Estudo Sobre A Paz e Cultura Da Paz

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Outono-Inverno 2000

Nº 95/96 – 2.ª Série


pp. 33-42

Estudos sobre a Paz e Cultura


da Paz*

José Manuel Pureza


Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

* Intervenção proferida no âmbito do Colóquio “Prevenção de Conflitos e Cultura da Paz”, Instituto


da Defesa Nacional, Lisboa, Julho 2000.

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INTRODUÇÃO

Vivemos num tempo de incerteza. Não a incerteza das ansiedades


milenaristas que antecipam incontáveis tragédias, mas sim a incerteza
que advém de uma complexidade crescente do ambiente que nos envolve
e que tornou obsoletos todos os quadros intelectuais que se arrogavam
certezas inabaláveis sobre os caminhos da História. Incerteza significa,
portanto, abertura e não fechamento. Na verdade, como sublinhou Richard
Falk, “a actual noção de que a realização de objectivos e valores
conducentes a uma governação humana está bloqueada por forças polí-
ticas e ideológicas extremamente poderosas, não deve ser convertida em
resignação ou cinismo. O futuro permanece aberto a um amplo espectro
de possibilidades (l999: 183).
Nesta experimentação da incerteza, estamos todos convocados a reinventar
a política não mais como a arte do possível mas sim como a arte do
impossível. Muitos dos acontecimentos cruciais das últimas décadas – da
descolonização à solução pacífica de inúmeros conflitos, passando pelo
fim da guerra fria – constituem provas irrefutáveis de que resultados
desejados podem ocorrer mesmo quando todos os discursos científicos e
todas as formas dominantes de nacionalidade estabelecem que jamais
será assim. O impossível pode acontecer. Não por passividade expectante,
mas como resultado de compromissos e lutas sérios e continuados.
Ao proclamar o ano 2000 como Ano Internacional da Cultura da Paz, pela
sua Resolução 52/15, de 15 de Janeiro de 1998, e tendo então adoptado
uma Declaração e um Programa de Acção sobre a Cultura da Paz, a
Assembleia Geral das Nações Unidas associou-se a esta recusa de um
olhar fatalista sobre o futuro. Ao declarar que a paz é sempre possível e
que a violência é evitável, as Nações Unidas colocaram-se em oposição à
inevitabilidade da força e da política de poder como vias únicas. E, mais
ainda, sublinharam a necessidade de superar uma visão tecnocrática do
desenvolvimento sustentável. Porque a sustentabilidade não se traduz na
conservação do desenvolvimento nos seus fundamentos tradicionais
adicionando-lhe um ligeiro tempero ambiental; a sustentabilidade envol-
ve exigências de profundas transformações nos domínios social, econó-
mico e político que dotem os indivíduos e os grupos de uma base de
confiança e optimismo para olharem o futuro.
A centralidade da cultura da paz na ordem internacional não é uma
criação recente. Como lembra o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi

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Annan, na sua mensagem por ocasião do lançamento do Ano Interna-


cional da Cultura da Paz, “o principal mandato das Nações Unidas –
preservar as gerações futuras do flagelo da guerra – mantém tanta
validade hoje quanto no tempo em que essas palavras foram escritas, há
mais de meio século”. Mas, prossegue Kofi Annan, “a verdadeira paz é
muito mais do que a ausência de guerra. É um fenómeno que envolve
desenvolvimento económico e justiça social. Supõe a salvaguarda do
ambiente global e o decréscimo da corrida aos armamentos. Significa
democracia, diversidade e dignidade; respeito pelos direitos humanos e
pelo estado de direito; e mais, muito mais”. A UNESCO também herdou
este entendimento da paz como processo social e pessoal, ao estabelecer
na sua carta constitutiva que “dado que a guerra começa na mente dos
homens, é na mente dos homens que se devem construir as defesas da
paz”.
Sobre que é que assenta esta compreensão alicerçada da paz? Em meu
entender, a cultura da paz supõe, mais que tudo, uma dinâmica de
transformação e de conversão. O que significa que a cultura da paz
comporta não apenas uma mudança no modo como a chamada “alta
cultura” lida com a realidade mas, mais que isso, uma mudança na
maneira como o senso comum aborda as relações sociais. É, pois, um
novo senso comum (Sousa Santos, 2000) que a cultura da paz procura.
Sugiro que essa mudança intelectual é a que nos conduz da repetição
positivista à ruptura normativa. Analisarei muito brevemente esta dinâ-
mica e indicarei depois alguns tópicos materiais a que se amarra, em meu
entender, o novo senso comum alimentado pela cultura da paz.

