Ebook Fraturas Expostas Pela Pandemia
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Diretor editorial
Décio Nascimento Guimarães
Diretora adjunta
Milena Ferreira Hygino Nunes
Coordenadoria científica
Gisele Pessin
Fernanda Castro Manhães
Design
Fernando Dias
Foto de capa: Denis Duarte (MSc. Data Science University College Dublin, Irlanda),
Shutterstock.
Gestão logística
Nataniel Carvalho Fortunato
Bibliotecária
Juliana Farias Motta – CRB 7/5880
ISBN: 978-65-991719-6-3
Outros organizadores: Paulo Afonso do Prado, Sâmela Estéfany Francisco
Faria, Thalles Azevedo Ladeira, Tiago Afonso Sentineli.
CDD 371.358
O obrigatório
e o proibido
andam de mãos dadas
6
da nossa prepotência
diante da natureza absoluta
Tudo fica evidente
nossa força
nossa carência
A força de quem
mesmo sem recursos
tem que tirar potência
não sei de onde
A carência dos que
sempre estão precisando
de mais e mais
7
Indignação é pouco
a loucura é muita
a sociedade é desigual
a elite é sempre a mesma
a política não dá descanso
a vergonha é infinita
os vendidos nunca decepcionam
e os mansos dão sono
A proibição dos pobres
é o luxo dos ricos
Marlos Drumond1
1. Psicólogo e poeta, publica poemas como “Vida proibida” no blog Hipertensa Poesia: https://dru-
marvi.wixsite.com/hipertensapoesia
8
Sumário
Prefácio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14
SEÇÃO I. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21
Escritos que expõem fraturas
1
Políticas de morte nas educações instituídas e contágios insurgentes em contextos pandêmicos . . . . . . . . .22
Tito Loiola Carvalhal
Elaine Cristina de Oliveira
Maria Izabel Souza Ribeiro
2
Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 39
Hélio da Silva Messeder Neto
Izadora dos Santos Pires
3
A criança pré-escolar e o ensino remoto. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 62
Elizabeth Tunes
Zoia Prestes
4
O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto e pseudoformação em tempos
de pandemia . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 72
Ricardo Taveiros Brasil
5
Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia: educação a distância,
educação on-line ou ensino remoto? . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 91
Bruna Werneck Canabrava
Clarisse de Mendonça e Almeida
Renata Vettoretti Leite
Vittorio Lo Bianco
9
6
Formação continuada de professores em tempos de pandemia: empoderamento,
resistência e possibilidades . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 102
Karina Rocha Rosa de Castro
7
Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 118
Tiago Afonso Sentineli
Fernanda Insfran
8
Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos públicos por
beneficiários do Programa Bolsa Família. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Priscila Tavares dos Santos
Michelle Lima Domingues
9
“A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 156
Bruna Damiana Heinsfeld
Breno Laerte Pacífico Pinto
10
A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-branca em meio
ao ensino remoto nos cursos de Psicologia . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 170
Alexandre Trzan-Ávila
11
Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes no ensino superior: algumas reflexões. .. .. .. 182
Marilda Gonçalves Dias Facci
Nilza Sanches Tessaro Leonardo
Eloisa Rocha de Sousa Alves
12
Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
Anelise Lusser Teixeira
13
Sociedade enlutada: lutas e lutos de uma sociedade na busca por educação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 218
Paulo Afonso do Prado
Thalles Azevedo Ladeira
Tiago Afonso Sentineli
14
A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 232
Fabio A. G. Oliveira
10
SEÇÃO II. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
RELATOS EM PRIMEIRA PESSOA: VISIBILIDADE, LUGAR DE FALA E AUTOCUIDADO . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 253
Relato 1
Fraturas expostas: catarse e reflexões sobre as condições de vida e existência antes e
pós-pandemia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254
Tiago Afonso Sentineli
Relato 2
Etnografia ou devaneio? Relato de experiências para cicatrizar feridas da alma. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261
Paulo Afonso do Prado
Relato 3
Vida e morte na pandemia: não sairemos da mesma forma que entramos . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 270
Thalles Azevedo Ladeira
Relato 4
Professora em época de pandemia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 274
Alessandra Tozatto
Relato 5
Experiências do Serviço Social em tempos de pandemia: considerações no âmbito educacional. . . . . . . . . 280
Amanda Bersacula de Azevedo
Débora Spotorno Moreira Machado Ferreira
Érika David Barbosa
Josemara Henrique da Silva Pessanha
Paola Barros de Faria Fonseca
Relato 6
Fenomenologia, formação de professores e de professores/gestores: reflexões que se
mostram e se manifestam em tempos de pandemia COVID-19, ensino remoto emergencial
e trabalho remoto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 288
Alexsandra dos Santos Oliveira
Relato 7
Deteriorando e renascendo: da voz ao silêncio, do silêncio à voz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 297
Sâmela Faria
Relato 8
Ode à coletivização (ou “trabalhadores, escutem-se!”) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303
Fernanda Insfran
11
Primeiras palavras1
Este livro é uma ocupação. Ocupamos para não sucumbir, para não desapare-
cer. Ocupamos este espaço e o tomamos por terra fértil às denúncias do que ex-
perienciamos neste momento. Escritos e experiências que expõem fraturas, dores,
angústias. Escritos de/ por aquelas e aqueles sem-direito-de-parar.
Uma pandemia que nos seus primeiros seis meses ceifou quase 130 mil vi-
das2, colocou milhões à mercê de auxílios governamentais e caridade, mas que
não nos deu o direito de parar para chorar o luto; parar para ter medo; parar
para pensar; parar para nos reorganizarmos (e desorganizar o Cistema3). Pro-
fissionais da ponta (chão de escola, chão de fábrica e afins) nunca tiveram esse
direito! Nosso tempo não é nosso, ele foi capturado há tempos pelos mesmos
12
que hoje nos roubam também outros direitos fundamentais... Assim, sem direito
de pausa para um respiro, seguimos sem fôlego nos perguntando: até quando?
Resistir é ato político. Por isso, escolhemos resistir exercitando empatia e auto
cuidado, atitudes caras aos humanistas, capturadas e deformadas pelos neolibe-
rais... Resistimos ao silenciamento que massacra, resigna e adoece, escrevendo.
Por fim, escrevemos para tentar adiar o fim do mundo. Será uma utopia?
Fernanda Insfran
Paulo Afonso do Prado
Sâmela Faria
Thalles Ladeira
Tiago Sentineli
(a todxs xs educadores, inspiradxs em todas as palavras grafadas nesta obra).
13
Prefácio
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
(Cota zero – Carlos Drummond de Andrade)
Não! O ano não é 2020. É 2012, ano em que as universidades federais brasilei-
ras protagonizaram uma importante greve, a primeira depois de 6 longos anos de
silêncio do movimento paradista docente, sendo este o maior intervalo sem greves
nas universidades federais nos últimos 40 anos1.
14
Participei dessa greve histórica, que durou mais de 120 dias. Dela, ficou guar-
dado que a luta não era apenas para abrir canais de negociação com o governo,
supostamente de esquerda, mas que se mostrou totalmente fechado para o diálogo
e conforme aos ditames neoliberais. A luta também era contra muitos sindicatos,
que, aliados do governo federal, não tinham interesse que a greve ganhasse força.
Era meu primeiro ano como professora da Ufba, e considero que ali passei a me
sentir parte. Uma greve derrotada, se pensarmos nas reivindicações específicas,
mas potente espaço de formação política e criação de vínculos e amizade – esse
afeto tão político.
Por isso, considero que foi na greve de 2012 que começou a costura da linda
greve de 2015, no segundo mandato de Dilma. Nela, mais do que antes, a luta con-
tra um sindicato pelego foi desgastante. A persistência na luta, que durou quase
140 dias, novamente sem conquistas objetivas, era alimentada pela formação po-
lítica que se fazia nas assembleias, rodas de conversa, cafés, avenidas. Sol na cara,
chuva nos pés, seguimos em marcha. Cartazes e faixas feitos a mão, bandeiras,
palavras de ordem, performances, tambores, dança, cantos, suor, gritos, choros,
risos, encontros, abraços, parceria. Um misto de alma lavada com dínamo, movi-
mento que alimenta movimento.
Desde então, o que vivemos foi golpe atrás de golpe, incluindo aqueles que le-
vamos dos governos petistas, dos quais destaco o de nos desestimular a lutar e o de
aceitar compor com inimigos históricos. E tome golpes! Reforma trabalhista, refor-
ma da previdência, reforma administrativa, desmontes vários. Taxação de grandes
fortunas e auditoria da dívida pública, que é bom, seguem temas silenciados. E os
escombros das reformas seguem caindo na cabeça dos trabalhadores, cujos direitos
estão cada vez mais triturados. Enquanto isso, antes Cunhas hoje Maias, sempre o
mesmo macho-branco-rico-nocomando, gerações após gerações, escarnecem acu-
mulando rachadinhas tomadas descaradamente dos cofres públicos.
Lula e adentrando os primeiros anos de Dilma. Em 2012, segundo ano da gestão Dilma, as univer-
sidades federais finalmente voltaram a parar (Fonte: https://pt.scribd.com/document/266785977/
QUADRO-GERAL-DAS-GREVES-NAS-UNIVERSIDADES-FEDERAIS-1980-2012).
15
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Agora, o ano é 2020. Por tudo o que estamos passando nos últimos quatro
anos, “em silêncio”, 2020 tinha tudo para ser um ano de resistência, de lutas,
um ano de chamado à greve! E essa greve, imaginava eu, no final de 2019,
tinha tudo para ser histórica, como foram as duas últimas. Longa, gigante e
aguerrida.
Porque mesmo quando fomos obrigados, por uma crise sanitária, a sus-
pender a vida cotidiana, que se tornou inviável no seu formato “normal”,
não conseguimos parar. Essa interrupção forçada poderia ser um momento
potente para aprofundarmos o debate sobre uma série de questões que já
vinham sendo pautadas desde que o ex-ministro da educação tentou enfiar
goela abaixo seu projeto de future-se/fature-se.
Pensar a universidade sem ganhar créditos para isso. Mas o que vimos, de
maneira geral, foi o contrário (como sempre acontece nas greves). Muitos pro-
fessores, no afã de seguir produzindo, aproveitaram para acelerar pesquisas,
acelerar análises, acelerar publicações, acelerar eventos.
16
Prefácio
***
2. Afora uma série de atravessamentos de gênero, raça e classe, sentidos mais por uns do que
por outros, concreto em todos nós.
3. Até recentemente, muitos de nós apostávamos que a situação estaria sob controle até agosto.
17
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
De maneira geral, o livro desvela o que está posto: o novo normal naturali-
za a velha precarização, e o slogan segue o subtexto: aceitem, se ajustem, vida
que segue. Da tentativa de reinvenção da educação, o livro fala de sobrecarga
de trabalho e de adoecimento docente. E alguns autores nos chacoalham para
não sermos ingênuos: as técnicas e estratégias não são um em si, neutras, mas
informadas por visão de mundo e interesses, podendo ser emancipatórias,
mas também capturadas por mecanismos aprisionadores.
Não apenas a partir do que li no livro, mas também a partir das diver-
sas conversas com várias pessoas que ocupam diferentes lugares no campo
da educação (professoras, estudantes e familiares, da educação básica ao en-
sino superior, seja da rede pública, seja da rede privada), tanto antes, quanto
no decurso da pandemia, há algo próprio da vida das instituições educativas
18
Prefácio
19
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
20
SEÇÃO I
21
1
Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos
Tito Loiola Carvalhal
Elaine Cristina de Oliveira
Maria Izabel Souza Ribeiro
Resumo
Neste ensaio, enquanto gênero textual e como parte fundamental de todo pro-
cesso de preparação, entre cansaços e revoltas, a luz de nossa história, objetivamos,
sem pretensão nem condição de esgotar o debate, pensar a estrutura hegemônica da
educação pública instituída, no Brasil, fundamentada na naturalização das desigual-
dades. Na conjuntura atravessada por uma pandemia viral, que tem retroalimentado
o darwinismo social do “faz parte do processo, sempre tem uns que caem e outros que
resistem”, destacamos algumas das tantas desgraças que a pandemia tem exposto,
daquilo que já é política de morte faz tempo, mas, ainda, bastante invisibilizado na
educação pública remotamente emancipatória. Por fim, no compromisso histórico
22
de denúncia, anúncio e inacabamento, partilhamos contágios insurgentes nas edu-
cações que, entre tensões e rupturas, cavam respiros que vigoram as lutas, por mu-
danças estruturantes, para outros reais possíveis.
Inspirações teórico-políticas
O ano é 2020. Tempo, que não para, atravessado pela presença de um vírus
aparentemente democrático, mas que, na real, afeta potencialmente, de diversas
formas, as vidas da população mais vulnerabilizada.
23
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Existem várias formas de se viver uma pandemia. No nosso país, cuja polí-
tica genocida de insegurança pública mata cerca de 23.000 jovens pobres e ne-
gros, por ano, no seu histórico “normal”, e segue matando, a indiferença tem
sido regra traçada na naturalização dos descasos e abandonos do poder público,
quando diz respeito a população mais vulnerável, e na ampliação dos suportes
e investimentos para os afortunados. Enquanto cerca de 107 milhões de brasi-
leiros recorrem ao auxílio emergencial de míseros R$ 600,00, e quase metade
teve seu pedido negado, bilionários brasileiros aumentaram, em 34 bilhões de
dólares, suas fortunas durante a pandemia, entre os meses de março e julho2.
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1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos
1
57
79
153
1.138
15.305
30.830
51.502
75.000
87.748
104.201 vidas eliminadas
as tantas mais
subnotificadas
descartadas
desapropriadas
nas desigualdades impostas que uma pandemia expõe
nossa baixa imunidade infectada de interesses perversos
privadas
nos esgotos a céu aberto
um reacionário em seu estado bruto, no poder, eleito e louvado por nega-
cionismos
conclamando a população vulnerabilizada para a morte, enquanto faz
churrasco e ri das nossas desgraças
nossas ignorâncias e crueldades históricas não reparadas.
cada vida tem nome, endereço.
como diz uma pichação que nos batemos outro dia,
cada uma dessas mortes foi ou era o amor de alguém.
25
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
“Remotamente, Educação”
26
1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos
4. Cistema, de acordo com Vergueiro (2015, p. 15) referenciando Grosfoguel (2012, p. 339),
caracteriza um “[c]istemamundo ocidentalizado/cristianocêntrico moderno/colonial capi-
talista/patriarcal” que produz “hierarquias epistêmicas”.
27
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
28
1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos
29
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
30
1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos
não tinham acesso, a renda média por pessoa era de R$ 940,00, praticamente
a metade. Não por coincidência se trata, justamente, da mesma parcela da
população a quem ainda hoje tem sido negado o acesso à educação básica, e
para quem tem sido oferecido, no caso dos que têm acesso à escola, condições
pedagógicas de péssima qualidade e geralmente pautadas pela lógica econo-
micista. Nesse barulho, a boiada da EaD vai sendo empurrada, fundamentada
na naturalização das desigualdades, retroalimentando o darwinismo social do
“faz parte do processo, sempre tem uns que caem e outros que resistem”.
O que não nos contam, é que entre os que caem e os que resistem, encon-
tramos grandes empresas, lucrando cada vez mais com a tecnologia que sus-
tenta o “novo normal” do ensino remoto ou EaD. A título de exemplo temos
a controladora da Google, a Alphabet, que registrou no primeiro trimestre
de 2020 um lucro líquido de US$ 6,8 bilhões. Na comparação com o mesmo
período do ano passado, a receita total da companhia saltou 13,2%, atingindo,
em 2020, US$ 41,1 bilhões7. Já a Amazon, empresa de tecnologia que foca
em comércio de produtos eletrônicos, serviços de armazenamento em nuvem,
streaming digital e inteligência artificial, no segundo trimestre de 2020, em
plena pandemia, registrou o maior lucro líquido trimestral de sua história, R$
26,83 bilhões, o dobro em relação ao mesmo período de 20198. Quem vai dizer
pra elas no futuro, quando a pandemia acabar, que não precisamos mais con-
sumir tanta tecnologia, que elas não são mais “úteis” porque o ensino remoto
ou EaD acabou? O que faremos com todo o aparato tecnológico que fomos
obrigados a engolir? Ou, o que farão de nós (PATTO, 2007)?
31
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Além disso, também se deve levar em consideração que, para as que têm
acesso fácil à internet, aos outros dispositivos necessários, assim como outras
condições objetivas de participação das aulas remotas, a compreensão crítica
das informações ali encontradas só ocorre àquelas que tiveram acesso a for-
mações críticas (não necessariamente escolares), pois são essas formações que
32
1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos
contribuem para dar sentido ao que se vê, ouve, lê, acessa. Ou seja, a busca por
informações nos meios digitais pode ser facilmente capturada pela rede alie-
nante do capital, impedindo a livre navegação e afogando o sonho de emanci-
pação pela tecnologia. Nesse sentido, o olhar para as tecnologias deve deixar
de ser em busca de sua natureza, que não é nada neutra, voltando-se para a
imbricada relação com suas finalidades políticas e éticas.
33
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Contágios insurgentes
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1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos
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1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos
Referências
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SANTOS, B. S. O fim das descobertas imperiais. Diário de Notícias, Porto, 1999. Seção Notícias
do Milênio. Edição Especial.
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2
Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black
Mirror
Hélio da Silva Messeder Neto
Izadora dos Santos Pires
39
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Resumo
Introdução
40
2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror
A educação não passa incólume por esse processo, já que é mais um com-
plexo contido na sociedade. A escola vive todos os dilemas de uma sociedade
de classe em um cenário neoliberal e tem sido atacada no seu campo ideoló-
gico, como pode ser visto, por exemplo, no movimento escola sem partido,
em que professores são chamados de doutrinadores, em que o conhecimento
científico, artístico e filosófico é esvaziado para a classe trabalhadora a partir
de reformas curriculares como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)3.
A escola é também atacada no campo material, visto que os recursos estão
1. A série mostra um futuro distópico em que as relações sociais são mediadas por tecnologias
digitais da informação e comunicação, trazendo roteiros, em grande parte, pessimistas (LE-
MOS, 2018). A série pode ser encontrada na plataforma de streaming Netflix.
2. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o primeiro semestre
de 2020. É importante ressaltar que, para o IBGE, o desemprego se refere às pessoas com
idade para trabalhar (acima de 14 anos) que não estão trabalhando, mas estão disponíveis e
tentam encontrar trabalho. Os dados não levam em consideração, por exemplo, pequenos
empreendedores que possuem seu próprio negócio. Com a vulgarização ideológica do em-
preendedorismo e com a crise da COVID-19, o número de pessoas sem emprego no Brasil
deve ser um número muito maior. Desemprego. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/
explica/desemprego.php. Acesso em: 11 ago.2020.
3. Para saber mais sobre as críticas à, sugerimos a leitura de Cassio (2018); Pina e Gama (2020).
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror
4. Não estamos aqui defendendo qualquer ensino público, mas aquele orientado pela laicidade,
gratuidade e que seja socialmente referenciado.
5. O discurso do EaD, do ensino remoto, on-line, hibrido, converge nas relações de trabalho
no modelo toyotista. Entendermos que esse modelo de produção possuí características que
são fundamentais para desfetichizar o trabalho educativo na organização social – capitalista
– vigente.
