RICUPERO, Bernardo - O Lugar Do Centro e Da Periferia

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A discussão sobre “centro” e “periferia” no pensamento brasileiro

vincula-se a elaborações que se dão num âmbito mais amplo, latino-


americano. O primeiro locus importante onde se procura interpretar a
relação entre esses dois polos é a Comissão Econômica para a
América Latina (CEPAL), criada pouco depois da Segunda Guerra
Mundial, em 1947.
É possível encontrar antecedentes a esse tipo de análise na teoria
do imperialismo. No entanto, a elaboração anterior à CEPAL
preocupava-se principalmente com os países capitalistas avançados,
interessando-se pelos países “atrasados” na medida em que
desenvolvimentos ocorridos neles repercutissem para além deles.
Também certos latino-americanos, como o brasileiro Caio Prado
Jr., o trindadense Eric Williams e o argentino Sérgio Bagu, haviam
chamado a atenção para a vinculação, desde a colônia, da sua região
com o capitalismo mundial. Não chegaram, contudo, a desenvolver
tal percepção de maneira mais sistemática.
Já no segundo pós-guerra, ganha impulso uma linha de reflexão
que sublinha a diferença entre centro e periferia, ao mesmo tempo
que enfatiza a ligação entre os dois polos. Na verdade, a maior parte
das teorias sociais, econômicas e políticas, apesar de terem sido
elaboradas de forma ligada às condições particulares dos países
desenvolvidos do Atlântico Norte, as tomava como tendo validade
universal. Assim, o marxismo, a teoria da modernização e a economia
neoclássica tendiam a considerar que os mesmos caminhos seguidos
pelas sociedades em que foram formulados teriam que ser trilhados
pelo resto do mundo, “atrasado”.
Já em 1948, o primeiro secretário executivo da CEPAL, o economista
argentino Raúl Prebisch, se insurge contra o que chama de “falso
sentido de universalidade” da teoria econômica quando “contemplada
da periferia”.
Antes da CEPAL, a economia latino-americana era entendida
principalmente em referência à teoria das vantagens comparativas,
elaborada por David Ricardo. Segundo esse economista clássico
inglês, haveria uma especialização de cada país na produção de
determinadas mercadorias, o que refletira a disponibilidade dos
fatores produtivos no seu interior.
Em consequência, se criaria uma divisão internacional do
trabalho, com os países latino-americanos possuindo uma verdadeira
“vocação agrícola”, devido à sua disponibilidade de terras. Segundo
esse modelo, era comum considerar que, na região, a indústria seria
“artificial”, já que não correspondia às suas “vantagens
comparativas”.
Numa outra orientação, Prebisch sustenta que a propagação do
progresso técnico não seria homogênea. Como resultado, se
formariam o centro industrial e a “vasta e heterogênea” periferia da
economia mundial. Mais especificamente, na periferia o progresso
técnico se limitaria a incidir sobre os setores que produziriam
alimentos e matérias-primas para o centro. Portanto, junto com o
setor da economia voltado para a produção para fora, apareceria
outro, de subsistência, que se poderia considerar como pré-
capitalista. Em outras palavras, a economia da periferia seria
heterogênea e desintegrada, o que contrastaria com o centro, que
possuiria uma economia homogênea e integrada.
Além do mais, a periferia transferiria para o centro parte do
resultado de seu progresso técnico. Isso ocorreria já que, nas fases
decrescentes do ciclo econômico, os preços dos produtos industriais
do centro decresceriam menos do que os dos produtos primários da
periferia. Dessa maneira, se teria o que o economista argentino
chamou de deterioração dos termos de intercâmbio.
Por sua vez, o economista brasileiro Celso Furtado, partindo de
referências cepalinas, leva bem mais longe a análise sugerida por
Prebisch. Mantém, porém, a inspiração da agência, ao procurar
entender a situação específica dos países periféricos, o que deveria
abrir caminho para um esforço autônomo de elaboração teórica.
Em Desenvolvimento e subdesenvolvimento, livro de 1961, Furtado
radicaliza o argumento sobre a relação entre centro e periferia,
sugerindo a vinculação indissociável entre subdesenvolvimento e
desenvolvimento. Com base nessas referências, propõe uma nova
maneira de compreender o subdesenvolvimento, não como tinha
sugerido a teoria da modernização, como uma etapa pela qual todas
as economias teriam que passar, mas como um processo particular,
derivado da penetração de modernas empresas capitalistas em
estruturas arcaicas.
O subdesenvolvimento, caracterizado por uma economia dual,
corresponderia, em outras palavras, a “um processo histórico
autônomo”. Ou seja, o subdesenvolvimento não deveria ser tomado
como fase em direção ao desenvolvimento, mas como resultado da
própria expansão da economia industrial.
No entanto, nem todas as economias subdesenvolvidas seriam
iguais. Além daquelas caracterizadas pelo dualismo a que se fez
alusão, nas quais coexistiriam um núcleo voltado para o mercado
externo e um setor de subsistência, com baixa monetarização, teria
surgido uma estrutura mais complexa. Nela, além dos outros dois
setores, apareceria mais um, também voltado para o mercado
interno, mas monetarizado.
Como o autor já havia apontado, ao estudar o Brasil da grande
Depressão dos anos 1930, se criariam, nas fases decrescentes do ciclo,
condições favoráveis para as atividades voltadas para o mercado
interno, inclusive as industriais. Mas se na fase inicial do
“desenvolvimento de dentro para fora” o dinamismo se daria pelo
lado da oferta, no “desenvolvimento de fora para dentro” o fator
dinâmico se encontraria na procura, já que ela não poderia ser
atendida pela oferta externa.
Em outros termos, se teria uma modalidade particular de
industrialização, que ficou conhecida como de “substituição de
importações”. Mais importante, nas estruturas subdesenvolvidas mais
complexas, em que já existiria uma indústria que produziria para o
mercado interno, se abriria caminho para transformações estruturais
do sistema. Muitos governos latino-americanos, boa parte deles
identificados com o que foi chamado de populismo, favoreceram tal
orientação econômica, buscando industrializar seus países.
Por outro lado, desde o golpe militar no Brasil, em 1964, o ambiente
político parecia já não favorecer políticas desse tipo. Outros golpes
logo se sucederam pela América Latina, espalhando o autoritarismo
pela região.
