diz que os conselhos consultivos são para fazer toda a gente participar na vida do
distrito, mas eles [governo] não aceitam ter nossos membros lá … só aceitam pessoas que
são membros da Frelimo. Por isso, para nós [Renamo] estes conselhos consultivos são
todos da Frelimo (…).9

Em muitos casos, a predominância de membros da Frelimo no seio dos con-


selhos locais pode ser entendida como o resultado de diferentes factores, particu-
larmente do sistema de partido dominante e da centralização do processo de ins-
titucionalização das IPCCs na figura dos administradores. Assim, existem relatos
de diferentes pontos de Moçambique dando conta do processo de indicação dos
membros para os conselhos locais, em que os administradores desempenharam
um papel determinante no perfil dos membros seleccionados (PNGL - Centro
2007). Isto aconteceu sobretudo com os conselhos consultivos que surgiram a
partir de 2006, no âmbito da implementação da LOLE e muito associados ao
processo de uso do OIIL. Algumas actas das sessões dos conselhos consultivos
distritais mostram claramente como os presidentes dos órgãos (administradores)
procuram fazer passar mensagens político-partidárias. Por exemplo, numa das ac-
tas das sessões do conselho consultivo pode-se ler o seguinte:

Nos diversos, a senhora presidente da sessão [a administradora do distrito] exortou aos


participantes da necessidade de mobilizar a população para acompanhar as crianças a
vacinação. Ainda na sua intervenção agradeceu a todos que directa ou indirectamente tudo fizeram
para a vitória da Frelimo e Camarada Presidente Armando Guebuza (Distrito de Marracuene,
2009, s/p.) (sublinhado nosso).

A dinâmica do processo da constituição dos conselhos locais mostra, assim,


uma certa influência e controlo do partido no poder sobre estas instituições, en-
quanto espaços de participação, facto que se tem traduzido no reforço da exclu-
são política. Essa influência e controlo consubstanciam-se sobretudo na maneira
como os próprios membros das IPCCs são seleccionados, o que traz implicações

9
Entrevista com I. Z. M., Gorongosa, 17 de Abril de 2010.

“Transformações sem Mudanças?” Desafios para Moçambique 2011 47

Desafios.indb 47 3/29/11 4:53 PM


em termos de alargamento da base de participação a nível local. Neste contexto,
à semelhança do que acontecia no período do regime monopartidário, a Frelimo
continua a ser um vector fundamental de participação no espaço público a nível
local, na medida em que o acesso dos diferentes grupos locais (jovens, mulheres,
associações, igrejas) à representação nos conselhos locais está associado à ligação
com a Frelimo. Além disso, a participação local foi sendo cada vez mais reduzida
a uma simples consulta.

QUANDO PARTICIPAÇÃO SE RESUME A UMA SIMPLES CONSULTA:


O DESAFIO DA TRANSFORMAÇÃO DOS CONSELHOS LOCAIS EM
INSTRUMENTOS DE GOVERNAÇÃO LOCAL

Um levantamento de base levado a cabo pelo Ministério de Planificação e


Desenvolvimento (MPD), em 2009, no âmbito do Programa Nacional de Plani-
ficação e Finanças Descentralizadas (PPFD) sublinha que, numa amostra de 121
distritos, os conselhos locais foram estabelecidos a todos os níveis em cerca de
86% dos distritos (MPD, 2010). Inicialmente circunscrito a algumas províncias,
nomeadamente Nampula, Cabo Delgado, Sofala e Manica, o processo de estabe-
lecimento dos conselhos locais acelerou-se com a aprovação da Lei dos Órgãos
Locais do Estado e o seu regulamento em 2003 e 2005, respectivamente (Lei
8/2003; Decreto 11/2005), e estendeu-se para todo o país com a introdução do
Orçamento de Investimento de Iniciativa Local, a partir de 2006.
Desde as primeiras experiências de planificação distrital, que datam dos finais
dos anos 1990, os conselhos locais foram associados ao processo de tomada de
decisões a nível local. Com a aprovação da legislação sobre os Órgãos Locais do
Estado, a ideia da participação dos conselhos locais no processo de desenvolvi-
mento distrital passou a ser recorrente. Assim, quer no primeiro quer no segundo
guião sobre a organização e funcionamento dos conselhos locais, a participação
aparece como um dos princípios fundamentais de funcionamento das IPCCs. No
âmbito da LOLE, essa participação consubstancia-se no envolvimento dos conse-
lhos locais no processo de elaboração e aprovação dos planos distritais, nomeada-
mente estratégicos e anuais (Decreto 11/2005).
Todavia, quando se olha para experiências de diferentes distritos, constata-se
níveis diferentes do envolvimento dos conselhos locais na elaboração e aprovação

48 Desafios para Moçambique 2011 “Transformações sem Mudanças?”

Desafios.indb 48 3/29/11 4:53 PM


dos planos distritais. Relativamente aos Planos Estratégicos de Desenvolvimento
Distrital (PEDDs), por exemplo, um estudo recente realizado em 14 distritos do
país mostra que, em alguns distritos, houve pouco envolvimento dos conselhos lo-
cais na elaboração e aprovação dos PEDDs (SAL-CDS e Massala Consult, 2009,
40). Quanto aos Planos Económicos Sociais e Orçamentos Distritais (PESODs),
existe igualmente uma variação, ao longo do país, na maneira como os conselhos
locais participam no processo da sua elaboração. Com efeito, embora a tendência
geral aponte para o envolvimento dos conselhos locais na elaboração dos PESO-
Ds (MPD, 2010), ainda há distritos onde os membros das IPCCs não estão con-
vencidos da sua participação efectiva no processo da formulação dos PESODs,
identificando, nestes casos, as Equipas Técnicas Distritais (ETDs) como sendo os
autores dos planos (SAL-CDS and Massala Consult, 2009: 44).
No que se refere à aprovação dos planos, o envolvimento dos conselhos
locais também varia bastante. Em muitos casos trata-se mais de validação dos
PESODs do que propriamente da sua aprovação. Mesmo assim, nem todos os
PESODs são validados pelos conselhos locais distritais em todos os distritos. Por
exemplo, no levantamento de base acima referido feito pelo MPD, constata-se
que, “numa amostra de 125 distritos, 105 distritos (84%) indicaram que tiveram o
PESOD-2008 validado pelo CCD” (MPD, 2010, p. 47).
Se é verdade que a questão da participação está muito associada ao papel dos
conselhos locais no processo de governação local, também não é menos verdade
que a dinâmica da institucionalização e funcionamento das IPCCs tem vindo a
mostrar uma cada vez maior redução da participação a uma simples consulta.
Aliás, a este propósito, é interessante verificar a maneira como se foi passando
de conselhos locais de natureza mais deliberativa (particularmente no âmbito das
primeiras experiências de planificação distrital participativa) para conselhos locais
fundamentalmente de carácter consultivo. Com efeito, se no âmbito do regula-
mento da Lei dos Órgãos Locais do Estado os conselhos locais ainda tinham
espaço para a aprovação de algumas matérias a nível distrital, nomeadamente do
plano de actividades e do respectivo relatório de prestação de contas da gerência
do desenvolvimento distrital (Decreto 11/2005), curiosamente, no guião sobre or-
ganização e funcionamento dos conselhos locais, recentemente aprovado, a única
matéria sobre a qual os conselhos locais têm realmente poder de decisão são os
pedidos de concessão de financiamento de projectos de iniciativa local, que os
conselhos locais podem ou não aprovar. Quanto a outras matérias, como, por

“Transformações sem Mudanças?” Desafios para Moçambique 2011 49

Desafios.indb 49 3/29/11 4:53 PM


exemplo, o PESOD, o plano de actividades e o respectivo relatório de prestação
de contas da gerência, os conselhos locais podem apenas apreciar e dar parecer ao
governo distrital (MAE/MPD, 2008).
Como se pode constatar, a participação dos conselhos locais no processo de
tomada de decisões em assuntos de extrema importância para a vida do distrito,
como é por exemplo a aprovação dos PESODs e dos relatórios das actividades
dos governos distritais, resume-se sobretudo a um exercício de consulta. Isso tem
implicações não só na maneira como os próprios conselhos locais olham para o
PESOD, como também no papel do PESOD no processo de governação local.
Com efeito, embora o balanço dos planos distritais, particularmente os PESODs,
esteja previsto na legislação (Art. 120, Decreto 11/2005), na prática, a discussão do
processo de implementação dos PESODs parece um assunto marginal nas sessões
dos conselhos locais. Por exemplo, uma análise das actas das sessões dos conse-
lhos locais, feita com base em 223 actas, referentes a 2007, correspondentes a 75
distritos, mostra que apenas em 36% das actas analisadas, o PESOD aparece como
tema discutido nos conselhos locais (Gonçalves, 2008: 10). Na maior parte dos
casos, o assunto mais discutido pelos conselhos locais é o OIIL, aparecendo como
tema discutido em cerca de 77% das actas analisadas (Gonçalves, 2008: 10). Aliás,
isso reflecte-se também em algumas entrevistas feitas a membros do conselho
local distrital de Gorongosa. Assim, por exemplo, perguntado sobre as actividades
do conselho local distrital, um dos membros respondeu nos seguintes termos:

Quando estamos nas reuniões do conselho consultivo, o que fazemos muitas vezes é
aprovar os projectos [do OIIL]. O presidente da mesa [o administrador] lê projecto por
projecto e pergunta-nos se conhecemos o dono do projecto … e nós dizemos se o dono é
sério ou não. É assim que nós trabalhamos nas reuniões do conselho consultivo … Além
de aprovar os projectos, o conselho consultivo não tem outras tarefas (…).10

Assim, com base nos elementos acima apresentados, pode-se considerar que,
em muitos casos, os conselhos locais têm um papel marginal não só no que se re-
fere à elaboração dos PESODs como também no processo da sua execução e fis-
calização. Este facto é uma das consequências do sistema de partido dominante a
nível local, consubstanciado na tendência cada vez mais centralizadora do Estado.
As limitações que o guião sobre a organização e funcionamento dos conselhos
locais traz, em termos de participação efectiva no processo deliberativo, cristalizam

10
Entrevista com F. A., Gorongosa, 15 de Abril de 2010.

50 Desafios para Moçambique 2011 “Transformações sem Mudanças?”

Desafios.indb 50 3/29/11 4:53 PM


essa tendência centralizadora do Estado e contribuem, igualmente, para que os con-
selhos locais tenham um papel marginal no processo de tomada de decisões.

CONCLUSÃO

Embora as reformas políticas ocorridas em Moçambique nos anos 1990 te-


nham criado novas instituições a todos os níveis, elas não trouxeram necessaria-
mente mudanças significativas em termos de funcionamento dessas instituições.
Com efeito, a estruturação do campo político saído do processo da transição po-
lítica conduziu à constituição de um sistema de partido dominante, cristalizado
numa cada vez maior captura do Estado pelo partido no poder, um enfraque-
cimento contínuo dos partidos da oposição e uma espécie de fechamento dos
espaços de participação política a todos os níveis.
Olhando para os espaços de participação local criados a nível dos distri-
tos, constata-se que a sua dinâmica de funcionamento é estruturada pelo sistema
de partido dominante. Assim, a representatividade dentro dos conselhos locais é
filtrada pela ligação partidária que se tem com o partido no poder. À semelhan-
ça do tempo de partido único, a Frelimo continua sendo o vector principal de
participação no espaço público a nível distrital, facto que acentua a exclusão e a
intolerância políticas e afunila a base de participação local. Além disso, a tendência
centralizadora do Estado, muito ligada às lógicas e dinâmicas do sistema de par-
tido dominante, faz com que os espaços criados no âmbito da democratização do
país, nomeadamente os conselhos locais tenham um papel marginal no processo
de tomada de decisões a nível local e, por conseguinte, sejam menos usados como
um verdadeiro instrumento de governação local inclusiva e participativa.

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Desafios.indb 53 3/29/11 4:53 PM


Desafios.indb 54 3/29/11 4:53 PM
DESCENTRALIZAÇÃO EM CONTEXTO DE
PARTIDO “DOMINANTE”
O CASO DO MUNICÍPIO DE NACALA PORTO
DOMINGOS DO ROSÁRIO

INTRODUÇÃO

O dia 19 de Novembro de 2008, data da realização das terceiras eleições


municipais, marca o regresso do status quo na governação local em Moçambique.
Esta data constitui um revés político para a Renamo que, em 2003, tinha marcado
a história política do país ao infligir uma primeira derrota eleitoral à Frelimo nos
municípios da Beira (em Sofala, no centro do país)1 e de Angoche, Ilha de Moçam-
bique e Nacala Porto (municípios situados na região costeira de Nampula, habitat
de duas velhas elites islâmico-crioulas e portuguesas, onde se desenvolveu um
sentimento identitário diferente do das elites sulistas da Frelimo, inteiramente mo-
deladas segundo características do colonialismo português urbano do século XX)2.
Este artigo tem como objectivo principal mostrar que, num sistema de parti-
do dominante e de municípios de penúria, sem base económica e tributária, o su-
cesso da governação local depende altamente da vontade do poder central. Numa
primeira parte analisaremos o processo político que conduziu à adopção da Lei
2/97 e à realização das primeiras eleições autárquicas de 1998. Mostraremos que
os resultados eleitorais obtidos pela Renamo nas eleições de 1994 jogaram um
papel determinante para a não implementação da Lei 3/94 e na adopção de uma
nova lei sobre as autarquias locais, a Lei 2/97. No município de Nacala Porto,
objecto do nosso estudo, a ausência da Renamo do processo eleitoral de 1998 cul-
minou com o surgimento de uma organização da sociedade civil local (OCINA)

1
Em Marromeu, as eleições locais de 2003 produziram uma coabitação: a Renamo elegeu o Presi-
dente do Conselho Municipal, João Germano, com 50,01 % dos votos, e a Frelimo ganhou uma
maioria na Assembleia Municipal, com 50,22% dos votos.
2
Para um estudo aprofundado da vitória da Renamo nos municípios da região costeira da Pro-
víncia de Nampula, vide: D. M. do Rosário, Les mairies des “autres”: Une analyse politique, sócio-
-historique et culturelle des trajectoires locales. Les cas d’Angoche, de l’Île de Moçambique et de Nacala
Porto, Tese de Doutoramento em Ciência Política, Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux,
Bordeaux, Abril 2009.

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 55

Desafios.indb 55 3/29/11 4:53 PM


que, embora tenha sido utilizada pela população para mostrar o seu desconten-
tamento em relação ao Estado-Frelimo, não conseguiu capitalizar este potencial,
tendo sido capturada pela rede clientelista instalada no município, o que não lhe
permitiu jogar um papel democratizador.
Numa segunda parte analisaremos a gestão municipal da Frelimo durante o
primeiro mandato (1998-2003), os factores que, numa eleição competitiva, expli-
cam a vitória da Renamo nas segundas eleições locais e as estratégias que foram
depois adoptadas pelo Estado-Frelimo para recuperar, segundo Manuel Tomé,
então Secretário-Geral do partido Frelimo, o município “que estava sob gestão rui-
nosa e danosa por parte de pessoas que não têm instrumentos para fazer política”
(Notícias, 13 de Fevereiro de 2009).

DA CONTROVERSA LEI 3/94 ÀS AUTARQUIAS LOCAIS

A partir de 1991, a questão da descentralização tomou dimensão e a reforma


dos órgãos locais do governo foi debatida depois de uma decisão do Conselho de
Ministros em Maio de 1992. A adopção de uma política de descentralização, que
se esboçou com a aprovação da Lei 3/94, era necessária porque as Assembleias do
Povo (de nível distrital e provincial) que existiam sob o regime do partido único ti-
nham perdido o seu papel com a assinatura dos acordos de paz (1992) que previam a
realização de eleições pluralistas. Assim, não havia, desde então, nenhum órgão inter-
mediário eleito que servisse de ponte entre o cidadão e o Estado. E as eleições gerais
de 1994 apenas reforçavam o peso da capital, não obstante o facto de os deputados
dos diferentes círculos eleitorais serem, em princípio, residentes nas suas províncias.
A primeira fase do projecto de descentralização, marcada pela Lei 3/94 que
criava os distritos municipais, começa em 1994 com a elaboração pelo governo do
Programa da Reforma dos Órgãos Locais (PROL) com o objectivo de reformular
o sistema administrativo centralizado, pouco eficiente e desequilibrado, então em
vigor. A perspectiva era estabelecer 23 distritos municipais urbanos (as principais
cidades e vilas do país) e 128 distritos municipais rurais. Esta lei foi aprovada por
unanimidade no fim da última sessão da assembleia monopartidária, no mês de
Setembro de 1994. Mas foi uma unanimidade “não consensual” porque havia sus-
citado grandes objecções oriundas de vários quadrantes, preocupados não só com
uma possível fragmentação do Estado, mas também com uma eventual perda do

56 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 56 3/29/11 4:53 PM


controlo sobre os rendimentos económicos. A autonomia na gestão de recursos
locais podia intensificar a competição entre as estruturas do partido ao nível cen-
tral e as elites do poder local.
Do ponto de vista da divisão administrativa, os distritos municipais coincidi-
riam com os distritos existentes, evitando assim um novo desenho do território. O
mais importante nesta lei era que tanto as zonas rurais quanto as urbanas recebiam,
através da criação dos distritos municipais urbanos e rurais, o mesmo tratamento e a
mesma aplicação da lei e deviam, no exercício de seu poder, manter o respeito e esta-
belecer boas relações com as autoridades tradicionais existentes nos seus territórios.
No plano das finanças locais, os distritos municipais beneficiariam de um
regime financeiro e patrimonial próprio. Disporiam de seu próprio orçamento e
as suas receitas seriam provenientes dos impostos municipais, taxas, tarifas e servi-
ços municipais, ou de rendimentos do seu capital, em termos de bens mobiliários
ou imobiliários, de participação financeira, da venda de bens patrimoniais. Este
artigo parecia paradoxal, na medida em que, depois da guerra, muitos dos futuros
distritos municipais estavam completamente destruídos e não tinham sequer ins-
talações para os órgãos municipais.
Entretanto, antes que este projecto tivesse avançado para a sua concretiza-
ção, uma nova fase se abriu em 1996 com a Lei 9/96, que introduziu modifica-
ções na Constituição no que diz respeito ao “poder local”, e com a Lei 2/97, que
anulava a Lei 3/94 e que previa agora, no lugar dos distritos municipais, a criação
de “autarquias locais”, fundamentalmente nas cidades e vilas e de forma gradual.

O EFEITO POLÍTICO DAS ELEIÇÕES GERAIS DE 1994


Nas eleições de 1994, verifica-se uma bipolarização do espaço político: a
Frelimo obteve 44%3 dos votos, contra 38%4 da Renamo. Além da demarcação
regional, também se registou uma dicotomia rural e urbana nestas eleições. As
populações das cidades tinham, na sua maioria, votado pela Frelimo (59%) contra
(29%) da Renamo. Embora não tão marcadamente, o voto das populações das
zonas rurais era favorável à Renamo - 41% contra 40% da Frelimo. Então, foi no

3
A Frelimo ganha as eleições em todas as províncias do sul do país, Maputo, Maputo-Província,
Gaza e Inhambane, com mais de 80% dos votos e igualmente nas do extremo Norte, nomeada-
mente Niassa (47%) e Cabo Delgado (58%).
4
A Renamo impôs-se em todas as províncias do centro e Este do país, nomeadamente: Sofala
(79%), Manica (42%), Tete (35%), Zambézia (53%) e Nampula (41%).

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 57

Desafios.indb 57 3/29/11 4:53 PM


parlamento que a “batalha” entre os dois antigos inimigos prosseguiu, durante
quatro anos (1994-1998), sobre a reforma municipal e sobre a promulgação das
leis eleitorais, devido às divergências profundas entre os dois principais partidos
com a mudança do estilo de descentralização e a adopção de um sistema gradual.
Em suma, o que aconteceu entre essas duas leis de descentralização e que esti-
veram na base da brusca alteração verificada foram as eleições cujos resultados mos-
travam a grande probabilidade de a Renamo poder vir a controlar os órgãos eleitos
num grande número de distritos municipais. Ora, como a Frelimo tinha obtido uma
maioria absoluta na Assembleia da República, estava em condições de conduzir as
necessárias mudanças legais para que tal não acontecesse e foi isso que fez.

MUNICIPALIZAÇÃO GRADUAL, OU GRADUALISMO PRODUTOR DE


DIFERENCIAÇÕES SOCIAIS?
Revogando a Lei 3/94 sobre os distritos municipais (rurais e urbanos), foi
aprovada a Lei 2/97. Esta lei designava como circunscrição territorial municipal não
o distrito, mas as cidades, vilas e povoações sede de postos administrativos, excluin-
do assim uma parte do território rural e a sua população. Os cidadãos passam a estar
divididos em duas categorias: uma primeira, constituída por aqueles que tinham di-
reito de ser eleitos ou eleger seus representantes locais, e a segunda, constituída por
um grande número de habitantes das áreas rurais que se viam privados do direito
de voto em eleições regulares e democráticas para a escolha de seus representan-
tes locais. Assim, fácil é de compreender a reivindicação de certos segmentos da
população que, tendo votado em 1994, se queixavam de ter sido definitivamente
excluídos de eleger os seus representantes locais. O facto de uns terem direito e ou-
tros não foi interpretado como sendo o regresso ao sistema centralizado de partido
único, onde certas categorias, como por exemplo os líderes religiosos ou os chefes
das chefaturas, não podiam votar nem ser eleitos. Ao mesmo tempo foi introduzido
o princípio de “gradualismo” na criação dos municípios, em função da existência de
uma série de critérios que seriam avaliados pelo governo antes de qualquer decisão.
A Renamo, que era favorável à Lei 3/94, considerava que as modificações intro-
duzidas por esta lei eram inaceitáveis e exigia a realização de eleições em todo o país.
Para a Renamo, a aplicação gradual e progressiva da lei municipal era uma estratégia da
Frelimo para ganhar eleições nas suas bases urbanas. Era injustificável que as eleições
tivessem apenas lugar em algumas partes do país. Reclamava pois que fossem organiza-
das, não em ordem dispersa, como pretendia o governo da Frelimo, mas no mesmo dia

58 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 58 3/29/11 4:53 PM


em todo o território nacional, quer dizer, nas 23 cidades e 128 distritos do país. Por seu
lado, o governo estimava que era impossível organizar as eleições municipais em todo
o território, devido ao estado de destruição em que se encontrava a maior parte dos
distritos e mostrava também o quanto era ilusório atribuir autonomia e competências a
municípios que não teriam nenhuma capacidade administrativa e financeira para exer-
cê-las. Para o Estado-Frelimo, também era impossível realizar eleições em todo o terri-
tório, porque os recursos financeiros disponíveis eram insuficientes não só para cobrir o
custo das operações eleitorais, mas também para instalar os cerca de 5 000 membros das
assembleias municipais e seus presidentes em tão pouco tempo (Lachartre, 2000: 326).
A Renamo recusa as propostas do Governo e este recusa as da Renamo, o
que levou ao boicote, pela Renamo, do procedimento parlamentar e à aprova-
ção da nova Lei municipal 2 /97, sem consenso, mas pela maioria da Frelimo e
pela União Democrática. Apesar da aprovação da lei, faltava ainda tomar medidas
complementares para torná-la operacional.
As contradições entre a Renamo e a Frelimo alargavam-se à questão da legislação
complementar para o processo eleitoral, nomeadamente a criação de uma Comissão
Nacional de Eleições (CNE) e a sistematização/actualização do recenseamento eleito-
ral, mas também à definição do regime de tutela administrativa e financeira do Estado,
ao sistema de finanças locais e do património das autarquias locais. No seu conjunto, os
debates em torno destes assuntos no parlamento foram marcados pela grande intensi-
dade dos confrontos entre os dois partidos e culminaram com a ameaça, que se viria a
concretizar, da Renamo de não participar nas primeiras eleições municipais. Foi neste
ambiente de tensão que a data das primeiras eleições autárquicas foi marcada, sem ou
com a presença da Renamo e sem ou com apoio da comunidade internacional.

AS ELEIÇÕES LOCAIS DE 1998 EM NACALA PORTO:


A EMERGÊNCIA DA SOCIEDADE CIVIL?

Sem acordo entre os dois principais partidos, a data das eleições foi fixada ini-
cialmente para o dia 27 de Dezembro de 1997, em pleno período das festas do fim do
ano, acabando por ser adiadas para 29 de Maio de 1998. Manuel Tomé dizia então:

Mas se a Renamo mantiver sua vontade de não participar, nós vamos aceitar sua esco-
lha. É a Renamo que vai perder ainda mais de sua credibilidade e as eleições terão na
mesma lugar, … não haverá deficit democrático nenhum provocado pela ausência duma

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 59

Desafios.indb 59 3/29/11 4:53 PM


formação política nas eleições … mas pode haver um deficit democrático se o povo não
participar nas eleições … e isto não vai acontecer (Notícias, 2 de Março de 1998).

E, num outro contexto, Joaquim Chissano, então Presidente da República,


também insistia no mesmo ponto:

A credibilidade das eleições seria ditada pelos resultados … se pouca gente participasse, podia-
-se questionar a credibilidade das eleições, … mas se a vontade do povo fosse bem manifesta,
as eleições iam ganhar credibilidade. Por isso, esperava que o povo tivesse bem compreendido
que o processo é guiado duma forma transparente, com o desejo de construir um processo
democrático baseado nas leis, nas estruturas e instituições, e por isso o povo iria participar nas
eleições e vai se dirigir as urnas para dizer o que quer (Notícias, 14 de Março de 1998)

À reivindicação da Renamo e da maioria dos pequenos partidos extraparla-


mentares sobre o processo eleitoral juntava-se também o protesto dos muçulma-
nos, pelo facto de a data fixada pelo Conselho de Ministros para a realização de
eleições municipais ser uma sexta-feira, o dia da reza mais importante dos muçul-
manos. Estes acusavam o governo de faltar ao respeito à sua religião ao fixar a data
das eleições locais num dia considerado por eles como o mais sagrado.

A ORGANIZAÇÃO DAS CANDIDATURAS INDEPENDENTES DE NACALA NA


OPOSIÇÃO EM NACALA PORTO
Apesar do afastamento da Renamo e dos pequenos partidos, as primeiras elei-
ções autárquicas tiveram finalmente lugar no dia 30 de Junho de 1998. A Frelimo
conseguiu maiorias absolutas nas assembleias municipais e elegeu todos os seus can-
didatos à presidência dos municípios. No entanto, em Nacala Porto - a OCINA (Or-
ganização das Candidaturas Independentes de Nacala), dirigida por João Baptista
Mussa, antigo delegado distrital da Renamo, que tinha abandonado esta formação
política em função da decisão tomada ao nível central de não participar nas eleições,
conseguiu eleger 11 dos 39 membros da Assembleia Municipal local.
Quarenta e cinco dias depois da publicação dos resultados oficiais pela Co-
missão Nacional de Eleições, e durante o processo de homologação pelo Tribunal
Supremo,5 foram detectados erros considerados muito graves.6 Segundo o Tribunal

5
Entre os sete juízes conselheiros do Tribunal Supremo que analisaram o processo eleitoral muni-
cipal de 1998 para sua homologação, dois abstiveram-se e pediram a realização de um inquérito
ao processo eleitoral.
6
Não tinham sido contabilizados 580 eleitores em Monapo, 871 em Nampula, 847 em Pemba e
488 em Quelimane.

60 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 60 3/29/11 4:53 PM


Supremo, em Nacala Porto, para além das acentuadas diferenças entre o número
de votantes e os votos expressos, os resultados de quatro mesas de voto tinham
sido transferidos de um partido para o outro. De facto, os resultados intermedi-
ários, resultantes da contagem feita ao nível local, confirmam a transposição dos
votos da OCINA a favor da Frelimo (CMCN, 1998a). Ora, como os votos eram
da OCINA, isto podia inverter o resultado das eleições e esta teria de facto algu-
mas centenas de votos mais do que a Frelimo, dando-lhe a maioria na Assembleia
Municipal.
Se houve fraude deliberada nunca saberemos, mas o importante politicamen-
te é compreender que os dirigentes e as estruturas eleitorais ao nível local, uma
grande parte do eleitorado e alguns quadros da Frelimo ao nível local (Matsimbe,
2004) sabiam que a OCINA eventualmente teria ganho as eleições e que a Frelimo se
tinha mantido no poder em Nacala Porto através da fraude. A Frelimo tinha-se
aproveitado do seu estatuto hegemónico e da influência que exerce sobre e nas
instituições eleitorais a todos os níveis para inverter os resultados eleitorais. Não
obstante, a sociedade civil tinha emergido, tinha-se politizado e institucionalizado
de forma a jogar o seu papel democratizador (Otayek, 2002).
Mas a OCINA acabou sendo uma oposição efémera porque o presidente
desta organização foi nomeado vereador, uma estratégia das autoridades munici-
pais que serviu para desagregar esse contrapoder associativo. A OCINA expulsa
o seu presidente, acusando-o de trabalhar para a Frelimo e filiar-se a um partido
político (Notícias, 6 de Março de 1999).
As relações entre a Assembleia e o Conselho Municipal não eram cordiais. O
ponto da discórdia residia não no facto de o presidente do Conselho Municipal assu-
mir um duplo papel (era responsável pela gestão municipal e Representante do Esta-
do ao nível local), mas – e esse era o problema fundamental - na desigual distribuição
da renda entre os membros da Assembleia e do Conselho Municipal (Notícias, 27
de Outubro de 1999). Segundo a Lei 2/97, as remunerações dos membros das as-
sembleias municipais eram calculadas a partir do salário do presidente, dependente
do volume de receitas cobradas no município. Para a OCINA, nada justificava que
numa cidade como Nacala, onde existia um dos portos mais importantes do país,
o orçamento para o funcionamento do município dependesse das subvenções do
governo central. Para a OCINA, as receitas provenientes do porto deviam ser utili-
zadas localmente. Isso daria uma verdadeira autonomia financeira e administrativa,
livrando-se assim o município das coações centrais e tornando-se Nacala Porto numa

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 61

Desafios.indb 61 3/29/11 4:53 PM


verdadeira unidade descentralizada (CMCN, 1999). A dependência de fundos do
governo central tornava o governo municipal de Nacala Porto uma extensão sua. Isto
resultava do facto de a ideia de descentralização não ter sido ainda assumida pelos
dirigentes da Frelimo ao nível central, que viam nela o fim da sua autoridade. Para
eles a descentralização confundia-se com a desconcentração.

A FRELIMO NO PODER EM NACALA: O DUPLO PAPEL DO PRESIDENTE DO


CONSELHO MUNICIPAL E A GESTÃO CLIENTELISTA DO PODER
Durante todo o primeiro mandato dos órgãos locais (1998-2003), o presidente
do Conselho Municipal de Nacala Porto era responsável pela gestão municipal e, ao
mesmo tempo, representante do Estado. Exercia um duplo papel e era submetido a
um fenómeno de exterioridade provocado pela sua subordinação ao governo central.
O exercício deste duplo papel criava conflitos entre as diferentes instituições no seu
domínio de competências.7 A oposição (OCINA) e os membros da Frelimo na As-
sembleia Municipal acusavam o Presidente de servir mais os interesses do governo
central e seus próprios interesses do que os do município. Por exemplo, muitos pedi-
dos feitos pelos responsáveis das unidades administrativas autárquicas periféricas para
a construção de infra-estruturas sociais, como hospitais e escolas, eram completamen-
te ignoradas, por falta de dinheiro e porque não constituíam prioridade de momento
(Entrevista com Cetade Juma, 16 de Agosto de 2006). O discurso de um membro da
bancada da Frelimo na Assembleia Municipal testemunha esta tendência:

Há lixo em todas as ruas, o conselho municipal deve fazer alguma coisa para resolver o
problema … Os problemas de água, de electricidade, de estradas, a falta de escolas e de
postos de saúde nos bairros rurais da cidade estão longe de ser resolvidos, contrariamente
às promessas feitas durante a campanha eleitoral (CMCN, 2001).

De facto, os recursos transferidos pelo Estado para o município eram geridos


por uma rede clientelista instalada no município e que tinha ramificações na sede
do partido ao nível local e usados para o pagamento de prendas e para reforçar a
posição política do presidente como figura consensual do partido no seio dos no-
táveis locais. O Presidente do Conselho Municipal de Nacala tinha percebido que,
mesmo com o aparecimento de uma nova “classe política local”, a permanência e
o papel dos notáveis e a sua capacidade de mobilizar uma “memória autóctone”,

7
Os responsáveis dos serviços locais do Estado (Saúde, Educação, Polícia, etc.) tinham a obriga-
ção de participar (com direito a palavra) nas sessões do Conselho e da Assembleia Municipal.

62 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 62 3/29/11 4:53 PM


para uma “longa duração política” (Abélès, 1989: 13-14) afigurava-se capital, ainda
mais porque testemunhava o peso particular do passado sobre as configurações
colocadas pelas condições de acesso e de exercício do poder no plano local. J.–F.
Bayart (1989: 265) escreve a propósito:

Estas organizações políticas associam as novas elites chefes e notáveis locais cuja au-
toridade resulta de posições sociais anteriormente adquiridas, ou conquistadas segundo
procedimentos antigos, … ou ainda oferecem aos notáveis o acesso a novos recursos e
ocasiões de “demonstrar o poder”.

Assim, o território do município de Nacala Porto jogava, por excelência, o


papel de lugar de inscrição territorial de carreiras políticas (Mabileau, 1994: 53).
O presidente oferecia vantagens particulares, atribuindo terrenos aos notáveis e a
alguns membros do partido que, por sua vez, os vendiam por altas somas e retribu-
íam dando-lhe apoio político. É por isso que, para as eleições de 2003 em Nampu-
la, entre os cinco antigos presidentes dos conselhos municipais, o único que reunia
consenso por parte dos membros do partido Frelimo ao nível local e central era
o de Nacala Porto. Geraldo de Brito Caetano foi, na eleição interna, eleito com
99% dos votos. Os outros, da Ilha de Moçambique, Monapo, Angoche e Nampula
eram acusados de serem tecnocratas e não verdadeiros homens políticos, porque
não conseguiam gerir bem os recursos financeiros atribuídos pelo governo central
de forma a conquistar novos simpatizantes.

ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2003: QUEM VOTA POR QUEM?


Do ponto de vista político, as eleições locais de 19 de Novembro de 2003
confirmaram, apesar da taxa de abstenção de 76%,8 a hegemonia do partido Freli-
mo em quase todo o território. Mas, em Nacala Porto, a Renamo conseguiu uma
maioria na Assembleia Municipal e elegeu o Presidente do Conselho Municipal.
Mas por que é que as populações da Cidade de Nacala Porto se comportaram
desta maneira? Em Nacala, dos 39 assentos em disputa na Assembleia Municipal, a
Renamo ganhou 23 contra 15 da Frelimo e 1 da OCINA. A Renamo, aproveitando-
-se da descentralização e utilizando o discurso segundo o qual “com ela no poder, os
habitantes de Nacala Porto iriam recuperar o que tinham perdido, iriam comer como antes,
teriam emprego, e melhorariam suas condições de vida,”consegue vencer as eleições locais

8
Quase a mesma do primeiro processo eleitoral autárquico, mas desta vez com a participação de
todos os partidos políticos e grupos de cidadãos independentes.

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 63

Desafios.indb 63 3/29/11 4:53 PM


e tomar um poder que escapava às elites locais desde sempre. Mas será que a Re-
namo seria capaz de responder à grande esperança dos habitantes de Nacala Porto?
Não seria ela vítima do seu próprio discurso, em municípios de penúria, sem base
fiscal nem tributária, e altamente dependentes do Estado central? A Frelimo, apesar
de detentora de um poder hegemónico, justificou a derrota eleitoral no município
de Nacala Porto como sendo resultado da fraude orquestrada pela Renamo.

TABELA 1 RESULTADOS DAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2003 - NACALA PORTO

Eleição assembleia municipal Eleição presidente do conselho municipal


Total de votos expressos 28.798 Total de votos expressos 28.914

% da abstenção 70,18 % da abstenção 70,06

Votos Votos
Partidos/G. cidadãos % Candidatos %
obtidos obtidos
PT 230 0,86 Cesar Gabriel 1.304 5,0

OCINA 858 3,19 M. Santos 15.096 57,0

PIMO 531 1,98 G. Caetano 10.106 38,0

Renamo 15.425 57,42 Total 26.506 100,0

Frelimo 9.818 36,55

Total 26.862 100

FONTE STAE, 2006.

FRELIMO ACUSA RENAMO DE FRAUDE!


O primeiro secretário do partido Frelimo na província de Nampula explicou,
durante a realização da terceira sessão ordinária do Comité Central do partido, que
a derrota eleitoral tinha sido causada por dois tipos de factores: a) o primeiro, de or-
dem interna, ligado à “anarquia de certos camaradas que não tinham suficientemen-
te trabalhado para ajudar seus camaradas candidatos a ganhar as eleições” (Savana,
4 de Dezembro de 2003); o segundo, relativo ao papel jogado pelo então candidato
da Renamo e antigo director das Águas de Nacala Porto, que interrompeu o forne-
cimento de água à cidade três dias antes das eleições, o que levou a maioria dos sim-
patizantes da Frelimo a ir suportar as longas filas em busca de água em lugar de se
dirigir às assembleias para votar (Domingo, 30 de Novembro 2003) pelo seu partido.
Por sua vez, Geraldo de Brito Caetano, candidato e antigo Presidente do
Conselho Municipal, numa entrevista concedida à Televisão de Moçambique

64 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 64 3/29/11 4:53 PM


(TVM) em Dezembro de 2003, justificou a derrota a partir da fraude organizada
pela Renamo, que tinha mobilizado eleitores dos distritos vizinhos para votarem
em Nacala Porto, e afirma:

Os resultados foram planificados muito antes das eleições. Quando algumas pessoas
anunciam a vitória antes do jogo, isso quer dizer que existiam planos concretos no ter-
reno … Se a Renamo ganhou em Nacala Porto é porque ela fez vir pessoas de Memba,
de Nacala-a-Velha, Itoculo e de Mossuril … Os dados da nossa contagem paralela são
muito diferentes dos resultados oficiais anunciados pela comissão distrital de eleições. Os
números constantes nos editais em nossa disposição são completamente diferentes dos
resultados oficiais, … ninguém compreende o que se passou”.

Se considerarmos válida a hipótese de fraude evocada pela Frelimo, a questão


que se coloca é saber como é que, num sistema de poder dominante9, o Estado-
-Frelimo não pôde impedir essa fraude? De facto, a Frelimo domina e monopoliza
todas as instituições políticas e administrativas, incluindo as comissões eleitorais
a todos os níveis.
Mas se o município de Nacala Porto tinha sido considerado pelas autoridades
centrais como um dos exemplos de sucesso do primeiro processo de municipali-
zação em Moçambique (1998-2003), o que explica a mudança de comportamento
e orientação de voto neste município, desta vez em favor da Renamo? Terá sido o
papel exercido pela campanha eleitoral? Ou as trajectórias sócio-políticas económi-
cas e as relações estabelecidas ente o Estado-Frelimo e as populações e elites locais?

PORQUÊ VOTAR NA RENAMO?


EFEITOS DA CAMPANHA ELEITORAL?
Como é que se desenrolou a campanha eleitoral da Renamo, esse momento
privilegiado, onde podemos observar uma mobilização significativa de recursos
políticos? As campanhas são ocasiões para medir a importância dada aos temas
e argumentos nacionais/locais e onde a «oferta» política que é feita aos eleitores
comporta uma boa dose de solicitações deslocalizadas - momentos fortes da vida

9
Por “poder dominante” Carothers (2002) entende um poder fundamentalmente caracterizado
pela dificuldade de se distinguir o Estado do partido no poder. Nesse sistema, o Estado, enquanto
fonte de recursos financeiros, de empregos, de serviços de informação pública e com o controlo
que exerce sobre a polícia, é gradualmente posto ao serviço do partido no poder. Sobre o regresso
ao partido-Estado Frelimo, veja-se a carta pastoral dos padres católicos de Moçambique em
http//oficina de sociologia.blogspot.com/2008/06/bispos-denunciam-partidarizaçao-do-Esta-
do.html (acedido a 26 de Junho de 2008).

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 65

Desafios.indb 65 3/29/11 4:53 PM


política onde vemos os homens políticos implementar todos os seus recursos na
batalha, mesmo os que a priori não fazem parte do seu modo provável (Lacam,
1998). Tudo se passa como se os eleitores estivessem dispostos a trocar os seus
votos por um produto (programa, promessa, etc.) uniformizado e desligado das
continências locais» (Mabileau, 1993: 171).
Em Nacala Porto, enquanto a Frelimo e seu candidato Geraldo de Brito Cae-
tano, que detinham o poder local, convencidos da sua experiência de governação,
recorreriam ao visível fazendo referência às suas anteriores realizações,

Estruturamos e organizamos o Município. Levamos a cabo um estudo municipal de for-


ma a comprometer os residentes. No geral para a consolidação do processo de descen-
tralização e em particular para o desenvolvimento do Município. … A problemática de
Água, o combate a erosão, o sistema de drenagem e de alcatroamento de estradas da zona
alta da cidade e das zonas periféricas são situações que foram resolvidas … Olhando o
Município de Nacala Porto em 1998 e sua trajectória de desenvolvimento até ao presente
momento, podemos sem hesitar, dizer com muito orgulho, que conseguimos com sucesso
cumprir com o mandato histórico do primeiro processo de descentralização. … O nível
de organização e desenvolvimento institucional, o nível de serviços prestados ao público,
incluindo nos domínios da Saúde, Educação, abastecimento de Água e electricidade co-
nheceram um progresso muito considerável (Savana, 25 de Abril de 2003).

e acrescentando outros argumentos como recurso político para se fazer reeleger:

Os residentes do Município estão connosco. Os cinco últimos anos deixaram grandes


esperanças e nos engajamos a prosseguir o trabalho que começou. Não tenho nada de
novo, ainda mais porque o primeiro mandato serviu para adquirir experiência de forma a
encontrar mecanismos para desenvolver ainda mais o município …. Nada pode ser posto
em causa em Nacala Porto. Aquele que quer ver a dinâmica do desenvolvimento deve se
aproximar de nós e ver o trabalho que fizemos … Não escondemos nada. Nossos planos
de acção são visíveis em todo o lado … Sou um candidato de consenso de todos os par-
tidos periféricos. Os outros partidos, como a Renamo vão apresentar suas candidaturas
apenas para pôr pressão, ainda mais porque têm medo de alguém que apresentou uma
melhor estratégia para o desenvolvimento da região … Nacala Porto não é bastião da Re-
namo. O bastião da Renamo é Marínguè … O líder da Renamo veio aqui só para influen-
ciar largamente nossa vitória … Ganharemos bem estas eleições porque o partido Frelimo
é o único que assegura o desenvolvimento da região (Savana, 25 de Abril de 2003).10

10
Num Relatório intitulado «Balanço da Governação Municipal-1998-2003» escrito pelo PA-
DEM (Programa de AJuda à Descentralização em Moçambique) e pela Fundação Friedrich
Ebert sobre o primeiro processo de municipalização, Nacala-Porto constituía um dos exemplos
de gestão do solo urbano, gestão financeira, participação popular no pagamento de impostos,
melhoria das condições de vida dos habitantes, etc.

66 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 66 3/29/11 4:53 PM


Por seu turno, a Renamo engajavase a melhorar as condições de vida das popu-
lações prometendo baixar as taxas dos vendedores informais nos principais mercados
de Nacala (Savana, 2 de Abril 2004), resolver o problema de água potável, um proble-
ma estrutural ligado ao crescimento rápido da população em Nacala devido ao porto
e não acompanhado pelo correspondente crescimento de infra-estruturas sociais, um
problema que data da época colonial (Tempo, 18 de Fevereiro de 1973), dar emprego às
populações e resolver o problema da ocupação do espaço e do solo urbano na cidade, in-
dicando que as zonas não ocupadas e sob risco de erosão eram resultado de uma má po-
lítica de gestão do solo urbano pelo governo da Frelimo (Savana, 5 de Março de 2004).
Mas o feito mais espectacular da campanha eleitoral da Renamo foi o seu
investimento nas mesquitas que, segundo Manuel dos Santos, então candidato da
Renamo, “não serviam somente para a reza, mas também para fazer política – porque
se analisava todo o comportamento dos dirigentes” (Entrevista a Manuel dos Santos,
31 de Outubro de 2006). A Renamo instrumentaliza a religião, «metaforiza» e
transforma a linguagem religiosa em linguagem política: inspirando-se no Corão,
nomeadamente no conflito que opunha o Faraó e o enviado de Allah11 (Entrevista
com João B. Mussa, 12 de Setembro de 2007), a Renamo explica aos fiéis que a
atitude do Estado-Frelimo, que consistia em perseguir o Islão durante os primeiros
anos da Independência, era comparável à de Faraó.12 O secretário da Frelimo em
Mahelene conta como os simpatizantes da Renamo instrumentalizavam os fiéis
nas mesquitas:

Este método é encontrado no sistema de Faraó-Frauna-Frelimo, inimigo do profeta


Muhammad. Com este sistema, o Faraó-Frauna-Frelimo acreditava que era Deus e os
outros escravos. Não acreditava em Deus, transforma as mesquitas em armazéns e escolas
…, interditava o ensinamento do Corão às crianças, proibia o uso do cofió nas cidades. O
chefe do Frauna [Samora Machel] entrou na mesquita de botas na Ilha de Moçambique

11
Faraó era o adversário que se opôs ao projecto de Deus até ao fim. Recusa categoricamente
obedecer à ordem de Mussa. Este não categórico inscreve-se no seguimento de uma política de
opressão já existente e livremente assumida, evocando claramente a autonomia de Faraó. É ele
que se opõe ao projecto de Deus e que se declara inimigo do povo de Deus, e como corolário
inimigo de Allah.
12
Num meio social muito islamizado, onde a maioria das pessoas viveu abusos e a perseguição de
que o Islão foi vítima ao nível local durante os primeiros anos da revolução, onde as crianças
seguem o ensinamento do alcorão nas Madrassas, e onde, por todo o lado, desde a sua infância,
o conflito entre Faraó e Allah é insistentemente renovado nas crianças, a probabilidade de estas
mensagens ganharem um eco muito forte é maior. Durante as minhas entrevistas em Nacala
Porto, fui interpelado por uma criança de quase 9 anos, acusando-me de ser cristão e, portanto,
inimigo do profeta Muhammad e dos muçulmanos.

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 67

Desafios.indb 67 3/29/11 4:53 PM


… Sem guias de marcha e cartões de abastecimento dados pelo Frauna-Frelimo, não
podíamos circular nem comer. Para nós, os muçulmanos, era o « chikiri » [pecado grave].
Allah perdoa todos os pecados, menos o «chikiri». Por isso os muçulmanos devem dizer
« lailahu ilalamhu », quer dizer, nós amamos Allah e detestamos Frauna-Frelimo (Entre-
vista com Cetade Juma, 16 de Agosto de 2006).

De facto, a política do governo da Frelimo, durante o seu período radical


marxista-leninista, tinha alienado toda a simpatia dos muçulmanos e criado uma
oposição religiosa aberta ou latente contra o Estado-Frelimo. Era então neces-
sário fugir e ir ao encontro de Reh’ma-Renamo - a lua, o libertador, o sinal da
abundância e do bem-estar, da boa sorte e da missão divina. Segundo os membros
da Reh’ma-Renamo em Nacala Porto, a missão da Renamo era divina. O sinal
mais evidente era que, apesar das manobras da Frelimo para acabar com este
partido, ele continuava a existir e a difundir a boa nova, e tinha sido ele a libertar
o povo das injustiças do Faraó-Frauna-Frelimo (Entrevista com Sheikh Cepha,
15 de Agosto de 2006; Entrevista com Sheikh Tarubia, 3 de Novembro de 2006).

Para libertar o povo da prisão do Faraó-Fauna-Frelimo era necessário fazer a guerra e ela
foi conduzida pela Reh’ma-Renamo. Se a Renamo não tivesse existido, nem Abdul Razaq,
nem Chissano viriam aqui para fazer o que quer que seja. … Ontem, quando a Renamo
não existia, os dirigentes da Frelimo vinham aqui apenas para gozar convosco e com a
religião e vos impedir de rezar. Já se esqueceram do que Samora Machel veio fazer aqui?
(Entrevista com Silvestre Omar, 6 de Novembro de 2006).

A metaforização do discurso não se limitou apenas a aspectos religiosos, mas


atingiu outro domínio mais sensível ainda, o da saúde. De facto, numa zona onde a
água quase que não existia e onde o risco de epidemias de cólera é muito elevado,
sobretudo durante a época das chuvas, o governo leva a cabo campanhas de preven-
ção explicando às populações sobre a necessidade de utilizar o cloro para purificar
a água potável, de forma a evitar a doença (DPSN, 1999). Apesar dos esforços do
Governo, esta doença provoca todos os anos centenas de mortes, sobretudo nos
distritos do litoral Norte de Moçambique. Em 1999, na província de Nampula, 83%
da população não tinha nem usava latrina (Notícias, 28 de Agosto de 1999).
A reunião realizada por um Sheikh local no bairro Ribaué reforça esta ideia.
De facto, aquando da gestão municipal da Frelimo, os Sheikhs da cidade de Naca-
la Porto foram convidados a participar numa reunião no Conselho Municipal. O
objectivo era informar os líderes sobre o perigo que a cólera representava e distri-
buir cloro de forma a purificar a água e reduzir o risco de contaminação nos seus

68 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 68 3/29/11 4:53 PM


bairros. O Sheikh em referência, chegado ao Bairro Ribaué, chamou a população
com o objectivo de lhes comunicar os resultados da reunião com o Presidente do
Conselho Municipal. Afirmou que o Governo da Frelimo o tinha recebido bem,
que lhe tinha dado dinheiro para apanhar o “chapa 100” para voltar para casa e lhe
tinha dado também “cólera” para meter na água para a população beber (Entrevis-
ta com João B. Mussa, 12 de Setembro de 2007). Na dicção emacua, separam-se as
consoantes e «cloro» e «cólera» pronunciam-se quase da mesma forma.
Foi também a confusão entre as palavras «cloro» e «cólera» que a Renamo
utilizou para «envenenar» o Estado-Frelimo junto às populações:

Como é que a Frelimo sabe que esta doença vai chegar? Os secretários de bairro13 da Fre-
limo distribuem-vos sempre “cólera” [cloro] para vos matar. Como é que é possível? Existe
alguém entre vocês que apanhou esta doença durante o tempo colonial? Esta doença é uma
invenção da Frelimo para vos matar porque vocês são favoráveis à Renamo. É por isso que
vos distribuem garrafas com cólera (cloro) … Vocês vão votar em alguém que sempre quis e
continua a querer vos matar? (Entrevista com Cetade Juma, 16 de Agosto de 2006).

A Renamo explorava abertamente estas crenças suscitando uma formidável


campanha baseada sobre o quotidiano e sobre o religioso. Investido nas estratégias
de controlo social, o religioso é tanto mais funcional quanto o seu discurso vai no
sentido da justificação da ideologia do poder (Otayek, 2002: 815). Para algumas
pessoas, o facto de a Renamo ter feito uma campanha discreta,14 centrada nas mes-
quitas em Nacala Porto, cuja população é maioritariamente muçulmana, mostrava
que este partido respeitava a religião muçulmana, ao contrário do Estado-Frelimo,
que tinha marcado a campanha eleitoral para o período do Ramadan. É verdade
que a campanha eleitoral pode ter jogado um papel importante na explicação do
voto das populações deste município a favor da Renamo, mas explicar o com-
portamento eleitoral destas populações somente pela via da campanha eleitoral
seria cair num reducionismo impróprio e excluir um conjunto de outros factores,
nomeadamente as relações historicamente estabelecidas entre as elites locais, as
populações e o Estado-Frelimo.

13
Antigos secretários dos Grupos Dinamizadores, formalmente abolidos como órgãos do partido
Frelimo, mas que sobreviveram graças ao exercício de funções político-administrativas ao nível
da base. Os secretários dos Grupos Dinamizadores eram responsáveis pelo enquadramento ide-
ológico das comunidades vivendo nas aldeias e bairros durante o período socialista.
14
Este procedimento contrasta com a atitude normal da Renamo durante os períodos eleitorais
que é de fazer comícios e campanha de rua.

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 69

Desafios.indb 69 3/29/11 4:53 PM


TRAJECTÓRIAS SOCIOPOLÍTICAS, RELIGIOSAS E ÉTNICAS EM NACALA PORTO
Para melhor compreender o voto dos habitantes de Nacala Porto a favor
da Renamo nas eleições municipais de 2003, é necessário analisar as trajectórias
sociopolíticas, económicas, religiosas locais.

O SENTIMENTO DE EXCLUSÃO
Os habitantes de Nacala Porto viam a Frelimo como o único responsável
pela situação de desemprego e de pobreza em que se encontravam:

Muitas pessoas tinham emprego durante o período colonial na Socajú, Mogás, Cimentos
de Moçambique, Cicomo, mas com a chegada da Frelimo e a instalação das comissões de
gestão, tudo foi destruído e fechado… Fomos dispensados do Porto. Diziam que queriam
jovens com formação mais elevada que a nossa, … olha, nossos filhos têm formação mais
avançada, mas não conseguem trabalhar no porto e nas alfândegas. São os landins que
ocupam os postos, roubam dinheiro do Estado e saem com nossas filhas… O porto de
Nacala participa grandemente no orçamento nacional, mas não vimos nada aqui (Entre-
vista com Pedro Y. Bonga, 4 de Novembro de 2006).

Trata-se aqui de uma das consequências dos desequilíbrios sociais, escolares


e étnicos herdados da colonização, mantidos pela Frelimo durante a fase radical, e
de novo agravados pelo neoliberalismo.

A Socajú, que empregava quase 4 000 pessoas, foi fechada. O Estado-Frelimo dizia que
era devido à falta de matéria-prima, mas víamos grandes quantidades de castanha de
cajú que saíam pelo porto para abastecer as empresas do sul … A partir desse momento
nunca mais saímos da miséria. Tínhamos coisas para comer e para alimentar as nossas
famílias, mas agora não temos mais nada, perdemos tudo. Se quiserem podem nos matar,
mas estaremos sempre ao lado da Renamo (Entrevista com Manuel A. Ibrahimo, 13 de
Agosto de 2006).

O descontentamento dos habitantes de Nacala Porto, sobretudo dos antigos


trabalhadores das fábricas e do porto, foi um dos factores determinantes para o
voto, ainda mais porque constituíam a maioria dos habitantes da cidade. Eles
acusavam o Estado-Frelimo de os excluir de duas formas: primeiro recusava-se a
pagar as suas indemnizações e, nos casos em que pagava, utilizava critérios obs-
curos no cálculo dessas indemnizações. Para eles, os trabalhadores do Sul que
exerciam a mesma actividade na mesma companhia, no Sul do país, recebiam
mais dinheiro:

70 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 70 3/29/11 4:53 PM


Até hoje os antigos trabalhadores da Companhia Industrial da Matola e Cimentos de
Moçambique não receberam suas indemnizações. Para aqueles que já receberam, nomea-
damente os trabalhadores dos Caminhos de Ferro do Norte, é só chorar e lamentar pela
desproporcionalidade das indemnizações…15 Um trabalhador no Sul de Moçambique,
com as mesmos anos de trabalho, recebeu entre cinco a dez vezes mais que nós. Qual
é o critério que foi utilizado para calcular as indemnizações? (Entrevista com Carlos C.
Abacar, 1 de Novembro de 2006).

A GESTÃO AUTORITÁRIA DO TERRITÓRIO


O segundo tipo de queixas tinha a ver com a gestão autoritária do território
operada pelas estruturas urbanas de Nacala, durante os anos 1990, nos bairros pe-
riféricos de Triângulo, Mocone e Tielela. Nesses bairros, muitas famílias de antigos
residentes imigrantes vindos dos diferentes distritos vizinhos de Memba, Nacala-a-
-Velha, Monapo e Namapa, cuja maioria trabalhava nas fábricas de caju, na Cicomo e
no porto e no caminho-de-ferro e possuía casas de alvenaria, tinham sido deslocados
e colocados no bairro periférico de Mathapwé. Este é um bairro que se situa muito
longe da cidade, sem transporte público que permitisse aos novos residentes deslo-
carem-se facilmente à cidade para trabalhar. Muitos perderam os seus empregos por
não terem dinheiro para custear as despesas diárias de transporte de casa à cidade.
Para além disso, a maior parte destas famílias encontrava-se, com este deslocamento,
numa situação de dependência em relação aos “filhos dessas terras”, os pequenos
proprietários das terras onde tinham sido instalados. Estes últimos queixavam-se
também porque tinham perdido as suas machambas, confiscadas pelas autoridades
municipais para a instalação das famílias recém-chegadas das aldeias e bairros comu-
nitários (População da Aldeia Comunal de Murrupelana, 1984). Tinham, portanto,
perdido, nessa ocasião, as suas principais fontes de rendimento que resultavam da co-
lheita da castanha de caju que entrava no circuito comercial desde a época colonial.

Durante o período colonial apanhávamos a castanha de caju e vendíamos aos comer-


ciantes “monhés” [indianos muçulmanos] que nos davam em troca capulanas e tecidos
e outros produtos industriais. A Frelimo chegou e levou tudo: a terra e os cajueiros para
instalar as aldeias comunais. Diziam que a terra pertencia ao povo, mas que povo? Nós
não fazíamos parte do povo? A partir daí não tínhamos mais nada a trocar com os comer-
ciantes, que de sua parte não tinham nada também nas suas lojas … mesmo os tecidos
que eram muito importantes para nós muçulmanos… Éramos obrigados a enterrar nossos
mortos embrulhados com esteiras ou com nossos casacos. Era humilhante! (Entrevista
com Sheikh Sumaliji, 4 de Novembro de 2006).

15
Para perceber as razões dos cálculos desproporcionais das indemnizações, ver Xitimela, publica-
ção semestral dos CFM, Junho de 2001, n°10.

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 71

Desafios.indb 71 3/29/11 4:53 PM


O FACTOR RELIGIOSO
Contudo, a humilhação mais dura a que foram submetidos os Muçulmanos
de Nacala Porto começou, segundo os Sheikhs Amade Jamal Tarubia e Chepa, nos
primeiros anos da independência com o discurso de Samora Machel e continuou
com as acções de perseguição religiosa na região. De facto, em 1977, o presidente
da Frelimo, acompanhado pelo então governador de Nampula, Américo Mpfumo,
na sua viagem a Nacala Porto por ocasião da preparação do segundo aniversário
da “Independência Nacional” e na presença de cerca de 40 mil pessoas16 convo-
cadas para presenciar o discurso, criticou os muçulmanos, o islão e suas práticas:

(…) vou ferir a população de Nacala Porto. Mas a verdade deve ser dita, não!?… visitei
muitos países e cada país tem características particulares que podem servir de exemplo.
Tomemos o exemplo da religião: … encontrei católicos, protestantes, ortodoxos. Mas
encontrei também muçulmanos que existem em todos os cantos do mundo… Temos
muçulmanos também em Moçambique. Os muçulmanos comem gado, não é? … Mas
existe uma parte do mundo onde seus habitantes não comem o gado. Por exemplo na
Índia, a maioria da população não come … mas criam 400 milhões de cabeças de gado.
Porquê? Porque o gado constitui uma fonte de riqueza, fonte de divisas para o país que é
obtido através da venda de carne de gado, da sua pele e do leite que alimenta milhares e
milhares de crianças – portanto esta população cria o gado… Noutros países encontrei
Muçulmanos. Vocês sabem o que eles comem? Não sabem? É o porco, não?… Aliás, aqui
me parece que… o porco é Deus, não é? Mas quando estão bêbados comem o porco.
Vocês todos já comeram carne de porco… comeram carne de porco, morreram? Ficaram
doentes? Não… mas ao contrário ficaram gordos e mais fortes… Nos países por onde
passei e encontrei muçulmanos, encontrei-lhes a criar muitos porcos e não vi nenhum
muçulmano que tenha morrido, ou ficado maluco por ter tocado um porco, mas vi um
país que exporta 500 mil toneladas de carne de porco … Essa quantidade é suficiente
para desenvolver toda a província de Nampula. Gostaria que seguissem o exemplo dessa
gente aí que é mais muçulmana que vocês. Isto não é apenas válido para Nacala, mas para
toda a província de Nampula. Vos peço a carne de porco para exportar… Temos aqui
um porto muito bonito para exportar essa carne. O porco é um animal fácil de criar e
de se reproduzir. Não vão morrer, pelo contrário, terão dinheiro para construir hospitais,
escolas, fábricas e assim desenvolver Nacala e vosso porto… É completa ignorância ter
medo do porco. Essa ignorância é provocada pelo vosso obscurantismo… Gosto da car-
ne de porco para vendê-la. Portanto, vou-me associar a vocês para que possamos criar o
porco…. a religião é o nosso primeiro inimigo. Vamos resolver essa contradição entre nós
e esse inimigo (Notícias da Beira, 9 de Julho de 1977).

Para os líderes muçulmanos locais, este discurso foi considerado como uma
heresia e como um atentado à sua liberdade de praticar o Islão. Isto gerou um con-

16
Era boa parte da população adulta de Nacala Porto e vinda dos distritos vizinhos de Nacala-a-
-velha e Mossuril. Toda a população era obrigada a participar neste tipo de eventos, sob pena de
ser considerada “inimiga” do povo.

72 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 72 3/29/11 4:53 PM


flito de longa duração, opondo a Frelimo e alguns segmentos da população muçul-
mana, o que constituiu também um factor determinante do voto a favor da Renamo.
Os resultados das eleições municipais de 2003 mostram que a governação
municipal exemplar da Frelimo em Nacala Porto, consubstanciada na participação
popular, no pagamento de impostos, na gestão do solo urbano, mas também na
manipulação das elites locais através da oferta de prendas e numa gestão clien-
telista, não podiam por si só garantir a renovação do mandato. Ao contrário, os
recursos políticos utilizados pelo partido Renamo durante a campanha eleitoral
pesaram fortemente na escolha dos eleitores. E, com esta vitória, a Renamo con-
tribuiu para a integração política de camadas sociais historicamente desfavoreci-
das e tradicionalmente excluídas do jogo político.

A SUPER DEPENDÊNCIA DA PERIFERIA EM RELAÇÃO AO


CENTRO (2003-2008)

Numa situação de Municípios de penúria, sem nenhuma base económica e


fiscal, dependendo exclusivamente das subvenções do Estado Central, a vontade e
capacidade da Renamo de produzir mudanças políticas, desenvolver as suas pró-
prias competências e promover a boa governação dependia exclusivamente dos
resultados das eleições legislativas e presidenciais de 2004. Se a Renamo ganhasse
as eleições de 2004, o que não era uma hipótese a descurar devido aos altos scores
obtidos em 1999,17 teria o apoio estatal ao nível central para implementar a sua po-
lítica municipal. No caso de a Frelimo ganhar as eleições, mantendo assim o poder
político, económico e administrativo, decisivo para a governação local, nenhum
município da oposição conseguiria implementar a sua política. Ora, as eleições
gerais que se realizaram 8 meses depois da investidura da Renamo nos municípios
deram a vitória à Frelimo, tendo-se depois assistido a uma política de boicote.
Apesar de a Frelimo ter prometido uma oposição responsável “nos municí-
pios onde ela não estava no poder” e deixar “governar se os interesses supremos
do povo fossem respeitados” (Notícias, 23 de Dezembro de 2003), começou a
bloquear o exercício do poder pela Renamo. Para a Frelimo, nos municípios da

17
Afonso Dhlakama tinha obtido 48%, realizando uma progressão de 15% de votos em relação a
1994.

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 73

Desafios.indb 73 3/29/11 4:53 PM


Ilha de Moçambique, Nacala Porto e Angoche, os interesses supremos do povo
não estavam a ser respeitados porque “a situação em que se encontravam era lasti-
mável e não se podia esperar grande coisa” (Notícias, 9 Março de 2004). Portanto,
começou a mobilizar todos os recursos à sua disposição para bloquear a gestão
municipal da Renamo através do poder de tutela administrativa e financeira do
Estado, porque a Frelimo “tinha a responsabilidade histórica na direcção da nação
moçambicana” (Notícias, 16 de Fevereiro de 2004).

A REPRESENTAÇÃO DO ESTADO COMO INSTRUMENTO DE BLOQUEIO POLÍTICO


Durante o primeiro mandato (1998-2003) nos municípios da Ilha de Moçam-
bique, Nacala Porto e Maxixe (Inhambane), municípios cujos limites administrativos
coincidem com os limites do distrito, os serviços locais do Estado estavam sob respon-
sabilidade do presidente do Conselho Municipal. A situação manteve-se até ao mo-
mento em que a Renamo ganhou as eleições locais, em dois dos três municípios. Então,
através do Decreto 65/2003 de 31 de Dezembro de 2003, foram indicados os repre-
sentantes do Estado nos Municípios da Ilha de Moçambique e Nacala Porto. Porém,
no município da Maxixe, nenhum representante do Estado foi nomeado e a explicação
é que a Maxixe continuava, depois das eleições de 2003, nas mãos do Estado-Frelimo.
O representante do Estado em Nacala Porto, José Carlos Amade, foi apre-
sentado às populações pelo primeiro secretário do partido Frelimo ao nível local
como sendo o novo administrador, sem o conhecimento das estruturas municipais
Renamo (CMCN, 2005d). Este procedimento mostra bem a vontade política do
Estado-Frelimo em dificultar a gestão da Renamo.
Uma vez instalada, a administração do “distrito” de Nacala Porto confiscou
um acampamento de habitações (CMCN, 2004b) construído no âmbito do pro-
jecto integrado de Nacala, co-financiado pelo governo Finlandês e Moçambicano,
cuja gestão estava a cargo do Conselho Municipal de Nacala. O representante do
Estado visitou todos os bairros do município e nomeou quarenta secretários de
bairro ligados ao Partido Frelimo, argumentando querer restabelecer a ordem so-
cial perturbada pela administração municipal da Renamo aquando da demissão
das antigas autoridades comunitárias da Frelimo, em violação do Decreto 15/2000.
Um outro exemplo da actuação do Estado-Frelimo foi a forma como tentou
neutralizar a estação de rádio e de televisão comunitária pertencente ao Conselho
Municipal de Nacala Porto, que foi considerada ilegal, tendo um contingente poli-
cial tomado de assalto no dia 15 de Novembro de 2004 as suas instalações.

74 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 74 3/29/11 4:53 PM


Esta estação de rádio e televisão tinha sido concedida ao município pelo
Instituto de Comunicação Social e inaugurada em Novembro de 1999 por altos
responsáveis do governo, nomeadamente o Governador da Província, o Director
do Instituto de Comunicação Social e o antigo Presidente Conselho Municipal de
Nacala Porto. P. Machado, antigo director desta rádio afirma:

Muitos polícias estavam presentes nas instalações da rádio e televisão comunitária de


Nacala, fortemente armados como se se tratasse duma tentativa de assalto de uma antiga
base militar da Renamo na altura da guerra civil. É preocupante porque a criminalidade
está a subir aqui em Nacala e nunca vimos a polícia a tomar medidas para terminar com
ela (CMCN, 2005b).

O ATRASO NAS TRANSFERÊNCIAS DOS FUNDOS DO GOVERNO


Outra estratégia consistiu no atraso do envio das subvenções do governo
central ao município de Nacala Porto. Referindo-se a este assunto, o Presidente do
Município de Nacala Porto afirma:

O governo da Frelimo toma todas as medidas em sua disposição para nos destruir, com a
intenção de deixar perceber às populações que não trabalhamos,… não nos dão os valores
que temos direito, ou então condiciona a sua concessão. Por exemplo, o dinheiro do orça-
mento do Estado para o combate à erosão. Para conseguir este dinheiro somos obrigados
a recorrer a manobras; e o mais grave é que esse dinheiro é gerido pela Secretaria Provin-
cial. Estamos no fim do ano, mas só nos deram apenas a metade do dinheiro, quer dizer
que não teremos a outra metade. Me parece que gastaram o dinheiro noutras actividades
… Apesar do esforço que desenvolvemos para fazer um trabalho visível, me parece que
há uma vontade política de bloquear nossa governação (Magazine Independente, 19 de
Setembro de 2007).

De facto, com este atraso, o investimento local, nomeadamente para a cons-


trução de fontenários públicos e poços para o abastecimento de água às populações,
uma das principais promessas feitas pela Renamo durante a campanha eleitoral,
ficou comprometido. O secretário do distrito do partido Frelimo, Aisse Sumana,
referindo-se a este incumprimento da promessa eleitoral pela Renamo afirma:

Durante a campanha eleitoral para as eleições locais, a Renamo tinha prometido resolver
o problema de água nos bairros da cidade… enganaram a população e, até agora, nada foi
feito. Pelo contrário, as pessoas que compraram a bomba de água para dar água à população
foram os empresários Gulamo Moti e Gulamo Raju Ussene, membros do partido Frelimo…
O presidente do Município foi a Naherenque e encontrou uma bomba a funcionar e disse
às populações que era o resultado do cumprimento das suas promessas eleitorais e iria con-
tinuar a inaugurar outros sistemas de abastecimento de água noutros bairros (Zambeze, 25
de Novembro de 2004).

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 75

Desafios.indb 75 3/29/11 4:53 PM


Em Nacala Porto a problemática de água potável, que ultrapassava larga-
mente as capacidades das estruturas municipais, era uma questão cuja resolução
dependia exclusivamente da vontade das autoridades centrais.

NACALA PORTO: A ÁGUA COMO RECURSO POLÍTICO CAPITAL

De facto, o governo central, através da Direcção Nacional de Águas do Mi-


nistério das Obras Públicas e Habitação, em coordenação com o representante do
Estado em Nacala Porto, tinham, aproveitando do período das eleições gerais de
2004, aberto um concurso avaliado em 45 milhões de Meticais para a construção
de três subsistemas de abastecimento de água em M’Tuzi, M’pago e Naherenque.
Definidos como de emergência, estes projectos deviam ser executados em cinco
meses. Mas a derrota eleitoral da Frelimo ao nível local nas eleições de 2004 levou ao
adiamento do início do projecto para Outubro de 2005. O governador da província e
o “representante do Estado” justificaram o adiamento por razões de ordem financeira.

Os trabalhos dos subsistemas de fornecimento de água de Mtuzi, M’pago e Naherenque não


terminaram no prazo de cinco meses inicialmente previsto porque o governo central não tinha
dinheiro para pagar a parte restante aos empreiteiros (Zambeze, 28 de Dezembro de 2005).

A falta de dinheiro evocada pelo governo central é uma possibilidade a não ex-
cluir, ainda mais porque o dinheiro podia ter sido desviado para financiar a campanha
eleitoral do partido Frelimo para as eleições de 2004. Mas a perspectiva da realização
das eleições provinciais durante o ano de 2007 também pode ter sido um motivo para
o Estado-Frelimo adiar o fim do projecto para o início desse ano e tirar vantagens da
inauguração desses projectos. O presidente do município de Nacala dizia:

A problemática de água constitui uma acção premeditada para fazer sofrer as populações
que depositaram confiança no nosso partido, e por via de consequência desacreditar a Re-
namo… O problema de água é muito mais político que financeiro … A falta de água será
catastrófica para a população se a chuva não cair este ano aqui em Nacala… A reserva de
água da barragem sobre o rio Mecula está a secar (Entrevista com Manuel dos Santos, 16
de Setembro de 2007).

Construída durante os anos 1960 para uma população de cerca de 30.000


habitantes, a barragem estava longe de assegurar o abastecimento de água às cerca

76 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 76 3/29/11 4:53 PM


de 207.894 pessoas que habitam Nacala Porto. E a seca que não poupava a re-
gião Norte desde 2003 tinha originado interpretações de ordem mágico-religiosa,
associadas a tentativas de manipulação política por parte de políticos locais em
torno da questão da água. Segundo os secretários dos bairros do partido Frelimo,
a chuva não caía mais em Nacala, porque os espíritos dos antepassados estavam
zangados contra a população por ter votado na Renamo (Zambeze, 26 de Maio
2005). De facto a Renamo, depois da sua vitória eleitoral, não tinha ido agradecer
à “rainha local”, considerada a “proprietária de todos os recursos naturais de água”
e detentora de um poder mágico-religioso capaz de parar ou de pedir a chuva:

Durante nosso mandato fomos oferecer a esta senhora capulanas e arroz. Contente, ela
ajoelhou, espalhou farinha e no dia seguinte a chuva caiu abundantemente. A barragem
encheu e durante alguns meses o problema de água estava sob controlo, até que ela fe-
chou de novo a chuva (Domingo, 19 de Março de 2006).

Os secretários de bairro da Frelimo instrumentalizavam assim os espíritos dos


antepassados, o que era uma prática surpreendente porque, ao longo de toda a sua
trajectória, a Frelimo tinha combatido fortemente tais práticas, ditas obscurantistas
e feudais, práticas estranhas à elite dirigente. Mas, para a Renamo, a questão de
água em Nacala Porto não era uma questão “espiritual”, nem financeira, mas políti-
ca, e que dependia exclusivamente da vontade do Estado-Frelimo ao nível central.

A GOVERNAÇÃO MUNICIPAL DA RENAMO EM NACALA PORTO

Ao instalar-se no município de Nacala Porto, a Renamo queria mostrar que


tinha uma política municipal original, cuja implementação serviria de espelho para
uma futura governação nacional.18 E, para fazer esquecer a «má» governação da
Frelimo desde 1975, caracterizada pelo nepotismo, corrupção, anarquia e exclu-
são de certas categorias sociais, a Renamo prometeu instalar uma linha telefónica
aberta para receber queixas, reclamações e sugestões dos habitantes (Notícias, 6
de Janeiro 2004) sobre o funcionamento da administração municipal. A Renamo
tinha como objectivo tornar os presidentes dos conselhos municipais responsáveis

18
É necessário não esquecer que as eleições municipais de 2003 tiveram lugar um ano antes das
eleições gerais de 2004. Ora, uma possível boa governação da Renamo ia dar a impressão de que
ela poderia melhor governar o país e de uma forma diferente da Frelimo.

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 77

Desafios.indb 77 3/29/11 4:53 PM


perante os cidadãos. Era uma tentativa de promoção da “boa governação” pela
descentralização prefigurando a gestão Renamo a nível nacional. O porta-voz da
Renamo, Fernando Mazanga, afirma a esse propósito:

Seremos implacáveis, não vamos admitir «brincadeiras. Os funcionários ou mesmo o Pre-


sidente do Conselho Municipal que vai tentar roubar o dinheiro do tesouro público atri-
buído aos municípios ou dos contribuintes locais será preso. Nossos municípios servirão
de trampolim para o futuro governo do país (Notícias, 6 de Janeiro 2004).

E apesar da grande tensão existente entre o Estado-Frelimo e a Renamo ao


nível local em torno da delimitação territorial, da nomeação de um representante
do Estado na cidade cujas fronteiras coincidiam com as do município, do bloqueio
administrativo e financeiro e da questão da água, a primeira grande medida tomada
pelo Presidente do Conselho Municipal da Renamo alguns dias depois da sua inves-
tidura foi a nomeação de quatro membros do partido Frelimo, que tinham ocupado
postos de direcção na antiga estrutura municipal, durante o primeiro mandato (1998-
2003), uma decisão que agitou não só a Frelimo, mas também a própria Renamo.
Para os dirigentes da Renamo, o procedimento do presidente do conselho
municipal era inadmissível, ainda mais porque em Nacala Porto e em outros lu-
gares, nomeadamente em Nampula, o grau de partidarização19 da administração
pública era tão visível que, pelo simples facto de ser membro da Renamo ou de um
outro partido político, era suficiente para ser afastado do aparelho do Estado e de
todo o circuito económico local. Não compreendiam porque é que o presidente ti-
nha nomeado quadros da Frelimo, enquanto na Renamo existiam muitos quadros
no desemprego, esperançados em ter emprego no município como funcionários.
O conflito entre o presidente do Conselho Municipal e o seu partido era
portanto inevitável. O partido pediu-lhe para se demitir e solicitar ao governo cen-
tral a convocação de eleições antecipadas. O presidente do Conselho Municipal
recusou a proposta do partido, dizendo que tinha sido eleito pelo povo e que iria
continuar a trabalhar pelo povo:

Nunca pensei em me demitir devido a problemas no seio do meu partido… vou continuar
até ao fim do meu mandato, porque fui eleito pelo povo. E as pessoas que me escolheram
querem ainda trabalhar comigo, porque estou a fazer um bom trabalho (Notícias, 15 de
Fevereiro de 2005).

19
Ver a carta pastoral dos bispos católicos de Moçambique, in http//oficinadesociologia.blogspot.
com/2008/06/bisposdenunciam-partidarização-do-estado.html” (acedido a 9 de Setembro de 2009).

78 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 78 3/29/11 4:53 PM


Para o presidente do conselho Municipal de Nacala Porto, a inclusão dos
membros da Frelimo na estrutura municipal tinha de ser analisada fora das ques-
tões políticas, apenas numa perspectiva de reforço administrativo do município
(Notícias, 21 de Agosto 2004).

Eu lhes pedi para vir nos ajudar porque são técnicos que têm qualidades excepcionais
na área administrativa… O conselho Municipal não é a sede de meu partido, nem da
Renamo. Quando venho aqui não encontro a bandeira da Frelimo nem da Renamo, mas
a bandeira da República, por isso não vejo a razão para estas todas inquietações (Notícias,
13 de Março de 2004).

O presidente do Município de Nacala Porto, seguindo o principio de profissiona-


lização, talvez em resposta à advertência do seu antecessor segundo a qual “o Municí-
pio... não era fácil de gerir devido a grandes problemas de erosão, que não se resolviam
com manobras políticas, mas através de estudos, de acções de planificação e da boa
gestão de quadros...” (Zambeze, 18 de Dezembro de 2003), nomeou Gimo Mandede
para conservar o posto de Director de Construção, Urbanização e Saneamento (fun-
ções que havia exercido durante o mandato anterior), Pedro Machado, Director de Ad-
ministração e Finanças, Henriques Nhanombe, antigo vereador do Desenvolvimento
Institucional, da Administração e do Património, para o posto de Director do Depar-
tamento dos Serviços Técnicos e do Cadastro, e Herculano Miguel Matsimbe, antigo
Director-Geral, para o posto de Conselheiro Administrativo. Era também uma forma
de mostrar ao partido Frelimo que a Renamo separava a política da administração.
Mas a Frelimo tinha outra concepção. Pressionou os quatro funcionários que
tinham aceitado trabalhar com a administração da Renamo e tomou medidas de
ordem disciplinar que culminaram com a sua suspensão do partido.
Um funcionário do Conselho Municipal dizia a este respeito:

Uma coisa que contribuiu para a derrota eleitoral do antigo presidente do conselho munici-
pal Geraldo de Brito Caetano [da Frelimo] está a voltar a acontecer e será determinante nas
próximas eleições municipais… É um problema que vai pesar nas próximas eleições mu-
nicipais… É a política do camaleão. Existem aqui em Nacala políticos que mudam de cor
todos os dias e todo o tempo (Entrevista com Mussa Amade, 7 de Novembro de 2006).20

20 Por exemplo, o antigo representante do Estado e candidato da Frelimo nas eleições municipais
de 2008, Chale Ossufo, e o antigo Secretário Permanente do distrito-cidade de Nacala Porto
pertenciam ao mesmo tempo à Renamo e à Frelimo. Ver “Município de Nacala Porto: Candidato
da Frelimo é membro da Renamo”, in http://www.canalmoz.com/default.jsp?file (acedido a 11
de Setembro de 2009).

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 79

Desafios.indb 79 3/29/11 4:53 PM


O presidente do Conselho Municipal conseguiu resistir à pressão vinda da
direcção da Renamo, mantendo os funcionários da Frelimo em suas posições (Sa-
vana, 2 de Abril de 2004).

Tive problemas com meus camaradas do partido, contudo persisti. Mesmo o presidente do
partido Afonso Dhlakama quis saber porque é que mantinha esses homens da Frelimo, eu
lhe expliquei… (Magazine Independente, 19 de Setembro de 2007).

Mas não tinha capacidade estrutural para fazer face à pressão vinda “de bai-
xo”, nomeadamente dos membros influentes residentes nos bairros que queriam
também ser integrados na rede do município. De facto, a implementação de uma
política municipal da Renamo em Nacala Porto dependia exclusivamente da ex-
tensão da rede municipal nos bairros. Sempre com o mesmo espírito de profis-
sionalização da administração, o presidente do Conselho Municipal demitiu dois
chefes das unidades administrativas autárquicas de Mutiva e Muanona e vinte e
dois secretários de quarteirões, “acusados de exercer actividades políticas a favor
do partido Frelimo”, e nomeou membros do seu partido para ocuparem essas po-
sições: “Queremos trabalhar com pessoas que representam interesses da sociedade
civil, e não com os que representam interesses de partidos políticos.” (Notícias, 3
de Junho de 2005).
Os secretários de bairro são a interface local do poder administrativo. Adqui-
rem as suas posições graças à confiança que os residentes do bairro depositam em
si. Mas a sua função é controlada pelas autoridades municipais, que os nomeiam
oficialmente e lhes pagam um salário de 600 meticais por mês. Exercem funções
de proximidade que os tornam no primeiro interlocutor entre as populações do
bairro e as estruturas administrativas. Em Nacala Porto, a Renamo tinha necessi-
dade de trabalhar com as suas autoridades comunitárias, nomeadas e legitimadas
pelo Decreto 80/2004, porque iriam jogar não somente um papel administrativo,
mas também político, de mobilização e de difusão da sua política municipal.
A mesma medida de expulsão foi estendida aos cobradores de taxas e im-
postos nos mercados locais, que eram acusados pelo presidente do Município de
serem responsáveis pela baixa de receitas constatada durante os primeiros meses
da gestão da Renamo (CMCN, 2005c).

Durante os primeiros meses as receitas provenientes das taxas dos mercados locais ti-
nham tendência a baixar… Mais da metade das receitas cobradas nos três mercados não

80 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 80 3/29/11 4:53 PM


eram canalizadas aos cofres do município… Identificámos os indivíduos que faziam parte
desse esquema fraudulento. Foram acusados e expulsos do município… Agora triplicá-
mos as receitas, chegando mesmo a 12, 000 meticais. Esta subida é o resultado das novas
medidas tomadas, … duma nova estrutura, da responsabilização e do controlo que é exer-
cido sobre as pessoas directamente ligadas à cobrança de taxas e de impostos (Savana, 2
de Abril de 2004).

A redução da receita em Nacala não estava só ligada aos desvios praticados


pelos “cobradores-Frelimo” mas também às promessas eleitoralistas feitas pela Re-
namo durante a campanha eleitoral, pois durante a campanha eleitoral a Renamo
tinha prometido aos residentes de Nacala Porto que, em caso de vitória, muitas
taxas, nomeadamente dos mercados, iriam baixar. E, como a Renamo tinha ganho
as eleições, as populações, cuja maioria estava empregue no sector informal, devi-
do à falta de emprego no sector formal, recusavam - ou se esqueciam de - pagar
essas taxas porque tinham votado pela Renamo nas eleições.
No sistema municipal moçambicano, as receitas locais constituem a base
da capacidade local de auto-financiamento porque é com elas que o município
financia as diferentes despesas dos órgãos municipais, incluindo os salários dos
funcionários e os subsídios dos membros das assembleias municipais. A baixa de
receitas reduz a margem de manobra do Conselho Municipal em relação a uma
Assembleia Municipal constituída por membros que estavam no desemprego e
dependiam exclusivamente dos subsídios do município para sobreviver.
De facto, durante a realização da 4ª sessão da Assembleia Municipal, o conflito
entre o Conselho Municipal e a assembleia eclodiu. Os membros da assembleia
pelo grupo da Frelimo, Renamo e OCINA ameaçaram boicotar o Conselho Mu-
nicipal se os valores dos seus subsídios de transporte e das senhas de presença não
aumentassem (CMCN, 2004c). A ameaça dos membros da assembleia foi tomada
com seriedade pelo Conselho Municipal e, para evitar uma paralisia institucional, o
presidente começou a integrar os membros da assembleia num sistema clientelista.
O Conselho Municipal fez “arranjos” administrativos, com a aprovação por
unanimidade dos membros da assembleia, de uma resolução (14/2004) que lhes
atribuía terrenos e isenção do pagamento de taxas de utilização do solo urbano
(CMCN, 2004a). E aprovou também outra resolução (3/2005) que recomendava o
aumento dos subsídios de transporte e atribuía motorizadas a todos os membros da
assembleia (CMCN, 2005a). Um dos grandes conflitos que tinha oposto o presiden-
te do município e os membros da assembleia (do mesmo partido, a Frelimo), duran-

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te a primeira legislatura (1998-2003), tinha sido, por um lado, o excessivo apego à
lei municipal e, por outro, a diferença das mordomias oferecidas às duas instituições.
O Conselho Municipal, uma vez resolvido o problema do “estômago vazio”
da estrutura municipal, incluindo dos membros e secretários dos bairros, devia-se
preocupar em satisfazer as populações através do cumprimento das promessas
eleitorais via implementação da política municipal. Mas, para conseguir os seus in-
tentos, o Conselho Municipal tinha de fazer face a um Estado-Frelimo altamente
“nervoso”, não só devido à perda do poder no município, mas também devido ao
comportamento dos quatro funcionários que tinham aceitado integrar a adminis-
tração municipal da Renamo.

O desenvolvimento de Nacala Porto é condicionado ao processo político. Tudo é adiado


para as próximas eleições autárquicas de 2008, mesmo a resolução do problema de água…
Fui contactado por muitos investidores para a instalação de uma refinaria de petróleo, de
uma linha de montagem de viaturas e motas, mas tudo foi ignorado porque é a Renamo
que governa o município… Apesar de sermos ofuscados e impedidos de trabalhar pelo
Estado-Frelimo, até agora utilizámos a nossa inteligência para implementar o nosso pro-
grama de governo, mas sempre com barreiras… olhem o que se passa em Mahalene com
a escola e o posto de saúde (Magazine Independente, 19 de Setembro de 2007).

De facto, na implementação da sua política municipal, a Renamo privilegiava


as zonas rurais do município, lá onde a Frelimo, durante toda a sua governação,
incluindo o primeiro mandato municipal, não tinha construído nenhuma infra-
-estrutura social nem económica, sob pretexto dessas zonas não serem prioritárias.

O Presidente do Município diz que o município não podia construir escolas nem poços
de água nos bairros de Mahelene e de Lille, porque eram zonas não prioritárias e por isso
nenhum orçamento tinha sido previsto para o ano 2000 (CMCN, 1999).

Com fundos provenientes do governo e dos impostos locais, a Renamo es-


colheu o bairro de Mahalene para construir uma escola primária e um posto de
saúde.21 O começo da construção destas duas infra-estruturas provocou uma dupla
agitação social: de um lado, era a primeira vez que o bairro iria beneficiar de tais

21
A escola e o posto de saúde tinham sido pedidos pelos habitantes deste bairro à Renamo aquan-
do da campanha eleitoral. Para receber cuidados médicos, os habitantes de Mahelene caminha-
vam cerca de 25 km até ao centro da cidade, enquanto as crianças percorriam cerca de 12 km por
dia (ida e volta) para ir à escola situada no Bairro de Quissimajulo. Entrevista com Cetade Juma,
secretário do partido Frelimo em Mahelene, realizada no dia 16 de Agosto de 2006.

82 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 82 3/29/11 4:53 PM


infra-estruturas, e, de outro, só os membros e simpatizantes da Renamo eram
recrutados para trabalhar para essas obras (Entrevista com Cetade Juma, 16 de
Agosto de 2006).
Entretanto, a representação do Estado-Frelimo, que tinha sido instalada al-
guns meses antes com a ajuda do governo provincial e central, mobilizou fundos
junto da World Vision e da Save the Children, duas organizações internacionais com
sede em Maputo, mas que exerciam as suas actividades na região no âmbito do fi-
nanciamento de projectos de desenvolvimento locais.22 Assim, dois meses depois,
os trabalhos de construção de uma escola primária começaram a 500 metros do
local onde o município Renamo construía a sua escola. O resultado foi que, no fim
do ano 2006, existiam no mesmo bairro duas escolas primárias: uma da Renamo e
outra da Frelimo, mas as duas sem alunos. Os estudantes continuavam a ter aulas
em baixo das árvores, porque, por um lado, os pais não queriam mandar os seus
filhos para uma escola construída pela Frelimo, e, por outro, porque a escola e o
posto de saúde da Renamo não funcionavam, devido à falta de autorização do
poder central.
Em grande número na região, os membros da Renamo recusavam-se a en-
viar as suas crianças a uma escola construída pelo Estado-Frelimo e serem ensina-
das por professores exteriores ao seu meio social local:

Enviaram professores que nem sequer conhecem os nossos hábitos culturais… o que
é que vão ensinar às nossas crianças? A “doutrina” da Frelimo? Nunca mandaremos as
nossas crianças a essa escola… A Frelimo deve autorizar a Renamo a abrir a sua escola
e escolher os seus professores… senão vamos continuar a mandar as nossas crianças à
Madrassa, como fazemos até agora (Entrevista com M. Aiuba, 16 de Agosto de 2006).

Perguntavam-se porque é que a Frelimo no poder desde a independência


não tinha até ao momento construído nenhuma infra-estrutura social, e porque
só neste momento em que a Renamo estava no poder o fazia? Se no começo no
ano 2008 o problema das escolas Frelimo e Renamo se encontrava resolvido, o

22
O papel das ONGs internacionais no apoio ao Estado-Frelimo é de relaçar. Não foi apenas em
Nacala Porto que se registaram exemplos de alinhamento com o partido no poder a nível nacio-
nal em detrimento do local. Por exemplo, em Angoche, município que também estava sob gestão
da Renamo, o presidente do Conselho Municipal também se queixava da SNV, organização
holandesa para o desenvolvimento, que, depois de ter financiado programas e desenvolvimento
durante o mandato da Frelimo (1998-2003), se retirou quando a Renamo tomou o poder nos
finais de 2003 (Entrevista com Alberto Omar, 25 de Outubro de 2006).

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 83

Desafios.indb 83 3/29/11 4:53 PM


posto de Saúde construído pela Renamo, para minimizar o sofrimento das famílias
locais, continuava desde 2006 fechado à espera de autorização.
Graças ao domínio que exerce sobre o aparelho do Estado, a Frelimo canalizou
todos os recursos à sua disposição para bloquear em Nacala Porto a institucionaliza-
ção da Renamo e para asfixiar a sua gestão, de forma a recuperar e conservar o poder
em todos os escalões do Estado. O discurso de um dos quadros seniores da Frelimo
e antigo Ministro do Interior e da Segurança, Mariano Matsinha, ilustra essa vontade:

A oposição, no nosso país, não deve desaparecer, mas o partido Frelimo, no poder, deve
prosseguir os seus esforços de forma a reduzir a oposição à mais estrita insignificância…
Faremos tudo o que for necessário de modo que a Frelimo continue sempre no poder e
que continue a melhorar a sua acção… Milhares de partidos podem ser criados e partici-
par em todas as eleições, mas a Frelimo continuará no poder neste país… Queremos que
dentro de alguns anos a oposição não entre mais no parlamento; dito de outra forma, no
futuro, todos os assentos no parlamento devem ser ocupados pelos nossos deputados…
Não sou a favor do desaparecimento da oposição, mas ela deve permanecer insignifican-
te (Notícias, 28 de Abril de 2007).

O REGRESSO DO «PARTIDO ÚNICO»

Uma vez a Renamo no poder em Nacala Porto, a Frelimo mobilizou e im-


plementou todos os recursos à sua disposição, incluindo a fraude (Awepa, 2008;
Canal de Moçambique, 2008; O País, 27 de Janeiro de 2007), para recuparar o
poder no município de Nacala Porto, mas também para consolidar o poder que
detinha noutros municípios e para alargar o seu poder aos novos municípios que
em função do gradualismo, seriam criados.
Os resultados das terceiras eleições municipais de Novembro de 2008 teste-
munham essa vontade do Estado-Frelimo de acabar com a oposição em todos os
escalões do Estado. Com uma taxa de participação de 46%, mais alta do que a das
eleições locais de 2003 (28%) e das eleições Legislativas e presidenciais de 2004
(43%), a Frelimo ganhou as eleições em quarenta e dois dos quarenta e três muni-
cípios em jogo e elegeu, logo na primeira volta, quarenta e um presidentes.23 Em
Nacala Porto, o candidato da Frelimo, Chale Ossufo, foi eleito na segunda volta, a

23
Na cidade da Beira (Sofala), foi o antigo presidente (ex-Renamo) que, expulso do partido, se
apresentou como independente e ganhou o escrutínio com 62% dos votos expressos. O candida-
to da Frelimo, Lourenço Bulha, obteve 34% dos votos e o candidato oficial da Renamo, Manuel
Pereira, 3%.

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Desafios.indb 84 3/29/11 4:53 PM


11 de Fevereiro de 2009. Na primeira volta, o candidato da Frelimo tinha obtido
49,84% dos votos contra 47,81% do candidato da Renamo, Manuel dos Santos.
A reacção do líder da Renamo aos resultados não se fez esperar. Numa en-
trevista à Televisão de Moçambique (TVM), Afonso Dhlakama acusou a Frelimo
e o seu presidente, Armando Guebuza, de ter praticado um «crime eleitoral» (O
País, 13 de Janeiro de 2009). Ameaçou não entregar os municípios sob a gestão da
Renamo (Notícias, 15 de Janeiro de 2009) e exigiu o começo de negociações para
a partilha do poder nos quarenta e dois municípios e, correndo o risco de incitar
o povo à desobediência civil, declarou:

Para salvar a democracia e evitar violência política pós-eleitoral semelhante àquela que
teve lugar no Kenya e no Zimbabwe, a Renamo deve ignorar os resultados oficiais e
negociar com o Presidente da Frelimo, Armando Guebuza, a partilha do poder nos mu-
nicípios … Não queremos guerra. Condenamos estas eleições. Foi um crime eleitoral …
Queremos negociar com o Chefe do Estado para preservar a democracia… O povo foi
roubado… Gostaria que o presidente Guebuza reconhecesse o crime eleitoral que foi
cometido… Devemos negociar a partilha do poder nos municípios para evitar o que se
passou no Kenya (O País, 13 de Janeiro de 2009).

E, em outro momento, em Nampula, Afonso Dhlakama acrescentou:

Vou dirigir uma campanha de instabilidade política… Vou, dentro de alguns dias, investir
os candidatos da Renamo nos postos de Presidentes dos Conselhos Municipais onde
fomos roubados pela Frelimo nas eleições de 2008… Vamos instalar as administrações
municipais paralelas, onde os Presidentes da Renamo vão também nomear vereadores
para gerir o poder local (O País, 27 de Janeiro de 2009).

O desejo de instalar uma administração municipal paralela da Renamo pode


ser compreendido à luz do procedimento operado pelo Estado-Frelimo aquando
da perda de alguns municípios nas eleições municipais de 2003. Mas esta preten-
são da Renamo afigurava-se impossível, ainda mais porque, como dizia o Ministro
da Administração Estatal, «se a Renamo tentar materializar a sua pretensão, o
Estado dispõe de meios de coerção para reprimir acções consideradas ilegais.» (O
País, 27 de Janeiro de 2009).
Mas é necessário sublinhar que as reclamações da Renamo em relação à
forma como as eleições foram conduzidas não eram totalmente desprovidas de
sentido. De facto, o governo, ao invés de decretar tolerância de ponto no dia das
eleições apenas nos quarenta e três municípios onde haveria votação, estendeu
esta medida a todo o território e, segundo a Renamo, esta medida teria permitido

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 85

Desafios.indb 85 3/29/11 4:53 PM


à Frelimo deslocar simpatizantes seus, que habitam nos distritos vizinhos, para
irem votar em alguns municípios24 onde a Renamo era politicamente forte. A acu-
sação feita pela Renamo fundava-se igualmente no facto de a CNE ter aprovado
uma deliberação (125/CNE/2008, de 12 de Novembre de 2008) que abria a pos-
sibilidade de voto a cidadãos que não figuravam nas listas eleitorais.25
É verdade que o Estado-Frelimo recorreu a manobras eleitorais diversificadas
para ganhar as eleições municipais de Novembro de 2008. Mas reduzir a vitória da
Frelimo a estas manobras seria ignorar todo um trabalho de mobilização e reorgani-
zação operado desde a chegada de Guebuza à liderança do partido. Com Guebuza,
uma atenção especial foi prestada às células de base e aos administradores de distrito,
que constituíam historicamente um laço fundamental de controlo do território e da
população26. Em contrapartida, a Renamo, por um lado, mal organizada e abalada
por conflitos internos opondo os seus membros a propósito da partilha dos recursos
dos municípios onde exerciam o poder desde 2003, e, por outro lado, com a sua estru-
tura ainda militarizada, «não civilizada», com um claro corte entre a direcção central
e as bases, encontrava dificuldades para apresentar uma alternativa credível, capaz de
fazer frente à Frelimo no que diz respeito à gestão municipal. O período da campanha
eleitoral para as eleições municipais de Novembro 2008 confirmou esta fraqueza. En-
quanto a Frelimo conduzia a sua campanha eleitoral com inúmeras iniciativas locais,
os candidatos da Renamo esperavam simplesmente a chegada de material provenien-
te da sua direcção central, instalada na capital (Notícias, 6 de Novembro 2008).
No que diz respeito a Nacala Porto, objecto desta discussão, a Renamo não
conseguiu renovar seu mandato. A Frelimo dominou a assembleia municipal com
49,19% dos votos, seguida pela Renamo com 48,57%, e finalmente o PDD e a

24
A utilização deste procedimento pela Frelimo está documentada em vários casos. Por exemplo,
em 2005, aquando das eleições intercalares em Mocimboa da Praia, convocadas devido à mor-
te do presidente do Conselho Municipal, pessoas vivendo em Nampula, Pemba, Montepuez e
outros distritos vizinhos foram transportadas em camiões e autocarros alugados pelo Partido
Frelimo para votar no seu candidato no Município de Mocímboa. Ver: Observatório Eleitoral,
Relatório preliminar do processo de observação e recolha de apuramentos parciais. Eleição Intercalar:
Mocimboa da Praia 2005, Maputo, Junho de 2005.
25
De facto, a deliberação foi anulada nas vésperas da votação, mas é provável que a decisão não
tenha chegado a tempo ao conhecimento de todas as mesas de voto.
26
No mês de Junho de 2004, teve lugar em Nampula uma conferência nacional de quadros do
partido Frelimo na qual participaram também os administradores de distritos, sem que isso
levantasse um escândalo, com o objectivo de preparar a campanha eleitoral. Nesta reunião, Ar-
mando Guebuza desenvolveu um discurso nacionalista, voluntarista e de ruptura com as práticas
da antiga direcção. Criticou o “deixa andar” e engajou-se a combater a pobreza.

86 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 86 3/29/11 4:53 PM


OCINA com 1, 13% e 1,11%, respectivamente. Principal organização da oposi-
ção em Nacala Porto durante o primeiro mandato dos órgãos municipais (1998-
2003), à medida que o processo de descentralização se consolidou, a OCINA foi
progressivamente afastada da representação local. No concernente à eleição do
presidente do Conselho Municipal, o candidato da Frelimo, Chale Ossufo, que
era já o representante do Estado em Nacala Porto, ganhou as eleições na segunda
volta com 55% dos sufrágios contra 45% do candidato da Renamo, Manuel dos
Santos (Notícias, 23 de Fevereiro de 2009). Na primeira volta, Chale Ossufo obte-
ve 49,84 % dos votos contra 47,81% do antigo Presidente do Conselho Municipal.
Os candidatos da OCINA e do PDD, César Gabriel e Julião Cipriano, obtiveram,
respectivamente, 1,2% e 1,1% dos votos (Notícias, 4 de Fevereiro de 2009).
Em Nacala Porto, apesar de o presidente do Conselho Municipal da Renamo
parecer estar a gerir bem o município, parece que os bloqueios administrativos e finan-
ceiros, a instalação do representante do Estado que exercia um poder paralelo, sobre-
tudo nas zonas rurais da cidade, de forte domínio da Renamo (Mahelene, Janga, Lille,
Naherenque, Mathapwé, etc) e a utilização da água como recurso político, surtiram os
efeitos desejados. O Estado-Frelimo, que tinha adiado desde 2004 a inauguração dos
projectos de abastecimento de água de M’Tuzi, M’Pago e Naherenque (Zambeze, 28
de Dezembro de 2006) por falta de recursos financeiros (Savana, 13 de Abril de 2007),
do Centro de Saúde de Mahelene, construído pela Renamo, por falta de pessoal e de
equipamento (Notícias, 11 de Setembro de 2008), o tenha vindo a fazer justamente
depois da vitória da Frelimo e da posição de destaque que o seu candidato ocupava
depois da primeira volta eleitoral nas eleições municipais de 2008 (Notícias, 14 de
Fevereiro de 2009). O jornal Notícias pro-governamental, escrevia:

Curiosamente, ontem, dia do anúncio dos resultados eleitorais, todas as torneiras da ci-
dade jorravam água com abundância – o que não acontecia desde há muitos anos, o que
foi visto pelos habitantes da cidade de Nacala como um bom presságio para a gestão
municipal de Chale Ossufo (Notícias, 18 de Fevereiro de 2009).

A inauguração destes projectos constituiu uma estratégia para obter dividen-


dos políticos e recuperar uma cidade que, segundo Manuel Tomé, «estava a ser
gerida de forma desastrosa, ruinosa e catastrófica, por pessoas que não têm instru-
mentos para fazer política» (Notícias, 13 de Fevereiro de 2009).

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 87

Desafios.indb 87 3/29/11 4:53 PM


CONCLUSÃO

A Renamo, na gestão municipal, entrou em contradição com ela mesma. A


ideia de “bem governar” anunciada pelos seus dirigentes na altura da investidura
no município de Nacala Porto não foi implementada. Ela reproduziu, na gestão
local, as práticas institucionais do Estado neopatrimonial, nomeadamente a cor-
rupção, o nepotismo e o clientelismo, práticas do funcionamento da administra-
ção pública directamente ligadas à influência e à trajectória do Estado-Frelimo.
A «resistência» da Renamo a esse neopatrimonialismo consistiu na constru-
ção e desenvolvimento do seu próprio modelo, mas um modelo perdedor, porque
se tratava de um neopatrimonialismo pobre. Não representava nenhuma alterna-
tiva que seria, por exemplo, a mobilização democrática dos habitantes por estru-
turas democráticas participativas, na escolha dos secretários de bairros ou ainda
na constituição de cooperativas urbanas para retomar as fábricas de caju, de pro-
dução de sal, de pesca artesanal, que eram potencialidades económicas da região.
Em Nacala Porto, durante a gestão do município pela Renamo, vimos, por um
lado, a metódica asfixia económica organizada pelo governo central, com o envio
tardio de fundos destinados à gestão municipal, e, por outro, uma vontade manifesta
de paralisia institucional, ligada à resistência de ordem mental, cultural e compor-
tamental às mudanças operadas por parte dos órgãos desconcentrados ligados ao
Estado-Frelimo. Estes últimos procuravam, a todo o custo, modificar, retardar e
boicotar o trabalho dos seus rivais, utilizando, pelo menos parcialmente, o voto na
Assembleia Municipal, de forma a impedir a implementação da política da Renamo.
Esta constatação leva-nos a concluir não só que a Frelimo não quer, de forma
alguma, a consolidação de outras legitimidades políticas, mas também que não
está preparada para estar na oposição, mesmo a nível local, e que a descentrali-
zação não está a conseguir criar uma situação de pluralismo político na medida
em que o partido dominante consegue, através do controlo que exerce sobre o
Estado, instrumentalizar os recursos para fortificar as suas bases locais.

88 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 88 3/29/11 4:53 PM


REFERÊNCIAS
LIVROS, RELATÓRIOS E ARTIGOS
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çais. Paris: O. Jacob.
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Carothers, Th., 2002. The end of the transition paradigm. Journal of Democracy, 13
(1), pp. 5-21.
Lacam, J.-P., 1988.  Le politicien investisseur. Un modèle d’interprétation de la
gestion des ressources politiques. Revue française de science politique, 38 (1),
pp. 23-47.
Lachartre, B., 2000. Enjeux urbains au Mozambique: de Lourenço Marques à Maputo,
Paris: Karthala.
Mabileau, A., 1993. A la recherche du local, Paris: l’Harmattan.
Mabileau, A., 1994. Le système local en France, Paris: Montchrestien.
Observatório Eleitoral, 2005. Relatório preliminar do processo de observação e recolha
de apuramentos parciais. Eleição Intercalar - Mocímboa da Praia 2005, Maputo:
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Otayek, R., 2002. Vu d’Afrique. Société civile et démocratie. De l’utilité du regard
décentré. Revue internationale de politique comparée, 9 (2), pp. 193-212.
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LEGISLAÇÃO
Decreto 65/2003, de 31 de Dezembro de 2003. Boletim da República, I Série, n°53,
2° Suplemento.
Lei 2/97, de 18 de Fevereiro de 1997. Boletim da República, I Série, n°7, 2° Suple-
mento.
Lei 3/94, de 13 de Setembro de 1994. Boletim da República, I Série, n°37, 2° Suple-
mento.
Resolução n° 3/81, de 2 de Setembro de 1981. Boletim da República, I serie, n°35,
2° Suplemento.

Descentralização em Contexto de Partido “Dominante” Desafios para Moçambique 2011 89

Desafios.indb 89 3/29/11 4:53 PM


DOCUMENTOS DE ARQUIVO
CMCN (Conselho Municipal de Nacala Porto), 1998a. Assunto: Envio de dados
eleitorais parciais, Nacala, 8 de Julho.
CMCN (Conselho Municipal de Nacala Porto), 1998b. Acta da II Sessão da assem-
bleia municipal, Nacala, 5 de Dezembro.
CMCN (Conselho Municipal de Nacala Porto), 1999. Acta da VIII sessão ordinária
da Assembleia Municipal, Nacala, 15 de Dezembro.
CMCN (Conselho Municipal de Nacala Porto), 2001. Acta da XV sessão ordinária
da Assembleia Municipal de Nacala Porto, Nacala, 18 de Março.
CMCN (Conselho Municipal de Nacala Porto), 2004a. Acta da VI Sessão ordinária
do Conselho municipal Nacala, 18 de Agosto.
CMCN (Conselho Municipal de Nacala Porto), 2004b. Acta da XXX sessão ordiná-
ria do Conselho municipal, Nacala, 29 de Outubro.
CMCN (Conselho Municipal de Nacala Porto), 2004c. Acta da IV sessão ordinária
da Assembleia municipal, Nacala, 15 de Novembro.
CMCN (Conselho Municipal de Nacala Porto), 2005a. Acta da VIII Sessão ordiná-
ria do Conselho municipal, Nacala, 2 de Março.
CMCN (Conselho Municipal de Nacala Porto), 2005b. Acta da VI Sessão ordinária
da Assembleia municipal, Nacala, 24 de Março.
CMCN (Conselho Municipal de Nacala Porto), 2005c. Informe trimestral do Pre-
sidente do Conselho Municipal na Assembleia municipal: Janeiro-Março, Nacala,
13 de Abril.
CMCN (Conselho Municipal de Nacala Porto), 2005d. Informe à sua Excelência o
Governador da Província de Nampula, senhor Filipe Chimoio Paunde, por ocasião
da sua primeira visita de trabalho ao Município de Nacala na qualidade de chefe
de governo da província, Nacala, 20 de Abril.
DPSN (Direcção Provincial de Saúde de Nampula), 1999. Relatório do seminário
provincial de divulgação da política da população, Nampula, 26 Agosto.
Matsimbe, H., 2004. Carta à sua (s) Excelência (S) Governador da Província de Nam-
pula, Ministro da Administração Estatal e ao Secretário-Geral do Partido Frelimo,
Nacala, 23 de Julho.
População da Aldeia Comunal de Murrupelana, 1984. Informação ao senhor Gover-
nador da Província de Nampula, Nacala, 19 de Fevereiro.

90 Desafios para Moçambique 2011 Descentralização em Contexto de Partido “Dominante”

Desafios.indb 90 3/29/11 4:53 PM


Revisão da Legislação Eleitoral
Algumas propostas para o debate
Luís de Brito

INTRODUÇÃO

Os levantamentos populares de Fevereiro de 2008 e de Setembro de 2010


mostraram que, apesar dos vários escalões de governo e de toda a máquina ad-
ministrativa que cobre o país até ao nível dos bairros e quarteirões, acompanhada
de uma estrutura paralela de órgãos partidários da Frelimo,1 não existem canais
funcionais e eficientes de negociação e concertação na sociedade moçambicana,
que o governo conhece mal a realidade da vida das camadas sociais mais desfa-
vorecidas e que nenhum dos partidos políticos com representação parlamentar
parece assumir de facto a representação dos interesses dos pobres. De alguma
maneira, isto reflecte-se no divórcio da maioria dos cidadãos em relação à política,
traduzido no alto nível de abstenção – acima de 50% - que se registou nas duas
últimas eleições legislativas e presidenciais moçambicanas. Embora este seja um
aspecto que os responsáveis políticos preferem ignorar, uma abstenção muito ele-
vada fragiliza o poder e reduz a legitimidade da governação.2
As razões que levam um grande número de cidadãos a desinteressarem-se
pela política podem ser muito variadas. Certamente, a não realização de expecta-
tivas criadas com o fim da guerra civil e o estabelecimento da democracia multi-
partidária, aliada ao insuficiente cumprimento de promessas eleitorais pelos go-
vernantes, são factores que contribuem para essa situação, mas não são os únicos.
Os problemas e conflitos que têm marcado os processos eleitorais desde 1994
também contribuem para a “desafeição” dos cidadãos em relação aos assuntos
políticos e de governação. Embora o melhoramento do processo eleitoral não seja

1
Dos restantes partidos com representação na Assembleia da República, nas assembleias provin-
ciais e nas assembleias municipais, apenas a Renamo tem uma organização relativamente impor-
tante, com delegações em todas as províncias e na maioria dos distritos, mas a sua abrangência e
presença no terreno não pode ser, de maneira nenhuma, comparada à da Frelimo.
2
O conceito de “governação” é muito mais abrangente do que “governo” e, contrariamente a uma
opinião bastante generalizada, deve ser, neste caso, entendido que a falta de legitimidade se aplica
a todas as organizações e instituições políticas, sem excepção.

Revisão da Legislação Eleitoral Desafios para Moçambique 2011 91

Desafios.indb 91 3/29/11 4:53 PM


necessariamente remédio suficiente para combater a abstenção e o desinteresse
dos cidadãos, pois há outros factores que contribuem para tal, pode ter um con-
tributo significativo na dignificação da vida política e na promoção dos valores da
liberdade e da democracia no seio da sociedade.
A legislação eleitoral moçambicana é em geral considerada relativamente
boa, mas a sua aplicação tem-se revelado muito deficiente, marcada por inter-
pretações discutíveis, influenciadas por interesses do partido no poder, ou, pelo
menos, em benefício desse partido. Se é evidente que a revisão da legislação elei-
toral pode contribuir para melhorar o ambiente e as práticas eleitorais, tornando-
-as mais conformes aos princípios que devem reger as eleições democráticas, é
igualmente evidente que isso depende, em grande medida, dos órgãos que têm a
responsabilidade de organizar e dirigir os processos eleitorais, no caso moçambi-
cano em especial a Comissão Nacional de Eleições (CNE). Pela sua importância
capital, e porque a questão da CNE e do Secretariado Técnico de Administração
Eleitoral (STAE) têm sido dos assuntos que no processo eleitoral mais têm suscita-
do um aceso debate público, a questão dos órgãos de gestão eleitoral é a primeira
abordada no presente texto. São igualmente abordadas algumas questões relativas
ao recenseamento eleitoral, que é o elemento de base sobre o qual se edifica o pro-
cesso da escolha dos representantes políticos, às assembleias de voto e à votação
e, finalmente, à contagem e apuramento de resultados.
Em geral, são aqui retomadas ideias que foram sendo apresentadas em vários
textos e intervenções durante os últimos anos e que reflectem, para além da experiên-
cia própria, algumas recomendações feitas em diversos relatórios de grupos de obser-
vadores eleitorais que têm acompanhado a realização das eleições em Moçambique.

SOBRE OS ÓRGÃOS DE GESTÃO ELEITORAL

De acordo com o seu modo de formação, a sua composição e a articulação


com as estruturas governamentais, os órgãos de gestão eleitoral são geralmente
classificados em três modelos: governamental, independente e misto. No caso do
modelo governamental, a organização e condução das eleições é feita sob a res-
ponsabilidade de órgãos do executivo, em geral através do Ministério do Interior,
da Administração Territorial, ou equivalente, frequentemente em colaboração com
as autoridades locais/municipais; no caso do modelo independente, os processos

92 Desafios para Moçambique 2011 Revisão da Legislação Eleitoral

Desafios.indb 92 3/29/11 4:53 PM


eleitorais são organizados e dirigidos por um órgão específico, uma comissão de
eleições, composta por membros que não fazem parte do governo (podendo ser
personalidades provenientes da sociedade civil, ou de partidos políticos), que dis-
põe de um orçamento próprio, de serviços técnicos e é autónoma em relação ao
executivo; no caso do modelo misto, como o seu nome indica, trata-se de uma
fórmula que inclui elementos das duas primeiras, normalmente acrescentando ao
sistema do modelo governamental uma comissão independente de supervisão e
controlo. Naturalmente, existem inúmeras variantes destes modelos, sendo a so-
lução adoptada por cada país o reflexo das suas condições políticas e contexto
histórico particulares.
Em Moçambique, para as primeiras eleições multipartidárias, foram criados
dois órgãos de gestão eleitoral: a Comissão Nacional de Eleições e o Secretariado
Técnico da Administração Eleitoral. Na óptica da classificação acima apontada,
não obstante várias mudanças em certos aspectos da CNE e do STAE ao longo
do tempo, a opção moçambicana enquadra-se no âmbito do modelo independen-
te, assentando inicialmente numa comissão eleitoral formada essencialmente por
representantes dos partidos e, na sua forma actual, por representantes dos partidos
e membros da sociedade civil.3
A CNE, criada por ocasião das primeiras eleições em 1994 (Lei 4/93), tinha
uma composição relativamente equilibrada entre o partido no poder e os partidos
da oposição.4 Com efeito, dos vinte e um membros que a compunham, dez eram
escolhidos pelo governo (ou seja, pelo partido no poder), outros dez escolhidos
pelos partidos da oposição (sendo sete indicados pela Renamo e os restantes pelos
outros partidos da oposição) e, finalmente, uma personalidade era indicada pelos
membros da comissão e nomeada pelo Presidente da República para a função de
presidente da comissão.5 Para além disso, a CNE disporia de dois vice-presidentes,
sendo um indicado pela Renamo e outro pelos restantes partidos políticos (de
facto, a Frelimo). Ao mesmo tempo, a mesma lei estabeleceu a formação do Se-

3
Num certo momento, com a dupla subordinação do STAE à CNE e ao executivo, esboçava-se a
adopção de um modelo misto. No entanto, com a subordinação permanente do STAE à CNE,
actualmente em vigor, voltou-se para o modelo independente.
4
Este aspecto decorre dos termos do Acordo Geral de Paz (AGP) assinado em Roma a 4 de
Outubro de 1992 (Lei 13/92). O AGP estabelecia que a Renamo apresentaria “um terço dos
membros a designar na referida Comissão” (ponto IV. 3a do Protocolo III).
5
No caso de não haver uma proposta consensual dos membros da comissão para a figura do presi-
dente da mesma, estes deveriam submeter ao Presidente da República uma lista de cinco nomes
dentre os quais ele faria a sua escolha.

Revisão da Legislação Eleitoral Desafios para Moçambique 2011 93

Desafios.indb 93 3/29/11 4:53 PM


cretariado Técnico de Administração Eleitoral como órgão de apoio subordinado
à CNE (art. 19). Conforme o estabelecido no Decreto 6/94, o STAE também foi
estruturado reservando uma série de postos, incluindo de direcção, à Renamo e
a outros partidos da oposição, para além de integrar membros apresentados pela
Organização das Nações Unidas (ONU).6 Assim, a composição do STAE central
era constituída por cinquenta técnicos, sendo vinte e cinco apresentados pelo go-
verno, treze pela Renamo e restantes partidos políticos e doze pela ONU (art. 8
do decreto 6/94); para além disso, a Renamo, por um lado, e os restantes partidos,
por outro, tinham o direito de indicar um director-adjunto para os gabinetes pro-
vinciais e distritais do STAE (arts. 10 e 12 do Decreto 6/94).
A lei eleitoral de 1993 (4/93) aplicava-se especificamente “às primeiras elei-
ções gerais multipartidárias” (art. 1), terminando a CNE o seu mandato “com a
apresentação do relatório final, cento e vinte dias após a publicação do mapa ofi-
cial das eleições” (art. 18). Por consequência, tanto os princípios adoptados para a
formação da CNE como a própria comissão esgotavam-se no termo desse primei-
ro processo eleitoral. Isto significava que uma nova legislação eleitoral teria de ser
adoptada para os processos eleitorais seguintes. De facto, desde então, tem sido
produzida nova legislação eleitoral praticamente para cada ciclo eleitoral, sem que
um verdadeiro consenso entre as forças políticas se tenha estabelecido,7 o que cria
um ambiente permanente de conflito e contestação entre os partidos políticos.
Entre outros efeitos, esse ambiente conflituoso, acompanhado de ameaças mais
ou menos veladas de retorno à guerra, tem seguramente levado muitos eleitores a
decidir pela não participação nos actos eleitorais.
Curiosamente, o objectivo de “equilíbrio, objectividade e independência em
relação a todos os partidos políticos” enunciado no AGP para a CNE (ponto
IV. 3a do Protocolo III), que (considerando que os membros da comissão eram
indicados pelos próprios partidos) só poderia ser atingido através de uma com-
posição equitativa entre a parte governamental e a oposição foi abandonado na

6
A ONU estava presente no processo moçambicano através de uma operação especial designada
ONUMOZ.
7
Com excepção da última legislação eleitoral, que se aplicou às eleições presidenciais e legislativas
de 2009, aprovada apenas pela bancada da Frelimo, toda a restante legislação foi sempre formal-
mente aprovada por unanimidade na Assembleia da República. No entanto, essa unanimidade era
na realidade falsa na sua essência pois foi sempre resultado de negociações de última hora (apenas
a alguns meses da data das eleições) e de pressões várias da comunidade internacional sobre os
partidos, depois de as comissões de revisão da legislação eleitoral terem trabalhado durante longos
meses, por vezes anos, sem atingirem um consenso.