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror
Portanto, para cumprir esse papel privatizador, é preciso travar uma dis-
puta das ideias e isso significa atestar o fracasso da escola pública (SAVIANI,
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror
Todo esse cenário que aqui delineamos estava posto antes da pandemia
e é importante que ele seja conhecido e considerado, visto que é o palco
no qual temos que atuar nesse suposto novo momento. Qualquer decisão
tomada ou não nessa situação não acontece de maneira neutra, tem uma
história. É ingenuidade achar que o que faremos nesta ocasião é provisório
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2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
menor grau, por “o tempo está passando e como ficarão nossas crianças sem
aula?” ou ainda “é uma oportunidade de nos reinventarmos e criarmos uma
escola do futuro”. Sem oferecer nenhuma condição, resta ao docente fazer um
esforço desumano para conseguir estabelecer algum contato educativo com o
estudante. Assim, a variável “tempo” é usada de modo fetichizado por gover-
nantes, gestores e, até mesmo, alguns professores. A passagem do tempo tende
a ser usada como um elemento “mágico”, como se isso pudesse minimizar o
número de mortos da pandemia. Atrelado ao “novo normal”, os professores se
veem obrigados a oferecerem um ensino aligeirado ou, ainda, a retomarem as
atividades presenciais sem que especialistas apontem tal possibilidade como
segura. Enquanto isso, deleta-se a humanidade das vidas ceifadas e daquelas
que ainda podem ser perdidas.
Nesse contexto em que vidas são tratas como números, o sofrimento psí-
quico, a sobrecarga do trabalho, os assédios sofridos no trabalho, entre outras
questões, seguem sendo desprezadas. Não é a qualidade do ensino ou a segu-
rança dos atores da escola que é colocada em pauta, mas a ideia de que profes-
sores precisam voltar ao seu trabalho para justificar seu salário. Como expli-
camos no tópico anterior, usa-se a situação da pandemia para atacar o que é
público, potencializando um discurso no qual servidores públicos da educação
são improdutivos e preguiçosos. Para disputar essa narrativa, os servidores não
deveriam, necessariamente, ter que voltar a trabalhar cedendo aos impulsos
imediatos de uma sociedade pautada pela mercadoria. Em contrapartida, seria
necessário apontar para a toda a população que ficar em casa em tempos como
esse é um direito, que deveria ser ampliado para todos, para preservar a vida.
9. O conceito de classe neste trabalho, possui um fundamento marxista. Desta forma, não se
restringe apenas as condições materiais de aquisição de mercadorias no sistema capitalista.
Para saber mais, de modo sintético e consistente, indicamos o Podcast REVOLUSHOW. Di-
cionário Marxista 004 – Classes Sociais. Disponível em: https://revolushow.com/dicionario-
-marxista-004-classes-sociais. Acesso em: 11 ago. 2020.
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2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror
Não seria a primeira vez que o sistema capitalista usa de uma crise huma-
nitária para avançar. Apenas para exemplificar, temos o caso de New Orleans,
que teve sua educação privatizada após o furacão Katrina. Hoje, New Orleans
tem apenas quatro escolas com gestão pública (FREITAS, 2015). Assim, não
há motivos para acreditar que um mundo arrasado pós-pandemia será sufi-
ciente para fazer a práticas neoliberais recuarem. Precisamos estar atentos e
fortes.
Diante do que anunciamos e por mais que essa metáfora seja surrada, po-
demos dizer que estamos diante de um cavalo de Troia. Parece sedutor aceitar
o presente das tecnologias e, supostamente, resolver o problema da pandemia
no campo educativo, evitando que escolas e universidades fiquem paradas.
Contudo, o que esperamos ter deixado claro é que estamos trazendo, de ma-
neira pacífica e de bom grado, processos que podem tornar as condições da
classe trabalhadora da educação10 muito piores do que elas já são. É preciso,
de maneira urgente, desmascarar esse cinismo pandêmico que, fantasiado de
boas ações e discursos motivadores, abre espaço para retirada de direitos da
classe que vive do trabalho.
10. Cabe aqui apontar que não basta os trabalhadores da educação lutarem sozinhos pela manu-
tenção de direitos. É preciso compor a luta com outras categorias para evitar o avanço neoli-
beral. Para mais informações, sugerimos a leitura do texto “Há futuro para os sindicatos”, de
Antunes (2020).
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror
11. A metáfora que aqui usamos não deve ser levada ao pé da letra, visto que não há possibilidade
de superar completamente os ideais da classe dominante nesta sociedade. Não aprofundare-
mos esta discussão neste texto, mas sugerimos fortemente a leitura de Marx e Engels (2007).
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
melhor estratégia que a universidade tem a oferecer para dar uma satisfação à
sociedade é assumir sua falência e aceitar os ataques que vem sendo realizados
ao funcionalismo público.
Ao longo deste texto esperamos ter evidenciado para os leitores que a re-
tirada de direitos da classe trabalhadora é um projeto burguês anterior à pan-
demia. Evidenciamos que a década de 90 trouxe com força para o Brasil um
projeto neoliberal de educação pautado naquilo que Kuenzer (2002) chama
“exclusão includente” e “inclusão excludente”.
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2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Referências
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v. 8, n. 3, p. 348-365, 2020.
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2020a. Disponível em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=60
0&pagina=1&data=01/04/2020&totalArquivos=1. Acesso em: 2 ago. 2020.
BRASIL. CNE aprova diretrizes para escolas durante a pandemia. Publicado em 28 de abril
de 2020. Ministério da Educação. Brasília, DF, 2020b. Disponível em: portal.mec.gov.br/
busca-geral/12-noticias/acoes-programas-e-projetos-637152388/89051-cne-aprova-dire-
trizes-para-escolas-durante-a-pandemia. Acesso em: 2 ago. 2020.
BRASIL. Portaria nº 544, de 16 de junho de 2020. Dispõe sobre a substituição das aulas pre-
senciais por aulas em meios digitais, enquanto durar a situação de pandemia do novo co-
ronavírus - COVID-19, e revoga as Portarias MEC nº 343, de 17 de março de 2020, nº 345,
de 19 de março de 2020, e nº 473, de 12 de maio de 2020. Ministério da Educação. Brasília,
DF, 2020c. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-544-de-16-de-
-junho-de-2020-261924872. Acesso em: 12 ago. 2020.
BRUNS, Barbara.; LUQUE, Javier. Professores excelentes: como melhorar a aprendizagem dos
estudantes na América Latina e no Caribe. Washington, D.C.: Banco Mundial, 2014.
CÁSSIO, Fernando Luiz. Base Nacional Comum Curricular: ponto de saturação e retrocesso na
educação. Retratos da Escola, v. 12, n. 23, p. 239-254, 2018.
CETIC.BR. 2019. TIC domicílios 2019 principais resultados. Disponível em: https://cetic.br/
media/analises/tic_domicilios_2019_coletiva_imprensa.pdf. Acesso em: 27 jul. 2020.
CORONAVÍRUS BRASIL. Painel Coronavírus. Atualizado em: 15 ago. 2020 às 18:30. Disponí-
vel em: https://covid.saude.gov.br. Acesso em: 16 ago. 2020.
60
2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror
FREITAS, Luis Carlos de. A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias. São
Paulo: Expressão Popular, 2018.
FREITAS, Luis Carlos de. New Orleans: mais reformas fracassadas. 2015. Disponível em:
https://avaliacaoeducacional.com/2015/08/30/new-orleans-mais-reformas-fracassadas/.
Acesso em: 09 ago. 2020.
LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público.
São Paulo: Boitempo, 2019.
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contexto de fragilização da formação humana. Cadernos Cemarx, n. 11, p. 127-144, 2018.
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PATTO, Maria Helena Souza. O ensino a distância e a falência da educação. Educação e pesqui-
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PINA, Leonardo Docena; GAMA, Carolina Nozella. Base Nacional Comum Curricular: algumas
reflexões a partir da pedagogia histórico-crítica. Revista Trabalho Necessário, v. 18, n. 36,
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SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. 38. ed. Campinas: Autores Associados, 2006. (Cole-
ção Polêmicas do Nosso Tempo, n. 5).
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3 ed. rev. Campinas, SP: Au-
tores Associados, 2011.
61
3
A criança pré-escolar e o ensino remoto
Elizabeth Tunes
Zoia Prestes
Resumo
62
Pano de fundo
Também podemos comparar, do mesmo modo, alguns textos entre si. Por
exemplo, Rodrigo Ratier (2020), colunista do portal UOL, queixa-se da quase im-
possibilidade de cumprir com todas as suas novas obrigações, incluindo, princi-
palmente, o acompanhamento de seus filhos pequenos em atividades escolares
remotas, ao tempo em que Joanna Schroeder (2010) informa haver, nessa época de
pandemia, crianças que se tornaram bastante felizes por não terem que frequentar
os bancos escolares, tendo se livrado de tensões geradas pelo excesso de exigências
da instituição escolar e pelos conflitos que nela ocorrem. Os pais surpreendem-se
ao constatarem as mudanças de humor dos filhos e, estarrecidos, comentam que
desconheciam o quanto estes detestavam a escola.
Vê-se, portanto, que, entre as desditas de uns e a boa ventura de outros tantos,
há infinita variedade de desgraças e boas sortes. Eis uma simples conclusão que
guarda consigo, entretanto, um problema de tamanha envergadura e complexida-
de que chega a parecer quase um impasse, a depender do que se pretende como
solução: a vida humana transcorre em cenários tão distintos, com problemas tão
63
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Isso faz lembrar o filme russo, Desamor, a que se refere Prestes (2018).
Ele narra a história de um casal, em processo de separação, que tratava com
tamanha indiferença o filho Aliocha a ponto de notar seu desaparecimento
apenas após a notificação feita pela escola. Segundo interpretação da auto-
ra, a ausência de Aliocha, seu desaparecimento, tornou-o presente o tempo
todo e, mesmo estando fora de cena, ele foi o personagem central do filme.
Ela diz: “O filme nos provoca: estamos preocupados com nós mesmos e nos-
sas crianças são alvo de desamor, de desatenção, de desproteção, lembramo-
-nos delas quando elas desaparecem” (p. 871). Aqui, há um curioso e apa-
rente paradoxo. A ausência de Aliocha – antes, supostamente, uma presença
indiferente – tornou-o presente e, no caso dos pais que, agora, descobriram
que têm filhos, parece ter acontecido o oposto: antes da pandemia, os filhos
eram uma ausência indiferente e, agora, são uma presença incômoda. Entre-
tanto, a diferença é apenas aparente: ausência indiferente e presença indife-
rente ou incômoda são uma só e a mesma coisa: a negação da existência do
outro. Diante do outro não deve haver indiferença; a indiferença em relação
ao outro é o seu aniquilamento.
64
3 – A criança pré-escolar e o ensino remoto
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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3 – A criança pré-escolar e o ensino remoto
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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3 – A criança pré-escolar e o ensino remoto
O que apresentamos até aqui parece mostrar, com clareza, as razões ligadas
ao fato de a criança pré-escolar ainda não conseguir seguir completamente o
programa do professor. Contudo, as relações de convivência – livres e espon-
tâneas, por sua natureza – que estabelece com outras crianças, na coletividade
69
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Referências
BARBOSA, Márcia; STANISÇUASKI, Fernanda. Mães na ciência: da pandemia ao pandemônio.
Academia Brasileira de Ciências, 13 de abril de 2020. Disponível em: http://www.abc.org.
br/2020/04/13/maes-na-ciencia-da-pandemia-ao-pandemonio. Acesso em: 17 ago. 2020.
PRESTES, Zoia. Obschenie e a teoria histórico-cultural. Educação em Foco, Juiz de Fora, v. 23,
n. 3, p. 851-874, 2018.
70
3 – A criança pré-escolar e o ensino remoto
SCHROEDER, Joanna. E se algumas crianças ficarem melhor em casa? New York Times, 10
de agosto de 2020. https://www.nytimes.com/2020/08/10/opinion/coronavirus-school-clo-
sures.html. Acesso em: 17 ago. 2020.
SOBKIN, Vladimir.; KLIMOVA, T. Lev Vigotski entre duas revoluções: sobre a questão da au-
todeterminação política do cientista. Em: Fractal: Revista de Psicologia. Niterói, v. 29, n.
3, 2017.
VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Obras Escogidas. Tomo IV. Psicología Infantil. Tradução de
Lydia Kuper. Madrid: Visor, 1996.
71
4
O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto e
pseudoformação em tempos de pandemia
Ricardo Taveiros Brasil
Resumo
Este ensaio teórico foi redigido no intuito de instigar reflexões acerca dos pro-
cessos de racionalização social que parecem atravessar experiências de docência
no Ensino Superior em meio à pandemia do novo coronavírus. As práticas de
acompanhamento de estudantes pelo que se chama de ensino remoto ensejam um
deslumbramento suspeito na relação que se estabelece entre estratégias formati-
vas e tecnologias de informação e comunicação. Com base nas formulações de
autores da primeira geração da teoria crítica da Escola de Frankfurt, e a partir da
contextualização de um período de cinco meses de contato diário com estudantes
de um curso de Psicologia ligado a uma instituição privada em Salvador da Bahia,
apresenta-se aqui uma análise que aponta para a precarização do ensino e das re-
lações trabalhistas a serviço da lógica capitalista. A tecnificação do que poderia ser
72
a experiência formativa em outras condições não assume um caráter suplementar,
ao contrário, impõe-se na qualidade de razão instrumental e opera como ideolo-
gia, em que pesem os avanços que, contraditoriamente, assegura e promove. Nesse
sentido, as narrativas do desgaste mental e da supressão do pensamento em prol
da expansão tentacular de tecnologias na Educação não estariam afastadas de um
projeto societário ainda referido ao ímpeto irracional de dominação. Argumenta-
-se em defesa da elaboração teórica que possibilite a crítica da racionalidade tec-
nicista no âmbito dos cursos de graduação e adverte-se que sejam considerados os
riscos de uma redução do reconhecido em termos de apropriação emancipatória
ao ajustamento resignado ao que é dado.
Mapeamento de um contexto
1. O número dos óbitos aqui informado refere-se à contagem registrada desde o início da pandemia
até o dia 25/08/20.
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
apresento aqui reflete algumas das coisas que tenho pensado sobre esse período,
considerando minha experiência como docente do curso de Psicologia de uma
instituição privada de Ensino Superior em Salvador da Bahia, cidade que me
acolheu no início de 2016; cidade onde experimento, desde então, as agonias e
as alegrias que a vida me permite. Falo, portanto, deste lugar e encontro amparo
para pensamentos e ideias nos textos de autores ligados à primeira geração da
Escola de Frankfurt, também conhecida por Teoria Crítica da Sociedade. Sou
marcado por certos atributos e os informo: homem cisgênero, branco, homos-
sexual, com 37 anos, sem filhos/as, trabalhador e não vivo a condição de pessoa
com deficiência. Penso ser importante trazer tais marcadores por entender que
o laço social no qual estou inserido (e do qual faço parte) é extremamente mi-
sógino, racista, cisheteronormativo, ageísta, cruel com quem tem dependentes,
classista e capacitista. É, ainda, uma maneira de reconhecer, com vergonha, as
vantagens que esta sociedade me entrega, ao passo que atento aos desafios que
a condição de trabalhador, sobretudo, me impõe nos esquemas com os quais
negocio para viver em uma sociedade dividida em classes.
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4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia
2. Para participar da pesquisa de Danyelle Nilin Gonçalves e Irapuan Peixoto Lima Filho, basta
acessar o link: http://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSeF9FSlWV6EwT6C6H28rXV6
9rbX9D_dHyX_sfK1s0bKvQZpEw/viewform.
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
76
4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia
Desdobramento teórico-conceitual
O que possui uma função fica enfeitiçado no mundo
funcional. Só o pensamento que, sem reservas men-
tais, sem ilusões de reinado interior, confessa sua ca-
rência de função e sua impotência, talvez alcance um
olhar da ordem do possível, do não existente, em que
os homens e as coisas estariam em seu justo lugar.
Porque não serve para nada, ainda não está caduca a
filosofia (ADORNO, 1962; 1972, p. 23).
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
4. Inicialmente relacionado à tradição iluminista e apresentado por Kant (1784; 1974) como a
saída do homem de uma condição auto-inculpável de menoridade intelectual, o conceito de
esclarecimento é utilizado neste ensaio na acepção de Horkheimer e Adorno (1947; 1985),
que o formularam de maneira a captar a sua dialética naquilo que se refere ao movimento
progressivo da razão, mas que, no decurso do processo civilizatório, também traria elemen-
tos regressivos e, sendo assim, contraditórios em relação a uma noção de racionalidade ca-
racterizada pela marca do progresso linear.
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4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Marcuse (1969), por sua vez, depara-se com o amplo alcance do poder da
sociedade sobre os indivíduos e com a paralisia da crítica em um mundo sem
oposição. Os domínios do progresso técnico teriam criado formas de vida re-
conciliadoras de forças que tenderiam a se opor e, assim, a luta por construção
da perspectiva histórica de liberdade da labuta e da exploração seria recusada.
Com base nas teses dos frankfurtianos, Maia (2007) considera que a efi-
ciência técnica, que goza de prestígio na sociedade administrada, alcança
até mesmo o psiquismo dos indivíduos, pois as pessoas são capturadas pe-
las técnicas de controle que mobilizam suas necessidades psíquicas a fim de
conformá-las à sociedade. A ideologia leva a um conformismo que sufoca as
tentativas de revolta e, nesse sentido, a crítica já não pode ser a crítica de uma
falsa autonomia do espírito, mas crítica da sociedade e da história da razão
instrumental que atravessa o processo de dominação da natureza e dos indiví-
duos. Segundo o autor, a generalização da razão instrumental vem a suprimir
a razão negativa e firmar condições para o surgimento de um laço social to-
talmente administrado, politicamente fechado e unidimensional, na expressão
de Marcuse (1969); difícil não recordar do slogan neoliberal de Margareth
Thatcher: “there’s no alternative” (não há nenhuma alternativa).
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4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
não são ideais e atropelam a ética da profissão, mas basta que estudantes re-
solvam a carga horária de atividades do estágio e liberem espaço para o que
Ramos (2012, p. 155) pensou nestes termos:
[...] os cursos, cada vez mais, são feitos para os seus
patrocinadores, aos quais estatísticas de matrícula e
frequência, ou seja, os alunos, são vendidos. Não acre-
ditamos, frente a tal situação, que podemos dizer com
convicção que o produto destas empresas é o ensino
ou a educação. Estes últimos talvez se reduzem hoje
ao maquinário para a produção massificada de alunos.
5. Embora não se deva negar que a impotência da crítica seja gerada por condições objeti-
vas, ainda que sustentada por necessidades subjetivas. O próprio autor reitera este cuidado
quando fala em “internalização histórica de imperativos sociais” (RAMOS, 2012, p. 157). É
preciso evitar o equívoco de atribuir ao indivíduo o que se refere à estrutura social.
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4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Adorno (1967; 2006) entende que existe uma clausura socializada no mun-
do administrado. A prisão dos/as supostamente livres pode até ser reconheci-
da enquanto tal, mas o reconhecimento em si não sustenta ímpeto libertador,
já que “quanto mais densa é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo
em que precisamente a sua densidade impede a saída” (ibid., p. 122). E, nesse
sentido, quanto mais resistência, mais ameaça - constatação que não invalida
a resistência e que, por outro lado, não pode deixar de indicar os limites para
que não caia em ideologia. Segundo Maia (1998, p 34):
A possibilidade de ações que levem à formação (Bil-
dung) no sentido em que o termo é utilizado por
Adorno implica uma crítica permanente e uma re-
flexão que ultrapasse o existente, reconhecendo as
determinações objetivas por ele constituídas. Nesse
sentido, pensar a formação implica pensar a exclusão
e a violência em todas as suas nuances, especialmente
a exclusão do singular, do diferenciado, que pode se
dar sem que os alunos deixem de frequentar as aulas
e, o que é pior, sob a aparência de perfeita ordem e
ótima produtividade.
