Carlos Montaño - Identidade e Classe Social

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“IDENTIDADE”
E CLASSE SOCIAL

Uma análise crítica para a


articulação das lutas de classes e
antiopressivas

Carlos Montaño
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Carlos Montaño

“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL

Uma análise crítica para a articulação das lutas


de classes e antiopressivas
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Sumário

APRESENTAÇÃO

INTRODUÇÃO

PRIMEIRA PARTE: A “identidade” como categoria política, e a “lógica


identitarista” pós-moderna

1. AS ORIGENS DA “IDENTIDADE” COMO CATEGORIA E OBJETO TEÓRICO-POLÍTICOS


1.1- A “identidade” como paradigma dos “Novos Movimentos Sociais” na
abordagem acionalista: os estudos de Alain Touraine e Tilman Evers.
A) A “identidade” no pensamento de Alain Touraine.
B) A “identidade” na reflexão de Tilman Evers.
1.2- A “identidade” em autores pós-marxistas e pós-estruturalistas: as
reflexões de Manuel Castells, Zygmunt Bauman e Stuart Hall.
A) O poder da “identidade” nas análises de Manuel Castells.
B) A “identidade” líquida, da “modernidade líquida”, nas reflexões de Zygmunt
Bauman.
C) A “identidade” cultural do sujeito pós-moderno em Stuart Hall.
1.3- A Política liberal de “identidade”.
A) Liberalismo e cidadania.
B) “Liberalismo identitário” e “políticas identitárias” nos EUA.

2. DA “IDENTIDADE” AO “IDENTITARISMO”: A “LÓGICA IDENTITARISTA” PÓS-


MODERNA COMO FUNDAMENTO DE ARTICULAÇÃO E POLARIZAÇÃO POLÍTICA
I- Da “identidade”, como categoria teórico-política...
2.1- “Identidade” e condição/situação real.
2.2- “Identidade”: vivência, percepção e consciência.
2.3- A importância das causas identitárias, e a necessidade e urgência
das suas lutas (antiopressivas).
A) O Caráter estrutural da opressão por “identidades”: os casos do racismo e
do patriarcalismo/machismo.
B) A necessidade e urgência das lutas antiopressivas (“identitárias”).
C) Contribuições da análise e lutas “identitárias”.
II- ... ao “identitarismo” pós-moderno.
2.4- A “identidade” nas análises de Boaventura de Souza Santos.
2.5- A “classe” como “identidade” no pensamento pós-moderno.
2.6- Da categoria de “identidade” ao conceito de “identitarismo”: a “lógica
identitarista” pós-moderna na polarização “nós”/“eles”.
A) Categorias e conceitos de análise, e seu impacto no conhecimento e nos
processos de lutas.
B) “Identidade” subalterna/oprimida e “identidade” hegemônica/dominante.
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C) A “lógica identitarista” pós-moderna na polarização entre “nós” e “eles”.


D) Da opressão como expressão estrutural à relação interpessoal.
E) Da análise teórica da “identidade” múltipla, líquida e flexível, para a utilidade
política de “identidade” “essencialista”: única, fixa e natural.
F) Os limites do “identitarismo” e da “lógica identitarista” pós-moderna.

3. OUTROS FUNDAMENTOS IDEOLÓGICOS E (A)POLÍTICOS DO PENSAMENTO/AÇÃO


PÓS-MODERNOS: O TRIPÉ DA “LÓGICA IDENTITARISTA”
3.1- O “lugar de fala” como referencial do discurso político.
A) O direito à voz dos subalternos.
B) Todo discurso é social e politicamente situado e posicionado.
C) “Lugar de fala” como “ponto de vista” comum a partir de um “lugar social”.
D) Só quem vivencia uma situação ou pertence a uma “identidade” tem direito à
fala?
E) A vítima ou o oprimido sempre tem a verdade?
F) Alguns argumentos críticos sobre o “lugar de fala”.
3.2- A “pós-verdade” como expressão da “realidade concebida” e objeto
de ação política.
A) Verdade e “pós-verdade”.
B) Os fundamentos da “pós-verdade”.
C) As formas de expressão ou manifestação da “pós-verdade”.
D) A “pós-verdade” como ferramenta política da direita ultraconservadora e da
“esquerda pós-moderna”.

4.- OS TRÊS INSTRUMENTOS E OBJETIVOS CENTRAIS DA LUTA “IDENTITARISTA”


PÓS-MODERNA
4.1- O “punitivismo” (de esquerda) como um objetivo político.
A) Punitivismo e a “lógica polarizadora”.
B) Punitivismo à direita e à esquerda.
C) Havendo crime, deve ter punição, não impunidade.
D) Punitivismo remete a uma ação individualizada, e não contra a estrutura, o
sistema ou a cultura sociais.
E) O punitivismo fundado no Estado e no Direito burgueses: a despolitização
da ação política.
F) A punição fora do Estado, particularmente nas redes sociais: a moralização
da ação política.
4.2- O “reconhecimento” e a “inclusão” (mediante o direito, políticas e
acesso a bens e serviços) como outro objetivo político.
4.3- O “empoderamento” do indivíduo e o desempoderamento da classe.

5. A INVASÃO PÓS-MODERNA (NA IDEOLOGIA E NA POLÍTICA) DA ESQUERDA, E A


NECESSIDADE DA CRÍTICA E SUPERAÇÃO DA “LÓGICA IDENTITARISTA” PARA O
ENFRENTAMENTO DO AVANÇO ULTRACONSERVADOR E A EMANCIPAÇÃO
5.1 A hegemonia da “lógica identitarista” pós-moderna na esquerda.
5.2- O avanço do ultraconservadorismo no Brasil, e a esquerda pós-
moderna.
5.3- Os principais tipos de crítica ao identitarismo.
A) A crítica da ultra-direita ao identitarismo.
B) A crítica liberal ao identitarismo.
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C) A crítica do marxismo “economicista” e “estruturalista” ao identitarismo.


D) Para uma crítica ao identitarismo fundada no “marxismo histórico-dialético”
(ou ortodoxo).

SEGUNDA PARTE: A análise marxista e a necessária articulação das lutas


de classe e antiopressivas

6. CONTRADIÇÃO (DE CLASSE) E DESIGUALDADE (IDENTITÁRIA) NA ANÁLISE


MARXISTA
6.1- Duas dialéticas diferentes: “identidade/diferença” e
“igualdade/desigualdade”.
A) Há que diferenciar o “igualitarismo” do “identitarismo”.
B) Há que tratar desigualmente os desiguais, mas não os diferentes.
6.2- As “identidades” são historicamente determinadas, conformando
manifestações da “questão social”.
6.3- A centralidade da contradição de classe. Exploração, opressão e
desigualdade no pensamento marxista.
A) Classe não é “identidade”, e exploração não é diferença.
B) A centralidade da contradição de classes.

7. LUTAS DE CLASSES E LUTAS ANTIOPRESSIVAS PARTICULARES (“IDENTITÁRIAS”)


NA ANÁLISE MARXISTA
7.1- Alguns pressupostos teórico-políticos no debate marxista: as
dialéticas reforma/revolução, emancipação política/humana,
exploração/opressão, estrutura/superestrutura.
A) Reforma e/ou revolução (em Rosa Luxemburgo), e as guerras de posição e
de movimento (em Gramsci).
B) Emancipação política e humana: a questão (da “identidade”) judaica em
Marx.
C) Exploração e opressão.
D) Estrutura (econômica) e superestrutura (Estado e Sociedade Civil).
7.2- Lutas antiopressivas particulares não equivalem à “lógica
identitarista” (pós-moderna).
A) Lutas de classe e lutas antiopressivas (identitárias).
B) A relação dialética: singular / particular / universal.
C) Causas, lutas e “pautas” identitárias: retomando a questão.
7.3- O projeto emancipatório revolucionário deve incorporar e articular
todas as lutas de classe e antiopressivas particulares (“identitárias”).
A) As lutas antiopressivas (identitárias) devem se articular, como
particularidades, à totalidade social.
B) As lutas de classes devem incorporar as bandeiras das lutas antiopressivas
(identitárias).
C) O projeto emancipatório revolucionário deve incorporar e articular todas as
lutas de classe e antiopressivas (“identitárias”).

A MODO DE CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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INTRODUÇÃO

Há, basicamente, dois tipos de debate.


Por um lado, aquele que se trava a partir de fundamentos, valores,
ideologias e interesses antagônicos. Este tipo de debates pode ajudar muito às
partes e a terceiros conhecerem os pontos de vista em disputa, mas, em
função do antagonismo de posições, jamais produzirá um entendimento entre
os debatedores.
Por outro lado, aquele tipo de debate entre sujeitos que, em geral,
compartilham valores, princípios, perspectivas ideológicas e interesses
semelhantes, porém, divergem nas questões específicas sob as quais estão
debatendo. Nestes casos, o debate é sobre diferenças, não sobre
antagonismos, e o entendimento e o consenso pode ser um resultado factível e
desejável.
É neste segundo caso que este livro visa tratar o tema sobre “identidade”
e lutas identitárias, e classes sociais e lutas de classe.
Em tal sentido, o presente texto tem por finalidade fomentar e contribuir
com um debate crítico no interior do campo progressista, entre aqueles que
visam combater toda forma de desigualdade e injustiça sociais, opressão e
exploração, no caminho da efetiva e plena emancipação, tanto política como
humana.
Com tal propósito e inserido neste (amplo e diverso) campo, assumimos
aqui uma postura de “debate interno”, construtivo, e não de confronto e
polarização.
A análise aqui apresentada procura ser clara, explícita, direta e
profunda, sem rodeios, sem adjetivações, sem sentenças infundadas. Trata-se
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de um tema e um debate – os sujeitos e os caminhos na construção da


emancipação humana – que envolve e interessa a todos aqueles que visam a
edificação de uma sociedade de igualdade social entre os diversos, sem
opressão, discriminação e exploração de uns sobre outros, em função das suas
diferenças.
Porém, por se tratar de um tema especialmente polêmico, e muitas
vezes tratado de forma acalorada, baseado na desconfiança e na polarização,
optamos por, de início, apresentar as teses principais deste texto, e deixar para
seu desenvolvimento o aprofundamento e os argumentos das mesmas.
Distanciamo-nos, neste texto, de ambos os lugares comuns, tão
frequentes no debate sobre “identidade”: a) por um lado, o lugar comum de
rejeitar ou secundarizar a “identidade”, como uma categoria desimportante para
a reflexão da complexidade social e para a ampliação da ação política
emancipatória; b) por outro lado, o lugar comum da apologia pós-moderna ao
“identitarismo”, em evidente substituição da classe social.
Sustentamos aqui que não se trata de um antagonismo entre “classe” vs.
“identidade”, tendo que optar pelas lutas em torno de uma ou outra. Nem de
uma escolha entre combater a “exploração” ou as formas de “opressão”.
Esta visão polarizada e dualista, do tipo “ou, ou”, tem orientado,
negativamente, boa parte do debate sobre estas questões. Como se as lutas
progressistas tivessem que optar, como alternativas mutuamente excludentes,
ou combater a exploração de classes, relegando a um segundo plano, ou
postergando para o pós-revolução, as lutas antiopressivas; ou então, enfrentar
e combater as diversas formas de opressão, que marcam as chamadas
“identidades”, mas substituindo ou equalizando a contradição de classe como
mais uma “identidade” e abandonando o projeto revolucionário anticapitalista,
renunciando ao socialismo, e aceitando um suposto “capitalismo sem
opressões”.
Trata-se, nesta polarização dualista, de uma falsa disjuntiva. A esquerda
não tem que optar entre as lutas de classes contra a exploração ou as lutas
antiopressivas, não tem que optar entre as causas particulares, chamadas de
“identitárias”, ou as causas universais e o projeto revolucionário.
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A esquerda pode, e deve, trilhar os dois caminhos, os dois processos,


combater a exploração e as formas de opressão, tratar da questão de classe e
das questões “identitárias” (particulares).
O que está em questão aqui, não é uma subordinação da “identidade” à
classe, nem das lutas ou “pautas” identitárias, antiopressivas, em fase das lutas
de classes, em torno da exploração.
Não questionamos, neste texto, a extrema necessidade e urgência de
combater toda forma de opressão, mediante as lutas antiopressivas ou
identitárias. Ao contrário, partimos da defesa intransigente da necessidade e
urgência dessas lutas antiopressivas particulares (identitárias).
O que aqui se questiona, e esta sim constitui a tese central aqui
desenvolvida, é a “lógica identitarista”, fundada na racionalidade pós-moderna,
que passou a comandar boa parte das análises sobre estas lutas.
Deixemos claro de início, a “lógica identitarista” pós-moderna, e seu
projeto político “emancipatório” (abstrato e indefinido), não representa em si,
objetivamente, as “identidades” ou as questões específicas ligadas às diversas
formas de opressão, desigualdade ou discriminação. Representa sim uma
determinada concepção e compreensão sobre elas, e um particular projeto
político “emancipatório”: a compreensão e o projeto político pós-moderno, e
que impregna hoje outras correntes de pensamento, nos campos pós-
estruturalista, liberal, e incluindo setores da tradição marxista.
O que está aqui em questão, portanto, neste texto, não é a relevância
nem a urgência das lutas em torno de identidades, ou de relações particulares
de opressão, discriminação e desigualdade social, mas a “lógica identitarista”
fundada no seio do pensamento pós-moderno.
Nossa análise crítica não é, assim, sobre as lutas sociais particulares,
antiopressivas (em torno de “identidades”), mas o que aqui chamamos da
“lógica identitarista” pós-moderna. Ou seja, não questionamos aqui as
necessárias lutas identitárias (antiopressivas particulares), mas a perspectiva
teórica e política pós-moderna, que orienta e funda a polarizadora e
pessoalizada “lógica identitarista”, transmutando a “identidade” no
“identitarismo”.
O que está em questão neste texto, não é a causa identitária ou
particular, enquanto uma justa e necessária luta antiopressiva e contra a
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desigualdade, mas a lógica polarizadora e individualizante que, com base


