Culpa No Imaginário Do Paciente Cristão (Mauro César Medeiros Paiva)
Culpa No Imaginário Do Paciente Cristão (Mauro César Medeiros Paiva)
Culpa No Imaginário Do Paciente Cristão (Mauro César Medeiros Paiva)
JOÃO PESSOA-PB
2009
2
JOÃO PESSOA
2009
3
_____________________________________________
Prof. Dr. Carlos André Macedo Cavalcanti (UFPB)
Orientador
_____________________________________________
Prof. Drª Eunice Simões Lins Gomes (UFPB)
_____________________________________________
Prof. Drª Danielle Perin Rocha Pitta (UFPE)
JOÃO PESSOA-PB
2009
4
AGRADECIMENTOS
Gilbert Durand
7
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO --------------------------------------------------------------------------- 10
2 CONSTRUINDO O MARCO TEÓRICO ------------------------------------------- 14
2.1 A MUDANÇA DE PARADIGMA --------------------------------------------------- 15
2.1.1 Um Breve Histórico da Psicologia ------------------------------------------------- 15
2.1.2 A Nova Visão de Homem e de Mundo -------------------------------------------- 18
2.1.3 A Remitologização do Pensamento Ocidental ----------------------------------- 22
2.1.4 As Ciências das Religiões ----------------------------------------------------------- 28
2.1.5 A Medicina Psicossomática ---------------------------------------------------------- 29
2.2 A FAMÍLIA E A MUDANÇA DE PARADIGMA--------------------------------- 33
2.2.1 Relações de Gênero, Individualismo e o Amor Romântico ---------------------- 33
2.2.2 A Terapia Familiar --------------------------------------------------------------------- 38
2.3 A PSICOTERAPIA DE ABORDAGEM INTEGRADORA ----------------------- 39
2.3.1 O Processo de Psicoterapia ----------------------------------------------------------- 39
2.3.2 A Abordagem Integradora ------------------------------------------------------------ 42
2.4 CONTRIBUIÇÕES DA TERAPIA FAMILIAR SISTÊMICA-------------------- 45
2.4.1 O “Paciente Identificado” do Sistema Familiar Disfuncional -------------------- 45
2.4.2 A Hierarquia, as Fronteiras e o Ciclo de Vida da Família ----------------------- 48
2.4.3 O Conceito de Diferenciação do Self ----------------------------------------------- 50
2.4.4 Os Mitos Familiares -------------------------------------------------------------------- 52
2.5 CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA JUNGUIANA ---------------------------- 53
2.5.1 O Inconsciente Pessoal e o Inconsciente Coletivo -------------------------------- 53
2.5.2 Processo de Individuação: do Ego ao Si-mesmo ---------------------------------- 61
2.5.3 O Poder do Símbolo e a Função dos Mitos ----------------------------------------- 69
2.5.4 A Imagem de Deus na Psique Humana --------------------------------------------- 72
2.5.5 A Importância do Arquétipo da Sombra -------------------------------------------- 76
3 CULPA, RESISTÊNCIA E SUPERAÇÃO NO IMAGINÁRIO CRISTÃO -- 80
3.1 CULPA E RESISTÊNCIA -------------------------------------------------------------- 80
3.1.1 A Igreja Cristã ao Longo da História ------------------------------------------------ 80
3.1.2 A Construção da Culpa no Cristianismo -------------------------------------------- 84
3.1.3 O Imaginário de Gênero e a “Queda do Paraíso” ---------------------------------- 90
3.1.4 Resistência à Psicoterapia ------------------------------------------------------------- 97
3.2 SUPERAÇÃO NA ABORDAGEM INTEGRADORA ----------------------------- 99
3.2.1 Estudo de Caso Clínico --------------------------------------------------------------- 99
3.2.2 Considerações Finais sobre o Caso -------------------------------------------------- 105
4 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS DO ESTUDO ------------------------ 111
4.1 CONTRIBUIÇÕES DA ANTROPOLOGIA DO IMAGINÁRIO ---------------- 111
4.1.1 Os regimes e as Estruturas do Imaginário ------------------------------------------ 115
4.2 O ARQUÉTIPO TESTE DOS NOVE ELEMENTOS (AT-9) --------------------- 118
4.3 PESQUISA CLÍNICA ------------------------------------------------------------------- 120
4.4 PROTOCOLOS DO TESTE AT-9 ----------------------------------------------------- 122
4.4.1 Protocolos Analisados ----------------------------------------------------------------- 123
4.4.2 Quadro dos Pacientes Considerados Não Resistentes e Resistentes ------------ 146
CONSIDERAÇÕES FINAIS -------------------------------------------------------------- 149
REFERÊNCIAS ----------------------------------------------------------------------------- 154
10
1 INTRODUÇÃO
É possível que até mesmo aquele paciente encaminhado pelos profissionais da área
médica, por não terem encontrado problemas de ordem fisiológica que justifiquem o sintoma
do paciente, demonstre um descrédito e uma desesperança, na possibilidade de superação do
problema, uma vez que as motivações que o levaram a este processo de psicoterapia não
foram pessoais. Há outros pacientes que buscam a psicoterapia porque já tentaram outras vias,
inclusive a religiosa, e não conseguindo a “cura” desejada, querem se convencer que tentaram
tudo que era possível.
A palavra psicologia deriva da junção dos termos gregos psiché e logos, onde a
primeira significa alma ou mente e a segunda significa ciência. A psicologia é uma ciência
que estuda os fenômenos psíquicos e do comportamento. Possui uma curta história, pois é
considerada por muitos como uma ciência nova.
De acordo com Weiten (2002), a psicologia nasceu por volta do ano de 1870, tendo
como pais os estudiosos da filosofia e da fisiologia que procuravam respostas para questões
da mente humana. Mas foi só em 1874 que se tornou um estudo cientifico da experiência
consciente através dos trabalhos do professor alemão Wilhelm Wundt.
A psicologia, como ciência da psique, que é algo invisível, não palpável, nasce
oficialmente em pleno século XIX, considerado o século da razão. Persegue o reconhecimento
por parte das outras ciências que defendem que, de acordo com o positivismo lógico - o
paradigma científico vigente - só pode ser considerado ciência o conhecimento adquirido
através da observação dos fenômenos que são possíveis de ser mensurados. A partir daí, os
pesquisadores desta área do conhecimento, para atenderem esses critérios, enfatizam o estudo
do comportamento do indivíduo e não o da psique.
Segundo Weiten (2002), Wundt preconiza a psicologia produzida em laboratório,
com uso de instrumento de avaliação e medição, assumindo o método de investigação adotado
pelas ciências naturais, influência do positivismo, que alegava a necessidade de um rigor
científico, dentro do conceito de ciência da época, na construção dos conhecimentos das
ciências humanas.
Ele seguiu a tradição empírica de René Descartes, para explicar os processos
mentais, utilizando-se dos conceitos de alguns físicos como Newton, ao sustentar que o
psiquismo poderia ser analisado por elementos básicos indivisíveis como o átomo, o que seria
a base dos nossos sentimentos, sensações e memória. Porém, esta seria uma abordagem
reducionista e mecanicista.
Surge então uma oposição dos psicólogos e filósofos europeus, que não aceitam a
natureza extremamente fragmentada desta psicologia, e buscam uma compreensão unitária
entre a consciência e a percepção, e em parte com o organismo, ou seja, uma visão holística.
15
Filosofia do Inconsciente, onde continha o resumo de tudo que já tinha sido escrito sobre o
inconsciente até aquela época.
definindo mais apropriadamente o que entendia por inconsciente (que posteriormente, no item
3.3.1 será analisado com mais detalhes) e, mais objetivamente por libido.
Jung considerava a energia sexual como uma das qualidades da libido, ou seja, uma
de suas autênticas manifestações e expressões. Entende que a libido poderia ser compreendida
a partir de sua raiz “Libidum”, ou seja, vontade. Vontade é desejo, o “a priori” do Ser, a
coisa-em-si de Kant, de natureza e grandeza ilimitada, que sob inumeráveis formas e aspectos
se mostra como fenômeno. Outra discordância entre eles é no conceito de Complexo de Édipo
que, para Freud, o complexo gerava um apego e um conflito de caráter sexual, sendo que Jung
negava que eles fossem de caráter inevitavelmente sexual, mas sim de caráter espiritual.
Enquanto ele admitia que os meninos ficavam muito apegados à mãe, e que isto podia
fazer com que entrassem em conflito com os pais, Jung negava que tanto o apego
como o conflito fossem de caráter inevitavelmente sexual. [...] Para Jung, o apego do
filho à mãe era de caráter espiritual, e não sexual, e qualquer desejo que um menino
pudesse alimentar no sentido de um retorno ao útero materno era, no fundo, uma
necessidade de “renascimento”, num ato de renovação, de auto-realização. Em outras
palavras, Jung considerava o incesto psicológico não como a busca de um objeto
físico, mas como um meio para o crescimento espiritual. (STEVENS, 1993, p.41)
Jung, por reconhecer que suas hipóteses eram radicalmente incompatíveis com as de
Freud, hesitou em publicá-las com receio de perder a sua amizade, o que inevitavelmente
aconteceu em 1914, quando ele renunciou ao cargo de presidente da Associação Internacional
de Psicanálise, criada em 1910, da qual tinha sido eleito seu primeiro presidente.
Jung acreditava que esta ruptura com Freud aconteceu devido às diferenças
individuais de cada personalidade e não por diferenças intelectuais, pois este conjunto de
características pessoais, denominada personalidade, influencia diretamente na percepção que
cada um tem da realidade. Na história das idéias, quando um determinado indivíduo é
responsável por uma contribuição de grande importância, seu nome fica identificado com
aquela idéia, trazendo a marca da sua personalidade.
Jung compreendia que a neutralidade do pesquisador deve ser perseguida, por isso o
observador deve ter a consciência e a humildade em reconhecer que ela será sempre
18
contaminada pela sua subjetividade. “[...] “Mesmo quando estou trabalhando com dados
empíricos” escrevia ele, “estou necessariamente falando de mim mesmo” (CW 4, par. 774)”
(STEVENS, 1993, p.14)
Para Cavalcanti (2000), o século XX foi particularmente fértil, pois surgiram novas
propostas dos cientistas e teóricos, de várias áreas do conhecimento, no sentido de reverter a
tendência de fragmentação do conhecimento, a unilateralização racionalista e a oposição entre
ciência e espiritualidade, que contribuiram significativamente para a perda do sentido do
sagrado e que tiveram origens nas idéias desenvolvidas no Renascimento e na Reforma, a
partir dos fundamentos filosóficos concebidos por René Descartes e na base científica e
matemática de Isaac Newton. Jung foi um destes pioneiros, um teórico e um cientista à frente
de seu tempo!
Embora, me tenham chamado freqüentemente de filósofo, sou apenas um empírico e,
como tal, me mantenho fiel ao ponto de vista fenomenológico. Mas não acho que
infringimos os princípios do empirismo científico se, de vez em quando, fazemos
reflexões que ultrapassam o simples acúmulo e classificação do material
proporcionado pela experiência. Creio, de fato, que não há experiência possível sem
uma consideração reflexiva, porque a “experiência” constitui um processo de
assimilação, sem o qual não há compreensão alguma. Daqui se deduz que abordo os
fatos psicológicos, não sob um ângulo filosófico, mas de um ponto de vista científico-
natural. (JUNG, 1987, p. 7)
Nichols (1998), ressalta que uma destas teorias é a Teoria Geral dos Sistemas (TGS),
pensada pelo biólogo Ludwig Von Bertalanffy, que começou a se perguntar se as leis que
regiam os organismos biológicos poderiam ser aplicadas a outros campos como a psiquiatria,
a psicologia, a medicina, a sociologia, a história, a educação, a filosofia etc. Bertalanffy foi o
pioneiro da idéia de que um sistema é maior ou diferente da soma de suas partes, por isso ele
enfatizou a importância nos padrões de interações dentro do sistema ou entre os sistemas, e
não nos elementos do sistema.
Não há nada de misterioso nem de místico nesta afirmação, apenas a idéia de que
quando as coisas são organizadas dentro de um padrão, algo emerge do padrão e do
relacionamento das partes dentro dele que é maior ou diferente, da mesma forma
como a água emerge da interação do hidrogênio com o oxigênio. (NICHOLS e
SCHWARTZ, 1998, p.90)
No nível subatômico, a questão certamente não existe em locais definidos, mas antes
mostra ”tendência a existir” ... as partículas subatômicas não têm significado como
entidades isoladas, mas só podem ser compreendidas como interconexões ou
correlações, entre vários processos de observações e de medidas. (CAPRA, 1982,
p.80 apud NICHOLS e SCHWARTZ, 1998, p. 92)
Somos nós que, em última análise, fabricamos as lentes através das quais as pessoas
vêem o mundo e a si próprias – por menos que elas possam conhecê-lo... Ouso dizer
que somos os grandes fabricantes de óculos da história. (BERTALANFLY apud
DAVISON, p.69 apud NICHOLS e SCHWARTZ, 1998, p.93)
[...] A estes três grandes nomes, Mann, Zola e Wagner, tem-se claro que é preciso
adicionar Freud, cujos trabalhos, durante mais de cinqüenta anos, vão dar a cor
principal ao rio dos reaparecimentos do imaginário e dos símbolos. Acrescentamos
Nietzche a este cortejo, o mais consciente desta mudanças das divindades dirigentes
da alma de um século, o pai de Zaratustra, o profeta vaticinante, depois do poeta
Jean Paul, a “morte de Deus”, o fim de um Deus antigo e usado pelo abuso de seus
usos, o anunciador do “grande meio-dia” e do reaparecimento dos deuse antigos,
Dionísio e Hermes [...]. Na emergência destes “novos” mitos (“sempre os mesmos”,
escrevera Michel Foucault!), irrompem muitas confluências: por exemplo a grande
corrente da pintura simbolista [...] (DURAND, 2004, p. 12)
[...] Bem entendido, uma tal redescoberta do homem “conflui” com as descobertas
da psicanálise freudiana e, melhor ainda, com a “psicologia das profundezas” de C.
G. Jung. [...] Estes antropólogos de todo tipo: etnólogos, “historiadores” das
religiões, psicanalistas, filólogos... se encontraram na grande maioria a cada ano
nesta mistura extraordinária que foi durante cinqüenta anos os encontros de Eranos,
em Ascona, no Tissino suíço.[...] neste cenáculo, e foi aí – à margem, sublinhemos,
das universidades do mundo – que livremente os universitários mais eminentes
criaram uma nova ciência antropológica cuja base repousava sobre a faculdade
essencial do sapiens sapiens: a saber seu incontornável poder de simbolizar, sua
“imaginação simbólica”. (DURAND, 2004, p.14)
[...] É que o nazismo, assim como a Revolução francesa, forneceu a um povo, com
ingenuidade e brutalidade, um conjunto de ritos e de mitos, uma prótese do
religioso, onde a Alemanha do Kulturkampf, assim como o Francês das Luzes, era
privado. Wotan – como denuncia C. G. Jung desde 1936 – era bastante recusado
pelas Igrejas reformadas e o Estado prussiano, para não tomar uma força aterradora
nas profundezas do inconsciente germânico. (DURAND, 2004, p.16)
26
[...] De passagem e para ilustrar quanto à parte do imaginário – onde o sonho é uma
grande manifestação – é indispensável à vida normal do homem como do animal, eu
lembraria aqui as experiências do professor Jouvet, que mostraram por uma
experimentação precisa que o gato privado dos sonhos tornava-se rapidamente
neurótico, com insônia e alucinado....[...] procedemos a uma experimentação
idêntica sobre voluntários humanos, e rapidamente obtivemos (no fim de oito a dez
dias) as mesmas perturbações. Estas experiências de clínicos demonstraram o bem
que tem no animal superior e no homem uma necessidade vital do sonho.[...] Como
escrevia ultimamente Gastón Bachelard, há um “direito de sonhar” fundamental,
constitutivo da vitalidade normal do sapiens sapiens. (DURAND, 2004, p.17)
De acordo com Durand (2004), o mesmo acontece no plano cultural e social, quando
o ser humano “branco, adulto e civilizado”, educado dentro das pedagogias positivistas, é
privado do poder simbólico constitutivo das mitologias e o transfere para devaneios livres e
27
selvagens, uma vez que não contam com a segurança oferecida pelos magistérios que
reconhecem e enquadram a força de sonhar. Quantos jovens ocidentais, segundo ele, não
abandonam seus estudos e/ou trabalho e entram em “seitas” orientais, que são cada vez mais
numerosas, enquanto que as Igrejas vazias brigam entre si?
Segundo Durand (2004), o avanço das novas “teologias” é preocupante, pois não há
magistérios coletivos para avaliarem os efeitos destas remitologizações. O mito em si mesmo
não é bom nem mal, porém, o preocupante, o perigoso, é o que se faz com ele. Quando se
trata de um mito totalitário, os efeitos podem ser perversos, terríveis, desastrosos. Portanto, se
faz necessário para evitar estas conseqüências negativas, o estabelecimento e o ensinamento
de uma mitodologia, que é a “ciência do mito”, do mito fraternalmente aberto.
Durand (2004) chama a atenção para o fato de que nas sociedades ocidentais
modernas há três níveis míticos, três estratificações com instâncias mitogênicas diferentes,
coabitando simultaneamente, onde cada um deles tem seu mito fundante. Estas estratificações
míticas seriam: a Pedagógica, a da Mídia e a dos Sábios. A Pedagógica, desde o século XIX,
distribui às crianças e aos jovens em idade escolar, a ideologia do mito de Prometeu.
A da Mídia, na aparência, é antagônica a anterior por distribuir os mitos de Orfeu ou
de Dionísio. Há uma liberação selvagem em busca de audiência a qualquer preço e onde os
grandes financiadores deste sistema têm o monopólio oculto sobre todos os outros poderes
políticos. Devido à dialética destas duas forças, há a terceira estratificação, que é aquela dos
sábios, pesquisadores pertencentes tanto às ciências do mundo material como às ciências
humanas, os responsáveis pela revalorização daquelas mitologias esquecidas que, na
realidade, se parecem com outras bem antigas.
Tem-se que insistir sobre este ponto: eles “reencontram” os mitos. Pois se trata de
“volta”. É uma ilusão superficial acreditar que tem mitos “novos”. O potencial
genético do homem, no plano anatomo-fisiológico, assim como no plano psíquico, é
constante desde que existem homens “que pensam”, quer dizer desde os quinze a
vinte mil anos de existência do homo sapiens sapiens.” (DURAND, 2004, p. 19-20)
O Mito no pensamento ocidental, nos últimos séculos, tinha sido relegado a uma
pequena parte do pensamento pragmático. Porém, este panorama vem se modificando de uma
forma constante através das visões de mundo dos sábios, ou seja, dos cientistas das diversas
áreas do conhecimento como físicos, biólogos, astrônomos, psicólogos, sociólogos,
historiadores das religiões, antropólogos etc, que, a partir dos novos conceitos, vêm
construindo um novo paradigma científico, ou seja, o da “ciência do espírito”.
28
[...] busca-se relativizar a polaridade que coloca, de um lado, a religião como uma
totalidade de verdade e transcendência e, de outro, as ciências (sociais) com
pretensões de decompor a primeira em fatores socioculturais e históricos. Defendem-
se uma “via de mão dupla” em que ambas deixem-se afetar mutuamente, e em que a
religião empregue métodos socioculturais e históricos como forma de
autocompreensão e as ciências (sociais), conceitos e experimentos do universo
religioso (por exemplo, o carisma) para interrogar suas problemáticas. (CAMURÇA,
2008, p.10)
Camurça (2008) se alia àqueles que usam o termo “Ciências da Religião”, justificando
que o faz não por discordar ou se opor radicalmente a outras proposições, mas o faz por uma
questão de preocupação com a identidade do Programa de Pós Graduação, ao qual está
vinculado, e seu ajuste com o que realizam no Programa.