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4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia
Encaminhamento (in)conclusivo
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Referências
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ADORNO, T. W. Notas marginais sobre teoria e práxis. In: ADORNO, T. W. Palavras e sinais:
modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1969/1995. p. 202-229.
88
4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia
89
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1845-1846/1974.
RAMOS, C. Tirando a venda dos espertos: reflexões sobre a formação de psicólogos em tempos
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a miséria da psicologia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 153-172, 2012.
SILVA, A. F.; ESTRELA, F. M.; LIMA, N. S.; ABREU, C. T. A. Saúde mental de docentes univer-
sitários em tempos de pandemia. In: Physis - Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.
30, n. 1, p. 1-4, jul. 2020. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v30n2/0103-7331-
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SILVA, A. S. R.; MENDES, L. S.; NÓBREGA, P. P. (Orgs.) Produção de aulas remotas: tutoriais e
guias didáticos. Série Planejamento, Produção e Acompanhamento de Disciplinas Remotas.
Fortaleza: Grupo Educação, Tecnologia e Saúde da Universidade Federal do Ceará, 2020.
90
5
Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia:
educação a distância, educação on-line ou ensino remoto?
Bruna Werneck Canabrava
Clarisse de Mendonça e Almeida
Renata Vettoretti Leite
Vittorio Lo Bianco
Resumo
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Introdução
92
5 – Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia:
educação a distância, educação on-line ou ensino remoto?
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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5 – Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia:
educação a distância, educação on-line ou ensino remoto?
Sem a definição exata sobre quanto tempo a pandemia ainda atingiria a po-
pulação e seguindo as determinações das autoridades de manter o isolamento
social, as escolas buscaram novos caminhos para não estancar o processo de
escolarização em pleno andamento. Entrou em cena aquilo que inicialmente
foram anunciadas como ações baseadas no modelo de educação a distância
(EAD) e que posteriormente se assumiu como ensino remoto. Novos projetos
se desenrolaram. Muitos, no entanto, sem o tempo hábil para o planejamento
e para a transposição adequada à implementação dos projetos característicos
da EAD e aplicados por uma aparente cortina de improvisação e pressa. Para
suprir a falta de escolas abertas e com o ano letivo em andamento, professores
se viram obrigados a reinventar suas práticas, a replanejar suas ações e a inves-
tir em ações educacionais à distância apoiadas por tecnologias digitais.
95
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
pela entrega de conteúdo, via online, para atender a situações pontuais. Trata-
-se de uma resposta rápida a uma determinada situação apropriando-se para
tal de recursos tecnológicos - especialmente aqueles de comunicação síncrona
- como videoconferências. Difere-se das ações da EAD justamente por não
considerar o tempo do planejamento e o desenvolvimento das ações a médio
e a longo prazo, do estudo do perfil dos envolvidos e da produção de soluções
educacionais com vistas a atender às demandas desse público. Para Hogdes
et al. (2020), o ensino emergencial remoto caracteriza-se pela disponibiliza-
ção temporária de conteúdos, via online, criada especialmente para manter
o vínculo entre alunos, docentes e instituição escolar em um momento de
excepcionalidade.
96
5 – Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia:
educação a distância, educação on-line ou ensino remoto?
97
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
9. Pedro Fernandes é filho e neto de políticos, tem 37 anos de idade e em 2014 foi reeleito para
seu terceiro mandato como deputado estadual do Rio de Janeiro. Teve passagens por diver-
sas secretarias tanto do Governo do Estado quanto da Prefeitura do Rio de Janeiro, assim
como já trocou de partido político 6 vezes. Em 2017 teve uma passagem relâmpago pela
Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia, Inovação e Desenvolvimento Social (Sectids),
órgão que abarcava a Fundação Cecierj, e atualmente é secretário da Educação do Estado do
Rio de Janeiro. Em 2018, foi candidato ao governo do Estado e, no dia seguinte do primeiro
turno, contrariando orientação de seu partido, já declarou apoio a Wilson Witzel que ficara
em primeiro lugar, com ampla margem de vantagem.
98
5 – Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia:
educação a distância, educação on-line ou ensino remoto?
Nesse momento delicado, a gestão foi marcada, também, pela pouca for-
malização das ordens e instruções. O anúncio da plataforma adotada foi feito
durante o fim-de-semana, em postagens nas redes sociais da secretaria, antes
da publicação de qualquer portaria ou documento normativo. Houve outros
anúncios em vídeos transmitidos ao vivo diretamente da página pessoal do
secretário: alguns dos quais eram cobrados como ordens (como a utilização
do AVA para controle de presença dos professores) e outros que nunca foram
concretizados (como a distribuições de chips para os alunos). Por diversas
vezes, o secretário defendeu a opção pelo Google Sala de Aula, alegando que
era a mesma plataforma utilizada em escolas de elite, como se uma ferramenta
fosse garantia de qualidade e desconsiderando as desigualdades de condições
entre estudantes das escolas de elite e a vasta maioria dos discentes da rede
estadual.
99
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
pela oferta de tutoriais – inclusive para a própria Seeduc – voltada aos pro-
fissionais que estavam sendo inseridos nos meios digitais mais recentemente.
Outra iniciativa foi o projeto Contribuições Para Ensino Remoto10, no qual a
Fundação Cecierj desenvolveu materiais e cursos para que os docentes atra-
vessem o período com o conhecimento suficiente para uma oferta de ensino
remoto ao menos com os principais elementos necessários para manter um
nível de qualidade.
Referências
COSTA, Celso. Licenciaturas a distância – a experiência do CEDERJ. Rio de Janeiro: UFF,
2005.
HODGES, Charles et al. The difference between emergency remote teaching and online learning.
In: Educause Review. 27 mar. 2020. Disponível em: https://er.educause.edu/articles/2020/3/
the-difference-between-emergency-remote-teaching-and-online-learning, 2020. Acesso em:
11 maio 2020.
100
5 – Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia:
educação a distância, educação on-line ou ensino remoto?
MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2006.
SANTOS, Edméa. EAD, palavra proibida. Educação online, pouca gente sabe o que é. Ensino
remoto, o que temos para hoje. Mas qual é mesmo a diferença? #livesdejunho... In: Revista
Docência e Cibercultura. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/re-
-doc/announcement/view/1119. Acesso em: 27 jun. 2020.
101
6
Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades
Karina Rocha Rosa de Castro
Resumo
Este artigo tem como objetivo provocar algumas reflexões acerca dos desa-
fios enfrentados na educação brasileira antes da pandemia da COVID-19 e am-
pliados com a imposição/pressão pelo ensino remoto emergencial, procurando
apresentar, como alternativa de enfrentamento a esses desafios, a roda de con-
versa. Entre tantas possibilidades de formação continuada para os professores, a
roda de conversa está sendo aqui enfatizada por uma razão especial: mobilização
da ação coletiva. Diante de tantos desafios que estudantes, professores e profis-
sionais da educação estão vivenciando nesse contexto de pandemia e de ensino
remoto, acredita-se que as rodas de conversa são o espaço ideal para a reflexão
coletiva, o compartilhamento de experiências e angústias, a escuta sensível, o
102
acolhimento e, principalmente, para o empoderamento do grupo. Espera-se que
este trabalho desperte professores e profissionais da educação para a importân-
cia das rodas de conversa como lugar de criação, de resistência e de fortaleci-
mento da ação coletiva.
Introdução
No que diz respeito à educação, não é leviano afirmar que a mudança abrupta
do ensino presencial para o ensino remoto ou para a modalidade EaD tem trazido
consequências desastrosas para a educação brasileira, que diga-se de passagem, já
estava submersa numa crise estrutural muito antes da pandemia, se formos bem
honestos, há pelo menos 500 anos.
103
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
104
6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades
105
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Inicio, então, com aquele que talvez seja o maior desafio que estudantes
e professores estão vivenciando: a instabilidade financeira, provocada pelo
desemprego e/ou a perda de renda, problema crescente entre os brasileiros
anteriormente e que foi agravado durante a pandemia.
106
6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades
107
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Embora esses trabalhos que visam aumentar a sua renda não sejam em si
mesmos indignos para o professor, eles se tornam incabíveis quando motiva-
dos pelo desespero diante da baixa remuneração e desvalorização da profissão
docente. Ademais, encarar a profissão docente como uma das suas possíveis
fontes de renda, como um trabalho secundarizado, interfere diretamente na
construção de sua identidade profissional, além de contribuir para a ausên-
cia de sentimento de pertencimento e de vínculo com sua classe profissional,
fragmentando-a ainda mais.
Por outro lado, estudantes enfrentam esses mesmos desafios de ordem so-
cial e econômica, somados a falta de internet, ou sua baixa qualidade, falta
de tempo e espaço adequado para estudarem e, muitas vezes, limitações re-
lacionadas à má formação que receberam. Contudo, deve-se destacar que a
instabilidade financeira e a escassez de recursos não afetam a todos os profis-
sionais da educação e estudantes da mesma forma, há clara diferenciação en-
tre estudantes pobres (em alguns casos em situação de vulnerabilidade social)
e os oriundos da classe média e alta. Aqueles que não necessitam conciliar
vários trabalhos ou o trabalho com a vida escolar/acadêmica, que moram em
locais mais silenciosos (como os condomínios fechados) e em casas com es-
paço reservado para estudarem, que têm boa alimentação e segurança afetiva,
108
6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades
109
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Cabe ressaltar que esses professores, bem como os estudantes da rede es-
tadual, estão sendo assistidos pelo Centro de Mídias da Educação, criado pelo
governo de São Paulo para formar os profissionais da rede e garantir a oferta
de atividades aos alunos, realidade bem diferente de outros estados como o
Rio de Janeiro, por exemplo, onde os professores estão desde o início da pan-
demia trabalhando remotamente, com aulas on-line e com nenhuma forma-
ção, suporte e recurso para tal.
110
6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades
111
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Este trabalho pretende mostrar que sim e que ela não virá de maneira verti-
cal, ou seja, da ação governamental e institucional para os professores e sim de
maneira horizontal, nas ações dos próprios professores. Essa foi uma das con-
clusões a que chegamos durante a roda de conversa promovida pelo CRP-RJ:
que cabe a nós professores, professoras, profissionais da educação, o fortaleci-
mento e o cuidado mútuos. A roda de conversa é um espaço bastante oportuno
para esse cuidado, para a escuta sensível e para a prevenção ao adoecimento.
112
6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades
115
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Considerações finais
“No exercício crítico de minha resistência ao poder manhoso da ideolo-
gia, vou gerando certas qualidades que vão virando sabedoria indispensável a
minha prática docente”, afirmou Paulo Freire (1997, p. 151), e eu acrescento,
indispensável a minha sobrevivência.
Diante do contexto caótico em que estamos é preciso resistir para não su-
cumbir. Como se não bastassem todas as angústias e males sociais e econômi-
cos produzidos pela pandemia da COVID-19, os profissionais da educação e os
estudantes ainda precisam lidar com os desafios impostos pelo ensino remoto.
116
6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades
A roda de conversa pode ser a “pausa para a criação” que todos nós pro-
fissionais da educação necessitamos fazer. Pode ser a utopia imperfeita, mas
ainda assim bonita. Pode ser a resposta incompleta, mas ainda assim a mais
feliz.
Referências
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Censo
da Educação Superior 2018: notas estatísticas. Brasília, 2019.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Censo
da Educação Básica 2019: Resumo Técnico. Brasília, 2020.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1997.
GARCIA, Regina Leite; ALVES, Nilda. Sobre a formação de professores e professoras: questões
curriculares. In: LIBÂNEO, José Carlos; ALVES, Nilda. (Orgs.). Temas de pedagogia: diálo-
gos entre didática e currículo. São Paulo: Cortez, 2012.
GRANDISOLI, Edson; JACOBI, Pedro Roberto; MARCHINI, Silvio. Educação, docência e a
COVID-19. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, USP
Cidades Globais. 2020.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais: uma análise
das condições de vida da população brasileira: 2019 / IBGE, Coordenação de População e
Indicadores Sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.
INSFRAN, Fernanda Fochi Nogueira. Grupos de reflexão na escola: contribuições da abordagem
centrada na pessoa para a psicologia escolar. Revista do Nufen. Ano 03, v. 01, jan/jul. 2011.
PIMENTA, Selma Garrido. Formação de professores: identidade e saberes da docência. In: PI-
MENTA, Selma Garrido. (Org). Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cor-
tez, 1999. p. 15-34.
PIMENTA, Selma Garrido; ANASTASIOU, Léa das Graças Camargos. Docência no ensino su-
perior. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2014.
NÓVOA, Antônio (Coord.). Os professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992.
117
7
Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação
Tiago Afonso Sentineli
Fernanda Insfran
Resumo
O presente capítulo tem como objetivo trazer uma reflexão sobre a tradicional
relação entre famílias e escolas e sobre o contato entre professores/as e famílias,
que antes da pandemia ocorria, na maioria das vezes, através do intermédio das
gestões escolares. Este contato, termo que nos é fundamental no sentido de definir
o que está acontecendo neste tempo presente, adquiriu outras nuances e significa-
dos com a pandemia. Para isso, partimos da escuta de uma aluna, em sofrimento
com a condição remota imposta às suas experiências escolares, para trazer falas de
professores/as e famílias sobre as relações entre professores/as, alunos/as, famílias e
escolas. Com a ajuda de autoras/es principalmente da psicologia escolar crítica bus-
camos compreender essas falas em meio às tensões que marcam estas relações em
constante conflito e culpabilização mútua. Por fim, entendemos que o momento
118
que estamos atravessando contribuiu, em alguns contextos, para estabelecer uma
relação/contato mais próximo entre professores/as, alunos/as e famílias. Ainda que
esta relação tenha surgido em função das dificuldades/atropelos do ensino remoto,
se apresenta como esperança de melhoria no diálogo entre professores/as e famí-
lias, fundamental para a superação de estigmas, preconceitos, falta de empatia e
para o combate ao inimigo comum, o sistema e suas amarras hegemônicas.
Introdução
Desde que começamos a gestar esse livro – planejar os temas que gostaríamos
de abordar, convidar os/as autores/as – sentíamos a necessidade de trocar com
estudantes e suas famílias, afinal as dores do ensino remoto estavam refletindo em
todas as pessoas envolvidas nesse “pandemônio”. Passados alguns meses desde o
início deste projeto, já quase estourando o limite que nos impusemos para finali-
zá-lo, eis que fomos capturados pela angústia de uma adolescente, aluna de uma
escola particular do interior do Rio de Janeiro, que após cinco meses de afasta-
mento social e aulas remotas não estava conseguindo participar dessas atividades.
Além da conversa com Lívia, que aconteceu entre ela e Tiago por videoconfe-
rência, encaminhamos algumas perguntas para a família desta aluna, através do
WhatsApp® da mesma. As outras famílias foram contactadas através de um gru-
po de WhatsApp®. A mãe de Lívia e outras seis mães deste grupo responderam
1. Nome fictício da aluna de Tiago, que é coautor deste capítulo e coorganizador deste livro. Pre-
ferimos não usar o nome civil da adolescente, apesar de autorizado por ela e sua família, para
preservar seu anonimato.
119
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
120
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação
121
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Não intencionamos esgotar essa discussão aqui, porém nos interessa enfa-
tizar que as tantas adversidades e (cada vez mais) precariedades do cotidiano
de trabalho e vida dos/as docentes colaboram ainda mais para esse distan-
ciamento com relação às/aos estudantes e suas famílias. São professores/as
desmotivados/as, frustrados/as, desvalorizados/as social e financeiramente,
sobrecarregados/as de tarefas e também de percepções negativas arraigadas
sobre esse outro tão distinto de si e de seu sistema de referências (INSFRAN et
122
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação
al., 2020). São professores/as que não conseguem estender um olhar empático
para enxergar injustiças, desigualdades e a falácia da meritocracia, pois não
lhes é dado o direito a uma formação inicial (e muito menos continuada) crí-
tica. E estão cada dia mais soterrados/as com burocracias, ementas, apostilas e
diversas restrições à autonomia docente e à produção de conhecimento.
123
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Das muitas questões que fizeram parte da pesquisa respondida por estes
1407 docentes de educação básica (foram 39 questões no total), selecionamos
três questões abertas que tratam especificamente da relação dos professores
com seus/suas alunos/as e as famílias destes/as. Essas questões tiveram suas
respostas categorizadas a partir do método de Análise de Conteúdo (BAR-
DIN, 1977) com a ajuda de um software criado pelos membros do nosso gru-
po de pesquisa para agrupar as respostas a partir de palavras-chave.
124
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação
125
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Nos chamou atenção respostas como “não podemos responder aos pais” e
“a escola não autoriza que os profs tenham contato com os pais”, que demons-
traram haver interesse dos/as professores/as em estabelecer uma relação com
as famílias e que isso não era permitido pelas escolas.
Infelizmente a escola onde trabalho optou por não
termos contato com os familiares, não passam ne-
nhum feedback dos pais (professora branca, entre 20
e 30 anos, com nível superior, a menos de três anos
trabalhando na educação básica privada).
126
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação
2. Algumas Assembleias Legislativas aprovaram leis para obrigar as instituições de ensino pri-
vadas a reduzir as mensalidades durante o período de vigência do estado de calamidade
pública, causado pela pandemia da COVID-19. No caso do estado do Rio de Janeiro, a Alerj
aprovou a Lei nº 8864/20, que foi sancionada em 4 de junho de 2020 (ALERJ, 2020). A res-
posta da participante ocorreu em 29 de abril de 2020.
127
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
128
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação
auxiliar de saúde bucal. Ela está cursando o nono ano do ensino fundamental.
Tiago é seu professor de História desde o sexto ano do ensino fundamental.
Ela sempre foi uma aluna de bom rendimento escolar, participativa, autôno-
ma, crítica, segura, proativa, líder na sala de aula e muito exigente consigo
mesmo. Sua família sempre a acompanhou ao longo desses anos e sempre se
demonstrou presente na vida escolar da filha. Ou seja, dentro daquele modelo
ideal de aluna descrito por Patto (2005) e citado por nós acima, Lívia é uma
aluna que possui as condições fundamentais que a maioria dos professores
espera de seus alunos/as.
129
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Notamos uma total descrença dela em relação à forma como tem estudado
e tentado aprender. E, com isso, uma consequente frustração. Ela nos falou
que não vê o ensino remoto com os mesmos olhos que o ensino presencial em
termos de qualidade. Lívia disse que:
[...] é como se a gente tivesse só aprendendo o bá-
sico pra poder não ficar sem nada. Mas, cara, uma
aula presencial faz muita falta! Nossa! Eu acho que eu
nunca tinha sentido tanta falta de uma aula presen-
cial na minha vida inteira!
