CP 125030
CP 125030
CP 125030
O CONTEXTO AFETIVO-FAMILIAR
DE RELAÇÕES INCESTUOSAS ENTRE IRMÃOS
ASSIS
2009
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O CONTEXTO AFETIVO-FAMILIAR
DE RELAÇÕES INCESTUOSAS ENTRE IRMÃOS
ASSIS
2009
2
CDD 301.4158
150.150
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O CONTEXTO AFETIVO-FAMILIAR
DE RELAÇÕES INCESTUOSAS ENTRE IRMÃOS
BANCA EXAMINADORA
ASSIS
2009
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AGRADECIMENTOS
Ao meu querido Deus, pelo dom da vida e o amor incondicional por mim.
Ao meu amado esposo, Gustavo, pela paciência, amor e incentivo, sem os quais
seria impossível a realização deste trabalho.
Aos meus pais amados, cujo apoio e cuidado foram fundamentais nesta etapa de
minha vida.
Ao meu professor, José Luiz Guimarães (em memória), por acreditar em meu
trabalho e me incentivar a não desistir, diante das dificuldades da vida.
Aos professores Manoel Antônio dos Santos e Jorge Luis Ferreira Abrão, pelas
pertinentes sugestões, no Exame de Qualificação.
Aos meus queridos pastores Shinze e Dilma Yahiro pelas orações e apoio.
Ao meu querido pastor Haroldo Silva (em memória) e sua esposa Charlotte que me
possibilitaram a aquisição dos livros internacionais.
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ABSTRACT
This research is based upon my professional experience as a psychologist of a
Specialized Social Service Reference Centre – SSSRC – which offers psychosocial
assistance to children and adolescents victims of violence, located in a city in the
interior of Paraná State. Having this experience in mind, the present theme refers to
incest cases among siblings, children or adolescents. According to psychoanalysis,
incestuous desire is present in each individual from a young age; however, the
interdiction of incest is an important factor for the structuring of the psyche, especially
for the establishment of the superego, which concerns the process of internalization
of social rules, making it possible to live in society. Based on this presumption it is
believed that incestuous experiences could take place in a concrete reality, not only
on a fantasy level, configuring into abusive situations. This study utilized a
psychoanalysis based research, adapted to the context which does not correspond to
a conventional clinic, denominated extramural, which has the objective of identifying
the family-affective conditions in which emerge incestuous scenes among siblings
and to describe the family structure which supports them. Four families were
interviewed, with a total of sixteen participants. The information obtained through
open interviews with those in charge of the parental care of the children and/or
adolescents who had an incestuous form of relationship with their siblings, a
diagnostic family interview with all the members of the family and individually taken
interviews with the siblings involved. The script of the interviews aimed to accentuate
the most relevant aspects of the research, respectively: communication, roles and
functions, transgenerational aspects of the family groups, the conception of sexuality
and the incestuous involvement among siblings with the concern of evaluating the
attitudes of the people being interviewed about the incestuous questions. This
research demonstrates problems with communication, especially involving
parent/sibling relationships and the reversal family functions and roles, with an
uneven authority distribution. Subjectivity has configured in an extremely violent
environment, not helping a healthy affective development and with a discourse about
sexuality that accentuates its taboo nature. The abolition of limits among the
individuals and generations was noted with the occurrence of many violent situations,
inaugurating a traumatic transgenerational chain. Through this research it was
established the need to include incestuous involvements among siblings in debate
within our society, especially considering the tendency to assume it as less harmful
and abusive leading it to be mistakenly interpreted as a normal manifestation of a
child’s sexuality. As a result of a discussion of this problem we hope to broaden the
knowledge that will serve as basis for more effective practical interventions for these
types of cases.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA 10
3 MÉTODO 62
3.1 A Atuação do Psicólogo do CREAS na Abordagem à
Criança e/ou Adolescente 62
3.2 A Pesquisa em Psicanálise 65
3.3 Participantes da Pesquisa 68
3.4 Local da Pesquisa 69
3.5 O Acesso às Informações 69
3.5.1 Roteiro Norteador para a Entrevista com os
Responsáveis pelo Cuidado Parental 70
3.5.2 A Entrevista Familiar Diagnóstica 70
3.6 Procedimentos 72
4 AS ENTREVISTAS 74
4.1 A História da Família Silva 74
4.1.1 Composição familiar 75
4.1.2 Relato da Entrevista com a Mãe 76
9
INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA
tendem a ser percebidas como consentidas, além de, na maior parte dos casos,
ambos os envolvidos serem menores de idade e, portanto, haver um menor número
de encaminhamentos para exame de corpo de delito (local onde aqueles autores
realizaram a pesquisa).
No CREAS, verificou-se que, segundo o grau de parentesco entre os
familiares denunciados, o irmão estaria em terceiro lugar, seguido do pai e do
padrasto e constituindo aproximadamente 4% dos casos (BRASIL, 2008).
Observou-se uma diferença significativa entre os dados colhidos pelo CREAS
e por Gobbetti (2000), podendo-se pressupor que há uma subnotificação desses
tipos de casos, pois os pais podem demonstrar dificuldades em formalizar a
denúncia dos próprios filhos ou compreender o envolvimento incestuoso entre os
irmãos como não abusivo.
Em virtude da escassez de estudos nacionais, optou-se pela busca de
pesquisas internacionais, como na base de dados bibliográficos da Biblioteca
Nacional de Medicina dos Estados Unidos da América (US National Library of
Medicine's – NLM), denominada Medline, através dos termos “sibling incest” e
apenas “incest”, tendo sido encontradas 12 referências para incesto entre irmãos e
215 referências para a palavra “incesto”, até 14/07/2008.
Diante dos estudos internacionais levantados, constatou-se que há algumas
peculiaridades na relação incestuosa entre irmãos, já que alguns autores (CYR et
al., 2002; RUDD; HERZBERGER, 1999) fizeram pesquisas comparativas, sob o
enfoque da Análise do Comportamento, com outros tipos de incesto pai/filha,
padrasto/enteada, constatando que o incesto entre irmãos, erroneamente, tem sido
considerado menos danoso do que os outros. Os autores apontam para a existência
de pontos cegos em pesquisas relativas a esse tipo de incesto, ressaltando que, no
caso de irmãos, as consequências emocionais para os envolvidos são tão graves
quanto no incesto pai/filha.
Outra pesquisa encontrada (TSUN, 1999) descreve um estudo de caso
realizado na China, revelando que o incesto perpetrado pelo irmão mais velho, do
gênero masculino, acontece em um contexto familiar que possui pais não acessíveis,
com uma estrutura patriarcal de poder, com fortes códigos morais, secretismo, isto é,
em um ambiente que contribui para que a vítima não consiga se proteger das
investidas sexuais do irmão.
16
capítulo 3, descrevemos o caminho que permite atingir o objetivo proposto: tal como
no método psicanalítico, o conhecimento vai se desvendando, pela escuta atenta do
pesquisador, centrada no sujeito e na história que se revela. No capítulo 4,
finalizamos o trabalho, articulando o conhecimento teórico com as revelações das
pessoas que se dispuseram a participar da pesquisa.
ao mar, porque se acreditava que “traziam mau agouro para a comunidade e para a
família” (MARCÍLIO, 2006, p. 24).
introduziu uma nova criança, uma criança com uma sexualidade que escapa
ao controle social, que produz suas próprias teorias, demonstrando com
suas construções fantasmáticas a possibilidade de se constituir como sujeito
de sua própria história.
para receber maior quantia em dinheiro pelo serviço, de forma que muitas crianças
acabavam morrendo, vítimas da negligência.
Já as crianças que eram criadas em famílias representavam a mão-de-obra
gratuita e, por conseguinte, apesar de terem melhores condições de sobrevivência,
eram submetidas a diversos tipos de violências. Outras, que não tinham a mesma
oportunidade, acabavam se envolvendo com a criminalidade, a mendicância e a
prostituição.
Para Marcílio (2006), portanto, ao longo do século XIX, com o avanço do
liberalismo, as Misericórdias e as obras de beneficência passaram a se tornar cada
vez mais públicas, perdendo gradativamente a autonomia e vindo a depender
financeiramente dos governos, que impunham políticas e controles a ser adotados e
os rumos a tomar.
No início do período republicano (aproximadamente entre 1870 e 1907), com
a intensa urbanização e industrialização nas grandes cidades, como São Paulo,
várias transformações ocorreram, inclusive com o acentuado aumento populacional ,
facilitado pelas imigrações que, aos poucos, substituíram a mão-de-obra escrava.
Verificou-se um aumento da criminalidade infanto-juvenil, interpretada como
falta de cuidados e de educação, por parte da família e da sociedade. A infância, por
consequência, começou a ser alvo de preocupações, sendo vista como “semente do
futuro” (SANTOS, 2007, p. 215).
Segundo Passetti (2007), no regime republicano, foi elaborado um novo
Código Penal, de acordo com a nova realidade social, incluindo penalizações
severas a crianças e adolescentes “infratores”, enquadrados no crime de
“vadiagem”, de sorte que a República, a partir da repentina expansão urbano-
industrial, com inúmeros problemas de ordem social a combater, principiou a reprimir
a vadiagem, a embriaguez, a mendicância e a prostituição, isto é, a “combater tudo o
que não se enquadrava na lógica da produção e do trabalho, por meio do
arrefecimento do controle social” (SANTOS, 2007, p. 228).
No início dos anos 60, com a ditadura militar, oferece-se a Fundação Nacional
do Bem-Estar do Menor à população, com a proposta de educação ao infrator sem
repressão enquanto, contraditoriamente, a ditadura militar realizava várias práticas
repressivas aos subversivos da época, incluindo torturas.
Durante esse período, por meio de uma perspectiva biopsicossocial, a
metodologia interdisciplinar é introduzida, com o objetivo de
25
No caso da violência sexual, nos últimos anos, tem sido possível observar
que essa temática tem tido maior divulgação pela mídia e outros meios de
comunicação, por meio dos esforços de vários órgãos públicos e da sociedade civil
como um todo.
A problemática sobre a violência sexual passou a ter melhor visibilidade a
partir da década de 1970, inicialmente no âmbito internacional, devido ao movimento
feminista que tornou públicos vários temas até então considerados tabu: estupro,
espancamentos de mulheres no lar e abuso sexual de crianças (AZEVEDO;
GUERRA, 2005).
Azevedo e Guerra (2005, p. 247) relatam que, nessa época, vários
depoimentos foram divulgados, nos EUA, de sobreviventes da violência sexual,
tendo sido possível, desde esse tempo, mostrar através de várias pesquisas que:
x 1 em cada 10 crianças foi abusada antes dos 18 anos por alguém da família;
No plano formal, podemos dizer que a infância nunca foi tão amparada
legalmente, quanto na atualidade, com o surgimento de novas políticas públicas,
modernas legislações, que propiciaram a visibilidade da criança e adolescente
enquanto sujeito de direitos. Porém, não podemos negar que a vitimização ainda
persiste, nem afirmar que, no caso da violência ou abuso sexual, por exemplo, há
uma diminuição ou aumento dos casos ao longo desses anos, dada a chamada
“cifra oculta” (AZEVEDO; GUERRA, 2005a, p. 42).
A violência ou abuso sexual pode permanecer velado em uma espécie de
complô do silêncio, durante muitos anos, porque, muitas vezes, não é identificado e
denunciado em virtude do silêncio das vítimas, dos agressores, de outros parentes e
de profissionais que não conseguem percebê-lo ou se negam a vê-lo.
A grande dificuldade enfrentada se refere ao reconhecimento e à notificação
dessa problemática, em razão do contexto privado em que ela ocorre que, na
maioria dos casos, é perpetrada por pessoas conhecidas da vítima, as quais
ameaçam, coagem, seduzem, para que não se revele o segredo.
Sanderson (2005, p. 16) define como um “mito” a afirmação de que apenas
estranhos abusam sexualmente de crianças, demonstrando que a maioria dos casos
notificados corresponde a agressores sexuais conhecidos pela criança ou
adolescente, estima-se que em 87% dos casos.
Dessa maneira, a violência ou abuso sexual pode ser perpetrado por pessoas
da própria família, como pais, padrastos, mães, tios, irmãos, entre outros, sendo
caracterizado por sua natureza incestuosa.
tratos, sevícia sexual, ultraje sexual, injúria sexual, crime sexual etc. A autora conclui
que o emprego desses conceitos como sinônimos não é apenas uma questão de
terminologia, mas um problema epistemológico, quer dizer, evidencia a falta de uma
rigorosa e clara conceituação da problemática.
Para Azevedo e Guerra, os pressupostos considerados por elas têm sua
fundamentação na Teoria das Relações Sociais de Gênero (AZEVEDO; GUERRA,
1988), em que o problema da Violência Sexual Doméstica está relacionado à própria
estrutura patriarcal, nas quais a mulher e a criança se encontram em condição social
de total inferioridade perante os homens. “A Teoria das Relações Sociais de Gênero
afirma que, nos casos de violência doméstica, a criança é sempre vítima, nunca
culpada pelos atos violentos de seus pais” (PINTO JÚNIOR, 2005, p. 26).
No caso desta pesquisa, que envolve crianças e adolescentes, devido ao
referencial teórico adotado ser a Psicanálise, optamos pela terminologia Incesto e
Abuso Sexual para designar o envolvimento sexual entre irmãos. Consideramos que
ambos os termos podem parecer sinônimos ou podem ocorrer concomitantemente
nesse tipo de relacionamento, sendo abusivo e também incestuoso; todavia,
apontamos também a necessidade de diferenciá-los, neste primeiro momento,
adotando a consideração de Renshaw (1984, p. 22) de que
“o incesto não é necessariamente violento e nem sempre implica em abuso da
criança. Os parceiros envolvidos podem gostar muito um do outro. Pode não haver
exploração, medo ou uso da força”.
Pela etimologia, o “incesto” deriva de incestum, significando “sacrilégio”, que,
por sua vez, deriva de incestus, no sentido de “impuro e sujo”. O prefixo in- indica
um sentido negativo, enquanto cestus é uma deformação de castus, ou seja, aquele
que não é casto, virtuoso, que não se abstém de relações sexuais.
Assim, podemos dizer que o incesto pode ser compreendido quando duas
pessoas transgridem as normas ou proibições culturais de se relacionarem
sexualmente.
No ano de 2007, vários países do mundo ficaram chocados, ao tomarem
conhecimento de que um casal de irmãos estaria lutando para mudar a lei alemã
sobre a proibição do incesto. Os irmãos Patrick Stuebing e Susan Karolewski
conviviam maritalmente há seis anos, tendo quatro filhos frutos dessa relação
incestuosa: "Somos um casal normal. Queremos constituir uma família. A nossa
família se despedaçou quando éramos crianças e, depois disso, Susan e eu nos
32
aproximamos" (MOORE, 2007). Cabe ressaltar que, nesse caso, os irmãos não
conviveram juntos desde a infância, encontrando-se apenas quando já eram
adolescentes.
Vários estudos foram realizados pela Etologia, Biologia, Medicina, Psicanálise
e Antropologia, em torno da proibição do Incesto. Com a Etologia, algumas
observações com uma série de animais foram realizadas e comprovaram a
existência de alguns mecanismos de regulação, para se evitar o incesto.
O etólogo Boris Cyrulnik (1994, apud CROMBERG, 2004) revela que animais
de uma mesma linhagem inibem, ao longo do desenvolvimento, alguns dos seus
comportamentos sexuais em relação a seus próximos e os orientam a congêneres
mais distantes.
1
Este assunto será discutido e aprofundado no capítulo seguinte.
34
[...] uma definição resumida do que é cultura nos informa que ela é um
mapa, um código através do qual as pessoas de um determinado grupo
social pensam, estudam, classificam e modificam o mundo e a si mesmas.
Usando uma expressão do antropólogo Clifford Geertz, podemos dizer que
a cultura é a “teia de significados” que o homem teceu e a partir da qual ele
olha o mundo. (ZAMBRANO, 2005, p. 62).
Desse modo, podemos observar que toda relação que envolve uma situação
de abuso sexual está relacionada a uma relação assimétrica de poder.