O SENSO COMUM REALISTA

O velho senso comum realista foi segregado no processo de afirmação e


consolidação do sistema interestatal como forma política do sistema
mundial moderno. O realismo é uma expressão específica do clima
cultural do positivismo científico, que bebe nele a radical contraposição
entre factos e valores e atribui absoluta prioridade epistemológica aos
primeiros sobre os segundos. Imperativo é, por isso, para o senso comum
realista, captar as regularidades ou leis subjacentes aos factos e adoptá-las
como leis segundo as quais o sistema internacional deve funcionar. A
constância empírica adquire assim estatuto de verdade científica e de

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dever ser (Cox, 1981; Devetak, 1995; Pureza, 1999). Foram fundamental-
mente três, as representações do mundo que este senso comum empiricista
sacralizou como padrões de normalidade.
A primeira é a do individualismo estatal. O senso comum realista reduz
a paisagem mundial a uma vasta planície caoticamente povoada de
Estados (e apenas de Estados). E a leitura que o senso comum realista faz
dessa planície é fundada num contraste entre o que está dentro e o que
está no exterior dos Estados. No sistema interestatal vigora o estado de
natureza eterno, sem instâncias de monopolização da violência legítima
(“ni législateur, ni juge, ni gendarme”), pelo que cada Estado zela acima de
tudo pela sua segurança e sobrevivência recorrendo a todos os meios
incluindo a força, desafiado que está pelo dilema de segurança em que
vive a olhar suspeitosamente para os demais, como inimigos potenciais
e não como parceiros possíveis.
A segunda representação do mundo entronizada pelo senso comum
realista é a de que o sistema interestatal é um campo de luta pelo poder.
Toda a política é powerpolitics e a política internacional é-o obviamente
por excelência, assumindo o “interesse nacional definido em termos de
poder” como referência primordial. Na síntese de René-Jean Dupuy, esta
representação do campo de poder mundial assenta em três pilares essen-
ciais: dispersão do poder, incondicionalidade do poder e violência do
poder (Dupuy, 1986: 43).
Finalmente, a terceira componente do senso comum realista é a apologia
do eterno presente. Na sua busca de regularidades que permitam uma
interpretação da realidade internacional, o realismo olha obsessivamente
para o passado, na tentativa de “aprender com a História”, demitindo-se,
portanto, de pensar a transformação dessa realidade.
Este senso comum tem sido objecto de acesas críticas. Delas destacarei
apenas as de carácter metodológico. A distinção entre observação objec-
tiva e discurso normativo sobre a realidade, que preside a todo o discurso
positivista, é uma construção artificial. Ora, a epistemologia das ciências
sociais ensina-nos que não há factos sociais que se apresentem indepen-
dentes e superiores a um desarmado e asséptico observador. Todo o
trabalho de investigação em ciências sociais é trabalho de interpretação.
Por isso, a escolha entre uma metodologia normativa ou uma metodologia
empiricista é efectivamente uma escolha livre e conduzida por critérios
não factuais, ou seja, normativos. A aversão do senso comum realista aos
discursos normativos sobre a realidade é, pois, fruto muito menos de uma

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imposição de salvaguarda da autonomia dessa realidade do que da


vontade implícita de a manter como estrutura do sistema internacional.
Nesse sentido, o senso comum realista deve ser efectivamente assumido
como uma ideologia – uma ideologia conservadora, que legitima e
perpetua uma determinada configuração do sistema internacional e a sua
hierarquia (Pureza, 1998).