130
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação
131
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Achamos que seria interessante, além da conversa com a mãe de Lívia (que
terminou sendo uma troca de mensagens pelo WhatsApp® da adolescente,
onde a mãe respondeu por áudio às perguntas de Tiago), fazer perguntas para
outras famílias com as quais Tiago tinha contato direto. As mães da turma de
sexto ano do fundamental II criaram grupos de WhatsApp® específicos por
disciplina para que houvesse uma comunicação direta com as professoras e
os professores, no sentido de acompanhar e atender as demandas cotidianas
do ensino remoto. Vale marcar que grupo é formado majoritariamente por
mães - apenas dois pais fazem parte - e a iniciativa e interesse de criá-lo partiu
delas, num sentido de facilitar e viabilizar a comunicação neste momento em
que famílias e docentes sentiram a necessidade de se aproximar para alcançar
objetivos em comum. Aproveitando a oportunidade da existência desse canal
de diálogo direto e mais informal e, também, com o objetivo de abrir espaço
para diferentes e variadas falas, resolvemos levar algumas questões para este
grupo e ouvir o que essas mães tinham a dizer sobre o ensino remoto. Como
dito anteriormente, as questões levadas para o grupo, no que tange às relações
família-escola, convergem com as questões que levamos para os professores
no questionário que compõe a pesquisa.
132
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação
Pensando a respeito de tudo que nos aconteceu e nos atravessou neste tra-
jeto até aqui notamos uma particularidade que ficou evidenciada nas respos-
tas dos/as professores/as ao questionário, no relato da aluna Lívia e no nosso
contato com as mães. A pandemia, de forma irônica e contraditória, propor-
cionou uma maior aproximação e intimidade entre docentes, discentes e suas
famílias.
133
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
luta nessa arena, que não haja consciência e a consequente transformação das
relações e do sistema (PATTO, 2015).
O sofrimento da aluna Lívia foi um desses gatilhos que nos fez pensar um
pouco além da esfera de atuação das/os professoras/es, levando nossa dis-
cussão para o campo das subjetividades dos/as educandos/as, suas famílias
e as relações professores/alunos/famílias/escola. Este caso nos fez estabele-
cer ligações entre as falas da pesquisa, o comportamento da aluna frente ao
ensino remoto, a atitude do professor diante da reação de Lívia e a reação
da família diante do acolhimento e abertura do professor. A intensidade e
frequência com que essas relações ocorrem é fundamental para o desenvol-
vimento humano! E pensar em como estão essas relações neste momento é
fundamental!
134
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação
Da mesma forma, sem diálogo e uma relação efetiva, famílias têm difi-
culdade para entender que a celebrada reinvenção das formas de ensinar e
aprender teve/ está tendo um custo alto para os/as professores/as. Não houve
reinvenção sem que houvesse (ainda mais) sobrecarga e adoecimento, preca-
riedade, desespero, assédios, opressões, terrorismo do sistema para com os/as
profissionais de educação…
Referências
ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JAENIRO (ALERJ). Agora é lei: men-
salidades escolares deverão ser reduzidas durante a pandemia. Alerj, 4 de junho de 2020.
Notícias. Agora é lei: mensalidades escolares deverão ser reduzidas durante a pandemia. 4
de junho de 2020. Disponível em: http://www.alerj.rj.gov.br/Visualizar/Noticia/48831?Aspx
AutoDetectCookieSupport=1 Acesso em: 30 jul. 2020.
ASBAHR, Flávia da Silva Ferreira; LOPES, Juliana Silva. “A culpa é sua”. Psicol. USP, São Paulo,
v. 17, n. 1, p. 53-73, mar. 2006.
135
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
INSFRAN, F. F. N. A formação de professores num contexto neoliberal: como resistir? In: LE-
MOS, F. C. S. et al (Orgs.). Conversas transversalizantes entre psicologia política, social-
-comunitária e institucional com os campos da educação, saúde e direitos. v. 7, 1. ed.
Curitiba: CRV, 2017, p. 191-198.
LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Coleção: Experiência e Sentido. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015.
SOUZA, M.P.R. Políticas Públicas e Educação: desafios, dilemas e possibilidades. In: VIÉGAS,
L. S.; ANGELUCCI, C. B. (Orgs.). Políticas Públicas em Educação. Uma análise Crítica a
partir da Psicologia Escolar. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011. p. 229-243.
THIN, D. Para uma análise das relações entre famílias populares e escolas: confrontação entre ló-
gicas socializadoras. Revista Brasileira de Educação, v. 11, n. 32, p. 211-225, mai./ago. 2006.
136
8
Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a
recursos públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família
Priscila Tavares dos Santos
Michelle Lima Domingues
Resumo
137
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Introdução
1. O Curso EPDS/UFF teve como coordenador geral o Prof. Celso José da Costa (COMFOR) e
como vice-coordenador o Prof. Rolf Ribeiro de Souza (do Instituto do Noroeste Fluminense
de Educação Superior (INFES) e contou com financiamento do Fundo Nacional de Desen-
volvimento da Educação (FNDE).
2. A proposta do Curso EPDS se insere no contexto da Política Nacional de Formação dos Pro-
fissionais do Magistério da Educação Básica e da Rede Nacional de Formação Continuada
dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública (Renafor), ambas instituídas
pelo Decreto n° 6.755, de 29 de janeiro de 2009 e pela Portaria Ministerial n° 1.328, de 23 de
setembro de 2011.
138
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família
3. A IEPDS foi implantada, na primeira fase (2014), nas seguintes instituições: UFRN, UFBA,
UFC, UFMA, UFPI, UFES, UFMG, UFPA, UFPR, UFSC, UFRR, UFPE, UFMS, UFAM,
UFT e, na segunda fase (2018) em mais 11 universidades: UNB, UFMT, UFSE, UFAC,
UFMA, UFPB, UFAL, UFGO, UFRS e UFF.
139
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Neste sentido, inseridos nas escolas públicas, escolas dedicadas aos pobres
(ARROYO, 2019), permanecem ameaçados pela pobreza e são negativamente
marcados por esta imposição. O sistema escolar desempenha papel central
neste processo simbólico de reprodução de limites a outras formas de inserção
dos estudantes considerados pobres pela sua adjetivação em termos de carên-
cia e ausência, tendo como parâmetro outros segmentos da sociedade que pela
oposição cultural a esta caracterização são idealizados (BOURDIEU, 2011).
140
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família
discurso que tem ecoado a partir dos porta-vozes de diferenciadas políticas pú-
blicas e daqueles que têm se posicionado contrariamente à escola pública. Ora,
ser estudante de escola pública, valendo-se da agregação ou incorporação de
condições de possibilidade contextuais para elaboração de projetos de vida, não
significa que outros projetos não possam ser elaborados. Contudo, muitos des-
ses discentes permanecem na condição de pobreza e de vulnerabilidade por mo-
tivos que, dentro do universo do recorte desta pesquisa, buscamos considerar.
O mapeamento dos recursos públicos que os beneficiários do PBF têm acesso
permite compreender as condições de constituição desses sujeitos adjetivados
e assim reconhecidos “pobres” na diversificação de estratégias de reprodução
social.
O Curso EPDS oferecido pela UFF contou com a participação de 370 cursis-
tas associados ao desempenho de funções administrativas e pedagógicas, reali-
zadas por coordenadores e auxiliares estaduais e municipais do PBF, distribuí-
dos em diversas regiões administrativas do estado.4 Como parte das atividades
do Curso, os cursistas foram estimulados a realizarem um trabalho de levan-
tamento de dados relativos a benefícios sociais recebidos junto aos estudantes
beneficiários do PBF nas unidades de ensino nas quais atuavam, os quais, em
atendimento aos critérios estabelecidos pela Secadi/DPEDHUC, constituíram
o universo social da pesquisa. Foram então aplicados 735 questionários, sendo
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família
9. No ano de 2019, o benefício foi interrompido por decisão do Governo do Estado do Rio de
Janeiro.
10. Este valor corresponde ao valor da faixa 1 do Programa no ano de 2018, ano em que ocorreu
o curso EPDS.
145
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
146
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família
Em seguida são citadas as despesas com material escolar e vestuário que cor-
respondem respectivamente a 35% e 34% das formas de utilização. O trans-
porte está em quarto lugar, sendo representado por 18% dos beneficiários.
147
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
148
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Algumas considerações
Como vimos, a pesquisa realizada pelos cursistas do Curso EPDS com estu-
dantes da rede pública de ensino do Rio de Janeiro, todos beneficiários do PBF,
apontam não apenas para a centralização geográfica deste programa social e de
outros programas educacionais que possam ser complementares à política pú-
blica de erradicação da pobreza geridos pela instituição escolar, mas também
busca problematizar o monopólio deste controle institucional sobre a legitimi-
dade do acesso e manutenção dos respectivos benefícios a partir de critérios e
condicionantes que obstaculizam um olhar mais articulado e crítico sobre as
desigualdades sociais que possam impactar a vida destes estudantes reconheci-
dos como pobres. Para tanto, não buscamos excluir os membros da comunida-
de escolar desta discussão e negar-lhe o devido protagonismo, mas justamente
contribuir com ferramentas teórico-metodológicas que possam qualificar sua
participação no necessário processo de relativização do lugar social ocupado
pelos discentes na construção de uma sociedade justa e democrática.
150
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família
151
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família
denúncia da baixa frequência dos estudantes nas aulas remotas, nos quais são
responsabilizados os então tutelados e suas famílias pelo não atendimento às
novas demandas impostas pela chegada do novo coronavírus.
153
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Referências
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154
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família
155
9
“A vida não pode parar”: desafios da população periférica
no desenvolvimento de comunidades remotas de ensino-
aprendizagem
Bruna Damiana Heinsfeld
Breno Laerte Pacífico Pinto
Resumo
156
Neste ensaio, discutimos o papel da educação popular e dos pré-vestibulares
comunitários, tendo como base a pedagogia engajada, da autonomia e da liber-
tação, aprofundando nos desafios enfrentados e nas ações tomadas por docentes
e discentes dessas instituições durante a pandemia de 2020, tendo como recor-
te o caso do pré-vestibular UniFavela – Semeando o ensino popular, situado no
Complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro.
157
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Podemos dizer que, de modo geral, a educação popular traz como princípio
fundamental a educação libertadora: uma pedagogia engajada no entendimento
do outro, em uma rede mútua de ensino-aprendizagem que, para se consolidar,
imprescinde de uma relação entre pares. Nesse modelo, substantivamente de-
mocrático e contextualizado com a realidade dos atores do fazer educacional,
torna-se constante o exercício prático de enxergar tanto educador quanto edu-
cando como sujeitos ativos, permitindo, assim, uma relação dialógica.
1. Ao longo deste texto apresentaremos o nome da autora bell hooks com a grafia em letras
minúsculas, formato elencado pela própria pesquisadora visando dar destaque ao conteúdo
desenvolvido em suas obras e não a sua pessoa.
158
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem
159
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Cabe reforçar, contudo, que embora a educação popular como prática pe-
dagógica engajada seja amplamente adotada pelos pré-vestibulares comuni-
tários e sociais, suas identidades não são definidas apenas por suas práticas
metodológicas, uma vez que cada organização carrega consigo nuances e es-
pecificidades únicas, compreendendo o educando nas suas múltiplas relações
com a sociedade.
160
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem
em 2017 era de 43,2%. Isso significa que a taxa de acesso ao nível superior no
Complexo de favelas da Maré por estudantes que finalizaram o Ensino Médio
chega a ser mais de vinte vezes inferior à média nacional. Esse é um forte
indicativo de que as ações governamentais e as políticas públicas de ações afir-
mativas vigentes não atendem a essa população.
Dessa realidade, que pode ser extrapolada para demais favelas e periferias
do estado do Rio de Janeiro, emerge a iniciativa da sociedade civil de cons-
tituir pré-vestibulares comunitários e sociais no território da Maré, visando
minimizar a lacuna deixada pela educação pública, buscando a ampliação do
acesso da população favelada e periférica ao Ensino Superior. Hoje, existem
três pré-vestibulares comunitários e sociais que atendem a essa população:
Curso Pré-Vestibular CEASM, localizado no Morro do Timbau, Curso Pré-
-Vestibular Redes da Maré, na favela da Nova Holanda, e o Pré-Vestibular Co-
munitário UniFavela atuando também na favela da Nova Holanda, projeto que
tomamos como recorte para o presente ensaio.
161
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
162
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem
163
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Para que fosse possível melhor compreender o contexto dos docentes vo-
luntários da UniFavela e sua relação com o ensino remoto, aplicou-se um
questionário, respondido por todos os docentes da instituição. O foco do
inquérito era o acesso aos recursos digitais, a fluência com esses recursos,
a experiência prévia com aulas a distância e o quão preparados se sentiam
para conduzir aulas remotamente. A seguir, detalhamos e comentamos os
resultados obtidos.
164
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem
Por fim, foi perguntado aos docentes se eles teriam interesse em partici-
par de encontros virtuais de formação continuada, com temas voltados para o
planejamento didático com uso de tecnologias, tendo 90% dos docentes ma-
nifestado interesse.
165
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
As ações para além da sala de aula nas quais o projeto UniFavela tomou
parte foram: a instalação de serviços de internet banda larga para estudan-
tes que não possuíam nenhum tipo de acesso; a mobilização de parceria com
equipe de psicólogos para atendimento de estudantes e docentes; e a distribui-
ção de cestas básicas e álcool em gel à comunidade. Comentaremos brevemen-
te cada uma dessas ações a seguir.
166
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Considerações finais
168
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem
Referências
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Disponível em: https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/CensoMare_
WEB_04MAI.pdf. Acesso em: 16 ago. 2020.
169
10
A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-
branca em meio ao ensino remoto nos cursos de Psicologia
Alexandre Trzan-Ávila
Resumo
O objetivo deste capítulo foi compreender como os corpos que fogem à cishe-
terossexualidade-branca, se tornaram ainda mais invisbilizados e silenciados na
realidade do ensino superior de Psicologia na modalidade remota justificada pela
pandemia de COVID-19. A análise aqui empreendida revela que a adoção por
vezes indiscriminada do ensino remoto no ensino superior de Psicologia no Brasil
justificada pela pandemia de COVID-19, proporcionou a ampliação de quadros
de invisibilidade e silenciamento de corpos de pessoas negras, trans, periféricas,
faveladas, gays e lésbicas, que agora não mais circulam nos ambientes físicos das
instituições, sendo assim, não desafiam mais a partir de suas existências o precon-
ceito e moralismo de gestores, coordenadores, professores e estudantes cisheteros-
sexuais-brancos.
170
O novo Coronavírus causador da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2
(SARS-CoV-2) mais conhecida como COVID-19 constituiu uma emergência de
saúde à nível internacional pela Organização Mundial de Saúde (OMS), vindo a
se afirmar como uma pandemia. A OMS sugeriu que o mundo deveria parar e se
isolar para lentificar o processo de contaminação e não sobrecarregar os sistemas
de saúde, públicos e privados. Então, de forma abrupta essa pandemia colocou
a grande maioria da população brasileira de quarentena, dentro de suas casas e
limitou drasticamente toda e qualquer atividade fora do lar, inclusive profissional
e educacional, afetando assim milhões de estudantes e milhares de professores em
todo o país.
Em um mundo que não pode parar, onde a demanda por produção e os inte-
resses econômicos são imperativos, um número incontável de estabelecimentos de
ensino implantaram (ou ampliaram drasticamente) o ensino remoto, o que gerou
outro incontável número de problemas, ocultamentos e violências para muitos dos
envolvidos.
O que nós educadores temos visto muitas das vezes é uma completa negli-
gência e despreocupação sobre os reais impactos advindos da ampla implantação
do ensino remoto no Brasil, isso tudo em meio a um cenário de mais de cem mil
mortos pela COVID-19, crise da democracia brasileira e retrocessos que nos to-
mam de assalto no campo da educação, meio ambiente, saúde e políticas públicas.
A adoção do ensino remoto diante de um cenário de instabilidade política e sani-
tária, isolamento social e crise das instituições, fragiliza ainda mais os estudantes,
professores, pais e demais envolvidos nos processos de educação em nosso país, e
como veremos, há uma parcela bem específica que é ainda mais prejudicada.
171
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Por outro lado, o simples questionamento proposto aqui para muitos, soa
como absurdo, leviano e pouco realista, pois, para eles, questionar o caráter
histórico e os jogos de poder que moldam as pessoas, instituições e suas re-
lações não parece possível. Para eles, há somente “o que é e tem que ser”, e
tem que ser ao modo que é, ou seja, para eles nosso mundo “é o que é”, e não
adianta questionar. Esta postura, por fim irá justificar as práticas de correção,
adaptação e violência no ambiente educacional.
172
10 – A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-branca
em meio ao ensino remoto nos cursos de Psicologia
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
174
10 – A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-branca
em meio ao ensino remoto nos cursos de Psicologia
Consideramos que não há educação neutra, que não tratar de temas como
pensamento colonial, violência de gênero, homofobia e transfobia já é perpe-
tuar a lógica colonial, machista, misógina e LGBTIfóbica.
O que está em jogo nesta realidade é algo que Butler (2016, p. 19) tra-
balhou no seu livro “Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto”
de 2009, no título dessa obra a autora nos remete à ideia de “enquadramen-
tos” que “são constituídos variável e historicamente”. Essas classificações são
modos de separar e diferenciar as vidas que podem ser reconhecidas como
vidas e vidas que dificilmente — ou, melhor dizendo, nunca — são reconhe-
cidas como vidas. A condição para ser reconhecido “não é uma qualidade ou
potencialidade de indivíduos humanos” (BUTLER, 2016, p. 19). Compreen-
der como essas normas operam através de enquadramentos classificatórios
é importante para nós, de modo a esclarecer porque alguns indivíduos são
175
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
176
10 – A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-branca
em meio ao ensino remoto nos cursos de Psicologia
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
178
10 – A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-branca
em meio ao ensino remoto nos cursos de Psicologia
Por fim, não temos dúvidas de que há uma infinidade de problemas rela-
cionados ao ensino remoto, tais como: o desgaste físico e emocional que isso
vem provocando nos professores. Muitos estão trabalhando dobrado, triplica-
do – além do trabalho já comum a prática docente, os professores agora têm
de se desdobrar em reuniões e formações pedagógicas online, preparar mate-
rial didático escrito, gravar vídeo aulas e editá-las, estar disponíveis aos alunos
e dar-lhes assistência via plataformas ou grupos de WhatsApp®. Em meio a
toda precarização da educação, ficou ainda mais evidente o gritante problema
de todo sistema educacional, indistintamente, na apropriação e utilização das
elencadas ferramentas de TIC, EaD ou e-learning, e também, os interesses dos
grupos educacionais privados e a precarização do ensino público alinhado ao
descaso do Estado com a educação pública, ao não suprir as necessidades mí-
nimas de formação ampla e universal dos professores e necessidades materiais
(equipamentos, logística e financiamentos), muito provavelmente com fins de
privatizar a educação pública em futuro próximo.
179
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
passividade ou pura rebelião. Que não estejamos aqui para simplesmente es-
tudar, trabalhar ou sobreviver, mas para sonhar, existir e construir história.
Referências
ASSOCIAÇÃO Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Mapa dos assassinatos de Tra-
vestis e Transexuais no Brasil em 2017. Brasil. Disponível em: 2018, de https://antrabrasil.
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BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. 13. ed. Belo Horizonte: Autên-
tica, 2017.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1996.
180
10 – A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-branca
em meio ao ensino remoto nos cursos de Psicologia
LIMA, Andréia Moreira. Gênero, diversidade sexual e Psicologia: reflexões sobre a formação
das(os) psicólogas(os). In: Psicologia, gênero e diversidade sexual: saberes em diálogo.
