Cristianismos, Sociabilidade e Espaço Público: Reflexões Sobre As Relações Entre Religião e Sociedade

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Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público:

reflexões sobre as relações entre religião e


sociedade
Fabrício Roberto Costa Oliveira
Reinaldo Azevedo Schiavo
Ramon da Silva Teixeira
Mauro Rocha Baptista
Luiz Ernesto Guimarães
Cáio César Nogueira Martins (Orgs.)

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público:


reflexões sobre as relações entre religião e
sociedade

1° Edição

Editora
Campinas / SP
2020
Fabrício Roberto Costa Oliveira
Reinaldo Azevedo Schiavo
Ramon da Silva Teixeira
Mauro Rocha Baptista
Luiz Ernesto Guimarães
Cáio César Nogueira Martins (Orgs.)

Copyright D7 Editora
Copyright Organizadores

Proibida reprodução total ou parcial. Os infratores são processados na


forma da lei.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Oliveira, Fabrício Roberto Costa, Schiavo, Reinaldo Azevedo,


Teixeira, Ramon da Silva, Baptista, Mauro Rocha, Guimarães, Luiz
Ernesto, Martins, Cáio César Nogueira Cristianismos, Sociabilidade &
Espaço Público: reflexões sobre as relações entre religião e sociedade/
Campinas, SP: D7 Editora
1 - Ciências sociais

ISBN - 978-65-86317-81-7

65-86317 CDD - 300

1º Edição

www.d7livros.com.br
Fone: 3273.1426
R. Thomas Alves Brown, 151 - Vila João Jorge
Campinas - SP - 13041-316
“(...) quando se considera uma religião apenas como uma ‘força política’ entre
outras, sem levar em conta o simbolismo verbal e ritual que encerra, não é
possível compreender o peso e o lugar da religião na política”.

Regina Reyes Novaes.


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO........................................................................... 9
1. Ensino Religioso e Estado laico: a tensão entre o STF e a BNCC
............................................................................................................ 16
Mauro Rocha Baptista

2. A Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras: a


ressignificação de práticas do catolicismo como espaço para
mobilizações sociais.......................................................................... 35
Luiz Ernesto Guimarães; Fábio Antônio da Silva & Alexandre Rodrigues Faria

3. O ativismo político na Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese


de Mariana/MG................................................................................ 52
Edson Lugatti S. Bissiati; Lara B. Leporati & Gustavo Antonio O. dos Santos

4. Transmissão do saber fazer via comunidade e família: o caso do


Mobon na Zona da Mata mineira................................................... 71
Lívia Rabelo

5. Movimento da Boa Nova e a lógica simbólica da comunicação


popular entre missionários sacramentinos e católicos de
comunidades rurais.......................................................................... 90
Ramon da Silva Teixeira

6. Religião e política na Renovação Carismática Católica: análise


de um grupo de oração em ano não eleitoral..................................109
Luiz Ernesto Guimarães; Jamile A. da Costa Moreira & Deomario L. Machado

7. Entre Religião e Política: As especificidades de uma candidatura


evangélica à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.................124
Willelm Martins Andrade Jardim
8. Religião e Política na IURD: Um estudo da Folha Universal no
ano eleitoral de 2018........................................................................140
Caio César Nogueira Martins & Fabrício Roberto Costa Oliveira

9. Memória e religião: Uma análise sobre o papel da religião na


socialização de refugiados venezuelanos........................................161
Caroline Nascimento Lehmann & Juliana da Silva Santos

10. O Espiritismo em Ponte do Cosme: um estudo de caso............188


Vitor Cesar Presoti & Reinaldo Azevedo Schiavo

Autoras e autores.............................................................................207
APRESENTAÇÃO

Fabrício Roberto Costa Oliveira


Ramon da Silva Teixeira
Reinaldo Azevedo Schiavo

Este livro é fruto de esforços coletivos de pesquisadoras e


pesquisadores do Grupo de Estudos da Religião da Universidade
Estadual de Minas Gerais (UEMG) - Unidade Barbacena. Crendo que
é com o intercâmbio de conhecimentos e de perspectivas entre
estudiosas e estudiosos que a pesquisa social avança, é importante
mencionar também que alguns dos capítulos que o leitor terá em mãos
foram escritos por parceiras e parceiros de nosso Grupo de Estudos, que
frequentemente mantém o diálogo conosco e contribuem para nossas
pesquisas.
O Grupo de Estudos foi formado em 2014, por iniciativa do
professor Reinaldo Azevedo Schiavo e estudantes da UEMG. Naquele
contexto, Reinaldo chegava à Universidade como docente e
doutorando. Como pesquisador, está empenhado em investigações
sobre o campo da religião desde a graduação. Deste modo, o intuito de
Reinaldo foi estimular entre seus estudantes a iniciação em pesquisas e
experiências acadêmicas que fossem instigantes e catalisadoras de
novas oportunidades de aprendizado, distintas das experiências de sala
de aula e, ao mesmo tempo, conectadas a elas, potencializando-as.
Além dos estudos no grupo, o professor considerava
fundamental que estudantes da UEMG divulgassem as pesquisas e
possuíssem experiências de intercâmbios acadêmicos. Com tal
propósito, convidou o professor Fabrício Roberto Costa Oliveira, que
participava de um grupo de estudos da religião na Universidade Federal
de Viçosa (UFV), para que propusessem um Grupo de Trabalho (GT)
no âmbito do I Congresso Nacional de Ciências da Religião
(CONACIR), organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência
da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCIR / UFJF),
em 2015, no campus da UFJF.
O GT sob o título “Cristianismo e Espaço Público: aspectos
políticos e sociais” desde então fez parte de todas as edições do evento.
Isto é, como espaço de diálogo e troca de ideias, pontos de vistas,

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reflexões e pesquisas, o GT promoveu intercâmbio entre estudantes
de diversas regiões do país nos anos de 2015, 2016, 2018 e 2019. Em
todas as edições contamos com a participação de estudantes de
graduação, pós-graduação e professores de diversas universidades
brasileiras. Neste período, diversos estudantes que passaram
pelos grupos de pesquisas de ambos os professores e pelo
mencionado GT do CONACIR ingressaram em cursos de pós-
graduação para darem continuidade às suas pesquisas. Nessa
esteira de bons frutos, não poderíamos deixar de mencionar que
o GT rompeu as fronteiras de Minas Gerais e, sob a coordenação de
Lívia Rabelo e Ramon Teixeira, o mesmo foi aprovado e então
realizado durante a XIII Jornada de alunos do Programa de Pós-
graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense
(PPGA/UFF), em 20191.
No segundo semestre de 2017, coincidentemente o ano em que
não houve o CONACIR, foi o período em que a Unidade Barbacena
recebeu um reforço importante em sua frente de ensino e pesquisa das
Ciências Humanas e Sociais. Em outras palavras, o professor Fabrício,
que já estabelecia interlocuções junto à UEMG, tornou-se professor
efetivo da Unidade Barbacena. No mesmo concurso, tivemos a sorte de
ter aprovado o professor Luiz Ernesto Guimarães, que também
desenvolvia pesquisas sobre as relações entre religião e política, além
dos professores Reinaldo e Mauro Rocha Baptista, que já atuavam na
UEMG, também terem se tornado professores efetivos da instituição.
Assim, no início de 2018 nos reunimos junto ao Grupo de
Estudo com o objetivo de estimularmos a produção acadêmica e a
reflexões sobre religião, algo que redundou em diversas iniciações
científicas e trabalhos de conclusão de curso. A qualidade dos trabalhos
e a dedicação do grupo são ratificadas com a publicação deste livro.
Destarte, este livro é a materialização da potencialidade do
grupo em promover reflexões a respeito de problemáticas relacionadas
à religião. O livro possui dez capítulos com temáticas diversificadas –
que, em maior ou menor medida, abordam questões sobre Cristianismo
no plural e suas relações com a sociabilidade e o espaço público. Em

1 Com o tema “Reflexões antropológicas: contribuições e desafios na construção de

saberes”, o evento ocorreu entre os dias 11 a 14 de novembro de 2019, no campus da


UFF, em Niterói.

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suma, todos os textos possuem o propósito comum de apresentar
reflexões densas sobre problemáticas contemporâneas, tendo a religião
como foco analítico. Ressalta-se que todos os trabalhos foram
plenamente apresentados, analisados e discutidos entre os pares, seja no
âmbito do próprio Grupo de Estudo da UEMG, seja no âmbito do
CONACIR 2.
O capítulo 1, intitulado “Ensino Religioso e Estado laico: a
tensão entre o STF e a BNCC” traz uma reflexão pautada na
necessidade de abordarmos a temática da laicidade e suas implicações
para o ensino básico no Brasil contemporâneo. Trata-se de um texto que
revela como o Ensino Religioso (ER) é compreendido por diferentes
segmentos da sociedade brasileira. Por um lado, revela a maneira com
que o judiciário brasileiro aborda tal problemática, por outro, como a
Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tem definido as diretrizes
do ER. Enfim, trata-se de uma importante contribuição para a reflexão
sobre o ensino de religião e suas consequências para a formação do
alunado, e para a sociedade como um todo.
O capítulo 2, “A Romaria dos Trabalhadores e
Trabalhadoras: a ressignificação de práticas do catolicismo como
espaço para mobilizações sociais”, de Luiz Ernesto Guimarães, Fábio
Antônio da Silva e Alexandre Rodrigues Faria, insere-se no campo dos
estudos sobre as relações entre fé e política por meio da observação-
participante da referida romaria, organizada pela Dimensão
Sociopolítica e diversos grupos ligados às Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs) e à Teologia da Libertação da Arquidiocese de
Mariana/MG. No texto, ao refletirem sobre a prática litúrgica – que
mistura “elementos das romarias tradicionais, passeatas de protesto e
novas formas de espiritualidade em torno das comunidades de base
(CEBs), todas marcadas, mais ou menos, pela união de dois pólos: a fé
e a política” (ADAM, 2002, p.53), trata-se de um texto
interessante ao revelar como um evento desta espécie, mais ligado ao
catolicismo popular e “da libertação”, recebe e integra a presença de
agentes católicos “mais conservadores”, ligados a um catolicismo mais

2
Isto é, os trabalhos reunidos neste livro foram submetidos ao escrutínio de diversos
pesquisadoras e pesquisadores, dos mais variados níveis, durante o IV CONACIR,
com o tema “Religião e Democracia: desafios no espaço público”, ocorrido de 8 a 10
de outubro de 2019, em Juiz de Fora. Assim, versões preliminares dos textos foram
publicadas nos anais do evento.

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tradicional. Todo esse movimento de observação e análise dos
pesquisadores nos faz refletir sobre a complexidade que envolve a
prática litúrgica.
Ainda nesse contexto da Arquidiocese de Mariana, o capítulo 3,
“O ativismo político na Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese
de Mariana/MG”, escrito por Edson Lugatti Silva Bissiati, Lara
Bortolusci Leporati e Gustavo Antônio Oliveira dos Santos, aborda a
III Assembleia da Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese em busca
da análise da complexidade das interações entre os diferentes agentes
e grupos católicos envolvidos na realização e na participação no
evento. Especificamente, utilizando a abordagem dramatúrgica
(GOFFMAN, 1985) para enquadrar os “dados”, os pesquisadores
partem da partição observante do referido evento, considerando todos
os seus momentos programados para demonstrar como a atuação
religiosa e política de agentes da Arquidiocese de Mariana estão
imbricadas em processos complexos, que associa fé e realidade
concreta. Enfim, a contextualização do referido evento e a descrição e
análise de suas atividades revelam interessantes associações entre
aspectos materiais e simbólicos, que envolvem expressão da fé e
atuação política de um grupo que possui proximidades com o Partido
dos Trabalhadores (PT).
O capítulo 4, “Transmissão do saber fazer via comunidade e
família: o caso do Mobon na Zona da Mata mineira”, de Lívia
Rabelo traz um estudo minucioso da constituição de agentes sociais
engajados na militância político religiosa do Movimento da Boa Nova
(Mobon). Ancorada em conceitos antropológicos a autora demonstra
como o saber fazer, com o qual as lideranças religiosas e políticas da
Zona da Mata tiveram contato através do Mobon, transmitido de
geração em geração, tanto dentro de casa quanto nas comunidades de
base formadas, revelam-se fundamentais para a construção social destas
pessoas e fundamentais para o desenvolvimento de suas práticas.
Também analisando atividades do Mobon, o capítulo 5,
“Movimento da Boa Nova e a lógica simbólica da comunicação
popular entre missionários sacramentinos e católicos de
comunidades rurais”, de Ramon da Silva Teixeira, é um estudo
detalhado e profícuo de como o Mobon tem, na utilização da linguagem
popular, um de seus principais mecanismos de transmissão de
concepções religiosas aos agentes do meio rural. Trata-se de um texto

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com descrição profunda, recheado de imagens e interessantes reflexões
analíticas.
O capítulo 6, “Religião e política na Renovação Carismática
Católica: análise de um grupo de oração em ano não eleitoral”, de
Luiz Ernesto Guimarães, Jamile Aparecida da Costa Moreira e
Deomario Lauriano Machado, trata-se de uma reflexão sobre um Grupo
de Orações vinculado à Renovação Carismática Católica (RCC), que
procura não revelar suas simpáticas e/ou vínculos políticos partidários.
Embora, as reflexões atentas dos pesquisadores revelaram uma sintonia
entre as concepções religiosas do grupo e pautas mais moralistas e
grupos mais à direita no espectro político brasileiro. O fato da análise
estar focada em um período fora do tempo da política (PALMEIRA;
HEREDIA, 2010), isto é, terem sido realizadas a partir de situações
ocorridas em um ano não eleitoral, torna o texto ainda mais instigante.
O capítulo 7, “Entre Religião e Política: As especificidades de
uma candidatura evangélica à Assembleia Legislativa do Rio de
Janeiro”, de Willelm Martins Andrade Jardim, é fruto de uma reflexão
atenta e fecunda a respeito da candidatura de uma mulher evangélica da
IURD, no Rio de Janeiro. Texto que parte de uma análise complexa do
discurso da candidata, em um contexto eleitoral, torna-se útil como
mais um estudo que revela as tensões existentes entre os campos
político e religioso. Em síntese, como o próprio autor escreve, com a
observação da atuação da candidata durante sua campanha para
deputada estadual “podemos acompanhar como a articulação dos
discursos é elaborada, como [ela] lida com os constrangimentos de
sistemas diferenciados (político e religioso), e com as fronteiras
antagônicas construídas no contato com os demais sujeitos envolvidos
na disputa”.
O capítulo 8, “Religião e Política na IURD: Um estudo da
Folha Universal no ano eleitoral de 2018”, é uma reflexão de Caio
Cesar Nogueira Martins e Fabrício Roberto Costa Oliveira. O texto
fornece ao leitor uma análise de notícias do jornal “Folha Universal”,
um dos veículos de divulgação das concepções religiosas e morais da
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Devido a amplitude do
jornal, os pesquisadores focaram nos Editoriais e nas reportagens
diretamente vinculadas às eleições presidenciais de 2018. Assim,
analisaram ao todo 51 edições do jornal, publicados durante o período
pré-eleitoral, eleitoral (1º e 2º turnos) e pós-eleitoral. Deste modo, o
texto revela como o posicionamento de agentes do jornal frente às

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candidaturas e o conteúdo do jornal vai se transformando ao longo do
período estudado. Os autores são produtivos em demonstrar, a partir de
uma questão preeminente no debate atual – quais fatores explicam a
eleição de Jair Messias Bolsonaro a presidente –, como as matérias do
referido jornal constituem um forte capital político, econômico e
político, que podem ter contribuído com este fato.
O capítulo 9, “Memória e religião: Uma análise sobre o papel
da religião na socialização de refugiados venezuelanos”, de Caroline
Nascimento Lehmann e Juliana da Silva Santos, é muito interessante ao
revelar processos sociais complexos que envolvem religião e
sociabilidade de refugiados venezuelanos que procuram se estabelecer
em solo brasileiro. As narrativas dos atores enriquecem o texto e
mostram importantes dilemas humanitários transnacionais que
implicam em fenômenos locais.
Ao fim, refletindo sobre outra interessante faceta da
religiosidade em Barbacena/MG, Vitor Cesar Presoti e Reinaldo
Azevedo Schiavo apresentam o capítulo 10, “O Espiritismo em Ponte
do Cosme: um estudo de caso”. O texto trata-se de uma reflexão
interessante sobre a presença de um histórico centro espírita em um
pequeno distrito rural do município de Barbacena. Notadamente, os
pesquisadores abordam a formação do centro “Amor a Verdade, que se
confunde com a história da consolidação formal do espiritismo
kardecista no Brasil, e revelam importantes aspectos da trajetória do
grupo do distrito onde está situado o centro em um contexto
majoritariamente católico.
Nossa expectativa, assim, é que esse livro possa contribuir para
os estudos sobre religião e suas mais diversas intersecções, além de
colaborar com reflexões sobre a nossa sociedade. Esperamos também
que tal inciativa seja inspiração para que outros pesquisadores
divulguem seus trabalhos e potencializem o debate e as reflexões sobre
o campo das ciências humanas e sociais, colocando em evidência a
importância das Universidades e do ensino público para o pensamento
reflexivo e crítico.

Boa leitura!

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Referências Bibliográficas

ADAM, Júlio Cézar. Liturgia como prática dos pés: A Romaria da


Terra do Paraná: reapropriação de ritos litúrgicos na busca e libertação
dos espaços de vida. Estudos teológicos, v. 42, n.3, p. 52-69, 2002
GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana.
Petrópolis: Vozes, 1985.
PALMEIRA, Moacir; HEREDIA, Beatriz M. de. Política
ambígua. Rio de Janeiro, Relume-Dumará: NUAP, 2010.

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1
Ensino Religioso e Estado laico: a tensão entre o
STF e a BNCC
Mauro Rocha Baptista

Introdução
A história recente do componente curricular de Ensino
Religioso (ER) tem reproduzido a mesma tensão social que podemos
observar em outros ambientes públicos no que se refere à relação entre
a religiosidade dos indivíduos e a laicidade do Estado. O legislativo, por
exemplo, discute temas conturbados como a legalização do aborto, a
partir de um choque entre os argumentos conservadores da chamada
“bancada da Bíblia” e as propostas laicas do feminismo. O debate não
atende ao princípio laico de afastamento entre os interesses religiosos e
as necessidades estatais, creditando à religião funções superiores às
destinadas, por exemplo, à saúde pública.
Enquanto isso na gestão da cultura se enfrenta com resistência à
possibilidade de uso de recursos públicos para promover shows gospéis,
como os estipulados pela prefeitura do Rio de Janeiro no réveillon. A
virada do ano é assumida como um evento tipicamente pagão, para o
qual não poderiam ser destinados recursos que não para rituais
profanos. Paradoxalmente, a sociedade brasileira ainda recorre aos
conceitos religiosos para formular sua legislação básica, mas, parece se
assustar com a destinação de recursos para entidades religiosas. Como
se ao vetar a legalização do aborto não se estivesse destinando recurso
público para valorização de ideais religiosos. Essa relação demonstra o
quanto nos falta de amadurecimento social para compreender o sentido
de um Estado realmente laico.
O ER tem vasta história na educação brasileira, contudo sua
presença na constituição cidadã de 1988 (BRASIL, 2017a, art. 210) não
foi um ponto pacífico. Neste caso o embate foi vencido pelos mais
tradicionalistas, fiéis à ideia de um ER catequético, que conseguiram
manter a sua obrigatoriedade no ensino público como uma condição
para a plena formação moral dos cidadãos, derrotando os mais

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progressistas que desejavam que a educação pública não tivesse
qualquer vínculo com valores religiosos. Porém, essa vitória foi
condicionada a que a matrícula não fosse compulsória. Facultando a
matrícula o legislador tentava garantir que o Estado laico não estaria
obrigando os discentes a se vincularem a uma formação de cunho
religioso. A realidade educacional, infelizmente, não possibilita que
esta garantia seja assumida em sua plenitude. Em geral, apesar da
facultatividade ser garantida, a ausência de opções para quem escolha
não se matricular no ER acaba desmotivando essa hipótese. Embora não
obrigatório ao aluno, ele é de oferta obrigatória e acaba se tornando a
única opção disponibilizada pela escola.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN,
mais conhecida como, LDB) de 1996, acrescenta um limite ao formato
do ER que é a vedação de quaisquer formas de proselitismo (BRASIL,
2017b, art. 33). O ER, que tradicionalmente estava vinculado ao
catecismo das confissões cristãs, deve deixar de ser confessional. Ao
formular as diretrizes gerais para a educação, a LDB define o
direcionamento que deve ser seguido pelo ER, porém, não indica quais
devem ser os conteúdos abordados. Na prática a LDB qualifica o
método e não o currículo. Negando o proselitismo a LDB nega o
confessionalismo como método de ensino, mas ao mesmo tempo
também indica que a proposta ecumênica, ou inter-religiosa, na qual as
religiões buscam suas interfaces, também mantém uma defesa
proselitista, sobretudo, da cristandade.
O ideal de um Estado laico passa a ser exigido efetivamente no
ER a partir dessa vedação metodológica, uma vez que, ao não poder ser
proselitista, nenhuma temática é negada, o que se nega é o tratamento
dogmático dos temas. Tratar de religião de forma não proselitista
significa tratá-la como tema a partir de um método laico. Neste sentido
cresce a importância da Ciência da Religião enquanto metodologia
própria para esse tratamento laico da religião. Embora a LDB não
apresente essa discussão metodológica, ela pode ser compreendida
como pano de fundo do processo de amadurecimento do papel do ER
em um Estado laico.
Enquanto a área se reconfigurava para assumir um papel mais
afim à laicidade proposta pela constituição cidadã, um acordo entre o
Brasil e a Santa Sé em 2010 reascendeu o debate sobre o
confessionalismo no ER. Conforme esse acordo seria garantido pelo
Brasil o ER católico e de outras confissões religiosas (BRASIL, 2017e,

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art. 11). Contra essa posição o ministério público entrou com uma Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que passou a ser debatida no
Supremo Tribunal Federal (STF). Concomitante a esse debate no STF,
a área avançava em seu ímpeto de formatar um método embasado na
Ciência da Religião, que culminaria na proposta presente na Base
Nacional Comum Curricular (BNCC).
Dito isto, a intenção deste texto é apresentar uma revisão
cronológica das disparidades entre a forma como o STF tratou o tema e
a síntese gerada pela área na BNCC. Com este intuito retomaremos uma
série de artigos publicados a partir de pesquisas feitas no âmbito da
Universidade do Estado de Minas Gerais e colocadas em prática na
Escola Estadual Adelaide Bias Fortes entre 2017 e 2020.
Desta forma, nesse capítulo, primeiramente será apresentado o
contexto do debate estabelecido no STF a partir de 2010, objeto central
do artigo “O Ensino Religioso em questão”, publicado em 2018 3. Em
seguida organizaremos em tabela a perspectiva social desenvolvida em
audiência pública de 2015 sobre o tema, fruto de análise apresentada
em 2019, no Congresso Nacional de Ciência da Religião 4. No terceiro
tópico apresentaremos suscintamente as propostas das duas primeiras
versões da BNCC, de 2015 e 2016, – analisadas nos artigos “O Ensino
Religioso e a nova Base Comum Curricular (BNCC)” 5, a partir de sua
relação com o Currículo Básico Comum de Minas Gerais (CBC); e, no
ainda inédito, “Espaço da religião na educação básica no contexto da
nova BNCC”, escrito em parceria com o professor Fabrício Roberto
Costa Oliveira.
O item seguinte é dedicado ao voto do ministro-relator Luís
Roberto Barroso em 2017, já discutido no artigo da Paralellus
(BAPTISTA, 2018), no qual o relatório é confrontado com o voto
contrário do ministro Ricardo Lewandowski. Na sequência
contrapomos o relatório ao acórdão desenvolvido pelo ministro
Alexandre de Moraes, ainda não analisado em nossas pesquisas. Então
é apresentada a versão final da BNCC homologada em 20 de dezembro
de 2017 e sua discrepância com a decisão do STF findada três meses
antes.

3
Cf. Baptista (2018).
4
Cf. Baptista (2020).
5
Cf. Baptista (2019).

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1. Ensino Religioso no STF
O Supremo Tribunal Federal foi provocado a se manifestar
sobre a forma do ER pela ADI 4.439/DF, impetrada pelo Ministério
Público Federal em 30 de julho de 2010 (BRASIL, 2017f) contra o
artigo 11 do decreto nº 7.107 de 11 de fevereiro de 2010, que firma
acordo entre o Brasil e a Santa Sé. O que é questionado pela ADI é a
posição de que, pelo acordo com a Santa Sé, seria garantido o ER
público como confessional, o que feriria a laicidade do Estado.
Conforme o texto do decreto:
A República Federativa do Brasil, em observância ao
direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da
pluralidade confessional do País, respeita a importância
do ensino religioso em vista da formação integral da
pessoa.

§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões


religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina
dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural
religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição
e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de
discriminação (BRASIL, 2017e) .

Ao apresentar o ER vinculado ao pensamento católico, ou ao


de outras confissões, o acordo indica que o objetivo do ER estaria
vinculado a uma formação dos alunos para um maior desenvolvimento
de sua fé. No contexto do decreto, o ER é pensado exclusivamente
como algo associado às confissões da qual provêm o alunado, devendo
reafirmar estes valores originais. Neste sentido a confessionalidade do
ER estaria distante de tudo o que seria posteriormente proposto pela
nova BNCC (BRASIL, 2018a), a qual prevê um contato mais direto
com a diversidade.
A ADI, historicamente anterior aos debates da BNCC, é
bastante incisiva ao negar a possibilidade de um ER confessional:

A escola pública não é lugar para ensino confessional e


também para interconfessional ou ecumênico, pois este,
ainda que não voltado à promoção de uma confissão
específica, tem por propósito inculcar nos alunos
princípios e valores religiosos partilhados pela maioria,

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 19


com prejuízo das visões ateístas, agnósticas, ou com
religiões com menor poder na esfera sócio-política
(BRASIL, 2017f).

Muito longe de representar uma crítica à existência do ER a


ADI demonstra conhecimento do desenvolvimento desta disciplina e
prescreve que o que não pode ser tolerado são os modelos catequéticos
e ecumênicos do ER, porque estas metodologias não podem evitar o
proselitismo. Uma crítica que vai em direção à posição assumida pela
BNCC ao negar o “viés confessional ou interconfessional” em favor de
um modelo associado aos avanços da Ciência da Religião a partir do
qual se visa atender “a abordagem do conhecimento religioso e o
reconhecimento da diversidade religiosa no âmbito dos currículos
escolares” (BRASIL, 2018, p. 432). À sua forma a ADI conclui que “a
única forma de compatibilizar o caráter laico do Estado brasileiro com
o ER nas escolas públicas é através da adoção do modelo não
confessional” (BRASIL, 2017f). Por isso seria inconstitucional o
decreto que fala em ER católico, uma vez que o ER só poderia se
realizar plenamente sendo não confessional.

2. A Audiência Pública sobre ER


Para emitir seu parecer a respeito da ADI, o ministro Luís
Roberto Barroso convocou em 15 de junho de 2015 uma audiência
pública com a participação de 31 entidades selecionadas entre 227
instituições religiosas, educativas e políticas, que se cadastraram. No
quadro expositivo abaixo procuramos indicar de forma sintética as
entidades envolvidas, seus representantes e sua posição quanto ao ER,
sendo esta última dividida entre (i) “nenhum ER deveria existir no
Estado” – neste caso algumas entidades se manifestaram inicialmente
dessa forma e depois indicaram o que seria a posição mais desejável
entre as outras duas possibilidades, a saber –, o (ii) ER “confessional”
e (iii) “não confessional”.

20 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


QUADRO 1 – POSICIONAMENTO INSTITUCIONAL NA AUDIÊNCIA
PÚBLICA
Entidade/ Representante Posição com relação ao ER
Nenhum Confessional Não
confessional
Confederação Nacional dos A disciplina poderia
Trabalhadores em Educação / Roberto ser absorvida pelas
Franklin de Leão humanidades.
https://www.youtube.com/watch?v=mN Contra o ER em
mrmjzN5-c&t=872s espaço público
Conselho Nacional de Secretários de Com ênfase na
Educação / Eduardo Deschamps formação de
https://www.youtube.com/watch?v=cO7 professores
UqCsV2CI
Confederação Israelita do Brasil / Roseli Sem ônus para o
Fischmann Estado
https://www.youtube.com/watch?v=4s34
N8bT5Yc
Conferência Nacional dos Bispos do Diferença entre o
Brasil / Antônio Carlos Biscaia espaço paroquial e
https://www.youtube.com/watch?v=od- o escolar
dLovtA3A
Convenção Batista Brasileira / O ER é uma
Vanderlei Batista Marins herança do
https://www.youtube.com/watch?v=tC_ colonialismo e
RZT9Hg8I império.
Federação Espírita Brasileira / Alvaro Melhor seria ...De cunho
Chrispino nenhum... moral
https://www.youtube.com/watch?v=lH3B
hQTFHzU
Federação das Associações Com ênfase na
Muçulmanas do Brasil / Ali Hussein El formação dos
Zoghbi professores
https://www.youtube.com/watch?v=Dvp
z8kI9ri8
Federação Nacional do Culto Afro- Com ênfase na
Brasileiro e Federação de Umbanda e formação dos
Candomblé de Brasília e Entorno / professores
Antônio Gomes da Costa Neto
https://www.youtube.com/watch?v=inMi
7bXO2ok&t=21s
Igreja Assembleia de Deus – Frisando a
Ministério de Belém e Convenção necessidade da
Geral da Assembleia de Deus no Brasil matrícula
/ Abiezer Apolinário da Silva facultativa
Douglas Roberto de Almeida Baptista
https://www.youtube.com/watch?v=Dy4
PCkWH14Q
Convenção Nacional das Assembleias O espaço mais
de Deus – Ministério de Madureira / próprio para o ER
Ivan Bomfim da Silva seriam as próprias
https://www.youtube.com/watch?v=kRK igrejas
XD57Vnn0
Liga Humanista Secular do Brasil / Preferencial- ...Na
Thiago Gomes Viana mente... impossibilidade
https://www.youtube.com/watch?v=Jf3q
nKuwXT8
Sociedade Budista Brasileira / João Optou por não se manifestar, mas indicou uma necessária
Paulo Nery Rafael tolerância entre os credos.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 21


https://www.youtube.com/watch?v=mA3
6vaReRLs
Centro de Raja Yoga Brahma Kumaris / Ensino de valores ...Além das
Tereza Cristina Bernardes de Carvalho no lugar do ER... várias religiões,
https://www.youtube.com/watch?v=cyJP também os
yB2cAl4 valores
Igreja Universal do Reino do Deus / Ensino sobre, e
Renato Gugliano Herani não da religião
https://www.youtube.com/watch?v=x6V
zAAtXN9c
ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Com maior
Humanos e Gênero / Débora Diniz regulamenta-
https://www.youtube.com/watch?v=Jba- ção pelo MEC
jz_1dtA
Observatório da Laicidade na Educação Preferencial-mente ...Mas sua
/ Luiz Antônio da Cunha não... existência é um
https://www.youtube.com/watch?v=hLo retrocesso
KUQnyMFc&t=43s
Amicus DH– Grupo de Atividade de Somente para
Cultura e Extensão da Faculdade de crianças acima
Direito da USP / Virgílio Afonso da Silva de 12 anos
https://www.youtube.com/watch?v=GEp
epUJ3RPg
Conectas Direitos Humanos / Oscar Contra um
Vilhena Vieira loteamento que
https://www.youtube.com/watch?v=jnpe poderia
hM5sL_E acontecer com
o conf.
Comissão Permanente de Combate às O confessional
Discriminações e Preconceitos de Cor, seria fonte de
Raça, Etnia, Religiões e Procedência intolerância
Nacional da Assembleia Legislativa do
Estado do Rio de Janeiro / Carlos Minc
https://www.youtube.com/watch?v=1Rj0
7c21Vko
Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Conteúdo poderia ...De toda forma
Informação / Salomão Barros Ximenes ser absorvido por não pode ser
https://www.youtube.com/watch?v=bzfp outras disciplinas... proselitista
K9ZIKsk&t=9s
Fórum Nacional Permanente do Ensino Em prol de uma
Religioso / Leonel Piovezana convivência
https://www.youtube.com/watch?v=RVn pacífica
cSfYEhy8
Associação Inter-Religiosa de Com ênfase na
Educação e Cultura (Assintec) / Elói formação dos
Correa dos Santos professores
https://www.youtube.com/watch?v=aEF
4x4MFZYk
Conselho Nacional de Educação do Parte integrante
Ministério da Educação / Luiz Roberto da formação
Alves básica
https://www.youtube.com/watch?v=weE
XFfWKwHo
Comitê Nacional de Respeito à Parte da
Diversidade Religiosa da Secretaria de formação do
Direitos Humanos da Presidência da cidadão
República / Gilbraz Aragão
https://www.youtube.com/watch?v=Nzt9
8xB9Fv0

22 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Associação Nacional dos Programas de Respeito à
Pós-Graduação e Pesquisa em diversidade
Teologia e Ciências da Religião /
Wilhelm Wachholz
https://www.youtube.com/watch?v=Par4
OMPaNMs
Instituto dos Advogados Brasileiros O Estado não
(IAB) / Gilberto Antonio Viana Garcia pode financiar o
https://www.youtube.com/watch?v=- ensino de
z70ZIeYrBA religiões
específicas
Associação Nacional de Advogados e Não deveria ...Evitar a
Juristas Brasil-Israel (Anajubi) / Carlos existir... intolerância
Roberto Schlesinger
https://www.youtube.com/watch?v=hhyc
l_5doC0
Frente Parlamentar Mista Permanente De forma geral
em Defesa da Família / Pastor Eurico para ensinar o
https://www.youtube.com/watch?v=PUni respeito
clRAfGs
Arquidiocese do Rio de Janeiro / Luiz Autor da proposta
Felipe de Seixas Corrêa que gerou a ADI
https://www.youtube.com/watch?v=3Yq
_VGg9Dvk
Comissão de Direitos Humanos e Como forma de
Minorias da Câmara dos Deputados / manter a paridade
Manoel Morais com as escolas
https://www.youtube.com/watch?v=m1h particulares
JIsATuEM
Clínica de Direitos Fundamentais da Autor da
Faculdade de Direito da UERJ / Daniel representação
Sarmento que gerou a
https://www.youtube.com/watch?v=wqV ADI
YSEtA9Fo

Totais 9 (Sendo 3 sem 5 22 (Sendo 6


1 Abstenção segunda opção) como segunda
opção)

FONTE: O Autor (2020).

Esta consulta pública demonstrou que em sua significativa


maioria, ao optar por uma relação entre ER confessional ou não
confessional, as entidades se manifestam pelo não confessional (22).
Do total daqueles que assumiram a posição majoritária, 6 fizeram essa
opção diante da impossibilidade de uma reforma constitucional que
retirasse o ER de uma obrigatoriedade no Ensino Público. Nestes casos
o ER não confessional se apresenta como um mal menor. É necessário
ressaltar ainda o número considerável de entidades que se manifestaram
pela necessidade de trabalhar a formação dos profissionais que atuariam
nessa forma não confessional do ER.
Como as audiências são anteriores à estruturação da BNCC,
ainda não existia uma implicação direta sobre o conteúdo que estes
profissionais deveriam trabalhar, mas já existia a compreensão de que
essa atuação não deveria repetir o que vinha sendo trabalhado até o
momento. Outro aspecto a ser observado é o do pequeno número de
entidades – apenas 5 – que se apresentaram como favoráveis ao ensino
confessional. Número menor do que as que optaram por nenhum (9).

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 23


Estas entidades que aprovaram a confessionalidade frisaram o aspecto
facultativo da matrícula e a necessidade de ofertar opções conforme a
confessionalidade do aluno, ou outras opções para os que não possuem
confissão própria ou prefiram outras atividades.
Cabe ainda destacar que nesse sentido as instituições de cunho
educacional (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação,
Conselho Nacional de Secretários de Educação e Conselho Nacional de
Educação) são críticas ao que é considerado como uma impossibilidade
do ER se realizar em um contexto plenamente livre das interferências
das instituições religiosas. Sendo assim os argumentos giram em torno
da incapacidade de uma realização plena da disciplina.
Argumento que se levado a cabo deveria contestar todas as
disciplinas, uma vez que todas elas poderiam passar pelos mesmos
questionamentos da impossibilidade da passagem do teórico para o
prático. Uma formação em Língua Portuguesa que ultrapasse a simples
alfabetização e forme de fato para um letramento de mundo é tão
complexa quanto a exigência de formar o cidadão para a tolerância, mas
as instituições não questionarão as disciplinas, pelo contrário indicarão
processos e encaminhamentos para os docentes, assim também se
espera que seja feito com o ER.

3. As duas primeiras versões da BNCC


Concomitante a esta discussão no STF estava sendo discutida a
primeira versão da BNCC, publicada em setembro do mesmo ano. Nela
se fazia constar um primeiro esboço nacional de currículo para a área
de ER, uma das reinvindicações mais reincidente nos discursos das
diversas entidades. Conforme essa primeira proposta da BNCC (2017c)
seriam indicados três eixos fundamentais para a discussão do ER: 1) Ser
humano – Eixo que apresenta uma característica mais filosófica; 2)
Conhecimentos religiosos – No qual a abordagem plural das
religiosidades está destacado; 3) Práticas religiosas e não religiosas -
Eixo que insere a necessidade de se pensar a vida religiosa como dotada
de lugares e práticas específicas, ao mesmo tempo em que exige
também o respeito ao universo não religioso, mas igualmente dotado de
um ethos próprio que também deve ser abordado no ER.
Esta interpretação do ER abre espaço para que ele seja pensado
como uma parte fundamental do desenvolvimento da personalidade
humana, estando assim de acordo com as ponderações assumidas pelas

24 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


diversas entidades que participaram da audiência de junho. Neste
sentido o ER assume, de fato, um papel filosófico de atuar na formação
da identidade dos educandos, não se restringindo a repassar uma série
de valores como a antiga disciplina de Moral e Cívica pretendia. Pensar
sobre o ambiente religioso e arreligioso é fundamental para se formar
uma verdadeira tolerância ao diverso. Obviamente, esta postura está
distante de representar a confessionalidade.
A segunda versão da BNCC (2017d), vem à público em maio de
2016, apresentando uma análise mais detalhada da função do ER e
renomeando os eixos: 1) Identidade e diferenças - formato de título que
demarca mais claramente a fase em que os alunos estão, um período de
descobertas e distanciamentos, mas, sobretudo, um período em que é
necessário trabalhar com o respeito a essa diversidade, para que a
formação da identidade não signifique uma necessidade de violenta
contraposição ao diverso; 2) Conhecimentos dos fenômenos
religiosos/não religiosos –nesta segunda versão a relação entre
elementos religiosos e não religiosos é ainda mais ampliada de forma a
se compreender que as “perspectivas seculares de vida” são modos de
pensar a vida que se associam ao século, mas que não podem ser
pensadas sem se relacionar a um movimento de transformação de
pressupostos, ritos e mitos em estruturas secularizadas; 3) Ideias e
práticas religiosas/não religiosas – neste eixo com a inclusão das ideias
juntamente com as práticas se abre caminho para uma maior discussão
das “instituições religiosas e sua relação com a cultura, política,
economia (...)” (BRASIL, 2017d, p. 173), ou seja, é criado o espaço
para a compreensão que o mundo secular não prescinde da religião,
assim como, a religião não se isola do mundo secular.
O ER não pode se furtar de tratar de religião porque a religião é
um tema inerente à constituição de nosso tempo, ainda que esse tempo
se pretenda secular. E a Educação carece de um ER consciente de sua
função em tratar da religião porque ele é o único espaço em que a
perspectiva secular não irá se sobrepor à religiosa. O espaço próprio
para que as diferenças sejam respeitadas como diferenças, não como
uma relação de saberes hierarquizados. Contudo, essa postura enfática
ao destaque do objeto religioso não se confunde com uma posição
confessional. O que é destacado nas duas primeiras versões da BNCC
é que o ER precisa ser espaço de contato com o diverso. O que demarca
um ambiente conciliador com a postura majoritária da audiência de

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 25


2015. O cenário para o julgamento do STF indicava um caminho claro
pela valorização de um ER não-confessional.

4. Parecer do relator
O voto do ministro-relator Luís Roberto Barroso (BRASIL,
2017g), proferido em 30 de agosto de 2017, coerentemente com as
manifestações da audiência convocada por ele e com as primeiras
versões da BNCC, foi favorável à ADI. Suas considerações se
formulam a partir da noção de que a religião se desenvolveu ao longo
dos anos, perdendo a sua função de centralidade na organização da
realidade, mas sem perder a sua relevância no mundo secular. Ou seja,
embora a religião não assuma mais o papel de guiar o Estado, tampouco
pode ser alijada dele. Concluindo seu argumento inicial o ministro
Barroso afirma que:

Diante desta realidade, o Estado deve desempenhar dois


papeis decisivos na sua relação com a religião. Em
primeiro lugar, cabe-lhe assegurar a liberdade religiosa,
promovendo um ambiente de respeito e segurança para
que as pessoas possam viver suas crenças livres de
constrangimento ou preconceito. Em segundo lugar, é
dever do Estado conservar uma posição de neutralidade
no tocante às diferentes religiões, sem privilegiar ou
desfavorecer qualquer uma delas. É nesse ambiente que
se insere o debate a respeito do ensino religioso nas
escolas públicas. O que está em jogo, na presente ação
direta de inconstitucionalidade, é a definição do papel do
Estado na educação religiosa das crianças e adolescentes
brasileiros. Cumpre, portanto, estabelecer qual a melhor
forma de prepará-los, com valores e informações, para
que possam fazer as suas próprias escolhas na vida
(2017g, p. 10).

Garantir o Estado laico não significaria segregar uma parte da


vida para fora do Estado, mas acolher esta esfera e trabalhá-la da melhor
forma a favorecer a sua verdadeira inclusão. Uma vez que a religião faz
parte da realidade ela deve ser tratada não como um tabu, mas a partir
dos mesmos critérios adotados para as outras partes da realidade, como
a biologia e a física. A maior demonstração de respeito ao tema é não
restringi-lo apenas aos iniciados, ou seja, deve-se trazê-lo para dentro

26 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


do ambiente da formação crítica, a Escola. A questão, então, não é a da
exclusão de uma temática porque ela é propiciadora de conflitos e
divergências, mas o uso destes conflitos e divergências para crescer
humana e filosoficamente.
O voto do ministro deixa claro que o ER deve estar submisso ao
papel do Estado laico de garantir a liberdade religiosa e se manter neutro
diante da variedade.

A conciliação necessária entre laicidade estatal e ensino


religioso afasta a possibilidade de o Estado optar pela
modalidade confessional (de uma religião específica) ou
pela modalidade interconfessional (de algumas religiões,
a partir do seu denominador comum). Note-se que a
simples presença do ensino religioso em escolas públicas
já constitui uma cláusula constitucional de exceção (ou
de limitação) ao princípio da laicidade, pelo fato de
aproximar, em alguma medida, as ordens estatal e
religiosa (BRASIL, 2017g, p. 14).

Uma vez que a presença do ER nas escolas públicas já se


manifesta como uma exceção à regra da laicidade, esta presença deve
ser trabalhada de modo a não comprometer o pressuposto constitucional
de um Estado laico. A conclusão do ministro é de que apenas o método
não confessional, embasado na Ciência da Religião, pode manter essa
laicidade e garantir que a exceção não seja totalmente danosa.
Retomando os resultados da audiência pública, Barroso indica
que:
A grande maioria dos representantes de denominações
religiosas, dos especialistas e das entidades da sociedade
civil participantes defenderam a impossibilidade prática
de conciliar os modelos confessional e interconfessional
de ensino religioso confessional com a laicidade do
Estado. Em síntese, dos 31 participantes da audiência, 23
defenderam a procedência da ação. Ainda, do total de
participantes, 12 eram entidades de caráter religioso
(incluindo posições não religiosas), representativas da
diversidade religiosa do país. Destes, 8 defenderam a
procedência da ação (BRASIL, 2017g, p. 18).

Com o apoio desta maioria o ministro propõe ainda uma


modificação do artigo 33 da LDB, “de modo a estabelecer que o ensino

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 27


religioso em escolas públicas deve ostentar necessariamente natureza
não confessional, com proibição de admissão de professores na
qualidade de representantes de confissões religiosas” (BRASIL, 2017g,
p. 18). Esta exigência faz com que o ministro conclua seu voto
apresentando as dificuldades desta realização e exemplificando com o
caso do estado do Rio de Janeiro que fez concurso público exigindo a
manifestação da confissão religiosa a que o candidato era vinculado.
Sendo que neste caso a vaga do professor estava submissa a sua
entidade religiosa e, mesmo sendo concursado, ele poderia perder sua
vaga caso a entidade compreendesse que ele não estava mais
comprometido com os ideais da instituição. Caso extremo que
manifesta a dificuldade de se implantar um legítimo ER laico.
O ER não confessional garantiria a laicidade do Estado a partir
das suas condições especiais, todas conforme a legislação vigente e os
pronunciamentos das entidades ouvidas na audiência pública. Isto é, 1)
Deve ser mantido seu caráter facultativo, exigência recorrente entre as
entidades consultadas na audiência; 2) Não deve ser permitida a
matrícula automática, ou seja, apesar de ser ofertado obrigatoriamente,
os responsáveis pelos alunos devem ser consultados sobre a matrícula
dos filhos nessa disciplina; 3) Para que essa consulta seja efetivamente
respeitada deve ser garantida a oferta de alternativa igualmente
relevante para a formação cultural dos discentes, caso os responsáveis
prefiram não matricular os filhos no ER; 4) A oferta precisa ser em
disciplina própria não transversal, ou seja, não se pode trabalhar o ER
transversalmente à outras disciplinas para não prejudicar aqueles que
optem por não se matricular, mas também não se pode apenas trabalhar
as temáticas religiosas em outras disciplinas e chamar a isso de ER; 5)
E, por fim, deve ser garantida a possibilidade de o aluno se desvincular
da matéria a qualquer momento do ano letivo (BRASIL, 2017g, p. 24-
25).

5. O acórdão
Encerrado em 27 de setembro de 2017, o julgamento definiu
postura contrária à do relatório do ministro Barroso. Apesar de
amplamente fundamentado e de estar de acordo com o resultado da
audiência pública e da BNCC em desenvolvimento, o argumento do
relator foi voto vencido em resultado apertado de seis a cinco. Com o
voto pelo ensino confessional dos ministros Alexandre de

28 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar
Mendes e Cármen Lúcia, e favorável ao não confessional dos ministros
Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Marco Aurélio e Celso
de Mello. O principal motivo de discordância se encontra na
interpretação do caráter facultativo do ER, o que, para os contrários à
posição da ADI, permitiria manter a confessionalidade sem ferir a
crença dos discentes, uma vez que não seriam obrigados a se matricular
na disciplina.
O acórdão (BRASIL, 2020) explicita sete aspectos. Primeiro,
que a relação histórica entre o Estado e as religiões deve garantir a
liberdade religiosa dos indivíduos e a independência do Estado em
relação aos dogmas e princípios de qualquer crença. Elemento que
retoma o voto vencido do relator de forma a reforçar as garantias
mínimas para a laicidade do Estado. Segundo, a valorização da
facultatividade da matrícula como forma de garantir que o ER se
manifeste como a “própria liberdade de expressão de pensamento sob a
luz da tolerância e diversidade de opiniões” (BRASIL, 2020, p. 3.
Grifos do autor). Ainda em conformidade com o voto do relator, o friso
na tolerância e no contato com o diverso são reafirmados como
elementos garantidos pela facultatividade da matrícula, encaminhando
o curso do acórdão para o aceite da confessionalidade. Em terceiro
lugar, a complementaridade entre a liberdade de expressão e o contato
com o diverso, ainda que este diverso possa “causar transtorno,
resistência, inquietar”, implicam na “tolerância de opiniões e do espírito
aberto ao diálogo” (BRASIL, 2020, p.3). Todos estes elementos
estariam presentes também, e, preferencialmente, em um ER não
confessional. O transtorno do contato com o diverso não parece ser o
foco da confessionalidade, apesar disso estes são os argumentos iniciais
para esta postura metodológica.
A partir do quarto destaque se inicia a defesa propriamente dita
do ER confessional. Isto é, deve ser garantida a igualdade de condições
para o ensino das diversas crenças. Independentemente de qualquer
discussão teórica sobre a impossibilidade dessa garantia, o ensino das
diversas crenças na educação pública não parece uma conclusão
automática dos argumentos anteriores sobre tolerância e diálogo. Ainda
que fosse possível oferecer em igualdade de condições o ensino da
crença confessada pelo aluno, essa oferta parece mais valorizar a
segregação que o debate e o diálogo. Em quinto lugar, é retomado o
caráter facultativo da matrícula para frisar que a sua disponibilidade nos

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 29


horários normais da escola torna a disciplina algo corrente no currículo
do aluno que deve ser baseado “nos dogmas da fé, inconfundível com
outros ramos do conhecimento científico, como a história, filosofia ou
ciência das religiões” (BRASIL, 2020, p. 4). Neste item o aspecto
metodológico do ER confessional é finalmente apresentado. Ele não
deve ser confundido com outras formas de reflexão sobre a realidade
social, inclusive com formas que analisam a própria religião. Segundo
o acórdão o objetivo não é estudar as religiões, mas reforçar os dogmas
de fé do aluno. Logo se amplia a disparidade entre os elementos
destacados nos três primeiros itens e esse reforço da fé em espaço
público. Ao refutar a proximidade entre ER e a ciência das religiões o
ER é novamente tratado em seu caráter catequético, como o era nos
primórdios de sua história.
Encaminhada a divergência clara entre a posição majoritária da
audiência pública, as primeiras versões da BNCC e o voto do relator, o
sexto aspecto escancara o conflito de interpretações. Em outras
palavras, em nome do binômio Laicidade do Estado/Consagração da
Liberdade Religiosa, constantemente retomado pelo redator, são feitas
duas determinações: (i) a garantia de respeito às posições dos alunos
por meio da matrícula voluntária; (ii) o impedimento “que o Poder
Público crie de modo artificial seu próprio ensino religioso, com um
determinado conteúdo estatal para a disciplina” (BRASIL, 2020, p. 4,
grifos do autor). Ou seja, todo o esforço de confecção de um conteúdo
do ER para a BNCC deveria ser relegado ao esquecimento, uma vez
que o Estado não deveria se comprometer com um ER “artificial”. O
redator compreende que “artificial” seria um ER metodologicamente
ordenado com base na ciência da religião, sendo inversamente “natural”
um ER fundamentado nos dogmas da fé. Certamente este é o ponto no
qual a divergência entre a posição do STF e as discussões sociais e
acadêmicas alcança seu ápice. Ainda que em seguida se questione a
hierarquia entre as posições religiosas, o que também seria questionado
por uma postura não confessional, a postura é diametralmente oposta a
uma formação de consciência para o debate com o diverso. Por fim, o
último item apenas reafirma o formato estrutural desse ER, como
confessional, de matrícula facultativa e disposto nos horários normais
para o ensino fundamental.