Foi como funcionários de uma organização ligada à CEPAL, o
Instituto Latino-Americano para o Planejamento Econômico e Social
(ILPES), criado em 1962, que o sociólogo brasileiro exilado no Chile,
Fernando Henrique Cardoso, e o sociólogo chileno Enzo Faletto
escreveram o manuscrito do texto que foi publicado, em 1969, com o
título Dependência e desenvolvimento na América Latina. O trabalho
procura entender os golpes de Estado que proliferam então pelo
subcontinente.
Para tanto, Cardoso e Faletto buscam realizar uma “análise
integrada” do desenvolvimento, que, para além da economia, como
tinha feito a CEPAL, levasse em conta também seus aspectos sociais e
políticos. Quanto ao primeiro fator, argumentam que “o
desenvolvimento é, em si mesmo, um processo social”. Nesses termos,
o desenvolvimento não deveria ser interpretado de forma neutra,
como um simples processo cumulativo, mas como o resultado de
conflitos entre diferentes grupos, forças e classes sociais, que
procurariam impor sua dominação.
Além do mais, ao se buscar a dimensão social e política do
desenvolvimento, seria indicado que ele não ocorre em termos
deterministas, nem de forma voluntarista. Esse aspecto é central para
a análise. Até porque o que se está defendendo é que haveria certa
margem de manobra para as diferentes classes, grupos e forças
sociais agirem, a partir dos limites estruturais nos quais se
encontram. Portanto, a superação das “barreiras estruturais” ao
desenvolvimento dependeria principalmente da ação política. Ou
seja, a margem de manobra para o desenvolvimento seria
representada pela política.
De maneira complementar, a análise procura principalmente as
conexões entre os determinantes internos e externos, o que implicaria
não pensar numa relação mecânica entre os dois polos. Mais
particularmente, o externo se manifestaria principalmente na relação
entre grupos e classes no âmbito nacional.
Cardoso e Faletto não foram, entretanto, os únicos autores
identificados com a teoria da dependência. Além deles, que
desenvolveram sua crítica à CEPAL a partir da própria agência,
apareceram outros autores, como André Gunder Frank, Ruy Mauro
Marini e Theotônio dos Santos, com postura explicitamente marxista.
A maior parte deles esteve ligada ao Centro de Estudos
Socioeconômicos (Ceso) da Universidade do Chile.
No entanto, apesar da maior distância em relação à CEPAL, muitas
das formulações desses autores, como a oposição “metrópole x
satélite”, são derivadas da antítese cepalina entre centro e periferia
da economia capitalista. Além da própria CEPAL, também as teses do
neomarxista norte-americano Paul Baran influenciaram os
dependentistas “marxistas”, em especial aquela segundo a qual, num
processo mundial de acumulação, o capitalismo produz tanto
desenvolvimento em certas regiões como subdesenvolvimento em
outras.
As implicações políticas que os dependentistas “marxistas” retiram
de sua análise são bastante distintas das indicadas por Cardoso e
Faletto. Como Furtado e outros, eles consideram que, conjuntamente
à fase de aprofundamento da industrialização por substituição de
importações, que coincide com a proliferação de golpes militares pela
América Latina, haveria uma estagnação da economia da região. Isso
ocorreria em razão de o mercado interno ser pequeno para garantir a
economia de escala exigida pelas indústrias intermediárias e de bens
de capital. Assim, diversamente das várias possibilidades abertas à
ação política enxergadas por Cardoso e Faletto, consideram que
haveria uma só opção à estagnação: o socialismo.
A principal tese do mais conhecido dos dependentistas
“marxistas”, a de Gunder Frank, está resumida no título de seu livro
mais conhecido: Desenvolvimento do subdesenvolvimento, de 1964.
Baran argumenta que foi o desenvolvimento dos países atualmente
desenvolvidos que produziu o subdesenvolvimento dos países hoje
subdesenvolvidos. Isto é, a estrutura econômica, social e política de
países satélites, como os da América Latina, seria um reflexo das
determinações vindas das metrópoles imperialistas.
O argumento de Frank, de que a América Latina seria capitalista
desde a colonização, provocou intensa polêmica, estimulando o que
ficou conhecido como o debate sobre o modo de produção. A crítica
com maior repercussão foi formulada pelo teórico argentino Ernesto
Laclau. Sua principal tese é que Frank dava prioridade às relações
comerciais que ligam a América Latina à Europa, e não às relações de
produção presentes nas formações sociais da região, como seria
próprio da teoria marxista.
Têm crescido, nos últimos anos, críticas de outra natureza às análises
que ressaltam a relação entre “centro” e “periferia”. Aponta-se, por
exemplo, para o fato de que essas interpretações, apesar da
perspectiva crítica que adotam em relação à teoria da modernização,
mantêm muitos dos seus pressupostos, como a busca pelo
crescimento econômico, a industrialização e a centralidade atribuídos
ao Estado. Mais ainda, ao se enfatizar o peso das estruturas sociais, se
perderia de vista o papel da agência humana.
Certos críticos pós-estruturalistas chegam a questionar a própria
noção de “centro” e “periferia”, defendendo que essas posições não
sugeririam perspectivas particulares. Ao contrário, argumentam que
todas as sociedades teriam que enfrentar basicamente as mesmas
questões. Tal postura, ao cancelar as diferenças, traz, entretanto,
certas implicações. Não percebe, em especial, que “centro” e
“periferia”, apesar de ligados, se encontram em situações desiguais no
interior do capitalismo.
No entanto, possibilidades bastante interessantes e não evidentes
para uma análise “centro” e “periferia” são indicadas quando se
estende esse tipo de investigação para além de seus domínios
tradicionais, como a economia, a sociologia e a política.
Especialmente sugestiva é a interpretação de Roberto Schwarz sobre
Machado de Assis, cujos primeiros trabalhos apareceram já na década
de 1970.
O crítico literário mostra que a obra do romancista, ao mesmo
tempo que incorpora uma dada realidade social do capitalismo
periférico, também faz parte de um conjunto de trabalhos que
pretendem criar a literatura brasileira. Os dois desenvolvimentos são,
até certo ponto, complementares. De início, é bastante comum, em
literaturas que experimentam situações similares à brasileira, traduzir
obras europeias, ou então decalcar, sem maiores cuidados, seus
enredos em um novo cenário.