Filoramo e Prandi (1999), por sua vez, defendem a proposição “Ciências das
Religiões”, justificando que são vários os métodos científicos e que, portanto, há um
pluralismo metodológico ou um “politeísmo metodológico”. Defendem ainda que, nessa
diversidade de metodologias, é impossível reduzi-las a um único denominador comum, bem
como a pluralidade do objeto (Religião como gênero e não como espécie), uma vez que é
impossível construir sua unidade, no plano da investigação empírica.
Concluindo: as ciências das religiões (CR) não constituem uma disciplina à parte,
fundada, como gostaria a tradição hermeneuticamente orientada (cf.cap.I), na unidade
do objeto (a religião) e na unidade do método (a compreensão hermenêutica). Antes,
ela é um campo disciplinar e, como tal, uma estrutura aberta e dinâmica.
(FILORANO E PRANDI, 1999, p.13)
Como a saúde é um bem precioso, quando alguém está doente, normalmente, recebe
atenção e cuidados especiais e há uma tendência dos membros da família de se mobilizarem e,
de se voltarem exclusivamente para o doente, ao ponto de todas as outras dificuldades da
família serem consideradas pequenas ou desaparecerem, principalmente as dificuldades de
relacionamentos familiares. As atenções e os cuidados especiais podem ser considerados os
“ganhos secundários”: o indivíduo está privado da sua saúde, mas, em compensação, sente-se
amado. E o amor pode ser um bem ainda maior, para determinadas pessoas, do que a saúde
isolado, um evento, mas é uma situação de vida, uma passagem do estado de saúde,
de bem-estar para um outro de não-bem-estar, e é importante sobretudo como este é
enfrentado, e que valor assume na consciência do doente e que sentido este lhe dá.
(FRATTA, 2004, p.49)
É comum ouvir relatos de pessoas, mesmo fora do setting terapêutico, que dizem que
durante certo tempo, sentiram “inveja” de um determinado membro doente de sua família,
porque os pais priorizavam a atenção e reservavam as melhores coisas ou alimentos para o
enfermo e, ainda, solicitavam que tivessem paciência e abrissem mão dos seus interesses e
necessidades pessoais para ajudá-los a cuidar daquele membro doente. Parecia que os pais
amavam mais aquela pessoa doente do que a eles que estavam sadios!
Em outros termos, a palavra saúde [...] designa a intensidade com que os indivíduos
conseguem enfrentar os seus estados interiores e as condições ambientais, [...]; a
saúde alcança níveis ótimos lá onde o ambiente gera capacidade pessoal de enfrentar
a vida de modo autônomo e responsável. (ILLICH, 1981, p.13 apud FRATTA, 2001,
p. 51)
Segundo Dethlefsen e Dahlke (2005), o sintoma seria um sinal de que algo não vai
bem! Deixar de interpretar os fenômenos torna a vida sem sentido! A medicina acadêmica
quando evita interpretar a doença e seus sintomas condena-os ao exílio da ausência de
significado, ou seja, eles perdem sua função, transformando-se em apenas sinais de um mau
31
De acordo com Dethlefsen e Dahlke (2005), atualmente, cada vez mais se faz ouvir
as vozes daqueles que desconfiam da onipotência da medicina moderna, colocando em
evidência os efeitos colaterais, a desumanização dos tratamentos e o mascaramento dos
sintomas.
Estas críticas são levantadas principalmente pelos profissionais da medicina
homeopática e pelos médicos alopatas mais jovens, que percebem o surgimento de novo
paradigma da medicina holística, uma vez que o paradigma da especialização, apesar de sua
grande contribuição para o conhecimento dos muitos detalhes, provocou a perda de visão, por
parte dos profissionais, do ser humano como um todo!
[...] É certo que a medicina vive em grande parte de medidas concretas e práticas, no
entanto, cada intervenção expressa – consciente ou inconscientemente – a filosofia em
que se baseia. A medicina moderna não falha exatamente em suas possibilidades de
ação mas na visão de vida em que as fundamenta, de forma muitas vezes silenciosa e
32
irrefletida. A medicina naufraga devido à sua filosofia – ou, em palavras mais exatas,
à carência de uma filosofia. Os procedimentos médicos, até agora, orientaram-se
unicamente pela funcionalidade e pela eficácia: a falta de “uma alma interior” é que
por fim acarretou-lhe a crítica de desumana.( [...] (DETHLEFSEN e DAHLKE, 2005,
p.12)
Segundo Carvalho (2000), a palavra família, segundo Engels, vem de famulus, que
quer dizer escravo doméstico. Foi uma expressão criada pelos romanos para designar um
novo organismo social que surgia entre as tribos latinas, quando foram escravizadas
legalmente e introduzidas na agricultura. Caracterizava-se pela presença de um chefe do sexo
masculino o “paterpotestas”, que tinha o poder de vida e de morte sobre a mulher, os filhos e
certo número de escravos.
O termo família, ao longo da história, foi utilizado para designar instituições e
agrupamentos sociais diferentes, no que se refere à estrutura e funções. Alguns grupos e
instituições não tinham como função específica ou exclusiva a reprodução geracional, mas,
sim, prioritariamente, funções políticas e econômicas. Por exemplo,
Este espaço privilegiado é organizado pelas relações de gênero e pela divisão sexual do
trabalho.
Com o passar do tempo, o modelo da família nuclear burguesa se espalhou por toda
a sociedade ao ponto de as pessoas aceitarem este modelo como verdade estabelecida. Elas se
esquecem que este é um modelo construído historicamente, cujos padrões emocionais,
crenças, valores e normas a ele inerentes, têm uma origem aristocrática e burguesa, de forma
que as relações interpessoais são baseadas no poder e na hierarquia, sendo o homem o único
provedor, estando por isso no comando da família, enquanto que a mulher, responsável pela
casa e os cuidados com os filhos, está subordinada a ele.
No final da década de 1970, Lasch já levantava a hipótese da “socialização da
reprodução” e do “cerco à família”. Para ele, a sociedade capitalista não socializou apenas o
processo de produção, mas, também, o de reprodução, distribuindo-a por várias agências
sociais. O crescimento das profissões nas áreas de saúde, educação e assistência social tirou
dos pais e da família a autoridade na reprodução, levando à fragmentação da função
reprodutiva da família, que passa a dividir o processo de socialização do indivíduo com
diferentes agências e instituições sociais. (BILAC in CARVALHO, 2000)
“Os pais abdicam de seus juízos e emoções em prol do conhecimento técnico dos
especialistas. A autoridade se impõe de fora para dentro e os efeitos são vários, tanto do ponto
de vista sociológico quanto psicanalítico” (BILAC in CARVALHO, 2000, p.34).
A família passa a perder as suas funções e importância social. O seu papel na
sociedade é paulatinamente minimizado, até o ponto de ser questionada a sua validade como
instituição. A crise da família é expressa pelo crescente número de divórcios e separações,
diminuição dos casamentos, perda da autoridade paterna, abandono dos idosos etc. Apesar do
crescente descrédito que a família vem sofrendo nas últimas décadas, causa perplexidade a
sua capacidade de permanência e renovação.
A variabilidade histórica do termo família desafia qualquer conceito geral sobre ela.
Portanto, é preciso que fique claro que, neste trabalho dissertativo, quando se fala em família,
o termo refere-se à família na sua pluralidade, com seus distintos padrões de interações e com
suas histórias e explicações. Vejamos:
[...] como resultado geral têm-se lógicas diferenciadas de articulação das relações
familiares que se expressam tanto no significado diferencial dos vários papéis
familiares: mãe, esposa, filhos, pais, quanto no próprio timing do que se chama ciclo
de vida doméstico, e também dos rumos diferenciados das trajetórias de vidas
individuais de homens e mulheres, crianças e adultos. (BILAC in CARVALHO,
2000, p.35)
35
Percebe-se que a família está mudando. Estão surgindo novos modelos de família a
partir da renovação dos modelos existentes. Porém, há algumas famílias que, por não
conseguirem atender ao modelo nuclear burguês, sentem-se incompetentes, inferiores,
desestruturadas ou incompletas. Essa sensação é causada pelo fato de que o modelo burguês,
ainda hoje, é imposto pelo discurso de algumas instituições religiosas, da mídia e até de
alguns profissionais que definem este modelo de família como o “certo” e que,
irrefletidamente, é perpetuado como um valor.
Na prática clínica, infelizmente, é possível ouvir de alguns membros de famílias que
ainda acreditam que o padrão da família nuclear burguesa é o “correto”, o relato de que eles
são “diferentes”, “menos do que” e “incompetentes”, por não atenderem a este padrão de
família. Outro conceito de família referido, nesta pesquisa, é a família vivida, que Gomes
(1998), resume da seguinte forma
Isto, porém, não era realidade, pelo menos para a maioria da população pobre dos
países do terceiro mundo. Tanto que, no início da década de 1990, percebeu-se que as
promessas não estavam sendo cumpridas. O Estado e o trabalho não eram mais garantias do
bem-estar social. A globalização, a revolução informacional, o aumento do déficit público, a
transformação produtiva, o aumento assustador do desemprego, da pobreza e das
desigualdades sociais, o crescente envelhecimento da população e o conseqüente aumento das
despesas com aposentadoria e saúde pública, obrigaram o Estado a rever a sua política social.
A família retoma o seu lugar de destaque na política de proteção social. Agora, além
de beneficiária, ela é parceira e miniprestadora de serviços de proteção e inclusão social. Não
é uma revalorização nostálgica e conservadora dos modelos tradicionais de família, mas, sim,
a revalorização da sua essência, ou seja, a possibilidade de formação de vínculos relacionais, a
socialização dos novos indivíduos e o território de desenvolvimento do pertencimento.
Porém, a revalorização da família como reprodutora e protetora social não deve
isentar o Estado da responsabilidade de cumprir a sua função que é garantir e assegurar as
condições favoráveis e necessárias à proteção, desenvolvimento e inclusão social de todos os
indivíduos, principalmente daqueles mais vulneráveis à exclusão social. “O potencial
protetivo e relacional aportado pela família, em particular daqueles em situação de pobreza e
exclusão, só é possível de otimização se ela própria recebe atenções básicas”.(CARVALHO,
2000, p.18)
Hoje, há uma crescente preocupação em reconhecer, revalorizar e privilegiar a
família como uma unidade empreendedora, pois é na família que o indivíduo tem a
possibilidade de construir a base de proteção, o território de pertencimento e a rede de
relações mais duradouras e estáveis, equipando-se com o kit de ferramentas necessário a sua
socialização. Entretanto, é bom frisar que estas expectativas são possibilidades e não
garantias.
As principais transformações na reorganização da família ocorreram nas relações de
gênero. A partir da segunda metade do século XX, com a possibilidade do controle da
reprodução humana, se deu um novo impulso nas mudanças das relações internas na família.
As mulheres em condições de competir com os homens passaram a exigir direitos e deveres
iguais, no mercado de trabalho e nas funções domésticas, redefinindo os papéis femininos e
masculinos na sociedade.
Os papéis não são mais predeterminados pela tradição e têm que ser novamente
aprendidos para se adaptarem às novas situações. Homens e mulheres, diante dos ideais
37
Os papéis sexuais e as obrigações entre pais e filhos não estão mais claramente
preestabelecidos. [...] Com isso, a divisão sexual das funções, o exercício da
autoridade e todas as questões dos direitos e deveres na família, antes
predeterminadas, hoje são objeto de constantes negociações, sendo passíveis de serem
revistas à luz destas negociações. (SARTI in CARVALHO, 2000, p.44)
façam se sentirem felizes. “Os casamentos são mais efêmeros, e uma das grandes causas é a
superficialização na elaboração dos conflitos interpessoais. (BOECHAT, 2007, p.19)
pela ciência, pela prática e pela ética profissional, promovendo a saúde mental e
propiciando condições para o enfrentamento de conflitos e/ou transtornos psíquicos
de indivíduos ou grupos.
Muitos ainda acreditam que a análise psicológica é reservada aos neuróticos, que só
existe em função das neuroses e que tem por finalidade apenas mitigá-las ou eliminá-
las. Sem dúvida, um dos papéis principais de qualquer análise psicológica é dar ou
restituir o equilíbrio às pessoas que sofrem de perturbações psíquicas.[...] O aspecto
evolutivo é menos conhecido e mais difícil de admitir, porque se trata de uma
evolução espiritual. De fato – e voltaremos a este ponto – as descobertas de Jung lhe
permitem servir-se da análise da psique como de um meio de retorno ao espírito. Com
isso, a análise não se dirige mais unicamente a neuróticos, mas também a seres que se
preocupam com a vida interior e que procuram a sua vida espiritual. (WINCKEL,
1985, p. 23-24)
A psicoterapia colabora para que o indivíduo tome consciência de que, assim como
há o desenvolvimento físico, há também um processo natural de desenvolvimento
psicológico, independentemente do controle e da ausência de conhecimento do indivíduo.
Este processo interno é responsável pelo fluxo de energia de vida dentro de cada ser humano,
energia que pode, inconscientemente, está sendo bloqueada ou canalizada de uma forma
inadequada, provocando conflitos internos que são expressados, no corpo ou na psique,
causando inúmeros prejuízos à saúde integral do indivíduo.
O processo terapêutico é como atravessar um túnel. Neste túnel você vai rever muitas
cenas da historia da sua vida de um ângulo completamente novo, fazendo conexões
inusitadas entre os eventos e percebendo a potência do passado para moldar quem
você é hoje. Na travessia deste túnel você vai aprender a reconhecer os seus padrões
41
Jung derivou o termo self do pensamento religioso indiano, mas deu a ele um
significado próprio. Ao falar de Si-mesmo (self), ele referia-se à personalidade total,
tanto o elemento consciente, racional e planejador da personalidade, que ele
denominou ego, como o inconsciente, em que incluía tanto o inconsciente pessoal
como o coletivo, tanto as lembranças esquecidas da experiência passada como as
tendências arquetípicas herdadas que compartilhamos com o restante da raça
humana.[...] (BRYANT, 1996, p. 48-49)
Ao entenderem que nada acontece à pessoa sem a permissão dela, seja esta
permissão consciente ou inconsciente, no primeiro momento, causa uma grande decepção
consigo mesma por terem sido permissivas, porém, depois se percebem que, se não mais se
permitissem, tudo ficaria bem porque, sendo capazes de dar limites, com certeza, passariam
de uma posição passiva, para uma ativa, e os conflitos poderiam ser elaborados de uma forma
adequada e funcional. Flores (2005) acrescenta que,
Entretanto, não é tão fácil como parece, pois ao serem permissivas, recebem em
troca, “ganhos secundários” que, às vezes, não são nada fáceis de se abrir mão, pois já estão
incorporados na percepção de si mesmos, no seu padrão de funcionamento e de
relacionamento interpessoal, principalmente familiar e religioso.
Porém, se o paciente se apega aos “ganhos secundários”, as mudanças necessárias
não serão efetivadas e, consequentemente, não haverá processo psicoterapeutico, pois o
paciente não estará mobilizado ou motivado a “pagar o preço” emocional, o qual será
simbolicamente transferido para o investimento financeiro, se tornando um dos motivos mais
freqüentemente alegados pelos pacientes para abandonarem a psicoterapia, ou seja,
inconscientemente, fazem resistência ao processo.
A psicoterapia de abordagem integradora é um processo psicoterapêutico que atende
o paciente individualmente, se utilizando das contribuições da medicina psicossomática, dos
princípios da terapia familiar sistêmica, da psicologia junguiana e do conceito de resistência à
psicoterapia.
45
O pai não fala abertamente sobre o seu amor, porque tem medo de ser rejeitado, o que
seria um golpe na sua auto-estima. Entretanto, se o pai pudesse ser honesto, sua filha
teria uma oportunidade de expressar seus sentimentos confusos sobre crescer e se
afastar dele, e ambos se sentiriam melhor consigo mesmo por terem se dirigido um ao
outro... a comunicação honesta gera auto-estima elevada, que encoraja mais
honestidade e assim por diante. (SATIR, 1988 apud NICHOLS, 1998, p. 99)
Murray Bowen (NICHOLS, 1998) desenvolveu uma versão da Teoria dos Sistemas,
influenciada pelas ciências biológicas, sofrendo também influências da teoria evolucionista de
Darwin e da teoria psicanalítica de Freud. No início das suas observações ficou impressionado
com a fusão emocional, ou seja, a reatividade emocional entre os pacientes esquizofrênicos e
suas mães. Depois, constatou que essa reatividade emocional era comum na maior parte das
51
famílias e passou a usar a expressão “Massa Indiferenciada do Ego Familiar”, sugerindo que a
família parecia uma célula indiferenciada.
Descobriu que o emocional, nestas famílias, era tão forte que oprimia o intelectual, a
ponto deles reagirem automaticamente e impulsivamente. Para ele, o objetivo da terapia
familiar era ajudar os membros-chave da família a atingirem um nível alto de diferenciação
do Self e assim poderem ajudar os outros membros a diferenciar-se também. O processo de
diferenciação do Self significa o controle da razão sobre a emoção.
O conceito de triangulação é fundamental na teoria de Bowen (NICHOLS, 1998).
Quando as relações conjugais geram ansiedade, há uma tendência natural para a triangulação,
uma vez que os problemas dos filhos estão vinculados à relação conjugal dos pais. Ele
acreditava que a função do sintoma era diminuir o estresse e a ansiedade dentro da família.
Os sistemas familiares têm seus mitos e, como os mitos são pedagógicos, eles
normalmente definem os relacionamentos familiares, ou seja, o que cada membro da família
pode ou deve fazer, o que é permitido e o que não é, o lugar que se vai ocupar na família e a
função dentro do sistema.
Os mitos familiares têm uma função pedagógica, pois ensinam como os membros da
família deve se comportar dentro e fora do seu sistema familiar. Segundo Pitta (2005), o mito
só é mito quando as pessoas acreditam que ele é verdadeiro, caso contrário, ele é um conto.
“[...] O mito, enquanto produto de uma coletividade, apresenta-se funcional sobretudo para
esta coletividade, não o sendo necessariamente para tal ou tal indivíduo, embora, na defesa do
grupo, ele tenda a se impor ao indivíduo e submetê-lo. (PRADO, 1999, p. 49)
A organização do sistema familiar está apoiada nas suas leis, regras e estratégias
que, por sua vez, estão ligadas aos valores familiares. As Leis são consideradas verdades
absolutas para o sistema familiar, e são inconscientes, imutáveis, irracionais e inflexíveis.
Porém, as regras são semiconscientes, mais ou menos mutáveis, flexíveis e lógicas, e
determinam o que tem que ser e o que não pode ou não deve ser, enquanto que as estratégias
53
são mais conscientes, racionais e flexíveis e determinam o que podem acontecer ou não
daquela forma.
Sem suas variantes o mito se enrijece e se fixa em uma forma imutável. Este mito
“canônico”, da perspectiva familiar, corresponde ao mito familiar patógeno, chamado
por Vilhena(1986) de “pseudo-mito” porque implica na impossibilidade de fantasiar e
na perda de simbolização das fantasias primitivas, bem como da possibilidade de
solucionar as contradições e as antinomias no que diz respeito às vivências
individuais, aos ideais e às dificuldades familiares. (PRADO, 1999, p.39)
Quando o sistema familiar é funcional, nas mudanças dos estágios do ciclo de vida
da família, os mitos familiares prevêem a flexibilização das regras e estratégias para que os
padrões de relacionamentos familiares se modifiquem e se adaptem ao novo estágio do ciclo
de vida da família. Entretanto, quando o sistema familiar é disfuncional, não permite as
flexibilizações necessárias, tornando rígidos os padrões de interações familiares, impedindo,
desta forma, que a família tenha um desenvolvimento saudável ao longo do seu ciclo de vida,
o que gera estresse e tensão insuportáveis na família.
