Ebook Fraturas Expostas Pela Pandemia

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Fernanda Fochi Nogueira Insfran | Paulo Afonso do Prado

Sâmela Estéfany Francisco Faria | Thalles Azevedo Ladeira


Tiago Afonso Sentineli
Organizadores

FRATURAS EXPOSTAS PELA PANDEMI


Escritos e experiências em educação
A
Fernanda Fochi Nogueira Insfran | Paulo Afonso do Prado
Sâmela Estéfany Francisco Faria | Thalles Azevedo Ladeira
Tiago Afonso Sentineli
Organizadores

FRATURAS EXPOSTAS PELA PANDEMI


Escritos e experiências em educação
A
Copyright © 2020 Encontrografia Editora

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem a
expressa autorização do autor.

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Bibliotecária
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F844 Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação /


Organizadores Fernanda Fochi Nogueira Insfran... et al. Campos dos
Goytacazes (RJ): Encontrografia, 2020.
320 p.

ISBN: 978-65-991719-6-3
Outros organizadores: Paulo Afonso do Prado, Sâmela Estéfany Francisco
Faria, Thalles Azevedo Ladeira, Tiago Afonso Sentineli.

1. COVID-19 (Doença) – Aspecto social. 2. Educação – Finalidades e


objetivos. 3. Prática de ensino. 4. Psicologia educacional. I. Prado, Paulo
Afonso do. II. Faria, Sâmela Estéfany Francisco. III. Ladeira, Thalles Azevedo.
IV. Sentineli, Tiago Afonso. V. Título: escritos e experiências em educação.

CDD 371.358

Instituto Brasil Multicultural de Educação e Pesquisa - IBRAMEP


Av. Alberto Torres, 371 - Sala 1101 - Centro - Campos dos Goytacazes - RJ
28035-581 - Tel: (22) 2030-7746
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Profa. Dra. Margareth Vetis Zaganelli – UFES (BRASIL)

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Profa. Dra. Martha Vergara Fregoso – UNIVERSIDAD DE GUADALAJARA (MÉXICO)

Profa. Dra. Patricia Teles Alvaro – IFRJ (BRASIL)

Prof. Dr. Rogério Drago – UFES (BRASIL)

Profa. Dra. Shirlena Campos de Souza Amaral – UENF (BRASIL)

Prof. Dr. Wilson Madeira Filho – UFF (BRASIL)


Vida proibida

O obrigatório
e o proibido
andam de mãos dadas

Esse incrível paradoxo


numa sociedade
onde poucos têm muito
e muitos têm pouco
fica cada dia mais visível

A pandemia é só uma lupa


aumentando o tamanho
do que já existe
deixando a realidade inegável, jogando na cara
o frágil chiste humano

6
da nossa prepotência
diante da natureza absoluta
Tudo fica evidente
nossa força
nossa carência

A força de quem
mesmo sem recursos
tem que tirar potência
não sei de onde
A carência dos que
sempre estão precisando
de mais e mais

“Moço, a gente se arrisca


porque precisa
se pudesse estaria na praia
pegando uma brisa”

Mas a praia não pode

Só que não é de hoje


que a praia não pode
que teatro não pode
que cinema não pode
que passear de noite não pode

“A gente nunca pôde nada moço! Nem morrer!


Só trabalhar, servir e proteger os outros
Mas se a gente se protege
é trouxa
se não se protege
é burro? Porra!”

7
Indignação é pouco
a loucura é muita
a sociedade é desigual
a elite é sempre a mesma
a política não dá descanso
a vergonha é infinita
os vendidos nunca decepcionam
e os mansos dão sono
A proibição dos pobres
é o luxo dos ricos

“Moço, eu bem queria


que fosse obrigatório
mudar isso pra melhor”
Sim, amigo…
e eu bem queria
que fosse proibido
perder a esperança

Marlos Drumond1

1. Psicólogo e poeta, publica poemas como “Vida proibida” no blog Hipertensa Poesia: https://dru-
marvi.wixsite.com/hipertensapoesia

8
Sumário

Primeiras palavras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12

Prefácio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14

SEÇÃO I. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21
Escritos que expõem fraturas

1
Políticas de morte nas educações instituídas e contágios insurgentes em contextos pandêmicos . . . . . . . . .22
Tito Loiola Carvalhal
Elaine Cristina de Oliveira
Maria Izabel Souza Ribeiro

2
Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 39
Hélio da Silva Messeder Neto
Izadora dos Santos Pires

3
A criança pré-escolar e o ensino remoto. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 62
Elizabeth Tunes
Zoia Prestes

4
O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto e pseudoformação em tempos
de pandemia . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 72
Ricardo Taveiros Brasil

5
Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia: educação a distância,
educação on-line ou ensino remoto? . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 91
Bruna Werneck Canabrava
Clarisse de Mendonça e Almeida
Renata Vettoretti Leite
Vittorio Lo Bianco

9
6
Formação continuada de professores em tempos de pandemia: empoderamento,
resistência e possibilidades . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 102
Karina Rocha Rosa de Castro

7
Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 118
Tiago Afonso Sentineli
Fernanda Insfran

8
Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos públicos por
beneficiários do Programa Bolsa Família. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Priscila Tavares dos Santos
Michelle Lima Domingues

9
“A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 156
Bruna Damiana Heinsfeld
Breno Laerte Pacífico Pinto

10
A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-branca em meio
ao ensino remoto nos cursos de Psicologia . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 170
Alexandre Trzan-Ávila

11
Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes no ensino superior: algumas reflexões. .. .. .. 182
Marilda Gonçalves Dias Facci
Nilza Sanches Tessaro Leonardo
Eloisa Rocha de Sousa Alves

12
Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
Anelise Lusser Teixeira

13
Sociedade enlutada: lutas e lutos de uma sociedade na busca por educação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 218
Paulo Afonso do Prado
Thalles Azevedo Ladeira
Tiago Afonso Sentineli

14
A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 232
Fabio A. G. Oliveira

10
SEÇÃO II. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
RELATOS EM PRIMEIRA PESSOA: VISIBILIDADE, LUGAR DE FALA E AUTOCUIDADO . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 253

Relato 1
Fraturas expostas: catarse e reflexões sobre as condições de vida e existência antes e
pós-pandemia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254
Tiago Afonso Sentineli

Relato 2
Etnografia ou devaneio? Relato de experiências para cicatrizar feridas da alma. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261
Paulo Afonso do Prado

Relato 3
Vida e morte na pandemia: não sairemos da mesma forma que entramos . .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 270
Thalles Azevedo Ladeira

Relato 4
Professora em época de pandemia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 274
Alessandra Tozatto

Relato 5
Experiências do Serviço Social em tempos de pandemia: considerações no âmbito educacional. . . . . . . . . 280
Amanda Bersacula de Azevedo
Débora Spotorno Moreira Machado Ferreira
Érika David Barbosa
Josemara Henrique da Silva Pessanha
Paola Barros de Faria Fonseca

Relato 6
Fenomenologia, formação de professores e de professores/gestores: reflexões que se
mostram e se manifestam em tempos de pandemia COVID-19, ensino remoto emergencial
e trabalho remoto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 288
Alexsandra dos Santos Oliveira

Relato 7
Deteriorando e renascendo: da voz ao silêncio, do silêncio à voz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 297
Sâmela Faria

Relato 8
Ode à coletivização (ou “trabalhadores, escutem-se!”) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303
Fernanda Insfran

Sobre as/os autoras/es. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 311

Minicurrículos das/os organizadoras/es. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319

11
Primeiras palavras1

Este livro é uma ocupação. Ocupamos para não sucumbir, para não desapare-
cer. Ocupamos este espaço e o tomamos por terra fértil às denúncias do que ex-
perienciamos neste momento. Escritos e experiências que expõem fraturas, dores,
angústias. Escritos de/ por aquelas e aqueles sem-direito-de-parar.

Uma pandemia que nos seus primeiros seis meses ceifou quase 130 mil vi-
das2, colocou milhões à mercê de auxílios governamentais e caridade, mas que
não nos deu o direito de parar para chorar o luto; parar para ter medo; parar
para pensar; parar para nos reorganizarmos (e desorganizar o Cistema3). Pro-
fissionais da ponta (chão de escola, chão de fábrica e afins) nunca tiveram esse
direito! Nosso tempo não é nosso, ele foi capturado há tempos pelos mesmos

1. Homenagem a Paulo Freire e seu capítulo de apresentação de “Pedagogia do Oprimido”.


2. No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a pandemia da
COVID-19. Daqui dois dias completamos seis meses dessa declaração. Há três meses o Brasil é
o segundo país com mais número de mortes no mundo, só perdendo para os Estados Unidos,
também governado por um presidente de extrema direita e negacionista.
3. Neologismo criado para designar sistema(s) que são estruturados por lógicas dominantes e cisgê-
neras.

12
que hoje nos roubam também outros direitos fundamentais... Assim, sem direito
de pausa para um respiro, seguimos sem fôlego nos perguntando: até quando?

Resistir é preciso, diriam os/as companheiros/as que lutaram, resistiram e


morreram combatendo ditadores fascistas – aqui e acolá nunca totalmente derro-
tados - que voltaram ao poder surfando na onda conservadora que nos invadiu e
que se alimenta de necropolítica.

Resistir é ato político. Por isso, escolhemos resistir exercitando empatia e auto
cuidado, atitudes caras aos humanistas, capturadas e deformadas pelos neolibe-
rais... Resistimos ao silenciamento que massacra, resigna e adoece, escrevendo.

Escrevemos, a muitas mãos, para registrar vivências pandêmicas no calor da


pandemia. Escritas em tempo presente.

Escrevemos para gritar nosso inconformismo contra injustiças, desigualdades,


discriminações intensificadas nestes dias tão estranhos. Escritas política e etica-
mente posicionadas à esquerda.

Escrevemos para ressoar vozes intimidadas pelo terrorismo do Estado e do


Mercado e suas políticas de morte e de sofrimento. Escritas que transbordam re-
beldia.

Escrevemos e nos posicionamos contra o controle remoto, a reinvenção tec-


nicista, a “neutralidade”, o adoecimento docente e discente, a pseudoformação e
todas as formas de mordaça e alienação colocadas no caminho da educação liber-
tadora e emancipatória. Escritas que desvelam discursos sedutores que não mais
nos cooptarão.

Escrevemos para tensionar os nós em nós. E em quem nos lê.

Por fim, escrevemos para tentar adiar o fim do mundo. Será uma utopia?

Fernanda Insfran
Paulo Afonso do Prado
Sâmela Faria
Thalles Ladeira
Tiago Sentineli
(a todxs xs educadores, inspiradxs em todas as palavras grafadas nesta obra).

13
Prefácio

Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
(Cota zero – Carlos Drummond de Andrade)

Não! O ano não é 2020. É 2012, ano em que as universidades federais brasilei-
ras protagonizaram uma importante greve, a primeira depois de 6 longos anos de
silêncio do movimento paradista docente, sendo este o maior intervalo sem greves
nas universidades federais nos últimos 40 anos1.

1. Na década de 1980, contexto de reabertura política pós ditadura civil-militar-empresarial, foram


sete anos com greves e apenas três sem. Os movimentos paradistas seguiram fortes nos anos 1990,
já com presidentes eleitos (sempre para reforçar a ótica neoliberal que nos assola, ora com mais,
ora com menos perfume): foram seis greves na década. Collor enfrentou uma greve em três anos
de governo; Itamar, duas greves em dois anos; e FHC, cujo governo se prolongou até o final de
2002, enfrentou cinco greves em oito anos de governo. O esvaziamento das greves começou na era
Lula. Entre 2003 e 2010, os oito anos de Lula na presidência, foram apenas duas greves, as duas no
início de sua primeira gestão, uma em 2003 e outra em 2005. Desde então, a cumplicidade entre
sindicatos e o presidente Lula fez arrefecer uma história de lutas e enfrentamentos. Foram seis
anos sem greves (de 2006 a 2012), englobando o final da primeira gestão e toda a segunda gestão

14
Participei dessa greve histórica, que durou mais de 120 dias. Dela, ficou guar-
dado que a luta não era apenas para abrir canais de negociação com o governo,
supostamente de esquerda, mas que se mostrou totalmente fechado para o diálogo
e conforme aos ditames neoliberais. A luta também era contra muitos sindicatos,
que, aliados do governo federal, não tinham interesse que a greve ganhasse força.
Era meu primeiro ano como professora da Ufba, e considero que ali passei a me
sentir parte. Uma greve derrotada, se pensarmos nas reivindicações específicas,
mas potente espaço de formação política e criação de vínculos e amizade – esse
afeto tão político.

Por isso, considero que foi na greve de 2012 que começou a costura da linda
greve de 2015, no segundo mandato de Dilma. Nela, mais do que antes, a luta con-
tra um sindicato pelego foi desgastante. A persistência na luta, que durou quase
140 dias, novamente sem conquistas objetivas, era alimentada pela formação po-
lítica que se fazia nas assembleias, rodas de conversa, cafés, avenidas. Sol na cara,
chuva nos pés, seguimos em marcha. Cartazes e faixas feitos a mão, bandeiras,
palavras de ordem, performances, tambores, dança, cantos, suor, gritos, choros,
risos, encontros, abraços, parceria. Um misto de alma lavada com dínamo, movi-
mento que alimenta movimento.

Desde então, o que vivemos foi golpe atrás de golpe, incluindo aqueles que le-
vamos dos governos petistas, dos quais destaco o de nos desestimular a lutar e o de
aceitar compor com inimigos históricos. E tome golpes! Reforma trabalhista, refor-
ma da previdência, reforma administrativa, desmontes vários. Taxação de grandes
fortunas e auditoria da dívida pública, que é bom, seguem temas silenciados. E os
escombros das reformas seguem caindo na cabeça dos trabalhadores, cujos direitos
estão cada vez mais triturados. Enquanto isso, antes Cunhas hoje Maias, sempre o
mesmo macho-branco-rico-nocomando, gerações após gerações, escarnecem acu-
mulando rachadinhas tomadas descaradamente dos cofres públicos.

A eleição de Bolsonaro e tudo o que dela vem sucedendo deveriam ser um


limite. Deveríamos todos parar, mão na cintura, ou melhor, braços cruzados, e
dizer: “Ah, não! Aí já é demais!”. Mas o afeto no comando é o estarrecimento. Fica-
mos estarrecidos com a eleição. E seguimos estarrecidos desde então.

Lula e adentrando os primeiros anos de Dilma. Em 2012, segundo ano da gestão Dilma, as univer-
sidades federais finalmente voltaram a parar (Fonte: https://pt.scribd.com/document/266785977/
QUADRO-GERAL-DAS-GREVES-NAS-UNIVERSIDADES-FEDERAIS-1980-2012).

15
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Agora, o ano é 2020. Por tudo o que estamos passando nos últimos quatro
anos, “em silêncio”, 2020 tinha tudo para ser um ano de resistência, de lutas,
um ano de chamado à greve! E essa greve, imaginava eu, no final de 2019,
tinha tudo para ser histórica, como foram as duas últimas. Longa, gigante e
aguerrida.

Hoje, às vésperas do Grito dos Excluídos, depois de cinco meses de


impactos diretos da pandemia nas nossas vidas, olho o que projetava para
2020 e me pergunto: será que teria mesmo uma greve? E se conseguísse-
mos aprová-la em assembleia, ela seria uma greve potente? Sinto ao ima-
ginar que não!

Porque mesmo quando fomos obrigados, por uma crise sanitária, a sus-
pender a vida cotidiana, que se tornou inviável no seu formato “normal”,
não conseguimos parar. Essa interrupção forçada poderia ser um momento
potente para aprofundarmos o debate sobre uma série de questões que já
vinham sendo pautadas desde que o ex-ministro da educação tentou enfiar
goela abaixo seu projeto de future-se/fature-se.

Pensar a universidade sem ganhar créditos para isso. Mas o que vimos, de
maneira geral, foi o contrário (como sempre acontece nas greves). Muitos pro-
fessores, no afã de seguir produzindo, aproveitaram para acelerar pesquisas,
acelerar análises, acelerar publicações, acelerar eventos.

Ainda hoje ecoa e dói a fala de um colega professor (Diego Marques) na


greve de 2015: para os professores, em especial os universitários, sobrecarga
tem se traduzido em valor. Quanto mais bancas, quanto mais pareceres, quan-
to mais papers, quanto mais orientandos, quanto mais eventos, tanto mais
respeitado. Narciso não tira férias. Na fogueira das vaidades acadêmicas, é
preciso ser lembrado/citado: fotos, selfies, lives, estou vivo!

Rolo compressor naturalizado – glamourizado? –, somos capturáveis até


quando somos vacinados. No reinado dos prazos e limites, seguimos a toque
de caixa. Na fome de viver e na ânsia de digerir, encaixamos asfixiados: en-
tre um artigo científico e um capítulo de livro, uma pesquisa espremida por
orientações e bancas. E tempo, que é tudo que temos, passa a ser tudo o que
nos falta! No espírito do “tem que dar”, aceitamos dormir menos, pular os
momentos de autocuidado, requentar o que tem na geladeira ou numa pasta
antiga.

16
Prefácio

Sem tempo de respirar, seguimos em terreno rarefeito. E o sufoco que já


caracterizava nossa vida antes seguiu, modo contínuo, na pandemia. Nem pa-
rou, nem mesmo desacelerou. Intensificação do trabalho, naturalmente2.

***

Este é um livro que coloca no centro do debate a educação em tempos


de pandemia. Um livro sobre a pandemia, ainda em tempos de pandemia.
Arrisco a dizer que um livro sobre a pandemia ainda no seu início, já que não
sabemos até quando ela vai durar, nem até onde chegarão seus efeitos.

A gestação do livro se deu tão logo a pandemia foi deflagrada e reconhe-


cida como um problema de saúde pública no Brasil, em meados de março. Os
autores foram contatados em junho, seus capítulos foram concluídos no final
de agosto, eu li todo o conteúdo e rabisquei este prefácio na primeira semana
de setembro, tudo para que o livro pudesse entrar na editora em tempo de ser
lançado no final do mês, aproveitando a realização de um evento internacio-
nal virtual sobre o tema, organizado pelos mesmos organizadores do livro,
além de outros parceiros.

O livro engloba os cinco primeiros meses de pandemia3. Assim, ele fala do


furacão no olho do furacão. Para falar sobre a ilha é preciso sair da ilha, ensina
Saramago. Mas o fato é que não sabemos quanto de chão ainda temos pela
frente. Assim, os escritos aqui reunidos foram feitos no calor dos meses ini-
ciais, momento de tantas incertezas quanto ao presente e tantos receios quanto
ao futuro, o corpo ainda tonto e ao mesmo tempo com tantos calos acumula-
dos pela história. Talvez esta seja a principal contribuição do livro: ele serve
como registro de como cada um(a) des autores pensou e sintetizou reflexões
sobre este contexto até o presente momento.

O livro é composto por diversas modalidades de textos, com destaque para


os ensaios teóricos, que nos convidam a olhar o presente e ensaiar o futuro;

2. Afora uma série de atravessamentos de gênero, raça e classe, sentidos mais por uns do que
por outros, concreto em todos nós.
3. Até recentemente, muitos de nós apostávamos que a situação estaria sob controle até agosto.

17
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

bem como para as reflexões teórico-práticas à luz da experiência de professo-


res em diversas etapas de ensino, com mais ênfase para as reflexões de docen-
tes do ensino superior privado na formação de psicólogas. Há, ainda, reflexões
sobre o contexto atual extraídas da análise de pesquisas de campo realizadas
antes da pandemia, lembrando que as desigualdades e sofrimentos no terri-
tório educacional não são uma novidade, já se fazendo presentes há décadas.

No campo específico da educação básica, além dos depoimentos pessoais


de professores que estão construindo o ensino remoto, há discussões a partir
de dados construídos após a deflagração da pandemia, seja pela via da análise
documental, seja a partilha de desafios enfrentados para sua realização, seja a
análise parcial de uma pesquisa de grande escopo realizada com professores
no país, a qual não compõe o presente livro e deverá ser publicada em outros
veículos de difusão de conhecimento. Ainda articulados à educação básica, es-
tão os capítulos que reúnem escritos de docentes que trabalham na formação
de professoras. E, por fim, há o relato de trabalhadoras Assistentes Sociais que
atuam em uma instituição de educação básica tecnológica.

De maneira geral, o livro desvela o que está posto: o novo normal naturali-
za a velha precarização, e o slogan segue o subtexto: aceitem, se ajustem, vida
que segue. Da tentativa de reinvenção da educação, o livro fala de sobrecarga
de trabalho e de adoecimento docente. E alguns autores nos chacoalham para
não sermos ingênuos: as técnicas e estratégias não são um em si, neutras, mas
informadas por visão de mundo e interesses, podendo ser emancipatórias,
mas também capturadas por mecanismos aprisionadores.

Precisamos resistir a argumentos que tentem nos fazer engolir modelos e


prescrições. Precisamos estar atentos para não reforçar, com nossos discursos
e práticas, justamente aquilo que queremos combater. E precisamos, substan-
cialmente, fugir de propostas que tentem alimentar em nós a busca por recon-
forto individual, o perigoso “esvaziar o saco”, cujo efeito político, na maioria
das vezes, é apenas o de nos dar fôlego para seguir no sufoco por mais um
tempo, até o saco encher de novo, e ser mais uma vez esvaziado.

Não apenas a partir do que li no livro, mas também a partir das diver-
sas conversas com várias pessoas que ocupam diferentes lugares no campo
da educação (professoras, estudantes e familiares, da educação básica ao en-
sino superior, seja da rede pública, seja da rede privada), tanto antes, quanto
no decurso da pandemia, há algo próprio da vida das instituições educativas

18
Prefácio

que aparece com força. O sofrimento decorrente do contexto específico da


pandemia entra em choque com a ideia, tão presente no senso comum, de
que professores trabalham isolados, cada um na sua sala. Esta me parece uma
visão ideológica, que fortalece a desmobilização docente ao invisibilizar que a
vida das instituições educativas é feita de muitas trocas e conflitos fundamen-
tais. Nos corredores, salas de professores, lanchonetes, pátios, bancos, vãos e
esbarrões, a vida institucional vai sendo tecida e tensionada, criando rasgos,
costuras e composições. Também é disso que não abrimos mão.

Reunidos, mas não necessariamente articulados e organizados coletiva-


mente. Não é de hoje que construir processos educativos no Brasil tem sido
vivido com sofrimento. Nesse atual contexto, que só amplia a exposição de
nossas fraturas tantas, é preciso olhar com calma e atenção para o que fomos
e o que estamos sendo, para que possamos lutar e inventar o nosso vir a ser.

O que foi feito, amigo, de tudo que a gente sonhou


O que foi feito da vida, o que foi feito do amor
Quisera encontrar aquele verso menino
Que escrevi há tantos anos atrás

Falo assim sem saudade, falo assim por saber


Se muito vale o já feito, mais vale o que será
Mas vale o que será
E o que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir

Falo assim sem tristeza, falo por acreditar


Que é cobrando o que fomos que nós iremos crescer
Outros outubros virão, outras manhãs
plenas de sol e de luz

Alertem todos alarmas que o homem que eu era voltou


A tribo toda reunida, ração dividida ao sol
De nossa Vera Cruz
Quando o descanso era luta pelo pão
E aventura sem par
Quando o cansaço era rio e rio qualquer dava pé

19
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

E a cabeça rolava num gira-girar de amor


E até mesmo a fé não era cega nem nada
Era só nuvem no céu e raiz

Hoje essa vida só cabe na palma da minha paixão


Devera nunca se acabe, abelha fazendo o seu mel
No canto que criei
Nem vá dormir como pedra e esquecer
O que foi feito de nós

(O que foi feito devera - Fernando Brant, Márcio Borges, Milton


Nascimento)

Lygia de Sousa Viégas


Salvador, primavera nos dentes, setembro de 2020

20
SEÇÃO I

Escritos que expõem fraturas

21
1
Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos
Tito Loiola Carvalhal
Elaine Cristina de Oliveira
Maria Izabel Souza Ribeiro

Resumo

Neste ensaio, enquanto gênero textual e como parte fundamental de todo pro-
cesso de preparação, entre cansaços e revoltas, a luz de nossa história, objetivamos,
sem pretensão nem condição de esgotar o debate, pensar a estrutura hegemônica da
educação pública instituída, no Brasil, fundamentada na naturalização das desigual-
dades. Na conjuntura atravessada por uma pandemia viral, que tem retroalimentado
o darwinismo social do “faz parte do processo, sempre tem uns que caem e outros que
resistem”, destacamos algumas das tantas desgraças que a pandemia tem exposto,
daquilo que já é política de morte faz tempo, mas, ainda, bastante invisibilizado na
educação pública remotamente emancipatória. Por fim, no compromisso histórico

22
de denúncia, anúncio e inacabamento, partilhamos contágios insurgentes nas edu-
cações que, entre tensões e rupturas, cavam respiros que vigoram as lutas, por mu-
danças estruturantes, para outros reais possíveis.

Inspirações teórico-políticas

Na contramão da fantasiosa ideia de “neutralidade”, considerando a complexi-


dade conceitual de Educação, entendemos a importância de iniciarmos marcan-
do qual compreensão nos alimenta, a fim de não confundirmos a pessoa leitora,
dando a entender, por exemplo, que só existe uma única e inequívoca definição,
quando sabemos que há variadas interpretações para um mesmo fenômeno. A
depender da perspectiva teórico-política, a educação será entendida, pesquisada e
analisada de diferentes formas, inclusive de formas diametralmente opostas e até
mesmo contraditórias entre si.

Assim sendo, manifestamos que nossos entendimentos são estruturados nos


lampejos que denunciam a educação hegemônica enquanto tecnologia medica-
lizante instituída de controle, assujeitamento e extermínio físico e subjetivo, da
população empobrecida pela desigualdade social e discriminada por marcadores
sociais da diferença, mas anunciam a dialética pulsante nas rebeldias, recusas e
proposições construídas nesse território em disputa, tendo como compromisso a
emancipação interseccionalmente coletiva. Entendemos a educação como direito
que precisa garantir acesso e a apropriação dos conhecimentos produzidos pela
humanidade, ao longo da nossa história. Educação como política de vida e convi-
vência interseccionalmente coletiva.
“Preso em um desmoronamento
Sem escapatória da realidade
Abra seus olhos
Olhe para os céus e veja”1

O ano é 2020. Tempo, que não para, atravessado pela presença de um vírus
aparentemente democrático, mas que, na real, afeta potencialmente, de diversas
formas, as vidas da população mais vulnerabilizada.

1. Trecho traduzido da música Bohemian Rhapsody, do Queen (1979).

23
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Existem várias formas de se viver uma pandemia. No nosso país, cuja polí-
tica genocida de insegurança pública mata cerca de 23.000 jovens pobres e ne-
gros, por ano, no seu histórico “normal”, e segue matando, a indiferença tem
sido regra traçada na naturalização dos descasos e abandonos do poder público,
quando diz respeito a população mais vulnerável, e na ampliação dos suportes
e investimentos para os afortunados. Enquanto cerca de 107 milhões de brasi-
leiros recorrem ao auxílio emergencial de míseros R$ 600,00, e quase metade
teve seu pedido negado, bilionários brasileiros aumentaram, em 34 bilhões de
dólares, suas fortunas durante a pandemia, entre os meses de março e julho2.

Na cartilha capitalista, a doutrina que predomina anuncia abertamente:


“onde você vê uma crise, eu vejo uma oportunidade”. Nesse cenário, de acordo
com o relatório divulgado pela Oxfam (2020), “os bilionários de toda a região
não só ficaram imunes à crise econômica provocada pela pandemia do coro-
navírus numa das áreas mais desiguais do planeta como ficaram ainda mais
bilionários” (MIRANDA, 2020).
Vulnerabilidades intensificadas pela desigual distribuição de ri-
quezas
Política de morte na nossa cara ignorância.
A letalidade tem classe, tem cor, tem gênero3, tem história.

Desde a invasão dessas terras, como expõe Galeano (1978), de maneira


contundente, em “as veias abertas da América Latina”, “a força do conjunto
do sistema imperialista descansa na necessária desigualdade das partes que o
formam, e esta desigualdade assume magnitudes cada vez mais dramáticas”
(ibid., p. 15). Em um país cuja estrutura sociopolítica foi forjada dentro de um
sistema colonialista, que envolve genocídio, exploração, espoliação, produção
de pobreza para garantir riqueza para poucos, o SARS-CoV-2, espectro do
capitalismo, revela com nitidez aquilo que já luzia o escritor uruguaio, que
afirmava ter como objetivo sensibilizar sobre as razões para sorrir e as razões
para chorar de nossa realidade comum: “aqueles que ganharam, ganharam
graças ao que nós perdemos” (GALEANO, 1989, p. 14).

2. Relatório da Oxfam Brasil, 2020. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/noticias/bilio-


narios--da-america-latina-e-do-caribe-aumentaram-fortuna-em-us-482-bilhoes-durante-
-a-pandemia-enquanto-maioria-da-populacao-perdeu-emprego-e-renda.
3. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/mulheres-e-negros-s%C3%A3o-os-mais-afeta-
dos-pela-COVID-19-no-brasil-aponta-ibge/a-54303900.

24
1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos

1
57
79
153
1.138
15.305
30.830
51.502
75.000
87.748
104.201 vidas eliminadas
as tantas mais
subnotificadas
descartadas
desapropriadas
nas desigualdades impostas que uma pandemia expõe
nossa baixa imunidade infectada de interesses perversos
privadas
nos esgotos a céu aberto
um reacionário em seu estado bruto, no poder, eleito e louvado por nega-
cionismos
conclamando a população vulnerabilizada para a morte, enquanto faz
churrasco e ri das nossas desgraças
nossas ignorâncias e crueldades históricas não reparadas.
cada vida tem nome, endereço.
como diz uma pichação que nos batemos outro dia,
cada uma dessas mortes foi ou era o amor de alguém.

Sem romantizar o passado em saudosismos desmemoriados, a intensifica-


ção da miséria dos grupos historicamente vulnerabilizados é projeto ativo de
longa data, sempre presente, salvo por tímidas “rupturas” (PATTO, 2007). An-
tes da chegada do coronavírus, o mundo já enfrentava as tantas enfermidades

25
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

e flagelos da acumulação primitiva. Crimes contra a humanidade e toda vida


presente, infecção constante.

Estado mínimo para os grupos empobrecidos, no que diz respeito a di-


reitos, e máximo em repressão e controle. Estado máximo para garantir os
ditames do mercado, ou seja, para proteger os interesses dos ricos, inclusive
a liberdade de atuar criminalmente para a ampliação das suas riquezas, tipo
aproveitar a pandemia para “ir passando a boiada”, como afirmou o ministro
do desgoverno bolsonaro, Ricardo Salles, se referindo a desregulação de pro-
teção do meio ambiente, que inclui a autorização de exploração de garimpos
em terras indígenas, desmatamentos e incentivos a grilagens. Genocídio, eco-
cídio, extrativismo brutal.

Na criminalidade instituída, tudo vem sendo transformado em merca-


doria. Transformação que acelera o “processo de degradação global e misé-
ria modernizada” (ILLICH, 1985, p. 16). No estágio do capitalismo em que
vivemos, a colonização atualizada com sucesso, representada pelo capital
financeiro internacional segue a ladainha dogmática das relações de domi-
nação. Na base da exploração, espoliação e expropriação. “Tudo: a terra, seus
frutos e suas profundezas, ricas em minerais”, as pessoas “e sua capacida-
de de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos”.
Como insiste Galeano (1978, p. 13), “cada vez mais, fica gente à beira do
caminho, sem trabalho no campo, onde o latifúndio reina com suas gigan-
tescas terras ociosas, e sem trabalho na cidade, onde reinam as máquinas”.
O sistema vomita gente.

“Remotamente, Educação”

Nesse território de veias abertas, a educação pública brasileira instituída


nunca foi investida para possibilitar que a população saqueada enxergasse a
ladroagem e as extorsões contra as suas vidas e as vidas dos seus, muito pelo
contrário, ela traz, historicamente, a incumbência de controlar os corpos re-
beldes em potencial, explorados e oprimidos preferenciais. Todos pobres dos
direitos violados: todo corpo escolar, sobretudo professoras, estudantes e suas
famílias. Para que estes atendam aos interesses dos algozes, seguem alguns
moldes de subalternização para exploração: racismos, machismos, produção
de violências contra LGBTIQs, capacitismos, meritocracias, medicalização,
precarização, humilhações tantas.

26
1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos

Desde a formação de professores à educação básica, de forma ainda domi-


nante, a educação segue objetivando a doutrinação, por meio de violências sis-
têmicas, para a legitimação dos valores da classe dominante que acumula poder
através do roubo instituído. Todo um arsenal produzido com o intuito de des-
qualificar, demonizar, silenciar, destruir as referências epistemológicas e cultu-
rais, desde a população nativa e a população capturada do continente africano,
trazida para ser escravizada no Brasil, às dissidências que se levantaram e seguem
denunciando as santas hipocrisias e crueldades autointituladas civilizadas.

Diversos dispositivos produzidos, espalhados por todos os cantos, formam


nossas visões de mundo e impõem definições do que devemos ou não considerar
digno, legítimo, louvável (ILLICH, 1985). Quais afetos e movimentos devemos
ou não cultivar. A subserviência, a dependência, a naturalização e aceitação das
desgraceiras tantas têm sido regra. Nessa direção, Illich (1985), ao pensar sobre
a sociedade escolarizada (e escolarizante) que escolariza a educação, denuncia:
[...] a organização comunitária, quando não é finan-
ciada por aqueles que estão no poder, é tida como
forma de agressão ou subversão. A confiança no tra-
tamento institucional torna suspeita toda e qualquer
realização independente. O progressivo subdesen-
volvimento da autoconfiança e da confiança na co-
munidade é mais acentuado em Westchester do que
no Nordeste do Brasil (ibid., p. 25).

Em uma sociedade escolarizada, educação escolarizante (ILLICH, 1985),


implicada com políticas de coerções e de manipulações engendradas no con-
trole das corpas usurpadas, seus elementos, seus gestos, comportamentos
(FOUCAULT, 1977), nos consumindo numa maquinaria de poder que nos
esquadrinha, desarticula, sufoca, enfraquece (LADEIRA; INSFRAN, 2019).

Impondo as ideologias que atendam seus cistemas4 de dominação, para


essa civilidade tão bem quista pelas subjetividades colonizadas, a acumulação
de riqueza, a dominação territorial e subjetiva, a expansão da fé judaico-cristã
“justificam o total pragmatismo dos meios: escravatura, genocídio, apropriação,

4. Cistema, de acordo com Vergueiro (2015, p. 15) referenciando Grosfoguel (2012, p. 339),
caracteriza um “[c]istemamundo ocidentalizado/cristianocêntrico moderno/colonial capi-
talista/patriarcal” que produz “hierarquias epistêmicas”.

27
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

conversão, assimilação” (SANTOS, 1999, p. 23). Segundo Araújo (2011, p. 58),


a estruturação do sistema colonial no Brasil “teve características próprias de um
modo singular de capitalismo”, combinando “antigas formas de exploração e
opressão, como a questão de classe, gênero e raça”.

Na estrutura capitalista, cada vez mais ultraneoliberal, as desigualdades


são produzidas articuladas na perversa tradição, tomando “cada vez mais a
forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas,
xenofobia, homofobia e outras paixões mortais” (MBEMBE, 2018, s. p.). E isso
reverbera na vida nossa de todo dia, nada meritocrática, através do genocí-
dio, dos extermínios cotidianos; nas balas achadas que encontram sempre as
mesmas corpas empobrecidas pela estrutura desigual, na sua maioria, pessoas
negras e indígenas; nas violências contra as religiões de matrizes africanas;
nos fenômenos da patologização e criminalização das diferenças e da pobreza;
nos descasos, precarizações com a população empobrecida que depende dos
serviços públicos, da educação pública; nos empregos e trabalhos de merda
que nos afundam em mais miséria; na insistente política de fazer morrer as
assaltadas, as revoltosas.

No artigo intitulado “Escolas cheias, cadeias vazias”: notas sobre as raí-


zes ideológicas do pensamento educacional brasileiro, Patto (2007, p. 247)
aprofunda de maneira contundente os interesses canalhas da classe que tem
dominado o Estado brasileiro, no que diz respeito às políticas educacionais,
com algumas tímidas descontinuidades. Segundo a autora, “o entendimento
da escola como instituição mantenedora da ordem social”, como “instru-
mento de submissão moral que justificava a instrução pública como ins-
trumento do soberano para ‘banir a discórdia’" (ibid., p. 118-9), é presença
constante na história do pensamento educacional brasileiro. As políticas
educacionais objetivavam inibir “atos populares de rebeldia e de protesto
que [...] começavam a aumentar os índices oficiais de crime e de loucura e a
causar alarde entre os que temiam ataques à propriedade privada” (PATTO,
2007, p. 119). Nas ideias educacionais, a discórdia temida era a revolta das
subalternizadas em relação às opressões e explorações impostas às suas vidas
pela classe dominante.

O aclamado Rui Barbosa, ao pensar a educação pública, na transição do


Império para a República, em trechos apresentados por Patto (2007), decla-
rava que “todo cuidado é pouco quando se trata de oferecer aos explorados
chaves que possam dar acesso à consciência crítica”. É preciso “fechar a porta

28
1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos

‘às ideias de revolução” [...], distanciar as estudantes de “teorias e perigosas


utopias” (BARBOSA, 1947, X(IV), p. 67 apud PATTO, 2007, p. 121).

As políticas educacionais seguem há muito sendo estruturadas em con-


formidade com as políticas de segurança, como já alertava Freire (1970), não
para assegurar educações que permitissem às classes dominadas perceberem
criticamente as injustiças sociais. Esperar isso, segundo o autor (1970), se-
ria uma atitude bastante ingênua, visto que, como tem sido escancarado na
pandemia, para a razão hegemônica, responsável pela injusta distribuição de
renda, o sagrado não é a vida, mas a economia.

Protegidos em seus bunkers5 milionários e super representados no apa-


relho estatal, a preocupação da classe dominante que tem predominado na
elaboração de políticas públicas educacionais voltadas para os grupos social-
mente não desejados é “O que faremos deles e, mais importante, o que farão
eles de nós?” (PATTO, 2007, p. 122).

Nessa trajetória maldita, “o que poderia ser considerado como história ou


reminiscências do período colonial permanece, entretanto, vivo no imaginário
social e adquire novos contornos e funções em uma ordem social supostamente
democrática” (CARNEIRO, 2005, p. 117) mantendo intactas as opressões.

Patto (2007, p. 245-246) denuncia que:


[...] a história oficial da educação brasileira tem sido
escrita em chave evolutiva, centrada no elogio dos
progressos realizados, o que dá margem a uma histo-
riografia celebrativa e lacunar, plena de abstrações e
inversões típicas do discurso ideológico, sem nenhu-
ma atenção ao engajamento político inevitavelmente
entranhado na base do conhecimento, ou seja, à re-
lação das idéias com a realidade concreta onde são
engendradas e ganham relevo. [...] velhos vinhos em
novas garrafas.

Em pleno século XXI, apesar dos discursos fantasiados de democráticos, o


acesso à educação no Brasil não é direito assegurado a todas as pessoas.

5. Para saber mais sobre essa aberração, consultar: https://super.abril.com.br/especiais/isola-


mento-extremo-como-sao-onde-ficam-e-quanto-custam-os-bunkers.

29
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

O projeto escravocrata, latifundiarista e agroexporta-


dor do país explica porque a universalização da edu-
cação básica não se concretiza, e, ainda, existam 14
milhões de jovens e adultos não alfabetizados (MA-
RIANO, 2019, p. 179).

No arremedo de educação, “aqui tudo parece que era ainda construção, e


já é ruína”6. A pandemia somada aos ditames neoliberais de política de morte,
orquestrada por um fascista, tem vulnerabilizado ainda mais a educação pú-
blica, que, não mais vista como necessária aos interesses burgueses, míngua na
precarização louvada por entusiastas das tecnologias digitais.

Diante de uma crise sanitária estruturante, a racionalidade medicalizante


que individualiza os enfrentamentos, cobra de nós habilidades e competências
para a adaptação a não possibilidade sequer de respirar (FÓRUM, 2019). Nas
exigências de atualizações, não refletidas, muitas vezes a gente segue a onda
que demanda sobre os processos educativos “práticas que necessitam estar em
sintonia com a contemporaneidade” (AZAMBUJA; GUARESCHI, 2007, p.
440), mesmo que ela seja angustiante. Esse caráter “inovador” busca encobrir
que os problemas expostos e intensificados pela pandemia são frutos de des-
casos que carregam história, que o antigo “normal” já era sufocante, insalubre,
impossível, que ainda hoje vivemos em uma realidade de impedimentos de
condições dignas de vida e de exclusão digital, que atinge fortemente a parcela
mais pobre da população.

Longe da ideia de que o problema se resume a acesso, de que basta um


computador e um chip para cada professor e para cada aluno que tudo se re-
solve, em qualquer nível escolar, é importante considerar que, no caso brasilei-
ro, embora tenha havido um acréscimo no acesso à cibercultura por parte da
população, um número significativo de pessoas ainda está radicalmente exclu-
ído desse universo. De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE, 2018), uma em cada quatro pessoas no Bra-
sil não tem acesso à internet. Em números totais, isso representa cerca de 46
milhões de brasileiros que não acessam a rede. Nas casas em que se observou
acesso à internet, a renda média por pessoa era de R$ 1.769,00, já nas casas que

6. Trecho da Música Fora da Ordem, de Caetano Veloso, 1991.

30
1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos

não tinham acesso, a renda média por pessoa era de R$ 940,00, praticamente
a metade. Não por coincidência se trata, justamente, da mesma parcela da
população a quem ainda hoje tem sido negado o acesso à educação básica, e
para quem tem sido oferecido, no caso dos que têm acesso à escola, condições
pedagógicas de péssima qualidade e geralmente pautadas pela lógica econo-
micista. Nesse barulho, a boiada da EaD vai sendo empurrada, fundamentada
na naturalização das desigualdades, retroalimentando o darwinismo social do
“faz parte do processo, sempre tem uns que caem e outros que resistem”.

O que não nos contam, é que entre os que caem e os que resistem, encon-
tramos grandes empresas, lucrando cada vez mais com a tecnologia que sus-
tenta o “novo normal” do ensino remoto ou EaD. A título de exemplo temos
a controladora da Google, a Alphabet, que registrou no primeiro trimestre
de 2020 um lucro líquido de US$ 6,8 bilhões. Na comparação com o mesmo
período do ano passado, a receita total da companhia saltou 13,2%, atingindo,
em 2020, US$ 41,1 bilhões7. Já a Amazon, empresa de tecnologia que foca
em comércio de produtos eletrônicos, serviços de armazenamento em nuvem,
streaming digital e inteligência artificial, no segundo trimestre de 2020, em
plena pandemia, registrou o maior lucro líquido trimestral de sua história, R$
26,83 bilhões, o dobro em relação ao mesmo período de 20198. Quem vai dizer
pra elas no futuro, quando a pandemia acabar, que não precisamos mais con-
sumir tanta tecnologia, que elas não são mais “úteis” porque o ensino remoto
ou EaD acabou? O que faremos com todo o aparato tecnológico que fomos
obrigados a engolir? Ou, o que farão de nós (PATTO, 2007)?

Deveras, o contexto provoca uma situação curiosa na qual não é possível


afirmar que os progressistas acompanharam a evolução tecnológica e os con-
servadores são a ela resistentes. O fato que há de se considerar é, ao contrário, a
existência bem concreta de discursos em favor dos contextos virtuais de ensino-
-aprendizagem carregados de motivações conservadoras - ensino online, remo-
to traçado como mais uma engrenagem do controle social da aprendizagem.

7. Matéria publicada no portal InfoMoney. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/


negocios/alphabet-supera-expectativas-com-ganhos-no-primeiro-trimestre-mas-receita-
-com-publicidade-recua.
8. Matéria publicada no jornal Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.
uol.­c om.br/mercado/2020/07/amazon-tem-lucro-recorde-de-r-268-bilhoes-no-2o-
-tri.shtml#:~:text=A%20Amazon%20registrou%20o%20maior,ao%20mesmo%20
per%C3%ADodo%20de%202019.

31
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

A tecnologia à disposição e a sociedade escolarizada seguindo na produção de


demandas de serviços e produtos.

Antes da pandemia, a imposição modernamente apresentada como avan-


ços e desenvolvimento da Educação a Distância já se fazia presente. Apresen-
tada como possibilidade que “amenizava” o desinteresse dos poderes públicos
em investir em mais políticas públicas de construção e expansão das univer-
sidades, a inclusão acontecia nos remendos da precarização, enquanto abria
caminho para a iniciativa privada explorar mais um nicho de mercado. Um
exemplo bastante representativo é o caso da formação de professores em nível
inicial, em especial a partir da década de 1990.

Partindo da constatação de que muitas das professoras da rede pública de


ensino não tinha formação em nível superior, exigida na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), alguns gestores, afinados com
interesses de organismos internacionais, prometeram qualificar o corpo do-
cente, o que implicou na necessidade de ampliar o acesso a tal nível de ensino
público. Nesse contexto, a modalidade de educação à distância passou a ser
apontada como eficaz, sobretudo por não onerar os cofres públicos.

Análise crítica dessa modalidade de ensino desvela sua tendência em mol-


dar-se por finalidades pragmáticas, assumindo o lugar de estratégia para resol-
ver uma lacuna histórica, mas sem mudar profundamente a ordem social vigen-
te. Assim, tais projetos acabam por amplificar a ilusão de inclusão e de caráter
suplementar, aliada à autoculpabilização daquelas que não conseguem se ajustar
ao sistema imposto e oferecido de forma precária. Tais mecanismos, vale ressal-
tar, estão presentes em outros contextos educativos (BOURDIEU, 1998).

Deve-se destacar, nesse ponto, que a ideia de educação em contextos vir-


tuais, embora pareça, não é nova: basta lembrar a oferta de telecursos (criados
nos meados da década de 1970) como substitutos de aulas presenciais no en-
sino supletivo; ou a formação de técnicos por correspondência (iniciada, no
Brasil, em 1904, e fortalecida a partir de 1930 com o ensino profissionalizante,
de acordo com Hermida e Bonfim (2006)).

Além disso, também se deve levar em consideração que, para as que têm
acesso fácil à internet, aos outros dispositivos necessários, assim como outras
condições objetivas de participação das aulas remotas, a compreensão crítica
das informações ali encontradas só ocorre àquelas que tiveram acesso a for-
mações críticas (não necessariamente escolares), pois são essas formações que

32
1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos

contribuem para dar sentido ao que se vê, ouve, lê, acessa. Ou seja, a busca por
informações nos meios digitais pode ser facilmente capturada pela rede alie-
nante do capital, impedindo a livre navegação e afogando o sonho de emanci-
pação pela tecnologia. Nesse sentido, o olhar para as tecnologias deve deixar
de ser em busca de sua natureza, que não é nada neutra, voltando-se para a
imbricada relação com suas finalidades políticas e éticas.

Nas discussões sobre a implementação ou não do ensino remoto na educa-


ção universitária, vez ou outra, surgem reclamações de estudantes que, tendo
condições de participar ativamente dessa empreitada, afirmam se sentirem
prejudicadas por aquelas a quem foi negado o acesso, o que só confirma o
que destacamos no parágrafo anterior. Nas lentes colonialistas e colonizantes,
fomos aprendendo, no nosso percurso formativo distante da realidade con-
creta, a olhar com as lentes dos nossos algozes, a não nos reconhecer parte das
subalternizadas e a crer na competição meritocracia.

No capitalismo da vigilância9 (SHOSHANA, 2019), onde cinicamente de-


fendem “escolas sem partido”10, outras questões também nos põem em alerta.
Como expõe Oliveira (2020, s. p.),
[...] as grandes corporações, especificamente, encon-
tram no terreno arrasado – material e simbolicamen-
te – um solo fértil para velhos e novos modos de for-
jar “alternativas infernais”, ou seja, para “a morte da
escolha política, do direito de pensar coletivamente
o futuro”, como define a filósofa da ciência Isabelle
Stengers. É o caso das plataformas tecnológicas que
oferecem Educação à Distância (EaD) para escolas e
universidades.

Ainda segundo Oliveira (2020), os sanguessugas, também conhecidos


como “entidades privadas”, na permanente busca de maximização dos lucros,
oferecem “o serviço ‘eficiente, acessível e gratuito’, das plataformas corporati-
vas”, “oferta mais que adequada em um momento em que há cortes de gastos
generalizados nas universidades públicas”. Para Marcuse, “hoje a dominação

9. Disponível em: https://nossofuturoroubado.com.br/capitalismo-de-vigilancia.


10. Ler mais em “Contra a barbárie, o direito à educação”, de Daniel Cara.

33
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas como tecnolo-


gia, e esta garante a grande legitimação do crescente poder político que absor-
ve todas as esferas da cultura” (1973 apud PATTO, 2011, p. 1).
Atenção ao dobrar uma esquina
Uma alegria, atenção menina
Atenção para as janelas no alto
[...]
Atenção ao pisar o asfalto, o mangue
Atenção para o sangue sobre o chão11.

Contágios insurgentes

Nesse contexto pandêmico, em que, para além de todas as pestes cotidia-


nas, ora estamos sendo empurradas para o retorno das aulas presenciais, ora
a educação de forma remota é apresentada como divina maravilhosa, enten-
dendo o isolamento físico como cuidado consigo e com o coletivo, direito que
deveria ser assegurado a todas as pessoas, recorremos às respirações epistêmi-
cas e suas “perigosas utopias”.

Seguindo a centelha freiriana da denúncia e anúncio, “sem palavras vazias,


mas compromisso histórico”, nos inacabamentos desejados, insistimos apos-
tando nas necessárias mudanças estruturantes para outros reais possíveis, ao
tempo em que cavamos respiros e rupturas com o perverso instituído.

Nas pandemias tantas que enfrentamos cotidianamente, nas perversões


grotescas que a acumulação primitiva produz, contágios insurgentes produ-
zem respiros. Nesse tempo atravessado pela COVID-19 e todas as desgraças
produzidas por uma sociedade estruturada em relações de opressão e explora-
ção, as chamas de luta, espalhadas nas dissidências tantas, nos sacode a com-
preensão de que a única maneira de mudar isso é a construção de lutas coleti-
vas interseccionalmente implicadas (DAVIS, 2015).

Buscando brechas na educação vigiada12, por meio das quais subvertam


a ordem estabelecida, pensando a educação nessa modalidade à luz de seus

11. Trecho da música “Divino Maravilhoso”, de Caetano Veloso (1969).


12. Para saber mais sobre Educação Vigiada, acessar: https://educacaovigiada.org.br.

34
1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos

devires emancipatórios, encontramos em Azambuja e Guareschi (2007), sem


os entusiasmos excessivos, inspiração nas faíscas do devir vírus. A partir da
leitura de Deleuze e Guattari, as autoras, interessadas em localizar as “linhas
de fuga” disparadas no que diz respeito à produção de subjetividades, aportam
no campo dos possíveis, a fim de evitar a sufocação aparentemente inevitável
no contexto educativo virtual.

A partir do conceito de devir, Azambuja e Guareschi (2007) defendem


que a educação “deve ir muito mais além e atirar-se no desafio da diferença
como criação, como divergência, como disjunção”, processo que “supõe que
nos coloquemos em aberto para desterritorializações, na ousadia de enfren-
tar territórios consagrados, percorrendo espaços lisos, mapeando territórios
impensados” (ibid., p. 451). As autoras defendem que, “nos tempos de uma
sociedade de controle, das programações e máquinas cibernéticas, a atuali-
zação do vírus e da pirataria é o movimento de rebeldia à nova dominação”
(ibid., p. 447).

Focalizando, especificamente, os modos de subjetividade engendrados na


sociedade do controle, que utiliza o ciberespaço como mecanismo, elas perse-
guem “o que escapa a esse processo de modelização da subjetividade”, onde as
singularidades logo são capturadas “pela estrutura, colocando determinadas
diferenças à disposição de todos para consumo e uso” (Ibid., p. 443). A aposta
em construção de “modos de interação, de relação no cotidiano” “que mobi-
lizam a criação de sentidos outros e engendram a constituição de redes autô-
nomas que, em certos instantes, se desprendem da trama dominante” (ibid.,
p. 444) caminho apresentado como desejável, nesse território em disputa. Em
outras palavras, a infiltração nas subjetividades programadas “para causar os
distúrbios provocadores de rebeldia” (AZAMBUJA; GUARESCHI, 2007, p.
445) necessários nas educações dentro ou fora do contexto digital.

Ainda segundo Azambuja e Guareschi (2007, p. 448),


Um programa é como um tipo de pensamento que
teima em guiar-se por uma lógica do aparelho de
estado, organizando-se em uma economia paranói-
ca de forma a não ser surpreendido por estranhos
pensamentos, mantendo a estabilidade e princípios
perenes como verdades únicas e últimas. E o vírus
vem exatamente levar-nos a um outro modo de pen-
sar, que passa a conviver com o singular, a enaltecer a
diferença e a quebrar padrões.

35
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Seguindo o mecanismo de atuação do vírus, que “infiltra-se na obscu-


ridade, ocasionando reações, incomodações, desarranjos, desacomodações,
enfraquecimentos em um centro regulador, em um mesmo tempo, incita-
-nos superações, modificações, rearranjos, fortalecimentos” (AZAMBUJA;
GUARESCHI, 2007, p. 448), o que surge para destruir, também afirma a
existência.

Nessa direção, encontramos, na ética hacker, fagulhas potencialmente cria-


tivas. Movimento dissidente de pirataria “resultante de uma cultura de luta
pela socialização dos bens culturais e científicos, a partir do trabalho colabo-
rativo e apaixonado, do incentivo à circulação plena de ideias e descobertas, do
livre acesso ao conhecimento (PRETTO, 2010a; 2010b apud MENEZES, 2018,
p. 154), as pedagogias hackers, comprometidas em expor a operacionalização
das estruturas de dominação, possibilitam a construção de redes colaborativas
marcadas pela motivação em aprender e partilhar conhecimentos engajados
com a criação de novas realidades. Pretto (2010), ao pensar a cultura digital
enquanto espaço aberto, entende a ética hacker como potente criação de pro-
dução de conhecimento livre para a construção de outras educações, com base
na pluralidade, colaboração e compartilhamento.

Nos limites atravessados pelas desigualdades impostas, seguimos com


Freire, na busca do recomeço insistente, “de fazer, de reconstruir, de não se
entregar, de recusar burocratizar-se mentalmente, de entender e de viver a
vida como processo, como vir a ser…” (2006, p. 23).

A pandemia escancara, mais ainda, as desigualdades e a gente seguem gri-


tando as necessidades de um Estado que invista concretamente na educação
pública. Se o que tem para hoje é a distância como cuidado, fortaleçamos co-
letivamente o vírus da educação interseccionalmente engajada, nas vias insti-
tuintes, para o levante, por todas as reparações históricas.

Reiteramos: não abrimos mão dos encontros, das pedagogias de corpo


presente, do contágio que nos fortalece. “A gente quer inteiro e não pela
metade”13. A luta pela defesa da educação pública “incomoda a burguesia
e os defensores do modelo privatista da educação” por reafirmar a educa-
ção como direito, “e não como mercadoria, e por denunciar o modelo de

13. Trecho da música “Comida”, dos Titãs (1987).

36
1 – Políticas de morte nas educações instituídas e contágios
insurgentes em contextos pandêmicos

sociedade excludente” (MARIANO, 2019, p. 179), mas ela é necessária e


cada vez mais urgente, porque, como defende hooks (2019, p. 203), “ela pode
ser o único lugar onde as pessoas podem encontrar apoio para adquirir uma
consciência crítica, para assumir qualquer compromisso com o fim da do-
minação”.
Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se vol-
tarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares
de pessoas no mundo inteiro (KRENAK, 2020).

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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

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38
2
Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black
Mirror
Hélio da Silva Messeder Neto
Izadora dos Santos Pires

Eu estava sobre uma colina e vi o Velho se aproximando,


mas ele vinha como se fosse o Novo. Ele se arrastava em
novas muletas, que ninguém antes havia visto, e exala-
va novos odores de putrefação, que ninguém antes havia
cheirado.
(Trecho de “Parada do velho novo”- Bertold Brecht)

39
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Resumo

Neste texto, analisamos o cenário da educação escolar brasileira, por meio


das políticas tecnicistas liberais destinadas à formação da classe trabalhadora,
atentando que esse movimento é anterior à pandemia. Nesse sentido, as vul-
nerabilidades nas relações do trabalho docente; o uso de tecnologias no ensi-
no; o esvaziamento da dimensão educativa, questões discutidas ao longo deste
texto, são ampliadas para além da iminência do agora. Frente a isso, atentamos
para o que está emergindo e pode se instaurar após a pandemia. Dessa forma,
entendemos que conhecer a realidade é um elemento essencial para se colocar
na luta política, em defesa de uma educação pública de qualidade.

Introdução

O aplicativo vibra no celular de um colaborador da educação, um dia cha-


mado de professor: o iScola está com tarifas promocionais no dia de hoje, o
preço da hora aula está maior. O mediador escolar saberá o conteúdo e a tur-
ma na hora que aceitar a corrida, queremos dizer, o encontro remoto. Ele não
precisa se desesperar, visto que o conteúdo já está bem definido pelas políticas
internacionais. Na verdade, não são bem conteúdos, são competências e habi-
lidades cognitivas e socioemocionais. O coach educativo dá sua aula remota
e, ao final, os alunos avaliam seu trabalho entre uma ou cinco estrelas. Se sua
média de estrelas não for boa, certamente ele será excluído do aplicativo. Ao
final da aula, o dinheiro cai na sua conta. Não todo, claro, uma parte fica para
os gestores do aplicativo, muito justo, já que, sem eles, o trabalhador da educa-
ção não teria emprego. O atual colaborador virtual não tem salário fixo e direi-
tos trabalhistas, isso é coisa antiga, da modernidade. Na pós-modernidade, rá-
pida, dinâmica, interativa, o professor, quer dizer, o mentor remoto educativo,
é empreendedor de si mesmo. Ele pode escolher vender ou não sua força de
trabalho, aceitar ou não o encontro remoto e, se ele for bom, nunca ficará sem
dar o que antes chamávamos de aula. A escola, finalmente, deixou de ser do
século XIX, ela agora é do século XXI, com colaboradores antenados e capazes
de aproveitar as diversas oportunidades. Esse novo aplicativo, o iScola, deixou
para trás os professores resistentes, atrasados, tecnofóbicos e não flexíveis que
não conseguiram se habituar a esse novo normal. A escola do futuro chegou e
precisa do novo professor 6.0, adaptado, flexível, dinâmico.

40
2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror

O cenário que descrevemos acima poderia ser parte do enredo de um


episódio da série britânica, produzida por Charlie Brooker, chamada “Black
Mirror1. No entanto, embora com um certo exagero, estamos certos de que
o cenário no qual vivemos hoje na pandemia, ocasionada pela circulação do
vírus COVID-19, expõe fraturas produzidas no sistema capitalista que já exis-
tiam antes, e abre espaço para que o cenário descrito possa se efetivar ou se
apresentar de modo mais perverso para os professores e para todos os outros
trabalhadores.

Hoje, no Brasil, vivemos com quase 13 milhões de desempregados2, um


país dependente de uma crise do capitalismo governado pela extrema direita
ultraliberal que tem, a todo custo, retirado direitos duramente conquistados
pela população. A Emenda Constitucional 95 (EC 95), que congelou os gas-
tos da União com despesas primárias por 20 anos, a reforma da previdência,
reformas trabalhistas que flexibilizam a Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT) se configuram como exemplares da situação caótica que vivemos neste
país, levando em consideração que o povo que já vivia em condições difíceis.

A educação não passa incólume por esse processo, já que é mais um com-
plexo contido na sociedade. A escola vive todos os dilemas de uma sociedade
de classe em um cenário neoliberal e tem sido atacada no seu campo ideoló-
gico, como pode ser visto, por exemplo, no movimento escola sem partido,
em que professores são chamados de doutrinadores, em que o conhecimento
científico, artístico e filosófico é esvaziado para a classe trabalhadora a partir
de reformas curriculares como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)3.
A escola é também atacada no campo material, visto que os recursos estão

1. A série mostra um futuro distópico em que as relações sociais são mediadas por tecnologias
digitais da informação e comunicação, trazendo roteiros, em grande parte, pessimistas (LE-
MOS, 2018). A série pode ser encontrada na plataforma de streaming Netflix.
2. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o primeiro semestre
de 2020. É importante ressaltar que, para o IBGE, o desemprego se refere às pessoas com
idade para trabalhar (acima de 14 anos) que não estão trabalhando, mas estão disponíveis e
tentam encontrar trabalho. Os dados não levam em consideração, por exemplo, pequenos
empreendedores que possuem seu próprio negócio. Com a vulgarização ideológica do em-
preendedorismo e com a crise da COVID-19, o número de pessoas sem emprego no Brasil
deve ser um número muito maior. Desemprego. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/
explica/desemprego.php. Acesso em: 11 ago.2020.
3. Para saber mais sobre as críticas à, sugerimos a leitura de Cassio (2018); Pina e Gama (2020).

41
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

cada vez mais escassos e o valor investido na educação estatal, em todos os


níveis, é cada vez menor. Dessa forma, o espaço educacional sofre cada vez
mais ameaças, colocando em xeque a estabilidade do professor, o qual é consi-
derado incapaz, desmotivado e preguiçoso Como exemplo, temos uma publi-
cação do Banco Mundial que se chama Professores Excelentes: Como melhorar
a aprendizagem dos estudantes na América Latina e no Caribe (BRUNS; LUKE,
2014) em que, extremamente preocupados com a excelência dos professores
nos países de capitalismo dependente, aponta, entre outras medidas:
As altas taxas de absenteísmo dos professores em
toda a região da América Latina e do Caribe e as ob-
servações em sala de aula que mostram que os pro-
fessores em geral são mal preparados para usar o
tempo da aula de forma eficaz são evidências de que
as pressões que eles sofrem para desempenhar suas
funções de forma responsável geralmente são defi-
cientes. As estratégias para fortalecer a responsabi-
lidade incluem medidas para reduzir ou eliminar a
estabilidade no emprego, aumentar a supervisão e
capacitar os clientes (pais e alunos) a monitorar ou
avaliar os professores (BRUNS; LUKE, 2014, p. 42,
grifos nossos).

Afirmações absurdas como essas, que culpabilizam o docente, atacam o


público-estatal e consideram pais e alunos como clientes, só se aprofundaram
com a pandemia – pano de fundo para pôr a nu as desigualdades. Com a
necessidade de isolamento social e dos fechamentos das escolas, as institui-
ções formais de ensino particulares não hesitaram em continuar suas aulas,
partindo, quase imediatamente, para o chamado Ensino Remoto, que pode
ser caracterizado por:
[...] atividades mediadas por plataformas digitais
assíncronas e síncronas, com encontros frequentes
durante a semana, seguindo o cronograma das ativi-
dades presenciais realizadas antes do distanciamento
imposto pela pandemia. Na educação remota predo-
mina uma adaptação temporária das metodologias
utilizadas no regime presencial, com as aulas, sendo
realizadas nos mesmos horários e com os professores
responsáveis pelas disciplinas dos cursos presenciais.
(ALVES, 2020, p. 358).

42
2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror

Apressados em diferenciar educação à distância (EaD) de ensino remo-


to, teóricos vão colocando supostas vantagens, desvantagens, similaridades e
diferenças de cada modalidade, mas que, no fim, escondem a mesma essên-
cia: a precarização dos processos educacionais escamoteada pela desculpa do
acesso. O que vemos é um conjunto de malabarismos para justificar aquilo
que nada mais é, como nos ensina Patto, um simulacro, por vezes até bem
desenhado, mas ainda um simulacro, de ensino presencial:
Entre as considerações sobre as aulas de programas
de ensino a distância, vejamos o que diz uma profes-
sora de um curso virtual de pedagogia na reportagem
já mencionada: “é um desafio, eu falo para 700, 1.000
alunos, mas na minha frente só tem uma câmera”.
Para adaptar- -se a essa situação, ela “fez oficinas para
treinar voz e postura. Assistiu palestras com especia-
listas. Gravou horas e horas de aulas para se ver no
vídeo e corrigir as falhas” (GUIMARÃES, 2010, p.
84). Numa foto ilustrativa da matéria, ela está num
estúdio, diante de uma máquina, como uma apre-
sentadora de TV. Valendo-nos da frase Isto não é um
cachimbo, sob o desenho de um cachimbo numa tela
célebre de Magritte, podemos afirmar três coisas: so-
bre o estúdio, Isto não é uma sala de aula; sobre a
apresentadora do programa, Isto não é uma profes-
sora; sobre o que ela faz diante da câmera, Isto não
é uma aula. Uma aula virtual é apenas simulacro
de uma aula presencial (PATTO, 2013, p. 310, grifos
itálicos do autor, grifos negritos nossos).

Ensino remoto não é ensino. E, na tentativa de fazer parecer que é, te-


mos, na prática, a sobrecarga de trabalho para os professores que tiveram
que adaptar suas práticas para tornar esse simulador o mais próximo do real
possível, trabalhando mais de 16 horas por dia, muitas vezes com salários
reduzidos. Professores exaustos, tentando manter crianças na frente da tela
do computador ou da Tv e, ao mesmo tempo, tiveram que dar conta da aula
de seus filhos, além de, numa sociedade capitalista patriarcal, cuidar dos
afazeres domésticos, sendo esses, quase sempre, tarefa feminina. A roda do
capital não pode parar de produzir mercadoria e a rede particular de en-
sino demorou a seguir seu suposto funcionamento normal, exigindo mais
dos professores, repetindo a tendência desse “século de incertezas” em que as

43
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

empresas pensam o assédio ao trabalhador como estratégia de gestão. Como


nos reforça Antunes (2020, p. 153):
Espaços de trabalho propulsores de altos índices de
desempenho e produtividade, estruturados com base
em exigências que cada vez mais extrapolam as capa-
cidades física e mental humanas, não conseguem se
manter senão por meio de diferentes e sofisticados
mecanismos de controle e coerção. O assédio moral é
parte da engrenagem.
[...]
As práticas dessa natureza são ferramentas de gestão
voltadas para garantir, por meio de pressão institu-
cionalizada, tanto o aumento constante da produti-
vidade como o isolamento e a exclusão daqueles que
se constituem como “barreiras” para sua plena rea-
lização.

No caso da escola pública, o vírus COVID-19 forneceu, entre outras coisas,


espaço necessário para o Estado abrir brechas para fazer “parcerias” com a ini-
ciativa privada, adquirindo plataformas digitais pagas e fazendo um processo
pedagógico excludente, visto que a maioria da população não tem acesso à
internet e nem condições de estudo nas suas casas. Se o ensino remoto já é
um simulacro de aula presencial, no contexto do ensino público, por falta de
condições objetivas e a desigualdade abissal, escancarada na pandemia fruto
do neoliberalismo, esse simulador é ainda mais precário e pode prejudicar
gravemente os filhos da classe trabalhadora.

O que narramos até aqui descreve um pequeno cenário do que estamos


vivendo. No entanto, pensamos que precisamos ir além dessa descrição e
aprofundar, conceitualmente, o debate sobre a educação em um cenário
neoliberal para que possamos nos armar com mais profundidade diante
da cena pandêmica. Para isso, esse artigo se dividirá em mais três partes,
além da introdução. Na primeira, mostraremos como a base de uma edu-
cação esvaziada para a classe trabalhadora à serviço do neoliberalismo já
estava desenhada antes da pandemia chegar, de modo que ela só serviu
como catalisador do processo. Na segunda, mostraremos, com mais deta-
lhes, como o ensino remoto precariza o trabalho do professor, é excludente

44
2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror

e apresenta dimensões completamente neotecnicistas. Por fim, na terceira


parte, traremos algumas estratégias de resistência para que nossa educação,
já fragilizada, não sucumba diante desse novo, mas não tão novo, ataque dos
empresários ao ensino público4.

A educação neoliberal pré-pandemia: um cardápio amargo de


competências e habilidades

A crise capitalista da década de 1970 exigiu do capitalismo uma reestru-


turação do seu processo produtivo e do seu campo ideológico. O modelo for-
dista de produção foi substituído pelo toyotismo5 que Saviani, sucintamente,
descreve a seguir:
O modelo toyotista apoia-se em tecnologia leve, de
base microeletrônica flexível, e opera com trabalha-
dores polivalentes visando a produção de objetos
diversificados, em pequena escala, para atender à
demanda de nichos específicos do mercado, incorpo-
rando métodos como o just in time que dispensam a
formação de estoques; requer trabalhadores que, em
lugar da estabilidade no emprego, disputem diaria-
mente cada posição conquistada, vestindo a camisa
da empresa e elevando constantemente sua produti-
vidade (SAVIANI, 2011, p. 429).

A mudança do sistema produtivo implica, necessariamente, numa tenta-


tiva de mudança no processo educativo. E, para que isso aconteça, é preciso
anunciar um novo modo de formar a classe trabalhadora e os dirigentes da
classe dominante para ocupar esses espaços neste novo sistema produtivo,
ao mesmo tempo em que é necessário garantir o espaço no qual a ideologia

4. Não estamos aqui defendendo qualquer ensino público, mas aquele orientado pela laicidade,
gratuidade e que seja socialmente referenciado.
5. O discurso do EaD, do ensino remoto, on-line, hibrido, converge nas relações de trabalho
no modelo toyotista. Entendermos que esse modelo de produção possuí características que
são fundamentais para desfetichizar o trabalho educativo na organização social – capitalista
– vigente.

45
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

dominante se perpetuará. Isso não acontece sem lutas ou contradições, mas


o que vemos é que “As ideias da classe dominante são, em cada época, as
ideias dominantes” (MARX; ENGELS, 2007, p. 47) e isso não é diferente na
teorização pedagógica.

Em vista disso, entende-se que:


[...] a escola é determinada socialmente; a socieda-
de em que vivemos, fundada no modo de produ-
ção capitalista, é dividida em classes com interesses
opostos; portanto, a escola sofre a determinação do
conflito de interesses que caracteriza a sociedade.
(SAVIANI, 2006, p. 41).

Dessa forma, na crítica feita à escola, instaura-se um ataque frontal aos


conteúdos que ajudariam o educando a entender a realidade, por meio de ar-
gumentos que falam sobre a estagnação destes, como também com afirmações
de que os mesmos seriam coisas do século passado. Nesse sentindo, as solu-
ções apresentadas ocorrem mediante o discurso do que importa: o ensino de
competências e habilidades, de modo a assegurar que o sujeito seja adaptado
e flexível, e consiga servir à empresa, além de estar pronto para esse mundo
no qual o emprego não é mais garantido mas, sim, a empregabilidade. Nessa
perspectiva, é preciso formar o sujeito empreendedor capaz de controlar seus
sentimentos e emoções (competências socioemocionais), de modo a aceitar
melhor o mundo que ele vive.
Para produzir assalariados adaptáveis, a escola, que
vem antes do trabalho, deveria ser uma organização
flexível, em inovação constante, que atenda tanto aos
desejos mais diferenciados e variáveis das empresas
como às necessidades diversas dos indivíduos. [...].
Não é mais uma questão de elevar os níveis de compe-
tência dos assalariados: é preciso que toda a educação
recebida tenda a levar mais em conta o “destinatário
do serviço”, ou seja, a empresa. Em uma sociedade
cada vez mais marcada pela instabilidade de posições,
sejam elas profissionais, sociais ou familiares, o siste-
ma educacional deve preparar o aluno para um cená-
rio de incerteza crescente. A pedagogia “não diretiva”
e “estruturada de modo flexível”, o uso das novas tec-
nologias, o amplo “cardápio” oferecido aos estudantes

46
2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror

e o hábito do “controle contínuo” são pensados como


uma propedêutica para a “gestão de cenários de in-
certezas” que o jovem trabalhador vai encontrar ao
concluir os estudos (LAVAL, 2019, p. 41).

O discurso do “aprender a aprender” ganha força, visto que esse seria a


competência máxima ou, nas palavras de Laval (2019), uma “metacompe-
tência”, responsável por orientar todas as outras. “Aprender a aprender” é o
lema da pedagogia da exclusão, a qual visará formar o trabalhador que “veste
a camisa” da empresa, que questiona pouco, mas que precisa pensar “fora da
caixa”, desde que esse pensamento aumente a produtividade e o deixe pronto
para assumir qualquer posto de trabalho. Crescem os discursos motivacionais
e caem os direitos trabalhistas e aqueles que não conseguem se adaptar a esse
mundo são, por contraste, inábeis e incompetentes. A culpa do fracasso é do
sujeito que trabalha, antes mesmo de colocar sua força de trabalho à venda no
mercado.

O neoliberalismo, como ficou conhecido esse sistema político-econômico


pós-crise da década 1970, retomará, entre outras coisas, a ideia do Estado mí-
nimo, o que implica privatização dos serviços públicos, reformas trabalhistas
e administrativas retirando direitos dos trabalhadores. A educação passa a ser
vista como um serviço e não um direito, e, como serviço, precisa ser vendida.
Como nos diz Luiz Carlos de Freitas:
Nestas condições, a educação está sendo sequestra-
da pelo empresariado para atender a seus objetivos
de disputa ideológica. A educação, vista como um
“serviço” que se adquire, e não mais como um direi-
to, deve ser afastada do Estado, o que justifica a sua
privatização. Do ponto de vista ideológico, a privati-
zação também propicia um maior controle político
do aparato escolar, agora visto como “empresa”, alia-
do à padronização promovida pelas bases nacionais
comuns curriculares e pela ação do movimento “es-
cola sem partido”, este último, um braço político da
“nova” direita na escola (FREITAS, 2018, p. 29).

Portanto, para cumprir esse papel privatizador, é preciso travar uma dis-
puta das ideias e isso significa atestar o fracasso da escola pública (SAVIANI,

47
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

2011), colocando o Estado como sendo incapaz de gerir os recursos. Trata-se


de vender a falsa imagem de que o público é ruim e o privado é bom e, conse-
quentemente, a solução para educação seria a sua privatização.
O movimento para livrar-se do controle do governo e
de suas escolas por meio das “contas de poupança da
educação” prevê até o uso dos recursos para a instru-
ção das crianças em suas próprias casas (homeschoo-
ling), incentivando processos de “desescolarização” e
ainda pagamento de aulas particulares, aprendizado
online, aulas comunitárias, materiais escolares em
casa, escolas particulares e até mesmo aulas de facul-
dades desde que a criança não frequente uma escola
pública (FREITAS, 2018, p. 53).

O processo de mostrar a ingerência do Estado não precisa acontecer repenti-


namente: é “preciso que as redes públicas de ensino caminhem em direção a esse
estágio final através de um processo progressivo e que vai legitimando-se pau-
latinamente no âmbito da sociedade” (FREITAS, 2018, p. 77). Uma das formas
é construir bases nacionais com habilidades e conteúdos formatados pela classe
dominante, testes censitários para aferição da aquisição ou não dessas compe-
tências e uma política punitiva para as instituições escolares que não atingirem
as metas estabelecidas. Essas ações ajudam a reforçar a ineficiência da escola
pública, visto que desconsideram todo o contexto do estudante e reduz a apren-
dizagem, o fracasso ou sucesso do educando à gestão escolar. Com a política pu-
nitiva, que cerceia recursos para os que têm baixo desempenho, escolas que vão
mal nos testes tendem a ganhar menos recursos, gerando um ciclo vicioso que
impede o avanço da escola, restando “aceitar” consultorias de empresas privadas
ou pacotes prontos para treinar os estudantes para os exames.
Estes mecanismos estão em uma dinâmica: bases na-
cionais curriculares (tanto relativas ao que deve ser
ensinado aos estudantes nas escolas quanto relativas
à formação dos profissionais da educação) fornecem
as competências e habilidades para “padronizar” o
ensino e a aprendizagem; os testes (usualmente censi-
tários) cobram a aprendizagem especificada pela base
e fornecem, por sua vez, elementos para inserir as
escolas em um sistema meritocrático de prestação de
contas (accountability) de seu trabalho, alimentando

48
2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror

a competição entre escolas e professores. Neste pro-


cesso, as escolas que “falham” nas metas ficam vulne-
ráveis à privatização (FREITAS, 2018, p. 80).

Essa orquestra de privatização não termina aqui. O sistema de controle do


professor e o esvaziamento da sua profissão são elementos importantes para o
processo de privatização, na medida em que as políticas de formação de pro-
fessores são, cada vez mais, sucateadas, com um apelo a uma alienada prática
voltada para adaptação à realidade que é, também, centrada nas competências.
Outro fator que contribui para a efetivação de tal orquestra são as plataformas
digitais de ensino que estão, gradativamente, mais automatizadas e aliadas a
uma lista pronta de competências e habilidades, feitas por uma base nacio-
nal comum. Elas permitem, cada vez mais, a substituição do trabalho vivo do
professor pelo trabalho morto das máquinas e, ao mesmo tempo, possibilitam
que um mesmo professor ministre aula para muitos estudantes, auxiliados ou
não por um tutor mal remunerado, aumentando a extração de mais valia. Esse
processo viabiliza, também, que a inciativa privada se aproprie do dinheiro
público por meio de compras de plataformas gerenciadas por grandes em-
presas (como Google, Microsoft, por exemplo). Recorremos mais uma vez a
Freitas (2018, p. 108-109) para ratificar o que dissemos:
O revigoramento do tecnicismo apoiado em outra
base tecnológica é considerado pela reforma empre-
sarial fundamental para redefinir o próprio trabalho
docente e o magistério, contribuindo para a cons-
trução de outra concepção de escola, inserida em
um livre mercado competitivo. Como trabalhador
desqualificado e mais dependente de tecnologia, o
magistério é mais descartável e torna-se um apêndi-
ce das plataformas interativas em sala de aula, sendo
mais facilmente adaptável aos planos de gestão de re-
sultados e à flexibilização da força de trabalho.

Todo esse cenário que aqui delineamos estava posto antes da pandemia
e é importante que ele seja conhecido e considerado, visto que é o palco
no qual temos que atuar nesse suposto novo momento. Qualquer decisão
tomada ou não nessa situação não acontece de maneira neutra, tem uma
história. É ingenuidade achar que o que faremos nesta ocasião é provisório

49
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

e servirá apenas enquanto estamos em tempos pandêmicos. Como pudemos


ver, a burguesia neoliberal não brinca em serviço e as bases para o ensino,
para o controle do mercado, já estavam prontas e, no que alguns insistem em
chamar de “novo normal”, nada mais é que um anfiteatro para a burguesia
oferecer, num cardápio de receitas amargas, suas velhas ideias.