30 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


6. Versão final da BNCC
Em meio às discussões no STF o ER não apareceu na primeira
publicação da terceira versão da BNCC, parecendo que a área da
educação acataria a decisão de não formular um ER “artificial”.
Contudo, a área de ensino é disposta na versão final do documento
homologado em 20 de dezembro de 2017 (BRASIL, 2018), ampliando
ainda o seu escopo também para os anos iniciais do ensino fundamental.
São apresentados como objetivos gerais da área:

a) Proporcionar a aprendizagem dos conhecimentos


religiosos, culturais e estéticos, a partir das
manifestações religiosas percebidas na realidade dos
educandos;

b) Propiciar conhecimentos sobre o direito à


liberdade de consciência e de crença, no constante
propósito de promoção dos direitos humanos;

c) Desenvolver competências e habilidades que


contribuam para o diálogo entre perspectivas religiosas
e seculares de vida, exercitando o respeito à liberdade de
concepções e o pluralismo de ideias, de acordo com a
Constituição Federal;

d) Contribuir para que os educandos construam seus


sentidos pessoais de vida a partir de valores, princípios
éticos e da cidadania (BRASIL, 2018, p. 434, grifos
nossos).

Frisa-se a necessidade de compreender as manifestações


religiosas que estão no entorno do educando para que a liberdade de
crença não seja falsamente produzida na ignorância da crença do outro.
Ou seja, todos os plurais utilizados para definir as manifestações,
perspectivas e o pluralismo de ideias, reafirmam que a metodologia a
ser utilizada no ER depende da valorização do debate dessa pluralidade.
Logo se reafirma o seu caráter não confessional, ainda que em franca
divergência com o resultado do julgamento concluído três meses antes.
Outro confronto direto com o proposto pelo STF se encontra no
embasamento da disciplina a partir das “Ciências Humanas e Sociais,
notadamente da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões)” (BRASIL, 2018, p.
434). Enquanto o STF pretende distanciar o ER e a ciência da religião,
a BNCC reforça que esta é o método adequado para tratar aquele. Além

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 31


de assumir a artificialidade de criar um currículo próprio para a área, a
BNCC ainda repele a ideia de reafirmar os dogmas de fé de cada
discente e confirma o ER como espaço de debate da diversidade.
A primeira unidade temática desta versão, “Identidades e
Alteridades”, atende especialmente aos três primeiros anos do ensino
fundamental, período não abrangido pelas versões anteriores da BNCC.
Nos primeiros anos de formação educacional dos alunos se enfatiza a
constituição da subjetividade, mas, mesmo neste caso, já está previsto
como objeto de conhecimento também a discussão de conceitos
religiosos como a relação entre “Imanência e Transcendência”
(BRASIL, 2018, p. 440). O cerne do conteúdo curricular se desenvolve
em duas unidades: “Manifestações Religiosas” e “Crenças religiosas e
filosofias de vida”. Ambas demarcam novamente o plural como escopo
prioritário da formação em ER. O estudo das variadas religiões de
forma não confessional pode ser traduzido pelo conteúdo “ideia(s) de
divindade(s)” (Idem, p. 446), no qual devem ser trabalhadas as
habilidades de “Identificar nomes, significados e representações de
divindades nos contextos familiar e comunitário” e “Reconhecer e
respeitar as ideias de divindades de diferentes manifestações e tradições
religiosas” (idem, p. 447). De acordo com a BNCC o respeito da
diferença passa necessariamente pelo conhecimento do diferente.

Considerações finais
A história recente do ER nos coloca diante de um contexto em
que o STF define o ER como confessional e veta a possibilidade de o
Estado definir uma proposta curricular para a disciplina. E no mesmo
ano desta decisão o Estado homologa uma BNCC em que, pela primeira
vez, a disciplina possui um currículo definido. Por um lado, o STF
afirma a necessidade de o ER se embasar nos dogmas de fé em uma
metodologia catequética; por outro, a BNCC define que a ciência da
religião é o método para garantir o debate escolar sobre a diversidade
de crenças.
A decisão do STF foi por maioria simples, 6 votos pelo
confessionalismo contra 5 pelo não confessionalismo. Uma decisão que
reverte a posição das diversas entidades que se manifestaram em
audiência pública majoritariamente pelo não confessional, uma
proporção de 22 para apenas 5 favoráveis ao confessional. Em sua

32 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


decisão o STF a um só tempo divergiu das representações da sociedade
civil convocadas por ele próprio e da formulação estatal na BNCC.
Na prática as instituições de ensino têm seguido a BNCC e
desconsiderado a decisão do STF, inclusive promovendo adaptações
estaduais para este conteúdo em seus currículos de referência. Até
quando a tensão entre estas duas posições permanecerá velada e a área
desacatará impunimente a decisão do STF é um aspecto a ser
observado.

Referências Bibliográficas

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eletrônica em Ciência da Religião, Recife. v.9, n.21, p. 459-478, maio/
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BAPTISTA, M. R. O Ensino Religioso e a nova Base Comum


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BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.


Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf >.
Acesso em: 09 fev. 2018.

BRASIL. Decreto nº 7.107, de 11 de fevereiro de 2010. Promulga o


Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé
relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na
cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2010/decreto/d7
107.htm>. Acesso em: 02 de out. 2017e.

BRASIL. Ministério Público Federal. ADI 4.439/DF. Disponível em:


<http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=635016&ti
po=TP&descricao=ADI%2F4439>. Acesso em: 02 de out. 2017f.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.439/DF – voto do ministro Luís


Roberto Barroso (Relator). Disponível em:
https://d2f17dr7ourrh3.cloudfront.net/wpcontent/uploads/2017/08/VA
LEESTEADI-4439-2-Ensino-religioso-Voto-30-ago2017-VF-22.pdf>.
Acesso em :02 de out. 2017g.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.439/DF – Acórdão:


Redator Alexandre de Moraes. Disponível em:
https://ipfer.com.br/wpcontent/uploads/2018/06/Ac%C3%B3rd%C3%
A3o-4439-Ensino-Religioso-STF.pdf>. Acesso em: 20 de jun. 2020.

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2
A Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras:
a ressignificação de práticas do catolicismo como
espaço para mobilizações sociais.
Luiz Ernesto Guimarães
Fábio Antônio da Silva
Alexandre Rodrigues Faria

Introdução
Este trabalho aborda a 29ª Romaria dos Trabalhadores e
Trabalhadoras ocorrida no dia 1º de maio de 2019, Dia do Trabalhador,
na cidade de Carandaí/MG. A Romaria é um evento organizado pela
Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese de Mariana, sendo Carandaí
parte da Região Pastoral Sul 6. De acordo com o Censo de 2010 (IBGE,
2010), Carandaí possui aproximadamente 23 mil habitantes, destes 84%
são católicos e 12% evangélicos. O município fica às margens da BR-
040, distante 135 quilômetros da capital Belo Horizonte.
A pesquisa foi realizada a partir da observação participante,
além de entrevistas semiestruturadas e conversa informal. Dois
pesquisadores, estudantes da Universidade do Estado de Minas Gerais
(Campus Barbacena), participaram ativamente das reuniões
preparatórias para a realização do evento juntamente com a comissão
organizadora. Eles viajaram para Carandaí na segunda-feira, dia 29 de
abril, ou seja, dois dias antes do evento, o que possibilitou a participação
nas atividades que aconteceram na cidade nesses dias que antecederam
a Romaria. Importante salientar que um destes pesquisadores já
conhecia os organizadores, em razão de ter participando de cursos de
formação e encontros realizados por essas lideranças e por já ter
participado da organização de um evento junto à Dimensão

6 A Arquidiocese de Mariana se divide em cinco regiões pastorais: Região


Pastoral Norte, postas pelos municípios de Barão de Cocais, Catas Altas, Itabirito,
Mariana, Ouro Preto e Santa Bárbara; Região Pastoral Sul, composta por 19
municípios, entre eles Carandaí, Alto Rio Doce e Barbacena; Região Pastoral
Leste, formada por 33 município, entre eles Raul Soares, Ponte Nova e Viçosa;
Região Pastoral Oeste, composta por 12 municípios, entre eles Congonhas,
Entre Rios de Minas e Conselheiro Lafaiete e Região Pastoral Centro, formada
por 9 pequenos municípios, sendo uma área predominantemente rural.

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Sociopolítica da Arquidiocese de Mariana, que é a responsável pela
promoção da Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras. Este
pesquisador participa, desde a adolescência, da Pastoral da Juventude
(PJ), ligada também à citada Dimensão. Já o terceiro pesquisador,
professor da mesma instituição, partiu de Barbacena em uma van com
outros romeiros de algumas paróquias da mesma cidade.

1. A Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras


Em resposta à Campanha da Fraternidade organizada pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1991,
lideranças da Igreja católica, em especial membros da Pastoral Operária
da Arquidiocese de Mariana/MG, organizaram a 1ª Romaria dos
Trabalhadores e Trabalhadoras na cidade de Urucânia/MG, situada na
Região Mariana Leste. Sentindo a necessidade de se posicionar diante
das injustiças cometidas contra os trabalhadores e trabalhadoras das
usinas de açúcar daquela região, escolheram o 1º de maio pela
importância histórica desta data para os trabalhadores e como um
contraponto às grandes festas que os empresários ofereciam aos seus
empregados e empregadas neste dia, mascarando os problemas com
comida, bebida, presentes e shows. A partir de então, a cada ano um
tema é escolhido para pautar os trabalhos e debates, sempre alinhados
com o cotidiano dos trabalhadores e das trabalhadoras e ao tema da
Campanha da Fraternidade organizada pela (CNBB).
De 2005 para 2006, contando com a presença de movimentos
populares, pastorais sociais, romeiros e romeiras das demais regiões da
Arquidiocese de Mariana, decidiu-se torná-la itinerante com objetivo
de espalhar a iniciativa e viabilizar a reflexão das demandas particulares
de cada região pastoral. No ano de 2006, iniciando a descentralização,
a Romaria foi realizada na cidade de Viçosa/MG, no ano seguinte foi a
vez de Piranga/MG, na Região Mariana Centro, dando sequência ao
rodízio de cidades e regiões a receber o evento.
Este processo de descentralização da Romaria visava atingir
uma Arquidiocese que compreende 79 municípios mineiros e 135
paróquias. A primeira Diocese criada em Minas Gerais (1745), precisou
se organizar para atender toda esta população de fiéis espalhada numa
área de 22 mil Km². Este processo teve início com a chegada de D.
Luciano Pedro Mendes de Almeida, Bispo responsável também pelo
grande aumento de pastorais sociais nesta igreja particular, em 1988.

36 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


No processo de organização pastoral se decidiu pela criação das cinco
regiões pastorais, a partir das quais iniciativas como a da Romaria dos
Trabalhadores e Trabalhadoras são realizadas.
Como forma de atender a cada região, a Romaria vai
incorporando novas características, se moldando e tornando-se próxima
à realidade local, visto que as demandas pautadas para a reflexão são
trabalhadas previamente nas bases, tanto da paróquia que sedia o evento
quanto das demais que são convidadas a participar. No decorrer da
história da Romaria ela percorreu diversas localidades da arquidiocese.
Isto é, após 15 anos sendo realizada em Urucânia, as cidades de Viçosa,
Granada (Abre Campo), Piranga, São Braz do Suaçuí, Mariana,
Conselheiro Lafaiete, Barbacena já receberam a romaria. Importante
salientar que num período de 3 anos ela aconteceu paralelamente em
duas regiões, em Urucânia, Região Mariana Leste, congregando as
regiões Leste, Centro e Norte e em Barbacena, região Mariana Sul,
reunindo as Regiões Sul e Oeste. Isto para atender aos fiéis que
participam do Jubileu de São José Operário, que acontece na mesma
data, na cidade de Barbacena.
Em 2014, a Romaria retorna à Urucânia para celebrar os 24 anos
e preparar a celebração dos 25 anos de sua realização, em 2015,
permanecendo no município também nos anos de 2016 e 2017. Em
2018, após negociação entre os movimentos sociais e lideranças da
cidade de Urucânia e da Região Mariana Leste e membros da Dimensão
Sociopolítica da Arquidiocese, a Romaria volta a ser itinerante. As
romarias debatem algo recorrente em quase todas as edições, ou seja, a
questão das mineradoras e suas barragens. Mais do que o ocorrido em
Bento Rodrigues em 2015, o debate acontecido na realização da 28ª
Romaria em Congonhas/MG Região Mariana Oeste, vinha de encontro
a um problema que os moradores daquela cidade sentem na pele: a
iminência do rompimento de uma barragem que devastará, se acontecer,
boa parte da cidade e região.
Neste contexto, acontece a 29ª Romaria dos Trabalhadores e
Trabalhadoras na cidade de Carandaí, região Mariana Sul. Herdando
toda uma bagagem histórica, a romaria transcende o aspecto puramente
religioso inspirado na Bíblia sagrada, em especial no Livro do Êxodo,
quando o Povo de Deus, cansado da exploração e domínio dos Faraós
do Egito, sai em caminhada em busca da Terra Prometida, agregando
também, trabalhadores e trabalhadoras de outras confissões religiosas,
setores diversos da sociedade civil, povos tradicionais, movimentos

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populares, pastorais sociais, se propondo a dialogar, trocar
experiências, refletir e buscar alternativas frente aos problemas
enfrentados.

2. As romarias e seus sentidos: a 29ª Romaria dos Trabalhadores


e Trabalhadoras
A cidade de Carandaí respirou a Romaria desde quando foi
anunciado que a 29ª edição seria realizada na paróquia da cidade.
Diversas equipes foram montadas a fim de dar apoio à organização
arquidiocesana. Nestas equipes participaram pessoas de várias cidades
da arquidiocese, todas distantes umas das outras. Após várias reuniões
preparatórias, para escolha do tema a ser abordado e divisão das tarefas,
ficou definido que haveria atividades na cidade nos dias que
antecederiam a Romaria. Estas atividades tinham objetivo de preparar
a população para receber a Romaria e refletir melhor sobre o tema
proposto. Desta forma, missas, participação de membros da comissão
organizadora em programas de rádio da cidade, realização de rodas de
conversa e visita às escolas foram iniciativas que a organização local
realizou nestes dias.
Durante estas atividades preparatórias já era perceptível que esta
Romaria trazia elementos diferentes do que vimos em romarias
tradicionais. A roda de conversa, por exemplo, contou com a
participação de membros de conselhos de direitos da cidade,
movimentos sociais e religiosos, pastorais, estudantes, trabalhadores
rurais, trabalhadores autônomos, aposentados e desempregados e
pautou o trabalho como algo necessário à vida, que dignifica o homem.
A conversa discutiu o trabalho como um problema social, pautou a
questão do aumento do desemprego, que de acordo com IBGE já atingia
quase 14 milhões de brasileiros; as reformas trabalhistas e da
previdência, e; sobre o êxodo rural.
Esta mesma discussão foi levada para as entrevistas nas rádios,
num tom mais descontraído e com intuito de mobilizar e convidar a
população de Carandaí para participar da Romaria. Nas escolas, uma
liderança da PJ conversou com os alunos sobre as condições do trabalho
e emprego levantando questões referentes ao salário e segurança dos
trabalhadores a partir de uma chave de interpretação pautada pelo
materialismo histórico, que foi colocado como base para que os alunos
pensassem o tema.

38 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Muito alunos relataram as experiências passadas por seus pais
em seus respectivos locais de trabalho. A questão do salário dividiu a
opinião deles. Por exemplo, alguns acreditavam que o salário era justo
e outros não. A discussão sobre a expectativa de ingresso no mercado
de trabalho foi de longe o momento em que as desilusões encontraram
uma uniformidade de opiniões, isto porque todos que se propuseram a
falar foram céticos. Todavia, ao responderem "quem aqui vai procurar
um emprego depois de se formar?” houve uma expectativa positiva por
parte de alguns pela busca de uma formação superior, principalmente
no ingresso em alguma universidade pública.
No dia 1º de maio, dia escolhido para a romaria, a recepção foi
feita por fiéis de Carandaí. Havia alguns galpões onde eram servidos
café, suco e bolachas. Como havia caravanas de várias cidades da
Arquidiocese de Mariana, o objetivo era receber esses romeiros com
mesa farta e com produção da própria região. Várias pessoas ligadas às
pastorais da paróquia passaram dias preparando os alimentos, que
chegaram também de municípios vizinhos.
Antônio Braga (2014), a partir da dinâmica da dádiva de Marcel
Mauss, estudou os fluxos migratórios de moradores do Piauí à procura
de trabalho em São Paulo. Após certo período na capital paulista, o
regresso ao nordeste é marcado por uma refeição especial, na presença
de familiares, marcada pela noção de “fartura”. Fartura, afirma o
antropólogo, não é sinônimo de excesso. “Entre aqueles que estão ali
presentes, o que está em questão não é aquilo que excede, mas aquilo
que se celebra e aquilo que não falta” (BRAGA, 2014, p. 321).
Essa refeição da qual Braga aborda não diz respeito apenas à
união familiar, celebrando o regresso de um parente que estava distante.
A fartura também está associada aos valores compartilhados pelo
grupo, sempre havendo espaço para mais um (BRAGA, 2014). O
momento de partilha, portanto, contribuiu para envolver os romeiros
presentes nos objetivos propostos pelos organizadores do evento.
Aos poucos foram chegando fieis, cujas camisetas, bandeiras,
bonés, faixas etc., demonstravam o pertencimento a diversos
organismos da Igreja Católica. Foi possível constatar a presença de fieis
ligados à Pastoral Carcerária, Pastoral Familiar, Encontro de
Adolescentes com Cristo, Encontro da Juventude com Cristo, grupos da
Renovação Carismática Católica da região, Pastoral da Criança,
Vicentinos, Pastoral da Sobriedade, Movimento de Fé e Política, Escola

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 39


de Fé e Política Dom Luciano e Pastoral Afro Brasileira. Havia
também diversos segmentos da sociedade civil organizada:
Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Federação
dos Trabalhadores Rurais da Agricultura Familiar de Minas
Gerais (FETAEMG), Movimento Negro, Federação dos
Trabalhadores e Trabalhadoras rurais de Minas Gerais,
Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-
ZM), Associação Mineira das Escolas Famílias Agrícolas
(AMEFA). Entre os participantes, havia também uma mulher com
camiseta da CUT e com a imagem do ex-presidente Lula.
No início da manhã o tempo estava um pouco frio, cerca de 16
graus, além do céu nublado. Aos poucos o sol começou a surgir e, no
final da romaria, por volta das 13 horas, já estava bem quente. O espaço
de recepção também contava com um caminhão de som, com algumas
pessoas cantando músicas populares, sem cunho religioso. Algumas
pessoas se aproximavam do caminhão para acompanhar de perto as
músicas. No entanto, a maioria ficava um pouco mais afastada,
conversando em grupos. Muitas aproveitavam para rever pessoas
conhecidas que moravam em cidades diferentes. De acordo com
Wagner Diniz Chaves, a música ou o canto “pode ser concebido como
um modo raro e incomum de discurso, distinto das falas ordinárias”
(CHAVES, 2014, p. 254). Embora o autor se refira especificamente às
folias de reis, no contexto desta pesquisa os cantos possuem a facilidade
de memorização e, assim, compreensão do que se pretende transmitir.
Complementam-se, dessa forma, aos demais discursos, tornando, de
certa forma, um próprio tipo de discurso.
Entre uma música e outra que eram cantadas no carro de som,
eram feitas falas sobre temas sociais da atualidade. A pessoa que
conduzia as músicas, cantando e tocando violão, demonstrava
conhecimento desses assuntos, mesmo porque, havia concorrido a uma
vaga na eleição de 2018 como deputado estadual, sem obter sucesso.
Filiado ao PT, possui uma atuação significativa na Arquidiocese de
Mariana, sobretudo a partir de temas como o da habitação e da
agricultura familiar. Dessa maneira, a animação inicial não se pautava
apenas na música como forma de criar um ambiente mais convidativo,
mas já havia a abordagem de temas sociopolíticos sob o viés popular.
A reforma da previdência foi o tema que mais foi pautado, buscando
demonstrar os prejuízos que provocará junto aos trabalhadores, caso

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seja aprovada no Congresso Nacional. Em alguns momentos foi
pronunciado: “Reforma da previdência, aqui não!”. Havia também uma
faixa carregada por um romeiro com a seguinte frase: “Somos contra a
reforma da previdência”.
Entre uma música e outra, entre um assunto e outro abordado,
eram pronunciadas frases, como: “Marielle, vive!” e “Dom Luciano,
vive!”. Assim, o principal bispo da Arquidiocese de Mariana era
colocado ao lado da vereadora do PSOL assassinada na cidade do Rio
de Janeiro em 2018, juntamente com seu motorista, até o momento sem
desfecho para as investigações. A cantora Beth Carvalho, também
defensora de causas populares, falecida no dia anterior à romaria,
também foi lembrada: “Beth Carvalho, vive!”. Um pouco depois, já
durante a caminhada, foi cantada uma música da cantora.
O nome do evento, “Romaria dos Trabalhadores e
Trabalhadoras”, confere um sentido de valorização da mulher, em uma
sociedade com profundas marcas deixadas pelo patriarcado, presentes
ainda hoje. O uso do substantivo feminino é uma tentativa de efetuar tal
proposta, tendo em vista que a imersão da mulher no mercado de
trabalho é significativa, ocupando cargos que no passado era
exclusivamente reservado aos homens. Além de lembrar nomes como
o da vereadora Marielle e da cantora Beth Carvalho, em alguns
momentos era dito no caminhão de som: “água, mulher e energia não
são mercadoria”.
As músicas cantadas no caminhão de som foram selecionadas a
partir da proposta da romaria, que era, principalmente, abordar o tema
do trabalho. Uma das músicas cantadas foi “Pai nosso dos mártires” 7.
É uma paráfrase feita a partir do conhecido texto bíblico do Pai nosso.
Relaciona o Deus cristão com os pobres marginalizados, mártires e
torturados. É também descrito como revolucionário, parceiro dos
pobres e oprimidos. Dessa forma enfatiza diversos problemas sociais
presentes no mundo do trabalho e que pouco são refletidos no cotidiano,
muitas vezes marcado pela presença de injustiças na relação
trabalhador/empregador.
Outra música cantada foi “Negro nagô” 8, que trata sobre a luta
do negro por reconhecimento social, contra as mazelas de três séculos

7 A música “Pai nosso dos mártires” tem como autoria Zé Vicente. Há outras

composições que também desenvolvem uma dimensão social na fé cristã.


8
Pastoral da Juventude.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 41


de escravidão, que persistem ainda hoje. A questão racial está
diretamente relacionada ao mundo do trabalho, de acordo com a
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD
Contínua) feita pelo IBGE no 4º trimestre de 2018 o número de
desempregados no Brasil totalizava 12,2 milhões de pessoas das quais
51,7% eram de autodeclarados pardos e 12,9% de autodeclarados
pretos. O número de negros na universidade é menor que o número de
brancos, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), que no Educacenso, realizado em
2016, aponta que no curso superior somente cerca de 28% dos
estudantes são autodeclarados negros e pardos. O que,
consequentemente, impacta na renda, de forma que uma pessoa negra
ganhe em média 1,2 mil a menos que uma pessoa branca, isto no 4º
trimestre de 2017, segundo pesquisa do IBGE.
Após o período de recepção e concentração dos romeiros, deu-
se início à caminhada. O caminhão de som ia à frente, seguido pelos
fiéis. O mesmo líder popular que cantou várias músicas durante o
momento de chegada, foi o principal responsável pela condução do
trajeto, com o uso do microfone. As músicas e frases de ordem
continuaram, parando vez ou outra para abordar o tema principal da
romaria. Durante o trajeto houve quatro paradas onde lideranças ligadas
a movimentos, sindicatos e pastorais se revezavam ao microfone a fim
de chamar atenção – tanto dos romeiros e romeiras quanto dos
moradores da cidade que acompanhavam durante o percurso, seja das
janelas de casa seja das calçadas – para problemas pontuais, ligando o
local escolhido para a parada ao tema refletido, utilizando-se de falas,
muita simbologia e palavras de ordem.
A primeira destas paradas foi bem no início da caminhada,
próximo ao Rio que dá nome à cidade e chamou atenção para o
compromisso com o Meio Ambiente, foi refletido sobre a construção
das barragens que traz destruição e morte para os atingidos,
relembrando os rompimentos de barragens, recentes e mais antigos.
Num gesto simbólico jovens com jarros de água “devolveram água
limpa ao rio”, na fala de um dos organizadores.
A segunda parada fez alusão à situação dos trabalhadores e
trabalhadoras. Cruzes lembravam inúmeros acidentes de trabalho. Esta
reflexão foi próxima à linha do trem que corta a cidade ao meio. Foi
neste momento que cartões vermelhos foram distribuídos aos romeiros,

42 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


que deram “cartão vermelho” para as reformas trabalhistas e da
previdência. Neste momento também pôde-se perceber que dentre os
presentes havia um grupo que não apoiava totalmente os temas
propostos e refletidos, alguns, por exemplo, recusaram receber e
levantar o cartão porque apoiavam a reforma da previdência.
A terceira parada foi na praça próximo à prefeitura, ao fórum e
a primeira matriz da cidade, onde os romeiros refletiram sobre os
escândalos de corrupção, sobre a necessidade de justiça social, bem
como o tema das reformas foi novamente retomado. Próximo a esta
parada havia um santuário de Nossa Senhora de Lourdes. Alguns fieis
aproveitaram o momento para tirar fotografias e rezar junto ao local.
Alguns deixaram de lado os atos relacionados ao tema ligado do
trabalho, objetivo principal da romaria, para visitar o santuário. A fé
católica, especificamente a devoção a Nossa Senhora, dessa forma, se
sobressaiu, independente de “destoar” do tema da romaria. Ou seja,
qualquer possibilidade de experimentar a devoção religiosa torna-se
proveitoso.
A quarta e última parada foi realizada em frente à Igreja matriz,
onde seria celebrada a missa, com capacidade para quase mil pessoas.
Este ato contou com sacerdotes lideranças da arquidiocese e trouxe
temas ligados diretamente ao catolicismo brasileiro, em especial à
Campanha da Fraternidade de 2019, que debatia sobre Políticas
Públicas, e sobre as diretrizes da Arquidiocese de Mariana, que em 2019
trabalhava temas relacionados à pobreza e à juventude. Desta forma,
estes temas foram relacionados com a situação do trabalho e emprego
em geral. Nesta parada também foi feito o plantio de uma muda de ipê,
para marcar a passagem da romaria pela cidade. Em seguida todos se
dirigiram à Igreja para a celebração da Missa. O responsável por
conduzir a romaria em cima do caminhão, entre músicas e falas, ficou
num dos últimos bancos da matriz, junto com os demais fiéis. Agora, o
clero assumia a direção. As músicas populares, palavras de ordem, uso
de símbolos e cederam espaço ao rigor e a ordem da instituição. Embora
o tema do trabalho continuasse a ser abordado, o tema era agora
abordado sob os termos da liturgia 9, que ganhou espaço. Ao fim, foi
servido almoço aos fiéis, ao som de música popular, retornando, de

9
Reunião de fundamentos e práticas religiosas, isto é, são ritos e cerimonias de cultos
presentes em igrejas ou seitas religiosas.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 43


certa maneira, à maneira mais popular de conduzir o evento – com todos
seus elementos característicos – presente em toda a romaria.
Constatou-se que durante o evento não havia uma
homogeneidade entre os romeiros presentes. Observando, por exemplo,
as camisetas usadas pelos romeiros e as bandeiras por eles conduzidas
era possível perceber as diferentes pertenças ao catolicismo. Alguns
mais ligados ao viés da Teologia da Libertação, outros à Renovação
Carismática Católica, alguns vinculados à Pastoral da Juventude. Viu-
se também romeiros usando camisetas com o nome de Dom Luciano
estampado. Já outros, com camisetas da Renovação Carismática,
Encontro de Adolescentes com Cristo (EAC) / Encontro de Jovens com
Cristo (EJC), etc.
Outra evidência da heterogeneidade entre os presentes pôde ser
constatada pelas diferentes opiniões sobre o evento. Por exemplo, em
conversa informal com um jovem, integrante de um grupo de oração da
Renovação Carismática Católica (RCC) da cidade anfitriã, este
demonstrou-se descontente. Segundo ele, no evento não se via a
pluralidade de ideias. Como se expressou o jovem, “o viés político no
movimento prejudica a democracia”. Ao mesmo tempo, afirmou serem
importantes o debate sobre os temas abordados na romaria. Em sua
visão, a questão do trabalho deveria ser refletida, mas sem o aspecto
político. Confirma, assim, o que Reginaldo Prandi (1998) observa sobre
a RCC, em que as transformações partem do indivíduo, para depois
alcançar a sociedade. Assim, a transformação se dá no âmbito
religioso/espiritual, de forma alguma no campo político.
Isso não significa que a RCC não ocupe o espaço da política. Ao
contrário, hoje há vários políticos carismáticos eleitos em todo o país.
No entanto, formulam pautas mais no sentido de conservação de
questões morais, como aborto, legalização das drogas e casamento
homoafetivo. A política, dessa forma, se torna uma instância a mais no
sentido de assegurar que os valores morais tradicionais conservadores,
já presentes no país, sejam mantidos e aprofundados.
Ainda foi possível observar pessoas pertencentes a diversos
organismos (pastorais, movimentos e grupos), da Igreja Católica, com
vieses ideológicos distintos, em certa harmonia. Era comum ver grupos
de cinco a dez pessoas, em sua maioria jovens e adolescentes, ligados à
PJ, à RCC, ao EAC, ao EJC, se cumprimentando e, pelo modo como
conversavam e sobre os assuntos que conversavam, demonstravam se

44 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


conhecer. Durante a primeira parada, um grupo estava conversando, um
pouco distante dos demais romeiros. Embora haja movimentos de
cunhos ideológicos distintos em Carandaí, o fato de a cidade ser
pequena, contribui para aproximar essas pessoas reforçando laços de
amizade, que superam outras questões, sejam ideológicas ou políticas.

3. A Teologia da Libertação e a ressignificação das romarias


As romarias são práticas religiosas antigas presentes na história
do cristianismo (SANCHIS, 2006). Nas palavras de Carlos Steil (1996),
os estudos das romarias são importantes para

(...) a compreensão das transformações que vêm


ocorrendo no contexto social e religioso, na medida em
que oferecem um amplo repertório linguístico de signos,
símbolos e ritos que os romeiros manipulam para lidar
com as situações novas colocadas pela modernização
(STEIL, 1996, p. 59).

A Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras promovida pela


Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese de Mariana apresenta uma
série de aspectos que nos possibilitam refletir sobre esta prática e sobre
o uso dela na tentativa de pautar temas relevantes, com o objetivo de
atingir diretamente a população, buscando pautar o debate público.
Percebe-se que, a Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras
se diferencia das romarias tradicionais pelo fato de não haver um Santo
de Devoção ou um local fixo. Ao contrário das práticas devocionais
tradicionais do catolicismo, a marca principal desta romaria é
proporcionar a reflexão sobre temas sociais; existe também o
reconhecimento de lideranças populares, religiosas ou não; e a presença
de romeiros de outras denominações religiosas e de movimentos e
organizações populares. Estes elementos que a Teologia da Libertação
traz para a Romaria dá um novo significado para as práticas da
religiosidade popular, adequando-as àquilo que os adeptos desta
corrente do catolicismo acreditam. Ou seja, à noção de que o
conhecimento e a reflexão sobre o que afeta suas vidas no momento
histórico em que estão vivendo, em busca da transformação e justiça
social é o que importa, pois, “o conhecimento auxilia a teologia pastoral
no trabalho de ‘desnaturalização’ de realidades que oprimem a maioria
dos homens” (PEREIRA, 2018, p. 40).

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 45


Para os que seguem a Teologia da Libertação há uma crença de
que quanto mais se conhece a realidade social e política em que se vive,
mais os fiéis terão consciência de que a organização social em busca da
superação dos problemas sejam é o que conduz a uma vida digna, em
uma sociedade ideal, próxima ao que acreditam ser a sociedade
desejada por Deus. Danillo Rangell Pinheiro Pereira (2018) destaca
que:

Na obra A força Histórica dos Pobres, Gutierrez discutiu


este aspecto da Igreja engajada em favor dos menos
favorecidos especificamente e encontrou nessa categoria
social o potencial libertador para a extinção da
exploração do homem pelo homem. Tal crença do
teólogo peruano em parte, foi semelhante às esperanças
depositadas por Karl Marx no proletariado (p. 41).

A Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras, portanto,


pretende ser este instrumento que transmite conhecimento e possibilita
a reflexão ao povo para que busquem se organizar na tentativa de
transformar o sistema e construir uma sociedade mais justa para se
viver. Neste sentido, entende-se as palavras de um dos organizadores
que afirmou que “a romaria é um processo, que não acaba no dia do
evento”. Sua fala demonstra, mais uma vez, o aspecto diferencial entre
essa maneira de ser católico e a maneira tradicional da conhecida
manifestação religiosa (a romaria), caracterizada, geralmente, pela ida
a um local sagrado para rezar, pagar e fazer promessa a um santo em
que se deposita alguma devoção e, em seguida, voltar para casa com o
“sentimento de deveres espirituais cumpridos”. Na Romaria dos
Trabalhadores e Trabalhadoras, todavia, o voltar para a casa ganha um
outro significado, pois esse retorno é parte de um processo maior, que
na perspectiva da libertação, implica a organização, o engajamento e a
luta por uma vida melhor para todos e todas.

Considerações finais
O presente trabalho buscou analisar, a partir da observação
participante da 29º Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras, em
Carandaí/MG, como os fiéis presentes vivenciam e interpretam um
evento ligado à religiosidade popular. Assim, percebeu-se que o evento

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está mais alinhado ao catolicismo ligado à Teologia da Libertação no
espectro do catolicismo. O evento recebeu romeiros de diversas cidades
da Arquidiocese de Mariana. E entre os presentes, observou-se a
participação de uma ampla gama de romeiros, ligados aos mais variados
setores do catolicismo, incluindo aí católicos mais vinculados a
espectros mais conservadores, como a Renovação Carismática
Católica.
Em um contexto de aparente queda na adesão dos fiéis à corrente
da Teologia da Libertação, em especial quando se observam as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que alcançaram seu ápice nas
décadas de 1980 e 1990, mas que, atualmente, vem encontrando
bastante dificuldade de organização. Em outros termos, no âmbito da
religiosidade popular, esse segmento progressista católico tem se
sustentado, porém, de forma mais espaçada, ao contrário do que ocorria
com as CEBs principalmente na organização de eventos com potencial
de reunir adeptos desta forma de viver a fé.
A Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras, realizada em
2019 em Carandaí, segue algumas diretrizes da Romaria da Terra
(GUIMARÃES, 2017), um dos eventos mais conhecidos, organizado
pela Comissão Pastoral da Terra – CPT – também alinhada à Teologia
da Libertação. De outro modo, o evento não se estabelece em um local
fixo, nem se trata de um evento permanente, disponível ao fiel durante
o ano inteiro. Acontece em uma data específica do ano e seu local varia
ano a ano. Não há um santo específico de devoção, como ocorre em
muitas romarias. Houve o reconhecimento de pessoas importantes
relacionadas ao evento, como Dom Luciano. Mas, fora da esfera
religiosa, houve também pessoas que receberam a mesma importância,
como Marielle Franco. A escolha desses personagens não passava pelo
crivo dos sacerdotes da Igreja Católica, mas eram as próprias lideranças
leigas do evento quem as escolhiam para serem lembradas.
Outra característica herdada das romarias da terra observada foi
a estrutura litúrgica da Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras.
Isto é, como se observou a liturgia foi dividida em três partes, quais
sejam: (i) a concentração com o momento da abertura; (II) a caminhada,
e; (III) a festa de encerramento.
Júlio Cézar Adam (2002) afirma que:

A Romaria da Terra ritualiza e simboliza, por assim dizer,


em um dia o que seus participantes vivenciam durante um

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 47


ano inteiro. Cotidiano e festa estabelecem uma
empolgante troca. A “procura de espaço” no cotidiano
torna-se na romaria uma “procura de espaço” através da
festa litúrgica. Esta troca pode ser sistematizada em cinco
elementos, intimamente relacionados: a descoberta de
um lugar; a reconstrução da memória; o movimento e o
caminhar; a festa subversiva; e a forma de participação.
(ADAM, 2002, p. 62)

Dito isso, como se demonstrou o alongo do capítulo, Podemos


também encontrar, em diferente medidas, estes cinco elementos na
Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras, principalmente, se a
considerarmos como um processo, Assim temos a descoberta de um
lugar com o movimento de escolha das possíveis paróquias que podem
sediar o evento e posterior escolha de uma cidade que acolherá a
Romaria, o que propicia aos romeiros e as romeiras conhecer outras
cidades, outros grupos, outras pessoas, outras realidades. Como já
mencionado, a Arquidiocese de Mariana abrange um espaço geográfico
muito amplo com a presença de uma diversidade de culturas, mesmo
dentro da tradição católica.
Vemos a reconstrução da memória durante as reuniões de
preparação da romaria, tanto a memória das romarias passadas (que é
acionada para orientar o que será feito e como poderá ser feito, a partir
da lembrança do que já se fez no passado), como a memória do povo
do local que acolhe o evento, procurando conhecer e levar para o debate
público os desafios que aquele povo enfrenta no dia a dia. Memórias
essas que, durante todo o tempo, são rememoradas em forma de
denúncias e anúncios através dos rituais que marcam uma romaria.
O movimento e o caminhar, se constatou nos atos de ir ao local
escolhido, se deslocar da cidade em que reside para a cidade acolhedora
do evento. Os romeiros que se dirigem àquele lugar para se juntar aos
outros em sintonia e se reconhecerem como “povo de Deus” que
caminha à procura de dias melhores, de melhores condições de trabalho,
enfim, de justiça social. A festa subversiva pode-se representada pelas
músicas alegres, de um cancioneiro popular que se propõe inter-
religioso, composto por artistas populares, como por exemplo, Zé
Vicente. Sendo as músicas concebidas como sacras ou seculares, vale
notar também presença de uma recepção com farta distribuição de
alimentos para os participantes, o almoço ao som de músicas populares,

48 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


marcado como momento de se encontrar com os outros e confraternizar
mesmo em meio às dificuldades.
Por fim; a forma de participação da romaria se apresentou
através da escolha por uma metodologia que propiciou a participação
de todos de forma democrática, dando voz a todos, como se observou
nas rodas de conversa, na visita às escolas, nas reuniões de preparação,
além de grande parte do evento ser organizada por pessoas leigas 10
alinhadas a setores da Igreja Católica engajados na reivindicação de
direitos sociais, fazendo da romaria um canal de abertura da instituição
para esta forma sui generis de participação.
Enfim, a Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras trouxe
elementos da Romaria da Terra –ambas reproduções de uma das
manifestações da religiosidade popular mais antiga do catolicismo
ressignificando este espaço, e dando a ele um caráter que vai além de
momentos devocionais, momento para o pagamento de promessas e o
exercício de ritos litúrgicos tradicionais propiciando. Tudo isso,
propiciou momentos de diálogo e reflexões acerca do cotidiano do
romeiro, na tentativa de aproximar a religião da vida concreta – fé e
vida – do fiel.

Referências Bibliográficas

ADAM, Júlio Cézar. Liturgia como prática dos pés: A Romaria da Terra do
Paraná: reapropriação de ritos litúrgicos na busca e libertação dos espaços de
vida. Estudos teológicos, v. 42, n.3, p. 52-69, 2002.
BRAGA, Antônio. A subida do Horto: ritual e topografia religiosa
nas romarias de Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil. Debates do NER, Porto
Alegre, RS, ano 15, v.1, n.25, p. 197-214, jan. /jun. 2014.

CHAVES, Wagner Diniz. Canto, voz e presença: uma análise do poder da


palavra cantada nas folias norte-mineiras. Mana, Rio de Janeiro, v. 20, n.2, p.
249-280, 2014.
GUIMARÃES, Luiz Ernesto. Teologia da Libertação e Renovação
Carismática Católica: religião e política na arquidiocese de Londrina-PR.

10
Segundo definição da Igreja Católica, são aqueles que professam a fé em Jesus
Cristo, no âmbito da Comunidade Católica, tendo recebido o batismo, mas não
pertencentes ao grupo dos ministros que receberam o Sacramento da Ordem.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 49


2017. 218 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Estadual
Paulista, Marília, 2017.
PEREIRA, Danillo Rangell Pinheiro. Concepções da história na teologia da
libertação e conflitos de representação na Igreja Católica (1971-1989).
Salvador: Editora Sagga, 2018.
PRANDI, Reginaldo. Um sopro do espírito: a renovação conservadora do
catolicismo carismático. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1998.
SANCHIS, Pierre. Peregrinação e romaria: um lugar para o turismo religioso.
Ciências Sociais e religião, Porto Alegre, ano 8, n. 8, p. 85-97, out. 2006.
STEIL, Carlos. O sertão das romarias: um estudo antropológico sobre o
santuário de Bom Jesus da Lapa – Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996.

Fontes Documentais

AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS. Desemprego sobe para 12,7% com 13,4 milhões de
pessoas em busca de trabalho. Disponível em :
<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/24283-desemprego-sobe-para-12-7-com-13-4-milhoes-de-
pessoas-em-busca-de-trabalho >. Acesso em: 17 jun. 2019.
ARQUIDIOCESE DE MARIANA. Informativo 5ª Romaria dos
Trabalhadores. Urucânia, maio 1995.
______. Informativo 17ª Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras.
Piranga, maio 2007.

______. Informativo 20ª Romaria dos Trabalhadores. Barbacena, maio


2010.

______. Informativo 21ª Romaria dos Trabalhadores. Granada – Abre


Campo, maio 2011.

______. Informativo 22ª Romaria dos Trabalhadores. São Brás do Suaçuí,


maio 2012.

50 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


______. Informativo 23ª Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras.
Viçosa, maio 2013.
______. Informativo 25ª Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras.
Urucânia, maio 2015.
______. Jornal Pastoral. Mariana, maio 1991, ano 1, n. 4.
______. Jornal Pastoral. Mariana, maio 2003, p. 12.

CARANDAÍ. Disponível em
<https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/carandai/panorama> Acesso em: 10
jun. 2019.
JORNAL FOLHA DA MATA. Ponte Nova, 02 maio 2013, n. 2301.

JORNAL FOLHA DE PONTE NOVA. Ponte Nova, maio 1992.

______. Ponte Nova, 08 maio 1993, p. 20.


______. Ponte Nova, 07 maio 1994, p. 09.
______. Ponte Nova, 06 maio 1995, p. 13.

______. Ponte Nova, maio 1997.


______. Ponte Nova, maio 1998, p. 13.
______. Ponte Nova, 08 jan. 2000.

______. Ponte Nova, 30 abr. 2004, p. 08.

______. Ponte Nova, 07 maio 2004, e. 787, p. 07.

______. Ponte Nova, 08 maio 2015.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 51


3
O Ativismo Político na Dimensão Sociopolítica da
Arquidiocese de Mariana/MG
Edson Lugatti Silva Bissiati
Lara Bortolusci Leporati
Gustavo Antônio Oliveira dos Santos

Introdução
As inquietações que orientam este artigo surgiram do interesse
em pesquisar a ligação entre religião e política. Tal problemática é
derivada do projeto de pesquisa “Sociedade civil e Estado brasileiro”.
A partir disso, fomos a campo pesquisar ações empreendidas pela
Dimensão Sociopolítica (DSP) da Arquidiocese de Mariana/MG.
Percebemos que estávamos diante de questões etnográficas
importantes a serem pesquisadas, tais como a relação do grupo diante
dos símbolos religiosos que servem como parâmetro para a ação
política desenvolvida.
Conhecemos esse grupo através de uma interlocução com um
colega da Universidade, Fábio, que atuava na DSP. Depois dos nossos
diálogos sobre o interesse em pesquisar o tema religião e política,
começamos a acompanhar algumas das reuniões da DSP da Região
Pastoral Sul da Arquidiocese 11 (doravante, Região Sul), na cidade de
Barbacena/MG, ainda em 2018.
Após a participação em algumas reuniões do grupo da Região
Sul, em Barbacena, descobrimos que aconteceria a III Assembleia da
Dimensão Sociopolítica, e que este evento contaria com um contingente
maior de membros da DSP, em que representantes de todas as regiões
da Arquidiocese de Mariana estariam presentes. Deste modo, este
evento se mostrou importante para nós pela possibilidade de ser alvo de
uma análise etnográfica. Diante disso, pressupomos que este grupo –

11
Como já mencionado neste livro por Guimarães, Silva e Faria, a Arquidiocese de
Mariana se divide em cinco regiões pastorais, quais sejam: Região Pastoral Sul –
composta por 19 municípios, entre os quais se encontra Barbacena, local onde
desenvolvemos a pesquisa –; Região Pastoral Norte;Região Pastoral Leste; Região
Pastoral Oeste e Região Pastoral Centro. Mais à frente essas regiões serão melhor
abordadas.

52 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


isto é, a DSP –, através de seus símbolos religiosos, converge sua
religiosidade em direção a uma ação evangelizadora de cunho político.
Dessa forma, este trabalho é resultado da observação participante
(CARDOSO, 1986) realizada através de uma pesquisa de campo, na
qual somente um dos pesquisadores, Lara, esteve presente, na III
Assembleia da Dimensão Sociopolítica, na Casa de Encontro Cardeal
Cardijin, realizada nos dias 06, 07 e 08 de julho de 2019, em
Conselheiro Lafaiete/MG.
A referida Casa de Encontro está localizada em um bairro mais
afastado do centro do município e tinha uma estrutura bastante ampla,
contando com um cômodo que aparentava ser uma sala de aula extensa,
uma cantina, uma capela e vários quartos nos dois andares do prédio.
Para se acomodarem nos quartos, homens e mulheres presentes foram
separados, sendo os quartos do andar de cima destinados a ser o
dormitório para as mulheres, e os quartos do térreo o dormitório dos
homens. Existia também uma grande sala anfitriã, na qual parte das
reuniões aconteciam. O pátio era relativamente grande e, durante os três
dias de evento, os membros costumavam, passar o tempo dos intervalos
entre as palestras e as reuniões nesse local.
Feito essa apresentação inicial, adiante vamos contextualizar a
DSP na Arquidiocese de Mariana.

1. A Dimensão Sociopolítica
A Dimensão Sociopolítica (DSP) faz parte da atuação pastoral
da Arquidiocese de Mariana e tem suas ramificações a partir da
perspectiva da ação social e política da Igreja Católica (Doutrina Social
da instituição), carregando em seus discursos e pautas uma forte relação
com as ações desenvolvidas no âmbito das Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs), que inauguraram e ganharam destaque e influência no
Brasil a partir do ano de 1960, após as transformações na Igreja Católica
(MAUES, 2010). Tais fatos nos ajudarão a observar, mais a frente, à
conexão dos símbolos com a condição política que este grupo carrega.
Na “Cartilha da Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese de
Mariana”, construída no Primeiro Fórum Social pela Vida, em 2001,
com atualização até 2017 12, compreende-se que a DSP, faz parte de uma

12
A última atualização encontrada em anexo na cartilha, foi a “Declaração dos Bispos
das Dioceses da Bacia Hidrográfica do Rio Doce”, manifesto em apoio às
comunidades atingidas pelo rompimento da Barragem de Fundão.

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dimensão evangelizadora, entendendo as ações da dimensão social
protagonistas da evangelização, especificamente o que se chama de
dimensão “sócio transformadora”, que em 2013 ganhou o nome de
Dimensão Sociopolítica, durante a “II Assembleia Arquidiocesana
(Mariana/MG) da Dimensão”.
Segundo o documento:
Através das pastorais sociais, esta dimensão procura
integrar em suas atividades a fé e o compromisso social, a
oração e a ação, religião e a prática do dia a dia, a ética e a
política (ARQUIDIOCESE DE MARIANA, 2017. p.9).

Dirigindo-nos a um termo recorrente nos encontros que já


participamos da DSP, e que nos ajudará a compreender mais sobre o
corpo político desse segmento, a ação política evangelizadora, seguiu
rumo ao sentido de um compromisso cristão, que busca a coerência com
a evangelização sócio transformadora do evangelho.
A ação política evangelizadora é um elemento chave para se
compreender os significados dos símbolos que foram identificados na
pesquisa de campo. Essa ação da DSP se concentra no objetivo de levar
a doutrina social da Igreja Católica para dentro da esfera política, com
ênfase na pauta da defesa dos menos favorecidos da Sociedade.
Respaldado, através da interpretação dos documentos sagrados (como
a Bíblia Sagrada e os diversos livros de conhecimento da Igreja
Católica), os membros da DPS agem sob a tutela do divino e dos
ensinamentos destes documentos, que são expressos através da ação
política.
Sobre esses documentos, por exemplo, observamos que na
primeira exortação apostólica do Papa Francisco, a “Evangelli
Gaudium: Sobre o anúncio do Evangelho no Mundo Atual”, publicada
em 2013, foi dada ênfase à “Dimensão Social da Evangelização”. Em
outros termos, este documento orientador visa reforçar a ideia de uma
“Igreja em saída”, em conexão aos preceitos desenvolvidos durante o
Concílio Vaticano II (1962-1965) e da Teologia da Libertação.
O termo “Igreja em saída”, é constantemente utilizado pelos
participantes dentro dos encontros na DSP. O grupo utiliza essa
terminologia para enfatizar a ação política do evangelho, tornando o
comprometimento com a palavra do divino atrelado à interpretação que

54 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


concebe a Igreja Católica como um espaço de interação, em que os
símbolos religiosos devem motivar a iniciativa política dos fiéis.
Segundo uma passagem da Evangellium Gaudium (2003), a “Igreja em
saída” significa “sair da própria comodidade [enquanto cristão] e ter a
coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do
Evangelho” (p.19).
Dentro da III Assembleia da DSP, o documento Evangelli
Gaudium (2013) foi usado como referência nas falas proclamadas pelos
integrantes que conduziam o evento, convocando leigos e leigas
cristãos a seguirem uma caminhada que se converge a uma dimensão
“sócio transformadora”.
A figura do Papa, como um dos maiores símbolos da Igreja
Católica, causa impacto para a unificação da instituição e sua palavra
ganha destaque e passa a ser alvo de interpretação por este segmento
incorporado da Igreja. Assim, dão credibilidade aos símbolos e ações
dentro das causas apontadas, dimensionadas, e acatadas, por uma
Dimensão Social Evangelizadora, que se compreende como
transformadora do mundo, através de um diálogo político.
De outro modo, como roga a Evangelli Gaudium (2013):

Por conseguinte, ninguém pode nos exigir que


releguemos a religião para a intimidade secreta das
pessoas, sem qualquer influência na vida social e
nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições
da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os
acontecimentos que interessam aos cidadãos (p.111-
112).