Alguns autores procuram definir quando uma relação pode ser tomada como
uma situação de abuso sexual, estabelecendo objetivamente alguns parâmetros.
Duarte e Arboleda (2005, p. 293) salientam que o contato sexual pode ser abusivo
quando há uma “disparidade significativa de idade (cinco anos ou mais), de
desenvolvimento ou de tamanho que faça com que o menor não esteja em
condições de dar um consentimento consciente”.
Entretanto, esses parâmetros, apesar de facilitarem em algumas situações,
são generalizações e, portanto, não incluem a experiência subjetiva, história de vida
de cada indivíduo envolvido na relação e, principalmente, o que uma pessoa
representa para a outra, no caso da existência de um vínculo.
Abuso sexual e incesto às vezes costumam ser confundidos, mas não são a
mesma coisa. Abuso sexual geralmente designa relações sexuais entre um
adulto e uma criança. Incesto refere-se a relações sexuais entre dois
membros da mesma família, cujo casamento seria proibido por lei ou
costume [...] Muitos dos abusos sexuais são também incestuosos [...]
Quando uma criança tem um contato sexual com um adulto estranho ou
vizinho, por exemplo, é abuso sexual que não é incesto. Quando uma
criança tem um contato sexual com um membro da família da mesma idade
(com uma diferença inferior a cinco anos de idade entre ambos) é uma
espécie de incesto que não é abuso sexual. Há muitos destes em
relacionamentos entre irmãos e primos. (FINKELHOR, 1981, p.83)
2.1 O Incesto
A psicanálise nos ensinou que a primeira escolha de objetos para amar feita
por um menino é incestuosa e que esses são objetos proibidos: a mãe e a
irmã. Estudamos também a maneira pela qual, à medida que cresce, ele se
liberta dessa atração incestuosa. (FREUD, 1912b/2001).
Não acredito mais em minha neurótica [...] Depois, veio a surpresa diante do
fato de que, em todos os casos, o pai, não excluindo o meu, [1] tinha de ser
apontado como pervertido — a constatação da inesperada freqüência da
histeria, na qual o mesmo fator determinante é invariavelmente
estabelecido, embora, afinal, uma dimensão tão difundida da perversão em
relação às crianças não seja muito provável. (A perversão teria de ser
incomensuravelmente mais freqüente do que a histeria, de vez que a
doença só aparece quando há uma acumulação de eventos e quando
sobrevém um fator que enfraquece a defesa.) Depois, em terceiro lugar, a
descoberta comprovada de que, no inconsciente, não há indicações da
realidade, de modo que não se consegue distinguir entre a verdade e a
ficção que é catexizada com o afeto. (FREUD, 1897/2001).
Ele sabia que nem todos os pais eram estupradores, mas, ao mesmo
tempo, admitia que as histéricas não estavam mentindo ao se dizerem
vítimas de uma iniciativa de sedução. Como explicar essas duas verdades
contraditórias? (ROUDINESCO, 2000, p. 72).
Faz parte da opinião popular sobre a pulsão sexual que ela está ausente na
infância e só se desperta no período da vida designado da puberdade. Mas
esse não é apenas um erro qualquer, e sim um equívoco de graves
conseqüências [...]. (FREUD, 1905/1975, p. 162).
3
Segundo Laplanche e Pontalis (1998, p. 402), o termo “parcial” não significa só que as pulsões
parciais são espécies que pertencem à classe da pulsão sexual, na sua generalidade; deve ser,
sobretudo, tomado num sentido genético e estrutural: as pulsões parciais funcionam primeiro
independentemente e, em seguida, tendem a unir-se nas diversas organizações libidinais.
42
Por meio do Complexo de Édipo, todo ser humano revive individualmente este
acontecimento primitivo, culminando com a interrupção do desejo incestuoso. “O
tabu do incesto é um dos efeitos do complexo de Édipo, além da instauração da
moral. Desse modo, transmite-se uma lei fundamental destinada a regular as
relações sociais” (GABEL, 1997, p. 49).
Freud (1905/1975), portanto, confere importância aos pais, na tarefa de
orientar o(a) filho(a) na maturidade, em sua escolha do objeto sexual: “Sem dúvida,
o caminho mais curto para o filho seria escolher como objetos sexuais as mesmas
pessoas a quem ama, desde a infância [...]” (p. 212). Nesse sentido, o respeito a
essa barreira do incesto é “uma exigência cultural da sociedade; esta tem de se
defender da devastação, pela família, dos interesses que lhe são necessários para o
estabelecimento de unidades sociais superiores [...]” (FREUD, 1905/1975, p. 212).
São ora os próprios pais que buscam um substituto para suas insatisfações,
dessa maneira patológica, ora pessoas de confiança, membros da mesma
família (tios, tias, avós), os preceptores ou o pessoal doméstico que abusam
da ignorância ou da inocência das crianças. (FERENCZI, 1932/1992,
p. 101).
ainda não possui uma estruturação física ou psíquica para reagir contra a força e a
autoridade esmagadora dos adultos (sobretudo quando estes exercem o papel de
um “cuidador”, como um pai, mãe, tios), originando um estado confusional que a faz
submeter-se à vontade do outro.
Por identificação, a criança introjeta o agressor, o qual desaparece enquanto
realidade exterior e se torna componente intrapsíquico. O sentimento de culpa
advindo do autor do abuso também é introjetado pela criança, que vive o episódio de
forma confusa e sente-se, ao mesmo tempo, inocente e culpada pelo que ocorreu.
Se ela não for acolhida de maneira adequada, caso a mãe ou uma segunda pessoa
de confiança não acreditarem no seu relato (desmentindo-a), uma das
consequências possíveis é a desestruturação psíquica.
Portanto, é preciso levar em conta o grande potencial traumático que o
incesto pode gerar, na criança, visto que ela ainda não possui condições psíquicas
para elaborar ou compreender essa experiência. Todavia, o modo pessoal de viver,
sentir e registrar a experiência repercute na resposta ao trauma. Cada pessoa, ao
seu modo, pode retardar a reação ou manifestar de imediato seu sofrimento.
A grande problemática em relação ao incesto e outros abusos fora do
contexto familiar é que, no primeiro, a criança se depara com sentimentos de
ambivalência, originando a culpa, já que ela pode compreender que é algo proibido,
porque tudo é feito de modo velado, em segredo. Entretanto, ao mesmo tempo, é
gratificante, obtendo-se um prazer sensorial do toque, das carícias, confundindo-se a
linguagem da ternura da criança com a linguagem da paixão do adulto.
Assim, no caso do incesto, o vínculo afetivo ainda permanece, a pessoa que
abusa é a mesma que, na compreensão da criança, lhe fornece proteção, cuidado e
até mesmo afeto, muitas vezes como carícias e atividades sexuais.
Outra consequência, apontada por Ferenczi (1932/1992, p. 104), é a
“progressão traumática (patológica) ou prematuração (patológica)”, quando a criança
começa a manifestar todas as emoções de um adulto maduro; o autor compara-a
com “frutos que ficam maduros e saborosos depressa demais, quando o bico de um
pássaro os fere, e na maturidade apressada de um fruto bichado” (FERENCZI,
1932/1992, p. 104).
A criança pode vir a ter uma parte de si que se desenvolve rapidamente,
como manifestar uma vida sexual, segundo Ferenczi, sob o primado genital ou a
48
crianças, relacionar-se com outros adultos e crianças de maneira sexual, toque nos
genitais de maneira compulsiva, forçar o contato sexual com outras crianças,
conhecer o sabor, a textura e o cheiro do sêmen.
De cinco a doze anos, devido à inserção nas escolas, os comportamentos
sexuais típicos estariam relacionados ao aumento do contato com colegas, das
interações experimentais consensuais, das brincadeiras de faz-de-conta (“mamãe-e-
papai”), perguntas sobre menstruação, gravidez e comportamento sexual e a
masturbação em particular (esporádico). A masturbação em público, a masturbação
compulsiva, a atividade sexual ou experimentação sexual forçada com outras
crianças, seriam exemplos de comportamentos sexuais atípicos.
Em adolescentes, entre treze a dezesseis anos, as características da fase do
desenvolvimento incluiriam uma série de mudanças hormonais, desenvolvimento de
características sexuais secundárias (pelos pubianos, seios e modificação da voz)
favorecendo a necessidade de privacidade em torno do corpo, algumas dúvidas
sobre a sexualidade, uso da linguagem sexual, masturbação em local privado,
experimentação sexual consensual com outros adolescentes da mesma idade
seriam comportamentos sexuais típicos desta faixa etária. Dentre os
comportamentos sexuais atípicos estariam o contato sexual com crianças bem mais
novas, a masturbação em público, forçar outro adolescente ou criança a fazer sexo
com ele/ela, jogos “especiais” com crianças mais novas (tirar a roupa, “médico”),
incomuns para a idade delas, ameaças ou intimidações da criança para manter o
“segredo”, oferecimento de suborno, como dinheiro ou presentes, para garantir seu
silêncio.
Cabe ressaltar que todos esses comportamentos não podem ser analisados
isoladamente, pois, existe uma linha muito tênue que os separa. Devemos avaliá-los
de acordo com o que a criança ou adolescente nos revela e com contexto
apresentado. Quando se trata de um caso de incesto, é essencial o conhecimento
do contexto em que a criança cresce, ou seja, é fundamental conhecer toda a sua
família.
Em conformidade com Cohen (1997), no incesto, todos os membros da
família estão envolvidos, existe uma colaboração consciente ou inconsciente, sendo
um sintoma de uma crise na estrutura familiar. Por consequência, concordamos que
não se trata apenas de uma dupla envolvida na relação incestuosa, composta, de
um lado, está a criança-vítima e, do outro, o autor.
51
Tudo isso pode provocar uma alteração no self que vinha se desenvolvendo.
Portanto, quanto mais precoce a idade da criança, maior importância dessa provisão
54
Winnicott (1982), entretanto, deixa claro que, embora o papel materno seja
essencial, acredita no potencial para o desenvolvimento, que é inato, mesmo que
algumas circunstâncias não sejam favoráveis, ou seja, “em cada bebê há uma
centelha vital, e seu ímpeto para a vida, para o crescimento e desenvolvimento é
uma parcela do próprio bebê, algo que é inato na criança e que é impelido para a
frente de um modo que não temos de compreender” (WINNICOTT, 1982, p. 29).
A importância do ambiente suficientemente bom para se desenvolver
influenciará diretamente na integração do self, que, para Winnicott, é um processo
55
Temos que saber o que acontece com a criança quando um bom ambiente
é desfeito e também quando nunca existiu um bom ambiente [...] Alguns dos
fenômenos são bem conhecidos: o ódio é reprimido ou perde-se a
capacidade para amar pessoas. Instalam-se outras organizações defensivas
na personalidade da criança. Pode ocorrer a regressão para algumas fases
anteriores do desenvolvimento emocional que foram mais satisfatórias do
que outras, ou pode haver um estado de introversão patológica. É muito
mais comum do que se pensa ocorrer uma cisão da personalidade.
(WINNICOTT, 1995, p. 183).
5
Terminologia utilizada pela teoria familiar estrutural, que emergiu na década de 1970, com grande
influência através do seu principal expoente, Salvador Minuchin (cf. NICHOLS; SCHWARTZ, 1998).
57
Por outro lado, pode demonstrar uma falsa unidade, mantida apenas pelo
segredo, sendo que internamente os membros não têm uma abertura para a
comunicação.
58
permanente. Ele gostaria de ser ele (o outro) e sofre como qualquer coisa
que poderia diferenciá-los. (DERBY, 2000, p. 234).
3. MÉTODO
nisso, mas talvez lhes agrade ouvir um psicanalista falar assim, dado que os
analistas são especialmente propensos a atolar-se em longos tratamentos,
no decorrer dos quais podem acabar perdendo de vista um fator externo
adverso. (WINNICOTT, 1995, p. 238).
técnica que seja apropriada ao caso; portanto, o terapeuta deve ser livre para ser ele
próprio, desde que não distorça o curso dos acontecimentos, devido a sua
ansiedade, culpa ou necessidade de alcançar o sucesso.
Assim, a consulta psicoterapêutica me ajudou a alcançar qual é o “mínimo”
que se necessita fazer com esses casos. Considero-a uma forma eficaz e imediata,
no contexto institucional, de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de
abuso sexual, podendo alcançar uma demanda maior, evitando longas filas de
espera e ainda favorecendo uma mudança sintomática rápida, a qual é, em alguns
desses casos, preferível a uma cura psicanalítica (WINNICOTT, 1994a).
Portanto, este estudo teve como compromisso ético zelar pelo sigilo dos
participantes, de modo a não causar-lhe nenhum dano, sendo, assim, de livre e
espontânea vontade a participação na pesquisa, sem nenhum custo ou qualquer
prejuízo em relação aos atendimentos oferecidos pela Instituição.
6
A definição de criança e adolescente tem como parâmetro o que foi preconizado no Estatuto da
Criança e do Adolescente – Lei 8069/90 (BRASIL, 1990).
69
Após a escolha das famílias, foi realizado um contato inicial com os seus
membros, por meio de profissionais que possuíam um maior vínculo com eles,
expondo os objetivos da pesquisa e o convite.
Posteriormente, um novo contato e a aceitação de participação da pesquisa
seu deu, entre todos os membros da família presentes e a pesquisadora. A
pesquisadora explicou à família sobre a liberdade de decidir sobre a participação na
pesquisa ou não, a recusa a falar sobre algum assunto e a manutenção do sigilo
quanto a qualquer forma de identificação.
Para ter acesso a esses dados, foram utilizadas: a entrevista aberta com os
responsáveis pelas crianças e/ou adolescentes, a aplicação da Entrevista Familiar
Diagnóstica (EFD) com todos os membros, nos moldes propostos por Soifer (1989) e
Souza (1995), com algumas adaptações voltadas para esta pesquisa. Também se
realizaram entrevistas com os irmãos que mantiveram algum envolvimento sexual
incestuoso entre si.
A entrevista aberta com os responsáveis foi escolhida como um recurso útil
para que os entrevistados se expressassem com maior liberdade. Um roteiro
contendo os assuntos a serem abordados foi utilizado apenas como um norteador,
possibilitando que todos os entrevistados falassem sobre o mesmo assunto,
favorecendo a etapa de análise dos dados. Portanto, objetivou-se que os
70
Diagnóstica (EFD), nos moldes propostos por Soifer (1989) e Souza (1995), com
algumas adaptações mais relevantes à nossa pesquisa.
Souza (1995), ao usar a Entrevista Familiar Diagnóstica, prioriza a
observação de alguns aspectos familiares, dentre os quais destacamos: as relações
familiares, dos pais entre si, dos pais com cada filho, dos filhos com cada pai, e dos
irmãos entre si; a plasticidade dos vínculos familiares e a possibilidade de
estabelecer relações com o psicólogo; como a família configura o espaço, o tempo, a
comunicação; a resistência do grupo familiar a frustrações e situações de conflito,
assim como a capacidade de holding dos pais, para conter as ansiedades dos
filhos, a capacidade das crianças brincar simbolicamente, assim como de seus pais
compreenderem suas mensagens pré-verbais.
Para a realização dessa entrevista, preparamos uma sala com os seguintes
materiais:
- casa de madeira vazada, dividida em vários ambientes: sala de estar,
cozinha, quartos, banheiro e área de lazer. As peças de mobílias (sofá, cama, mesa,
fogão, entre outros...) também completavam a casa;
- bonecos anatômicos em tecido, com idades e gênero variáveis, podendo
representar uma família;
- utensílios de cozinha;
- vários tipos de carrinhos de brinquedos;
- blocos de montar em tamanhos variados;
- jogos de memória, quebra-cabeças, jogo de damas;
- papéis e lápis de cor;
A sala disponibilizada para as entrevistas possuía um espaço suficiente para
comportar todos os membros de uma família com as seguintes mobílias:
- uma mesa infantil com quatro cadeiras;
- uma mesa comum;
- as cadeiras eram disponibilizadas em função do número de pessoas da
família.