Belo Horizonte: CRP-MG, 2019.
181
11
Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes no
ensino superior: algumas reflexões1
Marilda Gonçalves Dias Facci
Nilza Sanches Tessaro Leonardo
Eloisa Rocha de Sousa Alves
Resumo
1. Esta pesquisa contou com financiamento do CNPq por meio de Bolsa de Produtividade em Pes-
quisa e Bolsa de PIBIC.
182
do estado do Paraná, com foco no uso que docentes fazem de medicamentos. Ini-
cialmente, faremos uma breve discussão sobre as relações de trabalho e sofrimento/
adoecimento, tomando como referência a Psicologia Histórico-Cultural; na sequ-
ência apresentaremos os resultados da pesquisa, realizada por meio da aplicação de
questionários. Participaram do estudo 67 docentes da área de Ciências Humanas.
As informações obtidas revelam que a maioria dos docentes (66%) possui algum
tipo de doença, sendo as mais citadas a ansiedade e a depressão; 68,66% já fizeram
uso de algum medicamento nos últimos 12 meses e 41%, dos professores trouxe-
ram as condições do trabalho como sendo as determinantes em seu adoecimento.
Tomando por base esta pesquisa, em que os professores foram entrevistados an-
tes da pandemia da COVID-19, já obtivemos como resultados o adoecimento e a
medicalização. Desse modo, temos aberta a possibilidade de inferirmos que muito
provavelmente os professores estejam “adoecendo” ainda mais, e obviamente bus-
cando nos remédios o alívio das dores e dos sofrimentos provocados pelo momento
dessa trágica pandemia que estamos atravessando. Urge, portanto, compreender o
sofrimento/adoecimento em sua totalidade, nas relações sociais, e, coletivamente,
buscar alternativas para que o trabalho contribua mais para o processo de humani-
zação dos docentes.
Introdução
183
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Sofrimento/adoecimento e o trabalho
184
11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões
185
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
biológicas. Sendo assim, não pode haver existência social sem trabalho.” No
entanto, na relação de produção capitalista ocorre um estranhamento, um
processo de alienação, que pode contribuir para o adoecimento.
Assim, os trabalhadores acabam sendo guiados por ações que levem a suprir
as suas necessidades básicas, deixando de lado a unidade consciente entre mo-
tivos e fins. Executam o trabalho, mas somente para terem recursos financeiros
para gastos com a sobrevivência, sem ascender ao gênero humano, ou seja, sem
se apropriar da riqueza do que é produzido pelos homens historicamente.
186
11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões
187
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Piolli, Silva e Heloani (2015) corroboram com essas ideias que vêm sendo
apresentadas e entendem que a lógica de expansão do ensino superior, sob
condições precárias, assim como o produtivismo que impera na pós-gradua-
ção, intensifica os meios de controle e eleva as responsabilidades dos profes-
sores. O professor universitário é avaliado pela produção bibliográfica, mas,
como discute Lemos (2011), além de dar aula e pesquisar, ele tem que executar
uma multiplicidade de tarefas e ainda captar recursos internos e externos para
a pesquisa – fatores que interferem na saúde mental.
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11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões
189
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Vale frisar também que houve professores que responderem que apresen-
tam mais de uma doença. Outras enfermidades, como, por exemplo, tendini-
te, dores musculares, oclusão por tensão, artrose, dores articulares, lombares
e nos pés e pernas, hérnia, nostalgia parestésica, asma, apatia, oscilação de
humor, fobia em sala de aula, síndrome do pânico, síndrome de Burnout,
Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), etc. foram citadas pelos professo-
res apenas uma vez.
190
11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões
Por meio dos dados obtidos na pesquisa, foi possível constatar que 68,66%
dos professores fazem ou já fizeram uso de algum medicamento nos últimos
12 meses. Esse resultado mostra a quantidade expressiva de docentes que es-
tão fazendo uso de remédios para resolverem algum problema de saúde. As-
sim, podemos asseverar que, muito provavelmente, esses profissionais estão
buscando aliviar um sofrimento, que acreditam ser decorrente de doenças
físicas ou psicológicas, por meio de medicação.
191
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Sobre esse aspecto trazemos a pesquisa publicada pela Folha de São Paulo,
que aponta que o medicamento Rivotril® (utilizado no tratamento de transtor-
nos de humor e ansiedade, entre outros sintomas psiquiátricos) encontra-se
na 8ª colocação entre os dez medicamentos mais vendidos no Brasil, confor-
me levantamento feito entre os anos 2011 e 2012 (MISMETTI, 2012). Nessa
mesma direção temos o estudo de Oliveira (2014), que assinala que no Brasil
a venda de calmantes, como Rivotril®, Valium® e Lexotan®, subiu 42% entre
os anos 2009 e 2013, momento no qual o número de caixas vendidas desses
psicotrópicos saltou de 12 milhões para 17 milhões.
192
11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões
Meira (2019, p. 193) também se posiciona fazendo uma crítica a esse olhar
descontextualizado dos problemas “que são visivelmente decorrentes do modo
193
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
de vida da sociedade capitalista”, e que, como frisa a autora, estão sendo vistos
e entendidos a partir de uma perspectiva biológica/orgânica.
194
11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões
2. “Termo usado quando algo que não é naturalmente de âmbito médico passa a ser tratado
como tal” (CAMPOS; SANT’ANA, 2019, p. 69).
3. ‘Termo usado quando algo que não é de âmbito farmacêutico, ou seja, relacionado a medi-
camentos, passa a ser tratado como tal” (CAMPOS; SANT’ANA, 2019, p. 69).
195
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Considerações finais
Isso aconteceu porque não tinha (e ainda não tem) nenhuma vacina e/ou me-
dicamento específico para impedir a proliferação do vírus e da doença. Ainda
impera a informação de que o distanciamento social é o mais recomendado por
especialistas para o combate à COVID-19, por isso, desde as primeiras notícias,
foi iniciado um processo de quarentena. Dentre os vários setores da economia
que foram inclusos na quarentena, foi incluída a instituição escolar, por isso prati-
camente todas as escolas públicas e privadas suspenderam suas aulas presenciais
e a maioria iniciou o processo de ensino remoto. Então, de forma brusca, profes-
sores e alunos tiveram que se adequar a esse novo modelo de ensino e de trabalho.
196
11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões
197
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Bom, para além desse desânimo, temos diversos desafios à frente, e não são
poucos, por isso faz-se mister não paralisarmos ante estes problemas, mas conti-
nuarmos a luta, de forma a não permitir retrocessos em conquistas já efetuadas,
sobretudo no campo das políticas públicas em saúde e educação. A coletividade,
a luta pelo bem comum, do nosso ponto de vista, deve ser o motivo da nossa ação.
A luta é pela formação do novo homem, que, como afirma Vygotsky (2004), só
será formado se as condições de trabalho, entre outros pontos, forem alteradas.
Referências
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11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões
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200
12
Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações
Anelise Lusser Teixeira
Resumo
201
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Introdução
Deste modo pandemia e educação não são termos dados, acabados, que po-
dem ser aprisionados em demarcações estanques, ao contrário dependem de
definições que consideram o lugar do qual falamos, daquilo que acreditamos e
dos valores que sustentamos. É importante então, apontar que eu falo do lugar
de professora de Psicologia de uma instituição de ensino privada e de coordena-
dora da comissão de estudantes do CRPRJ (Conselho Regional de Psicologia),
que me possibilita trocas informais com muitos docentes e alunos de Psicologia.
202
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações
203
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Ainda que esse micro-organismo não escolha cor ou classe social, as con-
dições da população para executar as regras de saúde e se defender do con-
tágio expões nossas históricas desigualdades. Nas favelas, o fornecimento de
água segue irregular, a despeito do fato da higiene básica ser essencial na pre-
venção da epidemia. Essas habitações da população empobrecida, com pouca
ventilação e espaços reduzidos, são ocupadas por famílias numerosas, o que
tornam impossível a prática de isolamento da população de risco. Esta parcela
da população, já alijada dos direitos trabalhistas, segue utilizando transporte
público precário e superlotado no deslocamento para o trabalho que agora
redefine como essencial toda e qualquer atividade lucrativa, por pessoas que o
exigiram em carreatas de carros de luxo3. Todos esses fatores desembocam em
um sistema de saúde já precarizado, terceirizado em contratos suspeitos, com
poucos leitos, pessoal e equipamentos.
O resultado não poderia ser outro. O Brasil, que sustenta a triste marca de
ter o segundo maior número absoluto de mortes no mundo (atrás apenas dos
EUA)4 e uma das maiores taxas letalidade5, expõe aí também sua desigualda-
de. Um estudo da Fiocruz aponta que em vez da faixa etária, como em muitos
países, é o endereço que passa a definir a letalidade da doença. O bairro mais
pobre de São Paulo, a Brasilândia, chega a contabilizar um número de mortes
quase dez vezes maior do que o Morumbi, o bairro mais rico da mesma cida-
de6. Outro estudo aponta que a mortalidade no SUS chega a ser o dobro da
dos hospitais privados7. Como nossa desigualdade pré-existente, o contágio
também obedece à critérios raciais, matando mais negros que brancos8.
204
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações
205
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Segundo uma pesquisa feita pelo IFMG com discentes de cursos da área
da saúde, o sofrimento psíquico aflige 30% dos estudantes brasileiros. Essa
mesma pesquisa indica que os números internacionais apontam 49,1%, ou
seja, um a cada dois universitários não está com boa saúde mental (GRANER;
CERQUEIRA, 2019). Um outro estudo da USP refere que 41% dos estudantes
de medicina brasileiros sofrem do mesmo mal e que 1 em cada três alunos de
pós-graduação sentem-se deprimidos ou ansiosos (MAYER, 2017).
206
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações
Essa nova lógica relacional se contrapõe à ideia de ciência como uma cons-
trução coletiva baseada na cooperação, gerando um clima de competição que
mina a relação entre o trabalho e o docente, e deste com os alunos, que sentem
essa desmotivação como mais um desestímulo. Ao mesmo tempo, se repro-
duz, dentro do alunado, as mesmas relações de competitividade impostas aos
207
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
208
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações
209
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
210
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações
Educação e Pandemia
211
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
212
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações
Nos grupos e reuniões, sentimos o terror pelos colegas cada vez que al-
guém tinha sintomas de gripe ou era confirmado com COVID-19, escuta-
mos os relatos cada vez mais frequentes de contágio e perdas de parentes
e nos solidarizamos às famílias atingidas, sem que ninguém se afastasse do
trabalho por muito tempo. Alguns colegas compartilhavam a dificuldade do
espaço de casa, outros as dificuldades com os cuidados com os filhos, agora
coabitando integralmente no mesmo espaço doméstico, outros anunciavam
a mudança para um espaço maior, muitos compraram novos equipamentos
e todos aumentaram a velocidade da internet. Esse custo, claro, foi assumido
sem titubeio pelos docentes, que agora compartilham o receio de não con-
seguir dar aulas por dificuldades técnicas e consequentemente ser detectado
ou punido, o medo ainda mais avassalador do desemprego e a preocupação
constante com uma volta precipitada ao trabalho e os consequentes riscos de
contaminação.
213
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Foi ficando evidente que essa nova modalidade de ensino, justificada pela
urgência de crise sanitária, baseava-se numa dupla redução. A primeira, que
toma a educação pela simples transmissão de conhecimentos, e que conduz,
consequentemente, à segunda, onde a mudança nos estágios e aulas práticas
é reduzida a uma simples mudança de ambiente. Sobre a primeira, é possível
indicar que ela foi se consolidando à medida que assumíamos como nossa
principal preocupação o cumprimento dos protocolos (formulários, treina-
mentos, reuniões etc) exigidos pela instituição e nos afastávamos dos alunos,
admitindo para nós mesmos que não tínhamos como controlar o uso que es-
tes faziam do conhecimento que estava sendo transmitido. Sobre a segunda, o
que se viu no seminário foram exclamações pragmáticas que demandavam a
solução dos problemas individuas de cada um dos agentes: os alunos queren-
do se formar, os supervisores desejando suas turmas e, consequentemente, a
manutenção do seu trabalho remunerado por hora e os coordenadores plane-
jando a manutenção de um curso atrativo. Aqui observou-se uma clara divisão
entre os atores oriundos do espaço público e o espaço privado, onde os agentes
advindos do ensino privado se preocupavam apenas com a regulamentação do
atendimento online e os profissionais provenientes do ensino público expres-
savam uma extrema preocupação com a qualidade dos profissionais formados
em seus espaços e com a preservação da diversidade da psicologia nos seus di-
versos campos de trabalho e direcionamentos teóricos, além da preocupação
com a saúde e saúde mental da população em geral.
Considerações finais
Ainda pouco sabemos sobre o mundo pós pandemia, estamos nos acostu-
mando a pouco saber sobre os próximos meses ou dias, mas podemos supor
que será um tempo em que, fatalmente, teremos que enfrentar os impasses
que assumimos com projeto da modernidade que desenhou os modos de
214
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações
215
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Referências
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12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações
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ago. 2020.
217
13
Sociedade enlutada: lutas e lutos de uma sociedade na busca por
educação
Paulo Afonso do Prado
Thalles Azevedo Ladeira
Tiago Afonso Sentineli
Resumo
218
sofrimento psíquico e a intensificação de um sentimento de luto, que nem sempre
tem a ver com a perda de alguém, por se tratar de um conceito com significados
que permeiam o campo da filosofia, psicologia etc. Portanto, o sentimento de luto
se apresenta, enquanto resultado de uma sociedade que padece com fortes atra-
vessamentos sociais, se desdobrando em um impacto fremente e certeiro sobre
as condições de exercício pedagógico, gerando perda na qualidade da educação,
resultando em espectadores anestesiados e consumidos em suas dores nascidas
durante o isolamento social.
Introdução
No entanto, o que mais se apresenta como uma fotografia realista dos tempos
de pandemia é a realidade de lutos que passou a cotidianizar a vida dos brasileiros.
São frequentes no Brasil dias em que a marca bate mais de mil mortes/dia e em
219
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Diante dessa dor que vem atravessando a vida das famílias brasileiras, nos
incorre a seguinte questão: como pensar a educação nesse contexto? Sob quais
condições psicológicas, emocionais e espirituais nossos alunos aprenderão os
conteúdos escolares, sem as ferramentas necessárias para que essa educação
remota aconteça, considerando que em muitos lares nossos alunos não têm
sequer comida na mesa, e nesse contexto, a merenda escolar era a refeição
sagrada de todos os dias.
220
13 – Sociedade enlutada: lutas e lutos de uma sociedade na busca por educação
Isso nos remete a Galeano (2002) em um de seus poemas quando nos ins-
tiga a refletir na forma com que é vista a classe trabalhadora na sociedade
capitalista, como “os filhos de ninguém, os donos de nada [...] que não têm
cara, têm braços, que não têm nome, têm número” (GALEANO, 2002, p. 42).
221
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Como forma de reavaliar os efeitos trazidos por este viés filosófico, estu-
diosos sobre a ética produziram reflexões que fizeram surgir a chamada ética
aplicada, que investiga problemas práticos da coletividade, como a questão do
retorno às aulas presenciais em plena pandemia. Situar os temas de interesse
da ética aplicada nos ajuda a defender a tese de que o luto possui uma repre-
sentação ética por ser uma manifestação moral da sociedade, porque caracte-
riza a ideia de valorização da vida, da sociabilidade e da empatia; experiências
fundantes da cultura humana.
222
13 – Sociedade enlutada: lutas e lutos de uma sociedade na busca por educação
Este viés de análise do luto nos leva à percepção de que possui também
uma dimensão cultural substancial, que pode ser entendida através da An-
tropologia. O interpretativismo de Geertz (2008), aponta para a construção
de modelos interpretativos das culturas como forma de isolar seus símbolos
e produzir significados que ajudem a compreender os indivíduos que dela fa-
zem parte. Vale ressaltar que esta perspectiva não é uma interpretação de uma
cultura sobre si mesma, é uma versão sobre ela criada pelo antropólogo. Ge-
ertz trata da prática da etnografia, como forma de construir essa capacidade
interpretativa do outro a fim de entendê-lo. O autor afirma que o objetivo da
antropologia “é o alargamento do universo do discurso humano. [...] Esse é
um objetivo ao qual o conceito de cultura semiótico se adapta especialmente
bem. [...] Algo dentro do qual eles podem ser [...] descritos com densidade”
(GEERTZ, 2008, p. 10).
223
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
O final de uma nova semana epidêmica traz com ela estatísticas de bra-
sileiros mortos. Pesquisas apontam sequelas da infecção pelo coronavírus
no sistema nervoso, coração, intestinos (LACERDA, 2020). Há retrocessos
na mentalidade popular e dirigentes políticos adeptos de um negacionismo
devastador. Corrupção na formação da infraestrutura de enfrentamento no
setor de saúde (PEIXOTO, 2020). Processos de impeachment em andamen-
to contra governadores de três estados da nação (GOMES; SARTORI, 2020).
Flexibilização da reabertura ocorrendo de forma desordenada e com plane-
jamento estratégico precoce (LEMOS, 2020). Vacinas em fase de testes em
brasileiros, com provisão de aplicação para segmentos sociais específicos
(UOL, 2020). Cidadãos brasileiros aglomerados frente a agências bancárias
na tentativa de sacar o auxílio emergencial bloqueado por ameaça de frau-
des, que desviaram os recursos das famílias necessitadas para indivíduos que
são servidores do executivo (G1 GLOBO, 2020). Hidroxicloroquina sendo
fabricada pelo laboratório do exército que inflaciona o preço da medicação
para pacientes de lúpus e provoca a falta de anestésicos usados para entu-
bar pacientes em estado grave da COVID-19 (JUNQUEIRA, 2020). Famílias
despreparadas para atender suas crianças e jovens nas atividades do ensino
remoto. Indefinições no Ministério da Educação prejudicam a organização
do sistema, produzindo o esfacelamento do projeto educativo nacional que
já era inexistente. O Fundo Nacional da Educação Básica (FUNDEB) correu
o risco de extinção por falta de interesse governamental e foi votado quase
na véspera do término do prazo.
224
13 – Sociedade enlutada: lutas e lutos de uma sociedade na busca por educação
Essa realidade de incertezas, ergue diante dos cidadãos um desejo por mu-
danças que resultem no controle da pandemia e no retorno à rotina habitual.
Sabe-se que o novo cotidiano trará uma enormidade de pessoas inseguras, com
problemas de socialização e medicalizadas por falta de atenção médica adequada.
225
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Contudo, agora, nesta situação adversa em que todos sofremos algum tipo
de impacto direto da quarentena, os efeitos psicológicos e sociais transbordam
do íntimo dos indivíduos e inundam a sociedade e, por mais que o estado de
luto seja individual, se torna um fato social, porque possui um caráter coerciti-
vo, generalizador e externo que domina o coletivo e coloca a sociedade apenas
reagindo a estímulos externos. Esse é o contexto pelo qual o luto torna-se uma
226
13 – Sociedade enlutada: lutas e lutos de uma sociedade na busca por educação
Considerações finais
A conjuntura revela que nossa sociedade está adoecida. Toda vez em que
há a perda de alguém para o COVID-19 e que a fome bate na porta daqueles
que perderam seus vínculos de trabalho em função da pandemia, o sentimen-
to de luto se apresenta, nem sempre objetivamente com a perda do outro, mas
em certos momentos, com a perda de si mesmo e da dignidade humana.