Analisando este fragmento da Evangelli Gaudium, podemos


vislumbrar nas proposições do antropólogo Clifford Geertz na obra “O
beliscão do destino: a religião como experiência, sentido, identidade e
poder” (2001), cujo objeto estudado é o fenômeno religioso, que
expressões como “luta religiosa” e outros termos utilizados, não se
tratam de questões particulares dos fiéis, mas sim algo que está voltado
à coletividade. Dessa forma, fica nítido que a religião migra do campo
espiritual para o campo da ação política, assim como elucidou o autor.
A ação política evangelizadora no Brasil tem suas raízes dentro
dos movimentos de base da Igreja Católica, especificamente as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), vinculada a Teologia da

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 55


Libertação, que passou a ganhar força dentro da instituição após o
Concílio Vaticano II.
As CEBs iniciaram e ganharam destaque e influência no Brasil a
partir do ano de 1960, após as transformações na Igreja Católica
(MAUES, 2010). As Comunidades de Base partem de uma essência
discursiva, que diz que leigos e leigas cristãos 13 devem buscar um
comprometimento através do qual devem praticar sua fé, sobre a
perspectiva de uma ação política evangelizadora. Isto é,

A inserção nas Cebs provoca em âmbito vital, uma


reorganização ética e espiritual. Os participantes das
comunidades passam a compartilhar uma nova identidade
(fala-se em ‘novo jeito de ser igreja’) reorganizam seus
aparelhos de conversas sob as novas bases e estabelecem
uma nova relação com o sagrado, que implica agora a
centralidade da conscientização, um novo compromisso
ético e político e a ênfase em participação das lutas
populares (TEIXEIRA, 2005, p. 20).

As Comunidades de Base no Brasil estiveram fortemente ligadas


aos movimentos de moradia e luta popular. Dando destaque a Comissão
Pastoral da Terra (CPT) criada em 1975, iniciativa da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cuja ação priorizava a
organização dos setores marginalizados do campo brasileiro na luta
contra as condições precárias de trabalho vividas pelos trabalhadores
rurais, condicionadas pelo Regime Militar (CPT, 2010).
Podemos recorrentemente observar na III Assembleia da DSP
menções às tradições das CEBs, e o envolvimento significativo que as
pastorais têm para a ação evangelizadora mencionada pelos membros
daquele grupo.

13
Pode-se identificar o uso do termo “leigo e leiga” na Igreja Católica para referir-se
aqueles que atuam dentro da organização da Igreja, cumprindo funções vocacionais e
eclesiásticas que não dentro de sua lógica hierárquica, como demonstra este trecho do
DOC: Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na sociedade: “A vocação própria dos
leigos é administrar e ordenar as coisas temporais, em busca do Reino de Deus.
Vivem, pois no mundo, isto é, em todas as profissões e trabalhos, nas condições
comuns da vida familiar e social, que constituem a trama da existência. (p. 16)”

56 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


2. Antecedentes da Assembleia: O encontro da DSP na Paróquia
do Bom Pastor
No dia 08 de junho do ano de 2019, estivemos presentes em um
encontro da Dimensão Sociopolítica, em Barbacena/MG, na Paróquia
do Bom Pastor. Na ocasião, analisamos uma reunião da Região Sul
/Mariana, quando soubemos que iria ocorrer a III Assembleia da
Dimensão Sociopolítica, em Conselheiro Lafaiete\MG. Aproveitando a
oportunidade, – ou seja, que a Assembleia poderia nos fornecer mais
elementos práticos e diversificados sobre a atuação da DSP, já que seria
um encontro a nível paroquial –, conseguimos nos articular para que um
de nós, a pesquisadora Lara, acompanhasse tal encontro.
A partir disso, consideramos importante acompanhar o evento por
meio de um estudo etnográfico, entendendo que esta produção abarca
elementos de uma “descrição densa” (GEERTZ, 2008). Em nosso caso,
empreendimento de campo realizado com o objetivo de interpretar o
comportamento de um grupo religioso, buscando captar as interseções
entre os campos religioso e político.
Assim, a pesquisa de campo objetivou observar e\ou identificar
como as ações práticas e simbólicas, empreendidas no referido encontro
convergiam para uma ação de caráter prático no universo social e
político.
Concentrada em coletar e construir os dados da pesquisa, a Lara
foi para o local do evento no primeiro dia da Assembleia. A
pesquisadora foi com os delegados das cidades da Região Sul da
Arquidiocese de Mariana/MG. Estes aparentavam estar na faixa etária
acima dos 40 anos de idade, todos oriundos das diversas cidades que
compõem a região, sendo os mesmos participantes ativos nas atividades
pastorais de suas respectivas dioceses.
O evento contou com a presença da presidente do Conselho
Nacional do Laicato Regional Leste 2. Membros da assessoria política
do vereador Edson Rezende, do Partido dos Trabalhadores (PT) do
município de Barbacena/MG, e do deputado federal Padre João (PT-
MG), também eram integrantes dessa região. A maioria, assim como
observado nos representantes das outras regiões, eram lideranças e
participantes ativos de alguma Pastoral Social da Igreja Católica.
Então, iniciou-se a observação do ambiente e da interação com as
pessoas ali presentes. Como Fábio, assessor arquidiocesano e membro
da comissão regional de assessores do Regional Leste 2 - MG e ES,
nosso contato mais próximo dentro do grupo da DSP não estava

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 57


presente, outro interlocutor, amigo de Fábio e integrante da Pastoral da
Juventude (PJ), que havíamos conhecido em outra reunião da DSP,
intermediou a participação da pesquisadora e passou informações e
esclarecimentos sobre as atividades que ocorreram durante o encontro.
É importante também mencionar que, nos momentos em que as
refeições eram servidas e nos intervalos das atividades da Assembleia,
foi possível interagir com pessoas de várias regiões. Os assuntos
tratados dentro desses círculos de interação foram importantes para
compreender e interpretar o viés político presente nas falas dos
indivíduos.
Observando que o ritual presenciado baseava-se na celebração de
um símbolo, sendo este o evangelho, Goffman (1985) nos ajuda a
compreender os papéis (re)interpretados naquele evento, como se fosse
a (re)criação de uma cena. Isto porque, o teórico entende que as relações
sociais são intermediadas por um papel social representativo
(GOFFMAN, 1985). Assim, os cenários, toda configuração e estrutura
dos objetos lançados, como os cartazes e os símbolos sagrados
espalhados pela casa, onde aconteceu o evento, e durante as
celebrações, contribuíram para uma análise de todo o conjunto em sua
soma, o que auxiliou na apurada interpretação dos símbolos religiosos
e políticos expressos pelo grupo

3. A III Assembleia da Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese de


Mariana/MG
A III Assembleia da Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese de
Mariana/MG objetivou discutir pautas e a realizar a votação de
documentos direcionados para a organização do 7º Fórum Social pela
Vida, que iria ocorrer na cidade Barão dos Cocais/MG, de 26 a 29 de
setembro de 2019. Analisando os dados disponibilizados pelos
palestrantes, vimos que estavam presentes na III Assembleia 70
representantes, advindos das cinco regiões pastorais da Arquidiocese de
Mariana. Isto é, as regiões Sul, Norte, Centro, Leste e Oeste (conforme
Quadro 1.).

58 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


QUADRO 1 – REGIÕES PASTORAIS ARQUIDIOCESE DE MARIANA

Municípios da região Mariana sul: Municípios da Região Mariana Oeste:


Carandaí; Capela Nova; Cipotânea; Congonhas; Ouro Branco; Itavera; Santana dos
Ressaquinha; Senhora dos Remédios; Dores do Montes; São Brás; Conselheiro Lafaiete;
Turvo; Alto Rio Doce; Silveranea; Rio Pomba; Queluzito; Cristiano Otoni; Caranaíba; Casa
Tabuleiro; Mercês; Oliveira Forte; Santa Bárbara Grande; Entre Rios de Minas; Jeceaba.
do Tugúrio; Desterro do Melo; Barbacena;
Alfredo Vasconcelos; Antônio Carlos; Ibertioga.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 59


Municípios da Região Mariana Norte: Municípios da Região Mariana Centro:
Piranga; Porto Firme; Presidente
Mariana; Catas Altas; Barão de Cocais;
Bernades; Senador Firmino; Brás Pires; Senhora
Santa Bárbara; Itabirito; Ouro Preto
de Oliveira; Catas Altas; Lamim; Rio Espera.

60 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Municípios da Região Mariana Leste:
Raul Soares; Matipó; Abre Campo; Pedra Bonita; Sericita; Araponga; Ervália;
Coimbra; Cajurí; Viçosa; Paula Cândido; Divinésia; São Miguel do Anta; Canaã;
Pedra do Anta; Jequeri; Sto Antônio do Grama; São Pedro dos Ferros; Rio Casca;
P. de Ponte Nova; Urucânia; Oratórios; Amparo dos Serras; Teixeiras;
Guaraciaba; Ponte Nova; Santa Cruz do Escalvado; Sem Peixe; Dom Silverio;
Rio Doce; Barra Longa; Acaiaca; Diogo de Vasconcelos.

FONTE: Os autores (2020)14.

Sobre o perfil dos presentes, haviam pessoas de diversas idades,


sendo jovens, adultos e idosos. Por meio das interações no campo, de
conversas com os presentes e de acordo com a observação das
apresentações formais ao longo das palestras, identificamos uma
significativa presença de coordenadores e participantes envolvidos
diretamente com Pastorais Sociais da Igreja Católica e/ou Movimentos
Sociais.
Trazemos no Quadro 2, abaixo, a programação oficial das
atividades da Assembleia.

14
Mapas e informações retirados de <https://arqmariana.com.br/>. Acesso em: 27 jun.
2020.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 61


QUADRO 2 – PROGRAMAÇÃO DA III ASSEMBLEIA DA DIMENSÃO
SOCIOPOLÍTICA DA ARQUIDIOCESE DE MARIANA
05/07/2019 – Sexta-feira 06/07/2019 – Sábado 07/07/2019 – Domingo
18h -
7h30min – Café
Acolhida/credenciamento
08h - Oração da manhã/Mística
18h30 – Jantar 7h – Acordar
do Cuidado
19h - Apresentação/Oração 08h30 – Apresentação e
7h30min – Café
inicial/Mística do Cuidado aprovação da pauta
08h30min a 10h: VER – “A
dimensão sociopolítica nas
regiões pastorais da
20h – Banho e descanso para Arquidiocese de Mariana e o 8h – Oração da manhã/Mística do
os delegados da Assembleia compromisso com os pobres”. Cuidado
Apresentação da síntese das
assembleias de cada Região
Pastoral
8h30min a 9h30min - AGIR – Síntese do
20h – Reunião da Comissão
plenário/votação das prioridades
Permanente do Fórum Social 10h15min - Cafezinho
arquidiocesanas/encaminhamentos em
pela Vida
relação ao 7º Fórum Social pela Vida
9h30min a 10h30min - Composição da
10h30min a 12h30min – 7º
nova coordenação arquidiocesana da
Fórum Social pela Vida
dimensão sociopolítica
12h30min - Almoço 10h30min- Cafezinho
13h30min - JULGAR: “A
Dimensão Social da
Evangelização na Arquidiocese
de Mariana e as novas 10h45min – Fila do Povo
Diretrizes da Ação
Evangelizadora da Igreja no
Brasil (DGAEs 2019-2013)”
15h – AGIR - “Fórum Social
pela Vida: uma forma de seguir
Jesus” Atividade em grupo a
partir dos Eixos Temáticos do
11h – Celebração e envio
Fórum Social pela Vida e das
prioridades pastorais
arquidiocesanas
Juventude/Pobreza/Família
17h – Cafezinho 12h – Encerramento
17h15min a 18h30min – 12h30min – Almoço
Plenário
18h30min – Jantar
19h – Banho
20h a 22h – Noite cultural

FONTE: Os Autores (2020)15.

Destacamos a presença dos palestrantes e dos guias das atividades


realizadas durante o evento. Sobre as atividades conduzidas pelos guias,
vale destacar um diversificado conjunto de atividades como as

15
Informações retiradas do material impresso e entregue no evento.

62 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


discussões apresentadas pelos delegados da assembleia, a votação do
documento de compromisso da DSP, que orientaram o evento. O
Assessor da DSP, padre Marcelo Santiago e Wheton Pimentel de
Freitas, popularmente conhecido como Leleco Pimentel, também
conduziam as palestras e as atividades, tornando-se figuras centrais no
evento.
Leleco é conselheiro nacional das cidades e candidato pelo estado
de Minas Gerais a deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores
(PT) em 2018, tendo obtido 28.634 votos, mas sem ser eleito.
É importante frisar, que Leleco Pimentel (PT) havia participado
de um encontro no qual os pesquisadores estavam presentes. Isto é o
primeiro Encontro Regional de Fé e Política na Região Sul de Minas
Gerais, promovido pela Escola Dom Luciano de Mariana/MG,
realizado em 28 de abril de 2018 em Barbacena/MG, na Paróquia de
São Pedro/São Paulo. O evento também contou com a presença do
deputado federal Padre João. Vale frisar que Padre João e Leleco
Pimentel fizeram a chamada “dobradinha” política nas eleições de
2018, angariando apoio através destes encontros da DSP, um sendo
candidato a reeleição para deputado federal e o outro tentando a eleição
para o legislativo estadual mineiro.
No dia 05 de julho, os delegados da Região Sul foram os
primeiros a chegarem, tendo em vista que eles iriam preparar a
Apresentação e Oração inicial, com a Mística do Cuidado (Ver Quadro
2) para recepcionar as outras regiões ao evento. O roteiro para o ritual
já estava preparado em uma folha que se encontrava com a presidente
do Conselho Nacional do Laicato Regional Leste 2, que conduziria a
organização do evento, restando apenas designar a divisão das tarefas a
serem realizadas junto aos membros presentes.
No local foi montado um cenário, especificamente na sala em que
aconteceria a acolhida. Estavam ao centro várias bandeiras e cartazes
de movimentos sociais, sindicatos e pastorais sociais ligadas à Igreja
Católica, que seriam mantidos durante todo o evento.
No momento da realização do rito, com alguns dos participantes
já concentrados em volta do círculo de cartazes, Leleco Pimentel (PT)
puxou uma música para iniciar a acolhida, “Anunciação” do cantor
Alceu Valença 16. O grupo o acompanhou em um coro. Assim que

16
A composição de Alceu Valença, é uma clássica canção da MPB lançada em 1983,
e as suas interpretações populares variam a temática, que aborda temas que vão do

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 63


começa a cantoria, algumas pessoas entraram segurando cartazes que
relembrava as duas primeiras assembleias realizadas, bem como a
terceira edição do evento que estava iniciando suas atividades.
Chamou a atenção a utilização desses símbolos, e tantos outros
como imagens de crucifixos, velas e cartazes representativos de uma
gama de temas, permaneceram durante todo o evento. A sala anfitriã,
por exemplo, não teve seu círculo de cartazes desmontado, e a maioria
das celebrações foram realizadas neste espaço. Assim, percebemos que
todo o conjunto simbólico, expresso através das músicas e dos cartazes,
carregava um ideal político representativo da ação política
evangelizadora. Esses elementos se tornam símbolos representativos da
concepção ideológica deste grupo. O que Geertz (1998) classificaria
como uma expressão de centros ativos da vida social. Quer dizer, os
símbolos compõem esses centros ativos que:

São em essência, locais onde se concentram atividades


importantes; consistem em um ponto ou pontos de uma
sociedade [grupo], onde as ideias dominantes fundem-se
com as instituições dominantes para dar lugar a uma arena
onde acontecem os eventos que influenciam a vida dos
membros desta sociedade [grupo] de uma maneira
fundamental (GEERTZ, 1998, p. 126).

Outro ponto do momento ritual que vale destacar é o instante em


que a condutora da celebração, uma mulher de meia idade, negra, pede
para que os presentes que quisessem, pegassem uma cruz de madeira
colocando-as no centro do espaço. Aqueles que se dispuseram a
conduzir as cruzes, enquanto o faziam respondiam a seguinte pergunta:
“Que gritos temos ouvido hoje?”. Ao observar quais foram as respostas,
notou-se que elas estavam relacionadas: à luta pelos pobres; à oposição
ao governo federal e a algumas de suas medidas como a liberação de
agrotóxicos; à luta em prol dos atingidos pelo rompimento das
barragens de rejeitos de minério em Mariana e Brumadinho, destacando
ser um crime ambiental e responsabilizando as empresas Samarco/BHP

misticismo ao fim da ditadura militar, instaurada em 1964. Como o grupo que


conduzia a Assembleia se entende contrário as ações da política ditatorial, dado a
herança das CEBs presentes, e o misticismo apontado no refrão da música, podemos
considerar que escolha da canção representa tanto suas posições políticas quanto uma
celebração divina.

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Billiton e Vale por tais crimes; à juventude negra, que sofre com a
discriminação e a violência; à denúncia da violência contra às mulheres,
etc.
Logo após, Leleco, pede para que todos sigam até o círculo e
peguem nas mãos uns dos outros. Nesse momento, é indicado para que
todos gritem uma frase que repercutiu muito nas eleições de 2018. Em
outras palavras, a frase “Ninguém solta a mão de ninguém”, cunhada à
época em oposição a candidatura de Jair Bolsonaro. Em seguida, a
bíblia foi levada ao centro do círculo e foi feita a leitura de uma
passagem. O momento foi finalizado com a canção “A Vida do
Viajante”, do compositor e músico Luiz Gonzaga.
Os comportamentos adotados pelos indivíduos, em consonância
com os aspectos mencionados do rito, fizeram com que os símbolos
utilizados ganhassem maior sentido e fossem se destacados no decorrer
das manifestações, aspectos que caracterizam um cenário (GOFFMAN,
1985). Os comportamentos dos indivíduos materializam/incorporam a
representação do sentido de leigo e leiga vinculado a um catolicismo
que “segue os passos” do Concílio Vaticano II.
Nos demais momentos do evento, observou-se que a maioria das
conversas estavam ligadas à situação política do Brasil como, por
exemplo, a desaprovação das medidas do governo do ex-presidente da
República Michel Temer. O que era enfatizado não apenas nas
conversas paralelas durante os intervalos, mas também durante as
palestras. As mensagens vazadas do atual ministro da Justiça, Sérgio
Moro, eram também constantemente mencionadas. Falava-se também
sobre a desaprovação dos cortes na educação, da flexibilização da posse
de armas por cidadãos e da liberação dos agrotóxicos. Fato é que, “o
mundo não funciona apenas com crenças. Mas dificilmente consegue
funcionar sem elas” (GEERTZ, 2001, p.155).
No dia 06 de julho, prosseguindo as atividades colocadas no
cronograma da Assembleia, após o café da manhã, fora celebrado mais
uma “Oração da Manhã e Mística com o Cuidado”, no pátio da casa.
Que seguia uma estrutura parecida com a do primeiro – ou seja, com a
presença de elementos em volta do círculo, canções e leitura de
passagens bíblicas lidas sobre a perspectiva da Teologia da Libertação,
abordando as desigualdades sociais em conjunto com a “palavra de
Deus”, fortalecendo assim os aspectos da religiosidade católica com os
elementos simbólicos que constituem e dão significado ao rito. Os

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 65


presentes se deslocaram do ambiente externo para uma sala ampla, com
várias mesas e cadeiras= que lembrava uma sala de aula. Neste espaço
foi onde ocorreram o restante das atividades previstas para o segundo
dia.
Este dia foi iniciando com uma atividade guiada pela
metodologia “Ver, Julgar e Agir”. Ao iniciarem com a reflexão sobre
“Ver”, os presentes trouxeram à tona a apresentação das sínteses das
pré-assembleias em cada Região Pastoral. Foram discutidas também
algumas questões e esclarecimentos sobre o 7º Fórum Social pela Vida,
como, por exemplo, sobre seu histórico e informes gerais.
Em seguida, no momento de refletir sobre o “Julgar”, foi
enfatizada uma explicação do documento “As diretrizes gerais da ação
evangelizadora com os pobres 2019-2023”. O assessor padre Marcelo,
disse que, atualmente, uma das preocupações da Igreja Católica é o
“mundo moderno”. Referindo-se ao individualismo das pessoas no
mundo atual. Em consequência, como disse o assessor, a Igreja
precisaria se adequar, trazendo a concepção de lar. Então, foram
delimitadas as ações político-sociais surgidas na Assembleia: trazer
demandas; ação missionária para o espaço público; envolvimento com
as políticas públicas, muito enfatizadas pelos presentes.
Os objetivos da Assembleia foram pontuados e dentre eles se
destacava o compromisso com a dimensão social da evangelização e
com o fortalecimento das pastorais sociais da Arquidiocese de Mariana.
Segundo o padre Marcelo Santiago, a DSP tem ações sociais e
transformadoras ligadas à metodologia do “Ver, julgar e agir”. Neste
momento, em que delimitavam os objetivos da DSP, Leleco sugeriu o
envio de uma carta ao Papa Francisco abordando a necessidade da
preservação da Bacia do Rio Doce, no qual os presentes iriam escrever
tal carta, e assim ao final das palestras deste dia, ela seria apresentada
para a votação dos demais.
Os oito eixos fundamentais foram pauta da III Assembleia e
levados para as discussões em grupos de trabalho (GTs), os mesmos
que iriam compor a Comissão Permanente do 7º Fórum Social pela
Vida (FSV), da Arquidiocese de Mariana. Durante as discussões
levantadas dentro dos GTs, debatiam-se assuntos calcados em questões
políticas e sociais relacionadas à realidade desse movimento, como, por
exemplo, o fomento à candidatura de membros a cargos políticos, bem

66 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


como também o apoio a movimentos sociais diversos, como o
movimento por moradia.
No dia 07 de julho o encerramento do evento, foi iniciado com
a oração da manhã e a mística. Leleco Pimentel conduziu a Plenária
Soberana da Assembleia. Momento em que é apresentada a síntese das
discussões dos GTs sobre todos os eixos estudados conjuntamente no
dia anterior. Este momento configurando o espaço de materialização da
última etapa da metodologia “Ver, julgar e agir”, iniciada no dia
anterior. Assim, seguiu-se os seguintes momentos: elaboração da
Síntese do plenário; Votação das prioridades arquidiocesanas;
organização dos encaminhamentos relacionados ao 7º Fórum Social
pela Vida. Para fechar a Assembleia, é realizada uma celebração na
capela da Casa de Encontro.
Este evento nos auxilia a entender um tipo de fenômeno, colocado
em questão. Melhor dizendo, durante os dias da Assembleia os
trabalhos e celebrações descritas acima, ocorriam em um contexto
marcado por um centro de símbolos (GEERTZ, 2014) relacionados aos
preceitos católicos.
Podemos observar também, em comparação aos primeiros
relatórios das reuniões ligadas a DSP da Região Sul da Arquidiocese de
Mariana, em Barbacena MG, que estivemos presentes, a constante
presença de músicas populares nas celebrações deste grupo da Igreja
Católica. Neste encontro muitas músicas foram tocadas, até mesmo
durante as palestras. Canções como “Pra não dizer que não falei das
flores”, de Geraldo Vandré, foram entoadas. Esta música, por exemplo,
foi um marco dentro das manifestações em oposição e resistência à
ditadura militar na década de 1970 – vale lembrar, o contexto em que
as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as Pastorais ganhavam
força no Brasil.
A maioria das músicas abordava temas que ilustravam muito bem
as discussões sob uma perspectiva “sócio transformadora”. Os cartazes
também eram simbólicos e representavam em seu cenário e contexto,
uma ideologia guiada a partir de uma representação em equipe
(GOFFMAN, 1985), que se configura em a ação política entre os leigos
ali presentes.
O grupo aqui estudado parte de uma interpretação que o
compromisso com a religião e com a vida cristã se efetiva a partir
de uma comprometida com a transformação da sociedade.

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Assim, para esse grupo as ações políticas são importantes para
o se manter o zelo com o mundo (“o cuidado da casa comum”).
Deste modo, as ações simbólicas dos membros desse grupo se
orienta para o espaço público e político.
Uma evidência dessa orientação, pode ser vista no documento
final da Assembleia. Este documento reúne o planejamento voltado
para a ação concreta, desta maneira, várias partes dele compreendiam
ações a serem empreendidas por esses grupos, divididas por setores a
fim de que se cumprir as tarefas. Enfim, reivindicações a serem
encaminhadas para pressionar o poder público.
Os símbolos, e sua utilização têm um papel fundamental para a
tal observação. O jogo de palavras conduzido por pessoas que sabem
utilizar os símbolos – como os palestrantes e Leleco Pimentel –
compõem um quadro importante para a representação e interpretação
simbólica, que sustenta o discurso de uma ação política evangelizadora.
Nas palavras de Geertz (2014), esses atores são os carismáticos, ou seja,
que conseguem “está bem próximo ao centro das coisas” (p.126).
A representação e comportamento dos indivíduos deste evento,
imbuídos por uma série de valores éticos que entre as muitas maneiras
de se expressar, revestia imagens, cartazes, músicas, pronunciamentos,
manifestações que objetivam fortalecer a conexão do papel social que
envolve ser um membro da DSP. Configurando suas ações em ações
sociais, buscando seguir o exemplo de Jesus Cristo, o maior símbolo
para a doutrina cristã.
Esse conjunto de fatores é o que interpretaremos como a ação
social cristã. Como quisemos demonstrar, o cenário (GOFFMAN,
1985) dos rituais apresentados acima são um composto de símbolos que
ajuda a materializar o ethos da Teologia da Libertação.

Considerações Finais
Depois de dias intensos acompanhando a III Assembleia da
Dimensão Sociopolítica da Arquidiocese de Mariana, algumas questões
sobrevieram, e então refletimos sobre o intenso quadro de representação
simbólica apresentado pelas reuniões desse grupo, voltadas para a
atuação política guiada pela perspectiva evangelizadora. Suscitando
assim um comprometimento da equipe, dos palestrantes e dos leigos,
respaldado pela idealização de mundo pautada pelo termo que revestia
as representações e os símbolos da “ação política evangelizadora”.

68 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Foi possível visualizar também, que as aspirações políticas da
maior parte dos integrantes envolvidos com a DSP podem ser
consideradas e associadas a ideias progressistas, veiculadas sob a
justificativa de realizar um trabalho evangelizador na sociedade.
Assim, podemos perceber, por meio destes encontros da DSP,
muitos aspectos sociológicos e antropológicos convergirem para
composição deste estudo etnográfico. A representação encontrada em
campo é marcada por uma série de signos e cenários e comportamentos
que conduzem para a ação política proposta por aquele movimento.
Podemos observar também que as principais figuras que se destacaram
na condução do evento (por exemplo, Leleco, padre Marcelo), utilizam
em seus discursos elementos advindos da religião para reivindicar
questões políticas. Processo orientado, por exemplo, pelo uso de
elementos que carregam memória para aquele grupo, como a menção
das CEB´s e da Exortação Apostólica (2013) do Papa Francisco.
Fomos a campo para entendermos através da observação
participante que a evangelização para este grupo se dá por uma
associação da fé com a realidade, colocando no centro das atenções, por
exemplo, os problemas de pobreza e desigualdade. Para essas pessoas,
a vivência da religião vai além da salvação da alma humana na “cidade
de Deus”. Ela se baseia no que é interpretado pelo grupo como
sofrimento neste mundo, para então promover um diálogo direto entre
religião e política.

Referências Bibliográficas

CARDOSO, R. (org.). A Aventura Antropológica: Teoria e Pesquisa. São


Paulo: Editora Paz e Terra, 1986.
DOC CNBB – 105. Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade “Sal da
Terra e Luz do Mundo”. 54º Assembleia Geral Aparecida, de 6 a 15 de abril
de 2016.
ARQUIDIOCESE DE MARIANA. A Dimensão Social da Evangelização
na Arquidiocese de Mariana: cartilha da Dimensão Sociopolítica. 2017.
GEERTZ, Clifford. O Saber Local: Novos Ensaios em Antropologia
Interpretativa. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.

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GEERTZ, Clifford. (2001), "O beliscão do destino: a religião como
experiência, sentido, identidade e poder". In: Nova Luz sobre a
Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana.
Petrópolis: Vozes, 1985.
GEERTZ, Clifford. “Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da
Cultura”, O Impacto do Conceito de Cultura sobre o Conceito de Homem”.
In: ______. Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Comunidades “No sentido Social da
Evangelização”: CEBs, Camponeses e Quilombolas na Amazônia Oriental
Brasileira. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 30, n.2, p.13-37, 2010.
FRANCISCO. Exortação Apostólica: Evangelii Gaudium. Edições CNBB,
2013.

TEIXEIRA, Faustino. Faces do Catolicismo. Revista USP, São Paulo, n.67,


p. 14-23, set. /nov. 2005.

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4
Transmissão do saber fazer via comunidade e
família: o caso do Mobon na Zona da Mata
mineira
Lívia Rabelo

Neste trabalho, mostro como o saber fazer 17 ensinado no


Movimento da Boa Nova (Mobon), movimento católico pós-conciliar
com objetivo de formar lideranças religiosas e comunidades, foi
transmitido tanto dentro de casa como dentro das comunidades
formadas. Argumento sobre a centralidade do papel da família, bem
como das relações sociais proporcionadas dentro das comunidades, na
construção social da pessoa.

1. O Mobon e seus saberes


O Movimento da Boa Nova 18 emergiu em fins da década de
1960, tendo sua sede inaugurada em 1979 no município de Dom Cavati,
circunscrito à Diocese de Caratinga no estado de Minas Gerais. Trata-
se de um movimento católico consolidado após o Concílio Vaticano II
(1962-1965) na Zona da Mata e Leste Mineiro e que, não obstante suas
especificidades, se assemelha a outros movimentos que surgiram a
partir das Conferências Gerais do Episcopado Latino Americano 19 e da
Teologia da Libertação no que se refere à participação do “leigo” 20 na
Igreja Católica. Desenvolveu cursos com o objetivo de formar
comunidades e lideranças a fim de partilhar os conhecimentos bíblico-

17
Ao longo do texto me refiro às categorias analíticas com a marcação em itálico e às
categorias nativas com “aspas”, exceto quando as “aspas” são seguidas de um autor
explícito, o que se refere à uma citação direta de acordo com as normas da ABNT.
18
Para saber mais sobre o Mobon conferir Araújo (1999) e Gomes e Andrade (2011).
19
As conferências aconteceram respectivamente em Medellin (1968), Puebla (1979),
Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007).
20
“Na linguagem da Igreja Católica o leigo não é aquele que não sabe de nada não. O
leigo é aquele cristão, que foi batizado e que tá comprometido com a transformação
da sociedade” (João Resende, Campanha da Fraternidade 2018). Opto pelo não uso
do termo leigo, dada a confusão de significados que pode trazer ao leitor, ou então, o
utilizo entre aspas, mostrando que é uma categoria nativa.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 71


religiosos 21. Assim sendo, estimulou a formação de lideranças
preocupadas com a vivência comunitária, enquanto expandiam-se
ideais do Mobon pelas comunidades formadas.
A abertura para participação do “leigo” na Igreja Católica,
acompanhada dos cursos oferecidos pelo Mobon, de uma linguagem
que se tornou característica do movimento, da formação de lideranças
religiosas e de comunidades no meio rural, promoveu uma
ressignificação de algumas práticas locais com o foco na vida
comunitária, orientados pela visão do que seria o “reino dos céus” na
terra. Essas experiências e sociabilidades vivenciadas juntamente aos
grupos que lutavam em busca de maior justiça social potencializaram a
emergência do engajamento político da “liderança leiga”, por meio de
uma militância religiosa e política (OLIVEIRA, 2012). Dessa forma, o
Mobon teve influência fundamental ao longo do processo de formação
de lideranças e comunidades que desembocaram na ação política como
uma forma de unir fé e ação para além do nível local.
Faz-se essencial evidenciar que estamos tratando de um grupo
específico de católicos que trazem uma moral específica do meio rural
que interagiu com o Movimento da Boa Nova. São pessoas que ao se
tornarem lideranças religiosas assumiram determinadas
responsabilidades como: se manterem coerentes com a conduta moral
relativa aos ensinamentos religiosos, ou seja, ser um “exemplo” a ser
seguido pelos fiéis; e criarem e/ou dinamizarem comunidades já
existentes.
A conduta moral a ser seguida tem como tônica a busca por
justiça social e o “bem comum”. Visando alinhar “fé e vida”, o
engajamento em organizações sociais emerge com a justificativa da
“missão do verdadeiro cristão” e, de acordo com contextos e desafios
vivenciados na vida cotidiana, se desdobram na fundação de Sindicatos
dos Trabalhadores Rurais (STRs) e de diretórios municipais do Partido
dos Trabalhadores (PT).
Ressalto as características elementares do grupo de lideranças
estudadas uma vez que trajetórias diversas existiram. Há lideranças que
21
Esse processo de formação teve início com o Movimento Apostólico dos Pioneiros
do Evangelho (MAPE), tendo continuidade a partir do final da década de 1950 com a
experiência do Mobon a partir da atuação de dois missionários sacramentinos, Alípio
Jacinto e João Resende, embora o MAPE e o Mobon tivessem ênfases distintas. Para
saber mais sobre o MAPE, cf. Oliveira (2012).

72 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


participaram do Mobon e/ou Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),
mas não tiveram uma experiência sindical, ou mesmo partidária, bem
como há aquelas que tiveram uma experiência partidária sem passar
pelo sindicato.
Diante disso, resta-nos compreender do que se trata o saber
fazer do Mobon 22. É importante salientar que com o termo “saber fazer
do Mobon” não me refiro a uma inovação do movimento religioso, mas
sim onde as lideranças estudadas aprenderam esse conjunto de técnicas
e saberes de forma sistematizada e aplicada ao cotidiano.
Considero o saber fazer do Mobon (RABELO, 2019) como:

(...) um conjunto de técnicas, conhecimentos e saberes que


foram aprendidos pelas lideranças religiosas durante suas
experiências nos cursos do Mobon, bem como na vivência
cotidiana nas CEBs e as atividades proporcionadas por essa
rede social. (...) Para fins analíticos segmentei o saber fazer
em três conjuntos de estratégias aprendidas com a
finalidade de “anunciar a Boa Nova e testemunhar o reino
de Deus”, a saber: o organizacional; o comunicacional; e
o comportamental (p. 42).

Os saberes organizacionais dizem respeito à capacidade de


organização adquirida pelas lideranças que passaram pelo curso de
base, como a organização da estrutura geral, a metodologia e as
reflexões do curso a ser ministrado. Assim como saberes alcançados
através de experiências na dimensão de gestão, organização com
registros, relatorias etc. Com relação aos saberes comunicacionais,
tem-se como central a utilização de “parábolas”, uma linguagem
simbólica que aproxima a mensagem da realidade do público através de
comparações. Dizem respeito também à habilidade de falar em público,
o saber adequar o conteúdo ao público, o gestual, o canto, a dança, bem
como a performance de um modo de vida exemplar no cotidiano, que é
tanto um comportamento quanto uma forma de comunicação não
verbal. Já os saberes comportamentais se referem a comportamentos
que devem ser adotados não apenas durante os processos formativos,
mas principalmente na prática da vida, já que tornar-se um exemplo

22
O saber fazer faz parte do que Teixeira (2020, p. 152) chamou de “sistema de
aprendizado ‘do’ Mobon”.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 73


para a comunidade é fundamental para se tornar e manter-se como
liderança religiosa.
Diante de uma ampla gama de práticas possíveis para se
explorar dentro desse conjunto de técnicas, conhecimentos e saberes,
selecionei alguns dos mais recorrentes nas narrativas dessas lideranças,
a saber: a linguagem simbólica; a forma de organização pautada numa
metodologia reflexiva; e o comportamento exemplar na vida.
Com relação à linguagem simbólica, faz-se necessário salientar
que o público alvo do Movimento da Boa Nova era constituído
majoritariamente por trabalhadores rurais com baixa escolaridade
formal. Por isso a importância de uma conexão simbólica com o mundo
rural 23, tradicionalmente voltado para uma comunicação oral. A fim de
alcançar um diálogo efetivo com os fiéis, os missionários fundadores
do movimento apostaram no uso de “parábolas” e comparações, uma
linguagem simbólica que em última instância se trata do “método de
Cristo”.
É rotineiro tanto no Movimento da Boa Nova, quanto em seus
desmembramentos – como os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais
(STRs) e o Partido dos Trabalhadores (PT) a nível municipal – o uso de
uma metodologia reflexiva, pautada na metodologia do “ver-julgar-
agir” 24 que, resumidamente, consiste no uso de questionamentos acerca
de textos bíblicos relacionando-os às realidades das comunidades e dos
indivíduos que leem as passagens bíblicas. Ao estabelecer uma reflexão
que conecte os princípios bíblicos aos problemas cotidianos, essa
metodologia traz uma reflexão do contexto em que se vive e,
principalmente, como agir frente a esse problema.
São essas ações, guiada pelos preceitos morais dos textos
bíblicos, que ao se encadearem conformam uma conduta moral
específica a ser seguida, ou seja, é o que se espera da liderança. Nesse
sentido, “ser cristão de verdade” passa pela exemplaridade, pelo ser
“um exemplo” a partir do que se faz e não somente do que se diz. A
coerência necessária entre “fé e vida”, a ação na vida religiosa aparece
como complementar a fé.

23
Para saber mais sobre a comunicação e a representação simbólica no Mobon, ver
Oliveira (2010) e Teixeira (2020).
24
O método “Ver-Julgar-Agir” é atribuído à Joseph Léon Cardijn, fundador da
Juventude Operária Cristã (JOC). Cf. Castelhano (2017).

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Há que se notar que esses saberes estão interconectados. A
associação do texto bíblico abstrato ao cotidiano das lideranças
contribui tanto para a melhor assimilação da mensagem quanto para
inserir preceitos e normas morais na paisagem local. Assim, a paisagem
geográfica é usada como uma âncora visual ativando memórias
(BASSO, 1996) sobre os ensinamentos bíblico-religiosos e as formas
de ações esperadas pelo “verdadeiro cristão”, aquele que dá o
“testemunho de vida”. Ocorre que, nesse processo, não somente a
memória é ativada, mas também a imaginação e a reflexão, de modo a
realizar um “ajustamento situacional” (THEIJE, 2001, p. 43) da
mensagem às situações práticas multidimensionais da vida.
Apesar disso, compreender que mesmo dentro de uma rede de
lideranças, como a estudada, há especificidades em diversos aspectos é
de suma importância para não homogeneizar grupos sociais. Um
elemento que me parece central nessa análise diz respeito às diferentes
gerações presentes nessa rede. Percebê-las e buscar compreender a
forma como montam seu discurso e qual seu contexto de fala, permite
identificar elementos que unem, ou seja, que permanecem no grupo,
mas também prioridades distintas, dados diferentes contextos e
vivências. Em outras palavras, a preocupação está posta em não
cristalizar no tempo uma rede heterogênea que tem como central o fato
de entrarem no processo em etapas distintas.
O processo a que me refiro diz respeito à formação de lideranças
no Mobon, a formação das CEBs, a fundação dos Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais (STRs) e dos diretórios do Partido dos
Trabalhadores (PT) nos municípios em que residiam. Dessa forma,
como explorei melhor em Rabelo (2019), geração enquanto categoria
analítica utilizada neste trabalho emerge de um conjunto de
experiências vivenciadas dada a etapa do processo em que se inicia a
participação política. Ou seja, trata-se menos de geração no sentido de
faixa etária e mais da experiência que se tem ao iniciar sua participação
na política 25.
Este trabalho tem, portanto, o foco na transmissão de saberes
através de relações profundas da vida cotidiana, com centralidade nas
relações familiares e de parentesco por consideração, graças aos

25
Uma liderança que participou da fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais
em seu município já fazendo parte da direção aos 18 anos foi classificada como
primeira geração.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 75


valores partilhados e às comunidades formadas. Para análise de
elementos que fortificam essa rede de relações me baseei em relatos
formais e informais, observações de eventos, e análise documental. Os
relatos são referentes às narrativas de lideranças religiosas e/ou políticas
residentes de sete municípios da Zona da Mata Mineira; a observação
foi realizada em diversas reuniões de movimentos sociais e durante o
curso da Campanha da Fraternidade em 2018 na Casa de Cursos do
Mobon; no que tange à análise documental me foquei em livros
históricos sobre o Movimento da Boa Nova, em documentos analisados
na Sede do Mobon, como os cadernos que registram as listras de
presença, livros redigidos a mão sobre a história do Movimento, fotos,
e nos cadernos da Dona Cora Furtado Melo que contêm anotações
manuscritas, livretos e folhetos referentes às atividades do Mobon as
quais participava, desde a década de 1970.

2. Espaços de sociabilidade e as gerações


Como já mencionado acima, me utilizei em outro momento26
da categoria geração como uma categoria analítica que abrange um
conjunto de experiências vivenciadas dada a etapa do processo em que
se inicia a participação política. Trabalho com a hipótese de que haja
três gerações que passaram e/ou passam pela trajetória que me interessa
nesta pesquisa.
A primeira geração diz respeito àqueles adultos que se
formaram nos primeiros cursos do Movimento da Boa Nova, que
estiveram presentes na Casa de Curso do Mobon 27 em Dom Cavati, que
formaram Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e construíram o
Sindicato dos Trabalhadores Rurais e o diretório do Partido dos
Trabalhadores em seus municípios. Isto posto, a segunda e terceira
geração são responsáveis pela continuação e ampliação do processo.
Estas gerações posteriores se constituem de jovens que estavam
presentes na formação dos Sindicatos, mas não participaram
efetivamente, bem como aqueles que cresceram dentro das
comunidades, e por isso aprenderam o saber fazer do Mobon no dia a

26
Refiro-me novamente a Rabelo (2019).
27
Apesar do marco simbólico da fundação da Casa do Mobon em 1979, é importante
lembrar que os cursos eram oferecidos em outras casas de cursos, em salões
paroquiais, escolas, debaixo de árvores etc.

76 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


dia da família religiosa, vendo a atuação de familiares e/ou vizinhos nas
atividades das comunidades. Um aprendizado baseado em “relações
horizontais de parentesco e vizinhança, de trocas e reciprocidade”
(CINTRÃO, 1996). É importante elucidar, entretanto, que as três
gerações podem, e na maioria dos casos, se sobrepõem. Com isso quero
dizer que não há a substituição de uma geração para outra, a segunda e
terceira geração coabitam os espaços de sociabilidade juntamente com
a primeira geração.
De certa maneira, podemos dizer que a primeira geração está
construindo uma conduta moral a ser seguida juntamente aos
missionários, é a responsável por propagar a novidade de um “novo
modo de ser Igreja”. Nesse cenário, a importância da vida em
comunidade aparece como central. A análise dos materiais referentes
aos cursos, bem como as entrevistas e conversas com os missionários e
lideranças, traz a importância da vida em comunidade, já que eram
todos “irmãos em Cristo”.
Como pode ser visto no material manuscrito de Cora Furtado de
Melo, que participou do curso da Boa Nova 28 em setembro de 1970, em
Iapu/MG. O item seis, “Vivência Comunitária” versa sobre a
importância da união entre os fiéis. A vida comunitária emerge como
crucial para o verdadeiro cristão, já que a conversão é vista como
inserção e engajamento na vida religiosa na/da comunidade. Desse
modo, as assertivas “o homem não vive isolado”, “o cristianismo exige
vida comunitária” trazem consigo as premissas de quão significativas
são as relações interpessoais. Deve haver engajamento na comunidade
de forma a apoiar os convertidos, construindo uma força que vem da
união, da amizade, do diálogo.
Entretanto, o saber fazer do Mobon não se resume a preceitos
morais a serem seguidos, mas também a habilidades e práticas
aprendidas e valorizadas no âmbito das atividades religiosas. Entre
elementos centrais encontra-se o “testemunho de vida” que sinaliza se
a liderança é ou não um “cristão de verdade”, já que “assim também a
fé, se não se traduzir em obras, é morta em si mesma” (Tiago 2: 17).
Dessa maneira, a primeira geração carrega consigo a
“responsabilidade” não apenas de transmitir a “palavra de Deus”, mas

28
O conteúdo deste curso está presente no material de Cora Furtado de Melo. De agora
em diante, sempre que citar livretos ou manuscrito de cursos colocarei apenas o título,
o ano e a página referente.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 77


também servir de exemplo de “caminhada” a partir de uma conduta
moral que seja coerente entre o que se diz e o que se faz. A noção de
exemplaridade (HUMPHREY, 1997) é fundamental uma vez que
jovens “nascidos e criados” na comunidade aprendem através da
oralidade e da observação de exemplos.
Nesse sentido, entre os elementos que diferem a segunda e a
terceira da primeira geração está a constituição de um “sujeito moral”
(FOUCAULT, 2018) que não necessariamente passa pelos cursos do
Mobon. As lideranças crescidas num espaço de sociabilidade de uma
comunidade, já estabelecida pela primeira geração, vivem o saber fazer
do Mobon nas atividades cotidianas, nos diálogos entre vizinhos, nos
grupos de reflexão, na Pastoral da Juventude etc.
É importante não somente salientar o “efeito multiplicador”
(RABELO, 2019) dado o método expansivo dos ideais do Mobon – a
formação de lideranças religiosas que levassem os ensinamentos
religiosos para lugares de difícil acesso –, mas também a significância
de que muitas dessas lideranças religiosas se tornaram lideranças
sindicais e políticas. O contato próximo com lideranças que circulam
nesses diferentes espaços faz das atividades religiosas, sindicais e
políticas “coisas comuns” para as lideranças emergentes.
A vivência da exemplaridade e coerência entre ação e oração
como uma “missão” nas relações parentais e comunitárias faz com que
a entrada das novas lideranças na Pastoral da Juventude, no STRs e no
PT sejam vistas como “uma coisa natural” por elas. É nessa perspectiva
que se faz importante compreender essa transmissão de saberes
horizontais na vivência, via memórias e observações do cotidiano.
Vejamos a seguir como o saber fazer do Mobon ganha vida através das
relações parentais.

3. Transmissão do saber fazer via relações parentais


Nessa seção, argumento que o saber fazer se desloca junto aos
corpos morais sendo passíveis de aprendizado tanto no núcleo familiar,
como dentro das atividades das comunidades – os Grupos de Reflexão,
o Grupo de Jovens e a Pastoral da Juventude. O que significa dizer que
a formação das lideranças de segunda e terceira geração, não se deu

78 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


necessariamente nos cursos 29 na Casa do Mobon 30, mas sim através do
cotidiano cebista, graças às ações das lideranças de primeira geração
que a fundaram e/ou dinamizaram uma comunidade já existente. Nesse
contexto, é interessante perceber que estes saberes foram passados
através de relações parentais podendo variar no conteúdo, mas
mantendo um núcleo forte em questões metodológicas: como a
discussão em grupos; os temas serem adaptados ao contexto local,
refletidos e debatidos; a formação de lideranças antes que eles saíssem
para ministrar um curso; os cursos serem ministrados em duplas etc.
A atenção está voltada para a importância das transmissões de
saberes e formas de fazer aprendidas no Mobon que dão tonalidades
distintas às atividades de família e grupos específicos. É nessa
perspectiva que chamo a atenção para o papel das narrativas, da
memória e da tradição oral, mas também das atividades cotidianas
praticadas na circulação entre os espaços de sociabilidade
caracterizados por relações profundas e duradouras.

3.1 Parentesco biológico ou por afinidade


Considerando tanto a família biológica como a família por
afinidade (matrimônio), argumento sobre sua centralidade na
construção social destas lideranças de segunda e terceira geração. É
comum ouvir dessas lideranças “sou nascida e crescida na
comunidade”, sugerindo tanto um sentimento de pertencimento, como
também de aprendizado de formas de se relacionar nesse espaço
comunitário. Dito de outro modo, as novas lideranças crescem num
ambiente em que as CEBs já existem e já fazem parte da organização
rotineira da vida. A rotina dos grupos de reflexão e das atividades da
comunidade são aprendidas como “naturais” desde muito cedo na vida
destas lideranças, estabelecendo “relações comunitaristas” (RABELO,
2019). Pode-se perceber a importância da influência da mãe na criação
religiosa dos filhos. O acompanhar a mãe é frequente nas narrativas,
como pode ser visto abaixo:

29
Os cursos para formação de lideranças consistiam no Pré-Boa Nova e no Boa nova.
30
Para saber mais sobre a Casa do Mobon ver Oliveira (2012), Teixeira e Rabelo
(2019).

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 79


No final dos anos 80, onde eu ali estava com uns 13, 14
anos né, na fase da adolescência e comecei a ter o contato
com o trabalho de comunidade. Eu acompanhava minha
mãe nas rezas, nos cursos de... naqueles cursos do Pré-
Boa Nova de Natal de Semana Santa, eu acompanhava
minha mãe e ali eu fui ouvindo aquelas reflexões, aquelas
coisas que o povo falava. Eu já conseguia ler e o povo me
colocava pra fazer umas leituras né. (Joaquim Pedro 31,
segunda geração, relato, 24.02.18).

Acompanhar a mãe nas rezas, nas missas e nos cursos emergem


como memórias recorrentes quando lideranças relatam sua trajetória. É
a partir daí que se inicia a vida na religião e a participação nas
comunidades. Uma das características do Mobon/CEBs é o incentivo
da participação de todos, incluindo os mais jovens e mais tímidos,
durante os cursos e eventos.

(...). Eu já tenho influência dentro de casa, né. Eu sou


católica, sou da religião católica, sempre participei,
minha mãe sempre me levou pra Igreja, então, desde
pequena que eu participo do movimento das CEBs, desse
núcleo, do grupo de reflexão, de tá na catequese, então...
meu pai nunca gostou de igreja, meu pai não é de ir na
igreja, mas o meu tio Joaquim Pedro que é dos
movimentos sociais também, a gente morava junto então
ele sempre me, ajudava minha mãe me carregar, desde
pequena gordinha, pesadinha, então assim, ele ajudava a
minha mãe, então desde criança que eu participo desse
núcleo das CEBs. Eu não participei de curso do Mobon,
assim sabe porque eu sou dessa geração mais nova então
eu não peguei tanto, mas das CEBs eu sempre participei
e eu me identifico né, da religião, daí que eu acho que me
engrenei nos movimentos sociais, porque fui crescendo
né, então depois eu passei, fui ser catequista, então passei
um tempo sendo catequista na comunidade, depois eu me
identifiquei com o cântico, que eu adoro cantar, então fui
fazer parte da equipe de cântico, depois fui chamada pra
fazer um curso de formação em relação a jovens (...)
(Elaine Vitoria, terceira geração, relato, 24.02.2018).