Jung foi um gênio! Um homem e um cientista a frente de seu tempo! Sua teoria
psicológica, apesar de ter sido desenvolvida nas primeiras seis décadas do século XX, ela é
muito atual. Foi um autor prolixo, portanto, de difícil compreensão, o que gerou diversos mal-
entendidos e severas críticas desaprovadoras dos seus opositores que, segundo Jung (JACOBI,
1991), com raras exceções, davam-se ao trabalho de consultar atentamente o que ele escrevia.
Como o clínico/pesquisador deste trabalho científico é um neófito da psicologia
junguiana para não correr o risco apontado pelo próprio Jung, faz referências bibliográficas de
autores junguianos, contemporâneos a ele, e pós junguianos, quando considera que as
54
[...] É que, pelo processo associativo (cuja explicação detalhada não cabe no presente
trabalho), foi possível demonstrar que as velocidades e as qualidades de reação do
processo associativo, provocado em diversos indivíduos-cobaias por meio de uma
“palavra-estímulo”, escolhida segundo determinado princípio, são individualmente
condicionadas. Uma duração mais prolongada da reação, na primeira exposição ao
estímulo, e as reações falhas (lapsos de memória e a sua falsificação na repetição da
experiência) das respostas produzidas em associação espontânea não são, por natureza,
acidentais, mas determinadas, com incrível precisão, pela influência perturbadora de
conteúdos inconscientes e sensíveis aos complexos. [... ] (JACOBI, 1991, p.17)
Este termo “complexo” já tinha sido utilizado anteriormente por Eugen Bleuler
(1857-1939) para definir alguns diagnósticos, porém, a definição conceitual tal como se
entende hoje, ou seja, como “agrupamento de idéias de acento emocional no inconsciente” foi
desenvolvida por Jung. De acordo com Jacobi (1991), Jung confere aos complexos uma
função importante, central e predominante na sua psicologia analítica, tanto que, para ele, os
complexos são a principal via de acesso aos conteúdos inconscientes.
55
O complexo possui uma grande carga de energia psíquica que é inerente a ele.
Porém, não basta ter consciência da existência de um determinado complexo para que haja a
sua “descarga” e que esta energia seja redistribuída para outra corrente, isto é, para que ele seja
emocionalmente digerido. É preciso que o paciente confronte o complexo, que tome
conhecimento da fonte produtora da sua atuação complexada, do seu “núcleo elementar” ou
“portador de significado". Do ponto de vista funcional, esta energia redistribuída, que flui e
ocupa novos conteúdos, produz uma nova situação mais útil ao equilíbrio psicológico.
Até aqui as noções de Jung e Freud sobre os complexos, e o fato deles estarem no
inconsciente, se assemelhavam. Porém, Jung (JACOBI, 1991) amplia o conceito de
inconsciente, acrescentando o inconsciente coletivo. Jung fez uma distinção bem clara entre o
56
inconsciente pessoal (que coincide com a noção de Freud de inconsciente, ou seja, o conteúdo
é composto exclusivamente de material de vivências pessoais reprimidas) e o inconsciente
coletivo (onde é constituído da possibilidade herdada de vivências e comportamentos, comuns
a todos os seres humanos.
Jung até os considerou como “focos e nós da vida psíquica, sem os quais ninguém
gostaria de passar e que não devem faltar, senão a atividade psíquica chegaria a uma
parada fatal.” Os complexos formam, na estrutura psíquica, os “pontos nevrálgicos”
em que se assentam o não digerido, o inaceitável e o conflitante, mas “cujo caráter
doloroso não comprova a existência de alguma perturbação doentia”. [...] “Sofrer não é
uma doença, mas o pólo oposto normal da felicidade. Um complexo só se torna
doentio depois, quando achamos que não o temos. (JACOBI, 1991, p 28)
Jung amplia a visão de Freud sobre os complexos, pois percebe que eles são
bipolares, isto é, não possuem apenas um aspecto negativo, mas também um positivo. Pois,
para ele, um mal pode se transformar num bem, ou seja, quando algo vai mal, talvez seja um
sinal codificado de que alguma coisa precisa ser feita para que o equilíbrio e a harmonia sejam
restaurados; caso este alerta não fosse dado, a pessoa não saberia que precisava tomar
providências para restaurar a sua saúde.
Jung observou que há complexos que são reprimidos, mas há também outros que
nunca chegaram à consciência, portanto, não poderiam ter sido reprimidos. Há também
complexos que, dependendo da sua natureza e do “eu” do seu portador, são criados dentro de
uma situação atual, como, por exemplo, nas crises da meia idade. Para ele, há dois tipos de
complexos, os do inconsciente pessoal, que tiveram acesso à consciência e por ela foram
reprimidos, e os complexos do inconsciente coletivo que, para o indivíduo, parece que eles
vêm de fora.
Jacobi (1991) alerta para o fato de que para compreender corretamente o conceito
junguiano de complexos é fundamental lembrar-se que a teoria dos complexos de Jung rompeu
com as tradicionais opiniões, dando lugar a uma maneira nova de encarar os complexos, que
deve está sempre associada a sua descoberta dos arquétipos, ou seja, dos “dominantes do
inconsciente coletivo”.
[...] “Os conteúdos do inconsciente pessoal são percebidos como fazendo parte da
própria psique, mas os conteúdos do inconsciente coletivo parecem estranhos e como
que vindos de fora. [...] É evidente o paralelismo com as crenças primitivas em
“almas” e “espíritos”. As “almas” dos primitivos correspondem aos complexos
autônomos do inconsciente pessoal, mas os “espíritos” aos complexos do inconsciente
coletivo.” (JUNG apud JACOBI, 1991, p. 42)
No caso da carga de um (ou vários) desses “pontos de nó” ficar tão potente que ele,
como se magneticamente (agindo como célula nuclear), atraísse tudo e começasse a
inchar e crescer desordenadamente como uma célula cancerosa, “devorando” as outras
células e criando um estado no interior do estado, para depois, como “psique parcial”
enfrentar o “eu” como um estranho, teríamos então complexo formado. [...] (JACOBI,
1991, p. 31-32)
[...] Em suma, pode-se dizer que o complexo tem duas raízes (ele se baseia em eventos
ou conflitos, quer da primeira infância, quer da atualidade); duas naturezas (pode
manifestar-se como um complexo “doente” ou como um complexo “sadio”); duas
maneiras diferentes de manifestação (conforme o caso, pode ser julgado algo negativo
ou algo positivo, sendo “bipolar”). (JACOBI, 1991, p. 32)
Jung observou que há uma relação significativa entre os complexos que são
individuais, ou seja, os conteúdos reais da consciência “são todos adquiridos individualmente”,
e os instintos arquetípicos, que são universais. Jung propõe um modelo onde o inconsciente é
vivo, inesgotável e, sobretudo, inexpugnável pela razão. Esses núcleos dinâmicos vivos
regeriam todo o comportamento consciente do indivíduo. Jung substitui e amplifica o conceito
psicanalítico de resíduos arcaicos por arquétipos ou imagens arquetípicas.
A teoria das idéias originárias pré-conscientes não é, de forma alguma, uma invenção
minha, como o demonstra a palavra “arquétipo”, que pertence aos primeiros séculos da
nossa era. Com especial referência à Psicologia, encontramos esta teoria nas obras de
Adolf Bastian e, logo depois, em Nietzche. Na literatura francesa, Hubert e Mauss, e
Lévy-Bruhl se referem a idéias semelhantes. Através de investigações minuciosas,
nada mais fiz do que oferecer uma base empírica à teoria do que antes se chamava de
idéias originárias ou elementares, “catégories” ou “habitudes directrices de la
conscience”, etc. (JUNG, 1987, p. 56)
que diz que se o conhecimento depende da percepção, então uma noção de percepção deve
preceder a aquisição do conhecimento.
Jung (1987) explica que os instintos, no ser humano, se expressam em imaginações
fantasistas e atitudes involuntárias e irrefletidas. Os instintos têm dois aspectos: um formal e
outro dinâmico. O primeiro manifesta-se, entre outras vias, nas imaginações fantasistas que, de
acordo com as pesquisas desenvolvidas por Jung, pode-se constatar que são universais, pois
mantêm semelhanças surpreendentes em todos os lugares e épocas. Estas imaginações, assim
como os impulsos, são relativamente autônomas, ou seja, são numinosas, isto é, religiosas.
“Antes de falar de religião, devo explicar o que entendo por este termo. Religião é –
como diz o vocábulo latino religere – uma acurada e conscienciosa observação
daquilo que Rudolff Otto acertadamente chamou de “numinoso”, isto é, uma existência
ou um efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário. Pelo contrário, o efeito se
apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que
seja sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua
vontade. [...]O numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de
uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência. Tal é,
pelo menos, a regra universal.” (JUNG, 1987, p 9)
Assim como os complexos, os arquétipos também são bipolares, pois contêm tanto
aspectos positivos como negativos e, durante a experiência de vida do indivíduo, se
manifestam através dos complexos. Aqueles que são ativados podem vir a se tornarem
conscientes, porém, outros jamais serão conscientizados.
60
metaforicamente identificados como árvores, a psique coletiva não era apenas o bosque, mas,
também, o solo onde estas árvores se desenvolveram.
A individuação, muitas vezes, pode ser confundida com o individualismo, porém, são
conceitos bem diferentes. De acordo com Zoja (2005), para a psicologia junguiana, o indivíduo
não é uma ilha, pelo contrário, ele é cidadão da cultura e da história. Jung ofereceu um modelo
de compreensão tanto da psique individual quanto da coletiva e, neste caso, o individualismo
seria a polarização, onde o seu oposto seria o movimento coletivo.
Isto não quer dizer que ele desvalorizava a psicologia individual em prol da
psicologia de massa, mas sim que ressalta, valoriza e aprofunda os aspectos sociais do próprio
indivíduo. A individuação é um processo que visa, antes de tudo, à correção da unilateralidade,
aqui representada pelo individualismo, na busca do equilíbrio dos opostos.
medida que vai crescendo e se desenvolvendo, sua personalidade caminha na busca da plena
diferenciação, do equilíbrio e da unificação completa.
Consciência significa, acima de tudo, estar ciente. [...] Essa é a característica crucial da
consciência: a consciência é ciente de si mesma, é o ego ficando ciente de si mesmo.
[...] Esse é o grande mistério da consciência, ela tem o poder reflexivo de olhar para o
espelho e se enxergar como uma imagem separada. Não é apenas um acidente o fato de
Iahweh, no Antigo Testamento, expor sua identidade como “Eu sou”. Acho que existe
uma ligação entre a psicologia da consciência e a imagem simbólica de Iahweh. [...]
(EDINGER, 2004, p. 19)
63
No seu aspecto externo, essa estrutura mediadora recebe o nome de Persona (que é
parte da palavra personalidade) e que em latim significa as máscaras que o ator usava no teatro
grego, na época clássica, segundo o papel que ele representava. Para estabelecer contatos com
o mundo exterior, para adaptar-se às exigências do meio onde vive, a pessoa assume uma
aparência que geralmente não corresponde ao seu modo autêntico. São vários os papéis que a
pessoa pode desempenhar na vida: por exemplo, no caso da pessoa ser um pastor evangélico,
além disto, ele também pode ser um filho, um amigo, um pai, um marido.
Os moldes da persona são recortes tirados da psique coletiva. Quanto mais a persona
adere à pele do ator, tanto mais dolorosa será a operação psicológica para despi-la. Isto é
comum nos casos em que o paciente tem um ego muito identificado com sua persona, ou seja,
quando há uma inflação do ego.
O problema, o negativo, não é desempenhar vários papéis, pelo contrário, é quando a
pessoa se fixa em um deles. No caso do pastor, isto pode acontecer, por exemplo, se ele exige
que sua esposa, filhos, amigos ou o pai os reverenciem, como suas ovelhas o fazem, quando
ele está desempenhando este papel na Igreja.
[...] A “ausência da alma” que essa mentalidade parece acarretar é só aparente, pois o
inconsciente não tolera de forma alguma tal desvio do centro de gravidade.Se
observarmos criticamente casos dessa espécie, descobriremos que a máscara perfeita é
compensada, no interior, por uma “vida particular”. O piedoso Drummond queixou-se
certa vez que “o mau humor é o vício dos virtuosos”. Naturalmente, quem constrói
uma persona boa demais sofrerá crises de irritabilidade. Bismarck tinha ataques de
choro histérico, Wagner mantinha uma correspondência sobre cinturões de seda para
batas de dormir, Nietzsche escrevia cartas a um “querido lama”, Goethe mantinha
conversações com Eckermann etc. [...] (JUNG, 1982, p.69)
Da mesma forma que a persona tem a função de mediar à relação entre o ego e o
mundo externo, há outras funções psicológicas, ou seja, arquétipos, que fazem este trabalho no
sentido inverso, ou seja, entre o ego e o mundo interno. Uma delas Jung denominou de
sombra, que é considerada a parte inferior da personalidade, de difícil aceitação pelo
indivíduo, pois apresenta elementos considerados desmoralizantes e até mesmo demoníacos.
Quando o paciente inicia uma análise, na psicoterapia junguiana, é a primeira a ser
confrontada.
Quando é retirada a máscara que o ator usa nas suas relações com o mundo, aparece
uma face desconhecida, sua sombra. Olhar-se em espelho, que reflita cruamente esta face, é
um ato corajoso. Será visto o lado escuro, onde o indivíduo, por desconhecer seu conteúdo,
pensa que lá só existem coisas que desagradam, repugnam ou mesmo que assustam o indivíduo
e, por isso, as reprimem e as projetam sobre o outro, permanecendo, pois inconscientes de que
as abrigam dentro deles mesmos. O arquétipo da sombra tem a qualidade de influenciar as
relações com pessoas do mesmo gênero.
Após o confronto com a sombra, o(a) paciente entra em contato com outro arquétipo ou
função psicológica: a anima, quando se trata de pessoas do sexo masculino, e o animus,
quando do sexo feminino. A anima seria o arquétipo feminino da psique masculina e animus o
arquétipo masculino da psique feminina, pois assim como biologicamente tanto os homens
como as mulheres secretam hormônios masculinos e femininos, psicologicamente ambos
possuem qualidades, ou seja, atitudes e sentimentos comuns ao sexo oposto.
[...] Não há homem algum tão exclusivamente masculino que não possua em si algo de
feminino. O fato é que precisamente os homens muito masculinos possuem (se bem
65
que oculta e bem guardada) uma vida afetiva muito delicada, que muitas vezes é
injustamente tida como “feminina”. O homem considera uma virtude reprimir da
melhor maneira possível seus traços femininos. Analogamente, a mulher, até há pouco
tempo, considerava inconveniente ser varonil. [...] (JUNG, 1982, p.65)
O arquétipo é uma força. Ele tem uma autonomia e pode apoderar-se de você de
repente. É como um ataque repentino. Apaixonar-se à primeira vista é alguma coisa
parecida com isso. Veja, você possui certa imagem de mulher, da mulher, dentro de
você mesmo, sem o saber. Aí, você vê essa moça, ou, pelo menos, uma boa imitação
dela, e na mesma hora você sofre um ataque e você está perdido. E mais tarde você
pode chegar à conclusão de que fora um enorme engano. [...] Esse é o arquétipo, o
arquétipo da anima... Com as mulheres acontece o mesmo. Quando um homem canta
muito alto, a moça acha que ele deve ter um caráter espiritual maravilhoso, pois ele
conseguiu atingir o dó agudo, e ela fica extremamente desapontada quando casa com
esse homem em particular. Bom, esse é o arquétipo do animus. (JUNG APUD
EDINGER, 2004, p.25)
tomada de consciência de que não existe apenas um centro na psique individual, mas sim dois
centros: o ego (centro da consciência) e o Si-mesmo (centro e totalidade da psique).
Agora, o que acontece com certa freqüência é que, se há algum sistema religioso ou
mitológico à disposição do indivíduo, a experiência será assimilada dentro dessa
formulação religiosa em particular, e será descrita como uma experiência de Deus,
dentro dos preceitos dessa religião. Mas o que temos em mãos agora, pela primeira
vez, é a oportunidade de criar uma ciência empírica que diz respeito a esse nível de
realidade psíquica. Sempre tivemos inúmeros credos de diversas formas, mas nunca
tivemos uma ciência empírica desse fenômeno, e foi isso que Jung disponibilizou para
nós. (EDINGER, 2004, p.31)
Segundo Edinger (2004), essa foi uma grande descoberta do século XX, da qual Jung é
o seu responsável. Esta experiência permite ao indivíduo perceber que não está sozinho na sua
própria casa, mas que existe um outro, que sempre estava lá, mas que ele até então não o
conhecia. Isto se assemelha a experiência da criança, quando descobre que não é o centro do
universo, que existe um outro, externo a ela, que merece consideração e respeito, pois tem uma
autoridade maior do que a dela e que, portanto, tem que se ajustar a esta realidade, para que
seu processo de socialização se desenvolva de uma forma adequada.
Por isso, para a criança, é muito importante a opinião dos outros significativos na sua
vida, ou seja, os pais, os familiares, os professores, os orientadores espirituais, quando
pertencem a uma determinada religião, os amigos do seu grupo social, pois a identificação com
o ambiente e com as pessoas que fazem parte dele garante o sentimento de pertencimento, que
é fundamental para o desenvolvimento e fortalecimento do seu ego. Isto quer dizer que a
psique dela encontra-se nos outros. Internamente, o encontro do Ego com o Si-mesmo se
desenvolve de forma semelhante.
È uma experiência tão forte que se faz necessário que o ego seja suficientemente
desenvolvido para experienciar e assimilar este encontro, pois, caso contrário, corre-se o risco
de que esta experiência possa gerar uma psicose. Os delírios de conteúdos religiosos e
mitológicos, de alguns pacientes psicóticos, mostram isto. Por isso o fortalecimento do ego é
fator importante e indispensável na psicologia junguiana. Se é algo que oferece tamanho risco,
67
seria natural questionar por que é necessário ou desejável que o ser humano tenha que se
submeter a este processo.
Poder-se-ia perguntar aqui por que é tão desejável que um homem se individue. Eu
acrescentaria que não só é desejável como também é absolutamente necessário que o
seja. [...] Dos estados de mistura inconsciente e de indiferenciação brotam compulsões
e ações que se opõem àquilo que se realmente é. Dessa forma, o homem não pode
sentir-se unido consigo mesmo, nem poderá aceitar uma responsabilidade. Sentir-se-á
numa condição degradada, carente de liberdade e de ética. [...] (JUNG, 1982, p.101)
[...] Esse é o efeito de um encontro decisivo com o Si-mesmo. Ele gera um contato
com uma autoridade que carrega um tipo divino de qualidade, de maneira que o sujeito
sente-se obrigado a servi-la. O resultado é que o ego fica relativizado. Essa é a maior
conseqüência da individuação, o que é muito diferente de individualismo. (EDINGER,
2004, p.33)
Segundo Edinger (2004), um bom exemplo que pode ser encontrado dentro do
universo religioso cristão, para este processo de encontro do ego com o Si-mesmo e suas
consequências, é a experiência da conversão de Paulo, quando estava no caminho de Damasco.