Na próxima seção iremos discutir melhor a condição atual do professor e


do processo de ensino, detalhando os aspectos e nuanças do período pandê-
mico. Embora ele tenha muito das características que aqui já foram discutidas,
tem especificidades que valem a pena ser compartilhadas para que possamos
traçar planos de ação nesta conjuntura.

“É uma grande chance de se reinventar”: a pandemia do cinismo

O Brasil encontra-se em colapso. São, ao todo, 3.317.096 contaminados e


107.232 mortos até o dia em que esse texto foi escrito, sem nenhuma previsão
da queda desses números6. A política genocida do governo Bolsonaro-Mou-
rão segue implacável no que tange ao seu extermínio da classe trabalhadora
brasileira.

No campo educativo não é diferente. As medidas por parte do governo


Bolsonaro-Mourão ocorreram no dia 1 de abril de 2020 com a flexibilização
dos dias letivos por meio da medida provisória nº 934 (BRASIL, 2020a). E,
posteriormente, em 28 de abril, através da divulgação de orientações pelo
Conselho Nacional de Educação (CNE), com a colaboração do Ministério da
Educação (MEC) (BRASIL, 2020b). As orientações divulgadas neste docu-
mento destinavam-se a todos os níveis educativos, propondo como solução o
ensino remoto. Nas orientações, não há menções sobre condições de ensino
dos professores e de aprendizagem (para aqueles que conseguem ter acesso a
alguma atividade educativa escolar).

6. Informações obtidas no portal CORONAVÍRUS BRASIL. Painel Coronavírus. Atualizado


em: 15/08/2020 às 18:30. Disponível em: https://covid.saude.gov.br. Acesso em: 16 ago. 2020.

50
2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror

Neste sentido, a Portaria nº 5447, publicada em 16 de junho pelo MEC, pos-


sui vigência até 31 de dezembro de 2020 e segue em consonância com as orien-
tações do CNE, pois “Dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por
aulas em meios digitais, enquanto durar a situação de pandemia do novo coro-
navírus” (BRASIL, 2020c). De modo geral, a referida portaria, assim como as
anteriores, revogadas e vigentes, não consideram as condições sociais e materiais
das pessoas que integram as instituições de ensino. Ademais, as flexibilizações
de tais medidas influenciam na finalidade das atividades escolares, essas são
mantidas para alcançar a carga horária e dias letivos obrigatórios. Ainda sobre
as implicações da portaria nº 544, há uma responsabilização das instituições
ao apontar que:
Será de responsabilidade das instituições a definição
dos componentes curriculares que serão substitu-
ídos, a disponibilização de recursos aos alunos que
permitam o acompanhamento das atividades letivas
ofertadas, bem como a realização de avaliações du-
rante o período da autorização de que trata o caput
(BRASIL, 2020c).

A responsabilização das instituições, definida pela portaria, tende a gerar


um individualismo a partir da maneira em que estas atividades estão sendo
realizadas pelas diferentes administrações das redes de ensino (municipal, es-
tadual ou federal) que adotaram medidas distintas. Nesse sentido, a platafor-
ma criada pelo MEC para monitorar as instituições – universidades, institutos
federais, Cefets e Colégio Pedro II – que possuem administração federal, mos-
trava que, no caso das 69 universidades, 42 estavam com atividades suspensas,
20 com TIC/Remotas e 7 com aulas parciais8.

A nível estadual e municipal houve também a adesão ao ensino remoto por


meio da aquisição de plataformas privadas, que reduzem o trabalho educati-
vo a elaboração de tarefas e a gravação de aulas transmitidas pela TV ou de
modo síncrono. O discurso de alguns gestores da mídia passa, em maior ou

7. A Portaria nº 544 revogou as três Portarias anteriores: a de nº 343, de 17 de março de 2020;


a de nº 345, de 19 de março de 2020; e a de nº 473, de 12 de maio de 2020.
8. Informações obtidas na plataforma CORONAVÍRUS – Monitoramento nas instituições de
ensino. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/coronavirus. Acesso em: 11 ago. 2020.

51
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

menor grau, por “o tempo está passando e como ficarão nossas crianças sem
aula?” ou ainda “é uma oportunidade de nos reinventarmos e criarmos uma
escola do futuro”. Sem oferecer nenhuma condição, resta ao docente fazer um
esforço desumano para conseguir estabelecer algum contato educativo com o
estudante. Assim, a variável “tempo” é usada de modo fetichizado por gover-
nantes, gestores e, até mesmo, alguns professores. A passagem do tempo tende
a ser usada como um elemento “mágico”, como se isso pudesse minimizar o
número de mortos da pandemia. Atrelado ao “novo normal”, os professores se
veem obrigados a oferecerem um ensino aligeirado ou, ainda, a retomarem as
atividades presenciais sem que especialistas apontem tal possibilidade como
segura. Enquanto isso, deleta-se a humanidade das vidas ceifadas e daquelas
que ainda podem ser perdidas.

Nesse contexto em que vidas são tratas como números, o sofrimento psí-
quico, a sobrecarga do trabalho, os assédios sofridos no trabalho, entre outras
questões, seguem sendo desprezadas. Não é a qualidade do ensino ou a segu-
rança dos atores da escola que é colocada em pauta, mas a ideia de que profes-
sores precisam voltar ao seu trabalho para justificar seu salário. Como expli-
camos no tópico anterior, usa-se a situação da pandemia para atacar o que é
público, potencializando um discurso no qual servidores públicos da educação
são improdutivos e preguiçosos. Para disputar essa narrativa, os servidores não
deveriam, necessariamente, ter que voltar a trabalhar cedendo aos impulsos
imediatos de uma sociedade pautada pela mercadoria. Em contrapartida, seria
necessário apontar para a toda a população que ficar em casa em tempos como
esse é um direito, que deveria ser ampliado para todos, para preservar a vida.

Todo esse contexto, se configura, portanto, como o cinismo pandêmico


que prega um retorno remoto e finge esquecer a dificuldade de acesso dos
estudantes à internet. Segundo dados do Centro Regional de Estudos para o
Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC), em 2019, cerca de 20
milhões de domicílios não possuíam conexão com internet, sendo que, tam-
bém neste ano, as classes9 D e E, somadas, atingiram um número 50% referen-
tes a este acesso (CETIC.BR, 2019).

9. O conceito de classe neste trabalho, possui um fundamento marxista. Desta forma, não se
restringe apenas as condições materiais de aquisição de mercadorias no sistema capitalista.
Para saber mais, de modo sintético e consistente, indicamos o Podcast REVOLUSHOW. Di-
cionário Marxista 004 – Classes Sociais. Disponível em: https://revolushow.com/dicionario-
-marxista-004-classes-sociais. Acesso em: 11 ago. 2020.

52
2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror

Para as universidades públicas, o perfil do alunado também não difere


muito e as condições de exclusão, em termos digitais e de estrutura doméstica
para qualquer atividade remota, se mantém. No entanto, mais uma vez, com
a preocupação em mostrar “serviço” para a sociedade, e cedendo ao fetiche
do tempo e com pouca ou nenhuma postura crítica, o ensino remoto aparece
como solução para dar continuidade às aulas. Alguns professores, inclusive
da universidade, apostam no discurso de que essa é uma oportunidade para
vencermos desafios e aprendermos coisas novas. Naturaliza-se a exclusão e
a morte de pessoas e celebra-se a ideia de “olhar o lado bom” da pandemia
para testarmos inovações e avançarmos. No campo formativo de professores,
a pandemia abre brechas para ações absurdas como, por exemplo, o estágio
curricular remoto. Em estágios assim, o licenciando acompanha, remotamen-
te, o trabalho remoto de um professor da escola básica. Isso é expressão máxi-
ma de precarização do processo formativo do professor, seja do ponto de vista
pedagógico, seja porque tal prática representa uma exclusão elevada ao qua-
drado, visto que uma disciplina de estágio remoto já exclui licenciandos, ao
passo que aqueles que conseguem acessar este estágio passarão a acompanhar
espaços digitais remotos da escola básica que também são excludentes. Tendo
a pandemia como pretexto, naturaliza-se a indiferença, ratifica-se a exclusão.

Para os trabalhadores da escola ou faculdades particulares a situação tam-


bém se encontra caótica. Perdendo alunos e com atrasos de mensalidade por
conta das condições objetivas da pandemia, a máscara da escola feliz, burgue-
sa, que trata professores como colaboradores, não se sustenta e os cadáveres
neotecnicistas (neoliberais) guardados no armário não demoram a sair.
Assédios morais que culpabilizam o professor pela desistência do aluno, ame-
aças de perder o emprego, aumento da jornada de trabalho não pago para que
professores possam construir matérias para suas aulas online, não pagamento
do material utilizado pelo professor para dar aulas online (computador, ener-
gia elétrica etc.), sobrecarga doméstica das professoras que precisam cuidar
dos seus filhos (que estão, muitas vezes, em ensino remoto) são exemplos de
como essa classe composta, em sua maioria, por mulheres tem vivido o mun-
do do trabalho nesta pandemia. Ao mesmo tempo, soma-se à necessidade da
docente parecer alegre, feliz e satisfeita por ainda ter um emprego nestes tem-
pos difíceis. Trata-se, de maneira escancarada, do que Antunes (2020) chama
de “privilégio da servidão”, que já atingia alguns espaços educacionais, mas
que ganha tintas florescentes nesse período pandêmico:

53
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Assim, movida por essa lógica que se expande em


escala global, estamos presenciando a expansão do
que podemos denominar uberização do trabalho,
que se tornou um leitmotiv do mundo empresarial.
Como o trabalho on-line fez desmoronar a separação
entre o tempo de vida no trabalho e fora dele, flo-
resce uma nova modalidade laborativa que combina
mundo digital com sujeição completa ao ideário e à
pragmática das corporações. O resultado mais grave
dessa processualidade é o advento de uma nova era
de escravidão digital, que se combina com a expan-
são explosiva dos intermitentes globais (ANTUNES,
2020, p. 39).

Diante de condições tão extenuantes, incertas e que impedem o professor


de saber se sua vida material está garantida no próximo mês, aliado ao fato de
que sua atividade fim – educar os estudantes – está impossibilitada e, além dis-
so, é preciso fingir, com um sorriso rosto, que ali está acontecendo uma aula
normal, não há dúvida que o sofrimento psíquico adoecedor será inevitável.
Essa situação forma o professor cindido: de um lado, preocupado com seus
estudantes e sem querer perder o vínculo com ele, angustiado com sua possi-
bilidade de evadir, ou mesmo não ter nenhum contato com o patrimônio da
humanidade a ser ensinado, o professor tenta fazer o melhor que pode nessas
condições. Do outro, a vigilância de ter suas aulas gravadas, do questiona-
mento sobre sua competência, a pressão constante do patrão (do estado ou da
iniciativa privada) e o medo da situação em que o mundo se encontra tornam
o peso desta proto-docência insuportável.
O professor é convertido num “duplo de si mesmo”,
numa máscara destinada a desempenhar papéis que
as circunstâncias externas exigem! E essa máscara,
pouco a pouco ocupa seus gestos, suas reações, seus
pensamentos e sentimentos, gerando a muda resig-
nação e o conformismo ou a “(des)acomodação” in-
terna expressa em diferentes formas de sofrimento
(MARTINS, 2018, p. 138).

Nesse mar de sofrimento e adoecimento psíquico, há uma certa esperan-


ça dos professores universitários ou da escola básica de que o ensino remoto

54
2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror

seria temporário e que as fraturas desse tempo seriam, facilmente, remendas


diante de uma vacina. A história é sempre um campo aberto de lutas de classe
e não nos cabe fazer futurologia, no entanto, com o cenário que descrevemos
na primeira parte desse texto, não nos custa lembrar que o germe do esvazia-
mento da escola básica e da transformação do professor em maquinário para
transformar trabalho vivo em trabalho morto já estava anunciada.

Se cairmos na sedução de que a situação que vivemos é temporária, fa-


zendo as instituições funcionarem de maneira remota, nada impede que o
temporário vire permanente. Nada impede, por exemplo, que, diante da im-
possibilidade de contratar professores com o estrangulamento das verbas uni-
versitárias, essa experiência de ensino remoto possa ser resgatada e utilizada
novamente. O provisório que vira fixo, que abaixa os custos e sucateia a insti-
tuição de ensino.

Não seria a primeira vez que o sistema capitalista usa de uma crise huma-
nitária para avançar. Apenas para exemplificar, temos o caso de New Orleans,
que teve sua educação privatizada após o furacão Katrina. Hoje, New Orleans
tem apenas quatro escolas com gestão pública (FREITAS, 2015). Assim, não
há motivos para acreditar que um mundo arrasado pós-pandemia será sufi-
ciente para fazer a práticas neoliberais recuarem. Precisamos estar atentos e
fortes.

Diante do que anunciamos e por mais que essa metáfora seja surrada, po-
demos dizer que estamos diante de um cavalo de Troia. Parece sedutor aceitar
o presente das tecnologias e, supostamente, resolver o problema da pandemia
no campo educativo, evitando que escolas e universidades fiquem paradas.
Contudo, o que esperamos ter deixado claro é que estamos trazendo, de ma-
neira pacífica e de bom grado, processos que podem tornar as condições da
classe trabalhadora da educação10 muito piores do que elas já são. É preciso,
de maneira urgente, desmascarar esse cinismo pandêmico que, fantasiado de
boas ações e discursos motivadores, abre espaço para retirada de direitos da
classe que vive do trabalho.

10. Cabe aqui apontar que não basta os trabalhadores da educação lutarem sozinhos pela manu-
tenção de direitos. É preciso compor a luta com outras categorias para evitar o avanço neoli-
beral. Para mais informações, sugerimos a leitura do texto “Há futuro para os sindicatos”, de
Antunes (2020).

55
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Desinstalando os ideais da classe dominante: estratégias coletivas


para não sucumbir

Com os elementos discutidos anteriormente, pode transparecer que somos


contrários ao uso de tecnologias no ensino. Não somos! Nos posicionamos
contrariamente aos projetos burgueses que, por meio das tecnologias, imbuem
um modelo de ensino tecnicista como forma de baratear e acelerar a educação.
Para nós, a negação da educação não é menos pior do que o desenvolvimento
do trabalho educativo em condições precárias, esvaziada de conteúdos cientí-
ficos, históricos e filosóficos. Pontuamos que, com o desenvolvimento tecno-
lógico que a humanidade conseguiu produzir, a tecnologia poderia ser usada
a serviço da qualidade, pois, certamente, os docentes gostariam de ter nas es-
colas um sistema que pudesse substituir as chamadas, as quais se fazem perder
minutos valiosos das aulas. Ou ainda, que nas salas houvesse lousas digitais,
projetores, computadores, laboratórios de informática, ciências e matemática.

Chamar qualquer professor de resistente ou tecnofóbico quando faz algu-


ma crítica à inserção da tecnologia dentro de uma lógica mercadológica tem
apenas como função minar o debate e deixar transparecer que a tecnologia é
neutra e que sua entrada na escola/universidade tem apenas benefícios. Na
contrariedade ou adesão aos projetos políticos burgueses, alertamos que não
temos medo ou ódio às máquinas, como os ludistas. Por conseguinte, o que
aqui destacamos é a necessidade de o projeto de sociedade que envolva a tec-
nologia seja explícito antes de adentrar qualquer instituição de ensino.

Não há soluções fáceis para problemas complexos. Mas em Martins (2018,


p. 141) encontramos elementos que podem nos ajudar a pensar elementos
para não sucumbir neste momento:
Avalio que o enfrentamento do sofrimento do(a)
professor(a) demanda um forte investimento na for-
mação para a resistência: resistência contra o ‘sem
sentido’ do trabalho docente, resistência contra a
certificação massificada; resistência contra a quebra
de direitos democráticos e, acima de tudo, resistência
contra a conversão das instituições escolares em ins-
tituições destinadas à execução acrítica de políticas
limitadas aos interesses do Estado burguês. Se tais
desafios só poderão ser enfrentados coletivamente,
existe outro desafio, e esse sim, sob responsabilidade

56
2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror

de cada professor(a) em particular: resistir à destrui-


ção dos mecanismos coletivos de luta!

Há, no nosso entender, aspectos essenciais neste trecho se quisermos de-


sinstalar11 os ideais da classe dominante. Como bem disse Martins (2018),
é necessária a organização política dos profissionais da educação. É preciso
ocupar os espaços de movimentos sociais, sindicatos e partidos, de modo a
atuar efusivamente sobre a arena política que se instala. Reclamar que as po-
líticas não funcionam nos corredores da escola/universidade, na vizinhança
ou mesmo nos artigos acadêmicos servem para o debate de ideias, mas não
são suficientes para uma atuação que possa, de fato, contrapor ao período que
vivemos. Sem essa organização coletiva, nos resta uma certa melancolia polí-
tica (FERNANDES, 2019), que aponta para uma quase descrença na mudança
que, caso ocorra, será de eleição em eleição, como num passe de mágica.

Do ponto de vista mais particular e imediato, entendemos a necessidade de


ocuparmos os espaços de representação universitária/escolar, conselhos, en-
tre outros, bem como pressionar governantes, de modo a garantir um ensino
presencial e de qualidade, mas apenas quando as condições sanitárias forem
favoráveis. É tempo de expor a impossibilidade de retorno diante das condi-
ções objetivas da escola e avançar na luta contra o fechamento delas, melhoria
das condições ambientais da sala de aula e redução no número de alunos. É
importante que os professores, por meio dos seus sindicatos, reivindiquem
sua participação no debate sobre os protocolos de segurança em um eventual
retorno e que mais docentes sejam contratados. É urgente reivindicar o uso
de softwares livres e gratuitos para não deixar que empresas se apossem deste
momento e, além disso, todas as atividades remotas devem ser elaboradas com
o intuito de manter o vínculo do estudante com a escola e não de dar continui-
dade ao ano/semestre letivo numa espécie de “novo normal”.

Especificamente no campo universitário, pensamos que esse é o momento


de desenvolver ações para ampliar o seu papel extensionista, mostrando para
a população aquilo que essa instituição faz. Assumir que o “ensino remoto” é a

11. A metáfora que aqui usamos não deve ser levada ao pé da letra, visto que não há possibilidade
de superar completamente os ideais da classe dominante nesta sociedade. Não aprofundare-
mos esta discussão neste texto, mas sugerimos fortemente a leitura de Marx e Engels (2007).

57
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

melhor estratégia que a universidade tem a oferecer para dar uma satisfação à
sociedade é assumir sua falência e aceitar os ataques que vem sendo realizados
ao funcionalismo público.

No campo da formação de professores, nos parece essencial aproveitar o


espaço para desvelar os discursos ideológicos e sedutores que existem nas tais
metodologias ativas, competências, habilidades, competências socioemociais
etc. que nada fazem a não ser colocar em novas garrafas ideias pedagógicas
envelhecidas e com ideais burgueses. É preciso que o processo formativo se
ponha a observar a raiz epistemológica e ontológica de cada uma dessas al-
ternativas perguntando sempre: quem queremos formar? Para que sociedade?
Qual a concepção de conhecimento? Uma análise detalhada de todos esses
termos que aparecem no discurso pedagógico necessita ser feita para, assim,
qualificarmos o que temos chamado, de maneira vulgar, de “emancipador” ou
mesmo “crítico”.

Desinstalar esse aplicativo burguês é reconhecer, como nos ensina Patto


(2005, p. 100):
Mas se a consciência do oprimido [...] não é comple-
tamente lúcida, ela também não é totalmente aliena-
da. É ambígua, contraditória- contradição que pode
ser trabalhada pelo esclarecimento objetivo e subjeti-
vo rumo à emergência do que está silenciado.

Cabe a nós, individual e coletivamente, refletir sobre nossas teorias e prá-


ticas, reconhecendo suas contradições, avançando para uma concepção de
mundo mais lúcida e, portanto, menos remota e mais presencial no que tange
à compreensão e intervenção na realidade.

Considerações finais: o ensino remoto é também o ensino para o


controle

Ao longo deste texto esperamos ter evidenciado para os leitores que a re-
tirada de direitos da classe trabalhadora é um projeto burguês anterior à pan-
demia. Evidenciamos que a década de 90 trouxe com força para o Brasil um
projeto neoliberal de educação pautado naquilo que Kuenzer (2002) chama
“exclusão includente” e “inclusão excludente”.

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2 – Ensino (para o controle) remoto: quase um episódio de Black Mirror

A exclusão includente poderia ser resumida no fatídico jargão populariza-


do “trabalho tem, o que não tem é emprego”. Nesse caso, a restruturação pro-
dutiva retira as leis trabalhistas e elimina o trabalhador do emprego formal,
restando a ele voltar a ser incluído no sistema por meio da terceirização, em-
prego sem carteira assinada, informalidade e, se falarmos de uma perspectiva
mais recente, uberização.

A inclusão excludente se manifesta na educação que passa a incluir o es-


tudante no sistema escolar por meio de vários cursos de qualidade duvidosa,
ensino à distância, ensino médio sem qualidade e ensino superior sucateado
de modo a melhorar as estatísticas, mas sem garantir uma aprendizagem efeti-
va. A inclusão excludente ainda cumpre o papel ideológico de incutir em cada
aluno a ideia meritocrática de que depende apenas dele o sucesso na sua vida
profissional e que ele deve estar pronto para sempre se atualizar no mercado
de trabalho. Se ele fracassar, obviamente, a responsabilidade é dele que não se
esforçou o suficiente. Ele está incluído no sistema educacional, mas essa edu-
cação sustenta a base ideológica e material da exclusão.

O ensino remoto em tempos pandêmicos escancara a “inclusão excluden-


te”, só que desta vez com um plus de mais exclusão. A justificativa para o ensi-
no remoto é não deixar os alunos parados e fora da escola, mesmo com a pan-
demia. Fantasiado de preocupações com a escola e com a aprendizagem dos
estudantes é importante não fazer parar mesmo que isso implique na exclusão
dos conhecimentos e da efetiva aprendizagem. É um faz de conta analógico de
que a “escola digital” funciona. No entanto, o ensino remoto naturaliza não só
a baixa qualidade da aprendizagem, ele naturaliza a exclusão dos estudantes
que não podem ter acesso à internet e outros meios digitais. Se já estávamos
em uma situação alarmante, o ensino remoto escancara a política burguesa e
suas contradições. Não há metodologias ativas ou lousas digitais capazes de
esconder isso.

O ensino remoto é um ensino para o controle. O controle das empresas que


aproveitarão o momento para espraiar seus elementos privatizantes. O contro-
le dos professores, que têm suas aulas gravadas, sofre assédio de gestores e pais
conservadores. O controle dos conteúdos que passam a ser mais fáceis de se-
rem vigiados e, ao mesmo tempo, que são esvaziados de sentido. O controle da
classe trabalhadora que passa a ser mais excluída e a ela é, ainda mais, negado
o direito de se apropriar do legado histórico-acumulado pela humanidade de
modo crítico que questione a realidade posta.

59
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Infelizmente, o mundo em que vivemos se parece com uma distopia te-


levisiva, só que agora não podemos assistir com o controle remoto nas mãos
e pausar de vez em quando para respirar. O iScola, como aplicativo, ainda
não existe, mas não duvidaríamos se ele aparecesse como inovação neste nada
“novo normal”. Ou nos coletivizamos e paramos agora essa onda ou restará
muito pouco de Brasil público no final disso tudo. Se não reagirmos, o pior
episódio da série Black Mirror parecerá um romance água com açúcar diante
da realidade que nos espera. Resistir é para ontem.

Referências
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v. 8, n. 3, p. 348-365, 2020.

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61
3
A criança pré-escolar e o ensino remoto
Elizabeth Tunes
Zoia Prestes

Resumo

O texto discute o ensino remoto voltado para crianças pré-escolares, tendo


como pano de fundo a pandemia do novo coronavírus. Com base em ideias de
L. S. Vigotski sobre programas para a pré-escola e o que os diferenciam dos pro-
gramas escolares, procurara problematizar a questão do ensino remoto destinado
a crianças até o início da idade escolar, mostrando que o que parece ser solução
para pais e escola pode vir a ser um problema para a criança. Destaca-se a ideia
de que a criança pré-escolar ainda segue seu próprio programa, mesmo que já
tenha a possibilidade de lhe ser apresentado o programa escolar. Por isso, aponta-
-se a importância das relações de convivência como fonte, como fundamento do
processo de desenvolvimento cultural da criança, conforme a perspectiva teórica
histórico-cultural de L. S. Vigotski.

62
Pano de fundo

A pandemia que vivemos presentemente, ocasionada pelo coronavírus, pode


nos trazer importantes ensinamentos sobre nós mesmos. Inúmeros escritos,
reportagens em jornais diários, revistas, postagens nas redes sociais, etc. des-
crevem, cada um a seu modo, enorme diversidade de fatos, acontecimentos e
opiniões sobre o novo cotidiano que passamos a viver nesses tempos difíceis.
Para algumas pessoas, o cotidiano mudou muito pouco ou quase nada; para
outras, houve muitas mudanças. Entre essas pessoas, há aquelas para as quais as
alterações na realidade cotidiana foram ou têm sido boas, e mesmo excelentes, e
aquelas para as quais são ruins ou péssimas. A pandemia gerou, pois, um enor-
me pandemônio, para muitos, conforme o sugestivo título do texto publicado
em O Globo, no dia 13 de abril de 2020, reproduzido no sítio da Academia Bra-
sileira de Ciências, Mães na ciência: da pandemia ao pandemônio (BARBOSA;
STANISÇUASKI, 2020). O texto apresenta a realidade cotidiana de duas mulhe-
res que, durante a pandemia, realizam trabalho remoto, mostrando o quanto são
díspares os afazeres e as obrigações domésticas de ambas e, em decorrência, as
dificuldades ou facilidades que têm para realizar o trabalho profissional. Entre
outras questões, indicam o fato de as instituições estarem diante do problema
de como avaliar o trabalho remoto de profissionais com realidades cotidianas
extremamente distintas.

Também podemos comparar, do mesmo modo, alguns textos entre si. Por
exemplo, Rodrigo Ratier (2020), colunista do portal UOL, queixa-se da quase im-
possibilidade de cumprir com todas as suas novas obrigações, incluindo, princi-
palmente, o acompanhamento de seus filhos pequenos em atividades escolares
remotas, ao tempo em que Joanna Schroeder (2010) informa haver, nessa época de
pandemia, crianças que se tornaram bastante felizes por não terem que frequentar
os bancos escolares, tendo se livrado de tensões geradas pelo excesso de exigências
da instituição escolar e pelos conflitos que nela ocorrem. Os pais surpreendem-se
ao constatarem as mudanças de humor dos filhos e, estarrecidos, comentam que
desconheciam o quanto estes detestavam a escola.

Vê-se, portanto, que, entre as desditas de uns e a boa ventura de outros tantos,
há infinita variedade de desgraças e boas sortes. Eis uma simples conclusão que
guarda consigo, entretanto, um problema de tamanha envergadura e complexida-
de que chega a parecer quase um impasse, a depender do que se pretende como
solução: a vida humana transcorre em cenários tão distintos, com problemas tão

63
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

dissemelhantes que a busca de uma solução única parece impossível e quiçá


indesejável. Que fazer, então?

Como sói acontecer, a instituição escolar com inegável vocação merca-


dológica, isto é, as instituições de ensino particulares, logo captou a ameaça
que pairava no ar e tratou de, rapidamente, envidar ações que impedissem
o sentimento de indiferença em relação à sua ausência. De um lado, come-
çaram, por meio do sindicato, a exercer pressão política para o reinício das
aulas presenciais e, de outro, enquanto esse presumível crime não acontecia,
apressadamente e sem qualquer preparo, atirou-se à aventura do chamado en-
sino remoto ou, incorretamente, ensino a distância. Sem dúvida, ironicamente
falando, isso aconteceu com a preciosa e caridosa colaboração de alguns pais
que acabavam de descobrir que tinham filhos.

Isso faz lembrar o filme russo, Desamor, a que se refere Prestes (2018).
Ele narra a história de um casal, em processo de separação, que tratava com
tamanha indiferença o filho Aliocha a ponto de notar seu desaparecimento
apenas após a notificação feita pela escola. Segundo interpretação da auto-
ra, a ausência de Aliocha, seu desaparecimento, tornou-o presente o tempo
todo e, mesmo estando fora de cena, ele foi o personagem central do filme.
Ela diz: “O filme nos provoca: estamos preocupados com nós mesmos e nos-
sas crianças são alvo de desamor, de desatenção, de desproteção, lembramo-
-nos delas quando elas desaparecem” (p. 871). Aqui, há um curioso e apa-
rente paradoxo. A ausência de Aliocha – antes, supostamente, uma presença
indiferente – tornou-o presente e, no caso dos pais que, agora, descobriram
que têm filhos, parece ter acontecido o oposto: antes da pandemia, os filhos
eram uma ausência indiferente e, agora, são uma presença incômoda. Entre-
tanto, a diferença é apenas aparente: ausência indiferente e presença indife-
rente ou incômoda são uma só e a mesma coisa: a negação da existência do
outro. Diante do outro não deve haver indiferença; a indiferença em relação
ao outro é o seu aniquilamento.

Os fatos aqui apontados levam-nos a pensar sobre possíveis desdobramen-


tos e consequências que a vida vivida num cenário de indiferença tem para
uma criança. As relações de convivência são a fonte, o fundamento do proces-
so de desenvolvimento cultural da criança, conforme a perspectiva teórica de
L. S. Vigotski (1996, 2018). O desenvolvimento cultural é “um processo con-
tínuo de automovimento que se distingue, antes de tudo, pelo aparecimento
e formação permanente do novo, do que ainda não existia”, caracterizando-se

64
3 – A criança pré-escolar e o ensino remoto

“pela unidade entre o material e o psíquico, entre o social e o pessoal, à medi-


da que a criança se desenvolve” (p. 254, grifos nossos).

A unidade entre o social e o pessoal é proporcionada pela obschenie, pala-


vra russa que designa um dos conceitos basilares da teoria de Vigotski e que
traduzimos por relação de convivência. Prestes (2018) faz um exame aprofun-
dado das questões e dificuldades envolvidas na tradução desta palavra para o
português, chamando a atenção para o fato de que ela deriva de outra, origi-
nada do eslavo arcaico, obschina, que, para Sobkin e Klimova (2017), carrega
um valioso significado para o povo judeu. Sua raiz, assim como a de obschenie,
diz respeito ao que é comum.

Sendo as relações de convivência a origem e o fundamento da unidade


entre o social e o pessoal, vê-se o quanto são importantes na formação da per-
sonalidade da criança e na constituição de sua identidade. Ainda, é também
relevante destacar que, à medida que a criança se desenvolve, muda a estrutura
de sua consciência o que, por sua vez, implica mudanças nas relações de con-
vivência e, portanto, na unidade social-pessoal. Em síntese, o que podemos
dizer é que a unidade social-pessoal se desenvolve e, em todo o processo de
desenvolvimento da criança até à maturidade, modificam-se as suas relações
de convivência.

É importante destacar que, na União Soviética e na Rússia, o problema da


relação de convivência foi amplamente estudado e discutido por diferentes
autores, talvez em função de seu papel no desenvolvimento da pessoa. Por
exemplo, na psicologia, Petrovski (1973 apud KOLOMINSKI, 2000) afirma
que é no processo da relação de convivência que o ser humano desenvolve
sua personalidade, ao adentrar na sociedade com a qual interage a cada mo-
mento de sua existência. E acrescenta que as peculiaridades da personalidade
surgem na relação de convivência e servem a ela. Para D. B. Elkonin, relação
de convivência é a atividade específica do adolescente. L. P. Buieva (1974), ao
diferenciar relação de convivência e relação, diz que relação de convivência
é a realidade que pode ser observada diretamente e a concretização de todas
as relações sociais, sua personificação, é uma forma personalizada (BUIEVA,
1974 apud KOLOMINSKI, 2000, p. 37).

O estudioso da teoria histórico-cultural Iakov Lvovitch Kolominski, em


seu livro Psicologia das relações mútuas em pequenos grupos (2000), apresenta
uma diferenciação dos conceitos relação de convivência (direta ou indireta),

65
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

relações e inter-relações. Ele critica as investigações que empregam, na maioria


das vezes, esses três conceitos como sinônimos tanto na psicologia como na
pedagogia o que, segundo ele, leva à confusão terminológica e à interpretação
imprecisa e inadequada de resultados obtidos por estudos experimentais (KO-
LOMINSKI, 2000). Diz ele:
[...] nas investigações dos últimos tempos, relação
de convivência é analisada muito como um fenôme-
no externo das inter-relações, como processo de sua
realização e modo de manifestação. Ao mesmo tem-
po, há tentativas de uma ampliação infundada desse
conceito quando é de fato substituído pelo de relação.
É possível encontrar o emprego do termo relação de
convivência em análises da interação da pessoa com
uma máquina ou quando o conceito é visto como
arte, leitura, esporte, etc.
Claro que a pessoa pode experimentar uma certa
relação com objetos inanimados, porém, como essa
relação não pode ser mútua, é impossível se referir
a ela como relação de convivência (KOLOMINSKI,
2000, p. 38).

Vale ressaltar que, na relação de convivência, ocorre “a atualização das re-


lações existentes” (KOLOMINSKI, 2000, p. 38).

No presente texto, levando em conta as mudanças que apontamos ante-


riormente, procuraremos problematizar a questão do ensino remoto destina-
do a crianças até o início da idade escolar, mostrando que, o que parece ser
solução para pais e escola, pode vir a ser um problema para a criança.

O programa da criança e o programa do professor

Na Conferência de Educação Pré-escolar da Rússia, possivelmente entre


1928 e 1934, Vigotski realizou uma exposição com o objetivo de examinar
algumas características da criança pré-escolar, com vistas a colaborar para
o debate sobre a elaboração de programas educativos para a criança dessa
idade. Nesse texto, posteriormente, estenografado e publicado com o títu-
lo Instrução e desenvolvimento na idade pré-escolar, ele tratou das seguintes

66
3 – A criança pré-escolar e o ensino remoto

questões: o que são programas para a pré-escola, como se diferenciam dos


programas escolares, qual sua importância no trabalho pedagógico da pré-
-escola, as atividades da criança que eles abrangem, a natureza do traba-
lho educativo dirigido a crianças dessa faixa etária, enfim, a relação entre
a natureza do trabalho educativo e o desenvolvimento mental da criança
(VIGOTSKI, no prelo).

Para realizar o que se propôs, ele inicia caracterizando o modo de assimi-


lação dos instrumentos culturais pela criança até três anos de idade, tomando
como caso emblemático a assimilação da fala. Diz ele:
A sequência dos estágios pelos quais a criança pas-
sa e a duração de cada estágio em que se detém são
definidas não pelo programa da mãe, mas, princi-
palmente, pelo que a própria criança haure do meio
circundante. É claro que o desenvolvimento da fala
da criança se altera em decorrência do que ela tem ao
seu redor – uma fala rica ou empobrecida –, sendo
ela própria quem define o seu programa de assimi-
lação da fala. Esse tipo de instrução normalmente é
denominado de espontâneo. Nesse caso, a fala é en-
sinada à criança de modo diferente daquele com o
qual uma criança de idade escolar estuda aritmética
(VIGOTSKI, no prelo, grifos nossos).

Em seguida, Vigotski caracteriza o ensino escolar, afirmando que, nesse


caso, o programa da criança pesa muito pouco, ou seja, o programa do pro-
fessor assume o papel principal. Assim, sintetizando, com base na hipótese
apresentada por Vigotski, pode-se dizer que, no decorrer do processo de de-
senvolvimento da criança, ela passa de um tipo de assimilação de caráter es-
pontâneo1 para um tipo de assimilação dirigida, orientada pelo educador. Essa
mudança vincula-se ao desenvolvimento das relações de convivência da crian-
ça, da estrutura de sua consciência e, especialmente, da fala (que, por sua vez,
altera, enormemente, as relações de convivência da criança). Nessa passagem,
no período intermediário, situa-se a criança pré-escolar:

1. Vale destacar, aqui, que a brincadeira de faz-de-conta, atividade-guia do desenvolvimento da


criança pré-escolar, pertence, indubitavelmente, ao período em que prevalece o programa da
própria criança (espontâneo).

67
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Se dissermos que, na primeira infância, ao longo do


processo de instrução, a criança pode fazer somen-
te o que coincide com seus interesses e, na escolar,
pode fazer o que o professor quer, então, na idade
pré-escolar, a relação se define de tal forma que ela
pode fazer o que quer, mas quer o que eu quero (VI-
GOTSKI, no prelo).

Assim, em torno, aproximadamente, dos três anos de idade, começa a tor-


nar-se possível para a criança um tipo de ensino planejado, orientado, dirigido
pelo adulto. Contudo, é preciso prestar bastante atenção ao fato de que essa
possibilidade apenas começa. Ou seja, pode-se apresentar a ela algum progra-
ma escolar, mas, de algum modo, ele precisa ainda ser também um programa
da própria criança; ele deve ser, assim, um programa misto e, portanto, não se
caracteriza, em sua totalidade, como um programa escolar propriamente dito.
Para Vigotski, esse é o maior desafio que se apresenta aos pedagogos dedica-
dos ao ensino pré-escolar.

A criança pré-escolar e o ensino remoto

A criança pré-escolar encontra-se em transição da fase em que assimila


conforme seu próprio programa para aquela em que prevalece o programa
do professor. Isso significa que, em certas circunstâncias, seus processos de
assimilação ocorrerão, predominantemente, conforme seu próprio programa
e, em outras, seguirão o programa do professor.

É bastante conhecida, e frequentemente reiterada, a lei geral do desenvolvi-


mento cultural, formulada por Vigotski, segundo a qual toda função psíquica
aparece duas vezes no sistema de comportamento. Na primeira vez, ela emer-
ge no âmbito coletivo, como forma de colaboração, como meio de adaptação
social e, depois, como modo de comportamento individual, como processo de
comportamento voltado para si. “Seguir a transformação das formas coletivas
de colaboração em formas individuais de comportamento significa também
captar o princípio formativo das funções psíquicas superiores” (VIGOTSKI,
1997, p. 214).

Reitera-se, pois, o que aqui já afirmamos a respeito da importância das


relações de convivência da criança para o seu processo de desenvolvimento

68
3 – A criança pré-escolar e o ensino remoto

cultural. O exemplo clássico é o do desenvolvimento da fala interna – ou fala


para si – que se desenvolve, exatamente, no início da idade escolar:
Com base nesse e em muitos outros fatos, desenvol-
vemos a hipótese de que a fala egocêntrica não desa-
parece por completo no comportamento da criança,
mas muda, torna-se e transforma-se em fala interna;
essa transição é preparada em todo o curso do desen-
volvimento da fala egocêntrica e se realiza no limi-
te entre a idade pré-escolar e a escolar (VIGOTSKI,
1997, p. 219).

Outro exemplo clássico é o da discussão como caminho para a reflexão. Os


conflitos de opiniões, as disputas, os desentendimentos que sempre surgem
em coletivos de crianças são, na verdade, o início do desenvolvimento da re-
flexão. – “Eu vou tomar banho primeiro! – Não, sou eu que vou tomar banho
primeiro! – Eu é que vou porque eu sou mais pequenininho”. Nessa simples
disputa infantil, “já está contido o germe de futuras reflexões: o conceito de
causalidade, de demonstração, etc.”, como observa Vigotski (1997, p. 2020).

Portanto, vemos que, no período pré-escolar, a criança encontra-se, pre-


cisamente, no curso do desenvolvimento da fala internalizada, sendo que a
essência da estruturação do pensamento verbal consiste em que:
A criança assimila um modo social de comporta-
mento que começa a aplicar a si mesma, do mesmo
modo que outros, anteriormente, empregaram com
ela ou que ela própria utilizou com outras pessoas
[...] os processos superiores de pensamento [...] sur-
gem no processo de desenvolvimento social da crian-
ça por meio da transposição para si das formas de
colaboração que ela assimila no decurso das relações
de convivência com o meio social que a circunda
(VIGOTSKI, 1997, p. 219).

O que apresentamos até aqui parece mostrar, com clareza, as razões ligadas
ao fato de a criança pré-escolar ainda não conseguir seguir completamente o
programa do professor. Contudo, as relações de convivência – livres e espon-
tâneas, por sua natureza – que estabelece com outras crianças, na coletividade

69
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

escolar, podem ajudar a impulsionar o seu desenvolvimento no sentido de


conseguir realizar essa transição. Vejamos por que. Um coletivo de crianças,
como qualquer coletivo, é sempre heterogêneo, em vários aspectos e, entre
eles, os que dizem respeito ao nível de competência de cada criança em re-
lação a diversos domínios. Observações casuais, casos anedóticos e estudos
científicos atestam como verdadeiro o fato de ser bastante comum crianças
gostarem de se relacionar com crianças um pouco mais velhas (VIGOTSKI,
1997). Ou seja, agrupamentos heterogêneos de crianças em termos do nível de
suas habilidades e competências são os mais comuns. As crianças são esper-
tas e procuram, quase sempre, o que é melhor para si. É como se soubessem
que o desafio, aquilo que impulsiona o seu desenvolvimento, emerge apenas
no confronto com o diferente e não com a mesmice. Em coletividade, uma
criança ajuda e impulsiona a outra; com habilidades e aptidões diversas, as
crianças apoiam-se e ajudam-se a superar desafios e obstáculos. Na coletivida-
de, a criança pode encontrar o suporte necessário e adequado para conseguir
transitar do seu programa ao programa do professor.

Após essa breve exposição sobre algumas características da criança pré-


-escolar, caberia, agora, tratar da questão que nos moveu a escrever este texto,
a saber: em que medida o ensino remoto pode propiciar as condições para
ajudar a criança pré-escolar a transitar do seu programa ao programa do pro-
fessor? Contudo, ela já está respondida: basta pensar sobre como transcor-
re uma aula no modo remoto e responder à pergunta que se se segue. Qual
a probabilidade de uma criança com idade pré-escolar conversar com outra
criança, livre e espontaneamente, quando submetida a uma aula remota? Sem
qualquer possibilidade de inter-relações entre as crianças, torna-se bastante
improvável que, ali, desenvolvam-se relações de convivência.

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71
4
O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto e
pseudoformação em tempos de pandemia
Ricardo Taveiros Brasil

Resumo

Este ensaio teórico foi redigido no intuito de instigar reflexões acerca dos pro-
cessos de racionalização social que parecem atravessar experiências de docência
no Ensino Superior em meio à pandemia do novo coronavírus. As práticas de
acompanhamento de estudantes pelo que se chama de ensino remoto ensejam um
deslumbramento suspeito na relação que se estabelece entre estratégias formati-
vas e tecnologias de informação e comunicação. Com base nas formulações de
autores da primeira geração da teoria crítica da Escola de Frankfurt, e a partir da
contextualização de um período de cinco meses de contato diário com estudantes
de um curso de Psicologia ligado a uma instituição privada em Salvador da Bahia,
apresenta-se aqui uma análise que aponta para a precarização do ensino e das re-
lações trabalhistas a serviço da lógica capitalista. A tecnificação do que poderia ser

72
a experiência formativa em outras condições não assume um caráter suplementar,
ao contrário, impõe-se na qualidade de razão instrumental e opera como ideolo-
gia, em que pesem os avanços que, contraditoriamente, assegura e promove. Nesse
sentido, as narrativas do desgaste mental e da supressão do pensamento em prol
da expansão tentacular de tecnologias na Educação não estariam afastadas de um
projeto societário ainda referido ao ímpeto irracional de dominação. Argumenta-
-se em defesa da elaboração teórica que possibilite a crítica da racionalidade tec-
nicista no âmbito dos cursos de graduação e adverte-se que sejam considerados os
riscos de uma redução do reconhecido em termos de apropriação emancipatória
ao ajustamento resignado ao que é dado.

Mapeamento de um contexto

A crise sanitária mundial em curso, causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2 /


COVID-19) vem sendo apontada como a mais grave dos últimos cem anos, pre-
cedida pela gripe espanhola, de 1918. O impacto pelo decreto de pandemia da
Organização Mundial de Saúde (OMS) foi seguido de um processo de reorgani-
zação da vida cotidiana, por parte das pessoas, e de uma condução por parte do
Governo Federal do Brasil que pode ser considerada irresponsável, desastrosa e
(por que não dizer?) criminosa. Passados cinco meses do início dos protocolos de
prevenção, e já na marca de 115.309 óbitos acumulados1, persistem os riscos de
contaminação pelo vírus e a flexibilização das estratégias de controle da circulação
de pessoas gera dúvidas e inquietudes. Não bastassem os agravos da situação no
âmbito da saúde pública, assiste-se, desde meados do mês de Março, a um sem-
-número de desdobramentos em todas as esferas da vida social e, como não po-
deria deixar de ser, nos espaços destinados a todos os níveis da educação escolar,
já que a reunião de pessoas em lugares fechados amplifica consideravelmente os
riscos de transmissão e contágio da COVID-19.

Professores/as, gestores/as e alunos/as de todas as instituições de educação for-


mal tiveram que suspender as atividades durante um tempo e organizar um plano
de ação para a retomada dos trabalhos; ora, mas se o processo foi ou tem sido gra-
dativo em algumas instituições, em outras foi praticamente imediato. O ensaio que

1. O número dos óbitos aqui informado refere-se à contagem registrada desde o início da pandemia
até o dia 25/08/20.

73
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

apresento aqui reflete algumas das coisas que tenho pensado sobre esse período,
considerando minha experiência como docente do curso de Psicologia de uma
instituição privada de Ensino Superior em Salvador da Bahia, cidade que me
acolheu no início de 2016; cidade onde experimento, desde então, as agonias e
as alegrias que a vida me permite. Falo, portanto, deste lugar e encontro amparo
para pensamentos e ideias nos textos de autores ligados à primeira geração da
Escola de Frankfurt, também conhecida por Teoria Crítica da Sociedade. Sou
marcado por certos atributos e os informo: homem cisgênero, branco, homos-
sexual, com 37 anos, sem filhos/as, trabalhador e não vivo a condição de pessoa
com deficiência. Penso ser importante trazer tais marcadores por entender que
o laço social no qual estou inserido (e do qual faço parte) é extremamente mi-
sógino, racista, cisheteronormativo, ageísta, cruel com quem tem dependentes,
classista e capacitista. É, ainda, uma maneira de reconhecer, com vergonha, as
vantagens que esta sociedade me entrega, ao passo que atento aos desafios que
a condição de trabalhador, sobretudo, me impõe nos esquemas com os quais
negocio para viver em uma sociedade dividida em classes.

Desde que as estratégias de isolamento social se tornaram necessárias, in-


dagações sobre a sustentação do semestre letivo passaram a angustiar estu-
dantes, docentes e profissionais da gestão acadêmica. No caso da instituição
em que atuo, sabíamos que seria necessário recorrer a algumas tecnologias de
informação e comunicação para criar estratégias didáticas. Em poucas horas
após o anúncio de suspensão das aulas, já estávamos cientes de que a retomada
dos trabalhos aconteceria no prazo máximo de uma semana. Ou seja, tivemos
cinco dias para baixar a plataforma escolhida pela instituição em nossos com-
putadores pessoais, verificar a vinculação de estudantes às equipes de trabalho
nomeadas por disciplina, adaptar materiais das aulas à modalidade do ensino
remoto e executar o que Silva, Mendes e Nóbrega (2020, p. 6) definem como
“aula expositiva dialogada remota síncrona”, com possibilidade (e incentivo ao
acréscimo) de aplicativos e demais tecnologias.

Estávamos, e ainda estamos, fazendo formação em serviço ou, como se cos-


tuma dizer, em “capacitação” e “treinamento”. Vivíamos, e seguimos vivendo,
os apertos da pandemia ao mesmo tempo em que assistimos a um fenômeno
de indiferenciação casa-trabalho mais acentuado do que o já conhecido por
docentes que planejam aulas, elaboram e corrigem provas e relatórios em seus
tempos que seriam dedicados à vida além do trabalho, caso já não fôssemos o
que Antunes (2020) chama de proletariado de serviços digitais, privilegiados/

74
4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia

privilegiadas da servidão. Em que pese a verdade de que docentes do Ensino


Superior, trabalhadores/as que são, firmam os acordos com as instituições de
ensino de uma forma menos precária em relação a outros/as profissionais da
classe trabalhadora, isso não significa que estará assegurada a estabilidade da
carreira (e aqui a distância que se verifica entre docentes da rede pública e
docentes da rede privada não pode ser negada) ou que não sejam legítimas
as queixas de sobrecarga, ansiedade e angústia, principalmente por parte de
mulheres mães que, em uma estrutura social machista como a nossa, acabam
assumindo maior quantidade de tarefas no espaço doméstico, somadas que
estão às diversas demandas de trabalho.

A quantidade de tutoriais, formulários, planilhas, mensagens, reuniões,


avaliações, anexos e reposições que nos coube encarar para além dos horários
de aula certamente nos ajuda a entender os resultados preliminares de uma
pesquisa que está sendo realizada pelo Laboratório de Estudos em Política,
Educação e Cidade (Lepec), ligado à Universidade Federal do Ceará (UFC).
De um total de 5.800 respostas de docentes do Brasil (o quantitativo é do final
de Maio de 2020), apenas 10% dos/as participantes já haviam feito vídeo para
plataformas online; sete em cada dez participantes relataram sentimentos de
ansiedade e esgotamento; 33% dos/as depoentes afirmaram trabalhar de oito
a mais de doze horas por dia e quase um terço envolve-se em atividades de
trabalho em mais de cinco dias por semana2. O comentário de Silva, Estrela,
Lima e Abreu (2020) acerca do que se mostra em termos de saúde mental da
categoria docente universitária, no tocante aos processos de operacionalização
do trabalho, parece cumprir função importante no sentido de indicar proble-
mas nas propostas de ensino a distância ou ensino remoto durante a pande-
mia. É preciso, porém, que a leitura sobre o que tem sido esse momento para
profissionais do Ensino Superior não redunde em concepções medicalizantes,
mas explicite a situação de opressão e ameaça da classe trabalhadora.

A Portaria de nº 345/2020, do Ministério da Educação, autorizou a subs-


tituição do caráter presencial da oferta das disciplinas pela utilização dos re-
cursos tecnológicos em ambiente virtual. A instituição em que trabalho optou
por uma plataforma unificada de comunicação e colaboração que integra chat,

2. Para participar da pesquisa de Danyelle Nilin Gonçalves e Irapuan Peixoto Lima Filho, basta
acessar o link: http://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSeF9FSlWV6EwT6C6H28rXV6
9rbX9D_dHyX_sfK1s0bKvQZpEw/viewform.

75
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

videoconferência, armazenamento de arquivos, entre outras possibilidades. E


foi a partir do dia 24 de março que passamos a nos defrontar com os alcances e
limites da ferramenta escolhida. Dentre os alcances, caberia destacar a funcio-
nalidade da plataforma no que diz respeito ao compartilhamento de arquivos
de texto e de material multimídia, bem como no que se refere à elaboração e
correção de avaliações, atribuição de notas e agendamento de atividades. Ga-
rantida a boa conexão de internet, é possível dizer que a plataforma cumpre
com aquilo que propõe. Tenho acordo, porém, com Dunker (2020) quando
ele afirma que o uso de plataformas digitais no ensino formal necessita ser
pensado como um uso suplementar, não no sentido de complemento, mas no
de arremedo do que é válido em caráter emergencial de utilidade, mas que não
pode substituir as experiências entre docentes e estudantes no contexto acadê-
mico, cenário em que os encontros que colocam em cena o desejo de ambas as
partes ocorrem e mobilizam a produção do conhecimento.

Passado pouco mais de um mês do anúncio da pandemia pela OMS, e


o início do tempo de vigência do regime de ensino remoto emergencial, o
escritor José Mendiola Zuriarrain publicou o artigo intitulado ¿Por qué nos
agotan psicológicamente las videoconferencias? - traduzido para o português:
Por que as videoconferências nos esgotam psicologicamente?3 - e impulsionou
amplo debate sobre o desgaste mental de quem precisa passar horas em frente
a uma tela de computador para cumprir com suas responsabilidades profis-
sionais. O texto aborda o problema da ausência de comunicação não verbal
nas interações, a frequência com que somos expostos/as a estímulos que nos
distraem no ambiente doméstico, o incômodo de hiatos de silêncio, o atropelo
das falas e a artificialidade de contatos audiovisuais. O último item do artigo
(As videoconferências chegaram para ficar) anuncia o que podemos, desde já,
temer: a invenção que produz em nós um excedente de esgotamento mental
(reinvente-se, nos pedem!) não promete se despedir de nós com a chegada da
vacina contra o coronavírus; ao contrário, chegou para ficar. E o que isso po-
derá significar em termos de precarização das relações de trabalho e redução
instrumental da experiência formativa?

Outro aspecto dessa discussão (que me parece central, inclusive) é o fato de


que, enquanto docentes, temos acompanhado casos de estudantes que, por não

3. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-06/por-que-as-videoconferencias-


-nos-esgotam-psicologicamente.html. Acesso em: 25 ago. 2020.

76
4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia

possuírem computadores, tablets, notebooks e muito menos acesso a uma boa


conexão de internet, acabam tendo que se submeter a situações humilhantes
para cumprir com o compromisso do envio de suas atividades manuscritas. As
atividades são posteriormente fotografadas, encaminhadas por um endereço
de e-mail, ou por aplicativo de mensagens instantâneas. Caso alguém se soli-
darize, a ponto de conceder empréstimo de senha para a conexão de internet
por alguns minutos, já que nem todas as pessoas, ao contrário do que se pensa,
dispõem de um pacote de dados que seja suficiente para acompanhar a sequ-
ência e a organização das atividades online. Ou seja, faltam condições mínimas
de dignidade e inclusão digital, mas o empresariado da Educação e - assim
como nos informa Zuriarrain (2020) - também o das grandes corporações da
área de Comunicação, não parecem se importar; ao invés disso, nos alertam
para a chegada do “novo normal”, que não é futuro, mas que já está entre nós.
Com doses cavalares de cinismo, rezam a cartilha da canalhocracia neoliberal,
segundo a qual cabe apenas ao indivíduo responsabilizar-se pela aquisição das
tecnologias de apoio à sua formação acadêmica e, por conseguinte, pelo seu
êxito profissional. Enquanto isso, empresas lucram em meio à lástima e a lógica
da esperteza contida no argumento de que “enquanto algumas pessoas choram
seus lutos, outras vendem lenços” dá a tônica do discurso impostor e alheio
às preocupações genuínas com a decência na formação profissional. Não cabe
ingenuidade na relação com os detentores dos meios de produção. Para eles, a
taxa de lucro estará sempre acima do sentido ético do que quer que seja.

Passo agora ao próximo item do texto. Procuro organizar algumas refle-


xões a respeito das ideias que nos são impostas como fim da linha no plano da
história, mas que podem ser tratadas e enfrentadas em exercício de teimosia
contra o que está supostamente dado como realidade última.

Desdobramento teórico-conceitual
O que possui uma função fica enfeitiçado no mundo
funcional. Só o pensamento que, sem reservas men-
tais, sem ilusões de reinado interior, confessa sua ca-
rência de função e sua impotência, talvez alcance um
olhar da ordem do possível, do não existente, em que
os homens e as coisas estariam em seu justo lugar.
Porque não serve para nada, ainda não está caduca a
filosofia (ADORNO, 1962; 1972, p. 23).

77
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Retornarei a passagens da minha dissertação (BRASIL, 2015) a fim de situ-


ar as críticas ao elogio deslumbrado da técnica como coisa neutra. Para tanto,
recorro aos escritos dos filósofos da primeira geração da Escola de Frankfurt
- Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Jürgen Habermas -
por reconhecer neles uma possibilidade de oposição ao que adquire caráter de
consenso no que se refere à defesa imediata de aproximações possíveis entre
ciência e tecnologia.

A racionalidade do existente se impõe aos indivíduos de forma independen-


te da aceitação ou recusa destes em relação àquela. Em uma sociedade mate-
rialmente avançada e espiritualmente regredida (HORKHEIMER; ADORNO,
1947; 1985; ADORNO, 1962; 1971), os tensionamentos apontam para contradi-
ções tais que, se ignoradas, tendem a retornar na qualidade de violência dos ím-
petos de dominação inscritos na história da civilização ocidental. Nesse sentido,
considera-se a distância entre o alcance de uma consciência crítica e os limites
concretos de sua realização. Está na base da impotência subjetiva a percepção de
uma ameaça objetiva onde mora o medo ancestral de não ser contado/a entre
os/as demais e isso ajuda a compreender a adaptação das pessoas a um sistema
de coisas que, além de não as favorecer, as oprime (ADORNO, 1955; 1986). O
modo pelo qual um indivíduo é levado a aderir ao todo (e afirmar que um indi-
víduo é levado a aderir ao todo é admitir que não se trata de adesão voluntária,
mas de coação, de adesão forçada) fragiliza de tal forma a condição do particular
que a própria existência do indivíduo livre e autônomo é colocada em questão
por Adorno (1969; 1995). Para ele, a tendência objetiva da sociedade está dire-
tamente relacionada à involução subjetiva das pessoas. Se temos uma socieda-
de impermeável à crítica ou, ainda, se temos uma sociedade que neutraliza o
potencial necessariamente corrosivo do exercício crítico, então é a sociedade
plenamente administrada (HORKHEIMER; ADORNO, 1947; 1985).

O esclarecimento4 sempre objetivou o desencantamento do mundo. A dis-


solução de mitos e o primado da razão estão entre seus princípios essenciais.

4. Inicialmente relacionado à tradição iluminista e apresentado por Kant (1784; 1974) como a
saída do homem de uma condição auto-inculpável de menoridade intelectual, o conceito de
esclarecimento é utilizado neste ensaio na acepção de Horkheimer e Adorno (1947; 1985),
que o formularam de maneira a captar a sua dialética naquilo que se refere ao movimento
progressivo da razão, mas que, no decurso do processo civilizatório, também traria elemen-
tos regressivos e, sendo assim, contraditórios em relação a uma noção de racionalidade ca-
racterizada pela marca do progresso linear.

78
4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia

Horkheimer e Adorno (1947; 1985) se referem ao esforço de desencantamento


em termos do ímpeto humano de dominação da natureza, mas também do
seu caráter libertador. No entanto, é justamente na busca pela razão que residi-
rá a razão aprisionada. A análise do movimento contraditório, que atravessou
a história do pensamento ocidental, permitiu a Horkheimer e Adorno (1947;
1985) a assertiva de que um mundo esclarecido contém, em si mesmo, um
potencial de retorno à barbárie. À medida que avança o conhecimento, avança
também a pretensão dos domínios de uma natureza que não se deixa capturar
plenamente. A atividade científica, como instrumento de poder, operaria no
sentido de fazer saber de maneira articulada à racionalidade técnica que trata,
por sua vez, do saber fazer. Porém, à promessa de um mundo desencantado
e liberto do medo ancestral, interpõe-se derrocada do espírito, resignação ao
fato, empobrecimento das experiências e a ilusão de já se ter vencido uma
situação de desamparo.

A conformidade a que as pessoas são forçosamente submetidas denota o


caráter totalitário do esclarecimento. O indivíduo é negado em nome da uni-
dade coletiva e da direção dominante do pensamento, da adesão reflexa. O
esclarecimento dispensa o pensamento do trabalho de pensar-se a si mesmo:
retorna ao mito e coisifica o espírito. No entanto, ele pode ser considerado
para além disso, já que também possibilita ao indivíduo libertar-se do medo
ancestral. Não há liberdade fora do conhecimento, daí que sua crítica preci-
sa deparar-se com uma contradição, qual seja, a de que sua negação produz
a desrazão, ao passo que sua razão reitera a irracionalidade da dominação:
“o esclarecimento corrói a injustiça da antiga desigualdade, o senhorio não-
-mediatizado; perpetua-o, porém, na mediação universal e na relação de cada
ente com cada ente” (ibid., p. 24). Assume-se aqui o caráter contraditório do
esclarecimento. De acordo com Horkheimer e Adorno (1947; 1985, p. 44), se-
ria possível ao espírito assumir-se em situação de conflito “graças à resignação
com que se confessa como dominação e se retrata na natureza, o espírito perde
a pretensão senhorial que justamente o escraviza à natureza”. Nesse sentido,
pode-se dizer que “todo progresso da civilização tem renovado, ao mesmo
tempo, a dominação e a perspectiva de seu abrandamento” (ibid., p. 44). Ou
seja, o esclarecimento capaz de dominar as pessoas não deixaria de ser tam-
bém o que poderia libertá-las.

De acordo com Crochík (2005), a razão que serviu à dominação e à liber-


dade não deve ser destruída, mas superada justamente nessa contradição, o

79
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

que só é cabível em uma sociedade livre. Segundo ele, o esclarecimento re-


torna ao mito por ter se tornado fim em si mesmo e não mais um meio para
a constituição de uma sociedade racional. A sociedade, enquanto conjunto
das relações objetivas que as pessoas estabelecem para o suprimento de suas
necessidades, tem se configurado historicamente pela violência como efeito
do ímpeto de dominação na relação natureza-cultura. O progresso redundaria
em progresso da dominação e tornaria inevitável um movimento regressivo.
Daí que a existência do indivíduo está comprometida em uma sociedade ca-
racterizada por ameaça e medo, uma sociedade reconhecida por altos níveis
de desenvolvimento científico e tecnológico, mas que não produz segurança e
liberdade, pelo contrário, reproduz mais insegurança e opressão.

A meta do pensamento crítico, segundo Horkheimer (1937; 1968), seria a


realização de um estado racional, o que seria possível, uma vez que as pessoas
já dispõem de meios para realizá-lo. Porém, a dominação se faz presente pelos
sentimentos de medo e de ameaça que se voltam contra as pessoas que, por
sua vez, não podem se constituir como autônomas. A necessidade de luta pela
autoconservação em uma sociedade desenvolvida é exemplo da irracionalida-
de objetiva na qual o indivíduo contemporâneo está imerso. Considerando o
propósito deste ensaio, cumpre repensar as relações que se estabelecem entre
as pessoas e a técnica, bem como o sentido dessas relações nos atravessamen-
tos de uma situação de pandemia, posto que nem todo progresso é apenas
progresso.

Segundo Horkheimer e Adorno (1947; 1985, p. 41), “a adaptação ao poder


do progresso envolve o progresso do poder”. O êxito do progresso é o principal
responsável por seu contrário e, assim, “a maldição do progresso irrefreável é a
irrefreável regressão” (ibid., p. 41). Notar a contradição inscrita na constatação
de que a miséria cresce ao mesmo tempo em que cresce a possibilidade de sua
eliminação revelaria uma segunda natureza do esclarecimento, qual seja, aque-
la “que se torna perceptível em sua alienação” (ibid., p. 44). Portanto, está posta
a possibilidade de inverter a direção de um progresso impiedoso no interior da
relação do humano com a natureza e com a cultura: “... (o esclarecimento) só
se reencontrará consigo mesmo quando [....] tiver a ousadia de superar o falso
absoluto que é o princípio da dominação...” (ibid., p. 45). No entanto, afirmam
os autores que, “em face dessa possibilidade, o esclarecimento se converte, a
serviço do presente, na total mistificação das massas” (ibid., p. 46). A possibili-
dade existe, mas a tendência objetiva e dominante acaba por abafá-la.

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4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia

De acordo com Horkheimer (1937; 1968), a teoria crítica entenderá o con-


dicionamento do contexto pela atuação reflexa de atividades isoladas como
função advinda da ação humana, e que já poderia estar subordinada às deci-
sões planificadas e dirigidas ao alcance de objetivos racionais. Ora, mas se já
era possível na primeira metade do século XX, tanto mais o seria atualmen-
te, dada a inegável possibilidade de concretização de uma sociedade livre da
dominação. Mas a afirmação do existente é mais forte do que sua negação e,
nesse sentido, segundo Crochík (2010), a fusão da cultura com a sociedade
limitará o potencial da crítica, o que nos remete ao conceito de ideologia.

Em Marx e Engels (1845-1846; 1974), a ideologia é pensada como a más-


cara da realidade para legitimar a situação de exploração econômica, desigual-
dade social e dominação política. É a ideologia que faz com que os homens
tomem o falso por verdadeiro e o injusto pelo justo. Tratar-se-ia de ilusão e
da fabricação de uma história imaginária. Mas o problema da ideologia, se-
gundo Horkheimer e Adorno (1956), não se resolve com uma teoria da falsa
consciência, uma vez que já é possível enxergar além do véu. Trata-se, assim,
de uma cortina necessária que se interpõe entre a sociedade e uma possível
compreensão de sua estrutura. Ora, se com o advento da burguesia e da Revo-
lução Industrial, a ideologia ainda permitia algumas brechas de transcendên-
cia, na sociedade administrada, ela busca espelhar a irracionalidade como tal
(HORKHEIMER; ADORNO, 1956), por meio da afirmação da sociedade e da
total negação da construção de alternativa ao que existe.

Segundo Horkheimer e Adorno (1956), a ideologia passaria de uma con-


dição de aparência socialmente necessária (com necessidades complexas para
a justificação da opressão) para tornar-se mentira manifesta, à medida que a
sociedade já não carece de sua figura anterior para justificar um sistema que
as pessoas conservam por sua condição de presas da sociedade (ADORNO,
1968, p. 340-341). Daí que o contorno entre a realidade e a ideologia perca a
nitidez; a pessoa adapta-se às condições dadas em nome do hiper-realismo, é
reduzida à massa e conforma-se a uma mentira.

De acordo com Habermas (1968) e Marcuse (1969), a ideologia está vol-


tada à progressiva “racionalização” da sociedade que indicaria processos de
institucionalização do progresso técnico e científico. Por meio dos avanços
tecnológicos, projeta-se o que a sociedade e os interesses que a dominam ten-
cionam realizar com as pessoas e as coisas. Desaparecem da consciência os
aspectos de repressão na medida em que a legitimação da dominação assume

81
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

o caráter de uma referência à produtividade que provê o sustento e o conforto


de indivíduos, instaurando uma forma política de distribuição das compensa-
ções, que garante a fidelidade das massas. A ampliação desse processo permi-
tiu a Crochík (2008) pensar a criação dos empregos e o aumento de proventos
e benfeitorias não só como frutos da mobilização e da luta de trabalhadores/
as, mas também como concessão do capital para a sua própria preservação.
Habermas (1968) destacou a submissão e a impotência das pessoas frente à
técnica e à ciência na qualidade de fetiches para manter um estado de domi-
nação objetivamente caduco. Ora, mas se a ciência e a técnica (assimiladas à
administração) convertem-se em forças produtivas centrais, a feição anterior
da ideologia se perde e a dimensão das relações de produção não será mais a
única a demandar um exercício de crítica ao aparelho de dominação.

Marcuse (1969), por sua vez, depara-se com o amplo alcance do poder da
sociedade sobre os indivíduos e com a paralisia da crítica em um mundo sem
oposição. Os domínios do progresso técnico teriam criado formas de vida re-
conciliadoras de forças que tenderiam a se opor e, assim, a luta por construção
da perspectiva histórica de liberdade da labuta e da exploração seria recusada.

Com base nas teses dos frankfurtianos, Maia (2007) considera que a efi-
ciência técnica, que goza de prestígio na sociedade administrada, alcança
até mesmo o psiquismo dos indivíduos, pois as pessoas são capturadas pe-
las técnicas de controle que mobilizam suas necessidades psíquicas a fim de
conformá-las à sociedade. A ideologia leva a um conformismo que sufoca as
tentativas de revolta e, nesse sentido, a crítica já não pode ser a crítica de uma
falsa autonomia do espírito, mas crítica da sociedade e da história da razão
instrumental que atravessa o processo de dominação da natureza e dos indiví-
duos. Segundo o autor, a generalização da razão instrumental vem a suprimir
a razão negativa e firmar condições para o surgimento de um laço social to-
talmente administrado, politicamente fechado e unidimensional, na expressão
de Marcuse (1969); difícil não recordar do slogan neoliberal de Margareth
Thatcher: “there’s no alternative” (não há nenhuma alternativa).

De acordo com Crochík (2010), a facilidade para captar contradições leva-


ria o indivíduo a frear suas percepções e substituí-las por outras. Uma vez que
não basta a conformação ao mundo, mas sua defesa – já que a ameaça intimi-
da a ponto de fazer com que o indivíduo “vista a camisa” que se espera dele
–, a consciência contraditória o obriga a se afastar das contradições. Diante
das angústias devidas à possibilidade de serem largadas à margem, as pessoas

82
4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia

percebem-se como que no lugar de coagidas à adesão. Ressalte-se que a ideolo-


gia, nesse sentido, permite a percepção de sedução da dominação. Porém, a par-
tir dessa percepção, o sujeito não se encontra em condição de fazer frente ao que
Horkheimer e Adorno (1956) chamariam de “imagem ameaçadora do mundo”.

Malki (2008) afirma que o indivíduo da sociedade pós-industrial contem-


porânea se encontra subjugado a um modo de vida que é regido por uma
herança bárbara em um mundo que rejeita a manifestação do particular, este
submetido ao capitalismo de oligopólios. O que seria, portanto, falsa cons-
ciência é, na verdade, produção artificial da consciência do eu fragilizado e
diretamente socializado pelo todo por meio de referências identificatórias
ofertadas pela indústria cultural. De acordo com Rouanet (1985; 1990), a
consciência não é falsa em função de dinamismos inerentes a si mesma, mas
por estar sujeita ao âmbito da história. A racionalidade tecnológica faz as ve-
zes da ideologia, uma vez que serve à justificação e à perpetuação do existente,
inclusive pela educação.

Em acordo com Maar (1995), a educação não é necessariamente emanci-


patória. À medida que se alia, sem crítica, à ciência e à tecnologia no desen-
cantamento do mundo, tende a fortalecer um deslumbramento nocivo que
coloca em risco a dimensão própria da formação e produz efeitos problemáti-
cos na relação do indivíduo com a sociedade. Segundo Adorno (1962; 1971),
formação é apropriação subjetiva da cultura. Mas, em uma sociedade que não
produz indivíduos, o apelo da adesão reflexa ao existente obstaculiza a experi-
ência formativa e acaba por converter o indivíduo em instrumento de manu-
tenção da ordem. Se a ideologia da racionalidade tecnológica opera para que
se aceite a técnica como uma coisa neutra, desconsiderando que ela é a exten-
são do braço dos homens (ADORNO, 1967; 2006), a técnica cumpre função
de fetiche. O próprio espírito da época confirma e legitima a tendência, difi-
cultando atuações contrárias a ela. E, assim, docentes passam a ser julgados/
as pelo domínio - ou pela falta de domínio - de recursos tecnológicos, o que
tende a se acentuar com estratégias de ensino remoto, mas já estava presente
antes e, a depender de quem lucra com a educação precarizada, deve seguir
para além da situação de pandemia da COVID-19.

O instrumentalismo que está contido na ideologia tecnicista tende a afas-


tar o pensamento, a reflexão teórica e a dimensão ética em nome da efici-
ência pragmática de execução. Não importa se as condições para a oferta
do estágio supervisionado em Psicologia na configuração do regime remoto

83
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

não são ideais e atropelam a ética da profissão, mas basta que estudantes re-
solvam a carga horária de atividades do estágio e liberem espaço para o que
Ramos (2012, p. 155) pensou nestes termos:
[...] os cursos, cada vez mais, são feitos para os seus
patrocinadores, aos quais estatísticas de matrícula e
frequência, ou seja, os alunos, são vendidos. Não acre-
ditamos, frente a tal situação, que podemos dizer com
convicção que o produto destas empresas é o ensino
ou a educação. Estes últimos talvez se reduzem hoje
ao maquinário para a produção massificada de alunos.

De acordo com Patto (2009), os descaminhos impostos à formação pela


lógica mercantil e pela gerência empresarial na educação suscitam inquie-
tudes com relação à constatação de que seu caráter de instituição, voltada à
formação intelectual de indivíduos, tem se perdido em nome de um ensino
prioritariamente direcionado para as demandas do mercado, orientado pelos
parâmetros da pedagogia de competências, avaliado com base em critérios de
produtividade e eficácia. Eis aí os desdobramentos da pseudoformação que
Ramos (2012) se prontificou a discutir. O autor suspeita que grande parte dos
cursos de Psicologia no Brasil têm se restringido a garantir o que cabe entre
o menor custo e os maiores níveis de adequação aos critérios de avaliação
institucional. É a partir de sua experiência como professor de um curso de
Psicologia que ele se colocou a examinar algo que pode ser pensado como
crítica ou constatação. Trata-se das dificuldades de apostar no projeto de for-
mação sustentado por Adorno (1962; 1971), embora argumente que não seria
o caso de abrir mão dele. A impotência da crítica frente à atual situação não se
justifica pela posição conformista que o autor definiu como cínica, porquanto
tende a se opor à elaboração de outras possibilidades5.

Diante do que se mostra sem quaisquer disfarces, não é o caso de sustentar


que estudantes são coniventes com essa situação. Para Maia (1998, p. 29), as
pessoas negam o que a elas foi negado: “a possibilidade de uma experiência

5. Embora não se deva negar que a impotência da crítica seja gerada por condições objeti-
vas, ainda que sustentada por necessidades subjetivas. O próprio autor reitera este cuidado
quando fala em “internalização histórica de imperativos sociais” (RAMOS, 2012, p. 157). É
preciso evitar o equívoco de atribuir ao indivíduo o que se refere à estrutura social.

84
4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia

autêntica no contato com o objeto”. O fenômeno ao qual Adorno (1962; 1971)


se refere como pseudoformação socializada se realiza como uma contrapar-
te subjetiva necessária da indústria cultural. Segundo Horkheimer e Adorno
(1947; 1985), a indústria cultural significa a cultura convertida em negócio.
Rendida à lógica do lucro, a cultura é reduzida a uma condição de mercado-
ria, promove a apologia do existente e só pode garantir às pessoas um lugar
genérico em uma sociedade caracterizada por estratégias de uniformização
que operam para impedir a diferenciação do particular. Os apelos da indústria
cultural, ainda que não vistos em seu caráter de violência, são encaminhados a
todos/as e a ninguém, uma vez que todos/as são clientes potenciais e ninguém
se diferencia na massa e enquanto massa. Assim como, mais tarde, destacou
Marcuse (1969) e sustentando a radicalidade do pensamento, Adorno (1962;
1971) reconhece que, embora tenham permanecido intocados o substancial
do fundamento econômico das relações e os limites da formação, a ideolo-
gia tende a aproximar classes antagônicas na esfera subjetiva, muito embora a
ideia de cada um em sua posição tenha sido preservada pelo ajustamento dos
conteúdos formativos à consciência dos indivíduos. A partir de então, cresce
a demanda por formação (ponte de ascensão e prestígio) e um setor privile-
giado da indústria cultural passa a acolher as demandas: “la alegre y despre-
ocupada expansión de la formación cultural, en las condiciones vigentes es, de
modo inmediato, una y la misma cosa que su aniquilación” (ibid., p. 254), isto
é, expandir esse modelo pseudoculto não deixa de ser uma maneira (muito
eficaz, inclusive) de negar a formação cultural.

Segundo Maia (1998), a noção de processo educativo como processo in-


dustrial transforma a escola em um espaço para a tecnificação que tudo abarca
de várias formas. Para ele, já não seria possível calcular os alcances e desdo-
bramentos da tecnificação no âmbito escolar. Mesmo assim, defende a pon-
deração sobre tal realidade para que se possa “resistir ao irresistível” (ibid., p.
33), isto é, ao bloqueio que é posto às brechas de uma negatividade possível.
De acordo com o autor, quando a tecnificação é irrefletidamente incorporada,
as finalidades da educação não se articulam com os meios para alcançá-la.
Por outro lado, defende que seria demasiado idealista supor a possibilidade de
incorporar a dimensão ético-política à educação se ela se submete explicita-
mente ao existente.

O caráter efêmero do que se oferta no lugar da formação converte-a em


informação. Desse modo, o necessário debruçar-se sobre os objetos com

85
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

vistas a uma apropriação efetiva é reduzido ao entendimento mediano, que


não constituiria o grau elementar da formação, mas a sua negação (Adorno,
1962; 1971). Não raramente, as frustrações causadas pela insuficiência do
que resulta das sobras da pseudoformação são lidas como subjetivas, equí-
voco de caráter ideológico que Adorno (1959; 2006) já apontava em 1959.
Quanto mais objetiva a impotência, mais subjetiva ela aparece:
[...] a ideologia dominante [...] define que, quanto
mais as pessoas estiverem submetidas a contextos
objetivos em relação aos quais são impotentes, tanto
mais elas tornarão subjetiva esta impotência. Con-
forme o ditado de que tudo depende unicamente das
pessoas, atribuem às pessoas tudo o que depende das
condições objetivas, de tal modo que as condições
existentes permanecem intocadas (ibid., p. 36).

Adorno (1967; 2006) entende que existe uma clausura socializada no mun-
do administrado. A prisão dos/as supostamente livres pode até ser reconheci-
da enquanto tal, mas o reconhecimento em si não sustenta ímpeto libertador,
já que “quanto mais densa é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo
em que precisamente a sua densidade impede a saída” (ibid., p. 122). E, nesse
sentido, quanto mais resistência, mais ameaça - constatação que não invalida
a resistência e que, por outro lado, não pode deixar de indicar os limites para
que não caia em ideologia. Segundo Maia (1998, p 34):
A possibilidade de ações que levem à formação (Bil-
dung) no sentido em que o termo é utilizado por
Adorno implica uma crítica permanente e uma re-
flexão que ultrapasse o existente, reconhecendo as
determinações objetivas por ele constituídas. Nesse
sentido, pensar a formação implica pensar a exclusão
e a violência em todas as suas nuances, especialmente
a exclusão do singular, do diferenciado, que pode se
dar sem que os alunos deixem de frequentar as aulas
e, o que é pior, sob a aparência de perfeita ordem e
ótima produtividade.