94 Desafios para Moçambique 2011 Revisão da Legislação Eleitoral

Desafios.indb 94 3/29/11 4:53 PM


legislação subsequente em favor de uma representação partidária na CNE, mas
agora seguindo como critério o peso de cada formação política na representação
parlamentar.
Depois de um breve período em que a intenção do governo era passar a direcção
e organização das eleições integralmente para o STAE, ou seja, adoptar um modelo
estritamente governamental de gestão dos processos eleitorais, a resistência da Rena-
mo a essa ideia levou a que fosse de novo instituída a figura da CNE como órgão de
direcção das eleições. Porém, a concessão feita à Renamo foi limitada, pois a Freli-
mo não cedeu sobre um aspecto central: uma composição que lhe garantia presença
maioritária na nova CNE. Foi assim que a comissão formada em 1997 para “institu-
cionalizar a organização e o funcionamento de um órgão de direcção de processos
eleitorais” (Lei 4/97, introdução) passou a ser composta por nove membros escolhi-
dos da seguinte forma: “a) um presidente... designado pelo Presidente da República; b)
sete membros eleitos pela Assembleia da República, respeitando a proporcionalidade
da representação parlamentar; c) um membro designado pelo Conselho de Ministros”
(art. 5). Deixaram também, nesta nova versão da comissão, de existir os cargos de
vice-presidentes, anteriormente divididos entre a Renamo e a Frelimo. Por seu lado,
o STAE passava a ser uma administração pública que, nos termos da lei, se subordi-
nava “exclusivamente à Comissão Nacional de Eleições” apenas no período eleitoral (art.
17). Finalmente, o princípio que determinava em 1993 que as deliberações da CNE
seriam obrigatoriamente tomadas por consenso (Lei 4/93, art. 22) foi substituído pelo
princípio do voto maioritário (Lei 4/97, art. 15). Consagrava-se assim o predomínio e
controlo total dos órgãos eleitorais pelo partido governamental, a Frelimo, que desde
as primeiras eleições multipartidárias sempre dispôs de uma maioria absoluta no parla-
mento. Esse controlo manteve-se de facto até aos dias de hoje, não obstante, como se
verá adiante, uma aparente entrega (em 2007) da maioria dos lugares e da presidência
da CNE a representantes da “sociedade civil”.
Em 1999, a CNE passou a ser constituída por dezassete membros (Lei 4/99,
alterada pela Lei 8/99), sendo quinze “apresentados pelos partidos políticos com
assento na Assembleia da República e eleitos por esta, de acordo com o princípio
da representatividade parlamentar” (art. 5), isto é, cada partido indicando um nú-
mero de membros correspondente à percentagem da sua representação no parla-
mento, sendo os dois restantes indicados pelo governo. O presidente da comissão
era, de acordo com essa lei, nomeado pelo Presidente da República, depois de
escolhido pelos respectivos membros, no seu seio (art. 5).

Revisão da Legislação Eleitoral Desafios para Moçambique 2011 95

Desafios.indb 95 3/29/11 4:53 PM


Entretanto, depois de mais uma revisão da legislação eleitoral, em 2002, a
composição da CNE foi de novo alterada (Lei 20/02), passando esta a ser com-
posta por dezanove membros e, de novo, por um presidente e dois vice-presidentes
(art. 4). Neste caso, o presidente da CNE passava a ser designado “por proposta da
sociedade civil” e eleito pelos restantes membros da comissão (art. 5), “apresentados
pelos partidos políticos ou coligações de partidos com assento na Assembleia da
República, de acordo com o princípio da representatividade parlamentar.” (art. 5).
A lei era omissa em relação ao procedimento de escolha dos dois vice-presidentes,
mas foi mantida a tradição de reservar uma das vice-presidências para a Renamo,
o que, na ausência de responsabilidades específicas reservadas aos vice-presidentes,
nunca foi mais do que um aspecto meramente simbólico. A partir de 2002, o STAE
passou a ficar permanentemente subordinado à CNE (art. 28), fechando-se assim
um ciclo em que a governamentalização da gestão dos processos eleitorais sempre
esteve presente como uma potencialidade em benefício de uma solução que se situa
formalmente no âmbito de um modelo de gestão eleitoral independente.
Os permanentes conflitos e o fraco desempenho das sucessivas comissões
eleitorais levaram a uma crescente pressão para transformar esse órgão numa ins-
tituição efectivamente independente dos partidos. Para tal, a solução apontada
depois das eleições de 2004 era que os seus membros fossem escolhidos pela
sociedade civil. Um compromisso foi alcançado nos termos do qual os partidos
manteriam uma representação através de membros nomeados por si, mas a maio-
ria deveria ser proposta pelas organizações da sociedade civil. Na base desse en-
tendimento, a CNE, em conformidade com a Lei 8/07, passou a ser formada por
treze membros, dos quais cinco são eleitos pela Assembleia da República, sempre
obedecendo ao critério de representação proporcional à representação parlamen-
tar (art. 5), sendo os oito restantes escolhidos pelos membros designados pelos
partidos através da Assembleia da República, dentre listas de candidatos submeti-
dos por organizações da sociedade civil (art. 5). No actual figurino, o presidente da
CNE é eleito pelos seus pares dentre os membros saídos das listas da sociedade ci-
vil e posteriormente nomeado e empossado pelo Presidente da República (art. 5).
Este modelo, que aparentemente poderia permitir ultrapassar a permanente
desconfiança e conflito à volta da CNE e facilitar a realização de eleições efectiva-
mente “livres, justas e transparentes”, falhou nos seus objectivos. De facto, a solu-
ção encontrada tem várias debilidades: em primeiro lugar, porque mantém como
base da comissão uma estrutura partidária assente na proporção da representação

96 Desafios para Moçambique 2011 Revisão da Legislação Eleitoral

Desafios.indb 96 3/29/11 4:53 PM


parlamentar dos partidos, o que, dada a regra das decisões poderem ser tomadas
por maioria, significa em termos práticos a predominância do partido no poder,
forte da sua maioria parlamentar; em segundo lugar, porque o mecanismo final
de escolha dos membros da sociedade civil, tal como está definido, é de facto um
mecanismo de cooptação que evidentemente é usado pelos membros pertencen-
tes ao partido no poder para escolherem apenas candidatos que lhes sejam próxi-
mos. Foi assim que uma série de candidatos submetidos por um grupo de ONGs,
depois de um longo processo de consultas, concertação e debates públicos nas
províncias, foram preteridos em favor de candidatos simplesmente apresentados
por organizações próximas da Frelimo.
É evidente que a própria natureza da “sociedade civil”, que na prática não
existe como uma unidade que possa ser representada enquanto tal, mas apenas –
e só no que diz respeito à sua componente organizada – como uma colecção de
organizações diferentes e independentes entre si, conduz a que, na ausência de
uma clara vontade política da parte de quem tem o poder de decisão, o processo
de escolha seja orientado pelos interesses imediatos da parte mais forte e, como
tal, considerado pelas outras como uma forma de manipulação. Ora, a dificuldade
de negociar e chegar a soluções efectivamente consensuais entre os dois principais
protagonistas do processo político moçambicano, a Frelimo e a Renamo, tem sido
uma característica essencial e permanente desde a celebração do Acordo Geral de
Paz8 e não constituiu grande surpresa a forma como a escolha dos membros da
CNE “representantes da sociedade civil” acabou sendo feita.
A permanente alteração da composição da CNE e da forma de designação dos
seus membros e direcção mostram quatro coisas: em primeiro lugar, que a questão da
direcção dos processos eleitorais sempre foi um problema, cuja solução ainda não foi
encontrada; em segundo lugar, que a presença de membros da oposição neste órgão
de gestão eleitoral depois de 1994 é apenas simbólica e praticamente não tem ne-
nhum efeito; em terceiro lugar, que embora se tenha procurado introduzir um sistema
que garantisse um funcionamento independente e imparcial em relação aos partidos,
através de representantes da sociedade civil, o mecanismo de selecção impediu que o

8
O próprio Acordo Geral de Paz, cuja negociação levou mais de dois anos, não obstante ser am-
plamente celebrado como um sucesso (o que é inegável do ponto de vista da solução do conflito
armado e da instalação no país de um clima de paz duradoura), pode ser visto mais como uma
rendição negociada da Renamo, do que como uma verdadeira solução consensual do conflito, o
que não é indiferente no que diz respeito à forma – e limitações – que assumiu o posterior pro-
cesso de democratização.

Revisão da Legislação Eleitoral Desafios para Moçambique 2011 97

Desafios.indb 97 3/29/11 4:53 PM


resultado desejado fosse atingido; em quarto lugar, que a partir das primeiras eleições
multipartidárias o controlo da Frelimo sobre os órgãos eleitorais foi uma constante.
A actuação da CNE nas eleições presidenciais e legislativas de 2009 deu
lugar a uma série de conflitos, críticas e grande polémica pública, não só por parte
dos partidos de oposição e cidadãos, mas também por parte de alguns “doadores”,
sendo de destacar os que se encontram agrupados no chamado “G 19” e os Es-
tados Unidos da América, que por várias vezes expressaram a sua preocupação e
desagrado em relação à forma como o processo eleitoral estava a ser conduzido, o
que levou a uma grande crispação com o governo. É assim que, num comunicado
de 17 de Setembro de 2009, o “G 19” dizia que “o compromisso de Moçambique
realizar processos [eleitorais] livres, credíveis e democráticos é um dos funda-
mentos mais importantes para a nossa cooperação de longo prazo e parceria no
desenvolvimento. É por isso que estamos preocupados com as recentes decisões
que tiveram impacto na participação de muitos candidatos nas várias eleições” e
terminava declarando: “como amigos e parceiros de Moçambique, instamos a que
esta situação seja resolvida urgentemente para possibilitar a continuação da cam-
panha sem desconfiança, medo de conflito nem violência”.
As críticas e acusações mais frequentes em relação à actuação da CNE em
2009 incluem: a interpretação restritiva, e em alguns casos abusiva, de normas le-
gais em desfavor das candidaturas da oposição, o tratamento diferenciado dessas
candidaturas, o não cumprimento de prazos e de alguns outros preceitos legais e,
em geral, a ausência de transparência e imparcialidade na sua actuação.
A experiência mostrou que, com base nas actuais normas de selecção dos can-
didatos estabelecidas na lei da CNE, é praticamente impossível formar uma comissão
imparcial e equidistante dos partidos, ainda que seja de facto composta maioritaria-
mente por personalidades provenientes da sociedade civil. Também parece evidente
que, no estágio actual do processo de democratização em Moçambique, ainda ca-
racterizado por um alto nível de desconfiança entre os dois principais partidos, estes
dificilmente aceitam renunciar à sua presença na CNE. Nestas condições, uma via
possível para se chegar à formação de uma CNE capaz de desenvolver as suas activi-
dades de forma mais respeitadora dos princípios essenciais que devem caracterizar a
actuação dos órgãos de gestão eleitoral numa democracia pluralista, ou seja, o respeito
da lei, a transparência e a imparcialidade, mas sem excluir os partidos, seria adoptar
um processo em três etapas: em primeiro lugar, cada partido com representação na
Assembleia da República, nas assembleias provinciais e nas assembleias municipais

98 Desafios para Moçambique 2011 Revisão da Legislação Eleitoral

Desafios.indb 98 3/29/11 4:53 PM


designaria um delegado para a CNE; em segundo lugar, os membros designados
pelos partidos escolheriam cinco personalidades dentre os candidatos propostos pelas
organizações da sociedade civil, por consenso;9 em terceiro lugar, seria eleito o presi-
dente da comissão, dentre os membros provenientes da sociedade civil. Um tal pro-
cesso de formação da CNE permitiria, por outro lado, pela composição daí resultante,
um maior controlo, mas também mais confiança, em relação ao trabalho do STAE,
tornando desnecessária a sua partidarização, como tem sido advogado pela Renamo.10
Para além dos órgãos de gestão eleitoral, há alguns outros aspectos críticos
do processo eleitoral que poderiam ser melhorados, contribuindo assim para a
realização de eleições mais transparentes e justas, cujos resultados sejam credíveis
e aceites pelo conjunto dos actores políticos, tanto partidos, como cidadãos. As
secções seguintes tratam desses temas de uma forma breve.

SOBRE O RECENSEAMENTO ELEITORAL

Tal como acontece com a legislação relativa à CNE, também o recenseamento


eleitoral tem sido regido por diferentes leis.11 A Lei 5/97 definia que o recenseamen-
to efectuado ao abrigo da Lei 4/93 se mantinha válido (art. 58) e estabelecia que a
validade do recenseamento seria permanente e que este seria actualizado anualmente
(art. 6). Porém, as dificuldades técnicas da sua actualização e a exigência da Renamo
levaram a que a Lei 9/99 estabelecesse a realização de um novo recenseamento (dito
“de raiz”) para as eleições desse ano (art. 58). A Lei 18/02 manteve ainda, em termos
de âmbito temporal, a disposição segundo a qual a validade do recenseamento seria
permanente e que o mesmo seria actualizado anualmente (art. 7). Assim, o processo
eleitoral de 2004 foi realizado com base no recenseamento de 1999 e em actualiza-

9
Dada a falta de tradição de negociação entre os partidos, o recurso à regra do consenso pode
significar alguma dificuldade inicial na obtenção de um acordo entre todas as partes, mas permite
depois uma maior legitimidade e eficiência na gestão do processo eleitoral, na medida em que
impede que as escolhas sejam feitas apenas com base em interesses estritamente partidários.
10
Na actual situação, à semelhança da CNE, toda a actividade do STAE é suspeita de ser influen-
ciada pelos interesses da Frelimo. Por outro lado, em processos eleitorais anteriores, a inclusão
de representantes da oposição no STAE, prevista na lei para garantir uma maior transparência e
confiança no processo, apenas teve como resultado inúmeras situações de tensão e dificuldades
no seu funcionamento.
11
Inicialmente regido pela lei eleitoral (Lei 4/93), passou desde 1997 a ser tratado numa lei espe-
cífica, a Lei 5/97, mais tarde substituída pela 9/99, a que se seguiram as leis 18/02 e 9/07.

Revisão da Legislação Eleitoral Desafios para Moçambique 2011 99

Desafios.indb 99 3/29/11 4:53 PM


ções, não anuais como estabelecido pela lei, mas feitas para as eleições autárquicas
de 2003 e para as próprias eleições de 2004. Verificou-se então que, por dificuldades
técnicas, mas provavelmente também decorrentes da própria concepção do modelo
de recenseamento, o número de eleitores apurado e oficialmente usado era muito
superior à realidade. Isto aconteceu basicamente porque, para além de não existir um
mecanismo adequado para eliminar os registos dos eleitores que morrem, também
não tinham sido eliminadas muitas inscrições repetidas, resultantes de mudança de
endereço dos eleitores e, provavelmente também, da simples emissão de segundas
vias do cartão de eleitor.12 De novo em 2007, já na preparação do novo ciclo eleitoral
(autárquicas de 2008 e presidenciais, legislativas e provinciais de 2009), a lei sobre o re-
censeamento foi alterada. A nova lei (9/07) procura resolver os problemas detectados
estabelecendo que a validade do recenseamento eleitoral passa a ser para cada ciclo
eleitoral e que o mesmo será actualizado nos anos de eleições (art. 7).13
O recenseamento eleitoral é um dos elementos fundamentais do processo eleito-
ral, pois serve, em primeiro lugar, para definir a lista dos cidadãos com direito de voto,
ou seja, dos eleitores, sendo-lhes assim garantido o direito de escolher os seus repre-
sentantes, que é uma das bases dos regimes democráticos. Os cadernos eleitorais que
resultam do recenseamento servem não só para identificar os cidadãos que poderão
exercer o direito de voto e facilitar o exercício desse direito, como também para facili-
tar o controlo sobre eventuais irregularidades e fraudes na votação e contagem dos vo-
tos, pelo que constituem um elemento central no desenrolar das eleições. Quando os
dados são devidamente divulgados, o recenseamento permite ainda que os partidos e
candidatos possam organizar de forma mais eficaz as suas campanhas de mobilização
do eleitorado, que as organizações da sociedade civil e também os próprios órgãos de
gestão eleitoral possam preparar melhor as suas intervenções no âmbito da educação
eleitoral.14 Nesta perspectiva, o facto de o recenseamento e de os cadernos eleitorais
que dele resultam serem contestados pela oposição é um aspecto que contribui para
enfraquecer o processo eleitoral e, como tal, merece reflexão.
A maior parte das críticas registadas ao processo eleitoral, no que se refere
ao recenseamento, resultam de uma insuficiência de confiança nos órgãos de

12
É por esta razão que o valor oficial da abstenção nestas eleições (64%) está inflacionado. Na
verdade, a abstenção terá sido apenas ligeiramente superior a 50%.
13
Em princípio, há em cada ciclo dois anos eleitorais, sendo um para as presidenciais, legislativas e
provinciais e o outro para as autárquicas.
14
Dentre outras funções, pode-se salientar que o recenseamento, no sistema eleitoral moçambica-
no, serve também para definir o número de mandatos para cada círculo eleitoral.

100 Desafios para Moçambique 2011 Revisão da Legislação Eleitoral

Desafios.indb 100 3/29/11 4:53 PM


gestão eleitoral e na falta de transparência. Apesar de ter sido apontada pelo
Conselho Constitucional (CC), na sua deliberação de validação e proclamação
dos resultados eleitorais de 2004 (Deliberação nº 5/CC/05), a necessidade de
transparência, esta recomendação ainda não surtiu efeito. Na verdade, essa e
outras recomendações do CC foram ignoradas na revisão da legislação eleitoral
que se seguiu. Assim, embora a Lei 9/07 estabeleça, como é lógico e desejável,
que “o recenseamento eleitoral deve corresponder, com actualidade, ao universo
eleitoral” (art. 4), ela não estabelece mecanismos adequados de verificação.
A Renamo tem acusado o STAE de não fazer devidamente o recenseamento
eleitoral em zonas onde tem grande influência e de usar o processo de informatização
dos cadernos eleitorais para os manipular.15 Este tipo de acusações é muito difícil de
provar, mas há indícios suficientes de parcialidade na actuação dos órgãos de gestão
eleitoral16 para justificar a adopção de novas medidas que aumentem a transparência
no processo. Isto é tanto mais justificado quanto a orientação geral que a lei estabelece
ao afirmar que a CNE tem a responsabilidade de “garantir que os recenseamentos e
os processos eleitorais se organizem e se desenvolvam com ética e em condições de
plena liberdade, justiça e transparência” (Lei 8/07, art. 7) não parece suficiente.
Dentre as medidas que devem ser tomadas para prevenir e resolver proble-
mas relativos ao recenseamento eleitoral, destaca-se, em primeiro lugar, a integra-
ção na legislação dos aspectos relativos à observação eleitoral que estão actual-
mente remetidos para a responsabilidade regulamentar da CNE (Lei 7/07, art. 9
e Lei 9/07, art. 18). A aprovação tardia do regulamento de observação e algumas
das suas disposições têm dificultado o exercício do direito de observação pelas or-
ganizações interessadas. Além disso, a sua incorporação na lei poderia ser ocasião

15
A utilização de computadores no processo eleitoral sempre suscitou a oposição da Renamo,
quer para as operações de recenseamento eleitoral, quer para o apuramento dos resultados. Esta
oposição expressa uma desconfiança exagerada, mas que se pode compreender dado o controlo
que a Frelimo exerce sobre o processo e alguns problemas observados no uso de computadores
e programas, como aconteceu, por exemplo, com os programas informáticos de apuramento dos
resultados. Nestas condições, e dado que a informatização tem o potencial de facilitar e melho-
rar significativamente o processo eleitoral, a solução parece passar pela instituição de órgãos de
gestão reconhecidos por todas as partes como efectivamente independentes e imparciais, capazes
de estabelecer mecanismos de transparência total em relação a todas as suas actividades, fazendo
assim com que a desconfiança em relação a este tipo de solução técnica desapareça.
16
Note-se, no entanto, que muitos dos problemas que afectam a qualidade do desempenho dos ór-
gãos de gestão eleitoral resultam simplesmente da marcação tardia da data das eleições, que, entre
outras dificuldades, obriga a um trabalho sob pressão extrema do tempo e tem provocado sobrepo-
sições inevitáveis de alguns prazos legais com todos os efeitos perversos que daí decorrem.

Revisão da Legislação Eleitoral Desafios para Moçambique 2011 101

Desafios.indb 101 3/29/11 4:53 PM


de clarificação de uma série de aspectos relativos aos direitos dos observadores e
ao seu acesso à informação numa óptica de aumentar a transparência.17
Toda a informação relativa ao recenseamento eleitoral deve ser de livre aces-
so, devendo a base de dados do registo ser colocada, em formato digital, atempa-
damente à disposição de todos os candidatos, mas também dos cidadãos e organi-
zações da sociedade civil interessados.18 O acesso à lista eleitoral permitiria que os
partidos, candidatos, observadores, ou outros cidadãos interessados conhecessem
não só a distribuição do eleitorado pelo território, mas permitir-lhes-ia também
testar e verificar a qualidade do registo, quer no que se refere a inscrições múltiplas
de eleitores, quer a eleitores recenseados mas que não aparecem nos registos, ou à
presença de eleitores falecidos.19

SOBRE AS ASSEMBLEIAS DE VOTO E A VOTAÇÃO

As questões relativas às assembleias de voto e ao processo de votação são


tratadas nas leis 7/07 (eleição do Presidente da República e dos deputados à
Assembleia da República), 10/07 (eleição das assembleias provinciais) e 18/07
(eleição dos órgãos das autarquias). Embora a maior parte das disposições esta-
belecidas nestas leis não ponham problema, há alguns aspectos que podem ser
consideravelmente melhorados para garantir uma maior transparência e reduzir a
conflitualidade que se tem verificado.
Actualmente, a lei do recenseamento (Lei 9/07) estabelece que “o local de fun-
cionamento da assembleia de voto coincide, sempre que possível, com o posto de
recenseamento eleitoral” (art.11). Não parece que haja razões suficientemente fortes

17
Embora sempre tenham sido registados problemas com a observação eleitoral, depois das elei-
ções de 1994, houve momentos particularmente tensos envolvendo a observação internacional
em 2004. Naturalmente, a observação deve ser não só facilitada para reforçar a confiança e a
credibilidade dos resultados, como deve abranger todas as fases e actos do processo eleitoral, sem
excepção, e a única razão de incluir esta proposta a propósito do recenseamento eleitoral é porque
este constitui o primeiro momento desse processo.
18
Quando se diz “formato digital”, entende-se um formato que possibilite o tratamento e análise
da informação e não apenas a sua consulta.
19
Em geral, os órgãos de gestão eleitoral moçambicanos devem ter a preocupação, à semelhança do
que acontece na maior parte dos países, de desenvolver e manter um website onde divulgam uma
grande variedade de materiais relativos às eleições, desde a legislação e regulamentos, a materiais
de educação eleitoral, passando por estudos e resultados de inquéritos, resultados eleitorais e uma
grande variedade de dados estatísticos.

102 Desafios para Moçambique 2011 Revisão da Legislação Eleitoral

Desafios.indb 102 3/29/11 4:53 PM


para admitir excepções à regra de coincidência entre o local de voto e o local de re-
censeamento e, para evitar eventuais confusões e reduzir a probabilidade de erros e
trocas de cadernos (o que tem acontecido com uma certa frequência em determinadas
áreas), seria preferível adoptar a obrigatoriedade das assembleias de voto funciona-
rem nos respectivos locais de recenseamento, o que permitiria ao eleitor saber, sem
margem para dúvida, onde iria votar. Esta opção significa, por outro lado, que não
deve haver recurso a brigadas móveis de recenseamento, a não ser que haja condi-
ções para instalar uma assembleia de voto em cada local onde elas efectuam registos.
Finalmente, do ponto de vista logístico, esta medida teria a vantagem de permitir que
se conhecesse, desde o momento do recenseamento, a lista das assembleias de voto,
que nas condições actuais apenas é divulgada trinta dias antes da votação.20 Este tipo
de medida simples poderia evitar que se criem situações, frequentemente denunciadas
pela oposição, de grandes distâncias a percorrer pelos eleitores em zonas onde ela é
tradicionalmente mais forte do que o partido no poder.21
O segundo ponto central no que diz respeito às assembleias de voto é a composi-
ção das respectivas mesas. A parcialidade das mesas de voto tem sido uma reclamação
constante da oposição e um dos pontos cruciais que deve ser encarado é o facto de
muitos presidentes de mesa recusarem receber as reclamações dos fiscais dos partidos
de oposição, impossibilitando, desta maneira, que a oposição possa submeter as suas
reclamações nos termos da lei e, por conseguinte, que estas tenham o tratamento
devido aos vários níveis de administração da justiça eleitoral. A solução encontrada
por alguns países para este tipo de problema foi, em primeiro lugar, o de organizar
um sistema de recrutamento dos membros das mesas aberto e partilhado por todos
os partidos concorrentes, e, em segundo lugar, o de fazer a formação das equipas e sua
distribuição pelas mesas através de um sorteio.
Este tipo de procedimento poderia facilmente ser adoptado pela legislação
eleitoral moçambicana, eliminando assim um importante foco de tensão e contesta-
ção, tanto mais que nestas condições fica igualmente não só reduzida a probabilida-
de de acontecer a exclusão indevida de fiscais da oposição em determinadas mesas
de voto, como tem acontecido com frequência em algumas zonas, como também

20
De facto, não só a divulgação pela CNE do número e localização das assembleias de voto tem
sido tardia, como tem sido incompleta: apenas locais de votação, sem indicação dos códigos das
assembleias, desrespeitando o que está estipulado na lei.
21
Estas afirmações nunca foram sistematicamente documentadas de maneira a confirmar, sem
margem de dúvida, a acusação, apesar de haver também registo de alguns testemunhos nesse
sentido de alguns observadores eleitorais.

Revisão da Legislação Eleitoral Desafios para Moçambique 2011 103

Desafios.indb 103 3/29/11 4:53 PM


significativamente diminuída a possibilidade de fraude por enchimento de urnas, ou
viciação das actas e editais, que, nas duas últimas eleições, foi detectada num núme-
ro preocupante de assembleias de voto, onde se registaram níveis de participação
obviamente falsos, em alguns casos mesmo superiores a 100%. Uma outra prática
registada com frequência, que poderia ser evitada com essa forma de recrutamento
e formação das mesas de voto, é a inutilização de votos favoráveis à oposição.22
No que se refere à votação, a lei deveria prever a possibilidade de utilização,
ainda que inicialmente a título experimental e restrito, do voto electrónico. Dentre os
vários modelos existentes, o utilizado nas eleições indianas é provavelmente o mais
adaptado às condições de Moçambique, dada a sua configuração tecnológica simples
e o facto de funcionar com bateria e não precisar de estar ligado em rede. Este sistema
que, embora tenha alguns inconvenientes,23 tem proporcionado resultados excelentes
em eleições que mobilizam cerca de setecentos milhões de eleitores, incluindo um
grande número de analfabetos. Ele é composto por uma unidade de controlo, que
fica na mesa de voto e permite abrir e fechar o terminal de voto para cada eleitor, e a
unidade de voto, que tem a mesma configuração dos boletins de voto que são usados
em Moçambique e onde o eleitor faz a sua escolha simplesmente carregando no local
que corresponde ao quadrado onde se marca a escolha num boletim de papel.24 Den-
tre as vantagens que a adopção desta solução para o voto traria, podem-se destacar as
seguintes: grande simplificação e rapidez das operações nas mesas de voto; eliminação
de motivos de contestação e conflito à volta da validade e da contagem dos votos;
rapidez e rigor no apuramento dos resultados finais; significativa redução dos custos
das eleições; virtual impossibilidade de fraude nos resultados.

SOBRE A CONTAGEM E APURAMENTO DE RESULTADOS

A introdução de um sistema electrónico de votação teria como consequên-


cia a facilitação do processo de contagem e apuramento dos resultados eleitorais.
Porém, a sua eventual adopção teria sempre que ser precedida de um período de

22
Infelizmente, até hoje nenhuma sanção foi aplicada aos autores de tais práticas, mesmo em casos
perfeitamente documentados.
23
O maior dos quais parece ser o de não deixar um traço físico dos votos individuais.
24
Para uma apresentação pormenorizada do sistema, ver http://eci.nic.in/eci_main/Audio_Video-
Clips/presentation.asp.

104 Desafios para Moçambique 2011 Revisão da Legislação Eleitoral

Desafios.indb 104 3/29/11 4:53 PM


testagem, pelo que se mantém a necessidade de proceder a melhoramentos na
legislação actual que rege o processo.
Tal como está legalmente instituída, a contagem e apuramento de resultados
constitui um processo complexo e longo, definido pelas leis 7/07 (eleição do Pre-
sidente da República e dos deputados à Assembleia da República), 10/07 (eleição
das assembleias provinciais) e 18/07 (eleição dos órgãos das autarquias).
Um dos aspectos mais críticos da actual legislação é o facto de estabelecer pra-
zos desnecessariamente longos para a CNE anunciar os resultados (quinze dias para
o anúncio de resultados nacionais), mesmo assim, sistematicamente desrespeitados.
Ora, sendo a contagem e apuramento dos resultados um elemento crucial do proces-
so eleitoral, quanto mais demorado for o anúncio dos resultados, mais probabilidades
existem de haver desconfiança em relação à sua credibilidade. A razão principal para
os atrasos na divulgação de resultados eleitorais parece decorrer da maneira como
o processo tem sido levado a cabo pelos órgãos de gestão eleitoral, baseado no pro-
cessamento dos editais das mesas a nível provincial e nacional, o que não parece ser
exactamente o que está estipulado na legislação. De facto, o processamento de actas
e editais das mesas de voto só deveria ser feito ao nível dos distritos e cidades (e aí
é que deve ser usado o programa informático de apuramento), baseando-se depois,
aos níveis provincial e nacional, o processo nas actas e editais do nível imediatamente
inferior, ou seja dos distritos ou cidades, para o processamento provincial (Lei 7/07,
art. 106), e das províncias para o processamento nacional (Lei 7/07, art. 116).
Com a aplicação estrita do dispositivo estabelecido pela lei para a contagem
e apuramento de resultados, nem as Comissões Provinciais de Eleições, nem a
CNE, necessitariam de mais de um dia para realizarem a centralização dos resulta-
dos. Assim, seria possível anunciar os resultados provisórios, ainda sujeitos a revi-
são por reclamações e requalificação de votos nulos, num prazo de três dias, como
acontece na maioria dos países. No que se refere ao uso de um programa informá-
tico no tratamento dos resultados, a lei deveria estabelecer regras que incluíssem:
um prazo de aprovação do programa definido com a antecedência necessária para
permitir a sua inspecção e verificação atempadas;25 a obrigação de auditoria por
especialistas independentes de todos os sistemas informáticos usados no processo
eleitoral e a divulgação dos respectivos relatórios; a possibilidade de inspecção

25
A aprovação tardia e os erros e falhas detectadas em cima da hora nos programas informáticos
aprovados pela CNE para o tratamento dos resultados tem estado na origem de grandes descon-
fianças e fortes críticas por parte dos partidos da oposição.

Revisão da Legislação Eleitoral Desafios para Moçambique 2011 105

Desafios.indb 105 3/29/11 4:53 PM


efectuada por especialistas mandatados por partidos concorrentes, ou candidatos,
quando por estes requerida. Estas medidas seriam um importante contributo para
aumentar a tão necessária confiança ao processo eleitoral.
Para além dos aspectos mais gerais relativos ao apuramento de resultados, exis-
te uma disposição na lei que deve absolutamente ser revista. Trata-se do artigo que
determina: “Em caso de discrepância entre o número de boletins de voto existentes
nas urnas e o número de votantes, vale, para efeitos de apuramento, o número de
boletins de voto existentes nas urnas, se não for maior que o número de eleitores ins-
critos” (Lei 7/07, art. 85, alínea 1). Tal como está redigido, este artigo permite aceitar
votos resultantes do enchimento das urnas, em vez de simplesmente permitir aceitar
pequenas divergências que podem resultar de erros menores, como parece ser o seu
espírito. Para evitar sucessivas recontagens injustificadas e eventuais anulações de
votações devido a pequenas diferenças, o artigo deveria especificar qual é a margem
de erro (diferença entre o número de votantes assinalados e o número de votos na
urna) aceitável, para além da qual a votação seria anulada.26

NOTA FINAL

Infelizmente, a forma como as sucessivas revisões da legislação eleitoral têm


sido feitas, fundamentalmente usando o método de discutir para cada artigo iso-
ladamente a sua manutenção, reformulação ou eliminação, sem uma perspectiva
global e sem um debate público amplo capaz de fazer ultrapassar os interesses mais
imediatos dos partidos, tem levado a que tais revisões acabem por ter um efeito
praticamente nulo. É assim que, já depois das eleições de 2004, o relatório de uma
prestigiada organização internacional fazia notar que “as revisões da legislação que
regeu as eleições de 2004 não parecem ter sido baseadas numa visão estratégica
do que deve ser um sistema eleitoral; pelo contrário, as mudanças parecem mais
uma vez ter sido feitas numa base ad-hoc, com base em problemas observados nas
eleições de 1999 e de 2003 e nas relações entre a Frelimo e a Renamo.”27 Depois da

26
Recorde-se que a contagem nas mesas é feita à noite em condições pouco favoráveis, destacando-se
o cansaço dos membros da mesa depois de um longo dia de trabalho, as condições de iluminação
frequentemente pouco adequadas, e em alguns casos o baixo nível académico dos responsáveis
pelas operações de contagem que também favorece a ocorrência de erros.
27
Traduzido pelo autor de “Observing the 2004 Mozambique Elections”, The Carter ������������
Center, Spe-
cial Report Series, October 2005, p. 23.

106 Desafios para Moçambique 2011 Revisão da Legislação Eleitoral

Desafios.indb 106 3/29/11 4:53 PM


“crise diplomática” que se seguiu às eleições de 2009, regidas por uma legislação
apenas aprovada pela bancada da Frelimo, espera-se que um real e amplo debate
público tenha lugar para sustentar uma efectiva e adequada revisão da legislação
eleitoral e é nesse sentido que se deve entender a presente contribuição.

Revisão da Legislação Eleitoral Desafios para Moçambique 2011 107

Desafios.indb 107 3/29/11 4:53 PM


108 Desafios para Moçambique 2011 Revisão da Legislação Eleitoral

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PARTE II
ECONOMIA

Desafios.indb 109 3/29/11 4:53 PM


Desafios.indb 110 3/29/11 4:53 PM
DESAFIOS DA MOBILIZAÇÃO DE
RECURSOS DOMÉSTICOS
REVISÃO CRÍTICA DO DEBATE
Carlos Nuno Castel-Branco

CONTEXTO GERAL: DESAFIOS DE MOBILIZAÇÃO DE RECURSOS


DOMÉSTICOS

A literatura sobre a mobilização de recursos domésticos está a expandir-se


rapidamente e a adquirir importância crescente no debate sobre o financiamento
da despesa pública e do investimento privado em África (Di John, 2010; Ndikuma-
na e Boyce, 2010; Oya e Pons-Vignon, 2010; Sachs. 2006; Easterly, 2007 e 2006;
Moyo, 2010), para referir apenas alguns autores).
De um modo geral, esta literatura é concentrada no financiamento do Estado
e dominada por dois grandes temas, nomeadamente: razões para mobilizar recur-
sos domésticos e modalidades práticas para o fazer.
São duas as razões geralmente apresentadas para reorientar a política públi-
ca para a mobilização de recursos domésticos. A primeira é que a ajuda externa,
que tem dominado o financiamento do Estado nos países africanos menos de-
senvolvidos nas últimas duas décadas, tende a estagnar ou diminuir. Além disso,
a ajuda externa é ineficaz e/ou prejudicial por causa dos condicionalismos eco-
nómicos e políticos que introduz, por permitir sustentar ambientes económicos
não competitivos e por fomentar a corrupção (Moyo, 2010; Easterly 2007 e 2007;
Oya e Pons-Vignon, 2010; Di John, 2010; De Renzio e Hanlon, 2007). A segunda
é que os governos dos países dependentes de ajuda externa tendem a prestar
contas aos doadores e não aos cidadãos do país receptor, porque são os doadores
e não os cidadãos quem financia o Estado. Por consequência, também o debate e
a escolha de opções políticas e de política pública tendem a envolver o governo
dependente e os doadores e a excluir os cidadãos. Logo, num ambiente de depen-
dência externa e não mobilização de recursos domésticos para financiar o Estado,
a cidadania não se desenvolve (Di John, 2010; De Renzio e Hanlon, 2007; Oya e
Pons-Vignon, 2010).

Mobilização de Recursos Domésticos Desafios para Moçambique 2011 111

Desafios.indb 111 3/29/11 4:53 PM


No que diz respeito a modalidades de mobilização de recursos domésticos,
a mobilização de receitas fiscais é, geralmente, a preferida porque: (i) incentiva e/
ou força a poupança; (ii) promove ligações entre o Estado e os cidadãos; e (iii) nos
países menos desenvolvidos, geralmente existe um grande potencial fiscal ocioso
derivado da fraqueza da administração fiscal, da estrutura fiscal afunilada, e da
baixa tributação do Produto Interno Bruto (PIB) especialmente causada por bene-
fícios fiscais atribuídos ao grande capital internacional (McKinley, 2009; McKinley
e Kyrili, 2009; Di John, 2010; Ossemane, 2011).
Outra modalidade de financiamento do Estado é a dívida pública – que pode
ser contraída com recurso a obrigações do Tesouro (dívida com os cidadãos e em-
presas domésticas), créditos comerciais (dívida com o sistema bancário nacional
e internacional) e parcerias público-privadas. Esta modalidade é preferida quando
o espaço de expansão fiscal é reduzido, por motivos políticos e/ou económicos,
e quando há garantias de que a dívida será usada produtivamente no desenvolvi-
mento da infra-estrutura económica e social (Ndikumana e Boyce, 2010; Massa-
rongo, 2010; Massarongo e Muianga, 2011).
De acordo com a literatura, estas duas modalidades de mobilização de recur-
sos domésticos (mobilização de receita fiscal ou endividamento público) podem
compensar pela redução dos fluxos de ajuda, mas apenas a tributação resolve
a questão da responsabilização do Estado perante os cidadãos (Di John, 2010;
Ndikumana e Boyce, 2010) e da mobilização e utilização produtiva do poten-
cial fiscal ocioso. Ambas podem afectar os fluxos de investimento privado, quer
competindo pelos mesmos recursos financeiros, quer criando incentivos para o
investimento privado a favor da especulação financeira ou, alternativamente, do
investimento produtivo articulado, diversificado e alargado (Ndikumana e Boyce,
2010; Massarongo, 2010; Massarongo e Muianga, 2011, Ossemane, 2011; Castel-
-Branco, 2010a). O financiamento do Estado com recurso à dívida pode rapida-
mente resultar em crise fiscal, ou pode ser um complemento útil do financiamen-
to público, dependendo da magnitude relativa da dívida, do seu peso no total da
despesa pública, das suas condições comerciais (período de pagamento e taxas de
juro), da relativa estabilidade dos mercados de capitais e da estratégia e prática de
utilização da dívida.

112 Desafios para Moçambique 2011 Mobilização de Recursos Domésticos

Desafios.indb 112 3/29/11 4:53 PM


DEBATE EM MOÇAMBIQUE: ECONOMIA POLÍTICA DAS OPÇÕES
ECONÓMICAS

Como seria de prever, este debate está a desenvolver-se também em


Moçambique (Amarcy e Massingue, 2011; Castel-Branco, 2010a e 2010b; Castel-
Branco, Sulemane et al, 2005; Ossemane, 2011; Massarongo, 2010; Massarongo e
Muianga, 2011; Sande, 2011; Bolnick, 2009; Byers, 2009; Kuegler, 2009).

MOTIVAÇÕES DO DEBATE EM MOÇAMBIQUE


No caso moçambicano, as motivações para este debate têm relação com seis
grandes questões.
Primeira – substituição da ajuda externa: os fluxos de ajuda externa, que nas
últimas duas décadas financiou em média 55%-60% da despesa pública, tendem a
estagnar e a contrair em termos reais. Apesar da ambiguidade dos principais doa-
dores do orçamento do Estado no que diz respeito à estrutura e níveis de ajuda, é
de prever que a Ajuda Geral ao Orçamento reduza mais acentuadamente do que
os níveis agregados de ajuda externa ao País. Portanto, é previsível que o financia-
mento geral do orçamento do Estado seja mais afectado do que o financiamento
sectorial e de projectos.
Segunda – redução de interferência política: a relação prolongada e profunda de
dependência externa envolve um alto grau de interferência política dos doadores
nos assuntos de política pública nacional (Macamo, 2006; De Renzio e Hanlon,
2007). Esta relação política desconfortável entre o governo de Moçambique e os do-
adores só pode ser ultrapassada com a emergência de alternativas de financiamento
do orçamento do Estado e consequente redução drástica da dependência de ajuda
externa (Castel-Branco, 2011a, 2010a e 2010b; De Renzio e Hanlon, 2007).
Terceira – aumento da receita e mudança da estrutura fiscal: as receitas fiscais
representam menos de 15% do PIB, financiam apenas 45% da despesa pública e, à
semelhança de outros Países da África subsaariana, crescem em torno de uma es-
trutura afunilada (concentrada em torno de impostos indirectos) e como resultado
de aperfeiçoamentos na administração fiscal (o que permite apenas crescimentos
marginais) (Ossemane, 2011). A receita fiscal per capita é inferior a US$ 55 – clara-
mente abaixo da média na África subsaariana, que se aproxima dos US$ 70 per ca-
pita (McKinley, 2009; McKinley e Kyrili, 2009) – dos quais apenas US$ 18 provêm

Mobilização de Recursos Domésticos Desafios para Moçambique 2011 113

Desafios.indb 113 3/29/11 4:53 PM


de impostos directos (impostos sobre os rendimentos do capital e do trablho) e
somente US$ 9 provêm de impostos sobre os rendimentos do capital. Os impostos
sobre as transacções de bens e serviços totalizam aproximadamente US$ 35 per
capita (Castel-Branco, 2010a e 2010b; DNEAP, 2010; OECD, 2011; Ossemane,
2011).
Em Moçambique, o PIB duplica em cada 10 anos e o PIB per capita duplica
em cada 15 anos (INE, vários anos; DNEAP, 2010); o investimento privado es-
trangeiro é dos mais altos na África subsaariana e 50% do investimento privado
nos últimos 10 anos concentrou-se em recursos naturais e é intensivo em capital
(Castel-Branco, 2010a); menos de 10% da população activa tem emprego formal e
o rendimento médio dos cidadãos é de um dólar por dia per capita (DNEAP, 2010;
INE, vários anos). Como é que é possível que, nestas condições, o contributo dos
impostos sobre o rendimento do trabalho e o contributo dos impostos sobre o
rendimento do capital sejam semelhantes? Qual é o peso distributivo, nos vários
grupos de rendimento, de uma estrutura fiscal assente em impostos indirectos
(sobre o consumo de bens e serviços), e em que o esforço fiscal do trabalho é pelo
menos 2,5 vezes superior ao do capital (Ossemane, 2011)?
É, pois, bem provável, que a estrutura fiscal não só beneficie desproporcio-
nalmente a acumulação privada de capital com base em recursos naturais sem
contrapartidas reais para a economia nacional, como também penalize despro-
porcionalmente os grupos mais vulneráveis por causa dos efeitos combinados dos
impostos sobre o rendimento do trabalho e sobre o consumo de bens e serviços
(mais investigação será necessária para verificar esta hipótese). Além disso, o peso
maior da carga fiscal sobre o capital recai sobre as pequenas e médias empresas,
já que as empresas familiares e informais (geralmente chamadas microempresas)
e os grandes projectos de investimento beneficiam de isenções ficais massivas,
embora por razões diferentes (Ossemane, 2011; Castel-Branco, 2010a). Portanto, a
estrutura fiscal prevalecente afecta a produção e a geração da riqueza promovendo
o grande capital internacional em prejuízo das pequenas e médias empresas e do
trabalho.
Quarta – eliminação de benefícios fiscais redundantes: a fragilidade e afunila-
mento da estrutura e da dinâmica fiscal estão associados aos benefícios fiscais
redundantes para os grandes projectos de investimento estrangeiro relacionados
com o complexo mineral-energético (Ossemane, 2011; Kugler, 2009; Byers, 2009;
Bolnick, 2009; Castel-Branco, 2010a).

114 Desafios para Moçambique 2011 Mobilização de Recursos Domésticos

Desafios.indb 114 3/29/11 4:53 PM


Ossemane (2011) demonstra que, enquanto a proporção da remuneração do
capital no PIB é duas vezes e meia superior à do trabalho, o contributo da remune-
ração do trabalho para as receitas fiscais é superior ao do capital. Na sua análise, Os-
semane argumenta que o peso das receitas fiscais recai sobre os impostos indirectos;
o peso das receitas do comércio externo tende a diminuir por causa da liberalização
comercial; o espaço para aumentar receitas com base no IVA e outros impostos so-
bre as transacções é limitado por causa dos efeitos distributivos negativos sobre uma
população maioritariamente pobre; e os ganhos fiscais resultantes da melhoria da
administração fiscal crescem a taxas marginais decrescentes. Além disto, Ossemane
também mostra que os enormes incentivos fiscais de longa duração são a causa prin-
cipal do baixo contributo fiscal do capital; e que estes incentivos incidem mais sobre,
e são maiores para, os grandes projectos de investimento estrangeiro concentrados
em recursos naturais. Logo, conclui Ossemane, a forma mais eficaz e eficiente para
aumentar a base fiscal é a tributação dos rendimentos do capital, em especial das
grandes empresas multinacionais do sector energético e mineiro, pois a ociosidade
fiscal criada pelos benefícios que estes projectos recebem é o único espaço fiscal
substancial disponível na economia nacional. Para Ossemane, a questão não é se os
megaprojectos já fazem algum contributo para a economia nacional, mas que estes
projectos estão muito aquém de fazer o contributo que podem e devem.
Bolnick (2009) demonstra empiricamente que os incentivos fiscais aos grandes
projectos são geralmente redundantes pois não têm influência nas decisões de in-
vestimento. As conclusões de Bolnick são consistentes com as previsões da análise
teórica (Castel-Branco, 2002a e 2010a; O País, 2011b). Esta análise argumenta que
a localização de projectos de investimento estrangeiro de grande envergadura é de-
terminada por estratégias corporativas oligopolistas, pela presença de recursos, pela
regulamentação e pela facilidade de exploração dos recuros (extracção e logística de
transporte, processamento e comercialização, bem como as condições económicas
prevalecentes). Para estes projectos, os únicos incentivos fiscais que podem ter rele-
vância nos ciclos iniciais de investimento são a amortização acelerada (que permite
acelerar a recuperação do capital investido) e a redução ou eliminação de direitos
sobre a importação de bens e serviços de investimento não disponíveis na economia
em condições competitivas. Incentivos fiscais sobre o rendimento do capital têm
alguma relevância apenas para projectos de pequena escala e de alta mobilidade
locacional (footlose), que não constituem uma base sustentável e inovadora em torno
da qual se possam desenvolver as capacidades produtivas do País.

Mobilização de Recursos Domésticos Desafios para Moçambique 2011 115

Desafios.indb 115 3/29/11 4:53 PM


Os incentivos fiscais geralmente beneficiam as empresas apenas quando estas
começam a ter lucros – isto é, quando começam a produzir matéria tributável. Para
a maior parte das empresas, principalmente as pequenas e médias, a grande dificul-
dade reside em sobreviver e chegar ao ponto de gerar lucros. Logo, os incentivos
que elas necessitam não são os fiscais mas os que reduzem os custos de investimento
e de transacção e aumentam as probabilidades de sucesso (capacidade de coor-
denação de investimento complementar e competitivo; infra-estrutura dedicadas e
especializadas, provavelmente fornecidas com base em clusters industriais; sistemas
de formação, de informação, de aprendizagem e inovação, de promoção, estandar-
dização e controlo da qualidade, de aquisição de adaptação de tecnologias; logística
produtiva, comercial e financeira; acesso a terra, energia e água, etc.). Os incentivos
fiscais não podem compensar pelos custos adicionais que resultam da fraqueza da
base produtiva social, pois (i) estes custos diminuem lucros e, portanto, a matéria
tributável, o que reduz o valor dos incentivos fiscais; e (ii) os incentivos fiscais são
uma promessa para o futuro e não um apoio para o ciclo inicial de negócio.
Portanto, os incentivos fiscais impõem constrangimentos macroeconómicos
fundamentais e são fundamentalmente redundantes no que diz respeito às decisões
de investimento, e a tributação do grande capital multinacional parece ser a reserva
fiscal mais importante do País. Kuegler (2009) mostra que a receita fiscal potencial
da Mozal (fundição de alumínio) perdida anualmente por causa dos incentivos fis-
cais massivos atinge os US$ 128 milhões (aproximadamente 7% do Orçamento do
Estado). Castel-Branco (2011b), com base no relatório dos auditores sobre a indús-
tria extractiva em Moçambique (Boas & Associates, 2011) argumenta que as recei-
tas fiscais (directas, dos lucros, dos rendimentos dos trabalhadores e das royalties
destas empresas; e indirectas) provenientes de seis projectos do complexo mineral-
-energético totalizaram, em 2008, apenas US$ 11,6 milhões. Sem benefícios fiscais
específicos, a tributação do rendimento líquido de somente um desses seis projectos
poderia ter atingido US$ 60 milhões por ano. Se esses seis projectos mineiros e a
Mozal não beneficiassem de incentivos fiscais específicos, o Estado poderia colectar
anualmente um montante adicional equivalente ao montante actual da ajuda geral
ao Orçamento do Estado. Estes recursos permitiriam, a curto prazo, aumentar o
Orçamento do Estado em cerca de 25%-30% em termos reais e reduzir a sua depen-
dência da ajuda externa de quase 50% para cerca de 36%.
A aquisição da companhia mineira Riversdale, concessionária do carvão de
Benga, em Tete, pela grande companhia multinacional Rio Tinto, por cerca de US$

116 Desafios para Moçambique 2011 Mobilização de Recursos Domésticos

Desafios.indb 116 3/29/11 4:53 PM


3,8 biliões, não foi acompanhada, controlada, avaliada ou tributada pelo Estado mo-
çambicano. A Riversdale era uma companhia muito pequena, que foi substancial-
mente valorizada pela aquisição da concessão de carvão de Benga (província de
Tete). Assumindo, portanto, que pelo menos metade do valor da transacção corres-
pondeu à valorização das acções da Riversale por causa dos activos da concessão
de Benga, o Estado moçambicano poderia ter recebido em impostos sobre ganhos
de capital cerca US$ 400- US$ 450 milhões com esta transacção. Este montante é
equivalente a cerca de um ano de ajuda geral ao Orçamento do Estado – equivalente
à construção de 100 escolas secundárias; ou ao subsídio do pão para 10 anos; ou ao
subsídio do combustível para 4 anos; ou a um fundo de apoio ao desenvolvimento
tecnológico e comercial de pequenas e médias empresas 100 vezes superior ao que
recentemente foi instituído pelo governo; ou ao montante de investimento necessá-
rio para formar cerca de 100 pequenas e médias empresas industriais com a logística
necessária, capazes de empregar 40 mil trabalhadores, de alargar e articular a base
produtiva, alimentar a economia e os cidadãos e diversificar as exportações.
Logo, não é surpreendente que a contestação dos incentivos e facilidades fis-
cais dadas ao grande capital multinacional esteja crescendo em Moçambique (Ca-
nal de Moçambique, 2011; Notícias, 2011; O País, 2011a, 2011b, 2011c e 2001d;
Savana, 2011; Vieira, 2011, só para citar exemplos mais recentes).
Quinta – o que fazer com os recursos naturais?: a propriedade e o controlo dos
recursos minerais e energéticos, assim como dos recursos naturais (terra, água
e florestas) e das infra-estruturas (estradas, pontes, comunicações, linhas férre-
as, energia, água, etc.) associados ao complexo mineral-energético, estão ficando
concentrados em grandes empresas multinacionais e suas associadas domésticas.
As estratégias e planos de desenvolvimento industrial e espacial do governo de
Moçambique estão concebidos em função de pólos de desenvolvimento assentes
nos grandes corredores ferro e rodoviários ligados aos grandes portos, focados na
extracção e exportação de recursos minerais, e contemplando uma visão integrada
da infra-estrutura para servir essa economia extractiva. As Zonas Económicas Es-
peciais e as Zonas Francas Industriais são vectores desta estratégia extractiva para
a economia nacional.1 A recente compra da companhia mineira Riversdale, con-

1
Ver, por exemplo, o dossier de apresentações feitas no decurso do seminário sobre “Os desafios de
crescimento económico e do emprego em Moçambique”, organizado pelo governo de Moçam-
bique em colaboração com o DFID, o Banco Mundial e o FMI, e que decorreu em Maputo de
9 a 11 de Fevereiro de 2011.

Mobilização de Recursos Domésticos Desafios para Moçambique 2011 117

Desafios.indb 117 3/29/11 4:53 PM


cessionária do carvão de Benga, em Tete, pela Rio Tinto sem qualquer controlo,
participação ou ganho pelo Estado moçambicano, despoletou um debate que já
vem de longe (Castel-Branco, 2002b, 2002c, 2004, 2008a, 2008b, 2009, 2010a; Se-
lemane, 2009; Vieira, 2011), sobre a estratégia de exploração dos recursos naturais
de Moçambique. Por exemplo, no seu artigo, Vieira (2011) sugere que o Estado
deveria controlar a maioria das acções ou tributar fortemente as receitas destes
projectos em defesa do interesse nacional e do projecto de libertação nacional
iniciado há mais de meio século; enquanto Castel-Branco (2010a) argumenta a
favor de uma matriz macroeconómica que faça a exploração dos recursos naturais
responder a uma visão estratégica nacional de desenvolvimento.
Castel-Branco (2011b e 2010a) e Boas & Associates (2011) questionam o
sistema de valorização dos recursos minerais concessionados, sobre a qual as taxas
são aplicadas. Portanto, a questão não é só das taxas fiscais e outras que se aplicam
sobre estes recursos e os resultados da sua exploração, mas também é da definição
do valor destes recursos e da sua exploração sobre o qual se aplicam estas taxas.
O relatório sobre a indústria extractiva (Boas & Associates, 2011) constatou que o
GdM não tem informação detalhada, atempada e independente sobre a qualidade
dos minerais, as quantidades extraídas e vendidas, os preços de venda (em espe-
cial em mercados futuros), os custos operacionais das empresas extractivas (que
são deduzidos aos rendimentos, para definir a matéria tributável), a acumulação
de custos no processo anterior ao início da produção (que são determinantes na
definição das taxas e montantes de amortização, que reduz a matéria tributável), o
tamanho das concessões, entre outros. A informação que existe é fornecida pelas
empresas apenas, sem que haja nenhum mecanismo de verificação independente.
A experiência internacional mostra que as empresas tendem a inflacionar custos
e deflacionar ganhos para minimizar lucros e custos fiscais. Dado o peso da ex-
ploração dos recursos minerais no investimento e no crescimento da economia
nacional, e o seu enorme potencial estabilizador ou destabilizador da economia,
a inadequação do sistema de informação e valorização dos recursos minerais e da
sua exploração é um problema extremamente grave.
Mais geralmente, a experiência recente da concessão e exploração dos re-
cursos naturais em Moçambique parece estar orientada exclusivamente para faci-
litar e acelerar o processo de acumulação privada primitiva das classes capitalistas
emergentes, que usam o seu acesso privilegiado e barato a tais recursos para atrair
e negociar alianças com o grande capital multinacional (Castel-Branco, 2010a).

118 Desafios para Moçambique 2011 Mobilização de Recursos Domésticos

Desafios.indb 118 3/29/11 4:53 PM


Nesta perspectiva, os processos dominantes de acumulação privada têm uma na-
tureza extractiva, são caracteristicamente porosos, são determinados pelos interes-
ses e objectivos do capital internacional e sacrificam a acumulação de rendas pelo
Estado para favorecer a acumulação de rendas privadas (Castel-Branco, 2010a,
2010b e 2011b). A economia que daqui emerge é meramente extractiva, porosa e
afunilada – virada para a exportação de produtos e serviços primários em bruto,
incapaz de produzir para alimentar os cidadãos e os processos produtivos e de
absorver a riqueza gerada, e inadequada para alargar os benefícios do crescimento
económico.
No popular blog Diário de um Sociólogo (2011), o articulista da série Dos
megaprojectos às mega ideias argumenta que a discussão sobre megaprojectos tem
sido simplisticamente colocada do seguinte modo: “taxa os megaprojectos e a vida
vai melhorar”. O seu argumento vai mais longe, criticando o tipo de economia
rendeira, de serviços e de negócios de curto prazo que se está construindo, bem
como criticando o debate que se centra em torno de apropriação das rendas e não
da produção. A este tipo de capitalismo, ele chama “capitalismo de chapa”.
Estes argumentos são interessantes e, em alguns aspectos, são semelhantes
à crítica sistemática e detalhada que tem vindo a ser feita às características e na-
tureza do padrão de acumulação em Moçambique (Castel-Branco, 2010a, 2002a,
2002b, 2002c e 2002d; OECD, 2011; UNCTAD, 2010). No entanto, o argumento
no citado blog perde a perspectiva da relevância da questão da tributação. Primeiro,
seis ou sete megaprojectos já estão instalados em Moçambique e o seu potencial
fiscal combinado, tornado ocioso por benefícios fiscais massivos e redundantes,
aproxima-se de um montante equivalente a um terço do Orçamento do Estado.
Numa economia dependente de recursos externos, em que a ajuda externa tende
a diminuir e a ser substituída por endividamento público, recolher estas rendas,
por via fiscal, é fundamental para as opções de desenvolvimento futuro. Segundo,
o posicionamento sobre a tributação do capital é vital para definir quem ganha
e quem paga as mudanças e o desenvolvimento económico em Moçambique, e
que tipo de desenvolvimento pode ocorrer. Terceiro, a tributação do capital pode
financiar estratégias económicas e políticas de transformação do padrão de acu-
mulação. Portanto, não há necessariamente um conflito entre apropriar rendas
e mudar o padrão de acumulação, nem existe uma relação automática e directa
entre apropriar rendas e criar uma economia rendeira. Também a relação entre a
apropriação social das rendas e a diversificação, alargamento e articulação da base

Mobilização de Recursos Domésticos Desafios para Moçambique 2011 119

Desafios.indb 119 3/29/11 4:53 PM


produtiva não é automática – para que aconteça, é necessário que a estratégia de
uso dos recursos para isso seja orientada.
Apropriar as rendas dos recursos naturais já concessionados, e que o venham
a ser, é vital, mas não é uma panaceia (solução automática para tudo) – o que acon-
tecerá com a economia, se permanecerá rendeira ou não, dependerá do uso social
feito das rendas. Esta discussão é detalhadamente desenvolvida em Castel-Branco
(2010a e 2008b) e retomada em Ossemane (2011), Massarongo e Muianga (2011).
Rendeira será a economia que vive de recolher rendas e assim permanece; a
que recolhe as rendas para criar uma base produtiva diversificada, alargada e arti-
culada deixará de ser rendeira. A diferença histórica entre as duas é uma questão
de economia política.
A exploração dos recursos naturais de forma a contribuir para gerar uma
economia mais dinâmica, sustentável, articulada e diversificada requer uma visão
macroeconómica para a integração desses recursos numa perspectiva mais ampla
de desenvolvimento. Isto é, requer uma concepção rigorosa e sistemática sobre a
integração dos recursos naturais numa visão e numa estratégia de desenvolvimen-
to de base alargada, diversifica e articulada. Este quadro deve permitir estabelecer
os diferentes objectivos macroeconómicos da exploração de recursos naturais es-
pecíficos em momentos determinados; construir um sistema de prioridades e de
valorização dos recursos; estabelecer os ganhos fiscais e as ligações produtivas a
montante e jusante; definir a partilha da riqueza a diferentes níveis – entre secto-
res, entre prioridades, entre grandes temas estratégicos (crescimento, consumo,
sustentabilidade ambiental), entre o governo central e comunidades locais; e de-
senvolver estratégias industriais que transformem as rendas dos recursos naturais
num instrumento de diversificação e articulação da base produtiva, geração de
emprego e produção competitiva e em grande de bens básicos de consumo a
baixo preço e de qualidade.
Neste contexto, não basta renegociar os contratos com os mega-projectos e
colectar os impostos. Se estas receitas adicionais forem apenas gastas a construir
as condições necessárias para os megaprojectos serem mais rentáveis, a despesa
pública contribuirá para consolidar a estrutura afunilada e concentrada de produ-
ção, as vulnerabilidades macroeconómicas e a instabilidade e volatilidade fiscal. As
receitas fiscais adicionais devem servir para financiar o alargamento, diversificação
e articulação da base produtiva e comercial, fornecendo os serviços produtivos,
as capacidades tecnológicas e financeiras e a logística necessárias ao desenvolvi-

120 Desafios para Moçambique 2011 Mobilização de Recursos Domésticos

Desafios.indb 120 3/29/11 4:53 PM


mento da base produtiva, assim reduzindo as vulnerabilidades e diversificando e
alargando a base fiscal. Portanto, a estratégia de despesa pública é tão importante
como a mobilização de mais recursos domésticos.
Sexta – perigos e desafios do endividamento público: a alternativa de financia-
mento do Estado, que simultaneamente reduza a dependência da ajuda externa
e evite a necessidade do rápido crescimento da base fiscal por via da tributação
do capital, é o endividamento público (Massarongo, 2010; Massarongo e Muian-
ga, 2011; Castel-Branco, 2010a e 2010b; Ossemane, 2011). Há cinco problemas
óbvios relacionados com o financiamento do Estado por via da dívida pública. O
primeiro problema é a capacidade de gestão da dívida dentro de parâmetros de
sustentabilidade aceitáveis e recomendáveis – este problema está relacionado com
capacidade, método e organização, mas também com as possibilidades e pressões
reais da economia. O segundo problema reside na pressão que o serviço da dívida
põe sobre os restantes recursos do Estado e sobre a estrutura da despesa públi-
ca. O terceiro problema consiste na competição por recursos financeiros entre o
Estado e o capital privado, que afecta os custos do capital financeiro para todos
e, em especial, encarece o investimento para o alargamento, diversificação e arti-
culação da base produtiva. O quarto problema é o incentivo ao sistema financeiro
para que este se concentre na transacção e especulação com activos financeiros e
com a gestão e lucros da dívida pública, preterindo o investimento em activida-
des produtivas directas. O quinto problema é derivado da tendência da despesa
pública se concentrar em projectos de alto retorno financeiro a curto prazo, e/ou
projectos virados para o suporte dos megaprojectos minerais, energéticos e de ou-
tras actividades extractivas de grande escala (como, por exemplo, as florestas), em
detrimento do desenvolvimento mais alargado da base social produtiva nacional.
As modalidades de financiamento do Estado são determinantes fundamen-
tais das opções e prioridades de despesa pública. Dependendo da magnitude do
défice fiscal, da proporção deste défice que é financiado com recurso a dívida co-
mercial, e das condições comerciais do serviço da dívida (taxas de juro e período
de maturação do crédito), as prioridades do investimento público serão certamen-
te afectadas. Assim, enquanto o financiamento do Estado por via da tributação do
capital possibilita a adopção de uma estratégia de despesa pública para alargar,
diversificar e articular a base produtiva; o financiamento do Estado por via da
dívida poderá forçar o Estado a optar por investir em projectos de alto retorno fi-
nanceiro de curto prazo, concentrando-se nas zonas de maior dinâmica e concen-

Mobilização de Recursos Domésticos Desafios para Moçambique 2011 121

Desafios.indb 121 3/29/11 4:53 PM


tração económica e em torno dos grandes projectos de investimento estrangeiro
no sector mineral-energético (Massarongo, 2010; Massarongo e Muianga, 2011;
Singh, 1992; Castel-Branco, 2002a, 2010a, 2010b e 2011b; Jornal Notícias, 2011).

ECONOMIA POLÍTICA DO DEBATE EM MOÇAMBIQUE


Portanto, do ponto de vista da construção de uma economia diversificada e
articulada, a tributação do capital parece ser a melhor opção para mobilizar re-
cursos domésticos que reduzam a dependência externa, para reter uma proporção
cada vez maior da riqueza produzida com os recursos nacionais e para utilizar
essa riqueza para diversificar e articular a base produtiva de modo a satisfazer as
necessidades do investimento e do consumo, isto é, de modo a alimentar a econo-
mia e os cidadãos. Para aproveitar a enorme reserva fiscal ociosa que resulta dos
benefícios fiscais, é preciso começar por renegociar os contratos com os megapro-
jectos e alterar a estrutura de incentivos à produção de modo a que incentivos de
redução de custos de investimento, de produção e de transacção (infra-estruturas,
instituições de aprendizagem e formação, coordenação de investimento, sistemas
de informação, sistemas logísticos, financeiros e de aprovisionamento e comercia-
lização, etc.) se tornem na norma, e os incentivos fiscais se tornem na excepção.
Então, por que é que ainda existe um debate acerca desta questão? Se a questão
é tão clara, quais são as dúvidas que persistem? Por que é que o governo de Moçam-
bique resiste tão tenazmente a considerar este assunto? Toda a investigação social
aponta para a necessidade de entrarmos neste processo de revisão dos objectivos e
renegociação dos contratos com os megaprojectos – por que é que os resultados da
análise não são adoptados na análise e desenvolvimento de política pública?
Por um lado, certamente que há dúvidas sobre as formas práticas de imple-
mentação: como se faz a negociação? Será possível negociar com multinacionais?
Quem já o fez? Teve sucesso? Qual será a tarifa fiscal óptima? Como determinar
o que tributar e o que subsidiar, por quanto, quando e com que contrapartidas?
Como determinar quando é que o mais importante para a economia é a tributação
ou as ligações a montante e jusante? Estas, e outras, questões são genuínas, têm
que ser respondidas e requerem um quadro/matriz macroeconómico de explora-
ção dos recursos nacionais e uma estratégia industrial e de investimento específica.
Mas as dúvidas existem não apenas ao nível de questões práticas de imple-
mentação. Se estas questões práticas fossem a essência das dúvidas, já poderiam
há muito ter sido resolvidas.

122 Desafios para Moçambique 2011 Mobilização de Recursos Domésticos

Desafios.indb 122 3/29/11 4:53 PM


A razões da opção pela não tributação dos megaprojectos (ou pela resis-
tência á renegociação dos seus contratos) tem a mesma base social e política da
opção pelo endividamento público como via alternativa para o financiamento do
Estado – a função principal do Estado moçambicano na fase actual é facilitar o
processo de acumulação de capital das classes capitalistas emergentes em estreita
relação e, geralmente, na completa dependência, das dinâmicas e interesses do
capital multinacional, através da expropriação e controlo dos recursos naturais a
baixo custo para o capital.
A não tributação do capital mantém estável a relação entre as elites econó-
micas e políticas nacionais e o capital multinacional, mesmo que, a médio prazo,
esta opção perigue as relações políticas e a estabilidade social doméstica. A não
tributação do capital multinacional permite que a totalidade das rendas dos re-
cursos naturais seja apropriada pelo capital privado, multinacional e doméstico,
associado ao complexo mineral-energético.
Por sua vez, o funcionamento do Estado e da sua função provedora de ser-
viços públicos ficam na dependência da ajuda externa (que tende a estagnar ou
reduzir em termos reais); ou do envolvimento privado no fornecimento desses
serviços e infra-estruturas, através das parcerias público-privadas, o que expande
as oportunidades e garantias de negócio privado.
A opção do Estado pelo endividamento público tem grandes atractivos para
as elites económicas e políticas nacionais. Por um lado, reduz o poder de interfe-
rência e de negociação dos doadores, quer por de facto reduzir a dependência ex-
terna, se os créditos comerciais e as parecerias público-privadas se concretizarem
na magnitude e condições projectadas; quer por ameaçar reduzir a dependência
externa (ou, por outras palavras, sugerir a existência de alternativas para negocia-
ção de recursos financeiros fora do quadro clássico da ajuda externa). A maneira
de fazer isto é optar por aceitar a ligação directa entre política de cooperação e
interesses comerciais, e tentar tirar proveito dessa ligação. Este é o modelo de co-
operação das potências económicas emergentes da Ásia (China e Índia), América
Latina (Brasil), da Europa (Rússia), entre outras. Para gerar esta opção, reduzir
a dependência externa e criar alternativas de negociação e de negócio, é preciso
aceitar este quadro absolutamente comercial de cooperação. Por outro lado, esta
modalidade evita ter de recorrer a uma rápida alteração do quadro fiscal e permite
ter uma solução interina enquanto a reserva fiscal ociosa não entra em operação.
Finalmente, este modelo fortalece as parcerias público-privadas, à custa da socie-

Mobilização de Recursos Domésticos Desafios para Moçambique 2011 123

Desafios.indb 123 3/29/11 4:53 PM


dade e do erário público, que permitem ao capital nacional emergente tirar maior
proveito das ligações com o grande capital multinacional investido no complexo
mineral-energético e a infra-estruturas associadas (Castel-Branco, 2010a).
A resistência, ou crítica, à agenda de renegociação dos contratos com o gran-
de capital tem sido justificada com quatro argumentos principais:

• Os megaprojectos já contribuem para a economia por via do investimento, ex-


portações e emprego – argumento que reflecte confusão entre benefícios finan-
ceiros e privados e benefícios económicos e públicos. Por exemplo, a receita de
exportação só pertence à economia a partir do momento em que paga impos-
tos, é reinvestida na economia, compra bens e serviços em grande quantidade
dentro da economia e gera empregos e salários em grande escala, o que não
é o caso dos megaprojectos. Dados do Banco de Moçambique mostram que
dois megaprojectos em 2008 tiveram um saldo comercial (exportações menos
importações) superior a US$ 1 bilião, mas apenas US$ 300 milhões foram ab-
sorvidos na economia nacional para pagar os custos operacionais dos projectos
(excluindo lucros). Mais de US$ 700 milhões foram repatriados (Castel-Bran-
co, 2010a). Estas transferências foram a segunda causa mais importante para o
agravamento da conta corrente de Moçambique nesse ano. Se estes projectos
não beneficiassem de incentivos fiscais especiais, a economia moçambicana te-
ria retido uma adicional superior a US$ 200 milhões para financiar o défice
fiscal, e o défice da conta corrente teria sido reduzido em mais de US$ 200
milhões. Comparem-se estes números com o que foi declarado pago, em 2008,
por seis empresas – US$ 11,6 milhões. Além disto, como argumenta Ossemane
(2011), a questão não é se os megaprojectos já contribuem para a economia,
mas que esse contributo está muito longe do que poderia e deveria ser.

• Outro argumento sugere que os incentivos fiscais são para compensar as em-
presas pelo investimento em infra-estruturas. De facto, o investimento em
infra-estruturas é deduzido da matéria tributável não coberta pelos benefícios
fiscais. Além disso, as infra-estruturas criadas pelos mega-projectos são geral-
mente usadas para satisfazer as necessidades desses projectos e praticamente
não adicionam nada às capacidades mais gerais da economia.

• É, ainda, argumentado que sem os incentivos fiscais as empresas não investi-


riam em Moçambique ou sairiam, se já tivessem investido. Como já foi discu-

124 Desafios para Moçambique 2011 Mobilização de Recursos Domésticos

Desafios.indb 124 3/29/11 4:53 PM


tido acima, incentivos fiscais são geralmente redundantes e não têm impacto
nos ciclos iniciais de negócios.

• Finalmente, é argumentado que estabilidade legal é a condição mais importante


para a estabilidade do investimento, e que a renegociação dos contratos porá em
causa esta estabilidade, arriscando-se Moçambique a perder biliões de dólares
de investimento no futuro em troca de alguns milhões de dólares a curto prazo.
Este argumento é construído sobre premissas falas e exageradas. Primeira, es-
tabilidade legal não tem nenhum sentido ou valor prático sem estabilidade do
sistema político jurídico que lhe dá forma e legitimidade, e a estabilidade deste
sistema político e jurídico é dada pela estabilidade económica, social e política
da sociedade para a qual os contratos actuais dos megaprojectos não contribuem.
Segundo, a perca anual de uma oportunidade de expandir o orçamento o Estado
em 25%-30% com uma base fiscal sustentável não é um desperdício pequeno.
O articulista da estabilidade legal exemplifica os perigos da renegociação dos
contratos em Moçambique referindo-se aos exemplos de nacionalização da in-
dústria extractiva na Venezuela e outros países latino-americanos. “Renegociação
dos contratos” quer dizer “voltar a negociar entre as partes”; não quer dizer “na-
cionalização”. Como é que “renegociar entre as partes” cria perigos para inves-
timento no futuro? Pelo contrário, quanto mais tempo se continuar a recusar o
início da renegociação, mais perto ficará o País do nível de instabilidade e pressão
económica, social e política que, levada às últimas consequências, pode terminar
em nacionalização.

Se a exploração de recursos naturais só é rentável se a economia nacional e


a maioria dos cidadãos forem marginalizados dos seus ganhos potenciais, então
não vale a pena explorar esses recursos, especialmente no caso de recursos não
renováveis, pelo menos por enquanto.
Portanto, as opções em disputa são económicas e políticas pois afectam a
propriedade, o controlo, a organização da produção, a apropriação e distribuição
da riqueza e, por conseguinte, as relações de poder. Logo, o debate sobre as op-
ções de financiamento do Estado é, de facto, sobre a economia política dos pa-
drões de apropriação de rendas, acumulação e reprodução social, e sobre o papel
do Estado na reprodução ou transformação desses padrões políticos, económicos
e sociais. Por outras palavras, é um debate acerca dos interesses e pressões eco-

Mobilização de Recursos Domésticos Desafios para Moçambique 2011 125

Desafios.indb 125 3/29/11 4:53 PM


nómicos e sociais que predominam nas escolhas de opções de política pública e
sobre as ligações entre o financiamento público e a reprodução desses interesses
e pressões, isto é, sobre quem beneficia e quem paga o processo de acumulação
social (Castel-Branco, 2010a e 2010b).

FINANCIAMENTO DO ESTADO E PADRÕES DE ACUMULAÇÃO ECONÓMICA


Ndikumana e Boyce (2010) argumentam que a questão central do endivida-
mento público reside na utilização da dívida para projectos produtivos (em infra-
-estruturas económicas e sociais) ou improdutivos (em investimento de prestígio,
despesas de luxo, ou corrupção). Este quadro analítico permite-lhes discutir a fuga
de capitais como uma função não só dos influxos de capitais mas também do tipo
de utilização (produtiva ou improdutiva) feita desses capitais. No entanto, a sua
análise não permite distinguir entre diferentes opções de investimento e acumu-
lação, e estas opções são determinantes da sustentabilidade económica e fiscal da
despesa pública e do padrão de crescimento.
Esta discussão conduz a um novo ponto crucial: os padrões económicos e
sociais da despesa pública (incluindo o seu financiamento) afectam o padrão de
investimento privado e de crescimento económico (incluindo o padrão de mobi-
lização de recursos financeiros privados) (Castel-Branco, 2010a e 2010b; Castel-
-Branco, Sulemane et al, 2005; Massarongo e Muianga, 2011).
No caso moçambicano, são três os mecanismos básicos de ligação. Primeiro,
a despesa pública e as suas modalidades de financiamento têm impacto macroeco-
nómico directo nos níveis e padrões de consumo e de investimento, na competição
por recursos financeiros e nos incentivos para o sistema financeiro. Por exemplo,
o recurso sistemático à dívida interna mobiliária como forma de financiamento do
défice desencoraja investimento produtivo diversificado e articulado e encoraja a
competição por rendas financeiras e pela oportunidade de especulação (Castel-
-Branco, 2010a; Amarcy e Massingue, 2011; Massarongo e Muianga, 2011).
Segundo, o padrão de mobilização de recursos públicos e a estratégia de
despesa pública têm implicações directas para as opções de investimento produ-
tivo enfrentadas pelas empresas. Por exemplo, o recurso à dívida comercial para
financiar a despesa pública pode limitar recursos financeiros disponíveis e torná-
-los mais caros, mas também pode encorajar à concentração da despesa pública
em actividades de alto retorno financeiro de curto prazo, restringindo as possibi-
lidades, opções e incentivos reais para o investimento privado à reprodução dos

126 Desafios para Moçambique 2011 Mobilização de Recursos Domésticos

Desafios.indb 126 3/29/11 4:53 PM


padrões concentrados e extractivos de produção e comércio. Se a despesa pública
for financiada com a mobilização da potencial base fiscal ociosa representada pela
massa tributável, mas não tributa, do grande capital, novos recursos financeiros, a
mais baixo custo, serão disponibilizados para aplicação na economia e, dependen-
do da estratégia industrial, poderão ser usados para diversificar e articular a pro-
dução e balancear o consumo e o investimento. Esta segunda opção poderá criar
mais opções e possibilidades de desenvolvimento, para além dos focos tradicio-
nais de exploração extractiva dos recursos naturais (Castel-Branco, 2010a); poderá
promover a expansão da actividade financeira em linha com a diversificação da
base produtiva e comercial (Amarcy e Massingue, 2011; Sande, 2011; Massarongo
e Muianga, 2011; Ossemane, 2011); e gerará uma base fiscal mais diversificada,
alargada e dinâmica, directamente relacionada com o crescimento económico e
menos dependente e menos concentrada nos recursos naturais – o que a tornará
menos volátil e vulnerável.
Terceiro, o modelo de mobilização de recursos e de despesa pública afecta
a distribuição e, naturalmente, o conflito social e as direcções de intervenção fi-
nanceira do Estado. Por exemplo, em paralelo com o subsídio implícito ao capi-
tal multinacional mineral-energético por via dos incentivos fiscais, que impede a
mobilização de recursos para diversificar a base produtiva e comercial, o Estado
intervém por via do OIIL, vulgo “7 milhões”, para minimizar o conflito social
com elites locais excluídas do processo de acumulação dominante, sem resolver
nenhum problema fundamental da estrutura e dinâmica económica. O OIIL re-
presenta apenas 2% do Orçamento do Estado e 0,5% do PIB, está desenquadrado
de qualquer estratégia de investimento e, naturalmente, o seu papel fundamental
reside na mobilização de elites locais e minimização do conflito entre os interes-
ses dessas elites e o padrão dominante de acumulação, extractivo e concentrado
(Sande, 2011).

CONCLUSÕES

A revisão da literatura e dos debates acerca da mobilização de recursos do-


mésticos mostram que existe uma forte relação entre as opções de financiamento
da despesa pública e os padrões de consumo e investimento público e privado.
Esta ligação é construída por via do impacto macroeconómico directo das formas

Mobilização de Recursos Domésticos Desafios para Moçambique 2011 127

Desafios.indb 127 3/29/11 4:53 PM


de financiamento da despesa pública, das pressões económicas que constrangem
as opções de estratégia pública de investimento, e da reacção do Estado à tendên-
cia de crise e conflito social. Portanto, o debate sobre opções de financiamento
do Estado é também sobre opções e padrões de acumulação e reprodução social.
Em suma, a decisão sobre como financiar o Estado é crítica do ponto de vista da
economia política do desenvolvimento em Moçambique.

REFERÊNCIAS

LIVROS E ARTIGOS
Amarcy, S. e Massingue, N., 2011. Desafios da expansão dos serviços financeiros
em Moçambique. In Brito, L., Castel-Branco, C., Chichava, S. e Francisco, A.
(orgs), Desafios para Moçambique 2011. Maputo: IESE.
Arndt, C. e Tarp F. (eds.), 2009. Taxation in a low-income economy: the case of Mozam-
bique. New York: Routledge.
Boas & Associates, 2011. Report on the preparation and reconciliation of the first
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Bolnick, B., 2009. Investing in Mozambique: the role of fiscal incentives. Maputo: USAID.
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low-income economy: the case of Mozambique. New York: Routledge.
Castel-Branco, C., 2002a. An investigation into the political economy of industrial po-
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don (SOAS).
Castel-Branco, C., 2002b. Economic linkages between South Africa and Mozam-
bique. Research report. http://www.iese.ac.mz/lib/cncb/AI-2002a-SA-Mo-
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Notícias, 2011. Dívida externa privada em rápido aumento. 4 de Fevereiro, pp. 4-5
do suplemento “Economia & Negócios”.
Diário de um Sociólogo, 2011. Dos mega projectos às mega ideias. http://www.
oficinadesociologia.blogspot.com/ (acedido a 01 e a 02-03-2011).
O País, 2011a. Gove diz que há condições para negociar com os mega-projectos.
31 de Janeiro, pp. 2-3.
O País, 2011b. O que mantém os mega-projectos não é a isenção fiscal. 14 de Ja-
neiro, pp. 10-12 do suplemento “O País Económico”.

Mobilização de Recursos Domésticos Desafios para Moçambique 2011 131

Desafios.indb 131 3/29/11 4:53 PM


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valor suficiente para subsidiar pão durante oito anos. 28 de Fevereiro, p. 16.
O País, 2011d. Mega-projectos conduzem populações ao empobrecimento. 25 de
Fevereiro, p. 14 do suplemento “O País Económico”.
Savana, 2011. A nossa pobreza é rentável. 25 de Fevereiro, p. 2.
Vieira, S. 2011. Sobre batalhas pelo controlo dos recursos minerais. In Domingo, 6
de Fevereiro, p. 14.

132 Desafios para Moçambique 2011 Mobilização de Recursos Domésticos

Desafios.indb 132 3/29/11 4:53 PM


DESAFIOS DE EXPANSÃO DAS RECEITAS
FISCAIS EM MOÇAMBIQUE
Rogério Ossemane

INTRODUÇÃO

As receitas fiscais representaram, no período de 1999 a 2008, cerca de 86%


do total das receitas internas do país, constituindo, no entanto, menos de metade
do Orçamento do Estado. Como proporção do PIB, as receitas fiscais atingiram o
pico deste período em 2008, situando-se em 14.2%. Apesar deste crescimento, as
receitas mantêm-se a um nível baixo relativamente à média da África Austral que
ronda os 28% (Bolnick e Byiers, 2009), e bastante abaixo do seu potencial estima-
do em cerca de 22% do PIB (Varsano et al, 2005; Schenone, 2004).
O crescimento das receitas fiscais como proporção das despesas do Estado e
do PIB constitui pois um dos principais desafios que o país enfrenta, como forma
de garantir uma maior capacidade doméstica de financiar o seu desenvolvimen-
to e, por essa via, de expansão das receitas internas a longo prazo. Este desafio
tem sido central na definição do conteúdo das várias reformas do sistema tributá-
rio realizadas no país. Actualmente, vários estudos (Bolnick e Byiers, 2009; IMF,
2005) consideram que o sistema tributário em vigor no país encontra-se em gran-
de medida alinhado com as melhores práticas internacionais para países de baixo
rendimento. No entanto, estes e outros estudos (Kuegler, 2009; Castro et al, 2009;
Varsano et al, 2006) apontam como principais problemas prevalecentes a eficácia
e eficiência do sistema tributário e o excesso de benefícios fiscais que são conce-
didos. Estes benefícios não só reduzem substancialmente – e desnecessariamente
(Bolnick, 2009; Castel-Branco, 2008; Castel-Branco e Cavadias, 2009; Macamo,
2000) – o nível de arrecadação de receitas, como constrangem os esforços de me-
lhoria da auditoria e cumprimento fiscal por tornarem o sistema excessivamente
complexo, absorvendo recursos que poderiam ser melhor empregues na melhoria
da eficácia do sistema de colecta fiscal.
Este artigo discute os desafios de expansão das receitas fiscais a curto prazo,
sem constranger os objectivos de crescimento económico e das receitas a longo

Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 133

Desafios.indb 133 3/29/11 4:53 PM


prazo, focando a sua análise no espaço que existe para a redução dos benefícios
fiscais. A discussão mostra que o valo dos benefícios tem crescido a um ritmo
superior e supera o valor dos benefícios concedidos por via de outros impostos.
Adicionalmente, o aumento da respectiva massa tributável (lucros) tem sido mais
acelerado. Estes aspectos fazem com que a redução dos benefícios ao IRPC apre-
sente o maior potencial de expansão das receitas fiscais. Mais importante ainda,
dado o nível de redundância dos benefícios concedidos por via do IRPC nas deci-
sões de investimento, a sua substancial redução não apresenta sinais preocupantes
para os níveis de actividade económica.
O artigo está estruturado em quatro secções principais. A primeira procede a
uma descrição sumária das cinco principais categorias de impostos, nomeadamen-
te: o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), o Imposto sobre o Rendimento
de Pessoas Singulares (IRPS), o IRPC, os Direitos Aduaneiros (DA) e o Imposto
sobre o Consumo Específico (ICE). Para cada um destes impostos é feita uma
comparação dos respectivos pacotes fiscais em vigor em 2002 e em 2009 (anos
de entrada em vigor de novos códigos de benefícios fiscais). Segue-se, na mesma
secção, a análise do contributo potencial de cada categoria de imposto através
da análise da evolução dos custos dos benefícios fiscais, da massa tributável e da
carga fiscal média por categoria de imposto. Identificada a redução dos benefícios
sobre os rendimentos do capital como os que apresentam maior potencial para
expansão das receitas fiscais, a segunda secção procede a uma revisão de literatura
que discute a relevância destes incentivos na atracção de investimento. A última
secção apresenta os desafios para a mobilização de receitas fiscais e para investi-
gação futura.

ANÁLISE COMPARATIVA DO CONTRIBUTO POTENCIAL DE CADA


IMPOSTO PARA AS RECEITAS FISCAIS

Esta secção analisa que categoria de imposto oferece melhores oportunida-


des de expansão das receitas fiscais por via de uma redução de benefícios fiscais.
Para tal, a secção começa por apresentar sumariamente cada uma das cinco ca-
tegorias de impostos mais importantes, nomeadamente o IRPS, o IRPC, os DA,
o IVA e o ICE. Com efeito, estes cinco impostos representaram, em conjunto,
87% do total das receitas fiscais no período de 1999 a 2008, distribuídos da se-

134 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 134 3/29/11 4:53 PM


guinte maneira: IVA (40%), IRPS (15%), DA (15%), IRPC (11%) e ICE (5%). Esta
apresentação foca no grupo de incidência, na taxa de imposto e, sobretudo, no
pacote de benefícios fiscais. Segue-se uma análise quantitativa do potencial de
arrecadação fiscal por via de alguns destes impostos. Esta análise é feita olhando
para o custo dos incentivos fiscais, a carga fiscal média e a evolução da matéria
potencialmente tributável.
O artigo adopta 2002-2008 como período de análise deste trabalho pelo fac-
to de ter sido no ano de 2002 em que foram introduzidas as reformas nos impostos
directos, o que depois da reforma dos impostos indirectos em 1998, representou,
em grande medida, o culminar do desenho do actual sistema de impostos. 2002 foi
igualmente o ano em que entrou em vigor o primeiro Código de Benefícios Fiscais
(CBF) que sintetizou os diferentes benefícios espalhados por uma multiplicidade
de documentos legais, tendo vigorado até 2008. Para ajudar a pensar na evolução
futura das receitas fiscais, a secção compara o pacote fiscal vigente neste período
com o vigente a partir de 2009, data em que entrou em vigor o segundo CBF. Esta
comparação foca sobretudo nos incentivos fiscais que é onde residem as principais
diferenças entre os pacotes fiscais em vigor nestes períodos.

DESCRIÇÃO COMPARATIVA DO PACOTE FISCAL POR IMPOSTO EM 2002 E EM 2009

O IMPOSTO DO RENDIMENTO DE PESSOAS COLECTIVAS


O IRPC incide sobre o rendimento das empresas e substituiu, sobretudo, o
antigo imposto de contribuição industrial. O imposto é cobrado a uma taxa de
32%, sendo que, para as empresas sem contabilidade organizada, e com volume de
negócios anual entre 100.000Mt e 1.500.000Mt, estava disponível um regime sim-
plificado que previa o pagamento de uma taxa de 20% do valor das vendas deter-
minado pelas entidades tributárias com base em “indicadores técnico-científicos”.
Este regime foi substituído em 2009 pelo Imposto Simplificado para os Pequenos
Contribuintes (ISPC), que corresponde a uma taxa de 3% aplicável às vendas bru-
tas das empresas com volumes de negócios inferiores a 2.500.000Mt e superiores
a 750.000Mt (o ISPC substituiu igualmente o regime simplificado do IVA). As
empresas com vendas inferiores a 100.000Mt (750.000Mt a partir de 2009) estão
isentas do IRPC. O quadro 1 lista os principais benefícios fiscais concedidos por
via da redução da taxa ou do valor (no caso do Crédito Fiscal por Investimento –
CFI) do IRPC a ser pago.

Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 135

Desafios.indb 135 3/29/11 4:53 PM


QUADRO 1 BENEFÍCIOS FISCAIS POR VIA DE REDUÇÕES NA TAXA DO IRPC E NO VALOR DO IRPC A SER PAGO

SECTOR 2002 2009


POR PROVÍNCIAS CFI que garante durante 5 anos um CFI que garante durante 5 anos fiscais
desconto no IRPC de 15% do valor do um desconto no IRPC de 5% do valor to-
investimento realizado nas prov. de C. tal do investimento realizado na cidade
Delgado, Inhambane e Niassa, 10% em de Maputo e de 10% para as restantes
Gaza, Sofala, Tete e Zambézia e 5% em províncias.
Maputo, Nampula e Manica.

AGRICULTURA (E Desconto de 80% na taxa do IRPC até Desconto na taxa do IRPC de 80% até
AQUACULTURA EM 2009) 2012 2015; 50% entre 2016 até 2025.
HOTELARIA E TURISMO O pacote por do CFI por províncias é re- Sujeito aos benefícios gerais e outros
forçado em 3 pontos percentuais. específicos aplicáveis.

ZONAS FRANCAS Desconto de 60% na taxa do IRPC du- Isenção total nos primeiros 10 anos;
INDUSTRIAIS (ZFIs) rante os primeiros 10 anos. desconto de 50% entre o 11º e o 15º
ano; 25% no restante tempo de vida do
projecto.

ZONAS DE CFI que garante durante 5 anos fiscais CFI que garante durante 5 anos fiscais
DESENVOLVIMENTO um desconto no valor do IRPC de 20% um desconto no valor do IRPC de 20% do
RÁPIDO (ZDRs) do valor total do investimento. valor total do investimento.

ZONAS ECONÓMICAS Operadores – Isenção total na taxa do


ESPECIAIS (ZEEs) IRPC nos primeiros 5 anos, 50% entre o
6º e o 10º ano, 25% no restante tempo
de vida do projecto.
Empresas – isenção total nos primeiros
3 anos, 50% do 4º ao 10º ano, 25% do
11º ao 15º ano.
n.a. Empresas de ZEEs de serviços – redução
de 50% nos primeiros 3 anos.
INFRA-ESTRUTURAS - Desconto de 80% na taxa do IRPC nos
PÚBLICAS PELO SECTOR primeiros 5 anos, 60% do 6º-10º ano e
PRIVADO OU POR PPPS 25% do 11º-15º ano.
PARQUES DE CIÊNCIA E n.a. Isenção total nos primeiros 5 anos, 60%
TECNOLOGIA do 6º-10º ano e 25% do 11º-15º.
PROJECTOS DE GRANDE O pacote do CFI por províncias é dupli- Sujeito aos benefícios gerais e outros
DIMENSÃO* cado. Beneficiam ainda de descontos específicos aplicáveis.
excepcionais concedidos pelo Conselho
de Ministros.
MINAS E PETRÓLEOS Minas – desconto de 25% na taxa do Eliminadas (com efeitos para projectos
IRPC durante os primeiros 5 anos de aprovados a partir de 2010)
produção para investimentos acima
de US$ 500.000.
Petróleos – Desconto de 25% na taxa
do IRPC durante os primeiros 8 anos.

FONTE CBF, 2002; CBF, 2009; Lei 13/2007 e Bolnick e Byiers, 2009
NOTA
N.A.: Sem definição específica do sector no respectivo cbf.
(*) Investimento mínimo no valor de US$ 500.000.

136 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 136 3/29/11 4:53 PM


É preciso notar que, a par dos incentivos por via de descontos na taxa do
IRPC, existem outros benefícios que são aplicados sobre o rendimento do capital,
por via da redução da massa tributável. O quadro 2 sumariza estes benefícios.

QUADRO 2 BENEFÍCIOS FISCAIS AO CAPITAL POR VIA DE REDUÇÕES NA MASSA COLECTÁVEL

SECTOR 2002 2009

CRÉDITO FISCAL POR Infra-estruturas Públicas pelo sec- Infra-estruturas Públicas pelo sec-
INVESTIMENTO tor privado ou por Parcerias Públi- tor privado ou por PPPs: Descon-
co-Privadas (PPPs): Descontos até tos de 120% na matéria colectável
150% na matéria colectável (120% (110% para cidade de Maputo) du-
para investimentos realizados na rante 5 anos.
cidade de Maputo) durante 10 anos.
DEPRECIAÇÃO ACELERADA Aplicação de taxas de depreciação Aplicação de taxas de depreciação
o dobro das taxas normais. Para 1.5 vezes superior ás taxas normais.
investimentos realizados nos sec-
tores de hotelaria e turismo a taxa
é triplicada.
MODERNIZAÇÃO E INTRODUÇÃO Desconto de 15% da matéria colec- Desconto de 10% da matéria colec-
DE NOVAS TECNOLOGIAS tável. tável.
FORMAÇÃO/TREINAMENTO Durante cinco anos, desconto até 5% Durante cinco anos, desconto até 5%
PROFISSIONAL da matéria colectável (10% no caso da matéria colectável (10% no caso
de treinamento para uso de tecnolo- de treinamento para uso de tecnolo-
gia de ponta). gia de ponta).

FONTE CBF, 2002; CBF, 2009; Lei 13/2007 e Bolnick e Byiers, 2009.

A revisão do CBF 2009 mostra uma imagem mista em termos de redução


e reforço dos benefícios fiscais. Do lado das reduções destacam-se quatro gru-
pos principais. Primeiro, os benefícios concedidos por via do Crédito Fiscal por
Investimento (CFI) reduziu para as províncias de Cabo Delgado, Inhambane e
Niassa, que viram o valor recuperável reduzir em 5%. Para os projectos de grande
dimensão e para os sectores de hotelaria e turismo, foram retirados os reforços de
100% e de 3 pontos percentuais respectivamente, tendo passado a estar sujeitos
aos mesmos benefícios gerais do CFI em vigor a partir de 2009.
Segundo, os projectos de grande dimensão viram igualmente retiradas as
possibilidades de gozarem os benefícios excepcionais.1 No entanto, não é evidente
que isto se irá traduzir numa redução dos benefícios fiscais aos megaprojectos,

1
Por exemplo, a Mozal obteve o benefício excepcional de substituir o pagamento do IRPC à taxa
de 32% pelo pagamento de um valor correspondente a 1% das vendas brutas. De acordo com
Kuegler (2009), isto representou em 2006 um desconto de cerca de 90% na taxa do IRPC.

Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 137

Desafios.indb 137 3/29/11 4:53 PM


uma vez que tal irá depender do pacote de benefícios aplicável a cada mega-
-projecto abrangido pela CBF 2009. Terceiro, os sectores de minas e petróleos
perderam os benefícios específicos. O sector mineiro beneficiava de uma redução
de 25% durante os primeiros cinco anos de produção para investimentos acima
de US$ 500.000 e o sector petrolífero beneficiava da mesma taxa durante os pri-
meiros oito anos de produção. Estas reduções foram eliminadas na revisão do
quadro legal que regula as contribuições fiscais das empresas dos sectores mineiro
e petrolífero – lei 13/2007. Por último, os benefícios aplicados por via da redução
da matéria colectável foram reduzidos, à excepção dos incentivos para formação
e treinamento profissional.
Os reforços dos incentivos em 2009 fizeram-se sentir para as ZFIs, sectores
da agricultura e aquacultura, no CFI para 2 províncias, para empresas abrangidas
pelo regime simplificado, Zonas Económicas Especiais (ZEEs), parques de ciência
e tecnologia, e para os investimentos privados e Parcerias Público-Privadas (PPPs)
em infra-estruturas públicas.
Para as Zonas Francas Industriais (ZFIs), o CBF 2009 reforçou o incentivo
de redução da taxa do IRPC em 60% durante 10 anos ao conceder isenção total
durante os primeiros 10 anos, redução de 50%, do décimo primeiro ao décimo
quinto ano, e de 25% durante o restante tempo de vida do projecto. O sector
agrícola beneficiou de uma extensão do desconto de 80% da taxa do IRPC para
o sector agrícola de 2012 para 2015, e para 50% entre 2016 e 2025 (estes mesmos
benefícios foram estendidos ao sector da aquacultura). O CFI foi reforçado em 5%
para as províncias de Nampula e Manica e as empresas em regime simplificado
passaram a estar sujeitas a uma taxa de 3% sobre as vendas brutas no lugar de 20%.
Os parques de ciência e tecnologia, as ZEEs e os investimentos em infra-es-
truturas públicas passaram a fazer parte dos sectores com benefícios específicos.
Os primeiros passaram a beneficiar de isenções nos primeiros cinco anos, 60% do
sexto ao décimo ano e 25% do décimo primeiro ao décimo quinto ano. No caso
das ZEEs, os pacotes de incentivos fiscais são divididos em três tipos de acordo
com o tipo de actividade, nomeadamente, operadores e empresas. Para os opera-
dores é atribuída isenção total do pagamento do IRPC para os primeiros 5 anos,
50% do sexto ao décimo ano, e de 25% durante o restante tempo de vida do pro-
jecto. Para as empresas, a isenção total cobre os primeiros três anos de actividade,
redução de 50% do quarto ao décimo ano e de 25% do décimo primeiro ao déci-
mo quinto ano. As empresas de ZEEs de serviços beneficiam de uma redução de

138 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 138 3/29/11 4:53 PM


50% nos primeiros três anos. No caso do investimento em infra-estruturas públicas
pelo sector privado ou pelas PPPs, a revisão de 2009 oferece reduções de 80% na
taxa do imposto do IRPC nos primeiros cinco anos, 60% do sexto ao décimo ano
e 25% do décimo primeiro ao décimo quinto ano.

O IMPOSTO DO RENDIMENTO DE PESSOAS SINGULARES


O IRPS incide sobre o rendimento do trabalho (independentemente da fonte
de rendimento e contrariamente ao imposto do trabalho substituído) e inclui 5 es-
calões de rendimento sujeitos a taxas progressivas de 10%, 15%, 20%, 25% e 32%.
Estas taxas podem variar para cada escalão de rendimento de acordo com outros
critérios como o estado civil e o número de dependentes. Beneficiam de isenção
os rendimentos anuais inferiores a 36 salários mínimos, do salário mínimo mais
elevado em 31 de Dezembro do ano a que dizem respeito os rendimentos, ficando
o excedente sujeito ao imposto. Os incentivos fiscais atribuídos às empresas bene-
ficiam igualmente da segunda categoria do IRPS que abrange os rendimentos de
trabalhadores por conta própria, profissionais e empresas individuais.

O IMPOSTO SOBRE O VALOR ACRESCENTADO


O IVA entrou em vigor em 1999 em substituição do imposto de circulação
e do imposto de consumo, visando eliminar o efeito cascata destes impostos. Este
imposto incide sobre o consumo final (uma vez que o IVA pago em consumo in-
termédio é recuperável) tanto dos produtos produzidos em território nacional bem
como sobre os produtos importados. O IVA é cobrado a uma taxa de 17% para as
empresas com vendas anuais superiores a 250.000Mt e a uma taxa de 5% sobre as
vendas brutas para empresas com volume de negócios inferiores a 250.000Mt e
superiores a 100.000Mt que são abrangidas pelo regime simplificado (substituído
em 2009 pelo ISPC correspondente a uma taxa de 3% sobre as vendas brutas das
empresas com volume de negócios entre 750.000Mt e 2.500.000Mt). As empresas
com vendas inferiores a 100.000Mt (750.000Mt em 2009) estão isentas. O quadro 3
lista os principais benefícios concedidos por via de isenções no pagamento do IVA.
A comparação entre os benefícios fiscais concedidos por via do IVA em 2002
e 2009 mostra que os sectores de minas e petróleos viram o período de isenção no
pagamento do IVA sobre importações ser reduzido para cinco anos e os bens isentos
limitados à classe “K”, para o caso das minas, e, no caso dos petróleos, limitados à
classe “K” e à uma lista designada de produtos (de acordo com a lei 13/2007).

Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 139

Desafios.indb 139 3/29/11 4:53 PM


QUADRO 3 BENEFÍCIOS FISCAIS NO PAGAMENTO DO IVA

SECTOR CBF 2002 CBF 2009


GERAL Importações de bens de equipamento Importações de bens de equipamento
classificados na classe “K” da PA. classificados na classe “K” da PA in-
cluindo respectivos acessórios e peças
sobressalentes.
HOTELARIA E TURISMO Sujeito aos benefícios gerais e outros É adicionada uma lista de bens consi-
específicos aplicáveis. derados indispensáveis para o desen-
volvimento da actividade.
ZFIS Importações necessárias para implan- Importações necessárias para implan-
tação e funcionamento das empresas tação e funcionamento das empresas
ZEES n.a Importações necessárias para implan-
tação e funcionamento das empresas
PARQUES DE CIÊNCIA E n.a Isenção na importação de material e
TECNOLOGIA equipamento cientifico, didáctico e de
laboratório.
PROJECTOS DE GRANDE Sujeito aos benefícios gerais e outros Bens destinados a implantação e pros-
DIMENSÃO específicos aplicáveis. secução da actividade
MINAS E PETRÓLEOS Importação de equipamentos, apare- Minas: importações de bens da classe
lhos, materiais e sobressalentes por “K” durante 5 anos.
tempo indeterminado.
Petróleos: Importações de bens da
classe “K” e uma lista adicional de pro-
dutos por um período de 5 anos.
PRODUTOS Farinha de milho, arroz, pão, medica- Em relação a 2002 é adicionada uma
mentos, insumos agrícolas, bens para lista de outros bens considerados fun-
o sector da saúde e educação, serviços damentais para o desenvolvimento das
financeiros e produtos de exportação. actividades do comércio e indústria
rural.

FONTE CBF, 2002; CBF, 2009; Lei 13/2007 e Bolnick e Byiers, 2009.

NOTAS
Classe “K” refere-se a classe de bens de capital.
n.a.: Sem definição específica do sector no respectivo CBF.

Entretanto, os benefícios gerais expandiram as isenções na importação de bens


da classe “K” para incluir os respectivos acessórios e peças sobressalentes. Os sec-
tores de hotelaria e turismo, comércio rural e indústria rural viram adicionada uma
extensa lista de bens considerados indispensáveis para as actividades destes sectores.
Os projectos de grande dimensão viram as isenções restritas à importação de bens
da classe “K” a serem estendidas para bens necessários à implantação e funciona-
mento das empresas, benefício igualmente extensivo às empresas em ZEEs e em
parques de ciência e tecnologia. Os pequenos contribuintes beneficiaram de uma
redução de 2 pontos percentuais na taxa incidente sobre as vendas brutas.

140 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 140 3/29/11 4:53 PM


OS DIREITOS ADUANEIROS (DA)
Os direitos aduaneiros dizem respeito às tarifas a que estão sujeitas as importa-
ções do país. As taxas prevalecentes encontram-se discriminadas na pauta aduaneira
do país. Esta componente tem tendência decrescente em grande parte devido aos
acordos de liberalização do comércio adoptados pelo país no âmbito da SADC,
da OMC e de outros acordos que conduzem a maior liberalização do comércio.
O quadro 4 sumariza os principais benefícios fiscais em vigor em 2002 e em 2009.

QUADRO 4 BENEFÍCIOS NO PAGAMENTO DE DA

SECTOR CBF 2002 CBF 2009


GERAL Bens da classe “K”. Bens da classe “K”, respectivos acessó-
rios e peças sobressalentes.
INDUSTRIAS Sujeito aos benefícios gerais e ou- Isenção na importação de maté-
TRANSFORMADORAS E DE tros específicos aplicáveis. rias-primas para empresas com
MONTAGEM facturação anual não inferior a
3.000.000Mt e com valor acrescen-
tado mínimo de 20%.
HOTELARIA E TURISMO Sujeito aos benefícios gerais e ou- Aos benefícios gerais é adicionada
tros específicos aplicáveis. uma lista de bens considerados
indispensáveis para o desenvolvi-
mento da actividade.
PARQUES DE CIÊNCIA E n.a. Isenção na importação de material
TECNOLOGIA e equipamento cientifico, didáctico
e de laboratório.
ZFIs Bens necessários para implantação Bens necessários para implantação
e funcionamento das empresas. e funcionamento das empresas
ZDRs Bens das classes “K” e “I” da PA du- Bens necessários para implantação
rante os primeiros 3 anos da imple- e funcionamento das empresas.
mentação do projecto.
ZEEs n.a. Bens necessários para implantação
e funcionamento das empresas.
PROJECTOS DE GRANDE Sujeito aos benefícios gerais e ou- Bens destinados a implantação e
DIMENSÃO tros específicos aplicáveis. prossecução da actividade
MINAS E PETRÓLEOS Importação de equipamentos, apa- Minas: importações de bens da
relhos, materiais e sobressalentes classe “K” durante 5 anos.
por tempo indeterminado.
Petróleos: Importações de bens da
classe K e uma lista adicional de pro-
dutos por um período de 5 anos.
PRODUTOS O mesmo para o IVA O mesmo para o IVA

FONTE CBF, 2002; CBF, 2009; Lei 13/2007 e Bolnick e Byiers, 2009.

NOTA
N.A.: Sem definição específica do sector no respectivo CBF

Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 141

Desafios.indb 141 3/29/11 4:53 PM


A comparação entre os benefícios fiscais concedidos em 2002 e 2009 mostra
que os sectores de minas e petróleos viram o período de isenção no pagamento de
DA sobre as importações reduzido para cinco anos e os bens isentos limitados à
classe “K” para o caso das minas e, no caso dos petróleos, limitados à classe “K” e
a uma lista designada de produtos (na lei 13/2007).
Entretanto, os benefícios gerais expandiram as isenções na importação de bens
da classe “K” para incluir os respectivos acessórios e peças sobressalentes. Os sectores
de hotelaria e turismo, comércio rural e indústria rural viram adicionada uma extensa
lista de bens considerados indispensáveis para as actividades destes sectores. Os pro-
jectos de grande dimensão viram as isenções restritas à importação de bens da classe
“K” serem estendidas para bens necessários à implantação e funcionamento das em-
presas, benefício igualmente extensivo às empresas em ZEEs e em parques de ciência
e tecnologia. As empresas manufactureiras e de montagem com um nível de factura-
ção não inferior a três milhões de meticais e valor adicionado mínimo de 20 passaram
a estar isentas de direitos na importação de matéria--prima. Os mesmos produtos que
passaram a beneficiar de isenções no pagamento do IVA nas importações passaram
igualmente a beneficiar de isenção no pagamento de DA na importação.

O IMPOSTO SOBRE O CONSUMO ESPECÍFICO


O ICE incide sobre bens considerados de consumo supérfluo (por exemplo,
jóias), prejudiciais à saúde e ao ambiente (como, por exemplo, bebidas alcoólicas,
cigarros, e motores de veículos) a taxas que vão de 15% a 65%. O CBF não provi-
dencia a lista específica de bens que beneficiam de isenções por via do ICE. Estas
podem ser encontradas nas isenções específicas por produtos e por sectores (por
exemplo, a isenção na importação de veículos motorizados para transporte de
bens ou outros bens necessários para o desenvolvimento das actividades das em-
presas no caso das empresas em ZFIs e, no caso do CBF 2009, iates importados
pelos sectores de hotelaria e turismo).
A comparação entre os benefícios fiscais em vigor no início de 2002 e a
partir de 2009 mostra que, em relação ao pagamento do IVA, dos DA e do ICE, a
quantidade de sectores gozando de benefícios específicos e a quantidade de bens
isentos foram claramente aumentados. Apenas os sectores de minas e petróleos
viram os seus benefícios reduzidos, tendo esta redução incidido na limitação aos
bens da classe “K” e a uma lista adicional de equipamentos necessários para o
desenvolvimento da actividade e na redução do período de tempo de isenção que

142 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 142 3/29/11 4:53 PM


foi limitado a cinco anos. No entanto, sendo que o grosso das importações deste
tipo de bens de capital e equipamento é, em geral, efectuado dentro dos primeiros
cinco anos de actividade, o impacto da limitação temporal tenderá a ser limitado.
No que diz respeito ao IRPC (e a segunda categoria do IRPS), a grande diver-
sidade de sectores sofrendo reduções de benefícios, ou beneficiando de reforços e
outros ainda beneficiando de reduções e reforços simultaneamente, torna o balanço
um pouco mais complicado de avaliar. Este balanço vai depender igualmente da
hierarquia dos benefícios aplicáveis. Por exemplo, um projecto de grande dimensão
ou um projecto de hotelaria e turismo localizados numa ZFI poderão beneficiar dos
incentivos mais generosos concedidos às ZFIs? Apesar de deixar claro que os bene-
fícios não são cumuláveis, o CBF não deixa clara a hierarquia dos benefícios fiscais.
Se os projectos puderem optar pelo pacote mais generoso, tal irá contribuir para
um aumento dos custos dos benefícios (medido pelo custo dos benefícios como
proporção da receita arrecadada). No final, os custos dependerão do padrão do in-
vestimento a ser realizado no país abrangido pelo CBF 2009. Por exemplo, projectos
aprovados a partir de 2010 nos sectores de minas e petróleos deverão contribuir
para a redução do custo dos benefícios uma vez que estes foram reduzidos. Os
outros investimentos realizados em ZFIs, ZEEs e Parques de ciência e tecnologia
e que beneficiem dos incentivos específicos para estas áreas irão contribuir para o
aumento dos custos, uma vez que os benefícios aumentaram.
O generoso e complexo pacote de incentivos fiscais prevalecente e a expansão
dos benefícios concedidos às ZFIs e às ZEEs sob o argumento de atrair investimen-
to levantam quatro preocupações principais. Primeiro, entra em contradição com
algumas das características desejáveis do sistema tributário e, mais especificamente,
de várias das boas práticas definidas no quadro da reforma fiscal em Moçambique.
Com efeito, (i) quando os benefícios fiscais são irrelevantes nas decisões de investi-
mento (o que se tem revelado a regra) entram em contradição com os objectivos de
alargamento da base tributária e constrangem a possibilidade de redução da carga
fiscal geral, tornando-a mais atractiva para o investimento em geral (exceptuando
os benefícios concedidos a microempresas cuja massa tributável muitas vezes não
justifica o esforço da administração fiscal); (ii) o pacote de incentivos fiscais, ao
beneficiar os grandes investimentos em detrimento das pequenas e médias empre-
sas (Byiers, 2009), confere alguma regressividade à tributação das empresas; (iii) as
motivações para o tipo de mudanças geradas não são claras. Por exemplo, qual a
vantagem em reduzir os benefícios por via do CFI paralelamente a um reforço das

Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 143

Desafios.indb 143 3/29/11 4:53 PM


isenções no IRPC, como no caso dos investimentos em infra-estruturas públicas
(exactamente em oposição aos argumentos que, de acordo com Bolnick (2004), são
avançados por grande parte de especialistas em fiscalidade que apresentam o CFI
como sendo a modalidade de incentivo fiscal mais custo-efectiva, transparente e
simples); (v) tornam o sistema fiscal excessivamente complexo para as capacidades
existentes devido à enormidade e complexidade dos benefícios fiscais concedidos,
desviando recursos dos esforços de tributação.
Segundo, dado o grande foco da estratégia de desenvolvimento industrial nas
ZFIs e ZEEs, o seu crescimento será feito com um alto custo dos benefícios fiscais
relativamente à arrecadação fiscal, sobretudo se estes não forem determinantes na
atracção dos investimentos. Adicionalmente, não está excluída a possibilidade dos
incentivos fiscais poderem eventualmente causar desinvestimento nas empresas que
deles não beneficiam quer por via da distorção do ambiente de competição quer pela
limitação dos gastos públicos (em virtude do aumento das receitas fiscais abdicadas
para isenções) em bens e serviços que promovam a actividade económica das peque-
nas e médias empresas que são as que mais necessitam da intervenção do Estado.
Terceiro, na medida em que revelam uma postura do governo cada vez mais
benevolente em relação à abdicação de receita fiscal por via de isenções fiscais, redu-
zem a força do argumento para renegociação dos excessivos benefícios concedidos
aos megaprojectos com um potencial significativo de aumento do espaço fiscal.

EVOLUÇÃO DOS CUSTOS DOS INCENTIVOS FISCAIS, DA MASSA TRIBUTÁVEL E


DA CARGA FISCAL POR CATEGORIA DE IMPOSTO
Esta secção foca a sua análise no custo dos benefícios fiscais, na evolução da
massa tributável e da carga fiscal por cada categoria de imposto. No entanto, no que
diz respeito ao IVA e ao ICE, a análise refere-se apenas à parte que incide sobre as
importações. Isto deve-se ao facto de os dados disponíveis através da Conta Geral
do Estado (CGE) não considerarem o custo dos benefícios concedidos em produtos
adquiridos no mercado doméstico o que, em grande parte, pode ser explicado pelo
maior peso dos valores arrecadados e, sobretudo, dos benefícios fiscais concedidos
por via das importações. Em relação aos valores dos incentivos fiscais por via do
IRPC apresentados pela CGE, fica a ideia de que estes não incluem pelo menos os
incentivos concedidos à Mozal. Com efeito, uma comparação dos dados apresenta-
dos pela CGE com estimativas feitas por Kuegler (2009) sobre os custos dos benefí-
cios fiscais concedidos à Mozal por via da tributação dos rendimentos do capital em

144 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 144 3/29/11 4:53 PM


2006 mostra que estes superam os dados apresentados pela CGE em cerca de 500%.
Portanto, a exclusão da Mozal conduz a uma enorme subestimação dos custos dos
benefícios fiscais (mais particularmente dos concedidos por via do IRPC).
Começando pela análise da evolução dos custos dos incentivos fiscais, cons-
tata-se que, de acordo com a tabela 1, entre 2002 e 2008, o custo dos benefícios
fiscais anuais concedidos por via do IRPC cresceu em 3 273%, seguido do ICE
(755%), do IVA (708%) e dos direitos aduaneiros (674%). Em termos proporcio-
nais, os benefícios fiscais sobre o IRPC representaram, em 2008, 73% do custo
total dos benefícios fiscais, seguido do IVA (16%), dos DA (9%) e do ICE (2%).

TABELA 1 EVOLUÇÃO DOS BENEFÍCIOS FISCAIS, 2002-2008

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 VARIAÇÃO, PESO EM


CATEGORIA DE
2002-08 2008
IMPOSTO MILHÕES DE METICAIS (%) (%)
IRPC (*) 172 622 345 342 517 3.967 5.835 3.273 73
IRPS - - - 173  - 1 - - -
Direitos Aduan. 92 85 351 438 823 923 712 674 9
ICE 22 7 46 60 272 113 188 755 2
(importações)
IVA 160 133 414 670 1.534 1.857 1.292 708 16
(importações)
Total 446 847 1.157 1.683 3.147 6.861 8.027 1.696 100

FONTE República de Moçambique (vários anos).

NOTA
(*)
Para 2002 e 2003 os dados da CGE referem-se a contribuição industrial.

Este peso considerável de benefícios fiscais concedidos por via do IRPC


reflecte-se num baixo contributo fiscal do rendimento do capital, chegando a ser
inferior ao contributo do rendimento do trabalho para todo o período em análise
(representando em média 72% deste no mesmo período) – ver gráfico 1.
Este contributo do capital inferior ao do trabalho torna-se mais evidente
quando se compara o potencial da massa tributável. Ou seja, comparando os lu-
cros com as remunerações dos trabalhadores, constata-se que os primeiros supe-
ram largamente os segundos. Este artigo usa os dados do Inquérito Anual às Em-
presas (IAE) do Instituto Nacional de Estatística (INE) para obter uma estimativa
da proporção dos lucros em relação às remunerações do trabalho. De acordo com
o IAE 2007 – único ano para o qual os dados necessários estão disponíveis –, a

Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 145

Desafios.indb 145 3/29/11 4:53 PM


remuneração total dos trabalhadores em 2007 foi de 17 354 milhões de meticais.
Os lucros das empresas (calculado como a diferença entre os proveitos totais e
os custos totais) foram de 43 383 milhões de meticais. Estes dados sugerem uma
massa tributável por via do IRPC 250% superior à massa tributável por via do
IRPS. Sendo que no mesmo ano os montantes arrecadados pelo IRPC represen-
taram 90% dos montantes arrecadados pelo IRPS, isto sugere que a carga fiscal
média sobre o trabalho foi, em 2007, 280% superior à carga fiscal média sobre o
capital. Para o mesmo ano, a carga fiscal média do conjunto de impostos sobre as
importações (IVA, DA e ICE) foi 120% superior à carga fiscal do IRPC.

