Atividade II - Clínica, Corpo e Discurso Médico

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 6

Universidade Federal Fluminense

Instituto de Psicologia
Clínica, Corpo e Discurso Médico
Profª Paula Land Curi
Aluno: Filipi Dias De Souza Malta

O Mundo Médico a e Transidentidade

Niterói
2021
No período de 09 de março de 2021 a 15 de março de 2021, foi utilizada a plataforma
Periódicos CAPES por meio do acesso CAFE da Universidade Federal Fluminense para
pesquisar artigos referentes à temática da “Construção do Mundo Médico”. Para a execução
dessa atividade, algumas etapas foram essenciais: em primeiro lugar, realizou-se uma breve
pesquisa na plataforma utilizando as palavras-chave “medicina” e “psicanálise” tanto no
título quanto no corpo textual dos artigos. Tal procura resultou em um acervo de 630 artigos,
assim, diante da grande quantidade de material disponível, a segunda etapa consistiu em
utilizar um filtro para a exibição dos artigos publicados nos últimos 5 anos, com o objetivo de
delimitar quais eram as temáticas mais atuais que envolviam as palavras-chaves pesquisadas.
O resultado refinado encontrou 184 artigos e, dentre eles, muitos que tratavam do tema de
gênero, identidade e transexualidade. A terceira etapa então teve por finalidade realizar
pesquisas envolvendo outras palavras-chaves que pudessem então delimitar um tema mais
específico, desse modo, os termos utilizados passaram a ser “medicina” e “transexualidade” o
que resultou na exibição de 100 artigos e, posteriormente, foi aplicado um filtro para mostrar
apenas os artigos publicados nos últimos 2 anos e com o idioma original de publicação como
sendo o português, com a finalidade de ter acesso aos debates mais recentes envolvendo o
tema e que teve como consequência o achado de 20 artigos que se enquadraram nesses filtros.
Assim, foi realizada a leitura do resumo dos 20 artigos encontrados e dentre esses foram
selecionados 2 artigos para compor esta atividade: um deles tem como título “A Disforia de
Gênero como Síndrome Cultural Norte-Americana” e o outro artigo selecionado foi “Quem
Habita o Corpo Trans?”. O primeiro se dispõe a analisar como a disforia de gênero aparece
como categoria diagnóstica na atual versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM-V) de autoria da American Psychiatric Association (APA) e
como tal aparição revela aspectos específicos da cultura estadunidense que não teriam
validade para outros povos e países. O segundo artigo realiza uma análise de discurso
comparando o que o movimento transfeminista, a psicanálise e a medicina produzem de
discursos/saberes em relação ao corpo trans.
O tema da transexualidade aparece como conceito na década de 60 através do médico
endocrinologista Harry Benjamin. Tal concepção acerca do corpo é marcada por uma lógica
patologizante, onde as pessoas que não se enquadravam dentro dos padrões comportamentais
esperados por cada gênero eram diagnosticadas com transtornos relativos à identidade ou
personalidade. No entanto, tal lógica que patologizava e, ainda hoje (como discutiremos
adiante), coloca o corpo trans nesse espaço de um tipo de transtorno ou doença é um
fenômeno com claras demarcações culturais calcadas em uma forte subjetividade viciada no
binarismo.
Para entrar um pouco na discussão a respeito da divisão dos corpos em uma
concepção binária, é necessário enfatizar que historicamente nem sempre foi assim. Antes do
século XVIII, a concepção Ocidental sobre a diferença entre os corpos consistia em uma
diferença de grau, e não propriamente de gênero, assim, o corpo “feminino” era visto como
uma inversão do “masculino” e a diferença anatômica se dava numa espécie de
horizontalidade onde era comum que se mesclasse o masculino e o feminino, como também
era comum ao se deparar com um corpo que possuía uma genitália ambígua como eram
chamados os hermafroditas (hoje o termo a ser utilizado é Intersexo). Assim, a experiência
que precede a modernidade era a de um corpo uno. É importante demarcar que isso não
significa que não houvesse diferenças e papéis sociais atribuídos aos diferentes corpos na
Idade Antiga e Média, e mesmo que o modelo não fosse o corpo “masculino” numa espécie
de marcação falocêntrica do poder, mas que esses papéis de gênero ganham muita força e
legitimidade na Modernidade com a criação, por parte da medicina no século XVIII, de dois
corpos: o do “homem” e o da “mulher”.
A demarcação do corpo “masculino” e “feminino” por parte da medicina ocorreu de
maneira intensa e extremamente estigmatizante: as diferenças anatômicas foram atreladas aos
comportamentos sociais esperados de maneira essencialista, ou seja, como traços da
personalidade que compunham aqueles corpos por meio de tendências ou predisposições.
Assim, aqueles corpos que não se comportavam da maneira esperada eram considerados
desviantes e encarados inicialmente como doentes, dentro do forte binarismo saúde-doença
que sustenta a medicina. No entanto, no decorrer das descobertas sobre a psique, houve um
forte debate se os sintomas (definidos como manifestações orgânicas ou psíquicas que
causavam sofrimento) que não apresentavam uma causalidade orgânica poderiam ser
considerados como “doenças”. Assim, grande parte dos psiquiatras e suas instituições
representantes começaram a considerar o conceito de “disorder”, traduzido no português
como “transtorno”. A partir da ideia de Transtorno, a American Psychiatric Association
desenvolveu o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, onde em sua última
edição (DSM-V) consta a categoria diagnóstica “Disforia de Gênero”, que veio substituir a o
diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero (DSM-IV).
A disforia de gênero é então definida pelo DSM-V como “[...] descontentamento
afetivo/cognitivo de um indivíduo com o gênero designado [...] sofrimento que pode
acompanhar a incongruência entre o gênero experimentado ou expresso e o gênero designado
de uma pessoa”. Tal diagnóstico entra no lugar do anterior proposto no DSM-IV pela
capacidade do DSM de se modular e incorporar as críticas que a ele são feitas. É com a
incorporação dessas críticas que no capítulo que trata sobre a disforia de gênero, o DSM-V
deixa claro que o sofrimento não é necessariamente experimentado por todas as pessoas
transexuais e transgêneras, no entanto, coloca o sofrimento como critério objetivante para a
produção de um saber/poder médico sobre os corpos trans ainda que paradoxalmente tal
sofrimento seja produzido por estigmas sociais baseados nas identidades de “homem” e
“mulher”. A substituição do Transtorno de Identidade de Gênero pela categoria de disforia de
gênero desloca a relação médico-paciente de um lugar onde se busca uma espécie de
negociação em torno de determinada transidentidade (que exige uma escuta subjetiva) e
coloca no lugar um olhar objetivante baseado numa categoria fenomênica como o sofrimento
que tenta desvelar uma incongruência. A escolha desse significante em particular
(incongruência) denuncia uma lógica binária onde a congruência estaria ao lado da
cisgeneridade. Além disso, encontramos também na categoria de disforia de gênero critérios
diagnósticos para crianças, como “forte preferência por brinquedos, jogos ou atividades
tipicamente usados ou preferidos pelo outro gênero”, “em meninos (gênero designado), uma
forte preferência por crossdressing (travestismo) ou simulação de trajes femininos; em
meninas (gênero designado), uma forte preferência por vestir somente roupas masculinas
típicas e uma forte resistência a vestir roupas femininas típicas” entre outros. Tais critérios
diagnósticos têm de estar aliados ao sofrimento ou prejuízo no funcionamento social, área
escolar, entre outros. Assim, no DSM-V, a preocupação em identificar desde cedo esses
corpos desviantes eleva os papéis de gênero a marcadores diagnósticos, auxiliando na difusão
estigmatizante deste diagnóstico.
Tal realidade diagnóstica e estigmatizante aparece de forma sutil em algumas
psicanálises, pois não se pode esquecer que a mesma é filha da medicina. Alguns discursos
psicanalíticos, que tratam da questão trans como identidade e se voltam para a compreensão
de tal subjetividade, ainda flertam com interlocuções comparando ou englobando a questão
das transidentidades dentro da estrutura clínica das psicoses, assim, mesmo que de maneira
sutil, a psicanálise pode contribuir para um saber que estigmatiza a experiência dos corpos
trans. Tais concepções clínicas são duramente criticadas pelo movimento transfeminista, que
critica esse olhar médico-psicanalítico que tenta apreender a experiência trans e legislar sobre
ela utilizando o sofrimento como parâmetro. O movimento transfeminista enfatiza muito a
questão da autonomia das pessoas trans para com as decisões sobre os seus corpos, seja no
início do tratamento hormonal, na decisão da cirurgia de redesignação sexual ou em pautas
sociais e políticas que envolvam estes corpos. Desta maneira, uma possibilidade que pode
auxiliar no combate a toda essa estigmatização pretende retirar a tendência homogeneizante
que o DSM-V tenta articular em torno das transidentidades, e tal saída pode ser a reflexão da
disforia de gênero como uma síndrome cultural norte-americana.
Uma das novidades do DSM-V é a categoria de síndromes culturais, ou seja,
condições que são manifestas em determinadas culturas e deve-se ter cautela para realizar
algum diagnóstico. Nesse sentido, os artigos selecionados discutem o forte binarismo de
gênero que ainda consta no DSM-V e como ele se articula muito bem com a realidade
estadunidense, marcada por fortes dualidades historicamente, como podemos pensar em
“norte x sul”, “republicanos x democratas”, entre outras oposições dualistas. Tal característica
da cultura norte-americana difere da realidade de outras culturas onde há presença de
determinados elementos que mesclam o masculino e o feminismo, como é o exemplo dos
travestis brasileiros, onde seus corpos reúnem características ambíguas. Portanto, a tentativa
do DSM-V e que será muito provavelmente vá ser reforçada no lançamento da mais recente
versão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) em 2022 é de universalizar,
catalogar e caracterizar as identidades humanas e entender a questão trans como uma espécie
de passagem ou deslocamento de uma identidade para outra. No entanto, os corpos trans se
afirmam como identidade nas fronteiras de tais dualismos, compondo cada vez mais as suas
singularidades e ganhando espaço para debates e discussões a respeito das questões que
vivenciam de forma gradativa. No entanto, a proposta de localizar a disforia de gênero como
uma síndrome cultural norte-americana se espraia numa denúncia ao que pode ser um grande
projeto de colonização das subjetividades.
Referências bibliográficas

Henriques, Rogério da Silva Paes, & Leite, André Filipe dos Santos. (2019). A disforia de
gênero como síndrome cultural norte-americana. Revista Estudos Feministas, 27(3), e56662.
Epub September 23, 2019.https://dx.doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n356662

Porchat, Patricia, & Ofsiany, Maria Caroline. (2020). Quem habita o corpo trans?. Revista
Estudos Feministas, 28(1), e57698. Epub May 15,
2020.https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n157698

Você também pode gostar