68
Esta experiência transformou sua vida. O encontro com o Si-mesmo, simbolizado pela imagem
de Cristo, fez com que ele deixasse de ser um homem egocentrado e se tornasse centrado em
Cristo (a imagem por meio da qual ele assimilou a experiência). Sabe-se, através de suas
cartas, que a partir de então ele se descreve como um servo de Cristo, ou seja, o ego colocado a
serviço do Si-mesmo.
Vejam, uma das características da experiência do Si-mesmo é ser observado pelo Olho
de Deus. Uma experiência muito inquietadora essa de ser observado com total
objetividade por um sujeito interno que nos trata como um objeto. Ao sermos tratados
como objeto, não somos mais soberanos. Enquanto somos o sujeito, somos o soberano,
o soberano que examina o seu próprio reino. Mas quando somos o objeto, o sujeito que
está olhando para nós é o soberano examinando o reino dele, e esse fato nos leva em
direção a todo o simbolismo associado ao arquétipo do Julgamento Final. (EDINGER,
2004, p.21)
Hall e Nordby (1989) esclarecem que, segundo Jung, dificilmente este objetivo será
alcançado e que Jesus e Buda seriam dois raros exemplos que ele cita de personalidades que
alcançaram sua totalidade original. Porém, mesmo que haja uma grande dificuldade de se
atingir a unificação completa, esta busca é arquetípica, isto é, inata, ninguém está fora da
influência da poderosa força deste arquétipo de complementaridade, de unidade.
Complementam, dizendo que para Jung além das variáveis inatas de cada indivíduo,
também são influências fundamentais no desenvolvimento da personalidade, o meio ambiente
no qual ele está inserido, principalmente o papel dos pais, da sociedade e da cultura. Chama a
atenção para o fato de que os professores têm grande influência sobre a personalidade do
aluno, sobretudo na infância e na adolescência e, por isto, Jung enfatizava a necessidade destes
professores compreenderem o desenvolvimento psíquico destas duas fases do ciclo de vida do
indivíduo.
Hall e Nordby (1989) acrescentam que um dos temas dominantes na psicologia
junguiana é a integração da personalidade. Para que isto ocorra, o processo de individuação é
só o primeiro passo, pois o segundo estágio só pode ser realizado por uma função que tem o
poder de unir todas as tendências opostas da personalidade, no sentido de atingir a totalidade, a
unidade ou arquétipo do eu e a esta função Jung deu o nome de função transcendente que,
como o processo de individuação, é inerente ao indivíduo.
indivíduo cujo comportamento obedece por vezes ao modelo masculino e outras vezes
ao feminino. Ele não é em parte homem e em parte mulher. Pelo contrário, faz-se uma
verdadeira síntese de tal forma que se pode dizer que, salvo no sentido biológico, a
transcendência aboliu os gêneros. (HALL E NORDBY, 1989, p.73-74)
Conforme Bernardi (2008), as forças que têm este efeito transformador se expressam
através dos símbolos, que é a linguagem do inconsciente. O símbolo é expressão da função
transcendente, que liga as duas polaridades da psique. Transcendente não no sentido
metafísico, mas no sentido que é o símbolo que facilita a transição, ou seja, como uma força
que promove a transição de uma atitude para outra, que une os opostos, isto é, a função
transcendente seria a possibilidade do Si-mesmo de constelar um símbolo unificador para
levar até a consciência uma imagem que viesse a solucionar um determinado conflito
psíquico.
A palavra símbolo tem origem no termo grego “symbolon” que significa marca, sinal
de reconhecimento; está relacionada ao verbo grego symbállein que significa colocar
junto, fazer coincidir, juntar. Expressa a idéia de união de iguais que foram separados
e que, ao se reencontrarem, se reconhecem e se tornam um. Exemplo disso é o
símbolo do peixe usado pelos primeiros seguidores de Cristo para se reconhecerem
como “cristãos” e se protegerem de delatores: quando se encontravam, um fazia um
risco curvilíneo e o interlocutor completava o desenho com outro risco curvilíneo,
formando um peixe. (RODRIGUES, 2007, p.1)
Jung considera o mito como uma forma autônoma de pensamento e, portanto, não
secundária nem subordinada em relação ao conhecimento racional que a ela, pelo
contrário, está entrelaçado. Enquanto é uma forma criativa constantemente presente e
a cada vez renovada na atribuição dos próprios significados racionais, o material
mitológico Jung o entende como emblema da atividade psíquica e em particular como
demonstração e aprofundamento da hipótese acerca do inconsciente coletivo e dos
relativos arquétipos. (PIERI, 2002, p. 326)
70
Jung fazia distinção entre arquétipo e imagens arquetípicas. Ele reconheceu que
aquilo que ocorre na consciência individual são sempre imagens arquetípicas –
manifestações concretas e particulares que sofrem a influência de fatores
socioculturais e individuais. No entanto, em si, os arquétipos são desprovidos de
forma, são irrepresentáveis, [...] (DOWING, 1994, p. 10)
Segundo Pieri (2002), os mitos, por serem metáforas das forças arquetípicas em ação,
são excelentes instrumentos psicoterapêuticos, pois, de acordo com a psicologia junguiana, os
aspectos mitológicos existentes no inconsciente coletivo se manifestam para denunciar, alertar
e reivindicar a atenção para o fato de que há um desequilíbrio, uma polarização, entre o
consciente e o inconsciente, onde uma destas duas instâncias da psique está sendo priorizada
em detrimento da outra. Por exemplo, quando o indivíduo age mais com a razão do que de
acordo com as necessidades autênticas da alma ou vice versa.
Segundo Jung o estudo comparativo dos diferentes mitos e dos sistemas míticos das
várias culturas e religiões resulta com efeito importante para a finalidade de
reencontrar as convergências temáticas e os motivos recorrentes (vida, morte,
abandono, separação, incesto, regressão, esmagamento, salvação, criação, destruição
etc.) que o psicoterapeuta encontra no seu trabalho e, portanto, para compreender
aquilo que o próprio inconsciente oferece simbolicamente ao paciente, diante da
impossibilidade da sua consciência de atribuir, sozinha, um sentido àquilo que é um
momento específico da existência. (PIERI, 2002, p. 326)
Rodrigues (2007), lembra que os sintomas de neuroses poderiam ser uma forma
inconsciente de a psique chamar a atenção do indivíduo, para que ele pare e olhe, com
urgência, para dentro de si mesmo e compreenda que algo precisa ser feito, pois há um
desequilíbrio que precisa ser compensado. Na psicologia junguiana, o tipo do sintoma poderia
ser compreendido como uma pista do que necessita ser mudado e onde deveria ser realizada
esta mudança. Esta pista pode levar aos conteúdos arquetípicos do inconsciente coletivo que
são encontrados nas mitologias.
habitava os bosques e provocava terror com sua aparência assustadora [...] e o hábito
de aparecer de repente. Deriva daí o termo pânico em referência ao terror repentino.
Protetor dos pastores e camponeses, Pã era uma divindade travessa, sensual e
galanteadora, mas rejeitada pela sua feiúra. Nessa associação entre pânico e um deus
mitológico está presente à concepção junguiana de inconsciente coletivo e seu
conteúdo, os arquétipos. [...] O deus Pã assustava quem o ignorava. Assim, o pânico é
um temor da sensualidade; reflete o medo que as pessoas reprimidas e controladas
sentem de serem dominadas pela própria sensualidade. Mas essa sensualidade nem
sempre está associada à energia de natureza sexual. Pode ser uma sensualidade
relacionada à arte, a uma demanda da criatividade reprimida. [...] Ao contrário do que
defendia Freud, Jung recusava-se a conceber a energia libidinal como sendo
exclusivamente de natureza sexual.(RODRIGUES, 2007, p. 2-3)
Segundo Bernardi (2008), Jung afirmava que quando há o símbolo, a travessia está
garantida. Ele cita a arte e a religião como importantes caminhos para a auto-realização, pois
percebia que eram expressões simbólicas da psique e, portanto, sua ausência na vida do
indivíduo pode contribuir para o desenvolvimento ou a potencialização de transtornos
psíquicos. Com relação à religião cristã pode-se fazer referência ao fato de que Jesus era um
mestre das polaridades, uma vez que há várias citações que demonstram esta colocação.
Outro exemplo cristão que poderia favorecer o equilíbrio entre os opostos pode ser
encontrado no Antigo Testamento, em (Gn 2-3) que trata do mito ocidental de criação da
humanidade.
O mito de Adão e Eva sugere que Deus é ambivalente com relação ao pecado de
Adão, pois sua onisciência certamente lhe teria permitido opor-se à vontade de Adão
e Eva se ele não estivesse dividido neste ponto. Nosso mito ocidental de criação
insinua que os opostos são de Deus, e que o ego (o centro da consciência) é o espelho
em que, como diz Jung, “o inconsciente se torna consciente de sua própria face”
(JAFFE, 2002, p. 44)
O mito tem uma força poderosa na psicoterapia junguiana, porque estas construções
simbólicas vêm denunciar a força dos arquétipos atuantes na psique e a necessidade de
construir possibilidades que venham a unir os opostos, o que se torna possível através da
percepção e elaboração das emoções expressas pelos símbolos, contribuindo, desta forma,
para a redistribuição da energia aprisionada nos complexos, o que altera os sentimentos e
72
Segundo Edinger (2004), por volta do século XV, iniciou-se uma dramática
transformação na psicologia coletiva, ou seja, o dogma religioso da projeção coletiva da
divindade no reino metafísico começou a recuar. Não foi um processo rápido. Nestes últimos
500 anos, paulatinamente, cada vez mais pessoas vivenciam esta experiência, da retirada da
Imagem de Deus da projeção metafísica: “Deus caiu do céu para dentro da psique”,
Visto que a religião constitui, sem dúvida alguma, uma das expressões mais antigas e
universais da alma humana, subentende-se que todo tipo de psicologia que se ocupa da
estrutura psicológica da personalidade humana deve pelo menos constatar que a
religião, além de ser um fenômeno sociológico ou histórico, é também um assunto
importante para grande número de indivíduos. (JUNG, 1987, P. 7)
Visto que minhas explanações são de caráter bastante inusitado, não deve pressupor
que meus ouvintes estejam suficientemente familiarizados com o critério metodológico
do tipo de psicologia que represento. Trata-se de um ponto de vista exclusivamente
científico, isto é, tem como objeto certos fatos e dados da experiência. Em resumo:
trata de acontecimentos concretos. Sua verdade é um fato e não uma apreciação.
Quando a psicologia se refere, p. ex., ao tema da concepção virginal, só se ocupa da
existência de tal idéia, não cuidando de saber se ela é verdadeira ou falsa, em qualquer
sentido. A idéia é psicologicamente verdadeira, na medida em que existe. A existência
psicológica é subjetiva, porquanto uma idéia só pode ocorrer num indivíduo. Mas, é
objetiva, na medida em que mediante um consensus gentium é partilhada por um grupo
maior.” (JUNG, 1987, p. 8)
Segundo Dyer (2003), Jung fez mais de 6000 referências a “Deus” nos seus escritos
ao longo de toda a sua vida de cientista da psique humana e o autor, deste estudo, selecionou
aproximadamente 400 destas referências, na tentativa de iluminar e apresentar alguma
elaboração desses temas, tendo como objetivo maior esclarecer que quando Jung se referia a
“Deus” o fazia a imagem de Deus na psique humana e não ao Deus metafísico. Muitas vezes,
Jung errou por não colocar a palavra “Deus” entre aspas, quando se referia a Imagem de Deus
ou Imago Dei e não ao Deus metafísico, provocando mal entendidos e críticas severas.
Para Jung, como cientista da psique humana, a existência física de Deus é uma
questão irrespondível, pois um Deus metafísico é da área de teólogos e outros que precisam
crer em um ser físico “de fora”. Para ele “Deus” como fato, como um ser real, não é uma
questão de “acreditar”, mas de saber. Ele sabe da existência de “Deus”, da Imagem de Deus na
psique humana, através de sua própria experiência de encontro com o Si-mesmo(Self) e de
tantos outros casos clínicos, que ele acompanhou pessoalmente e da experiência de vida de
seus colaboradores e dos pacientes analisados por estes.
Deus vem à consciência através do centro consciente da psique. [...] Então, Jung
afirmou que apenas a consciência humana revela Deus como um fato, existente como
um Deus-imagem no inconsciente profundo da psique. [...] podemos estabelecer
psiquicamente, mas não fisicamente, que Deus é um fato. (DYER, 2003, p. 79-80)
Jung quando se refere a Deus-imagem como uma realidade psíquica, ele não está
negando que há uma realidade transcendental, mas sim, enfatizando que como cientista as
asserções metafísicas não era o seu foco de estudo. Ele não estava preocupado se Deus existe
como realidade teológica ou não. Segundo Dyer (2003), Jung, em 1936, quando ministrava
seu seminário sobre Zaratustra, preveniu que “Deus nunca foi inventado”, “Ele” sempre
ocorreu e ainda ocorre, como experiência psicológica. O cientista SABE, tem conhecimento,
enquanto que o fiel CRÊ.
[...] É simplesmente um fenômeno. Mas estamos tão habituados com a idéia de que os
acontecimentos psíquicos são produtos arbitrários do livre-arbítrio, e mesmo invenções
de seu criador humano, que dificilmente podemos nos libertar do preconceito de
considerar a psique e seus conteúdos como simples invenções arbitrárias ou produtos
mais ou menos ilusórios de conjeturas e opiniões. O fato é que certas idéias ocorrem
quase em toda parte e em todas as épocas, podendo formar-se de um modo espontâneo,
independentemente da migração e da tradição. Não são criadas pelo indivíduo, mas lhe
ocorrem simplesmente, e mesmo irrompem, por assim dizer, na consciência individual.
O que acabo de dizer não é Filosofia platônica, mas Psicologia empírica. (JUNG,
1987, p. 8-9)
Dyer (2003) continua explicando que, em 1931, Jung escreveu que a alma pessoal era
dependente de um sistema espiritual e que este sistema seria um ser com vontade e
consciência, supondo ser mesmo uma pessoa e que chamou este ser de “Deus”, a causa
primeira, a quintessência da realidade, o mais real dos seres.
[...] Em 1928 ele também fez referência à causa primeira, na qual pôs o paradoxo de
todas as forças instintivas serem opostas ao princípio espiritual, já que isso afirma a
essencial contrariedade do Deus-conceito como um e o mesmo ser, cuja “natureza
mais íntima é uma tensão entre opostos”. Continuando, ele aponta que a ciência
chama esse “ser” de energia, porque energia é como um “balanço vivo entre opostos”
.[...] “Há aí um tremendo paradoxo que manifestadamente corresponde a uma
profunda verdade psicológica” .(JUNG, 1928, p. 63 apud DYER, 2003, p. 36-37)
Jung (DYER, 2003) chamava a atenção para o fato de que a tendência monoteísta
tende sempre a construir ou postular “uma unidade antropomórfica do Deus-imagem”, quando
para os seres humanos esta unidade é estranha e dolorosa, por ser contraditória e paradoxal.
Por exemplo, a formulação cristã dogmática de que Deus é infinito e eterno. Para Jung a
hipótese de um Deus em desenvolvimento teria maior consenso, na base do conhecimento
75
mitológico, do que para a crença em um Deus imutável. Deus, no Novo Testamento, é amor e
misericórdia, já no Antigo Testamento produz doença e lutas horríveis!
No livro “Resposta a Jó” (JUNG, 2001), cujo ponto central era o par de opostos
unidos em Javé, Jung, através da análise psicológica, coloca em evidência a natureza
paradoxal e o terrível aspecto duplo de Deus (amor x temor). O “diálogo” (o Livro de Jó,
capítulos 3-31), que provavelmente é de autoria múltipla, possivelmente foi escrito entre
1.600 – 1.050 a.C. Segundo a interpretação de Jung, Javé era psicologicamente inconsciente,
pois seu comportamento, até o reaparecimento de Sofia, tinha apenas uma “percepção”
primitiva que não conhecia reflexão.
Jung tinha a visão de que o objetivo final e o desejo mais forte de todos “está no
desenvolvimento da completude da existência humana que é chamada de
personalidade”. [...] A personalidade pode ser definida como uma totalidade de
características individuais ou como identidade ou como um grupo integrador de
tendências instintivas, interesses e tendências comportamentais.[...]
Conseqüentemente, a visão de Jung de “Deus” e particularmente de “Javé” refletia
uma comparação da existência de complexos de persona e sombra na humanidade,
assim como no criador. “Sombra” se refere ao lado negativo da personalidade, como a
totalidade de todas as qualidades desagradáveis que uma pessoa quer
esconder.”.(DYER, 2003, p. 35-36)
Jung (DYER, 2003) quando se refere a “Deus” está sempre falando do Deus-
imagem, pois, segundo ele, está além dele falar sobre Deus. Através da psique é que se pode
experienciar “Deus”, por meio do Deus-imagem. O que a psicologia pode afirmar sobre a
existência de “Deus” é que “Deus” é uma imagem na psique de todo ser humano, que surge
76
Johnson (1996), conta que diziam que uma das histórias favoritas de Jung era
seguinte: havia um poço de Água Viva, que jorrava sem esforços e impedimentos e que
gostaria que todos pudessem ter acesso a ela. A água mágica era limpa, revigorante, gratuita,
fresca e todos podiam beber dela, sem restrições. Mas, a humanidade não quis que este
paraíso permanecesse: alguns declararam a propriedade sobre ela, muraram o terreno em
volta, construíram portões, colocaram cadeados, criaram leis elaboradas para controlar o uso
da Água Viva e passaram a exigir que pagassem para terem acesso a ela.
Jung, segundo Johnson (1996), se sensibilizou com esta história tão triste, pois
percebeu como uma verdade tão fundamental pode vir a ser distorcida e mal usada, em prol
dos interesses egocêntricos de algumas pessoas e cita a arte, a ciência e a psicologia, como
exemplos de vítimas deste processo obscuro. Porém, lembra que a Água Viva continua a
jorrar, estando disponível a qualquer pessoa que tenha a coragem de procurá-la na sua forma
atual
A água tem sido freqüentemente usada como um símbolo do mais profundo alimento
espiritual da humanidade. Hoje ela também está jorrando, como sempre, pois o poço é
fiel a sua missão; mas a água jorra em lugares esquisitos. Muitas vezes parou de jorrar
nos lugares costumeiros, reaparecendo em outros dos mais surpreendentes. Mas,
graças a Deus, a água ainda está aí. (JOHNSON, 1996, p. 12)
Para os cristãos, Nazaré é uma cidade sagrada, porém, na época de Jesus histórico,
por ficar totalmente fora das rotas comuns, era considerada com certo desprezo e ninguém
imaginaria, naquele período, que, justamente lá, nasceria Jesus Cristo,o Messias, o Salvador!
77
Assim também é com a Água Viva. Hoje, ela jorra em lugares que jamais se imaginaria
encontrá-la. “Como sempre, é gratuita e fresca, tão viva quanto sempre foi. A principal
dificuldade é que está onde menos se espera. É isso que significa a frase bíblica: “Pode vir
algo bom de Nazaré?”(JOHNSON, 1996, P. 12)
Segundo Johnson (1996), uma destas fontes de Água Viva se encontra justamente
num lugar onde muitas pessoas jamais desconfiariam: na sua própria sombra, este estranho
elemento escuro, que o indivíduo não vê nem conhece, mas que o persegue incansavelmente
na sua psique, pois é o lugar onde se depositam todas as características que são descartadas
pela sua personalidade, por não serem consideradas positivas pela sua cultura familiar, social
e religiosa.
Como veremos mais tarde, essas partes descartadas são extremamente valiosas e não
podem ser desconsideradas. Assim como a água da vida, nossa sombra não custa nada
e instantaneamente – e de forma embaraçosa – está sempre presente. Para honrar e
aceitar a própria sombra é necessária uma profunda disciplina espiritual. Isso é
plenificante, portanto sagrado, e a mais importante experiência de nossa vida.
