Culpa No Imaginário Do Paciente Cristão (Mauro César Medeiros Paiva)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES

CULPA NO IMAGINÁRIO DO PACIENTE CRISTÃO: RESISTÊNCIA E


SUPERAÇÃO NA ABORDAGEM INTEGRADORA

MAURO CÉSAR MEDEIROS PAIVA

JOÃO PESSOA-PB
2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES

CULPA NO IMAGINÁRIO DO PACIENTE CRISTÃO: RESISTÊNCIA E


SUPERAÇÃO NA ABORDAGEM INTEGRADORA

MAURO CÉSAR MEDEIROS PAIVA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências das Religiões da
Universidade Federal da Paraíba, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências
das Religiões, na linha de pesquisa Religião,
Cultura e Produções Simbólicas, sob a orientação
do professor Dr. Carlos André Macedo Cavalcanti.

JOÃO PESSOA
2009
3

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES

CULPA NO IMAGINÁRIO DO PACIENTE CRISTÃO: RESISTÊNCIA E


SUPERAÇÃO NA ABORDAGEM INTEGRADORA

Mauro César Medeiros Paiva

Dissertação apresentada à banca examinadora constituída pelos seguintes professores:

_____________________________________________
Prof. Dr. Carlos André Macedo Cavalcanti (UFPB)
Orientador

_____________________________________________
Prof. Drª Eunice Simões Lins Gomes (UFPB)

_____________________________________________
Prof. Drª Danielle Perin Rocha Pitta (UFPE)

JOÃO PESSOA-PB
2009
4

À minha esposa Ângela e as minhas filhas


Marianne e Manuelle,
Dedico.
5

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus pelo dom da minha vida.


Particularmente, gostaria de agradecer a minha esposa Ângela, pelo amor, paciência,
incentivo e apoio nos momentos difíceis.
Ao meu orientador, prof. Dr. Carlos André, pelo incentivo e orientação que tornou
possível realizar esta dissertação, principalmente por ter me apresentado à antropologia do
imaginário e o AT-9.
À Professora Drª Neide Miele, pela carinhosa atenção, colaboração e as valiosas
contribuições, principalmente na abordagem junguiana, desde a construção do Pré-projeto
para seleção do mestrado.
À Professora Drª Danielle Pitta, por ter passado uma semana ministrando aulas na
UFPB, sobre a antropologia do imaginário e o AT-9 e por ter me aceito como aluno especial
na UFPE.
A todos os professores do mestrado, pelo amor e dedicação com que fazem seu
trabalho.
À Professora Drª Eunice Simões que, desde a graduação de psicologia me incentivou
a trabalhar com os mitos e a psicologia junguiana, por todo apoio, análises e sugestões,
principalmente no tocante ao AT-9.
Ao meu amigo Ricardo Torres, pela atenção e as críticas construtivas.
Aos colegas de turma e a Maria, secretária do mestrado, pela paciência e atenção.
À Danielle (secretária do consultório), pelo incansável trabalho de tentar,
diariamente, organizar minha desorganização e aos pacientes cristãos que gentilmente
aceitaram participar desta pesquisa, sem os quais não poderia ter realizado este projeto.
Por fim, agradeço aos meus pais, Bastos e Piedade, por terem me incentivado a fazer
a Graduação em Psicologia e o Mestrado em Ciências das Religiões e terem me ensinado a
perseguir meus sonhos.
6

Os participantes da nossa cultura ocidental se


encontram atualmente em ressonância com o tema do
retorno do mito e dos ressurgimentos das problemáticas
e das visões de mundo que gravitam em torno do
símbolo, na atração da qual se desdobra o mais
profundo pensamento contemporâneo. Entramos, há
algum tempo o que podemos chamar uma zona de alta
pressão imaginária.

Gilbert Durand
7

RESUMO

O mito de Prometeu, paradoxalmente, provocou a desmitologização do pensamento ocidental,


determinando um grande afastamento entre os poderes efetivos da ciência e os poderes da
imagem. À margem das universidades do mundo surge um movimento de remitologização do
pensamento ocidental que contribuiu efetivamente para a mudança do paradigma científico,
através das visões de mundo holística e integradora, onde é privilegiada a
interdisciplinaridade dos saberes humanos. A abordagem integradora está em sintonia com
este novo paradigma científico, pois percebe o ser humano na sua totalidade, como um ser
constituído não só das dimensões biológicas, psicológicas, sociais e culturais, mas também da
dimensão espiritual ou religiosa. No processo de psicoterapia, promove a integração entre as
abordagens familiar sistêmica e junguiana, por entender que não são excludentes, mas sim
complementares. Alia-se à antropologia do imaginário, buscando compreender se a culpa no
imaginário do paciente cristão, construída e/ou reforçada na relação com seu universo
religioso, predispõem o paciente a resistir à psicoterapia. Caso positivo, se seria possível
superar esta resistência na abordagem integradora. Na construção do marco teórico, faz-se
uma reflexão sobre a mudança do paradigma científico nos diversos campos do
conhecimento, pertinentes a este estudo e sobre as contribuições da terapia familiar sistêmica
e da psicologia junguiana à abordagem integradora. Abordam-se as questões da culpa, da
resistência e da superação no imaginário cristão, apresentando um estudo de caso em que,
através das imagens simbólicas, a paciente superou a resistência. Pesquisa de campo
evidenciou uma previsibilidade de resistência a ser confirmada em outra pesquisa com
amostragem mais significativa.

PALAVRAS-CHAVE: Psicoterapia. Paciente cristão. Imaginário da culpa. Símbolos.


Superação de Resistência.
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ABSTRACT

The myth of Prometheus, paradoxically, provoked the desmythologization of the western


thought, determining a large separation between the effective science powers and the image
powers. Far from the world universities, a remythologization movement of the western
thought arises, contributing effectively to the change of the scientific paradigm through the
holistic and integrating world visions that privilege the human knowledge interdisciplinarity.
The integrating approach is in harmony with this new scientific paradigm, once it perceives
the human being as a whole, as an entity constituted not only by the biological, psychological,
social and cultural dimensions, but also by the spiritual or religious dimensions. In the
psychotherapy process, the integration between the systemic familiar approach and the
Jungian approach is promoted once both are seen not as being excluding, but complementary.
The anthropology of imaginary tries to understand if guilt in the Christian patient imaginary is
built and/or reinforced in the relation to his/her religious universe, predisposing him/her to
resist his/her psychotherapy. If it is true, the integrating approach is applied to attempt to
overcome his/her resistance. The theoretical frame analyses the change of the scientific
paradigm in several knowledge fields belonging to this study as well as the contributions of
the systemic familiar psychotherapy and of the Jungian psychology to the integrating
approach. Questions about guilt, resistance and Christian imaginary overcoming are
discussed, presenting a case study in which a patient overcame his/her resistance by means of
symbolic images. A field research revealed a resistance foreseeability to be confirmed by
another research with a more significant sample.

KEY WORDS: Psychotherapy. Christian patient. Guilt imaginary. Symbols. Resistance


overcoming.
9

SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO --------------------------------------------------------------------------- 10
2 CONSTRUINDO O MARCO TEÓRICO ------------------------------------------- 14
2.1 A MUDANÇA DE PARADIGMA --------------------------------------------------- 15
2.1.1 Um Breve Histórico da Psicologia ------------------------------------------------- 15
2.1.2 A Nova Visão de Homem e de Mundo -------------------------------------------- 18
2.1.3 A Remitologização do Pensamento Ocidental ----------------------------------- 22
2.1.4 As Ciências das Religiões ----------------------------------------------------------- 28
2.1.5 A Medicina Psicossomática ---------------------------------------------------------- 29
2.2 A FAMÍLIA E A MUDANÇA DE PARADIGMA--------------------------------- 33
2.2.1 Relações de Gênero, Individualismo e o Amor Romântico ---------------------- 33
2.2.2 A Terapia Familiar --------------------------------------------------------------------- 38
2.3 A PSICOTERAPIA DE ABORDAGEM INTEGRADORA ----------------------- 39
2.3.1 O Processo de Psicoterapia ----------------------------------------------------------- 39
2.3.2 A Abordagem Integradora ------------------------------------------------------------ 42
2.4 CONTRIBUIÇÕES DA TERAPIA FAMILIAR SISTÊMICA-------------------- 45
2.4.1 O “Paciente Identificado” do Sistema Familiar Disfuncional -------------------- 45
2.4.2 A Hierarquia, as Fronteiras e o Ciclo de Vida da Família ----------------------- 48
2.4.3 O Conceito de Diferenciação do Self ----------------------------------------------- 50
2.4.4 Os Mitos Familiares -------------------------------------------------------------------- 52
2.5 CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA JUNGUIANA ---------------------------- 53
2.5.1 O Inconsciente Pessoal e o Inconsciente Coletivo -------------------------------- 53
2.5.2 Processo de Individuação: do Ego ao Si-mesmo ---------------------------------- 61
2.5.3 O Poder do Símbolo e a Função dos Mitos ----------------------------------------- 69
2.5.4 A Imagem de Deus na Psique Humana --------------------------------------------- 72
2.5.5 A Importância do Arquétipo da Sombra -------------------------------------------- 76
3 CULPA, RESISTÊNCIA E SUPERAÇÃO NO IMAGINÁRIO CRISTÃO -- 80
3.1 CULPA E RESISTÊNCIA -------------------------------------------------------------- 80
3.1.1 A Igreja Cristã ao Longo da História ------------------------------------------------ 80
3.1.2 A Construção da Culpa no Cristianismo -------------------------------------------- 84
3.1.3 O Imaginário de Gênero e a “Queda do Paraíso” ---------------------------------- 90
3.1.4 Resistência à Psicoterapia ------------------------------------------------------------- 97
3.2 SUPERAÇÃO NA ABORDAGEM INTEGRADORA ----------------------------- 99
3.2.1 Estudo de Caso Clínico --------------------------------------------------------------- 99
3.2.2 Considerações Finais sobre o Caso -------------------------------------------------- 105
4 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS DO ESTUDO ------------------------ 111
4.1 CONTRIBUIÇÕES DA ANTROPOLOGIA DO IMAGINÁRIO ---------------- 111
4.1.1 Os regimes e as Estruturas do Imaginário ------------------------------------------ 115
4.2 O ARQUÉTIPO TESTE DOS NOVE ELEMENTOS (AT-9) --------------------- 118
4.3 PESQUISA CLÍNICA ------------------------------------------------------------------- 120
4.4 PROTOCOLOS DO TESTE AT-9 ----------------------------------------------------- 122
4.4.1 Protocolos Analisados ----------------------------------------------------------------- 123
4.4.2 Quadro dos Pacientes Considerados Não Resistentes e Resistentes ------------ 146
CONSIDERAÇÕES FINAIS -------------------------------------------------------------- 149
REFERÊNCIAS ----------------------------------------------------------------------------- 154
10

1 INTRODUÇÃO

Em 2000, ainda cursando o sexto período do curso de psicologia, no UNIPE, João


Pessoa – PB, fizemos uma proposta à coordenação do curso para que ampliasse a formação na
área clínica, incluindo a abordagem junguiana. Infelizmente, a proposta não foi aceita. Como
não tínhamos interesse por nenhuma das outras abordagens, fizemos outra proposta, desta vez
sugerindo que fosse incluído o atendimento à família e ao casal. Felizmente a proposta foi
aceita e, em junho de 2002, concluía a primeira turma de psicologia clínica, na abordagem
familiar sistêmica.
O que inicialmente parecia um prêmio de consolação se tornou uma parte
importante e imprescindível do nosso processo profissional. No início, ficamos divididos
entre dois focos que pareciam antagônicos: o intrapsíquico, adquirido de forma autodidata,
através da psicologia junguiana, e o interpsíquico, adquirido pela formação acadêmica, na
abordagem familiar sistêmica. Na prática clínica, no atendimento às famílias e aos casais,
éramos influenciados pela formação sistêmica, mas sentíamos o forte desejo de continuarmos
estudando a psicologia junguiana para darmos conta do atendimento individual.
Na clínica, o número de pacientes crescia atraído por outros que apresentavam
bons resultados, ou seja, mudanças de atitudes, sentimentos e comportamentos, já nos
primeiros meses de atendimento. O segredo é que tínhamos entendido que os dois focos, o
interpsíquico, da psicologia familiar sistêmica, e o intrapsíquico, da psicologia junguiana, não
eram antagônicos e sim complementares. Como o “zoom” de uma máquina fotográfica,
poderíamos concentrar a atenção, ora no paciente, ora no seu sistema familiar.
Foi uma ousadia, atendermos individualmente adultos, adaptando os pressupostos
da psicologia familiar sistêmica, a este tipo de atendimento individual e somando-os aos da
psicologia junguiana porque, até pouco tempo atrás, os profissionais da psicologia sistêmica
só trabalhavam com casais, famílias ou outros grupos de relacionamentos interpessoais.
Durante nossa formação acadêmica, este tipo de abordagem terapêutica ainda não era aplicado
a pacientes individualmente, por ausência de suporte didático.
Independentemente da abordagem do psicoterapeuta, na atualidade, o preconceito
em relação à psicoterapia, infelizmente, ainda é grande! Quando o paciente busca atendimento
psicoterapêutico é porque percebe sintomas que o faz sofrer, de uma forma que não é mais
aceitável para ele, ou porque foi encaminhado por um psiquiatra ou outro especialista da área
médica, dependendo das características específicas com que o sintoma se apresenta.
11

É possível que até mesmo aquele paciente encaminhado pelos profissionais da área
médica, por não terem encontrado problemas de ordem fisiológica que justifiquem o sintoma
do paciente, demonstre um descrédito e uma desesperança, na possibilidade de superação do
problema, uma vez que as motivações que o levaram a este processo de psicoterapia não
foram pessoais. Há outros pacientes que buscam a psicoterapia porque já tentaram outras vias,
inclusive a religiosa, e não conseguindo a “cura” desejada, querem se convencer que tentaram
tudo que era possível.

Segundo Nichols e Schwartz (1998), a psicoterapia é um processo de crescimento


pessoal, de conscientização da necessidade de efetuar mudanças e, para tanto, o paciente tem
que ter disponibilidade, motivações e, principalmente, a consciência da sua responsabilidade,
neste processo, uma vez que muitos pacientes desejam que o sintoma desapareça, sem que
tenham que mudar sua vida, pois, às vezes, mudanças podem parecer ameaçadoras, por
provocar dor e angústia e estes sentimentos desagradáveis devem ser evitados a “qualquer
custo”.

No indivíduo existem diversas variáveis que contribuem para a estrutura pessoal do


indivíduo e do seu sistema familiar, social e religioso. Os conflitos, quando não são resolvidos
adequadamente, geram sintomas psicológicos, psicossomáticos ou de comportamentos
socialmente inadequados, como uma forma de sensibilizar e mobilizar o indivíduo, no sentido
de que ele dispense a atenção necessária para a superação destes conflitos. Provavelmente,
outras tentativas devem ter sido efetuadas, porém, como ele não lhes deu a devida atenção, o
sintoma foi o caminho encontrado.

Devido à diversidade e complexidade do ser humano, Scarpato (2008) explica que


há vários tipos de psicoterapias, dependendo das abordagens dos psicoterapeutas, ou seja, da
visão de ser humano que eles têm e dos caminhos que acreditam que poderiam ser percorridos
para que o paciente elimine o sintoma, promova as mudanças necessárias, restaure sua saúde
biopsicossocial e retome o seu desenvolvimento natural.

A abordagem integradora é o termo que utilizamos, partindo do princípio do novo


paradigma científico que, segundo Cavalcanti (2000), busca superar a fragmentação e
promover a integração do ser humano. Além de procurarmos integrar os princípios das
abordagens sistêmica e junguiana, por entender que são complementares, percebemos o ser
humano como um ser multidimensional, ou seja, um ser constituído não só das dimensões
biológicas, psicológicas, sociais e culturais, mas, também, da dimensão espiritual.
12

A abordagem sistêmica, conforme Nichols e Schwartz (1998), analisa os padrões de


relacionamentos interpessoais, dentro do sistema familiar do paciente, pois acreditam que o
sintoma produzido por ele é uma forma de denunciar que há conflitos familiares não
resolvidos adequadamente e, portanto, o paciente seria o portador do sintoma da família, por
isso referem-se a ele não como o “doente”, mas sim, como o Paciente Identificado do seu
sistema familiar disfuncional.

A psicologia junguiana, de acordo com Winckel (1985), busca compreender os


processos intrapsíquicos do paciente, na busca da sua auto-realização, através do processo de
individuação e de integração da personalidade total. Neste processo, o indivíduo precisa
confrontar e unir pares de opostos que geram conflitos aparentemente irreconciliáveis, dentro
de si mesmo. O sintoma seria a denuncia de que apenas o ego, na sua unilateralidade, está
sendo ouvido, portanto, algo precisa ser feito para que também o inconsciente seja ouvido,
superando a unilateralidade do ego e restaurando a harmonia interna.

A resistência dos pacientes em efetivamente aderir ao tratamento é um problema


grave em todas as profissões da área da saúde: psicologia, medicina, nutrição, fisioterapia etc.
Muitos pacientes abandonam o processo antes de receber alta! É comum também, nos
pacientes considerados resistentes, a prática de passar por vários profissionais da mesma
especialidade, na tentativa de justificar para si mesmos, que desejam muito se curar, porém, o
problema não está nele, mas, sim, nos profissionais que não têm as habilidades necessárias
para ajudá-los.
A resistência do paciente ao processo de psicoterapia, na abordagem integradora,
ocorre quando ele percebe a função, até então inconsciente, do seu sintoma. Quando o
paciente aceita trabalhar a hipótese terapêutica de que seu sintoma provavelmente não é a
causa de seu sofrimento, mas sim o efeito, esta resistência é superada e a psicoterapia se
desenvolve de uma forma rápida, de acordo com as características individuais de cada
paciente. Porém, quando ele não aceita a hipótese terapêutica, normalmente este paciente
suspende a psicoterapia, por sua iniciativa unilateral.
Muito dos pacientes atendidos, nesta clínica psicológica, são praticantes de religiões
cristãs, ou seja, católicos e evangélicos de várias confissões. Estes pacientes, na sua fala, se
referem com freqüência a questões relacionadas ao seu universo religioso. Perguntam-se por
que Deus permitiu que eles desenvolvessem o sintoma que os trouxeram ao consultório e por
que, apesar de suas orações e súplicas, Deus não os atende, enviando Sua graça sobre eles e
curando-os de seu sofrimento: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”
13

Portanto, o objeto de estudo é a qualidade da relação entre o imaginário do


paciente cristão e seu universo religioso, pois percebemos que estes pacientes se utilizam de
sua culpa disfuncional para se apegarem ao sintoma, como uma forma de se autopunirem, por
não conseguirem atingir a perfeição que tanto almejam e acreditam ser possível. Quando as
mudanças se fazem necessárias e exigem do paciente o autoperdão, eles “preferem”
abandonar o processo psicoterapeutico, do que tentar superar esta culpa.
É apresentado o caso clínico de uma paciente católica, adulta, casada, que fez
resistência ao seu processo de psicoterapia individual, através do apego inconsciente ao
sintoma. Depois de alguns meses reiniciou seu tratamento e, quando da ameaça de nova
resistência, conseguimos ajudá-la a superar a resistência e a concluir o seu processo de
psicoterapia. A partir deste caso, surgiram vários questionamentos, tais como: por que outros
pacientes cristãos não fazem resistência à psicoterapia ou quando fazem, conseguem superar
esta resistência? Qual a diferença entre eles?

Será que a diferença está na qualidade da relação entre o imaginário do paciente


cristão e seu universo religioso? E se a diferença estiver aí, será possível ao psicoterapeuta
fazer algum tipo de intervenção psicológica, para alterar a qualidade da relação, sem emitir
juízo de valor referente às convicções religiosas dos pacientes? Será que a mudança de
paradigma poderia ajudar a criar as condições favoráveis para que o imaginário da culpa do
paciente, quando disfuncional, seja desconstruído e reconstruído de uma forma funcional?

Quais as contribuições que a abordagem integradora oferece na compreensão e


superação da resistência dos pacientes cristãos à psicoterapia? O Mestrado em Ciências das
Religiões, por ser multidisciplinar, favoreceu a integração entre a psicoterapia de abordagem
integradora e a antropologia do imaginário, na compreensão do imaginário dos pacientes, e
assim construímos o nosso problema: Será que através do conhecimento do “trajeto
antropológico” dos pacientes cristãos que fazem resistência é possível prever se um novo
paciente cristão poderia vir ou não a apresentar resistência ao processo de psicoterapia?

Portanto, para a análise metodológica, nos apoiamos na Teoria das Estruturas


Antropológicas do Imaginário, desenvolvida pelo antropólogo francês Gilbert Durand e no
Arquétipo Teste dos Nove Elementos (AT–9), construído pelo psicólogo francês Yves
Durand.
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2 CONSTRUINDO O MARCO TEÓRICO

2.1 A MUDANÇA DE PARADIGMA

2.1.1 Um Breve Histórico da Psicologia

A palavra psicologia deriva da junção dos termos gregos psiché e logos, onde a
primeira significa alma ou mente e a segunda significa ciência. A psicologia é uma ciência
que estuda os fenômenos psíquicos e do comportamento. Possui uma curta história, pois é
considerada por muitos como uma ciência nova.
De acordo com Weiten (2002), a psicologia nasceu por volta do ano de 1870, tendo
como pais os estudiosos da filosofia e da fisiologia que procuravam respostas para questões
da mente humana. Mas foi só em 1874 que se tornou um estudo cientifico da experiência
consciente através dos trabalhos do professor alemão Wilhelm Wundt.
A psicologia, como ciência da psique, que é algo invisível, não palpável, nasce
oficialmente em pleno século XIX, considerado o século da razão. Persegue o reconhecimento
por parte das outras ciências que defendem que, de acordo com o positivismo lógico - o
paradigma científico vigente - só pode ser considerado ciência o conhecimento adquirido
através da observação dos fenômenos que são possíveis de ser mensurados. A partir daí, os
pesquisadores desta área do conhecimento, para atenderem esses critérios, enfatizam o estudo
do comportamento do indivíduo e não o da psique.
Segundo Weiten (2002), Wundt preconiza a psicologia produzida em laboratório,
com uso de instrumento de avaliação e medição, assumindo o método de investigação adotado
pelas ciências naturais, influência do positivismo, que alegava a necessidade de um rigor
científico, dentro do conceito de ciência da época, na construção dos conhecimentos das
ciências humanas.
Ele seguiu a tradição empírica de René Descartes, para explicar os processos
mentais, utilizando-se dos conceitos de alguns físicos como Newton, ao sustentar que o
psiquismo poderia ser analisado por elementos básicos indivisíveis como o átomo, o que seria
a base dos nossos sentimentos, sensações e memória. Porém, esta seria uma abordagem
reducionista e mecanicista.
Surge então uma oposição dos psicólogos e filósofos europeus, que não aceitam a
natureza extremamente fragmentada desta psicologia, e buscam uma compreensão unitária
entre a consciência e a percepção, e em parte com o organismo, ou seja, uma visão holística.
15

No século XX, a psicologia cresceu surpreendentemente, surgindo várias pesquisas, novos


campos de investigação e novas abordagens para entender o comportamento humano e os
processos mentais.
Conforme Weiten (2002), as principais teorias contemporâneas da psicologia são: a
comportamental, de 1913, com os autores John B. Watson, Ivan Pavlov e B. F. Skinner, que
estuda os efeitos do ambiente no comportamento observáveis de seres humanos e animais; a
humanista, de Carl Rogers e Abraham Maslow, de 1950, que tem uma visão do ser humano
como resultado de aspectos únicos de sua experiência; a cognitiva, que tem como autores Jean
Piaget, Noam Chomsky, Herbert Simon, que buscam explicar o comportamento humano
através das bases fisiológicas, tanto do ser humano como de animais.
Temos ainda a psicanalítica, fundada por Sigmund Freud, em 1900, que trabalhou
com os determinantes inconscientes do comportamento, dando ênfase ao desenvolvimento
sexual na etiologia da neurose. Apesar de Freud ter iniciado sua prática clínica, em 1886, na
cidade de Viena, o ano de 1900 é considerado como o de fundação da psicanálise, porque foi
neste ano que ele lançou o livro “A Interpretação dos Sonhos”.
Segundo Scliar (2007), uma das contribuições mais importantes de Freud foi a de ter
estruturado o inconsciente, dividindo-o em três partes: o Id, o Ego e o Superego, que seriam
estruturas psíquicas comuns a todo ser humano. O Id seria a parte dos instintos, que
impulsiona o indivíduo a realizar seus desejos e necessidades; o Superego seria o conjunto de
valores morais que a pessoa internaliza, auto-regulando sua conduta como se fosse um juiz
severo do seu comportamento; e caberia ao Ego a difícil tarefa de fazer a mediação entre os
impulsos do Id e a censura moral do Superego.
Stevens (1993) acrescenta mais duas teorias consideradas, por ele, como de
fundamental importância: a de Alfred Adler (1870-1937), que acredita que os instintos sociais
e a vontade compensatória de poder são motivações mais fortes do que a sexualidade; e a
psicologia analítica de Carl Jung (1875-1961), que acredita que na psique existe um
fundamento coletivo, que é comum a todo ser humano, portanto, universal.
“A psique compõe-se de numerosos sistemas e níveis diversificados, porém,
interatuantes. Podem-se distinguir três níveis na psique. São eles: a consciência, o
inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo.” (HALL e NORDBY, 1989, p.26)
O inconsciente não foi uma “descoberta” de Freud, pois, segundo Stevens (1993), já
no século XVII, o filósofo Gottfried von Leibniz (1646-1716) fez uma formulação da idéia do
inconsciente. Em 1868, o filósofo Eduard von Hartmann escreveu uma obra volumosa, a
16

Filosofia do Inconsciente, onde continha o resumo de tudo que já tinha sido escrito sobre o
inconsciente até aquela época.

[...].Entretanto, o reconhecimento pleno do inconsciente como princípio dinâmico


subjacente à consciência só foi estabelecido no século XIX, quando se tornou um
tema central de debate para os filósofos alemães von Svhelling, Hegel, Schopenhauer
e Nietzsche. Cada um desses pensadores influenciou Jung, e muitos dentre os
princípios da psicologia analítica estão prefigurados em suas obras. (STEVENS,
1993, P.24)

Segundo Scliar (2007), o inconsciente foi mencionado na obra de Nietzsche, pelo


menos como embrião, apesar de Freud não fazer nenhuma referência a ele. Porém, sem
dúvida nenhuma, cabe a Freud, um brilhante pesquisador, um gênio fértil da psicologia, o
mérito de não só ter aprofundado o conceito de inconsciente, que já tinha certa valorização do
seu significado clínico por seus antecessores, mas, principalmente, por ter criado um método
novo de tratar as doenças neuróticas, que ele acreditava ter raízes no inconsciente, através da
análise da resistência e da transferência, na livre associação.
De acordo com Michel Foucault (SCLIAR, 2007) “[...] Nietzsche, Marx e Freud
seriam os grandes intérpretes da modernidade, desmascarando conceitos estabelecidos e
introduzindo novas concepções.” (SCLIAR, 2007, p.116).
Stevens (1993) ressalta que Jung e Adler, dois dos colaboradores de Freud,
romperam com ele por discordarem firmemente de algumas hipóteses a respeito da natureza
do inconsciente, que eram consideradas intocáveis por Freud, pois são pontos fundamentais
da sua teoria psicanalítica. As hipóteses sobre o inconsciente seriam:

[...] em primeiro lugar, o fato de que o mesmo se compõe de lembranças peculiares ao


indivíduo; e, em segundo lugar, o fato de que, quando essas lembranças são
reprimidas, invariavelmente são de natureza sexual. Freud acrescentou a essas duas
uma terceira hipótese, a saber, que a energia que impulsiona todo o aparato psíquico e
que é responsável pelo seu desenvolvimento na fase da infância é de origem sexual.
Ele chamou essa energia sexual de libido. [...] (STEVENS, 1993, p.34)

A respeito da natureza do inconsciente, Freud defendia o conceito de libido, como


elemento exclusivamente sexual, o que para Jung é uma energia psíquica não específica,
sendo a sexualidade apenas uma das formas em que ela pode ser canalizada. O conceito de
libido na Psicologia de Jung constitui um dos principais elementos que diferenciam e limitam
seu ponto de vista frente à Psicologia de Freud.
Desde o lançamento da obra “Símbolos de Transformação”, em 1912, evento que
marcou o início de sua ruptura com a Psicanálise, Jung veio criando seus próprios caminhos e
17

definindo mais apropriadamente o que entendia por inconsciente (que posteriormente, no item
3.3.1 será analisado com mais detalhes) e, mais objetivamente por libido.
Jung considerava a energia sexual como uma das qualidades da libido, ou seja, uma
de suas autênticas manifestações e expressões. Entende que a libido poderia ser compreendida
a partir de sua raiz “Libidum”, ou seja, vontade. Vontade é desejo, o “a priori” do Ser, a
coisa-em-si de Kant, de natureza e grandeza ilimitada, que sob inumeráveis formas e aspectos
se mostra como fenômeno. Outra discordância entre eles é no conceito de Complexo de Édipo
que, para Freud, o complexo gerava um apego e um conflito de caráter sexual, sendo que Jung
negava que eles fossem de caráter inevitavelmente sexual, mas sim de caráter espiritual.

Enquanto ele admitia que os meninos ficavam muito apegados à mãe, e que isto podia
fazer com que entrassem em conflito com os pais, Jung negava que tanto o apego
como o conflito fossem de caráter inevitavelmente sexual. [...] Para Jung, o apego do
filho à mãe era de caráter espiritual, e não sexual, e qualquer desejo que um menino
pudesse alimentar no sentido de um retorno ao útero materno era, no fundo, uma
necessidade de “renascimento”, num ato de renovação, de auto-realização. Em outras
palavras, Jung considerava o incesto psicológico não como a busca de um objeto
físico, mas como um meio para o crescimento espiritual. (STEVENS, 1993, p.41)

Jung, por reconhecer que suas hipóteses eram radicalmente incompatíveis com as de
Freud, hesitou em publicá-las com receio de perder a sua amizade, o que inevitavelmente
aconteceu em 1914, quando ele renunciou ao cargo de presidente da Associação Internacional
de Psicanálise, criada em 1910, da qual tinha sido eleito seu primeiro presidente.
Jung acreditava que esta ruptura com Freud aconteceu devido às diferenças
individuais de cada personalidade e não por diferenças intelectuais, pois este conjunto de
características pessoais, denominada personalidade, influencia diretamente na percepção que
cada um tem da realidade. Na história das idéias, quando um determinado indivíduo é
responsável por uma contribuição de grande importância, seu nome fica identificado com
aquela idéia, trazendo a marca da sua personalidade.

[...] Isto é verdadeiro em relação à psicologia analítica junguiana, da mesma forma


como se aplica também à psicanálise freudiana, à biologia darwiniana, à astrologia de
Copérnico ou à física de Newton. [...] As idéias centrais dos sistemas
psicoterapêuticos projetados pelo triunvirato esplêndido de psicanalistas, formado por
Sigmund Freud, Alfred Adler e Carl Gustav Jung, surgiram diretamente da vida
pessoal dos seus criadores, e nenhum deles teve consciência mais nítida deste fato do
que o próprio Jung. [...] (STEVENS, 1993, p.13)

Jung compreendia que a neutralidade do pesquisador deve ser perseguida, por isso o
observador deve ter a consciência e a humildade em reconhecer que ela será sempre
18

contaminada pela sua subjetividade. “[...] “Mesmo quando estou trabalhando com dados
empíricos” escrevia ele, “estou necessariamente falando de mim mesmo” (CW 4, par. 774)”
(STEVENS, 1993, p.14)

2.1.2 A Nova Visão de Homem e de Mundo

Para Cavalcanti (2000), o século XX foi particularmente fértil, pois surgiram novas
propostas dos cientistas e teóricos, de várias áreas do conhecimento, no sentido de reverter a
tendência de fragmentação do conhecimento, a unilateralização racionalista e a oposição entre
ciência e espiritualidade, que contribuiram significativamente para a perda do sentido do
sagrado e que tiveram origens nas idéias desenvolvidas no Renascimento e na Reforma, a
partir dos fundamentos filosóficos concebidos por René Descartes e na base científica e
matemática de Isaac Newton. Jung foi um destes pioneiros, um teórico e um cientista à frente
de seu tempo!
Embora, me tenham chamado freqüentemente de filósofo, sou apenas um empírico e,
como tal, me mantenho fiel ao ponto de vista fenomenológico. Mas não acho que
infringimos os princípios do empirismo científico se, de vez em quando, fazemos
reflexões que ultrapassam o simples acúmulo e classificação do material
proporcionado pela experiência. Creio, de fato, que não há experiência possível sem
uma consideração reflexiva, porque a “experiência” constitui um processo de
assimilação, sem o qual não há compreensão alguma. Daqui se deduz que abordo os
fatos psicológicos, não sob um ângulo filosófico, mas de um ponto de vista científico-
natural. (JUNG, 1987, p. 7)

A teoria mecanicista “[...] marcou profundamente a psique ocidental e determinou a


relação predatória do homem com o meio ambiente e consigo mesmo.[...]” (CAVALCANTI,
2000, p.9). Kant (1724-1804), defendia que o iluminismo, através da racionalidade, iria
libertar o indivíduo do seu estado de infantilidade cognitiva, ajudando-o a se apropriar do seu
próprio intelecto, ao invés de se deixar guiar pelo dos outros, como se ainda fossem crianças.

[...] No entanto, a racionalidade, como critério único de verdade, é questionada se não


passar pelo crivo da crítica. O próprio Kant pergunta: o que posso conhecer? O que
devo fazer? O que me é permitido esperar? As perguntas, já sendo um ato da razão,
incluem seus limites ou suas condições de possibilidade, que devem ser analisadas de
modo crítico. Mesmo a Religião é considerada nos limites da razão. (CASTRO
HOMEM, 2005, p.2)

Diversas e conflitantes tentativas de se pensar racionalmente a realidade pessoal e


social levaram ao surgimento de fortes e abrangentes pensamentos sobre sistemas ou
paradigmas com pretensões universais.
19

[...] o Hegelianismo (Hegel 1770-1831), o Positivismo de Comte (1798-1857) e o


Marxismo (Marx 1818-1881). Também a Fenomenologia de Edmund Husserl (1859-
1938) merece a afirmação de pensamento forte e abrangente, mas não tem a
incidência política dos pensamentos anteriormente citados. Entretanto, determinou
muitas interpretações da realidade social, inclusive a Religião como fenômeno.
(CASTRO HOMEM, 2005, p.2)

Nichols (1998), ressalta que uma destas teorias é a Teoria Geral dos Sistemas (TGS),
pensada pelo biólogo Ludwig Von Bertalanffy, que começou a se perguntar se as leis que
regiam os organismos biológicos poderiam ser aplicadas a outros campos como a psiquiatria,
a psicologia, a medicina, a sociologia, a história, a educação, a filosofia etc. Bertalanffy foi o
pioneiro da idéia de que um sistema é maior ou diferente da soma de suas partes, por isso ele
enfatizou a importância nos padrões de interações dentro do sistema ou entre os sistemas, e
não nos elementos do sistema.

Não há nada de misterioso nem de místico nesta afirmação, apenas a idéia de que
quando as coisas são organizadas dentro de um padrão, algo emerge do padrão e do
relacionamento das partes dentro dele que é maior ou diferente, da mesma forma
como a água emerge da interação do hidrogênio com o oxigênio. (NICHOLS e
SCHWARTZ, 1998, p.90)

Bertalanffy (NICHOLS e SCHWARTZ, 1998) percebeu que o reducionismo


científico negligenciou o estudo do todo na análise dos fenômenos e “convocou” os cientistas
a aprenderem a pensar na interação e não nas partes fragmentadas. Esta nova visão é, em
parte, resultado da percepção das inadequações do paradigma científico do positivismo lógico,
que dominou a ciência ocidental a partir do século XIX e que separou a ciência da filosofia e
da ética, onde só é válido e real o que pode ser observado empiricamente, enquanto que o
novo paradigma inclui o que antes era excluído, o que está entre, na relação com, e o que
surge a partir daí.

A totalidade e o inter-relacionamento de todas as coisas fazem parte de uma


concepção holística e espiritual. Ela corrige a noção fragmentada da vida e do
conhecimento e devolve ao homem a visão sagrada, integral e harmônica da
totalidade, segundo a qual todos os saberes humanos estão interconectados e todo o
universo está unido de forma significativa. (CAVALCANTI, 2000, p.11)

No início do século passado, os cientistas da física, pesquisando os fenômenos


atômicos, perceberam que as partículas subatômicas realmente não existem, se analisadas pela
perspectiva do positivismo lógico, contribuindo efetivamente para o surgimento deste novo
paradigma.
20

No nível subatômico, a questão certamente não existe em locais definidos, mas antes
mostra ”tendência a existir” ... as partículas subatômicas não têm significado como
entidades isoladas, mas só podem ser compreendidas como interconexões ou
correlações, entre vários processos de observações e de medidas. (CAPRA, 1982,
p.80 apud NICHOLS e SCHWARTZ, 1998, p. 92)

Bertalanffy usou o termo perspectivismo para mostrar a crença de que a realidade


existe, porém, a realidade que conhecemos nunca é objetiva, porque a visão dela passa
necessariamente pela perspectiva particular de cada observador. Ele alertou, como Jung
também o fez, para o fato de que o ato da observação influi sobre o que está sendo observado.
Hall e Nordby (1989) lembram que Jung solicitava aos psicoterapeutas que
observassem como os conceitos se expressavam em sua própria personalidade, pois, com esta
atitude, descobririam que os seus conhecimentos da personalidade e da individualidade
poderiam ficar bem maiores e, principalmente, que tivessem cautela a respeito do apego
exagerado aos seus próprios conceitos, e insistia que priorizassem os fatos observáveis em
relação às teorias.
Portanto, se o observador quiser evitar a rigidez das suas suposições e se mantiver
aberto a novas idéias, deve ser humilde diante das observações e teorias, procurando conhecer
bem os próprios valores e os da teoria em que se fundamenta. Para os teóricos e filósofos,
Bertalanffy deixou este alerta:

Somos nós que, em última análise, fabricamos as lentes através das quais as pessoas
vêem o mundo e a si próprias – por menos que elas possam conhecê-lo... Ouso dizer
que somos os grandes fabricantes de óculos da história. (BERTALANFLY apud
DAVISON, p.69 apud NICHOLS e SCHWARTZ, 1998, p.93)

A visão bertalanffiana do perspectivismo se parece muito com o construtivismo, que


é uma filosofia derivada de Kant. Aplicando esta teoria na família, percebeu-se que, na análise
do sistema familiar, dever-se-ia concentrar mais atenção nas interações dos membros do que
nas características individuais de cada um. A família é um sistema vivo, aberto, que se
sustenta trocando informações com o ambiente.
Difere da perspectiva funcionalista, que também utiliza o conceito de sistema aberto,
pelo fato de dar ênfase ao relacionamento entre o organismo e o seu ambiente, que inclui
outros organismos, e não à visão de que o organismo apenas reage ao estímulo que vem do
ambiente. Bertalanffy foi um opositor da visão mecanicista dos sistemas vivos, pois
acreditava na equifinalidade, ou seja,
21

[...] na capacidade dos organismos de atingir um determinado objetivo final a partir de


diferentes condições iniciais e de diferentes maneiras.. Ele e outros biólogos usavam
esse termo para identificar a capacidade voltada-para-o-interior de um organismo para
proteger ou restaurar sua inteireza, como na mobilização dos anticorpos do corpo
humano e em sua capacidade para reparar pele e osso. (DAVISON, 1983, p.77 apud
NICHOLS e SCHWARTZ, 1998, p. 91)

Segundo Nichols e Schwartz (1998), ele se opõe à visão mecanicista da família


porque entende que, se a família fosse vista como uma máquina seria só estudar o seu
funcionamento, descobrir onde está à falha e consertá-la. Para ele, esta visão desvaloriza o ser
humano, porque nega a sua diversidade pessoal e sociocultural. O ser humano é mais do que
psique e soma; ele é também um ser social e cultural. Acreditava na ética e na ecologia, pois
percebia que há sistemas de crenças que têm tanto ou mais poder do que os sistemas
psicofísicos dos seres humanos.

Na segunda metade do século XX, muitos aspectos da modernidade persistirão, mas


não terão de conviver com o advento da pós-modernidade no pluralismo, na
fragmentação e na indeterminação ou debilidade do pensamento e da Religião como
fenômeno midiático e na busca de novos embasamentos éticos diante do ceticismo, do
relativismo e do contextualismo dos valores morais. É um pouco a situação que
estamos vivendo. O sagrado retorna. Está presente na sociedade e na Política, girando
em torno do simulacro e do lúdico para a satisfação de interesses imediatos.
(CASTRO HOMEM, 2005, p.2)

De acordo com Cavalcanti (2000), os novos conhecimentos adquiridos em diferentes


campos científicos, partilhados mutuamente, principalmente a partir das mudanças conceituais
realizadas pela física através da revolução da teoria quântica que, obrigando os cientistas a se
questionarem sobre o tempo, a consciência, a origem e finalidade da vida, formularam os
pilares da concepção quântica de visão do mundo: indeterminação, união dos opostos,
complementaridade e totalidade, e, finalmente, construíram uma nova via para compreensão
do universo, possibilitando o surgimento da visão integradora do ser humano e dele com o
meio ambiente.
Esta visão integradora, que percebe os opostos não mais como excludentes, mas sim
como aspectos complementares de uma mesma e única realidade, estão contribuindo para a
superação de conflitos, até então considerados irreconciliáveis, através da união de áreas do
conhecimento, tais como ciência, mitologia e religião.
22

2.1.3 A Remitologização do Pensamento Ocidental

Segundo Durand (2004), a civilização ocidental, no que diz respeito ao imaginário,


entrou numa zona de intensas remitologizações a partir da revolução industrial, uma vez que
as perversas problemáticas políticas, econômicas e sociais que a sociedade ocidental vem
enfrentando encontram possibilidades de superação, justamente, a partir daquelas visões de
mundo que giram em torno da imagem, do símbolo e da relação dinâmica entre os dois, que
pode ser denominada de mito.
Com o surgimento das técnicas audiovisuias foi possível à ampliação da fotografia, a
revelação em cores, novas montagens, a animação para o cinema, o surgimento e
popularização da televisão, até a transmissão de imagens por satélites. A partir daí houve uma
invasão da imagem em tamanha proporção que podemos falar em inflação, tendo como efeito
negativo uma orientação, um direcionamento das forças imaginárias, uma vez que algumas
pessoas, por exemplo, simplesmente absorvem as imagens, sem fazer uso da sua imaginação
criadora.
A psicanálise popularizou as noções de símbolo e de imagem através da
interpretação psicológica do mito de Édipo, o qual virou linguagem comum para explicar
determinados comportamentos. No meio acadêmico, também foi iniciada uma reabilitação da
imagem, através da psiquiatria, da psicologia e das críticas literária e artística.
Também é iniciada uma revalorização da curiosidade pelas imagens vindas de fora
da cultura Judaico-Cristã, como o Budismo, os Sufis, Krishna etc, na busca de tentar sanar as
angústias do modernismo, que a desmitologização provocou. O surgimento da seita “Nova
Era” é um bom exemplo desta busca desesperada, mostrando que ainda há dentro do ser
humano o forte desejo de transcender a consciência do nada e da morte.

Enfim a política e a vida cívica não foram poupadas do massivo fenômeno


mitológico das liturgias reforçadas pelo poder mediático. Nosso século, o século de
Freud, é também o de Georges Sorel e de Alfred Rosemberg. Os dirigentes
puritanos, inquietos, não puderam impedir as pressões do imaginário político nem a
nova teogonia do “culto da personalidade”. Em torno de um personagem ou de uma
ideologia política, se cristalizam verdadeiras “religiões seculares” – para retomar o
título da tese de J. P. Sironneau – onde minha geração pôde ver de perto a eficácia
aterrorizante... (DURAND, 2004, p.9)

Segundo Durand (2004), a remitologização do pensamento ocidental é uma profunda


revolução, que surge como reação a este fenômeno danoso, que a sociedade ocidental não
deseja mais ser vítima, que é o surgimento de personalidades ou ideologias políticas como
23

verdadeiras religiões seculares. Infelizmente, durante séculos, as pedagogias cuidadosamente


rejeitaram ou pouco fizeram para evitar a desmitologização, pelo contrário, se esforçaram
para ver, no progresso produzido pelo triunfalismo das técnicas e da racionalização, a idade
das luzes..
“[...}Existe então um tipo de “inversão” causal porque, para combater o
obscurantismo da idade do mito e das imagens “teológicas” acentuamos uma mitologia
progressista onde triunfa o mito de prometeu [...]” (DURAND, 2004, p.11) Prometeu foi o
Titã benfeitor dos seres humanos. Revoltado, contestador, ele rouba o fogo, o segredo da
força divina dos deuses e o oferece à humanidade. O mito progressista do ocidente,
paradoxalmente, destrói o Mito.
De acordo com Durand (2004), no ocidente, ainda há um grande afastamento entre
os poderes efetivos da ciência e os poderes da imagem. A ciência, enquanto campo da
experiência empírica com sua lógica matemática, é privilegiada. A divisão dos poderes é
ampliada e reforçada pelo aparente triunfo das revoluções industrial, tecnológica e da
informação, que só valorizam a positividade dos objetos, dos fatos históricos e dos dogmas
racionalistas. Já a imagem, ou a imaginação criadora, ficou aprisionada no sonho e na
fantasia, considerados campos inferiores da consciência.
Triunfo considerado aparente, quando se observa os efeitos perniciosos dos
desencantos. Diferentemente do que se acredita, a riqueza mundial não foi distribuída com
justiça social, provocando um grande aumento do numero de pobres e um distanciamento,
cada vez maior, entre as nações ricas e as pobres e entre os ricos e os pobres dentro de cada
nação. Efeito negativo que pode ser constatado pelos horrores produzidos pelas guerras,
paroxalmente, na idade das luzes. Porém, é justamente neste cenário desolador que, no fim do
século XX, surgem os grandes remitologizadores.