31
Os nomes aqui citados são pseudônimos.

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Ao ser levada pela mãe e pelo tio para participar das atividades
religiosas, Elaine Vitoria vai crescendo e participando de espaços mais
adequados, ou seja, os destinados aos jovens como a catequese e,
seguindo e se formando enquanto liderança, passa a ser catequista na
comunidade. Em seguida, se identifica com os cânticos, oração que
envolve outros meios de sensorialidade e que também remetem à
família, uma vez que seu tio vai se configurando enquanto figura
exemplar também na animação de eventos de base.
Ao se adentrarem aos subgrupos dentro desse espaço de
sociabilidade que é a comunidade, as lideranças mais jovens vão se
destacando pelo “dom” da liderança que se manifesta no falar acessível
a todos, na capacidade de aglomerar pessoas ao redor de suas propostas,
e principalmente, no “puxar a gente pra agir”.
Repare que os Grupos de Reflexão já se encontravam
consolidados para a segunda e terceira geração, em contraposição à
primeira, cuja responsabilidade estava na sua criação. No que tange a
organização, Roberto Castro, liderança de segunda geração, exprime
sua “paixão” pela metodologia reflexiva dos grupos de reflexão e da
Pastoral da Juventude:

(...) as aulas das Pastorais, as aulas do Grupo de Reflexão


é uma coisa muito bacana, porque esse negócio de
discutir a realidade, querer transformar a realidade, isso
é pra mim isso... então... a trajetória minha toda eu tava
na Pastoral da Juventude, mas também participava dos
Grupos de Reflexão (Roberto Castro, segunda geração,
relato 22.03.18).

De acordo com Roberto Castro, após estudarem bastante no


Grupo de Jovem, e depois de terem sido preparados, começaram a fazer
o trabalho de formação com outros jovens e organizar o Grupo de
Jovem em outras comunidades rurais.

Assim um troço muito bacana, aí no final que a gente já


tava trabalhando, os grupos de jovens já tava trabalhando,
a mesma formação que tava trabalhando na minha
comunidade, todos os jovens estavam fazendo em outra
comunidade (Roberto Castro, segunda geração, relato,
22.03.18).

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 81


Apesar de Roberto Castro nunca ter ido ao Mobon e não ter feito
curso da Boa Nova, ele aprendeu a metodologia de reflexão ensinada à
geração anterior através dos Grupos de Reflexão. Essa mesma
metodologia de reflexão sobre textos bíblicos poderia ser utilizada de
outra maneira e foi o que aconteceu com a Pastoral da Juventude em
seu município. Vejamos o que a liderança diz q esse respeito:

(...) aí depois de uns três anos que a gente tava fazendo


esse trabalho, foi lá tivemos o primeiro envolvimento
com a questão política, porque a gente trabalhava
religião, preparar as pessoas ali pra discutir a importância
da religião ali na zona rural era muito forte. A partir dali
nos também começamos a discutir a questão política, aí
começamos a discutir, na época era um pouco mais forte
discutir essa questão de, de... começamos a discutir a
questão dos partidos... (...) aí começamos a fazer uma
discussão de partido de esquerda, o que significava
partido de esquerda, de centro, isso era bem forte na
época, de direita e tal (...). Eu tava militando na Pastoral
da Juventude, mas já fui convidado pra fazer parte do
Movimento Sindical, mas sempre com esse elo no grupo
de reflexão... (Roberto Castro, segunda geração, relato,
22.03.18).

Como pode ser visto, as lideranças vão participando, se


engajando e criando espaços baseados na metodologia das CEBs e dos
Grupos de Reflexão, incentivados pelo Mobon. De forma semelhante
às CEBs, e Grupos de Reflexão, a segunda e terceira geração não
criaram o STRs, mas através dos trabalhos em comunidade, era comum
ter contato com lideranças que também participam do Movimento
Sindical. Os STRs, amparado pelo “ser cristão”, amplia as questões
sociais e políticas de forma mais explícita para o mundo do trabalhador
rural, ou seja, as leis, direitos e deveres correspondentes, como pode ser
visto no relato abaixo.

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(...) a minha família sempre foi sem-terra, então meu pai
sempre trabalhou nas fazendas e era um cara muito
requisitado pra trabalhar nas fazendas e tal e aí a gente
vem pra trabalhar numa fazenda, numa parceria de meia
e nessa comunidade eu comecei então a ter o contato com
o movimento sindical. Tinha 15 anos de idade, em 1990,
mais ou menos assim, é o contato com o movimento
sindical. E por ter como base, a vivência de participar
daquelas atividades da comunidade, o movimento
sindical deu uma visão muito ampla da questão social, da
questão política e tudo (Joaquim Pedro, segunda
geração, relato, 24.02.18).

Como pôde ser visto até aqui, o aprendizado do saber fazer do


Mobon perpassa pelas redes de sociabilidades presentes na
comunidade. Até aqui, trouxe a importância das relações de parentesco
pela família biológica. Vejamos agora a importância das relações
profundas e duradouras que se estabelecem e se consolidam como uma
“família de segunda ordem”.

3.2 Parentesco por consideração ou “família de segunda ordem”


Se por um lado a família biológica e por afinidade tem papel
central na transmissão desses saberes, por outro não podemos
negligenciar a construção de relações profundas e duradouras também
como essenciais neste processo.
Como já mostrado por Comerford (2003) na Zona da Mata
mineira, e por Oliveira (2012) e Weitzman (2016) no Leste mineiro, o
Mobon teve importante influência na ação da vida cotidiana
influenciando e contribuindo para que suas lideranças se organizassem
em comunidades, estimulando a atividade em organizações sociais. De
acordo com Comerford (2003), os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais
da Zona da Mata Mineira passaram por forte influência do Mobon e das
CEBs, percebendo a formação de uma “família de segunda ordem”
(2003, p. 252) no processo de estabelecimento e consolidação do
sindicato (e do partido).
Nessa lógica, dou ênfase à importância da dimensão da
experiência vivida na partilha de valores, na construção de relações que
podem ser vistas como da “família de segunda ordem”, nas narrativas
de lideranças religiosas e políticas de diversos municípios da Zona da
Mata Mineira entre 2016 e 2018.

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Defino como parentesco por consideração um conjunto de
categorias acionadas durante os diálogos que estão para além da
dimensão do biológico e da afinidade, ainda que esses elementos
possam estar presentes, sendo aprofundadas na dimensão das relações
e da experiência intersubjetiva. Tais categorias como
“companheiro/companheirão”, “irmão”, “irmão de luta”, “compadre”,
“afilhado”, “somos filhos do mesmo pai” e “somos irmãos perante a
Deus”, remetem à “relacionalidade” (CARSTEN, 2000).
Como já explorado acima, “na comunidade deve haver
participação, ambiente de família, confiança, liberdade, aceitação,
muita solidariedade” (BOA NOVA, 1970). É nesse ambiente que a fé
se constrói e se fortifica. Em suma, numa dimensão ideal a comunidade
vai se conformando como um ambiente familiar, onde as pessoas se
sintam à vontade, pertencentes e tenham confiança suficiente para
participar de forma solidária. A comunidade, portanto, é um espaço de
união e solidariedade.
As noções de “relacionalidade” (CARSTEN, 2000) e
“mutualidade do ser” (SAHLINS, 2011) emergem neste trabalho
contribuindo para a reflexão de como o partilhar (seja da vida, das
alegrias, das dores, dos sonhos, da comida, dos espaços) cria laços mais
ou tão fortes que os laços de sangue, os parentes por consideração.
É instigante pensar como as experiências vivenciadas por essas
lideranças vão se conformando enquanto uma “caminhada”, um
processo que dá legitimidade a ser chamada de “liderança de base”. A
“caminhada” exemplar tem como modelo a “caminhada de Jesus”,
sendo que o saber fazer aprendido contribui para uma conduta esperada
nessa caminhada. A noção de “relacionalidade” (CARSTEN, 2000) nos
permite afastar o privilégio substancialista da noção de família,
mostrando como valores e qualidades morais são necessárias para que
a vida social se manifeste de acordo com o “bem comum” esperado.
Nesse sentido, o parentesco aqui pode ser pensado mais além da
dimensão sanguínea, abrangendo também a dimensão da experiência
vivida. Também focado no poder das relações, Sahlins (2011) considera
que parentesco é a “mutualidade do ser”, ou seja, as pessoas que são
intrínsecas à existência do outro, a ideia de “pessoas mútuas” e de
“pertencimento intersubjetivo”. Nessa linha de raciocínio que privilegia
as relações sobre as substâncias, haveria, então, um catálogo de meios
comuns de formação de parentesco, que inclui: comensalidade, partilha

84 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


de alimentos, corresidência, memórias compartilhadas, trabalho em
conjunto, amizade, sofrimento compartilhado, e assim por diante.
Ora, as memórias partilhadas pelas lideranças estudadas trazem
à tona não só a comensalidade, mas também o sofrimento da ausência
do alimento; do acolhimento em casa face uma perseguição e ameaça
de morte; do trabalho coletivo e da rede de solidariedade que se formou
junto aos sindicatos dos trabalhadores recém-criados na Zona da Mata
mineira; da amizade que está acima dos conflitos cotidianos.
Mais que um partilhar de moralidades, se tratava uma
moralidade não somente religiosa, mas também política, na medida em
que “a fé sem ação é morta” e, portanto, os ensinamentos bíblico-
religiosos deveriam ser expressos no “testemunho de vida” dessas
lideranças. Dessa forma, a prática orientada diariamente pelo que era
considerado como o “bem comum” por esses líderes os colocava em
situações de partilha como: os cursos realizados em casas de cursos ou
na Sede do Mobon com duração de três a seis dias; a ida em duplas a
outras comunidades desconhecidas para passar o ensinamento recebido;
a reunião semanal com os vizinhos nos grupos de reflexão e
mensalmente com os coordenadores de outros grupos durante o
plenário; a organização de mutirões para a construção de capelas, de
ajuda com a colheita e com construções entre compadres etc.
As narrativas de lideranças dessas comunidades mostravam o
compartilhar de uma memória coletiva do “pessoal do Mobon” que se
aproxima bastante da noção de mutualidade do ser. Esse vínculo
construído com base no partilhar da experiência, partilhar da dor, das
conquistas e da luta, mais do que religioso se tornou também um
vínculo político, que não se resumia apenas a “ser irmão em cristo”,
mas de estar entre os irmãos que atuam na dimensão do social, os irmãos
que lutavam para ajudar ao próximo. Waldeci Ribeiro diz que “o
segundo mandamento nos diz que devemos amar ao próximo como a ti
mesmo. Como eu poderia ver meu próximo precisando de ajuda e não
ajudar?” (Waldeci Ribeiro, primeira geração, relato, 25.07.16). De tal
modo que, mais que unidos pela fé, essas lideranças estavam unidas
pela partilha cotidiana da existência, pela ação coletiva em função de
um ideal comum.
Se entendermos parentesco como Sahlins (2011) ao dizer que
são intrínsecos uns aos outros, que sofrem suas dores e partilham suas
alegrias, de tal forma que um sistema de parentesco possa ser
compreendido como um emaranhado de participações intersubjetivas,

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 85


fundadas na mutualidade do ser, fica evidente que essas experiências
são mais que individuais, são intersubjetivas.
Comerford (2003) traz a fala de um presidente de um STR que
sinaliza a importância dos projetos e experiências intersubjetivas: “o
sindicato é como a minha família”, mostrando que essa fala era mais
que uma comparação simples, mas que envolvia riscos e
respeitabilidade. E como mostra o autor, quando se pensa em Sindicato
dos Trabalhadores Rurais na Zona da Mata Mineira, é necessário pensar
o Mobon e as CEBs, dada sua grande influência. Logo, considerando
os sindicatos dos trabalhadores rurais nessa região como
desdobramentos do Mobon e das CEBs, essa fala sintetiza também a
importância das relações sociais (e por que não parentais?) construídas
nesse processo.

Considerações finais
O Mobon, movimento católico pós-conciliar com objetivo de
formar lideranças religiosas e transmitir conhecimentos bíblico-
religiosos, foi um importante agente na formação de lideranças e
comunidades na Zona da Mata e Leste de Minas Gerais. A formação
não se relaciona com o objetivo de obtenção de um diploma, mas sim a
um modo de ser e agir no mundo, o “testemunho de vida”. E por ser o
exemplo a melhor forma de transmitir a mensagem é que as lideranças
de comunidades, que chamei de primeira geração, se esforçaram para
criar comunidades semelhantes aos preceitos morais ensinados durante
os cursos e vivências no Mobon. Sendo os responsáveis por “levar a
palavra” não só aos irmãos contemporâneos, mas também às gerações
futuras.
Trabalho com a categoria geração para compreender a
centralidade de uma primeira geração de lideranças na transmissão do
saber fazer do Mobon para as gerações posteriores. Entretanto, geração
(marcada em itálico) não diz respeito à idade cronológica, mas sim à
etapa do processo de formação religioso-político em que a liderança
entra no “movimento”. Podemos perceber que lideranças da segunda e
terceira geração, mesmo não tendo participado dos cursos na Casa do
Mobon, aprenderam os elementos essenciais do saber fazer 32 em outros

32
Saberes organizacionais, saberes comunicacionais e saberes comportamentais. Para
saber mais sobre o saber fazer do Mobon, conferir Rabelo (2019, p. 42).

86 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


espaços de sociabilidade, como as comunidades, os grupos de reflexão,
os sindicatos etc.
Importante perceber que, apesar da centralidade da família
biológica na transmissão do saber fazer, essa transmissão não se esgota
nela, transbordando para o que podemos chamar de parentesco por
consideração ou “família de segunda ordem”. Tais categorias retratam
a construção de relações profundas e duradouras que brotam na partilha
da experiência de viver.
Os conhecimentos transmitidos, entre eles o saber fazer do
Mobon, vão sendo ajustados às situações e desafios contemporâneos,
preceitos morais vão sendo ressignificados de acordo com os dilemas
que emergem do intercruzamento de dimensões práticas distintas. A
reprodução dos conhecimentos, mas também a produção do novo, vão
se balizando e constituindo novas lideranças, com especificidades
distintas, mas pontos fortes em comum.

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Rio de Janeiro, 2016.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 89


5
Movimento da Boa Nova e a lógica simbólica da
comunicação popular entre missionários
sacramentinos e católicos de comunidades rurais
Ramon da Silva Teixeira

Introdução
Consoante à proposta de aggiornamento proveniente do
Concílio Vaticano II (1962-1965), o Movimento da Boa Nova (Mobon)
foi (re)fundado pelos sacerdotes da Congregação dos Missionários
Sacramentinos de Nossa Senhora no final da década de 1960. Deste
modo, o movimento é uma espécie de continuidade ‘com mudanças’ 33
do Movimento de Apostolado dos Pioneiros do Evangelho (Mape),
iniciado em 1946 na Diocese de Caratinga, na Zona da Mata de Minas
Gerais.
O Mobon é um movimento católico de evangelização que parte
de um método pastoral (ARAÚJO, 1999) ou de formação bíblico
teológica popular continuada, que se efetiva a partir de cursos de
formação de lideranças – nomeadamente cursos “Pré-Boa Nova”, “Boa
Nova”, “Campanha da Fraternidade” e “Mês da Bíblia” –, que ocorrem
nos espaços e casas de curso da Igreja Católica ou na Casa do Mobon 34,
e de “cursos de base”, realizados in loco nas comunidades de base.
Assim, os objetivos principais do movimento são a criação e
manutenção de comunidades; e a formação de lideranças (GOMES,
ANDRADE, 2011; OLIVEIRA, 2012; RABELO, 2019; TEIXEIRA, R.
S., 2020).
A base da formação de lideranças do Mobon é o diálogo em toda
sua complexidade. Em outras palavras, partindo-se de uma
comunicação dialógica e contextualizada, sobretudo, considerando a
realidade dos participantes advindos de comunidades rurais – o maior
33
Ao longo do texto utilizarei aspas simples (‘x’) para problematizar termos e
expressões, bem como para marcar as aspas duplas dentro de citações bibliográficas
longas; aspas duplas (“x”) para as falas dos informantes e citações bibliográficas;
itálico para as categorias nativas e palavras estrangeiras (x) e o sublinhado para marcar
minhas próprias ênfases (x).
34
Sobre a Casa do Mobon, cf. Teixeira, R. S.; Rabelo (2019).

90 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


público dos cursos –, a interação entre leigos católicos 35 e missionários
sacramentinos, mediadores dos cursos, forma algumas lideranças e
desperta nelas (e em parte de suas comunidades), a crença “na
autonomia para a resolução de problemas” (THEIJE, 2002, p.26).
Processo que, historicamente, influiu em uma série
empreendimentos comunitários e/ou associativistas com vistas a
“ajudar o outro” (THEIJE, 2002, p.270-271) na Zona da Mata mineira.
Além dos sindicatos (COMEFORD, 2001) e da atuação político-
partidária (OLIVEIRA, 2012; RABELO, 2019), direta ou
indiretamente, a ação do Mobon, ajustada situacionalmente por aqueles
que “fazem a luta”, contribuiu para o desenvolvimento de cooperativas
(cf. SILVA, M. G., 2010; FREITAS, FREITAS, 2013); motivou a
“conquista de terras em conjunto” (cf. VILLAR, 2014; CAMPOS,
2006); serviu como uma das bases para a construção do ‘movimento
agroecológico’ (cf. CINTRÃO, 1996; VILLAR et al., 2013; SILVA,
M. G., SANTOS, 2016; SILVA, M. G., 2017a, 2017b) bem como,
contribuiu para o desenvolvimento da Pastoral da Saúde e da
Homeopatia nesta região (cf. RIBEIRO; COELHO; TEIXEIRA, T. H.,
2015); foi parte importante para o desenvolvimento do Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB) no Alto Rio Doce (OLIVEIRA;
ROTHMAN, 2008); entre outros resultados.
Dito isso, este capítulo objetiva apresentar e analisar a
comunicação popular praticada entre os missionários sacramentinos,
ministrantes dos cursos do Mobon, e os cursistas. Ou seja, pretende
demonstrar como se operacionaliza essa comunicação popular durante

35
As expressões “leigo”, “leiga” ou “liderança leiga” é recorrente tanto entre
missionários quanto entre os fiéis com que tive contato. O termo é utilizado para
designar aqueles que possuem o papel de missionário, mas que não fizeram votos
religiosos. Embora o termo “leigo” no seu sentido comum seja um termo pejorativo –
isto é, quem não possui conhecimento especializado em determinada área, visto como
“ignorante” –, aparece no discurso tanto dos clérigos quando dos fiéis como uma
qualidade, um status importante. Nas narrativas clericais, o termo “leigo” vinha
sempre seguido da sua importância e dever, leigo é todo aquele que foi batizado e
assume o compromisso de ser cristão. Na perspectiva “da libertação”, como escreveu
o missionário sacramentino Denilson Mariano da Silva, “Trata-se de pessoas que
assumem a missão própria de seu batismo e exercem o seu protagonismo na vida
eclesial e social” (SILVA, Denilson Mariano da, 2019, p.69). Entre as ditas
“lideranças leigas”, o termo aparece como “eles chamava a gente assim”. Neste
trabalho, tal como em Rabelo (2019), sempre que me referir a “lideranças” estou
remetendo a ditas “lideranças leigas”.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 91


os cursos. Espera-se evidenciar, por meio da análise ritual, a maneira
como a comunicação sobre o Evangelho estabelecida entre os
mediadores religiosos e seu público leigo das comunidades rurais
durante os cursos do Mobon se edifica sobre inferências do mundo do
trabalho camponês (e operário). O que explica parte de sua pertinácia 36
junto a esse público.
Isto posto, esse capítulo é um dos resultados da investigação
realizada sobre a relação entre o engajamento político-social, em seu
sentido mais amplo – no movimento sindical de trabalhadores rurais;
em movimentos sociais diversos; em partidos políticos e na atuação na
política institucional em âmbito municipal, estadual e federal; em
diferentes tipos de associações; em cooperativas; na fundação e
manutenção de escolas família agrícolas; em movimentos religiosos e
pastorais sociais da Igreja Católica, etc. – e a formação popular advinda
do contato, direto ou indireto, de leigos católicos com o
Mobon/Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
Sobre a pesquisa de campo que realizei, é importante dizer que
a investigação não foi realizada em imersão no cotidiano das CEBs. De
outro modo, segui as lideranças ‘no’ movimento. Ou seja, acompanhei
os passos de algumas lideranças em diversas situações e eventos e/ou
participando-observando parte de seus cotidianos. Portanto,
acompanhei, nos ‘bastidores’ e em suas atuações em diversos
momentos, os católicos que:

“(...) provavelmente são mais conscientes das escolhas que


fazem e refletem sobre as motivações e explicações dos
diferentes elementos de sua religião. Tomaram uma
decisão deliberada num contexto em que ‘todo o mundo’ é
católico. Em outras palavras, é provável que esses atores
‘teologizem’ (Harrel, 1986, p.101-2) sobre suas convicções
e ideais religiosos e sobre suas práticas coletivas e
individuais relativas ao religioso. Eles são ‘entendidos’
(Fernadez, 1982 p.79)” (THEIJE, 2002, p.29).

A pesquisa de campo foi realizada de outubro de 2017 a


novembro de 2019. Nesse período, geralmente à convite de algumas

36
O termo se refere à persistência de longa duração, social e política, de alguma
prática. Cf. Silva, Douglas Mansur da (2006, p.132 e 145).

92 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


lideranças, circulei por diferentes localidades de Minas Gerais 37 e
‘naveguei’ por uma extensa rede social ‘católica’ “da libertação”. Em
deslocamento, de evento em evento, fui ‘descobrindo’ que “para julgar
e saber de julgamentos, é necessário movimentar-se” (COMERFORD,
2014, p.107). Assim, tal como os adivinhos bem informados entre os
Azande (cf. EVANS-PRITCHARD, 2005, p.104-108), deparei-me com
várias gerações ‘do Mobon’, narrativas, situações, julgamentos e
conflitos sociais.
Durante o giro, considerei as informações que os agentes da
cultura acharam que o pesquisador “deveria saber” (SEEGER, 1980,
p.38). Deste modo, em contato com um emaranhado de processos
comunicativos (BAUMAN; BRIGGS, 2006) e enredando distintas
situações, percepções e relações comuns e discrepantes, foi possível
edificar um corpus narrativo que será utilizado para descrever e refletir
sobre a questão posta neste capítulo.
Para analisar especificamente a comunicação popular entre
missionários e os cursistas direcionei minhas observações para a
linguagem “em uso”. Isto é, fixei meu interesse “(...) na ação (e
compreendemos inclusive a fala como tal) (...). No exame do evento e
do ritual, [onde] objetivos teórico-intelectuais e político-pragmáticos se
unem” (PEIRANO, 2001, p.10). Destarte, atento aos modos de dizer e
fazer das lideranças posso dizer que tive acesso a “atos de sociedade”
que deixaram “entrever classificações implícitas entre seres humanos,
humanos e natureza, humanos e deuses (ou demônios), por exemplo”
(idem).
Devido à limitação de espaço, apresentarei uma discussão
sintética sobre a operacionalização da comunicação popular entre
missionários sacramentinos e católicos de comunidades rurais me
utilizando de um breve relato do que vivenciei durante o Curso da
Campanha da Fraternidade de 2018 (Curso da CF 2018), na Casa do
Mobon, em Dom Cavati. Analisarei alguns elementos que dizem sobre
a maneira como essa comunicação sobre a “Boa Nova do Evangelho”

37
Barão de Cocais, Belo Horizonte, Caratinga, Cataguases, Divino, Dom Cavati,
Espera Feliz, Ipatinga, Manhumirim, Muriaé, Paula Cândido, Tarumirim, Viçosa.
Enquadrando esses municípios nos “territórios de governança da Igreja Católica”,
circulei pelas dioceses de Caratinga, Itabira e Coronel Fabriciano, Leopoldina e pelas
arquidioceses de Mariana e Belo Horizonte.

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se edifica sobre inferências do mundo do trabalho camponês (e
operário), o que explica parte de sua pertinácia junto a esse público.

1. O Curso da CF de 2018, as questões do “homem do campo” e


algumas comparações

Tive a oportunidade de vivenciar o Curso da CF 2018 em todas


as suas etapas: preparação, realização e parte do pós-evento. Estive na
Casa do Mobon, em Dom Cavati, no período de 06 a 11 de fevereiro de
2018. O Curso aconteceu de 09 (sexta-feira) a 11 (domingo),
começando por volta de 16h20 e terminando após o almoço. Por razões
de espaço, aqui acionarei apenas informações e cenas que dizem
respeito à comunicação popular entre mediadores e público durante a
realização do curso, alvo da análise neste texto.
Entre anciãos e anciãs, adultos e jovens, participaram do curso
sessenta pessoas. Sendo trinta e seis homens e vinte e quatro mulheres,
advindos das seguintes localidades: Alvarenga; Inhapim; Ubaporanga;
Dom Cavati; Entre Folhas; Imbé; Ipaba; Tarumirim; Simonésia; São
Domingos das Dores; Iapu; Caratinga e Viçosa. A propósito da
discussão deste artigo, tal como já apontado em outra oportunidade por
Resende (1988, p.11) e Oliveira e Zangelmi (2009, p.216), é importante
frisar que a maioria dos cursistas do curso era proveniente de
comunidades rurais. Notei apenas duas pessoas do meio urbano: uma
professora, que me disse ser de comunidade urbana de Caratinga e um
cursista ‘veterano’ na Casa. Conversando com terceiros, soube que ele
era de uma comunidade de base da área urbana de Viçosa.
Durante os dias de curso, vivenciei a mediação feita pelo
missionário João Resende, um dos fundadores do Mobon. O tema da
Campanha da Fraternidade daquele ano foi “Fraternidade e superação
da violência” e o lema “Vós sois todos irmãos” (Mateus 23, 8). O
diálogo e a formação sobre o tema se arregimentaram a partir da leitura
e reflexão coletiva do livrinho de curso, cujo texto foi escrito por João
e Denilson Mariano, outro missionário ligado ao Mobon. Conforme
figura 1, o curso aconteceu a maior parte do tempo em um salão, como
se fosse uma “aula”.

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FIGURA 1 - JOÃO RESENDE, DE PÉ, EM FRENTE AO QUADRO NEGRO E À
TELA DE PROJEÇÃO, CURSO CF 2018, NA CASA DO MOBON.

FONTE: O Autor (2018).


Em outras palavras, apesar das mudanças de conteúdo e da
intenção das “aulas bíblicas” do Mape para os “cursos” do Mobon 38, o
formato de fazer o compartilhamento do conhecimento, na maior parte
do tempo, continuou sendo o mesmo. Quer dizer, a partir de aulas, em
seu formato convencional, em que o missionário cumpre o papel de
professor, se posicionando à frente dos catequizandos, utilizando, ora
ou outra, o quadro e o giz (ou mais recentemente, tecnologia de
projeção) e controlando a fala do público.
Abaixo, o croqui do primeiro dia de curso nos fornece a
dimensão da espacialidade do salão de cursos da Casa do Mobon e uma
noção da situação média de interação que se viu durante o Curso da CF
2018. A linha vermelha pontilhada marca a movimentação do
missionário, em sua interação com o público.

38
O Mape possuía o objetivo de formar lideranças leigas para combater os
protestantes e defender a Doutrina Positiva da Igreja Católica. O Mobon, por sua vez,
possui o objetivo de formar comunidades de base e formar lideranças que assumam
seu papel de protagonistas nas comunidades, replicando cursos e assumindo alguns
serviços religiosos, como o ministério da palavra, da eucaristia e outros serviços,
como o engajamento em pastorais, grupos e movimentos da igreja Católica.

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FIGURA 2 – CROQUI QUE RETRATA A ESPACIALIDADE E A SITUAÇÃO
MÉDIA DE INTERAÇÃO ENTRE JOÃO RESENDE E O PÚBLICO DURANTE O
CURSO

FONTE: O Autor (2018)39.

Ao longo dos dias, os cursistas – que, no primeiro dia, foram


divididos em sete pequenos grupos para discussão das “chaves de
leitura” dos sete encontros do livrinho do curso e suas respectivas
questões problematizadoras 40 –, foram sendo chamados à frente para
apresentarem suas reflexões sobre o que discutiram para os demais
presentes, no salão. Esse momento cumpria a função de um “plenário”,
onde um ou mais representantes dos pequenos grupos compartilhavam
o que refletiram e se deparavam com a diversidade de opiniões. Essa
foi a principal dinâmica do curso.
É mister dizer que, além do formato de ‘transmissão’ do
conhecimento, do Mape também foi aproveitado pelos fundadores do

39
Baseado em anotações do caderno de campo, dia 09/02/2018 (p.2).
40
Ao fim das chaves de leitura propostas em cada encontro do livreto de curso, as
questões problematizadoras provocavam a reflexão aproximando “vida e fé”, levando
os cursistas a pensarem e proporem uma ação comunitária concreta. As chaves de
leitura enquadram as situações sobre as quais o indivíduo ou o grupo quer conversar
e refletir durante os cursos. Em última instância, as questões problematizadoras
querem indagar “o que a fé cobra de nós?”, aqui e agora.

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Mobon a consideração do modo de vida dos camponeses, sobretudo,
pequenos sitiantes e meeiros (que trabalhavam para fazendeiros médios
ou “grandes” para os parâmetros locais), que plantavam café e lavouras
brancas. Desta maneira, os missionários desde o Mape prezam por
publicar folhetos/roteiros/livretos de curso em linguagem acessível, rica
em metáforas, comparações e imagens relacionadas aos costumes e
práticas do meio rural, assim como buscam se comunicar verbalmente
deste modo.
O modo de vida dos agricultores é tomado como referência para
a leitura ajustada da mensagem bíblica “às questões atuais” e para o
balizamento de reflexões sobre “as consequências práticas da fé”.
Como consta no livro da História da Casa do Mobon (f.81, verso):
“(...). De acordo com as necessidades o movimento da
Boa Nova vai procurando tirar as consequências práticas
da fé. No momento a concretização desta exigência de fé
está se concretizando através do aviso: Evangelho do
Agricultor. Este aviso é uma tentativa de fazer uma
leitura do Evangelho diante das necessidades e
problemas do homem do campo”.

Se se observa historicamente os livrinhos de curso do Mobon


e/ou as anotações dos Cadernos de Dona Cora 41, ao analisar os termos
conversacionais com que se apresenta o texto bíblico para os cursistas
do Mobon, perceber-se-á que a mensagem bíblica é apresentada por
meio de “chaves de leitura” em que os cursistas tem acesso a trechos
selecionados da Bíblia, bem como a lições ‘morais’ por meio de
comparações, parábolas e metáforas que aproxima o texto lido da
realidade dos cursistas. Essa maneira de fazer (re)inseriu, de maneira
mais ‘formalizada’, os “pequenos” dos córregos em “uma ‘cultura
bíblica’ que serviria de referência para se pensar as experiências
vividas” (VELHO, 2007, p.106).

41
Como descreveu Oliveira (2012), “Dona Cora, [é] uma leiga participante do Mobon,
desde sua fundação, que: anota cuidadosamente, desde 1970, o conteúdo dos cursos
que eram escritos nos quadros, arquiva os livros distribuídos pelos missionários, as
respostas construídas pelos grupos formados durantes os cursos e, algumas vezes, seus
sentimentos em relação ao curso. O caderno de Dona Cora é uma fonte importante.
Sua formação em história contribuiu muito para que valorizasse o arquivamento de
tantas informações” (p.35).

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Na Casa do Mobon – sobretudo, olhando para o quintal que
rodeia a capela –, alguns elementos do cenário fazem lembrar, como
‘reminiscências’, esse processo de tomada deliberada pelos
missionários da vida da gente do campo como referência para ‘ornar’ a
mensagem da “Boa Nova do Evangelho” e aproximá-la dos católicos
das comunidades rurais e de pequenas cidades. Assim, mesmo que os
cursistas estejam em um ambiente de “retiro” e suspensão de seus
cotidianos de “lida na roça”, durante os três dias de curso, na Casa do
Mobon, não se pode dizer que os leigos deixaram de ter contato com o
“mato” ou com o ambiente de trabalho.

FIGURA 3 – COISAS, PLANTAS E INSETOS. CASA DO MOBON,


FEVEREIRO DE 2018

FONTE: O Autor (2020)42.

Por exemplo, na figura acima, o leitor vê instrumentos de


trabalho espalhados pelos corredores, tais como uma roda de carro de
boi e uma máquina de costura; a presença de alguns insetos como o
louva-a-deus (Mantodea), a esperança (algum gafanhoto da família
Tettigoniidae) e um tanto de insetos que procuram o calor das lâmpadas;
algumas plantas como o boldo (Peumus boldus), uma rama de abóbora
(Cucurbita) entre outros matos. Elementos do mundo do trabalho

42
Composição o painel de Rodrigo Teixeira.

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camponês/operário que fazem lembrar dos “relacionamentos homem-
mato” (BRANDÃO, 1999, p.81) 43 e que podem virar símbolos nas falas
do missionário ou mesmo dos leigos no momento da exegese do texto
bíblico. Tudo remete ao universo simbólico camponês, de onde é tirada
a maior parte das comparações utilizadas por João Resende durante os
cursos.
A propósito da comunicação entre o missionário e o público,
João Resende se utilizou de comparações e metáforas durante todo o
curso. Para exemplificar, no dia 10 de fevereiro, para refletir junto com
os cursistas o 3º Encontro do Curso da CF 2018, “Caminhar na luz do
senhor”, cuja questão problematizadora era “o que podemos fazer para
implementar a cultura da paz entre nós?”, utilizou-se da metáfora de
uma “oficina de ferreiro”, que associou ao funcionamento do “grupo de
reflexão” / “comunidade”. Falando como um ferreiro faz e tempera uma
foice (ferramenta de trabalho ‘típica’ / símbolo do trabalho camponês),
o mediador disse que “não é de uma hora para a outra que se faz uma
ferramenta”. Que a fabricação da ferramenta de corte exige um trabalho
coordenado do ferreiro, a quem ele comparou com a comunidade.
Assim, ele disse que na comunidade, tal como o “puxador de
fole”, é preciso “trabalhar o dia inteiro”, e reproduziu com a boca o som
do fole “vupu, vupu, vupu, vupu”. Disse que também é preciso conhecer
uma madeira boa para alimentar o fogo/calor da fornalha. E em um
momento de diálogo, em que o missionário provocava o público, um
cursista se levantou, e disse que madeiras que geram “brasa boa” são o
roxim (Peltogyne spp.), a braúna (Melanoxylon braúna) e o angico
vermelho (Anadenathera macrocarpa). ‘Só assim’ se “acende o fogo”
da comunidade. E não é só. Para se fazer uma boa ferramenta, João
Resende afirmou ser fundamental ter uma “bigorna boa, que aguenta”
a pancada de uma “marreta de 5 Kg ou mais”. Contou: “1, 2, 3... marreta

43
Ao analisar o trabalho cotidiano na terra entre agricultores e criadores sitiantes do
bairro dos Pretos, nas encostas paulistas da serra da Mantiqueira, em Joanópolis,
Brandão (1999) considera a relação não só entre seres humanos-e-sociais e os seres
não-humanos naturais (animais, plantas, minerais, enfim, os elementos que compõem
o ecossistema que circunda os camponeses), como também considera a relação entre
estes e os seres não-humanos supranaturais (Deus, Jesus Cristo, a Sagrada Família, a
Trindade, o espírito dos mortos, etc.). Essa perspectiva nos é útil, uma vez que
Brandão fala em termos de um pensamento camponês. Consideradas as devidas
particularidades locais, os termos de sua análise podem ser replicados para os
camponeses da “Zona da Mata”.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 99


na bigorna”. E reproduziu o som das batidas “bim, bim, bim, bim”. E
assim, por meio de uma linguagem imagética, o missionário ia
relembrando um ofício ‘antigo’ que quase não se vê mais, mas que o
público presente se lembra e/ou sabe como faz. A figura abaixo ajuda a
ilustrar o que se ouviu durante o curso.

FIGURA 4 – REGISTRO GRÁFICO DA FALA DE JOÃO RESENDE SOBRE A


QUESTÃO PROBLEMATIZADORA DO 3º ENCONTRO DO LIVRETO DO
CURSO DA CF 2018.

FONTE: O Autor (2018) 44.

44
Extraído das anotações do caderno de campo do dia 10/02/2018 (p.18). Tratamento
digital do desenho de Rodrigo Teixeira.

100 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Com essa reflexão João Resende foi mostrando aos cursistas
que, como em uma oficina de um ferreiro, se se falha em algum dos
processos ou se escolhe mal as ferramentas e/ou a matéria-prima – se o
carvão não for bom, se a bigorna não for boa, se tiver dó de bater a
marreta no aço, se o fole furar, etc. – a produção da ferramenta, ou
melhor, como queria fazer o público entender, da ação concreta na
comunidade não vai para frente.
No mesmo dia, lembro-me também que João Resende desenhou
no quadro para explicar alguns “conceitos” como o “da classe pequena
de cabeça grande”, durante a apresentação do 4º Encontro: “O fruto da
justiça será a paz da CF 2018”. Como explicou, a classe pequena (os
“pequenos” dos córregos), que só pensa no dinheiro e se esquece dos
outros, de ser solidário, possui cabeça de gente “grande”. Ia falando e
desenhando. Primeiro, desenhou um rosto (com orelhas, olhos,
nariz/olfato, boca, cérebro/pensamento) e embaixo um coração, em
forma de gota. Enquanto ia explicando o conceito, ia desenhando
cifrões nos ‘órgãos’ e dizendo que quem é pequeno da cabeça grande
possui o cifrão em todas as partes: no “olho”, no “farejo”, na “oreia”,
na “cabeça”, na “boca”, no “coração”. Com isso, ele quis dizer que a
classe dos “grandes” ou dos “pequenos” que tentam se equiparar a ela
é um ‘tipo’ de gente que “só pensa em dinheiro”. Reproduzi em meu
bloco de notas os traços tais como foram feitos pelo missionário na
lousa 45.

45
Importante mencionar que o que está escrito em vermelho se trata do que registrei
das explicações de João Resende sobre o desenho ou comentários do público.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 101


FIGURA 5 – A CLASSE PEQUENA DE CABEÇA GRANDE.

FONTE: O Autor (2018) 46.

Esses exemplos, demonstram o quanto os mediadores do Mobon


dão valor e incentivam as lideranças formadas por eles a usarem
comparações, provérbios e ditados populares, uma vez que, “(...) O
Movimento da Boa Nova faz questão de usar esse linguajar, pois isso
significa entrar na alma do povo, a levar o povo a entender,
concretamente as razões de sua fé. Fé que leva a tudo o mais...”
(COSTA, s.d., p.4). Enfim, como pode ser visto, à medida que foi
refletindo junto com o público do curso, João Resende foi evocando
sons, imagens e comparações em busca de um referente proveniente do
universo do trabalho camponês.

A guisa de conclusão: vida e simbólica camponesa, dialogicidade e


práxis comunicativa
Como analisou padre Gwenael, um dos parceiros e
disseminadores dos cursos do Mobon na Zona da Mata mineira,
conhecer os costumes camponeses e valorizar seu modo de pensar e

46
Reprodução do desenho feito por João Resende no quadro. Extraída de anotações
do caderno de campo do dia 10/02/2018 (p.25). Tratamento digital do desenho de
Rodrigo Teixeira.

102 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


agir, em muito ensinou ao Clero sobre o que – na concepção da Igreja
Católica “da libertação” – são (ou deveriam ser) os valores cristãos.
Assim, o processo de ensino aprendizagem neste universo de
cursos do Mobon não se deu de maneira unilateral. Como analisou
Comerford (2001), padres ‘viraram’ camponeses e camponeses
‘viraram’ padres. Nesse processo de catequese adulta, padres e leigos
católicos, sobretudo, de comunidades rurais, estabeleceram uma troca.
Os processos de simplificar a mensagem se utilizando de comparações
e linguagem simbólica, bem como os saberes celebrar, fazer mística e
cantar a religião libertadora foram gestados sob os imperativos dos
costumes, modos de criar, fazer, produzir, festejar e “fazer a luta” dos
camponeses.
Como relatou João Resende, na fase inicial do Mobon, ele “(...)
ia pra beira da lavoura, ajudava o pessoal apanhar café e a gente pegava
o ritmo, pegava o jeito” 47. A observação desses relacionamentos
homem-mato é o que estruturou a práxis comunicativa entre
missionários do movimento e grupos católicos leigos na Zona da Mata
e região, pois as comparações utilizadas pelos mediadores “tinham o
meio rural como foco principal de análise” (OLIVEIRA, 2010, p.49).
Por meio da escuta atenta da maneira como o ‘povo simples’ “da
roça” conversa e através da observação sistemática de seus costumes
(KERANDEL, DEL CANTO, 1977, p.7-22; OLIVEIRA, ZANGELMI,
2009; OLIVEIRA, 2010; OLIVEIRA, 2012) é que os padres e irmãos
consagrados conheceram a realidade, viram o que ‘faz sentido’ para a
população leiga dos córregos da Zona da Mata mineira e adequaram o
discurso e as práticas rituais, a fim de melhor transmitir sua mensagem,
organizar “o povo” e formar comunidades.
Assim, os cursos do movimento desde o princípio seguem o
ditame da dialogicidade que se fundamenta em uma “pedagogia do
oprimido” (FREIRE, 2017). Em outros termos, como se expressou João
Resende, o marcou muito uma das lições de Paulo Freire com a qual
teve contato, isto é, “‘Antes de ensinar matemática ao Pedro, conheça o
Pedro’” 48. Afirmação que pressupõe a deliberadas ações de escutar,

47
Entrevista, novembro de 2009. In: Oliveira (2010, p.49).
48
Entrevista, 06/01/2018. É provável que o missionário, ao dizer esta frase, quisesse
se referir à famosa citação do educador popular que diz: “Não basta saber ler que ‘Eva
viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto
social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho”. Nesta

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 103


observar e vivenciar de forma atenta e sistematizada os
“relacionamentos homem-mato” dos leigos das comunidades rurais, em
sua relação de produção e afetiva com a/“na natureza”.

Referências Bibliográficas

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Editora O Lutador, 1999.
BAUMAN, R.; BRIGGS, C. “Poética e Performance como perspectivas
críticas sobre a linguagem e a vida social”. Ilha, Revista de Antropologia,
2006, p.185-229.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O afeto da terra. Imaginários, sensibilidades
e motivações de relacionamentos com a natureza e o meio ambiente entre
agricultores e criadores sitiantes do bairro dos Pretos, nas encostas paulistas
da serra da Mantiqueira, em Joanópolis. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.
CAMPOS, Ana Paula Teixeira de. “Conquista de Terras em conjunto”:
redes sociais e confiança – a experiência dos agricultores e agricultoras
familiares de Araponga. 2006. 121f. Dissertação (Mestrado em Extensão
Rural) – Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural, Universidade
Federal de Viçosa, Viçosa. 2006.
CINTRÃO, R. P. ONGs, Tecnologias alternativas e representação política
do campesinato: uma análise da relação entre o Centro de Tecnologias
Alternativas e os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais na Zona da Mata
Mineira. 1996. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Agrícola).
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996.
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108 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


6
Religião e política na Renovação Carismática
Católica: análise de um grupo de oração em ano
não eleitoral
Luiz Ernesto Guimarães
Jamile Aparecida da Costa Moreira
Deomario Lauriano Machado

Introdução
Este trabalho analisa a maneira como a política é interpretada
por fieis carismáticos em um grupo de oração na paróquia Bom Pastor,
na cidade de Barbacena/MG 49, em 2019, ano não eleitoral.
A inserção da Renovação Carismática Católica (RCC) no campo
da política é um fenômeno que tem crescido nas últimas décadas no
Brasil. Embora em seu início houvesse um distanciamento dos católicos
carismáticos em relação à política, com o passar do tempo, e em
especial a partir da década de 1990, os fiéis passaram a se aproximar
mais da política, em especial da partidária (SILVEIRA, 2008).
Na atualidade, há vários parlamentares vinculados à RCC no
Brasil. Isso ocorre não apenas em grandes centros, mas também em
municípios menores. Em Barbacena, por exemplo, cidade com
aproximadamente 140 mil habitantes, há um vereador carismático
ocupando uma das quinze cadeiras do legislativo municipal 50.
Júlia Miranda (1999) percebe o período eleitoral, ou, “tempo da
política”, como o momento privilegiado para a construção da política
carismática. Todavia, como se constrói a relação entre religião e política
entre os católicos da RCC, em um momento não eleitoral? Assim, é
proposta deste trabalho responder a essa questão.
Partindo de uma perspectiva etnográfico, a pesquisa de campo
foi realizada no período de junho a outubro de 2019, junto ao grupo de
oração “Maanaim” – um dos principais grupos carismáticos atuantes na
cidade de Barbacena - MG. Além da observação participante, foram

49
Barbacena está localizada na região da Zona da Mata de Minas Gerais. A cidade é
cortada pela BR-040, rodovia que dá acesso à capital Belo Horizonte (170
quilômetros) por um lado, e por outro, à capital do Rio de Janeiro (275 quilômetros).
50 Para aprofundamento do tema, cf. Guimarães e Lemuchi (2018).

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 109


realizadas duas entrevistas com lideranças do grupo “Maanaim”, além
de conversas informais com alguns carismáticos que pertencem ao
grupo. As entrevistas foram gravadas e depois transcritas para análise.

1. O grupo de oração “Maanaim”


Cecília Mariz (2003) considera a Renovação Carismática
Católica (RCC) uma “igreja dentro da Igreja”. Ao contrário das
dissidências ocorridas no interior do pentecostalismo, o crescimento da
RCC tem contribuído “para o fortalecimento do espaço institucional da
Igreja Católica” (MARIZ, 2003, p. 172).
Nessa mesma direção, Marcelo Camurça afirma:
A tendência crescente do movimento passa a ser a de
colar-se na estrutura da Igreja, ganhando espaço nas
paróquias, no clero, nas ordens religiosas, nos Seminários
e entre os Bispos. Acentua-se aqui um caráter de
avivamento e renovação das estruturas tradicionais da
Igreja, de “conversão para dentro” de “católicos não-
praticantes” e vacilantes na sua fé aos fundamentos da
Igreja (CAMURÇA, 2001, p. 46).

Percebeu-se, portanto, nos quatro meses de pesquisa, a tentativa


da formulação de um espaço próprio, singular em relação a outros
organismos da paróquia, mas, ao mesmo tempo, legitimando suas ações
a partir dos dogmas institucionais, como será percebido abaixo.
As reuniões são realizadas todos os sábados, às 18 horas, nas
dependências da paróquia Bom Pastor, mesmo nome do bairro onde
está inserida. O salão utilizado fica no último andar em um prédio de
dois andares, ao lado do templo principal da paróquia. O prédio é
relativamente grande, com muitas salas usadas para diversas atividades.
Durante a pesquisa, a média de presentes foi de aproximadamente
setenta pessoas, sendo a maioria jovens. No entanto, além desses
jovens, havia também adolescentes e alguns adultos.
Os encontros duram cerca de uma hora e meia ou até mesmo
duas horas. Todos os momentos são presididos por leigos 51. Em
momento algum o pároco participou dos encontros. Embora não haja

51
De acordo com o documento 105 da CNBB, os leigos são todos aqueles que foram
batizados, demonstrando sua fé às outras pessoas, sem, no entanto, terem recebido a
ordem sacerdotal.

110 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


diretamente a presença de membros do clero nesses encontros, o grupo
utilizou o espaço de fala para legitimar as diretrizes da Igreja Católica.
Isso se evidencia, sobretudo, em questões de ordem moral, como por
exemplo, o celibato antes do casamento. Visto ser um grupo formado,
majoritariamente, por jovens, temas como esse se tornam comuns.
A família tradicional, representada por homem, mulher e filhos,
também é um assunto muito enfatizado. Dessa forma, embora o grupo
não tenha enfrentado a homossexualidade de forma explícita, acaba por
reafirmar os papeis entre homem e mulher na sociedade, a partir do viés
da religião cristã. Era comum ver fieis com camisetas com o escrito “#
acredito na família”. Hashtag que serve também de nome para um
encontro anual organizado pelo Grupo “Maanaim” em uma chácara não
muito distante da paróquia Bom Pastor 52.
Percebe-se, portanto, que os dogmas da Igreja Católica, além de
serem explicitados nas missas, são também reafirmados nos grupos de
oração da RCC, nesse caso, o grupo “Maanaim”. Para o fiel que
participa das missas e do grupo de oração, é uma forma de reforçar a
mensagem; já para aquele que frequenta apenas o grupo de oração, se
torna o único espaço para ser instruído sobre o ideal católico. Assim,
para o pároco, mesmo não se identificando com a Renovação
Carismática, acaba por permitir a sua organização. Afinal, torna-se um
importante aliado no âmbito da paróquia 53.
Antes de iniciar as atividades do grupo de oração, as lideranças,
bem como os responsáveis pela música, se reúnem para fazer oração
pelo momento que virá. Mais cedo, por volta das 14 horas, a equipe da
música se encontra para o ensaio, emendando com o grupo
propriamente. Dessa forma, esses fieis passam parte da tarde e da noite
dos sábados envolvidos com o grupo de oração, tempo significativo
para jovens na faixa entre 20 e 30 anos de idade.

52
Neste grupo se encontram fiéis oriundas de várias paróquias da região interessadas
no tema da Família. No folheto de divulgação que tivemos acesso, havia uma foto
com de um homem, uma mulher e uma criança, retratando o modelo de família que
acreditam.
53
Em uma pesquisa realizada em Cambé – norte do Paraná, esse fato foi percebido.
O pároco, alinhado à Teologia da Libertação, setor progressista da Igreja Católica,
permitia a formação de um grupo carismático na paróquia. Esse grupo participava
ativamente das programações da paróquia, sendo um importante aliado. Para maiores
informações, cf. Guimarães (2017).