DA ETERNA REPETIÇÃO À RUPTURA NORMATIVA

As mais importantes propostas de ruptura paradigmática com este velho


senso comum filiam-se na contra-cultura política que a hegemonia adqui-
rida pelo estatocentrismo no sistema mundial moderno abafou. Uma
contracultura que cultiva a tese de uma sociedade global de pessoas, para
lá das fronteiras políticas dos Estados. Em Kant, o travejamento desta
linha de pensamento expressa-se na convicção de que a consciencialização
dos horrores da guerra fará emergir progressivamente os verdadeiros
interesses da humanidade e rejeitar o sistema de divisão em Estados em
que radica a origem da conflitualidade crescente. A solução do magno
problema da guerra e da paz reside, pois, na superação da cultura política
fragmentária por uma cultura de solidariedade humana transnacional.
Correntes como a dos estudos sobre a paz, que tem em Johan Galtung o seu
vulto de proa, vieram recuperar esta fundamentação e transformá-la em
projecto de acção.

Um conceito amplo de paz

Nesse sentido, a peace research parte de interrogações radicais sobre as


causas profundas do conflito e sobre a totalidade dos passos necessários
à sua superação, incluindo as exigências de reestruturação social, seja no
plano interno seja no internacional, que antecipem a ausência plena de
violência directa ou indirecta. Subjaz a esta agenda de investigação um
conceito amplo de paz. Galtung postulou-o logo em 1964: paz negativa
ou ausência de guerra e paz positiva ou comunidade humana integrada
e harmónica. Essa amplitude do conceito de paz vem em relação directa
com a amplitude conferida pelos peace studies à violência: para lá da
violência pessoal ou directa, existe a violência estrutural, resultante da
desigualdade de poder e da injustiça social. E ainda a violência cultural,

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aquela que se traduz no sistema de normas e comportamentos que


legitimam socialmente as duas anteriores.
Mais recentemente, Galtung sintetizou a amplitude do seu conceito de paz
na fórmula “Paz = paz directa + paz estrutural + paz cultural”. Fórmula que
viria a desenvolver em Peace by peacefull means, de 1996: “A paz positiva
directa consistiria na bondade física e verbal, boa para o corpo, a mente e o
espírito do próprio e do outro; seria orientada para todas as necessidades
básicas, a sobrevivência, o bem-estar, a liberdade e a identidade. (...)
A paz positiva estrutural substituiria a repressão pela liberdade, e a
exploração pela equidade, reforçando-as com diálogo em vez de imposi-
ção, integração em vez de segmentação, solidariedade em vez de frag-
mentação e participação em vez de marginalização.(...)
A paz positiva cultural substituiria a legitimação da violência pela
legitimação da paz na religião, no direito e na ideologia; na linguagem; na
arte e na ciência; nas escolas, universidades e media, construindo uma
cultura de paz positiva.”
A abertura do conceito de paz na obra de Johan Galtung veio a ser
ampliada em etapas ulteriores de desenvolvimento dos estudos sobre a
paz. Assim, de acordo com a síntese de Linda Groff e Paul Smoker (l996:
103), as décadas de 70-80 assistiram à afirmação da perspectiva feminista
do conceito de paz, centrada na abolição da violência praticada em
microestruturas sociais como a família. Na década de 90, autores como
Macy ou Dreher ensaiaram abordagens holísticas da paz, em que esta
surge definida como alternativa a qualquer forma de violência, seja
contra as pessoas seja contra a natureza (a chamada tese Gaia dos estudos
sobre a paz). Todavia, este percurso evolutivo do conceito de paz no
contexto dos estudos sobre a paz deve ser lido com alguma cautela. Vale
a advertência de Galtung: “a cultura da paz não é um conjunto de
representações pacíficas e não violentas da realidade. O teste de validade
de uma cultura da paz faz-se no modo como ela afecta o comportamento
num conflito.” Nesse sentido, Galtung defende que “a paz é a condição
para transformar os conflitos de modo criativo e não-violento. (...) A paz
é um contexto para uma forma construtiva de abordar um conflito (...). “