fundamentalmente na razão pós-moderna, comanda o que chamaremos a
“lógica identitarista”, que tende a abandonar a necessária articulação entre as
diversas causas ou questões particulares em torno de um projeto anti-
capitalista mais amplo.
Assim, “identidades”, “causas identitárias” e “lutas identitárias” não
correspondem ao “identitarismo” ou à “lógica identitarista”; estas últimas são a
forma pós-moderna de construção da polarização identitarista e da ação
política polarizada entre “nós” e “eles”.
Não se trata, portanto, de “classe” versus “identidades”, como se fosse
uma escolha entre alternativas mutuamente excludentes: ou as lutas de
classes, ou as lutas identitárias. Trata-se sim de uma escolha entre duas
perspectivas de análise da sociedade e de organização das lutas sociais: a
perspectiva pós-moderna e a perspectiva marxista. Trata-se de vincular classe
e “identidade”, superando a “lógica identitarista”. Trata-se sim de uma escolha,
mas entre “identidade” ou “identitarismo”.
Finalmente, não se afirma aqui que o “identitarismo” seja “culpado” pelo
avanço ultraconservador, no Brasil e no mundo. Esse é um avanço que
resultou tanto das crises econômicas, pela aplicação dos modelos neoliberais,
como das estratégias midiáticas destes grupos, que se apropriam da
desconformidade e desesperança de setores amplos da população; trata-se
fundamentalmente de um avanço da extrema direita, e não dos erros (reais)
das esquerdas (especialmente no Brasil e na América Latina dos anos 2000).
Porém, o que aqui se afirma, é que a “lógica identitarista”, por um lado,
ingressa na (e reproduz a) mesma lógica polarizadora individualizada, onde
cada indivíduo de um lado da relação de opressão é posto como inimigo dos
sujeitos no outro lado, e por outro lado, e a partir disso, fragmenta e fragiliza a
capacidade de resistência dos setores progressistas, agora desunidos e
ocupados nos enfrentamentos internos por “identidades”, em função daquela
polarização.

* * *
Dividimos nosso texto em duas partes.
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Primeiramente, dedicamo-nos a tratar da “Identidade” como categoria


política, e da “lógica identitarista” pós-moderna.
Esta primeira parte compõe-se de cinco capítulos. No primeiro capítulo
apresentamos sucintamente as origens da identidade como categoria e objeto
teórico políticos, abordando as análises dos acionalistas (Alain Touraine e
Tilman Evers) sobre os Novos Movimentos Sociais, as reflexões em
pensadores pós-marxistas e pós-estruturalistas (como Castells, Bauman e Hall)
e o identitarismo liberal. No segundo capítulo consideramos a passagem da
“identidade”, como categoria teórico-política, ao “identitarismo”, como
apropriação pós-moderna na construção de uma “lógica identitarista” fundada
na polarização “nós/eles”. O capítulo terceiro é dedicado a completar o tripé da
“lógica identitarista”, articulando, àquela polarização, os conceitos de “lugar de
fala” e de “pós-verdade”. Já o capítulo cinco trata dos três instrumentos e
objetivos da luta “identitarista” pós-moderna, a saber: a) o “punitivismo”, b) o
“reconhecimento” e a “inclusão” e c) o chamado “empoderamento”. Finalmente,
no capítulo quinto, dedicamo-nos a avaliar a invasão hegemônica da “lógica
identitarista” pós-moderna na esquerda, o seu corolário avanço do
ultraconservadorismo no Brasil, e a necessidade da crítica à essa “lógica”,
apresentando os principais tipos de crítica: da ultra-direita, do liberalismo, do
“marxismo economicista” e “estruturalista”, para finalizar com uma proposta
para uma crítica fundada no “marxismo histórico-dialético” (ortodoxo).
A segunda parte do texto está orientada para a análise marxista e a
necessária articulação das lutas de classe e antiopressivas.
Nos dois capítulos que compões esta parte final apresentam-se as
reflexões críticas sustentadas no “marxismo histórico-dialético”. Por um lado,
no capítulo sexto, diferenciaremos a contradição existente entres as classes e
a desigualdade oriunda das relações de opressão ou identitárias. Trataremos
aqui das dialéticas identidade/diferença e igualdade/desigualdade, dos
fundamentos históricos das “identidades”, as quais devem ser compreendidas
como manifestações da “questão social”, e finalmente caracterizaremos a
centralidade da contradição de classe – o que ela significa, o que não significa.
O último capítulo, sétimo, está dedicado à tratar das lutas de classes e
antiopressivas, e sua necessária articulação. Partiremos apresentando alguns
pressupostos da análise marxista: as dialéticas reforma/revolução,
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emancipação política/humana, exploração/opressão e estrutura/superestrutua.


Em seguida nos voltamos para demonstrar que as lutas antiopressivas
(identitárias) não correspondem à visão pós-moderna contida na “lógica
identitarista”. Finalmente, arribamos na nossa tese central, onde discutimos
que o projeto emancipatório revolucionário dever incorporar e articular todas as
lutas de classe e antiopressivas particulares (ou identitárias)
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PRIMEIRA PARTE

A “IDENTIDADE” COMO CATEGORIA POLÍTICA, E A

“LÓGICA IDENTITARISTA” PÓS-MODERNA


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1. AS ORIGENS DA “IDENTIDADE” COMO


CATEGORIA E OBJETO TEÓRICO-POLÍTICOS

A noção da “identidade” faz parte da organização social há muito tempo,


atrelada à família, ao Estado, à religião e à nação. No entanto, como conceito
sociológico aparece associado aos conceitos de indivíduo e de individualidade
próprios da modernidade, e está presente de uma ou outra forma desde os
chamados pais da sociologia, Weber e Durkheim, como em tantos outros
autores. Por outro lado, como conceito psicológico, a “identidade” já aparece
em Freud, pai da psicanálise, assim como em Melanie Klein, Lacan entre
outros, no processo de autoconstrução da personalidade. Já na esfera da
cultura, a “identidade” aparece como conceito antropológico a partir dos
estudos de diversos grupos e comunidades étnicos, e suas características e
diferenciação com outras culturas, tal como aparece em Stuart Hall.
Porém, é como conceito político que a “identidade” assume maior
relevância, e passa a ocupar boa parte do debate político mais recente.
É a partir de a “identidade” assumir centralidade teórica e política, que
iniciaremos nossos estudos. Primeiramente numa apresentação dos
precedentes do debate e prática políticos, na análise acionalista dos chamados
Novos Movimentos Sociais (NMS), seguido das referências de autores pós-
marxistas e pós-estruturalistas, e chegando às “políticas identitárias”
promovidas pelo liberalismo, especialmente norte-americano.
A partir daí, ingressaremos no foco de nosso estudo, as reflexões pós-
modernas sobre o “identitarismo” e os fundamentos (a)políticos desta corrente,
que entendemos ocupa hoje espaço hegemônico no campo das esquerdas.
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1.1- A “identidade” como paradigma dos “Novos Movimentos


Sociais” na abordagem acionalista: os estudos de Alain
Touraine e Tilman Evers.
O conceito de “identidade” assume relevância sociológica e política
inicialmente a partir da análise dos chamados “Novos Movimentos Sociais”
(NMS) desenvolvida pelos autores “acionalistas”, a partir dos anos 70-80.
Esta perspectiva “acionalista” de análise encontra entre seus
fundamentos a teoria weberiana da “ação social”. Efetivamente, para Max
Weber (2012) a “ação social”, como objeto da sociologia, é caracterizada como
um tipo de ação que “orienta-se pelo comportamento dos outros” (idem, p. 13).
Desta forma, afirma o autor: “Nem todo tipo de ação [...] é ‘ação social’ [...] só é
ação social quando se orienta pelas ações de outros” (idem, p. 14). Assim, não
se trata de qualquer ação isolada ou individual, mas aquela que encontra seu
motivo, sua causa e que impacta em outros sujeitos, gerando reação.
Porém, a “ação social” é orientada tanto subjetivamente e
irracionalmente, como também é racional e intencionalmente dirigida para a
obtenção de respostas de outro/s indivíduo/s. Isto é, a “ação social” tem
fundamentos racionais e irracionais; ou seja, se funda, por um lado, na
intencionalidade racional mediante a qual um ator procura a reação em outro
ator, e, por outro lado, tem influências irracionais (subjetivas, como os “afetos”),
as quais são tratadas por Weber como desvios. Trata-se, portanto, de uma
ação “orientada racionalmente a um fim” (idem, p. 5).
Desta forma, o “método compreensivo” da sociologia, procura
compreender a “ação social” a partir dos seus fundamentos racionais. Assim, a
“ação social”, compreendida pela sua racionalidade, pela sua intencionalidade,
pela finalidade que conscientemente persegue, serve à sociologia
compreensiva, do ponto de vista metodológico, como um “tipo ideal” (ibidem).
Portanto, para o autor, o sujeito desta ação não é um indivíduo passivo,
mas ativo e reativo, num processo de interação – por tal motivo, os autores
“acionalistas” falam de “ator” e não de “sujeito”, assim como preferem falar de
“ações sociais” do que “lutas sociais”.
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Por seu turno, na esteira do positivismo e amparado em autores como


Vilfredo Pareto e Émile Durkheim, toma corpo o Funcionalismo, ou Teoria
Funcionalista, de Talcott Parsons, da qual também se nutre a análise
acionalista.
Assim, para entendermos a análise “acionalista” dos (novos)
movimentos sociais, por um lado, devemos nos remeter tanto à teoria da ação
desenvolvida a partir de Weber, como ao funcionalismo norte-americano. Mas
também, por outro lado, por relativa adesão (Touraine) ou por evidente
oposição (Evers), é fundamental compreendermos a teoria marxista sobre a
contradição e lutas entre as classes sociais, presente na análise marxista dos
movimentos sociais.
Está aqui a base teórica com que os autores “acionalistas”, como Alain
Touraine e Tilman Evers, nos anos 70 e 80, vão analisar os NMS.
Ainda, o marco histórico e político desta abordagem está, em face ao
início da crise capitalista, com o consequente esgotamento do modelo fordista
e keynesiano, e das posteriores crises do chamado socialismo real, na radical
mudança de paradigmas que o “Maio Francês de 68” opera nos processos de
consciência, organização e lutas sociais no mundo todo.
Efetivamente, o levante estudantil e operário em Paris, entre maio e
junho de 1968, marcou uma nova forma de luta social, distante tanto da
estratégia política defensiva da esquerda e do sindicalismo social-democrata,
como da ação política dos grupos alinhados à influência soviética. Assim, sem
desconhecer a motivação anticapitalista inicial deste movimento, o mesmo
passou a se centrar muito mais, conforme aponta Hobsbawm (1995, p. 325 e
ss.), numa “cultura individualista e hedonista”, orientada antes a uma
“revolução cultural” do que “econômica”, portanto, não mais sustada na
contradição de classe, nem voltada para um novo projeto societário que se
contrapunha ao capitalismo. Seu horizonte ideopolítico era a defesa da
autonomia da subjetividade, compatível com os valores individualistas e
consumistas do mercado capitalista (ibidem, p. 327).
O projeto da “revolução social” (estrutural) dá lugar ao conceito de
“revolução cultural” (individual), tal como expressa o slogan do Maio de 68:
“quando penso em revolução quero fazer amor” (in HOBSVAWM, idem, p.
326), ou como escreve John Lennon na música “Revolution” dos Beatles:
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You say you want a revolution […]


We all want to change the world […]
But when you talk about destruction
Don't you know that you can count me out […]
You tell me it's the institution […]
You'd better free your mind instead […]
But if you go carrying pictures of Chairman Mao
You ain't going to make it with anyone anyhow […]
(Lennon e MacCartney) 1

Com tal base teórica e caldo de cultura histórico e político, os autores


“acionalistas”, ao pensar os novos movimentos sociais que emergem nesse
contexto, passam a enfrentar e opor a categoria de “classe” (própria dos
movimentos operários) ao conceito de “identidade” (característico dos “Novos
Movimentos Sociais”, conforme esses autores).