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 111


O Grupo de Oração “Maanaim” tem uma peculiaridade. Ele não
é vinculado oficialmente à Renovação Carismática Católica. Em
entrevista, uma das lideranças afirma:
Nós não somos, porque a Renovação Carismática (…) é
um movimento que tem uma coordenação própria,
nacional, estadual, municipal e tem os grupos de oração.
Nós somos um grupo de oração da mesma forma,
vivemos da mesma forma os carismas, porém não
pertencemos a estrutura de coordenação da Renovação.
Fazemos muitas coisas juntas, em parceria né, na
amizade de sempre. Não tem nenhuma divisão, nunca
houve briga, nada disso. Porém, quando nós começamos
o grupo aqui, começou de forma muita espontânea, né?
O padre chamou as meninas, falou: “comecem alguma
coisa”. A gente começou, quando vê a coisa foi
crescendo, crescendo, e ai não cabia mais, e como se...
“ah, vamos procurar agora uma coordenação”. Então, a
gente já tinha toda uma estrutura aqui ligada à paróquia,
ao padre, e a gente preferiu ter esse vínculo paroquial, do
que um vínculo com o movimento e tal, porque tem
formações próprias, tem um ritmo próprio de
coordenação mesmo, assim, a gente teria que modificar
muito aquilo que era a nossa identidade, né? (…).
Vivemos as mesmas coisas né, as questões dos carismas,
a gente fala que como se fosse filho, o Maanaim filho da
Renovação Carismática. E ai, a gente tem a vivência do
acampamento, que é um encontro muito nosso, e tem
particularidades nossas, e assim, é uma coisa que a gente
preferiu continuar dessa forma. (…). Então, temos essa
relação de irmandade mesmo, de proximidade e tal, mas
não de submissão, de respeito à coordenação (Entrevista
28/09/2019).

Ou seja, o grupo “Maanain” adota toda uma identidade da RCC,


ou, no termo nativo, carisma 54, porém, não faz parte oficialmente dessa
organização católica. Ela se vincula mais à paróquia Bom Pastor do que
à RCC. Nas palavras de um líder: “quando a gente vai pra outra cidade,
a gente leva não só o Maanaim, a gente leva a Paróquia do Bom Pastor
54 Carisma, significa o modo de vivenciar a fé católica, a partir de determinadas

especificidades. Assim, cada vertente do catolicismo pode possuir seu carisma


próprio.

112 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


junto, ao qual a gente tá vinculado” (Entrevista 28/09/2019).
Mesmo assim, por adotar um comportamento similar ao da
Renovação Carismática, esse grupo de oração serve aos objetivos
da presente pesquisa.

2. Ritual / Reuniões
Os encontros do grupo de oração “Maanaim” seguem
normalmente a mesma sequência de momentos, quais sejam: a) oração
à Maria; b) músicas e orações c) pregação; d) encerramento / avisos /
apresentação dos aniversariantes da semana. Todos esses momentos
possuem em comum a busca pelo Espírito Santo, que é uma das
principais características da RCC. Nesse sentido, percebe-se uma
grande aproximação com as diversas igrejas pentecostais no Brasil, em
que a figura do Espírito Santo também é predominante.
Assim, a cada momento, de formas específicas, a imagem dessa
figura sagrada vai sendo construída, provocando a busca e confiança
por parte do fiel. A maioria das músicas aborda, além da busca pelo
Espírito Santo, a fé, a confiança em Deus etc. Além disso, o caráter de
sensibilizar as pessoas contribui para assegurar um espaço simbólico
importante, já que não há a figura de membros do clero que, nas missas
tradicionais, conseguem desenvolver esse tipo de sentimento.
Diferentemente das igrejas evangélicas que separam as músicas
das orações, no grupo de oração isso é feito de forma simultânea. Ou
seja, as orações são feitas nos intervalos entre uma música e outra.
Enquanto os instrumentistas continuam a tocar alguma música, alguma
liderança começa a direcionar as orações, levantando temas específicos,
como: família, trabalho, saúde, perdão, reconciliação etc. Nesses
momentos é comum ouvir fiéis falarem “línguas estranhas” – ou, se
expressarem em glossolalia 55 –, às vezes com pulos, mãos erguidas ao
céu, tom de voz mais elevado. Nisso, se mistura com as orações dos
demais presentes. Assim, ao chegar no momento da pregação, as
músicas cantadas e as orações feitas asseguram e legitimam o conteúdo
da mensagem pregada posteriormente, sendo este um dos momentos
principais.

55 Glossolalia é o ato do fiel falar línguas estranhas, como demonstração de estar sob

domínio do Espírito Santo. Muito comum nas igrejas pentecostais e também entre os
carismáticos.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 113


No caso das pregações, havia uma rotatividade significativa de
“servos” 56. Cada sábado um “servo(a)” era responsável por esse
momento. Nos quatro meses de pesquisa de campo, não houve a
repetição de lideranças. Embora, de forma geral, todos se identifiquem
com os pressupostos da RCC, há espaço para sobressair ideias
individualizadas, de acordo com as subjetividades de cada servo(a).
A pregação ocupa parte significativa do tempo desses encontros,
com duração de, aproximadamente, trinta minutos. Em alguns dias esse
tempo pode exceder esse tempo. Nesses momentos de instrução do fiel
é possível compreender os objetivos da RCC com maior clareza. São
temas escolhidos pelos próprios “servos”, revelando sua forma de
vivenciar a religião católica. Se por um lado abordam as figuras
sagradas da trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – por outro, debatem
temas acerca de comportamento moral etc. Em certa ocasião, por
exemplo, falou-se sobre a importância em se manter a castidade antes
do casamento.
Ainda mostrando certa submissão aos dogmas da Igreja
Católica, em alguns encontros, após a pregação, era realizada a entrada
do ostensório 57. Quando isso ocorria, se tornava o momento mais
importante e reverenciado pelos fiéis. Apagavam-se as luzes e algumas
vezes usavam lanternas para focar o objeto. Enquanto isso, a maioria
dos presentes ficava de joelhos, muito semelhante ao que é feito nas
missas na exposição desse utensílio considerado sagrado. Como não
havia a presença de membros do clero, a pessoa responsável pela
condução do ostensório era também, além de “serva”, ministra da
eucaristia na paróquia Bom Pastor. Com o mesmo traje usado na missa
nesse momento, a entrada e saída eram realizados com muita admiração
pelos fiéis, sempre o ostensório envolto em um tecido. Embora sendo
um movimento liderado por leigos, momentos como esses era uma
forma de legitimar o grupo carismático frente aos fiéis.

56 Servo é o termo usado para denominar as lideranças do grupo de oração


carismático. São responsáveis por todo tipo de serviço, seja na coordenação, oração,
música, pregação etc. Há todo um processo que o fiel percorre para se tornar um
“servo”. Havia, nessa condição de “servo”, tanto homens quanto mulheres.
57
Utensílio que representa a imagem de Cristo. Há todo um procedimento ritual,
muito cuidadoso, em para seu manuseio.

114 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


3. Política
Durante a pesquisa de campo, não foi presenciado qualquer tipo
de abordagem sobre política, especialmente a partidária. Isso, em um
contexto político nacional em que Jair Messias Bolsonaro exercia seu
primeiro ano de mandato como presidente da República, após o grande
acirramento e polarização no período eleitoral de 2018. Temas
relevantes como a Reforma da Previdência, que dificultam, por
exemplo, o direito dos trabalhadores(as) à aposentadoria, não foi
abordado em nenhum momento no grupo de oração. Sobre esse aspecto,
é importante mencionar o que diz uma das líderes do grupo, em uma
entrevista, quando indagada sobre a reflexão de temas sociais. Assim,
afirmou:
Não, a gente não faz isso não. A gente, tipo assim, se
acontece isso, a gente fala assim, a gente sabe que o país
tá passando por uma situação isso, isso, isso. A gente
nunca adentra o tema. A gente sempre fala, mostra que
tem solução, a gente prega Jesus na cruz, né? Que Jesus
ele é o nosso Senhor e que ele pode nos ajudar nessa, a
manter firme mesmo com a situação do país. Mas a gente
nunca passa disso não (Entrevista 21/09/2019).

No entanto, os problemas sociais não eram ocultados. Havia o


reconhecimento de possíveis dificuldades que o indivíduo pudesse
enfrentar. Porém, as soluções eram atribuídas exclusivamente à atuação
do Espírito Santo, dispensando assim, qualquer tipo de manifestação ou
intervenção humana, ou seja, da ordem sociopolítica (PRANDI, 1992;
1997).
Nesse sentido, em momentos da pregação, alguns temas
sociopolíticos eram abordados, mas, sem muito aprofundamento,
beirando muitas vezes ideias oriundas do senso comum. Em um dos
encontros, uma jovem responsável pela pregação falou sobre a
esperança, baseando-se na figura de Maria. Em certo momento, ao
abordar a morte de Cristo pelos romanos, por meio da crucificação,
disse que “o cristianismo foi responsável por humanizar a sociedade”.
Nesse mesmo dia, a jovem citou também a princesa Isabel, a
quem atribuem a abolição da escravatura no Brasil, em 1888. Com tom
enaltecedor, afirmou: “hoje é reconhecida como santa Isabel”.
Continuou a líder carismática, cuja cor da pele era branca, “afinal, todos
são irmãos, não importa a cor da pele”. Ao abordar o racismo

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 115


culturalista, presente inclusive nas ciências sociais no Brasil, Jessé
Souza afirma: “Um brasileiro de classe média que não seja abertamente
racista também se sente, em relação às camadas populares do próprio
país, como um alemão ou um americano se sente em relação a um
brasileiro: ele se esforça para tratar essas pessoas como se fossem gente
igual a ele” (SOUZA, 2017, p. 19- 20) 58.
Ainda sobre o cristianismo, a fiel também afirmou ser esta
religião a responsável pela valorização da mulher na atualidade, usando
Madalena e Maria como exemplos.
Em apenas uma pregação, em pouco menos que uma hora de
duração, pontos importantes foram elencados, porém, sem o devido
rigor que merecem, ainda que não seja esse o objetivo principal. Mesmo
assim, algumas considerações merecem ser feitas. No caso de atribuir o
fim da escravidão à princesa Isabel, numa atitude quase que unilateral,
encobre importantes atores sociais negros que participaram ativamente
do processo de libertação na época. Além do mais, o fim da escravidão
em 1888 não resultou, de fato, na libertação real da população negra,
sendo ainda hoje uma das mais afetadas pela desigualdade social
existente no país (SOUZA, 2017). Ou seja, os mais de trezentos anos
de escravidão, ainda atinge diretamente a vida dos descendentes de
escravos no Brasil hoje, e é, portanto, um importante tema a ser
debatido no campo da política, inclusive com proposições de políticas
públicas.
Sobre a mulher é um tema também importante no debate
público. Ao associar conquistas femininas à religião cristã, demonstra
ser uma forma de não abordar o papel de agentes que ocuparam espaços
de lutas, sendo muitas delas não necessariamente cristãs. Na própria
Igreja Católica, por exemplo, a mulher ocupa um papel secundário.
Apenas pessoas do sexo masculino podem se ordenar sacerdote. Cabe
às mulheres vocacionadas o trabalho no auxílio em pastorais, no
trabalho missionário etc., mas, sempre num papel subalterno ao
masculino.

58
Jessé Souza (2017) denomina de “ralé brasileira” não apenas a população negra,
descendente dos escravos, mas todas as camadas populares que sofrem vários tipos de
preconceitos hoje, parecido com aquilo que escravos sofreram após o fim da
escravidão.

116 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Associar o cristianismo à humanização da sociedade é outro
tema que merece atenção. As ações de Cristo, pelo que apresenta o texto
dos evangelhos, de fato, há um viés humanista. No entanto, a religião
cristã em sua história nem sempre seguiu o mesmo princípio. Por
exemplo, há o caso das Cruzadas durante a Idade Média, que resultou
em milhões de mortes. No Brasil hoje, há o caso do presidente Jair
Bolsonaro, que venceu as eleições de 2018 com forte apoio dos
segmentos evangélico e católico (ALMEIDA, 2019). No entanto, uma
de suas promessas de campanha era a facilitação da posse de armas, o
que de fato se esforçou para fazer já no início de seu governo. Em um
país com alto índice de violência, o aumento da circulação de armas
contribuiria ainda mais para a acentuação desse quadro.
Embora haja um caráter conservador presente na RCC, não é
possível dizer que isso seja algo homogêneo. Certa vez, um fiel entre
30 e 40 anos de idade foi o responsável pela pregação. Falou sobre a
graça de Deus, demonstrando que Deus vê as pessoas diferente da
maneira como nós as vemos. Citou o exemplo de algumas prostitutas
que trabalham na região próxima à rodoviária de Barbacena. Segundo
o fiel, “ao ver essas pessoas expressamos condenação. Deus, ao
contrário, não faz isso”. Essa talvez tenha sido a pregação que mais se
aproximou das ideias ligadas à Teologia da Libertação, setor
progressista da Igreja Católica. No entanto, ideias como essas não são
a maioria. Nos quatro meses de pesquisa, essa talvez tenha sido a
mensagem mais dissonante em relação às demais. Isso talvez explique
o cuidado que o fiel teve com as palavras, como forma de não causar
nenhum tipo de incômodo entre os participantes e, sobretudo, as
lideranças.
No âmbito pessoal a política é vivenciada de formas distintas.
Nas duas entrevistas realizadas com lideranças do grupo de oração
“Maanaim” é possível perceber isso. Um dos líderes, expressa certo
distanciamento da política: “eu não tenho paciência com política não.
Aí eu fico por fora mesmo sabe. Eu não adentro na situação política,
não” (Entrevista 21092019).
Para outro líder, percebe-se maior envolvimento político.
Inclusive, como candidato a deputado estadual pelo PROS durante as
eleições de 2018, porém, sem êxito. Sobre sua filiação partidária,
descreveu da seguinte maneira:

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 117


Eu me filiei ao PROS e tenho tranquilidade pra falar,
identificação ideológica nenhuma, né? Sabe de como
funciona a política partidária no Brasil. Foi mera questão
mesmo de, fugiu a palavra também, mas, de comodismo
mesmo. O Eros 59 era amigo, uma pessoa que eu confio,
que eu acredito que tem muita boa intenção, intenção
de fazer a diferença (Entrevista 28/09/2019.)

Sobre a maneira como esse líder carismático se informa sobre


política, comentou:
(...) vou no Globo, vou no UOL, vou no G1, vou no
Diário (…) que é mais esquerdista, vou lá no
Antagonista, tento dar um apanhado geral dos temas, vou
no Brasil 247, vou no Catraca Livre, sempre tentar ver
realmente os pontos de vista porque a gente sabe que hoje
em dia tá tudo muito né, um viés muito, como que eu vou
dizer, fugiu a palavra, mas cada um quer botar muito a
sua posição, a verdade é essa (Entrevista 28/09/2019).

Para ambos entrevistados o grupo de oração não aborda o tema


da política. Para o primeiro entrevistado, “o Maanaim sempre decidiu,
a gente não ia levar política pro povo que tá vindo. Porque o povo que
tá vindo no grupo de oração na verdade tá querendo vir buscar
Deus. Não como que tá a política ou algo do tipo” (Entrevista
21/09/2019). Continua o líder carismático: “E é isso, nós servos, a
gente sempre se comportou em oração, assim a respeito de tudo. Nós
nunca trouxemos pra paróquia, tipo no grupo: ‘ah, vota nesse, vota
naquele’. A gente nunca fez isso” (Entrevista 21/09/2019).
De acordo com o segundo entrevistado,
Geralmente, a gente tá mais é realmente pra orar, tratar
da palavra de Deus. Não que a gente esteja alienado, mas
acho que as pessoas que vem no grupo de oração vem
realmente buscando um consolo espiritual, buscando
uma palavra, né, de conforto, e muitas vezes a gente vai
tratar desses temas eu acho, não que isso vá afastar a
pessoa, mas isso vai de certa forma causar uma certa
recusa, “poxa eu tô...” é um pouco intimista isso né, mas,

59
Eros Biondini é deputado federal pelo PROS-MG.

118 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


geralmente quem nos procura está com um problema
pessoal (Entrevista 21/09/2019).

A ênfase no Espírito Santo, como elemento responsável por


responder aos anseios das pessoas, abordado anteriormente, não está
vinculado somente às lideranças carismáticas. Ou seja, há também uma
expectativa por parte do fiel de resolver os por meio dos rituais
empreendidos pelas lideranças carismáticas. Os “problemas pessoais”,
ganham um destaque. Ambos os temas são abordados do ponto de vista
individual, mesmo quando desse está falando de desemprego e de
doenças (como a Covid 19), temas que não pertencem apenas ao campo
da vida privada, mas tratam-se de problemas sociais. Isto é, estão
diretamente associados à implementações de políticas públicas, leis,
programas sociais etc., que beneficiam uma quantidade significativa de
pessoas, sobretudo as mais vulneráveis 60.
Sobre o posicionamento político dos entrevistados, as respostas
são um pouco diferentes. Para o primeiro:
Um dos lados né. Na verdade, eu tipo, nunca parei para
definir nenhum dos lados assim. O Bolsonaro entrou tá
fazendo algumas coisas ai, umas mudanças, eu olho por
alto é bom. O Lula teve... eu falo Lula porque é PT né...
teve do outro lado, fez umas mudanças, e como eu era
mais novo eu não acompanhei, falei assim: fez ou não
fez, fez ou não fez, ai eu fiquei nessa entendeu? Eu não
consigo te dar uma clareza a respeito disso (Entrevista
21/09/2019).

A polaridade política que se desenvolveu no país nos últimos


anos é percebida por esse líder: “O Brasil tá assim se não me engano,
politicamente tá entre os dois lados. Eu não tô em nenhum deles
[risos]” (Entrevista 21/09/2019).
60
No momento da revisão dessa pesquisa, o Brasil estava em seu terceiro mês sob a
pandemia da Covid-19, com o número de mortes em aproximadamente 1.200 pessoas
por dia. Em muitos estados, em que a propagação do vírus foi mais rápida, houve
sérios problemas por conta da falta de leitos em UTI para todos os pacientes. Assim,
muitos problemas que o SUS vem enfrentando na atualidade é decorrente da PEC 241,
aprovada no fim de 2016 pelo governo Temer, estabelecendo um teto dos gastos
públicos. Assim, por 20 anos, fica impedido o investimento público superior ao índice
da inflação, sendo a saúde uma das áreas afetadas. Ou seja, um problema na saúde não
deve ser tratado no campo privado, mas ser compreendido de uma forma mais
completa, pela dimensão sociopolítica.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 119


Já para o segundo entrevistado: “É até difícil a gente falar de
posição, tá tudo tão extremado, né? Mas eu me colocaria como centro
direita, né? É, não me identifico assim, né, sou um militante da esquerda
ou sou um militante do governo (...) Tenho crítica aos dois, mas também
não gosto de ser aquele em cima do muro, né, porque é muito cômodo,
né?” (Entrevista 28/09/2019).
Ainda sobre posicionamento político, o líder afirma: “Hoje, me
identifico como centro direita, e não me sinto identificado sinceramente
por ninguém no cenário político brasileiro, político eleitoral, né? Não
consigo olhar pra ninguém hoje e dizer ‘olha, esse cara é a pessoa que
me representa’, né? Mas, diante da atual conjuntura toda seria esse
o meu posicionamento” (Entrevista 28/09/2019).
Na mesma entrevista o fiel explica melhor seu posicionamento,
que, de forma geral, acaba sendo muito frequente na RCC:

(...) apesar de me identificar como centro direita,


principalmente com relação a questão de costumes, né,
enfim, por sermos católicos, mais conservadores nesse
sentido, eu quero me identificar nesse sentido com a
direita (Entrevista 28/09/2019).

Continua o jovem carismático: “a esquerda também não me


seduz nem um pouco porque vai muito contra os nossos valores, né,
do que a esquerda prega de uma forma geral” (Entrevista 28/09/2019).
Assim, se confirma a afirmação de Carlos Procópio:
(...) acredita-se que os carismáticos privilegiam uma
agenda política mais conservadora, na medida em que
procuram tocar em temas ligados à evangelização e à
moralização do Estado e da sociedade, posicionando-se
de modo corporativo na esfera política. (…). Por outro
lado, passa-se a considerar que a experiência individual
dos carismáticos, projetada para fora de si em direção ao
outro, motivaria muitos carismáticos para a inclinação
política, com posições variadas (PROCÓPIO, 2015, p.
203).

Junto a isso, é possível perceber, mesmo com posicionamentos


variados, o intuito de um desenvolvimento de ações que causarão

120 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


impacto na vida coletiva. Daí a ideia de “política como missão”
(MIRANDA, 1999). Nesse sentido, Carlos Procópio considera:
Apesar de não se poder negar o posicionamento
conservador por parte da Renovação Carismática em
matéria de política, cujas preocupações são moralizantes
e corporativas, é importante frisar a ideia de que os
carismáticos são tão reformadores quanto o são outros
movimentos sociais, sobretudo quando esses temas
moralizantes se inclinam para a injustiça social e a
corrupção, que têm, de alguma forma, um lugar cativo
dentro da esfera política (PROCÓPIO, 2015, p. 203,
204).

Embora o entendimento sobre política seja diferente a partir das


duas lideranças entrevistadas, percebe-se na figura divina a principal
força transformadora na terra como ponto comum, sendo a moral cristã
um dos principais elementos que norteará a compreensão e
posicionamento político.

Considerações finais
O presente trabalho analisou a relação que estabelece um grupo
de oração carismático com a política em um ano não eleitoral. Nesse
tempo, não há um trabalho explícito sobre política, com a menção de
nomes de candidatos, por exemplo. Mas, a política se expressa na
abordagem de temas como sexo, formação familiar e aborto a partir de
uma perspectiva moral. Alguns de seus membros, demonstram
legitimar o atual governo federal, que durante sua campanha em 2018
utilizou o slogan “Deus acima de tudo, Brasil acima de todos”, cujo
significado se aproxima de alguns valores expressos durante o debate
sobre as temáticas.
Embora nas entrevistas os atores façam questão de defender o
não uso do grupo de oração para fins políticos, o fato de haver
consonância de suas principais pautas com o atual governo, impediu
que houvesse qualquer tipo de iniciativa com formulações críticas, a
despeito dos diversos retrocessos que o país vem sofrendo já no
primeiro ano de mandato nas áreas da previdência, da educação, da
saúde 61, da cultura etc.

61
Sobre a pandemia da Covid-19, desde seu começo o presidente da República foi
contra as medidas de distanciamento social, defendida pela OMS e demais cientistas

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 121


Assim, mesmo 2019 não tendo sido um ano de eleições, nem
tivesse o clima típico desse período, serviu como momento de
referendar o status quo estabelecido na última eleição, e que, em última
instância, é a continuidade do golpe de 2016, que visou recompor o
poder às elites no Brasil, como forma de intensificar sua dominação
sobre os demais. Isso não significa que tal fato seja algo deliberado
pelos atores carismáticos. Mas, apenas demonstra que por ter suas
pautas principais atendidas, sobretudo no campo da moral, já é o
suficiente para que outros assuntos, cuja relevância social exigem
atenção, passem despercebidos.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Ronaldo de. Bolsonaro presidente: conservadorismo,


evangelismo e a crise brasileira. Novos Estud. CEBRAP, São Paulo, v. 38, n.
1, p.185-213, jan. /abr. 2019.
CAMURÇA, Marcelo Ayres. Renovação Carismática Católica: entre
a tradição e a modernidade. Rhema, v. 7, n. 25, p. 45-56, 2001.

GUIMARÃES, Luiz Ernesto Guimarães. Teologia da Libertação


e Renovação Carismática Católica: religião e política na Arquidiocese
de Londrina – PR. 2017. 218f. Tese (doutorado em Ciências Sociais).
Programa de pós-graduação em Ciências Sociais, UNESP, Marília, 2017.

GUIMARÃES, Luiz Ernesto; LEMUCHI, Marcela Gongorr. Renovação


Carismática Católica e política em Barbacena-MG. Sacrilegens, Juiz de Fora,
v. 15, n.2, p.537-636, jul./ dez. 2018.

MARIZ, Cecília L. A Renovação Carismática Católica: uma igreja dentro da


Igreja? Civitas, Porto Alegre, v. 3, n. 1, jun. 2003.

MIRANDA, Júlia. Carisma, sociedade e política: novas linguagens do


religioso e do político. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

da área de saúde. Mesmo após três meses do início da pandemia no país, e com o
número total de mortes acima de 50.000, segundo dados oficiais, Jair Bolsonaro
mantêm sua posição em defesa da economia, sem propor qualquer medida de
enfrentamento ao vírus, além de tecer várias críticas a governadores e prefeitos que
fizeram lockdown, – o impedimento da circulação de pessoas para impedir a
proliferação do vírus.

122 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


PRANDI, Reginaldo. Perto da magia, longe da política: derivações do
encantamento no mundo desencantado. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo,
n. 34, p. 81-91, nov. 1992.
______. Um sopro do espírito. São Paulo: EDUSP/FEPESP, 1997.

PROCÓPIO, Carlos Eduardo Pinto. Quando a religião fica perto da política:


o caso dos candidatos apoiados pelo catolicismo carismático nas eleições de
2014 no Brasil. Debates do NER. Porto Alegre, ano 16, n. 27, p. 199-232.
jan./jun. 2015.
SILVEIRA, Emerson Jose Sena da. Terços, “Santinhos” e Versículos: a relação
entre Católicos Carismáticos e a Política. Rever, São Paulo, v. 8, p. 54-74,
mar. 2008.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro:
Leya, 2017.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 123


7
Entre Religião e Política: As especificidades de
uma candidatura evangélica à Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro 62
Willelm Martins Andrade Jardim

Introdução
A investida organizada de grupos pentecostais na política
partidária brasileira, a partir da década de 1980, estabelece um novo
componente nas relações entre religião e política. O modo estratégico e
pragmático pelo qual essa empreitada foi elaborada gerou fenômenos
como a criação da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) em 2003
(TREVISAN, 2013) que desde então vem mostrando acentuado
protagonismo político, principalmente a partir das eleições de 2010 63.
Neste processo a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) é
uma das instituições religiosas preponderantes. Sua atuação política
serviu de modelo para outras denominações. Podemos pensar em dois
sentidos de um mesmo processo. Por um lado, atores do campo político
procuram a denominação a fim de receber apoio nas eleições,
reconhecendo sua capacidade de mobilização frente a um grande
número de pessoas (ORO, 2003). Concomitante a isso, a própria IURD
ingressa no mundo político, lançando candidaturas “oficiais” com o
objetivo de ter representados seus interesses na política institucional.
Os candidatos a cargos eletivos que têm vínculo com a IURD se
concentram sob a sigla do Partido Republicano Brasileiro (PRB) 64. Essa

62
A pesquisa que originou esse trabalho possui financiamento da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
63
Alguns pesquisadores, acertadamente, apontam para a necessidade de relativizar o
poder da FPE (também referida como Bancada Evangélica), pois sua mobilização e
capacidade de influência se dão em oposição a pautas específicas, como a
liberalização do aborto, descriminação das drogas e ampliação de direitos da
comunidade LGBTQI+.
64
Em maio de 2019, o PRB alterou o nome do partido para Republicanos, com isso
espera demarcar sua postura conservadora nos costumes e liberal na economia. Neste
trabalho, optamos por manter a sigla PRB, pois à época da pesquisa era o nome sob a
qual o partido era conhecido. Não foi a primeira vez que houve troca no nome da sigla,

124 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


relação também se torna evidente nas páginas das edições do Jornal
Folha Universal, veículo de imprensa oficial da IURD. O jornal é usado
para tratar de temas internos à igreja, mas também informa aos fiéis
sobre outros assuntos, dentre estes, questões econômicas e políticas. Os
políticos do PRB, principalmente na figura do deputado Marcos Pereira,
presidente do partido e bispo licenciado da IURD, têm grande espaço
no jornal. Temas de grande destaque no período eleitoral são tratados
pelo jornal, como questões relativas à ideologia de gênero e a defesa da
moralidade, pautas importantes de políticos evangélicos que estiveram
ligadas também à campanha presidencial de 2018. O discurso do jornal
e os discursos dos políticos apoiados pela igreja se retroalimentam
potencializando a mensagem, reforçando-a.
Se por um lado este vínculo proporciona uma grande influência
da IURD sobre o partido e coloca os membros das instituições em
constantes trocas. Como mostrou Gutierrez (2015) – que investigou
essa relação a partir de análise das atividades de campanha do PRB na
eleição de 2012 – os participantes do grupo Força Jovem Universal
(FJU) 65 são recrutados para o partido, que usufruindo dessa condição
de acesso facilitado aos membros da Igreja pode se destacar frente aos
concorrentes políticos. Em contrapartida, esta relação de troca coloca
dilemas na atuação política da sigla, e na atuação da Igreja, gerando
controvérsias (DULLO, 2015).
O fato de que ambas as instituições atuem em campos diferentes
e respondam a pautas distintas constitui um ponto sensível para a
manutenção da relação entre elas. Ou seja, a atuação do PRB não se
equivale a da IURD. Os interesses, os constrangimentos, as
necessidades e as estratégias são de natureza diversa. Interseccionam-
se, mas se diferenciam uma à outra. Apesar de terem pontos de contato
e confluência, sendo instrumentalizadas de forma mútua, as fronteiras
de atuação das instituições são borradas, porém não deixam de existir.

inicialmente o partido foi registrado como Partido Municipalista Nacional. A adoção


do nome Partido Republicano Brasileiro deveu-se a orientação do então vice-
presidente da República, José de Alencar, político que, ao se filiar ao partido, ocupou
o posto de presidente de honra da sigla.
65
A Força Jovem Universal, como sugere o nome, é o grupo de jovens da IURD. O
grupo é formado por voluntários e atua em diversas áreas, como cultura, esporte e
evangelização, a ênfase de sua atuação se dá no campo social e espiritual (ROZA,
S/A).

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 125


Neste contexto é interessante pensar no âmbito de uma
candidatura. Através dela podemos acompanhar como a articulação dos
discursos é elaborada, como lida com os constrangimentos de sistemas
diferenciados (político e religioso), e com as fronteiras antagônicas
construídas no contato com os demais sujeitos envolvidos na disputa.
Dessa forma, neste capítulo, tomamos como objeto as relações
entre religião e política que se constatam no Brasil atualmente. Para
tanto, privilegiamos a questão das configurações das práticas
discursivas que fazem parte das estratégias da campanha de Jucelia
Freitas, Tia Ju (PRB), para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro,
na qual disputava para se reeleger.
O foco no discurso da candidata não significa que estamos
privilegiando a ação do indivíduo em detrimento daquilo que o informa.
Pelo contrário, não tomamos o sujeito separado das relações com outros
sujeitos, sejam indivíduos ou grupos, pensando-os como componentes
de um processo sempre incompleto, por se fazer e se justificar. Por isso
o foco na campanha eleitoral, momento em que se pretende angariar
votos através de estratégias e de discursos que pretendem gerar adesão
às pautas dos políticos. Como instrumento teórico, a teoria do discurso
(LACLAU; MOUFFE, 2015) nos informa justamente por tornar
possível revelar como são articuladas e enunciadas as identidades dos
sujeitos envolvidos nessa relação. Ou seja, nos auxilia a pensar através
do discurso utilizado na campanha, como as questões do partido e da
Igreja produzem elementos que compõe o discurso da candidata, bem
como informam as estratégias de seus adversários e as novas respostas
que se direcionam a estes e aos eleitores, religiosos/ não religiosos, não
fiéis/ fiéis da IURD. Portanto, a seguir, elaboro uma breve discussão
sobre a Teoria do Discurso desenvolvida por Ernesto Laclau e Chantal
Mouffe (2015), apresentando alguns de seus conceitos.

1. A Teoria do Discurso
Segundo Laclau (1992, p.136-137) o discurso é “anterior à
distinção entre linguístico e o extralinguístico” sendo uma instância
limítrofe com o social. O discurso se dá em caráter relacional, portanto,
permite uma “generalização quanto ao conjunto das relações sociais”.
Além disso, o caráter relacional da ação discursiva faz com que exista
uma contingência radical de ações, umas em referências a outras, em
situações de disputas hegemônicas. Ou seja, baseado nas contribuições

126 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


do autor, partimos do pressuposto de que os discursos religiosos são
constituídos de forma relacional, construindo e reconstruindo
identidades e estratégias.
Os sujeitos e suas identidades e discursos, bem como a
hegemonia, têm um caráter precário, são fruto sempre de um processo
contingente e nunca acabado. Dessa forma, Laclau e Mouffe (2015)
estabelecem a impossibilidade da sociedade, pois ela em si é uma
prática articulatória aberta, que é modificada por seu exterior
constitutivo.
Todo discurso é fruto de uma articulação de elementos de
maneira diferencial, de modo que estes sejam transformados em
momentos. Elementos consistem em diferenças que não foram
articuladas discursivamente. Em uma aproximação livre, se referem a
possibilidades, a termos que poderiam fazer parte de um discurso. Os
momentos, por sua vez, são elementos que foram mobilizados em um
discurso. A precariedade assinalada no parágrafo anterior também se
faz presente na constituição de momentos, impedindo-os de um
fechamento total de sentido.
A prática da articulação, portanto, consiste na construção
de pontos nodais que fixam sentido parcialmente; e o
caráter parcial desta fixação advém da abertura do social,
resultante, por sua vez, do constante transbordamento de
todo discurso pela infinidade do campo da discursividade
(LACLAU; MOUFFE, 2015, p.188).

Pontos nodais, conceito mencionado na citação acima,


consistem em significantes que aglutinam diferentes identidades
quando utilizados em um discurso, produzindo efeitos hegemônicos.
Por exemplo, para os evangélicos a “ideologia de gênero” se constitui
um ponto nodal.
A hegemonia, para Laclau e Mouffe (2015), não está ligada a
uma classe social específica, pode ser desenvolvida por outros sujeitos,
desde que nos lembremos da impossibilidade de construí-la por
completo, ou seja, da sua precariedade e de seu caráter de
universalização do particular. Gerar a identificação de outros sujeitos e,
consequentemente, hegemonizar um discurso particular, no caso
analisado, o discurso de uma candidata, requer também um
alargamento/esvaziamento de um significante em grau suficiente para
que demandas de outros sujeitos possam ser por ele expressadas.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 127


Tentarei ilustrar com um exemplo. Um pastor evangélico prega
em praça pública contra homossexuais utilizando o termo “ideologia de
gênero”, recebe apoio e aplausos de adultos que bebem cerveja em um
bar na esquina e que assistem à cena. O sentido do discurso do pastor,
que se espera carregado de significado religioso, foi capaz de gerar
identificação no grupo de adultos que o estavam assistindo e não
possuíam vinculação religiosa com a denominação da qual pertence o
pastor. Portanto, no nosso exemplo, estes sujeitos não se identificaram
por um conteúdo religioso do discurso evangélico, antes, essa
identificação ocorre pelo esvaziamento de sentido que permitiu que o
pastor emitisse um discurso que não fizesse de si o seu contrário, ou
seja, um ateu, ou um adepto de outra crença, mas que fosse alargado o
suficiente para ser apreendido como música por um grupo de ébrios na
esquina.
Neste exemplo também se inscreve o caráter antagonista das
relações (LACLAU; MOUFFE, 2015), outro ponto importante na teoria
do discurso. A figura do pastor e dos “bêbados” seriam, no senso
comum, antagônicas, e poderiam ser apreendidas dentro de uma lógica
“nós” e “eles”. O ponto nodal “ideologia de gênero” produziu o efeito
de coloca-los do mesmo lado de um corte antagônico, como um “nós”.
Dessa forma, o pastor e os “bêbados” são aliados na antagonização aos
homossexuais, que neste exemplo constituem o “eles”. Nada impede
que diante de outros antagonistas estes três sujeitos estejam de um
mesmo lado (“nós”) desde que seja estabelecido um “eles”.
Essas considerações são importantes para pensarmos nosso
objeto. Tendo em vista as lógicas relacionais, mas também conflitantes,
do religioso e do político, busco resposta para algumas questões: como
o discurso da candidata é acionado? Quais são as estratégias para
legitimação da relação entre religião e política? Qual discurso é
empregado quando o interesse é atingir o eleitorado não iurdiano, não
evangélico, não religioso?
Essas são questões para as quais elaboro algumas reflexões no
tópico a seguir. Os dados apresentados são fruto de pesquisa
desenvolvida a partir do método de observação direta. Essa técnica
metodológica tem como função essencial a apreciação das ações dos
envolvidos, seus discursos sobre suas ações e sobre a dos outros
envolvidos (CHAUVIN; JOUNIN, 2015). Os dados dos quais dispomos
foram construídos através da observação de momentos distintos da

128 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


campanha – isto é, o lançamento oficial da campanha, a campanha
“corpo a corpo”, o comício, e uma conversa informal no gabinete da
candidata 66–, eventos com destacado viés público, nos quais as ações e
discursos da candidata foram o principal foco. Estes eventos revelaram
discursos que procuraram justificar posições e tomadas de ação tanto
para os interlocutores do campo da política, quanto para os do campo
religioso.

2. Discursos de campanha
Tia Ju é natural de Conceição do Jacuípe/BA, chegou à cidade
do Rio de Janeiro em 2003, acompanhando seu marido, Pedro de
Queiroz Freitas, pastor da IURD. Em parte destinada à sua biografia em
sua página na rede social Facebook®, Tia Ju se identifica como
“mulher, negra e nordestina, com muito orgulho”, e além de outras
informações divulga sua formação como pedagoga e pós-graduada em
Direito da Infância e da Juventude, pela Escola Superior do Ministério
Público do Estado do Rio de Janeiro (FEMPERJ), ressaltando sua
atuação e seu destaque enquanto alguém que luta pelas crianças e
adolescentes. De imediato podemos observar que sua identidade é
explorada para além do componente religioso.
Porém, existe uma presença forte da Igreja Universal do Reino
de Deus (IURD) em sua biografia. Tia Ju ocupa a função de obreira e
esteve à frente da Coordenação Nacional da Escola Bíblica Infantil
(EBI), onde também foi educadora, trabalhando com crianças e
adolescentes, daí decorre o nome “Tia Ju”. Em seu perfil na rede social
Instagram®, se descreve como “esposa, tia, irmã, amiga e mãe por
adoção”. Atualmente, a deputada está licenciada, desde 2019 é
Secretária de Assistência Social e Direitos Humanos da cidade do Rio
de Janeiro, cidade governada por Marcelo Crivella (PRB), bispo
licenciado da IURD.
Essas características tornam a candidatura em questão caso
relevante para estudar como o religioso e o político se articulam,
produzindo um discurso diferenciado dentro dos campos. Essa
combinação se torna ainda mais interessante devido ao tratamento

66
Este momento não se configurou uma entrevista, nem ao menos um momento de
fala pública. Decorre disso, que apesar de levar em consideração o teor do que foi dito
para empreender as análises aqui presentes, não cito de forma direta nenhum trecho
deste diálogo no presente texto.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 129


concedido por parte da IURD às mulheres e às religiões de matriz-
africana. As religiões de matriz-africana, bem notadamente a Umbanda
e o Candomblé, são historicamente tratados como inimigos da Igreja,
suas entidades são tratadas nos cultos da IURD como demônios que
possuem as pessoas e devem ser exorcizados (ALMEIDA, 2009).
Com relação às mulheres, para ilustrar o tratamento da igreja,
transcrevo partes do discurso proferido em uma pregação pelo bispo
Edir Macedo, fundador e líder da IURD. Macedo falava sobre o fato de
que, quando morava nos Estados Unidos, proibiu suas filhas de cursar
faculdade. Recebeu apoio de sua mulher, mas outros familiares o
condenaram. O bispo segue:
Porque se você se formar numa determinada
profissão, você vai servir a si mesmo, vai trabalhar
para si. Mas eu não quero isso, vocês vieram para
servir a Deus. Não sou contra a você se formar,
estudar, não. Mas no caso delas, eu não as criei para
servirem a si mesmas, eu as criei para servirem ao
Senhor. [...]. Você vai fazer até o ensino médio,
depois, se quiser a faculdade você que sabe, mas até
o seu casamento será apenas uma pessoa de ensino
médio. Porque se a Cristiane fosse doutora e tivesse
um grau de conhecimento elevado e encontrasse um
rapaz que tivesse grau de conhecimento baixo, ele não
seria o cabeça, ela seria a cabeça. E se ela fosse a
cabeça, não serviria à vontade de Deus. [...] A Ester
falava que queria que as filhas casassem com
americano, corteses e educados, porque eu era um
grosso. [...]. Eu quero que as minhas filhas casem com
macho. Um homem que tem que ser cabeça. Eles têm
que ser cabeça. Porque se eles não forem cabeça o
casamento deles está fadado ao fracasso. [...]. O que
se ensina hoje é: ‘Minha filha, você nunca vai ficar
sujeita a um homem’. Então tá. Vai ficar sujeita à
infelicidade. Porque não existe família, não existe
casamento, não existe felicidade, a mulher cabeça e o
homem corpo. É fracasso. Tanto é que, deve ter
mulher aqui que sabem o que está falando. Tem
mulheres inteligentíssimas que não conseguem
encontrar o cabeça. Verdade, sim ou não? (SOARES,
2019, n.p.).

130 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Como veremos mais adiante, a candidata trata de discursos que
são mobilizados pela Igreja, mas em algumas questões os ultrapassa.
Mobilizando a ideia de laicidade para dizer que sua candidatura aceita
a todos, inclusive as religiões de matriz-afro. No que diz respeito ao
discurso da candidata, entendemos ser possível agrupá-lo em três
tópicos, que levam em consideração os efeitos esperados pelo emprego
de algumas estratégias específicas.
Dessa forma, no primeiro eixo de classificação, incluímos a
justificação da inserção política dos evangélicos e a reafirmação da
pertença religiosa da candidata. A justificação tenta suprir a
necessidade de explicar por que motivos uma candidata evangélica vê
interesse na política institucional. Neste sentido, Tia Jú afirmou que os
evangélicos precisam ocupar este espaço, pois representam uma parcela
da sociedade, dessa forma o político evangélico dá voz política a este
segmento. Sustentou, ainda, que em sua avaliação, a inserção foi tardia,
oriunda de uma interpretação equivocada da Bíblia. Em seu
entendimento, é possível justificar através das escrituras essa
empreitada. Utiliza como exemplo sua interpretação da frase “Dai a
Cesar o que é de Cesar” a concebendo como um chamado a aceitação
do povo de Deus às leis dos homens e à sua participação na própria
constituição dessas leis para torná-las apropriadas à vontade de deus.
Com relação à reafirmação da pertença religiosa, Tia Ju diz:
“Graças a Deus, eu não nego a minha Fé, eu sou evangélica, mas eu
abraço e recebo todos no meu gabinete. Eu fui eleita na maioria pelo
povo evangélico, mas fui abraçada pelos Umbandistas, pelos Espiritas
pelos Budistas, pelos Católicos. Eu fui abraçada por todos”. A candidata
aceita a ideia de que o “grosso” dos votos que recebe vem da atuação
religiosa e da influência da Igreja. “Volto a dizer: nosso público votante
dessa sua massa são os evangélicos”.
No que se refere ao apoio recebido da Igreja, a candidata afirma
que este não é suficiente, por si só, para obter êxito em uma eleição.
Segundo Tia Ju, é preciso ser conhecido dentro da denominação e ser
reconhecido pelo trabalho realizado na obra por parte dos outros fiéis.
A seu respeito, ela destaca sua atuação como educadora bíblica.
Ainda assim, a candidata precisa reafirmar o vínculo com a
Igreja e com os fiéis, pois eles correspondem à maioria dos seus votos.
Ocorre que aquilo que estamos chamando de justificação e de
reafirmação está sendo elaborado continuamente de forma reflexiva,
sem deixar de lado o efeito pragmático esperado.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 131


No segundo eixo de classificação temos aquilo que
denominamos como alargamento do discurso. O discurso que se
configura como uma tentativa de ampliar a capacidade de influência
para além dos evangélicos, atingindo os eleitores que não compartilham
um habitus religioso, compõe este eixo. Como exemplo, apresentamos
as seguintes falas de Tia Ju:
Nós somos do povo, nós somos das pessoas, não importa
a religião que elas confessem. A religião é algo pessoal,
é algo particular. É algo de cada indivíduo, isso é pessoal.
Muitos falam que a gente mistura política com religião.
Não, nós não misturamos política com religião. Nós
fazemos políticas para todos... essa é a cara do PRB! É
política pra todos.

Eu nunca deixei de levar alguém até o Senador e ele


dizer: não, eu só recebo evangélico.

É necessário notar que o alargamento do discurso responde a


existência de outros candidatos religiosos dentro do partido, aos quais
disputam os votos dos fiéis entre si. Este alargamento viabiliza
mobilização de outros perfis de eleitores.
Quando eu fui agredida, atacada, lá na ALERJ, por um
deputado, que num vale a pena nem citar o nome, por que
a gente não pode dar ibope 67... hoje a candidatura é minha
não é dele. Eu deixei claro uma coisa, ninguém na
Assembleia legislativa pode me acusar de ser
preconceituosa. Porque não tem um gabinete mais
eclético naquela casa que o meu. (Palmas). Eu tenho ali
no meu gabinete representado, assembléianos. Eu tenho
representado Igreja Universal. Eu tenho representado

67
Tia Ju se refere a fala do então deputado Átila Nunes (MDB), que por ocasião da
sessão ordinária do dia 09/08/2017 da ALERJ, se referiu aos políticos ligados à Igreja
Universal reprovando os vínculos entre a igreja e estes religiosos. No site do PRB era
possível encontrar uma matéria sobre o ocorrido que afirmava que Tia Ju foi vítima
de ataque religioso e de gênero do plenário da ALERJ. Para acesso à fala de Tia Ju
conferir: <https://www.youtube.com/watch?v=Km9k2xwQEcI>. Acesso em: 04 nov.
2019. Fala de Átila Nunes disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=XzOsFRPUnLA>. Acesso em 04 nov. 2019.

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povos de Matriz Africana através do Marcio 68. Eu tenho
representado espírita, eu tenho ali assessores que não
creem em nada, e eu tenho representado aqueles que
creem em tudo e tem os católicos também. Então, meu
gabinete não só tem evangélicos. Eu sempre, quando
algum evangélico ingressa na minha assessoria eu deixo
claro, aqui eu faço política, quem quiser falar de religião
comigo eu convido domingo pra estar comigo na Igreja
ou na Assembleia ou na Universal onde eu estiver no
domingo. (Palmas). E a gente conversa sobre isso, porque
na Assembleia legislativa eu estou lá pra fazer política e
é o que eu vou fazer e vou continuar fazendo. E meu
público evangélico tem entendido muito bem isso, que eu
sei separar as questões religiosas das questões políticas.
Volto a reafirmar o meu compromisso com a população
do Rio independente da cor da raça do credo religioso, de
tudo.

Nota-se que existe uma vigilância quanto aos contornos


religiosos de sua prática política. Entendemos que o teor do discurso
tenta atingir justamente eleitores de outros segmentos religiosos e
eleitores que veem com ressalvas a atuação de candidatos evangélicos.
No entanto, existe uma ressalva semelhante por parte dos eleitores
evangélicos no tocante a atuação da candidata. Em determinados
momentos, como na referência às religiões de matriz-africana, suas
falas geram contradições que não passam despercebidas pelo público
evangélico. Estes exercem uma pressão sobre sua atuação, olham com
desconfiança e ocorrem reprovações de algumas de suas atitudes.
Percebemos na fala da candidata uma tentativa de responder também a
estes eleitores.
Quando vem me criticar “a Srª, é evangélica e estava lá
no Cais do Valongo com os umbandistas”. Eu estava
como uma pessoa pública, fui receber um Rei, que
também é uma pessoa pública. Nós não estávamos ali
discutindo religião, nós estávamos fazendo política. E
todas as vezes que o Rei vier eu vou recebê-lo, com todas
as honrarias que um Rei merece. E assim eu faço, gente.
Volto a dizer, sem negar a minha fé. Isso não macula a
minha fé. Isso não macula a minha fé. Aos povos de

68
A candidata estava se referindo a Marcio Ferreira, seu assessor de comunicação.
Marcio foi meu interlocutor na pesquisa, foi ele quem proporcionou meu contato com
a deputada.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 133


matrizes africanas que estão aqui, que me apoiam, eu já
disse: eu não vou lá no Terreiro, num foi isso? Mas, eu
tenho o Márcio que vai lá visitar, e vai atender vocês, mas
eles vem a mim. Porque eu não faço com hipocrisia, eu
faço com sinceridade. Quem está aqui comigo, está junto,
andando comigo é por que é olho?!No olho.

Por fim, como último eixo está a defesa da moralidade. A


candidata se posiciona de modo a defender a luta contra aquilo pelo qual
os evangélicos passaram a se dirigir como “ideologia de gênero” 69.
A única coisa que eu não coaduno é com a ideologia de
gênero, porque a única ideologia que eu conheço é a
ideologia (livro) de Gênese. Mas respeito quem acredita
nessa ideologia. Enquanto política eu respeito as decisões
e escolhas de opções sexuais também. O indivíduo na sua
fase adulta ele pode escolher o que ele quiser. Eu só não
go.., eu só não a.. eu só não aceito é ensinar, incutir coisa
na cabeça de criança, porque são indivíduos em
formação, o que você enfiar na cabeça deles vai ficar
(Palmas).

Na defesa de sua concepção sobre o tema aciona a bíblia, mas,


recorre ainda à sua formação como pedagoga para sustentar sua posição
contrária a “ideologia de gênero”. Isso mostra a diversidade dos
argumentos à disposição da candidata. Pode-se ir de um argumento
calcado na religião para uma sustentação secular em uma única fala.
E digo isso porque sou pedagoga, sou professora e sei o
que (que) se passa e como se passa o processo de
formação do indivíduo. Então a gente tem que deixar o
indivíduo com liberdade. Quando ele chegar na idade
dele de decisão que ele decida. Mas a gente não pode
incutir na cabeça de criança os nossos ideais, os nossos
pensamentos, os nossos objetivos. Vamos ensinar a
criança o caminho que ela deve andar. Quando a Bíblia
fala sobre isso as pessoas acham, pastor, que tá falando
só da Bíblia. Ensina a criança o caminho que ela deve
andar. O meu entendimento nessa passagem bíblica é:
ensine a criança a ser reta, a ser honesta, a ser correta, a

69
O termo é usado para se referir à divulgação de material educacional de combate à
homofobia e à desigualdade de gênero.

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amar ao próximo, a respeitar a família, a amar ao outro,
a ser um cidadão decente... e quando for velho, ele vai
saber entender tudo isso. É isso que eu entendo dessa
passagem. Então, nós temos que ensinar as crianças o
caminho que ela deve andar, o caminho da retidão, da
honestidade. Jesus sentou com prostituta. Jesus comeu
com pecador. Jesus estava na morte ao lado de dois
ladrões e não se furtou de dizer, meu filho hoje tu estarás
comigo no paraíso. É por isso que eu sento com todos,
estou com todos, eu só faço o que Jesus Cristo me
ensinou: amar ao próximo como a mim mesma. (Palmas).