[...] A estes três grandes nomes, Mann, Zola e Wagner, tem-se claro que é preciso
adicionar Freud, cujos trabalhos, durante mais de cinqüenta anos, vão dar a cor
principal ao rio dos reaparecimentos do imaginário e dos símbolos. Acrescentamos
Nietzche a este cortejo, o mais consciente desta mudanças das divindades dirigentes
da alma de um século, o pai de Zaratustra, o profeta vaticinante, depois do poeta
Jean Paul, a “morte de Deus”, o fim de um Deus antigo e usado pelo abuso de seus
usos, o anunciador do “grande meio-dia” e do reaparecimento dos deuse antigos,
Dionísio e Hermes [...]. Na emergência destes “novos” mitos (“sempre os mesmos”,
escrevera Michel Foucault!), irrompem muitas confluências: por exemplo a grande
corrente da pintura simbolista [...] (DURAND, 2004, p. 12)

Como principal motivação, temos o surgimento da pintura simbolista é um dos


fatores que vem denunciar que as visões de mundo, baseadas na ideologia do progressismo
24

científico, já estavam saturadas, e que já havia um movimento de subversão epistemológica


em andamento, no sentido da remitologização do pensamento ocidental. Mas o que provocou
esta saturação? O fato de já ter saturado não seria uma explicação bem provável. Então, cita
mais duas motivações que, para ele, foram as responsáveis por esta mudança de paradigma.
A segunda motivação é que a relação entre os dois poderes foi alterada. O poder do
racionalismo clássico, iniciado em Aristóteles, e que atingiu seu auge com Newton e os
iluministas, enfraqueceu, se desfez, ruiu, e o outro, o poder da imagem, considerado até então
mais fraco, ocupou automaticamente o lugar. É como se fossem “vasos comunicantes”, que
quando um está vazio é preenchido pelo conteúdo do outro.

[...] Ou melhor: a dialética feroz, as exclusões axiológicas, as excomunicações


epistemológicas desaparecem: então, os limites entre o processo científico e o
discurso poético desaparecem.. É isto que significou, e corroborou, o memorável
encontro de Córdoba em 1979 onde, pela primeira vez depois de séculos, a física
mais moderna vinha sentar-se na mesma mesa convivial com antropólogos e poetas.
Tal é a segunda motivação da mudança de mito no fim do século XIX: a mitologia
das Luzes, que tinha levado com brutal sucesso todos os subterfúgios da razão, se
anula de repente pelas transformações não euclidianas, não cartesianas, não
newtonianas da razão ela mesma. (DURAND, 2004, p.13)

E a terceira motivação é o desenvolvimento da antropologia, no fim do século XIX e


durante o século XX. Através dos estudos dos povos colonizados pelas nações européias e das
suas descolonizações posteriores, principalmente das contribuições da escola africanista
francesa, descobriu-se que o “homem”, principalmente o “selvagem”, sempre pensaram bem.
O homem “branco e civilizado” se depara com determinados fenômenos, tais como, sonhos,
transes, possessões, até então inaceitáveis para o século das luzes, e redescobre o poder das
imagens e dos símbolos.

[...] Bem entendido, uma tal redescoberta do homem “conflui” com as descobertas
da psicanálise freudiana e, melhor ainda, com a “psicologia das profundezas” de C.
G. Jung. [...] Estes antropólogos de todo tipo: etnólogos, “historiadores” das
religiões, psicanalistas, filólogos... se encontraram na grande maioria a cada ano
nesta mistura extraordinária que foi durante cinqüenta anos os encontros de Eranos,
em Ascona, no Tissino suíço.[...] neste cenáculo, e foi aí – à margem, sublinhemos,
das universidades do mundo – que livremente os universitários mais eminentes
criaram uma nova ciência antropológica cuja base repousava sobre a faculdade
essencial do sapiens sapiens: a saber seu incontornável poder de simbolizar, sua
“imaginação simbólica”. (DURAND, 2004, p.14)

Segundo Pitta (1995), o paradigma científico do positivismo sofreu um grande abalo


quando a objetividade científica, a causalidade e o evolucionismo foram contestados. Quanto
à objetividade, as pesquisas atuais em física, através da teoria dos quantas, mostram que
25

necessariamente o observador modifica o meio que ele observa, mesmo se tratando de um


meio físico.
Quanto à causalidade, é a própria física quem vem abalar o conceito. Niels BOHR
(1885 - 1962), que tem um papel fundamental no desenvolvimento da física quântica
escreve: A interação finita entre o objeto e os instrumentos de medida, conseqüência
imediata do quantum de ação, leva - porque é impossível controlar a reação do
objeto sobre os aparelhos - à necessidade de renunciar definitivamente ao ideal
clássico de causalidade e de modificar de ponta a ponta nossa atitude com respeito
ao problema da realidade física [15]. O que leva o físico a "contentar-se com as leis
da probabilidade" e o "argumento de correspondência" [16]. (PITTA, 1995, p.12-13)

Quanto ao evolucionismo, devido à noção de tempo linear, se pensou que as culturas


progrediam passando por fases até chegarem ao desenvolvimento atual. Porém, Georges
Dumézil, um sábio francês, observou que o relato da história cuja movimentação era
qualificada de positiva, na realidade poderia ser reduzido ao modelo mítico de todo relato
humano, pois os mitos fundadores de várias civilizações, em diferentes lugares e épocas,
apresentavam os mesmos atributos, papéis e situações.

[...] Dizendo de outra maneira, o que ensinávamos antigamente como história de


Roma não era senão o muito arcaico e imemorial relato de um mito indo-europeu.
Eu penso – e a academia francesa, sobre as insistências de Lévi-Strauss, vem enfim
tardiamente honrar Dumézil! – [...] Como viu profundamente Tomas Mann, o que
“sonda” a sede de compreensão do homem através da unidimensionalidade do relato
histórico é “o insondável” do sentido, o que faz de um evento um advento simbólico
(kérygma). Isto foi reabilitar de maneira intensa o mito contra as usurpações
desavergonhadas da história. (DURAND, 2004, p.15)

Acreditava-se que a humanidade estava caminhando na direção do progresso


triunfante e radioso, onde, por exemplo, as nações “subdesenvolvidas ou em
desenvolvimento” perseguiam a grande meta de se tornarem “desenvolvidas”, como as nações
do “primeiro mundo”.
Porém, se questiona que desenvolvimento é este, se, em nações ditas desenvolvidas,
como a Alemanha, se permitiu a ascensão e o sucesso do nazismo, e como a França, uma das
culturas mais desenvolvidas da Europa, que se opôs a barbárie napoleônica, também
sucumbiu a este remitologizador, e como os Estados Unidos da América que, em pleno século
XXI, reeditou a guerra dos “bons” contra os “maus”?

[...] É que o nazismo, assim como a Revolução francesa, forneceu a um povo, com
ingenuidade e brutalidade, um conjunto de ritos e de mitos, uma prótese do
religioso, onde a Alemanha do Kulturkampf, assim como o Francês das Luzes, era
privado. Wotan – como denuncia C. G. Jung desde 1936 – era bastante recusado
pelas Igrejas reformadas e o Estado prussiano, para não tomar uma força aterradora
nas profundezas do inconsciente germânico. (DURAND, 2004, p.16)
26

Estas reflexões proporcionaram a compreensão de que a história não caminha


sempre para frente, mas há também possibilidades de retornos, e de que o relato histórico não
é tão objetivo quanto o paradigma do positivismo gostaria de acreditar, pois a subjetividade
pode transformar o relato histórico unidimensional numa mitologização partidária, através dos
precipitados míticos ou “explosões” míticas, que provocam as acelerações ou brutais
bifurcações da história.

Surge de tais fenômenos de “aceleração”, “precipitação” ou “coagulação” míticas


quando, em uma civilização dada, as instituições não seguiram o lento movimento das
visões do mundo. [...] Na época, precisamente, onde os mitos começaram a retornar
nos horizontes da sensibilidade e do pensamento ocidental, na época onde Wagner,
Zola, Nietzsche, Freud injetavam por suas artes no Ocidente estreitamente
racionalista, os germes das fascinantes mitologias, os grandes magistérios do
Ocidente – Igrejas e Estados – desprezaram a remitologização. (DURAND, 2004, p.
16-17)

As Igrejas, na tentativa de se livrarem da influência das mitologias pré-cristãs e das


mitologias medievais estimularam uma política de desmitologização acelerada, a partir do
século XVIII. No século XX, muitos teólogos buscaram calcar as verdades da fé sobre a
fascinante “ciência histórica”. Paralelamente, os Estados democráticos, em nome das
“Ciências Políticas”, cederam seu carisma mitológico sem se darem conta de que o poder
repousa sobre o aumento mitogênico.
Desta forma, estas instituições ocidentais laicizaram os saberes e secularizaram os
poderes. A conseqüência desta desmitologização, paradoxalmente provocada pela mitologia
do positivismo, foi a de que a civilização ocidental perdeu ao mesmo tempo os magistérios
político e religioso. Seus cidadãos ficaram privados de sonhos com as possíveis utopias.

[...] De passagem e para ilustrar quanto à parte do imaginário – onde o sonho é uma
grande manifestação – é indispensável à vida normal do homem como do animal, eu
lembraria aqui as experiências do professor Jouvet, que mostraram por uma
experimentação precisa que o gato privado dos sonhos tornava-se rapidamente
neurótico, com insônia e alucinado....[...] procedemos a uma experimentação
idêntica sobre voluntários humanos, e rapidamente obtivemos (no fim de oito a dez
dias) as mesmas perturbações. Estas experiências de clínicos demonstraram o bem
que tem no animal superior e no homem uma necessidade vital do sonho.[...] Como
escrevia ultimamente Gastón Bachelard, há um “direito de sonhar” fundamental,
constitutivo da vitalidade normal do sapiens sapiens. (DURAND, 2004, p.17)

De acordo com Durand (2004), o mesmo acontece no plano cultural e social, quando
o ser humano “branco, adulto e civilizado”, educado dentro das pedagogias positivistas, é
privado do poder simbólico constitutivo das mitologias e o transfere para devaneios livres e
27

selvagens, uma vez que não contam com a segurança oferecida pelos magistérios que
reconhecem e enquadram a força de sonhar. Quantos jovens ocidentais, segundo ele, não
abandonam seus estudos e/ou trabalho e entram em “seitas” orientais, que são cada vez mais
numerosas, enquanto que as Igrejas vazias brigam entre si?
Segundo Durand (2004), o avanço das novas “teologias” é preocupante, pois não há
magistérios coletivos para avaliarem os efeitos destas remitologizações. O mito em si mesmo
não é bom nem mal, porém, o preocupante, o perigoso, é o que se faz com ele. Quando se
trata de um mito totalitário, os efeitos podem ser perversos, terríveis, desastrosos. Portanto, se
faz necessário para evitar estas conseqüências negativas, o estabelecimento e o ensinamento
de uma mitodologia, que é a “ciência do mito”, do mito fraternalmente aberto.
Durand (2004) chama a atenção para o fato de que nas sociedades ocidentais
modernas há três níveis míticos, três estratificações com instâncias mitogênicas diferentes,
coabitando simultaneamente, onde cada um deles tem seu mito fundante. Estas estratificações
míticas seriam: a Pedagógica, a da Mídia e a dos Sábios. A Pedagógica, desde o século XIX,
distribui às crianças e aos jovens em idade escolar, a ideologia do mito de Prometeu.
A da Mídia, na aparência, é antagônica a anterior por distribuir os mitos de Orfeu ou
de Dionísio. Há uma liberação selvagem em busca de audiência a qualquer preço e onde os
grandes financiadores deste sistema têm o monopólio oculto sobre todos os outros poderes
políticos. Devido à dialética destas duas forças, há a terceira estratificação, que é aquela dos
sábios, pesquisadores pertencentes tanto às ciências do mundo material como às ciências
humanas, os responsáveis pela revalorização daquelas mitologias esquecidas que, na
realidade, se parecem com outras bem antigas.

Tem-se que insistir sobre este ponto: eles “reencontram” os mitos. Pois se trata de
“volta”. É uma ilusão superficial acreditar que tem mitos “novos”. O potencial
genético do homem, no plano anatomo-fisiológico, assim como no plano psíquico, é
constante desde que existem homens “que pensam”, quer dizer desde os quinze a
vinte mil anos de existência do homo sapiens sapiens.” (DURAND, 2004, p. 19-20)

O Mito no pensamento ocidental, nos últimos séculos, tinha sido relegado a uma
pequena parte do pensamento pragmático. Porém, este panorama vem se modificando de uma
forma constante através das visões de mundo dos sábios, ou seja, dos cientistas das diversas
áreas do conhecimento como físicos, biólogos, astrônomos, psicólogos, sociólogos,
historiadores das religiões, antropólogos etc, que, a partir dos novos conceitos, vêm
construindo um novo paradigma científico, ou seja, o da “ciência do espírito”.
28

2.1.4 As Ciências das Religiões

Segundo Filoramo e Prandi (1999), atualmente, na pesquisa e estudo das Ciências


das Religiões há uma exigência de sentido e de globalização, onde não se deve perder de vista
a unicidade e a especificidade do objeto. Os estudiosos das ciências das religiões estão
divididos em dois grupos com pontos de vistas diferentes quanto à interpretação do fenômeno
religioso.
No primeiro, os estudiosos de orientação positivista buscam explicar, descrever,
ordenar, classificar e comparar o fato religioso com o objetivo de determinar a origem das
religiões, enquanto que, no segundo, na fenomenologia compreensiva da religião, os
estudiosos buscam compreender o significado e o sentido dos fenômenos religiosos, cujo
objetivo da pesquisa é a essência da religião, que, segundo Jung, é o encontro do indivíduo
com o sagrado. Compreender a essência do fenômeno religioso seria a função básica da
pesquisa fenomenológica.
Camurça (2008) discute o estatuto epistemológico e a identidade acadêmica da(s)
ciência(s) da(s) religião(ões) evidenciando a discussão sobre o método, se seria “ciência” ou
“ciências” e sobre o objeto, se seria “religião” ou “religiões”. Esta é uma discussão entre
vários teóricos internacionais, tais como, Max Weber e Emile Durkheim e, no plano nacional,
Mendonça, Oliveira, Carvalho e Otávio.

[...] busca-se relativizar a polaridade que coloca, de um lado, a religião como uma
totalidade de verdade e transcendência e, de outro, as ciências (sociais) com
pretensões de decompor a primeira em fatores socioculturais e históricos. Defendem-
se uma “via de mão dupla” em que ambas deixem-se afetar mutuamente, e em que a
religião empregue métodos socioculturais e históricos como forma de
autocompreensão e as ciências (sociais), conceitos e experimentos do universo
religioso (por exemplo, o carisma) para interrogar suas problemáticas. (CAMURÇA,
2008, p.10)

Camurça (2008) se alia àqueles que usam o termo “Ciências da Religião”, justificando
que o faz não por discordar ou se opor radicalmente a outras proposições, mas o faz por uma
questão de preocupação com a identidade do Programa de Pós Graduação, ao qual está
vinculado, e seu ajuste com o que realizam no Programa.

Diante de minhas aparentemente enfáticas observações, sou forçado a reconhecer,


quanto a algumas colocações – como a que questiona o caráter absoluto do conceito
de religião -, que muitos abalizados antropólogos e sociólogos (Weber, Bourdieu etc.)
assumem a idéia genérica de religião para tratar de seus objetos de estudo, sem que
com isso estejam retificando o conceito. Igualmente quanto à perspectiva da
Fenomenologia da Religião, que, ao salvaguardar o caráter irredutível da “experiência
29

religiosa”, de forma alguma chega às raias do irracionalismo ou da desrazão!


(CAMURÇA, 2008, p.37)

Filoramo e Prandi (1999), por sua vez, defendem a proposição “Ciências das
Religiões”, justificando que são vários os métodos científicos e que, portanto, há um
pluralismo metodológico ou um “politeísmo metodológico”. Defendem ainda que, nessa
diversidade de metodologias, é impossível reduzi-las a um único denominador comum, bem
como a pluralidade do objeto (Religião como gênero e não como espécie), uma vez que é
impossível construir sua unidade, no plano da investigação empírica.

Concluindo: as ciências das religiões (CR) não constituem uma disciplina à parte,
fundada, como gostaria a tradição hermeneuticamente orientada (cf.cap.I), na unidade
do objeto (a religião) e na unidade do método (a compreensão hermenêutica). Antes,
ela é um campo disciplinar e, como tal, uma estrutura aberta e dinâmica.
(FILORANO E PRANDI, 1999, p.13)

Somos favoráveis a proposição de que se trata das Ciências (métodos) das


Religiões (objetos), ou seja, de uma diversidade de métodos e objetos, pois além da
indiscutível diversidade das metodologias, acreditamos na necessidade de se referir ao objeto
de estudo na sua pluralidade para enfatizar a não primazia da Igreja Cristã que, na realidade
brasileira, ainda se impõe como “a verdadeira”, contribuindo para fomentar o preconceito e a
intolerância com as outras religiões, uma vez que o diferente, o desconhecido, por ausência de
conhecimento, tende a ser rejeitado, evitado e afastado como algo ameaçador.

2.1.5 A Medicina Psicossomática

Como a saúde é um bem precioso, quando alguém está doente, normalmente, recebe
atenção e cuidados especiais e há uma tendência dos membros da família de se mobilizarem e,
de se voltarem exclusivamente para o doente, ao ponto de todas as outras dificuldades da
família serem consideradas pequenas ou desaparecerem, principalmente as dificuldades de
relacionamentos familiares. As atenções e os cuidados especiais podem ser considerados os
“ganhos secundários”: o indivíduo está privado da sua saúde, mas, em compensação, sente-se
amado. E o amor pode ser um bem ainda maior, para determinadas pessoas, do que a saúde

A reflexão sobre a relação saúde-doença vista na ótica “unitária” põe no centro


daquela o homem em sua indivisível unidade psicofísica e espiritual. A saúde não
deve ser considerada de modo estático, mas como resultado de “um equilíbrio
dinâmico entre corpo e espírito e, externamente, entre pessoa e ambiente”, e tem um
valor multidimensional, dinâmico e relacional. A doença, portanto, nunca é algo
30

isolado, um evento, mas é uma situação de vida, uma passagem do estado de saúde,
de bem-estar para um outro de não-bem-estar, e é importante sobretudo como este é
enfrentado, e que valor assume na consciência do doente e que sentido este lhe dá.
(FRATTA, 2004, p.49)

É comum ouvir relatos de pessoas, mesmo fora do setting terapêutico, que dizem que
durante certo tempo, sentiram “inveja” de um determinado membro doente de sua família,
porque os pais priorizavam a atenção e reservavam as melhores coisas ou alimentos para o
enfermo e, ainda, solicitavam que tivessem paciência e abrissem mão dos seus interesses e
necessidades pessoais para ajudá-los a cuidar daquele membro doente. Parecia que os pais
amavam mais aquela pessoa doente do que a eles que estavam sadios!

Em outros termos, a palavra saúde [...] designa a intensidade com que os indivíduos
conseguem enfrentar os seus estados interiores e as condições ambientais, [...]; a
saúde alcança níveis ótimos lá onde o ambiente gera capacidade pessoal de enfrentar
a vida de modo autônomo e responsável. (ILLICH, 1981, p.13 apud FRATTA, 2001,
p. 51)

O médico e psicoterapeuta Rudiger Dahlke (2005) e o psicólogo Thorwald


Dethlefsen (2005) também defendem a idéia de que o doente é, inconscientemente, o autor de
sua doença, refletindo sobre os aspectos metafísicos do processo de adoecer, considerando
que os sintomas são passíveis de interpretação, uma vez que são expressões simbólicas dos
conflitos do indivíduo.
Quando ele não está inserido num ambiente familiar que lhe proporcione a
capacidade de enfrentar seus problemas de modo autônomo e responsável, os conflitos
parecem ameaçadores demais e como não consegue “olhar” para eles, os mesmos não são
elaborados adequadamente na consciência, sendo portanto, somatizados, pois, desta forma,
não tem como o indivíduo não prestar atenção a si mesmo.

A polaridade da nossa consciência como seres humanos nos coloca constantemente


em situação de conflito, no campo de tensão entre duas possibilidades. O tempo todo
temos de decidirmos [...], rejeitando sempre uma possibilidade se quisermos
concretizar a outra. [...] Evitar o conflito no nível psíquico – com toda a ansiedade e
os riscos que acarreta – simplesmente faz com que ele encontre uma justificativa para
aparecer no nível físico, na forma de inflamações. (DETHLEFSEN e DAHLKE,
2005, p.92)

Segundo Dethlefsen e Dahlke (2005), o sintoma seria um sinal de que algo não vai
bem! Deixar de interpretar os fenômenos torna a vida sem sentido! A medicina acadêmica
quando evita interpretar a doença e seus sintomas condena-os ao exílio da ausência de
significado, ou seja, eles perdem sua função, transformando-se em apenas sinais de um mau
31

funcionamento do corpo! Eles enfatizam a necessidade de interpretar os acontecimentos, pois


só assim têm significado.
Um bom exemplo disto é o termômetro que, se fosse analisado só como a
movimentação do mercúrio num tubo de vidro, não teria nenhum sentido. Ele ganha
significado, quando este processo é interpretado como uma mudança de temperatura!

[...] Assim sendo, os acontecimentos do nosso mundo material e formal tornam-se


interpretáveis quando usamos algum sistema de referência metafísico. Apenas quando
o mundo visível das formas “se transforma numa alegoria” (Goethe), é que ele se
torna significativo para as pessoas. Assim como a letra e o número são os portadores
formais de uma idéia subjacente, tudo o que é visível, tudo o que é concreto e
funcional é, na verdade, a expressão de uma idéia, o mediador do invisível. [...]
(DETHLEFSEN e DAHLKE, 2005, p.13)

A medicina moderna surpreende com seu intensivo desenvolvimento tecnológico,


através de numerosas possibilidades de diagnóstico rápido e habilidades surpreendentes.
Porém, paradoxalmente, cada vez mais, novas doenças são descobertas, exigindo maiores
investimentos econômicos para alcançar os objetivos visados e, conseqüentemente, elevando
os custos financeiros e sociais dos tratamentos das doenças e da prevenção e promoção da
saúde.
[...] Se a alma possuísse um corpo de matéria sutil, pelo menos poder-se-ia dizer que
esse corpo vaporoso sofreria de um carcinoma mais ou menos aéreo, da mesma forma
que um corpo de matéria sólida é sujeito a sofrer tal enfermidade. Nesse caso, pelo
menos, haveria algo de real. Talvez a medicina sinta uma aversão tão grande contra
todo sintoma de natureza psíquica: para ela ou o organismo está doente, ou não lhe
falta nada, absolutamente . [...] (JUNG, 1987, p.12)

De acordo com Dethlefsen e Dahlke (2005), atualmente, cada vez mais se faz ouvir
as vozes daqueles que desconfiam da onipotência da medicina moderna, colocando em
evidência os efeitos colaterais, a desumanização dos tratamentos e o mascaramento dos
sintomas.
Estas críticas são levantadas principalmente pelos profissionais da medicina
homeopática e pelos médicos alopatas mais jovens, que percebem o surgimento de novo
paradigma da medicina holística, uma vez que o paradigma da especialização, apesar de sua
grande contribuição para o conhecimento dos muitos detalhes, provocou a perda de visão, por
parte dos profissionais, do ser humano como um todo!

[...] É certo que a medicina vive em grande parte de medidas concretas e práticas, no
entanto, cada intervenção expressa – consciente ou inconscientemente – a filosofia em
que se baseia. A medicina moderna não falha exatamente em suas possibilidades de
ação mas na visão de vida em que as fundamenta, de forma muitas vezes silenciosa e
32

irrefletida. A medicina naufraga devido à sua filosofia – ou, em palavras mais exatas,
à carência de uma filosofia. Os procedimentos médicos, até agora, orientaram-se
unicamente pela funcionalidade e pela eficácia: a falta de “uma alma interior” é que
por fim acarretou-lhe a crítica de desumana.( [...] (DETHLEFSEN e DAHLKE, 2005,
p.12)

A doença, portanto, significaria a perda relativa da harmonia que ocorre na


consciência, mas só se torna visível no corpo através do sintoma, pois o corpo seria o lugar de
concretização da consciência, ou seja, a somatização tornar-se-ia a mediadora do invisível. O
sintoma atrairia sobre si a atenção, o interesse e a energia do indivíduo, pois interromperia o
fluxo natural e saudável da vida. Seria um pedido de socorro, um alerta de que algo estaria
faltando, denunciando que ela estava doente.
Por exemplo, tem pessoas que, mesmo com algum tipo de enfermidade em que o
corpo exige repouso para concentrar a energia na sua recuperação, continuavam insistindo em
manter suas atividades diárias, só se permitindo parar quando a febre aparece, porque, neste
caso, se sentem impossibilitadas, devido à falta das condições mínimas necessárias para
desempenhar suas funções.
Dethlefsen e Dahlke (2005) defendem a idéia de que a doença é um caminho através
do qual o homem, que se encontra em desarmonia interior, pode buscar a cura. “[...] A doença
é um ponto de mutação, em que um mal se deixa transformar em bem. [...] A cura sempre está
associada a uma ampliação de consciência e a um amadurecimento pessoal.” (DETHLEFSEN
e DAHLKE, 2005, p.60)
Quando o indivíduo tem dificuldades de encontrar ou percorrer sozinho o caminho
na busca de ampliação da sua consciência e do seu amadurecimento pessoal, uma das
alternativas possíveis é a psicoterapia, onde ele poderá trilhar este difícil percurso
acompanhado por um profissional tecnicamente habilitado que, por não está emocionalmente
envolvido com o conflito, tem a capacidade de auxiliar o paciente a compreender-se e efetivar
as mudanças necessárias para a superação de seus conflitos.
Este psicoterapeuta deverá obedecer ao Código de Ética do Psicólogo, Resolução
CFP Nº 002/87 de 15 de agosto de 1987, onde prevê que, no atendimento clínico, sejam
oferecidas ao paciente as condições ambientais adequadas, não só para sua segurança como
também para a sua privacidade e garantia do sigilo profissional. Quando estiver atuando em
equipe multiprofissional, todos da equipe devem ter a responsabilidade de preservar este
sigilo. Prevê também que o psicólogo não poderá emitir juízo de valor principalmente com
relação às convicções políticas, filosóficas, morais ou religiosas de seus pacientes.
33

2.2 A FAMÍLIA E A MUDANÇA DE PARADIGMA

2.2.1 Relações de Gênero, Individualismo e o Amor Romântico

Segundo Carvalho (2000), a palavra família, segundo Engels, vem de famulus, que
quer dizer escravo doméstico. Foi uma expressão criada pelos romanos para designar um
novo organismo social que surgia entre as tribos latinas, quando foram escravizadas
legalmente e introduzidas na agricultura. Caracterizava-se pela presença de um chefe do sexo
masculino o “paterpotestas”, que tinha o poder de vida e de morte sobre a mulher, os filhos e
certo número de escravos.
O termo família, ao longo da história, foi utilizado para designar instituições e
agrupamentos sociais diferentes, no que se refere à estrutura e funções. Alguns grupos e
instituições não tinham como função específica ou exclusiva a reprodução geracional, mas,
sim, prioritariamente, funções políticas e econômicas. Por exemplo,

Na Roma republicana, pertencer a uma família significa, antes de tudo, pertencer a


um mesmo grupo político formado por várias gerações, ao qual se tem acesso pelo
nascimento (filhos); pela adoção (esposa e estranhos) ou pela compra (escravos). Em
suma, integram a família todos aqueles que estão submetidos ao pátrio poder ou à
dependência do senhor da casa. (CARVALHO , 2000, p.31)

À medida que a sociedade vai ficando mais complexa, as instituições vão se


especializando e novas relações vão se estabelecendo entre elas. A família, então, passa a ser
concebida como uma instituição especializada na reprodução cotidiana e geracional dos seres
humanos. (BILAC in CARVALHO, 2000),
No início do século XVIII, começa ganhar forma a família nuclear burguesa como
conseqüência do surgimento da escola, da preocupação com a igualdade dos irmãos, da
privacidade, da preocupação em manter os filhos junto aos pais, bem como do sentimento de
família, que começava a ser valorizado pela igreja e por outras instituições sociais. A família
deixa de ser vista sob a perspectiva da reprodução da força de trabalho e passa a ser vista sob
a perspectiva da reprodução social.
Porém, ainda no século XIX, lembra Elisabete Bilac, os pobres viviam como as
famílias medievais, com os filhos morando fora da casa dos pais. Desta forma, também, na
mesma época, viviam no Brasil os agregados da casa-grande patriarcal. A família nuclear
burguesa é entendida como o espaço privilegiado para a produção social da vida tanto em
termos cotidianos quanto geracionais, e não como espaço de produção de bens e serviços.
34

Este espaço privilegiado é organizado pelas relações de gênero e pela divisão sexual do
trabalho.
Com o passar do tempo, o modelo da família nuclear burguesa se espalhou por toda
a sociedade ao ponto de as pessoas aceitarem este modelo como verdade estabelecida. Elas se
esquecem que este é um modelo construído historicamente, cujos padrões emocionais,
crenças, valores e normas a ele inerentes, têm uma origem aristocrática e burguesa, de forma
que as relações interpessoais são baseadas no poder e na hierarquia, sendo o homem o único
provedor, estando por isso no comando da família, enquanto que a mulher, responsável pela
casa e os cuidados com os filhos, está subordinada a ele.
No final da década de 1970, Lasch já levantava a hipótese da “socialização da
reprodução” e do “cerco à família”. Para ele, a sociedade capitalista não socializou apenas o
processo de produção, mas, também, o de reprodução, distribuindo-a por várias agências
sociais. O crescimento das profissões nas áreas de saúde, educação e assistência social tirou
dos pais e da família a autoridade na reprodução, levando à fragmentação da função
reprodutiva da família, que passa a dividir o processo de socialização do indivíduo com
diferentes agências e instituições sociais. (BILAC in CARVALHO, 2000)
“Os pais abdicam de seus juízos e emoções em prol do conhecimento técnico dos
especialistas. A autoridade se impõe de fora para dentro e os efeitos são vários, tanto do ponto
de vista sociológico quanto psicanalítico” (BILAC in CARVALHO, 2000, p.34).
A família passa a perder as suas funções e importância social. O seu papel na
sociedade é paulatinamente minimizado, até o ponto de ser questionada a sua validade como
instituição. A crise da família é expressa pelo crescente número de divórcios e separações,
diminuição dos casamentos, perda da autoridade paterna, abandono dos idosos etc. Apesar do
crescente descrédito que a família vem sofrendo nas últimas décadas, causa perplexidade a
sua capacidade de permanência e renovação.
A variabilidade histórica do termo família desafia qualquer conceito geral sobre ela.
Portanto, é preciso que fique claro que, neste trabalho dissertativo, quando se fala em família,
o termo refere-se à família na sua pluralidade, com seus distintos padrões de interações e com
suas histórias e explicações. Vejamos:

[...] como resultado geral têm-se lógicas diferenciadas de articulação das relações
familiares que se expressam tanto no significado diferencial dos vários papéis
familiares: mãe, esposa, filhos, pais, quanto no próprio timing do que se chama ciclo
de vida doméstico, e também dos rumos diferenciados das trajetórias de vidas
individuais de homens e mulheres, crianças e adultos. (BILAC in CARVALHO,
2000, p.35)
35

Percebe-se que a família está mudando. Estão surgindo novos modelos de família a
partir da renovação dos modelos existentes. Porém, há algumas famílias que, por não
conseguirem atender ao modelo nuclear burguês, sentem-se incompetentes, inferiores,
desestruturadas ou incompletas. Essa sensação é causada pelo fato de que o modelo burguês,
ainda hoje, é imposto pelo discurso de algumas instituições religiosas, da mídia e até de
alguns profissionais que definem este modelo de família como o “certo” e que,
irrefletidamente, é perpetuado como um valor.
Na prática clínica, infelizmente, é possível ouvir de alguns membros de famílias que
ainda acreditam que o padrão da família nuclear burguesa é o “correto”, o relato de que eles
são “diferentes”, “menos do que” e “incompetentes”, por não atenderem a este padrão de
família. Outro conceito de família referido, nesta pesquisa, é a família vivida, que Gomes
(1998), resume da seguinte forma

Um grupo de pessoas, vivendo numa estrutura hierarquizada, que convive com a


proposta de uma ligação afetiva duradoura, incluindo uma relação de cuidado entre
os adultos e deles para com as crianças e idosos que aparecem nesse
contexto.(GOMES, 1988 apud CARVALHO, 2000, p.26)

Os milagres econômicos ocorridos durante o século passado, os avanços da ciência e


da tecnologia, a urbanização acelerada, a oferta de emprego, as políticas sociais universais, o
progresso alcançado em todos os planos de vida devido às conquistas sócio-culturais, tudo
isso parecia confirmar que a família era descartável. O indivíduo “promovido” a cidadão
poderia trilhar a sua vida dependendo apenas do trabalho e do Estado, sem precisar das
sociabilidades familiares e comunitárias.
“A proteção e reprodução social transformou-se em missão ‘quase total’ de um
Estado social de direito dos cidadãos”.(CARVALHO, 2000, p.14) O Estado de bem-estar
social parecia bastante forte para criar e executar políticas sociais que garantissem emprego
para todos os cidadãos, promovesse a justa distribuição da riqueza produzida e controlasse os
apelos selvagens do capital.

O Estado e o trabalho como protagonistas do desenvolvimento e de promoção dos


indivíduos em sujeitos de direitos; sujeitos com liberdade e autonomia. O Estado
significou o “grande tutor” na distribuição do bem-estar social e o trabalho o “grande
integrador” e “vetor de inclusão social”. (MARTIN, 1995 apud CARVALHO, 2000,
p.14 )
36

Isto, porém, não era realidade, pelo menos para a maioria da população pobre dos
países do terceiro mundo. Tanto que, no início da década de 1990, percebeu-se que as
promessas não estavam sendo cumpridas. O Estado e o trabalho não eram mais garantias do
bem-estar social. A globalização, a revolução informacional, o aumento do déficit público, a
transformação produtiva, o aumento assustador do desemprego, da pobreza e das
desigualdades sociais, o crescente envelhecimento da população e o conseqüente aumento das
despesas com aposentadoria e saúde pública, obrigaram o Estado a rever a sua política social.
A família retoma o seu lugar de destaque na política de proteção social. Agora, além
de beneficiária, ela é parceira e miniprestadora de serviços de proteção e inclusão social. Não
é uma revalorização nostálgica e conservadora dos modelos tradicionais de família, mas, sim,
a revalorização da sua essência, ou seja, a possibilidade de formação de vínculos relacionais, a
socialização dos novos indivíduos e o território de desenvolvimento do pertencimento.
Porém, a revalorização da família como reprodutora e protetora social não deve
isentar o Estado da responsabilidade de cumprir a sua função que é garantir e assegurar as
condições favoráveis e necessárias à proteção, desenvolvimento e inclusão social de todos os
indivíduos, principalmente daqueles mais vulneráveis à exclusão social. “O potencial
protetivo e relacional aportado pela família, em particular daqueles em situação de pobreza e
exclusão, só é possível de otimização se ela própria recebe atenções básicas”.(CARVALHO,
2000, p.18)
Hoje, há uma crescente preocupação em reconhecer, revalorizar e privilegiar a
família como uma unidade empreendedora, pois é na família que o indivíduo tem a
possibilidade de construir a base de proteção, o território de pertencimento e a rede de
relações mais duradouras e estáveis, equipando-se com o kit de ferramentas necessário a sua
socialização. Entretanto, é bom frisar que estas expectativas são possibilidades e não
garantias.
As principais transformações na reorganização da família ocorreram nas relações de
gênero. A partir da segunda metade do século XX, com a possibilidade do controle da
reprodução humana, se deu um novo impulso nas mudanças das relações internas na família.
As mulheres em condições de competir com os homens passaram a exigir direitos e deveres
iguais, no mercado de trabalho e nas funções domésticas, redefinindo os papéis femininos e
masculinos na sociedade.
Os papéis não são mais predeterminados pela tradição e têm que ser novamente
aprendidos para se adaptarem às novas situações. Homens e mulheres, diante dos ideais
37

igualitários, vêem-se às voltas com questionamentos e preocupações acerca das atribuições


cotidianas dentro da família. (SARTI in CARVALHO, 2000),

Os papéis sexuais e as obrigações entre pais e filhos não estão mais claramente
preestabelecidos. [...] Com isso, a divisão sexual das funções, o exercício da
autoridade e todas as questões dos direitos e deveres na família, antes
predeterminadas, hoje são objeto de constantes negociações, sendo passíveis de serem
revistas à luz destas negociações. (SARTI in CARVALHO, 2000, p.44)

Segundo Satir (1976), o psicologismo e a popularização de princípios da psicanálise


afetaram profundamente os conceitos sobre comportamento, motivação e aprendizagem. Os
pais, confusos e imobilizados, tentando acertar, democratizaram a educação, concedendo
liberdade em demasia aos filhos sem, no entanto, impor os limites necessários. A felicidade
dos filhos passou a ser a preocupação central da família contemporânea: é preciso que os
filhos tenham tudo que os pais não puderam ter e não o que, de fato, os filhos precisam ter.
A realização pessoal e o sucesso profissional dos filhos passaram a constituir um
importante instrumento, através dos quais os pais podem validar, ou não, o seu valor pessoal
diante da sociedade. Para Satir (1976), a atitude dos filhos com relação aos pais ganhou o
poder de reforçar ou destruir a auto-estima dos pais. Nas famílias em que isso ocorre, os pais,
sem terem consciência das conseqüências de suas atitudes, têm dificuldades de exercer a
autoridade e dar os limites necessários e imprescindíveis para uma correta socialização dos
filhos, porque não agüentam a idéia destes os desaprovarem.
Algumas mulheres passaram a trabalhar remuneradamente, saindo de casa e
deixando os filhos com familiares, babás ou em creches. Muitas destas mulheres se sentem
culpadas pelo tempo que não estão com seus filhos, como se fosse possível a elas ou a
qualquer outra pessoa, estarem em dois lugares ao mesmo tempo.
Outras permanecem em casa, lamentando-se, exercendo as funções parentais com
indiferença, desânimo e desinteresse, quando, por exemplo, têm consciência do seu potencial
produtivo, mas, por razões superiores a sua vontade, não estão inseridas no mercado de
trabalho. Enquanto algumas se concentram excessivamente nas tarefas de criação dos filhos,
tentando compensar um sentimento de inutilidade que se torna visível para elas, quando da
saída definitiva dos seus filhos; um fenômeno conhecido como “Síndrome do Ninho Vazio”
O amor romântico e a felicidade pessoal se tornaram populares na cultura ocidental.
À medida que as pessoas se sentem como se não fossem “nada”, maior se torna à ansiedade
no sentido de significarem “tudo” para alguém, na esperança de encontrar um outro(a) que as
38

façam se sentirem felizes. “Os casamentos são mais efêmeros, e uma das grandes causas é a
superficialização na elaboração dos conflitos interpessoais. (BOECHAT, 2007, p.19)

2.2.2 A Terapia Familiar

Quando se fala em terapia familiar imagina-se logo que se trata de um conjunto


coerente de conceitos e métodos, bem como que a história da terapia familiar é uma linha
contínua de desenvolvimento. Apesar de haver princípios unificadores compartilhados pela
grande maioria, ainda não há um consenso. A diversidade, e não a unidade, é o tema central
da história da terapia familiar.
É um desafio descrever as diferenças entre as várias abordagens e escolas da terapia
familiar, sem perder de vista os fios comuns que as unem. Infelizmente, devido à brevidade
deste trabalho, não poderemos compartilhar todos os conceitos e teorias; apenas aqueles
pertinentes ao desenvolvimento da psicoterapia de abordagem integradora.
Segundo Nichols e Schwartz (1998), durante muito tempo os terapeutas resistiram à
idéia de ver os membros da família do paciente para protegerem a privacidade do
relacionamento paciente/terapeuta. Assim, os psicanalistas afastavam a família real do
paciente para revelar a família inconsciente por ele introjetada; os terapeutas da abordagem
centrada na pessoa excluíam a família para proporcionar um olhar incondicional ao paciente;
e os psiquiatras hospitalares evitavam as visitas dos familiares para não perturbarem o
ambiente benigno da família hospitalar substituta.
De acordo com Carter (1995), na década de 1950, iniciaram-se várias pesquisas em
que foram observadas as reações dos familiares ao tratamento de pessoas rotuladas de
esquizofrênicas. Estas pesquisas conduziram a conclusões muito importantes: os outros
membros da família participavam, interferiam ou sabotavam o tratamento individual do
paciente identificado como “doente”, como se a família toda estivesse dependendo da
condição deste membro.
Outras observações interessantes, segundo Prado (1996), foram as seguintes; à
medida que o paciente melhorava, outro membro da família apresentava algum sintoma, como
se fosse preciso que alguém estivesse doente na família; o paciente hospitalizado
freqüentemente piorava quando recebia a visita de membros da família, como se a interação
familiar influenciasse diretamente no seu sintoma e, quando tentavam mudar um membro da
família, estavam, na verdade, mudando o modo de se relacionar da família.
39

Conforme Andolfi (1997), pesquisas posteriores foram feitas no sentido de


verificar se a reação dos familiares seria semelhante, no caso de famílias que tinham um dos
seus membros com patologia diferente da esquizofrenia. O resultado foi positivo, inclusive
com famílias em que um dos seus membros era delinqüente. Estas observações levaram
muitos psiquiatras e pesquisadores a reverem os posicionamentos em relação à família do
paciente e a fazerem novas observações clínicas.
Eles verificaram que, em relação ao membro da família que era visto como a
vítima, havia uma tendência de a família superprotegê-lo e de identificar-se com ele,
negligenciando o fato de que o paciente, inconscientemente, colabora no sentido de
permanecer no papel de vítima, doente ou culpado, como o de que ele é capaz de vitimar
outros membros da família.
De acordo com Souza (1985), a terapia familiar nasceu da convergência de linhas de
pensamentos que foram ao longo do tempo se distanciando progressivamente, provocando
uma diversidade na teoria e prática atual; mas todas possuem como objetivo o bom
funcionamento do grupo como um todo. “A terapia familiar é, na verdade, um ponto de vista
teórico, uma forma de compreender e intervir em problemas familiares” (SOUZA, 1985, p.28)

2.3 A PSICOTERAPIA DE ABORDAGEM INTEGRADORA

Continuando a nossa trajetória, partimos para responder o nosso próximo


questionamento, ou seja, o por que da abordagem integradora. Portanto, estaremos fazendo
uso de descrever primeiro o que é o processo de psicoterapia, de uma forma geral, para num
segundo momento descrever sobre a psicoterapia de abordagem integradora. A palavra terapia
(do grego therapeía) significa tratamento ou cura de doenças. Os psicólogos clínicos utilizam
o termo psicoterapia para diferenciar das outras terapias que podem ser realizadas por
diferentes profissionais da área de saúde

2.3.1 O Processo de Psicoterapia

De acordo com o Art. 1º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia de nº


010/00,

A Psicoterapia é prática do psicólogo por se constituir, técnica e conceitualmente, um


processo científico de compreensão, análise e intervenção que se realiza através da
aplicação sistematizada e controlada de métodos e técnicas psicológicas reconhecidos
40

pela ciência, pela prática e pela ética profissional, promovendo a saúde mental e
propiciando condições para o enfrentamento de conflitos e/ou transtornos psíquicos
de indivíduos ou grupos.

Em pleno século XXI, ainda há um grande desconhecimento e preconceito em


relação ao processo de psicoterapia. Como conseqüência disto, muitos indivíduos vão se
“arrastando” pela vida, carregando seus problemas e as dificuldades em enfrentá-los de uma
forma efetiva, gerando tensão, estresse, ansiedade e angústia que poderiam ser evitados. O
temor de olhar para dentro de si mesmo parece ser maior do que o sofrimento causado por
seus sintomas.
O ser humano, na sua grande maioria, provavelmente não consegue olhar para
dentro de si mesmo! Busca indefinidamente a paz, a plenitude, a auto-realização, a qual
jamais encontrará fora de si. Acredita que se não é uma pessoa realizada o será através da
aquisição do próximo bem ou da realização dos filhos. Alguns filhos, por sua vez, tendem a
negligenciar suas necessidades pessoais para inconscientemente atender as necessidades dos
pais. Porém, não conseguirão porque só a própria pessoa consegue se auto-realizar, no contato
consigo mesma, com a alma, através da consciência do seu processo de crescimento.

Muitos ainda acreditam que a análise psicológica é reservada aos neuróticos, que só
existe em função das neuroses e que tem por finalidade apenas mitigá-las ou eliminá-
las. Sem dúvida, um dos papéis principais de qualquer análise psicológica é dar ou
restituir o equilíbrio às pessoas que sofrem de perturbações psíquicas.[...] O aspecto
evolutivo é menos conhecido e mais difícil de admitir, porque se trata de uma
evolução espiritual. De fato – e voltaremos a este ponto – as descobertas de Jung lhe
permitem servir-se da análise da psique como de um meio de retorno ao espírito. Com
isso, a análise não se dirige mais unicamente a neuróticos, mas também a seres que se
preocupam com a vida interior e que procuram a sua vida espiritual. (WINCKEL,
1985, p. 23-24)

A psicoterapia colabora para que o indivíduo tome consciência de que, assim como
há o desenvolvimento físico, há também um processo natural de desenvolvimento
psicológico, independentemente do controle e da ausência de conhecimento do indivíduo.
Este processo interno é responsável pelo fluxo de energia de vida dentro de cada ser humano,
energia que pode, inconscientemente, está sendo bloqueada ou canalizada de uma forma
inadequada, provocando conflitos internos que são expressados, no corpo ou na psique,
causando inúmeros prejuízos à saúde integral do indivíduo.

O processo terapêutico é como atravessar um túnel. Neste túnel você vai rever muitas
cenas da historia da sua vida de um ângulo completamente novo, fazendo conexões
inusitadas entre os eventos e percebendo a potência do passado para moldar quem
você é hoje. Na travessia deste túnel você vai aprender a reconhecer os seus padrões
41

de comportamento, que levam você a se comportar de modo parecido em situações


diferentes, inclusive repetindo os mesmos erros. Você vai aprender a reconhecer o
"como" do seu comportamento, como você age, como se relaciona, como pensa,
como sente e vai aprender caminhos para poder influenciar e transformar estes
padrões. (SCARPATO, 2008, p.3)

O indivíduo atua no mundo através de padrões de comportamentos que são repetidos


inconscientemente, sem que ele possa evitá-los, a não ser que tome consciência deste
processo. Estes padrões levam a pessoa a repetir os mesmo erros e a se comportar de forma
semelhante em situações diferentes. O trabalho do psicoterapeuta é um trabalho de equipe,
que só pode ser realizado em parceria com o paciente, seja este paciente um indivíduo, um
casal, um grupo, uma família ou uma instituição, pois o psicoterapeuta é especialista no
processo, porém, o especialista na vida do paciente é ele mesmo.

Quando o terapeuta consegue estabelecer um vínculo positivo, empático e confiante


com seu paciente, aí surge o fator realmente decisivo dentre todos para o sucesso de
uma terapia. Este fator é o paciente. A importância da contribuição do cliente é
extraordinária, quando comparada com outros fatores. Sem essa ajuda, nenhuma
mudança se faz em psicoterapia, seja ela de que linha for (BOECHAT, 2007, p.21)

Portanto, o vínculo entre o profissional e o paciente é um dos instrumentos mais


valiosos neste processo. Porém, com o surgimento da cultura da velocidade, parece que a
disponibilidade de tempo por parte do paciente para construir esta relação é cada vez mais
difícil. Com o avanço tecnológico e a globalização, as comunicações se fazem
instantaneamente e tem-se a sensação que as distâncias geográficas foram diminuídas e a
noção de tempo foi alterada, pois tudo acontece de uma forma acelerada. Todos têm pressa!