GRÁFICO 1 EVOLUÇÃO DO IPRS E DO IRPC, 2002-2008 (EM MILHÕES DE METICAIS A PREÇOS CORRENTES)

6.000

5.000

4.000

3.000

2.000

1.000

0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

IRPS IRPC E TAXA LIBERATÓRIA DAS ZONAS FRANCAS


FONTE República de Moçambique (vários anos)

Embora não tenha sido possível obter os dados sobre a evolução da massa
tributável, o artigo usa a combinação de algumas variáveis para obter uma aproxi-
mação do comportamento desta variável. Se considerarmos uma taxa de imposto
constante (o que se pode considerar uma assumpção razoável para o período em
análise – exceptuando no caso dos DA), teremos que o somatório dos montantes
absorvidos pelos impostos e pelas isenções representam uma proporção fixa da
respectiva massa tributável. Assim, podemos usar a evolução do somatório das
receitas arrecadadas e das isenções fiscais como proxy para evolução da massa
tributável identificada pelo sistema tributário.

146 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 146 3/29/11 4:53 PM


Adicionalmente, podemos assumir que a massa tributável identificada pelo
sistema tributário é representativa da massa tributária gerada pela economia. A
grande limitação deste procedimento é a de assumir um impacto nulo da va-
riação da eficácia do sistema de colecta de impostos (na identificação da massa
tributável, sua tributação e concessão das devidas isenções) nos montantes de
impostos arrecadados e de isenções. Isto é, assume que as variações no somató-
rio destes montantes são determinadas apenas pelas variações dos volumes de
actividade económica. Embora esta seja uma assumpção rígida, o procedimento
permite a melhor aproximação possível do comportamento das massas tributá-
veis com base nos dados disponíveis. Obviamente, os resultados e análises que
deles derivam devem ser tomados como hipóteses, sendo que os resultados e
a sua interpretação merecem ser revistos à medida que os dados necessários
se forem tornando disponíveis. A relevância destas hipóteses e do raciocínio
derivado é reforçada pelo facto de o foco da análise residir na comparação das
variáveis analisadas e não tanto nos números absolutos, sendo que as diferenças
significativas encontradas nestas comparações conferem uma margem de ve-
rificação das hipóteses desenvolvidas sem necessidade de que os pressupostos
adoptados se verifiquem a 100%.
Dito isto, podemos proceder à análise da evolução da massa tributável, da
carga fiscal e da relação entre o crescimento da massa tributável e do rácio Re-
ceitas Fiscais/Produto Interno Bruto (RF/PIB). Usando a taxa de crescimento do
somatório dos montantes arrecadados e das isenções (parciais ou totais) como
proxy do crescimento da massa tributável, verificamos que a massa tributável por
via do IRPC é a que cresce mais rápido (a uma taxa média anual de 54%), seguido
do IRPS (29%), ICE (23%), IVA (21%) e DA (14%). Isto fez com que a massa tribu-
tável por via do IRPC se tornasse a maior nos últimos 2 anos, seguida, em ordem
decrescente, pelo IVA, IRPS, DA e ICE – ver gráfico 2. Desta forma, fica claro que,
considerando a evolução da massa tributável, o maior potencial de crescimento da
receita fiscal reside na tributação aos rendimentos das empresas.
Pode-se obter uma aproximação da evolução da carga fiscal através da
evolução do rácio receitas arrecadas/massa tributável. Os dados sugerem que,
entre 2002 e 2008, a carga fiscal média do IRPC foi a que mais reduziu (-31
pontos percentuais), depois dos DA (-12 p.p.), IVA (-9 p.p.), ICE (-9 p.p.) e
IRPS (0 p.p.).

Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 147

Desafios.indb 147 3/29/11 4:53 PM


GRÁFICO 2 EVOLUÇÃO DA MASSA TRIBUTÁVEL DE ACORDO COM A CATEGORIA DE IMPOSTO, 2004-2008
(EM MILHÕES DE METICAIS)

12.000

10.000

8.000

6.000

4.000

2.000

0
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

IRPC +ISENÇÕES IVA + ISENÇÕES IRPS + ISENÇÕES DA+ISENÇÕES ICE+ISENÇÕES


FONTE República de Moçambique (vários anos)

O gráfico 3 dá-nos uma ideia do comportamento anual da carga fiscal média,


ao mesmo tempo que nos mostra como evolui o custo das isenções em proporção
das receitas arrecadadas (o aumento do rácio isenções/receitas arrecadas sugere
uma redução da carga fiscal média e uma redução do mesmo rácio sugere o inver-
so). Para todo o período em análise, à excepção de 2006, o peso dos incentivos em
relação à arrecadação foi maior para o IRPC quando comparado com os outros
impostos, sendo que, em 2008, os custos dos benefícios fiscais superaram os mon-
tantes arrecadados. No caso do IVA, o peso máximo dos benefícios fiscais relati-
vamente aos montantes arrecadados foi de 40%, do ICE (39%) e dos DA (16%). O
gráfico 4 agrega os impostos que incidem sobre as importações (IVA, DA e ICE)
para facilitar a comparação visual. Pelo gráfico fica evidente a ideia de uma carga
fiscal substancialmente menor para o caso do IRPC, e que se reduz vertiginosa-
mente nos últimos 2 anos. A carga fiscal média sobre as importações através do
IVA, dos DA e do ICE reduziu ao longo do período em análise (mas a um ritmo
médio anual inferior ao da redução da carga fiscal sobre os lucros) à excepção do
último ano em que aumentou.

148 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 148 3/29/11 4:53 PM


GRÁFICO 3 EVOLUÇÃO DOS MONTANTES ISENTOS COMO PROPORÇÃO DOS MONTANTES ARRECADADOS
POR IMPOSTO, 2002-2008 (%)
120%

100%

80%

60%

40%

20%

0%
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

IRPC Direitos Aduaneiros ICE (importações) IVA (importações)

FONTE República de Moçambique (vários anos)

GRÁFICO 4 EVOLUÇÃO DOS MONTANTES ISENTOS COMO PROPORÇÃO DOS MONTANTES ARRECADADOS POR VIA DO
IRPC E DOS IMPOSTOS SOBRE IMPORTAÇÕES (IVA, DA e ICE), 2002-2008 (%)

120%

100%

80%

60%

40%

20%

0%
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

IRPC Impostos sobre importações FONTE República de Moçambique (vários anos)

Este crescimento do rácio benefícios/arrecadação significa que os ganhos de


eficácia na colecta fiscal e/ou que o crescimento dos lucros na economia estão a ser
maioritariamente absorvidos pelas isenções (e em proporções crescentes nos úl-
timos dois anos). Embora o primeiro cenário seja igualmente problemático por

Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 149

Desafios.indb 149 3/29/11 4:53 PM


revelar uma decrescente capacidade de transformar a eficácia da colecta fiscal
em receitas fiscais, a hipótese deste crescimento ser também reflexo do segundo
cenário é ainda mais preocupante por dois motivos principais.
Primeiro, sendo que a carga fiscal média sobre o capital se encontra a níveis
baixos (por exemplo, comparativamente à carga sobre o trabalho), esta redução
é de questionar. É preciso realçar que esta redução não se deve à redução da taxa
de imposto sobre o capital mas sim ao aumento de projectos beneficiando de
isenções. Este aspecto distorce o ambiente de competição, colocando as empresas
que não beneficiam de isenções – maioritariamente as pequenas e médias – em
situação cada vez mais desfavorável relativamente ao resto das empresas. Adicio-
nalmente, conforme discutido na secção seguinte, estes benefícios são em geral re-
dundantes nas decisões de investimento das empresas que deles beneficiam e não
estando excluída a possibilidade de produzirem um efeito de desinvestimento nas
decisões das empresas que deles não beneficiam por via da distorção do ambiente
de competição ou por via da limitação dos gastos públicos como consequência da
limitação do espaço fiscal do governo.
O segundo motivo está ligado à sustentabilidade do crescimento das receitas
fiscais como proporção do PIB. Quando a taxa de impostos não varia, o cres-
cimento das receitas fiscais é determinado pela variação da taxa e estrutura de
crescimento da economia, e por uma maior eficácia no sistema de colecta fiscal.
Sendo que os ganhos de receita adicional por via da melhoria do sistema de co-
lecta fiscal tendem a reduzir à medida que o sistema melhora (porque o peso das
receitas que escapa ao sistema vai reduzindo), a sustentabilidade do crescimento
das receitas fiscais (em proporção do PIB) fica cada vez mais dependente da elasti-
cidade das receitas fiscais em relação ao PIB. Ou seja, dependente da ligação entre
este crescimento das receitas fiscais e as dinâmicas de crescimento da economia
(velocidade e estrutura). Por exemplo, qual o contributo do crescimento do sector
da agricultura ou qual o contributo do aumento do consumo ou qual o contributo
do aumento dos lucros para o aumento do rácio RF/PIB?
Em relação ao contributo do aumento dos lucros, verifica-se que, se a carga
fiscal média sobre o capital reduz – perante uma taxa de imposto fixa isto explica-se
pela variação da estrutura dos sectores contribuintes para o lucro total, onde o peso
dos sectores beneficiando de incentivos fiscais aumenta a proporção total dos bene-
fícios relativamente aos valores arrecadados – e o peso dos lucros no PIB (21% de
acordo com os dados do IAE 2007 e das contas nacionais e, em princípio, subvalo-

150 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 150 3/29/11 4:53 PM


rizado pelo facto de o valor dos lucros corresponderem a uma amostra) for superior
ao peso do IRPC nas receitas fiscais (13% em 2007) significa que, ceteris paribus, o
aumento dos lucros tem contribuído para a redução do rácio RF/PIB. Isto ocorre
mesmo quando o aumento dos lucros eleva os rácios IRPC/PIB e IRPC/RF.
Desta forma, uma redução da capacidade de absorção dos lucros adicionais
gerados pela economia sugere um crescente desfasamento entre as dinâmicas de
crescimento da economia e do crescimento das receitas fiscais como proporção
do PIB por via dos ganhos do capital. Por outras palavras, o crescimento eco-
nómico que se traduz no crescimento dos lucros na economia tem contribuído
negativamente para o objectivo de aumento das receitas fiscais como proporção
do PIB. Este aspecto levanta preocupações em relação à sustentabilidade do cres-
cimento das receitas fiscais como proporção do PIB, o que, conforme referido
anteriormente, irá depender também do padrão do investimento e da sua relação
com o pacote de benefícios fiscais.
Como contra-argumento ao exposto acima, podem ser apresentados os pos-
síveis efeitos multiplicadores da redução da carga fiscal sobre o capital sobre outras
fontes de receita. Por exemplo, se os benefícios fiscais sobre o IRPC promovem
investimento adicional, então as receitas fiscais poderão expandir por via de outras
categorias de impostos impulsionados pelas ligações geradas por esse aumento do
investimento (por exemplo, aumento do IVA por via do aumento do consumo,
aumento dos DA por via do aumento das importações, aumento do IRPS por via
do aumento do emprego, etc.). Para além do facto de estes benefícios em geral se-
rem redundantes (ver secção seguinte), tal teria de ser sustentado por um aumento
da carga fiscal média nessas outras categorias de impostos.2 No entanto, o facto
de os investimentos que beneficiam de incentivos fiscais no pagamento do IRPC
em geral beneficiarem de isenções no pagamento de IVA, de DA e outros reduz a
possibilidade da ocorrência desses efeitos multiplicadores positivos sobre as recei-
tas fiscais. Por outro lado, é preciso notar que as isenções do pagamento do IVA,
do ICE e de outros impostos que reduzem os custos das empresas e aumentam
os lucros, que posteriormente beneficiam de isenções no pagamento do IRPC,
contribuem para o aumento da dispersão entre os lucros e a arrecadação do IRPC
e, como tal, para a redução do rácio RF/PIB.

2
No caso das importações, porque estas não adicionam ao PIB, o seu aumento não contribui
para redução do rácio RF/PIB e qualquer aumento no valor das receitas arrecadas por via das
importações contribui para o aumento do rácio RF/PIB.

Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 151

Desafios.indb 151 3/29/11 4:53 PM


Em resumo, de acordo com a análise desenvolvida nesta secção, os factores
que sustentam a preferência pela opção de expansão das receitas fiscais por via da
redução dos benefícios fiscais concedidos por via do IRPC são:

• O peso e a taxa de crescimento significativamente maiores do custo dos


benefícios fiscais concedidos por via do IRPC relativamente aos custos por
via de outros impostos;

• O crescimento da massa tributável por via do IRPC (lucros) mais rápido do


que as massas tributáveis das outras categorias de impostos;

• A carga fiscal média comparativamente baixa sobre o rendimento do capi-


tal e distribuída de forma bastante desigual entre as empresas beneficiárias
e não beneficiárias de incentivos fiscais, em que as pequenas e médias em-
presas aparecem como as mais desfavorecidas;

• O declínio mais acelerado da carga fiscal sobre os lucros relativamente à


carga fiscal sobre os outros grandes beneficiários de incentivos fiscais;

• O facto de a estrutura de incentivos fazer com que o crescimento dos lucros


gerados pela economia contribua, ceteris paribus, para a redução do rácio
RF/PIB;

Dois aspectos adicionais reforçam o argumento:


• A arrecadação de direitos aduaneiros tem uma tendência declinante em
virtude dos vários acordos conducentes à liberalização do comércio a que
o país aderiu (SADC, OMC, APEs, etc.) e, portanto, oferecerem menor
possibilidade de arrecadação de receita adicional;

• O facto de as isenções do IVA se destinarem a suavizar o custo de vida das


camadas mais vulneráveis e aumentar a competitividade das empresas. O pri-
meiro aspecto é de especial relevância dados os elevados níveis de pobreza pre-
valecentes e o carácter regressivo dos impostos indirectos reforça o argumento
para as isenções no IVA para produtos de primeira necessidade. Quanto ao
estímulo às empresas, e perante a necessidade de redução de benefícios fiscais,
a discussão deve focar a questão sobre qual a forma mais efectiva de estimular
as empresas: se por via das isenções sobre o IVA, os DA e o ICE pago em bens
de investimento e operacionais ou por via de isenções sobre o rendimento

152 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 152 3/29/11 4:53 PM


final. Três aspectos fazem a balança pender para a redução das isenções sobre
o IRPC: (i) o facto de o IRPC incidir sobre rendimentos positivos; (ii) o facto
de existir uma série de outros benefícios fiscais que incidem indirectamente
sobre o rendimento do capital – reduzindo a massa tributável – tais como o
crédito do imposto ao investimento (defendido por especialistas como sendo
um instrumento mais custo-efectivo, transparente e simples – Bolnick (2004))
e a depreciação acelerada; (iii) o reduzido efeito da redução da carga fiscal so-
bre o capital por via das isenções fiscais sobre o IRPC como impulsionador da
actividade económica – discutido em detalhe na secção seguinte.

A RELEVÂNCIA DOS INCENTIVOS FISCAIS NO RENDIMENTO DO


CAPITAL

Dado o relativamente maior potencial de aumento das receitas fiscais por


via do IRPC, mais concretamente através da redução dos benefícios fiscais con-
cedidos por esta via, torna-se necessário analisar a relevância destes incentivos na
prossecução dos objectivos que nortearam a sua concessão. Os incentivos fiscais
são vistos primeiramente como uma forma de promover investimento no país
(para uma discussão mais detalhada dos argumentos a favor e contra incentivos
fiscais veja Bolnick (2009 e 2004). Por esta via espera-se que uma série de outros
objectivos sejam alcançados, tais como a promoção de ligações produtivas, tecno-
lógicas e pecuniárias, a promoção do emprego, a diversificação da base produtiva,
o crescimento económico, a redução da pobreza e por aí em diante. Obviamente
que, para que os incentivos fiscais sejam considerados determinantes no alcance
destes últimos objectivos, é necessário que, em primeiro lugar, tenham sido deter-
minantes na promoção do investimento.
Existem duas linhas principais de análise do impacto dos incentivos fiscais
nas decisões de investimento, ambas convergentes para indicação da redundância
dos incentivos fiscais. A primeira baseia-se sobretudo na análise das características
dos projectos implementados no país, focando nos megaprojectos, e relacionan-
do-as com as teorias económicas que explicam as decisões de investimento e de
localização de projectos desta natureza. A segunda assenta sobretudo numa ava-
liação empírica baseando-se na análise de inquéritos visando medir a relevância
dos incentivos fiscais nas decisões de investimento no país.

Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 153

Desafios.indb 153 3/29/11 4:53 PM


O primeiro tipo de análise tem sido patente em vários estudos desenvolvidos
por Castel-Branco, sintetizados em Castel-Branco (2008) e Castel-Branco e Cava-
dias (2009), e podem ser resumidos nos seguintes pontos:

• Os megaprojectos têm custos de insucesso (ou sunk costs) muito altos por
causa da dimensão e complexidade destes investimentos. Deste modo, estes
empreendimentos são pouco sensíveis a incentivos de curto prazo ou de
ocasião, e muito sensíveis às estratégias corporativas globais, dinâmicas dos
mercados, condições logísticas e de infra-estruturas, acesso barato e seguro a
recursos produtivos e custos do capital. Em Moçambique estes projectos são
orientados para mercados externos maiores e com acordos futuros, investem
massivamente na infra-estrutura e logística de que necessitam, exigem livre
repatriamento de capitais, negoceiam preços baixos para as matérias-primas
e outros principais insumos locais e isenções de direitos nas importações de
equipamentos e matérias-primas. Na essência, as decisões de investimento e
a sua localização, expansão, escolha de mercados e tecnologia são o resulta-
do da combinação de estratégias corporativas num ambiente oligopolista, em
vez de respostas de curto e médio prazo a incentivos não estruturais.

• Por outro lado, estes são projectos com interesses estratégicos localizados, quer
por serem centrados na exploração de recursos naturais não renováveis (ener-
géticos e minerais) com localização bem definida, quer por serem guiados por
estratégias corporativas oligopolistas que determinam a escolha de localiza-
ção. Por causa disto, estes projectos não têm interesse em circular à procura de
incentivos marginais, pois as suas decisões locacionais são sempre estratégicas.
No caso específico da Mozal, a sua decisão locacional foi determinada pelos
seguintes factores: um subsídio da ESKOM sobre a energia (principal custo
da fundição) para incentivar a Mozal a estabelecer-se em Moçambique de
modo a justificar a intervenção da ESKOM na rede de energia Moçambicana;
e a disponibilidade do Porto da Matola para as importações e exportações da
Mozal (mais de metade da actividade deste Porto está associada ao comércio
externo da Mozal). Nos restantes casos, a existência de um recurso natural
não renovável (gás, areias minerais, carvão, etc.) é um factor determinante nas
decisões de localização do investimento que faz sentido dentro de um quadro
estratégico corporativo de controlo e exploração dos recursos.

154 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 154 3/29/11 4:53 PM


A segunda linha de análise baseada em inquéritos foi desenvolvida por Ma-
camo (2000) e Bolnick (2004, 2009). Tirando ilações a partir de um inquérito
realizado a 33 investidores, Macamo mostra que 76% destes teriam realizado os
seus investimentos mesmo na ausência de incentivos fiscais.
A partir de um inquérito realizado a uma selecção aleatória de 60 empresas
que beneficiaram de incentivos fiscais no período de 2005 a 2007, Bolnick (2009)
analisa o impacto destes incentivos nas decisões de investimento destas empresas.
O estudo procura avaliar o impacto dos incentivos fiscais nas decisões de investi-
mento, formulando várias questões que permitem fazer uma verificação cruzada
da validade das respostas. As principais perguntas e resultados encontrados foram:

• Solicitadas a listarem os 3 factores mais preponderantes na sua decisão de in-


vestimento, apenas uma das 60 empresas mencionou incentivos fiscais.

• Quando perguntados sobre a importância que atribuíam aos incentivos fiscais,


16 respondentes (27%) consideraram como de importância crítica o acesso a
importações de bens de capital livres de direitos aduaneiros enquanto 10 (17%)
consideraram os incentivos fiscais relacionados com o rendimento como factor
crítico (em 7 casos, ambos os incentivos foram mencionados como críticos). Isto
sugere uma taxa de redundância de 83% para incentivos relacionados com o ren-
dimento e 73% para incentivos relacionados com isenção de direitos aduaneiros.

• Perguntados directamente se a empresa teria investido sem benefícios fiscais,


a redundância em relação aos incentivos relativos ao rendimento subiu para
78% (47 empresas) e baixou em relação às isenções de direitos aduaneiros na
importação de bens de capital para 67% (40 empresas).

• Muito poucos projectos que beneficiaram destes incentivos podem ser consi-
derados footloose – apenas 7 empresas (12%) consideraram outras opções para
além de Moçambique e destas nenhuma considerou incentivos fiscais como
relevantes.

Adicionalmente, conforme notado por Castro et al. (2009) e Kuegler (2009), no


caso do investimento estrangeiro é preciso ter em conta que, se a tributação dos seus
retornos obedecem a um regime global de impostos sobre os lucros no qual é conce-
dido um crédito de imposto compensatório pelos impostos pagos em Moçambique,

Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 155

Desafios.indb 155 3/29/11 4:53 PM


então qualquer benefício fiscal ao IRPC concedido pelo país irá aumentar os impos-
tos pagos no exterior, não representando qualquer incentivo ao investidor, e equiva-
lendo apenas a uma transferência de receita fiscal de Moçambique para o exterior.
Para além da evidência de que o impacto dos incentivos fiscais nas decisões
de investimento são marginais, é igualmente útil analisar que tipos de investi-
mentos são estimulados por estes incentivos. Isto é particularmente útil em face
do reforço deste pacote para os investimentos realizados nas ZFIs e nas ZEEs,
paralelamente ao crescente foco que a estratégia industrial atribui a estas Zonas.
Uma análise cruzada do pacote de incentivos fiscais com a informação microeco-
nómica patente em Bolnick (2009) sugere que a estrutura de incentivos favorece
investimentos capital-intensivos com pouco impacto no aumento do emprego.

DESAFIOS

Com vista a atacar o objectivo de expansão das receitas internas do país por
via das receitas fiscais, uma série de desafios se apresentam.
Primeiro, é preciso que esteja claro que os benefícios fiscais representam um
custo para o país. O facto de um projecto trazer vários benefícios líquidos para o país
não justifica automaticamente a concessão de benefícios fiscais. Só fará sentido incor-
rer em custos fiscais se a obtenção desses benefícios for dependente da concessão dos
benefícios fiscais. Num país que apresenta défices crónicos nas suas contas públicas, a
concessão de incentivos fiscais não pode ser feita de ânimo leve. Para que o país esteja
em condições de analisar a relevância dos incentivos fiscais, antes da sua concessão é
necessário desenvolver um conhecimento mais profundo da quantidade e qualidade
dos recursos que o país possui, o seu valor de mercado (actual e tendências futuras) e
os interesses e dificuldades dos potenciais investidores. Este conhecimento do valor
da riqueza do país é, em si, um factor de atracção do investimento, ao mesmo tempo
que permite o aumento do poder negocial do país. Quando aliado a uma maior cla-
reza do que o país pretende e pode obter da exploração das suas riquezas ao longo
do tempo, permite simultaneamente expandir os benefícios da sua exploração (por
exemplo, usando a informação sobre as tendências do valor da produção no mercado
para determinar o melhor momento para autorizar a exploração de determinados
recursos) e reduzir os custos fiscais (por exemplo, quanto mais rentável for o produto
no mercado, menos relevante se torna a concessão de incentivos fiscais).

156 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 156 3/29/11 4:53 PM


Segundo, é necessário ter sempre presente que tanto as riquezas naturais do
país como as receitas fiscais pertencem ao Estado (portanto, ao povo). Desta forma, a
concessão de incentivos fiscais bem como a concessão de direitos de exploração das
riquezas do país deve ser feita de forma transparente para que os cidadãos do país pos-
sam controlar o uso responsável do que lhes pertence. Isto é particularmente relevante
pelo facto de a concessão de benefícios fiscais e direitos de exploração das riquezas do
país se apresentar como uma moeda de troca que pode ser usada por pessoas ligadas
ao poder político para vender as riquezas do povo a preços irrisórios em troca de
ganhos pessoais (trocando as isenções fiscais pelo direito de se tornarem accionistas
das empresas beneficiárias, por valores monetários, etc.). Para um controlo efectivo, é
indispensável que a transparência abranja os critérios de atribuição destes incentivos, a
quantidade de riqueza gerada por estes projectos e o seu contributo para a economia.
Terceiro, os incentivos fiscais, mesmo que relevantes na atracção de inves-
timento, não devem perder o seu foco nos objectivos estratégicos de promoção
de emprego, aumento e diversificação da produção e exportações, formação da
mão-de-obra, desenvolvimento tecnológico, etc. Para tal, não basta tomar a deci-
são da sua concessão num determinado momento. É fundamental que o sistema
de concessão de incentivos fiscais esteja ligado a um sistema de monitoria de
desempenho determinante para a continuidade dos incentivos e os moldes da
sua concessão. Este sistema não só permitiria reduzir os custos fiscais para o país
como funcionaria como um mecanismo para estimular impactos mais positivos
dos projectos em relação a indicadores estratégicos de desenvolvimento.
Neste âmbito, e dado o enorme custo que os incentivos aos megaprojectos re-
presentam para o país paralelamente às evidências da sua irrelevância, é fundamental
que o governo aborde seriamente a possibilidade de renegociação dos contratos fir-
mados. Muitas vezes, tem sido argumentado que a renegociação iria implicar a dete-
rioração da imagem do país como destino para o investimento. Um dos problemas
com este argumento é o facto de assumir que a revisão dos incentivos seria imposta
pelo país aos investimentos em causa. Esta ideia entra em contradição com a noção do
termo renegociar. A renegociação significa que o resultado final é um acordo atingido
com base em discussões entre as partes sem entrar num processo litigioso. Cabe ao
governo desenhar e levar avante uma estratégia de renegociação dos contratos com os
megaprojectos (incluindo a formação de alianças estratégicas) fortemente suportada
por informação credível sobre os custos e rendimentos destes projectos e por expe-
riências de renegociação de contratos que ocorreram com sucesso em outros países.

Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 157

Desafios.indb 157 3/29/11 4:53 PM


A eliminação/redução dos benefícios fiscais deve abrir espaço para avaliação
da possibilidade de uma redução da carga fiscal geral sobre o rendimento das
empresas – sobretudo abordando a questão da dupla tributação dos rendimentos
(lucros e dividendos) – tornando-a mais atractiva para o investimento em geral e
menos discriminatória para as pequenas e médias empresas, livrando-as da situa-
ção caricata de “subsidiarem” parte dos benefícios aos grandes projectos.
Finalmente, uma expansão das receitas fiscais que seja sustentável a longo
prazo depende de como evolui a estrutura produtiva nacional. Desta forma, é
fundamental que as receitas arrecadadas sejam melhor aplicadas na promoção de
dinâmicas de expansão, diversificação e articulação da base produtiva.
Todos os desafios mencionados requerem uma base de informação extensa
e sólida. Neste contexto, a investigação joga um papel fundamental na abordagem
destes desafios. Portanto, a investigação também enfrenta uma série de desafios.
Em primeiro lugar, e mais directamente ligada à discussão central feita neste
artigo, é necessária a verificação dos resultados obtidos nesta análise através da
obtenção e uso dos dados primários em substituição da informação usada como
proxy. Estes incluem, entre outros, a evolução da massa tributável na economia e
no sistema tributário e a inclusão dos montantes dos incentivos fiscais concedidos
à Mozal (e a outros projectos que estejam eventualmente excluídos e que em con-
junto representem uma proporção significativa dos custos) na informação sobre o
custo dos incentivos fiscais.
É necessário desenvolver a análise sobre o potencial de evolução futura das
receitas fiscais tendo em conta as políticas fiscais e o padrão de crescimento da
economia. Aqui é particularmente relevante analisar em detalhe os possíveis im-
pactos da alteração do CBF nas receitas, sobretudo tendo em conta o aumento
dos benefícios fiscais atribuídos às ZFIs e ZEEs que têm ocupado um espaço
central nas estratégias de expansão da capacidade produtiva do país. Neste âm-
bito, é relevante a extensão e reforço da análise do impacto dos benefícios fiscais
em variáveis para além do impacto nas decisões de investimento. Tais variáveis
incluem a promoção de ligações produtivas, tecnológicas e pecuniárias, a promo-
ção do emprego e a diversificação da base produtiva. Para perceber e prever as
dinâmicas de evolução das receitas fiscais como proporção do PIB, é igualmente
necessário investigar a ligação entre o crescimento da economia e a evolução das
receitas fiscais. Isto exige análises a nível sectorial do contributo do desempenho
económico para o rácio RF/PIB. A execução desta análise requer um maior nível

158 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 158 3/29/11 4:53 PM


de desagregação dos dados – massa tributável, volume de receitas e de benefícios
fiscais, etc., a nível sectorial – o que constitui em si um enorme desafio.
Para além da redução dos benefícios fiscais, é importante explorar outras
fontes possíveis de receitas fiscais e não fiscais. Por exemplo, os impostos sobre o
uso da terra ou, como avançado por Bucuane e Mulder (2009), os impostos sobre
o uso de energia, ou ainda a dívida doméstica e externa e as parcerias público-
-privadas (analisadas no capítulo a seguir).
Para um entendimento mais profundo do impacto do sistema fiscal na economia
e melhoria da sua concepção e implementação tornando-o mais efectivo no processo
de desenvolvimento, é fundamental que seja estabelecida a sua ligação com o sistema
de despesas públicas. Isto é, como os incentivos fiscais e todo o pacote fiscal se conju-
ga com a promoção de investimento estratégico por via das despesas públicas? O que
determina as diferentes opções de arrecadação fiscal e de despesas? Quais as oportu-
nidades de tornar esta interacção mais benéfica para o desenvolvimento? Este é um
desafio complexo mas de relevância extrema para compreender, de forma mais ampla
e integrada, como as várias políticas e estratégias sectoriais, provinciais e nacionais se
fortalecem, anulam ou complementam para alcance dos objectivos de desenvolvimen-
to nacional e as oportunidades e desafios que daí emergem.

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Fiscal Incentives. Preparado pela Nathan Associates, Inc. para o Projecto de
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Expansão das Receitas Fiscais Desafios para Moçambique 2011 159

Desafios.indb 159 3/29/11 4:53 PM


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December.

160 Desafios para Moçambique 2011 Expansão das Receitas Fiscais

Desafios.indb 160 3/29/11 4:53 PM


FINANCIAMENTO DO ESTADO
COM RECURSO À DÍVIDA
PROBLEMAS E DESAFIOS

Fernanda Massarongo | Carlos Muianga

INTRODUÇÃO

Decorridos 35 anos de independência e quase duas décadas e meia após a


implementação dos programas de estabilização e ajustamento estrutural em Mo-
çambique, conduzidos pelo Banco Mundial (BM) e Fundo Monetário Internacional
(FMI), o Estado moçambicano tem vindo a registar défices orçamentais contínuos.
A eficácia do crescimento económico no alargamento da base fiscal (capa-
cidade do crescimento gerar receitas adicionais) tem sido bastante fraca, pelo que
as receitas fiscais e os donativos (principais fontes de financiamento da despesa
pública) não são suficientes para cobrir as necessidades de financiamento do Or-
çamento do Estado (OE), levando à necessidade permanente de recorrer a formas
alternativas de mobilização de recursos.
A fraca capacidade de retenção da riqueza gerada no país, em consequência
da estrutura dos padrões de crescimento e de acumulação económica, associada
ao elevado nível de dependência externa, resulta numa dinâmica fiscal caracteri-
zada por um crescimento lento das receitas fiscais (Castel-Branco, 2010a; Castel-
-Branco e Ossemane, 2009). Consequentemente, há uma limitada capacidade (e
compromisso) de, económica, política e institucionalmente, o Estado decidir so-
bre a mobilização e alocação produtiva e eficiente dos recursos para financiar a
diversificação da base produtiva nacional.
Portanto, diante de tal dinâmica fiscal, o governo centra a sua estratégia em
medidas capazes de garantir estabilidade a curto prazo, com enfoque na mobiliza-
ção de ajuda e endividamento externo e interno. Consequentemente, estas medidas
tendem a “alimentar” o padrão de acumulação vigente, limitando as possibilidades
de transformação e de diversificação económica, capazes de gerar mais recursos.

Financiamento do Estado Desafios para Moçambique 2011 161

Desafios.indb 161 3/29/11 4:53 PM


Por seu turno, esta capacidade de mobilizar recursos alternativos suficientes
para o financiamento do OE num determinado período, e com foco na estabilidade
a curto prazo, é conotada como sucesso atingido, marginalizando-se as implicações
que tais formas de financiamento têm sobre a economia a médio e longo prazos.
Adicionalmente, num período em que a crise da dívida pública constitui um
dos principais problemas a nível internacional, com efeitos sobre a estabilidade
económica a nível de vários países, algumas pressões têm contribuído para tornar
o debate sobre o financiamento do Estado um assunto relevante:

• A primeira é a mais recente preocupação dos parceiros internacionais com


a estabilidade macroeconómica e gestão da dívida, em consequência do
recurso a créditos não concessionais para financiar o investimento público,
e o possível impacto sobre a estratégia de realização da despesa pública
(Castel-Branco, 2010a);

• A segunda é o questionamento sobre os indicadores de sustentabilidade da


dívida (e a sua qualidade de expressar a real capacidade de endividamento
do país), com os quais o governo argumenta capacidade de endividamen-
to sem riscos de insustentabilidade, num país cujo padrão de crescimento
reproduz elevados níveis de porosidade, com fracas, ou quase inexistentes,
ligações intersectoriais (Ossemane, 2010);

• A terceira é que caminha-se para a terceira década em que a ajuda externa


(donativos e empréstimos externos concessionais) financia cerca de metade
da despesa pública, o que coloca questões sobre até que ponto os recursos
da ajuda são usados para financiar projectos produtivos e capazes de gerar
retornos a curto e médio prazos e com impacto estruturante nos padrões
sociais de produção, comércio e consumo.

• E, por fim, ligado à terceira, há probabilidade de estagnação ou declínio dos flu-


xos de ajuda externa a médio e longo prazos, o que exige um maior foco na mo-
bilização de recursos fiscais (e não só), particularmente, por via da redução dos
incentivos fiscais ao grande capital multinacional (Rosa, 2010; UNCTAD, 2010).

Neste contexto, o presente artigo procura reflectir sobre a problemática e


os desafios do financiamento do Estado com recurso ao endividamento, com

162 Desafios para Moçambique 2011 Financiamento do Estado

Desafios.indb 162 3/29/11 4:53 PM


enfoque nos empréstimos concessionais (EC), empréstimos não-concessionais
(ENC) e dívida pública interna mobiliária (DPIM), analisando as implicações
económicas e ligação com os padrões e dinâmicas de crescimento e acumulação
económica e fiscal.1
Para além desta secção introdutória, a segunda secção traz um breve olhar
sobre a evolução do DO e suas fontes de financiamento. A terceira secção analisa
a problemática do endividamento no financiamento do Estado. Por fim, a quarta
secção faz uma reflexão em volta dos desafios do financiamento do Estado no
contexto da ampliação, diversificação e articulação da base produtiva, comercial e
de investimento em Moçambique.

DÉFICE ORÇAMENTAL E FONTES DE FINANCIAMENTO

Há mais de duas décadas que Moçambique vem registando défices contínuos


e mecanismos de financiamento excessivamente dependentes de ajuda externa
(donativos e EC).
Os gráficos 1 e 2 mostram a evolução do défice orçamental (DO) e suas
fontes de financiamento em milhões de meticais e em percentagem do Produto
Interno Bruto (PIB) entre 1985 e 2011.2 Em termos absolutos, o DO em Moçam-
bique evoluiu no sentido indutivo, isto é, partindo de um ponto mínimo, foi-se
alargando ao longo do tempo e com aumentos rápidos nos três últimos anos. O
mesmo cenário verifica-se com as principais fontes de financiamento que, depois
dos primeiros seis anos (1985-1990), foram crescendo em termos absolutos, dada
a necessidade de financiar um Estado cada vez mais deficitário.

1

Importa referir que, neste artigo, o Orçamento do Estado é usado como proxy do financiamento
ao Estado, uma vez que este é o instrumento básico da actividade financeira do Estado e agrega
a maioria das transacções desta entidade. Claramente, é necessário ter em conta que a actividade
financeira do Estado inclui outras operações que não são inscritas directamente no orçamento
como é o caso das chamadas despesas extra-orçamentais, dos orçamentos das empresas públicas,
autarquias e outras instituições com autonomia administrativa e financeira.
2
Importa realçar que a análise é feita em termos nominais e com base nos dados oficiais do
Instituto Nacional de Estatística (INE) e da Conta Geral do Estado (CGE), o que, em si, e neste
contexto, constitui um problema devido à variabilidade da estrutura de preços na economia ao
longo do período em análise. Contudo, esforços foram feitos na tentativa de deflacionar os dados
e, com base nos dados reais do FMI, constatou-se um comportamento quase similar quando
comparados com os dados nominais usados no artigo. Portanto, estando numa fase inicial, há
que tomar mais em conta a análise em termos de problemática e desafios do financiamento do
Estado e do DO em particular.

Financiamento do Estado Desafios para Moçambique 2011 163

Desafios.indb 163 3/29/11 4:53 PM


GRÁFICO 1 DÉFICE ORÇAMENTAL E FONTES DE FINANCIAMENTO EM MILHÕES DE METICAIS (1985-2011)

40.000
30.000
20.000
10.000
Milhõe de Meticais

0
-10.000
-20.000
-30.000
-40.000
-50.000
-60.000
-70.000

2010*
2011*
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
Défice orçamental Empréstimos externos líquidos
Créditos internos líquidos Donativos
* Previsão
FONTE INE (vários anuários); Governo de Moçambique (vários anos); República de Moçambique 2010 e 2011

GRÁFICO 2 DÉFICE ORÇAMENTAL E FONTES DE FINANCIAMENTO EM PERCENTAGEM DO PIB (1985-2011)

20%

15%

10%

5%

0%

-5%

-10%

-15%

-20%

-25%

-30%
2010*
2011*
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009

Empréstimos externos líquidos Créditos internos líquidos * Previsão


Donativos Défice orçamental

FONTE INE (vários anuários); Governo de Moçambique (vários anos); República de Moçambique 2010 e 2011

Como proporção do PIB, o DO registou uma relativa oscilação durante o pe-


ríodo em análise, apresentando valores consideravelmente elevados nos primeiros
anos, abrandando nos anos intermédios e mostrando certa tendência de voltar aos

164 Desafios para Moçambique 2011 Financiamento do Estado

Desafios.indb 164 3/29/11 4:53 PM


níveis iniciais nos últimos anos. Tal como se pode verificar no gráfico 2, de cerca
de 7,5% do PIB em 1985, o DO cresceu para cerca de 30% em 1990, baixando
acentuadamente para cerca de 13% em 1991, e mantendo-se à volta deste valor
nos três anos seguintes. Depois de atingir cerca de 19% em 1994, reduziu nova-
mente, para cerca de 9% em 1996, tendo, em 2001 e 2002, aumentado para cerca
de 17,2% e voltando a reduzir para cerca de 10,8% em 2006. Desde então, o DO
(em percentagem do PIB) tem vindo a crescer, prevendo-se que em 2010 e 2011
se situe em cerca de 21% e 19%, respectivamente.3
Importa referir que o elevado peso do DO sobre o PIB, nos finais dos anos
80 e princípios dos anos 90 (gráfico 2), esteve ligado, de uma maneira geral, aos
seguintes factores: (i) as dificuldades enfrentadas pelo sector produtivo, que não
permitiam aumentar a sua participação nas receitas fiscais; (ii) a ineficiência na
cobrança de receitas, com efeitos sobre evasões fiscais, e (iii) as pressões sobre o
sector público para o alargamento do programa de investimentos, para fazer face
às necessidades de reconstrução nacional pós-conflito, bem como do funciona-
mento normal do aparelho do Estado e da necessidade de prover infra-estruturas
como forma de induzir o crescimento do sector privado (Gobe, 1994).
Por seu turno, do total do financiamento ao DO, os recursos externos (dona-
tivos e empréstimos externos) têm sido dominantes, financiando, em média, cerca
de 50% da despesa pública total e 96,7% do DO ao longo do período em análise
(gráficos 2, 3 e 4).4 Este cenário demonstra o excessivo grau de concentração das
fontes de financiamento do DO, para além da vulnerabilidade inerente à depen-
dência externa no financiamento do Estado e da economia nacional.5
Olhando para o padrão de financiamento da despesa pública (gráfico 4), po-
de-se notar a ausência de uma tendência clara de desenvolvimento de capacidades
de auto-financiamento por parte do Estado. O aumento do peso da receita pública
no financiamento da despesa total não tem sido contínuo, mostrando oscilações
ao longo do período em análise. Por sua vez, nos anos de reduzido peso da ajuda
externa (derivado da redução dos empréstimos externos), há uma complementa-
ridade dos créditos internos.

3
A presente previsão baseia-se nos dados da lei orçamental, conciliados com a taxa de crescimento
de 6,5% (FMI, in Jornal a Verdade, 16 de Junho de 2010) do PIB para 2010.
4
Cálculos baseados nos dados do INE (vários anuários) e CGE (vários anos).
5
Para além de a ajuda externa financiar quase metade da despesa pública total, os fluxos externos
de capital privado (IDE e Empréstimos) financiam cerca de 80% do investimento privado total
(Castel-Branco, 2010a).

Financiamento do Estado Desafios para Moçambique 2011 165

Desafios.indb 165 3/29/11 4:53 PM


GRÁFICO 3 FONTES DE FINANCIAMENTO DO DÉFICE ORÇAMENTAL (1985-2011)

140%
120% 42%
% do Défice Orçamental

2% 6% 2% 3% 1% 1% 2%
100% 8% 8% 10% 11% 32%
14%
42%
29% 23% 25% 13% 17% 31% 30% 42% 42% 34% 23% 16%
35% 23% 29%
80% 33%
33% 43% 41% 39% 38%
35% 30%
67%
60% 36%
45% 94%
40% 75% 79% 77% 72% 76% 70% 71% 74% 74% 72%
81% 75%
71%
58% 65% 57% 63% 64%
54% 58% 62% 56% 60%
20% 26%
20% 41%
13%
0% -11% -13% -5% -1% -13%
-3% -6% -6%
-20% -36%

-40%

2010*
2011*
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
Donativos (% do Défice Orçamental) FONTE INE (vários anuários);
Empréstimos Externos Líquidos (% do Défice Orçamental) Governo de Moçambique (vários anos);
República de Moçambique 2010 e 2011
crédito Interno Líquido (% do Défice Orçamental)
* Previsão

GRÁFICO 4 FONTES DE FINANCIAMENTO DA DESPESA PÚBLICA (1985-2011)

140%
120%
% do Défice Orçamental

5% 1% 0% 0% 4% 3%
1% 1% 6% 6% 0% 17% 0.5% 0% 7% 1%
100% 11% 13% 13% 10% 15%
17% 9% 19% 16% 20% 21% 18% 16% 13% 10%
8% 17% 18% 17%
18% 21% 15%
80% 17% 38%
21% 39% 34%
28% 31% 40% 33% 27%
10% 40% 45% 40% 41% 34% 35% 36% 28% 30% 37%
60% 32% 34% 33% 45% 45% 29%
11% 23% 32%
8%
40%
63% 56% 52% 59% 58% 56%
20% 43% 43% 45% 48% 43% 47% 43% 47% 37% 47% 51% 50% 46% 40% 40% 50% 52% 52% 47% 49% 55%

0% -1% -15% -5%


-2% -3%
-6% -6% -2% -3%
-20%
-40%
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010*
2011*

Receitas Públicas Donativos FONTE INE (vários anuários);


Governo de Moçambique (vários anos);
Empréstimos externos líquidos Crédito Interno Líquido República de Moçambique 2010 e 2011
* Previsão

Este padrão de financiamento da despesa pública liga-se às medidas que foram


sendo implementadas a partir de meados da década de 80. Como tal, a partir de
1987, com a implementação dos Programas de Ajustamento Estrutural, os donati-
vos passaram a constituir prioridade no financiamento do DO. Ao mesmo tempo,
os EC, pela sua natureza de reembolso (taxas de juro abaixo das taxas de mercado e
períodos de reembolso relativamente longos), também foram ganhando espaço no
financiamento do défice, relegando para o terceiro plano o recurso a créditos inter-
nos. A partir de 1999, com a criação da Bolsa de Valores de Moçambique (BVM), o

166 Desafios para Moçambique 2011 Financiamento do Estado

Desafios.indb 166 3/29/11 4:53 PM


recurso ao financiamento interno da despesa pública ganhou impulso, por meio de
emissões de Bilhetes e Obrigações de Tesouro junto dos agentes económicos priva-
dos (sobretudo os bancos comerciais). Importa referir que, para além destas fontes
financiamento ao OE, o país ainda continua beneficiando de alívios de dívida, que
são uma espécie de ajuda ao orçamento, na medida em que libertam recursos que
podem ser utilizados na realização de outras despesas.
Por sua vez, a dependência da despesa pública em relação aos recursos exter-
nos (donativos e empréstimos externos) liga-se a uma dinâmica fiscal caracteriza-
da por (i) um crescimento lento das receitas públicas (com tendências periódicas
de estagnação), (ii) concentração das fontes de recursos fiscais em impostos sobre
bens e serviços importados e sobre rendimento pessoal, (iii) fraca capacidade de
captação de receitas dada a fraqueza da estrutura produtiva e comercial, (iv) limi-
tações administrativas e os benefícios fiscais redundantes concedidos aos mega-
projectos (Byiers, 2005; Castel-Branco, 2010a; Castel-Branco e Ossemane, 2009).

FINANCIAMENTO DO ESTADO COM RECURSO AO


ENDIVIDAMENTO E SUAS IMPLICAÇÕES ECONÓMICAS

A secção anterior descreveu até que ponto o DO em Moçambique se vem


mantendo, sem mostrar uma tendência clara de melhoria.
Estas constatações são, até certo ponto, o reflexo da concentração do padrão
de acumulação e crescimento económico e da excessiva dependência de fluxos ex-
ternos de capitais (ajuda externa e investimento directo estrangeiro - IDE). Tais flu-
xos tendem a compensar a concessão de elevados benefícios fiscais que, para além
de serem redundantes e inapropriados, reduzem a possibilidade de o Estado arreca-
dar mais receitas fiscais (Castel-Branco, 2010a; Castel-Branco e Ossemane, 2009).
Portanto, dadas as características da economia (limitada capacidade de retenção da
riqueza gerada), traduzidas no OE pela fragilidade na arrecadação de receitas, o endivi-
damento externo (em regime de concessionalidade e não concessionalidade) e interno,
e em ligação com as PPPs6, surgem como alternativas aos donativos e receitas públicas.

6
As PPPs têm sido normalmente privilegiadas na provisão, desenvolvimento e gestão de
infra-estruturas económicas e sociais e serviços associados Esta informação é consistente
com o discurso do recentemente empossado presidente do concelho de administração da
Administração Nacional de Estradas (ANE). Segundo este, todas as estradas estratégicas do

Financiamento do Estado Desafios para Moçambique 2011 167

Desafios.indb 167 3/29/11 4:53 PM


A questão que se coloca é até que ponto esta opção de financiamento do Estado
com base no endividamento se liga com o objectivo de criação de um espaço fiscal mais
amplo e capaz de financiar parte considerável da despesa pública e, ao mesmo tempo,
reduzir o impacto negativo que estas formas de financiamento têm sobre a economia?
Estas possibilidades, associadas à concentração da base produtiva da econo-
mia e a dificuldade em alargar o espaço fiscal (por exemplo, a partir da redução
dos incentivos fiscais aos megaprojectos) para financiar a despesa pública, de-
monstram a vulnerabilidade inerente ao financiamento do Estado em Moçambi-
que, levando à necessidade de uma reflexão sobre opções, problemas e os desafios.

A DÍVIDA PÚBLICA EXTERNA


A contracção de empréstimos externos junto das principais instituições mul-
tilaterais (FMI e BM) e parceiros bilaterais foi sempre uma das principais fontes
de financiamento do Estado, por via do orçamento.
Com a introdução dos programas de ajustamento estrutural em meados da
década de 80, a política de endividamento em Moçambique passou a dar priori-
dade à contracção de EC, o que contribuiu para o crescimento da proporção da
dívida para com as principais instituições multilaterais, que eram os financiadores
do programa do governo (GMD, 2004).
Os EC, desde a sua introdução na política de endividamento do país, pas-
saram imediatamente a constituir a segunda principal fonte de financiamento do
DO, depois dos donativos. O seu peso no financiamento do défice mostrou uma
certa oscilação ao longo do período em análise, financiando em média cerca de
32% do DO e 16% da despesa pública (gráficos 3 e 4).
Em 1985, os empréstimos externos constituíam cerca de 45% do financiamento
ao DO, tendo reduzido para cerca de 20% no ano seguinte, ponto a partir do qual
aumentaram para 36%, voltando a reduzir ligeiramente nos anos seguintes, chegando
a cerca de 13% em 1992 (valor mais baixo até então registado). Posteriormente, o seu
peso variou entre os 30% e 40%, até atingir cerca de 23% e 16% em 2000 e 2001, respec-
tivamente. Nos anos seguintes, os empréstimos externos voltaram a crescer, situando-se
entre os 35% e 42% entre 2002 e 2006, tendo, a partir de então, reduzido para os 23% em
2008, com uma previsão de 29% e 30% para 2009 e 2010, respectivamente (gráfico 3).

país serão concessionadas a privados de modo a garantir a sua manutenção periódica, o que
demonstra, de alguma forma, a incapacidade do Estado responder aos desafios que a rede infra-
estrutural coloca para o país.

168 Desafios para Moçambique 2011 Financiamento do Estado

Desafios.indb 168 3/29/11 4:53 PM


Um importante aspecto que se deve notar destes períodos de oscilação é uma
fraca relação com a evolução das receitas, e uma relação comparativamente mais
notável com a evolução dos donativos. O ponto é que os anos de queda dos emprés-
timos externos não reflectiram necessariamente aumentos na receita pública, signi-
ficando, em alguns momentos, aumento nos donativos e/ou empréstimos internos.
Este aspecto é importante do ponto de vista analítico de finanças públicas,
pois confirma a manutenção da dependência ao longo do tempo, em que a pre-
sença ou não de donativos é o principal determinante da contracção de emprésti-
mos e não necessariamente o factor impulsionador da dinâmica fiscal. Portanto, a
dependência mantém não apenas a sua proporção ao longo do tempo (o que por
si só não constitui problema), mas também o seu padrão, em que a variabilidade
continua a não ser determinada pela dinâmica fiscal interna.
Por outro lado, em termos de valores absolutos, verifica-se uma clara tendên-
cia de crescimento dos empréstimos externos,de cerca de 5 milhões de meticais
em 1985, para cerca de 7.125 milhões de meticais em 2008, prevendo-se para 2009
e 2010 cerca de 14.964 e 18.241 milhões de meticais, respectivamente (gráfico 1).
Porém, contrariamente a este crescimento dos empréstimos externos, veri-
fica-se uma tendência de redução da Dívida Pública Externa (DPE) nos últimos
anos, quer em valores absolutos, quer em proporção do PIB e das receitas públicas
(gráfico 5 e 6). Tal tendência liga-se, principalmente, às iniciativas de perdão de
dívida de que o país vem beneficiando e não necessariamente a uma melhoria da
performance macroeconómica. Este facto coloca o país abaixo dos níveis de insus-
tentabilidade da dívida definidos para países de baixo rendimento7 (cerca de 36%
em proporção do PIB e 218% das receitas públicas em 2008) (gráfico 6).
Ligado ao aspecto da sustentabilidade, e face à insuficiência das fontes tradicio-
nais de financiamento ao OE, está o facto de, até 2013, o Governo de Moçambique
(GdM) poder contrair empréstimos não concessionais (ENC) no valor de U$D 900
milhões junto a credores bilaterais.8 Segundo o GdM, este montante é o máximo pos-
sível para manter a estabilidade macroeconómica e serviço da dívida externa e destina-

7
LIC DSF- Low Income Countries Debt Sustainability Framework. No que diz respeito aos
limites de sustentabilidade definidos pelo LIC DSF, os rácios valor actual da dívida sobre o PIB
e Receitas Públicas deverão ser menores ou iguais a 40% e 250%, respectivamente, e o serviço da
dívida, em termos de receitas fiscais, deverá situar-se nos 11%.
8
Deste montante, cerca de 300 milhões já foram concedidos pelo Brasil em 2010 e destinam-se à
construção do aeroporto de Nacala (U$D 80 milhões) e modernização do porto da Beira (U$D
220 milhões) (O País, 05/01/11).

Financiamento do Estado Desafios para Moçambique 2011 169

Desafios.indb 169 3/29/11 4:53 PM


-se ao financiamento dos vários projectos de desenvolvimento sócio-económico, com
destaque para as infra-estruturas (água, electricidade, estradas, pontes, portos, etc.).9

GRÁFICO 5 STOCK DA DPE EM MILHÕES DE METICAIS (1985-2008)

110.000
100.000
90.000
80.000
70.000
60.000
50.000
40.000
30.000
20.000
10.000
0
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
DPE (milhões de Meticais) FONTE Banco de Moçambique, 2010

GRÁFICO 6 STOCK DA DPE EM PERCENTAGEM DO PIB E DAS RECEITAS PÚBLICAS (1985-2008)

2.250%

2.000%
% do PIB e das Receitas Públicas

1.750%

1.500%

1.250%

1.000%

750%

500%

250%

0%
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008

Dívida Pública Externa (% do PIB) FONTE INE (vários anuários);


Dívida Pública Externa (% das Receitas Públicas Totais) Governo de Moçambique (vários anos)

9
Questionado se esta medida não iria agravar a dívida externa do país, o ministro das Finanças, Manuel
Chang, disse que o recurso àquele tipo de fontes de financiamento não tradicionais não iria representar
mais um agravamento da dívida externa moçambicana, porque “será avaliado em função das prioridades
para a realização de projectos de investimento com taxas de retorno económico e financeiro elevadas e
com capacidade de gerar rendimentos para sustentar a amortização dos créditos contraídos (Correio da
Manhã, 15/06/10 e 16/06/10; Savana, 2010). Do ponto de vista político, este argumento faz sentido.
Contudo, do ponto de vista social, qual é a relevância dos projectos de investimento com altas taxas de
retorno, se os mesmos só podem gerar tal retorno se estiverem ligados aos grandes projectos de IDE
(com os já referidos problemas de porosidade da economia moçambicana)?

170 Desafios para Moçambique 2011 Financiamento do Estado

Desafios.indb 170 3/29/11 4:53 PM


A DÍVIDA PÚBLICA INTERNA MOBILIÁRIA
A Dívida Pública Interna Mobiliária (DPIM) corresponde à emissão de títu-
los de dívida por parte do governo aos agentes privados residentes, geralmente por
intermédio dos bancos comerciais. Em Moçambique, os títulos de dívida emitidos
subdividem-se em Obrigações do Tesouro (OTs) e Bilhetes do Tesouro (BTs). As
OTs são títulos de dívida de médio e longo prazo, emitidos para financiar défices
orçamentais, e os BTs são títulos de curto prazo, emitidos para financiar défices
de tesouraria, resultantes do atraso de verbas para financiar as despesas planeadas
num determinado período.10 No conjunto da DPI, a DPIM é a que financia direc-
tamente as despesas do Estado, sendo o restante constituído pela dívida assumida
pelo Estado, ou seja, aquela em que este é mero avalista de terceiros, a chamada
dívida garantida (Direcção Nacional do Tesouro (DNT), 2009).
O financiamento mobiliário é relativamente recente em Moçambique, tendo
iniciado em 1999 (CGE, 1999) com a criação da BVM.11 Porém, constrangido pelas
pressões que a emissão de títulos de dívida pública coloca sobre a economia, esta
fonte de financiamento foi sempre considerada terciária, relativamente aos emprésti-
mos externos e donativos. Tais pressões estão ligadas ao enxugamento de crédito na
economia, pois, dada a sua rentabilidade, estes títulos tendem a ter elevada procura.
Consequentemente, há uma pressão sobre as taxas de juro, levando ao encarecimento
do serviço da própria dívida, uma vez que esta é indexada a taxas de juro de mercado.12
Ainda com tais constrangimentos, o uso da DPIM foi-se tornando frequente,
especificamente a partir do ano 2000, contrariando a intenção do governo de mini-
mizar a recorrência a esta fonte de financiamento. O gráfico 9 mostra que o stock
DPIM foi crescendo rapidamente. De cerca de 60 milhões de meticais em 1999,

10
Governo de Moçambique: Decreto no 22/2004 de 7 de Julho, sobre o Regime Jurídico dos
Bilhetes do Tesouro. Boletim da República. I Série, Número 27, República de Moçambique. 2004
11
O financiamento mobiliário nas modalidades actuais foi inicialmente feito em 1999. Porém, dados
das estatísticas oficiais (INE) indicam a existência de stock de OTs no ano de 1990.
12
A pressão para o aumento das taxas de juros ocorre porque a venda de títulos públicos representa a
procura de crédito pelo sector público. Assim, dado o aumento da procura por este recurso, e visto que
o seu preço é a taxa de juro, esta tenderá a aumentar. Adicionalmente, o elevado nível de rendibilidade
dos títulos públicos leva a que seja desviado crédito para a sua aquisição. Desta maneira sobra, ao sector
privado, uma menor proporção de recursos financeiros para os quais diferentes agentes competem para
financiar as suas actividades, colocando outro tipo de pressão sobre o juro. De uma maneira clássica,
este mecanismo de transmissão explica-se pelo facto de a oferta de títulos públicos levar à redução
do seu preço, o que, por sua vez, tem relação inversa com a taxa de juro. Porém, a aplicabilidade deste
mecanismo é discutível, uma vez que, por natureza, os padrões, as estruturas produtivas e as pressões e
interesses à sua volta não são homogéneos.

Financiamento do Estado Desafios para Moçambique 2011 171

Desafios.indb 171 3/29/11 4:53 PM


passou para cerca de 6 mil milhões de meticais em 2004, prevendo-se que o stock se
aproxime dos 13 mil milhões de meticais em 2010, o que também contraria as pre-
visões da DNT de tendência de decréscimo da dívida a partir de 2007 (DNT, 2008).
Este contraste, entre o desejo de emissão mínima de DPIM e a previsão do
seu decréscimo (DNT, 2008), mostra uma certa vulnerabilidade das contas públi-
cas nacionais. O ponto é que tais previsões não estiveram alinhadas com uma es-
tratégia de crescimento das receitas públicas e, portanto, aumento de capacidade
de auto-financiamento do Estado, mas, sim, ligaram-se a uma estratégia de prio-
rização de donativos e EC. Assim, em períodos de não alocação de ajuda externa
suficiente ao OE, ou mesmo em caso de atraso de verbas, o recurso primário tem
sido a dívida interna, via emissão de títulos do tesouro.13
Dos factores por detrás da emissão da DPIM destaca-se a incapacidade de
mobilização de recursos (externa e internamente) suficientes para financiar a reca-
pitalização dos bancos comerciais nos quais o Estado tinha participação, o que le-
vou a emissão de OTs nos primeiros anos da década de 2000. Até ao ano de 2002
foram emitidas OTs 2000, 2001 – I série, OTs BAÚ (2001-II, 2002-I e III séries) e
OTs 2002-II série, com valores, respectivamente de, 745, 234, 2.356 e 100 milhões
de meticais (DNT, 2009; Massarongo, 2010a e 2010b).
Destas obrigações, as OTs 2000, com prazo de 10 anos, foram amortizadas an-
tecipadamente, com a emissão de duas obrigações nos anos de 2004 e 2005 (no valor
de 250 e 496 milhões de meticais respectivamente). O mesmo cenário ocorreu com
as OTs BAU, e as OTs 2002-II série. Para além destes factores, a necessidade de reca-
pitalização do Banco de Moçambique, por conta de prejuízos resultantes da flutuação
cambial, levou à emissão de obrigações entre 2005 e 2007, que totalizaram cerca de
4.500 milhões de meticais (DNT, 2009 e BVM, 2009, Massarongo, 2010a e 2010b).
Em 2005, o DO resultante da ausência de recursos suficientes para financiar a
despesa pública levou a que fossem emitidas obrigações no valor de 1.667 milhões
de meticais. Parte destas obrigações foi paga pela emissão de OTs no valor de 350
e 290 milhões de meticais em 2008 e 2009, respectivamente (DNT, 2009 e BVM,
2009). Para além destas obrigações, segundo o Relatório sobre Análise da Susten-
tabilidade da Dívida Pública de Moçambique de 2010, em 2009 foi emitida dívida
interna de curto prazo, com vista a fazer face aos efeitos da crise financeira global,

13
Esta prática tem sido frequente nos países da África subsaariana que, com mercados de
capitais relativamente subdesenvolvidos, a única alternativa à falta de ajuda e créditos externos
concessionais tem sido a contracção de dívida internamente (Kahn, 2005).

172 Desafios para Moçambique 2011 Financiamento do Estado

Desafios.indb 172 3/29/11 4:53 PM


elevando o stock da dívida para cerca de 14.429 milhões de meticais.14 Por sua vez,
foram previstas, para 2010, emissões de OTs no valor de cerca de 5 mil milhões de
meticais, o que constituiria a soma mais avultada de OTs até então emitidas, com
vista a fazer face ao DO verificado após a ajuda externa.15
Por seu turno, os BTs são, geralmente, emitidos para efeitos de política mo-
netária, podendo o governo solicitar a sua emissão para fazer face a défices de te-
souraria, cabendo a este o pagamento do serviço da dívida derivada (amortização
de capital e pagamento de juros). Embora estes títulos venham sendo emitidos
em alguns anos, geralmente não constam no stock da dívida, por serem de prazo
inferior a um ano, porém, o seu serviço em termos de juros é contabilizado.16
O gráfico 7 mostra que a DPIM, para além de ter registado uma tendência cres-
cente em valor absoluto, em quase todo o período em análise, registou também uma
tendência crescente quando medida em termos dos diferentes indicadores económi-
cos de sustentabilidade (em proporção das receitas púbicas e do PIB) nos primeiros
cinco anos. Embora entre 2005 e 2009 a DPIM tenha registado uma tendência decres-
cente (de cerca de 39% das receitas públicas para 15%, e de cerca de 4,9% do PIB para
2,7% entre 2004 e 2009), os dados mostram que a previsão de emissão de OTs no va-
lor de 5.000 milhões de meticais poderia reverter o peso do stock da dívida em termos
destes indicadores para cerca de 16% das receitas públicas e 3,3% do PIB para 2010.
Portanto, o que se pode concluir da evolução da DPIM ao longo do tempo
é que o seu uso como fonte de financiamento ao OE, ainda com os já conheci-
dos impactos adversos sobre a economia (crowding-out do investimento privado
e elevado serviço da dívida), é consequência da vulnerabilidade derivada da de-
pendência da ajuda externa para financiar a despesa pública. Adicionalmente, o
prolongamento do stock desta dívida é evidente, visto que, nos últimos anos, houve

14
Pode-se ler no relatório: “…No entanto, não houve emissão de dívida de curto prazo para efeitos
de política fiscal exceptuando as emissões ocorridas em 2009, motivadas pela necessidade de
estimular a recuperação da economia após o efeito da crise financeira global que afectou a
demanda de exportações em Moçambique.” (Ministério das Finanças, 2010)
15
Deste valor, já foram apenas emitidas OTs no valor de 1.500 milhões de meticais em Agosto de
2010. Contudo, há um certo cepticismo relativamente à emissão das restantes OTs, uma vez que,
até Novembro de 2010, a data para a emissão da segunda série de OTs, que havia sido prevista
para o mês de Outubro de 2010, ainda não tinha sido determinada. As razões por detrás deste
cepticismo estão ligadas às elevadas taxas de juro e aos problemas de liquidez que vêm sendo
sentidos no mercado nacional.
16
Este pode ser conotado como uma deficiência na prestação de contas públicas, pois seria
prudente, do ponto de vista de partilha de informação com a sociedade civil, que esta informação
estivesse disponível para o público.

Financiamento do Estado Desafios para Moçambique 2011 173

Desafios.indb 173 3/29/11 4:53 PM


uma tendência para emissão de OTs com vista a amortizar a dívida mobiliária
previamente contraída.

GRÁFICO 7 STOCK DA DPIM EM MILHÕES DE METICAIS E EM PERCENTAGEM DO PIB E DAS RECEITAS PÚBLICAS

40% 18.000

35% 16.000
% PIB e das Receitas Públicas

30% 14.000

Milhões de Meticais
12.000
25%
10.000
20%
8.000
15%
6.000
10% 4.000
5% 2.000
0% -
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010*

DPIM (% PIB) DPIM (% das Receitas Públicas) FONTE INE (vários anuários);
Governo de Moçambique (vários anos);
Stock da DPIM (milhões de Meticais) * Previsão
Ministério das Finanças, 2010

IMPLICAÇÕES
Alguns dos efeitos directos do uso do endividamento para financiar o orça-
mento são os encargos públicos resultantes, que implicam o desvio de recursos
que poderiam ser usados para a realização de outras despesas, devido ao paga-
mento de juros e de capital da dívida (gráficos 8 e 9). Por outro lado, há uma
possibilidade de redução da flexibilidade de intervenção do Estado para realizar
despesas. A questão que se coloca é: diante das novas contracções de dívida co-
mercial, até que ponto poderão ser mantidos os níveis decrescentes de carga de
liquidez derivados do serviço da dívida?
No caso do endividamento interno, dada a sua indexação às taxas de juro
de mercado, tem resultado em elevados encargos para o Estado. Isto é, com o
aumento do stock da dívida, espera-se que os gastos com juros venham a crescer
significativamente. Estes juros, provavelmente, agravar-se-ão ainda mais com as
medidas de aumento das taxas de juros e de redução de liquidez que vêm sendo
levadas a cabo pelo Banco de Moçambique, com vista a conter as pressões infla-
cionárias que a economia vem experimentando.17

17
Em 2010 o Banco de Moçambique aumentou a taxa de incidência das reservas obrigatórias por
duas vezes consecutivas, uma em Abril de 2010 em 0,5% e posteriormente em Setembro de 2010
em 0,25%, passando para 8,75%. Esta medida afectou, de alguma forma, a disponibilidade de

174 Desafios para Moçambique 2011 Financiamento do Estado

Desafios.indb 174 3/29/11 4:53 PM


No que respeita aos empréstimos externos, embora sejam ainda adquiridos em
regime concessional, há que considerar que representam um aumento da dívida e
têm juros a serem pagos. Assim, ainda que as taxas de juro sejam baixas, se estive-
rem a incidir sobre uma base mais alargada da dívida, o valor do seu serviço será
elevado. Porém, há que reconhecer que a incapacidade de gerar um nível de retorno
que supere os custos altamente subsidiados dos EC é mais um problema de gestão
da aplicação desses fundos e de estratégia de desenvolvimento do país do que da
fonte em si. Além disso, o serviço da DPE é vulnerável às flutuações cambiais, de tal
maneira que o mesmo tende a elevar com a depreciação do metical.
Por sua vez, a contracção de ENC implica necessidades adicionais de finan-
ciamento, face aos encargos daí resultantes (principalmente se os empréstimos
não gerarem retorno maior que o custo). Assim, partindo da análise de Staines e
Nucifora (2010), é possível identificar três cenários:

• Aumento substancial da Dívida Pública Interna (DPI) e do custo de juros, o


que pode levar a outro financiamento adicional, incrementando o risco de
uma espiral da DPI e de pressão sobre o crédito ao investimento, caso as
necessidades adicionais de financiamento geradas pelos ENC for por via de
contracção de créditos internos.

• Aumento do valor actual líquido (VAL) da DPE para acima dos limiares de
sustentabilidade definidos, e do risco de a economia se tornar mais vulnerá-
vel a choques externos, visto que a dívida passa a ser altamente comercial.18

• Redução do défice público, com vista a libertar recursos para fazer face aos
encargos da dívida. Isto requereria um aumento nas receitas e/ou um corte
na despesa pública. Esta opção poderá ter impacto na estratégia de realiza-
ção da despesa e, por via disso, no bem-estar económico e social.

crédito à economia. (O País, 29 de Setembro de 2010, p.14). Por seu turno, no presente ano, o
Banco central voltou a rever as taxas de referência com vista a fazer face às pressões inflacionárias.
Assim, a taxa de Facilidade Permanente de Cedência de Liquidez aumentou de 15,5% para cerca
de 16.5%, a taxa de facilidade permanente de depósitos aumentou de 4% para 5% e o coeficiente
de reservas obrigatórias aumentou de 8,75% para 9% (Savana, 21 de Janeiro de 2011).
18
É importante reforçar que o presente artigo defende a questão levantada por Ossemane (2010)
sobre os índices de sustentabilidade da dívida, devido às diversas limitações em expressar a
sustentabilidade da dívida num contexto em que a economia é altamente dependente de um
pequeno grupo de megaprojectos, focados na exportação de produtos primários e com fracas
ligações com o resto da economia.

Financiamento do Estado Desafios para Moçambique 2011 175

Desafios.indb 175 3/29/11 4:53 PM


GRÁFICO 8 JUROS DA DÍVIDA PÚBLICA EM MILHÕES DE METICAIS (1985-2008)

3.000

2.500
Milhões de Meticais

2.000

1.500

1.000

500

0
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
Dívida Interna Dívida Externa Total FONTE INE (vários anuários);
Governo de Moçambique (vários anos)

GRÁFICO 9 SERVIÇO DA DÍVIDA TOTAL EM MILHÕES DE METICAIS (1998-2008)

4.500

4.000

3.500
Milhões de Meticais

3.000

2.500

2.000

1.500

1.000

500

0
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

Juros Capital Serviço da Dívida Total FONTE INE (vários anuários);


Governo de Moçambique (vários anos)

Para além dos custos inerentes, o financiamento através de empréstimos co-


merciais tem implicações sobre o tipo de despesa pública a realizar. O ponto é
que, dado o elevado custo do financiamento comercial, a despesa pública tende a
concentrar-se em actividades com alto retorno financeiro em detrimento de des-
pesas com retorno social mais amplo.
Um outro efeito da contracção de dívida, internamente, é o desvio de re-
cursos financeiros para actividades especulativas, no lugar de investimento direc-

176 Desafios para Moçambique 2011 Financiamento do Estado

Desafios.indb 176 3/29/11 4:53 PM


tamente produtivo, com implicações para o produto e, portanto, sobre o padrão
de acumulação da economia, não apenas em termos do valor da produção, mas
sobretudo em termos da sua composição.19 Obviamente que é preciso olhar para
o tipo despesa pública que os recursos obtidos por meio da DPIM permitem reali-
zar, de modo a apurar até que ponto podem ser complementares ao investimento
privado, causando, portanto, crowding-in.

AS PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS
Uma outra forma de endividamento público, que se vem destacando recen-
temente, são as Parcerias Público-Privadas (PPPs). Em Moçambique, o recurso a
PPPs para o financiamento das actividades do Estado tem sido, sobretudo, virado
para a construção e desenvolvimento de infra-estruturas económicas e sociais,
financiamento aos funcionários do Estado via acordos entre bancos comerciais e
instituições públicas.
Em geral, as PPPs são acordos20 (normalmente de longo prazo) entre entida-
des do sector público e um ou mais grupos de entidades do sector privado (nacio-
nais e/ou internacionais), através dos quais estes últimos, com acompanhamento
e participação do sector público, conceptualizam, financiam, constroem, operam
e/ou fazem a gestão de activos e/ou serviços públicos associados, que tradicio-
nalmente são de responsabilidade e domínio exclusivamente do Estado (OECD21,
2008, citado em Government of India, 2010, p.12; Scally, 2004).
Os projectos de investimentos em infra-estruturas com recurso a PPPs necessi-
tam de crédito, adquirido sobretudo em moldes comerciais, o que pode exigir retornos
relativamente altos a curto e médio prazos. Assim, dependendo dos moldes do acordo
firmado entre o Estado e os parceiros privados, as PPPs podem traduzir-se em endi-

19
Por exemplo, um dos principais determinantes da baixa disponibilidade de liquidez no
mercado nacional foi o facto de as OTs emitidas em Agosto de 2010 terem sido adquiridas,
quase na sua totalidade, por instituições financeiras (bancárias e não bancárias) acrescido
de outras medidas de restrição de liquidez que foram tomadas na economia (O País, 29 de
Setembro de 2010, p. 14).
20
O ponto central é que tais acordos são feitos de tal forma que os objectivos do governo (de
proporcionar o bem-estar social através da provisão de infra-estruturas e serviços básicos para
as comunidades) estejam em linha com os objectivos de rentabilidade dos parceiros privados,
pela transferência (ou partilha) parcial (ou completa) de riscos para (ou com) o sector privado
(Webb e Pulle, 2002; Cheston et al, 2006; Jamali, 2004; Asian Development Bank (ADB), 2006;
OECD, 2008, citado em Government of India, 2010, p.12).
21
Organization for Economic Cooperation and Development (em português: Organização para a
Cooperação Económica e Desenvolvimento).

Financiamento do Estado Desafios para Moçambique 2011 177

Desafios.indb 177 3/29/11 4:53 PM


vidamento público e/ou publicamente assumido. De certa forma, este aspecto mostra
uma ligação do endividamento público com o investimento produtivo empresarial.
No contexto da economia moçambicana, o alcance de tais retornos pode ser via
ligação dos projectos de investimento em infra-estruturas com o grande capital multina-
cional de exploração de recursos naturais (carvão, gás, areias pesadas, etc.). Desta forma,
até que ponto tal ligação, baseada em PPPs, não poderá fortalecer o actual padrão de
acumulação da economia, no lugar de diversificar e articular a base produtiva? Até que
ponto as PPPs são uma forma eficaz de realização de investimento público sem aumen-
to da pressão fiscal, estímulo da actividade económica e melhoria da dinâmica fiscal?
Portanto, isto implica que as PPP devem ser analisadas do ponto de vista de
economia política (como é que diferentes pressões, interesses e conflitos econó-
micos, políticos e sociais são articulados em PPPs) e de política industrial (como
as PPPs se relacionam com estratégias públicas e dinâmicas de industrialização e
desenvolvimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo trouxe uma visão sobre a problemática do endividamento


no financiamento do Estado. Dada a ineficácia do crescimento económico em
alargar a base fiscal, a análise parte do contexto da mobilização de recursos para
diversificar e articular a base produtiva, comercial e de investimento. Especifi-
camente, questiona-se a mobilização de dívida pública para financiar a despesa
pública e suas implicações, bem como a sua ligação com a diversificação e amplia-
ção da base produtiva e fiscal, e a consequente melhoria da capacidade de auto-
-financiamento do Estado.
A análise dos dados oficiais permite verificar: (i) défices orçamentais contí-
nuos e formas de financiamento concentradas em volta da ajuda externa; (ii) fraca
evolução da capacidade de auto-financiamento do Estado ao longo do tempo
(crescimento lento das receitas públicas relativamente às despesas e ajuda externa
a financiar, em média, quase metade da despesa pública); e (iii) gestão das formas
de financiamento à volta do equilíbrio orçamental, em que o atraso e/ou insufici-
ência da ajuda externa, tende a ser compensado por dívida interna.
A complementar a análise, demonstra-se a onerosidade do endividamento
público, quer em termos de desvio de recursos fiscais, para fazer face ao pagamen-

178 Desafios para Moçambique 2011 Financiamento do Estado

Desafios.indb 178 3/29/11 4:53 PM


to de juros da dívida e amortização de capital, como em termos de competição
pelo uso de crédito pelo sector privado e os possíveis cenários.
Adicionalmente, verifica-se que a dependência não é apenas relativamente ao
financiamento do OE, mas também na manutenção dos níveis de sustentabilidade
da dívida (baseadas em iniciativas sucessivas de perdão da dívida).
As constatações feitas são, de algum modo, explicadas pela fraca capacidade
de gerar recursos próprios, ligada ao padrão de acumulação e crescimento que
reproduz elevados índices de porosidade na economia e da excessiva dependência
em relação aos fluxos externos de capital (ajuda externa e IDE). Como é que o
actual padrão de financiamento do Estado (assente numa contínua dependência
externa, com uma certa tendência a manter-se ao longo do tempo) se liga a uma
estratégia de diversificação e articulação da base produtiva e fiscal?
No que diz respeito ao melhoramento da dinâmica fiscal, em articulação
com a base produtiva, há que pensar, por um lado, numa estratégia de captação
de recursos fiscais adicionais, derivados da exploração de recursos naturais e do
contributo dos megaprojectos (visto que constituem a principal fonte potencial de
receita fiscal até então existente) e identificar outras potenciais fontes de receitas.
Por outro lado, há que garantir a canalização de tais receitas para outros sectores
da economia, estimulando diferentes tipos de actividades, de modo a diversificar
as fontes de recursos.
Sendo o endividamento público uma consequência da incapacidade de o Es-
tado fazer face às suas necessidades de financiamento num determinado período,
há uma necessidade de reflexão sobre a capacidade de endividamento do país.
Neste contexto, é importante realçar que, pelo facto de a dívida pública nacional
situar-se dentro dos limites de sustentabilidade (LIC DSF), tem sido argumentada
a existência de espaço para endividamento adicional, sobretudo em regime não
concessional. Assim, duas questões emergem: (i) até que ponto os critérios de
sustentabilidade da dívida pública são fiáveis, num contexto em que o padrão de
acumulação e crescimento é concentrado num pequeno grupo de megaprojectos
com fracas ligações com o resto da economia? (ii) Se o alcance de tais níveis de
sustentabilidade se deve a iniciativas de perdão de dívida, não será que se está a ter
em conta a continuação de uma dependência de ajuda que se faz presente ao lon-
go do tempo? Ou não será que se está a ter em conta iniciativas futuras de perdão
de dívida? (iii) Se não estará a dívida pública a pagar os subsídios às multinacionais
na forma de benefícios fiscais, créditos fiscais ao investimento (dentre outros via

Financiamento do Estado Desafios para Moçambique 2011 179

Desafios.indb 179 3/29/11 4:53 PM


depreciação acelerada), subsídios aos combustíveis, subsídios indirectos ligados
às tarifas sobre terra. (iv) E se a dívida externa poderá aumentar a porosidade da
economia, uma vez que a mesma implica saída de capitais por via de pagamento
de serviço da dívida.22
No que respeita à articulação entre endividamento público e PPPs, é preciso
pensar em: (i) como é que se relacionam e/ou se complementam do ponto de
vista de sustentabilidade económica, social e política e de criação de um espaço
fiscal mais amplo e integrado? e (ii) como é que os recursos provenientes do en-
dividamento e da cooperação público-privada são (ou podem ser) usados para
alargar, diversificar e articular a base produtiva, logística e de financiamento da
economia nacional?
Portanto, estas e outras inquietações constituem um desafio de pensar e anali-
sar profundamente as opções de desenvolvimento de que o país dispõe, e como estas
opções se articulam com os recursos, as estratégias e abordagens e com os conflitos
e interesses económicos, políticos e sociais que delas resultam e são determinadas.
Estes desafios têm um efeito multiplicador na medida em que transcendem
para outras vertentes de análise. Sendo a investigação um processo dinâmico e in-
fluenciado pelas condições históricas e institucionais, o grande desafio que emerge
é o da futura investigação, tal como articular e analisar a informação existente com
a realidade económica, política e social, criando condições para que a mesma se
circunscreva a outras áreas e metodologias de análise do assunto.

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Banco de Moçambique, 2010. Base de dados da Direcção de Estudos Económicos
(DEE). Maputo.

22
Este ponto baseia-se na apresentação feita por Castel-Branco (2010b), aquando do lançamento
do “ African Economic Outlook 2010”.

180 Desafios para Moçambique 2011 Financiamento do Estado

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184 Desafios para Moçambique 2011 Financiamento do Estado

Desafios.indb 184 3/29/11 4:53 PM


DESAFIOS DA EXPANSÃO DE SERVIÇOS
FINANCEIROS EM MOÇAMBIQUE
Sofia Amarcy | Nelsa Massingue

INTRODUÇÃO

Em economias africanas em desenvolvimento, como Moçambique, o deba-


te sobre o alargamento da participação dos mercados financeiros na produção,
nas relações de trabalho e no investimento tem merecido maior atenção por
parte de entidades reguladoras e agentes económicos em geral. Em 2007, o Ban-
co de Moçambique (BdM), lançou uma estratégia de bancarização da economia
com o objectivo de reduzir e controlar melhor a inflação e a estabilidade do
sistema financeiro (BdM, 2007b). Os problemas fundamentais que esta estratégia
levanta são a expansão territorial de produtos e serviços financeiros, o aumento
de profundidade financeira e a valorização do metical como meio de troca (me-
ticalização). Esta posição está em consonância com o actual discurso político do
Governo de Moçambique (GdM), que aborda sobre a necessidade do sistema
financeiro expandir territorialmente para cobrir mais áreas do território nacional
(GdM, 2010 e 2005).
Recentemente, tem-se verificado um processo de expansão do sector finan-
ceiro. Segundo o BdM, houve um aumento na taxa de cobertura dos serviços fi-
nanceiros em 18 pontos percentuais, passando de 22% em 2007 para 40% em 2010
(O País, 01/02/2010). O número de distritos cobertos por rede bancária passou de
28, em Janeiro de 2007, para 51, em Fevereiro de 2010. Assim, o presente artigo
pretende perceber o que está a acontecer com a expansão do sector financeiro e
se as dinâmicas de expansão bancária são favoráveis ao processo de diversificação,
articulação e alargamento da base produtiva.
Em Moçambique, o padrão de acumulação é caracterizado por uma econo-
mia de natureza extractiva com limitada diversificação e articulação da produção
e do comércio (Castel-Branco e Ossemane, 2009). Sendo assim, o que se pode
esperar de um sistema financeiro que se integra dentro de uma economia que tem
tais características? Não estará o sector financeiro a consolidar tais padrões, uma

Expansão de Serviços Financeiros Desafios para Moçambique 2011 185

Desafios.indb 185 3/29/11 4:53 PM


vez que o mesmo tem uma base social, económica e política em torno da qual se
desenvolvem interesses, tensões, pressões e conflitos?
Após a introdução, o artigo está estruturado em duas secções. A secção se-
guinte introduz a reflexão à volta do conceito de expansão do sistema financeiro
utilizado em Moçambique, as limitações associadas a este conceito e o tipo de
dinâmicas e ligações que esta expansão permite criar na economia. Para tal foi feita
uma caracterização do tipo de expansão que está a ocorrer em Moçambique, na
dimensão territorial, de profundidade financeira e de meticalização. Esta caracteri-
zação foi realizada revisitando os dados estatísticos oficiais do BdM e do Instituto
Nacional de Estatística (INE). Houve necessidade de recorrer a fontes alternativas,
como relatórios dos bancos comerciais, porque o BdM apenas fornece informação
agregada dos bancos quando o objectivo da análise visa mostrar os níveis de con-
centração bancária não só de balcões por província mas também por bancos e as
suas respectivas quotas de créditos e depósitos. No entanto, a informação desagre-
gada não é consistente com a do BdM pelo facto de alguns bancos não possuírem
informação disponível para alguns anos. E estes problemas de acesso a informação
vão requerer mais trabalho de pesquisa que irá depender da disponibilidade das
respectivas instituições fornecerem tal informação. E, na última secção, o artigo
apresenta reflexões críticas e desafios à abordagem sobre a expansão de serviços
financeiros em Moçambique.

EXPANSÃO DOS SERVIÇOS FINANCEIROS: DIMENSÃO


TERRITORIAL, DIMENSÃO DE PROFUNDIDADE FINANCEIRA E
DE METICALIZAÇÃO

Esta secção pretende analisar o conceito de expansão de serviços financeiros.


Em Moçambique, a abordagem de expansão centra-se na bancarização e metica-
lização da economia.
A expansão de Serviços Financeiros (SFs) é definida como o alargamento
territorial de produtos e serviços financeiros e o aumento da profundidade finan-
ceira, ou seja, a maior cobertura em termos de depósitos e créditos a economia
(Abreu, 2005; BdM, 2007a e 2007b; GdM, 2005; Gove, 2009 e 2010; Matabele,
2008). O governador do BdM, Ernesto Gove, no seu discurso de brinde do fim de
ano em 2009, afirmou que:

186 Desafios para Moçambique 2011 Expansão de Serviços Financeiros

Desafios.indb 186 3/29/11 4:53 PM


(…) no quadro da nossa estratégia de alargamento de serviços financeiros às zonas menos
favorecidas, voltámos a assistir à contínua expansão da rede de balcões de bancos para as
zonas rurais, concorrendo para que mais moçambicanos tenham acesso a serviços finan-
ceiros e possam canalizar as suas poupanças ao sistema bancário. Nos últimos 12 meses,
autorizámos a abertura de 57 novos balcões de bancos em todas as províncias, passando,
deste modo, para um total de 398 balcões autorizados, dos quais 340 já se encontram
em funcionamento, cobrindo todas as cidades capitais, vilas municipais e 44 dos 128
distritos do país, número que poderá aumentar brevemente para 53 distritos, assim que
terminarem as obras de instalação em curso. Adicionalmente, durante o ano autorizámos
a constituição de mais um banco, passando o total nacional para 16, uma Cooperativa
de Crédito e duas Casas de Câmbio e a inscrição de cinco Organizações de Poupança e
Empréstimo e 23 operadores de Microcrédito. (…) Será ainda possível que os clientes do
sistema bancário façam uso de serviços de ATM ou POS em qualquer dos bancos a operar
no País (…) (Gove, 2009:7-8).

Além da expansão na dimensão territorial e de serviços, o BdM (2007b) in-


clui a meticalização como indicador de expansão. Gove (2010) argumenta que a
meticalização é o processo de valorização do metical e de maior utilização de con-
tas em meticais comparativamente às contas em divisas, o que permite canalizar
mais poupanças do público para o sector financeiro, a fim de multiplicar os apoios
às iniciativas de investimento.
Diferentes indicadores são usados para medir a expansão dos serviços finan-
ceiros. Na dimensão territorial são usados o número de instituições financeiras, o
número de balcões e o número de ATMs e de POS. Na dimensão de profundi-
dade financeira os indicadores são o peso dos créditos e depósitos relativamente
ao Produto Interno Bruto (PIB). E, no caso da meticalização, é usado o peso dos
depósitos em moeda estrangeira com relação aos depósitos em moeda nacional.

DIMENSÃO TERRITORIAL
Esta subsecção procura demonstrar, com recurso a estatística descritiva, qual vem
sendo a evolução do número de balcões, ATMs e POS e a sua localização, de maneira
a perceber o que está a acontecer com a expansão territorial em Moçambique. O argu-
mento central é que a expansão é dominantemente concentrada por bancos, balcões
e por regiões. E esta característica vem-se verificando ao longo do período em análise.

INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO
As instituições de crédito em Moçambique são constituídas por bancos co-
merciais e de investimento, cooperativas de crédito, micro-bancos, instituições de
locação financeira. Os bancos são maioritariamente de capital estrangeiro, sobre-

Expansão de Serviços Financeiros Desafios para Moçambique 2011 187

Desafios.indb 187 3/29/11 4:53 PM


tudo portugueses e sul-africanos (FMI, 2010). Segundo Castel-Branco, Massingue
e Ali (2009), as instituições de crédito formais operam em apenas 40% dos distritos
rurais e urbanos do país.
A tabela 1 mostra que, ao longo do período em análise, os bancos comerciais
têm maior peso no total das instituições de crédito e tal está ligado ao facto de os
bancos constituírem a fonte mais importante da provisão dos SFs (USAID, 2007).
Segundo Carvalho e Souza (2009), em Dezembro de 2008, os bancos em Moçam-
bique acumulavam 89% do crédito do sistema e 91% dos depósitos.

TABELA 1 INSTITUIÇÕES DE CRÉDITO EM MOÇAMBIQUE (2000-2009)

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Total de Instituições
de crédito* (nº) 16 19 18 20 20 19 20 20 22 24
Bancos** (nº) 11 13 12 13 12 12 12 12 14 14
Peso no total (%) 69 68 67 65 60 63 60 60 64 58
Cooperativas (nº) 3 3 3 4 5 5 6 6 6 6
Peso no total (%) 19 16 17 20 25 26 30 30 27 25
Microbancos (nº) 0 0 0 0 0 0 0 1 1 3
Peso no total (%) 0 0 0 0 0 0 0 5 5 13
Instituições de Loca-
ção Financeira (nº) 2 3 3 3 3 2 2 1 1 1
Peso no total (%) 13 16 17 15 15 11 10 5 5 4

FONTE Calculado pelas autoras com base em BdM (2010a e 2010b)

NOTAS
(*) O número total de instituições de crédito apresentadas não inclui operadores de micro crédito
(**) Em 2001 fundem-se dois bancos o BCM e BIM actualmente conhecido por Millennium BIM e, em 2003 verifica-se a fusão de
mais dois bancos o BCI e o Fomento que actualmente é conhecido por BCI.

A tabela 2 mostra que, apesar de haver um aumento do número de bancos, a


concentração dos balcões diminuiu não muito significativamente, sendo que mais
de 50% das agências em funcionamento no país são detidas pelos quatro maiores
bancos (Millennium BIM, BCI, Barclays e Standard Bank).

188 Desafios para Moçambique 2011 Expansão de Serviços Financeiros

Desafios.indb 188 3/29/11 4:53 PM


TABELA 2 DISTRIBUIÇÃO DOS BALCÕES POR BANCOS, DE 2000 A 2009

Bancos 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Millennium BIM (nº de balcões) - - - - 76 76 76 86 101 117
Peso no total de balcões (%) - - - - 39 38 38 36 34 33
Banco Comercial e de Investi-
mentos (BCI) 23 23 23 32 32 35 38 42 50 71
Peso no total de balcões (%) 45 43 43 50 16 17 19 18 17 20
Standard Bank* 27 27 27 27 27 27 23 26 29 32
Peso no total de balcões (%) 53 51 51 42 14 13 11 11 10 9
Barclays - - - - 48 48 48 48 60 59
Peso no total de balcões (%) - - - - 24 24 24 20 20 17
Mauritius Commercial Bank
(MCB) 1 1 1 1 1 1 1 1 2 2
Peso no total de balcões (%) 2 2 2 2 1 0 0 0 1 1
First National Bank (FNB) - 2 2 4 4 5 5 5 8 12
Peso no total de balcões (%) - 4 4 6 2 2 2 2 3 3
African Banking Corporation
(ABC) - - - - - - - - 2 2
Peso no total de balcões (%) - - - - - - - - 1 1
Moza Bank 0 0 0 0 0 0 0 0 1 2
Peso no total de balcões (%) - - - - 0 0 0 0 0 1
Banco Mercantil e de Investi-
mentos (BMI) - - - - 2 2 2 2 2 2
Peso no total de balcões (%) - - - - 1 1 1 1 1 1
Banco Internacional de Co-
mércio (ICB) - - - - 2 2 3 5 5 5
Peso no total de balcões (%) - - - - 1 1 1 2 2 1
Banco Terra 2 8
Peso no total de balcões (%) - - - - - - - - 1 2
Socremo 9 11 12
Peso no total de balcões (%) - - - - - - - 4 4 3
Banco Oportunidade 4 4 4 4 6
Peso no total de balcões (%) - - - - - 2 2 2 1 2
Banco Procredit 12 19 21
Peso no total de balcões (%) - - - - - - - 5 6 6
Total de balcões** 51 53 53 64 197 201 202 238 296 351

FONTE KPMG, 2004-2008 e Relatórios anuais dos vários bancos consultados nos respectivos websites

NOTAS
(*) Até 2002 o Standard Bank chamava-se Standard Totta de Moçambique;
(**) O número total de balcões por ano na tabela acima difere dos totais nos relatórios do BdM porque nem todos os bancos têm
dados disponíveis por ano e o BdM não publica os dados por banco.

Expansão de Serviços Financeiros Desafios para Moçambique 2011 189

Desafios.indb 189 3/29/11 4:53 PM


BALCÕES DE BANCOS COMERCIAIS
O gráfico 1 mostra um aumento contínuo no número de balcões em Moçam-
bique, a partir de 2004. A redução de número de balcões verificada entre 2001 e
2004 é resultado das fusões e aquisições de alguns bancos, o que causou o fecho
de algumas agências bancárias. Por exemplo, em Novembro de 2001, a fusão de
dois bancos, nomeadamente o Banco Comercial de Moçambique (BCM) e o Ban-
co Internacional de Moçambique (BIM) deu origem ao actual banco Millennium
BIM. Em Dezembro de 2003 foi formalizada a fusão entre o Banco Comercial
de Investimentos (BCI) e o Banco de Fomento, dando origem ao actual banco
designado BCI.

GRÁFICO 1 EVOLUÇÃO DO NÚMERO DE BALCÕES EM MOÇAMBIQUE (2000-09)

400
352
350

297
300
274

250 235 238


228
211 218
197
200 188

150

100

50

0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

FONTE BdM, 2010a

A tabela 3 mostra que esta tendência de concentração dos balcões nestas


províncias (Maputo, Sofala e Nampula) já se vem verificando desde 2000. A eco-
nomia contava, em 2009, com 352 balcões, 38% dos quais encontram-se na Cida-
de de Maputo e os restantes distribuídos pelas outras províncias. As províncias de
Niassa e Cabo Delgado são as que têm menos balcões de agências bancárias, com
apenas 3% do total de balcões em funcionamento no país (tabela 3).

190 Desafios para Moçambique 2011 Expansão de Serviços Financeiros

Desafios.indb 190 3/29/11 4:53 PM


TABELA 3 DISTRIBUIÇÃO DOS BALCÕES DOS BANCOS (2000-2009)

Província 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Maputo* 89 91 101 104 102 114 121 147 158 167
Peso no total de balcões 38% 38% 48% 53% 54% 52% 53% 54% 53% 47%
Gaza 21 21 16 15 13 14 14 16 17 24
Peso no total de balcões 9% 9% 8% 8% 7% 6% 6% 6% 6% 7%
Inhambane 12 13 10 10 9 12 13 16 18 27
Peso no total de balcões 5% 5% 5% 5% 5% 6% 6% 6% 6% 8%
Manica 14 14 11 7 8 12 12 14 14 17
Peso no total de balcões 6% 6% 5% 4% 4% 6% 5% 5% 5% 5%
Sofala 26 26 21 19 18 21 22 26 31 33
Peso no total de balcões 11% 11% 10% 10% 10% 10% 10% 9% 10% 9%
Zambézia 14 14 13 10 7 10 10 10 11 16
Peso no total de balcões 6% 6% 6% 5% 4% 5% 4% 4% 4% 5%
Tete 13 13 10 7 8 8 8 11 11 19
Peso no total de balcões 6% 5% 5% 4% 4% 4% 4% 4% 4% 5%
Nampula 24 24 17 16 15 16 17 22 24 31
Peso no total de balcões 10% 10% 8% 8% 8% 7% 7% 8% 8% 9%
Niassa 9 9 4 3 2 4 4 4 6 9
Peso no total de balcões 4% 4% 2% 2% 1% 2% 2% 1% 2% 3%
Cabo Delgado 13 13 8 6 6 7 7 8 7 9
Peso no total de balcões 6% 5% 4% 3% 3% 3% 3% 3% 2% 3%
Total 235 238 211 197 188 218 228 274 297 352

FONTE BdM, 2010a e BdM (vários anos)

NOTA
(*) Os valores incluem província e cidade de Maputo

A tabela 4 mostra que, tanto em 2006 quanto em 2010, a zona Norte do país
concentrava o grosso dos distritos não cobertos por rede bancária. Pese embora
o facto de todas as províncias estarem cobertas por agências bancárias, em geral,
estas encontram-se localizadas maioritariamente nas respectivas capitais provin-
ciais. Segundo o BdM (2007b), em 2006, as três principais cidades, nomeadamente
Maputo, Beira e Nampula, possuíam um total de 132 agências (cerca de 58%
do total) 105 das quais (cerca de 78%) estavam situadas na Cidade de Maputo.
Castel-Branco, Ossemane e Massingue (2010) mostram que a cidade de Nampula
concentrava 48% dos balcões de bancos da Província de Nampula e os restantes
balcões encontravam-se distribuídos pelos outros sete distritos.

Expansão de Serviços Financeiros Desafios para Moçambique 2011 191

Desafios.indb 191 3/29/11 4:53 PM


A questão que se coloca é: que factores são responsáveis para que uns distritos
dentro da mesma província tenham balcões de agências bancárias e outros não? A
resposta a esta pergunta precisaria de uma análise mais profunda, mas algumas hipó-
teses podem ser adiantadas. Uma hipótese é a de que estas regiões têm maior dina-
mismo económico do que outras regiões da mesma província. A segunda hipótese é
que o nível de investimento que tem sido canalizado para tais regiões pode justificar
a concentração bancária. Mas, para responder a estas hipóteses, precisaríamos de
mais informação que só poderá ser complementada com estudos de caso.

TABELA 4 COMPARAÇÃO DE DISTRITOS SEM AGÊNCIAS BANCÁRIAS EM 2006 E 2010

2006 2010
Total de
Província Distritos sem Peso na Peso no Distritos sem Peso na Peso no
distritos
agências província Total agências província total
Maputo a) 7 2 29% 2% 0 0% 0%
Gaza 11 6 55% 6% 5 45% 9%
Inhambane 12 9 75% 9% 5 42% 9%
Manica 9 7 78% 7% 3 33% 6%
Sofala 12 10 83% 10% 8 67% 15%
Zambézia 16 12 75% 12% 12 75% 23%
Tete 12 10 83% 10% 4 33% 8%
Nampula 18 16 89% 16% 13 72% 25%
Niassa 15 14 93% 14% 11 73% 21%
Cabo Delgado 16 13 81% 13% 14 88% 26%
Total 128 99 77% 100% 53 41% 100%

FONTE Patel et al, 2007 e BdM, 2010c

As tabelas 5a e 5b mostram a densidade bancária por território e por popula-


ção. No período de 2000 a 2009, as províncias da Zambézia, Tete, Cabo Delgado e
Niassa apresentavam as maiores densidades bancárias por território quando a pro-
víncia de Maputo foi a que teve menor densidade bancária por território ao longo
do período. O cenário não é muito diferente quando se trata da cobertura ban-
cária por habitante, onde as províncias da Zambézia, Tete, Cabo Delgado Niassa
e Nampula são as que têm menor distribuição quando a província de Maputo
tem uma maior distribuição. Isto deve-se essencialmente aos seguintes factores:
primeiro, Maputo é a província com mais balcões de bancos; segundo, Tete, Cabo
Delgado e Niassa são as províncias com menor número de agências bancárias

192 Desafios para Moçambique 2011 Expansão de Serviços Financeiros

Desafios.indb 192 3/29/11 4:53 PM


no país; e as províncias da Zambézia e Nampula são as mais povoadas do país.
Segundo o BdM (2010d), na Cidade de Maputo cada agência cobria cerca de 7
mil habitantes; em Montepuez e Milange, essa cobertura abrangia 153 mil e 498
mil habitantes, respectivamente. Na óptica territorial, constata-se que, na Cidade
de Maputo, existe uma agência para cada 2 quilómetros quadrados contra cerca
de 10 mil quilómetros quadrados em Milange e 15,8 mil quilómetros quadrados
em Montepuez. Em termos nacionais, a cobertura média de cada balcão está para
cerca de 2 271 km² e 57 mil habitantes.
Recentemente têm estado a surgir no país os chamados balcões corporativos
(mais conhecidos por agências corporate). Estes são destinados ao atendimento
de Grandes e Médias empresas moçambicanas e estrangeiras com investimento
no país, permitindo aconselhamento para o apoio à instalação e gestão corrente,
bem como ao financiamento e planos de investimento. A tabela 6 mostra que,
actualmente em Moçambique, temos dez balcões corporativos detidos por quatro
bancos (BIM, BCI, Barclays e Standard Bank), sendo que 60% destes se localizam
na cidade de Maputo. Os balcões corporativos encontram-se nas províncias de
Maputo, Sofala e Nampula. Mais uma vez, a questão que se coloca é que motiva-
ções estão por detrás de estes serviços se estabelecerem nestas províncias.

TABELA 5A DENSIDADE BANCÁRIA POR TERRITÓRIO (2000-2009)

Província 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Maputo* 297 290 261 254 259 232 218 180 167 158
Gaza 3.597 3.597 4.721 5.036 5.811 5.396 5.396 4.721 4.443 3.147
Inhambane 5.718 5.278 6.862 6.862 7.624 5.718 5.278 4.288 3.812 2.541
Manica 4.404 4.404 5.606 8.809 7.708 5.138 5.138 4.404 4.404 3.627
Sofala 2.616 2.616 3.239 3.580 3.779 3.239 3.092 2.616 2.194 2.061
Zambézia 7.366 7.366 7.933 10.313 14.732 10.313 10.313 10.313 9.375 6.445
Tete 7.483 7.483 9.729 13.898 12.161 12.161 12.161 8.844 8.844 5.120
Nampula 3.258 3.258 4.600 4.887 5.213 4.887 4.600 3.554 3.258 2.522
Niassa 13.575 13.575 30.544 40.725 61.088 30.544 30.544 30.544 20.363 13.575
Cabo Delgado 5.990 5.990 9.733 12.978 12.978 11.124 11.124 9.733 11.124 8.652
Total 3.314 3.273 3.691 3.954 4.143 3.573 3.416 2.843 2.623 2.213

FONTE BdM, 2010a, BdM (vários anos) e base de dados do website do INE acedida a 7 de Janeiro de 2011

NOTA
(*) Os valores incluem província e cidade de Maputo

Expansão de Serviços Financeiros Desafios para Moçambique 2011 193

Desafios.indb 193 3/29/11 4:53 PM


TABELA 5B DENSIDADE BANCÁRIA POR POPULAÇÃO (2000-2009)

Província 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Maputo a) 21.943 21.980 20.283 20.175 21.066 19.302 18.620 15.649 15.219 14.819

Gaza 57.300 58.778 79.152 86.635 102.580 97.750 100.311 76.782 73.904 53.214

Inhambane 104.678 99.308 132.685 136.360 155.691 119.978 113.779 79.489 73.850 50.134

Manica 81.246 83.709 109.757 177.663 160.479 109.912 113.166 100.875 106.711 91.258

Sofala 55.920 57.098 72.198 81.513 87.903 76.987 75.097 63.189 55.707 53.614

Zambézia 236.907 242.523 267.422 355.992 520.804 373.365 382.412 384.946 363.142 256.387

Tete 101.531 104.110 138.821 203.466 182.706 187.557 192.597 162.179 171.379 103.478

Nampula 136.077 139.044 200.597 217.839 237.548 227.734 219.244 181.164 174.634 138.748

Niassa 96.727 99.236 229.168 313.732 483.290 248.191 254.955 292.696 209.971 145.430

Cabo Del-
gado 112.734 115.018 190.704 259.465 264.790 231.653 236.476 200.821 238.010 188.717

Total 73.380 74.194 85.709 94.027 100.944 89.167 87.350 73.921 71.414 61.946

FONTE BdM (2010a), BdM (vários anos) e base de dados da população do website do INE acedida a 7 de Janeiro de 2011

NOTA
(*) os valores incluem província e cidade de Maputo

TABELA 6 DISTRIBUIÇÃO DE BALCÕES CORPORATIVOS POR BANCO E SUA LOCALIZAÇÃO

Banco Localização Nº
Millennium BIM Maputo-cidade e Beira 2
Banco Comercial e de Investimentos Maputo-cidade (3) Nampula-cidade (1) Monapo (1) 4
Standard Bank Maputo-cidade 1
Barclays Bank Maputo-cidade, Beira, Nampula-cidade 3

FONTE Websites dos bancos acedidos a 28 de Dezembro de 2010

CAIXAS AUTOMÁTICAS E POSTOS DE VENDA


Os bancos, em Moçambique, fornecem SFs mediante uma variedade de mecanis-
mos, incluindo agências bancárias, caixas automáticas (ATMs), pontos de venda (POS),
banca por internet (e-banking), banca telefónica, banca celular e agências móveis.
Os gráficos 2a e 2b mostram a concentração de ATMs e POS por província.
Daqui pode-se notar que a concentração de ATMs e POS é maior do que a de
agências bancárias.

194 Desafios para Moçambique 2011 Expansão de Serviços Financeiros

Desafios.indb 194 3/29/11 4:53 PM


GRÁFICO 2A DISTRIBUIÇÃO DE ATMS POR PROVÍNCIA EM 2006 E 2009

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%
Maputo* Gaza Inhambane Manica Sofala Zambézia Tete Nampula Niassa Cabo-Delgado

ATMs 06 ATMs 09 FONTE BdM (vários anos) e BdM, 2007b

NOTA
(*)Maputo engloba Província e Cidade de Maputo

GRÁFICO 2B DISTRIBUIÇÃO DE POS POR PROVÍNCIA EM 2006 E 2009

80%

70%

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%
Maputo* Gaza Inhambane Manica Sofala Zambézia Tete Nampula Niassa Cabo-Delgado

POS 06 POS 09 FONTE BdM (vários anos) e BdM, 2007b

NOTA
(*)Maputo engloba Província e Cidade de Maputo

DISTRIBUIÇÃO DE QUOTAS DE DEPÓSITOS E CRÉDITOS POR BANCO (2000-2009)


As tabelas 7a e 7b mostram as quotas de depósitos e de créditos, detidas pe-
los bancos em Moçambique. Ao longo do período verifica-se uma concentração
destas operações em quatro bancos (Millennium BIM, BCI, Barclays e Standard
Bank). Nas operações do passivo, tabela 6a, é possível verificar que, apesar de o
BIM continuar a ser o banco que detém maior peso nas operações, este tem esta-

Expansão de Serviços Financeiros Desafios para Moçambique 2011 195

Desafios.indb 195 3/29/11 4:53 PM


do a perder o seu peso. Por exemplo, o peso em 2008, quando comparado a 2001,
é de 52% e 39%, respectivamente. E, o BCI teve o mesmo nível de crescimento
que o Standard Bank ao longo do período.

TABELA 7A QUOTA DE DEPÓSITOS POR BANCO (EM PERCENTAGEM)

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008


Banco Internacional de Moçambique a) 22 52 45 45 46 43 41 38 39
Banco Comercial de Moçambique 31 - - - - - - - -
Banco Comercial e de Investimentos b) 9 10 19 20 18 20 21 25 23
Banco Fomento 7 7 - - - - - - -
Standard Bank 16 17 22 20 19 21 22 23 23
Barclays Bank 14 10 9 9 11 9 9 8 7
Sub-total 98 97 96 95 94 93 93 93 92
Outros bancos 2 3 4 5 6 7 7 7 8
Total 100 100 100 100 100 100 100 100 100

FONTE BdM (vários anos) e KPMG, 2004-2008

TABELA 7B QUOTA DE CRÉDITO POR BANCO (EM PERCENTAGEM)

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008


Banco Internacional de Moçambique* 22 42 47 42 38 43 42 42 41
Banco Comercial de Moçambique 23 - - - - - - - -
Banco Comercial e de Investimentos** 11 12 26 30 32 27 31 28 31
Banco Fomento 5 10 - - - - - - -
Standard Bank 12 12 12 10 10 9 12 12 12
Barclays Bank 18 11 6 4 6 5 5 5 6
Sub-total 92 87 92 87 86 84 90 88 90
Outros bancos 8 13 8 13 14 16 10 12 10
Total 100 100 100 100 100 100 100 100 100

FONTE BdM (vários anos) e KPMG (vários anos)

NOTA
(*) Em Dezembro de 2001 houve fusões dos bancos: BIM e BCM actualmente conhecido como Millennium BIM
(**) Em Dezembro de 2002 fundiram-se o Banco Comercial e de Investimentos e Banco Fomento passando a designar-se BCI-
-Fomento e, actualmente conhecido por BCI.

No caso das operações activas, na tabela 6b, verifica-se que o BIM apresenta,
igualmente, maior peso ao longo do período. Verifica-se, ainda, que o BCI tem

196 Desafios para Moçambique 2011 Expansão de Serviços Financeiros

Desafios.indb 196 3/29/11 4:53 PM


vindo a ganhar maior espaço nas operações activas e, em contrapartida, o Barclays
tem vindo a perder esse espaço.
Resumindo, a expansão numérica e territorial de agências e serviços bancá-
rios não tem tido impacto significativo nos níveis de distribuição, por província e
por banco, sendo que continuam a verificar-se altos níveis de concentração bancá-
ria. Embora se verifique, ao longo do período em análise, a expansão do número
de bancos, balcões, ATMs e POS, mantêm-se ainda a concentração territorial e
bancária. No entanto, esta análise não é completamente conclusiva sobre a tipo-
logia da expansão e concentração bancária por se limitar a olhar para o número
de agências.

PROFUNDIDADE FINANCEIRA E METICALIZAÇÃO


Tal como já foi referido, os indicadores de bancarização incluem a profun-
didade financeira que consiste nos rácios tradicionais dos agregados financeiros
(créditos e depósitos) como a percentagem do PIB. A meticalização é definida
como a valorização do metical medida através da proporção entre contas em
divisas e contas em meticais, sendo que o objectivo é que as contas em meticais
cresçam mais do que as em divisas para que haja mais divisas disponíveis para a
cobertura de importações e outros pagamentos no exterior.

DEPÓSITOS
O gráfico 3 mostra que os depósitos totais em percentagem do PIB tem
vindo a aumentar ao longo do período. No entanto, mostra, igualmente, que os
depósitos a prazo são uma proporção muito pequena dos depósitos totais e que,
ao longo do período, há um certo nível de mudança embora não muito significati-
va (gráfico 4). Segundo Osman (2009), a expectativa de a bancarização aumentar
as poupanças não é válida pois, embora haja espaço para aumentar a bancariza-
ção, este esforço não deverá trazer grandes aumentos de depósitos a prazo pelas
seguintes razões: (i) tendo as pessoas rendimentos monetários muito baixos, estas
serão, durante muito tempo, tomadoras líquidas de recursos, pois o excesso de
liquidez nos momentos de comercialização são rapidamente despendidos e não
chegam a constituir poupança (depósitos a prazo); (ii) além disso, há uma concen-
tração de depósitos, tanto para empresas como para particulares, e é muito pos-
sível que 5% das contas individuais detenham mais de 95% do total dos depósitos
de particulares.

Expansão de Serviços Financeiros Desafios para Moçambique 2011 197

Desafios.indb 197 3/29/11 4:53 PM


GRÁFICO 3 RÁCIO DOS DEPÓSITOS/PIB (EM PERCENTAGEM), 2000-2009

35%

30%

25%

20%

15%

10%

5%

0%
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

FONTE BdM (2010a)

GRÁFICO 4 PROPORÇÃO DOS DEPÓSITOS A ORDEM E A PRAZO (VALORES EM PERCENTAGEM DO PIB)

100%

90%

80%

70%

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Depósitos a prazo % PIB Depósitos a ordem % PIB


FONTE BdM (2010a)

Os gráficos 5a e 5b mostram a proporção dos depósitos a prazo em mo-


eda nacional e em moeda estrangeira e depósitos à ordem em moeda nacional
e estrangeira, respectivamente. O peso da moeda nacional comparado a moeda

198 Desafios para Moçambique 2011 Expansão de Serviços Financeiros

Desafios.indb 198 3/29/11 4:53 PM


estrangeira tem uma tendência a aumentar nos depósitos à ordem, mas o mesmo
não se verifica quando se trata de depósitos a prazo que apresenta flutuações ao
longo do período.

GRÁFICO 5A PROPORÇÃO DE DEPÓSITOS A ORDEM EM MOEDA NACIONAL E ESTRANGEIRA,


(VALORES EM PERCENTAGEM DO PIB)

100%

90%

80%

70%

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Moeda Estrangeira Moeda Nacional

FONTE BdM (2010a) e INE (vários anos)

GRÁFICO 5B PROPORÇÃO DE DEPÓSITOS A PRAZO EM MOEDA NACIONAL E ESTRANGEIRA


(VALORES EM PERCENTAGEM DO PIB)

100%

90%

80%

70%

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Moeda Estrangeira Moeda Nacional FONTE BdM (2010a) e INE (vários anos)

Expansão de Serviços Financeiros Desafios para Moçambique 2011 199

Desafios.indb 199 3/29/11 4:53 PM


CRÉDITOS
O gráfico 6 mostra que, nos últimos cinco anos, o crédito à economia con-
cedido pelo sistema bancário cresceu. De 2001 a 2004 verifica-se uma redução no
peso do crédito no PIB, como consequência da redução dos valores de créditos à
economia devido às diferenças cambiais. Em 2009, o crédito à economia expandiu
não como produto do aumento de agências bancárias e/ou bancos mas sim para
fazer face à crise financeira, pois as pressões inflacionárias externas (preços de ali-
mentos e petróleo) permitiam tal expansão. Portanto, neste caso, a expansão dos
créditos não tem relação directa com a política monetária.

GRÁFICO 6 RÁCIO CRÉDITOS/PIB (EM PERCENTAGEM), 2000-2009

25%

20%

15%

10%

5%

0%
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

FONTE BdM (2010a) e INE (vários anos)

A análise de expansão feita, na óptica de profundidade financeira e da meti-


calização, não permite derivar resultados conclusivos sobre as causas e consequên-
cias da expansão dos SFs. Uma das principais razões é o facto de estas estatísticas
tratarem de rácios e nada mais nos dizem sobre a natureza dessa expansão. Os da-
dos são insuficientes e inadequados, não permitindo derivar que tipo de expansão
está de facto a ser feita (será somente de balcões, ou de serviços, ou de produtos),
para onde está a ser feita (para cidades, distritos, zonas onde estão os grandes
investimentos, zonas onde há maior produção agrícola) e o que de facto está a
acontecer nas zonas para onde estes bancos se expandem.
Este tipo de análise de expansão (na dimensão territorial, profundidade e me-
ticalização) responde a uma preocupação ligada à cobertura territorial e à estabili-
dade monetária, mas não responde à preocupação fundamental que é a de pensar

200 Desafios para Moçambique 2011 Expansão de Serviços Financeiros

Desafios.indb 200 3/29/11 4:53 PM


como o sector financeiro participa na organização da produção. Se, por um lado,
é importante tomar em conta os indicadores clássicos de actividade financeira,
cobertura territorial, profundidade financeira e meticalização, por outro, eles são
altamente insuficientes para se perceber a dinâmica do sector financeiro. Portanto,
perceber o sector financeiro e a sua estratégia de expansão passa por um processo
de perceber qual é a estratégia dos bancos, de que forma estes participam na acti-
vidade produtiva e com quem estes interagem, para onde são canalizados os seus
recursos financeiros, quais as suas motivações, que tipo de transacções comerciais
estão a ocorrer, entre outros.

DESAFIOS DA EXPANSÃO DO SISTEMA FINANCEIRO EM


MOÇAMBIQUE

A definição de expansão do sistema bancário com base na dimensão terri-


torial, de profundidade e de meticalização é limitada porque, fundamentalmente,
não permite saber o que os bancos estão a fazer para além de se estar a abrir
mais balcões, conceder mais crédito, aumentar depósitos e estar a criar-se novos
bancos. A análise da informação sobre o número de balcões e sua localização e
distribuição por banco, a densidade bancária, as quotas de créditos e de depósitos
sugerem que a expansão seja mais uma construção do sistema financeiro à volta
das estruturas produtivas e dinâmicas já existentes, portanto, altos níveis de con-
centração da actividade.
Quando analisados os dados que são usados para sustentar o argumento de
expansão, verifica-se que, de facto, a natureza desta expansão é de concentração.
Tanto ao nível do peso da rede bancária por bancos, como da cobertura bancária
por província, cobertura de serviços por província, e dentro das províncias exis-
te tendência para concentração nas cidades ou em zonas de grande actividade
económica. A concentração é também verificada ao nível dos bancos, tanto em
termos de número de balcões detidos por cada um deles quanto pelas quotas de
créditos e depósitos.
Importa referir que o presente artigo apresenta uma análise muito preliminar
sobre a temática. Tal gera o desafio de construir uma abordagem, através de mais
investigação e uso de estatística mais desagregada, com o objectivo de aprofundar
a percepção sobre as dinâmicas do sistema financeiro em Moçambique e a nature-

Expansão de Serviços Financeiros Desafios para Moçambique 2011 201

Desafios.indb 201 3/29/11 4:53 PM


za da relação com o sector produtivo. Assim, há uma série de questões que devem
ser analisadas, como por exemplo:

• Que razões estão por detrás da expansão do crédito? Os dados sobre o


volume de crédito não nos fornecem nenhuma informação sobre que tipo
de expansão está a ocorrer. É verdade que o aumento do volume de crédito
é parte do processo de expansão. No entanto, esta expansão pode estar a
ocorrer devido à entrada de grandes projectos concentrados nos minerais
energéticos, e sem nenhum tipo de ligação com a base produtiva nem mes-
mo com o desenvolvimento de algum tipo de articulação e alargamento da
base produtiva comercial.