No trecho acima, podemos identificar boa parte do que


dissemos sobre a teoria do discurso. Ele constitui um discurso particular
que se pretende hegemônico construído em resposta a uma ameaça
externa. A ameaça externa corresponde ao exterior constitutivo, no qual
são estabelecidas as relações de antagonismo através das quais são
possíveis a produção (precária) dos sujeitos e suas identidades. Neste
caso, está intimamente ligada à construção da identidade evangélica,
que sustenta a defesa da moralidade como um dever do “povo de Deus”,
ponto nodal mobilizado pelos políticos evangélicos em larga escala
desde o início de sua atuação política em bloco.
Além disso, a candidata faz referência a um aspecto incomum
ao sistema religioso, a sua formação como pedagoga. Anteriormente a
essa articulação, sua formação em pedagogia é um elemento possível,
porém não comumente acionado, devido à contingência é impossível
predizer sua articulação, mas a partir deste acionamento ela se
transforma em um momento. Novamente fazemos referência ao
exterior constitutivo: os discursos que defendem o ensino de educação
sexual e/ou questões relacionadas a gênero em escolas, em grande parte
são emitidos por profissionais da área de educação. Remeter-se à sua
formação faz com que se defenda de estar se baseando em um
conservadorismo religioso. Também a coloca em posição de debater o
tema no campo da educação. Como em qualquer outra articulação
discursiva, não há garantia de que este discurso possa mobilizar um
contingente de adeptos, no caso, eleitores.
Aquilo que é tido como certo, como a “retidão”, é elevado à
condição de natural. Numa tentativa de afastar-se daquilo que possa ser
entendido como ideologia e apresentar-se como a realidade sobre a
vida, a verdade, algo parecido com a ideia de doxa (BOURDIEU,
2014). É evidente uma preocupação em colocar questões morais acima

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 135


da questão religiosa, ou seja, são mais importantes que a própria
Religião, e não é foco da ação de uma religião em específico, mas sim
um tema caro a qualquer grupo que se entenda como religioso, como
um eixo unificador. Neste ponto, a ideia contida no discurso se insere
no eixo defesa da moralidade, exerce efeitos de alargamento do
discurso, pois, é capaz de cumprir as duas funções. Portanto, aproxima-
se da noção de ponto nodal. Neste eixo se encontram também os
discursos sobre honestidade e a moralidade tanto na vida civil quanto
na vida política.
É interessante frisar que a pertença religiosa da candidata e a
avaliação geral de como são vistos os religiosos que se inserem na
política são levadas em consideração para elaboração das estratégias
discursivas utilizadas.
O discurso sobre laicidade pode aparecer em todos os eixos e é
mobilizado com bastante ênfase nos dois primeiros. Defender a
laicidade se tratando de um político evangélico corresponde a se
posicionar contra o discurso que os acusa de “misturar política com
religião”. Essa acusação é recorrente. Defender a laicidade é se
defender desta acusação. Outro efeito disso é exatamente a justificação:
se o Estado é laico, ele deve aceitar e assegurar a presença de
evangélicos e demais grupos religiosos sem distingui-los de outros
grupos de interesse presentes no mundo político, o que, em termos,
coloca as religiões de um mesmo lado de um corte antagônico.
Religiões que no campo religioso são concorrentes acabam, diante de
um discurso que defende a possibilidade de todas participarem do
campo político, por estar do “mesmo lado” quando aquilo que é tido
como o outro significa limitar a participação política de candidatos
religiosos.

Conclusão
Diante do recorrente interesse e sucesso da participação de
evangélicos na política partidária brasileira, em especial do papel
preponderante da IURD neste processo, este capítulo procurou elucidar
as articulações discursivas de uma candidata evangélica.
Efetuei a classificação dos sentidos do discurso da candidata em
3 eixos. Primeiro a justificação da inserção dos evangélicos na política
e reafirmação da pertença religiosa. Essa classe de discurso se direciona
aos evangélicos que representam a maioria dos votos da candidata e

136 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


também cumpre a função de sustentar a irrupção no espaço público para
que o evangélico busque seu espaço. Depois o alargamento do discurso
para os eleitores não evangélicos, isto porque os votos dos fiéis da
IURD ou mesmo dos evangélicos de modo geral não são suficientes
para se eleger e é desejado aumentar os adeptos a campanha para
superar a concorrência de outros candidatos do mesmo segmento
religioso e partidário (os candidatos ligados a IURD se concentram já
há algumas eleições no PRB), assim é interessante falar para outros
grupos e até mesmo para outras religiões, mesmo as que são tidas como
“concorrentes” no campo religioso, como os Umbandistas.
Por fim, abordei a defesa da moralidade, em que se destaca a
defesa de que crianças e adolescente devem ser preservados do contato
com a “ideologia de gênero” e de que a política deve ser isenta de
corrupção. A defesa da moralidade é tratada como questão que une
diversas religiões, mas que também transcende aquilo que é religioso.
Mesmo que muitas vezes seja sustentado por passagens bíblicas, a
intenção é eleva-lo a condição de verdade, independentemente de
professar uma fé, deve ser defendido porque é “natural”.
É importante atentar para o fato de que um mesmo tema pode
ser mobilizado dentro de eixos distintos, já que o discurso muda de
acordo com os objetivos e contextos específicos. Defender a laicidade,
por exemplo, serve tanto para justificar a presença dos evangélicos na
política, quanto para penetrar em outros espaços, como um efeito
esperado a partir do que seria o alargamento do discurso. De maneira
parecida, é feita a utilização de passagens bíblicas, presentes com
intensidade nos primeiro e terceiro eixos.
O que quis destacar é que o pertencimento religioso tem
influência significativa nas ações de um candidato, marcando não
apenas sua visão de mundo e dando suporte para sua campanha, como
também colocando questões específicas oriundas das dinâmicas
diferenciadas que constituem os campos político e religioso.
A dificuldade da interpretação (e seu grande potencial) está em
conseguir captar a influência da religião sobre a política, sem deixar o
fenômeno político à margem, ou seja, levando em consideração as
questões que este coloca ao religioso. Os constrangimentos que se
impõe do político ao religioso, e na direção inversa, do religioso ao
político, juntamente com as ambições dos sujeitos envolvidos
(instituições e candidatos), são de suma importância para uma
apreensão efetiva do fenômeno, assim como os ganhos gerados pela

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 137


articulação dessas duas lógicas na identidade e na gramática do
candidato. Dessa forma, procurei atentar para o fato de que a relação
estabelecida nunca é de mão única e corresponde há uma complexa
articulação e influência mútua.

Referências Bibliográficas

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etnográfico. São Paulo: Terceiro Nome, 2009.

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socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios,
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o-marido.shtml>. Acesso em: 10 ago. 2020.

TREVISAN, Janine. A Frente Parlamentar Evangélica: força política no


estado laico brasileiro. Numen, Juiz de Fora, v. 16, n. 1, p.29-57, 2013.

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8
Religião e Política na IURD: Um estudo da Folha
Universal no ano eleitoral de 2018
Cáio César Nogueira Martins
Fabrício Roberto Costa Oliveira

Introdução
A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), popularmente
conhecida como Universal, é uma instituição religiosa evangélica
fundada no Brasil em 1977. É uma igreja que possui diversos templos,
variada gama de redes de rádio e uma emissora de televisão, além de
exercer importante influência no campo político. Sua sede é o Templo
de Salomão, um suntuoso edifício localizado na região do Brás, na
cidade de São Paulo/SP. Atualmente a Universal se faz presente em
todos os estados da federação brasileira, além de possuir filiais em
diversos outros países.
Lima e Werneck (2012) apontam que agindo em defesa da
prosperidade financeira, praticando a cura divina e a libertação do poder
do demônio, a IURD é a igreja que mais tem atraído fiéis desde a década
de 1990. Segundo dados do IBGE é a terceira maior igreja Pentecostal
em números de fiéis no Brasil, com um total de 1.783.243 seguidores,
ficando atrás apenas da Assembleia de Deus e da Congregação Cristã
do Brasil. Dentre as instituições Neopentecostais 70 é tida como a maior
em número de fiéis.
Uma das marcas características desta instituição religiosa é a
utilização de variados veículos de comunicação em massa para
evangelizar, informar e se posicionar sobre diferentes assuntos. Tais
habilidades têm sido demonstradas pela instituição através do grande
crescimento da Rede Record TV e da Rede Aleluia de emissoras de
rádio; da inserção da igreja no mundo virtual através de seu site

70
O termo Neopentecostalismo designa a Terceira Onda do Movimento Pentecostal
brasileiro. Teologicamente se baseia na constante guerra contra o Diabo e seus
representantes na terra, na difusão da crença de que todo cristão deve ser próspero,
feliz e vitorioso em seus empreendimentos terrenos, e por rejeitar usos e costumes de
santidades pentecostais. Destaca-se pela realização de programas de conteúdo
religioso transmitidos por emissoras de rádio e TV.

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institucional; de perfis oficiais em redes sociais como o Facebook e o
Twitter; da WebTV Universal e do canal de streaming Univer Vídeo,
bem como da utilização de sua mídia impressa – O jornal “Folha
Universal”. Para Mariano (2014) tanto nos templos, quanto na mídia
evangélica, Jesus Cristo é propagandeado como a panaceia para todos
os males terrenos.
Além de sua atuação religiosa e midiática, a Universal se destaca
no âmbito político. Conforme demonstra Oro (2003), pode ser
considerada uma das igrejas mais atuantes na política institucional
brasileira. Isto é, desde a redemocratização é a igreja que cada vez mais
elege representantes para compor os quadros do Congresso Nacional.
Considerando que durante as eleições de 2018 houve uma
aproximação efetiva entre Jair Bolsonaro (atualmente sem partido) e a
principal liderança da IURD, Edir Macedo, com diversas entrevistas
exclusivas concedidas pelo então candidato – e agora presidente da
República – a Rede Record TV, optamos por analisar como e se o jornal
impresso iurdiano mobilizou seus conteúdos para se referir à política
partidária nas eleições de 2018 e a forma com que isso aconteceu.
Demos foco específico ao Editorial e nas reportagens
diretamente vinculadas às eleições 71. Tais escolhas se fizeram
necessárias em função do tamanho do jornal. Trata-se de um semanário
que possui trinta e duas páginas e com assuntos muito diversificados:
saúde, informes religiosos, precaução quanto a consumo excessivo,
relacionamento familiar, etc.
Torna-se importante justificar a exploração do jornal como
material de pesquisa. Este é uma das mídias oficiais da instituição e está
consolidado há quase 30 anos entre os iurdianos. Seu conteúdo norteia
os pastores e seus seguidores acerca da postura evangélica frente aos
temas mundanos, além de ser um veículo de comunicação distribuído
gratuitamente e de fácil acesso aos fiéis.
Conforme lembrado por Lima e Werneck (2012), a mídia
evangélica, embora muito importante, não é o único canal de
comunicação da igreja com os fiéis, pois dentro dos templos os pastores
constantemente reforçam a visão da instituição sobre os temas
mundanos. Entretanto, não podemos minimizar sua importância,
principalmente para as igrejas adeptas ao Neopentecostalismo, cuja

71
Durante o ano de 2018, o jornal Folha Universal publicou 51 edições de seu
semanário. Cada edição contou com tiragem superior a 1.850.000 unidades.

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aposta no evangelismo pelas ondas de rádio e TV deu certo, tanto para
o cooptação de fiéis, quanto para constituição de um forte capital
religioso, econômico e político.
Com foco na disputa eleitoral de 2018, além dessa introdução,
nosso texto está dividido em outras partes. Na primeira delas nos
incumbiremos de delinear a origem/consolidação do Pentecostalismo
no Brasil. No segundo tópico abordaremos a história da IURD, com
especial foco em seu projeto midiático e seu comportamento
político/eleitoral ao longo dos anos. No terceiro delinearemos o quadro
eleitoral de 2018 e nos debruçaremos na análise da mobilização de
conteúdos políticos/eleitorais no jornal Folha Universal. Por fim,
apresentaremos nossas considerações finais.

1. Breves considerações sobre o Pentecostalismo e sua


consolidação no Brasil
Ao iniciarmos a temática do Pentecostalismo, torna-se
imperioso trazer a lume as considerações tecidas por Mariano (2014),
segundo as quais a Reforma Protestante significou uma ruptura com o
catolicismo e culminou no surgimento de diversas religiões
evangélicas, ou melhor, contribuiu para a emergência de uma
pluralidade de instituições que, muitas vezes, apresentam
características teológicas, identitárias e organizacionais antagônicas.
Neste caso, considera como frutos do Protestantismo o surgimento das
denominações eclesiásticas Luterana, Presbiteriana, Congregacional,
Anglicana, Metodista, Batista e Pentecostal – nesta última reside o
nosso interesse de estudo.
O Pentecostalismo surgiu nos Estados Unidos, através de
William Joseph Seymour, com influência da teologia metodista.
Segundo Picolotto (2016), seu precursor foi aluno de Charles Parham 72
em sua escola bíblica de Houston. Todavia, por ser negro e ex-garçom,
só lhe era permitido assistir as aulas pelo lado de fora. Parham era
simpatizante das políticas de segregação racial norte-americana que
impediam os negros de adentrarem nos espaços frequentados pelos
brancos.

72
Charles Parham foi um pastor norte-americano ligado à Igreja Metodista, mas que
se afastou desta instituição por crenças particulares acerca da cura divina e do batismo
no Espírito Santo.

142 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


A autora complementa que no ano de 1906, Seymour fundou em
Los Angeles o Grupo de Avivamento da Rua Azusa, onde começou a
pregar o que havia aprendido na escola de Parham, acrescentando em
seus cultos elementos mágicos semelhantes ao catolicismo, com
destaque para os dons de línguas (glossolalia), cura, e discernimento de
espíritos. Para Mariano (2014) o segmento Pentecostal fez o movimento
contrário ao Protestantismo, ao se valer dos elementos mágicos
semelhantes ao Catolicismo primitivo.
Os encontros religiosos na Rua Azusa conseguiam aglutinar
grande número de pessoas. Picolotto (2016) aponta que o pastor batista
William H. Durham foi o responsável por compartilhar em Chicago as
experiências vivenciadas ao lado de Seymour. Movidos pelo
entusiasmo de Durhan, os suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren saíram
de Chicago rumo ao Brasil obstinados a trazerem e expandirem o
Pentecostalismo em nosso país. Berg e Gunnar fundaram a Assembleia
de Deus em Belém do Pará, em 1911.
Nascimento (2019) aponta que outro nome de expressividade
para o Pentecostalismo no Brasil é o do francês, radicado nos Estados
Unidos, Luigi Francescon. Depois de fundar o Pentecostalismo na
Argentina, Francescon fundou a Congregação Cristã no Brasil, cujas
primeiras unidades foram abertas na capital paulista e no interior do
Paraná.
Ao longo de 110 anos, diversos Movimentos Pentecostais foram
fundados no Brasil. Considerando as particularidades teológicas destes
movimentos, Mariano (2004) defende que o Pentecostalismo brasileiro
se subdivide em três tipos ideais 73, a saber: 1- Pentecostalismo clássico:
cuja característica diferencial é a ênfase no “dom de línguas”
(glossolalia), e são as denominações que inauguraram o
pentecostalismo; 2- Deuteropentecostalismo: caracterizado pelo
evangelismo radiofônico centrado na cura divina, provocando a
fragmentação denominacional e dinamizando a expansão do
pentecostalismo brasileiro; 3- Neopentecostalismo: que se baseia na
constante guerra contra o Diabo e seus representantes na terra (Teologia

73
Por tipos ideais queremos nos referir a uma construção mental de modelos que não
necessariamente reproduzem ou refletem a realidade, mas aproxima-se desta servindo
de ferramenta para a sua compreensão. Para Weber (1999), o pesquisador deve sempre
comparar o mundo objetivo com os conceitos formulados, verificando se eles se
aproximam ou se distanciam de seu “tipo ideal” dentro de um espectro.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 143


do Domínio), na difusão da crença de que todo cristão deve ser
próspero, feliz e vitorioso em seus empreendimentos terrenos (Teologia
da Prosperidade), e por rejeitar usos e costumes de santidade
pentecostais.
Auxilia também no entendimento da temática, a tipologia criada
por Paul Freston (1993). O pesquisador nos auxilia a compreender o
desenvolvimento das igrejas pentecostais no Brasil através de ondas
cronológicas. Assim, segundo o autor, existem três momentos, ou ondas
do Pentecostalismo brasileiro. Quais sejam: Primeira onda: surge entre
os anos de 1910 e 1911 com a chegada da Congregação Cristã e da
Assembleia de Deus; Segunda onda: surge no fim da década de 1950 e
tem como marca o surgimento das Igrejas Quadrangular (1951), Brasil
para Cristo (1955) e Deus é Amor (1962), com foco de pulverização
paulista; Terceira onda: surge no Brasil no fim da década de 1970 tendo
como principais representantes a Igreja Universal do Reino de Deus
(1977) e a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980), no contexto
fluminense.
Ao analisar os dados do IBGE, Oliveira (2019) aponta o
crescimento do segmento religioso Pentecostal no Brasil entre os anos
de 2000 e 2010. O recenseamento populacional realizado no ano de
2000estimava aproximadamente 26,2 milhões de evangélicos. Em 2010
este número aumentou significativamente, atingindo aproximadamente
42,3 milhões de brasileiros, ou seja, cerca de 22% da população
nacional.
Ainda sobre as pesquisas do IBGE, Picolotto (2016) destaca que
metodologicamente o instituto classificou as instituições evangélicas
em dois subgrupos, a saber: os Evangélicos de Missão 74 e os
Evangélicos Pentecostais 75. Oliveira (2019) aponta que dentre estes
subgrupos o que mais tem crescido numericamente é o segmento dos

74
Evangélicos de Missão são todos aqueles que professam ensinamentos das igrejas
Adventista, Batista, Congregacional, Luterana, Metodista, Presbiteriana, dentre
outras.
75
Evangélicos Pentecostais são aqueles que compartilham dos ensinamentos das
igrejas Comunidade Evangélica, Evangélica Renovada não determinada, Assembleia
de Deus, Casa da Bênção, Congregação Cristã do Brasil, Deus é Amor, Igreja do
Evangelho Quadrangular, Maranata, Nova Vida, O Brasil para Cristo, Igreja
Universal do Reino de Deus, dentre outras.

144 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Evangélicos Pentecostais, representando pouco mais de 60% do total de
evangélicos no país.
Em consonância com os grifos de Oliveira (2019) e Picolotto
(2016), acerca do crescimento da população Pentecostal, apresentamos
por meio da tabela abaixo os dados obtidos junto ao site oficial do
IBGE, onde podemos inferir que o quantitativo de Evangélicos
Pentecostais ao longo de dez anos cresceu 41,14% (saltando de
17.975.249 para 25.370.484), enquanto o de Evangélicos Missionários
apresentou um crescimento de apenas 10,76% (saltando de 6.939.765
para 7.686.827).

TABELA 1 – EVANGÉLICOS NO BRASIL SEGUNDO O CENSO 2000 E 2010


Número de
Percentual Número de pessoas no ano Percentual
Classificação do IBGE pessoas no
(%) de 2010 (%)
ano de 2000
Evangélicos
Pentecostais 17.975.249 68,64 25.370.484 60,01
Evangélicos
Missionários 6.939.765 26,50 7.686.827 18,19
Não determinada 1.269.927 4,86 9.218.129 21,80
Total 26.184.941 100,00 42.275.440 100,00

FONTE: IBGE (2020).

Certo de que o segmento evangélico compõe uma parcela


significativa da sociedade brasileira, não podemos ignorar sua
participação para além dos espaços sagrados. Estudos clássicos, como
o de Pierre Bourdieu (2005), mostram a relevância da relação entre o
campo religioso e o político. A abordagem de Bourdieu (2011) acerca
dos campos consiste na análise da sociedade através de diversos
microcosmos, ou seja, pequenos mundos sociais relativamente
autônomos no interior de grande mundo social – o macrocosmo social.
“Tais microcosmos são autônomos porque possuem suas próprias leis,
seus princípios e regras de funcionamento” (BOURDIEU, 2011, p.
195).
Ao analisar a constituição do campo religioso, Bourdieu (2005)
defende que a religião tem um caráter político, porque ela dá sentido
àquilo que existe ou venha a existir. Sua função lógica de ordenação do
mundo acaba por recobrir divisões sociais de grupos ou classes
concorrentes ou antagônicas, reafirmando o caráter legitimador da

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 145


produção simbólica. Noutras palavras, os discursos empunhados pelos
clérigos têm o condão de assumirem função ideológica capaz de
interferir na construção e na percepção do mundo social e, desta forma,
os líderes religiosos valem-se da autoridade e de seu capital religioso
para naturalizar e rotinizar as concepções mundanas entre os leigos.
Constantemente os porta-vozes do campo religioso fazem
alianças e/ou declaram apoio a lideranças do campo político almejando
participação na construção da sociedade. Em contrapartida estes líderes
políticos se comprometem com as pautas defendidas pelos evangélicos
na tentativa de abarcar os votos deste segmento de eleitores.
Freston (1993), em uma análise macrossociológica do
Pentecostalismo brasileiro, aponta que desde a redemocratização ficou
patente o cacife eleitoral evangélico, que elegia uma bancada
significativa para o legislativo e fazia importantes alianças com o poder
executivo. Vale ressaltar que “o carro chefe dessa considerável
penetração evangélica no cenário político, no qual ocorria a
transferência do capital religioso para o político, foi a Igreja Universal
do Reino de Deus” (CRUZ, 2009, p. 94).
Neste sentido, Oliveira (2019) aponta que a eleição presidencial
de 2018 chamou a atenção dos analistas para a atuação política do
mundo evangélico, principalmente por se atribuir a vitória de Jair
Bolsonaro ao suposto “voto pentecostal”. Após abordarmos a origem
do Pentecostalismo, sua chegada e consolidação no Brasil, bem como
sua relação com o campo político, exploraremos a história da IURD –
maior igreja neopentecostal brasileira em número de fiéis, com especial
foco em seu projeto midiático e no comportamento político/partidário
da instituição ao longo dos anos.

2. A IURD, a mídia e a política


A IURD foi fundada em 09 de julho de 1977 por Edir Macedo,
Romildo Ribeiro Soares (R. R. Soares) e Roberto Augusto Lopes 76,
como propagadora do Neopentecostalismo. Na sequência de sua
fundação, no início da década de 1980, a conjuntura de

76
Romildo Ribeiro Soares se desligou da instituição religiosa no ano de 1980 para
fundar a Igreja Internacional da Graça de Deus. Em 1987 Roberto Augusto Lopes
também se desligou da instituição e reingressou na Igreja da Nova Vida.

146 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


redemocratização potencializou a militância sindical, político-
partidária e de diversas entidades da sociedade civil.
Naquele contexto, diversos movimentos sociais e partidos
políticos adquiriram visibilidade e representatividade. As instituições
religiosas participaram deste processo procurando defender pautas
como a defesa da família e a não legalização do aborto e das drogas.
Por parte das instituições evangélicas havia receio de que houvesse
privilégios à Igreja Católica.
Nas palavras de Oro (2003), embora a IURD tenha se inserido
no campo da política no ano de 1982, só conseguiu eleger
representantes políticos em 1986. Corroborando como a afirmativa,
Mariano (2014) acrescenta que Roberto Lopes, atendendo a sugestão de
Edir Macedo para ingressar na política partidária, candidatou-se a
Câmara dos Deputados, sendo eleito com 54.332 votos, maior votação
do PTB/RJ naquela eleição. Nascimento (2019) complementa que
Eraldo Macedo Bezerra, irmão de Edir, conquistou uma cadeira na
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro naquele ano. Com crescente
desempenho nas urnas a cada pleito eleitoral, progressivamente
aumentava o número de pessoas ligadas à igreja que eram eleitas para
cargos públicos eletivos.
Oro (2003) aponta que nas eleições gerais do ano de 2002, a
Universal elegeu dezesseis deputados federais e dezenove deputados
estaduais, distribuídos entre dez estados da federação. Feito inédito
também ocorreu naquele ano, quando o Bispo Marcelo Crivella,
sobrinho de Edir Macedo, foi eleito para o cargo de Senador da
República pelo PL/RJ, desbancando políticos tradicionais como Artur
da Távola (PSDB/RJ) e Leonel Brizola (PDT/RJ).
Até então a IURD possuía fortes laços com o Partido Liberal.
Entretanto, escândalos de corrupção 77 envolvendo várias legendas
motivou a fundação de uma nova sigla pelos dissidentes do PL. Nascia
então o Partido Municipalista Renovador (PMR). A fundação do novo
partido levou diversos políticos vinculados a IURD a migrarem para a

77
Em outras palavras, referimo-nos ao Escândalo do Mensalão, um esquema
descoberto no ano de 2005 que consistia em pagamentos de propina mensalmente a
diversos partidos políticos e parlamentares para darem sustentação ao governo do
então presidente Lula. Disponível em: <https://www.politize.com.br/mensalao-o-que-
aconteceu/>. Acesso em: 25 maio2020.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 147


nova agremiação, inclusive Crivella. No ano seguinte, o partido recém-
fundado passou a se denominar Partido Republicano Brasileiro (PRB).
Gutierrez (2016) destaca que muito embora o PRB se preocupe
em relegar sua proximidade com a IURD e mostrar-se um partido laico,
a escolha do advogado Marcos Pereira como presidente da legenda,
bem como a composição significativa dos cargos de direção do partido
por pessoas ligadas a igreja evidenciam as relações entre as instituições.
Pereira, além de membro da Universal, trabalhou na TV Record,
emissora de Edir Macedo.
Diante do desprestígio da classe política e o desgaste da imagem
dos partidos na sociedade, diversas agremiações optaram por modificar
o nome de suas legendas. Frente a essa onda, o PRB deliberou em
convenção nacional uma nova nomenclatura, passando a se denominar
Republicanos. Em 2019 o TSE deferiu a alteração.
Calha ressaltar que o sucesso da Universal nas urnas é fruto de
um modo próprio de fazer política, adotado a partir de 1997. Segundo
Oro (2003), o modelo corporativo de “candidatura oficial” considera o
capital eleitoral que a igreja possui em determinada circunscrição.
Dependendo da eleição, ela (IURD) distribui seus
candidatos segundo os bairros, as cidades ou as regiões
para serem apoiados separadamente pelas diferentes
igrejas locais. Porém, repito, na IURD a escolha dos
candidatos é prerrogativa única e exclusiva dos dirigentes
regionais e nacionais da Igreja, segundo seus próprios
cálculos e interesses. Não há nenhuma consulta
democrática aos membros das igrejas locais. Estes
recebem, no momento oportuno, o(s) nome(s) que devem
apoiar (ORO, 2003, p.55).

Para Jardim (2016) a IURD pode ser adjetivada como uma


instituição polêmica e bem-sucedida. Polêmica porque constantemente
se envolve em imbróglios com a Igreja Católica, com as religiões de
matriz africana e com outras igrejas evangélicas. Os membros da IURD
ainda consideram serem alvos de constantes perseguições por veículos
de comunicação de relevante alcance nacional, tais como a Revista
Veja, Rede Globo de Televisão e Folha de São Paulo.

148 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Nestas mídias vai a público grande parte das notícias
polêmicas relacionadas a IURD, dentre essas, acusações
de enriquecimento ilícito, manipulação de fiéis,
charlatanismo, corrupção de políticos ligados a igreja,
fraudes nas obras de construção dos templos, e mais uma
série de assuntos, que por vezes também atacam a pessoa
do bispo Edir Macedo (JARDIM, 2016, p.16).

Ao afirmar ser a IURD uma instituição bem-sucedida, Jardim


(2016) destaca a presença da igreja em diversos países, bem como os
milhares de templos espalhados por todo o território nacional.
Nascimento (2019) aponta que a IURD afirma possuir cerca de 7.157
templos espalhados pelo território nacional e outros 2.857 espalhados
pelos outros 95 países em que marca presença. Outros dados relevantes
apontados pelo autor são referentes ao quantitativo de bispos e pastores,
isto é, 320 e 14 mil, respectivamente.
Os investimentos no televangelismo e no evangelismo
radiofônico proporcionaram a igreja que nasceu no subúrbio carioca se
propagandear e, consequentemente, arrebanhar um crescente número
de fiéis e constituir um vultoso patrimônio. Detentora de concessões de
emissoras de Rádio/TV, jornal impresso e sites na internet, a IURD
utiliza estes diversificados veículos para se defender e se promover.
As mídias religiosas, como o jornal “Folha Universal”,
procuram ser informativas e passar uma perspectiva de neutralidade em
suas reportagens, ao mesmo tempo em que não se descuidam do
objetivo de evangelizar e defender os interesses da igreja e de suas
lideranças. Assim, em ano de eleições “a Folha Universal marca o
período eleitoral no cotidiano pentecostal da IURD” (CONRADO,
2001, p. 87). Segundo o autor, é através do jornal que os conflitos são
explicitados e um arsenal de bens simbólicos é produzido e reproduzido
na busca de representação política e do voto corporativo.

3. A IURD e as eleições de 2018


A eleição de 2018 foi marcada pelo lançamento de 13
candidaturas ao cargo máximo do poder executivo nacional, segundo
maior número desde a redemocratização do país 78. Nas quatro últimas
eleições presidenciais o Partido dos Trabalhadores (PT) saiu vitorioso,
tendo como um dos principais partidos aliados o PRB.

78
No ano de 1989, 22 candidatos postularam ocupar o Palácio do Planalto.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 149


Após ações como o batismo simbólico no rio Jordão, a adoção
do slogan “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, e,
principalmente, o satisfatório desempenho do candidato nas pesquisas
eleitorais, Edir Macedo 79 declarou seu apoio a Bolsonaro as vésperas
do primeiro turno.
Para Nascimento (2019) a celebração da união ocorreu na noite
do último debate presidencial do primeiro turno, quando Bolsonaro se
recusou a participar do confronto organizado pela Rede Globo de
Televisão em razão da facada sofrida durante um ato público de
campanha na cidade de Juiz de Fora/MG. Entretanto, o candidato
apareceu em uma longa entrevista concedida a TV Record exibida no
mesmo horário.
A maneira com que esta aliança teria se dado via jornal oficial
nos motivou a pesquisá-lo, pois, em tese intitulada “As estratégias de
comunicação da Igreja Universal do Reino de Deus”, Rocha (2006)
afirma que a Folha Universal “tem como principal característica sua
linha editorial tendenciosa” (p. 87). A autora se valeu do depoimento
de Lionel Mota, programador que trabalhou na folha, no qual declarou
que com a aproximação do período eleitoral o jornal era usado para
ataques aos concorrentes dos candidatos da IURD, e que os bispos
exerciam grande pressão sobre o conteúdo do jornal.
Para melhor analisarmos a mobilização de conteúdo
político/eleitoral na Folha Universal, consideramos o calendário oficial
do TSE e classificamos sistematicamente as edições em três diferentes
períodos, a saber: (i) Período pré-eleitoral, que se inicia no primeiro
dia do ano e finda na data limite para o registro de candidaturas junto
ao Tribunal Eleitoral competente. No ano de 2018 a data limite para
este registro foi 15 de agosto daquele ano; (ii) Período eleitoral,
iniciado no dia posterior ao registro de candidaturas perante o Tribunal
Eleitoral competente, até a data da realização do segundo turno das
eleições. É caracterizado como o momento em que as agremiações
partidárias e os candidatos assumem uma postura mais efetiva na
conquista do eleitorado. Para um estudo mais apurado do uso da mídia

79
Reportagem veiculada no Jornal Estadão em 30/09/2018, às vésperas da realização
do Primeiro Turno das Eleições Presidenciais 2018. Disponível
em:<https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,edir-macedo-declara-apoio-a-
bolsonaro,70002526353>. Acesso em: 04 nov.2018.

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impressa oficial, subdividimos este período da seguinte forma: Primeiro
Turno: de 16 de agosto até 07 de outubro daquele ano, e; Segundo
Turno: de 08 de outubro até 28 de outubro daquele ano. Por fim, tem-
se o (iii) Período pós-eleitoral, que se inicia no primeiro dia após a
realização do segundo turno, estendendo-se até o dia 31 de dezembro,
último dia do ano.
Após delimitar os períodos procuramos identificar a quantidade
de edições publicadas em cada um deles, o que nos oportunizou
confeccionar a seguinte tabela:

TABELA 2 – QUANTIDADE E PERCENTUAL DE EDIÇÕES DO


JORNAL FOLHA UNIVERSAL PUBLICADAS NO ANO
DE 2018 POR PERÍODO
Período Quantidade de Edições Percentual (%)

Pré-eleitoral 31 60,78
1º Turno 7 13,72
2º Turno 4 7,85
Pós-eleitoral 9 17,65
Total 51 100,00

FONTE: O Autor (2020)

Consoante aos dados apresentados acima, verificamos que


grande parte das edições do jornal foram publicadas ao longo do
Período Pré-eleitoral (31 edições), correspondendo a 60,78%. No
transcorrer do Período Eleitoral (Primeiro e Segundo Turnos) foram
publicadas 11 edições, o que corresponde a 21,57%. No Período Pós-
eleitoral foram publicadas 09 edições, o que corresponde a 17,65% do
total de publicações realizadas no ano de 2018. Insta destacar que no
dia 03 de julho de 2018 o jornal não publicou seu exemplar, utilizando
como justificativa a Greve dos Caminhoneiros que assolou o país. A
seguir faremos análise mais detida do conteúdo do jornal em cada um
destes períodos.

3.1 Período Pré-eleitoral: edições 1344 a 1374


Ao analisarmos as 31 edições semanais publicadas durante o
Período Pré-eleitoral é notória a preocupação do jornal em informar aos
fiéis acerca da estrutura política instituída, bem como enfatizar a

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 151


importância do voto como instrumento capaz de decidir os novos rumos
do país. Entretanto, muito mais do que cumprir um papel cívico, o jornal
defende pautas evangélicas e interesses políticos.
Temas como o Kit Gay e a Ideologia de Gênero, fortemente
criticados por Jair Bolsonaro durante sua pré-campanha foram
abordados pela mídia impressa. O editorial trouxe intitulado “Não basta
ter liberdade de culto, é preciso expressar a fé sem impedimentos” (Ed.
1366, p. 3), nele afirmam que diversos cidadãos que defendem a fé
publicamente vêm sofrendo constantes ataques, inclusive os políticos.
O texto ainda aponta que as críticas não se resumem somente a fé
professada, mas que abrange também críticas à família, que
constantemente é afrontada por posições que incentivam a proliferação
da Ideologia de Gênero, e até mesmo pela formulação de cartilhas que
fazem apologia à homossexualidade (Kit Gay).
Frequentemente o semanário abre espaço para políticos
vinculados ao PRB. Em uma das oportunidades o jornal publicou uma
entrevista com Flávio Rocha, empresário evangélico e pré-candidato à
Presidência da República pelo PRB. Intitulada “O que pensa Flávio
Rocha” (Ed. 1368, p. 8) a reportagem deixa nítida a posição do político
em defesa de um estado liberal na economia e conservador nos
costumes, posicionamento este compartilhado por Jair Bolsonaro.
Flávio Rocha desistiu da corrida presidencial, retirando sua pré-
candidatura. Na reportagem “Gestão de Marcos Pereira foi marcada por
resultados positivos” (Ed. 1349, p. 9), a mídia impressa destaca a saída
e o legado deixado pelo Ministro da Indústria, Comercio Exterior e
Serviços do Governo Temer. Posteriormente, na reportagem “A
conduta que um político deve ter” (Ed. 1356, p. 8), exorta-se a imagem
do Bispo Jair Costa (PRB/BA), único vereador de Camaçari/BA não
denunciado pelo Ministério Público por suspeitas de corrupção.
No editorial datado de 18 de fevereiro de 2018 (Ed. 1350, p. 3),
o jornal mobiliza espaço para atacar o presidente da Câmara dos
Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ). Insta destacar que o deputado
criticado compõe o grupo opositor ao liderado por Marcelo Crivella
(PRB/RJ), e que Maia já havia manifestado publicamente o interesse de
concorrer ao cargo de Presidente da República, candidatura esta que
não foi avalizada pelos Democratas.
O jornal sinalizava grande preocupação com a temática das
Fake-news. A edição de 15 de abril (Ed. 1358, p. 16) abordou matéria

152 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


referente ao assunto, destacando que tanto a Universal e o Bispo Edir
Macedo há muito tempo são alvos das grandes mídias que disseminam
notícias falsas, e que as Fake-news seriam um dos maiores desafios a
ser enfrentado nas eleições de 2018. O tema se repete nas edições 1369
e 1374.
Embora a Folha Universal aborde variados temas como beleza,
entretenimento, relacionamento e saúde/bem-estar, torna-se evidente
que a IURD utiliza sua mídia impressa oficial para fins políticos,
especialmente em benefício do PRB. As edições estudadas não fizeram
qualquer menção direta ao nome de Jair Bolsonaro, contudo, é possível
identificar afinidades entre os posicionamentos tanto do semanário
quanto do presidenciável, o que pode ter contribuído para que os
leitores se identificassem com o pré-candidato. Nem sempre o apoio aos
grupos políticos se dá de modo explícito, os campos possuem jogos de
linguagens, aspectos materiais e simbólicos que neles se geram, que
possuem formas e interesses próprios em cada campo (BOURDIEU,
2007).
Em relação ao Kit Gay, a Ideologia de Gênero e aos riscos que
as famílias estariam correndo, cabe ressaltar que as lógicas do campo
político se diferem de outros campos, inclusive do campo científico,
porque a força das ideias não se mede pelo valor de verdade, mas pela
(...) força de mobilização que elas encerram, quer dizer,
pela força do grupo que as reconhece, nem que seja pelo
silêncio ou pela ausência de desmentido, e que ele pode
manifestar recolhendo suas vozes ou reunindo-as no
espaço (BOURDIEU, 1997, p. 185).

Assim, tais perspectivas reforçam nossa hipótese de um


engajamento que, até aquele momento, não se dava pela explicitação de
nomes.

3.2 Período eleitoral: edições 1375 a 1385


3.2.1 Primeiro turno
Durante o primeiro turno das eleições o número de matérias de
cunho político/eleitoral cresceu vertiginosamente. A temática foi
abordada em todas as sete edições analisadas (Ed. 1375, 1376, 1377,
1378, 1379, 1380 e 1381). O jornal procurou destacar os principais
problemas a serem enfrentados pelo próximo presidente, tais como
saúde, educação, desemprego e segurança pública, reforçando o clamor

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 153


pela mudança e alertando os cidadãos para a necessidade de escolher
um candidato que melhor conduzirá o país.
Na reportagem intitulada “Novela para adolescente promove
ideologia de gênero” (Ed. 1376, p. 8) o jornal problematizou uma cena
da novela Malhação, exibida pela Rede Globo de Televisão e cujo
público alvo é o adolescente. Afirmava que o assunto quando
empurrado “goela abaixo” poderia ocasionar confusão sexual ou
estímulo precoce a sexualidade em crianças e adolescentes. Em outro
momento, o jornal publicou editorial intitulado “A ditadura da ideologia
de gênero” (Ed. 1379 p. 3), posicionando-se contra a abordagem do
tema nas escolas e criticando a mídia que tenta naturalizar o assunto
através das novelas. O jornal afirmava ser crucial que seus leitores
escolhessem candidatos que representassem os seus valores, que estes
possuem uma importante arma para frear aqueles que buscam destruir
valores cristãos importantes como a família.
Na reportagem intitulada “Por que 07 de outubro será o Dia das
Crianças?” (Ed. 1381, p. 16) citava que poucas pessoas sabiam sobre o
Projeto de Lei 5002/2013 que pretendia criar a Lei de Identidade de
Gênero. Segundo o jornal o projeto foi proposto pelos deputados Jean
Wyllys (PSOL/RJ) e Erika Kokay (PT/DF), estabelecendo a
possibilidade de realização de cirurgia de mudança de sexo por crianças
sem o consentimento dos pais. O jornal reforçava a necessidade dos
leitores avaliarem a posição ideológica de seus candidatos.
Muito embora o PRB, partido com forte ligação com a IURD
tenha declarado apoio à candidatura do presidenciável Geraldo
Alckmin (PSDB/SP), insta destacar que em momento algum o jornal
publicizou o apoio do partido ou declarou apoio da igreja ao candidato.
Tal fato pode ser justificado pela estagnação do mesmo nas pesquisas
eleitorais e incertezas quanto ao seu avanço ao segundo turno. Contudo,
é latente a preocupação do semanário quanto à Ideologia de Gênero,
pauta fortemente explorada por Bolsonaro, e que pode ter influenciado
na escolha do candidato pelo eleitorado evangélico. Não se pode
afirmar que os conteúdos mobilizados pelo jornal da IURD foram
fundamentais para o avanço do candidato para o 2º Turno, entretanto,
não se pode minimizar sua importância. Também não se pode afirmar
que havia neutralidade e toda uma mobilização simbólica
(BOURDIEU, 2007) pró-Jair Bolsonaro.

154 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


3.2.2 Segundo turno
No segundo turno foram lançadas quatro edições do jornal (Ed.
1382,1383,1384 e 1385). A primeira delas foi lançada no dia da eleição
do primeiro turno e o editorial do jornal procurou ser mais informativo
sobre a importância do voto, reforçando a necessidade de atenção nesta
escolha. O jornal é taxativo na premissa de que não é possível
abandonar a política e que é necessário participar de audiências
públicas, ler portais e estar sempre informado.
Nas edições seguintes o jornal se torna mais incisivo em pautas
que coadunam com o discurso de Jair Bolsonaro. Assim, as edições
enfatizavam o problema da corrupção e demonstrava indignação com o
fato da cantora Pabllo Vittar ter se manifestado contra Bolsonaro em
programa de TV, enquanto seus pastores não poderiam se expressar
como desejassem em seus templos (Ed. 1383, p. 3).
No jornal de 21 de outubro (Ed. 1384, p. 03) o Editorial foi mais
incisivo ainda em suas manifestações ao intitular uma de suas matérias
como “Acabou a ‘festa’: é o fim da velha política”. O jornal era muito
crítico à forma de fazer política no Brasil e, sem citar diretamente o PT,
Fernando Haddad (PT/SP) ou outro político, demonstrava uma grande
afinidade pelo candidato do PSL que seria eleito para acabar com a as
velhas práticas. O conservadorismo é explícito:
Analistas políticos já apontam no noticiário que o
Legislativo será bem mais conversador, com muitos dos
eleitos vindos de instituições como as forças de
segurança e denominações evangélicas – um claríssimo
clamor pela segurança e pela decência (Ed. 1384, p. 3).

Outras questões importantes diziam respeito ao fato de que


haveria uma campanha explícita ou velada para causar a ruína de
instituições como a família, os bons costumes, a educação e a ética.
Assim, estamos em acordo com a premissa de que estas mídias
promovem mensagens que “são pautadas por interdições do que está
certo e errado, do que pode ser realizado ou não, reforçam que a
sociedade está perdida e de que ela precisa ser resgatada”
(CARRANZA, 2013, p. 548).
Assim, pode-se dizer que a Folha Universal foi politicamente
atuante no segundo turno, mesmo não citando o nome de candidatos.
Temas como o fim da “velha política”, corrupção e o “clamor pela
decência” reforçaram a predileção da IURD pela eleição do candidato

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 155


Jair Bolsonaro. Era um contexto em que os capitais políticos e
religiosos de exposição se tornavam menores pela evidente
possibilidade de eleição de Bolsonaro, cujas pautas moralistas tinham
afinidade com propósitos da IURD.

3.3 Período pós-eleitoral: edições 1386 a 1394


Nas primeiras edições o jornal demonstra satisfação com a
vitória do candidato do PSL e apresenta argumentos que os levaram a
serem contra o PT, além de enfatizarem o quanto o voto evangélico foi
decisivo para os resultados das eleições, numa clara demonstração do
poder de mobilização eleitoral dos evangélicos. O jornal apontava sua
insatisfação com a militância petista que teria atacado os evangélicos
que se mostraram muito engajados com a política do país e que foram
cruciais nas urnas.
A partir de meados de novembro a temática das eleições
começava a perder força e se iniciava um processo de “esfriar os ânimos
acirrados” da campanha eleitoral. Na edição de 11 de novembro (Ed.
1387, p. 3) o editorial afirmava que “A vida deve seguir para frente”,
tratando de reforçar que as eleições acabaram e que era necessário
seguir sem rancores, já que muitas famílias e amigos haviam se dividido
no cenário eleitoral. Reforçavam a ideia de que não basta que as pessoas
sejam eleitas, mas que os cidadãos precisam acompanhar os políticos
eleitos
Pautas de campanha como “Ideologia de Gênero” (Ed. 1388, p.3)
e “Escolas sem Partido” (Ed. 1389, p. 3) voltam a ser ratificadas nas
edições seguintes. Não obstante, o maior espaço dedicado à política
partidária ocorre em 23 de dezembro, momento em que há uma página
inteira com o título: “Fernando Haddad é condenado a pagar
indenização ao Bispo Macedo” (Ed. 1393), seguida de uma matéria
afirmando que o candidato derrotado desrespeitou não só os fiéis da
Universal “mas todos os brasileiros católicos e evangélicos que não
queriam de volta ao poder um partido político que tem como projeto a
destruição dos valores cristãos, como a família, a honra e a decência”
(p. 8).
Na mesma edição o jornal demonstrava engajamento nas pautas
do governo que se iniciaria em alguns dias, como, por exemplo, na
matéria “E a reforma da previdência? Desta vez sai?” (Ed. 1393, p. 3).
É um tema de campanha importante. O jornal compra a ideia de que o

156 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


objetivo da reforma consiste em combater os privilégios daqueles que
são os mais beneficiados, destacando que a população tem se tornado
mais velha, segundo o IBGE. Como está escrito, “E o tão falado rombo
da previdência precisa não só ser ‘tapado’, mas também deve ser
combatido e sanado tudo aquilo que contribui para que esse buraco se
abrisse cada vez mais” (p.03).
O editorial do jornal torna mais evidente o apoio a Jair Bolsonaro
à medida que ele demonstrava condições de vencer as eleições e, mais
ainda, depois dele ter vencido. Durante o Período Pré-eleitoral e
eleitoral havia afinidades entre as proposições de Jair Bolsonaro e as
pautas dos evangélicos, entretanto, isso não era suficiente para estampar
seu nome nas edições do jornal antes da vitória. Havia racionalidade do
“editorial” que apenas se colocou explicitamente no apoio ao candidato
quando este demonstrou que venceria as eleições.

Considerações Finais
Nossa pesquisa indica que houve uma grande atenção da IURD
com as eleições de 2018 e que suas pautas foram mudando enquanto se
desenrolavam processos sociais e políticos relacionados ao pleito
eleitoral. Verificou-se grande preocupação do jornal com a
participação cívica no processo eleitoral, destacando a constante
menção da responsabilidade que paira sobre os leitores ao escolher
candidatos, devendo estes sempre optar por aqueles que defendam
valores como a família e a religiosidade.
No início do primeiro turno houve aumento do número de
matérias de cunho político/eleitoral, tais matérias foram abordadas em
todas as edições analisadas. O jornal procurou destacar os principais
problemas a serem enfrentados pelo próximo presidente, tais como
saúde, educação, desemprego e segurança pública, reforçando a ideia
de “necessidade da mudança”. Merece destaque o posicionamento
editorial acerca da Ideologia de Gênero, tema que permeou os debates
políticos no ano de 2018 e que foi fortemente explorado pelo candidato
Jair Bolsonaro (PSL/RJ). A afinidade de ideias tanto do semanário
quanto do candidato pode ter corroborado significativamente no
convencimento dos evangélicos a atribuírem seu voto a Bolsonaro
naquele turno.
No segundo turno pode-se dizer que a IURD trabalhou melhor
no apoio à eleição de Jair Bolsonaro, reforçando a perspectiva da
instituição na necessidade de mudanças e de que seus fiéis precisavam

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 157


participar das eleições no sentido de defender os valores religiosos
apregoados por ela.
Logo depois das eleições, as edições continham comemorações
em relação ao resultado do pleito e uma descrição que evidencia o
quanto o voto evangélico foi decisivo para a vitória do candidato do
PSL. Depois das comemorações e demonstração de evidente satisfação
com o resultado das urnas, o jornal adota um tom apaziguador e ressalta
a necessidade dos brasileiros se unirem dali em diante.
Frente ao exposto, concluímos que o aval à candidatura de Jair
Bolsonaro ocorreu mais pelas pautas levantadas nas matérias
publicadas, do que pela explicitação do nome do candidato ou de
pessoas ligadas ao seu grupo político. Não se pode afirmar que o apoio
da IURD seja o fator mais decisivo para uma vitória presidencial no
Brasil, porém não se pode minimizar sua importância. São milhares de
templos, milhões de fiéis, diversas emissoras de rádios, canal de
televisão e uma tiragem semanal de milhões de exemplares de jornais.

Referências Bibliográficas

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Política, Brasília, n. 5, p. 193-216, jan./jul. 2011.
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2018.