O terapeuta, hoje, percebe-se sendo cobrado na rapidez da melhora do paciente que,


na maioria das vezes, vem buscar na terapia uma adaptação ao mundo mais do que
uma oportunidade de se descobrir na sua forma mais única como pessoa e capaz de
disponibilizar ao máximo a sua verdadeira essência. (BOECHAT, 2007, p.19)

O tempo de reflexão foi reduzido e, como conseqüência, há uma superficialização na


elaboração dos conflitos, evitando-se aprofundá-los, pois demanda tempo. Na atualidade, os
pacientes que buscam a psicoterapia cobram que seus sintomas, e o sofrimento decorrente
deles, sejam superados em tempo recorde e se preocupam mais com a atualidade das
conseqüências dos problemas que eles causam do que com os desdobramentos futuros que
eles denunciam
42

2.3.2 A Abordagem Integradora

O processo psicoterapêutico, que o clínico/pesquisador deste trabalho vem


desenvolvendo, busca conciliar a urgência de seus pacientes por resultados rápidos com a
conscientização das conseqüências futuras, caso o paciente não tenha a coragem de parar e
olhar para dentro de si mesmo e do seu sistema familiar. Este movimento do paciente exige
que ele invista tempo, dinheiro e, principalmente, disponibilidade emocional, na busca de
compreender o significado dos seus sintomas e da necessidade de adotar medidas necessárias
para a superação efetiva dos seus conflitos.
Esta conciliação é possível através da relação que o psicoterapeuta busca construir
entre os princípios da terapia familiar sistêmica, aplicadas na psicoterapia individual
sistêmica, onde o foco do psicoterapeuta se concentra, segundo Nichols e Schwartz (1998) nas
relações interpsíquicas do paciente e em outras teorias da psicologia, principalmente na
psicologia analítica de C. G. Jung que, de acordo com Fernandes (2004), tem como ponto
principal o reencontro do paciente com seu Self, sua dimensão espiritual, que ocorre através
do processo de individuação, onde o foco do psicoterapeuta se concentra nas relações
intrapsíquicas do paciente.

Jung derivou o termo self do pensamento religioso indiano, mas deu a ele um
significado próprio. Ao falar de Si-mesmo (self), ele referia-se à personalidade total,
tanto o elemento consciente, racional e planejador da personalidade, que ele
denominou ego, como o inconsciente, em que incluía tanto o inconsciente pessoal
como o coletivo, tanto as lembranças esquecidas da experiência passada como as
tendências arquetípicas herdadas que compartilhamos com o restante da raça
humana.[...] (BRYANT, 1996, p. 48-49)

A habilidade que o psicoterapeuta vem desenvolvendo de concentrar o foco, ora no


interpsíquico, ora no intrapsíquico, dependendo da necessidade da demanda dos conflitos do
paciente, vem contribuindo para que o tempo exigido para elaboração destes conflitos seja
considerado reduzido, comparado a outros tipos de abordagens de psicoterapia,
principalmente entre aqueles pacientes que valorizam sua dimensão espiritual. Trabalho
semelhante vem sendo desenvolvido pela Dra. Paula Boechat (2007), médica e analista
junguiana, Especialista em terapia familiar sistêmica e Mestre em psicologia clínica pela
PUC-RJ.
[...] A partir do trabalho em consultório com pacientes individuais, fui percebendo,
cada vez com maior clareza, o quanto o indivíduo precisa ser compreendido dentro do
referencial do lugar que ocupa no sistema familiar. [...] e sentir que a visão junguiana,
com a riqueza dos seus parâmetros simbólicos, podia acrescentar muito ao enfoque
sistêmico. Em função de ter buscado uma dupla formação, em psicologia analítica e
43

também em terapia familiar sistêmica, pude perceber paralelos importantes entre os


dois campos teóricos. (BOECHAT, 2007, p.13)

A psicoterapia de abordagem integradora é o termo utilizado pelo


clínico/pesquisador deste trabalho, na visão do novo paradigma científico que busca superar a
fragmentação e promover a integração do ser humano. Nesta percepção, entende-se o ser
humano como um ser multidimensional, ou seja, um ser constituído não só das dimensões
biológicas, psicológicas, sociais e culturais, mas, também, da dimensão espiritual.

A teoria quântica elimina a categoria da exclusão do pensamento racional e lógico –


“ou-ou” – quando admite que algo pode ser isto e aquilo ao mesmo tempo (onda e
partícula). As coisas podem conter na sua totalidade qualidades aparentemente
contraditórias. E, assim, admite também que, embora superficialmente excludentes,
ambas as premissas são necessárias para que se chegue a uma descrição mais
completa e profunda. Assim, a nova física se aproxima cada vez mais da psicologia e
vice-versa.(CAVALCANTI, 2000, p. 77)

O termo psicoterapia de abordagem integradora foi pensado pelo clínico/pesquisador,


porque além da integração das multidimensões do ser humano, esta prática clínica busca
integrar também teorias psicológicas de abordagens diferentes, pois entende que não são
excludentes, mas sim complementares e que, desta forma, aumentam as possibilidades de
potencializar, maximizar e viabilizar a compreensão do ser humano, na sua totalidade e
complexidade.

Com as importantes mudanças conceituais promovidas pela física quântica, o mundo


deixou de ser o mesmo. Embora se saiba que uma transformação completa da
consciência exige tempo, por meio da física moderna estamos recuperando uma visão
holística da vida, conforme a qual a realidade só pode ser considerada como a união
dos opostos. Existe um princípio de coincidentia oppositorum, coincidência dos
opostos, que mostra que aquilo que parecia ser totalmente separado e irreconciliável,
na realidade, está unido. Os opostos são aspectos complementares de uma mesma e
única realidade. (CAVALCANTI, 2000, p.83)

Quando o paciente busca atendimento psicoterapêutico é porque percebe sintomas


que o faz sofrer de uma forma que não é mais aceitável para ele. Logo, a psicoterapia é um
processo de crescimento, de mudanças e, para tanto, tem que ter disponibilidade do paciente,
prontidão para efetivamente promover as mudanças que se fizerem necessárias e,
principalmente, a consciência da responsabilidade deste processo que não é indolor.
De início, é comum os pacientes acreditarem que os seus problemas e dificuldades
são da responsabilidade de outras pessoas significativas na sua vida, que eles são as vítimas,
principalmente dos pais ou do(a) companheiro(a), caso tenham um relacionamento amoroso
estável.
44

O autor ao pensar em sistemas e no trabalho de psicoterapia, vê pacientes assumindo


a posição de vítimas, que significa ver a si mesmo como desamparado, sofrido,
magoado, impotente, temeroso, honesto e normalmente reativo a alguma outra pessoa,
geralmente vista como o matador. Além disto, as vítimas mostram-se normalmente
sensíveis aos outros, colocam as necessidades dos outros antes das suas e precisam
mais da aprovação dos outros do que são capazes de dar a si mesmas a aprovação. O
matador geralmente é tão vulnerável e inseguro quanto à vítima, ou até mais, mas a
sua vulnerabilidade e insegurança são ocultas ou expressas em comportamentos
considerados pelas vítimas como frios, agressivos, ásperos, esnobes, oniscientes,
perfeitos e jamais admitindo a dor, inexpressivos, calculistas ou egoístas. (FLORES,
2005, p.2)

Ao entenderem que nada acontece à pessoa sem a permissão dela, seja esta
permissão consciente ou inconsciente, no primeiro momento, causa uma grande decepção
consigo mesma por terem sido permissivas, porém, depois se percebem que, se não mais se
permitissem, tudo ficaria bem porque, sendo capazes de dar limites, com certeza, passariam
de uma posição passiva, para uma ativa, e os conflitos poderiam ser elaborados de uma forma
adequada e funcional. Flores (2005) acrescenta que,

O terapeuta precisa descobrir o quão importante é o matador para a vítima. Um dos


objetivos do tratamento com as vítimas é proporcionar-lhes a experiência de sair
dessa posição de sujeição que experenciaram durante a maior parte de suas vidas. A
tarefa de reenquadramento deve tornar a vítima relativamente ativa em vez de reativa
em relação ao matador, propõe reduzir o tempo de reação e dar respostas para
neutralizá-los. (FLORES, 2005, p.2)

Entretanto, não é tão fácil como parece, pois ao serem permissivas, recebem em
troca, “ganhos secundários” que, às vezes, não são nada fáceis de se abrir mão, pois já estão
incorporados na percepção de si mesmos, no seu padrão de funcionamento e de
relacionamento interpessoal, principalmente familiar e religioso.
Porém, se o paciente se apega aos “ganhos secundários”, as mudanças necessárias
não serão efetivadas e, consequentemente, não haverá processo psicoterapeutico, pois o
paciente não estará mobilizado ou motivado a “pagar o preço” emocional, o qual será
simbolicamente transferido para o investimento financeiro, se tornando um dos motivos mais
freqüentemente alegados pelos pacientes para abandonarem a psicoterapia, ou seja,
inconscientemente, fazem resistência ao processo.
A psicoterapia de abordagem integradora é um processo psicoterapêutico que atende
o paciente individualmente, se utilizando das contribuições da medicina psicossomática, dos
princípios da terapia familiar sistêmica, da psicologia junguiana e do conceito de resistência à
psicoterapia.
45

2.4 CONTRIBUIÇÕES DA TERAPIA FAMILIAR SISTÊMICA

2.4.1 O “Paciente Identificado” do Sistema Familiar Disfuncional

Segundo Vainer (1999), a visão sistêmica da terapia familiar embasou-se na Teoria


Geral dos Sistemas, de Von Bertalanffy, por esta englobar e articular diversos aspectos do
biológico, do econômico e do mecânico, enfatizando os pontos comuns entre eles; e estes, por
sua vez, podem ser aplicados a vários fenômenos, em particular, a dinâmica familiar.
De acordo com Souza (1985), a família é um sistema vivo composta por membros
que se inter-relacionam de forma dinâmica, onde cada um exerce efeito sobre os demais e
vice-versa; essa é unida por múltiplos laços capazes de manter os membros moralmente,
materialmente e emocionalmente ligados por gerações. Hall e Fagen (VAINER, 1999).
definem um sistema como um conjunto de objetos e sua relação entre estes e seus atributos.
Levando para a questão das relações interpessoais, esses objetos seriam as pessoas se
relacionando umas com as outras.
O ser humano, para Souza (1985), também é considerado um sistema vivo,
denominado subsistema, por estar inserido num sistema, a família, e esta estar num supra-
sistema, a comunidade. Apesar de estarem contidos uns dentro dos outros, os sistemas não se
misturam, possuem sua identidade individual preservada; e para que isso ocorra é preciso que
existam as fronteiras. E estas apresentam funções que são: “delimitar o sistema e suas partes;
proteger o interior do sistema da ação desordenada do ambiente; e estabelecer trocas entre o
sistema e o meio ambiente” (SOUZA, 1985, p.40)
São os aspectos interacionais, para Vainer (1999), que mais interessam a terapia
familiar por permitirem uma compreensão das relações existentes na família e nos casais.
Nesse contexto, uma organização sistêmica não é a soma das partes que a compõem, mas sim
um conjunto integrado; onde as pessoas interagem uma com as outras, influenciado-as e
sendo influenciadas.
Portanto, o autor mostra como as propriedades macroscópicas da Teoria Geral do
Sistema que são globalidade, não-somatividade, retroalimentação, eqüifinalidade e
homeostase ajudam a entender a dinâmica familiar na visão sistêmica. A globalidade defende
que o todo influencia as partes e estas o influenciam, ou seja, numa família, a modificação de
um dos membros afetaria os demais, e esse sofreria os efeitos advindos dessa transformação
no todo.
46

A não-somatividade indica que o todo não é meramente a soma das partes, da


mesma forma que, na família, os membros, individualmente, não a constituem, pois existem
características que transcendem as finalidades dos membros. A retroalimentação diz respeito à
ação circular do sistema, ou seja, as transformações ocorridas em um membro provocam uma
cadeia seqüencial de ações nos demais.
A eqüifinalidade menciona a constância existente nos sistemas fechados
independente das condições iniciais. Igualmente, a família pode manter o estado de constância
através de novas interações, apoiando-se na situação anterior, independente das mudanças
iniciais. E a homeostase seria, por assim dizer, uma retroalimentação negativa, isto é, opõem-
se às transformações, permanecendo em seu estado inalterado para amenizar as tensões
infligidas pelo meio e por seus membros individuais.

As famílias (casais) são particularmente refratárias à mudança, afastando via


homeostase do sistema qualquer possibilidade de transformação. Nas famílias ou
casais que superam este estado, a retroalimentação positiva possibilita um novo
equilíbrio homeostático em um nível mais eficiente de relação. (VAINER, 1999, p.
64)

Segundo Prado (1996), à medida que foram atendendo as famílias em conjunto,


perceberam que existiam aspectos próprios à vida familiar que geravam sintomas. Por
exemplo, os casais agem de uma forma com os filhos saudáveis e de outra forma bem
diferente com os filhos sintomáticos. Outro aspecto é que o relacionamento conjugal constitui
o eixo central, a partir do qual todas as outras relações familiares são formadas. Portanto, um
relacionamento conjugal tenso tende a produzir funções parentais disfuncionais.
De acordo com Nichols (1998), na psicologia sistêmica, a relação causa/efeito não é
linear, mas, sim, circular, ou seja, na relação linear, por exemplo, a família fica estressada e
ansiosa porque um dos seus membros apresenta um sintoma, porém, na relação circular o
psicoterapeuta se pergunta: a família está estressada e ansiosa porque um dos seus membros
apresenta um sintoma ou um dos membros da família apresenta um sintoma porque a família
está estressada e ansiosa?

Claude Bernard (NICHOLS, 1998), fisiologista francês do século XIX, ao descrever


o movimento interno de auto-regulação do corpo humano para manter o equilíbrio em
resposta às mudanças externas, criou o termo homeostase. Em 1954, Don Jackson lançou o
termo “homeostase familiar” para explicar o movimento de auto-regulação da família em
manter o equilíbrio nas suas relações e resistir às mudanças que parecem ameaçadoras. Os
membros da família contribuem para manter este equilíbrio de modo aberto ou velado.
47

Os padrões de comunicação familiar recorrentes, circulares e previsíveis revelam


este equilíbrio. Os terapeutas da família assumem o conceito funcionalista de que o paciente
identificado é um “bode expiatório”, uma vítima, que é constrangido a assumir este papel para
diminuir a tensão que existe na família e assim evitar que os outros membros da família
tenham que lidar um com o outro.
Quando um membro da família abriga uma tensão que termina se transformando
num sintoma, todos os membros da família estão, de algum modo, sentindo esta tensão. O
membro que apresenta o sintoma é, normalmente, referido pelo terapeuta como o “paciente
identificado”, para evitar se aliar à família quando o chama de “o doente”, “o culpado”, “o
diferente”, “o anormal”.
O paciente identificado é o membro da família emocionalmente mais vulnerável às
funções paternas disfuncionais. Seu sintoma seria um pedido de socorro com relação à tensão
existente entre os seus pais e o conseqüente desequilíbrio familiar resultante. É uma
mensagem codificada que tenta denunciar que ele é capaz de bloquear o seu próprio
desenvolvimento saudável, no esforço de aliviar e absorver a tensão existente no seu sistema
familiar.
Nichols (1998) ressalta que antes do surgimento da terapia familiar, o modelo
adotado para compreender o indivíduo e seus problemas era o monádico, ou seja, o indivíduo
era encarado como uma unidade patológica, pois o problema estava localizado na
personalidade. Os psiquiatras sociais e os teóricos das relações objetais inauguraram o modelo
diático, em que a patologia não estava localizada dentro do indivíduo, mas, sim, nas relações
objetais.
Satir (1996) relata que os terapeutas familiares, através de observações clínicas,
perceberam que a relação da díade também reflete a influência de terceiros, surgindo, então, o
modelo triádico, por exemplo: mãe-pai-filho. Quando uma díade familiar fica estressada vai
triangular uma terceira pessoa, para diluir o estresse. Essa pessoa assume o papel de vítima
para desviar a atenção e se tornar o objeto de preocupação ou de crítica. Os sintomas que essa
terceira pessoa desenvolve são os mecanismos homeostáticos que vão ajudar o sistema a
evitar as mudanças que possam parecer ameaçadoras.

Freqüentemente o filho torna-se um “bode expiatório”. Suas dificuldades são


ampliadas na principal fonte de dissidência entre os pais, e ele passa a se sentir
responsável por ela. Às vezes, o filho cai nas atribuições e obrigações, criando mais
infelicidade para mascarar o atrito entre os pais. (LIDZ, 1963, p.57 apud NICHOLS,
1998, p. 98)
48

2.4.2 A Hierarquia, as Fronteiras e o Ciclo de Vida da Família

Conforme Feres-Carneiro (1996), a terapia familiar sistêmica tomou emprestada da


biologia celular as metáforas de subsistemas e fronteiras. Nestas metáforas, a família é vista
como um organismo vivo, um sistema aberto, composto por subsistemas que são combinações
de um ou mais membros diferenciados da família. Os subsistemas são envolvidos por
fronteiras semipermeáveis, que, na verdade, são um conjunto de regras que governa os
membros que compõem os subsistemas e os orienta no modo como devem interagir com
quem está fora do subsistema.
A hierarquia da família é fundamental para seu bem-estar; por isso, as fronteiras que
cercam a liderança da família são de particular importância. É importante que aqueles que
lideram a família, os pais ou outros responsáveis, sejam capazes de exercerem juntos esta
função. Quando isto não ocorre, as crianças são motivadas a assumirem inadequadamente esta
função, criando hierarquias incongruentes. A terapia familiar estimula os pais a serem
disciplinadores eficientes, usando a autoridade da hierarquia.
Virgínia Satir (1976), uma das pioneiras da psicologia familiar, enfocou o problema
da hierarquia familiar de outro ângulo: os pais não devem ser apenas firmes com os filhos;
devem, também, ser afetivos e amorosos, entre eles e com os filhos. Ela sofreu influências do
Movimento Humanista de Abraham Maslov e Carl Rogers, que tem uma visão positiva do
homem. Para ela, as pessoas são motivadas pela busca da auto-estima, por isso, interessava-se
em promover a auto-estima de cada membro da família, incentivando-os a expressarem seus
verdadeiros sentimentos, sem medo de serem rejeitados.

O pai não fala abertamente sobre o seu amor, porque tem medo de ser rejeitado, o que
seria um golpe na sua auto-estima. Entretanto, se o pai pudesse ser honesto, sua filha
teria uma oportunidade de expressar seus sentimentos confusos sobre crescer e se
afastar dele, e ambos se sentiriam melhor consigo mesmo por terem se dirigido um ao
outro... a comunicação honesta gera auto-estima elevada, que encoraja mais
honestidade e assim por diante. (SATIR, 1988 apud NICHOLS, 1998, p. 99)

A família no seu processo de desenvolvimento passa por vários estágios


transacionais, em que cada etapa do ciclo de vida exige um grupo de papéis diferentes para
cada membro da família. Há uma diversidade entre os teóricos no que se refere ao número de
estágios transacionais que a família perpassa durante o seu ciclo de vida.
Segundo Nichols (1998), a análise mais aceita é a do sociólogo Durvall (1977), que
trabalhou durante muitos anos para definir o desenvolvimento familiar funcional em oito
49

estágios: o casamento, o nascimento do primeiro filho, a saída para escola, a adolescência, os


filhos adultos, a saída dos filhos do lar, a aposentadoria e a morte. “Carter e McGoldric (1980)
enriqueceram esta estrutura acrescentando um ponto de vista multigeracional, considerando os
estágios do divórcio e do re-casamento”. (NICHOLS, 1998, p.102)
Nichols (1998) acrescenta que Combrink-Graham (1985) enfatizou as oscilações no
desenvolvimento familiar entre períodos centrípetos – o nascimento dos filhos ou enfermidade
de um dos membros, que requerem uma aproximação e primazia dos relacionamentos – e
períodos centrífugos, tais como a iniciação escolar ou um novo emprego, que exigem um foco
na individualidade.
Se um dos pais não assume mais a função paterna ou materna (por morte ou
separação, por exemplo), outra pessoa pode assumir esta função, porém, jamais o substituirá
em seus aspectos emocionais. Mais do que os papéis e funções, o que é mais valioso no
sistema familiar são os relacionamentos, pois são insubstituíveis.
Carter (1995) esclarece que Durvall (1977) focalizou a educação dos filhos como o
elemento organizador do sistema familiar. O sistema familiar tem características basicamente
distintas de outros sistemas. Diferentemente dos outros, a família tem limitações, pois recebe
novos membros apenas pelo nascimento, adoção, casamento ou re-casamento, e os membros
só podem ir embora através da morte (às vezes, ainda permanecem através dos mitos e
segredos familiares). Em outros sistemas, os membros podem pedir demissão ou serem
afastados se forem considerados disfuncionais.
“Haley via os sintomas como o resultado de uma família se tornar paralisada em
uma transição entre os estágios do ciclo de vida, porque a família foi incapaz ou teve medo de
realizar a transição.” (NICHOLS, 1998, p.102)
Carter (1995) considera o fluxo de ansiedade em um sistema familiar como sendo
tanto “horizontal” como “vertical”. O fluxo horizontal em um sistema seria a ansiedade
produzida pelo estresse na família, tanto o estresse já esperado devido às mudanças inerentes
aos processos de transições do ciclo de vida familiar, quanto os imprevisíveis, que podem
romper o processo de ciclo de vida da família, tais como: os golpes de um destino ultrajante,
uma morte prematura, o nascimento de uma criança deficiente, acidentes, doença crônica,
guerra etc.
O fluxo vertical em um sistema seria o padrão de interações (relacionamentos e
funcionamento) familiares que são transmitidos de uma geração para outra, principalmente
através do processo de triangulação emocional. Os padrões de interações incluem atitudes,
valores, crenças, mitos, expectativas, rótulos, segredos etc com os quais nós crescemos.
50

Carter (1995) observa que o movimento do sistema familiar intergeracional abrange


três ou quatro gerações, através do tempo. O relacionamento entre os membros do sistema
passa por estágios na proporção que a pessoa se desenvolve dentro do ciclo de vida, assim
como acontece com o relacionamento conjugal e do progenitor-filho. Hill enfatizou três
aspectos geracionais, descrevendo os pais como construindo uma “ponte geracional” entre
seus pais e os seus filhos.
O grau de ansiedade, gerado pelo estresse nos pontos de convergência dos fluxos
vertical e horizontal, faz com que freqüentemente nos pontos de transição do ciclo de vida da
família surjam rompimentos neste ciclo, produzindo disfunção no sistema e gerando sintomas.
Torna-se imperativo, conseqüentemente, avaliar não apenas as dimensões do estresse do ciclo
de vida atual, como, também, suas conexões com temas, mitos, crenças, triângulos e rótulos
familiares que acompanham a família no tempo histórico.
De acordo com Carter (1995), os problemas de uma família se desenvolvem durante
muitas gerações, por isso a evolução de um sistema familiar, durante as gerações, pode
explicar muito dos atuais vínculos circulares. Quando a história da evolução da família é
analisada numa perspectiva longitudinal, através do genograma, detectam-se padrões
multigeracionais de crises e traumas ocorridos durante várias gerações, tornando-se
compreensível a sua condição atual e reduzindo a responsabilidade e a culpa que a família
sente.
A vida significa uma contínua transformação dos relacionamentos familiares. Se não
houver flexibilidade nos padrões de interações, o sistema familiar pode tender à deterioração,
à desorganização, tornando-se um sistema disfuncional. Parte da riqueza do sistema familiar
está nas muitas maneiras como os membros da família interagem uns com os outros, dentro da
“espiral geracional”, numa mútua interdependência, conforme as gerações se movem através
da vida.

2.4.3 O Conceito de Diferenciação do Self

Murray Bowen (NICHOLS, 1998) desenvolveu uma versão da Teoria dos Sistemas,
influenciada pelas ciências biológicas, sofrendo também influências da teoria evolucionista de
Darwin e da teoria psicanalítica de Freud. No início das suas observações ficou impressionado
com a fusão emocional, ou seja, a reatividade emocional entre os pacientes esquizofrênicos e
suas mães. Depois, constatou que essa reatividade emocional era comum na maior parte das
51

famílias e passou a usar a expressão “Massa Indiferenciada do Ego Familiar”, sugerindo que a
família parecia uma célula indiferenciada.

O conceito da diferenciação foi escolhido porque tem um significado específico nas


ciências biológicas. Quando falamos da ” diferenciação do Self ”, queremos indicar
um processo semelhante à diferenciação das células uma da outra. O mesmo se aplica
ao termo fusão. (BOWEN, 1978, p.354 apud NICHOLS, 1998, p. 100)

Descobriu que o emocional, nestas famílias, era tão forte que oprimia o intelectual, a
ponto deles reagirem automaticamente e impulsivamente. Para ele, o objetivo da terapia
familiar era ajudar os membros-chave da família a atingirem um nível alto de diferenciação
do Self e assim poderem ajudar os outros membros a diferenciar-se também. O processo de
diferenciação do Self significa o controle da razão sobre a emoção.
O conceito de triangulação é fundamental na teoria de Bowen (NICHOLS, 1998).
Quando as relações conjugais geram ansiedade, há uma tendência natural para a triangulação,
uma vez que os problemas dos filhos estão vinculados à relação conjugal dos pais. Ele
acreditava que a função do sintoma era diminuir o estresse e a ansiedade dentro da família.

Ou seja, quando um relacionamento entre duas pessoas, particularmente em que essas


duas pessoas não são extremamente diferenciadas, experimenta estresse, uma terceira
pessoa estará envolvida. Os dois podem ”se esticar” e puxar a outra pessoa para
dentro, as emoções podem “inundar” a terceira pessoa, ou a terceira pessoa pode estar
emocionalmente programada para iniciar o envolvimento. Com o envolvimento da
terceira pessoa, o nível de ansiedade diminui. (BOWEN, 1978 apud NICHOLS, 1998,
p. 100)

Para Bowen (NICHOLS, 1998), o nível de diferenciação do Self é passado de


geração em geração, seguindo um padrão genético. Através do processo que ele chamou de
transmissão multigeracional, os filhos herdam o nível de diferenciação do Self de seus pais.
“Poderíamos dizer que esses aspectos de nossa vida são como a mão que nos maneja: eles são
os dados. O que fazemos com eles é problema nosso”. (BOWEN, 1978 apud NICHOLS,
1998, p. 100) Para ele, 90% da população não são bem diferenciadas.
O indivíduo nasceria com uma predisposição para diferenciar-se ou não, dependendo
do nível de diferenciação dos seus pais, porém, apesar da força gravitacional que predispõe os
filhos de pais indiferenciados a não se diferenciar, o ser humano tem a capacidade de se
libertar desta predisposição e potencializar a sua diferenciação e o conseqüente
desenvolvimento saudável.
52

2.4.4 Os Mitos Familiares

Os sistemas familiares têm seus mitos e, como os mitos são pedagógicos, eles
normalmente definem os relacionamentos familiares, ou seja, o que cada membro da família
pode ou deve fazer, o que é permitido e o que não é, o lugar que se vai ocupar na família e a
função dentro do sistema.

Mito, do grego mythos, significa etimologicamente palavra; é o conteúdo da palavra,


conforme especifica Brandão (comunicação pessoal). Eiguer (1984, 1987) comenta
que o mito traz o que é essencial para o ser humano, suas emoções, suas ligações às
origens ancestrais, suas opções de vida e considera que por isto, um estudo do mito
familiar deveria evitar ao mesmo tempo as incertezas de definição e a extensão
abusiva do conceito. (PRADO, 1999, p. 34)

O psicoterapeuta percebe o conteúdo mítico do paciente através do sintoma que ele


apresenta como queixa principal, nos seus sentimentos, nas dificuldades, no seu padrão de
funcionamento, nas vergonhas, nos medos, nas interdições que o paciente coloca. Para
confirmar este conteúdo, é necessário analisar, no mínimo, três gerações do sistema familiar
deste paciente, uma vez que os mitos se organizam e são passados de geração em geração.

O mito familiar apresenta duas características interessantes: seu autor é desconhecido


e não é possível precisar-se sua origem no tempo. O mito expressa uma representação
coletiva do mundo e da realidade humana, passada através de gerações sucessivas; na
medida em que procura explicar a complexidade do real, explicar o mundo e o
homem, o mito se apresenta aparentemente ilógico e irracional, prestando-se a
inúmeras interpretações. (PRADO, 1999, p. 39)

Os mitos familiares têm uma função pedagógica, pois ensinam como os membros da
família deve se comportar dentro e fora do seu sistema familiar. Segundo Pitta (2005), o mito
só é mito quando as pessoas acreditam que ele é verdadeiro, caso contrário, ele é um conto.
“[...] O mito, enquanto produto de uma coletividade, apresenta-se funcional sobretudo para
esta coletividade, não o sendo necessariamente para tal ou tal indivíduo, embora, na defesa do
grupo, ele tenda a se impor ao indivíduo e submetê-lo. (PRADO, 1999, p. 49)
A organização do sistema familiar está apoiada nas suas leis, regras e estratégias
que, por sua vez, estão ligadas aos valores familiares. As Leis são consideradas verdades
absolutas para o sistema familiar, e são inconscientes, imutáveis, irracionais e inflexíveis.
Porém, as regras são semiconscientes, mais ou menos mutáveis, flexíveis e lógicas, e
determinam o que tem que ser e o que não pode ou não deve ser, enquanto que as estratégias
53

são mais conscientes, racionais e flexíveis e determinam o que podem acontecer ou não
daquela forma.

Sem suas variantes o mito se enrijece e se fixa em uma forma imutável. Este mito
“canônico”, da perspectiva familiar, corresponde ao mito familiar patógeno, chamado
por Vilhena(1986) de “pseudo-mito” porque implica na impossibilidade de fantasiar e
na perda de simbolização das fantasias primitivas, bem como da possibilidade de
solucionar as contradições e as antinomias no que diz respeito às vivências
individuais, aos ideais e às dificuldades familiares. (PRADO, 1999, p.39)

Quando o sistema familiar é funcional, nas mudanças dos estágios do ciclo de vida
da família, os mitos familiares prevêem a flexibilização das regras e estratégias para que os
padrões de relacionamentos familiares se modifiquem e se adaptem ao novo estágio do ciclo
de vida da família. Entretanto, quando o sistema familiar é disfuncional, não permite as
flexibilizações necessárias, tornando rígidos os padrões de interações familiares, impedindo,
desta forma, que a família tenha um desenvolvimento saudável ao longo do seu ciclo de vida,
o que gera estresse e tensão insuportáveis na família.

Conseqüentemente, um dos membros da família, aquele de maior reatividade


emocional, que tem uma baixa auto-estima e um sentimento de culpa imaginário, é
constrangido, impulsionado a adotar, inconscientemente, um comportamento disfuncional, ou
seja, “fazer” um sintoma, para chamar a atenção sobre si e, assim, paradoxalmente, aliviar a
tensão, a ansiedade e a angústia do seu sistema familiar, tornando-se, desta forma, o paciente
identificado do seu sistema familiar disfuncional.

2.5 CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA JUNGUIANA

2.5.1 O Inconsciente Pessoal e o Inconsciente Coletivo

Jung foi um gênio! Um homem e um cientista a frente de seu tempo! Sua teoria
psicológica, apesar de ter sido desenvolvida nas primeiras seis décadas do século XX, ela é
muito atual. Foi um autor prolixo, portanto, de difícil compreensão, o que gerou diversos mal-
entendidos e severas críticas desaprovadoras dos seus opositores que, segundo Jung (JACOBI,
1991), com raras exceções, davam-se ao trabalho de consultar atentamente o que ele escrevia.
Como o clínico/pesquisador deste trabalho científico é um neófito da psicologia
junguiana para não correr o risco apontado pelo próprio Jung, faz referências bibliográficas de
autores junguianos, contemporâneos a ele, e pós junguianos, quando considera que as
54

colocações destes autores são mais objetivas, compreensivas e esclarecedoras do que as do


próprio Jung, principalmente por ser um estudo para aprofundamento posterior.
Segundo Jacobi (1991), Jung se ocupou do estudo e da pesquisa empírica da psique
humana através da Psicologia experimental do consciente. Graças ao resultado dos seus
trabalhos com o processo associativo de palavras, conseguiu comprovar, empiricamente, a
existência do inconsciente, bem como reconhecer o importante papel dos complexos na vida
do consciente e a expressiva autonomia que estes complexos desfrutam em relação aos outros
conteúdos, que estão sujeitos ao controle da vontade consciente.

[...] É que, pelo processo associativo (cuja explicação detalhada não cabe no presente
trabalho), foi possível demonstrar que as velocidades e as qualidades de reação do
processo associativo, provocado em diversos indivíduos-cobaias por meio de uma
“palavra-estímulo”, escolhida segundo determinado princípio, são individualmente
condicionadas. Uma duração mais prolongada da reação, na primeira exposição ao
estímulo, e as reações falhas (lapsos de memória e a sua falsificação na repetição da
experiência) das respostas produzidas em associação espontânea não são, por natureza,
acidentais, mas determinadas, com incrível precisão, pela influência perturbadora de
conteúdos inconscientes e sensíveis aos complexos. [... ] (JACOBI, 1991, p.17)

De acordo com Jung (JACOBI, 1991), os complexos ou se impõem ao consciente,


superando a sua tentativa de controle, ou se subtraem obstinadamente, quando o consciente
tenta forçá-los a aparecerem. Os complexos são os responsáveis por aquelas garfes das quais as
pessoas se envergonham tanto e das motivações dos erros de memória e de juízo, pois além
dos complexos serem obsessivos, são também possessivos. Hoje é comum as pessoas saberem
que têm complexos, mas que os complexos os têm é menos conhecido, porém, isto é o ponto
principal, para Jung, pois coloca em dúvida a orgulhosa supremacia da vontade.

A consciência é um [fator], e existe um outro, tão importante quanto ela, o


inconsciente que pode interferir na consciência na hora que quiser. É claro que eu disse
a mim mesmo: “Mas isso é muito desconfortável, porque eu acho que sou o único
mestre em minha casa”. Contudo, devo admitir que existe um outro alguém nessa casa
que pode fazer umas travessuras. (JUNG apud EDINGER, 2004, p.18)

Este termo “complexo” já tinha sido utilizado anteriormente por Eugen Bleuler
(1857-1939) para definir alguns diagnósticos, porém, a definição conceitual tal como se
entende hoje, ou seja, como “agrupamento de idéias de acento emocional no inconsciente” foi
desenvolvida por Jung. De acordo com Jacobi (1991), Jung confere aos complexos uma
função importante, central e predominante na sua psicologia analítica, tanto que, para ele, os
complexos são a principal via de acesso aos conteúdos inconscientes.
55

Os complexos são estruturas de armazenamento de informações no psiquismo, com


acento emocional no inconsciente, que têm uma tonalidade afetiva e são autônomos. Segundo
Jung (JACOBI, 1991), sua autonomia se deve à sua natureza emocional, uma vez que as suas
manifestações estão baseadas num grupo de associações reunidas em torno de uma emoção
central que, na maioria das vezes, se revelou ser uma aquisição pessoal.

Cada complexo é constituído, segundo definição de Jung, primeiro de um “elemento


nuclear” ou “portador de significado”; estando fora do alcance da vontade consciente,
ele é inconsciente e não-dirigível; em segundo lugar, o complexo é constituído de uma
série de associações ligadas ao primeiro e oriundas, em parte, da disposição original da
pessoa, e, em parte, das vivências ambientalmente condicionadas do indivíduo.
(JACOBI, 1991, p.19)

As pesquisas de Jung (JACOBI, 1991) demonstraram que os complexos não são


ilimitadamente variáveis, mas têm tipos característicos, sendo alguns bem conhecidos
popularmente, tais como, o complexo de Édipo, o materno, o paterno, o de inferioridade, o de
superioridade, o de medo, o de autoridade, entre outros tipos, o que indica que eles estão
baseados em fundamentos típicos, que corresponderiam a prontidões emocionais,
respectivamente aos instintos.

Um exemplo descrito por Jung é o complexo materno. A pessoa dominada por um


forte complexo materno é extremamente sensível a tudo que a mãe diz ou sente, e a
imagem dela estará para sempre gravada em sua mente [...] Dará preferência às
histórias, aos filmes e aos acontecimentos nos quais as mães desempenham papel de
relevo. Ficará na expectativa do Dia das Mães, do aniversário da mãe e de ocasiões que
lhe dêem um pretexto para homenageá-la.[...] Prefere a companhia de mulheres mais
velhas à de mulheres da própria idade. Quando criança, é um “filhinho da mamãe”;
quando adulto, continua “amarrado à saia da mãe”. (HALL E NORDBY, 1989, p. 29-
30)

O complexo possui uma grande carga de energia psíquica que é inerente a ele.
Porém, não basta ter consciência da existência de um determinado complexo para que haja a
sua “descarga” e que esta energia seja redistribuída para outra corrente, isto é, para que ele seja
emocionalmente digerido. É preciso que o paciente confronte o complexo, que tome
conhecimento da fonte produtora da sua atuação complexada, do seu “núcleo elementar” ou
“portador de significado". Do ponto de vista funcional, esta energia redistribuída, que flui e
ocupa novos conteúdos, produz uma nova situação mais útil ao equilíbrio psicológico.
Até aqui as noções de Jung e Freud sobre os complexos, e o fato deles estarem no
inconsciente, se assemelhavam. Porém, Jung (JACOBI, 1991) amplia o conceito de
inconsciente, acrescentando o inconsciente coletivo. Jung fez uma distinção bem clara entre o
56

inconsciente pessoal (que coincide com a noção de Freud de inconsciente, ou seja, o conteúdo
é composto exclusivamente de material de vivências pessoais reprimidas) e o inconsciente
coletivo (onde é constituído da possibilidade herdada de vivências e comportamentos, comuns
a todos os seres humanos.

[...] o inconsciente contém, não só componentes de ordem pessoal, mas também


impessoal, coletiva, sob a forma de categorias herdadas ou arquétipos. Já propus
antes a hipótese de que o inconsciente, em seus níveis mais profundos, possui
conteúdos coletivos em estado relativamente ativo: por isso o designei inconsciente
coletivo. (JUNG, 1982, p. 13)

Jung (JACOBI, 1991) discorda de Freud e diverge fundamentalmente dele quanto à


natureza dos complexos, ampliando seu significado e sua função. Retira o caráter
exclusivamente negativo dado por Freud, quando afirma que os complexos são produtos dos
mecanismos de repressão psíquica. Freud entendia os complexos sempre como algo doentio.
Para Jung, todas as pessoas têm complexos e, em si, eles não são doentios, pois fazem parte
dos fenômenos normais da vida psíquica. Tornam-se doentios depois, quando a pessoa não
admite que os têm. Jung os via a partir do sadio.

Jung até os considerou como “focos e nós da vida psíquica, sem os quais ninguém
gostaria de passar e que não devem faltar, senão a atividade psíquica chegaria a uma
parada fatal.” Os complexos formam, na estrutura psíquica, os “pontos nevrálgicos”
em que se assentam o não digerido, o inaceitável e o conflitante, mas “cujo caráter
doloroso não comprova a existência de alguma perturbação doentia”. [...] “Sofrer não é
uma doença, mas o pólo oposto normal da felicidade. Um complexo só se torna
doentio depois, quando achamos que não o temos. (JACOBI, 1991, p 28)

Jung amplia a visão de Freud sobre os complexos, pois percebe que eles são
bipolares, isto é, não possuem apenas um aspecto negativo, mas também um positivo. Pois,
para ele, um mal pode se transformar num bem, ou seja, quando algo vai mal, talvez seja um
sinal codificado de que alguma coisa precisa ser feita para que o equilíbrio e a harmonia sejam
restaurados; caso este alerta não fosse dado, a pessoa não saberia que precisava tomar
providências para restaurar a sua saúde.

“É patente que os complexos são tomados como uma espécie de inferioridade em


geral, ao que tenho de observar, de antemão, que complexo ou o fato de ter complexo
não significa, assim, sem mais nem menos, uma inferioridade. Quer dizer apenas que
existe algo incompatível, não assimilado, conflitante ou talvez algum impedimento,
mas também um estímulo para esforços maiores e, dessa forma, talvez até uma nova
oportunidade para o sucesso” (JUNG apud JACOBI, 1991, p. 29)
57

Jung observou que há complexos que são reprimidos, mas há também outros que
nunca chegaram à consciência, portanto, não poderiam ter sido reprimidos. Há também
complexos que, dependendo da sua natureza e do “eu” do seu portador, são criados dentro de
uma situação atual, como, por exemplo, nas crises da meia idade. Para ele, há dois tipos de
complexos, os do inconsciente pessoal, que tiveram acesso à consciência e por ela foram
reprimidos, e os complexos do inconsciente coletivo que, para o indivíduo, parece que eles
vêm de fora.
Jacobi (1991) alerta para o fato de que para compreender corretamente o conceito
junguiano de complexos é fundamental lembrar-se que a teoria dos complexos de Jung rompeu
com as tradicionais opiniões, dando lugar a uma maneira nova de encarar os complexos, que
deve está sempre associada a sua descoberta dos arquétipos, ou seja, dos “dominantes do
inconsciente coletivo”.

[...] “Os conteúdos do inconsciente pessoal são percebidos como fazendo parte da
própria psique, mas os conteúdos do inconsciente coletivo parecem estranhos e como
que vindos de fora. [...] É evidente o paralelismo com as crenças primitivas em
“almas” e “espíritos”. As “almas” dos primitivos correspondem aos complexos
autônomos do inconsciente pessoal, mas os “espíritos” aos complexos do inconsciente
coletivo.” (JUNG apud JACOBI, 1991, p. 42)

A palavra primitiva para Jung significa original. Para ele, os complexos do


inconsciente pessoal podem ser conscientizados e, assim, pode ser liberada a energia psíquica
que estava aprisionada; porém, por mais ampla que seja a conscientização, só uma parte dos
complexos pode ser digerida emocionalmente, justamente aquela em que está em constelação.
Os outros complexos permanecem como “pontos de nó”, que pertencem ao inconsciente
coletivo e, portanto, à humanidade em todas as épocas.

[...] “vestígios inconfundíveis (dos complexos) podem ser encontrados em todos os


povos e em todos os tempos: assim, por exemplo, a epopéia de Gilgamesh descreve,
com insuperável maestria, a psicologia do complexo de poder e, no velho testamento, o
livro de Tobias contém a história de um complexo erótico juntamente com a sua cura.”
(JUNG apud JACOBI, 1991, p. 31)

Na tentativa de ilustrar melhor esta questão dos complexos do inconsciente coletivo e


da energia psíquica que emana continuamente deles, Jacobi (1991) faz uma ousada
comparação, dizendo que esta energia é da natureza dos quanta. Os quanta corresponderiam
aos complexos, que fazem parte de uma rede invisível, como se fossem pequenos nós, onde,
cada um seria o representante de um centro de energia magnética e, nos vazios, entre eles, se
acumulavam a energia da psique coletiva inconsciente.
58

No caso da carga de um (ou vários) desses “pontos de nó” ficar tão potente que ele,
como se magneticamente (agindo como célula nuclear), atraísse tudo e começasse a
inchar e crescer desordenadamente como uma célula cancerosa, “devorando” as outras
células e criando um estado no interior do estado, para depois, como “psique parcial”
enfrentar o “eu” como um estranho, teríamos então complexo formado. [...] (JACOBI,
1991, p. 31-32)

E para distinguir o complexo do inconsciente coletivo de um do inconsciente pessoal,


Jacobi (1991) explica que quando este “ponto de nó”, que cresceu desordenadamente, está
cheio apenas com conteúdos míticos ou elementos humanos em geral, então se trata de um
complexo do inconsciente coletivo, portanto, ainda é um complexo sadio; porém, quando,
além disso, neste “ponto de nó” é acrescido material adquirido individualmente, ou seja,
quando se trata de um conflito individualmente condicionado, neste caso, trata-se de um
complexo do inconsciente pessoal, portanto, doentio.

[...] Em suma, pode-se dizer que o complexo tem duas raízes (ele se baseia em eventos
ou conflitos, quer da primeira infância, quer da atualidade); duas naturezas (pode
manifestar-se como um complexo “doente” ou como um complexo “sadio”); duas
maneiras diferentes de manifestação (conforme o caso, pode ser julgado algo negativo
ou algo positivo, sendo “bipolar”). (JACOBI, 1991, p. 32)

Jung observou que há uma relação significativa entre os complexos que são
individuais, ou seja, os conteúdos reais da consciência “são todos adquiridos individualmente”,
e os instintos arquetípicos, que são universais. Jung propõe um modelo onde o inconsciente é
vivo, inesgotável e, sobretudo, inexpugnável pela razão. Esses núcleos dinâmicos vivos
regeriam todo o comportamento consciente do indivíduo. Jung substitui e amplifica o conceito
psicanalítico de resíduos arcaicos por arquétipos ou imagens arquetípicas.

A teoria das idéias originárias pré-conscientes não é, de forma alguma, uma invenção
minha, como o demonstra a palavra “arquétipo”, que pertence aos primeiros séculos da
nossa era. Com especial referência à Psicologia, encontramos esta teoria nas obras de
Adolf Bastian e, logo depois, em Nietzche. Na literatura francesa, Hubert e Mauss, e
Lévy-Bruhl se referem a idéias semelhantes. Através de investigações minuciosas,
nada mais fiz do que oferecer uma base empírica à teoria do que antes se chamava de
idéias originárias ou elementares, “catégories” ou “habitudes directrices de la
conscience”, etc. (JUNG, 1987, p. 56)

Segundo Hall e Nordby (1989), o conceito de arquétipo na psicologia de Jung tem


como precursores filosóficos de relevante expressão: Platão, que fala das idéias originais, das
quais são derivadas toda a matéria e as idéias subseqüentes; Schopenhauer, que fala dos
“protótipos” ou arquétipos como formas originais de todas as coisas que, pode-se dizer, tem de
per si uma existência verdadeira porque sempre são, mas nunca mudam nem morrem; e Kant,
59

que diz que se o conhecimento depende da percepção, então uma noção de percepção deve
preceder a aquisição do conhecimento.
Jung (1987) explica que os instintos, no ser humano, se expressam em imaginações
fantasistas e atitudes involuntárias e irrefletidas. Os instintos têm dois aspectos: um formal e
outro dinâmico. O primeiro manifesta-se, entre outras vias, nas imaginações fantasistas que, de
acordo com as pesquisas desenvolvidas por Jung, pode-se constatar que são universais, pois
mantêm semelhanças surpreendentes em todos os lugares e épocas. Estas imaginações, assim
como os impulsos, são relativamente autônomas, ou seja, são numinosas, isto é, religiosas.