(JOHNSON, 1996, p. 12-13)
Segundo Bolen (1993), como o sentimento de pertença é muito forte no ser humano,
a criança é capaz de, inconscientemente, negligenciar seu desenvolvimento original, para
atender a demanda destas pessoas significativas na sua vida, no temor de ser rejeitado e
abandonado e, portanto, não receber o amor e a atenção, mínimos necessários, para a sua
sobrevivência e existência física e psicológica.
78
Quando crianças, somos uma bola de energia: mais um dia percebemos que nossos
pais não apreciam certas partes dessa bola. Eles dizem: “Você não consegue ficar
quieto?” [...] Atrás de nós temos uma sacola invisível e, para conservar o amor de
nossos pais, nela colocamos a parte de nós que nossos pais não apreciam. Quando
começamos ir à escola, nossa sacola já é bastante grande. E aí nossos professores nos
dizem: “O bom menino não fica bravo com coisinhas à-tao”, e nós guardamos nossa
raiva na sacola. [...] (ZWEIG E ABRAMS , 2001, p. 30)
Segundo Brennan e Brewi (2204), a Sombra é o lado escuro onde moram todas as
coisas que desagradam ou mesmo que assustam o indivíduo. O que não é aceitável e que
repugna e por isso são reprimidas e projetadas no outro, assim permanecendo inconscientes de
que estão abrigadas dentro do próprio indivíduo. A sombra pessoal coincide com o
inconsciente freudiano e com o inconsciente pessoal junguiano. Porém, há também a sombra
arquetípica, pois é um fenômeno universal. É bom lembrar que o inconsciente, na psicologia
junguiana, compreende o inconsciente pessoal e o coletivo.
A sombra não é apenas pessoal mas arquetípica, embora grande parte dos conteúdos
da minha sombra sejam pessoais para mim, a essência da Sombra é um fenômeno
universal. Um arquétipo é um órgão físico, um modo herdado de função psíquica,
presente em todos nós. A Sombra é um órgão psíquico.[...] Os potenciais humanos
têm uma tendência a se dividirem em oposições, ao desenvolver a força de um lado
do par da oposição, paga-se por isso, necessariamente, deixando-se o outro lado
relativamente subdesenvolvido, portanto, inconsciente. (BRENNAN E BREWI, 2004,
p. 92)
humano perfeito! Porém, na sombra também há muita coisa boa para ser resgatada. Para Jung
(ZWEIG E ABRAMS , 2001), a essência da sombra é “puro ouro”.
Todos os sentimentos e capacidades que são rejeitados pelo ego e exilados na sombra
contribuem para o poder oculto do lado escuro da natureza humana. No entanto, nem
todos eles são aquilo que se considera traços negativos. De acordo com a analista
junguiana Liliane Frey-Rohn, esse escuro tesouro inclui a nossa porção infantil,
nossos apegos emocionais e sintomas neuróticos bem como nossos talentos e dons
não-desenvolvidos. A sombra, diz ela, “mantém contato com as profudezas perdidas
da alma, com a vida e a vitalidade – o superior, o universalmente humano, sim,
mesmo o criativo podem ser percebidos ali”. (ZWEIG E ABRAMS , 2001, p. 16)
Reconhecer a própria sombra não é tarefa fácil, mesmo para aquelas pessoas que
estão se submetendo ao processo de psicoterapia. Mas, aquele paciente que tem a coragem, no
momento adequado do seu processo, de confrontar a sua sombra, ou seja, abrir o saco
invisível e olhar o que tem dentro dele, vai descobrir o potencial oculto da natureza humana
que, quando integrado à personalidade, gera vitalidade, criatividade, espontaneidade,
intuições realistas e respostas adequadas, imprescindíveis para o pleno desenvolvimento do
potencial do indivíduo.
80
sempre o mesmo: o de que Deus está sempre do lado dos vencedores, cabendo aos vencidos,
purgar os seus pecados e se converterem.
Na idade média este expediente também foi utilizado, provocando uma guerra
sangrenta, as Cruzadas, justificada através da mesma motivação religiosa de converter os
infiéis, mas que, na realidade, era uma guerra, como todas as outras, de conquista ou
reconquista de interesses econômicos e territoriais por parte da elite do poder dominante.
Assim também aconteceu na América, onde os interesses das nações cristãs,
católicas ou protestantes, validaram e justificaram a exploração ou colonização deste “novo
continente”, produzindo um dos maiores genocídios da história, pois se estima que nos
últimos cinco séculos, em torno de 80.000.000 (oitenta milhões) de índios foram
exterminados, número ainda maior que o produzido pelo holocausto, que também por
motivações religiosas deturpadas, durante apenas seis anos de conflito, dizimou mais de
6.000.000 (seis milhões) de pessoas, entre elas judeus, ciganos e homossexuais.
Schilling (2008), ressalta que segundo Max Weber, a religião tem grande
importância na economia, pois, a partir da reforma protestante, no século XVI, aqueles países
em que esta religião predomina, são considerados os mais ricos. Segundo ele, isto foi possível
devido à mudança comportamental provocada pela reforma.
Com a reforma, emergiram os Calvinistas, que acreditam que, aqueles que são
abençoados por Deus, que têm a Sua graça, têm a vocação para o trabalho e estão
83
predestinados a terem sucesso financeiro na vida, pois isto seria uma prova de que estes são os
escolhidos por Deus. Para ele o capitalismo foi impulsionado por esta crença, o que refutaria a
tese de Karl Max de que o capitalismo é um sistema que nasceu da exploração do homem pelo
homem.
Os luteranos difundiram a expressão Beruf, entendida como algo bem mais do que
seguir uma vocação, mas sim um plano de uma vida inteira. A alteração proposta por
eles de abandonar-se a vida contemplativa trocando-a para o empenho vocacional
teve efeitos duradouros nas estruturas sócio-econômicas que se seguiram. Foi ela -
esta revolução ética - a principal responsável, segundo Weber, para o sucesso material
dos países protestantes que, a partir do século XVII, colocaram-se na vanguarda do
desenvolvimento ao engajarem toda a população no mundo produtivo e não mais o
contemplativo. (SCHILLING, 2008, p. 1)
Castro Homem (2005) lembra que, na atualidade, algumas igrejas cristãs estão
dando um testemunho de tolerância religiosa através do ecumenismo. Este fenômeno surgiu
durante a segunda guerra mundial, quando nos campos de concentrações nazistas, os
prisioneiros destituídos da sua identidade, pois só eram considerados como um número,
irmanados no mesmo sofrimento, as suas diferenças religiosas pouco importavam.
Já que todos partilhavam do mesmo destino, pois estavam marcados para morrer,
diante da experiência de se sentirem nada, eles se descobriram humanos demais na sua
impotência, na sua fraqueza e no total abandono a forças tão hostis e desagregadoras e se
uniram na fé de um Deus comum.
Enfim, sabemos que a modernidade, sem a qual não teríamos a nova ciência e
tecnologia, projetou e sedimentou a democracia conjugada com a liberdade. Provou-
nos que é possível, ao menos no Ocidente, experimentarmos a convivência pacífica
em meio às diferenças também religiosas, desde que as instâncias e as instituições e
as garantias individuais sejam preservadas pelo estado de Direito. Aliás, não existe
Democracia sem essas garantias. Quando isto ocorre, a Religião não tem só uma
função ética que inspira ou motiva comportamentos pessoais e sociais. Livremente,
ela comunica e celebra de acordo com seu credo aquilo que lhe é próprio: a dimensão
sagrada da vida e da existência; o mistério da origem e do fim; o sentido da vida e da
morte para a eternidade. Eis o núcleo da fé em Deus. O resto é apenas mediação como
a própria Religião. (CASTRO HOMEM, 2005, p. 11-12)
diálogo inter-religioso, não só com as igrejas cristãs, mas também com igrejas de outras
denominações, inclusive o diálogo com os ateus.
O indivíduo nasce com instintos, desejos e necessidades. Porém, como vive numa
família, inserido numa sociedade com uma determinada organização e cultura, ele deve ser
educado a internalizar as leis e as regras de convívio familiar e social. Caso contrário, o grupo
não valida o seu pertencimento.
Segundo Tournier (1985), a função dos pais não é fazer os filhos felizes, como
muitos acreditam, mas sim educá-los. A educação, por mais saudável que seja, é construída
através do sentimento de culpa, pois a tarefa dos pais, que não é nada fácil, consiste em dar
limites e repreender, quando os padrões morais não são respeitados. E a repreensão, mesmo
que seja considerada justa pelos filhos, suscita sentimento de culpa. Porém, esta culpa é
considerada funcional, pois contribui para que os filhos adquiram a capacidade tanto de
resistir às frustrações como a de adiar o prazer.
Kagan reporta-se à estrutura cerebral para explicar a razão pela qual a culpa seria
exclusiva da espécie humana: [...] “Este fato, junto com a constatação de que os
humanos, mas não os primatas, mostram sinais de perturbação ao violar padrões
morais, significa que culpa e vergonha podem ser tão importantes quanto o medo no
cotidiano humano, bem como na psicopatologia. A seleção natural favorece aqueles
que têm este condicionamento embutido em seu ser. O senso moral humano, que
geralmente nos impede de agredir nossos semelhantes, é um produto único da
evolução, mantido através da seleção natural, porque assegura a sobrevivência da
espécie.” (SCLIAR, 2007, p. 47)
85
Os que, por exemplo, têm mais remorsos dos próprios comportamentos sexuais
dramatizam os conselhos que dão a seus filhos e despertam na alma deles uma
verdadeira angústia em relação à sua sexualidade. Pais infelizes não suportam o filho
na exuberância de sua alegria. Centenas de vezes, durante o dia, eles lhe dirão: “vc é
um bagunceiro! Vc é insuportável!” Um pai, sobrecarregado em sua profissão, se
aborrecerá por quase nada com o filho. Uma mãe, enganada pelo marido, despejará no
filho, inconscientemente, o despeito que sente e o punirá energicamente por qualquer
erro trivial. “Você é mentirosos como o seu pai!” A criança sentirá intuitivamente,
sob a forma de angústia, esta sobrecarga injusta de repressão.”(TOURNIER, 1985, p.
10)
Segundo Tournier (1985), quando se trata de uma criança que tem medo, mas é
capaz de superá-lo e confessar aos pais as suas infrações, ele agüenta a censura dos pais,
independentemente se é justa ou injusta, e logo supera a culpa. Porém, se a criança tem grande
reatividade emocional, baixa auto-estima e é muito sensível ao julgamento dos pais, não terá a
coragem de confessar, pois tem a fantasia de que será rejeitada pelos pais, por não ter
correspondido às expectativas deles.
Neste caso, se sentirá duplamente culpada: por ter cometido uma infração e por
escondê-la dos pais. Esta dupla culpa gera uma intensa angústia, ansiedade e vergonha, que
levará esta criança a, cada vez mais, evitar o confronto com os pais. Como o ser humano é um
ser gregário, o sentimento de pertença é muito forte, tanto que a criança é capaz de,
inconscientemente, negligenciar seu desenvolvimento original e saudável para atender a
demanda das pessoas significativas na sua vida, principalmente os pais, no temor de ser
rejeitada e não receber o amor e a atenção, necessários para a sua sobrevivência.
Saul censurou Jônatas pela amizade com Davi: “Filho de mulher perversa e rebelde;
não sei eu que elegeste o filho de Jessé para vergonha tua e para vergonha do recato
86
de tua mãe?” (1 Sm 20:30). Atentem para a astúcia; ele disse “para vergonha do
recato de tua mãe”, como se ele mesmo estivesse fora do negócio!
(TOURNIER,1985, p. 10)
Há sentimentos de culpa que são proporcionais aos atos praticados e que são
saudáveis e necessários, pois evitam que o indivíduo desrespeite os direitos do outro e
permitem que haja um convívio social respeitável e desejável por todos. Por exemplo, a culpa
objetiva
[...] é termo jurídico para indicar a infração de uma norma cometida
involuntariamente, sem premeditação, em contraposição a delito (dolus), que é a
transgressão premeditada. Eis como Kant exprime a questão: “[...] uma transgressão
involuntária mas imputável chama-se culpa; uma transgressão voluntária (unida à
consciência de que se trata realmente de uma transgressão) chama-se
delito”(NICOLA,2000, p. 224 apud FRANÇA, 2004, p. 3).
Diferentemente de uma culpa neurótica, que acusa e atormenta o indivíduo, por ter
infringido valores, crenças e leis, que na realidade foram internalizados de uma forma
distorcida, gerando uma autopercepção também distorcida e que, portanto, o transforma num
juiz injusto consigo mesmo e no seu maior carcereiro, impedindo que desenvolva sua
personalidade e individualidade de uma forma saudável e atinja a auto-realização e a paz de
espírito desejada.
Esta culpa neurótica ou culpa imaginária também gera uma baixa auto-estima e uma
estrutura pessoal disfuncional, provocando angústia, ansiedade excessiva, tensão e estresse.
“Quem vive sob o peso da culpa fere continuamente a si mesmo e torna-se seu maior
carrasco.“ (CURY, 2006, p. 19) Quando os pais são indivíduos psicologicamente imaturos, ou
seja, disfuncionais, tentam, inconscientemente, impedir o desenvolvimento saudável de seus
filhos, quando estes entram na fase da adolescência, estágio de vida onde o indivíduo busca
consolidar a sua identidade através da conquista da sua autonomia.
Este movimento em busca da independência psicológica assusta estes pais, porque
eles têm que tomar consciência que chegou o momento em que os filhos começam a se
preparar psicologicamente para saída física de casa que se dará, provavelmente, quando se
tornarem adultos jovens. Para que a independência física seja uma conquista pessoal, é
imprescindível que o filho seja psicologicamente independente; caso contrário, possivelmente
será um adulto imaturo, ou seja, emocionalmente dependente de seus pais e, às vezes, até
financeiramente, independentemente da sua idade cronológica e estado civil.
É o momento dos pais desapegarem-se do poder de controle absoluto, que até então
exerciam sobre os filhos. Se os filhos conseguem conquistar sua independência psicológica,
87
uma das conseqüências imediatas é que os pais não conseguem mais impor que seus desejos e
expectativas, em relação aos filhos, sejam prontamente atendidos, pelo menos como eram até
então. A partir disso, em determinadas escolhas, os pais podem oferecer sugestões úteis,
devido a sua maturidade e experiência de vida. Porém, os filhos se sentem livres para acatar,
ou não, estas sugestões.
Pai austeros sugerem, tanto por seu comportamento, quanto por suas conversas, que
tudo que dá prazer é pecado. [ ..]. Não podem gozar de nada sem um certo sentimento
de culpa que estraga o prazer. Ou, então, a alegria só é considerada legítima se for
merecida a título de recompensa: os que receberam esta idéia durante toda a educação
impõem a si mesmos tarefas muito pesadas ou sacrifícios inúteis, simplesmente para
se alegrarem com um prazer fortemente desejado sem que se sintam culpados. Têm
como que uma contabilidade complicada que está sempre mais ou menos carregada
de angústia, angústia esta que prejudica a espontaneidade, seja o impulso a um
sacrifício desinteressado ou o desejo de desfrutar um prazer pelo qual não batalharam.
(TOURNIER, 1985, p. 11)
Segundo Tournier (1985), para evitar estas mudanças, muitos destes pais
disfuncionais poderiam insinuar para seus filhos, na tentativa de despertar neles o sentimento
de culpa disfuncional, que os filhos não deveriam fazer o que eles desaprovam, como por
exemplo, ter amigos os quais eles não acham adequados, adotar valores, atitudes e
comportamentos diferentes dos seus etc. Quando pais com este perfil psicológico são devotos
da religião cristã, poderiam, por exemplo, citar partes de trechos bíblicos, fora do seu contexto
geral, que vêm corroborar com o seu pensamento.
Filhos, obedecei a vossos pais”, escreve o apóstolo Paulo ( EF 6:1). Os pais devotos
evocam este versículo para exigirem de seus filhos uma submissão servil, mesmo
depois de terem deixado de ser crianças. Mas estes pais dão pouca atenção ao que o
apóstolo acrescenta logo a seguir: “Pais, não provoqueis vossos filhos à ira” (EF 6:4)
nem ao que ele acrescenta ainda em outra passagem: “... para que não fiquem
desanimados” (CI 3:21) .(TOURNIER, 1985, p. 11)
transição entre o mundo infantil e o mundo adulto. Segundo Erikson, (GRIFFA, 2001) é uma
“moratória psicossocial”, um compasso de espera que a sociedade moderna oferece aos
membros jovens enquanto se preparam para exercer os papéis adultos.
Entretanto, esta passagem de modo algum é um problema fácil para quem quer que
seja [...] Uma razão para este grande problema, cada vez mais crescente, pode muito
bem ser o abandono por parte de nossa cultura dos ritos socialmente sancionados da
iniciação. (STEVENS, 1993, p. 186)
É bem visível em muitas pessoas que se submetem à análise o que se pode chamar de
fome de iniciação – o desejo de se tornarem discípulos ou aprendizes e de
pertencerem a um grupo bem definido. Esta mesma fome pode ser notada também
fora do consultório, onde se manifesta nas “patotas” de jovens que se destacam pelas
suas bravatas, pela prática da tatuagem, pelo vestuário, pela música jovem, nas
torcidas organizadas nos esportes, e em outros grupos do gênero. (STEVENS, 1993,
p. 191).
Stevens (1993) explica que, esse momento crítico surge quando, na fase da
puberdade, os jovens excitados por uma grande carga de hormônios, tentam se livrar das
inibições impostas pela tradição. Por exemplo, a carga de hormônios testosterona que circula
no sangue dos adolescentes do sexo masculino, além de estimulá-los sexualmente, aumenta
também em muito a sua agressividade, motivando-os a desafiarem não só as prerrogativas
sexuais dos indivíduos mais velhos, mas também o status e a autoridade. É a famosa guerra
das gerações!
Apesar de este ser um movimento natural e desejável para o desenvolvimento
saudável do indivíduo, pois o capacita tanto para correr o risco de ser rejeitado quando da
busca de sua parceira sexual, pois o estímulo sexual é tão forte que o motiva a correr este
risco (instinto de perpetuação da espécie), quanto para enfrentar e superar as dificuldades
referentes à sua sobrevivência física e social, comum a todos os indivíduos psicologicamente
maduros (instinto de sobrevivência). Os filhos de pais cristãos, com comportamento
disfuncional, tendem a amenizar, inconscientemente, o instinto sexual e a agressividade
natural para não se sentirem culpados por não atender as exigências por obediência.
Esta contenção disfuncional também gera outra conseqüência tão danosa quanto a
amenização da agressividade natural e do instinto sexual. É a negação, para si mesmos, da
existência de um sentimento de raiva. Este sentimento, para os cristãos, é considerado
negativo, principalmente se for dirigido aos pais, a quem se deveria respeitar, amar e
obedecer. Quando os filhos não atingem esta meta, os pais procuram deixar bem claro seu
sofrimento. Novamente, os filhos se sentem duplamente culpados: por não atenderem à
demanda dos pais por obediência e por sentirem raiva dos pais.