Para todas as famílias entrevistadas, oferecemos o mesmo enquadre básico:
Trouxe este material para vocês utilizarem conforme vocês decidirem, com o
objetivo de conhecê-los melhor. O tempo que vocês possuem é de 50 minutos,
portanto, fiquem à vontade.
72
3.6 Procedimentos
4 AS ENTREVISTAS
7
Sobrenome fictício.
8 Nome fictício.
75
informou que ele estava trabalhando muito e que seria inviável aceitar o meu
convite. Percebi que, diante de suas justificativas, a senhora Maria estava resistente
quanto ao meu convite, oferecendo-me a possibilidade de entrevistar apenas três
dos quatro filhos e sem a presença do genitor.
O primeiro contato com a família foi intermediada por outro profissional
responsável pelo caso, quando apenas a mãe e três filhos compareceram e
aceitaram participar da pesquisa.
Diante da mãe, dos filhos e do profissional, expliquei o objetivo da pesquisa e
os procedimentos a serem adotados, em uma linguagem acessível também para as
crianças, finalizando com a aplicação do TCLE (Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido).
PAI MÃE
44 a. 40 a*
Legenda:
Relação Incestuosa:
Vítima de abusos sexuais: *
Vítima de violência física: +
Idade da ocorrência do abuso: -
76
Ela tinha me dado quando meu vô ficou sabendo que ela tava grávida, e ele
mandou ela embora de casa. Ela era filha mais velha, então ele não aceitou e
mandou ela embora, ela foi morar com o meu pai, com a família do meu pai.
Então, eu fiquei sabendo que o meu pai bebia muito e ele judiava muito da
minha mãe, ele era viúvo e tinha 2 ou 3 filhos. Daí quando foi para mim nascer,
ela foi para Santa Casa, teve o parto de cesariana e aí teve uma complicação lá
e... ela me deu para freira. Só que o meu avô ficou sabendo que eu tinha
nascido e ele foi no hospital me buscar, daí a freira falou que ela tinha me dado,
que ela ia me levar embora, daí meu avô falou que eu não era ‘filho de cachorro
nem de cadela para ficar dando’, e, aí, ele me pegou, foi lá me registrou. E eu
fiquei com eles, e eles foram meus pais, chamava de pai e de mãe, tudo. (sic)9
Ela viveu toda a sua infância sendo criada pelos avós maternos, tendo pouco
contato com sua mãe e nenhum com o pai biológico, nem chegando a conhecê-lo. A
transgressão de fronteiras geracionais foi um fator relevante a ser considerado, visto
que o avô assumiu o lugar do pai, inclusive por meio de um registro de nascimento
ilegal e o impedimento no estabelecimento de um vínculo com os verdadeiros pais.
As primeiras experiências da Senhora Maria, quanto à sexualidade, foram
igualmente vivenciadas negativamente, isto é, desde a sua gestação, o fato da sua
mãe ter sido expulsa de casa devido a uma gravidez precoce demonstra uma recusa
da família e dos avós em lidar com essas questões.
O relacionamento com os avós (pais), por meio de seu relato, pareceu realçar
dificuldades na transmissão do afeto, de sorte que a Senhora Maria era vista como
uma “posse” deles.
Minha mãe, de cada ano em ano, aparecia em casa, ela vivia mais na casa de
patroa, porque ela trabalhava de empregada, cada vez ela tava num canto,
nisso, fui crescendo tudo, e uma vez ela foi em casa e queria sair comigo, mas,
meu pai (avô) não deixou, porque ele disse que tinha medo dela me roubar.
9
Todas as falas foram transcritas de modo fiel, sem correções.
77
Após a morte dos avós, o modo como conheceu o seu atual marido, durante a
sua juventude, através de cartas a emissoras de rádio, também enfatiza essas
dificuldades em estabelecer relacionamentos afetivos e em lidar com aspectos da
sexualidade.
Após o casamento, a Senhora Maria passou a residir com os sogros,
enquanto o marido morava e trabalhava em outro município, até o seu primeiro filho
completar pouco mais de um ano. Nesse período, ela vivenciou grandes conflitos
familiares, uma vez que o sogro era alcoolista, agredia fisicamente a sogra, havendo
um episódio em que o presenciou com uma faca, tentando agredir seu cunhado (que
era adolescente, na época).
Apesar de ter consciência de todos os conflitos familiares envolvidos, o seu
marido a deixou sozinha, aos cuidados de seus familiares. No entanto, a Senhora
Maria decidiu mudar da casa dos sogros para perto do marido, a partir do momento
em que o seu filho passou a ser vítima constante de violência física, perpetrada pelo
tio paterno:
[...] meu outro cunhado catava fósforo e queimava o meu menino, acho que
porque ele tinha alguma coisa contra o meu marido, que era irmão mais velho, e
falava para ele, e ele não acatava, era adolescente, tinha uns 12 e 13 anos, ele
fazia isso. Eu ia lá falar com ele e ele negava, daí não dava mais, minha sogra
insistiu, mas eu falei que não aguentava mais, fomos embora...
Durante a entrevista, a Senhora Maria disse ainda ter sido vítima de abuso
sexual perpetrado pelo sogro, quando, deitada na cama, ele teria “erguido” (sic) a
sua roupa. Segundo o relato da mesma, o seu sogro é padrasto do marido e
também já teria sido flagrado pela sogra abusando da enteada. Em seguida,
relembrou outro episódio traumático em sua vida, de um abuso sexual extrafamiliar,
oferecendo resistência em falar sobre esse acontecimento:
Comigo já aconteceu quando eu era pequena, mas eu nunca contei nada para
ninguém [...] Eu era criança, não me lembro direito, era uma pessoa fora da
família, um adulto [...] Olha, antes, me marcava muito, mas, agora, Deus me
libertou, está no passado e acabou. Quanto mais você mexe na ferida mais
machuca10.
10
[grifo meu]
78
Daí eu fui procurar onde o meu menino tava, e, chamei, e nada, daí na casa
dela, chamei e encontrei ele sentado, na hora que ele me viu, ele ergueu a roupa
correndo, e o primo falou alguma coisa no ouvido do meu menino, e daí eu
perguntei para meu sobrinho, o que que era, ele não contou, e eu disse: “Olha,
79
vou contar para tua mãe”. E ele não contou, chamei a mãe dele, e ela deu uma
bronca nele, e passou, ficou por isso mesmo.
Daí um dia a gente viajou para a casa da sogra, e fomos tudo para o rio, e eu
tava deitada e de repente a cunhada chama. E “o que é que foi?”, então ela
contou que o meu outro sobrinho tava fazendo aquelas coisas com o meu filho, o
de nove anos, e ele tava de quatro, e de calça arriada. Acho que ele não
conseguiu fazer nada não, porque foi na hora que ela chamou. Na hora, minha
sogra começou a meter a boca, a brigar e tal, aí eu fui e falei “O que é que foi?”
e ela então falou para mim...
“Então você não vai contar para mim, nós vamos lá para a Delegacia e o
delegado vai fazer você falar, eu não tô te batendo, não tô te judiando”. Daí ele
me disse “Ah, ele fez isso, isso e aquilo comigo”.
Assim, mesmo após a revelação feita pelo filho, novas situações tornaram a
acontecer. Observei também que a mãe não identificava os possíveis sinais que
indicassem um novo abuso:
Quando foi um dia, eu estava estendendo a roupa e meus dois filhos estavam
sentados assistindo televisão, e chegou aquele meu sobrinho que morava de
parede e meia, perguntando pelo mais velho, e eu disse que ele não estava, e
então eu nem me toquei, terminei de estender a roupa e fui para dentro, quando
cheguei só tava o mais novo assistindo televisão, e peguei e chamei ele e não
respondeu, na hora que eu tava voltando para colocar a bacia, veio o meu
menino todo desconfiado, e falei para ele “Você não tem jeito mesmo, eu falo
com você e você não me escuta mesmo”, “O que que você tava fazendo?”, ele
respondeu “Eu não tava fazendo nada”, mas, você já sabia que ele estava
fazendo alguma coisa.
80
“Oh, não quero nem saber! Porque você deixa a vontade, você não cuida, e você
tá vendo e, não vem falar na minha cabeça não porque se eu perder a cabeça
não sei o que é que eu faço”.
Daí o meu esposo pegou, catou um fio e bateu no meu menino. Daí eu falei
“Meu filho não é assim, você não pode fazer isso!”, só que eu não conseguia
explicar para ele entendeu?. Daí começou de novo: “É porque você não cuida,
que não sei o quê”.
A partir do relato da Senhora Maria, o marido foi referido como uma figura
extremamente violenta, ainda que ela tentasse amenizar a situação, justificando a
atitude do pai contra o filho e atribuindo a este último toda a responsabilidade pelo
abuso sofrido; na verdade, permanecia em uma postura totalmente submissa e
passiva, diante do companheiro.
Sobre o envolvimento incestuoso entre os seus filhos, ela declara:
Envolveu outros meninos também, só o meu mais velho que não [...] Aí o meu
menino (de nove anos) que aconteceu essas coisas todas com ele, foi fazer com
o meu filho menor, que hoje tem sete anos. Eu escutava às vezes eles falando
bem baixinho e dizendo “Ah, a mãe vai ver, a mãe vai ver”. Era durante o dia e à
noite também e, aí, eu fui no posto de saúde, e contei tudo, e eles me
encaminharam para o Conselho Tutelar.
A minha impressão inicial foi de que a Senhora Maria tomou a decisão de pedir
ajuda às autoridades, a partir do momento em que se incomodou com o
envolvimento incestuoso entre a fratria, todavia, ao ser questionada se ela mesma
81
havia tomado atitude de denunciar, replicou: “Não, não fui eu que denunciei, foi o
posto, aí eu falei na escola também. A orientadora me chamou e eu contei” (sic).
Por conseguinte, constatei que, sem ajuda de outra pessoa, que a fizesse ver
ou ouvir e não negar o problema, provavelmente a Senhora Maria continuaria
perpetuando as cisões, negando ou rejeitando a realidade, em uma atitude
defensiva.
A respeito do motivo do envolvimento incestuoso entre a fratria, a genitora
justificou: “Porque descobriu o prazer antes, a infância sumiu, entendeu? Porque, se
você não sabe, não conhece aquilo, você não vai procurar aquilo, entendeu?” (sic).
Nessa perspectiva, conforme o relato da mãe, o fato do seu filho ter tido um
envolvimento sexual com os primos, culminou com a “descoberta do prazer” ligado à
genitalidade e à perda de uma espécie de “inocência” infantil. Em nenhum momento,
a mãe pareceu acreditar que o filho fosse vítima dos primos, mas, do seu ponto de
vista, houve uma relação não abusiva, de troca sexual, existindo um consentimento
entre eles.
Paradoxalmente, os envolvimentos com os primos e com os irmãos foram
vivenciados com muita culpa pela genitora, como se ela pudesse e tivesse a função
de evitar que isso ocorresse, ao mesmo tempo em que posicionou passivamente
diante da situação, sendo mesmo permissiva, em alguns momentos.
[...] porque se eu tivesse tido mais cuidado, sendo assim... mais protetora,
porque a função da mãe é ser protetora, e não só protetora, mas, amiga,
companheira, auxiliadora, não teria acontecido tudo isso, depois todo mundo
começou a falar que eu era a culpada, porque eu deixava à vontade e deixava
mesmo [...] Ah, se eu tivesse tomado mais cuidado, tivesse meus olhos mais abertos, e
se na minha infância eu tivesse tido uma orientação, uma conversa, acho que seria
diferente.
Nessa fala, a mãe parece mostrar uma maior consciência sobre a gravidade
da situação e do seu papel de proteção relacionando à falta de tudo isso em sua
história de vida. Ou seja, como ela poderia dar aos filhos aquilo que não teve?
Durante a entrevista, percebi também que a mãe exibia grande dificuldade e
inibição em pronunciar algumas palavras, como abuso, sexo, envolvimento ou
relacionamento sexual, sempre usando palavras como “isto”, “aquilo”, “quando
aconteceu aquilo”, “em relação ao... que você vai me perguntar”, não revelando
82
detalhes também sobre o que havia presenciado entre os irmãos ou os primos com
um dos filhos.
Tal característica acentua algumas atitudes rígidas e puritanas, em relação à
sexualidade, como algo sujo, proibido, um tabu. A própria mãe deixou claro que
possui algumas dificuldades em relação a conversar com os filhos aspectos relativos
à sexualidade: “Olha, muito difícil, antes eu não conversava muito com meus filhos,
em relação a.... ao que você vai perguntar (risos)...” (sic).
Sobre a convivência familiar, a vida social e a comunicação intrafamiliar, a
mãe teve um discurso sucinto, dando-me a impressão de que a família não se
relaciona socialmente com pessoas de fora, sendo fechada em si mesma. A
Senhora Maria também demonstrou grande rigidez quanto à sua religiosidade,
afirmando ser evangélica e frequentar a igreja assiduamente, atitudes que foram
percebidas, especificamente, ao evitar verbalizar sobre aspectos da sexualidade.
11
Nome fictício.
12
Nome fictício.
83
Gabriel-7
Mãe Léo-9
Felipe-12
13
Nome fictício.
84
Léo, que até o momento não havia se dirigido a mim, passou a tentar chamar
a minha atenção, perguntando se eu sabia fazer um envelope. Antes de minha
resposta, Gabriel se dirigiu até a mãe e solicitou que ela fizesse o mesmo para ele,
enquanto Léo, muito mais irritado com a atenção requerida, recebida da mãe pelo
irmão, reclama verbalmente e, naturalmente, desvia sua atenção de mim, passando
a brincar com o irmão.
Nesse momento, constatei que Léo detinha um lugar de poder dentro da
família, determinando algumas posições e funções dentro dela.
A mãe, que já permanecia distante dos filhos, mantendo apenas uma atitude
repressora, plena de impaciência e desinteresse, em certo momento recolheu a sua
cadeira até uma mesa distante, sentando-se de costas para os filhos.
Felipe, o irmão mais velho, ficou todo o tempo desenhando, sentado ao chão
e utilizando a cadeira como mesa, até que o irmão menor chamou-lhe a atenção,
dizendo que iria imitar o seu desenho, irritando-o. Percebendo sua irritação, os
irmãos se unem para debochar, referindo-se a ele como “Kiko” (sic), ou seja, uma
personagem do seriado “Chaves”, apresentado pela emissora SBT que, sempre
quando contrariado ou quando é enganado, recorre à mãe para defendê-lo.
Verifiquei que, no relacionamento entre a fratria, Léo e Gabriel,se
comportavam como um “duplo” ou um “clã”, isto é, exercendo uma função
fusionante, de indiferenciação um com o outro (DERBY, 2000).
Felipe permaneceu calado e demonstrou, apesar de ser o mais velho, uma
posição de submissão em relação aos irmãos. Após o deboche, convidou Léo a
jogar, com os lápis de cor, uma espécie de jogo “pega varetas”. Felipe recebeu como
resposta do irmão um “depois” (sic) e principiou a brincar sozinho, por um período de
tempo. Quando Léo aceitou brincar com o irmão, demonstrou ter vantagens no jogo,
não respeitando as regras, mas impondo a sua vontade. Por várias vezes, Felipe se
irritou com o irmão, proém suportou a situação, por certo tempo, até que o jogo se
encerrasse: “Vamos brincar de carrinho que é melhor” – determinou Léo.
Muito insatisfeito, Felipe tentou convencer o irmão mais novo e também
recebeu um “depois” (sic) como resposta. Optando por não insistir mais, passou a
brincar sozinho, novamente.
A mãe se conservou de costas, durante todo esse momento, virando-se
apenas para chamar a atenção de Léo ou Gabriel, por discutirem ou falarem muito
alto.
85
dá de volta, entendeu? Daí o irmão fala que, se ele deixa ficar batendo, fica pior do
que mulher” (sic).
No decorrer da conversa, Léo revelou sentir que é o menos amado pela
família, o motivo de muitos conflitos dentro dela, com grande sentimento de
inferioridade “É, minha mãe só dá mais pra ele (Gabriel) do que para mim! Mãe,
você não gosta de mim, não, porque eu peço as coisas, você não me dá e ainda me
bate!” (sic).