É
É preciso, portanto, esperar algum tempo para que as condições
brasileiras sejam internalizadas na nossa literatura, não mais como
exotismo forçado e reprodução de fórmulas prestigiosas. Nos
romances em questão, isso ocorreria quando a voz narrativa é
assumida pelo senhor de escravos, que tenta se passar por civilizado,
o que estaria ligado à própria situação do país no capitalismo
internacional.
Paradoxalmente, nessa espécie de “torção”, operada na periferia,
haveria a aproximação à verdade do centro capitalista. Até porque
muito do que é encoberto no centro poderia ser revelado, sem
maiores subterfúgios, na periferia. Tal situação ajudaria a explicar
boa parte das realizações da literatura russa, assim como as de um
autor como Machado de Assis, “mestre na periferia do capitalismo”.
Em outras palavras, a perspectiva de análise “centro” e “periferia”
não deixa, com ironia, de criar possibilidades inusitadas para a
América Latina. Não por acaso, se normalmente a região é vista como
consumidora de ideias e não como produtora, a elaboração teórica
empreendida desde a criação da CEPAL destoa dessa presumida
tendência, com repercussão mundial.
BIELCHOWSKY, Ricardo (org.). Cinquenta anos de pensamento na CEPAL. Rio de Janeiro,
Record, 2000.
CARDOSO, Fernando Henrique e FALETTO, Enzo. Dependencia y desarrollo en América Latina.
México, D.F., Siglo Veintiuno, 1988.
FRANK, André Gunder. Capitalismo y subdesarrollo en América Latina. Buenos Aires, Ediciones
Signos, 1970.
FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura,
1961.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo, Duas Cidades, 1992.

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