227
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Referências
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231
14
A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do
mundo1
Fabio A. G. Oliveira
Resumo
Este capítulo visa a propor reflexões decoloniais que projetem formas de adiar
o fim do mundo, a partir da aproximação entre educação e utopia. Este entre-
cruzamento – educação e utopia – tem como fonte de inspiração as leituras das
obras dos pensadores Ailton Krenak (2019) e Vandana Shiva (2002; 2016), cujo
propósito é o resgate de uma memória capaz de ativar imaginários absolutamente
radicais para uma educação efetivamente intercultural. Por radicais, entendo a
1. O subtítulo deste texto tem inspiração direta na obra do pensador indígena Ailton Krenak. Suas
reflexões nunca foram tão urgentes.
232
possibilidade de construção de uma práxis original-originária que aponte cami-
nhos que movimentem as bases e, com isso, conteste os fundamentos dos saberes
canonizados pelo status quo, responsáveis por naturalizar práticas de violências
epistemológicas das mais diversas contra povos e nações, consolidando o que
chamarei de regime epistemicida; ou seja, um conjunto de práticas que estru-
turam a marginalidade de saberes que escapam da produção eurocentrada e do
norte global e se imbricam na produção de estereótipos que situam determinados
corpos e sujeitos/as à margem do saber e do poder. Esse processo de consolidação
do regime epistemicida deve ser compreendido, portanto, através da noção de
colonialidade em suas múltiplas formas e expressões. Logo, ao lado dos autores
previamente citados, aciono a leitura de Anibal Quijano (2005) Alberto Acosta
(2018), Walter Mignolo (2003), Catherine Walsh (2007) e Alberto Galindo (1988)
sobre a necessidade de crítica à perseguição pelo desenvolvimento imposto pela
hegemonia do progresso e regida por atores internacionais descomprometidos
com o bem viver dos povos considerados do terceiro mundo (ou ‘em desenvol-
vimento’), e busco pensar a dimensão da utopia como ferramenta crítica para a
defesa de uma educação intercultural capaz de se opor ao regime epistemicida
que se aprofunda diante das tecnologias da precarização ativadas no período de
pandemia COVID-19. Logo, defendo que está na dimensão utópica uma impor-
tante ferramenta decolonial para atravessarmos o presente sem abrir mão de res-
gatarmos o passado para adiarmos o fim do mundo.
Introdução
Este texto é escrito em 2020. Hoje, dia 20 de agosto, o Brasil registrou mais
1212 mortes por coronavírus, totalizando 112.304 vidas perdidas2. Logo, este tex-
to é escrito a partir do luto. Luto que também se faz luta, que tem como motor
a indignação. Falo também do lugar de um professor de filosofia da educação
que atua no curso de licenciatura interdisciplinar da educação do campo na
Universidade Federal Fluminense, uma instituição pública e gratuita localizada
em um campus de interior do Estado do Rio de Janeiro situado no Noroeste
Fluminense, na cidade de Santo Antônio de Pádua. Neste sentido, a indignação
que carrego tem como propósito fazer emergir um olhar pedagógico para ver, estar
2. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Template:COVID-19_pandemic_data.
233
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
e agir no mundo. Logo, longe de ser apenas uma forma teórica de análise de
mundo, ela busca operar de forma a revolucionar mundos possíveis, vivenciá-
los, experimentá-los e transbordá-los, como afirmava Estamira3. Trata-se de
uma práxis educativa que compreende não somente a importância da teoria
crítica, mas também a prática, o engajamento como fontes para decolonizar-
mos nossos imaginários. Consequentemente, a educação é entendida como
um território na mesma medida em que o território se torna ele mesmo uma
plataforma educativa.
Com isso, neste capítulo busco pensar a história presente tendo como
enfoque a incerteza que o futuro nos reserva. Dedicarei esforços para não
me situar dentro ou fora de uma narrativa otimista ou pessimista acerca
de um futuro pós-pandêmico ou do que convencionalmente alguns meios
de comunicação, apoiados pelo grande empresariado, chamam de “novo
normal”4. Ao fenômeno das reestruturações sociais baseadas no distancia-
mento físico, em especial nas que tem ocorrido no campo da educação com
o investimento em atividades remotas, ou seja, uma espécie de adequação
ao contexto pandêmico”, prefiro chamar de tecnologia de precarização do
trabalho e das trabalhadoras/es, dado que são muitos os relatos que apontam
para um esgotamento psicofísico das relações pessoais neste campo. Ou seja,
busco escapar dessas dicotomias (otimismo versus pessimismo), compreen-
dendo que elas mais aprisionam do que permitem pensar radicalmente as
bases e as novas formas tecnológicas de produção da precariedade dos cor-
pos e territórios que nos conduziram até aqui. O “aqui” ao qual me refiro diz
respeito à pandemia do COVID-19, mas também ao modelo hegemônico de
organização social, amparado em uma verticalização do poder estabelecida
primeiramente por um processo colonial/moderno e eurocentrado que se
consolida em um sistema capitalista globalizante, reforçando a naturalização
de uma hierarquia entre raças (QUIJANO, 2005), culminando em novas for-
mas de produção de desigualdades que visam a manutenção das dominações
e sustentação da necropolítica (Mbembe, 2018) contra aquelas/es sujeitas/os
consideradas/os descartáveis, indesejáveis, improdutivas/os à luz da matriz
de poder colonial.
234
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo
5. Ver: https://www.geledes.org.br/por-que-a-COVID-19-e-mais-mortal-para-a-populacao-
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9. Ver: https://www.geledes.org.br/as-ruas-e-a-COVID-19-novas-e-velhas-expressoes-das-
desigualdades-sociorraciais-durante-a-pandemia. Acesso em: 15 ago. 2020.
10. Ver: https://www.geledes.org.br/reflexoes-sobre-o-COVID-19-e-a-realidade-nas-favelas-
brasileiras. Acesso em: 11 mai. 2020.
11. OLIVEIRA, F. A. G.; CARVALHO, H. R.; JESUS, J. G. LGBTI+ em tempos da pandemia
COVID-19. In: OLIVEIRA, F. A. G.; DIAS, M. C.; GONÇALVES, L. COVID-19 e Desafios
Contemporâneos da Saúde Coletiva e Bioética. Diversitates Int. J., v. 12, n. 1, p. 60-94, jun./
dez. 2020.
12. Ver: SASSI, J. COVID 19: Bioethics, the racial line and ethical praxis. In: OLIVEIRA, F.
A. G., DIAS, M. C.; GONÇALVES, L. COVID-19 e Desafios Contemporâneos da Saúde
Coletiva e Bioética. Diversitates Int. J., v. 12, n. 1, p. 37-59, jun./dez. 2020.
13. Ver: https://www.conjur.com.br/2020-jul-19/exclusoes-etaristas-dentro-confinamentos-fa
miliares. Acesso em: 15 ago. 2020.
235
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Diante deste cenário, busco apresentar autoras/es que nos oferecem pis-
tas e ideias para adiar o fim do mundo. Começo com o pensador Ailton
Krenak, autor da obra “ideias para adiar o fim do mundo”, cujo título inspira
diretamente este texto. Ao lado dele, Vandana Shiva é convidada para pensar
como a miséria tem sido organizada e solidificado a perseguição ao pro-
gresso e ao desenvolvimento. Com Krenak e Shiva, penso que um elemento
fundamental é evidenciado: não é possível estabelecer uma crítica profunda
às sociedades atuais e aos regimes necropolíticos que nela convivem, sem
que para isso tenhamos que enfrentar o modelo de desenvolvimento globa-
lizante baseado na dominação territorial, devastação ambiental e aniquila-
mento dos saberes tradicionais. Logo, pensar a educação para um momento
pós-pandêmico exige de nós uma revisão profunda acerca de como estamos
vivendo e convivendo uns com os outros. Aqui, é preciso situar a coloniali-
dade (QUIJANO, 2005) como categoria de análise central para um melhor
236
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo
A educação se faz essencial, dado que é neste campo que se torna possível
recrutar a dimensão utópica, aqui inspirada na poesia do pensador e ensaísta
peruano Alberto Flores Galindo ao se referir à cultura dos povos originários
dizimados nos mais diferentes territórios da América Latina. Logo, resgato na
poesia a possibilidade de adiar o fim do mundo a partir da dimensão utópica
na educação intercultural contra todas as iniciativas de precarização, fruto dos
processos coloniais necropolíticos que se aperfeiçoam no regime capitalista
globalizante.
Ideias para adiar o fim do mundo (KRENAK, 2019) reúne três palestras do
pensador e ativista indígena da etnia Krenak, Ailton Krenak, sendo a primeira
homônima e as outras duas intituladas “do sonho e da terra” e “a humanidade
que pensamos ser”, respectivamente. A primeira palestra, título do livro, tem
como foco fundamental a tentativa de entendimento de “como temos cons-
truído a ideia de humanidade ao longo desses últimos 2 mil, 3 mil anos”. Este
mesmo tópico de reflexão foi registrado no documentário “Ailton Krenak e o
sonho da pedra”, do diretor Marcos Altberg, lançado em 2018.
237
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Para Krenak, esse projeto de expansão traria em sua base uma oculta defi-
nição de natureza, justamente por fazer operar a ideia de humanidade a partir
do paradigma cultura versus natureza. Neste sentido, o projeto colonial pro-
cura impor a crença de que são os colonizadores que carregam a cultura na
contramão do desprovimento cultural dos povos originários. Nesta dimensão
de oposição estabelecida por uma hierarquia de valores, a humanidade tam-
bém cria uma espécie de natureza e sobre ela transforma todas/os e tudo que
é considerado natureza em recurso a ser dominado. Eis a convocação para a
civilização.
Segundo Krenak,
A ideia de que os brancos europeus podiam sair colo-
nizando o resto do mundo estava sustentada na pre-
missa de que havia uma humanidade esclarecida que
precisava ir ao encontro da humanidade obscureci-
da, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado
para o seio da civilização sempre foi justificado pela
noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra,
uma certa verdade, ou uma concepção de verdade,
que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes
períodos da história (KRENAK, 2019, p. 11).
Diante desse panorama, Krenak então pergunta: somos mesmo uma hu-
manidade? (KRENAK, 2018). Se somos, o que nos constitui enquanto uma
humanidade? Para tentar identificar a humanidade sobre a qual enunciamos,
Krenak enumera as instituições mais consolidadas que formam a chamada
humanidade. As universidades, o Banco Mundial, Organização dos Estados
Americanos (OEA), Organização das Nações Unidas (ONU), Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) (KRE-
NAK, 2019, p. 12).
238
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo
Sobre a Unesco, em especial, Krenak afirma que “quando a gente quis criar
uma reserva da biosfera em uma região do Brasil, foi preciso justificar para a
Unesco por que era importante que o planeta não fosse devorado pela minera-
ção” (KRENAK, 2019, p. 12). Ao comentar este episódio, Krenak propõe ques-
tionar em que medida essas instituições acabam endossando e ecoando uma
concepção de humanidade apoiada na colonialidade. O pensador segue afir-
mando que “essas agências e instituições foram configuradas e mantidas por
estruturas dessa humanidade. E nós legitimamos sua perpetuação, aceitamos
suas decisões, que muitas vezes são ruins e nos causam perdas, porque estão a
serviço da humanidade que pensamos ser.” (KRENAK, 2019, p. 13). Nesta di-
reção, Krenak nos pergunta sobre o referendo que essas instituições dão a uma
concepção de humanidade responsável por excluir aqueles que historicamente
não foram considerados parte integrante “desse clube” (KRENAK, 2019, p.
13), que é uma outra forma à qual Krenak passa a se referir à humanidade.
239
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
240
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo
Krenak caminha para a uma espécie de vida superficial que cinicamente esta-
ria preocupada com as questões ecológicas – dentre elas as barreiras sanitárias
em tempo de pandemia – no momento em que há impacto negativo sobre a
vida daqueles que são compreendidos pelas instituições que regulam o mundo
como humanidade. Isto significa dizer que o que de fato preocupa o mundo
é a vida da economia das grandes corporações. Essa é a mesma humanidade
que, segundo o Krenak, é a responsável pelo o que ele chama de devoradores
de montanhas, rios e florestas (KRENAK, 2019, p. 20). Após criarem a doença,
criam o remédio para que sejamos capazes de suportar a vida insuportável sob
o lema do progresso.
E o que vem a ser o “progresso” que Krenak denuncia nesta obra? Ao que
tudo indica, o autor está sinalizando para uma espécie de fracasso ético, políti-
co e econômico. Consequentemente, um fracasso social e cultural proveniente
de um modelo padronizado pelos registros coloniais e aperfeiçoado pela su-
posta ideia de globalização. Neste sentido, poderíamos também afirmar que se
trata de um fracasso educativo, uma vez que a educação, outrora questionada
pelo filósofo Theodor Adorno por ser incapaz de impedir a barbárie do na-
zismo (ADORNO, 1995), teria igualmente fracassado por não interromper os
fluxos coloniais que permanecem operando de modo a aprimorar o regime
epistemicida, a partir das novas tecnologias de precarização. Neste sentido,
observa-se a importância dos estudos decoloniais direcionados às matrizes
curriculares para obtenção de uma formação intercultural (OLIVEIRA; CAN-
DAU, 2010), como veremos mais adiante.
Aqui, a filósofa e física indiana Vandana Shiva (2002) parece ser bem eluci-
dativa para pensarmos o progresso que Krenak pretende decifrar e enfrentar.
Em diversas de suas obras, Shiva (2002; 2015; 2016) nos convida a considerar
a seriedade que envolve a crise ecológica global nos dias de hoje. Afinal, para
a filósofa, pensar a terra e a alimentação implica em pensar direitos básicos
ceifados de boa parcela da população mundial, em especial aquelas do sul glo-
bal. Logo, pensar a terra e a alimentação é lutar pelo direito à moradia e à nu-
trição. Segundo Shiva, para que a atmosfera da terra e as espécies humanas
e não-humanas que nela habitam sejam destruídas, tudo que devemos fazer
é continuar “progredindo” dentro dos parâmetros estabelecidos pelo projeto
241
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
242
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo
243
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Talvez, por isso mesmo, caiba dizer que a versão do regime epistemicida
que vivenciamos atualmente seria o encontro entre o autoritarismo e o colap-
so ecológico, pois é a partir desse regime de produção incessante de epistemi-
cídios que os saberes e culturas de povos e comunidades tradicionais foram
pouco a pouco substituídos pela padronização do modus vivendi hegemônico,
colonizador, controlador e possuidor (SHIVA, 2001, 2002) e, com isso, conso-
lidando a colonização do imaginário (DILGER et al., 2016). Este modelo, além
de colocar em risco os saberes marginalizados no tempo e espaço, fortalecem
a erosão democrática e ameaçam a construção de uma democracia da terra
(SHIVA, 2002).
Vandana Shiva (2016) afirmará que é com a expansão das grandes cor-
porações, sob o pretexto de sanar a fome do mundo, que esse modelo de
244
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo
Shiva (2016) afirma existirem dois argumentos que comumente são utili-
zados pelas grandes corporações e pela mídia para legitimação desse progres-
so, ao qual a pensadora dá o nome de globalização. O primeiro seria o de que
(1) só através desse progresso seria possível aumentar a produção de modo a
alimentar todas as pessoas no mundo; (2) a globalização e o livre comércio são
necessários para baratear os alimentos, tornando-os acessíveis às populações
mais pobres. Contudo, segundo Shiva, a globalização não produz comida para
alimentar aqueles que têm fome. Além disso, a globalização não produz comi-
da, mas commodities.
245
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
246
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo
Para questionar as bases desse projeto colonial que se camufla sob o dis-
curso do desenvolvimento, Oliveira e Candau (2010) afirmam que é preci-
so fazer uma distinção entre colonialidade e colonialismo para efetivamente
imaginarmos e criarmos formas de resistência pedagógica ao projeto colonial.
Para isso, os autores citam o filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado Tor-
res (2007) para afirmar que “apesar do colonialismo preceder a colonialidade,
a colonialidade sobrevive ao colonialismo” [...]. Neste sentido, respiramos a
colonialidade na modernidade cotidianamente” (ibid., p. 18). E prosseguem
afirmando que “apesar de o colonialismo tradicional ter chegado ao fim, [...]
as estruturas subjetivas, os imaginários e a colonização epistemológica ainda
estão fortemente presentes” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 19).
23. O desenvolvimento deste debate não teria sido possível sem os encontros e debates com o
pedagogo Thiago Gabry, de quem tive a honra de orientar o trabalho de conclusão de curso
em Pedagogia (INFES/UFF), sob o título “Educação contra a barbárie: caminhos para um
pensamento crítico” (GABRY, 2019).
247
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Não por acaso Anibal Quijano (2005) vai propor o conceito de coloniali-
dade do poder justamente para referir-se a essa estrutura de dominação que
submeteu a América Latina, a África e a Ásia, a partir do discurso e ação da
conquista. O termo faz alusão à invasão do imaginário do outro, ou seja, sua
ocidentalização. Mais especificamente, diz respeito a um discurso que se inse-
re no mundo do colonizado, porém também se reproduz no lócus do coloni-
zador. Nesse sentido, o colonizador destruiria o imaginário do outro, invizibi-
lizando-o e subalternizando-o, enquanto reafirma o próprio imaginário. Desta
maneira, naturalizam-se as ideias do colonizador europeu como superiores às
dos povos nativos, fazendo com que o modo de vida, o saber, a cultura nativa
da terra seja vista como inferior.
Para Mignolo (2003), por exemplo, a expansão ocidental após o século XVI
não foi somente econômica e religiosa, mas também das formas hegemônicas
de conhecimento, de um conceito de representação do conhecimento e
cognição, impondo-se como hegemonia epistêmica, política e historiográfica,
estabelecendo, assim, a colonialidade do saber. Se a colonialidade do poder
criou uma espécie de fetichismo epistêmico (ou seja, a cultura, as ideias e os
conhecimentos dos colonialistas aparecem de forma sedutora, que se busca
imitar), impondo a colonialidade do saber sobre os não-europeus, eviden-
ciou-se também uma geopolítica do conhecimento, isto é, o poder, o saber e
todas as dimensões da cultura definiam-se a partir de uma lógica de pensa-
mento localizado na Europa. (MIGNOLO, 2003, p. 21).
Neste sentido, pensar uma educação crítica seria pensar uma educação in-
tercultural capaz de enfrentar as raízes coloniais que ainda operam de modo
a manter o regime epistemicida em vigor, por isso a importância de se trazer
o saber marginalizado, periférico para o epicentro da discussão como crítica
ao processo de colonização (MIGNOLO, 2003). E como poderíamos elabo-
rar uma educação com esta proposta? Aqui convido Galindo (1988) e Walsh
(2007) para criamos novos imaginários que nos auxiliem a adiar o fim do
mundo.
248
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo
Portanto, para que este espaço possa ser alcançado, compreendo que seja
fundamental a dimensão utópica. Reconheço, na utopia nossa capacidade
imaginativa de decolonização de práticas. Para além disso, reside na utopia
a ousadia de decolonização do imaginário. Ou, como sugere Galindo (1988),
reside no reconhecimento das utopias – no plural – a esperança no reestabe-
lecimento de dias melhores. Este sentimento e busca por um ideal, segundo o
249
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
A ação motivada pela utopia seria aquela que nos permite sobreviver às ad-
versidades do presente, mantendo vivas as vozes do passado que possibilitam
a construção de um futuro em reconhecimento às violências que acometeram
aos povos e nações, mas também projetam a alegria e partilham culturalmente
esses saberes ocultados. Neste sentido, a utopia nos permite um encontro não
somente através da dor que nos une enquanto povo, mas também um encon-
tro pela alegria de quem cria e expande possibilidades de viver e ser de forma
mais harmônica.