Um programa de transformação

O segundo traço de identificação dos estudos sobre a paz é a sua


dimensão prospectiva e normativa. De facto, os estudos sobre a paz

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assumem-se como estrategicamente orientados para a transformação


do sistema internacional em vista do estabelecimento prático dos
pressupostos de paz universal e perpétua, que servem de guia aos
próprios estudos. É assumidamente uma proposta de investigação-
-acção, policy oriented. Quer dizer que, para lá da investigação empírica
e da investigação crítica, Galtung e os seus seguidores cultivam a
investigação construtiva para a paz. “Os estudos sobre a paz são tão
semelhantes aos estudos sobre a saúde que o triângulo ‘diagnóstico-
-prognóstico-terapêutica’ pode ser-lhes aplicado”. Trata-se pois de
uma proposta de trabalho teórico e prático cujo objectivo é antecipar
os processos de formação de uma comunidade mundial autêntica,
como condição sine qua non da superação da crise global e da erradicação
dos potenciais de conflito que se evidenciam na sociedade internacio-
nal. Um trabalho teórico prospectivo e prescritivo: a paz global da
sociedade global é um valor-guia, desde logo para a própria investiga-
ção. Mas um trabalho igualmente prático: a formulação de estratégias
de concretização daqueles valores-guia é uma das etapas fundamen-
tais da investigação.

TÓPICOS PARA UM NOVO SENSO COMUM PACIFISTA

Que vectores vem a cultura da paz fazer desenvolver no processo de


construção de um novo senso comum sobre a realidade internacional?
Em minha opinião, são fundamentalmente três esses vectores de transfor-
mação/conversão: o primeiro é a substituição da territorialidade pelos
interesses comuns; o segundo é a substituição do etnocentrismo pelo
multiculturalismo; e o terceiro é a substituição das lealdades de proximi-
dade por uma cidadania cosmopolita.
A territorialidade é a referência maior da cultura política tradicional de
Vestefália.
“Le territoire c’est le pouvoir”, eis o lema de uma forma de organização
social baseada na fragmentação, na rivalidade e no adversarialismo, em
que a força e a violência são aceites como modos naturais de defender os
interesses e o poder individuais. Contra este senso comum tradicional, a
cultura da paz insinua a centralidade das preocupações comuns, a noção
de interdependência e a necessidade de parcerias activas para a gestão de
bens, espaços e recursos partilhados.

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A clivagem entre territórios prolonga-se na clivagem e oposição de


culturas. O etnocentrismo não se funda na diferença mas sim na crença na
superioridade e na dominação. Contra este senso comum tradicional, a
cultura da paz insinua a centralidade do multiculturalismo, a procura de
equivalentes isomórficos para os valores de cada cultura nas outras
culturas, a preferência por constelações em detrimento de homogeneidades
artificiais.
Enfim, a lealdade, experimentada como uma forma de pertença espiritual
(ou mesmo física) a uma entidade colectiva tem constituído um elemento
crucial do adversarialismo territorial e cultural. Contra este senso comum
tradicional, a cultura da paz insinua a centralidade de formas cosmo-
politas de cidadania, feitas de identidades múltiplas e sobrepostas e
cujo símbolo maior é o que Richard Falk chamou “cidadão-peregrino”
(l995: 95).
A paz só pode ser alcançada pelo comportamento quotidiano. É esta a
mais importante contribuição da proclamação do ano 2000 como Ano
Internacional da Cultura da Paz. Com esta iniciativa, a UNESCO e as
Nações Unidas tornaram claro que a paz não é apenas uma condição
política ou uma aspiração ética mas uma categoria moral e até cultural.
Por isso, eu gostaria de concluir citando o antigo Director-Geral da
UNESCO, Federico Mayor Zaragoza: “Para transformarmos uma cultura
da guerra numa cultura da paz, temos que mudar os valores, atitudes e
comportamentos do passado. Em vez do cínico provérbio ‘se queres a
paz, prepara a guerra’, temos que proclamar se queres a paz, prepara-te
para a paz e tenta construí-la na tua vida quotidiana”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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relations theory”, Millenium, 10 (2), 126-155.
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Falk, R. (l 995): On humane governance. Toward a new global politics,
University Park – Pennsylvania, The Pennsylvania State University Press.

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Falk, R. (l 999): Predatory globalization. A critique. Cambridge, Polity Press.


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Sousa Santos, B. (2000): Crítica da razão indolente. Contra o desperdício da
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