• Qual é a estrutura dos créditos e depósitos por província e sectores? A


informação sobre crédito deve ser desagregada por crédito por província e
depósitos por província para perceber a relação entre estes;

• Qual é a estrutura de investimentos? A estrutura de investimentos deve ser


analisada de forma a entender de onde vêm os recursos desse investimento
e como estes se ligam à actividade bancária em Moçambique;

• Por que razão a maior parte dos distritos do país não dispõe de uma única
instituição bancária, ATM ou POS?

• Porque apenas alguns bancos se expandem para determinadas zonas e ou-


tros não? Uma análise detalhada sobre a estratégia dos bancos e do sistema
financeiro em geral permitiria perceber as motivações de os bancos se lo-
calizarem numa determinada região.

Há outras questões a serem colocadas como, por exemplo, quais as tendên-


cias económicas que estão a emergir, a ser promovidas e/ou consolidadas com
este tipo de expansão. Até que ponto o sector bancário está a expandir e esta
expansão cria oportunidades de diversificação. Esta análise deverá ser ainda alar-
gada à outras estruturas como o sistema financeiro não formal e não bancário para
perceber a sua relação com o sistema bancário formal.

202 Desafios para Moçambique 2011 Expansão de Serviços Financeiros

Desafios.indb 202 3/29/11 4:53 PM


REFERÊNCIAS

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Expansão de Serviços Financeiros Desafios para Moçambique 2011 203

Desafios.indb 203 3/29/11 4:53 PM


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204 Desafios para Moçambique 2011 Expansão de Serviços Financeiros

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www.bancomoc.mz
www.barclays.co.mz
www.bci.co.mz
www.ine.gov.mz
www.milleniumbim.co.mz
www.standardbank.co.mz

Expansão de Serviços Financeiros Desafios para Moçambique 2011 205

Desafios.indb 205 3/29/11 4:53 PM


Desafios.indb 206 3/29/11 4:53 PM
“7 MILHÕES”
REVISÃO DO DEBATE E DESAFIOS PARA
DIVERSIFICAÇÃO DA BASE PRODUTIVA
Zaqueo Sande1

INTRODUÇÃO

Em 2006, O Governo de Moçambique (GdM) introduziu o Orçamento


de Investimento de Iniciativa Local (OIIL) 2, popularmente conhecido por “7
Milhões”,3 para contribuir para a redução da pobreza através do financiamento de
projectos individuais de produção de comida e de geração de emprego e de renda.
A implementação da iniciativa “7 Milhões” criou um debate nacional sobre as mo-
tivações, o conteúdo, direcção, instrumentos e impacto de políticas e estratégias
públicas. Os temas do debate são variados cobrindo áreas como a justificação e
concepção da iniciativa, metodologias de análise de impacto, a polémica sobre
a base estatística gerada, problemas na implementação (especialmente as fracas
taxas de reembolsos e desvios de aplicação), aproveitamento político da iniciativa,

1
Este artigo é publicado a título póstumo, pois Zaqueo Sande faleceu vítima de acidente de
viação perto de Vilanculos, província de Inhambane, no dia 28 de Dezembro de 2010. Zaqueo
Sande já havia iniciado a revisão final deste artigo. Depois da sua morte, os seus colegas do
Grupo de Investigação de Economia e Desenvolvimento do IESE completaram as revisões
que Zaqueo previa fazer para que o artigo pudesse ser incluído nesta publicação, como estava
previsto.
2
O OIIL foi criado pela Lei nº 12/2005, de 23 de Dezembro, que aprovou o orçamento de
Estado para o ano 2006. Esta lei fixa um limite orçamental de investimento público de iniciativa
privada cuja responsabilidade de execução era delegada aos governos distritais. Esses projectos
deviam obedecer a um princípio que era o da produção de comida e geração de renda e com
impacto junto às populações locais. Contudo, é preciso realçar que o lançamento do OIIL foi
resultado de um longo processo e debate ideológico de descentralização em Moçambique, cuja
operacionalização mais agressiva está patente na Lei 08/2003 de 19 de Maio (Lei dos Órgãos
Locais de Estado, LOLE) e o Decreto do Conselho de Ministros n°11/2005, de 10 de Junho,
que aprova o Regulamento da Lei dos Órgãos Locais do Estado (RELOLE).
3
O nome popular do OIIL, 7 milhões, é derivado do facto de, nos seus primeiros anos, terem sido
atribuídos 7 milhões de meticais a cada distrito rural, independentemente das características
económicas, demográficas e territoriais do distrito. Ao longo do tempo, os montantes monetários
foram alterados significativamente e já não são idênticos para todos os distritos. Mas o nome
popular, sete milhões, prevaleceu.

“7 Milhões” Desafios para Moçambique 2011 207

Desafios.indb 207 3/29/11 4:53 PM


concorrência (desleal) do Estado com instituições financeiras nacionais, entre ou-
tros (Forquilha, 2010; Chimbutane, 2010; Vaz, 2009).
Nos últimos cinco anos, o Orçamento do Estado (OE) desembolsou aproxi-
madamente US$ 200 milhões, cerca de 2% do OE total e 0,5% do Produto Interno
Bruto (PIB), para 128 distritos e quatro outras regiões administrativas.4 Apesar
de os fundos serem insignificantes, na maioria dos distritos, os “7 Milhões” são
a principal instituição financeira com potencial, capacidade e oportunidade de
influenciar as dinâmicas distritais de produção, investimento produtivo, comercia-
lização e de contribuir para estruturar o sistema financeiro local e sua integração
com o sistema financeiro nacional. Por isso, seria importante perceber, incluindo
com estudos de caso, a ligação entre os “7 Milhões” e a base produtiva local.
Um dos traços dominantes do debate sobre os “7 Milhões” é o exagero nas
expectativas e análise de impactos, tanto por parte do governo como de analistas inde-
pendentes (O País Online, 16/12/2009). O excessivo espaço que esta iniciativa ocupa
no discurso político moçambicano limita o debate sobre a estratégia de redução da po-
breza e sobre a descentralização aos “7 Milhões”, o que apenas contribui para exagerar
as expectativas e politizar a análise. Por fim, existe ainda demasiada crença nos me-
canismos de transmissão automáticos entre os fundos desembolsados e os impactos,
independentemente de todos os outros factores que possam influenciar as dinâmicas
económicas e sociais locais, ao nível dos indivíduos, das famílias e das comunidades.
As análises sobre os “7 Milhões” apresentam métodos, perspectivas e resulta-
dos contraditórios. A informação é inconsistente, dispersa e pouco detalhada para
permitir análises rigorosas e profundas, e não permite perceber ou captar a relação
dinâmica entre estruturas5, instituições6 e agentes económicos e políticos (Metier,
2009; MPD, 2009a e 2009b).
Este artigo levanta algumas perguntas e hipóteses de pesquisa sobre a ques-
tão de intervenção estratégica do Estado na construção de um sistema financeiro
que esteja relacionado com o alargamento das opções de desenvolvimento no

4
A iniciativa contemplou quatro regiões administrativas com características rurais, nomeadamente
Catembe e Inhaca (parte da cidade e Município de Maputo), Maxixe (Inhambane) e Nacala
Porto (Nampula), além de 128 distritos rurais.
5
O que engloba a estrutura de produção, quanto, quando, onde, como e para quem é produzido e
quais são as interligações no processo produtivo.
6
Instituições significam as relações económicas e sociais; organizações e estruturas, Estado e suas
políticas e legislação, mecanismos de consulta ou participação dos cidadãos e negociação política
das opções de desenvolvimento, etc.).

208 Desafios para Moçambique 2011 “7 Milhões”

Desafios.indb 208 3/29/11 4:53 PM


país. Quais são as abordagens principais em torno do debate sobre os “7 Milhões”?
Quais são os problemas dessas abordagens? Quais são as questões fundamentais
que devem ser equacionadas para a construção de uma estratégia de financiamen-
to de micro, pequenas e médias empresas no contexto de redução da pobreza em
massa? Em que medida os “7 Milhões” servem os objectivos de diversificação,
articulação e alargamento da base produtiva?
Para responder a estas perguntas, o artigo foi estruturado em três secções
adicionais. A próxima secção apresenta a evolução histórica dos “7 Milhões”. A
secção seguinte questiona os argumentos das abordagens dominantes em torno
dos “7 Milhões”, usando a base empírica disponível. A última secção sumariza o
debate e apresenta desafios de investigação.

GÉNESE E EVOLUÇÃO DOS “7 MILHÕES”

As primeiras experiências-piloto de planificação e orçamentação descentralizada


em Moçambique com foco nos distritos foram implementadas entre 1998 e 2005 na
província de Nampula. Financiadas pelo fundo das Nações Unidas para o Desenvol-
vimento (UNCDF), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
e Embaixada da Holanda, estas experiências-pilotos inseriam-se no Programa de Pla-
nificação e Financiamento Descentralizado (PPFD)7 . Esta iniciativa fundamentava-
-se na crença de que o desenvolvimento local dependia do grau de descentralização
e desconcentração de responsabilidades e recursos e da participação comunitária na
planificação e implementação de actividades do sector público local. Estas actividades
tinham como foco o desenvolvimento de infra-estruturas, o fortalecimento da capaci-
dade institucional e a articulação de objectivos e prioridades da planificação, não ape-
nas o financiamento de actividades individuais (Castel-Branco, 2003 e 2010a: 47; Faria
e Chichava, 1999: 32). Para além dos programas de investimento produtivo directo
estarem apoiados pelo financiamento na infra-estrutura e em alguns serviços produti-
vos e administrativos necessários, na época os 21 distritos de Nampula recebiam, por

7
O PPFD tinha como objectivo principal contribuir para a redução da pobreza através da
governação local melhorada. O seu objectivo imediato era aumentar o acesso pelas comunidades
rurais à infra-estrutura básica e serviços públicos, através de formas sustentáveis e replicáveis
de planificação, orçamentação, financiamento e gestão pública participativas e descentralizadas
(Ver Borowczak et al., 2004: ii).

“7 Milhões” Desafios para Moçambique 2011 209

Desafios.indb 209 3/29/11 4:53 PM


ano, quase o dobro dos fundos que os 128 distritos do País recebem por ano desde
o início da implementação do OIIL (Castl-Branco, 2003; Borowczak et al., 2004).
Em 2006, o GdM iniciou a implementação do programa dos “7 Milhões”
adstrita às administrações distritais sob a direcção dos Conselhos Consultivos Dis-
tritais (CCD). A iniciativa visava generalizar a experiência de descentralização dos
programas pilotos e concretizar a implementação da Lei dos Órgãos Locais de
Estado (LOLE) e o respectivo regulamento (RELOLE8) de 2003 e 2005 respec-
tivamente. Estes documentos legais definem o distrito como a unidade territorial
base para planificação e orçamentação (“pólo” de desenvolvimento). Com efeito,
os CCD passaram a ter um papel preponderante nas decisões distritais com o
surgimento dos “7 Milhões”, pois antes disso eram apenas um mero instrumento
político sem poder de influenciar decisões importantes no distrito.
De forma mais específica, a iniciativa é descrita pelas autoridades públicas
como um dos instrumentos fundamentais de materialização dos planos quinque-
nais do governo, das estratégias de combate da pobreza, da Estratégia de De-
senvolvimento Rural, da Revolução Verde, do Plano de Acção de Produção de
Alimentos, reflectindo a preocupação do governo pela participação dos cidadãos,
redistribuição e partilha de recursos e poder entre o governo central e local, pela
afirmação, autonomia e empoderamento dos pobres nos distritos rurais, etc. (Gue-
buza, 2009; MPD, 2009a: 5; Valá, 2010: 36)9.
A contribuição do OIIL para a redução da pobreza rural (no distrito) é con-
cretizada por via da dinamização da actividade produtiva rural levada a cabo,
maioritariamente, por pessoas pobres sem acesso ao crédito dos mercados finan-
ceiros formais, para além de estimular a participação da comunidade e indivíduos
no desenvolvimento local. Segundo Guebuza (2009), os “7 milhões” são para “a
população que tem neste fundo a sua única alternativa para gerar comida, emprego e ren-
da, reduzindo, assim, o nível de pobreza”. A iniciativa, na sua forma original, não con-
templava serviços de apoio institucional, infra-estruturas e base logística necessária
para tornar as actividades produtivas privadas viáveis e sustentáveis financeira e
economicamente.

8
RELOLE: Regulamento da Lei de Órgãos Locais de Estado.
9
Recentemente, no âmbito do discurso oficial de combate à pobreza urbana, o primeiro-ministro,
Aires Aly, anunciou que o Plano Económico e Social (PES) de 2011 prevê que os “7 Milhões”
passarão a beneficiar também os distritos urbanos e, por isso, serão alocados perto de 140
milhões de meticais para 11 capitais provinciais (O País, 24/09/2010: 6).

210 Desafios para Moçambique 2011 “7 Milhões”

Desafios.indb 210 3/29/11 4:53 PM


A filosofia, directrizes e motivação da iniciativa não estiveram sempre claras
para os beneficiários nem para os técnicos e funcionários seniores do Estado. Por
exemplo, em 2006, cada distrito usou os “7 Milhões” para financiar a construção
de infra-estruturas distritais como postos policiais, casas de funcionários públi-
cos nos distritos, pontes, unidades sanitárias, escolas, armazéns, represas e diques
de irrigação, entre outras infra-estruturas públicas, de acordo com as prioridades
distritais, em parte como forma de materializar o Plano Económico e Social e o
Orçamento Distrital (PESOD) (Rafael, 2008).
O uso dos “7 Milhões” para a construção de infra-estruturas públicas no
distrito gerou uma polémica no seio do governo, nos beneficiários e na sociedade
em geral. O governo central acusava as administrações distritais de terem feito um
“desvio de fundos” para financiar infra-estruturas públicas em vez de actividades
produtivas privadas. Por outro lado, as administrações distritais argumentavam
que o foco do investimento em infra-estruturas públicas era vital para a dinamiza-
ção dos distritos e para a redução da pobreza e, por isso, prioritário. Em adição,
os distritos argumentavam que as orientações, instruções e directrizes sobre a uti-
lização dos fundos do “7 Milhões” não estavam claras, o que dava espaço para os
CCD e administradores distritais decidirem sobre as prioridades locais (Notícias,
17/04/2007; Forquilha, 2010).
De facto, a posição do governo nesta altura, que criticava o uso do OIIL para
financiar as iniciativas locais das administrações distritais (infra-estruturas sociais,
económicas e públicas) entrava em contradição com as Orientações Metodológicas
emitidas pelo Gabinete do Ministro das Finanças através do Ofício nº 101/GM/
MF/2006 datado de 12 de Maio de 2006, que ilustram parcialmente a fonte da con-
fusão sobre a aplicação dos fundos. Este ofício diz claramente que os fundos deviam
ser direccionados para: (i) infra-estruturas socioeconómicas “de interesse público cuja
intervenção pode em grande medida ter resposta ao nível local privilegiando-se o envolvimen-
to de empreiteiros e artesãos locais” e; (ii) actividades de promoção de desenvolvimento
local de impacto no combate à pobreza. O mesmo ofício indica os procedimentos
técnicos para a execução dos fundos. Isto sugere que, em princípio, era possível usar
o dinheiro para infra-estruturas locais que, de acordo com a interpretação local, sig-
nificava também infra-estruturas públicas no geral tanto para viabilizar os projectos
individuais como para viabilizar económica e socialmente o distrito no seu todo.
Em resposta às fraquezas conceptuais e conflito de orientações acerca dos ”7
Milhões”, modificações importantes foram introduzidas mesmo a partir de finais

“7 Milhões” Desafios para Moçambique 2011 211

Desafios.indb 211 3/29/11 4:53 PM


de 2006. Primeiro, foram estabelecidos critérios de diferenciação na alocação de
recursos aos distritos, a partir do OE de 2007, que se baseiam na (i) densidade po-
pulacional (com peso de 35%), (ii) índice de pobreza distrital (com peso de 30%),
(iii) extensão territorial do distrito (com peso de 20%) e (iv) capacidade de colecta
de receitas fiscais (com peso de 15%) (MPD, 2009b). Por exemplo, por causa da
alteração dos critérios, de acordo com a Lei do OE em 2008, em Nampula os
fundos atribuídos variavam entre cerca de 7,5 milhões de meticais na Ilha de Mo-
çambique e Lalaua e 8,9 milhões de meticais em Moma.
Segundo, foram clarificados os objectivos e tipos de acções e actividades que
devem ser financiados com os fundos dos “7 Milhões”: produção de comida e gera-
ção de renda em actividades de pequena escala levadas a cabo por famílias pobres,
individualmente ou em forma de associação. Como resultado disso, a partir do ano de
2007, a orientação era que a totalidade dos fundos deveria ser aplicada para a produ-
ção de comida, geração de renda e criação de emprego. No ano anterior, na maioria
dos distritos, até 70% dos fundos foram aplicados para construção de infra-estruturas
públicas, marginalizando as actividades produtivas privadas directas (MPD, 2009b).
Terceiro, o orçamento distrital foi reforçado em 2,3 milhões de meticais para
financiar investimento em infra-estruturas públicas (desde 2009 o valor atingiu
cerca de 2,5 milhões de meticais). Parece que o objectivo destes fundos adicionais
para o investimento do distrito é, em parte, reduzir a pressão sobre os “7 Milhões”
e evitar desvios de aplicação. Ao mesmo tempo, permite garantir que certas infra-
-estruturas básicas sejam construídas para complementar os “7 Milhões” e para
melhorar as condições de acesso a serviços públicos no geral.
Quarto, estão a ser criados continuamente instrumentos reguladores para
facilitar e institucionalizar os mecanismos de monitoria do processo de execução
deste orçamento. Em 2009, foi publicado o Guião sobre a organização e funcio-
namento dos conselhos locais10 e as Direcções Provinciais do Plano e Finanças
(DPPF) receberam os instrumentos reguladores, nomeadamente: (i) modelo de
contrato de empréstimo, (ii) modelo de ficha de identificação do projecto, (iii)
modelo de ficha de análise do projecto, (iv) modelo de ficha de acompanhamento
do projecto e (v) modelo de ficha resumo/progresso do projecto11. Entretanto,

10
Diploma Ministerial nº 67/2009 publicado em conjunto pelo Ministério da Planificação e
Desenvolvimento e Ministério das Finanças publicado em MPD (2009a).
11
Ver Circular nº 002/MPD/GM/2009 do Ministério da Planificação e Desenvolvimento
publicada em MPD (2009a).

212 Desafios para Moçambique 2011 “7 Milhões”

Desafios.indb 212 3/29/11 4:53 PM


numa entrevista a um funcionário sénior da DPPF de Niassa, em finais de 2010,
este questionou a utilidade de tantos formulários e revelou que o processo tem
decorrido sem o preenchimento dos mesmos.
Em finais de 2009, o OIIL foi transformado em Fundo Distrital de Desen-
volvimento (FDD), com personalidade jurídica, autonomia administrativa e fi-
nanceira, gerido localmente. O FDD é tutelado pelo Governador provincial que
homologa os planos e relatórios de actividades, autoriza a recepção de donativos
e abertura de contas e realiza inspecções regulares. A execução das actividades do
FDD é da responsabilidade dos CCD. Assim, o FDD pode recorrer aos reembol-
sos, às subvenções do Estado, donativos e fundos comunitários para dar crédito às
pessoas pobres (Conselho de Ministros, 2009).
De acordo com o regulamento do fundo, as actividades a serem financiadas,
adoptando juros bonificados, são aquelas que visam estimular o empreendedo-
rismo local, actividades de produção e comercialização de alimentos, geração de
emprego e renda e outras actividades relacionadas com actividades produtivas.
Até que ponto o FDD representa, de facto, um avanço significativo na concepção
e metodologia de trabalho dos “7 Milhões”, esta é uma questão que ainda não tem
resposta definitiva e clara.

ABORDAGENS SOBRE OS “7 MILHÕES”

O foco desta secção é olhar para as diferentes abordagens em torno da aná-


lise sobre os “7 Milhões”. A abordagem oficial baseia-se na ideia de que a redução
da pobreza é resultado da combinação de serviços públicos com factores culturais
e comportamentais individuais (definidos como capital social ou capital indivi-
dual), tais como ter uma atitude individual adequada em relação à produção e ao
trabalho e ter as qualificações para transformar essa atitude empreendedora em
riqueza. Uma maneira de fazer isso é os pobres abandonarem a sua postura de
auto-comiseração e libertarem a sua iniciativa e criatividade tornando-se, por isso,
empreendedores que contribuem quer para a redução da sua própria pobreza,
quer para ajudar outros a sair da pobreza através da geração de empregos.
O debate crítico à volta dos “7 milhões” pode ser agrupado em três temas
principais: (i) a abordagem do neopatrimonialismo, que aponta as limitações desta
iniciativa em relação aos objectivos formalmente apresentados em face da promis-

“7 Milhões” Desafios para Moçambique 2011 213

Desafios.indb 213 3/29/11 4:53 PM


cuidade que ela propicia entre interesses partidários e públicos; (ii) a abordagem
de competição financeira que foca a ineficiência do Estado como financiador do
sector privado e dos efeitos distorcionários que o OIIL gera no mercado finan-
ceiro; e (iii) as críticas às avaliações oficiais de impacto da iniciativa baseadas em
informação incipiente e incoerente com outros dados oficiais.

ABORDAGEM DE POBREZA INDIVIDUALIZADA


A abordagem oficial em relação aos “7 Milhões” pode ser rotulada de “abor-
dagem de pobreza individualizada” pelo facto de responsabilizar o pobre pela sua
condição e recomendar o empreendorismo dos pobres como a saída imediata
da pobreza. Isto explica o foco em projectos individuais, na mudança de atitu-
des dos pobres em relação ao trabalho, auto-estima, responsabilidade individual,
assim como o desenvolvimento do capital individual, que, segundo esta aborda-
gem, constituem os insumos fundamentais para a saída da pobreza, emancipação
e empoderamento dos pobres (Brito, 2010; Castel-Branco, 2010b; Chichava, 2010;
Guebuza, 2009).
Segundo o discurso oficial, os “7 Milhões” têm foco nas pessoas pobres sem
capacidade de ter acesso a crédito no sector financeiro formal:

(...) 7 Milhões são direccionados aos nossos compatriotas pobres que através do reem-
bolso permitem que outros pobres tenham acesso a estes recursos e, ao mesmo tempo,
aumentem a capacidade de empréstimo a mais pobres. São recursos que contribuem
para elevar a sua auto-estima e para combater a prática da mão estendida. Por isso, seria
demagógico partilhar da opinião de que os mutuários não devem devolver o emprésti-
mo. Eles devem-no aos seus pares, também pobres, que querem libertar-se da pobreza
(Guebuza, 2009).

Armando Guebuza define a natureza dos beneficiários da iniciativa (compa-


triotas pobres) e torna claro que os fundos não são donativos mas empréstimos,
que devem ser reembolsados para que sejam usados em benefício de outros po-
bres. E, a maneira viável de usar os recursos é que os pobres se transformem em
pequenos empreendedores locais usando a sua criatividade, iniciativa e recursos
naturais locais para gerar renda e emprego para si e para outros.
Numa perspectiva neoliberal, a ênfase nos pequenos empresários individuais
(ou pequenas e médias empresas) é ideologicamente justificável porque políticas
pró-pequeno permitem gerar agentes económicos sem o poder de influenciar as
condições de mercado ou exercer o poder de mercado, o que obriga à competição

214 Desafios para Moçambique 2011 “7 Milhões”

Desafios.indb 214 3/29/11 4:53 PM


livre e, por via desta, à eficiência e eficácia individual e social12. Neste contexto,
as micro, pequenas e médias empresas (PMEs) têm um papel importante nos “7
Milhões” como sugere Valá:

(...) uma aposta estratégica e decisiva nas PMEs é a primeira grande mudança que se
impõe… As micro e PMEs são o motor da nossa economia, constituem uma das princi-
pais fontes das nossas exportações, contribuem decisivamente para a criação da riqueza e
geram um elevado número de postos de trabalho (Valá, 2009: 349).

Nesta abordagem, a função do Estado é de ser facilitadora da iniciativa priva-


da (rural), intervindo para conceder empréstimo como forma de suprir uma falha
do mercado financeiro doméstico e oferecer outros insumos (educação, assistência
sanitária e infra-estrutura pública) que reforçam o capital humano dos pobres. Isto
é, uma vez que o sistema financeiro formal não está estruturado para responder às
necessidades de financiamento de pessoas pobres e de micro, pequenas e médias
empresas, torna-se função do Estado desembolsar crédito àqueles que o mercado
não atinge, principalmente nas zonas rurais (MPD, 2009; Prodeza, 2010). Por um
lado, este modelo de redução de pobreza advoga um estado interventivo até ao
ponto em que essa intervenção reforça o capital individual ou comunitário. Por
outro lado, a intervenção não deve impedir as pessoas de se tornarem mais em-
preendedoras. De acordo com Valá (2009: 253) “um Estado para uma situação como
a de Moçambique rural deve ser razoavelmente interventivo desde que isso não ponha
em causa as liberdades fundamentais dos indivíduos e não atrofie a iniciativa privada”.
O discurso oficial apregoa o sucesso da iniciativa com base numa diversidade
de informação e dados estatísticos não sistematizados como, por exemplo, fundos
desembolsados, número de postos de trabalho gerados, áreas cultivadas, produção
agrícola, etc. No entanto, o debate sobre os “7 milhões” avança uma série de as-
pectos críticos relativamente à fragilidade dos critérios e do suporte empírico dos
resultados positivos atribuídos à iniciativa.

12
É nessa perspectiva em que se enquadra a Estratégia de Desenvolvimento Rural, Estratégia de
Revolução Verde, Programas de Promoção de Indústria Rural, Plano de Acção para Produção
de Alimentos (PAPA) e a Estratégia de Finanças Rurais. A preocupação não é a criação de uma
base produtiva com agentes e ligações historicamente e socialmente definidas, mas sim criar um
tipo de empresas, de certo tamanho, porque se acredita que reduzem a pobreza. No entanto, a
pobreza não é reduzida por haver grande ou pequena empresa mas sim pela maneira como os
recursos são usados e os ganhos são distribuídos entre os donos do capital e dos trabalhadores.

“7 Milhões” Desafios para Moçambique 2011 215

Desafios.indb 215 3/29/11 4:53 PM


NEOPATRIMONIALISMO DE ESTADO
As abordagens institucionalistas enfatizam a inadequação das instituições
para responder aos desafios dos “7 Milhões”. Estas inadequações incluem, por
exemplo, a corrupção, limitada expressão democrática, fraca descentralização em
relação ao desejável, incapacidade inerente à administração pública em relação ao
mercado. O neopatrimonialismo de Estado é apenas uma das abordagens que será
discutida com certo detalhe nesta secção.
O neopatrimonialismo enfatiza o carácter personalizado do sistema político
em volta do “príncipe” e a elite (a máquina burocrática) à sua volta, limitando o
acesso ao poder e recursos à maioria da população (Badie e Hermet, 2001: 21;
Bourmaud, 1997: 61-62). Quer dizer, o Estado não se legitima apenas por mérito
e capacidade de organização e mobilização das pessoas usando as regras formais
através da administração burocrática, procedimentos e regulamentos, mas sim, e
talvez consistentemente, recorrendo a relações informais entre a elite e a popu-
lação ou grupos de população. Esta abordagem é patente em Forquilha (2010 e
2009) e Chichava (2010) quando analisam a natureza do Estado moçambicano e
a sua relação com os cidadãos no contexto de adopção de políticas públicas em
Moçambique. Forquilha usa o conceito de neopatrimonialismo do Estado tanto
no contexto dos “7 Milhões” como no processo de descentralização em geral.
Para Forquilha (2010: 41-44), a iniciativa “7 Milhões” é um instrumento for-
mal criado pelo Estado para atingir objectivos patentes em documentos estraté-
gicos formais para a redução da pobreza, redução de assimetrias regionais, pro-
mover a participação activa dos cidadãos, etc. Entretanto, informalmente, os “7
Milhões” são um instrumento na mão do governo, representado pelo partido no
poder, para conquistar espaço político, redistribuir rendimentos para os membros,
indivíduos e grupos de cidadãos leais ou que se identifiquem com a sua causa. E, as
consequências de um Estado com essas características são a exclusão social, eco-
nómica e política e o controlo do poder político e económico e dos recursos pelas
elites e pelo partido no poder, pois o critério de pertença ao partido é o que mais
domina para a participação e emancipação dos cidadãos, quer politicamente quer
economicamente. Desse modo, criam-se as condições de um Estado legitimado
por alguns mas sem mérito, onde se promove o clientelismo, marginalização da
maioria da população, nepotismo, corrupção, etc.
Vaz (2009) corrobora com a natureza neopatrimonial do Estado moçambi-
cano. Vaz argumenta que os “7 Milhões”, o propósito de tornar o distrito como o

216 Desafios para Moçambique 2011 “7 Milhões”

Desafios.indb 216 3/29/11 4:53 PM


centro da planificação e orçamentação e as presidências abertas promovidas pelo
governo de Armando Guebuza, reflectem um esforço para beneficiar mais as elites
locais e servidores do Estado, ligadas ou não ao partido no poder, e aumentar o
poder e a legitimidade do Presidente Armando Guebuza para controlar e punir os
níveis mais baixos da pirâmide de poder.
A discriminação no acesso aos fundos dos “7 Milhões”, baseada na pertença
ao partido no poder, é fomentada tanto pelos administradores dos distritos como
pelos membros dos conselhos consultivos dos distritos (CCD) e é constantemente
denunciada no decurso da presidência aberta através da imprensa. Ainda mais, o
fraco reembolso dos “7 Milhões” ao nível de todos os distritos, aliado à ausência
de mecanismos fiáveis de cobrança dos mutuários, sugere que a não cobrança
seja uma atitude deliberada e intencional do partido no poder. Em relação a isso,
alguns políticos da oposição “dizem não ter dúvidas que a atribuição do valor foi
concebida única e exclusivamente para cimentar a hegemonia do partido no po-
der, a Frelimo, ao longo do país, principalmente ao nível das comunidades rurais”
(Mediafax, 26.05.2010).
O funcionamento da iniciativa “7 Milhões” coloca a nu as deficiências no
sistema de governação local. A presidência aberta levada a cabo pelo Presidente
da República tem mostrado continuamente o descontentamento dos cidadãos em
relação à atitude e comportamento dos seus dirigentes ao nível local sobre a ges-
tão dos “7 Milhões”. Alguns administradores e funcionários, ligados directamente
à gestão dos fundos, perderam os seus empregos e cargos públicos. Ironicamente,
a presidência aberta e os “7 Milhões” foram capazes de mostrar o mau carácter
dos dirigentes ao nível mais baixo da pirâmide da função pública.
Até que ponto o OIIL realmente reflecte a democratização ao nível local
ou descentralização das decisões e tomada de decisão? Não será esta iniciativa o
reflexo de populismo do governo? Não será apenas uma forma de mobilização na-
cional de massas que estavam esquecidas no mapa político moçambicano? Como
e até que ponto é que a iniciativa tem contribuído para a melhoria do bem-estar
das populações pobres? Até que ponto os “7 Milhões” e a descentralização reflec-
tem a partilha institucional/formal do poder? Não será uma forma de legitimação
do poder do governo?
A base empírica que sustenta a abordagem neopatrimonial do estado no con-
texto dos “7 Milhões” é ainda escassa mas ilustrativa. Forquilha usa um estudo de
caso (baseado em entrevistas) do distrito de Gorongosa para suportar o seu argu-

“7 Milhões” Desafios para Moçambique 2011 217

Desafios.indb 217 3/29/11 4:53 PM


mento. Primeiro, os administradores distritais têm tido muito poder de influência
e controlo sobre os conselhos locais e na selecção dos respectivos membros. Por
exemplo, a composição do conselho distrital da Gorongosa mostra que mais de 60%
dos seus membros vêm de grupos sob controlo do administrador (e da Frelimo), o
que põe em causa a representatividade no conselho local para tomar decisões que
reflictam os interesses heterogéneos da comunidade (Forquilha, 2010: 33-34).
Segundo, os projectos financiados pelos “7 Milhões” não estão ligados ao
Plano Estratégico de Desenvolvimento Distrital (PEDD) em Gorongosa. Apenas
7% dos projectos aprovados e financiados estão relacionados com a agricultura
e o turismo, considerados como sectores prioritários pelo PEDD, e os restantes
obedecem a lógicas informais. Os documentos formais têm pouca influência na
tomada de decisões e prevalecem as lógicas informais na tomada de decisões.
Terceiro, há um claro controlo de processo de atribuição dos “7 Milhões”
e uma “fraca distinção entre a esfera estatal e a partidária” por parte da Frelimo
em Gorongosa, a avaliar pelo facto de que, em 2007, perto de 70% dos mutuários
tinham declarado que eram membros da Frelimo e apenas 7% eram da Renamo.
No entanto, a percentagem de eleitores que votaram na Frelimo em 2004 em todo
o distrito era de 54%, contra 32% da Renamo. No distrito de Vanduzi, o foco do
estudo de Forquilha (2010), a proporção de votos para a Frelimo e para a Renamo
é mais próxima (7% para a Frelimo e 43% para a Renamo). Portanto, a enorme
disparidade entre os votantes da Frelimo e os da Renamo no acesso a fundos do
OIIL não é representativa do peso de cada partido no voto popular, o que sugere
haver discriminação activa na atribuição dos fundos. Para além disso, entrevistas
feitas a cidadãos simpatizantes da Frelimo que tiveram acesso ao OIIL indicam
que uma parte considerável deles acredita que o facto de ser membro do partido
no poder facilitou tanto a aprovação como o financiamento do seu projecto.
Quarto, entre 1994 e 2004, o voto da Renamo na Gorongosa e em Vandu-
zi aumentou significativamente, passando de 18% para 32% (Gorongosa) e 12%
para 43% (Vanduzi). Consequentemente, se o peso do voto da Renamo aumentou
tão significativamente, o peso do voto na Frelimo diminui (de 63% para 54% no
distrito da Gorongosa como um todo, e de 63% para 57% em Vanduzi). A re-
versão desta tendência em 2009 poderá ter sido também apoiada pela utilização
neopatrimonial do OIIL. Se a percepção popular for que ser apoiante (membro
ou simpatizante) da Frelimo é um critério determinante para garantir o acesso
aos “7 milhões”, então (i) as pessoas não têm que receber os fundos para se torna-

218 Desafios para Moçambique 2011 “7 Milhões”

Desafios.indb 218 3/29/11 4:53 PM


rem apoiantes e votantes da Frelimo, basta que pensem que apoiando a Frelimo
melhoram substancialmente a sua probabilidade de ter acesso aos fundos; e (ii)
esta percepção deverá reflectir-se na consolidação do poder das elites locais e no
comportamento eleitoral da população (como se reflectiu em 2009).
De todo o modo, embora os dados e o conhecimento das práticas informais
locais sugiram uma activa discriminação a favor do uso a OIIL para a consolida-
ção do poder das elites dirigentes da Frelimo, é preciso ajustar esta análise para
dois factores importantes. Primeiro, apenas um pequeno número de membros
e apoiantes da Frelimo (a sua elite dirigente) beneficia do neopatrimonialismo
político. Segundo, num contexto em que tanto a pobreza como o combate à po-
breza são entendidos pelas elites políticas dirigentes do Estado como assuntos
individuais, é muito mais provável que as elites locais estabelecidas (comerciantes,
agricultores, operadores financeiros informais, etc.) tenham acesso ao grosso dos
recursos. Por razões históricas específicas de Moçambique, estas elites tendem a
estar ligadas à Frelimo. Mesmo controlando estes factores, a suspeita de que o
OIIL é usado para fins políticos continua demasiado forte para ser descontada.

ABORDAGEM DE COMPETIÇÃO FINANCEIRA


Esta abordagem enfatiza que não cabe ao Estado conceder e gerir direc-
tamente o crédito aos agentes privados por várias razões. Primeiro, já existem
instituições especializadas, e com experiência de gestão, para desempenhar a ac-
tividade creditícia. Isto é, o crédito só faz sentido, por regra, se for concedido por
uma instituição financeira privada e o Estado pode definir as regras que devem
ser adoptadas para o tipo de crédito que quer conceder (Chimbutane, 2010). A
mesma posição é partilhada por António Souto:

Se estamos a falar de crédito, é preciso termos instituições apropriadas para dar crédito.
As instituições das administrações locais não foram concebidas e não estão preparadas
para fazer isso. A observação não é minha, é de todas as pessoas que sabem como fun-
ciona o sistema financeiro. (Quando não se observam as regras) o resultado é óbvio: há
desvios e uma ineficiente aplicação (O País, 16/04/2009).

Segundo, o Estado devia retirar-se do sistema financeiro para evitar a con-


corrência desleal com as instituições financeiras vocacionadas para o micro crédi-
to nas zonas rurais ou com organizações não governamentais.
Este argumento levanta três questões interessantes. Primeira: se as instituições
e serviços financeiros são fracos, em especial nas zonas rurais e destinadas aos gru-

“7 Milhões” Desafios para Moçambique 2011 219

Desafios.indb 219 3/29/11 4:53 PM


pos mais desfavorecidos, será solução criar um serviço público administrado pelos
governos locais, sem qualquer tradição e experiência sobre o funcionamento do
sistema de crédito local? Ou será preferível corrigir, directamente, o que impede
as instituições financeiras de prestarem estes serviços? Segunda: será que os 11 mi-
lhões de moçambicanos vivendo em pobreza severa podem resolver os seus pro-
blemas individualmente e com recurso a crédito? Estas duas questões são cruciais
para discutir e conceber sistemas de financiamento rural. Terceira: em que medida
é que de facto há concorrência e distorção provocada pelo OIIL se dois terços dos
distritos rurais em Moçambique não são servidos por qualquer forma de instituição
financeira reconhecida? De toda a maneira, as duas primeiras questões são demasia-
do importantes para serem negligenciadas no debate sobre finanças rurais.

BASE EMPÍRICA DE AVALIAÇÃO DE IMPACTO


O que dizem os dados empíricos e em que medida é que ajudam a esclarecer
ou a obscurecer o debate?
A abordagem oficial não apresenta critérios claros para avaliação do impacto
do OIIL. Oficialmente, o critério de avaliação da iniciativa dá ênfase ao desembol-
so dos fundos, à execução dos mesmos e foca análises muito agregadas, baseadas
nas intenções de investimento. Existe uma dose elevada de crença de que, uma vez
que os fundos tenham sido desembolsos para os distritos, eles automaticamente
fluem para os mais pobres, e tudo o resto acontece automaticamente (mais empre-
go, mais produção, mais participação, etc.) como sugere um estudo encomendado
pelo MPD:

A falta de relatórios sistemáticos de acompanhamento e de avaliações de projectos, em


curso ou já realizados, faz com que a referência aos impactos seja feita com um discurso
globalizado e com base em índices como o aumento das áreas cultivadas, a melhoria da
qualidade de habitação, a compra de equipamentos, etc. (…) as avaliações de impacto
realizadas são feitas com base no que está dito na proposta de projecto, o que é bastante
vago, e não com base no que de facto acontece… (Metier, 2009: 54).

O discurso oficial defende que a produção agrícola, o controlo de recursos


públicos pela administração local e o emprego aumentaram significativamente
enquanto a pobreza foi “fragilizada”, mas este discurso não recorre a uma base es-
tatística sólida e reconhecida. Por exemplo, o governo anunciou que, até Outubro
de 2010, haviam sido criados cerca de 261 mil empregos nos 49,4 mil projectos
financiados em todas as áreas, com destaque para a agricultura e para a peque-

220 Desafios para Moçambique 2011 “7 Milhões”

Desafios.indb 220 3/29/11 4:53 PM


na indústria (moageiras, prensas de óleo, processadoras de vegetais e de frutas)
(Cuereneia, 2010). Isto significa que, em média, cinco pessoas foram empregues
em cada projecto. Em muitos casos, o emprego inclui o proprietário e, noutros ca-
sos, contabilizam-se os membros das associações beneficiárias mas que já existiam
antes do OIIL, o que certamente inflaciona o volume de emprego criado. Além
disso, as estatísticas não distinguem nem informam sobre a natureza do emprego:
será ocasional/eventual ou mais permanente? Será familiar ou não? Quais são as
condições desse emprego? Os dados também assumem que o emprego é cumula-
tivo, isto é, os postos de trabalho criados num período acumulam sobre os postos
de trabalho criados no período anterior; postos de trabalho criados num projecto
acumulam sobre os postos de trabalho criados noutro projecto. Isto é, o cálculo
não contempla a possibilidade de os projectos falirem e de a força de trabalho ser
suficientemente móvel para circular de um projecto ou região para outro. Final-
mente, estes dados são baseados em “intenções”, em vez de “realizações”, e em
“relatórios” vagos e pouco criteriosos, em vez de em “verificação directa”.
Por outro lado, a discussão sobre o impacto feita pelo GdM não se reconcilia
com outras fontes oficiais e não oficiais que analisam tendências de pobreza, pro-
dução e produtividade. A 3ª avaliação da pobreza em Moçambique mostrou que (i)
a percentagem da população vivendo abaixo da linha da pobreza não diminuiu e
até aumentou nas zonas rurais; (ii) o número absoluto de pobres aumentou em dois
milhões; (iii) a severidade da pobreza aumentou ligeiramente; e (iv) a produção ali-
mentar per capita e a produtividade agrícola diminuíram (DNEAP, 2010; Cunguara
e Hanlon, 2010). Em casos extremos, como em Cuereneia (2010), o discurso oficial
sobre o sucesso do OIIL ignora completamente a estatística oficial publicada.
Para esta abordagem, o centro da discussão deve ser como a iniciativa se arti-
cula com os objectivos de desenvolvimento mais gerais que passam pela expansão,
diversificação e articulação da base produtiva. Neste sentido, as várias abordagens
apresentam várias limitações de carácter metodológico e conceptual.
A abordagem oficial peca ao perceber a pobreza como um fenómeno emi-
nentemente individual quando este é um fenómeno social que resulta do padrão
de acumulação dominante apoiado, tolerado e sustentado pelo governo e pelo
grande capital. Ao focar ideologicamente as micro e PMEs, ignora as dinâmicas
da empresa capitalista cuja probabilidade de sucesso está relacionada com aquisi-
ção de poder, experiência, competências e capacidades que precisam de ser cons-
truídas, assim como das condições institucionais e da base logística criada (ou pelo

“7 Milhões” Desafios para Moçambique 2011 221

Desafios.indb 221 3/29/11 4:53 PM


Estado ou pelos privados) para facilitar e viabilizar os projectos individuais. Por
outro lado, esta análise ignora as dinâmicas actuais em que as políticas e as orga-
nizações institucionais em Moçambique são mais favoráveis ao desenvolvimento
do grande capital internacional (Castel-Branco, 2010a).
O GdM argumenta que a iniciativa ajudou a aumentar a produção agrária as-
sim como potenciou alguns empresários locais (Cuereneia, 2010; Guebuza, 2009;
Valá, 2010). Para além do fraco suporte empírico destas constatações, mesmo nos
casos em que a produção e produtividade tenham aumentado, “não existem estra-
tégias para aproveitar, transformar, conservar e comercializar de forma sustentável
a produção”. Quão útil é reforçar as capacidades dos distritos de produzir mais e
com mais produtividade quando depois não é possível comercializar, conservar e
processar? Onde estão, ou como é que vão ser criados e desenvolvidos, os serviços
e a base logística de apoio à produção, transformação, comercialização, transpor-
te, controlo da qualidade, financiamento, formação, informação, etc?
O discurso oficial menciona emprego gerado, mas não discute a qualidade e
a dinâmica do mesmo. Olha para evolução da produção agrícola sem relacioná-
-la com a expansão da população. Enfatiza a criação de auto-emprego mas não
garante as condições infra-estruturais, institucionais, sociais e económicas cruciais
para o sucesso de iniciativas privadas quer focadas em pobres quer não. A inicia-
tiva promove alguns cursos de formação, capacitação em matérias de empreen-
dedorismo, gestão financeira e de negócios, imposto simplificado de pequenos
contribuintes e licenciamento de negócios, mas essas formações não substituem
a necessidade de construção de uma base infra-estrutural, institucional e serviços
de apoio básicos que garantem a sustentabilidade dos projectos individuais, nem
capacitam para produzir e organizar a produção, o aprovisionamento, a investiga-
ção, o financiamento e a comercialização com eficácia (DPPF, 2010).
Por outro lado, o volume dos fundos distribuídos aos empreendedores nos
distritos é demasiado pequeno para permitir alterações profundas na vida das pes-
soas, tendo em conta as taxas de pobreza em Moçambique. As 132 regiões admi-
nistrativas disputam US$ 40 milhões por ano, o que representa 2% do orçamento
de Estado, 0,5% do PIB e cerca de 7% dos orçamentos provinciais. Além disto, o
OIIL é maioritariamente financiado pela realocação de fundos dos Orçamentos
dos Governos Provinciais; isto é, não são novos recursos financeiros. Comparati-
vamente, o PPFD de Nampula, na primeira metade dos anos 2000, alocava todos
os anos novos recursos financeiros aos distritos que equivaliam a cerca do dobro

222 Desafios para Moçambique 2011 “7 Milhões”

Desafios.indb 222 3/29/11 4:53 PM


do que todos os distritos do País hoje recebem. No contexto de pobreza massiva,
quão significantes são esses fundos na redução da pobreza? (Savana 08/10/2010).
Apesar de esses fundos representarem algum progresso na alocação de recursos
nos distritos, dada sua exiguidade, não faz sentido dar demasiada ênfase à inicia-
tiva como se fosse substituto das estratégias mais globais de combate à pobreza.
As evidências para um ou outro argumento são ainda muito circunstanciais,
em vez de directas e não ambíguas. Esta evidência indica que (i) a base produtiva
comercial e com capacidade e potencial para construir economias de escala não se
está a desenvolver solidamente; (ii) as condições de criação e reprodução de nova
capacidade produtiva diversificada, articulada e que pode alimentar o consumo e
a economia ainda não estão a ser criadas numa base sistemática e dinâmica; (iii)
o carácter extractivo da economia está a ser reproduzido e generalizado (e não
por via do OILL, mas do grande investimento privado e público); (iv) o enfoque
em actividade artesanal de muito pequena escala, desarticulada e concentrada nos
estágios mais primários (extractivos) da produção, impede a emergência e conso-
lidação de cadeias de produto e valor e a sua sofisticação. De facto, é miserabilista
a visão que preside à retórica de combate à mentalidade miserabilista dos pobres.

DESAFIOS DOS “7 MILHÕES” NO CONTEXTO DA


DIVERSIFICAÇÃO DA BASE PRODUTIVA
Os “7 Milhões” em Moçambique são o produto do argumento da descentra-
lização que destaca que os agentes locais (nos distritos) devem tanto participar na
tomada e implementação de decisões que lhes dizem respeito como partilhar e
gerir os recursos disponíveis para promover o desenvolvimento local. A alocação
de fundos para financiar actividades produtivas privadas é considerada pelas abor-
dagens dominantes como uma maneira adequada de promover inclusão económi-
ca, social e política. Apesar de esses recursos serem insignificantes, há demasiadas
expectativas e especulações sobre o alcance dos fundos para a redução da pobreza
e aumento de produção nas zonas rurais, mesmo que os dados estatísticos oficiais
não confirmem isso.
O primeiro desafio dos “7 Milhões” é como relacionar o seu impacto com o
alargamento, diversificação e expansão da base produtiva local. Isso implica perce-
ber e analisar as condições infra-estruturais e institucionais que tornam os projectos

“7 Milhões” Desafios para Moçambique 2011 223

Desafios.indb 223 3/29/11 4:53 PM


individuais viáveis. Mais dinheiro distribuído aos indivíduos precisa de ser acom-
panhado por uma estratégia de criação de serviços de apoio complementares. Isso
implica também enquadrar os “7 Milhões” na estratégia de investimento público e
privado e na estratégia de expansão do sistema financeiro em Moçambique.
O segundo desafio é que a iniciativa precisa de gerar uma base de dados e
informação mais consistente, detalhada, de modo a permitir uma análise desagre-
gada, rigorosa e mais profunda. A informação disponível não permite perceber
nem capta a relação dinâmica entre estruturas, instituições e agentes económi-
cos e políticos relacionados com instituições e estruturas. Muita dessa informação
poderá vir, se houver uma melhoria nos mecanismos de monitoria de projectos
aprovados e de recolha de informação e disseminação da informação.
Finalmente, o terceiro desafio é avançar de uma análise normativa sobre
o Estado e os “7 Milhões”para abordagens que explicam o que e porque está a
acontecer. Qual é a base produtiva que é apoiada pelos “7 Milhões” e que tipo de
agentes beneficiam? Como beneficia? Talvez estudos de caso sistemáticos, com
metodologias inovadoras, poderão dar luz sobre a ligação entre os “7 Milhões” e
a base produtiva local.

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226 Desafios para Moçambique 2011 “7 Milhões”

Desafios.indb 226 3/29/11 4:53 PM


Lei 12/2005, de 23 de Dezembro. Boletim da República, I Série, nº 51, 4º Suple-
mento.
Metier, Consultoria & Desenvolvimento, 2009. Análise da Execução do Orçamen-
to de Iniciativa Local (OIIL) nos Distritos. Discussion Paper No. 64P. DNEAP
(Direcção Nacional de Estudos e Análise de Políticas). Maputo: Ministério
da Planificação e Desenvolvimento.
MPD (Ministério da Planificação e Desenvolvimento), 2009a. Execução do Orça-
mento de Investimento de Iniciativa Local (7 Milhões) – Orientações Meto-
dológicas. Maputo: MPD.
MPD (Ministério da Planificação e Desenvolvimento), 2009b. Relatório Balanço
da Implementação do Orçamento de Investimento de Iniciativa Local 2006
– 2008. Maputo: Governo de Moçambique.
Prodeza, 2010. Experiências e lições aprendidas 2006 – 2010: Fortalecendo as
bases para o desenvolvimento rural sustentável da Zambézia.
Rafael, A., 2009. Os “Pecados Capitais” do Fundo de Investimento da Iniciativa
Local. In O País, Quarta-feira, 17 de Junho 2009, pp. 12-13.
Valá, S., 2009. Desenvolvimento Rural em Moçambique: Um Desafio ao Nosso
Alcance. Maputo: Marimbique.
Valá, S., 2010. O Orçamento de Iniciativa Local e a Dinamização da Economia
Rural em Moçambique. Economia, Política e Desenvolvimento, Volume 1, Núme-
ro 2. Revista Científica Inter-Universitária, pp. 27-51.
Vaz, E., 2009. Colectivização do risco e privatização do lucro: A governação de Gue-
buza em cinco tempos. Disponível em http://ideiasdemocambique.blogspot.
com/2009/07/colectivizacao-do-risco--privatizacao.html (Acedido a 17.08.2010)

ARTIGOS EM ÓRGÃOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL


Mediafax, 26/05/2010. “É preciso ver o impacto dos sete milhões e não os níveis
de devolução” - Armando Guebuza. Maputo: Mediafax.
Notícias, 06/06/2006. Planificação deve privilegiar inclusão e participação – Aiu-
ba Cuereneia. Maputo: Notícias.
Notícias, 19/08/2006. Eráti gasta sete biliões nas estradas. Notícias: Maputo.
Notícias, 02/07/2007. Aplicação dos sete milhões: Administradores de Sofala pro-
metem corrigir erros. Maputo: Notícias.
Notícias, 15/04/2007. No norte do país: dirigentes divergem na aplicação dos sete
milhões. Maputo: Notícias.

“7 Milhões” Desafios para Moçambique 2011 227

Desafios.indb 227 3/29/11 4:53 PM


Notícias, 17/04/2007. Administradores prometem melhorar gestão orçamental.
Maputo: Notícias.
O País Online, 16/12/2009. “Crescimento do país não é o fim da pobreza” - João
Mosca diz o que pensa, sem subterfúgios. SOICO: Maputo. Disponível
em: http://www.opais.co.mz/index.php/entrevistas/76-entrevistas/3532-
-crescimento-do-pais-nao-e-o-fim-da-pobreza.html?showall=1 (acedido aos
15/11/2010).
O País Online, 12/11/2010. Política dos “Sete Milhões” é discriminatória – De
acordo com Daviz Simango edil da Beira. Maputo: SOICO.
O País,(24/09/2010. Governo recua e anuncia “7 Milhões” para distritos Urbanos.
Maputo: SOICO, p. 6.
Savana, 10/09/2010. Economia Moçambicana ao Bisturi (fim) – Uma Entrevista
ao Prof. Dipac Jaintilal. Maputo: Savana, pp. 18-19.
Savana, 08/10/2010. Castel-Branco desmascara discurso de combate à pobreza
– Estrutura da economia beneficia um punhado de capitalistas nacionais.
Maputo: Savana, pp. 2-3.

228 Desafios para Moçambique 2011 “7 Milhões”

Desafios.indb 228 3/29/11 4:53 PM


PARTE III
SOCIEDADE

Desafios.indb 229 3/29/11 4:53 PM


Desafios.indb 230 3/29/11 4:53 PM
TER MUITOS FILHOS, PRINCIPAL
FORMA DE PROTECÇÃO SOCIAL NUMA
TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA INCIPIENTE
O CASO DE MOÇAMBIQUE1
António Francisco

INTRODUÇÃO
A amplitude do que pensamos e fazemos está limitada por aquilo que nos escapa. E,
porque não nos damos conta do que nos escapa pouco nos resta fazer para mudar; até
nos apercebermos de como o facto de não nos darmos conta condiciona os nossos pen-
samentos e os nossos actos” (R.D. Laing, in Covey, 2005: 47).

A literatura sobre protecção social nos países subdesenvolvidos, nomeadamente


nos países da África Subsariana, e Moçambique em particular, assume como dado
adquirido que os sistemas financeiros, prevalentes na sociedade, constituem o veículo
principal de protecção social, independentemente do seu estágio de desenvolvimento.
Os exemplos são muitos, bastando referir apenas alguns, tais como: Adésínà (2010),
Cichon et al. (2004), Devereux et al. (2010), Ellis et al. (2009), Feliciano et al. (2008),
Francisco (2010a), Gentilini (2005), Gross (2007), Hodges e Pellerano (2010), Holz-
mann (2009), ILO (2006), Niño-Zarazúa (2010), Quive (2007) e Wuyts (2006). Em
alguns destes trabalhos, a referida assunção é evidente, como acontece nas análises
sobre sistemas de protecção social que assentam em mecanismos - formais e infor-
mais, ou ambos - de natureza financeira. Noutros estudos,2 tal assunção fica implícita,
por vezes sem que os próprios autores tenham consciência dela, como se as relações
não financeiras e monetárias fossem uma parte de menor importância na organização
social da reprodução humana em que os sistemas de protecção social se inserem.

1
Partes deste artigo foram partilhadas publicamente, ao longo do ano 2010 (Francisco, 2010b,
2010c; Francisco et al., 2010a, 2010b). As traduções de textos em Inglês são da responsabilidade
do autor. Agradeço os comentários, sugestões e questões colocadas pelos leitores que
generosamente partilharam as suas opiniões sobre versões anteriores deste artigo.
2
Incluindo, até recentemente, o próprio autor deste trabalho (e.g. Francisco, 2010a).

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 231

Desafios.indb 231 3/29/11 4:53 PM


Este artigo dá continuidade e aprofunda estudos realizados recentemente pelo
autor, sobre o papel determinante dos mecanismos demográficos de protecção so-
cial em Moçambique, tais como os fluxos inter-geracionais, relações de género, ma-
trimoniais e de filiação; as redes familiares e comunitárias de reconhecimento mútuo
e de inter-ajuda, baseadas em laços de parentesco, e de vizinhança, através das quais
grupos sociais trocam bens e serviços, numa base não mercantil, configuradora do
que certos autores designam por sociedade-providência.3 Na vida real, o sistema de
protecção social demográfica é inquestionavelmente mais relevante e determinante
do que os sistemas que actualmente figuram no centro das atenções das políticas e
acções públicas, vulgarmente classificados em formais4 e informais.5 Para além de
assegurarem a reprodução e sobrevivência humana, proporcionam ainda o espaço
estratégico principal do conjunto de mecanismos usados pela população para an-
tecipar, compensar e mitigar riscos e choques, a curto prazo, bem como possíveis
formas de providência social contra a insegurança na velhice, a longo prazo, em
conformidade com o seu estágio de desenvolvimento.
Se aquilo que em trabalhos recentes do autor tem sido definido como ‘pro-
tecção social demográfica’ é geralmente deixado de lado, nas análises convencio-
nais sobre protecção social, certamente não é, por ser irrelevante para a segurança
humana digna. Existem muitas razões, principalmente culturais, para que aquilo
que é tomado como natural e tradicional não mereça o devido reconhecimento;
mas antes de discutir tais razões, é importante tornar visível o domínio da protec-
ção social associado aos componentes demográficos e reprodutivos, a fim de mos-
trar como ele é socialmente mais relevante do que os mecanismos de protecção
social assentes nos sistemas financeiros.

3

‘O conceito de sociedade-providência designa um conjunto de fenómenos que são frequentemente
descritos como manifestações de pré-modernidade, como sobrevivências e atavismos destinados
a desaparecer com o processo de modernização e com o esvanecer de alguns dos mecanismos que
constituem a sua base material, tais como a pequena agricultura familiar ou as redes alargadas de
relações de parentesco e de relações sociais continuadas’ (Nunes, 1995: 8).
4
E.g., segurança social contributiva, obrigatória e complementar, no sistema legal moçambicano, e
não contributiva, segurança social básica e assistência social por direito legalmente reconhecido,
solidariedade ou caritativa.
5
E.g., mecanismos de ajuda mútua e redes sociais, familiares e comunitárias, através de grupos
de poupança e de crédito rotativo (e.g. Xitique, da palavra Tsonga que significa poupança),
internacionalmente conhecidas por ROSCAs (Rotating Savings and Credit Association);
as actividades laborais de entre-ajuda (e.g. Kurhimela, Ganho-Ganho), envolvendo troca de
mão-de-obra por numerário; associações funerárias e outras organizações comunitárias visando
mitigar e antecipar riscos (Dava, Low e Matusse, 1998; de Vletter et. al., 2009).

232 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 232 3/29/11 4:53 PM


Por protecção social demográfica (PSD) entende-se o conjunto de relações
e mecanismos determinados pelos componentes de mudança demográfica, tais
como: as taxas vitais (taxas brutas de mortalidade e de natalidade), estrutura etá-
ria, mortalidade infantil e esperança de vida. Estas variáveis integram um quadro
institucional de relações e fluxos geracionais e de género, intimamente ligadas às
relações económicas, sociais, culturais e éticas que integram a organização social
da reprodução humana. As evidências empíricas reunidas neste trabalho sobre
o domínio da PSD são consistentes com uma vasta literatura antropológica, so-
ciológica e económica, sobre os comportamentos reprodutivos e estratégias de
sobrevivência das populações humanas (Cain, 1981, 1983; Caldwell, 1987, 1982;
Francisco, 2010a: 37; Feliciano, 1998; Geffray, 2000; Lesthaegue, 1980, 1989; Livi-
-Bacci, 1992; Malmberg e Sommestad, 2000; Malmberg, 2008; Meilllassoux, 1975;
Nunes, 1995; Robertson, 1991).
O principal objectivo deste artigo é demonstrar que, em Moçambique, ter
muitos filhos continua a ser a principal forma de protecção social ao dispor da
maioria da população moçambicana. Três razões explicam este facto: 1) O tipo de
regime demográfico prevalecente nos séculos passados e, no último meio século, a
transição demográfica em curso - lenta, incipiente e atrasada, quando comparada
com o processo de transição demográfico global; 2) A elevada dependência da
maioria da população de uma economia de subsistência precária, comparativa-
mente à exígua economia de mercado capitalista; 3) A carência de infra-estruturas
institucionais, nomeadamente um sistema financeiro formal e informal, capaz de
proporcionar acesso amplo e efectivo à maioria da população.
Estas causas da predominância de um sistema de protecção social demográ-
fica, com pouca ou quase nenhuma ligação (para já não falar de dependência) dos
sistemas financeiros (formais e informais), são debatidas num outro artigo, neste
livro. Porém, o que esse outro artigo não faz é explicar e fundamentar a ideia sin-
tetizada no título deste trabalho: ‘Ter muitos filhos, principal forma de protecção
social em Moçambique’.
Este artigo está organizado em quatro capítulos, para além desta Introdução.
O primeiro capítulo apresenta um breve enquadramento do actual processo de
ruptura com o regime demográfico antigo (RDA), designado por transição de-
mográfica moçambicana. O segundo capítulo trata dos determinantes do elevado
crescimento populacional e identifica em que fase da transição demográfica se
encontra actualmente Moçambique. O terceiro capítulo responde a questões espe-

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 233

Desafios.indb 233 3/29/11 4:53 PM


cíficas como as seguintes: O que significa ter muitos filhos, em termos gerais, e no
caso de Moçambique, em particular? O que define o espaço estratégico da protec-
ção social demográfica? Será a estratégia de ‘Ter muitos filhos’ eficaz e eficiente?
Quantos filhos representam um número demasiado? E qual é o nível de desperdí-
cio demográfico da actual população moçambicana? Não será um paradoxo, em
pleno século XXI, que a maioria das crianças moçambicanas ainda morra antes
dos seus pais e avós? Se a sociedade moçambicana já não precisa de, pelo menos,
o dobro dos filhos que tem tido, porque com três filhos consegue repor e renovar
as actuais gerações, para quê e porquê continua a produzir mais filhos do que pre-
cisa? E será que irá a alimentar os filhos que produz? O quarto capítulo sumariza
a análise e equaciona algumas questões para pesquisa futura e desafios ao nível de
políticas públicas.

DO REGIME DEMOGRÁFICO ANTIGO À TRANSIÇÃO


DEMOGRÁFICA

O quadro conceptual mais apropriado para o esboço de um panorama da


evolução demográfica moçambicana gira em torno do conceito ‘transição demo-
gráfica’, considerado no seu duplo sentido: empírico e teórico.

O MARCO CONCEPTUAL DA TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA


O termo ‘transição demográfica’ é geralmente usado na literatura demográfi-
ca em dois sentidos, empírico e teórico, um assunto detalhado no recente artigo de
Francisco (2011) intitulado ‘Enquadramento Demográfico da Protecção Social em
Moçambique’. No âmbito deste trabalho, alguns pontos merecem ser recordados.
Primeiro, relativamente ao conceito: transição demográfica é o processo de
transformação de um regime demográfico de altas taxas de mortalidade e natali-
dade (i.e. taxas vitais) para um regime de baixas taxas vitais.
Segundo, ao longo do último século, tanto a teoria como o modelo empírico
da transição demográfica têm sobrevivido aos questionamentos críticos, inspiran-
do novos alentos e reconhecimento intelectual. A queda profunda e generalizada
da fecundidade6 observada na maior parte do mundo permitiu dissipar as dúvidas

6
A fecundidade é uma estimativa da frequência dos nascimentos ocorridos num subconjunto

234 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 234 3/29/11 4:53 PM


que subsistiam quanto à transição demográfica como um processo global (Cal-
dwell, 2001; Reher, 2004).
Terceiro, diferentemente das transições do regime demográfico antigo
(RDA) iniciais, ocorridas principalmente na Europa e em outras partes do mundo
fortemente influenciadas por europeus, nas transições mais recentes, as diferenças
no tempo de resposta da fecundidade ao declínio da mortalidade estão a tornar-se
mais longas. A consequência disto poderá ser uma menor capacidade e possibili-
dade dos países recém-chegados à transição demográfica global, quando se trata
de tirar o melhor proveito dessa transição para a modernização social e económi-
ca das sociedades (Livi-Bacci, 1992: 144; Reher, 2004).
Quarto, no passado, os estudiosos da demografia concentraram-se principal-
mente no crescimento bruto da população, tendo de algum modo descurado o pro-
blema das mudanças de longo prazo na estrutura etária. O modelo clássico da tran-
sição demográfica foi formulado em torno das taxas (brutas) de mortalidade e de
natalidade, com incidência no impacto da transição no crescimento populacional.
Nas décadas mais recentes, uma maior atenção tem sido canalizada para a interde-
pendência entre as mudanças na estrutura etária ao longo da transição demográfica
e as fases do ciclo da vida: infância, adolescência, maturidade e envelhecimento
(Malmberg e Sommestad, 2000: 3). O fundamento teórico do papel atribuído à re-
ferida interdependência no desenvolvimento económico baseia-se no entendimento
que os comportamentos das pessoas mudam no decurso do ciclo de vida, à medida
que evoluem da infância para a maturidade e a velhice. Por isso, entende-se que a
população pode gerar diferentes condições económicas, dependendo do grupo etá-
rio que predomina em cada etapa de crescimento populacional: infância, juventude,
maturidade ou velhice (Malmberg e Sommestad, 2000: 7)
A Figura 1 apresenta uma representação gráfica das quatro fases clássicas,
acrescida de uma nova, correspondente à quinta fase, segundo certos autores, ou
à segunda transição demográfica, de acordo com outros (Coleman, 2006; Lestae-
ghe e Neidet, 2006; Lestaeghe, 2010; Kent, 2004): Fase 1: Pré-transição (infância),
caracterizada por elevadas taxas vitais, resultando num crescimento vegetativo
populacional muito baixo; Fase 2: Primeira etapa da transição (adolescência), ge-

específico - mulheres em idade de procriar, convencionalmente dos 15 aos 49 anos de idade. A


Taxa de Fecundidade Total (TFT) é medida como o número médio de filhos que uma mulher
teria até ao fim do seu período reprodutivo, mantidas constantes as taxas observadas na referida
data (ver nota 11 sobre diferença entre fecundidade e fertilidade).

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 235

Desafios.indb 235 3/29/11 4:53 PM


ralmente iniciada com a queda das taxas de mortalidade; ou seja, com o início da
transição da mortalidade, enquanto a natalidade permanece estacionária; Fase 3:
Início da transição da fecundidade (juventude), resultando numa aceleração do
crescimento vegetativo; Fase 4: Período de consolidação da queda da TBM e da
TBN (maturidade), a ritmos diferentes, em que as taxas vitais voltam a estabilizar,
encontrando um novo equilíbrio, gerando um crescimento populacional nova-
mente baixo; abrange países com taxas de fecundidade abaixo do nível de substi-
tuição (2,1 filhos); Fase 5: Fase do envelhecimento.

FIGURA 1 TIPOLOGIA DAS FASES DA TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA EM ARTICULAÇÃO COM O CICLO DA VIDA

1 2 3 4 5

1 - Infância
2 - Adolescência
3 - Juventude
4 - Maturidade
5 - Velhice

Taxa de Natalidade Taxa de Mortalidade


Crescimento Populacional
FONTE Adaptação da tipologia de Malmberg e Sommestad, 2000

BREVE PANORAMA DA POPULAÇÃO MOÇAMBICANA: PASSADO, PRESENTE E


FUTURO
À semelhança do que tem acontecido com a população mundial (Caldwell,
2004; Demeny e McNicoll, 2006; ECA, 2001; Maddison, 2006; UN, 2010a), a po-
pulação moçambicana tem vivido importantes mudanças demográficas ao longo
dos séculos passados. Uma das evidências mais visíveis de tais mudanças, observa-
da no último meio século, é o rápido aumento da população.
A Tabela 1 sumariza dados da evolução de longa duração da população mo-
çambicana, em comparação com a população do mundo e do Continente Afri-
cano (INE, 2010; Maddison, 2006, 2010; UN, 2010a). Segundo as estimativas de

236 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 236 3/29/11 4:53 PM


Maddison (2006: 30), no 1º Milénio da nossa era, a população mundial cresceu
lentamente. No início do 1º Milénio, a população mundial rondava os 230 milhões
de pessoas, tendo aumentado apenas um sexto (17%) até ao fim do Milénio. No
mesmo período, a população de África (incluindo 57 países) aumentou de 16,5
milhões para 32 milhões de pessoas. Já a população de Moçambique, estima-se
que tenha aumentado de 50 mil habitantes para 300 mil no final do 1º Milénio.

TABELA 1 EVOLUÇÃO DA POPULAÇÃO EM MOÇAMBIQUE, ÁFRICA E NO MUNDO

MOÇAM- MOÇAM- POPULAÇÃO MOÇAMBIQUE/


MOMENTO HISTÓRICO ÁFRICA
-BIQUE -BIQUE MUNDIAL MUNDIAL
% de
Ano (Mil Hab.) (Mil Hab.) (Mil Hab.) % do Mundo
África
SÉCULO I 1 50 17.000 0,3% 225.820 0,02%
Século X 1000 300 32.300 0,9% 267.330 0,11%
SÉCULO XV 1500 1.000 46.610 2,1% 438.428 0,23%
Século XVI 1600 1.250 55.320 2,3% 556.148 0,22%
Século XVII 1700 1.500 61.080 2,5% 603.490 0,25%
SÉCULO XIX 1820 2.096 74.236 2,8% 1.041.720 0,20%
• Nascimento de Moçambique (como 1890 3.775 103.060 3,7% 1.323.022 0,29%
Estado moderno - colonial)
SÉCULO XX
• Início do sec. XX 1900 4.106 110.000 3,7% 1.563.464 0,26%
1950 6.250 227.939 2,7% 2.525.501 0,25%
• Independência - Estado Soberano 1975 10.433 416.226 2,5% 4.064.231 0,26%
• 2ª República pós-independência 1990 12.656 633.216 2,0% 5.256.680 0,24%
SÉCULO XXI
• Primeira década do sec. XXI 2007 19.952 952.787 2,1% 6.570.525 0,30%
Pop. Projectada (*) 2010 23.406 1.033.043 2,3% 6.908.688 0,34%
Pop. Projectada (*) 2020 28.545 1.276.369 2,2% 7.674.833 0,37%
Pop. Projectada (*) 2030 33.894 1.524.187 2,2% 8.308.895 0,41%
Pop. Projectada (*) 2050 44.148 1.998.466 2,2% 9.149.984 0,48%

FONTE INE, 1999; Maddison, 2006, 2010; UN, 2010.

NOTA
(*) Projecção ajustada com variante média da ONU 2008

No 2º Milénio, registou-se uma visível aceleração do crescimento populacio-


nal, tanto a nível mundial e africano como moçambicano. A população mundial
aumentou 22 vezes mais, enquanto em África aumentou 25 vezes e em Moçambi-
que 59 vezes. No ano 1500, a população de Moçambique teria atingido um milhão
de habitantes; em 1820, ultrapassou os dois milhões de pessoas. Por volta de 1891,

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 237

Desafios.indb 237 3/29/11 4:53 PM


ano do nascimento do Estado moderno em Moçambique, o número da população
rondava os 3,8 milhões de habitantes.7
O Gráfico 1 resume a evolução da população de Moçambique nos últimos
120 anos e apresenta uma projecção do crescimento nos próximos 40 anos, se-
gundo os dados da variante média da divisão de população da Organização das
Nações Unidas (UN, 2010a). O ano 1891 é escolhido como referência inicial, no
Gráfico 1, por ser a data histórica em que a configuração geográfica e fronteiras,
incluindo a longa costa do Oceano Índico, demarcada através do Tratado entre
Portugal e Inglaterra, passou a ser conhecido por Moçambique (Newitt, 1997:
291-342; Pélissier, 2000: 144). Tal acontecimento histórico deu origem ao nasci-
mento de Moçambique como Estado moderno.8 A delimitação fronteiriça de Mo-
çambique passou a fornecer o enquadramento estruturante em múltiplos sentidos
(desde o demográfico, ao social, económico e político), com implicações para a
delimitação do tamanho, estrutura e dinâmica populacional, bem como distribui-
ção geográfica, movimentos migratórios e urbanização, entre outros.
Desde 1891 até 2010, a população moçambicana aumentou, aproximada-
mente, de 3,8 milhões para 22,2 milhões habitantes. Um aumento populacional de
quase seis vezes mais, num período de 120 anos, resultando num incremento de
18,4 milhões de pessoas (Gráfico 1).
A primeira duplicação populacional poderá ter ocorrido no início da década
de 1960, ao totalizar 7,6 milhões de habitantes em 1961. A segunda duplicação terá
acontecido por volta de 1995, ao atingir 15,8 milhões de habitantes, prevendo-se que
atinja a terceira duplicação por volta do ano 2028, ano em que se espera atingir 32
milhões de habitantes. Significa, assim, que, nos 35 anos de Independência de Mo-
çambique, a população duplicou (INE, 1999, 2010; Maddison, 2010; UN, 2010a).

7
Reagindo a estas estimativas, apresentadas no Ideias 28 (Francisco, 2010b), o historiador
Gerhard Liesegang questionou o tamanho da população indicado para o início do século
XX. Segundo Liesegang, em 1900, a população moçambicana deveria rondar apenas os três
milhões de habitantes; ou seja, menos oitocentos mil do que é estimado na Tabela 1 para o ano
1891, uma década antes. Se esta hipótese corresponder aos factos, a correcção das estimativas
permite adicionar uma nova hipótese sobre o início e ritmo da aceleração da taxa de crescimento
populacional entre 1990 e 1950. Em vez de um crescimento médio anual de 0,84%, no período
1900-1950, a taxa seria 1,57%, correspondente a 1,13%, em 1990- 1930 e 2,01%, em 1930-1950.
Não foi possível ter acesso a fontes mais específicas que fundamentem esta hipótese, mas não
deixa de ser uma hipótese interessante, ao avançar a possibilidade de a transição da mortalidade
ter iniciado algumas décadas antes dos meados do século XX.
8
Um Estado de natureza colonial, nos 84 anos decorrentes até à Independência em 1975, e Estado Soberano,
nos últimos 35 anos, convertido num Estado Falido mas não Falhado (Francisco, 2010a).

238 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 238 3/29/11 4:53 PM


GRÁFICO 1 EVOLUÇÃO E PROJECÇÃO DA POPULAÇÃO MOÇAMBICANA: 1890-2050

45.000 42.790

40.000
2028, Previsão da
35.000
População (em Mil Habitantes)

3ª Duplicação
31.746

30.000
2010
25.000 22.174
1995,1ª Duplicação
20.000 desde 1891
1975, Independência 15.765
15.000 de Moçambique
10.433
1961, 1ª Duplicação
1891, Nascimento desde 1891
10.000 do Estado Moderno 7.628
(colonial) 3.807
5.000

1890 1906 1922 1938 1954 1970 1986 2002 2018 2034 2050
Anos
FONTE Maddison, 2006, 2010; UN, 2010

Desta breve retrospectiva, sobressaem aspectos dignos de realce relativos à


variação do crescimento populacional, em termos absolutos e relativos. A popula-
ção total aumentou 10 vezes, mas metade deste aumento ocorreu nos últimos 35
anos (em apenas um quinto do período). Ou seja, foram precisos 70 anos para que
a população duplicasse, entre 1891 e 1961, resultando num acréscimo absoluto
de 6,6 milhões de pessoas. Porém, para a segunda duplicação, entre 1961 e 1995,
foram precisos apenas 34 anos, resultando num acréscimo absoluto maior do que
o da duplicação anterior (8,2 milhões de pessoas), testemunhando assim uma ace-
leração da taxa de crescimento.
A variação relativa do crescimento populacional também evidencia uma ace-
leração a partir da segunda metade do Século XX. Até meados do século XX, a
taxa média anual do crescimento da população foi inferior a 1% (0,87%, no perí-
odo 1891-1950), mas, no último meio século, registou uma aceleração persistente
para níveis superiores a 2% ao ano (Francisco, 2010b).
A evolução futura do tamanho populacional dependerá da variação das ta-
xas vitais e da estrutura etária, nomeadamente da taxa de natalidade associada ao
nível de fecundidade das mulheres em idade reprodutiva. As projecções da ONU
(2008) assumem uma redução progressiva da fecundidade, tanto no mundo em
geral como em Moçambique. Relativamente à população moçambicana, prevê-se

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 239

Desafios.indb 239 3/29/11 4:53 PM


que continue a crescer ao longo de toda a primeira metade e parte da segunda
metade do corrente Século XXI, não se sabendo quando estabilizará.9

TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA MOÇAMBICANA: INCIPIENTE,


LENTA E TARDIA

Para o senso comum, o rápido crescimento populacional no último meio


século é de algum modo contra-intuitivo ou mesmo intrigante. No quotidiano, as
pessoas sentem a adversidade da vida na luta pela sua sobrevivência. Muita gente
ainda se lembra da massiva deslocação populacional e dos óbitos causados pela
guerra civil (1976-92) e por outras calamidades económicas (e.g. destruição da
economia rural, fome,) e ambientais (e.g. seca, cheias).10
Perante isto, o senso comum questiona-se sobre as possíveis causas de um
crescimento populacional rápido e vigoroso, no último meio século, quando as
adversidades registadas fariam pensar que a população registasse uma forte di-
minuição da qual dificilmente recuperaria. Sabendo que em períodos anteriores
à guerra civil também se registaram calamidades naturais, conflitos militares e
outros factores de vulnerabilidade diversos, em que difere a aceleração do cres-
cimento populacional recente da evolução demográfica mais remota? Será que o
fenómeno do rápido crescimento demográfico resulta de mudanças substantivas e
estruturais, em vez de conjunturais e esporádicas, nos mecanismos de reprodução
humana?

O QUE EXPLICA O ELEVADO CRESCIMENTO POPULACIONAL?


O crescimento populacional depende principalmente da mudança dos com-
ponentes fundamentais da dinâmica demográfica (óbitos e nascimentos), repre-
sentados por indicadores como: taxa bruta de natalidade (TBN), taxa bruta de

9
Recentemente, o Continente Africano registou a passagem da barreira de mil milhões
de pessoas, prevendo-se que volte a duplicar por volta do ano 2050. Em Moçambique, se a
terceira duplicação populacional, desde 1891, ocorrer por volta de 2028, significa que o ritmo
de crescimento demográfico acelerado manter-se-á, tal como na duplicação anterior, com uma
duração de 33 anos.
10
Reagindo à divulgação pública dos resultados do Censo 2007, um cidadão não familiarizado com
a ciência demográfica indagou: “Se morreram tantas pessoas, devido à guerra civil, a calamidades,
fome e subnutrição, como é que a população moçambicana cresceu tão rapidamente?”.

240 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 240 3/29/11 4:53 PM


mortalidade (TBM) e taxa de crescimento natural ou vegetativo (TCN). ��������
O Gráfi-
co 2 ilustra a tendência das taxas vitais, entre 1950 e 2005, bem como a sua projec-
ção até 2050, segundo a variante média da ONU 2008 (UN, 2010a).
No gráfico 2����������������������������������������������������������
, a representação gráfica dos componentes de mudança demo-
gráfica (TBM, TBN e TCN) em Moçambique é representada pelas linhas contí-
nuas, para o período 1950-2005, e pelas linhas descontínuas na projecção referente
ao período 2005-2050. A mancha cinzenta representa as taxas vitais a nível mun-
dial, permitindo evidenciar graficamente algumas semelhanças, e também diferen-
ças, nas trajectórias demográficas em Moçambique e no Mundo.
A principal semelhança entre a trajectória demográfica mundial e a moçam-
bicana diz respeito à direcção das mudanças observadas, visto ambas apontarem
no mesmo sentido, ou seja, uma diminuição dos componentes de mudança demo-
gráfica (mortalidade e natalidade). Mas a grande diferença entre elas está no ritmo
de diminuição dos dois componentes, sobretudo a fecundidade.
Em meados da década de 1950, a taxa de mortalidade média mundial era
de 17 óbitos por 1000 habitantes; cerca de 42% inferior à mortalidade em Mo-
çambique, estimada em 30 óbitos por 1000 habitantes, em 1955. A taxa bruta de
natalidade moçambicana rondava os 50 nascimentos por 1000 habitantes, contra
36 nascimentos por 1000 habitantes a nível mundial; isto é, quase 40% superior ao
nível mundial.
O saldo líquido das duas taxas vitais anteriores representava, por volta de
1955, um crescimento populacional médio anual de 1,9%, em Moçambique, con-
tra 1,8% a nível mundial. Uma diferença que, à primeira vista, parece pequena,
mas em uma análise mais cuidada percebe-se de que se traduziu numa divergência
significativa das tendências demográficas nas décadas seguintes. No período 1955-
2005, as taxas de mortalidade diminuíram drasticamente, tanto em Moçambique
(-46%) como a nível mundial (-51%). No entanto, no mesmo período, a natalidade
moçambicana diminuiu muito lentamente (-20%), comparativamente à redução
da natalidade mundial (-46%). Desta diferença de comportamentos dos compo-
nentes de mudança demográfica, resultou que, em Moçambique, a taxa de cres-
cimento populacional acelerou de 1,8% para 2,3%, entre 1955 e 2005, enquanto,
no mesmo período, a população mundial registou uma diminuição do ritmo de
crescimento, de 1,8% para 1,2%.
Não é seguro afirmar se, ao longo da corrente década de 2010, a população
moçambicana continuará a registar níveis de crescimento demográfico bastante

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 241

Desafios.indb 241 3/29/11 4:53 PM


elevados (acima de 2% por ano) ou se entrará, nos próximos tempos, numa fase de
desaceleração sustentável do crescimento populacional.11

GRÁFICO 2 TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA EM MOÇAMBIQUE E NO MUNDO, 1950 - 2050

60
49,1 (dados do meio da década, em ‰ e %)
50 46,9
Taxa (por 1000 Habitantes)

43,5
39,5
40 Taxa de Natalidade (TBN-Moz)
Taxa de Mortalidade (TBM-Moz) 32,6
30
Taxa de Cres. Natural
30 (TCN-Moz) 2,6% 28,5
25,6 24,5
21,2
1,9%
20 21,7 21
17,4
16,1
13,5
11,8 1,2%
10 10,6 9,7
TCN-Mundo 0,3%
0
1955 1965 1975 1985 1995 2005 2015 2025 2035 2045
Anos
TBN-Mundo TBM-Mundo TCN-Moz

TBN-Moz TBM-Moz TCN-Mundo FONTE UN, 2010

EM QUE FASE DA TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA ESTÁ MOÇAMBIQUE?


Os dados usados neste trabalho podem divergir de outros, dependendo das
fontes, conduzindo a resultados e conclusões ligeiramente diferentes, principal-
mente se pretender entrar em detalhes, com o início exacto da ruptura com o
antigo regime demográfico e duração de cada fase, intensidade do crescimento da
população, dependendo da distância entre os valores da natalidade e da mortalida-
de e extensão ou impacto de cada fase, em termos do volume total da população
afectada pelo processo de transição.
É preciso aprofundar a análise das taxas vitais, tomando em consideração os
dados do último censo populacional (Censo 2007) ainda por explorar de forma
sistemática. Arnaldo (2007) reuniu suficientes evidências conducentes à conclusão
de que a transição da fecundidade moçambicana poderá ter iniciado por volta do
ano 2000, mas provavelmente apenas no Sul de Moçambique.

11
Por desaceleração sustentável entende-se, neste caso, a diminuição da taxa de crescimento
populacional, resultante de mudanças estruturais da composição etária e condições de reprodução
da população, em vez de mudanças meramente circunstanciais ou conjunturais.

242 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 242 3/29/11 4:53 PM


Não é objectivo deste artigo desenvolver análises detalhadas sobre a recen-
te dinâmica dos componentes da mudança demográfica em Moçambique, será
contudo suficiente sumarizar a discussão anterior, com hipóteses de resposta à
questão: ‘Afinal, em que fase da transição demográfica se encontra actualmente
Moçambique?’
Tratando-se de uma transição, pressupondo assim a mudança de um equilí-
brio dinâmico relativamente estável para um novo equilíbrio, significa que ela tem
um início e fim. Na prática, porém, é difícil identificar com precisão o início e o
fim da mudança do regime demográfico antigo (RDA) para um regime demográ-
fico moderno (RDM), em parte por causa da complexidade e sobreposição dos
factores envolvidos; por outro lado, por causa da falta e da fraqueza de dados que
permitam medir os processos de mudança. A partir da experiência mundial, sabe-
-se que a transição demográfica é, na maioria dos casos, despoletada pela queda
da mortalidade, nomeadamente pela queda sustentável da mortalidade infantil.
Segue-se a transição fecundidade, resultante da mudança no comportamento re-
produtivo em processos que não são lineares nem ininterruptos. Quando se fala
do início da transição, em geral, refere-se à queda irreversível dos níveis da mor-
talidade ou da fecundidade, relativamente ao pico mais elevado e relativamente
constante. A transição acontece, não obstante eventuais variações, porque não se
observa um retorno ao pico mais elevado. Pelo contrário, ao longo do tempo, a
transição da fecundidade acontece em direcção ao nível de substituição demográ-
fica (2,1 filhos por mulher) (Bongaarts, 2002: 4-5; Lucas, 1994: 25).
A Tabela 2 permite responder a esta questão, recorrendo aos dados mais ac-
tualizados publicados pelo INE e de um conjunto de três dezenas de países, agru-
pados segundo as cinco fases de transição demográfica referidas anteriormente.
Tendo em conta os dados demográficos, Moçambique encontra-se na Fase
2 com 41,1‰ de TBN e 16,5‰ de TBM, 2,4% de crescimento vegetativo, 133‰
de TMI, esperança de vida à nascença de 47,3 anos e 5,5 filhos por mulher (INE,
2010b). Estes dados referem-se a uma das versões das estimativas do INE, dispo-
nível no seu Portal de Internet, diferentes de outras fontes suas como, por exem-
plo, as Projecções Anuais da População Total, Urbana e Rural, 2007-2040 (INE,
2010a), devido a diferenças metodológicas, cujos detalhes se desconhece. No en-
tanto, as diferenças nos dados, de uma maneira geral, não afectam o posiciona-
mento de Moçambique na Tabela 3, o qual pretende ser mais indicativo do que
exacto. Indicativo porqu no cômputo gera os indicadores demográficos moçambi-

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 243

Desafios.indb 243 3/29/11 4:53 PM


canos reflectem ainda o RDA e a primeira fase da transição demográfica, apresen-
tando uma TBN na escala, ou muito próximo da escala, dos 40-50‰, dependendo
das estimativas, enquanto a TBM diminuiu para níveis inferiores a 20‰.

TABELA 2 MOÇAMBIQUE NO CONTEXTO DA DISTRIBUIÇÃO DOS PAÍSES POR FASES DA TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA,
2005-2010

TBN TBM TC Intervalo


FASES ESTADO
(%) da TC (%)
TFR IMR CARACTERÍSTICAS

Na actualidade não há
nenhum país no mundo
que apresente taxas de
mortalidade tão altas.
Para encontrar algum
Fase
- 40-50 40-50 ≈≈ 0 país do Terceiro Mundo
1 nesta fase seria preciso
recuar à primeira metade
do século XX e, até ao sé-
culo XVIII, para encontrar
algum dos países ricos.
     
Guiné Bissau 49,6 18,4 3,1 7,2 112,7 A Taxa Bruta de Natalida-
Níger 49,6 13,8 3,6 7,1 110,8 de (TBN) mantém-se alta.
Angola 47,3 20,5 2,7 6,4 131,9 Pelo contrário, a Taxa
Fase Mali 48,1 14,7 3,3 6,5 128,5 Bruta de Mortalidade
> 2,0
2 Uganda 46,6 13,4 3,3 6,5 76,9 (TBM) regista uma dimi-
Tanzânia 39 12,9 2,6 5,2 72,6 nuição, originando um
Somália 42,9 16,6 2,6 6,0 116,3 forte aumento do cresci-
Moçambique(*) 41,1 16,5 2,5 5,4 133 mento populacional.

Honduras 27,9 5,6 2,2 3,3 28,2 A TBN inicia uma redu-
Zimbabwe 27,9 17,9 1,0 3,2 58 ção, mas como a TBM
Fase Botwana 24,9 14,1 1,1 2,9 46,5 também continua em
[1,0-1,9]
3 Índia 23,0 8,2 1,5 2,8 55 queda, o crescimento
Marrocos 20,5 5,8 1,5 2,4 30,6 demográfico permanece
Africa do Sul 22,3 17 0,5 1,9 19,8 marcadamente positivo.

Maurícias 14,8 7 0,8 1,9 14


Tunisia 16,7 5,6 1,1 2,4 44,8 A TBN e a TBM reduzem,
Reino Unido 12,0 9,9 0,2 1,7 4,8 até atingir valores muito
Noruega 12,0 9,1 0,3 1,8 3,3 parecidos, resultando
Fase
Espanha 10,8 8,8 0,2 [0,9-0] 1,3 4,2 numa desaceleração
4 Australia 12,4 7,1 0,5 1,8 4,4 do crescimento (como
Suécia 11,3 10,1 0,1 1,7 3,2 acontece actualmente
Áustria 9,2 9,4 0,0 1,4 4,4 na Suécia e Aústria).
Estados Unidos 14,0 8,2 0,6 2,1 6,3

A TBN segue registando


Alemanha 8,2 10,7 -0,3 1,4 4,3 uma diminuição, até ul-
Itália 9,2 10,5 -0,1 1,3 5 trapassar e tornar-se in-
Fase
Eslovénia 9,0 9,9 -0,1 <0 1,3 4,8 ferior à TBM, originando
5 Lituânia 9,1 12,3 -0,3 1,2 8,5 um crescimento demo-
Japão 8,3 9,0 -0,1 1,2 3,2 gráfico é negativo e di-
minuição da população).

FONTE UN, 2010; Adaptação de http://pt.wikipedia.org/wiki/Transi%C3%A7%C3%A3o_demogr%C3%A1fica.

NOTA
(*) Dados referentes a 2002/07 do INE (2010), www.ine.gov.mz/populacao/indicadores/indemo_proj (Acedido a 25.01.2011)

244 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 244 3/29/11 4:53 PM


Na década passada, vários pesquisadores constataram uma relativa desacele-
ração ou mesmo estagnação na queda da fecundidade em vários países da África
Subsariana (Arnaldo e Muanamoha, 2010: 6; Bongaarts, 2002, 2007; Ezeh et al.,
2009; Kreider et al., 2009; Shapiro e Gebreselassie, 2007; Schoumaker, 2004). Por
exemplo, Shapiro e Gebreselassie (2007) classificaram Moçambique, no início da
transição da fecundidade, com um nível médio nacional da TFG de 5,5 filhos por
mulher (6,1 rural e 4,4 urbano), não se observando qualquer diminuição nos dados
do IDS (DHS - Demographic Health Survey), entre 1976 e 2003.

PROTECÇÃO SOCIAL NO CONTEXTO DE UMA TRANSIÇÃO


DEMOGRÁFICA INCIPIENTE

‘Reprodução é o processo em que os organismos adultos realizam a sua capaci-


dade física de produção de outros organismos, regenerando deste modo renovação
das espécies’ (Robertson, 1991: 1). O estudo da reprodução humana requer o recur-
so a mobilização do conhecimento elaborado por disciplinas científicas diferentes,
incluindo a antropologia, a economia, a psicologia, a neurobiologia e a demografia.
Como escreveu Wilson (2009: 98), ‘…nenhuma teoria conduz directamente
aos factos … Há sempre um processo repetido de formação e teste de hipóteses…’;
mas não é menos verdade que ‘…o entendimento não depende de saber muitos
factos, mas de ter os conceitos, explicações e teorias correctos… Nós entendemos
a estrutura da realidade somente pelo entendimento das teorias que a explicam. E
como elas explicam mais do que percebemos imediatamente, podemos entender
mais do que percebemos imediatamente que entendemos’ (Deutsch, 2000: 1, 9).
Presentemente, apenas a teoria da evolução transcende os limites disciplina-
res dos contributos científicos especializados, ao proporcionar um quadro intelec-
tual suficientemente abrangente e flexível para entender a evolução da reprodução
humana. A teoria da evolução oferece um terceiro modo de pensar, em relação a
duas outras formas de pensamento muito mais difundidas: a teologia e o materia-
lismo. A teologia não é útil para investigar factos da vida social, defende Wilson,
porque a sua missão é apenas estabelecer valores relativos ao mundo material. O
materialismo, apesar de complementar a selecção natural e permitir conhecer a
constituição física dos organismos, deixa obscura a lógica e mecanismos adaptati-
vos que explicam a finalidade na vida (Wilson, 2009: 33-36, 67-68).

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 245

Desafios.indb 245 3/29/11 4:53 PM


Será que a teoria da evolução pode ajudar a pensar a finalidade e os mecanis-
mos de protecção social, no contexto do regime demográfico antigo e da transição
para o regime demográfico antigo? Se a abordagem de Wilson for correcta, a res-
posta à questão anterior é positiva:

A adopção de um novo conjunto de convicções sobre nós mesmos ajudar-nos-á a avaliar


como as nossas antigas convicções fracassaram… A evolução tem intrinsecamente a ver
com organismos que reagem a modificações ambientais… no que toca à evolução, o fu-
turo pode ser diferente do passado’ (Wilson, 2009: 102; 144).

Ao reconhecer-se o carácter multidisciplinar e transcendente da explicação


da selecção natural, é possível aprender a pensar os três cês da evolução humana
- cognição, cultura e cooperação (Wilson, 2009: 220-221). À primeira vista, carac-
terísticas mais ou menos controversas – eg. igualitarismo, discriminação, infanticí-
dio, suicídio, homossexualidade, o riso, a adopção e a arte – parecem superficiais
para se entender a sobrevivência e reprodução humana. Porém, numa considera-
ção de tais características informada pela perspectiva evolutiva, rapidamente se
percebe que são tudo menos supérfluas.
No espaço reservado a este terceiro capítulo, procura-se responder a ques-
tões decorrentes da ideia principal sintetizada no título deste trabalho: ‘Ter muitos
filhos, principal forma de protecção social em Moçambique’: O que significa ter
muitos filhos, em termos gerais, e no caso de Moçambique de hoje, em parti-
cular? O que define o espaço estratégico da protecção social demográfica? Será
a estratégia de ‘muitos filhos’ eficaz e eficiente? Quantos filhos representam um
número demasiado elevado? Ou qual é o nível de desperdício demográfico da
actual população moçambicana? Não será um paradoxo o facto de a maioria das
crianças moçambicanas morrerem antes dos seus país e avós? Se a sociedade não
precisa do excedente de crianças que actualmente produz, porque consegue repor
as gerações com menor número de crianças, será que irá continuar a alimentá-las?

O ESPAÇO ESTRATÉGICO DA PROTECÇÃO SOCIAL DEMOGRÁFICA


Se a protecção social for entendida como o sistema de relações e mecanis-
mos institucionais estabelecido para garantir uma segurança humana digna, tal
sistema precisa de ser analisado e investigado no contexto da organização social
da evolução reprodutiva e do espaço estratégico em que a população vive. Três
componentes importantes compõem o espaço estratégico definidor do sistema

246 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 246 3/29/11 4:53 PM


PSD moçambicano, tanto antigo como na sua transição recente: sobrevivência,
reprodução e ambiente natural e sócio-económico.
Nos dois capítulos anteriores destacou-se o estágio actual de transição demo-
gráfica em Moçambique, nomeadamente o seu carácter incipiente, lento e retarda-
do, tanto ao nível da transição da fecundidade como da transição da mortalidade.
Se a experiência da transição demográfica mundial pode servir para antecipar
a transição demográfica moçambicana, parece razoável admitir que o ritmo da
transição da fecundidade moçambicana continuará fortemente dependente da
consolidação e sustentabilidade da transição da mortalidade, nomeadamente a
mortalidade infantil.12 Como escreveu Livi-Bacci (1992: 123), olhando para o pro-
cesso demográfico como um todo, nenhuma população que tenha beneficiado de
melhoria do seu bem-estar e redução da mortalidade mantém por muito tempo
elevados níveis de fecundidade.
À semelhança de qualquer sistema homeoestático aberto e adaptativo ao
ambiente e condições em que vive, a transição demográfica da população moçam-
bicana apresenta-se como um processo de desequilíbrio, mais ou menos instável,
do RDA em busca de um novo regime demográfico estabilizado em torno de
um novo equilíbrio ou quase-equilíbrio. Tal processo decorre num amplo espaço
estratégico, suficientemente amplo para que a intensidade e o ritmo de variação
do agregado demográfico seja o produto de múltiplos processos de aumento ou
diminuição das populações a nível local.
Os limites do espaço estratégico demográfico são definidos pela capacidade
potencial e efectiva de sobrevivência e de reprodução da população. A capacidade
potencial é estabelecida pelas características biológicas da espécie humana, en-
quanto a capacidade efectiva é o produto da interacção do sistema homeoestático
com o ambiente natural e sócio-económico em que vive, incluindo os recursos
disponíveis e os sistemas de produção desenvolvidos pela sociedade.

12
‘Cleland (2001), num artigo recente, inspirado nas ideias originalmente elaboradas por
Kingsley Davis (1963), argumentou de forma persuasiva que reduções substanciais da mortalidade
representam a condição necessária e suficiente do estímulo da queda da fecundidade em contextos
históricos dos países em desenvolvimento. Os resultados apresentados aqui oferecem forte suporte
empírico à ideia de Cleland: em parte nenhuma do mundo, independentemente da época, dos
níveis de riqueza ou estágios da modernização, a fecundidade mudou sem que primeiro mudasse
significativamente a mortalidade (Reher, 2004: 25; ver também Livi-Bacci, 1992: 152-153;
Malmberg e Sommestad, 2000; Malmberg, 2008).

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 247

Desafios.indb 247 3/29/11 4:53 PM


Não será possível fazer justiças, no âmbito deste trabalho, à extensiva litera-
tura especializada em domínios que integram o espaço estratégico da organização
social da reprodução humana determinante dos sistemas de protecção social de-
mográfica. Literatura sobre a dinâmica das práticas e das instituições domésticas
antigas e contemporâneas; trabalhos como os estudos de Geffray (2000), sobre
as relações de parentesco entre os macuas, no Norte de Moçambique; ou de Feli-
ciano (1998), sobre a economia dos Thonga do Sul de Moçambique; ou ainda os
trabalhos mais recentes sobre as mudanças que estão a ocorrer nas sociedades ma-
trilineares e patrilineares contemporâneas (Aboim, 2008; Chiziane, 2010; Firmino,
2008; Granjo, 2007; Osório, 2006; Santana, 2009; Temba, 2004).
Sem pretender ser exaustivo na análise das relações de causalidade entre a
dinâmica populacional moçambicana e os três componentes definidores do seu
espaço estratégico – sobrevivência, reprodução e ambiente –, é preciso reconhecer
que, ao longo deste texto, o terceiro componente recebeu menos atenção do que
os outros dois. E não foi por se considerar menos importante. O longo processo
adaptativo da evolução da população humana permitiu desenvolver capacidades
comportamentais suficientemente flexíveis que operam através de mecanismos
que determinam o funcionamento e a composição dos sistemas reprodutivos, tais
como: a idade de entrada na vida reprodutiva, por via das diferentes formas de
acasalamento ou uniões matrimoniais; a proporção de indivíduos directamente
envolvidos na reprodução e os processos como as gerações se renovam e gerem
a saída e substituição das mais velhas pelas mais novas. Se bem que tal assunto
não seja aprofundado neste trabalho, vale a pena exemplificar este ponto com um
exemplo ilustrativo da sucessão geracional nos Macuas do Norte de Moçambique
(Caixa 1).

ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA E REPRODUÇÃO: O QUE SIGNIFICA TER MUITOS FILHOS?


No contexto deste trabalho, o uso de termos como ‘muitos filhos’ ou ‘poucos
filhos’ assume um destaque particular, começando pelo próprio título, justificando
uma nota qualificativa sobre o seu significado específico no contexto da estratégia
de sobrevivência e reprodução humana.

248 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 248 3/29/11 4:53 PM


CAIXA 1 EXPRESSÕES DA PROTECÇÃO SOCIAL DEMOGRÁFICA MOÇAMBICANA – SUCESSÃO E
INTERDEPENDÊNCIA GERACIONAL NOS MACUAS DO NORTE DE MOÇAMBIQUE

Uma rapariga é casada na puberdade, tem doze ou treze anos quando o esposo vem dormir com ela na
cozinha da sua ‘mãe’. Pode ter o seu primeiro filho, o mais tardar, por volta dos quinze anos; a este ritmo a
passagem das gerações efectua-se rapidamente. É-se frequentemente ‘avó’ aos trinta e cinco anos, idade
aproximada em que uma mulher é por consequência introduzida na geração sénior. Uma mulher que viva
mais de cinquenta anos tem todas as hipóteses de vir a conhecer os seus ‘bisnetos’. (p. 78).
… A verdade é que não há três, mas pelo menos quatro gerações em presença, demograficamente in-
duzidas pela precocidade da fecundidade das mulheres (quinze anos). Com o tempo, com a passagem das
gerações, o grupo doméstico renova-se em torno das mulheres da ex-geração júnior, promovida a sénior,
e expulsa dos seus efectivos a antiga geração sénior… É o casamento das ‘netas’ que provoca e sanciona
simultaneamente esta última passagem de geração para as mulheres velhas, que as introduz na geração
dos anciãos. Têm entre cinquenta e setenta anos, são excluídas das redes sociais e económicas, constituin-
do e integrando os grupos domésticos que outrora polarizavam, em proveito agora da geração sénior. Esta
passagem de geração corresponde além disso ao período das suas vidas em que as mulheres e os sues
esposos, ainda mais velhos, vêem declinar as suas capacidades físicas. Como subsistem? (p. 79).
As consequências funestas, para os anciãos, da sua expulsão do grupo doméstico renovado, são na
realidade evitadas uns quinze anos antes. Com efeito, nessa altura a ‘avó’ adoptou e criou sob o seu tec-
to a primeira ‘neta’ nascida do casamento da sua ‘filha’. A mais velha das filhas não vive junto da sua
‘mãe’, é levada para casa da avó desde o desmame, onde é criada e alimentada. Como mais velha, atinge
a idade de ser casada antes que se inicie a passagem das gerações, que irá excluir a sua avó dos efectivos
do grupo doméstico… Por outras palavras, a ‘avó’ tomou uma opção sobre o futuro do lar da sua ‘neta’ ao
adoptá-la e açambarca antecipadamente o serviço dos seus primeiros ‘genros’ da nova geração, da qual
ela inaugurará o advento matrimonial junto da sua adelfia… Assim, ela será de novo o pólo de atracção
das prestações de uma nova geração de ‘genros’ que supriram junto dela a falta dos outros, quando
estes forem promovidos a seniores… A mulher sénior subtrai a primeira criança nascida do casamento
da sua ‘filha’ aos cuidados desta, e renova com a criança o investimento que efectuou outrora com a sua
‘filha’. Ela beneficiará assim mais tarde, quando se tornar improdutiva, de serviços provenientes do lar
desta ‘neta’, equivalente aos que goza agora parte do lar da sua ‘filha… uma prepotência das mulheres
seniores sobre o destino da progenitura das jovens ‘mães’ juniores, com o objectivo de preparar e ga-
rantir a assistência social e material na sua velhice… (pp. 79-81).
… As reservas assim acumuladas no pátio da mais velha das anciãs destinam-se a fazer face aos anos
difíceis… A terra é transmitida entre e pelas mulheres: quando morre uma mulher, uma outra da adelfia
substitui-a junto do viúvo. Toma o estatuto, o esposo e as terras da defunta, de quem ‘herda’ – isto é, de
quem ela toma o lugar e a identidade -, um vivo por um morto (diz-se ‘tomar o nome’ do morto). As mu-
lheres permanecem assim toda a sua vida no interior do território. Os homens só têm acesso à terra por
intermédio das mulheres, enquanto esposas, no quadro do casamento… (pp. 82-83).
A condição masculina parece aqui particularmente desagradável: as mulheres dependem do trabalho
dos homens, mas o dispositivo é tal que são estes que dependem delas para usufruir do seu próprio pro-
duto. Finalmente, embora o mesmo produto sirva para prover às necessidades das crianças, os homens
não desfrutam do crédito de as ter alimentado, apenas as mulheres tiram disso partido, para reivindicar,
em prejuízo dos homens, a autoridade sobre esta progenitura, nascida das suas uniões. Em virtude destas
relações, liga-se, como vimos, a pertença das crianças ao grupo das mulheres, a relação adélfica (p. 90).
… a sociedade macua evoca uma espantosa dependência dos homens em relação às mulheres… E
no entanto… os homens não possuem quase nenhum ascendente sobre as mulheres com quem casam,
mas exercem a sua autoridade sobre as mulheres da sua própria adelfia, com as quais cresceram. A pro-
genitura das esposas escapa-lhes, mas são senhores do destino das crianças das suas congéneres. O
domínio feminino dos celeiros e do ciclo produtivo é claro e sem partilha, mas são os homens que orde-
nam e fazem os casamentos que iniciam e sancionam cada um dos momentos do dito ciclo… As mulheres
administram este, os homens dispõem, com a dominação do casamento, do controlo das modalidades
sociais da reprodução deste ciclo produtivo no tempo e, em virtude desta prerrogativa estratégica, exer-
cem indirectamente sua autoridade sobre toda a sociedade. De onde lhes vem este poder? Que fazem
com ele? (p. 107- 108).

FONTE Geffray, 2000.

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 249

Desafios.indb 249 3/29/11 4:53 PM


Os biólogos geralmente distinguem dois tipos de estratégia de sobrevivência e
reprodutiva entre os organismos vivos: ‘r’13 e ‘K’. Os seres humanos sobrevivem e re-
produzem-se segundo uma estratégia-K, à semelhança de outros mamíferos de médio
e grande porte e de outros seres vivos pequenos (e.g. pássaros). A estratégia-K é apro-
priada para ambientes relativamente estáveis, se bem que povoados por concorrentes,
predadores e parasitas. Os seres vivos são de tamanho médio ou grande, crescem
lentamente e adquirem maturidade tardia, dedicando enorme investimento (tempo
e recursos em cuidados parentais) à prole. Por isso, a prole é relativamente pequena,
comparada com a estratégia-r. O menor crescimento demográfico dos animais de
maior porte pode estar ligado à sua menor vulnerabilidade às flutuações ambientais,
e isto também está relacionado com o seu tamanho corporal (Livi-Bacci, 1992: 2-3).
No contexto da estratégia-K seguida pelos seres humanos, a maior ou menor quan-
tidade de descendentes ou filhos pressupõe uma relatividade diferente do que acontece
com a estratégia-r. Nas populações humanas, o número médio de filhos nascidos vivos
que uma mulher pode ter na sua vida fértil (convencionalmente definida entre os 15 e
os 49 anos), varia entre zero a 15 filhos.14 Este número máximo de filhos, em termos
estatísticos, é explicado pelas limitações biológicas e sociais da procriação da mulher.15

13
A estratégia-r é praticada por insectos, peixes e certos mamíferos pequenos que vivem em
ambientes muito instáveis, o que requer que aproveitem os períodos favoráveis (anual ou sazonal)
para se reproduzirem rápida e abundantemente, apesar da probabilidade de sobrevivência da
prole ser pequena. Num ambiente muito instável, os seres vivos são de tamanho pequeno,
crescem rapidamente, têm uma maturidade precoce e dependem de grandes proles ou de elevado
número de nascimentos – ‘life is a lottery and it makes sense simply to buy many tickets’ (May
e Rubinstein, ‘Reproductive Strategies’, p.2 (Livi-Bacci, 1992: 3).
14
Os conceitos fecundidade e fertilidade são susceptíveis de certa confusão (e.g. Mariano e
Paulo, 2009: 11), em grande parte porque em inglês eles têm sentido diametralmente oposto
ao que é dado nas línguas portuguesa, francesa e espanhola. Assim, no francês: fécondité; no
espanhol: fecundidad; e no português: fecundidade correspondem ao termo fertility em inglês. Os
termos fertilité, fertilidad e fertilidade correspondem ao termo fecondity em inglês, significando
o potencial ou capacidade fisiológica de produzir um nascido vivo, por parte de um homem,
uma mulher ou um casal. Em outras palavras, fertilidade é a probabilidade de engravidar, ou a
probabilidade de exposição à possibilidade de engravidar, a qual depende do padrão de saúde
sexual e comportamentos preventivos da gravidez. A ausência de tal capacidade é denominada
infertilidade ou esterilidade (Newell, 1988: 35; UN, 2010b: #621).
15
O tempo de gravidez (9 meses); o tempo perdido após o parto e antes de retomar a fertilidade
(infertilidade pós-parto, cerca de 1,5 meses); o tempo de espera para a concepção (cerca de 7,5 meses);
o tempo perdido por causas naturais intra-uterinas (cerca de 2 meses); a mortalidade e o tempo
perdido por esterilidade decorrente naturalmente da idade, ou induzida por um estado patológico,
dependendo de factores biológicos e da variabilidade de comportamentos sexuais. Tendo em conta os
riscos atrás referidos, em média, a fertilidade máxima possível reduz de 35 nascimentos para cerca de
15 filhos, assumindo que a mulher comece a procriar na adolescência, entre os 14 e 15 anos de idade,
até ao fim da vida reprodutiva, por volta dos 50 anos de idade (Frank, 2008: 2; Newell, 1988: 35).

250 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 250 3/29/11 4:53 PM


Em conformidade com a estratégia-K, a vida não é uma lotaria - pelo menos no
sentido da estratégia-r, em que a probabilidade de sobrevivência é muito reduzida e,
por isso, a perpetuação da espécie depende de elevados níveis de procriação. 16 Mas
se a espécie humana ‘…revelou-se muitíssimo boa a resolver os problemas relevantes
para a sua sobrevivência e reprodução…’ (Wilson, 2009: 43), algo adicional muito
especial permitiu que se distinguisse das demais espécies que seguem a estratégia-K.
Apesar de as capacidades mentais de certos animais ultrapassarem em muito
a dos seres humanos, no que se refere a tarefas específicas, ‘… nós somos es-
peciais na flexibilidade da nossa inteligência. A nossa espécie consegue resolver
problemas absolutamente novos de uma maneira que as outras espécies são in-
capazes’ (Wilson, 2009: 43).17 Mas não obstante esta capacidade, Wilson (2009:
220) questiona a representação habitual, auto-complacente, da singularidade hu-
mana, como se apenas os seres humanos fossem inteligentes e tivessem qualida-
des morais e estéticas. Segundo Wilson (2009: 220), a capacidade de pensamento
simbólico dos humanos, bem como sua capacidade de transmitir socialmente in-
formação aprendida – aquilo que se designa por cultura – e de cooperar, embora
comparável à de organismos multicelulares e insectos sociais, ultrapassa muito a
de outros vertebrados. Apesar disso, Wilson (2009: 220) considera errado descre-
ver as capacidades especiais humanas como singulares, porque a evolução exige

16
Em geral, nenhuma população atinge o máximo da fertilidade natural, tal como também existe
grande variabilidade individual entre as mulheres. Algumas mulheres, por várias razões, são
inférteis. Noutros casos, têm muitos filhos, como acontece ainda em Moçambique. De acordo
com o Guiness Book of Records, a mãe mais prolífica na história foi uma camponesa dos arredores de
Moscovo, no século XVIII; teve 69 crianças oficialmente registadas, 67 das quais sobreviveram à
infância. Entre 1725 e 1765, ela gerou 27 nascimentos múltiplos, incluindo 16 pares de gémeos,
sete conjuntos de trigémeos e quatro conjuntos de quadrigémeos. O recorde mundial moderno,
para partos múltiplos, pertence a Leontina Albina, de San Antonio, no Chile. Actualmente, nos
seus sessentas, ela afirma ser mãe de 64 filhos, dos quais 55 estão registados com certidão de
nascimento (Newell, 1988: 35; http://www.answerbag.com/q_view/576125).
17
‘Tanto quanto sabemos, baseando-nos na informação de que actualmente dispomos, os nossos
antepassados saíram de África (ou permaneceram lá, se o leitor for africano) há aproximadamente
setenta mil anos e espalharam-se pelo planeta, chegando à Austrália há aproximadamente trinta
mil anos. Podemos agradecer esta expansão à inteligência humana, pois ela exigiu a solução
para diversos problemas a uma grande escala. Para onde quer que fôssemos, descobríamos como
extrair comida do ambiente, até estarmos a comer tudo, desde sementes até baleias…Em cada
população humana distinta, a lenta sabedoria da selecção natural seguia para onde a rápida
sabedoria da inteligência humana a conduzia. Em civilizações que criavam gado, o leite tornou-
se, pela primeira vez na história dos mamíferos, um recurso para os adultos…Na década de 1950,
os programas americanos de ajuda ao estrangeiro enviaram leite em pó para todo o mundo,
produzindo flatulência generalizada em regiões onde as pessoas não estão geneticamente
adaptadas a digerir leite em adultos. Não admira que nos odeiem! ...’ (Wilson, 2009: 83).

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 251

Desafios.indb 251 3/29/11 4:53 PM


uma continuidade de precursores com antepassados comum a outros primatas
(Wilson, 2009: 202).18
De qualquer forma, a capacidade especial dos seres humanos é inquestioná-
vel, por diversas razões, nomeadamente a sua flexibilidade comportamental e ca-
pacidade de construir ambientes sociais que aumentam a probabilidade de sobre-
vivência das populações humanas. Tal capacidade materializa-se especificamente
nos mecanismos de protecção social através dos quais as populações humanas
mitigam e antecipam riscos de insegurança e ameaças à sobrevivência, primeiro
de forma natural ou subconsciente, e mais recentemente por via do controlo ra-
cionalizado da sua reprodução. Um controlo baseado em métodos e tecnologias
mais eficientes do que os métodos antigos, como o prolongamento do período de
amamentação dos filhos para reduzir a fertilidade, o adiamento da idade de aca-
salamento; ou opções mais cruéis (na perspectiva moral contemporânea) como o
aborto, o infanticídio e a venda ou abandono de crianças à sua sorte.

MORTALIDADE, FECUNDIDADE E ELEVADO NÚMERO DE NASCIMENTOS


Ao longo de milhares, para não dizer milhões, de anos, a sobrevivência das
populações humanas foi determinada principalmente pelas condições climáticas
e ambientais, as quais dependiam decisivamente das variações da precipitação, do
potencial e deficiências do solo e, eventualmente, da melhoria dos meios técnicos
rudimentares desenvolvidos na época paleolítica e neolítica, tais como a roda, a
escrita, a cultura de tracção animal e sistemas de irrigação.
Podemos, por isso, tomar como hipótese, parafraseando Hugon (1999: 29), que
ao longo do RDA a vulnerabilidade económica e técnica favoreceu uma grande coesão
social das comunidades e uma hierarquia dos poderes baseada na idade. Mas diferente-
mente do que Hugon (1999: 29) sugere, o favorecimento da coesão social e hierarquia
dos poderes baseada na idade prolongou-se, no caso de Moçambique, muito além do
período pré-colonial. Tanto no período colonial como nas décadas posteriores à in-
dependência, os meios pouco desenvolvidos e as condições naturais hostis (insectos
e parasitas, doenças endémicas, fragilidade dos solos, riscos climáticos, entre outros),
apontados por Hugon (1999: 29) como característicos de economias pré-coloniais, per-
sistiram e persistem em Moçambique, até ao presente, principalmente nas zonas rurais.

18
‘A evolução exige continuidade, pelo que as nossas capacidades devem ter tido precursores no
antepassado comum que partilhamos com os outros grandes primatas vivos – chimpanzés,
bonobos, gorilas e orangotangos – há apenas seis milhões de anos’(Wilson, 2009: 220).

252 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 252 3/29/11 4:53 PM


A maioria da população rural moçambicana tem vivido em condições de
subsistência precárias, geralmente dependente de meios técnicos típicos das socie-
dades agrícolas neolíticas, em que a roda, a escrita e a cultura de tracção animal
permanecem marginais na actividade quotidiana rural.
O Gráfico 3 apresenta um retrato gráfico do espaço estratégico da sobrevi-
vência e reprodução no último quinquénio do século XX (1995-2000), relacionan-
do a fecundidade (medida pela TFT) e a mortalidade (medida pela taxa de mor-
talidade infanto-juvenil – mortalidade dos menores de cinco anos), com recurso
aos dados estatísticos dos distritos e províncias de Moçambique e de 174 países do
mundo (INE, 2005; UNDP, 2001).
No final do século XX, a mortalidade infanto-juvenil moçambicana era de
256 óbitos por mil nascidos vivos, a esperança de vida à nascença de 41,4 anos de
idade e a taxa geral de fecundidade de 7,3 filhos (mediana 7 e moda 6,2 filhos) por
mulher. 19 Por seu turno, a nível mundial, a mortalidade infanto-juvenil rondava
os 65,4 óbitos por mil nascimentos, a esperança de vida à nascença de 65,3 anos
de idade e a fecundidade (TFT) uma média de 3,4 filhos (mediana 3 e moda 1,6
filhos) por mulher.
A dispersão da mortalidade infanto-juvenil, entre o mínimo e o máximo,
tanto a nível mundial como em Moçambique, também era muito grande, com a
diferença de que o mínimo a nível mundial foi de 4 óbitos por mil nascimentos,
enquanto o mínimo moçambicano cifrou-se em 88 óbitos por mil nascimentos. O
hiato entre os valores máximos mundiais da mortalidade infanto-juvenil e os de
Moçambique foi de 361 óbitos por mil (desvio padrão 67) nascimentos, contra 485
óbitos por mil nascimentos (desvio padrão 93,6).
Existe um terceiro aspecto, talvez o mais importante, para o argumento deste
trabalho, que revela sobre a íntima interdependência entre a reprodução e a mor-
talidade. O Gráfico 3 mostra uma forte correlação positiva entre a mortalidade
infanto-juvenil e a fecundidade, a nível mundial (R2 = 0.677); no interior de Mo-
çambique, a correlação é também positiva (R2 = 0.323), muito mais fraca do que
a nível mundial.