A) A “identidade” no pensamento de Alain Touraine.


O francês Alain Touraine, uma das principais referências “acionalistas”,
vai caracterizar a natureza dos (novos) movimentos sociais, no contexto do que
ele denomina como “sociedade pós-industrial”, a partir da combinação de três
princípios fundamentais: da identidade, da oposição e da totalidade.
a) O princípio de identidade, conforme aponta, “é a definição do ator por
ele mesmo” (TOURAINE, 1977, p. 345), é como o ator se identifica, como se vê
a si próprio. Porém, afirma, “é o conflito que constitui e organiza o ator”
(ibidem), pois a identidade se determina a partir de uma carência ou
peculiaridade e um conflito em torno delas. E tal conflito, orientado a essa
carência ou peculiaridade, encontra, no lado oposto, seu adversário. Um sujeito
só pode tomar consciência da sua identidade em função de “relações sociais”,
a partir da clara percepção dos adversários (ibidem). Segundo nosso autor, “a
identidade do ator não pode ser definida independentemente do conflito real
com o adversário e do reconhecimento do objetivo da luta” (idem, p. 346). Eis
que surge, de forma articulada, o segundo princípio.
b) O princípio da oposição, onde o sujeito (ou grupo) se opõe e enfrenta
a seu adversário, que representam os interesses contrários, ou constituem os

1 “Você diz que quer uma revolução [...]. Todos nós queremos mudar o mundo [...].
Mas quando você fala de destruição. Você não sabe que não pode contar comigo? [...]. Você
me diz que é a instituição [...]. Em vez disso é melhor você libertar sua mente [...]. Mas se você
ficar carregando fotos do presidente Mao [...]. Você não vai convencer ninguém de jeito
nenhum [...].
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obstáculos para alcançar seus objetivos. Para Touraine, “um movimento só se


organiza se ele pode identificar seu adversário”, e o conflito (que emana a partir
de uma carência ou peculiaridade) “faz surgir o adversário [e] forma a
consciência dos atores” (idem, p. 346). Para o autor francês, o conflito pode ser
“limitado” e se propor “objetivos imediatos”, porém, afirma, “só se pode falar de
princípio de oposição se o ator se sente confrontado com uma força social
geral num combate que coloca em causa orientações gerais da vida social”
(ibidem). Isto é, a identidade (a partir da carência ou peculiaridade do ator)
pode ser específica, o conflito pode ser limitado, seus objetivos podem ser
imediatos, porém, para constituir um movimento social (para a organização e
lutas em torno dessa identidade) é preciso superar a consciência imediata,
orientando sua ação no enfrentamento a “uma força social geral” e sustentada
em “orientações gerais da vida social”. Se isto não ocorrer, o processo (seja
por conquistar seu objetivo imediato, seja por fracassar) tenderá a se
desarticular como movimento. Porém, esta dimensão geral da “vida social”,
conforme Touraine, não se restringe a interesses econômicos, mas antes à
esfera cultural. Se trata de “modelos culturais” que são enfrentados pelos
movimentos sociais, nas ações e conflitos em torno de suas identidades: a
cultura machista, a cultura racista, a cultura patriarcal, as culturas xenofóbica,
homofóbica etc. Assim, o princípio de oposição, o adversário, não
necessariamente representa o lado contrário da identidade, o “diferente”, mas a
cultura que expressa interesses diferentes ou que obstaculiza a conquista dos
objetivos. Ou seja, o princípio de oposição não trata de um indivíduo diferente,
mas de uma cultura contrária.
Coforme o autor: “se é verdade que sempre existem tais interesses
[econômicos] em jogo, um movimento social só existe quando o conflito se
coloca no nível do modelo cultural, que é central na sociedade considerada”
(idem, p. 346). E isto leva ao terceiro princípio.
c) O princípio da totalidade, que expressa que um movimento social não
se limita ao conflito específico, mas a um “sistema de ação histórica” (idem, p.
347). Isto é, mesmo se tratando de um movimento localizado, uma “identidade”
e conflito específicos e objetivos imediatos, “o movimento social não deixa de
recorrer a um princípio de totalidade” (ibidem).
18

Completa Touraine esta reflexão, afirmando que os três princípios não


podem ser isolados ou separados, mas existem de forma necessariamente
combinada. É errado, portanto, para este autor, pensar, por exemplo, a
identidade e a oposição, sem recorrência à totalidade. Para ele, “O [oposição]
só pode ser compreendida como mediadora da ligação entre I [identidade] e T
[totalidade]” (idem, p. 348). Para ele, os atores de um movimento social não
podem ser caracterizados apenas por uma identidade (idem, p. 349).

B) A “identidade” na reflexão de Tilman Evers.


Outro autor desta corrente é o alemão Tilman Evers, quem trata do tema
no seu célebre artigo: “Identidade. A face oculta dos novos movimentos sociais”
(EVERS, 1984).
Para o autor, a principal novidade desses novos movimentos sociais
aparece na dicotomia “alienação-identidade” (idem, p. 12), sendo, assim, a
identidade o aspecto aglutinador dos NMS. Este aspecto, ainda, constituiria o
verdadeiramente novo destas organizações nos anos 70-80, diferenciando-se
tanto dos movimentos conservadores, como populistas e marxistas. Conforme
Evers:
A principal investida nesta busca de identidade autônoma parece fazer-se
contra a atitude e prática generalizadas de tutelagem [...] em relação aos
movimentos sociais. Isto aplica-se ao paternalismo conservador e à
manipulação populista, tanto quanto à interpretação mecanicista da história
que os marxistas latino-americanos herdaram da Terceira Internacional [...]
legitimando, assim, a vanguarda iluminada (EVERS, 1984, p. 12).

O autor apresenta quatro teses para compreender estes NMS, dentre as


quais destacamos:
Primeira Tese: “O potencial transformador dos novos movimentos
sociais não é político mas sócio-cultural” (idem, p. 14). Para o autor, estes
movimentos não se orientam em questões econômicas e/ou políticas, mas em
espaços sócio-culturais, o que não os converte em organizações imaturas de
fazer política, e desta forma, afirma, “a capacidade inovadora desses
movimentos parece basear-se menos em seu potencial político e mais em seu
potencial para criar e experimentar formas diferentes de relações sociais
quotidianas” (idem, p. 15). No entanto, para Evers, esta ação orientada na
esfera sócio-cultural da vida quotidiana, teria a longo prazo um maior potencial
19

político do que “a ação imediatamente orientada na direção das estruturas de


poder existentes” (ibidem).
Terceira Tese: “Os aspectos centrais da construção contra-cultural dos
novos movimentos sociais podem ser entendidos a partir da dicotomia
‘Alienação-Identidade’” (idem, p. 17). Para ele, “a rebelião contra a sociedade
existente embutida nos novos movimentos sociais” tem como perspectiva final
o combate contra a alienação, visando uma “sociedade libertária, igualitária e
comunitária” (idem, p. 18). Porém, afirma:
durante o longo processo de ruptura com a alienação, o que pode ser de
relevância prática para os movimentos sociais atuais são os primeiros e
tímidos passos no sentido de tornarem-se sujeitos de sua própria história.
Talvez a noção de identidade seja mais adequada para esboçar os
conteúdos básicos destes primeiros passos (idem, p. 18).

Percebe-se que, para o autor, “ser sujeito de sua própria história” não
exige a “ruptura com a alienação”, tratando-se, assim, de processos de curto
prazo, nas esferas quotidianas e locais e no âmbito sócio-cultural. Desta forma,
Evers define a identidade como o “faça-você-mesmo”, onde o movimento social
realiza um “trabalho de formiga” (idem, p. 19).
Justamente, para o autor, quanto mais um movimento social atua em
torno do poder político, menos identidade, mais alienação e menor potencial
sócio-cultural ele terá (idem, p. 22).
Em síntese, trata-se de uma análise que tende a diferenciar os
movimentos sociais tradicionais, notadamente o movimento operário ou
sindical, centrado na contradição de classes e focado na luta política, dos
chamados “novos movimentos sociais”, centrados nas identidades dos atores,
e tendo como esfera de ação a dimensão sócio-cultural (ver MONTAÑO e
DURIGUETTO, 2010, p. 117-120 e 337 e ss.), reduzindo para estes últimos,
senão suprimindo, a centralidade da classe. Não obstante isso, nesta
abordagem há ainda um caráter universal – o “princípio de totalidade” (para
Touraine) e a finalidade no combate à alienação (para Evers) –, o qual dá um
certo horizonte de maior alcance, e onde se insere e adquire sentido a
identidade específica.
Desta forma, na análise acionalista dos chamados NMS, a identidade
passa a substituir a classe, porém, ainda voltados num projeto transformador,
orientado pelo princípio de totalidade (Touraine) ou de superação da alienação
20

(Evers). É neste sentido, e contrastando a “identidade” dos acionalistas da


“identidade” dos pós-modernos, que Ellen Wood afirma: “o conceito [pós-
moderno] de ‘identidade’ substitui o de ‘grupos de interesse’” (dos acionalistas),
sendo que este último, presente no debate dos Novos Movimentos Sociais,
difere da identidade na medida em que, mesmo negando a centralidade da
classe, ainda reconhece “uma totalidade política inclusiva – o ‘sistema político’,
a nação ou o corpo de cidadãos –, ao passo que o novo [conceito pós-moderno
de “identidade”] insiste na irredutibilidade da fragmentação e da diferença”
(2006, p. 223).

1.2- A “identidade” em autores pós-marxistas e pós-


estruturalistas: as reflexões de Manuel Castells, Zygmunt
Bauman e Stuart Hall.
O conceito de “identidade” é também assimilado por autores pós-
marxistas e pós-estruturalistas, tais como Anthony Giddens (2002), Jürgen
Habermas (1983), em sua tentativa de “reconstrução do materialismo histórico”,
Zygmunt Bauman (1999, 2003 e 2005), no contexto da “modernidade líquida”,
assim como também aparece em “O poder da identidade” de Manuel Castells
(1999), e na “identidade cultural” conforme Stuart Hall. Vejamos brevemente as
reflexões destes últimos.

A) O poder da “identidade” nas análises de Manuel Castells.


Conforme afirma o ex-marxista estruturalista espanhol Manuel Castells,
“no que diz respeito a atores sociais, entendo por identidade o processo de
construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um
conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m)
sobre outras fontes de significado” (1999, p. 22).
Após distinguir os conceitos de “identidades” (que “constituem fontes de
significados para os próprios atores” e são “construídas por meio de um
processo de individuação”) e de “papéis” (“definidos por normas estruturadas
pelas instituições e organizações da sociedade”) (idem, p. 23), afirma o autor
que é a “identidade” que detêm maior força de significado, por causa de ser o
21

resultado de um “processo de autoconstrução e individuação” dos sujeitos, e


não da construção das instituições dominantes (ibidem).
Segundo aponta o autor, “a construção social da identidade sempre
ocorre em um contexto marcado por relações de poder” (idem, p. 24),
representando, portanto, uma relação de opressão. A partir disto, Castells
propõe, então, três formas e origens de construção de identidades (ibidem):
a) a identidade legitimadora: “introduzida pelas instituições dominantes
da sociedade”. Ela dá origem a “um conjunto de organizações e instituições” e
de atores que “reproduzem a identidade que racionaliza as fontes de
dominação estrutural” (idem, p. 24).
b) a identidade de resistência: “criada por atores que se encontram em
posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da
dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência”
(idem, p. 24). Ela levaria à formação de “comunidades”, a partir das quais se
articulam as formas de resistência coletiva diante de uma opressão, numa
lógica de “identidades excluídas/excludentes” (idem, p. 25).
c) a identidade de projeto: quando os atores sociais “constroem uma
nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de
buscar a transformação de toda a estrutura social” (idem. P. 24). Ela produz
“sujeitos”, não como indivíduos, mas como “atores sociais coletivos”. Neste
caso, afirma, “a construção de identidade consiste em um projeto de uma vida
diferente, talvez com base em uma identidade oprimida, porém expandindo-se
no sentido da transformação da sociedade como prolongamento desse projeto
de identidade” (idem, p. 26).
Esta última forma/origem da identidade seria, para o autor, aquela capaz
de sair do espaço da resistência particular, e alcançar uma dimensão universal.
Mas a “identidade de projeto” pode se constituir a partir de uma “identidade de
resistência”, ao superar sua orientação particularista, e ainda, pode vir a se
tornar uma “identidade legitimadora” ao se tornar dominante nas instituições
sociais.
Castells, seguindo Zaretsky, afirma que a política de identidade “deve
ser situada historicamente” (idem, p. 26). Assim, ao abandonar o marxismo
estruturalista (e com ele, a tradição marxista), Castells entende que as
identidades devem ser compreendidas naquilo que ele, conforme abordou
22

anteriormente, denominou de “sociedade em rede”, caracterizada a partir da


chamada “era da informação”. Para ele, “o surgimento da sociedade em rede
traz à tona os processos de construção de identidade [...] introduzindo novas
formas de transformação social” (idem, p. 27).
Isto é, e aqui radicaria, segundo o autor, “o poder da identidade” na
“sociedade em rede”: a “identidade” não só articula as pessoas a partir de um
atributo ou um “significado” em comum, mas, e segundo o autor, em
concordância com os tantos pós-marxistas, como Habermas e Giddens, ao
perder a classe essa condição aglutinadora e de identificação e adesão social,
perdendo assim sua capacidade transformadora, será a “identidade” que vai
orientar o/s processo/s de transformação social.
É desta forma que Castells apresenta sua hipótese:
a constituição de sujeitos, no cerne do processo de transformação social,
toma um rumo diverso do conhecido durante a modernidade dos primeiros
tempos e em seu período mais tardio, ou seja, sujeitos [...] não mais
formados com base em sociedades civis [no sentido marxiano, como base
econômica, conformada a partir das relações de produção] que estão em
processo de desintegração, mas sim como um processo de prolongamento
da resistência comunal. Enquanto na modernidade a identidade de projeto
fora constituída a partir da sociedade civil (como, por exemplo, no
socialismo, com base no movimento trabalhista), na sociedade em rede, a
identidade de projeto [...] origina-se a partir da resistência comunal (idem,
p. 28).