Diante do exposto até aqui, caberia questionar: qual o sentido de formar


um indivíduo se o que se pretende é que ele se torne autômato formatado para

86
4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia

ajustar-se às posições substituíveis de hierarquias sociais? Uma das maneiras


de organizar resistência ao existente seria pela elaboração teórica. Contrarian-
do entusiastas de toda espécie de pragmatismo utilitarista, “pensar é agir, te-
oria é uma forma de práxis” (ADORNO, 1969; 1995, p. 204). Passo agora aos
meus argumentos finais.

Encaminhamento (in)conclusivo

Com base nos elementos do tópico anterior, recorro a Habermas (1968) e


Marcuse (1969) para reafirmar que a ideologia guarda vínculo estreito com
processos de racionalização social em prol de avanços articulados entre ci-
ência e técnica. Crochík (2007) também pensa a racionalidade tecnológica
como uma face da ideologia na sociedade administrada. A aceitação da téc-
nica como coisa neutra ignora o fato de que toda técnica é aquecida em um
contexto histórico determinado e se engancha, de uma maneira ou de outra,
nos muitos signos da dominação (ADORNO, 1967; 2006, p. 132-133):
Os homens inclinam-se a considerar a técnica como
sendo algo em si mesma, fim em si mesmo, uma for-
ça própria, esquecendo que ela é a extensão do braço
dos homens. Os meios – e a técnica é um conceito de
meios dirigidos à autoconservação da espécie huma-
na – são fetichizados, porque os fins – vida humana
digna – encontram-se encobertos e desconectados da
consciência das pessoas [...]. O perturbador – porque
torna desesperançoso atuar contrariamente – é que a
tendência de desenvolvimento encontra-se vinculada
ao conjunto da civilização. Combatê-lo significaria o
mesmo que ser contra o espírito do mundo.

A ideia da manipulação técnica como finalidade em si mesma, e tanto


melhor quanto mais eficiente, implica a consideração da frieza na qualidade
de um traço característico e necessário de um período histórico. Adorno
(1969; 1995) refere-se à frieza como um efeito da sociedade e como necessi-
dade de autoconservação das pessoas frente a um mundo que não promove
identificações. “Quem imaginar que, como produto dessa sociedade, está
livre da gelidez burguesa, nutre ilusões sobre o mundo bem como sobre si
[...] a capacidade de identificação com o sofrimento do outro é escassa em

87
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

todas as pessoas, sem exceção” (ibid., p. 225) - isto é, a frieza é objetivamente


determinada.

Crochík e Patto (2012) reiteram a importância da ciência e da técni-


ca; entretanto, admitem que, por não serem suficientes para transformar
as condições vigentes, tenderão a fortalecê-las. O procedimento técnico-
-científico, comprometido com a lógica de uma racionalidade instrumental
e incorporado a interesses específicos do sistema produtivo, pode firmar
relações frias com objetos desprovidos de vida. Possibilita, tal como afirma
Adorno (1967; 2006), uma consciência reificada e uma indiferença gene-
ralizada com relação às pessoas. Daí que seja importante “ajudar a frieza a
adquirir consciência de si própria, das razões pelas quais foi gerada” (ibid.,
p. 136), o que significa, por sua vez, recuperar a dimensão histórica que nos
informa e nos ensina ser tudo mutável. É inegável que a formação encontra-
-se em um momento deveras problemático no atual cenário, mas entendo
que nos cabe requentar os alimentos capazes de afirmar a potência crítica da
inteligência sensível.

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4 – O feitiço da técnica como coisa neutra: ensino remoto
e pseudoformação em tempos de pandemia

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90
5
Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia:
educação a distância, educação on-line ou ensino remoto?
Bruna Werneck Canabrava
Clarisse de Mendonça e Almeida
Renata Vettoretti Leite
Vittorio Lo Bianco

Resumo

Ano de 2020. Pandemia mundial. Escolas fechadas e isolamento social. O


presente trabalho se propõe, a partir deste cenário vivido em todo mundo de
disseminação do vírus SARS-CoV-2, a debater as ações implementadas no es-
tado do Rio de Janeiro no que se refere ao andamento do ano letivo nas escolas.
Sob o olhar dos servidores estaduais técnicos em Educação a Distância, lotados
na Fundação Cecierj, órgão da Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e
Inovação, o artigo traz reflexões acerca das decisões tomadas pelo poder público
para a disseminação do ensino online em todo o estado. Busca-se compreender

91
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

se tais decisões configuram-se como ideiais e adequadas ao momento de


urgência movido pela pandemia. Para tanto, o texto articula-se com teóricos
como Santos (2020), ao refletir a respeito dos conceitos de Educação a dis-
tância, Educação Online e Ensino Remoto, e Hogdes et al. (2020), ao tratar
do conceito de Ensino Emergencial Remoto.

Introdução

O ano de 2020 se inicia com notícias sobre a proliferação de uma desco-


nhecida doença na China. Em 11 de março, notificações da doença já atin-
giam mais de 124 mil pessoas em todo o mundo, tendo causado 4.291 mortes,
o que levou a Organização Mundial da Saúde (OMS)1 a classificar o momento
como uma pandemia. No Brasil, já havia casos confirmados, porém ainda sem
nenhuma morte. A essa altura, já havia sido identificado que a COVID-19 era
causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2. Embora a taxa de mortalida-
de se mantivesse baixa, mostrava-se como uma doença altamente contagiosa,
transmissível mesmo por pacientes assintomáticos. A alta taxa de contágio e a
necessidade de UTI para os casos mais graves - que, mesmo em pequena por-
centagem dentre o total de doentes, se multiplicavam - colocava pressão nos
sistemas de saúde. Sem remédio ou vacina contra a doença, as políticas públi-
cas em diversos países visavam, de um modo geral, reduzir o ritmo de contá-
gio para evitar o colapso do sistema de saúde que vimos ocorrer na Itália2. E
para reduzir o ritmo de contágio, uma medida comum em todo o mundo foi a
adoção do afastamento e isolamento social. Ou seja, as pessoas deveriam ficar
em suas casas, sem ter contato presencial com outras pessoas.

Com esse intuito de reduzir o contágio, o estado do Rio de Janeiro, seguin-


do o modelo de outros países, decide por suspender as aulas do ensino básico
a partir do dia 16 de março, uma segunda-feira, a princípio por um período de
duas semanas3. Àquele momento, não fazíamos ideia que o confinamento se

1. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/11/oms-decla-


ra-pandemia-de-coronavirus.ghtml.
2. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51968491.
3. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/governo-do-rio-
-antecipa-ferias-escolares-na-rede-publica-e-privada.

92
5 – Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia:
educação a distância, educação on-line ou ensino remoto?

prolongaria por meses. Porém rapidamente ficou claro que o distanciamento


não seria apenas de uma quinzena. Logo, decisões precisavam ser tomadas
sobre o que fazer para garantir o direito à educação de 700 mil4 estudantes do
nosso Estado e dar continuidade ao ano letivo. Sendo assim, o presente estudo
objetiva analisar as escolhas feitas pelo governo estadual diante desse contexto
de pandemia e isolamento social frente à educação. Nosso relato de experi-
ência se dá a partir do lugar de servidores estaduais técnicos em Educação a
Distância, no Rio de Janeiro, lotados na Fundação Cecierj, órgão da Secretaria
de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação dedicado ao ensino a distância e
divulgação científica.

O Consórcio Cederj foi criado, em janeiro de 2002, inicialmente com gra-


duações (licenciaturas). Em 2002, a Câmara Legislativa aprova a criação da
Fundação Cecierj, que, além de contar com um corpo próprio de servidores e
funcionários, engloba outros projetos como o Pré-Vestibular Comunitário e a
Educação de Jovens e Adultos a distância. Segundo Costa (2007),
Na linha de evitar a competição de recursos finan-
ceiros entre as diferentes atividades, resolvemos não
enviar os recursos diretamente para as universidades,
mas criar uma estrutura de financiamento por meio
de uma fundação pública (hoje Fundação Centro de
Ciências e Educação Superior a Distância do Estado
do Rio de Janeiro, ou Fundação Cecierj), que passou
a administrar diretamente o financiamento de todas
as atividades. Essa solução traria a vantagem adicio-
nal de otimizar recursos, como o compartilhamento
de polos regionais, disciplinas e a operação das ava-
liações presenciais (COSTA, 2007, p. 10).

Segundo Celso Costa (2005), as vocações fundamentais do Cederj são as


seguintes:
• Contribuir para fixar a população no interior;
• Formação de professores;

4. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/blog/edimilson-avila/noti­cia­/2020/


03/13/municipio-do-rio-vai-suspender-aulas-na-rede-publica-semana-que-vem.ghtml.

93
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

• Desenvolvimento econômico do estado do Rio de


Janeiro;
• Contribuir com parâmetros de qualidade para cur-
sos de graduação com uso da metodologia de EAD
(COSTA, 2005 p. 1).

Voltaremos a falar do Consórcio Cederj em nossa análise sobre o relato de


nossa experiência.

Respostas emergenciais à pandemia do Coronavírus

Esse momento de emergência diante do quadro de pandemia escancarou


as desigualdades em nosso país em muitos aspectos. No contexto do trabalho,
vimos um nítido recorte de classe entre quem poderia continuar suas ativida-
des laborais de casa e quem precisou continuar saindo para trabalhar presen-
cialmente. Testemunhamos ainda as consequências dramáticas da tendência
dos últimos anos de se flexibilizar os direitos trabalhistas. Na área da habita-
ção, evidenciou-se as condições muito precárias sem nem acesso a saneamen-
to básico em que vive grande parcela da nossa população. Na educação, foi
possível perceber como o sistema duplo de educação pública e privada contri-
bui para a perpetuação dessas desigualdades.

As escolas particulares, que dependem do pagamento de mensalidades


para manterem-se abertas, foram as primeiras desenvolver novas metodolo-
gias, no contexto de pandemia. Se por um lado, a pressão financeira impõe um
senso de urgência a essas instituições, por outro, o público que ela atende e até
mesmo sua função social oferece saídas que não estão disponíveis aos gestores
públicos. O compromisso do Estado é o de educar o conjunto da população.
Já uma escola privada tem um compromisso restrito somente àquelas famílias
cujos filhos estão matriculados ali. Além de esse público ser mais homogêneo
do que a população como um todo, ele pertence à parcela com mais recursos
socioeconômicos, o que implica maior acesso a dispositivos digitais e internet.

A aposta em soluções tecnológicas feita pelas escolas particulares funciona


de duas formas: visa mostrar para as famílias que a escola está “antenada” às
mais novas ferramentas e também atende às preocupações e demandas das
famílias acerca da educação do estudante, em uma tentativa de transpor para

94
5 – Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia:
educação a distância, educação on-line ou ensino remoto?

o ambiente online suas atividades presenciais. Dessa forma, a escola particular


pode justificar que não deixou de trabalhar e, portanto, as famílias deveriam
continuar pagando as mensalidades. Porém, uma adaptação dessa magnitude
tem um risco muito alto, seria o equivalente a trocar as asas do avião em voo.

Antes de refletirmos sobre as ações oficiais do governo do Estado do Rio


de Janeiro, mostra-se relevante refletirmos brevemente sobre o contexto atual
da educação em tempos de pandemia.

Contexto da Educação em tempos de pandemia

Sem a definição exata sobre quanto tempo a pandemia ainda atingiria a po-
pulação e seguindo as determinações das autoridades de manter o isolamento
social, as escolas buscaram novos caminhos para não estancar o processo de
escolarização em pleno andamento. Entrou em cena aquilo que inicialmente
foram anunciadas como ações baseadas no modelo de educação a distância
(EAD) e que posteriormente se assumiu como ensino remoto. Novos projetos
se desenrolaram. Muitos, no entanto, sem o tempo hábil para o planejamento
e para a transposição adequada à implementação dos projetos característicos
da EAD e aplicados por uma aparente cortina de improvisação e pressa. Para
suprir a falta de escolas abertas e com o ano letivo em andamento, professores
se viram obrigados a reinventar suas práticas, a replanejar suas ações e a inves-
tir em ações educacionais à distância apoiadas por tecnologias digitais.

Com base nas exigências de aceitação inevitável e de mudança imprescin-


dível - e de um semestre letivo em andamento -, discentes e docentes se adap-
taram a uma nova realidade educacional. Esse cenário desafiador fez disparar,
por exemplo, o número de sessões síncronas de videoconferências em que
professores transpuseram – sem o devido planejamento - para o ensino online
explicações e exercícios que seriam inicialmente vividos presencialmente nas
salas de aula.

Optou-se por classificar tais projetos, movidos pela urgência de um ano


letivo em andamento, como ações do ensino remoto emergencial (HODGES
et al., 2020). Isso porque tais iniciativas se mostrariam como respostas rápidas
a uma demanda urgente e que, por isso mesmo, se diferenciam das ações de
EAD marcadas pelo desenvolvimento a médio e longo prazo de estratégias de
ensino. Para Hodges et al. (2020), o ensino remoto emergencial se caracteriza

95
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

pela entrega de conteúdo, via online, para atender a situações pontuais. Trata-
-se de uma resposta rápida a uma determinada situação apropriando-se para
tal de recursos tecnológicos - especialmente aqueles de comunicação síncrona
- como videoconferências. Difere-se das ações da EAD justamente por não
considerar o tempo do planejamento e o desenvolvimento das ações a médio
e a longo prazo, do estudo do perfil dos envolvidos e da produção de soluções
educacionais com vistas a atender às demandas desse público. Para Hogdes
et al. (2020), o ensino emergencial remoto caracteriza-se pela disponibiliza-
ção temporária de conteúdos, via online, criada especialmente para manter
o vínculo entre alunos, docentes e instituição escolar em um momento de
excepcionalidade.

Santos (2020) reflete a respeito dos conceitos de Educação a distância,


Educação Online e Ensino Remoto. Para a autora, compreende-se que a Edu-
cação a Distância (EAD) deve ser composta por:
[...] desenhos didáticos mais instrucionais, em que
docentes orientam estudos, leituras, tiram dúvidas de
conteúdos e administram a agenda do sistema. Cada
aluno faz suas tarefas, prestando conta das atividades
quase sempre individualizadas5.

A autora debate ainda a respeito do conceito de “Educação Online”, com-


preendida como um fenômeno da cibercultura. “Sem a presença dos alunos
e docentes em processos de comunicação interativa, habitando a sala de aula
cotidianamente, não temos educação online”6. Para isso, seria preciso uma
presença constante dos alunos no AVA, “produzindo currículo online cotidia-
namente, juntas, criando e disputando sentidos, produzindo conteúdos e pro-
cessos de subjetivação em rede”7. Na educação online, para a autora, “forma é
conteúdo”8, sendo fundamental explorar as potencialidades hipermidiáticas
do digital em rede, evitando o instrucionismo.

5. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/re-doc/announcement/vi­


ew/­1119. Acesso em: 27 jun. 2020.
6. Idem.
7. Idem.
8. Idem.

96
5 – Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia:
educação a distância, educação on-line ou ensino remoto?

Já o ensino remoto, conceito reforçado durante a Pandemia do COVID-19,


“não é EAD e muito menos Educação Online”. Santos (2020) salienta que mes-
mo o ensino remoto pode vir a permitir “encontros afetuosos e boas dinâ-
micas curriculares” porém, as práticas remotas “repetem modelos massivos e
subutilizam os potenciais da cibercultura na educação, causando tédio, desâ-
nimo e muita exaustão física e mental de professores e alunos”.

Parte-se daí o primeiro questionamento com relação à implementação de


um modelo de ensino embora emergencial, essencialmente tecnicista e ins-
trucional, que destaca, por exemplo, atividades produzidas sem interações
ou intervenções significativas tanto para o professor quanto para os demais
colegas. Não se dá ao aluno a chance de construir seu próprio caminho de
aprendizagem - até porque tal modelo não foi construído com essa finalidade
- reproduzindo-se dessa forma uma metodologia tradicional de ensino de edu-
cação bancária de depósito de conhecimentos, sem qualquer caráter liberta-
dor (FREIRE, 1987). Não se privilegia, em modelos de ensino como esse, uma
formação mais integral e sim um modelo unidimensional, sem promoção da
cidadania por parte dos discentes que, nesta perspectiva limitada, não compre-
endem seus direitos e suas possibilidades (FRIGOTTO, 2009). Nesse cenário,
parece não haver um direcionamento para o desenvolvimento de um educando
mais reflexivo ou crítico e sim para apenas orientá-lo a responder às atividades
ou a acessar os demais recursos ali propostos. E sendo assim, não podemos
considerar como um modelo de ensino que possa funcionar como substitutivo
ao modelo presencial que, embora sejam reconhecidas falhas, caracteriza-se
por interações significativas e construtivas entre as partes.

Tal realidade mostra, ainda, um contraponto à discussão sempre atual e


presente sobre a construção de uma educação que reverencie justamente a
diversidade, o multiculturalismo, que não encare seus educandos como seres
idênticos em suas práticas e trajetórias. Ou, provocando ainda mais, essa visão
de modelo em larga escala se desconecta da proposta de funcionar como uma
alternativa educacional significativa, que conceba a “correspondente transfor-
mação do quadro social”, conforme se espera, funcionando mais como “ins-
trumentos dos estigmas de uma sociedade capitalista” (MÉSZAROS, 2006, p.
25). Talvez aí esteja o cerne de uma das mais importantes discussões no campo
da educação: como conceber uma proposta de democratização de acesso ao
ensino mais aberta e flexível, que não implique na homogeneização do proces-
so e na perda das singularidades que geram significância ao aluno?

97
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

O processo de massificação e padronização apresentado em modelos como


o que se aplicou em tempos de pandemia se desvia das discussões acerca da
multidiversidade cultural, de se atingir a públicos distintos e emerge em um
modelo que pouco coincide com uma sociedade autônoma, fluida e conec-
tada. Logo, romper com essa lógica mercantilista do ensino massivo precisa
representar, de fato, não apenas o maior acesso à educação formal, mas dar
ao aluno algo na qual ele se sinta representado, que ande na contramão de
uma proposta uniformizadora de aprendizagem. O que somente se torna vi-
ável com reformulações globais que envolvam a implementação de políticas
públicas com parâmetros educacionais bem definidos, a reestruturação das
plataformas de ensino e das relações de trabalho dos atores envolvidos, das
condições dos polos presenciais e do financiamento dos cursos… E investindo
ainda na manutenção de avaliações realistas acerca dessa modalidade de ensi-
no e da permanência e evasão dos discentes.

A experiência do estado do Rio de Janeiro

Ainda nas primeiras semanas da pandemia, a Secretaria Estadual de Educa-


ção, sob a gestão de Pedro Fernandes9, consolidou uma parceria com o Google,
em seu ramo para a educação, a fim de oferecer amplo acesso ao ambiente vir-
tual de aprendizagem “Google sala de aula”. Pulando as etapas de planejamento,
consulta à comunidade acadêmica e formação necessária para os profissionais
e alunos, a SEEDUC-RJ levou adiante um processo relâmpago de utilização do
AVA. Mesmo após questionados pelo MP-RJ, a SEEDUC manteve suas ações,
ignorando a expertise acumulada da Fundação Cecierj, a partir da gestão do
Consórcio Cederj, no que diz respeito à utilização das tecnologias da informa-
ção e da comunicação na modalidade educação a distância. Cabe registrar que,

9. Pedro Fernandes é filho e neto de políticos, tem 37 anos de idade e em 2014 foi reeleito para
seu terceiro mandato como deputado estadual do Rio de Janeiro. Teve passagens por diver-
sas secretarias tanto do Governo do Estado quanto da Prefeitura do Rio de Janeiro, assim
como já trocou de partido político 6 vezes. Em 2017 teve uma passagem relâmpago pela
Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia, Inovação e Desenvolvimento Social (Sectids),
órgão que abarcava a Fundação Cecierj, e atualmente é secretário da Educação do Estado do
Rio de Janeiro. Em 2018, foi candidato ao governo do Estado e, no dia seguinte do primeiro
turno, contrariando orientação de seu partido, já declarou apoio a Wilson Witzel que ficara
em primeiro lugar, com ampla margem de vantagem.

98
5 – Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia:
educação a distância, educação on-line ou ensino remoto?

nos primórdios do Consórcio, justamente devido à consideração de exclusão


digital da maior parte da população, foram pensados modelos híbridos entre
o presencial e o online, além de estratégias de suporte de material didático aos
alunos e atendimento por telefone, compensando a falta de acesso à internet.
Essa experiência poderia ter sido adequada aos desenhos de respostas emer-
genciais diante do agravamento da pandemia.

Nesse momento delicado, a gestão foi marcada, também, pela pouca for-
malização das ordens e instruções. O anúncio da plataforma adotada foi feito
durante o fim-de-semana, em postagens nas redes sociais da secretaria, antes
da publicação de qualquer portaria ou documento normativo. Houve outros
anúncios em vídeos transmitidos ao vivo diretamente da página pessoal do
secretário: alguns dos quais eram cobrados como ordens (como a utilização
do AVA para controle de presença dos professores) e outros que nunca foram
concretizados (como a distribuições de chips para os alunos). Por diversas
vezes, o secretário defendeu a opção pelo Google Sala de Aula, alegando que
era a mesma plataforma utilizada em escolas de elite, como se uma ferramenta
fosse garantia de qualidade e desconsiderando as desigualdades de condições
entre estudantes das escolas de elite e a vasta maioria dos discentes da rede
estadual.

A negação da experiência estadual, pública, no tema, acompanhou a ne-


gação da gravidade da doença no país e a exclusão dos alunos não apenas do
acesso à internet, mas à compreensão do fenômeno da cibercultura e à utili-
zação em si dos meios digitais, dada a ausência de um letramento digital su-
ficiente para proporcionar uma experiência de ensino-aprendizagem adequa-
da. Em contraste, no mesmo estado, vimos a prefeitura da capital fortalecer a
MultiRio, Empresa Municipal de MultiMeios do Rio de Janeiro. Através dessa
empresa, foram oferecidos treinamentos, recursos e algum suporte (ainda que
insuficiente) para que os professores tivessem mais condições de se adaptar à
nova realidade.

A ânsia por atender a uma demanda mercadológica emergencial e ime-


diata ignorou a possibilidade de uma solução pública, de qualidade e mais
democrática. Ao longo do primeiro semestre de 2020, em pleno auge da pan-
demia, o Consórcio Cederj implementou pela primeira vez suas provas (que
sempre foram avaliações presenciais) totalmente online, mesmo sem um pro-
cesso prévio de planejamento e capacitação, dada a emergência da situação.
A estruturação imediata de um processo de provas online foi acompanhada

99
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

pela oferta de tutoriais – inclusive para a própria Seeduc – voltada aos pro-
fissionais que estavam sendo inseridos nos meios digitais mais recentemente.
Outra iniciativa foi o projeto Contribuições Para Ensino Remoto10, no qual a
Fundação Cecierj desenvolveu materiais e cursos para que os docentes atra-
vessem o período com o conhecimento suficiente para uma oferta de ensino
remoto ao menos com os principais elementos necessários para manter um
nível de qualidade.

As soluções apressadas e mercadológicas durante o processo de ensino re-


moto acabaram, ainda, por estigmatizar a modalidade educação a distância. É
preciso compreender que a modalidade possui o grande potencial da mobili-
dade, do estímulo adequado à autonomia em uma perspectiva de se atuar em
rede. Um desenho didático adequado favorece a interação e a interatividade,
possibilitando mais autoria com cocriação, hipertextualidade, uma docência
mais artesanal, conectada com a cultura do tempo atual. Para isso, defendemos
o processo de inclusão e letramento digital como direitos básicos, o que ficou
evidenciado durante o período da pandemia. Em um momento em que se dis-
cute o retorno às aulas presenciais ao invés de se aprofundar as discussões sobre
as potencialidades da educação em rede, em uma perspectiva inclusiva. Defen-
demos a valorização das experiências públicas como eixo da garantia à educação
pública de qualidade, em paralelo às políticas de democratização da internet.

Referências
COSTA, Celso. Licenciaturas a distância – a experiência do CEDERJ. Rio de Janeiro: UFF,
2005.

COSTA, Celso. Modelos de Educação Superior a Distância e Implementação da Universidade


Aberta do Brasil. Revista Brasileira de Informática na Educação,15, n. 2. 2007.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FRIGOTTO, Gaudêncio. Mercantilização da educação superior e o fazer docente. In: Revista


Pedagógica, v. 11, n. 22, p. 155-158, 2009.

HODGES, Charles et al. The difference between emergency remote teaching and online learning.
In: Educause Review. 27 mar. 2020. Disponível em: https://er.educause.edu/articles/2020/3/
the-difference-between-emergency-remote-teaching-and-online-learning, 2020. Acesso em:
11 maio 2020.

10. Disponível em: https://www.cecierj.edu.br/a-extensao/contribuicoes-para-ensino-remoto.

100
5 – Políticas educacionais do estado do Rio de Janeiro na pandemia:
educação a distância, educação on-line ou ensino remoto?

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2006.

SANTOS, Edméa. EAD, palavra proibida. Educação online, pouca gente sabe o que é. Ensino
remoto, o que temos para hoje. Mas qual é mesmo a diferença? #livesdejunho... In: Revista
Docência e Cibercultura. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/re-
-doc/announcement/view/1119. Acesso em: 27 jun. 2020.

101
6
Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades
Karina Rocha Rosa de Castro

Resumo

Este artigo tem como objetivo provocar algumas reflexões acerca dos desa-
fios enfrentados na educação brasileira antes da pandemia da COVID-19 e am-
pliados com a imposição/pressão pelo ensino remoto emergencial, procurando
apresentar, como alternativa de enfrentamento a esses desafios, a roda de con-
versa. Entre tantas possibilidades de formação continuada para os professores, a
roda de conversa está sendo aqui enfatizada por uma razão especial: mobilização
da ação coletiva. Diante de tantos desafios que estudantes, professores e profis-
sionais da educação estão vivenciando nesse contexto de pandemia e de ensino
remoto, acredita-se que as rodas de conversa são o espaço ideal para a reflexão
coletiva, o compartilhamento de experiências e angústias, a escuta sensível, o

102
acolhimento e, principalmente, para o empoderamento do grupo. Espera-se que
este trabalho desperte professores e profissionais da educação para a importân-
cia das rodas de conversa como lugar de criação, de resistência e de fortaleci-
mento da ação coletiva.

Introdução

A pandemia da COVID-19 marca o ano de 2020, que entrará para a histó-


ria como o ano em que ocorreu uma das maiores, senão a maior, crise sanitária
da humanidade. Crise esta, que afetou as relações sociais, a saúde, a economia, a
política, o ambiente, a educação, entre outros; e que pela sua extensão e poder de
destruição pode ser comparada ao caos. Em sentido filosófico o caos é o estado
geral desordenado, ou seja, a desordem generalizada, mas é também o estado que
antecede a criação.

No que diz respeito à educação, não é leviano afirmar que a mudança abrupta
do ensino presencial para o ensino remoto ou para a modalidade EaD tem trazido
consequências desastrosas para a educação brasileira, que diga-se de passagem, já
estava submersa numa crise estrutural muito antes da pandemia, se formos bem
honestos, há pelo menos 500 anos.

Políticas públicas autoritárias e ineficazes, diminuição de investimentos na


educação, sucateamento da educação pública, precarização do trabalho e da for-
mação docente, fracasso escolar e baixo nível de aprendizagem dos estudantes são
apenas alguns elementos que demonstram o tamanho dessa crise, que se aprofun-
da, claro, neste momento de tantos novos desafios.

Em meio a esse cenário difícil de pandemia, aceitei o convite para participar,


em junho de 2020, de uma roda de conversa com profissionais da educação pro-
movida pelo núcleo de educação do Conselho Regional de Psicologia do Rio de
Janeiro, com o tema “Formação, prática e adoecimento docente”. Nessa oportu-
nidade tornou-se claro para mim, enquanto participante, o quanto profissionais
da educação, especialmente professores, estão emocionalmente adoecidos, esgo-
tados. E se essa já era uma triste realidade antes da pandemia, o que esperar do
atual contexto?

Os participantes da roda – que aconteceu de forma virtual – compartilharam


suas angústias e temores frente à imposição do ensino remoto em substituição ao

103
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

presencial, uma vez constatada a precariedade que a nossa educação já enfren-


tava e diante de uma sociedade tão desigual como é a nossa.

A necessidade de distanciamento social como forma de prevenção à CO-


VID-19 esvaziou escolas e universidades de um dia para o outro, modificando
subitamente a rotina de milhões de estudantes e milhares de professores. E
como não bastassem os desafios de ordem social, psicológica e econômica que
eles estão enfrentando, ainda precisam lidar com a imposição e/ou pressão
pelo ensino remoto e os desafios que ele traz.

Nesse sentido, estão certos os participantes da roda de conversa ao de-


monstrarem preocupação com essas questões. Mas como os professores po-
dem contribuir para a atenuação dos efeitos tão revertérios do ensino remoto
na vida e formação dos seus alunos, uma vez que eles também estão enfren-
tando desafios de todas as ordens?

Concluiu-se durante aquela roda, que por meio do fortalecimento humano


e profissional do professor, por meio do fortalecimento do grupo, que acon-
tece a partir das interações, do compartilhamento e das reflexões coletivas
justamente em espaços como aquele, em rodas de conversa.

Tais considerações reafirmaram para mim o quanto as rodas de conversa


são um espaço potente de formação continuada e fortalecimento do coletivo,
mais ainda neste momento. Sendo assim, pretendo neste trabalho apresentar
algumas reflexões acerca dos desafios da profissão docente e sobre a relevân-
cia da formação continuada, por meio de rodas de conversa, no enfrentamen-
to desses desafios, temáticas que foram alvos da minha pesquisa para a disser-
tação de Mestrado em Ensino em 2018 e que serão aqui contextualizadas com
o momento atual.

Mas, por que a roda de conversa, entre tantas possibilidades de formação


continuada, está sendo enfatizada aqui? Por que esse modelo está sendo apre-
sentado como uma boa e possível alternativa de resistência, não apenas no
momento atual, como no período pós-pandemia?

A expressão chave dessa resposta é: ação coletiva.

As rodas de conversa são um espaço de formação continuada do professor,


em que, juntamente com seus pares, ele reflete criticamente acerca da educa-
ção, do ensino e de questões cotidianas da sala de aula; em que ele compartilha
suas experiências, angústias e desafios, formando uma rede de aprendizagem

104
6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades

e de apoio, que são fundamentais para o seu desenvolvimento profissional e


para o “empoderamento” do grupo.

Elas podem ser um espaço de resistência às desigualdades sociais e aos ata-


ques antidemocráticos à educação e aos professores, também são e devem ser
um espaço de criação – aquela criação que sucede o caos – mas, acima de tudo,
são um caminho possível e que deve ser trilhado por todos os professores e
profissionais da educação.

Portanto, nos tópicos que se seguem serão aprofundadas as reflexões acer-


ca dos desafios do ensino remoto emergencial para estudantes e professores,
apresentando-se a formação continuada, por meio de rodas de conversa, como
uma possível e boa alternativa no enfrentamento desses desafios.

Algumas considerações acerca dos desafios do ensino remoto


emergencial

Com a necessidade de isolamento social imposta pela pandemia, escolas e


universidades tiveram que suspender suas atividades presenciais e adaptarem-
-se ao ensino remoto ou à distância.

Sendo assim, as instituições particulares, por razões óbvias, foram as pri-


meiras a fazerem adaptações em suas estruturas e ensino. Cursos presenciais
de Faculdades e Universidades privadas migraram para a modalidade EaD e,
na educação básica, as escolas passaram a utilizar plataformas, AVAs (ambien-
tes virtuais de aprendizagem) para ministrarem aulas e atividades síncronas –
on-line, em tempo real – e assíncronas. Já nas redes públicas, a mudança tem
sido lenta, gradual e cautelosa em alguns estados e municípios, e “a toque de
caixa” em outros. Porém, em todas as redes, a adaptação custou e tem custado
às instituições, aos professores e aos estudantes um preço.

Pareceres e Portarias federais e institucionais, que têm sido publicados du-


rante o período da pandemia, bem como a pressão de uma parte da sociedade
impõem às escolas e universidades a remodelação de seus cursos; aos profes-
sores, o replanejamento de sua prática docente; e, aos alunos, a necessidade
urgente de possuírem recursos tecnológicos (internet com alta velocidade,
computador, smartphone...) além, claro, de terem capacidade autodidata.

105
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

O que parece estar sendo desconsiderado pelos órgãos, instituições e go-


vernos que decidem pelo retorno às aulas, remota ou até presencialmente é,
em primeiro lugar, que essa decisão deveria ser tomada de forma coletiva e
democrática, a partir da escuta dos principais envolvidos, isto é, a comunidade
escolar e universitária; e, em segundo lugar, que tal decisão contribui sensi-
velmente para a acentuação das desigualdades econômico-sociais existentes
entre os estudantes, pois quanto maiores e mais qualitativas forem as condi-
ções de acesso a esse ensino, maiores as chances de permanência e êxito desse
estudante, em contrapartida, quanto menores os recursos e as oportunidades
de acesso, menores as suas chances.

Como dito na introdução, a pesquisa realizada em 2018, que resultou na


minha dissertação do curso de Mestrado em Ensino, com o título “A formação
continuada de professores dos cursos de licenciatura: identidade, desafios e
perspectivas” teve como um dos objetivos investigar quais eram os principais
desafios encontrados por professores da educação superior no exercício da
profissão docente. Na ocasião, além da pesquisa bibliográfica tive a oportu-
nidade de realizar uma pesquisa de campo com professoras que atuam nes-
te segmento, em que elas puderam compartilhar quais eram os seus maio-
res desafios, conferindo um significado especial à reflexão sobre a temática.
Considerando bastante atuais e pertinentes, trago neste ponto algumas des-
sas reflexões que dialogam com o contexto atual, procurando demonstrar o
quanto esses desafios se robustecem com a proposição do ensino remoto neste
momento.

Inicio, então, com aquele que talvez seja o maior desafio que estudantes
e professores estão vivenciando: a instabilidade financeira, provocada pelo
desemprego e/ou a perda de renda, problema crescente entre os brasileiros
anteriormente e que foi agravado durante a pandemia.

Dados do Censo de 2019 da Educação Básica (INEP, 2020) mostram que


o número de matrículas nesse segmento no ano passado foi de 47,9 milhões,
cerca de 586 mil matrículas a menos em comparação com o ano de 2018.
Desses 47,9 milhões, 48,1% dos estudantes estão na rede municipal (0,4% a
mais que em 2018), 32%, na rede estadual e apenas 19,1%, na rede privada, ou
seja, a maior parte de nossos estudantes da educação básica está em escolas
públicas. Já na educação superior esse percentual se inverte, com 83,1% do
número de novas matrículas em instituições privadas e 16,9% nas públicas
(INEP, 2019).

106
6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades

Bem, é possível que ao analisar esses dados fria e instantaneamente, rela-


cionemos a diminuição do número de matrículas na educação básica à pro-
gressiva diminuição da taxa de natalidade do Brasil nos últimos anos, o que
obviamente tem clara relação. Todavia, se aprofundarmos nossa investigação
encontraremos dados do PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicí-
lios) de 2016, por exemplo, que revelam que 1,8 milhão de crianças e adoles-
centes trabalhavam naquele ano e que esta situação impacta diretamente na
escolarização, especialmente dos adolescentes entre 14 e 17 anos, pois dos que
trabalhavam nessa faixa etária, apenas 79,5% estudavam, contra 86,1% dos
que não trabalhavam.

Outra questão interessante para reflexão diz respeito ao aumento do núme-


ro de matrículas na rede pública de ensino, apesar da diminuição do número
total de matrículas na educação básica, o que nos conduz a deduzir a relação
entre este fato e a crise econômica vivenciada no país nos últimos anos, que
levou várias famílias a tirarem seus filhos da escola privada e matriculá-los na
escola pública.

A pesquisa realizada em 2018 revelou e o Censo da Educação Superior


(INEP, 2019) reafirmou que o perfil de estudantes da educação superior é pre-
dominantemente de trabalhadores, com prevalência de matrículas na moda-
lidade presencial, no turno noturno. No curso de Pedagogia, por exemplo,
a renda familiar mensal dos estudantes era de 1,5 a 3 salários mínimos em
média.

Na Síntese de Indicadores Sociais (IBGE, 2019) encontramos dados que


evidenciam a crescente pauperização da população brasileira nos últimos
anos. Em 2017, 54,8 milhões de brasileiros – 26,5% da população – vivia com
menos de 406 reais por mês, ou seja, em situação de pobreza, segundo crité-
rios do Banco Mundial. Indicadores como PIB (produto interno bruto), PIB
per capita e consumo das famílias sofreram significativas quedas em 2015 e
2016 em relação aos anos anteriores, com pequena recuperação (próxima de
1%) em 2017 e 2018. Outros dados revelam o aumento da taxa de desocu-
pação, do trabalho informal e da desigualdade entre a parcela da população
com maior renda e com a menor renda, chegando ao ápice em 2018, quando a
renda da população mais rica foi 13 vezes maior que a da parcela mais pobre.

Esses dados mostram o perfil socioeconômico dos estudantes que estão em


nossas escolas e universidades, e que está sendo claramente afetado durante a

107
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

pandemia. Muitos profissionais da educação pública e privada estão sofrendo


com o parcelamento e o atraso de seus salários, com perdas salariais provenien-
tes de cortes de horas extras e benefícios, e especialmente os da rede privada,
com o desemprego. Estudantes, por sua vez, também estão enfrentando perdas
e escassez, muitos passaram a trabalhar de maneira informal e em empreen-
dimentos próprios para ajudarem a família, sem falar nas tarefas de casa, que
passaram a executar com mais frequência também. Cabe ressaltar que os profis-
sionais da educação, entre eles, os professores, também têm buscado alternativas
para compensarem a perda salarial empreendendo, fazendo artesanato, bolos,
doces, vendendo roupas ou cosméticos para aumentarem sua renda.

No momento em que a lei da sobrevivência se impõe, em que garantir “o pão


de cada dia” é tarefa prioritária, devemos refletir: como esses professores e alu-
nos executarão com qualidade as atividades referentes ao ensino remoto? Como
um professor, uma professora que, na melhor das hipóteses tem um computa-
dor em casa, consegue gravar suas aulas, dar aulas on-line e ao mesmo tempo
compartilhar esse computador com os filhos que também estão estudando de
maneira remota e com o cônjuge, que está trabalhando remotamente?

Embora esses trabalhos que visam aumentar a sua renda não sejam em si
mesmos indignos para o professor, eles se tornam incabíveis quando motiva-
dos pelo desespero diante da baixa remuneração e desvalorização da profissão
docente. Ademais, encarar a profissão docente como uma das suas possíveis
fontes de renda, como um trabalho secundarizado, interfere diretamente na
construção de sua identidade profissional, além de contribuir para a ausên-
cia de sentimento de pertencimento e de vínculo com sua classe profissional,
fragmentando-a ainda mais.

Por outro lado, estudantes enfrentam esses mesmos desafios de ordem so-
cial e econômica, somados a falta de internet, ou sua baixa qualidade, falta
de tempo e espaço adequado para estudarem e, muitas vezes, limitações re-
lacionadas à má formação que receberam. Contudo, deve-se destacar que a
instabilidade financeira e a escassez de recursos não afetam a todos os profis-
sionais da educação e estudantes da mesma forma, há clara diferenciação en-
tre estudantes pobres (em alguns casos em situação de vulnerabilidade social)
e os oriundos da classe média e alta. Aqueles que não necessitam conciliar
vários trabalhos ou o trabalho com a vida escolar/acadêmica, que moram em
locais mais silenciosos (como os condomínios fechados) e em casas com es-
paço reservado para estudarem, que têm boa alimentação e segurança afetiva,

108
6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades

que dispõem de recursos tecnológicos e didáticos, que têm pais ou familiares


com nível de escolaridade maior, estão muito mais preparados para estudarem
remotamente e certamente serão bem sucedidos.

Tamanha desigualdade de condições de acesso aos recursos sociais e edu-


cacionais, aprofundada com o modelo remoto de ensino, tem como consequ-
ência o êxito e a permanência dos alunos da classe média e alta, e o fracasso
escolar dos pobres.

Ainda de acordo com o Censo da Educação Básica (INEP, 2020), a taxa de


distorção idade/ano de escolaridade alcança 23,4% das matrículas dos anos
finais do ensino fundamental e 26,2% das matrículas do ensino médio, o que
significa que aproximadamente ¼ dos alunos desses anos de escolaridade e
desse segmento têm idade superior a adequada para o seu ano de escolari-
dade, revelando, portanto, um alto índice de repetência, sobretudo na escola
pública – 19,7%.

Na educação superior a realidade, infelizmente, não é mais animadora. Vá-


rias pesquisas têm demonstrado a defasagem de aprendizagem com as quais os
alunos chegam à educação superior. Conforme Pimenta e Anastasiou (2014,
p. 193), esses alunos são sujeitos históricos e contextualizados, com caracterís-
ticas e especificidades próprias e, na maioria das vezes, estão muito distantes
dos alunos idealizados que gostaríamos de encontrar na sala de aula.

E se a baixa qualidade da educação básica e o despreparo dos alunos que


ingressam na educação superior já eram muito desafiadores para os professo-
res e profissionais de apoio pedagógico no contexto do ensino presencial, em
que professores e alunos compartilhavam conhecimentos, exploravam, expe-
rimentavam, praticavam e interagiam com “olho no olho”, com afeto – funda-
mental para a construção da aprendizagem significativa –; quanto mais o será
com a prática do ensino remoto.

Outro desafio que merece destaque neste trabalho é a dimensão humana


do processo ensino-aprendizagem e como ela está fragilizada no contexto
pandêmico e de ensino remoto que estamos vivenciando. O próprio isola-
mento social, por si só, já tem um impacto muito negativo na saúde mental
e, consequentemente, na construção da aprendizagem. Professores e estu-
dantes são, antes de tudo, pessoas. Como seres humanos, os sentimentos que
os envolve neste momento, em maior ou menor medida, são os mais varia-
dos: medo, insegurança, ansiedade, depressão, solidão, luto, perda e, talvez

109
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

o mais arrebatador, a ameaça à vida e a sua espécie. Diante de tal cenário,


é fundamental refletirmos sobre a ineficácia do ensino remoto na garantia
de uma formação de qualidade, pelas razões que já foram expostas anterior-
mente, e é bom reforçar, porque a boa saúde mental é condição sine qua non
para a aprendizagem. Se essa premissa não for devidamente considerada,
será inútil qualquer esforço técnico ou operacional para garantir a formação
de nossos estudantes. Além disso, ainda que garantíssemos o acesso de todos
os estudantes ao ensino remoto, seria impossível garantir a formação inte-
gral e a qualidade social da educação, uma vez que o ser humano só se torna
humano a partir de suas relações sociais.

Nesse sentido, retorno ao depoimento dos participantes da roda de con-


versa citada anteriormente, para relembrar o quanto os profissionais da edu-
cação, especialmente os professores, estão emocionalmente doentes, estafa-
dos. Isso devido ao que já foi mencionado, à sobrecarga de trabalho e também
aos inúmeros desafios pessoais e profissionais, agora potencializados com a
prática do ensino remoto.

Corroborando com essa afirmação, em “Educação, docência e a CO-


VID-19” (GRANDISOLI; JACOBI; MARCHINI, 2020, p. 2), pesquisadores
do USP Cidades Globais, apresentam resultados de uma pesquisa realizada
com professores da rede estadual de São Paulo, em que 53% dos que responde-
ram se consideram muito ou totalmente vulnerável a contrair o vírus causador
da COVID-19. Sentimentos como “medo, tristeza, insegurança, ansiedade,
angústia e incerteza” foram os principais sentimentos a serem associados à
pandemia. Mas apesar dos desafios trazidos pessoal e profissionalmente pela
pandemia, observados pelos participantes, 63% deles afirma manter boa saú-
de mental e 72% afirma não sentir necessidade de apoio especializado.

Cabe ressaltar que esses professores, bem como os estudantes da rede es-
tadual, estão sendo assistidos pelo Centro de Mídias da Educação, criado pelo
governo de São Paulo para formar os profissionais da rede e garantir a oferta
de atividades aos alunos, realidade bem diferente de outros estados como o
Rio de Janeiro, por exemplo, onde os professores estão desde o início da pan-
demia trabalhando remotamente, com aulas on-line e com nenhuma forma-
ção, suporte e recurso para tal.

Aliás, esse é outro desafio que os professores enfrentavam antes mesmo da


pandemia, ou seja, limitações e falta de capacitação para o uso das tecnologias

110
6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades

digitais. No questionário respondido pelas professoras participantes da pesquisa


do mestrado, essa foi uma questão quase unânime entre elas: a necessidade que
sentiam de serem melhor capacitadas para o uso das Tecnologias da Informação
e Comunicação (TICs) associadas ao ensino. Justamente a habilidade em que
os professores se sentem mais limitados tem sido a mais requisitada e exigida
nesse momento de ensino remoto. O conhecimento e o domínio das ferramen-
tas disponíveis nas plataformas virtuais de aprendizagem, bem como as TICs
tornaram-se cruciais para o bom desenvolvimento técnico e didático das aulas
remotas.

Não será possível aprofundarmos essa temática, que é bastante ampla e


complexa, neste trabalho, mas é oportuno mencionar o quanto a formação
inicial e continuada docente tem sido degradada, aligeirada, precarizada. Só
para termos uma ideia, o último Censo da Educação Superior nos informa
que “pela primeira vez na série histórica, o número de alunos matriculados
em licenciatura nos cursos à distância (50,2%) superou o número de alunos
matriculados nos cursos presenciais (49,8%)” (INEP, 2019).

A procura dos cursos de licenciatura por estudantes oriundos da classe tra-


balhadora e o menor número de matrículas nas licenciaturas em relação aos
cursos de bacharelado estão diretamente relacionadas à desvalorização social
da profissão docente, que por sua vez é sustentada por políticas públicas de
formação inicial e continuada totalmente ineficazes. Tais políticas, que incen-
tivam o aligeiramento e a formação de professores em cursos à distância, se
alinham a um projeto perverso de desmonte da educação.

Exemplificando, trago a citação de um trecho do Parecer CNE/CP nº


11/2020 com orientações para a realização de atividades pedagógicas presen-
ciais e não presenciais durante a pandemia:
No caso dos cursos de licenciatura ou formação de
professores, as práticas didáticas vão ao encontro de
um amplo processo de oferta de aprendizado não
presencial à educação básica, principalmente aos
anos finais do ensino fundamental e médio. Produz,
assim, sentido que estágios vinculados às práticas na
escola, em sala de aula, possam ser realizados de for-
ma igualmente virtual ou não presencial, seja a dis-
tância, seja por aulas gravadas etc.

111
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Enquanto os cursos da área de saúde são impedidos de ofertar estágios


de forma não presencial, reconhecendo-se a sua inapropriação, nosso Conse-
lho Nacional de Educação incentiva que os estágios dos cursos de licenciatura
sejam realizados de forma remota, à distância. Se o tempo de isolamento so-
cial se estender e se as instituições de educação superior seguirem as orienta-
ções do CNE, corremos o risco de formarmos licenciados que nunca pisaram
numa sala de aula.

Com essa breve argumentação acerca dos desafios trazidos e aprofundados


pelo ensino remoto durante a pandemia, espera-se provocar não apenas uma
reflexão, mas um desejo de ação e intervenção nessa realidade.

Como e por que praticar a formação continuada durante e após a


pandemia?

A partir do reconhecimento de que a formação de professores no Brasil


tem sofrido, cada vez mais, ataques por meio de políticas educacionais anti-
democráticas e exclusivamente comprometidas com os interesses capitalistas,
devemos nos perguntar: há uma alternativa?

Este trabalho pretende mostrar que sim e que ela não virá de maneira verti-
cal, ou seja, da ação governamental e institucional para os professores e sim de
maneira horizontal, nas ações dos próprios professores. Essa foi uma das con-
clusões a que chegamos durante a roda de conversa promovida pelo CRP-RJ:
que cabe a nós professores, professoras, profissionais da educação, o fortaleci-
mento e o cuidado mútuos. A roda de conversa é um espaço bastante oportuno
para esse cuidado, para a escuta sensível e para a prevenção ao adoecimento.

Uma das organizadoras daquela roda e também organizadora deste livro,


Fernanda Insfran, apresenta em seu artigo “Grupos de reflexão na escola: con-
tribuições da abordagem centrada na pessoa para a psicologia escolar” uma
boa justificativa para a realização de rodas de conversa como aquela. Diz ela:
[...] acredita-se que oferecer um espaço de escuta para
todos os envolvidos, pode ser uma estratégia apro-
priada para construir com eles soluções aos conflitos
cotidianos, respeitando a experiência de cada um e
desconstruindo juntos o arraigado “discurso de culpa-
bilização generalizada” (INSFRAN, 2011, p. 95).

112
6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades

De fato, o compartilhamento, a troca de experiências e a construção de


uma consciência coletiva são fundamentais para mudar o que está posto, ins-
tituído. As discussões realizadas durante aquela roda foram muito úteis para a
confirmação do quanto este formato de “rodas de conversa” – outro objeto da
minha pesquisa sobre a formação continuada de professores em 2018 – conti-
nua latente e potente, especialmente nesse contexto de pandemia. Foi possível
perceber o quanto ele pode contribuir para o enfrentamento dos múltiplos
desafios com os quais temos nos deparado na prática do ensino remoto e para
as transformações que nós desejamos ver na educação.

A formação continuada é aquela desenvolvida permanentemente, durante


toda a carreira profissional docente. Segundo Garcia e Alves (2012, p. 489-490),
a formação de professores se oficializa num curso específico para este fim – for-
mação inicial formal –, mas não se restringe a ele, começando antes mesmo de
sua entrada na escola, em múltiplos contextos, espaços e num processo contínuo,
interminável. Esse processo dialógico de formar e se formar nunca acabará na vida
de um professor, enquanto estiver exercendo sua profissão, ele estará acontecendo.

Existem várias possibilidades e ações de formação continuada, entre elas,


a frequência em cursos de aperfeiçoamento, especialização, mestrado, douto-
rado, a participação em palestras, minicursos, congressos, mesas-redondas e
grupos de estudo. Todavia, a que está sendo enfatizada aqui é a roda de con-
versa. Mas, por quê? Por que esse modelo está sendo apresentado como uma
boa e possível alternativa de resistência, não apenas no momento atual, como
no período pós-pandemia?

A expressão chave dessa resposta é: ação coletiva. E, para justificá-la, se-


rão apresentados alguns conceitos advindos tanto da fundamentação teórica
como da experiência.

De acordo com Pimenta (1999, p. 30-31), é importante preparar professo-


res com uma atitude reflexiva acerca do seu ensino e das condições sociais que
o influenciam, para tanto, ela defende uma formação contínua que acontece
no local de trabalho, em redes de autoformação e em parcerias com institui-
ções de formação.

Em consonância com Pimenta, Nóvoa (1992) afirma que o trabalho de


reflexibilidade crítica sobre as práticas, incentivado e oportunizado na for-
mação continuada em serviço, é capaz de conduzir a mudanças e inovação
pedagógica, e a construção e reconstrução permanente da identidade docente.

113
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Esses dois autores defendem um modelo de formação continuada que


acontece no próprio local de trabalho do professor, por meio da reflexão indi-
vidual e coletiva. É exatamente isso que as rodas de conversa oportunizam, o
espaço para o compartilhamento e a discussão dos problemas reais do cotidia-
no da vida e profissão docente. Nessa perspectiva, lembro-me de um ditado
chinês que diz:
Se dois homens vêm andando por uma estrada, cada
um carregando um pão e, ao se encontrarem, eles
trocam os pães, cada homem vai embora com um;
porém se dois homens vêm andando por uma estra-
da, cada um carregando uma ideia e, ao se encontra-
rem, eles trocam as ideias, cada homem vai embora
com duas.

Ao longo de nossa formação e do exercício da profissão, nós professores e


profissionais da educação, temos construído mais muros do que pontes. Nós
nos fechamos dentro de nossas salas de aula e outros espaços escolares e uni-
versitários, que reconhecemos como “o nosso lugar”, o “meu espaço”, o lugar
em que dominamos.

Conforme Bullough (1987 apud PIMENTA; ANASTASIOU, 2014, p. 87)


“a aula é o santuário dos professores”, é o local sagrado dentro das instituições
educativas, que é preservado e protegido pelo isolamento do professor. Em
contrapartida, refletir coletivamente sobre o que se faz e o que se deseja é “pôr-
-se na roda, é deixar-se conhecer, é expor-se”, algo muitas vezes difícil para o
professor, porém fundamental na construção de projetos coletivos. Além dis-
so, a interação, o diálogo e a convivência tiram o professor do isolacionismo
em que muitas vezes se coloca e é colocado.

É interessante refletirmos sobre o isolacionismo como uma ação voluntá-


ria do professor num momento em que estamos, compulsoriamente, em iso-
lamento social. É possível que mesmo em contato presencial, todos os dias,
com seus pares em seu local de trabalho, o professor esteja isolado, afastado,
separado. Essa era uma realidade muito comum antes da pandemia. Estáva-
mos tão atarefados, tão ocupados, tão voltados para nós mesmos e nossos
próprios interesses, que sequer enxergávamos ou escutávamos o outro. No en-
tanto devemos ponderar a quem interessa esse comportamento egoísta e, se
conhecermos um pouco dos princípios do sistema capitalista, concluiremos

114
6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades

que ele retroalimenta esse comportamento, beneficiando todas as instituições


que estão sob sua égide, incluindo as políticas.

A boa notícia é que o isolamento social, curiosamente, tem aproximado


as pessoas, estamos mais próximos, nos vemos e nos ouvimos mais agora do
que antes.

Nesse sentido, as rodas de conversa com professores durante a pandemia –


de maneira virtual – os aproxima, os une, os acolhe em suas angústias, anseios
e desafios e, principalmente, empodera o grupo, fortalece a coletividade.

Mas não apenas neste momento, é necessário experimentar e reconhecer


que as rodas de conversa são espaços muito potentes e que devem fazer parte
do cotidiano e da formação do professor também após o retorno à “norma-
lidade”. Como fizeram as professoras participantes da pesquisa realizada em
2018 para a elaboração da minha dissertação de mestrado, elas participa-
ram de rodas de conversa em que compartilharam experiências e discuti-
ram também acerca da relevância desse modelo de formação. A seguir serão
transcritos pequenos trechos que testemunham como foi essa experiência
para elas.
Pra ser bem sincera, depois que a gente começa a tra-
balhar e começa a compartilhar com os colegas e a
se encontrar, pra mim fica como sendo a formação
mais importante. Hoje a formação mais importante
pra mim é esse tipo de formação, ele é orgânico, ele
te conecta com pessoas que compartilham da missão
que a gente escolhe, a missão profissional, e dá exata-
mente isso que você falou um tipo de empoderamen-
to que é político, que é de grupo, que é de ter a sua
opinião ouvida dentro de um contexto, não só ins-
titucional não porque vai além (Professora Susana).
Eu acho que precisa ser uma tendência (a formação
continuada em serviço), porque toda a proposta do
sistema educacional como um todo, seja em que ní-
vel for de formação, é muito solitário, é muito indi-
vidual. Você vai para o seu caminho e às vezes você
não compartilha das suas angústias, dos seus sabe-
res, desse compartilhamento como um todo nem
com quem está ao seu lado. Então eu acho que isso é
muito humano e nós precisamos desse humano [...]
(Professora Rosa).

115
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

É possível concluir que as percepções que as professoras tiveram a partir da


experiência com as rodas de conversa confirmam o que este trabalho procu-
rou defender, ou seja, a relevância desse tipo de formação continuada no en-
frentamento dos desafios da prática docente, ainda mais acentuados durante a
pandemia e o ensino remoto.

Todavia, cabe ressaltar que os efeitos da roda de conversa na formação e


fortalecimento do professor e do grupo só poderão ser sentidos se os professo-
res desejarem e buscarem participar desse momento, compreendendo-o como
uma alternativa, um caminho de resistência, sem esperar que esta seja uma
iniciativa dos sistemas de educação ou das instituições, que trabalham a favor
do capitalismo e de seus princípios.

Considerações finais
“No exercício crítico de minha resistência ao poder manhoso da ideolo-
gia, vou gerando certas qualidades que vão virando sabedoria indispensável a
minha prática docente”, afirmou Paulo Freire (1997, p. 151), e eu acrescento,
indispensável a minha sobrevivência.

Diante do contexto caótico em que estamos é preciso resistir para não su-
cumbir. Como se não bastassem todas as angústias e males sociais e econômi-
cos produzidos pela pandemia da COVID-19, os profissionais da educação e os
estudantes ainda precisam lidar com os desafios impostos pelo ensino remoto.

Devido às limitações deste trabalho, foram apresentados brevemente ape-


nas alguns desses desafios, procurando demonstrar que muitos deles já exis-
tiam antes da pandemia e foram aprofundados no atual contexto.

A preocupação dos professores e demais profissionais da educação com a


qualidade dessa educação era e continua sendo pauta para reflexões e ações,
mais ainda no momento em que ela é desconsiderada nas políticas governa-
mentais e pressões sociais em prol da “continuidade do ensino durante a pan-
demia”, afinal de contas esse não pode ser um “ano perdido”. A pergunta que
não quer calar é: o ensino continua, e a aprendizagem?

A qualidade social da educação se manifesta na integralidade da formação,


no compromisso com a formação de sujeitos e profissionais críticos e com-
prometidos com a transformação, com a reversão das desigualdades sociais e
com a emancipação.

116
6 – Formação continuada de professores em tempos de pandemia:
empoderamento, resistência e possibilidades

Nesse sentido, observou-se que a mudança do ensino presencial para o


remoto contribui para o agravamento da crise educacional brasileira e para o
aumento das desigualdades educacionais e sociais entre estudantes.

Mas, o objetivo deste trabalho não foi o de apresentar apenas os desafios e


sim uma possibilidade de enfrentá-los. Como afirmado anteriormente, o caos
antecede o momento de criação e esta é uma boa razão para acreditarmos que
do caos instalado pode nascer uma bela obra.

A roda de conversa pode ser a “pausa para a criação” que todos nós pro-
fissionais da educação necessitamos fazer. Pode ser a utopia imperfeita, mas
ainda assim bonita. Pode ser a resposta incompleta, mas ainda assim a mais
feliz.

Por esta razão, quero convidá-los a corajosamente entrar nessa roda.

Referências
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Censo
da Educação Superior 2018: notas estatísticas. Brasília, 2019.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Censo
da Educação Básica 2019: Resumo Técnico. Brasília, 2020.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1997.
GARCIA, Regina Leite; ALVES, Nilda. Sobre a formação de professores e professoras: questões
curriculares. In: LIBÂNEO, José Carlos; ALVES, Nilda. (Orgs.). Temas de pedagogia: diálo-
gos entre didática e currículo. São Paulo: Cortez, 2012.
GRANDISOLI, Edson; JACOBI, Pedro Roberto; MARCHINI, Silvio. Educação, docência e a
COVID-19. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, USP
Cidades Globais. 2020.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais: uma análise
das condições de vida da população brasileira: 2019 / IBGE, Coordenação de População e
Indicadores Sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.
INSFRAN, Fernanda Fochi Nogueira. Grupos de reflexão na escola: contribuições da abordagem
centrada na pessoa para a psicologia escolar. Revista do Nufen. Ano 03, v. 01, jan/jul. 2011.
PIMENTA, Selma Garrido. Formação de professores: identidade e saberes da docência. In: PI-
MENTA, Selma Garrido. (Org). Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cor-
tez, 1999. p. 15-34.
PIMENTA, Selma Garrido; ANASTASIOU, Léa das Graças Camargos. Docência no ensino su-
perior. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2014.

NÓVOA, Antônio (Coord.). Os professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992.

117
7
Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação
Tiago Afonso Sentineli
Fernanda Insfran

Resumo

O presente capítulo tem como objetivo trazer uma reflexão sobre a tradicional
relação entre famílias e escolas e sobre o contato entre professores/as e famílias,
que antes da pandemia ocorria, na maioria das vezes, através do intermédio das
gestões escolares. Este contato, termo que nos é fundamental no sentido de definir
o que está acontecendo neste tempo presente, adquiriu outras nuances e significa-
dos com a pandemia. Para isso, partimos da escuta de uma aluna, em sofrimento
com a condição remota imposta às suas experiências escolares, para trazer falas de
professores/as e famílias sobre as relações entre professores/as, alunos/as, famílias e
escolas. Com a ajuda de autoras/es principalmente da psicologia escolar crítica bus-
camos compreender essas falas em meio às tensões que marcam estas relações em
constante conflito e culpabilização mútua. Por fim, entendemos que o momento

118
que estamos atravessando contribuiu, em alguns contextos, para estabelecer uma
relação/contato mais próximo entre professores/as, alunos/as e famílias. Ainda que
esta relação tenha surgido em função das dificuldades/atropelos do ensino remoto,
se apresenta como esperança de melhoria no diálogo entre professores/as e famí-
lias, fundamental para a superação de estigmas, preconceitos, falta de empatia e
para o combate ao inimigo comum, o sistema e suas amarras hegemônicas.

Introdução

Desde que começamos a gestar esse livro – planejar os temas que gostaríamos
de abordar, convidar os/as autores/as – sentíamos a necessidade de trocar com
estudantes e suas famílias, afinal as dores do ensino remoto estavam refletindo em
todas as pessoas envolvidas nesse “pandemônio”. Passados alguns meses desde o
início deste projeto, já quase estourando o limite que nos impusemos para finali-
zá-lo, eis que fomos capturados pela angústia de uma adolescente, aluna de uma
escola particular do interior do Rio de Janeiro, que após cinco meses de afasta-
mento social e aulas remotas não estava conseguindo participar dessas atividades.

Assim, escrever sobre a relação família-escola foi a forma encontrada para


aplacar a angústia que a falta de convívio, de um maior acolhimento aos estudan-
tes e a frustração com esse modelo emergencial gambiarra têm nos causado.

E dessa forma surgiu esse capítulo, a partir de um desabafo espontâneo e ines-


perado feito a Tiago por sua aluna Lívia1, que nos estremeceu, nos sensibilizou e
nos motivou a escutá-la de forma mais atenta. Também achamos necessário e im-
portante ouvir sua família e outras famílias de mais alguns/as alunos/as da mesma
escola para saber delas como estão vivenciando, neste momento, o ensino remoto
e a relação com escola e professores/as.

Além da conversa com Lívia, que aconteceu entre ela e Tiago por videoconfe-
rência, encaminhamos algumas perguntas para a família desta aluna, através do
WhatsApp® da mesma. As outras famílias foram contactadas através de um gru-
po de WhatsApp®. A mãe de Lívia e outras seis mães deste grupo responderam

1. Nome fictício da aluna de Tiago, que é coautor deste capítulo e coorganizador deste livro. Pre-
ferimos não usar o nome civil da adolescente, apesar de autorizado por ela e sua família, para
preservar seu anonimato.

119
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

às perguntas enviadas por Tiago. Nenhum pai se manifestou. Todas estas


falas foram registradas entre o final de agosto e o início de setembro de 2020.

Também apresentaremos dados da pesquisa on line “Professores na pan-


demia” realizada pelo Núcleo de Estudos Interseccionais em Psicologia e Edu-
cação (NEIPE/UFF) entre os meses de abril e maio de 2020, já durante a pan-
demia, com profissionais de educação de todo o país. A pesquisa ouviu 1906
docentes de todos os níveis de ensino, de instituições públicas e privadas. Para
ajudar nas reflexões sobre a relação família-escola na pandemia, decidimos
trabalhar com as respostas dadas pelos/as profissionais da educação básica
(um total de 1407 participantes) no que tange à relação entre eles, seus alunos/
as e as famílias destes/as.

Portanto, este capítulo pretende apresentar a percepção anterior à pande-


mia e a atual de professores/as e mães sobre as relações com/ na escola, bus-
cando auxílio em pesquisas anteriores - que apontam para a fragilidade das
relações entre professores/as, alunos/as, famílias e escolas - e reflexões a partir
das falas das participantes.

Queremos destacar que as reações e experiências que tivemos diante das


falas dos/as docentes, da aluna Lívia, de sua mãe e das outras mães, que com-
partilharam suas opiniões conosco, aconteceram em nós, nos capturaram
e nos convidaram para um esforço humano de nos abrir para dar espaço e
tempo para pensar sobre o lugar do outro. Essas experiências nos sensibiliza-
ram e foram o fio condutor que nos animou a escrever e a fazer este exercício
de imersão nessas realidades, de pensar sobre elas. A experiência foi o nosso
campo fértil e motivador para produção texto, ela foi o norte que nos orientou
nessa escrita. E, de acordo com Jorge Larrosa:
A experiência, a possibilidade de que algo nos acon-
teça ou nos toque, requer um gesto de interrupção,
um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar,
parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, sus-
pender a opinião, suspender o juízo, suspender a
vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar
a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos,
falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão,
escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar

120
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação

muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LAR-


ROSA, 2015, p. 25).

O contato entre professores/as e famílias atravessado por estigmas


e culpabilizações

A relação família-escola é por excelência uma relação delicada, visto que é


muito marcada por conflitos, culpabilizações e estigmas. Apesar de haver, há
algumas décadas, a preocupação com o estabelecimento de um diálogo efetivo
entre escolas e famílias (FARIA FILHO, 2000), este intento tem fracassado mi-
seravelmente em função de diversos fatores, dentre os quais elencamos aqui três:

– estigmas e preconceitos arraigados social e culturalmente, que credi-


tam aos alunos e famílias populares toda a sorte de fracassos e dificul-
dades escolares (PATTO, 2005; THIN, 2006);
– uma formação de professores reducionista e tecnicista que contribui
para a alienação do trabalho pedagógico (ASBAHR, 2011), para a re-
signação/ resiliência frente às pressões e opressões do sistema e forta-
lece a falaciosa meritocracia (INSFRAN, 2017);
– a quase inexistência de espaços/ tempos para debates e construção
dialógica e democrática das políticas educacionais afinadas com as
demandas da comunidade escolar (SOUZA, 2011; INSFRAN; MU-
NIZ; ARAUJO, 2019), fruto da precarização das condições de traba-
lho e vida dos docentes, cada dia mais intensificada e que culmina no
adoecimento e medicalização docente (LADEIRA, 2020).

Sobre as representações preconceituosas que professores/as e escolas (prin-


cipalmente as públicas) têm de seus alunos/as e famílias (sobretudo pretas,
pobres e vulnerabilizadas), forjado num modelo elitizado e utópico de família,
trazemos a fala ácida e contundente de Patto (2005):
Um aluno ideal povoa o imaginário de boa parte dos
educadores, inclusive dos que planejam reformas e
projetos nos órgãos administrativos centrais: acima de
tudo, há de ser obediente. Mas não só. Há de poder
comprar tudo o que a escola pedir, pertencer a uma

121
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

família nuclear e legalmente constituída e contar com


pais preparados para exercer a função de “corpo do-
cente oculto”. Terá de ser, de preferência, branco, mas,
se não o for, que pelo menos seja um “preto de alma
branca”. Que seja, na pior das hipóteses, de classe mé-
dia baixa, mas, se não o for, que pelo menos se oriente
por valores, usos e costumes dos segmentos sociais
“superiores”. Caso contrário, lá estará, sempre a postos
no coração da escola - como instituição que é de uma
sociedade de classes -, o preconceito contra pobres e
negros, que secularmente os submete às dores da hu-
milhação cotidiana em todos os espaços sociais. Sem
que isso mude, qualquer reforma ou projeto pedagó-
gico pontual será plantado em terra estéril (PATTO,
2005, p. 42-43).

A pesquisa de Asbahr e Lopes (2006), realizada em uma escola municipal


em 2001, ou seja, a quase 20 anos, mostrou que professoras e alunos/as compre-
endiam o fracasso/ mau desempenho escolar como sendo de responsabilidade
dos/as próprios/as alunos/as e/ ou de suas famílias. As professoras creditavam
a fatores individuais (biológicos, emocionais) ou familiares e culturais dos/as
alunos/as as dificuldades que estes apresentavam. E os/as estudantes, por sua
vez, reproduziam este discurso que ouviam na escola e também em casa.

Nas pesquisas de Patto (2005; 2015) realizadas ao longo de quatro décadas,


estas representações sempre estiveram presentes. E seguem “emperrando” a
relação entre alunos/as, professores/as, escolas e famílias. Para Patto (2005,
p.20), a “profunda inimizade entre professores e alunos, tidos como responsá-
veis pelas permanentes dificuldades enfrentadas pelos que ensinam” é respon-
sabilidade também da Psicologia hegemônica, que naturalizou com seus testes
psicométricos e teorias racistas/ diferenciais preconceitos de classe e raça con-
tra os mais pobres e não brancos.

Não intencionamos esgotar essa discussão aqui, porém nos interessa enfa-
tizar que as tantas adversidades e (cada vez mais) precariedades do cotidiano
de trabalho e vida dos/as docentes colaboram ainda mais para esse distan-
ciamento com relação às/aos estudantes e suas famílias. São professores/as
desmotivados/as, frustrados/as, desvalorizados/as social e financeiramente,
sobrecarregados/as de tarefas e também de percepções negativas arraigadas
sobre esse outro tão distinto de si e de seu sistema de referências (INSFRAN et

122
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação

al., 2020). São professores/as que não conseguem estender um olhar empático
para enxergar injustiças, desigualdades e a falácia da meritocracia, pois não
lhes é dado o direito a uma formação inicial (e muito menos continuada) crí-
tica. E estão cada dia mais soterrados/as com burocracias, ementas, apostilas e
diversas restrições à autonomia docente e à produção de conhecimento.

Portanto, retornando à palavra “contato”, utilizada no título deste tópico,


explicitamos que a escolha desta - ao invés da habitual expressão “relação fa-
mília-escola” - se deve ao fato de que muitas das falas dos/das docentes ouvi-
dos/as pela pesquisa “Professores na pandemia” enfatizam que a comunicação
com as famílias se dá em raras ocasiões ou que nenhum vínculo com elas é
criado, quando muito se estabelece apenas um contato visual. Como veremos
no próximo tópico, essas falas corroboram as pesquisas anteriores brevemente
apresentadas aqui e as reflexões que as/os autoras/es fazem sobre essa relação,
sempre tão marcada por um “discurso de culpabilização generalizada” (PRA-
TA, 2005, p. 113).

A percepção de professores/as sobre o contato das famílias com a


escola antes e durante a pandemia

Neste tópico apresentaremos os resultados, pertinentes ao recorte escolhi-


do para este capítulo, da pesquisa online “Professores na pandemia” que foi
realizada por nosso grupo de pesquisa - Núcleo de Estudos Interseccionais em
Psicologia e Educação (NEIPE/UFF) - entre abril e maio de 2020.

O perfil das/dos 1407 docentes da educação básica que participaram da


pesquisa é o seguinte:

– 79,3% são do gênero feminino;


– 62,8% se auto declararam brancas;
– 44% tem renda familiar entre 3 e 6 salários mínimos;
– 27,7% têm ensino superior completo; 45,1% têm pós graduação lato
sensu; 17,8% concluíram o mestrado;
– 5,8% atuam a menos de 3 anos como professores/as; 25,8% têm entre 3
e 10 anos de atuação; 32,5% têm entre 11 e 20 anos de carreira; 24,7%
têm entre 21 e 30 anos; 11,2% atuam a mais de 30 anos como docentes;

123
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

– 66,8% atuam em escolas públicas; 22,4% em instituições privadas;


10% em ambas; 0,8% em outras instituições (Terceiro setor/ ONG/
OS etc.);
– 1,8% não estava dando aula para nenhum aluno no momento da pes-
quisa; 36,9% lecionavam para até 100 alunos/as naquele momento;
19,3% tinham entre 101 e 200 alunos/as; 27% tinham entre 201 e 400
alunos/as; e 14,8% lecionavam para mais de 400 alunos.

Das muitas questões que fizeram parte da pesquisa respondida por estes
1407 docentes de educação básica (foram 39 questões no total), selecionamos
três questões abertas que tratam especificamente da relação dos professores
com seus/suas alunos/as e as famílias destes/as. Essas questões tiveram suas
respostas categorizadas a partir do método de Análise de Conteúdo (BAR-
DIN, 1977) com a ajuda de um software criado pelos membros do nosso gru-
po de pesquisa para agrupar as respostas a partir de palavras-chave.

Perguntamos às/aos profissionais de educação com que frequência os fa-


miliares de seus/suas alunos/as os/as procuravam antes da pandemia para tra-
tar de questões educacionais. Em seguida, fizemos a mesma pergunta, porém
com referência no momento atual, com as escolas fechadas em função do afas-
tamento social. A tabela abaixo apresenta os resultados:

Tabela 1 – Frequência com que familiares de alunos/as procuraram os/


as docentes respondentes da pesquisa - antes e durante a pandemia

Categoria Antes da pandemia Durante a pandemia


Com muita frequência 17,7% 33,7%
Raramente 61,6% 32,7%
Nunca 19,2% 32,1%
Outras respostas 1,5% 1,5%

Percebemos que a nova realidade - pandêmica - que nos tomou de assalto,


trouxe já nos primeiros meses do afastamento social/ ensino remoto algumas
mudanças na dinâmica das relações entre famílias e escolas.

124
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação

Na percepção dos/das professores/as respondentes da nossa pesquisa,


as famílias que raramente procuravam a escola (ou procuravam somente
quando convocadas para a reunião de pais, conforme comentaram alguns/as
professores/as) realizaram dois movimentos opostos durante a pandemia:
umas passaram a não mais procurar/ se comunicar com a escola; e outras au-
mentaram a frequência de comunicação com professores/as e escolas.

Segundo alguns/as professores/as, o “sumiço” de algumas famílias está re-


lacionado ao fato de terem poucos recursos, o que “não permite o usufruto da
tecnologia” (resposta de uma professora negra ou parda, entre 20 e 30 anos,
com menos de três anos de docência, ensino superior completo, trabalhando
em contrato temporário na educação básica pública). Outros/as participantes
alegaram que “os pais não se importam” ou “sempre foram ausentes”. Abaixo
transcrevemos duas falas que explicitam sentimentos negativos de duas pro-
fessoras em relação às dificuldades cotidianas do trabalho - que elas creditam
a diversos fatores, inclusive à ausência da família e/ou “ambiente nocivo da
periferia”. Ambas declararam ter adoecido em função dessas dificuldades no
trabalho.
Ao longo do processo de ser professor fui sentindo
uma sobrecarga de trabalho e culpa porque os alu-
nos não tem compromisso, os pais não se importam
e não ajudam o professor, ou seja, estamos sozinhos.
Não há valorização por parte do governo. (professora
branca, entre 31 e 40 anos, com especialização, tem
entre 11 e 20 anos de atuação na educação básica
pública. Teve aumento da carga horária com o início
das aulas remoto, de 32 para 60 horas de trabalho.
Dá aula para sete turmas, num total de 150 alunos/as.
Mencionou sofrer de depressão e crise de ansiedade e
tomar psicofármacos há sete anos).
Os pais dos meus alunos sempre foram ausentes, não
participam de nenhuma atividade promovida pela
escola. Em relação aos alunos, acredito que sintam
mais seguros [de estar na escola]; por alguns instan-
tes estão longe das mazelas do cotidiano de um lar
periférico (professora negra ou parda, entre 31 e 40
anos, com especialização, tem entre 11 e 20 anos de
atuação na educação básica pública. Dá aula para dez
turmas, num total de 500 alunos/as. Mencionou so-
frer de depressão e fazer uso de psicofármacos).

125
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Dentre os/as participantes que comentaram nunca terem contato com as


famílias, tivemos muitos/as professores/as que disseram que a relação entre fa-
mílias e escolas se dá via coordenação/ direção e que, portanto, teriam pouco
ou nenhum contato com estas, conforme vemos abaixo:
Não me procuram, A comunicação dos pais com a
escola acontece por meio da coordenação, e não di-
retamente com as professoras (coisa que nunca en-
tendi) (professora branca, entre 20 e 30 anos, com
ensino superior incompleto e menos de três anos de
docência na educação básica privada).

Nos chamou atenção respostas como “não podemos responder aos pais” e
“a escola não autoriza que os profs tenham contato com os pais”, que demons-
traram haver interesse dos/as professores/as em estabelecer uma relação com
as famílias e que isso não era permitido pelas escolas.
Infelizmente a escola onde trabalho optou por não
termos contato com os familiares, não passam ne-
nhum feedback dos pais (professora branca, entre 20
e 30 anos, com nível superior, a menos de três anos
trabalhando na educação básica privada).

Com relação às famílias que aumentaram a frequência de comunicação


com professores/as e escolas, não tivemos muitas respostas diferentes de “com
muita frequência” ou “com mais frequência do que antes da pandemia”. Ape-
sar de pouco comentado pelos/as professores/as, foi expressivo o aumento do
percentual de famílias que passou a procurar as escolas com mais frequência,
de acordo com os/as respondentes.

A terceira e última questão que analisamos e apresentamos aqui, buscou


saber como os/as professores/as avaliavam que ficariam as relações entre eles
e seus alunos/as e entre famílias e instituições de ensino após a pandemia. A
partir do método de Análise de Conteúdo (BARDIN, 1977) surgiram as se-
guintes categorias:

a) Vai melhorar após o fim do isolamento - 22,2%;


b) Passaremos por um longo processo de readaptação - 21,4%;
c) Profissionais de educação serão mais valorizados - 19,4%;

126
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação

d) Nada mudará - 13,9%;


e) Não sei responder - 12,3%;
f) Vai piorar após o fim do isolamento - 6,4%;
g) Já está melhor do que antes da pandemia - 1,5%;
h) Outras respostas - 2,9%.

Trouxemos algumas respostas para ilustrar esses resultados:


Espero que melhore! Pais se tornem mais parceiros
da escola! (Professora branca, entre 51 e 60 anos, com
mestrado, entre 21 e 30 anos de docência na educa-
ção básica pública).
Eles estão nos valorizando, porque passamos maior
parte do tempo com seus filhos e temos paciência (que
eles não têm!) para ensinar, ouvir e educar. Mas quan-
to ao dinheiro investido nisso, sempre será muito, na
visão dos pais. Haja vista a pressão por desconto, mes-
mo sem sair lei2. Ninguém quer saber o quanto isso
nos sobrecarregou e, ainda assim, pode gerar redução
no pagamento salarial (Professora negra ou parda, en-
tre 31 e 40 anos, com especialização, entre 11 e 20 anos
de tempo de serviço na educação básica privada).
Acredito que não haverá mudanças significativas
nessa relação. Os pais participativos, continuarão
sendo participativos (como têm sido). Os que não
participam, continuarão não participando. (Profes-
sor negro ou pardo, entre 31 e 40 anos, com ensino
superior, entre 3 e 10 anos de tempo de serviço na
educação básica pública).
Vale ressaltar que apesar do esforço, não acho que
as atividades online devam contar como dias letivos.