160 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


9
Memória e religião: Uma análise sobre o papel
da religião na socialização de refugiados
venezuelanos
Caroline Nascimento Lehmann
Juliana da Silva Santos

Introdução
A situação política e humanitária na Venezuela vem se
agravando nos últimos quatro anos e tem-se observado uma diáspora de
venezuelanos em busca de uma vida melhor em outros países. Segundo
a Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados
(ACNUR) 80, mais de 5 (cinco) milhões de venezuelanos deixaram seu
país, o que configura o maior êxodo da história recente da região. Entre
os países latino americanos, o Brasil é um dos destinos escolhidos pelos
refugiados para “recomeçar”.
Ainda segundo a ACNUR, no ano de 2018 os venezuelanos
foram os que mais deram entrada de refúgio no país, com cerca de
61.687 pedidos em vários estados, sendo Roraima (50.770), Amazonas
(10.500) e São Paulo (9.977), respectivamente, os estados mais
solicitados. Em 2020, segundo o site G1 81, o governo brasileiro aprovou
38 mil solicitações de refúgio de venezuelanos no país, o que significa
88% do total de pedidos– situação que foi agravada devido a pandemia
de COVID-19 que assola o mundo.
Diante dessa realidade em curso, o estudo em desenvolvimento
possui o intuito de compreender as dinâmicas e contextos referentes ao
processo de deslocamento e refúgio de cidadãos venezuelanos em
situação de perigo (econômico, político e social) em seu país de origem
e a inserção deles em outro país, neste caso, o Brasil, a partir da análise

80
Venezuela – ACNUR Brasil – Proteja seus refugiados. Disponível em:
<https://www.acnur.org/portugues/venezuela/>. Acesso em: 15 jun. 2020.
81
Número de refugiados no Brasil aumenta mais de 7 vezes no semestre; maioria
é de venezuelanos. Disponível em:
<https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/09/numero-de-refugiados-no-brasil-
aumenta-mais-de-7-vezes-no-semestre-maioria-e-de-venezuelanos.ghtml>. Acesso
em: 22 jun. 2020.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 161


sobre qual é a relação que existe entre a religião (sobretudo, o
pentecostalismo)e a movimentação destes venezuelanos, observando a
inserção e a adaptação desses refugiados, a partir de uma mirada em um
caso que se passa em uma cidade do interior de Minas Gerais. Isto é,
Barbacena.
O caso estudado por nós foi o de uma família de refugiados do
interior da Venezuela que atualmente vive em Barbacena. Dito isso,
salientamos que usaremos codinomes a fim de preservar a identidade
dos atores sociais.
Por meio de um contato com uma igreja evangélica em
Barbacena/MG, conhecemos a família Gonzalez. A partir da
aproximação com a família refugiada, passamos a compreender a
realidade dos refugiados através de suas histórias, pensamentos e
anseios captados por intermédio de conversas primárias e entrevistas.
Essas histórias nos forneceram uma base e direcionamento para a
realização de uma pesquisa sociológica, que versa especialmente sobre
processos identitários.
Em outras palavras, sobre os processos identitários aos quais os
refugiados venezuelanos, invariavelmente, estão sujeitos neste processo
de reconstrução material e simbólica de suas vidas. Dentro desse
contexto, interessa-nos investigar o papel da religião nessa
reconstrução.
Para isso, foram realizadas entre os meses de outubro e
dezembro de 2019, entrevistas semiestruturadas de forma individual,
com dois membros da supracitada família venezuelana e com dois
representantes (pastor e colaborador) da Igreja D’Ajuda, denominação
que a família frequenta. Nas perguntas para os venezuelanos focamos
em três pontos chaves: (i) a vida familiar e religiosa na Venezuela; (ii)
o processo de transição da Venezuela para o Brasil, e; (iii) como a
religião, através do cristianismo em sua expressão pentecostal,
contribui para a socialização e adaptação destes refugiados na cidade de
Barbacena. No questionário específico para os membros da Igreja
D’Ajuda focamos também em três pontos, quais sejam: (a) a vida e a
relação com a igreja; (b) o relacionamento com a família venezuelana
refugiada, e; (c) como é o perfil da igreja, mais especificamente, no que
se refere as questões de ação social.
Pretendemos com esses objetivos refletir sobre a relação da
família Gonzalez com a religião desde suas experiências pré-refúgio

162 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


passando pelo período de movimentação em solo brasileiro até se
fixarem em Barbacena/MG, em que nos interessa também sua vida
religiosa atual, compreendida como teórica e prática. Vale ressaltar que
ancoramos nossa análise e reflexão no pressuposto (levantado através
da análise das transcrições das entrevistas) de que a relação da família
com a religião pode ser baseada em uma relação de troca. Em outros
termos, a troca é acionada por uma necessidade da família venezuelana,
que contata a igreja D’Ajuda através do pastor e de um colaborador,
que, por sua vez responderam de forma rápida e assertiva aos pedidos
feitos.
Outro pressuposto é que a matriarca da família, que desempenha
o papel de líder e de responsável pela família, exerça influência na
escolha da religião que a família deve seguir e sobre a forma como
cultuam seu deus, de forma coletiva e geracional. Tudo isso, na
tentativa de manter suas raízes construídas em sua terra natal e que
necessitam de reafirmação e identificação, agora, em um novo lugar.

1. A vida da família Gonzalez na Venezuela pré-crise.


A família Gonzalez é formada por 8 pessoas: a mãe Izabel, três
filhos, com idade entre 18 e 21 anos, sendo dois rapazes: Rafael e
Miguel e uma moça, Olívia. Além de duas noras, da mesma faixa de
idade, Marina e Roberta. E seus dois bebês, ambos com
aproximadamente um ano de idade, respectivamente, Juan e Maria.
Izabel é separada e o pai de seus filhos vive na Venezuela.
A jornada da família Gonzalez começa em 2019, no momento
em que saíram de sua cidade natal Maturín, no estado de Monagas, para
tentar a vida nas minas da Venezuela, fato que não durou muito tempo
devido as situações perigosas que enfrentavam. Por conta disso,
decidiram enfrentar a travessia para o Brasil carregando consigo apenas
o necessário. Esse deslocamento foi feito através de caminhadas e de
caronas, que os levou até Pacaraima/RO, município brasileiro
localizado na fronteira com a Venezuela. Tempos depois, chegando
finalmente em Boa Vista, capital de Roraima. Por fim, de lá a família
se desloca para Barbacena.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 163


Mas, antes de abordarmos sobre a vida da família em
Barbacena/MG, precisamos voltar no tempo e conhecer a realidade da
família antes de decidirem sair de seu país.
Antes da intensificação da crise política e econômica da
Venezuela, os Gonzalez viviam, há pelo menos quatro anos, de maneira
semelhante a uma família brasileira de classe média baixa, no que diz
respeito ao acesso razoável a bens de consumo e serviços básicos como
saneamento, educação e moradia, conforme recorda, num “portunhol”
fluente, um dos filhos de Izabel.
Lá (Venezuela) eu estava estudando muito antes de
acontecer o que está acontecendo agora. Aí dava para
estudar, entende? Aí comecei uma faculdade, eu estudava
Administração de Empresas, porque minha mãe já
estudou isso, aí eu já gostei também e comecei a entender
essa carreira. Minha vida era normal, uma pessoa normal,
morava bem, dava para estudar e trabalhar (...) Toda
pessoa conseguia morar bem, ter uma vida normal, mas
depois de um tempo, pra mim e todos ficou um pouco
ruim, porque vinha acontecendo já o que está
acontecendo agora. Os donos de empresas muito grandes,
que ajudavam a Venezuela, começaram a ir embora.
Depois com o tempo, a comida que era normal, uma
comida, por exemplo, arroz com frango, uma pessoa
normal já não conseguia ter. Só comia essa comida,
militar, dono de lojas (Rafael, 21 anos, o filho mais velho
de Izabel, casado com Marina e pai de Valentin).

A realidade dos filhos era de estudantes, status comum a jovens


na idade deles à época (atualmente, eles se encontram na faixa etária
entre 18 e 21 anos). Fato que é brutalmente mudado com a chegada da
crise, obrigando-os a trabalhar e a amadurecer rapidamente.
No que diz respeito ao campo religioso, liderados pela mãe, a
família frequentava uma igreja evangélica. Conforme pontua Rafael:
“Minha mãe sempre ficou na igreja evangélica, minha avó também era
muito religiosa, evangélica. Eu também com a minha esposa ficava
muito lá (...)”. Essa fala levanta o pressuposto de que a fé cristã
evangélica (pentecostalismo) era algo transmitido de forma geracional.
Isto é, a mãe de Izabel, que era religiosa, ensina a filha os caminhos da
religião, e agora Izabel passa para seus filhos os mesmos saberes e
valores, e assim sucessivamente.

164 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Apesar de ainda não terem sido realizadas entrevistas com
Izabel, através dos relatos de seus filhos e dos membros da Igreja
D’Ajuda entrevistados, foi possível observar que a estrutura familiar é
organizada e conduzida por essa mulher de meia idade, religiosa, que
não mediu esforços para buscar um futuro melhor para si, para seus
filhos e familiares, ação que culminou na vinda para o Brasil, mas que
não se iniciou em solo brasileiro.
Como brevemente abordado acima, por conta dos problemas
econômicos, Izabel decide sair de sua cidade de origem, Maturín – a
sexta maior da Venezuela –e partir em direção ao interior, para as minas
de ouro do país, a fim de trabalhar e prover o sustento de seus filhos.
Pouco tempo depois os filhos também vão ao encontro da mãe. Fato
que é confirmado pela fala de Rafael, abaixo.
A única parte da Venezuela onde a pessoa podia comer
mais ou menos bem, era uma parte que se chamava Las
Minas, lá se trabalhava muito com ouro (...). Minha mãe
depois, quando começou a ver que estava acontecendo
muita coisa ruim no país, foi embora pra lá sozinha,
começou a trabalhar lá, ela deixava eu e meus irmão
sozinhos em casa, meu irmão começou a trabalhar com
outa coisa, eu também, mas não dava, só dava pra comer
mais ou menos. Depois (de um tempo) minha mãe falou
para mim: “Vamos todos embora para mina, lá a gente
consegue morar melhor”. Eu falei para a minha esposa se
ela queria ir embora comigo, fazer uma vida comigo.
Então ela escapou de sua casa, ela não falou nada para
sua mãe.

Algo que nos chama a atenção é que, antes das minas, Rafael
era um estudante comum. Todavia, com a chegada da crise econômica
(2015: ano de início da crise-atual) se vê obrigado a amadurecer e a
ajudar a mãe com o sustento da família. Assim, ao fugir para as minas
se vê também com mais responsabilidades, agora com sua recém esposa
que decide se desligar de sua família de origem para compor a família
Gonzalez. Supõe-se que a ideia de vir para o Brasil – caso a experiência
das minas não desse certo – era algo já presente nos pensamentos da
família. Tal situação acontece também com o irmão Miguel.
A permanência nas minas, no entanto, durou poucos meses e se
tornou insustentável diante do domínio e do controle da região por

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 165


criminosos. Sobre esse contexto, Rafael conta de maneira emocionada
e em detalhes o que se passava naquela época:
Só os pilantros (bandidos) mandavam, não havia militar,
não havia polícia, não havia ninguém, só mandavam os
pilantros. Eles ficavam todo o tempo com armas e se
falavam, por exemplo: “ah! Vocês não podem trabalhar
aqui”. Você não trabalhava. Não se importavam se você
comeria esse dia ou não. Para trabalhar lá você tinha que
ter um pouco de contato com eles. Foi um pouco ruim,
porque eu não sabia nada...E aí sempre me davam golpe,
sempre falavam: “Se eu voltar a ver você aí, trabalhando,
eu vou matar você”.

A necessidade de trabalhar nas minas organizadas por bandidos


como relatado acima era a última opção da família de permanecer no
país, mas a vida nesta região era muito difícil e perigosa. Olívia, 18
anos, irmã caçula de Rafael, também lembra, em espanhol, do tempo
nas minas. Como nos contou:

Naquela parte das minas, tem pessoas que trazem comida


para outro lado da Venezuela. E por exemplo, os guardas,
os militares, eles param as pessoas, no ônibus, e por
exemplo, dizem que, uma quantidade grande de comida,
uma saca de arroz, farinha, açúcar, eles param e te dizem:
Cadê a fatura? Por que tanta comida? Se você não tem
fatura ou um comprovante das comidas, eles pegam,
entende? Fazem por malícia para ficar com a comida e
por mal, porque sabem que a pessoa está viajando por
necessidade que está passando o país, por dificuldade,
para dar comida para os seus filhos, sua família.

2. O êxodo da família Gonzalez.


Numa verdadeira fuga de condições sub-humanas das minas e
sem esperança de conseguir sobreviver na Venezuela, a matriarca e seus
filhos decidem cruzar a fronteira de Pacaraima, trazendo consigo
apenas o necessário. Vêm ao Brasil com a ideia de que poderão
recomeçar, encontrar uma moradia, trabalhar e reconstruir suas vidas.
Mas, inicialmente, não foi possível saírem todos juntos. O filho Miguel
e a nora Roberta permaneceram inicialmente na Venezuela. Vindo para
o Brasil a mãe Izabel, a filha Olívia, o filho Rafael, a nora Marina e o
filho recém-nascido, Juan. Como disse Rafael:

166 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Eu consegui viajar com a minha mãe para o Brasil e
ficamos um tempo em Roraima. Ali em Roraima tinha
um abrigo para pessoas, porque havia muitas pessoas
(...). Atrás da rodoviária ficava um abrigo, que tinha
militar e cuidavam dos venezuelanos ali. Então chegamos
ali e procuramos também um hospital, nesse momento
quando eu cheguei lá. Procuramos um médico,
examinaram ele [filho recém-nascido]. O médico nos
disse que ele estava muito bem, que não tinha nenhum
problema. Aí foi passando o tempo, foi um pouco difícil
porque a gente morava numa carpa [barraca] que só cabia
uma pessoa. Minha mãe conseguia deitar lá fora, havia
muito polvo [poeira], de madrugada sempre muito polvo
(...). Conseguimos depois procurar melhor uma ajuda.

Na travessia um acontecimento marca significativamente a


história dos refugiados. Como conta Rafael, seu filho Juan nasceu
durante a travessia. Assim se expressou:
Minha mãe falou para o motorista: “Eu tenho minha nora
aqui comigo, ela está grávida. Então eu preciso levar ela
para lá, para um hospital”. É coisa de Deus, porque havia
muitas pessoas esperando uma carona, muitas pessoas
que estavam lá há uma semana, duas semanas, esperando
uma carona, falaram para a minha mãe que estavam há
muito tempo esperando uma carona. Aí minha mãe falou
para... ela sempre acreditou em Deus sabe, ela falou para
Deus e aí Deus abriu portas.

Firmes na ideia de que a vida no Brasil seria melhor do que a


vida que viviam em seu país, o êxodo da família alcança seu ápice neste
momento. Exatamente no momento em que Rafael (esposo) e Izabel
(sogra) tiveram que lidar com a emergência de Marina (esposa e nora)
em trabalho de parto. Como conseguiram uma carona, o bebê nasceu
enquanto cruzavam a fronteira, sendo assistido por médicos apenas no
Brasil, como relatado acima pelo pai. Tais condições de saúde são
recorrentes na família, enquanto passavam a situação com Roberta,
Izabel sente febre alta e calafrios, sintomas de malária e passa por uma
situação complicada tendo que ser amparada pela filha.
Vivendo em tendas no espaço reservado e administrado pelo
Exército Brasileiro, a família permaneceu em Roraima por volta de
cinco meses. Logo conseguiram os documentos necessários para

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 167


adentrarem ao país. Desse tempo, apenas no primeiro mês estiveram no
abrigo, pois depois desse período era necessário ceder o espaço para os
demais refugiados que não paravam de chegar. Tal acesso só foi
possível porque estavam com o bebê recém-nascido, de outra forma não
conseguiriam a tenda. Por conta disso, tiveram que passar a viver nas
ruas de Boa Vista. A sobrevivência no abrigo e também nas ruas
contava com o auxílio da Organização das Nações Unidas (ONU) e da
Igreja Católica que enviavam roupas e comida. Como recorda Olívia,
“(...) a ajuda sempre vinha da mesma igreja”. A moça também relembra
da dificuldade e dos perigos da vida em Boa Vista:
Conversamos com as pessoas e falavam que estavam lá
há cinco, seis meses e fiquei louca porque tava há pouco
tempo... Aqui não pode conseguir refúgio, é impossível e
a gente ficava meses sem trabalho, sem refúgio.... Em
Boa Vista é difícil a situação, entende? Em Boa Vista se
vê de tudo, tráfico de pessoas, de crianças, que
desapareciam, porque dormiam nas tendas e as crianças
tossiam muito. E assim via muita prostituição,
delinquência. Assim como no Brasil há muita gente boa,
também tem muita gente má e na Venezuela também é
assim e em toda parte do mundo é assim.

De vez em quando, ao andarem pelas ruas de Boa Vista em


busca de algo, encontravam alguns boavistanos que os ajudaram. Os
pedidos de ajuda pelas ruas resultam no encontro com pessoas
generosas que dão para eles materiais de reciclagem e oferecem algum
tipo de trabalho rápido e/ou uma refeição. O rapaz segue relembrando,
através do relato abaixo demonstrando sua tristeza pelas dificuldades
enfrentadas e por ver seus compatriotas não conseguirem reencontrar
suas famílias devido ao fechamento da fronteira pelo governo
venezuelano. Como contou Rafael:
A gente não sai da Venezuela para entrar em Boa Vista
para algo pior, você sai para mudar de vida, conseguir um
trabalho, para suprir, me entende, tem muitas pessoas que
não aguentaram a situação em Boa Vista, de passar fome
e morar na rua, só ter o almoço, passar fome, dormir na
rua, passar tanto problema, muita gente chorando. Nesse
tempo em que estava Maduro fechou a fronteira, porque
eles estavam passando comida pra ajudar e Maduro
fechou a fronteira aí o governo não deixava nem entrar

168 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


nem sair. Muita gente ficou mal, chorando, que não saiu
da Venezuela, que em Boa Vista era outra coisa, que não
tinha trabalho, que não era assim...

Nesse meio tempo, o filho Miguel, a nora Marina e a filha Maria


se unem ao resto da família Gonzalez.
A expectativa de uma vida melhor e a realidade enfrentada em
Boa Vista afeta a esperança que tinham ao saírem da Venezuela. Os
perigos que enfrentavam no Brasil eram tão ruins quanto os da
Venezuela e agora, com as fronteiras fechadas por Maduro, não
poderiam se arrepender e voltar. Teriam que seguir em frente, mesmo
sem saber para onde.
Apesar da ajuda que obtiveram, relataram também episódios em
que sofreram discriminação nas ruas de Boa Vista. Olívia lembra de
pelo menos duas ocasiões:
Uma vez estávamos na rua e saiu um brasileiro da casa e
nos insultou e falou porque nós estamos fazendo,
pensando que a pessoa que estava na casa não tinha dado
água a gente e disse: Aqui se paga água! Aqui não é
Venezuela! E insultou a senhora porque pensou que ela
não tinha dado água pra gente. E falou que a Venezuela
não tava mal, tava bem e que estavam vindo pra fazer o
Brasil passar dificuldade e nos disse tudo. Uma vez
estava caminhando com minha mãe e nós perguntamos a
hora e um brasileiro nos ignorou e voltamos a perguntar
e ele virou e disse: não falo espanhol e atravessou para
outro lado.

É possível observar que o preconceito e as tensões étnicas,


manifestados através da discriminação sofrida pelos venezuelanos,
consistem em obstáculos possivelmente tão grandes à sua inserção,
quanto a falta de estrutura e condições materiais de subsistência. Sob a
perspectiva identitária, torna-se necessária a reflexão a respeito de
como o refugiado se (re) constrói em um lugar temporário, transitório,
não apenas do ponto de vista geográfico, uma vez que na condição de
imigrante, o refugiado se insere em um processo de reconstituição
identitária, tornando-se um “estrangeiro”, muitas vezes tido como um
problema em seu novo ambiente social.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 169


2. Trajetória até Barbacena: o papel da religião na reinserção
social e na reconstrução identitária

Conforme o tempo passa em Boa Vista, a família Gonzalez


conhece e inicia um relacionamento com a “Aliança de Misericórdia”,
uma comunidade católica que atua na região. A “Aliança de
Misericórdia” é um movimento eclesial, presente em mais de cinquenta
cidades no Brasil e em sete outros países. De acordo com informações
em no site da comunidade 82, ela é constituída como uma associação
privada de fiéis e sediada na arquidiocese de São Paulo. Sua ação
consiste em trabalhos de evangelização e desenvolvimento de obras
sociais junto a cidadãos em situação de vulnerabilidade social, como
moradores de periferias e refugiados.
Por meio de uma campanha da “Aliança de Misericórdia”, os
venezuelanos receberam auxílios variados. Como recordou com
entusiasmo Olívia, “(...) uma vez eles fizeram uma campanha na rua
que nos deram tudo, leite, fralda, até sorvete e fizeram um almoço que
você podia repetir à vontade”. No contato com um membro da Igreja
Católica souberam da possibilidade de conseguir ajuda para enviar
famílias de refugiados para outros estados do Brasil. Inicialmente as
vagas eram apenas para mulheres. Portanto, Izabel e Olívia se
cadastram no programa. Passados alguns dias, elas conseguiram ajuda
e viajaram de Boa Vista para uma nova cidade. Sobre o processo e a
viagem, Olivia relembra:
Nos cadastraram a mim e minha mãe, e não tínhamos
telefone nesse momento e sempre íamos a igreja no
domingo em que poderíamos conseguir falar e
perguntávamos e diziam para não nos preocupar que
estava tudo sendo ajeitado. Tanto que assim foi. E foi
muita gente e tinha muita gente no ônibus, muitos
venezuelanos e depois nos levaram para outro lugar e
seguiam cada um para o seu lado e uma família foi pra
São Paulo, pro Rio de Janeiro. Fomos nós e uma família
com três crianças. Então foi difícil porque no aeroporto
foi uma confusão, não sabíamos o que fazer, a outra

82
A Aliança de Misericórdia. Disponível em: <https://misericordia.com.br/a-alianca-
de-misericordia/>. Acesso em: 15 de jun.2020.

170 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


venezuelana era que tinha telefone. E os missionários nos
esperavam (em cada lugar), a única parte que não
tínhamos missionários foi em Brasília, aí o João* nos
explicou tudo. Aí estávamos perdidas em Brasília, e
estava saindo a hora de sair o voo e não sabíamos nada,
tanto que tentamos falar com João e conseguimos,
chegamos em BH e havia outra missionaria lá e nos
levaram a uma casa, casa como de missão também, uma
casa em BH e nos deram comida, banho e nos atenderam.
Aí comemos, banhamos e saímos para Barbacena. Foi
uma viagem eterna! Chegamos parecendo um zumbi.
Chegamos até Barbacena.

Nesse relato já podemos perceber indícios de como se constitui


a relação entre a família e a religião– nesse momento mediada pela
Igreja Católica –, época em que frequentavam a igreja na intenção de
conseguirem falar com alguém da “Aliança de Misericórdia” e
conseguirem algum avanço no seu processo de deslocamento. Tal ação,
baseada em uma relação necessidade-resposta, apresentar-se-á em
outros momentos.
Ao chegarem à cidade de Barbacena foram acolhidas por duas
missionárias em uma casa, que é uma espécie de sede da comunidade.
“Fomos bem recebidas, embora elas não falassem espanhol, nos
trataram muito bem, tomamos banho, nos deram comida, nos sentimos
acolhidas”, disse Olívia. Um pouco depois conseguiram trazer seus
outros parentes, os irmãos, as noras e os bebês. A “Aliança de
Misericórdia”, segundo os dois irmãos entrevistados, Rafael e Olívia,
intermediou não só o translado de sua família, mas também seu acesso
à moradia, emprego e outros itens de necessidade básica. Abaixo,
Rafael conta seu ponto de vista sobre o processo de deslocamento de
Boa Vista/RO a Barbacena/MG.
Então o pastor falou pra minha mãe: “Uma moça lá em
São Paulo, ela é missionária (da Igreja Católica), ela quer
ajudar os venezuelanos, uma família, ela estava
procurando duas mulheres solteiras e mais alguém. Então
minha mãe anotou o nome dela, da minha irmã. Duas
semanas depois o dela [esposa] também conseguiu dar
certo. Ele falou: “Vocês vão viajar agora pra São Paulo,
lá vai ficar esperando uma moça, que é da Igreja Católica.
Ela vai cuidar de vocês, arrumar algo bom para você. Aí
quando minha mãe estava em São Paulo, uma moça, ela

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 171


fica aqui [Barbacena] agora, que se chama Raiane, ela é
da “Aliança de Misericórdia” falou: “Não. São Paulo,
não. Melhor vocês irem pra Barbacena”. Aí ela conseguiu
vir pra cá. Eles ajudaram muito minha mãe, conseguiram
arrumar uma casa pra ela, que ela só paga água e luz, mas
aluguel, não. Como uma ajuda, entende? Depois
procuraram um trabalho para a minha mãe lá na Rivelli 83,
aí minha mãe começou a “escalar”, as coisas começaram
a ficar cada dia melhor.

A Igreja Católica e a “Aliança de Misericórdia” foram


fundamentais no deslocamento da família para Barbacena. Enquanto
Izabel e Olívia iam para a cidade interiorana de Minas Gerais, o filho
Rafael se deslocava para Campo Grande/MS trabalhar em uma empresa
de grande porte, oportunidade orquestrada pela empresa em parceria
com o Exército Brasileiro. Não sabemos se esta ação se dá de forma
legal ou não. Em seu relato, Rafael conta que muitos rapazes como ele
saíram de Boa Vista por conta dessa oportunidade. Após ficar alguns
meses lá e observar que o salário que recebia não era suficiente para
trazer sua esposa e filho, Rafael decidiu pedir demissão após Izabel
conseguir comprar uma passagem para o filho até Barbacena, momento
em que conseguiu se unir a sua família novamente.
Essa ação da “Aliança de Misericórdia” pode ser traduzida como
fator de reinserção social e ponto de partida para o processo a adaptação
à nova sociedade da família refugiada. Fato que passa pela
reconstituição identitária a partir da mesma fé (cristianismo), ainda que
mediada por denominações diferentes (catolicismo e pentecostalismo),
visto que as identidades são recursos essenciais para a construção de
sentido de existência. Além da relação de necessidade-resposta, o
vínculo com a fé auxilia na confirmação sobre quem se é e sobre quem
se quer ser. Como afirmou Kwame Appiah (2016):
Usamos identidades para construir nossa vida(...) nós a
construímos como homens e como mulheres, como
ganeses e como brasileiros, como cristãos e como judeus;
nós a construímos como filósofos e como romancistas,

83
Empresa de produção avícola da região do Campo das Vertentes, localizada em
Barbacena/MG.

172 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


como pais e como filhas. As identidades são um recurso
essencial nesse processo (p.23).

Nesse sentido, as comunidades religiosas conformam-se como


espaços de produção de laços de solidariedade entre indivíduos que
compartilham uma mesma identidade. De outro modo:
Uma identidade pode ajudar-me a viver de acordo com
uma concepção, proporcionando-me os meios para levá-
la a cabo. As identidades religiosas, por exemplo,
realizam isso de maneira óbvia: ajudam a constituir
comunidades de pessoas que podem apoiar-se umas às
outras na busca de metas que compartilham como
membros daquela religião (APPIAH, 2016, p. 22).

No espectro da religião, pode-se conferir às organizações de


natureza religiosa o importante papel de guia e protetor da vida
espiritual, mas também de legitimador de suas vidas para além daquilo
abarcado pela fé. “O interesse religioso”, segundo Pierre Bourdieu
(2007), “(...) tem por princípio a necessidade de legitimação das
propriedades vinculadas a um tipo determinado de condições de
existência e de posição na estrutura social” (p. 50). As “condições de
existência” e a “posição” que os indivíduos ocupam na estrutura social
carecem de legitimação, sendo a religião uma de suas forças
legitimadoras. Situação que se fez presente quando se desligaram da
ajuda que recebiam da Igreja Católica. Isto é, conseguindo se manter
autonomamente, passam a buscam a legitimação entre a comunidade de
fé a qual se reconhecem como pertencentes, a comunidade evangélica.
Em vista disto, se entendermos por propriedades um conjunto
de atributos para além de bens materiais, ou predicativos como diz
Vladimir Safatle (2015), então estamos falando, em última instância,
das propriedades que individualizam os sujeitos singulares ao mesmo
tempo em que os posicionam no espaço social, ou seja, as identidades.
Ao operar como força legitimadora de identidades (de
indivíduos, grupos e instituições), a religião desempenha uma
função social de ordenamento do mundo, tanto para sua conservação
– quando contribui para a “legitimação do poder dos dominantes e
domesticação dos dominados” – quanto para sua transformação –
quando sua linguagem própria contribui para deslegitimar os
dominantes e insuflar os dominados (cf. BOURDIEU, 2007, p.
32). Podemos dizer, conforme Knoblauch (1999) citado por Steffen
Dix (2007), que

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 173


(…) sociologicamente, a religião possui as funções de
aprofundar valores essenciais que são válidos para
indivíduos, grupos ou sociedades; de integrar indivíduos
numa sociedade através de valores comuns; e,
finalmente, de recompensar pelos sofrimentos ou pela
falta de prestígio dentro da sociedade (KNOBLAUCH,
1999, p. 115-116 apud DIX, 2007, p. 13).

Dizer que a religião tem a capacidade de “integrar indivíduos


numa sociedade através de valores comuns” é o mesmo que dizer que
“grande parte das identidades religiosas se mobilizam para a
solidariedade” (APPIAH, 2016, p. 29). As “normas de solidariedade” –
tal como definidas pelo filósofo ganês Kwame Appiah – são aquelas
mobilizadas para promoção e proteção dos interesses comuns de um
grupo de indivíduos que compartilham uma identidade. Deste modo,
“uma identidade religiosa, ainda que seus critérios de filiação sejam
puramente de credo, terá normas de comportamento associadas a ela, e
estas, em geral, incluirão normas de solidariedade” (ibidem).
Considerando nosso objeto de pesquisa, renomados pensadores
de diferentes correntes teóricas (HALL, 2004; MENDES, 2002;
POLLAK, 1992; WOODWARD, 2014; APPIAH, 2016; CASTELLS,
2018) apresentam dois pontos consensuais no que tange ao inevitável e
pertinente debate sobre identidade: i) as identidades são socialmente
produzidas e ii) nenhuma identidade é estática ou imutável, todas elas
estão suscetíveis a variações, mutações e ressignificações.
Dizer que as identidades são produtos sociais significa dizer que
elas são produzidas, preservadas ou transformadas pelas/nas relações
sociais, definindo, assim, o que as pessoas são e o que elas não são. Se
as alterações na configuração de uma sociedade interferem nos sentidos
e significados das identidades sociais, o deslocamento de um indivíduo
para um universo social distinto daquele onde suas identidades foram
produzidas acaba, inevitavelmente, promovendo fraturas e fissuras nos
códigos simbólicos de identificação. Alguma (ou grande) parte do ser
social constituído do indivíduo em situação de refúgio precisa ser
transformada para que seja possível sua inserção e adaptação. Todavia,
um refugiado não é um indivíduo vazio, como uma tábula rasa, pronto
para incorporar os códigos e símbolos culturais necessários para sua
reinserção social sem restrições, tensões e/ou conflitos. Ao contrário, o
refugiado, em tese, é um indivíduo constituído em outro espaço social,

174 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


com regras e valores específicos, isto é, com identidades incorporadas
das quais muitas são colocadas em xeque na situação de refúgio.
A família Gonzalez não hesita em alargar sua visão religiosa
quando em situação de deslocamento e instabilidade causadas pela
busca de refúgio. Se filiam e passam a frequentar uma religião diferente
(ainda que nem tanto assim) da sua materna, que conheceram enquanto
cidadãos venezuelanos e que agora precisa ser adaptada ou até colocada
em stand by (espera) a fim de conseguir a ajuda que necessitavam. A
identidade que possuem foi testada enquanto estavam em Boa Vista, de
forma que se relacionaram com o catolicismo, enxergando a matriz
cristã como algo que os aproxima, os identifica.
As identidades, enquanto categoria analítica, são formas
operacionais de definir o que as pessoas são (e o que elas não são), numa
relação indissociável entre o que as pessoas foram e o que elas podem
vir a ser (cf. HALL, 2004; WOODWARD, 2014; APPIAH, 2016).
Aquilo que somos depende, intimamente, daquilo que fomos na mesma
proporção que aquilo que fomos e somos depende, também
intimamente, do reconhecimento dos outros.
Ninguém é apenas aquilo que ele diz ser, porque a maneira como
definimos nós mesmos só tem relevância se tal entendimento for
compartilhado socialmente. Para que as suas identidades sejam
reconhecidas da forma como eles próprios a compreendem e a
apresentam é preciso ressignificá-las, via relações sociais. No mesmo
sentido, um refugiado precisa se reproduzir identitariamente na relação
com a sociedade que o acolhe; não basta se apresentar de uma
determinada forma, é preciso construir, com os outros, os significados
de suas identidades (TAYLOR, 2011).
Apesar de se definirem como evangélicos, compreendem a
necessidade de ressignificá-la a fim de serem acolhidos, serem vistos e
reconhecidos como iguais (como pertencentes da mesma fé), além de
receberem a ajuda que necessitavam. Tal contato transformou suas
formas de se relacionarem com sua religião, ainda que de maneira
inconsciente. Isto, porque essa experiência vai guiar a forma como
escolhem se relacionar com a religião que reconhecem como sua (a
evangélica, representada pela Igreja D’Ajuda), como identitária.
Rafael relata que a situação em seu país, de tão crítica,
modificou os hábitos e por consequência a cultura de seu povo. Antes
as pessoas eram solidárias umas com as outras e agora se preocupam

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 175


em sobreviver diante das dificuldades econômicas impostas pela crise.
Rafael analisa:
A cultura daqui [Brasil] é muito boa, porque aqui tem
muita cultura que lá na Venezuela (...) muitos
venezuelanos já perderam. Pelo que está acontecendo lá
(...) os venezuelanos mudaram muitas coisas porque
antes na Venezuela gostávamos de, por exemplo, eu
estou fazendo um almoço, você vem visitar a mim, eu
falo: “Oi. Tudo bom? Tudo bem! Passe, passe. Eu estou
fazendo um almoço, eu pego um almoço para você”. Mas
agora lá na Venezuela não é assim. Lá, por exemplo, eu
fico na casa de um amigo e na hora do almoço ele fala
para mim: “Agora você tem que ir embora porque eu vou
fazer outra coisa”. Mas é mentira, entende? A comida não
dá.

Ainda que a cultura venezuelana esteja mudando por conta da


crise e a família tenha experimentado algo do tipo, no Brasil, enquanto
refugiados o reconhecimento do que precisam deixar e o que precisam
adquirir nesta nova cultura é algo lento que acontece à medida que vão
se inserindo socialmente. Sendo assim, a reconstrução que o refugiado
precisa fazer é uma missão que se torna gradualmente mais difícil na
medida em que parte dos significados de suas identidades se perde com
o deslocamento.
Abdelmalek Sayad (1998) alerta-nos para o paradoxo dos
processos migratórios envolverem dois sujeitos em um só indivíduo: o
emigrante e o imigrante. O primeiro é aquele que “evade” de sua
própria sociedade, deixando para trás a parte da sua existência que
divide com os outros com quem partilha identidades. O segundo é
aquele que “invade” uma nova sociedade, cheia de estranhos que são
ora amistosos e receptivos, ora hostis e repulsivos. Ambos – emigrante
e imigrante – são a mesma pessoa, porém representada de forma
distinta, a depender da posição sócio geográfica e dos outros com quem
desenvolve relações sociais.
Enquanto estavam se deslocando da fronteira até Barbacena, a
família Gonzalez era emigrante, tanto que se auto denominam como tal,
que deixaram tudo para trás se tornando imigrantes ao adentrarem o
espaço geográfico e social brasileiro, em que se tornam “visitantes
indesejados”, passíveis de discriminação, em que perdem seu status

176 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


social que antes era de classe média baixa e se transformam em pessoas
em situação de rua, que precisam do favor dos outros para sobreviver.
Quando se estabelecem em Barbacena, buscam ao máximo retornar ao
que eram antes, tanto no aspecto econômico, quanto social e religioso.
No econômico aceitam o emprego que recebem: auxiliar, babá,
soldador e etc., ainda que tenham experiência ou estudo buscam sair da
realidade de favores em que se encontravam, a fim de galgar novas
coisas. Como o filho Rafael disse, a mãe está conseguindo crescer por
conta de seu emprego. A busca por sua identidade religiosa também
surge como maneira de se desenvolver socialmente, pois ela tanto
acolhe quanto insere em um contexto familiar, com pessoas que
professam da mesma fé e que podem ter possíveis vínculos.

3. Os venezuelanos e a religião cristã evangélica.


Após conseguirem moradia e emprego, formas de subsistir, a
família inicia sua transição e retorno para sua denominação religiosa
conhecida, a evangélica. Sobre isso a filha caçula, Olívia, relata:
Nós sabemos a nossa religião. Esse é um ponto que
respeito o culto de cada pessoa, entende? Brasil é um país
bastante católico e os venezuelanos são a grande maioria
evangélicas e há outras que são católicas também. Nesse
ponto cada um tem sua mentalidade e preferência e então,
como te explico? Nós sabemos sim o que é a Igreja
Católica e que tem sua religião, sabemos o que tem e o
que não tem. Assistimos a Igreja Católica e aqui também
e conosco também outra Igreja Católica, conheço
também outra igreja de outra religião, entende? Aí vai da
preferência de cada pessoa, e fomos ajudados pela Igreja
Católica pra mim é como por exemplo, da mentalidade
de cada pessoa, nossa mentalidade não mudou. Como te
explico? Fomos ajudados pela Católica, mas poderíamos
por exemplo, ter sido pela Igreja Evangélica, entende?
Me parece que o país Brasil é bastante católico, a maioria
das igrejas é da parte católica, me entende?.

Olívia demonstra em sua fala relativa convicção da identificação


de sua família com a religião evangélica além do reconhecimento e
respeito à existência de outras religiões. Esse pensamento fica claro,
quando sabemos como se deu a chegada deles à Igreja D’Ajuda, em
Barbacena.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 177


Embora agradecida pela ajuda recebida pela Igreja Católica
através da “Aliança de Misericórdia”, Izabel, a matriarca, sentia falta
de participar de reuniões que professassem a sua fé e tomou duas
decisões fundamentais para sua caminhada de reconstrução.
Providenciou as passagens para o restante da família se juntar a ela e
entendeu que era o momento de buscar suporte em uma denominação
evangélica. E assim aconteceu. O filho mais velho, Rafael, foi o último
a se juntar aos demais, pois havia seguido, meses antes, para a cidade
de Dourados/MS, onde morou e trabalhou por três meses como auxiliar
na JBS 84.
A partir de sua identificação religiosa, Izabel procurou uma
igreja nos moldes daquilo que lhes era comum, na tentativa de
reconstruir suas identidades e prestar agradecimento. Rafael relata
sobre sua primeira experiência em Barbacena:
Eu vim aqui graças à minha mãe. Porque quando eu
cheguei na casa, minha mãe sempre falava para Deus:
“Eu quero que meus filhos fiquem aqui comigo”. Depois
quando eu cheguei, minha mãe me deu um abraço.
Chegou um domingo, minha mãe falou para mim “vamos
embora para igreja, vamos ficar lá, dar graças a Deus por
tudo, pelos coisas ruins pelas coisas boas.

O ato de dar graças pela chegada do filho que faltava ao seio


familiar nos permite traçar um paralelo com a história do personagem
bíblico Jó que tinha o costume de fazer ofertas de sacrifícios a Deus
pelas bênçãos recebidas. Jó não somente fazia isso por si, mas também
pelos seus filhos, por não saber se eles espontaneamente realizavam
seus sacrifícios e por medo de Deus castiga-los. Izabel, em alguns
momentos, se comporta como Jó, pois a primeira coisa que quis fazer
ao ter seu filho de volta foi prestar sua oferta de agradecimento a Deus.
A matriarca foi a responsável em encontrar a igreja e também é a que
incentiva e leva os filhos à igreja. Ela sente a necessidade de apresentar
seu agradecimento também como forma de agradar a Deus e não gerar
sua ira contra sua família devido à ingratidão. Quando eles não podem
ir, ela vai representando a família. Tal ação tem um paralelo com a

84
A JBS S. A. é uma multinacional de origem brasileira, reconhecida como uma das
líderes globais da indústria de alimentos.

178 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


forma de prestação de culto da Igreja Católica onde seus fiéis também
fazem ofertas a Deus das bênçãos recebidas.
O interesse religioso de Izabel em comparação aos filhos é
demonstrado de maneira diferente, parece existir entre eles um grau
diferente de entendimento, comprometimento e envolvimento com as
questões religiosas. Característica que percebemos presente de forma
mais marcante na filha Olívia, que é bem próxima da mãe. Os filhos
herdaram a religião evangélica da mãe, assim como Izabel herdou da
sua, eles se identificam como evangélicos baseados numa estrutura
tradicional e cultural de sua família. Com exceção de Izabel e Olívia, a
identificação de uma relação consciente dos outros familiares com a
Igreja D’Ajuda é ausente. Eles frequentam porque a mãe frequenta e
isso é suficiente. Izabel parece apresentar um entendimento e
experiência de fé diferente de seus filhos, talvez por conta de sua
vivência prévia na Venezuela e da sua responsabilidade como líder de
sua família.
Hervieu-Léger (2015, p. 12) nos apresenta dois tipos de
construção de identidade religiosa: o peregrino e o convertido. O
peregrino pode ser entendido como a representação da fluidez
característica da modernidade, é aquele que possui ou pode possuir
religiosidade “móvel”, isto é, pode transitar por diferentes espaços
religiosos, tal como uma peregrinação suas experiências religiosas
tendem a ser temporárias em sua essência, é aquele que possui a postura
de: “Crer sem pertencer”.
Já o convertido possui em sua formação de identidade religiosa
estruturas baseadas não em herança familiar, mas em escolhas feitas ao
longo de sua trajetória, que reafirmam suas identidades. O convertido
pode ser representado de três maneiras: ele pode ser aquele que muda
de religião, pode também ser aquele que nunca havia sido adepto de
uma religião e que em certo momento se descobre identificado com
alguma denominação e assume esse sentido para sua conduta, ou ainda
pode ser aquele que já pertence previamente à alguma tradição, mas
passa a se engajar efetivamente em sua comunidade de fé. O conceito
de convertido guarda semelhança com o conceito de peregrino pelo fato
de ambos pressuporem algum tipo de movimento.
Num exercício de análise dos membros da família venezuelana
estudada, podemos dizer que Izabel possui algum sentimento de
pertencimento com relação a sua religião, muito embora ela tenha sido
herdada de sua família, é possível supor que seu vínculo com a religião

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 179


evangélica tenha sido desenvolvido através de sua trajetória na sua
comunidade de fé, na Venezuela. As convicções religiosas de Izabel
não parecem ter sido desbotadas ou transmutadas pelo refúgio ou pela
ajuda da comunidade católica.
Dessa forma se há algum movimento na trajetória religiosa de
Izabel, pode-se dizer que ele diz respeito ao momento em que foi
acolhida pela comunidade católica e a reafirmação de sua fé, que
permaneceu estruturada na religião evangélica. Sua filha Olívia também
parece ser uma convertida, assim como a mãe, por expressar a mesma
consciência de devoção e prática da fé.
Com relação aos filhos de Izabel, observamos que sua
religiosidade se dá de maneira mais “mecânica” e genérica, como
peregrinos, assemelhando-se sua prática a uma tarefa importante a ser
cumprida sob o acompanhamento da mãe, embora guardem alguns
conceitos e formas de enxergar o mundo que se originam em preceitos
cristãos. Como se expressou Rafael:
Eu acho que se você quer fazer coisa boa (...) a pessoa
tem que ajudar a outra pessoa, querendo, como a si
mesmo. Eu acho que como disse na Bíblia, de Deus,
quando uma pessoa gosta de ajudar outra pessoa, Deus
olha isso. Aí Deus multiplica para você, então eu quero
que meu filho consiga fazer isso. Eu agora estou
trabalhando muito duro para que nunca falte nada para
ele, e ele possa estudar...

A noção de devolver para Deus algo a fim de receber coisas boas


Dele de volta está presente nesta fala de Rafael. É desta forma que eles
se relacionam com os outros quando continuam a ajudar seus parentes
na Venezuela e gastando suas economias para ajudarem a levarem seus
amigos venezuelanos, que se encontram em Boa Vista, para Barbacena.
Sobre a igreja evangélica que frequentam, Rafael explica que foi sua
mãe que “(...) achou a igreja, entrou, se sentiu bem, decidiu ficar e nós
fomos com ela”. O que reforça mais o papel de peregrino exercido pelo
filho.
Para ampliar nossa compreensão da relação dos venezuelanos
com a igreja evangélica, foi imprescindível conhecermos também o

180 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


ponto de vista dos representantes da igreja, dessa forma falamos com
Diego, participante que auxilia o pastor em tarefas administrativas e a
primeira pessoa da igreja a ter contato com a família Gonzalez. Como
contou o auxiliar de tarefas administrativas:
Até uma surpresa quando os venezuelanos apareceram
aqui, a primeira vez que vieram eu estava na porta
recepcionando, eu tenho esse costume de ficar na porta e
cumprimentar quem passa, aí chegou olhou aqui, “aqui é
igreja? ”, “é”, aí recepcionamos vi na hora que eles eram
no mínimo de um país latino, na minha cidade faz
fronteira com Paraguai e Bolívia. Aí eles viram o culto e
no final vim conversar com eles. E tem duas pessoas da
família que conseguem entender português bem. Eu
consigo entender a matriarca, o portunhol ela, por conta
da minha família. Aí a gente foi trabalhando com eles,
nas necessidades, parei para ouvir as histórias deles,
quanto delas quanto da família, as crianças... eu sou
muito apegado com criança... E depois de descobrir a
história, tentei fazer o papel de acomodar eles, conforme
a gente ia construindo o entendimento da história deles,
e eles na medida do possível eles foram sentindo a
aproximação, eles começaram a vir.

Conforme iam se fazendo conhecidos pelas pessoas, a liderança da


igreja ofereceu ajuda auxiliando na finalização da documentação dos
membros da família, além de outras necessidades básicas. Como lembra
Diego, “(...) certo dia eles apareceram aqui pedindo um botijão de gás, eu falei
com o pastor e ele pediu para que eu desse o botijão que estava sendo usado
pela igreja. Fiquei feliz de poder ajudá-los.
Seguindo nossa busca pelo entendimento da relação da família
venezuelana que conosco mantém contato com a Igreja D’Ajuda,
entrevistamos o pastor da igreja, Antônio. O pastor falou da estrutura da igreja
na cidade e do momento em que conheceu os venezuelanos:

Então, a igreja ela começou na verdade, a nossa igreja


começou em dezembro de 2018. Então tem pouco mais
de um ano que nós estamos aqui. Eles chegaram aqui já
nessa nova fase da igreja, nesse novo desafio de um
trabalho mais específico aqui na cidade independente de
uma estrutura maior, não ligada a uma igreja maior,
então...nosso desejo com isso é tentar observar as
necessidades locais e tentar resolver o que a gente julgar
necessário por aqui sem interferência de um órgão
superior, então com isso nesse meio de processo na nossa
reestruturação da igreja nós então recebemos essa

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 181


família, pra nós foi uma surpresa muito grande porque
nós estávamos aqui num culto de domingo de manhã e
eles então chegaram, na verdade eles chegaram bem no
finalzinho.

Ele segue o relato falando agora a respeito da barreira


linguística. Segundo disse pastor Antônio, os venezuelanos se sentaram
com eles, o grande desafio estava no fato de não estarem muito
acostumados a “lidar com pessoas de outro país”, assim, “a conversa já
foi um pouco mais difícil”, mas com paciência deu para entender,
“apesar de a gente não conhecer a língua”.
Sobre a ajuda oferecida aos venezuelanos pelos fiéis da igreja,
numa espécie de mutirão, o pastor Antônio ressalta, com satisfação que
esses gestos de solidariedade – que são comuns também na
denominação católica – vão ao encontro dos preceitos defendidos e
propagados pelo Cristianismo.
Então nós recebemos eles até porque nós cremos que a
palavra do Senhor ela fala muito sobre isso né, desse
auxílio, da importância da igreja se abrir pra estender a
mão pra estrangeiros, e conhecíamos muito
superficialmente a situação do país de origem e a partir
daí a gente começou a ter um conhecimento mais
aprofundado da realidade que eles viveram e daquilo que
eles estão vivendo aqui. Então de imediato, como eles
chegaram numa época de frio na cidade, uma das
primeiras coisas que a nós nos dispusemos a fazer como
igreja é suprir a necessidade de vestimenta, nós vimos
que eles tinham muita necessidade, uma vez que eles
vieram de uma cidade do país que não era tão frio, era
muito quente, muito calor, então nós ajudamos e isso foi
muito bom porque a igreja se dispôs prontamente a
ajudar, as pessoas se uniram pra suprir as necessidades
das crianças que precisavam de agasalho de cobertor, eu
acho que a ajuda foi mais do que suficiente até, na época,
então isso assim eu vejo que nós temos um bom coração,
as pessoas ainda têm o coração muito aberto pro social,
pra ajudar, quando há uma necessidade clara, declarada
as pessoas se abrem mesmo, as vezes elas não têm tantos
recursos, eu vi pessoas que tiraram blusa que estavam
vestindo pra poder dar pra eles, pra se agasalharem. Então
foi muito boa essa experiência inicial.

182 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Apesar da disponibilidade da igreja em prontamente ajuda-los,
ainda existia um receio por parte do pastor, de que o relacionamento
deles (venezuelanos) com a igreja fosse estabelecido exclusivamente
pela sua necessidade de auxílio ou apoio material e que, eventualmente,
quando não necessitassem mais da Igreja como auxiliadora, esse
vínculo fosse rompido. Preocupação que o pastor relata em sua fala,
conforme transcrição abaixo.
Então tem sido um bom relacionamento e temos mantido
esse vínculo com aqueles que estão vindo, há ainda a
necessidade de buscar os outros, o Rodrigo ele veio mas
veio uma vez apenas na igreja, eu não tenho contato com
ele e acabamos nos afastando da Roberta e o Miguel
também acabou se afastando, mas o restante a gente tem
um bom vínculo, e a gente aprendeu a lidar, e eu creio
que eles têm valorizado isso, a disponibilidade que a
gente tem feito pra poder auxiliar e suprir com o mínimo
que a gente pode, com o máximo na verdade que a gente
pode, então tem sido assim, tem sido bom pra gente, tem
sido uma experiência boa, mas a gente ainda precisa
aprender muito a ver como poder ajudar sem o
preconceito de achar que eles estão apenas em busca de
suprir as necessidades, apenas. Eu vejo, o que eu posso
dizer é isso, nesse ponto.

Nota-se que há a preocupação de que a igreja assista à família


de forma integral – material, espiritual e social. Mas há também o
desejo de que haja criação de vínculos mais significativos entre eles. O
pastor Antônio, demonstra receio de que a relação estabelecida seja
baseada exclusivamente na busca pelo suprimento de necessidades
materiais e não na busca por comunhão, como o pastor Antônio
considera ser o correto e desejável. Em outros termos,
Eles apenas têm participado dos cultos, não há uma
integração ativa em um setor na igreja, pelo menos não
no momento, até porque é um processo pra gente
conhecer, ver de fato quem são, qual o caráter, essas
coisas...então a gente tem conhecido aos poucos, parece
que agora um pouco mais do que antes, eu não sei se isso
é nosso, eu não sei se é parte da cultura, mas a gente vai
ainda com o pé muito atrás até criar o vínculo, acho que
desafio muito grande é criar o vínculo (...) Eu acho que
[a relação deles com a igreja] ainda há a questão
necessidade. Eu não sei por exemplo a hora que for

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 183


suprida toda a necessidade (...) se eles vão permanecer. A
expectativa é que sim, porque a gente não tá aqui apenas
pra suprir uma necessidade de momento, mas pra
auxiliar, pra criar esses vínculos mesmo né. Então ainda
há uma incerteza nisso.