E a mãe, como não é sensível ao pedido de ajuda e afeto do filho, confirmou
praticamente que Léo, muitas vezes, se torna o bode expiatório da família: “Porque
você não obedece!” (sic). A entrevista se encerrou, quando a mãe confirmou que o
filho sempre reclamava para ela sobre a diferença entre o cuidado com ele e com
outros irmãos.
Com essa entrevista, por ser a primeira família abordada por mim, percebi
que ficara um pouco insegura com a situação de entrevista e pesquisa diversa de
um atendimento, concluindo que poderia ter interagido um pouco mais com a família,
perguntando-lhe, inclusive, sobre o motivo de terem sido encaminhados à instituição,
o que me daria abertura para ouvi-los sobre o envolvimento incestuoso entre a
fratria, como aconteceu com as entrevistas posteriores.
Portanto, ao longo da aplicação das entrevistas, os procedimentos
metodológicos foram tomando uma forma mais padronizada, facilitando o alcance do
meu objetivo.
Léo me respondeu com uma pergunta: “Você sabe por que eu tenho esse
negócio (cicatriz) na testa? Eu caí da cama do hospital, e a mãe não contou nada
para a médica! Eu chorei um monte!” (sic).
Indaguei quando isso ocorreu; a criança retrucou que foi logo que ele
nascera, conforme sua mãe lhe havia contado. Percebi grande sentimento de
rejeição descrito por meio das atitudes de negligência da mãe, além de relacionar
esse fato a todos os abusos sexuais sofridos, ou seja, a mãe não tomou
providências a seu favor, causando-lhe um sofrimento ainda maior.
Aos poucos, perguntei para a criança se sabia o motivo do seu
encaminhamento; revelou, com grande tristeza, o fato de ter sido vítima de abuso
perpetrado por dois primos adolescentes, apesar de não se lembrar de quando ou
como isso teria começado, “porque eles mexeram comigo” (sic).
Quando quis saber se havia acontecido mais alguma coisa, ele me disse:
“Porque fiz isso com o Felipe” (sic), expressando, no seu olhar, intensa culpa, o que
pode ter sido compreendido como uma atitude abusiva.
Durante a entrevista, Léo não declarou ter feito “isso” com o irmão Gabriel e,
quando questionei se o “mexer” também havia ocorrido com mais algum irmão, ele
me negou.
Léo também me confidenciou compreender que quem teria maior problema
na família era ele, “[...] porque bato nos meus irmãos” (sic).
Durante essa entrevista, percebi o pedido de ajuda da criança por uma mãe
que tomasse providências acerca das situações de abuso vivenciadas por ele, as
quais lhe foram negadas até o momento em que isso passou a acontecer, dentro do
próprio núcleo familiar, entre os membros da fratria.
A criança não encontrou, na mãe, uma pessoa de confiança. Ferenczi
(1932/1992, p. 103) salienta que, nessas ocasiões, as relações com a mãe não são
“suficientemente íntimas para que a criança possa encontrar uma ajuda junto dela”.
O autor descreve algumas consequências da situação abusiva, para a
criança: o primeiro movimento seria a recusa, o ódio, a repulsa, uma resistência
violenta; posteriormente, a identificação com o agressor, pois ela ainda não possui
uma estruturação física ou psíquica para reagir contra a força e a autoridade de um
adulto (ou, neste caso, de um primo mais velho), originando um estado confusional
que a faz submeter-se à vontade do outro.
89
14
Nome fictício.
90
que estava: “Da última vez que eu vim não tinha este jogo. Vamo brincá com ele?”
(sic).
Felipe estava atento a todas as modificações ocorridas na sala de
atendimento, desde a última vez em que estivera comigo, achando um novo jogo em
cima de minha mesa (“UNO”), que iniciamos a jogar e a conversar.
Felipe parece ter tido a confiança em mim, para me relatar novas situações de
abuso que não haviam sido contadas por nenhum outro membro da família, até o
momento. Ao questionar se os pais sabiam o que havia ocorrido com ele,
respondeu:
91
15
- Um dia, ela pegou e falou assim: “Que que o Juca fez com ocê?”. Daí eu
disse: “Não vou falar, senão a senhora vai me bater”. Depois eu falei “Ô, mãe! o
Juca fez isso, isso e isso!” (Felipe)
- E a sua mãe te bateu? (pergunto)
- Não. Ela pegou e procurou a tia do posto. (Felipe)
- E sobre o Léo, o que você sabe que aconteceu com ele? (pergunto)
- Ele gosta de passar a mão nas coxas dos outros. (Felipe)
- Ele já fez alguma coisa com você? (pergunto)
- Quando eu tava dormindo, ele arrancava a roupa e fazia comigo do jeito que o
Juca fazia. (Felipe)
- E o que ele fazia? (pergunto)
- Colocava o pipi na minha bunda e eu não acordava, pensava que tava
sonhando. (Felipe)
- E você acha que já aconteceu com outros irmãos também? (pergunto)
- O Gabriel é esperto, ele acorda quando faz isso com ele. Ele pegava e brigava
com o Léo. (Felipe)
- O Léo já te ameaçou? (pergunto)
- Ele pegava e falava “Cê tira a roupa, senão eu te bato”. Quando eu tava
sozinho, ele fazia, ele mandava, e eu pegava um pedaço de pau, “Cê não ficar
quieto, eu pego meus colegas da escola para te bater”. (Felipe)
- Vocë pegava um pedaço de pau para se defender? (pergunto)
- É. (Felipe)
15
Nome fictício.
92
Felipe parece se identificar mais com o irmão mais velho, o único que foi
totalmente elogiado por ele
Notei que, assim como Léo, Felipe trouxe uma história de negligência da mãe,
configurando seu pedido de ajuda por uma mãe que tomasse providências mais
eficazes e com maior rapidez, assim como nas constantes situações abusivas
vivenciadas por ele.
Felipe, diferentemente de Léo, alterna entre o seu pedido de providências à
mãe e sua atitude de “aceitação” da forma como está e como ela é, dando-me a
impressão de que isso está mais ligado à sua carência afetiva e ao medo da perda,
quer dizer, mesmo na falta de uma mãe que desempenhe adequadamente sua
função de proteção e cuidado, ela é aquela que o alimenta, de quem ele depende.
- Ô tia, eu vou contar um negócio pra você, mas você não pode contar pra
ninguém: esses dias atrás, o Lino16 tava baixando as calças do Léo lá em casa.
(fala baixo.
- E quem é Lino?(pergunto)
- É um moleque que tava lá em casa! (Gabriel)
- É primo? (pergunto)
- Não! (Gabriel)
Gabriel me contou que Lino era uma criança de aproximadamente nove anos,
que passou um período em sua casa sob os cuidados de sua mãe (em troca de uma
mensalidade). Pelo relato da criança, percebi que Lino era um garoto que fora
abandonado pela mãe quando pequeno e ficava na casa de Gabriel, enquanto o seu
pai trabalhava muito. Lino era agressivo, falava palavrões e provocava todos os seus
irmãos, chegando a ameaçar e abusar sexualmente de Léo e do próprio Gabriel.
- Eu tava fazendo de conta que eu tava fazendo xixi, assim, e oia lá , quando eu
olhei: “Te peguei no fraga, né, Lino?” (Gabriel)
- “O que que foi? Se você contar pra sua mãe, eu vou te matar” (Gabriel
reproduz a fala de Lino)
- Daí o Léo falou assim: “Seu viado!”, e o Lino falou assim: “Não me xinga de
viado, não, hein!”.(Gabriel)
Segundo Gabriel, a situação foi revelada para a mãe, que não tomou
nenhuma providência eficaz: “[...] daí minha mãe pegou e contei tudinho pra minha
mãe daí minha mãe foi lá e brigou com o Lino, e o Lino levou bronca” (sic).
Gabriel mostrou dificuldade em contar que também fora vítima de Lino, e só
confirmou a situação após abordar o envolvimento incestuoso com o irmão.
- [...] E quando ele (Léo) fez isso (abuso), ele mandou você ficar quietinho e não
contar pra ninguém? (pergunto)
- Ele não, mas, o Lino sim! (Gabriel)
- Quem? O mesmo que abaixou as calças do Léo? (pergunto)
- Ui! Fala baixo! (Gabriel)
- Então ele também fez isso com você?(pergunto)
- Huhum (Gabriel)
- [...] mas, como é? Deixa eu entender? A mamãe cuidou do Lino antes do Léo
fazer isso com você?(pergunto)
16
Nome fictício.
94
(concorda)
- O Lino fez isso com você primeiro? (pergunto)
- Não, o Lino fez em segundo! (Gabriel)
- Teve mais alguém sem ser o Lino e o Léo? (pergunto)
-Não! Foi só o Lino e o Léo. (Gabriel)
- “Eu vou deitar que eu tô com sono” – e eu fui deitar pra dormir e ele (Léo) foi lá
e “pruuu”... (som)
- O que é pruuu?(pergunto)
(Faz um gesto de ato sexual)
- O que é? (pergunto)
- Aquele negócio que eu te falei agorinha! (Gabriel)
- Você não explicou o que é “besteira”... (digo)
- Tirar o pipi e... (fala muito baixo)
95
Gabriel pegou duas espadas de brinquedo, entregou uma para mim e fingiu
um duelo com o seu algoz: “Você não vai conseguir me matar! Você vai morrer!”
(sic), externalizando toda a raiva sentida, simbolizada na luta de espadas que
passou a travar comigo.
Gabriel também brincou comigo, simulando um sequestro; brincou de polícia
e ladrão, de sorte que compreendi seu desejo de vingança, em uma atitude de
querer “fazer justiça com as próprias mãos” (sic) pelos abusos sofridos.
- Então, você não pode fazer justiça com próprias mãos? (pergunto)
- Não! (Gabriel)
- Mas, às vezes, você fica com vontade, né? De bater no Lino... (pergunto)
- Ah, eu fico com vontade, eu quero catar ele, eu quero catar ele, quero bater,
“arf arf!” (fala com muita agressividade). (Gabriel)
96
- [...] Eu vou fazer, eu vou fazer! Eu vou fazer uma justiça contra o Lino, eu vou
fazer um veneno pro Lino, pro Lino morrê! (Gabriel)
- Então, você está com muita raiva dele? (pergunto)
- Eu não gosto dele! (Gabriel)
- Do que você tá com raiva: pelo que o Lino fez com você ou com o Léo?
(pergunto)
- Pelo que o Lino fez com o Léo e comigo também! (Gabriel)
- [...] Os dois! (Gabriel)
-[...] É! Eu quero catar ele e matar ele, Ôô, matar não! Encher ele de murro na
frente do pai dele! Porque esses dias atrás era pra minha mãe tá com cem reais
e o pai do Lino não quis pagar!
PAI MÃE
39 a + 33a*+
17
Sobrenome fictício
98
Legenda:
Relação Incestuosa:
Vítima de abusos sexuais: *
Vítima de violência física: +
Idade da ocorrência do abuso: -
Separação:
[...] Então o dinheiro que ele pegava, ele gastava no bar, com bebida, com
mulher. Ele teve doze filhos, só que sobreviveu só oito, né?
Portanto, Josiane relembra com tristeza sua infância com um pai alcoolista,
promíscuo e que a rejeitou, em seu nascimento.
É, eu gosto do meu pai, mas não foi um pai assim de exemplo [...] Ele sempre
bebia, não era um pai presente, ele me deu pros outros.
18
Nome fictício.
99
Ah, eu ia namorar, fazer essas coisas assim, e eu não podia fazer nada, que ela
saía ficava gritando e xingando [...]
Eu não queria que fosse assim, né? Eu queria que fosse diferente, que ela
chegasse e sentasse e conversasse comigo. Eu tava namorando escondido e
ela ficava “Ah, não sei o quê...” Eu tinha vergonha, queria que ela fosse
diferente né? Ela não conversava comigo.
Aos seus quinze anos, Josiane sofreu um estupro praticado por um vizinho,
casado, amigo de confiança da família, especialmente da mãe. Esse fato nunca foi
revelado para os familiares, de maneira que Josiane continuou convivendo com o
assédio do agressor até a idade adulta e pelo período em que esteve casada.
É, ele ficava falando: “Se você denunciar, eu vou te matar”, e daí eu não contei
pra minha mãe, não contei pra ninguém, daí duas vezes aconteceu de ele vir
atrás de mim, puxava a minha camiseta, eu corria dele.
Então pode ser que eu não era mais virgem, não [...] uma vez que minha mãe foi
pra igreja (pausa) e a minha calça tava abaixada, sabe? Até assim (joelho)... Daí
ela chegou e eu tava dormindo, e eu não lembro de nada, e acordei com ela me
batendo, eu nem sabia o que tava acontecendo. “Você não presta!”, eu nem
sabia o que tava acontecendo, agora não sei! [...] Olha vou ser sincera com
você (pausa), eu imagino ou o meu irmão, ou o meu pai. Por que quem pode
100
ter feito isso? Eu acordei com ela me batendo! Me chamando de sem vergonha,
de safada.
Foi assim, eu era criança e ele era adulto, e a gente brincava e eu não tinha
seio, só que tava começando, sabe? Eu lembro que ele pegava, sabe? [...] Não
sei por que, minha outra irmã falava que ele sondava ela, ficava espiando ela
tomar banho. Ele mexia com ela [...] já aconteceu da minha irmã com o meu
irmão.
Ah, não sei! Eu penso assim: ela sabe o que aconteceu e não quer admitir
(sobre o episódio em que acorda apanhando de sua mãe) [...] Daí ela (a irmã
101
que viu o abuso da outra irmã) tentou contar pra minha mãe e ela disse: “Ai,
vocês não prestam, vocês são sem vergonha, é mentira de vocês”. Então, a
minha mãe nunca deu atenção, por isso que eu acho que teve sim essas coisas.
Daí depois eu casei, só que foi um casamento forçado, porque eu casei grávida,
né? Aos 17, eu engravidei. E minha mãe ficava com vergonha, porque “Ah, uma
mãe solteira em casa”, entendeu? Só que eu gostava dele [...] Daí, minha mãe ia
lá e ficava falando, e falou que eu tinha que casar na marra, “Ah, não aceito filho
meu engravidar a filha dos outros” (sic), daí acabamos casando. E ficamos
juntos.
É, eu gostava dele, mas, eu não queria casar assim, a gente vivia brigando e ele
me batia também [...] Ah, ele não gostava que eu saía pra nenhum lugar, era
ciúmes, né?[...] Ele me batia, me dava soco na boca. Ele me dava soco na boca
aqui, ele era bem bravo.
Não queria saber de mais nada. Não sei como tive força de ver ela, porque, olha,
muito difícil [...] Culpa demais, se pudesse voltar pra traz eu voltaria... e começar
tudo de novo, porque, se é hoje, eu não faria de novo! Me arrependi bastante,
não faria novamente.
[...] meu pai que me ajudou a ficar com ele. Daí minha mãe descobriu, não sei,
foi lá, armou um barraco, ela pegou um cabo de vassoura pra me bater dentro da
casa dele. Porque ela não queria, “Ah, porque ele já foi casado um monte de
vezes, tem filho”.
Ah, mãe, não tem nada a ver, ter filho e essa coisa e tal. E depois no comecinho
foi bom, e depois que começou o inferno!
19
Nome fictício.
20
Nome fictício.
21
Nome fictício.
22
Nome fictício
23
Nome fictício
103
Olha, eu tenho tanta sorte, eu sou uma mulher de sorte que só arruma homem
bravo [...] Ah, ele pegava faca pra tacar na gente [...] Na hora que eu entrei, ela
já pegou o facão, já queria me matar e já queria matar a irmã dele, a irmã dele
com três crianças pequenininhas, sabe.