“Antes de falar de religião, devo explicar o que entendo por este termo. Religião é –
como diz o vocábulo latino religere – uma acurada e conscienciosa observação
daquilo que Rudolff Otto acertadamente chamou de “numinoso”, isto é, uma existência
ou um efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se
apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que
seja sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua
vontade. [...]O numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de
uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência. Tal é,
pelo menos, a regra universal.” (JUNG, 1987, p 9)

Jung denominou de arquétipo este aspecto formal do instinto. Os arquétipos, insistia


Jung, “não são idéias herdadas, mas possibilidades herdadas” do funcionamento psíquico.
Arquétipos não são determinados quanto ao seu conteúdo, mas apenas quanto à forma e, neste
caso, em um grau muito limitado. “São as conexões mitológicas, os motivos e imagens que
podem nascer de novo, a qualquer momento e lugar, sem tradição ou migrações históricas.”
(Jung, 1991, p.426). O arquétipo em si é vazio e puramente formal. É uma possibilidade de
representação que é dado a priori, ou seja, as próprias representações não são herdadas, mas
apenas as formas.

Os arquétipos são dados à estrutura psíquica do indivíduo, na forma de possibilidades


latentes, tanto como fatores biológicos como históricos. De acordo com as condições
proporcionadas pela vida externa e interna do indivíduo, atualiza-se cada vez o
arquétipo correspondente e, ao receber forma, ele aparece diante da câmara do
consciente, ou, como Jung diz, é “apresentado” ao consciente. (JACOBI, 1991, p. 39-
40)

Assim como os complexos, os arquétipos também são bipolares, pois contêm tanto
aspectos positivos como negativos e, durante a experiência de vida do indivíduo, se
manifestam através dos complexos. Aqueles que são ativados podem vir a se tornarem
conscientes, porém, outros jamais serão conscientizados.
60

Segundo Hall e Nordby (1989), a psique, na psicologia junguiana, é um sistema


dinâmico que está em constante transformação, pois há vários componentes internos que
interferem no desenvolvimento da personalidade, principalmente incontáveis arquétipos e
complexos, que estão interligados. Tanto é que a psicologia junguiana também é conhecida
como a psicologia dos complexos, pois, como se viu anteriormente, foi justamente estudando-
os, através da associação livre de palavras, que Jung provou empiricamente a existência do
inconsciente.

Aproximar-nos-emos mais da verdade se pensarmos que nossa psique consciente e


pessoal repousa sobre a ampla base de uma disposição psíquica herdada e universal,
cuja natureza é inconsciente; a relação da psique pessoal com a psique coletiva
corresponde, mais ou menos, à relação do indivíduo com a sociedade. [...] Do mesmo
modo que o indivíduo não é apenas um ser singular e separado, mas também um ser
social, a psique humana também não é algo de isolado e totalmente individual, mas
também um fenômeno coletivo. E assim como certas funções sociais ou instintos se
opõem aos interesses dos indivíduos particulares, do mesmo modo a psique humana é
dotada de certas funções ou tendências que, devido à sua natureza coletiva, se opõem
ás necessidades individuais.[...] (JUNG, 1982, p. 31)

Resumindo, o modelo de psique na perspectiva junguiana contém duas categorias, ou


seja, consciente e inconsciente, porém, o inconsciente compreende o inconsciente pessoal e o
inconsciente coletivo. O inconsciente é entendido como a psique objetiva, onde se encontra o
centro organizador de onde flui a vida. O inconsciente pessoal coincide com o inconsciente
pensado por Freud e é composto por conteúdos que provêm de aquisições pessoais. Já o
inconsciente coletivo é um substrato psíquico comum a todos os humanos. E como é um
conceito de difícil compreensão, Jung (1982) esclarece dizendo que:

O inconsciente coletivo compõe-se: primeiro, de percepções, pensamentos e


sentimentos subliminais que não são reprimidos devido a sua incompatibilidade
pessoal, mas que devido à intensidade insuficiente do seu estímulo ou pela falta do
exercício da libido ficam desde o início aquém do limiar da consciência; segundo, de
restos subliminais de funções arcaicas, que existem a priori e que podem ser acionados
a qualquer momento através de um certo represamento da libido. Esses resíduos não
são apenas de natureza formal, mas também dinâmica (impulsos); terceiro, de
combinações subliminais sob forma simbólica, que ainda não estão aptas para serem
consteladas. (JUNG, 1982, p. 155)

A psique coletiva, na concepção de Jung, é a expressão psicológica do indivíduo,


cujo corpo social é o objeto de estudo de várias outras áreas científicas, tais como a sociologia,
a antropologia, a historiografia, entre outras. A psique coletiva não é composta simplesmente
pela soma dos elementos psíquicos individuais, pois, se por acaso estes elementos fossem
61

metaforicamente identificados como árvores, a psique coletiva não era apenas o bosque, mas,
também, o solo onde estas árvores se desenvolveram.

A finalidade da psique individual é a individuação, mas ela afunda raízes na psique


coletiva: precisamos nos dar conta desta camada terrestre, e de sua fertilidade, se
quisermos que os ramos e os frutos da individuação sejam prósperos. Os complexos e
as neuroses não podem ser abordados somente como problemas individuais. O
indivíduo não apenas tem sua origem na sociedade e na cultura: ele está sempre
também em relação com elas. (ZOJA, 2005, p. 21)

2.5.2 Processo de Individuação: do Ego ao Si-mesmo

A individuação, muitas vezes, pode ser confundida com o individualismo, porém, são
conceitos bem diferentes. De acordo com Zoja (2005), para a psicologia junguiana, o indivíduo
não é uma ilha, pelo contrário, ele é cidadão da cultura e da história. Jung ofereceu um modelo
de compreensão tanto da psique individual quanto da coletiva e, neste caso, o individualismo
seria a polarização, onde o seu oposto seria o movimento coletivo.

[...] Este processo acontece no confronto da consciência com conteúdos inconscientes


e com o social, que vão propiciar um amadurecimento psíquico para o indivíduo. Para
Jung, individuação significa tornar-se um ser único, homogêneo, singular, mas ainda
assim em relação criativa com as outras pessoas. A individuação [...] será sempre uma
meta a ser perseguida, levando a mudanças dinâmicas na relação da pessoa consigo
mesma e com o social. Segundo Jung, o processo de individuação não é uma exigência
biológica, mas sim psicológica. (BOECHAT, 2007, p. 49)

Isto não quer dizer que ele desvalorizava a psicologia individual em prol da
psicologia de massa, mas sim que ressalta, valoriza e aprofunda os aspectos sociais do próprio
indivíduo. A individuação é um processo que visa, antes de tudo, à correção da unilateralidade,
aqui representada pelo individualismo, na busca do equilíbrio dos opostos.

[...] A individuação é o desenvolvimento do potencial individual harmônico com a


sociedade, não a realização de modelos de individualismo abstrato, como aqueles
propostos pela publicidade e pela indústria do espetáculo na sociedade de massa que o
promove. [...] Hoje, oferece-se para corrigir o individualismo, lembrando-nos que o
indivíduo reprime no inconsciente os valores coletivos, os quais têm raízes na
profundidade arquetípica da psique e são, como esta, inelimináveis. (ZOJA, 2005, p.
23-24)

Pegando um “gancho” na metáfora da árvore, Hall e Nordby (1989) se referem ao


processo de individuação, dizendo que, assim como a semente se transforma numa pequena
planta e vai crescendo até se tornar a árvore, o indivíduo nasce totalmente indiferenciado e, à
62

medida que vai crescendo e se desenvolvendo, sua personalidade caminha na busca da plena
diferenciação, do equilíbrio e da unificação completa.

O conceito de individuação, o principium individuationis, é encontrado em obras de


autores anteriores a Jung, como Aristóteles, Plotino, São Tomás de Aquino, Leibniz e
Schopenhauer. [...] Na realidade, o processo de individuação para Jung, além de ser
uma busca de autoconhecimento que vai levando a uma unicidade maior da
personalidade, é uma busca do sentido maior de vida da pessoa, é a busca do nosso
mito individual, mesmo que, para isso, tenhamos de admitir uma derrota dos valores
do ego. (BOECHAT, 2007, p. 49-51)

O processo de Individuação não consiste num desenvolvimento linear. É movimento de


circunvolução que conduz a um novo centro psíquico. Jung denominou este arquétipo central
de Self . O Self (Si-mesmo) seria o centro do inconsciente e o ego nasceria a partir dele.
Através do processo de individuação, o ego se diferencia do self,, se tornando o centro do
campo consciente.

O desenvolvimento psicológico, dentro da visão junguiana, segue uma necessidade


progressiva de diferenciação do ego que deriva de um centro chamado self (si mesmo),
considerado o arquétipo central do inconsciente coletivo que coordena o
desenvolvimento através dos outros arquétipos. O Self é o centro da personalidade mas
também a própria totalidade psíquica que abrange consciente e inconsciente – é o
centro dessa totalidade, assim como o ego é o centro da consciência. O self tem uma
função teleológica conhecida como processo de individuação. [...] (RUBY, 1998, p.
22-23)

O Ego, como o centro da consciência, tem a importante função de organizar e mediar


as percepções e os conteúdos entre o mundo exterior (consciente) e o interior (inconsciente). É
ele quem dá ao indivíduo identidade e continuidade, que permite manter uma qualidade
contínua de coerência na sua personalidade, necessária para o indivíduo sentir que ele é hoje a
mesma pessoa de ontem. O indivíduo só poderá individuar-se na proporção que o ego permite
que as experiências realizadas permaneçam conscientes. O ego tem uma importância
fundamental na psicologia junguiana, pois ele é à base da consciência.

Consciência significa, acima de tudo, estar ciente. [...] Essa é a característica crucial da
consciência: a consciência é ciente de si mesma, é o ego ficando ciente de si mesmo.
[...] Esse é o grande mistério da consciência, ela tem o poder reflexivo de olhar para o
espelho e se enxergar como uma imagem separada. Não é apenas um acidente o fato de
Iahweh, no Antigo Testamento, expor sua identidade como “Eu sou”. Acho que existe
uma ligação entre a psicologia da consciência e a imagem simbólica de Iahweh. [...]
(EDINGER, 2004, p. 19)
63

No seu aspecto externo, essa estrutura mediadora recebe o nome de Persona (que é
parte da palavra personalidade) e que em latim significa as máscaras que o ator usava no teatro
grego, na época clássica, segundo o papel que ele representava. Para estabelecer contatos com
o mundo exterior, para adaptar-se às exigências do meio onde vive, a pessoa assume uma
aparência que geralmente não corresponde ao seu modo autêntico. São vários os papéis que a
pessoa pode desempenhar na vida: por exemplo, no caso da pessoa ser um pastor evangélico,
além disto, ele também pode ser um filho, um amigo, um pai, um marido.

Na visão de Jung, a persona, a máscara de adaptação social que somos obrigados a


usar para nos sentirmos aceitos pelo social, pode ser um fator positivo ou negativo. A
persona é positiva quando, além de estar de acordo com as expectativas sociais, não
contraria a nossa maneira mais própria e única de ser. Ela é negativa quando nós nos
identificamos com ela e passamos a viver em função dela, ou seja, das expectativas do
social, mais do que em função das nossas necessidades individuais. [...]. (BOECHAT,
2007, p. 51-52)

Os moldes da persona são recortes tirados da psique coletiva. Quanto mais a persona
adere à pele do ator, tanto mais dolorosa será a operação psicológica para despi-la. Isto é
comum nos casos em que o paciente tem um ego muito identificado com sua persona, ou seja,
quando há uma inflação do ego.
O problema, o negativo, não é desempenhar vários papéis, pelo contrário, é quando a
pessoa se fixa em um deles. No caso do pastor, isto pode acontecer, por exemplo, se ele exige
que sua esposa, filhos, amigos ou o pai os reverenciem, como suas ovelhas o fazem, quando
ele está desempenhando este papel na Igreja.

A persona é um complicado sistema de relação entre a consciência individual e a


sociedade; é uma espécie de máscara destinada, por um lado, a produzir um
determinado efeito sobre os outros e por outro lado a ocultar a verdadeira natureza do
indivíduo. Só quem estiver totalmente identificado com a sua persona até o ponto de
não conhecer-se a si mesmo, poderá considerar supérflua essa natureza mais profunda.
No entanto, só negará a necessidade da persona quem desconhecer a verdadeira
natureza de seus semelhantes. [...] (JUNG, 1982, p. 68)

A persona tem a função psicológica de adaptação ao ambiente, de mediação entre o


ego e o mundo externo, porém, o indivíduo deve ter o cuidado de não se identificar com ela,
pois aqueles que possuem uma persona considerada socialmente adequada, muitas vezes isto
quer dizer que estas pessoas fizeram concessões consideráveis ao mundo social, à custa de um
auto-sacrifício de sua individualidade que, como conseqüência, força o Eu a identificar-se com
a persona a tal ponto que estas pessoas acreditam que são o que elas imaginam que sejam,
apesar das evidências mostrarem o contrário para aquelas pessoas que com elas convivem.
64

[...] A “ausência da alma” que essa mentalidade parece acarretar é só aparente, pois o
inconsciente não tolera de forma alguma tal desvio do centro de gravidade.Se
observarmos criticamente casos dessa espécie, descobriremos que a máscara perfeita é
compensada, no interior, por uma “vida particular”. O piedoso Drummond queixou-se
certa vez que “o mau humor é o vício dos virtuosos”. Naturalmente, quem constrói
uma persona boa demais sofrerá crises de irritabilidade. Bismarck tinha ataques de
choro histérico, Wagner mantinha uma correspondência sobre cinturões de seda para
batas de dormir, Nietzsche escrevia cartas a um “querido lama”, Goethe mantinha
conversações com Eckermann etc. [...] (JUNG, 1982, p.69)

Da mesma forma que a persona tem a função de mediar à relação entre o ego e o
mundo externo, há outras funções psicológicas, ou seja, arquétipos, que fazem este trabalho no
sentido inverso, ou seja, entre o ego e o mundo interno. Uma delas Jung denominou de
sombra, que é considerada a parte inferior da personalidade, de difícil aceitação pelo
indivíduo, pois apresenta elementos considerados desmoralizantes e até mesmo demoníacos.
Quando o paciente inicia uma análise, na psicoterapia junguiana, é a primeira a ser
confrontada.

No homem, a sombra contém uma maior quantidade de natureza animal do que


qualquer outro arquétipo. Em virtude de suas raízes muito aprofundadas na história
evolutiva, é este provavelmente o mais poderoso e potencialmente o mais perigoso de
todos os arquétipos. É a fonte de tudo que há de melhor e de pior no homem,
particularmente em suas relações com outras pessoas do mesmo sexo. (HALL E
NORDBY, 1989, p.40)

Quando é retirada a máscara que o ator usa nas suas relações com o mundo, aparece
uma face desconhecida, sua sombra. Olhar-se em espelho, que reflita cruamente esta face, é
um ato corajoso. Será visto o lado escuro, onde o indivíduo, por desconhecer seu conteúdo,
pensa que lá só existem coisas que desagradam, repugnam ou mesmo que assustam o indivíduo
e, por isso, as reprimem e as projetam sobre o outro, permanecendo, pois inconscientes de que
as abrigam dentro deles mesmos. O arquétipo da sombra tem a qualidade de influenciar as
relações com pessoas do mesmo gênero.
Após o confronto com a sombra, o(a) paciente entra em contato com outro arquétipo ou
função psicológica: a anima, quando se trata de pessoas do sexo masculino, e o animus,
quando do sexo feminino. A anima seria o arquétipo feminino da psique masculina e animus o
arquétipo masculino da psique feminina, pois assim como biologicamente tanto os homens
como as mulheres secretam hormônios masculinos e femininos, psicologicamente ambos
possuem qualidades, ou seja, atitudes e sentimentos comuns ao sexo oposto.

[...] Não há homem algum tão exclusivamente masculino que não possua em si algo de
feminino. O fato é que precisamente os homens muito masculinos possuem (se bem
65

que oculta e bem guardada) uma vida afetiva muito delicada, que muitas vezes é
injustamente tida como “feminina”. O homem considera uma virtude reprimir da
melhor maneira possível seus traços femininos. Analogamente, a mulher, até há pouco
tempo, considerava inconveniente ser varonil. [...] (JUNG, 1982, p.65)

É necessário para que haja harmonia, que as qualidades da personalidade do lado


oposto do sexo do indivíduo possa se expressar na sua consciência e no seu comportamento.
Quando as atitudes e sentimentos da anima e do animus não são expressas adequadamente, na
consciência e no comportamento do homem e da mulher, respectivamente, elas são projetadas
no gênero oposto, influenciando a qualidade das relações entre os gêneros.

Quando um homem só revela traços masculinos, os seus traços femininos permanecem


inconscientes e por conseguinte não se desenvolvem e continuam primitivos. Isto
confere ao inconsciente uma qualidade de fraqueza e impressionabilidade. Eis porque
os homens que se mostram mais viris na aparência e no modo de agir são com
freqüência internamente fracos e submissos. A mulher que apresenta uma feminilidade
excessiva na vida exterior talvez traga no inconsciente qualidades de teimosia ou
obstinação, muitas vezes presentes no comportamento externo do homem. (HALL E
NORDBY, 1989, p.39)

A experiência do enamoramento ou do apaixonar-se intensamente e, em outro


momento, o da aversão, em proporções bem semelhantes, pode ser da responsabilidade da
projeção da anima ou do animus. Por trás destas projeções está a imagem da grande Mãe e do
Pai Celeste que, quando não são integradas dentro do próprio indivíduo, são projetadas no
gênero oposto, proporcionando ao outro características de início consideradas positivas e
irresistíveis e, depois, negativas e aversivas.

O arquétipo é uma força. Ele tem uma autonomia e pode apoderar-se de você de
repente. É como um ataque repentino. Apaixonar-se à primeira vista é alguma coisa
parecida com isso. Veja, você possui certa imagem de mulher, da mulher, dentro de
você mesmo, sem o saber. Aí, você vê essa moça, ou, pelo menos, uma boa imitação
dela, e na mesma hora você sofre um ataque e você está perdido. E mais tarde você
pode chegar à conclusão de que fora um enorme engano. [...] Esse é o arquétipo, o
arquétipo da anima... Com as mulheres acontece o mesmo. Quando um homem canta
muito alto, a moça acha que ele deve ter um caráter espiritual maravilhoso, pois ele
conseguiu atingir o dó agudo, e ela fica extremamente desapontada quando casa com
esse homem em particular. Bom, esse é o arquétipo do animus. (JUNG APUD
EDINGER, 2004, p.25)

E no centro da psique, para aqueles que conseguiram descer até o fundo do


inconsciente coletivo, está realmente um arquétipo grandioso, imenso, que Jung denominou de
Si-mesmo. A Imagem de Deus dentro de cada indivíduo. Uma das conseqüências desta
maravilhosa experiência do encontro com o Si-mesmo, segundo Jung (EDINGER, 2004), é a
66

tomada de consciência de que não existe apenas um centro na psique individual, mas sim dois
centros: o ego (centro da consciência) e o Si-mesmo (centro e totalidade da psique).

Agora, o que acontece com certa freqüência é que, se há algum sistema religioso ou
mitológico à disposição do indivíduo, a experiência será assimilada dentro dessa
formulação religiosa em particular, e será descrita como uma experiência de Deus,
dentro dos preceitos dessa religião. Mas o que temos em mãos agora, pela primeira
vez, é a oportunidade de criar uma ciência empírica que diz respeito a esse nível de
realidade psíquica. Sempre tivemos inúmeros credos de diversas formas, mas nunca
tivemos uma ciência empírica desse fenômeno, e foi isso que Jung disponibilizou para
nós. (EDINGER, 2004, p.31)

Segundo Edinger (2004), essa foi uma grande descoberta do século XX, da qual Jung é
o seu responsável. Esta experiência permite ao indivíduo perceber que não está sozinho na sua
própria casa, mas que existe um outro, que sempre estava lá, mas que ele até então não o
conhecia. Isto se assemelha a experiência da criança, quando descobre que não é o centro do
universo, que existe um outro, externo a ela, que merece consideração e respeito, pois tem uma
autoridade maior do que a dela e que, portanto, tem que se ajustar a esta realidade, para que
seu processo de socialização se desenvolva de uma forma adequada.
Por isso, para a criança, é muito importante a opinião dos outros significativos na sua
vida, ou seja, os pais, os familiares, os professores, os orientadores espirituais, quando
pertencem a uma determinada religião, os amigos do seu grupo social, pois a identificação com
o ambiente e com as pessoas que fazem parte dele garante o sentimento de pertencimento, que
é fundamental para o desenvolvimento e fortalecimento do seu ego. Isto quer dizer que a
psique dela encontra-se nos outros. Internamente, o encontro do Ego com o Si-mesmo se
desenvolve de forma semelhante.

Como eu já disse antes, o Si-mesmo é o centro e a totalidade da psique. Um de seus


sinônimos é a imagem de Deus interna. Ele é a autoridade transpessoal da psique. O
ego é a autoridade menor, o Si-mesmo, a maior. Quando o indivíduo estabelece um
contato com o Si-mesmo, o ego se relativiza: ele reconhece que sua vida deve ser
governada por uma autoridade superior a ele mesmo. (EDINGER, 2004, p.39)

È uma experiência tão forte que se faz necessário que o ego seja suficientemente
desenvolvido para experienciar e assimilar este encontro, pois, caso contrário, corre-se o risco
de que esta experiência possa gerar uma psicose. Os delírios de conteúdos religiosos e
mitológicos, de alguns pacientes psicóticos, mostram isto. Por isso o fortalecimento do ego é
fator importante e indispensável na psicologia junguiana. Se é algo que oferece tamanho risco,
67

seria natural questionar por que é necessário ou desejável que o ser humano tenha que se
submeter a este processo.

Poder-se-ia perguntar aqui por que é tão desejável que um homem se individue. Eu
acrescentaria que não só é desejável como também é absolutamente necessário que o
seja. [...] Dos estados de mistura inconsciente e de indiferenciação brotam compulsões
e ações que se opõem àquilo que se realmente é. Dessa forma, o homem não pode
sentir-se unido consigo mesmo, nem poderá aceitar uma responsabilidade. Sentir-se-á
numa condição degradada, carente de liberdade e de ética. [...] (JUNG, 1982, p.101)

O processo de Individuação parece bem difícil de acontecer quando se imagina, por


exemplo, como os arquétipos da persona, da sombra, da anima ou animus e do Si-mesmo, de
um indivíduo, poderão chegar um dia a fazer parte de um todo integrado. O processo de
individuação é descrito em imagens nos contos de fada, mitos, no opus alquímico, nas
metáforas bíblicas, nos sonhos e nas diferentes produções do inconsciente.

Consciente e inconsciente formam um par de opostos compensatórios dentro de um


sistema auto-regulador. [...] A Tarefa do homem no caminho da individuação é unir
novamente os opostos. O ego nasce, cresce e desenvolve-se para depois, num segundo
movimento, unir-se novamente ao self. A formação das funções psíquicas segue um
curso natural de polarização, de contrários, mas o processo de individuação requer a
união dessas polaridades para que o indivíduo se torne individuado, isto é, não
dividido. A individuação é um movimento natural em direção à totalidade original.
(RUBY, 1998, p. 23)

Como foi dito anteriormente, a palavra individuação é muito parecida com


individualismo, pois as duas possuem a mesma raiz de indivíduo. Porém, são conceitos
diferentes, na realidade, antagônicos. O individualismo é o engrandecimento do ego, enquanto
que a individuação é justamente a retirada da possibilidade deste engrandecimento, uma vez
que o mesmo reconhece a existência de outro centro da psique individual, com uma autoridade
maior do que a dele, relacionando seu modo de vida a essa ligação. O Si-mesmo é o centro da
psique total (o maior pode englobar o menor, mas o inverso não é verdadeiro).

[...] Esse é o efeito de um encontro decisivo com o Si-mesmo. Ele gera um contato
com uma autoridade que carrega um tipo divino de qualidade, de maneira que o sujeito
sente-se obrigado a servi-la. O resultado é que o ego fica relativizado. Essa é a maior
conseqüência da individuação, o que é muito diferente de individualismo. (EDINGER,
2004, p.33)

Segundo Edinger (2004), um bom exemplo que pode ser encontrado dentro do
universo religioso cristão, para este processo de encontro do ego com o Si-mesmo e suas
consequências, é a experiência da conversão de Paulo, quando estava no caminho de Damasco.
68

Esta experiência transformou sua vida. O encontro com o Si-mesmo, simbolizado pela imagem
de Cristo, fez com que ele deixasse de ser um homem egocentrado e se tornasse centrado em
Cristo (a imagem por meio da qual ele assimilou a experiência). Sabe-se, através de suas
cartas, que a partir de então ele se descreve como um servo de Cristo, ou seja, o ego colocado a
serviço do Si-mesmo.

Vejam, uma das características da experiência do Si-mesmo é ser observado pelo Olho
de Deus. Uma experiência muito inquietadora essa de ser observado com total
objetividade por um sujeito interno que nos trata como um objeto. Ao sermos tratados
como objeto, não somos mais soberanos. Enquanto somos o sujeito, somos o soberano,
o soberano que examina o seu próprio reino. Mas quando somos o objeto, o sujeito que
está olhando para nós é o soberano examinando o reino dele, e esse fato nos leva em
direção a todo o simbolismo associado ao arquétipo do Julgamento Final. (EDINGER,
2004, p.21)

Hall e Nordby (1989) esclarecem que, segundo Jung, dificilmente este objetivo será
alcançado e que Jesus e Buda seriam dois raros exemplos que ele cita de personalidades que
alcançaram sua totalidade original. Porém, mesmo que haja uma grande dificuldade de se
atingir a unificação completa, esta busca é arquetípica, isto é, inata, ninguém está fora da
influência da poderosa força deste arquétipo de complementaridade, de unidade.
Complementam, dizendo que para Jung além das variáveis inatas de cada indivíduo,
também são influências fundamentais no desenvolvimento da personalidade, o meio ambiente
no qual ele está inserido, principalmente o papel dos pais, da sociedade e da cultura. Chama a
atenção para o fato de que os professores têm grande influência sobre a personalidade do
aluno, sobretudo na infância e na adolescência e, por isto, Jung enfatizava a necessidade destes
professores compreenderem o desenvolvimento psíquico destas duas fases do ciclo de vida do
indivíduo.
Hall e Nordby (1989) acrescentam que um dos temas dominantes na psicologia
junguiana é a integração da personalidade. Para que isto ocorra, o processo de individuação é
só o primeiro passo, pois o segundo estágio só pode ser realizado por uma função que tem o
poder de unir todas as tendências opostas da personalidade, no sentido de atingir a totalidade, a
unidade ou arquétipo do eu e a esta função Jung deu o nome de função transcendente que,
como o processo de individuação, é inerente ao indivíduo.

Já dissemos que a individuação e a integração são etapas distintas. Na verdade, elas


caminham pari passu de modo que a diferenciação e a unificação são processos
coexistentes no desenvolvimento da personalidade. Ao tempo em que estão tendo a
possibilidade de se individuar pelo fato de poder exprimir-se em atos conscientes (em
lugar de ficar reprimidos), todos esses componentes tendem também a formar uma
amálgama. [...] O homem cuja anima foi integrada a sua masculinidade não é um
69

indivíduo cujo comportamento obedece por vezes ao modelo masculino e outras vezes
ao feminino. Ele não é em parte homem e em parte mulher. Pelo contrário, faz-se uma
verdadeira síntese de tal forma que se pode dizer que, salvo no sentido biológico, a
transcendência aboliu os gêneros. (HALL E NORDBY, 1989, p.73-74)

Conforme Bernardi (2008), as forças que têm este efeito transformador se expressam
através dos símbolos, que é a linguagem do inconsciente. O símbolo é expressão da função
transcendente, que liga as duas polaridades da psique. Transcendente não no sentido
metafísico, mas no sentido que é o símbolo que facilita a transição, ou seja, como uma força
que promove a transição de uma atitude para outra, que une os opostos, isto é, a função
transcendente seria a possibilidade do Si-mesmo de constelar um símbolo unificador para
levar até a consciência uma imagem que viesse a solucionar um determinado conflito
psíquico.

A palavra símbolo tem origem no termo grego “symbolon” que significa marca, sinal
de reconhecimento; está relacionada ao verbo grego symbállein que significa colocar
junto, fazer coincidir, juntar. Expressa a idéia de união de iguais que foram separados
e que, ao se reencontrarem, se reconhecem e se tornam um. Exemplo disso é o
símbolo do peixe usado pelos primeiros seguidores de Cristo para se reconhecerem
como “cristãos” e se protegerem de delatores: quando se encontravam, um fazia um
risco curvilíneo e o interlocutor completava o desenho com outro risco curvilíneo,
formando um peixe. (RODRIGUES, 2007, p.1)

2.5.3 O Poder do Símbolo e a Função do Mito

De acordo com Rodrigues (2007), Jung estudou profundamente a natureza e as


funções dos mitos, de culturas e épocas diferentes, e concluiu que os personagens míticos
tinham características psicológicas e emocionais universais, pois o relato mítico reencenava
experiências, inquietações e vivências de dramas humanos, comuns a estas diversas culturas e
períodos históricos diferentes. Assim como a antropologia e a história das religiões, Jung
percebe os mitos como relatos anônimos que fazem parte de tradições transmitidas oralmente,
entre os indivíduos de uma determinada comunidade e cultura.

Jung considera o mito como uma forma autônoma de pensamento e, portanto, não
secundária nem subordinada em relação ao conhecimento racional que a ela, pelo
contrário, está entrelaçado. Enquanto é uma forma criativa constantemente presente e
a cada vez renovada na atribuição dos próprios significados racionais, o material
mitológico Jung o entende como emblema da atividade psíquica e em particular como
demonstração e aprofundamento da hipótese acerca do inconsciente coletivo e dos
relativos arquétipos. (PIERI, 2002, p. 326)
70

A mitologia de uma determinada cultura coloca em evidência os valores, os padrões


de relacionamentos interpessoais e os pressupostos nos quais estão baseados esta cultura. Os
mitos seriam metáforas das forças arquetípicas atuando na psique e que teriam um caráter
atemporal e universal. Jung considera o mito como uma dinâmica autônoma que busca
explicar a organização cognitiva do mundo e evidenciar, através de sua linguagem simbólica,
as expectativas dos seres humanos.

Jung fazia distinção entre arquétipo e imagens arquetípicas. Ele reconheceu que
aquilo que ocorre na consciência individual são sempre imagens arquetípicas –
manifestações concretas e particulares que sofrem a influência de fatores
socioculturais e individuais. No entanto, em si, os arquétipos são desprovidos de
forma, são irrepresentáveis, [...] (DOWING, 1994, p. 10)

Segundo Pieri (2002), os mitos, por serem metáforas das forças arquetípicas em ação,
são excelentes instrumentos psicoterapêuticos, pois, de acordo com a psicologia junguiana, os
aspectos mitológicos existentes no inconsciente coletivo se manifestam para denunciar, alertar
e reivindicar a atenção para o fato de que há um desequilíbrio, uma polarização, entre o
consciente e o inconsciente, onde uma destas duas instâncias da psique está sendo priorizada
em detrimento da outra. Por exemplo, quando o indivíduo age mais com a razão do que de
acordo com as necessidades autênticas da alma ou vice versa.

Segundo Jung o estudo comparativo dos diferentes mitos e dos sistemas míticos das
várias culturas e religiões resulta com efeito importante para a finalidade de
reencontrar as convergências temáticas e os motivos recorrentes (vida, morte,
abandono, separação, incesto, regressão, esmagamento, salvação, criação, destruição
etc.) que o psicoterapeuta encontra no seu trabalho e, portanto, para compreender
aquilo que o próprio inconsciente oferece simbolicamente ao paciente, diante da
impossibilidade da sua consciência de atribuir, sozinha, um sentido àquilo que é um
momento específico da existência. (PIERI, 2002, p. 326)

Rodrigues (2007), lembra que os sintomas de neuroses poderiam ser uma forma
inconsciente de a psique chamar a atenção do indivíduo, para que ele pare e olhe, com
urgência, para dentro de si mesmo e compreenda que algo precisa ser feito, pois há um
desequilíbrio que precisa ser compensado. Na psicologia junguiana, o tipo do sintoma poderia
ser compreendido como uma pista do que necessita ser mudado e onde deveria ser realizada
esta mudança. Esta pista pode levar aos conteúdos arquetípicos do inconsciente coletivo que
são encontrados nas mitologias.

Exemplo da relação entre mitologia e transtornos psíquicos é a neurose do pânico. De


acordo com a mitologia grega, Pã (do grego Panikon), um misto de homem e bode,
71

habitava os bosques e provocava terror com sua aparência assustadora [...] e o hábito
de aparecer de repente. Deriva daí o termo pânico em referência ao terror repentino.
Protetor dos pastores e camponeses, Pã era uma divindade travessa, sensual e
galanteadora, mas rejeitada pela sua feiúra. Nessa associação entre pânico e um deus
mitológico está presente à concepção junguiana de inconsciente coletivo e seu
conteúdo, os arquétipos. [...] O deus Pã assustava quem o ignorava. Assim, o pânico é
um temor da sensualidade; reflete o medo que as pessoas reprimidas e controladas
sentem de serem dominadas pela própria sensualidade. Mas essa sensualidade nem
sempre está associada à energia de natureza sexual. Pode ser uma sensualidade
relacionada à arte, a uma demanda da criatividade reprimida. [...] Ao contrário do que
defendia Freud, Jung recusava-se a conceber a energia libidinal como sendo
exclusivamente de natureza sexual.(RODRIGUES, 2007, p. 2-3)

Segundo Bernardi (2008), Jung afirmava que quando há o símbolo, a travessia está
garantida. Ele cita a arte e a religião como importantes caminhos para a auto-realização, pois
percebia que eram expressões simbólicas da psique e, portanto, sua ausência na vida do
indivíduo pode contribuir para o desenvolvimento ou a potencialização de transtornos
psíquicos. Com relação à religião cristã pode-se fazer referência ao fato de que Jesus era um
mestre das polaridades, uma vez que há várias citações que demonstram esta colocação.

O encontro com a paz interior, para o mestre Jesus, é equivalente ao encontro do


pescador com a pérola preciosa escondida no fundo do mar. Não se trata, portanto, de
um encontro fácil. O Reino do qual Ele é mensageiro é sempre explicado de maneira
simbólica. Por meio do Novo Testamento, podemos intuir que Jesus tinha um
privilegiado acesso à natureza psíquica e uma grande intimidade com as suas
polaridades. Ele nos mostra a importância de termos a pureza da pomba e a
perspicácia da serpente. [...] (FERNANDES, 2004, p. 29)

Outro exemplo cristão que poderia favorecer o equilíbrio entre os opostos pode ser
encontrado no Antigo Testamento, em (Gn 2-3) que trata do mito ocidental de criação da
humanidade.
O mito de Adão e Eva sugere que Deus é ambivalente com relação ao pecado de
Adão, pois sua onisciência certamente lhe teria permitido opor-se à vontade de Adão
e Eva se ele não estivesse dividido neste ponto. Nosso mito ocidental de criação
insinua que os opostos são de Deus, e que o ego (o centro da consciência) é o espelho
em que, como diz Jung, “o inconsciente se torna consciente de sua própria face”
(JAFFE, 2002, p. 44)

O mito tem uma força poderosa na psicoterapia junguiana, porque estas construções
simbólicas vêm denunciar a força dos arquétipos atuantes na psique e a necessidade de
construir possibilidades que venham a unir os opostos, o que se torna possível através da
percepção e elaboração das emoções expressas pelos símbolos, contribuindo, desta forma,
para a redistribuição da energia aprisionada nos complexos, o que altera os sentimentos e
72

comportamentos e favorece o processo de individuação e de integração da personalidade, que


são as metas centrais da psicoterapia junguiana..

O foco sobre o arquétipo enfatiza a importância de nossas imagens em nos tornar


quem somos. Nossas vidas são moldadas pelos nossos pensamentos e atos, e, de
forma ainda mais poderosa, pelas nossas fantasias e sonhos e pelas complexas
associações carregadas de sentimentos com as quais reagimos às pessoas e aos
eventos que se nos deparam dia a dia. Não sou só o que penso, como propôs
Descartes, nem tampouco o que fiz, como alegam os existencialistas; sou também,
como aliás Gaston Bachelard tão veementemente mostrou, aquilo que imagino e
recordo. (DOWNING, 1994, p. 10-11)

2.5.4 A Imagem de Deus na Psique Humana

Segundo Edinger (2004), por volta do século XV, iniciou-se uma dramática
transformação na psicologia coletiva, ou seja, o dogma religioso da projeção coletiva da
divindade no reino metafísico começou a recuar. Não foi um processo rápido. Nestes últimos
500 anos, paulatinamente, cada vez mais pessoas vivenciam esta experiência, da retirada da
Imagem de Deus da projeção metafísica: “Deus caiu do céu para dentro da psique”,

Visto que a religião constitui, sem dúvida alguma, uma das expressões mais antigas e
universais da alma humana, subentende-se que todo tipo de psicologia que se ocupa da
estrutura psicológica da personalidade humana deve pelo menos constatar que a
religião, além de ser um fenômeno sociológico ou histórico, é também um assunto
importante para grande número de indivíduos. (JUNG, 1987, P. 7)

A consciência ocidental sofreu uma grande expansão no nível do ego, ao ponto de


haver uma inflação coletiva, quando os indivíduos começaram a explorar todas as
possibilidades nas ciências e nas artes. O grande crescimento da energia do ego se apoderou do
controle das energias psíquicas, pagando o alto preço da progressiva desmitologização e da
perda da realidade da dimensão transpessoal da psique, que era um fator efetivo na vida da
coletividade. Edinger (2004) faz uma analogia deste processo com o Apocalipse, onde isto já
era previsto de uma forma simbólica.
De acordo com Dyer (2003), no século XIX, em condições particularmente
desfavoráveis, surgiram suposições sobre Deus, a partir do pensar consciente das pessoas.
Deus era objeto de culto, portanto, algo definitivo deveria ser dito sobre os atributos de Deus.

Esses atributos da doutrina cristã incluíam onipresença (está em todos os lugares e


coisas), onipotência (poder sobre todas as coisas), onisciência (saber todas as coisas),
imutabilidade (imutável e inalterável), eterno (existindo sem princípio, nem fim),
criador e mantenedor do mundo, e ser moralmente perfeito. .(DYER, 2003, p. 37)
73

Um dos maiores méritos de Jung foi o de ter reconhecido que as representações


primordiais coletivas, que estão na base das várias formas de religião, são conteúdos
arquetípicos da alma humana. E para se defender das críticas dos seus opositores que o
consideram um místico, Jung (1987) esclarece que,

Visto que minhas explanações são de caráter bastante inusitado, não deve pressupor
que meus ouvintes estejam suficientemente familiarizados com o critério metodológico
do tipo de psicologia que represento. Trata-se de um ponto de vista exclusivamente
científico, isto é, tem como objeto certos fatos e dados da experiência. Em resumo:
trata de acontecimentos concretos. Sua verdade é um fato e não uma apreciação.
Quando a psicologia se refere, p. ex., ao tema da concepção virginal, só se ocupa da
existência de tal idéia, não cuidando de saber se ela é verdadeira ou falsa, em qualquer
sentido. A idéia é psicologicamente verdadeira, na medida em que existe. A existência
psicológica é subjetiva, porquanto uma idéia só pode ocorrer num indivíduo. Mas, é
objetiva, na medida em que mediante um consensus gentium é partilhada por um grupo
maior.” (JUNG, 1987, p. 8)

Segundo Dyer (2003), Jung fez mais de 6000 referências a “Deus” nos seus escritos
ao longo de toda a sua vida de cientista da psique humana e o autor, deste estudo, selecionou
aproximadamente 400 destas referências, na tentativa de iluminar e apresentar alguma
elaboração desses temas, tendo como objetivo maior esclarecer que quando Jung se referia a
“Deus” o fazia a imagem de Deus na psique humana e não ao Deus metafísico. Muitas vezes,
Jung errou por não colocar a palavra “Deus” entre aspas, quando se referia a Imagem de Deus
ou Imago Dei e não ao Deus metafísico, provocando mal entendidos e críticas severas.

[...] Na medida em que o fenômeno religioso apresenta um aspecto psicológico muito


importante, trato o tema dentro de uma perspectiva exclusivamente empírica: limito-
me, portanto, a observar os fenômenos e me abstenho de qualquer abordagem
metafísica ou filosófica. Não nego a validade de outras abordagens, mas não posso
pretender a uma correta aplicação desses critérios. (JUNG, 1987, p. 7-8)

Para Jung, como cientista da psique humana, a existência física de Deus é uma
questão irrespondível, pois um Deus metafísico é da área de teólogos e outros que precisam
crer em um ser físico “de fora”. Para ele “Deus” como fato, como um ser real, não é uma
questão de “acreditar”, mas de saber. Ele sabe da existência de “Deus”, da Imagem de Deus na
psique humana, através de sua própria experiência de encontro com o Si-mesmo(Self) e de
tantos outros casos clínicos, que ele acompanhou pessoalmente e da experiência de vida de
seus colaboradores e dos pacientes analisados por estes.

[...] Ele baseou isso no conhecimento de uma imagem primordial ou fundamental


como um modo inato de funcionamento da psique, de forma que o conhecimento de
74

Deus vem à consciência através do centro consciente da psique. [...] Então, Jung
afirmou que apenas a consciência humana revela Deus como um fato, existente como
um Deus-imagem no inconsciente profundo da psique. [...] podemos estabelecer
psiquicamente, mas não fisicamente, que Deus é um fato. (DYER, 2003, p. 79-80)

Jung quando se refere a Deus-imagem como uma realidade psíquica, ele não está
negando que há uma realidade transcendental, mas sim, enfatizando que como cientista as
asserções metafísicas não era o seu foco de estudo. Ele não estava preocupado se Deus existe
como realidade teológica ou não. Segundo Dyer (2003), Jung, em 1936, quando ministrava
seu seminário sobre Zaratustra, preveniu que “Deus nunca foi inventado”, “Ele” sempre
ocorreu e ainda ocorre, como experiência psicológica. O cientista SABE, tem conhecimento,
enquanto que o fiel CRÊ.

[...] É simplesmente um fenômeno. Mas estamos tão habituados com a idéia de que os
acontecimentos psíquicos são produtos arbitrários do livre-arbítrio, e mesmo invenções
de seu criador humano, que dificilmente podemos nos libertar do preconceito de
considerar a psique e seus conteúdos como simples invenções arbitrárias ou produtos
mais ou menos ilusórios de conjeturas e opiniões. O fato é que certas idéias ocorrem
quase em toda parte e em todas as épocas, podendo formar-se de um modo espontâneo,
independentemente da migração e da tradição. Não são criadas pelo indivíduo, mas lhe
ocorrem simplesmente, e mesmo irrompem, por assim dizer, na consciência individual.
O que acabo de dizer não é Filosofia platônica, mas Psicologia empírica. (JUNG,
1987, p. 8-9)

Dyer (2003) continua explicando que, em 1931, Jung escreveu que a alma pessoal era
dependente de um sistema espiritual e que este sistema seria um ser com vontade e
consciência, supondo ser mesmo uma pessoa e que chamou este ser de “Deus”, a causa
primeira, a quintessência da realidade, o mais real dos seres.

[...] Em 1928 ele também fez referência à causa primeira, na qual pôs o paradoxo de
todas as forças instintivas serem opostas ao princípio espiritual, já que isso afirma a
essencial contrariedade do Deus-conceito como um e o mesmo ser, cuja “natureza
mais íntima é uma tensão entre opostos”. Continuando, ele aponta que a ciência
chama esse “ser” de energia, porque energia é como um “balanço vivo entre opostos”
.[...] “Há aí um tremendo paradoxo que manifestadamente corresponde a uma
profunda verdade psicológica” .(JUNG, 1928, p. 63 apud DYER, 2003, p. 36-37)

Jung (DYER, 2003) chamava a atenção para o fato de que a tendência monoteísta
tende sempre a construir ou postular “uma unidade antropomórfica do Deus-imagem”, quando
para os seres humanos esta unidade é estranha e dolorosa, por ser contraditória e paradoxal.
Por exemplo, a formulação cristã dogmática de que Deus é infinito e eterno. Para Jung a
hipótese de um Deus em desenvolvimento teria maior consenso, na base do conhecimento
75

mitológico, do que para a crença em um Deus imutável. Deus, no Novo Testamento, é amor e
misericórdia, já no Antigo Testamento produz doença e lutas horríveis!
No livro “Resposta a Jó” (JUNG, 2001), cujo ponto central era o par de opostos
unidos em Javé, Jung, através da análise psicológica, coloca em evidência a natureza
paradoxal e o terrível aspecto duplo de Deus (amor x temor). O “diálogo” (o Livro de Jó,
capítulos 3-31), que provavelmente é de autoria múltipla, possivelmente foi escrito entre
1.600 – 1.050 a.C. Segundo a interpretação de Jung, Javé era psicologicamente inconsciente,
pois seu comportamento, até o reaparecimento de Sofia, tinha apenas uma “percepção”
primitiva que não conhecia reflexão.

[...] “Deus” e “Javé” seriam imagens antropomórficas na psique da pessoa. A


personificação de Deus e/ou Javé é inevitável: e, analisando Jô, é preciso ter em
mente que a narrativa usada pelo autor do livro de Jô refletia o estado psicológico
dominante de projeção de valores humanos sobre o “outro” misterioso. [...] A
ausência de moralidade humana em Javé é um impecilho que não pode ser ignorado...
Notamos a falta de razão e de valores morais, isto é, duas características principais de
uma mente humana madura. [...] Ele acrescenta que a natureza paradoxal de Deus tem
um efeito sobre os seres humanos, como um conflito aparentemente insolúvel. [...]
Moralidade, diz ele, pressupõe consciência. Ele acrescentou que Javé era tudo em sua
totalidade e, entre outras coisas, era a justiça total e também seu oposto total” (DYER,
2003, p. 41-44)

Jung coloca em evidência o terrível aspecto duplo de Deus também, através da


análise psicológica da revelação de João no Apocalipse, onde se evidencia o medo, o
julgamento e a punição de Deus, contrastando com o Deus Amor do Evangelho de João. Deus
pode ser amado, mas, também, deve ser temido, por causa da união dos opostos no Deus-
imagem na psique humana.