19
Refira-se que o PNUD, no cálculo do índice de esperança de vida, estabelece como limite mínimo
25 anos e limite máximo 85 anos. Significa que, há dez anos, assumindo que as estimativas do
INE representam a realidade, em certos distritos de Moçambique, a população apresentava um
nível de esperança abaixo do próprio limite mínimo que internacionalmente se assume estar
superado em todo o mundo. Será interessante verificar qual será a situação mais recente, a partir
da análise detalhada dos dados do Censo de 2007 (INE, 2009).

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 253

Desafios.indb 253 3/29/11 4:53 PM


Apesar de o Gráfico 3 correlacionar a fecundidade com a mortalidade infan-
to-juvenil, em vez da mortalidade infantil, o resultado é consistente com a conclu-
são encontrada na literatura recente, sobre a forte inter-dependência entre a mor-
talidade infantil e a fertilidade (Malmberg, 2008; Reher, 2004). Malmberg (2008:
18) chega a concluir que os países com taxas de mortalidade infantil acima de 100
óbitos por mil nascimentos apresentam taxas de fecundidade de seis ou mais filhos
por mulher. No entanto, segundo ainda Malmberg, quando a mortalidade infantil
baixa para menos de 100 óbitos por mil nascimentos, a TFT reduz para valores
inferiores a seis filhos por mulher. E quando a redução da mortalidade infantil
atinge os 50 óbitos por mil nascimentos, a TFT aproxima-se dos três filhos por
mulher (Malmberg, 2008: 18).

GRÁFICO 3 MORTALIDADE INFANTO-JUVENIL E TAXA DE FECUNDIDADE TOTAL (TFT), MOÇAMBIQUE E O MUNDO, 1995-2000

14 14
Mavago Maua
13 13
GRUPO 1
12 12

Fecundidade (TFT) Mundo - 1995-2000


11 11
Macanga
Fecundidade (TFT) Moz - 1997

10 10
GRUPO 2 Changara
9 9
Muembe
8 Yemen. 8
Zavala
7 GRUPO 3 Yemen 7
6 Arábia Saudita CENTRO
NORTE
6
Oman
Zamb
5 CD
5
Pemba
4 SUL 4
MOÇAMBIQUE
3 DU2 3
Banglades
Myanmar
2 DU1 2
y Moz= 1.1599ln(x) - 0.724 yMundo = 2.639ln(x) - 7.2065
1 R = 0.6776 R = 0.3236 1
0 0
0 50 100 150 200 250 300 350 400 450 500

Taxa de Mortalidade Infanto-Juvenil (menores de cinco anos)

Mundo Moz-Dist Moz-regiões Provincias

Log. (Mundo) Log. (Moz-Dist) Log. (Moz-Dist) FONTE INE, 2005; UNDP, 2001

Em Moçambique, há dez anos atrás, somente alguns dos distritos urbanos da


Cidade de Maputo apresentavam níveis de mortalidade infanto-juvenis inferiores
a 100 óbitos por mil nascimentos: Distrito Urbano 1 (87,5; 2,7), Distrito Urbano
2 (94; 3,4), 4 (96,7; 4,2) e Distrito Urbano 5 (90,3; 4,3). Existia apenas uma dúzia

254 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 254 3/29/11 4:53 PM


de distritos entre os 100 e 150 de mortalidade infanto-juvenil inferiores por mil
nados-vivos.20
A conclusão de Malmberg (2008: 18) é consistente com a tendência apre-
sentada no Gráfico 3, mas convém clarificar que, por causa da falta de dados
distritais sobre a mortalidade infantil, a variável usada no gráfico corresponde às
taxas de mortalidade infanto-juvenil. De qualquer forma, dados provinciais mais
recentes divulgados pelo INE (2009) continuam a corroborar com a conclusão de
Malmberg, com a particularidade de se reportarem à situação de pouco mais de
uma década atrás. Segundo o MICS 2008 (INE, 2009), as estimativas provinciais
da mortalidade infantil apresentam níveis superiores a 100 óbitos por mil nasci-
mentos a nível nacional (105,3‰) e nas zonas rurais (110,2‰), bem como nas
províncias de Cabo Delgado (131,7‰), Nampula (104,9‰), Zambézia (147,1‰) e
Tete (107,5‰). Somente em Maputo, Cidade (66,6‰) e Província (67,3‰), é que
as taxas de mortalidade infantil são inferiores a 70‰, mas evidentemente bastante
acima dos 50‰ (INE, 2009: Q2.3.2).
De acordo com as recentes projecções para 2007-2040 do INE (2010), se as
condições de mortalidade infantil não superarem as actuais expectativas, só dentro
de duas décadas é que a mortalidade infantil moçambicana ultrapassará o limiar
dos 50‰. Recentemente, o INE divulgou suas projecções demográficas para o
período 2007-2040, nas quais estima que a mortalidade infantil atinja os 50,7‰
em 2030 e 48,9‰ em 2031, enquanto a fecundidade poderá nessa altura situar-se
nos 3,8 filhos por mulher.
As novas projecções do INE para a fecundidade futura tomam certamente em
consideração o facto de, na década passada, a sua diminuição ter sido inferior à pre-
visão nas projecções divulgadas em 1999. Em vez de uma redução da fecundidade
para 5,3 filhos por mulher, projectada pelo INE (1999b: 84) para 2010, na sua mais
recente actualização, o INE (2010a) corrige a estimativa da taxa de fecundidade
para 5,6 filhos por mulher. Tendo em conta os dados do Censo 2007, avaliações sis-
temáticas como a que foi feita por Arnaldo (2007) sobre os determinantes próximos
da fecundidade, necessitam de ser retomadas e actualizadas (Caixa 2).

20
Distrito Urbano 3 (100,5‰), Cidade da Matola (105,3‰), Moamba (108,4‰), Zavala
(113‰), Cidade de Inhambane (115,1‰), Marracuene (116,8‰), Cahora Bassa (117,4‰),
Maxixe (124,4‰), Namaacha (124,7‰), Inharrime (125,5‰), Xai-Xai (128,7‰), Cidade
de Xai-Xai (128,7‰), Boane (132‰), Magude (144,7‰), Cuamba (147,6‰), Cidade de
Lichinga (147,7‰) e Mossurize (148,8‰).

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 255

Desafios.indb 255 3/29/11 4:53 PM


CAIXA 2 O ALTO PRESTÍGIO SOCIAL QUE AS MULHERES COM MUITOS FILHOS GOZAM…

Acredita-se que o baixo estatuto social da mulher na África Sub-Saariana também promove níveis ele-
vados de fecundidade... A dependência económica das mulheres nos homens, que caracteriza a estrutura
familiar patriarcal da maior parte da África Sub-Saariana, resulta em níveis de fecundidade desejadas re-
lativamente elevados de modo a minimizar os riscos na velhice (Cain, 1993; Mason, 1993; Abadian 1996).
Contudo, mesmo quando os desejos de fecundidade das mulheres são baixos, estes níveis podem não ser
facilmente atingidos, pois as mulheres têm um poder de tomada de decisão limitado. Nas estruturas fami-
liares africanas, as mulheres não têm autoridade na tomada de decisões sobre o tamanho da família e de
praticar ou não o planeamento familiar. A prática do Lobolo é vista como um meio que confere ao esposo
e seus familiares o direito de decidir sobre a prática do planeamento familiar (Boserup, 1985; Caldwell e
Caldwell, 1987; Frank e McNicoll, 1987; Caldwell et al., 1992). Em adição ao seu mínimo envolvimento na to-
mada de decisões sobre o número de filhos a ter, as mulheres em África temem a esterilidade: ter filhos de
um modo regular e muitos, reforça o prestígio da mulher e assegura respeito, enquanto que, em contraste,
a esterilidade ou um menor número de filhos sujeita a mulher ao ridículo, sofrimento e consequências so-
ciais negativas (vide Capitulo 7). (Arnaldo, 2007: 23).
A investigação sobre os diferenciais da fecundidade tem observado, sistematicamente, que as mulhe-
res que vivem em áreas urbanas têm [mais] baixos níveis de fecundidade do que a sua contraparte rural…
Esta diferença nos níveis de fecundidade pode reflectir diferentes estatutos socio-económicos entre as
mulheres urbanas e rurais. As mulheres urbanas têm uma melhor escolarização e estão mais susceptíveis
de participar no mercado de trabalho formal, casar mais tarde, e possuir melhor conhecimento sobre e
acesso a contraceptivos modernos do que as mulheres rurais (Cohen, 1993; Shapiro e Tambashe, 2001).
Por outro lado, devido ao facto dos custos de procriação serem elevados em áreas urbanas do que em ru-
rais, onde as crianças ajudam nas actividades domesticas e agrícolas, as mulheres de áreas urbanas estão
mais susceptíveis de apreciarem as vantagens de terem uma família pequena (Cohen, 1993; Jolly e Griblle,
1993). Níveis elevados de fecundidade em áreas urbanas podem também estar associados, parcialmente,
à residência rural per se, pois a vida está associada a muitos filhos e normas que tendem a favorecer a fa-
mília alargada (United Nations, 1987:188) (p. 131)
Como se esperava, as TFTs estimadas (Tabela 4.7) são [mais] baixas em áreas urbanas do que em rurais.
A nível nacional, a diferença é de 1.7 filhos por mulher, reflectindo uma TFT de 6.3 comparada com 4.6 para
áreas urbanas. As diferenças entre as áreas urbanas e rurais são grandes na região Centro (1.9) do que as
regiões Norte (1.2) ou Sul (1.4). Em termos relativos, a fecundidade urbana é de 28, 18 e 25% mais baixa
do que a fecundidade rural nas regiões Centro, Norte e Sul, respectivamente. Em sete das dez províncias,
a diferença urbano-rural na TFT excede um filho por mulher, e aproximando-se a dois em Sofala. Não existe
quase nenhuma diferença entre a TFT urbana e rural em Manica, onde a TFT urbana é de apenas 0.2 filhas
menos do que a rural. Na verdade, Chimoio (em Manica) é a capital provincial com a mais elevada TFT (6.2),
2.1 filhos por mulher mais alto do que a média nacional. Fazendo uso de métodos quantitativos e qualita-
tivos, Martinho (2000) sugere que as razões por detrás da elevada fecundidade na Cidade de Chimoio são,
talvez, o alto prestígio social que as mulheres com muitos filhos gozam e a ausência de motivação para
adoptar métodos de contracepção modernos. Mais ainda, Manica, tanto quanto Niassa, Nampula e Tete,
todas com TFTs de 5.0 ou mais, estão entre as províncias menos desenvolvidas do país (Ministério do Plano
e Finanças, 2000) (p. 131).

FONTE Arnaldo, 2007.

A QUESTÃO DA EFICÁCIA E DA EFICIÊNCIA DA ESTRATÉGIA DE TER MUITOS


FILHOS
Para melhor se compreenderem as oportunidades e os constrangimentos que
afectam a incipiente transição demográfica moçambicana, será necessário ir além
das descrições dos processos demográficos e do conhecimento das tendências
passadas e possibilidades futuras.

256 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 256 3/29/11 4:53 PM


A teoria demográfica e outras ciências sociais possuem uma extensa litera-
tura sobre a transição da mortalidade e da fecundidade em íntima ligação com os
mecanismos adaptativos e possíveis causas explicativas das mudanças. Aprofundar
este assunto requereria igual ou maior espaço do que o que já foi ocupado por este
texto, mas pelo menos é possível referir alguns dos principais factores determinan-
tes que permitam responder às questões enunciadas no início deste capítulo. Para
além dos factores biológicos já referidos (os que afectam os intervalos entre nasci-
mentos), existem factores socioeconómicos que afectam o número de nascimen-
tos e a proporção do período reprodutivo dedicado aos cuidados parentais dos
filhos: idade do casamento, formas de casamento e outros mecanismos tradicio-
nais de regulação da criação e desenvolvimento das crianças. Em última análise,
os factores biológicos e socioeconómicos determinam a eficácia e a eficiência da
reprodução humana, as quais, por sua vez, moldam, incentivam ou condicionam
as formas e o desempenho da PSD.
Se entendermos a eficácia da estratégia de reprodução como a capacidade de
a população alcançar a sua principal finalidade - isto é, a sobrevivência -, a descri-
ção anterior sobre a enorme variabilidade da fecundidade moçambicana não deixa
qualquer dúvida. A população moçambicana é uma das populações do mundo que
tem alcançado, com sucesso, a sua estratégia de sobrevivência. Nesta perspectiva,
a maximização da procriação com vista a compensar e superar minimamente o
nível de mortalidade é uma estratégia eficaz.
Tal estratégia será também eficiente? Eficiente, no sentido da capacidade da
população de alcançar a sua finalidade de forma competente, com o menor desper-
dício possível. Em outras palavras, o desempenho eficiente da reprodução é em fun-
ção da forma como a população combina a componente ligada à eficácia (o número
de filhos necessários para que a sobrevivência seja garantida) com a componente
ligada à eficiência (a maneira ou o tipo de investimento no cuidado parental).

UMA ESTRATÉGIA REPRODUTIVA EFICAZ, MAS INEFICIENTE


A implicação analítica da anterior distinção, entre eficácia e eficiência, deve
começar a ficar evidente. Primeiro, o sucesso da estratégia de uma população, em
termos de crescimento, depende da íntima inter-dependência entre sobrevivência e
reprodução. Neste sentido, o número que importa considerar, quando se lida com
o número de crianças ou de filhos nascidos de mulheres, não é o número total de
filhos que nascem mas o número de filhos que efectivamente sobrevivem até à ida-

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 257

Desafios.indb 257 3/29/11 4:53 PM


de reprodutiva. Ou seja, em termos de capacidade reprodutiva efectiva, o nível de
fecundidade da população necessita de ser considerada em ligação com o nível e
comportamento da mortalidade ao longo do período de vida reprodutiva da mulher.
Aproveitando o exemplo ilustrativo de Livi-Bacci (1992: 18-20), com uma
esperança de vida à nascença igual a 20 anos, uma geração apenas vive 29,2% da
vida fecunda potencial, devido à dizimação causada pela alta taxa de mortalidade.
Esta proporção aumenta gradualmente com o aumento da esperança de vida:
para 70,8% e 98,2%, quando a esperança de vida à nascença é igual a 50 e 80 anos,
respectivamente. Assumindo que a mulher tem uma média de seis filhos, abstrain-
do da mortalidade, quando apenas 30% do espaço reprodutivo é usado (eo = 20),
o número de filhos nascidos por mulher é 6 x 0,3 = 1,8. Quando 70% do espaço
estratégico é usado e a eo = 50 anos, o número de filhos nascidos é 6 x 0,7 = 4,2;
quando eo = 80 anos e 98% do espaço estratégico é usado, o número de filhos
nascidos é 6 x 0,98 = 5,88. Como cada criança é gerada pela união de dois indi-
víduos (mulher e homem), em termos hipotéticos, cada casal salda a sua dívida
demográfica se o número obtido rondar o nível de dois filhos. Um número acima
de dois implica crescimento; se atingir os quatro, a população duplica em apenas
uma geração (cerca de 30 anos) e a taxa média anual de crescimento será de 2,3%.

QUAL O NÍVEL DE DESPERDÍCIO DEMOGRÁFICO DOS MOÇAMBICANOS?


Aplicando o exemplo anterior ao caso particular da população moçambica-
na, não será difícil inferir que a explosão demográfica provocada pela transição de-
mográfica acabou por permitir o quanto o RDA logrou alcançar com sucesso (ou
eficácia) a sua estratégia de sobrevivência, mas de forma extremamente ineficiente.
A ineficiência reside no facto de a população alcançar a sua finalidade estratégica à
custa de um elevado desperdício demográfico. Desperdício porque, à semelhança
do que acontecia no RDA, também no decurso da transição demográfica a mulher
continua a ter uma média de seis filhos, supostamente para garantir a substituição
pela geração seguinte.
Acontece que o “nível de reposição”, ou seja, a taxa de fecundidade necessá-
ria para a população se manter constante a longo prazo, é de 2,1 filhos por mulher.
Em termos mais comuns, cada mulher apenas precisaria de ter uma filha para se
substituir. Se não existisse mortalidade na população feminina, até ao fim da idade
fértil (geralmente considerada o período 15- 49 anos, embora existam excepções),
o nível de substituição de TFT seria muito próximo de 2,1 filhos (o ligeiro exce-

258 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 258 3/29/11 4:53 PM


dente acima de dois filhos corresponde à compensação do excesso de rapazes em
relação às raparigas à nascença, nas populações humanas).
Na prática, o nível de substituição é afectado pela mortalidade, especialmente
a mortalidade infantil.21 Considerando que a mulher moçambicana tem actual-
mente uma média de 5,7 filhos, sem tomar em consideração o efeito da mor-
talidade, com uma esperança de vida à nascença (eo = 47,3 anos), por causa da
mortalidade, cada geração vive apenas 69% da sua vida fértil potencial. Como se
disse anteriormente, o sucesso reprodutivo da população depende do número de
filhos que realmente sobrevivem até à idade reprodutiva. Neste caso, o número de
filhos necessários para garantir a reposição é 5,7 x 0,69 = 3,9 filhos.
Significa que, nas actuais condições de mortalidade em Moçambique, a inefici-
ência reprodutiva da população moçambicana ronda os dois filhos por mulher; ou
seja, um desperdício demográfico duas vezes acima do nível de reposição necessário
para cada geração moçambicana assegurar a sua substituição pela geração seguinte.

NASCIMENTOS E SOBREVIVENTES: QUANDO É QUE AS FAMÍLIAS SE TORNARAM GRANDES?


As famílias grandes representam uma característica mais recente do que é ge-
ralmente percebido pelo senso comum; um produto da transição demográfica, em
vez dos tempos remotos do RDA. Esta percepção do senso comum tem sido apoia-
da por certos especialistas em estudos da população, incluindo investigadores notá-
veis como Caldwell (1976, 1982) e Lestahaegue (1980, 1989), bem como críticos da
teoria da transição demográfica (Bandeira, 1996; Campbell, 2007: 242-243).
Na verdade, a ideia das famílias grandes no passado remoto tornou-se uma
peça importante na justificação da transição demográfica do RDA para o RDM.
Segundo Reher (2004: 25), o entendimento geral sobre a mudança da fecundidade
e a transição demográfica sustenta-se geralmente na seguinte descrição. Antes da
transição, as pessoas preferiam grandes famílias, provavelmente por perceberem a
utilidade das crianças, quer para a segurança social dos idosos na fase avançada da
vida, quer por razões culturais diversas. A introdução de elementos modernizado-
res na sociedade motivou os pais a desejarem famílias menores. Assim, do ponto
de vista da mudança idealizada, o início da transição da fecundidade passou a ser
considerado como um capítulo crucial no triunfo da emancipação humana, da
racionalização e modernização, do individualismo e da ocidentalização.

21
Arnaldo e Muanamoha (2010:11) concluem que o nível de fecundidade moçambicana é o triplo do que
seria necessário para garantir a reposição das gerações, mas este valor abstrai-se do efeito da mortalidade.

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 259

Desafios.indb 259 3/29/11 4:53 PM


Ainda que seja uma interpretação atractiva, como refere Reher (2004: 25),
ela resulta de uma realidade relativamente recente e contemporânea, em vez de
um passado distante. ‘As famílias nunca foram grandes antes da transição demo-
gráfica… A taxas relativamente baixas prevalecentes na maior parte do mundo,
antes da transição demográfica, são a melhor prova de que as famílias tendiam a
ser pequenas, em vez de grandes (Wilson e Airey, 1999; Reher, 2004: 25).
Considerando que, do ponto de vista da reprodução, o indicador realmente
importante não é o número de crianças que nasceram vivas (medido pela TFT), mas
o número de crianças que sobrevivem até à idade reprodutiva, é sabido que este úl-
timo nunca foi elevado, excepto no período próximo ou durante a transição demo-
gráfica. E se assim é, como refere Reher (2004: 25), tanto o controlo da mortalidade
como o subsequente controlo da fecundidade assume um significado totalmente
diferente do que aconteceria se as famílias grandes tivessem existido há muito mais
tempo. Significa que o controlo da fecundidade pode ser visto como uma solução
para se manter o tamanho da família, em vez de se procurar diminuí-lo.
Esta questão é de primordial importância para Moçambique, na actual fase
da transição demográfica moçambicana. Certos grupos populacionais, talvez ain-
da poucos, procuram reduzir o tamanho dos agregados familiares às novas condi-
ções da sua vida, mas outros procuram encontrar solução para os efeitos de deficit
em vez de excesso de nascimentos. Geffray, na sua descrição dos desequilíbrios da
estrutura demográfica dos Macuas, no Norte Moçambique, em meados do século
XX, mostrou como o deficit de nascimentos de raparigas pode perturbar a estabi-
lidade da passagem das gerações:

O deficit de nascimentos femininos tem em primeiro lugar como consequência, na pri-


meira passagem das gerações, um pequeno número de raparigas para casar, reduzindo
por isso o efectivo dos homens jovens incorporados pelo casamento: há poucos casais
juniores na casa. A ascensão de uma sororia júnior incapaz de se reproduzir provoca, a
partir da geração seguinte, o aparecimento de um efectivo de seniores e de anciãos supra-
numerários, relativamente ao de uma geração socialmente produtiva de juniores. A pirâ-
mide de idades do grupo reduz-se ou inverte-se a partir da base (Geffray, 2000: 110-111).

Ceccato (2000), na sua avaliação do impacto da modernização na fecundi-


dade em Moçambique, analisa as variações da fecundidade a nível regional e de
grupos étnicos e sociais, identificando alguns tipos de casais típicos correspon-
dentes aos principais estágios da transição demográfica clássica: tradicional (em
transição) e moderno (Caixa 3).

260 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 260 3/29/11 4:53 PM


CAIXA 3 TRÊS CASAIS TÍPICOS MOÇAMBICANOS: TRADICIONAL, EM TRANSIÇÃO E MODERNO

Em todas as províncias moçambicanas, a demanda [por crianças] é em média superior à oferta. O país
tem uma das maiores demandas de crianças no mundo, mas também uma dos maiores ofertas, para além
da elevada mortalidade infantil e juvenil. Em muitas províncias, os custos de controlo da fecundidade ainda
são elevados. Os que deliberadamente usam anticonceptivos são os que já têm muitos filhos (pp. 21-22).
…vamos apresentar três casais que, hipoteticamente, podem exemplificar o comportamento típico da
fecundidade em Moçambique. Os casais representam também três fases do comportamento da fecundi-
dade: tradicional, em transição e moderno. As histórias dessas famílias são definidas pela interacção entre
oferta e demanda de crianças e os custos de regulação da fecundidade... (p. 22).

Casal tradicional O casal tradicional pertence ao grupo étnico Emakua e vive na zona rural de Nampula,
uma das províncias do norte. Vivendo num ambiente agrícola, o casal deseja ter o maior número de filhos;
para eles, quanto maior for o número de crianças, maior será a força de trabalho para a agricultura e sua
subsistência ficará garantida a longo prazo... Não tem acesso a água potável, nem a TV ou rádio. Duas filhas
já morreram de cólera, razão pela qual desejam ter mais filhos. O número total de crianças depende de
uma fecundidade sem controlo, simbolizada pela frase “depende de Deus”; oito, é o número de filhos que
desejam ter... (p. 23) (sublinhado nosso).

Casal em transição O casal em transição pertence aos grupos étnicos Xitswa e Xitsonga e vive na capital
da província de Inhambane, depois de ter mudado do interior, há alguns anos atrás. Apesar de saudável,
é analfabeto e tem um padrão de vida instável porque a sobrevivência da família depende de empregos
temporários do homem conseguidos noutras províncias moçambicanas. O estilo de vida urbano reduziu
ligeiramente o desejo do casal quanto ao número de filhos; os custos com as crianças tornaram-se maiores
devido à escola. Além disso, suas crianças estão todas vacinadas e a sua mortalidade é menor do que a
dos seus primos rurais. Quando o casal está esperando seu quinto filho, discute sobre a estranha e pouco
tradicional noção de limitar o tamanho da família. No entanto, acaba por não ir à clínica; ainda vê com des-
conforto o recurso a métodos anticonceptivos (por exemplo, abstinência ou preservativos), para além dos
custos reais, em tempo e dinheiro, de certas técnicas (por exemplo, aborto ou esterilização). É só quando
está à espera do seu sexto filho que decide limitar o tamanho da sua família. Obtêm um método moderno
anticonceptivo na clínica de saúde local (p. 23)

Casal moderno O casal moderno, dos grupos étnicos Xitsonga e Português, sempre viveu na Cidade
de Maputo. Um dos parceiros tem o ensino médio e pelo menos o homem tem emprego permanente em
tempo inteiro. Assumindo estilos de vida urbana, desde o início da união, o casal sente-se motivado para
controlar o tamanho da família, já que ter filhos indesejados implicaria custos adicionais. Decidiu não ter
mais de três filhos, uma vez que os custos de uma quarta criança poderiam comprometer o investimento
direccionado para a “qualidade da educação” dos três primeiros filhos. A perspectiva de crianças não dese-
jadas motivou-o a escolher a contracepção moderna, a qual é relativamente barata na Cidade de Maputo,
onde comparativamente às áreas rurais é fácil de obter informação e contraceptivos. Os contraceptivos,
neste caso, são utilizados não só como meio para conseguir o número de filhos desejado, mas para definir
também quando é que as crianças devem nascer (p. 23)

FONTE Ceccato, 2000

O debate sobre a idealização da família grande, principalmente o mito de


que elas são mais antigas do que aquilo que as próprias condições demográficas
teriam permitido, merece ser testado e confrontado para o caso da realidade mo-
çambicana, de uma maneira mais sistemática e detalhada do que é possível neste
trabalho. Na verdade, será preciso revisitar-se a literatura antropológica, histórica,
demográfica e sociológica com o propósito específico de avaliar a relevância do

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 261

Desafios.indb 261 3/29/11 4:53 PM


referido questionamento para tornar mais visível o conteúdo e tipos de famílias
herdadas do RDA e em processo de desenvolvimento no período da transição
demográfica moçambicana incipiente em curso actualmente.

DO DESPERDÍCIO DEMOGRÁFICO À REPRODUÇÃO EFICIENTE


À semelhança do que acontecia no RDA também no actual período de tran-
sição demográfica incipiente, observa-se um verdadeiro paradoxo reprodutivo, ao
qual Livi-Bacci (1992: 100-101) chamou ‘desordem’ - a elevada probabilidade de a
maioria das crianças morrer antes dos seus pais e avós; ou mesmo, morrerem an-
tes de atingirem a idade reprodutiva e poderem saldar a sua dívida por terem nas-
cido, contribuindo para a sua reposição gerando os seus próprios descendentes.

O PARADOXO DOS FILHOS MORREREM ANTES DOS PAIS E AVÓS


Para além do drama que o falecimento de uma criança representa para os
seus progenitores, do ponto de vista da reprodução da espécie, a elevada mortali-
dade infantil significa que a maioria das crianças morre antes de saldar a sua dívida
demográfica para com a sua espécie. Em termos reprodutivos, saldar a dívida
demográfica individual significa repor e garantir que uma geração seja substituída
por novos descendentes. Isto acontece graças ao investimento e cuidados dos pais,
mas também à capacidade individual de crescerem e viverem até à idade reprodu-
tiva e gerarem seus descendentes.
Na actual situação de transição demográfica incipiente, se os esforços vi-
sando melhorar a esperança de vida à nascença tiverem sucesso, sem que igual
esforço seja canalizado para a redução sustentável da fecundidade, crescerá o risco
de o desperdício demográfico aumentar. Por exemplo, se até ao fim da corrente
década a TFT baixar para cinco filhos, a esperança aumentar para eo = 60 e o
espaço estratégico em uso aumentar para 88%, o número de filhos sobreviventes
rondará os 5 x 0,88 = 4,4.

AINDA PRECISARÁ DE MIM, AINDA ME ALIMENTARÁ


Uma das obras mais famosas na ciência demográfica é o livro de Malthus,
Ensaio sobre o Princípio da População, publicado pela primeira vez em 1798, sob ano-
nimato. Uma fama que ultrapassou o domínio da demografia ao inspirar, ao longo
dos dois séculos passados, imensas reflexões intelectuais, tanto inovadoras e criativas
como críticas e controversas. Uma das inspirações mais famosas e frutíferas foi pro-

262 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 262 3/29/11 4:53 PM


vavelmente a que o próprio Darwin reconheceu, na famosa referência à influência
que o livro de Malthus teve na formulação da sua teoria da selecção natural.22
Mas a principal razão da grande controvérsia que o livro de Malthus provocou,
desde a sua primeira aparição pública, parece ter pouco que ver com os dois impor-
tantes postulados que enunciou: 1) Que o alimento é necessário para a existência
do homem; 2) Que a paixão entre os sexos é necessária e permanecerá aproximada
do seu actual estágio (Malthus, 1986: 7). Segundo Nazareth (2004: 26), o livro pro-
vocou indignação devido a uma das suas teses: ‘a assistência aos pobres não serve
senão para os multiplicar sem os consolar.’ Um simples parágrafo, segundo Nazareth
(2004: 27), terá desencadeado um grande repúdio, num mundo onde emergiam os
ideais da igualdade, do socialismo e da solidariedade entre as classes oprimidas. ‘A
controvérsia que o parágrafo do banquete gerou nos salões elegantes da época, foi de
tal forma marcante que os aspectos mais interessantes da sua ‘obra’ passaram para
segundo plano (Nazareth, 2004: 27; Bandeira, 1996: 9-10).
Voltando ao Gráfico 3, seria interessante investigar quais foram as variações
da fecundidade nos distritos moçambicanos na última década. Como mostra o
gráfico 3, no final do século XX, diversos distritos rurais encontravam-se ainda
num estágio pré-transicional, tanto em relação à fecundidade como à mortalidade.
Isto é ilustrado pelos valores da mortalidade e da fecundidade em Maua (402,4;
13,3); Nipepe (484,8; 7,7); Namarroi (471; 8,3 filhos); Zumbo (280; 12); Monapo
(456,4; 9); Namapa-Erati (460,3; 9,2). Comparando estes distritos nortenhos de
Moçambique com os distritos urbanos da Cidade Maputo (DU1 = 2,7 filhos; DU2
= 3,4 filhos; DU3 = 3,8 filhos), parece não haver dúvidas quanto à constatação de
Arnaldo (2003, 2007: 308-311). Isto é, somente na região Sul, ou melhor ainda,
em Maputo Cidade e Província, existem evidências claras de redução sustentável
da fecundidade.
Recentemente, têm surgido indagações e reflexões na literatura internacional,
em torno da problemática do envelhecimento populacional e da relação entre ida-
de e produtividade: “Will you still need me, will you still feed me?” (Kinsella e He,
2009), “Will you still need me?... when I’m 64? (van Ours, 2009). No entanto, em
países como Moçambique, onde o problema demográfico ainda continua a ser a
passagem da infância para a juventude e maturidade da população, questões simi-
lares são também cada vez mais justificadas. Mas em vez do envelhecimento po-

22
Thomas Malthus (1766-1834). http://www.ucmp.berkeley.edu/history/malthus.html.

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 263

Desafios.indb 263 3/29/11 4:53 PM


pulacional, a razão principal em Moçambique é a incipiente transição demográfica,
enquanto a população cresce rapidamente e o desperdício demográfico aumenta.
À primeira vista, este panorama demográfico moçambicano pouco, ou nada,
tem a ver com o livro de Malthus, escrito há mais de dois séculos. Porém, numa
segunda reflexão, informada pelo contexto demográfico em que o famoso En-
saio sobre a População foi escrito, percebe-se o sentido da associação entre as duas
realidades tão distantes uma da outra. Malthus escreveu o seu livro na viragem
para o século XIX, quando a Inglaterra entrava na fase de rápido crescimento
populacional, ou ‘explosão demográfica’ e grande abundância de crianças. Uma
fase caracterizada também por elevada pobreza e indigência, bem como por forte
dependência da exploração de recursos naturais.
Sem pretender justificar o grande pessimismo expresso por Malthus, na sua
análise do crescimento populacional, como observaram Malmberg e Sommestad
(2000: 8), tal pessimismo poderá ter sido motivado pelo contexto demográfico
complicado em que vivia. Além disso, Bandeira (1996: 11) também poderá estar
certo, ao afirmar que Malthus terá sido motivado pelo desejo de encontrar respos-
tas apaziguadoras do sentimento de difusa insegurança de algumas classes sociais
perante as novas classes perigosas e o fervilhar das mudanças sociais no início da
revolução industrial.
O que parece mais improvável é que o escândalo provocado pelo Ensaio
sobre a População tenha sido, como parece dar a entender Nazareth (2004: 26-27),
porque o mundo em que Malthus vivia estaria a ser crescentemente influencia-
do pelos ideais da igualdade, do socialismo e da solidariedade entre as classes
oprimidas. Ou, então, porque fosse prática comum dos frequentadores dos salões
elegantes da época debater questões intelectuais originais como as consequências
do crescimento demográfico.
Ironicamente, dois séculos após a indignação causada por Malthus, a elevada
taxa de crescimento populacional em países como Moçambique tem motivado
sentimentos e iniciativas internacionais, mais ou menos generosos e caritativos,
mas certamente mais abrangentes do que os socialistas do início do século XIX
terão manifestado. De qualquer forma, o amplo movimento de assistência social
da comunidade doadora internacional não tem sido suficientemente efectivo para
se poder concluir que a seguinte afirmação de Malthus, no chamado ‘parágrafo
do banquete’ tenha perdido actualidade: ‘Existem pessoas azaradas que na grande
lotaria da vida tiraram o bilhete em branco.’ (Malthus, 1959: 37). Entre tais pessoas

264 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 264 3/29/11 4:53 PM


figuram actualmente o crescente número de crianças abandonadas pelos pais, ou
entregues ao tráfico de pessoas; os anciãos que não encontram lugar nos escassos
lares de idosos criados por organismos públicos e privados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: CONCLUSÕES E PERSPECTIVAS DE


PESQUISA

Ao elaborar o presente trabalho em torno da ideia destacada no título “Ter


muitos filhos, principal forma de protecção em Moçambique” e do conceito de
protecção social demográfica (PSD), procurou-se abordar as relações e práticas
sociais que, por via de uma multiplicidade de componentes demográficos, assegu-
ra a renovação da descendência como segurança humana digna, dependendo das
condições de desenvolvimento em que vivem as populações.
Neste trabalho, o modelo teórico e empírico da transição demográfica per-
mitiu enquadrar a interpretação dos escassos dados disponíveis sobre os compo-
nentes de mudança demográfica em Moçambique, numa perspectiva de longa du-
ração e relevância específica para os modos de protecção social, tanto em relação
ao passado como às perspectivas futuras.
Se a PSD for entendida como o modo de protecção social, que no RDA e
em algumas das fases de transição demográfica tem permitido o sucesso da estra-
tégia de sobrevivência e reprodução humana, torna-se indispensável repensar as
abordagens e as políticas sobre protecção social moçambicana. Os dois primeiros
capítulos deste texto destacaram a natureza e estágio da transição demográfica
moçambicana. Apesar de ser uma transição incipiente, lenta e tardia, a ruptura
com o RDA é um facto comprovado por vários indicadores demográficos, com
destaque para a mortalidade, mudanças nas formas de organização matrimonial,
processos de migração e urbanização, a edificação de um Estado moderno desde a
última década do Século XIX, a diversificação dos universos económicos e formas
de actividade produtiva e a expansão das relações internacionais de intercâmbio
cultural e tecnológico.
Contrariamente ao que escreveu Ceccato (2000: 22) na sua avaliação do im-
pacto da modernização sobre a fecundidade moçambicana, a dificuldade de se
prever o futuro da transição demográfica moçambicana não tem a ver com ‘… se
e quando a transição demográfica acontecerá em Moçambique’ (sublinhado nos-

Ter Muitos Filhos Desafios para Moçambique 2011 265

Desafios.indb 265 3/29/11 4:53 PM


so). A própria tipologia de casais, elaborada por Ceccato (2000: 23), mostra que a
transição demográfica está em curso, mas em fases diferentes, dependendo do seg-
mento populacional considerado (Caixa 3). Presentemente, o que é difícil de pre-
ver é quando entrará Moçambique na terceira fase da transição demográfica; mas
não existem razões para duvidar de que a relativa estagnação da fecundidade e da
urbanização, como se verificou na última década, persista por muito mais tempo.

SOBRE A UTILIDADE DO CONCEITO DE PSD NOS PADRÕES DEMOGRÁFICOS


Ao expor a ligeireza e superficialidade das actuais estratégias políticas e ac-
ções públicas para a protecção social moçambicana, o presente artigo mostra
como os sistemas convencionais moçambicanos se encontram profundamente
alienados do tecido de relações socialmente relevantes para a vida dos moçambi-
canos. Espera-se que os fazedores de políticas despertem para a importância deste
assunto; se não forem todos, pelo menos alguns dos mais influentes na opinião
pública e menos apegados ao pensamento desejoso ou wishful thinking moçambicano,
o qual é debatido extensivamente por Francisco et al. (2011).
Se acharem exagerada a afirmação de que os sistemas de protecção social
convencionais se encontram profundamente alienados da realidade (demográfica,
social, económica e cultural) moçambicana, sugere-se então que teste a sua per-
cepção com o seguinte exercício simples. Após a leitura deste artigo, procure ler
ou, para quem já leu, procure reler os documentos jurídicos sobre protecção social,
recentemente aprovados pelo Governo Moçambicano, tais como: a Lei 4/2007
(Quadro Legal da Protecção Social) e os Decretos 53/2007 (Regulamento da Se-
gurança Social Obrigatória) e 85/2009 (Regulamento de Segurança Social Básica).
Para além das retóricas e abstractas declarações em reconhecimento dos di-
reitos dos cidadãos à protecção social, e da repetição dos princípios Gerais (uni-
versalidade, igualdade, solidariedade e descentralização), importados e copiados
de textos usados em economias avançadas (e.g. Portugal, Brasil), e que em Mo-
çambique não passam do papel, o que se poderá encontrar em tais documentos
jurídicos, sobre os padrões de protecção social nas diferentes regiões do País? Se o
legislador não mencionasse o país a que se reporta o documento, seria difícil adi-
vinhar tratar-se de Moçambique, porque o texto ignora por completo as práticas
de protecção social prevalecentes em Moçambique.
Obviamente, tanto o legislador, os líderes políticos e governantes nacionais,
como os investigadores e profissionais das agências internacionai sabem da exis-

266 Desafios para Moçambique 2011 Ter Muitos Filhos

Desafios.indb 266 3/29/11 4:53 PM


tência da grande diversidade cultural e étnica decorrente, directa ou indirectamen-
te, da sociedade rural e da economia rural de subsistência. Por que razão textos
jurídicos fundamentais e programas estratégicos de organizações internacionais
como por exemplo a UNICEF (Hodges e Pellerano, 2010; ver também Ellis et al.,
2009; Feliciano et al., 2008; Quive, 2007), assumem que os modos de protecção
social mais relevantes na vida quotidiana das populações não merecem ser men-
cionados? Se não é ignorância ou desprezo pela realidade do País, será que é um
reconhecimento implícito que as práticas e mecanismos prevalecentes são irrele-
vantes para os modelos modernos de protecção social?
Foi na busca de respostas às questões anteriores que se tomou consciência
de que o recurso a modelos, abordagens e conceitos de protecção social, sem os
submeter a uma reflexão crítica e criteriosa, tem-se convertido num dos principais
obstáculos à formulação de análises e políticas mais adequadas para a realidade
moçambicana. O próprio termo ‘protecção social’ passou a ser usado com carác-
ter meramente descritivo e anódino, tornando-se vazio de conteúdo operacional
e útil para a análise e formulação de políticas públicas. Por isso, no decurso das
pesquisas a que este trabalho pertence, optou-se por distinguir duas realidades e
qualificá-las em torno de categorias separadas.
A expressão ‘protecção social financeira’ (PSF) é empregue para designar o
conjunto de relações e mecanismos que se associam a instituições predominante-
mente financeiras, formais ou informais, típicas de sociedades configuradoras do
RDM e de instituições políticas e económicas, de modos de reprodução e produção
crescentemente eficazes e eficientes. A denominação ‘protecção social demográfica’
(PSD) permite dar visibilidade ao conjunto de relações e mecanismos configurado-
res do RDA e de instituições baseadas em laços de parentesco, redes familiares, de
vizinhança e comunitárias, de inter-ajuda, predominantemente não mercantis.
Se o conteúdo representado pela categoria PSD fosse tomado em consi-
deração (mesmo se o termo PSD não existisse), no processo de preparação dos
documentos jurídicos e programas acima referidos, certamente as várias formas
de direito sucessório e de protecção dos cônjuges e filhos menores, associados
à estratégia de ter muito filhos, não teriam sido ignorados; nem os sistemas de
herança de bens, poderes sociais e estatuto na família e relações de parentesco,
decorrentes do direito consuetudinário prevalecente nas diferentes regiões, seriam
tratados como irrelevantes nos documentos jurídicos fundamentais e programas
visando reduzir diferentes formas de vulnerabilidade.

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A opção comum, de remeter o conteúdo da PSD para categorias como ‘in-
formal’ ou ‘sociedade-providência’, é uma solução limitada e insuficiente. Tanto o
domínio da informalidade como a chamada sociedade-providência são geralmente
descritas como um conjunto de sobrevivência de raiz rural e pré-modernas, destina-
das a desaparecer à medida que os sistemas formais modernos, públicos e privados
se expandir (Nunes, 1995: 6). Na prática, o que está a acontecer é precisamente o
oposto. A informalidade é cada vez mais extensa e forte, levando os fazedores de
políticas a remeter para o sector sociedade-providência e para o sector informal a
responsabilidade que o Estado e parceiros internacionais deveriam assumir.

TER MUITOS FILHOS TORNOU-SE TAMBÉM UMA ESTRATÉGIA OBSOLETA EM


MOÇAMBIQUE?
“Porque nos damos ao trabalho de ter filhos?”, questionava Robertson (1991:
60), fazendo eco das indagações colocadas por muitas pessoas e casais. ‘A justifi-
cação comum de que os filhos são um conforto quando envelhecemos’, adiantou
Robertson (1991: 60), ‘parece menos justificada actualmente, quando podemos
providenciar a segurança a longo prazo, com seguro de reforma e outros inves-
timentos, permitindo aposentarmo-nos com tranquilidade nos lares de idosos’.
É claro que o uso da palavra ‘actualmente, ‘nesta frase de Robertson pressupõe
sociedades muito diferentes da sociedade moçambicana; sociedades com infra-
-estruturas financeiras e administrativas que permitem transferências de muitas
das funções da PSD para os sistemas modernos de segurança social contributiva e
assistência social não contributiva.
No caso da sociedade moçambicana, onde cerca de 80% da população não
tem qualquer acesso a sistemas financeiros, formais e informais, os pais esperam
que os seus filhos comecem cedo a contribuir para a economia familiar e que, na
sua velhice, tomem conta deles e os sustentem. Por isso, os filhos assumem um
‘valor’ económico e social elevado, comparativamente às sociedades desenvolvi-
das, onde os pais na verdade investem mais nos filhos (em educação, saúde, pre-
paração e lazer) do que deles recebem em retorno do seu investimento (Caldwell,
1976, 1982; Cain, 1981, 1983; Feliciano, 1998; Geffray, 2000; Lesthaegue, 1989;
Robertson, 1991: 68).
Apesar de o RDA pouco ter mudado em Moçambique, uma pequena parte
da população moçambicana já se encontra em fases mais avançadas da transição
demográfica para o RDM. É o caso dos ‘casais modernos’, para usar a expressão de

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Ceccato (2000: 23), que conscientemente decidem não ter mais do que três filhos.
Uma tal opção pressupõe uma estratégia reprodutiva muito diferente da estratégia se-
guida pela maioria das famílias tradicionais moçambicanas, ou mesmo em transição.
O facto de os casais modernos terem metade do número de filhos que os ca-
sais tradicionais possuem permite-lhes transferir o seu investimento da quantidade
para a qualidade dos poucos filhos que têm, preocupando-se em proporcionar-
-lhes boa educação, saúde, participação em actividades desportivas e recreativas,
indispensáveis para a integração no mundo moderno. Esta estratégia reprodutiva
pressupõe custos e, por isso, um maior padrão de vida do que a generalidade das
populações rurais tem, com implicações para o tipo de recursos e mecanismos de
protecção social. Os casais que entram no RDM percebem que, grande parte do
seu investimento nos filhos não lhes será devolvido, mas será creditado nos seus
netos. A implicação desta transformação na organização social reprodutiva obriga
os casais modernos a procurarem garantias de novas formas de segurança social,
para assegurarem as suas reformas e velhice, pelo facto de não poderem basear-se
no controlo do sistema reprodutivo pelos idosos, como nos Macuas no Norte de
Moçambique (Geffray, 2000).
Este ponto merece ser retomado e aprofundado em próximas oportunidades,
recorrendo a investigação mais detalhada. Se tal for feito, será possível esclarecer
o fracasso dos sistemas convencionais de protecção social, implementados tanto
pelo Governo como pelos seus parceiros internacionais de desenvolvimento. A
pesquisa deverá também ajudar a perceber porque é que o actual Estado sobera-
no tem estado a tentar recuperar modalidades de previdência social, que vinham
sendo implementadas no período colonial, desde que a administração portuguesa
colonial introduziu, em 1901, o primeiro Regulamento da Fazenda do Ultramar,
destinado a proporcionar a previdência social aos trabalhadores da Administração
Pública, predominantemente colonos e também aos chamados assimilados (Qui-
ve, 2007: 7; Francisco, 2010a).
Depois da tentativa fracassada de o Estado Soberano, após a independência
em 1975, de chamar a si a responsabilidade total da protecção social dos cidadãos,
a partir da década de 1990, sucessivos Governos Moçambicanos têm tentado re-
construir sistemas formais de segurança social contributiva (obrigatória e comple-
mentar) que a administração colonial portuguesa vinha desenvolvendo até 1974.
Se bem que isto não seja reconhecido explicitamente, por mero embaraço político,
o que realmente deveria embaraçar os actuais líderes políticos é incorrerem no

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mesmo erro do regime colonial de pouco fazerem para tornar os sistemas mais
inclusivos, eficazes e eficientes. Para agravar este erro, os sistemas de segurança
contributivos e não contributivos carecem de base financeira minimamente viável
e sustentável para que os cidadãos possam ter esperança de uma segurança hu-
mana digna. A margem de desenvolvimento de esquemas de protecção social não
contributivos, que permitem estender, com base em fontes internas, a cobertura
providenciária a toda a população moçambicana é mínima, devido à natureza
insolvente da economia e do Estado. (Francisco, 2010a; Francisco et al., 2011).
Neste contexto, o ponto que merece ser sublinhado é que, ao longo do último
século, tanto o Estado colonial como o Estado Soberano têm investido em sistemas
de protecção social orientados para as pessoas ou casais que já se encontram em
fases avançadas da transição demográfica, ignorando, contudo, a maioria da popu-
lação que vive numa transição demográfica incipiente. Por isso, a estratégia de ter
muitos filhos em Moçambique está longe de ser obsoleta. Nas actuais condições de
precariedade, ela continua a ser a solução eficaz para a população garantir a reno-
vação das gerações com o mínimo de dignidade. Contudo, como mostra o artigo,
apesar de eficaz, a estratégia de ter muitos filhos mostra-se cada vez mais ineficiente.
À medida que a transição da mortalidade se consolida, mais evidente se torna a
ineficiência da organização da reprodução da população moçambicana. A acelera-
ção do crescimento populacional é uma das consequências da referida ineficiência,
porque aumenta o desperdício demográfico. Pelo que revelaram os dados do Censo
de 2007, ao longo da última década, o referido desperdício tendeu a agravar-se. A
mortalidade infantil diminuiu ligeiramente, no período 1997-2007, mas a fecundida-
de rural aumentou em todas as províncias, excepto Nampula (INE, 2010a: 4).
Desde a independência de Moçambique, a população tem produzido cerca
de 340 mil novos nascimentos por ano. Ou seja, nos últimos 35 anos, nasceram
cerca de 12 milhões de crianças moçambicanas. Se a transição da mortalidade
não existisse, tais nascimentos seriam necessários para garantir a renovação das
gerações, ao compensar um nível de mortalidade equiparável ao nível da natali-
dade. Como a fecundidade tem mais ou menos permanecido estacionária, pouco
mais de metade dos nascimentos tornaram-se desnecessários para a renovação da
sobrevivência populacional.
O elevado número de nascimentos tem estado a repercutir-se intensamente
na urbanização, na habitação, na nutrição, no ensino, na assistência sanitária e no
emprego, sem que o Estado seja capaz de responder adequadamente à demanda.

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Tendo em conta o estágio actual da transição demográfica moçambicana, com-
parativamente às soluções encontradas pelas populações, as estratégias políticas e
programas públicos do Governo para a protecção social não são eficazes, nem efi-
cientes. Não são eficazes porque, através delas, nem mesmo uma pequena minoria
que beneficia dos sistemas de segurança social pode dizer que receba uma protec-
ção social digna. Também não é eficiente, porque os serviços prestados são im-
previsíveis, precários e sem qualquer tipo de garantia de se tornarem sustentáveis
a longo prazo, pelo facto de se apoiarem numa base financeira dependente, mais
da generosidade da ajuda estrangeira do que de uma económica nacional sólida.

EXISTE MELHOR ALTERNATIVA PARA A PROTECÇÃO SOCIAL MOÇAMBICANA?


Parafraseando Helleiner (citado por Livi-Bacci, 1992: 107), talvez só uma
sociedade liberta do medo, assim como das consequências materiais e espirituais
da morte súbita, é capaz de atingir um elevado índice de progresso intelectual e
técnico, sem o qual o crescimento da população não poderá ser controlado. Para
que a transição da fecundidade possa tornar-se efectiva e sustentável em Moçam-
bique, é preciso que a população identifique benefícios reais para a redução da
fecundidade. As pessoas aderem e buscam métodos e meios modernos quando os
mesmos incentivam ou proporcionam satisfações concretas (e.g. o telemóvel e os
transportes rodoviários). O mesmo acontece ao nível reprodutivo. Em contrapar-
tida, se as pessoas se casam ou se envolvem em relações sexuais de risco (não só de
doença, mas também de gravidez indesejada), em parte é por ignorância, mas por
outro lado é porque o balanço de incentivos e desincentivos favorece os primeiros.
Situa-se aqui a razão de ser da protecção social como mecanismo que visa
garantir uma segurança humana digna, libertando as pessoas do medo, da fome
e da carência em geral, por um lado, e do medo da agressão ou ameaça à sua
integridade física e psicológica, por outro (Francisco, 2010a: 37). Tanto a teoria
demográfica como a experiência empírica mundial mostram que a redução da
mortalidade infantil e juvenil é uma condição necessária para a redução da fecun-
didade e superação do desperdício demográfico (Caldwell, 1978, 1982; Livi-Bacci,
1992: 152; Malmberg, 2008).
Caldwell e Caldwell (citados em Arnaldo, 2007: 310) identificaram três con-
dições para que a redução da fecundidade possa ocorrer num país da África Sub-
sariana: i) uma taxa de mortalidade infantil não superior a 70 por mil nados-vivos;
ii) frequência na escola primária pela maioria das raparigas e pelo menos 30% a

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frequentarem o nível secundário; iii) pelo menos 25% das mulheres casadas envolvi-
das no planeamento familiar e 20% utilizando métodos modernos de contracepção.
Será preciso avaliar se estas três condições são suficientes para o caso da
população moçambicana, tendo em conta a elevada dependência da economia
de subsistência precária. Existe uma vasta literatura antropológica, sociológica,
histórica e económica que permite avaliar os incentivos e desincentivos, estímulos
e obstáculos, à redução da fecundidade (Arnaldo, 2007; Feliciano, 1998; Geffray,
2000; MPD, 2010).
A mudança de comportamento reprodutivo das populações rurais deverá
continuar a ser fortemente condicionada pela estagnação da economia rural,
associada a dois factores importantes: 1) Capacidade de os agregados familia-
res reduzirem a sua dependência do elevado contributo prestado pelo trabalho
infantil, nomeadamente na produção agrária; 2) Capacidade de as instituições
económico-financeiras, administrativas e políticas, expandirem a sua abrangên-
cia e acessibilidade, proporcionando crescente acesso à população a mecanis-
mos mais eficazes e eficientes de mitigação de riscos, do que a opção mais antiga
que é ter muitos filhos.
Em populações demograficamente adultas ou em processo de envelhecimen-
to, parte significativa da segurança humana é assegurada pelo Estado-Providência
e sustentada por economias desenvolvidas ou em rápido processo de desenvolvi-
mento. Os Estados-Providência de sociedades mais avançadas dispõem de siste-
mas públicos e privados que contribuem para a segurança humana, nas diferentes
etapas do ciclo das suas vidas. Uma capacidade que se manifesta, primeiro, na
redução da mortalidade prematura, garantindo a sobrevivência da maioria das
crianças nascidas, pelo menos até à idade de poderem substituir os seus progeni-
tores. Segundo, a disponibilidade de múltiplas formas de assistência e segurança
pessoal prestada aos cidadãos, tanto em relação à saúde e ao trabalho, como aos
subsídios de emprego e outras formas de protecção à integridade individual. Ter-
ceiro, a possibilidade, ou pelo menos a promessa, aos cidadãos de que, na velhice,
poderão desfrutar de um padrão de vida digno e similar ao que tiveram durante a
sua vida economicamente activa.
Mesmo que os direitos adquiridos pelos cidadãos dos países desenvolvidos
pareçam actualmente em risco, devido às crises e à sua demografia, os desafios que
enfrentam são muito diferentes dos países que ainda se encontram em transição
para o regime demográfico moderno.

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Presentemente, a maioria das crianças moçambicanas só pode contar com as
suas famílias para acederem aos meios de subsistência e segurança humana: terras,
trabalho e outros recursos de capital. Neste processo intervêm três, ou mesmo
quatro, gerações em competição pelo acesso aos recursos da família. É muito
comum as gerações do meio serem confrontadas com uma divisão de lealdade
entre o ‘reembolso’ dos pais e o ‘investimento’ nas crianças. Por isso, no RDA, a
necessidade de assegurar serviços minimamente adequados é uma das razões da
tendência gerontocrática – a concentração de poder político e económico pelos
idosos (Robertson, 1991: 68). Os idosos investem no endividamento das gera-
ções mais jovens, prolongando o mais que podem a sua dependência, através do
controlo do casamento, da propriedade e de outros recursos, para que possam
desfrutar de uma velhice minimamente digna. Se tal sistema é quebrado, sem ser
substituído por sistemas modernos de protecção social, poderá aumentar o risco
de vulnerabilidade, precariedade e empobrecimento.

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PROTECÇÃO SOCIAL FINANCEIRA
E DEMOGRÁFICA
DESAFIOS PARA UMA SEGURANÇA
HUMANA DIGNA EM MOÇAMBIQUE1
António Francisco | Rosimina Ali | Yasfir Ibraimo

INTRODUÇÃO

O mundo está a passar por um dos melhores momentos demográficos de


toda a história da humanidade, conhecido na literatura por ‘dividendo demográ-
fico’; um fenómeno inédito na evolução demográfica mundial, fruto dos avanços
produzidos pela transição demográfica, isto é, o processo de queda generalizada
das taxas de mortalidade e de fecundidade que origina mudanças profundas na
estrutura etária populacional e na composição das famílias (Alves, 2008; Bloom et
al., 2003; Lee e Mason, 2006; Mason, 2005a, 2005b; Ross, 2004).
O dividendo demográfico resulta do amadurecimento da população, em que
a população economicamente activa supera largamente o grupo etário de depen-
dentes composto por crianças e idosos. Como consequência e, em contraste com
o aumento do efectivo populacional em idade activa, observa-se um menor nú-
mero de nascimentos, menos crianças e jovens para alimentar, vestir, tratar, cuidar
e empregar. Surge, assim, uma oportunidade inédita de redução substancial dos
gastos sociais e, em particular, do custo dos sistemas de protecção social. A “janela
de oportunidade” pode facilitar e estimular o crescimento, embora tal não acon-
teça automaticamente. Se, e em que medida, a referida oportunidade beneficia a
sociedade, é outra questão. Depende muito da qualidade e do tipo de instituições,
políticas e económicas, existentes na altura em que tal janela de oportunidade se
abre; depende principalmente da disponibilidade de mecanismos institucionais e

1
Partes deste artigo foram partilhadas em vários debates públicos e em artigos publicados na
Poverty in Focus 22 (Francisco et al. 2010b) e no Ideias No. 32 (Francisco et al., 2010a). As
traduções de textos em Inglês são da responsabilidade dos autores. Agradecemos os comentários,
sugestões e questões colocadas pelos leitores que generosamente comentaram versões anteriores
deste artigo.

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 283

Desafios.indb 283 3/29/11 4:53 PM


políticas favoráveis à melhoria da produtividade e absorção dos jovens trabalhado-
res extras que entram na idade economicamente activa (Bloom et al., 2000; Bloom
et al., 2003; Bloom e Williamson, 1997; Bloom et al., 2007; García e Bueno, 2007).
Não é objectivo deste artigo debater e alongar as considerações anteriores so-
bre as várias oportunidades económicas que o chamado dividendo demográfico
oferece às populações humanas. A sua referência, no início desta introdução, a um
trabalho sobre os desafios da protecção social moçambicana visa chamar a atenção,
em primeiro lugar, para o facto de a demografia da população moçambicana ser
actualmente muito diferente da demografia da maioria da população mundial. O
melhor momento demográfico que a humanidade está atravessando não inclui a
população de Moçambique nem as populações de vários outros países da África
Subsariana que se encontram numa fase inicial e atrasada da transição demográfica.
Estes países continuam reféns de uma debilitante taxa de dependência entre o nú-
mero de pessoas que têm e as que não têm idade para trabalhar.2 Em outras palavras,
a actual taxa de dependência demográfica moçambicana representa um ónus, em
vez de bónus, para o desenvolvimento económico; um ónus com raízes profundas
na estrutura, composição e dinâmica histórica da população moçambicana.
Em segundo lugar, a referência ao ónus que a actual taxa de dependência
demográfica moçambicana representa para o desenvolvimento económico, visa
deixar claro, desde o início do artigo, que existem problemas demográficos, que
são muito mais determinantes e estruturantes, da própria conjuntura política e
económica, do que muitas vezes se reconhece. Mas porque existe uma grande ape-
tência das lideranças políticas para atribuírem a terceiros, ou a factores externos ao
seu controlo, a responsabilidade pelas suas próprias deficiências e fracassos, certos
críticos tendem a sobrestimar o peso e a influência da vontade política. A vontade
política das elites ocupa, sem dúvida, lugar de grande relevância, principalmente
em sociedades fortemente dependentes das idiossincrasias dos líderes e gover-
nantes, em vez de mecanismos institucionais previsíveis, transparentes, estáveis e
empoderadores dos cidadãos.
Para se identificar com clareza onde começa e onde acaba a responsabilidade
dos fazedores de políticas, técnicos e profissionais, é indispensável primeiro dis-
tinguir e compreender o papel dos diferentes tipos de factores determinantes dos

2
Os países ainda excluídos do dividendo demográfico mundial poderão, eventualmente,
beneficiar dele no futuro, dependendo do progresso da transição demográfica e das condições
institucionais, políticas e económicas, prevalecentes.

284 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 284 3/29/11 4:53 PM


problemas sociais; distinguir sobretudo os factores inerentes à estrutura e compo-
sição demográfica da população, em geral, dos factores associados à qualidade de
governação e das políticas implementadas. Apesar dos factores demográficos se
manifestarem geralmente de forma silenciosa e lenta, nem por isso as suas conse-
quências deixam de jogar um papel crucial na natureza, no ritmo e na forma de
desenvolvimento económico e humano. O fenómeno do dividendo demográfico é
apenas um exemplo, entre outros que poderiam ser referidos, que ilustra a relevân-
cia de factores objectivos, com importantes consequências positivas ou negativas,
que acontecem por detrás das expressões e comportamentos das acções sociais e
políticas imediatamente mais evidentes e mundanos.3
Este artigo defende que a ampliação e consolidação de sistemas modernos
de protecção social em Moçambique estão a tornar-se um desafio cada vez mais
delicado, complexo e difícil de gerir. Em parte, as dificuldades derivam de factores
objectivos, como o que é referido anteriormente; por outro lado, existem também
factores institucionais e conjunturais, de natureza política; principalmente no iní-
cio da segunda década do Século XXI, em que a reputação de Moçambique, como
exemplo de sucesso no desenvolvimento económico africano contemporâneo, co-
meçou a desvanecer nos círculos mais isentos da opinião pública internacional.
Este assunto é demasiado importante para ser deixado de lado, sendo retomado
mais adiante no próximo capítulo.
Após concluir a leitura deste artigo, as perguntas que provavelmente per-
manecerão sem resposta serão mais do que as que irão ser respondidas; tanto em
relação às perguntas relacionadas com factores objectivos e estruturais, como rela-
tivamente a factores subjectivos e conjunturais. O propósito deste texto, é colocar
em debate o papel relevante e o peso da protecção social demográfica (PSD) vis-à-vis
a protecção social financeira (PSF).
Por protecção social demográfica entende-se o conjunto de relações e me-
canismos determinados, principalmente pelos componentes de mudança demo-
gráfica, tais como as taxas vitais (taxas brutas de mortalidade e de natalidade),
estrutura etária, mortalidade infantil e esperança de vida. Como tem defendido

3
Eduard Hugh (2010), comentando a recente revolta popular na Tunísia, escreveu no Blog
Global Economic Matter (tradução do autor): ‘A situação política por si só não provocaria a
revolução, penso eu, se não fosse a incapacidade da economia e da política da Tunísia de tirar
o melhor proveito do seu dividendo demográfico. Os jovens descontentes da Tunísia acabaram
por demolir tudo’ (Hugh, 2010, http://demographymatters.blogspot.com/2011/01/why-did-
tunisia-revolt-too-deferred.html).

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 285

Desafios.indb 285 3/29/11 4:53 PM


Francisco (2010b, 2010c), a elevada fecundidade da mulher desempenha um papel
importante na protecção social, através de mecanismos predominantemente não
financeiros, sobretudo mecanismos financeiros modernos típicos das sociedades
mais mercantilizadas e de reprodução económica alargada. São mecanismos que
envolvem relações e fluxos geracionais e de género, sociais e culturais, morais e
ideológicas, intimamente ligados aos componentes de mudança demográfica.
Este artigo está organizado em quatro secções, para além desta introdução de
enquadramento preliminar. A primeira secção apresenta uma breve contextualiza-
ção do actual debate sobre protecção social, com destaque para três vertentes: analí-
tica, empírica e o debate em falta. A segunda secção chama a atenção para o carácter
limitado e excludente dos sistemas de protecção social, alicerçados nos sistemas
financeiros, tanto nos sistemas formais contributivos de segurança social e sistemas
não contributivos de assistência social, como nos sistemas informais (e.g. grupos de
poupança rotativa, como o chamado xitique; associações funerárias e outros grupos
comunitários de inter-ajuda), e ainda nas formas de segurança por via das relações
laborais e formas de emprego. A terceira secção mostra que, em Moçambique, na
ausência de mecanismos financeiros suficientemente extensivos à maioria da popu-
lação, procura-se o mínimo de segurança humana digna possível, ao nível do que
neste texto se designa por protecção social demográfica. A secção final equaciona
algumas das implicações das evidências empíricas destacadas nas duas primeiras
secções, em busca de caminhos e opções mais realistas e efectivas, para os enormes
desafios da ampliação e consolidação da protecção social em Moçambique.

CONTEXTO DO DEBATE DA PROTECÇÃO SOCIAL MOÇAMBICANA


Edificar uma base de protecção social para todos, ou para um número cres-
cente da população de Moçambique, constitui um desafio enorme, complexo e
extremamente difícil, mas de modo algum insuperável. No entanto, as percepções
sobre a dimensão e complexidade dos desafios enfrentados pela protecção social,
bem como a possibilidade e as formas de os superar, variam e dependem, antes de
mais nada, do entendimento do próprio conteúdo de “protecção social”.
Seria errado e simplista assumir que o conceito de “protecção social” é en-
tendido, de forma mais ou menos generalizada e incontroversa, pela maioria dos
autores que o utilizam, cada vez com mais frequência, se bem que nem sempre
com clareza e visibilidade satisfatórias. Embora este artigo se destine a tratar de

286 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 286 3/29/11 4:53 PM


algumas questões específicas, de particular relevância empírica, é importante de-
dicar algumas considerações ao estado da literatura actual, directa ou indirecta-
mente, importante para o tema deste trabalho. Assim, nesta secção considera-se
de forma breve o contexto do debate actual sobre protecção social em torno de
três vertentes: analítica, empírica e o debate em falta.

O DEBATE ANALÍTICO
A vertente analítica envolve inúmeros aspectos conceptuais e teóricos, ge-
rais e específicos, os quais não podem ser abordados exaustivamente no espaço
reservado a este texto. No entanto, um aspecto pode servir para ilustrar um ponto
fundamental sobre o contexto analítico da protecção social. Diz respeito ao divór-
cio, persistente entre a maneira como a protecção social é concebida, analisada
e gerida nos países desenvolvidos, comparativamente às abordagens e modelos
aplicados na análise e gestão da protecção social nos países subdesenvolvidos. Re-
flectir um pouco sobre o divórcio analítico no pensamento internacional poderá
ajudar a compreender melhor a natureza dos mecanismos de protecção social,
desenvolvidos e aplicados nos países subdesenvolvidos como Moçambique.
Actualmente, os pesquisadores, analistas e fazedores de políticas dos países de-
senvolvidos, encontram-se cada vez mais preocupados e empenhados em repensar a
segurança social e a assistência social, com o objectivo de as tornar viáveis, sustentá-
veis e consistentes com as mudanças observadas na estrutura demográfica e econó-
mica das suas sociedades.4 Porém, mais inquietante do que os gastos financeiros ime-
diatos é a preocupante perspectiva de crescimento insustentável dos gastos futuros.
Ao longo da primeira década do Século XXI, intensificaram-se as dúvidas
quanto à sustentabilidade do Estado Social, tal como é conhecido actualmente
nos países desenvolvidos, nas suas diferentes feições e variantes. Razões objectivas
sobrepõem-se às controvérsias ideológicas e filosóficas sobre os prós e contras dos
modelos de segurança social actuais. São razões determinadas por factores objec-
tivos diversos, tais como: 1) Mudanças demográficas profundas, associadas aos
progressos gerados pela transição demográfica, manifestados na transformação
dos regimes reprodutivos de altas para baixas taxas de mortalidade e fecundidade,

4
‘Todas as sociedades capitalistas avançadas de hoje são Estados de bem-estar de alguma espécie’
afirmam George e Wilding (2008: 10). ‘Gastam entre um terço e metade da sua renda em
serviços públicos, dos quais a metade é dispendida naquilo que passou a ser conhecido por
serviços sociais’.

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 287

Desafios.indb 287 3/29/11 4:53 PM


aumento significativo na esperança de vida à nascença, redução sustentável da
fecundidade para níveis inferiores ao limiar de substituição demográfica (2,1 filhos
por mulher), envelhecimento populacional e consequente aumento do ónus da
taxa de dependência; 2) Mudanças estruturais das economias avançadas, em que
as melhorias tecnológicas geram incrementos na produtividade, tornando o factor
trabalho cada vez menos necessário, imprescindível e fundamental; 3) A reforma
dos modelos de segurança social em países desenvolvidos é incontornável, entre
outras razões, porque os actuais modelos deixaram de estimular o crescimento
do produto interno bruto (PIB) e contribuir para a paz social e maior segurança
humana (Becerra, 2009: 55- 58; Bernanke, 2006; Carreira e Costa, 2008; Carreira
e Dâmaso, 2009; Ferguson, 2009: 177-202; Gladwell, 2006: 10; Midgley e Tang,
2008; Shapiro, 2010: 99-125; Soros, 1999: 141-142).5
“O mundo não acabou”, como escreveu Kaletsky no início do seu recente
livro intitulado Capitalism 4.0:

Apesar de todos os presságios de um desastre na crise financeira 2007-09, a primeira


década do século XXI deu lugar à segunda sem grandes perturbações. Os motins, sopas a
serem distribuídas na rua e falências previstas por muitos dos mais respeitados economis-
tas do mundo não se concretizaram - e ninguém mais espera que o colapso do sistema
capitalista mundial seja lá o que tal palavra emotiva significar (Kaletsky, 2010: 1).

Todavia, Kaletsky (2007: 1) também admite que o efeito traumático da crise


financeira de 2007-09 não será facilmente esquecido; seus custos económicos per-
durarão por décadas nas dívidas dos contribuintes e dos orçamentos do governo
cada vez mais espremidos, na vida perturbada dos desempregados e nos sonhos
destruídos dos proprietários e investidores em todo o mundo.
Não obstante a perspectiva fortemente heliocêntrica desta generalização dos
efeitos da crise financeira internacional – muito comum nos principais analistas e
críticos contemporâneos do sistema capitalismo (Howe e Jackson, 2011; Soros,
1999, 2003, 2008; Stiglitz, 2002) – não os impede de perceber as suas implicações
mais amplas. Segundo Kaletsky, o que desmoronou no Outono de 2008 não foi

5
A imprensa internacional e a Internet estão repletas de artigos sobre a problemática da
protecção social nos países desenvolvidos. Alguns exemplos: “Alguém viu por aí o Estado
social de Sócrates?” (IOnline de 15.10.2010), www.ionline.pt/conteudo/83372-alguem-viu-
ai-o-estado-social-socrates; No Blog de Santiago Niño Becerra: “Pensiones ¿llegaremos al
2050?” (08.03.2010); “Seguridad social” (22.07.2010); Malcolm Gladwell, no New Yorker de
28.08.2006: “What’s behind Ireland’s economic miracle – and G.M.’s financial crisis?” Butler e
MacGuineas (2008) “Rethinking social insurance”.

288 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 288 3/29/11 4:53 PM


apenas um banco ou um sistema financeiro, mas toda uma filosofia política e siste-
ma económico, uma maneira de pensar e de viver no mundo. A questão agora é o
que vai substituir o capitalismo global que se desintegrou no Outono de 2008. De
forma breve, o argumento central do livro de Kaletsky é que o capitalismo global
será substituído por nada mais do que pelo capitalismo global. Um Capitalism 4.0,
diferente dos capitalismos precedentes (1, 2 e 3).
Ainda é cedo para concluir sobre os contornos da crise económico-financeira
de 2007-09 e seus impactos de longo prazo para as economias desenvolvidas e seus
Estados Sociais. O ano 2010 foi marcado pelo início de uma vaga de insolvências
de Estados da zona Euro, as quais eram impensáveis há meia dúzia de anos atrás.6
Como irão as economias avançadas ultrapassar o crescente risco de falência
dos seus modelos de Estado social é, presentemente, difícil de antecipar, mas o
tempo dirá. O ponto importante a reter sobre o debate da protecção social nas
sociedades desenvolvidas é que as suas lideranças e principais autores sociais se
encontram seriamente empenhados em procurar soluções para garantir a viabili-
dade e sustentabilidade de mecanismos de protecção social, que proporcionem
uma segurança humana digna para os seus cidadãos.
Em contrapartida, no debate sobre a protecção social nos países subdesen-
volvidos, incluindo Moçambique, a liderança e autores sociais parecem mais pre-
ocupados em prolongar, perpetuar ou mesmo ampliar a dependência financeira
internacional, do que em encontrar caminhos para tornar as suas economias e
sistemas de segurança social nacionais efectivamente viáveis e sustentáveis a longo
prazo. Neste contexto, não admira que a abordagem assistencialista assuma actu-
almente liderança hegemónica nos discursos e políticas de protecção social, tanto
convencionais e oficiais, como alternativas e críticas.
O próprio conceito de protecção social que, segundo autores como Deve-
reux et al. (2010), Norton et al. (2001: 21) e IPC-IG (2010), pode ser visto como
um conceito “guarda-chuva”, na prática tem sido convertido num proxy compos-
to pelo conjunto de iniciativas, mecanismos e programas principalmente virados
para a assistência social, tanto ampla como restrita (através de programas de ajuda
internacional elaborados em coordenação com agências como o FMI, o Banco
Mundial e organismos da Organização das Nações Unidas).

6
Primeiro a Grécia, depois a Irlanda e, nos meses recentes, cresce a probabilidade de outros países
(e.g. Portugal, Espanha) virem a reconhecer a falência soberana e a recorrerem oficialmente à
intervenção do BCE e do FMI.

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 289

Desafios.indb 289 3/29/11 4:53 PM


Certos autores defendem que o conceito de “protecção social” deve abarcar a
vasta gama de mecanismos e iniciativa, incluindo a segurança social e a assistência
social formais, bem como redes de segurança informais. Na prática, como admitiu
Gentilini (2005: 11), ainda que tais itens façam parte do domínio da protecção
social, individualmente eles não são equiparáveis ou representativos do domínio
da protecção social propriamente dita. Gentilini defende que o termo protecção
social devia englobar o quadro geral de todos os componentes individuais que
o integram. De igual modo, nas estratégias sectoriais para a protecção social de
agências internacionais como o Banco Mundial, o Institute of Development Stu-
dies (IDS) e a Organização Internacional de Trabalho (OIT), reconhece-se ge-
ralmente a necessidade de se avançar além da mera doação de ajuda, através de
transferências de recursos (Barrientos e Hulme, 2010; Devereux et al, 2010; Ellis et
al., 2009; ILO, 2006; FMI, 2010b).
Não obstante o reconhecimento de que uma protecção social abordada e
gerida como um conjunto de sistemas autónomos e desarticulados dos processos
normais do sistema económico, social e político em que se inserem e a que ser-
vem, na realidade, continua a ser extremamente difícil de se conceber, lidar e gerir
os mecanismos públicos e privados de protecção social como parte integrante da
sociedade em que operam. Provavelmente a explicação para tal dificuldade se rela-
cione com o papel que a ajuda financeira internacional passou a desempenhar nos
países subdesenvolvidos, na sequência do processo de descolonização, das rivali-
dades da guerra fria, dos programas de ajustamento e estabilização estrutural, das
iniciativas de emergência para mitigar os efeitos de conflitos político-militares, das
crises económico-financeiras dos países subdesenvolvidos, das sucessivas crises de
vulnerabilidade alimentar e outras calamidades naturais e sociais.
Apesar de se reconhecer intelectualmente que o conceito de protecção social
deve ser abrangente e agregador, na prática, os modelos, os programas e políticas
implementadas, assumidas são de natureza e forma profundamente assistencia-
listas. Um dos exemplos ilustrativos e mais recentes desta tendência é o artigo
intitulado “Social Protection in Africa: Where Next?” (Devereux et al., 2010). Ao
assumirem que a protecção social é uma arena política relativamente nova, “…
concebida pela comunidade doadora no final da década de 1990”, é evidente que
estes autores reduzem o domínio da protecção social ao processo directamente
ligado às iniciativas de cooperação internacional para o desenvolvimento. Por isso,
entende-se por protecção social como, “... o conjunto específico de instrumentos

290 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 290 3/29/11 4:53 PM


de política elaborados pela comunidade doadora no final de 1990, com o objectivo
de aliviar a pobreza e gestão de risco nas comunidades pobres e vulneráveis da
região Sul.” (Devereux et al., 2010: 2). Admite-se que a protecção social possa ser
definida de forma ampla e abrangente, mas em seguida considera-se que, no caso
da África Subsariana, ela é principalmente operacionalizada por doadores e ONGs
internacionais, sendo dominada principalmente por transferências de dinheiro não
condicionais ou condicionais, fornecidas a grupos-alvo de pobres e vulneráveis e
por programas de obras públicas para pobres em idade activa.
O recurso ao termo ‘protecção social’ tornou-se, sem dúvida, apelativo, nem
que seja por ajudar a criar a sensação de abrangência e inclusão, mesmo que seja
mínima ou até fictícia. Na prática, os modelos analíticos e metodológicos usados
para lidar com a protecção social dos países subdesenvolvidos não são consensu-
ais quanto ao conteúdo e formas operacionais. Certas abordagens são explicita-
mente assistencialistas no seu conteúdo, objectivos e métodos, como é o caso das
iniciativas caritativas. Outras procuram converter a assistência social num direito
humano7 ou, então, nas necessidades básicas individuais. Mas, como refere Munro
(2007: 10), existem diferenças entre os pensadores legalistas e os economistas neo-
-clássicos. Enquanto os legalistas defendem a assistência social recorrendo ao ar-
gumento do direito humano com base na lei, os economistas justificam-na na base
das necessidades económicas, razão pela qual os primeiros acusam estes últimos
de assistencialistas (‘welfarist’) e de argumentos mais fracos do que a fundamenta-
ção baseada na lei.
Alguns críticos da abordagem assistencialista têm avançado outras alternati-
vas, visando tornar as análises da protecção social parte integrante do sistema mais
amplo da economia e sociedade em geral. Wuyts (2006), por exemplo, defende
que a natureza da protecção social depende do quadro de referência tomado em
consideração, podendo ser ex-ante e ex-post. O quadro ex-ante é considerado pros-
pectivo, porque a protecção social é vista como parte integrante do processo de
desenvolvimento económico. O quadro ex-post é reactivo, típico da abordagem
aqui designada por assistencialista; procura compensar ou apoiar as pessoas que
perdem ou são prejudicadas, total ou parcialmente, pelas mudanças económicas
e sociais.

7
Acções benevolentes e caritativas, se bem que boas em si mesmas, são insuficientes do ponto de
vista dos direitos humanos’ (UNICEF, 2000a) (Ver também UNICEF, 2004: 11-12)’ (Munro,
2007: 10).

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 291

Desafios.indb 291 3/29/11 4:53 PM


Ambos os quadros analíticos, ex-ante e ex-post, são relevantes para a política
social, sendo o último orientado para responder a situações de necessidade e de
emergência imediata, enquanto o primeiro permite gerar níveis de prevenção ou
de antecipação de possíveis falhas, resultantes do processo de desenvolvimento.
Por isso, Wuyts (2006; ver também Holzmann, 2009) contrapõe à abordagem ex-
-post uma abordagem ex-ante orientada para um maior e melhor equilíbrio entre
diferentes estratégias de protecção social.
Neste trabalho, diferentemente das abordagens dominantes e alternativas crí-
ticas, a protecção social é considerada em torno da posição epistemológica defini-
da pela finalidade principal, em vez das suas formas de classificação, seus compo-
nentes e funções. Por protecção social entende-se, neste texto, como o sistema de
relações, mecanismos, iniciativas e programas concebidos e implementados para
garantir uma crescente segurança humana digna, através da libertação gradual dos
cidadãos de dois medos principais no ciclo da vida humana: 1) Liberdade de ca-
rência, alimentar, profissional ou laboral (seja ela estrutural, crónica ou acidental;
e.g. escassez de alimentos, falta de emprego ou de oportunidades profissionais),
bem como de meios efectivos de controlo da reprodução humana (e.g. acesso aos
meios contraceptivos adequados e assistência médica básica, que reduza a morta-
lidade materno-infantil); 2) Liberdade da agressão, privação e ameaça à segurança
física e psicológica, incluindo o tráfico de órgãos humanos ou de pessoas, violência
doméstica, linchamentos públicos (Francisco, 2009, 2010a: 37).
É evidente que definições operacionais de conceitos fundamentais, por si
só, não podem resolver os problemas analíticos que conduzem à discrepância de
abordagens apontada no início desta secção, entre a forma de conceber e de lidar
com a protecção social em sociedades desenvolvidas e em sociedades subdesen-
volvidas. Quando muito, o reconhecimento de tal divórcio conduz a uma revisão
mais atenta e rigorosa do instrumental de análise e dos métodos utilizados na for-
mulação de políticas específicas, a começar pelas próprias definições operacionais.
Na formulação da definição de protecção social seguida neste trabalho, teve-
-se o cuidado de tomar como referência principal o móbil da segurança humana.
Se a última finalidade da protecção social é proporcionar uma segurança humana
cada vez mais digna aos cidadãos, isto deve ser válido tanto para as sociedades
desenvolvidas como para as sociedades subdesenvolvidas.
É evidente que se deve tomar em consideração as devidas diferenças, em ter-
mos de níveis de desenvolvimento socioeconómico, demográfico e cultural, nas eco-

292 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 292 3/29/11 4:53 PM


nomias desenvolvidas e nas economias subdesenvolvidas. Mas isto não justifica que,
nas economias desenvolvidas, o foco dos debates analíticos tenham como preocu-
pação principal a viabilidade e sustentabilidade económico-financeiras dos seus sis-
temas de segurança e protecção social, enquanto nos países subdesenvolvidos se as-
sume como suficiente e inevitável a crescente dependência da ajuda assistencialista.
Dia após dia, multiplicam-se as iniciativas internacionais visando converter
a assistência social em sistemas crescentemente mais previsíveis e abrangentes
(Adésínà, 2010; Baliamounte-Lutz, 2010; Devereux e Sabates-Wheeler, 2004; De-
vereux et al., 2010; Ellis et al., 2009; Holzmann, 2009; ILO, 2006; Niño-Zarazúa,
2010; World Bank, 1999). Em contrapartida, também se multiplicam vozes críticas
à ajuda internacional prestada aos países subdesenvolvidos; sem falar dos críticos
por opção ideológica, autores e activistas como Easterly (2002), Hanlon (2004),
Moyo (2010) e Shikwati (2005), que questionam a ajuda internacional pelas conse-
quências que o dinheiro fácil gera em termos de corrupção, mau uso dos recursos
públicos, irresponsabilidade política das partes envolvidas, distorções dos merca-
dos nacionais, debilitação do tecido social e cultural e desprezo por opções institu-
cionais, financeiras e governativas mais valorizadoras, formativas e dignificadoras.

O DEBATE EMPÍRICO
Relativamente à segunda vertente, o contexto empírico, interessa sublinhar
que Moçambique encontra-se entre os 12 países no mundo com maior intensida-
de e incidência de pobreza, medida pelo recentemente criado Índice de Pobreza
Multidimensional (IPM) (Alkire e Santos, 2010; UNDP, 2010). Com cerca de 80%
da população moçambicana classificada como pobre em termos do IPM, esta pro-
porção da população cai dentro do intervalo definido pelos dois indicadores mais
comuns de pobreza internacional “extrema” - 75% da população vivendo com 1,25
dólares ou menos por dia e 90% vivendo com 2 dólares ou menos por dia.
Moçambique entrou, assim, na segunda década do Século XXI, com um efecti-
vo de 18 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza, correspondendo a, pelo
menos, cinco milhões de pessoas a mais do que o efectivo estimado na base das
linhas de pobreza nacional - 54% em 2003 e 55% em 2009 (MPD, 2010) (Gráfico 1).
Entretanto, como sublinhou Francisco (2010d) em reacção à divulgação pú-
blica dos dados oficiais da 3ª Avaliação Nacional de Pobreza, as pesquisas recen-
tes sobre a situação e evolução da pobreza em Moçambique, tanto de pesquisas
baseadas em dados estatisticamente representativos (Alkire e Santos, 2010; de

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 293

Desafios.indb 293 3/29/11 4:53 PM


Vletter et al., 2009; Cunguara e Hanlon, 2009; Métier de 2006, MPD, 2010) como
de pesquisa qualitativa, através de estudos de caso e relatórios descritivos (Paulo
et al., 2008; Hanlon, 2007, Serra, 2010), são unânimes num ponto: a pobreza em
Moçambique é ainda muito elevada, cronicamente resistente e mostrando sinais
de aumento, em vez de diminuição.

GRÁFICO 1 COMPARAÇÃO DE MEDIDAS DE POBREZA, MOÇAMBIQUE 2009 - 2010

25 100%
90%

80%
Números Absolutos, Pobres (em Milhões)

20 75% 80%

Proporção de Pessoas na Pobreza


15 54% 55% 60%

LINHAS DE POBREZA INTERNACIONAL

10 19,6 40%
LINHAS DE POBREZA NACIONAL
16,4 17,4

12
5 10 20%

0 0%
Linha Nacional de Linha Nacional de U$1,25 / dia IPM (H) U$2 / dia
Pobreza, 2002/03 Pobreza, 2008/09

Indicadores de Pobreza

FONTE MPD, 2010; Alkire & Santos, 2010

Em várias províncias onde a incidência da pobreza poderá ter diminuído no


início do corrente século, voltou a aumentar nos anos seguintes. A Zambézia, com
mais de quatro milhões de pessoas (um quinto da população de Moçambique),
apresenta um forte aumento da pobreza, ultrapassando, em 2009, o nível atingido
na primeira Avaliação Nacional da Pobreza, há mais de uma década.
A Tabela 1 e a Figura 1 sumarizam os dados das três avaliações nacionais (1ª –
1996/97; 2ª – 2002/03; 3ª – 2008/09), destacando com setas as províncias que regista-
ram aumentos na incidência de pobreza nos períodos em análise. Todas as mudanças
merecem atenção, mas na Tabela 1 as setas são colocadas onde a pobreza está a piorar,
sendo nelas que se devem incidir a atenção e as intervenções prioritárias. Entre a 1ª e
a 2ª Avaliação, apenas em Cabo Delgado, Maputo Província e Cidade de Maputo, a

294 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 294 3/29/11 4:53 PM


pobreza tinha piorado. No entanto, a tendência da incidência de pobreza foi revertida
no período seguinte, entre a 2ª e a 3ª Avaliação, de forma significativa em Cabo Del-
gado e Cidade de Maputo, mas ligeiramente na Província de Maputo.

TABELA 1 EVOLUÇÃO DA ÍNCIDÊNCIA DA POBREZA, TRÊS AVALIAÇÕES, MOÇAMBIQUE, 1996-2009

Incidência da Pobreza Diferença Pontos Percentuais (pp.)


1a Aval. 2a Aval. 3a Aval. 96-97 a 02-03 a 96-97 a
1996-97 2002-03 2008-09 ‘02-03 ‘08-09 ‘08-09
Nacional 69,4 54,1 54,7 -15,3 0,6 -14,7
Urbana 62,0 51,5 49,6 -10,5 -1,9 -12,4
Rural 71,3 55,3 56,9 -16,0 1,6 -14,4

Norte 66,3 55,3 46,5 -11,0 -8,8 -19,8


Niassa 70,6 52,1 31,9 -18,5 -20,2 -38,7
Cabo Delgado 57,4 63,2 37,4 5,8 -25,8 -20,0
Nampula 68,9 52,6 54,7 -16,3 2,1 -14,2

Centro 73,8 45,5 59,7 -28,3 14,2 -14,1


Zambézia 68,1 44,6 70,5 -23,5 25,9 2,4
Tete 82,3 59,8 42,0 -22,5 -17,8 -40,3
Manica 62,6 43,6 55,1 -19,0 11,5 -7,5
Sofala 87,9 36,1 58,0 -51,8 21,9 -29,9

Sul 65,8 66,5 56,9 0,7 -9,6 -8,9


Inhambane 82,6 80,7 57,9 -1,9 -22,8 -24,7
Gaza 64,6 60,1 62,5 -4,5 2,4 -2,1
Maputo Prov. 65,6 69,3 67,5 3,7 -1,8 1,9 ↑
Maputo Cid. 47,8 53,6 36,2 5,8 -17,4 -11,6

FONTE MPD, 2010: 4

A 3ª Avaliação revelou um panorama nada animador a nível rural. Várias


províncias apresentaram sinais de retrocesso, entre 2003 e 2009, resultando no
aumento da incidência de pobreza nacional e rural, nomeadamente na Zambézia,
Manica, Sofala, Gaza e Nampula.
Em termos regionais, a região Centro, com 42% da população (cerca de 9
milhões de pessoas), encontra-se numa situação particularmente grave, ao registar

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 295

Desafios.indb 295 3/29/11 4:53 PM


um aumento médio de 14% de incidência de pobreza, resultante do agravamento
do padrão de consumo em três das quatro províncias desta região.

FIGURA 1 NÍVEIS DE INCIDÊNCIA DA POBREZA E VARIAÇÕES NO TEMPO POR PROVÍNCIAS, MOÇAMBIQUE 2003
(VARIAÇÕES EM PONTOS PERCENTUAIS, PP.)

Niassa Cabo-Delgado
31,9% 37,4%
(-20,2) (-25,8) Pemba
Lichinga
Nampula
Tete 54,7%
42% (+2,1)
Nampula
(-17,8) Tete Zambézia
70,9%
(+25,9)
Manica
Quelimane
55%
Sofala
(+11,5)
58%
(+21,9)
Chimoio
Beira

Inhambane Incidência Nacional


57,9% 54,7%
GAZA
62,5% (-22,8) (+0,6)
(+2,4)
Inhambane

Maputo
Província Xai-xai
67,5% Maputo Cidade
(-1,8) 36,2%
Ponta do Ouro (-17,4)
FONTE MPD, 2010: 4; Republic of Mozambique, 2010: 13

A última coluna na Tabela 1 apresenta a diferença líquida em pontos percen-


tuais (pp.) em toda a década (1997-2009). Na Zambézia, depois de uma diminui-
ção de 24 pp., entre 1997 e 2003, a pobreza voltou a piorar, de tal maneira que já
ultrapassou o nível de 1997, em 2,4 pp. A Província de Maputo tem registado ligei-
ra diminuição da pobreza (-1,8 pp.), mas num ritmo insuficiente para ultrapassar
o nível de 1997. Igualmente grave é a variação da pobreza entre 2003 e 2009, em
Sofala (22 pp.) e Manica (12 pp.), seguidas de algumas províncias com aumentos
menores, como Gaza (2,4 pp.), Maputo Província (2,5 pp.) e Nampula (2,1 pp.).

296 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 296 3/29/11 4:53 PM


Contra a tendência geral de agravamento da pobreza, destacam-se Cabo
Delgado (-26 pp.), Niassa (-20 pp.), Inhambane (-23 pp.) e Cidade de Maputo (-17
pp.). Estes casos com avanços positivos em termos de redução da pobreza abso-
luta, acabam por ser insuficientes para compensar os casos com retrocessos signi-
ficativos, razão pela qual a incidência de pobreza nacional registou um aumento
médio de 0,6 pp. no período 2003-2009.

O DEBATE EM FALTA
Quanto à terceira vertente, o debate em falta, um dos assuntos mais carentes
de reflexão e investigação é a questão da natureza da economia nacional e do
Estado em Moçambique. Será por falta de massa crítica, que ninguém pode ser
responsabilizado? Ou é receio de enfrentar a realidade, quer por desinteresse, quer
por conveniência de interesses inconfessáveis?
Francisco (2010a) tem caracterizado Moçambique como um Estado Falido
mas não Falhado.8 Não é um Estado Falhado, tanto do ponto de vista dos critérios
e indicadores do Índice de Estados Falhados (Foreign Policy, 2010) como de outras
metodologias de avaliação do nível de estabilidade e vulnerabilidade da governação,
serviços prestados ao cidadão e níveis de corrupção, disfuncionalidade e informali-
dade. No entanto, apesar de não existir um índice de Estados Falidos propriamente
dito, existem suficientes evidências testemunhando a natureza falimentar do Estado
Moçambicano, em vários sentidos, nomeadamente, financeiro e económico. Finan-
ceiramente, o Estado Moçambicano só tem conseguido honrar as suas obrigações
perante os credores internacionais, recorrendo à ajuda externa massiva.
No final do século XX, a dívida pública de Moçambique atingiu os seis mil
milhões de dólares, representando 153% do PIB do ano 1998, cerca de 13 vezes
as receitas do Estado e 25 vezes as exportações do mesmo ano (Ministério das
Finanças, 2008: 3). Foi graças ao perdão de grande parte da dívida internacional,
acumulada de forma insustentável, antes e depois da adesão às Instituições de
Bretton Woods em 1984, que Moçambique voltou a ser reconhecido como de-
tentor de uma dívida sustentável (Reinhart e Rogoff, 2009: 375t; Sachs, 2002: 14).9

8
As expressões ‘estado falido’ e ‘estado falhado’ não são termos ingénuos, muito menos visam ocupar o
lugar de termos usados abusivamente na literatura internacional (e.g. neoliberais, capitalismo selvagem,
esquerda, direita ou pró-mercado) por palavras que apenas soam bem mas sem conteúdo claro.
9
‘Com o objectivo de tornar a dívida sustentável, Moçambique beneficiou, sucessivamente em 1999
e 2000, do alívio de dívida no âmbito da Iniciativa dos Países Pobres Altamente Endividados
(HIPC). Beneficiou, ainda em 2006, do cancelamento da dívida no âmbito da Iniciativa do Alívio
da Dívida Multilateral (MDRI)…’ (Ministério das Finanças, 2008: 3-7).

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 297

Desafios.indb 297 3/29/11 4:53 PM


Na escala de notação de risco ou ratings globais, Moçambique está longe de
ser avaliado, pelas agências internacionais de rating (Standard & Poor’s e Moody’s),
como um ‘bom pagador’ e com capacidade para atender a compromissos financei-
ros. A classificação de Moçambique tem sido de B+/Estável/B, correspondente
à categoria ‘grau especulativo’, que também incluiu nações que declaram a mora-
tória de suas dívidas (SDF, 2009; S&P, 2010). É sabido que as agências interna-
cionais de rating actuam no contexto do mercado capitalista formal, sem a devida
consideração da economia internacional mais ampla, nomeadamente a enorme
‘economia obscura’ (Napoleoni, 2009). Além disso, apesar de as agências de rating
usarem critérios controversos e falharem por vezes escandalosamente, a verdade
é que, no actual mercado formal internacional, são elas que decidem qual o risco
do país e os juros que devem pagar. Moçambique, com uma economia fortemente
bazarconomizada, e com um sector formal muito dependente da ajuda externa,
tem recebido uma avaliação generosa, escapando ao grupo inadimplemento ou
falido, em maior ou menor grau (C e D), graças ao forte fluxo de ajuda externa que
assegura uma liquidez orçamental mínima para o funcionamento do Estado e de
outras actividades económicas.
Uma busca rápida na literatura internacional e na Internet certamente per-
mitirá reunir mais testemunhos representativos de uma imagem internacional de
Moçambique, como um caso de sucesso exemplar, do que testemunhos consentâ-
neos com a real e difícil situação social e económica da população moçambicana.
Ao longo das duas décadas passadas, Moçambique despertou interesse e reconhe-
cimento por um alegado sucesso, raramente qualificado e devidamente entendido.
Considerando os inúmeros e recentes exemplos negativos africanos, incluindo em
países que no passado pareciam estar a seguir o caminho do progresso económico
e da democracia efectiva (e.g. Quénia, Madagáscar e Costa do Marfim), o facto de
Moçambique ter conseguido evitar o Estado Falhado não deve ser desvalorizado
e desprezado. Mas, se Moçambique merece ser reconhecido como um sucesso
africano, é preciso reconhecer tratar-se de um sucesso relativamente aos piores,
em vez dos melhores, exemplos africanos. Ou seja, Moçambique tem sido um caso
de sucesso fundamentalmente por ter conseguido evitar que o Estado Soberano se
convertesse num Estado Falhado (Francisco, 2009, 2010a).
A confirmação desta avaliação pode ser encontrada no crescente número de
evidências de que o desenvolvimento económico e humano dos moçambicanos
enfrenta dificuldades crescentes, devido principalmente às grandes debilidades das

298 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 298 3/29/11 4:53 PM


instituições nacionais. Devido aos esforços concertados dos governantes e dos
seus parceiros internacionais de desenvolvimento mais próximos, o Estado Mo-
çambicano tem conseguido alongar a boa reputação que conquistou no passado.
Só assim se entende as insistentes avaliações reprodutoras de uma imagem de
sucesso que, se fosse avaliado segundo critérios sérios de dignidade e excelência,
talvez fossem até denunciadas como paternalistas e de algum modo humilhantes.
Não estão em dúvida as boas intenções dos autores das avaliações (e.g.
Christensen (2008),10 Clément e Peiris (2008), Baxter (2005)11, Fox et al. (2008), e
o FMI (2010),12 para citar apenas alguns exemplos. O que está em causa, e merece
ser considerado com sentido crítico, são os critérios e os parâmetros de avaliação e
monitoria usados por analistas individuais e sobretudo por agências internacionais
de desenvolvimento, para avaliar a qualidade do sucesso do processo de desenvol-
vimento, neste caso, em Moçambique.
Prevalece actualmente um certo padrão de pensamento, uma espécie de neo-
-ideologia que, na falta de melhor termo, se pode designar por pensamento desejoso
ou wishful thinking13 moçambicano (Francisco e Matter, 2007: 16; Francisco et al.,
2010a, 2010b). O pensamento desejoso moçambicano é fruto de uma aliança efec-
tiva entre a elite política nacional que controla o poder político e a elite financeira
internacional que tem subsidiado o Governo e o Estado Moçambicano.14

10
‘Moçambique, uma das histórias mais notáveis de sucesso em África, tem beneficiado de
fluxos de ajuda sustentada, crescimento forte e de base ampla, bem como profunda redução da
pobreza…’ (Christensen, 2008: v).
11
‘Sem dúvida, Moçambique é uma história de sucesso. Um sucesso, tanto em termos de
crescimento, mas também como modelo para outros países a respeito de como tirar o melhor
partido possível do interesse do doador’ (Baxter, 2005).
12
‘O ritmo acelerado de crescimento económico tem continuado desde 2003. A continuidade no
crescimento e na redução da pobreza em Moçambique é já uma das mais prolongadas em países
de baixos rendimentos …’ (Fox et al., 2008: 3-4).
13
‘Wishful thinking’, termo inglês que significa o padrão de pensamento que toma os desejos pela
realidade, levando as pessoas a tomar decisões e a interpretar os factos, relatos e percepções com base
nesses desejos, em vez do que acontece na realidade e na racionalidade (Francisco e Matter, 2007).
14
O wishful thinking moçambicano não é unicamente produzido e desenvolvido por moçambicanos.
Investigadores e personalidades internacionais influentes têm contribuído para a elaboração
do pensamento desejoso moçambicano. A título de exemplo, Jeffrey Sachs, célebre economista
norte-americano e activo promotor das chamadas ‘Aldeias do Milénio’, numa visita recente a
Moçambique esforçou-se por dar alento ao actual wishful thinking moçambicano. Na palestra
que proferiu em Maputo sobre o tema ‘Moçambique e a Economia Global’, Sachs defendeu
que Moçambique tem registado importantes progressos ‘que faz com que o país pertença já ao
grupo das economias emergentes’. Esta declaração parece ter apanhado a audiência de surpresa,
incluindo alguns dos mais notáveis promotores do wishful thinking moçambicanos presentes na
palestra. Em resposta ao pedido para que explicasse os critérios para definir um país emergente,

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 299

Desafios.indb 299 3/29/11 4:53 PM


Um contributo fundamental para o desenvolvimento do pensamento desejo
moçambicano, no domínio económico, tem sido prestado pelas Instituições de
Bretton Woods, nomeadamente o FMI, na sua dupla função de financiador e su-
pervisor técnico da gestão macroeconómica e financeira da ajuda internacional a
Moçambique. Como supervisor técnico, o staff do FMI, através dos seus relatórios
periódicos, exerce uma tutela directa nas avaliações do desempenho económico,
nas expectativas e nas perspectivas macroeconómicas de Moçambique. Desde me-
ados da década de 1980, o FMI tem proporcionado uma plataforma de monitoria
técnica determinante para a forma como, perante a comunidade internacional, o
desempenho da economia moçambicana é avaliado.
Dentro dos pressupostos estabelecidos pelo FMI para a intervenção na ges-
tão macroeconómica de um país, geralmente mais consentâneos com a economia
perfeita dos manuais académicos convencionais do que a economia imperfeita
do país real, os críticos e homens comuns reagem com incredulidade: ‘se a eco-
nomia está bem, o que importa se as pessoas não estão?’(Estefánia, 1996: 10).
Pouca importância parece ter também o facto de as avaliações se circunscreve-
rem ao quadro macroeconómico definido apenas pela economia formal, como
se a economia informal, social legítima e sobretudo a ilegal e delituosa, tivesse
um peso irrelevante ou marginal. Assim, entende-se que o FMI, ao abstrair-se de
toda a contextualização institucional que explica que a economia moçambicana
se tenha convertido numa economia cronicamente dependente e insolvente, seja
apresentada como desfrutando de melhor desempenho do que economias africa-
nas efectivamente viáveis e sustentáveis, como são as economias da África do Sul,
Botswana e Maurícias.15
A insistência numa imagem enganadora, ou mesmo ilusionista, não acontece
por falta de fontes alternativas de dados e de avaliações actualizadas e consistentes
com a realidade demográfica, social e económica de Moçambique. São inúmeras
as evidências produzidas por pesquisadores de agências reconhecidas e analistas
independentes, nacionais e internacionais, incluindo das agências internacionais a

Sachs explicou que Moçambique tem condições para crescer a uma média anual de 10% ou
mais nesta década, para além de que a economia também está apta para duplicar o seu tamanho
em cada cinco ou sete anos (‘Moçambique já é uma economia emergente’ in Jornal Notícias,
‘Economia & Negócios’, 21.01.2011, pp. 4-5).
15
Na sua mais recente avaliação, o FMI considera o desempenho da economia de Moçambique
em 2010 como ‘forte’, ‘robusto’ e ‘… melhor durante a recessão mundial que os seus congéneres
da África subsariana (AS) …’ (Relatório nº 10/375, 2010: 4).

300 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 300 3/29/11 4:53 PM


que os autores acima citados pertencem. Evidências que, certamente, os investi-
dores internacionais sérios tomam em consideração quando se trata de avaliar as
oportunidades de negócio em África.16
Se alguma dúvida ainda subsistisse quanto às imagens que melhor reflectem
a actual realidade moçambicana, um conjunto de novas pesquisas têm produzido
resultados actualizados e representativos da realidade demográfica, económica e
social contemporânea, reduzindo a margem de controvérsia quanto às difíceis
condições de vida da população moçambicana.17 Apesar disto, não significa que as
elites influentes, nacionais e internacionais, estejam prontas a renunciar ao wishful
thinking a favor de um maior realismo, verdadeiro pensamento e discurso positivo
e construtivo.
Enquanto a crise financeira internacional de 2007-2009 não converteu a
possibilidade de insolvência dos próprios Estados da zona Euro numa crescente
inevitabilidade, nem mesmo relativamente aos Estados cronicamente falidos, era
fácil associar a sua incapacidade de cumprimento das obrigações financeiras, para
com terceiros, como expressão de falência, bancarrota ou insolvência. O tempo
dirá se as recentes falências e outras em perspectiva, nas economias avançadas,
contribuirão para colocar o debate no seu devido lugar sobre a maior ou menor
viabilidade e sustentabilidade de economias crónica e fortemente dependentes da
ajuda internacional.
Kaletsky (2010: 237-238) defende que a possibilidade de insolvência do go-
verno só se coloca se uma Nação, ou precisamente se o Tesouro Nacional, pede
emprestado a outros países numa moeda que não pode controlar. Governos de
nações como os Estados Unidos, a Inglaterra ou o Japão não correm o risco de
falência ou incumprimento (default), porque sempre podem honrar as suas dívi-
das; nem que, em último recurso, instruam os seus bancos centrais a imprimirem
o dinheiro necessário para saldar as suas dívidas.

16
Índices de liberdade económica (The Heritage Foundation, 2010; Fraiser Institute, 2010);
ambiente de negócios (World Economic Forum, 2010; World Bank, 2010); índices de
notação de crédito das agências de rating Standard & Poor e Fitch (www.pri-center.com/
country/country_specific.cfm?countrynum=139); níveis de corrupção, democracia, qualidade
institucional (Transparency International, 2010; The Economist, 2010); índices de crescimento,
desenvolvimento humano e de pobreza humana (UNDP, 1994, 2010).
17
Para além da 3ª Avaliação, baseada no Inquérito ao Orçamento Familiar (IOF) 2010 (MPD, 2010),
os dados dos Inquéritos do Trabalho Agrícola (TIA), relativos aos anos 2000 e 2009 (e.g. ver artigo
de Cunguara e Hanlon, 2010) e o Censo de 2007 (INE, 2009a, 2010) mostram uma realidade
urbana e rural muito mais complexa e difícil do que as que as informações oficiais admitem.

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 301

Desafios.indb 301 3/29/11 4:53 PM


Diferentemente, Estados como o de Moçambique e tantos outros, inteira-
mente dependentes de divisas de outros países que não conseguem controlar,
enfrentam riscos reais de falência financeira. Apesar de não existirem mecanismos
legais a nível internacional para forçar os governos devedores a pagarem as suas
dívidas em atraso, na prática, os credores podem retaliar e interromper a activi-
dade dos seus respectivos Estados, cortando-lhes o acesso aos financiamentos
internacionais de que muito dependem.
Em Moçambique, a falência financeira do Estado remonta a meados da década
de 1980, mais precisamente a 1984, ano em que o Governo Moçambicano formalizou
o seu pedido de apoio financeiro e técnico ao FMI (Fundo Monetário Internacional)
e ao Banco Mundial. Não é objectivo deste artigo detalhar os antecedentes e as causas
da falência financeira do Estado moçambicano, mas o Gráfico 2 sumariza, de forma
gráfica, a evolução falimentar da economia moçambicana, comparando três taxas de
crescimento: demográfica, económica (medida pelo Produto Interno Bruto (PIB) real)
e do desenvolvimento económico (medida pelo PIB real per capita).

GRÁFICO 2 DO ESTADO COLONIAL À FALÊNCIA DO ESTADO SOBERANO: MEIO SÉCULO DE CRESCIMENTO


DEMOGRÁFICO, ECONÓMICO E DO DESENVOLVIMENTO EM MOÇAMBIQUE 1960-2005

10,0%
8,0% Taxa de
Crescimento 7,2%

6,0% Económico
4,2% Taxa de 5,0%
4,0% Crescimento
Demográfico
2,2% 2,2%
2,0%
Taxa Média

2,0%

0,0%
1960-64 1965-69 1970-74 1975-79 1980-84 1985-89 1990-94 1995-99 2000-04 2005-09
-2,0% Taxa de
Desenvolvimento
-4,0% Económico

-6,0%
-6,5%

-8,0%
-10,0% -9,6%

Períodos
FONTE PWT 6.1; www.foreignpolicy.com

Entre 1960 e 2009, a população cresceu à taxa média anual de 2,2%, en-
quanto a economia moçambicana cresceu à taxa média anual de 1,7%. Ou seja,
ao longo do último meio século, o moçambicano produziu abaixo do mínimo ne-
cessário (pelo menos 2,2% correspondente ao crescimento populacional) para que

302 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 302 3/29/11 4:53 PM


o padrão de vida não regredisse. Assumindo o PIB real dividido pelo número de
habitantes como proxy do desenvolvimento económico, nos últimos 50 anos, Mo-
çambique registou uma involução, em vez de desenvolvimento económico (-0,3%
ao ano) (Francisco, 2010a).
Desde o início da década de 1990, o crescimento económico tem sido geral-
mente positivo, resultando num desenvolvimento económico médio anual real de
5%. Só que este crescimento económico anual recente, apesar de já ser relativamente
elevado, ainda não compensou a profunda involução anterior, resultante do cresci-
mento económico negativo, registado entre 1975 e o fim da guerra civil em 1992.
Se a verdadeira função do FMI, parafraseando Kanitz (2002), é manter a
governabilidade de governos incompetentes até à próxima eleição, parece haver
poucas dúvidas de que o FMI tem cumprido bem tal função em Moçambique.
Na verdade, bem de mais, ou mesmo muito além do esperado do seu mandato e
vocação. Em princípio espera-se do FMI uma intervenção cirúrgica efectiva num
período relativamente curto. No caso de países como Moçambique, o FMI super-
visiona e gere a macroeconomia há mais de um quarto de século (Castel-Branco,
1999:12; Soros, 1999: 175-178).18
Na verdade, o FMI tornou-se parte integrante do corpo técnico da gover-
nação pública moçambicana e um dos principais actores no âmbito do que Fran-
cisco (2010a: 38) designa por protecção social ampla, pelo seu papel na definição
dos mecanismos macroeconómicos, política monetária e fiscal, política salarial
do sector público, aceitação ou rejeição de subsídios e de programas sociais de
transferências a favor dos pobres, assistência técnica e financeira visando mitigar
choques, naturais ou financeiros, entre outros aspectos (FMI, 2010a, 2010b).
Na última década, a supervisão internacional do FMI e do Banco Mundial
ampliou-se para um grupo crescente de agências internacionais e doadores bila-
terais. Actualmente, o chamado G19 envolve pelo menos 19 países que apoiam
directamente o Orçamento do Estado, para além de contribuirem com a ajuda
adicional a nível sectorial e local. Deste modo, em vez da dependência do Estado

18
‘Contra o seu mandato e vocação, o FMI acabou ficando envolvido em programas de rápida
estabilização que nunca terminavam, ou que se sucediam uns aos outros nos mesmos Países.
Killick (1995) mostra que, em cada um dos mais de 30 Países da África Sub-Sahariana (SSA)
que solicitaram e receberam apoio do FMI nas duas ultimas décadas, o FMI implementou, ou
tentou implementar, pelo menos três, em alguns casos mesmo dez, programas sucessivos de
estabilização económica. Na maioria dos casos, o FMI entrou no País para ficar entre um a dois
anos, e acabou ficando dez ou mais anos sem conseguir atingir a totalidade dos objectivos de
estabilização definidos’ (Castel-Branco, 1999: 12).

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 303

Desafios.indb 303 3/29/11 4:53 PM


Moçambicano diminuir e ser substituída por fontes nacionais, tem aumentado e
diversificado, tanto a nível macro como a nível sectorial. Um aumento que, nos
anos recentes, o Governo tem procurado disfarçar com simulações estatísticas e
contabilísticas na formulação das percentagens de ajuda ao Orçamento do Estado,
complementadas com declarações retóricas quanto à vontade política de se acabar
com a política da “mão estendida” e dependência da ajuda internacional.
Em termos económicos, o Estado Moçambicano alicerça-se numa economia
nacional composta por um complexo bazar de múltiplos universos económicos,
uma verdadeira bazarconomia, porque cada universo económico cresce e desen-
volve-se com uma racionalidade própria, relativamente independente dos demais
universos económicos (Francisco, 2009; 2010a).
Acontece, porém, que, ao nível da economia nacional mais geral, observa-se
uma tendência crescente para a informalidade, envolvendo a fraca economia formal
existente e legalmente registada. Vários universos económicos co-existem e contri-
buem para o vasto e complexo multiverso económico nacional, dependendo cres-
centemente de políticas e interesses particulares dos agentes económicos. Diversos
universos económicos compõem actualmente o bazar económico moçambicano,
desde as economias vulgarmente designadas por ‘economia de subsistência’, ‘eco-
nomia informal’ (ou também não registada e extra-legal, mas socialmente legítima);
passando pela ‘economia oculta’ ou �������������������������������������������������
ilegal, delituosa, criminal e socialmente não to-
lerada, até às exíguas ‘economia capitalista privada’ e ‘economia capitalista pública’.
Neste contexto, os indicadores económicos convencionais, por exemplo, Produ-
to Interno Bruto (PIB) ou Produto Nacional Bruto (PNB), acabam por representar a
ponta de um vasto, mas muito mal conhecido e medido, iceberg económico nacional.
Um iceberg económico que, bem ou mal, reflecte principalmente a economia que é
possível aferir com os instrumentos estatísticos disponíveis. Só que, em Moçambique,
a economia real está longe de ser apenas a que é registada e medida, directa ou indi-
rectamente. Isto acontece por dificuldades diversas, relacionadas menos com as limita-
ções metodológicas e falta de instrumentos de medição do que com dificuldades reais
em capturar e aceder aos reais fluxos económicos e financeiros, incluindo fluxos de
auto-consumo e, sobretudo, fluxos extra-legais e ilegais, ao nível da ‘economia canalha’
(Rogue Economics), parafraseando Napoeloni (2009) - economia do roubo, da fraude,
da chantagem e burla, bem como tráfico de vários tipos (humano, de armas e drogas).
Convencionalmente, assume-se que a economia directa ou indirectamente
registada representa o grosso da economia nacional, estimando-se ter atingido em

304 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 304 3/29/11 4:53 PM


2009 cerca de 9,8 mil milhões de dólares americanos (Wikipedia, 2010). Contudo,
estas estimativas necessitam de ser interpretadas com cautela, para não se incorrer
no equívoco de que representa um mercado integrado e nacionalmente represen-
tativo dos principais universos económicos, que constituem a economia nacional.
É sabido que o PIB, tal como é actualmente estimado e medido, capta uma
parte limitada da economia total. Sobre a proporção do auto-consumo, ainda é
possível arriscar estimativas aproximadas, mas a respeito da ‘economia canalha’,
nas suas múltiplas formas, desconhece-se completamente a sua dimensão e peso
real no valor monetário total em circulação na economia moçambicana.19
Considerando as elevadas proporções de informalidade ao nível dos princi-
pais factores de produção, pelo menos 75% do mercado dos factores terra, traba-
lho e capitais desenvolve-se mais ao nível informal do que ao formal. É provável
que a parte da economia nacional excluída do mercado formal - particularmente
os vastos recursos fundiários e imobiliários, desvalorizados e convertidos em capi-
tal improdutivo por instituições avessas ao desenvolvimento de mercados nacio-
nais integrados - possua presentemente um valor de mercado inferior ao actual
PIB moçambicano. Apesar disso, do ponto de vista da situação e perspectiva de
desenvolvimento dos sistemas de protecção social, não é irrelevante que a maioria
da população moçambicana continue a depender mais da economia de subsistên-
cia do que da exígua economia capitalista, nacional e internacional.
À semelhança do que acontece com a economia nacional, também a natu-
reza do Estado está longe de ser debatida seriamente. Nas últimas duas décadas,
como foi acima referido, o principal sucesso do Estado moçambicano tem sido
evitar, ou pelo menos adiar, a conversão do Estado Falido em Estado Falhado
(Francisco, 2010a). Mas não está livre de que tal aconteça, a médio prazo, consi-
derando que partes importantes do Estado Moçambicano parecem estar cada vez
mais reféns do crime organizado e narcotráfico.20 Além disso, existem inúmeras
evidências da crescente precariedade da segurança pública, tanto em relação à
protecção pessoal dos cidadãos como dos seus bens, razão pela qual a população
recorre frequentemente à justiça por conta própria (e.g. linchamentos populares).

19
É duvidoso que a proporção do mercado informal, no seu sentido amplo, represente somente os 40%
do PIB estimados por Schneider et al.(2010: 21; ver também Francisco e Paulo, 2006).
20
Em 2010, o Governo dos Estados Unidos da América, através do Presidente Barak Obama,
tomou medidas em defesa do seu sistema financeiro nacional, alegadamente por Moçambique
estar a tornar-se cada vez mais envolvido no narcotráfico internacional (www.clubofmozambique.
com/solutions1/sectionnews.php?secao=business&id=18539&tipo=one).

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 305

Desafios.indb 305 3/29/11 4:53 PM


Quando se confronta esta realidade com a imagem de sucesso de Moçam-
bique, somente através das lentes do pensamento desejoso moçambicano se podem
perceber afirmações como a do IPC-IG (2010), sobre o sucesso de Moçambique
ao nível dos programas de protecção social:

Além da África Austral, Moçambique, Gana e Quénia também têm sido bem sucedidos
no desenvolvimento de estruturas de protecção social, e / ou no avanço em direcção à
definição de uma perspectiva de longo prazo das suas políticas e programas (IPC-IG,
Nota Conceptual, 2010).

Uma reflexão cuidada dos reais desafios colocados pela ampliação e consoli-
dação da protecção social em Moçambique mostra como esta tarefa está a tornar-
-se cada vez mais difícil nos dias de hoje. Parte das dificuldades, como se refere
e exemplifica no início deste artigo, derivam de factores objectivos e acontecem
independentemente da vontade política dos governantes; outra parte deriva de
factores subjectivos e conjunturais, incluindo o empenho, a honestidade e o pro-
fissionalismo na implementação das políticas públicas.
Setembro de 2010 foi um mês terrível para os pensadores desejosos em Moçam-
bique. O mês começou com mais uma revolta popular violenta e sangrenta nas duas
principais cidades da Província de Maputo (Maputo e Matola)21 e terminou com a
divulgação de novos dados devastadores contra a tese de que a pobreza estava a dimi-
nuir e a ser controlada. Segundo a 3ª Avaliação Nacional da Pobreza e Bem-estar em
Moçambique, a pobreza estagnou na melhor das hipóteses, mas em várias províncias
do país, e nas zonas rurais em geral, aumentou substancialmente (MPD, 2010).
Face a este panorama da economia e do Estado de Moçambique, é legítimo
perguntar: que perspectivas se pode esperar para a protecção social num país

21
Os distúrbios violentos de 1 a 3 de Setembro, apelidados na imprensa internacional como a
‘revolta do pão’, (www.guardian.co.uk/world/2010/sep/02/mozambique-bread-riots-looters-
dead, ou a ‘revolução do pão’ (www.tvi24.iol.pt/sociedade/visao-quiosque-tvi24-revista--
imprensa/1190312-4071.html), originaram mais de uma dezena de mortes de civis. Seguiram-
se alguns dias de tensão e boatos, até que, a 7 de Setembro, o Governo recuou na sua decisão,
suspendendo o aumento dos preços de alimentos, água e electricidade, para além de anunciar
outras decisões visando pôr termo ao protesto popular. Uma onda similar de protesto popular
ocorreu também em 05.02.2008 contra o aumento dos preços dos “chapas” (transportes urbanos
informais), originando confrontos com a polícia, paralisação do comércio e outras actividades
na cidade de Maputo. Este tipo de protestos populares apontam para uma nova etapa política
nacional, um novo dissenso, parafraseando o conceito criado pelo filósofo francês Jacques
Rancière. Dissenso, ao invés de consenso, em que as pessoas que não fazem parte do poder de
Estado e da gestão da coisa pública apoderam-se das ruas e do palco público, para declarar que
aquilo que o Governo decide não é inevitável.