[...] Ninguém atravessa este período de libertação dos pais e de formação de sua
própria individualidade, sem envolver-se em uma vida de segredos sempre carregada
de sentimento de culpa..... Isto porque é pelo segredo que a individualidade é
formada. Enquanto uma criança não tiver segredos para com os pais, e enquanto não
puder contar ao amiguinho estes segredos, ela não terá consciência de ter existência
autônoma. Ora, geralmente os pais acham que um filho não deve nunca ter segredos;
consideram errado esconder alguma coisa. Comentam amargamente: “Você nos faz
sofrer muito!”. .(TOURNIER, 1985, p. 12)
90
A existência de semelhantes casos explica até certo ponto por que as pessoas têm
medo de se tornarem conscientes de si mesmas. Alguma coisa poderia estar escondida
por detrás dos bastidores – nunca se tem plena certeza disto – e, por isso, é preferível
“observar e considerar cuidadosamente” os fatores exteriores à consciência. Na
maioria das pessoas há uma espécie de (deisidaimonia) em relação aos possíveis
conteúdos do inconsciente. Além de todo receio natural, de todo sentimento de pudor
e de tacto, existe em nós um temor dos perils of the sout (dos perigos da alma). É
muito natural que tenhamos repugnância de admitir um medo tão ridículo. Mas
devemos saber que não se trata de um temor absurdo e sim bem justificado. (JUNG,
1987, p. 16)
A raiva não expressada pode vir a se tornar autodestrutiva, reforçando a baixa auto-
estima e provocando auto-agressões, que poderiam se transformar em patologias psicológicas,
psicossomáticas ou de comportamentos socialmente inadequados. A espiritualidade, quando
expressada através de uma religião, em que a culpa tem um lugar significativo, tem forte
penetração nos sistemas familiares, potencializando mitos disfuncionais, uma vez que a culpa
é um instrumento útil de auto-regulação do sistema.
“O que eu mais quero nesta vida, o que me deixaria mais feliz no momento é ver
arrancado de dentro de mim este desejo! Por que não sou livre para exercer a minha
vontade sobre ele? Mas, eu já sei a resposta, apesar de não querer olhar para ela: é
por causa dos meus pecados, eu sou uma pecadora que não tem jeito, nem procuro
91
mais me confessar, porque tenho vergonha de encarar o sacerdote. Sabia que já fui a
vários sacerdotes diferentes? Não tenho jeito não, a culpa é toda minha, eu é que não
tenho força de vontade!” (RECORTE DO DISCURSO DE UMA PACIENTE
CRISTÃ)
segunda, e muitas vezes a imputação da culpa do pecado original à mulher [...] (Gn
2,4b-3,24) é sem dúvida, um dos textos bíblicos que mais influenciaram a cultura
religiosa do mundo ocidental. (ROSSÉ, 2004, p. 27)
Encontra-se um relato bíblico no livro de Gênesis sobre a criação, onde se relata que
a mulher (Eva) nasceu da costela do homem (Adão), portanto, é inferior a ele e, por ter sido a
responsável pela queda do paraíso, toda a descendência do gênero feminino deveria purgar,
pelo resto da existência humana, a culpa pelo pecado original.
Porém, Rossé (2004) esclarece que os relatos de Gn (2-3) não seriam lembranças de
fatos históricos que ocorreram no início da humanidade, mas sim uma narrativa mítica, de
caráter fundante de um povo, o mito de criação, onde o autor de Gênesis tinha como objetivo
alertar seu povo que acreditava num único Deus, sobre a tentação que eles sofriam para adorar
outros deuses, ao invés de Iahweh.
augúrio do inventor da nossa humanidade.” (ROSSÉ, 2004, p.36 apud LOUYS, OP. Cit.,
p..83)
Quanto à serpente e à árvore do meio do jardim, Rossé (2004) descreve uma
interpretação bem diferente daquela internalizada pelas pacientes cristãs atendidas pelo
clínico pesquisador. Segundo ele, no diálogo entre a serpente e a mulher, a serpente representa
a voz interior: a expressão da dimensão transcendente do mal, que existe dentro de todo ser
humano, independentemente do gênero. A mulher representa toda a humanidade sexuada, ou
seja, seria a sua porta voz.
A partir desta interpretação sobre a partilha do fruto (Gn 3,6) poderia se concluir
que, se há culpa pelo pecado original, ela não deveria ser exclusiva do gênero feminino, pois o
narrador do relato mítico veta qualquer imputação parcial, pois não é apenas o gênero
feminino que transgride o mandamento, mas sim, toda a humanidade enquanto homem-
mulher e que, na realidade, em (Gn 2-3) é narrado o mito da criação da humanidade e da sua
experiência com Deus, compreendida a partir da relação de Iahweh e o seu povo, onde se põe
em evidência, para o homem e a mulher, que eles são seres mortais, portanto, finitos.
A ecofeminista Ruether (2000), quando faz referência ao movimento de
distanciamento dos seres humanos da natureza e da sua pretensão em dominá-la de fora, como
se não fizessem parte dela, lembra que é preciso que sejam analisados os padrões
psicológicos, simbólicos e culturais que determinaram este movimento.
Poder-se-ia pensar metaforicamente neste movimento como se fosse uma eutanásia
coletiva, uma vez que, conforme as últimas pesquisas científicas sobre a relação predatória do
homem com o meio ambiente (RUETHER, 2000), a humanidade está se encaminhando para o
extermínio, caso não sejam tomadas providências urgentes para reverter este quadro
desolador.
Por isso, para Cavalcanti (2000), o surgimento do novo paradigma foi um dos
maiores acontecimentos do século XX, porque, diferentemente do anterior, o mecanicista, que
determinou a visão do homem como dissociado da natureza, o holístico, na sua visão de
totalidade, provocou uma verdadeira revolução de valores, fundando uma nova ética, em que
95
Ruether (2000) alerta que, para ela, esta reclamação ao retorno da reverência à
antiga deusa da natureza pode ser problemática em dois tipos de casos: primeiro, nos casos
em que o culto à deusa significa que as mulheres estariam reclamando seus próprios poderes
perdidos, pois, nestes casos, corre-se o risco de apenas as posições serem invertidas, ou seja, a
sociedade se tornaria dominantemente matriarcal.
Os homens estariam excluídos ou só seriam aceitos, enquanto filhos da grande
deusa, pois o masculino seria tratado como um menino em relação ao feminino (a grande
mãe). A conseqüência deste tipo de relação disfuncional entre os gêneros é que os homens
crescem e se tornam biologicamente e fisiologicamente maduros, porém, permanecem
psicologicamente e, às vezes, até socialmente imaturos.
Na prática clínica deste clínico/pesquisador, há muitos casos de casais que procuram
a psicoterapia de casal por iniciativa da esposa ou companheira, quando se trata de uma
relação amorosa estável, ou a psicoterapia individual, também por iniciativa das mulheres,
alegando que há dificuldades no relacionamento amoroso, não por traição ou infidelidade do
parceiro, mas porque o mesmo não consegue assumir as responsabilidades emocionais e/ou
sociais que um relacionamento amoroso entre adultos exige.
Denunciam que seus companheiros (maridos ou namorados numa relação estável),
em determinadas situações que exigiam deles a autoridade de pai, comportam-se mais como
filho do que como parceiro, gerando dificuldades insustentáveis na relação com os filhos,
principalmente quando os filhos são do gênero masculino.
Nestes casos, há muita competição entre o pai e o filho com relação à atenção da
companheira/mãe e, cabendo a ela, além de ser a única ou principal provedora da família, a
responsabilidade exclusiva de dar limites aos filhos, pois o companheiro/pai é considerado um
excelente pai, justamente porque dificilmente consegue dizer não aos filhos, principalmente às
filhas.
O outro tipo de caso, que para Ruether (2000) é preocupante, é aquele em que os
homens se apropriam da deusa como feminino divino, onde a anima deve ser reclamada e
96
integrada à personalidade do homem para que ele atinja uma plenitude andrógina, pois, neste
caso, eles continuariam no controle, seduzindo as mulheres, com suas “almas belas”, e as
mulheres mais independentes seriam acusadas de serem movidas pelo seu animus, que
também deveria está integrado à sua personalidade.
Interessante que também é comum este outro tipo de caso na prática clínica. Nestes
casos, normalmente este homem quando da fase de conquista da sua parceira, é percebido por
ela como o “príncipe encantado”, há tanto tempo sonhado e esperado, desde que o “amor
romântico” foi introduzido na cultura ocidental através do mito de Isolda e Tristão. Porém, o
“príncipe encantado” é um mito e, portanto, deveria ser compreendido como tal.
Como clínico e pesquisador, discordo de Ruether neste ponto, pois em minha
opinião, a “alma bela” é conquistada pelo homem não pela integração da sua anima, mas sim,
justamente porque ele ainda não a integrou. Na realidade, ele se identifica com a persona, com
o personagem de homem “perfeito” para as mulheres. Se tivesse integrado sua anima, não
precisaria projetá-la no feminino, pois já a teria unido dentro dele mesmo e se apresentaria, no
ato da conquista, não como um “príncipe encantado”, mas como um ser humano comum,
portanto, imperfeito.
O “alma bela”, o “príncipe encantado”, pela minha experiência na prática clínica,
trata-se normalmente de um homem que realmente acredita que é possível ser perfeito para as
mulheres porque, além dele ser fiel (devido à amenização do desejo sexual), ele dá mais
atenção às necessidades da sua pretendente no ato da conquista, vale ressaltar, do que às dele
mesmo (devido à amenização da agressividade natural). Tanto a fidelidade conjugal como o
amor desprendido pelo outro são reforçados, positivamente, pela cultura cristã..
Esse desprendimento é sentido pela mulher como sendo alvo de uma atenção
especial deste homem, que liga para ela mais de uma vez ao dia se oferecendo para ajudá-la,
contando para ela o que ele está fazendo, onde e com quem está, dando-lhe todas as
coordenadas, lhe oferecendo o controle sobre ele. Quando retorna para casa, ele liga dizendo
que já chegou e aproveita para conversar mais algum tempo, até ser vencido pelo sono. Logo
que acorda, liga novamente e tudo recomeça. A mulher se sente única, tem a certeza de que
encontrou o homem perfeito, aquele que Deus preparou especialmente para ela!
As mulheres que se sentem atraídas por este perfil de homem, ou seja, por esta
persona, normalmente pagam um preço muito alto quando eles viram “sapo”, ou seja, quando
o lado negativo desta persona aparece. E quando ocorre esta transformação de “príncipe
encantado” em “sapo”? Infelizmente, quando a mulher já está “perdidamente” apaixonada e,
portanto, o homem sente que não corre mais o risco de ser rejeitado por esta mulher e,
97
inconscientemente, muda suas atitudes em relação a ela, ficando muito magoado e se sentindo
injustiçado quando ela o acusa de ter mudado.
Segundo Kurtz (1947), num sentido mais amplo, existe a resistência à mudança, que
é algo absolutamente normal e esperado em todos os seres humanos, ou seja, como uma
tendência do indivíduo a se opor a quaisquer forças externas que objetivam conduzi-lo a um
novo patamar de equilíbrio. Num sentido mais restrito, dentro da psicoterapia, existe a
resistência contra o desenvolvimento do processo psicoterapêutico.
De acordo com Zimerman (2004), esta resistência tanto pode ser inconsciente quanto
consciente, sendo que em ambos os casos derivam do ego, e podem vir combinadas com as
demais instâncias psíquicas que, geralmente, expressam-se através das emoções, atitudes,
idéias, impulsos, linguagem e somatizações. Ele ressalta que alguns pacientes apresentam a
resistência à mudança como “uma luta interna entre seu lado sadio que quer progredir e o seu
lado doente que, qual um imã, o atrai continuamente para regredir, de modo a se manter fiel e
apegado aos seus objetos patogênicos” (ZIMERMAN, 2004, p.103).
Uma mulher de 33 anos, a qual vai ser chamada de Ana, quando procurou a
psicoterapia, era “dona de casa”, portanto, não tinha um trabalho remunerado. Era casada com
Gomes, um empresário de 36 anos, ambos católicos praticantes. O casal tinha três filhos, na
ocasião com idades variando de 15 a 11 anos. Ana era a quarta filha de uma família de cinco
filhos, e Gomes, o filho caçula de uma família de oito filhos.
100
Deus para que lhe restabelecesse a saúde sexual e lhe desse a sabedoria e o discernimento
necessário para restabelecer a harmonia do seu lar.
Partindo do princípio sistêmico de que a relação causa/efeito é circular, foi
questionado a Ana sobre a possibilidade de Gomes primeiro ter se afastado afetivamente e
sexualmente dela e, como conseqüência, ela ter começado a sentir dores durante a relação
sexual como que para expressar sua dor pelo afastamento dele. Ela achou ridícula esta
hipótese terapêutica e não aceitou a mudança do foco terapêutico do problema sexual para o
de relacionamento conjugal.
Quando a paciente não aceita a possibilidade de testar a hipótese terapêutica,
percebe-se, neste momento, os primeiros sinais de que ela possa vir a fazer resistência à
psicoterapia. O clínico/pesquisador considera que a paciente está fazendo resistência à
psicoterapia quando ela suspende o processo por iniciativa unilateral, sem a devida
confirmação por parte do psicoterapeuta. Diferentemente dos casos em que mesmo sendo a
paciente que tome esta iniciativa, o psicoterapeuta confirma esta possibilidade.
Com três meses de terapia, Ana descobriu que Gomes tinha uma amante há um ano.
Ficou chocada e decepcionada, mas, depois de um insistente pedido de perdão de Gomes, que
alegou ter sido seduzido pela sua secretária, prometendo despedi-la, Ana o perdoou. Gomes,
segundo Ana, se tornou um “novo” homem, muito carinhoso e sensível e, apesar das dores
durante o ato sexual continuarem muito fortes, ela comunicou que iria interromper a
psicoterapia a pedido de Gomes. Apesar de ser alertada da necessidade de continuar o
processo, Ana abandonou a psicoterapia. (A resistência foi confirmada)
Seis meses depois, Ana procura novamente a psicoterapia, alegando que tinha
descoberto que Gomes continuava o caso com a ex-secretária dele, pois ela estava grávida de
três meses, e que Gomes tinha decidido sair de casa para morar com ela. Apesar de estar
muito magoada com ele, sua dor maior era a de que ele tinha escolhido ficar com a “outra” e
de que ela (Ana) era a responsável por tudo que estava acontecendo, pois não tinha sido uma
boa esposa.
Continuava não aceitando a hipótese de que o sintoma tinha surgido para denunciar
sua dor e para atrair a atenção dela sobre si e, desta forma, aliviar a tensão conjugal e evitar
discutir sobre a relação, que há anos era insatisfatória para ambos. Os mitos familiares não
permitiam que este problema fosse discutido porque ameaçava todo o sistema familiar
disfuncional, que há gerações se mantinha patologicamente harmonioso, uma vez que Ana
descobriu que todas as mulheres de sua família tinham problemas semelhantes aos dela e, nem
por isso, tiveram seus lares “desfeitos”.
102
sintoma. Esta atitude só iria reforçar seu desejo pelo novo parceiro, pois tinha sido acionado,
inconscientemente, o ciclo vicioso patológico: culpa/autopunição-desejo/culpa.
A única forma de ela ajudar verdadeiramente a filha, que também não se permitia
mais se aproximar da Sagrada Eucaristia por se sentir profana, pois tinha iniciado sua vida
sexual com o namorado, era dando continuidade ao seu processo porque, quando ela
superasse esta culpa, a filha também faria o mesmo, porque as reações são sistêmicas, ou seja,
as mudanças na atitude e no comportamento de um membro da família interferem no
comportamento dos outros membros tanto de uma forma negativa quanto positiva.
[...] A bíblia não apenas fala que a salvação é de graça, como também todas as
dádivas de Deus, tanto as pequenas como as grandes. Mostra-nos, contrariamente à
idéia dos que sofreram uma educação muito severa, um Pai celeste que se alegra com
a felicidade de seus filhos e em lhes dar alegria.”(TOURNIER, 1985, p. 11)
Encaro a religião como uma atitude do espírito humano, atitude que de acordo com o
emprego originário do termo: “religio”, poderíamos qualificar a modo de uma
consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos como
“potências”: espíritos, demônios, deuses, leis, idéias, ideais, ou qualquer outra
denominação dada pelo homem a tais fatores; dentro de seu mundo próprio a
experiência ter-lhe-ía mostrado suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo úteis,
para merecerem respeitosa consideração, ou suficientemente grandes, belos e
racionais, para serem piedosamente adorados e amados. [...] (JUNG, 1987, p. 10)
A paciente se permitiu ter relação sexual com seu novo parceiro e, para surpresa
dela, além de não sentir nenhuma dor, teve orgasmos pela primeira vez na vida. A hipótese
terapêutica sistêmica foi confirmada, uma vez que o sintoma desapareceu ou já não mais
existia, desde que ela teve a coragem de trabalhar os seus conflitos.
A relação com a filha mais velha foi restabelecida de uma forma saudável e alguns
mitos familiares foram revistos. Isto fez com que a nova geração deste sistema familiar, até
então disfuncional, se tornasse funcional, pois os rígidos padrões de interações familiares
foram flexibilizados, impedindo que o grupo continuasse sofrer desnecessariamente.
saudável sua personalidade e consolidar sua identidade, sem a ameaça velada de exclusão
psicológica, familiar e religiosa, prevista nos mitos familiares e religiosos anteriores, o que até
então não tinha sido possível para a Ana e os outros membros deste sistema familiar
O versículo 13 da parábola diz que “[...] 13Poucos dias depois, ajuntando tudo o que
lhe pertencia, partiu o filho mais moço para um pais muito distante, e lá dissipou a sua
fortuna, vivendo dissolutamente.[...]”. Ou seja, isto poderia significar que o ego (simbolizado
pela imagem do filho) viveu experiências, entrou em contato com a sua imperfeição, seus
limites humanos, que o colocou em confronto com as imagens arquetípicas da persona, da
sombra e da anima,ou seja, o processo de individuação.
Jung afirma que a essência da sombra é “puro ouro”. E só aquele que tem a coragem
de conhecer e entrar em contato com ela, como no caso do filho pródigo, poderia descobrir,
integrar e usufruir o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. O Ego (simbolizado
pela imagem do filho), como centro da consciência, percebe que não é o único, mas que existe
outro centro, o Si-mesmo (simbolizado pela imagem do pai), o centro do inconsciente e da
personalidade total, com autoridade maior do que a dele e a qual ele se coloca a serviço.
(ZWEIG e ABRAMAS, 2001)
[...] A verdade, porém, é que toda confissão religiosa, por um lado, se funda
originalmente na experiência do numinoso, e, por outro lado, na pistis, na fidelidade
(lealdade), na fé e na confiança em relação a uma determinada experiência de caráter
numinoso e na mudança de consciência que daí resulta. [...] ( JUNG, 1987, p.10)
Talvez imitar Maria seja fazer como ela fez, ou seja, foi fiel à voz de Deus dentro
dela. De acordo com o texto sagrado, mesmo quando José, seu noivo, desconfiou de que ela
não era mais virgem por estar grávida, ela continuou firme, pois Deus dentro dela lhe dizia
108
que tudo iria ficar bem. Depois, a José foi revelado, em sonho, que o filho que Maria trazia
dentro dela era o Filho de Deus. Psicologicamente poder-se-ia dizer que a consciência de José
foi transformada pela imagem de Deus dentro dele e, de imediato, colocou-se a seu serviço,
pois concordou em se casar com Maria e, com o nascimento de Jesus, formaram a Sagrada
Família.
O símbolo é a expressão da função transcendente. Quando ele existe, a travessia está
garantida. A única forma viável de superar os mecanismos de defesas produzidos pelo ego da
paciente que, devido a sua culpa neurótica estimulava uma relação disfuncional entre o
imaginário e o seu universo religioso, foi através do poder do símbolo (parábola do filho
pródigo), oferecido pelo seu próprio universo religioso, pois esta imagem simbólica,
instantaneamente, através da emoção, levou-a a se reconhecer na categoria do Sagrado.