Jung tinha a visão de que o objetivo final e o desejo mais forte de todos “está no
desenvolvimento da completude da existência humana que é chamada de
personalidade”. [...] A personalidade pode ser definida como uma totalidade de
características individuais ou como identidade ou como um grupo integrador de
tendências instintivas, interesses e tendências comportamentais.[...]
Conseqüentemente, a visão de Jung de “Deus” e particularmente de “Javé” refletia
uma comparação da existência de complexos de persona e sombra na humanidade,
assim como no criador. “Sombra” se refere ao lado negativo da personalidade, como a
totalidade de todas as qualidades desagradáveis que uma pessoa quer
esconder.”.(DYER, 2003, p. 35-36)

Jung (DYER, 2003) quando se refere a “Deus” está sempre falando do Deus-
imagem, pois, segundo ele, está além dele falar sobre Deus. Através da psique é que se pode
experienciar “Deus”, por meio do Deus-imagem. O que a psicologia pode afirmar sobre a
existência de “Deus” é que “Deus” é uma imagem na psique de todo ser humano, que surge
76

espontaneamente ou devido às afirmações que foram consagradas pela tradição. Através do


uso de padrões arquetípicos, a energia psíquica cria a Imagem de Deus interior, por isso pode
ser considerada uma força divina.

2.5.5 A Importância do Arquétipo da Sombra

Johnson (1996), conta que diziam que uma das histórias favoritas de Jung era
seguinte: havia um poço de Água Viva, que jorrava sem esforços e impedimentos e que
gostaria que todos pudessem ter acesso a ela. A água mágica era limpa, revigorante, gratuita,
fresca e todos podiam beber dela, sem restrições. Mas, a humanidade não quis que este
paraíso permanecesse: alguns declararam a propriedade sobre ela, muraram o terreno em
volta, construíram portões, colocaram cadeados, criaram leis elaboradas para controlar o uso
da Água Viva e passaram a exigir que pagassem para terem acesso a ela.

Em pouco tempo, o poço se tornou propriedade da elite e dos poderosos. A Água


Viva ficou ofendida, parou de correr e foi jorrar em outro lugar. Os proprietários do primeiro
poço estavam tão envolvidos com os seus sistemas de poder, que continuaram a cobrar pela
água e muitos nem perceberam que o verdadeiro poder não mais existia! Algumas pessoas
insatisfeitas, se uniram, encheram-se de coragem e foram em busca do novo poço.
Infelizmente, lá também, a elite se apoderou do poço e tudo se repetiu. E assim,
sucessivamente, a história vem se repetindo, até hoje.

Jung, segundo Johnson (1996), se sensibilizou com esta história tão triste, pois
percebeu como uma verdade tão fundamental pode vir a ser distorcida e mal usada, em prol
dos interesses egocêntricos de algumas pessoas e cita a arte, a ciência e a psicologia, como
exemplos de vítimas deste processo obscuro. Porém, lembra que a Água Viva continua a
jorrar, estando disponível a qualquer pessoa que tenha a coragem de procurá-la na sua forma
atual
A água tem sido freqüentemente usada como um símbolo do mais profundo alimento
espiritual da humanidade. Hoje ela também está jorrando, como sempre, pois o poço é
fiel a sua missão; mas a água jorra em lugares esquisitos. Muitas vezes parou de jorrar
nos lugares costumeiros, reaparecendo em outros dos mais surpreendentes. Mas,
graças a Deus, a água ainda está aí. (JOHNSON, 1996, p. 12)

Para os cristãos, Nazaré é uma cidade sagrada, porém, na época de Jesus histórico,
por ficar totalmente fora das rotas comuns, era considerada com certo desprezo e ninguém
imaginaria, naquele período, que, justamente lá, nasceria Jesus Cristo,o Messias, o Salvador!
77

Assim também é com a Água Viva. Hoje, ela jorra em lugares que jamais se imaginaria
encontrá-la. “Como sempre, é gratuita e fresca, tão viva quanto sempre foi. A principal
dificuldade é que está onde menos se espera. É isso que significa a frase bíblica: “Pode vir
algo bom de Nazaré?”(JOHNSON, 1996, P. 12)
Segundo Johnson (1996), uma destas fontes de Água Viva se encontra justamente
num lugar onde muitas pessoas jamais desconfiariam: na sua própria sombra, este estranho
elemento escuro, que o indivíduo não vê nem conhece, mas que o persegue incansavelmente
na sua psique, pois é o lugar onde se depositam todas as características que são descartadas
pela sua personalidade, por não serem consideradas positivas pela sua cultura familiar, social
e religiosa.
Como veremos mais tarde, essas partes descartadas são extremamente valiosas e não
podem ser desconsideradas. Assim como a água da vida, nossa sombra não custa nada
e instantaneamente – e de forma embaraçosa – está sempre presente. Para honrar e
aceitar a própria sombra é necessária uma profunda disciplina espiritual. Isso é
plenificante, portanto sagrado, e a mais importante experiência de nossa vida.
(JOHNSON, 1996, p. 12-13)

De acordo com Zweig e Abrams (2001), o indivíduo nasce com determinadas


características pessoais. Porém, como é um ser gregário e vive numa família e numa
sociedade, com uma determinada organização e cultura, deve ser educado a internalizar as
leis, regras e estratégias de convívio familiar, social e religioso; caso contrário, o grupo não
valida a sua pertença. A cultura, na qual o indivíduo está inserido, influência fortemente, a
seleção das características pessoais, que serão consideradas como sendo do ego ou da sombra.

A sombra age como um sistema imunológico psíquico, definindo o que é eu e o que é


não-eu. Pessoas diferentes, em diferentes famílias e culturas, consideram de modos
diversos aquilo que pertence ao ego e aquilo que pertence à sombra. Por exemplo,
alguns permitem a expressão da raiva ou da agressividade: a maioria não. Alguns
permitem a sexualidade, a vulnerabilidade ou as emoções fortes: muitos, não. Alguns
permitem a ambição financeira, a expressão artística ou o desenvolvimento
intelectual: outros, não. (ZWEIG E ABRAMS , 2001, p. 16)

Segundo Bolen (1993), como o sentimento de pertença é muito forte no ser humano,
a criança é capaz de, inconscientemente, negligenciar seu desenvolvimento original, para
atender a demanda destas pessoas significativas na sua vida, no temor de ser rejeitado e
abandonado e, portanto, não receber o amor e a atenção, mínimos necessários, para a sua
sobrevivência e existência física e psicológica.
78

A rejeição e exclusão são experiências comuns na infância ou na adolescência,


deixando feridas emocionais. Elas fazem a pessoa sentir-se impotente e indigna de
amor. A crueldade na hora do recreio com freqüência deixa marcas muito mais
profundas porque a criança que é ridicularizada, rejeitada ou maltratada em casa, [...]
tem uma maior suscetibilidade a tornar-se o bode expiatório ou a excluída. (BOLEN,
1993, p. 33)

Brennan e Brewi (2004) esclarecem que, na tentativa de corresponder às expectativas


dos pais, as crianças, logo cedo, percebem que algumas de suas características não são
valorizadas pela sua cultura, portanto, todo o potencial, destas características, é desperdiçado,
uma vez que não serão desenvolvidas, mas, pelo contrário, serão como que jogado fora.
Segundo a psicologia junguiana, o jogar fora significa jogar num saco invisível, que Jung
chamou de Sombra.

Quando crianças, somos uma bola de energia: mais um dia percebemos que nossos
pais não apreciam certas partes dessa bola. Eles dizem: “Você não consegue ficar
quieto?” [...] Atrás de nós temos uma sacola invisível e, para conservar o amor de
nossos pais, nela colocamos a parte de nós que nossos pais não apreciam. Quando
começamos ir à escola, nossa sacola já é bastante grande. E aí nossos professores nos
dizem: “O bom menino não fica bravo com coisinhas à-tao”, e nós guardamos nossa
raiva na sacola. [...] (ZWEIG E ABRAMS , 2001, p. 30)

Segundo Brennan e Brewi (2204), a Sombra é o lado escuro onde moram todas as
coisas que desagradam ou mesmo que assustam o indivíduo. O que não é aceitável e que
repugna e por isso são reprimidas e projetadas no outro, assim permanecendo inconscientes de
que estão abrigadas dentro do próprio indivíduo. A sombra pessoal coincide com o
inconsciente freudiano e com o inconsciente pessoal junguiano. Porém, há também a sombra
arquetípica, pois é um fenômeno universal. É bom lembrar que o inconsciente, na psicologia
junguiana, compreende o inconsciente pessoal e o coletivo.

A sombra não é apenas pessoal mas arquetípica, embora grande parte dos conteúdos
da minha sombra sejam pessoais para mim, a essência da Sombra é um fenômeno
universal. Um arquétipo é um órgão físico, um modo herdado de função psíquica,
presente em todos nós. A Sombra é um órgão psíquico.[...] Os potenciais humanos
têm uma tendência a se dividirem em oposições, ao desenvolver a força de um lado
do par da oposição, paga-se por isso, necessariamente, deixando-se o outro lado
relativamente subdesenvolvido, portanto, inconsciente. (BRENNAN E BREWI, 2004,
p. 92)

Exemplificando, podemos relacionar a sombra correspondendo à lixeira do


computador, para onde se envia aquilo que não se pretende utilizar, porém, continua lá, caso
se decida resgatar. São as imperfeições intrínsecas a todo ser humano. Não existe nenhum ser
79

humano perfeito! Porém, na sombra também há muita coisa boa para ser resgatada. Para Jung
(ZWEIG E ABRAMS , 2001), a essência da sombra é “puro ouro”.

Todos os sentimentos e capacidades que são rejeitados pelo ego e exilados na sombra
contribuem para o poder oculto do lado escuro da natureza humana. No entanto, nem
todos eles são aquilo que se considera traços negativos. De acordo com a analista
junguiana Liliane Frey-Rohn, esse escuro tesouro inclui a nossa porção infantil,
nossos apegos emocionais e sintomas neuróticos bem como nossos talentos e dons
não-desenvolvidos. A sombra, diz ela, “mantém contato com as profudezas perdidas
da alma, com a vida e a vitalidade – o superior, o universalmente humano, sim,
mesmo o criativo podem ser percebidos ali”. (ZWEIG E ABRAMS , 2001, p. 16)

Reconhecer a própria sombra não é tarefa fácil, mesmo para aquelas pessoas que
estão se submetendo ao processo de psicoterapia. Mas, aquele paciente que tem a coragem, no
momento adequado do seu processo, de confrontar a sua sombra, ou seja, abrir o saco
invisível e olhar o que tem dentro dele, vai descobrir o potencial oculto da natureza humana
que, quando integrado à personalidade, gera vitalidade, criatividade, espontaneidade,
intuições realistas e respostas adequadas, imprescindíveis para o pleno desenvolvimento do
potencial do indivíduo.
80

3 CULPA, RESISTÊNCIA E SUPERAÇÃO NO IMAGINÁRIO CRISTÃO

3.1 CULPA E RESISTÊNCIA

3.1.1 A Igreja Cristã ao Longo da História

O tema é muito vasto e profundo, portanto, pretende-se apenas fazer algumas


considerações a respeito das funções culturais, sócio-econômicas e ecumênicas,
desempenhadas pela igreja cristã na modernidade, sem, no entanto, ter a pretensão de esgotar
o assunto. Segundo Castro Homem (2005), na idade média não havia separação entre a Igreja
Cristã e o Estado, o que havia eram competências diferentes das duas instituições, porém, uma
tinha ingerência sobre a outra, reciprocamente.
A separação acontece na modernidade, apesar de alguns autores defenderem a
idéia de que esta separação se iniciou com Jesus, quando ele declarou àqueles que queriam
instituí-lo como Rei, que deveriam dar a César o que era de César e a Deus o que era de Deus,
pois o seu Reino não era deste mundo. A partir desta interpretação considera-se que a Igreja
Cristã deu um contributo, ainda que a longo prazo, na construção desta separação, que só se
concretizou na modernidade, através da separação entre a razão e a fé e que gerou como
herança a separação entre a religião e a política.
A partir de então, quando há conflitos nesta área, e sempre há devido aos pontos de
contatos entre as duas instâncias, o problema está na interpretação desta separação. A relação
simbiótica entre a Igreja e o Estado, em que a primeira tinha a pretensão de estar acima da
segunda é “colocada por terra” a partir da modernidade, quando o privilégio do Padroado
cessou
A modernidade supõe seus antecedentes: o Renascimento, o Humanismo e a Reforma
Protestante. Ela instaurou uma nova ordem política, social, econômica e religiosa no
Ocidente. Com ela se rompe o projeto da cristandade. Os Estados modernos são
estabelecidos. (CASTRO HOMEM, 2005, p. 1)

Na avaliação de Dom Edson de Castro Homem (2005), com relação à ação


apostólica da Igreja, esta relação atrapalhava muito mais do que ajudava. O fim deste tipo de
relação foi muito mais proveitoso para a Igreja, pois deu a ela mais autonomia, o que é
notório, aqui no Brasil, principalmente a partir da instalação do regime Republicano.
As Religiões, independentemente das diversas confissões, expressões de
religiosidade ou credos que se pratica, são consideradas pluridimensionais, pois permitem
81

várias formas de leituras e interpretações, dependendo de variáveis, tais como as relacionadas


à comunidade onde nasceu e o percurso histórico que trilhou. Portanto, cientificamente,
devem ser compreendidas como um fenômeno simbolicamente plural, com determinada
especificidade e dialeticamente determinada pela cultura na qual está inserida, pois influencia
e é por ela influenciada.
Como ressalta Mircea Elíade (1991), não existem fenômenos religiosos puros,
mesmo se tratando da religião cristã, que acredita ter sido revelada e não culturalmente
construída, não pode prescindir das mediações culturais, pois para ser cientificamente
estudada e compreendida teria que ser necessariamente reconhecida como um fenômeno
histórico, portanto, datado e comunicável.

A íntima relação entre Religião e Cultura só seria compreendida e melhor valorizada,


devido à descoberta moderna da historicidade, tema ligado à concepção da Filosofia
da História, a partir de Hegel. Com o método histórico-crítico aplicado à exegese e à
hermenêutica dos textos bíblicos e dos dogmas, percebeu-se melhor o problema da
historicidade, cuja solução supera o dogmatismo católico e o fundamentalismo
protestante. Contra ambos, possibilita a releitura ou a re-interpretação, em função da
mensagem contra o invólucro cultural já superado. Trata-se de nova aplicação do
sentido da exortação de Paulo: “a letra mata, o Espírito é que vivifica”. Não sem
conflito com o Magistério católico que condenou o Modernismo, tais tentativas foram
feitas e muitas são legítimas para a compreensão da fé que a Religião veicula. Aqui se
trata de distinguir o que é vinculativo do que é elemento cultural ou da mentalidade
de época. (CASTRO HOMEM, 2005, p. 4)

Em nome da religião, muitas guerras foram travadas. Na realidade, o credo cristão


foi legitimado pelo Estado e tornou-se a religião oficial, quando o mesmo percebeu o seu
poder sobre os fiéis e, conseqüentemente, as grandes possibilidades de manipulação, inclusive
o seu uso bélico, uma vez que perceberam que a força dos seus símbolos tinha grande poder
em validar e justificar, junto ao povo, os interesses ocultos das conquistas econômicas e
territoriais.
Isto é bem visível quando da oficialização do cristianismo por Constantino, no
século IV, quando a cruz, um dos símbolos mais sagrados e importantes dessa religião, a
partir daí foi utilizado para consolidar o império romano, em nome de Deus, tanto que a
primeira instituição religiosa oficialmente cristã se tornou a Igreja Católica Apostólica
Romana.
Para que haja adesão popular, a guerra precisa ser justificada e nada mais
convincente do que a alegação de converter os infiéis que, coincidentemente são, na área
interna, os politicamente insatisfeitos, aqueles que criticamente se opõem ao regime e, na área
externa, aquelas nações que interessam economicamente serem conquistadas. O discurso é
82

sempre o mesmo: o de que Deus está sempre do lado dos vencedores, cabendo aos vencidos,
purgar os seus pecados e se converterem.

A imposição de um único credo leva a descontentamentos porque priva o ser


humano da sua liberdade de escolhas e também provoca o fundamentalismo e, com ele, a
intolerância religiosa que vê o diferente, o desconhecido como ameaçador e, portanto, precisa
ser eliminado.

Trata-se da função social de canalizar simbolicamente o percentual de não adaptação


que gera conflito até a violência, e que existe em qualquer sociedade. É uma função
que hoje consideramos deplorável, e que as análises sócio-políticas da Religião na
modernidade nos ajudaram a perceber e a discernir. (CASTRO HOMEM, 2005, p. 4-
5)

Na idade média este expediente também foi utilizado, provocando uma guerra
sangrenta, as Cruzadas, justificada através da mesma motivação religiosa de converter os
infiéis, mas que, na realidade, era uma guerra, como todas as outras, de conquista ou
reconquista de interesses econômicos e territoriais por parte da elite do poder dominante.
Assim também aconteceu na América, onde os interesses das nações cristãs,
católicas ou protestantes, validaram e justificaram a exploração ou colonização deste “novo
continente”, produzindo um dos maiores genocídios da história, pois se estima que nos
últimos cinco séculos, em torno de 80.000.000 (oitenta milhões) de índios foram
exterminados, número ainda maior que o produzido pelo holocausto, que também por
motivações religiosas deturpadas, durante apenas seis anos de conflito, dizimou mais de
6.000.000 (seis milhões) de pessoas, entre elas judeus, ciganos e homossexuais.

O Brasil Colônia conheceu a simbologia e a interpretação religiosa nas lutas entre


portugueses e índios. Os santos protetores foram considerados, muitas vezes, santos
guerreiros em favor da Coroa Portuguesa. A Religião possuía a função de também
expandir o império português com seu projeto de colonização. Anglicanos e
protestantes fizeram o mesmo nas colônias inglesas e holandesas contra a idolatria e a
superstição, em nome da pureza evangélica, no intuito da conquista. (CASTRO
HOMEM, 2005, p. 5)

Schilling (2008), ressalta que segundo Max Weber, a religião tem grande
importância na economia, pois, a partir da reforma protestante, no século XVI, aqueles países
em que esta religião predomina, são considerados os mais ricos. Segundo ele, isto foi possível
devido à mudança comportamental provocada pela reforma.
Com a reforma, emergiram os Calvinistas, que acreditam que, aqueles que são
abençoados por Deus, que têm a Sua graça, têm a vocação para o trabalho e estão
83

predestinados a terem sucesso financeiro na vida, pois isto seria uma prova de que estes são os
escolhidos por Deus. Para ele o capitalismo foi impulsionado por esta crença, o que refutaria a
tese de Karl Max de que o capitalismo é um sistema que nasceu da exploração do homem pelo
homem.

Os luteranos difundiram a expressão Beruf, entendida como algo bem mais do que
seguir uma vocação, mas sim um plano de uma vida inteira. A alteração proposta por
eles de abandonar-se a vida contemplativa trocando-a para o empenho vocacional
teve efeitos duradouros nas estruturas sócio-econômicas que se seguiram. Foi ela -
esta revolução ética - a principal responsável, segundo Weber, para o sucesso material
dos países protestantes que, a partir do século XVII, colocaram-se na vanguarda do
desenvolvimento ao engajarem toda a população no mundo produtivo e não mais o
contemplativo. (SCHILLING, 2008, p. 1)

Castro Homem (2005) lembra que, na atualidade, algumas igrejas cristãs estão
dando um testemunho de tolerância religiosa através do ecumenismo. Este fenômeno surgiu
durante a segunda guerra mundial, quando nos campos de concentrações nazistas, os
prisioneiros destituídos da sua identidade, pois só eram considerados como um número,
irmanados no mesmo sofrimento, as suas diferenças religiosas pouco importavam.
Já que todos partilhavam do mesmo destino, pois estavam marcados para morrer,
diante da experiência de se sentirem nada, eles se descobriram humanos demais na sua
impotência, na sua fraqueza e no total abandono a forças tão hostis e desagregadoras e se
uniram na fé de um Deus comum.

Enfim, sabemos que a modernidade, sem a qual não teríamos a nova ciência e
tecnologia, projetou e sedimentou a democracia conjugada com a liberdade. Provou-
nos que é possível, ao menos no Ocidente, experimentarmos a convivência pacífica
em meio às diferenças também religiosas, desde que as instâncias e as instituições e
as garantias individuais sejam preservadas pelo estado de Direito. Aliás, não existe
Democracia sem essas garantias. Quando isto ocorre, a Religião não tem só uma
função ética que inspira ou motiva comportamentos pessoais e sociais. Livremente,
ela comunica e celebra de acordo com seu credo aquilo que lhe é próprio: a dimensão
sagrada da vida e da existência; o mistério da origem e do fim; o sentido da vida e da
morte para a eternidade. Eis o núcleo da fé em Deus. O resto é apenas mediação como
a própria Religião. (CASTRO HOMEM, 2005, p. 11-12)

Segundo Castro Homem (2005), oficialmente o ecumenismo se iniciou entre as


igrejas evangélicas diante da multiplicidade de comunidades eclesiais e do surgimento de
seitas evangélicas, que não são reconhecidas pelo Conselho Mundial das Igrejas como cristãs.
A igreja católica inicialmente teve dificuldades em participar quando convidada. Porém, com
a reviravolta do Concílio Vaticano II, não só aceitou participar, como passou a promover este
84

diálogo inter-religioso, não só com as igrejas cristãs, mas também com igrejas de outras
denominações, inclusive o diálogo com os ateus.

3.1.2 A Construção da Culpa Disfuncional no Cristianismo

A culpa, por ser um sentimento subjetivo, interessa tanto à psicologia, quanto à


religião. O sentimento de culpa, um problema tão presente na psicoterapia, será abordado
neste capítulo, levando-se em consideração as questões relacionadas à doutrina religiosa do
pecado e à influência que as igrejas cristãs exercem sobre o imaginário do paciente.

[...] os sentimentos subjetivos classificam-se em três categorias: medo do castigo;


perda de auto-estima; sentimento de solidão, rejeição ou isolamento. Tais complexos
nem sempre são maus, eles podem nos estimular a mudança de comportamento e a
buscar o perdão de Deus e de outros, mas também, de outro lado, podem ser
destrutivos, podem ser como influências inibidoras que tornam a vida miserável”
(NARRAMORE, 1974, p. 100 apud COLLINS, 1995, apud FRANÇA, 2004, p. 5)

O indivíduo nasce com instintos, desejos e necessidades. Porém, como vive numa
família, inserido numa sociedade com uma determinada organização e cultura, ele deve ser
educado a internalizar as leis e as regras de convívio familiar e social. Caso contrário, o grupo
não valida o seu pertencimento.

Segundo Tournier (1985), a função dos pais não é fazer os filhos felizes, como
muitos acreditam, mas sim educá-los. A educação, por mais saudável que seja, é construída
através do sentimento de culpa, pois a tarefa dos pais, que não é nada fácil, consiste em dar
limites e repreender, quando os padrões morais não são respeitados. E a repreensão, mesmo
que seja considerada justa pelos filhos, suscita sentimento de culpa. Porém, esta culpa é
considerada funcional, pois contribui para que os filhos adquiram a capacidade tanto de
resistir às frustrações como a de adiar o prazer.

Scliar (2007) cita Jerome Kagan, professor emérito de psicologia de Harvard,


dizendo que,

Kagan reporta-se à estrutura cerebral para explicar a razão pela qual a culpa seria
exclusiva da espécie humana: [...] “Este fato, junto com a constatação de que os
humanos, mas não os primatas, mostram sinais de perturbação ao violar padrões
morais, significa que culpa e vergonha podem ser tão importantes quanto o medo no
cotidiano humano, bem como na psicopatologia. A seleção natural favorece aqueles
que têm este condicionamento embutido em seu ser. O senso moral humano, que
geralmente nos impede de agredir nossos semelhantes, é um produto único da
evolução, mantido através da seleção natural, porque assegura a sobrevivência da
espécie.” (SCLIAR, 2007, p. 47)
85

De acordo com Tournier (1985), os responsáveis pela educação das crianças, às


vezes, exageram nas suas atribuições devido as suas próprias limitações disfuncionais,
projetando nos filhos suas culpas, preconceitos e problemas, principalmente os de ordem
psicológica, familiar, social e religiosa, que são repassados de geração em geração, sem serem
solucionados adequadamente, gerando censuras injustas.

Nestes casos, a culpa é considerada neurótica ou disfuncional porque é gerada a


partir de uma descarga injusta de repressão. Os pais, inconscientemente, utilizam
inadequadamente o seu poder sobre os filhos para aliviar suas tensões, através da projeção de
suas frustrações e de seus complexos, punindo os filhos, de uma forma exagerada e, às vezes,
verdadeiramente injustas.

Os que, por exemplo, têm mais remorsos dos próprios comportamentos sexuais
dramatizam os conselhos que dão a seus filhos e despertam na alma deles uma
verdadeira angústia em relação à sua sexualidade. Pais infelizes não suportam o filho
na exuberância de sua alegria. Centenas de vezes, durante o dia, eles lhe dirão: “vc é
um bagunceiro! Vc é insuportável!” Um pai, sobrecarregado em sua profissão, se
aborrecerá por quase nada com o filho. Uma mãe, enganada pelo marido, despejará no
filho, inconscientemente, o despeito que sente e o punirá energicamente por qualquer
erro trivial. “Você é mentirosos como o seu pai!” A criança sentirá intuitivamente,
sob a forma de angústia, esta sobrecarga injusta de repressão.”(TOURNIER, 1985, p.
10)

Segundo Tournier (1985), quando se trata de uma criança que tem medo, mas é
capaz de superá-lo e confessar aos pais as suas infrações, ele agüenta a censura dos pais,
independentemente se é justa ou injusta, e logo supera a culpa. Porém, se a criança tem grande
reatividade emocional, baixa auto-estima e é muito sensível ao julgamento dos pais, não terá a
coragem de confessar, pois tem a fantasia de que será rejeitada pelos pais, por não ter
correspondido às expectativas deles.

Neste caso, se sentirá duplamente culpada: por ter cometido uma infração e por
escondê-la dos pais. Esta dupla culpa gera uma intensa angústia, ansiedade e vergonha, que
levará esta criança a, cada vez mais, evitar o confronto com os pais. Como o ser humano é um
ser gregário, o sentimento de pertença é muito forte, tanto que a criança é capaz de,
inconscientemente, negligenciar seu desenvolvimento original e saudável para atender a
demanda das pessoas significativas na sua vida, principalmente os pais, no temor de ser
rejeitada e não receber o amor e a atenção, necessários para a sua sobrevivência.

Saul censurou Jônatas pela amizade com Davi: “Filho de mulher perversa e rebelde;
não sei eu que elegeste o filho de Jessé para vergonha tua e para vergonha do recato
86

de tua mãe?” (1 Sm 20:30). Atentem para a astúcia; ele disse “para vergonha do
recato de tua mãe”, como se ele mesmo estivesse fora do negócio!
(TOURNIER,1985, p. 10)

Há sentimentos de culpa que são proporcionais aos atos praticados e que são
saudáveis e necessários, pois evitam que o indivíduo desrespeite os direitos do outro e
permitem que haja um convívio social respeitável e desejável por todos. Por exemplo, a culpa
objetiva
[...] é termo jurídico para indicar a infração de uma norma cometida
involuntariamente, sem premeditação, em contraposição a delito (dolus), que é a
transgressão premeditada. Eis como Kant exprime a questão: “[...] uma transgressão
involuntária mas imputável chama-se culpa; uma transgressão voluntária (unida à
consciência de que se trata realmente de uma transgressão) chama-se
delito”(NICOLA,2000, p. 224 apud FRANÇA, 2004, p. 3).

Diferentemente de uma culpa neurótica, que acusa e atormenta o indivíduo, por ter
infringido valores, crenças e leis, que na realidade foram internalizados de uma forma
distorcida, gerando uma autopercepção também distorcida e que, portanto, o transforma num
juiz injusto consigo mesmo e no seu maior carcereiro, impedindo que desenvolva sua
personalidade e individualidade de uma forma saudável e atinja a auto-realização e a paz de
espírito desejada.
Esta culpa neurótica ou culpa imaginária também gera uma baixa auto-estima e uma
estrutura pessoal disfuncional, provocando angústia, ansiedade excessiva, tensão e estresse.
“Quem vive sob o peso da culpa fere continuamente a si mesmo e torna-se seu maior
carrasco.“ (CURY, 2006, p. 19) Quando os pais são indivíduos psicologicamente imaturos, ou
seja, disfuncionais, tentam, inconscientemente, impedir o desenvolvimento saudável de seus
filhos, quando estes entram na fase da adolescência, estágio de vida onde o indivíduo busca
consolidar a sua identidade através da conquista da sua autonomia.
Este movimento em busca da independência psicológica assusta estes pais, porque
eles têm que tomar consciência que chegou o momento em que os filhos começam a se
preparar psicologicamente para saída física de casa que se dará, provavelmente, quando se
tornarem adultos jovens. Para que a independência física seja uma conquista pessoal, é
imprescindível que o filho seja psicologicamente independente; caso contrário, possivelmente
será um adulto imaturo, ou seja, emocionalmente dependente de seus pais e, às vezes, até
financeiramente, independentemente da sua idade cronológica e estado civil.

É o momento dos pais desapegarem-se do poder de controle absoluto, que até então
exerciam sobre os filhos. Se os filhos conseguem conquistar sua independência psicológica,
87

uma das conseqüências imediatas é que os pais não conseguem mais impor que seus desejos e
expectativas, em relação aos filhos, sejam prontamente atendidos, pelo menos como eram até
então. A partir disso, em determinadas escolhas, os pais podem oferecer sugestões úteis,
devido a sua maturidade e experiência de vida. Porém, os filhos se sentem livres para acatar,
ou não, estas sugestões.

Pai austeros sugerem, tanto por seu comportamento, quanto por suas conversas, que
tudo que dá prazer é pecado. [ ..]. Não podem gozar de nada sem um certo sentimento
de culpa que estraga o prazer. Ou, então, a alegria só é considerada legítima se for
merecida a título de recompensa: os que receberam esta idéia durante toda a educação
impõem a si mesmos tarefas muito pesadas ou sacrifícios inúteis, simplesmente para
se alegrarem com um prazer fortemente desejado sem que se sintam culpados. Têm
como que uma contabilidade complicada que está sempre mais ou menos carregada
de angústia, angústia esta que prejudica a espontaneidade, seja o impulso a um
sacrifício desinteressado ou o desejo de desfrutar um prazer pelo qual não batalharam.
(TOURNIER, 1985, p. 11)

Segundo Tournier (1985), para evitar estas mudanças, muitos destes pais
disfuncionais poderiam insinuar para seus filhos, na tentativa de despertar neles o sentimento
de culpa disfuncional, que os filhos não deveriam fazer o que eles desaprovam, como por
exemplo, ter amigos os quais eles não acham adequados, adotar valores, atitudes e
comportamentos diferentes dos seus etc. Quando pais com este perfil psicológico são devotos
da religião cristã, poderiam, por exemplo, citar partes de trechos bíblicos, fora do seu contexto
geral, que vêm corroborar com o seu pensamento.

Filhos, obedecei a vossos pais”, escreve o apóstolo Paulo ( EF 6:1). Os pais devotos
evocam este versículo para exigirem de seus filhos uma submissão servil, mesmo
depois de terem deixado de ser crianças. Mas estes pais dão pouca atenção ao que o
apóstolo acrescenta logo a seguir: “Pais, não provoqueis vossos filhos à ira” (EF 6:4)
nem ao que ele acrescenta ainda em outra passagem: “... para que não fiquem
desanimados” (CI 3:21) .(TOURNIER, 1985, p. 11)

Se o adolescente tiver uma estrutura pessoal disfuncional não suportará a culpa


gerada por estar contrariando os interesses dos pais, no temor de ser rejeitado por eles, e “abre
mão” do seu movimento em busca de autonomia e independência psicológica. Isto vai dar aos
pais a falsa idéia que está tudo bem com o(a) filho(a), que ele é um(a) bom(a) garoto(a), mas,
como se verá adiante, na análise do caso clínico, trará grandes prejuízos a sua saúde
psicológica que, normalmente, só será visível na fase adulta.

O ser humano passa por várias fases significativas: o nascimento, a infância, a


adolescência, a juventude, a maturidade e a terceira idade. A adolescência é a fase de
88

transição entre o mundo infantil e o mundo adulto. Segundo Erikson, (GRIFFA, 2001) é uma
“moratória psicossocial”, um compasso de espera que a sociedade moderna oferece aos
membros jovens enquanto se preparam para exercer os papéis adultos.

Segundo Costa (1994), a duração da fase da adolescência varia de acordo com a


época, com a cultura, com o nível sócio-econômico, como também dentro de uma mesma
comunidade. Nas comunidades tribais primitivas, esta fase é curta e marcada por rituais de
passagem. As crianças são retiradas do convívio da família e levadas para um lugar especial,
fora da aldeia, onde recebem educação intensiva, no sentido de aprender as atribuições e
responsabilidades do novo papel de adulto a ser desempenhado dentro da sociedade. E quando
retornam à aldeia se comportam e são respeitados como adultos.
De acordo com Stevens (1993), na atualidade, esta fase é longa e os rituais de
passagem foram esquecidos. Com a revolução industrial, no final do século XIX, muita coisa
mudou. A educação escolar tornou-se importante porque era necessário capacitar e formar
mão-de-obra qualificada. Foi introduzido em diversos países ocidentais o estudo obrigatório e,
finalmente, os filhos dos operários também começaram a ter acesso à escola.
Os jovens (GRIFFA, 2001), de classe sócio-econômica privilegiada, continuaram
estudando após o período obrigatório sob a dependência financeira dos pais, formando um
grupo à parte com características próprias. A adolescência foi adquirindo status de fase de
transição do processo de desenvolvimento e, na atualidade, é considerado como uma das fases
mais importantes desse processo.
Segundo Erich Fromm (STEVENS, 1993), dar a luz a Si mesmo é o dever principal
de todo ser humano. Na adolescência, o indivíduo deveria “cortar” os últimos fios do cordão
umbilical, ou seja, “os fios” psicológicos que ainda o prendem aos pais, para ir em busca da
autonomia e da individuação.

Entretanto, esta passagem de modo algum é um problema fácil para quem quer que
seja [...] Uma razão para este grande problema, cada vez mais crescente, pode muito
bem ser o abandono por parte de nossa cultura dos ritos socialmente sancionados da
iniciação. (STEVENS, 1993, p. 186)

De acordo com Stevens (1993), os ritos de iniciação preparavam o jovem para


assumir seus novos papéis e quando ele concluía o processo, a comunidade o acolhia como o
novo membro adulto da sociedade. O limite entre a vida infantil e a vida adulta era claro e
bem definido. O ingresso nas forças armadas e a festa de debutantes são os poucos ritos de
iniciação que ainda se tem e, mesmo assim, não são mais tão valorizados pela cultura.
89

É bem visível em muitas pessoas que se submetem à análise o que se pode chamar de
fome de iniciação – o desejo de se tornarem discípulos ou aprendizes e de
pertencerem a um grupo bem definido. Esta mesma fome pode ser notada também
fora do consultório, onde se manifesta nas “patotas” de jovens que se destacam pelas
suas bravatas, pela prática da tatuagem, pelo vestuário, pela música jovem, nas
torcidas organizadas nos esportes, e em outros grupos do gênero. (STEVENS, 1993,
p. 191).

Stevens (1993) explica que, esse momento crítico surge quando, na fase da
puberdade, os jovens excitados por uma grande carga de hormônios, tentam se livrar das
inibições impostas pela tradição. Por exemplo, a carga de hormônios testosterona que circula
no sangue dos adolescentes do sexo masculino, além de estimulá-los sexualmente, aumenta
também em muito a sua agressividade, motivando-os a desafiarem não só as prerrogativas
sexuais dos indivíduos mais velhos, mas também o status e a autoridade. É a famosa guerra
das gerações!
Apesar de este ser um movimento natural e desejável para o desenvolvimento
saudável do indivíduo, pois o capacita tanto para correr o risco de ser rejeitado quando da
busca de sua parceira sexual, pois o estímulo sexual é tão forte que o motiva a correr este
risco (instinto de perpetuação da espécie), quanto para enfrentar e superar as dificuldades
referentes à sua sobrevivência física e social, comum a todos os indivíduos psicologicamente
maduros (instinto de sobrevivência). Os filhos de pais cristãos, com comportamento
disfuncional, tendem a amenizar, inconscientemente, o instinto sexual e a agressividade
natural para não se sentirem culpados por não atender as exigências por obediência.

Esta contenção disfuncional também gera outra conseqüência tão danosa quanto a
amenização da agressividade natural e do instinto sexual. É a negação, para si mesmos, da
existência de um sentimento de raiva. Este sentimento, para os cristãos, é considerado
negativo, principalmente se for dirigido aos pais, a quem se deveria respeitar, amar e
obedecer. Quando os filhos não atingem esta meta, os pais procuram deixar bem claro seu
sofrimento. Novamente, os filhos se sentem duplamente culpados: por não atenderem à
demanda dos pais por obediência e por sentirem raiva dos pais.

[...] Ninguém atravessa este período de libertação dos pais e de formação de sua
própria individualidade, sem envolver-se em uma vida de segredos sempre carregada
de sentimento de culpa..... Isto porque é pelo segredo que a individualidade é
formada. Enquanto uma criança não tiver segredos para com os pais, e enquanto não
puder contar ao amiguinho estes segredos, ela não terá consciência de ter existência
autônoma. Ora, geralmente os pais acham que um filho não deve nunca ter segredos;
consideram errado esconder alguma coisa. Comentam amargamente: “Você nos faz
sofrer muito!”. .(TOURNIER, 1985, p. 12)
90

A raiva quando não é expressada adequadamente, ou seja, não é dirigida a quem de


direito, não se evapora, mas é como que “engolida”. E, diferentemente do potássio, que é uma
substância química que pode provocar parada cardíaca, mas que é eliminado do organismo
através do sistema renal, infelizmente, o mesmo não acontece com a raiva. Ela é reprimida e
permanece no inconsciente pessoal do indivíduo, ou seja, passa a fazer parte da Sombra
pessoal, aquele saco invisível para onde vão as coisas que desagradam o indivíduo e das quais
ele evita tomar consciência.

A existência de semelhantes casos explica até certo ponto por que as pessoas têm
medo de se tornarem conscientes de si mesmas. Alguma coisa poderia estar escondida
por detrás dos bastidores – nunca se tem plena certeza disto – e, por isso, é preferível
“observar e considerar cuidadosamente” os fatores exteriores à consciência. Na
maioria das pessoas há uma espécie de (deisidaimonia) em relação aos possíveis
conteúdos do inconsciente. Além de todo receio natural, de todo sentimento de pudor
e de tacto, existe em nós um temor dos perils of the sout (dos perigos da alma). É
muito natural que tenhamos repugnância de admitir um medo tão ridículo. Mas
devemos saber que não se trata de um temor absurdo e sim bem justificado. (JUNG,
1987, p. 16)

A raiva não expressada pode vir a se tornar autodestrutiva, reforçando a baixa auto-
estima e provocando auto-agressões, que poderiam se transformar em patologias psicológicas,
psicossomáticas ou de comportamentos socialmente inadequados. A espiritualidade, quando
expressada através de uma religião, em que a culpa tem um lugar significativo, tem forte
penetração nos sistemas familiares, potencializando mitos disfuncionais, uma vez que a culpa
é um instrumento útil de auto-regulação do sistema.

Embora Durkheim (1989) reconheça a existência de um componente psicológico na


experiência religiosa, ele confere o primado indiscutível ao fato religioso entendido como
dado coletivo. O princípio ativo está exclusivamente na sociedade. Para ele, o culto não seria
apenas um grupo de sinais sistematizados pelo qual a fé se expressa para fora, mas, também, o
conjunto dos meios com que a religião se cria e se recria periodicamente. Isto explicaria o fato
das grandes instituições sociais terem se originado da religião e vice-versa. As crenças
religiosas seriam essencialmente forças morais.

3.1.3 O Imaginário de Gênero e a “Queda do Paraíso"

“O que eu mais quero nesta vida, o que me deixaria mais feliz no momento é ver
arrancado de dentro de mim este desejo! Por que não sou livre para exercer a minha
vontade sobre ele? Mas, eu já sei a resposta, apesar de não querer olhar para ela: é
por causa dos meus pecados, eu sou uma pecadora que não tem jeito, nem procuro
91

mais me confessar, porque tenho vergonha de encarar o sacerdote. Sabia que já fui a
vários sacerdotes diferentes? Não tenho jeito não, a culpa é toda minha, eu é que não
tenho força de vontade!” (RECORTE DO DISCURSO DE UMA PACIENTE
CRISTÃ)

Infelizmente, este é um discurso muito comum entre as pacientes cristãs que, no


momento, passam pela experiência de um casamento desfeito, principalmente entre as
católicas. No caso das pacientes evangélicas, o discurso é bem parecido, porém, como não há
o sacramento da confissão, elas normalmente mudam de congregação religiosa ou se afasta da
igreja, o que gera grande sofrimento, pois, nos dois casos – católicas e evangélicas - elas se
sentem profanas.
Para uma pessoa que tem no exercício da fé religiosa um dos valores fundamentais
da sua vida, onde o acesso ao sagrado lhes proporciona paz e harmonia, este afastamento
provoca uma alteração negativa na sua auto-estima, que já é baixa, e na sua autopercepção,
que já é distorcida. O superego, o juiz severo internalizado através da culpa neurótica,
construída durante o seu desenvolvimento dentro de um sistema familiar disfuncional,
provoca um estrago grande na forma como que elas se percebem e se relacionam com as
pessoas e com o mundo.
Este desejo a que elas se referem é, normalmente, o desejo sexual que, por serem
pessoas espiritualizadas, acreditam que não deveriam sentir. Na maioria das vezes nem
chegam a concretizá-lo, mas, mesmo assim, se sentem sujas e pecadoras, pela força natural da
persistência do desejo que, justamente por serem reprimidos e não elaborados adequadamente,
se fazem presente insistentemente no pensamento, no período de vigília e nos sonhos.
É interessante ressaltar que muitos dos pacientes cristãos, do sexo masculino, que
vivem a mesma experiência de casamento desfeito, e também são pressionados pela força do
desejo sexual, mesmo quando fazem parte do mesmo universo religioso cristão – católicos e
evangélicos - e possuem as mesmas características pessoais e familiares disfuncionais, não
sofrem com tanta intensidade a força destes desejos sexuais, mesmo nos casos em que são
concretizados.
Pode-s compreender o fato da culpa neurótica agir de forma diversa em pacientes de
gêneros diferentes, mas com características pessoais e familiares semelhantes, inseridos no
mesmo contexto e dinâmica religiosa, quando se percebe o lugar em que cada um está
destinado a ocupar e a função a exercer.

No Judaísmo e no Novo Testamento (cf. 1Cor 11), a prioridade do homem em relação


à mulher serviu para sustentar uma posição de proeminência do primeiro diante da
92

segunda, e muitas vezes a imputação da culpa do pecado original à mulher [...] (Gn
2,4b-3,24) é sem dúvida, um dos textos bíblicos que mais influenciaram a cultura
religiosa do mundo ocidental. (ROSSÉ, 2004, p. 27)

Encontra-se um relato bíblico no livro de Gênesis sobre a criação, onde se relata que
a mulher (Eva) nasceu da costela do homem (Adão), portanto, é inferior a ele e, por ter sido a
responsável pela queda do paraíso, toda a descendência do gênero feminino deveria purgar,
pelo resto da existência humana, a culpa pelo pecado original.
Porém, Rossé (2004) esclarece que os relatos de Gn (2-3) não seriam lembranças de
fatos históricos que ocorreram no início da humanidade, mas sim uma narrativa mítica, de
caráter fundante de um povo, o mito de criação, onde o autor de Gênesis tinha como objetivo
alertar seu povo que acreditava num único Deus, sobre a tentação que eles sofriam para adorar
outros deuses, ao invés de Iahweh.

O exegeta acena para a experiência do javismo. Gn (2-3) contém, de fato, um


movimento do pensamento, um ensinamento, uma escolha do vocabulário, que
revelam a época em que foi escrito. Por trás do relato mítico está à experiência de
Israel e do narrador com o seu Deus: a experiência de um Deus próximo, que
estabeleceu uma aliança com seu povo e lhe deu uma Lei de vida, de cuja observância
depende o futuro de Israel; vida na terra prometida ou expulsão para uma terra
estrangeira. Israel deve passar pela prova de fidelidade, superar a tentação do culto de
Baal e afastar-se das práticas divinatórias contrárias à fé em Iahweh. Diversos
elementos da narrativa sugerem essa situação histórica: o duplo nome de Iahweh-
Elohim (único na Bíblia), a serpente, a situação de escolha na qual foram colocados o
homem e a mulher, os verbos “cultivar e guardar” (Gn 2,15), “abandonar e unir-se”, a
palavra ézer (para qualificar a mulher em Gn 2,18), tudo faz parte do vocabulário da
aliança. (ROSSÉ, 2004, p. 29)

Segundo Rossé (2004), infelizmente, não só os hebreus e cristãos utilizam estes


capítulos do Gênesis, durante séculos, para justificar a imposição de uma cultura machista que
impunha à mulher um lugar de submissão ao homem, com a justificativa de que elas eram as
responsáveis, as culpadas pelos infortúnios que toda a humanidade sente.
O peso desta cultura machista, ainda hoje, em pleno século XXI, gera conflitos e
neuroses nas mulheres cristãs que, inconscientemente, se autopunem, como conseqüência
desta culpa “original” pela queda do paraíso. Porém, há uma outra interpretação para este
relato mítico:
O Éden localiza-se no mítico “Oriente”, que nada mais é que algum ponto nas
profundezas do coração humano. Não se trata da aspiração de um paraíso mais ou
menos material, idealizado, mas uma condição humana de felicidade estável, de
relações pacíficas, de harmonia entre homem-mulher, humanidade-natureza, sob o
olhar de Deus: condição sempre colocada em perigo por essa realidade essencial que
foi posta no centro do coração do homem: a possibilidade de escolha, a liberdade,
simbolizada pela mítica árvore da vida e pela árvore da sabedoria, do conhecimento
93

do bem e do mal. O homem traz dentro de si a possibilidade de decidir o próprio


destino, a alternativa de vida ou de morte. (ROSSÉ, 2004, p. 30)

Segundo esta interpretação, a sabedoria seria o entendimento, por parte do homem,


de que a Lei que Deus deu sobre a proibição do acesso à árvore do conhecimento do bem e do
mal não seria, na realidade, simplesmente um impedimento imposto por um Deus muito
ciumento e severo, mas sim, a expressão do Seu amor pelo homem, pois Ele quer protegê-lo
da busca de tentar atingir o seu destino, contando só consigo mesmo, sem a presença Dele.
A tradução do nome Adão não significa homem no sentido do gênero masculino,
mas sim, humanidade ainda indiferenciada, assexuada. A criação da mulher seria o ato de
diferenciar a humanidade, que passaria a ser sexuada, através da criação dos gêneros
masculino e feminino, que teriam uma relação de complementaridade e não de subordinação.
O fato de a mulher ser construída a partir da costela de Adão significa uma relação de
igualdade e não de inferioridade, pois, se fosse o caso, talvez o relato mítico diria que ela teria
sido “construída” a partir do pé de Adão!