306 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 306 3/29/11 4:53 PM


mergulhado numa falência económico-financeira crónica, há mais de um quarto
de século, com um Estado que hesita entre o subdesenvolvimento e o mau desen-
volvimento, enquanto o desenvolvimento inclusivo parece ser usado na retórica
política como isca, destinada a atrair e a perpetuar a ajuda internacional, alegada-
mente em prol do combate à pobreza?

PROTECÇÃO SOCIAL FINANCEIRA

De acordo com o último censo populacional realizado em 2007 pelo INE


(2009, 2010), a população moçambicana em idade economicamente activa (PIA),
convencionalmente definida entre os 15 e 64 anos de idade, rondava os 10,6 mi-
lhões de pessoas (51% da população total).
A taxa teórica de participação económica, definida como a percentagem da
população em idade activa (15-64 anos), que exerceu alguma actividade económi-
ca ronda os 77%. Na realidade, a taxa efectiva de participação económica é supe-
rior. Se ao efectivo teórico, referente ao grupo etário dos 15-64 anos, se adicionar
o efectivo de crianças e adolescentes dos 7-14 anos que exerceu alguma actividade
económica, verifica-se que aproximadamente 32% (cerca de 1,4 milhões) de crian-
ças e adolescentes trabalham (Gráfico 4). Assim, a taxa efectiva de participação
poderá rondar os 86%; ou seja, cerca de 20% mais do que é estimado na base da
taxa teórica de participação económica.
A Tabela 2 mostra que a base laboral formal, potencialmente disponível para
contribuir financeiramente para a segurança social, representa cerca de 8%, contra
17% de desempregados e 75% em actividades informais (INE, 2005). Na prática,
menos de 10% dos mais de 10,6 milhões de pessoas na população economica-
mente activa encontram-se actualmente abrangidos pela protecção social formal,
incluindo a previdência social do Estado para trabalhadores da Administração
Pública e o sistema de segurança social (INSS). Como o efectivo do INSS inclui
trabalhadores registados, tanto os que contribuem activamente como os não con-
tribuintes ou inactivos, na realidade, a percentagem de beneficiários da segurança
social formal cobre apenas 5% da população em idade economicamente activa.
De uma maneira geral, a literatura actual sobre protecção social nos países
subdesenvolvidos assume como um dado adquirido a ideia de que a viabilidade
e a sustentabilidade dos sistemas modernos de protecção social, dependem, prin-

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 307

Desafios.indb 307 3/29/11 4:53 PM


cipalmente, da robustez, eficácia e eficiência dos sistemas financeiros existentes
(Adésínà, 2010; Baliamounte-Lutz, 2010; Cichon et al., 2004; Devereux e Saba-
tes-Wheeler, 2004; Devereux et al., 2010; Ellis et al., 2009; Feliciano et al., 2008;
Holzmann, 2009; Niño-Zarazúa, 2010; ILO, 2006; Quive, 2007; Whaterhouse e
Lauriciano, 2009; World Bank, 1999; Wuyts, 2006).

TABELA 2 POPULAÇÃO EM IDADE ECONOMICAMENTE ACTIVA E PROTECÇÃO SOCIAL FORMAL EM MOÇAMBIQUE 2007

Total %
(em 1000 pessoas)
População Total (Censo 2007) 20.632 100
População 7 e mais anos de idade 15.213 73,7%
População em Idade Activa (PIA), 15-64 anos 10.589 51,3%
PIA por Sector de Actividade
Assalariada 837 7,9%
Informal 7.942 75%
Desempregada 1.800 17%
População infantil trabalhadora (7 -14 anos) 1.354 8,9%
PIA por Fonte de Contribuição
Previdência Social Estado (Funcionário da Adm. Pública)* 231,8 2,2%
Trabalhadores no Sistema de Segurança Social (INSS) 690,0 6,5%
Activos 193,4 1,8%
Inactivos 496,5 4,7%
População Abrangida pela P.S Formal (Previdência Social + INSS) 921,7 8,7%
Actuais Beneficiários de Segurança Socia Formal (INSS Activos + Estado) 425,2 4,0%

FONTE INE, 2005, 2009a, 2010; Recama, 2008


NOTA
(*) O Censo de funcionário indicou um total de 169.963 funcionários, mas o dado usado aqui deriva do Censo 2007

O pressuposto de que os sistemas modernos de protecção social dependem


cada vez mais dos sistemas financeiros é correcto, mas apenas em parte; princi-
palmente em países onde os sistemas financeiros estão longe de serem extensivos
a toda a população e a todo o território nacional. Significa, assim, que grande
parte da actual literatura sobre protecção social nos países subdesenvolvidos não
reconhece adequadamente as implicações da limitada abrangência dos sistemas
financeiros relevantes para a protecção social.
Em parte, a exclusão dos sistemas financeiros está relacionada com a estrutu-
ra laboral e económica, de algum modo acima caracterizada; mas, por outro lado,
o próprio sistema financeiro, no caso específico de Moçambique é, em si, muito
precário e limitado.

308 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 308 3/29/11 4:53 PM


Moçambique possui o pior índice de acesso a serviços financeiros na região da
África Austral, como constatou o recente estudo intitulado FinScope Mozambique
Survey 2009. O Gráfico 3 ilustra bem a exiguidade dos sistemas financeiros moçam-
bicanos, tanto dos sistemas formais como dos informais. Em conjunto, estes sistemas
fornecem acesso a pouco mais de um quarto da população adulta. A capacidade de en-
dividamento dos cidadãos, nos sistemas formais e informais é globalmente insignifican-
te (de Vletter et al., 2009; Francisco e Paulo, 2006; Francisco, 2010c, 2010d; INE, 2006).

GRÁFICO 3 ACESSO A SERVIÇOS FINANCEIROS EM MOÇAMBIQUE, 2009

Excluídos 77,8%
Formalmente
Bancarizado
(6,1%)

1,1% 3,1%
1,6%

Outro Formal 0,4% Informal


(0,5%) (9,6%)

FONTE de Vletter et al, 2009:36

Existe aqui um paradoxo importante. Enquanto os limitados mecanismos e actores


financeiros formais (cobrindo menos de 7% da população) concentram e acumulam os
recursos de capital financeiro, por outro lado, cerca de 78% da população adulta (85% na
zona rural e 61% na zona urbana) vive completamente excluída de tais sistemas formais.
Depreende-se, deste modo, que os dois lados do mercado financeiro que deveriam, di-
recta ou indirectamente, sustentar os processos de protecção social (através de seguros
diversos, previdência social, capitalizações, entre outros produtos), de uma maneira geral
não se ligam entre si, se bem que ambos precisem fortemente um do outro.
Esta evidência contraria uma percepção enganadora muito comum. A percep-
ção segundo a qual o sistema informal compensa ou substituiu o sistema financeiro
formal (banca e outras entidades financeiras), onde este último está ausente, não cor-
responde à verdade. Os dados do FinScope Mozambique Survey 2009 mostram que o
sistema financeiro informal é igualmente limitado em termos de abrangência nacional.
Menos de 15% de pessoas adultas têm acesso ao sistema informal, das quais apenas

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 309

Desafios.indb 309 3/29/11 4:53 PM


5% estabelecem ligações com o sistema formal (bancário e outros formais). Por isso,
os mecanismos informais, quando muito, expandem o sistema financeiro formal para
o dobro da sua abrangência nacional. Mesmo assim, considerados em conjunto os
dois sistemas financeiros, o sistema financeiro como um todo cobre apenas 22% da
população adulta moçambicana, o que significa que 78% permanece excluída.
Nestas circunstâncias, como tinha sido acima adiantado, não é de admirar
que o sistema de protecção social formal cubra menos de 5% da população em
idade economicamente activa. Isto é consistente com o baixo nível de alocação de
recursos financeiros públicos através Orçamento do Estado; em 2009 a alocação
realizada para a segurança social e programas de assistência social representou
menos de 0,5% das despesas orçamentais gerais (Tabela 3). Em 2010, segundo os
dados da Tabela 3, parece existir uma tendência de diminuição na alocação de
recursos, como proporção das despesas orçamentais em relação ao PIB de 2009.

TABELA 3 ORÇAMENTO DO ESTADO PARA PROTECÇÃO SOCIAL FORMAL EM MOÇAMBIQUE, 2009-10

(em Milhões de US$) 2009 2010


% PSF % PSF
Protecção Social Formal (PSF) $13,7 $11,3
Orçamento de Estado $2.858 0,48% $3.855 0,3%
PIB $8.327 0,17% $8.926 0,13%

FONTE FDC e UNICEF, 2010

NOTA
Câmbio: 30,6 MT por 1US$

Admitindo que os sistemas financeiros informais ampliam a abrangência dos


formais para o dobro, o mais provável é que o mesmo aconteça com os mecanis-
mos de protecção social, assentes em mecanismos financeiros informais.
Perante o panorama acima descrito, algumas questões tornam-se inevitáveis:
se o sistema financeiro nacional, em que se alicerçam os mecanismos formais e
informais de protecção social, proporciona acesso a menos de um quinto da po-
pulação adulta, onde é que os restantes quatro quintos das pessoas excluídas do
sistema financeiro buscam a sua protecção social? Estarão elas totalmente despro-
tegidas, em termos de apoio básico à criança e mitigação de riscos de insegurança
da população idosa? Com uma infra-estrutura financeira tão limitada e excludente,
será possível aspirar a uma segurança social contributiva e a uma assistência social
não contributiva, inclusivas e socialmente relevantes para a maioria da população?

310 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 310 3/29/11 4:53 PM


PROTECÇÃO SOCIAL DEMOGRÁFICA

A resposta curta e directa às três interrogações atrás colocadas pode ser dada
recorrendo ao conceito de Protecção Social Demográfica (PSD), tal como foi
definido na introdução deste texto - o conjunto de relações e mecanismos interge-
racionais, de género, familiares, comunitários e sociais que moldam e determinam,
directa ou indirectamente, os componentes de mudança demográfica, nomeada-
mente: mortalidade, natalidade e migrações.
Aos mais de quatro quintos de moçambicanos adultos, sem qualquer tipo de
acesso aos sistemas financeiros, não resta outra alternativa senão procurar garantir
a sua segurança e sobrevivência através dos sistemas reprodutivos e demográficos
estabelecidos ao longo dos séculos em torno das elevadas taxas vitais. Mesmo os
moçambicanos com alguma forma de acesso a mecanismos financeiros podem
dispensar o contributo significativo dos mecanismos demográficos.
Na sua vida quotidiana, a solução para a prevenção e mitigação dos prin-
cipais riscos humanos, desde o risco de perder a vida precocemente na infância
(antes de completar um ou cinco anos) até ao risco de mergulhar na insegurança
durante a velhice, continua a depender fortemente dos sistemas demográficos de
protecção social. São sistemas predominantemente não financeiros, mas social-
mente relevantes e determinantes do controlo social exercido nas práticas, atitu-
des e comportamentos das mulheres e dos homens.
Precisamente por causa desta característica, geralmente vulgarizada e assu-
mida como natural ou biológica, Francisco (2010c) tem contraposto um argu-
mento de algum modo provocativo, considerando o desprezo que o assunto tem
recebido nas políticas de protecção social mais convencionais. Em Moçambique,
defende Francisco (Francisco et al., 2010a, 2010b), ter muitos filhos continua a ser
a principal forma de protecção social. Este assunto é abordado, de forma mais
extensiva, num outro artigo incluído neste livro. A este nível, basta apenas registar
o facto de tal argumento suscitar um misto de reacções curiosas, desde surpresa,
algum embaraço e também perplexidade. A surpresa e o embaraço derivam da
forma como uma constatação tão mundana e óbvia expõe de forma muito simples
a desatenção ou mesmo desprezo dispensado ao domínio da protecção social,
socialmente relevante, enquanto a maior parte das energias, recursos humanos e
financeiros são concentradas em áreas cujos resultados deixam muito a desejar.

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 311

Desafios.indb 311 3/29/11 4:53 PM


Os investigadores, doadores e as agências internacionais não desconhecem o pa-
drão de “protecção social”, característico das sociedades rurais e das economias de sub-
sistência pobres. Mas o hábito de lidar com os mecanismos familiares e demográficos
como naturais, ou quando muito historicamente determinados, considera-se o ter mui-
tos filhos como parte de um universo desligado dos sistemas de protecção social moder-
nos, os quais assentam em mecanismos principalmente financeiros. Admite-se que ter
muitos filhos seja uma opção, em sociedades de economia de subsistência fortemente
expostas à vulnerabilidade crónica, onde as pessoas buscam segurança contra riscos e
choques nas redes sociais, sociedades funerárias e acumulação de activos produtivos des-
tinados a alugar ou vender em tempos de crise (e.g. terra, gado, terra e outros activos).22
As definições de protecção social prevalecentes na literatura contemporâ-
nea, fortemente focalizadas nas “acções públicas” em resposta à vulnerabilidade,
choques e privações humanas (Norton et al., 2001: 7) também não facilitam o
reconhecimento do papel exercido pelos mecanismos privados e familiares. Estes
últimos praticamente não podem contar com o apoio de entidades públicas, tanto
da Administração Pública como de organizações não governamentais e da socie-
dade, ou na combinação entre todas elas. Mais importante do que a insuficiente
facilitação por parte das definições conceituais, outras razões práticas concorre-
rão, muito provavelmente, para o fraco reconhecimento do papel das relações
não financeiras na protecção social. Apesar do espaço reservado a este texto não
permitir aprofundar satisfatoriamente as razões principais do fraco reconhecimen-
to da protecção social demográfica, pelo menos é possível enumerar e qualificar
resumidamente cinco das referidas razões:

1) O paradoxo associado ao facto de o fundamental da protecção social


acontecer no domínio das relações demográficas e sociais, votada à sua
sorte e risco, enquanto o grosso dos recursos (financeiros, humanos, téc-
nicos e em tempo) é concentrado nos serviços públicos, cuja cobertura e
efectividade deixa muito a desejar;

22
‘…dada a vulnerabilidade crónica dos nossos antepassados, as primeiras formas de seguro talvez
tenham sido, até, as sociedades fúnebres que poupavam recursos para garantir ao membro de
uma tribo um enterro digno. Esse tipo de sociedades permanece a única forma de instituição
financeira, em algumas das partes mais pobres da África Oriental. Poupar antecipadamente para
uma provável adversidade futura continua a ser o princípio fundamental dos seguros, quer seja
contra a morte, quer seja contra os efeitos da idade avançada, de uma doença ou de um acidente.
O truque é saber quanto devemos poupar e o que devemos fazer com essas poupanças…’
(Ferguson, 2009: 164).

312 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 312 3/29/11 4:53 PM


2) Como o domínio reprodutivo e demográfico, associado aos mecanismos
de sobrevivência humana, é frequentemente assumido como natural ou
socialmente contextual, muitos autores acreditam que tal domínio não
faz parte, ou está para além, do âmbito da protecção social;

3) A transição demográfica moçambicana está atrasada e decorre muito len-


tamente, comparativamente à transição demográfica em vários países do
sul de África, tais como: Maurícias, Botswana, África do Sul, Zimbabué,
Suazilândia e Lesoto (Bongaarts, 2005, 2007; Lesthaegue, 1980, 1989,
2010; Malbmerg, 2008; Reher, 2004; Schoumaker, 2004; Shapiro e Ge-
breselassie, 2007; UN, 2010). Além disso, quando se trata de conceber
mecanismos de mitigação de riscos, de insegurança humana e formas
de prevenção e compensação de choques, os modelos formalmente es-
colhidos inspiram-se nos modelos aplicados nos países de transição de-
mográfica e economias avançadas, sem a devida consideração de que
Moçambique se encontra ainda na fase inicial da transição demográfica;

4) Interpretações erradas e enganadoras da teoria geral de transição demo-


gráfica, e em particular do papel da fecundidade no processo demográ-
fico, têm induzido certos autores a concluir que a teoria convencional da
fecundidade assenta no pressuposto de que os casais, em todo o mundo,
sempre desejaram ter muitos filhos, devendo por isso ser estimulados a de-
sejarem menos filhos e famílias menores (Campbell, 2007: 242-243). Esta
percepção denuncia um grande equívoco quanto à questão do número de
filhos desejados pelos casais. Num regime reprodutivo dependente de altas
taxas vitais, as pessoas não dispõem praticamente de nenhuma margem de
escolha. Tal como não são capazes de controlar o elevado risco de morte
prematura, também não podem escolher entre a quantidade e a qualidade
do número de filhos. A continuidade da sobrevivência é garantida princi-
palmente pela quantidade do número de filhos. Por isso, da mesma forma
que os casais não desejavam muitos óbitos, também o argumento de que
as pessoas desejam ter muitos filhos, como se de uma opção subjectiva e
individual se tratasse, tem pouco sentido;

5) Como bem referiu Reher (2004), a ideia segundo a qual, antes da transi-
ção demográfica, as pessoas preferem grandes famílias, por perceberem
a utilidade dos filhos na economia familiar e, mais tarde, como seguro na

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 313

Desafios.indb 313 3/29/11 4:53 PM


velhice, é atractiva, mas reflecte mais a realidade histórica contemporânea
do que a antiga. Num passado remoto anterior à transição demográfica,
as famílias não eram muito grandes. As taxas de crescimento populacio-
nal relativamente baixas, na generalidade do mundo, antes da transição
demográfica, são a melhor prova de que, no passado, as famílias eram
geralmente pequenas (Reher, 2004: 25). A falsa percepção do passado
demográfico poderá derivar, em parte, da ignorância dos factos históricos
mais remotos, mas, por outro lado, da confusão entre o número de filhos
nascidos e o número de filhos sobreviventes; estes nunca foram muitos,
na maioria da história da população humana (Reher, 2004: 25).

Do ponto de vista macro, tanto em termos demográficos como em termos


económicos, várias são as características comuns aos países que se encontram na
fase inicial ou atrasada da transição demográfica, como é o caso de Moçambi-
que: 1) As necessidades de consumo tendem a exceder a capacidade produtiva,
reflectindo-se em altos níveis de pobreza; 2) A abundância de crianças está inti-
mamente relacionada com a estrutura populacional jovem, manifestando-se na
elevada ocorrência de trabalho infantil. Como se indicou anteriormente, existem
mais de 1,3 milhões de crianças e adolescentes em idades dos 7 aos 14 anos a
contribuir para a actividade produtiva familiar; um efectivo, como ilustra o Grá-
fico 4, bastante superior ao efectivo de trabalhadores assalariados nos sectores
privado e público; 3) Forte dependência da exploração de recursos naturais e
de capitais estrangeiros; 4) As mulheres precisam de investir consideráveis re-
cursos produtivos e em tempo na esfera da reprodução humana; 5) Persistência
da elevada fecundidade (ter muitos filhos), visto que os sistemas financeiros e de
protecção social modernos mostram-se incapazes de substituir os antigos fluxos
de riqueza entre gerações e outros mecanismos de segurança social (Cain, 1981,
1983; Caldwell, 1976; Francisco, 2010a, 2010c, 2010d; Lesthaegue, 1980, 1989;
Malmberg, 2008; Malmberg e Soomestad, 2000; INE, 2002, 2009a, 2009b, 2009c;
2010; Robertson, 1991).

314 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 314 3/29/11 4:53 PM


GRÁFICO 4 TRABALHO INFANTIL VERSUS TRABALHO ADULTO ASSALARIADO NOS SECTORES PRIVADO E PÚBLICO,
MOÇAMBIQUE CENSO 2007

As (43
sa %
lar )
Sector Público,

iad
316.644

os
(13%)

Trabalho Infantil
Sector Privado,
(assalariado & outros),
708.550
1.332.630
(30%)
(57%)

FONTE INE, 2010

AMPLIAÇÃO DA PROTECÇÃO SOCIAL: OPORTUNIDADES E


DESAFIOS

Este artigo problematiza mais do que recomenda e prescreve, pela simples


razão de que o assunto nele debatido necessita, primeiro que tudo, de ser devida-
mente reconhecido, analisado e compreendido de forma sistemática e aprofunda-
da. Sem uma boa compreensão da complexa dimensão e natureza da protecção
social, no actual contexto moçambicano, dificilmente se poderá identificar solu-
ções alternativas e mais efectivas do que as opções até aqui implementadas.
À primeira vista, não parece difícil mobilizar simpatia e reconhecimento, ao
nível do senso comum, para o argumento fundamental apresentado neste traba-
lho, em torno da distinção entre o domínio da protecção social demográfica e o
domínio da protecção social financeira. Mas, numa segunda análise, será preciso
admitir que a simpatia e reconhecimento do senso comum nem sempre condu-
zem ao reconhecimento por parte do pensamento mais elaborado, em termos
académicos, políticos e operacionais. Esta dificuldade constitui, de imediato, um
dos desafios das ideias avançadas neste artigo, face ao escrutínio da crítica e con-
sideração da sua relevância e utilidade prática para uma visão mais realista e rele-
vante da protecção social moçambicana.
Procurar mobilizar entendimento e apoio ao nível das sensibilidades políticas e
ideológicas actualmente mais influentes pode parecer uma perda de tempo. Enquanto

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 315

Desafios.indb 315 3/29/11 4:53 PM


assim acontecer, talvez não seja perda de tempo se o assunto aqui debatido continuar
a ser aprofundar, reunindo evidências persuasivas e sistemáticas, para uma compre-
ensão da realidade moçambicana, na esperança de que novas sensibilidades políticas,
ideológicas e profissionais brotem dos dissensos (ver Nota 9) que estão a emergir.
Quatro questões chave, com implicações teóricas e práticas importantes, me-
recem maior aprofundamento no futuro, com vista a uma ampliação efectiva da
protecção social em Moçambique. As quatro questões estão intimamente ligadas
aos pontos de vista expressos nas secções anteriores.

COMO SÃO TOMADAS AS DECISÕES SOBRE A AMPLIAÇÃO DA PROTECÇÃO


SOCIAL?
As decisões sobre a ampliação de consolidação da protecção social são to-
madas, consciente ou subconscientemente, em função da natureza e do tipo de
instituições ou regras de jogo prevalecentes na sociedade. Enquanto certas deci-
sões reflectem e são influenciadas, de forma consciente e explícita, por abordagens
políticas, ideológicas ou culturais específicas, muitas outras decisões, escolhas e
opções são o resultado de interesses e valores, cuja influência raramente é racio-
nalizada pelos seus actores. Frequentemente, factores determinantes da natureza
demográfica da população, alguns dos quais foram referidos mas não aprofun-
dados neste trabalho, são apreendidos ou aprendidos pelas pessoas, ao longo da
vida, jogando um papel nos comportamentos e atitudes independentemente da
vontade individual das pessoas. Os processos de decisão são, por isso, complexos
e de difícil determinação, visto conjugarem factores objectivos e subjectivos, ma-
nifestados predominantemente de forma implícita e só raramente explicitamente.
A partir de 2007, o Governo Moçambicano tem vindo a aprovar um con-
junto de leis, regulamentos, planos de acção, relevantes para o presente e futuro
da protecção social em Moçambique. No início de 2010 aprovou a proposta de
estratégia nacional de segurança social básica feita em 2009, e em Setembro, re-
agindo aos tumultos populares no início do mês, introduziu subsídios dos preços
supostamente temporários, em resposta à revolta violenta contra o agravamento
do custo de vida nas zonas urbanas (Moçambique, 2007a, 2007b, 2009a, 2009b;
INE, 2009c; Quive, 2007; Recama, 2008).
Estes esforços, alguns dos quais são conjunturais e ad hoc mas outros têm
implicações estruturantes e de longo prazo, têm contribuído para a formação de
um quadro jurídico de protecção social que deixa muito a desejar, quando con-

316 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 316 3/29/11 4:53 PM


siderado no contexto mais amplo da natureza demográfica, económica, social e
organizacional do Estado em Moçambique. É um quadro legal fragmentado e
desarticulado, votado à sua sorte e principalmente dependente da boa vontade de
alguns funcionários públicos voluntariosos e da generosidade dos seus parceiros
internacionais.
A generalidade dos detentores do poder político, governantes e líderes da
oposição mostra-se mais preocupada em ampliar e consolidar o controlo do poder
político do que em compreender e contribuir para uma plataforma institucional
saudável e harmonizadora da diversidade de características da população. Ques-
tões relativas às implicações da actual fase da transição demográfica moçambicana,
seus ónus e bónus para o processo de crescimento e desenvolvimento económico,
incluindo as advertências de estudos académicos sobre previsíveis riscos de tensão
social associados à evolução demográfica, são frequentemente desvalorizadas ou
ignoradas pelos líderes dos partidos. 23

QUAIS OS PRINCIPAIS CONSTRANGIMENTOS INSTITUCIONAIS?


Um dos constrangimentos principais da protecção social diz respeito à ca-
rência de infra-estruturas institucionais e organizacionais, com destaque para in-
fra-estruturas financeiras, capazes de proporcionar uma plataforma de alternativas
efectivas à dependência da ajuda internacional, no processo de transição dos anti-
gos mecanismos de protecção social demográfica para os mecanismos modernos
de protecção social financeira. Uma plataforma que permita superar o paradoxo
que caracteriza o actual sistema de protecção social moçambicano – a generalida-
de da oferta de recursos financeiros em Moçambique concentra-se num conjunto
de entidades financeiras, extremamente limitado, enquanto a maior parte da de-
manda potencial e efectiva da população permanece completamente excluída dos
sistemas financeiros a que recorrem os serviços de segurança e assistência social.
Enquanto nos países avançados da zona Euro os líderes políticos reagem
com preocupação e relutância à possibilidade de terem de recorrer à ajuda in-
ternacional de agências financeiras como o Banco Central Europeu (BCE) e o

23
Não é por acaso que grande parte das políticas e estratégias nacionais - e.g. Agenda 2025,
EDR (Estratégia de Desenvolvimento Rural), 2007; ODMs (Objectivos de Desenvolvimento
do Milénio) - revelam fraca ligação e consistência com os planos de acções nacionais, sectoriais
(e.g. PRSPs (Poverty Reduction Strategy Papers)/PARPA (Plano e Acção para a Redução da
Pobreza Absoluta, PES (Plano Económico e Social) e projectos distritais e locais.

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 317

Desafios.indb 317 3/29/11 4:53 PM


FMI, em Moçambique os governantes nem olham com horror para a hipótese de
os doadores virem a reduzir ou a interromper totalmente a ajuda ao Orçamento
do Estado e sectores prioritários. O Governo Moçambicano mostra-se apostado
numa estratégia pouco, para não dizer nada, preocupada com a falência crónica
económico-financeira em que o Estado Moçambicano se encontra mergulhado há
mais de 25 anos. Exemplo disso, para citar apenas um dos recentes, é fornecido pela
visão expressa pelo Ministério das Finanças (2010) relativamente à sustentabilidade
da dívida pública de Moçambique. Este documento, na sequência de outros que o
antecederam (Ministério das Finanças, 2008), combina pressupostos e indicadores
macroeconómicos da dívida interna e externa e de possíveis novos financiamentos;
simula e compara vários cenários alternativos de sustentabilidade da dívida a longo
prazo, num horizonte temporal compreendido entre o presente e meados do cor-
rente século XXI, com incidência para o período 2010 a 2030. Segundo o Ministério
das Finanças (2010: 16) “A política do Governo no que diz respeito à mobilização de
recursos externos, não privilegia a contratação de créditos não concessionais, neste
contexto o recurso a este tipo de financiamento será opcional”.
Depois da leitura deste importante documento governamental, percebe-se
que o actual Executivo não equaciona um cenário em que se recorra seriamente
aos mercados financeiros, tanto nacionais como internacionais, com vista a inserir
a economia moçambicana na economia internacional, numa perspectiva de via-
bilidade efectiva, segundo critérios de notações de crédito decente, num quadro
institucional atractivo, transparente, inovador e saudável, para merecer a confian-
ça dos investidores. Em outras palavras, o Governo continua mais empenhado em
privilegiar a mobilização de “dinheiro fácil” (donativos e subvenções altamente
concessionadas), com todas as consequências que tal opção estratégica acarreta
para o modelo de desenvolvimento económico e alternativas de protecção social
a ele ligadas.
Não é claro se a opção pela dependência crónica acontece devido à fraca
consciência das suas implicações negativas para o desenvolvimento económico de
longo prazo, ou se é uma escolha consciente dos decisores políticos, mais preocu-
pados em maximizar o controlo do poder político e, tanto quanto for possível, ca-
pacitarem o poder económico dos actuais líderes políticos e governantes. É sabido
que a bancarrota do Estado e da economia nacional não implica necessariamente
que todos os agentes económicos se tornem insolventes. Pelo contrário. Tanto no
tempo da guerra civil como no subsequente período de paz, a situação falimentar

318 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 318 3/29/11 4:53 PM


do Estado e da economia moçambicana sempre proporcionou oportunidades de
acumulação de riqueza a certos grupos de interesses políticos e económicos.
Em Moçambique, os programas públicos de assistência social em curso são
implementados principalmente com recurso à ajuda internacional. Na ausência
de melhor, não há dúvida de que tais programas sociais proporcionam algum alí-
vio a alguns grupos populacionais em necessidade de apoio urgente. No entanto,
mesmo as acções conjunturais de alívio e emergência acabarão por produzir fraco
impacto, se a nível macro e mais amplo a ajuda internacional estrutural servir para
capacitar mais os já detentores do poder político e económico do que os despos-
suídos e mais necessitados de ajuda.

QUAIS AS PRINCIPAIS OPORTUNIDADES INSTITUCIONAIS?


A maior oportunidade para o desenvolvimento de instituições favoráveis ao
progresso tem sido proporcionada pela generosidade da comunidade internacio-
nal, ao doar e prolongar a sua ajuda financeira e técnica a Moçambique. Apesar do
balanço entre os custos e benefícios da ajuda estrutural ser discutível, oportunida-
de não tem faltado. Por quanto tempo e como irá a ajuda internacional continuar
futuramente, não se sabe, mas uma coisa está a tornar-se cada vez mais evidente
– o Governo está profundamente apostado em prolongar ao máximo possível a
ajuda internacional (Ministério das Finanças, 2010).
O estágio actual da transição demográfica em Moçambique, como se refere
ao longo deste trabalho, gera importantes ónus demográficos, devido à debilitante
taxa de dependência da população, mas os bónus poderiam ser maiores se algo
de mais concreto fosse feito nesse sentido. Algo de concreto ao nível das políticas
públicas que contribuíssem para uma sociedade economicamente livre, tanto ao
nível das liberdades negativas como positivas (Francisco, 2010a).
Nas duas secções precedentes, apresentam-se evidências de que o ónus de-
mográfico causado pela elevada taxa de dependência populacional poderá estar
a ser minimizado, a nível rural, pelo facto de as famílias recorrerem ao trabalho
infantil e juvenil. Desconhece-se o valor que representa o valor económico pro-
duzido pelos cerca de 1,3 milhões de crianças e jovens dos sete aos catorze anos
envolvidos na economia de subsistência. De qualquer forma, o facto de este grupo
etário, formalmente em idade pré-laboral, ser maior do que o efectivo total de
trabalhadores assalariados, nos sectores privado e público, justifica que se pense
no que isto representa em termos de protecção social real, ao nível das famílias

Protecção Social Financeira e Demográfica Desafios para Moçambique 2011 319

Desafios.indb 319 3/29/11 4:53 PM


moçambicanas, sem qualquer ligação aos sistemas formais de segurança e assis-
tência social.
Se a transição demográfica avançar rapidamente nas próximas duas décadas,
mais depressa poderá alcançar-se o dividendo demográfico, referido no início des-
te texto. Permanecerá, todavia, a dúvida: será que a sociedade moçambicana está
ou irá preparar-se para tirar o melhor e maior proveito do dividendo demográfico?
Do ponto de vista do pensamento desejoso moçambicano, não só irá, como
tudo está sendo para que depois não se diga que os moçambicanos foram apanha-
dos de surpresa. Em contrapartida, do ponto de vista de um pensamento realista
e crítico, a resposta à dúvida anterior depende do tipo de instituições que preva-
lecerem – progressivas e produtivas ou, pelo contrário, regressivas e extractivas/
predadoras? A experiência passada não oferece motivos encorajadores, entre ou-
tras razões, porque persistiu no passado e continua a persistir uma grande insen-
sibilidade para com as características e consequência da actual fase da transição
demográfica moçambicana. Persiste uma grande indiferença para com as adver-
tências de estudos académicos, por exemplo, as consequências dos constrangi-
mentos institucionais aos efeitos da estrutura etária jovem da população, ao nível
do mercado de emprego e oportunidades de geração de renda, os quais poderão
converter-se em fonte de tensões sociais, em vez de oportunidade de geração de
riqueza e melhoria do padrão de vida da maioria da população (Bloom et al., 2003;
Cincotta et al., 2002; Francisco, 2010c).

ALGUMAS ÁREAS EMERGENTES PARA CONSIDERAÇÃO FUTURA


A ampliação e consolidação da protecção social em Moçambique continu-
arão a ser fortemente condicionadas pela natureza do Estado e da totalidade da
economia nacional do País, mas, não menos importante, pelos factores objecti-
vos referidos desde o início deste trabalho: a composição e a estrutura etária da
população moçambicana, elevada dependência da economia de subsistência, do
trabalho infantil e dos recursos naturais. Além disso, a actual configuração insti-
tucional moçambicana, ao nível político e económico, tem favorecido o desen-
volvimento de formas precárias e predadoras de protecção social, através de me-
canismos de dimensão macro, mas raramente reconhecidos como tal: 1) O papel
da ajuda internacional tornou-se o garante de certas modalidades de segurança
social que beneficiam principalmente os trabalhadores do sector público urbano
e das administrações públicas nas províncias e distritos. Uma segurança precária

320 Desafios para Moçambique 2011 Protecção Social Financeira e Demográfica

Desafios.indb 320 3/29/11 4:53 PM


e de curto prazo, visto depender dos recursos canalizados para a Administração
Pública, beneficiando o efectivo dos funcionários públicos, através de remunera-
ções complementares dos seus salários relativamente baixos; 2) O monopólio do
Estado sobre os direitos de propriedade da terra, supostamente visando evitar
que a população rural fique exposta ao risco de insegurança fundiária, proporcio-
na direitos precários de uso e aproveitamento da terra, num quadro legal contra-
ditório e avesso ao desenvolvimento de um mercado economicamente saudável
e progressivo; 3) A fraca e ineficiente articulação entre as políticas públicas nacio-
nais, as prioridades fixadas pelos doadores e as necessidades do mercado privado
e da sociedade civil em geral.
Todavia, o que Moçambique mais necessita, e por enquanto pouco tem de-
senvolvido, é de um processo de transformação estrutural da economia e dos
mecanismos institucionais fomentadores de sistemas de protecção social viáveis
e sustentáveis, capazes de complementarem e substituírem progressivamente os
mecanismos antigos de PSD. A este nível, o desenvolvimento de mecanismos
modernos de PSF, assentes em sistemas financeiros inclusivos e eficientes deveria
ser uma prioridade, com vista a ampliar a segurança humana mais digna, em ter-
mos de liberdade em relação à carência e ao medo, da prevenção e seguro contra
a insegurança nas diferentes fases do ciclo da vida humana. Neste contexto, as
próprias iniciativas de protecção social poderiam ser convertidas em veículos de
promoção da inclusão institucional, tanto financeira como administrativa.
Se esta perspectiva de protecção social passasse a ser reconhecida pelos faze-
dores de políticas públicas, certamente que as políticas nacionais dar-lhe-iam um
enquadramento mais explícito e prioritário, com clara expressão em termos de
despesas financeiras e fiscais, bem como nas políticas de trabalho, de migração, de
terras e de investimento, entre outras.

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SOCIOCULTURAIS EM MOÇAMBIQUE
NOTAS PARA REFLEXÃO
Sandra Manuel

INTRODUÇÃO

Passaram-se duas décadas após a identificação dos primeiros casos de HIV


e SIDA no país. Até 1992, a guerra civil restringiu a circulação dentro e fora das
fronteiras nacionais. No entanto, o movimento de retorno dos refugiados, assim
como o intensificar da actividade económica e comercial, contribuiu, desde então,
para o rápido aumento dos níveis de prevalência em Moçambique. O novo milé-
nio inaugurou a inclusão do país e da região africana a que este pertence - África
sub-Sahariana - no grupo dos países com os mais elevados índices de HIV e SIDA
no mundo. Neste artigo proponho-me a reflectir sobre a resposta nacional à HIV
e SIDA em Moçambique convidando, particularmente, à reflexão sobre a maneira
como as políticas de HIV e SIDA (concretizadas em forma de planos) reflectem e
interagem com a diversidade das dinâmicas socioculturais do território nacional.
Ao longo dos anos, os planos de controlo de HIV e SIDA vêm estabelecendo
as linhas-chave de acção nacional que definem - particularmente a partir da introdu-
ção do Plano Estratégico Nacional no ano 2000 - os objectivos a atingir no período
de duração do plano, o modelo de operacionalização das actividades e o processo
de monitoria e avaliação das actividades realizadas. Estes planos fazem um levanta-
mento da situação nacional de HIV e SIDA e definem os conceitos a operacionali-
zar. Na minha experiência como antropóloga na área de saúde e sexualidade, dois
conceitos vêm-me chamando a atenção pela forma como são usados no discurso e
na prática concernente à HIV e SIDA: género e tradição. Assim, neste artigo, tenta-
rei trazer ao debate algumas das reflexões que venho realizando com base na minha
experiência como académica e consultora no concernente à interacção entre as po-
líticas de HIV e SIDA e a sua aplicação no terreno, realçando estes dois conceitos.
Em primeiro lugar, apresentarei, de forma abreviada, o estado de situação
de HIV e SIDA no país e uma breve descrição do percurso das políticas de HIV

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e SIDA. Subsequentemente, irei reflectir sobre algumas das nuances criadas en-
tre os posicionamentos políticos e as variáveis socioculturais, especificamente no
referente aos conceitos de género e tradição. A discussão aqui apresentada tem
como base a análise de documentos governamentais, de organizações e parceiros
multilaterais e bilaterais de Moçambique. A reflexão é auxiliada pela literatura
académica da área social que discute aspectos nacionais, africanos e visões globais
sobre HIV e SIDA, política e questões socioculturais associadas ao género e sexu-
alidade. Paralelamente, usarei reflexões provenientes da pesquisa etnográfica por
mim efectuada, tanto a nível rural como urbano, pelo país.

UM OLHAR SOBRE A TRAJECTÓRIA DO HIV E SIDA E SUAS


POLÍTICAS

SIDA é considerado um grave problema de saúde e social em Moçambique,


uma vez que afecta as diversas esferas da sociedade. Em termos de taxas de preva-
lência de HIV, verificou-se um crescimento que na primeira década do século XX
atingiu os 15% da população nacional. No entanto, as dinâmicas de prevalência
nacional, longe de serem homogénea apresentam um padrão de heterogeneidade
nas diferentes províncias e regiões do país. A tabela abaixo ilustra a diversidade da
prevalência de HIV no país num intervalo de dez anos.
Como se pode depreender da tabela, as estatísticas sobre a prevalência de HIV
das rondas epidemiológicas e do INSIDA indicam tendências diferenciadas. Estas
dissemelhanças devem-se ao facto de os estudos usarem metodologias distintas de
recolha de dados. As rondas epidemiológicas são realizadas em mulheres grávidas
através de testagem sequencial de 300 mulheres entre os 15-49 anos de idade durante
a sua primeira consulta pré-natal (INE et al., 2008) Diferentemente, o INSIDA efec-
tuou a recolha de amostras de sangue junto dos inquiridos (tanto homens como mu-
lheres) dos 0 aos 64 anos elegíveis para o inquérito, tendo em vista estimar a preva-
lência da infecção por HIV na população moçambicana em geral (INSIDA, 2010: 1).
No entanto, a relevância da análise enraíza-se no facto de HIV e SIDA se ter tor-
nado um problema e ter sido colocado na agenda não apenas por ser um problema de
saúde e um peso sócio-económico mas também, como sugere Parker (2000), em 1990 a
SIDA já se ter transformado numa indústria com valores económicos, simbólicos e po-
líticos elevados que conseguiam envolver e mobilizar diversos interesses (Parker, 2000).

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TABELA 1 EVOLUÇÃO DAS TAXAS DE PREVALÊNCIA DE HIV E SIDA EM MOÇAMBIQUE

Província Ronda 2000 Ronda 2001 Ronda 2002 Ronda 2004 Ronda 2007 INSIDA 2010
Maputo Cidade 13,5% 15,5% 17,3% 20,7% 23% 16,8%
Maputo Província 14,4% 14,9% 17,4% 20,7% 26% 19,8%
Gaza 12,6% 19,4% 16,4% 19,9% 27% 25,1%
Inhambane 7,8% 7,9% 8,6% 11,7% 12% 8,6%
Zona Sul 12,0% 14,4% 14,8% 18,1% 21% 17,8%
Sofala 20,6% 18,7% 26,5% 26,5% 23% 15,5%
Manica 17,3% 18,8% 19,0% 19,7% 16% 15,3%
Tete 16,3% 16,7% 14,2% 16,6% 13% 7,0%
Zambézia 10,0% 15,4% 12,5% 18,4% 19% 12,6%
Zona Centro 14,4% 16,8% 16,7% 20,4% 18% 12,5%
Niassa 6,2% 5,9% 11,1% 11,1% 8% 3,7%
Nampula 4,8% 7,9% 8,1% 9,2% 8% 4,6%
Cabo Delgado 7,5% 5,0% 7,5% 8,6% 10% 9,4%
Zona Norte 5,7% 6,8% 8,4% 9,3% 9% 5,6%
Nacional 11,0% 12,7% 13,6% 16,2% 16% 11,5%

FONTES INE et al 2008, MISAU & INE 2010

Em termos de políticas nacionais, o ano de 1986 marcou o início de uma pre-


ocupação com o problema em Moçambique quando foi diagnosticado o primeiro
caso de SIDA num médico haitiano que se encontrava no país (CNCS, 2004). A
Organização Mundial da Saúde (OMS) tomou um papel central na coordena-
ção dos esforços da descoberta e combate à epidemia a nível global. Assim, uma
equipa da OMS desloca-se a Moçambique em 1986 e ajuda no diagnóstico do
primeiro caso no país. Em 1987, como resposta à descoberta do primeiro caso de
SIDA, esta equipa da OMS inicia, em coordenacção com o MISAU, a preparação
dos primeiros estudos epidemiológicos sobre a doença (MISAU, 1988). Esta ini-
ciativa enquadra-se no contexto do Global Programme on AIDS/Programa Global
da SIDA de 1986 a 1989 (Mann e Kay, 1991) da OMS. A implementação da estra-
tégia global pela OMS implicava a colaboração deste organismo com os países no
desenho dos planos nacionais de luta contra SIDA que se traduziriam em políticas
de gestão da doença (Mann e Kay, 1991; Matsinhe, 2005).
É no âmbito dos resultados desses estudos, e dando seguimento à estratégia
global de luta contra SIDA da OMS que o MISAU se mobiliza para desenhar o
primeiro programa de combate à HIV e SIDA, sob clara orientação e concepção

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de consultores da OMS - o Plano de Curto Prazo de 1987. Como o nome indica,
este plano foi breve, com a maior parte das actividades realizadas mesmo no ano
de 1987. O objectivo central era a criação de uma estrutura administrativa para a
coordenação das acções. Assim, era imperiosa a contratação de um coordenador
nacional para o Programa Nacional de Combate à SIDA (PNCS) e a sua contra-
-parte da OMS, o envio de material de educação em saúde e um stock de preser-
vativos (MISAU in Matsinhe, 2005: 39).
Em 1988 segue-se o Plano de Médio Prazo que vigora entre 1988 e 1990.
Neste plano, os objectivos centravam-se em identificar a magnitude e progressão da
epidemia, promover medidas para a redução da transmissão por via sexual, através
do sangue, e assegurar o aconselhamento às pessoas diagnosticadas com o HIV
positivo e doentes de SIDA (MISAU, 1988). A questão do tratamento era também
indicada neste plano, embora em termos práticos não fosse efectivada devido ao
estágio geral da epidemia e às dificuldades no concernente ao tratamento.
Nota-se a intervenção marcante da OMS nestes processos, como parte da sua
estratégia de globalização da estrutura de resposta que era orgulhosamente referida
nos seus documentos, que indicavam que, em 1991, cerca de 157 países dispunham de
um plano de combate à SIDA; no entanto, “tal não refere nada sobre os conteúdos,
graus de apropriação e implementação desses planos” (Mastinhe, 2005: 39). Percebe-
-se também que, desde o início do processo de gestão da epidemia, Moçambique já
seguia tendencialmente um modelo importado com carácter top-down, uma vez que
os especialistas, o modelo das políticas a serem implementadas na luta contra a SIDA,
assim como os materiais de educação para saúde e SIDA, eram importados. Tal pro-
cesso reflectia a humildade e a ausência de expertise local na gestão da nova epidemia.
No entanto, como refere Matsinhe, existiam ressalvas que, embora discretas, possuíam
um carácter bastante significativo nas etapas de estruturação da resposta moçambica-
na à SIDA (Matsinhe, 2005), como indica o seguinte posicionamento:

O Governo de Moçambique reconhece que o PNCS é de alta prioridade, mas não deverá
impedir o funcionamento de outros programas sanitários devendo por isso ser promovido
tanto quanto possível nas actividades dos Cuidados Primários (MISAU in Matsinhe, 2005).

Tal pronunciamento demonstra um sentido de manutenção de uma autonomia


a nível político e de organização da estrutura política local. No entanto, em questões
de carácter sociocultural, nota-se um vazio na acção. Este difere de casos considerados
de sucesso na gestão de HIV e SIDA como o Brasil onde, embora a resposta ao SIDA

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estivesse também centrada na OMS, activistas locais tiveram um papel importante
nas primeiras iniciativas de combate à doença, sendo os responsáveis pela primeira
articulação da sociedade civil com os órgãos de saúde para produzir uma resposta
governamental à epidemia (Santos, 2009).
Para a gestão dos programas, foram criadas pelo MISAU a Comissão Nacional
de Combate à SIDA e o Centro de Coordenação da SIDA (CCS). O primeiro tinha
como papel central aconselhar o MISAU na condução de programas de combate à
epidemia e o último deveria gerir a implementação quotidiana do Programa (MISAU,
1988). No processo de combate à epidemia, foram envolvidas as chamadas organiza-
ções democráticas de massas como a Organização dos Trabalhadores de Moçambique
(OTM), a Organização da Mulher Moçambicana (OMM), a Organização da Ju-
ventude Moçambicana (OJM), Grupos Dinamizadores (GDs) reflectindo o ambien-
te político vivido na altura. Os membros dessas organizações receberam formação
como educadores para a SIDA em cada província. Membros das Forças Armadas de
Moçambique foram também treinados pela sua “inserção nas áreas rurais” durante a
época da guerra civil (Matsinhe, 2005). Os “curandeiros” foram igualmente envolvidos
através do “Programa sobre Medicina Tradicional” existente no Instituto Nacional de
Saúde. No entanto, as dinâmicas de poder entre a biomedicina e a medicina tradicio-
nal começam a ser evidenciadas com a adopção, por especialistas da biomedicina, de
uma perspectiva paternalisticamente pedagógica e não de diálogo e trocas, uma vez
que, no processo de interacção entre os dois grupos, os biomédicos tendem a ditar o
que fazer e como fazer aos médicos tradicionais (Green, 1994).
A situação de guerra vivida no país nos primórdios do diagnóstico da SIDA em
Moçambique iluminou algumas especificidades como mostra a avaliação do Plano de
Médio Prazo (1988-1990) que aponta para graves problemas de implementação devi-
do à desestabilização provocada pela guerra. No entanto, outras dificuldades emergem
como mostra Matsinhe na sua análise:

A ideia de que alcançar “mudanças de comportamento” é muito difícil, permeia a reacção


moçambicana contra a SIDA em todas as suas etapas. E é recorrentemente invocada ao
longo das intervenções dos diferentes actores, em diferentes tons e com diferentes subter-
fúgios, até como forma de demonstrar frustração e impotência, a despeito dos programas
considerados aperfeiçoados, e zelosamente implementados, … mas sem aparentemente
produzir os desejados efeitos de influenciar comportamentos, sistematicamente monitora-
dos através de números, aos quais o país se apegou e olha como sinónimo do sucesso ou
fracasso das suas campanhas de informação e educação (Matsinhe, 2005: 45).

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Segundo a análise de Matsinhe percebe-se, desde muito cedo, no processo
de planificação e controlo da epidemia, que a mudança de comportamentos é uma
meta difícil de atingir, embora se insista na concretização de tal mudança como
medida de sucesso.
Ainda no Plano de Médio Prazo (1988 – 1990), na conjuntura social da epi-
demia, os deslocados de guerra passam a ser percebidos como os principais pro-
pagadores do vírus devido a uma tendência de promiscuidade.
No ano de 1992 entra em vigor o que foi designado como a 3a fase do Pla-
no de Médio Prazo, dando continuidade aos dois precedentes. Nesta, dá-se mais
ênfase ao preservativo. O foco está na concentração de esforços para que a sua
distribuição entre numa fase mais dinâmica, surgindo assim a necessidade de dese-
nhar uma estratégia de marketing e melhorar a rede de distribuição (MISAU, 1992:
14). Para implementar a estratégia de marketing social do preservativo, o MISAU
contratou a Population Service International (PSI), com fundos disponibilizados
pela Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID). As ac-
tividades do PSI iniciaram-se em três cidades e estenderam-se posteriormente
para todas as províncias do país, com particular destaque para a maior parte dos
distritos (Matsinhe, 2005).
No contexto de paz que o país passou a viver após os Acordos de Paz de
1992, o Programa Nacional de Combate à SIDA (PNCS) trabalha no sentido
de alargar o programa a todas as províncias e distritos. As principais actividades
visavam a formação de pessoal de saúde na detecção e tratamento de doenças de
transmissão sexual (DTS), estabelecimento de sistemas de vigilância epidemioló-
gica e actividades de informação, educação e comunicação.
Em 1995 assiste-se à fusão do Programa Nacional de Combate à SIDA e o
Programa Nacional de Controlo de DTS, formando o Programa Nacional de Con-
trolo de DTSs/HIV-SIDA, com financiamento maioritário da Comunidade Euro-
peia. As principais áreas de acção passam a incluir: Gestão, Informação, Educação
e Comunicação, Vigilância Epidemiológica, Apoio Laboratorial, Aconselhamento
e Cuidado de Doentes e Marketing Social do Preservativo (Matsinhe, 2005).
Em 1996 foi criada a UNAIDS que passou a assumir a resposta ao HIV e
SIDA, antes coordenada pela OMS. Em 1999 o Banco Mundial lança o modelo
Plano Estratégico Ideal que preceitua que a luta contra o HIV e SIDA deve come-
çar no nível mais alto de liderança política. E, por essa razão, os países deveriam
nomear uma comissão multi-sectorial de trabalho que englobasse representantes

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dos variados ministérios, líderes religiosos e culturais, sociedade civil, pessoas com
HIV/SIDA, grupos de mulheres e jovens, organizações não governamentais, or-
ganismos de base comunitária, sector privado, entre outros. É neste cenário que
no ano 2000 é criado o Conselho Nacional do Combate ao HIV-SIDA seguindo
a directiva do Banco Mundial de criação do National Aids Council (CNCS) e de
um plano estratégico nacional – guia para acção e mudança..
Na filosofia trazida com a entrada da UNAIDS e pelo Banco Mundial, nota-
-se a ênfase na expansão da resposta multi-sectorial que se reflecte nos objectivos
centrais do primeiro Plano Estratégico Nacional de Combate ao HIV e SIDA
- PEN I (2000-2002): reduzir a propagação das infecções de HIV e mitigar os
efeitos da epidemia através de uma perspectiva resposta multi-sectorial com foco
em acções de prevenção (UNAIDS, 2008). Nesta perspectiva, seguindo os ditames
do Banco Mundial e das agências das Nações Unidas responsáveis pela gestão da
epidemia, o HIV e SIDA foi integrado (‘mainstreamed’) na maior parte das estru-
turas que definem a política nacional como o Plano de Acção para a Redução da
Pobreza Absoluta 2006-2009 (PARPA II); vários Ministérios elaboraram planos de
combate à epidemia.
O PEN II (2005-2009) representa a segunda geração do delinear da estraté-
gia de acção e preconiza a promoção das intervenções com vista a reduzir o nível
de infecção e o aumento dos cuidados e tratamento das pessoas vivendo com HIV
e a participação de todos os beneficiários no processo de mitigação. Entre os al-
cances do PEN II destacam-se o alargamento do aconselhamento e testagem em
unidades sanitárias; a expansão dos serviços de prevenção de transmissão vertical
e tratamento anti-retroviral, embora ainda não se tenham atingido as metas de-
sejadas. Parte das limitações devem-se à escassez de recursos humanos em quan-
tidade e qualidade; elevado nível de estigma e discriminação que previnem ou
limitam as mulheres grávidas de utilizarem os serviços existentes para o tratamen-
to e a prevenção da transmissão vertical; perdas de oportunidade de seguimento
de mulheres e crianças expostas devido ao estigma e discriminação, combinado à
insuficiência de recursos humanos para a busca activa das utentes que abandonam
os serviços e fraco envolvimento das famílias e comunidades (CNCS, 2010).
O recentemente aprovado PEN III (2010 – 2014) aposta em cobrir as lacu-
nas do plano precedente e dar prosseguimento à redução do risco e vulnerabilida-
de à HIV e SIDA; prevenção; tratamento e cuidados; e mitigação do impacto. Este
plano define sete princípios orientadores. Alguns destes merecem destaque para a

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reflexão aqui efectuada por proporem uma visão inovadora a aspectos que discu-
tirei na secção seguinte. O ‘princípio de orientação para resultados inspirado nas
evidências’, e o ‘princípio da moçambicanização da reposta’ são alguns exemplos.

CHOQUES E DILEMAS ENTRE AS POLÍTICAS E A REALIDADE


SÓCIO-CULTURAL

Na análise das abordagens de controlo de HIV e SIDA no país verifica-se


que as medidas e linhas orientadoras da acção partem de perspectivas teóricas,
métodos, modelos de aplicação e técnicas provenientes de centros académicos
internacionais, organizações das Nações Unidas ou de governos nacionais que
não encontram, necessariamente, referentes idênticos a nível local. Embora a co-
laboração com entidades e perspectivas universais seja salutar, o ignorar ou a não
tomada de consideração das dinâmicas locais pode revelar-se problemática.
Em alguns aspectos, a perspectiva adoptada no controlo de HIV e SIDA a
nível nacional apresenta problemas resultantes, a meu ver, da falta de tomada de
consideração de lógicas locais ou da não harmonização dos conceitos e políticas
a tais quadros/referências. Nesta secção, irei olhar para dois conceitos - género e
tradição - que tendem a não estar a ser operacionalizados de forma ajustada às
realidades socioculturais nacionais.

GÉNERO NO CONTEXTO DO HIV E SIDA


O uso do conceito ‘género’ nos planos e acções concernentes ao controlo e mi-
tigação dos efeitos de HIV e SIDA em Moçambique merece aqui destaque devido às
nuances que apresenta. No entanto, antes de explorar tais nuances, penso ser neces-
sária uma breve discussão sobre o conceito, uma vez que algumas das contradições
no seu uso nas políticas e actividades a nível nacional derivam, na minha análise, dos
diferentes posicionamentos teóricos presentes na sua conceptualização.
Género, comummente usado como uma categoria gramatical, ganhou uma
nova terminologia nas Ciências Sociais, com a distinção entre sexo biológico e
papéis de género efectuada pelo sexólogo Money em 1955. A diferenciação entre
sexo e género alastrou-se para as mais diversas áreas das Ciências Humanas na dé-
cada de 1970 quando feministas se basearam em dados resultantes de cruzamentos
culturais provenientes de estudos antropológicos para estabelecer a variedade do

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género e dos papéis de género e assim providenciar a base de sustentação para a
posição feminista de que género seria uma construção social e não um determinis-
mo biológico (Moore, 1994). Género como construção social significa que cada
sociedade atribui a cada sexo características resultantes das ideias acerca do com-
portamento, papéis sociais e acções. Género passou então a ser entendido como
a elaboração cultural dos significados dos factos naturais das diferenças biológicas
entre homem e mulher (Moore, 1999).
Diferentemente, Butler (1993) olha para o sexo não como apenas algo que
os indivíduos possuem ou uma descrição estática do que alguém é, mas uma das
normas pela qual o indivíduo se torna reconhecido pelos outros; uma norma que
qualifica um corpo dentro do domínio da inteligibilidade cultural (Butler, 1993:
2). Género, para Butler, é a construção social discursiva de sexo (Butler, 1993).
Ainda no mesmo debate, a posição dos teóricos queer1, que ao invés de olharem
para o binómio homem - mulher como fazem os teóricos feministas centralizam
a sua elaboração no binómio homossexualidade - heterossexualidade, e afirmam
que não existe necessidade de um conceito de género. Eles argumentam assim,
baseados na re-conceptualização de género como um processo (no sentido que os
indivíduos encenam, em diferentes momentos, diferentes identidades de género) e
não uma categoria essencializada (que o indivíduo nasce ou adquire infinitamente
uma identidade de género imutável), estando o foco na acção do género em vez
da essência fixa do conceito (Vance, 1991; Moore, 1999).
Ao olhar para esta breve resenha sobre o debate teórico do conceito de
género, percebe-se que este conceito é percebido de diversas maneiras mas, que
de forma central este é definido a partir da influência sociocultural sobre o corpo
(biológico) dos indivíduos nas diferentes sociedades onde estes estão inseridos.
A questão que se coloca, no entanto, é que encontramos universalmente uma
multiplicidade de valores, lógicas e dinâmicas sociais. Consequentemente, a forma
como o género é vivido, como os papéis de género são vivenciados e representa-
dos em diferentes sociedades e comunidades (inclusive dentro das mesmas fron-
teiras nacionais) é diversificada.
No entanto, como afirma Hawkesworth, visões feministas de género que erra-
damente assumiram e sugeriram papéis universais e invariáveis de género, ignoran-

1
O termo queer refere-se aos grupos de minorias sexuais e identidades de género que se distanciam
da heteronormatividade (tendência que naturaliza a heterossexualidade e a elege como norma
social).

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do as especificidades culturais, raciais, de classe e etnicidade (1994: 680), ganharam
espaço no desenho de políticas públicas um pouco por todo o mundo. Uma das
assumpções marcantes desta perspectiva é a posição social inferior da mulher.
No contexto moçambicano, a limitação de estudos sociológicos informativos
sobre as diferentes dinâmicas nas relações de género no âmbito público e privado
deixou alguns vazios que, de forma generalizada, foram preenchidos com a noção
de subordinação da mulher e do poder masculino, como se pode verificar por
exemplo no PEN II, PARPA II, entre outros documentos governamentais. Mais
adiante, discutirei exemplos específicos sobre estas dinâmicas de género no PEN II.
Embora seja verdade que o contexto sócio-cultural e económico de comu-
nidades específicas no país relega, de forma dinâmica (e não fixa e irreversível),
um estatuto inferior às mulheres (e igualmente a homens) em determinada faixa
etária, estado civil, situação ritual2, entre outras, observa-se uma tendência à gene-
ralização da posição da mulher nas políticas, neste caso concreto relacionadas ao
combate de HIV e SIDA. O Plano Estratégico Nacional para o combate de HIV e
SIDA 2005 - 2009 (PEN II) refere, por exemplo, que:

O fenómeno da sexualidade e o seu exercício, para além de diferenciado em função dos


lugares e de vivências temporais, obedece fundamentalmente a critérios de género. Com
efeito, embora a sexualidade seja geralmente entendida como um fenómeno que tanto
diz respeito aos homens quanto às mulheres, é percebida de maneira diferenciada, em
função dos papéis sociais de género. O indivíduo é investido, desde o nascimento, em
razão do seu sexo, pelas representações e pelas normas que definem o lugar do seu sexo
na sociedade. Assim, entende-se que há uma sexualidade eminentemente masculina e
uma sexualidade eminentemente feminina. Por isso, a sexualidade é um recurso do poder
e de força. Em Moçambique, como acontece em muitos países da África Sub-Sahariana, a
sexualidade é um direito do homem. Determinar quantos filhos terá o casal, decidir sobre
quando, como e onde ter sexo, entre outros aspectos, está no quadro dos seus direitos. À
mulher cabe um papel passivo (CNCS, 2004: 34).

Este parágrafo, que possuí as linhas orientadoras para o entendimento e apli-


cação de políticas de controlo de HIV e SIDA com base na sensibilidade de gé-
nero, apoia-se em pressupostos que não correspondem à totalidade do universo
moçambicano. Senão vejamos: em contextos rurais e matrilineares do norte de
Moçambique, por exemplo, aspectos relacionados com o poder e com a sexua-
lidade emergem de forma diferente da evidenciada no parágrafo. Aqui, a profi-

2
Indivíduos que não tenham passado por determinado ritual (por exemplo ritual de iniciação)
podem perder regalias e estatuto social.

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ciência sexual é uma arte das mulheres sob o domínio das mulheres idosas que
transmitem às mais jovens (Arnfred, 2007). Assim, no campo sexual, em regiões
do norte do país, os homens são progenitores e as mulheres sedutoras. Espera-se
que as mulheres jovens dominem as artes eróticas e, em troca do seu papel como
progenitores, os homens têm o direito de esperar que as suas esposas os seduzam
e lhes providenciem prazer sexual (Geffray, 2000). Assim, a mulher possui aqui
um papel sexual activo pois é ela quem inicia e escolhe o momento para efectuar
o acto sexual através da sedução e do uso das técnicas e artes sexuais que adquiriu
nos ritos de iniciação. A função do homem é a de depositar o sémen que irá gerar
descendentes que irão garantir a reprodução social do nihimo (clã matrilinear dos
Macua, unidade de pertença) da esposa.
Ainda para dar exemplo da fluidez e mobilidade das identidades de género,
na minha pesquisa etnográfica em zonas rurais da província de Gaza, entrei em
contacto com indivíduos que, no modelo binário de género, seriam considerados
mulheres, mas assumiam papéis de género masculino. Estas eram assim tratadas
nas suas comunidades pois haviam pago o lobolo (dote da noiva) de outras mulhe-
res. Tais casos aconteciam quando falecia uma mulher com a qual o seu marido
(também já falecido) havia gerado filhos e a família deste se recusava ou não
possuía recursos para pagar o lobolo antes do enterro da recém-falecida. Assim,
a viúva (em alguns casos) pagava o lobolo. Nestes casos, esta mulher adquiria a
identidade e o papel social masculino. Como classificar então tal identidade no
binómio de género e em termos de sexualidade?
Outros exemplos de África mostram que a lógica de dominação de géne-
ro sob o binómio homem-mulher não é necessariamente endógeno. Oyewùmí
(1997), ao descrever as relações pré coloniais em Yorubaland, mostra como a
gerontocracia era marcadamente um fenómeno de distinção nas relações so-
ciais, e como a mulher biológica não é a priori dominada pelo homem biológico.
Amadiume (1987) refere-se a filhas masculinas e maridos femininos no contexto
Igbo, na região oriental da Nigéria, para mostrar que os papéis e identidades
de género não recaem necessariamente sobre o sexo biológico do indivíduo.
Por outras palavras, mulheres biológicas podem assumir papéis e identidades de
género associados, nas suas sociedades, ao masculino e vice-versa. Estas flexibi-
lidades traçam um quadro complexo de relações sociais, sexuais e económicas
no contexto Africano que questionam a simplicidade do modelo dualista de
homem e mulher.

HIV e SIDA e Dinâmicas Socioculturais Desafios para Moçambique 2011 343

Desafios.indb 343 3/29/11 4:54 PM


As percepções de género usadas nas políticas de HIV e SIDA cegam parte
das especificidades e a diversidade de dinâmicas existentes no país (como as
acima descritas). O ponto de partida é que as sociedades se estruturam de di-
versas formas e a norma numa sociedade não é necessariamente a mesma em
outras sociedades. No contexto ocidental, o género assenta-se de forma gene-
ralizada no binómio homem e mulher onde o poder é atribuído ao homem. Ser
homem confere poder num contexto em que as famílias se estruturam em torno
de um homem e de uma mulher. Nesse contexto, o sexo estrutura as relações
sociais. Em outros contextos como Yoruba, Igbo e muitos outros, incluindo
Moçambique, senioridade e gerontocracia estruturam as relações sociais. Aqui,
as famílias estruturam-se em torno de um homem, uma mulher, sogras, sogros,
cunhadas e cunhados. Aqui o poder estrutura-se com base em outros arranjos
que não exclusivamente o sexo. Assim, neste contexto,- género difere de sexo.
Tal facto não é reflectido nos diversos instantes em que políticas e documentos
governamentais, e não só, usam o termo “género” para identificar sexo. Mais
ainda, se homens e mulheres biológicos podem adquirir de forma fluida iden-
tidades e papéis de género masculinos, femininos, inter-género, trans-género,
queers (Nestle, Howel e Wilchins, 2002) parece-me que o uso do conceito gé-
nero para significar sexo (como acontece no PEN II) fixa a diversidade e fluidez
das identidades existentes.
Um exemplo empírico elucidativo da falta de clareza em relação ao significado
do conceito de género observa-se na contradição entre as concepções de género nos
documentos oficiais e nos programas implementados ao nível da comunidade. O
PEN II evidencia a necessidade de perceber a dimensão social das relações sexuais
entre homens e mulheres e a necessidade de agir no sentido de transformar estas re-
lações de género. O documento patenteia também as dinâmicas de vulnerabilidade
ao HIV entre as mulheres. No entanto, quando estas directrizes chegam aos imple-
mentadores de projectos de desenvolvimento comunitário, como mostram Vilella,
Barber e Madder (2010), verifica-se que o conceito de género e a vulnerabilidade
da mulher transformam-se em acções de mitigação das condições de pobreza das
viúvas e órfãos vivendo com HIV e SIDA. Significa então que a prioridade não é
alocada à análise dos padrões de relacionamento entre homens e mulheres ou dos
moldes em que a sexualidade é vivida, especialmente se tal reflexão não irá oferecer
alternativas imediatas para uma vida quotidiana mais acessível. Os projectos ten-
dem, então, a centrar-se na mitigação do impacto da epidemia, disseminando a ideia

344 Desafios para Moçambique 2011 HIV e SIDA e Dinâmicas Socioculturais

Desafios.indb 344 3/29/11 4:54 PM


de que o HIV é um vírus evitável e que as pessoas infectadas devem ser acolhidas. As
mensagens não alcançam o tópico da sexualidade ou as diferenças de poder entre
homens e mulheres e as actividades não deixam nenhum legado talhado para cada
um dos géneros (Vilella, Barber e Madder, 2010: 697).
A minha experiência de pesquisa e consultoria com diversas instituições e
organizações que implementam políticas de género no contexto de HIV e SIDA
revelou a existência de um elevado número de contradições e incongruências na
compreensão e implementação do conceito de género. Desde entrevistas, em que
os representantes de organizações, ao responder até que ponto as suas activi-
dades eram sensíveis às dinâmicas de género, identificavam e contavam quantas
mulheres existiam em cada sector para mostrar tal sensibilidade. Outro aspecto
marcante é que, embora o género seja nas políticas identificado como concernente
a homens e mulheres, na maior parte das acções práticas, o género é equivalente a
mulher. E, em algumas das acções com vista à mitigação das desigualdades de gé-
nero, esta mulher é muitas vezes percebida de forma desenraizada da estrutura so-
cial, familiar e cultural a que pertence, através de acções que apenas se centralizam
na mulher e ignoram todos os outros indivíduos com os quais esta socializa. Uma
das consequências de tal visão de género é que, na operacionalização do PEN
II, por exemplo, muita atenção encontra-se focalizada em mulheres seropositivas
em detrimento de casais seronegativos com potencial de melhorar a prevenção, e
verifica-se o fraco envolvimento de homens (CNCS, 2010).
O mais recente Plano Estratégico de combate à HIV e SIDA, PEN III (2010-
2014), apresenta avanços com visões mais holísticas sobre o conceito de género.
Neste plano, ficam claros os esforços de diferenciar género e mulher. Depois de
reconhecidos os desafios práticos – dificuldade de atingir e envolver homens nas
actividades de resposta à SIDA – tanto o PEN III como o Plano de Acção Sobre
Género e HIV e SIDA (2009/15) assumem que género não é só mulher. Nos
últimos tempos, as estratégias e intervenções vêm assumindo publicamente as
consequências do ignorar o homem. Esta constitui uma viragem na colocação da
abordagem sobre o género. A título de exemplo, as várias campanhas de comuni-
cação multimédia sobre a violência doméstica conjugal e Múltiplos Parceiros Con-
correntes (MCPs) são concebidos no sentido de dialogar com alguns estereótipos
sobre a masculinidade que estão por detrás das dificuldades que as intervenções
encontram no terreno.

HIV e SIDA e Dinâmicas Socioculturais Desafios para Moçambique 2011 345

Desafios.indb 345 3/29/11 4:54 PM


“TRADIÇÃO”: OS PERIGOS DO SEU USO COMO RECURSO APELATIVO PARA
EXPLICAR O HIV E SIDA NA ÁFRICA SUB-SAHARIANA
As diversas vagas explicativas para o facto de os níveis de HIV e SIDA se
mostrarem bastante elevados na região sub-Sahariana muitas vezes associam-se às
dinâmicas sócio-sexuais e às lógicas locais “tradicionais”. O termo “tradição” carrega
significados múltiplos nas suas diversas aplicações. No contexto moçambicano, as-
sociado ao desenho de políticas sobre o HIV e SIDA, o conceito “tradição” é usado
para identificar determinadas práticas, percepções e lógicas inscritas nas dinâmicas
históricas com carácter regional, comunitário e/ou familiar. Assim, o entendimento
de “tradição” (e, por conseguinte, “modernidade”) neste artigo tende ao sentido de
construto discursivo e histórico em vez de factos objectivamente identificáveis, daí
o uso de aspas. Como explica Passador, “por causa do contexto histórico, os termos
‘tradição’ e ‘modernidade’, mais do que conceitos analíticos do debate académico
e político, ou mais do que valores morais exógenos, se tornaram categorias émicas
presentes no discurso quotidiano e no senso comum” (Passador, 2009: 688).
Em Moçambique, o enfoque no conceito de “tradição” nas discussões e po-
líticas públicas de prevenção e controlo do HIV e da mitigação da SIDA emerge
de dois contextos distintos. Por um lado, internamente e de forma diacrónica, o
debate sobre a ‘tradição’ sempre esteve presente discutindo-se a sua capacidade
em influenciar negativamente os projectos coloniais, os ideais de modernização
pós–independência e o seu papel no fomento da guerra civil. Este debate estende-
-se para a discussão e actividades relacionadas com HIV e SIDA com o empenho
das instituições do governo e agências não governamentais sobre o papel do pa-
rentesco, as percepções e relações de género, sexualidade, rituais de purificação e
passagem nos diferentes grupos etno-linguísticos3, e a insistência das populações
no uso da medicina tradicional. A identificação de tais factores conduz a acções de
incentivo à mudança de comportamento, com base na crença de que as dinâmicas
acima mencionadas e associadas à tradição têm a capacidade de contribuir negati-
vamente para a prevenção do HIV e SIDA. As acções traduzem-se em campanhas
a favor da igualdade de género, especialmente na negociação sexual; consciencia-

3
A tradição refere-se a dinâmicas diferentes dos valores ocidentais. Assim, a divisão de papéis
masculinos e femininos na família, na ocupação dos espaços público e privado onde se percebe a
mulher como submissa e o homem como dominador; o marido (chefe da família) como decisor
da fertilidade e sexualidade da mulher são exemplos do que se considera tradição no referente ao
parentesco e relações de género, sexualidade.

346 Desafios para Moçambique 2011 HIV e SIDA e Dinâmicas Socioculturais

Desafios.indb 346 3/29/11 4:54 PM


lização dos benefícios da bio-medicina e integração da medicina tradicional nas
campanhas de prevenção e tratamento de HIV e SIDA, entre outros.
Por outro lado, verifica-se nas pesquisas e políticas de saúde pública, prove-
nientes de doadores e parceiros internacionais, a identificação em práticas asso-
ciadas ao universo da “tradição” factores que aumentam o nível de vulnerabilidade
à HIV e SIDA, especificamente na região Austral de África. Assim, por exemplo,
Morris e Kretzschmar (1997) argumentam, com base na sua pesquisa na região,
que a existência de parceiros sexuais concorrentes ou simultâneos (concurrent se-
xual partnerships), uma herança das lógicas de poligamia comum nesta região de
África, representa mais um factor da rápida expansão, pois traduz-se na sobrepo-
sição de parceiros ao longo do tempo. Segundo os autores, esta prática acoplada
ao uso inconsistente, insuficiente e incorrecto do preservativo, e associado aos
baixos níveis de circuncisão, constitui o motor da epidemia na região (Morris e
Kretzschmar, 1997). Estas visões são materializadas em acções, financiamentos e
actividades de prevenção e controlo do HIV e SIDA. Por exemplo, a insistência
no modelo de prevenção ABC (Abstinence, Be Faitful, and Condomise) e o plano
PEPFAR (um dos mais elevados orçamentos para a prevenção do HIV e SIDA na
região) que prioriza AB, decorre de perspectivas semelhantes à apresentada, que
me parecem forçar uma cosmologia de vida que não incorpora ou funciona em
parceria com a actual existente.
Parte das dificuldades levantadas na ênfase dada à “tradição” na análise e
implementação de políticas e actividades inclui uma excessiva carga negativa rele-
gada ao modus-vivendi da população em causa. Uma das consequências é que, por
melhor que sejam as intenções, estas intervenções tendem a criar desconfiança e
descontentamento na população alvo, uma vez que esta sente que as suas crenças,
os seus valores e as lógicas que definem o seu ser e um contexto social harmonioso
estão a ser desrespeitados. Algumas falhas em programas desenvolvidos (tanto
para o controlo de HIV e SIDA como em programas de desenvolvimento em
geral) podem estar associadas a este tipo de visão e acção, o que corrobora com a
perspectiva de Crewe e Harrison (1999) que identificam na fraca compreensão das
realidades no terreno uma das maiores falhas e motivo de desperdício de fundos
das iniciativas de desenvolvimento internacional.
Simultaneamente, nota-se que algumas perspectivas tendem a seguir um mo-
delo analítico simplista e reducionista que elimina as complexas estruturas sciocul-
turais e seus significados. Um exemplo paradigmático é a teorização das relações

HIV e SIDA e Dinâmicas Socioculturais Desafios para Moçambique 2011 347

Desafios.indb 347 3/29/11 4:54 PM


múltiplas e concorrentes (multiple and concurrent relationships – MCP). As MCP
foram identificadas como a causa primária dos elevados níveis de prevalência de
HIV na região Austral de África (Morris e Kretzschmar, 1997). No entanto, a ex-
plicação do porquê desta prática ser frequente e o entendimento teórico da mes-
ma no discurso dominante segue uma tendência de análise minimalista (por não
colocar o indivíduo no contexto em que vive e os significados das suas práticas) e
moralista. Centrado no ego, o conceito assume que

(...) os indivíduos agem por escolha e podem optar por ter relações sexuais com um parceiro
único (fiel e monógamo) ou múltiplos parceiros (promíscuo), como pessoas informadas (sen-
síveis) ou sem informação (ignorantes) tomando decisões de risco (irresponsáveis) ou seguras
(responsáveis) baseadas no prazer (irracional) ou no amor (racional) (Thornton, 2009: 2).

Esta leitura ignora a estrutura onde os indivíduos se inserem e desenvolvem


as suas acções. Um entendimento holístico das redes sexuais numa escala social
mais alargada, como o efectuado por Thornton (2009), permite perceber que, no
contexto da África Austral, apesar da diversidade linguística e cultural existente,
um dos motivos centrais para as ligações sexuais com múltiplos parceiros é o de

(...) ampliar o tamanho e diversidade das redes sexuais e sociais do indivíduo e, por con-
sequência, aumentar o capital social ... que por conseguinte garante aos indivíduos maior
e melhor acesso a bens económicos e sociais. [Assim], os indivíduos que se encontram
nos pontos mais instáveis e com menos conexões na rede sexual são os mais activos na
construção das suas redes sexuais (Thornton, 2009: 1).

Ao ignorar as determinantes estruturais acima descritas e concentrar-se ex-


clusivamente numa análise centrada no actor/indivíduo, ofuscam-se aspectos cru-
ciais das lógicas de interacção, parentesco, sociabilidade, capital social e económi-
co vigente na cosmologia local. Tal leitura simplista pode entrar no equívoco de
banalizar as práticas por desconhecer os significados e contornos alargados (acima
elucidados por Thornton) em que estas se inserem. Podem advir de tais posiciona-
mentos, atitudes condescendentes e de exotização da expressão da sexualidade em
diversos espaços no continente africano que podem levar ao renascer de discursos
coloniais e arrogantes de promiscuidade, irracionalidade sexual (Arnfred, 2004) e,
como consequência, uma tentativa de sanitizar e, de forma ditatorial, alocar mo-
delos exógenos às cosmologias vigentes.
Neste sentido, levanto algumas perguntas e desafios à maneira como a tra-
dição é negativamente lida e analisada no contexto de planificação do controlo

348 Desafios para Moçambique 2011 HIV e SIDA e Dinâmicas Socioculturais

Desafios.indb 348 3/29/11 4:54 PM


de HIV e SIDA. O primeiro refere-se à lógica e estratégia usada: porquê forçar as
lógicas locais à mudança de modo que incorpore modelos importados sem que
esta internamente tenha mostrado interesse em seguir tal transformação?
Em segundo plano, onde colocámos aspectos positivos do universo da “tra-
dição” no controlo de HIV e SIDA? E onde encaixar as dinâmicas da “modernida-
de” e a sua influência neste processo?

EM JEITO DE CONCLUSÃO...

A trajectória das políticas de HIV e SIDA é fortemente marcada pela influ-


ência de perspectivas e sugestão de modos de modelos de acção exógenos exter-
nos. Neste processo, as políticas e estratégias pecam pela ausência de um carácter
criativo e inovador para responder às especificidades sócio-culturais dentro da
diversidade em que Moçambique se constitui.
Em grande medida, o arcabouço de medidas políticas de gestão da epidemia
apresenta etapas sucessivas caracterizadas por uma mescla complexa e multiface-
tada de propostas de estratégias colocadas à disposição do país tanto pelos pólos
internacionais de produção e disseminação de informação e conhecimento sobre
a SIDA, quanto pelos principais intérpretes e guardiões institucionais dos assuntos
relativos à SIDA em Moçambique (Matsinhe, 2005). Verificam-se então falácias
nas iniciativas de prevenção e gestão de HIV e SIDA caracterizadas pela importa-
ção de modelos que em alguns aspectos apresentam dificuldades em absorver as
especificidades de cada contexto específico, tendo em conta as dinâmicas dos seus
sistemas socioculturais.
É louvável o facto de que o mais recente plano PEN III (2010-2014) apre-
sente linhas orientadoras que guiam para uma moçambicanização da resposta. A
nível do documento escrito, o PEN III levanta visões inovadoras que prevêem en-
trelaçar de forma harmoniosa as políticas aos sistema sócio-económicos e cultu-
rais das populações em causa. Este é um passo crucial e o desafio que se estabelece
é o de garantir que, a nível prático, tais ambições se concretizem.

HIV e SIDA e Dinâmicas Socioculturais Desafios para Moçambique 2011 349

Desafios.indb 349 3/29/11 4:54 PM


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350 Desafios para Moçambique 2011 HIV e SIDA e Dinâmicas Socioculturais

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HIV e SIDA e Dinâmicas Socioculturais Desafios para Moçambique 2011 351

Desafios.indb 351 3/29/11 4:54 PM


Desafios.indb 352 3/29/11 4:54 PM
PARTE IV
MOÇAMBIQUE NO
MUNDO

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Desafios.indb 354 3/29/11 4:54 PM
SADC
COOPERAÇÃO E SEGURANÇA PÚBLICA1
João Paulo Borges Coelho

INTRODUÇÃO

A cooperação em segurança pública na SADC tem merecido uma atenção


relativamente modesta, quer das autoridades regionais quer da comunidade aca-
démica. É difícil pesquisar questões ligadas ao crime e aos dispositivos institucio-
nais para o enfrentar, áreas que actualmente se podem revestir de grande sensi-
bilidade e complexidade, além de que se sente sempre rondando uma herança
de anteriores regimes traduzida na desconfiança e na resistência à mudança. Em
parte, esta situação deve-se também à “atribulada história política, social e econó-
mica dos Estados-membros” (Klipin e Harrison, 2003: 2), que levou à necessidade
de atribuir mais importância e prioridade à cooperação política e económica e
à construção de uma arquitectura de segurança militar como elementos de base
para a manutenção da paz. Todavia, são cada vez mais claros os sinais do impacto
negativo que tem a insegurança na concretização dos objectivos principais da
SADC, nomeadamente o desenvolvimento económico, a consolidação da demo-
cracia e o bem-estar dos seus cidadãos. Consequentemente, é previsível que as
questões da segurança pública venham a adquirir uma importância cada vez maior
nas preocupações das sociedades e na agenda da segurança colectiva.
Este texto tenta explorar algumas dimensões do desenvolvimento, estado
actual e perspectivas da cooperação em segurança pública no quadro da SADC,
em particular no âmbito policial. Começa por estabelecer o contexto de tal discus-
são, considerando a região como um conjunto complexo de países em transição,
onde o crime adquire características diferenciadas mas cada vez mais graves, a
exigir respostas mais claras e vigorosas. Em seguida, são consideradas as prin-
cipais perspectivas, dispositivos institucionais e actores centrais da cooperação

1
Uma versão anterior deste texto foi publicada como “Public Safety Dimensions of Security
Cooperation in the Southern Africa Development Community, in JM Kaunda (ed), Proceedings
of the 2006 FOPRISA Annual Conference, Gaborone: Lightbooks, 2007.

SADC Desafios para Moçambique 2011 355

Desafios.indb 355 3/29/11 4:54 PM


regional. Após a análise dos principais obstáculos na resposta a este problema, o
texto conclui com uma discussão dos desafios que se vão colocar à cooperação em
segurança pública no futuro.

CONTEXTO
A ÁFRICA AUSTRAL EM TRANSIÇÃO
Presentemente, a África Austral é talvez a região mais coerente e integrada
da África sub-sahariana (McGowan, 2006: 301). Por detrás desta realidade está
uma cultura partilhada de libertação, originada na luta contra o colonialismo e o
apartheid, mas também a coerência histórica de países que partilham a condição
de satélites económicos da África do Sul e, finalmente, o facto de que todos eles,
de formas desiguais mas paralelas, experimentam transições democráticas.
Em termos políticos, tais transições envolvem a substituição dos antigos regi-
mes autoritários, caracterizados pelo colonialismo, pelo apartheid ou por sistemas
de partido único, por uma nova ordem democrática dirigida por governos eleitos.
Em termos económicos, elas dizem respeito ao surgimento de novas economias
liberais de mercado. E, finalmente, de um ponto de vista da defesa e segurança,
referem-se às profundas mudanças relacionadas com a substituição da anterior
confrontação militar por uma cultura de cooperação e segurança comum.
Apesar da vontade da maioria dos países da região em levar até ao fim tais
transformações, e da evidência dos passos concretos que estão a ser dados nesse
sentido, as transições são fenómenos complexos e não seguem itinerários pré-
-determinados. Pelo contrário, manifestam sempre avanços e recuos, uma vez que
o que as faz mover são actores sociais concretos com interesses diversos, ou mes-
mo contraditórios, num contexto regional em que nem sempre é clara a distinção
entre aquilo que se consideram interesses nacionais e o que é o interesse regional
comum. Muitas vezes este último é encarado até como estabelecendo uma relação
de conflito com os interesses nacionais.
Se estas percepções são já de si sensíveis nas esferas mais amplas da vida
dos Estados-membros, tornam-se ainda mais quando o que está em questão é o
sector de defesa e segurança, onde se coloca uma relação clara entre a integração
regional e a soberania nacional, em que os avanços na primeira correspondem
necessariamente ao enfraquecimento da última.

356 Desafios para Moçambique 2011 SADC

Desafios.indb 356 3/29/11 4:54 PM


A história recente da região mostra que o fim da guerra não corresponde
necessariamente à conquista da paz. O período entre a queda do apartheid e a
actualidade tem sido pontuado por conflitos de diverso tipo e seriedade variável.
Consequentemente, a principal tarefa da SADC tem sido o estabelecimento de
estruturas regionais de resolução de conflitos, manutenção da paz e segurança
comum.
Todavia, no mesmo período há também sinais crescentes de que a segurança
pública merece mais atenção. Tal como tem sido observado, existe uma clara liga-
ção entre as transições e decréscimos na segurança pública, particularmente nos
países em desenvolvimento, e a África Austral não parece ser excepção (Klipin e
Harrison, 2003: 8).

CRIME
Em certos círculos regionais circula uma piada segundo a qual o crime é o
sector que mais prontamente respondeu aos desafios da regionalização e inte-
gração na África Austral. Por detrás desta situação está o aumento acentuado do
crime transfronteiriço organizado, verificado nos últimos anos. Este fenómeno
encontra explicação tanto na ligação à “velha” região como ao “novo” contexto
liberal.
Em relação à primeira, sem dúvida de que foi a pobreza generalizada e a
série de conflitos entre Estados e no interior dos Estados que caracterizou a região
até ao início da década de 1990, que alimentou situações de instabilidade social e
violência e deixou atrás de si um acesso relativamente fácil aos meios de violência,
em particular a armas ligeiras.2 Centenas de milhar de refugiados, deslocados e
soldados desmobilizados vieram ocupar um ambiente instável e vulnerável onde,
para além do pequeno crime, surgiram rapidamente, e desenvolveram-se, novas
formas mais amplas e complexas de crime organizado.
O desaparecimento dos regimes autoritários desde o início dos anos 90,
o relaxamento nas formas de controlo, os sinais de recuperação económica
desde então até à actual crise, assim como as dificuldades em controlar as
longas e porosas fronteiras nacionais, foram acompanhados por um aumen-
to acentuado dos movimentos populacionais de cruzamento de fronteiras,

2
Tem sido observado que os índices de criminalidade aumentam dramaticamente nos contextos
pós-conflito. Ver, por exemplo, Neild, 1999: 13.

SADC Desafios para Moçambique 2011 357

Desafios.indb 357 3/29/11 4:54 PM


oriundos, em particular, de outras zonas do continente ainda mais pobres e
instáveis (Boone, Lewis e Zvekic, 2003: 143-144, 147). Além disso, o novo
contexto económico liberal, mais complexo e internamente diversificado,
trouxe consigo não só novas formas de pobreza aguda mas também criou
espaço para o desenvolvimento de formas diversificadas e sem precedentes
de corrupção.
Gastrow, (2001), ao traçar o desenvolvimento das actividades do crime or-
ganizado na região, observa que, a partir de meados dos anos 80, se estabeleceu
uma ligação de tipo novo entre grupos de contrabandistas oriundos dos países
vizinhos da África do Sul e bandos criminosos sul-africanos, levando a uma rá-
pida expansão das transacções criminosas através das fronteiras. Produtos como
o marfim, drogas, minérios de diferentes tipos, corno de rinoceronte, gado, etc.,
encontravam mercado na África do Sul, onde eram vendidos ou trocados por
mercadorias como automóveis, levando assim a um grande aumento do roubo
de carros e dos raptos, entre outros. O novo contexto também alimentou outras
formas de crime, incluindo a falsificação de moeda, o contrabando de armas de
fogo, os assaltos à mão-armada e o tráfico de drogas. E os grupos dedicados a estas
actividades rapidamente atravessaram fronteiras e conseguiram formas sofistica-
das de organização.

RESPOSTA AO CRIME
Em geral, as autoridades dos países da SADC demonstraram uma limitada
capacidade para responder a estes novos desafios. Em parte, tal deveu-se ao novo
contexto, caracterizado por maior complexidade social e económica e maior li-
berdade de movimentos, tanto no âmbito doméstico como transfronteiriço. Outra
importante razão é que esta nova situação apanhou a polícia e os sistemas de
justiça criminal altamente impreparados.
As forças policiais de todos os países da região procuravam na altura levar a
cabo reestruturações profundas que as libertassem dos seus próprios passados. Na
África do Sul e na Namíbia, as forças policiais tinham um longo registo de bruta-
lidade e repressão em defesa do sistema do apartheid, registo esse de que faziam
parte terríveis abusos dos direitos humanos. Em Angola e Moçambique, as forças
policiais saíam de guerras civis no decorrer das quais haviam ganho um perfil mi-
litarizado e por vezes obscuro. E, tanto nestes como noutros países da região com
passado autoritário, a distinção entre partidos políticos e o Estado era pouco clara,

358 Desafios para Moçambique 2011 SADC

Desafios.indb 358 3/29/11 4:54 PM


as lealdades institucionais ambíguas, e o perfil da polícia caía dentro daquilo a que
se costuma chamar policiamento de regime.3
Além disso, a transformação das forças policiais não estava no topo das agen-
das, quer políticas quer dos doadores, afastada por temas mais prioritários como a
desmobilização das velhas forças militares e a edificação de novos exércitos, a ma-
nutenção da paz e o desenvolvimento económico e social, por meio de estratégias
que caracterizaram não só os ambientes domésticos mas, também, os primeiros
passos da cooperação regional.
Consequentemente, as forças policiais da região entraram na nova era com
má reputação, destituídas de recursos, mal treinadas e equipadas, e obrigadas a
controlar áreas geográficas enormes, com fronteiras e linhas de costa extensíssi-
mas, tudo isso num ambiente social em rápida e difícil transformação.
Ao mesmo tempo, os sistemas de justiça criminal eram afectados por proble-
mas do mesmo tipo, uma vez que na sua história recente também haviam estado
ligados a contextos coloniais, de apartheid ou autoritários, em que era baixa a sua
independência relativamente às instâncias políticas, e em que os seus serviços se
guiavam mais por critérios políticos do que técnicos, além de que eram disponibi-
lizados apenas a uma pequena parte da população. Além disso, a sua capacidade
de resposta era limitada por uma escassez alarmante de pessoal formado e capaci-
tado, e de recursos; e ainda, em alguns casos, por legislação insuficiente.4

3

Segundo Neild (1999: 3-5), “o policiamento de regime (regime policing) revela características típicas da
abordagem autoritária ao policiamento em muitos países da África, Ásia e América Latina”, características
que podem ser definidas como integrando os seguintes elementos: a missão principal da polícia
consiste, mais do que em fazer valer a lei, em apoiar ou zelar pela preservação de um regime político
ou de um governo particular; para ser eficaz, a polícia não necessita de legitimidade pública; a
polícia não possui, ou possui muito poucos, mecanismos de prestação de contas; as capacidades
de prevenção do crime são fracas e concentradas em áreas/beneficiários restritos; as estruturas de
recolha de informações não apontam às actividades criminosas mas antes aos inimigos do regime;
a concentração das actividades policiais no controlo político significa um fraco desenvolvimento
das capacidades de entender e praticar a prevenção do crime (falta de tradições de policiamento de
proximidade ou comunitário, por exemplo). Ainda de acordo com Neild, “o policiamento de regime
não é apenas uma herança de regimes militares ou autoritários. O policiamento de regime, ou degradação
continuada da ordem pública e das funções de justiça criminal, pode também resultar de situações de
conflito interno violento com base em diferenças sectárias”, como foi o caso em Moçambique e Angola.
Para o policiamento de regime, no caso da África do Sul, ver Rauch 1993.
4
Boone et al. (2003: 150), entre muitos exemplos, refere que “os dados sugerem que as prisões
sofrem de sobrepovoamento grosseiro”, e “os tribunais da região estão destituídos de recursos,
acumulam processos-crime e não têm pessoal legal com formação.”

SADC Desafios para Moçambique 2011 359

Desafios.indb 359 3/29/11 4:54 PM


A COOPERAÇÃO REGIONAL: QUADRO, PERSPECTIVAS E ACTORES
Formalmente, a cooperação regional em segurança pública inscreve-se no qua-
dro das disposições que orientam a cooperação da SADC no âmbito mais vasto da po-
lítica e segurança: o Órgão da Cooperação Política, de Defesa e Segurança (OPDSC).
Todavia, alguns dos progressos mais notáveis foram levados a cabo de forma semi-au-
tónoma pela Organização de Coordenação dos Chefes de Polícia da Região da África
Austral (SARPCCO), um organismo criado em 1995 com a finalidade de coordenar
os esforços das várias forças de polícia ao nível regional (SARPCCO, s/d).
Para compreender o “lugar” da segurança pública no dispositivo de segurança
regional é necessário recuar até 1992, altura em que os chefes dos Estados-membros
assinaram o Tratado que criou a SADC. Nessa altura começava a ter lugar uma mu-
dança profunda e muito positiva na África Austral, nomeadamente com o final da
guerra civil em Moçambique, com a primeira tentativa de acabar com o conflito in-
terno angolano, e com a perspectiva de mudanças profundas na Namíbia e na África
do Sul. A SADC vinha substituir a organização de cooperação regional anterior, a
SADCC, que havia sido estabelecida para resistir política e economicamente ao
apartheid e fora dotada de uma subestrutura de defesa e segurança, o Comité Inter-
-Estatal de Defesa e Segurança (ISDSC), dirigido de maneira relativamente informal
e estabelecido segundo linhas de defesa e segurança clássicas para apoiar a liberta-
ção do Zimbabwe, Namíbia e África do Sul (Bam, 2006: 29; van Nieuwkerk, 2001).
Esses eram tempos em que, também na arena internacional, começavam a
ocorrer transformações profundas na sequência do fim da Guerra Fria. Tais trans-
formações eram acompanhadas por uma mudança de paradigma no pensamento
sobre a defesa e segurança, em direcção àquilo que veio a ser designado de seguran-
ça humana, com o reconhecimento de que o velho paradigma centrado no Estado
não oferecia garantias suficientes para se criarem condições estáveis e seguras de
desenvolvimento social. A segurança passou a ser vista cada vez mais como “uma
condição abrangente na qual as pessoas e comunidades vivem em liberdade, paz e
segurança, participam cabalmente na governação dos seus países, gozam da protec-
ção dos direitos fundamentais, têm acesso aos recursos e outras necessidades básicas
da vida, e habitam num ambiente que não é prejudicial à sua saúde e bem-estar”.5 De

5
Organisation for Economic Co-operation and Development, “Security System Reform and
Governance: Policy and Good Practice”, Paris: OECD, 2004, apud Marenin 2005: 8.

360 Desafios para Moçambique 2011 SADC

Desafios.indb 360 3/29/11 4:54 PM


especial importância para este novo pensamento foi o Relatório de Desenvolvi-
mento Humano do PNUD, de 1994, que, segundo Hendricks (2006: 3), “observou
que a segurança humana é um conceito integrador que deve salientar a segurança
das pessoas. Ele afirmou que o conceito de segurança precisava de mudar, passan-
do de uma incidência exclusiva na segurança nacional para uma incidência muito
mais ampla na segurança das pessoas; e evoluindo de uma segurança garantida
pelo armamento para uma segurança baseada no desenvolvimento humano sus-
tentável. O relatório identificava uma lista de novas ameaças à segurança, nome-
adamente económicas, alimentares, de saúde, ambientais, pessoais, comunitárias
e políticas.”
Este novo paradigma reforçou, pelo menos teoricamente, os laços entre o
desenvolvimento e a segurança, em particular a segurança pública, uma vez que
esta começou a ser vista como condição sine qua non do desenvolvimento. Só num
ambiente estável e seguro o desenvolvimento se tornava possível.
A criação da SADC num espírito de cooperação regional, por oposição
à anterior confrontação, estava em linha com este novo pensamento. Segundo
Bah (2004: 9), “A adopção, por parte da SADC, de um novo paradigma de segurança
capaz de abranger questões militares e não-militares assinala um afastamento radical da
perspectiva centrada no Estado que caracterizava as anteriores disposições no tocante à
segurança regional. O novo quadro da SADC salienta a segurança da população e con-
voca preocupações de desenvolvimento mais amplas tais como o alívio da pobreza, a er-
radicação de epidemias como o HIV/Sida e a tuberculose, o crime violento, a promoção de
valores e princípios democráticos, o controlo das armas ligeiras e a protecção dos direitos
humanos”. O artigo 5 do Tratado da SADC de 1992 afirma que são objectivos da
organização “atingir o desenvolvimento e o crescimento económico, diminuir a pobreza,
elevar a qualidade de vida dos povos da África Austral”, e “promover e defender a paz
e segurança” (SADC, 1992).
No ano seguinte, em 1993, o documento de Quadro e Estratégia da SADC
iria mais longe, apelando para “a criação de valores políticos comuns baseados em
normas democráticas, na criação de uma ‘ordem securitária não militarista’,” e refe-
rindo a “necessidade de enfrentar fontes de conflito e ameaças não-militares à seguran-
ça humana tais como o subdesenvolvimento e o abuso dos direitos humanos.” (Nathan,
2004: 5).
Neste novo contexto, a arquitectura de defesa e segurança da SADC tinha de
mudar, uma vez que não só a finalidade para a qual a instituição havia sido criada

SADC Desafios para Moçambique 2011 361

Desafios.indb 361 3/29/11 4:54 PM


sofrera alterações fundamentais como, também, a perspectiva por detrás da sua
acção tinha sofrido profundas transformações. Assim, iniciou-se o processo de
criação de uma subestrutura de defesa e segurança mais condizente com o perfil
da nova organização regional. O conceito e o controlo desta nova subestrutura
foram objecto de disputas acesas, revelando o desconforto da SADC em lidar com
questões sensíveis como a da defesa e segurança nesta fase inicial da sua existên-
cia, e causadas pelas mudanças nas relações de poder na sequência da adesão da
África do Sul à organização regional.6 Após aquilo que constituiu talvez o episódio
mais controverso e agitado da curta história da SADC, o Órgão de Cooperação
Política, de Defesa e Segurança da SADC (OPDSC) foi oficialmente aceite em
1996, mas permaneceu pouco definido até 2001, altura em que foi instruída uma
equipa para desenvolver o seu Plano Estratégico Indicativo (SIPO). O SIPO foi
aprovado pela Cimeira da SADC em 2003, e lançado oficialmente um ano mais
tarde (SADC, 2004).
Esperava-se que o SIPO fosse um instrumento capaz de traduzir os prin-
cípios numa estratégia e num conjunto de orientações para a acção. Embora
saliente a nova ligação entre a segurança e o desenvolvimento, nomeadamente
ao afirmar que “A paz, a segurança e a estabilidade política são as pedras de toque
do desenvolvimento sócio-económico” (Prefácio), o SIPO (SADC, 2004) transporta
as marcas, quer do difícil processo que esteve por trás da sua criação quer da
perspectiva cautelosa dos Estados-membros ao lidar com assuntos considera-
dos sensíveis para as respectivas soberanias. Tal como argumenta Oosthuizen
(2006: 127), o SIPO não é tão claro e detalhado como outros planos funda-
mentais da SADC, por exemplo, o Plano Regional Indicativo da Estratégia de
Desenvolvimento (RISDP) (SADC, 2005). Inclui uma extensa lista de objecti-
vos e estratégias e/ou actividades com eles relacionadas, mas não fornece um
quadro de implementação e não define prioridades, planos ou uma orçamen-
tação dos custos. A Secção 6, referente ao Sector de Segurança Pública, não é

6
O Zimbabwe opôs-se fortemente às mudanças na subestrutura de defesa e segurança,
segundo Bah (2004: 23-24), com base em três argumentos: confiá-la ao Secretariado da
SADC comprometeria a confidencialidade dos assuntos sensíveis uma vez que este dependia
fortemente de doadores externos; beneficiaria ainda mais o Botswana, onde o Secretariado da
SADC estava localizado, e que já recebia o grosso dos recursos dos doadores; e finalmente, as
normas e procedimentos formais comprometeriam a soberania nas questões de ‘alta política’, e
limitariam a liberdade de acção nacional e multilateral em situações de crise. Mais, sobre este
processo, em Cilliers (1999); e, para uma perspectiva diferente e bastante crítica, Natham, 2004.

362 Desafios para Moçambique 2011 SADC

Desafios.indb 362 3/29/11 4:54 PM


excepção, consistindo meramente numa longa lista de desafios, estratégias e
actividades.7
Um sinal significativo do processo atribulado que caracterizou a criação do
OPDSC, e a sua lenta evolução, é que, até recentemente, a cooperação em se-
gurança pública não era dotada de um quadro estrutural.8 Nomeadamente, foi
o apoio da Interpol (em resposta à irrupção do crime transfronteiriço) que dis-
ponibilizou o financiamento inicial para que os chefes das polícias nacionais da
região se reunissem no Zimbabwe para criar a Organização de Cooperação dos
Chefes de Polícia da Região da África Austral (SARPCCO) em 1995.9 O manda-
to da SARPCCO inclui a promoção, reforço e desenvolvimento de “estratégias
conjuntas para lidar com todas as formas de crime transfronteiriço, ou com ele
relacionadas, com implicações regionais”.10

7
Os objectivos do SIPO para o sector de segurança pública são os seguintes: 1) Proteger
a população e salvaguardar o desenvolvimento da Região da instabilidade decorrente da
quebra da lei e ordem, dos conflitos intra-estatais e de agressão; 2) Promover a coordenação
e cooperação regionais em matérias relacionadas com a segurança e a defesa, e estabelecer os
mecanismos apropriados a esta finalidade; 3) Considerar acções correctoras em harmonia com a
lei internacional e, como solução de último recurso, onde os meios pacíficos tiverem fracassado;
4) Promover o desenvolvimento de instituições e práticas democráticas nos territórios dos
Estados-membros, e encorajar a observância dos direitos humanos universais tal como vêm
estabelecidos nas cartas e convenções da UA e da ONU; 5) Desenvolver uma cooperação
estreita com as forças estatais de defesa e segurança dos Estados-membros com o intuito de
combater o crime transfronteiriço e promover uma perspectiva de segurança doméstica baseada
na comunidade; 6) Observar e encorajar os Estados-membros a implementar os tratados sobre
controlo de armas e desarmamento da ONU e da UA, e outras convenções internacionais, assim
como o desenvolvimento de relações pacíficas entre os Estados; 7) Desenvolver capacidades de
manutenção de paz nos serviços nacionais de polícia, e coordenar a participação dos Estados-
membros em operações internacionais e regionais de manutenção da paz; e 8) Reforçar a
capacidade regional de gestão de desastres e coordenação da assistência humanitária internacional.
Com a finalidade de implementar alguns dos objectivos, foram assinados protocolos adicionais
cobrindo campos como a corrupção, armas de fogo, drogas, assistência legal e extradição.
8
O ISDSC tem um sub-comité permanente dedicado à segurança pública, dotado de organismos
ad hoc para a imigração, alfândegas, armas ligeiras, minas e gestão de catástrofes. Contudo, esta
solução está longe de fornecer um tal quadro. Ver Oosthuizen (2006: 222).
9
A Interpol estabeleceu o seu gabinete regional em Harare, em 1997. A SARPCCO e a Interpol
partilham o mesmo Secretariado nessa cidade.
10
Os objectivos da SARPCCO são os seguintes: promoção, reforço e perpetuação da cooperação,
e dinamização de estratégias conjuntas de combate a todas as formas de crime transfronteiriço
ou com ele relacionado, e com implicações regionais; preparação e disseminação de informação
relevante sobre actividades criminosas em benefício dos membros e dos seus esforços para
combater o crime na região; revisão regular das estratégias conjuntas de combate ao crime com
a finalidade de responder às necessidades e prioridades nacionais e regionais em permanente
evolução; cooperação e gestão eficientes dos registos criminais, e monitoramento conjunta
eficiente do crime transfronteiriço através de uma utilização plena das condições apropriadas

SADC Desafios para Moçambique 2011 363

Desafios.indb 363 3/29/11 4:54 PM


O surgimento da SARPCCO, com os seus princípios de igualdade, benefí-
cio mútuo e mútuo respeito, representa a primeira semente de uma verdadeira
cooperação regional no domínio da segurança pública.11 Cilliers (1999) afirma
que “os diversos serviços de polícia da região passaram, a partir de então, a poder
comparar entre si a sua eficácia, padrões de actuação, profissionalismo e ética, assim
como as suas práticas operacionais. Por outras palavras, os serviços de polícia, até então
salvaguardados do escrutínio externo, passavam a ter de responder não só ao usual
público doméstico mas, também, a um público regional.”
Embora ocorrendo no quadro do ISDSC, o relacionamento da SARPCCO
com a SADC estava longe de ser bem definido. Provavelmente, ele representou
um factor de pressão num processo que tinha um ritmo diferente, mais lento.
Além disso, a adopção, pela SARPCCO, de princípios de profissionalismo, sig-
nificava um corte radical com a anterior cultura de “policiamento de regime”
de algum modo prevalecente nos países da região. Em resultado do processo
relativamente autónomo do seu surgimento, a SARPCCO começou a ser vista
pela SADC com certa distância. Por exemplo, a organização dos chefes de po-
lícia foi ignorada pela SADC na redacção da primeira versão do Protocolo da
SADC sobre o Combate ao Tráfico de Drogas Ilícitas, “apesar do facto de que só as
diversas agências policiais da região estavam capazes de implementar os componentes
fundamentais do protocolo” (Cilliers, 1999). Apesar de não estar filiada oficialmen-
te na SADC, a SARPCCO, pelo seu desempenho, conseguiu granjear níveis
crescentes de legitimidade, e a organização foi eventualmente integrada pelos
ministros respectivos, e ratificada pelos parlamentos nacionais, após o que, em
1999, se tornou na entidade oficial para lidar com o crime organizado. Desde
1997, a SARPCCO coordenou uma série de operações de combate ao roubo de
veículos, tráfico de drogas, de armas de fogo e pedras preciosas, etc., envolvendo
várias forças nacionais de polícia.12 Presentemente, um protocolo específico re-

disponibilizadas pela Interpol; formulação das recomendações relevantes aos governos dos
países membros relativamente a questões que afectem o policiamento eficaz da região da África
Austral; e adopção de medidas e estratégias relevantes e apropriadas para fins de promoção da
cooperação e colaboração policial regional ditadas pelas circunstâncias regionais. Ver Gastrow
(2001: Introdução).
11
Os princípios adoptados pela SARPCCO são os seguintes: respeito pela soberania nacional;
igualdade entre as forças/serviços policiais; profissionalismo a-político; benefício mútuo de
todos os países membros; observância dos direitos humanos; não-discriminação e flexibilidade
dos métodos de trabalho; e respeito e boa-vontade mútuos.
12
Levou a cabo, entre outras, as seguintes operações principais: Voyager 4 (1997, África do Sul,

364 Desafios para Moçambique 2011 SADC

Desafios.indb 364 3/29/11 4:54 PM


conhece o papel de liderança da SARPCCO como agência de controlo de armas
ligeiras na SADC.
Nos últimos anos, as operações da SARPCCO produziram resultados relati-
vamente importantes. Segundo Bah (2004: 2), tal ficou a dever-se ao facto de “as
perspectivas de cooperação no âmbito da ‘baixa política’ (i.e., armas ligeiras ou cooperação
funcional) serem melhores do que as que existem no espaço da ‘alta política’ (i.e., intervenção
militar e soberania).” Sendo ou não verdade, o facto é que a evolução depende de
melhorias em mais do que uma direcção. É necessário alargar o denominador co-
mum de tal cooperação, quer através do estabelecimento de mecanismos eficazes de
comunicação e troca de informações (Cilliers 1999), quer, em particular, através da
harmonização da legislação de segurança pública. Gastrow (2001: Capítulo 7) mos-
tra que a maioria dos países da região carece de legislação específica para combater
o crime organizado, e a eliminação destas carências constitui importante condição
para harmonizar os procedimentos ao nível regional.13
Além das estruturas da SADC e da SARPCCO, a cooperação assenta ainda em
acordos bilaterais,14 assim como em iniciativas como o programa de formação jurídica
da UNODC, frequentado por numerosos elementos dos quadros legais e judiciais da
SADC (UNODC, 2003: 32), ou a Academia Internacional de Aplicação da Lei (ILEA)
localizada em Gaborone. Financiada pelos Estados Unidos da América, a ILEA, além
de prestar formação em temas ligados ao combate ao crime transnacional regional,
também constitui um espaço de encontro de participantes de todos os países da região,
o que em si ajuda a produzir um entendimento comum relativamente ao crime e à
forma de o combater, factor que favorece indubitavelmente a cooperação regional.15

Moçambique Zâmbia e Zimbabwe), Midas (1998, Lesoto, Maurícias, Suazilândia e África do


Sul), Atlantic (1998, Botswana, Namíbia e África do Sul), Stone (1998-1999, Angola, Botswana,
Namíbia e África do Sul), Sesani (1998-1999, Malawi, Moçambique, Tanzânia, Zâmbia,
Zimbabwe e África do Sul), Makhulu (2000, Botswana, Lesoto, Moçambique, Namíbia, África
do Sul, Suazilândia e Zimbabwe. Ver Cilliers (1999), e Msutu (2001).
13
Ver, para um panorama da legislação existente e das carências nos Estados-membros, Goredema
(ed) 2001.
14
A série de operações Rachel, desenvolvidas na base de um acordo entre a África do Sul e
Moçambique, constitui um bom exemplo de cooperação bilateral neste domínio. Ver, entre
outros, SaferAfrica (2003), “Operations Rachel”, in www.saferafrica.org.
15
A ILEA, criada em 2000, tem os seguintes membros: EUA, Botswana, Angola, Camarões,
Comores, Congo, RDC, Djibuti, Etiópia, Gabão, Quénia, Lesoto, Madagáscar, Malawi,
Maurícias, Moçambique, Namíbia, Nigéria, Seicheles, África do Sul, Suazilândia, Tanzânia,
Uganda e Zâmbia.

SADC Desafios para Moçambique 2011 365

Desafios.indb 365 3/29/11 4:54 PM


CONCLUSÃO

A SADC foi criada sob a premissa de que existe uma relação entre o desenvol-
vimento, a democracia e a segurança. Só um ambiente democrático seguro, tanto
regional como doméstico, pode permitir que sejam atingidos os objectivos-chave
da SADC, nomeadamente o crescimento e desenvolvimento económicos, o alívio
da pobreza e a elevação do padrão e qualidade de vida dos povos da África Austral.
Obrigada a enfrentar problemas decorrentes de um passado recente de con-
flitos regionais agudos, deparando-se com fortes desequilíbrios sociais e económi-
cos, assim como com um certo nível de desconfiança entre Estados-membros, as
estruturas políticas da SADC dirigiram prioritariamente os seus esforços para a
cooperação económica e para as questões de segurança militar entre os Estados.
Por outras palavras, a ligação atrás referida acabou reduzida à relação entre o de-
senvolvimento e a segurança dura ou de sentido estrito (Kiplin e Harrison, 2003:
11). Além de ser mais difícil de definir conceptualmente, a segurança humana
centrada nas pessoas levantava questões menos ameaçadoras e, portanto, menos
urgentes para a causa da construção da região. Assim, os primeiros esforços de
cooperação na esfera da segurança pública surgiram fora da iniciativa directa das
estruturas políticas da SADC, mesmo que subsequentemente tenham sido legiti-
mados e integrados pelas estruturas formais.
A consequência geral deste facto é que a SARPCCO parece ter adquirido
um perfil de certa forma independente. Embora tal perfil possa ter por vezes pre-
judicado o progresso do seu trabalho (Oosthuizen, 2006: 283), também se pode
dizer, no sentido contrário, que a independência e o profissionalismo da SARPC-
CO constitui a melhor garantia contra a tentação de voltar a indesejáveis lógicas
anteriores, nomeadamente o policiamento de regime que, num tempo não muito
distante, caracterizou a actividade das polícias da maioria dos Estados da região.16

16
Segundo Cilliers (1999), “a SARPCCO não deveria nunca ser completamente integrada na SADC
ou no Órgão. Para além do facto de a organização ter sido independentemente estabelecida, em termos
de legislação internacional, uma ligação demasiado estreita prejudicaria as vantagens da utilização
dual do escritório sub-regional da Interpol como Secretariado da SARPCCO e o benefício que tal
implica em termos de custos. Mas, mais importante ainda, a prevenção do crime transfronteiriço não
deve depender de um controlo ou interferência política estreitos.” E acrescenta: “O que é necessário é
mais reconhecimento político regional e um maior apoio ao seu papel [da SARPCCO], particularmente
ao nível da SADC. O termo ‘reconhecimento’ é aqui deliberadamente utilizado, no sentido em que a
SARPCCO deveria ser apreciada de um ponto de vista policial profissional, evitando-se a tentação de

366 Desafios para Moçambique 2011 SADC

Desafios.indb 366 3/29/11 4:54 PM


As dimensões regionais e domésticas da segurança pública estão pois inextri-
cavelmente ligadas. Se, por um lado, o aumento da cooperação regional tem um
efeito positivo sobre a segurança pública ao nível nacional,17 por outro lado, a qua-
lidade de tal cooperação depende, em grande medida, de importantes melhorias
que precisam de ser feitas nas instituições que tratam da segurança pública a nível
doméstico. Trata-se de um desafio da maior importância, uma vez que, em termos
de cooperação, ele implica necessariamente que sejam feitas incursões ao reino da
“alta política”, referido por Bah.
A segurança pública – e a reforma da polícia em particular – têm ocupado
até agora um lugar modesto nas agendas nacionais dos Estados-membros, apa-
rentemente pressionados por questões mais prioritárias e lutando com a escassez
de recursos. Além disso, tal tendência tem sido reforçada por aquilo que Nield
(1999: 9) descreve como “uma teoria instrumentalista [que parte do princípio que]
a polícia reflecte os regimes e por conseguinte o seu comportamento acabará por
reflectir os novos valores da democracia a partir do momento em que o quadro
legal é reformado de maneira a integrar tais valores.”
A resposta limitada revelada ao nível nacional pelas instituições de seguran-
ça pública face ao crime em todas as suas novas e complexas formas mostra que
o princípio atrás referido não é necessariamente correcto. Em grande medida,
essas instituições continuam a revelar um comportamento que envolve uso des-
proporcionado da força, falta de transparência, impunidade, tortura, detenções
ilegais, deficiente ligação com os sistemas de justiça criminal e diversos atropelos
aos direitos humanos (Amnesty International, 2006). A alteração desta situação
exige forças policiais mais bem treinadas e equipadas, no âmbito de uma reforma
que só pode ser levada a cabo com um apoio das lideranças políticas de cada
Estado-membro mais vigoroso do que aquele que tem sido revelado até aqui,
apoio esse que terá igualmente de ser baseado nas normas do policiamento
democrático.18 A incidência no aumento de capacidade das instituições nacio-

politizar a Organização. As mesmas considerações estão na base da relutância da SARPCCO em passar


a ser parte integrante do ISDSC, facto que amarraria a organização a uma estrutura política.”
17
Bayley (2001: 26) afirma que “a reforma tem mais probabilidades de ocorrer se os oficiais de
polícia estiverem ligados a redes profissionais de líderes policiais progressistas (regionais, nacionais e
internacionais).”
18
Bayley (2001: 13-14) define tais normas da seguinte maneira: 1. A polícia deve, com prioridade
operacional máxima, responder às necessidades dos cidadãos individuais e dos grupos privados;
2. A polícia deve responder à lei e não ao governo; 3. A polícia deve proteger os direitos humanos,

SADC Desafios para Moçambique 2011 367

Desafios.indb 367 3/29/11 4:54 PM


nais de segurança pública é também importante para concretizar o princípio de
equidade entre os Estados-membros, que afinal é um dos objectivos centrais da
SADC.19 Da mesma maneira, o aumento da cooperação em segurança pública
exige uma articulação mais clara entre as estruturas da SARPCCO e da SADC,
particularmente o Órgão; e que o combate ao crime se torne prioritário na agen-
da regional, apesar da multiplicação dos sinais, na região, de que as questões de
segurança dura permanecem prioritárias.
Finalmente, a luta pela segurança pública não pertence apenas aos Estados
ou, a nível regional, às estruturas da SADC. Ela requer o envolvimento de organi-
zações da sociedade (em particular no âmbito dos direitos humanos) e das comu-
nidades em geral. Actualmente têm já lugar diversas iniciativas e debates no âmbito
do policiamento comunitário e sectorial, iniciativas essas que têm de ser apoiadas,
divulgadas e harmonizadas pelas estruturas regionais. A participação da sociedade é
importante não só para garantir um combate mais eficiente contra todas as formas
de crime, mas também para ajudar à reforma da polícia. Não nos esqueçamos de que
a região não é um clube de políticos, e que, sem integração das sociedades e sectores
que a compõem aos mais diversos níveis, incluindo este, ela nunca se concretizará.