De acordo com Bolen (1993), o mito tem o poder de ressoar nas camadas profundas
da psique, penetrando nas emoções e refletindo temas vivenciados pelo indivíduo,
colaborando, desta forma, para que se tenham percepções a respeito de si e dos
relacionamentos mais significativos de suas vidas, oferecendo a possibilidade de perceber as
origens psicológicas dos seus conflitos, do seu padrão inconsciente de funcionamento e dos
custos que lhe impõe através dos personagens constelados no mito.
[...] Quando uma série de sonhos ou histórias significativas consegue comover uma
pessoa, o efeito transformador pode ser tremendo. A mensagem é entendida
profundamente, libertando-nos de padrões inconscientes, levando-nos a ver que nossa
vida tem sentido e recordando-nos de que, tendo consciência e escolha, somos
capazes de fazer modificações no nosso mundo pessoal e no mundo exterior.
(BOLEN, 1993, p. 23)
Esta transição instantânea, imediata, que permitiu mediar e superar o conflito entre o
Profano e o Sagrado, através da experiência do numinoso, inviabilizou qualquer tentativa de
reação por parte do racional de Ana, pois sua consciência foi transformada, possibilitando a
mudança da qualidade da relação entre o imaginário e o seu universo religioso que, de
imediato, passou de uma relação disfuncional para uma relação funcional.
A energia aprisionada no complexo de perfeição pôde ser redistribuída para outra
corrente, pois o complexo foi emocionalmente digerido. E Ana, quando da alta do seu
processo psicoterapêutico exclamou: “agora entendo São Paulo, quando ele diz que não faz o
bem que quer, mas faz o mal que não quer”
Segundo Jung, pela via psicológica não se pode captar a essência da religião, que é a
experiência do encontro do indivíduo com o sagrado, porém, podem-se avaliar os efeitos
109
sua sombra e projetado ou reprimido sua anima no inconsciente. Nos demais casos de
pacientes cristãos que ofereceram resistência à psicoterapia de abordagem integradora,
acompanhados na prática clínica, apenas um deles, até o momento, confirmou sua resistência
à psicoterapia quando foi encaminhado ao seu orientador espiritual.
Um dado interessante é que esta paciente, apesar de até a presente data não ter
retomado o seu processo de psicoterapia, já encaminhou diversos outros pacientes cristãos
para realizar este processo na abordagem integradora, justificando a sua sugestão através da
observação de que se trata de um profissional da psicologia, que não exclui a dimensão
religiosa dos seus pacientes, mas, pelo contrário, que valoriza esta dimensão pois os percebem
na sua totalidade.
111
Ele foi aluno do Dr. Bachelard, o qual tem o mérito de ter reconhecido a poesia como um dos
meios de conhecimento portanto complementar a ciência, uma vez que na poesia encontram-
se a sensibilidade, a subjetividade e o simbólico.
Em sua proposta de "um novo espírito científico", Bachelard orienta a ciência para
uma mudança de paradigma, propondo uma epistemologia não só cartesiana,
enveredando pela fenomenologia. Jung, por sua vez, observa nos relatos de sonhos
dos seus pacientes similitudes com relatos míticos pertencentes a outras culturas, o
que lhe serve de base para a elaboração do conceito de arquétipo, e de inconsciente
coletivo. É a partir da fenomenologia de imaginação de Bachelard e da psicologia da
profundidade de Jung, entre outras bases teóricas, que G. Durand constrói a sua
própria teoria.. (PITTA, 1995, p.10)
O imaginário tem o poder de transformar ou reconstruir o real, pois tudo que é real
hoje foi imaginado anteriormente. Muitas das atuais invenções científicas, por exemplo,
foram pensadas anteriormente por escritores. Imaginar não tem método, mas para
compreender o imaginário, para ser científico, tem que ter um método. A preocupação de
Durand (PITTA, 1995) foi estabelecer um método que superasse as compartimentações, pois
considera que toda obra de arte tem sua singularidade e originalidade e está inserida num
meio significativo específico e cultural.
Porém, não se deve confiar na própria imaginação para falar com competência sobre
o imaginário, para tanto, é preciso “[...] possuir um repertório quase exaustivo do imaginário
normal e patológico em todas as camadas culturais que nos propõem a história, as mitologias,
a etnologia, a lingüística e as literaturas”(10).(PITTA, 1995, p.11).
De acordo com Pitta (1995), a metodologia elaborada por Durand tem como base
duas hipóteses consideradas, por ele, como centrais: primeiro, a de que existe uma
continuidade, ou seja, não há um corte entre o imaginário mítico atual expressado através das
belas artes, da literatura, das ideologias ou de outras expressões culturais e as antigas
mitologias; segundo, as atitudes e comportamentos históricos dos seres humanos repetem,
mesmo que com timidez, os papéis e os cenários dramáticos dos grandes mitos.
Segundo Pitta (2005), Durand percebe o imaginário como a essência do espírito,
como um sistema de imagens e das suas relações entre si, a partir do qual o ser humano se
esforça em construir uma esperança diante da angústia da consciência da morte. Se não
houvesse um sentido ou um significado para a vida, se o mundo fosse totalmente objetivo,
sem valores estabelecidos, sejam eles religiosos, filosóficos ou políticos seria muito difícil
manter-se vivo, por isso, o ser humano está sempre em busca de um sentido, para que possa
lidar com a finitude da vida humana.
113
A primeira coisa que um povo faz, para a antropologia, é organizar tempo e espaço e
o faz através do mito. O mito é um relato fundante de uma cultura e tem uma dimensão
pedagógica. São redundantes e têm como função ensinar como as pessoas devem se
comportar e agir. A proposta de Gilbert Durand (PITTA, 2005) é revelar os mitos diretivos,
ou seja, os mitos que revelam a dinâmica social ou as produções individuais representativas
do imaginário cultural, no tempo e no espaço.
[...] “Ele é uma forma dinâmica, uma estrutura organizadora de imagens, mas que
está sempre alem das concretudes individuais, biográficas, regionais e sociais, da
formação das imagens"([20]). "O arquétipo (noção agora reabilitada aos olhos das
ciências exatas pela teoria matemática de René THOM) é a força de coesão
compreensiva comum a vários símbolos, logo tendendo a uma formalização unívoca
mas não atingindo nunca a fórmula abstrata e preenchendo-se sempre de um sentido
verbal. O arquétipo é a força pura do verbo, esvaziada, no limite extremo da
compreensão, do conteúdo do 'sujeito' ou da qualificação do atributo"([21]).
(PITTA, 1995, p.14)
115
O símbolo é uma representação que evoca algo que está ausente, que é impossível de
ser percebido, que tem um sentido secreto a ser revelado e que, portanto, tende a se repetir,
através do fenômeno de redundância, como que para se certificar que o sentido seja
compreendido dentro de um determinado contexto, definido por uma dinâmica específica.
Eles podem aparecer tanto de uma forma manifesta, repetido de forma explícita e de conteúdo
homólogo ou de uma forma latente, repetido de forma implícita pela intencionalidade.
[...] Ele é a "epifania de um mistério". Ele se divide em duas partes: uma visível (o
significante), à qual Paul RICOEUR atribui três dimensões: cósmica (pois toma os
elementos da figuração no meio ambiente), onírica (pois tem suas raízes nas
lembranças, nos gestos que emergem nos sonhos) e poética (pois recorre à
linguagem em formação); uma invisível (o significado), e indizível, que constitui
uma espécie lógica à parte. [...] Os símbolos podem ser classificados em: símbolos
rituais (relativos aos gestos), símbolos iconográficos (imagem visual) e aqueles
relativos à palavra(os mitos)([22]). "Ou ainda digamos que o símbolo coloca as
imagens que possuem um espaço sensível, os significantes, na perspectiva de um
sentido, de um significado cuja indizível singularidade, cuja ausência de localização
necessitam precisamente o trânsito por um significante perceptível"([23]). (PITTA,
1995, p.14-15)
Durand (PITTA, 1995) vai estabelecer então dois regimes da imagem: diurno e
noturno e três estruturas do imaginário que vão corresponder aos regimes, se baseando nos
três reflexos básicos. Partindo do princípio que os símbolos convergem e de que as estruturas
do imaginário dão uma resposta à angústia existencial, ele vai fazer um inventário dos
símbolos que expressam esta angústia existencial, pois eles reproduzem “os semblantes do
tempo”. É importante frisar, que devido à ambigüidade dos símbolos, aqueles relacionados à
angústia só o vão estar a partir deste contexto.
[...] “Aos schemes, aos arquétipos, aos símbolos valorizados negativamente e aos
semblantes imaginários do tempo, poderia-se opor ponto por ponto o simbolismo
simétrico da fuga diante do tempo ou da vitória sobre o destino e a morte"([51]).
Trata-se do "principio constitutivo da imaginação". [...] Trata-se de um regime
118
Yves Durand, psicólogo francês que era aluno de Gilbert Durand, em 1958, teve
conhecimento da tese de doutorado do seu então professor, ainda em fase de elaboração. Foi
seduzido de imediato por vários aspectos da tese, principalmente: o fato de haver um
imaginário universal, onde aquele de uma pessoa intelectual poderia ser estruturado
119
Em um primeiro tempo a ênfase foi dada para o instrumento clínico, mas isto não
era o essencial: o AT-9 é de fato um instrumento de pesquisa do imaginário que
permitiu inclusive a formação de um banco de dados sobre o imaginário. Ele pode
ser empregado em psicologia, educação, sociologia, antropologia, arte, etc. Trata-se
de um instrumento de acionamento do imaginário que não pertence com
exclusividade aos psicólogos (74]). [...] (PITTA, 1995, p. 33)
A análise do AT-9 realizada, nesta pesquisa científica, foi a análise estrutural, onde
os protocolos do teste foram classificados de acordo com as estruturas antropológicas do
imaginário, pensadas por Gilbert Durand. As outras três possibilidades de análise são: a
análise actancial, onde o objetivo é saber a especificidade da angústia existencial; a análise
dos elementos, que tem como objetivo descobrir as características atribuídas pelo sujeito aos
nove elementos arquetípicos; e a análise das conexões de imagens, onde busca-se observar a
relação que o indivíduo construiu entre cada um dos nove elementos propostos pelo teste.
A presente pesquisa teve como foco central de estudo, pacientes cristãos que
buscaram atendimento psicoterapêutico, devido ao surgimento ou a percepção de
determinados sintomas psicológicos, psicossomáticos ou de comportamento socialmente
inadequado que limitavam ou restringiam a sua vida. O método utilizado foi o clínico-
qualitativo, conforme proposto por Turato (2000), associado à aplicação do teste projetivo o
Arquétipo Teste dos Nove Elementos (AT – 9), do psicólogo Yves Durand.
Segundo Turato (2000), o clínico-qualitativo é o método de pesquisa científica mais
adequado para os cientistas da saúde, pois favorece a apreensão dos sentidos e significados
que os pacientes dão aos fenômenos relativos às questões saúde-doença. No método clínico-
qualitativo as angústias e ansiedades do paciente são valorizadas e entendidas como
fundamentais. “A angústia, como desejo de algo que se teme e de medo do que se deseja e
121
que como tal prepara e anuncia uma ruptura, um salto a realizar”(TURATO, 2000 apud
JOLIVET, 1975, p.19).
A angústia não só como um sintoma psicológico, mas principalmente com um
sentido existencialista, como algo que trás desarmonia interna, um medo inexplicável, logo
justifica a escolha do método clínico-qualitativo por considerar ser o mais adequado para
trabalhar com pacientes em atendimento psicoterapêutico e por estarem em sintonia com a
Teoria Geral do Imaginário, no que se refere ao fenômeno da angústia existencial.
Foram escolhidos os casos mais significativos para serem pesquisados, ou seja,
aqueles em que o paciente abandonou a psicoterapia, por iniciativa própria, alegando
inúmeros motivos que, para ele, justificavam a interrupção do processo psicoterapêutico, mas
que, na avaliação do clínico/pesquisador, tratava-se de uma resistência inconsciente à
psicoterapia, devido à angústia diante da impossibilidade para superar ou vencer os sintomas.
A análise estrutural do AT-9, aplicados aos pacientes cristãos, forneceu a
informação sobre a estrutura do imaginário de cada paciente e o regime da imagem
correspondente, ou seja, o “trajeto antropológico” destes pacientes. A hipótese formulada foi a
de que, se seria possível, através do conhecimento do “trajeto antropológico” dos pacientes
resistentes e dos não resistentes, descobrir algo que é comum aos pacientes do mesmo grupo e
diferente entre os dois grupos. Se a hipótese fosse confirmada, haveria subsídios para sugerir
que um estudo mais completo sobre este tema deveria ser realizado.
Quanto à definição da amostra foram selecionados dez pacientes que expressaram
sua fé religiosa diferenciada, sendo que sete deles se declararam cristãos, dois se declararam
espíritas e um se declarou ex-cristão. Foram divididos em dois grupos de cinco pacientes: os
que apresentaram resistência ao tratamento e que, de fato, abandonaram o processo, por
iniciativa unilateral e os que não apresentaram resistência durante o processo.
Foram convidados dez pacientes para participar do grupo dos resistentes, mas apenas
cinco deles concordaram. Portanto, os do segundo grupo também foram limitados a cinco
pacientes, sendo que quatro deles já receberam alta e um deles estava em processo de alta no
momento em que foi efetivada a coleta de dados, através do teste projetivo AT-9. Todos são
pacientes adultos, atendidos individualmente, com idades variando entre 22 e 54 anos, de
ambos os sexos, sendo seis mulheres e quatro homens, pertencentes às classes sócio-
econômicas baixa, média e média alta, todos residentes na cidade de João Pessoa – PB.
O campo empírico foi o setting terapêutico, pois é o local adequado para coleta dos
dados, uma vez que se trata de um ambiente delimitado, que preserva as inúmeras
122
Aplicamos dez protocolos do Arquétipo Teste dos Nove Elementos (AT-9), sendo
quatro com o sexo masculino e seis com o sexo feminino. Quando da aplicação do teste AT-9,
os pacientes foram convidados por telefone a comparecerem a clínica, para se submeterem ao
teste, já que nove deles já não mais se encontravam em processo psicoterapeutico. Os cinco
do primeiro grupo, porque tinham abandonado o processo, através da resistência e quatro do
segundo grupo porque já estavam de alta. O teste AT-9 foi aplicado ao quinto paciente do
segundo grupo, após uma de suas sessões do processo de alta.
Foram quatro momentos: no primeiro, o paciente foi solicitado a construir um
desenho estimulado por nove elementos arquetípicos, escolhidos por Yves Durand pelo
123
significado profundo de cada um deles e por serem representativos da trama construída pelo
sujeito da pesquisa; no segundo momento, os pacientes construíram uma narrativa escrita
sobre o desenho; no terceiro momento, preencheram um quadro síntese e, por último,
responderam a um questionário. Os pacientes utilizaram lápis, sem uso de borracha e o tempo
de execução foi de 30 minutos, porém, dois dos pacientes utilizaram mais de 30 minutos.
Os testes dos pacientes foram analisados através da análise estrutural, com o
objetivo de obter informações sobre a estrutura do imaginário e o regime das imagens, a partir
do micro universo mítico criado por eles. Analisou-se o desenho associado ao relato, ao
quadro resumo (representação, papel/função e simbolismo) e ao questionário. Foi possível
identificar a estrutura do imaginário de cada paciente ou a impossibilidade de estruturá-lo, nos
casos em que a angústia é tão forte que o paciente não consegue desenvolver nenhum tipo de
defesa.
PROTOCOLO 01
QUADRO RESUMO
a) Idéia central: o guerreiro. A indecisão nesta situação não foi muito determinante.
b) Inspiração: Por todos os filmes que vi. Ex. o sexto sentido, BENHUR, etc, etc..
c) 1º Elementos Essenciais: Fogo, monstro, personagem
2º Gostaria de Eliminar: Queda (ás vezes não entendemos o sofrer). Cíclico (a
mudança deprime o ser)
d) A Cena Termina: Com o progresso
e) Onde estaria e o que faria? Poderia ser o vento. Que move todas as coisas. Que está
em todos os lugares ou um construtor de pontes.
PROTOCOLO 02
QUADRO RESUMO:.
a) Idéia Central: Da idéia que nossa existência é chave de quedas, e que devemos ser
enfrentados.
b) Inspiração: Sim na vida que e cheia de quedas e superações.
c) 1º Elementos Essenciais: Espada, queda, cíclico
2º Gostaria de Eliminar: Refugio: porque acho que devemos enfrentar o monstro
d) A Cena Termina: Termina com a vitória do personagem sobre o monstro
e) Onde estaria e o que faria? Corrido – enfrentaria o monstro
possível defesa, não como uma força de ataque. O elemento animal está representado pelos
pássaros, mas não no sentido de potência de voar, de força, de poder, pois não há nenhuma
referência as asas. Está na função de libertá-lo da prisão dos limites que o oprimem,
simbolizando a possibilidade de uma almejada liberdade. Os pássaros estão na sua função de
símbolo da paz, da liberdade.
O elemento refúgio está representado pela caverna, com a função de não
enfrentamento do monstro, com o simbolismo da proteção. Caverna é um símbolo da
intimidade, da moradia protetora, do aconchego. O elemento fogo, representado pela fogueira
no interior da caverna também sugere o aconchego, o fogo que aquece, apesar do paciente
não ter lhe atribuído esta função, nem este simbolismo. Há um sentimento ambivalente em
relação ao refúgio, que é confirmado quando questionado sobre o que faria se estivesse
participando da cena: “Corrido - enfrentaria o monstro”
Apesar do personagem desejar lutar com o monstro, pois um dos elementos essenciais
em torno do qual ele construiu o desenho foi a espada e quando questionado sobre como
termina a cena que ele imaginou: “Termina com a vitória do personagem sobre o monstro”
(característica da estrutura heróica do imaginário), esta luta, entretanto, está na instância do
desejo latente, pois, quando foi questionado sobre que elemento gostaria de eliminar e por
que?, ele respondeu que era o “Refugio: porque acho que devemos enfrentar o monstro”. Ele
acha, deseja, mas ainda não consegue.
Num segundo momento, ele sai do refúgio, mas não enfrenta o monstro. O elemento
queda é representado pelo mergulho, com a função de fugir do monstro. A fuga diante da
angústia existencial do tempo e da morte. O elemento água é representado pelo lago, que tem
a função de aliviar. Mergulhar é uma descida lenta, (característica da estrutura mística do
imaginário). Lago tem águas paradas, estagnadas.
O elemento cíclico é representado pelos círculos, que têm a função de repetir,
simbolizando o que nunca acaba: “Se mergulharmos para fugir, quando emergimos, lá está ele
de novo.” O tempo cíclico não tem começo, nem fim. A morte é recomeço e não um fim.
Além do elemento da espada, os outros dois elementos essenciais em torno dos quais o
paciente construiu seu desenho foram os elementos cíclico e queda, sendo o elemento queda,
o arquétipo da vertigem, a experiência do medo, a angústia humana diante da temporalidade.
A queda foi a idéia central em torno da qual ele construiu sua composição.
O personagem vive ao mesmo tempo dois universos: o heróico e o místico, ou seja,
ele participa das duas polaridades. Ele é sujeito de duas ações que se desenvolvem em dois
momentos, porém, numa estrutura unificada. Ele também se desdobra em dois personagens
128
PROTOCOLO 03
QUADRO RESUMO:
Aqui também parece que o personagem vive dois momentos bem diferentes. No
primeiro momento, a harmonia total. O elemento personagem é representado por um jovem,
que tem a função de zelar pelo sítio, simbolizando o próprio paciente, vivendo em harmonia
com a natureza e o universo: “Era uma vez um jovem rapaz que morava em um lindo sitio
onde o sol brilhava, os pássaros voavam... e vivia em harmonia com o universo.” Quando
questionado sobre que idéia central ele construiu a composição, respondeu: “Na idéia de uma
casa harmoniosa com a natureza”
O elemento queda, é representado pela ladeira do rio, simbolizando suas
dificuldades, porém, com a função de regar a terra e saciar. O elemento refúgio é representado
pela casa, que tem a função de aconchegar, fortalecer, simbolizando o aconchego. Diante da
angústia existencial e da morte, o paciente vai negá-las, criando um mundo em harmonia,
baseado na vontade de aconchego e de intimidade. Também remete ao simbolismo místico.