2. Algumas Assembleias Legislativas aprovaram leis para obrigar as instituições de ensino pri-
vadas a reduzir as mensalidades durante o período de vigência do estado de calamidade
pública, causado pela pandemia da COVID-19. No caso do estado do Rio de Janeiro, a Alerj
aprovou a Lei nº 8864/20, que foi sancionada em 4 de junho de 2020 (ALERJ, 2020). A res-
posta da participante ocorreu em 29 de abril de 2020.

127
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Tenho contato de 98% dos alunos, mas e os 2%, como


ficarão?! Por mais que os pais se esforcem eu não pos-
so ter certeza do aprendizado deles, não estou vendo
de perto! Acho super válido manter o contato, a men-
te ativa e ajudar os pais das crianças de alguma forma.
(Professora branca, entre 20 e 30 anos, com especia-
lização, a menos de 3 anos na docência da educação
básica pública).

No próximo tópico apresentaremos a conversa com a aluna Lívia e com as


mães que se disponibilizaram a responder as perguntas de Tiago.

Do contato à relação: escutando uma aluna e algumas mães

Como enunciamos anteriormente, vamos trazer, neste capítulo, algumas


experiências que nos marcaram no início do segundo semestre e que nos fize-
ram estabelecer pontes com a nossa pesquisa “Professores na pandemia” e que,
também, achamos conveniente tratar nesta obra. A pesquisa dá visibilidade
para as falas dos docentes. Achamos interessante trazer as falas e impressões
de quem está do outro lado da ponta dessas relações: alunas/os e suas famílias,
para que possamos entender de forma mais integral a dinâmica dessas rela-
ções nesse momento.

Vamos trazer o caso da aluna Lívia que citamos na parte introdutória do


texto. Este caso específico nos conduziu à reflexão sobre as relações entre fa-
mílias, escolas, alunos/as e professores/as. Dele irradiou as nossas inquietações
e curiosidades. Alunas/os são os/as protagonistas das escolas. A escola existe
por eles e para eles. Portanto, trazer uma aluna para o centro do debate, tê-la
como ponto de partida para as nossas discussões é fundamental. Na sequência
iremos trazer a fala de sua mãe e as falas das outras mães de alunos/as da turma
de sexto ano da mesma escola de Lívia. É importante ressaltar que o convite foi
feito à Lívia e seus pais e também aos pais e mães de um grupo com famílias do
sexto ano desta escola particular. Somente as mães (no total sete, contando com
a mãe de Lívia) se interessaram em responder às nossas questões.

Lívia é uma estudante branca de uma escola da rede privada do Noroeste


Fluminense (interior do estado do Rio de Janeiro), tem 15 anos, vive com o pai
e a mãe e não tem irmãos. O pai é servidor da prefeitura da cidade e a mãe é

128
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação

auxiliar de saúde bucal. Ela está cursando o nono ano do ensino fundamental.
Tiago é seu professor de História desde o sexto ano do ensino fundamental.
Ela sempre foi uma aluna de bom rendimento escolar, participativa, autôno-
ma, crítica, segura, proativa, líder na sala de aula e muito exigente consigo
mesmo. Sua família sempre a acompanhou ao longo desses anos e sempre se
demonstrou presente na vida escolar da filha. Ou seja, dentro daquele modelo
ideal de aluna descrito por Patto (2005) e citado por nós acima, Lívia é uma
aluna que possui as condições fundamentais que a maioria dos professores
espera de seus alunos/as.

Aconteceu que, desde o início das atividades remotas no início de abril, a


aluna se mostrou totalmente ausente, participando raríssimas vezes das aulas
e interagindo muito pouco através das plataformas. Ela passou a se comportar
de forma totalmente avessa, se traçarmos um comparativo com seu comporta-
mento/ comprometimento como estudante antes da pandemia.

No início do segundo semestre, em agosto, Lívia procurou Tiago para so-


licitar um novo prazo para colocar suas tarefas em dia. Muito fragilizada e
visivelmente abalada, ela confidenciou ao professor as razões de sua mudança
de comportamento enquanto aluna. Em um momento de desabafo e de escuta
ela confessou, visivelmente envergonhada e muito autocrítica, que não estava
conseguindo se adaptar ao modelo de ensino remoto, que se sentia desmo-
tivada, deprimida e perdida. Nesse instante, foi de grande importância, por
parte do professor, o ato de escuta e cuidado. Tiago a encorajou e disse a ela
palavras de ânimo, colocando-se em uma atitude de compreensão, afinal es-
tamos todos/as vivendo tempos de exceção, onde nos encontramos, no geral,
inseguros/as e fragilizados/as, pois a privação do contato social, de podermos
transitar livremente nos espaços de troca e convívio afetou a todos/as.

No mesmo dia, Tiago compartilhou suas aflições sobre a situação de Lí-


via na reunião online do grupo de pesquisa NEIPE. A partir de então, mo-
tivado e sensibilizado por esse contato que teve com sua aluna, o professor
Tiago achou importante escutá-la mais um pouco a respeito de suas inse-
guranças, dificuldades, medos e opiniões sobre o modelo de ensino remoto,
convidando-a para um aprofundamento da conversa. Também convidamos
a família para uma conversa (que poderiam ser individual com cada um
ou conjunta), porém Lívia preferiu conversar sozinha, via videoconferência,
com Tiago e depois a mãe dela preferiu enviar áudios respondendo às ques-
tões propostas por ele.

129
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Traremos abaixo uma síntese da conversa de 30 minutos com Lívia, com


a transcrição de um trecho da fala da adolescente. Em seguida, traremos as
respostas das mães - que nos responderam por escrito e por áudio.

Nessa conversa, quando indagada sobre os impactos da pandemia em


sua vida, Lívia deu destaque aos efeitos emocionais que o isolamento social
impôs à vida dela. Disse que a convivência social, com familiares e amigos
sempre foi algo fundamental para ela, que a privação desse contato a deixou
muito abalada e deprimida. A restrição de não estar frequentando e aces-
sando os espaços de convivência a afetou muito emocionalmente, pois para
ela o contato visual e presencial é fundamental, influencia o seu estado de
humor e facilita a sua comunicação. Disse que se sente muito triste por estar
privada desse contato direto com as pessoas que compõem o seu ciclo de
convivência cotidiano.

Quando perguntada sobre as suas inseguranças diante desse contexto, de-


monstrou intensa preocupação em relação à sua formação e ao seu futuro pro-
fissional, pois sente que esse formato de ensino/aprendizagem não lhe dará a
base formativa necessária para alcançar êxito em seus projetos. Ela estava se
programando para fazer um preparatório em Viçosa/MG para ingressar na
UFV (Universidade Federal de Viçosa).

Notamos uma total descrença dela em relação à forma como tem estudado
e tentado aprender. E, com isso, uma consequente frustração. Ela nos falou
que não vê o ensino remoto com os mesmos olhos que o ensino presencial em
termos de qualidade. Lívia disse que:
[...] é como se a gente tivesse só aprendendo o bá-
sico pra poder não ficar sem nada. Mas, cara, uma
aula presencial faz muita falta! Nossa! Eu acho que eu
nunca tinha sentido tanta falta de uma aula presen-
cial na minha vida inteira!

Quando perguntada sobre os pontos positivos e negativos do ensino remo-


to, os negativos se sobrepuseram aos positivos que, na visão dela, se resumem
no fato de ser mais fácil se pesquisar na internet. Quanto aos negativos, mais
uma vez reforçou a falta de contato e troca com os professores, necessária na
visão dela para consolidar seu aprendizado, e no esclarecimento de dúvidas
em relação aos conteúdos. Mencionou a timidez e o desânimo que ela percebe

130
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação

nos colegas na hora de interagir, de ligar a câmera e de trazer questionamentos


aos professores no decorrer das aulas. Acha que o ensino remoto não é levado
a sério por grande parte dos alunos, pois estão longe dos olhos, da atenção,
do incentivo e da cobrança presencial dos professores. Para ela tudo se tornou
muito mecânico, vazio e triste. Tanto para os alunos quanto para os professo-
res. E quando trouxemos para ela a possibilidade de o ensino remoto ou EAD
vir a se impor como modelo hegemônico de ensino para o futuro, para efeito
de saber sua opinião a respeito, ela se colocou de forma totalmente contrária
a esse formato de ensino.
Tipo, o meu ponto de vista é muito, assim sabe? Eu
prefiro muito mais aula presencial. Eu acho que...
Não, se vier pra ficar, eu infarto! Eu não sei o que
seria de mim sem uma aula presencial. É por que...
sabe, não tem como você focar pra tela. Você não
tem o contato de ver o professor ali falando com
você. Porque fica muito avulso. Ele tá falando com
você, mas ele também tá falando com todo mundo
ali. Não é direcionado a você. Porque quando você
tá numa sala de aula você se sente próximo do pro-
fessor, como se ele estivesse falando diretamente
com você.

As perguntas feitas para as famílias são bem próximas daquelas respondi-


das pelas/os professoras/es da nossa pesquisa “Professores na pandemia”. Bus-
camos saber qual a importância dada por elas para a relação família-escola,
sobre a frequência em que elas se comunicavam com a escola antes e agora na
pandemia, sobre as perspectivas que elas têm para um futuro dessas relações
num contexto pós-pandemia e pedimos que avaliassem, de forma geral, o en-
sino remoto.

Uma das ironias ou contradições desse contexto de pandemia e do isola-


mento social foi uma maior aproximação entre as famílias e as/os professoras/
es de seus filhos/as. Afirmamos isso baseando-nos no fato de que esse contato,
antes da pandemia, era intermediado por sujeitos que desempenhavam es-
pecificamente essas funções dentro das escolas: orientadores educacionais e
coordenadores pedagógicos. Muitos pais e mães, principalmente a partir do
Ensino Fundamental II, mal sabiam os nomes das/os professoras/es de seus
filhos. Esse contato era mínimo e ocasional, ocorrendo em reuniões e eventos

131
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

esporádicos na escola. Essa afirmação também está ancorada nas experiências


e vivências de Tiago, que trabalha nesta escola há 11 anos e é coautor desse
capítulo, como já citamos anteriormente.

Achamos que seria interessante, além da conversa com a mãe de Lívia (que
terminou sendo uma troca de mensagens pelo WhatsApp® da adolescente,
onde a mãe respondeu por áudio às perguntas de Tiago), fazer perguntas para
outras famílias com as quais Tiago tinha contato direto. As mães da turma de
sexto ano do fundamental II criaram grupos de WhatsApp® específicos por
disciplina para que houvesse uma comunicação direta com as professoras e
os professores, no sentido de acompanhar e atender as demandas cotidianas
do ensino remoto. Vale marcar que grupo é formado majoritariamente por
mães - apenas dois pais fazem parte - e a iniciativa e interesse de criá-lo partiu
delas, num sentido de facilitar e viabilizar a comunicação neste momento em
que famílias e docentes sentiram a necessidade de se aproximar para alcançar
objetivos em comum. Aproveitando a oportunidade da existência desse canal
de diálogo direto e mais informal e, também, com o objetivo de abrir espaço
para diferentes e variadas falas, resolvemos levar algumas questões para este
grupo e ouvir o que essas mães tinham a dizer sobre o ensino remoto. Como
dito anteriormente, as questões levadas para o grupo, no que tange às relações
família-escola, convergem com as questões que levamos para os professores
no questionário que compõe a pesquisa.

As mães avaliaram o ensino remoto de forma positiva, no sentido de man-


ter seus filhos protegidos e isolados nesse momento em que a saúde está em
risco. A palavra “desafio” surgiu entre as falas como definição desse modelo de
ensino para elas. Elas, no geral, entendem esse formato como uma reinvenção
das formas de ensinar e aprender para enfrentarmos esses tempos. Destaca-
ram que as aulas ao vivo amenizam um pouco a falta de interação social, as-
pecto negativo desse método educativo. Também destacaram o fato de ser um
ensino que exclui, pois nem todas as famílias possuem condições materiais
para ofertar essa possibilidade para seus filhos.

Todas as mães, de forma uníssona, consideram que a relação família-es-


cola é importantíssima para que as práticas educativas sejam bem sucedidas.
Nas palavras de uma delas, a parceria que se estabelece entre famílias e esco-
la “é de suma importância! Pois se não houver uma parceria não tem como
ter bons resultados! A escola sem apoio dos pais não consegue cumprir o
seu papel”.

132
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação

A respeito da frequência com que elas interagiam com a escola antes da


pandemia, todas disseram que isso ocorria em momentos e ocasiões pontuais,
em reuniões e eventos. Atualmente essa frequência adquiriu outra dinâmica. É
o que podemos verificar nas seguintes falas: “continuo em contato permanente
com a Escola, só que pelos meios virtuais”; “antes tinha contato, mas com a
pandemia acabamos estreitando o contato tanto com professores quanto com a
diretora”. E sobre o futuro dessas relações, todas elas, de forma unânime, acre-
ditam numa possível melhora e num fortalecimento dessas relações.

Finalizamos este tópico, trazendo brevemente alguns comentários da mãe


de Lívia. Ela avalia que antes da pandemia tinha pouco contato com a escola
e com os professores, pois a filha sempre foi muito independente e tinha bom
rendimento escolar. Atualmente, pelo fato de ter notado a filha desinteressada
nas atividades escolares, tem se comunicado com mais frequência com a es-
cola e diretamente com professoras/es. Ela afirma ainda que esse contato com
os/as professores/as a tem ajudado muito a lidar com as questões que a filha
tem enfrentado neste momento. Para encerrar sua fala, a mãe de Lívia agra-
deceu ao professor Tiago por ter escutado e conversado com sua filha. Disse
que a filha se sente mais segura e confiante para compartilhar suas angústias
e dificuldades com ele e que esse gesto está sendo muito importante nesse
momento tão complicado.

Aproximação entre docentes e famílias: quando o afeto diminui a


altura dos muros

Pensando a respeito de tudo que nos aconteceu e nos atravessou neste tra-
jeto até aqui notamos uma particularidade que ficou evidenciada nas respos-
tas dos/as professores/as ao questionário, no relato da aluna Lívia e no nosso
contato com as mães. A pandemia, de forma irônica e contraditória, propor-
cionou uma maior aproximação e intimidade entre docentes, discentes e suas
famílias.

E pensando em uma educação que tem como tradição a queixa, a acusa-


ção e a culpabilização mútua de ausências (PRATA, 2005), essa experiência
talvez traga consigo um quê de ineditismo. O sistema busca culpar os atores
que o compõe e se exime de quaisquer erros. É interessante para a sociedade
capitalista neoliberal que famílias, escolas e professores/as travem uma eterna

133
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

luta nessa arena, que não haja consciência e a consequente transformação das
relações e do sistema (PATTO, 2015).

Os dados da pesquisa denunciam a quantidade de horas que os docentes


trabalham e o quantitativo de alunos que estão sob sua responsabilidade. Al-
guns chegam a lecionar para mais de 400 alunos! Como estabelecer contato e
tecer relações mais íntimas e próximas com um grande quantitativo de alunos
e estando submetidos à uma carga horária tão extenuante? Por outro lado,
precisamos pensar criticamente sobre a forma como o nosso sistema educa-
cional é estruturado no sentido de criar esta lacuna imensa entre as famílias,
docentes e a escola em si. O sistema trabalha no sentido de altear os muros que
distanciam e impedem o estreitamento dessas relações.
O contato com a escola era somente através das reu-
niões de pais que aconteciam a cada bimestre, ou
seja, apenas quatro vezes durante o período letivo.
Hoje, devido a pandemia temos um contato maior,
onde nós interagimos mais como responsável. Temos
mais diálogos e passamos a conhecer um pouco mais
os docentes dos nossos filhos.

A fala dessa mãe do grupo de responsáveis da turma de sexto ano é cirúr-


gica e expõe a lógica desse formato segregador sob a qual nossa educação é
pensada e sistematizada.

O sofrimento da aluna Lívia foi um desses gatilhos que nos fez pensar um
pouco além da esfera de atuação das/os professoras/es, levando nossa dis-
cussão para o campo das subjetividades dos/as educandos/as, suas famílias
e as relações professores/alunos/famílias/escola. Este caso nos fez estabele-
cer ligações entre as falas da pesquisa, o comportamento da aluna frente ao
ensino remoto, a atitude do professor diante da reação de Lívia e a reação
da família diante do acolhimento e abertura do professor. A intensidade e
frequência com que essas relações ocorrem é fundamental para o desenvol-
vimento humano! E pensar em como estão essas relações neste momento é
fundamental!

Não queremos, de modo algum, com esta reflexão, justificar ou defender


o ensino remoto, pois acreditamos e defendemos uma educação essencial-
mente humana, dialógica, de contato e de troca. Nossa voz aglutina e reúne
as vozes dos muitos professores e professoras que nos cederam um pouco do

134
7 – Famílias, docentes e escolas na pandemia: do contato à relação

seu valioso tempo respondendo ao questionário proposto a eles/as por nós.


Tempo é uma parte essencial da nossa luta e do nosso combate! O tempo é
um artefato constantemente roubado e subtraído dos profissionais, afogados/
as que estão em condições precaríssimas de trabalho e vida, desvalorizados/
as e desmotivados/as. A ausência do tempo perturba, desumaniza, embrutece
o indivíduo, o impede de ouvir os muitos pedidos de socorro sufocados em
meio a uma multidão de vidas que lhes são confiadas.

Da mesma forma, sem diálogo e uma relação efetiva, famílias têm difi-
culdade para entender que a celebrada reinvenção das formas de ensinar e
aprender teve/ está tendo um custo alto para os/as professores/as. Não houve
reinvenção sem que houvesse (ainda mais) sobrecarga e adoecimento, preca-
riedade, desespero, assédios, opressões, terrorismo do sistema para com os/as
profissionais de educação…

Assim, acreditamos que só com diálogo - fruto de relações mais próximas


e não apenas de contatos esporádicos mediados por terceiros - professores/
as e famílias conseguirão superar estigmas, preconceitos e falta de empatia,
para juntos resistirem ao sistema (o inimigo comum) e reivindicarem educa-
ção de qualidade. Uma educação antirracista, antilgbtfóbica, anticapitalista,
antihegemonia, etc., que respeite pluralidades/ diversidades, remunere e dê
condições de trabalho dignas para os/as docentes e devolva saúde, esperança e
autonomia a esses/as profissionais.

Referências
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salidades escolares deverão ser reduzidas durante a pandemia. Alerj, 4 de junho de 2020.
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136
8
Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a
recursos públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família
Priscila Tavares dos Santos
Michelle Lima Domingues

Resumo

Ao elegermos como questão central no texto a relação entre pobreza e educação,


buscamos compreender as condições de acesso a recursos públicos por estudantes
da rede pública de ensino no estado do Rio de Janeiro beneficiários do Programa
Bolsa Família. Para realizar esta análise, consideramos dados quantitativos coligi-
dos por levantamento realizados durante a oferta do Curso Educação, Pobreza e
Desigualdade Social realizado em 2018 na Universidade Federal Fluminense junto
a estes estudantes. Por este investimento, buscamos analisar as condições de pos-
sibilidade desses estudantes reconhecidos como pobres no acesso a recursos fun-
damentais à elaboração de estratégias de reprodução social. Evidenciamos ainda

137
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

que as condições de desigualdade social em que se encontram os beneficiários


do PBF é anterior à pandemia da COVID-19 e com ela se agravam impondo
novos constrangimentos à sobrevivência dos estudantes e suas famílias. Pro-
pomos a construção de um novo olhar sobre esses sujeitos e a necessidade de
tomada de consciência sobre o processo coletivo e histórico de constituição do
fenômeno social da pobreza que se opera mediante a valorização da política
do sofrimento e da explicitação cotidiana dos pobres merecedores.

Introdução

O presente texto fundamenta-se em análise de dados de pesquisa coligi-


dos durante o Curso de Aperfeiçoamento Educação, Pobreza e Desigualda-
de Social (EPDS)1 oferecido durante o primeiro semestre de 2018, fruto de
uma parceria entre o Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Con-
tinuada de Profissionais do Magistério da Educação Básica (COMFOR), da
Pró-Reitoria de Extensão (PROEX) da Universidade Federal Fluminense e a
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão Es-
colar (SECADI), Diretoria de Políticas de Educação em Direitos Humanos e
Cidadania (DPEDHUC) do Ministério da Educação.2

No início de 2013, após uma década da criação do Programa Bolsa Família


(PBF), a SECADI/DPEDHUC, diante das contribuições do Programa para a
redução da pobreza no Brasil, analisou dados acumulados sobre a frequência
escolar dos estudantes beneficiários do PBF, aqueles reconhecidos pelo estado
como merecedores, e somando esforços com especialistas e representantes de
universidades federais, formulou a Iniciativa Educação, Pobreza e Desigual-
dade Social (IEPDS).

1. O Curso EPDS/UFF teve como coordenador geral o Prof. Celso José da Costa (COMFOR) e
como vice-coordenador o Prof. Rolf Ribeiro de Souza (do Instituto do Noroeste Fluminense
de Educação Superior (INFES) e contou com financiamento do Fundo Nacional de Desen-
volvimento da Educação (FNDE).
2. A proposta do Curso EPDS se insere no contexto da Política Nacional de Formação dos Pro-
fissionais do Magistério da Educação Básica e da Rede Nacional de Formação Continuada
dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública (Renafor), ambas instituídas
pelo Decreto n° 6.755, de 29 de janeiro de 2009 e pela Portaria Ministerial n° 1.328, de 23 de
setembro de 2011.

138
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família

A IEPDS foi implementada em 26 universidades federais3 a partir da oferta


do curso nas modalidades especialização e aperfeiçoamento, com o objetivo
de “sensibilizar os profissionais da educação e outros envolvidos com políticas
sociais no que se refere às relações entre educação, pobreza e desigualdade
social”, articulando formação continuada, pesquisa acadêmica e difusão do
conhecimento. A proposta da IEPDS destaca o papel da escola no combate à
pobreza, além de apontar para a invisibilidade desses sujeitos neste espaço, as-
sociado às práticas discriminatórias e preconceituosas que incidem sobre eles.

Consideramos que analisar dados de pesquisa advindos desta experiên-


cia coletiva pode lançar luz sobre as condições em que discentes de escolas
públicas beneficiários do PBF têm acesso a esse e a outros recursos públicos;
outrossim, pode contribuir para compreender como são utilizados, bem como
sinalizar a importância de se construir uma visão holística sobre o fenômeno
da pobreza pela comunidade escolar, desafio que afirma a imprescindibilidade
do acolhimento do aluno na escola.

A categoria pobreza, tal como definida nos documentos da IEPDS, é utili-


zada como um adjetivo às escolas públicas: “escola pública, escola dos pobres”
(ARROYO, 2019), o que ressalta a visão naturalizada da pobreza que culpa-
biliza os sujeitos pela reprodução de sua própria condição de vulnerabilidade
social; além de reforçar o desprezo às escolas públicas, o que tem legitimado
o preconceito aos assim reconhecidos “pobres”. Portanto, ainda que o Curso
EPDS tenha se estabelecido com o propósito de problematizar o conceito de
pobreza para dar visibilidade aos educandos, que no âmbito da escolaridade
são ocultados por serem afetados por este processo de naturalização, nesta
definição acaba-se por ressignificá-lo. Durante a implementação do Curso,
os investimentos dos pesquisadores e gestores deram-se no sentido de situar
a pobreza em um universo mais amplo e complexo das desigualdades sociais
que aqui relatamos e cuja análise dos dados da pesquisa também procuramos
salientar.

Inúmeros foram os investimentos iniciais na tentativa de consolidar uma


definição sobre o termo pobreza e se afastar de uma visão naturalizada, quase

3. A IEPDS foi implantada, na primeira fase (2014), nas seguintes instituições: UFRN, UFBA,
UFC, UFMA, UFPI, UFES, UFMG, UFPA, UFPR, UFSC, UFRR, UFPE, UFMS, UFAM,
UFT e, na segunda fase (2018) em mais 11 universidades: UNB, UFMT, UFSE, UFAC,
UFMA, UFPB, UFAL, UFGO, UFRS e UFF.

139
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

sempre associada a uma forma de degradação da condição de vida. Sem a


intenção de dar conta dos múltiplos investimentos para defini-lo, chamamos
atenção para o sentido atribuído ao termo pela instituição financeira mundial-
mente reconhecida no estabelecimento de critérios definidores da pobreza e
de beneficiários do PBF. O Banco Mundial estabelece uma medida monetária
com objetivos de criar um padrão mínimo universal de reconhecimento da
pobreza baseado no método dólar a day. Esta metodologia de definição dos
pobres vem sendo utilizada desde 1990 e ao longo dos anos vem sofrendo atu-
alizações. Em 2008 estabeleceu-se que são considerados pobres aqueles que
vivem com US$ 1,25 ao dia. Este critério de definição dos pobres não abarca
o consumo básico das famílias em diferentes contextos sociais e subestima o
problema da pobreza ao desconsiderar outros fatores intervenientes nas con-
dições de vida dos sujeitos.

Neves (2011), analisando os fatores que constituem a condição de exis-


tência de mendigos, chamou atenção para a necessidade de ampliarmos o
horizonte de compreensão dos atributos sociais que operam na configuração
socioeconômica daqueles definidos como pobres. Como adverte, as condições
de vulnerabilidade social desses sujeitos os colocam no centro de investimen-
tos políticos requalificantes que buscam minimizar os efeitos dos extremos
índices de desigualdades socioeconômicas na sociedade brasileira. Esta con-
dição social se reproduz entre gerações, transformando a pobreza num legado,
especialmente no caso das famílias que se valem do trabalho remunerado dos
filhos durante a infância. A reprodução social dos chamados pobres, portanto,
é marcada pela exclusão do acesso às alternativas de mudança de posição so-
cial, “porque integram poucas chances de conhecer outras formas de inserção
social” (NEVES, 2001, p. 149).

Neste sentido, inseridos nas escolas públicas, escolas dedicadas aos pobres
(ARROYO, 2019), permanecem ameaçados pela pobreza e são negativamente
marcados por esta imposição. O sistema escolar desempenha papel central
neste processo simbólico de reprodução de limites a outras formas de inserção
dos estudantes considerados pobres pela sua adjetivação em termos de carên-
cia e ausência, tendo como parâmetro outros segmentos da sociedade que pela
oposição cultural a esta caracterização são idealizados (BOURDIEU, 2011).

Para não cair na uniformização desses princípios de aceitação passiva de


um único projeto de vida desses sujeitos, em contexto marcado pela fluidez de
relações sociais, políticas e econômicas, posicionamo-nos contrariamente ao

140
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família

discurso que tem ecoado a partir dos porta-vozes de diferenciadas políticas pú-
blicas e daqueles que têm se posicionado contrariamente à escola pública. Ora,
ser estudante de escola pública, valendo-se da agregação ou incorporação de
condições de possibilidade contextuais para elaboração de projetos de vida, não
significa que outros projetos não possam ser elaborados. Contudo, muitos des-
ses discentes permanecem na condição de pobreza e de vulnerabilidade por mo-
tivos que, dentro do universo do recorte desta pesquisa, buscamos considerar.
O mapeamento dos recursos públicos que os beneficiários do PBF têm acesso
permite compreender as condições de constituição desses sujeitos adjetivados
e assim reconhecidos “pobres” na diversificação de estratégias de reprodução
social.

Pretendemos ainda evidenciar que as condições de exclusão desses estu-


dantes se agravaram pela imposição do isolamento social neste contexto da
pandemia da COVID-19, especialmente se considerarmos que lutam por
acesso a direitos e garantias fundamentais, como o da educação, saúde e as-
sistência social. A experiência do “isolamento dentro do isolamento” que se
estabeleceu com a chegada do coronavírus, evidenciou a cruel pedagogia do
vírus que impõe o drama social pelas opções de “morrer de vírus ou morrer de
fome” como salienta Santos (2020, p. 17).

A pesquisa no âmbito do Curso de Aperfeiçoamento EPDS

O Curso EPDS oferecido pela UFF contou com a participação de 370 cursis-
tas associados ao desempenho de funções administrativas e pedagógicas, reali-
zadas por coordenadores e auxiliares estaduais e municipais do PBF, distribuí-
dos em diversas regiões administrativas do estado.4 Como parte das atividades
do Curso, os cursistas foram estimulados a realizarem um trabalho de levan-
tamento de dados relativos a benefícios sociais recebidos junto aos estudantes
beneficiários do PBF nas unidades de ensino nas quais atuavam, os quais, em
atendimento aos critérios estabelecidos pela Secadi/DPEDHUC, constituíram
o universo social da pesquisa. Foram então aplicados 735 questionários, sendo

4. Especialmente a Metropolitana, além da Região das Baixadas Litorâneas, a Região Serrana, a


Região do Vale do Paraíba e Norte Fluminense e, em número menos expressivo, das regiões
do Noroeste Fluminense, Centro-Sul Fluminense e Costa Verde.

141
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

que 381 deles corresponderam ao Eixo Políticas Públicas e Desigualdade So-


cial5. O plano de pesquisa elaborado pela equipe da UFF teve como objetivo
o estímulo à reflexão sobre as condições de acesso a recursos provenientes de
políticas públicas por crianças e adolescentes inseridos em ambientes de esco-
larização marcados pela pobreza.

O questionário do Eixo selecionado para análise foi elaborado a partir de


atributos que possibilitassem uma caracterização dos estudantes mediante um
conjunto estruturado de questões com respostas fechadas e abertas, de modo
a captar as representações e avaliações dos estudantes sobre os benefícios que
tinham acesso. Para elaboração deste texto foram selecionados 62 questioná-
rios aplicados a alunos do ensino médio regular (considerando os três anos
de escolarização) de escolas públicas estaduais, correspondendo à faixa etária
entre 14 e 19 anos.

Valorizamos prioritariamente os dados quantitativos coletados em uma


perspectiva situacional como uma ferramenta elegível para análise da oferta
de recursos a estudantes considerados “pobres” pelos critérios de reconheci-
mento da pobreza segundo o PBF. Almejamos ainda compreender as condi-
ções de inserção e de participação desses beneficiários em programas edu-
cacionais e identificar as formas de acesso a políticas públicas voltadas para
este perfil de estudantes. Neste sentido, ao entendermos a escola enquanto
espaço privilegiado da reprodução social e cultural (BOURDIEU, 2011), pre-
tendemos refletir sobre a eficácia das políticas sociais públicas a partir das
condições de acesso pelos seus beneficiários, no caso em tela, os estudantes do
ensino médio regular que integra a rede estadual do Rio de Janeiro.

O contexto social das escolas abarcadas pela pesquisa e a proximidade com


a região metropolitana do Rio de Janeiro não podem ser desconsiderados sob
pena de perder de vista as múltiplas possibilidades de captação de recursos e
de confluência de políticas públicas direcionadas aos estudantes da rede públi-
ca de ensino. Tomamos como pressuposto que a especificidade de oferta des-
ses recursos e de sua objetificação pode corresponder a elaboração de projetos
pautados na perspectiva da mudança social (SANTOS, 2015) que se preconiza
para estes estudantes.

5. No plano de pesquisa, valemo-nos de 3 modelos de questionários com perguntas fechadas e


abertas que versavam sobre três distintos eixos de pesquisa: a) políticas públicas e desigualdade
social; b) saúde, meio ambiente e pobreza; c) práticas educacionais e (re)produção social.

142
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família

Advogamos que o papel da escola na reprodução dos efeitos simbólicos e


econômicos da distribuição desigual do capital cultural, ao mesmo tempo que
dissimula e os legitima, compõe uma “pedagogia de privação” que converte
hierarquias sociais em hierarquias escolares (BOURDIEU, 2011, p. 311). Neste
sentido, o sistema escolar cumpre uma função de legitimação que reproduz o
sistema de relações sociais desiguais, evidenciando a necessidade de promover
o debate e o conhecimento aprofundado do lugar social de origem de crianças,
adolescentes e jovens que integram o sistema de ensino público no país.

Políticas públicas e os critérios de elegibilidade dos beneficiários

O PBF, enquanto mecanismo condicional de transferência de recursos,


criado a partir da Medida Provisória nº 132, de 20 de outubro de 2003, modi-
ficou programas de transferência de renda existentes anteriormente, como o
Programa Nacional de Renda Mínima, o Cadastramento Único, o Bolsa Ali-
mentação, o Programa de Auxílio-Gás e o Fome Zero. Os valores referenciais
para caracterização das famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza
considerados pelo PBF correspondem a renda familiar mensal per capita de
até R$ 178,00 (cento e setenta e oito reais) e R$ 89,00 (oitenta e nove reais),
respectivamente6.

Aos assim reconhecidos pobres podem corresponder quatro faixas de re-


cursos: o benefício básico, no valor mensal de R$ 89,00; o benefício variável,
de R$ 41,00, podendo alcançar o limite de R$ 205,00 por família; o benefício
variável vinculado ao adolescente, cujo valor de R$ 48,00 é concedido ao ado-
lescente até o limite de R$ 96,00 por família; e o benefício para superação da
extrema pobreza, calculado na forma prevista do benefício variável vinculado
ao adolescente, desde que a soma da renda familiar mensal e dos benefícios
financeiros previstos seja igual ou inferior a R$ 89,00 per capita. E, no caso de
famílias em situação de extrema pobreza, o valor do benefício é calculado a
partir da diferença entre R$ 89,01 e o valor obtido a partir da soma per capi-
ta da unidade familiar, multiplicado pela quantidade de membros da família
(sendo o valor arredondado ao múltiplo de R$ 2,00 imediatamente superior.

6. Valores atualizados pelo Decreto nº 9.396, de 30 de maio de 2018.

143
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

O acesso aos recursos do Programa pressupõe o enquadramento do can-


didato nas categorias de beneficiário pelos operadores do sistema mediante
análise documental entregue em centros de referência de assistência social e
postos de atendimento do Cadastro Único.7 Além do atendimento aos crité-
rios de elegibilidade, os beneficiários são acompanhados mensalmente quanto
a frequência escolar a partir do “Sistema Presença”. Este Sistema é variável
conforme a idade do beneficiário: no caso de estudantes entre 06 e 15 anos de
idade, é exigido o cumprimento de, no mínimo, 85% da carga horária mensal
e no caso de estudantes entre 16 e 17 anos, a frequência mínima estabelecida é
de 75% desta carga horária (BRASIL, 2018)8.

Neste sentido, o recebimento do benefício está vinculado a um sistema


de condicionalidades que agrega informações coligidas do Ministério da Saú-
de (via Programa Bolsa Família na Saúde) e do Ministério da Educação (via
Sistema Presença) e, apesar da previsão de dificuldades para acesso à saúde
e à educação, o não atendimento aos parâmetros definidos pelo PBF exclui
os beneficiários do acesso ao recurso. Assim, os estudantes devem atender
critérios de elegibilidade e cumprir os requisitos para sua manutenção como
forma de responsabilização dos seus beneficiários, criando um sistema de de-
pendência mútua entre o estado e seus “dignatários”, uma conjuntura inédita
que faz aparecer as transformações sociais que diferem de um governo para
outro (ABÉLÈS, 1983) a partir do acompanhamento periódico do número de
matrículas e do monitoramento periódico dos registros da frequência escolar.

No caso dos dados de acompanhamento da frequência escolar, os benefici-


ários do PBF têm sua condição de subordinação reforçada pelos responsáveis
técnicos presentes em cada unidade de ensino, já que são eles que detêm o
controle dos dados enviados via Sistema Presença. A boa avaliação por parte
do gestor escolar garante a permanência da condição de beneficiário, o que
quase sempre está associado a padrões de comportamento avaliados subje-
tivamente com adequados e a oferta de agrados, além de demonstrações pú-
blicas de afeto aos gestores. Estes mecanismos de controle cotidiano chamam

7. A documentação para solicitação do benefício é a mesma para todos os pleiteantes ao be-


nefício: carteira de identidade e de trabalho, certidão de nascimento e de casamento, CPF e
título de eleitor.
8. Em 2020, o Ministério da Cidadania elaborou um Guia para Acompanhamento das Condi-
cionalidades do PBF definindo novos critérios de condicionantes adotado pelo PBF.

144
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família

atenção para casos de desencontros éticos onde pressupostos morais induzem


as mais danosas ações, mesmo que carregadas de boas intenções (CARDOSO
DE OLIVEIRA, 1994).

Inúmeras outros programas e benefícios sociais advogam para si a mis-


são de combate à pobreza, atuando na oferta de recursos complementarmente
`aqueles cedidos pelo PBF, tal é o caso do Família Carioca, benefício conce-
dido pela Prefeitura do Rio de Janeiro que concede aos alunos um acréscimo
de R$ 50,00 pelo bom desempenho escolar. No âmbito federal, a Lei Isen-
ção foi instituída sob n° 13.656, liberando do pagamento de taxa de inscrição
em concursos públicos os candidatos que pertençam a famílias inscritas
no Cadastro Único, benefício acionado pelos alunos candidatos ao Exame
Nacional do Ensino Médio. No caso do Renda Melhor, destinado exclusiva-
mente aos jovens, é um incentivo do governo do estado aos estudantes que
obtiverem a aprovação no fim de cada ano letivo do ensino médio9.

O Programa Minha Casa Minha Vida, visa, na faixa 1, atender famílias


com renda mensal de até R$ 1.600,0010, com objetivo de subsidiar a aquisição
da casa própria pelas consideradas mais pobres. O governo federal propõe
compatibilizar o valor das prestações com a capacidade de pagamento des-
tas famílias. Além disso, o Programa Tarifa Social, criado em 2016, concede
descontos de até 100% a famílias inscritas no Cadastro Único até o limite de
50kWh de energia elétrica consumidos por mês.

Os programas educacionais são decorrentes de investimentos públicos


para melhoria da qualidade da educação, mediante a promoção da inclusão
social e redução da pobreza e da formação de profissionais para o mercado
de trabalho. No caso do Programa Autonomia, o público alvo são discentes
fora do padrão idade-série e tem como foco ações para acelerar os estudos. No
caso da iniciativa Cinema para Todos, o objetivo é estimular e democratizar o
acesso aos estudantes da rede estadual de ensino às salas de cinema mediante a
distribuição de vales-ingressos. O Programa Escola Aberta refere-se à propo-
sição de ocupação do espaço escolar nos finais de semana, mediante a oferta

9. No ano de 2019, o benefício foi interrompido por decisão do Governo do Estado do Rio de
Janeiro.
10. Este valor corresponde ao valor da faixa 1 do Programa no ano de 2018, ano em que ocorreu
o curso EPDS.

145
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

de atividades educativas, esportivas e culturais para estudantes e também


para seus familiares, integrando atividades como prática de esportes, ensino
de idiomas e instrumentos musicais (banca escolar) e teatro. Cabe destacar
que, dentro da perspectiva de uma política de incentivo à profissionalização
dos jovens, o Jovem Aprendiz, corresponde a uma forma de contratação de
estudantes, na faixa etária entre 15 e 18 anos, em seu primeiro emprego que,
diferentemente do estágio, assegura a eles todos os direitos trabalhistas, além
de prepará-los para inseri-los no mercado de trabalho.

Demais programas de oferta de recursos educacionais, como é o caso da


merenda, do livro didático, do uniforme, do transporte escolar e da saúde na
escola, correspondem a investimentos em atendimento a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (Lei n° 9.394/96) que define o dever do estado com a edu-
cação escolar pública mediante a garantia do atendimento das necessidades
dos estudantes por meio de programas suplementares.

Condições de acesso a recursos públicos por beneficiários do PBF

As escolas estaduais abarcadas na pesquisa se localizam nos seguintes mu-


nicípios: Araruama, Belford Roxo, Cachoeiras de Macacu, Duque de Caxias,
Itaboraí, Itaperuna, Natividade, Niterói, Nova Iguaçu, Petrópolis, Resende,
Rio Bonito, Rio de Janeiro, São Gonçalo e Tanguá. A maior parte dos estudan-
tes, 79% deles, está concentrada no primeiro e segundo anos do ensino médio.
69% se declararam negros ou pardos e apenas 22% se declararam brancos,
o que evidencia a população negra como aquela mais atendida pelo PBF e
que melhor se enquadra nos critérios de elegibilidade do programa. Quanto a
composição do grupo doméstico, apenas um entrevistado declarou não morar
com a mãe, 39% não moram com o pai, mas 68% vivem também com irmãos,
a maior parte com mais de um irmão e 7 alunos vivem também com os avós.
Esses dados reafirmam a concessão do benefício do programa prioritariamen-
te às mulheres que desempenham papel de líderes de unidades familiares. 55%
do grupo doméstico destes alunos é composto por 3 ou 4 integrantes, mas
há grupos maiores, 7 com 5 integrantes e 9 com 6 integrantes. Encontramos
ainda um caso para cada grupo doméstico composto por 7, 9 e até 10 pessoas,
agregando tios e sobrinhos.

Quanto às formas de utilização dos recursos do programa, a grande maio-


ria dos entrevistados, 60%, diz utilizá-los principalmente para a alimentação.

146
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família

Em seguida são citadas as despesas com material escolar e vestuário que cor-
respondem respectivamente a 35% e 34% das formas de utilização. O trans-
porte está em quarto lugar, sendo representado por 18% dos beneficiários.

O PBF mostrou-se importante fonte de suprimento de alimentação para as


famílias destes estudantes e, em segundo lugar, no atendimento de outros re-
cursos, inclusive escolares. Rede de acesso à Internet, entretanto, não foi citada
como modalidade de investimento do benefício, mas deve-se pressupor que se
há dificuldades para suprir as necessidades mais básicas para a sobrevivência
dos estudantes e assegurar a sua permanência na escola, este não é um recurso
considerado fundamental e urgente. Assim, embora a rede de Internet seja so-
brevalorizada em período em que o mundo passa pelos constrangimentos so-
ciais, econômicos e psicológicos advindos do isolamento social imposto pela
pandemia de COVID-19, ela não é entendida como prioridade em contextos
de inúmeras dificuldades pelas quais as famílias destes estudantes passam.

Quanto à distribuição e oferta de programas sociais no estado, chama a


atenção a disparidade entre os municípios abarcados na pesquisa. Foram cita-
dos pelos entrevistados os seguintes: Minha Casa Minha Vida, Tarifa Social,
Renda Melhor, Programa Carioca, além da Isenção de taxas em concursos
públicos. A capital do estado, a cidade do Rio de Janeiro, oferece quase todos
estes programas aos estudantes na faixa etária de 16 e 17 anos, com exceção
apenas do Renda Melhor que é oferecido apenas em Duque de Caxias e em
Belford Roxo. Duque de Caxias oferece três programas e Belford Roxo, Ni-
terói, São Gonçalo, Itaboraí e Resende apenas 1. Os demais municípios não
possuem representação nestes programas. Torna-se assim evidente a centra-
lização da oferta de programas sociais complementares na região da Grande
Rio, com ausência de representação, para o caso estudado, nos municípios
mais periféricos da região metropolitana e também em municípios das Baixa-
das Litorâneas, Médio Paraíba e Noroeste Fluminense.

Esta situação se repete para o caso de oferta de programas educacionais,


são eles: Autonomia; Cinema para Todos; Escola Aberta; Esporte; Idiomas;
Jovem Aprendiz; Livro Didático; Merenda; Musicalização; RioCard; Saúde na
Escola; Teatro; Transporte e Uniforme. No Rio de Janeiro não são oferecidos
para o grupo estudado apenas os programas Cinema, Musicalização, Autono-
mia e Transporte, sendo oferecidos os demais na faixa etária de 15 a 19 anos,
contabilizando 10 programas. Em segundo lugar está Niterói com 9 progra-
mas oferecidos para esta mesma faixa etária de alunos. Em seguida, Belford

147
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Roxo, Itaboraí, São Gonçalo e Duque de Caxias com oferta de 6 programas,


Nova Iguaçu e Petrópolis com 5, Resende, Natividade e Itaperuna com 3, Ara-
ruama, Cachoeiras de Macacu e Rio Bonito com 2 e Tanguá com nenhum
programa. Os municípios que oferecem estes programas ao maior número de
entrevistados, compreendendo pelo menos 4 idades da faixa etária dos benefi-
ciários nesta amostra são Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo e Itaboraí.

As escolas configuram então a principal rede de acesso a estes benefícios


públicos e de informação sobre eles para 58% destes estudantes. Amigos e in-
ternet compõem juntos 29% da rede, o que pode também se entrecruzar com
a rede de vizinhança e amigos na própria escola. Outras redes que atravessam
o local de moradia e relações de afinidade como o parentesco, a vizinhança e
a igreja, sobretudo as igrejas protestantes para o universo pesquisado, repre-
sentam 68% do acesso a outros benefícios complementares importantes, como
cestas básicas, botijão de gás, roupas e sapatos.

Quanto às avaliações do PBF, 52% do total aqui considerado citou a fre-


quência do recebimento como principal fator positivo do programa. O valor
do benefício aparece como qualificação positiva para 28% deles, entretanto é
superado como motivo de avaliação negativa, sendo citado por 32% dos entre-
vistados. Mas a principal razão negativa apontada pelos estudantes, por meta-
de deles, é a burocracia para acesso a este e outros benefícios sociais públicos.
Inclusive, muitos deles discorreram sobre este assunto quando questionados
sobre sugestões de melhorias do PBF.

Quase todas as respostas remetem ao problema da burocracia que as famí-


lias enfrentam para receberem o benefício, que por sua vez é entendida como
entraves a informação clara e objetiva, problema semelhantemente vivido por
beneficiários de políticas assistenciais em Buenos Aires, sobretudo por mu-
lheres, como nos apresenta Auyero (2011). Destacam-se as seguintes respostas
avaliativas dadas pelos estudantes: “Mais esclarecimentos, menos burocracia,
acesso mais rápido ao programa”; “mais funcionário e informação”; “mais or-
dem e organização”; “melhorar a burocracia” porque “tem muita regra desne-
cessária”, “acabar com a burocratização, dentre elas o pagamento desregular”.
Inclusive, um estudante apontou uma triste consequência da falta de transpa-
rência e simplificação da logística de acesso ao programa: “perda do benefício
sem nenhuma explicação”.

A falta de transparência dos programas sociais dentro deste processo con-


traditoriamente excludente é apontada como razão do baixo alcance destas

148
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família

políticas. Deste modo, foi recorrente entre as respostas a denúncia da ausência


de “divulgação de outros benefícios para acesso aos programas”. Um dos en-
trevistados procurou esclarecer este dilema:
Menos burocracia para realizar o cadastramento e
recadastramento para o RioCard, Bolsa Família ou
qualquer outro. Além disso o governo oferece vários
programas sociais, mas boa parte da população des-
conhece. O governo tinha que investir em divulga-
ção de todos os programas. Eu mesma desconheço
alguns dos citados neste questionário.

“Aumentar o valor do benefício” aparece em segundo lugar como suges-


tão para melhor atender as “pessoas que realmente precisam”, algo que parece
estar em suspeição diante das dificuldades de acesso impostas por regras que
muitos estudantes e suas respectivas famílias não reconhecem a importância.
As respostas fornecidas acerca de benefícios que poderiam ser oferecidos pelo
governo corroboram o que tentamos aqui elaborar acerca do conceito de po-
breza, incorporando-o a dimensão da desigualdade social que complexifica a
questão que estes adolescentes traduzem a partir de suas experiências de vida
e expectativas de transformação de sua realidade social na sociedade idealiza-
da como democrática.

A maioria dos entrevistados faz alusão ao universo da formação por


meio do estudo e qualificação para o trabalho que vislumbra oportunidades
de construção da autonomia e enfrentamento do dilema relativo `a pobreza
construído pejorativamente pelos formadores de opinião que constroem e
reproduzem o senso comum acerca de um determinado problema social,
como nos lembra Fassin (2015) através do conceito de “economia moral”.
Assim, os estudantes discorreram acerca da necessidade de “cursos profis-
sionalizantes gratuitos”, “maior acesso ao primeiro emprego”, “pré-vestibular
gratuito”, “bolsa estudante”, “bolsa cultura”, “reforço escolar”, “trabalho para
jovem aprendiz” e “direito a trabalho”. Um dos entrevistados nos apresenta
uma resposta emblemática acerca da importância de uma educação pública
de qualidade que possa ser acessível a estes jovens das classes trabalhadoras
que precisam trabalhar-e-estudar. Ele propõe “aumentar o número de va-
gas nos cursos da FAETEC e usar as escolas particulares do bairro que não
funcionam à noite como polo da FAETEC”. Tais jovens, como sabemos, se
constroem por meio do trabalho e do saber prático (GUEDES, 1997), saber

149
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

fundamental de expressão de seu universo cultural que deveria ser incorpo-


rado de forma significativa pelo sistema escolar.

Outras avaliações que acenam para a importância de oferta de saúde de


qualidade, para o direito ao transporte, para a casa própria e para o lazer fo-
ram apresentadas e dão conta da complexidade da temática sobre a pobreza e
direitos destes estudantes que lhes são rotineiramente negados. As percepções
avaliativas relativas ao universo do trabalho e da formação para o mercado
de trabalho foram mais expressivas, o que não se desvincula da educação de
qualidade emancipadora, através da qual estes estudantes podem realizar uma
leitura significativa de seu mundo social e se constituírem como sujeitos ativos
de sua trajetória nele. Esta é uma dimensão apontada por Cipiniuk (2013) ao
demonstrar os investimentos realizados por estudantes da modalidade Edu-
cação de Jovens e Adultos na superação da condição social de analfabetos pela
valorização de percursos escolarizados em temporalidade tardia.

Algumas considerações

Como vimos, a pesquisa realizada pelos cursistas do Curso EPDS com estu-
dantes da rede pública de ensino do Rio de Janeiro, todos beneficiários do PBF,
apontam não apenas para a centralização geográfica deste programa social e de
outros programas educacionais que possam ser complementares à política pú-
blica de erradicação da pobreza geridos pela instituição escolar, mas também
busca problematizar o monopólio deste controle institucional sobre a legitimi-
dade do acesso e manutenção dos respectivos benefícios a partir de critérios e
condicionantes que obstaculizam um olhar mais articulado e crítico sobre as
desigualdades sociais que possam impactar a vida destes estudantes reconheci-
dos como pobres. Para tanto, não buscamos excluir os membros da comunida-
de escolar desta discussão e negar-lhe o devido protagonismo, mas justamente
contribuir com ferramentas teórico-metodológicas que possam qualificar sua
participação no necessário processo de relativização do lugar social ocupado
pelos discentes na construção de uma sociedade justa e democrática.

Cabe ainda salientar a potência dos funcionários das unidades escolares


em desenvolverem um olhar mais abrangente e significativo sobre os contex-
tos socioeconômicos e culturais de inserção de seus estudantes neste ambiente
a partir da capacitação de seus gestores e professores como a que pretendeu

150
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família

oferecer o Curso EPDS em tela. No entanto, a centralização da implementação


do PBF por gestores escolares, cuja normativa resvala para a simplificação da
questão que pretende minorar, ou seja, a das condições de pobreza a que os
estudantes estão expostos, ao não articular outros agentes públicos e a percep-
ção das respectivas famílias sobre o programa de forma regular, acaba por su-
jeitar estudantes e suas famílias a um limitado alcance e impacto do programa.

Fassin (1999) é um autor que chama a atenção para o predomínio na con-


temporaneidade de “uma nova topografia simbólica da sociedade” na qual o
conceito de desigualdade é substituído pelo de exclusão de tal forma que no
léxico político ele acaba por representar processos de “vitimização e singula-
rização dos excluídos”, definindo assim “uma nova forma de subjetivação das
desigualdades sociais” (FASSIN, 1999, p. 34-36). O autor descreve este processo
de singularização dos sujeitos excluídos como expressão de uma “política do
sofrimento” que ele associa a emergência do que autores como Robert Castel
(1997) tem chamado de “nova questão social” no final do século XX, circuns-
crevendo-a ao “paradigma do estado democrático-capitalista” que se tornaria,
entretanto, intocado na opção pela “adaptação para que os efeitos sobre os mais
vulneráveis sejam um pouco menos duros”. Nesta conjuntura, como ressalta,
“se considera praticamente impossível lutar contra as desigualdades; só se luta
contra suas consequências mais visíveis” (CASTEL, 1997, p. 36).

No universo pesquisado, esta singularização dos sujeitos que “sofrem” se


dá pelo controle do risco constante de perda do benefício pelo beneficiário e
explicitação cotidiana de sua vulnerabilidade social, de seu “merecimento” em
razão de sua “necessidade” que o expõe de forma a responsabilizá-lo, ainda
que indiretamente, pelo contexto socioeconômico em que se encontra. Com
isso não queremos desconsiderar a importância dos programas sociais gover-
namentais, mas sinalizar a urgência em tratar o problema social da pobreza
de forma não compartimentada em “necessidades” e “carências” a partir de
programas sociais que não se articulam, configurando uma visão estanque e
substantivada da realidade social dos discentes considerados pobres.

Como advogamos, a condição de “pobres” não é pacífica e imobilizante;


pelo contrário, é a partir do reconhecimento de sua existência e da construção
de um novo olhar sobre esses sujeitos sociais que abrimos a possibilidade de
intervenção e de mudança nesse ciclo histórico de reprodução-transmissão-
-perpetuação da desigualdade social no Brasil na qual a condição de pobreza
tem sido o legado (NEVES, 2001).

151
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Por isso chamamos a atenção neste texto para a necessidade da tomada de


consciência sobre o processo coletivo e histórico de constituição do fenômeno
social pobreza, “por meio de julgamentos e sentimentos que vão surgindo gra-
dativamente” de modo a “definir uma espécie de senso comum e compreensão
coletiva do problema”. A esta economia moral que constitui este e outros fatos
sociais podemos associar “as subjetividades morais” que se referem “aos pro-
cessos pelos quais os indivíduos desenvolvem práticas éticas em suas relações
consigo mesmos ou com os outros” e que “atestam a autonomia e a liberdade
dos agentes”, como propõe Fassin (2015, p. 9).

Neste sentido, buscamos problematizar a questão da visibilidade territo-


rial da pobreza e das famílias pobres que devem utilizar redes de acesso aos
benefícios sociais notadamente urbanas, das escolas e vizinhança mais bem
localizadas em termos de acesso à informação e centros de produção e distri-
buição dos recursos das políticas públicas. Mas ainda, por outro lado, proble-
matizar o grau de sujeição destas famílias, representadas aqui pelos estudantes
beneficiários do PBF, às incertezas e instabilidades objetivamente produzidas
pelo aparato burocrático deste e de outros programas sociais que reproduzem
a tutela sobre os considerados pobres e ainda diferenciações nos circuitos da
pobreza visibilizada e não visibilizada, ou seja, entre aqueles que se submetem
a este processo para assim serem reconhecidos “pobres” e aqueles que não têm
nem mesmo a oportunidade de serem por este processo singularizados.

No contexto da pandemia de COVID-19 e o agravamento da política de


austeridade, as lideranças governamentais federal e estadual assumem como
irrelevante a garantia do acesso a direitos fundamentais, especialmente a pro-
gramas educacionais por estudantes em decorrência da suspensão das aulas
presenciais e sua substituição por atividades online mediante acesso a plata-
formas de ensino remoto. A escola pública, tal como demonstrado, desempe-
nha papel central na oferta de recursos públicos mobilizados por estudantes
na elaboração de projetos de reprodução social marcados pelo enfrentamento
da condição de pobreza. Afastados desses espaços, contando com recursos
financeiros precários, esses estudantes são confrontados cotidianamente entre
a obtenção de recursos que lhes garantam a sobrevivência - não apenas pela
impossibilidade de realizar o isolamento social, mas também pelas dificulda-
des no atendimento às necessidades básicas de alimentação – e entre o acesso
ao direito à educação pela aquisição de recursos de Internet para acompanha-
mento diário das aulas nas plataforma de ensino. Inúmeros são os casos de

152
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família

denúncia da baixa frequência dos estudantes nas aulas remotas, nos quais são
responsabilizados os então tutelados e suas famílias pelo não atendimento às
novas demandas impostas pela chegada do novo coronavírus.

Além disso, no que tange ao acesso a recursos materiais, muitos estudan-


tes, afastados das redes de relações que tem na escola sua origem, são nova-
mente excluídos e têm explicitada cotidianamente a situação de vulnerabili-
dade social na qual vivem. Neste sentido, são estimulados a disputarem pelo
reconhecimento juntamente com tantos outros não beneficiários do PBF pela
posição de merecedores do auxílio emergencial oferecido pelo Governo Fe-
deral para enfrentamento à “crise” supostamente causada pela pandemia de
COVID-19 mas que, no entanto, a esses estudantes se manifestam a partir de
situações recorrentes de rompimento e esgotamento das perspectivas de solu-
ção de problemas cotidianos (RCO, 1995).

Lutando contra as consequências mais visíveis da pobreza (CASTEL, 1997)


e gerindo a urgência desta visibilidade para fins de merecimento os estudan-
tes sofrem com “crises” anteriormente à chegada da pandemia que colocam
sob risco de perda constante os benefícios sociais e educacionais, além de
outros igualmente fundamentais à garantia da sobrevivência, à despeito das
acusações preconceituosas que a eles têm sido direcionadas e que pretendem
invisibilizá-los enquanto sujeitos sociais.

Por isso, essa engrenagem social deve-se servir de determinado controle


externo concentrando seu poder excludente. Neste sentido, os “dignatários”
recebem sobre si o peso da falência de um sistema institucionalizado de en-
sino que unifica, centraliza em torno de si um único personagem. Eles são
investidos de um papel determinante no funcionamento político da socieda-
de, entretanto, com poderes limitados de combater a pobreza e de reduzir as
desigualdades sociais (ABÉLÈS, 1983).

Como discorre Auyero (2011) sobre o mecanismo de distribuição de re-


cursos de programas sociais em Buenos Aires, tal processo se dá através da
manipulação do tempo dos beneficiários, os quais experimentam a angústia
das relações burocráticas de espera pelos benefícios que regularmente con-
firmam a incerteza, a desordem e a arbitrariedade neste processo. A desor-
ganização objetiva encontra os correlatos subjetivos destas experiências que
acabam por expressar sentimento de impotência e sujeição à imprevisibili-
dade do processo de espera normatizado por regulamentos, procedimentos

153
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

e requisitos acerca dos quais há uma impessoalidade característica, de modo


que ninguém por ele se responsabiliza na esfera administrativa do Estado, tal
como observou advertidamente um estudante acerca da “perda do benefício
sem nenhuma explicação”.

Assim, a falta de informação acerca do andamento de um benefício con-


cedido ou de informações gerais sobre a disponibilidade de outros programas
sociais é objetivada de modo que a figura do funcionário da respectiva escola
ao qual o benefício está vinculado confirme a responsabilização do próprio
sujeito de direitos que a comunidade escolar busca instituir e assegurar. Este
mecanismo não produz apenas a angústia, mas o sentimento de fracasso, so-
bretudo para quem não é bem sucedido a demonstrar que “realmente precisa”
e “é merecedor”, dentro da lógica consagrada da “política do sofrimento”, tal
como apresentada por Fassin (2011).

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154
8 – Inventariando o campo da pobreza: condições de acesso a recursos
públicos por beneficiários do Programa Bolsa Família

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Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.

155
9
“A vida não pode parar”: desafios da população periférica
no desenvolvimento de comunidades remotas de ensino-
aprendizagem
Bruna Damiana Heinsfeld
Breno Laerte Pacífico Pinto

Resumo

“A vida não pode parar”. Esse é o slogan da propaganda do Exame Nacional


do Ensino Médio de 2020, veiculada durante a pandemia da SARS-CoV-2, pe-
ríodo no qual as atividades escolares foram totalmente suspensas em boa parte
das escolas públicas do país, dada a ausência de infraestrutura necessária para a
condução de aulas remotas. Nesse mesmo contexto se encontram os pré-vesti-
bulares comunitários e sociais, que atendem às populações pobres, periféricas,
faveladas e marginalizadas, e que passam pelas mais diversas dificuldades em
sua tentativa de desenvolver comunidades remotas de ensino-aprendizagem.

156
Neste ensaio, discutimos o papel da educação popular e dos pré-vestibulares
comunitários, tendo como base a pedagogia engajada, da autonomia e da liber-
tação, aprofundando nos desafios enfrentados e nas ações tomadas por docentes
e discentes dessas instituições durante a pandemia de 2020, tendo como recor-
te o caso do pré-vestibular UniFavela – Semeando o ensino popular, situado no
Complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro.

“A vida não pode parar”

Em maio de 2020, uma propaganda oficial do Exame Nacional do Ensino Mé-


dio (Enem), produzida e veiculada pelo Ministério da Educação (MEC, 2020),
foi amplamente divulgada nos mais diversos veículos de comunicação. Com um
discurso explicitamente defensor da manutenção do calendário padrão anual do
exame em meio a pandemia da SARS-CoV-2, período no qual as atividades foram
suspensas em boa parte das escolas públicas do país, a propaganda exibia quatro
jovens atores afirmando que, independentemente do contexto, a vida não poderia
parar, e orientando seus telespectadores a manterem o foco nos estudos de qual-
quer lugar em que estivessem, adotando diferentes metodologias, contando com o
auxílio das diversas mídias e recursos tecnológicos à sua disposição.

Ao olhar criticamente para a peça audiovisual em questão, percebe-se a discre-


pância entre as nuances socioeconômicas de seu real público-alvo e as dos estu-
dantes atendidos pelos pré-vestibulares comunitários e sociais: periféricos, pobres,
favelados, à margem. Enquanto que, para estudantes nascidos e criados em áreas
nobres das grandes capitais brasileiras, com acesso pleno aos mais diversos recur-
sos educacionais, o grande obstáculo atual entre uma aprovação ou não no Enem
parece ser o foco e a determinação para continuar seus estudos remotamente, a
população periférica - que sequer possui acesso significativo aos aparatos tecnoló-
gicos de ponta que são exibidos no ambiente de estudos de cada um dos jovens no
vídeo - enfrenta outros desafios, que vão muito além do simples desejo de estudar.

Neste ensaio, discutimos o papel da educação popular e dos pré-vestibulares


comunitários, aprofundando nos desafios enfrentados e ações tomadas por do-
centes e discentes dessas instituições durante a pandemia de 2020, tendo como
recorte o caso do pré-vestibular UniFavela – Semeando o ensino popular, situado
no Complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro. Para tanto, adotando como
abordagem metodológica a Grounded Theory (GLASER; STRAUSS, 1967) e com

157
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

o objetivo de relacionar os dados obtidos ao contexto social de estudo, apre-


sentamos e analisamos os resultados de um survey aplicado aos educadores
da UniFavela, bem como trecho de relato docente sobre o contexto atual da
organização e um levantamento das iniciativas tomadas em uma tentativa de
superar esses desafios.

Considera-se a discussão proposta relevante à comunidade acadêmica,


uma vez que o território e a população das favelas, socialmente marginaliza-
dos, sofrem não apenas com a proliferação de discursos estigmatizados, mas
com a escassez de efetiva implantação das políticas públicas que garantam o
exercício da plena cidadania de seus habitantes, dentre as quais se encontram
as políticas públicas em educação e as de ampliação do acesso às tecnologias
da informação e comunicação.

A educação popular e o papel dos pré-vestibulares comunitários e


sociais

Para pensarmos a educação popular nos contextos dos pré-vestibulares


comunitários e sociais, trazemos as percepções dos educadores Paulo Freire
(1987; 1993; 1997) e bell hooks1 (2013), estudiosos e educadores preocupados
com a ação de solidariedade e defensores dos grupos oprimidos, promovendo
e exercendo a prática educativa como uma rede libertária e emancipadora.

Podemos dizer que, de modo geral, a educação popular traz como princípio
fundamental a educação libertadora: uma pedagogia engajada no entendimento
do outro, em uma rede mútua de ensino-aprendizagem que, para se consolidar,
imprescinde de uma relação entre pares. Nesse modelo, substantivamente de-
mocrático e contextualizado com a realidade dos atores do fazer educacional,
torna-se constante o exercício prático de enxergar tanto educador quanto edu-
cando como sujeitos ativos, permitindo, assim, uma relação dialógica.

Conforme propõe Freire (1993), a educação popular atua para a superação


das injustiças sociais, considerando os saberes experienciais de cada educando,

1. Ao longo deste texto apresentaremos o nome da autora bell hooks com a grafia em letras
minúsculas, formato elencado pela própria pesquisadora visando dar destaque ao conteúdo
desenvolvido em suas obras e não a sua pessoa.

158
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem

trabalhando os conteúdos acadêmico-científicos a partir desses saberes, e “ja-


mais separa do ensino dos conteúdos o desvelamento da realidade” (ibid., p.
101). Esse modelo é proposto em oposição ao que Freire cunha como a “edu-
cação bancária”, modelo no qual os estudantes são vistos como desprovidos de
quaisquer conhecimentos, cabendo ao docente fazer o “depósito” de saberes a
serem reproduzidos, posteriormente, pelos estudantes. Em suas próprias pa-
lavras,
[...] a educação libertadora, problematizadora, já não
pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de trans-
ferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores aos
educandos, meros pacientes, à maneira da educação
“bancária”, mas um ato cognoscente. [...] O antago-
nismo entre as duas concepções, uma, a “bancária”,
que serve à dominação; outra, a problematizadora,
que serve à libertação, toma corpo exatamente aí.
Enquanto a primeira, necessariamente, mantém a
contradição educador-educando, a segunda realiza a
superação (FREIRE, 1987, p. 78).

Sendo assim, a proposta de educação popular é determinada pela busca


da conscientização, da defesa e preservação dos direitos humanos, por meio
de uma pedagogia de resistência contra sistema opressores e qualquer ação
que iniba, silencie ou agrida de algum modo a capacidade crítica e as sub-
jetividades do outro. Em caráter complementar, hooks (2013) propõe que a
não-neutralidade política seja explicitada nesse processo, reforçando o cunho
essencialmente ativista da pedagogia engajada, que desafia o status quo, que
se traduz em um sistema dominante que viola a capacidade e o direito à ex-
pressão do educando, configurando um espaço opressor e de inibição. hooks
(2013, p. 237) ressalta:
Os alunos são frequentemente silenciados por meio
de sua aceitação de valores de classe que os ensinam
a manter a ordem a todo custo. Quando a obsessão
pela preservação da ordem é associada ao medo de
“passar vergonha”, de não ser bem-visto pelo profes-
sor e pelos colegas, é minada toda possibilidade de
diálogo construtivo. Embora os alunos entrem na
sala de aula “democrática” acreditando que têm di-
reito à “livre expressão”, a maioria deles não se sente à
vontade para exercer esse direito.

159
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

O ideal da pedagogia libertadora e engajada está cada vez mais inserido


na lógica dos cursos pré-vestibulares comunitários, como uma onda contem-
porânea não só educativa – com o propósito base de disseminar conteúdos
estabelecidos durante o percurso do educando no Ensino Médio a fim de fa-
cilitar seu acesso às universidades públicas – mas também solidifica-se como
um dispositivo social de caráter pedagógico e político, movido pelas próprias
massas populares.

Cabe reforçar, contudo, que embora a educação popular como prática pe-
dagógica engajada seja amplamente adotada pelos pré-vestibulares comuni-
tários e sociais, suas identidades não são definidas apenas por suas práticas
metodológicas, uma vez que cada organização carrega consigo nuances e es-
pecificidades únicas, compreendendo o educando nas suas múltiplas relações
com a sociedade.

A UniFavela: projeto socioeducativo e comunidade de ensino-


aprendizagem no território da Maré

O Complexo da Maré é um conjunto composto por dezesseis favelas, lo-


calizado na zona norte do munícipio do Rio de Janeiro, com uma população
total de quase 140 mil habitantes (REDES DA MARÉ, 2020). Seu território
estrutura-se de modo culturalmente diversificado, visto que o processo de for-
mação de cada favela foi constituído em época distintas, dando origem a uma
vasta gama de histórias, identidades e contextos plurais significativos para a
localidade.

No entanto, quando falamos do acesso à educação pública, gratuita e de


qualidade, e da oportunidade de concluir cada etapa da escolarização formal,
avançando ao ensino superior, vemos uma tônica alarmante que perpassa de
forma homogênea toda essa população: dos 140 mil habitantes, 23,4% finali-
zaram o Ensino Médio, sem avançar ao nível superior. Apenas 2,3% da popu-
lação do Complexo de favelas da Maré com Ensino Médio completo conse-
guiu acesso à graduação de nível superior até 2019, e um número ainda menor,
1,4%, pôde conclui-la (REDES DA MARÉ, 2020).

Ao compararmos com o percentual nacional, o problema fica ainda mais


evidente: de acordo com o IBGE (2018), dentre aqueles que finalizaram o En-
sino Médio, a média nacional de estudantes que avançaram ao nível superior

160
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem

em 2017 era de 43,2%. Isso significa que a taxa de acesso ao nível superior no
Complexo de favelas da Maré por estudantes que finalizaram o Ensino Médio
chega a ser mais de vinte vezes inferior à média nacional. Esse é um forte
indicativo de que as ações governamentais e as políticas públicas de ações afir-
mativas vigentes não atendem a essa população.

Dessa realidade, que pode ser extrapolada para demais favelas e periferias
do estado do Rio de Janeiro, emerge a iniciativa da sociedade civil de cons-
tituir pré-vestibulares comunitários e sociais no território da Maré, visando
minimizar a lacuna deixada pela educação pública, buscando a ampliação do
acesso da população favelada e periférica ao Ensino Superior. Hoje, existem
três pré-vestibulares comunitários e sociais que atendem a essa população:
Curso Pré-Vestibular CEASM, localizado no Morro do Timbau, Curso Pré-
-Vestibular Redes da Maré, na favela da Nova Holanda, e o Pré-Vestibular Co-
munitário UniFavela atuando também na favela da Nova Holanda, projeto que
tomamos como recorte para o presente ensaio.

Destaca-se, de antemão, que embora o objetivo central dessas organi-


zações seja o ingresso no Ensino Superior, dada a já mencionada funda-
mentação sólida na pedagogia libertadora, crítica e engajada, os cursos pré-
-vestibulares comunitários e sociais promovem também a formação política
e cidadã da população atendida. Entendemos que essas iniciativas possuem
valor crucial no tecer de saberes democrático e horizontal, como propõe
hooks (2013), de modo a agir e refletir sobre o mundo a fim de modificá-lo,
contribuindo para a resistência e autoempoderamento dos moradores das
favelas e periferias.

O projeto UniFavela – Semeando o ensino popular surge com o sonho e a


missão de promover dentro do Complexo de favelas da Maré um espaço de
trocas e construção de saberes entre estudantes em fase de pré-vestibular e
universitários, majoritariamente moradores da Maré, com foco na ocupação
do Ensino Superior. A UniFavela consiste em uma rede de discentes univer-
sitários de múltiplas formações envolvidos na construção compartilhada e
inclusiva de conhecimento, tomando como ponto de partida os saberes e as
culturas produzidos nas favelas. Hoje, o projeto conta com uma equipe com-
posta inteiramente por voluntários, dentre eles 36 docentes, coordenadores
de área e atuantes na equipe pedagógica, 04 que compõem a equipe admi-
nistrativa, 01 na orientação institucional e 01 para suporte legal, totalizando
42 integrantes.

161
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Dessa maneira, a iniciativa busca impactar tanto a formação intelectual e


cultural dos estudantes quanto buscar espaço acadêmico para contribuir com
pesquisas baseadas em novas epistemologias, através das lentes de saberes pe-
riféricas e marginalizadas. Tal ação assume um viés de luta em face ao cresci-
mento da criminalização, da militarização e da segregação geográfica, social e
cultural sofrida pelo Complexo de favelas da Maré e de demais favelas do Rio
de Janeiro.

Para os encontros formativos, o projeto adota como metodologia a aplica-


ção de oficinas participativas, promovendo a valorização dos saberes cotidia-
nos adquiridos pelos sujeitos e a reformulação das relações tradicionais entre
sujeito e objeto (FREIRE, 1987). Trata-se da consolidação de um processo de
formação que parte da perspectiva dos envolvidos dada suas experiências co-
tidianas, das quais são protagonistas, visando a transformação emancipatória
por meio do emprego de uma perspectiva crítica quanto a sua realidade.

Propõe-se, ainda, a ênfase sistemática na interação entre teoria e prática,


na pesquisa e estudo como processo interativo de troca, e não apenas de trans-
missão de conteúdo, oportunizando a construção ativa de saberes coletivos e
socializados, e não apenas a “absorção passiva” de informações. Como pontua
hooks (2013, p. 120):
A política de identidade nasce da luta de grupos opri-
midos ou explorados para assumir uma posição a
partir da qual possam criticar as estruturas dominan-
tes, uma posição que dê objetivo e significado à luta.
As pedagogias críticas da libertação atendem a essas
preocupações e necessariamente abraçam a experi-
ência, as confissões e os testemunhos como modos
de conhecimento válidos, como dimensões impor-
tantes e vitais de qualquer processo de aprendizado.

Em 2020, o projeto UniFavela recebeu mais de 200 inscrições de estudan-


tes interessados nas aulas preparatórias para o ingresso no Ensino Superior.
Foram matriculados cerca de 80 estudantes, que foram separados em duas
turmas e atendidos em dois turnos - tarde e noite - em encontros regulares
presenciais de segunda à sexta-feira, além de aulões aos sábados com ativi-
dades de campo, a fim de com eles estudar, debater e explorar os principais
temas e assuntos, de todas as áreas do conhecimento, requisitados nos exames
de admissão das principais universidades públicas e particulares.

162
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem

Essa era a dinâmica do projeto UniFavela até o início da pandemia, quan-


do, por questões de segurança sanitária, o projeto suspendeu os encontros
presenciais, sendo deixado com o desafio: como adaptar a pedagogia engajada
para o ensino remoto, considerando que apenas 42,4% da população total da
Maré possuía computador em sua residência, a apenas 36,7% tinha acesso à
internet (REDES DA MARÉ, 2020)?

Desigualdades em tempos de pandemia: desafios dos educadores


e ações da UniFavela

Os pré-vestibulares comunitários e sociais, que atendem a populações pe-


riféricas, entendem que os educandos enfrentam diariamente problemas que
vão além da situação de pandemia na qual nos encontramos atualmente, pas-
sando por questão de acesso aos recursos tecnológicos, a materiais de estudos,
e incluindo até mesmo suas experiências em escolas públicas que adotam ma-
joritariamente o modelo de educação bancária (FREIRE, 2020), silenciando,
portanto, a subjetividade do outro.

Além das questões que se voltam para o fazer educacional propriamente


dito, com a pandemia e a necessidade de distanciamento social, muitas famí-
lias periféricas precisaram pausar suas atividades laborais, necessitando não
apenas de auxílio financeiro governamental, mas de doações de cestas bási-
cas e medicamentos. A necessidade de apoio e acompanhamento psicológico,
como suporte para manter a resiliência nesse momento tão delicado, também
se faz presente.

A realidade dos docentes e demais voluntários dessas organizações não


se distancia da realidade de seus estudantes: falta de acesso a equipamentos
e recursos tecnológicos, dificuldades financeiras, lacuna na formação docen-
te para lidar com propostas pedagógicas de ensino remoto, falta de suporte
psicológico. Tem-se, como produto, um somatório de desafios e obstáculos a
serem enfrentados, para que os estudantes possam continuar sendo ofertados
com aulas e materiais didáticos de qualidade.

O relato de uma das educadoras voluntárias da UniFavela, nesse recorte,


ilustra as inseguranças e as adversidades do contexto atual dos pré-vestibula-
res comunitários e sociais:

163
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Educar num país como o nosso nunca foi um mar de


rosas. Com a pandemia, torna-se um exercício ain-
da mais complicado: temos de nos forçar a lidar com
todo cansaço mental que uma crise pandêmica pro-
voca e dar conta da responsabilidade que é manter os
alunos ativos e confiantes o suficiente para controlar
a evasão. Além de tudo, o maior vestibular do país
está marcado para uma data que não nos permite
preparar os estudantes da maneira como queríamos,
o que limita ainda mais o aprendizado do aluno, já
meio comprometido pelo ensino remoto emergen-
cial e particularidades de cada um. No entanto, es-
tar inserida numa equipe como a da UniFavela faz
toda a diferença. A força e perseverança de um grupo
que em meio a isso tudo luta por melhores formas
de atender aos estudantes e educadores nos inspira e
nos lembra que precisamos respirar e nos alimentar
da luta. (Relato de uma voluntária, docente de Letras
- Espanhol).

Dado o contexto vivido durante a pandemia, as atividades docentes da


UniFavela foram suspensas no primeiro semestre de 2020, dando lugar a uma
série de reuniões e encontros virtuais estratégicos para mapear a situação de
seus estudantes e suas necessidades, para além da sala de aula, buscando re-
cursos para agir sobre as demandas que emergiram desse mapeamento. As
ações mobilizadas serão apresentadas no próximo tópico.

Para que fosse possível melhor compreender o contexto dos docentes vo-
luntários da UniFavela e sua relação com o ensino remoto, aplicou-se um
questionário, respondido por todos os docentes da instituição. O foco do
inquérito era o acesso aos recursos digitais, a fluência com esses recursos,
a experiência prévia com aulas a distância e o quão preparados se sentiam
para conduzir aulas remotamente. A seguir, detalhamos e comentamos os
resultados obtidos.

O questionário continha uma pergunta estratégica: “Você possui acesso à


internet Wi-Fi em seu domicílio?”. Embora grande parte das respostas tenha
sido positiva, um alento em meio a situação tão delicada, um quantitativo de
7% dos docentes não possuem esse acesso, o que dificulta ou mesmo impossi-
bilita sua atuação remota com os estudantes.

164
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem

Considerando que todos os docentes voluntários são licenciandos ou li-


cenciados na disciplina em que atuam na UniFavela, indagamos se esses sujei-
tos haviam tido contato com disciplinas voltadas para a educação a distância
e o uso educacional de tecnologias digitais ao longo de sua formação inicial
como docentes. O resultado é inquietante e chama atenção para as lacunas
na formação inicial de professores no que diz respeito a essa temática: 97%
dos docentes responderam não ter tido absolutamente nenhuma disciplina na
licenciatura que trabalhasse esses temas.