REFERÊNCIAS

Amnesty International, 2006. “Southern Africa: policing and human rights in the
Southern African Development Community (SADC)”, International Regional
Reports, 9 February.
Bah, A., 2004. Toward a regional approach to human security in Southern Africa. Mar-
tello papers, Nº 26. Kingston (Canada): Queen’s University.
Bam, S., 2006. “SADC’s security architecture: policy-based research and capacity
building”, in Cheryl Hendricks (Ed), From State Security to Human Security in
Southern Africa. Policy research and capacity building challenges, ISS Monograph
Series, Nº 122, April.

especialmente os necessários a uma actividade política livre que constitui o fulcro da democracia;
e 4. A polícia deve ser transparente nas suas actividades.
19
Até à data, as operações policiais regionais têm dependido, em grande medida, das forças e
recursos sul-africanos.

368 Desafios para Moçambique 2011 SADC

Desafios.indb 368 3/29/11 4:54 PM


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370 Desafios para Moçambique 2011 SADC

Desafios.indb 370 3/29/11 4:54 PM


AS ECONOMIAS “EMERGENTES” NO
SECTOR AGRÍCOLA MOÇAMBICANO
LEITURAS, IMPLICAÇÕES E DESAFIOS

Sérgio Chichava

INTRODUÇÃO

A expansão económica das chamadas economias “emergentes”, com desta-


que para os países que são parte dos BRICs, isto é, Brasil, Rússia, Índia e China,
é considerada como uma das grandes mutações no sistema internacional no pe-
ríodo pós-guerra. Os BRICs, se tudo correr de acordo com as previsões de vários
analistas, podem tornar-se na maior força económica do mundo em 2050 (Wilson
e Purushothaman, 2003).
De entre os muitos aspectos destas mutações, um dos mais marcantes é o
crescimento extraordinário das relações entre os BRICs e os países do continente
africano. A nova dinâmica nas relações entre as duas partes pode ser ilustrada pelo
aumento do volume do comércio, que passou de 22 biliões para 166 biliões de
dólares americanos entre 2000 e 2008, colocando, em 2009, a China, a Índia e o
Brasil em, respectivamente, 2º, 6º e 10º lugar na lista de maiores parceiros econó-
micos da África (Freemantle e Stevens, 2009) 1.
No seio dos BRICs, apenas a Rússia, ocupando a modesta 15ª posição na lis-
ta, ainda não consolidou as suas relações comercias com a África (idem), o que em
grande parte se explica pela desintegração da antiga União Soviética, que foi du-
rante muito tempo quase omnipresente em África. Contudo, é preciso realçar que

1
Entretanto, o aumento da influência dos BRICs a nível mundial tem gerado muitos debates e
inquietações nos mais variados fóruns de discussão, sobretudo no que diz respeito às relações
entre estes países e África, alguns acusando os BRICs de estarem apenas interessados nos
recursos naturais africanos e não no seu desenvolvimento. Igualmente, cientes da sua crescente
importância, os BRICs têm cada vez mais reivindicado uma nova ordem mundial mais “justa”,
ou seja, que tenha em conta o peso de cada de um destes países no mundo: reformas no Banco
Mundial e Fundo Monetário Internacional, assento permanente para o Brasil e para a Índia nas
Nações Unidas, entre outras exigências.

Economias “Emergentes” Desafios para Moçambique 2011 371

Desafios.indb 371 3/29/11 4:54 PM


a Rússia está a fazer grandes esforços para se tornar mais presente no continente
africano, aumentando o número de visitas de seus altos dignitários, reescalonando
ou perdoando dívidas aos países africanos e investindo em sectores estratégicos,
como o dos recursos energéticos2.
Recentemente, uma das áreas que tem sido considerada como prioritária na
cooperação entre as economias “emergentes” e África é a agricultura. Os “emer-
gentes” têm continuadamente reiterado o seu compromisso em ajudar África a
desenvolver a agricultura, contribuindo, assim, para a eliminação da fome e da po-
breza neste continente. Entretanto, nos últimos tempos, sobretudo depois da crise
mundial de alimentos de 2007-2008, o interesse destes países pela agricultura afri-
cana tem levantado inúmeras inquietações, havendo acusações de que, em virtude
de nos seus respectivos países haver escassez de terra para agricultura, estarem a
açambarcar terras inexploradas em África para alimentarem os seus povos.
Neste contexto, cabe questionar se estarão, de facto, os “emergentes” a aju-
dar a África a desenvolver a sua agricultura. E, em caso afirmativo, qual o tipo de
agricultura que estão a desenvolver.
Partindo do caso moçambicano, e centrando a discussão apenas na China,
Brasil e Índia, este artigo procura fazer uma reflexão em torno da cooperação entre
estes países e Moçambique no sector agrícola. Basicamente, são dois os objectivos
deste artigo: primeiro, analisar as estratégias levadas a cabo pelo Brasil, Índia e China
na cooperação agrícola com África; segundo, o artigo pretende trazer algumas refle-
xões preliminares sobre a ajuda e os investimentos do Brasil, Índia e China no sector
agrícola moçambicano. A estruturação do artigo obedeceu a estes dois objectivos.

DE PEQUIM A PEQUIM: UMA LUZ PARA A AGRICULTURA


AFRICANA?

A definição da agricultura como um dos sectores-chave da cooperação entre


a China e a África foi feita na primeira cimeira ministerial China-África realizada
em Outubro de 2000 em Pequim. A Cimeira reuniu 44 ministros africanos e 80 mi-
nistros chineses e foi destinada a criar o FOCAC, tendo simbolizado assim o início
de uma nova era nas relações entre as duas partes. Entretanto, foi na segunda


2
Sobre estes assuntos ver, por exemplo, Freemantle & Stevens (2009) e Troude (2009).

372 Desafios para Moçambique 2011 Economias “Emergentes”

Desafios.indb 372 3/29/11 4:54 PM


reunião ministerial do FOCAC, realizada em Adis-Abeba em Dezembro de 2003,
onde governantes chineses e africanos, reconhecendo que a agricultura era a abor-
dagem eficaz para garantir a segurança alimentar, erradicação da pobreza e melhorar a
vida das pessoas em África (FOCAC, 2006a)”, desenharam um plano de trabalho
para o biénio 2004-2006. Este plano compreendia, de entre outros aspectos con-
siderados essenciais, “o reforço da cooperação agrícola em áreas como a gestão da terra
e dos recursos hídricos, desenvolvimento de infra-estruturas agrícolas, cultura, pecuária,
aquicultura, segurança alimentar, intercâmbio e transferência de tecnologia agrícola apli-
cada, transferência de competências, assistência técnica, fabricação de máquinas agrícolas
e processamento de produtos agrícolas” (Idem).
Contudo, foi na reunião do FOCAC de Novembro de 2006, realizada nova-
mente em Pequim e contando com a presença de presidentes de 53 países afri-
canos e vários dirigentes chineses, onde foram traçadas as actuais linhas de coo-
peração entre a China e a África. As bases da actual cooperação na área agrícola
também se enquadram nos preceitos desta reunião3.
A China prometeu que, entre 2007 e 2009, enviaria 100 peritos chineses em
tecnologia agrícola, construiria 10 centros de pesquisa e transferência de tecno-
logia agrícola; encorajaria e ajudaria empresas chinesas a investirem no sector
agrícola africano e a envolverem-se mais no desenvolvimento de infra-estruturas e
indústrias agrícolas. Ainda no quadro da Cimeira de Pequim, a China prometera
o treino e desenvolvimento de recursos humanos trabalhando no sector agrícola
africano, e a pôr em prática um programa especial de segurança alimentar em
colaboração com a FAO (FOCAC, 2006b).
A agricultura também faz parte das áreas prioritárias do Fundo de Desenvol-
vimento China-África (China-Africa Development Fund, CADFund). Estabelecido
em Março de 2007 pelo governo chinês através do China Development Bank
(CDB), como resultado de uma das promessas do governo chinês no FOCAC
2006, este fundo, dotado de 5 biliões de dólares, destina-se a ajudar empresas chi-
nesas investindo em África4.
O cometimento chinês em ajudar o desenvolvimento da agricultura em África
foi ainda reforçado na cimeira de Sharm El Sheik, realizada em Novembro de 2009,

3
Desde os primeiros anos das independências africanas que a China e África cooperam na
área agrícola. Para uma visão histórica das diferentes fases da cooperação China-Africa, ver
Bräutigam e Xiaoyang (2009); Bräutigam (2010); FOCAC (21 de Setembro de 2006).
4
Os primeiros escritórios do CADFund em África foram abertos em 2010 na África do Sul.

Economias “Emergentes” Desafios para Moçambique 2011 373

Desafios.indb 373 3/29/11 4:54 PM


onde também, num plano trienal (2009-2012), este país prometeu mais ajuda para
este sector, nomeadamente: enviar cinquenta equipas de peritos em tecnologia agrí-
cola; treinar 2000 técnicos agrícolas africanos; para além de continuar a apoiar os já
construídos, aumentar, de dez para vinte, o número de centros de Pesquisa e Transfe-
rência tecnológica agrícola, e implementar o programa especial de cooperação com
África em colaboração com a FAO, que já havia sido decidido na cimeira de Pequim
em 2006, contribuindo com 30 milhões de dólares americanos. (FOCAC, 2009).
Enfim, pode-se citar mais duas iniciativas de destaque: a reunião China-Áfri-
ca de Bamako, capital do Mali, em Abril de 2010, e China-África, de Pequim, em
Agosto de 2010, ambas destinadas a discutir as melhores maneiras de desenvolver
a agricultura africana e de contribuir para a segurança alimentar neste continente.
Até finais de 2008, estimava-se que havia 72 empresas agrícolas chinesas
em África, as quais teriam investido cerca de 134 milhões de dólares americanos
(FOCAC, 2010). Entre 2004 e 2010, a China enviou mais de 900 técnicos agríco-
las para África, os quais formaram 4200 técnicos africanos em matérias agrícolas;
estabeleceu 14 centros de demonstração de Tecnologias Agrícolas em igual núme-
ro de países, nomeadamente Moçambique Sudão, Tanzânia, Etiópia, Camarões,
Congo Brazaville, Zimbabwe, Ruanda, Benim, Togo, Zâmbia, Libéria, África do
Sul e Uganda, assim como também assinou acordos de cooperação na área agrí-
cola com 14 países africanos (XU Lin, 12 de Agosto de 2010).
Contudo, apesar destas acções ao nível da cooperação bilateral e do reitera-
do interesse em encorajar empresas chinesas (privadas ou estatais) a investirem na
agricultura africana, o investimento chinês neste sector ainda é bastante reduzido.
Em 2007, o investimento chinês na agricultura representava apenas 1% do total
dos investimentos externos da China (Bräutigam, 2010: 255). A mesma tendência
manteve-se em 2008 (Bethel, 2008).
Segundo Bräutigam e Xiaoyang (2009: 696), muitas companhias privadas chi-
nesas têm mostrado receio em investir na agricultura africana devido à fraca qualidade
de infra-estruturas. Até finais de 2008, a China State Farm Agribusiness Corporation
(CSFAC), pioneira em África, estava operando em todo o continente, com cerca de 11
projectos, a maior parte dos quais já bastante antigos, ou seja, antes do primeiro FO-
CAC (Idem). Aquando da última cimeira China-África sobre agricultura, realizada em
Agosto de 2010 em Pequim, Xi Jinping, actual vice-presidente chinês, foi citado a dizer
que, mais do que outros sectores, o investimento agrícola precisa de mais paciência e
de uma visão de longo prazo (Jin Zhu, 12 de Agosto de 2010).

374 Desafios para Moçambique 2011 Economias “Emergentes”

Desafios.indb 374 3/29/11 4:54 PM


O BRASIL EM ÁFRICA: PAGANDO A SUA “DÍVIDA HISTÓRICA”?
A chegada de Luís Inácio Lula da Silva ao poder no Brasil em 2003 é tida por
muitos, inclusive pelos seus pares africanos, como tendo impulsionado grandemen-
te as relações entre este país e África. Com efeito, considerando que mais nenhum
outro chefe de Estado brasileiro deu tamanha importância a África como Lula da
Silva o fez, os dirigentes dos países da Comunidade Económica dos Estados da Áfri-
ca Ocidental (CEDEAO) decidiram homenageá-lo num encontro tido em Cabo
Verde, que, entre outras coisas, simbolizava a última viagem do presidente brasileiro
a África enquanto chefe de Estado (MRE, 4 de Julho de 2010). Para além de ser
reconhecido pelos seus homólogos africanos, Luís Inácio Lula da Silva considera-se,
ele próprio, o presidente brasileiro que mais importância deu à África, chegando a
afirmar que o seu “sucessor terá a dura tarefa de fazer muito mais do que ele fez para
África” (MRE, 4 de Julho de 2010). Igualmente, Lula da Silva é tido como o chefe
do Estado brasileiro que mais visitas efectuou à África (8 viagens a 25 países) e o que
mais contribuiu para o aumento das representações diplomáticas brasileiras neste
continente (de 16 embaixadas para 34). Foi ainda no regime de Lula da Silva que o
Brasil estabeleceu o primeiro escritório internacional de representação da Fundação,
Fiocruz África. Estabelecido em Maputo, o objectivo da Fiocruz África é coordenar
as acções de cooperação em saúde para todo o continente africano (Silva, 17 de
Outubro de 2008).
Outra iniciativa de Lula da Silva, que também pode ser usada como exemplo
para mostrar o seu cometimento com o continente africano, foi o estabelecimento
de uma universidade no Brasil (Universidade Federal da Integração Luso-Afro-
-Brasileira, Unilab) virada para a formação de estudantes brasileiros e dos da Co-
munidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), sobretudo dos Países Africa-
nos de Língua Portuguesa (PALOP). A Unilab é vista como sendo uma ponte para
facilitar a integração entre o Brasil e a CPLP.5
Para Lula da Silva, — que considera que o Brasil tem uma “dívida histórica
com África” —, uma das áreas-chave na qual o Brasil deve ajudar África é a agri-
cultura (MRE, 3 de Julho de 2010). Segundo o presidente Lula da Silva, graças
à sua própria experiência, o Brasil pode ajudar a África a realizar a sua “revolu-

5
Para mais informação sobre a cooperação brasileira com África, ver o sítio da Agência Brasileira
de Cooperação (ABC): http://www.abc.gov.br/abc/introducao.asp.

Economias “Emergentes” Desafios para Moçambique 2011 375

Desafios.indb 375 3/29/11 4:54 PM


ção verde” (Idem)6. Neste sentido, existe uma série de iniciativas visando o sector
agrícola africano, podendo, de entre elas, destacar-se as seguintes: a feira “Brazil
Agri-Solutions” e o “Diálogo Brasil-África sobre Segurança Alimentar, Combate à
Fome e Desenvolvimento Rural”.
Realizada em Junho de 2009, em Dacar, sob a égide da Agência Brasileira
de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), e em paralelo com
o “Fórum Brasil-África Subsaariana: Empreendedorismo para o Desenvolvimento”, a
feira “Brazil Agri-Solutions” visava promover equipamento e maquinaria agrícolas
brasileiros. Participaram desta feira 25 agro-empresas brasileiras e representantes
de 16 países africanos (Freemantle e Stevens, 2010).
Em Maio de 2010, o governo brasileiro promoveu, em Brasília, um encontro
designado “Diálogo Brasil-África sobre Segurança Alimentar, Combate à Fome e Desen-
volvimento Rural.” Neste encontro, onde estiveram presentes 45 países africanos,
foram definidas sete áreas relacionadas com a agricultura que deviam ser objecto
principal de cooperação entre as duas partes, nomeadamente:

1) desenvolvimento da agricultura, da pesca e da aquicultura sustentáveis, de activida-


des agro-florestais e dos sistemas de manejo dos recursos hídricos; 2) aprimoramento
da infra-estrutura rural, comercialização de produtos agrícolas e acesso ao mercado; 3)
apoio a agricultores familiares, aumento da produção de alimentos e redução da fome;
4) pesquisa, desenvolvimento e disseminação de tecnologias agrícolas, bem como acesso
a essas tecnologias; 5) capacitação institucional em segurança alimentar e nutricional; 6)
desenvolvimento de modelos compatíveis e tecnologias adaptáveis a África; e 7) desen-
volvimento de estratégias para atingir a segurança alimentar e nutricional (MRE, 13 de
Maio de 2010).

Para promover a sua cooperação no sector agrícola, o governo brasileiro


apoia-se essencialmente na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Em-
brapa), uma instituição pública vinculada ao Ministério da Agricultura brasileiro,
cuja sede em África encontra-se em Acra, no Gana, desde 20067. Essencialmente,
as actividades da Embrapa consistem na transferência de tecnologia, formação de
recursos humanos e capacitação institucional. Em 2008, 60% das solicitações de
assistência técnica e de desenvolvimento de recursos humanos feitos à Embra-

6
Sobre o interesse brasileiro na agricultura africana, ver também Freemantle e Stevens (2010),
“Brazil weds itself to Africa’s latent agricultural potential”, Economics, Standard Bank; ABC
(2010), Diálogo Brasil-África em Segurança Alimentar, Combate à Fome e Desenvolvimento Rural,
Brasília.
7
Ver: http://www.embrapa.gov.br.

376 Desafios para Moçambique 2011 Economias “Emergentes”

Desafios.indb 376 3/29/11 4:54 PM


pa vinham de países africanos (Cerqueira, 5 de Maio de 2008). Neste momento,
segundo Lula da Silva, a Embrapa coordena 35 projectos agrícolas avaliados em
10 milhões de dólares americanos espalhados por 16 países africanos, incluindo
Moçambique (O Globo, 3 de Julho de 2010).
A Embrapa tem estado bastante activa em promover a tecnologia e os agro-
-negócios brasileiros em África, de tal sorte que é considerada pelo governo brasi-
leiro como um “instrumento de política externa” (Estadão, 10 de Julho de 2008).
Por exemplo, sob o impulso da Embrapa, que conta com o apoio da International
Fund for Agricultural Development (IFAD), do Banco Mundial (BM), do Depar-
tament for International Development (DFID) e do Forum for Agricultural Re-
search in Africa (FARA), foi criada, em Maio de 2010, a Plataforma África-Brasil
de Inovação Tecnológica (Africa-Brasil Agricultural Innovation Marketplace) do-
tado de um fundo inicial de 500 mil dólares atribuídos pelo IFAD. O objectivo
desta plataforma é de “Incrementar a inovação e o desenvolvimento da agricultura no
continente africano por meio do estabelecimento e fortalecimento de parcerias entre orga-
nizações africanas e brasileiras (FARA e Embrapa, 2010)”. Até Junho de 2010, esta
plataforma tinha conseguido angariar 3 milhões de dólares. Uma vez mais, o papel
essencial da Embrapa será o de fornecer o know-how tecnológico (Silveira, 2010).
Igualmente, a Embrapa acaba de concluir um acordo com a Câmara Secto-
rial de Máquinas e Implementos Agrícolas (CSMIA) para a criação de um portal
denominado Agrishow – Pró-África (Agronegócio, 2010), cujo objectivo é promo-
ver a tecnologia agropecuária brasileira, a venda de máquinas e equipamentos
agrícolas aos africanos (Portal do agro-negócio, 2 de Julho de 2010).
Entretanto, o maior interesse do Brasil no sector agrícola são os biocombus-
tíveis, área em que este país é líder mundial, de tal sorte que a política externa do
presidente Lula da Silva é chamada por alguns por “diplomacia de etanol” (Pinhei-
ro, 2008; Couto, 2010). Com efeito, em quase todas as viagens de Lula da Silva
ao estrangeiro, em particular à África, os biocombustíveis estiveram sempre em
destaque. Em 2007, no Burquina Faso, Lula da Silva afirmou que os biocombus-
tíveis eram uma saída segura para África no acesso à energia sustentável, geração
de empregos, de renda, de autonomia energética e no aumento das suas exporta-
ções (Folha Online, 15 de Outubro de 2007). Igualmente, para contrariar os que
afirmam que os biocombustíveis podem conduzir ao encarecimento dos preços
dos alimentos, Lula afirmou que o exemplo brasileiro mostrava que não havia
contradição entre biocombustíveis e segurança alimentar (Idem).

Economias “Emergentes” Desafios para Moçambique 2011 377

Desafios.indb 377 3/29/11 4:54 PM


Em 2008, no Gana — país com o qual o Brasil, através do Banco Nacional de
Desenvolvimento Económico e Social (BNDES), fechou o primeiro acordo para a
produção e exportação de etanol — e, em 2010, em Cabo Verde — que, como já se
disse, simbolizou a sua última viagem a África enquanto chefe de Estado — Lula da
Silva voltou a defender fortemente os biocombustíveis, afirmando que estes eram prio-
ridade do Brasil na sua cooperação com África e a convidar os africanos para a eles
aderirem (Souza, 22 de Abril de 2008; O imparcial Online, 3 de Julho de 2010).
Por seu turno, a Embrapa tem realizado uma série de iniciativas com vista à
sensibilização dos africanos sobre a importância dos biocombustíveis. Por exem-
plo, entre 19 de Outubro e 2 de Novembro de 2009, a Embrapa iniciou uma sé-
rie de seminários sobre biocombustíveis em sete países africanos, nomeadamente
África do Sul, Angola, Botsuana, Moçambique, Tanzânia, Zâmbia e Zimbabué
(Embrapa, 2009a).
Entretanto, se até hoje a maior parte das iniciativas brasileiras no sector agrí-
cola africano são realizadas pela Embrapa, empresas privadas deste país também
começam a investir em África. São os casos do Grupo Pinesso e Irriger, ambas
investindo no Sudão. O Grupo Pinesso — que vai entrar com a parte técnica e
tecnológica —, em parceria com o grupo sudanês Agadi, vai entrar, em 2010, num
grande projecto de produção de algodão e soja, num investimento estimado em
cerca de 200 milhões de dólares numa área de 100 mil hectares por um período de
quatro anos. Por seu lado, a Irriger está desde 2008 a ajudar o Sudão a implantar
sistemas de irrigação.
É preciso sublinhar também que uma das características importantes da coo-
peração brasileira no sector agrícola está baseada na transferência de tecnologias,
criação de competências (humanas e institucionais).

ÍNDIA EM ÁFRICA: TRAZENDO A “REVOLUÇÃO VERDE”?

Não há dúvidas de que os programas Focus Africa e Team-9, lançados pela


Índia através do Exim Bank em 2002 e 2004 e dotados, respectivamente, de uma
linha de crédito de 550 e 500 milhões de dólares, simbolizaram o começo de uma
nova era nas relações entre este país e África. Cobrindo o período 2002-2007, e
focado no princípio em apenas sete países (África do Sul, Maurícias, Nigéria, Tan-
zânia, Quénia, Gana e Etiópia), que na altura representavam quase 70% das trocas

378 Desafios para Moçambique 2011 Economias “Emergentes”

Desafios.indb 378 3/29/11 4:54 PM


comerciais entre a Índia e África, o Focus Africa, cujo objectivo oficial é impulsio-
nar o comércio entre a Índia e a África subsariana, foi estendido para mais 17 ou-
tros países africanos, perfazendo um total de 24 países8. Diferentemente do Focus
Africa, o Team-9 é um programa em projectos bilaterais e sub-regionais dirigido
a nove países da África Ocidental, nomeadamente Guiné-Bissau, Burkina Fasso,
Guiné Equatorial, Mali, Senegal, Gana, Chade e Costa do Marfim. O objectivo
oficial deste programa é o de criar e desenvolver capacidades institucionais dos
países africanos nas áreas de segurança alimentar, infra-estruturas, saúde, energia
e tecnologias de informação e comunicação. Se estes dois programas representam
um interesse cada vez maior da Índia em relação à África, mostram também as
diferenças de abordagens entre a Índia e a China e o Brasil na sua cooperação
com África. Por exemplo, o programa Team-9 mostra a preocupação da Índia em
aprovisionar-se dos recursos energéticos (petróleo e gás) abundantes nesta área e
que fazem muita falta à Índia (Singh 2007). É preciso salientar também que, para
além do Focus Africa e do Team-9, a Confederação de Indústrias da Índia (CII),
com ajuda dos ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Indústria e Comércio
indiano, lançou, em 2005, o projecto CII – EXIM BANK Conclave sobre a Par-
ceria Índia-África. Trata-se de um programa que se realiza uma vez por ano e que
visa estreitar as relações económicas entre a Índia e a África, facilitando encontros
entre empresários indianos e africanos. Desde o seu estabelecimento, foram reali-
zados dez encontros em diferentes países, nomeadamente Zâmbia, Etiópia, Gha-
na, Moçambique, África do Sul, Costa do Marfim, Uganda, Senegal e Tanzânia.
Entretanto, pode-se dizer que foi a cimeira Índia-África, realizada em Nova Deli,
em Abril de 2008, e considerada a mais importante jamais realizada entre as duas par-
tes (estiveram presentes nesta cimeira catorze países africanos), que traçou as balizas
da cooperação entre as duas partes. Reconhecendo que o desenvolvimento agrícola
era importante para erradicar a fome e a pobreza e garantir a auto-suficiência alimen-
tar, a agricultura foi definida como uma das áreas-chave de cooperação, tendo a Índia,
graças à sua experiência neste domínio, se oferecido a ajudar os países africanos a
desenvolver este sector (Africa — Índia Forum Summit 2008). A caixa a seguir resume
os pontos-chave concernentes à agricultura contidos na Declaração de Deli.

8
Trata-se de Angola, Botswana, Costa do Marfim, Madagáscar, Moçambique, Senegal, Seychelles,
Uganda, Zâmbia, Namíbia Zimbabwe, Egipto, Líbia, Tunísia, Sudão, Marrocos, Argélia. Sobre
os objectivos do Focus Africa ver Government of India (s/d).

Economias “Emergentes” Desafios para Moçambique 2011 379

Desafios.indb 379 3/29/11 4:54 PM


CAIXA 1 ÁREAS FUNDAMENTAIS DE COOPERAÇÃO AGRÍCOLA ÍNDIA-ÁFRICA

• Capacitação e troca de experiência em análise e planeamento de políticas relativas ao sector agrícola;


• Cooperação em matérias de gestão dos recursos hídricos e práticas de irrigação, desenvolvimento de
infra-estruturas agrícolas, transferência de tecnologia agrícola aplicada e de competências;
• Cooperação no combate às pragas agrícolas;
• Capacitação/treinamento para aumentar a capacidade do detentor da terra dos pequenos produtores
de alimentos africanos para cumprir com a necessária qualidade e normas de segurança, incluindo ex-
tensão de actividade e as políticas de crédito agrícola;
• Partilhar experiências e informações sobre o armazenamento adequado e tecnologias de processa-
mento e promover em conjunto a captação de tecnologias africanas e indianas desenvolvidas para a
diversificação e agregação de valor nas relações de produtos agrícolas e alimentares;
• Compartilha de conhecimentos e informações entre as associações de produtores da África e da Índia,
com vista à aprendizagem a partir de experiências uns dos outros na mecanização agrícola, tecnologia
pós-colheita, agricultura biológica, políticas e marcos reguladores e a criação de conselhos transfron-
teiriços de troca de mercadorias;
• Oportunidades de mercado para reforçar o valor acrescentado africano de produtos agrícolas africanos;
• Cooperação na gestão pecuária, multiplicação de tecnologias de processamento de carne, desenvolvimento
da indústria leiteira, pesca e aquacultura, incluindo o intercâmbio e transferência de tecnologia aplicada;
• Estabelecer vínculos entre a agricultura e o desenvolvimento industrial, a fim de apoiar e fomentar as
indústrias de agro-processamento e;
• Reforçar a cooperação entre os centros de formação agrícola e institutos de pesquisa.

FONTE Africa - India Forum Summit, 2008

A seguir à Cimeira de Nova Deli de 2008, uma série de iniciativas com vista
à dinamização do sector agrícola africano têm sido levadas a cabo. Em Novembro
de 2008, sob iniciativa do governo indiano, da Indian Farmers Fertiliser Cooperative
Limited (IFFCO)9, Indian Council of Agricultural Research (ICAR)10 e a IFFCO
Foundation, foi realizada a conferência “India-Africa Cooperation for Sustainable
Food Security”, destinada a discutir as melhores soluções para uma melhor coo-
peração no reforço da segurança alimentar em África (IFFCO Foundation, 2008).
Igualmente, e dando seguimento às decisões tomadas na cimeira de Nova Deli
de 2008, a Índia também se comprometeu, em Março de 2010, a oferecer anualmente,
durante um período de quatro anos, 25 e 50 bolsas de estudos a estudantes africanos
para os níveis de Doutoramento e de mestrado, respectivamente, ligados ao sector
agrícola (Indiavision, 10 de Março de 2010; Thestatesman, 10 de Março de 2010).
É preciso sublinhar também que cerca de 30% dos fundos do programa Focus
África, geridos pelo Exim Bank em forma de Linha de crédito, foram dedicados à
compra de equipamentos agrícolas e/ou projectos correlacionados (Modi, 2009: 122).

9
Sociedade cooperativa de farmeiros indianos especializada na produção e distribuição de
fertilizantes.
10
Uma instituição de pesquisa e ensino em agricultura no Ministério da Agricultura indiano.

380 Desafios para Moçambique 2011 Economias “Emergentes”

Desafios.indb 380 3/29/11 4:54 PM


Paralelamente às acções do governo indiano, empresas deste país têm estado
a investir no sector agrícola africano, sobretudo em alguns países da África oci-
dental, tais como Senegal e Etiópia. Só na Etiópia, segundo maior parceiro econó-
mico da Índia em África após o Senegal, dos 4.4 biliões de dólares investidos por
80 empresas indianas, 2.5 biliões de dólares americanos foram para a agricultura
e floricultura (Modi, 2009:125). No Senegal, a implementação em 2005 de um
grande programa de produção do arroz entre o governo local e a indiana Kirloskar
Brothers Limited (KBL) — empresa presente em mais de 25 países africanos — per-
mitirá, segundo as autoridades senegalesas, atingir auto-suficiência alimentar em
matéria do arroz em 2012 (Guèye, 2008). Avaliado em 27 milhões de dólares, hoje
já se fala em sucesso deste programa.
Entretanto, à semelhança do que se diz sobre a China, também se fala de que
empresas indianas estão envolvidas num processo de açambarcamento de terras em
África, o que, para além de ser exclusivamente para o consumo na Índia, pode trazer
impactos ambientais negativos e também provocar conflitos de terra. O caso mais
citado é o de Gambela, um dos nove estados da Etiópia, onde firmas indianas teriam
comprado grandes porções de terra. Três companhias indianas são citadas como
sendo as grandes açambarcadoras de terra em Gambela, nomeadamente a Karuturi,
a BHO Agro Plc e a Ruchi Group (Afriknews, 2010; ECADF, 2010). A primeira
teria arrendado 300 mil hectares, ou seja, uma área maior que o Luxemburgo, para
produzir trigo exclusivamente para a Índia. Por seu turno, a BHO Agro Plc e a Ruchi
Group teriam arrendado, cada uma, 27.000 hectares — área considerada como sendo
mais de metade de Adis-Abeba, capital da Etiópia — e 25.000 hectares de terra para
a produção de sementes para biocombustíveis (Idem).
Um dos maiores centros de interesse dos investimentos indianos é o dos
biocombustíveis e a floricultura. Em relação aos biocombustíveis, em 2006, por
exemplo, a Índia atribuiu aos países da África Ocidental um crédito de 250 mi-
lhões de dólares para o desenvolvimento de biocombustíveis (Santuah, 2006). Um
dos maiores investimentos indianos no Gana no sector agrícola é no sector dos
biocombustíveis. A floricultura ocupa uma parte importe dos investimentos india-
nos na Etiópia. Isto tem também levantado algumas críticas, sendo acusados os
investimentos indianos de não estarem a contribuir para a redução da insegurança
alimentar em África11.

11
Ver, por exemplo, Africa Confidential (2010).

Economias “Emergentes” Desafios para Moçambique 2011 381

Desafios.indb 381 3/29/11 4:54 PM


CHINA, ÍNDIA E BRASIL NA AGRICULTURA MOÇAMBICANA:
AINDA NA FASE DE PROMESSAS

Falar da agricultura em Moçambique é extremamente importante: desde os


primeiros anos de independência, a agricultura é considerada a “base do desenvol-
vimento nacional” (pelo terceiro Congresso da Frelimo em 1977 e consagrado na
Constituição art. 103); o sector ocupa, segundo dados do Instituto Nacional de Es-
tatísticas (INE), a maior parte da população do país, cerca de 76% (INE, 2009a); e
a agricultura tem um peso importante no Produto Interno Bruto de Moçambique,
24% em 2009 (INE, 2009b).12 Contudo, e aqui a importância de se discutir o tema
acentua-se pelo facto de o país não conseguir, até hoje, desenhar estratégias claras
de modo a que este sector seja, como se pretende, o pilar dos outros sectores da
economia do país. O sector agrícola é incontestavelmente um dos que mais “dores
de cabeça” tem dado aos governantes em Moçambique, sendo ilustrativo o facto
de: desde 2005, ano em que o actual presidente, Armando Guebuza, tomou posse,
o Ministério da Agricultura (MINAG) já ter sofrido quatro remodelações minis-
teriais. Estarão os “emergentes” a ajudar Moçambique a encontrar uma solução
para este sector?

CHINA: TRAZENDO O ARROZ HÍBRIDO PARA MOÇAMBIQUE


Embora a China e Moçambique tenham sempre cooperado na área da agri-
cultura desde os primeiros anos da independência do país africano13, para o pro-
pósito deste trabalho começar-se-á com o memorando de entendimento (MoU)
firmado pelas partes em 2002, aquando da visita do antigo primeiro ministro de
Moçambique, Pascoal Mocumbi, à China (MFAPRC, 2002). Este memorando, vá-
lido por um período de cinco anos (2002-2007), previa cooperação em diferentes
domínios, nomeadamente florestas, produção de arroz, biotecnologia, pecuária,
processamento, controlo de doenças e pestes e investigação.
Um dos grandes destaques da cooperação entre Moçambique e China no
sector agrícola é o estabelecimento de um centro de tecnologias agrárias em Boa-
ne, sul de Moçambique. Avaliado em 55 milhões de dólares, o Centro de Tecnolo-

12
Em 1994, Castel-Branco (1994) dizia que a agricultura e as agro-indústrias contribuíam com
cerca de 50% do PIB e com 2/3 das exportações de Moçambique.
13
Em 1977, falava-se do estabelecimento uma farma estatal produzindo arroz em Moamba, sul de
Moçambique (Eadie & Grizzelli, 1979).

382 Desafios para Moçambique 2011 Economias “Emergentes”

Desafios.indb 382 3/29/11 4:54 PM


gias Agrárias está a ser estabelecido com ajuda do governo da província de Hubei,
e é o primeiro de entre os 14 centros que a China prevê estabelecer em África.
A China está também interessada em ajudar Moçambique a incrementar a
sua produção de arroz. Em 2006, uma delegação do Instituto Híbrido do Arroz
de Hunan visitou Moçambique a fim de estudar as possibilidades de desenvolver
esta variedade de cereal. Para além disso, em 2010, um grupo de técnicos moçam-
bicanos (juntamente com técnicos de Timor-Leste, Angola e Guiné-Bissau) foi
formado em técnicas de produção de arroz híbrido em Hunan. Neste momento, o
destaque vai para o projecto de produção de arroz híbrido em Xai-Xai, província
de Gaza, levado a cabo desde 2006 pela Hubei Liafeng Company e resultante de
um acordo de gemelagem entre esta província moçambicana e a província de
Hubei. Orçado em 1.200.000 dólares norte-americanos, actualmente a produção
do arroz está a efectuar-se numa área de somente 300 hectares, mas prevê-se a sua
extensão para 10 mil hectares. Ainda no quadro deste projecto, vislumbra-se ainda
a produção de hortofrutícolas em Moamba, província de Maputo. Este projecto
experimental pretende fazer passar a produção do arroz em Moçambique, que é
estimada em cerca de uma tonelada por hectare, para 10 toneladas por hectare.
A tabela a seguir mostra a evolução da produção da Hubei Lianfeng Company
durante os três primeiros anos (2007-2010), de acordo com fontes oficiais.

TABELA 1 EVOLUÇÃO DA PRODUÇÃO DE ARROZ PELA HUBEI LIANFENG COMPANY

Campanha Área (Hectare) Rendimento (Tonelada/Hectare) Produção (Toneladas)


2007/2008 20 9 180
2008/2009 30 9 270
2009/2010 40 9,5 380

FONTE Direcção Provincial de Agricultura de Gaza, 2010

Outro destaque é o crédito concessional de 50 milhões de dólares atribuído


pelo governo chinês a Moçambique através da China Eximbank, o qual é desti-
nado ao uso em projectos agrícolas no Vale do Zambeze. Deste fundo, que está
sob a gestão do Gabinete do Plano de Desenvolvimento do Zambeze (GPZ), 30
milhões serão usados na construção de três fábricas de agro-processamento de
produtos agrícolas nas províncias de Tete e Zambézia, enquanto os restantes 20
milhões serão usados na importação de equipamentos.

Economias “Emergentes” Desafios para Moçambique 2011 383

Desafios.indb 383 3/29/11 4:54 PM


No que diz respeito ao investimento de empresas chinesas (privadas e esta-
tais) na agricultura moçambicana, os dados do Centro de Promoção de Investi-
mentos (CPI) mostram que, entre 2000 e 2009, houve cinco empresas chinesas
que investiram na agricultura moçambicana, num total de 8.460.000 de dólares14,
correspondentes a cerca de 5% do total do investimento chinês situado no mesmo
período em 177.954.087 dólares.

TABELA 2 - INVESTIMENTO CHINÊS NA AGRICULTURA EM MOÇAMBIQUE (2000-2009)

Postos de trabalho
Empresa Ano Província IDE* (USD) Total**
previstos
União dos Trabalhadores
2003 Sofala 1.000.000 1.000.000 150
de África
China Grains & Oils Group
2005 Sofala 5.500.000 6.000.000 150
Corporation Africa

Xin Jian Companhia 2006 Zambézia 195.000 200.000 200

Hubei Liafeng Mozambique 2007 Gaza 1.200.000 1.200.000 6

Wen Chen Liao 2009 Sofala 60.000 60.000 60

FONTE CPI, 2010a

NOTAS
(*) IDE = Investimento Directo Estrangeiro Chinês
(**) TOTAL = IDE + Investimento Directo Nacional + Empréstimos

Como se pode depreender, tanto a ajuda do governo chinês, como o inves-


timento de empresas deste país no sector agrícola moçambicano ainda é bastante
insignificante, principalmente se comparado com os montantes investidos pelo
governo e empresas chinesas em outras áreas, nomeadamente na indústria. Só
para ter uma ideia, segundo dados do CPI, entre 2000 e 2009, empresários chi-
neses investiram cerca de cento e quinze milhões de dólares neste sector (CPI,
2010a). Isto não quer dizer que não haja interesse chinês em investir na agricultura
moçambicana. São as palavras de um funcionário sénior do MINAG:

Em termos de investimentos, não está a acontecer grande coisa, muito pouco dinheiro
metido pela China na agricultura. Tirando a questão do GPZ, equipamento, a única coisa
é Xai-Xai. Tudo ainda está numa fase inicial (entrevista, 1 de Setembro de 2010).

14
Entre 1990 e 2000, ou seja, antes do primeiro FOCAC, o único caso assinalável é o investimento
de 500 mil dólares da Zhong An Mozambique.

384 Desafios para Moçambique 2011 Economias “Emergentes”

Desafios.indb 384 3/29/11 4:54 PM


Entretanto, à semelhança do que tem sido evocado a respeito da China nou-
tros países africanos, notícias relativas ao açambarcamento de terra por investi-
dores chineses em Moçambique não tem faltado. A mais mediática ocorreu em
2008, quando o investigador Loro Horta publicou uma notícia segundo a qual os
governos de Moçambique e da China tinham assinado um acordo para transfor-
mar o Vale do Zambeze na primeira “colónia” agrícola chinesa em África (Horta,
2008). De acordo com Horta, os chineses que estavam interessados em produzir
arroz iriam, numa fase inicial, enviar 3.000 farmeiros (número que subiria depois
para 10.000) para as províncias da Zambézia e Tete com o objectivo de produzir
arroz exclusivamente para o consumo naquele país asiático. Isto faria parte de
um plano chinês de modernização do sector agrícola moçambicano, avaliado em
800 milhões de dólares americanos, que pretenderia fazer com que Moçambique
passasse a produzir, em cinco anos, 500 mil toneladas de arroz/ano ao invés das
actuais 100 mil toneladas. De acordo com Loro Horta, a concessão de fundos
para grandes projectos, tais como construção da ponte da Catembe e, eventual-
mente, da Barragem de Mpanda Nkhuwa, dependeria da concessão de terras aos
chineses. Entretanto, alegando que “em Moçambique a terra não se arrenda nem
se vende”, o governo deste país desmentiu prontamente esta informação (RTP, 13
de Maio de 2008) — certamente devido à sensibilidade desta questão. Igualmente,
segundo Brautigäm e Xialong (2009: 697-698) e Brautigäm (2010), não há evidên-
cias de isto estar a acontecer, e este tipo de notícias faria parte de um de entre os
diferentes mitos criados à volta da presença chinesa em África.
Contudo, o que é certo é que a China está neste momento a financiar projectos
para o desenvolvimento da agricultura no Vale do Zambeze, por intermédio do GPZ.

ÍNDIA NA AGRICULTURA MOÇAMBICANA: AINDA À ESPERA DA “REVOLUÇÃO


VERDE”
Embora a Índia faça parte dos primeiros países a estabelecerem relações di-
plomáticas com Moçambique, a primeira comissão conjunta entre os dois países
foi constituída em Dezembro de 2002, aquando da visita do então Ministro dos
Negócios Estrangeiros indiano, Digvijay Singh, a Maputo. Um MoU entre os dois
países na área agrícola foi assinado em 2003, quando o então presidente de Mo-
çambique, Joaquim Chissano, estava de visita à Índia. Para os governos dos dois
países, uma cooperação activa nos sectores agrícola e agro-industrial era extrema-
mente importante (High Commission of India, 12 de Maio de 2003).

Economias “Emergentes” Desafios para Moçambique 2011 385

Desafios.indb 385 3/29/11 4:54 PM


Este MoU preconizava, de entre outros, o estabelecimento de um Plano de
Acção para a criação de pequenas agro-indústrias nas zonas rurais e no desenvol-
vimento da exploração agrícola, em especial da agricultura comercial em Moçam-
bique, através do estabelecimento de Joint-Ventures (Idem). Nessa altura, o governo
indiano comprometeu-se, por um período não especificado, a conceder um crédi-
to anual de 200 000 dólares americanos para a instalação em Nangade, província
de Cabo Delgado, norte de Moçambique, de uma fábrica de processamento da
Castanha de caju (IndiaAfricaconnect, s/d).
Entretanto, embora a HMT (Internacional) Ltd, empresa indiana encarregue
de fornecer o equipamento da nova fábrica, tenha enviado o equipamento em
2007, devido a dificuldades de vária ordem e imputadas ao governo de Moçam-
bique pelo governo indiano a quem acusa de não aproveitar a ajuda oferecida, tal
fábrica ainda não foi construída (MINAG, 2009)15.
Aquando da 2ª reunião da Comissão conjunta Moçambique-Índia realizada
em Nova Deli em 2009, a agricultura foi uma das áreas que mereceu destaque, com
a Índia, uma vez mais, a prometer ajudar a promover, não só do ponto de vista fi-
nanceiro mas também técnico, a agricultura e a agro-indústria, a fim de que Moçam-
bique atinja a “revolução verde” (MINEC, 2009). Nesta reunião, na qual o gover-
no indiano se disponibilizou a conceder um financiamento de 118.600.000 dólares
norte-americanos para o biénio 2009-2010, vários programas visando a agricultura
e segurança alimentar em Moçambique foram acordados, com destaque para um
projecto de segurança alimentar avaliado em 20 milhões de dólares. Para além disto,
o governo indiano ainda ofereceu um donativo de um milhão de dólares para ser
usado em projectos ligados ao Agro-processamento e ao Agri-business e manifestou
interesse em estabelecer uma fábrica de fertilizantes estimada em 2 biliões de dó-
lares norte-americanos (MINEC, 2009). Contudo, a concessão deste donativo está
sujeita à elaboração e apresentação de projectos concretos por Moçambique junto
do governo indiano (Idem).
A agricultura (juntamente com infra-estruturas e energia) faz parte dos sec-
tores contemplados pelo crédito indiano de 500 milhões de dólares anunciado em
Setembro de 2010 aquando da visita do actual presidente de Moçambique à Índia
(Thaindian News, 30 de Setembro de 2010).

15
O governo indiano queixava-se ainda de, entre 2007 e 2008, não terem sido enviados técnicos
moçambicanos para formação em curso sobre questões agrícolas oferecidos por este país
(MINAG, 2009).

386 Desafios para Moçambique 2011 Economias “Emergentes”

Desafios.indb 386 3/29/11 4:54 PM


Se, do ponto de vista bilateral, a cooperação entre os dois países resume-se
essencialmente no que foi dito atrás, os investimentos privados indianos na agri-
cultura moçambicana, — forma principal dos investimentos indianos em África —
são, de acordo com os dados do CPI, ínfimos16.
Destes poucos investimentos, o destaque vai para o investimento de 224 mi-
lhões de dólares em 2009 pela Grown Energy Zambeze, empresa que, para além
de capitais indianos, também conta com capitais moçambicanos e sul-africanos
para a produção de etanol na base de cana-de-açúcar, numa área de 15.000 hec-
tares em Chemba, província de Sofala. Pode-se citar também o caso da Sagar
Zambeze, sociedade agrícola que, em 2001, investiu 120 mil dólares na comercia-
lização, processamento e exportação de feijão bóer17.
Em relação aos biocombustíveis, fala-se também de uma provável parceria
entre a empresa indiana Rusni Bio-Fuels e a Empresa moçambicana Petróleos de
Moçambique (PETROMOC), num projecto de produção de etanol com base na
cana-de-açúcar, avaliado em 30 milhões de dólares (IndiaAfricaconnect, s/d).
Portanto, contrariamente a algumas informações segundo as quais a Índia,
juntamente com outros países asiáticos (China e Vietname), estaria investindo
massivamente na agricultura moçambicana, a presença indiana na agricultura mo-
çambicana é — apesar das reiteradas intenções indianas — ainda pouco significan-
te.18 ·Os diferentes acordos assinados entre os dois países no sector agrícola, com
destaque para o MoU de 2003, ainda não passam de letra morta.. Esta constatação
também é confirmada por um alto funcionário do MINAG:

Em relação à Índia, há iniciativas, mas também não há grandes investimentos… desde os


tempos do Agostinho de Rosário [antigo embaixador moçambicano na Índia], sempre
houve interesse, houve deslocações… tivemos uma iniciativa triangular com a FAO no
fomento da cultura do arroz, mas também não foi grande coisa… de momento não há
nada de concreto. Há intenções claramente declaradas… inclusive existe intenção de a
Índia desenvolver, nos próximos dois anos, uma linha de crédito para o desenvolvimento
da agricultura em Moçambique (F. Songane, Entrevista, 1 de Setembro de 2010).

16
O destaque aqui vai para o sector dos transportes e comunicações que, entre 2002 (ano do lançamento
do programa Focus Africa) e 2009, recebeu cerca de 180 milhões de dólares em investimentos. Cerca
de 152 milhões deste valor foi investido pela Rites Ltd e Ircon International Ltd em parceria com os
Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM), para a constituição da Companhia dos Caminhos de
Ferro da Beira (CCFB) que, para além de ter reabilitado as linhas férreas de Sena e de Machipanda,
faz a gestão do porto e dos caminhos-de-ferro ou seja, do corredor da Beira. Ver CPI (2010b, c e d).
17
Em 2005, a Sagar Zambézia deparava-se com inúmeras dificuldades, levando ao desemprego
dezenas de trabalhadores. Sobre este assunto ver, Benedito (2005).
18
Sobre o suposto investimento massivo da Índia e de outros países asiáticos na agricultura
moçambicana, ver Nyanhi (2009); Smith (2009) e Agriculture & Industry Survey (2010).

Economias “Emergentes” Desafios para Moçambique 2011 387

Desafios.indb 387 3/29/11 4:54 PM


Entretanto, se a ajuda e os investimentos indianos na agricultura moçambicana
ainda estão numa fase bastante incipiente, não se pode dizer que Moçambique não
esteja no centro das atenções daquele país asiático. Actualmente o quarto maior
investidor em Moçambique, a Índia tem estado a reforçar a sua posição neste país,
prevendo-se, segundo fonte do CPI, que os seus investimentos passem dos cerca de
500 milhões de dólares em 2009 para mil milhões de dólares em 2010 (Macahub, 6
de Julho de 2010). Os investimentos indianos têm-se destacado na área mineira, em
particular na exploração do carvão mineral. Na área mineira, o carvão na província
de Tete é que está a ser fortemente investido por empresas indianas, como a Coal
Índia, a Tata Steel Ltd, a Global Steel Holding (GSH), a Jindal Steel, Videocon, Ada-
ni Group e M/s P.K. Ores of Orissa (IndiaAfricaconnect, s/d).

MOÇAMBIQUE: UM NOVO BRASIL EM ÁFRICA?


Moçambique faz parte dos países visitados pelo presidente Lula da Silva no
seu primeiro périplo a África na qualidade de presidente do Brasil em 2003. De-
pois desta sua primeira visita, o presidente brasileiro veio mais duas vezes a Mo-
çambique (2008 e 2010). Sendo um país da CPLP, Moçambique é visto pelo Brasil
como um parceiro estratégico em África e faz parte dos principais beneficiários da
política pro-africana de Lula.
À semelhança da diplomacia de Lula da Silva para com o resto da África,
um dos sectores de maior aposta do Brasil na sua cooperação com Moçambique
é o sector agrícola, e a maior aposta é na área dos biocombustíveis. Neste sector,
o Brasil — que conta com grande apoio do governo de Moçambique, que inclu-
sive aprovou uma Política Nacional dos Biocombustíveis — espera transformar
este país num grande produtor em África, ou seja, numa espécie de novo Brasil.
Moçambique é o terceiro país africano onde a Embrapa tem escritório, depois do
Gana (sede da Embrapa em África) e do Senegal (ABC, 2010: 24). De realçar que
a instalação do escritório da Embrapa em Maputo tem como um dos objectivos
iniciais apoiar a Vale S.A. em um dos projectos sociais a que está obrigada — em
virtude de ter ganho o direito de explorar carvão mineral em Moatize, província
de Tete —, mais precisamente no desenvolvimento da agricultura familiar das po-
pulações vivendo nesta região mineira. Orçado inicialmente em 650 mil dólares
norte-americanos, este projecto, no qual a Embrapa está a trabalhar também com
o GPZ, prevê um investimento de cerca de três milhões de dólares em dez anos
(Embrapa, 2005).

388 Desafios para Moçambique 2011 Economias “Emergentes”

Desafios.indb 388 3/29/11 4:54 PM


Entretanto, a presença brasileira na agricultura em Moçambique faz-se es-
sencialmente sob a forma de cooperação multilateral, mais concretamente trilate-
ral, havendo quase que nenhum investimento do sector privado brasileiro.
Destas iniciativas triangulares, podem ser destacadas três: a primeira é o Progra-
ma de Cooperação para o Desenvolvimento Agrícola das Savanas Tropicais de Mo-
çambique – ProSavana. Resultante da cooperação entre o Japão (através da Agência
Japonesa de Cooperação Internacional - JICA), do Brasil (através da Embrapa, que
também conta com ajuda da Agência Brasileira de Cooperação, ABC), e do Instituto
de Investigação Agronómica de Moçambique (IIAM), o projecto pretende desenvol-
ver a agricultura tropical no chamado “corredor de Nacala”, abrangendo alguns dis-
tritos das províncias de Nampula, Zambézia e Niassa. A escolha desta região deve-se
ao facto de se considerar que ela tem características geográficas semelhantes às do
cerrado brasileiro. A ideia é replicar em Moçambique o sucesso obtido no cerrado
brasileiro, que também beneficiou da cooperação entre o Brasil e o Japão19. Dotado de
um fundo de 500 milhões de dólares para um período de 10 anos, para além de de-
senvolver a pecuária, o programa pretende desenvolver também culturas alimentares,
de rendimento e para biocombustíveis, nomeadamente mandioca, milho, arroz, soja,
algodão, castanha de caju, cana-de-açúcar, tabaco. Para além disto, projecta-se a ins-
talação de três bases científicas a serem montadas em Nampula, Chimoio e Mutuali.
Se este projecto obtiver sucesso, será usado como modelo noutros países
africanos (ABC, 2010: 12). Enquanto a JICA entrará com recursos financeiros, a
Embrapa entrará com a assistência técnica e tecnológica (Global Perspectives, 27
de Agosto de 2009).
O segundo projecto que merece destaque é o projecto de fortalecimento ins-
titucional do IIAM, com o estabelecimento de gestão territorial; estabelecimento
de sistemas de comunicação e informação para a transferência de tecnologias,
desenvolvimento e implementação do modelo de gestão, acompanhamento, mo-
nitoria e avaliação da investigação agrária. O projecto, no formato de coopera-
ção trilateral, terá a duração de quatro anos (2011-2015), e envolverá a ABC, a
Embrapa e a USAID. Este programa é financiado em grande parte pela USAID
(cerca de 8 milhões de dólares), com uma parte a ser financiada pela ABC (cerca
de 4 milhões de dólares). A Embrapa vai entrar com o suporte técnico, num custo
estimado em cerca de 8 milhões de dólares (Embrapa, 2009b; IIAM, 2010).

19
Sobre o sucesso obtido no cerrado brasileiro ver The Economist (2010a; 2010b; 2010c; 2010d).

Economias “Emergentes” Desafios para Moçambique 2011 389

Desafios.indb 389 3/29/11 4:54 PM


O terceiro e último é o projecto triangular entre o Brasil, a União Europeia e
o governo de Moçambique assinado em Julho de 2010, destinado a “promover o
desenvolvimento do sector de bioenergia, com foco em biocombustíveis e bioele-
tricidade (MRE, 14 de Julho de 2010). ” Sem valores monetários ainda definidos,
pretende-se, de acordo com os subscritores, que este projecto pioneiro seja depois
reproduzido noutros países africanos. Para se levar a cabo este projecto, foram
desenhadas duas linhas de acção, nomeadamente:

1) Elaboração de estudo com vista a analisar o potencial moçambicano para o desenvol-


vimento de bioenergia de forma sustentável, bem como o seu impacto sobre a redução da
pobreza no país. O estudo irá analisar diferentes aspectos relacionados com a produção
sustentável de biocombustíveis e de bioelectricidade, levando em conta as perspectivas dos
interesses locais, e avaliando o potencial para atender a demanda doméstica e internacional,
em observância das políticas relevantes sobre sustentabilidade da produção e do uso de
energias renováveis das três partes envolvidas.
2) Promoção de projectos, com base nos resultados do estudo supramencionado, à luz do
objectivo de erradicação da pobreza e em consonância com as estratégias nacionais de
energia, desenvolvimento rural e segurança alimentar. Investimentos públicos e privados
serão encorajados (MRE, 14 de Julho de 2010).

Entretanto, imediatamente após o anúncio do acordo, a Friends of the Ear-


th International (FOEI), uma Organização Não Governamental, reagiu vigoro-
samente contra o seu teor, classificando-o de imoral e perverso, visando apenas
beneficiar a Europa e não Moçambique:

Usar milhares de hectares de terra agrícola para plantações de jatrofa (planta também
conhecida como pinhão-manso) e cana-de-açúcar em Moçambique, um país que sofre de
fome permanente, para cultivos destinados a abastecer carros europeus é imoral e perver-
so (Estadão, 10 de Julho 2010).

É preciso também salientar que Moçambique e Brasil possuem, desde 2007,


um MoU na área dos biocombustíveis, cuja aprovação pelo senado brasileiro
ocorreu em Maio de 2009 (UNICA, 2009). De acordo com a organização bra-
sileira União Nacional de Cana-de-Açúcar (ÚNICA), a aposta em Moçambique
deve-se, entre outros, ao facto de este país poder “exportar etanol para a Europa sem
as sobretaxas impostas ao Brasil” (Idem).
Para além dos projectos já descritos, ainda no âmbito da cooperação trian-
gular, pode ser ainda destacado o projecto entre a Embrapa, o Ministério das Re-
lações Exteriores da França e o Ministério da Agricultura de Moçambique para a

390 Desafios para Moçambique 2011 Economias “Emergentes”

Desafios.indb 390 3/29/11 4:54 PM


formação de técnicos moçambicanos em “Agricultura de Conservação para Agri-
cultura Familiar nas Zonas Tropicais” (Gama, 2009).
A ajuda do Brasil ao sector agrícola moçambicano não se esgota nos pro-
jectos acima enunciados. Só para o biénio 2009/2010, inúmeras outras iniciativas
foram desenhadas como se pode ver na caixa abaixo.

CAIXA 2 QUADRO RESUMO DAS INICIATIVAS DA ABC NA ÁREA DE AGRICULTURA E SEGURANÇA ALIMENTAR EM
MOÇAMBIQUE 2009/2010

Missão Preparatória de treinamento de técnicos moçambicanos em Agricultura de conservação no Brasil.

Missão Multidisciplinar a Moçambique para Avaliação de Projectos. Projecto Apoio ao Desenvolvimento


de Produtos de Previsão de Tempo e Clima pelo Instituto Nacional de Meteorologia de Moçambique.
Missão para avaliação da pesca de pequena escala e aquicultura familiar em Moçambique e as perspecti-
vas de desenvolvimento comunitário e solidário
– Missão de Prospecção para o Projecto Apoio ao Desenvolvimento Gerencial Estratégico de Moçambique.

Missão Brasil-Japão de levantamento de demandas para cooperação agrícola em benefício da Savana


Tropical Africana.
Missão de Alto Nível para Formalização de Cooperação Trilateral Brasil-Japão-Moçambique na Área da
Agricultura.
Missão Conjunta para Elaboração de Projecto de Cooperação Trilateral Brasil – UE.
Projecto De Melhoria Sustentável No Fornecimento De Água E Saneamento Na Província Da Zambézia.
Missão de Cooperação na Área de Agricultura Familiar, para Resgate, produção e Melhoramento de Se-
mentes Crioulas.
Missão conjunta na área da agricultura para elaboração de projecto no âmbito de programa trilateral
Brasil - EUA – Moçambique.
Missão para Capacitação profissional na área do turismo e hospitalidade - Segmento de segurança de
alimentos.
Estudo preparatório para a formulação de projecto de cooperação trilateral em benefício da Savana Tro-
pical Africana. Brasil - Japão – Moçambique
Estudo preparatório para a formulação de projecto de cooperação trilateral em benefício da Savana Tro-
pical Africana. Brasil - Japão – Moçambique
Missão preparatória para elaboração conjunta de plano estratégico de gestão do Instituto de Investiga-
ção Agrária de Moçambique-IIAM, no âmbito do programa tripartido Brasil-EUA-Moçambique.

Missão de negociação de projecto na área de alimentação escolar em Moçambique

Missão de estudos ao Brasil para conhecer os ciclos anuais de plantio e colheita de sementes tradicio-
nais/crioulas.

Projecto de Capacitação Técnica em Ciências Florestais.

Programa de Educação Alimentar e Nutricional Cozinha Brasil-Moçambique.

Projecto Brasil-França de Treinamento de Técnicos Moçambicanos na área de Agricultura de Conservação

FONTE ABC , 2010

Economias “Emergentes” Desafios para Moçambique 2011 391

Desafios.indb 391 3/29/11 4:54 PM


Como se pode ver, o interesse brasileiro pela agricultura em Moçambique
está essencialmente focado em biocombustíveis. No que diz respeito a investi-
mentos privados neste sector, como já disse, são quase que inexistentes. O único
destaque vai para a Açúcar Guarani — terceira maior processadora de cana-de-açúcar
e a segunda maior produtora de açúcar do Brasil —, que detém, deste 2007, uma par-
ticipação de 75% na Companhia açucareira de Sena. Os investimentos privados
brasileiros destacam-se nos sectores da construção e dos recursos minerais, com
empresas como a Odebrecht20, a Camargo Corrêa21 e a Vale S.A.22

CONCLUSÃO

Se a agricultura foi definida pelo Brasil, Índia e China como prioridade na


sua cooperação com África, os investimentos destes países em Moçambique estão
mais focados noutras áreas, nomeadamente na indústria extractiva e na constru-
ção. As intenções, inúmeras vezes reiteradas em torno de ajudar e/ou investir n(a)
agricultura africana, não passam ainda de uma miragem. Convencer empresas
destes países a investirem no sector agrícola moçambicano é, portanto, o primeiro
grande desafio de Moçambique.
Outro desafio é convencer ou atrair empresas agrícolas destes países a in-
vestirem em culturas alimentícias, não apenas em culturas de rendimento e nos
biocombustíveis. Alguns estudos mostram que, à excepção do açúcar, a maior
investimento na agricultura em Moçambique concentrou-se em produtos não
alimentares. Segundo Castel-Branco, entre 1990 e 2008, as intenções de inves-
timento neste sector representaram apenas 13% de todo o investimento privado
aprovado, com o destaque de 80% destes 13% estar somente concentrado em
quatro produtos, nomeadamente açúcar, tabaco, algodão e exploração madeireira
(Castel-Branco, 2010: 39).

20
Para além de participar em parceria com a Camargo Corrêa na construção das instalações da
mina de carvão de Moatize, a Odebrecht vai construir o Aeroporto Internacional de Nacala,
estimado em cerca de 100 milhões de dólares.
21
Segundo dados do CPI (2010c), até 2009, a Camargo Corrêa tinha investido cerca de 3 milhões
de dólares em Moçambique.
22
A Vale S.A., investiu cerca de 170 milhões de dólares americanos nas minas de carvão de
Moatize (CPI, 2010c).

392 Desafios para Moçambique 2011 Economias “Emergentes”

Desafios.indb 392 3/29/11 4:54 PM


Enfim, um aspecto que sempre desincentivou investimentos na área agríco-
la é a questão de infra-estruturas. Um investimento forte em infra-estruturas nas
zonas rurais é crucial para atrair investimentos no sector agrícola. Como dizem
Bräutigam e Xiaoyang (2009: 703), citando um alto responsável chinês, muitas
companhias chinesas, receosas de apenas somarem prejuízos, têm desistido de
investir na agricultura africana devido à falta ou à fraqueza de infra-estruturas,
nomeadamente estradas e electricidade.

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-india-to-work-for-safe-indian-ocean_100437053.html (acedido a 11 de
Outubro de 2010).
The Economist, 2010a. “Brazilian agriculture. The miracle of the cerrado. Brazil
has revolutionised its own farms. Can it do the same for others?”, 26 de
Agosto, http://www.economist.com/node/16886442?story_id=16886442
(acedido a 18 de Outubro de 2010).
The Economist, 2010b. “Brazil’s agricultural miracle. How to feed the world.
The emerging conventional wisdom about world farming is gloomy.
There is an alternative”, 26 de Agosto, http://www.economist.com/
node/16889019?story_id=16889019 (acedido a 18 de Outubro de 2010).
The Economist, 2010c. “Brazilian agriculture. The world’s farm. Brazil’s
success in agriculture”, 27 de Agosto, http://www.economist.com/
node/16913525?story_id=16913525 (acedido a 18 de Outubro de 2010).

Economias “Emergentes” Desafios para Moçambique 2011 399

Desafios.indb 399 3/29/11 4:54 PM


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football and Korea, Kashmir, British motorcycles, dirty oil”, 9 de Setembro,
http:// www.economist.com/ node/16990824 (acedido a 18 Outubro de
2010).
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asp?nwsCode={E5209AF6-1F65-4C5B-AD71-7CF6046439B7} (acedido a
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400 Desafios para Moçambique 2011 Economias “Emergentes”

Desafios.indb 400 3/29/11 4:54 PM


DEPENDÊNCIA DE AJUDA EXTERNA,
ACUMULAÇÃO E OWNERSHIP
CONTRIBUIÇÃO PARA UM DEBATE
DE ECONOMIA POLÍTICA1

Carlos Nuno Castel-Branco

INTRODUÇÃO

Este artigo discute a questão de ownership2 da política de desenvolvimento em


interacção com a dependência de ajuda internacional ao desenvolvimento3 baseada em
políticas4, a formação e implementação de políticas e instituições de desenvolvimento
e os interesses sociais, económicos e políticos em conflito. Esta discussão acontece no

1
Este artigo resulta da adaptação e desenvolvimento de Castel-Branco (2008).
2
O termo ownership geralmente significa propriedade de alguma coisa. Contudo, no contexto
deste artigo (dependência da ajuda externa), ownership tem um significado mais amplo e difícil
de traduzir, pois refere-se também à influência sobre direcções de política pública e natureza
de reformas sociais, económicas e políticas, opções e escolhas de decisões públicas e avaliação
de resultados, em contexto de luta, tensão e conflito social sobre a magnitude e direcção da
influência sobre política, sobre as opções e escolhas e sobre o significado social dos resultados.
Sendo difícil de traduzir com uma palavra, por causa dos muitos elementos de subjectividade e
complexidade envolvidos, optou o autor por utilizar o termo ownership em língua inglesa.
3
Ajuda internacional ao desenvolvimento, ajuda externa ou, simplesmente, ajuda, são termos
usados com o mesmo significado ao longo deste artigo. Ajuda internacional ao desenvolvimento
inclui donativos e créditos concessionais internacionais, bilaterais ou multilaterais, destinados
ao desenvolvimento económico e social – sejam estes meios canalizados por via da ajuda
programática (ajuda geral ao orçamento do Estado, ajuda aos orçamentos sectoriais e ajuda
a projectos que formam programas de desenvolvimento do governo) ou por via de projectos
individuais. Exclui cancelamento, rescalonamento, troca (swap), reciclagem ou qualquer outra
forma de ajuda concedida por meio da gestão da dívida externa. Exclui, igualmente, ajuda militar
e humanitária de emergência.
4
Ajuda internacional ao desenvolvimento de longo prazo baseada em políticas significa, neste
artigo, a ajuda que é associada a opções de políticas sociais e económicas e a reformas ou
mudanças de natureza estrutural. Este é, por exemplo, o caso da ajuda associada ao pacote do
Consenso de Washington (Washington Consensus), que, tipicamente, inclui a estabilização das
variáveis monetárias (Fundo Monetário Internacional, FMI) em conjugação com o ajustamento
estrutural dos mercados, transacções, políticas e outras instituições, com enfoque na liberalização
e privatização (Banco Mundial).

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 401

Desafios.indb 401 3/29/11 4:54 PM


contexto da dependência multidimensional, estrutural e dinâmica da ajuda externa5.
Deste modo, o artigo não discute opções ou políticas de desenvolvimento em si, ou
todos os possíveis conjuntos de interacções institucionais e sociais relacionadas com
opções e políticas de desenvolvimento6. Em vez disso, olhando para o caso de Moçam-
bique, o artigo centra-se na relação e conflito entre doadores, o Estado receptor e grupos
sociais de interesse ao longo do processo de escolha de opções e formação de política de
desenvolvimento no contexto de dependência multidimensional, estrutural e dinâmica da
ajuda externa. Por conseguinte, o artigo também exclui da análise a ajuda humanitária
de emergência de curto prazo, que geralmente é desencadeada pelo impacto imediato de
choques, centra-se em programas especiais, tem um quadro temporal curto e um im-
pacto social e político mais ligeiro sobre as instituições e os padrões de desenvolvimento
a longo prazo7.
O tema deste artigo está ligado à questão mais ampla de construção do Estado no
período pós-conflito. Pós-conflito é, muitas vezes, não mais do que um novo estágio e for-
ma diferente do mesmo conflito, em que a guerra ou outra expressão mais violenta ou
óbvia de conflito é substituída por outros meios de disputa e contestação do poder, das
instituições e das opções e ligações de desenvolvimento. Neste contexto, o argumento

5
A dependência da ajuda externa é multidimensional quando afecta a cultura institucional, o
pensamento, as políticas e as opções dos sistemas de governação, bem como as interacções entre
os agentes, as opções de políticas públicas, o financiamento dessas políticas, etc. Assim, o carácter
multidimensional da dependência da ajuda externa significa que a dependência vai para além
dos recursos financeiros básicos (financiamento do défice público, da balança de pagamentos
e do investimento na economia) e das capacidades básicas (técnicas, de gestão, de informação
e monitoria, de desenvolvimento e análise de política) para incluir muitos outros aspectos da
vida. A dependência da ajuda é estrutural quando as funções básicas do Estado, da economia e
da sociedade são dependentes da ajuda externa. Finalmente, a dependência da ajuda é dinâmica
quando o padrão de desenvolvimento que é multidimensional e estruturalmente dependente da
ajuda gera novas e mais profundas dependências da ajuda, ao invés de a reduzir. Para simplificar,
no resto deste artigo, o conceito de “dependência multidimensional, estrutural e dinâmica da
ajuda” será referido apenas como “dependência da ajuda”, salvo se especificado de outro modo.
6
Semelhante discussão implicaria uma série completa de outros artigos.
7
Para uma interessante análise da ajuda de emergência de 1986-1989 (relacionada com os efeitos
combinados da guerra e de secas persistentes), veja-se Ratilal (1990). O subtítulo do seu livro,
“utilizar a ajuda para terminar a emergência”, sumariza uma das principais preocupações do
governo moçambicano na altura: gerir a emergência para sair da situação de emergência e salvar
vidas através da capacitação das famílias para se tornarem produtivas. Com um terço do total da
população afectada pela emergência (1988), o foco da ajuda foi para a disponibilização massiva
de alimentos, de cuidados de saúde e outras questões relacionadas, bem como para a logística da
operação de emergência. Estes itens absorveram 80% dos fluxos da ajuda externa. No entanto,
mesmo sob extremas condições de emergência, o Governo de Moçambique estava, na altura,
preocupado com as implicações a longo prazo da ajuda de emergência de curto prazo.

402 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 402 3/29/11 4:54 PM


racional a favor da ajuda baseada em políticas é que esta promove ou recompensa
reformas sociais, económicas e políticas que se supõe, muitas vezes erradamente, abor-
dar e resolver as causas do conflito, dos desequilíbrios e da tensão social.
A contestação e luta social durante o conflito e o pós-conflito influenciam as op-
ções e os resultados das políticas em que a ajuda se baseia, da mesma maneira que a
as dinâmicas políticas e económicas da ajuda estruturam a natureza e os resultados da
contestação social em torno das opções de desenvolvimento. Por exemplo, as direcções
e os resultados da reforma do sector público ou da saúde, das privatizações, da libera-
lização dos mercados e preços, das reformas do sector financeiro, etc., são, em grande
medida, o produto da disputa social e política relacionada com o poder, a natureza dos
problemas e as opções de resposta, e com a influência diferenciada dos vários grupos
sociais sobre as instituições, opções e ligações de desenvolvimento – sobre porquê
reformar, o que reformar, como reformar, quem beneficia ou perde com o processo
Mas tanto estas reformas como as possibilidades de contestação social em torno delas
são, por sua vez, influenciados pelos condicionalismos da ajuda baseada em políticas,
e pelas relações e conflitos entre doadores, Estado receptor e grupos sociais de inte-
resse em torno da natureza, direcção, objectivos, dinâmicas e resultados das opções de
desenvolvimento. Isto é o mesmo que dizer que ownership está intrinsecamente rela-
cionada com a natureza do conflito, as perspectivas para o pós-conflito, a organização e
influência exercida pelos diversos grupos sociais em conflito sobre as prioridades, op-
ções políticas e as dinâmicas sociais, económicas e políticas da transformação do Estado.
Para além da introdução, o artigo está organizado em quatro secções mais. A pró-
xima secção olha para o quadro analítico do debate sobre dependência de ajuda externa e
ownership e discute criticamente os conceitos, a lógica e os argumentos sobre ownership. A
terceira secção discute ownership em ambientes de disputa, conflito e tensão e no contexto
de dependência da ajuda, com referência a Moçambique. A secção quatro apresenta uma
introdução a uma crítica de economia política de ownership. A secção final olha para algu-
mas implicações do debate para a análise de políticas.
O artigo explora exemplos e casos de Moçambique sem pretender desenvolver
uma análise sistemática do caso moçambicano. Moçambique constitui, em geral, um
bom estudo de caso para este tema, pois há mais de duas décadas vem construindo
dependência externa multidimensional, estrutural e dinâmica, apesar de frequentemen-
te ser apresentado como um caso de sucesso de desenvolvimento pelas organizações
internacionais. Como pode a “contínua dependência multidimensional, estrutural e di-
nâmica de ajuda” ser consistente com “sucesso”? A resposta pode bem depender do en-

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 403

Desafios.indb 403 3/29/11 4:54 PM


tendimento das dinâmicas do ownership contestado (ou economia política) das políticas
de desenvolvimento, opções, efeitos (ou beneficiários) e da avaliação dos resultados.

QUADROS ANALÍTICOS E CONCEITOS DE OWNERSHIP

Ownership tornou-se um dos conceitos fundamentais e mais utilizados no domí-


nio da ajuda internacional. Governos receptores, doadores, credores, agências internacio-
nais bilaterais e multilaterais, organizações da sociedade civil e académicos mencionam
ownership em variados contextos, mais frequentemente em relação à implementação de
políticas financiadas pela ajuda e a outros pacotes de reforma institucional. As causas do
sucesso ou insucesso na implementação de tais reformas são frequentemente encontradas
no, ou pelo menos discutidas no contexto de, grau de ownership da agência receptora ou
implementadora8 (Dollar e Svensson, 2000; Elgstrom, 1999; Mosley, Harrigan e Toye,
1995; Cramer, 2002; Cramer, Stein e Weeks, 2006; Oya e Pons-Vignon, 2010). Assim,
ownership está ligado à eficácia da ajuda baseada em políticas no apoio ao desenvolvimen-
to numa forma multidimensional. Na sua forma mais simples, ownership é identificado
como um determinante fundamental do grau de compromisso para uma certa direcção
de política. Modelos mais complexos referem-se ao ownership como um determinante
fundamental da adequação e legitimidade de escolhas políticas. Se estes forem os casos,
então ownership deverá ser promovido (Paris High Level Forum, 2005). Contudo, antes
de promover ownership, é necessário compreender o que ownership é e o que envolve.

FRONTEIRAS E LIMITES DO CONCEITO DE OWNERSHIP


No contexto da dependência de ajuda externa, e no seu sentido mais puro e
estrito, ownership significa que o receptor da ajuda define a sua própria agenda e pro-
grama político, independentemente das suas fontes de financiamento (ajuda externa).
Isto significa, em termos mais puros, que: 9

8
Doravante, assume-se que a agência receptora da ajuda é sempre a agência implementadora
porque recebe ajuda em troca da implementação de determinado pacote de reformas ou
políticas. Portanto, por simplificação, a referência passará a ser “agência receptora” em vez de
“agência receptora/implementadora”.
9
Resumido da literatura com base em Cramer (2002), Cramer, Stein e Weeks (2006), Bird
(1998), Cassen (1994), Elgstrom (1999), Hanlon (2000 e 1997), De Renzio e Hanlon (2007),
Hjertholm e White (2002), Hopkins (2002), Morrissey (2004, 2001 e 1999), Mosley e Eeckhout
(2002), Mosley, Harrigan e Toye (1995), Paris High Level Forum (2005), Lahiri e Raimondos-
Moller (2002), entre outros.

404 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 404 3/29/11 4:54 PM


(i) A agência receptora define o programa de reformas sem influência de
pressões de grupos de interesse externos (relativamente à agência receptora)
– isto é, a agência receptora é autónoma em relação aos seus financiadores
(sejam eles doadores ou pagadores de impostos);

(ii) Tanto por vontade própria como por arquitectura do sistema de ajuda, as
agências doadoras não têm influência sobre a agenda política da agência
receptora, e as suas decisões e vontade de manter o financiamento ao receptor
não são perturbadas por esta ausência de influência política das agências
doadoras sobre as receptoras;

(iii) As agências doadoras não têm preferências políticas claras, ou não


as expressam caso as tenham, pelo que disponibilizam ajuda externa
independentemente das escolhas políticas feitas pelo receptor de forma livre,
não condicionada e não dirigida;

(iv) Mudanças no ambiente político num país doador não afectam, em qualquer
forma substancial, as dinâmicas da ajuda, de tal maneira que a agência
receptora não tem que se preocupar com tais mudanças;

(v) O fluxo da ajuda é previsível, a curto e longo prazos, e não volátil, de tal
forma que a agência receptora não os tenha que implorar ou regatear, não se
sinta sob pressão para satisfazer as preferências do doador e saiba quanto e
por quanto tempo o fluxo da ajuda está disponível – isto é, a ajuda externa
funciona como fundo programático perfeitamente planificável;

(vi) Qualquer outra forma potencial de influência por parte do doador – como,
por exemplo, através de assistência técnica – é exclusivamente implementada
no quadro e de acordo com a agenda política e prioridades definidas pela
agência receptora; e

(vii) A agência receptora está completamente informada e tem interesses


homogéneos no tocante às opções e preferências políticas, de tal modo que
as escolhas e decisões sobre as políticas reflectem ownership incontestado.

Obviamente, este conjunto de condições irrealistas, mesmo que possam ser consideradas
desejáveis, define ownership de uma maneira que se abstrai da realidade histórica e do
domínio da economia política da dependência de ajuda e do desenvolvimento, e das
relações entre doador e receptor, como se discute adiante.

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 405

Desafios.indb 405 3/29/11 4:54 PM


Dependendo do modelo de desenvolvimento e governação, ownership pode ser
estritamente definida em relação ao governo receptor (ownership do governo sobre o
pacote de políticas e o processo político de o escolher e implementar) ou, mais am-
plamente, em relação à sociedade em geral (ownership nacional). Os modelos que se
centram na ajuda como financiamento público do desenvolvimento tendem a favore-
cer ownership do governo sobre a política e processos económicos, enquanto os que se
centram no desenvolvimento participativo e multidimensional, , tendem a enfatizar
definições mais amplas de governação e, por conseguinte, de ownership. Os modelos
que enfatizam o papel dirigente do mercado no desenvolvimento (ou do seu equiva-
lente institucional contemporâneo, a comunidade local abstracta e idílica) são críticos
do ownership do governo e enfatizam ownership por parte das forças do mercado (ou
das comunidades locais).10
O consenso dentro da comunidade doadora e da literatura sobre ajuda externa
parece estar a desenvolver-se em torno de modelos híbridos, que incorporam elemen-
tos de todos os outros modelos: ownership do governo desenvolvida em torno de uma
visão nacional, apoiada e controlada por mecanismos mais abrangentes de governação,
combinados com a descentralização e desconcentração do poder e recursos para as
comunidades locais. Não é, pois, surpreendente que muitos destes modelos tendem a
ser institucionalmente incoerentes.
Estes conceitos são geralmente referidos em situações em que existe uma agenda
e um pacote de reforma ou mudança social, económica e política. Existem duas razões
para este facto. Primeira, a dependência de ajuda é considerada uma anomalia no
desenvolvimento económico resultante de choques, políticas económicas inadequadas
ou quaisquer outros factores similares. Assim, a ajuda ao desenvolvimento é concedida
no pressuposto de que a agência receptora a utilize para superar as causas das adversi-
dades que criaram a dependência. Portanto, a ajuda ao desenvolvimento (e as questões
de ownership, liderança e compromisso associadas) é quase sempre relacionada com
mudança ou reforma política, económica e social.
Segunda, mudança ou reforma implica incerteza e desafio, bem como algum grau
de tensão com as verdades (modelos) estabelecidas e interesses e relações de poder do-

10
A este propósito, ver, por exemplo, os debates entre Easterly (2007 e 2006) e Sachs (2006);
Macamo (2006); Fraser (2006); Plank (1993); De Renzio e Hanlon (2007), Mosley e Eeckhout
(2002); Mosley, Harrigan e Toye (1995); Cassen (1994); Morrissey (1999); Thorbecke (2002);
Hjertholm e White (2002); Hopkins (2002); IDD and Associates (2006); Arvin, Barrilas e Lew
(2002); Oya e Pons-Vignon (2010).

406 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 406 3/29/11 4:54 PM


minantes, dependendo do grau e natureza da mudança e da organização e capacidade de
resistência das instituições e grupos de interesse às reformas. Deste modo, a implemen-
tação de processos de mudança é difícil por causa da incerteza e das tensões a eles asso-
ciadas. Isto levanta questões fundamentais sobre os condutores das mudanças (quem e o
quê), sobre o porquê de uma opção e direcção de reforma ser adoptada em detrimento
de outras, sobre vencedores e vencidos e sobre o grau e fontes da resistência à reforma.
O processo de mudança é o momento em que ownership, liderança e compromisso são
testados até aos seus limites.
Em geral, este debate estabelece ligações automáticas entre ownership e lide-
rança e compromisso. Assume-se, frequente e erradamente, que a ownership é um pré-
-requisito para a liderança e compromisso, e que o último é uma pré-condição para o
sucesso (Berg, 2002; Beynon, 2002; Bird, 1998; Dollar e Svensson, 2000; McGillivray,
Leavy e White, 2002; Morrissey, 2004, 2001 e 1999; Thorbecke, 2002; Paris High
Level Forum, 2005). Assim, não é de surpreender que o sucesso e o insucesso sejam
equacionados com (e definidos como indicadores de) ownership, dado que ownership,
liderança e compromisso são conceitos subjectivos e vagos, quase impossíveis de me-
dir. Se assumirmos que o sucesso depende inevitavelmente do compromisso, este da
liderança, e esta de ownership, um indicador de sucesso será, em última instância, uma
medida de ownership. Apesar do conceito e da medida de sucesso serem contestados, é
relativamente fácil medir sucesso através do estabelecimento de metas e da contagem
de quantas, ou por quanto, foram atingidas. Como é demonstrado pela heteroge-
neidade da literatura, as causas do sucesso (ownership, forças do mercado, estrutura de
incentivos e penalizações entre principal e agente, ou outra qualquer) são geralmente
derivadas do modelo analítico do avaliador. Empiricamente é possível medir sucesso,
mas a causa do sucesso, tal como a sua definição, é derivada de um modelo.

LÓGICA E FUNDAMENTO DO CONCEITO DE OWNERSHIP


Ownership faz parte de um debate mais amplo sobre a eficácia social, económica
e política da ajuda externa. O fundamento subjacente é que a qualidade da governação
(opções de políticas, compromisso com a direcção de política escolhida, governação
participativa, capacidades burocráticas e tecnocratas de gestão, entre outros) é deter-
minante para a eficácia da ajuda ao desenvolvimento, e que a qualidade da governação
está relacionada com ownership.
Uma análise mais detalhada dos quadros teóricos e pressupostos relativos à lógica
e fundamento de ownership é importante para ilustrar dois pontos adicionais: os vários

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 407

Desafios.indb 407 3/29/11 4:54 PM


conceitos de ownership e os relativos pontos fracos e fortes de diferentes abordagens.
Estes dois pontos são importantes para se tirarem conclusões de políticas.

RELAÇÃO PRINCIPAL-AGENTE: OWNERSHIP E COMPROMISSO


Os argumentos sobre ownership da reforma política são frequentemente rela-
cionados com teorias estabelecidas sobre a relação principal-agente nas organizações,
especialmente firmas, desenvolvidas no contexto das teorias de jogos (Mosley, 1988;
Heap e Varoufakis, 1995; Pietrobelli e Scarpa, 1992; Rasmussen, 1994; e Varian, 1999).
Esta literatura tende a ser focada nas estruturas de funcionamento e de incentivo nas
organizações quando a propriedade do capital (pelo principal) e a gestão e controlo da
firma (pelo agente) estão separadas e a informação é assimétrica entre o principal e o
agente. A principal questão colocada pela literatura clássica sobre a relação principal-
-agente é a da estrutura de incentivos que faz com que o agente (gestor, que exerce o
controlo e tem melhor informação sobre o seu próprio esforço e sobre o universo em
que opera) procure a maximização dos benefícios (utilidade) do principal (proprietá-
rio, que pode não exercer o controlo nem ser tão bem informado como o agente, mas
que é o dono do capital) em vez dos seus próprios benefícios. Assim, os objectivos, a
organização e as estruturas de incentivos da firma têm de ser estabelecidos de tal for-
ma que seja no melhor interesse do agente atingir o que constitui o melhor interesse
do proprietário, mesmo na situação em que a separação da propriedade e do controlo
e a assimetria de informação entre agente e principal permitam ao gestor (agente)
perseguir outros interesses e objectivos que não sejam os do proprietário (principal).
Quando aplicado no contexto da literatura sobre dependência de ajuda e políti-
ca de desenvolvimento, o problema da relação principal-agente torna-se muito mais
complexo. O doador (o principal) disponibiliza recursos (a ajuda) em troca de acções
(pacotes de reformas políticas) que se supõe abordarem os problemas enfrentados pelo
agente (receptor da ajuda e implementador das reformas) e seu eleitorado. Tanto o prin-
cipal (doador) como o agente (receptor) estão interessados no impacto do programa de
reformas sobre o eleitorado, embora as suas posições relativas e as suas motivações sejam
diferentes (e possam mesmo estar em conflito). O interesse do principal no impacto
das políticas é derivado da sua preocupação com a eficiência e eficácia das políticas (por
exemplo, colmatar os desequilíbrios macroeconómicos), altruísmo (por exemplo, mini-
mizar as mais abjectas manifestações da pobreza) ou interesses perversos e de longo pra-
zo (tais como, por exemplo, obter vantagens comerciais ou outros interesses políticos).
O interesse do agente é derivado do facto de que o seu eleitorado pode ser a sua razão

408 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 408 3/29/11 4:54 PM


de ser (por exemplo, o eleitorado vota no agente ou o agente é financiado para fornecer
serviços ao eleitorado). O principal não está directamente ligado, nem presta contas ao
eleitorado do agente, enquanto o agente presta contas ao principal, em primeiro lugar, e
ao seu eleitorado. Se os interesses e as percepções do principal e do eleitorado receptor
divergirem, a lealdade do agente para com o principal ou o eleitorado dependerá de
quem exerce a pressão mais sustentada. comtínua e coerente sobre o agente. Se o poder
do processo democrático for mais fraco do que a profundidade da dependência de ajuda,
o agente tenderá a dar maior peso à prestação de contas ao principal (doador) do que
ao seu próprio eleitorado (Killick, Castel-Branco e Gerster, 2005; Hanlon, 2000; Oya
e Pons-Vignon, 2010; De Renzio e Hanlon, 2007; Hodges e Tibana, 2005; Macamo,
2006).
Devido à assimetria de informação e à separação da propriedade dos recursos (aju-
da, que pertence ao principal) do controlo do processo político (exercido pelo agente),
o principal (doador) não pode garantir completamente que o agente (receptor) imple-
mente as reformas políticas que, do ponto de vista do principal, são necessárias para
alcançar os objectivos prosseguidos através do desembolso de ajuda. O agente (recep-
tor) está interessado no fluxo da ajuda mas pode ter interesses políticos, económicos
e sociais diferentes daqueles que são reflectidos pelo pacote de reforma promovido
pelo principal. Portanto, o principal pode acabar por financiar um processo e pacote
de reforma política, económica e social que, do seu ponto de vista, é inconsistente com
os seus objectivos mais altos (eficácia, altruísmo ou vantagens políticas e comerciais
próprias), e pode acabar apoiando um agente que não está interessado na realização
dos objectivos da reforma estabelecidos, prosseguidos ou apoiados pelo principal.
A manipulação da quantidade dos fluxos da ajuda (por exemplo, sanções finan-
ceiras e tranches flexíveis) pode não criar incentivo para o agente cumprir com as re-
formas políticas e os objectivos do principal. Por um lado, a assimetria de informação
e a separação entre propriedade e controlo, num ambiente político contestado muito
mais complexo do que a organização das firmas, pode tornar muito difícil a tomada de
decisão sobre sanções por parte do principal. Adicionalmente, a manipulação dos flu-
xos da ajuda pode não só penalizar o agente pela falta de compromisso e não adopção
e/ou implementação das reformas, mas pode também afectar o eleitorado do agente
devido à consequente falta de recursos. Isto pode desencorajar o uso das sanções por
parte do principal para penalizar ou motivar o agente, e pode unir o agente e o seu
eleitorado contra o principal. Igualmente, outros interesses políticos ou económicos
de mais longo prazo – por exemplo, não permitir a reversão de um processo de demo-

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 409

Desafios.indb 409 3/29/11 4:54 PM


cratização pós-conflito ou de acordos comerciais ou de exploração de recursos natu-
rais – podem também desencorajar o principal de aplicar sanções ao agente.
Pode também dar-se o caso de as diferenças entre o principal e o agente, no to-
cante à direcção e opções de política, serem tão substanciais que as sanções não sejam,
por si só, suficientes para forçar o agente a cumprir as exigências do principal. Contra-
riamente ao que acontece nas firmas, o principal (doador) não pode despedir o agente
(governo receptor), embora possa prejudicá-lo de tal maneira que o receptor acabe
por perder legitimidade política (mas isto geralmente acontece à custa de incapacitar
o agente receptor de prestar serviços ao seu eleitorado, o que pode unir o eleitorado e
o agente contra o principal).
Assim, a eficácia das sanções financeiras depende do espaço de manobra de que
o agente dispõe, o que, por seu turno, depende de vários factores: a diferença entre as
preferências do principal e do agente; o compromisso, espaço político e capacidade
burocrática do principal em seguir os seus objectivos e aplicar sanções; a vontade, ha-
bilidade e organização dos grupos nacionais de interesse para articularem estratégias e
fazer pressão a favor ou contra as reformas de acordo com as suas preferências, ou com
as preferências do principal (doador) ou do agente (governo receptor), entre outros.
Em face do custo e da limitada eficácia dos mecanismos de controlo e penaliza-
ção das práticas do agente, a melhor alternativa é garantir que o agente se comprome-
ta voluntariamente em relação às reformas políticas, económicas e sociais; isto é, que
identifique as reformas como parte constituinte do seu melhor interesse. Por outras
palavras, em certa medida o “agente” deve tornar-se no seu “principal”, o que é possível
se as suas preferências políticas forem semelhantes às do principal original (o doador),
ou se o agente tiver absoluto controlo (ou ownership) do seu programa de reformas
e mudanças. Ownership ou, pelo menos, a apropriação11 do pacote de políticas pode
ser a melhor opção para manter o agente no domínio das políticas aceitáveis para o
principal (doador) e num curso de acção consistente com o programa de reformas
adoptado. Um tal agente (que ao mesmo tempo joga o papel de principal por via de

11
A diferença entre ownership e apropriação nem sempre é clara. Na literatura, ownership do
pacote de reformas políticas geralmente designa o pacote (ideias, interesses, visões, medidas e
arquitectura políticas) pertencente à agência receptora. Apropriação pode ser definida como uma
forma mais ténue de ownership, uma vez que designa a adopção, pela agência receptora, do pacote
de reformas políticas que pode não ter sido concebido dentro da agência. Na prática, contudo, a
apropriação pode ser entendida como parte da, ou um passo para a, completa ownership. A maior
parte da literatura sobre espaço político, por exemplo, considera que a apropriação é a única
forma realista de ownership, uma vez que a completa ownership não é possível (por exemplo,
Cramer, 2002; e Cramer, Stein e Weeks, 2006).

410 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 410 3/29/11 4:54 PM


ownership ou apropriação) estará mais empenhado nas reformas desejadas pelo prin-
cipal (doador), será mais capaz de resistir à pressão social para abandonar as reformas
e manter o programa de reforma em prática, por mais difícil e impopular que o pacote
de reformas seja. Portanto, o sucesso (medido pela implementação do pacote de re-
formas e não pelo seu impacto político, social e económico) depende, em alto grau, do
ownership (ou, pelo menos, apropriação) do programa de reformas pelo agente (Bird,
1998; Dollar e Svensson, 2000; Edwards, 199; Killick, 1995; Killick, Castel-Branco e
Gerster 2005).
Ser popular ou impopular não é uma questão tratada na literatura clássica sobre o
problema do principal-agente nas organizações e firmas, mas pode ser crucial quando
este quadro analítico é aplicado ao debate da política de desenvolvimento nacional. Num
ambiente democrático, o eleitorado do agente (receptor) elege o agente mas não tem ne-
nhum impacto sobre o principal (doador). Mesmo quando a eleição não é problema
para o agente, a agitação social pode ser.12 Numa análise neoclássica simplista, o agente
receptor que pretenda maximizar a sua utilidade terá de procurar ser popular (para ser
reeleito ou evitar agitação social), mesmo que a popularidade seja de curto prazo.
Assim, a relação principal-agente em ajuda externa terá de enfrentar o problema
de o agente (receptor) ter de ser encorajado a manter o programa de reformas e seus
objectivos de longo prazo, mesmo que isso cause agitação pública de curto prazo e o
risco de o agente não ser reeleito. O agente tem de acreditar, ou fazer acreditar, que
não existe nenhuma outra alternativa de curto ou longo prazo ao pacote de reformas
em implementação e que a agitação social é controlável a curto prazo. Para além da
doutrinação13 dos gestores e analistas políticos do agente e da pressão e influência
sobre o agente dos interesses de grupo que têm possibilidades de beneficiar com as
reformas, a literatura argumenta que a crença do agente receptor no pacote de polí-
ticas ou na ausência de políticas alternativas provém do ownership ou da apropriação.

12
Vejam-se, por exemplo, os efeitos das manifestações contra a subida de preços em Maputo, a 5
de Fevereiro de 2008 e 1-2 de Setembro de 2010, bem como os efeitos da ondas de protestos
populares pela democratização da sociedade em Países do Médio Oriente (até á altura da
elaboração deste artigo, os Governos da Tunísia e Egipto haviam caído, o da Líbia resistia com
a utilização plena do seu poderio contra o seu próprio Povo, no Iémen, Arábia saudita, Jordânia
e Bahrein as manifestações estavam a começar, e havia sinais de “contaminação” de outros Países
do Continente Africano ao Sul do Sahara).
13
A doutrinação pode, por exemplo, resultar da assistência técnica disponibilizada pelo principal
ou da formação dos gestores e analistas de políticas que trabalham para o agente, dada a natureza
e conteúdo da perspectiva da economia política e da política económica que domina as escolas
em que os funcionários do agente são formados, que são normalmente escolhidas pelo principal.

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 411

Desafios.indb 411 3/29/11 4:54 PM


Por seu turno, tal crença reforça ownership e apropriação (Morrissey, 2004, 2001 e
1999; Paris High Level Forum, 2005; Cramer, Stein e Weeks, 2006; Helgstrom, 1999;
Lahiri e Raimondos-Moller, 2002; Mosley, 1988; Mosley, Harrigan e Toye, 1995;
Commission for Africa, 2005).

CRÍTICA DA ABORDAGEM PRINCIPAL-AGENTE


Os fundamentos deste quadro analítico foram desenvolvidos com um propósito
muito específico (a análise das relações entre propriedade e gestão/controlo dentro das
firmas no contexto das teorias de jogos) e muito diferente das complexidades da economia
política da dependência de ajuda e da política de desenvolvimento. Assim, este quadro
analítico tende a ser demasiado simplista e frágil para esclarecer as questões de economia
política envolvidas nas relações de dependência e desenvolvimento.
Uma das fragilidades deste quadro analítico reside no facto de que não analisa
a natureza e dinâmicas políticas, sociais e económicas dos eleitorados receptores (que
escolhem mas também disputam o poder de influência sobre os agentes receptores) e os
conflitos e disputas pelo poder entre esses eleitorados, nem tão pouco considera as di-
nâmicas e história da relação entre tais eleitorados e os governos doadores e receptores.
Os modelos principal-agente mais avançados enfatizam a importância da governação
participativa e da democracia para melhorar o desempenho do governo receptor e tornar
o eleitorado menos passivo. Mas mesmo estes modelos mostram muito pouco, se é que
mostram algum, entendimento das complexidades da economia política envolvidas nas
política de desenvolvimento, nas instituições e nas relações entre doadores e receptores e
entre o governo e a sociedade em geral. Em regra, estes modelos preocupam-se mais com
a adopção e implementação formal de princípios de democracia liberal (sufrágio universal,
liberdade de associação, expressão e dos meios de comunicação social, separação dos po-
deres e outros direitos políticos e liberdades cívicas) do que com o funcionamento real da
sociedade, com a relação entre economia e política e com os conflitos e tensões em torno
das opções de desenvolvimento. Num certo sentido, estes modelos preocupam-se em dar
“voz” (direito à diferença), mas não se preocupam com o conteúdo (opções) reais da “voz”
que forma o fundamento do conflito.
Outra fraqueza fundamental destes modelos reside no facto de apenas aborda-
rem o processo de negociação de reforma política (adopção e implementação), sem
discutirem o processo e as implicações políticos da negociação, nem a substância e
direcção das reformas e o seu impacto social, económico e político. Portanto, o seu
enfoque é como incentivar o agente e o seu eleitorado a adoptarem reformas (por

412 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 412 3/29/11 4:54 PM


exemplo, cortes na despesa pública ou privatização) em vez das opções de reformas
(por exemplo, aumentar o contributo fiscal e não-fiscal das multinacionais e reorgani-
zação da propriedade social) e as disputas políticas dentro do eleitorado e do agente
receptores em torno da escolha das opções.
Adicionalmente, os modelos abordam o processo de negociação do ponto de vis-
ta do individualismo metodológico (Fine, 2001). Esta abordagem requer um conjunto
complexo de pressupostos irrealistas: que as instituições, como indivíduos, têm conhe-
cimento, liberdade e autonomia para escolher o conjunto de opções que maximizam os
seus benefícios (e que sempre sabem quais são esses benefícios e como alcançá-los); que
as opções estão política, técnica, burocrática e institucionalmente disponíveis; que estas
opções são incontestadas e são independentes de qualquer contexto social e histórico;
e que fazer e reforçar escolhas de políticas e opções não envolve custos de transacção.
A discórdia dentro do quadro neoclássico conduz à crítica do foco da reforma po-
lítica, social e económica incidir sobre as instituições e o empoderamento dos governos
receptores (Easterly, 2006 e 2007; Sachs, 2006), mas mantém a regra de ouro do indi-
vidualismo metodológico (Fine, 2001). As críticas variam entre as que promovem uma
abordagem burocrática e tecnocrática internacionalmente aceite que liga as organizações
internacionais e as mal definidas comunidades locais (Sachs, 2006), e as que enfatizam
a necessidade de promover as forças dinâmicas dos mercados locais14 (Easterly, 2006 e
2007). Embora estas críticas tenham as suas diferenças, elas são similares no que diz res-
peito a distanciarem-se das complexidades da economia política da dependência de ajuda
e do desenvolvimento e de ignorarem as dinâmicas e instituições políticas, sociais e eco-
nómicas nacionais (Cabral, Farrington and Ludi, 2006).

ABORDAGENS HETERODOXAS – ADEQUAÇÃO E DISPUTA SOCIAL DO PODER DE OWNERSHIP


Ownership pode ser concebida de maneiras diferentes das teorias de jogos e do
dilema do principal-agente. Enquanto a abordagem ortodoxa, definida pela relação
principal-agente, enfatiza ownership como pré-condição para compromisso, abordagens
heterodoxas tendem a enfatizar o papel de ownership como pré-condição para a adequa-
ção do programa político às condições históricas, institucionais e políticas, bem como
o papel de ownership no fortalecimento da legitimidade dos programas de reforma e
da responsabilidade social dos agentes da reforma (Bastian e Lucham (editors), 2003;
Beynon, 2002; Hopkins 2002; Mosley e Eeckhout 2002).

14
“…searchers and takers of local market opportunities…”, no original.

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 413

Desafios.indb 413 3/29/11 4:54 PM


Por exemplo, do ponto de vista do “Renascimento Africano”, ownership garante a
autenticidade e assinala uma transição da influência externa para os genuínos ideais e
abordagens africanos dos desafios do desenvolvimento africano. Conforme propõe o
Professor Wiseman Nkhulu, Presidente do comité de direcção da NEPAD, “...não po-
demos avançar sem uma visão africana” (citado em Cabral, Farrington and Ludi, 2006).
Ou, como é sublinhado pela Declaração da União Africana sobre a NEPAD, “...a [NE-
PAD] baseia-se no empoderamento africano e na gestão africana” (African Union 2001:11,
parágrafo 47). A questão que vem à mente na sequência destas afirmações gerais é sobre
quem é que em África detém o poder de definir o que é “africano” e, portanto, “autêntico” e
“genuíno”, que é o mesmo que perguntar de quem é o renascimento (definidos social e
historicamente, em vez de geograficamente) de que se está a falar.15
Por outro lado, uma abordagem baseada na economia política do desenvolvimen-
to entende ownership como o resultado das dinâmicas de competição e conflito pela
influência sobre as direcções, opções, prioridades, desafios, ligações e oportunidades de
desenvolvimento (em poucas palavras, dinâmicas de desenvolvimento). Por outras pa-
lavras, o resultado, por exemplo, da reforma do sector público, não é independente de
como é que essa reforma definida ereflecte ownership como luta e contestação dinâmicas
pela influência sobre as razões, conteúdo e direcção dessa reforma e o tipo de governo a
emergir dela. O desenvolvimento social e económico envolve uma disputa contínua pela
ownership (influência sobre) a dinâmica do desenvolvimento, das instituições e das liga-
ções sociais e económicas, de tal modo que o direito a, e a natureza social de ownership
são questões fortemente contestadas – quem e como exerce essa ownership, ou influ-
ência, e que implicações tem para a identificação e escolha dos assuntos a tratar, como
esses assuntos são tratados e quem beneficia e perde com isso. O que mais importa no
desenvolvimento social e económico não é ownership, em si, mas sim as interacções so-
ciais e políticas e a contestação em torno da construção do poder de influência sobre as
dinâmicas, opções, escolhas e políticas de desenvolvimento. Efectivamente, fora dessas
interacções sociais e políticas e conflitos pela influência, ownership não significa nada.
Logo, as percepções sobre ownership diferem entre os agentes sociais, dependendo
da agenda e interesses de cada um, dos contextos sociais, económicos e políticos e da his-
tória social e política das relações entre esses agentes sociais. No contexto da dependência

15
O relatório da Comissão para África 2005 também expressa o conceito de “uma África” da
mesma maneira em que o faz a maior parte da literatura nacionalista africana. Para uma mordaz
e interessante crítica histórica e política da autenticidade africana, vide Tutashinda 1978. Uma
crítica adicional, num contexto diferente, está em Castel-Branco 2007c.

414 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 414 3/29/11 4:54 PM


de ajuda externa, as relações e o poder de negociação entre agentes sociais são altamente
desiguais e os interesses e prioridades do desenvolvimento social, político e económico
podem diferir substancialmente entre eles. Assim, as estratégias de luta por ownership (ou
influência) podem seguir caminhos variados em busca de soluções diversificadas para pro-
blemas diferentes. Uma das estratégias possíveis é um dos intervenientes, o agente social
mais fraco, procurar exercer ownership aparentemente sem ter nenhuma estratégia própria
nem nenhum interesse em desenvolver alguma estratégia. Se o agente social mais fraco
souber, ou pressentir, que a sua voz (ou interesses) tem pouca probabilidade de ser ouvida
(ou considerados), a sua estratégia de influência, ou exercício de ownership, pode ser cons-
truída em torno de aparências: aparentar não ter interesse em mais do que, simplesmente,
seguir as decisões do principal, mas incluir os seus próprios interesses de forma disfarçada.
Ownership é, assim, exercida sem disputa directa com o principal (Mosley, Harrigan e
Toye, 1995; Mosley, 1988; Macamo, 2006; Killick, Castel-Branco e Gester, 2005).
A compreensão destas interacções dinâmicas entre agentes (e seus interesses e possi-
bilidades), ligações (e pressões políticas, económicas e sociais que delas emergem), e opções
é crucial para a análise da política de desenvolvimento, tomada de decisão e avaliação do
desempenho, e muito mais útil do que as abordagens prescritivas que focalizam as ligações
entre ownership e compromisso ou adequação. Para além disso, que significado podem ter
o compromisso com ou a adequação de um conjunto de políticas e opções se estas políticas e
opções forem discutidas independentemente das dinâmicas sociais e políticas de conflito e
contestação relacionadas, precisamente, com a identificação dos problemas a tratar e a esco-
lha das prioridades, políticas e opções? Quem se compromete com que políticas e opções
e porquê, e quem pretende outras escolhas, políticas e opções; e a quê e para quê são tais
escolhas, políticas e opções adequadas?
Esta abordagem desmistifica o conceito de ownership no sentido em que a subs-
tância e a dinâmica de desenvolvimento (definição, direcções, opções, prioridades,
desafios, ligações e oportunidades), isto é, as fontes e os focos de disputa, contestação
e conflito sobre ownership, adquirem primazia sobre os procedimentos, regras e pro-
cessos de ownership.
Além do mais, esta abordagem também tem fortes implicações para a avaliação
do impacto da política de desenvolvimento e das mudanças. Na presença de disputa,
contestação e conflito social acerca das opções e direcções do desenvolvimento, tanto
ownership, como as medidas do sucesso são áreas de disputa e conflito. À questão
sobre se a avaliação é orientada para os processos ou resultados (ou ambos, já que
podem estar interrelacionados), é adicionada a questão fortemente disputada sobre

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 415

Desafios.indb 415 3/29/11 4:54 PM


quais são os processos e os resultados considerados para a avaliação, e que processos e
resultados constituem sucesso. Assim, ownership e sucesso estão ligados no sentido de
que a natureza social do poder do ownership é uma determinante das opções sociais e
direcções do desenvolvimento e, obviamente, da escolha dos indicadores do sucesso.
As lutas sociais por ownership afectam a forma como o sucesso é definido e medido,
na mesma medida que a análise de sucesso reflecte a dinâmica das lutas sociais, eco-
nómicas e políticas por ownership e contribui para legitimar ou ilegitimar o poder de
ownership socialmente estabelecido.

OWNERSHIP COMO FOCO E PRODUTO DE LUTA E


CONTESTAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA

Na secção anterior foram estabelecidas as fronteiras, o fundamento e a lógica


subjacentes ao conceito de ownership e foram confrontadas diferentes perspectivas. A
relevância do conceito de ownership mostrou-se estar ligada com compromisso (visão
ortodoxa baseada nas teorias de jogos) ou adequação social das reformas políticas,
económicas e sociais (perspectivas heterodoxas).
Como alternativa, foi também apresentada uma perspectiva de economia política
que liga ownership com a disputa e conflito sociais acerca da influência sobre a dinâmica
do desenvolvimento e a avaliação do sucesso relativo dessa dinâmica. Consequentemen-
te, nesta perspectiva ownership não tem nenhum significado real independentemente
das questões colocadas pelos conflitos, tensões e contestação em torno das escolhas,
opções e dinâmicas de desenvolvimento. Assim, a expressão “ownership da política de de-
senvolvimento pelo governo receptor” não significa nada, já que não diz nada sobre a natu-
reza e as dinâmicas das opções e políticas de desenvolvimento do governo, embora essas
opções e políticas sejam o foco e a fonte real da disputa e conflito sociais relacionados
com ownership. Deste modo, os governos receptores, os doadores e outros grupos sociais
de interesse podem não só ter percepções diferentes de ownership, como também estas
percepções só fazem sentido no contexto de interacções específicas entre esses actores
num certo período histórico, já que elas são parte das interacções complexas e dinâmicas
entre diferentes agentes e agendas estratégicas divergentes, conflituantes e complemen-
tares com o intuito de influenciar a direcção da mudança política e do desenvolvimento.
Esta secção, focada em Moçambique, discute casos que mostram ownership no
contexto da negociação da influência e de agendas entre agentes sociais com capaci-

416 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 416 3/29/11 4:54 PM


dades e poder de negociação desiguais, que procuram atingir objectivos diferentes em
ambientes contestados, dinâmicos e assimétricos.

DEPENDÊNCIA, FRAGILIDADE INSTITUCIONAL, ACUMULAÇÃO PRIMITIVA E


OWNERSHIP
Moçambique é altamente dependente da ajuda internacional16 de forma mul-
tidimensional, estrutural e dinâmica, nomeadamente no tocante às finanças17, esco-
lhas políticas, construção institucional, cultura de serviços cívicos e organizações da
sociedade civil e mesmo no tocante ao desenvolvimento e dinâmicas das institui-
ções políticas e da economia (Castel-Branco, 2010a; Castel-Branco, Sulemane et al,
2005; De Renzio e Hanlon 2007; Macamo 2006; Hodges e Tibana, 2005). Doado-
res e credores penetraram em cada área e nível do debate político e da tomada de
decisões. O Fundo Monetário Internacional (FMI) continua a ter uma forte inter-
venção sobre o desenho de políticas macroeconómicas, particularmente no que diz
respeito às políticas e gestão monetária, das finanças públicas e da balança de paga-
mentos, criando, portanto, políticas rígidas e reduzindo o espaço político (Castel-
-Branco, 2002a; Castel-Branco, Sulemane et al, 2005; De Renzio e Hanlon, 2007;
Macamo, 2006; Hodges e Tibana, 2005). O Banco Mundial introduziu um sistema
de empréstimos baseado no desempenho. Este sistema encoraja países receptores
a competirem entre si para se tornarem elegíveis para empréstimos adicionais. A
competição ocorre em torno do cumprimento de um conjunto de critérios políticos

16
As dinâmicas da dependência da ajuda foram construídas desde os anos 1980, como resultado da
situação de emergência criada pelo colapso económico e pelos efeitos combinados da guerra e de
uma grave seca regional (Ratilal, 1990). Desde 1987, ainda sob condições de guerra generalizada
(o acordo de paz só foi assinado em Outubro de 1992), o Governo de Moçambique embarcou
na implementação do seu Programa de Reabilitação Económica, recomendado e apoiado pelas
instituições de Bretton Woods e pela comunidade doadora em geral. Do ponto de vista do
Washington Consensus, Moçambique adoptou reformas de política económica sãs. Duas décadas
e meia mais tarde, a economia cresceu e a paz foi consolidada mas a dependência da ajuda
externa penetrou em todos os poros da esfera social, económica e política.
17
Mais de 60% da despesa pública, incluindo a despesa não registada no orçamento, são financiados
através da ajuda. O défice da conta corrente em 2008, incluindo a contribuição dos megaprojectos
de recursos naturais para exportação, rondava US$ 1 bilião, o que era equivalente a 14% do
PIB real. Este défice é maioritariamente financiado através da ajuda internacional. Apesar dos
seus relatórios optimistas sobre a economia de Moçambique, o FMI interveio fortemente para
financiar as reservas externas oficiais do País em 2009 e 2010. Entre 2005 e 2008, o total do
fluxo da ajuda ao desenvolvimento para Moçambique, do qual 90% financia despesas públicas
(dentro e fora do orçamento), flutuou em torno de 25% do PIB (estatísticas oficiais obtidas a
partir de http://www.ine.gov.mz, Castel-Branco, 2007; Castel-Branco, Sulemane et al, 2005;
Castel-Branco, 2010a; Castel-Branco, Ossemane e Amarcy, 2010; Ernst & Young, 2006a).

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 417

Desafios.indb 417 3/29/11 4:54 PM


e de gestão económica consistentes com a perspectiva do Banco Mundial sobre o
que é uma política económica sã e um bom ambiente de negócios – por exemplo,
a adopção de uma legislação laboral e de investimento estrangeiro mais liberal –, o
que acrescenta mais rigidez ao espaço político e tem sido recentemente reconhecido
como um sistema paralelo de condicionalismo (Castel-Branco, 2007; KPMG, 2006;
Killick, Castel-Branco e Gerster, 2005).
As instituições do governo são frágeis e fragmentadas, as políticas e intervenções
públicas são desarticuladas e muitos funcionários públicos que trabalham na análise
de políticas são doutrinados nos tipos de abordagens do Washington Consensus e do
pós-Washington Consensus (Castel-Branco, 2010a e 2002a; Castel-Branco, Sulemane
et al, 2005; De Renzio e Hanlon, 2007; Killick, Castel-Branco e Gerster, 2005; Maca-
mo, 2006; Oya e Pons-Vignon, 2010). A fragilidade e a fragmentação das instituições
e políticas públicas são também o resultado da dependência da ajuda, interferência
dos doadores e preferência por um Estado mais frágil e fragmentado, e a combinação
dos interesses dos grandes investidores estrangeiros com os dos grupos emergentes de
capitalistas nacionais rendeiros ligados ao poder político instalado (De Renzio e Han-
lon, 2007; Macamo, 2006; e Castel-Branco, 2010a, 2004a, 2004b e 2002a). Logo, as
políticas públicas tendem a ser defensivas e altamente receptivas, de uma maneira não
estratégica, às pressões dos doadores, credores e diferentes grupos do sector privado,
e a sua coerência e eficácia dependem, em alto grau, da coerência e organização dos
grupos de pressão – os doadores ou a indústria (Castel-Branco, 2010a, 2004a, 2004b,
2002a e 1999; Cramer, 1999 e 1998; De Renzio e Hanlon, 2007; Ernst & Young,
2005b; Killick, Castel-Branco e Gerster, 2005; Macamo 2006).
Perante este quadro de dependência oficial, em que as relações de poder entre
doador-governo receptor (principal-agente) são profundamente desiguais, a estraté-
gia de ownership do governo de Moçambique tem duas componentes fundamentais
e aparentemente contraditórias: manter os fluxos de ajuda externa minimizando os
conflitos com os doadores sobre política económica, e reduzir o poder e influência
dos doadores.
Para maximizar os fluxos de ajuda externa, o governo opta por mostrar liderança
económica mas ocultar ownership no debate e desenho de opções e políticas públicas.
O governo aparentemente segue as recomendações dos doadores (principal) no que diz
respeito à política económica, enfatizando o desempenho económico em torno de um
conjunto muito restrito e estéril de indicadores, nomeadamente: a taxa de crescimento
do Produto Interno Bruto (PIB), a taxa de inflação, o controlo do défice fiscal dentro de

418 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

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parâmetros acordados e consistentes com as metas de inflação, a utilização da política
monetária para estabilizar a moeda e conter a inflação, o nível das reservas externas. A
ênfase no “bom desempenho” relativamente a estes indicadores esconde tanto a estru-
tura e dinâmicas produtivas e de investimento, de natureza extractiva, que estão sendo
criadas, como a dependência externa e insustentabilidade estrutural associadas a estas
estruturas e dinâmicas (Castel-Branco, 2010a, Ossemane, 2010 e 2011). Enfatizando
o “bom desempenho económico” definido por estes indicadores, o governo também
tenta marginalizar o debate sobre outros componentes do conceito de “boa governação”,
nomeadamente a transparência, o combate à corrupção e o respeito pelo pluralismo
político e direito de associação e expressão. Aparentemente, o governo não tem opções
alternativas e tem de trabalhar dentro destes parâmetros económicos e políticos. É gera-
da, assim, a impressão de que o governo exerce liderança na implementação da política
económica mas não tem ownership do desenho dessa política económica.
A preferência do governo em manter altos níveis de fluxos de ajuda por um pe-
ríodo mais longo possível faz sentido como estratégia de sobrevivência política num
contexto de pobreza generalizada e de acumulação primitiva de capital. A qualidade
da ajuda, determinada pelo seu enquadramento através de um cenário fiscal e de des-
pesa pública de médio prazo – focado na diversificação e articulação da base produti-
va, diversificação e alargamento da base fiscal e redução acelerada da dependência fi-
nanceira externa, é de importância secundária num ambiente de extensiva e intensiva
intervenção dos doadores nos vários domínios da política pública e de instituições, de
intervenções públicas frágeis, defensivas, fragmentadas e desarticuladas, e de um Es-
tado fortemente influenciado pelos interesses do capital nacional e do seu aliado prin-
cipal, o capital internacional do complexo mineral-energético (Castel-Branco, 2010a).
No entanto, esta preferência por maximizar os fluxos de ajuda externa transporta
consigo quatro grandes perigos. Por um lado, o orçamento do Estado-agente (reci-
piente da ajuda) é vulnerável em relação aos ciclos, incertezas e flutuações políticas
e económicas que ocorrem nos países doadores. Por outro lado, o agente fica sujeito
e vulnerável a pressões políticas do principal-doador (por exemplo, transparência na
apropriação e utilização das rendas dos recursos naturais, separação das elites políticas
e económicas, respeito pela cidadania e direito de participação política) por causa
dos condicionalismos associados à ajuda, o que pode pôr em causa os interesses fun-
damentais do agente (por exemplo, o interesse de associação das elites económicas e
políticas). Em terceiro lugar, as dinâmicas de acumulação e formação, a curto prazo, de
classes capitalistas domésticas financeiramente fortes são prejudicadas ou não servidas

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 419

Desafios.indb 419 3/29/11 4:54 PM


eficazmente pela sujeição das políticas económicas às pressões económicas e políticas
dos doadores. Finalmente, as contradições entre satisfazer os doadores e os interesses
económicos de acumulação privada em condições históricas específicas em que as
elites políticas e económicas se misturam geram inconsistências e fraquezas institu-
cionais e inconsistências de políticas difíceis de gerir.
Do ponto de vista prático, enquanto os doadores pretendem uma sociedade li-
beral e de competição livre, mas capitalista; o governo tem que se confrontar com o
facto de o capitalismo não ser, historicamente, o produto de sociedades liberais e de
competição livre (Chang, 2002). Embora necessite de se legitimar como provedor de
serviços públicos, o Estado tem também que facilitar e promover o processo de acu-
mulação privada de onde possa emergir a burguesia oligárquica e financeira nacional.
Nas condições históricas de Moçambique, o Estado resolve este dilema promovendo a
aliança entra esta burguesia nacional emergente e o capital internacional permitindo à
primeira o controlo e apropriação das rendas provenientes da ligação com o segundo.
Por consequência, o Estado fica dependente da ajuda externa para se legitimar como
provedor de serviços sociais (Castel-Branco, 2010a).
Para reduzir o poder e a influência dos doadores e a volatilidade e incerteza acer-
ca dos recursos financeiros disponíveis, o governo opta por uma estratégia com duas
componentes. Por um lado, promove uma crítica nacionalista às práticas dos doadores,
denunciando e criticando a interferência política externa e as retóricas políticas libe-
rais. Para que esta componente da estratégia surta efeitos concretos, o governo precisa
de substitutos ou opções alternativas ao modelo de ajuda externa condicionada, o que
significa encontrar outras formas de financiar o défice fiscal e de cooperar. Por conse-
guinte, a segunda componente da estratégia consiste na exploração e aproveitamento
da emergência de novos “parceiros de cooperação” (China, Brasil, Índia, Rússia, várias
economias do médio Oriente e economias potencialmente emergentes da Europa), que
privilegiam interesses comerciais nas relações internacionais, e das parcerias público-
-privadas (PPPs), favorecidas pelos novos parceiros e pelas multinacionais. Os parceiros
emergentes e as PPPs permitem combinar três objectivos fundamentais do governo:
enfraquecer o papel e influência dos doadores tradicionais gerando fontes alternativas
de financiamento da despesa pública; manter os subsídios fiscais ao grande capital inter-
nacional, financiando-os com recurso à dívida pública em substituição da ajuda externa;
e promover novas oportunidades para o grande capital internacional e doméstico nos
serviços e infra-estruturas com recurso ao endividamento público. A preferência do go-
verno pela dívida pública em vez de pela renegociação dos contratos com megaprojectos

420 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 420 3/29/11 4:54 PM


que poderia aumentar as receitas fiscais muito significativamente é uma clara opção
de política e direcção de acumulação económica em favor do grande capital (Castel-
-Branco, 2010a; Ossemane, 2011; Massarongo e Muianga, 2011).
Assim, selectivamente, o governo promove ou encoraja políticas e práticas econó-
micas que, na sua óptica, melhor servem os seus objectivos políticos de sobrevivência e
as perspectivas e interesses do grande capital multinacional e doméstico. São vários os
exemplos destas políticas e práticas. Um é o enfoque e primazia dada à promoção do
investimento de economias emergentes e multinacionais nos recursos naturais (minerais
e energéticos, com uso intensivo de terra, água e energia) e nas grandes infra-estruturas
a eles associadas com recurso à estratégia das zonas económicas especiais e pólos de
desenvolvimento, sem um quadro macroeconómico claro de integração sustentável des-
ses recursos na diversificação e articulação da base produtiva. Outro é a insistência do
governo na concessão de incentivos fiscais redundantes ao grande capital estrangeiro
(Castel-Branco, 2010a; Ossemane, 2011; Bolnick, 2009; Bucuane e Mulder, 2007) e
a sua recusa (pelo menos por enquanto) em renegociar os contratos com os megapro-
jectos já existentes. Deste modo, em vez de garantir a apropriação social (por via fiscal
e de outras fontes) das rendas dos recursos, o governo promove a acumulação privada
dessas rendas. Um terceiro exemplo é a preferência e prioridade dada ao endividamento
público como modalidade de financiamento do défice fiscal em vez de tributar o grande
capital multinacional, uma vez que o endividamento público por via da dívida interna
mobiliária, créditos comerciais e parcerias público-privadas promove oportunidades de
negócios e acumulação para o grande capital que a tributação do capital não permite
fazer (Castel-Branco, 2010a; Ossemane, 2011; Massarongo e Muianga, 2011).
Apesar do “sucesso” moçambicano no que diz respeito à manutenção de taxas eleva-
das de crescimento do PIB e de taxas relativamente baixas de inflação, as políticas econó-
micas têm sido incapazes de promover e organizar a produção alimentar para o mercado
interno em grande escala e a baixo preço, nem têm resultado na articulação doméstica
das actividades produtivas. Quer dizer, a economia nacional, medida pelo tamanho do
PIB, tem crescido rapidamente ao longo das últimas duas décadas, mas este crescimento
pouco contribui para fornecer bens básicos de consumo a baixo custo e para alimentar
os processos produtivos com insumos de qualidade e baratos. Em vez disso, o enfoque
tem sido dado à produção de mercadorias para exportação em forma primária (Castel-
-Branco, 2010a). Portanto, a política económica é não somente estruturada pelos doadores
mas é influenciada, em grande medida, pelos interesses do grande capital (Castel-Branco,
2010a). Neste contexto, não surpreende que entre 2003 e 2009 o PIB real per capita tenha

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 421

Desafios.indb 421 3/29/11 4:54 PM


crescido cerca de 41% enquanto a produção alimentar real per capita tenha diminuído
cerca de 9% (DNEAP, 2010), e que o défice corrente e a dívida pública tenham tendência
para se agravar (Castel-Branco, 2010a; Ossemane, 2010; Ossemane, 2011; Massarongo e
Muianga, 2011). Embora a desigualdade monetária, medida pelo coeficiente de Gini, não
se tenha alterado significativamente neste período, segundo as estatísticas oficiais (DNE-
AP, 2010), a incapacidade da economia fornecer bens básicos de consumo a baixo custo ao
mercado doméstico e de gerar empregos decentes em larga escala teve por consequência
que o crescimento económico é altamente ineficaz em reduzir pobreza. Em termos glo-
bais, a percentagem da população vivendo em pobreza absoluta não diminuiu nos últimos
sete anos, a severidade da pobreza aumentou ligeiramente e o número de pessoas pobres
aumentou em dois milhões (DNEAP, 2010).
Portanto, a questão central de ownership reside não apenas numa disputa entre
receptor (agente) e doador (principal), mas sim no conflito entre diferentes grupos,
interesses e perspectivas sociais de desenvolvimento que lutam por ownership (ou
exercício de influência) sobre as decisões de política pública e a sua implementação.