O segundo momento ocorre num tempo que já passou: (“Certa vez ele matou uma
cobra Traiçoeira que ameaçava a paz daquele ambiente”). Parece que esta parte da cena não
está integrada ao conjunto da composição, lhe parece estranho. O elemento monstro,
representado pela cobra, tinha (pois a cobra não mais ameaça a paz do ambiente) a função de
devorar, simbolizando a mãe do paciente. A função de devorar é um símbolo teriomorfo do
semblante do tempo, ligado à animalidade angustiante, sob a forma de “mordicância” ou ato
de morder, devorar. Remete ao regime diurno.
A relação simbólica entre a cobra e a mãe da paciente remete também ao símbolo
nictomorfo da feminilidade animalizada, a imagem da mãe terrível, devoradora, que sufoca.
Remete ao regime noturno. Entretanto, não há combate durante a composição, inclusive o
130
elemento espada, representado pela arma que matou a cobra, com a função de atacar e
defender, não aparece no desenho, nem no relato, nem quando questionado sobre os
elementos essenciais em torno dos quais ele construiu o desenho: “A casa, o pomar, o rio e o
sol.”
Quando questionado sobre que elemento gostaria de eliminar, responde que seria “A
cobra,“. Tem o desejo latente de justificar, percebe-se que ele coloca a vírgula depois da
palavra cobra, mas não o faz. Quando questionado sobre onde estaria e o que faria se tivesse
de participar da cena que compôs, ele responde que: “Eu sou o jovem, faria o que fiz no
desenho eliminaria a cobra”, ou seja, ele gostaria de eliminar o elemento cobra e eliminar a
cobra.
O sol, representante do elemento cíclico, é fonte de luz, calor e energia. O sol poderia
também simbolizar algo que gira, porém, o paciente o colocou na função de fonte de luz e não
como “o nascer e o por do sol”, por exemplo. O elementos fogo, assim como a água também
têm significação simbólica polivalente, porque seu simbolismo pode remeter tanto a estrutura
heróica, como a mística e a sintética. Neste contexto, as imagens vão constelar em torno do
simbolismo heróico, tanto as que representam o elemento água, como as do fogo e do animal.
A água é representada pelo rio, portanto, água que escorre para um lado só, como o
tempo que passa para nunca mais voltar. Também é um símbolo nictomorfo. O elemento fogo
é representado pela luz solar, com a função de aquecer, iluminar, simbolizando a fonte de
energia. Luz e sol são símbolos espetaculares, isomorfismo entre o céu e o luminoso,
portanto, também remetem ao simbolismo heróico.
O elemento animal é representado pelos pássaros, com a função de libertar, voar,
simbolizando viver neste lugar, porém, livre da ameaça do monstro devorador, a cobra
Traiçoeira. O pássaro na sua função fundamental de voar, como metáfora de ascensão,
também remete ao simbolismo heróico. Há várias tentativas de incluir na composição imagens
que remetem ao simbolismo heróico, também, através da presença do elemento monstro no
desenho, no relato e no que o paciente gostaria de fazer: “Eu sou o jovem, faria o que fiz no
desenho eliminaria a cobra.”
Porém, a idéia central gira em torno da harmonia, remetendo ao simbolismo místico:
“Na idéia de uma casa harmoniosa com a natureza”; na escolha dos elementos essenciais: “A
casa, o pomar, o rio e o sol”; no desejo de retirar o elemento monstro, representado pela
“Cobra”; e, principalmente, na cena final que ele imaginou: “Em harmonia, integração e paz”.
Como ele diz no relato: “Enfim tudo continuou naquela harmonia.”
131
QUADRO RESUMO:
PROTOCOLO 05
Nome ou pseudônimo: MULHER 1 Idade: 44 Sexo: Feminino
Profissão: Funcionária Pública Nível de Escolaridade: Superior
QUADRO RESUMO
a) Idéia Central: Em torno da minha vida, do meu momento atual e do que espero. Não
fiquei indeciso.
b) Inspiração: Não apesar de gostar muito de filme.
c) 1º Elementos Essenciais: O personagem, o mostro, o refugio , a água, a queda
2º Gostaria de Eliminar: O monstro e o vento são terríveis mas que existem e a
consciência disso, levou a busca pelo refugio Sem eles na composição, a história seria
outra.
d) A Cena Termina: Muito bem, com o personagem em uma nova vida. Não significa que
ele não terá novos monstrinhos (problemas), mas agora sem aquilo que o imobilizava.
A terra não e mais seca, inóspita ou acidentada, mas verde fértil plana (não monótona)
e) O que faria e onde estaria? Eu sou o personagem e estou tentando/ buscando pular na
água p/ atingir o refugio.
elementos essenciais em tono dos quais o desenho foi construído foram: “O personagem, o
mostro, o refugio , a água, a queda”. Pensou em eliminar o monstro e o vento, mas desistiu,
pois percebeu que eles existem e que foram necessários para que ela conquistasse suas
mudanças, simbolizado pelo refúgio.
Portanto, foi classificado como Duplo universo sintético existencial diacrônico –
DUEX diacrônico, pois “O personagem vive dois momentos existenciais – heróico e místico
de modo sucessivo [...] o personagem participa por etapas das duas polaridades heróica e
mística” (DURAND, Y., 1988, P. 102)
PROTOCOLO 06
Nome ou pseudônimo: MULHER 2 Idade: 22 Sexo: Feminino
Profissão: Estudante Nível de Escolaridade: Ensino sup. incompleto
(PITTA, 1995, p.30): “Consegue se levantar e corre, corre, corre”. Remete ao simbolismo
sintético do imaginário.
O elemento fogo é representado pela fogueira e o elemento água é representado pela
poça d´água. Ambos têm a função de atrapalhar, simbolizando os obstáculos da vida a serem
superados. O fogo, neste contexto, não tem a função de aquecer, portanto, não remete ao
simbolismo místico, talvez remeta ao simbolismo sintético, ou seja, o fogo como mediador
entre a natureza (os desejos latentes da menina) e a cultura (as intimidações sociais, os
obstáculos). O elemento animal é reapresentado por pássaros, simbolizando a vida.
O elemento refúgio é representado por uma casa, que tem a função de proteger,
simbolizando a proteção. Remete ao simbolismo místico, entretanto, quando a cena “Termina
feliz porque a menina consegue fugir do monstro”, ou seja, “[...] da fuga diante do tempo ou
da vitória sobre o destino e a morte” remete-se ao simbolismo heróico. Porém, a composição é
caracterizada pela dimensão temporal, nela introduzida, inclusive com o elemento cíclico e os
três elementos complementares: água, animal e fogo, coerentes com esta dimensão,
remetendo ao simbolismo sintético.
Portanto, foi classificado como Duplo universo sintético existencial diacrônico –
DUEX diacrônico, pois o personagem tanto participa da polaridade heróica como também da
mística de modo sucessivo
PROTOCOLO 07
QUADRO RESUMO
PROTOCOLO 08
quadrinhos preferidas.Brincava com seu iô-iô luminoso, pescava e fazia sua comida. Subia e
descia das arvores, pulava da queda d’água e nadava no riacho. Tomava cuidado para não
acordar o grande urso que vivia na caverna da cachoeira. E assim ele passava os dias mais
emocionantes de suas férias.
QUADRO RESUMO:
a) Idéia Central: Pensei num momento que proporcionasse contato com natureza. Sim.
Foi difícil pensar “ num monstro devorador” e em “alguma coisa cíclica”.
b) Inspiração: Talvez, tenha inspirado-me num passeio que fiz ao xingo pelo Rio São
Francisco no ultimo fim de semana.
c) 1º Elementos Essenciais: A queda d’água e a planície que forma a caverna.
2º Gostaria de Eliminar: Nenhum. Porque creio que existe uma boa harmonia entre os
elementos e a historia imaginada por mim.
d) A Cena Termina: O aprende a superar os obstáculos naturais da vida e, ao voltar para
casa, terá muitas histórias para contar aos seus amiguinhos e familiares. Incentivando-
os a viverem emoções como essas.
e) Onde estaria e o que faria? Estaria com o garotinho, vivendo com ele suas fantasias.
141
PROTOCOLO 09
QUADRO RESUMO:
A idéia central em torno da qual a paciente construiu sua composição foi o refúgio.
O elemento refúgio é representado por uma casinha, que tem o papel de ser um lugar especial,
simbolizando quem ela é realmente. Ela se percebe como uma pessoal especial: “Uma casinha
branca, flores, água correndo, recanto sagrado.” Os elementos essenciais foram refúgio,
coragem e água. O elemento queda é representado por uma pessoa caindo, tem a função de
guerrear, simbolizando situação da vida.
O elemento espada tem a função de vencer, simbolizando a arma. A espada, assim
como o monstro, está no desenho, mas não aparece no relato. O monstro tem o papel de um
boneco enorme, simbolizando os perigos da vida. O elemento cíclico é representado por um
moinho, que tem a função de ativador de força, simbolizando que tudo passa. O elemento
personagem é representado por um homem, que tem a função de imaginar, simbolizando
alguém especial.
Os três elementos complementares: água, animal e fogo são coerentes com o
simbolismo místico. A água é representada por uma lagoa, com a função de refrescar,
simbolizando o renascimento. Lagoa tem águas paradas, profundas, descida lenta; o animal é
representado por pássaros, que parecem ser pombas da paz, peixes e patinhos; e o fogo é
representado por uma fogueira com a função de aquecer, simbolizando calor humano, vontade
de intimidade, aconchego.
A cena termina com um “Final feliz” e a paciente: “Eu estaria apreciando o melhor
momento. Ajudaria quem caiu. O melhor momento seria o por do sol... O recolhimento para
descansar.”. “Um lugar para ser feliz”, onde a angústia existencial do tempo e da morte jamais
poderiam entrar!
Portanto, foi classificada de Micro-universo Mítico Místico Integrado, pois
predomina a paz e a tranqüilidade. O monstro está presente, mas é tratado alegoricamente:
“Boneco enorme” e a espada é disfuncionalizada. Todos os 9 elementos estão integrados à
solução dada.
PROTOCOLO 10
Um bicho feio perseguia uma menina de cachos pequenos, ele vinha em cima de carro de boi, com
uma espada na mão para matar a
menina, ele corria muito e teve que
atravessar um rio que tinha muitos
peixinhos e ela caiu quando tropeçou
numa pedra. A menina continuou
fugindo do bicho e mas adiante teve
que usar um atalho para fugir da mata
que estava pegando fogo. Ela estava
quase sendo alcançada, ai correu com
mais força conseguindo chegar a sua
casa onde se trancou no seu quarto,
pois tinha certeza que ali nada de mal
lhe aconteceria e o bicho desapareceu,
mas ela tinha medo que ele voltasse se
ela saísse do seu quarto.
QUADRO RESUMO
2º Gostaria de Eliminar: Carro. Acho que ficaria mais difícil para ele me pegar
d) A Cena Termina: A menina conseguiu chegar em casa e trancada em seu quarto
e) Onde estaria e o que faria? Eu participei de toda sena
O elemento monstro (angústia diante da morte) é representado por algo que existe
dentro da própria paciente, que tem a função de amedrontá-la, simbolizando seus medos. O
elemento personagem é representado por uma menina medrosa, que tem a função de fugir,
deste monstro, simbolizando também a própria paciente. O elemento cíclico é representado
pelo carro de boi, que tem a função de fazer o monstro correr, simbolizando sua infância. Este
é o elemento que ela gostaria de eliminar: “Carro. Acho que ficaria mais difícil para ele me
pegar”.
O elemento queda é representado pela chance e a função de levantar, simbolizando o
pânico. Tem a ver com as experiências dolorosas na infância e a dor da queda moral. O
elemento refúgio é representado pelo seu quarto, tem a função de fugir do monstro,
simbolizando a segurança. A idéia central em torno da qual ela construiu a composição foi a
de um monstro perseguindo-a. Os elementos essenciais foram o monstro (bicho), o
personagem (eu) e o refúgio (quarto) e a cena termina: “A menina conseguiu chegar em casa e
trancada em seu quarto”. “Eu participei de toda sena .“
O elemento espada está na mão do monstro, tem como função matar a menina,
simbolizando a morte. Interessante observar que tanto o elemento cíclico, estímulo para a
estrutura sintética, como o elemento espada, estímulo para a estrutura heróica, que engatam a
defesa contra a angústia da morte (monstro devorador) são, no caso desta paciente,
potencializadores desta angústia. Os elementos complementares: animal, água e fogo, estão
todos coerentes com a potencialização do monstro, já que seus simbolismos são: perseguição,
medo e morte, respectivamente.
O elemento fogo, por exemplo, é representado pela mata pegando fogo, tendo a função
de desviar a menina, simbolizando a morte: “A menina continuou fugindo do bicho e mais
adiante teve que usar um atalho para fugir da mata que estava pegando fogo”. E o relato
termina com o monstro desaparecendo sem maiores explicações, permanecendo a
insegurança: “[...] se trancou no seu quarto, pois tinha certeza que ali nada de mal lhe
aconteceria e o bicho desapareceu, mas ela tinha medo que ele voltasse se ela saísse do seu
quarto.”
146
O AT-9, aplicado aos dois grupos de pacientes cristãos, permitiu identificar o micro-
universo mítico, quando do momento da sua aplicação. É importante ressaltar que como o
imaginário é dinâmico, os resultados obtidos com a aplicação do teste revelaram a estrutura
do imaginário e o regime das imagens, referentes aquele momento específico, no qual eles
foram submetidos ao teste. Yves Durand esclarece que o AT-9 é auto-terapêutico, ou seja,
após o indivíduo se submeter a ele, a dinâmica do seu imaginário pode ser alterada, pois
Gilbert Durand considera as estruturas como uma “forma transformável”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
mãe? Normalmente a vida perde o sentido para estas mulheres, porque os filhos começam a
ficar emocionalmente independentes e elas se sentem como que descartadas. Neste momento,
elas se voltam com mais intensidade para seu parceiro que, no caso de Ana, há muito tempo já
tinha outros interesses sexuais e afetivos.
Caso Ana não tivesse desenvolvido um sintoma para denunciar a dor diante do
afastamento erótico/afetivo do seu esposo, provavelmente um de seus filhos o teria “feito”,
pois, como seu sistema familiar era disfuncional não permitiria que as relações conjugais
fossem revistas. O membro da família que possuir uma baixa auto-estima, uma culpa
imaginária e tiver uma grande sensibilidade à tensão familiar, inconscientemente, como no
caso de Ana, é capaz de chamar a atenção sobre si e assim, paradoxalmente, aliviar a tensão e
a angústia geradas no sistema familiar disfuncional.
Esta estrutura pessoal disfuncional torna-o “perfeito” para o papel do doente da
família. Inconscientemente, é impelido, constrangido a desenvolver um sintoma. Este membro
da família é visto pelo terapeuta não como um doente, mas sim, como o paciente identificado,
ou seja, aquele que porta o sintoma do seu sistema familiar, uma vez que, na visão sistêmica a
patologia é do sistema e não só do indivíduo.
No processo de psicoterapia individual, quando o terapeuta analisa o sistema
familiar do paciente, percebe-se que se trata do paciente identificado do seu sistema familiar e
que, portanto, poderá haver resistência por parte da família ao seu processo de crescimento e
busca de autonomia. Normalmente, há pressão por parte dos familiares mais significativos,
quando as mudanças de atitudes e comportamentos do paciente passam a ser sentidas por
estes familiares. No caso de Ana, antes mesmo dela descobrir a relação extraconjugal de
Gomes, ele já vinha solicitando que ela desistisse da terapia.
Este tipo de resistência ao processo é superado à medida que o paciente se percebe
crescendo, efetivando mudanças, porém, difícil de superar são as resistências inconscientes
provocadas pelos mitos familiares, pois estas não são visíveis para o paciente. No caso de
Ana, este tipo de resistência inconsciente foi provocado principalmente pelo mito de
perfeição, ao qual as mulheres de sua família, durante várias gerações, procuraram ser fiéis.
Por ela não conseguir ser perfeita, seu casamento não estava bem, portanto, a culpa era só
dela. Esta é uma culpa considerada disfuncional.
O sentimento de culpa funcional é uma construção social necessária para que o
indivíduo possa conviver numa sociedade organizada. Porém, a culpa se torna disfuncional,
quando o ambiente no qual o indivíduo foi educado, ou seja, quando o sistema familiar no
qual ele está inserido, é disfuncional. No caso dos pacientes cristãos com sentimento de culpa
151
Esta pesquisa científica foi possível, tendo como base o surgimento do novo
paradigma, através da revolução do pensamento ocidental, provocado pelas diversas áreas do
conhecimento científico. No caso específico do imaginário, principalmente pelo estudo e
pesquisa dos grandes remitologizadores que à margem das universidades do mundo, como
frisou Gilbert Durand, construíram uma nova ciência antropológica.
Foi, portanto, bastante rico para o pesquisador que já vinha estudando a teoria junguiana
ampliar seus estudos com a Teoria do Imaginário de G. Durand, pois é uma leitura fascinante,
desafiadora e cheia de sentido, principalmente ao se deparar com os casos dos pacientes. O
teste AT-9, proporcionou um avanço em minhas análises. Percebo a preciosidade das
imagens, da descrição e do preenchimento do quadro para relacionar cada elemento com sua
representação e seu sentido.
154
REFERÊNCIAS
BOECHAT, P. P. Terapia Familiar: mitos, símbolos e arquétipo. 2. Ed. Rio de Janeiro: Wak
editora, 2007.
DOWNING, C. Espelhos do Self: as imagens arquetípicas que moldam a sua vida. Tradução
de Maria Silva Mourão Netto. 1º ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
FERNANDES, R.R. A Psicologia profunda no Novo Testamento. São Paulo: Vetor, 2004
.
FÉRES-CARNEIRO, T. Família: diagnóstico e terapia. 2. Ed. Revista e ampliada.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.
JOHNSON, A., R. Magia Interior: como dominar o lado sombrio da psique. Tradução de
Júlia Bárány. São Paulo: Mercuryo, 1996.
JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. 2 ed. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1974.
_____ Resposta a Jó. 6. ed. Tradução de Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha: revisão Técnica
de Dora Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 2001
_____ Psicologia e Religião. Tradução de Pe. Dons Mateus Ramalho Rocha: revisão Técnica
de Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
PRADO, M. C.C.A. Destino e Mito Familiar: uma questão família psicótica. São Paulo:
Vetor, 1999.
SATIR, V. Terapia do grupo familiar. Tradução de Adrilles Nolli. Rio de Janeiro: F. Alves,
1976.
STEVENS, A. Jung: Sua Vida e Pensamento: Tradução de Attilio brunetta. Rio de Janeiro:
vozes, 1993.
VAINER, R. (1999). O litígio como fonte de vínculo: uma abordagem interdisciplinar. São
Paulo. Casa do Psicólogo, 1999
ZWEIG, C. e WOLF, S. O Jogo das Sombras: iluminando o lado escuro da alma. Tradução
de Anna Maria Lobo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
WEITEN, W. et. al. Introdução à psicologia: temas e variações. São Paulo: Pioneira
Thomson, 2002