Cabe aqui uma nota, quando Castells diferencia a “modernidade” da


“sociedade em rede”. Aparece aqui claramente que esta última não constituiria
uma fase da modernidade, mas um tipo de sociedade diferente da
modernidade... após a modernidade. Seria então a aceitação (tácita) dele de
uma pós-modernidade?
Ainda, com todas as letras, Castells afirma o esgotamento do sujeito da
transformação social próprio da modernidade, a classe social, na medida em
que estaria em processo de “desintegração”, deixando lugar, na sociedade
atual (de rede), às “identidades de resistência”, as que constituiriam
“comunidades” ou coletividades identitárias, as quais assumiriam a condição de
novos sujeitos da transformação social.
23

B) A “identidade” líquida, da “modernidade líquida”, nas reflexões de


Zygmunt Bauman.
Tese central e referenciada de Zygmunt Bauman é a de que a
modernidade (clássica e tardia) passou, na virada dos anos 60-70, de uma
“rigidez” institucional-organizacional, centrada no trabalho e nas relações de
produção, para o que ele chama de uma “modernidade líquida” (2003 e 1998),
de maior flexibilidade, transitoriedade e heterogeneidade relacional e
institucional, onde o trabalho e as relações de produção teriam perdido sua
centralidade e força organizativa.
Assim, tudo, nesta nova ordem social líquida, adquiriria maior liquidez:
as instituições, as relações sociais, os projetos de vida e... as identidades.
Bauman aponta que, nas sociedades pré-modernas, a “identidade” é
algo rígido e predeterminado pelas raízes nacionais, regionais e familiares. A
modernidade deu fim a essa pré-determinação, transformando essa
“identidade” numa construção pessoal, num projeto, numa realização de cada
indivíduo. Nas suas palavras:
O projeto moderno prometia libertar o indivíduo da identidade herdada.
Não tomou, porém, uma firme oposição contra a identidade como tal,
contra se ter uma identidade, mesmo uma sólida, exuberante e imutável
identidade. Só transformou a identidade, que era questão de atribuição, em
realização – fazendo dela, assim, uma tarefa individual e de
responsabilidade do indivíduo (1998, p. 30).

Porém, a modernidade, clássica e tardia, que o autor trata como “sólida”,


se conseguiu romper com a “identidade” herdada, atribuída, predeterminada,
não conseguiu romper com sua rigidez. Na “modernidade sólida”, a
“identidade”, uma vez construída pelos indivíduos, assumia um caráter fixo,
permanente e imutável.
Só no contexto atual, com o advento do que chama de uma
“modernidade líquida”, é que a rigidez da “identidade” tornar-se-á liquefeita.
Conforme aponta:
O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos
disponíveis projetados para imediata obsolescência. Num mundo como
esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca
de roupa (1998, p. 112).

O grande desafio, segundo Bauman, da “vida pós-moderna”, será


manter a flexibilidade e mutabilidade das “identidades”. Assim, “a dificuldade já
24

não é descobrir, inventar, construir, convocar (ou mesmo comprar) uma


identidade, mas como impedi-la de ser demasiadamente firme”, rígida, e nesse
sentido, continua, “o eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer a
identidade deter-se – mas evitar que se fixe” (idem, p. 114).
A dita “modernidade líquida” de Bauman, naquilo que ele chama da “vida
pós-moderna”, pareceria se inspirar na “metamorfose ambulante” de Raúl
Seixas. A liquidez da “identidade” não seria apenas uma manifestação da
liquidez da sociedade, mas uma condição desejável.
Desta forma, Bauman afirma que “Identidade significa aparecer: ser
diferente e, por essa diferença, singular – e assim a procura da identidade não
pode deixar de dividir e separar” (2003, p. 21). Essa “identidade” vai se
desenvolver em “comunidades voláteis”, passageiras, organizadas em torno de
interesses específicos.
Assim, conforme o autor, na sociedade líquida a “identidade” seria
líquida e em constante processo de mudanças.

C) A “identidade” cultural do sujeito pós-moderno em Stuart Hall.


Stuart Hall, um sociólogo de origem jamaicana, e radicado na Inglaterra,
é um dos fundadores da escola de Estudos Culturais britânicos. Com uma
origem influenciada pela teoria marxista, particularmente nos estudos
gramscianos sobre a cultura, foi fundador e editor, conjuntamente com Edward
P. Thompson e Raymond Williams, da New left Review, em 1960.
Conforme Celso Frederico (2020, p. 3), nos anos 60 Hall “pensava a
cultura em suas relações com a economia, o poder e as classes sociais”.
Porém,
A virada para as teses pós-modernistas ocorreu durante o thatcherismo.
Estudando esse fenômeno, Hall constatou como ele pôs fim ao referencial
teórico das esquerdas. Thatcher atacou de frente o movimento sindical e
nem por isso a classe operária reagiu. A partir daí, Hall abandonou o
referencial classista, decretando o fim das “solidariedades tradicionais”,
preferindo falar sobre outras formas de identificação baseadas no gênero e
etnia para, finalmente, remeter o tema da identidade para o indivíduo, o
sujeito nômade, flutuante, híbrido, portador de influências díspares.
Esse percurso tortuoso acabou por aproximá-lo de Antonio Negri na busca
de forças sociais capazes de resistir à globalização: “Não o proletariado,
nem o sujeito descolonizado, mas sobretudo o que Antonio Negri chama
de “multidões”, forças difusas [...]
Nesse percurso das classes sociais ao indivíduo, o pensamento de
Gramsci, em Hall, sofreu drásticas transformações [...] (ibidem).
25

Segundo Frederico, para Hall, na medida em que o mundo (em crise e


sob hegemonia neoliberal) “tornou-se um lugar ‘indeterminado’”, então “não
pode ser enfrentado com conceitos ou categorias rígidas”, motivo pelo qual foi
“atraído pelas concepções pós-estruturalistas sobre o processo de significação”
(ibidem). Assim, ainda conforme Frederico, ele abandona posturas
“essencialistas” e, “levando a diante o projeto pós-estruturalista, Hall pretende
desconstruir todos os referentes fixos”, saindo assim “da genética para
ingressarmos na cultura e na vertigem das proliferantes diferenças: da classe
ao povo, deste para os grupos sociais e [finalmente] para os indivíduos” (idem,
p. 5).
Em seu texto “A identidade cultural na pós-modernidade”, Stuart Hall
(2006), em função dos contextos sócio-históricos, apresenta três concepções
de sujeito e de “identidade”:
a) o “sujeito (e a identidade) do Iluminismo”,
baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo
totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de
consciência e de ação [...] permanecendo essencialmente o mesmo –
contínuo ou “idêntico” a ele – ao longo da existência do indivíduo [... sendo]
uma concepção muito “individualista” do sujeito e da identidade “dele”
(idem, p. 10-11).

b) o sujeito (e a identidade) do mais complexo “mundo moderno”, quem


apresenta:
a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e
auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas
importantes para ele”, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e
símbolos – a cultura – [... sendo] esta concepção “interativa” da identidade
e do eu. De acordo com essa visão [...] a identidade é formada na
“interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou
essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num
diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades
que esses mundos oferecem.
[...] A identidade, então, costura [...] o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto
os sujeitos quanto os mundos culturais [...] (idem, p. 11-12).

Porém, conforme o autor,


são exatamente essas coisas que agora estão “mudando”. O sujeito,
previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se
tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias
identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. [...] O próprio
processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas
identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático
(idem, p. 12).
26

Assim, ao falar da “modernidade tardia” como “aquilo que descrito,


algumas vezes, como nosso mundo pós-moderno”, o autor afirma que os
sujeitos passam a ser também “pós” em relação “a qualquer concepção
essencialista ou fixa de identidade” (HALL, 2006, p. 10).
Desta forma, como afirma Hall, “as velhas identidades, que por tanto
tempo estabilizaram o mundo social [na modernidade], estão [na sociedade
“pós-moderna”, ou “modernidade tardia”] em declínio, fazendo surgir novas
identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um
sujeito unificado”, o que estaria levando a uma “crise de identidade” nos
sujeitos (idem, p. 7). Conforme o autor, na atualidade, a:
mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final
do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe,
gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos
tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas
transformações estão também mudando nossas identidades pessoais,
abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados
(idem, p. 9).

Hall chama este processo de “deslocamento” ou “descentração” “dos


indivíduos”, num duplo sentido: por um lado em relação ao “seu lugar no
mundo social e cultural”, e por outro, em relação a “si mesmos”, constituindo
uma “‘crise de identidade’ para o indivíduo” (ibidem). Surge o novo sujeito.
c) o sujeito (e a identidade) pós-moderno/a,
conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou
permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e
transformada continuamente [...]. É definida historicamente, e não
biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ''eu"
coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo
continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade
unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos
uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do
eu” [...]. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é
uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação
e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis (idem,
p. 12-13).

Seguindo o pós-marxista argentino Ernest Laclau, Hall sustenta que “as


sociedades modernas [tardias?] [...] não têm nenhum centro, nenhum princípio
articulador ou organizador único e não se desenvolvem de acordo com o
27

desdobramento de uma única ‘causa’ ou ‘lei’” (idem, p. 16). Para Laclau, como
recupera Hall, “as sociedades da modernidade tardia [ou da pós-modernidade]
[...] são caracterizadas pela ‘diferença’” (ibidem).
Conforme Hall, ainda apoiado em Laclau, o sujeito pós-moderno
representa “uma concepção de identidade muito diferente e muito mais
perturbadora e provisória do que as duas anteriores [do Iluminismo e da
Modernidade]”, porém, se esse “deslocamento” do sujeito, por um lado,
“desarticula as identidades estáveis do passado”, por outro, “também abre a
possibilidade de novas articulações: a criação de novas identidades, a
produção de novos sujeitos” (idem, p. 17-18).
Com isto, segundo Hall, a classe social perderia sua centralidade e seu
papel de organização das lutas políticas. Conforme afirma, agora seguindo
Mercer, na sociedade contemporânea, considerada como “modernidade tardia”
ou como “pós-modernidade”, “as pessoas não identificam mais seus interesses
sociais exclusivamente em termos de classe; a classe não pode servir [mais]
como um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora através da qual
todos os variados interesses e todas as variadas identidades das pessoas
possam ser reconciliadas e representadas”, o que mostraria uma “erosão da
‘identidade mestra’ da classe e da emergência de novas identidades,
pertencentes à nova base política definida pelos novos movimentos sociais”
identitários (idem, p. 20-21).
Neste sentido, a identidade perde o caráter rígido, fixo, e até natural,
próprios das sociedades anteriores, tornando-se flexível, construídas de forma
transitória pelos indivíduos, e múltiplas e contrárias “identidades”, agora
fundadas nas “diferenças”. Como ele afirma:
Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é
interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode
ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às
vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma política de
identidade (de classe) para uma política de diferença (idem, p. 21).

Conforme Hall, as “identidades culturais” são híbridas, móveis,


dinâmicas, e pode ser direcionada e redirecionada, em constante mudança.
Por tal motivo prefere o conceito de “identificação”, ou “processo identitário”, já
que a “identidade” sugere algo fixo ou imóvel.
28

● Como podemos constatar, a “identidade”, a partir das abordagens pós-


marxistas e pós-estruturalistas, passa de uma categoria que define o indivíduo
em relação a outros, para um conceito que torna o indivíduo um ser indefinido.
Da “identidade” fixa e rígida passa-se à “identidade” líquida, flexível, cambiante.

1.3- A Política liberal de “identidade”.