O comportamento da família e a preocupação do pastor


corroboram para a ideia de que a relação é baseada na necessidade-
resposta em que a igreja até tem vontade de estreitar os laços e
aprofundar seu relacionamento, mas como apreendido pela família
enquanto em Boa Vista, eles se aproximaram da Igreja D’Ajuda com o
pressuposto de manter sua identificação e estar em um ambiente com
pessoas que conseguem se reconhecer, mas acabam que continuam na
práxis do contato quando necessitam de algo. Ainda que Izabel destoe
um pouco dessa lógica, seus filhos reproduzem o comportamento de
busca por algo seja econômico ou emocional. Ainda que a igreja seja
um espaço de solidariedade e ação social, ela não é restrita a isso e, de
certa forma, parte da família Gonzalez enxerga e relaciona com a igreja
através desse viés. O que reforça a necessidade de a matriarca ser a “Jó”
de sua família, visto que ela pode ser identificada como uma convertida,
segundo Hervieu-Léger (2015).
Observamos com as entrevistas, que os venezuelanos estão à
procura de inserção social e, o mais importante, sobrevivência. A
religião, seguida conforme pudemos observar quase exclusivamente
pela Izabel, mãe da nossa família estudada é um lugar que alimenta essa
possibilidade, gera proteção e acolhida. Em dificuldades, de maneira
contextualmente compreensível, eles se apoiam na igreja. No entanto o
questionamento e receio do pastor Antônio se justifica, se pensarmos
que se, ou quando, as dificuldades (materiais e estruturais) forem
supridas, não podemos afirmar que esse vínculo com a igreja permaneça
nem que desapareça, trata-se de uma situação ainda não tangível diante
dos atores envolvidos.

Conclusão
Vimos que o refugiado pode ser entendido como um indivíduo
invariavelmente em situação complexa e desafiadora que busca
reconstruir sua identidade numa espécie de alquimia dolorosa entre as
características de sua cultura e tradição que o formaram como ator
social em momento anterior ao deslocamento, com os elementos novos

184 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


e muitas vezes estranhos a ele de uma nova sociedade em que está se
inserindo. As dificuldades pelas quais os venezuelanos passaram tanto
na Venezuela quanto na chegada e início de vida no Brasil, parecem
alimentar sua esperança de progredir em solo brasileiro. Como
exprimiu Rafael:
Graças a Deus, nós temos um teto, e estamos todos agora
trabalhando, aí conseguimos escalar melhor, porque a
princípio nos ajudaram muito. Estamos muito
agradecidos a todas as pessoas que nos ajudaram, mas
não todo o tempo vamos ficar sempre pegando ajuda. Nós
também temos que escalar, me entende? Pessoalmente,
temos que escalar para amanhã dar uma vida melhor para
o meu filho, que ele não passe por tudo que minha esposa
e eu já passamos.

Apesar de não terem ainda vínculos mais estreitos com pessoas


da cidade, pelos contatos que tiveram e dos lugares pelos quais
passaram eles mostram ter consciência do processo de adaptação que
estão vivenciando e de como a diversidade do Brasil, em termos
culturais e geográficos, torna sua reinserção complexa. Em termos
“nativos”:
Bom, me parece que toda essa adaptação, o costume é um
processo porque o pais venezuelano é muito pequeno e
tem uma cultura muito específica, entende? Se come
arepa, todo mundo come arepa, se tem uma coisa
específica, todo mundo faz, e aqui no Brasil não, se aqui
como está quente né. E por exemplo são culturas bastante
diferentes, parece que são pessoas muito distintas. Sim,
pensar que são um país distinto e as pessoas também são,
de culturas distintas, mas me parecem pessoas bastante
legal. Eu não sei. Eu estou trabalhando e não tive tempo
de sair para conversar (Olívia).

A explicação dada por Olívia reforça a visão estreita da igreja


como local de solidariedade, pois ela facilmente também é um local de
socialização. Algo que a família ainda não conseguiu estabelecer.
Devido a relação pré-existente da família com a “igreja
evangélica” é possível pensar que haja maior significado para eles
serem ajudados em suas demandas e necessidades materiais pela mesma
instituição com a qual se identificam religiosamente. Pelos relatos dos
representantes, tanto da família venezuelana quanto da Igreja D’Ajuda,

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 185


é incerto concluir que haverá com o decorrer do tempo e do atendimento
as necessidades materiais, o fortalecimento dos vínculos entre a família
venezuelana e a igreja. Em contrapartida não se pode afirmar que não
existam chances de estreitamentos dessa relação e de engajamento junto
à comunidade de fé, uma vez que ao menos Izabel, possui maior
envolvimento com a religião e mais convicção de sua religiosidade.
Como qualquer outra família, os venezuelanos que estudamos
são diferentes entre si, desde o idioma que usam para se comunicar no
Brasil (Rafael tenta falar português, Olívia fala em espanhol), até os
sonhos que alimentam. Rafael, por exemplo, quer continuar
trabalhando focado em criar seu filho da melhor forma possível. Como
pensa, “Pessoalmente, temos que escalar para amanhã dar uma vida
melhor para o meu filho, que ele não passe por tudo que minha esposa
e eu já passamos”. Olívia, que trabalha como babá, quer estudar, prestar
vestibular e cursar o ensino superior. - “Como se poderia entrar na
faculdade de vocês?”, perguntou-nos em determinado momento da
entrevista. Em comum, eles possuem as memórias, ainda muito
presentes, das dificuldades vividas na Venezuela e a esperança de
reescreverem suas histórias num cenário que não esteja ameaçado pela
miséria.
A guisa de conclusão, a pesquisa que deu origem a esse texto
permanece em andamento, ampliando-se no sentido de acompanhar a
trajetória de vida dos venezuelanos (inclusive dos que não foram
entrevistados ainda) no que diz respeito a observação do processo de
inserção social da família Gonzales e como (e se) se aprofundará a
relação da família com a religião e com a igreja D’Ajuda.

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Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 187


10
O Espiritismo em Ponte do Cosme: um estudo de
caso85
Vitor Cesar Presoti
Reinaldo Azevedo Schiavo

Introdução
Em todos os espaços e tempos, as religiões estiveram e estão
intimamente vinculadas à sociedade, estabelecendo laços sociais entre
indivíduos, determinando normas de conduta, preceitos morais e
influenciando significativamente as dimensões da vida individual e
social. Desta forma, o estudo sobre o fenômeno religioso e de sua
interação com a cultura agindo sobre as transformações sociais, é um
dos mais importantes mecanismos a serem acionados para a análise da
organização e estruturação das sociedades.
Este artigo parte do debate sobre os desdobramentos do
espiritismo no campo religioso de Ponte do Cosme, a fim de se realizar
uma leitura sobre a inserção de uma religião moderna e dinâmica como
o espiritismo, dentro de uma comunidade rural fundada por imigrantes
italianos e que se organizam de maneira tradicional.
O trabalho irá contribuir para a elucidação das questões
concernentes ao campo religioso do distrito de Ponte do Cosme, bem
como da cidade de Barbacena, visto que não se encontram disponíveis
estudos sociológicos sobre a inserção espírita no campo religioso local.
Desta forma, esta pesquisa se faz pertinente uma vez que no Brasil,
segundo Camurça (2014), a doutrina espírita, ao sofrer duros ataques da
Igreja Católica, viria a organizar suas ações e a legitimar-se enquanto
instituição religiosa tornando-se uma religião legitimamente brasileira.
Uma vez que a religião enquanto instituição transita e opera na
história, se faz presente na dimensão cultural, tem um grande peso nos
moldes de nossa democracia, interfere diretamente nos padrões
comportamentais dos indivíduos e dos grupos sociais, a análise do

85
Instituição financiadora da pesquisa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES).

188 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


campo religioso local permite a investigação não só da conjuntura
religiosa, bem como uma leitura da formação da vida social local.
Metodologicamente partimos da revisão bibliográfica sobre o
tema como o ponto inicial da pesquisa, incluindo livros sobre a prática
da doutrina espírita e textos acadêmicos. Após esse período, buscamos
a inserção ao campo, realizando um trabalho etnográfico a fim de
entender, o mais amplamente possível, o objeto a ser estudado.
Visitamos o distrito e o centro espírita “Amor à Verdade”. Durante este
trabalho de campo, conversamos com praticantes da doutrina e outros
atores do grupo; observamos o espaço e as relações sociais do contexto
analisado; e, principalmente, realizamos entrevistas temáticas,
criteriosamente elaboradas, semiestruturadas, no intuito de captar os
registros da memória coletiva e significados a partir das técnicas
atinentes à história oral.
A memória coletiva (HALBWACHS, 1990) é estabelecida a
partir de uma combinação de lembranças e esquecimentos que
acomodam, de certa forma, uma autoimagem que os grupos sociais
fazem de si próprios, denunciando como os atores sociais e as
instituições se identificam e se arranjam na história, pois a memória:
(...) é uma reconstrução psíquica e intelectual que
acarreta de fato uma representação seletiva do passado,
um passado que nunca é aquele do indivíduo somente,
mas de um indivíduo inserido num contexto familiar,
social, nacional. Portanto toda memória é, por definição,
coletiva (ROUSSO, 2002, p. 94).

A memória coletiva é um instrumento fundamental para realizar


uma conexão entre o passado e presente. Nela o passado mantém sua
estiva com o ocorrido, sendo dotada de novos sentidos a cada
lembrança, a cada ressignificação. Além disso, a transmissão dos
saberes produzidos por uma coletividade encontra na memória uma de
suas mais influentes vias.
A seleção criteriosa dos entrevistados se deu pela proeminência
de aspectos relacionados com a representatividade, atuação destacada,
idade, entre outras variáveis correlacionadas com a relevância da
identidade e memória do indivíduo em relação aos temas da pesquisa.
A leitura de documentos oficiais, como os registros históricos do
centro espírita Amor à Verdade, possibilitou a compreensão da
perspectiva institucional, viabilizando o melhor entendimento da

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 189


entidade, sua atuação, sua institucionalização, bem como trouxe à tona
suas similaridades e divergências de difusão, se comparado o contexto
local e nacional, em relação à propagação de uma religiosidade surgida
no bojo da modernidade.
Diferentes formas de religiosidade vêm operando ao longo da
história como mecanismos de interpretação para elucidar o
indescritível, aquilo que o homem chama de “sagrado”. Dentro desta
multiplicidade de interpretações do transcendente, abriu-se espaço para
conflitos, disputas, verdadeiras guerras religiosas, uma vez que cada
interpretação religiosa, à sua maneira, crê que ela e tão somente ela
interpretou a verdade da revelação (CAMURÇA, 2014).
Com seu aspecto marcado pelo contexto de modernidade, uma
destas interpretações é o Espiritismo – isto é, um neoespiritualismo
cristão –, que surge no século XIX, trazendo o caráter evolutivo como
uma marca moderna no perfil da doutrina. Ao eclodir dentro do bojo da
modernidade, o Espiritismo traz sua interpretação do conceito de livre
arbítrio, paralelamente a adoção da “Lei de causa e efeito”, como um
dos traços mais marcantes da sua cosmovisão.
Segundo o Espiritismo, o homem assume as rédeas da sua
própria história, deixando de ser uma “marionete no palco de Deus”
(BOFF, 1980, p. 166 apud CAMURÇA, 2014, p. 22), desta forma, será
o livre arbítrio do espírito que conduzirá sua evolução espiritual. “O
espírito é uma individualidade moral, dotado de pensamento,
inteligência e vontade, o que implica numa
responsabilidade/culpabilidade, em fim no livre-arbítrio diante do Bem
e do Mal.” (ibidem, p. 33-34). Esta ideia de iniciativa dos seres em seu
processo de salvação confere ao Espiritismo o caráter de Religião de
Aperfeiçoamento que se dá pela mescla das noções de evolução e de
individualidade presentes na doutrina. (CAMURÇA, 2014).
Camurça (2014) aponta que o Espiritismo ao se apropriar “do
evangelho como base filosófica/moral para sua doutrina e reinterpretar
a narrativa cristã (...)” (ibidem, p. 36), pode ser interpretado como um
Neocristianismo. Deste modo,
Jesus é visto como um dos muitos “profetas” e “mestres”
divinos enviados à terra. Do relato de sua vida
desaparecem (...) a morte e a ressurreição, porquanto não
se enquadram na ideia da evolução (...). Nem tampouco
cabem no quadro à graça, a reconciliação e a cruz. Um

190 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


homem salva-se por si mesmo. Das escrituras ficam
apenas o decálogo e a moral de Jesus. (ROSSUM, 1992,
p. 75-76 apud CAMURÇA, 2014, p. 36).

O Espiritismo é a “reinterpretação do cristianismo surgida na


modernidade (...) articulado à eclosão dos fenômenos paranormais”
(CAMURÇA, 2014, p. 36) que despontaram no século XIX. Neste
período, diversas iniciativas de comunicação com os espíritos dos
mortos prosperaram mundo a fora. Ao mesmo tempo, pessoas se
reuniam para sessões de entretenimento em torno das “mesas girantes”,
outros iniciavam movimentos ligados a interesses religiosos, e ainda
existiam aqueles voltados para a experimentação científica,
principalmente no que se diz respeito à comprovação da “vida após a
morte”. Impulsionados por este movimento, surgiam cada vez mais
pessoas interessadas nestas experiências espiritualistas, principalmente
nos Estados Unidos e Europa.
Um dos casos que mais se destacam dentro da história do
espiritualismo é o caso das irmãs Fox em Hydesville, atual Arcadia no
estado de Nova York. As irmãs Katherine Fox de onze anos, Margaret
Fox de quatorze anos e Leah Fox vinte e três anos mais velha,
protagonizaram alguns episódios que vieram a ser conhecidos como o
marco inicial do espiritismo em meados de 1840, de forma que logo
ganharam notoriedade mundial.
Em paralelo aos acontecimentos de Hydesville, Hippolyte,
aquele que viria a se tornar o maior expoente do espiritismo no mundo,
mergulhava nas investigações acerca dos fenômenos espiritualistas.
Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869) nasceu em Lyon, França.
Filho de um juiz, o jovem Rivail foi educado segundo os preceitos
acadêmicos mais avançados de sua época e desenvolveu rapidamente o
gosto pela investigação científica sob influências diretas do
racionalismo característico do século XIX. Seus primeiros contatos
com o mundo espiritualista aconteceram a partir do caso de duas filhas
de um amigo que em dado momento desenvolveram certas capacidades
mediúnicas. Hippolyte analisou o caso por um longo tempo, desta
forma, se ligava cada vez mais ao mundo espiritualista.
A partir de 1857, Hippolyte deu início a uma série de cinco
publicações consideradas como os livros da codificação do Espiritismo.
Sua obra apresenta o delineamento da teoria espírita por meio das
seguintes publicações: “O Livro dos espíritos” (1857), “O livro dos
médiuns” (1861), “O Evangelho segundo o espiritismo” (1864), “O céu

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 191


e o inferno” (1865) e “A gênese” (1868). Segundo Camurça (2014, p.
11) “dentro da sua concepção evolucionista, o Espiritismo considera-se
a terceira revelação completiva em relação ao Judaísmo e ao
Cristianismo histórico, e nesse sentido proporá uma reinterpretação do
episódio Crístico (...)”.
Nos livros da “codificação” publicados por Hippolyte Léon
Denizard Rivail, todos assinados como Allan Kardec, novo nome
assumido por ele a partir de então, Kardec demarca os pontos de origem
da doutrina, define o uso da palavra “Espiritismo” em detrimento de
“espiritualismo” e apresenta o triplo caráter da doutrina espírita:
filosofia, ciência e religião. Desta forma, o apelo científico da doutrina,
como proposta intelectual, seria o chamariz para despertar o interesse
do público neste primeiro momento, tanto na França quanto no Brasil.
(PRANDI, 2012).

1. O Surgimento do Espiritismo no Brasil


Segundo Arribas (2009), as ideias do espiritismo começam a
circular na colônia francesa do Rio de Janeiro a partir da segunda
metade do século XIX, através da estreita ligação das classes
intelectuais da França e do Brasil fomentadas pelo apelo científico da
doutrina como proposta intelectual.
A influência social desses franceses facilitou a
penetração do espiritismo pelo menos entre a elite
imperial. Em conversas, ainda que tímidas, nas ruas ou
em pequenas sessões espíritas, a nova teoria passava a
angariar os seus primeiros adeptos brasileiros, pessoas de
influência social e que por isso não sofriam qualquer tipo
de repressão (ARRIBAS, 2009, p. 18).

A colônia francesa foi um gatilho de importância fundamental


para o espiritismo no Brasil, tanto para a introdução das ideias espíritas
no país, assim como para a absorção do espiritismo pela elite imperial
no Rio de Janeiro, garantindo certa blindagem social à doutrina em um
período em que o catolicismo reinava soberano como a religião oficial
e a única legalmente tolerada.
Entretanto, viria a ser na Bahia, em 1865, através da figura
Telles de Menezes, que o espiritismo ganharia uma dimensão pública
de fato. Neste ano, Luís Olímpio Telles de Menezes abriu as portas para

192 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


o kardecismo no país, fundando o primeiro grupo espírita brasileiro – o
“Grupo Familiar do Espiritismo –, considerado o primeiro centro
espírita do país, além de ter publicado “O espiritismo – introdução ao
estudo da doutrina espírita” (1865), “obra que reunia excertos traduzidos
do Livre des Espirits, mantinha contato com Casimir Lietaud no Rio de
Janeiro e com vários espíritas da França” (ARRIBAS, 2009, p. 18;
PRANDI, 2012). Segundo Arribas (2009), em 1869, junto de seus
camaradas do Grêmio de Estudos Espíriticos da Bahia, Telles fundou
“O Echo d’Além - Túmulo - Monitor do Espiritismo no Brasil”, o
primeiro jornal espírita brasileiro e que iria circular em todo o país.
No entanto, toda essa expansão do espiritismo não iria passar
despercebida pela Igreja Católica. Dois anos antes “uma pastoral
lançada em 16 de junho de 1867, pelo arcebispo da Bahia D. Manuel
Joaquim da Silveira, foi a réplica mais imediata da igreja frente à
dilatação do espiritismo” (ARRIBAS, 2009, p. 18).
Nessa capital publicou-se um pequeno livro com o título
– Filosofia Espiritualista – o Espiritismo – cujas
perniciosas doutrinas, contra toda expectação, têm
tomada incremento, pondo-se em prática certas
superstições perigosas e reprovadas, que estão no
domínio do público; e no interesse da vossa salvação,
amados Filhos, Nós julgamos conveniente dirigir-vos
contra esta Carta Pastoral, para prevenir-vos contra os
principais erros que contém esse pequeno livro, e contra
as superstições, que segundo as doutrinas nele contidas
se estão praticando, como se nos tem informado, e do que
já não é possível duvidar (MACHADO, 1993, p. 84 apud
ARRIBAS, 2009, p. 21).

A igreja lançou abertamente uma recusa ao espiritismo


kardecista, que neste momento se apresentava mais como uma correção
dogmática ao catolicismo frente aos tempos modernos do que como
uma nova religião. Entretanto esta pastoral veio a servir como gatilho
para aquilo que viria ser a primeira formulação originalmente brasileira
acerca das teorias da doutrina espírita kardecista, “escrito por Telles de
Menezes, o folheto O Espiritismo. Carta ao Excelentíssimo e
Reverendíssimo Senhor Arcebispo da Bahia, D. Manuel Joaquim da
Silveira” (ARRIBAS, 2009, p. 21).
Este movimento foi o início de uma forte disputa religiosa que
se deu através de uma produção intelectual entre os católicos e os

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 193


primeiros espiritas brasileiros. A disputa servia então como um
mecanismo de legitimidade para ambos os lados, mas principalmente
ao espiritismo, ao passo que ainda conferia exposição e atraia mais
adeptos para a doutrina. Desta forma, em 1871, Telles e seus adeptos
aglutinaram-se naquilo que declaravam como um grupo literário e
beneficente, para pedir então autorização para criação e abertura da
Sociedade Espírita Brasileira. Como era de se esperar o pedido foi
recusado “pelo parecer de ninguém menos que D. Manuel Joaquim. Seu
argumento não poderia ser outro que o católico, isto é, político e
religioso” (idem, p. 24).
Entretanto, apesar de seu triplo caráter: filosófico, religioso e
científico, a doutrina ainda não tinha uma identidade bem delineada em
terras brasileiras e ainda que o movimento iniciado por Telles não fosse
suficiente para instaurar o espiritismo no império frente aos duros
ataques da Igreja Católica, este serviu como um gatilho para difundir a
doutrina pelo restante do país, e seria a retomada do protagonismo por
parte do Rio de Janeiro que firmaria o espiritismo no Brasil.
Ainda que o espiritismo se difundisse entre a alta sociedade do
Rio de Janeiro, era praticado de forma velada, além de que a indefinição
do que era o espiritismo fazia com que os grupos praticantes se
ramificassem em três diferentes vertentes. Existia o grupo com
interesses científicos, que aguçavam o olhar para os fenômenos do
mundo espiritual. Existia o grupo com maior interesse religioso, era o
mais numeroso e voltado para a moral cristã (entre eles os kardecistas).
Por fim, havia o grupo que se atinha ao aspecto mais filosófico, sem se
apegar ao caráter científico ou religioso, este o mais discreto entre os
três.
O primeiro movimento organizado do espiritismo no Rio
de Janeiro começou em 1873, com a fundação da
Sociedade de Estudos Espíritas, do Grupo Confúcio, sob
a orientação do espírito Ismael. Seus objetivos: traduzir
os livros de Allan Kardec, divulgar a doutrina, propagar
a medicina homeopática, tendo como divisa o princípio
kardecista de que sem caridade não há salvação
(PRANDI, 2012, p. 51).

A tradução da obra de Kardec foi o mais eficiente aparelho de


propagação do espiritismo, colocando em posição de destaque as ações

194 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


do “Grupo Confúcio” que viria ainda a fundar a “Revista Espírita”
(1875-1876). No entanto, devido a disputas internas, em 1879 o grupo
se diluiu e vários de seus integrantes viriam a fundar um uma gama de
outros grupos 86 abordando as três vertentes do espiritismo. Arribas
(2009) aponta que as posições privilegiadas dos principais líderes destes
grupos espíritas garantiam a possibilidade tanto ao acesso às teias de
relações, como aos bem necessários para a legitimação do espiritismo.
Então, para que se pudesse pôr fim a dispersão, legitimar e delinear o
movimento espírita fundaria a Federação Espírita Brasileira (FEB).
Como escreveu Arribas (2009), “A FEB foi criada em 1884, no
Rio de Janeiro, por Augusto Elias da Silva, que um ano antes havia
fundado O Reformador, revista que passou a ser desde então o órgão
oficial da Federação Espírita” (p. 28) 87. “O Reformador” serviu como
o principal canal de defesa ao espiritismo na época e deu início a um
grande conflito literário. Isto é, “O Reformador” como veículo literário
espírita versus “O Apóstolo”, canal literário católico. A disputa no
campo intelectual/literário se deu por certo tempo e serviu antes de tudo
para iniciar a formatação do que hoje conhecemos como Espiritismo no
Brasil.
O “Grupo Confúcio”, responsável por traduzir as obras de Allan
Kardec para oportuguês, ganhava cada vez mais força no cenário
nacional e iniciava a legitimação e institucionalização da doutrina
espírita no país. Ao mesmo tempo, o grupo fortalecia cada vez mais a
característica religiosa da doutrina, medida que seria fundamental para
a manutenção do Espiritismo em terras brasileiras.
Com o crescente número de adeptos, os espíritas começaram a
serem acuados e coagidos através da mídia da época, basicamente nos
campos literários e intelectuais. A partir de 1890 com a instituição do
Código Penal, eles passariam a responder judicialmente a processos
condenatórios por suas práticas.
Com isso, houve uma reorientação da atuação
institucional da FEB, que por estratégia passou a
enfatizar no espiritismo seu caráter especificamente
religioso, conduta que acabou modificando

86
Arribas aponta que “por volta de 1889 havia só no Rio de Janeiro cerca de 35 grupos
espíritas” (GIUMBELLI, 1997, p. 62 apud ARRIBAS, 2009, p.28).
87
A título de informe, a revista ainda é publicada nos dias de hoje.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 195


definitivamente a presença (e o modo de presença) do
espiritismo no Brasil. (ARRIBAS, 2009, p. 31).

Foi através deste movimento da FEB que o Espiritismo


conseguiu fincar suar raízes no país de forma definitiva. Ao assumir o
caráter da religiosidade como sua principal característica, o movimento
se delimitou como uma religião de fato, e passou a jogar através das
regras do campo religioso. Desta forma, ainda em 1889 a FEB
organizou o Centro Espírita do Brasil (CEB), no intuito de servir como
núcleo e engatilhar o processo de normatização da doutrina, iniciando
assim os procedimentos de estruturação do espiritismo enquanto
religião, e antes de tudo, uma religião originalmente brasileira. Neste
sentido, coube ao médico Adolfo Bezerra de Menezes capitanear tais
procedimentos da FEB e do CEB durante a organização do espiritismo
no Brasil, de forma que em 1900 já existiam federações espíritas em
quase todos os Estados brasileiros (ibidem).
É dentro deste cenário, com o espiritismo já bem delineado e
firmado nas terras brasileiras, que em meados da década de 20 do século
passado despontaram os primeiros acontecimentos que dariam início a
história do Espiritismo kardecista no distrito barbacenense de Ponte do
Cosme. Neste sentido, uma breve passagem pelo contexto histórico do
nascimento da cidade de Barbacena-MG se faz fundamental para
entendermos o lugar do catolicismo no município e para que a partir
deste ponto, possamos compreender um pouco mais sobre o cenário
religioso local.

1. Barbacena e Ponte do Cosme


O catolicismo foi a religião imposta ao Brasil pela coroa
portuguesa como a religião obrigatória e oficial do império, sendo a
única a possuir a permissão legal para a realização de cultos domésticos
ou públicos, de forma que a coroa exercia seu controle sobre a Igreja
colonial. O gatilho para a pluralidade religiosa no Brasil se deu a partir
da instauração do Estado republicano laico em 1889, rompendo com o
Regime do Padroado da Igreja Católica no país e abrindo as portas para
o desenvolvimento de uma teórica sociedade pluralista e laica ao longo
do século XX. No entanto, a República não foi sinônima de quebra da
hegemonia católica no país, mas não se pode negar que o número de

196 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


católicos vem caindo de forma regular mesmo que lentamente
(NEGRÃO, 2008).
Com o fim do Regime de Padroado e com a instauração da
república, abriram-se possibilidades para uma diversificação plural do
campo religioso do país. A partir de então doutrinas religiosas e
filosóficas como o Espiritismo, entre outras manifestações frutos de um
contexto de modernidade, puderam sugerir alternativas ao modelo de
tradicionalismo católico imperante no Brasil (CAMURÇA, 2014), no
entanto como fazer frente a um catolicismo tricentenário, monolítico e
que marca o nascimento de uma cidade?
A história de Barbacena remete ao ano de 1698, quando o
Capitão Garcia Rodrigues Paes abriu um novo caminho entre o litoral
carioca e o interior de Minas Gerais. O primeiro núcleo colonial da
região surgiu às margens do “caminho novo” tendo como ponto de
referência a Fazenda da Borda do Campo, onde erigiram a capela de
Nossa Senhora da Piedade em 1711 que permanece de pé ainda hoje, e
que viria a se tornar matriz em 1726. Neste mesmo período decidiu-se
a construção de uma igreja maior nos altos da Caveira de Cima, no
intuito de atender a demanda local da época. As obras se iniciaram em
1743 e a primeira etapa da construção foi acabada em 1748. Nesta
mesma época iniciaram as primeiras mobilizações para construções no
entorno da igreja Nova e em 14 de agosto de 1791 o Arraial da Igreja
Nova da Borda do Campo foi transformado em Vila de Barbacena
(FERREIRA, 2015).
Barbacena tem um catolicismo tricentenário, visto que seu
primeiro templo católico foi erguido por bandeirantes no final do século
XVII, a Capela de Nossa Senhora da Piedade. Segundo o senso de 2010,
86,95% dos seus 126.284 habitantes se declararam católicos, número
bem acima dos 64,6% da média nacional. Ainda, 7,44% dos
recenseados se declaram evangélicos, um percentual pequeno
comparado à média de 22,2% para todo o país; 2,24% se declaram sem
religião; 1,54% para a soma de outras religiões (matriz africana,
orientais, esotéricas e religião não determinada), e 1,83% se dizem
espíritas, – percentual de espíritas próximo à média estadual que é de
2,1% 88.

88
Segundo o último censo o Espiritismo cresceu 65% de 200 até 2010.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 197


No entanto, a população espírita do distrito de Ponte do Cosme
foge completamente a esta média, chegando a números próximos a 50%
dos moradores do distrito.

2.1 Distrito de Ponte do Cosme


Ponte do Cosme é uma comunidade rural fundada por
imigrantes italianos que, em um primeiro momento ao chegarem da
Europa, foram alocados na Colônia Rodrigo Silva, uma área rural
destinada a receber os colonos e que hoje é conhecida também como
Vale dos Imigrantes. O campo religioso de Ponte do Cosme é composto
por uma igreja católica e um centro espírita kardecista, sem nenhuma
outra representação religiosa. Este desenho de campo religioso gerou
um grande conflito entre o catolicismo consolidado na história da
cidade frente a uma nova doutrina que irrompia dentro dos marcos da
modernidade, ao ponto de os católicos lançarem pedras contra a
primeira sede espírita do distrito assim que foi erguida.
Internamente, Ponte do Cosme apresenta as características de
uma sociedade territorial, dividida entre duas comunidades, os espíritas
e os católicos, repartidas pelo elemento (ou poder) religioso e
envolvidas em disputas por território, poder e bens simbólicos. Apesar
de guardarem características e posicionamentos comuns e de que,
aparentemente, a sociedade local possui ordens que a regulam para além
da disposição religiosa. Em relação ao observador forasteiro, os
moradores do distrito apresentam um discurso sobre a localidade que
carrega o sentimento de formar um todo. Neste sentido apresentam uma
tendência verdadeira entre seus membros contrapostos que, entretanto,
na finalidade de proteger a comunidade do mundo exterior, se
complementam na perspectiva de um acordo mesmo que a princípio
inconsciente, sobre a ação orientada permanentemente de persecução
de manter o distrito, em certa medida, livre das influências do mundo
exterior.
A partir desta observação que tratamos a localidade nos termos
de sociedade, pois podemos perceber que nesta relação de proteção
contra o mundo exterior, “os indivíduos estão ligados uns aos outros
pela influência mútua que exercem entre si e pela determinação
recíproca que exercem uns sobre os outros” (SIMMEL, 2006, p.17).
Uma forma de relação ou modo de interação que vai além das formas

198 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


duradoras que se dão dentro das unidades perfeitamente caracterizadas
como: família, classe, religião etc., ainda que se firmasse dentro destas
instituições, é uma forma de relação, um laço de associação que ata os
indivíduos desta sociedade, mesmo que sem formar uma verdadeira
associação, produz a unidade da vida social local (WEBER, 1973).
Como é de se esperar em uma comunidade rural, o distrito
preserva certo conservadorismo local, também certo coletivismo,
mantendo o predomínio do sagrado, da sacralização tanto na esfera
política e social. Apesar de estarem em trânsito constante com a lógica
moderna da organização urbana, em decorrência dos deslocamentos
diários para trabalharem na cidade, os moradores de Ponte do Cosme
dispõem de mecanismos para que os elementos fugazes do mundo
moderno não adentrem a organização do grupo local, preservando
tradições, sobretudo, no que diz respeito à estrutura familiar, mantendo
os casamentos formais, geralmente ainda jovens e com os filhos
construindo suas casas ao redor da casa dos pais.
Ponte do Cosme mantem um campo religioso peculiar, onde
encontramos apenas uma igreja católica e um centro espírita, como dito
anteriormente, sem nenhuma outra representação religiosa 89, sendo
que, aparentemente, o Espiritismo possui protagonismo nesta pequena
colônia de imigrantes italianos, mesmo frente ao tradicionalismo
católico tricentenário da cidade.

2. O Caso Espírita em Ponte do Cosme


A história dos fenômenos espirituais em Ponte do Cosme remete
ao início do século XX e está intimamente ligada à família de Salute
Bertolla Pereira e seus filhos. Em meados da década de 20, os jovens
Pati e Alexandrino, filhos de Salute, começam a apresentar
“problemas”, que posteriormente foram compreendidos como processo
obsessivo, um fenômeno que, segundo a doutrina, é entendido como
uma interferência que se dá por um processo parecido com o que
acontece nas frequências de rádio, quando uma emissora clandestina
passa utilizar determinada frequência operada por outra, prejudicando
a transmissão original. Essa interferência estará tanto mais assegurada
quanto mais forte e potente se apresentar, até abafar quase por completo
os sons emitidos pela emissora burlada, encontrando em sua vítima os

89
Existe um boato que houve a tentativa de se introduzir uma igreja evangélica no
distrito, mas sem sucesso.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 199


condicionamentos, a predisposição e as defesa desguarnecidas, disso
tudo vale o obsessor para instalar sua onda mental na pessoa visada
(PRESOTI, 2017).
O caso da família Bertolla é muito semelhante ao caso de Dr.
Bezerra de Menezes, figura central da legitimação do Espiritismo no
Brasil. Segundo Camurça (2014), Bezerra chega ao espiritismo por
conta do “processo de loucura sofrido por um de seus filhos e o
diagnóstico e cura oferecidos pelo Espiritismo, como sendo uma
obsessão (...), levou o médico Bezerra a definir-se e aprofundar-se no
conhecimento da cosmologia espírita” (CAMURÇA, 2014, p. 49).
O caso dos jovens irmãos Bertolla levou a família, assim como
no caso do filho de Menezes, a buscar o que definem como “as luzes da
doutrina espírita”. A família começou então a frequentar o centro
“Coração de Jesus” em Barbacena, buscando ajuda da comunidade
espírita. Por volta de 1938, formaram um pequeno grupo no distrito e
começaram a realizar reuniões espíritas na residência de Pati Pereira
Mazzoni e Ângelo Mazzoni. A residência do casal era humilde e
pequena, e o fluxo de pessoas interessadas pela doutrina aumentava, de
forma que seus proprietários decidiram por construir uma grande sala
exclusivamente para as realizações das reuniões. Neste período o grupo
era constituído por moradores de Ponte do Cosme e de Dr. Sá Fortes,
distrito também composto por imigrantes italianos da cidade vizinha de
Antônio Carlos, até que mais tarde estes últimos viriam a fundar seu
próprio centro espírita (PRESOTI; SCHIAVO, 2018).
O início da prática do Espiritismo em Ponte do Cosme não foi
diferente da forma com a doutrina se constituía em outros espaços. A
doutrina fecundou no distrito através de um grupo privado que se reunia
na casa da família Bertolla para a realização de reuniões para estudos
doutrinários, além das seções espíritas. Até 1944, os trabalhos foram
realizados na residência de Ângelo e Pati, quando, devido à crescente
demanda, foi construída a sede antiga, uma pequena construção que
resiste de pé ainda hoje.
Segundo o registro histórico do centro, em agosto do mesmo ano
houve o 1º Congresso Espírita Mineiro, contando com a representação
do centro por parte de José Abrantes Júnior, onde foram criadas as
Alianças Municipais Espiritas. Em setembro de 1944 o centro “Amor a
Verdade” é registrado em cartório na cidade de Belo Horizonte. Ainda
no mesmo mês, integrantes do centro espírita redigiriam o termo de

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compromisso e filiação a União Espírita de Minas Gerais (UEM), órgão
federativo filiado a FEB e fundando assim, para todos os fins, o “Centro
Espírita Amor a Verdade” (PRESOTI; SCHIAVO, 2018).
Desde os seus primeiros anos, o centro espírita de Ponte do
Cosme pôde se ancorar na estrutura institucionalizada pela FEB por
intermédio da UEM. Como analisou Giumbelli (2003), “(...) a FEB
investiu sobre a legitimação e a criação de instrumentos que
permitissem a concretização de suas pretensões, diante de outros grupos
espíritas, quanto à orientação doutrinária e à representação
institucional” (p. 269).
A sede foi erguida sobre o terreno doado por Joaquim Pereira,
sendo inaugurada no dia 25 de dezembro de 1944 para a comemoração
do natal de Jesus. As reuniões mediúnicas, no entanto, continuaram
sendo realizadas na residência de Pati até 1963, quando foram
transferidas para a sede. Após desencarnar, Pati Mazzoni torna-se
mentora espiritual da Escola de Evangelização, a qual recebeu seu
nome. Hoje o centro é um grande edifício, com uma quantidade de salas
capazes de comportar separadamente todas as atividades desenvolvidas,
tal como a reunião pública que acontece nas sextas feiras 90 – e, mesmo
assim, sabe-se que existe a demanda de aumentar as instalações devido
à grande procura.
Apesar da introdução dos trabalhos espíritas no distrito não fugir
à regra da entrada através de um grupo privado, a difusão do Espiritismo
no local guarda suas particularidades como veremos a seguir.

3.1 Difusão e Legitimação


Em termos de difusão espírita no Brasil, a doutrina apresenta um
caráter urbano, servindo de certa forma como uma adequação do
homem brasileiro às nuances da vida urbana. Desta forma, o
Espiritismo proliferou principalmente entre grupos privados das
camadas médias letradas, a princípio reunidos nas próprias residências
dos que organizavam os encontros, mesclando os estudos da prática da
doutrina e sessões de mesas espíritas. Estas reuniões atraiam
principalmente as parcelas urbes da sociedade brasileira, oferecendo um
sentido para suas questões particulares ao mesmo tempo em que
“oferecia um grau de plausibilidade e satisfação intelectual, para o vazio

90
Reunião com maior fluxo de pessoas, contando com participantes até mesmo de
fora da cidade de Barbacena.

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 201


das interrogações destes indivíduos” (CAMURÇA, 2014, p. 48-49).
Além do caráter urbano, os adeptos traziam também o pertencimento a
um recorte letrado e intelectual da sociedade, o que facilitou a difusão
da doutrina através de conferências e palestras nos núcleos urbanos do
país (CAMURÇA, 2014).
O caso espírita de Ponte do Cosme se assemelha e difere do
modelo de difusão constatado por Camurça (2014). No distrito o
Espiritismo manteve a máxima das reuniões privadas na residência de
seus organizadores, a residência da família Bertolla neste caso. No
entanto, a doutrina por lá se desenvolveu em contexto rural, e se
propagou por meio dos colonos imigrantes, de forma que apresenta um
grande contraste com a tendência de disseminação predominantemente
através da parcela letrada e intelectual dos núcleos urbanos.
O fato de o Espiritismo em Ponte do Cosme ter se difundido via
colonos imigrantes rompe com a ideia do caráter urbano da doutrina, e
mesmo que seja possível identificar que, hoje, os adeptos da doutrina
apresentam uma condição de instrução mais elevada se comparados
com a população católica local, ainda sim este não é o caso de difusão
por meio das camadas intelectuais.
Uma hipótese que apresentamos é que, através destes colonos
europeus, a doutrina ganhou certo respaldo social. Isto porque, desde o
início, as atividades foram identificadas como Espiritismo kardecista, o
que garantiu certa “(...) distinção entre os adeptos de doutrinas
respeitáveis pelos seus fins de assistência e educação e praticantes do
falso espiritismo, cartomancia e demais formas de abusão e mercancia”
(GIUMBELLI, 2003, p. 255).
(...) o “baixo espiritismo” designa situações nas quais se
pretende enganar, tirar proveito ecuniario ou mesmo,
como afirmam alguns peritos, causar mal a outrem. Uma
questão pertinente – mas que não poderá ser tratada aqui
– é como ocorreu a aproximação entre “baixo
espiritismo” e expressões rituais e doutrinais associadas
aos cultos com referências africanas (ibidem, p. 258).

A distinção do “tipo de Espiritismo” que era praticado e que fora


introduzida no campo religioso do distrito, sem vinculações com o que
na época era tratado no discurso jornalístico, pelo Estado e até mesmo
pela Federação Espírita Brasileira como “falso Espiritismo”, ou “baixo

202 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Espiritismo”, elencado pelo discurso hegemônico às referências
africanas e a episódios de enganação ou até mesmo de causar o mal
(GIUMBELLI, 2003), bem como a blindagem social que a
descendência europeia conferia aos pioneiros do Espiritismo no distrito,
certamente foram mecanismos indispensáveis para a inserção e
legitimação da doutrina no local.
Além disso, as reuniões que começaram a ser realizadas em
1938 na residência da família Bertolla, tão logo passaram para a sede
em 1944. Neste mesmo ano o grupo registra o centro espírita local na
UEM e passa atuar sob orientação e respaldo da FEB. O que reforça a
legitimidade do centro, uma vez que “é exatamente no seio das
atividades rituais e doutrinárias da Federação Espírita Brasileira que se
formula a oposição entre falsos e verdadeiros espíritas” (GIUMBELLI,
2003, p. 250). O vínculo com a UEM e a FEB confere ao grupo o
respaldo legal e religioso das atividades locais, uma vez que a
“reconfiguração do quadro de atividades da Federação Espírita
Brasileira e a consolidação de sua atribuição normativa diante de outros
grupos identificados com o espiritismo” garantem ao grupo local a
distinção entre praticantes de uma doutrina respeitável, em detrimento
dos adeptos do falso espiritismo.
Praticamente desde a fundação do centro espírita de Ponte do
Cosme, o Espiritismo no distrito se dá pelas orientações da FEB que
procurava:
(...) normatizar a natureza e as condições das atividades
das sociedades espíritas a partir de uma lógica que
garantisse, tal como determinava a Constituição de 1937,
a adequação do espaço religioso às “exigências da ordem
pública”: local apropriado, público adulto, ausência de
atividades terapêuticas e assistenciais e um modelo
comedido de possessão espiritual. (ibidem, p. 274).

Com a adesão normativa do “Centro Espírita Amor à Verdade”


em 1944, a doutrina passa a funcionar em Ponte do Cosme através do
“preparo doutrinário e o exercício da mediunidade totalmente
desinteressado” (ibidem, p. 261), elevando assim a prática “a caracteres
distintivos não só do verdadeiro espiritismo, como também da própria
identidade do espírita e, especialmente, do médium” (ibidem, p. 261).

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 203


Considerações Finais
O Espiritismo se apresenta como uma reinterpretação moderna
da narrativa cristã estruturada a partir dos fenômenos paranormais,
conferindo uma culpabilidade e responsabilidade ao indivíduo em seu
processo de salvação em uma relação de iniciativa e aperfeiçoamento.
Configura-se, portanto, como uma espécie de neocristianismo voltado
para aspectos mais racionais e individualistas.
Estas características despertaram o interesse de parte da elite
imperial brasileira que começou a disseminar a doutrina principalmente
no Rio de Janeiro, de forma que logo se ramificaria para todo o país.
Pelo seu perfil moderno e racional, o Espiritismo se difundiu através de
conferências voltadas principalmente para as camadas letradas dos
centros urbanos do Brasil criando grupos privados, constituídos em sua
maioria por intelectuais e figuras relevantes nos campos sociais e
econômicos.
Como era de esperar, a Igreja Católica assumiu uma postura de
perseguição e erradicação frente à nova doutrina. No entanto, estes
ataques serviram para que o Espiritismo se estruturasse e passasse a agir
a partir do campo religioso, conferindo à doutrina o caráter institucional
de religião e contribuindo ainda mais para sua disseminação pelo país.
A doutrina encontrava adeptos mesmo dentro de contextos
locais onde o véu do catolicismo cobria hegemonicamente todo o
campo religioso. Este é o caso de Barbacena e, particularmente, seu
distrito, Ponte do Cosme, que além de trazer um campo religioso pouco
comum, dividido entre católicos e espíritas, por lá a doutrina se
manifestou em um contexto rural através da ação disseminadora de
colonos imigrantes.
Deste modo, se em Ponte do Cosme não houve a difusão da
doutrina marcada pelo caráter urbano, através da camada letrada e
intelectual, comum no restante do país, de outra forma houve a
blindagem social à difusão da doutrina em decorrência da descendência
europeia dos pioneiros do Espiritismo no distrito, e também em razão
do alinhamento com todo o aparato legal e institucional da FEB
mediado pela UEM.
O “Centro Espírita Amor à Verdade” está consolidado no
distrito e atrai pessoas até mesmo de outras cidades, colocando o
Espiritismo em posição de destaque no campo religioso local. O edifício
passa por constantes reformas e ampliações para atender a demanda de

204 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


adeptos que cresce de forma lenta, porém constante, assim como em
todo o território nacional.

Referências Bibliográficas

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CAMURÇA, Marcelo. Espiritismo e Nova Era: Interpelações ao
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HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

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PRESOTI, Vitor Cesar. A Configuração Social do Cenário Religioso do
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DE MINAS GERAIS, 2017, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Editora
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PRESOTI, Vitor Cesar; SCHIAVO, Reinaldo Azevedo. A Configuração do
Cenário Social e Religioso do distrito de Ponte do Cosme: um estudo sobre
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problemas conceituais, metodológicos e de aplicação. São Paulo:
Nacional/Edusp, 1973.

206 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Autoras e autores

Alexandre Rodrigues Faria é graduando em Ciências Sociais


na Universidade Estadual de Minas Gerais - UEMG, Unidade
Barbacena. Endereço eletrônico:
[email protected]
Cáio César Nogueira Martins possui graduação em Direito pela
Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC (2015) e em
Ciência Política pelo Centro Universitário Internacional - UNINTER
(2018). É especialista em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais - PUC/Minas (2016). Atualmente cursa
Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de
Minas Gerais - UEMG. Tem experiência nas áreas do Direito, Ciência
Política e Sociologia, dedicando-se a estudos sobre temas relacionados
à participação da Mulher na Política e a relação entre Política e
Religião. Endereço eletrônico: [email protected]

Caroline Nascimento Lehmann é estudante do 5º período de


licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Minas
Gerais - UEMG. É bolsista do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica – PAPq/UEMG. Endereço eletrônico:
[email protected]

Deomario Lauriano Machado Graduando em Ciências Sociais


Universidade Estadual de Minas Gerais - UEMG, Unidade Barbacena.
Endereço eletrônico: [email protected]

Edson Lugatti Silva Bissiati é graduando em Ciências Sociais da


Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG, Unidade Barbacena.
É bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
– PAPq/UEM. Endereço eletrônico: [email protected]

Fábio Antônio da Silva possui especialização em Gestão da Educação


Municipal pela Universidade Federal de Viçosa - UFV, em Pedagogia
pela ISEIB de Belo Horizonte e Normal Superior pela Universidade
Estadual de Minas Gerais - UEMG, Unidade Barbacena. Atualmente, é
Graduando em Ciências Sociais na UEMG, Unidade Barbacena.
Endereço eletrônico: [email protected]

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 207


Fabrício Roberto Costa Oliveira possui graduação em História pela
Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP (2002), mestrado em
Extensão Rural pela Universidade Federal de Viçosa - UFV (2005) e
doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ
(2012). É professor da Universidade Federal de Viçosa - UFV. Tem
experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da
Religião e Sociologia dos Movimentos Sociais, atuando principalmente
nos seguintes temas: religião e política, história das religiões, história
oral e movimentos sociais. Endereço eletrônico:
[email protected].

Gustavo Antônio Oliveira dos Santos é graduando em Ciências


Sociais da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG),
Unidade Barbacena. É bolsista do Programa de Apoio a Projetos de
Extensão da UEMG - PAEx/UEMG. Endereço eletrônico:
[email protected]

Jamile Aparecida da Costa Moreira é graduada em Ciências Sociais


pela Universidade Estadual de Minas Gerais - UEMG, Unidade
Barbacena. Endereço eletrônico: [email protected]

Juliana da Silva Santos é estudante do 5º período de licenciatura em


Ciências Sociais, pela Universidade do Estado de Minas Gerais -
UEMG, Unidade Barbacena. Endereço eletrônico:
[email protected]

Lara Bortolusci Leporati é graduanda em Ciências Sociais da


Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG, Unidade Barbacena.
É bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
– PAPq/UEM. Endereço eletrônico: [email protected]

Lívia Rabelo é natural de Visconde de Rio Branco/MG. Doutoranda


em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. Mestre em Antropologia Social pelo
Programa Interinstitucional entre a Universidade Federal de Viçosa e a
Universidade Federal do Rio de Janeiro - Minter/UFV/UFRJ e
Economia pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Bacharel em

208 | Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público


Ciências Econômicas e licenciada em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de Viçosa - UFV. Endereço eletrônico:
[email protected]

Luiz Ernesto Guimarães possui graduação e mestrado em Ciências


Sociais pela Universidade Estadual de Londrina - UEL e doutorado em
Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista - Unesp, campus
Marília. É professor adjunto ao Departamento de Ciências Humanas da
Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG, Unidade Barbacena.
Endereço eletrônico: [email protected]

Mauro Rocha Baptista é doutor em Ciência da Religião – UFJF com


graduação em Filosofia - UFSJ, professor do departamento de Ciências
Humanas da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG,
Unidade de Barbacena e de Ensino Religioso na Escola Estadual
Adelaide Bias Fortes. Endereço eletrônico: [email protected]

Ramon da Silva Teixeira é natural de Manhumirim/MG. Licenciado


em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Carangola/Universidade Estadual de Minas Gerais - FAFILE/UEMG
(2011). Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de
Viçosa – UFV (2017). Mestre em Antropologia Social, mestrado em
Antropologia Social, mestrado interinstitucional entre Museu
Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro - MN/UFRJ e UFV
(2020). Endereço eletrônico: [email protected]

Reinaldo Azevedo Schiavo é graduado em História pela Universidade


Federal de Viçosa – UFV. Mestre em História pela Universidade
Federal de Ouro Preto – UFOP e doutor em Sociologia pelo Instituto
Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro - IUPERJ. Endereço
eletrônico: [email protected]

Vitor Cesar Presoti é graduado em Ciências Sociais pela Universidade


do Estado de Minas Gerais – UEMG, Unidade Barbacena e Mestrando
em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora -
UFJF. Endereço eletrônico: [email protected]

Willelm Martins Andrade Jardim é mestrando do Programa de Pós-


Graduação em Sociologia Política - PPG-SP do Instituto Universitário

Cristianismos, Sociabilidade & Espaço Público | 209


de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ, vinculado à Universidade
Cândido Mendes - UCAM. É graduado em Ciências Sociais,
licenciatura e bacharelado, pela Universidade Federal de Viçosa - UFV.
Atua como professor de Sociologia na rede pública do estado de Minas
Gerais. Endereço eletrônico: [email protected]

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