O papel da mulher em sua relação com o homem – e, portanto, o sentido da relação


homem-mulher – é definido com o termo ézer, palavra que a tradução bíblica da CEI
(texto oficial da Conferência Episcopal Italiana), na trilha da versão da Bíblia dos
LXX e da Vulgata, traduz por “um aiuto” (“um auxiliar”, na tradução da Bíblia da
editora Vozes – NdT). Em si, a tradução não está errada; mas numa cultura machista
esta palavra está marcada por uma nota de inferioridade: o auxiliar serve quando há
necessidade de se fazerem trabalhos complementares (em geral, cansativos e
desagradáveis) [...] O termo “ézer” seria, pois, melhor traduzido com os termos
parceiro ou aliado, que não contém nenhuma idéia de inferioridade. Aliás, a palavra
expressa de modo pleno a relação correta que deve existir entre homem e mulher, não
a fusão sonhada pelo amor romântico. O aliado está de frente para o parceiro, numa
recíproca relação de amor na igualdade, uma relação de igualdade que supõe o
respeito à alteridade. O amor faz de cada aliado o “próximo” do outro. (ROSSÉ,
2004, p. 31-32)

Segundo Rossé (2004), a partir desta interpretação do relato mítico de Gênesis,


entende-se que a relação sexual entre os gêneros masculino e feminino nasce do mistério
divino do amor de Deus para com a humanidade e, mesmo com todo o conhecimento
científico atual sobre este assunto, ela permanecerá sempre um mistério. Portanto, deve ser
salvaguardado tanto de certa mentalidade cristã, que a vê como sexo-tabu, cheio de culpas,
quanto do sexo liberado e banalizado, próprio da atual sociedade de consumo.
Deus quis o encontro do homem com a mulher com a finalidade de uni-los no amor
recíproco. Isto significa que o relacionamento homem-mulher tem valor em si mesmo,
portanto não deve ser reduzida a função de procriação. “[...] Amar é primário, procriar é
secundário, ou melhor, derivado dessa comunidade de destino de que fala o texto, que é o
94

augúrio do inventor da nossa humanidade.” (ROSSÉ, 2004, p.36 apud LOUYS, OP. Cit.,
p..83)
Quanto à serpente e à árvore do meio do jardim, Rossé (2004) descreve uma
interpretação bem diferente daquela internalizada pelas pacientes cristãs atendidas pelo
clínico pesquisador. Segundo ele, no diálogo entre a serpente e a mulher, a serpente representa
a voz interior: a expressão da dimensão transcendente do mal, que existe dentro de todo ser
humano, independentemente do gênero. A mulher representa toda a humanidade sexuada, ou
seja, seria a sua porta voz.

O diálogo se desenrola, pois, entre a Serpente e a mulher. Onde está o homem-


macho? A mulher se deixa seduzir porque o homem está ausente, não desempenha a
sua função de aliado na relação com a mulher. “O homem inexiste. Ele deixa sua
mulher dialogar sozinha com a serpente [...]. Enquanto se desenrola o diálogo interior
da mulher, o seu aliado, o seu próximo, está ausente... Todas as desgraças do mundo
vêm, afinal, de uma falta de intercâmbio entre homens e mulheres. Da ruptura de um
pacto de aliança. (ROSSÉ, 2004, p. 37)

A partir desta interpretação sobre a partilha do fruto (Gn 3,6) poderia se concluir
que, se há culpa pelo pecado original, ela não deveria ser exclusiva do gênero feminino, pois o
narrador do relato mítico veta qualquer imputação parcial, pois não é apenas o gênero
feminino que transgride o mandamento, mas sim, toda a humanidade enquanto homem-
mulher e que, na realidade, em (Gn 2-3) é narrado o mito da criação da humanidade e da sua
experiência com Deus, compreendida a partir da relação de Iahweh e o seu povo, onde se põe
em evidência, para o homem e a mulher, que eles são seres mortais, portanto, finitos.
A ecofeminista Ruether (2000), quando faz referência ao movimento de
distanciamento dos seres humanos da natureza e da sua pretensão em dominá-la de fora, como
se não fizessem parte dela, lembra que é preciso que sejam analisados os padrões
psicológicos, simbólicos e culturais que determinaram este movimento.
Poder-se-ia pensar metaforicamente neste movimento como se fosse uma eutanásia
coletiva, uma vez que, conforme as últimas pesquisas científicas sobre a relação predatória do
homem com o meio ambiente (RUETHER, 2000), a humanidade está se encaminhando para o
extermínio, caso não sejam tomadas providências urgentes para reverter este quadro
desolador.
Por isso, para Cavalcanti (2000), o surgimento do novo paradigma foi um dos
maiores acontecimentos do século XX, porque, diferentemente do anterior, o mecanicista, que
determinou a visão do homem como dissociado da natureza, o holístico, na sua visão de
totalidade, provocou uma verdadeira revolução de valores, fundando uma nova ética, em que
95

os seres humanos se descobrem artífice de si mesmos e, portanto, conscientes de que são os


responsáveis pelo mundo que constroem.

As eco-feministas que se baseiam nesta história da “queda do paraíso” acreditam que


a recuperação da relação de parceria entre homens e mulheres e da relação de
sustentação da vida com a natureza exige a rejeição de todas as formas de religião
patriarcal e a volta ou reinvenção, de algum modo, do culto à antiga deusa da
natureza. (RUETHER, 2000, p. 13)

Ruether (2000) alerta que, para ela, esta reclamação ao retorno da reverência à
antiga deusa da natureza pode ser problemática em dois tipos de casos: primeiro, nos casos
em que o culto à deusa significa que as mulheres estariam reclamando seus próprios poderes
perdidos, pois, nestes casos, corre-se o risco de apenas as posições serem invertidas, ou seja, a
sociedade se tornaria dominantemente matriarcal.
Os homens estariam excluídos ou só seriam aceitos, enquanto filhos da grande
deusa, pois o masculino seria tratado como um menino em relação ao feminino (a grande
mãe). A conseqüência deste tipo de relação disfuncional entre os gêneros é que os homens
crescem e se tornam biologicamente e fisiologicamente maduros, porém, permanecem
psicologicamente e, às vezes, até socialmente imaturos.
Na prática clínica deste clínico/pesquisador, há muitos casos de casais que procuram
a psicoterapia de casal por iniciativa da esposa ou companheira, quando se trata de uma
relação amorosa estável, ou a psicoterapia individual, também por iniciativa das mulheres,
alegando que há dificuldades no relacionamento amoroso, não por traição ou infidelidade do
parceiro, mas porque o mesmo não consegue assumir as responsabilidades emocionais e/ou
sociais que um relacionamento amoroso entre adultos exige.
Denunciam que seus companheiros (maridos ou namorados numa relação estável),
em determinadas situações que exigiam deles a autoridade de pai, comportam-se mais como
filho do que como parceiro, gerando dificuldades insustentáveis na relação com os filhos,
principalmente quando os filhos são do gênero masculino.
Nestes casos, há muita competição entre o pai e o filho com relação à atenção da
companheira/mãe e, cabendo a ela, além de ser a única ou principal provedora da família, a
responsabilidade exclusiva de dar limites aos filhos, pois o companheiro/pai é considerado um
excelente pai, justamente porque dificilmente consegue dizer não aos filhos, principalmente às
filhas.
O outro tipo de caso, que para Ruether (2000) é preocupante, é aquele em que os
homens se apropriam da deusa como feminino divino, onde a anima deve ser reclamada e
96

integrada à personalidade do homem para que ele atinja uma plenitude andrógina, pois, neste
caso, eles continuariam no controle, seduzindo as mulheres, com suas “almas belas”, e as
mulheres mais independentes seriam acusadas de serem movidas pelo seu animus, que
também deveria está integrado à sua personalidade.
Interessante que também é comum este outro tipo de caso na prática clínica. Nestes
casos, normalmente este homem quando da fase de conquista da sua parceira, é percebido por
ela como o “príncipe encantado”, há tanto tempo sonhado e esperado, desde que o “amor
romântico” foi introduzido na cultura ocidental através do mito de Isolda e Tristão. Porém, o
“príncipe encantado” é um mito e, portanto, deveria ser compreendido como tal.
Como clínico e pesquisador, discordo de Ruether neste ponto, pois em minha
opinião, a “alma bela” é conquistada pelo homem não pela integração da sua anima, mas sim,
justamente porque ele ainda não a integrou. Na realidade, ele se identifica com a persona, com
o personagem de homem “perfeito” para as mulheres. Se tivesse integrado sua anima, não
precisaria projetá-la no feminino, pois já a teria unido dentro dele mesmo e se apresentaria, no
ato da conquista, não como um “príncipe encantado”, mas como um ser humano comum,
portanto, imperfeito.
O “alma bela”, o “príncipe encantado”, pela minha experiência na prática clínica,
trata-se normalmente de um homem que realmente acredita que é possível ser perfeito para as
mulheres porque, além dele ser fiel (devido à amenização do desejo sexual), ele dá mais
atenção às necessidades da sua pretendente no ato da conquista, vale ressaltar, do que às dele
mesmo (devido à amenização da agressividade natural). Tanto a fidelidade conjugal como o
amor desprendido pelo outro são reforçados, positivamente, pela cultura cristã..
Esse desprendimento é sentido pela mulher como sendo alvo de uma atenção
especial deste homem, que liga para ela mais de uma vez ao dia se oferecendo para ajudá-la,
contando para ela o que ele está fazendo, onde e com quem está, dando-lhe todas as
coordenadas, lhe oferecendo o controle sobre ele. Quando retorna para casa, ele liga dizendo
que já chegou e aproveita para conversar mais algum tempo, até ser vencido pelo sono. Logo
que acorda, liga novamente e tudo recomeça. A mulher se sente única, tem a certeza de que
encontrou o homem perfeito, aquele que Deus preparou especialmente para ela!
As mulheres que se sentem atraídas por este perfil de homem, ou seja, por esta
persona, normalmente pagam um preço muito alto quando eles viram “sapo”, ou seja, quando
o lado negativo desta persona aparece. E quando ocorre esta transformação de “príncipe
encantado” em “sapo”? Infelizmente, quando a mulher já está “perdidamente” apaixonada e,
portanto, o homem sente que não corre mais o risco de ser rejeitado por esta mulher e,
97

inconscientemente, muda suas atitudes em relação a ela, ficando muito magoado e se sentindo
injustiçado quando ela o acusa de ter mudado.

3.1.4 Resistência à Psicoterapia

Segundo Kurtz (1947), num sentido mais amplo, existe a resistência à mudança, que
é algo absolutamente normal e esperado em todos os seres humanos, ou seja, como uma
tendência do indivíduo a se opor a quaisquer forças externas que objetivam conduzi-lo a um
novo patamar de equilíbrio. Num sentido mais restrito, dentro da psicoterapia, existe a
resistência contra o desenvolvimento do processo psicoterapêutico.

De acordo com Zimerman (2004), esta resistência tanto pode ser inconsciente quanto
consciente, sendo que em ambos os casos derivam do ego, e podem vir combinadas com as
demais instâncias psíquicas que, geralmente, expressam-se através das emoções, atitudes,
idéias, impulsos, linguagem e somatizações. Ele ressalta que alguns pacientes apresentam a
resistência à mudança como “uma luta interna entre seu lado sadio que quer progredir e o seu
lado doente que, qual um imã, o atrai continuamente para regredir, de modo a se manter fiel e
apegado aos seus objetos patogênicos” (ZIMERMAN, 2004, p.103).

A resistência sempre foi vista como algo contrário ao processo psicoterapêutico e,


paradoxalmente, como inerente a ele. Em linhas gerais, o paciente procura o psicoterapeuta
com intuito de que este alivie seu sofrimento, auxiliando-o na mudança de alguns aspectos da
sua vida. Assim, seria de se esperar que o mesmo não fizesse resistência ao processo.
De acordo com Guilhardi (1998), a resistência são repetições de todas as operações
defensivas utilizadas pelo paciente em sua vida passada. Todas as variações de fenômenos
psíquicos podem ser utilizadas objetivando a resistência, mas, qualquer que seja sua fonte, a
resistência age através do ego do paciente. Embora alguns aspectos de uma resistência possam
ser conscientes, uma parte fundamental é realizada pelo ego inconsciente.
Na terapia familiar também se observa este fenômeno da resistência. Uma família
resistente seria aquela que geralmente apresenta um longo histórico de visitas anteriores a
outros profissionais da área de saúde mental. Uma das formas possíveis de se detectar quanta
resistência poderia haver num determinado sistema familiar seria através da obtenção, junto à
família, da história detalhada sobre o que já foi feito até aquele momento, para então ajudá-la
a promover as mudanças necessárias, e saber se a família tem esperanças no processo e como
ela reagiu às tentativas anteriores.
98

Outra forma de perceber a resistência seria através da descrição do sintoma que,


quanto mais grave e crônico, possivelmente mais resistência à mudança teria a família.
Observa-se que estas famílias emitem como que uma mensagem paradoxal, onde pedem que
sejam ajudadas, mas, ao mesmo tempo, solicitam que não sejam modificadas.
Poderia se pensar que as famílias ansiosas são aquelas que podem se mostrar mais
resistentes, porém, podem ser também as mais prontas para efetivarem as mudanças. Portanto,
é preciso que o terapeuta tenha sempre a coragem de enfrentar esta resistência da família, sem
medo de perdê-la, pois esta conduta poderia vir a promover a superação da resistência e,
conseqüentemente, viabilizar a efetivação das mudanças.
Fromm (1966) constatou na sua prática clínica que, independentemente das
denominações religiosas, seus pacientes traziam, nas entrelinhas de seu relato, um fenômeno
descoberto e denominado “resistência” por Freud. Nas falas entrecortadas dos pacientes, nas
faltas justificadas ou não, ele podia perceber claramente uma espécie de autocensura frente às
demandas de sua problemática, diante das quais freqüentemente questionava se ocorria devido
às dificuldades inerentes às crenças, à estrutura moral e/ou ao medo do que ele chamava
“busca do autoconhecimento”.
A maioria dos pacientes acompanhados pelo clínico/pesquisador tem fortemente
enraizada a filosofia de vida cristã. Infelizmente, muitos destes pacientes utilizam a
mensagem de Jesus para justificar uma culpa disfuncional, por ainda sentirem, fortemente
dentro de si, a força dos desejos e necessidades que os levam a terem atitudes que são
consideradas inadequadas, pois, segundo suas interpretações, ferem os seus princípios
religiosos. Esquecem que o homem é um animal racional e que, além da razão e da
espiritualidade, há uma natureza animal, instintiva, responsável, por exemplo, pelo instinto de
sobrevivência e de perpetuação da espécie.
Estes pacientes acreditam que, por serem espiritualizados, deveriam estar livres da
força dos instintos e dos desejos. Quando não conseguem vencê-los, subjugá-los, se sentem
culpados. A culpa gera autopunição e não tem punição maior, nestes casos, do que serem
compulsivamente levados a atenderem novamente a estes desejos. Cria-se um círculo vicioso
patológico, inconsciente, de culpa/autopunição-sintoma-desejo/culpa que os mantêm presos,
potencializando sintomas psicológicos, psicossomáticos, sociais e também religiosos.
Na abordagem integradora, quando o psicoterapeuta analisa o sistema familiar do
paciente, percebe-se que se trata do paciente identificado do seu sistema familiar e que,
portanto, poderá haver resistência, por parte da família, ao seu processo de crescimento e
busca de autonomia. Normalmente há pressão por parte dos familiares mais significativos
99

quando as mudanças de atitudes e comportamentos do paciente passam a ser sentidas por


estes familiares.
Este tipo de resistência ao processo é superado à medida que o paciente se percebe
crescendo, porém, difícil de superar são as resistências inconscientes, provocadas pelos mitos
familiares, pois estas não são visíveis para o paciente. A resistência é um problema grave em
todos os tipos de abordagens psicoterapêuticas. Muitos pacientes desistem do processo antes
de receber alta! Superar a resistência do paciente é um desafio para todos os profissionais,
envolvidos neste processo.
Quando a resistência ao processo de psicoterapia se instala, o paciente apresenta
diversas situações e motivos, bem visíveis e reais, para ele e para qualquer outra pessoa que
desconheça a força dos mitos familiares, que justificam a interrupção do processo. Portanto,
dificilmente é possível conscientizá-lo, de uma forma racional, que se trata de uma resistência
à mudança, pois o paciente está paralisado pelas restrições e ameaças de punições
inconscientes, previstas nos seus mitos, para aqueles que ousam romper os rígidos padrões de
funcionamento do sistema familiar.

3.2 SUPERAÇÃO NA ABORDAGEM INTEGRADORA

Passaremos agora a descrever um estudo de caso, pertinente ao foco de nosso


estudo, com o objetivo de esclarecer: como a dimensão espiritual ou religiosa do ser humano
tem um papel fundamental no seu processo saúde/doença; e como que, pela via racional,
provavelmente a paciente cristã não iria conseguir superar a culpa e, conseqüentemente, a
resistência à psicoterapia. A mudança de atitude só foi possível através das imagens
simbólicas, pois o símbolo passa de imediato o seu sentido secreto, impedindo qualquer
tentativa de reação por parte do racional

3.2.1 Estudo de Caso Clínico

Uma mulher de 33 anos, a qual vai ser chamada de Ana, quando procurou a
psicoterapia, era “dona de casa”, portanto, não tinha um trabalho remunerado. Era casada com
Gomes, um empresário de 36 anos, ambos católicos praticantes. O casal tinha três filhos, na
ocasião com idades variando de 15 a 11 anos. Ana era a quarta filha de uma família de cinco
filhos, e Gomes, o filho caçula de uma família de oito filhos.
100

Os pais de ambos também eram católicos praticantes e, apesar de diversas


dificuldades, que incluía infidelidade conjugal por parte do pai de Ana e do pai de Gomes, os
pais ainda continuavam casados, pois acreditavam na indissolubilidade do casamento. Ana
procurou a psicoterapia individual mas, na realidade, desejava fazer terapia de casal, porém,
Gomes não aceitava, pois alegava que o problema era só dela. Como ela concordava com ele,
buscou ajuda.
É muito comum, na prática clínica, a mulher tomar a iniciativa de procurar a
psicoterapia, mesmo nos casos em que a dificuldade é conjugal ou é o esposo quem está
somatizando. Porém, quando as mudanças da paciente passam a ser sentidas pelo esposo, ele
tende também a buscar ajuda psicoterapêutica. Foi devido a este movimento que o clínico
pesquisador tomou a iniciativa de atender individualmente, mesmo que sua formação
acadêmica fosse em terapia de casal e de família.
O sintoma que Ana apresentava era na área sexual. Fazia dez meses que sentia fortes
dores durante o ato sexual, tendo relação esporádica com o marido. Porém, há cinco meses,
como as dores se tornaram insuportáveis, não tinham mais nenhuma relação sexual. Procurou
sua ginecologista e a mesma a encaminhou para a psicoterapia, pois nada encontrou que
justificasse suas dores. Como conseqüência deste período sem relações, segundo Ana, o
marido estava afetivamente afastado, chegando tarde todas as noites. Ele se justificava,
alegando que não adiantava chegar cedo em casa, porque não tinha mais esposa.
Trabalhando na visão sistêmica, o psicoterapeuta entende que Ana é a paciente
identificada do seu sistema familiar e que, provavelmente, há um problema na área sexual não
só de Ana, mas também de Gomes, o que para Ana era inaceitável. Analisando o contexto
familiar se descobriu que a família vinha enfrentando dificuldades financeiras há mais de um
ano por má administração dos recursos financeiros da empresa por parte de Gomes.
Os mitos familiares mais recorrentes da cultura familiar de ambos eram que o
casamento é indissolúvel, a mulher sábia edifica o seu lar, e que as mulheres deveriam imitar
Maria, mãe de Jesus (mito de perfeição), ou seja, deveriam ser pacientes, fiéis à vontade de
Deus, puras de coração, amar sempre sem esperar nada em troca, sofrerem silenciosamente,
serem obedientes, boas esposas, boas mães, boas donas de casa, para que possam
proporcionar aos maridos um lar tranqüilo, onde eles possam descansar e restaurar suas
forças.
Portanto, se havia problema no casamento a única responsável era Ana, pois
acreditava firmemente que não estava sendo sábia o suficiente e, insistentemente, orava a
101

Deus para que lhe restabelecesse a saúde sexual e lhe desse a sabedoria e o discernimento
necessário para restabelecer a harmonia do seu lar.
Partindo do princípio sistêmico de que a relação causa/efeito é circular, foi
questionado a Ana sobre a possibilidade de Gomes primeiro ter se afastado afetivamente e
sexualmente dela e, como conseqüência, ela ter começado a sentir dores durante a relação
sexual como que para expressar sua dor pelo afastamento dele. Ela achou ridícula esta
hipótese terapêutica e não aceitou a mudança do foco terapêutico do problema sexual para o
de relacionamento conjugal.
Quando a paciente não aceita a possibilidade de testar a hipótese terapêutica,
percebe-se, neste momento, os primeiros sinais de que ela possa vir a fazer resistência à
psicoterapia. O clínico/pesquisador considera que a paciente está fazendo resistência à
psicoterapia quando ela suspende o processo por iniciativa unilateral, sem a devida
confirmação por parte do psicoterapeuta. Diferentemente dos casos em que mesmo sendo a
paciente que tome esta iniciativa, o psicoterapeuta confirma esta possibilidade.
Com três meses de terapia, Ana descobriu que Gomes tinha uma amante há um ano.
Ficou chocada e decepcionada, mas, depois de um insistente pedido de perdão de Gomes, que
alegou ter sido seduzido pela sua secretária, prometendo despedi-la, Ana o perdoou. Gomes,
segundo Ana, se tornou um “novo” homem, muito carinhoso e sensível e, apesar das dores
durante o ato sexual continuarem muito fortes, ela comunicou que iria interromper a
psicoterapia a pedido de Gomes. Apesar de ser alertada da necessidade de continuar o
processo, Ana abandonou a psicoterapia. (A resistência foi confirmada)
Seis meses depois, Ana procura novamente a psicoterapia, alegando que tinha
descoberto que Gomes continuava o caso com a ex-secretária dele, pois ela estava grávida de
três meses, e que Gomes tinha decidido sair de casa para morar com ela. Apesar de estar
muito magoada com ele, sua dor maior era a de que ele tinha escolhido ficar com a “outra” e
de que ela (Ana) era a responsável por tudo que estava acontecendo, pois não tinha sido uma
boa esposa.
Continuava não aceitando a hipótese de que o sintoma tinha surgido para denunciar
sua dor e para atrair a atenção dela sobre si e, desta forma, aliviar a tensão conjugal e evitar
discutir sobre a relação, que há anos era insatisfatória para ambos. Os mitos familiares não
permitiam que este problema fosse discutido porque ameaçava todo o sistema familiar
disfuncional, que há gerações se mantinha patologicamente harmonioso, uma vez que Ana
descobriu que todas as mulheres de sua família tinham problemas semelhantes aos dela e, nem
por isso, tiveram seus lares “desfeitos”.
102

No transcorrer da psicoterapia, Ana, aos poucos, foi resgatando sua auto-estima à


medida que entrava em contato com suas necessidades, desejos e sentimentos de raiva não
expressados, os quais tinham sido negligenciados por muito tempo porque não eram
considerados adequados por sua cultura familiar.
Como mulher “separada”, teve que ingressar no mercado de trabalho para ajudar no
orçamento doméstico, uma vez que o padrão de vida da família tinha caído, pois a empresa de
Gomes faliu e ele estava sem renda, sendo sustentado pela sua nova companheira e por seus
pais, que pagavam uma pensão alimentar irrisória para seus três filhos. Diante desta nova
realidade, algumas das restrições previstas nos mitos familiares tinham perdido sua força
sobre Ana, que não mais acreditava nelas. (O mito só é mito, quando se acredita nele, quando
não, ele vira um conto.) (PITTA, 2005)
Apesar da vergonha que sentia por ser uma mulher “separada”, pelo menos podia
receber a Eucaristia (acesso ao Sagrado), o que é permitido pela Igreja Católica, desde que o
fiel não mantenha relações sexuais com outra pessoa, pois aí será considerada adúltera e o
acesso ao Sagrado será interditado.
O psicoterapeuta trabalhava com a hipótese sistêmica de que o sintoma não mais
existia porque tinha perdido sua função, uma vez que, forçosamente, a relação conjugal tinha
sido discutida e o conflito conjugal tinha sido confrontado. Porém, como Ana não se permitia
se relacionar sexualmente com outro parceiro devido a sua fidelidade religiosa, a hipótese não
podia ser testada.
Após nove meses da separação conjugal, Ana aceitou a proposta de namorar um
rapaz, porém, apesar de manterem contatos bem íntimos, não aceitava a penetração, não só
por temer a possibilidade das dores no ato sexual, mas, principalmente, porque não se
permitiria receber a Eucaristia, pois seria uma adúltera e temia o castigo divino caso ousasse
se aproximar do Sagrado, sendo uma profana. “A coisa sagrada é, por excelência, aquela que
o profano não deve e não pode impunemente tocar.” (DURKHEIN, 1989, p.45). Porém, para
Jung (1987), o profano e o sagrado se tocam.
Este foi um momento bem delicado da psicoterapia porque Ana passou a alegar
impossibilidade de continuar o processo, uma vez que a filha mais velha estava apresentando
problemas considerados socialmente inadequados para Ana, e que ela preferia pagar o
tratamento da filha a continuar a sua psicoterapia.
O psicoterapeuta alertou-a novamente para a possibilidade de ela está sabotando o
seu processo, utilizando-se da culpa pelos seus desejos sexuais pelo novo parceiro, para
justificar a necessidade de se autopunir, através da resistência ao processo, e do apego ao
103

sintoma. Esta atitude só iria reforçar seu desejo pelo novo parceiro, pois tinha sido acionado,
inconscientemente, o ciclo vicioso patológico: culpa/autopunição-desejo/culpa.
A única forma de ela ajudar verdadeiramente a filha, que também não se permitia
mais se aproximar da Sagrada Eucaristia por se sentir profana, pois tinha iniciado sua vida
sexual com o namorado, era dando continuidade ao seu processo porque, quando ela
superasse esta culpa, a filha também faria o mesmo, porque as reações são sistêmicas, ou seja,
as mudanças na atitude e no comportamento de um membro da família interferem no
comportamento dos outros membros tanto de uma forma negativa quanto positiva.

[...] uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas


sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma
comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem. O segundo
elemento que participa assim de nossa definição não é menos essencial que o
primeiro, pois, ao mostrar que a idéia de religião é inseparável da idéia de igreja, ele
faz pressentir que a religião deve ser uma coisa eminentemente coletiva.
(DURKHEIM, 1989, p..53-54)

Diante do dilema religioso da paciente, o psicoterapeuta consciente de que esta é


uma área em que não se deve, nem se pode emitir juízo de valor, sugeriu a paciente que
procurasse um sacerdote católico e se aconselhasse com ele. Falasse para ele sobre a
psicoterapia e sobre a hipótese terapêutica. Para surpresa de ambos, o sacerdote ofereceu a
possibilidade de outro mito. Diferentemente do mito de Maria, que é um modelo de perfeição,
ele sugeriu o mito do Filho Pródigo, que é um modelo de imperfeição, portanto, mais próximo
do ser humano.
O sacerdote lhe sugeriu fazer tal como fez o filho, na parábola do Filho Pródigo, no
Evangelho de São Lucas, que pediu ao pai sua parte na herança, gastou tudo, mas nunca
perdeu a confiança no pai. Portanto, como ela estava separada do marido, não por iniciativa
dela, aproveitasse para vivenciar tudo que sempre desejou e nunca se permitiu, pois, caso
retornasse a se casar com o ex-marido, nunca mais teria outra chance.
Porém, nunca perdesse a confiança em Deus, pois ele sabe que estas experiências
são necessárias para que a pessoa reconheça que ela é um ser humano, portanto, imperfeita e
lhe assegurou que, apesar dos seus limites, imperfeições e pecados, Deus a ama imensamente
e que, se fosse possível ao ser humano ser perfeito, portanto, não pecar, Ele não mandaria seu
Filho amado sofrer e morrer, morte de cruz, para salvar a humanidade, uma vez que era
possível se salvar sozinha, dependendo apenas do “livre arbítrio” e da força de vontade de se
sacrificar e ser fiel aos seus mandamentos.
104

[...] A bíblia não apenas fala que a salvação é de graça, como também todas as
dádivas de Deus, tanto as pequenas como as grandes. Mostra-nos, contrariamente à
idéia dos que sofreram uma educação muito severa, um Pai celeste que se alegra com
a felicidade de seus filhos e em lhes dar alegria.”(TOURNIER, 1985, p. 11)

Entretanto, deveria respeitar os dogmas da Igreja e manter-se afastada da Eucaristia,


mas não de Deus e da Igreja, na certeza de que Deus a esperava amorosamente,
pacientemente, que fizesse todas as experiências necessárias para que se sentisse
completamente livre e verdadeiramente plena, como deve ser aqueles que experimentam a
infinita misericórdia de Deus, assim como o Filho Pródigo que, ao retornar a casa do Pai, foi
recebido com festa! A fé na misericórdia de Deus deveria ser maior do que o respeito a Ele!

Encaro a religião como uma atitude do espírito humano, atitude que de acordo com o
emprego originário do termo: “religio”, poderíamos qualificar a modo de uma
consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos como
“potências”: espíritos, demônios, deuses, leis, idéias, ideais, ou qualquer outra
denominação dada pelo homem a tais fatores; dentro de seu mundo próprio a
experiência ter-lhe-ía mostrado suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo úteis,
para merecerem respeitosa consideração, ou suficientemente grandes, belos e
racionais, para serem piedosamente adorados e amados. [...] (JUNG, 1987, p. 10)

A paciente se permitiu ter relação sexual com seu novo parceiro e, para surpresa
dela, além de não sentir nenhuma dor, teve orgasmos pela primeira vez na vida. A hipótese
terapêutica sistêmica foi confirmada, uma vez que o sintoma desapareceu ou já não mais
existia, desde que ela teve a coragem de trabalhar os seus conflitos.
A relação com a filha mais velha foi restabelecida de uma forma saudável e alguns
mitos familiares foram revistos. Isto fez com que a nova geração deste sistema familiar, até
então disfuncional, se tornasse funcional, pois os rígidos padrões de interações familiares
foram flexibilizados, impedindo que o grupo continuasse sofrer desnecessariamente.

Se a expressão inconsciente permanecer intacta, formará a matéria-prima não para um


processo de resolução mas de construção, e ela se tornará o objeto comum da tese e
da antítese. Tornar-se-á um conteúdo novo que dominará toda a atitude, acabará com
a divisão e obrigará a força dos opostos a entrar em canal comum. E assim acaba a
suspensão da vida, ela pode continuar fluindo com novas forças e novos objetivos.
(JUNG, 1974, p. 449, apud BERNARDI, 2008, p 5)

Ana superou seus conflitos, potencializando não só o seu próprio desenvolvimento


saudável, como também o dos filhos adolescentes, que buscavam a autonomia e a
diferenciação, próprias desta fase do ciclo de vida da família, proporcionando-lhes a
liberdade, o afeto e a atenção, necessários para que pudessem desenvolver de uma forma
105

saudável sua personalidade e consolidar sua identidade, sem a ameaça velada de exclusão
psicológica, familiar e religiosa, prevista nos mitos familiares e religiosos anteriores, o que até
então não tinha sido possível para a Ana e os outros membros deste sistema familiar

3.2.2 Considerações sobre o Caso Clínico

Tão importante quanto comprovar a hipótese terapêutica foi a possibilidade de


testemunhar a transformação que ocorreu na consciência da paciente após esta maravilhosa
experiência religiosa (a atitude de sacralidade diante da imagem da parábola do filho
pródigo). A imagem a libertou de um grande sofrimento, pois possibilitou de imediato sua
transição da categoria dos excluídos, ou seja, do Profano, para a categoria dos incluídos, da
pecadora que, pela fé na misericórdia de Deus, pode tocar o Sagrado. Foi como se o próprio
Deus tivesse autorizado esta passagem: a superação do conflito que parecia irreconciliável.

Essa atitude, no entender de Jung, requer um movimento de sacralidade diante das


imagens. É justamente isso que ele chama de religião. Para entendermos esse
movimento é preciso lembrar que Jung trabalha com uma etimologia específica de
religião, aquela desenvolvida por Cícero que afirma que religião vem de religere, a
observação atenta e cuidadosa de algo. [...] Deve ocorrer, por parte do ego uma
atitude de sacralidade para com as produções do inconsciente, como se tivessem sido
enviados por Deus, entendendo Deus como a expressão máxima da alteridade do
outro, o absolutamente outro. De qualquer modo, não estamos lidando com realidades
metafísicas ou discussões teológicas, mesmo que isto seja sentido como uma perda.
(BERNARDI, 2008, p. 6)

O ego, o centro do consciente, se torna servo do Si-mesmo (imagem de Deus), o


centro do inconsciente e da personalidade total, reconhecendo que sua autoridade é maior do
que a dele, possibilitando, desta forma, a transformação na consciência da paciente. A
parábola do Filho Pródigo (Lucas 15,11-32), quando psicologicamente interpretada como uma
produção do inconsciente coletivo, talvez pudesse ser entendida como uma das representações
simbólicas do processo de individuação e de integração total da personalidade.
A palavra talvez foi colocada propositalmente para chamar a atenção de que,
segundo Jung, o símbolo nunca será desvendado completamente, pois deve ser um enigma
sempre aberto a novos significados e compreendido como um talvez, porque se não, perde seu
poder e se torna um signo ou um sinal. “O símbolo, no entanto, pressupõe sempre que a
expressão escolhida seja a melhor designação ou fórmula possível de um fato relativamente
desconhecido, mas cuja existência é conhecida e postulada.” (JUNG, 1974, p. 444 apud
BERNARD, 2008, p. 3-4)
106

O versículo 13 da parábola diz que “[...] 13Poucos dias depois, ajuntando tudo o que
lhe pertencia, partiu o filho mais moço para um pais muito distante, e lá dissipou a sua
fortuna, vivendo dissolutamente.[...]”. Ou seja, isto poderia significar que o ego (simbolizado
pela imagem do filho) viveu experiências, entrou em contato com a sua imperfeição, seus
limites humanos, que o colocou em confronto com as imagens arquetípicas da persona, da
sombra e da anima,ou seja, o processo de individuação.
Jung afirma que a essência da sombra é “puro ouro”. E só aquele que tem a coragem
de conhecer e entrar em contato com ela, como no caso do filho pródigo, poderia descobrir,
integrar e usufruir o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. O Ego (simbolizado
pela imagem do filho), como centro da consciência, percebe que não é o único, mas que existe
outro centro, o Si-mesmo (simbolizado pela imagem do pai), o centro do inconsciente e da
personalidade total, com autoridade maior do que a dele e a qual ele se coloca a serviço.
(ZWEIG e ABRAMAS, 2001)

[...] 17Entrou então em si e refletiu: “Quantos empregados há na casa do meu pai,


que tem pão em abundancia e eu, aqui, estou a morrer de fome! 18Levantar-me-ei
irei a meu pai, e dir-lhe-ei: Meu pai, pequei contra o céu e contra ti: 19Já nau sou
digno de ser chamado teu filho; trata-me como a um dos teus empregados.
20Levantou-se pois, e foi ter com seu pai. Estava ainda longe, quando seu pai o viu,
e, movido de compaixão, correu-lhe ao encontro, lançou-se ao pescoço e beijou.”
[...].

O encontro com este poderoso arquétipo do Si-mesmo (Imagem de Deus) relativiza


o ego, pois toma consciência de que não é o único centro da psique, que existe outro centro e
que este tem uma autoridade ainda maior. O retorno à casa do pai poderia ser o símbolo da
união destas duas polaridades aparentemente irreconciliáveis.

A desunião consigo mesmo é a condição neurótica por excelência, que se torna


insuportável para o indivíduo e da qual ele quer livrar-se. Mas esta liberdade só ocorre
quando ele se torna capaz de agir em conformidade com o ser que ele é. [...] É
oportuno acrescentar que isso equivale ao primitivo ideal cristão do Reino do Céu, que
“está dentro de vós”. [...] (JUNG, 1982, p. 101)

No caso de Ana, o símbolo, que é a expressão da função transcendente, facilitou a


transição entre as duas categorias profundamente opostas dentro da sua psique: o profano (ser
pecadora, sem direito ao autoperdão) e o sagrado (apesar de ser pecadora, confiar na infinita
misericórdia de Deus e se autoperdoar). A experiência do numinoso transformou a sua
consciência, permitindo a solução do seu conflito religioso até então irreconciliável.
107

Não existe na história do pensamento humano um outro exemplo de duas categorias


de coisas tão profundamente diferenciadas, tão radicalmente opostas uma à outra. A
oposição tradicional entre o bem e o mal não é nada ao lado desta; pois o bem e o mal
são duas espécies contrárias de um mesmo gênero, a moral, assim como a saúde e a
doença são apenas dois aspectos diferentes de uma mesma ordem de fatos, a vida, ao
passo que o sagrado e o profano foram sempre e em toda parte concebidos pelo
espírito humano como gêneros separados, como dois mundos entre os quais nada
existe em comum. [...] Mas, se as formas do contraste são variáveis, o fato mesmo do
contraste é universal. (DUKHEIN, 1989, p., 43)

Durkheim (1989) perseguiu a fundamentação de reciprocidade entre sociedade e


religião, bem como a definição dos conceitos de sagrado e profano. Para ele, todas as crenças
religiosas organizam seus elementos ou suas coisas em dois tipos de categorias opostas: o
sagrado e o profano. O sagrado é protegido por meio de interdições e deve ficar distante do
profano. Os sistemas de crenças religiosas seriam representações que expressam a natureza do
sagrado, bem como as relações que as ligam entre si e com as coisas profanas.
Provavelmente a paciente, sendo uma católica praticante, já tinha lido e ouvido
diversas vezes esta parábola do filho pródigo. Apesar de entender racionalmente o que ela
significava, ou seja, que Deus é um pai misericordioso e que Ele ama a todos, no seu
imaginário, devido a sua culpa disfuncional reforçada por seu complexo de perfeição, ela não
se sentia incluída neste “todos”, pois, por mais que se esforçasse não conseguia se manter fiel,
isto é, não conseguia conquistar a meta de ser igual à Maria (mito de perfeição) que, de
acordo com seus mitos familiares, era possível às mulheres do seu sistema familiar.
Antes de transformar a sua consciência, a paciente recusava qualquer tentativa de
confrontar seu complexo de perfeição, pois verdadeiramente acreditava que era possível
imitar Maria (mãe de Jesus) na perfeição, não conseguindo devido a sua pouca fé. Interessante
que, dentro do próprio universo religioso cristão católico, há o dogma de que Maria foi
concebida sem o pecado original, portanto, diferente de qualquer outro ser humano. Seu
racional utilizava-se de mecanismos de defesas, tais como a negação e a racionalização que
impediam qualquer tentativa de libertá-la deste condicionamento religioso.

[...] A verdade, porém, é que toda confissão religiosa, por um lado, se funda
originalmente na experiência do numinoso, e, por outro lado, na pistis, na fidelidade
(lealdade), na fé e na confiança em relação a uma determinada experiência de caráter
numinoso e na mudança de consciência que daí resulta. [...] ( JUNG, 1987, p.10)

Talvez imitar Maria seja fazer como ela fez, ou seja, foi fiel à voz de Deus dentro
dela. De acordo com o texto sagrado, mesmo quando José, seu noivo, desconfiou de que ela
não era mais virgem por estar grávida, ela continuou firme, pois Deus dentro dela lhe dizia
108

que tudo iria ficar bem. Depois, a José foi revelado, em sonho, que o filho que Maria trazia
dentro dela era o Filho de Deus. Psicologicamente poder-se-ia dizer que a consciência de José
foi transformada pela imagem de Deus dentro dele e, de imediato, colocou-se a seu serviço,
pois concordou em se casar com Maria e, com o nascimento de Jesus, formaram a Sagrada
Família.
O símbolo é a expressão da função transcendente. Quando ele existe, a travessia está
garantida. A única forma viável de superar os mecanismos de defesas produzidos pelo ego da
paciente que, devido a sua culpa neurótica estimulava uma relação disfuncional entre o
imaginário e o seu universo religioso, foi através do poder do símbolo (parábola do filho
pródigo), oferecido pelo seu próprio universo religioso, pois esta imagem simbólica,
instantaneamente, através da emoção, levou-a a se reconhecer na categoria do Sagrado.
De acordo com Bolen (1993), o mito tem o poder de ressoar nas camadas profundas
da psique, penetrando nas emoções e refletindo temas vivenciados pelo indivíduo,
colaborando, desta forma, para que se tenham percepções a respeito de si e dos
relacionamentos mais significativos de suas vidas, oferecendo a possibilidade de perceber as
origens psicológicas dos seus conflitos, do seu padrão inconsciente de funcionamento e dos
custos que lhe impõe através dos personagens constelados no mito.

[...] Quando uma série de sonhos ou histórias significativas consegue comover uma
pessoa, o efeito transformador pode ser tremendo. A mensagem é entendida
profundamente, libertando-nos de padrões inconscientes, levando-nos a ver que nossa
vida tem sentido e recordando-nos de que, tendo consciência e escolha, somos
capazes de fazer modificações no nosso mundo pessoal e no mundo exterior.
(BOLEN, 1993, p. 23)

Esta transição instantânea, imediata, que permitiu mediar e superar o conflito entre o
Profano e o Sagrado, através da experiência do numinoso, inviabilizou qualquer tentativa de
reação por parte do racional de Ana, pois sua consciência foi transformada, possibilitando a
mudança da qualidade da relação entre o imaginário e o seu universo religioso que, de
imediato, passou de uma relação disfuncional para uma relação funcional.
A energia aprisionada no complexo de perfeição pôde ser redistribuída para outra
corrente, pois o complexo foi emocionalmente digerido. E Ana, quando da alta do seu
processo psicoterapêutico exclamou: “agora entendo São Paulo, quando ele diz que não faz o
bem que quer, mas faz o mal que não quer”
Segundo Jung, pela via psicológica não se pode captar a essência da religião, que é a
experiência do encontro do indivíduo com o sagrado, porém, podem-se avaliar os efeitos
109

psicológicos causados no indivíduo, como conseqüência desta experiência. (FILORANO e


PRANDI, 1999), “[...] Um dos exemplos mais frisantes, neste sentido, é a conversão de Paulo.
Poderíamos, portanto, dizer que o termo “religião” designa a atitude particular de uma
consciência transformada pela experiência do numinoso.” (JUNG, 1987, p.10)
Quando os pacientes cristãos, no processo de abordagem integradora, não
conseguem perceber o padrão de funcionamento disfuncional, inconscientemente
condicionado pelos mitos familiares e religiosos que eles repetem compulsivamente, o
psicoterapeuta se utiliza das parábolas cristãs e de outros mitos bíblicos. Quando há uma
atitude de sacralidade diante destas imagens ocorre uma transformação na consciência dos
pacientes, que passam a perceber que também em Deus há uma natureza paradoxal, através do
Seu terrível aspecto duplo: amor x temor, respeito x misericórdia etc.
Foi oferecida à paciente a possibilidade de elaborar seus conflitos internos que
pareciam irreconciliáveis (corpo x alma, individualidade x exigências sociais, sagrado x
profano), procurando analisar e reavaliar suas atitudes conscientes e inconscientes, com o
objetivo de tornar consciente a atitude inconsciente e assim ajudá-la a desenvolver novas
atitudes, que libertaram o seu imaginário da prisão da culpa disfuncional.
O filho mais velho da parábola poderia representar a “escolha”, inconsciente,
daquelas pessoas que se apegam rigidamente à sua persona, pagando o alto preço de uma
personalidade fragmentada (categoria do profano) e perdendo a unidade essencial com o Si-
mesmo (categoria do sagrado), ou seja, o filho mais velho representaria a outra possibilidade
de escolha do ser humano, isto é, a de não querer confrontar a sua sombra, a de acreditar que
poderá ser perfeito.
A Imagem de Deus (Si-mesmo) continua sendo projetada no exterior (na Igreja, no
sacerdote ou no pastor que também as possui), portanto, não integrada dentro desse filho mais
velho.
Independentemente de suas necessidades e desejos pessoais (pois, segundo a
parábola, também desejava ele uma festa), esse primogênito permanece fiel às exigências
sociais e religiosas, à obediência rígida aos padrões morais, mesmo quando o próprio pai
esperava, segundo a parábola, que agisse de forma diferente, que fosse autêntico, que
atendesse aos anseios da sua alma (psique). O mau humor e o julgamento são características
típicas daqueles que se consideram perfeitos.
O filho mais velho é um legalista, pois tem respeito ao pai, obedece-lhe, mas não se
torna “Um com o pai” (integração total da personalidade), ou seja, não integra dentro de si a
Imagem de Deus. Isto ocorre, talvez, porque teria se identificado com sua persona, negado
110

sua sombra e projetado ou reprimido sua anima no inconsciente. Nos demais casos de
pacientes cristãos que ofereceram resistência à psicoterapia de abordagem integradora,
acompanhados na prática clínica, apenas um deles, até o momento, confirmou sua resistência
à psicoterapia quando foi encaminhado ao seu orientador espiritual.
Um dado interessante é que esta paciente, apesar de até a presente data não ter
retomado o seu processo de psicoterapia, já encaminhou diversos outros pacientes cristãos
para realizar este processo na abordagem integradora, justificando a sua sugestão através da
observação de que se trata de um profissional da psicologia, que não exclui a dimensão
religiosa dos seus pacientes, mas, pelo contrário, que valoriza esta dimensão pois os percebem
na sua totalidade.
111

4 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS DO ESTUDO

Quanto à tipologia, o nosso estudo consiste em uma pesquisa de campo, de dois


tipos: exploratória e descritiva. “[...] É possível que uma pesquisa se inicie como exploratória,
depois passe a ser descritiva [...] (SAMPIERI, 2006, p.98). Descritiva, porque a partir de um
caso clínico se descreve a possibilidade de alteração no imaginário da culpa de uma paciente
cristã e a conseqüente superação da resistência à psicoterapia.
Exploratória, porque o problema da resistência à psicoterapia relacionada ao
imaginário do paciente é um tema que não foi abordado antes, portanto, relativamente
desconhecido. Depois, porque o objetivo do estudo é verificar a possibilidade de obter
informações que justifiquem o investimento em uma pesquisa mais completa sobre o tema. O
método indutivo foi escolhido, selecionando uma clínica psicológica para desenvolver a
análise como suporte. A fundamentação teórica teve como base de sustentação a Teoria Geral
do Imaginário, a terapia familiar sistêmica e a psicologia junguiana.
Quanto à natureza da abordagem, adotamos a qualitativa, pois a partir do processo
de acompanhamento dos pacientes selecionados para nosso estudo e análise dos dados
coletados, se fizeram necessárias três etapas: o olhar, o ouvir e o escrever. Como instrumento
e técnica para coleta dos dados, utilizamos a observação, a entrevista, o estudo de caso, o
diário de campo, a descrição densa e a aplicação do AT-9 de Yves Durand. Para efetuar a
análise, utilizamos à Teoria Geral do Imaginário, que passamos a descrever.