Como veremos, a tradição liberal, particularmente keynesiana e neo-
keynesiana, tem desenvolvido uma apropriação particular do conceito de
“identidade”, diluída na noção de cidadania, porém, é mais recentemente, a
partir dos anos 2000, que nos EUA vem se desenvolver o que alguns autores
chamam de uma “política identitária”, a partir das demandas sociais de grupos
identitários, mas promovida institucionalmente, portanto, a partir do próprio
liberalismo, caracterizando o que Lilla (2018) chama de “liberalismo identitário”.

A) Liberalismo e cidadania.
A forma com que a “identidade” é tratada política e juridicamente pelo
liberalismo, ou seja, na história da ordem burguesa, foi a da sua diluição no
conceito formal e indiferenciado de “cidadania”, relegando para o (livre jogo do)
mercado a resolução das divergências e diferenças.
O conceito de “cidadania” contém uma noção indiferenciada e abstrata
dos sujeitos, tratados como “iguais” a partir do acesso a direitos comuns,
direitos nacionais e/ou direitos humanos. Thomas Humphrey Marshall,
sociólogo liberal que desenvolveu as bases do conceito de “cidadania”, se
referindo ao seu homônimo Alfred Marshall, afirma que: “a desigualdade do
sistema de classes sociais pode ser aceitável desde que a igualdade de
cidadania seja reconhecida” (1967, p. 62). Em outras palavras, as
desigualdades próprias das diferentes condições e capacidades individuais,
configurando diversas classes sociais, poderiam ser equalizadas a partir da
intervenção do Estado num processo de igualação (formal) de acesso aos
direitos dos cidadãos. Assim, afirma: “a igualdade humana básica da
participação” associa-se a “um conjunto formidável de direitos”, “identificada
com o status de cidadania” (ibidem).
29

Marshall (o T. H.) divide o conceito de “cidadania” em três partes, ou em


três conjuntos de direitos: civis (direitos vinculados às liberdades individuais),
políticos (direitos sobre a participação no exercício do poder político) e sociais
(direitos ligados ao bem-estar econômico, educação e seguridade social)
(idem, p. 63). Numa análise linear, criticada por Barbalet (1989), Marshall vai
situar o desenvolvimento dos direitos civis, nos países centrais, no século XVIII
(MARSHALL, 1967, p. 66), dos direitos políticos no século XIX (idem, p. 69) e
dos direitos sociais no século XX (idem, p. 70).
Neste sentido, a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”,
promulgada pela Organização das Nações Unidas em 1948, reza no seu Artigo
primeiro que: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos”2. A partir daí, no Brasil, como em várias Cartas Magnas de diversos
países, o Art. 5° da Constituição Federal de 1988 assegura que: “Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.3
Desta forma, por um lado, para o liberalismo (especialmente keynesiano
e neo-keynesiano), a “identidade” é relegada ao espaço da intimidade, do
privado, na medida em que do ponto de vista político, do direito, para o Estado,
mesmo que formalmente, as diferenças individuais seriam desconsideradas em
virtude da igualação (ou indifernciação) operada pelo conceito de cidadania.
Todos os cidadãos são iguais perante as leis e o Estado.
Porém, por outro lado, o liberalismo (especialmente o liberalismo
clássico e o neoliberalismo), desde a noção de um mercado livre e auto-
regulado, presente no conceito de “mão invisível do mercado” de Adam Smith,
ou a teoria da natural diferença de riquezas dos indivíduos, a partir da “teoria
do valor-trabalho”, de Smith e de David Ricardo, em meados de 1700, também
presente em John Locke, meio século antes, vai solidificar a noção de uma
natureza das diferenças e das desigualdades, produto (segundo essa análise)
das capacidades e esforços individuais, e portanto, aceitáveis a partir da
natureza e das liberdades individuais. Esta noção adquire maior radicalidade

2 Ver em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>;


acesso em jun. de 2020.
3 Ver em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>; acesso
em jun. de 2020.
30

no pensamento neoliberal, quando Hayek, em 1944, entende que o espaço


natural de concorrência individual é o mercado, onde cada sujeito se enfrenta a
partir da sua capacidades e competências pessoal (ver em MONTAÑO, 2002,
p. 76 e ss.).
Assim, na tradição liberal, para o Estado, e na esfera formal do direito,
todos os cidadãos são iguais. As diferenças, e portanto as “identidades”, são
remetidas ao espaço privado ou da concorrência do mercado.

B) “Liberalismo identitário” e “políticas identitárias” nos EUA.


Nas últimas décadas, porém, especialmente nos EUA, viu-se o
desenvolvimento do que o cientista político e jornalista liberal Mark Lilla (2018)
chama de “liberalismo identitário”. Este, mais do que uma análise teórica e um
discurso identitarista, expressa o desenvolvimento concreto de “políticas
identitárias”.
Conforme Lilla, o liberalismo democrático – leia-se, o Partido Democrata,
entendido por ele como liberal e “progressista”, claro, em comparação com o
Partido Republicano – passou de um discurso e proposta universalista,
orientado à nação e à cidadania, para um discurso e uma prática “identitarista”,
orientada a nichos, grupos ou coletivos particulares.
Para ele, se “o termo identidade [...] só entrou no discurso político
americano no fim dos anos 1960” (LILLA, 2018, p. 52), no entanto, “a grande
abdicação liberal [da plataforma universalista] começou na era Reagan” (nos
anos 80) (idem, p. 13). Conforme o autor, enquanto a “direita” – leia-se, o
Partido Republicano – se unifica em torno do discurso e do projeto neoliberal,
os “liberais” – leia-se, o Partido Democrata – “envolveram-se na política
identitária, perdendo o sentido do que compartilhamos como cidadãos e do que
nos une como nação” (idem, p. 14).
Assim, afirma, “durante os anos 1970 e 1980 houve uma mudança. A
atenção [dos liberais] passou a se concentrar menos na relação entre nossa
identificação com os Estados Unidos como cidadãos democratas e mais na
nossa identificação com diferentes grupos sociais dentro do país. A cidadania
desapareceu” (idem, p. 55), passando do “nós” para o “eu” (idem, p. 56). A
partir daí, segundo o autor, “eles [os liberais, do Partido Democrata] se
31

perderam no matagal da política identitária e desenvolveram uma retórica da


diferença [...] desagregadora” (idem, p. 50).
Para Haider, a “política identitária” não tem origem no liberalismo, nem
no Partido Democrata, mas na organização feminista que apontara os limites (a
perpetuação do machismo) nas experiências socialistas. Assim, é em 1977 que
surge a expressão “política identitária” a partir do Coletivo Combahee River
(CCR), ao argumentarem que o projeto socialista revolucionário estava minado
de racismo e sexismo (HAIDER, 2019, p. 31). No manifesto desse coletivo
feminista afirma-se: “somos socialistas [...]. Porém não estamos convencidas
de que uma revolução socialista que não seja também uma revolução feminista
e antirracista garantirá nossa libertação” (apud, HAIDER, 2019, p. 31-32).
Porém, sustenta Haider, esse caminho tomou outros rumos, ao ser
apropriado pelo discurso e política liberal. Desta forma, citando Salar
Mohandesi, Haider afirma:
“o que começou como uma promessa de superar algumas limitações do
socialismo, de modo a construir uma política socialista mais rica, mais
diversa e inclusiva”, terminou “sendo aproveitado por aqueles com uma
política diametralmente oposta àquelas do CCR”. O exemplo mais recente
e mais marcante foi a campanha presidencial de Hillary Clinton, a qual
adotou a linguagem de “interseccionalidade” e do “privilégio” e usou a
política identitária para combater o surgimento de uma opção de esquerda
no Partido Democrata, em torno de Bernie Sanders (HAIDER, 2019, p. 34).

Segundo Lilla, o desafio para os liberais democratas está na retomada


de um discurso e uma política universalista, em torno da reincorporação neles
do conceito de cidadania; assim, afirma: “precisamos reaprender a falar aos
cidadãos como cidadãos” (LILLA, 2018, p. 18).
Conforme aponta Lilla, se por um lado “a direita americana usa o termo
cidadania hoje como ferramenta de exclusão”, por outro lado, e contrariamente,
“os liberais o veem tradicionalmente como generosa ferramenta de inclusão”
(LILLA, 2018, p. 98).
O autor defende o poder articulador e unificador deste conceito, tanto no
discurso como na plataforma política eleitoral. Assim, segundo ele, “o conceito
de cidadania tem uma vantagem adicional. Oferece uma linguagem política
para falar sobre uma solidariedade que transcende os vínculos identitários”
(idem, p. 98), já que, segundo o mesmo autor, “os progressistas [liberais
democratas] compreendem a necessidade da solidariedade de um jeito que os
32

liberais identitários não compreendem” (idem, p. 99), já que estes últimos


orientariam a solidariedade apenas no interior da própria “identidade”, com os
pares, com o “nós”, enquanto os primeiros a orientariam externamente, com os
“diferentes”, com o “outro”.
Assim, conclui o autor afirmando que “cidadania não é identidade [...]
mas torna possível incentivar as pessoas a se identificarem umas com as
outras” (idem, p. 101).
Surge assim, a partir desta corrente identitarista liberal, institucionalizada
nos EUA em políticas sociais específicas – políticas compensatórias, inclusivas
e/ou afirmativas – a conversão e institucionalização das causas e lutas
identitárias em “Políticas identitárias” ou “identitaristas”.
Aqui, o que de um lado, do lado dos grupos ou coletivos “identitários”,
oprimidos, das chamadas “minorias”, é visto como conquistas de políticas e de
direitos que respondem às suas demandas específicas, do outro lado, do lado
do establishment, da elite dominante econômica, política e ideologicamente, é
visto como uma forma de institucionalização dos conflitos sociais, de
deseconomização das demandas, e de segmentação da classe trabalhadora e
desarticulação das lutas de classes.
Efetivamente, desse ponto de vista, da classe dominante, a conversão
das justas e necessárias causas e lutas antiopressivas (dos grupos
“identitários”) em “políticas identitárias” representou, por um lado, o radical
deslocamento das lutas, que saem da esfera econômica da produção e
passam para a esfera do mercado (por acesso a bens e serviços), do Estado
(por conquistas de direitos ou de políticas sociais específicos) e/ou da
sociedade civil (muitas vezes transmutada num abstrato “terceiro setor”, ver
MONTAÑO, 2002) (como um espaço de “liberdade” de expressões
multiculturais). Por seu turno, significou uma clara institucionalização dessas
lutas, agora já não mais contra os pilares do sistema capitalista
(particularmente a exploração da força de trabalho), mas por inclusão no
sistema (por via dos direitos e das políticas sociais específicas), derivando na
própria legitimação da ordem social. Ideologicamente, por outro lado, a crítica
radical ao sistema capitalista, e à refuncionalização e recriação que este faz do
racismo, do patriarcalismo, e outras formas de desigualdade, discriminação e
opressão (recriados e refuncionalizados agora sob a lógica do capital), tende a
33

ser abandonada e substituída por críticas específicas e desarticuladas da


totalidade social (portanto, abstratas), como se o racismo, o machismo etc. não
tivessem hoje uma raiz burguesa, uma conexão com os fundamentos
econômicos do modo de produção capitalista. Finalmente, esta guinada de
causa/lutas antiopressivas (“identitárias”) em/por “políticas identitárias”,
representou também uma desarticulação interna da classe trabalhadora como
um todo, dividida e fragmentada agora em múltiplas “identidades”, e enfrentada
e confrontada internamente.
É a dialética contraditória da realidade, da qual Marx, após Hegel, nos
fala. Em relação às “políticas identitárias”, em geral, há conquistas, sem
dúvidas, para os grupos e coletivos identitários, mas ao preço de abandonar a
perspectiva anticapitalista e de revolução social, e até de transformação das
estruturas de opressão: inclusão (por via do direito e das políticas sociais, e,
claro, incorporando a linguagem “politicamente correta”) dentro da ordem.
Porém, em que pensem a existência de um “liberalismo identitário”, da
análise acionalista sobre a “identidade” nos NMS, e dos estudos de autores
pós-marxistas e pós-estruturalistas sobre o conceito, é a razão pós-moderna
que incorpora a “identidade” e a converte em “identitarismo”, numa “lógica
identitarista”, como força hegemônica na esquerda contemporânea.
É sob a perspectiva pós-moderna que o “identitarismo” e a “lógica
identitarista” passam paulatinamente a comandar a análise e as ações da
esquerda, até se tornarem hegemônicas neste campo político. Desta forma, é
sobre a “lógica identitarista” pós-moderna que nos debruçaremos neste livro, a
seguir.
34

2. DA “IDENTIDADE” AO “IDENTITARISMO”: A
“LÓGICA IDENTITARISTA” PÓS-MODERNA
COMO FUNDAMENTO DE ARTICULAÇÃO E
POLARIZAÇÃO POLÍTICA