Uma vez, ele deu um soco ni mim... outra vez... ele me deu uma pisada... outra
vez.... ele machucou a minha boca assim... outra vez, um murro no filho... (Mais
silêncio). Da outra vez, ele, ficou chutando o meu filho até lá fora, ficou chutando
a bunda dele até lá fora [...] Ele me traiu um monte. Só que ele negava, né? Ele
não queria ficar sem me trair. Ele pegava a faca assim, tentava me matar com
martelo, e o filho dele também fazia arte, sabe? Fazia o que queria, eu não podia
fazer nada. Eu não podia abrir minha boca, e eu não queria que quebrasse as
coisas em casa e, se eu falasse, ele quebrava. Com a faca, ele já tentou matar
eu mais de cinco vezes, com martelo uma vez. Quando eu tava em depressão,
ele vivia deixando a janela fechada, e eu falava “Deixa a janela aberta que eu tô
passando mal”, e ele trancou a janela, trancou a porta, só pra mim passar mal,
ficou com a chave, e eu tive que aguentar. Eu não sei como eu aguentava cuidar
dos meus filhos, tava ruim da depressão e tinha que fazer tudo em casa, eu nem
aguentava ficar de pé, mas não tinha o que fazer, eu fazia de tudo pra não
chamar a atenção, tinha que fazer sexo na marra.
Nossa, eu era tão prejudicada (durante o ato sexual), eu estava tão prejudicada,
que tinha vez que eu tava fazendo e me dava vontade de fazer xixi (falou bem
baixo), ele me torturava, ele era bruto também.
Não, machucar não, mas, eu tinha muita dor, né? Quando eu sabia que eu ia ter
que fazer naquela noite, era terrível, viu!.
Eu me sentia igual quando eu fui estuprada, pra falar a verdade! [grifo meu]
Mesma coisa.
104
Uma vez a irmã dele me falou que o irmão dele beijou a boca da menina dela.
Mas, foi coisa passageira [...] Não foi coisa grave! Ele também é bem revoltado,
bem nervoso.
E o filho dele tava desobedecendo muito ele, e ele tacou a cabeça do menino na
parede. Só porque tava teimando.
Eles iam passear e eu nem pensava nessas coisas, sabe? A gente nunca acha
que essas coisas vão acontecer com a gente, né? Daí, meus filhos eram
pequenos [...] E o César falava assim: “Josi, deixa eu dar banho no Danilo?” Tá,
eu deixava, porque achava que era verdade, né?[...] É “deixa eu ajudar”, “dar
banho” e, eu acreditava, né? Daí, meu menino começou a fazer um com o outro
assim... Tudo assim, aquele sexo oral, e eu não achei normal aquilo, não era
105
normal, porque eu e o meu marido nóis não faz né? E, se fizesse não ia ser
perto de criança, no caso. E, como tá acontecendo isso, né? Daí eu falei pro
meu irmão mais velho, que hoje tá nas drogas, e ele falou: “Josi, fica de olho no
meu irmão (pai das crianças)!”. Só falou isso, não falou mais nada.
A suspeita de abuso sexual somente passou a ser cogitada pela mãe, quando
começou a observar o comportamento incestuoso entre os irmãos Danilo e Dennis;
mesmo assim, não soube lidar com a situação, chegando a punir os mesmos.
Novamente, observei a repetição do padrão abusivo, e Josiane atuou a
mesma cena (bater nos filhos), ocorrida em sua infância com sua mãe, não podendo
perceber, portanto, o abuso de seus filhos.
Eu descobri assim, porque o Danilo tava sentado em cima do sofá, uma vez, e
ele “batendo punheta” e chorava. E ele começou a chorar, chorar, chorar, e fazia
assim com o pipi [...] E eu falei “pára fio, de fazer isso!”, “por que você tá fazendo
isso?”. Mandei ele parar, brigar com ele e tudo. Daí depois ele começou, sabe, a
fazer sexo oral assim.
Ah, eu brigava com eles, falava que não podia, que isso não ia dar certo, mas
não resolvia. Eu já até bati nele, daí não resolvia, e eu procurei alguém para me
ajudar, né?
Ah, daí eu perguntei: “E daí? O que é que está acontecendo?” “Ah, o César
mandou chupar o pipi dele, mandava eu agachar, daí ele mandava eu pôr na
boca, mandava eu abrir a boca pra ele pra pôr”, daí ele começou a chorar,
chorar, e foi essas coisas.
106
Tenho. Nem sei como chegar nisso, eu tenho medo de falar, e falar errado,
então eu nem falo, meu medo é não falar direito, então eu não falo, porque não
sei...
O fato de “não saber”, conforme Josiane se expressa, significa que não houve
um aprendizado adequado em sua história de vida, pois ela própria possuía muitas
dificuldades em lidar com sua própria sexualidade.
Sobre o motivo do relacionamento incestuoso entre Danilo e Dennis, a mãe
verbaliza como se houvesse uma “tendência natural” para isso ter ocorrido entre
irmãos, não captando o sofrimento dos seus filhos.
Por eles (César e Dinho) terem feito com eles (seus filhos), né? Deles acharem
que podia, né? Você vê, é ao contrário, né? Quando eu fui estuprada, eu sentia
ódio da pessoa, talvez porque eu era adolescente, né? Eu queria matar o
agressor.
Daí ele pegou e foi falar um negócio pro Danilo. Foi assim, choveu nesse dia e,
eu falei: “Danilo não vai lá na terra, que a mãe não quer”, e ele tava comendo
com um prato de comida, daí ele deu um murro, deu um tapa assim (Danilo
confronta a mãe, não a acerta, age com agressividade). O pai ameaça: “Ah é?
Seu danado! Eu só não vou quebrar o prato, tacar o prato no chão com comida,
porque eu tô tentando me controlar, tá difícil! Tô cheio de problema, ainda mais
com problema e casa, uma hora não vou aguentar não, vai acontecer o pior”. Daí
ele pegou, e falou pro meu filho assim, ele mirou o dedo nele e disse assim: “Eu
tô te marcando, porque a hora que eu pegar você, ninguém vai aceitar você”. E
ele pegou e falou pra mim assim: “E quem entrar no meio pra separar, eu vou
deixar aleijado”.
24
Nome fictício
25
Nome fictício
108
Mãe Dennis-9
Danilo- 12
Danilo solicitou, por várias vezes, a atenção da mãe, ensaiando para ela
posições com o boneco, retorcendo-o várias vezes (cabeça e pés). A mãe continuou
observando e conservou-se sentada.
Em seguida, Danilo pegou outro boneco (bebê) e dramatizou uma situação
de o boneco maior dizer para o menor: “Eu vou te matar” (sic), começando a pisoteá-
lo, utilizando os pés do boneco.
- Fez um berço carro, aqui ele come, se alimenta e anda. (Danilo diz)
- É um bebê gigante. (Danilo diz)
- Olha o jeito que ele luta, faz exercício. (Danilo)
109
Desse modo, Danilo revelou que, mesmo sendo uma criança no período de
latência, possui carências afetivas comparadas às de um bebê, que precisaria ser
cuidado e nutrido.
A genitora, após um longo silêncio e observação, principiou a dar, aos
poucos, atenção aos filhos, inicialmente para Dennis, que revidou com uma atitude
inicial muito hostil.
- O Danilo falou que ele gosta mais da tia Valdirene26 do que da mãe! (Dennis
diz)
- É verdade? (pergunto para Danilo)
- É (responde)
Ao questionar a mãe sobre seu ponto de vista, esta manifestou com frieza a
aceitação de não ser a preferida pelo filho.
- Pra mim tá tudo bem, eu não me importo, se um dia eu morrer, eu penso que
ela vai cuidar deles para mim, e é até bom que eles gostem dela. (a mãe
responde com uma naturalidade que demonstra certa indiferença ou frieza).
- Mas, você não fica triste por não ser a preferida do seu filho? (pergunto)
- Eu não, eu acho que o amor a gente não pode forçar, a gente não pode forçar
ninguém a gostar da gente, igual no meu caso, eu era obrigada a fazer as coisas
que eu não queria com meu marido. Então, se ele não gosta tanto de mim, fazer
o quê?. (A criança permaneceu calada, escutando).
26
Nome fictício.
111
Compreendi que Josiane não conseguia assumir o seu papel e a sua função
de mãe, no contexto intrafamiliar, parecendo extremamente infantilizada, observada
no simples gesto de sentar-se na cadeira infantil, até o momento em que declarou
não brincar com os filhos, por sentir vergonha de a confundirem com criança:
Ambos revelaram que foram ameaçados pelo irmão mais velho, César,
“porque o César falava que ia me bater!” (sic) e, por isso, não contaram a situação
abusiva a ninguém.
Questionados sobre o envolvimento incestuoso entre eles, Danilo afirmou
ter-se esquecido, enquanto Dennis negou esse tipo de envolvimento. Mostraram
uma atitude muito resistente, inclusive com a postura de acusação da mãe:
“Aconteceu sim, eu via! Os dois ficava mexendo um com outro (mãe)”.
Expliquei para ambos que havia percebido o sentimento de vergonha e
tristeza, ao lembrá-los desses acontecimentos, ao que Dennis concorda – “é” (sic) –,
parecendo um pedido para que eu parasse de perguntar sobre isso. Em seguida,
Danilo começou a exibir o seu desenho, e a entrevista foi encerrada:
Danilo foi seletivo em minhas perguntas, de sorte que, quando não desejava
respondê-las, permanecia em silêncio.
A conversa se iniciou com perguntas sobre o seu encaminhamento e logo
me respondeu: “Meu irmão mexeu em mim” (sic), aparentando grande abatimento.
Deixei que a criança relatasse o que quisesse acerca dessa situação, mas ela
apenas disse: “E ele me ameaçou” (sic).
A criança não me revelou maiores detalhes sobre o abuso ocorrido, nem sua
autoria, isto é, sobre de que irmãos ele falava, porém compreendi, através dos
relatos na entrevista familiar, que ele se referia a César ou a Dinho, meio-irmãos por
parte de pai, o que parece ter causado maior sofrimento emocional.
No decorrer da entrevista, Danilo me fez um pedido: “Eu não quero mais
falar” (sic) – e este foi realizado em respeito à criança e ao entendimento de que a
lembrança e o relato lhe causavam grande mal-estar. Assim, passei o resto da
entrevista brincando com Danilo de carrinho, de blocos de montar e, nesses
momentos, ele interagiu muito bem comigo, mas não tocamos mais no assunto do
abuso, conforme o seu pedido.
Finalizei a entrevista agradecendo a participação da criança e me
despedindo dela.
PAI+ MÃE+
39 a. 36 a.
Legenda:
Aborto:
Relação
Incestuosa:
Vítima de abusos sexuais: *
Vítima de violência física: +
Idade da ocorrência do abuso: -
27
Sobrenome fictício
117
Só que a mais velha fazia o que queria, a mais nova fazia o que queria e eu não
podia fazer nada! [...] As minhas irmãs tinham mais liberdade do que eu.
28
Nome fictício.
29
Nome fictício.
118
[...] se não estudava, apanhava, se não fazia serviço, apanhava, se não fazia
direito, apanhava, se tinha roupa encardida no varal, apanhava, se tinha roupa
mal estendida, apanhava, se o arroz “tava” feito e não “tava” mexido pra ficar
soltinho, apanhava e tudo.
Por seu turno, o Senhor Armando descreveu a sogra como uma pessoa
“cruel” (sic) com a filha:
Eu acho cruel mesmo, porque o que ela faz com ela não faz com as outras. [...]
E as outras maltratam, as outras respondem, ofendem [...] Xingam, entendeu? E
ela trata as outras com muito mais carinho do que ela, que trata ela só com
carinho.
[...] ele era caminhoneiro. Aí, todas as vezes, até que ele telefonava, ele
conversava com todas e não conversava comigo, porque, sempre que ele
conversava com todas, quando ele ia conversar comigo, o telefone ia ficar mais
caro.
Disse-me que a sua infância foi muito feliz, com uma família muito unida, e
que até hoje todos os irmãos mantêm a rotina de visitar a mãe pelo menos uma vez
ao dia. Quanto ao relacionamento dos pais, “Ah, pra ser bem franco, né, nós nunca
“vimo” eles discutir” (sic).
O Senhor Armando afirmou ter apanhado muito, em sua infância, com cinta:
“Nossa Senhora, eu fui o que mais apanhava!” (sic). Entretanto, não descreve o fato
como algo negativo em sua vida, mas como uma forma de educação, comparando
muito a educação das crianças de hoje com a falta de limites e de valores morais.
Segundo seu depoimento, não havia nada de negativo em sua família ou em sua
história de vida: “Eu graças a Deus, em parte de família, de criação, não tenho nada
a reclamar” (sic).
Embora não tenha dito nada negativo em relação à criação e à educação
dada pela sua família, ressalto aqui que a situação de abuso ocorrida com a filha e
praticada pelos primos se restringiu aos parentes da família paterna.
O Senhor Armando casou-se com dezenove anos e a Senhora Ingrid, com
dezesseis. Houve um aborto aos cinco meses de gestação de um menino. Ambos
disseram que o filho não tinha sido planejado, mas era muito desejado. Após essa
situação, quatro anos se passaram, até que, depois de muita tentativa, ela ficou
grávida de Luiz, porém, teve complicações durante a gestação, tendo que ser
medicada para evitar um novo aborto. Esse filho, segundo o casal, foi muito
desejado, mas veio em um período de muita dificuldade, pela situação financeira do
casal, com o desemprego do marido. A esse respeito, a Senhora Ingrid conta: “na
gravidez do Luiz, eu comi muito arroz com abóbora madura” (sic). Além disso, ela
não contou para sua família o que estava passando.
Não, não queria contar pra ninguém. Então, guardava tudo pra mim, né, e
porque eu era, até hoje são muitas das coisas minhas, que eu não conto pra
minha mãe.
[...] agora a Lúcia que foi meio “anssim”, inesperada, fiquei “revortada”! [...] Foi
uma coisa que aconteceu, na semana que eu fiquei sabendo que “tava” grávida
eu ia pôr o DIU [...] eu tive de esperar, a primeira vez era uma menina, segunda
foi moleque, terceiro moleque, aí eu fiquei grávida, eu não queria aquela
gravidez, não aceitava aquela gravidez, ainda foi a minha sogra falou, aí se for
uma menina, você dá pra mim, minha sogra até hoje ela toca nisso, e a minha
pressão subiu, porque eu não queria ficar grávida mais e tá, foi o seguinte, pra
mim aceitar a minha gravidez [...] Eu chorava a gravidez inteira.
[...] a mãe dela só não se meteu no meu casamento com ela, porque da primeira
vez eu discuti com ela na porta de casa, não deixei ela nem entrar dentro de
casa...
Além disso, notei o conflito no relacionamento entre a mãe e o filho Luiz, com
uma situação de rivalidade entre mãe e filho, pois o pai se queixa da conduta da
esposa de “botar contra ele, entendeu?” (sic), uma vez que pai e filho se relacionam
bem:
Tô brigada com ele, porque ele já falou que não tem mãe, ele só fica me
maltratando, ele fala que não tem mãe, agora ele não tem mãe [...] Ele falou que
não tinha mãe, veio falar comigo, você não tem mãe! Eu não sou sua mãe, hora
que você aprender a me respeitar [...] Ele quer medir força, ele quer medir força,
sabe que ele olhou na minha cara e falou, eu quero ver quem vai ganhar nessa
guerra, se é eu ou se é você...
Eles me atormentam o dia inteirinho que Deus deu, eles não me deixam em paz,
tem coisa que eu obriguei ele deixar, então, quando eu falo, quando você for
sair, leva pelo menos um, e deixa dois comigo, porque dois deixando comigo, eu
consigo levar, o mais velho já não me obedece, aí ele fica, o mais novo fica, o
pai saiu, o que que vou fazer, não tem ninguém pra mim brincar, aí eu respondo:
“Enfia o dedo e fica rodando”.
- Ela se autodefende de tudo entendeu, ela tem uma barreira, que tudo que você
vai conversar com ela, muitas vezes, a respeito do Luiz, muitas vezes eu tento
conversar com ela. (Senhor Armando diz)
- A culpada é só eu, então eu já me culpo! (Senhora Ingrid)
Parece que ele tá batendo, conforme ele vai dar aquela cintada, vai arrancar o
couro, sabe, então eu não gosto de ver. (Senhora Ingrid)
Não é. É que eu apanhei muito. (Senhor Armando)
Mas eu não gosto de ver. (Senhora Ingrid).