4.1 CONTRIBUIÇÕES DA ANTROPOLOGIA DO IMAGINÁRIO

Quanto ao “Trajeto Antropológico” e o Método de Convergência, podemos


considerar que a supervalorização da razão desenvolveu a tecnologia, porém, o mito de
Prometeu, o do triunfo da tecnologia, começa a cair por terra, pois, aos poucos, se descobre
que não vai ser a solução do mundo. Os métodos funcionalistas e positivistas, não respondem
mais as angústias do modernismo. Surgem novos paradigmas! Não é que agora se vai
invalidar tudo que foi construído pelas ciências clássicas, mas aproveitar o que é eficaz e
acrescentar novas possibilidades de visões de mundo.
As Estruturas Antropológicas do Imaginário foi a tese de doutorado de Gilbert
Durand, publicada em 1960, onde seu objetivo inicial era fazer uma classificação dos
dinamismos imaginários, baseados principalmente nos estudos de Gastón Bachelard, de Carl
Gustav Jung e da análise das mitologias, da literatura e das artes plásticas de diversas culturas.
112

Ele foi aluno do Dr. Bachelard, o qual tem o mérito de ter reconhecido a poesia como um dos
meios de conhecimento portanto complementar a ciência, uma vez que na poesia encontram-
se a sensibilidade, a subjetividade e o simbólico.

Em sua proposta de "um novo espírito científico", Bachelard orienta a ciência para
uma mudança de paradigma, propondo uma epistemologia não só cartesiana,
enveredando pela fenomenologia. Jung, por sua vez, observa nos relatos de sonhos
dos seus pacientes similitudes com relatos míticos pertencentes a outras culturas, o
que lhe serve de base para a elaboração do conceito de arquétipo, e de inconsciente
coletivo. É a partir da fenomenologia de imaginação de Bachelard e da psicologia da
profundidade de Jung, entre outras bases teóricas, que G. Durand constrói a sua
própria teoria.. (PITTA, 1995, p.10)

O imaginário tem o poder de transformar ou reconstruir o real, pois tudo que é real
hoje foi imaginado anteriormente. Muitas das atuais invenções científicas, por exemplo,
foram pensadas anteriormente por escritores. Imaginar não tem método, mas para
compreender o imaginário, para ser científico, tem que ter um método. A preocupação de
Durand (PITTA, 1995) foi estabelecer um método que superasse as compartimentações, pois
considera que toda obra de arte tem sua singularidade e originalidade e está inserida num
meio significativo específico e cultural.
Porém, não se deve confiar na própria imaginação para falar com competência sobre
o imaginário, para tanto, é preciso “[...] possuir um repertório quase exaustivo do imaginário
normal e patológico em todas as camadas culturais que nos propõem a história, as mitologias,
a etnologia, a lingüística e as literaturas”(10).(PITTA, 1995, p.11).
De acordo com Pitta (1995), a metodologia elaborada por Durand tem como base
duas hipóteses consideradas, por ele, como centrais: primeiro, a de que existe uma
continuidade, ou seja, não há um corte entre o imaginário mítico atual expressado através das
belas artes, da literatura, das ideologias ou de outras expressões culturais e as antigas
mitologias; segundo, as atitudes e comportamentos históricos dos seres humanos repetem,
mesmo que com timidez, os papéis e os cenários dramáticos dos grandes mitos.
Segundo Pitta (2005), Durand percebe o imaginário como a essência do espírito,
como um sistema de imagens e das suas relações entre si, a partir do qual o ser humano se
esforça em construir uma esperança diante da angústia da consciência da morte. Se não
houvesse um sentido ou um significado para a vida, se o mundo fosse totalmente objetivo,
sem valores estabelecidos, sejam eles religiosos, filosóficos ou políticos seria muito difícil
manter-se vivo, por isso, o ser humano está sempre em busca de um sentido, para que possa
lidar com a finitude da vida humana.
113

Na verdade, considerando o ser humano em sua totalidade, com as suas dimensões


lógica e afetiva, integrado em um meio objetivo (cósmico e social), G. DURAND
observa que todo o esforço de criação tem por finalidade dar uma resposta à
passagem do tempo e inevitabilidade da morte. [...] Mas para se defender da
angústia existencial e da morte, é preciso representá-las, pois representar já é uma
maneira de exorcizar. Esta angústia é representada por uma série de símbolos que G.
DURAND denominou "os semblantes do tempo". (PITTA, 1995, p.17)

A primeira coisa que um povo faz, para a antropologia, é organizar tempo e espaço e
o faz através do mito. O mito é um relato fundante de uma cultura e tem uma dimensão
pedagógica. São redundantes e têm como função ensinar como as pessoas devem se
comportar e agir. A proposta de Gilbert Durand (PITTA, 2005) é revelar os mitos diretivos,
ou seja, os mitos que revelam a dinâmica social ou as produções individuais representativas
do imaginário cultural, no tempo e no espaço.

Mito é um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e schemes que tende a se


compor em relato. E um início de racionalização. [...] "O mito aparece como um
relato [...] colocando em cena personagens, cenários, objetos simbolicamente
valorizados, segmentável em seqüências ou menores unidades semânticas (mitemas)
no qual se investe obrigatoriamente uma crença (contrariamente à fabula ou ao
conto) chamada 'pregnância simbólica'"([26]). [...] O mito é o discurso último onde
se constitui a tensão antagônica, fundamental a todo discurso, isto é, a todo
'desenvolvimento' do sentido"([28]). Isto significa que a lógica presente no mito não
é a lógica clássica ocidental, binária, mas aquela constituída pelas redundâncias que
permitem a expressão dos antagonismos próprios da vida como um todo (e não só
racional). O mito é então alógico ([29]). O mito é um discurso relativo ao ser.
(PITTA, 1995, p.15-16)

Quando este mito diretivo aparece através da redundância é identificado como


mitemas obsessivos, pois se repetem, através da organização de símbolos, que apesar de terem
diversos sentidos podem ser classificados, pois apontam para um único sentido. Quanto mais
os mitemas se repetem, mas significativos se tornam. Eles podem aparecer tanto de uma
forma manifesta, repetido de forma explícita e de conteúdo homólogo ou de uma forma
latente, repetido de forma implícita, pela intencionalidade.

Antes, entretanto, de ver estas imagens, é necessário saber que os símbolos


constelam, ou seja, se reagrupam de maneira específica, numa dinâmica própria.
Para abordar a maneira como esses símbolos constelam, G. DURAND adotou o
método de convergência. É através desse método que vão ser encontrados os eixos
do "trajeto antropológico". (PITTA, 1995, p.17)

Segundo Pitta (1995) para estudar concretamente o simbolismo imaginário é preciso


perceber a antropologia dentro do seu conceito atual, ou seja, como o grupo das ciências que
tem como objeto de estudo o ser humano na sua totalidade e complexidade e que não impõe
114

uma hierarquia ontológica (conhecimento do ser) culturalista sobre a psicológica ou vice


versa. Não existe anterioridade ontológica, pois ambas têm métodos apenas parciais que
revelam um aspecto da realidade do ser humano, porém, quando unidas formam uma gênese
recíproca que revela o trajeto antropológico.

A definição do trajeto antropológico será pois a seguinte: "é o incessante


intercâmbio que existe, a nível do imaginário, entre as pulsões subjetivas e
assimiladoras e as intimações objetivas emanando do meio cósmico e social"([36].
[...] Existe pois uma ligação, que é reversível, entre a psiqué individual e o
"consenso socio-histórico", que os torna inseparáveis. Em função da posição teórica
escolhida, baseada no "trajeto antropológico", "que leva em conta a psicanálise, as
instituições rituais, o simbolismo religioso, a poesia, a mitologia, a iconografia, ou a
psicologia patológica", é necessário estabelecer uma metodologia condizente. Trata-
se do método de convergência. (PITTA, 1995, p.18-19)

Antes de explicar o método de convergência é necessário definir alguns termos


muito utilizados por Gilbert Durand, pois na sua teoria os termos possuem contornos
específicos. O mito já foi definido, anteriormente, faltando definir schemes, arquétipos e
símbolos. Os Schemes se reagrupam em três conjuntos estruturais que são referências para
todos os gestos possíveis dos seres humanos. Faz a ligação entre as dominantes reflexo (vem
da reflexologia), os gestos inconscientes da sensório-motricidade e as representações.

Scheme: "é a generalização dinâmica e afetiva da imagem. [...] É a dimensão mais


abstrata da imagem, mais próxima da intenção e do gesto, do que da representação.
Por exemplo: o reflexo postural (verticalidade da postura humana), induz dois
schemes: o da verticalização ascendente, e o da divisão (visual ou manual); ao
reflexo da deglutição, correspondem os schemes da descida (percurso interior dos
alimentos) e do aconchego na intimidade (o primeiro alimento do homem sendo o
leite materno, acompanhado da relação afetiva que é a amamentação)([18]). (PITTA,
1995, p.13-14)

O arquétipo é um conceito da psicologia junguiana, que se refere à imagem arcaica


ou primordial comum a todos os seres humanos, pois tem o caráter coletivo e inato, sendo a
zona matricial da idéia, ou seja, seria a substantificação dos schemes, aquele que promove a
junção entre os processos racionais e o imaginário.

[...] “Ele é uma forma dinâmica, uma estrutura organizadora de imagens, mas que
está sempre alem das concretudes individuais, biográficas, regionais e sociais, da
formação das imagens"([20]). "O arquétipo (noção agora reabilitada aos olhos das
ciências exatas pela teoria matemática de René THOM) é a força de coesão
compreensiva comum a vários símbolos, logo tendendo a uma formalização unívoca
mas não atingindo nunca a fórmula abstrata e preenchendo-se sempre de um sentido
verbal. O arquétipo é a força pura do verbo, esvaziada, no limite extremo da
compreensão, do conteúdo do 'sujeito' ou da qualificação do atributo"([21]).
(PITTA, 1995, p.14)
115

O símbolo é uma representação que evoca algo que está ausente, que é impossível de
ser percebido, que tem um sentido secreto a ser revelado e que, portanto, tende a se repetir,
através do fenômeno de redundância, como que para se certificar que o sentido seja
compreendido dentro de um determinado contexto, definido por uma dinâmica específica.
Eles podem aparecer tanto de uma forma manifesta, repetido de forma explícita e de conteúdo
homólogo ou de uma forma latente, repetido de forma implícita pela intencionalidade.

[...] Ele é a "epifania de um mistério". Ele se divide em duas partes: uma visível (o
significante), à qual Paul RICOEUR atribui três dimensões: cósmica (pois toma os
elementos da figuração no meio ambiente), onírica (pois tem suas raízes nas
lembranças, nos gestos que emergem nos sonhos) e poética (pois recorre à
linguagem em formação); uma invisível (o significado), e indizível, que constitui
uma espécie lógica à parte. [...] Os símbolos podem ser classificados em: símbolos
rituais (relativos aos gestos), símbolos iconográficos (imagem visual) e aqueles
relativos à palavra(os mitos)([22]). "Ou ainda digamos que o símbolo coloca as
imagens que possuem um espaço sensível, os significantes, na perspectiva de um
sentido, de um significado cuja indizível singularidade, cuja ausência de localização
necessitam precisamente o trânsito por um significante perceptível"([23]). (PITTA,
1995, p.14-15)

Quando há uma constelação de símbolos é porque eles são variações de um mesmo


tema, ou seja, são desenvolvimentos de um mesmo arquétipo e, como tais, são centros
polarizadores de energia. Gilbert Durand os denominou de “núcleos organizadores”, pois as
imagens vêm convergir em torno deles. O método tem como objetivo delimitar de uma forma
pragmática as constelações de imagens que são estruturadas pelo isomorfismo dos símbolos
que convergem, delimitando assim os grandes eixos dos trajetos antropológicos.
Apesar de não haver uma anterioridade ontológica da psicologia em relação ao
objeto cultural, como foi explicado anteriormente, Pitta (1995) esclarece que como trata-se de
expor o método de uma forma didaticamente compreensível é necessário fazer uma opção
entre as etapas, o que lhe pareceu mais cômodo iniciar pelo scheme psicológico em direção ao
cultural.
Segundo as obras de Lévi-Strauss ou Bastide (PITTA, 1995), tanto as crianças como
as sociedades têm possibilidades de desenvolvimento, que podem vir ou não a serem
concretizadas, dependendo das circunstâncias, ou seja, das “intimações sociais” e dos
“imperativos naturais”

Como ponto de partida psicológico, G. Durand leva em conta, como princípio de


classificação dos símbolos, "imagens motrizes". Trata-se de observar quais são os
gestos básicos no ser humano que organizam as representações. Estabelecendo um
paralelismo entre os reflexos (estudados pela escola de Leningrado) e o dinamismo
que organiza as imagens pois existe uma ligação estreita, "uma estreita
116

concomitância entre os gestos do corpo, os centros nervosos e as representações


simbólicas"([40]). No entanto, não se trata de simplesmente classificar os símbolos,
mas de localiza-los sobre um eixo dinâmico balizado por pólos. (PITTA, 1995, p.20)

O “trajeto antropológico” é um vetor dinâmico com dois pólos antagônicos, que


correspondem às maneiras opostas de organização de mundo. Polarização, na definição de
Durand (PITTA, 1995), é usada como no conceito da eletromagnética, onde se refere mais a
dinâmica de orientação das forças do que da direção de espaços e também como no conceito
de estrutura, onde faz uma crítica a determinados aspectos do estruturalismo e propõe um
“estruturalismo figurativo”, ou seja, “estruturas polarizantes” uma vez que entende que as
estruturas contêm um caráter dinâmico, além da sua componente formal.

O autor constata a existência "de certos protocolos normativos das representações


imaginárias, bem definidos e relativamente estáveis, agrupados em torno de schemes
originais..."([43]): são as estruturas. "Uma estrutura não é uma forma vazia, ela esta
sempre prenhe, para além dos signos e das sintaxes, de um peso semântico
inalienável" ([44]). Considerando o scheme, o gesto básico, este corresponde a uma
tendência de organização do mundo (dividindo ou unindo), que vai fazer com que os
símbolos convirjam de um certo modo e não de outro, através de um dinamismo
organizador, de um modo específico de estruturação. (PITTA, 1995, p.21)

4.1.1 Os Regimes e as Estruturas do Imaginário

Durand, através da coleta de imagens realizadas em várias culturas, percebeu que


existiam pólos estruturais da mentalidade humana, ou seja, um diurno e dois noturnos. Ele,
porém, ressalta que estes pólos da mentalidade humana são transcendentais, pois não possuem
caracteres fixos em um determinado objeto, isto é, como são linhas de força de coesão, podem
fazer a transição. Baseado nestes conceitos de polarização e estrutura e do quadro teórico
apresentado é que Gilbert Durand vai estabelecer “as estruturas antropológicas do
imaginário”.

Tendo observado a existência de imagens cujas dinâmicas interiores eram totalmente


distintas, e partindo do postulado da relação existente entre o corpo e as
representações, G. Durand vai estabelecer um paralelo entre os três grandes gestos
da reflexologia. Segundo esta ciência, existem três reflexos dominantes (ou seja:
reflexos que, quando em atividade, inibem os outros): o de posição (verticalidade do
ser humano), o de deglutição (caminho interior dos alimentos) e o de copulação
(rítmica sexual). São os três grandes gestos fundamentais. O "regime da imagem"
vai ser noturno ou diurno segundo o reflexo, o "grande gesto reflexológico", que se
encontra na base, como um vetor orientado, da constelação das imagens. (PITTA,
1995, p. 22)
117

Durand (PITTA, 1995) vai estabelecer então dois regimes da imagem: diurno e
noturno e três estruturas do imaginário que vão corresponder aos regimes, se baseando nos
três reflexos básicos. Partindo do princípio que os símbolos convergem e de que as estruturas
do imaginário dão uma resposta à angústia existencial, ele vai fazer um inventário dos
símbolos que expressam esta angústia existencial, pois eles reproduzem “os semblantes do
tempo”. É importante frisar, que devido à ambigüidade dos símbolos, aqueles relacionados à
angústia só o vão estar a partir deste contexto.

[...] O mesmo símbolo em outro contexto, pode adquirir significados totalmente


diferentes, positivos. Dentro do contexto da angústia, os símbolos se dividem em
três grandes temas: teriomorfos (relativos à animalidade), nictomorfos (relativos à
escuridão), e catamorfos (relativos à queda). São estas as três grandes dimensões da
angústia existencial que vão se traduzir por uma série de símbolos: [...] (PITTA,
1995, p.23)

A ausência de um sentido para a vida, devido à consciência da finitude, que é


expresso através dos semblantes do tempo, vai criar no indivíduo a necessidade de elaborar
este sentido, na esperança de tornar a vida mais significativa e superar a angústia existencial.
Porém, isto não acontece de uma forma arbitrária, mas sim, de acordo com a cultura e o meio
ambiente no qual o indivíduo está inserido, ou seja, segundo um “trajeto antropológico”
específico.
Estudando as diversas culturas, Durand (PITTA, 1995) percebeu que estas imagens
se dividem em diurnas e noturnas e que esta bipartição compreende uma tripartição, ou seja,
ao regime diurno da imagem corresponde a estrutura heróica e ao regime noturno
correspondem as estruturas mística e sintética. Todas as três estruturas são subdivididas em
quatro aspectos distintos..
Nas estruturas heróicas ou esquizomorfas, do regime diurno, as constelações de
imagem são organizadas em torno de dois schemes: diairético e ascensional, que são ligados
ao arquétipo da luz. Eles são schemes da separação, da divisão, da ascensão, do discernir, do
se impor o poder, que estão intimamente ligados a imagem da espada e do gládio para separar
e da imagem do bastão de comando para impor o poder. De acordo com as características
distintas da intenção poderá ser subdividida em: a idealização ou o recuo autístico; a
"spaltung"; o geometrismo; e o pensamento por antítese.

[...] “Aos schemes, aos arquétipos, aos símbolos valorizados negativamente e aos
semblantes imaginários do tempo, poderia-se opor ponto por ponto o simbolismo
simétrico da fuga diante do tempo ou da vitória sobre o destino e a morte"([51]).
Trata-se do "principio constitutivo da imaginação". [...] Trata-se de um regime
118

essencialmente polêmico. Para a imaginação diurna os símbolos vão constelar em


torno da noção de potência (puissance).[...] (PITTA, 1995, p. 26)

Nas estruturas místicas do imaginário, do regime noturno, as constelações de


imagens estão em torno do scheme de fusão, de construir harmonia, de juntar os elementos, de
uni-los de uma forma tão harmoniosa que a angústia e a morte não possam entrar. A palavra
“mística” não é usada no seu sentido religioso, mas no sentido de vontade de unir,
harmonizar, de criar intimidade. Dependendo da intenção, as quatro subestruturas que podem
responder a este objetivo de harmonização são: redobramento e perseverança; viscosidade e
adesividade; o realismo sensorial; e a guliverização.

[...] "Face aos semblantes do tempo outra atitude imaginativa se desenha,


consistindo em captar as forças vitais do devir, em exorcizar os ídolos mortíferos de
Kronos, em transmuta-los em talismãs benéficos, enfim em incorporar à inelutável
movência do tempo as tranqüilizantes figuras de constantes, de ciclos que no próprio
seio do devir parecem executar (accomplir) um desenho eterno"([57]). [...] (PITTA,
1995, p. 28)

Nas estruturas sintéticas ou disseminatórias do imaginário, do regime noturno, os


símbolos, na tentativa de dominar o tempo, através da repetição de “instantes temporais”,
reagrupam-se em duas categorias distintas, ou seja, na categoria dos símbolos relativos ao
progresso e na categoria daqueles relativos à ciclicidade do tempo. Tanto um como o outro
precisa do acompanhamento de uma narração mítica ou histórica. Os símbolos constelam em
quatro subestruturas que são: a harmonização dos contrários; dialética ou contraste; a
estrutura historiadora; e a estrutura progressista.

[...] "Todos os símbolos da medida e da dominação do tempo vão ter tendência a se


desenvolver segundo o fio do tempo, a ser míticos, e esses mitos serão quase sempre
mitos sintéticos que tentam reconciliar a antinomia que o tempo implica: o terror
diante do tempo que foge, a angústia diante da ausência, e a esperança na
realização (accomplissement) do tempo, a confiança em uma vitória sobre o
tempo"([67]). Trágico na fase descendente e triunfante na fase ascendente, dizem
respeito a uma dramaticidade, ou seja, a uma ação violenta e dolorosa. [...] (PITTA,
1995, p.30)

4.2 O ARQUÉTIPO TESTE DOS NOVE ELEMENTOS (AT-9)

Yves Durand, psicólogo francês que era aluno de Gilbert Durand, em 1958, teve
conhecimento da tese de doutorado do seu então professor, ainda em fase de elaboração. Foi
seduzido de imediato por vários aspectos da tese, principalmente: o fato de haver um
imaginário universal, onde aquele de uma pessoa intelectual poderia ser estruturado
119

igualmente àquele de uma pessoa simples; a possibilidade de um sistema de classificação de


imagens, assim como de ordenação das emoções.

Em um primeiro tempo a ênfase foi dada para o instrumento clínico, mas isto não
era o essencial: o AT-9 é de fato um instrumento de pesquisa do imaginário que
permitiu inclusive a formação de um banco de dados sobre o imaginário. Ele pode
ser empregado em psicologia, educação, sociologia, antropologia, arte, etc. Trata-se
de um instrumento de acionamento do imaginário que não pertence com
exclusividade aos psicólogos (74]). [...] (PITTA, 1995, p. 33)

Yves Durand percebeu que a partir da teoria antropológica do imaginário poderia


verificar em que medida os arquétipos eram funcionais para o indivíduo ou não, pois os
símbolos quando constelados são desenvolvimentos de um mesmo arquétipo e, portanto,
centros polarizadores de energia psíquica. Gilbert Durand os denominou de “núcleos
organizadores” e Yves Durand, os chamou de “nós aglutinadores”.

É objetivo também sistematizar uma abordagem da imagem: "Quando se toma por


objeto de estudo a imagem, seu campo (o Imaginário) e a função psíquica suposta (a
imaginação), tem-se a escolha entre três grandes concepções clássicas. [...] Estas
teses dão espaço para uma concepção reconhecendo à imaginação características
permitindo defini-la verdadeiramente como função do psiquismo"([75]). Para
empreender a formulação experimental do imaginário, Yves Durand utiliza o
conceito de "trajeto antropológico"."[...], na seqüência dos trabalhos de G. Durand -
e notadamente a partir da teoria exposta em sua tese - realizamos um modelo
experimental destinado a colocar esta teoria à prova dos fatos. Depois esse modelo
foi transformado em teste cujos resultados constituem tantos argumentos em favor
da validade da teoria"([76]). (PITTA, 1995, p. 33-34)

Na construção do teste obtêm-se os fatos simbólicos, que poderão ser materializados


pela imagem iconográfica do desenho e um sentido para estes fatos, através do relato do que
ocorre no desenho. Os sujeitos, na busca de obter uma unidade e uma coerência simbólica no
desenho dos nove elementos arquetípicos, procuram organizar os fatos simbólicos em um
subconjunto significante, gerando um micro-universo mítico. Para Gilbert Durand, um dos
meios de exorcizar a angústia existencial é representá-la. Pensando neste postulado, Yves
Durand selecionou os nove arquétipos para estimular as três dimensões do drama:

Os “stimuli” suscitando as imagens do Tempo e da Morte: são a “queda” e o


“monstro devorador”. Os “stimuli” representando meios de engatar defesas (sem ser
no sentido psicanalítico), ou estruturas, contra esta angústia: a espada, o refúgio e a
coisa cíclica. Os “stimulis” de complemento: água, animal e fogo, que pela sua
ambivalência simbólica podem ser adaptados à coerência do micro-universo criado.
Em resumo, como foi visto acima: o teste é composto de um estímulo central que é o
personagem; dois estímulos ansiógenos, que são a queda e o monstro; três estímulos
de resolução de ansiedade, que são a espada, o refúgio e o elemento cíclico; três
estímulos complementares: a água, o animal e o fogo. (PITTA, 1995, p. 35-36)
120

Há várias possibilidades de utilização do teste. Portanto, pensando nestas diversas


perspectivas Yves Durand construiu quatro possibilidades de analisar o teste, dependendo do
nível de informação que se deseja obter através do micro universo criado pelo sujeito da
pesquisa. Porém, em todas as quatro possibilidades pretende-se obter que o sujeito crie
mensagens compostas de símbolos e que faça um arranjo destes símbolos, que os organizem
na mensagem.

[...] “Metodologicamente parece que o problema essencial colocado pelo estudo


experimental da função simbólica é o seguinte: como codificar, descrever e conhecer
objetivamente fatos relativos à função simbólica [...] sem destruir o objetivo de
estudo?” (77). Recorrendo ao método de convergência, Y. D. diz: “A função
imaginária corresponde à estrutura que aparece através do arranjo, do agrupamento,
das relações existentes no seio de um conjunto de símbolos. Nesta ótica, as
estruturas são definidas pela repetição de agrupamentos isomorfos.”(78) (PITTA,
1995, p.34)

A análise do AT-9 realizada, nesta pesquisa científica, foi a análise estrutural, onde
os protocolos do teste foram classificados de acordo com as estruturas antropológicas do
imaginário, pensadas por Gilbert Durand. As outras três possibilidades de análise são: a
análise actancial, onde o objetivo é saber a especificidade da angústia existencial; a análise
dos elementos, que tem como objetivo descobrir as características atribuídas pelo sujeito aos
nove elementos arquetípicos; e a análise das conexões de imagens, onde busca-se observar a
relação que o indivíduo construiu entre cada um dos nove elementos propostos pelo teste.

4.3 PESQUISA CLÍNICA

A presente pesquisa teve como foco central de estudo, pacientes cristãos que
buscaram atendimento psicoterapêutico, devido ao surgimento ou a percepção de
determinados sintomas psicológicos, psicossomáticos ou de comportamento socialmente
inadequado que limitavam ou restringiam a sua vida. O método utilizado foi o clínico-
qualitativo, conforme proposto por Turato (2000), associado à aplicação do teste projetivo o
Arquétipo Teste dos Nove Elementos (AT – 9), do psicólogo Yves Durand.
Segundo Turato (2000), o clínico-qualitativo é o método de pesquisa científica mais
adequado para os cientistas da saúde, pois favorece a apreensão dos sentidos e significados
que os pacientes dão aos fenômenos relativos às questões saúde-doença. No método clínico-
qualitativo as angústias e ansiedades do paciente são valorizadas e entendidas como
fundamentais. “A angústia, como desejo de algo que se teme e de medo do que se deseja e
121

que como tal prepara e anuncia uma ruptura, um salto a realizar”(TURATO, 2000 apud
JOLIVET, 1975, p.19).
A angústia não só como um sintoma psicológico, mas principalmente com um
sentido existencialista, como algo que trás desarmonia interna, um medo inexplicável, logo
justifica a escolha do método clínico-qualitativo por considerar ser o mais adequado para
trabalhar com pacientes em atendimento psicoterapêutico e por estarem em sintonia com a
Teoria Geral do Imaginário, no que se refere ao fenômeno da angústia existencial.
Foram escolhidos os casos mais significativos para serem pesquisados, ou seja,
aqueles em que o paciente abandonou a psicoterapia, por iniciativa própria, alegando
inúmeros motivos que, para ele, justificavam a interrupção do processo psicoterapêutico, mas
que, na avaliação do clínico/pesquisador, tratava-se de uma resistência inconsciente à
psicoterapia, devido à angústia diante da impossibilidade para superar ou vencer os sintomas.
A análise estrutural do AT-9, aplicados aos pacientes cristãos, forneceu a
informação sobre a estrutura do imaginário de cada paciente e o regime da imagem
correspondente, ou seja, o “trajeto antropológico” destes pacientes. A hipótese formulada foi a
de que, se seria possível, através do conhecimento do “trajeto antropológico” dos pacientes
resistentes e dos não resistentes, descobrir algo que é comum aos pacientes do mesmo grupo e
diferente entre os dois grupos. Se a hipótese fosse confirmada, haveria subsídios para sugerir
que um estudo mais completo sobre este tema deveria ser realizado.
Quanto à definição da amostra foram selecionados dez pacientes que expressaram
sua fé religiosa diferenciada, sendo que sete deles se declararam cristãos, dois se declararam
espíritas e um se declarou ex-cristão. Foram divididos em dois grupos de cinco pacientes: os
que apresentaram resistência ao tratamento e que, de fato, abandonaram o processo, por
iniciativa unilateral e os que não apresentaram resistência durante o processo.
Foram convidados dez pacientes para participar do grupo dos resistentes, mas apenas
cinco deles concordaram. Portanto, os do segundo grupo também foram limitados a cinco
pacientes, sendo que quatro deles já receberam alta e um deles estava em processo de alta no
momento em que foi efetivada a coleta de dados, através do teste projetivo AT-9. Todos são
pacientes adultos, atendidos individualmente, com idades variando entre 22 e 54 anos, de
ambos os sexos, sendo seis mulheres e quatro homens, pertencentes às classes sócio-
econômicas baixa, média e média alta, todos residentes na cidade de João Pessoa – PB.
O campo empírico foi o setting terapêutico, pois é o local adequado para coleta dos
dados, uma vez que se trata de um ambiente delimitado, que preserva as inúmeras
122

manifestações, conscientes ou inconscientes do paciente, facilitando a reflexão clara e


profunda, a respeito do ser humano.

“[...] No caso da pesquisa clínico-qualitativa, consideramos metodologicamente que


o contexto físico-estrutural, quotidiano, do local da prestação de serviços clínicos (o
setting dos cuidados com a saúde) configura-se num ambiente natural para as
pessoas ali envolvidas com processos clínicos preventivos e/ ou terapêuticos.[...]
(TURATO, 2000, p. 3)

Associado ao AT-9, utilizou-se também da escuta psicoterapêutica destes pacientes,


buscando compreender as relações de significados, ou seja, mais importante do que o
conteúdo daquilo que o paciente está dizendo, o pesquisador deve observar e compreender o
que a pessoa, na sua fala ou no seu comportamento, quer dizer ou denunciar e qual o
significado que eles têm para a própria pessoa e para seu sistema familiar, social e religioso.
Esta é a diferença da pesquisa qualitativa para a clínico-qualitativa.

“[...] E o que se apresentaria, de fato, como novo nesta proposta de trabalho de


investigação científica que temos denominado clínico-qualitativa? Digo que temos
uma proposta não somente teórica, mas também, e, sobretudo, prática e concreta de
união, numa postura que se quer eclética entre duas áreas.
De um lado, as concepções epistemológicas dos métodos qualitativos de pesquisa
desenvolvidos a partir das Ciências do Homem, e, de outro lado, os conhecimentos e
atitudes clínico-psicológicas desenvolvidos tanto no enfoque psicodinâmico das
relações pessoais, como historicamente no campo da prática da medicina clínica.
[...]” (TURATO, 2000, p. 6)

Os protocolos do teste AT-9 que estaremos apresentando em seguida foram


utilizados como suporte para nossa análise.

4.4 PROTOCOLOS DO TESTE AT-9

Aplicamos dez protocolos do Arquétipo Teste dos Nove Elementos (AT-9), sendo
quatro com o sexo masculino e seis com o sexo feminino. Quando da aplicação do teste AT-9,
os pacientes foram convidados por telefone a comparecerem a clínica, para se submeterem ao
teste, já que nove deles já não mais se encontravam em processo psicoterapeutico. Os cinco
do primeiro grupo, porque tinham abandonado o processo, através da resistência e quatro do
segundo grupo porque já estavam de alta. O teste AT-9 foi aplicado ao quinto paciente do
segundo grupo, após uma de suas sessões do processo de alta.
Foram quatro momentos: no primeiro, o paciente foi solicitado a construir um
desenho estimulado por nove elementos arquetípicos, escolhidos por Yves Durand pelo
123

significado profundo de cada um deles e por serem representativos da trama construída pelo
sujeito da pesquisa; no segundo momento, os pacientes construíram uma narrativa escrita
sobre o desenho; no terceiro momento, preencheram um quadro síntese e, por último,
responderam a um questionário. Os pacientes utilizaram lápis, sem uso de borracha e o tempo
de execução foi de 30 minutos, porém, dois dos pacientes utilizaram mais de 30 minutos.
Os testes dos pacientes foram analisados através da análise estrutural, com o
objetivo de obter informações sobre a estrutura do imaginário e o regime das imagens, a partir
do micro universo mítico criado por eles. Analisou-se o desenho associado ao relato, ao
quadro resumo (representação, papel/função e simbolismo) e ao questionário. Foi possível
identificar a estrutura do imaginário de cada paciente ou a impossibilidade de estruturá-lo, nos
casos em que a angústia é tão forte que o paciente não consegue desenvolver nenhum tipo de
defesa.

4.4.1 Protocolos Analisados

PROTOCOLO 01

Nome ou pseudônimo: HOMEM 1 Idade: 42 Sexo: Masculino


Profissão: Funcionário de uma empresa privada Nível de Escolaridade: Superior

O guerreiro recupera o catavento e o tempo


voltará a se mover em sua vida. Na queda
ele consegue finalmente matar o monstro
devorador de sua vida. Voltando a Evoluir
e voar para o Progresso e para o Futuro.
Constrói pontes e passa por Elas para
continuar suas estórias.
124

QUADRO RESUMO

ELEMENTO REPRESENTAÇÃO (A) PAPEL/FUNÇÃO (B) SIMBOLISMO (C)


Queda Guerreiro no chão Lutar Combate
Espada Espada no chão Força Retidão, algo fálico
Refúgio Pontes Fugir Acesso
Monstro Um SER feio Inimigos Pessoas
Cíclico Catavento Evoluir Giro, mudança
Personagem Guerreiro Defender Combate
Água Mar Interrogações da vida Infinito
Animal xxxx xxxx xxxx
Fogo Combate Superar atritos Vida

QUESTIONÁRIO AT-9 (RESPOSTAS)

a) Idéia central: o guerreiro. A indecisão nesta situação não foi muito determinante.
b) Inspiração: Por todos os filmes que vi. Ex. o sexto sentido, BENHUR, etc, etc..
c) 1º Elementos Essenciais: Fogo, monstro, personagem
2º Gostaria de Eliminar: Queda (ás vezes não entendemos o sofrer). Cíclico (a
mudança deprime o ser)
d) A Cena Termina: Com o progresso
e) Onde estaria e o que faria? Poderia ser o vento. Que move todas as coisas. Que está
em todos os lugares ou um construtor de pontes.

Análise e Classificação do Micro-universo Mítico

O paciente representou o personagem como um guerreiro, que tem a função de


defender, simbolizando o combate com o monstro devorador de sua vida. O elemento monstro
é representado por um Ser feio, que tem o papel das pessoas inimigas. O elemento espada tem
a função de força, simbolizando a retidão, algo fálico. O elemento queda é representado pelo
guerreiro no chão, com a função de lutar, simbolizando também o combate. Remetem ao
simbolismo heróico. A queda tem a ver com a queda moral e as experiências dolorosas da
infância.
125

A idéia central em torno da qual ele construiu a composição foi a do guerreiro. Os


elementos essenciais foram o próprio guerreiro, o monstro e o fogo. O fogo é representado
pelo combate, com a função de superar atritos, simbolizando a vida. O elemento refúgio foi
representado por pontes, com a função de fugir e o simbolismo de ter acesso, como vontade
de unir polaridades, no sentido de harmonização, equilíbrio. Remete ao simbolismo místico.
O paciente se identifica como um construtor de pontes e a cena que ele imaginou termina com
o progresso.
O elemento cíclico é representado pelo cata-vento, que tem a função de evoluir,
simbolizando o giro, a mudança: “O guerreiro recupera o cata-vento e o tempo voltará a se
mover em sua vida”. Há a introdução da dimensão temporal que remete ao simbolismo
sintético. O guerreiro torna-se soberano pelo poder do cata-vento e do vôo, pois as asas
significam vontade de transcendência, não num sentido metafísico, mas de transição de uma
situação de estagnação para uma de evolução, num sentido ascendente, de progresso:
“Voltando a Evoluir e voar para o Progresso e para o Futuro.
Portanto, foi classificado como um Micro-universo mítico Universo Sintético
Simbólico Diacrônico, do Regime Noturno, pois “[...] predomina a imagem do círculo
integrador ou “figuras alegóricas de uma finalidade existencial otimista”.(42)” (PITTA, 1995,
p. 38)

PROTOCOLO 02

Nome ou pseudônimo: HOMEM 2 Idade: 45 Sexo: Masculino


Profissão: Profissional liberal Nível de Escolaridade: Superior

A historia do desenho pode ser contada


como a luta que nós travamos para com
os nossos limites (monstros). Se
mergulharmos para fugir, quando
emergimos, lá está ele de novo.
126

QUADRO RESUMO:.

ELEMENTO REPRESENTAÇÃO (A) PAPEL/FUNÇÃO (B) SIMBOLISMO (C)


Queda Mergulho Fugir Fuga
Espada Arma Defender Força
Refúgio Caverna Não enfrentar Proteção
Monstro Limites Oprimir Prisão
Cíclico Círculos Repetir Nunca acaba
Personagem Homem Vítima Eu
Água Lago Aliviar Alívio
Animal Pássaros Libertar Liberdade
Fogo Fogueira xxxx xxxx

QUESTIONÁRIO AT-9 (RESPOSTAS)

a) Idéia Central: Da idéia que nossa existência é chave de quedas, e que devemos ser
enfrentados.
b) Inspiração: Sim na vida que e cheia de quedas e superações.
c) 1º Elementos Essenciais: Espada, queda, cíclico
2º Gostaria de Eliminar: Refugio: porque acho que devemos enfrentar o monstro
d) A Cena Termina: Termina com a vitória do personagem sobre o monstro
e) Onde estaria e o que faria? Corrido – enfrentaria o monstro

Análise e Classificação do Micro-universo Mítico

Num primeiro momento há um enfrentamento, uma luta, entre o personagem


representado por um homem, que tem o papel de vítima e que simboliza o próprio paciente e
o monstro, que é representado por seus limites, portanto, por ele mesmo em tamanho
avantajado, expressando simbolicamente o tamanho de seus limites, que tem a função de
oprimi-lo, aprisioná-lo: “A historia do desenho pode ser contada como a luta que nós
travamos para com os nossos limites (monstros)”. Se há a luta, o personagem não se
reconhece no papel do herói, mas sim no da vítima.
O elemento espada está no desenho, representado por uma arma na mão do
personagem, porém, com a função de se defender, simbolizado pela força que possibilita uma
127

possível defesa, não como uma força de ataque. O elemento animal está representado pelos
pássaros, mas não no sentido de potência de voar, de força, de poder, pois não há nenhuma
referência as asas. Está na função de libertá-lo da prisão dos limites que o oprimem,
simbolizando a possibilidade de uma almejada liberdade. Os pássaros estão na sua função de
símbolo da paz, da liberdade.
O elemento refúgio está representado pela caverna, com a função de não
enfrentamento do monstro, com o simbolismo da proteção. Caverna é um símbolo da
intimidade, da moradia protetora, do aconchego. O elemento fogo, representado pela fogueira
no interior da caverna também sugere o aconchego, o fogo que aquece, apesar do paciente
não ter lhe atribuído esta função, nem este simbolismo. Há um sentimento ambivalente em
relação ao refúgio, que é confirmado quando questionado sobre o que faria se estivesse
participando da cena: “Corrido - enfrentaria o monstro”
Apesar do personagem desejar lutar com o monstro, pois um dos elementos essenciais
em torno do qual ele construiu o desenho foi a espada e quando questionado sobre como
termina a cena que ele imaginou: “Termina com a vitória do personagem sobre o monstro”
(característica da estrutura heróica do imaginário), esta luta, entretanto, está na instância do
desejo latente, pois, quando foi questionado sobre que elemento gostaria de eliminar e por
que?, ele respondeu que era o “Refugio: porque acho que devemos enfrentar o monstro”. Ele
acha, deseja, mas ainda não consegue.
Num segundo momento, ele sai do refúgio, mas não enfrenta o monstro. O elemento
queda é representado pelo mergulho, com a função de fugir do monstro. A fuga diante da
angústia existencial do tempo e da morte. O elemento água é representado pelo lago, que tem
a função de aliviar. Mergulhar é uma descida lenta, (característica da estrutura mística do
imaginário). Lago tem águas paradas, estagnadas.
O elemento cíclico é representado pelos círculos, que têm a função de repetir,
simbolizando o que nunca acaba: “Se mergulharmos para fugir, quando emergimos, lá está ele
de novo.” O tempo cíclico não tem começo, nem fim. A morte é recomeço e não um fim.
Além do elemento da espada, os outros dois elementos essenciais em torno dos quais o
paciente construiu seu desenho foram os elementos cíclico e queda, sendo o elemento queda,
o arquétipo da vertigem, a experiência do medo, a angústia humana diante da temporalidade.
A queda foi a idéia central em torno da qual ele construiu sua composição.
O personagem vive ao mesmo tempo dois universos: o heróico e o místico, ou seja,
ele participa das duas polaridades. Ele é sujeito de duas ações que se desenvolvem em dois
momentos, porém, numa estrutura unificada. Ele também se desdobra em dois personagens
128

diferentes: a vítima e o monstro (seus próprios limites), cada um deles assumindo um


universo, porém, num projeto existencial comum.
Portanto, foi classificado de Duplo Universo Sintético Existencial Sincrônico –
DUEX sincrônico, do Regime Noturno.

PROTOCOLO 03

Nome ou pseudônimo: HOMEM 3 Idade: 28 Sexo: Masculino


Profissão: Comerciário Nível de Escolaridade: Ensino médio

Era uma vez um jovem rapaz que


morava em um lindo sitio onde o
sol brilhava, os pássaros
voavam... e vivia em harmonia
com o universo. Certa vez ele
matou uma cobra Traiçoeira que
ameaçava a paz daquele
ambiente. Enfim tudo continuou
naquela harmonia.

QUADRO RESUMO:

ELEMENTO REPRESENTAÇÃO (A) PAPEL/FUNÇÃO (B) SIMBOLISMO (C)


Queda Ladeira do rio Regar a terra, saciar Dificuldades
Espada Espada que matou a cobra Atacar, defender Arma
Refúgio Casa Aconchegar fortalecer Aconchego
Monstro Cobra Devorar Minha mãe
Cíclico O sol Fonte de luz e calor... Fonte de energia
Personagem O jovem Zelar pelo sítio Eu
Água O rio Lavar, Saciar Renovação
Animal Pássaros Libertar, voar Viver nesse lugar
Fogo A luz solar Aquecer, iluminar Fonte de energia
129

QUESTIONÁRIO AT-9 (RESPOSTAS)

a) Idéia Central: Na idéia de uma casa harmoniosa com a natureza


b) Inspiração: Não, porém, desenho com freqüência este desenho
c) 1º Os Elementos Essenciais: A casa, o pomar, o rio e o sol.
2º Gostaria de Eliminar: A cobra,
d) A Cena Termina: Em harmonia, integração e paz
e) Onde estaria e o que faria? Eu sou o jovem, faria o que fiz no desenho, eliminaria a
cobra.

Análise e Classificação do Micro-universo Mítico

Aqui também parece que o personagem vive dois momentos bem diferentes. No
primeiro momento, a harmonia total. O elemento personagem é representado por um jovem,
que tem a função de zelar pelo sítio, simbolizando o próprio paciente, vivendo em harmonia
com a natureza e o universo: “Era uma vez um jovem rapaz que morava em um lindo sitio
onde o sol brilhava, os pássaros voavam... e vivia em harmonia com o universo.” Quando
questionado sobre que idéia central ele construiu a composição, respondeu: “Na idéia de uma
casa harmoniosa com a natureza”
O elemento queda, é representado pela ladeira do rio, simbolizando suas
dificuldades, porém, com a função de regar a terra e saciar. O elemento refúgio é representado
pela casa, que tem a função de aconchegar, fortalecer, simbolizando o aconchego. Diante da
angústia existencial e da morte, o paciente vai negá-las, criando um mundo em harmonia,
baseado na vontade de aconchego e de intimidade. Também remete ao simbolismo místico.
O segundo momento ocorre num tempo que já passou: (“Certa vez ele matou uma
cobra Traiçoeira que ameaçava a paz daquele ambiente”). Parece que esta parte da cena não
está integrada ao conjunto da composição, lhe parece estranho. O elemento monstro,
representado pela cobra, tinha (pois a cobra não mais ameaça a paz do ambiente) a função de
devorar, simbolizando a mãe do paciente. A função de devorar é um símbolo teriomorfo do
semblante do tempo, ligado à animalidade angustiante, sob a forma de “mordicância” ou ato
de morder, devorar. Remete ao regime diurno.
A relação simbólica entre a cobra e a mãe da paciente remete também ao símbolo
nictomorfo da feminilidade animalizada, a imagem da mãe terrível, devoradora, que sufoca.
Remete ao regime noturno. Entretanto, não há combate durante a composição, inclusive o
130

elemento espada, representado pela arma que matou a cobra, com a função de atacar e
defender, não aparece no desenho, nem no relato, nem quando questionado sobre os
elementos essenciais em torno dos quais ele construiu o desenho: “A casa, o pomar, o rio e o
sol.”
Quando questionado sobre que elemento gostaria de eliminar, responde que seria “A
cobra,“. Tem o desejo latente de justificar, percebe-se que ele coloca a vírgula depois da
palavra cobra, mas não o faz. Quando questionado sobre onde estaria e o que faria se tivesse
de participar da cena que compôs, ele responde que: “Eu sou o jovem, faria o que fiz no
desenho eliminaria a cobra”, ou seja, ele gostaria de eliminar o elemento cobra e eliminar a
cobra.
O sol, representante do elemento cíclico, é fonte de luz, calor e energia. O sol poderia
também simbolizar algo que gira, porém, o paciente o colocou na função de fonte de luz e não
como “o nascer e o por do sol”, por exemplo. O elementos fogo, assim como a água também
têm significação simbólica polivalente, porque seu simbolismo pode remeter tanto a estrutura
heróica, como a mística e a sintética. Neste contexto, as imagens vão constelar em torno do
simbolismo heróico, tanto as que representam o elemento água, como as do fogo e do animal.
A água é representada pelo rio, portanto, água que escorre para um lado só, como o
tempo que passa para nunca mais voltar. Também é um símbolo nictomorfo. O elemento fogo
é representado pela luz solar, com a função de aquecer, iluminar, simbolizando a fonte de
energia. Luz e sol são símbolos espetaculares, isomorfismo entre o céu e o luminoso,
portanto, também remetem ao simbolismo heróico.
O elemento animal é representado pelos pássaros, com a função de libertar, voar,
simbolizando viver neste lugar, porém, livre da ameaça do monstro devorador, a cobra
Traiçoeira. O pássaro na sua função fundamental de voar, como metáfora de ascensão,
também remete ao simbolismo heróico. Há várias tentativas de incluir na composição imagens
que remetem ao simbolismo heróico, também, através da presença do elemento monstro no
desenho, no relato e no que o paciente gostaria de fazer: “Eu sou o jovem, faria o que fiz no
desenho eliminaria a cobra.”
Porém, a idéia central gira em torno da harmonia, remetendo ao simbolismo místico:
“Na idéia de uma casa harmoniosa com a natureza”; na escolha dos elementos essenciais: “A
casa, o pomar, o rio e o sol”; no desejo de retirar o elemento monstro, representado pela
“Cobra”; e, principalmente, na cena final que ele imaginou: “Em harmonia, integração e paz”.
Como ele diz no relato: “Enfim tudo continuou naquela harmonia.”
131

Portanto, foi classificado como Micro-universo Mítico Místico Impuro, do


Regime Noturno, pois predomina a paz, a tranqüilidade e a harmonia. A espada foi
disfuncionalizada e o monstro colocado de maneira arbitrária, pois já tinha sido morto, apesar
de ter provocado certa ameaça e insegurança
.
PROTOCOLO 04

Nome ou pseudônimo: HOMEM 4 Idade: 54 Sexo: Masculino


Profissão: Funcionário Público Nível de Escolaridade: Pós-Graduação

Meu desenho representa a carência


que eu tenho de poder está com uma
pessoa do mesmo sexo, que eu possa
amar e ser amado e viver um grande
amor. Morar quem sabe juntos....
Viver em paz, numa casa com flores,
plantas, verduras, muito verde, água
limpa, muita harmonia conjugal. Meu
medo é encontrar uma pessoa que
seja igual ou parecida com a que estive p/6 anos e meio... Seria + 01 (uma) queda.