Se o conceito de “identidade” já vem dos estudiosos da modernidade,


como um dos primeiros conceitos da sociologia, ele adquire relevância e
centralidade teórica e política quando passa a ser concebido como um conceito
que vem substituindo a categoria de “classe social”, e com isto, as lutas de
classe e movimentos sindicais, sendo substituídas pelas “lutas sociais” e os
novos movimentos sociais, cujo elemento aglutinador não seria mais a classe,
nem uma luta econômica, mas a “identidade” e uma luta cultural. Porém, a
pesar desta enorme transformação analítica e política, ainda há uma visão
universal, uma “dimensão de totalidade”, que orienta a ação política.
Assim, é a racionalidade pós-moderna que vai operar uma nova
transformação no conceito de “identidade”, agora como “identitarismo”,
fundando o que chamaremos de “lógica identitarista”, num processo de
multissegmentação da polarização social e de perda do horizonte universal e
da totalidade social.
Desta forma, as analises que fundam a “lógica identitarista”, e toda a sua
articulação com os conceitos de “lugar de fala”, “pós-verdade”, “punitivismo”,
“inclusão” e “empoderamento”, sustentam-se, sobretudo, nas concepções pós-
modernas sobre o poder.
35

Trata-se de uma visão, primeiramente, desarticulada sobre o poder; uma


foucaultiana “microfísica do poder” (ver FOUCAULT, 1985 e 1985a), onde este
é pensado a partir de relações interpessoais (singulares ou particulares) de
poder. O poder expresso na cotidianidade das pessoas e nos seus micro-
espaços. Um poder que além de interpessoal, é concebido com institucional,
porém, não como estrutural, próprio do sistema capitalista. Aliás, nos estudos
pós-modernos sobre o poder, assim como na compreensão da “lógica
identitarista”, como veremos, o modo de produção capitalista é o grande
ausente. Ele pareceria não ser determinante das relações sociais, de poder e
de opressão, para esta racionalidade. Como se apenas as questões
econômicas, de classes, fossem estruturais, enquanto as demais formas de
opressão não respondessem a uma estrutura capitalista, sendo meramente
culturais.
Em decorrência disto, em segundo lugar, trata-se de uma análise que
desconsidera a contradição de classes ao pensar o poder. Como se poder
fosse uma questão exclusivamente política, vinculada ao conceito de exclusão,
desconectada da economia, da qual daria conta a categoria de exploração.
Opera-se assim uma dissociação da política e da economia; isto é, há nesta
análise uma deseconomização da política, e especificamente do poder.
Trataremos, neste capítulo, primeiramente, da “identidade”, como
categoria que expressa certos grupos subalternos dentro de relações de
opressão, de discriminação ou de desigualdade. Em seguida, analisaremos sua
passagem ao “identitarismo”, como inflexão operada pela racionalidade pós-
moderna. Nesse momento, nos debruçaremos nas formulações de Boaventura
de Sousa Santos, como autor privilegiado desta corrente de pensamento, da
chamada “esquerda pós-moderna”, e o processo que transforma a “identidade”
em “identitarismo”, a partir de uma “lógica identitarista”, articulada a todo seu
arcabouço (a)político pós-moderno, o que trataremos no capítulo 3, a saber: os
conceitos de “lugar de fala” e “pós-verdade”, e os objetivos “punitivistas”, de
representação e “inclusão” social, e de “empoderamento”.
36

I- Da “identidade”, como categoria teórico-política...


A categoria de “identidade” tem uma expressão real, seja ela de base
objetiva, dada pela condição real e vida das pessoas, seja ela de base
subjetiva, a partir da percepção que o indivíduo construa de sua condição, da
sua “autoimagem”, isto é sustentada em aspectos objetivos e interpretações
subjetivas.
Desta forma, a categoria “identidade” (enquanto expressão da realidade)
não corresponde a “identitarismo” (enquanto apropriação pós-moderna que
dela se faz). A noção de “identitarismo” pós-moderno se constrói,
ideologicamente, a partir da concepção desta corrente de uma “lógica
identitarista”.
É mister, portanto, partir do tratamento do que seja a “identidade”, como
categoria real (subjetiva ou objetivamente fundadas), para depois tratar da
mutação pós-moderna em “identitarismo” (a partir da “lógica identitarista”).

2.1- “Identidade” e condição/situação real.


É preciso, primeiramente, diferenciar o conceito de “identidade” da
condição ou situação real (atributo, circunstância ou posição) dos sujeitos, a
partir da qual estes são submetidos a alguma forma de opressão,
discriminação ou desigualdade. Elas podem ou não coincidir. Vejamos.
Engels não pertencia ao proletariado, mas era membro de uma família
burguesa, no entanto se identificava com as causas operárias. Um trabalhador
autônomo tem como condição real viver do seu trabalho, porém ele se sente
um “empreendedor”, se identificando como um pequeno empresário. Um
desempregado também pertence à classe trabalhadora, apenas sem poder
vender sua força de trabalho, porém, por sua condição de desemprego, ele não
se identifica como um trabalhador. Dois irmãos imigrantes, um se sente
identificado com a cultura de seu país de origem, enquanto o outro se identifica
com seu país de destino.
Estes exemplos mostram claramente que uma coisa é a “condição real”,
os atributos reais, a realidade ou situação factual que faz parte da vida de cada
sujeito; outra coisa é como este se “identifica”, como se sente em relação a
esse atributo, como se auto-percebe, ou até, com que causas se identifica.
37

Falamos, então, de uma questão objetiva, a real existência de um atributo, a


“condição real” ou a situação concreta, e uma percepção subjetiva, a
“identidade” que este individuo constrói a partir da desse atributo ou situação,
como central na sua vida.
Sobre isto, Marx já diferenciava a “classe em si” – a mera condição de
pertencimento a uma classe social –, da “classe para si” – a percepção na
consciência dos seus interesses de classe, a construção de uma consciência
de classe, a partir da qual passa a se organizar e lutar por seus interesses.
Porém, se “condição ou situação real” (objetiva) e “identidade”
(subjetiva) expressam coisas diferentes, elas podem ou não coincidir.
Dois indivíduos com a mesma idade superior aos 60 anos, um
aposentado e o outro ainda na ativa, um sente-se “velho” enquanto o outro se
sente ainda “jovem”, por conta disso, um frequenta grupos da terceira idade,
com os quais se identifica cultural e geracionalmente, enquanto o outro
frequenta reuniões com seus colegas de trabalho mais jovens, construindo aí
sua identidade.
Dois trabalhadores negros, um se identifica prioritariamente com as
causas operárias, fazendo parte das lutas sindicais na defesa dos direitos dos
trabalhadores, enquanto o outro tem como identidade sua condição racial,
militando nos grupos e causas anti-racistas.
Duas mulheres trabalhadoras e mães, uma se identifica mais com sua
condição de trabalhadora, dedicando seus maiores esforços a progredir no
emprego, enquanto a outra tem sua subjetividade construída na sua condição
de mãe, se identificando mais com esta questão, e procurando diminuir o mais
possível seu tempo e esforço no trabalho para se dedicar ao seu filho.
Dois irmão, filhos de um pai judeu e uma mãe cristã, que foram
igualmente educados, um se identifica mais com a religião judaica, enquanto o
outro se percebe como cristão.
Dois irmão filhos de um pai negro e uma mãe branca, um se identifica
como negro, enquanto o outro se identifica como branco.
O que estamos apontando com estes exemplos é que, cada indivíduo
apresenta uma diversidade enorme de atributos, de “condições e situações
reais” – vinculados à raça, ao gênero, à orientação sexual, à
maternidade/paternidade, à sua condição e atributos físicos, à religiosidade, à
38

condição social e econômica, ao bairro etc. etc. –, mas formará sua


“identidade” fundamentalmente a partir de alguns deles, e a partir da forma
como os percebe (como constrói no seu pensamento tais atributos), com os
quais, valha a redundância, se identifique mais.
Via de regra, a “identidade” remete a uma relação, a uma oposição ou
diferenciação. A noção de um atributo num grupo só é destacada quando
contrastada com a ausência do mesmo no outro, ou com seu contrário ou
diverso. Por exemplo, após a dissolução da antiga Iugoslávia, eslovenos,
sérvios, bósnios e croatas tiveram que construir suas “identidades” a partir
daquilo que os diferenciava entre si (ver Woodward in SILVA, HALL e
WOODWARD, orgs., 2014, p. 7 e ss.). Para esta autora, “ao afirmar a primazia
de uma identidade [...] parece necessário [...] colocá-la em oposição a uma
outra identidade” (idem. p. 12). Nesse sentido, afirma a mesma,
a identidade é relacional. A identidade sérvia depende, para existir, de
algo fora dela: a saber, de outra identidade (Croácia), de uma identidade
que ela não é, que difere da identidade sérvia, mas que, entretanto,
fornece as condições para que ela exista. A identidade sérvia se distingue
por aquilo que ela não é. Ser um sérvio é ser um ‘não croata’. A
identidade é, assim, marcada pela diferença (idem, p. 9).

Sendo, ainda, que “a diferença é sustentada pela exclusão: se você é


sérvio, você não pode ser croata, e vice-versa” (ibidem).
Desta forma, do ponto de vista sociológico, a “identidade” remete a uma
relação social; porém, do ponto de vista político, trata de uma relação de
opressão.
A pesar de que aqui trataremos a “identidade” que emana a partir de
uma relação de desigualdade e opressão, no entanto, há formas de
“identidades” que não necessariamente remetem a tal tipo de relação
opressiva. Por exemplo, a “identidade” com (ou de “torcedor” de) um time de
futebol, que em muitos países ocupa um lugar central na construção de auto-
imagem e lugar social de muitos indivíduos, remetendo, claro, a uma rivalidade,
mas não necessariamente a uma relação de opressão; ou a “identidade” de
“empreendedor”, claramente diferenciada da de “trabalhador”, mas não
estabelecendo uma relação de opressão com/por este.
Ainda mais, a “identidade” que o indivíduo (ou conjunto deles) constrói,
aquilo com o qual se identifica, não apenas escolhe (ou prioriza) alguns
39

atributos e descarta (ou secundariza) outros, mas o faz a partir da percepção


que dele tenha. Isto é, o atributo ou a situação expressa uma condição real
(objetiva) do sujeito, mas a identidade representa uma autoimagem, uma
representação (subjetiva), a partir da forma como se percebe ou como percebe
a realidade, como reconstrói idealmente tal atributo ou situação. Sendo assim,
a “identidade (por ser uma autoimagem, uma representação, construída
subjetivamente pelo indivíduo) pode estar mais ou menos relacionada com o
“atributo ou situação real”, podendo ser uma representação real, clara e fiel do
atributo ou situação, podendo representar uma autoimagem deturpada do real,
ou podendo até essa “identidade” (essa autoimagem) em nada ter uma
materialidade objetiva, expressando apenas um desejo, uma fantasia.
Desta forma, se cada sujeito é constituído e/ou determinado por um
conjunto, enorme e dinâmico, de “atributos”, de “condições reais”, a/s
“identidade/s” com as quais ele se identifica, se reconhece, constrói sua
“imagem” (social e psicológica) é/são o resultado de uma seleção subjetiva (de
maior ou menor grau de consciência). Ou seja: o quê melhor me define?, com
quê eu mais me identifico?, com minha condição de mulher ou de negra?, ou
com o fato de ser operário, ou imigrante?, ou até, com o bairro onde moro ou
com minha orientação sexual? De todos estes, e muitos outros, atributos,
situações, ou “condições reais”, um sujeito se define melhor, se identifica mais,
constrói sua imagem e identidade social e psicológica, a partir da escolha ou
seleção (mais ou menos consciente) daqueles atributos (reais ou ideais) que
terão maior peso, simbólico ou não, a partir da biografia, de acontecimentos
pessoais marcantes, do impacto e/ou peso social que tenha cada um, da
autoimagem etc.
Neste sentido, conforme afirma Stuart Hall, “o sujeito, previamente vivido
como tendo uma “identidade” unificada e estável, está se tornando
fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas
vezes contraditórias e não resolvidas” (2006, p. 12). Desta forma, continua:
o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas em redor de um ‘eu’ coerente. Dentro
de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções,
de tal modo que nossas identificações estão sendo constantemente
deslocadas... A identidade plenamente unificada, completa, segura e
coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de
significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados
40

por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades


possíveis (2006, p. 13).