Na sequência, foi perguntado aos educadores de que maneira eles avalia-


vam seu próprio nível de familiaridade com as tecnologias digitais para dar
aulas remotas, com três opções de resposta: baixa, intermediária e avançada.
Apenas 3% dos docentes afirmaram ter proficiência com essas tecnologias.
A maior parte dos voluntários, 81%, afirmou ter familiaridade intermediária
com as tecnologias digitais, enquanto 16% declarou baixo conhecimento so-
bre como utilizá-las para aulas remotas.

Foi questionado, ainda, se os educadores haviam tido alguma experiência


prévia com aulas remotas como docente (por exemplo, em aulas particulares)
e, como resultado, 81% dos educadores responderam não possuir essa expe-
riência.

Ao serem indagados sobre o quão preparados se sentem para conduzir as


aulas remotamente, em uma escala do tipo Likert, tendo a opção “Totalmente
despreparado. Não entendo nada disso.” na posição de número um, de menor
valor, e a opção “Totalmente preparado. É só chegar!” na posição de número
cinco, de maior valor, apenas um docente indicou se sentir totalmente prepa-
rado. A maior parte das respostas se concentrou entre as posições 2, com 31%,
e 3, com 44% das respostas, totalizando 75% dos docentes não se consideran-
do suficientemente preparados para conduzir as aulas nessa modalidade.

Por fim, foi perguntado aos docentes se eles teriam interesse em partici-
par de encontros virtuais de formação continuada, com temas voltados para o
planejamento didático com uso de tecnologias, tendo 90% dos docentes ma-
nifestado interesse.

Como estratégia para continuar ofertando as aulas, agora de maneira re-


mota, a equipe da UniFavela optou por uma matriz de encontros de segunda-
-feira a sábado, no horário noturno, a partir do início do mês de agosto, tendo
dois voluntários acompanhando todos os encontros, garantindo o suporte

165
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

técnico necessário, além de mobilizar a gravação dos encontros, para dispo-


nibilização posterior aos estudantes. Dadas as mais dificuldades enfrentadas
durante o período de pandemia, apenas 24 docentes se dispuseram a conduzir
as aulas remotamente. O mesmo ocorreu com os estudantes: dos 80 estudantes
matriculados inicialmente, apenas 45 manifestaram interesse em engajar com
as atividades online. Ficou acordado entre a equipe que, após um mês de ex-
periência remota, haverá um encontro para ouvir os relatos de cada docente,
trocar experiências e, caso necessário, buscar novas estratégias para melhor
atender aos estudantes.

Ações emergenciais para além da sala de aula

Dentre as ações tomadas pelo projeto UniFavela buscando mitigar os pro-


blemas enfrentados durante o período de pandemia, destacamos três cruciais
para a coletividade, que extrapolam os limites da sala de aula, mas que são vi-
tais para que se coloque em prática, de fato, uma pedagogia libertadora, crítica
e engajada. Como acentua hooks (2013, p. 273):
A sala de aula, com todas as suas limitações, continua
sendo um ambiente de possibilidades. Nesse campo
de possibilidades, temos a oportunidade de trabalhar
pela liberdade, de exigir de nós e dos nossos cama-
radas uma abertura da mente e do coração e que
nos permita encarar a realidade ao mesmo tempo
em que, coletivamente, imaginamos esquemas para
cruzar fronteiras, para transgredir. Isso é a educação
como prática de liberdade.

As ações para além da sala de aula nas quais o projeto UniFavela tomou
parte foram: a instalação de serviços de internet banda larga para estudan-
tes que não possuíam nenhum tipo de acesso; a mobilização de parceria com
equipe de psicólogos para atendimento de estudantes e docentes; e a distribui-
ção de cestas básicas e álcool em gel à comunidade. Comentaremos brevemen-
te cada uma dessas ações a seguir.

O projeto UniFavela foi contemplado na campanha 4G para estudar, mo-


vimentada pela rede de ativismo NOSSAS, que visava arrecadar verba para
comprar e disponibilizar SIMCards com internet de 4G para estudantes de

166
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem

baixa renda que integrassem pré-vestibulares comunitários e sociais em todo


o território brasileiro (NOSSAS, 2020). Contudo, a ideia inicial de uso de 4G
não se mostrou a mais eficiente para atender aos estudantes, uma vez que a
condução de aulas online prevê o uso de plataformas digitais que exigem gran-
de consumo de dados.

Dessa forma, a organização, em pleno acordo com a rede NOSSAS, op-


tou pela instalação dos serviços de internet banda larga oferecidos no territó-
rio da Maré os estudantes em maior situação de necessidade, assegurando o
uso do serviço com o aporte dado pelo NOSSAS até dezembro de 2020. Essa
instalação está ocorrendo, já tendo sido feita para alguns estudantes. Como
o valor arrecadado foi superior ao utilizado para as instalações pontuais, o
projeto UniFavela assumiu dois compromissos com o restante do fundo, cuja
prestação de contas já foi realizada: 1) montar uma reserva para emergências
futuras com relação ao acesso à internet dos estudantes; 2) doar o restante do
valor para o pré-vestibular comunitário Construindo Caminhos (Educap), no
Complexo do Alemão.

Visando ao bem-estar e ao cuidado com a saúde mental de educadores


e educandos, a UniFavela impulsionou, via redes sociais, uma campanha à
procura de serviços de atendimento psicológico gratuito ou com preço po-
pular. No fim, estabeleceu-se uma parceria com seis profissionais dispostos a
atender gratuitamente a um total de dezesseis educadores que, no momento,
necessitavam do atendimento em caráter de urgência. A logística para o aten-
dimento dos estudantes está em fase de desenvolvimento e será implementada
ao longo do semestre.

A distribuição de cestas básicas e álcool em gel para à comunidade teve foco


nos estudantes da UniFavela que se encontravam em situação de emergência
financeira como consequência da pandemia. Foram 45 estudantes atendidos
pela ação, que respeitou todas as orientações de segurança sanitária indicadas
pelo Ministério da Saúde. As cestas e o álcool em gel foram entregues em dias
separados, separando os horários seguindo a ordem alfabética dos nomes, res-
peitando as orientações de afastamento e o uso constante de máscaras para a
proteção das vias respiratórias.

167
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Considerações finais

Ao analisarmos os contextos em que os pré-vestibulares comunitários e


sociais se encontram, tendo como recorte o caso da UniFavela, em especial
durante a pandemia, nos parece evidente a necessidade de pensarmos a edu-
cação para além dos muros das instituições, sejam esses muros físicos ou vir-
tuais. Afinal, como já pontuava Freire (2000, p. 67), “A educação sozinha não
transforma a sociedade, mas sem ela tampouco a sociedade muda”. É urgente
pensarmos o Brasil como um terreno de desigualdades visíveis, com políticas
(ou a ausência delas) que impactam diretamente a população pobre, limitando
suas possibilidades e oportunidades para o exercício legítimo do direito de
habitar a cidade e de exercer sua plena cidadania.

Ao voltarmos nosso olhar para a realidade díspar, percebemos que os de-


safios cotidianamente enfrentados por essas populações vão muito além das
aplicações didático-metodológicas em sala de aula. Do acesso à equipamentos
digitais, à internet, passando pelo desemprego, pelas dificuldades financeiras,
pela violência constante, pelo preconceito diário sofrido pelas populações
marginalizadas, e até mesmo pela fome: são diversas as batalhas a serem ven-
cidas para que seja possível, então, pensar no fazer-educacional voltado para
a aprovação no vestibular.

Dentro do ecossistema de uma pedagogia crítica e engajada, educador e


educando são peças-chave de uma educação que busca oportunizar e esti-
mular o desenvolvimento de ferramentas, recursos e saberes indispensáveis
à gênese de uma força-motriz que permita não apenas o empoderamento, a
emancipação e o protagonismo de cada sujeito, mas a compreensão do outro,
dos diversos Brasis, em busca da transformação e da libertação. Dessa forma,
voltar nosso olhar para a compreensão das realidades pobres, periféricas e fa-
veladas mostra-se essencial para essa jornada.

Em nosso contexto atual, em que deslocamentos e interações sociais foram


cerceados por conta do inimigo invisível SARS-CoV-2, projetamos um desejo
insaciável pelo “novo normal”. Afinal, “a vida não pode parar”. No entanto, às
populações pobres, faveladas e periféricas, esse “novo normal” nunca foi ge-
nuinamente ofertado: a violência, o extermínio e a fome indicam que o único
“normal” proposto a esses territórios é a normalização da barbárie pelo olhar
daqueles que apenas observam, de longe, essa realidade.

168
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem

Referências
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, P. Política e Educação. São Paulo: Cortez, 1993.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1997.

FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Apresentação de


Ana Maria Araújo Freire. Carta-prefácio de Balduino A. Andreola. São Paulo: Editora UN-
ESP, 2000.

GLASER, B.; STRAUSS, A. The discovery of grounded theory. New York: Aldene de Gruyter,
1967.

HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2013.

IBGE. Síntese de Indicadores Sociais 2018 - Uma análise das condições de vida da população
brasileira. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/ar-
quivos/ce915924b20133cf3f9ec2d45c2542b0.pdf. Acesso em: 16 ago. 2020.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. ENEM 2020 - Inscrições. 2020. Son., color. Legendado. (1


min). Disponível em: https://youtu.be/apufjiGlIY0. Acesso em: 4 mai. 2020.

NOSSAS (Org). 4G para estudar. 2020. Disponível em: https://www.4gparaestudar.org.br. Aces-


so em: 11 ago. 2020.

REDES DA MARÉ. Censo populacional da Maré 2019. Rio de Janeiro: Redes da Maré, 2020.
Disponível em: https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/CensoMare_
WEB_04MAI.pdf. Acesso em: 16 ago. 2020.

169
10
A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-
branca em meio ao ensino remoto nos cursos de Psicologia
Alexandre Trzan-Ávila

Resumo

O objetivo deste capítulo foi compreender como os corpos que fogem à cishe-
terossexualidade-branca, se tornaram ainda mais invisbilizados e silenciados na
realidade do ensino superior de Psicologia na modalidade remota justificada pela
pandemia de COVID-19. A análise aqui empreendida revela que a adoção por
vezes indiscriminada do ensino remoto no ensino superior de Psicologia no Brasil
justificada pela pandemia de COVID-19, proporcionou a ampliação de quadros
de invisibilidade e silenciamento de corpos de pessoas negras, trans, periféricas,
faveladas, gays e lésbicas, que agora não mais circulam nos ambientes físicos das
instituições, sendo assim, não desafiam mais a partir de suas existências o precon-
ceito e moralismo de gestores, coordenadores, professores e estudantes cisheteros-
sexuais-brancos.

170
O novo Coronavírus causador da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2
(SARS-CoV-2) mais conhecida como COVID-19 constituiu uma emergência de
saúde à nível internacional pela Organização Mundial de Saúde (OMS), vindo a
se afirmar como uma pandemia. A OMS sugeriu que o mundo deveria parar e se
isolar para lentificar o processo de contaminação e não sobrecarregar os sistemas
de saúde, públicos e privados. Então, de forma abrupta essa pandemia colocou
a grande maioria da população brasileira de quarentena, dentro de suas casas e
limitou drasticamente toda e qualquer atividade fora do lar, inclusive profissional
e educacional, afetando assim milhões de estudantes e milhares de professores em
todo o país.

Em um mundo que não pode parar, onde a demanda por produção e os inte-
resses econômicos são imperativos, um número incontável de estabelecimentos de
ensino implantaram (ou ampliaram drasticamente) o ensino remoto, o que gerou
outro incontável número de problemas, ocultamentos e violências para muitos dos
envolvidos.

O que nós educadores temos visto muitas das vezes é uma completa negli-
gência e despreocupação sobre os reais impactos advindos da ampla implantação
do ensino remoto no Brasil, isso tudo em meio a um cenário de mais de cem mil
mortos pela COVID-19, crise da democracia brasileira e retrocessos que nos to-
mam de assalto no campo da educação, meio ambiente, saúde e políticas públicas.
A adoção do ensino remoto diante de um cenário de instabilidade política e sani-
tária, isolamento social e crise das instituições, fragiliza ainda mais os estudantes,
professores, pais e demais envolvidos nos processos de educação em nosso país, e
como veremos, há uma parcela bem específica que é ainda mais prejudicada.

Mesmo com toda uma política genocida do governo federal e a desarticulação


do planejamento e das ações entre municípios, estados e união no combate ao
novo Coronavírus, não iremos discutir a realidade inegável da pandemia e a ne-
cessidade da quarentena como estratégia de proteção da saúde e da vida de todos
os brasileiros, mas sim, poremos em questão a naturalização da necessidade de
continuarmos as aulas de forma remota em meio à pandemia, quarentena, despre-
paro dos profissionais para esta realidade e, principalmente, trataremos do risco
concreto de ampliarmos as desigualdades, opressões e violências.

O nosso objetivo tem um recorte específico, que é o de realizar uma reflexão


sobre aspectos político-pedagógicos do ensino remoto no ensino superior de psi-
cologia no Brasil e sua relação com a ampliação das desigualdades e violências.

171
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Começaremos chamando atenção para a necessidade de uma compreensão


crítica da história, pois é ela que, às últimas consequências, orienta nossas
falas, comportamentos, consensos e opiniões, que em geral, perdem o caráter
histórico que as constituem e passam a ser tidas como naturais e a-históricas.
Paulo Freire já nos alertou que: “A natureza humana constitui-se na História
mesma e não antes ou fora dela” (FREIRE, 2018, p. 14), e “É historicamente
que o ser humano veio virando o que vem sendo” (FREIRE, 2018, p. 14).

Por outro lado, o simples questionamento proposto aqui para muitos, soa
como absurdo, leviano e pouco realista, pois, para eles, questionar o caráter
histórico e os jogos de poder que moldam as pessoas, instituições e suas re-
lações não parece possível. Para eles, há somente “o que é e tem que ser”, e
tem que ser ao modo que é, ou seja, para eles nosso mundo “é o que é”, e não
adianta questionar. Esta postura, por fim irá justificar as práticas de correção,
adaptação e violência no ambiente educacional.

Entretanto, nós educadores compreendemos que a missão de todo educa-


dor é lutar pela construção de um mundo melhor, mais democrático e mais
justo, e para isso não basta somente não sermos racistas, misóginos, homo-
fóbicos, transfóbicos, mas sim agirmos contra todas as formas que estes pre-
conceitos e violências possam se mostrar, mesmo que de forma velada, em
discursos técnicos, teóricos, científicos, que acabam por sustentar violências
contra os corpos e existências de populações historicamente aviltadas e com
menor acesso a direitos e cidadania. Nossa intenção é afirmar a palavra verda-
deira, como nos diria Paulo Freire, a partir da reflexão da dimensão política e
social da formação humana, onde cada estudante se revela como sujeito sócio-
-histórico-cultural do ato de conhecer.

Reforçar a importância de Paulo Freire é se opor a todo este governo ge-


nocida e destruidor da educação no Brasil. Não consigo imaginar um texto
escrito hoje no Brasil sobre educação que não cite Paulo Freire, até como um
ato político transgressor! Que a lembrança de Paulo Freire incomode os que
hoje estão no poder ou os que os apóiam. Afinal, como nos lembra o próprio:
Não se faz pesquisa, não se faz docência como não
se faz extensão como se fossem práticas neutras. Pre-
ciso saber a favor de que e de quem, portanto contra
que e contra quem pesquiso, ensino ou me envolvo
em atividade mais além dos muros da Universidade
(FREIRE, 2018, p. 132).

172
10 – A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-branca
em meio ao ensino remoto nos cursos de Psicologia

É fundamental entender qual o projeto que governa uma universidade.


Devemos nos perguntar se a instituição onde trabalhamos se orienta por uma
perspectiva progressista ou tradicionalista. Qual a relação dela com o capital
e quais interesses econômicos a atravessam? As respostas a estas perguntas
dizem muito sobre o modo como esta instituição pensa e implanta (ou não
implanta) o ensino remoto para seu corpo de estudantes e professores.

Devemos reconhecer que, de início e na maioria das vezes, as pautas de


raça, gênero, sexualidade, identidade e decolonialidade são negligenciadas no
decorrer da formação de futuros psicólogos e psicólogas, e que devemos no-
mear as violências oriundas de discursos universalizantes com seus corpos
que não só reproduzem, mas também produzem o aniquilamento de subjeti-
vidades não-cisgêneras, não-brancas, não-heterossexuais; em suma, subjetivi-
dades colonizadas pela cisgeneridade, pela branquitude, pela heterossexuali-
dade compulsória.

Ao falarmos de heterossexualidade compulsória, estamos apontados para


uma força ou poder instituído que confere a heterossexualidade o caráter de
natural, proporcionando à mesma as ferramentas para estruturar e cobrar
uma política de heterossexualidade caracterizada como compulsória, isto é,
que não abre possibilidades para dissonâncias e contradições. Sobre esse pon-
to Butler (2017, p. 53) nos esclarece que:
A instituição de uma heterossexualidade compulsó-
ria e naturalizada exige e regula o gênero como uma
relação binária em que o termo masculino diferen-
cia-se do termo feminino, realizando-se essa diferen-
ciação por meio das práticas do desejo heterossexual.

Há um projeto de normatização e silenciamento da diversidade em an-


damento no país, inclusive nas universidades. Esse processo ocorre na me-
dida em que as narrativas de pessoas inconformes (VERGUEIRO, 2015) às
normas de gênero, sexualidade e raça a cada dia encontram menos espaço
no ambiente acadêmico para se expressarem diferentemente dos cisheteros-
sexuais-brancos. Sendo assim, como poderemos atender ao que Lima abaixo
nos convoca?
A formação em Psicologia demanda o alargamento
do arcabouço teórico-prático e, sobretudo, a revisão

173
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

de conceitos e práticas hegemônicas que têm servido


para excluir determinadas experiências e vivências
subjetivas e sociais. Mais especificamente, é necessá-
rio avançar no currículo do curso de Psicologia reco-
nhecendo as demandas da população que utiliza dos
nossos serviços. Mas, para isso, há outras esferas de
saber que a Psicologia deve se apropriar e que não se
encontram nos livros clássicos, mas no seu contato
direto com os dilemas da realidade contemporânea.
(LIMA, 2019).

É notório que em muitas instituições de ensino superior no Brasil os cor-


pos de mulheres negras, periféricas, faveladas, ou de homens e mulheres trans,
ou gays e lésbicas inseridos no ambiente acadêmico causam estranhamentos
e questionamentos de alunos e alunas cisheterossexuais-brancos. Apesar do
estranhamento que seus corpos provocam nos ambientes que ocupam, suas
vivências no ambiente acadêmico caracterizam-se por invisibilidade, desloca-
mento e tentativas constantes de apropriação ou negação de suas narrativas.

E não podemos esquecer as ocorrências de processos de violência que es-


ses corpos inconformes são submetidos dentro do ambiente acadêmico por
meio dos saberes e o modo como os docentes trabalham seus conteúdos e se
dirigem a eles, seguindo de forma indelével o que o processo colonial impõe
a partir de modelos de gênero, sexo e raça do colonizador que, por sua vez,
visam normatizar o desejo e as performances de todos os sujeitos, onde os
desviantes da norma são considerados essencialmente anormais, deficientes e
maus, inclusive por meio da mídia e da educação.

Sendo assim, devemos localizar e combater os discursos que se contra-


põem aos estudos decoloniais dentro do espaço acadêmico, e apoiar os pro-
cessos oriundos do pensamento decolonial que se propõem a romper as im-
posições de performances e as práticas de embranquecimento e normatização
dos corpos conforme os padrões colonizados da cisheterobranquitude (MAL-
DONADO-TORRES, 2018).

Trabalhar almejando a decolonização discursiva e material dos corpos des-


viantes da norma de gênero, raça e sexualidade e mesmo dos não desviantes
da norma hegemônica é uma tarefa urgente. Todo este silenciamento em nada
contribui para a construção de uma formação acadêmica plural e democrática.

174
10 – A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-branca
em meio ao ensino remoto nos cursos de Psicologia

Consideramos que não há educação neutra, que não tratar de temas como
pensamento colonial, violência de gênero, homofobia e transfobia já é perpe-
tuar a lógica colonial, machista, misógina e LGBTIfóbica.

Frente a isso, Vergueiro (2015) propõe uma discursividade que possibilite


nossas narrativas em um campo epistemológico colonizado e contaminado
por marcos normatizantes a partir dos quais as vozes subalternizadas foram
e estão sendo moldadas e esquematizadas, mas será possível levar a cabo este
projeto de inclusão e cidadania no ensino remoto?

No mundo virtual, das salas de aula remotas, dos aplicativos de tele-aula


(antiga tele-reunião) temos apenas os rostos daqueles que deixam suas câme-
ras ligadas e a voz de um estudante por vez. Desta forma, desaparecem as dife-
renças de cor da pele, identidades de gênero com sua diversidade que engloba
os corpos transexuais, travestis, gays e lésbicas. Somem as roupas, vozes nos
corredores, modos de caminhar e gestos dos inconformes a cisheteronormati-
vidade. Quando não somem, ficam por demais invisibilizados.

Nesta “nova” realidade, corpos inconformes ou “perigosos” de estudantes


LGBT, negras e negros que enfrentam a violência do ambiente acadêmico
cotidianamente, passam a não mais incomodar os professores, coordena-
dores e até mesmo outros estudantes de viés conservador, tendo assim seus
próprios corpos apagados do cenário institucional. Isto é a realização do
sonho de muitos gestores, coordenadores e professores fascistas e reacioná-
rios que já humilharam, diminuíram ou tentaram destruir estas existências
particularmente, pois agora a instituição de ensino não perde o dinheiro
destes estudantes e ao mesmo tempo não tem que conviver, ver ou enfrentá-
-los presencialmente.

O que está em jogo nesta realidade é algo que Butler (2016, p. 19) tra-
balhou no seu livro “Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto”
de 2009, no título dessa obra a autora nos remete à ideia de “enquadramen-
tos” que “são constituídos variável e historicamente”. Essas classificações são
modos de separar e diferenciar as vidas que podem ser reconhecidas como
vidas e vidas que dificilmente — ou, melhor dizendo, nunca — são reconhe-
cidas como vidas. A condição para ser reconhecido “não é uma qualidade ou
potencialidade de indivíduos humanos” (BUTLER, 2016, p. 19). Compreen-
der como essas normas operam através de enquadramentos classificatórios
é importante para nós, de modo a esclarecer porque alguns indivíduos são

175
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

reconhecíveis e outros não, tal como ocorre no interior do “enquadramento


da política sexual e feminista” (BUTLER, 2016, p. 47).

Os esquemas regulatórios não são estruturas atemporais, mas sim crité-


rios historicamente revisáveis, de inteligibilidade que produzem e submetem
os indivíduos que regulam. Neste contexto, trabalhemos a noção de “sexo”
e vejamos que não é simplesmente algo que alguém tem ou se é, ele é uma
das normas pelas quais o “alguém” simplesmente se torna viável, é aquilo que
qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cul-
tural. Portanto, o sexo garante a inteligibilidade ou não conforme o imperativo
heterossexual que “possibilita certas identificações sexuadas e impede ou nega
outras identificações” (BUTLER, 1999, p. 153).

Existências invisibilizadas a partir de enquadramentos de gênero, raça,


classe social tornam estas vidas, “vidas precárias”, termo que Butler (2016)
utiliza para designar vidas que podem ser lesadas, perdidas, destruídas, siste-
maticamente negligenciadas até a morte: vidas que podem ser eliminadas de
maneira proposital ou acidental, que padecem de total indiferença e não são
enlutáveis. Vidas, quando passíveis de luto, são vidas que tendem a ser preser-
vadas. Sem a condição de ser enlutada, uma vida não é vida, ou melhor, está
vivo, mas é menos do que vida e por isso não será preservada ou sequer enlu-
tada quando perdida. Reconhecer uma vida como precária tem consequências
restritivas nas condições “políticas e sociais concretas no que diz respeito a
questões como habitação, trabalho, alimentação, assistência médica e estatuto
jurídico” (BUTLER, 2016, p. 30). Devemos incluir nesta última relação o di-
reito e acesso à educação, desta forma podemos compreender em boa parte
a indiferença de alguns gestores, professores e estudantes para com aqueles
que não possuem os meios tecnológicos e estrutura física para participarem
das aulas remotas, por que estes excluídos geralmente constituem os grupos
sociais menos favorecidos, negros(as) e a população LGBT.

Podemos perceber no cotidiano que há vidas que quando perdidas se


tornam para nós — ou já chegam até nós — como simples números, como
exemplo, as estatísticas de assassinato de travestis e transexuais no Brasil. Pois,
quase diariamente ouvimos falar que o Brasil é o país que mais mata pessoas
“trans” no mundo. Essa informação é validada pela Associação Nacional de
Travestis e Transexuais (ANTRA). ANTRA é uma rede que articula em todo
o Brasil mais de 200 instituições, com o objetivo de desenvolverem ações para
a promoção de direitos e o resgate da cidadania da população de Travestis e

176
10 – A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-branca
em meio ao ensino remoto nos cursos de Psicologia

Transexuais; sua missão é identificar, mobilizar, organizar, aproximar, empo-


derar e formar Travestis e Transexuais das cinco regiões do país para constru-
ção de um quadro político nacional a fim de representar a população LGBT na
busca da cidadania plena e isonomia de direitos. A ANTRA (2018) evidencia
no Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil os assassinatos
que aconteceram contra a população “trans” motivados por “transfobia” ou
“LGBTfobia”1, ou seja, crimes motivados pelo ódio por conta da identidade de
gênero assumida das vítimas que desafiam a norma social.

Podemos compreender as consequências do enquadramento das vidas pela


seguinte afirmação de Butler: “uma vida tem que ser inteligível como uma vida,
tem de se conformar a certas concepções do que é vida, a fim de se tornar re-
conhecível” (BUTLER, 2016, p. 21). Pois, as vidas não suscetíveis ao reconhe-
cimento são menos vidas, assim passiveis de violação de direitos, não acesso à
educação e alvo de violências e extermínio mais do que as outras, sem ao menos
despertarem solidariedade, comoção ou busca de justiça por parte da maioria
da sociedade e seus aparelhos políticos-jurídicos (TRZAN-ÁVILA, 2019).

Portanto, a visibilidade dos corpos inconformes no ambiente acadêmico


servem para: Questionar a suposta estabilidade e superioridade das identida-
des hegemônicas; Colocar em debate a diferença entre indivíduos (mais do
que trabalhar a tolerância e o respeito); Combater toda forma de homofobia/
LGBTfobia; Pôr em análise os enquadramentos; apoiar as rupturas e criati-
vidades nos modos de ser e exercer a sexualidade; Atentar para as disputas,
jogos políticos, interesses, conflitos e negociações que estão em jogo na socie-
dade, nas políticas públicas e na educação no Brasil.

Os movimentos negros, feministas e LGBTQIA+ lutam para fortalecer a


visibilidade e legitimidade das pessoas pretas, das mulheres e da população
LGBTQIA+ como sujeitos políticos de direitos, enfrentando assim séculos
de submissão e opressão heteronormativa no bojo das sociedades ocidentais.
Através da busca de estratégias de visibilidade, ocupação de espaços públicos
(ou privados) – na educação e fora dela - e politização da sociedade com con-
sequentes transformações institucionais e sociais.

1. LGBTfobia é um termo utilizado para identificar o ódio, a aversão ou a discriminação de


uma pessoa contra qualquer membro da população LGBT, e que pode incluir formas sutis,
silenciosas e insidiosas de preconceito e discriminação, indo até o ponto de agressões físicas
e assassinatos.

177
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Esta triste realidade de ocultamento e aniquilamento da diversidade e de


corpos na realidade do ensino remoto é a denúncia que este texto pretende
realizar acima de todas as outras. Assim como, afirmar que cada um que se
“julgue superior a essas intrigas, não faz outra coisa senão trabalhar em fa-
vor dos obstáculos” (FREIRE, 1996, p. 42), reproduzindo incessantemente em
suas práticas o discurso alienado, violento e que mantém o status quo de uma
sociedade misógina, racista e LGBTfóbica.

Devemos o quanto possível, ampliar nossa compreensão de mundo e não


reproduzir o modelo hegemônico de ensino que deforma a necessária cria-
tividade e capacidade crítica do estudante. Desta forma, nos colocamos nas
trincheiras contrárias a qualquer forma de discriminação, prática preconcei-
tuosa de raça, gênero, sexualidade e classe, que nega a democracia e a igual-
dade social. Para isso é necessário superar uma perspectiva acadêmica mono
epistêmica, apoiada exclusivamente, ou no mínimo preponderantemente, na
perspectiva científica europeia/estadunidense. Precisamos materializar um
ambiente acadêmico pluriepistêmico, de modo que os saberes dos povos tra-
dicionais, ribeirinhos, população LGBTQIA+, população do campo e indíge-
nas, população negra, quilombolas, romanis, povos faxinalenses, catadores de
mangaba, quebradeiras de coco de babaçu, povos de terreiro, comunidades
tradicionais pantaneiras, pescadores, caiçaras, extrativistas, pomeranos, reti-
reiros de Araguaia, comunidades de fundo de pasto, povos nômades, popula-
ção ribeirinha possam compartilhar em espaço de igualdades suas perspecti-
vas de conhecimento (CFP, 2019).

O espaço acadêmico também deve ser o lugar para desconstruir estigmas e


preconceitos, desocultar as estruturas de violência de nossa sociedade, denun-
ciar as opressões historicamente constituídas e ainda presentes, e despertar a
beleza da diferença.

Será possível garantir uma educação libertadora fundamentada na co-


participação, reciprocidade e que favoreça a autonomia do ser dos(as)
educandos(as) por meio remoto? Assim como garantir um espaço para o en-
contro entre indivíduos de forma igualitária, em meio às desigualdades e difi-
culdades de acesso às tecnologias de informação e comunicação (TIC)? Como
garantir uma formação digna a quem não tem a infra-estrutura necessária
para conexão e estudo remoto? Ou será que o fosso social entre os estudantes
aumentará cada vez mais?

178
10 – A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-branca
em meio ao ensino remoto nos cursos de Psicologia

Não podemos esquecer que os mais prejudicados serão principalmente os


estudantes mais vulneráveis socialmente, que em geral, é o grupo composto
por negras, negros e a população LGBTQIA+. Para estes as dificuldades de
acesso remoto são inúmeras, tais como problemas de conexão com a internet,
dispositivos eletrônicos indisponíveis, falta de espaço físico que garanta o es-
tudo e a participação nas aulas.

Temos que nos opor aos discursos pós-modernos reacionários e estúpidos,


estruturados por interesses econômico, com ares de soberba e indiferença,
que desqualificam as vidas diferentes das deles e defendem um pragmatis-
mo oportunista e negador dos sonhos e da utopia. Como disse Paulo Freire,
“Imoral é a dominação econômica, imoral é a dominação sexual, imoral é o
racismo, imoral é a violência dos mais fortes sobre os mais fracos” (FREIRE,
2018, p. 108).

Por fim, não temos dúvidas de que há uma infinidade de problemas rela-
cionados ao ensino remoto, tais como: o desgaste físico e emocional que isso
vem provocando nos professores. Muitos estão trabalhando dobrado, triplica-
do – além do trabalho já comum a prática docente, os professores agora têm
de se desdobrar em reuniões e formações pedagógicas online, preparar mate-
rial didático escrito, gravar vídeo aulas e editá-las, estar disponíveis aos alunos
e dar-lhes assistência via plataformas ou grupos de WhatsApp®. Em meio a
toda precarização da educação, ficou ainda mais evidente o gritante problema
de todo sistema educacional, indistintamente, na apropriação e utilização das
elencadas ferramentas de TIC, EaD ou e-learning, e também, os interesses dos
grupos educacionais privados e a precarização do ensino público alinhado ao
descaso do Estado com a educação pública, ao não suprir as necessidades mí-
nimas de formação ampla e universal dos professores e necessidades materiais
(equipamentos, logística e financiamentos), muito provavelmente com fins de
privatizar a educação pública em futuro próximo.

Devemos garantir uma formação em que todos(as) os(as) educandos(as)


possam se sensibilizar contra as opressões de raça, sexualidade, gênero, classe,
e etc. e possam em seu futuro exercício profissional compreenderem e com-
baterem estas mesmas opressões. Mas como buscar este objetivo no ensino
remoto? Apostamos na luta para que todos os envolvidos no ensino, seja ele
presencial ou remoto, possam se juntar na construção de uma sociedade mais
democrática e menos desigual, assumindo uma postura contrária à todas as
práticas de desumanização, rumo à superação da opressão, discriminação,

179
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

passividade ou pura rebelião. Que não estejamos aqui para simplesmente es-
tudar, trabalhar ou sobreviver, mas para sonhar, existir e construir história.

Realizar esta proposta em tela não é impossível: hoje conduzimos de for-


ma coletiva na instituição privada onde leciono – isto é, eu junto a estudan-
tes que fogem às normas classe média-branco-cis-hétero – resistência e luta
por visibilidade, realização de debates sobre questões de gênero, raciais e seus
atravessamentos e interconexões (dentro e fora da instituição), divulgação de
material de autoras e autores não cisheteronormativos-brancos, produção aca-
dêmica, questionamento à grade acadêmica cisheterocentrada e denúncia de
dispositivos de silenciamento e normatização do ambiente acadêmico, prin-
cipalmente através de nossa iniciação científica intitulada “Uma leitura de-
colonial da Cisnormatividade e heterossexualidade compulsória no ambiente
acadêmico”, e de um projeto de pesquisa no Núcleo de Clínica Ampliada Fe-
nomenológica Existencial (NUCAFE) com uma de suas linhas de pesquisa
denominada “Repensando a Psicologia Clínica a partir da cisnormatividade,
heterossexualidade compulsória e pensamento decolonial”, inscrita no CNPq.
Este é um movimento pequeno, mas na direção da construção de um mundo
melhor, mais democrático e mais justo, que se propõe como prática educativa
problematizante, ética e responsável, em vez de autoritária, antidemocrática,
domesticadora e alinhada aos interesses de manutenção do status quo.

Referências
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vestis e Transexuais no Brasil em 2017. Brasil. Disponível em: 2018, de https://antrabrasil.
files.wordpress.com/2018/02/relatc3b3rio-mapa-dos-assassinatos-2017-antra.pdf. Acesso em:
20 ago. 2018.

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BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro:
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Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Caderno_de­li­be­ra­%­C3­
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
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180
10 – A invisibilidade dos corpos inconformes à lógica cisheterossexual-branca
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FREIRE, Paulo. Política e educação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.

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mes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação (Mes-
trado em Psicologia) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, Universidade Federal da
Bahia, Salvador, Bahia, 2015.

181
11
Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes no
ensino superior: algumas reflexões1
Marilda Gonçalves Dias Facci
Nilza Sanches Tessaro Leonardo
Eloisa Rocha de Sousa Alves

Resumo

No campo da produção acadêmica na atualidade, temos várias pesquisas que


tratam do sofrimento e do adoecimento do trabalhador, estabelecendo uma rela-
ção entre trabalho e saúde/doença mental. É sobre esse tema que o capítulo versa.
Nosso objetivo é apresentar os resultados de uma pesquisa sobre o adoecimento do
professor universitário, realizada em uma universidade pública da região noroeste

1. Esta pesquisa contou com financiamento do CNPq por meio de Bolsa de Produtividade em Pes-
quisa e Bolsa de PIBIC.

182
do estado do Paraná, com foco no uso que docentes fazem de medicamentos. Ini-
cialmente, faremos uma breve discussão sobre as relações de trabalho e sofrimento/
adoecimento, tomando como referência a Psicologia Histórico-Cultural; na sequ-
ência apresentaremos os resultados da pesquisa, realizada por meio da aplicação de
questionários. Participaram do estudo 67 docentes da área de Ciências Humanas.
As informações obtidas revelam que a maioria dos docentes (66%) possui algum
tipo de doença, sendo as mais citadas a ansiedade e a depressão; 68,66% já fizeram
uso de algum medicamento nos últimos 12 meses e 41%, dos professores trouxe-
ram as condições do trabalho como sendo as determinantes em seu adoecimento.
Tomando por base esta pesquisa, em que os professores foram entrevistados an-
tes da pandemia da COVID-19, já obtivemos como resultados o adoecimento e a
medicalização. Desse modo, temos aberta a possibilidade de inferirmos que muito
provavelmente os professores estejam “adoecendo” ainda mais, e obviamente bus-
cando nos remédios o alívio das dores e dos sofrimentos provocados pelo momento
dessa trágica pandemia que estamos atravessando. Urge, portanto, compreender o
sofrimento/adoecimento em sua totalidade, nas relações sociais, e, coletivamente,
buscar alternativas para que o trabalho contribua mais para o processo de humani-
zação dos docentes.

Introdução

No campo da produção acadêmica na atualidade, temos várias pesquisas que


tratam do sofrimento e do adoecimento do trabalhador, estabelecendo uma re-
lação entre trabalho e saúde/doença mental. Professores, que já vinham em uma
situação de adoecimento, como veremos nesse capítulo, podem ter maior sofri-
mento psíquico devido à COVID-19, que assola o país e já levou a óbito, até agosto
de 2020, mais de 100.000 brasileiros e aproximadamente 20 milhões de pessoas
infectadas no mundo – mais de 700 mil vieram a óbito. No Brasil já temos mais
de 3 milhões de pessoas infectadas. Neste contexto, as condições de trabalho estão
sendo mais precarizadas, na busca de manter a sociedade guiada pelo capital.

É sobre o adoecimento e uso de medicamentos que esse capítulo trata. Nosso


objetivo é apresentar os resultados de uma pesquisa sobre o adoecimento do
professor universitário, realizada em uma universidade pública da região noroeste
do estado do Paraná, com foco no uso que docentes fazem de medicamentos. Ini-
cialmente, faremos uma breve discussão sobre as relações de trabalho e sofrimen-
to/adoecimento, na sequência apresentaremos os resultados da pesquisa.

183
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Sofrimento/adoecimento e o trabalho

Em época de pandemia, Moronte (2020) afirma que existem três tipos de


trabalho: trabalhadores sem trabalhos, que estão desempregados; teletraba-
lhadores, que executam o trabalho em suas casas, e trabalhadores em tempo
de guerra – aqueles que têm que continuar trabalhando porque desenvolvem
serviços essenciais, como os da área de saúde, segurança pública e venda de
alimentos, entre outras atividades.

Professores podem ser considerados trabalhadores, de acordo com a defi-


nição fornecida por Antunes (2009), porque vendem a sua forma de trabalho
e não possuem os meios de produção. Esses profissionais, de acordo com Tu-
molo e Fontana (2008), vivem também o processo de proletarização de suas
condições de trabalho, o que ocorre em outras categorias profissionais. Na
vida profissional, vivenciam o rebaixamento salarial, a desqualificação da ati-
vidade realizada, a desvalorização social da profissão e a perda de controle do
processo de trabalho, por exemplo, que interferem no sentido dado ao mesmo.

Segundo a Psicologia Histórico-Cultural (TOLSTIJ, 1989), entendemos


que o trabalho é a atividade principal que liga o adulto à sociedade, portanto
o fato de não estar trabalhando pode gerar sofrimento e adoecimento. Mo-
ronte (2020) analisa que o fato de não estar desenvolvendo uma atividade
profissional pode criar uma crise de identidade e interferir na saúde mental
do trabalhador.

Aqueles que estão fazendo o teletrabalho, conforme Moronte (2020), estão


sendo guiados por metas, por objetivos a cumprir, com uma flexibilização de
horário que acaba tomando todo o espaço de vida do sujeito. Ao contrário do
que a mídia muitas vezes declara, sobre uma ampliação da liberdade, o sujeito
vivencia maior exploração e maior intensificação do trabalho.

Assim, aqueles trabalhadores que exercem atividades ligadas à subsistên-


cia, nessa época de distanciamento social, também vivem situações de pre-
cariedade, como falta de máscaras, medicamentos e falta de leitos, tendo que
lidar com seus sofrimentos e dos pacientes, no caso dos da área da saúde. Em
outros postos de trabalho, o medo de seu próprio contágio e dos familiares
assombra o dia a dia dos funcionários. Segundo Moronte (2020), toda essa
situação traz um desgaste psíquico e leva a sintomas de ansiedade e depressão,
entre outros transtornos.

184
11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões

Antes mesmo da pandemia, o trabalhador já precisava, a todo custo, cum-


prir as metas estabelecidas pelos dirigentes. Essas metas, impostas nas rela-
ções de trabalho, segundo Antunes e Praun (2015), se tornam um mecanismo
disciplinador, no qual o próprio trabalhador controla seu comportamento
na busca do aumento de produtividade; leva a um controle das faltas pelas
equipes de trabalho; reduz o tempo de repouso; promove competição entre
os trabalhadores e equipes e aprofunda as experiências de acordos coletivos
firmados pelos empregadores. As metas que são exigidas nos vários campos
de trabalho também permeiam a atividade docente, seja no momento que está
na escola, seja no momento de descanso.

A terceirização promove a prática de contratos temporários para atender


as demandas de mercado, provocando uma precarização do trabalho e, con-
sequentemente, desestruturação da classe trabalhadora (ANTUNES; PRAUN,
2015). Nas universidades isso é visível, com os vários contratos temporários
que produzem rotatividade de professores, por exemplo, entre outros pontos
que interferem na prática pedagógica.

Tempos sombrios caracterizam o trabalhador e a forma como o trabalho está


organizado produz adoecimento. Antunes e Praun (2015) ao discutirem sobre
a relação entre trabalho e adoecimento, afirmam que as modificações que ocor-
reram no trabalho nos últimos anos tiveram impacto nas relações de trabalho,
[...] na diminuição drástica das fronteiras entre ati-
vidade laboral e espaço da vida privada, no desmon-
te da legislação trabalhista, nas diferentes formas de
contratação da força de trabalho e em sua expres-
são negada, o desemprego estrutural (ANTUNES;
PRAUN, 2015, p. 423-424).

No caminho da constituição do ser social, Marx e Engels (1996, p. 39) as-


severam que por meio do trabalho os homens transformam a natureza, pro-
duzem seus meios de vida, seus alimentos, “[...] que permitem a satisfação
das necessidades, a produção da própria vida material. Eles transformam a
natureza ao mesmo tempo em que transformam a si mesmos”.

Lessa (2012), baseado em Marx e Lukács, entende que o trabalho “[...] é a


categoria fundante do mundo dos homens. É no trabalho que se efetiva o sal-
to ontológico que retira a existência humana das determinações meramente

185
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

biológicas. Sendo assim, não pode haver existência social sem trabalho.” No
entanto, na relação de produção capitalista ocorre um estranhamento, um
processo de alienação, que pode contribuir para o adoecimento.

Neto e Carvalho (2015, p. 71) fazem a seguinte síntese em relação a esse


estranhamento:
A efetivação do trabalho reaparece do outro lado
como desefetivação do trabalhador, a objetivação do
mundo reaparece como perda do objeto para o tra-
balhador, quando mais objetivado o mundo, maior é
a miséria do trabalhador e tanto mais este mundo se
volta contra o próprio trabalhador como força hostil.

Leontiev (1978a, 1978b) analisa que por meio da atividade o homem se


relaciona com a realidade, se apropria dos significados dados socialmente e
forma sentidos. Numa abordagem marxista, o trabalho deveria formar esse
homem, levá-lo ao desenvolvimento pleno, no entanto em um processo de
alienação ocorre uma ruptura entre sentido e significado e o sujeito. Como
Marx (2008) afirma, o homem se torna mercadoria.

Assim, nos apoiando na Teoria da Atividade de Leontiev, podemos afirmar


que o motivo – aquilo que incita a ação – com o processo de alienação, leva os
indivíduos a serem guiados por motivos estímulos – que impulsionam a ação,
mas não dão origem ao sentido – e não por motivos geradores de sentido – que
se referem aos motivos que impulsionam a atividade e tem um sentido pessoal.

Assim, os trabalhadores acabam sendo guiados por ações que levem a suprir
as suas necessidades básicas, deixando de lado a unidade consciente entre mo-
tivos e fins. Executam o trabalho, mas somente para terem recursos financeiros
para gastos com a sobrevivência, sem ascender ao gênero humano, ou seja, sem
se apropriar da riqueza do que é produzido pelos homens historicamente.

Para entender o adoecimento segundo a abordagem da Psicologia Histó-


rico-Cultural, de base marxista, é preciso compreender que estamos falando
de homens reais, que vivem dentro de uma sociedade desigual, em que as
relações de trabalho são alienadas e, portanto, influenciam na formação do
psiquismo, que, por sua vez, reflete no sofrimento/adoecimento.

O sofrimento, a partir da Psicologia Histórico-Cultural, pode ser compre-


endido como um estado caracterizado por “[...] um mal-estar, desconforto ou

186
11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões

dor, a qual bloqueia a dinâmica de transformações nos sujeitos, enrijecendo


a forma como esses se relacionam consigo mesmos, com os outros e com
o ambiente” (KINOSHITA et al., 2016 apud ALMEIDA 2018, p. 57). Nesse
estado, o homem busca uma unidade, uma forma de ação que não leve à de-
sintegração do seu psiquismo.

Vygotsky (2014) analisa que o homem se constitui na relação com outros


homens, a partir da forma como se organizam para transformar a natureza,
por meio do trabalho, logo sua personalidade é contida na relação com outros
homens. Para Silva (2019, p. 67), pode-se entender então que
[...] o processo de desenvolvimento do indivíduo
ocorre a partir das relações que ele estabelece com
a realidade, internalizando-a, para ampliar suas pos-
sibilidades no mundo e para consigo, mesmo numa
condição de adoecimento, ele deve estar inserido na
realidade para que possa desenvolver estratégias que
superem tal processo.

Ao considerar os estudos desenvolvidos por Vigotski, Silva (2019) entende


que, no caso do adoecimento, ocorre uma desintegração do psiquismo, uma
perda ou desorganização no funcionamento das funções psicológicas superio-
res – tais como a memória, a atenção concentrada e o pensamento, entre outras
funções, proporcionando um enfraquecimento nas mediações com a realidade.

Nos quadros menos severos de transtorno de humor e ansiedade, por


exemplo, ocorre uma desorganização psíquica, um adoecimento que pode ser
superado. Muitas vezes esse adoecimento leva ao uso de medicamentos, con-
forme veremos a seguir, na apresentação de alguns dados obtidos em pesquisa
sobre o adoecimento do professor no ensino superior.

O uso de medicamentos pelos docentes

No segundo semestre de 2019 foi realizada uma pesquisa com docentes


do ensino superior, de uma universidade pública do noroeste do Paraná. A
pesquisa teve como objetivo fazer uma análise sobre as causas do adoecimen-
to do professor no ensino superior e foi realizada por meio da aplicação de
questionários. As questões versavam sobre relações de trabalho, adoecimento

187
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

e uso de medicamentos. Nesse capítulo nos deteremos mais à exposição dos


resultados obtidos sobre o uso de medicamentos.

Participaram do estudo 67 docentes da área de Ciências Humanas: 65,70%


do sexo feminino e 34,30% do sexo masculino, com faixa etária predominante
entre 40 e 60 anos. Foi possível identificarmos que a maior parte dos profes-
sores tem título de doutor, 49%, enquanto 16% têm pós-doutorado. Quanto
ao tempo de docência no ensino superior, a maioria dos professores entrevis-
tados tem entre 1 e 10 anos (34%), seguido de 21 a 30 anos (30%). 55% dos
participantes são docentes na pós-graduação.

As informações obtidas revelam que a maioria dos docentes possui algum


problema de saúde, pois, dos 67 entrevistados, 44, ou seja, 66%, informaram
que têm algum tipo de doença. Apenas 23 docentes, isto é, 34%, verbalizaram
que não apresentam nenhum problema de saúde.

Como podemos visualizar, há uma quantidade expressiva de professores


adoecendo, sendo que muitos desses problemas de saúde provavelmente se-
jam em decorrência de sua atividade profissional – a docência. Desemprego
ampliado, rebaixamento de salário, perdas dos direitos, que são resultados de
lutas históricas dos trabalhadores, e precarização exacerbada fazem parte do
sistema de trabalho vivenciado desde meados do século XX, afirma Antunes
(2011), e que está presente na atividade docente.

Piolli, Silva e Heloani (2015) corroboram com essas ideias que vêm sendo
apresentadas e entendem que a lógica de expansão do ensino superior, sob
condições precárias, assim como o produtivismo que impera na pós-gradua-
ção, intensifica os meios de controle e eleva as responsabilidades dos profes-
sores. O professor universitário é avaliado pela produção bibliográfica, mas,
como discute Lemos (2011), além de dar aula e pesquisar, ele tem que executar
uma multiplicidade de tarefas e ainda captar recursos internos e externos para
a pesquisa – fatores que interferem na saúde mental.

Em se tratando, portanto, do adoecimento e do sofrimento psíquico de


professores, havemos de reconhecer que frequentemente nos deparamos com
estes profissionais queixando-se de algum mal-estar. Mezzari, Facci e Leonar-
do (2019) chamam a atenção para o fato de que, não raras vezes, a mídia, tem
noticiando o aumento significativo de faltas de professores em suas atividades
profissionais, principalmente os que lecionam em escolas públicas. E o mais
preocupante é que a maioria das justificativas dessas faltas está relacionada a

188
11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões

problemas de saúde, ou seja, os professores, em maioria, estão faltando ao tra-


balho porque estão doentes. Assim, podemos afirmar que muitos professores
estão adoecendo em decorrência do trabalho.

Vale ponderar que o trabalho na perspectiva histórico-cultural é compre-


endido como categoria fundante do processo de desenvolvimento e emanci-
pação do homem, mas não o trabalho alienante – isto é, aquele que, ao invés
de promover desenvolvimento, mostra-se limitante, tendo apenas a finalidade
de garantir a sobrevivência do indivíduo.

Por isso, consideramos importante assinalar que a superação de um tra-


balho alienado, seja do professor ou de qualquer outro tipo de profissional,
independe “apenas de condições subjetivas, depende também das condições
efetivas de trabalho que podem ou não auxiliar o professor na busca de rela-
ções mais conscientes com a atividade social que desenvolve” (FACCI, 2004,
p. 242). E, falando, especificamente do trabalho do professor, a autora faz o
seguinte destaque:
Quando as condições objetivas de trabalho – recursos
físicos das escolas, materiais didáticos, estudo coleti-
vo, possibilidade de trocas de experiências, organiza-
ção da escola em termos de planejamento, salários,
etc. – não permitem que o professor se realize como
integrante do gênero humano, o seu trabalho traz des-
gaste psicológico e físico (FACCI, 2004, p. 249-250).

Outro aspecto que nos chama a atenção é que, frequentemente, a solução


posta aos professores, para resolverem os problemas de saúde decorrentes do
trabalho, é a medicamentosa. Essa prática subestima as condições objetivas,
como a sobrecarga e a terceirização do trabalho e o pouco investimento na
educação, por exemplo, que podem levar ao adoecimento.

Em relação aos tipos de problemas de saúde, dos 44 professores que afirma-


ram que tinham algum adoecimento, os mais citados foram: ansiedade (onze
respostas); e a depressão, (dez respostas). Contudo, há que se de considerar
que outras doenças foram mencionadas pelos professores, porém com menos
intensidade: problemas na coluna/postura (seis respostas); pressão alta (seis);
colesterol alto (seis); hipotireoidismo (cinco); fibromialgia (quatro); pré-dia-
betes/diabetes (quatro); insônia (três); rinite alérgica (três); dores de cabeça
frequentes/enxaqueca (dois); sinusite (dois); estresse (dois); bursite (dois).

189
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Vale frisar também que houve professores que responderem que apresen-
tam mais de uma doença. Outras enfermidades, como, por exemplo, tendini-
te, dores musculares, oclusão por tensão, artrose, dores articulares, lombares
e nos pés e pernas, hérnia, nostalgia parestésica, asma, apatia, oscilação de
humor, fobia em sala de aula, síndrome do pânico, síndrome de Burnout,
Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), etc. foram citadas pelos professo-
res apenas uma vez.

Ante os dados aqui expostos, há que se considerar que um percentual sig-


nificativo de doenças citadas pelos professores está relacionado diretamente
com desordens psíquicas/emocionais, pois 36 respostas apresentadas retratam
doenças que se relacionam a esses aspectos: depressão, insônia, dores de cabeça
frequentes/enxaqueca (uma vez que podem serem desencadeadas por stress),
stress, oscilação de humor, fobia em sala de aula, síndrome do pânico, síndrome
de Burnout, Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC). Nessa seara, conside-
ramos proeminente enfatizar que seis professores informaram que possuem
depressão e ansiedade concomitantemente.

Esses dados revelam que estamos, de fato, diante de um processo preocu-


pante de adoecimento docente, visto que um número expressivo de respostas
dadas pelos sujeitos da pesquisa expôs algum tipo de doença, seja de fundo
psíquico/emocional ou não.

Piolli, Silva e Heloani (2015), a partir de pesquisas publicadas sobre as


práticas adotadas para cumprir as metas estabelecidas nas universidades, ob-
servaram que o estresse e/ou adoecimento foram identificados nos seguintes
sintomas físicos e emocionais:
[...] físicos (dores na coluna, arritmia, palpitações,
hipertensão e problemas na garganta, na vesícula, na
pele e renais); e emocionais (ansiedade, nervosismo,
irritabilidade, depressão, síndrome do pânico, impaci-
ência, instabilidade emocional, choro fácil, ciclotimia,
sentimentos de inutilidade, isolamento no trabalho,
culpa, ressentimentos, frustrações e/ou desesperança,
medo, insegurança, indiferença, despersonalização,
angústia, frieza, conflitos identitários, desmotivação e
cansaço), geralmente aliados à preocupação excessiva
(PIOLLI; SILVA; HELOANI, 2015, p. 602).

190
11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões

Como vimos anteriormente, a flexibilização invade o espaço da vida priva-


da dos professores, que estão constantemente preocupados em cumprir com
as tarefas postas por essa nova forma de organização do trabalho.

Em nosso entendimento, os professores não só estão adoecendo, mas tam-


bém estão sendo atropelados pelo processo de medicalização que adentrou os
espaços escolares, atingindo, também, os alunos (o Brasil é o segundo país que
mais vende a droga Ritalina® para tratar crianças com diagnóstico de Trans-
torno de Déficit de Atenção e Hiperatividade - TDAH).

Por meio dos dados obtidos na pesquisa, foi possível constatar que 68,66%
dos professores fazem ou já fizeram uso de algum medicamento nos últimos
12 meses. Esse resultado mostra a quantidade expressiva de docentes que es-
tão fazendo uso de remédios para resolverem algum problema de saúde. As-
sim, podemos asseverar que, muito provavelmente, esses profissionais estão
buscando aliviar um sofrimento, que acreditam ser decorrente de doenças
físicas ou psicológicas, por meio de medicação.

Não obstante, consideramos importante expor nesse momento que a pes-


quisa desenvolvida por Mezzari (2017) também identificou que muitos pro-
fessores estão fazendo uso de remédio para aliviar algum mal que está lhe
incomodando. Os resultados desse estudo expuseram que 49% dos professo-
res fazem uso de algum medicamento. Há que se destacar ainda que, destes
professores que relataram que utilizam medicamento, 59% consideram que o
adoecimento tem relação com sua atividade profissional.

Outro aspecto apontado pelo estudo é o de que um percentual muito signi-


ficativo desses professores, isto é, 41%, trouxe as condições do trabalho como
sendo as determinantes em seu adoecimento. Esper (2019), em estudo realiza-
do com 52 professores universitários, também identificou que 61,54 dos pro-
fissionais utilizaram medicamentos. Na pesquisa desta autora 63,4 docentes
estabeleceram relação entre as condições de trabalho e o adoecimento.

Assim, segundo Mezzari, Facci e Leonardo (2019, p. 216), a medicaliza-


ção do professor vem se materializando na sociedade, “de forma violenta e
perversa”. O mais interessante é que essas autoras não entendem isso como
“decorrente de famílias e professores incapazes e desinteressados, mas que são
partícipes de um processo próprio do atual modo de reprodução de existên-
cia” (ibid., p. 216).

191
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Os dados obtidos em nosso estudo marcam a quantidade expressiva de


tipos de medicamentos que estão sendo utilizados entre os docentes. Os que
aparecem com maior frequência nas respostas dos professores são: remédio
para aliviar a dor, com uma frequência de oito respostas; indutor do sono,
com cinco; medicamento para controle do colesterol, com quatro; remédios
que fazem a reposição hormonal, com quatro; e vitaminas também com 4
respostas.

Outros medicamentos ainda foram citados pelos participantes, que, apesar


aparecerem com uma frequência menor, merecem destaque: remédio para ti-
reoide, Dorflex®, anti-inflamatório e antialérgico. Todos com uma frequência
de três respostas. É possível vermos também três medicamentos que aparecem
com duas respostas.

Fazemos a ressalva de vários outros medicamentos citados pelos profes-


sores, e que se encontram com a frequência de uma resposta cada um, como,
por exemplo, Rivotril®, Cloridato de Duloxetina, Oxalato de Escitalopran, Pre-
bictal, Cloridato de Sertralina, Bromazepam®, Luvox® etc., que são indicados
para o tratamento de depressão, ansiedade, pânico, entre outros problemas de
saúde. Doenças, portanto, relacionadas com desordens psíquicas.

Sobre esse aspecto trazemos a pesquisa publicada pela Folha de São Paulo,
que aponta que o medicamento Rivotril® (utilizado no tratamento de transtor-
nos de humor e ansiedade, entre outros sintomas psiquiátricos) encontra-se
na 8ª colocação entre os dez medicamentos mais vendidos no Brasil, confor-
me levantamento feito entre os anos 2011 e 2012 (MISMETTI, 2012). Nessa
mesma direção temos o estudo de Oliveira (2014), que assinala que no Brasil
a venda de calmantes, como Rivotril®, Valium® e Lexotan®, subiu 42% entre
os anos 2009 e 2013, momento no qual o número de caixas vendidas desses
psicotrópicos saltou de 12 milhões para 17 milhões.

Nessa direção, vale elucidar que, segundo Ehrenberg (2010), as doenças


relacionadas à desordem psíquica, como depressão, insônia, estresse, angústia
etc. são assuntos presentes há alguns anos na mídia. Junto com esses estão
os tranquilizantes e soníferos (a ponto de serem categorizados no campo da
toxicomania). Esses medicamentos são vistos como uma solução quando o
“natural” fracassa (EHRENBERG, 2010). Conforme o plano de ação pública,
apresentado por cinco diretores de hospitais (EHRENBERG, 2010), o relató-
rio sobre medicamentos estima que

192
11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões

[...] a prescrição massiva de tranquilizantes é uma


solução inadequada aos problemas de ansiedade e
de dificuldade de viver, que se associam a múltiplas
limitações de um desenvolvimento das relações afe-
tivas e da solidariedade “não financeira” entre indi-
víduos. Aceitar essa dependência seria admitir que o
tratamento de uma doença de sociedade consiste em
tomar um produto que poderia ajudar a suportá-la
(EHRENBERG, 2010, p. 138).

Além disso, o autor da citação acima acrescenta que a necessidade de ven-


cer, ser alguém na vida e o consumo excessivo desses medicamentos psico-
trópicos está estreitamente relacionada, pois “uma nova cultura da conquista
é, necessariamente, uma cultura da ansiedade” (EHRENBERG, 2010, p. 139).

Dessa forma, podemos afirmar que os professores se medicam para tornar


suportável a realização de seu trabalho, sendo este o motivo de seu adoecimen-
to. Contudo, por partirmos do princípio de que o medicamento por si só não é
uma solução, pois apenas mascara o verdadeiro problema, que na maioria das
vezes é sociocultural, é que afiançamos que os professores não estão fazendo
uso de remédio para curar doenças físicas, mas sim estão se medicalizando.

Com isso, faz-se relevante reconhecermos que na contemporaneidade nos


encontramos ante a um processo descomedido de medicalização de todas as
esferas da vida, pois se trata de um processo que, como pontuam Suzuki e Le-
onardo (2017, p. 44), transforma aspectos sociais, políticos e econômicos em
questões médicas. Assim, aspectos “coletivos são tomados como individuais,
problemas sociais e políticos são tornados biológicos”.

Na compreensão de Barros (1983), a medicalização se caracteriza como


um processo que tem adentrado à vida das pessoas por meio da intervenção
médica, por isso a Medicina tem se debruçado sobre problemas cuja gênese
não é orgânica/biológica, mas visivelmente produzida “pela forma de ser da
sociedade, no interesse de se manter o status quo” (ibid., p. 378). Desse modo,
para o autor, “os processos antes tidos como naturais ou fisiológicos passaram
a ser merecedores da intervenção médica” (ibid., p. 378).

Meira (2019, p. 193) também se posiciona fazendo uma crítica a esse olhar
descontextualizado dos problemas “que são visivelmente decorrentes do modo

193
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

de vida da sociedade capitalista”, e que, como frisa a autora, estão sendo vistos
e entendidos a partir de uma perspectiva biológica/orgânica.

Nessa mesma perspectiva, Barroco, Facci e Moraes (2017) asseveram que o


processo de medicalização não se restringe somente ao uso desenfreado de re-
médios, mas trata-se de um processo que tem tomado todas as esferas da vida,
em que, a partir de explicações e intervenções de caráter biológico, ostenta-
do por “uma avalanche de exames, diagnósticos e receituários” (ibid., p.23),
vem procurando controlar e prognosticar os problemas sociais e psicológicos.
Contudo, há de se reconhecer que é
[...] na indústria farmacêutica que a medicalização so-
cial tem sua expressão mais desenvolvida no contexto
atual, por seu papel protagonista e determinista nesse
processo. Os fármacos conseguem sintetizar os anseios
do complexo médico-industrial de lucros que chegam
a escalas financeiras quase inimagináveis, e são supos-
tamente ágeis e eficazes para amenizar as dores e as
dificuldades da população, que, na realidade, só au-
mentam (BARROCO; FACCI; MORAES, 2017, p. 23).

Nessa direção, Meira (2011) expõe que a invenção de doenças é promissora


à indústria farmacêutica, haja vista que quanto mais doenças são descobertas
ou idealizadas, mais remédios serão comercializados. Isso mostra, portanto,
que estamos diante de “um mundo em que absolutamente tudo está sendo
entregue, sem nenhuma cerimônia, ao espírito mercantilista do capital” (MEI-
RA, 2011, p. 110).

Obviamente não nos posicionamos contrários aos avanços no campo das


ciências médicas com vistas ao tratamento e à cura de doenças orgânicas e
biológicas. Nossa crítica encontra-se na invenção de doenças e medicamentos
para tratar problemas cuja gênese está em determinantes sociais, culturais, po-
líticos, econômicos etc., ou seja, não se fundam no âmbito da Medicina, visto
que não decorrem de fatores orgânicos e biológicos.

A medicalização entre os professores pode escamotear situações de pre-


carização do trabalho, tornando individual, particular, o que está na esfera
social. Nesse ponto, há de se reconhecer a dificuldade de romper com essa
visão reducionista e organicista direcionada ao comportamento humano, e
faz-se proeminente iniciar uma batalha para impedir que dificuldades da

194
11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões

vida cotidiana sejam resumidas a doença, explicando a subjetividade huma-


na apenas pelo aparato orgânico/biológico (MEIRA, 2011).

A tecermos críticas a essa perspectiva organicista das dificuldades da vida


cotidiana, não significa que estamos desconsiderando os aspectos biológicos,
mas o que queremos deixar registrado é que não podemos tomá-los como de-
terminantes no processo de humanização e emancipação do indivíduo.

Meira (2011, p. 111), respaldada pela Psicologia Histórico-Cultural, expõe


a relevância do biológico, uma vez que se apresenta como a primeira “condi-
ção para que o indivíduo se coloque como um “candidato” à humanidade”.
Contudo, para ela, “a humanização só pode se concretizar quando em contato
com o mundo objetivo e humanizado, transformado pela atividade real de
outras gerações e por meio da relação com outros homens, o homem aprende
a ser homem” (MEIRA, 2011, p. 111).

Assim sendo, faz-se relevante ponderarmos sobre “o impacto da medica-


lização na constituição e no desenvolvimento do psiquismo humano e, me-
todologicamente, em apreendê-lo em sua gênese e em seus desdobramentos”
(BARROCO; FACCI; MORAES, 2017, p. 17).

Destacamos, entretanto, que mesmo diante de críticas que já vêm sendo


tecidas por vários estudiosos, como Collares e Moysés (2010) e Meira (2011),
sobre o processo de medicalização que vem se instaurando na sociedade como
um todo e, sobretudo, entre os alunos e professores no âmbito da institui-
ção escolar, frequentemente observamos, como pontuam Campos e Sant´Ana
(2019), pessoas fazendo uso de algum medicamento. Muitas vezes “até mesmo
em nossas bolsas, gavetas e mesas de cabeceira deparamo-nos com cartelas e
caixas de medicamentos. Ou seja, parece que estes permeiam cada vez mais
nossa vida” (ibid., p. 69). Com essa afirmativa as autoras chamam a atenção
para um aspecto que, a nosso ver, é muito relevante. A sociedade tem se pre-
ocupado pouco com essa prática, visto que são escassas as vezes que se para
para “pensar no significado disso e nos riscos de vivermos em uma sociedade
cada vez mais “medicalizada2” e “farmaceuticatizada3”.

2. “Termo usado quando algo que não é naturalmente de âmbito médico passa a ser tratado
como tal” (CAMPOS; SANT’ANA, 2019, p. 69).
3. ‘Termo usado quando algo que não é de âmbito farmacêutico, ou seja, relacionado a medi-
camentos, passa a ser tratado como tal” (CAMPOS; SANT’ANA, 2019, p. 69).

195
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Todavia, não podemos deixar de fazer algumas ponderações sobre os mo-


tivos que levam as pessoas, sobretudo os professores, a fazerem o uso abusivo
de medicamentos. Quando perguntamos aos docentes os efeitos positivos
dos medicamentos utilizados, os benefícios mais frequentes foram auxílio no
controle da doença (como colesterol, diabetes e pressão alta, por exemplo),
com 10 respostas, e alívio da dor, com oito respostas.

Entendemos, pelas respostas, que os professores consideram que o me-


dicamento trata a doença, causa alívio dos sintomas e é fonte de tranquili-
dade. Um professor até informou que o medicamento foi fundamental para
terminar seu doutorado. Ou seja, para alguns participantes o medicamento
tem relação direta com a produtividade. O efeito negativo dos medicamentos
mais citado pelos docentes foi o de dependência (9 respostas); em segundo, a
sonolência (8 respostas). Destarte, em nossa compreensão, o medicamento é
utilizado, muito provavelmente, pela busca de solução de problemas, aqueles
gerados no ambiente de trabalho.

Considerações finais

Essa pesquisa foi realizada antes de começar a pandemia. Provavelmente


teríamos resultados mais preocupantes nessa situação de instabilidade emo-
cional e relacionada ao trabalho que docentes estão vivendo no momento,
provocada pelo novo coronavírus – COVID-19.

Todavia, diante da tragédia que o novo coronavírus estava provocando em


outros países, sobretudo na Itália, onde muitas pessoas, já em fevereiro, estavam
sendo infectadas e mortas como vítimas do vírus; no Brasil, em meados do mês
de março, algumas medidas foram tomadas no sentido de frear sua aceleração.

Isso aconteceu porque não tinha (e ainda não tem) nenhuma vacina e/ou me-
dicamento específico para impedir a proliferação do vírus e da doença. Ainda
impera a informação de que o distanciamento social é o mais recomendado por
especialistas para o combate à COVID-19, por isso, desde as primeiras notícias,
foi iniciado um processo de quarentena. Dentre os vários setores da economia
que foram inclusos na quarentena, foi incluída a instituição escolar, por isso prati-
camente todas as escolas públicas e privadas suspenderam suas aulas presenciais
e a maioria iniciou o processo de ensino remoto. Então, de forma brusca, profes-
sores e alunos tiveram que se adequar a esse novo modelo de ensino e de trabalho.

196
11 – Retrato do adoecimento e da medicalização de docentes
no ensino superior: algumas reflexões

Em relação à situação vigente, Zaidan e Galvão (2020, p. 263) afirmam o


seguinte:
O incessante ciclo de crises que o capitalismo engen-
dra se deparou, de repente, com um fenômeno sani-
tário sem precedentes em escala mundial, que, em-
bora tenha surgido a partir dos processos naturais de
evolução dos seres vivos, mostra, em termos de sua
propagação e letalidade, que as formas de enfrentá-
-lo resultam invariavelmente de decisões e ações hu-
manas, ou seja, são políticas. Daí, podermos dizer a
respeito da natureza genocida do modo de produção
capitalista, que a pandemia apenas a expõe mais fla-
grante e inequivocamente.

Não é somente como decorrência da pandemia que trabalhadores da edu-


cação estão em sofrimento. Isso vem ocorrendo há muito tempo. Zaidan e
Galvão (2020) comentam que destruição de direitos pela Reforma Trabalhista,
pelas diversas medidas provisórias e decretos editados por Bolsonaro só pro-
vocaram superexploração da força de trabalho dos docentes. Os professores
têm que realizar trabalhos remotos, quando nem sempre eles e os estudantes
têm acesso à tecnologia. Têm pouco poder de decisão sobre as medidas toma-
das em relação à educação, e tudo isso pode agravar o sofrimento psíquico que
já vinha ocorrendo paulatinamente, com tantos desmandos e desvalorização
do ensino em todos os níveis, inclusive dentro das universidades, que vivencia
o capitalismo acadêmico.

Uma lógica empresarial tem invadido as instituições de ensino superior.


O ensino vem sendo tratado como um subconjunto da política econômica,
tendo suas práticas baseadas na lógica do mercado. Lemos (2011) entende que
os professores, nesta lógica, têm que se adaptar a formas de ensino aligeiradas,
com pressão por resultados imediatos e pragmáticos nas pesquisas e avaliação
por produção quantitativa. O professor universitário vale, hoje, pela quantida-
de de artigos, livros e capítulos de livros que produz.

A esteira da indústria, a produção em grande escala, dirige a vida dos pro-


fessores e provoca conflitos entre a classe docente, que, no caso do ensino
remoto, se mostra exausta e estressada não apenas com o preparo de aulas
para atender esse modelo de ensino, mas também com os problemas de equi-
pamentos e com as tecnologias que dispõe para ministrar suas aulas.

197
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Assim, tomando por base esta pesquisa, em que os professores foram


entrevistados antes dessa pandemia da COVID-19, já obtivemos como
resultados seu adoecimento e sua medicalização. Desse modo, temos aberta a
possibilidade de inferirmos que muito provavelmente os professores estejam
“adoecendo” ainda mais, e obviamente buscando nos remédios o alívio das
dores e dos sofrimentos provocados pelo momento de uma trágica pandemia
da COVID -19 que estamos atravessando, para lidar, parafraseando Zaidan e
Galvão (2020), com os “abutres do setor educacional”.

Há de se pontuar que, nesse momento que estamos escrevendo o presente


capítulo, estamos todos tomados por um sentimento de tristeza e desânimo,
haja vista que só no Brasil estamos perdendo, em média, mais de mil vidas
diariamente. Além do aumento do desemprego e de pessoas sem condições
básicas de vida. Vemos nossos problemas sociais, econômicos e políticos se
intensificando a cada dia.

Bom, para além desse desânimo, temos diversos desafios à frente, e não são
poucos, por isso faz-se mister não paralisarmos ante estes problemas, mas conti-
nuarmos a luta, de forma a não permitir retrocessos em conquistas já efetuadas,
sobretudo no campo das políticas públicas em saúde e educação. A coletividade,
a luta pelo bem comum, do nosso ponto de vista, deve ser o motivo da nossa ação.
A luta é pela formação do novo homem, que, como afirma Vygotsky (2004), só
será formado se as condições de trabalho, entre outros pontos, forem alteradas.

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Paulo: Tirante lo Blanc, 2020, p. 261-278.

200
12
Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações
Anelise Lusser Teixeira

Resumo

O presente artigo propõe compreender a pandemia como um evento em anda-


mento, marcado pela multiplicidade de desdobramentos que apontam para uma
disputa de narrativas sobre este acontecimento histórico. Para pensar os efeitos
desse evento na educação, faz-se necessário um resgate da política de precarização
produzida neste campo pelo neoliberalismo, indicando os danos na saúde mental
decorrentes da naturalização da lógica gerencial, que tem como consequência a
efetivação da competição como modo de relação e da produtividade como valor
da vida. Em seguida, problematiza a intensificação da precarização do ensino de
psicologia, área de atuação da autora, a partir da redução do processo educativo
a mera transmissão do conhecimento e da sobrecarga dos professores com uma
diversidade de protocolos de controle. Finalizando, afirma que a educação resiste
como campo revolucionário que pode favorecer a emergência de práticas verda-
deiramente emancipatórias, tão necessárias no mundo pós-crise.

201
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Introdução

A pandemia do Coronavírus não é um evento de apreensão imediata, que


pode ser considerado apenas na dimensão dos seus efeitos sobre o corpo bio-
lógico, nem mesmo se acrescentarmos a isso, os impactos na saúde mental
decorrentes do medo do contágio e das mudanças abruptas produzidas pe-
las práticas de isolamento social. Evento complexo, a pandemia nos convoca
a compreendê-la na multiplicidade de suas consequências sociais, culturais
e econômicas, como também nos seus efeitos sobre os modos de subjetiva-
ção. Não por acaso, diversos intelectuais acreditam que estamos diante de um
acontecimento histórico, que marcará os rumos do mundo como o conhece-
mos desde a modernidade, embora haja divergências radicais nas leituras de
como será esse novo mundo.

Escrever sobre educação e pandemia é, portanto, um grande desafio. Em


primeiro lugar, porque a pandemia é um evento em andamento, sem que
saibamos ainda os seus desdobramentos e suas consequências. Em segundo,
porque a educação no Brasil já estava alinhada a um projeto neoliberal, que é
decisivo para compreensão do cenário onde a ela se instaura e, portanto, para
os rumos dos acontecimentos. Logo, não é possível, instaurar como marco
zero da nossa escrita o dia 17 de março – data oficial do início das práticas de
isolamento social e da suspensão das atividades escolares presenciais. O que
está em curso no Brasil é uma disputa narrativa e política, pela compreensão
da pandemia e pelo projeto de educação do país.

Deste modo pandemia e educação não são termos dados, acabados, que po-
dem ser aprisionados em demarcações estanques, ao contrário dependem de
definições que consideram o lugar do qual falamos, daquilo que acreditamos e
dos valores que sustentamos. É importante então, apontar que eu falo do lugar
de professora de Psicologia de uma instituição de ensino privada e de coordena-
dora da comissão de estudantes do CRPRJ (Conselho Regional de Psicologia),
que me possibilita trocas informais com muitos docentes e alunos de Psicologia.

O Brasil onde a pandemia se instala

Com a pandemia, as desigualdades socioeconômicas tornaram-se cada


vez mais explícitas ao redor do mundo e têm aberto espaço para percepções

202
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações

distintas da responsabilidade do Estado no combate ao vírus e a crise econô-


mica que se dá ulteriormente. No Brasil, um país já marcado pela desigualda-
de social desde a sua constituição, essa crise sanitária desvela, as contradições
da nossa sociedade e, ao fazê-lo, expõe as fragilidades do nosso sistema so-
cial, evidenciando que estamos todos dentro de uma zona de vulnerabilidade
social muito maior do que supúnhamos inicialmente.

Nos últimos anos houve uma mudança radical no sentido da economia no


Brasil, que retoma os rumos assumidos desde os anos 90, com a entrada em
cena do neoliberalismo. No último ano, porém, essa mudança se intensifica
com um governo de extrema direita, aliado a uma equipe econômica saída
dos bancos (e aqui exploro o duplo sentido dessa palavra) de uma das escolas
neoliberais mais radicais do mundo, a escola de Chicago. Em diversos lugares
do mundo, economistas das mais diferentes correntes de pensamento, inclu-
sive da direita, defenderam a intervenção do Estado como forma de mitigar
os efeitos da crise econômica decorrente da pandemia. No Brasil, porém, a
presidência, em absoluto contragosto, distribuiu o auxílio emergencial aos ci-
dadãos, vencida pelas forças políticas do momento.

Desde o início da pandemia, o presidente é contra o isolamento social,


única linha segura de defesa contra o vírus utilizada na maioria dos países do
mundo, propagando que é preciso salvar a economia porque a recessão e o de-
semprego provocariam ainda mais mortes, numa estranha lógica onde as pes-
soas devem servir a economia e não economia servir as pessoas. Para piorar
ainda mais esse contexto, alia-se a correntes religiosas defensoras de costumes,
negacionistas e obscurantistas, que não escondem seu desprezo pela ciência e
pela educação. Além de tratar as mortes como naturais e inevitáveis, como se
sua atitude não agravasse a crise, não perde oportunidades de desobedecer às
normas sanitárias recomendadas, circulando sem máscara, integrando aglo-
merações e abraçando apoiadores, mesmo durante o período em que assumiu
estar contaminado1. Como se tudo isso não bastasse, não demonstra nenhuma
empatia com as famílias, e profere frases como “e daí?!”, “não sou coveiro” ou
“é só uma gripezinha”2. Há quase dois meses sem ministro da saúde, o país

1. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/sem-mascara-bolsonaro-abraca-


-apoiadores-no-interior-de-minas-gerais.
2. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/v%C3%ADrus-verbal-dez-frases-de-bolsonaro-
sobre-a-pan­demia/g-54080275.

203
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

agoniza sem perspectiva nenhuma de uma política coordenada de combate


aos efeitos do vírus, nem sobre as pessoas, nem sobre a economia.

Ainda que esse micro-organismo não escolha cor ou classe social, as con-
dições da população para executar as regras de saúde e se defender do con-
tágio expões nossas históricas desigualdades. Nas favelas, o fornecimento de
água segue irregular, a despeito do fato da higiene básica ser essencial na pre-
venção da epidemia. Essas habitações da população empobrecida, com pouca
ventilação e espaços reduzidos, são ocupadas por famílias numerosas, o que
tornam impossível a prática de isolamento da população de risco. Esta parcela
da população, já alijada dos direitos trabalhistas, segue utilizando transporte
público precário e superlotado no deslocamento para o trabalho que agora
redefine como essencial toda e qualquer atividade lucrativa, por pessoas que o
exigiram em carreatas de carros de luxo3. Todos esses fatores desembocam em
um sistema de saúde já precarizado, terceirizado em contratos suspeitos, com
poucos leitos, pessoal e equipamentos.