Única coisa que esses dias o Luiz chegou e falou que “tava” namorando, “tava”
paquerando, né, eu falei cuidado com a filha dos outros, a filha dos outros não é
peteca, só isso que eu falava, falo pra ele, né, mas sobre as outras coisas, aí
igual esses dias eu falei pra ele, é você que tem que falar com ele, não é eu,
parte de homem com homem, agora com a Lúcia já é assunto meu, né, que nem
esses dias, ela olhou pra minha cara, mãe, que que é menstruação? Mãe, por
que que eu não tenho isso, mãe, por que que eu não tenho aquilo? [...] Ah, eu
falei pra ela, com o tempo você vai ter, mas ainda não tá na hora, ainda não
(relato da Senhora Ingrid).
evangélico [...] O J., um outro adolescente, vai tá com doze anos, aí ele pegou
esse J., foi , chegou lá e contou pra minha mãe, aí tia Lola, os moleques tão
falando que fez isso, isso e isso com uma menina, minha mãe disse que já
gelou, que sentiu que era parente, aí minha mãe falou assim, vai lá eles
convidando ele, vai lá e fala que você quer participar.
Ela, “Não, mãe, não é verdade”, aí eu fui e falei, “Ai, mãe, é mentira isso”, eu
também não acreditei, né? [...]
Ela falou: “Não, mãe!” Ai, filha, você tem certeza, ela falou não, eu fiquei
insistindo, então tá bom, “Vamo” fazer o seguinte então, se não aconteceu
mesmo, eu vou levar você no médico amanhã, se o médico fala que aí foi
mexido você vai apanhar, porque você não confiou na mãe, aí ela ficou “anssim”,
mexendo com as mãozinhas, com os pézinhos: “Mãe, mas se eu falar, você vai
deixar o pai me bater?”, eu já fiquei gelando, né, não, você tem que confiar na
mãe, você tem que falar, “mãe, mas o pai vai me bater”, eu falei, o pai não vai te
bater, aí ela pegou e falou quem tinha sido, aí ela contou.
Ela falou “anssim”, ai, é... o que ela falou? [silêncio] G. e o M. segurou ela e o I.
foi o primeiro, o G. tampou a boca dela, aí ela foi falando um por um.[...]
Dois segurava e um tampava a boca e o outro, aí quando o outro. Ela disse que
doía, doeu “tudinho”, aí só que aí os exames acusou que foi negativo, né, que
não aconteceu nada, né.
Pelo exame de perícia não ter sido positivo, mãe demonstra uma atitude de
minimizar a situação de abuso da filha e a violência sofrida, de sorte que os
sentimentos vivenciados pela criança passam a ser secundários.
Sobre a reação dos pais, o pai revela: “Ah, terrível, né, minha vontade era de
moer todos eles (sic)”, enquanto a mãe afirma: ”Nóis” nem acreditou na minha mãe”
(sic).
124
Ao questionar os pais como haviam lidado com Luiz, quando descobriu seu
envolvimento, a mãe revela: “Ah, o Luiz, eu dei uma surra nele, coloquei ele de
castigo” (sic), ao passo que a postura do pai foi a de não bater.
Ai, ela disse que ele também colocou nela, né, só que ele xinga ela de
mentirosa, que ela é mentirosa, que ela é isso, que ela é aquilo [...] Até hoje ele
nega!
A atitude de Luiz foi não admitir a situação de abuso, e a partir dessa situação
proibiram Luiz de permanecer sozinho com Lúcia, além de não ter levado mais a
criança para a casa da avó.
Sobre o motivo que teria provocado o envolvimento entre os irmãos, o Senhor
Armando enfatiza: “Ah, eu nesse caso aí, eu acho que foi mais assim, tipo coisa de
molecada” (sic). A mãe declara: “Maria vai com as outras!” (sic). Além disso, a mãe
justifica que seu filho Luiz toma medicamento desde bem pequeno, em virtude das
convulsões que teve, desde os quatro meses, quando foi diagnosticada uma
“irritação nervosa no cérebro” (sic), frisando também que ele tem “hiperatividade”
(sic).
O relato do genitor foi o de simplificar ou minimizar a situação vivenciada pela
filha como algo “de molecada” (sic), ou seja, algo natural e comum para idade, como
os jogos ou brincadeiras sexuais, não levando em consideração o sentimento da
própria filha.
Quando interrogados sobre como foram seus sentimentos, a fazer a denúncia
do próprio filho, o Senhor Armando revela: “Que eu falo sempre, né, não é porque
que é meu filho que eu vou passar a mão na cabeça” (sic,) enquanto a genitora
concorda e reclama da atitude dos outros pais, que acabaram protegendo os seus
filhos.
Sobre o relacionamento entre os irmãos, para eles, Lúcia e Luiz são como
“gato e rato” (sic), existindo muitas brigas entre eles, sendo que o pai aludiu à
existência de um tratamento diferenciado da mãe com Lúcia, em detrimento dos
outros.
Nesse sentido, durante a entrevista realizada, percebi o pai extremamente
resistente, esforçando-se em demonstrar uma imagem de “superpai”, com uma
“família de origem ideal” (sic), omitindo sua própria história e focalizando a da
125
esposa. Sutilmente, ele parece ter atribuído à esposa toda a responsabilidade pelo
ocorrido (situação de abuso da filha) em sua família.
Luiz Lúcio
Lúcia Armando
Ingrid
Expliquei para a família que eles teriam liberdade para interagir da forma
como quisessem, durante cinquenta minutos. Enquanto eu permanecia apenas
observando, a genitora decidiu quebrar o silêncio e, rindo, disse: “Tá todo mundo
com cara de santo, com coisa que lá em casa, tudo carinha de santo, de anjo!” (sic).
A mãe começou a delatar as brigas que os irmãos Lúcio e Lúcia tiveram, até
comparecerem à entrevista, focalizando também a atenção em Luiz, que se
conservou em uma postura bastante defensiva, dizendo em vários momentos: “Não
sei, sei de nada” (sic).
126
Ele (Lúcio) quer avançar nesse (no Luiz), e esse (Luiz) pega e bate nele (Lúcio),
daí eu já fico irritada e quero dar na orelha dele (Luiz).
Perguntei-lhes sobre qual dos irmãos tem mais afinidade e brincam juntos. e,
Lúcia respondeu que brinca mais com Lúcio, que também gostava de sair para
pescar com Luiz; entretanto, a mãe logo criticou os filhos, afirmando que ambos
chegavam muito sujos, não lavavam as próprias roupas e ainda as escondiam para
a mãe não ver; o pai denunciou as atitudes da mãe sobre os filhos: “Pó falar que
você briga, você xinga, você grita, você...”(sic), ao mesmo tempo em que Luiz
censura a atitude da mãe: “Vai! Fica falando dos outros!” (sic).
Em grande parte da entrevista, houve situações de confronto entre irmãos,
mãe e filhos, esposa e marido, com uma significativa falta de diálogo adequado
entre todos os membros:
- Vou te perguntar uma coisa: Você me respeita? (a mãe pergunta para Luiz).
- Não sei. Não sei de nada. (responde Luiz)
- Você não me responde? (a mãe pergunta para Luiz).
- Nem sei de nada... (responde Luiz).
- Agora você não sabe! (diz mãe).
127
Ele é bocudo, preguiçoso, essa semana ele foi estudar para prova, ele entra no
quarto e faz assim com a folha. (a mãe se refere ao filho Lúcio, na escola).
Em certo momento, a mãe passou a se queixar do pai, por deixar sob sua
total responsabilidade o acompanhamento do desempenho escolar dos filhos,
sobretudo de Luiz, levando em conta que ele não necessitava de seu apoio e
cuidado, por ser um “adulto”, conforme descreveu:
Dele (Luiz) é ele (pai) que vai... eu não vou assumir dele mais, porque no ano
passado mandaram eu tirar xerox das coisas que ele fazia no colégio e, mesmo
assim, ele falava que era mentira, então eu ia, e acabava participando,
participando dos dois (Lúcia e Lúcio) e ele (pai) participa dele (Luiz), que já é
adulto.
A genitora parece ter renunciado ao seu papel de mãe, com respeito ao filho
Luiz.
A crítica passou a se voltar contra o marido, que tentava de alguma forma
justificar para a esposa que, incessantemente, continuava a criticar suas posturas e
a conduta de Luiz; todavia, vendo que não havia uma compreensão, acabou se
calando.
Naquele momento, senti a necessidade de intervir, colocando para a família
que estava sentindo toda a entrevista como um grande tribunal com posturas de
acusação e defesa. O Senhor Armando riu em concordância, Luiz se esquivou – “Eu
não sei de nada” (sic), enquanto mãe tentou se justificar sobre a necessidade desse
acompanhamento escolar e o pai, já irritado, declara: E o que adianta eu ir? Não vai
MUDAR NADA! Não vai MUDAR NADA! (sic).
128
O genitor, por sua fala, mostrou uma renúncia ao seu papel com o filho,
deixando Luiz “livre” dos pais, sentindo-se no direito de fazer o que bem entendesse.
Observando que a mãe não oferecia oportunidade para os outros membros
da família exporem suas opiniões, controlando grande parte da entrevista, eu disse
que gostaria de ouvir Luiz e, principalmente, sobre o que ele achava do seu
relacionamento com a mãe. Frisei também que a minha posição não era de
julgamento, mas de compreensão e de contribuição para um melhor relacionamento
familiar.
Diante do silêncio do filho, a mãe outra vez se colocou, dizendo que Luiz
reclama que ela o “xinga” muito. Interrompi a fala da mãe, lembrando que gostaria
apenas de ouvir Luiz, sem interrupções. Luiz, um pouco inibido, recebeu uma
autorização do pai: “Pode falar o que a mãe fala de vocês” (sic); incentivei-o a falar,
inclusive se a mãe o xingava um pouco, e o adolescente respondeu ironicamente
“Pouco! Ah, tá!” (sic).
Luiz falou pouco e, apesar de dizer que a mãe era brava, evidenciou ter mais
medo do pai “Mais é do pai! Do pai eu corro!” (sic).
O casal conjugal parece falhar em suas funções parentais, em vários
aspectos, até mesmo no estabelecimento de uma hierarquia familiar. Por exemplo: a
mãe tentou se justificar, descrevendo situações de violência entre ela e o filho:
- Aquele ali se você for bater nele ele avança ni mim! (mãe fala de Luiz)
- Ele avança ni mim!... O dia que ele avançou ni mim eu enforquei ele! (mãe)
(sic)
- Ele vive me ameaçando, me ameaça: “Você vai ver, você vai ver”
tornando não mais vítima de suas irmãs, mas um algoz, com palavras, xingamentos
e agressões físicas, pela autoridade que hoje detém.
Um exemplo prático contado pela família seria o momento do jogo, quer dizer,
ainda que a genitora brinque com seus filhos, não consegue manejar as brincadeiras
de uma maneira mais madura, menos regredida.
- Ele adora dar educação, mas educação mesmo ele quase não tem! (mãe)
- Ele quer corrigir, ele quer educar, uma vez eu fui chamar a atenção deles aqui,
“mas, por que você tá brigando com o moleque?” e que não sei o quê, achando
ruim porque eu tava corrigindo o outro. (mãe)
130
- Nada... (mãe)
- Assiste tevê de vez em quando. (Luiz)
-E, na hora de almoçar? Vocês sentam juntos pra comer? (pergunto)
- Não! (Luiz, Lúcio, Lúcia e Mãe respondem todos juntos).
- [...] Esse aqui senta na cama dele, essa aqui senta na cama dela, esse no chão
do quarto assistindo televisão... (mãe fala sobre o almoço dos filhos).
- E esses dois na sala! (Luiz)
- Mentira. que eu como mais sozinha do que com teu pai! (mãe)
Durante toda a entrevista, Lúcio, quanto aos outros irmãos, preferiu ficar um
pouco alheio da família, brincando sozinho ou com os dois irmãos, colocando-se
muito pouco. Quando questionei sobre quem da família era o mais bravo, Lúcio
denunciou a sua posição na fratria e na família: “Pior, eu sou o mais bravo e o que
apanha mais” (sic).
A última etapa da entrevista consistiu em saber sobre o encaminhamento da
família ao serviço; assim, no momento em que perguntei a Lúcia o motivo que a
trouxe para os atendimentos, Luiz e Lúcio, que estavam jogando em silêncio, se
incomodaram e passaram a falar sobre o jogo, em alta voz: “Vai, Lúcio! (Luiz fala em
alta voz)”, ao que Lúcio responde: “Vai, eu já mexi esse aqui!” (sic).
Lúcia ficou um pouco constrangida, com os olhos marejados, e olhou para a
mãe, que a autorizou a falar: “Não é pra você chorar, é pra você falar!” (sic), Lúcia se
aproximou da mãe e disse em seu ouvido: “Fala, você” (sic), porém a mãe continuou
incentivando a criança a falar, segurou-a e ofereceu apoio para a filha.
131
Luiz, perguntado sobre o que ele achava que motivou toda a situação,
continuou em uma posição defensiva, repetindo: “Não sei” (sic).
A genitora acabou desabafando:
Aí ele fala deu confiar nele! Você acha que eu tenho condições de confiar nele
depois do que aconteceu? [...] Eu não confio nele nem em ninguém mais, em
ninguém, nem nele (pai), que não mexeu com ela eu confio... (mãe)
O que a gente tá percebendo aqui, Lúcia (estava jogando bola), senta aqui só
um pouquinho que eu vou falar agora, tá? Luiz e Lúcio, eu não estou aqui pra
julgar, mas pra ajudar vocês, e houve lá no passado uma coisa que quebrou a
confiança de todo mundo, e hoje a gente tá percebendo que a família... ela tá
unida. Que que vocês acham? (pergunto)
Luiz e Lúcio responderam que “não” (sic); o pai, que estava apenas ouvindo,
pediu que todos escutassem com atenção o que eu estava dizendo. A mãe
continuou falando sobre quebra de confiança:
Mas, antigamente, eu ainda confiava, tudo o que eles falavam pra mim, eu
acreditava, mas, depois que aconteceu, não confio, não acredito mais ... (mãe)
Eu não tô contra ele, mas, eu queria que ele mudasse o jeito dele, só isso! Eu
quero que ele cresça, ele tá com quinze anos e com uma mentalidade de
criança... (mãe diz, zangada)
Em vários momentos, tentei evitar o confronto direto entre mãe e filho, que, a
essa altura, estava literalmente “encostado na parede”, em uma posição defensiva,
repetindo: “não sei”. Percebi que essa postura irritava tanto a mãe quanto o pai, o
qual, já sem muita paciência, interroga o filho: “O que que é gostar pra você, Luiz?
(pai pergunta) “Ôooo, pai, ôo! (Luiz fica sem graça) (sic).
Logo em seguida, o Senhor Armando procurou colocar para o filho o seu
exemplo: “Igual o pai gosta da mãe, o pai respeita a mãe, o pai conversa com a mãe,
o pai não ofende a mãe...” (sic) – e todos riem, demonstrando não estar de acordo
com esse relato de “superpai”, enquanto a genitora fazia uma expressão
questionadora: “Eu assustei com tudo isso” (sic).
De minha parte, principiei a dialogar com a família, dizendo que notara que
havia uma relação de carinho e afeto entre todos, porém, pedi para refletirem sobre
o que precisava melhorar. Todos, em comum acordo, afirmaram que as brigas
deveriam cessar e fazer imperar o respeito mútuo.
Questionei também se, com respeito à situação ocorrida entre os irmãos, já
estava resolvida para o pai: “Não é fácil não!” (sic), o pai respondeu.
Para Luiz, a mãe quis saber se ele estava envolvido no abuso ocorrido,
demonstrando que realmente estava negando a situação, como se fosse a primeira
vez que eles estivessem conversando, Luiz respondeu: “Não sei” (sic). A mãe
mostrou irritação com o filho e eu disse para a mesma: “Talvez ele não queira falar,
mas o “Não sei” diz muita coisa” (sic).
Depois disso, o pai perguntou: Você tá arrependido?(sic). Luiz respondeu
afirmativamente com um “Aham!” (sic), contudo, a mãe continuou insistindo para que
Luiz assumisse verbalmente, como se ela precisasse acreditar no acontecido e
disse, em um tom ameaçador: “Então você tava envolvido!” (sic), mas Luiz responde:
“Não sei!” (sic).