Continuando...
250
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo
Referências
ACOSTA, A. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Ele-
fante, 2018.
ADORNO, T. (Org.). Educação e Emancipação. 1. ed. São Paulo: Paz e Terra, v. 1, 1995.
GALLEGO, E. S. (Org.) O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo:
Boitempo, 2018.
KRENAK, Ai. Ideias para adiar o fim do mundo. Rio de Janeiro: Companhia das letras, 2019.
251
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
SHIVA, V. Earth Democracy: Justice, Sustainability, and Peace. North Atlantic Books, 2015.
SHIVA, V. Who Really Feeds the World?: The Failures of Agribusiness and the Promise of
Agroecology. North Atlantic Books, 2016.
252
SEÇÃO II
Vem cá me dê a mão
Encosta a sua urgência na cadência
Vem cá me dê seu coração
Me conta essa aflição que te alucina
Roteirista (Caio Prado)
253
Relato 1
Fraturas expostas: catarse e reflexões sobre as condições de vida e
existência antes e pós-pandemia
Tiago Afonso Sentineli
254
A pandemia, essa situação sem precedentes na história, nos colocou diante de
uma encruzilhada. Metaforicamente falando, sinto-me em um beco sem saída, co-
agido pelas circunstâncias que se impuseram no meu viver com toda essa situação.
Digo isso pelo fato de que não me foi dada uma alternativa outra para “produzir
e ser útil” dentro da lógica capitalista e neoliberal que impera sobre nós. E, antes
de seguir com o meu relato, cabe, primeiro, marcar o meu lugar de fala para que
eu possa tentar materializar para o leitor as minhas condições de existência e vi-
vência. Estabelecer isso é fundamental para dar sentido ao que falo, para acionar o
gatilho empático em quem debruça a sua atenção sobre essas linhas.
255
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
256
Relato 1 – Fraturas expostas: catarse e reflexões sobre as
condições de vida e existência antes e pós-pandemia
Durante esse período em que senti os sintomas a minha vida precisava parar
para que eu pudesse me cuidar. Mas ela não parou. As cobranças do trabalho e
a exigência de se produzir não cessaram! Cheguei a receber e-mail de cobrança
pela minha ausência de post de conteúdos na semana posterior à semana em
que estava hospitalizado. Nesse momento informei aos meus superiores diretos
sobre meu estado de saúde e, para evitar a tamanha burocracia que se agiganta
257
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
258
Relato 1 – Fraturas expostas: catarse e reflexões sobre as
condições de vida e existência antes e pós-pandemia
quais são as minhas urgências neste momento. Também não criaram meios
para que pudéssemos falar naturalmente. Qual é a nossa maior preocupação
nesse instante? Eu digo que a minha é viver! Viver bem e me realizar enquanto
pessoa! E a vida que tenho diante desse tratamento e dessa conjuntura profis-
sional não me agrada e não me satisfaz!
259
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
é natural do ser humano viver isolado. Espero que possamos sobreviver e sair
fortalecidos dessa experiência toda. Espero que possamos dar outro valor às
relações humanas num futuro pós-pandemia e que nos vejamos cada vez mais
como parte do todo, pois não funcionamos bem à parte e individualmente.
Agradeço mais uma vez por ter esse espaço de fala. A escuta e a possibilidade
de externar minhas angústias nesse momento estão sendo essenciais para se-
guir na caminhada.
260
Relato 2
Etnografia ou devaneio? Relato de experiências para cicatrizar
feridas da alma
Paulo Afonso do Prado
Sou chamado, por uma grande parcela dos meus alunos de sala de aula e dos
alunos que assisto enquanto orientador educacional, de TIO PAULO. Ressalto essa
expressão, pois, teoricamente, denota sentimento envolvido entre os indivíduos
e também o sentimento que se supõe existente no espaço onde se atua/trabalha/
sonha (por que não? Educar é um modo, mas sobretudo, uma tentativa de trans-
formar sonhos de uma sociedade e também os pessoais em realidade!).
A escola sempre funcionou para mim como este ambiente, porque sempre
fui diferente dos demais, e, na escola, apesar de sofrer inúmeras formas de vio-
lência por esta diferença, era lá que eu conseguia esquecer parte dessa realidade
ao estar cercado pelo conhecimento. Lá estavam meus amigos, as professoras
de quem eu gostava, os brinquedos. Depois, minha mãe! Quando ela passou
a trabalhar na mesma escola em que eu estudava. Sempre disse às pessoas que
detestava isso, porque eu não poderia ser eu mesmo, pois ela me vigiaria, o que
261
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
também é verdade! Mas, de fato eu amava tê-la ali também, ficaria mais tem-
po ainda perto dela e dentro de um lugar que eu adorava estar! E acho que
nunca disse à ela, o quanto foi importante tê-la dentro da escola.
Estava na escola até mesmo quando não precisava. Ia com minha mãe às
confraternizações de professores e funcionários. Ia à escola em horários diver-
sos porque gostava de ver minha mãe trabalhando. Às vezes ia à escola sem
estar nela, porque fazíamos (eu e alguns colegas) grupos de estudo; e neles eu
gostava de “atuar” como professor.
Enquanto crescia, todas as vezes que surgia o assunto entre mim e minha
mãe sobre o futuro, sobre o que ser quando crescer (!!!), ela me pediu por
algumas vezes que eu não escolhesse o magistério. Pedido que ela reforçou
quando fiz a minha inscrição para o vestibular no ano de 2002 (término do
meu Ensino Médio). Fiz o ensino médio no Colégio Estadual Antônio Ma-
ximiliano Ceretta, Marechal Cândido Rondon – PR (colônia alemã, detalhe
agora insignificante, mas que faz diferença ser mencionado). O Fundamental
I e II havia sido na Escola Municipal Criança Feliz. E a universidade em que
me graduei em 2006 foi a Unioeste. Faço essa menção porque havia uma pe-
culiaridade: como o município era planejado em quadras regulares; a escola
municipal ficava em uma quadra, a estadual, na seguinte e a universidade na
da frente. Todas eram vizinhas! Para nós, alunos de lá, era meio que natural
seguir aquele percurso por entre as quadras, saindo do Ensino Fundamental
em direção ao Ensino Superior. Fato que pode soar um privilégio diante da
grande dificuldade de muitos ingressarem na universidade.
262
Relato 2 – Etnografia ou devaneio? Relato de experiências
para cicatrizar feridas da alma
até hoje, junto com a edição do jornal que publicou a lista dos classificados
em primeira chamada!). Na semana da prova, a reitoria anunciou que os dois
novos cursos seriam cancelados e que, para àqueles que não quisessem perder
o valor pago na taxa de inscrição, deveriam migrá-la para outro curso dentro
do mesmo campus, fato que não me permitiu voltar para as opções iniciais,
Letras, História ou Geografia. Sendo assim, o curso que mais aliava todas as
coisas que eu buscava e o que mais gostei foi o de Ciências Sociais. E ingressei!
Foi uma grande realização, me descobri neste curso! Abriu a minha mente, co-
nheci Marx e a esquerda! Além dos professores que conheci; porque poderia
fazer bacharelado, mas, acima de tudo, a licenciatura!
Para justificar o modo pelo qual todos podem imaginar como eu cheguei
dentro de uma sala de aula logo após a minha convocação pela Secretaria de
Estado de Educação do Rio de Janeiro. Concurso que prestei assim que che-
guei em Muriaé, ao qual depositei várias esperanças, porque meu pai sempre
me dizia que minha graduação para nada serviria. Passei em primeiro lugar
para a disciplina de Sociologia. O ano era 2009 e as disciplinas de Filosofia e
Sociologia haviam acabado de retornar para o currículo do Ensino Médio, de
forma precária, mas seria a minha chance. O medo de partir para uma nova
cidade, agora sem meus pais, me fez pensar em não ir, mas minha mãe me deu
forças, na verdade uns “chutinhos” para que eu fosse! Pois essa era a minha
profissão e o meu futuro! Fui designado para trabalhar na cidade de Itaocara,
Noroeste do Estado do Rio.
263
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
264
Relato 2 – Etnografia ou devaneio? Relato de experiências
para cicatrizar feridas da alma
Até aqui, você que me lê, pode ter uma noção de como eu cheguei a uma
sala de aula e de como me saí até agora. Uns acharão que foi uma boa traje-
tória. Outros dirão que desejo fazer vitrine frente ao meu hedonismo. Alguns
se identificarão. O importante aqui será perceber as entrelinhas, os pequenos
desgastes ao longo dessa breve carreira ainda em construção. Sim! Em cons-
trução, desconstrução, mas neste momento, de reconstrução.
Todo professor tem uma vida distante do foco de seu ofício, mesmo que
nessa distância esteja o tempo todo a serviço dele, mesmo que inconsciente-
mente. E pode parecer incoerente, mas isso desgasta o professor, quando ele
se vê diante das entrelinhas de sua carreira, percebendo-as como a força que
o leva a relutar em realizar suas atividades, em sentir prazer preparando suas
aulas, na simplificação de seu trabalho, mesmo que isso represente piores re-
sultados. Do modo bem coloquial, se me for permitido, a justificativa mental
automática de absolvição que vem à mente é: “mas o governo não se preocupa
mesmo com a educação, qualquer coisa que eu deseje trabalhar na aula já
será mais do que o Estado quer!”. E pronto! Me percebi adoecido profissio-
nalmente, apesar de continuar achando que quem realizava a maior parte das
cobranças era eu mesmo! E diante de problemas familiares muito sérios, que
se seguiram por anos, sobre os quais não cabe aqui uma discussão, iniciei meu
processo de adoecimento também emocional, que foi precedido de ansiedade
constante e crescente, ganho de peso, diminuição das horas de sono, maior
irritabilidade, etc, etc, etc.
265
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Eis que o ano letivo de 2020 mal havia sido iniciado e nós vivenciamos o
início do isolamento social devido à pandemia por coronavírus. Subvalori-
zando a força da situação, o governo do estado do Rio de Janeiro antecipou
o recesso escolar de julho para o mês de março; para que logo após, as ativi-
dades escolares fossem retomadas. Contudo, ao longo desses dias, a situação
se intensificou e foi necessário então reorganizar o fazer pedagógico. E, vinte
dias depois do término do recesso escolar, estávamos todos nós dentro de um
ambiente virtual de aulas, com treinamento concomitante. Apesar de ser uma
alternativa, o ensino remoto se colocou sem planejamento estratégico. Digo
isso, apresentando um questionamento básico: como professores que não co-
nhecem a plataforma digital poderiam realizar um curso sobre a plataforma
dentro da própria plataforma?
266
Relato 2 – Etnografia ou devaneio? Relato de experiências
para cicatrizar feridas da alma
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
se eu tivesse autonomia para definir o formato das aulas; justificando que não
poderiam comprar telefone novo, pagar internet e outras coisas.
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Relato 2 – Etnografia ou devaneio? Relato de experiências
para cicatrizar feridas da alma
O fato é que este recesso, que já havíamos feito jus em março, no início da
pandemia, não é reconhecimento do governo por meu trabalho, é na verdade
um modo de cortar gastos na manutenção da rede, pois assim, no recesso,
vários pagamentos, como a GLP, talvez o maior volume de recursos exigidos
dos cofres públicos, não são pagos. Também haveria redução nos gastos com
merenda. Além do corte das linhas de telefone. Ou seja, o Estado faz parecer
uma compensação frente a um direito, que na verdade está travestido na eco-
nomia de recursos, pois além de tudo, todos os meses o Estado faz um jogo
de violência psicológica ameaçando não ter condições de pagar os salários do
mês seguinte, caso as coisas piorem ainda mais.
Não posso hoje ficar sem terapia psicológica e a ansiedade me coloca mais
irritado, com grande nível de bruxismo, sobrepeso e dificuldade de concentra-
ção. Até minha memória me falta com certa frequência, e por último, um dos
medicamentos que tomo para diminuir os efeitos da ansiedade, me tirar da
prostração emocional e aliviar as dores de cabeça, passou a afetar minha visão,
que, somada com as longas horas passadas diante do computador e do celular
me trazem perguntas: o que mais ainda virá nestes poucos meses de ano letivo
que restam em 2020? Haveria espaço para mais algum dissabor e coerção? Sei
que para a carreira, as perspectivas não são boas, afinal, o ensino remoto já é
realidade e a precarização chega ao seu ápice... E nós, reles professores, temos
apenas o nosso brio pessoal e amor pelo fazer do chão da escola, ninguém
mais está por nós.
269
Relato 3
Vida e morte na pandemia: não sairemos da mesma forma que
entramos
Thalles Azevedo Ladeira
Era março, dia 13 (sexta-feira). Nesse dia, o despertador não tocou mais cedo.
A escola na qual trabalho havia suspendido as aulas por duas semanas como uma
medida de cautela e prevenção contra o novo coronavírus que havia chegado às
regiões Norte e Noroeste Fluminense do Estado do Rio de Janeiro, onde trabalho
e moro, respectivamente.
Já uma parcela da categoria de professores concursados (da qual faço parte) en-
xergou nessas duas semanas de suspensão das aulas como umas miniférias, uma
oportunidade de curtir a família, de organizar a casa, de fruir: acessando a lista de
270
filmes e séries que nunca dá tempo de visitar. O que ninguém podia imaginar é que
essas duas semanas de recesso iriam durar o resto do ano inteiro e aquela que vinha
sendo chamada de “gripezinha” por muitos, até mesmo pelo presidente da repúbli-
ca, minimizando os danos e a letalidade do vírus, tempos adiante seria considera-
da a maior pandemia já vivenciada na história do nosso país, com mais de 100 mil
mortos em um período de aproximadamente seis meses.
O cenário de crise pandêmica trouxe uma dura verdade, difícil de ser aceita, a
saber: a vulnerabilidade da vida humana, a certeza de que há uma linha tênue en-
tre a vida e a morte e que, um dia, o pêndulo da vida se inclinará para o outro lado.
Mas passar meses a fio confinado em casa, embora ainda seja a medida mais
segura para se proteger do vírus letal, descortinou inseguranças e sensações de
medo, de pavor, de inconformidade frente aquela realidade, de vulnerabilidade
e medo da morte e a esse ponto, eu não sabia, mas eu já não era mais o mesmo.
271
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Essa inconformidade diante do luto que compõe a vida, que a esse ponto
já deveria estar sendo trabalhada com algum especialista em emoções huma-
nas, foi sendo cristalizada em mim ao passo em que eu tentava dar conta das
inúmeras demandas da vida de professor. Nesse sentido, em meio à pandemia,
assim como qualquer outro representante da categoria, venho sendo desafiado
a me reinventar com aulas dinâmicas, didáticas e interativas sob um novo for-
mato, aquilo que convencionalmente vem sendo chamado de aulas remotas.
“Não ficou bom. Refaz essa parte. Reajusta aquela outra”. E tantas outras
demandas do ensino remoto me desafiaram ao longo de toda a quarentena, fa-
zendo das minhas manhãs e tardes uma grande sinfonia de vários tons, a em-
polgação de estar produzindo um material didático autoral para os alunos era
no final do dia substituída por um cansaço e um sentimento de esgotamento,
uma sensação de que no ensino remoto, o trabalho havia aumento.
A ideia inicial era não se deixar abalar, dar conta de todas as frentes de
trabalho das duas matrículas com o máximo de qualidade e dedicação. No en-
tanto, ao longo da quarentena, eu fui descobrindo que não existe neutralidade
na vida em nenhum sentido que seja possível. Desse modo, eu fui percebendo
como as afetações externas atravessam a nossa vida, reorganizando as coisas
dentro da gente.
272
Relato 3 – Vida e morte na pandemia: não sairemos da mesma forma que entramos
O esgotamento, por sua vez, não apenas de ter que me reinventar semanal-
mente, sendo cada vez mais didático, criativo, flexível e paramentado com as
tecnologias necessárias para desenvolver aulas interativas e interessantes para
os alunos. Hoje, percebo que o esgotamento maior advinha do medo de não
existir mais. De uma (futura?) morte me trazer a ausência de mim (como sou
hoje) e de tudo o que eu considero potência na vida.
273
Relato 4
Professora em época de pandemia
Alessandra Tozatto
Quando me tornei professora, sabia que teria que estudar muito, me dedicar,
estar sempre me atualizando para oferecer o melhor para meus alunos. Em um
ano e meio de docência em uma Universidade privada, me dediquei nessa prática
e aos poucos fui conquistando meu espaço e a confiança dos meus alunos.
Mas como a vida não é linear, em março de 2020 fomos pegos por um vírus
que nos colocou em quarentena e rompeu com tudo que estávamos fazendo. A
vida como conhecíamos foi interrompida. De uma hora para outra não podía-
mos mais estar com nossos amigos, ir aos comércios, cinema ou tomar um cafe-
zinho na padaria e até mesmo trabalhar. As aulas foram suspensas, inicialmente
por um período de quinze dias e depois por tempo indeterminado. E diante dis-
so ficamos nos questionando: “e agora?”. O que fazer diante dessa novidade, do
274
perigo que estávamos correndo diante de uma ameaça invisível que nos colocou
em isolamento social?
Após a suspensão de quinze dias fomos convocados para uma reunião da Uni-
versidade onde leciono para conhecermos as estratégias que seriam adotadas para
retomada das atividades letivas.
A reunião foi feita através de uma sala virtual, com todos os professores e co-
ordenadores de curso, onde foram apresentados os recursos que seriam usados a
partir de então para ministrarmos nossas aulas.
Pessoalmente, aponto alguns incômodos que tive com esse processo: eu gosto
de usar o quadro, sou muito dinâmica nas minhas aulas, extrovertida, tento trazer
um clima leve para a sala de aula e o sistema remoto em conjunto com a gravação
me tirou um pouco isso. Percebi que, para dar certo, teria que reinventar minha
prática, para que minhas aulas não ficassem monótonas para mim e para meus
alunos.
275
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Somou-se a isso o fato de: estar em constante alerta com o novo vírus, estar
em casa com minha filha que também teve as aulas suspensas e faz parte do
grupo de risco por ter problemas respiratórios, as tarefas domésticas em si,
que parece que se ampliam de acordo com o tempo que estamos em casa e
meu outro vínculo de trabalho, que também me trazia uma demanda.
A cada dia que passava eu ficava mais cansada, pois pelo fato de não ter-
mos ainda estratégias para avaliação desses alunos, tivemos que aumentar o
número de atividades avaliativas durante o bimestre e, consequentemente,
mais atividades para serem corrigidas.
276
Relato 4 – Professora em época de pandemia
Particularmente, não considero que todo esse trabalho tenha sido perdido,
pois eu realmente percebi que uma boa parte dos alunos se dedicaram, partici-
param das atividades e conseguiram aprender o conteúdo, pois além das aulas
remotas, com a possibilidade de interação entre professor-aluno, o material
de apoio (slides, artigos, capítulos de livros) davam um bom direcionamen-
to mesmo para aqueles que não se sentiam motivados com as aulas virtuais.
Todo conteúdo remoto era baseado nesses materiais.