O resultado não poderia ser outro. O Brasil, que sustenta a triste marca de
ter o segundo maior número absoluto de mortes no mundo (atrás apenas dos
EUA)4 e uma das maiores taxas letalidade5, expõe aí também sua desigualda-
de. Um estudo da Fiocruz aponta que em vez da faixa etária, como em muitos
países, é o endereço que passa a definir a letalidade da doença. O bairro mais
pobre de São Paulo, a Brasilândia, chega a contabilizar um número de mortes
quase dez vezes maior do que o Morumbi, o bairro mais rico da mesma cida-
de6. Outro estudo aponta que a mortalidade no SUS chega a ser o dobro da
dos hospitais privados7. Como nossa desigualdade pré-existente, o contágio
também obedece à critérios raciais, matando mais negros que brancos8.

3. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/03/27/carreta-


-em-curitiba-pede-fim-da-quarentena-e-web-reage-a-carros-de-luxo.htm.
4. Disponível em: https://news.google.com/covid19/map?hl=pt-BR&gl­=BR&­ceid=­BR%3­Apt-419.
5. Disponível em: https://defatoonline.com.br/brasil-e-10o-no-ranking-de-letalidade-da-CO-
VID-19-por-milhao-de-habitantes.
6. Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/48894.
7. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/21/
mortalidade-em-utis-publicas-para-COVID-19-e-o-dobro-de-hospitais-privados.htm.
8. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/02/
covid-mata-54-dos-negros-e-37-dos-brancos-internados-no-pais-diz-estudo.htm.

204
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações

Educação, saúde mental e neoliberalismo

Antes de falar dos impactos da pandemia na educação, é preciso traçar as


principais linhas do cenário da saúde mental no meio acadêmico nos últimos
anos, em outras palavras, é preciso indicar como a educação atingida pelo Co-
ronavírus, foi antes transformada pelo neoliberalismo e, ainda nesse movimen-
to, multiplicaram-se efeitos prejudiciais na saúde mental da sua população.

Na década de 1970, com o lançamento do álbum The Wall, do grupo Pink


Floyd, o debate sobre o papel da dinâmica escolar na saúde mental dos alu-
nos e profissionais da educação propagou-se para fora do mundo acadêmico.
Nos últimos anos, porém, esse debate adquiriu novas tonalidades, quando o
neoliberalismo sai dos limites das atividades econômicas e financeiras e aden-
tra tanto os processos educacionais, quanto a produção de subjetividades que
compõe o universo escolar. Se naquele tempo eram a rigidez das normas, a
metodologia classificatória e a disciplina, os principais vetores dos proces-
sos de sofrimento, desde o início da década passada, minúsculas e contínuas
transformações instauraram novos discursos e lógicas relacionais que impac-
taram profundamente a produção de processos de sofrimento, dentro e fora
do meio acadêmico.

A despeito das estatísticas, a produção acadêmica sobre o assunto ainda é


rarefeita e a busca de material encontra resultados escassos, principalmente
quando a pesquisa pretende priorizar o corpo discente da graduação, apon-
tando uma predileção do tema pelo corpo docente da pós-graduação. Essa
problematização é ainda mais pobre quando se pretende pesquisar o ensino
superior privado, conforme apontado por Antônio Freitas, onde encontram-
-se hoje a maioria dos estudantes brasileiros, sobretudo os de Psicologia, prin-
cipal foco do nosso olhar neste escrito. Yamamoto (2012) indica que o sistema
o sistema educacional de psicologia cresceu 300%, entre 1988 e 2010, assim
como o processo de privatização, que passa de aproximadamente 70% das va-
gas desse curso para 90% nestes mesmos anos. A despeito da grande expansão
do ensino privado nas últimas décadas, principalmente a partir de políticas de
financiamento público como o FIES e o PROUNI, não houve correlato inves-
timento em pesquisa, principalmente a de caráter crítico, que problematiza as
próprias instituições financiadoras.

Na ausência de tal material, o pretendo apontar aqui algumas correlações


possíveis entre a lógica produtivista da educação e o incremento do sofrimento

205
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

psíquico nesta população, destacando, na composição desse cenário, no cam-


po macropolítico, a implementação da Capes e de uma lógica produtivista e
gerencialista no âmbito da educação e no campo micropolítico, a desarticula-
ção dos coletivos e o empobrecimento dos vínculos sociais.

Segundo uma pesquisa feita pelo IFMG com discentes de cursos da área
da saúde, o sofrimento psíquico aflige 30% dos estudantes brasileiros. Essa
mesma pesquisa indica que os números internacionais apontam 49,1%, ou
seja, um a cada dois universitários não está com boa saúde mental (GRANER;
CERQUEIRA, 2019). Um outro estudo da USP refere que 41% dos estudantes
de medicina brasileiros sofrem do mesmo mal e que 1 em cada três alunos de
pós-graduação sentem-se deprimidos ou ansiosos (MAYER, 2017).

O meio acadêmico, como etapa de treinamento para o mundo do trabalho,


será aqui entendido como uma antecipação deste âmbito, atravessado e deter-
minado pelos mesmos modos de relações o compõe, e que se estruturam na
nossa sociedade a partir do século XIX. Castel afirma que nesta época eviden-
cia-se uma fratura entre a ordem jurídica, que assegura igualdade de direitos a
todos, e a ordem econômica, que funciona pelas leis do mercado, ou seja, que
o direito a vender a força de trabalho não equivale ao direito de acesso a um
trabalho, deixando explícitos os problemas de um sistema que produz riqueza
na mesma medida em que produz miséria. Nesta configuração, o trabalho
constitui-se hegemonicamente como núcleo real e simbólico em torno do qual
se estruturaram redes de relações que dispõem formas de sociabilidade, refe-
rências de identidade e modos de reconhecimento público (CASTEL, 1988).

Na década de 1980 Margaret Thatcher, um ícone da implementação do neo-


liberalismo no mundo, afirmou que a sociedade não mais existe, existem apenas
indivíduos. Isso implica dizer que o que passou a existir são empresas e pessoas
competindo entre si pelo lucro, ou seja, que o modo de relação hegemônico no
capitalismo financista passa a ser a competição e que a produtividade se torna
o critério de valoração da vida. Ao mesmo tempo, o pleno emprego se tornou
quase impossível e a precariedade passa a atingir a todos: cortes nos salários,
aumento de trabalho, funções multitarefas, culpa e sensação de fracasso cons-
tantes, discursos de autoempreendedorismo e meritocracia, enfim, uma nova
escravatura que há quem chame de autoexploração ou uberização da vida.

Apesar da implementação da Capes datar dos primeiros anos da década


de 1950, é nos meados dos anos 1990 que essa instância inicia o processo
de normatização e produtivismo no meio acadêmico, quando passa a impor

206
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações

ao ensino superior os seus padrões de funcionamento. Como consequência


imediata, temos a redução do tempo de conclusão das dissertações e teses; a
submissão de todo o país e de todas as áreas do conhecimento, independen-
temente das demandas metodológicas e do perfil epistemológico, a um mes-
mo padrão de avaliação e a submissão do financiamento a avaliações trienais
(BIANCHETTI; VALLE, 2014).

Borges (2018), em recente pesquisa com professores do ensino superior,


relata que de acordo com as narrativas desse grupo, estaria ocorrendo nos últi-
mos anos uma perda de autonomia e de qualidade na universidade brasileira,
em função do aumento da participação privada no ensino superior, da intro-
dução de novos valores e critérios de produtividade acadêmica, da intensifi-
cação do trabalho e da redução drástica e crescente de verbas governamentais
para manutenção das instituições públicas e das pesquisas. Os docentes, então,
passaram a trabalhar com foco em atividades passíveis de serem computadas
como produtividade a fim de garantir o funcionamento dos cursos e a realiza-
ção de seus projetos acadêmicos.

Neste cenário, avança um discurso gerencialista das relações educacionais,


implementando uma tecnologia de poder que naturaliza relações sociais de
competição. Luis Chiavegato (2012) afirma que esse discurso que se tornou
hegemônico, tem por intuito promover a descrição, explicação e interpretação
do mundo a partir das categorias da gestão privada, feitas por experts que não
fazem mais que produzir instrumentos, definir prescrições, formalizar regras
e aplicar decisões pelas quais de forma nenhuma são responsáveis. Observa-
-se, então, que noções e princípios administrativos da gestão privada, como
competência, qualidade total, cliente, excelência, entre outros, têm invadido
amplamente as escolas, as universidades, os hospitais, instituições culturais,
ONGs e até igrejas. Da mesma forma, palavras como empreendedorismo, ma-
ximização, gestão são utilizadas de forma natural no dia-a-dia das pessoas. A
suposta neutralidade desses instrumentos oculta a realidade de um poder que
impõe um certo tipo de relação específico a todo o tecido social (CHIAVEGA-
TO FILHO, 2012).

Essa nova lógica relacional se contrapõe à ideia de ciência como uma cons-
trução coletiva baseada na cooperação, gerando um clima de competição que
mina a relação entre o trabalho e o docente, e deste com os alunos, que sentem
essa desmotivação como mais um desestímulo. Ao mesmo tempo, se repro-
duz, dentro do alunado, as mesmas relações de competitividade impostas aos

207
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

professores, tornando o ambiente acadêmico um cenário competitivo e pouco


amigável, que serve cada vez menos como anteparo solidário às demandas de
uma sociedade violentamente excludente.

Para Sylvio Costa, em um mundo sem garantias, o conceito de vida esco-


lar como estabelecimento de etapas, onde cada movimento dá acesso a outro
patamar de oportunidades, se vê ameaçado pela instabilidade do mercado de
trabalho, pela crise de empregabilidade e pelas dificuldades de realização de
projetos futuros. A escola, que promovia a ideia de emancipação juvenil atra-
vés do seu percurso, vê seu papel colocado em xeque em um tempo em que os
jovens se veem obrigados a reciclar seus conhecimentos e aprendizados para a
vida toda. Paralelamente, a educação tende a ser progressivamente desinvesti-
da como prioridade de governo, assumindo cada vez mais a forma de presta-
ção de serviço, de uma mercadoria comercializada (COSTA, 2006).

Nos resta, então, a preocupação com as condições que o meio educacional,


tanto em seu corpo docente, como no discente, terão para estabelecer um di-
álogo crítico entre os interesses acadêmicos e os externos à academia, aqueles
advindos do sistema financeiro, em um cenário que se rende cada vez mais ao
pragmatismo e à lógica empresarial, ambiente que tem fomentado múltiplas
formas de sofrimento.

Embora a precarização e a negligência da saúde mental dos estudantes do


ensino superior sejam um fato que chama a atenção há muito tempo, o tema
ganhou importância e visibilidade, depois do suicídio, no início de 2017, de
um estudante de medicina da USP. A questão colocada neste fato é instigante:
o que levaria um estudante a tirar a própria vida, depois de passar por todas as
agruras na conquista do posto de ingresso no ensino superior mais concorrido
do Brasil.

Após esse fato, alunos de muitas faculdades decidiram se unir em torno de


um grupo interinstitucional, para chamar a atenção sobre a saúde mental, for-
mando a FUSM, Frente Universitária pela Saúde Mental. A campanha “Não é
normal” foi a maior ação dessa rede e consistiu na publicização de imagens que
colocam em cheque circunstâncias vividas por estudantes e que geralmente são
tomadas como normais, estimulando à crítica de tais situações. As seguintes
frases estamparam os cartazes da campanha afirmam que “Não, não é normal:
sentir-se culpado por descansar no final de semana”, ou “sentir-se refém de seu
orientador”, ou ainda “sentir-se menos competente que os outros por causa de
uma nota” e “pensar todos os dias em desistir do curso dos seus sonhos”.

208
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações

Ao mesmo tempo em que o suicídio de um estudante de medicina tem esse


caráter mobilizador, outros tantos, embora provoquem indagações, parecem
não ter o mesmo status e visibilidade, sendo problematizados como casos pes-
soais isolados e não questões de saúde mental coletiva. É o que indicam relatos
de colegas que prestam plantão psicológico em faculdades com projetos de
prevenção ao suicídio (informações colhidas no cotidiano da comissão dos
estudantes do CRPRJ).

Nossa pesquisa aponta que a problematização da saúde mental no meio aca-


dêmico pela psicologia, parece seguir duas vertentes. A primeira e mais hegemô-
nica é uma visão que chamaremos de intrapsíquica, e a segunda, chamaremos
de visão crítica. A primeira abordagem segue as linhas da psiquiatria mais foca-
da no biológica e, portanto, medicalizante e conta com psicólogos de forte apelo
midiático. Seus adeptos defendem que nem todo suicídio praticado por alunos
universitários tem suas razões em questões próprias à faculdade, apesar das co-
branças inesgotáveis da vida acadêmica. Entendem que estas podem ser apenas
um gatilho para quadros de ansiedade e depressão, que esconde raízes internas
mais profundas. Esses profissionais recomendam três pilares para a saúde men-
tal: prática de atividades físicas, alimentação adequada e atividades relaxantes.
Se o quadro persistir, deve-se buscar ajuda profissional, onde a leitura do quadro
é intrapsíquica e familiarista e o enfoque do tratamento, medicamentoso.

Em uma vertente um pouco mais crítica, pesquisadores como Pablo Cas-


tanho e Lygia de Sousa Viégas entendem que o adoecimento do alunado tem
causa multifatorial e se dá no conflito com o social, ressaltando a influência
do mercado de trabalho, a desarticulação dos coletivos, a crise dos modelos de
vida, a perda de referências e a falta de significado da carreira estudantil e de
sua continuidade, a carreira profissional, em um mundo carente de garantias
(MATOS, 2017).

Outros pesquisadores comentam que, na última década, políticas afirma-


tivas desestabilizaram a hierarquia educacional tão secularmente consolidada,
tornando possível o ingresso para pessoas que historicamente encontraram as
portas da universidade fechadas. Como resposta, a universidade, hierarquiza-
da por competências, joga nas costas do indivíduo a responsabilidade por uma
estrutura educacional que é extremamente desigual, e aponta a intervenção no
orgânico, através da medicação, como o campo privilegiado para a compreen-
são do adoecimento individual, excluindo qualquer possibilidade de proble-
matização (OLIVEIRA; HARAYAMA; VIÉGAS, 2016).

209
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Políticas afirmativas de cotas no ensino público, assim como políticas de


financiamento estudantil no ensino privado provocaram uma mudança no
perfil socioeconômico dos estudantes universitários, que não é mais compos-
to hegemonicamente por jovens das classes A e B que saem direto do ensi-
no médio para a universidade. Um número crescente de alunos oriundos das
classes C e D, que trabalha para se manter e para ajudar a família, passa a
integrar esse universo. É uma carga excessiva de atividade profissional, além
de outros papeis que acabam desempenhando, como pai, mãe ou cuidador da
família (RISTOFF, 2014).

Os modelos de assistência estudantil, alvo de crescentes cortes do governo


federal, além de atingir somente uma parte dos estudantes, não contemplam
todas as suas necessidades e muitos precisam de auxílio de suas famílias. Esse
investimento familiar aumenta demasiado a expectativa sobre o futuro dos
estudantes e mesmo as cobranças sobre seu engajamento nos estudos, o que
pode se tornar um agravante para os quadros de sofrimento.

Os estudos até agora citados são desenvolvidos hegemonicamente em uni-


versidades públicas e não contemplam alguns fatores que considero impor-
tantes, como o endividamento dos estudantes por modelos de financiamento
como o FIES – que gera estresse tanto nos estudantes, como em suas famílias.
Evidencia-se ainda a constante preocupação com a colocação no mercado de
trabalho em estudantes advindos de faculdades privadas precarizadas por po-
líticas de demissão em massa e contratação de professores menos qualificados,
viabilizados por mudanças nos dispositivos de avaliação dos cursos (INEP,
2017) e na política de fiscalização do MEC.

Oliveira, Harayama e Viégas (2016) entendem que todos esses fatores


estão fazendo o ambiente deixar de ser um espaço de conexão, partilhas e
trocas, para se tornar um espaço de isolamento e relatam que no Brasil o
consumo de psicofármacos pelo alunado, tanto do ensino superior quanto
da educação básica, não tem sido analisado no âmbito do uso e do abuso
de drogas, pelo contrário alunos e professores têm sido convencidos por
profissionais, tanto da área de saúde quanto da área de educação, que eles
possuem uma doença que os impede de aprender a se comportar na escola
ou na universidade, e para que eles possam frequentar regularmente essas
instituições de ensino, eles precisam ser diagnosticados e tratados, muitas
vezes fazendo uso de medicamentos psiquiátricos (OLIVEIRA; HARAYA-
MA; VIÉGAS, 2016).

210
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações

Educação e Pandemia

É neste cenário que a pandemia chega no Brasil, confluindo novas direções


e ritos aos processos educacionais. Passo agora a descrever, dados coletados
pela minha experiência, como professora de psicologia e como psicóloga con-
selheira.

Enquanto assistíamos ainda atônitos as imagens de cidades como Paris,


Hong Kong e Nova York com ruas desertas e tentávamos entender quando e
em que circunstâncias a pandemia chegaria no Brasil, recebemos os primei-
ros comunicados, em 13 de março de 2020, de que todas as aulas estavam
suspensas no Rio de Janeiro. Quatro dias depois, em 17 de março de 2020 o
MEC publica a portaria nº 343 que suspende as aulas nacionalmente por 15
dias. Já no dia seguinte, 18 de março, fomos comunicados que as aulas migra-
riam para uma plataforma on-line, indefinidamente, enquanto durasse a crise
sanitária. A portaria do MEC foi sendo reeditada quinzenalmente, enquanto
entendíamos que esta situação perduraria por bastante tempo, à medida que
conhecíamos e nos acostumávamos com os efeitos do isolamento.

As exigências dos empregadores aumentaram também de forma crescente


e gradual, uma a uma, de modo que demoramos a nos dar conta da quantidade
de trabalho que estávamos assumindo no período extra-aula. A princípio, foi
solicitado que cumpríssemos metade da nossa carga horária em aulas online,
para dispender o tempo restante nas outras atividades, mas em pouco tempo
não só nos vimos cumprindo todo o horário contratado de aula (pois os con-
teúdos não foram modificados e exigiam este tempo) como precisávamos nos
desdobrar nas novas demandas obrigatórias no ambiente remoto como fazer
chamada, viabilizar a entrada dos alunos na sala, escutar e acolher as queixas,
os medos e as inseguranças que atravessavam a todos. Como eu, a maioria
dos professores acreditou que iria ganhar para si o tempo dispendido com o
deslocamento ao trabalho, uma vez que em muitas IES, os docentes dividem a
carga horária em vários campi espalhados pela cidade e adjacências. O traba-
lho extraclasse aumentou significativamente e em poucas semanas sentimos o
peso do home office.

O primeiro grande desafio consistiu em se comunicar com uma tela es-


tática. O sistema se mostrou insuficiente para sustentar tantos dados e a
solução encontrada foi os alunos desligarem as câmeras. Passamos a falar
sozinhos, sem ideia de como nossas falas estavam sendo recepcionadas.

211
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Fomos encontrando soluções, para manter o diálogo e reduzir a sensação


de solidão, como instituir um momento para nos cumprimentarmos e nos
despedirmos com as câmeras ligadas e pedidos explícitos de feedback por
áudio sobre o conteúdo no decorrer da aula. Rapidamente naturalizamos
a ideia de que todas as aulas eram gravadas e ficariam disponíveis, assim
como teríamos membros do administrativo e da coordenação com acesso às
equipes. Internalizamos, então, mecanismos de autovigilância e controle da
fala e dos gestos, receosos dos destinos dessas gravações.

A carga de trabalho aumentou significativamente: treinamentos semanais


sobre novos recursos tecnológicos tornaram-se obrigatórios, assim como
reuniões de equipe, uma para cada equipe e campus, semanais. Confecção
de material didático e de estratégias de avaliações, exigências de publicação
de fóruns semanais, um para cada disciplina e turma, disponibilização de
material didático por e-mail e pela plataforma utilizada na instituição, men-
sagens para alunos com link da sala de aula, mais mensagens com os links
das gravações, formulários preenchidos após cada aula com detalhes sobre
a quantidade de alunos, acompanhados da exigência de que esses fossem
preenchidos no mesmo dia, assim como lançamento de frequência e conte-
údo no sistema. Dispositivos de rastreamento eletrônico para levantar pen-
dências dos professores no preenchimento de formulários que antes eram
utilizados mensalmente, passam a ser aplicados diariamente e, em alguns
casos, emitiam advertências já no dia seguinte ao término da aula. Respostas
imediatas às mensagens de alunos e colegas, assim como em diversos grupos
de WhatsApp®, passaram a ser tratadas como urgências. O grande medo da
administração, de que houvesse evasão de alunos tornou-se também nosso
medo, pois a diminuição de turmas implica em diminuição de carga horária
e, portanto, de salário, em um tempo ameaçado por uma grande resseção
econômica e passamos a cumprir todas as exigências como se tivessem par-
tido de nós mesmos.

Focados em um processo educacional que foi sendo reduzido a transmis-


são de conhecimentos e cumprimento de protocolos, os docentes passaram
a sentir o peso do esvaziamento dos espaços de encontro, desabafo, trocas
afetivas e de conhecimento que se davam pelos corredores com professores e
alunos. Nos grupos de WhatsApp® de docentes, assistimos a mensagens de co-
legas relatando perdas de parentes, pedindo indicações de médicos e remédios
para dores no corpo decorrentes de horas sentados em espaços improvisados

212
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações

em casa e dicas de anti-inflamatórios e analgésicos foram tomando o lugar de


uma crítica quando as novas posturas de trabalho. Subentendidos e de modo
mais sutil, também se comentava dos ansiolíticos e remédios para dormir, que
ajudavam a suportar a ansiedade, o medo, a solidão e o excesso de tarefas.

Nos grupos e reuniões, sentimos o terror pelos colegas cada vez que al-
guém tinha sintomas de gripe ou era confirmado com COVID-19, escuta-
mos os relatos cada vez mais frequentes de contágio e perdas de parentes
e nos solidarizamos às famílias atingidas, sem que ninguém se afastasse do
trabalho por muito tempo. Alguns colegas compartilhavam a dificuldade do
espaço de casa, outros as dificuldades com os cuidados com os filhos, agora
coabitando integralmente no mesmo espaço doméstico, outros anunciavam
a mudança para um espaço maior, muitos compraram novos equipamentos
e todos aumentaram a velocidade da internet. Esse custo, claro, foi assumido
sem titubeio pelos docentes, que agora compartilham o receio de não con-
seguir dar aulas por dificuldades técnicas e consequentemente ser detectado
ou punido, o medo ainda mais avassalador do desemprego e a preocupação
constante com uma volta precipitada ao trabalho e os consequentes riscos de
contaminação.

Em 16 de junho é publicada a Portaria nº 473/2020, estendendo a suspen-


são das aulas até o final do ano, ao mesmo tempo em que permitia agora, pela
primeira vez, a execução de estágios e disciplinas práticas nessa modalida-
de. Pressionado pela portaria do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que
orienta a prática passa a discutir o atendimento online para estudantes, antes
proibido.

O CFP abre o diálogo com a categoria em um seminário online, que reu-


niu que em torno de 150 estudantes, além de quase 100 supervisores de es-
tágio e 50 coordenadores de curso de todas as IES do estado para discutir a
formação durante o isolamento. Entre os grupos de trabalho, a maioria pede
a regulamentação imediata do estágio na modalidade online, manifestan-
do a ideia de que consistia numa simples migração de ambiente, a exemplo
do que tinha se passado na maioria dos consultórios, denotando a falta de
preocupação com o principal objetivo de um estágio, o desenvolvimento de
uma habilidade profissional que, conforme recomendado pelas das Dire-
trizes Nacionais Curriculares para o curso de Psicologia, deve basear-se na
construção e discussão do conhecimento pautado pelo pensamento crítico e
socialmente responsável.

213
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Foi ficando evidente que essa nova modalidade de ensino, justificada pela
urgência de crise sanitária, baseava-se numa dupla redução. A primeira, que
toma a educação pela simples transmissão de conhecimentos, e que conduz,
consequentemente, à segunda, onde a mudança nos estágios e aulas práticas
é reduzida a uma simples mudança de ambiente. Sobre a primeira, é possível
indicar que ela foi se consolidando à medida que assumíamos como nossa
principal preocupação o cumprimento dos protocolos (formulários, treina-
mentos, reuniões etc) exigidos pela instituição e nos afastávamos dos alunos,
admitindo para nós mesmos que não tínhamos como controlar o uso que es-
tes faziam do conhecimento que estava sendo transmitido. Sobre a segunda, o
que se viu no seminário foram exclamações pragmáticas que demandavam a
solução dos problemas individuas de cada um dos agentes: os alunos queren-
do se formar, os supervisores desejando suas turmas e, consequentemente, a
manutenção do seu trabalho remunerado por hora e os coordenadores plane-
jando a manutenção de um curso atrativo. Aqui observou-se uma clara divisão
entre os atores oriundos do espaço público e o espaço privado, onde os agentes
advindos do ensino privado se preocupavam apenas com a regulamentação do
atendimento online e os profissionais provenientes do ensino público expres-
savam uma extrema preocupação com a qualidade dos profissionais formados
em seus espaços e com a preservação da diversidade da psicologia nos seus di-
versos campos de trabalho e direcionamentos teóricos, além da preocupação
com a saúde e saúde mental da população em geral.

Considerações finais

O que procuramos estabelecer até aqui é que o rumo dos acontecimen-


tos que se seguiram depois da chegada da pandemia no Brasil, assim como
as consequências na saúde mental dos atores da educação, foi decisivamente
influenciado pelo contexto anterior, edificado nos pilares do neoliberalismo.
É somente em um solo já dominado pelos ideais neoliberais que podemos
naturalizar, com tanta facilidade, as simplificações no campo educacional pro-
duzidas a partir da crise sanitária.

Ainda pouco sabemos sobre o mundo pós pandemia, estamos nos acostu-
mando a pouco saber sobre os próximos meses ou dias, mas podemos supor
que será um tempo em que, fatalmente, teremos que enfrentar os impasses
que assumimos com projeto da modernidade que desenhou os modos de

214
12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações

produção de subjetividades e os marcos de nossa organização social. Na me-


dida em que dissemina um sentimento de vulnerabilidade, de incerteza e de
desamparo, a pandemia opera como uma espécie de lupa que intensifica e
amplia nosso campo de visão. Os limites do projeto da modernidade ficaram,
como nunca antes, evidenciados.

Duas direções de expectativas se sobressaem sobre o novo mundo pós


pandemia. Alguns apostam no retorno dos estados de bem-estar social, com o
enfraquecimento do consumismo e do individualismo e, portanto, com o in-
cremento de relações sociais menos competitivas, enquanto outros acreditam
que este novo mundo carrega o risco dos nacionalismos populistas, do obscu-
rantismo e do fortalecimento das religiões, o recrudescimento das fronteiras
internas e externas, a desvalorização da vida humana e, consequentemente, a
banalização da morte.

De qualquer modo, não poderemos prescindir da educação como fer-


ramenta na construção do mundo pós pandemia. Sabemos que a educação,
como estava configurada anteriormente, vinha sendo paulatinamente coopta-
da por forças que legitimam valores de consumo e reproduzem ideologias de
dominação marcadas pela colonialidade, como o racismo e a desigualdade de
gênero. As forças que dominam o poder estatal no Brasil neste momento e que
apostam em um modelo de educação alienante e excludente necessitam da
nossa tristeza e da nossa desesperança para prosperar, pois todo regime eco-
nômico e político prospera porque encontra apoio em modos de subjetivação
que o legitimam. É, preciso então, apostarmos na potência da educação como
instrumento não só de disseminação de conteúdo – o que nos últimos tempos,
com o crescimento do obscurantismo, tem se mostrado essencial – mas como
campo de invenção e construção de uma sociedade pautada por relações mais
solidárias e, como consequência, menos nocivas à saúde mental de seus cida-
dãos, sejam eles educadores ou educandos.

Sabemos que a pandemia é um acontecimento revolucionário e, portan-


to, oportunidade para consolidar mudanças há muito tempo desejadas. As re-
voluções não podem ser programadas, são sempre imprevisíveis. Não é uma
simples transformação, mas uma transformação sustentada em sua duração,
que produz o irreversível (GUATARRI; ROLNIK, 1996). Neste sentido, elas se
encontram mais dentro da lógica da arte que da ciência, pois o artista se deixa
levar por um devir, onde não há um ponto de chegada pré-estabelecido. Assim,
o educador é também um artista revolucionário. Quando ao repetir sua própria

215
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

experiência de ser educado, se abre para a diferença, para a criação do novo,


que é a experiência de transformação de si e do outro. Enquanto conseguirmos
fazer isso, ainda seremos educadores, mesmo no meio virtual, mesmo no mun-
do pós-pandemia, seja ele como for.

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12 – Educação, saúde mental e pandemia: algumas considerações

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217
13
Sociedade enlutada: lutas e lutos de uma sociedade na busca por
educação
Paulo Afonso do Prado
Thalles Azevedo Ladeira
Tiago Afonso Sentineli

Resumo

O presente trabalho visa promover uma discussão crítica a respeito do sen-


timento de Luto que vem marcando a nossa sociedade em tempos de pandemia
do COVID-19 e como essa conjuntura afeta as relações educacionais de alunos e
professores no presente ano. Nesse sentido, apresentamos uma discussão acerca
da semiótica do luto e de alguns desdobramentos sociais que são oriundos dele.
Trata-se de uma pesquisa de revisão bibliográfica de caráter qualitativo. Os resul-
tados apresentados são fruto de uma análise filosófica a partir da ética aplicada e
do interpretativismo antropológico. De modo geral, consideramos que a pande-
mia trouxe o acentuamento dos problemas sociais representados pelo aumento do

218
sofrimento psíquico e a intensificação de um sentimento de luto, que nem sempre
tem a ver com a perda de alguém, por se tratar de um conceito com significados
que permeiam o campo da filosofia, psicologia etc. Portanto, o sentimento de luto
se apresenta, enquanto resultado de uma sociedade que padece com fortes atra-
vessamentos sociais, se desdobrando em um impacto fremente e certeiro sobre
as condições de exercício pedagógico, gerando perda na qualidade da educação,
resultando em espectadores anestesiados e consumidos em suas dores nascidas
durante o isolamento social.

Introdução

No final de 2019, na cidade de Wuhan, na China, o mundo foi surpreendido


com o surgimento do SARS-CoV-2 ou o novo Coronavírus. O surto foi anunciado
em 31 de dezembro (TOSTES; FILHO, 2020, p. 11) e de lá pra cá temos vivido
atravessamentos que acentuaram o mundo de desigualdades sociais e austeridade
econômica que já era uma realidade latente em nossa sociedade.

O vírus atravessou fronteiras, provocando as primeiras mortes de centenas de


pessoas até que a Organização Mundial de Saúde anunciou que se tratava de uma
pandemia: a COVID-19. A esse ponto países já haviam fechado suas fronteiras e o
isolamento social já havia sido decretado como uma medida de segurança.

E, enquanto escrevemos estas páginas, são aproximadamente 800.000 mortes


ao redor do mundo, sendo 114.772 apenas no Brasil (VALOR ECONÔMICO,
2020), levando-o a se destacar como o segundo país com mais mortes pelo CO-
VID-19 dentre todos os países do mundo (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020).

A pandemia do COVID-19 expôs de forma quase que obscena a divisão de


classes perpetrada pelo capitalismo. Se não bastasse o desemprego, já em alta no
país, com a crise provocada pela pandemia, vimos 12,8 milhões de trabalhadores,
entre fevereiro e abril, perdendo seus vínculos empregatícios, segundo o IBGE
(ROUBICEK, 2020) e, muitos entraram para o cenário da informalidade, tendo
que se “reinventar” para garantir a comida na mesa ou respeitar o isolamento so-
cial, sendo relegados à própria sorte quanto a sua subsistência e de sua família.

No entanto, o que mais se apresenta como uma fotografia realista dos tempos
de pandemia é a realidade de lutos que passou a cotidianizar a vida dos brasileiros.
São frequentes no Brasil dias em que a marca bate mais de mil mortes/dia e em

219
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

muitos estados brasileiros famílias sepultaram seus mortos em valas comuns,


em função de um fenômeno inesperado de superlotação dos cemitérios mu-
nicipais.

Diante dessa dor que vem atravessando a vida das famílias brasileiras, nos
incorre a seguinte questão: como pensar a educação nesse contexto? Sob quais
condições psicológicas, emocionais e espirituais nossos alunos aprenderão os
conteúdos escolares, sem as ferramentas necessárias para que essa educação
remota aconteça, considerando que em muitos lares nossos alunos não têm
sequer comida na mesa, e nesse contexto, a merenda escolar era a refeição
sagrada de todos os dias.

Ainda caberia indagar sobre quais condições nossos professores estão


sendo convidados a desligarem suas experiências de luto, para se reinven-
tarem e oferecerem um conteúdo de qualidade, sem perder o dinamismo e
a ludicidade, se muitos docentes não têm formação inicial e/ou continuada
para operar as novas Tecnologias da Informação e Comunicação, quanto
mais estrutura psicológica e emocional para ministrar e/ou elaborar tais au-
las em um contexto de subtração da vida que decorre no enlutamento da
experiência humana.

Fomos lançados em um cenário de acentuada desigualdade social, de con-


testações políticas e ideológicas, objetivadas na falta de suprimentos básicos,
como respiradores e leitos de emergência (DAVIS, 2020), gerando mais mor-
tes, revolta e tristeza, em um ciclo em espiral.

Somam-se ainda ondas conservadoras de brasileiros negacionistas que se


recusam a cumprir o isolamento social e/ou o uso de máscara, que não apenas
desafiam o poder letal do vírus, como também fecham os olhos para todo o
caos que se acentuou, com unidades hospitalares superlotadas e as casas dos
brasileiros sendo palco para leitos improvisados, expondo, como uma veia
aberta, o estrangulamento das políticas sociais de investimento no serviço de
saúde pública do país.

Nesse contexto “pandemônico”, temos em inúmeras casas ao redor do país,


crianças e jovens enlutados, pela perda da mãe, do pai, de irmãos, de parentes
ou amigos, se esforçando para condicionar suas mentes e corpos para apren-
der conteúdos escolares, que a essa altura não fazem nenhum sentido. O Brasil
possui hoje cerca de 11 milhões de analfabetos, segundo o IBGE (TOKAR-
NIA, 2020) e baseado nessa realidade, consideramos que muitos pais, não têm

220
13 – Sociedade enlutada: lutas e lutos de uma sociedade na busca por educação

condições de ajudar seus filhos nas tarefas escolares, explicitando a importân-


cia da figura do professor no processo de ensino-aprendizagem.

É nesse contexto que temos presenciado uma onda avassaladora de distúr-


bios de ansiedade e depressão. Dados divulgados pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, ao longo da pandemia do COVID-19, casos de depressão
quase dobraram e casos relacionados a ansiedade e estresse tiveram um au-
mento exponencial de 80% (MERCIER, 2020).

Especula-se que os índices de tentativas de suicídio tenham aumentado,


devido a fatores como o isolamento, solidão e experiências ligadas ao luto
(HARTMANN, 2020). Uma pesquisa recente aponta que os atendimentos de
urgência do SAMU por tentativas de suicídio na capital paulista cresceram
significativamente após o início da pandemia (SAKAMOTO, 2020).

“Há um mito conveniente de que as doenças infecciosas não reconhecem


classe ou outras barreiras e limites sociais” (HARVEY, 2020, p, 21). Concor-
damos que essa ideia deve continuar situada na esfera do mito, porque na re-
alidade, não existe pandemia neutra em relação a classes sociais. Os dados de
54.488 vítimas, mostram que as mortes de Coronavírus no Brasil são em sua
maioria de pessoas pobres, negras ou pardas e homens (SOARES, 2020). Nesse
sentido, o luto se manifesta enquanto um ato político, nos lembrando que os
índices alarmantes de morte por COVID-19 no país fazem parte de um projeto
de Governo para dizimar negros e pobres. Portanto, existir e resistir em tempos
de pandemia e de (des)governo neoliberal é uma ação revolucionária.

Isso nos remete a Galeano (2002) em um de seus poemas quando nos ins-
tiga a refletir na forma com que é vista a classe trabalhadora na sociedade
capitalista, como “os filhos de ninguém, os donos de nada [...] que não têm
cara, têm braços, que não têm nome, têm número” (GALEANO, 2002, p. 42).

Semiótica do luto: uma concepção ética, estética e antropológica

Etimologicamente, o luto tem origem na expressão luctus, do latim, asso-


ciada a ideia de dor, lástima ou tristeza profunda causada por grande calami-
dade. Logo, o luto engloba diferentes realidades, não apenas as associadas à
ideia de morte. Ele pode ser entendido a partir da noção de perda, sendo seu
desdobramento fisiológico e psicológico ligado por uma relação de sobreposi-
ção de significados (LUTO, 2020; ALMEIDA, 2016).

221
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

O luto envolve de forma bastante ampla todo o contexto da pandemia da CO-


VID-19 vivido sob o aspecto da educação. As questões levantadas até aqui, de-
monstram a necessidade de um debate sobre as dimensões subjetivas e imagéticas
do luto; pois como a moral de uma sociedade descreve o perfil de sua mentalida-
de, o modo como ela vivencia suas experiências de dor são forte demarcação de
sua estrutura hierárquica, política, cultural e social, permitindo a compreensão
da construção de legislações, instituições sociais e relações de poder.

A formatação social constituída sob a égide da dominação e sobre a cons-


trução de espaços de dor e perda, conecta o luto à ética antropocêntrica, que
em momentos de crescimento da desigualdade, nos leva a entender que redu-
zir as relações sociais apenas ao aspecto da relação entre os humanos, valida
as atitudes hierarquizantes que tornam possível segmentar a sociedade deter-
minando os indivíduos que farão o trabalho manual e os que farão o trabalho
intelectual; formalizando processos de violência.

Como forma de reavaliar os efeitos trazidos por este viés filosófico, estu-
diosos sobre a ética produziram reflexões que fizeram surgir a chamada ética
aplicada, que investiga problemas práticos da coletividade, como a questão do
retorno às aulas presenciais em plena pandemia. Situar os temas de interesse
da ética aplicada nos ajuda a defender a tese de que o luto possui uma repre-
sentação ética por ser uma manifestação moral da sociedade, porque caracte-
riza a ideia de valorização da vida, da sociabilidade e da empatia; experiências
fundantes da cultura humana.

Assim, o luto ganha contornos de linguagem, podendo ser analisado sob


a perspectiva da ética do discurso de Habermas (1989), afinal, o sujeito deixa
de ter um caráter categórico e monológico, passando a se construir a partir da
interação entre ele e o grupo, usando para isso a linguagem e o discurso en-
quanto processo de construção de sentidos e significados, tornando os sujeitos
capazes de compreender valores e normas, que são fruto de um consenso co-
letivo e que por isso tornam as normas válidas.

A ética do discurso propõe o convencimento do aceitável, para que as nor-


mas se tornem universais, assim, uma atitude - neste caso, o luto - seria vista
como parte do coletivo, portanto espontânea e passiva de solidariedade. Nesta
relação encontramos a empatia, que justifica a importância do debate sobre as
implicações que o retorno às atividades presenciais traz para o cotidiano das fa-
mílias com indivíduos em idade escolar. Sua banalização para a ética discursiva,

222
13 – Sociedade enlutada: lutas e lutos de uma sociedade na busca por educação

representa uma perda simbólica, pois em termos práticos são um modo de se


expor ao risco da morte através da frequência escolar.

Por se tratar de uma forma de manifestação da moral coletiva, o luto esta-


belece ritos baseados em elementos estéticos e representativos da sensibilidade
humana. Por mais que a perda seja uma realidade que produz sofrimento, habi-
tualmente os indivíduos encontram nos ritos uma forma de expressar seus sen-
timentos através das homenagens prestadas nestes rituais de vivência do luto.
Simbolicamente, podemos lembrar do uso da roupa preta ou das celebrações
religiosas, por exemplo, que segundo Hume (1973) tem grande importância,
pois seriam as crenças que estariam colaborando na construção cotidiana da
vida. E, mesmo que elas não possam ser explicadas racionalmente, são acei-
tas como uma probabilidade que, portanto, seriam capazes de trazer conforto
existencial e emocional. Este modo de pensar pode nos ajudar a compreender a
necessidade humana de manter hábitos e costumes como guias para a vida di-
ária. A estética comportamental dos atos de luto estariam assim, amparadas no
ceticismo metafísico proposto por Hume (1973) para que a racionalidade pu-
desse ao menos entender e identificar que as ações relacionadas ao luto seriam
movidas pelo costume ancorado na crença, isto é, que o luto é uma representa-
ção cultural e como tal, não possui uma essência racionalizada, mas por outro
lado, uma essência emocional com vias a redução do sofrimento espiritual.

Este viés de análise do luto nos leva à percepção de que possui também
uma dimensão cultural substancial, que pode ser entendida através da An-
tropologia. O interpretativismo de Geertz (2008), aponta para a construção
de modelos interpretativos das culturas como forma de isolar seus símbolos
e produzir significados que ajudem a compreender os indivíduos que dela fa-
zem parte. Vale ressaltar que esta perspectiva não é uma interpretação de uma
cultura sobre si mesma, é uma versão sobre ela criada pelo antropólogo. Ge-
ertz trata da prática da etnografia, como forma de construir essa capacidade
interpretativa do outro a fim de entendê-lo. O autor afirma que o objetivo da
antropologia “é o alargamento do universo do discurso humano. [...] Esse é
um objetivo ao qual o conceito de cultura semiótico se adapta especialmente
bem. [...] Algo dentro do qual eles podem ser [...] descritos com densidade”
(GEERTZ, 2008, p. 10).

Em seu silêncio, a escola e a educação amargam o abandono ideológico, pois


sua premissa básica, evocada em todos os dispositivos legais (Constituição Fe-
deral e Lei de Diretrizes e Bases da Educação), foram totalmente invisibilizados,

223
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

porque à educação têm cabido uma sorte de outras responsabilidades que em


nada tem a ver com sua essência: a escola hoje institucionaliza, alfabetiza (quan-
do consegue), apresenta o corpo teórico das ciências de modo propedêutico e
pouco eficaz, serve merenda e cuida dos alunos enquanto seus pais estão no tra-
balho. Fisicamente, as escolas perdem em infraestrutura, investimento, moder-
nização, ampliação, etc. E, por consequência, os professores perdem sua auto-
ridade, a autonomia pedagógica, a formação continuada, as condições salubres
de trabalho, a carga horária adequada, a relação saudável com os gestores do
sistema, e outras coisas, que historicamente representam suas lutas e seus lutos.

A vida refletida em cenários adoecidos e simbolicamente


agredidos

O final de uma nova semana epidêmica traz com ela estatísticas de bra-
sileiros mortos. Pesquisas apontam sequelas da infecção pelo coronavírus
no sistema nervoso, coração, intestinos (LACERDA, 2020). Há retrocessos
na mentalidade popular e dirigentes políticos adeptos de um negacionismo
devastador. Corrupção na formação da infraestrutura de enfrentamento no
setor de saúde (PEIXOTO, 2020). Processos de impeachment em andamen-
to contra governadores de três estados da nação (GOMES; SARTORI, 2020).
Flexibilização da reabertura ocorrendo de forma desordenada e com plane-
jamento estratégico precoce (LEMOS, 2020). Vacinas em fase de testes em
brasileiros, com provisão de aplicação para segmentos sociais específicos
(UOL, 2020). Cidadãos brasileiros aglomerados frente a agências bancárias
na tentativa de sacar o auxílio emergencial bloqueado por ameaça de frau-
des, que desviaram os recursos das famílias necessitadas para indivíduos que
são servidores do executivo (G1 GLOBO, 2020). Hidroxicloroquina sendo
fabricada pelo laboratório do exército que inflaciona o preço da medicação
para pacientes de lúpus e provoca a falta de anestésicos usados para entu-
bar pacientes em estado grave da COVID-19 (JUNQUEIRA, 2020). Famílias
despreparadas para atender suas crianças e jovens nas atividades do ensino
remoto. Indefinições no Ministério da Educação prejudicam a organização
do sistema, produzindo o esfacelamento do projeto educativo nacional que
já era inexistente. O Fundo Nacional da Educação Básica (FUNDEB) correu
o risco de extinção por falta de interesse governamental e foi votado quase
na véspera do término do prazo.

224
13 – Sociedade enlutada: lutas e lutos de uma sociedade na busca por educação

Essa realidade de incertezas, ergue diante dos cidadãos um desejo por mu-
danças que resultem no controle da pandemia e no retorno à rotina habitual.
Sabe-se que o novo cotidiano trará uma enormidade de pessoas inseguras, com
problemas de socialização e medicalizadas por falta de atenção médica adequada.

Para entender a gestação do novo cotidiano, podemos começar pela aná-


lise da ansiedade, fruto do estresse gerado por esta situação de insegurança.
Segundo relatório da ONU, houve um aumento expressivo de casos de de-
pressão e ansiedade, em vários países do mundo, com o advento da pandemia
(OPAS/OMS Brasil, 2020). Dentro destes lares ansiosos e deprimidos, estão
os estudantes, que em grande parte, não conseguem estabelecer o mínimo
contato com colegas e professores. Estando afetados diretamente pelo estado
emocional de seus familiares e até mesmo pela quantidade de pessoas que
convivem na mesma residência, muitos estudantes não dispõem de um am-
biente favorável e espaço físico adequado para estudar.

Entre os concluintes do Ensino Médio, a ansiedade aumenta se considera-


das as incertezas correlacionadas à realização do Exame Nacional do Ensino
Médio, que previsto para ocorrer em janeiro de 2021 (G1, 2020), coloca em
risco a justa concorrência entre àqueles que durante os estudos têm acesso a
maior número de ferramentas que garantam adequado aproveitamento das
atividades remotas. Isto evidencia a perda da perspectiva a curto e médio
prazo destes estudantes de ingressar no estudo superior. Afinal, um dos efei-
tos colaterais da pandemia recaiu sobre a renda familiar, que registrou queda
diante das mudanças do cenário econômico.

De acordo com dados da pesquisa online realizada com 33.688 jovens de


todos os estados do país, pelo Conselho Nacional da Juventude em conjunto
com outras instituições sociais, intitulada “Juventude e Pandemia do Corona-
vírus”, publicada em junho (G1 GLOBO, 2020), 49% dos jovens que respon-
deram à pesquisa, pensaram em desistir da prova e, 33% já buscam algum tipo
de atividade remunerada para ajudar a aumentar a renda familiar, uma vez
que quatro a cada dez entrevistados relatam que sua família teve redução de
renda ou sua perda total. Fato que impacta diretamente os índices de evasão
escolar, pois 28% dos jovens afirmaram que não irão retornar para a escola
após a pandemia.

Diante dessa realidade, um dos elementos mais importantes do processo


educativo, a empatia, experimentada através da socialização ocorrida duran-
te as aulas, no caso do ensino remoto, é substituída por relações virtuais e

225
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

distantes. Alunos e professores ao trabalharem de modo isolado de seus lares,


desconstroem a noção de pertencimento e identidade frente às escolas, que
deixam de ser o espaço protagonista na construção de auto estima e formação
de um projeto de vida, tornando-se secundárias e alvo de temor frente a pos-
sibilidade do retorno das atividades presenciais sem condições de segurança.

Nesse sentido, consideramos a constante apreensão vivida por todos na


convivência diária quanto ao risco de contaminação; pois os alunos poderiam
levar para casa o vírus, fato que expõe famílias ao perigo, impondo à elas a
necessidade de realizar uma escolha entre a garantia do direito à educação
ou a manutenção da sua saúde física. Realidade que traz à tona toda a carga
emocional exigida dos indivíduos neste momento, refletida em seus ciclos de
sono, pois o isolamento social coloca as pessoas em menor ritmo de atividades
físicas e consequentemente indo dormir cada vez mais tarde, atrasando a hora
de acordar, que reduz o tempo produtivo ao longo do dia, diminui o tempo
de socialização familiar e em efeito cíclico, há o aumento direto da ansieda-
de e do medo, que podem resultar no chamado “distúrbio do pesadelo”. Esse
cenário reduz a qualidade do sono e de vida, agravando quadros de cefaléia,
irritabilidade, variação de humor, dificuldade de concentração e hipersonia
(sonolência excessiva), que em uma fase de desgaste provocada pelo longo
tempo de isolamento social, coloca os indivíduos em de estado de “abandono”
de si mesmos, por terem a sensação de que podem fazer suas tarefas a qual-
quer horário e quando sentirem vontade (RODRÍGUEZ, 2020).

Mais uma vez endossamos nossa premissa de que a pandemia frente a


todas as consequências físicas, psicológicas, econômicas, políticas, culturais
e educativas é a expressão máxima de uma sociedade “enLUTAda”, onde o
conjunto de dores e tristezas causadas pelo coronavírus representam a luta da
sociedade pela superação. Encurralada, a sociedade existe nessa relação de do-
minação e, a ela sobrou apenas a alienação proveniente do desmonte de seus
direitos essenciais, sobretudo o mais potente e emancipador: a “educAÇÃO”,
que é a possibilidade de mobilidade social para as massas.

Contudo, agora, nesta situação adversa em que todos sofremos algum tipo
de impacto direto da quarentena, os efeitos psicológicos e sociais transbordam
do íntimo dos indivíduos e inundam a sociedade e, por mais que o estado de
luto seja individual, se torna um fato social, porque possui um caráter coerciti-
vo, generalizador e externo que domina o coletivo e coloca a sociedade apenas
reagindo a estímulos externos. Esse é o contexto pelo qual o luto torna-se uma

226
13 – Sociedade enlutada: lutas e lutos de uma sociedade na busca por educação

forma de violência simbólica (BOURDIEU, 2012), pois além de sua imposi-


ção, traz perdas pessoais de diferentes níveis. Para as crianças da Educação
Infantil, há a interrupção do processo de aprendizagem formal. As crianças
da Educação Especial deixam de receber acompanhamento médico e terapêu-
tico para continuar a estimulação, essencial para o desenvolvimento de suas
habilidades dentro de sua condição e de igual modo, cabe considerar também
as centenas de famílias brasileiras que foram subsumidas ao desemprego e
precisaram encontrar alternativas outras para continuar mantendo sua subsis-
tência, caso contrário, passariam fome.

Considerações finais

A partir de todas as reflexões tecidas, pudemos verificar que de modo ge-


ral, com a chegada do Coronavírus vemos surgir o acentuamento dos proble-
mas sociais representados pelo aumento do sofrimento psíquico, a citar a an-
siedade, sobretudo pelo risco de contaminação; o desemprego estrutural, que
já era uma realidade e que a partir da pandemia, se consagrou, revelando que
o sentimento de luto não é exclusivo de quem perdeu familiares e/ou amigos
para o COVID-19, mas é uma realidade que atravessa a vida de todos os brasi-
leiros que sofrem com as mazelas de uma crise sanitária, econômica e política.

A conjuntura revela que nossa sociedade está adoecida. Toda vez em que
há a perda de alguém para o COVID-19 e que a fome bate na porta daqueles
que perderam seus vínculos de trabalho em função da pandemia, o sentimen-
to de luto se apresenta, nem sempre objetivamente com a perda do outro, mas
em certos momentos, com a perda de si mesmo e da dignidade humana.

É nesse sentido, portanto, que consideramos o luto um ato político, pois


em tempos de “vamos tocar a vida”, conforme declaração dada pelo Presidente
da República, demonstrar frustração, tristeza e indignação é em si o primeiro
passo para transformar o sentimento de luto em luta, pela superação da
desigualdade social, por uma educação de qualidade e emancipadora e
sobretudo pelo direito à vida. E se as frentes políticas querem nos ver como
números - quem vive e quem morre -, que sejamos números no aspecto de
articulação coletiva para a transformação de nossa realidade social. Que o luto
nos faça florescer, ainda há tempo! E nessa linha atitudinal, uma educação de
viés materialista histórico-dialético representaria a emergência de pedagogias

227
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

promotoras de autonomia estruturada sobre a compreensão pelos próprios


indivíduos por ela atendidos e construídos, de sua realidade e condição,
passiva de mudança e reestruturação, com vias à alteração de uma realidade
promotora de alienação, que deixa como fruto dor e sofrimento dentro das
estruturas de dominação vigentes.

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231
14
A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do
mundo1
Fabio A. G. Oliveira

Resumo

Este capítulo visa a propor reflexões decoloniais que projetem formas de adiar
o fim do mundo, a partir da aproximação entre educação e utopia. Este entre-
cruzamento – educação e utopia – tem como fonte de inspiração as leituras das
obras dos pensadores Ailton Krenak (2019) e Vandana Shiva (2002; 2016), cujo
propósito é o resgate de uma memória capaz de ativar imaginários absolutamente
radicais para uma educação efetivamente intercultural. Por radicais, entendo a

1. O subtítulo deste texto tem inspiração direta na obra do pensador indígena Ailton Krenak. Suas
reflexões nunca foram tão urgentes.

232
possibilidade de construção de uma práxis original-originária que aponte cami-
nhos que movimentem as bases e, com isso, conteste os fundamentos dos saberes
canonizados pelo status quo, responsáveis por naturalizar práticas de violências
epistemológicas das mais diversas contra povos e nações, consolidando o que
chamarei de regime epistemicida; ou seja, um conjunto de práticas que estru-
turam a marginalidade de saberes que escapam da produção eurocentrada e do
norte global e se imbricam na produção de estereótipos que situam determinados
corpos e sujeitos/as à margem do saber e do poder. Esse processo de consolidação
do regime epistemicida deve ser compreendido, portanto, através da noção de
colonialidade em suas múltiplas formas e expressões. Logo, ao lado dos autores
previamente citados, aciono a leitura de Anibal Quijano (2005) Alberto Acosta
(2018), Walter Mignolo (2003), Catherine Walsh (2007) e Alberto Galindo (1988)
sobre a necessidade de crítica à perseguição pelo desenvolvimento imposto pela
hegemonia do progresso e regida por atores internacionais descomprometidos
com o bem viver dos povos considerados do terceiro mundo (ou ‘em desenvol-
vimento’), e busco pensar a dimensão da utopia como ferramenta crítica para a
defesa de uma educação intercultural capaz de se opor ao regime epistemicida
que se aprofunda diante das tecnologias da precarização ativadas no período de
pandemia COVID-19. Logo, defendo que está na dimensão utópica uma impor-
tante ferramenta decolonial para atravessarmos o presente sem abrir mão de res-
gatarmos o passado para adiarmos o fim do mundo.

Introdução

Este texto é escrito em 2020. Hoje, dia 20 de agosto, o Brasil registrou mais
1212 mortes por coronavírus, totalizando 112.304 vidas perdidas2. Logo, este tex-
to é escrito a partir do luto. Luto que também se faz luta, que tem como motor
a indignação. Falo também do lugar de um professor de filosofia da educação
que atua no curso de licenciatura interdisciplinar da educação do campo na
Universidade Federal Fluminense, uma instituição pública e gratuita localizada
em um campus de interior do Estado do Rio de Janeiro situado no Noroeste
Fluminense, na cidade de Santo Antônio de Pádua. Neste sentido, a indignação
que carrego tem como propósito fazer emergir um olhar pedagógico para ver, estar

2. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Template:COVID-19_pandemic_data.

233
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

e agir no mundo. Logo, longe de ser apenas uma forma teórica de análise de
mundo, ela busca operar de forma a revolucionar mundos possíveis, vivenciá-
los, experimentá-los e transbordá-los, como afirmava Estamira3. Trata-se de
uma práxis educativa que compreende não somente a importância da teoria
crítica, mas também a prática, o engajamento como fontes para decolonizar-
mos nossos imaginários. Consequentemente, a educação é entendida como
um território na mesma medida em que o território se torna ele mesmo uma
plataforma educativa.

Com isso, neste capítulo busco pensar a história presente tendo como
enfoque a incerteza que o futuro nos reserva. Dedicarei esforços para não
me situar dentro ou fora de uma narrativa otimista ou pessimista acerca
de um futuro pós-pandêmico ou do que convencionalmente alguns meios
de comunicação, apoiados pelo grande empresariado, chamam de “novo
normal”4. Ao fenômeno das reestruturações sociais baseadas no distancia-
mento físico, em especial nas que tem ocorrido no campo da educação com
o investimento em atividades remotas, ou seja, uma espécie de adequação
ao contexto pandêmico”, prefiro chamar de tecnologia de precarização do
trabalho e das trabalhadoras/es, dado que são muitos os relatos que apontam
para um esgotamento psicofísico das relações pessoais neste campo. Ou seja,
busco escapar dessas dicotomias (otimismo versus pessimismo), compreen-
dendo que elas mais aprisionam do que permitem pensar radicalmente as
bases e as novas formas tecnológicas de produção da precariedade dos cor-
pos e territórios que nos conduziram até aqui. O “aqui” ao qual me refiro diz
respeito à pandemia do COVID-19, mas também ao modelo hegemônico de
organização social, amparado em uma verticalização do poder estabelecida
primeiramente por um processo colonial/moderno e eurocentrado que se
consolida em um sistema capitalista globalizante, reforçando a naturalização
de uma hierarquia entre raças (QUIJANO, 2005), culminando em novas for-
mas de produção de desigualdades que visam a manutenção das dominações
e sustentação da necropolítica (Mbembe, 2018) contra aquelas/es sujeitas/os
consideradas/os descartáveis, indesejáveis, improdutivas/os à luz da matriz
de poder colonial.

3. Estamira (2006) é o nome da protagonista e filme documentário de Marcos Prado.


4. Ver: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/08/07/como-sera-o-novo-normal-
-de-renner-itau-e-outras-empresas-apos-a-pandemia.htm.

234
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo

Durante a pandemia COVID-19 este processo ao qual busco nomear en-


quanto regime epistemicida tornou-se matéria e foi responsável pelo apro-
fundamentodas desigualdades estruturadas a partir do paradigma colonial e
necropolítico, sob o comando de um governo cuja principal característica tem
sido uma espécie de política do ódio ou como alguns autores têm chamado, do
ódio como política (GALLEGO, 2018).

Diante de um cenário pandêmico, cogitou-se interpretar que o vírus atin-


giria a toda e qualquer pessoa da mesma maneira. Neste sentido, apostou-se
em uma narrativa que descreveria uma característica supostamente neutra e
por assim dizer democrática do vírus SARS-CoV-2. Afinal, toda e qualquer
pessoa estaria vulnerável ao vírus. O que se observou, no entanto, foi que
grupos politicamente minoritários e vulnerabilizados historicamente, tais
quais a população negra5 6 7, pobre8 9 10, LGBTIQ+11, imigrantes12, idosos13,

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235
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

indígenas14, mulheres15, mães16 e crianças17 foram consideravelmente mais afe-


tadas pelo vírus. O que isso quer dizer? Que mesmo diante de uma pandemia
global as desigualdades focalizadas/localizadas fazem com que a vulnerabili-
dade situada e vivenciada por determinados indivíduos e grupos fazem com
que os mesmos estejam em desvantagem psicossocial. Ou seja, se reafirma o
que já desconfiávamos: as sociedades forjadas na desigualdade aprofundam
ainda mais a vulnerabilidade de certos grupos, seja pela dimensão do contá-
gio direto ao vírus, seja pelas consequências socioeconômicas, diante de um
cenário de catástrofe generalizada. É possível afirmar, portanto, que duas epi-
demias convivem no Brasil 2020: a do coronavírus SARS-CoV-2 e a da desi-
gualdade sociorracial18, ambas aprofundadas pela gestão do ódio.

Diante deste cenário, busco apresentar autoras/es que nos oferecem pis-
tas e ideias para adiar o fim do mundo. Começo com o pensador Ailton
Krenak, autor da obra “ideias para adiar o fim do mundo”, cujo título inspira
diretamente este texto. Ao lado dele, Vandana Shiva é convidada para pensar
como a miséria tem sido organizada e solidificado a perseguição ao pro-
gresso e ao desenvolvimento. Com Krenak e Shiva, penso que um elemento
fundamental é evidenciado: não é possível estabelecer uma crítica profunda
às sociedades atuais e aos regimes necropolíticos que nela convivem, sem
que para isso tenhamos que enfrentar o modelo de desenvolvimento globa-
lizante baseado na dominação territorial, devastação ambiental e aniquila-
mento dos saberes tradicionais. Logo, pensar a educação para um momento
pós-pandêmico exige de nós uma revisão profunda acerca de como estamos
vivendo e convivendo uns com os outros. Aqui, é preciso situar a coloniali-
dade (QUIJANO, 2005) como categoria de análise central para um melhor

14. Ver: https://covid19.socioambiental.org. Acesso em: 15 jul. 2020.


15. Ver: https://nacoesunidas.org/COVID-19-onu-mulheres-lista-9-acoes-para-eliminar-as-
de­s­igualdades-de-genero-dentro-de-casa. Acesso em: 15 ago. 2020.
16. INSFRAN, F.; MUNIZ, A. Maternagem e COVID-19: desigualdade de gênero sendo re-
afirmada na pandemia. In: OLIVEIRA, F. A. G.; DIAS, M. C.; GONÇALVES, L. (Orgs.).
COVID-19 e Desafios Contemporâneos da Saúde Coletiva e Bioética. Diversitates Int. J., v.
12, n. 1, p. 26-47, jun./dez. 2020.
17. Ver: https://www.unicef.org/brazil/protegendo-criancas-mais-vulneraveis-do-impacto-do-
-coronavirus-uma-agenda-de-acao. Acesso em: 16 ago. 2020.
18. Ver: https://www.geledes.org.br/a-nova-etapa-do-mapeamento-da-COVID-19-em-sao-pau-
lo-mostra-duas-epidemias. Acesso em: 03 ago. 2020.

236
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo

entendimento acerca da naturalização e banalização dos processos de com-


binação das violências epistêmicas que acabaram por contribuir com o apro-
fundamento das desigualdades durante o período de pandemia. A educação
diante deste contexto deve se posicionar e informar alternativas que permi-
tam a resistência contra os processos coloniais, bem como as tecnologias que
reforçam a precarização das vidas.

A educação se faz essencial, dado que é neste campo que se torna possível
recrutar a dimensão utópica, aqui inspirada na poesia do pensador e ensaísta
peruano Alberto Flores Galindo ao se referir à cultura dos povos originários
dizimados nos mais diferentes territórios da América Latina. Logo, resgato na
poesia a possibilidade de adiar o fim do mundo a partir da dimensão utópica
na educação intercultural contra todas as iniciativas de precarização, fruto dos
processos coloniais necropolíticos que se aperfeiçoam no regime capitalista
globalizante.

Enfrentar o fim do mundo, com Ailton Krenak

Ideias para adiar o fim do mundo (KRENAK, 2019) reúne três palestras do
pensador e ativista indígena da etnia Krenak, Ailton Krenak, sendo a primeira
homônima e as outras duas intituladas “do sonho e da terra” e “a humanidade
que pensamos ser”, respectivamente. A primeira palestra, título do livro, tem
como foco fundamental a tentativa de entendimento de “como temos cons-
truído a ideia de humanidade ao longo desses últimos 2 mil, 3 mil anos”. Este
mesmo tópico de reflexão foi registrado no documentário “Ailton Krenak e o
sonho da pedra”, do diretor Marcos Altberg, lançado em 2018.

A pergunta sobre a ideia de humanidade levantada por Ailton Krenak su-


gere, segundo o próprio pensador, uma desconfiança. Para Krenak reside no
conceito de humanidade a própria justificativa do uso da violência contra to-
das/os que não foram e ainda não são consideradas/os humanas/os. Esta ques-
tão também foi posta por Quijano (2005), quando o autor peruano descreve
como se deu o processo de racialização dos povos colonizados, cujo propósito
era o de criar uma justificativa que autorizasse a inferiorização e subjugação
de povos e nações originárias aos projetos coloniais expansionistas. Para Kre-
nak, portanto, é preciso centrar esforços no entendimento acerca do empreen-
dimento dado à definição e função da categoria humanidade, uma vez que ela

237
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

foi e ainda é responsável por um processo continuado de autoconvencimen-


to da necessidade de expansão de um projeto de civilização. Neste sentido, é
possível identificar pelo menos duas dimensões na definição de humanidade
apresentada por Krenak: ética e política. A primeira diria respeito a dimensão
do autoconvencimento psicossocial que estabeleceu um tipo de olhar sobre si
diante do outro; e a segunda sobre o arranjo social criado a partir da desuma-
nização dos povos que não correspondiam ao projeto de expansão colonial.

Para Krenak, esse projeto de expansão traria em sua base uma oculta defi-
nição de natureza, justamente por fazer operar a ideia de humanidade a partir
do paradigma cultura versus natureza. Neste sentido, o projeto colonial pro-
cura impor a crença de que são os colonizadores que carregam a cultura na
contramão do desprovimento cultural dos povos originários. Nesta dimensão
de oposição estabelecida por uma hierarquia de valores, a humanidade tam-
bém cria uma espécie de natureza e sobre ela transforma todas/os e tudo que
é considerado natureza em recurso a ser dominado. Eis a convocação para a
civilização.

Segundo Krenak,
A ideia de que os brancos europeus podiam sair colo-
nizando o resto do mundo estava sustentada na pre-
missa de que havia uma humanidade esclarecida que
precisava ir ao encontro da humanidade obscureci-
da, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado
para o seio da civilização sempre foi justificado pela
noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra,
uma certa verdade, ou uma concepção de verdade,
que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes
períodos da história (KRENAK, 2019, p. 11).

Diante desse panorama, Krenak então pergunta: somos mesmo uma hu-
manidade? (KRENAK, 2018). Se somos, o que nos constitui enquanto uma
humanidade? Para tentar identificar a humanidade sobre a qual enunciamos,
Krenak enumera as instituições mais consolidadas que formam a chamada
humanidade. As universidades, o Banco Mundial, Organização dos Estados
Americanos (OEA), Organização das Nações Unidas (ONU), Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) (KRE-
NAK, 2019, p. 12).

238
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo

Sobre a Unesco, em especial, Krenak afirma que “quando a gente quis criar
uma reserva da biosfera em uma região do Brasil, foi preciso justificar para a
Unesco por que era importante que o planeta não fosse devorado pela minera-
ção” (KRENAK, 2019, p. 12). Ao comentar este episódio, Krenak propõe ques-
tionar em que medida essas instituições acabam endossando e ecoando uma
concepção de humanidade apoiada na colonialidade. O pensador segue afir-
mando que “essas agências e instituições foram configuradas e mantidas por
estruturas dessa humanidade. E nós legitimamos sua perpetuação, aceitamos
suas decisões, que muitas vezes são ruins e nos causam perdas, porque estão a
serviço da humanidade que pensamos ser.” (KRENAK, 2019, p. 13). Nesta di-
reção, Krenak nos pergunta sobre o referendo que essas instituições dão a uma
concepção de humanidade responsável por excluir aqueles que historicamente
não foram considerados parte integrante “desse clube” (KRENAK, 2019, p.
13), que é uma outra forma à qual Krenak passa a se referir à humanidade.

Krenak lança uma crítica, portanto, não às formas de organizações especi-


ficas, mas à própria origem colonial que preserva em suas bases os interesses
de destruição da memória ancestral. Logo, estamos diante de uma violência
epistêmica estrutural que prevalece institucionalmente, a partir de uma con-
cepção de humanidade que se dedica a considerar formas de organização so-
cial e cultural muito específicas. Frente a essa organização social e cultural de
matriz colonial, a vida de povos e nações originárias continuam a ser interpre-
tadas – quando o são – como a exceção diante de uma norma.

Nesse momento, Krenak traça um retrato da “organização social” contem-


porânea que, segundo ele, se modelou inicialmente a partir do aniquilamento
desses povos e, em seguida, como podemos afirmar ao lado do pensamento
decolonial, arrancou indivíduos dos campos e florestas direcionando-os aos
centros urbanos, sob o signo da promessa do avanço e progresso. O resultado
foi e ainda é o estabelecimento de formas precarizadas de vida, cujo propósito
foi o de, dentre outras coisas, destruir os vínculos e memórias ancestrais dessa
parcela da população agora desterritorializada. O processo de desterro dessas
comunidades, povos e nações, fruto da estratégia colonial atualizada, agora em
sua vertente capitalista neoliberal, estimulou o desejo de um suposto desen-
volvimento indispensável para o crescimento, reforçando a cisão entre a hu-
manidade e a terra, e descaracterizando todos os povos cuja identidade esteve
e/ou ainda está associada diretamente com o próprio território onde se vive.
Essa incapacidade de perceber identidades outras identificadas com a terra

239
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

fez com que a maior característica da expansão colonial e da sua continuidade


enquanto colonialidade do poder (QUIJANO, 2005) fosse a ação movida pela
violência e aniquilamento da memória que vincula povos e nações a suas ter-
ras, agora destinadas à propriedades privadas, com destaque ao agronegócio.
Ou seja, trata-se de um projeto político-pedagógico de deseducação da socie-
dade, guiada pela razão neoliberal (CASARA, 2017) que prossegue estimulan-
do a formação de identidade nacional que ao se identificar prioritariamente
com os saberes dos colonizadores recusa os saberes tradicionais dos povos
originários. Eis a formação do regime epistemicida, responsável não somente
por um epistemicídio histórico, mas igualmente responsável por reforçar ins-
tituições na contemporaneidade, inclusive as de ensino, a continuar negando o
reconhecimento desses saberes e seus modos de viver e ser no mundo.

Em algumas entrevistas, Krenak menciona que quando as caravelas euro-


peias chegaram para invadir e roubar as terras dos povos e nações que ali já
viviam, trouxeram consigo a incapacidade de compreender as florestas. Essa
incapacidade fez com que observassem as florestas como riqueza natural e,
portanto, recurso ecológico, e também como um resultado do mau aprovei-
tamento da terra por parte dos povos e nações originários. Esta incapacidade
permitiu a solidificação de um regime epistemicida que compreendeu a cul-
tura dos povos originários como natureza espontânea. Ou seja, toda a cultura
com a terra não foi compreendida pelos europeus que aqui chegaram. Ao con-
trário, os colonizadores buscaram reforçar que os povos e nações originários
eram selvagens, embora fossem eles os que atravessavam oceanos impulsio-
nados pelo desejo de expansão, aniquilação e dominação das terras e culturas
daquelas/es consideradas/os inferiores.

Penso que esse olhar é o que os autores Carlos Walter Porto-Gonçalves e


Pedro de Araújo Quental (2012) chamam de imaginário colonial. Trata-se de
um olhar incapaz de enxergar a realidade para além daquela projetável pelas
suas próprias ambições e vícios, fazendo com que a colonialidade se divida
em pelos menos três aspectos, tal qual a pensadora brasileira Francisca Mar-
li Andrade destaca ao desenvolver um estudo sobre a questão ambiental na
Amazônia: invasão, apropriação e violência (ANDRADE, 2017, p. 55-56).

Desta maneira, pensar a educação à luz de um paradigma decolonial nos


convida imediatamente a assumir um posicionamento ecoterritorial (SVAM-
PA, 2016), dado que está na base de sua discussão uma outra concepção ético-
-política de convivência; de bem-viver. Não por acaso, a humanidade para

240
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo

Krenak caminha para a uma espécie de vida superficial que cinicamente esta-
ria preocupada com as questões ecológicas – dentre elas as barreiras sanitárias
em tempo de pandemia – no momento em que há impacto negativo sobre a
vida daqueles que são compreendidos pelas instituições que regulam o mundo
como humanidade. Isto significa dizer que o que de fato preocupa o mundo
é a vida da economia das grandes corporações. Essa é a mesma humanidade
que, segundo o Krenak, é a responsável pelo o que ele chama de devoradores
de montanhas, rios e florestas (KRENAK, 2019, p. 20). Após criarem a doença,
criam o remédio para que sejamos capazes de suportar a vida insuportável sob
o lema do progresso.

E o que vem a ser o “progresso” que Krenak denuncia nesta obra? Ao que
tudo indica, o autor está sinalizando para uma espécie de fracasso ético, políti-
co e econômico. Consequentemente, um fracasso social e cultural proveniente
de um modelo padronizado pelos registros coloniais e aperfeiçoado pela su-
posta ideia de globalização. Neste sentido, poderíamos também afirmar que se
trata de um fracasso educativo, uma vez que a educação, outrora questionada
pelo filósofo Theodor Adorno por ser incapaz de impedir a barbárie do na-
zismo (ADORNO, 1995), teria igualmente fracassado por não interromper os
fluxos coloniais que permanecem operando de modo a aprimorar o regime
epistemicida, a partir das novas tecnologias de precarização. Neste sentido,
observa-se a importância dos estudos decoloniais direcionados às matrizes
curriculares para obtenção de uma formação intercultural (OLIVEIRA; CAN-
DAU, 2010), como veremos mais adiante.

Enfrentar a globalização e seus efeitos, com Vandana Shiva

Aqui, a filósofa e física indiana Vandana Shiva (2002) parece ser bem eluci-
dativa para pensarmos o progresso que Krenak pretende decifrar e enfrentar.
Em diversas de suas obras, Shiva (2002; 2015; 2016) nos convida a considerar
a seriedade que envolve a crise ecológica global nos dias de hoje. Afinal, para
a filósofa, pensar a terra e a alimentação implica em pensar direitos básicos
ceifados de boa parcela da população mundial, em especial aquelas do sul glo-
bal. Logo, pensar a terra e a alimentação é lutar pelo direito à moradia e à nu-
trição. Segundo Shiva, para que a atmosfera da terra e as espécies humanas
e não-humanas que nela habitam sejam destruídas, tudo que devemos fazer
é continuar “progredindo” dentro dos parâmetros estabelecidos pelo projeto

241
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

capitalista globalizante. Neste sentido, para a autora, a globalização como res-


posta para problemas sociais ou até mesmo para os chamados desafios econô-
micos é um mito que se sustenta no discurso do “desenvolvimento” imposto
por um arranjo internacional regido pelas grandes empresas. Não por acaso,
Shiva, mas sobretudo Alberto Acosta (2018), problematizarão a ideia de divi-
são econômica mundial a partir das nomenclaturas: países desenvolvidos e pa-
íses em desenvolvimento. Para Acosta tais categorias sugerem uma necessidade
de crescimento aos parâmetros de um mundo esgotado, onde a necessidade de
expansão do consumo exige o contínuo processo de desterritorialização dos
povos e nações mais vulneráveis do Sul Global, principalmente das Américas.
Este processo conduz a produção da fome e aumenta o fosso existente entre
ricos e pobres.

Neste sentido, continuar crescendo da maneira e velocidade que temos


adotado como critério para adoção do paradigma capitalista globalizante nos
conduziria ao aprofundamento e aceleramento do progresso do colonialismo,
ainda em vigor. Vivemos, portanto, o que Shiva irá chamar de “monocultura
do pensamento” (SHIVA, 2002). Ou seja, uma formatação que não somente
estabelece uma hierarquia entre culturas, mas principalmente organiza a ca-
deia produtiva e de consumo. Este modelo aniquila saberes e práticas culturais
de povos e nações originárias do Sul Global, e também reinventa formas de
aniquilação e dominação de grupos historicamente vulneráveis através, sobre-
tudo, da fome e miséria.

Neste sentido, a monocultura de pensamento percebida por Shiva em vigor


precede o investimento nas estratégias capitalistas de tecnologia da precariza-
ção, cujo objetivo central visa a disseminar novas práticas para incorporação à
dinâmica social proposta pelo novo padrão de poder mundial ainda baseado
na racialização de determinados povos e etnias. A tecnologia da precarização,
longe de revolucionar o mundo de modo a suplantar as relações de precarie-
dade e implantação do bem viver, visa a legitimar as relações de dominação
impostas pela violência colonial (QUIJANO, 2005). É preciso, portanto, rom-
per com esta percepção para que sejamos capazes de imaginar e criar outros
mundos possíveis.

Tanto Krenak quanto Shiva denunciam o progresso como sendo um mo-


delo ecocida, cuja matriz capitalista herdeira do colonialismo – ou uma ver-
são atualizada da violência colonial – permanece conduzindo uma marcha
fúnebre cujo colapso parece ser não somente um futuro não muito distante,

242
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo

mas, para muitos, a realidade já vivenciada há séculos. Nesse sentido é que a


condição imposta pelo COVID-19 não pode ser pensada como dissociada do
projeto de desenvolvimento ao qual o mundo está submetido, sob o comando
dos interesses de empresários que controlam territórios físicos e agora, tam-
bém, digitais, através do mercado das informações e dados pessoais.

As queimadas na Austrália no início de 2020, bem como as atuais na re-


gião brasileira do Pantanal, a acidificação dos oceanos, a migração de animais
humanos e não-humanos em busca de novos habitats propícios para a vida,
e o aumento do nível do mar são apenas poucos exemplos dos impactos de-
vastadores das alterações climáticas em todo mundo. Paralelamente a isso, o
mundo consome e esgota a terra como nunca antes na história19.

Cabe dizer que os impactos específicos sobre as comunidades humanas e


não humanas mais vulneráveis são também desproporcionais se comparadas
aos efeitos que acometem as regiões e comunidades com maior concentração
de renda no mundo (OLIVEIRA, 2019). Não é por acaso que os inúmeros casos
de ecocídios marinhos provenientes da busca e comércio de petróleo e também
o investimento na criação de fontes energéticas ecologicamente desvastadoras
ocorrem em locais mais pobres e vulneráveis politicamente. Terras indígenas,
por exemplo, têm sofrido todo tipo de ataque, inclusive institucional, articulan-
do as tecnologias da precarização, sob a égide do progresso e desenvolvimento20.

Além disso, cabe ressaltar que os últimos discursos ecocidas encampados


e disseminados por céticos climáticos21 e negacionistas científicos22 que hoje
assumem a gestão pública, bem como representantes de grandes corporações
que atualmente ocupam cadeiras de destaque mundo afora, parecem apontar

19. Ver: https://www.euronews.com/2020/08/22/explainer-today-is-earth-overshoot-day-here-


-s-what-it-means. Acesso em: 23 ago. 2020.
20. Sobre a Proposta de Ementa Constitucional que libera atividades agropecurárias em terras
indígenas, ver: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/pec-libera-atividade-agrope-
cuaria-terras-indigenas. Acesso em: 15 ago. 2020.
21. Sobre a participação dos céticos climáticos no Senado Brasileiro em 2019, ver: https://
www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/07/12/cientistas-ceticos-sobre-o-aquecimen-
to-global-serao-ouvidos-na-cre. Acesso em: 15 ago. 2020.
22. CAPONI, Sandra. (2020). COVID-19 no Brasil: entre o negacionismo e a razão neoliberal.
Estudos Avançados, v. 34, n. 99, 209-224. Epub. 10 de julho de 2020. Disponível em: https://
doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.3499.013. Acesso em: 10 ago. 2020.