- Você não quer aproveitar e pedir desculpas? (pai diz, em um tom amigável)
- Tô quieto! (Luiz)
- Eu já pedi sim, mentirosa, eu já pedi! (Luiz)
- Mentira! (Lúcia)
- Então pede de novo! (pai)
- Que dia que você pediu que eu não tô sabendo? (mãe)
- Ah, faz tempo já... (Luiz)
- Ah, Luiz, não vem não! (mãe)
- Por que você não aproveita pra pedir? (pai)
- Desculpa! (Luiz)
- E o Lúcio? (pergunto)
- Eu já pedi já... (Lúcio)
- Então pede de novo! (pai)
- E agora, Lúcia, você perdoa os seus irmãos? (pergunto)
- O Lúcio não me pediu! (Lúcia)
- Eu pedi, sim, você não ouviu... desculpa! (Lúcio)
- E agora? Você desculpa os seus irmãos? (pergunto)
- Não sei! (e olha para mãe)
- Por que você olha pra mim? (mãe)
- Não sei!
- Não precisa olhar para a mãe, se você quer receber a desculpa ou não, você
precisa sentir no seu coraçãozinho. (digo)
- Você perdoa ou não os seus irmãos? (mãe)
Lucia concorda
- Ah! Sabe o que o professor falou, no colégio? Que muitas vezes, quando os
irmãos brigam, tão seguindo o caminho do pai e da mãe, que começa a discutir
na frente dos filhos. (Luiz)
- E tem isso em casa? (pergunto)
- Aham! Muitas vezes! (Luiz)
Pais ficam calados, apenas ouvindo.
- Então, às vezes o desrespeito começou antes e, dali, o desrespeito foi
aumentando, foi passando... (digo)
- Foi passando primeiro pra mim e pro Luiz! (Lúcio)
- Não que vocês estejam isentos de culpa, mas cada um tem a sua parcela, mas
que estava todo mundo assim, na falta de limite, de cuidado, o que você acha,
Ingrid? (pergunto)
- Fala, meu coração! (pai faz uma brincadeira com a mãe e todos caem na
risada)
- Quando que o pai ia pra igreja, era mais legal, agora que ele não tá indo mais,
ficou chato! (Luiz)
- Quando ele tava indo na igreja com a gente, a nossa vida melhorou da água
pro vinho, e ele parou de ir, quer saber da maior? Quando a gente passava na
rua, as pessoas falavam, que bonita essa família! (mãe)
- Até as mulheres que sentavam atrás da gente falavam que era bonita a família,
toda unida! (Luiz)
- Nós tudo cinco sentava num banco só! (mãe)
Vixi, da boca dela sai muita coisa! Ela xinga nós de capeta, demônio, um monte
de coisa.
Luiz falou muito do relacionamento familiar, com muitas brigas entre os pais:
No relacionamento da fratria, foi possível notar o fato de Luiz sentir que Lúcia
possui um tratamento diferenciado, recebe menos punição corporal e, ainda, acaba
provocando briga, para que os irmãos sejam punidos pela mãe:
- Igual esses tempos atrás, eu bati o meu pé no pé dela, começou a fingir que
tava chorando, daí ela foi e falou pra minha mãe, chorando, daí minha mãe
pegou e ralhou comigo, daí a hora que minha mãe ralhou comigo, ela já parou o
choro! (Luiz)
- Só minha mãe brigar comigo que ela para de chorar! (Luiz)
- Então, tem uma diferença no tratamento, você sente essa diferença?
(pergunto)
- Aham... (Luiz)
- A mãe com a Lúcia e a mãe com você, o que a gente pode comparar?
(pergunto)
-Tudo. (Luiz)
-Tudo é diferente? (pergunto)
- Sempre defende mais a Lúcia do que nós. (Luiz)
- É verdade que vocês não se entendem muito? (pergunto)
- Muito, não! (Luiz)
- Por quê? (pergunto)
- Sei lá! (Luiz)
A atitude da irmã com respeito aos irmãos foi compreendida por mim como
uma atitude de “revanche” ou vingança pelo ocorrido com ela, na situação abusiva
vivenciada. O adolescente também aludiu a várias situações conflituosas entre ele e
a mãe, e um distanciamento emocional muito grande desta.
Sobre o abuso, Luiz demonstrou grande resistência em falar: “Tinha que
chegar nessa parte? (sic) – me pergunta, calandose e apenas garantindo que foi um
pouco constrangedor conversar sobre isso perante a sua família, e que seus pais,
após a entrevista familiar, não tocaram mais no assunto.
137
Tentei investigar mais sobre o que motivou essa situação, porém Luiz apenas
declara não saber; entretanto, ao relacionar esse fato com o tratamento preferencial
por Lúcia, Luiz se cala e seus olhos ficam marejados:
Legenda:
Relação
Incestuosa:
Vítima de abusos sexuais: *
Vítima de violência física: +
Idade da ocorrência do abuso: -
Falecimento:
30
Sobrenome fictício.
31
Nome fictício.
32
Nome fictício.
142
[...] antes dela falecer, ela foi lá na casa da mãe dela e do pai dela (referindo à
atual esposa), que ela conhecia muito ela e gostava muito dela, e via a maneira
dela cuidar de criança, porque quem cuidava das crianças e dava aula pras
criança na Igreja era ela. Ela foi lá sem eu saber, ela também não sabia
(referindo-se à atual esposa), falou com os pais dela (aludindo ainda à atual
esposa) que, se ela chegasse a falecer, ela gostaria que eles permitissem que a
filha deles casasse comigo, pra cuidar de mim e dos meus filhos. Ela fez isso, eu
fiquei sabendo depois, depois que nós casamos que eu fiquei sabendo.
Portanto, durante a entrevista, foi possível perceber que Elza parece ter sido
designada, tanto pela sua própria família como pela falecida esposa do Senhor
Alberto, a ocupar o lugar de mãe.
Nós começamos foi na Igreja, que eu comecei, aí eu falei: “Mas quem que eu
vou arrumar pra cuidar dos meus filhos, eu não posso colocar qualquer uma na
minha casa”, que eu sei que perante a lei e perante Deus, a partir da hora que
eu fiquei viúvo, eu tenho liberdade pra eu arrumar quem eu quiser, ninguém me
impede disso.
Elza, pois, casou-se aos dezenove anos com um homem quinze anos mais
velho, assumindo todas as responsabilidades que lhe foram atribuídas e, inclusive,
sofrendo ameaças da família da ex-esposa do Senhor Alberto, que não aceitou esse
relacionamento: “Eu já recebia ameaça sem saber o que eu tava fazendo...” (sic).
Questionei Elza sobre ter sentido alguma dificuldade em se colocar nesse
papel de mãe, porém ela contou que já possuía essa experiência, em sua história de
vida, porque desde muito cedo teve que ser a mãe de seus irmãos. Nascida em uma
143
família rígida, com pais autoritários e extremamente religiosos, afirmou que sempre
assumira os cuidados da casa e dos irmãos, desde os sete anos de idade, enquanto
os pais trabalhavam: “É, tinha que seguir a risca se não eu apanhava né. Era da
escola pra casa e mais nada [...] É, eu que assumia e fazia o papel da minha mãe de
lavar, passar, dar banho nos meninos” (sic).
Em nenhum momento Elza se queixou de sua família de origem, salientando
viver até hoje em harmonia com ela, além de descrever a família como unida.
O Senhor Alberto também revelou ter crescido em uma família religiosa, com
pais rígidos, os quais empregavam castigos físicos aos: “Varada [...] Cintada,
cintada. Era fio de ferro” (sic). Em relação ao relacionamento familiar, o Senhor
Alberto lembrou que o pai era mais atencioso, de sorte que tinha maiores
dificuldades com a mãe: “A minha mãe, a lei dela era o chicote” (sic). Em sua
história de vida, destacou mais dois falecimentos de familiares – um irmão, antes
que ele tivesse nascido, e uma irmã, vítima de atropelamento, aos nove anos: “Tava,
tava segurando a mão dela, o carro pegou ela e eu fiquei” (sic).
Observei que a vida do Senhor Alberto sempre foi cercada de lutos mal-
elaborados, pois descreveu com detalhes que a família, muito religiosa, não permitiu
que ele sentisse a perda da irmã, tendo que compreender e aceitar “o que Deus fez”
(sic). No caso de sua primeira esposa, ela própria se encarregou de não deixá-lo
sofrer, preparando-lhe outra pessoa, sem que ele tivesse grandes possibilidades de
escolha, deixando-lhe um bilhete: “[...] tava falando pra mim que era pra mim ficar
tranquilo, porque aquilo que eu fizesse ela aprovava, porque ela sabia que eu não
poderia ficar só, eu tinha que arrumar alguém pra me ajudar a cuidar das crianças”
(sic).
Sete meses após o falecimento da esposa, o Senhor Alberto passou a namorar
Elza, enfrentando várias dificuldades na aceitação desse relacionamento pelos
familiares, pelos amigos e, sobretudo, pelo filho Rafael (adolescente na época), que
sofreu intensamente com a morte da mãe e expôs, por diversas vezes, que a
madrasta não ocuparia a casa que pertencia à sua mãe. Dessa forma, o casal
mudou-se para uma nova residência e os conflitos com o rapaz diminuíram
significativamente, quando Elza começou a trabalhar.
Rafael, com dezoito anos, por meio do relato do casal, aparentou ter uma vida
independente da família, de modo que este pode ser um dos motivos do seu não
comparecimento à entrevista. O casal pouco falou sobre esse filho, apenas
144
descreveu-o como diferente dos demais, possuindo alguns hábitos que não são
aceitos por eles e pela sua religião, como fumar e beber, além de não frequentar a
mesma igreja: “Só ele que não vai. O dia de nós ir pra Igreja é de quarta, sexta e de
domingo, que sábado não tem” (sic).
Segundo Elza, o marido sempre foi muito ausente em casa e com os filhos,
uma vez que trabalhava muito, o que foi amenizado com a perda recente de
emprego, permitindo uma convivência maior com ela e os filhos: “Agora não, agora o
nosso final de semana nós vamos no shopping, nós levamos as crianças no
shopping pra passear” (sic).
Em relação à comunicação intrafamiliar, ambos disseram que conversam muito
com os filhos. Quanto ao relacionamento entre a fratria, não apontaram nada de
negativo, mesmo com o nascimento da meia-irmã Ana; conforme o casal, a
aceitação desde o nascimento de Ana foi tranquila, sendo favorecida pela diferença
de idade entre eles.
Elza assumiu possuir algumas dificuldades em conversar sobre aspectos da
sexualidade com os filhos:
Bom, eu converso só o básico e por cima, porque eu não tive muito essas coisas
com os meus pais [...] quando eu menstruei, a minha mãe me ensinou, mas me
ensinou tudo do jeito dela. Não podia lavar a cabeça, não podia chupar sorvete,
não podia tomar suco gelado, sendo que, na verdade, pode, né? Então eu tinha
muito pouco, eu conversava mais com o meu pai [...] meu pai sempre falava:
“Então o namoro pra poder casar”. Meu pai sempre falava dessa forma pra
gente, e falava: “Sexo só depois do casamento, nunca antes”. Era essa conversa
que ele tinha com a gente.
Alberto não recebeu igualmente uma educação sexual adequada de seus pais,
porém, confessou tentar conversar mais com o filho mais velho sobre prevenção:
“Rafael, é assim, assim, assim, agora que você tá pegando essa idade, se você
for ter alguma relação com alguma jovem, não que é a hora”, falei pra ele: “Não
é a hora, mas, se for acontecer, você tem que se proteger, você tem que usar
camisinha certinho”.
tando quieto, alguma coisa errada tão fazendo. Então eu fui bem quietinha, aí eu
vi o Flávio com a Ana, a Ana sem roupa em cima do colo dele e ele passando a
mão e ameaçando ela, se ela contasse pra mim, ele arrebentava ela na porrada.
Aí que eu vi aquela cena, me choquei.
A partir da descrição dada por Elza sobre a conduta de Flávio, durante a cena
incestuosa, chamou-me a atenção as suas atitudes de ameaça, como se
sobrepujasse uma vítima, sua irmã.
Pedi que Elza descrevesse com maiores detalhes a cena incestuosa, mas
demonstrou grande pudor e vergonha:
Elza não soube lidar com a situação flagrada e acabou castigando os filhos,
Flávio, além de apanhar, chegou a ficar trancado de castigo: “Aí eu batia nele e falei:
’Você vai ficar de castigo, porque você fez isso com a sua irmã, você tem que
proteger a sua irmã de ninguém fazer isso com ela, você fez isso, não pode fazer
isso’” (sic).
Ana, por outro lado, devido à idade precoce concernente a sua fase de
desenvolvimento, não tinha a compreensão do ato sexual em si, sob o primado
genital, como foi erroneamente interpretado pela mãe. Assim, a atitude de punição,
de culpar a filha poderia ter agravado as consequências negativas decorrentes de
toda a situação: “Eu senti que ela, ela, sentiu, ela sabia que tinha que me chamar,
mas não me chamou pela ameaça, entendeu?” (sic).
Após Flávio receber as punições corporais da madrasta, apresentou marcas
visíveis de violência e a denúncia de maus tratos foi formalizada junto ao Conselho
Tutelar e à Delegacia:
Eu exagerei, eu sei que eu exagerei, mas quem que não fica nervosa num ato
que viu, na situação que aconteceu, aí eu peguei e dei uma chinelada nela e no
Felipe.
146
O genitor revelou não ter presenciado a cena incestuosa, mas notei que ele
se posicionou favoravelmente às atitudes punitivas da esposa sobre os filhos, de
sorte que ambos enfatizaram que o castigo aplicado teria sido a forma mais correta e
eficaz de educar os filhos:
[...] ela tinha um peixinho, pra você ver aí a ideia do Flávio, ela tinha um peixinho
no aquário, o Flávio foi lá e colocou algo pra matar aquele peixinho? [...]
Despejou um vidro de perfume dentro do aquário, matou o peixinho, ela
perguntou “Por que que você fez isso?”, e ele respondeu: “Foi por causa do que
que você fez comigo”, falou pra ela.
Não, é só ele fazer alguma arte, e a gente educar e fala: “Eu vou embora dessa
casa, ninguém gosta de mim, ninguém me ama”.
É isso é uma coisa que eu me pergunto até hoje. Saber o porquê e de onde vem,
porque, com onze anos, já vai aprendendo um pouco sobre o seu corpo, vai
conhecendo tudo... (Elza)
Porque a televisão mesmo, nós colocamos DVD’s de desenhos pra eles [...] e
sempre desenhos saudáveis. (Alberto)
Ô, a vó dele disse que pegou ele com o primo dele né, não foi? E antes de
acontecer em casa [...] ela contou depois, só que aconteceu antes, só que
aconteceu antes de acontecer com o Flávio e com a Ana. Aí disse que ela bateu
nele [...] Eu falei pra ela: “Mas, a senhora devia ter falado isso pra gente no
mesmo dia que ocorreu, a senhora vem contar depois, agora não interessa
mais”.
Flávio
Ana
Pai
Mãe
- Eu lembrei de uma coisa agora, que a Cristina disse pra gente ficar à vontade
e, nós fica à vontade: Super Nanny! (pai relata)
- Hahahaha! (todos em conjunto dão longas risadas).
- Estou parecendo a super Nanny? (pergunto, entrando na brincadeira).
- Está parecendo a super Nanny, só ta observando! (diz Flávio, e provoca risos
em todos).
148
- Uma coisa que em casa não tinha muito hábito... (pai começa a frase)
- É isso... (esposa concorda com o marido)
-... era na hora de comer (pai.