277
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
278
Relato 4 – Professora em época de pandemia
279
Relato 5
Experiências do Serviço Social em tempos de pandemia:
considerações no âmbito educacional
Amanda Bersacula de Azevedo
Débora Spotorno Moreira Machado Ferreira
Érika David Barbosa
Josemara Henrique da Silva Pessanha
Paola Barros de Faria Fonseca
(Josemara H. S. Pessanha)
280
Introdução
Esta ofensiva devastadora do capital, que é constante das crises que por ele
mesmo são geradas, nos limitam a capacidade de respostas de caráter ético-políti-
co, num constante ciclo de apreensão e percepção da realidade fragmentada, efê-
mera e instáveis das vivências objetivas e empobrecedoras das relações de trabalho
(BARROCO, 2011). Furta-nos possibilidades para um projeto emancipatório que
dê conta das demandas do público que dependem da nossa atuação (a comunida-
de escolar: docentes, discentes, técnicos-administrativos, famílias), e também do
projeto pessoal das nossas vivências e convivências.
1. Para Iamamoto (2007), a questão social “é apreendida como o conjunto das expressões das desi-
gualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez
mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos
mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade” (IAMAMOTO, 2007, p. 27).
281
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
282
Relato 5 – Experiências do Serviço Social em tempos de pandemia:
considerações no âmbito educacional
de estudos sociais e outros que são impossíveis de serem realizados nas con-
dições atuais.
O tempo nos foi roubado! Tempo para pensar, refletir, realizar um trabalho
técnico que leve em consideração o planejamento, a pesquisa, a escuta quali-
ficada, a busca ativa, rodas de conversas, enfim, um trabalho menos imediato
das demandas que enchem nossas mesas e salas. A realidade do Serviço Social
na maioria dos campi do IFF é da relação de um profissional para setecentos e
cinquenta estudantes. Em campuses maiores isso aumenta consideravelmente,
chegando a um profissional para 1.500 (mil e quinhentos) estudantes. Toda
essa precarização do trabalho aqui exemplificada tem promovido adoecimen-
to físico e mental às trabalhadoras que atuam no Serviço Social dos IFFs.
2. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu Art. 5º diz que “Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (BRASIL, 1988) (grifo dos autores).
283
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
3. Outras implicações que envolvem o Ensino, Pesquisa e Extensão no Ensino Remoto não
serão postas aqui devido ao breve texto. Contudo, sinalizamos para os impactos profundos
no desenvolvimento da aprendizagem de crianças e adolescentes.
284
Relato 5 – Experiências do Serviço Social em tempos de pandemia:
considerações no âmbito educacional
Reflexões finais
285
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
4. Segundo o jornal O Globo do dia 18/08/2020, no Orçamento previsto pelo governo para
2021 (ainda passará pelo Congresso), o Ministério da Cidadania, responsável pela Assistên-
cia Social, perderá 59,3% do seu orçamento anual. A pasta da Saúde será reduzida em 4,8 %.
A Previdência Social, vinculada ao Ministério da Economia, não foi divulgado. Isso somente
em se tratando das políticas de Seguridade Social.
286
Relato 5 – Experiências do Serviço Social em tempos de pandemia:
considerações no âmbito educacional
Referências
ABEPSS. Trabalho e ensino remoto emergencial. Brasília, 23 jun. 2020. Disponível em: http://
www.abepss.org.br/noticias/trabalho-e-ensino-remoto-emergencial-386. Acesso em: 22
ago. 2020.
BRASIL. Lei Federal nº 8.662, de 7 de junho de 1993. Dispõe sobre a profissão de Assistente
Social. Brasília: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/leis/l8662.htm. Acesso em: 23 ago. 2020.
BRASIL. Decreto Federal nº 7.234 de 19 de julho de 2010. Dispõe sobre o Programa Nacional
de Assistência Estudantil - PNAES. Brasília: Presidência da República, 2010. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7234.htm. Acesso em:
20 ago. 2020.
BRESCIANI, E.; FERREIRA, P.; VENTURA, E. Orçamento reduzido: Governo prevê corte na
maoria das pastas, e Educação deve perder 13%. Jornal O Globo. Rio de Janeiro, ano XCVI,
nº 31.788, 18 de agosto de 2020, p. 4.
PESSANHA, Josemara. Momentos. In: Festival de Poesias do Campus Guarus, 8., 2020.
287
Relato 6
Fenomenologia, formação de professores e de professores/
gestores: reflexões que se mostram e se manifestam em tempos
de pandemia COVID-19, ensino remoto emergencial e trabalho
remoto
Alexsandra dos Santos Oliveira
1. Ao logo deste relato, o leitor irá se deparar com essa expressão como um movimento que emerge
a partir das reflexões do Art. 64 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, LDB n° 9.394/96 e dos
projetos de ensino desenvolvidos no Curso de Licenciatura em Pedagogia/Pádua, iniciado no fi-
nal de 2019-1, presencialmente, com a participação de cinco bolsistas contempladas pelo Sistema
de Bolsas de Assistência Estudantil (Sisbol) que continua sendo desenvolvido na configuração do
ensino remoto emergencial na UFF/Infes/Gepsub.
288
de autonomia e em outros, marcado por um sentimento de angústia. Buscarei em
princípios da existência, da fenomenologia, da experiência, da escuta e do diálogo os
fundamentos para seguir em frente.
289
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
É no questionar "o que é?" e "como é?" que novos sentidos se mostram.
Hoje, o exercício acadêmico que guia a escrita deste relato de experiência e
também o caminho de ações e reflexões com docentes e discentes para pen-
sarmos o humano na formação dos futuros professores no Infes e a formação
continuada de professores e professores/gestores escolares no Noroeste Flumi-
nense visando compreender o inesperado.
290
Relato 6 – Fenomenologia, formação de professores e de professores/gestores:
reflexões que se mostram e se manifestam em tempos de pandemia COVID-19,
ensino remoto emergencial e trabalho remoto
Para os autores:
Nossas experiências pessoais e as de outros docentes,
estão contidas naquilo que dizemos. Não se trata de
um assunto arquivístico sobre educação. Nem esta-
mos respondendo a perguntas que alguém tenha fei-
to. Talvez possamos captar os dramas da vida real na-
quilo que aprendemos dentro e fora da sala de aula.
Nada mais convincente do que os fatos da vida real
(FREIRE; SHOR, 1986, p. 13).
291
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Reporto-me aos slides dessa palestra para compartilhar com o leitor a ne-
cessidade de resistirmos e na resistência falarmos sobre Educação, pobreza,
desigualdades sociais, raça e gênero3 no currículo da escola e no currículo da
formação de professores e professores/gestores.
A própria definição da pobreza com base na renda
representa, em certo sentido, um ato arbitrário. Ve-
jamos, por exemplo, no caso do Brasil, o estabele-
cimento por parte do governo da linha que separa
pobreza – renda mensal per capita de até R$ 154 – e
pobreza extrema –renda mensal de até R$ 77 por pes-
soa. É difícil dizer que quem recebe R$ 80 encontra-
-se em situação melhor que quem recebe só R$ 77,
assim como é complicado afirmar que quem recebe
R$ 160 não seria pobre. Da mesma maneira, a pre-
sença ou a ausência de políticas públicas específicas
e de serviços públicos afetam profundamente a vida
das camadas mais vulneráveis da população (REGO
E PINZANI, 2018, p. 19).
292
Relato 6 – Fenomenologia, formação de professores e de professores/gestores:
reflexões que se mostram e se manifestam em tempos de pandemia COVID-19,
ensino remoto emergencial e trabalho remoto
Tirinha do cartunista argentino Quino, criador da Mafalda. QUINO. Toda Mafalda. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
293
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
294
Relato 6 – Fenomenologia, formação de professores e de professores/gestores:
reflexões que se mostram e se manifestam em tempos de pandemia COVID-19,
ensino remoto emergencial e trabalho remoto
Enfim, vou parar por aqui. Não conseguiria expor todas os acontecimentos
anunciados pelo Governo Federal e nem todo o caminho que trilhei objetiva-
mente e subjetivamente, individualmente e coletivamente nesse período. Mas
um dado posso descrever, lamentavelmente, em 08 de agosto de 2020 o Brasil
atingiria a marca de mais de 100.000 mortes de COVID-19.
295
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Referências
ARROYO. Miguel G. Pobreza e Desigualdades sociais. Disponível em: http://catalogo.egpbf.
mec.gov.br/modulos/pdf/intro.pdf. Acesso em: 15 out. 2018.
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia o cotidiano do professor. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1986.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Univer-
sitária São Francisco, 2008.
LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
REGO, Walquiria Leão. PIZANI, Alessandro. Pobreza e Cidadania. Disponível em: http://cata-
logo.egpbf.mec.gov.br/modulos/pdf/modulo1.pdf. Acesso em: 15 out. 2018.
296
Relato 7
Deteriorando e renascendo: da voz ao silêncio, do silêncio à voz
Sâmela Faria
E me vi indo...
De pesquisadora
Me tornei silêncio
297
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
querer consolar parentes de gente que nem sabia que existia. Como se fosse
muita audácia minha estar viva, respirando e tendo um teto para me abrigar
do perigo. Da filosofia dos privilegiados nessa lógica capitalista perversa,
apresento a você a bicama: sempre há gente em cima e gente embaixo.
298
Relato 7 – Deteriorando e renascendo: da voz ao silêncio, do silêncio à voz
Escrever
Escrever
Escrever
Então, a cobrança foi ficando mais intensa porque o prazo para finalizar a
dissertação e defende-la se apertou. E eu só queria me mudar de mim mesma.
Deixar meu casco pra lá. Largar tudo. Desistir... Já não me importava com meu
eu pesquisadora porque ele havia me abandonado. Mas ao mesmo tempo, eu
299
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
não podia deixar o sonho morrer. Deixar meu respiro se perder, este que é tão
excomungado pela asma, pelo capital, pela pobreza, pelas impossibilidades,
injustiças sociais e as mais variadas crueldades humanas. Eu precisava escre-
ver. Escrever. Escrever.
E então escrevi.
De início, foram só lufadas de dor. Sem ponto final. Foi como me permitir
gritar. Foi um pedindo socorro a mim mesma, em silêncio. Foi em meio a
um artigo sobre medicalização, que escrevi junto aos queridíssimos Thalles
Ladeira, então meu colega de turma, e Fernanda Insfran, então minha orien-
tadora, que ouvi minha voz lá no fundo. O artigo ficou incrível e foi o começo
da minha salvação. Após ele, outros trabalhos foram sendo produzidos pelo
grupo de pesquisa NEIPE, ao qual faço parte. A asma continuou atacando
diariamente. Uns dias mais severa, outros nem tanto. As mortes continuaram
subindo diariamente, uns dias mais severa, outros também. Os casos da cida-
de continuaram aumentando, uns dias mais severos, outros levando gente. Os
casos do estado continuaram subindo, uns dias mais severos, outros com aglo-
meração nas ruas. O desespero ainda estava ali, mas eu já não me alimentava
dele. Voltei a ler meus livros aos poucos. Passei a dar meus primeiros passos na
escrita da dissertação, sem muito peso, sem muita esperança. Mas eu precisava
escrever. Lentamente, fui me apresentando à pesquisadora que escreveu tudo
aquilo antes do meu eu pesquisador de 2020. Comecei a paquera, a compreen-
são, passei a conhecer aquele estudo como se fosse a primeira vez.
Eu via todo mundo terminando. E tinha que manter o controle pra não
me permitir tropeçar. Ouvia os relatos dos meus amigos do NEIPE sobre
como estava a vida lá fora e tive várias recaídas ao saber que eu não podia
compartilhar de suas dores. Eu nem licenciava, afinal. E passei a buscar me
manter firme às minhas próprias lutas, as internas e as externas, no coletivo
e no individual. Por diversas vezes os casos de Covid me tiraram do foco. Eu
lembrava do choro entalado sempre. Mas me sentia acolhida também. Ali
era meu lugar. No repertório que eu mesma criei. E a minha escrita passou
a ser resistência.
300
Relato 7 – Deteriorando e renascendo: da voz ao silêncio, do silêncio à voz
E voltei a escrever.
Escrevi
Escrevi
Escrevi
301
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Reitero aqui o poder que a escuta tem. Deixo aqui minhas emoções em
massa me dizendo o quanto foi bom ser ouvida. Ser lembrada de tudo de bom
que eu já conquistei. Além da escuta, outro processo que me cicatriza é a es-
crita. O poder falar. O poder se ouvir ao se ler. O poder das palavras é um
processo que salva. Eu não sabia o quanto precisava usar as palavras para mim
e não para um propósito apenas. Não para uma formalidade. Mas para me aju-
dar a entender tudo por meio da minha própria voz. E foi aqui, nessas linhas,
que eu desabrochei esse começo de cicatrização das feridas que eu acumulei
e não aceitava.
302
Relato 8
Ode à coletivização (ou “trabalhadores, escutem-se!”)1
Fernanda Insfran
Este relato está sendo escrito nas condições de normalidade impostas nestes qua-
se seis meses de quarentena: concentração e silêncio só de madrugada, enquanto
1. Título em homenagem a dois importantes Carlos da minha vida: Carl Rogers e Karl Marx.
2. Da Lama ao Caos. Música do sensacional Chico Science, lançada em 1994 no disco de mesmo
nome. Chico faleceu de acidente em 1997 (aos 30 anos), deixando uma legião de inconformadxs
(inclusive eu) e órfãos das suas geniais críticas sociais que tão bem retratavam/retratam as rela-
ções sociais racistas e classistas da “capitania hereditária” de Pernambuco e do país colonizado em
que vivemos.
303
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
meu filho de três anos dorme e recupera suas energias para as voltas olímpicas
que fará durante o dia ao redor da mesa de jantar – a atividade física diária da
família, que ocorre entre uma reunião virtual e outra. Talvez a maior diferença
entre esta madrugada e as demais, principalmente as do início da pandemia,
seja a contagem de mortos. Chegamos ao terrível número de 120 mil mortos,
segundo informações do consórcio de veículos de imprensa. Estou marcando
isso para quando voltarmos a ler esse livro, daqui alguns anos, nos espantemos
tanto com os números dessa tragédia quanto com o fato de estarmos desgover-
nados e há mais de 100 dias sem ministro da saúde (o último se demitiu em 15
de maio de 2020).
304
Relato 8 – Ode à coletivização (ou “trabalhadores, escutem-se!”)
Pois bem, chegando finalmente onde eu queria, hehe: essa obra só existe
porque foi gestada por mim, pelos queridos Paulo, Tiago, Thalles e pela que-
rida Sâmela, xs meus quatro últimxs orientandxs de mestrado. Todxs profes-
sorxs, cada um com projetos e temas bem distintos – um desafio maior que o
outro. Em comum, além da dedicação, um sentimento de irmandade que xs
305
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
306
Relato 8 – Ode à coletivização (ou “trabalhadores, escutem-se!”)
mês, entre abril e maio de 2020, tivemos 1906 respondentes – foi muito
surpreendente para nós, acostumados a fazer pesquisa qualitativa com gru-
pos pequenos, composto por professorxs e/ou alunxs de poucas escolas.
Dado o volume de dados dessa pesquisa, fizemos até agora apenas três ar-
tigos com análises desse material. Um deles, um capítulo sobre a relação
família-escola, está presente nesta obra.
Foram muitas idas e vindas de 2009 pra cá, mas nunca deixei de acreditar o
poder transformador do grupo e na importância de todxs terem “um coletivo
para chamar de seu”. Lembro das aulas de psicologia social, há quase 20 anos,
e da minha adoração pelas teorias de grupo. Depois que tive acesso a Carl
Rogers, Wilfred Bion e Pichon Rivière, vi que curtia muito mais outras episte-
mologias e compreensões do fenômeno de grupo do que aquelas apresentadas
pela psicologia social norte americana.
307
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
E essa reflexão, a meu ver, só é possível quando nos permitimos parar e res-
pirar. Sair da roda vida do trabalho alienado e pensar nosso lugar nisso tudo. E
estar entre pares, com a certeza de que escutas empáticas vão ocorrer, facilita
muito esse processo de desalienação.
Assim, a única resposta possível aos pedidos de ajuda que tenho recebido
ao longo desses meses tem sido: coletive-se! Muitas inciativas de grupos e
308
Relato 8 – Ode à coletivização (ou “trabalhadores, escutem-se!”)
rodas de professorxs têm surgido nos últimos meses e isso tem que dando
muita esperança!
O verbo “encontrar” nunca fez tanto sentido e nunca foi tão desejado
quanto neste momento de confinamento. Outra palavra que tem significado
muito para mim é “escuta”. Assim, faço desse relato uma ode à coletivização e
lanço um pedido de ajuda a todxs xs profissionais de educação: trabalhadores,
escutem-se!
Lembrei agora desse diálogo que tive com a maravilhosa amiga Adriana
Gesualdi, que está publicado no livro “Educação Centrada em Estudantes:
práticas e conversações”:
Fernanda - O sistema é tão perverso que esquadrinha
os nossos tempos e espaços de tal forma que a gente
não consegue se organizar, pensar junto, no coletivo...
Você está aqui conversando comigo porque você está
de férias, aposentada no município, então está tendo
tempo... Quando você teve tempo para conversar com
seus colegas de escola ou de CRE ou de secretaria?
Adriana – Não existe esse tempo...
Fernanda – E não tem que existir, porque se existir
esse tempo a gente se organiza e derruba esse siste-
ma! (INSFRAN; LOPES, 2020, p. 44).
Será que finalmente teremos esse tempo? Será que mesmo afastadxs fisi-
camente e confinadxs em casa, conseguiremos finalmente nos escutar e cons-
truir uma saída coletivamente?
Esse caótico ensino remoto emergencial que invadiu nossas casas e nos co-
locou de joelhos aos interesses do capital (e do produtivismo acadêmico) tem
gerado muito sofrimento/ adoecimento, mas também muita reflexão. Bora
aproveitar a desorganização para nos organizarmos, como incentivou o genial
Chico Science? “Da lama ao caos, do caos a lama, o homem roubado nunca se
engana”. Bora recuperar o que nos foi roubado?
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Assim como Brecht, acreditamos que “as revoluções se produzem nos be-
cos sem saída”.
Referências
BANCO MUNDIAL. Prioridades y estratégias para la educación. Washington, D. C.: Banco
Internacional de Reconstrucción y Fomento / Banco Mundial, 1996.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
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Sobre as/os autoras/es
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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Sobre as/os autoras/es
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Sobre as/os autoras/es
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Sobre as/os autoras/es
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Minicurrículos das/os organizadoras/es
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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
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Esta obra foi composta nas tipologias Minion Pro e Calibri e foi impressa
em papel Pólen Soft® 80 grs./m2, na primavera de 2020.
Este livro é uma ocupação. Ocupamos este espaço e o tomamos
por terra fértil às denúncias do que experienciamos neste momen-
to de pandemia. Escritos e experiências que expõem fraturas, dores,
angústias. Escritos de/por aquelas/es sem-direito-de-parar. Resistir,
portanto, é ato político. Resistimos ao silenciamento que massacra,
resigna e adoece, escrevendo. Escrevemos e nos posicionamos contra
o controle remoto, a reinvenção tecnicista, a “neutralidade”, o adoe-
cimento docente e discente, a pseudoformação e todas as formas de
mordaça e alienação colocadas no caminho da educação libertado-
ra e emancipatória. Escrevemos para tensionar os nós em nós. E em
quem nos lê. Por fim, escrevemos para tentar adiar o fim do mundo.
Será uma utopia?
Os organizadores
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