243
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

para um cenário de conjunção entre o discurso autoritário e a devastação


ecológica. Ambos se unificam no projeto colonial de expansão territorial em
associação à compra de patentes, a qual Shiva (2001) dá o nome de biopirata-
ria; ou como logo no início da obra a define como uma “pirataria através das
patentes, a segunda chegada de Colombo” (SHIVA, 2001, p. 2).

E continua afirmando que as


Noções eurocêntricas de propriedade e pirataria são
as bases sobre as quais as leis de Direitos de Pro-
priedade Intelectual do Acordo Geral sobre Tarifas
e Comércio (GATT) e da Organização Mundial do
Comércio (OMC) foram formuladas. Parece que os
poderes ocidentais ainda são acionados pelo impulso
colonizador de descobrir, conquistar, deter e possuir
tudo, todas as sociedades, todas culturas. As colônias
foram agora estendidas para os espaços interiores, os
códigos genéticos dos seres vivos, desde micróbios e
plantas, até animais, incluindo seres humanos (SHI-
VA, 2002, p. 2).

Talvez, por isso mesmo, caiba dizer que a versão do regime epistemicida
que vivenciamos atualmente seria o encontro entre o autoritarismo e o colap-
so ecológico, pois é a partir desse regime de produção incessante de epistemi-
cídios que os saberes e culturas de povos e comunidades tradicionais foram
pouco a pouco substituídos pela padronização do modus vivendi hegemônico,
colonizador, controlador e possuidor (SHIVA, 2001, 2002) e, com isso, conso-
lidando a colonização do imaginário (DILGER et al., 2016). Este modelo, além
de colocar em risco os saberes marginalizados no tempo e espaço, fortalecem
a erosão democrática e ameaçam a construção de uma democracia da terra
(SHIVA, 2002).

Aqui penso que compense apresentar a crítica estruturada de Vandana Shi-


va às grandes corporações, ao agronegócio e às grandes empresas de alimen-
tos, para que retomemos mais adiante aos apontamentos de Ailton Krenak, e
finalmente avancemos para a defesa e importância da educação intercultural
e utópica.

Vandana Shiva (2016) afirmará que é com a expansão das grandes cor-
porações, sob o pretexto de sanar a fome do mundo, que esse modelo de

244
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo

progresso ganha adeptos e concessões governamentais que passam a depen-


der desse modelo para que sua economia se mantenha estável. Ou seja, cria-
-se uma espécie de dívida dos Estados para com essas grandes corporações.
Foi neste sentido que Ailton Krenak afirmou recentemente em uma de suas
palestras durante a pandemia que nossa revolução deve levar em conta não
só os Estados, mas as corporações, pois elas que estariam comandando os
Estados e, consequentemente mandando no mundo (KRENAK, 2020). O
cruel, como percebe Shiva, é o uso do discurso da fome para justamente
aprofundar a herança colonial da miséria. Nunca se produziu tanta comida
para se matar tantas pessoas de fome.

Shiva (2016) afirma existirem dois argumentos que comumente são utili-
zados pelas grandes corporações e pela mídia para legitimação desse progres-
so, ao qual a pensadora dá o nome de globalização. O primeiro seria o de que
(1) só através desse progresso seria possível aumentar a produção de modo a
alimentar todas as pessoas no mundo; (2) a globalização e o livre comércio são
necessários para baratear os alimentos, tornando-os acessíveis às populações
mais pobres. Contudo, segundo Shiva, a globalização não produz comida para
alimentar aqueles que têm fome. Além disso, a globalização não produz comi-
da, mas commodities.

Para a autora, as commodities não seriam mais baratas porque o seu


método produtivo é mais eficiente. Na verdade, afirma Shiva (2016), elas só
são viáveis financeiramente porque são subsidiadas pelos governos de seus
países e porque essas empresas se utilizam do dumping; isto é, vendem seus
produtos a um preço inferior visando e provocando a falência dos concorren-
tes, principalmente pequenos produtores e agricultoras locais. O subsídio cria
produtos artificialmente baratos e estes acabam sufocando a produção local,
que sem os mesmos benefícios não é capaz de competir com tais preços. A
livre concorrência se mostra, na verdade, cruel e injusta.

Logo, a defesa pela livre concorrência e comércio baseada no argumento


de que são facilitadores do fluxo de mercadorias e serviços seria, na verdade,
a produção de barreiras de importação que acabam por tornar alguns países
ainda mais vulneráveis ao dumping. Quais países? Aqueles considerados em
desenvolvimento e mais pobres. O livre comércio, portanto, provoca a des-
truição dos recursos locais de produção e distribuição de alimentos, além de
impedir o meio de subsistência dos/as agricultores/as locais.

245
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Estima-se, segundo Shiva (2016), que hoje no mundo um bilhão de pes-


soas passa fome e, paradoxalmente, metade dessas pessoas são produtores
rurais. A globalização provocou uma mudança nas prioridades na qual a
alimentação ficou em segundo plano, pois a exportação se tornou priori-
dade nas políticas. As trabalhadoras e os trabalhadores rurais hoje em dia,
embora sejam produtoras/es, acabam por precisar comprar alimentos, já
que não possuem acesso à terra para produção do seu próprio alimento.
Algumas podem até ser proprietárias de terra, mas são obrigadas a produzir
cultura de rendimento, e por isso não conseguem se alimentar de sua pró-
pria produção.

Trabalhadoras rurais, sem terras, ribeirinhas e indígenas formam parte


do que Krenak (2019) descreve como sendo o grupo de indivíduos esque-
cidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oce-
anos, na África, na Ásia ou na América Latina. São, segundo ele mesmo,
a sub-humanidade. Então Krenak (2019) pergunta: o que o progresso e o
desenvolvimento sustentável querem sustentar? Que modelo pretendem res-
guardar? Segundo o pensador, esse modelo visa mostrar que é possível viver
deslocado da terra, ou seja: distante do conhecimento acerca de uma con-
vivência aproximada com a natureza. Em outras palavras, seria uma forma
de permanecer destruindo qualquer cosmovisão que foi capaz de sobreviver
ao progresso civilizatório. Por isso mesmo, seu projeto vai contra a diversi-
dade, nega a pluralidade de formas de vida, hábitos e existência, oferecen-
do um mesmo cardápio, figurino e, se possível, uma mesma língua. Eis a
padronização à qual Shiva (2002) nomeia de monocultura do pensamento,
conforme visto anteriormente. Logo, esse modelo de progresso baseado na
sustentabilidade acabaria, por assim dizer, sustentando um modelo de com-
modities, favorecendo tanto o avanço da tecnologia de precarização quanto
o aprofundamento do regime epistemicida.

246
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo

Enfrentar as colonialidades: a utopia como fonte para uma


educação intercultural23

Já nas primeiras páginas da obra “o bem viver: uma oportunidade para


imaginar outros mundos”, Alberto Acosta (2017) recupera o pensador e ensa-
ísta peruano Alberto Flores Galindo ao afirmar que se destaca em seu trabalho
a defesa de um reencontro com a dimensão utópica, entendida por Galin-
do como sendo dentre outras coisas uma reinvenção de memória coletiva.
Com isso, Acosta propõe a necessidade de compreendermos as dinâmicas
sociais a partir do enfrentamento ao que chama de “fantasma do desenvolvi-
mento” (ACOSTA, 2017). O fantasma nomeado por Acosta está pra além de
uma identificação de regime econômico desenvolvimentista que se instala nas
Américas desde a colonização dos povos e nações que aqui viviam. Trata-se
de um projeto intrinsicamente associado a um modelo hegemônico de impo-
sição em um primeiro momento e em seguida estabelecido contra todas as
outras formas de organização distintas daquela que chega junto com as cara-
velas. Logo, o fantasma do desenvolvimento seria igualmente um esquema de
racialização. Trata-se, portanto, do processo de continuidade colonial, ao qual
Anibal Quijano identifica como colonialidade (QUIJANO, 2005) conforme
veremos a seguir.

Para questionar as bases desse projeto colonial que se camufla sob o dis-
curso do desenvolvimento, Oliveira e Candau (2010) afirmam que é preci-
so fazer uma distinção entre colonialidade e colonialismo para efetivamente
imaginarmos e criarmos formas de resistência pedagógica ao projeto colonial.
Para isso, os autores citam o filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado Tor-
res (2007) para afirmar que “apesar do colonialismo preceder a colonialidade,
a colonialidade sobrevive ao colonialismo” [...]. Neste sentido, respiramos a
colonialidade na modernidade cotidianamente” (ibid., p. 18). E prosseguem
afirmando que “apesar de o colonialismo tradicional ter chegado ao fim, [...]
as estruturas subjetivas, os imaginários e a colonização epistemológica ainda
estão fortemente presentes” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 19).

23. O desenvolvimento deste debate não teria sido possível sem os encontros e debates com o
pedagogo Thiago Gabry, de quem tive a honra de orientar o trabalho de conclusão de curso
em Pedagogia (INFES/UFF), sob o título “Educação contra a barbárie: caminhos para um
pensamento crítico” (GABRY, 2019).

247
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Não por acaso Anibal Quijano (2005) vai propor o conceito de coloniali-
dade do poder justamente para referir-se a essa estrutura de dominação que
submeteu a América Latina, a África e a Ásia, a partir do discurso e ação da
conquista. O termo faz alusão à invasão do imaginário do outro, ou seja, sua
ocidentalização. Mais especificamente, diz respeito a um discurso que se inse-
re no mundo do colonizado, porém também se reproduz no lócus do coloni-
zador. Nesse sentido, o colonizador destruiria o imaginário do outro, invizibi-
lizando-o e subalternizando-o, enquanto reafirma o próprio imaginário. Desta
maneira, naturalizam-se as ideias do colonizador europeu como superiores às
dos povos nativos, fazendo com que o modo de vida, o saber, a cultura nativa
da terra seja vista como inferior.

Consequentemente, Quijano (2005) também tratará da colonialidade do


saber, entendida como a repressão de outras formas de produção de conheci-
mento – não-europeias –, que negam o legado intelectual e histórico de povos
indígenas e africanos, reduzindo-os, por sua vez, à categoria de primitivos e
irracionais, forjando uma ideia de pertencimento à “outra raça”. Eis aqui a fa-
ceta do racismo epistêmico que compõe o regime epistemicida.

Para Mignolo (2003), por exemplo, a expansão ocidental após o século XVI
não foi somente econômica e religiosa, mas também das formas hegemônicas
de conhecimento, de um conceito de representação do conhecimento e
cognição, impondo-se como hegemonia epistêmica, política e historiográfica,
estabelecendo, assim, a colonialidade do saber. Se a colonialidade do poder
criou uma espécie de fetichismo epistêmico (ou seja, a cultura, as ideias e os
conhecimentos dos colonialistas aparecem de forma sedutora, que se busca
imitar), impondo a colonialidade do saber sobre os não-europeus, eviden-
ciou-se também uma geopolítica do conhecimento, isto é, o poder, o saber e
todas as dimensões da cultura definiam-se a partir de uma lógica de pensa-
mento localizado na Europa. (MIGNOLO, 2003, p. 21).

Neste sentido, pensar uma educação crítica seria pensar uma educação in-
tercultural capaz de enfrentar as raízes coloniais que ainda operam de modo
a manter o regime epistemicida em vigor, por isso a importância de se trazer
o saber marginalizado, periférico para o epicentro da discussão como crítica
ao processo de colonização (MIGNOLO, 2003). E como poderíamos elabo-
rar uma educação com esta proposta? Aqui convido Galindo (1988) e Walsh
(2007) para criamos novos imaginários que nos auxiliem a adiar o fim do
mundo.

248
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo

Catherine Walsh (2007) afirma que decolonizar seria um processo políti-


co-pedagógico que possibilitaria voz e espaço às lutas dos povos marginaliza-
dos, como as nações indígenas, povos negros, além de campesinos abandona-
dos à própria sorte. Logo, decolonizar seria uma ação de visibilização de lutas
que identifiquem na colonialidade uma fonte de violência social, epistêmica e
política. Oliveira e Candau (2010) citam Mignolo para ilustrar a necessidade
de se associar a ideia de decolonialidade com o ato de se pensar intercultural-
mente, do ponto de vista das minorias políticas, principalmente pela perspec-
tiva dos grupos historicamente oprimidos e invisibilizados.

Walsh dá destaque também às categorias territoriais, dado que a coloniali-


dade deve ser pensada também a partir da perspectiva da terra. Neste sentido,
propõe a reflexão sobre a fronteira. Para Walsh, o “posicionamento crítico de
fronteira” seria um questionamento e a transformação da colonialidade do
poder, do saber e do ser, sempre tendo consciência de que estas relações de
poder não desaparecem, mas que podem ser reconstruídas ou transformadas,
conformando-se de outra maneira (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 25). Ou
seja, dar visibilidade para outras formas de pensamento, outras cosmologias,
outras histórias, principalmente os que fogem da visão marcada pelo euro-
centrismo são fundamentais para a construção de um outro modo de estar no
mundo, de se perceber e interagir com ele.

Neste sentido, Walsh vai compreender a educação intercultural como


uma troca legítima de conhecimento entre culturas; buscando um novo sen-
tido de existência que possa agregar os saberes e culturas na procura por
uma sociedade mais equânime; um espaço de confronto e discussão sobre
“as desigualdades sociais, econômicas e políticas, e as relações e os confli-
tos de poder da sociedade” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 26); um dever
político-social de inquirir a sociedade por meio de práticas concretas. Neste
sentido, a interculturalidade seria a produção de um novo espaço de convi-
vência, um espaço de criação e reconhecimento epistemológico; um lugar
de partilha utópica.

Portanto, para que este espaço possa ser alcançado, compreendo que seja
fundamental a dimensão utópica. Reconheço, na utopia nossa capacidade
imaginativa de decolonização de práticas. Para além disso, reside na utopia
a ousadia de decolonização do imaginário. Ou, como sugere Galindo (1988),
reside no reconhecimento das utopias – no plural – a esperança no reestabe-
lecimento de dias melhores. Este sentimento e busca por um ideal, segundo o

249
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

pensador peruado, é o que nos impulsiona para uma paixão compartilhada e


que, consequentemente, nos impulsiona para a ação.

A ação motivada pela utopia seria aquela que nos permite sobreviver às ad-
versidades do presente, mantendo vivas as vozes do passado que possibilitam
a construção de um futuro em reconhecimento às violências que acometeram
aos povos e nações, mas também projetam a alegria e partilham culturalmente
esses saberes ocultados. Neste sentido, a utopia nos permite um encontro não
somente através da dor que nos une enquanto povo, mas também um encon-
tro pela alegria de quem cria e expande possibilidades de viver e ser de forma
mais harmônica.

Continuando...

O momento pandêmico que atravessamos na atualidade demonstra que


diante das adversidades ainda somos capazes de criar espaços de acolhimento
e de trocas afetivas que possibilitam habilidades imaginativas. Na verdade, se
olharmos atentamente, há séculos diferentes etnias indígenas têm resistido às
violências impostas pela colonialidade e pelo capitalismo globalizante sobre
seus povos. A necessidade de uma resistência sobre a qual aqui tratamos já
é experienciada por grupos de indivíduos historicamente subjugados à lógi-
ca colonial há muito tempo. É preciso, portanto, olhar e aprender. Aprender
a ouvir e reconhecer tanto as violências que constituem o cotidiano da vida
que se deu sob a égide colonial quanto reconhecer que há saberes ancestrais
que precisam comparecer à cena para projetarmos alternativas à hegemonia
devastadora. Momentos como este também nos informam sobre a necessi-
dade e urgência de aprendermos com os saberes coletivos e colaborativos, na
contramão do regime capitalista baseado na competição e no individualismo.

Neste capítulo procurei defender a necessidade de recuperarmos nossa


esperança no futuro a partir da aposta na dimensão utópica. Para alcançar
a dimensão utópica e projetá-la na educação, trilhei caminhos ao lado de
autoras/es que dedicam suas reflexões para compreender como o projeto
colonial sedimentou um tipo de organização social que sustenta um regime
epistemicida; ou seja, um tipo de sociedade baseada na violência combinada
com a dominação de territórios e aniquilamento de povos, nações e suas cul-
turas. Neste sentido, corresponde à utopia um resgate ético-político capaz

250
14 – A dimensão utópica da Educação: reflexões para adiar o fim do mundo

de informar e construir pedagogicamente uma educação intercultural que


promova encontros pluridiversos.

Em tempos de pandemia e diante de tantos ataques à educação no Brasil,


defender a dimensão utópica pode parecer uma aposta distante da realida-
de de muitas/os de nós. Ao contrário desse entendimento, penso que esteja
justamente na capacidade imaginativa nosso ato decolonial por excelência.
Decolonizar nosso imaginário implica em uma libertação simbólica e mate-
rial que possibilita novas construções e associações colaborativas. Resgatar a
dimensão utópica na educação potencializa o papel criativo e transformador
que, sob a égide do capitalismo, tem sido esvaziado da relação estabelecida em
espaços formais e informais de ensino. Entendo, portanto, que só e somente só
com a utopia viva podemos adiar o fim do mundo.

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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

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Seminário Internacional “Diversidad, Interculturalidad y Construcción de Ciudad”.
Bogotá: Universidad Pedagógica Nacional, 2007.

252
SEÇÃO II

RELATOS EM PRIMEIRA PESSOA: VISIBILIDADE, LUGAR DE FALA E


AUTOCUIDADO

Vem cá me dê a mão
Encosta a sua urgência na cadência
Vem cá me dê seu coração
Me conta essa aflição que te alucina
Roteirista (Caio Prado)

253
Relato 1
Fraturas expostas: catarse e reflexões sobre as condições de vida e
existência antes e pós-pandemia
Tiago Afonso Sentineli

A pandemia da COVID-19, e o isolamento social decorrente dela, me em-


purraram para um momento de reflexão e observação sobre as minhas condi-
ções de existência, trabalho e sobrevivência. Essas circunstâncias expuseram e
escancararam os erros profundos da “matrix”, elas me fizeram ter ainda mais
certeza sobre as muitas contradições e injustiças que atravessam a sociedade
capitalista neoliberal que hoje, através do lema “a economia não pode parar”,
mostra sinais de franca agonia. E nesse contexto, onde nos encontramos fragili-
zados e temerosos diante de uma doença desconhecida, oportunista e silenciosa,
somos compelidos a produzir e a abdicar da própria vida para que as engrena-
gens econômicas não cessem de fabricar enriquecimento e acumulação. Esse
tempo de silêncio e solidão estão me proporcionando a oportunidade de refletir
sobre que vida eu tinha, tenho e a vida que sonho em ter. Por isso este relato, de
quem enfrentou e sobreviveu à COVID-19, assume e incorpora tons de catarse,
de denúncia, de crítica e de sonho.

254
A pandemia, essa situação sem precedentes na história, nos colocou diante de
uma encruzilhada. Metaforicamente falando, sinto-me em um beco sem saída, co-
agido pelas circunstâncias que se impuseram no meu viver com toda essa situação.
Digo isso pelo fato de que não me foi dada uma alternativa outra para “produzir
e ser útil” dentro da lógica capitalista e neoliberal que impera sobre nós. E, antes
de seguir com o meu relato, cabe, primeiro, marcar o meu lugar de fala para que
eu possa tentar materializar para o leitor as minhas condições de existência e vi-
vência. Estabelecer isso é fundamental para dar sentido ao que falo, para acionar o
gatilho empático em quem debruça a sua atenção sobre essas linhas.

Sou educador há 12 anos. Formado em História, especializado em História do


Brasil e, atualmente, mestrando em Ensino pela UFF. Moro e trabalho em Mirace-
ma-RJ. Sou, também, habilitado para trabalhar com Sociologia. Tenho dois víncu-
los públicos com a Secretaria Estadual de Educação e um vínculo com uma rede
particular. Conciliar trabalho e estudo para mim sempre foi algo frustrante, pois
nunca pude me dedicar integralmente à minha formação pessoal e profissional.
Como venho de origem humilde, sempre tive que trabalhar para conseguir estu-
dar. Trabalho desde os 9 anos de idade e hoje, mais uma vez, tenho que conciliar
os três vínculos com a minha pesquisa do mestrado, iniciado aos 36 anos de idade.

No ensino público, onde atuo há quase 10 anos, desempenho minhas funções


em uma escola de comunidade, no CIEP-267, localizado no coração de uma favela
da minha cidade, no bairro mais pobre. Nessa escola, onde concentro meus dois
vínculos, cumpro uma carga horária de 32 horas, sendo que 24 são em sala: 20 tem-
pos de História e 4 de Sociologia. Tenho 8 turmas, das quais, 5 são de ensino médio
e 3 de ensino fundamental. Cabe salientar ainda que, dessas 3 de fundamental, uma
delas é de correção de fluxo, onde estão depositados e reunidos alunos fracassados
e com alta distorção de idade/série. Estão sob minha responsabilidade 124 alunos
nesta unidade, de maioria preta e muito pobre. Indivíduos carentes e subtraídos
pela sociedade em todos os aspectos. Muitos deles têm na escola o seu espaço único
de convivência, de troca de experiências, de socialização e de desenvolvimento afe-
tivo. Fora o fato de que muitos dependem da alimentação que é oferecida na escola
em forma de merenda sendo, talvez, a única refeição que fazem durante o dia. Por
ser uma comunidade marcada pelo tráfico, muitos dos meus alunos, majoritaria-
mente do sexo masculino, se envolveram e estão envolvidos com as facções crimi-
nosas ao longo desses anos. Alguns até perderam a vida! Abrir um diário e escrever
“falecido” na frente do nome de um aluno, ler uma notícia do jornal local sobre a
morte de um ex-aluno são questões que me inundaram de tristeza e que marcaram

255
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

profundamente minha trajetória nessa escola. Entendo que a criminalidade é o


que é o que sobra e é o que dá pra ser dentro de uma sociedade profundamente
marcada pelo racismo e pela desigualdade. Uma última observação é que, des-
ses 124 alunos, apenas 4 estão interagindo comigo pelas plataformas digitais
nesse contexto de ensino remoto, o que evidencia a grande exclusão sufocante
à qual eles estão submetidos. Isso me causa grande tristeza!

Na escola particular, na parte baixa e no centro da cidade atuo com as


turmas dos anos finais do Ensino Fundamental, de 6o ao 9o ano, na área de
História. Tenho 4 turmas e estão sob minha responsabilidade 85 alunos. São
alunos que, visivelmente, possuem condições de sobrevivência e existência
visivelmente melhores que os alunos da outra escola em que trabalho. Po-
rém, tenho consciência de que existem outras questões que atravessam a vida
desses alunos, principalmente afetivas e emocionais que possam, porventu-
ra, interferir em seu desempenho escolar. Percebo que muitos deles, inclusive
alunos que apresentavam bom rendimento e participação antes da pandemia,
não se adaptaram ao modelo remoto.

Esse meu exercício de demarcar a minha trajetória e rotina profissionais


se faz necessário para que eu possa me embrenhar num campo de reflexões e
vivências sobre a minha existência em tempos de pandemia. Quero salientar
que tenho consciência que, mesmo antes da pandemia, eu enfrentava uma ro-
tina de vida exaustiva e precarizada em razão da longa carga horária de traba-
lho e estudo que já existia. Antes já existia em mim a ansiedade, a falta de sono
e as perturbações que a vida, supostamente “normal” já me impunha. Em 2013
eu comecei a fazer uso de reguladores de pressão arterial em decorrência de
stress e questões emocionais. Por volta de 2015 passei a ter que fazer uso espo-
rádico de ansiolíticos e indutores de sono ao fim do dia. Ter uma noite de sono
natural e sem a necessidade do uso de indutores passou a ser coisa raríssima
na minha rotina. É muito triste e dolorido chegar ao fim de um dia cansativo e
ter necessidade de apagar. É lastimável chegar ao ponto de se trocar o descan-
sar por apagar. Gera em nós o sentimento de que é melhor estar dormindo do
que estar acordado. Olhar pra trás e fazer esse exercício de consciência sobre a
minha trajetória é muito louco!

A pandemia e toda essa situação que estamos experenciando veio expor as


fraturas que já existiam em mim. Fraturas internas, dores espinhais e estru-
turais já sentidas e carregadas por mim pela vida. Esses tempos de distancia-
mento social e de confinamento agudizaram questões emocionais que eu já

256
Relato 1 – Fraturas expostas: catarse e reflexões sobre as
condições de vida e existência antes e pós-pandemia

enfrentava de forma diluída e que afloraram com a força de um vulcão nesse


tempo presente.

Durante esses meses de pandemia os picos e as crises de ansiedade aumen-


taram muito! A falta de ar e o aperto no peito, intercalado por dores físicas
acontecem esporadicamente. Essas foram as primeiras alterações emocionais
visíveis advindas da pandemia. Fui infectado pelo coronavírus e precisei me
hospitalizar depois de semanas lidando com a ansiedade de um diagnóstico
impreciso sobre as reais causas do meu estado de saúde. De forma silenciosa
tive 25% dos meus pulmões comprometidos. Apenas neste momento tive a
certeza de que estava infectado. Antes disso realizei dois testes que deram ne-
gativo. Fiquei seis dias recebendo o tratamento numa enfermaria de hospital
para acelerar meu processo de recuperação pois, segundo o médico que me
atendeu, se eu retornasse para casa, meu quadro poderia evoluir para uma
situação mais grave. E vale destacar que todo o meu tratamento foi custeado
pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Por isso a necessidade de defendermos
sempre esse nosso bem público, conquista do povo brasileiro!

Vivenciar essa experiência e sobreviver a isso foi realmente um dos meus


maiores desafios nesses meses. No dia em que me internei fiquei anestesiado
e inseguro, pois essa doença é uma roleta russa, você não tem noção de como
seu organismo vai reagir, você entra para o hospital e não sabe se vai sair e po-
der ver seus entes queridos mais uma outra vez. Para muitos é um caminho de
mão única. Tive a sorte de conseguir me recuperar e pude fazer o caminho de
volta. Fiquei trinta e três dias sem sair de casa, sem poder visitar meus fami-
liares, totalmente confinado. Meus pais vinham trazer comida e tudo que eu
precisava. Eles colocavam na janela de casa e voltavam. Em certos momentos
me sentia como um presidiário, só saí de casa para ir ao centro de triagem para
fazer o acompanhamento e os testes, com a consciência de que eu deveria me
manter afastado de todos. O dia que fiz o teste e deu negativo, que eu estaria,
em tese, livre do isolamento total, foi um dos dias mais felizes da minha vida
recente! Chorei muito de felicidade e gratidão!

Durante esse período em que senti os sintomas a minha vida precisava parar
para que eu pudesse me cuidar. Mas ela não parou. As cobranças do trabalho e
a exigência de se produzir não cessaram! Cheguei a receber e-mail de cobrança
pela minha ausência de post de conteúdos na semana posterior à semana em
que estava hospitalizado. Nesse momento informei aos meus superiores diretos
sobre meu estado de saúde e, para evitar a tamanha burocracia que se agiganta

257
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

diante de nossa vida funcional, para efeito de licenças, resolvemos, em comum


acordo, fazer ajustes e reposição de conteúdo nas semanas posteriores. Pensan-
do a esse respeito, como a gente se prostitui diante do assédio cínico do sistema!
Não temos o direito de adoecer e de preservar a nossa vida, nosso bem mais
valioso! Não podemos normalizar isso! Não podemos nos curvar à essa lógica
perversa! Mas, diante de um contexto de confusão e fragilidade, a gente aca-
ba cedendo, a gente acaba roendo a corda porque precisa trabalhar muito para
manter uma vida mais ou menos digna.

Há quase dois meses atrás, depois de sobreviver a esse trauma, descobri


uma alopecia, uma falha enorme na minha barba em decorrência das experi-
ências emocionais experimentadas por mim. É a segunda vez que eu tenho esse
tipo de reação no meu corpo e na minha vida. A primeira vez foi assim que me
formei na faculdade e fiquei desempregado. Segundo a dermatologista que fui
me consultar recentemente, a alopecia geralmente acontece em momentos de
muito stress e ansiedade, é um marcador visível e latente de questões emocio-
nais enfrentadas pelo indivíduo. Em conversa com um amigo, fui indagado por
ele sobre o motivo concreto, o gatilho objetivo dessa crise emocional. Respondi
a ele que não há um motivo delimitado, definido. São vários os motivos! É todo
um conjunto de condições de sobrevivência, de existência, de vivências e de
tensões, principalmente relacionais à esfera do trabalho, que eu venho carre-
gando pela vida e que se retorceram em meio a este panorama atual.

E em se tratando do ensino no formato remoto, as nossas condições de


trabalho pioraram substancialmente. Carga horária triplicada, burocracia ex-
tenuante e redução de salário compõem o rol de problemas e questões que eu
posso estar elencando como fatores negativos desse modelo. A minha rotina
se modificou totalmente em virtude do ensino remoto. Sinto que a minha pri-
vacidade e a minha intimidade foram invadidas pelo trabalho e que essên-
cia da docência se esvaziou em processos que se tornaram frios e mecânicos.
A motivação caiu e a produtividade também. A carga de stress e o cansaço
mental aumentaram demasiadamente. A educação teve que se readequar e se
reorganizar para atender às novas demandas impostas pela conjuntura atual
e fica esse sentimento de que estamos improvisando, cumprindo tabela para
não perder nossos empregos e meios de subsistência. Não houve escolha, al-
ternativa e diálogo. Mais um momento em que o autoritarismo na tomada de
decisões grita e amordaça as subjetividades de professores, alunos e suas fa-
mílias na educação brasileira. Ninguém perguntou a mim e aos meus colegas

258
Relato 1 – Fraturas expostas: catarse e reflexões sobre as
condições de vida e existência antes e pós-pandemia

quais são as minhas urgências neste momento. Também não criaram meios
para que pudéssemos falar naturalmente. Qual é a nossa maior preocupação
nesse instante? Eu digo que a minha é viver! Viver bem e me realizar enquanto
pessoa! E a vida que tenho diante desse tratamento e dessa conjuntura profis-
sional não me agrada e não me satisfaz!

Realizar este exercício está sendo libertador! A fala e o espaço de escuta


são primordiais para que possamos elaborar o que estamos enfrentando e para
que possamos traçar as possíveis estratégias de combate. Sinto imensa grati-
dão por ter sido oportunizado a mim esse espaço de fala e de encontro comigo
mesmo. Certamente as próximas linhas e páginas da minha existência levarão
em conta essa resenha que fiz de mim mesmo e das condições em que pro-
duzo a minha existência. Encaro esse relato como um ato político, como um
testemunho de alguém que vem resistindo dentro de uma classe que é histori-
camente desprivilegiada e menosprezada. Fora a luta por respeito e condições
dignas de trabalho, este relato traz um pouco da minha essência, da minha
história. Ele está encharcado pela voz do menino de origem humilde, de fa-
mília branca, que teve que travar uma luta imensa para seguir nos estudos e
acessar, mesmo que tardiamente, os espaços de formação, de desenvolvimento
intelectual e de criticidade a que todos deveriam ter acesso e com facilidade
neste país. Entendo-me e tenho consciência de que sou aquele menino sor-
tudo, o um entre milhões de tantos outros que são esmagados pela sociedade
capitalista neoliberal.

Esta fala cumpre, então, um posicionamento de crítica frente às formas


como as coisas eram e estão sendo conduzidas antes e agora na pandemia,
onde as condições de vida e existência da maioria encontram-se totalmente
precarizadas. Por se tratar de um modelo que não oportuniza a todos de forma
equânime e por sucatear ainda mais o trabalho docente, me posiciono vee-
mentemente contra o modelo de ensino remoto! Não devemos nos calar dian-
te desse modelo de ensino/aprendizagem. O meu silêncio significaria a minha
concordância e endossamento dessa tendência que vive à espreita e tenta se
afirmar enquanto modelo supremacista de se ensinar e aprender. Acredito to-
talmente e defendo a educação humanista, no conhecimento que é construído
através do diálogo, da troca e da rica tessitura que compõem as relações hu-
manas. E não é à toa que o que mais nos faz falta neste momento é o contato
com o coletivo e o calor humano. Estamos todos adoecendo e frequentemente
ficamos abalados e vulneráveis em decorrência do isolamento social, pois não

259
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

é natural do ser humano viver isolado. Espero que possamos sobreviver e sair
fortalecidos dessa experiência toda. Espero que possamos dar outro valor às
relações humanas num futuro pós-pandemia e que nos vejamos cada vez mais
como parte do todo, pois não funcionamos bem à parte e individualmente.
Agradeço mais uma vez por ter esse espaço de fala. A escuta e a possibilidade
de externar minhas angústias nesse momento estão sendo essenciais para se-
guir na caminhada.

Por fim, metaforicamente falando (e eu amo me expressar por metáfo-


ras) creio que todas as dores devem ser investigadas, diagnosticadas e trata-
das. Este é o fluxo que seguimos quando nos sentimos mal e nos queixamos
quando nosso corpo padece em dores e enfermidades. Quando nos sentimos
mal, cabe a nós, primeiramente, procurar tratamento e enunciar os nossos
sintomas para que sejamos cuidados e tratados. Caso contrário, as dores não
cessarão. Toda fratura deve ser tratada antes que ela comprometa ainda mais
a nossa mobilidade e nosso bem estar. Minha fala atende essa necessidade
que se impõe e me invade neste momento da minha existência. Coloco-me
na frente de combate pelo sonho de construção de um mundo onde as dores
sejam amenizadas. E nas palavras de Maria Helena de Souza Patto, “toda de-
núncia contempla o anúncio de sua transformação”. Que a minha voz encon-
tre outras e faça coro nessa árdua tarefa de enfrentamento e luta para possíveis
novos futuros melhores.

260
Relato 2
Etnografia ou devaneio? Relato de experiências para cicatrizar
feridas da alma
Paulo Afonso do Prado

Sou chamado, por uma grande parcela dos meus alunos de sala de aula e dos
alunos que assisto enquanto orientador educacional, de TIO PAULO. Ressalto essa
expressão, pois, teoricamente, denota sentimento envolvido entre os indivíduos
e também o sentimento que se supõe existente no espaço onde se atua/trabalha/
sonha (por que não? Educar é um modo, mas sobretudo, uma tentativa de trans-
formar sonhos de uma sociedade e também os pessoais em realidade!).

A escola sempre funcionou para mim como este ambiente, porque sempre
fui diferente dos demais, e, na escola, apesar de sofrer inúmeras formas de vio-
lência por esta diferença, era lá que eu conseguia esquecer parte dessa realidade
ao estar cercado pelo conhecimento. Lá estavam meus amigos, as professoras
de quem eu gostava, os brinquedos. Depois, minha mãe! Quando ela passou
a trabalhar na mesma escola em que eu estudava. Sempre disse às pessoas que
detestava isso, porque eu não poderia ser eu mesmo, pois ela me vigiaria, o que

261
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

também é verdade! Mas, de fato eu amava tê-la ali também, ficaria mais tem-
po ainda perto dela e dentro de um lugar que eu adorava estar! E acho que
nunca disse à ela, o quanto foi importante tê-la dentro da escola.

Estava na escola até mesmo quando não precisava. Ia com minha mãe às
confraternizações de professores e funcionários. Ia à escola em horários diver-
sos porque gostava de ver minha mãe trabalhando. Às vezes ia à escola sem
estar nela, porque fazíamos (eu e alguns colegas) grupos de estudo; e neles eu
gostava de “atuar” como professor.

Enquanto crescia, todas as vezes que surgia o assunto entre mim e minha
mãe sobre o futuro, sobre o que ser quando crescer (!!!), ela me pediu por
algumas vezes que eu não escolhesse o magistério. Pedido que ela reforçou
quando fiz a minha inscrição para o vestibular no ano de 2002 (término do
meu Ensino Médio). Fiz o ensino médio no Colégio Estadual Antônio Ma-
ximiliano Ceretta, Marechal Cândido Rondon – PR (colônia alemã, detalhe
agora insignificante, mas que faz diferença ser mencionado). O Fundamental
I e II havia sido na Escola Municipal Criança Feliz. E a universidade em que
me graduei em 2006 foi a Unioeste. Faço essa menção porque havia uma pe-
culiaridade: como o município era planejado em quadras regulares; a escola
municipal ficava em uma quadra, a estadual, na seguinte e a universidade na
da frente. Todas eram vizinhas! Para nós, alunos de lá, era meio que natural
seguir aquele percurso por entre as quadras, saindo do Ensino Fundamental
em direção ao Ensino Superior. Fato que pode soar um privilégio diante da
grande dificuldade de muitos ingressarem na universidade.

Quando chegou a hora de escolher o curso que faria na universidade, eu


desejei fazer Letras, com ênfase em alemão (não sei o porquê?!), depois pen-
sei em História, e Geografia. Mas descobri que no campus da cidade vizinha,
em Toledo, a Unioeste abriria dois novos cursos para aquele vestibular, Tea-
tro e Psicologia. Fiquei louco por fazer teatro! Sempre estive envolvido com
estas coisas. Foram peças na escola, apresentações em datas comemorativas,
leituras nos dias de ato cívico antes das aulas, grupo de contação de histórias.
Não faria sentido não fazer teatro, e deixar um pouquinho de lado a vontade
de ser professor. Isso depois de “varrer” todos os cursos, em todos os Cam-
pus da universidade, em todas as cidades em que ela está instalada (mesmo
sabendo que meus pais não poderiam me manter morando fora da minha
cidade). Ainda assim, fiz a inscrição para o curso de Teatro, em Toledo, paguei
os suados R$80,00 na época, para os três dias de provas (as tenho guardadas

262
Relato 2 – Etnografia ou devaneio? Relato de experiências
para cicatrizar feridas da alma

até hoje, junto com a edição do jornal que publicou a lista dos classificados
em primeira chamada!). Na semana da prova, a reitoria anunciou que os dois
novos cursos seriam cancelados e que, para àqueles que não quisessem perder
o valor pago na taxa de inscrição, deveriam migrá-la para outro curso dentro
do mesmo campus, fato que não me permitiu voltar para as opções iniciais,
Letras, História ou Geografia. Sendo assim, o curso que mais aliava todas as
coisas que eu buscava e o que mais gostei foi o de Ciências Sociais. E ingressei!
Foi uma grande realização, me descobri neste curso! Abriu a minha mente, co-
nheci Marx e a esquerda! Além dos professores que conheci; porque poderia
fazer bacharelado, mas, acima de tudo, a licenciatura!

Participei do Centro Acadêmico, da organização de eventos internos e


congresso regional. Também do grupo de teatro do campus, o Grupo Qorpo,
dirigido pelo querido Neuri Mosmann. Colei grau no início de 2007 e, em
2008, já estava morando em Muriaé – MG, pois por problemas financeiros
tivemos que voltar para perto da família do meu pai. Mas poderá surgir um
questionamento, qual a finalidade de se colocar sobre a mesa toda a coleção
de memórias deste professor?

Para justificar o modo pelo qual todos podem imaginar como eu cheguei
dentro de uma sala de aula logo após a minha convocação pela Secretaria de
Estado de Educação do Rio de Janeiro. Concurso que prestei assim que che-
guei em Muriaé, ao qual depositei várias esperanças, porque meu pai sempre
me dizia que minha graduação para nada serviria. Passei em primeiro lugar
para a disciplina de Sociologia. O ano era 2009 e as disciplinas de Filosofia e
Sociologia haviam acabado de retornar para o currículo do Ensino Médio, de
forma precária, mas seria a minha chance. O medo de partir para uma nova
cidade, agora sem meus pais, me fez pensar em não ir, mas minha mãe me deu
forças, na verdade uns “chutinhos” para que eu fosse! Pois essa era a minha
profissão e o meu futuro! Fui designado para trabalhar na cidade de Itaocara,
Noroeste do Estado do Rio.

Cheio de disposição, mas sem a mínima noção das transformações vivi-


das no interior das escolas desde a minha saída do Ensino Médio até o meu
retorno para uma escola em nova posição, tinha que cumprir dezesseis horas
de trabalho semanal, sendo que doze em sala de aula. Naquela época, a grade
dispunha de duas horas/aula de Filosofia na primeira série e duas horas/aula
de Sociologia da terceira série do Ensino Médio. Para trabalhar doze tempos,
estava lotado em três escolas diferentes, uma delas sendo distrital.

263
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Todo tipo de atividade extracurricular proposta pela escola eu queria par-


ticipar! Criei um blog para uma das escolas, aquela que, gradativamente, me
absorveu frente às mudanças da grade curricular, o Colégio Estadual Johenir
Henriques Viégas, no distrito de Laranjais – Itaocara. Com a ajuda de alguns
alunos e de uma colega, a professora Thaís Rosalino, criamos um festival de
talentos. Foi muito produtivo! Também gravei com meus alunos um docu-
mentário inspirado no artista plástico brasileiro Vick Muniz, “Lixo, arte, luxo!
Arte e transformação!” que foi resultado das aulas sobre estética filosófica,
levado para a Primeira de Semana de Arte da SEEDUC em 2013, e que, pos-
teriormente, virou uma exposição na Casa de Cultura de Itaocara, com a ins-
talação desenvolvida pelos alunos, gravuras e fotografias! Até aqui, eu ainda
estava entusiasmado, mas sentindo o efeito dos desmontes do setor e da classe
promovidos pelo governo. Ainda assim, estava tentando manter o romantis-
mo que trazia de minhas memórias para a rotina de trabalho!

Em 2014, fui convocado para assumir meu segundo cargo, também em


Itaocara. Nesse período, já trabalhava também no setor privado, na cidade, e
fazia GLP (Gratificação por Lotação Prioritária), uma espécie de hora extra.
Trabalhei em escolas nos municípios de Aperibé e Santo Antônio de Pádua,
sem contar, é claro, todas as escolas nos distritos de Itaocara e no Ciep 275 Le-
nine Cortes Falante, na sede, chegando a ter quase sessenta tempos semanais.
Mas neste novo vínculo, me lotei então na sede, no Colégio Estadual Frei To-
más, onde também fazia GLP, só que já menos animado. Estava há cinco anos
em um trabalho sem muito reconhecimento, com todas as intersecções bem
conhecidas do setor, unidas às políticas pedagógicas locais, que envolveram
relações tóxicas, diretores que se sentem donos da escola, que extraem da bi-
blioteca títulos relativos à cultura africana, que perseguem pessoas LGBTIQ+,
que nem sequer entendem de políticas públicas voltadas para a Educação Es-
pecial, anulando a existência destes alunos, a não ser quando projetam a escola
de algum modo para a Regional ou para a SEEDUC.

Em fevereiro passado, completei onze anos de Estado. Desde 2019, não


atuo mais no Ensino Médio privado e, no final do ano passado, me desliguei
do curso pré-vestibular e preparatório Enem em que ainda trabalhava. O pro-
dutivismo era um problema e uma solução ao mesmo tempo. Entretanto, as
aulas do cursinho tinham uma liberdade que sinto falta, por terem sido ex-
tremamente políticas, pois além da faixa etária ser bem diversificada, havia
maior interesse dos alunos do que em uma sala de aula do dia a dia e, o melhor,
sem ingerências. E completei também dois anos de atuação como orientador

264
Relato 2 – Etnografia ou devaneio? Relato de experiências
para cicatrizar feridas da alma

educacional no Colégio Estadual Laurindo Pita, no distrito de Jaguarembé.


Função que eu não tinha certeza se saberia e se conseguiria desempenhar. Po-
rém, vi nela a oportunidade de utilizar os conhecimentos alcançados durante
a Licenciatura em Pedagogia que fiz pela Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro, viabilizada pelo consórcio Cederj, no Polo de Itaocara, meu
primeiro contato com a educação à distância e concluída em 2016.

Como orientador, passei a ter contato com os alunos e suas famílias de


uma forma muito mais profunda e dolorida para vários deles, e também para
mim. Deixar na escola o que se ouve de um aluno que precisa de ajuda e não
sabe, nos leva a passar o resto do tempo pensando em estratégias de suporte,
mesmo fora da escola. Assim, fui criando a minha rede de ação e apoio para
os alunos dentro da escola com os colegas de trabalho, sobretudo da coorde-
nadora pedagógica, no conselho tutelar, junto aos pais (com um grupo, com
encontros regulares), dentre outras ações.

Até aqui, você que me lê, pode ter uma noção de como eu cheguei a uma
sala de aula e de como me saí até agora. Uns acharão que foi uma boa traje-
tória. Outros dirão que desejo fazer vitrine frente ao meu hedonismo. Alguns
se identificarão. O importante aqui será perceber as entrelinhas, os pequenos
desgastes ao longo dessa breve carreira ainda em construção. Sim! Em cons-
trução, desconstrução, mas neste momento, de reconstrução.

Todo professor tem uma vida distante do foco de seu ofício, mesmo que
nessa distância esteja o tempo todo a serviço dele, mesmo que inconsciente-
mente. E pode parecer incoerente, mas isso desgasta o professor, quando ele
se vê diante das entrelinhas de sua carreira, percebendo-as como a força que
o leva a relutar em realizar suas atividades, em sentir prazer preparando suas
aulas, na simplificação de seu trabalho, mesmo que isso represente piores re-
sultados. Do modo bem coloquial, se me for permitido, a justificativa mental
automática de absolvição que vem à mente é: “mas o governo não se preocupa
mesmo com a educação, qualquer coisa que eu deseje trabalhar na aula já
será mais do que o Estado quer!”. E pronto! Me percebi adoecido profissio-
nalmente, apesar de continuar achando que quem realizava a maior parte das
cobranças era eu mesmo! E diante de problemas familiares muito sérios, que
se seguiram por anos, sobre os quais não cabe aqui uma discussão, iniciei meu
processo de adoecimento também emocional, que foi precedido de ansiedade
constante e crescente, ganho de peso, diminuição das horas de sono, maior
irritabilidade, etc, etc, etc.

265
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Tudo isso acontecia silenciosamente, imperceptível para muitos, menos


aos meus pares. Os momentos mais difíceis emocionalmente falando, por in-
grata coincidência, se deram no início deste ano, 2020. Passei pelo aumen-
to de dosagens de fármacos, por dificuldades sérias para dormir e acabei na
autoagressão. Hoje, muitas vezes, tenho vontade de morrer. Vejo-me como
alguém que não tem coragem de praticar suicídio, mas que deseja com muita
frequência que a vida acabe.

O que temos até aqui? Precarização do trabalho, falta de políticas públi-


cas para a educação, falta de formação docente, falta de equipe multidisci-
plinar dentro da escola, trabalho multi e intersetorial dentro do âmbito da
educação, para atender profissionais da educação, alunos e famílias. E isso,
não apenas ao que concerne o período em que exerço a minha docência; falo
também do período enquanto frequentei os bancos da escola, dos meus pro-
fessores e das realidades que se antecederam à atual e a conceberam. Outro
exemplo disso é fácil encontrar. Para estar dentro de um grupo de mestrado
em Ensino, na Universidade Federal Fluminense – UFF, não recebi da se-
cretaria em que trabalho, do governo ao qual sirvo, qualquer incentivo para
viabilizar o meu desejo de qualificação através da pós-graduação. Uma rea-
lidade compartilhada por praticamente cem por cento dos professores bra-
sileiros e que traria resultados efetivos para a melhoria da nossa educação. A
única possibilidade que me foi ofertada, era uma licença sem vencimentos,
que só poderia ser aceita se eu tivesse outra fonte de renda ou quem sabe, ti-
vesse aprendido nas aulas de ciências, quando estudante, a fazer fotossíntese
para me alimentar!

Eis que o ano letivo de 2020 mal havia sido iniciado e nós vivenciamos o
início do isolamento social devido à pandemia por coronavírus. Subvalori-
zando a força da situação, o governo do estado do Rio de Janeiro antecipou
o recesso escolar de julho para o mês de março; para que logo após, as ativi-
dades escolares fossem retomadas. Contudo, ao longo desses dias, a situação
se intensificou e foi necessário então reorganizar o fazer pedagógico. E, vinte
dias depois do término do recesso escolar, estávamos todos nós dentro de um
ambiente virtual de aulas, com treinamento concomitante. Apesar de ser uma
alternativa, o ensino remoto se colocou sem planejamento estratégico. Digo
isso, apresentando um questionamento básico: como professores que não co-
nhecem a plataforma digital poderiam realizar um curso sobre a plataforma
dentro da própria plataforma?

266
Relato 2 – Etnografia ou devaneio? Relato de experiências
para cicatrizar feridas da alma

Todas estas situações me fazem lembrar do afirmado anteriormente, sobre


a precarização do trabalho docente e do sistema educativo; que é nada mais
do que uma teimosia, afinal, insistimos em acreditar em algo que aos olhos do
governo, do capitalismo e das elites, não deveria continuar existindo.

O Conselho Federal de Educação se debruçava sobre o tema, criou orien-


tações e tentava demonstrar o caráter desigual da educação remota, enquanto
o governo criava sua diretriz de efetivação deste modelo. O Plano de Ação
Emergencial da Seeduc reconhecia então como meios formais de educação
quaisquer ferramentas digitais, sejam elas aplicativos, redes sociais e demais
equipamentos de comunicação de massa, que pudessem reproduzir conteúdo.
O que eu vejo é a intenção de se privilegiar a quantidade de assistidos, pois não
houve uma organização para o trabalho online, que não só aumentou a minha
carga horária diária de trabalho, como me fez investir recursos próprios na
aquisição de novos equipamentos para realizar meu trabalho.

Mas gostaria inicialmente de me debruçar sobre o aspecto da carga horá-


ria. Tenho dezesseis horas de trabalho semanal, sendo doze em sala de aula e
quatro de planejamento. E quarenta horas como orientador educacional. En-
tretanto, no trabalho presencial em sala de aula, tínhamos acesso aos alunos
dentro da escola, ao mesmo tempo, com interação imediata e cheia de empa-
tia. No ensino remoto, este atendimento passou a ser individual, aumentan-
do o tempo que se atribui à cada turma. Passei a trabalhar quase que vinte e
quatro horas integralmente. Ademais, havia o tempo de elaboração da aula,
de seleção do material, de postagem do mesmo, que exigiria digitação, elabo-
ração de slides, telas, vídeos, podcasts ou outras ferramentas que eu desejasse
usar. Isso por si só amplia grandemente o tempo de trabalho, mas que no final
das contas, quando da execução da aula, poderia não resultar em quantidade
de tempo suficiente para compor a carga horária de cada aula.

Ao mesmo tempo, havia alunos, pais e colegas de trabalho chamando a


todo tempo, com dúvidas, solicitando atenção, orientações, fazendo queixas.
Tudo isso em meio às demandas apresentadas pela regional e pela secretaria,
com prazos e cobranças; no mesmo momento em que precisava entender a
nova realidade e aprender a trabalhar com o ensino remoto. Muitos alunos
não encontrei mais, outros passaram a “chamar” muito mais, demonstrando
a dificuldade de realizar estudos sem orientação. Em outros casos, pais e res-
ponsáveis entrando em contato para me xingar e me destratar por não con-
cordar com o modo como os alunos teriam que realizar seus estudos, como

267
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

se eu tivesse autonomia para definir o formato das aulas; justificando que não
poderiam comprar telefone novo, pagar internet e outras coisas.

Veio também a suspensão do calendário escolar, com manutenção da car-


ga horária, baixa resposta dos alunos, pouca eficiência das aulas remotas, so-
mada a atitude do governo de em um primeiro momento realizar cortes no
pagamento do salário, retirando nossos penduricalhos, diminuindo muito o
valor recebido, como se as minhas despesas em isolamento caíssem na mes-
ma proporção. Mas o que vi foi a conta de luz subir pelo uso interminável de
aparelhos elétricos como computador, celular, lâmpadas, tv, ventilador, etc,
etc, etc.; bem como despesas com alimentação e com a aquisição de um novo
computador e acessórios para fazer lives, gravar aulas e me manter conectado.
Por fim, com psiquiatra e farmácia, pois a ansiedade cresceu e a enxaqueca era
frequente.

Vejo-me no isolamento mais cansado mentalmente do que se estivesse com


a mesma carga horária dentro da escola, com um detalhe: ao serem retomadas
as atividades presenciais, os alunos estarão motivados para voltar à escola, so-
bretudo pela interação social, enquanto eu e meus colegas, estaremos desgas-
tados. Só mais recentemente que começou a surgir um suposto interesse com
o bem-estar emocional dos alunos; não o meu ou dos demais servidores. Não
quero com isso dizer que os alunos não precisem desta preocupação, pelo con-
trário, sei o quanto necessitam. Mas quero evidenciar que eu preciso também.

Como orientador vi crescer o número de alunos e mães que relatam esta-


rem mais entristecidos, rendendo menos, mais introspectivos e vivenciando
mais conflitos domésticos do que em momentos anteriores. Mas o que faz o
governo crer que isso não ocorre também comigo? Não sei se considero isso
uma vantagem, mas me sinto aliviado neste momento por não ter filhos, pois
os meus afazeres domésticos também aumentaram bastante. E se eu tivesse
filhos, o tempo que eu necessitaria para atender às suas necessidades seria
muito maior. Este fato certamente impactaria sobre o meu estado emocional.
Neste aspecto penso nos meus colegas que os têm. Como equacionar?

Tive um recesso em julho, a secretaria decretou recesso pedagógico e ad-


ministrativo, o que me permitiu desconectar da escola por duas semanas.
Tempo que usei para a correção de trabalhos e atividades dos alunos na pla-
taforma, fazendo valer a ideia de Adorno, Benjamin e outros que analisaram
o lazer dentro da indústria cultural, de que a realidade da indústria cultural e

268
Relato 2 – Etnografia ou devaneio? Relato de experiências
para cicatrizar feridas da alma

do consumismo aumenta a carga de trabalho dos indivíduos e cria uma falsa


ideia de lazer, pois desejamos o tempo livre, não para o descanso, mas para
a realização de outras atividades; fato que me faz sentir um preguiçoso, pois
poderia aproveitar o tempo em que estou dormindo para otimizar a minha
rotina!

O fato é que este recesso, que já havíamos feito jus em março, no início da
pandemia, não é reconhecimento do governo por meu trabalho, é na verdade
um modo de cortar gastos na manutenção da rede, pois assim, no recesso,
vários pagamentos, como a GLP, talvez o maior volume de recursos exigidos
dos cofres públicos, não são pagos. Também haveria redução nos gastos com
merenda. Além do corte das linhas de telefone. Ou seja, o Estado faz parecer
uma compensação frente a um direito, que na verdade está travestido na eco-
nomia de recursos, pois além de tudo, todos os meses o Estado faz um jogo
de violência psicológica ameaçando não ter condições de pagar os salários do
mês seguinte, caso as coisas piorem ainda mais.

Assim, num cenário repleto de fatores que me deixam descrente da pos-


sibilidade de abandonar definitivamente as medicações que uso, encontro na
possibilidade de escrever estas páginas, um espaço de escuta que alivia, pois
sei que ao repartir minhas dores, não estarei depositando sobre os ombros de
ninguém este pesar, mas estarei encontrando caminho para reverberar dores
que somadas, constroem um suporte para atravessar o momento de desequilí-
brio que não é só meu. Me vejo refletido em cada fala dos alunos e seus fami-
liares que por vezes sentem-se perdidos, angustiados e cansados, lutando para
não entrar em maior círculo de adoecimento.

Não posso hoje ficar sem terapia psicológica e a ansiedade me coloca mais
irritado, com grande nível de bruxismo, sobrepeso e dificuldade de concentra-
ção. Até minha memória me falta com certa frequência, e por último, um dos
medicamentos que tomo para diminuir os efeitos da ansiedade, me tirar da
prostração emocional e aliviar as dores de cabeça, passou a afetar minha visão,
que, somada com as longas horas passadas diante do computador e do celular
me trazem perguntas: o que mais ainda virá nestes poucos meses de ano letivo
que restam em 2020? Haveria espaço para mais algum dissabor e coerção? Sei
que para a carreira, as perspectivas não são boas, afinal, o ensino remoto já é
realidade e a precarização chega ao seu ápice... E nós, reles professores, temos
apenas o nosso brio pessoal e amor pelo fazer do chão da escola, ninguém
mais está por nós.

269
Relato 3
Vida e morte na pandemia: não sairemos da mesma forma que
entramos
Thalles Azevedo Ladeira

Era março, dia 13 (sexta-feira). Nesse dia, o despertador não tocou mais cedo.
A escola na qual trabalho havia suspendido as aulas por duas semanas como uma
medida de cautela e prevenção contra o novo coronavírus que havia chegado às
regiões Norte e Noroeste Fluminense do Estado do Rio de Janeiro, onde trabalho
e moro, respectivamente.

A princípio, muitos consideraram tal medida, de suspensão das aulas, um


grande exagero, pois não havia nenhum caso confirmado na cidade até então e
menções de protestos começaram a ser ouvidas por trabalhadores com vínculos
fragilizados de contrato, que estavam subsumidos em uma relação na qual: não
trabalham, logo não recebem.

Já uma parcela da categoria de professores concursados (da qual faço parte) en-
xergou nessas duas semanas de suspensão das aulas como umas miniférias, uma
oportunidade de curtir a família, de organizar a casa, de fruir: acessando a lista de

270
filmes e séries que nunca dá tempo de visitar. O que ninguém podia imaginar é que
essas duas semanas de recesso iriam durar o resto do ano inteiro e aquela que vinha
sendo chamada de “gripezinha” por muitos, até mesmo pelo presidente da repúbli-
ca, minimizando os danos e a letalidade do vírus, tempos adiante seria considera-
da a maior pandemia já vivenciada na história do nosso país, com mais de 100 mil
mortos em um período de aproximadamente seis meses.

Diante desse cenário tétrico e degradante, fomos expostos à morte de parentes


e amigos próximos, e desse modo, alguns gatilhos emocionais foram disparados
em diapasão dentro de mim, e é sobre essa experiência que eu pretendo compar-
tilhar aqui.

O cenário de crise pandêmica trouxe uma dura verdade, difícil de ser aceita, a
saber: a vulnerabilidade da vida humana, a certeza de que há uma linha tênue en-
tre a vida e a morte e que, um dia, o pêndulo da vida se inclinará para o outro lado.

Isso gerou em mim uma inconformidade seguida de uma impotência. Não se


pode lutar contra essa certeza, apenas aceita-la e extrair de tal realidade motivos
para viver uma vida carregada de significados, com o máximo de potência. Ter a
certeza de que vamos morrer foi a afetação mais verdadeira e dolorosa que a pan-
demia despertou em mim.

Diante disso, eu busquei respeitar a quarentena religiosamente, o que em um


primeiro momento me trouxe uma sensação de que assim eu estaria seguro do
inimigo invisível que estava lá fora, matando crédulos e incrédulos do COVID-19.

Mas passar meses a fio confinado em casa, embora ainda seja a medida mais
segura para se proteger do vírus letal, descortinou inseguranças e sensações de
medo, de pavor, de inconformidade frente aquela realidade, de vulnerabilidade
e medo da morte e a esse ponto, eu não sabia, mas eu já não era mais o mesmo.

Certo dia eu acordei com o coração palpitando, era um sentimento novo


me visitando, que precisei de um tempo para formular em palavras, a saber, a
pergunta que qualquer ser humano, que seja mortal, já deve ter se feito: o que
vem depois?

A grande maioria das religiões existentes propaga uma espécie de eternida-


de após a morte, sem dar muitos detalhes a respeito do que seja. No entanto, tal
dimensão de um infinito, de uma constante irreparável, começou a me causar as-
sombro em doses cavalares de ansiedade e desconforto existencial. Sem perceber,
o vírus pandêmico, mesmo não tendo me infectado até o momento de finalização

271
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

dessa escrita, desenvolveu em mim outro vírus: o dissabor e a incapacidade de


gozar dos momentos potentes da vida sem pensar no seu fim.

Essa inconformidade diante do luto que compõe a vida, que a esse ponto
já deveria estar sendo trabalhada com algum especialista em emoções huma-
nas, foi sendo cristalizada em mim ao passo em que eu tentava dar conta das
inúmeras demandas da vida de professor. Nesse sentido, em meio à pandemia,
assim como qualquer outro representante da categoria, venho sendo desafiado
a me reinventar com aulas dinâmicas, didáticas e interativas sob um novo for-
mato, aquilo que convencionalmente vem sendo chamado de aulas remotas.

“Grava o vídeo da aula!”, “Produz a apostila para os alunos!”, “Entrega tudo


até sexta às 14 horas!”. São alguns dos desafios que se apresentaram para mim
ao longo das aulas remotas.

“Não ficou bom. Refaz essa parte. Reajusta aquela outra”. E tantas outras
demandas do ensino remoto me desafiaram ao longo de toda a quarentena, fa-
zendo das minhas manhãs e tardes uma grande sinfonia de vários tons, a em-
polgação de estar produzindo um material didático autoral para os alunos era
no final do dia substituída por um cansaço e um sentimento de esgotamento,
uma sensação de que no ensino remoto, o trabalho havia aumento.

A ideia inicial era não se deixar abalar, dar conta de todas as frentes de
trabalho das duas matrículas com o máximo de qualidade e dedicação. No en-
tanto, ao longo da quarentena, eu fui descobrindo que não existe neutralidade
na vida em nenhum sentido que seja possível. Desse modo, eu fui percebendo
como as afetações externas atravessam a nossa vida, reorganizando as coisas
dentro da gente.

Isso justifica, por exemplo, uma sensação de perda da qualidade em elabo-


rar as aulas, com uma ausência de sentido no próprio trabalho desenvolvido.
Um sentimento, de que aquilo não estava colaborando em nada para os alu-
nos. Valendo-me da famosa expressão, fazendo “apenas para inglês ver”.

Isso me gerou uma autocrítica frente ao meu trabalho remoto realizado,


seguido de uma perda de energia. A esse ponto, o desejo de voltar às aulas
presenciais havia alcançado seu pico. As aulas remotas vinham toda semana
com novas tarefas e novos desafios e como eu já havia percebido que o meu
ânimo não era mais o mesmo, em certo momento cheguei a acreditar que eu
não era bom profissional quanto eu desejava ser. Já era o esgotamento falando
por mim.

272
Relato 3 – Vida e morte na pandemia: não sairemos da mesma forma que entramos

O esgotamento, por sua vez, não apenas de ter que me reinventar semanal-
mente, sendo cada vez mais didático, criativo, flexível e paramentado com as
tecnologias necessárias para desenvolver aulas interativas e interessantes para
os alunos. Hoje, percebo que o esgotamento maior advinha do medo de não
existir mais. De uma (futura?) morte me trazer a ausência de mim (como sou
hoje) e de tudo o que eu considero potência na vida.

A este ponto eu resolvi procurar ajuda nos serviços de escuta e acolhi-


mento psicológico e/ou emocional, oferecido por iniciativas institucionais e/
ou pequenos grupos de psicólogos/as. O que pra mim foi muito potente e
vitalizador.

Hoje, ao finalizar esse breve relato de experiência, eu reconheço que não


sairei dessa pandemia da mesma forma que entrei. Certamente sairei mais
sensível e mais reflexivo. Quanto aos trabalhos remotos, eles continuam:
apostilas, vídeo aulas, reuniões online com a equipe escolar etc. E, certamente,
quando a pandemia passar, a única certeza que fica é que teremos que dar
conta de diluir e procurar resolver todo o espólio que ela nos deixou.

273
Relato 4
Professora em época de pandemia
Alessandra Tozatto

Quando me tornei professora, sabia que teria que estudar muito, me dedicar,
estar sempre me atualizando para oferecer o melhor para meus alunos. Em um
ano e meio de docência em uma Universidade privada, me dediquei nessa prática
e aos poucos fui conquistando meu espaço e a confiança dos meus alunos.

Gosto de estar em uma sala de aula, no ambiente escolar, em meio de muita


gente, trocando conhecimentos com meus colegas e alunos. Estar nesse lugar me
faz sentir viva.

Mas como a vida não é linear, em março de 2020 fomos pegos por um vírus
que nos colocou em quarentena e rompeu com tudo que estávamos fazendo. A
vida como conhecíamos foi interrompida. De uma hora para outra não podía-
mos mais estar com nossos amigos, ir aos comércios, cinema ou tomar um cafe-
zinho na padaria e até mesmo trabalhar. As aulas foram suspensas, inicialmente
por um período de quinze dias e depois por tempo indeterminado. E diante dis-
so ficamos nos questionando: “e agora?”. O que fazer diante dessa novidade, do

274
perigo que estávamos correndo diante de uma ameaça invisível que nos colocou
em isolamento social?

Após a suspensão de quinze dias fomos convocados para uma reunião da Uni-
versidade onde leciono para conhecermos as estratégias que seriam adotadas para
retomada das atividades letivas.

É interessante citar aqui que, nesse intervalo, entre o início do isolamento e a


convocação da Universidade, os estudantes nos questionavam muito acerca das
aulas, de como seria o semestre, se iria atrasar o ano letivo, entre outras coisas.
Nós, professores, não tínhamos essa resposta e, para nós, também era angustiante
o não saber.

A reunião foi feita através de uma sala virtual, com todos os professores e co-
ordenadores de curso, onde foram apresentados os recursos que seriam usados a
partir de então para ministrarmos nossas aulas.

A proposta apresentada foi a de aprendizagem remota, com aulas ao vivo, den-


tro do horário que nós já trabalhávamos. Nossa rotina de aulas seria mantida,
porém teríamos que adotar uma série de procedimentos novos e repensar nossos
planos de ensino e atividades avaliativas.

Voltamos ao trabalho em um ritmo bem pesado. Tivemos que aprender a uti-


lizar esse novo recurso, adequar nossos equipamentos, repensar nossas metodolo-
gias de ensino e nos adaptar a essa nova realidade.

Em poucos dias, estávamos diante do computador, com a webcam ligada,


aguardando os alunos para iniciarmos nossa rotina de ensino remoto.

O protocolo inicial era: utilizando o e-mail institucional, agendar a aula, criar


uma sala virtual, enviar o link através da plataforma da Universidade para os alu-
nos, gravar as aulas e disponibilizá-las posteriormente, na mesma plataforma, para
que os alunos que não conseguissem acessar no horário da aula, pudessem assisti-
-la depois.

Pessoalmente, aponto alguns incômodos que tive com esse processo: eu gosto
de usar o quadro, sou muito dinâmica nas minhas aulas, extrovertida, tento trazer
um clima leve para a sala de aula e o sistema remoto em conjunto com a gravação
me tirou um pouco isso. Percebi que, para dar certo, teria que reinventar minha
prática, para que minhas aulas não ficassem monótonas para mim e para meus
alunos.

275
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Com isso, minhas horas de trabalho aumentaram significativamente, pois


além de repensar toda minha prática, inúmeras reuniões online também acon-
teciam diariamente, em diversos horários.

Somou-se a isso o fato de: estar em constante alerta com o novo vírus, estar
em casa com minha filha que também teve as aulas suspensas e faz parte do
grupo de risco por ter problemas respiratórios, as tarefas domésticas em si,
que parece que se ampliam de acordo com o tempo que estamos em casa e
meu outro vínculo de trabalho, que também me trazia uma demanda.

Durante todo o semestre, as aulas aconteceram normalmente, com a


presença da grande maioria dos alunos. Algumas turmas eram bem parti-
cipativas, outras nem tanto, mas no momento em que eu estava ali, diante
daquela câmera, tentando passar o conteúdo das minhas disciplinas, eu me
sentia bem. Eram as melhores três horas do meu dia, porque não me sentia
tão sozinha.

Além das aulas, eu promovia um bate-papo entre os alunos, procurava


oferecer atividades mais dinâmicas e deixava sempre alguns minutinhos (não
gravados) para que pudéssemos trocar as angústias que estavam surgindo no
isolamento social.

Com isso, alguns alunos sentiam-se seguros em me procurar após as au-


las para expor suas dificuldades: alguns só tinham acesso através do celular,
outros não tinham espaço adequado para poder assistir as aulas e fazer as
atividades propostas pelos outros professores. Uma série de problemas e difi-
culdades que me afetavam ainda mais, visto que eu pouco podia fazer por eles.

A cada dia que passava eu ficava mais cansada, pois pelo fato de não ter-
mos ainda estratégias para avaliação desses alunos, tivemos que aumentar o
número de atividades avaliativas durante o bimestre e, consequentemente,
mais atividades para serem corrigidas.

O trabalho passou a ocupar a maior parte do meu dia. Reservava as tardes


para preparar as aulas e esse tempo era dividido com inúmeras e intermináveis
reuniões. Durante a manhã, eu me dedicava a cuidar dos afazeres domésticos
e das atividades do meu outro emprego.

Inúmeras outras demandas foram surgindo: atendimento aos alunos (de


outros cursos) em crise, lives sobre saúde mental, estágios clínicos e super-
visão.

276
Relato 4 – Professora em época de pandemia

Os links de reuniões começavam a me causar um sentimento de angús-


tia, comecei a me sentir sobrecarregada. Via minhas amigas cuidando de si,
fazendo artesanatos, montando jardins e eu só conseguia trabalhar, trabalhar
e trabalhar. Parei de produzir, parei de sentir prazer em ler. Eu só contava
os minutos para desconectar, sentar na minha varanda e beber uma taça de
vinho no final da noite. Com isso me desconectei da minha filha e mergulhei
em crises de ansiedade diárias.

O tempo foi passando, fui manejando minhas crises e aprendendo a lidar


com a montanha russa de sentimentos que minha vida tinha se transforma-
do. Porque apesar de tudo, eu amava minhas aulas, sentia enorme prazer
em estar com meus alunos e com meus colegas de trabalho, mesmo que
virtualmente.

O volume de trabalho aumentou na época da V2, pois foi preciso elaborar


muitas questões por disciplina, montar banco de questões, aprender a utilizar
as ferramentas para aplicação desses testes e acompanhar qualquer dificulda-
de apresentada pelos alunos. Precisei pedir ajuda de uma amigo para poder
dar conta.

Após passado esse momento de avaliações e fechamento das notas, senti


um alívio enorme por todos os alunos terem tido um bom resultado nas mi-
nhas disciplinas. Sei que uma grande parte conseguiu absorver o conteúdo,
não através das provas, mas pelo debate que construímos no decorrer do se-
mestre e em algumas atividades que eles desenvolveram.

Particularmente, não considero que todo esse trabalho tenha sido perdido,
pois eu realmente percebi que uma boa parte dos alunos se dedicaram, partici-
param das atividades e conseguiram aprender o conteúdo, pois além das aulas
remotas, com a possibilidade de interação entre professor-aluno, o material
de apoio (slides, artigos, capítulos de livros) davam um bom direcionamen-
to mesmo para aqueles que não se sentiam motivados com as aulas virtuais.
Todo conteúdo remoto era baseado nesses materiais.

Minha postura diante dos alunos com dificuldades emocionais, de acesso


ou com falta de tempo para se dedicar a essa proposta de ensino, era de total
empatia e facilitação em relação a prazos, dúvidas e revisão de notas. Me co-
loquei disponível em todas minhas redes sociais, a qualquer momento. Recebi
inúmeras mensagens, telefonemas e e-mails e, por fim, acredito que tivemos
bons resultados.

277
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

O feedback foi positivo, muitos afirmaram que gostavam de ter aulas de


casa, pois podiam ter maior liberdade durante as aulas, ficar mais próximos
das famílias, não perder horas de deslocamento entre suas cidades e a univer-
sidade, economizar com roupas e lanches. Mas ao mesmo tempo também sen-
tiam falta do contato físico e da interação existente em sala de aula. A maior
reclamação que recebi foi o excesso de atividades avaliativas, as quais estavam
deixando todos muito esgotados.

Entendo toda a crítica acerca dessa modalidade de ensino e concordo que


ela não é a ideal. Mas mesmo entendendo que todo esse trabalho foi feito para
atender uma demanda capitalista que só pensa em lucro, eu procurei entender
o que ir contra essa lógica traria de prejuízos para os alunos e colaboradores
de uma universidade privada. Eu consigo comparar o ensino público ao ensi-
no privado, porque estou dentro dessas duas instituições, acompanhando em
tempo real as diferenças entre elas.

Enquanto na privada vimos centenas de funcionários com medo de perder


seus empregos, caso os alunos parassem de pagar suas mensalidades, na pú-
blica vimos milhares de alunos frente uma nova “paralisação” e preocupados
com o ensino à distância, pois muitos não têm acesso a tecnologia em suas
casas. Enquanto recebíamos decisões e novas rotinas de trabalho na institui-
ção privada a serem cumpridas prontamente, na pública, inúmeros debates
ocorriam sobre como levar o acesso ao conteúdo para todos, como enfrentar
a crise, o que fazer com os alimentos que estavam estocados na escola, como
ajudar os funcionários terceirizados e como estabelecer uma rotina de traba-
lho para os técnicos administrativos e docentes nesse período.

Tanto na pública como na privada, os alunos questionavam sobre o atraso


no semestre letivo e o que faríamos para driblar todas as dificuldades desse
período tão atípico.

Conseguimos concluir o semestre letivo e já demos início a outro na insti-


tuição privada e na pública ainda estamos discutindo a retomada do calendá-
rio letivo e enfrentando opiniões polarizadas dos alunos em relação a apren-
dizagem remota.

Diante de tantos desafios e após um período de descanso, posso dizer que


me transformei de uma forma que ainda não consigo definir. Sigo amando mi-
nha profissão, procuro fazer a diferença na vida dos meus alunos mesmo de
forma remota, motivando-os, promovendo espaços de escuta, estabelecendo

278
Relato 4 – Professora em época de pandemia

diálogos e trabalhando em conjunto para tentar diminuir qualquer dificuldade


que possa surgir nessa nossa trajetória. Estou criando estratégias de autocui-
dado e aceitando apenas o que eu acredito dar conta, sem prejudicar minha
saúde mental.

Sei que ser professora vai me movimentar e me desafiar muito ainda. É


uma prática que necessita de constante atualização, estudo, dedicação e dis-
ponibilidade às mudanças. É uma profissão desvalorizada e desqualificada,
principalmente no atual cenário político que estamos vivendo. Não estávamos
esperando por uma pandemia, mas o que fazer com isso? Não concordo com
a expressão “novo normal”. Não quero que isso tudo seja normal, não dá para
nos acostumarmos com algo que tira vidas e a saúde mental das pessoas. Não
dá pra normalizar mortes e inseguranças. Acho importante criarmos possi-
bilidades de vida dentro dessa realidade que nos atravessa, mas com muita
esperança de que possamos ter nossas rotinas de volta.

279
Relato 5
Experiências do Serviço Social em tempos de pandemia:
considerações no âmbito educacional
Amanda Bersacula de Azevedo
Débora Spotorno Moreira Machado Ferreira
Érika David Barbosa
Josemara Henrique da Silva Pessanha
Paola Barros de Faria Fonseca

Tudo tão estranho...


Uma montanha russa de emoções
Ora empolgada com meus planos
Ora pensativa em meio às ilusões
(...)
Sendo forte, sendo frágil
A vida segue ensinando
Com coragem e desafios
Que prevaleçam os encantos!

(Josemara H. S. Pessanha)

280
Introdução

As relações de sociabilidade, que envolvem o mundo do trabalho, analisadas numa


perspectiva ética e política, nos assinalam sobre a vida cotidiana e as respostas ime-
diatas e imediatistas requerentes da estrutura de sociedade moldada pelo capitalismo.

Esta ofensiva devastadora do capital, que é constante das crises que por ele
mesmo são geradas, nos limitam a capacidade de respostas de caráter ético-políti-
co, num constante ciclo de apreensão e percepção da realidade fragmentada, efê-
mera e instáveis das vivências objetivas e empobrecedoras das relações de trabalho
(BARROCO, 2011). Furta-nos possibilidades para um projeto emancipatório que
dê conta das demandas do público que dependem da nossa atuação (a comunida-
de escolar: docentes, discentes, técnicos-administrativos, famílias), e também do
projeto pessoal das nossas vivências e convivências.

O Serviço Social é uma profissão inserida no mundo do trabalho, inscrito no


âmbito da produção e reprodução da vida social, tendo na questão social1, nas suas
mais variadas expressões cotidianas, o objeto de trabalho para atuação profissional.

Em cenários como o atual, da pandemia do COVID-19, há que se falar no


surgimento de novas expressões da questão social que somadas à precarização
crescente dos direitos dos trabalhadores, ao subemprego e à financeirização do
capital trazem à tona o já existente, mas não explícito, desafeto e desrespeito à vida,
a coisificação do ser humano e a “dessocialização” das relações, tornando-as ainda
menos mediatizadas pelo olhar do outro.

Diante do exposto, nós, assistentes sociais, profissionais da Educação Profis-


sional Científica, Técnica e Tecnológica, trabalhadoras que vendem a força de
trabalho, chamadas para atuar numa ação específica da Educação e com um viés
tão abrangente quanto a assistência aos estudantes, pretendemos realizar uma
reflexão no interior das nossas condições de trabalho, os desafios que nos são
postos cotidianamente, sem perder a ternura do olhar para o outro e para nós
mesmas enquanto mulheres (e toda suas implicações) neste tempo de pandemia
cometida pelo vírus COVID-19.

1. Para Iamamoto (2007), a questão social “é apreendida como o conjunto das expressões das desi-
gualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez
mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos
mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade” (IAMAMOTO, 2007, p. 27).

281
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Os desafios cotidianos da profissão durante a COVID-19

Nós, profissionais do enfrentamento direto às expressões da questão so-


cial, quando pensamos nos desafios cotidianos em tempos como os atuais,
precisamos, inicialmente, nos percebermos enquanto mulheres em contexto
de pandemia.

O cenário atual nos coloca em condições privadas e particulares de traba-


lho onde o espaço público, das políticas públicas nas quais atuamos, invadiu
nossas vidas privadas. Se o imediato e urgente constantemente bate à nossa
porta enquanto assistentes sociais, também nos assola com o mesmo - ou até
maior ímpeto - em nossas vidas privadas de mãe, mulheres, esposas.