- Na hora da refeição, ficava um pra sala, outro no outro canto... (pai)
- ... um no quart...o (complementa a esposa)
- Daí a gente, depois que começou a ver, agora a gente, coloquei a lei em casa,
“hora de comer, não tem televisão, não tem rádio, não tem nada!” (diz o pai)
- Olha, que legal, pai! Olha o que a mãe conseguiu montar! (Flávio)
- A casinha do S. (cachorro da família) – (pai)
- Casinha do S.? Ahahaha! (Flávio)
- É, o S. não vai mais tomar chuva. (pai)
- Agora tem que fazer a rede! (diz Ana participando da montagem da casinha)
Disputa! E daí eu peguei pra acostumar, falei: “Vocês são dois irmãos, vocês
podem brincar um com o outro, mas, você tem que saber dividir o brinquedo de
um com o outro, ela pode brincar com o teu brinquedo, ele pode brincar com o
teu brinquedo e daí não dá briga, todo mundo pode brincar com o brinquedo”.
Porque eles são assim, se isso aqui tiver aqui, ninguém tá se importando, tudo
bem, daí vem o Flávio, ou vice-versa, e, daí “Ah, que bonitinho, uma janelinha”,
“Ah, eu também quero!”. Tava lá, ninguém viu e ninguém se importava! ....
- Então começa as disputas aí!
[...] Se eu comprar alguma coisa pra ela, eu também tenho que comprar pra ele,
senão a casa cai! Uma beleza, brinca muito bem, mas, nessa parte!
- Eu sei! (Ana)
- Você sabe? (pergunto)
- Porque nós brincar! (Ana)
- Nós tá brincando? Haha... (Flávio ri do comentário da irmã)
- Será que tem a ver com brincar só? Flávio, o que você acha? (pergunto)
150
- Ah, por causa de umas coisas que a minha mãe falou que eu tava fazendo, e
minha mãe não gostou! (Flávio fala muito rápido)
Por causa que eu tava fazendo umas coisas com a Ana, daí minha mãe não
gostou e pegou e pôs eu de castigo! [...] Daí meu pai pegou e conversou comigo
e falou que não era mais pra mim fazer isso, e aí eu prometi que não ia fazer
mais isso.
A impressão inicial, que me foi passada pelas afirmações de Flávio, foi de que
ele não teria assumido a situação incestuosa como abusiva, caso não tivesse sido
descoberto e sofrido uma punição.
Ana explicou seus sentimentos por meio de outra situação, em que sentiu que
o irmão “estragou” a sua brincadeira, principalmente quando fez um uso mais
abusivo de poder e força de Flávio, culminando com a busca da proteção da mãe.
Questionei a mãe sobre o que ela havia percebido com respeito à filha, no
momento da cena:
Na hora que você chegou e presenciou tudo, você percebeu que a Ana não
estava gostando ou não? (pergunto)
- Não, nessa hora eu nem reparei. (responde)
- Você acha que, naquela hora, ela teve a consciência de que aquilo foi algo ruim
ou... (pergunto)
- Com certeza! (mãe)
Elza tentou justificar sob o seu ponto de vista e, de acordo com os seus
sentimentos, a situação presenciada, explicitando que agiu impulsivamente com toda
a fúria, colocando-se no lugar de vítima, não sendo sensível aos reais sentimentos
da filha, desconsiderando, sobretudo, a condição de ambos enquanto crianças.
Quanto a Flávio, realizei um questionamento sobre a motivação do ato e, em
seguida, se havia aprendido isso com alguma outra pessoa. Flávio afirmou que havia
aprendido, todavia, teve grande dificuldade em verbalizar. Aos poucos, a revelação
de uma situação abusiva foi sendo colocada, durante a entrevista:
- Quem chamou quem pra brincar ou pra fazer essas coisas? (pergunto)
- Ele (Flávio diz timidamente, referindo-se ao primo)
- O que ele falou? (pergunto)
- Ele falou “Vamo brincar?”, e eu falei: “Vamo!” (Flávio)
- E o que ele fez? (pergunto)
(Flávio, nesse momento, começa a chorar)
- [...] Ele era mais velho e maior do que você? (pergunto)
(Flávio concorda)
- E o que ele te ensinou? (pergunto)
- Coisa que não presta! (Flávio)
- Então, ele te ensinou algumas coisas, “coisas que não prestam”, tem a ver
também com aquela palavra “putaria” que você disse?
(Flávio concorda)
- Ele te ensinou isso?(pergunto)
(Flávio concorda)
152
- Ô, pai, pode arrumar aqui? (Flávio pergunta ao pai sobre uma peça da casinha
que havia caído)
- E esse daqui?(pergunto)
- Não! Esse é mulher! (Ana)
- Como você sabe?(pergunto)
- Hihihihi! (Ana aponta e apalpa as genitálias dos bonecos, com vergonha de
falar)
- Ah, por que um tem uma coisa e o outro não tem? (pergunto)
- Hahaha!
- E o que você percebeu aqui que você ficou com vergonha de me falar? Que
menino tem pipi, é? (pergunto)
- É. (Ana)
- E menina tem pipi? (pergunto)
- Não! Ela não tem! (Ana)
- Você ficou com vergonha de falar isso pra mim? (pergunto)
- Huhum! (Ana concorda)
- Não precisa ficar com vergonha! (digo)
- Por quê? (Ana pergunta)
- Porque você pode falar o que é diferente um do outro! (digo)
-Você não bate, não? (Ana pergunta)
-Eu não bato não! (digo)
- Por quê? A mamãe bate, se você falar? (pergunto)
- Não... Eu não falo! (Ana)
- Ah, você não fala, não pode falar? (pergunto)
- Nããããão! (enfatiza)
- E se você falar? O que acontece? (pergunto)
154
Ana estava contando para mim, de forma conflituosa, sobre o que era
proibido, mas prazeroso, por isso optou por utilizar outros recursos, como os
bonecos.
Questionei-a se havia tido algum contato sexual com o irmão, visto que
apenas me mostrara que ambos estavam na cama pelados.
- Coloca ele! (pede para eu pegar o boneco e colocá-lo na cama)
- Coloca ele assim?... Você está com vergonha de me mostrar? (pergunto).
- Então ele fez assim, ele arrancou roupinha...(tira a roupa da boneca,
representando a si mesma)... Nããooo! (Ana grita, se altera e eu me assusto)...
Ahahaha! (ri de nervosismo)
- Você me assustou! (digo)
- Não, espera! (Ana pega os dois bonecos que representam ela e o irmão e os
faz beijar na boca, e depois larga os dois e corre para outro canto da sala com
muita vergonha.)
- O que foi Ana? (pergunto)
- Ah, arruma isso assim! (grita e fica irritada)
- E ele arrancou a roupinha dele também? (Ajo com naturalidade e pergunto)
- Não! Arrancooooouuu derrrr! (diz de forma agressiva)
(Ana abaixa as calças do boneco irmão)
- Então arrancou as calças! (digo)
- Arrancoooou derrrr! (Ana ficava envergonhada cada vez que eu verbalizava a
cena)
- Você está com vergonha de me contar, né? (Ana anda de um lado para o
outro)
- Achei onde você colocou a bonecaa! (Ana disfarça)
- Você está com vergonha de me contar, Ana, mas.... (Fico com os dois bonecos
na mão e, quando eu os largo, o boneco “Flávio” fica sobre a boneca “Ana”).
- É assim mesmo! (Ana está no outro canto da sala, olha para a posição em que
eu deixei os bonecos).
- É assim mesmo? Ele ficou deitadinho em cima de você? (pergunto)
- Aham! (concorda)
Gabel (1997) revela que, em criança muito pequena, uma situação de abuso
sexual perpetrado por alguém com quem possui grande vínculo (pais, padrastos,
156
irmãos, entre outros) pode ser aceita inicialmente como uma brincadeira secreta e
pouco a pouco, quando ela se torna maior, toma a consciência do acontecido.
No caso de Ana, por ser uma criança ainda na pré-latência, provavelmente
não tenha a compreensão total do que seu irmão lhe fez. A partir da consolidação do
superego, com uma estruturação psíquica mais completa, ela poderá ou não,
futuramente, manifestar alguns sintomas e precisar de algum auxílio terapêutico,
para lidar com o ocorrido.
Ana demonstrou estar ciente da razão por que os pais a haviam trazido e, por
meio do brinquedo e da fala, expressou seus problemas e revelou seus conflitos.
A respeito do relacionamento familiar, observei que os papéis familiares e as
fronteiras geracionais eram bem definidos e um pouco rígidos; para a criança, o
relacionamento pai-filha era um pouco mais distante do que o de pai-filho,
culminando com a afirmação de que achava que o pai gostava mais do irmão do que
dela. O relacionamento irmão-irmã era muito mais próximo e entre mãe-filha, apesar
de existir grande afetividade, também predominava o medo das atitudes repressivas:
Ana demonstrou o medo da perda (do abandono) dessa mãe que, em alguns
momentos, pareceu ser muito cruel com os filhos. A consequência decorrente do ato
incestuoso entre os irmãos foi extremamente traumática para a criança, muito mais
pelos castigos infringidos pela mãe do que o ato praticado pelo irmão, com quem a
criança possui um bom vínculo afetivo.
- [...] Por que você não contou nada pra ninguém? (perguntei)
- Ele falou se eu contasse pra todo mundo, ele ia me bater e daí eu fiquei quieto.
(Flávio)
- Então você foi ameaçado, na verdade... (digo)
- Eu não queria apanhar. (Flávio)
- Ah, a Ana me chamou assim e falou “Vamo brincar assim que eu era a mamãe
e você era o papai”? Aí eu falei “Vamo”! (Flávio diz)
- [...] Ah, a gente ficou fazendo as coisas que era errado! (Flávio diz)
- E por que era errado fazer?(pergunto)
- Porque não tá certo fazer isso, eu já pedi desculpa pra ela e prometi que nunca
mais ia fazer isso! (Flávio diz, demonstrando sentimento de culpa)
- [...] Ah, a minha mãe pegou a Ana tirando a minha roupa e eu tirando a roupa
dela! Daí minha mãe perguntou pra Ana e Ana não falou nada, perguntou pra
mim e eu não falei nada, daí minha mãe falou “Oh, ceis não falá eu vô batê no
ceis”. A Ana não falou e eu não falei, e a minha mãe bateu ni mim e bateu na
Ana também. (Flávio descreve)
- Eu fiquei brigado com ela, nossa, eu fiquei com raiva dela! Quando eu ia
dormir, eu nem falava “boa noite”. Eu ia só lá no quarto e falava boa noite pro
meu irmão, nem falava pra ela! (Flávio)
-[..] ela já me bateu de chinelo, que não fica marca, só que dessa vez ela tava
com chinelo do meu pai e bateu certinho, ficou marca! (Flávio diz)
- Por ela ser sua madrasta, você gosta bastante dela... (pergunto)
- Gosto.. ela conversa bastante comigo! Às vezes quando ela compra alguma
coisa pra Ana, ela não compra só pra Ana, ela compra pra mim também! (Flávio)
- Então você se sente amado por ela? (pergunto)
- Humhum. (Flávio)
- Você acha que ela gosta muito de você? (pergunto)
- Humhum. (Flávio)
5.1 A Comunicação
Cabe salientar que, durante as entrevistas, não houve outros relatos sobre
abusos consumados contra outros membros da fratria e da família. Não obstante,
sabe-se que, em uma família incestogênica, isso não é impossível. A família
Ferreira, por exemplo, apresentou alguns indícios de outra figura incestuosa: o pai.
176
6 SÍNTESE CONCLUSIVA
Por meio desta pesquisa, foi possível constatar que a temática sobre o
envolvimento incestuoso entre irmãos (crianças ou adolescentes) merece maior
destaque, em nossa sociedade.
A escassa literatura que aborda esse assunto tem apontado a necessidade
de ampliar a discussão, principalmente ressaltando as diferenças existentes entre os
comportamentos sexuais típicos e abusivos de irmãos.
Os autores estrangeiros pesquisados (FINKELHOR, 1979; WORLING, 1995;
RAYMENT; OWEN, 1999; OWEN, 2001; RAYMENT-McHUGH; NISBET, 2003;
WELFARE, 2008) são unânimes em concordar que esse tipo de incesto é
minimizado, no meio social, por ser erroneamente confundido com simples
brincadeiras sexuais, típicas da idade.
Finkelhor (1979) enfatiza que o incesto entre irmãos não deve ser
“romanceado” pelo estereótipo da inocente brincadeira sexual, pois um grande
número envolve diferença significativa entre as idades, implicando algum tipo de
coerção. Ele emprega o termo “tabu menor” (p. 89), para descrever que esse tipo de
incesto, o qual tem sido menos denunciado pela sociedade, se comparado ao
incesto pai-filha; este último parece desencadear um conflito familiar muito maior do
que com os irmãos, porque, pelo fator geracional ou pelo fato de tratar-se de
crianças e adolescentes, o primeiro parece causar menor impacto para indicar a
gravidade do caso.
Buscamos também descrever a estrutura familiar que sustenta esses tipos de
relacionamentos, apontando para uma família com característica incestogênica, com
a presença de confusão de papéis e gerações, bem como com a predominância da
lei do segredo. Observamos que a subjetividade tem-se configurado em um
ambiente de extrema violência, não facilitador para um desenvolvimento afetivo
saudável e com um discurso sobre a sexualidade a acentuar, nessas famílias, o seu
caráter de tabu.
Também identificamos como as situações traumáticas (de violência física e
sexual intrafamiliar) não elaboradas levam às transmissões psíquicas defeituosas,
entre as gerações, inaugurando uma cadeia traumática transgeracional
(TRACHTENBERG, 2005).
177
REFERÊNCIAS
CYR, M. et al. Intrafamilial sexual abuse: brother-sister incest does not differ from
father-daughter and stepfather-stepdauther incest. Child Abuse & Neglect, v. 26, n.
9, p. 957- 973, 2002.
FINKELHOR, D. Sexually victimized children. New York: The Free Press, 1981.
FREUD, S. (1897). Carta 69. In: ______. Edição Eletrônica Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
CD-ROM.
FREUD, S. (1905). Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In: ______. Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1975. v. VII.
p. 118-228.
FREUD, S. (1912a). Totem e Tabu. In: ______. Edição Eletrônica Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
v. XIII. CD-ROM.
MOORE, T. Casal de irmãos quer mudar lei alemã do incesto. Folha Online, São
Paulo, 7 mar. 2007. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u61517.shtml>. Acesso em: 17 jul.
2008.
OWEN, N. More Than Just Child´s Play: A Study On Sibling Incest. Children
Australia, v. 23, n.4, p. 15-21, 2001.
RAYMENT, S; OWEN, N. Working with Individuals and Families Where Sibling Incest
Has Occurred: The Dynamics, Dilemmas and Pratice Implications. In: Victims and
Offenders Conference convened by the Australian Institute of Criminology,
1999. Disponível em: http://www.sasian.org/pdf/owen.pdf. Acesso em: 20 jan. 2009.
TSUN, O. K. Sibling Incest: a Hong Kong experience. Child Abuse & Neglect, v. 23,
n. 1, p. 71-79, 1999.
APÊNDICE
187
Eu,____________________________________________________,RG________
_______________,conversei com Cristina Fukumori Watarai sobre a decisão de minha participação
neste estudo e também dos meus filhos/dependentes. Concordo que ficaram claros para mim qual a
importância da pesquisa, as garantias de sigilo, anonimato e o respeito quanto à participação de
todos, inclusive dos meus filhos/dependentes. Ficou claro também que a minha participação e a de
meus filhos ou dependentes não inclui despesas ou recompensas financeiras de qualquer natureza.
Sei ainda que é possível a desistência, a qualquer momento, sem que isso traga prejuízo no
atendimento prestado pela Instituição a que estamos vinculados e sei também que posso pedir
esclarecimentos sobre quaisquer dúvidas que eventualmente venham a surgir.
Acredito estar bem informada(o) a respeito do que li ou foi lido para mim. Concordo
em participar desta pesquisa e, como responsável legal pelos meus filhos/dependentes, concordo em
autorizar a participação dos mesmos, permitindo a divulgação dos dados obtidos em eventos, artigos
e na dissertação de mestrado.
______________________________________________________________
Nome e assinatura de um (ou mais) familiar responsável pelos participantes.
Declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido dos
participantes deste estudo.
______________________________________________________________
Nome e assinatura do responsável pela pesquisa
___________,___ de __________de _________.
189
ANEXOS
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