ABDICAÇÃO DE OWNERSHIP COMO ESTRATÉGIA DEFENSIVA


Uma agência receptora que esteja sob pressão dos doadores para adoptar um
certo pacote de reformas em troca de fluxos financeiros, mas que, também, esteja sob
pressão de grupos sociais de interesse, negativamente afectados pela reforma, para
resistir ou ajustar a reforma, pode ser forçada a escolher uma estratégia defensiva para
a sua própria protecção política que assegure (i) que os doadores vejam que o seu pa-
cote de reformas está sendo adoptado mas que a resistência social às reformas é forte,
embora não afecte o compromisso da agência com a reforma, e (ii) que os oponentes
domésticos à reforma entendem que o pacote de reformas é imposto pelos doadores
e que o espaço político para a iniciativa e inovação institucional é limitado. Uma das
várias formas de atingir este resultado é abdicar de tomar decisões estratégicas nos
casos em que estas decisões podem ser contestadas e nenhum grupo de interesse é su-
ficientemente forte e homogéneo para impor o seu interesse ao conjunto da sociedade
com contestação mínima (Chang, 1996).
Dada a dependência da ajuda e a fragmentação do governo, esta abordagem é
conveniente se e quando surge a necessidade de atribuir a responsabilidade do fracasso
ou do alto custo social das reformas a alguém. A agência receptora pode liderar a imple-
mentação da reforma e, ao mesmo tempo, deixar aberta uma porta de fuga para inverter
a pressão política associada com a falha e com os custos da mudança, atribuindo-os às

422 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 422 3/29/11 4:54 PM


decisões impostas pelo principal (doador). Tem mesmo sido argumentado que algumas
agências doadoras aceitam partilhar ou assumir as culpas, desde que a agência receptora
implemente as reformas definidas (Berg, 2002; Beynon, 2002; Hopkins, 2002; Cassen,
1994; Morrissey, 2004; Mosley, 1988).
Em Moçambique, esta prática defensiva de abdicação de ownership para manter
aberta a opção de atribuição de responsabilidade de fracasso ou alto custo social das
reformas aos doadores tem sido prática comum. De facto, é uma manifestação de
ownership num ambiente de assimetria de poder e de informação e de conflito acerca
das opções de política pública.
Por exemplo, durante o exercício de avaliação conjunta entre governo e doadores
para definição de estratégias futuras dos doadores em Moçambique, um alto funcio-
nário do governo solicitou que os doadores em vez de aumentarem a percentagem de
ajuda geral para o orçamento do Estado (que em teoria dá ao governo receptor maior
soberania e ownership sobre os recursos e a sua alocação) mantivessem inalterável a
alocação sectorial feita pelos doadores (que retira ao governo receptor a possibilida-
de de definir para que sectores deve a ajuda ir). Este funcionário argumentou que
é mais fácil o governo central responsabilizar os doadores pelas decisões de aloca-
ção sectorial em caso de concorrência e conflito entre sectores governamentais pelos
mesmos recursos (KPMG, 2006). Argumentos similares têm sido apresentados por
altos dirigentes políticos que reclamam que é melhor o governo não apresentar um
quadro claro de preferências e decisões estratégicas, de modo a evitar a contestação
e os conflitos de curto prazo, aumentar o espaço e opções para a negociação de curto
prazo, imputar os custos de médio prazo a terceiros e deferir a análise do impacto do
desenvolvimento a longo prazo para quando esse longo prazo chegar.
O caso da liberalização da exportação da castanha de caju não processada (dis-
cutido adiante) é um outro exemplo de um governo que é politicamente incapaz de
lidar com a contestação e conflito internos relativamente a opções de políticas, esco-
lhendo adoptar a política que lhe é imposta por um doador e que é útil para um grupo
de interesse fundamental na indústria (os comerciantes), para depois devolver a culpa
pelas perdas de postos de trabalho e capacidade industrial para o doador.18
Mas ao mesmo tempo que aparentemente abdica de ownership da política eco-
nómica nacional, o governo não abdica do controlo político nem tão pouco das estra-

18
Argumentos semelhantes podem ser apresentados a respeito do programa acelerado de
privatizações em geral, e mais especificamente sobre a reforma do sector financeiro.

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 423

Desafios.indb 423 3/29/11 4:54 PM


tégias e políticas de promoção e facilitação das ligações entre o capital nacional e o
capital mineral-energético internacional.
Jogando com a gíria da ajuda internacional, e correndo o risco de cair no exagero,
pode dizer-se que o Governo de Moçambique tem ownership sobre uma estratégia
informal que não está explícita e lidera a implementação de uma estratégia formal
sobre a qual não tem interesse em deter ownership.
Não obstante o quão frustrante possa ser para os outros, isto pode ser uma aborda-
gem racional para obter ganhos a curto prazo numa estratégia de sobrevivência política
a longo prazo, quando a dependência da ajuda é profunda, multidimensional, estrutural
e dinâmica, o governo é fragmentado e opera num espaço político muito limitado, e os
interesses de acumulação privada predominam sobre os de desenvolvimento económico
e social amplo nas perspectivas de desenvolvimento.

QUAL É O SIGNIFICADO DE OWNERSHIP SE O ESPAÇO PARA A INICIATIVA E


INOVAÇÃO POLÍTICA NÃO EXISTE?
Se o governo receptor acreditar que os fluxos da ajuda estão positivamente rela-
cionados com um certo tipo de programa estereotipado de reformas (por exemplo, o
Washington Consensus, que muitos doadores apoiam ou, pelo menos, não questionam
de maneira fundamental), e se não acreditar que tem o espaço, a voz e a capacida-
de políticos para influenciar a agenda de reformas de modo significativo, então este
governo pode simplesmente adoptar o que é recomendado pelo doador com vista a
maximizar os fluxos da ajuda. O governo não estará interessado em declarar ou mos-
trar onwership por tal programa de reforma, mas tentará mostrar empenho, se não a
liderança, para implementar as reformas ao nível considerado necessário para manter
o fluxo da ajuda. Neste caso, o governo estará apenas interessado na visibilidade, de
tal modo que a sua estratégia seria a de não ter nenhuma estratégia óbvia, a não ser
seguir o que os doadores prescrevem, mostrando empenho em seguir mas também
mostrando que é obrigado a seguir.
Por exemplo, a retórica do crescimento pró-pobre em Moçambique é estrutu-
rada em torno da ideia de que a pobreza pode ser útil e adequadamente descrita pela
privação e incapacidade individual de satisfazer um conjunto de necessidades básicas
seleccionadas, nomeadamente o acesso aos serviços de saúde e à educação, água e
saneamento e infra-estruturas básicas como estradas (Castel-Branco, 2006 e 2006b;
Governo de Moçambique, 2006; Ernst & Young 2006a). Os doadores têm argumen-
tado que enquanto o governo mantiver o cumprimento de um orçamento pró-pobre

424 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 424 3/29/11 4:54 PM


(definido pelos doadores como um orçamento orientado, no geral, pelos Objectivos
de Desenvolvimento do Milénio), os fluxos da ajuda continuarão e poderão aumentar
(Ernst & Young, 2006a).
Em 2005, uma missão de doadores de alto nível, liderada pela então Ministra
para a Cooperação Internacional da Noruega, chegou a Maputo para mobilizar apoio
para fazer avançar a agenda da Declaração de Paris: ajuda programática, harmoniza-
ção entre doadores, ownership nacional da agenda de desenvolvimento, liderança do
governo receptor, alinhamento dos doadores com as políticas e prioridades governa-
mentais e prestação mútua de contas (Killick, Castel-Branco e Gerster, 2005; Paris
High Level Forum, 2005). Um dos membros desta delegação declarou vigorosamente
que toda a gente sabe que a pobreza é combatida com o investimento na saúde, na edu-
cação, água e saneamento e estradas, e que o que é necessário é a liderança do governo
para implementar tal programa. Desta declaração segue-se que, ou a ownership não é
nada mais do que retórica vazia, ou é desnecessária para a liderança, compromisso e
sucesso (já que toda a gente já sabe o que fazer). Ou então, ownership significa fazer o
que toda a gente sabe ser a acção correcta o que, na prática, não é tão fácil de identificar
(já que o que toda a gente sabe são ideias bem diferentes sobre o que fazer, e sabe-o em
contextos sociais e históricos específicos). Uma funcionária sénior do sector da saúde
em Moçambique clarificou o seu pensamento sobre este assunto, afirmando que, pe-
rante a dependência da ajuda e a estratégia do governo para maximizar os fluxos da
ajuda, ownership significa que o governo adopta o programa que os doadores querem
que ele adopte antes de os doadores lhe dizerem para o adoptar (Ernst & Young,
2005a).
Em Moçambique, os discursos dominantes sobre a pobreza são focados em
privação individual do acesso a serviços e satisfação das necessidades básicas, quer
porque os pobres têm insuficiente capital humano, quer porque a sua mentalidade
e cultura miserabilistas os empurram e mantêm na pobreza (Castel-Branco, 2010b;
Brito, 2010; Chichava, 2010). Portanto, pobreza não é entendida como um processo
económico, social e político relacionado com os padrões de crescimento, acumulação
e desenvolvimento. Por que razão estão as pessoas privadas desses serviços e da capa-
cidade para satisfazer as suas necessidades básicas? Como é que essa privação se pode
manter apesar do robusto crescimento económico e da aparente estabilidade macroe-
conómica? Por que razão essa privação segue padrões sociais diferenciados por género,
região, grupo etário e padrão e história de emprego assalariado e acesso a recursos
naturais? Como é que as dinâmicas sociais e de reacção das famílias e indivíduos con-

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 425

Desafios.indb 425 3/29/11 4:54 PM


solida, agrava ou reduz o estado de pobreza e o processo de empobrecimento? Estas
são algumas das questões heréticas que não são colocadas, discutidas ou respondidas
no debate retórico sobre pobreza (Castel-Branco 2010b, 2008b e 2006).
Assim, independentemente dos debates acesos sobre a necessidade de articular
a ajuda com o investimento produtivo directo e com a construção da capacidade pro-
dutiva numa base social e regional mais ampla, que envolvem funcionários do gover-
no, empresários, trabalhadores, associações de agricultores, académicos e outros grupos
sociais, (Cassen, 1994; Castel-Branco, 2004b; Castel-Branco, Sulemane et al, 2005;
UNCTAD, 2006)19, os programas sociais e económicos públicos reflectem o estereótipo
do Washington Consensus com Face Humana (Cornia, Jolly e Stewart (eds), 1987), com
o foco na estabilidade monetária associada à liberalização, boa governação e consumo
social incentivados por fluxos massivos de ajuda (Killick, Castel-Branco e Gerster, 2005;
Ernst & Young, 2006a e 2005; KPMG, 2006; Castel-Branco, 2007). Supõe-se que a
estabilidade monetária, a liberalização e a privatização atraiam o investimento que gera
o crescimento, e que a ajuda minimize os sintomas mais chocantes de privação e forneça
o capital humano, as infra-estruturas e a retórica da boa governação.
Um outro exemplo vem da experiência da agricultura. Desde finais dos anos
1990 foi introduzido um programa de financiamento, por via da ajuda externa, do
investimento público na agricultura, o PROAGRI. Os doadores juntaram-se e finan-
ciaram o PROAGRI na condição de que fosse acordado um conjunto de princípios,

19
O debate sobre a articulação da ajuda com o investimento privado é frequentemente reduzido ao
uso da ajuda para financiar empresas privadas. No outro extremo, vários doadores têm financiado
centenas de esquemas de apoio ao sector privado para micro e pequenas empresas, que resultaram
em muito pouca capacidade produtiva nova, inovativa e sustentável. Foi estabelecido um par
de grandes programas de apoio ao sector privado pelo Banco Mundial (PoDE) e UNIDO
(programa integrado) para apoiar as firmas existentes através dos mercados. Os megaprojectos
baseados em investimento directo estrangeiro estabeleceram também esquemas para ajudar as
firmas privadas a prepararem propostas competitivas para concursos. Muitos destes esquemas
são demasiado pequenos e desarticulados para poderem ter sucesso e não são parte de uma
estratégia industrial específica. Assim, não apontam mercados, habilidades, tecnologias,
organização industrial, produção e cadeias de fornecimento específicos: são programas gerais
sem qualquer contexto específico. Uma abordagem alternativa liga os investimentos públicos e
privados em torno do desenvolvimento de capacidade produtiva (em vez de desenvolvimento
do sector privado, em geral) como parte de estratégias industriais específicas. O argumento é o
de que, na ausência de uma intervenção estratégica do estado na criação de capacidades numa
base ampla para o desenvolvimento das forças produtivas, a estratégia do investimento orientado
para o mercado está a resultar num conjunto enviesado e social e geograficamente limitado de
parceiros de investimento em minerais, energia e mercados de competição oligopolista como
consequência das estratégias globais das corporações multinacionais (Castel-Branco, 2006b,
2006c, 2005b, 2004b e 2002a; Castel-Branco, Sulemane et al, 2005; Wuyts, 2003).

426 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 426 3/29/11 4:54 PM


um dos quais estabelecia que o governo não podia fornecer serviços directamente
aos produtores (Ministério da Agricultura, 2004). O outsourcing de firmas privadas
foi a forma preferida para o fornecimento de serviços agrícolas. Este princípio, que é
consistente com a ideologia da superior eficiência do mercado livre, foi imposto pelos
doadores. Houve problemas óbvios na aplicação do princípio: não havia empresas
privadas capazes ou interessadas em fornecer serviços a pequenos produtores (Castel-
-Branco, 2005); os ganhos sociais de alguns serviços agrícolas são mais altos do que
os ganhos privados, o que apela à intervenção pública; quando disponíveis, os serviços
agrícolas para pequenos agricultores confinaram-se à assistência técnica básica em
culturas de alto valor comercial, como o tabaco e o algodão, provida e controlada pelas
concessionárias multinacionais, o que naturalmente estrutura as opções futuras de
desenvolvimento (Castel-Branco, 2005; Ministério da Agricultura, 2005). Dados ofi-
ciais indicam que o uso de agro-químicos por parte dos pequenos produtores agrícolas
nacionais é praticamente restrito aos produtores de tabaco e algodão (Ministério da
Agricultura, 2005).
Apesar do Estado não poder fornecer serviços aos produtores, avultadas so-
mas de dinheiro foram alocadas ao Ministério da Agricultura. Consequentemente,
os recursos do PROAGRI foram gastos na “capacitação institucional”, isto é, numa
combinação de bolsas de estudo com investimento em gabinetes e equipamento de
escritório – sem qualquer impacto real sobre a qualidade de qualquer serviço, nem
sobre o desenvolvimento da actividade agrícola comercial.
Portanto, se o governo acredita que o seu espaço político é exíguo e que tudo o
que pode fazer é implementar o que toda a gente já sabe ser a boa prática, é lógico que na
relação com doadores dê primazia a estratégias e tácticas que permitam maximizar os
fluxos de ajuda. Se, em torno da questão em debate, não houver grupos de pressão com
suficiente clareza e poder para influenciar a política do governo em direcção oposta à
dos doadores – como acontece, por exemplo, com o debate sobre recursos naturais –
então a prioridade do governo fica a garantia do influxo de ajuda, pelo que opta por
seguir o que toda a gente sabe imposto pelos doadores.

PRIVATIZAÇÃO: OWNERSHIP PARTILHADA EM TORNO DE PRESSÕES E


INTERESSES EM CONFLITO, COM RESULTADOS DIVERGINDO DA RETÓRICA
O compromisso da agência receptora relativamente ao pacote de reformas pode
depender de questões que não estão relacionadas com ownership e liderança da refor-
ma. As questões de que o compromisso da agência doadora pode depender, para além

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 427

Desafios.indb 427 3/29/11 4:54 PM


de ownership, podem ser tantas e tão diversificadas como as que se seguem: o quão
estreitamente ligado estão a escala dos fluxos da ajuda com os indicadores e condicio-
nalismos da reforma; o poder de negociação do receptor em face dos doadores; o com-
promisso dos doadores em relação à reforma e os interesses estabelecidos desafiados
pela reforma; o grau de assimetria de informação entre o receptor e doadores; o grau
de resistência à reforma enfrentado pelo receptor; a vontade e capacidade políticas do
receptor de confrontar essa resistência e de implementar a reforma; o grau de crença
na reforma por parte da agência receptora; a percepção, da agência receptora, sobre
vantagens, a curto e médio prazo, que nada têm a ver com os objectivos iniciais da
reforma política.
A experiência da privatização em Moçambique é uma boa ilustração deste pon-
to. Se o sucesso é medido pelo número de activos privatizados e o tempo levado a pri-
vatizá-los, então a experiência moçambicana é uma história de grande sucesso: mais
de 1.500 grandes, médias e pequenas empresas foram privatizadas para investidores
nacionais e estrangeiros em menos de 10 anos. Uma vez que se assuma que ownership
pode ser medido pelo compromisso, e que este é medido pelo grau de implementação
das reformas, então o sucesso das privatizações em Moçambique (conforme definido
acima) é atribuível a ownership do governo sobre o programa.
De facto, a privatização é um interessante caso de ownership múltipla e com
interesses em conflito numa área altamente disputada. As pressões para privatizar
eram internas e externas. Internamente, a pressão para privatizar veio de três fon-
tes. A nova burguesia nacional emergente, que iria herdar a maior parte dos activos
(e também dos problemas desses activos), reivindicava activos públicos produtivos
baratos e entendia a necessidade de adquirir tais activos antes que os investidores es-
trangeiros se estabelecessem em Moçambique. Os sindicatos estavam convencidos de
que a privatização traria novos investimentos e, com isso, oportunidades de emprego
seguras e alargadas, esquemas de formação, níveis de produtividade mais altos e me-
lhores salários (conforme lhes havia sido prometido por um governo que, na altura,
ainda era visto como garante dos interessasses dos trabalhadores, embora apregoasse
a retórica do capitalismo). Se este fosse o caso, a rápida privatização seria preferível
à morte lenta de muitas empresas no princípio dos anos 1990. O governo estava in-
teressado em aumentar os fluxos de recursos para o orçamento: a curto prazo, através
da venda das empresas; e a médio prazo, através do aumento das receitas a partir dos
ganhos da eficiência esperados ao nível das empresas, resultantes da privatização. O
governo estava também interessado em atrair, para uso produtivo, activos financeiros

428 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 428 3/29/11 4:54 PM


acumulados pelos comerciantes através da especulação comercial e financeira, e trans-
ferir recursos do sector público para o sector privado como forma de desenvolver o
novo sector privado nacional (Castel-Branco, 2002a e 1999; Castel-Branco e Cramer,
2003; Cramer, 1998).
A pressão externa veio dos credores e doadores sob a forma de condicionalis-
mo político. Na década de 1990, cada Policy Framework Paper (documento de base
da política económica em Moçambique na época)20 estabelecia metas quantitativas
para privatização (número e mesmo nomes das empresas a serem privatizadas, bem
como os cronogramas de privatização) como parte fundamental do condicionalismo
político ligado ao desembolso da ajuda externa (Castel-Branco, 2002a e 1999; Castel-
-Branco e Cramer 2003; Cramer, 1998).
A retórica da era das privatizações centrava-se no desenvolvimento de ligações
que a privatização poderia permitir: investimento, empregos, formação, produtividade,
comércio, novas tecnologias, eficiência na alocação de recursos, ligações fiscais dinâ-
micas e desenvolvimento de uma classe empresarial nacional produtiva e competitiva.
Contudo, a quantidade dos activos privatizados e a velocidade da privatização foram
as únicas preocupações reflectidas no condicionalismo político e também os únicos
indicadores de avaliação do desempenho do programa de privatizações em Moçam-
bique (Cramer, 1999; Castel-Branco e Cramer, 2003). Nem mesmo as preocupações
relativas às receitas públicas foram consideradas ao estabelecer as metas quantitativas
das privatizações, não obstante o facto de o programa de privatizações retoricamente
também dar prioridade ao incremento das receitas para o orçamento do Estado. Não
houve metas de desempenho produtivo, de investimento, comercial, de inovação, de
qualidade, de formação, fiscais e de emprego para as empresas privatizadas (Castel-
-Branco, 2002a e 1999; Castel-Branco e Cramer 2003; Cramer, 1998).
Consistentemente, as avaliações preocupadas com os ganhos económicos e so-
ciais líquidos da privatização mostram que mais de 40% das empresas privatizadas
foram à falência e as perdas líquidas dos empregos foram altas (cerca de 15.000 em-
pregos só na indústria do caju). O grosso do novo investimento privado realizado após
as privatizações foi em empresas novas, não nas privatizadas, grandes, de capital es-

20
Os Policy Framework Papers (PFP) eram documentos de política acordados entre o FMI, o
Banco Mundial e o Governo de Moçambique, geralmente válidos por dois anos, que vincula-
vam o governo a uma direcção detalhada de políticas e planos de acção para o período coberto.
Estes documentos precederam os Poverty Reduction Strategy Papers (PRSP), nos quais as es-
tratégias e planos de acção dos governos da maioria dos países menos desenvolvidos se inspiram
(incluindo, obviamente, os vários PARPA e o mais recente PARP em Moçambique).

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 429

Desafios.indb 429 3/29/11 4:54 PM


trangeiro e em indústrias oligopolistas ou monopolistas (tais como nos recursos minerais
e energéticos, cerveja, açúcar, algodão, florestas e cimento), não em pequenas e médias
empresas nacionais com base diversificada e em mercados de maior concorrência.
O empresariado nacional emergente consolidou-se sobretudo no comércio, finanças,
especulação imobiliária e em áreas de parceria com o governo e as multinacionais com
base em ligações políticas ou posse de recursos naturais, sendo raros os casos em que
novas empresas emergiram, cresceram e se consolidaram em actividades produtivas
directas. Os ganhos fiscais dinâmicos foram mínimos, quer porque muitas empresas
privatizadas desapareceram ou nunca atingiram os níveis de eficácia perspectivados,
quer porque cerca de 70% do valor de venda das empresas nunca foi pago ao Esta-
do pelos respectivos compradores (Cramer, 1998).21 A estrutura social, económica e
tecnológica da produção e comércio (incluindo exportações) tornou-se ainda mais
limitada, concentrada e extractiva do que antes e, como consequência, a economia
moçambicana tornou-se mais vulnerável (Castel-Branco, 2010a, 2004b, 2003 e 1999;
Castel-Branco e Cramer, 2003; Castel-Branco, Sulemane et al, 2005; Cramer 1998;
Biggs, Nasir e Fisman 1999; Nasir et al, 2003).
Ao mesmo tempo, com excepção de alguns grandes e megaprojectos de owner-
ship estrangeira na área de minerais, energia e mercados oligopolistas (maioritaria-
mente desligados do resto da economia devido ao seu muito limitado impacto sobre
o emprego, ligações industriais e receitas fiscais), as dinâmicas económicas produtivas
directas em Moçambique têm sido muito limitadas.
As privatizações foram cruciais para gerar uma burguesia proprietária, embo-
ra não produtiva, nacional e para transferir poder económico e político do domínio
público para o privado. Para além destes efeitos, os resultados das privatizações são
ambíguos e mistos.
Do ponto de vista do debate sobre ajuda externa e ownership, a experiência das
privatizações mostra três tendências comuns e generalizáveis a outras reformas de
política. Primeira, diferentes interesses e pressões podem convergir para facilitar a
adopção social de uma certa reforma ou nova prática política, mesmo que os dife-
rentes grupos de interesse envolvidos persigam objectivos diferentes. No caso das
privatizações, os sindicatos pretendiam segurança de emprego e melhores salários,
o governo queria aumentar as receitas e atrair recursos financeiros acumulados por

21
Este processo ficou conhecido como o subsídio implícito do Estado para a criação de uma
burguesia nacional rendeira (Cramer, 1998; Castel-Branco e Cramer, 2003).

430 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 430 3/29/11 4:54 PM


capitalistas mercantilistas e especuladores, as classes médias nacionais queriam acesso
a propriedade a baixo custo, as organizações internacionais pretendiam um compro-
misso político com um modelo de capitalismo, e o capital estrangeiro esperava por
oportunidades para expandir o seu controlo sobre indústrias oligopolistas (cerveja,
açúcar, cimento) e recursos naturais no quadro das suas estratégias regionais. Portanto,
a questão de ownership é muito complexa – todos os diferentes grupos tinham um
certo grau de ownership, pelo que a privatização foi adoptada com relativa facilidade,
mas cada um perseguia diferentes interesses e os níveis de competência, percepção,
informação e capacidade de exercer influência eram diferenciados e assimétricos.
Segundo, existe uma diferença substancial entre as motivações retóricas para a
reforma e os seus resultados, pois, uma vez que as motivações são aceites e as refor-
mas adoptadas, o processo da reforma fica mais importante do que o resultado. No
caso das privatizações, o argumento de eficácia económica, emprego e mobilização de
recursos motivou a decisão sobre o programa, mas, uma vez que este foi aprovado e
começou a ser implementado, a avaliação centrou-se na velocidade e quantidade de
privatização. Isto é, uma vez que ficou estabelecido que a “privatização é boa para a
economia”, o centro de atenção passou para a quantidade da privatização em vez de
para a análise do seu impacto real.
Terceiro, implementação é tão ou mais importante do que a decisão e a motiva-
ção da decisão, pois determina os resultados práticos. Portanto, ownership de decisões
pode ser partilhada por vários grupos perseguindo interesses diferentes, mas owner-
ship da condução prática da implementação das decisões é exercida pelos grupos mais
informados e influentes, capazes de impor os seus interesses como factor dominante
no processo de implementação de política pública.
Assim, não há dúvidas de que o governo esteve comprometido com a priva-
tização, mas tal compromisso não tinha nada a ver com a ownership e liderança. As
pressões internas e externas, uma percepção de ganhos fiscais e políticos e a ligação
condicional do progresso na privatização com o desembolso de ajuda ou empréstimos
externos parecem ter sido de longe mais importantes para encorajar o compromisso
do governo do que quaisquer teorias sobre ownership.
Para além do mais, o governo nunca aceitou a culpa pelos maus resultados no
que respeita ao impacto social e económico das privatizações. A culpa foi desviada
para os doadores, enquanto o governo ganhava o elogio por duas medidas de sucesso:
a transferência dos activos do sector público para o sector privado e a escala e veloci-
dade das privatizações.

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 431

Desafios.indb 431 3/29/11 4:54 PM


INDÚSTRIAS DE CAJU E AÇÚCAR: OWNERSHIP E LIDERANÇA DE QUEM?
A secção anterior argumentou que a forma como ownership se manifesta na
política pública depende do grau de conflito e articulação de diferentes interesses de
grupo envolvidos nos temas em análise, e do ownership sobre o processo de imple-
mentação não só sobre a decisão. Embora a decisão de privatizar tenha tido ownership
de vários grupos e por motivos diferentes; a implementação da decisão foi sobretudo
influenciada pelos interesses de transferência da propriedade pública para o domínio
privado. Por isso, o principal resultado do processo de privatização foi essa transfe-
rência, em vez do conjunto de motivações que levaram grupos diferentes a apoiar
a decisão de privatização. Este ponto é importante para o debate sobre ownership
porque levanta uma questão que, sendo fundamental, é, no entanto, negligenciada na
análise: qual é o processo político, económico e social para construir a base do poder
para exercer ownership e, portanto, providenciar a plataforma para articular, de manei-
ra estratégica e coerente, a direcção do desenvolvimento e da mudança, não só no que
diz respeito às decisões, mas também no que diz respeito às motivações diferenciadas
e processos de implementação?
A análise das trajectórias bem diferentes das indústrias do caju (fragmentada do
ponto de vista produtivo e de propriedade) e do açúcar (verticalmente integrada e oli-
gopolista, com pontos de referência dominantes claros para a articulação dos interes-
ses da indústria) ajudam a ilustrar outro processo: como é que interesses dominantes
são construídos e constroem, em sua volta, o momentum para influenciar o Estado, a
organização da produção, a apropriação das rendas e a acumulação capitalista, isto é,
para influenciar as decisões e implementação de políticas. Adicionalmente, estes são
também casos do conflito entre a política pública nacional e o clássico doadorismo, e
ilustram as várias dimensões, factores e relações envolvidos nas disputas do poder e
ownership para influenciar os resultados do processo de desenvolvimento.
A política económica corrente em Moçambique toma como certo que o grau de
incentivo ao sector privado é determinado pelo grau de liberalização dos mercados
de bens e factores (e por algumas medidas governamentais para corrigir imperfeições
dos mercados de modo a torná-los perfeitos). Esta visão é baseada nos pressupostos
neoclássicos acerca de como as empresas procuram lucros através do mercado e como
os mercados de bens e factores se comportam. As decisões políticas resultantes não
tomam em consideração três aspectos fundamentais. Primeiro, as empresas podem
influenciar o Estado, a direcção da política e as condições do mercado. Assim, as
capacidades, estratégias e acções das empresas competidoras têm de ser tomadas em

432 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 432 3/29/11 4:54 PM


consideração, porque influenciam os resultados do mercado. Segundo, nestas circuns-
tâncias, a opção de liberalização pode não estar disponível ou pode ser irracional e,
portanto, pode não ser um incentivo para o investimento privado competitivo. Tercei-
ro, existe um problema dinamicamente cumulativo para a política industrial que não
pode ser evitado, nomeadamente a necessidade de entender como é que as estratégias
e acções de alguém podem mudar as próprias condições em que a estratégia está ba-
seada e as influências que actuam sobre o Estado e a estratégia na ronda seguinte de
negociação de políticas (Kim, 1997; Koo (ed.), 1993; Lie, 2000; Shin e Chang, 2003;
Chang, 1996).
Uma análise comparativa dos desenvolvimentos nas indústrias de açúcar e caju
em Moçambique pode ilustrar estes pontos. O quadro 1, adiante, descreve as prin-
cipais semelhanças e diferenças entre estas duas indústrias, para além das diferenças
técnicas associadas aos seus processos de produção.22
Sob pressão coordenada dos investidores, três grandes corporações internacio-
nais da indústria açucareira, o governo aprovou uma política industrial do açúcar de-
senvolvida em torno de três pontos principais: (i) definição de açucareiras prioritá-
rias para a privatização e reabilitação (isto é, entrada restrita) para evitar capacidade
excessiva e deterioração dos preços aos produtores; (ii) política de preços baseada
numa taxa aduaneira flexível sobre o preço das importações, para evitar que o preço
doméstico caísse abaixo de um certo preço médio histórico mundial, de tal maneira
que a renda interna fosse partilhada entre os produtores e o Estado, em vez de apro-
priada pelos comerciantes nacionais ou pelas indústrias externas; e (iii) desenvolvi-
mento de mecanismos de coordenação de estratégias de marketing entre as empresas
para tirarem vantagem das quotas preferenciais e evitar ter que vender o açúcar a um
preço abaixo do custo marginal no mercado internacional (Governo de Moçambique,
1999a, 1999b e 1999c; Castel-Branco, 2010a e 2002a).
A indústria que se desenvolveu em linha com as estruturas industriais existen-
tes (estabelecidas historicamente) e as políticas adoptadas é altamente integrada verti-
calmente a nível interno (cada açucareira incorpora a produção de cana, bem como o
processamento industrial do açúcar) e ao nível da África Austral (envolvendo a coor-
denação das decisões de investimento, dos fornecedores de insumos, das capacidades
de gestão e manutenção, bem como a coordenação da competição e estratégias corpo-

22
Estes estudos de caso são tomados de Castel-Branco (2002a), onde uma vasta e diversificada
literatura relacionada com o estudo constrangedor destas duas indústrias pode ser conferida.

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 433

Desafios.indb 433 3/29/11 4:54 PM


rativas oligopolistas). As açucareiras partilham um alto grau de homogeneidade, já que
enfrentam condições de produção, mercados e cadeias de fornecedores semelhantes. A
comercialização do açúcar é coordenada por uma empresa privada ligada à associação
dos produtores de açúcar. Esta associação funciona como um oligopólio para a negocia-
ção da produção, comércio e preços dentro da indústria e entre a indústria e o Estado.
Assim, a indústria do açúcar é um oligopólio com poucos investidores, com mecanis-
mos formais e informais de coordenação, alto grau de homogeneidade produtiva e de
integração vertical. Nestas circunstâncias, é mais fácil definir e coordenar políticas e
estratégias e impô-las como um conjunto nuclear dominante de interesses e assuntos
em torno dos quais as intervenções privadas e públicas são negociadas e implementadas.
O Banco Mundial e o FMI opuseram-se à política de preços, porque ela era in-
consistente com a liberalização do comércio. Contudo, não questionaram os outros dois
elementos centrais da estratégia do açúcar (coordenação dos investimentos e das ex-
portações), que são tão ou mais violadoras dos pressupostos de mercados de concor-
rência perfeita como a política de preços. O FMI tentou forçar o governo a abandonar
a política de preços para o açúcar mas não o conseguiu por causa da pressão e do lobby
organizado da indústria, do apoio das companhias açucareiras internacionais e finan-
ceiras internacionais envolvidas, da escala do investimento já feito23 e da ameaça, pelos
investidores, de retirada em caso de a política de preços ser revertida. Apesar da pressão
para liberalização ter reduzido desde então, o FMI ainda insiste que a liberalização é a
melhor opção e que a política de preços deve ser revista regularmente, como se as con-
dições do mercado mundial enfrentadas pela indústria, que são altamente “imperfeitas”,
não importassem, ou como se os altos funcionários do FMI fossem incapazes de com-
preender os mercados reais em vez de recitar os dogmas dos mercados ideais.
Diferentemente do açúcar, a indústria do caju é fragmentada. A produção da
amêndoa do caju é maioritariamente uma actividade camponesa familiar. Os campo-
neses, os comerciantes e os industriais (que processam a amêndoa de caju) têm inte-
resses divergentes. Antes da privatização, as exportações da castanha em bruto eram
desencorajadas através de uma taxa de exportação. Depois da privatização, o Banco
Mundial pôs pressão no governo para liberalizar as exportações de castanha em bruto.
O argumento do Banco Mundial baseava-se em dois pontos. Primeiro, o valor acres-
centado das empresas nacionais de processamento, apreços mundiais, era negativo,

23
Excluindo os megaprojectos do complexo mineral-energético, o açúcar é a principal indústria
nacional no que diz respeito aos volumes de investimento total e do investimento directo
estrangeiro (IDE) no sector industrial.

434 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 434 3/29/11 4:54 PM


pelo que a economia podia ganhar mais divisas exportando a castanha em bruto. Isto
devia-se a três factores: (i) as condições precárias das empresas na altura das privati-
zações; (ii) o baixo e volátil preço mundial para a castanha de caju processada; e (iii) o
preço excessivamente alto, mas igualmente volátil, da castanha não processada, devi-
do às importações massivas da Índia para fornecer a sua indústria de processamento
com matéria-prima durante o período de expansão da sua produção doméstica de
castanha. Segundo, os camponeses beneficiariam da liberalização, porque o preço de
exportação da castanha em bruto iria subir e a percentagem do ganho comercial para
os camponeses iria aumentar devido à crescente competição entre os comerciantes.
Como resultado, os camponeses iriam investir na reabilitação e expansão das suas
plantações de cajueiros e melhorar os seus meios de subsistência.
Este argumento do Banco Mundial era baseado em pressupostos falsos sobre
três pontos cruciais relacionados com a indústria do caju. Primeiro, a Índia e o Vie-
tname estavam a aumentar rapidamente as importações de castanha em bruto para
alimentar a rápida expansão da sua capacidade de processamento, enquanto as suas
plantações de cajueiros se desenvolviam. A curto prazo, as importações de matéria-
-prima iriam ajudar as suas capacidades industriais a atingirem economias de escala,
eficiência técnica e domínio de mercado. Obviamente, enquanto o forte aumento da
oferta de castanha de caju processada pela índia e o Vietname baixava os preços da
castanha processada, o igualmente forte (mas de curta duração) aumento nas impor-
tações de castanha de caju em bruto aumentava o preço mundial da castanha de caju
em bruto. Quando as novas plantações de caju indianas e vietnamitas atingiram a
idade produtiva, as importações da castanha em bruto caíram e o mesmo aconteceu
com os preços para os exportadores moçambicanos de castanha em bruto. A Índia e o
Vietname, que promoveram as suas capacidades de processamento, atingiram econo-
mias de escala e níveis de eficiência mais altos na logística da produção e da cadeia de
valor, e conquistaram fatias significativamente maiores do mercado mundial de cas-
tanha processada. O seu processo de reestruturação industrial ajudou-os a consolidar
o seu domínio mundial nesta indústria. Moçambique (e outros países africanos que
seguiram as mesmas opções dadas a Moçambique) abdicou de processar a castanha
para tirar vantagem de ganhos relativos de curta duração com exportação de castanha
em bruto, perdeu a sua indústria de processamento e milhares de postos de trabalho, e
não desenvolveu nenhuma vantagem competitiva que permitisse a sobrevivência desta
indústria, mesmo como parte da cadeia internacional de valor (Pereira Leite, 1999 e
1995; Cramer, 1999; Africa America Institute, 2001; Hanlon, 2000).

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 435

Desafios.indb 435 3/29/11 4:54 PM


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Desafios.indb 436
QUADRO 1 DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS ENTRE AS INDÚSTRIAS DE AÇÚCAR E CAJU EM MOÇAMBIQUE EM 2002

AÇÚCAR CAJU

DIFERENÇAS

A ESTRUTURA DA INDÚSTRIA:
Maioritariamente unificada, porque as actividades agrícola e de pro- Maioritariamente fragmentada: pequenos camponeses apanham a castanha bruta, não descas-
cessamento estão integradas. A Tongäat-Hüllet detém a maioria dos cada; comerciantes retalhistas compram-na aos camponeses e vendem-na para comerciantes
activos em duas propriedades açucareiras e a Illovo e Sena Holdings de maior escala, que, por seu turno, a exportam em bruto ou vendem-na a 16 fábricas de pro-
(um consórcio de companhias açucareiras das Maurícias) são os accio- cessamento de diferentes dimensões e tecnologias. A Mocita é a única fábrica detida por uma
nistas maioritários com uma propriedade açucareira cada. Todas são multinacional, a Anglo-American. 11 das 16 fábricas pertencem a 7 grupos económicos diversifi-
corporações açucareiras internacionais que controlam a produção do cados nacionais, dos quais 5, que detêm 8 fábricas, estão também envolvidos na comercialização
açúcar na África Austral. e exportação da amêndoa de caju em bruto*.

O TAMANHO DAS EMPRESAS:


As quatro propriedades açucareiras são, em todos os critérios, com- Em média, cada fábrica empregava 600 trabalhadores; duas fábricas empregavam mais de 1400.

Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa


panhias muito grandes, empregando milhares de trabalhadores nas Isto, no entanto, não diz muito sobre os grupos económicos que detêm as fábricas.
plantações e nas fábricas.

ESPECIALIZAÇÃO NO NEGÓCIO:
Todas as corporações são especializadas em açúcar, controlam a pro- Apenas os trabalhadores das fábricas de processamento dependem inteiramente da indústria. Os
dução e comercialização de açúcar em outros países da África Austral, camponeses também trabalham como mão-de-obra assalariada e produzem outras culturas (de ren-
são influentes nos mercados internacionais e organizam as suas pró- dimento ou para consumo). Todos os comerciantes grossistas estão envolvidos na comercialização
prias cadeias de fornecedores. rural de grande escala e diversidade, e também são operadores financeiros informais (concedem
empréstimos e crédito comercial) e providenciam outros serviços. Os proprietários das fábricas de
processamento detêm outros negócios, incluindo na comercialização rural e exportação de caju em
bruto.

INVESTIMENTO:
Dos 230 milhões de dólares americanos investidos, 70% são emprésti- Dos 37 milhões de dólares americanos investidos, 60% provêm de empréstimos maioritariamen-
mos estrangeiros concedidos por corporações financeiras e agências te concedidos pelo sistema bancário nacional.
multilaterais internacionais. O investimento privado foi feito depois
de as políticas de preços, de limitação de entrada de novos agentes e
de coordenação do comércio terem sido adoptadas.

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Desafios.indb 437
SEMELHANÇAS

ESTADO DAS EMPRESAS NA ALTURA DA PRIVATIZAÇÃO:


As empresas foram devastadas durante a guerra. Foram privatizadas depois do início do programa de reforma económica. Grande investimento foi feito para repor a sua
capacidade produtiva.

CONDIÇÕES DO MERCADO:
As duas indústrias enfrentam mercados internacionais complexos e “imperfeitos”. Menos de 10% da produção de açúcar é comercializada no mercado mundial, sendo o
restante comercializado internamente ou através de sistemas de quotas preferenciais. Todos os países produtores de açúcar adoptam medidas de protecção de diferen-
tes graus e formas (quotas, taxas, etc.) contra a importação de açúcar bruto ou refinado, bem como de produtos contendo açúcar. A disponibilidade de açúcar no mercado
mundial é instável, porque depende de condições climatéricas imprevisíveis; o excedente do consumo interno e das quotas preferenciais é vendido no mercado mundial
abaixo do custo marginal de produção. O preço mundial do açúcar é, portanto, volátil. No sector do caju, muitos produtores protegem o processamento nacional. A Índia usa
medidas fiscais e outras de política industrial, incluindo o financiamento de importações da amêndoa de caju em bruto, para assegurar o fornecimento de matéria-prima
às fábricas. O Brasil introduziu um banimento total das exportações de caju em bruto, e o Vietname e a Indonésia aplicam altas taxas sobre a exportação de castanha não
processada. Portanto, grandes importações de amêndoa de caju em bruto têm forte probabilidade de serem transitórias, nos períodos em que o fornecimento nacional de
castanha em bruto se está ajustando à expansão da indústria doméstica de processamento. Enquanto os produtores africanos são os maiores exportadores mundiais de
castanha em bruto, os asiáticos e latino-americanos são os maiores exportadores de castanha processada.

NECESSIDADES DE APOIO POLÍTICO:


As duas indústrias precisam de reestruturação, protecção, acesso a capital para reabilitação e modernização, coordenação de mercado, entre outras medidas de política
industrial, para poderem construir capacidade produtiva competitiva.

FONTE Castel-Branco, 2002a.

NOTA
(*)Os comerciantes que são também industriais têm a opção de exportar a amêndoa de caju não processada ou processá-la, de acordo com as mudanças e choques que podem ocorrer nos preços
relativos internacionais e a qualidade da amêndoa [entrevistas com Raimundo Matule (INCAJU), Rogério Nunes (Entreposto) e Kekobad Patel (Enacomo)]. Depois da liberalização das exportações da
castanha de caju não processada, todas as fábricas mencionados no Quadro 1 foram encerradas. Em meados dos anos 2000 surgiram várias pequenas fábricas de descasque manual da castanha de
caju. As novas dinâmicas desta indústria não são discutidas neste artigo porque o artigo pretende apenas ilustrar a diferença no que diz respeito a ownership entre o sector açucareiro e o do caju no
período de definição das políticas que decidiram os futuros dissemelhantes destas duas indústrias em meados dos anos 1990.

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011


437

3/29/11 4:54 PM
Segundo, o Banco Mundial não percebeu a organização oligopolista da comercia-
lização rural em Moçambique, particularmente no que diz respeito às mercadorias para
exportação, nem o impacto dessa estrutura de mercado na distribuição dos ganhos da co-
mercialização entre os comerciantes e os camponeses (Mackintosh, 1987 e 1986; Pereira
Leite, 1999). O custo da logística de entrar neste mercado disperso e fragmentado, bem
como o facto de que os comerciantes estabelecidos têm relações multidimensionais (co-
merciais, financeiras, etc.) com os produtores, funcionam como factores que dão vantagem
aos comerciantes estabelecidos e dificultam a penetração de novos comerciantes formais no
mercado. Ligações específicas de negócios de longo prazo entre grandes comerciantes do
norte de Moçambique e da Índia e o papel das exportações de castanha em bruto no impul-
sionamento dessas relações são outras características estruturais importantes dos mercados
rurais e da circulação de dinheiro, que dão vantagens a certos grupos de comerciantes.
Pereira Leite (1999: 45) mostra que o número de grandes comerciantes/exporta-
dores de castanha de caju não processada aumentou de 3, em 1991, para 11, em 1997,
depois da liberalização da indústria. Os dados não mostram que este aumento do nú-
mero de comerciantes tenha reduzido a sua margem comercial por via da competição.
Pelo contrário, segundo Pereira Leite (1999 e 1995), por exportarem castanha em
bruto, as margens dos comerciantes nacionais, depois da liberalização, aumentaram
entre 50% e 1.000% relativamente ao que ganhariam vendendo para as indústrias
locais. A magnitude destas margens dependia da flutuação dos preços relativos da
castanha de caju processada e não processada no mercado mundial, e os preços relati-
vos foram favoráveis para as exportações de castanha não processada apenas durante
cerca de cinco anos (até 1999), enquanto as novas plantações de cajueiros na Índia
e no Vietname cresciam. Grandes margens comerciais são indicativas de fraca com-
petição; os dados que mostram que o número dos comerciantes formais aumentou
através da incorporação de mais comerciantes de grande escala com monopólio par-
cial na estrutura comercial oligopolista, em parte porque os processadores de castanha
passaram a exportar castanha em bruto e transformaram-se em comerciantes – dos
novos 8 grandes comerciantes e exportadores de caju em bruto, seis eram industriais
convertidos em comerciantes (Pereira Leite, 1999 e 1995; Castel-Branco, 2002a). As-
sim, a liberalização das exportações não eliminou o poder de mercado exercido pelos
comerciantes e, portanto, os camponeses não receberam necessariamente preços mais
altos pelo seu produto (Pereira Leite, 1999 e 1995). Estes dados minam os argumen-
tos do Banco Mundial e do FMI de acordo com os quais a liberalização, em si, traria
mais competição, alocação mais eficiente de recursos e melhor distribuição de renda.

438 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 438 3/29/11 4:54 PM


Terceiro, dadas as dinâmicas da economia camponesa em Moçambique (Bowen,
2000; O’Laughlin, 1981; Wuyts, 1989 e 1981), seria improvável que os incentivos por
via dos preços, apenas, fossem capazes de reforçar a viabilidade da produção do caju.
A maioria dos “produtores de caju” são habitantes do meio rural que seguem estraté-
gias de trabalho diversificadas para melhorar as possibilidades de sobreviver, procurar
e tirar vantagem de oportunidades de trabalho assalariado e reduzir riscos. Assim,
mesmo que os camponeses tivessem capacidades adicionais para alocar à produção do
caju, seria improvável que eles aumentassem a quantidade de trabalho, terra, esforço e
investimento para se especializarem na produção de uma única cultura para um único
mercado, sobre o qual não têm nenhum controlo.
Se as recomendações do Banco Mundial eram tão obviamente erradas, porque é
que foram adoptadas? Primeiro, o Banco Mundial estabeleceu como condição para a
continuação do seu programa de apoio às pequenas e médias empresas que as exporta-
ções de castanha em bruto fossem liberalizadas. Segundo, a fragmentação da indústria
e a acção reactiva do Estado combinaram-se para que nenhuma política coerente
alternativa surgisse para conduzir os desafios da reestruturação da indústria do caju
como um todo. Os grandes comerciantes queriam a liberalização porque poderiam
ganhar significativamente mais com a exportação da castanha não processada, pelo
menos a curto prazo; e o seu domínio oligopolista sobre a estrutura comercial pro-
tegeria as suas margens comerciais. Os processadores industriais queriam protecção
para terem acesso à matéria-prima a preços baixos. Os sindicatos apoiavam os indus-
triais por causa das ameaças sobre os salários e empregos que surgiam com a liberali-
zação. Os comerciantes e os industriais criaram as suas associações para coordenarem
estratégias e lobbies, mas, por causa da estrutura e das dinâmicas da indústria, a acção
colectiva de cada parte reforçou a fragmentação da indústria e a luta pela apropriação
de rendas. Isto não sugere que foi introduzida mais competição, mas, antes, que, na
ausência de uma estratégia activa e coerente da indústria, a competição por rendas e
recursos dispendidos na tentativa de captar os rendimentos aumentou, porque nin-
guém pôde decidir para onde os rendimentos iriam, nem pôde impor essa decisão
(Castel-Branco, 1999; Castel-Branco e Cramer, 2003; Cramer, 1999; Chang, 1996; e
Khan, 2001). Terceiro, o debate tornou-se dogmático, entre defensores da liberaliza-
ção e mercado livre em geral, e defensores do proteccionismo da indústria emergente,
mas sem qualquer visão estratégica a indústria a construir e das suas ligações dentro
da economia nacional e mundial.

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 439

Desafios.indb 439 3/29/11 4:54 PM


O debate sobre a indústria do caju floresceu, mas foi excessivamente concentrado
na discussão da taxa de exportação e os dos preços dos factores (Cramer, 1999), sem uma
clara estratégia industrial a emergir deste debate. Em geral, não houve nenhuma aná-
lise sistemática de todas as outras condições que poderiam ajudar a indústria do caju a
desenvolver-se, nomeadamente o acesso a financiamento para o fundo de maneio e inves-
timento, nova tecnologia e pesquisa e inovação, reabilitação de infra-estruturas, um quadro
regulador para padrões de qualidade e controlo, reabilitação e expansão das plantações de
caju e a integração das diferentes partes fragmentadas da indústria (Castel-Branco, 2003 e
1999; Castel-Branco e Cramer, 2003; Cramer, 1999; Pereira Leite, 1999 e 1995).
Sem uma estratégia alternativa, reagindo defensivamente às pressões e sob a
ameaça do Banco Mundial, o governo deixou acontecer a liberalização das expor-
tações da castanha de caju em bruto. Esta decisão, que dois anos depois foi alvo de
revisão e parcialmente revertida pelo parlamento, resultou no encerramento de todas
as fábricas de processamento de caju e na perda de cerca de 15.000 postos de trabalho,
maioritariamente nas zonas rurais.
Em 1999, o preço de exportação da castanha não processada tinha caído mais de
50%, devido a diferentes factores, o mais importante dos quais foi a redução das im-
portações indianas e do Vietname (Africa America Institute, 2001; Hanlon, 2000). Adi-
cionalmente, como seria de esperar, os principais vencedores da reestruturação global da
indústria do caju tinham sido os grandes comerciantes/exportadores de castanha não pro-
cessada em Moçambique (a curto prazo) e as indústrias de produção e processamento de
caju da Índia e do Vietname (a curto, médio e longo prazos).
O estudo comparativo das indústrias do açúcar e do caju revela dois problemas co-
muns na formulação de políticas em Moçambique. Primeiro, o Banco Mundial, o FMI
e o governo tomam como certo que a liberalização é quase sempre possível e benéfica.
No caso destas indústrias, eles não foram capazes de compreender que, num mercado em
que as estratégias e acções de cada agente afectam os resultados e os lucros do mercado,
a estratégia de cada agente tem de incluir o conhecimento que tem sobre as capacidades,
estratégia e acção dos outros agentes (Rasmussen, 1994; Heap e Varoufakis, 1995). Em
outras palavras, seria irracional para as indústrias do açúcar e do caju desperdiçar vanta-
gens estratégicas baseadas em políticas (protecção ou outras) quando têm de operar num
mercado em que outros agentes são protegidos de uma ou de outra forma (vide Caixa
1). Segundo, nos dois casos, o governo foi um agente reactivo, que seguia a orientação e
a pressão das forças dominantes e mais articuladas, fossem elas organizações financeiras
multilaterais (como o Banco Mundial e o FMI), ou grupos dominantes em cada indústria.

440 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 440 3/29/11 4:54 PM


Deste processo emergiram políticas, estratégias e práticas públicas limitadas em escopo e
visão. O facto de que os resultados das duas indústrias foram tão diferentes é fundamen-
talmente o resultado das diferenças nas capacidades, estruturas e dinâmicas das indústrias
e empresas, que afectam a capacidade das empresas influenciarem políticas, e das alianças
internacionais que também afectaram a determinação das opções para estas indústrias.
Este debate revela dois outros aspectos importantes para a formulação de polí-
ticas. Primeiro, na ausência de uma estratégia sólida de mudança, a organização das
associações de produtores tende a reforçar as estruturas e dinâmicas da indústria e a
influenciar a direcção da política em função dos interesses dos grupos dominantes. Na
indústria do açúcar, a associação dos produtores consolidou a natureza oligopolista
da indústria e a capacidade dos investidores de cooperar, coordenar e influenciar a
política, mesmo contra a vontade do FMI e do Banco Mundial. Na indústria do caju,
as associações reforçaram cada um dos grupos, a fragmentação da indústria e a inca-
pacidade do Estado gerar uma estratégia articulada para a indústria como um todo,
tornando-se, pois, mais vulnerável às pressões do Banco Mundial e do FMI.
Um outro lado deste problema é que, no caso do açúcar, o rent seeking foi limitado,
porque os rendimentos foram claramente alocados desde o início e a associação dos produ-
tores facilitou a cooperação na partilha de rendimentos. Mesmo na presença de um Estado
reactivo, os produtores de açúcar impuseram uma política e obrigaram a sua implemen-
tação. Na indústria do caju, as associações de produtores e de comerciantes surgiram para
organizar o rent seeking competitivo entre si, porque a alocação dos rendimentos era uma
questão em aberto a ser resolvida por via da competição. Como os grandes comerciantes/
exportadores se tornaram o lado dominante no debate e no processo político, o nível de
rent seeking reduziu, porque os comerciantes, num mercado de estrutura oligopolista, apro-
priaram-se da maioria dos rendimentos. Em última instância, isto seria quase irrelevante se
fosse para reforçar o desenvolvimento do sector. Infelizmente, esse não foi o caso…
Segundo, retirar-se da indústria foi sempre uma opção mais fácil e mais realista
para os produtores industriais do caju do que para os do açúcar, e a estratégia corporativa
jogou um papel mais importante nas decisões de investimento no açúcar do que no caju.
O processamento da castanha de caju era feito em pequenas e médias fábricas de traba-
lho intensivo, que são parte de grupos económicos horizontalmente diversificados, em
que o caju era apenas uma das muitas actividades não relacionadas. Assim, os produtores
industriais do caju tinham mais opções e menos compromisso com a indústria e produ-
tos específicos. Para desenvolver o seu compromisso na indústria, o que faria sentido em
termos de industrialização e ganhos de exportação a longo prazo, as políticas e estraté-

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 441

Desafios.indb 441 3/29/11 4:54 PM


gias teriam que de ser discriminatórias a favor da indústria. Isto exigiria uma estratégia
para reestruturar a indústria inteira, incluindo a possibilidade de criação de uma indús-
tria verticalmente integrada e um Estado que fosse estratégica e selectivamente activo e
intervencionista, em vez de reactivo e passivo. Por seu lado, os produtores de açúcar são
grandes corporações internacionais concentradas no negócio do açúcar. A sua retirada
era proibitiva por causa dos grandes volumes de investimentos e dos custos irrecuperá-
veis envolvidos no estabelecimento da indústria, bem como das implicações da retirada
em termos de poder de mercado relativamente às corporações concorrentes. Apesar de
os incentivos (em particular o estabelecimento e alocação de rendas por via das políticas
de preços, restrição à entrada e coordenação do comércio) serem importantes para re-
forçar as possibilidades de ocorrência do investimento, o modelo para tomar decisões de
investimento dos produtores de açúcar inclui outros factores também, nomeadamente a
estratégia de mercado, a estratégia e as acções das corporações açucareiras concorrentes
e as condições de produção. Deste modo, os produtores de açúcar tinham, desde o início,
um cometimento mais forte com a indústria do que os processadores de caju.
Estas questões tiveram, obviamente, um impacto nas dinâmicas de disputa por
ownership e nas respostas de política pública escolhidas pelo Estado.
Ao contrário do argumento de Hanlon (2000 e 1997), segundo o qual o Ban-
co Mundial tem ownership do desaparecimento da indústria do caju e o governo de
Moçambique tem o ownership do sucesso da indústria do açúcar, os factores mais
importantes a determinar as diferenças de resultados entre as duas indústrias foram as
dinâmicas e estruturas industriais, e como é que através delas as pressões dos diferen-
tes grupos de interesse (incluindo o Banco Mundial e o FMI) se fizeram sentir sobre o
Estado, sobre a organização do controlo da produção e das rendas, e sobre os processo
de acumulação. No caso do açúcar, emergiu um interesse dominante desenvolvido em
torno de uma indústria oligopolista e verticalmente integrada, que se impôs como
ponto de referência para a decisão e implementação de estratégias e políticas. No
caso do caju, a fragmentação social e produtiva da indústria impediu que tal interesse
dominante se manifestasse com clareza, daí resultando a imposição da vontade do
doador aliada a um dos vários grupos de interesse, os comerciantes.
Em ambos os casos, o governo foi reactivo, isto é, não exerceu ownership nem
liderança. Mas no caso do açúcar reagiu num contexto de interesse dominante e gros-
so modo homogéneo, que minimizou o conflito por ownership e permitiu construir
coerência industrial; enquanto no caju o governo reagiu fragmentadamente num con-
texto de conflitos sobre ownership, que resultou no desaparecimento da indústria.

442 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 442 3/29/11 4:54 PM


Ownership de política por parte do país receptor, estruturada em torno do mais
alto interesse nacional, exige, para além do espaço político, que as percepções de crise,
prioridades e opções, que definem o conteúdo e direcção do pacote de reformas, sejam
partilhadas e aceites por todas as forças sociais dinâmicas, articuladas e influentes na
sociedade: o capital estrangeiro e nacional, grandes e pequenas empresas, trabalhado-
res qualificados e não qualificados, sistemas e agentes económicos formais e informais,
habitantes do campo e da cidade, camponeses, comerciantes, trabalhadores, capitalis-
tas, gestores, funcionários públicos, académicos, etc. Contudo, em cada caso em que
tais interesses específicos são articulados e expressos com suficiente detalhe e subs-
tância política, social e económica24, nenhum deles, ou nenhuma combinação deles,
emerge como interesse nacional. Se eles forem articulados e expressos em torno de um
grupo de interesse claramente dominante (grupo política, económica e socialmente
dominante), então eles serão menos vulneráveis à disputa política, social e económi-
ca e, portanto, à influência democrática. Assim, ownership e liderança parecem estar
ligados ao poder, disputa de poder e capacidade de articular e exercer o poder, e alto
interesse nacional não é mais que uma articulação ideológica e retórica desse poder.

NOTAS PARA A CONSTRUÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA DE


OWNERSHIP
AGENTES E OWNERSHIP DISPUTADO
Da discussão apresentada nas secções anteriores, fica claro que ownership é uma
área de disputa e conflito, que reflecte o poder e as relações de poder, tanto em torno
da definição dos problemas e acções, como em torno da sua implementação e ava-

24
Obviamente, se o interesse nacional é descrito de forma tão ampla e vaga como, por exemplo,
“redução da pobreza” ou “crescimento acelerado”, então é possível ter todos os grupos e or-
ganizações sociais incluídos no mesmo interesse. No entanto, uma tal definição do interesse
nacional seria inútil do ponto de vista de ownership, liderança e empenho, porque não ofereceria
qualquer ponto de referência para a direcção política, social e económica concreta. Por exemplo,
“redução da pobreza” pode ser definido em termos meramente individuais, como o faz o discurso
presidencial de Guebuza em Moçambique, conduzindo a ideias como enriquecimento pessoal
com base na privatização das rendas sociais dos recursos naturais ou outros meios, ou mudança
da atitude miserabilista dos pobres (Brito, 2010); ou em termos dos padrões de acumulação,
conduzindo a argumentos sobre a mudança dos padrões e estruturas sociais de produção e de
apropriação e utilização social das rendas dos recursos (Castel-Branco, 2010a). A questão de
fundo, portanto, não é “redução de pobreza”, com a qual todos concordam, mas o entendimento
da questão e os processos políticos e económicos antagónicos que emergem desse entendimento.

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 443

Desafios.indb 443 3/29/11 4:54 PM


liação de sucesso. Esta disputa e conflito ocorre dentro do Estado e entre o Estado
e outros agentes, entre e dentro das organizações de doadores e da sociedade civil,
dentro e entre diferentes grupos sociais, de género e etários na sociedade. A articula-
ção e expressão dos interesses, agendas e poder por parte de quaisquer destes agentes
são desenvolvidas num quadro dinâmico que incorpora disputa, conflito e alianças
no contexto das ligações económicas e sociais, pressões e desafios enfrentados (Fine,
2007 e 2001; Fine e Rustomjee, 1996; Castel-Branco, 2002a).
Assim, ownership não é uma disputa para a escolha do melhor caminho de desen-
volvimento, uma vez que tais escolhas e caminhos são sociais, políticos e económicos,
com muito pouco espaço para uma optimização racional (no sentido a-social e a-político
de encontrar o melhor em termos absolutos). O que seria uma decisão racional para um
camponês, para um comerciante, para um industrial e para um trabalhador da indústria
do caju, se a pergunta “qual é a decisão racional a tomar?” tivesse sido feita a cada um
deles antes da liberalização da exportação da castanha em bruto? Ownership é, portanto,
uma disputa de influência e poder; é uma renda política, social e económica que resulta
da dinâmica política, social e económica do poder. Sendo assim, nenhum agente goza de
direitos exclusivos de ownership dos processos sociais, políticos e económicos. Há várias
razões para que assim seja.
A primeira é que os agentes e as agências são processos dinâmicos e estabele-
cem relações dinâmicas – nenhum é homogéneo, perfeitamente informado sobre os
outros nem perfeitamente consciente sobre qual é a melhor estratégia. Obviamente,
as relações entre os agentes dependem da história e da estrutura e dinâmica do desen-
volvimento social, político e económico. em geral, os agentes e as agências, as relações
entre eles e os seus interesses, não existem a não ser no âmbito da sua relação com
os outros em condições sociais, políticas e económicas específicas e historicamente
determinadas. Por exemplo, capitalistas e trabalhadores, que se definem em relação ao
conflito e disputa entre si, não existem fora do capitalismo. Os tipos de capitalistas e
trabalhadores, assim como das relações entre eles, estão obviamente relacionados com
as condições sociais, políticas e económicas (estruturas e dinâmicas) que prevalecem
e que não estão sob o controlo completo de nenhum grupo (Fine e Saad-Filho, 2004;
Cole, Cameron e Edwards, 1991).
A segunda é que, dependendo da intensidade, da organização e das condições
sociais, políticas e económicas em que a disputa, o conflito e as alianças se desenvol-
vem, todos os grupos exercem algum grau de influência sobre os outros, e nenhuma
agência é livre dessas influências. Assim, nenhuma agência tem autonomia total para

444 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 444 3/29/11 4:54 PM


escolher, sendo as decisões frequentemente uma questão de possibilidades e pres-
são, isto é, socialmente construídas (Fine e Rustomjee 1996; Fine e Saad-Filho 2004;
Castel-Branco 2002a).
A terceira é que a disputa e o conflito incorporados no ownership não são sobre
opções já disponíveis, mas sobre o desenvolvimento de tais opções. Ownership e os
blueprints não são consistentes um com o outro.
A quarta é que as dinâmicas sociais, económicas e políticas impedem que os mo-
delos de governação existam no seu estado puro, tal como é definido teoricamente. Por
exemplo, foi bem documentado que a ajuda geral ao orçamento do Estado, que teori-
camente reforça a gestão das finanças públicas e a autonomia, flexibilidade e poder do
Estado receptor em relação aos doadores, costuma ser significativamente mais vulne-
rável às dinâmicas políticas dos doadores e da relação entre doador e governo receptor
do que a teoria prevê. Para além do mais, a ajuda geral ao orçamento é acompanhada
por regras, processos de fiscalização, mecanismos paralelos de negociação (centrados
mais na gestão do que na política) e listas de indicadores de desempenho, que obrigam
a questionar se efectivamente existe algum espaço para o governo receptor formular
alguma política (De Renzio e Hanlon, 2006; Fraser, 2006; Macamo, 2006; Hodges e
Tibana, 2005; Plank 1993).
Esta discussão tem quatro grandes implicações. Primeiro: ownership é um poder
disputado – há conflitos, compromissos, alianças que se alteram com o tempo – e, como
resultado, modelos racionais de ownership não passam no teste da vida real. Mesmo que,
formalmente, o governo e os doadores exerçam ownership, eles fazem-no num ambiente
de disputa que não é totalmente controlado por nenhum deles e, como resultado, estão
sujeitos à influência desse ambiente na tomada de decisões, na sua implementação e
monitoria. Nas secções anteriores, foram apresentados vários exemplos que sustentam
este argumento. Segundo: ownership é uma questão mais da substância do que da for-
ma (ou processo) de negociação. Ownership não é só uma questão de “estar lá”, “votar”,
“falar”, é mais uma questão da disputada influência sobre a substância. Por exemplo, não
interessa muito se existe um Conselho Nacional sobre questões de terra que inclua pe-
quenos camponeses, se as decisões sobre a alocação e uso da terra forem principalmente
influenciadas pelos interesses dos grandes proprietários de terra. Terceiro: ownership não
está confinada a organizações formais (partidos, governos, doadores, organizações da
sociedade civil), pois é mais uma questão de articulação dos interesses e percepções em
conflito de diferentes grupos e do disputado poder para influenciar decisões, a sua im-
plementação e monitoria. Quatro: não há como dizer, à partida, se ownership do governo

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 445

Desafios.indb 445 3/29/11 4:54 PM


é melhor ou pior do que qualquer outro. Isso depende principalmente do ambiente
social, político e económico em que a disputa do poder toma lugar e, por consequência,
da natureza e opções escolhidas pelo governo. Condicionalismo político, em si, não pode
determinar a natureza e opções escolhidas pelo governo.

OWNERSHIP PARTILHADO E ARTICULADO


Conforme foi mencionado nas secções anteriores, na sua forma mais pura, ow-
nership do programa de políticas exige uma quase total autonomia da elaboração de
políticas por parte da agência receptora. Contudo, esta é uma visão bastante simplificada
do processo político, uma vez que não considera a influência dos interesses conflituantes,
pressões e opções, ideias e aprendizagem da concepção de políticas.
O desenvolvimento e a implementação de programas de reforma política são
processos bastante complexos que envolvem interacções de diferentes tipos entre or-
ganizações e agências, capacidades, qualificações, grupos de interesse, percepções, de-
safios, pressões e ligações muito diferentes. Assim, os pacotes de reforma política têm
muitos owners, e precisam de ter muitos owners.
Por exemplo, um governo pode decidir que a prioridade na educação é a formação
técnica e treino em engenharia para iniciar e sustentar um programa inovador e dinâmico
de industrialização acelerada. Esta decisão, em si, resulta de muitas e diferentes fontes de
pressão (económicas, tecnológicas, sociais e políticas) que, em conjunto, explicam o seu
fundamento. Uma decisão é apenas o ponto de partida de um processo, porque não diz
nada sobre como é que se chegou a essa conclusão, como é que o programa de educação
vai ser desenvolvido e financiado, quais são as prioridades temáticas, quais são os meca-
nismos de recrutamento e incentivo e os princípios de aprendizagem e avaliação, como é
que funciona o processo pelo qual serão ligadas a educação e as necessidades industriais,
etc. Todas estas questões são determinantes importantes da direcção e do sucesso do pro-
grama e envolvem uma cooperação inter-organizacional muito forte e complexa. Muito
provavelmente, o total desenvolvimento e implementação do programa precisam de uma
substancial assistência técnica externa. Todos estes factores e processos afectam a substân-
cia do produto final.
Assim, mesmo no melhor e mais simples cenário, ownership é um processo di-
nâmico, conjunto e de colaboração. Se neste processo forem acrescentados o conflito e
a disputa – isto é, diferentes interesses e as subsequentes lutas pela influência sobre a
direcção da política –, então a complexidade aumenta e ownership torna-se ainda mais
dinamicamente social.

446 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 446 3/29/11 4:54 PM


Para além do mais, uma estratégia de desenvolvimento e programa de política
(global, sectorial, nacional ou sub-nacional) envolve mais do que um conjunto de
decisões técnicas ideais recomendadas por tecnocratas e aprovadas por um governo
com vontade política. Qualquer decisão de política afecta as relações de poder e distri-
buição do rendimento, exige que as escolhas sejam feitas entre interesses, percepções
e opções conflituantes e requer respostas específicas para as disputas, pressões, expec-
tativas e resultados das escolhas sociais, económicas e políticas. Assim, por exemplo,
até que ponto é que uma decisão do governo de privatizar os serviços (água e ener-
gia) responde a pressões fiscais, constrangimentos de capacidade, interesses sociais
ou corporativos, percepções dos problemas e disputa pelo ownership da política? Até
que ponto tais decisões afectam, de forma diferente, diferentes indústrias e grupos
sociais, e quem perde ou beneficia das políticas? Estas, e outras, questões podem ser
colocadas em relação a quase qualquer que seja o programa de reforma política com
alguma substância.
Portanto, ownership não está apenas relacionada com organizações particulares
– agências receptoras ou doadoras. Mais fundamentalmente, tais agências não estão
isoladas das forças e pressões sociais, económicas e políticas que elas tentam servir
através do programa de política. A questão fundamental é sobre quais são os inte-
resses, capacidades e dinâmicas sociais que dominam e são articulados através de tais
agências e reflectidos nos programas de políticas cuja ownership reivindicam.

OWNERSHIP E APRENDIZAGEM
O desenvolvimento e a implementação de políticas são influenciados pelo con-
junto de ideias, abordagens, metodologias, teorias e paradigmas que constituem o
quadro analítico adoptado. Contudo, o quadro analítico social não é neutro em relação
às dinâmicas sociais sobre as quais se pretende agir, porque é gerado como parte, e é
aprendido ou modificado através, das dinâmicas sociais (Thorbecke, 2002; Hjertholm
e White, 2002). A teoria e as metodologias sociais são aprendidas através do estudo,
do aconselhamento político, experiência e pressão e podem ser institucionalizadas
em abordagens analíticas corporativas. Elas têm grande influência sobre a natureza
e substância dos programas de políticas do desenvolvimento, porque definem o que
deve ser observado e examinado, o tipo de questões que devem ser colocadas e inves-
tigadas para que se obtenham respostas em relação ao objecto do estudo, como é que
estas questões são estruturadas, que dados serão gerados e recolhidos e como podem
ser interpretados os resultados.

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 447

Desafios.indb 447 3/29/11 4:54 PM


As agências aprendem habilidade política e desenvolvem características corpo-
rativas que as ajudam a alcançar os objectivos que procuram. Por exemplo, as agências
receptoras que procuram maximizar as receitas da ajuda podem adoptar pacotes de re-
formas políticas e terminologia analítica que sabem ser o que os doadores procuram an-
tes de providenciarem ajuda. Enquanto o doador pode ser levado a crer que o potencial
receptor é um reformador genuíno que merece ser apoiado, o caso, na prática, pode ser
o de o receptor estar apenas a aplicar lições aprendidas sobre como atrair os doadores.
Num fórum sobre a eficácia da ajuda que teve lugar em Viena25, um académico do
Uganda, ao apresentar a experiência do seu país no tocante à política e à estratégia da
ajuda, sublinhou ownership nacional sobre o programa ugandês de reformas, não obs-
tante o facto de o programa de reformas no Uganda ser em tudo semelhante a qualquer
outro baseado no modelo do Washington Consensus. Quando se lhe perguntou sobre esta
“coincidência”, respondeu que aquele era o único programa que os doadores aceitariam e
que o governo estaria disposto a adoptar. Ao mostrar compromisso em relação ao pacote
de reformas preferido pelos doadores, o governo ugandês procurava aumentar os fluxos
de ajuda externa e melhorar o seu poder de negociação perante os doadores e credores.
Casos similares acontecem todos os dias em Moçambique. Por exemplo, em 1998
o Gabinete de Estudos do então Ministério do Plano e Finanças produziu, pela primeira
vez em onze anos, um programa social e económico para dois anos sem o envolvimento
directo do pessoal do FMI e do Banco Mundial. O Banco e as Nações Unidas elogia-
ram as qualificações técnicas atingidas pelo pessoal moçambicano, e o governo alegou
que esse era um programa ajustado às realidades de Moçambique. No entanto, mesmo
um olhar superficial permitia facilmente notar que a única diferença significativa entre o
programa de 1998 e os seus predecessores, que tinham sido formulados em Washington,
era o facto de o de 1998 ter sido originalmente escrito em português26.

AVALIAÇÃO E OWNERSHIP
A avaliação do desempenho dos programas de reforma política e institucional
é uma componente importante no contexto da economia política da transformação e
ownership do Estado. O debate sobre os méritos relativos da avaliação centrada nos pro-

25
High Level Symposium “Country-level experiences in coordinating and managing development
cooperation”. [Simpósio de Alto Nível “Experiências de nível nacional na coordenação e gestão na
cooperação para o desenvolvimento”. Viena (19-20 de Abril de 2007)].
26
“Eastern and Southern African Regional Conference on Debt Cancellation”, Maputo, 1998. [“Con-
ferência Regional da África Austral e Oriental sobre o Cancelamento da Dívida”, Maputo, 1998.]

448 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 448 3/29/11 4:54 PM


cessos ou nos resultados tem sido intenso, e há uma tendência clara, actualmente, para
uma mudança de estilo a favor da avaliação focada nos resultados.
Neste ponto, algumas questões fundamentais têm de ser colocadas: será que o
problema da avaliação é o do seu foco nos processos ou nos resultados? Que processos
ou que resultados devem ser avaliados e como é que serão escolhidos? Não dependerá
isso das percepções, interesses e questões particulares a serem respondidas? O que
são resultados (ou processos)? Serão sempre fáceis de se distinguirem uns dos outros?
Quando uma estrada é construída, o processo (por exemplo, coordenação do projec-
to de estradas com actividades produtivas directas, tais como processos agrícolas e indus-
triais; utilização de métodos de construção de capital ou trabalho intensivo; utilização de
materiais locais ou importados ou de empresas nacionais ou estrangeiras) afecta os resul-
tados dessa construção (mais ou menos impacto no desenvolvimento, sustentabilidade, ex-
ternalidades positivas). Assim, o processo de construção de uma estrada contribui para os
objectivos (resultados) que se pretendem com a sua construção, e a relação entre processo
e resultado depende da definição de processo e de resultado. Um ponto semelhante pode
ser colocado sobre praticamente todos os programas de desenvolvimento – o processo
contribui para o produto final e não é independente dos objectivos e resultados finais pre-
tendidos e da disputa pela apropriação do projecto para atingir tais objectivos e resultados.
O outro ponto é sobre os resultados pretendidos: quais são e como serão definidos?
Uma coisa é avaliar a implementação de uma tarefa, se a estrada de A para B foi constru-
ída dentro dos prazos e de acordo com os padrões de qualidade e de orçamento definidos;
se as 1.500 empresas listadas para privatização foram, de facto, privatizadas dentro do
tempo estipulado. A outra coisa é avaliar o impacto social pretendido com tarefa (por
exemplo, promoção da comercialização agrícola, no caso da estrada, ou aumento das re-
ceitas do Estado, no caso das privatizações), ou se o objecto (uma estrada, centro de saúde,
escola, propriedade agrícola ou fábrica) pode efectivamente ser um vector para alcançar
os impactos sociais e económicos pretendidos. De modo mais geral, o impacto social e
económico mais amplo que é pretendido (resultado) deve guiar o processo e a avaliação
da implementação da tarefa. A questão não é tanto de saber quantas escolas, centros de
saúde, quilómetros de estradas novas e sistemas de abastecimento de água foram cons-
truídos, mas como é que essas infra-estruturas servem os seus (reivindicados) propósitos
sociais e económicos pretendidos (que serviram de motivação para fazer o projecto).
Assim, o primeiro ponto sobre a avaliação é que o processo, o vector e as exter-
nalidades sociais e económicas mais amplas estão interligados de tal maneira que não
faz sentido separá-los e descartar um em favor de outro.

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 449

Desafios.indb 449 3/29/11 4:54 PM


Este assunto leva à questão da medição do sucesso. Existe um objectivo e me-
dida racional de sucesso social e económico, ou a medida depende dos interesses de-
sejados, das questões colocadas, propostas e percepções? Se este for o caso, medir
ou avaliar o sucesso é parte da luta pelo ownership de tal modo que, por exemplo, a
questão “será que as privatizações em Moçambique foram um sucesso ou fracasso?”
não só não pode ser respondida em geral, como também é totalmente sem sentido se
for colocada em geral. Se a pergunta for qualificada, as respostas podem ser diferentes.
Por exemplo, se a pergunta for “será que privatização foi um sucesso na transferência
de propriedade pública para privada”, a resposta poderá ser “sim”. Mas se a pergunta
for se “privatização aumentou receitas fiscais”, ou “ajudou a diversificar a base produ-
tiva”, a resposta será “não”.
O exemplo das privatizações em Moçambique, mencionado numa secção an-
terior, mostra que, para justificar a acção (privatizações), um quadro idílico de razões
positivas é apresentado: impacto no emprego, salários, qualificações, produção, produ-
tividade, investimento, tecnologia, qualificações, ligações, diversificação do comércio,
nível de vida, etc. Uma vez que a acção (privatizações) é justificada com base na asser-
ção de que os efeitos dessa acção são os que estão listados, por causa dos pressupostos
que somos compelidos a aceitar sobre a maior eficácia e eficiência do capitalismo
privado que opera em mercados competitivos, ninguém se importa mais em procurar
saber se os objectivos que justificaram a acção estão efectivamente a ser alcançados.
Tudo o que importa é que o programa de privatizações seja implementado. Assim, é
possível escrever dois relatórios perfeitamente honestos e empiricamente fundamen-
tados que mostram que as privatizações em Moçambique foram simultaneamente
um grande sucesso (1.500 firmas privatizadas em 10 anos, altas taxas de crescimento
económico e a emergência de uma classe proprietária nacional) e um grande fracasso
(40% das empresas privatizadas faliram, o emprego líquido diminuiu, os salários reais
caíram, a produtividade não aumentou, o grosso do investimento foi em empresas
novas e em recursos minerais e energéticos e não nas privatizadas, etc.). As conclusões
destes relatórios dependem das questões que são colocadas a respeito do programa
de privatizações, que, por seu turno, dependem de como diferentes grupos sociais e
analistas percebem os assuntos que realmente importam e os benefícios ou perdas
decorrentes da privatização.
Este ponto pode ser generalizado a praticamente todas as avaliações de sucesso
no desenvolvimento social e económico. Moçambique já foi apresentado como um
exemplo de reconstrução democrática do Estado, mas também como falsa demo-

450 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 450 3/29/11 4:54 PM


cracia; como um caso de sucesso económico excepcional, descrito pelos seus rela-
tivamente altos índices de crescimento económico, mas também como um caso de
fracasso económico descrito pelo seu nível de dependência de ajuda externa e inves-
timento estrangeiro e natureza extractiva do seu padrão de crescimento económico e
desenvolvimento. Um relatório do Banco Mundial sobre Moçambique (Biggs, Nasir
e Fisman, 1999) incorpora alguns conflitos de percepção interessantes sobre o mesmo
assunto, nomeadamente a concentração da base produtiva e comercial em Moçambi-
que: enquanto um capítulo descreve esta concentração como uma medida do sucesso
por ser hipoteticamente o resultado natural da especialização baseada nas vantagens
comparativas reveladas pelo mercado, um outro capítulo considera esta concentração
como sendo tanto o resultado como a causa da vulnerabilidade económica e subde-
senvolvimento (Castel-Branco, 2000a).
Deste modo, a avaliação e medição dos resultados reflectem a disputa social
dinâmica pelo ownership tal como as questões que são colocadas, os indicadores que
são escolhidos, os resultados que são considerados, etc., reflectem as preocupações da
agência, a abordagem do analista e as pressões sociais enfrentadas. Ao mesmo tempo,
a avaliação e a medição dos resultados também servem o propósito de legitimar as
reivindicações sociais, as políticas de desenvolvimento, as escolhas, as abordagens ana-
líticas, as relações de poder e a luta para alterar tudo isto. Estas questões podem expli-
car por que Moçambique é apresentado como uma história de sucesso, não obstante
toda a evidência que mostra uma crescente dependência multidimensional, estrutural
e dinâmica de ajuda, crescente limitação económica, de qualificações e de comércio e
uma grave vulnerabilidade económica.
Agora pode ser feita uma generalização sobre a avaliação:

O que é que, então, se entende quando se afirma que estas proposições [da geometria de Eu-
clides] são verdadeiras? (…) A geometria parte de certas noções fundamentais, como “plano”,
“ponto”, “recta”, com as quais somos capazes de associar ideias mais ou menos claras, e de
certas proposições simples (axiomas), que, em virtude destas ideias, nos sentimos inclina-
dos a aceitar como “verdadeiras”. Depois, com base num método lógico, cuja justificação nos
sentimos compelidos a admitir, todas as demais proposições são inferidas a partir daqueles
axiomas, isto é, são demonstradas. Uma proposição é então correcta (“verdadeira”) quando
é derivada por forma reconhecida a partir dos axiomas. A questão da “verdade” das diversas
proposições geométricas individuais é reduzida, portanto, à questão da “verdade” dos axiomas.
[a afirmação de que a proposição da geometria euclidiana é verdadeira] em si não possui
sentido nenhum. (…) Não nos podemos interrogar se é verdade que por dois pontos passa
uma única recta. Podemos apenas dizer que a geometria euclidiana trata de coisas chamadas
“rectas”, às quais atribui a propriedade de serem determinadas unicamente por dois dos seus
pontos” (Einstein, 1952: 3-4, tradução livre).

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 451

Desafios.indb 451 3/29/11 4:54 PM


INTERROGAÇÕES FINAIS

Durante uma apresentação sobre investimento público e privado, emprego e redu-


ção da pobreza em Moçambique, numa conferência económica em Maputo27, fui con-
frontado com a seguinte questão vinda da audiência: como podia o Governo de Moçambique
considerar as questões [que eu estava a levantar] na análise e desenvolvimento de políticas se
as decisões fundamentais sobre as vias de desenvolvimento de Moçambique são tomadas por
agências estrangeiras? Por outras palavras, se o governo não tem ownership das políticas
públicas, como pode modificá-las e melhorá-las? A minha resposta foi dividida em duas
partes. Na primeira, eu disse o seguinte: não há decisões sobre Moçambique pertencentes ao
domínio do governo que sejam tomadas por agências estrangeiras. Todas essas decisões são to-
madas pelo governo de Moçambique – mesmo as decisões de permitir que as agências externas
tomem decisões em nome do governo. Na segunda parte da resposta eu perguntei o seguinte:
de todo o modo, que diferença faz a nacionalidade de quem toma a decisão se a decisão tomada
é exactamente a mesma e baseada nos mesmos pressupostos, que frequentemente são totalmente
irrelevantes para o problema em análise, independentemente de quem decide? Será que o proble-
ma é da nacionalidade do analista e de quem toma a decisão ou do paradigma, método ou abor-
dagem adoptada? É apenas uma questão de ideias ou também das pressões, desafios e interesses
políticos, sociais e económicos reais articulados? De onde vêm as ideias do governo, ou das agên-
cias externas, e os interesses dominantes que se articulam através das ideias do governo ou de
outras agências? Porque são umas pressões adoptadas e transformadas em decisões e outras não,
mesmo que venham da mesma fonte? (como foi o caso das indústrias de caju e do açúcar).
Existem vários motivos para a escolha da minha resposta. Vou apenas mencionar
dois. O primeiro é que é muito difícil dar uma resposta elaborada perante uma audi-
ência vasta, nos últimos dois minutos de uma longa sessão de apresentações e debates,
em que as pessoas se vão concentrar em compreender e lembrar. Se a resposta chocar
a audiência e o seu sistema de valores e de crenças, então não vai ser esquecida, o que
aumenta a possibilidade de algumas pessoas voltarem a pensar nela. Segundo, julgo
que a minha resposta toca em algumas das dinâmicas fundamentais da economia po-
lítica do ownership, que foram discutidas em diferentes secções deste artigo.
Quererá isto dizer que a agência receptora não deve lutar por ownership e liderança
do processo de política? O artigo sugere que ownership é um processo contestado por

Segunda Conferência Económica Millenium BIM “Planeamento e Estratégias para a Redução


27

da Pobreza” (11 de Outubro de 2006). Maputo.

452 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 452 3/29/11 4:54 PM


todas as partes que procuraram influenciar escolhas, decisões, implementação e avaliação
de resultados nos seus próprios termos e dentro dos parâmetros sociais, económicos e
políticos que não são completamente controlados por ninguém. Se o governo aparente-
mente desiste do seu esperado ownership e liderança para poder culpar outros pelo que
está mal ou, simplesmente, para maximizar os fluxos da ajuda externa, então quem po-
derá dizer que esse governo não está a exercer ownership da sua estratégia preferida e não
está a liderar a sua própria agenda? O artigo sugere também que ownership das dinâmicas
e dos processos políticos não é limitado a agências individuais, tais como o governo ou os
doadores, porque se trata de um processo de economia política contestado e construído
em torno da relação dinâmica entre agentes e pressões económicas, políticas e sociais.
Nenhum agente é neutro relativamente à disputa de poder, nem é autónomo relativa-
mente às pressões geradas pelos parâmetros económicos, políticos e sociais em que essa
disputa de poder ocorre. Em última instância, podemos perguntar quem tem ownership da
agência que tem ownership do pacote de reforma política, e de onde vêm e como se articulam as
ideias, interesses e pressões que dão forma a esse pacote de reforma política? Uma versão mais
elaborada e realista desta pergunta poderia ser a seguinte: como é que a disputa e conflito de
interesses e influência na sociedade (incluindo mercados) influenciam a política do governo e as
suas decisões e intervenções através dos mercados? Os casos controversos do caju e do açúcar,
as privatizações e o comportamento de maximização da ajuda por parte do governo de
Moçambique (para mencionar só alguns exemplos) ilustram claramente este ponto.
Poderá uma democracia pluralista resolver o problema de ownership do programa e
processo de reforma política? O artigo sugere que o problema não está apenas na “voz”
– a oportunidade de todos exprimirem os seus pontos de vista e interesses –, e, por isso,
não pode ser resolvido apenas pelo exercício de voz (Hirschman, 1970). A questão de
ownership, (ou quem e como se exerce ownership) não se limita a pontos de vista e de
ideias divergentes, mas incorpora a disputa de poder e de interesses contraditórios em
volta a organização da produção, da apropriação e utilização do excedente e do processo
de acumulação capitalista, em condições históricas específicas. Assim, não há solução
estandardizada para a disputa de ownership fora do contexto da economia política em
que o problema emerge. Isto não é um argumento contra a democracia pluralista, mas
um argumento contra a ideia de que, a partir da democracia pluralista, todas as soluções
para todos os problemas fundamentais da sociedade podem ser derivadas. Além disso,
quem detém o poder de articular as políticas numa democracia pluralista?
Não será a visão partilhada do desenvolvimento uma resposta ao problema? Não
será a democracia pluralista a forma mais eficaz de atingir essa visão partilhada? A

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 453

Desafios.indb 453 3/29/11 4:54 PM


questão é como alcançar tal visão partilhada. O artigo sugere que, seja qual for a vi-
são, ela é o produto de conflito e compromissos possíveis em torno da identificação
e articulação de interesses e abordagens à volta dos quais se constrói a ideia de visão
ampla e partilhada, acima dos interesses de grupo. Portanto, a visão nem é neutra
nem igualmente partilhada por todos, mas é construída em torno de linhas de força
que se impõem a todos. Os percursos divergentes das indústrias de açúcar e caju em
Moçambique mostram como a visão partilhada é produto da capacidade de tomar um
conjunto de problemas e interesses e transformá-los na visão e abordagem dominante,
mesmo que isso signifique que a “visão partilhada” não seja mais do que a “visão im-
posta por um grupo, mas aceite pela maioria dos outros”.
O processo de construção de uma visão amplamente partilhada de desenvol-
vimento também envolve um trade-off fundamental entre forma e substância. Em
Moçambique, o Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta 2006-2009
(PARPA II) e a Agenda 2025 são exemplos deste trade-off ou compromisso. Para
manter uma visão de desenvolvimento amplamente partilhada a nível nacional, estes
planos ou agenda são excessivamente gerais e incluem tudo, sem escolhas claras e
óbvias de prioridades, abordagens e desafios. Uma vez que tudo está incluído e tudo é
possível, estes planos não inspiram nem orientam ou coordenam. Apesar da retórica,
o papel destes documentos na condução dos processos de escolha de opções políticas
fundamentais, tomada de decisões, implementação e avaliação de resultados é insig-
nificante. Qualquer abordagem que seja suficientemente geral para atrair consenso
incontestado é inútil do ponto de vista de política; e qualquer outra que seja suficien-
temente específica para dirigir e articular a escolha de opções, tomada de decisões e
implementação é contestável e contestada. A arte de conquistar e exercer ownership
testa-se neste trade-off.
Assim, a questão é quem é que lidera a articulação da visão partilhada e em
torno de que assuntos e interesses se desenvolve tal liderança, tal visão e tal partilha.
A resposta depende, obviamente, de cada caso e das condições sociais, políticas e eco-
nómicas que são historicamente específicas.
Poderá a dependência da ajuda ser consistente com ownership nacional? O artigo
sugere que ownership nacional é a forma menos precisa do já vago conceito de owner-
ship, tal como é definido na literatura dominante. Assim, o problema com o ownership
nacional não é apenas a dependência da ajuda, mas o próprio conceito de ownership
nacional. Deixando este problema de lado, ownership é um processo de disputa pelo
poder de influenciar a formulação e a implementação de políticas em contextos so-

454 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 454 3/29/11 4:54 PM


ciais, económicos e políticos específicos. A dependência da ajuda é uma das possíveis
características dessa disputa e contexto, o que certamente influencia as características
e processos de ownership. Por exemplo, a decisão do governo receptor de aparente-
mente abdicar de ownership, de modo a maximizar os fluxos de ajuda externa e mini-
mizar a fricção política interna, reflecte algum grau de ownership relacionado com a
estratégia de sobrevivência num contexto de opções limitadas e de pressões e grupos
de interesse específicos contraditórios. A discussão também mostra que a dependên-
cia da ajuda pode ser uma escolha estratégica para o desenvolvimento, uma vez que,
em determinadas circunstâncias sociais, a escolha “racional” pode ser uma trajectória
de desenvolvimento dependente da ajuda (Castel-Branco, 2010a).
Poderão “dependência da ajuda externa” e “sucesso económico” ser consistentes entre
si? O artigo sugere que a resposta a esta questão depende das definições usadas. O
sucesso é geralmente definido como o alcance de certo resultado esperado. Logo, se o
sucesso e a dependência da ajuda são consistentes um com o outro depende do que é
o resultado esperado (a medida do sucesso). No caso de Moçambique, se o sucesso for
simplesmente medido pelo número de empresas que foram privatizadas, escolas, cen-
tros de saúde e furos de água que foram construídos, quilómetros de estrada que foram
reabilitados, estudantes matriculados, esperança de vida e outros indicadores do género,
então a dependência da ajuda pode não só ser consistente com o sucesso, mas pode ser
um caminho e até uma condição para o sucesso. Os projectos das vilas do milénio de
Jeffrey Sachs (Sachs, 2006; Cabral, Farrington e Ludi, 2006; Mkandawire, 2005; Eas-
terly, 2007 e 2006) e os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio das Nações Unidas
constroem o sucesso sobre fundações de crescente dependência da ajuda externa e, em
última análise, consideram a dependência da ajuda como uma medida do sucesso.
Poder-se-á, então, dizer que este artigo defende que ownership é um conceito ana-
lítico irrelevante? Não, o artigo tentou pesquisar os limites do conceito, colocando ques-
tões que o debate clássico sobre ownership não pode responder. Neste processo, o artigo
tentou oferecer um quadro analítico mais dinâmico, realista e relevante para estudar
ownership como parte do conflito e disputa de poder de influência sobre problemáticas e
políticas de desenvolvimento. Mais importante do que avaliar se uma agência específica
tem ownership sobre o programa de reforma política é compreender a interacção entre
agências dentro de dinâmicas específicas de economia política e a substância das opções
políticas com as quais as agências funcionam.
Em última instância, a real e mais importante questão que deve ser colocada é de
como enfrentar a dependência da ajuda, em vez de como garantir ownership sob a, ou

Dependência de Ajuda Externa Desafios para Moçambique 2011 455

Desafios.indb 455 3/29/11 4:54 PM


da, dependência da ajuda. O artigo sugere que a redução e eliminação da dependência
de ajuda exigem mais do que ownership nacional, dado que dependência de ajuda é,
em si, uma trajectória de desenvolvimento apoiada não só pelos doadores mas tam-
bém pelos governos locais e outros grupos de interesse nacionais, em circunstâncias
específicas (Castel-Branco, 2010a; Ossemane, 2011; Massarongo e Muianga, 2011).
Para reduzir ou eliminar a dependência da ajuda é necessário usar essa ajuda para a
construção de capacidades produtivas socialmente eficazes, eficientes, diversificadas,
articuladas e sustentáveis, capazes de alimentar a economia e satisfazer as necessida-
des objectivas do consumo social, e usar o Estado para estrategicamente guiar e cuidar
do processo. Para que isto possa acontecer, têm de ocorrer mudanças fundamentais
de visão, política e organização dos governos receptores, dos doadores e da estrutura,
dinâmicas e regras do comércio e das finanças internacionais, bem como mudanças
profundas na organização da produção, da apropriação do excedente e da acumulação
capitalista (Castel-Branco, 2010a, 2004a, 2004b e 2002a; Castel-Branco, Sulemane
et al, 2005; UNCTAD, 2006). A questão real, então, não é ownership em si, mas que
grupos, e em que circunstâncias, podem articular os interesses a favor da mudança,
de modo a construir uma aliança suficientemente forte para influenciar a direcção da
mudança. Assim, a dificuldade não é só, nem mesmo essencialmente, de organização,
harmonização e alinhamento – é uma questão de economia política do desenvolvi-
mento, e é fundamental para o Séc. XXI (Fine, Lapavitsas e Pincus (editores), 2001;
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Ghai, D. (ed.), 1991. The IMF and the South – the Social Impact of Crisis and Ad-
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Oxford University Press.

466 Desafios para Moçambique 2011 Dependência de Ajuda Externa

Desafios.indb 466 3/29/11 4:54 PM


OUTRAS PUBLICAÇÕES DO IESE

LIVROS
Economia extractiva e desafios de industrialização em Moçambique – comunicações
apresentadas na II Conferência do Instituto de Estudos Sociais e Económicos. (2010)
Luís de Brito, Carlos Nuno Castel-Branco, Sérgio Chichava e António Francisco
(organizadores)
Maputo: IESE.
Protecção social: abordagens, desafios e experiências para Moçambique – comunicações
apresentadas na II Conferência do Instituto de Estudos Sociais e Económicos. (2010)
Luís de Brito, Carlos Nuno Castel-Branco, Sérgio Chichava e António Francisco
(organizadores)
Maputo: IESE.
Pobreza, desigualdade e vulnerabilidade em Moçambique – comunicações apresentadas
na II Conferência do Instituto de Estudos Sociais e Económicos. (2010)
Luís de Brito, Carlos Nuno Castel-Branco, Sérgio Chichava e António Francisco
(organizadores)
Maputo: IESE.
Desafios para Moçambique 2010. (2009)
Luís de Brito, Carlos Nuno Castel-Branco, Sérgio Chichava e António Francisco
(organizadores)
Maputo: IESE.
Cidadania e governação em Moçambique – comunicações apresentadas na Conferência
Inaugural do Instituto de Estudos Sociais e Económicos. (2009)
Luís de Brito, Carlos Castel-Branco, Sérgio Chichava e António Francisco
(organizadores)
Maputo: IESE.
Reflecting on economic questions – papers presented at the inaugural conference of the
Institute for Social and Economic Studies. (2009)
Luís de Brito, Carlos Castel-Branco, Sérgio Chichava and António Francisco (editors)
Maputo: IESE.
Southern Africa and Challenges for Mozambique – papers presented at the inaugural
conference of the Institute for Social and Economic Studies. (2009)
Luís de Brito, Carlos Castel-Branco, Sérgio Chichava and António Francisco (editors)
Maputo: IESE.

Desafios para Moçambique 2011 467

14.indd 467 3/29/11 5:54 PM


CADERNOS IESE
(Artigos produzidos por investigadores permanentes e associados do iese. esta colecção sub-
stitui as séries “working papers” e “discussion papers”, que foram descontinuadas)
Cadernos IESE nº 8: Desafios da Mobilização de Recursos Domésticos - revisão crítica
do debate. (2011)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/cad_iese/CadernosIESE_08_CNCB.pdf
Cadernos IESE nº 7: Dependência de Ajuda Externa, Acumulação e Ownership. (2011)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/cad_iese/CadernosIESE_07_CNCB.pdf
Cadernos IESE nº 6: Enquadramento Demográfico da Protecção Social em Moçambique)
António Francisco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/cad_iese/CadernosIESE_06_AF.pdf
Cadernos IESE nº 5: Estender a Cobertura da Protecção Social num Contexto de Alta
Informalidade da Economia: necessário, desejável e possível? (2011)
Nuno Cunha e Ian Orton
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/cad_iese/CadernosIESE_05_Cunha&Orton.pdf
Cadernos IESE nº 4: Questions of Health and Inequality in Mozambique (2010)
Bridget O’Laughlin
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/cad_iese/CadernosIESE_04_Bridget.pdf
Cadernos IESE nº 3: Pobreza, Riqueza e Dependência em Moçambique: a propósito do
lançamento de três livros do IESE (2010)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/cad_iese/CadernosIESE_03_CNCB.pdf
Cadernos IESE nº 2: Movimento Democrático de Moçambique: uma nova força política
na democracia moçambicana? (2010)
Sérgio Inácio Chichava
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/cad_iese/CadernosIESE_02_SC.pdf
Cadernos IESE nº 1: Economia Extractiva e desafios de industrialização em
Moçambique (2010)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/cad_iese/CadernosIESE_01_CNCB.pdf

468 Desafios para Moçambique 2011

14.indd 468 3/29/11 5:54 PM


WORKING PAPERS
(Artigos em processo de edição para publicação. Colecção descontinuada e substituída pela
série “Cadernos IESE”)

WP nº 1: Aid Dependency and Development: a Question of Ownership? A Critical


View. (2008)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/AidDevelopmentOwnership.pdf

DISCUSSION PAPERS
(Artigos em processo de desenvolvimento/debate. Colecção descontinuada e substituída pela
série “Cadernos IESE”)
DP nº 6: Recursos naturais, meio ambiente e crescimento económico sustentável em
Moçambique. (2009)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/DP_2009/DP_06.pdf
DP nº 5: Mozambique and China: from politics to business. (2008)
Sérgio Inácio Chichava
h t t p : / / w w w. i e s e . a c . m z / l i b / p u b l i c a t i o n / d p _ 2 0 0 8 / D P _ 0 5 _
MozambiqueChinaDPaper.pdf
DP nº 4: Uma Nota Sobre Voto, Abstenção e Fraude em Moçambique (2008)
Luís de Brito
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/dp_2008/DP_04_Uma_Nota_Sobre_o_
Voto_Abstencao_e_Fraude_em_Mocambique.pdf
DP nº 3: Desafios do Desenvolvimento Rural em Moçambique. (2008)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/dp_2008/DP_03_2008_Desafios_
DesenvRural_Mocambique.pdf
DP nº 2: Notas de Reflexão Sobre a “Revolução Verde”, contributo para um debate. (2008)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/dp_2008/Discussion_Paper2_Revolucao_
Verde.pdf
DP nº 1: Por uma leitura sócio-historica da etnicidade em Moçambique (2008)
Sérgio Inácio Chichava
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/dp_2008/DP_01_ArtigoEtnicidade.pdf

Desafios para Moçambique 2011 469

14.indd 469 3/29/11 5:54 PM


IDeIAS
(Boletim que divulga resumos e conclusões de trabalhos de investigação)
Nº 32: Protecção social financeira e protecção social demográfica: ter muitos filhos, principal
forma de protecção social em Moçambique? (2010)
António Francisco, Rosimina Ali e Yasfir Ibraimo
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/ideias_32.pdf
Nº 31: Probreza em Moçambique põe governo e seus parceiros entre a espada e a parede (2010)
António Francisco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/ideias_31.pdf
Nº 30: A dívida pública interna imobiliária em Moçambique: alternativa ao
financiamento do défice orçamental? (2010)
Fernanda Massarongo
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/ideias_30.pdf
Nº 29: Reflexões sobre a relação entre infra-estruturas e desenvolvimento (2010)
Carlos Uilson Muianga
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/ideias_29.pdf
Nº 28: Crescimento demográfico em Moçambique: passado, presente…que futuro? (2010)
António Francisco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/ideias_28.pdf
Nº 27: Sociedade civil e monitoria do orçamento público (2009)
Paolo de Renzio
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_27.pdf
Nº26: A Relatividade da Pobreza Absoluta e Segurança Social em Moçambique (2009)
António Francisco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_26.pdf
Nº 25: Quão Fiável é a Análise de Sustentabilidade da Dívida Externa de Moçambique?
Uma Análise Crítica dos Indicadores de Sustentabilidade da Dívida Externa de Moçambique
(2009)
Rogério Ossemane
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_25.pdf
Nº 24: Sociedade Civil em Moçambique e no Mundo (2009)
António Francisco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_24.pdf

470 Desafios para Moçambique 2011

14.indd 470 3/29/11 5:54 PM


Nº 23: Acumulação de Reservas Cambiais e Possíveis Custos derivados - Cenário em
Moçambique (2009)
Sofia Amarcy
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_23.pdf
Nº 22: Uma Análise Preliminar das Eleições de 2009 (2009)
Luis de Brito
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_22.pdf
Nº 21: Pequenos Provedores de Serviços e Remoção de Resíduos Sólidos em Maputo (2009)
Jeremy Grest
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_21.pdf
Nº 20: Sobre a Transparência Eleitoral (2009)
Luis de Brito
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_20.pdf
Nº 19: “O inimigo é o modelo”! Breve leitura do discurso político da Renamo (2009)
Sérgio Chichava
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_19.pdf
Nº 18: Reflexões sobre Parcerias Público-Privadas no Financiamento de Governos Lo-
cais (2009)
Eduardo Jossias Nguenha
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_18.pdf
Nº 17: Estratégias individuais de sobrevivência de mendigos na cidade de Maputo: En-
genhosidade ou perpetuação da pobreza? (2009)
Emílio Dava
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_17.pdf
Nº 16: A Primeira Reforma Fiscal Autárquica em Moçambique (2009)
Eduardo Jossias Nguenha
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_16.pdf
Nº 15: Protecção Social no Contexto da Bazarconomia de Moçambique (2009)
António Francisco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_15.pdf
Nº 14: A Terra, o Desenvolvimento Comunitário e os Projectos de Exploração Mineira
(2009)
Virgilio Cambaza
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_14.pdf

Desafios para Moçambique 2011 471

14.indd 471 3/29/11 5:54 PM


Nº 13: Moçambique: de uma economia de serviços a uma economia de renda (2009)
Luís de Brito
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_13.pdf
Nº 12: Armando Guebuza e a pobreza em Moçambique (2009)
Sérgio Inácio Chichava
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_12.pdf
Nº 11: Recursos Naturais, Meio Ambiente e Crescimento Sustentável (2009)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/ideias/Ideias_11.pdf
Nº 10: Indústrias de Recursos Naturais e Desenvolvimento: Alguns Comentários (2009)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/ideias/Ideias_10.pdf
Nº 9: Informação Estatística na Investigação: Contribuição da investigação e organizações
de investigação para a produção estatística (2009)
Rosimina Ali, Rogério Ossemane e Nelsa Massingue
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_9.pdf
Nº 8: Sobre os Votos Nulos (2009)
Luís de Brito
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_8.pdf
Nº 7: Informação Estatística na Investigação: Qualidade e Metodologia (2008)
Nelsa Massingue, Rosimina Ali e Rogério Ossemane
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/ideias/Ideias_7.pdf
Nº 6: Sem Surpresas: Abstenção Continua Maior Força Política na Reserva em
Moçambique… Até Quando? (2008)
António Francisco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_6.pdf
Nº 5: Beira - O fim da Renamo? (2008)
Luís de Brito
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/ideias/Ideias_5.pdf
Nº 4: Informação Estatística Oficial em Moçambique: O Acesso à Informação, (2008)
Rogério Ossemane, Nelsa Massingue e Rosimina Ali
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/ideias/Ideias_4.pdf
Nº 3: Orçamento Participativo: um instrumento da democracia participativa (2008)
Sérgio Inácio Chichava
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_3.pdf

472 Desafios para Moçambique 2011

14.indd 472 3/29/11 5:54 PM


Nº 2: Uma Nota Sobre o Recenseamento Eleitoral (2008)
Luís de Brito
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_2.pdf
Nº 1: Conceptualização e Mapeamento da Pobreza (2008)
António Francisco e Rosimina Ali
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ideias/Ideias_1.pdf

RELATÓRIOS DE INVESTIGAÇÃO
Moçambique: Avaliação independente do desempenho dos PAP em 2009 e tendências de
desempenho no período 2004-2009 (2010)
Carlos Nuno Castel-Branco, Rogério Ossemane e Sofia Amarcy
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/2010/PAP_2009_v1.pdf
Current situation of Mozambican private sector development programs and implications
for Japan’s economic cooperation – case study of Nampula province (2010)
Carlos Nuno Castel-Branco, Nelsa Massingue and Rogério Ossemane
Mozambique Independent Review of PAF’s Performance in 2008 and Trends in PAP’s
Performance over the Period 2004-2008. (2009)
Carlos Nuno Castel-Branco, Rogério Ossemane, Nelsa Massingue and Rosimina Ali.
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/PAPs_2008_eng.pdf
(também disponível em versão em língua Portuguesa no link http://www.iese.ac.mz/
lib/publication/outras/PAPs_2008_port.pdf ).
Mozambique Programme Aid Partners Performance Review 2007 (2008)
Carlos Nuno Castel-Branco, Carlos Vicente and Nelsa Massingue
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/PAPs_PAF_2007.pdf

COMUNICAÇÕES, APRESENTAÇÕES E COMENTÁRIOS


O que é que a ITIE faz bem e o que é que não faz? Uma proposta de agenda de trabalho sobre os
recursos naturais em Moçambique (2011)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/noticias/2011/CNCB_%20PGMM_Fev2011.pdf
Investigação e desenvolvimento: Será a investigação social neutra relativamente ao
conflito social? (2011)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/noticias/2011/CNCB_Oracao_Sapiencia_Fev2011.pdf

Desafios para Moçambique 2011 473

14.indd 473 3/29/11 5:54 PM


Pobreza, crescimento e dependência em Moçambique (2011)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/noticias/2011/Pobreza_Crescimento_Dependencia_
FeiradoLivro2011_CNCB.pdf
Comentários ao relatório “Alguns desafios da indústria extractiva”, de Thomas Selemane (2009)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/ComentariosdeCastelBranco-RelCIP.pdf
Algumas Considerações Críticas sobre o Relatório de Auto-avaliação de Moçambique na
Área da “Democracia e Governação Política”. (2008)
Luis de Brito, Sérgio Inácio Chichava e Jonas Pohlmann
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/MARP_rev_3.pdf
Estado da Nação – pontos que o Presidente da República deveria abordar no seu discurso
no Parlamento Moçambicano. (2008)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/outras/Pontos_para_a_entrevista_sobre_
estado_da_nacao.pdf
Os mega projectos em Moçambique: que contributo para a economia nacional? (2008)
Comunicação apresentada no Fórum da Sociedade Civil sobre a Indústria Extractiva.
Maputo.
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication//outras/Mega_Projectos_ForumITIE.pdf
As consequências directas das crises no panorama nacional Moçambicano (2008)
Comunicação apresentada na IV Conferência Económica do Millennium Bim “Os
efeitos das 3 crises - financeira, produtos alimentares e petróleo - sobre as economias
de África e de Moçambique em particular”. 4 de Dezembro. Maputo.
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/noticias/2009/Texto_BIM_2008.pdf
Alternativas Africanas ao Desenvolvimento e ao impacto da Globalização – Notas
Críticas Soltas (2007)
Comunicação apresentada na mesa redonda “Alternativas Africanas ao
Desenvolvimento e ao Impacto da Globalização”, 1º Encontro Académico Espanha-
Moçambique “Estudos Africanos: Perspectivas Actuais”, 14-15 de Novembro de
2007, organizado pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo
Mondlane, em Maputo. Também publicada sob o título “Os interesses do Capital em
África” na revista Sem Terra, nº 49 (Março/Abril de 2009), São Paulo.
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/Alternativas%20africanas_CEA_UEM.pdf

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Banco Mundial e a Agricultura, Uma discussão crítica do Relatório do Desenvolvimento
Mundial 2008 – Comentário crítico apresentado no lançamento do RDM 2008 em
Moçambique. (2007)
Carlos Nuno Castel-Branco
http://www.iese.ac.mz/lib/publication/Banco%20Mundial%20lanca%20
relatorio%20sobre%20Agricultura.pdf

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DESAFIOS PARA MOÇAMBIQUE 2011
O IESE é uma instituição comprometida com in- Reflectindo a decisão editorial tomada no início da série, o livro reúne tra- AUTORES

DESAFIOS
vestigação social e económica pluralista, interdisci- balhos de investigadores permanentes e associados do IESE e contribuições
plinar e heterodoxa, com enfoque no rigor e qua- de outros autores de reconhecido mérito, numa construção única, mas rica de António Francisco
lidade académica e na relevância e compromisso
diferentes experiências, abordagens e posições sobre algumas das grandes
social do seu trabalho, aberta à colaboração e coo- Aslak Orre
peração e dedicada a contribuir para o desenvolvi- questões que a sociedade moçambicana enfrenta ou deve enfrentar. Assim, são

PARA
mento de redes de investigadores e organizações de tratados temas como a descentralização, os desafios do financiamento do Es- Carlos Muianga
investigação associadas sobre Moçambique e o seu tado e da economia, a economia política das opções económicas em contexto
enquadramento na África Austral e no Mundo. de dependência da ajuda externa, a protecção social, o HIV-SIDA, o papel Carlos Nuno Castel-Branco
das economias emergentes no sector agrícola, economia política da ajuda ex-
Domingos do Rosário

MOÇAMBIQUE
terna e a dinâmica regional na construção da segurança pública.
Existe um fio condutor que liga o conjunto dos artigos: o desafio da cons- Fernanda Massarongo
trução de um Estado democrático. Naturalmente, o entendimento do que sig-
nifica ‘um Estado democrático’ abre o campo para muitas posições diferen- João Paulo Borges Coelho
tes e a identificação desse fio condutor não significa que sobre o assunto exista
José Óscar Monteiro

2011
no livro uma linha de pensamento e de análise única, partilhada por todos os
autores. Pelo contrário, estamos perante uma diversidade de pressupostos teó- Luís de Brito
ricos, de abordagens e de metodologias de análise que, sobretudo, contribuem
para alimentar um debate aberto e plural sobre as escolhas e opções que ca- Nelsa Massingue
racterizam as políticas públicas e que dependem dos interesses, por vezes con-
organização
traditórios, que são inerentes à vida social. Luís de Brito | Carlos Nuno Castel-Branco | Sérgio Chichava | António Francisco Rogério Ossemane

Rosimina Ali

Salvador Cadete Forquilha

Sandra Manuel

Sérgio Chichava

Sofia Amarcy

Yasfir Ibraimo

Zaqueo Sande (1977-2010)

ISBN

www.iese.ac.mz

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