É, portanto, a partir da maior identificação do indivíduo com alguns dos


atributos ou situações (ou da imagem e percepção que deles se tenha), e em
como este sujeito os percebe e reconstrói na sua consciência, que ele formará
sua “identidade”, a partir da qual orientará sua vida, seus grupos de referência,
seu sentimento de pertencimento, sua visão de mundo, seu acionar.
Assim, ao conceituar a “identidade” não estamos falando, de início e
nem necessariamente, num grupo ou coletivo social, na “identidade” entre
sujeitos. A “identidade” é, antes de mais nada, entre o indivíduo e o atributo ou
situação que o sujeito tenha escolhido como central. Assim, primeiramente, a
“identidade” remete à imagem, representação ou significado que, a partir desse
atributo, situação ou condição, o indivíduo se faça de si próprio. Ela expressa,
em primeiro lugar, a relação sujeito/objeto; o sujeito se identifica com o atributo
ou condição (ou a percepção ou representação que tenha dele), constrói a
partir dele uma autoimagem, uma auto-representação, uma (sua) “identidade”.
Só em segundo lugar, e como uma possibilidade, o sujeito, que se
identifica com um determinado atributo ou situação (real ou idealizado,
concreto ou abstrato), pode passar e se identificar com outros indivíduos que
apresentem (realmente ou no imaginário) o mesmo atributo ou vivam a mesma
situação, construindo assim uma identidade inter-subjetiva.
Estes atributos ou situações, ainda, não são fixos e imutáveis, mas
muitos deles estão em constante mudança: por exemplo, questões ligadas à
idade (geracionais), à localidade de residência, à condição de empregado ou
desempregado, a alguma característica física passível de mudança, como a
obesidade, dentre outras. Isto quer dizer que, por um lado, os atributos e as
situações, em tanto condições reais que conformam a vida dos indivíduos, são,
em muitos casos, mutáveis, e estão em constante mudança. Desta forma, e por
outro lado, tal mudança de atributos (objetivos), pode levar a mudanças nas
identidades (subjetivas) dos indivíduos, alterando ou variando as coisas com as
quais prioritariamente mais se identificam, mudando sua “identidade”.
A identidade portanto remete a três processos e fenômenos,
diferenciados porém relacionados. Vejamos:
41

Assim, a “identidade” remete de início à relação sujeito-objeto, à


autoimagem e auto-representação que ele constrói e elabora a partir de fatos,
situações ou condições, reais, porém, reinterpretadas subjetivamente.
Em segunda instância, ela remete à relação sujeito-sujeito, à construção
coletiva de uma “identidade”, num processo de identidade grupal, a partir da
comunhão de uma situação, condição ou atributo entre as pessoas, o que os
vincula, por um lado, e os diferencia dos demais, por outro.
Porém, há um terceiro processo relacionado à “identidade”, que remete,
neste caso, à relação sociedade-sujeito, isto é, à construção social de uma
imagem em relação ao grupo. Trata-se, aqui, de uma “identidade atribuída”
socialmente. Por exemplo, a “identidade” atribuída socialmente à mulher, tanto
a partir de seus predefinidos papéis sociais de gênero (mulher do lar, dona de
casa, mãe amorosa etc.), como em função das características socialmente
esperadas (feminina, afetuosa, dócil etc.) (ver SILVA, 1994, p. 201, 213, 245,
273, 281).
Há portanto, no processo de construção da “identidade”, três referências:
a “identidade” pode ser individual, coletiva e/ou socialmente atribuída.
Neste sentido, no caso da questão racial, como afirma Almeida, “tanto o
‘ser branco’ quanto o ‘ser negro’ são construções sociais” (2019, p. 77).
Em função disso, o apelo ao objeto real (situação, condição ou atributo)
na construção da “identidade” é variado, podendo ser ela uma pura elaboração
subjetiva, sem amparo ao objeto real (como quando alguém cria uma
autoimagem para obter aceitação dos outros), ou uma representação que
reflete fielmente a realidade, assim como todos os matizes entre elas.
Podemos assim falar, nos extremos, de uma “identidade subjetiva” ou
uma “identidade objetiva”, em função do grau de representatividade que ela
tenha com o objeto real.
Feita esta distinção, entre “atributos e situações” objetivos, realmente
existentes, e “identidades” como representações subjetivas, percebidas e
reconhecidas como próprias pelos sujeitos e construídas coletivamente, ou
atribuídas socialmente, a partir de agora, aos efeitos dos propósitos deste
texto, falaremos de “identidades” como aqueles atributos e situações objetivos
que, levados como percepções e representações ao plano consciente, são
constitutivos das identidades subjetivas, individuais e coletivas.
42

Assim, como categoria de análise, o conceito de “identidade” nos diz


respeito à auto-representação, ao campo do simbólico com que os sujeitos,
individual ou coletivamente e até socialmente, se percebem e identificam com
algum atributo, condição ou situação (real e objetiva, ou construída
subjetivamente).
Porém, a referência e análise dos fenômenos, condições sociais,
atributos etc., realmente existentes, nos remete à realidade objetiva, para além
do tipo de percepção, vivência ou representação que os sujeitos se façam
delas. E isto nos leva a pensarmos a relação entre a realidade objetiva, a sua
percepção, a partir da vivência, e os graus de consciência que dela o sujeito
possa ter. Vejamos.

2.2- “Identidade”: vivência, percepção e consciência.


O conhecimento crítico e de totalidade não pode tratar isolada e
desarticuladamente um do outro: a realidade objetiva sem considerar a
percepção e representação subjetiva; ou, contrariamente, a percepção e
representação subjetiva, independentemente da realidade como ela é. Todo
conhecimento de uma dimensão (subjetiva ou objetiva) sem a outra, representa
um reducionismo cognitivo quando falamos da realidade social. Estes
reducionismos no plano do conhecimento, do ponto de vista político, tendem a
derivar numa visão ora estruturalista/fatalista (quando pensamos na realidade
objetiva, na estrutura social, sem o sujeito) ora subjetivista/voluntarista (quando
analisamos os sujeitos e suas vivências, sem referencialidade com a realidade
objetiva, ou como se esta fosse resultado da mera vontade dos sujeitos).
Porém, para o irracionalismo pós-moderno, que desconsidera a
objetividade do real, a realidade é configurada apenas pelas percepções, pelas
vivências subjetivas. Assim, o pensamento pós-moderno desconecta e
desarticula a “identidade” dos sujeitos da sua base material, da realidade
objetiva. Por isso, esta análise substitui “condição e situação real” pela
“identidade” subjetiva. Para o irracionalismo pós-moderno só há “identidade”
(subjetiva).
Contrariamente, numa concepção materialista e dialética, é fundamental
tratar da questão objetiva, real, a partir da qual os indivíduos formam suas
43

auto-percepções e autoimagens, desenvolvendo “identidades”. Há uma


interelação entre as condições objetivas e as construções subjetivas. Porém,
há decerto uma precedência e autonomia da realidade em relação à
consciência dos sujeitos sobre elas. Como diz Marx: “não é a consciência dos
homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente,
determina a sua consciência” (1977, p. 24).
Ainda, esta consciência se faz sob condições historicamente
determinadas; assim, continua em outro texto, “os homens fazem sua própria
história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de
sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e
transmitidas pelo passado” (MARX, 1997, p. 21).
Desta forma, e contrariamente ao suposto nas visões
subjetivistas/voluntaristas, não basta a vivência sobre uma realidade para
fundar um conhecimento ou consciência críticos sobre a mesma.
Com isto, a relação entre realidade objetiva e percepção subjetiva, se
apresenta de diversos graus e formas, havendo diferentes níveis de percepção
e consciência sobre a realidade. Vejamos.
a) Primeiramente, a mera vivência proporciona uma primeira forma de
consciência social, que aparece fundamentalmente no cotidiano das pessoas.
Aqui se dá o que Lukács chama de “materialismo espontâneo” e
“pensamento analógico” (1966, p. 45 e 53).
Trata-se da percepção individual, espontânea e imediata sobre a
realidade, onde o indivíduo se apropria cognitivamente do entorno imediato, do
nível aparente, ou pseudo-concreto (conforme KOSIK, 1976, p. 9 e ss.), do
real, estabelecendo uma relação necessidades/respostas imediata, pragmatista
e pontual. Nesta forma primária de consciência, o indivíduo transforma o
singular em geral, generalizando a realidade e o entorno imediatos, criando a
sensação de que tudo se passa como na sua situação imediata por ele
vivenciada. A “realidade imediata” é vista como “a realidade universal”.
Certamente, neste tipo de consciência da realidade imediata, as formas
de alienação e reificação, próprias da vida cotidiana na sociedade burguesa, se
fazem presentes e determinantes.
44

Marx trata da questão da alienação ou estranhamento,4 particularmente


nos “Manuscritos econômico-filosóficos” (MARX, 2004), como um processo
histórico próprio da sociedade capitalista, e particularmente ligada ao trabalho.
Assim, conforme cita Mészáros, Marx apontou em seus Grundrisse como “esse
processo de objetivação surge de fato [no capitalismo] como um processo de
alienação do ponto de vista do trabalho, e como apropriação do trabalho alheio,
do ponto de vista do capital” (apud MÉSZÁROS, 2006, p. 64). Porém, o
processo de alienação (ou estranhamento) não remete apenas ao produto
(objeto) do seu trabalho, à sua obra. Desta forma, Mészáros (2006) retoma o
processo de alienação de Marx, elencando os quatro aspectos a seguir:
a) O homem está alienado da natureza;
b) está alienado de si mesmo (de sua própria atividade);
c) de seu “ser genérico” (de seu ser como membro da espécie humana);
d) o homem está alienado do homem (dos outros homens). (MÉSZÁROS,
2006, p. 20).

Já autores marxistas que estudam a vida cotidiana, como o próprio


Lukács (1966, p. 68 e 2013, p. 464), além de Heller (2014, p. 56; 1991, p. 28 e
1994, p. 8), Lefebvre (1991, p. 40-41) e Kosik (1976, p. 64), avaliam o cotidiano
na sociedade capitalista como um espaço propriamente alienado.
Por seu turno, Lukács caracteriza a reificação como o processo
mediante o qual, a exemplo do fetichismo da produção e troca de mercadorias
(MARX, 1980, p. 80), todas as relações sociais na ordem burguesa são
vivenciadas pelos sujeitos como relações entre coisas, estranhas e alheias.
Desta forma, assim como a mercadoria não é vista como o resultado de
relações sociais (relações de produção), mas como coisas estranhas e alheias,

4 A categoria “alienação” tem sido diversamente traduzida como: “alienação”,


“estranhamento”, ou até “enajenación” (no castelhano). Utilizamos aqui o termo da bibliografia
referenciada, porém, alertando para o fato destes termos distintos tratarem da mesma
categoria. Vejamos:
Diferentemente de Hegel, Marx distingue a “objetivação” (como ato de produzir,
mediante o qual o sujeito se objetiva, se exterioriza, se externaliza no produto, reconhecendo-
se na sua obra) da “alienação” ou “estranhamento” (como forma degradada de objetivação,
própria do capitalismo, onde o sujeito sente-se estranho e não se reconhece no produto) (ver
MARX, 2004, p. 80 e ss., e FREDERICO, 1995, p. 178).
Porém, Marx emprega diferentes termos no alemão para as variadas categorias:
“Entäusserung” (“alienação”), “Entfremdung” (“estranhamento”), “Selbstentfremdung”
(“estranhamento-de-si”), “Vergegenständlichung” (“objetivação”), “Äusserlichkeit”
(“externalização”) (ver MARX, 2004, p. 80-83). Com tudo isto, em não poucos casos há erros
de tradução (como a própria edição aqui referenciada – ver MARX, 2004, p. 80-82 –, onde
“Entäusserung” aparece tanto como “alienação” quanto como “exteriorização”) ou de
compreensão, desfazendo a distinção que Marx realiza entre as duas formas, e, portanto,
tratando, como Hegel, ambas como uma mesma.
45

também o Estado é visto como algo superior e alheio às relações sociais, o


desemprego, a pobreza, a mais-valia, a assistência e as políticas sociais, tudo
passa a ser visto de forma “fetichizada”, como coisas alheias e estranhas às
relações sociais.
Para Lukács, a essência da estrutura mercantil/capitalista está no fato de
“uma relação entre pessoas tomar [ser percebido como] o caráter de uma
coisa, e ser, por isso, de uma ‘objetividade ilusória’”, que esconde e “dissimula
todo e qualquer traço da sua essência fundamental: a relação entre homens”
(1974, p. 97). Assim, conforme o autor, este fenômeno faz:
com que o homem se oponha à sua própria atividade, ao seu próprio
trabalho, como algo de objetivo, independente dele e que o domina [...].
Isto verifica-se tanto no plano objetivo como no plano subjetivo.
Objetivamente, surge um mundo de coisas acabadas e de relações entre
coisas [...]. Subjetivamente, a atividade do homem – numa economia
mercantil realizada [capitalista] – objetiva-se em relação a ele, torna-se
numa mercadoria regida pela objetividade das leis sociais naturais
estranhas aos homens e deve efetuar os seus movimentos [...]
independentemente dos homens [...] (LUKÁCS, 1974, p. 100-101).