QUADRO RESUMO:

ELEMENTO REPRESENTAÇÃO (A) PAPEL/FUNÇÃO (B) SIMBOLISMO (C)


Queda Medo de cair Advertir Lição de vida
Espada Traição Ferir Crime
Refúgio A pessoa amada Salvar Casa x Família
Monstro Pessoa desconhecida Fracassar Medo
Cíclico xxxx Xxxx Xxxx
Personagem Parceiro Casar Parceria
Água Limpa = vida Suja = morte Vida e Morte
Animal Homem Completar Necessidades
Fogo Paixão Se relacionar Tesão
132

QUESTIONÁRIO AT-9 (RESPOSTAS)

a) Idéia Central: Em torno da minha vida hoje. Sim. Ciclo


b) Inspiração: Não
c) 1º Elementos Essenciais: Personagem, queda, espada, água e fogo.
2º Gostaria de Eliminar: Cíclico, espada, queda, por não querer viver a experiência
novamente.
d) A Cena Termina: Como começou, apenas com mais necessidade e esperança.
e) Onde estaria e o que faria? Estaria com a pessoa desejada e faria tudo p/ser feliz.

Análise e Classificação do Micro-universo Mítico

O elemento personagem é representado por um parceiro, que teria a função de casar


com ele, simbolizando a parceria tão desejada. O elemento refúgio também é representado
pela pessoa amada, que tem a função de salvá-lo, simbolizando não só a casa, mas também, a
família que deseja construir com este novo parceiro. O elemento espada é representado pela
traição, tem a função de ferir, simbolizando o crime. O elemento monstro, não aparece no
desenho, nem no relato e é representado por uma pessoa desconhecida, que tem a função de
levá-lo ao fracasso, simbolizando seu medo.
O elemento queda é representado pelo medo de cair, a perda de um ponto de
equilíbrio, tem como função adverti-lo, simbolizando uma lição de vida. A queda tem a ver
com dor, castigo e medo, relacionados à experiência dolorosa da infância. Freqüentemente é
uma queda moral e está relacionado com a carne, o ventre digestivo, o ventre sexual, a
situação existencial do ser humano, a angústia diante do tempo. Tem mais haver com a morte
do que com a vida.
Não há uma composição mítica. Seu desenho é explodido, ou seja, ele desenhou
apenas o subconjunto personagem-refúgio, sem nenhuma ligação com os outros sete
elementos. O paciente não faz um relato da história do desenho, mas sim descreve uma
interpretação dos seus sentimentos, frustrações, medos e esperanças. Talvez a angústia
predominante não permitiu que ele desenvolvesse um tipo de defesa, diante desta angústia.
Portanto, foi classificado como uma Estrutura Defeituosa Não Estruturada
Simples.
133

PROTOCOLO 05
Nome ou pseudônimo: MULHER 1 Idade: 44 Sexo: Feminino
Profissão: Funcionária Pública Nível de Escolaridade: Superior

O personagem estava em uma terra


inóspita. Alem de todas as adversidades
que ele enfrentava, surgiu uma pior de
todas – um monstro que diariamente o
aterrorizava. Seguia-o diariamente (eles
conviviam), deixando o seu ser
petrificado (mobilizado) de terror. Certo
dia o personagem encheu-se de coragem
e moveu-se na direção da água, de um
novo espaço (= horizonte). Mais que
moveu-se, ele correu.... e conseguiu fugir do monstro e de tudo que ele trazia consigo. Lançou-se,
então, para a água. Lançou-se mesmo sem saber nadar (ou sem nunca ter nadado, sem se quer tentado
!) Os pássaros observavam-no. O personagem foi muito rápido, escapando do vento que, num
movimento cíclico tentou tragá-lo. Alcançou a água e nadou, como nunca! – como nunca, mesmo!
(detalhe: o monstro estava estarrecido, espantado quando ele se moveu em fuga e escapou). O
personagem nadou e chegou em um lugar lindo e, aproximando-se do fogo, aqueceu-se naquele
refugio. Havia árvore p/descansasse sob ela; uma espada para se proteger, caçar e usar como quisesse;
uma gruta para se abrigar do frio e dos perigos; naquele novo lugar, distante da terra inóspita onde
vivera ate então, conheceria outras pessoas naquele lugar. Havia nova vida e esperança.

QUADRO RESUMO

ELEMENTO REPRESENTAÇÃO (A) PAPEL/FUNÇÃO (B) SIMBOLISMO (C)


Queda Busca do novo Lançar-se Mudanças
Espada Espada Fincada na terra Caçar Segurança, utilidade
Refúgio Lugar plano, lindo Recepcionar Segurança
Monstro Monstro meio disforme Aterrorizar Imobilização
Cíclico Vento, (espiral) Desviar da rota, Empecilho
Personagem Homem (herói) Corajoso Eu
Água Rio Fugir Mudança
Animal Pássaros Observar Testemunhas
Fogo Fogueira Aquecer, guiar Luz
134

QUESTIONÁRIO AT-9 (RESPOSTAS)

a) Idéia Central: Em torno da minha vida, do meu momento atual e do que espero. Não
fiquei indeciso.
b) Inspiração: Não apesar de gostar muito de filme.
c) 1º Elementos Essenciais: O personagem, o mostro, o refugio , a água, a queda
2º Gostaria de Eliminar: O monstro e o vento são terríveis mas que existem e a
consciência disso, levou a busca pelo refugio Sem eles na composição, a história seria
outra.
d) A Cena Termina: Muito bem, com o personagem em uma nova vida. Não significa que
ele não terá novos monstrinhos (problemas), mas agora sem aquilo que o imobilizava.
A terra não e mais seca, inóspita ou acidentada, mas verde fértil plana (não monótona)
e) O que faria e onde estaria? Eu sou o personagem e estou tentando/ buscando pular na
água p/ atingir o refugio.

Análise e Classificação do Micro-universo Mítico

O personagem é representado por um homem, que tem a função de herói corajoso e


simboliza a própria paciente. O elemento monstro está presente, com a função de aterrorizar,
simbolizando a imobilização diante dos problemas diários: “[...] um monstro que diariamente
o aterrorizava. Seguia-o diariamente (eles conviviam)”. Há uma relação entre o herói e o
monstro que remete ao simbolismo heróico, do regime diurno. O elemento queda é
representado pela busca do novo, tem a função de lançar-se, simbolizando as mudanças
decorrentes deste movimento da paciente.
O elemento água, representado pelo rio, tem a função de fugir, confirmando este
desejo de mudança. O rio tem água que escorre para um lado só, que passa para nunca mais
voltar, assim como o tempo. O elemento cíclico é representado pelo vento, em espiral, que
tem a função de desviar a rota traçada pela paciente, uma vez que seu simbolismo é o
empecilho. O elemento refúgio é representado por um lugar plano, lindo, e tem como função,
recepcionar, simbolizando a segurança. Remete ao simbolismo místico. O elemento fogo é
representado pela fogueira e tem a função de aquecer, guiar, simbolizando a luz.
O elemento fogo remete tanto ao simbolismo heróico, simbolizado pela luz que guia,
como ao simbolismo místico pela função de aquecer. O elemento espada é representado pela
espada fincada na terra, com a função de caçar, simbolizando utilidade e segurança. Os
135

elementos essenciais em tono dos quais o desenho foi construído foram: “O personagem, o
mostro, o refugio , a água, a queda”. Pensou em eliminar o monstro e o vento, mas desistiu,
pois percebeu que eles existem e que foram necessários para que ela conquistasse suas
mudanças, simbolizado pelo refúgio.
Portanto, foi classificado como Duplo universo sintético existencial diacrônico –
DUEX diacrônico, pois “O personagem vive dois momentos existenciais – heróico e místico
de modo sucessivo [...] o personagem participa por etapas das duas polaridades heróica e
mística” (DURAND, Y., 1988, P. 102)

PROTOCOLO 06
Nome ou pseudônimo: MULHER 2 Idade: 22 Sexo: Feminino
Profissão: Estudante Nível de Escolaridade: Ensino sup. incompleto

Um monstro terrível com muita fome foi


atrás de algo para comer. Quando de
repente se depara com uma linda jovem.
A menina ao ver o mostro, se assusta e
corre caindo numa poça de água.
Consegui se levantar e corre, corre, corre.
Pula uma fogueira e logo depois ela
encontra um refúgio, uma casa
abandonada. E o monstro vai embora.
QUADRO RESUMO:

ELEMENTO REPRESENTAÇÃO (A) PAPEL/FUNÇÃO (B) SIMBOLISMO (C)


Queda A menina caindo Fugir Medo
Espada Arma do monstro Matar a menina Perigo
Refúgio Uma casa Proteger Proteção
Monstro Pessoa muito feia Aterrorizar Medo
Cíclico Movimento de fuga Agir Tempo
Personagem Menina Feliz Agir Tempo
Água Poça Atrapalhar Obstáculo
Animal Pássaro Nenhum Vida
Fogo Fogueira Atrapalhar Obstáculo
136

QUESTIONÁRIO AT-9 (RESPOSTAS)

a) Idéia Central: Do enunciado da questão eu construí o desenho. Sim. Dúvida de


onde a espada iria ficar: na não do monstro ou no chão; o que representaria a água,
uma cachoeira ou uma poça; o que poderia ser o fogo: uma fogueira ou alguma
“arma” do monstro.
b) Inspiração: Não
c) 1º Elementos Essenciais: A menina
2° Gostaria de Eliminar: Monstro porque trouxe medo, aflição e perigo para jovem
feliz
d) A Cena Termina? Termina feliz porque a menina consegue fugir do monstro
e) Onde estaria e o que faria: Eu seria a menina o mesmo que ela fez

Análise e Classificação do Micro-universo Mítico

A paciente teve algumas dúvidas na hora de compor o desenho, principalmente


quanto ao lugar da espada, tanto que quando questionada sobre a idéia central ela diz: “[...]
Sim. Dúvida de onde a espada iria ficar: na não do monstro ou no chão; o que representaria a
água, uma cachoeira ou uma poça; o que poderia ser o fogo: uma fogueira ou alguma “arma”
do monstro”. O elemento espada, no desenho, representa a arma do monstro, que tem como
função matar a menina, simbolizando o perigo, porém, disfuncionalizando a espada, enquanto
possibilidade de defesa diante do monstro.
O elemento monstro está representado por uma pessoa muito feia, que tem a função de
aterrorizar, simbolizando o medo, a angústia existencial diante do tempo e da morte, pois
“Um monstro terrível com muita fome foi atrás de algo para comer”. É um símbolo
teriomórfico, ligado à animalidade angustiante sob a forma da “mordicância” ou ato de
morder, devorar. Remete ao regime diurno, portanto, à estrutura heróica. O elemento
personagem é representado por uma menina feliz, que tem a função de agir, simbolizando o
tempo.
O elemento queda é representado pela menina caindo, quando tenta fugir do monstro,
simbolizando o medo, o castigo diante da queda moral, característico de experiências
dolorosas da infância. O elemento cíclico é representado pelo movimento de fuga, que tem
como função novamente agir, simbolizando “[...] o terror diante do tempo que foge, [...]”
137

(PITTA, 1995, p.30): “Consegue se levantar e corre, corre, corre”. Remete ao simbolismo
sintético do imaginário.
O elemento fogo é representado pela fogueira e o elemento água é representado pela
poça d´água. Ambos têm a função de atrapalhar, simbolizando os obstáculos da vida a serem
superados. O fogo, neste contexto, não tem a função de aquecer, portanto, não remete ao
simbolismo místico, talvez remeta ao simbolismo sintético, ou seja, o fogo como mediador
entre a natureza (os desejos latentes da menina) e a cultura (as intimidações sociais, os
obstáculos). O elemento animal é reapresentado por pássaros, simbolizando a vida.
O elemento refúgio é representado por uma casa, que tem a função de proteger,
simbolizando a proteção. Remete ao simbolismo místico, entretanto, quando a cena “Termina
feliz porque a menina consegue fugir do monstro”, ou seja, “[...] da fuga diante do tempo ou
da vitória sobre o destino e a morte” remete-se ao simbolismo heróico. Porém, a composição é
caracterizada pela dimensão temporal, nela introduzida, inclusive com o elemento cíclico e os
três elementos complementares: água, animal e fogo, coerentes com esta dimensão,
remetendo ao simbolismo sintético.
Portanto, foi classificado como Duplo universo sintético existencial diacrônico –
DUEX diacrônico, pois o personagem tanto participa da polaridade heróica como também da
mística de modo sucessivo

PROTOCOLO 07

Nome ou pseudônimo: MULHER 3 Idade: 31 Sexo: Feminino


Profissão: Profissional Liberal Nível de Escolaridade: Superior

Numa pequena fazenda nas colinas,


existia um Monstro que amedrontava a
vizinhança, poucas pessoas
permaneciam neste lugar. Havia um
lenhador que há muito vivia ali, e que
buscava de sua maneira defender-se dos
medos. Neste lugar há muitos animais
pássaros, uma bela coruja, o cão fiel e
muita abundância de vida, saúde, natureza.
138

QUADRO RESUMO

ELEMENTO REPRESENTAÇÃO (A) PAPEL/FUNÇÃO (B) SIMBOLISMO (C)


Queda A queda d´água Renovar Vida
Espada Monumento Histórico Simbolizar Poder
Refúgio Casa e caverna Proteção Segurança
Monstro Monstro sem nome Aterrorizar Mistério
Cíclico O moinho Revitalizar Continuidade
Personagem O lenhador Provedor O ser
Água A cachoeira e o rio Vivificar Vida
Animal Cachorro, coruja, peixes Natureza Continuação do ser
Fogo Fogueira Aquecer Vitalidade

QUESTIONÁRIO AT-9 (RESPOSTAS)

a) Idéia Central: Representar a vida real


b) Inspiração: Não
c) 1º Elementos Essenciais: Água, a casa-caverna, o monstro e o lenhador.
2º Gostaria de Eliminar: A espada, não achei um lugar legal para colocá-la, terminei
deixando-a numa pedra.
d) A Cena Termina: Não termina é contínua o dia a dia.
e) Onde estaria e o que faria? Colhendo frutos em baixo da árvore.

Análise e Classificação do Micro-universo Mítico

O monstro tinha a função de aterrorizar, simbolizando o mistério. O elemento


personagem é representado pelo lenhador, que tem a função de prover, simbolizando o ser
humano. Ele sabe da existência do monstro, o teme, mas não o enfrenta diretamente. O
elemento queda é representado pela queda d´água, pela água corrente, que tem a função de
renovar, simbolizando a vida. Remete ao simbolismo heróico.
O elemento espada é representado por um monumento histórico, que tem a função
de simbolizar o poder. O elemento refúgio é representado tanto pela caverna, como refúgio do
monstro, quanto pela casa, como refúgio do lenhador, com a função de se protegerem um do
outro, já que ambos têm refúgio, simbolizando a segurança. O elemento cíclico é representado
139

pelo moinho, que tem a função de revitalizar, simbolizando a continuidade. O moinho é um


objeto construído pelo homem, lembra a rítmica do movimento circular. Remete ao
simbolismo sintético.
O elemento água é representado pela cachoeira e pelo rio, com a função de vivificar,
simbolizando a vida. Tanto a cachoeira como o rio tem água corrente. O elemento fogo é
representado pela fogueira, que tem a função de aquecer, simbolizando a vitalidade. O
isomorfismo de aquecer leva ao aconchego, que remete ao simbolismo místico, assim como :
“Neste lugar há muitos animais pássaros, uma bela coruja, o cão fiel e muita abundância de
vida, saúde, natureza.” A harmonia, a vontade de unir, remete à estrutura mística do
imaginário.
Os elementos essenciais em torno dos quais foi construído o desenho foram: “Água,
a casa-caverna, o monstro e o lenhador”, ou seja, o refúgio, o monstro, o personagem e a
água. O monstro está lá, apesar de não ser enfrentado pelo personagem, ele gera medo e
insegurança. A espada também não é usada, mas simboliza o poder. Remete ao simbolismo
heróico. A cena que ela imaginou não termina, caracterizando a dimensão temporal,
remetendo ao simbolismo sintético, confirmado pela presença dos elementos personagem,
monstro e refúgio, como elementos essenciais.
Portanto, foi classificado como Universo Sintético Simbólico Sincrônico, “[...] o
espaço é dividido em opostos em função dos valores veiculados (alto/baixo, bem/ mal...) onde
o personagem articula uma bi-polarização” (PITTA, 1995, p. 38)

PROTOCOLO 08

Nome ou pseudônimo: MULHER 4 Idade: 29 Sexo: Feminino


Profissão: Profissional Liberal Nível de Escolaridade: Superior

É a historia de um garotinho que foi


acampar numa mata, próximo a sua
casa. Era um lugar muito bonito que
lhe proporcionava um contato único
com a natureza e sua grande
imaginação. Lá ele se tornava os
heróis de suas historias em
140

quadrinhos preferidas.Brincava com seu iô-iô luminoso, pescava e fazia sua comida. Subia e
descia das arvores, pulava da queda d’água e nadava no riacho. Tomava cuidado para não
acordar o grande urso que vivia na caverna da cachoeira. E assim ele passava os dias mais
emocionantes de suas férias.

QUADRO RESUMO:

ELEMENTO REPRESENTAÇÃO (A) PAPEL/FUNÇÃO (B) SIMBOLISMO (C)


Queda Cachoeira, queda d´água Embelezar Natureza
Espada Espada de madeira e papel Brincar Defesa
Refúgio Caverna Proteger Abrigo do urso
Monstro Grande urso da caverna Lutar Perigo
Cíclico Io-io luminoso Divertir Brinquedo
Personagem Garotinho de férias Interligar Imaginação
Água Riacho e cachoeira Encantar, seduzir Natureza
Animal Peixes, pássaros Natureza Diferenças, harmonia
Fogo Fogueira Aquecer Domínio Vitalidade

QUESTIONÁRIO AT-9 (RESPOSTAS)

a) Idéia Central: Pensei num momento que proporcionasse contato com natureza. Sim.
Foi difícil pensar “ num monstro devorador” e em “alguma coisa cíclica”.
b) Inspiração: Talvez, tenha inspirado-me num passeio que fiz ao xingo pelo Rio São
Francisco no ultimo fim de semana.
c) 1º Elementos Essenciais: A queda d’água e a planície que forma a caverna.
2º Gostaria de Eliminar: Nenhum. Porque creio que existe uma boa harmonia entre os
elementos e a historia imaginada por mim.
d) A Cena Termina: O aprende a superar os obstáculos naturais da vida e, ao voltar para
casa, terá muitas histórias para contar aos seus amiguinhos e familiares. Incentivando-
os a viverem emoções como essas.
e) Onde estaria e o que faria? Estaria com o garotinho, vivendo com ele suas fantasias.
141

Análise e Classificação do Micro-universo Mítico

O elemento personagem é representado por um garotinho em férias, que tem a função


de interligar os elementos da sua imaginação. O elemento queda é representado pela cachoeira
e queda d´água, que têm a função de embelezar, simbolizando a natureza. A espada é de
madeira e papel, tem a função de brincar, simbolizando a defesa, para compor a figura do
herói das historinhas de quadrinhos. “Lá ele se tornava os heróis de suas historias em
quadrinhos preferidas”
O elemento monstro é representado pelo grande urso da caverna, que tem a função de
lutar, simbolizando o perigo, que ameaça a paciente. O elemento refúgio é representado pela
caverna, que tem a função de proteger o personagem, desde que ele não acorde o urso que está
abrigado lá: “Tomava cuidado para não acordar o grande urso que vivia na caverna da
cachoeira”. O elemento cíclico é representado pelo oi-oi, que tem a função de divertir,
simbolizando os brinquedos.
O elemento fogo é representado pela fogueira, que tem a função de aquecer,
simbolizando a vitalidade e o domínio. Há uma tendência a harmonização, remetendo ao
simbolismo místico: “Era um lugar muito bonito que lhe proporcionava um contato único
com a natureza e sua grande imaginação”,“E assim ele passava os dias mais emocionantes de
suas férias.” A composição foi construída em torno da idéia central “Pensei num momento
que proporcionasse contato com a natureza. Sim. Foi difícil pensar “num monstro devorador”
e em “alguma coisa cíclica”.
“Os elemento essências foram: “A queda d’água e a planície que forma a caverna” e a
cena termina “O garotinho aprende a superar os obstáculos naturais da vida e, ao voltar para
casa, terá muitas historias para contar aos seus amiguinhos e familiares. Incentivando-os a
viverem emoções como essas”.. E se ela estivesse participando da cena: “Estaria com o
garotinho, vivendo com ele suas fantasias.”
Portanto, foi classificado como Micro-universo Místico Lúdico, do Regime
Noturno, pois o monstro e a espada existem, portanto, estão integrados, mas a espada é de
brincadeira, assim como o cenário e o combate.

PROTOCOLO 09

Nome ou pseudônimo: MULHER 5 Idade: 52 Sexo: Feminino


Profissão: Profissional Liberal Nível de Escolaridade: Superior
142

O meu desenho reflete o momento em que


imagino o que seja a Paz. Uma casinha
branca, flores, água correndo, recanto
sagrado. Montanhas que lembram o
paraíso, o por do sol anunciando um novo
dia para se viver e ser feliz simplesmente.
Sem o som estridente das grandes cidades,
sem a nostalgia dos desencontros, dos
desencantos....Um lugar para ser feliz.

QUADRO RESUMO:

ELEMENTO REPRESENTAÇÃO (A) PAPEL/FUNÇÃO (B) SIMBOLISMO (C)


Queda Uma pessoa caindo Guerrear Situação da vida
Espada Espada Vencer Arma
Refúgio Uma casinha Lugar especial Quem sou realmente
Monstro Monstro Boneco enorme Perigos da vida.
Cíclico Moinho Ativador de força Tudo passa
Personagem Um homem Imaginar Alguém especial
Água Uma lagoa Refrescar Renascimento
Animal Pássaro, peixe patinhos Vida, alegria Natureza
Fogo Fogueira Aquecer Calor humano

QUESTIONÁRIO AT-9 (RESPOSTAS)

a) Idéia Central: um refúgio


b) Inspiração: Usei apenas a imaginação, inspirada no meu desejo de paz
c) 1º Elementos Essenciais: Refugio, coragem, água.
2º Gostaria de Eliminar: Nenhum
d) A cena Termina: Final feliz.
e) Onde estaria e o que faria? Eu estaria apreciando o melhor momento. Ajudaria quem caiu.
O melhor momento seria o por do sol... O recolhimento para descansar.
143

Análise e Classificação do Micro-universo Mítico

A idéia central em torno da qual a paciente construiu sua composição foi o refúgio.
O elemento refúgio é representado por uma casinha, que tem o papel de ser um lugar especial,
simbolizando quem ela é realmente. Ela se percebe como uma pessoal especial: “Uma casinha
branca, flores, água correndo, recanto sagrado.” Os elementos essenciais foram refúgio,
coragem e água. O elemento queda é representado por uma pessoa caindo, tem a função de
guerrear, simbolizando situação da vida.
O elemento espada tem a função de vencer, simbolizando a arma. A espada, assim
como o monstro, está no desenho, mas não aparece no relato. O monstro tem o papel de um
boneco enorme, simbolizando os perigos da vida. O elemento cíclico é representado por um
moinho, que tem a função de ativador de força, simbolizando que tudo passa. O elemento
personagem é representado por um homem, que tem a função de imaginar, simbolizando
alguém especial.
Os três elementos complementares: água, animal e fogo são coerentes com o
simbolismo místico. A água é representada por uma lagoa, com a função de refrescar,
simbolizando o renascimento. Lagoa tem águas paradas, profundas, descida lenta; o animal é
representado por pássaros, que parecem ser pombas da paz, peixes e patinhos; e o fogo é
representado por uma fogueira com a função de aquecer, simbolizando calor humano, vontade
de intimidade, aconchego.
A cena termina com um “Final feliz” e a paciente: “Eu estaria apreciando o melhor
momento. Ajudaria quem caiu. O melhor momento seria o por do sol... O recolhimento para
descansar.”. “Um lugar para ser feliz”, onde a angústia existencial do tempo e da morte jamais
poderiam entrar!
Portanto, foi classificada de Micro-universo Mítico Místico Integrado, pois
predomina a paz e a tranqüilidade. O monstro está presente, mas é tratado alegoricamente:
“Boneco enorme” e a espada é disfuncionalizada. Todos os 9 elementos estão integrados à
solução dada.

PROTOCOLO 10

Nome ou pseudônimo: MULHER 6 Idade: 44 Sexo: Feminino


Profissão: Funcionária Pública Nível de Escolaridade: Pós-Graduação
144

Um bicho feio perseguia uma menina de cachos pequenos, ele vinha em cima de carro de boi, com
uma espada na mão para matar a
menina, ele corria muito e teve que
atravessar um rio que tinha muitos
peixinhos e ela caiu quando tropeçou
numa pedra. A menina continuou
fugindo do bicho e mas adiante teve
que usar um atalho para fugir da mata
que estava pegando fogo. Ela estava
quase sendo alcançada, ai correu com
mais força conseguindo chegar a sua
casa onde se trancou no seu quarto,
pois tinha certeza que ali nada de mal
lhe aconteceria e o bicho desapareceu,
mas ela tinha medo que ele voltasse se
ela saísse do seu quarto.

QUADRO RESUMO

ELEMENTO REPRESENTAÇÃO (A) PAPEL/FUNÇÃO (B) SIMBOLISMO (C)


Queda Chance de levantar Levantar Pânico
Espada Espada Matar Morte
Refúgio Quarto da sua casa Fugir Segurança
Monstro Existe em mim Amedrontar Medos
Cíclico Carro e infância Correr Infância
Personagem Menina medrosa Fugir Eu
Água Obstáculo Empecilho Medo
Animal Boi Ajudar o monstro Perseguição
Fogo Mata pegando fogo Desviar Morte

QUESTIONÁRIO AT-9 (RESPOSTAS)

a) Idéia central: Foquei logo a idéia de um bicho me perseguindo


b) Inspiração: Não
c) 1º Elementos Essenciais: Bicho, eu, quarto
145

2º Gostaria de Eliminar: Carro. Acho que ficaria mais difícil para ele me pegar
d) A Cena Termina: A menina conseguiu chegar em casa e trancada em seu quarto
e) Onde estaria e o que faria? Eu participei de toda sena

Análise e Classificação do Micro-universo Mítico

O elemento monstro (angústia diante da morte) é representado por algo que existe
dentro da própria paciente, que tem a função de amedrontá-la, simbolizando seus medos. O
elemento personagem é representado por uma menina medrosa, que tem a função de fugir,
deste monstro, simbolizando também a própria paciente. O elemento cíclico é representado
pelo carro de boi, que tem a função de fazer o monstro correr, simbolizando sua infância. Este
é o elemento que ela gostaria de eliminar: “Carro. Acho que ficaria mais difícil para ele me
pegar”.
O elemento queda é representado pela chance e a função de levantar, simbolizando o
pânico. Tem a ver com as experiências dolorosas na infância e a dor da queda moral. O
elemento refúgio é representado pelo seu quarto, tem a função de fugir do monstro,
simbolizando a segurança. A idéia central em torno da qual ela construiu a composição foi a
de um monstro perseguindo-a. Os elementos essenciais foram o monstro (bicho), o
personagem (eu) e o refúgio (quarto) e a cena termina: “A menina conseguiu chegar em casa e
trancada em seu quarto”. “Eu participei de toda sena .“
O elemento espada está na mão do monstro, tem como função matar a menina,
simbolizando a morte. Interessante observar que tanto o elemento cíclico, estímulo para a
estrutura sintética, como o elemento espada, estímulo para a estrutura heróica, que engatam a
defesa contra a angústia da morte (monstro devorador) são, no caso desta paciente,
potencializadores desta angústia. Os elementos complementares: animal, água e fogo, estão
todos coerentes com a potencialização do monstro, já que seus simbolismos são: perseguição,
medo e morte, respectivamente.
O elemento fogo, por exemplo, é representado pela mata pegando fogo, tendo a função
de desviar a menina, simbolizando a morte: “A menina continuou fugindo do bicho e mais
adiante teve que usar um atalho para fugir da mata que estava pegando fogo”. E o relato
termina com o monstro desaparecendo sem maiores explicações, permanecendo a
insegurança: “[...] se trancou no seu quarto, pois tinha certeza que ali nada de mal lhe
aconteceria e o bicho desapareceu, mas ela tinha medo que ele voltasse se ela saísse do seu
quarto.”
146

Portanto, foi classificado de Estrutura Defeituosa Pseudo Desestruturada, pois há


uma angústia predominante tão forte (potencialização do monstro, através da espada na sua
mão e do carro de boi) que impede a paciente de desenvolver um tipo de defesa. Ela usou o
refúgio, porém, teria que ficar trancada ali para sempre, pois “ela tinha medo que ele voltasse
se ela saísse do seu quarto.” Houve dúvida se poderia ser a Estrutura Mística de Forma
Negativa, mas, neste caso, a composição deveria apresentar uma atmosfera de tranqüilidade,
harmonia e repouso, que em nenhum momento se percebeu.
Uma informação interessante é que esta paciente, durante o processo final de
construção desta dissertação, reiniciou seu processo de psicoterapia. Portanto, hoje, ela não
seria mais considerada uma paciente resistente, a não ser que volte a abandonar sua
psicoterapia. É comum entre os pacientes resistentes abandonarem mais de uma vez a
psicoterapia, como no caso clínico de Ana. Pretendo reaplicar o AT-9 e como as estruturas do
imaginário são transformáveis....

4.4.2 Quadro dos Pacientes Considerados Não Resistentes e Resistentes

O AT-9, aplicado aos dois grupos de pacientes cristãos, permitiu identificar o micro-
universo mítico, quando do momento da sua aplicação. É importante ressaltar que como o
imaginário é dinâmico, os resultados obtidos com a aplicação do teste revelaram a estrutura
do imaginário e o regime das imagens, referentes aquele momento específico, no qual eles
foram submetidos ao teste. Yves Durand esclarece que o AT-9 é auto-terapêutico, ou seja,
após o indivíduo se submeter a ele, a dinâmica do seu imaginário pode ser alterada, pois
Gilbert Durand considera as estruturas como uma “forma transformável”.

PACIENTES CRISTÃOS CONSIDERADOS RESISTENTES


PROTOCOLO REGIME DA ESTRUTURA MÍTICA IDA
IMAGEM DE
MULHER - 4 Regime Noturno Místico Lúdico 29
MULHER - 5 Regime Noturno Místico Integrado 52
MULHER - 6 ---------- Estrutura Defeituosa Pseudo Desestruturada 44
HOMEM - 3 Regime Noturno Místico Impuro 28
HOMEM - 4 ---------- Estrutura Defeituosa Não Estruturada 54
Simples.
147

PACIENTES CRISTÃOS CONSIDERADOS NÃO RESISTENTES


PROTOCOLO REGIME DA ESTRUTURA MÍTICA IDADE
IMAGEM
MULHER - 1 Regime Noturno Duplo universo sintético existencial diacrônico 44
– DUEX diacrônico
MULHER - 2 Regime Noturno Duplo universo sintético existencial diacrônico 22
– DUEX diacrônico
MULHER - 3 Regime Noturno Universo Sintético Simbólico Sincrônico 31
HOMEM - 1 Regime Noturno Universo Sintético Simbólico Diacrônico 42
HOMEM - 2 Regime Noturno Duplo Universo Sintético Existencial 45
Sincrônico – DUEX sincrônico

Após a identificação das estruturas do imaginário e dos regimes foi possível


perceber o trajeto antropológico dos dois grupos, ou seja, a relação entre as pulsões subjetivas
dos pacientes e a cultura cristã em que estão inseridos, pois mesmo os que se consideraram
ex-cristãos, viveram nesta cultura. No primeiro grupo, o dos pacientes considerados
resistentes, três pertencem ao regime noturno das imagens, polarizados nas estruturas místicas
do imaginário, enquanto que os outros dois apresentaram uma estrutura defeituosa, ou seja, a
angústia era tão forte que não conseguiram engajar nenhum tipo de defesa contra ela.
No segundo grupo observou-se que os pacientes pertencem ao regime noturno e
apresentaram a estrutura sintética do imaginário com suas variações, ou seja, não estão
polarizados em nenhuma das outras duas estruturas (heróica e mística), mas sim, participando
das duas polaridades, o que é possível de perceber também na prática clínica, uma vez que
eles foram capazes de confrontar os seus conflitos que normalmente exigem a “morte” do
próprio eu. Interessante que, segundo o universo religioso cristão, é preciso morrer para poder
ressuscitar. Não há como viver a alegria da ressurreição sem passar pela dor da morte.
Nos pacientes do grupo dos considerados resistentes, o ego não reconhece que além
dele há outro centro psíquico, o Si-mesmo (centro do inconsciente e da personalidade total),
que tem uma autoridade maior do que a dele, por isso age unilateralmente, sempre da mesma
forma, sem levar em consideração as mensagens que chegam do Si-mesmo(Imagem de Deus)
dentro dele mesmo, portanto, polarizado no consciente. Segundo Jung (1987), o sintoma vem
denunciar que há uma polarização na atitude consciente, que não se permite dialogar com o
inconsciente.
Os pacientes dos dois grupos, em relação ao seu “trajeto antropológico”, têm algo
em comum entre os pacientes do mesmo grupo, que os diferenciam como grupos. Os do
grupo considerados resistentes, apresentam uma estrutura polarizada ou uma estrutura
148

defeituosa. Os do grupo considerados não resistentes, apresentaram em comum uma estrutura


sintética do imaginário.
Portanto, percebe-se que há uma forte tendência destes resultados virem a se repetir,
se a aplicação e análise do AT-9 forem realizadas em outros pacientes cristãos que estão em
tratamento psicoterápico. Se os resultados se confirmarem, então teremos um instrumento de
pesquisa do imaginário dos pacientes cristãos que pode prever, com antecedência, se um
paciente cristão pode vir ou não, a apresentar resistência à psicoterapia.
No futuro, com o resultado desta pesquisa, poderemos construir outra, desta vez,
com o objetivo de comprovar que um paciente antes resistente, devido à relação disfuncional
entre o imaginário e seu universo religioso, superou esta resistência, alterando a qualidade da
relação de disfuncional para funcional, através da transformação da sua consciência pelas
imagens simbólicas, oferecidas pelo seu próprio universo religioso. Isto será possível,
aplicando o AT-9, antes e depois, do fenômeno da resistência. Esta pesquisa vai demandar um
considerável tempo que, provavelmente, só poderá ser realizada no contexto de um doutorado.
149

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A família é uma instituição social que mudou ao longo da história. Hoje é


considerada uma importante variável interveniente entre o indivíduo e a sociedade,
constituindo-se no principal contexto de aprendizado para as idéias, sentimentos,
pertencimento e comportamentos socialmente adequados. É um sistema que não está isolado,
pois faz parte de um sistema maior, a sociedade, que influencia e é influenciada por suas
crenças, leis, regras, mitos, ritos, valores e atitudes, construídas ao longo da história, num
processo contínuo de organização, desorganização e reorganização.

Na psicologia sistêmica, a família é compreendida como um sistema estruturado,


onde os membros formam subsistemas interdependentes, cercados por fronteiras,
principalmente entre as gerações. O que acontece à família interfere na vida de cada membro
da família e o que acontece a cada membro da família interfere na família toda, positivamente
ou negativamente. Há vários tipos de famílias, cada uma com sua própria estrutura, cultura
familiar, padrões de interações, formas de expressão emocional e formas de comunicar-se e
interpretar as comunicações.
Porém, o importante, necessário e imprescindível é que o sistema familiar seja
funcional, ou seja, quando se fizerem necessárias mudanças nos papéis, nas funções parentais
ou no ambiente, enfrente e aceite os desafios, os riscos e as novas responsabilidades inerentes
ao processo de mudança. Quando o sistema familiar é funcional reconhece a demanda dos
filhos por autonomia e liberdade, portanto, aceita negociar a flexibilização dos padrões de
interações familiares, compartilhando os sentimentos ambivalentes de alegria e perda, desta
nova fase de suas vidas.
Reforça a auto-estima dos filhos, dando-lhes o afeto, a atenção e o suporte
necessário e desejável para diferenciar-se e assumir os novos papéis na família e na sociedade.
Quanto mais liberdade e segurança o indivíduo tiver para diferenciar-se, mais livre e seguro se
sentirá para pertencer ao seu sistema familiar, porque é livre para fazer escolhas. Porém, se o
sistema familiar é disfuncional, não consegue fazer as mudanças necessárias, porque as
interações familiares têm que ser revistas e isto inclui a relação do subsistema de liderança da
família, que normalmente são os pais.
No caso clínico de Ana, os filhos estavam justamente na fase da adolescência. Ana
tinha deixado todos os seus interesses pessoais para cuidar dos filhos, ser uma boa mãe e
esposa dedicada. Se os filhos crescem e em breve vão embora, o que vai ser da vida desta
150

mãe? Normalmente a vida perde o sentido para estas mulheres, porque os filhos começam a
ficar emocionalmente independentes e elas se sentem como que descartadas. Neste momento,
elas se voltam com mais intensidade para seu parceiro que, no caso de Ana, há muito tempo já
tinha outros interesses sexuais e afetivos.
Caso Ana não tivesse desenvolvido um sintoma para denunciar a dor diante do
afastamento erótico/afetivo do seu esposo, provavelmente um de seus filhos o teria “feito”,
pois, como seu sistema familiar era disfuncional não permitiria que as relações conjugais
fossem revistas. O membro da família que possuir uma baixa auto-estima, uma culpa
imaginária e tiver uma grande sensibilidade à tensão familiar, inconscientemente, como no
caso de Ana, é capaz de chamar a atenção sobre si e assim, paradoxalmente, aliviar a tensão e
a angústia geradas no sistema familiar disfuncional.
Esta estrutura pessoal disfuncional torna-o “perfeito” para o papel do doente da
família. Inconscientemente, é impelido, constrangido a desenvolver um sintoma. Este membro
da família é visto pelo terapeuta não como um doente, mas sim, como o paciente identificado,
ou seja, aquele que porta o sintoma do seu sistema familiar, uma vez que, na visão sistêmica a
patologia é do sistema e não só do indivíduo.
No processo de psicoterapia individual, quando o terapeuta analisa o sistema
familiar do paciente, percebe-se que se trata do paciente identificado do seu sistema familiar e
que, portanto, poderá haver resistência por parte da família ao seu processo de crescimento e
busca de autonomia. Normalmente, há pressão por parte dos familiares mais significativos,
quando as mudanças de atitudes e comportamentos do paciente passam a ser sentidas por
estes familiares. No caso de Ana, antes mesmo dela descobrir a relação extraconjugal de
Gomes, ele já vinha solicitando que ela desistisse da terapia.
Este tipo de resistência ao processo é superado à medida que o paciente se percebe
crescendo, efetivando mudanças, porém, difícil de superar são as resistências inconscientes
provocadas pelos mitos familiares, pois estas não são visíveis para o paciente. No caso de
Ana, este tipo de resistência inconsciente foi provocado principalmente pelo mito de
perfeição, ao qual as mulheres de sua família, durante várias gerações, procuraram ser fiéis.
Por ela não conseguir ser perfeita, seu casamento não estava bem, portanto, a culpa era só
dela. Esta é uma culpa considerada disfuncional.
O sentimento de culpa funcional é uma construção social necessária para que o
indivíduo possa conviver numa sociedade organizada. Porém, a culpa se torna disfuncional,
quando o ambiente no qual o indivíduo foi educado, ou seja, quando o sistema familiar no
qual ele está inserido, é disfuncional. No caso dos pacientes cristãos com sentimento de culpa
151

disfuncional, provavelmente os responsáveis pela sua educação se utilizaram do universo


religioso para justificar as censuras injustas, retirando do contexto determinadas passagens
bíblicas, conforme o seu interesse.
Como se trata da dimensão religiosa do paciente, portanto, fora da área de
abrangência da psicologia, buscou-se pesquisar o universo religioso cristão destes pacientes,
na tentativa de compreendê-los na sua dimensão religiosa e buscar alternativas no seu próprio
universo religioso que favorecessem a superação da culpa e a conseqüente resistência ao
processo de psicoterapia.

Na abordagem integradora para que haja a “cura” é preciso confrontar os conflitos,


que não foram elaborados adequadamente. Entende-se que o sintoma é uma tentativa
desesperada do paciente identificado de pedir socorro e de denunciar que seu sistema familiar
é disfuncional, portanto, ele negligenciou seu desenvolvimento saudável para atender as
expectativas e demandas familiares, sociais e/ou religiosas, gerando um desperdício de
energia psíquica insuportável, por isso algo urgente tem que ser feito para restabelecer seu
fluxo normal.
O paciente cristão que tem uma relação funcional entre o imaginário da culpa e seu
universo religioso, quando da necessidade de mudança do foco terapêutico do sintoma para os
conflitos, que até então pareciam irreconciliáveis, aceitam o desafio de confrontar as partes
envolvidas nesse conflito, mesmo que esta atitude terapêutica provoque um sofrimento
inevitável. Adquirem a consciência de que o sofrimento faz parte da vida do ser humano e de
que há sofrimentos que são inevitáveis, por exemplo, o de se tornar emocionalmente maduro.
O paciente cristão que tem uma relação disfuncional não aceita a mudança do foco
terapêutico, porque o sofrimento causado pela possibilidade do confronto dos seus conflitos,
inconscientemente lhe parece maior do que o sofrimento causado pelo sintoma. Para evitar
entrar em contato com esta dor, o paciente se apega ao sintoma, através do ciclo vicioso
patológico: culpa/autopunição-apego ao sintoma/culpa, se utilizando do imaginário da culpa
disfuncional por serem pecadores, para justificarem, inconscientemente, que não merecem ser
perdoados, portanto, não se autoperdoam. O perdoar “70 x 7” só se aplica na relação com o
outro.
Através da experiência do caso clínico de Ana, o clínico/pesquisador observou que a
parábola do Filho Pródigo (Lucas 15,11–32), brilhantemente interpretada pelo sacerdote, era
uma excelente metáfora da superação da culpa. A partir desta observação, o
clínico/pesquisador ofereceu aos outros pacientes cristãos que apresentavam resistência, a
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possibilidade de refletirem sobre esta parábola e se observou que o mesmo fenômeno se


repetia, ou seja, houve uma alteração no imaginário do paciente em relação à culpa, que
deixou de ser disfuncional e se tornou funcional, permitindo ao paciente superar a resistência..

Quando a relação entre o imaginário do paciente e seu universo religioso é


funcional, mesmo que haja resistência por parte do paciente, ela é devidamente superada pelas
vias psicológicas. Porém, se esta relação é disfuncional, se faz necessário que o psicoterapeuta
tenha certo conhecimento do universo religioso de seu paciente, para que juntos possam
encontrar alternativas, através dos símbolos oferecidos pelo próprio universo religioso do
paciente, para superar esta resistência.
Segundo Cassirer (PITTA, 2005), o ser humano não é um animal racional, mas sim
um animal simbólico, pois além da razão e dos instintos, há também sentimentos e
sensibilidades expressos através da dimensão simbólica. A resistência é superada através do
simbólico, pois o racional não tem mecanismos eficazes para censurá-lo, passando o conteúdo
instantaneamente através da emoção e neutralizando qualquer tentativa de reação por parte do
racional. O símbolo é uma representação que permite que o sentido secreto seja revelado e
vivenciado de imediato. Ele é sempre dinâmico!
A resistência dos pacientes cristãos não estava no seu universo religioso, como o
clínico/pesquisador inicialmente desconfiava, mas sim no imaginário da culpa, ou seja, na
qualidade da relação entre o imaginário da culpa e seu universo religioso. Se esta relação era
funcional, o paciente cristão quando apresentava resistência era devidamente superada, mas
quando a relação era disfuncional, a resistência era concretizada. Então a solução era
compreender como se constituía o imaginário do paciente. Isto foi possível através do
Arquétipo Teste dos Nove elementos (AT-9).

Esta pesquisa científica foi possível, tendo como base o surgimento do novo
paradigma, através da revolução do pensamento ocidental, provocado pelas diversas áreas do
conhecimento científico. No caso específico do imaginário, principalmente pelo estudo e
pesquisa dos grandes remitologizadores que à margem das universidades do mundo, como
frisou Gilbert Durand, construíram uma nova ciência antropológica.

O AT-9 é um teste projetivo complexo. Devido a pouca habilidade em manuseá-lo,


pode ser que os resultados obtidos na análise e interpretação sejam possíveis de mudança. No
entanto, o objetivo traçado para esta dissertação foi alcançado. Foi possível perceber que há
uma probabilidade considerável que justificaria a realização de uma pesquisa em proporções
maiores.
153

Foi, portanto, bastante rico para o pesquisador que já vinha estudando a teoria junguiana
ampliar seus estudos com a Teoria do Imaginário de G. Durand, pois é uma leitura fascinante,
desafiadora e cheia de sentido, principalmente ao se deparar com os casos dos pacientes. O
teste AT-9, proporcionou um avanço em minhas análises. Percebo a preciosidade das
imagens, da descrição e do preenchimento do quadro para relacionar cada elemento com sua
representação e seu sentido.
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