Não podemos desconsiderar que os papéis que antes eram desempenha-


dos em divisões espaciais específicas (ambiente familiar e espaço de trabalho),
com o trabalho remoto, passam a ser exercidos em uma mistura indivisível.
A linha tênue, que antes sutilmente os separavam, foi rompida. Mães que as-
sumiram integralmente o cuidado da casa, a alfabetização e educação escolar
dos filhos sem deixar as demandas profissionais que se avolumam em um ma-
labarismo sem fim.

Nessa apropriação do privado pelo público, podemos elencar, entre outras


questões, a necessidade que muitas de nós tivemos de arcar com os custos de
novos aparelhos tecnológicos, aumento de franquias e coberturas de internet,
compra de mobiliários adequados (mesas de trabalho e cadeiras), que, quando
não adquiridos resultam em mazelas provenientes da falta de ergonomia no
exercício profissional. Ademais, outra apropriação que merece destaque é a
utilização de nossos números telefônicos privados de celulares (WhatsApp®)
para contato e atendimento aos estudantes e suas famílias.

Essa utilização em tempos como o atual talvez seja a mais emblemática


exemplificação da perda dessa divisão entre vida particular e vida pública.
Como servidoras públicas temos uma face pública a que devemos prestar con-
tas socialmente do nosso trabalho. Entretanto, é preciso termos clareza que
essa função não afasta nossa vida privada, nosso eu, nossas particularidades.

Cotidianamente temos recebido demandas imediatas que precisam ser res-


pondidas com ausência de prazos razoáveis, cobranças de relatório de dados,
construção de formulários, elaboração de editais extraordinários, preparação

282
Relato 5 – Experiências do Serviço Social em tempos de pandemia:
considerações no âmbito educacional

de estudos sociais e outros que são impossíveis de serem realizados nas con-
dições atuais.

Quando as demandas do trabalho invadem nossos espaços privados, en-


tramos em uma lógica produtivista integral. Horário de trabalho e horário de
descanso também foram rompidos. A realidade capitalista produtivista se ma-
terializa na sua forma mais cruel nos tempos atuais. Todavia, é uma crueldade
já latente em tempos remotos.

O tempo nos foi roubado! Tempo para pensar, refletir, realizar um trabalho
técnico que leve em consideração o planejamento, a pesquisa, a escuta quali-
ficada, a busca ativa, rodas de conversas, enfim, um trabalho menos imediato
das demandas que enchem nossas mesas e salas. A realidade do Serviço Social
na maioria dos campi do IFF é da relação de um profissional para setecentos e
cinquenta estudantes. Em campuses maiores isso aumenta consideravelmente,
chegando a um profissional para 1.500 (mil e quinhentos) estudantes. Toda
essa precarização do trabalho aqui exemplificada tem promovido adoecimen-
to físico e mental às trabalhadoras que atuam no Serviço Social dos IFFs.

Em relação ao público-alvo de nossas ações profissionais, estudantes e suas


famílias, observamos que a pobreza estrutural que os atingem, se tornou ainda
mais cruel com o desemprego e ausência de renda dos estudantes e familiares.
A insegurança por não ter a garantia dos direitos básicos, tacitamente deixa-
da por um governo desrespeitoso com a vida da sua população, acomete a
vida daqueles que atendemos diariamente. O que já era um desafio - atender
estudantes em suas necessidades básicas para o estudo como o auxílio trans-
porte, auxílio alimentação (que em muitos campi não era para todos/todas),
auxílio moradia, condições materiais de estudos em cursos técnicos - torna-se
urgente a luta pela inviolabilidade do direito à vida, que deveria ser o direito
primário e não negociável2.

Outro aspecto a ser considerado diz respeito à relevância das condi-


ções familiares dos estudantes, uma vez que o isolamento social causado
pelo novo coronavírus vêm contribuindo para o aprofundamento dos casos

2. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu Art. 5º diz que “Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (BRASIL, 1988) (grifo dos autores).

283
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

de violência doméstica e de violência contra a crianças e adolescentes. O


consumo de bebidas alcoólicas, maior tempo no ambiente familiar e falta de
emprego e renda, são alguns dos fatores que contribuem para esse aumento.
As crianças e adolescentes são os alvos mais frágeis, onde os agressores
acham que podem descarregar a sua fúria e frustração, ficando a mercê da
negligência familiar.

A dificuldade do acompanhamento, de modo remoto, das demandas des-


ses estudantes, é um agravamento para nossa ação direta. Estudantes que não
têm acesso aos meios digitais como celulares, internet, que residem em locais
de difícil acesso, dificultam inclusive o processo de acesso aos auxílios e bolsas
da Assistência Estudantil. Como atender estudantes os quais não conseguimos
contato?

O acesso digital no intuito de viabilizar o ensino remoto, provisoriamente,


mais do que nunca se tornou essencial, entretanto, o não aumento dos recur-
sos e o constatável aumento de demandas, já explicitadas, nos levam a questio-
nar até onde a política de Assistência Estudantil deveria dar conta da presente
realidade. Uma vez que estamos falando de uma ação complementar como
se faz na assistência estudantil, essencial, mas subsidiária a uma edificação já
pública e de acesso a todos que dela façam parte. Nesse caso, falamos de uma
necessidade si ne qua non para o acesso ao ensino, condição que, sem a qual
os/as estudantes não terão acesso à sala de aula, aos processos avaliativos, ao
aprendizado. Entretanto, não perdermos de vista que
Vemos com grande preocupação a instalação do en-
sino remoto emergencial (ERE), pelos reais riscos de
aprofundamento das desigualdades sociais, provo-
cando a segregação de estudantes que não possam
acompanhar, de maneira adequada, essa modalidade
aligeirada de ensino (ABEPSS, 2020)3.

3. Outras implicações que envolvem o Ensino, Pesquisa e Extensão no Ensino Remoto não
serão postas aqui devido ao breve texto. Contudo, sinalizamos para os impactos profundos
no desenvolvimento da aprendizagem de crianças e adolescentes.

284
Relato 5 – Experiências do Serviço Social em tempos de pandemia:
considerações no âmbito educacional

Os recursos da Assistência Estudantil estão sendo redirecionados devido


às novas necessidades eminentementes e urgentes. As Bolsas Permanências,
as Bolsas ENEEs (Estudantes com Necessidades Educacionais Específicas), os
Auxílios Moradias estão sendo mantidos. Outras ações nos levam a optar en-
tre condições de sobrevivência como os Auxílios Alimentação que em muitos
campi estão sendo pagos em pecúnia aos estudantes a fim de reduzir a insegu-
rança alimentar e nutricional.

O orçamento do PNAES (Programa Nacional de Assistência Estudantil)


para 2020 não teve alterações em relação ao ano anterior, sendo pago por nú-
mero de estudantes. Houve redirecionamento dos recursos entre os campi e
isso teve impactos significativos para alguns que perderam e outros que con-
seguiram recursos. Contudo, mesmo o PNAES tendo como público alvo es-
tudantes com renda per capita, prioritariamente, de 1 ¹/², (um salário mínimo
e meio), a nossa realidade é de não conseguirmos atender muitos estudantes
dentro desse perfil.

Quanto ao Auxílio Digital, ainda está sendo estudado possibilidades, mas


o Governo Federal já anunciou pacote de dados, prioritariamente, para estu-
dantes com renda familiar de meio salário mínimo, o que sugere que muitos
que necessitam não serão contemplados, a menos que tenha uma iniciativa
interna, com recursos próprios da instituição.

Existe a possibilidade dos recursos do PNAES serem utilizados para este


fim, todavia, sabendo que será mais um benefício o qual teremos que dividir
os recursos, pois o mesmo não foi aumentado, somente as demandas.

Reflexões finais

As demandas da assistência estudantil pontuadas até aqui são emergentes


num contexto escolar e ficam ainda mais evidentes em um período de pande-
mia. Para além disso, a tentativa de viabilização de outros direitos a partir do
conhecimento adquirido das políticas sociais também perpassam o trabalho
do assistente social em trabalho remoto.

As Políticas Públicas de Seguridade Social - Previdência, Assistência Social


e Saúde - estão sendo violentamente atacadas. Soma-se o agravamento da crise
mundial a pandemia do COVID-19 dentro de uma estrutura de sociedade

285
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

extremamente desigual num governo que já anunciou corte de verbas no Or-


çamento de 20214, ou seja, a crise será mais profunda e desigual.

Em relação à Educação, mesmo com a suspensão das aulas presenciais,


a escola continua tendo um papel essencial na proteção social das crianças
e adolescentes, apesar de distantes, fisicamente, acreditamos que, podemos
agir de forma mais efetiva, tentando minimizar os impactos dessa violência na
vida das crianças e adolescentes. Seguramente, pós-pandemia, presenciare-
mos um agravamento de quadros sociais, principalmente no que diz respeito
ao adoecimento emocional e mental, adoecimento esse que já vem assolando
boa parte dos nossos estudantes.

Os(as) estudantes têm buscado, por meio de e-mails, mensagens em What-


sApp® e contato telefônico, diversas orientações, sobre outras políticas públi-
cas, dentre elas, podemos citar: dúvidas sobre o acesso ao auxílio emergencial
(Decreto nº 10.316/2020), informações sobre o acesso aos benefícios previ-
denciários, solicitações de acesso às ações assistenciais públicas ou privadas
disponíveis, dúvidas quanto aos procedimentos sobre prevenção e cuidados
relativos a COVID-19, dentre outras.

As questões emocionais e psíquicas dos mesmos e de seus familiares foram


agudizadas pelo medo, ansiedade e angústias do atual momento pandêmico.
Luto e perdas de familiares e conhecidos, por situações de desemprego, fal-
ta de renda, insegurança alimentar e nutricional, relatadas em atendimentos
virtuais. Portanto, observa-se uma série de questões sociais e estruturais que
foram apresentadas e partir delas, sendo necessária a articulação com outros
profissionais da psicologia, nutrição e pedagogia, vislumbrando estreitar os
canais de diálogos para propor alternativas de suporte online, via contato tele-
fônico, projetos ou ações específicas.

Além das ações que envolvem a assistência estudantil, as/os profissio-


nais de Serviço Social que atuam no âmbito da Rede Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia estão contribuindo em diferentes frentes de trabalho

4. Segundo o jornal O Globo do dia 18/08/2020, no Orçamento previsto pelo governo para
2021 (ainda passará pelo Congresso), o Ministério da Cidadania, responsável pela Assistên-
cia Social, perderá 59,3% do seu orçamento anual. A pasta da Saúde será reduzida em 4,8 %.
A Previdência Social, vinculada ao Ministério da Economia, não foi divulgado. Isso somente
em se tratando das políticas de Seguridade Social.

286
Relato 5 – Experiências do Serviço Social em tempos de pandemia:
considerações no âmbito educacional

na instituição. Há assistentes sociais desenvolvendo pesquisas, projetos de


extensão, planejamento de ações em Comissões, atendimentos aos estudan-
tes com necessidades educacionais específicas, elaboração e participação de
eventos online, desenvolvendo tais atividades com as adequações necessá-
rias, conforme às orientações institucionais.

Assim, nos deparamos com inúmeros desafios no nosso trabalho em tem-


pos de pandemia e a elaboração deste Relato de Experiência é parte de um
movimento de constante luta pelo direito à reflexão. Precisamos, cotidiana-
mente, exercer esse direito, pois o momento nos move em direção à constru-
ção de novas relações com o outro e conosco e, portanto, precisamos dessa
crítica, essencial para entender a realidade que nos cerca.

Referências
ABEPSS. Trabalho e ensino remoto emergencial. Brasília, 23 jun. 2020. Disponível em: http://
www.abepss.org.br/noticias/trabalho-e-ensino-remoto-emergencial-386. Acesso em: 22
ago. 2020.

BARROCO. Maria Lúcia. Barbárie e neoconservadorismo: os desafios do projeto ético-político.


Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo, n. 106, p. 205-218, abr./jun. 2011.

BRASIL. Lei Federal nº 8.662, de 7 de junho de 1993. Dispõe sobre a profissão de Assistente
Social. Brasília: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/leis/l8662.htm. Acesso em: 23 ago. 2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988: promulgada em 5 de outu-


bro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.
htm. Acesso em: 23 ago. 2020.

BRASIL. Decreto Federal nº 7.234 de 19 de julho de 2010. Dispõe sobre o Programa Nacional
de Assistência Estudantil - PNAES. Brasília: Presidência da República, 2010. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7234.htm. Acesso em:
20 ago. 2020.

BRESCIANI, E.; FERREIRA, P.; VENTURA, E. Orçamento reduzido: Governo prevê corte na
maoria das pastas, e Educação deve perder 13%. Jornal O Globo. Rio de Janeiro, ano XCVI,
nº 31.788, 18 de agosto de 2020, p. 4.

CFESS. Teletrabalho e Teleperícia: orientações para assistentes sociais no contexto da pande-


mia. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/teletrabalho-telepericia2020-nota.
pdf. Acesso em: 22 ago. 2020.

IAMAMOTO, Marilda Villela. O Serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e formação


profissional. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

PESSANHA, Josemara. Momentos. In: Festival de Poesias do Campus Guarus, 8., 2020.

287
Relato 6
Fenomenologia, formação de professores e de professores/
gestores: reflexões que se mostram e se manifestam em tempos
de pandemia COVID-19, ensino remoto emergencial e trabalho
remoto
Alexsandra dos Santos Oliveira

O convite para escrita deste relato de experiência, visando problematizar os im-


pactos da pandemia de COVID-19 e suspensão das atividades educacionais presen-
ciais e trabalho remoto na/para formação de professores e de professores/gestores1,
me permite falar de um lugar ambíguo que emerge em alguns momentos repleto

1. Ao logo deste relato, o leitor irá se deparar com essa expressão como um movimento que emerge
a partir das reflexões do Art. 64 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, LDB n° 9.394/96 e dos
projetos de ensino desenvolvidos no Curso de Licenciatura em Pedagogia/Pádua, iniciado no fi-
nal de 2019-1, presencialmente, com a participação de cinco bolsistas contempladas pelo Sistema
de Bolsas de Assistência Estudantil (Sisbol) que continua sendo desenvolvido na configuração do
ensino remoto emergencial na UFF/Infes/Gepsub.

288
de autonomia e em outros, marcado por um sentimento de angústia. Buscarei em
princípios da existência, da fenomenologia, da experiência, da escuta e do diálogo os
fundamentos para seguir em frente.

A Fenomenologia surge no final do século XIX, rompendo com o modelo car-


tesiano e com a metafísica. A palavra fenomenologia deriva das palavras gregas
phainesthai que significa aquilo que se mostra, e logos que significa estudo, “o es-
tudo do que se mostra”. É na sua aparição que o fenômeno mostra-se carregado de
todos os sentidos a ele atribuído: ontologia, história e cultura de uma sociedade.

Assim, elejo as compreensões do pensamento de Heidegger (2008) como ca-


minho das interpretações da vida diária e descrição do vivido, como espaço que
revela o ser na cotidianidade. De acordo com Heidegger (2008), o método feno-
menológico é um método que procura ir às coisas mesmas, visando compreender/
interpretar as manifestações do tempo, do ser e do mundo, muito mais do que
explicar os fenômenos vividos.

A opção expressa em diferentes momentos de uma travessia, sustenta inquieta-


ções e questionamentos, mas também o par escuta e diálogo como abertura epis-
temológica que valoriza a experiência em um encontro de formação como um
espaço-tempo que articula objetividade, subjetividade, acontecimentos, testemu-
nho e histórias de vida.

A aposta também está expressa na obra Ser-gestor-escolar: experiência, escuta


e diálogo (Oliveira, 2020), que chega ao público somente agora, em tempos de
pandemia COVID-19, emerge das reflexões do tempo de profissional da educação
básica em interpretações/compreensão com três pensadores: Martin Heidegger,
Paulo Freire e Jorge Larrosa.

Na obra Linguagem e Educação depois de Babel, encontrei algo que nunca


mais abandonei: “[...] a experiência pode ser definida como aquilo que nos passa,
que nos acontece ou que nos toca [...]” (LARROSA, 2004, p. 154). O autor, nessa
mesma obra, destaca que nunca se passaram tantas coisas e que a experiência é
cada vez mais rara, pelo excesso de opinião, informação e passividade, assumindo
aspectos de uma antiexperiência.

Após treze (13) anos de atuação (2006-2019) na Educação Básica (docência,


inclusão, gestão e formação) em diferentes níveis e modalidades de ensino no Sis-
tema Municipal Educação de Cariacica e no Sistema Estadual de Educação no
Espírito Santo, sempre hibridizados com outras atuações profissionais no ensino

289
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

superior na graduação, na pós-graduação, no ensino presencial e no ensino a


distância, sempre demonstrei preocupação com a formação de professores e
dos gestores escolares. Hoje, essas preocupações continuam latentes e se inter-
cruzam como caminho da ação docente na Universidade Federal Fluminense
(UFF)/Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior, atuando com
as licenciaturas (Pedagogia, Matemática, Física, Ciências Naturais e Computa-
ção) e no Grupo de Estudo e Pesquisa Gestão Escolar Política e Subjetividade
(Gepsub).

A ênfase nesta aposta, emerge da memória de quem um dia pertenceu ao


espaço da escola pública. Memória que hoje revive e convive com alguns equí-
vocos quando o tema é a formação na educação básica, marcada pelo aligei-
ramento, pelo neoliberalismo e interferência de organismos internacionais e
de grupos empresariais para definir as políticas educacionais para educação
básica. Onde o excesso de informação em capacitações e treinamentos, con-
funde com cooptação em alguns momentos.

Em 2018, presenciei essa realidade, quando assisti alguns poucos profissio-


nais de uma Secretaria de Educação serem contemplados com bolsas para em
uma força tarefa, junto a professores e gestores da Educação Infantil e Ensino
Fundamental implementarem um currículo à luz da Base Nacional Comum
Curricular – BNCC. Currículo que excluí modalidades de ensino como a Edu-
cação Especial e Educação de Jovens e Adultos.

E aí, me peguei pensando a respeito se esse investimento contribuiu para


pensarmos o humano, a vida e a práxis dos profissionais da educação básica
em tempos de Pandemia COVID-19 e ensino remoto emergencial? A crise
educacional instalada pela pandemia, abriu feridas expostas quando o assunto
em pauta é a formação de professores e de professores/gestores que seguiram
a via do capital humano.

É no questionar "o que é?" e "como é?" que novos sentidos se mostram.
Hoje, o exercício acadêmico que guia a escrita deste relato de experiência e
também o caminho de ações e reflexões com docentes e discentes para pen-
sarmos o humano na formação dos futuros professores no Infes e a formação
continuada de professores e professores/gestores escolares no Noroeste Flumi-
nense visando compreender o inesperado.

Encontro em Paulo Freire e Ira Shor, na obra Medo e Ousadia, a justifica-


tiva para esta aposta, ao enfatizar a necessidade de fugirmos a experiências

290
Relato 6 – Fenomenologia, formação de professores e de professores/gestores:
reflexões que se mostram e se manifestam em tempos de pandemia COVID-19,
ensino remoto emergencial e trabalho remoto

efêmeras movidas pelo excesso de informação, de opinião para se lançar na


docência enquanto acontecimento em uma esfera existencial.

Para os autores:
Nossas experiências pessoais e as de outros docentes,
estão contidas naquilo que dizemos. Não se trata de
um assunto arquivístico sobre educação. Nem esta-
mos respondendo a perguntas que alguém tenha fei-
to. Talvez possamos captar os dramas da vida real na-
quilo que aprendemos dentro e fora da sala de aula.
Nada mais convincente do que os fatos da vida real
(FREIRE; SHOR, 1986, p. 13).

O exercício de refletir a partir da escrita de um relato de experiência, segue


agora em fragmentos de uma linha do tempo, como maneira de descrever os
fatos da vida real em sentidos das experiências vividas na vida profissional ao
adotar um estilo autobiográfico para descrever um fenômeno.

De acordo com informações do site do Ministério da Saúde, a Organização


Mundial da Saúde (OMS), declarava em 30 de janeiro de 2020 que havia um
surto causado pelo novo Coronavírus (COVID-19), que vivíamos um mo-
mento de emergência de saúde pública de importância internacional do mais
alto nível. Fazendo um contraponto com a educação, era o período das férias
escolares. Mas não para mim, pois ainda não havia completado um (1) ano de
Universidade. Estava quebrando a cabeça com o preenchimento do Relatório
Anual de Docentes – RAD2.

No dia 11 de março de 2020, a OMS declarava que estávamos em um mo-


mento de pandemia -COVID-19. Nesta mesma data, eu e outros colegas/do-
centes estávamos no Infes, participando de uma reunião de Departamento.
As reuniões ainda aconteciam de maneira presencial. Na sala de professores,
conversava sobre novos projetos para o início do período.

No dia 12 de março de 2020, participava do evento 21 dias de Ativismo


contra Racismo, Machismo, LGBTfobia e intolerância religiosa no Instituto

2. Registro das atividades docentes desenvolvidas na universidade durante o ano. Resumida-


mente, divididas entre atividades administrativas, atividades de ensino, atividades de pes-
quisa e de extensão.

291
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Federal Fluminense - Santo Antônio de Pádua, com a realização da palestra


Educação, pobreza: desigualdades sociais raciais e de gênero. Até hoje reflito
sobre esta palestra, pois, na pandemia este tema tornou-se uma questão de
vida e morte.

Reporto-me aos slides dessa palestra para compartilhar com o leitor a ne-
cessidade de resistirmos e na resistência falarmos sobre Educação, pobreza,
desigualdades sociais, raça e gênero3 no currículo da escola e no currículo da
formação de professores e professores/gestores.
A própria definição da pobreza com base na renda
representa, em certo sentido, um ato arbitrário. Ve-
jamos, por exemplo, no caso do Brasil, o estabele-
cimento por parte do governo da linha que separa
pobreza – renda mensal per capita de até R$ 154 – e
pobreza extrema –renda mensal de até R$ 77 por pes-
soa. É difícil dizer que quem recebe R$ 80 encontra-
-se em situação melhor que quem recebe só R$ 77,
assim como é complicado afirmar que quem recebe
R$ 160 não seria pobre. Da mesma maneira, a pre-
sença ou a ausência de políticas públicas específicas
e de serviços públicos afetam profundamente a vida
das camadas mais vulneráveis da população (REGO
E PINZANI, 2018, p. 19).

A partir dos apontamentos acima realizados pelos autores, o tema na pan-


demia continua sendo problematizado e desvelando movimentos complexos
ao mundo em diferentes variações. Como por exemplo, pensar a pobreza por
um viés moral, que os pobres estão desempregados porque querem, porque
seriam indolentes e que para educá-los a solução estaria nos valores do traba-
lho e da perseverança. Abaixo um dos slides da palestra ilustra, acredito eu,
esta complexidade.

3. Atuei como ministrante no Curso de Aperfeiçoamento em Educação, Pobreza e Desigual-


dade Social (Versão Trajetórias Escolares), registrado na Pró-Reitoria de Extensão da Uni-
versidade Federal do Espírito Santo, ação hibrida (presencial e a distância), no período de
01/10/2018 a 30/03/2019, Coordenado pela Profª Dra. Marlene de Fátima Cararo.

292
Relato 6 – Fenomenologia, formação de professores e de professores/gestores:
reflexões que se mostram e se manifestam em tempos de pandemia COVID-19,
ensino remoto emergencial e trabalho remoto

Tirinha do cartunista argentino Quino, criador da Mafalda. QUINO. Toda Mafalda. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.

A pandemia COVID-19 e o ensino remoto emergencial nos mostram que


o tema pobreza exige soluções de problemas sociais, políticos e econômicos
em compreensões de um conceito complexo e multifacetado.
Quando passamos a observar os processos so-
ciais e políticos de produção da pobreza, somos
obrigados(as) a nos indagar sobre que coletivos são
submetidos a ela. Em nossa história, percebemos que
os grupos que diferem da raça, da etnia, do gênero e
da classe dominantes são os outros, alijados do aces-
so a direitos básicos. Perpetuar a situação de pobreza
desses coletivos tem sido, ao longo de nossa história
social e política, a forma mais brutal de fazê-los per-
manecer nessa condição de inferiores, oprimidos, em
desigualdade de acesso aos direitos sociais, políticos
e econômicos (ARROYO, 2018, p. 17).

Esse foi o relato/problematização da minha última atuação docente no pre-


sencial. Dia que eu ainda pude tirar foto ao lado das pessoas, abraçar as alunas
da Pedagogia/Pádua que lá estavam para também assistir a palestra. Dia que
eu ainda pude andar para lá e para cá ao ministrar uma “aula/palestra” em
um evento e perceber o silêncio de um auditório, quando algumas vezes per-
guntava se alguém gostaria de fazer algum comentário. Mas, diante da minha

293
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

insistência, ao ficar em silêncio esperando, uma aluna se pronuncia e fala das


suas reflexões ao assistir a palestra, dentre elas comenta, a quem interessa a
existência da Pobreza?

Continuando... No dia 13 de março de 2020, o adiamento por 1(uma) se-


mana para o início do período letivo na UFF que deveria ocorrer na segunda-
-feira, 16 de março e levando em considerando as ponderações do Grupo de
Trabalho de especialistas composto para assessorar a administração acerca da
pandemia do novo Coronavírus.

No dia 15 de março de 2020, são anunciadas medidas de prevenção contra


o COVID-19 para os servidores técnicos/administrativos da UFF. A Universi-
dade altera suas rotinas de procedimentos internos. As matrículas e o período
de ajustes dos estudantes eram iniciados de maneira remota. Na noite deste
mesmo dia, era criado o grupo de WhatsApp® – PCH _ Crise Coronavírus.
Visando garantir a comunicação com o maior número possível de professores.
Sem perceber ou me dar conta, junto a vários outros profissionais estava in-
serida em uma nova categoria de trabalho, o trabalho remoto. Daí em diante,
o trabalho remoto no WhatsApp® não parou, foram: o grupo dos projetos de
ensino em andamento; o grupo dos orientandos de Trabalho de conclusão de
Curso – TCC; o grupo do Gepsub; o grupos dos ex-alunos das disciplinas,
dentre vários outros grupos criados de março à agosto de 2020. Expressão de
uma demanda de trabalho, que cada um dos leitores poderá fazer sua lista e
suas análises dos sentidos dessa experiência.

No dia 16 de março de 2020, a UFF, por meio da portaria 66. 635 de 16 de


março de 2020, regulamenta o adiamento do início do semestre letivo pelo
prazo de 30 (trinta dias).

No dia 17 de março de 2020 , o Ministério da Educação (MEC) divulgou a


à Portaria nº 343/2020, que “dispõe sobre a substituição das aulas presenciais
por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do novo
Coronavírus. Momento que a comunidade acadêmica se posiciona criticamen-
te. E ao mesmo tempo, iniciamos um outro debate, a diferença entre EaD e
ensino remoto emergencial. Muitas eram as preocupações, pois o ensino remo-
to emergencial estava sendo confundido com EaD, que é uma modalidade de
ensino. Nas reuniões e na mídia, assistíamos a alguns desses equívocos. Mas o
que é mesmo ensino remoto emergencial? Acredito que ainda estamos vivendo
e descobrindo seus desdobramentos. Não temos respostas e nem conceitos.

294
Relato 6 – Fenomenologia, formação de professores e de professores/gestores:
reflexões que se mostram e se manifestam em tempos de pandemia COVID-19,
ensino remoto emergencial e trabalho remoto

Enfim, vou parar por aqui. Não conseguiria expor todas os acontecimentos
anunciados pelo Governo Federal e nem todo o caminho que trilhei objetiva-
mente e subjetivamente, individualmente e coletivamente nesse período. Mas
um dado posso descrever, lamentavelmente, em 08 de agosto de 2020 o Brasil
atingiria a marca de mais de 100.000 mortes de COVID-19.

Realizei este exercício como maneira de mostrar a tensão entre liberdade


e escravidão, objetividade e subjetividade, vida e morte, treinamento e for-
mação, capital humano e ser-humano, ensino superior e educação básica na
pandemia.

O inesperado nos fez perder o repertório, mostrando que não estávamos


preparados para mudanças tão drásticas na vida cotidiana e tem nos provo-
cado sofrimento e dor. A pandemia desvelou muitos problemas educacionais
associados a outros problemas socioeconômicos como desemprego, corrup-
ção, ausências, opressão e excesso de informação. Mas o inesperado também
permitiu interpretações e compreensões nas universidades, nas escolas e na
formação inicial e continuada em contextos da experiência, da escuta, do di-
álogo, do mundo da vida, da cotidianidade e da subjetividade, visando fugir
a uma postura doutrinária e intelectualizada, para dar espaço à inquietude
como maneira de desvelarmos outros caminhos para formação de professores
e professores/gestores em tempos de Pandemia e ensino remoto emergencial.

A ênfase do método fenomenológico de pesquisa, projeta rompimentos


com a tradição como possibilidade de compreender o ser em sua “mundanida-
de” e cotidianidade. A analítica de sentido da experiência revela a liberdade do
par escuta e diálogo como manifestação de um fenômeno. O rigor do método
fenomenológico, em uma analítica de sentindo da experiência, busca apresen-
tar as manifestações do “Logos”, aquilo que se mostra em uma realidade.

O inusitado, anuncia o ser-no-mundo (Dasein) como desafio das compre-


ensões da experiência de docentes, discentes, famílias, servidores em meio ao
ensino remoto e ao trabalho remoto em tempos de Pandemia COVID-19. A
formação de professores constitui-se em um território aberto a novas possibi-
lidades e projeções, onde não se tem certezas e sim falas autênticas, singulares,
testemunhos em uma temporalidade, onde passado e presente projetam o
futuro no anúncio de uma travessia densa, tensa e intensa, como prova de
assumir o papel existencial para compreender um fenômeno: quais os cami-
nhos da formação de professores em tempos de Pandemia e ensino remoto
emergencial?

295
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Referências
ARROYO. Miguel G. Pobreza e Desigualdades sociais. Disponível em: http://catalogo.egpbf.
mec.gov.br/modulos/pdf/intro.pdf. Acesso em: 15 out. 2018.

BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 343, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a


substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação
de pandemia do Novo Coronavírus - COVID-19. Brasília: Presidência da República, 2020.
Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-343--de-17-de-marco-
-de-2020-248564376. Acesso em: 17 mar. 2020.

FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia o cotidiano do professor. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1986.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 3. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Univer-
sitária São Francisco, 2008.

LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

QUINO, Joaquín L. Toda Mafalda. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

REGO, Walquiria Leão. PIZANI, Alessandro. Pobreza e Cidadania. Disponível em: http://cata-
logo.egpbf.mec.gov.br/modulos/pdf/modulo1.pdf. Acesso em: 15 out. 2018.

OLIVEIRA, Alexsandra dos Santos. Ser-gestor-escolar: experiência, escuta e diálogo. 1. ed.


Curitiba: Appris, 2020.

296
Relato 7
Deteriorando e renascendo: da voz ao silêncio, do silêncio à voz
Sâmela Faria

E me vi indo...
De pesquisadora
Me tornei silêncio

A pandemia não me parou instantaneamente. Minha mente tentou me pro-


teger ao máximo me dizendo que tudo ficaria bem. Quem poderia acreditar que
tudo aquilo que a tevê dizia era mesmo real? Mas a crise na saúde pública chegou a
mim, chegou a você, chegou a todes. Foi quando passei a me isolar. Sim, por causa
do distanciamento social, mas também por... desvio. Sabe quando você desvia de
um buraco porque sabe que vai dar ruim? Foi assim que me afundei. Eu tinha voz
antes da pandemia e então a perdi. Da voz fui ao silêncio.

Foi nesse momento que o boom aconteceu. Os casos de morte e de infectados


subiam dia após dia. Fiquei amiga da moça do jornal da manhã, porque eu sentia
que era obrigação minha saber de todes que sofriam. Que eu não conhecia, mas
estavam indo... passei a sofrer diariamente por pessoas que nunca vi. Passei a

297
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

querer consolar parentes de gente que nem sabia que existia. Como se fosse
muita audácia minha estar viva, respirando e tendo um teto para me abrigar
do perigo. Da filosofia dos privilegiados nessa lógica capitalista perversa,
apresento a você a bicama: sempre há gente em cima e gente embaixo.

Os primeiros meses foram de puro pavor. Logo na primeira quarentena, a


pandemia levou nossos empregos. Eu trabalhava como redatora home office
para uma agência. Meu companheiro é desenvolvedor e a empresa em que
trabalhava fechou. Mas estávamos em vantagem, certo? Perdemos emprego,
não pessoas. Era assim que eu me sabotava nessa prisão de mim mesma. Meu
companheiro conseguiu uma vaga em outra empresa e assim nos sustentamos.
Uma das minhas frustrações era não estar atuando. Logo que me formei, co-
mecei a fazer uma pós presencial e o mestrado tudo junto, não consegui me
dedicar aos concursos. 2020 seria o ano. O ano em que me tornaria mestra e
passaria em um concurso.

Diante de tudo isso, o ar que me fez voltar a respirar um pouco foi o


grupo de pesquisa NEIPE, do qual, inclusive, eu quis até sair por sentir que
minha cabeça estava voando sem meu corpo, desconexa. Mas então uma
pesquisa surgiu. Uma pesquisa grande sobre os professores na pandemia.
Eu quis tanto fazer parte de algo assim, tão pertinente e impactante, que
resolvi me driblar. Essa pesquisa foi um sopro de vida em meio à pandemia.
E então, nessa relembrança de mim, me vi mestranda de novo. Em pleno
apocalipse. Em um grau gigante de injustiça social de um desgoverno que
pisoteia, engana e mata.

Foram muitos os períodos, mas a pesquisa estava me desafogando da mi-


nha mente perversa. Nossos encontros eram semanais, claro, via tecnologia.
Eu respirava tanto. Eu sentia vibração, esperança. Ia dar certo. Mas ao mesmo
tempo me sentia paralisada. Eu precisava continuar a dissertação, já tão enga-
vetada. Eu precisava escrever. Escrever. Escrever. E sim, nem sempre escrever
é inspiração, mas deveria ser liberdade. As primeiras palavras saíam sem or-
dem, muitas repetitivas, outras tímidas, silenciadas. Casos de Covid gritavam
na mente. Eu precisava contribuir com a pesquisa do grupo de estudo, o meu
respiro, mas a cobrança de mim mesma não me permitia dar um passo afren-
te. A moça da tevê indignada. Pessoas no Facebook® dizendo ser uma “gripe-
zinha”. Vizinhos sem máscara. A cidade minúscula sem fazer nada. E então, os
casos começaram a surgir por aqui. Um lugar com um único e desestruturado
hospital. 1, 2, 5, 8, 10... 50, 80, 100, 200...

298
Relato 7 – Deteriorando e renascendo: da voz ao silêncio, do silêncio à voz

E eu precisava escrever a dissertação. A essa altura, eu já havia me esqueci-


do pesquisadora novamente. Eu já não surtia efeito ao me implorar para focar.
Os preços da comida subiram. O álcool em gel também. A asma atacava bem
mais do que o comum. Comprei um nebulizador e nebulizava como terapia.
Passamos a tomar vitamina para ajudar a imunidade. Comecei a tomar mais
antialérgicos que o normal. Usava mais bombinha do que jamais usei sema-
nalmente. Mas eu precisava escrever. Escrever. Escrever. Pesquisar. Pesquisar.
Ler. Ler. Ler. Pesquisar. Sair de mim.

E então, no auge da pandemia aqui no Brasil e trancada em casa sem ver


pai e mãe há vários meses, o avô do meu sobrinho de apenas 5 anos é levado
pela Covid. Poucos dias antes de seu aniversário de 6 anos. Ele era muito ape-
gado ao avô. Eu só chorava, um choro há muito entalado. O desespero já não
cabia mais. Virei um descontrole total. Me deterioro completamente quando
ouço um áudio seu enviado para o celular do avô, que estava internado havia 2
semanas, dizendo: “vovô, volta logo, estou morrendo de saudade, eu te amo”...,
mas o avô já havia ido embora. E ele ficou indignado se perguntando “por que
ele não podia levar o celular para onde foi para falar com seu netinho”. Falas
dele... que me destruíram. E eu nem podia ir vê-lo. Seu aniversário chegou e
não pude ir. Ele teve contato com o pai e a avó, que tiveram contato com o avô.
E eu tenho asma. Foi um mês de abismo. E escrevo isso com a lembrança da
dor escapando pelos olhos.

Mas eu precisava escrever.

Escrever

Escrever

Escrever

Via todo mundo publicando artigos. Meus colegas de turma se mobilizan-


do e escrevendo. Os membros do grupo de pesquisa também, enquanto ainda
tinham que lidar com a desastrosa educação remota. Me sentia desconfortável
porque eu jurava que meus problemas eram minúsculos perto dos deles. E
assim minha mente me sabotava.

Então, a cobrança foi ficando mais intensa porque o prazo para finalizar a
dissertação e defende-la se apertou. E eu só queria me mudar de mim mesma.
Deixar meu casco pra lá. Largar tudo. Desistir... Já não me importava com meu
eu pesquisadora porque ele havia me abandonado. Mas ao mesmo tempo, eu

299
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

não podia deixar o sonho morrer. Deixar meu respiro se perder, este que é tão
excomungado pela asma, pelo capital, pela pobreza, pelas impossibilidades,
injustiças sociais e as mais variadas crueldades humanas. Eu precisava escre-
ver. Escrever. Escrever.

E então escrevi.

Em meio aos casos de racismo, abuso infantil, violência doméstica; casos


de Covid crescendo, notificações do desgoverno, lavagem de tudo que com-
prava, das embalagens de comida, além da saudade da família.

De início, foram só lufadas de dor. Sem ponto final. Foi como me permitir
gritar. Foi um pedindo socorro a mim mesma, em silêncio. Foi em meio a
um artigo sobre medicalização, que escrevi junto aos queridíssimos Thalles
Ladeira, então meu colega de turma, e Fernanda Insfran, então minha orien-
tadora, que ouvi minha voz lá no fundo. O artigo ficou incrível e foi o começo
da minha salvação. Após ele, outros trabalhos foram sendo produzidos pelo
grupo de pesquisa NEIPE, ao qual faço parte. A asma continuou atacando
diariamente. Uns dias mais severa, outros nem tanto. As mortes continuaram
subindo diariamente, uns dias mais severa, outros também. Os casos da cida-
de continuaram aumentando, uns dias mais severos, outros levando gente. Os
casos do estado continuaram subindo, uns dias mais severos, outros com aglo-
meração nas ruas. O desespero ainda estava ali, mas eu já não me alimentava
dele. Voltei a ler meus livros aos poucos. Passei a dar meus primeiros passos na
escrita da dissertação, sem muito peso, sem muita esperança. Mas eu precisava
escrever. Lentamente, fui me apresentando à pesquisadora que escreveu tudo
aquilo antes do meu eu pesquisador de 2020. Comecei a paquera, a compreen-
são, passei a conhecer aquele estudo como se fosse a primeira vez.

E as palavras vieram. Tímidas, mas vieram.

Eu via todo mundo terminando. E tinha que manter o controle pra não
me permitir tropeçar. Ouvia os relatos dos meus amigos do NEIPE sobre
como estava a vida lá fora e tive várias recaídas ao saber que eu não podia
compartilhar de suas dores. Eu nem licenciava, afinal. E passei a buscar me
manter firme às minhas próprias lutas, as internas e as externas, no coletivo
e no individual. Por diversas vezes os casos de Covid me tiraram do foco. Eu
lembrava do choro entalado sempre. Mas me sentia acolhida também. Ali
era meu lugar. No repertório que eu mesma criei. E a minha escrita passou
a ser resistência.

300
Relato 7 – Deteriorando e renascendo: da voz ao silêncio, do silêncio à voz

Resistência em um ano pandêmico que se despedia de milhares de vidas


mensalmente. Em um desgoverno sem dó nem piedade, no qual entra minis-
tro e sai ministro, rouba aqui, acolá e em Atibaia, esconde coisas e pessoas,
protege filhos de seus crimes, divulga fake news, insiste na não ciência e finge
não ouvir nosso “quem mandou matar Marielle?”. Só que a empatia mora aqui,
mas é vizinha de lá. Ela ultrapassa os muros. Vê além. Não fica na margem.

No auge do meu processo de estabelecimento emocional e psicológico,


travei na escrita da dissertação mais uma vez. Pensei que fosse o fim. Eu não
conseguia dar conta dos dados, das categorizações, das discussões. Travei por
vários dias. E aí comecei a me sabotar de novo. Fiquei tão mal que a comida se
tornou meu refúgio e minha inimiga. Eu comia, comia, comia. Mas ela voltava.

Acho que um passo importante para a cicatrização da ferida é saber onde


ela está. É saber que ela existe. Eu não aceitava que estava na ruína. Achava
que podia lidar com minha própria sabotagem, até que não era ruim. Vejam
só, não tomava remédio pra me manter como alguns colegas. Isso era bom,
não é? Sim. Não tomar remédio era bom, mas não perceber que eu estava mal
não era. Eu comecei a sentir que a comida voltava como forma de punição ao
meu fracasso. E o companheiro percebeu. Percebeu que eu estava mal porque
eu já não sabia mais fingir. Então, ele me ouviu. A maior parte foi só o choro
entalado. A outra parte foi só a raiva de mim mesma. Ele não me disse que vai
passar. Apenas ficou me escutando. E depois me fez perceber quem sou, me
lembrando de coisas que eu já havia feito. As lembranças, afogadas pelo caos
externo, voltaram. Saí do ensino médio e entrei direto na Universidade Fede-
ral. Terminei meus estudos com êxito, diante de toda dificuldade financeira,
vivia de bolsa e no primeiro ano com um emprego ruim e abusivo. Logo que
formei, passei para uma pós-graduação (lato sensu) presencial numa Federal
também. Quando estava com poucos meses da pós, passei no processo sele-
tivo do mestrado na mesma Universidade da graduação. Com a orientadora
da graduação, quem eu queria. E fiquei fazendo as duas coisas juntas, sem
dinheiro, sem bolsa, pois só no final é que consegui três meses como bolsista.
Como eu podia ser uma fracassada? Ele disse. Eu sorria e chorava.

E voltei a escrever.

Escrevi

Escrevi

Escrevi

301
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Até que passei do travamento. Me entendi com os autores. Desvendei as


entrelinhas dos participantes da pesquisa. Joguei pedras no governo. Vomitei,
dessa vez, palavras. Não sei que tom deu tudo isso. Estou revisando para ver
se teve muito ódio. Mas eu já me considero vencedora. O problema não era a
pesquisa. O problema não era eu. O problema é o sistema. O caos. As injus-
tiças. A desigualdade. A fome. As mortes. A doença. O avanço dos casos. O
tanto faz de muitos. O governador. O desastre de presidente.

Eu fui só mais uma peça do jogo de horrores que 2020 se tornou.

Reitero aqui o poder que a escuta tem. Deixo aqui minhas emoções em
massa me dizendo o quanto foi bom ser ouvida. Ser lembrada de tudo de bom
que eu já conquistei. Além da escuta, outro processo que me cicatriza é a es-
crita. O poder falar. O poder se ouvir ao se ler. O poder das palavras é um
processo que salva. Eu não sabia o quanto precisava usar as palavras para mim
e não para um propósito apenas. Não para uma formalidade. Mas para me aju-
dar a entender tudo por meio da minha própria voz. E foi aqui, nessas linhas,
que eu desabrochei esse começo de cicatrização das feridas que eu acumulei
e não aceitava.

Somos fortes no coletivo, mas se não cuidamos do nosso próprio edifício


interno, o lado de fora entra em conflito. Esse espaço que me permitiu com-
partilhar minha voz, me fez ver que não somos isso e aquilo, somos tudo,
talvez uma mistura de cores, tons e existências, mas, acima de tudo, somos
os que resistem. No coletivo e no individual, renasci. Fui da voz ao silêncio e
agora do silêncio à voz. Avante!

302
Relato 8
Ode à coletivização (ou “trabalhadores, escutem-se!”)1
Fernanda Insfran

Com a barriga vazia não consigo dormir


E com o bucho mais cheio, comecei a pensar
Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar
(Chico Science, 1994)2

Este relato está sendo escrito nas condições de normalidade impostas nestes qua-
se seis meses de quarentena: concentração e silêncio só de madrugada, enquanto

1. Título em homenagem a dois importantes Carlos da minha vida: Carl Rogers e Karl Marx.
2. Da Lama ao Caos. Música do sensacional Chico Science, lançada em 1994 no disco de mesmo
nome. Chico faleceu de acidente em 1997 (aos 30 anos), deixando uma legião de inconformadxs
(inclusive eu) e órfãos das suas geniais críticas sociais que tão bem retratavam/retratam as rela-
ções sociais racistas e classistas da “capitania hereditária” de Pernambuco e do país colonizado em
que vivemos.

303
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

meu filho de três anos dorme e recupera suas energias para as voltas olímpicas
que fará durante o dia ao redor da mesa de jantar – a atividade física diária da
família, que ocorre entre uma reunião virtual e outra. Talvez a maior diferença
entre esta madrugada e as demais, principalmente as do início da pandemia,
seja a contagem de mortos. Chegamos ao terrível número de 120 mil mortos,
segundo informações do consórcio de veículos de imprensa. Estou marcando
isso para quando voltarmos a ler esse livro, daqui alguns anos, nos espantemos
tanto com os números dessa tragédia quanto com o fato de estarmos desgover-
nados e há mais de 100 dias sem ministro da saúde (o último se demitiu em 15
de maio de 2020).

Horror tem sido, infelizmente, um sentimento comum a todxs xs autorxs


que contribuíram com esta obra, que nos mostra como a educação brasileira
tem padecido devido a escolhas políticas que tem como prioridade a morte, o
sofrimento e a manutenção dos ganhos econômicos. Esse horror que sentimos
é pré pandêmico, mas alcançou níveis insuportáveis nestes quase seis meses
de pandemia por ter, entre outras coisas, escancarado as muitas desigualdades
que vivemos nessa sociedade fortemente marcada por concepções racistas,
machistas, classistas, lgbtfóbicas, meritocráticas, etc. Culpa também foi um
sentimento muito forte que me dominou no início da pandemia. Os privilé-
gios que carrego me tiraram o sono por muitas semanas – principalmente o
fato de poder trabalhar em casa, com conforto e segurança, enquanto muitxs
tiveram que continuar encarando os perigos da contaminação com toda a pre-
cariedade de condições de trabalho que é própria dessa necropolítica ultrali-
beral nossa de cada dia. Milhares morreram por não terem tido a chance de se
proteger e milhões perderam seu ganha pão da noite para o dia e seguem, até
hoje, à mercê dos inseguros auxílios desse desgoverno que desde o primeiro
momento nega a grave crise que vivemos.

O cenário difícil me gerou muitas incertezas, angústias e culpas: o medo de


morrer e/ou perder pessoas queridas; o terror com a intensificação das perse-
guições, medidas autoritárias e de desmonte da Universidade pública; a preo-
cupação em ajudar o máximo de pessoas sem renda que pudesse; a sobrecarga
do trabalho remoto aliado às demandas da casa – sem a ajuda da diarista – e
do filho – sem escola; tudo isso atrelado à culpa por manter meu filho uma
quantidade nunca imaginada de horas diante das telas (a parceria e apoio do
meu companheiro de vida foram fundamentais para amenizar essa culpa).

Como não enlouquecer diante de tudo isso?

304
Relato 8 – Ode à coletivização (ou “trabalhadores, escutem-se!”)

Posso dizer com convicção (e vivências!) que o trabalho me salvou. E me


salva todos os dias, há 20 anos!

Em 2020 completei 20 anos de estudos na área de educação. Comecei esse


percurso ainda na graduação de economia, onde busquei entender a estreita
relação entre indicadores educacionais, sociais e as políticas públicas neolibe-
rais – que seguiam (e seguem) a cartilha dos organismos internacionais para
países em desenvolvimento (BANCO MUNDIAL, 1996). Durante os anos de
formação em psicologia – e também no mestrado e no doutorado – nunca
deixei de pesquisar e trabalhar com educação.

E em 2013, realizei o sonho acalentado por mais de uma década e me tor-


nei professora de uma Universidade Federal, passando a formar professores
nos cursos de licenciatura. Como coordenadora do curso de Pedagogia vivi
emoções inesquecíveis nas várias formaturas de que participei e testemu-
nhei a realização de muitos meninos e meninas da classe trabalhadora, filhxs
e netxs de pessoas analfabetas que nestas noites especiais abrilhantavam o
auditório do nosso Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Supe-
rior (INFES/UFF), ainda que tímidas e deslocadas mas muito orgulhosas
de ocupar aquele espaço por séculos destinados apenas às elites. No nosso
campi do interior, em Santo Antônio de Pádua/RJ, temos muita gente preta
(inclusive professores doutores), temos muito LGBTI+, temos feministas,
temos representatividade!

Em 2015, o projeto construído a várias mãos por colegas de todos os cur-


sos do INFES – o Programa de Pós Graduação em Ensino – começa a funcio-
nar e recebe no seu primeiro processo seletivo 20 mestrandos. Agora além de
dar formação superior à classe trabalhadora da região (e de outras, porque
recebemos alunos do interior de MG, do ES e até da região metropolitana do
Rio), oferecemos mestrado acadêmico em Ensino. De lá para cá, tive a alegria
de contribuir diretamente com a formação de sete mestres, sendo o último
deles, Thalles, aluno egresso do nosso curso de Pedagogia e meu ex bolsista
PIBID/CAPES, é um dos co organizadores desse livro.

Pois bem, chegando finalmente onde eu queria, hehe: essa obra só existe
porque foi gestada por mim, pelos queridos Paulo, Tiago, Thalles e pela que-
rida Sâmela, xs meus quatro últimxs orientandxs de mestrado. Todxs profes-
sorxs, cada um com projetos e temas bem distintos – um desafio maior que o
outro. Em comum, além da dedicação, um sentimento de irmandade que xs

305
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

uniu muito, principalmente depois que o pandemônio – como sempre repete


Tiago – começou. Tínhamos muitos planos para 2020, planos que incluíam
encontros presenciais semanais do nosso grupo de pesquisa, o NEIPE (Nú-
cleo de Estudos Interseccionais em Psicologia e Educação). Desde março os
encontros seguiram semanais, no mesmo dia e horário que combinamos no
início do ano. Porém, interagimos por meio de telas – ah, as telas! Das raias
da tecnofobia para os braços do Zoom... dava até um título de artigo, hein?
Hehehe! Independentemente de serem encontros virtuais, as terças-feiras à
tarde se tornaram nosso momento oásis de toda semana! Rola todo tipo de ca-
tarse e acolhimento possível nas duas, três horas que temos juntxs. E foi numa
catarse dessas, ainda em março, que começamos a gestar essa obra.

Paulo e Tiago estavam, naquele momento, experienciando toda a sorte de


bizarrices dessa gambiarra chamada ensino remoto emergencial, que os obri-
gou da noite para o dia a virarem youtubers. Eram relatos semanais na reunião
e diários nos grupos de WhatsApp® das pressões e opressões operadas pelo
sistema – ambos são professores da SEEDUC/RJ e Tiago é também professor
de uma escola particular – e todas as angústias de trabalhar em algo que não
faz sentido e que nitidamente não estava trazendo resultado algum, visto o
número baixíssimo de alunxs que acessavam as plataformas digitais onde eles
upavam suas aulas e atividades.

Tiago começou a escrever um relato sobre suas experiências, como um


exercício importante para sua dissertação, que contará com um memorial da
sua trajetória como professor. Lemos juntos e assim surgiu a ideia de organi-
zarmos um livro que contasse com ensaios, pesquisas e relatos de experiên-
cia. Seria uma forma de dar visibilidade às dores compartilhadas diariamente
e fortalecer nosso lugar de fala, frente a tantos ataques que a categoria tem
sofrido dos movimentos terraplanistas, negacionistas e afins. Demorou uns
dois meses até que conseguíssemos uma resposta animadora de uma editora
interessada em publicar o livro no formato digital (em PDF) que fosse livre e
de acesso gratuito a todxs. Em junho começamos a fazer os convites para xs
amigxs que viriam a contribuir com capítulos e relatos para este livro.

Nesse meio tempo, outro projeto – a pesquisa on line “Professores na


Pandemia” – foi estruturado por nós e amplamente compartilhado nas redes
sociais. Para nossa surpresa e alegria, em pouco mais de uma semana tive-
mos mais de 1000 profissionais de educação respondendo às 39 perguntas
desse questionário. A amplitude que essa pesquisa teve – ao final de um

306
Relato 8 – Ode à coletivização (ou “trabalhadores, escutem-se!”)

mês, entre abril e maio de 2020, tivemos 1906 respondentes – foi muito
surpreendente para nós, acostumados a fazer pesquisa qualitativa com gru-
pos pequenos, composto por professorxs e/ou alunxs de poucas escolas.
Dado o volume de dados dessa pesquisa, fizemos até agora apenas três ar-
tigos com análises desse material. Um deles, um capítulo sobre a relação
família-escola, está presente nesta obra.

As análises do material ainda não terminaram e estamos pensando onde


e quando iremos publicar todo esse rico material – volume dois do “Fraturas
expostas...”, quem sabe? Mas fiquei realmente impactada com várias respostas
que são verdadeiros pedidos de socorro. Uma pessoa efetivamente me pediu
socorro, por e-mail. Enviou-me uma mensagem após responder ao questioná-
rio. Nela relata todos os conflitos que estava vivenciando com o ensino remo-
to, suas dificuldades tecnológicas e precariedade de condições de trabalho, de-
sânimo, frustração e muitos outros sentimentos comuns a muitxs professorxs,
que relataram isso em suas respostas.

Em paralelo, realizei algumas atividades como colaboradora do Conselho


Regional de Psicologia do RJ (CRPRJ). Participei como mediadora de uma
roda de conversa online, organizada pelo Núcleo de Educação do CRPRJ, que
discutiu formação, prática e adoecimento docente. Foi uma roda potente com
expressiva participação de professorxs da educação básica, relatando suas di-
ficuldades e nos pedindo ajuda. Como lidar com esses pedidos?

Um filme passa na minha cabeça e me transporta de volta a 2009, quando


realizei rodas de conversa em diferentes escolas, com professorxs e alunxs, du-
rante minha pesquisa de doutorado. Na época, chamava de “grupos de refle-
xão” (INSFRAN, 2011). Hoje acho mais simpático o termo roda de conversa,
mesmo que pareça batido ou informal demais para alguns.

Foram muitas idas e vindas de 2009 pra cá, mas nunca deixei de acreditar o
poder transformador do grupo e na importância de todxs terem “um coletivo
para chamar de seu”. Lembro das aulas de psicologia social, há quase 20 anos,
e da minha adoração pelas teorias de grupo. Depois que tive acesso a Carl
Rogers, Wilfred Bion e Pichon Rivière, vi que curtia muito mais outras episte-
mologias e compreensões do fenômeno de grupo do que aquelas apresentadas
pela psicologia social norte americana.

Mesmo tendo feito formação clínica na Abordagem Centrada na Pessoa


(ACP), trabalhado algum tempo com psicoterapia e fundamentado fortemente

307
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

os grupos de reflexão da minha pesquisa de doutorado com a ACP, passei alguns


anos afastada dos livros de Carl Rogers (1972) e das discussões acepistas – que
naquele momento me pareciam pouco congruentes na relação teoria e prática.
Para além disso, acho que passei um tempo aceitando as críticas – que sempre
me perseguiram na vida acadêmica – de que Rogers (1972), Paulo Freire (1987)
e Patto (2015) eram autores inconciliáveis.

Me reconciliei com a ACP em 2019, quando escrevi a convite da amiga


Marcia Tassinari, uma das professoras que contribuiu para minha formação
em ACP, o capítulo “Empatia na educação: buscando a superação de antigos
entraves às experiências significativas de aprendizagem”, para o livro organiza-
do por Marcia, “Empatia – a capacidade de dar luz à dignidade humana”. Sim,
os entraves que eu precisava superar eram as caixinhas que a academia – no
seu formato colonizador – coloca o conhecimento.
É possível perceber que existe uma estreita relação
entre a falta de empatia na relação professor aluno,
valorização do modelo pedagógico tradicional/ nor-
mativo e a rotulação/ estigmatização dos alunos que
não seguem estritamente a norma/ padrão esperado
de aprendizagem. Assim, considerei muito perti-
nente desenvolver ensino, pesquisa e extensão sobre
fracasso escolar e medicalização na perspectiva só-
cio histórica e crítica, seguindo a tradição de Patto
(2015) e colaboradores (INSFRAN, 2019, p. 74).

A escrita, em primeira pessoa, me libertou naquele momento e está me


libertando agora também (e axs meninxs também, como pude ler nos relatos
lindos que elxs escreveram). Escrever tem sido, principalmente nesses dias
tão estranhos, exercício de auto cuidado e superação das culpas. E é também,
como disseram as meninas do Serviço Social do IFF no relato 6, “um movi-
mento de constante luta pelo direito à reflexão”.

E essa reflexão, a meu ver, só é possível quando nos permitimos parar e res-
pirar. Sair da roda vida do trabalho alienado e pensar nosso lugar nisso tudo. E
estar entre pares, com a certeza de que escutas empáticas vão ocorrer, facilita
muito esse processo de desalienação.

Assim, a única resposta possível aos pedidos de ajuda que tenho recebido
ao longo desses meses tem sido: coletive-se! Muitas inciativas de grupos e

308
Relato 8 – Ode à coletivização (ou “trabalhadores, escutem-se!”)

rodas de professorxs têm surgido nos últimos meses e isso tem que dando
muita esperança!

Como disse antes, acredito muito no poder transformador do grupo. Os


coletivos de que faço parte contribuem sobremaneira para a minha desaliena-
ção. Foram muitos encontros felizes ao longo desses anos que deram sentido
às minhas lutas e não me permitiram esmorecer.

O verbo “encontrar” nunca fez tanto sentido e nunca foi tão desejado
quanto neste momento de confinamento. Outra palavra que tem significado
muito para mim é “escuta”. Assim, faço desse relato uma ode à coletivização e
lanço um pedido de ajuda a todxs xs profissionais de educação: trabalhadores,
escutem-se!

Lembrei agora desse diálogo que tive com a maravilhosa amiga Adriana
Gesualdi, que está publicado no livro “Educação Centrada em Estudantes:
práticas e conversações”:
Fernanda - O sistema é tão perverso que esquadrinha
os nossos tempos e espaços de tal forma que a gente
não consegue se organizar, pensar junto, no coletivo...
Você está aqui conversando comigo porque você está
de férias, aposentada no município, então está tendo
tempo... Quando você teve tempo para conversar com
seus colegas de escola ou de CRE ou de secretaria?
Adriana – Não existe esse tempo...
Fernanda – E não tem que existir, porque se existir
esse tempo a gente se organiza e derruba esse siste-
ma! (INSFRAN; LOPES, 2020, p. 44).

Será que finalmente teremos esse tempo? Será que mesmo afastadxs fisi-
camente e confinadxs em casa, conseguiremos finalmente nos escutar e cons-
truir uma saída coletivamente?

Esse caótico ensino remoto emergencial que invadiu nossas casas e nos co-
locou de joelhos aos interesses do capital (e do produtivismo acadêmico) tem
gerado muito sofrimento/ adoecimento, mas também muita reflexão. Bora
aproveitar a desorganização para nos organizarmos, como incentivou o genial
Chico Science? “Da lama ao caos, do caos a lama, o homem roubado nunca se
engana”. Bora recuperar o que nos foi roubado?

309
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Finalizo inspirada no querido Thalles e sua sensível escrita marxista-hu-


manista:
Acreditamos que é sim possível haver uma socieda-
de na qual o trabalho seja sinônimo de humanização
para os sujeitos envolvidos, cujas relações humanas
sejam plenas de sentidos, e haja valorização e reali-
zação na profissão docente. No entanto, para que isso
venha se objetivar, é necessário, que no tempo pre-
sente, tomemos decisões coletivas de superação da
sociedade capitalista (LADEIRA, 2020, p. 124).

Assim como Brecht, acreditamos que “as revoluções se produzem nos be-
cos sem saída”.

Referências
BANCO MUNDIAL. Prioridades y estratégias para la educación. Washington, D. C.: Banco
Internacional de Reconstrucción y Fomento / Banco Mundial, 1996.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

INSFRAN, F. F. N. Grupos de reflexão na escola: contribuições da abordagem centrada na pessoa


para psicologia escolar. Rev. NUFEN, São Paulo, v. 3, n. 1, 2011.

INSFRAN, F. F. N. Empatia na educação: buscando a superação de antigos entraves a experiên-


cias significativas de aprendizagem. In: TASSINARI, M, DURANGE, W. (ed). Empatia: a
capacidade de dar luz à dignidade humana. Curitiba: CRV, 2019, p. 61-83.

INSFRAN F. F. N.; LOPES, J. C. Educação Centrada em Estudantes: práticas e conversações.


Curitiba: CRV, 2020.

LADEIRA, T. A. O adoecimento de professores das escolas estaduais de Santo Antônio de


Pádua: uma análise a partir dos processos de precarização do trabalho. Dissertação de mes-
trado. Programa de Pós Graduação em Ensino. Universidade Federal Fluminense. 2020.

PATTO, M. H. S. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. 4. ed.,


revista e ampliada. São Paulo: Intermeios, 2015.

ROGERS, C.R. Liberdade para Aprender. Belo Horizonte: Interlivros, 1972.

310
Sobre as/os autoras/es

Alessandra Tozatto - Psicóloga, docente no curso de Psicologia da UniReden-


tor e mestre em Ensino pelo INFES/ UFF. TAE no IFF Fluminense. Contato: ale-
[email protected]

Alexandre Trzan-Ávila - Psicólogo (CRP: 05/35809). Doutor e Mestre em


Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGPS/UERJ).
Doutorando em Design pela Escola Superior de Desenho Industrial (PPDESDI/
UERJ). Professor e Supervisor de Estágio na Universidade Santa Úrsula (USU).
Coordenador do Núcleo de Clínica Ampliada Fenomenológico Existencial (NU-
CAFE) que comporta duas linhas de pesquisa: Clínica Ampliada e o pensamento
fenomenológico existencial; Desconstruindo a Psicologia Clínica: cisnormativida-
de, heterossexualidade compulsória, gênero e pensamento decolonial. Conselhei-
ro do CRP-RJ (2010-2013, 2013-2016 e 2019-2022). Contato: [email protected]

Alexsandra dos Santos Oliveira - Professora Adjunta da Universidade Fede-


ral Fluminense -UFF/Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior-
-INFES. Departamento de Ciências Humanas – PCH. Doutora em Educação

311
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do


Espírito Santo (PPGE-UFES). Mestre em Educação pelo mesmo Programa.
Especialista em: Gestão e Docência na EaD pela Universidade Federal de San-
ta Catarina (UFSC), Gestão Escolar (Programa Nacional Escola de Gestores)
- UFES. Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES) - (Magistério das Séries Iniciais, Magistério da Educação Especial e
Gestão Escolar). Coordenadora do Grupo de Estudo Gestão Escolar Política
e Subjetividade - Gepsub. Associada à Associação Nacional pela Formação
dos Profissionais da Educação (ANFOPE) e Associação Nacional de Política e
Administração da Educação. Contato: [email protected]

Amanda Bersacula de Azevedo - mestre em Ensino pela Universidade


Federal Fluminense - INFES/UFF e especialista em Administração Pública
e Políticas para Infância e Adolescência. Atua como assistente social no Ins-
tituto Federal Fluminense campus Santo Antônio de Pádua, com experiên-
cia profissional nas políticas públicas de educação, saúde e assistência social.
Contato: [email protected]

Anelise Lusser Teixeira - Psicóloga, com Mestrado em Psicologia Social


pela UERJ e Doutorado em Psicologia pela UFF, docente da UNESA e con-
selheira substituta e coordenadora da Comissão Regional dos Estudantes do
CRPRJ. Contato: [email protected]

Breno Laerte Pacífico Pinto - Graduando da licenciatura em Letras Lite-


raturas Brasileiras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fundador e
docente do pré-vestibular UniFavela. Colunista e pesquisador na área de Lite-
ratura Marginal e Segurança Pública. Contato: [email protected]

Bruna Damiana Heinsfeld - Doutoranda em Interdisciplinary Learning


and Teaching com concentração em Instructional Technology na University
of Texas at San Antonio (UTSA), Estados Unidos. Mestre em Educação pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), especialista
em Planejamento, Implementação e Gestão da Educação a Distância pela

312
Sobre as/os autoras/es

Universidade Federal Fluminense (UFF) e graduada em Letras Inglês/Lite-


raturas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Co-autora
dos livros “Práticas pedagógicas, inovação e tecnologias: breves indagações”
(CRV, 2018) e “Tecnologias, pensamento sistêmico e os fundamentos da ino-
vação pedagógica” (CRV, 2019). Pesquisa concepções de tecnologia nos dis-
cursos das Políticas Públicas em Educação. É voluntária na orientação insti-
tucional da UniFavela. Contato: [email protected]

Bruna Werneck Canabrava - Servidora pública estadual na Fundação Ce-


cierj, onde atua como designer instrucional. É mestra em Ciência Política pela
UFF e pesquisa a relação entre o Estado brasileiro e agentes empresariais na
formulação de políticas públicas educacionais.

Clarisse de Mendonça e Almeida - Doutoranda em Políticas Públicas e


Formação Humana (UERJ), possui mestrado em Educação (Unirio). É jor-
nalista e trabalha como designer educacional há 15 anos. Atua nas áreas de
Educação a distância, ambiente virtuais de aprendizagem, design educacional
e políticas públicas. Contato: [email protected]

Débora Spotorno Moreira Machado Ferreira - assistente social do IFFlu-


minense campus Macaé, atua na Política de Educação desde 2010, mestre em
Serviço Social pela UFJF, autora do livro Perspectivas da Formação em Servi-
ço Social no Brasil em tempos de contrarreforma da educação superior (No-
vas Edições Acadêmicas, 2015). Contato: [email protected]

Elaine Cristina de Oliveira - Fonoaudióloga pela Universidade Estadual


Paulista-UNESP, mestre em Estudos Linguísticos pela UNESP e doutora em
Linguística pela UNICAMP. Professora da Universidade Federal da Bahia-
-UFBA; Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação
da FACED-UFBA; Membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da
Sociedade. Contato: [email protected]

313
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Elizabeth Tunes - Possui graduação em Psicologia pela Universidade de


Brasília, mestrado e doutorado em Psicologia pela Universidade de São Pau-
lo. Atualmente, é pesquisador associado da Universidade de Brasília e profes-
sora do Centro Universitário de Brasília. Sua atividade de pesquisa focaliza,
principalmente, os seguintes temas: conhecimento científico e conhecimento
escolar, relação professor-aluno, aprendizagem e desenvolvimento, desenvol-
vimento psicológico atípico e deficiência mental, processos de escolarização e
o significado social da escola. Contato: [email protected]

Eloisa Rocha de Sousa Alves - Aluna do curso de Psicologia da Universi-


dade Estadual de Maringá. Bolsita de PIBIC – CNPq. Contato: eloisarsalves@
gmail.com

Erika David Barbosa - Mestre em avaliação de políticas públicas pela Uni-


versidade Federal de Viçosa - UFV. Especialista em gestão de políticas públi-
cas com foco na temática gênero e raça pela Universidade Federal de Viçosa
- UFV. Atuou de 2011 - 2018 como Assistente Social da Universidade Federal
de Viçosa e a partir de 2018 como Assistente Social do IFF - Campus Bom
Jesus do Itabapoana. com experiência profissional nas políticas públicas de
educação. principalmente nas políticas de ações afirmativas para educação.
Contato: [email protected]

Fabio A. G. Oliveira - Professor de Filosofia da Educação da Universi-


dade Federal Fluminense (UFF). Membro Permanente do Programa de Pós-
-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS/UFF).
Coordenador do Laboratório de Ética Ambiental e Animal (LEA). Contato:
[email protected]

Hélio da Silva Messeder Neto - Possui graduação em Química pela Uni-


versidade Federal da Bahia (UFBA), mestrado e doutorado pelo programa de
Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências da (PPGEFHC) -
UFBA/UEFS. Atualmente é professor Adjunto I da UFBA sendo também pro-
fessor permanente no (PPGEFHC) - UFBA/UEFS. Tem experiência na área de

314
Sobre as/os autoras/es

Ensino de Ciências atuando principalmente nos seguintes temas: Psicologia


Histórico-Cultural e Pedagogia Histórico-Crítica no Ensino de Ciências e Lu-
dicidade. Contato: [email protected]

Izadora dos Santos Pires - Possui graduação em Química pela Univer-


sidade Federal do Recôncavo Bahia (UFRB). É mestranda pelo programa de
pós graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências da (PPGEFHC)
- UFBA/UEFS. Contato: [email protected]

Josemara Henrique da Silva Pessanha - Mestre em Políticas Sociais pela


Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF. Especia-
lista em PROEJA - Trabalho e Educação e o Mundo da Educação Profissional
pelo IFFluminense campus Centro. Bacharel em Serviço Social pela Universi-
dade Federal Fluminense - UFF. Assistente Social do Instituto Federal Flumi-
nense (IFFluminense). Contato: [email protected]

Karina Rocha Rosa de Castro - Pedagoga, especialista em gestão escolar,


mestre em ensino, atuou por mais de 20 anos como professora na educação
básica / educação superior e atualmente atua como pedagoga no Instituto Fe-
deral Fluminense. Contato: [email protected]

Maria Izabel Souza Ribeiro - Graduação em Psicologia pela Universida-


de Federal da Bahia (UFBA). Mestrado e Doutorado em Educação pela Fa-
culdade de Educação da UFBA com Doutoramento Sanduíche em Ciências
da Educação na Universidade do Porto, Portugal. Professora da Faculdade de
Educação da UFBA. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa EPIS - Educação,
Política, Indivíduo e Sociedade: leituras a partir da Pedagogia, da Psicologia e
da Filosofia. Membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Socie-
dade. Contato: [email protected] / [email protected]

Marilda Gonçalves Dias Facci - Doutora em Educação Escolar pela facul-


dade de Ciências e Letras de Araraquara - UNESP (2003); Pós-doutorado pelo
Instituto de Psicologia da USP e Universidade Federal de Mato Grosso do Sul -

315
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

UFMS. É professora voluntária do Programa de Pós-Graduação em Psicologia


da Universidade Estadual de Maringá e professora visitante da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do
CNPq. Contato: [email protected]

Michelle Lima Domingues - Professora Adjunta do Departamento de Ci-


ências Humanas do Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior
da Universidade Federal Fluminense, desde 2015. Expert consultant na Syr-
acuse University, desde 2016, no projeto de pesquisa intitulado Helping the
Poor Stay Put: Affordable Housing and Non-Peripheralization in Rio de Janeiro,
Brazil. Mestre e Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação
em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. Graduada em Ciên-
cias Sociais por esta mesma universidade. Contato: [email protected]

Nilza Sanches Tessaro Leonardo - Graduada em Psicologia pela Uni-


versidade Estadual de Maringá (1988). Mestrado e doutorado em Psicologia
pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2001/2004); e estágio
Pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universida-
de Federal de Uberlândia- MG. Atualmente é professora do departamento de
Psicologia da UEM e do Programa de pós-graduação em Psicologia da UEM.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas - Mestrado
Profissional. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia
Escolar, autora de livros, capítulos de livros e artigos científicos na área de
Psicologia e Educação. Contato: [email protected]

Paola Barros de Faria Fonseca - Doutoranda em Sociologia Política pela


Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Mestre
em Serviço Social, com área de concentração em Trabalho e Política Social,
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Servi-
ço Social Contemporâneo: Questão Social, Planejamento e Gestão de Políticas
Sociais e graduada em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense
(UFF). Atua como Assistente Social do Instituto Federal Fluminense e como
pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Acesso e Permanência na Educação
(NUCLEAPE). Contato: [email protected]

316
Sobre as/os autoras/es

Priscila Tavares dos Santos - Expert consultant na Syracuse University,


desde 2017, no projeto de pesquisa intitulado Helping the Poor Stay Put: Affor-
dable Housing and Non-Peripheralization in Rio de Janeiro, Brazil. Professora
de Ciências da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (desde
2008) e da Prefeitura Municipal de Itaboraí (desde 2011). Professora-Pes-
quisadora do Curso de Aperfeiçoamento Educação, Pobreza e Desigualdade
Social, realizado entre fevereiro e julho de 2018. Pós-doutoranda em Antro-
pologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
Federal Fluminense (bolsista PDJ/CNPq), entre 2019 e 2020. Mestre e Douto-
ra em Antropologia pelo mesmo Programa e graduada em Ciências Biológicas
pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Contato: [email protected]

Renata Vettoretti Leite - Mestra em Educação, Gestão e Difusão em Bio-


ciências pela IBqM/UFRJ, possui pós-graduação em Psicopedagogia (UERJ) e
Licenciatura em Psicologia (UFRJ). É servidora pública estadual na Fundação
CECIERJ, trabalha como Designer Instrucional há mais de 13 anos e atuou
como mediadora a distância de disciplinas de graduação e especialização por
mais de 10 anos. Contato: [email protected]

Ricardo Taveiros Brasil - Psicólogo, docente do Ensino Superior, mestre


em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano – Instituto de Psicolo-
gia da Universidade de São Paulo (IP/USP) – e doutorando na área de Edu-
cação – Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (FACED/
UFBA). Integra o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade.
Contato: [email protected]

Tito Loiola Carvalhal - Estudante da Faculdade de Educação da UFBA


(graduando em Pedagogia e mestrando em Educação), membro do Fórum
sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, do Coletivo De Transs pra
Frente e do MOTIN – Movimento de Transmasculinidades Interseccionais do
Norte e Nordeste. Contato: [email protected]

317
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Vittorio Lo Bianco - Servidor público estadual, Analista de Ensino a Dis-


tância e Divulgação Científica na Fundação CECIERJ. Doutor em Educação
pelo PROPED/UERJ, Mestre em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvi-
mento pelo Instituto de Economia da UFRJ, especialista em Políticas Públicas
(UFRJ) e em Gênero e Sexualidade (Instituto de Medicina Social/UERJ) e Ba-
charel em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Atualmente estuda Direi-
to na UERJ. É pesquisador associado do Laboratório Educação e República
(UERJ), atuando nas áreas de cibercultura, EAD, ambientes virtuais de apren-
dizagem, políticas públicas, globalização, educação e análise comparada.

Zoia Prestes - Graduada em Pedagogia e Psicologia pré-escolar e Mestre


em Educação pela Universidade Estatal de Pedagogia de Moscou (União So-
viética). Doutora em Educação pela Universidade de Brasília. Professora da
graduação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal Fluminense. Desenvolve pesquisas na área
de Educação, Psicologia e Desenvolvimento da criança com base na teoria
histórico-cultural. Traduz obras literárias e acadêmico-científicas do russo
para o português.

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Minicurrículos das/os organizadoras/es

Fernanda Insfran - Psicóloga, professora adjunta da Universidade Federal


Fluminense no campus Santo Antônio de Pádua. Pós doutora pelo Programa de
Pós Graduação em bioética, ética aplicada e saúde coletiva (PPGBIOS/UFRJ).
Professora e pesquisadora credenciada ao Programa de Pós Graduação em Ensi-
no (PPGEn/UFF). É líder do Núcleo de Estudos Interseccionais em Psicologia e
Educação (NEIPE/UFF). Membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e
da Sociedade.

Paulo Afonso do Prado - Graduado em Ciências Sociais pela Universidade


Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), licenciado em Pedagogia pela Uni-
versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestrando em Ensino
pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É membro do Núcleo do Noroeste
Fluminense do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade e do Nú-
cleo de Estudos Interseccionais em Psicologia e Educação (NEIPE/UFF). Atua
como docente nas disciplinas de Sociologia e Filosofia para o Ensino Médio. E
também como Orientador Educacional, com atenção ao Ensino Fundamental II
(anos finais) e Ensino Médio, ambas funções na rede pública estadual no municí-
pio de Itaocara. Participa da coordenação do Grupo de Pais com foco no debate ao
adoecimento emocional dos discentes e famílias.

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Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação

Sâmela Estéfany Francisco Faria - Graduada em Pedagogia pela Univer-


sidade Federal Fluminense (UFF) e Pós-graduada (lato-sensu) em Cultura Pa-
trimônio e Educação pelo Instituto Federal Fluminense (IFF). Atualmente é
mestranda em Ensino pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É mem-
bra do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade e do grupo de
pesquisa Núcleo de Estudos Interseccionais em Psicologia e Educação (NEI-
PE/UFF).

Thalles Azevedo Ladeira - Graduado em pedagogia pela Universidade


Federal Fluminense (UFF). Professor do primeiro segmento do ensino fun-
damental no município de Bom Jesus do Itabapoana/ RJ e no município de
Rio das Ostras/RJ. Mestre em Ensino pela Universidade Federal Fluminense
(UFF). É membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade
e dos grupos de pesquisa Núcleo de Estudos Interseccionais em Psicologia
e Educação (NEIPE/UFF) e Núcleo de Pesquisa em Trabalho em Educação
(NUPETE/UFF).

Tiago Afonso Sentineli - Graduado em História e Especialização em His-


tória do Brasil (Centro Universitário São José); atua como professor de Ensino
Fundamental II e Ensino Médio na rede pública estadual do Rio de Janeiro e
na rede privada em Miracema/RJ. Atualmente é mestrando em ensino pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). É membro do Fórum sobre Medi-
calização da Educação e da Sociedade e do Núcleo de Estudos Interseccionais
em Psicologia e Educação (NEIPE/UFF).

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Esta obra foi composta nas tipologias Minion Pro e Calibri e foi impressa
em papel Pólen Soft® 80 grs./m2, na primavera de 2020.
Este livro é uma ocupação. Ocupamos este espaço e o tomamos
por terra fértil às denúncias do que experienciamos neste momen-
to de pandemia. Escritos e experiências que expõem fraturas, dores,
angústias. Escritos de/por aquelas/es sem-direito-de-parar. Resistir,
portanto, é ato político. Resistimos ao silenciamento que massacra,
resigna e adoece, escrevendo. Escrevemos e nos posicionamos contra
o controle remoto, a reinvenção tecnicista, a “neutralidade”, o adoe-
cimento docente e discente, a pseudoformação e todas as formas de
mordaça e alienação colocadas no caminho da educação libertado-
ra e emancipatória. Escrevemos para tensionar os nós em nós. E em
quem nos lê. Por fim, escrevemos para tentar adiar o fim do mundo.
Será uma utopia?

Os organizadores

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