Desta forma, conforme afirma Lukács, a reificação se torna “uma


questão específica da nossa época e do capitalismo moderno” (idem, p. 98),
influenciando “toda a vida [...] da sociedade” (idem, p. 97). Neste sentido, a
reificação “é o ato (ou resultado do ato) de transformação das propriedades,
relações e ações humanas em propriedades, relações e ações de coisas”, que
se tornam independentes e autônomas daqueles que as produziram,
significando ainda “a transformação dos seres humanos [e suas relações] em
seres semelhantes a coisas” (PETROVIC, in BOTTOMORE, ed., 1988, p. 314).
Assim, “a reificação é um caso ‘especial’ de alienação” (ibidem).
b) Há uma segunda forma de consciência, que pode ser denominada
como consciência reivindicatória ou sindical.
Aqui, a situação, os fatos ou os fenômenos deixam de ser percebidos
individualmente, e passam a ser vistos de forma coletiva. Desenvolve-se aqui
uma compreensão das necessidades e situações em comum, desencadeando
uma ação coletiva reivindicatória. Os exemplos vão desde a consciência e ação
sindical, lutando pelas melhores condições de venda da força de trabalho, até
as formas de percepção e ação de grupos “identitários”, lutando por direitos e
por políticas específicas.
46

Desde que não superem a consciência e as lutas específicas, ou


particulares, constituem formas de consciência e ação reformistas, sem
compreender as questões específicas como particularidades da estrutura social
mais ampla, e sem enfrentar os fundamentos da ordem social vigente. Assim,
como sustenta Lukács (1974, p. 92), “esta simples crítica, esta crítica feita do
ponto de vista do capitalismo, manifesta-se da forma mais notória na
separação dos diferentes setores da luta”.
c) Finalmente, uma terceira forma de consciência, é a chamada
consciência de classe ou a consciência humano-genérica, caracterizada
como “o máximo de consciência possível”, que Lênin vai chamar de
“consciência político-universal” e Gramsci de “catarse”.
Trata-se, reafirmamos, de uma forma de consciência humano-genérica,
onde procura-se compreender as causas e fundamentos dos fenômenos,
chegar às raízes dos mesmos, superando a mera aparência e alcançando sua
essência. Para Marx, “ser radical é agarrar [compreender] as coisas pela raiz.
Mas, para o homem, a raiz [das coisas] é o próprio homem” (2005, p. 151).
Nos estudos dos já mencionados autores marxistas da vida cotidiana,
alcançar este nível de consciência sobre a realidade exige a superação ou
suspensão da imediaticidade próprias da vivência cotidiana e dos fenômenos
singulares, alcançando um conhecimento da totalidade, saturada de mediações
(ver KOSIK, 1976, p.73, 77; e HELLER, 1991, p. 34, 2014, p. 41 e ss.). Para
Lukács, é preciso superar o conhecimento próprio do “materialismo
espontâneo”, alcançando o “materialismo filosófico”, assim, afirma:
o pensamento humano supera a imediaticidade da cotidianidade [...]
porque se supera a conexão imediata entre o reflexo [representação] da
realidade, sua interpretação mental e a prática, com o que,
conscientemente se insere uma série crescente de mediações entre o
pensamento – que assim chega a ser propriamente teórico – e a prática.
Somente graças a este ato de superação pode abrir-se um caminho desde
o materialismo espontâneo da vida cotidiana para o materialismo filosófico
(LUKÁCS, 1966, p. 50).

O conhecimento crítico radical, na perspectiva de totalidade e na


perspectiva de transformação social, torna-se central, pois não basta apenas o
conhecimento científico, ele tem que ser revolucionário. Assim, nas palavras de
Lênin, “sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário” (2010, p.
81).
47

Devemos observar que todos os sujeitos (individual ou coletivamente)


constroem “identidades”, representações da realidade e sua condição ou
situação social. Desta maneira, as formas de “identidade” respondem ao grau
de consciência que o sujeito tenha da sua realidade. Isto é, falar de
“identidade” não significa necessariamente uma consciência crítica do indivíduo
ou do coletivo sobre sua condição ou situação, a qual dependerá do grau de
consciência alcançado pelo sujeito.

2.3- A importância das causas identitárias, e a necessidade e


urgência das suas lutas (antiopressivas).
Nossa análise, o afirmamos já na introdução deste livro, não visa opor
"classe” a “identidade”, promovendo uma escolha entre uma categoria ou outra,
nem satanizar a “identidade” e a luta identitária, como uma causa e luta
secundarizadas ou desimportantes em função da questão e da luta de classes.
Muito menos, afirmar que a “identidade” não tenha materialidade ontológica,
sendo apenas uma construção subjetiva.
Muito pelo contrário, nossa reflexão visa mostrar como a apropriação da
categoria “identidade” pela razão pós-moderna, transformando-a em um
“identitarismo”, submetido a uma lógica polarizadora e autonomizada da
totalidade, constitui um efetivo abandono dos fundamentos e da importância
das lutas antiopressivas particulares (“identitárias”) no caminho da
transformação social e da emancipação humana.
Para isso, visamos neste ponto apresentar a importância das causas
identitárias, e a necessidade e urgência das suas lutas, como lutas
antiopressivas particulares, não alternativas às lutas de classe, mas
complementares a estas (o que trataremos no item 7.3).

A) O Caráter estrutural da opressão por “identidades”: os casos do


racismo e do patriarcalismo/machismo.
Muitas das questões, fenômenos e relações (de opressão e de
desigualdade), que conformam as chamadas “identidades”, constituem
processos que devem ser entendidos, não na sua fenomenidade, como
questões autoexplicadas, afastadas umas das outras e da totalidade social,
48

mas como fenômenos estruturais, isto é, como expressões e manifestações da


chamada “questão social” (voltaremos a isso no item 6.2), fundados na
estrutura do atual sistema capitalista. Trata-se de questões estruturais, e não
de comportamentos ou idiossincrasias pessoais ou grupais.
Vejamos brevemente os casos do racismo e do patriarcalismo.
a) Por um lado, vemos o racismo como um fenômeno de caráter
essencialmente estrutural. Silvio Almeida (2019, p. 35 e ss.) apresenta três
formas de conceber o racismo, como racismo “individual”, “institucional” e
“estrutural”.
Primeiramente, a concepção que entende o racismo como uma mera
manifestação individual (idem, p. 36 e ss.), identificando-o com atos de
preconceito e discriminação (idem, p. 32) promovidas por indivíduos ou grupos,
como sendo “uma espécie de ‘patologia’ ou anormalidade” ou um problema
ético dessas pessoas (idem, p. 36). Nesta concepção nega-se o caráter racista
da sociedade. Se racismo corresponde, nesta concepção, à atos individuais de
preconceito e discriminação, a forma de enfrentamento será, portanto, também
individualizada: a punição, por um lado, e/ou a educação e conscientização,
por outro.
Em segundo lugar, a concepção institucional do racismo (idem, p. 37 e
ss.), que vai além dos atos individuais, se manifestando a partir das
instituições. Estas, sob hegemonia de grupos raciais dominantes, reproduzem
a desigualdade mediante suas normas, costumes, métodos e procedimentos
institucionais. Aqui não se trata de um problema ético ou patológico dos
indivíduos, mas de uma questão de poder: “o racimos é dominação” (idem, p.
40). Aqui, a forma privilegiada de enfrentamento será mediantes ações
compensatórias e políticas afirmativas, como as cotas raciais (idem, p. 41-42).
Finalmente, em terceiro lugar, há a concepção estrutural do racismo
(idem, p. 46 e ss.). Conforme Almeida, enquanto as instituições são expressões
do sistema social que as cria, se há um racismo institucional, é porque ele
reflete um racismo estrutural (idem, p. 47). Isto é: “as instituições são racistas
porque a sociedade é racista” (ibidem). O racismo não é criado pelas
instituições ou por indivíduos, mas é por eles reproduzidos. Assim, como
fenômeno estrutural, o racismo tem expressões ideológicas, políticas, jurídicas
e econômicas. Ideologicamente (idem, p. 60 e ss.), o racismo “molda o
49

inconsciente” das pessoas, tendendo a naturalizar e reproduzir a desigualdade


racial; politicamente (idem, p. 86 e ss.), ele expressa uma relação de poder,
plasmada no Estado e demais instituições da sociedade; juridicamente (idem,
p. 136 e ss.), o direito estabelece a base legal sobre a qual se desenvolvem as
relações sociais racistas; e economicamente (idem, p. 154 e ss.), o racismo
assume (mesmo que com sequelas de herança escravocrata: o negro se insere
na classe trabalhadora carregando a herança do escravo e a dominação do
homem branco), na sociedade capitalista, os contornos da desigualdade
econômica, mediante uma precária inserção no mercado de trabalho,
fornecendo força de trabalho mais barata para o capital.
O caráter estrutural do racismo significa que não se trata de um
fenômeno isolado, autônomo, autodeterminado, mas articulado estruturalmente
à totalidade social, à esfera econômica, política, cultural etc.
Nesta compreensão estrutural do racismo, a pesar de no imediato
importantes, não basta, e portanto não pode ser o foco da luta antirracista, as
medias reparadoras, punitivas ou educativas, sobre os indivíduos, nem as
ações ou políticas compensatórias e afirmativas. Elas não transformam o
caráter estrutural do racismo.
Assim, o racismo, mesmo presente em outras sociedades não
capitalistas, assume contornos e particularidades próprios no MPC. Enfrentar o
racismo é também enfrentar o capitalismo.
b) Por outro lado, o patriarcado, que funda a cultura machista,
também deve ser compreendido no seu caráter estrutural. Friedrich Engels
(2002), no seu clássico “A origem da família, da propriedade privada e do
Estado”, mostra como a família monogâmica, que instaura o patriarcado,
baseado no “predomínio do homem”, se funda no surgimento da propriedade
privada, quando o homem precisava garantir a legitimidade indiscutível da
paternidade, em função da hereditariedade de suas posses pelos filhos (idem,
p. 62). Para isso, o casamento monogâmico do homem com mulher, e a
castidade e fidelidade desta última, constituem aspectos centrais de uma união
que será selada por contratos religiosos, políticos e/ou econômicos, e não
laços afetivos (idem, p. 65).
Assim, para garantir a castidade e fidelidade da mulher, como única
forma de confirmar a consanguinidade dos filhos com o pai, a mulher tinha que
50

se tornar uma figura fora da esfera pública, própria do privado, do lar, enquanto
o homem cuidava da vida pública, das suas propriedades e/ou do sustento de
cada dia.
Neste sentido, juntamente com Marx, afirmam que “a primeira divisão do
trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos”,
acrescentando agora: “o primeiro antagonismo de classe que apareceu na
história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a
mulher na monogamia; e a primeira opressão de classe, com a opressa do
sexo feminino pelo masculino” (idem, p. 65-66).
Desta forma, na síntese que realiza o autor, “a monogamia nasceu da
concentração de grandes riquezas nas mesmas mãos – as de um homem – e
do desejo de transmitir essas riquezas, por herança, aos filhos deste homem
[...]. Para isso era necessária a monogamia da mulher, mas não a do homem”
(idem, p. 75).
Temos, portanto, a origem, não só do matrimônio e a família
monogâmicos, mas também da desigualdade e da atribuição de papeis rígidos
homem/mulher, em função de ser o homem o único proprietário de bens,
incluído os filhos e as mulheres, para cuja hereditariedade a vida pública das
mulheres, isto é, sua liberdade, lhes devia ser furtada. Garantindo que esta só
tenha contato com seu marido, dentro do âmbito privado do lar, se afastariam
as eventuais dúvidas sobre a paternidade e consanguinidade da sua prole,
possibilitando que a herança de suas posses fosse só para os filhos legítimos.
Há aqui a origem da dominação e opressão da mulher pelo homem, da
caracterização de papeis sociais rigidamente determinados para os homens e
para as mulheres, do confinamento da mulher ao lar, do roubo da sua
liberdade. Temos, assim, a origem do patriarcalismo e do machismo.
Para o autor, o capitalismo reconfigura e refuncionaliza estas bases. Na
sociedade burguesa o contrato matrimonial não pode mais expressar uma
relação de posse, mas deve constituir um “livre contrato” (idem, p. 79), que nos
setores dominantes da burguesia continuou atrelado à questões econômicas e
patrimoniais, mas que para as classes trabalhadoras (despossuídas) foi cada
vez mais sustentado em vínculos afetivos (idem, p. 80-81).
Engels, portanto, entendendo a gênese do matrimônio monogâmico
baseado em contratos, atrelada à necessidade de hereditariedade da
51

propriedade privada por parte de filhos legítimos, vai afirmar que, no


socialismo, com o fim da propriedade privada, não obstante, o matrimônio
monogâmico permaneceria, agora em função da mudança paulatina da base
matrimonial, de um contrato de união matrimonial (religioso, político e/ou
econômico) para o estabelecimento de laços de afetividade (idem, p. 81 e 75-
76).
No entanto, o que observamos é exatamente o contrario nos tempos
atuais. Com a paulatina substituição do contrato por laços afetivos, como base
e fundamento da união matrimonial, não se verifica a manutenção do
matrimônio monogâmico, mas ao contrário, sua maior instabilidade e
transitoriedade, pois, “quando o afeto desaparece ou é substituído por um novo
amor apaixonado, o divórcio será um benefício tanto para ambas as partes
como para a sociedade” (idem, p. 82). O afeto, como novo fundamento da
relação conjugal, é mais variável e volátil que os contratos.
Esta análise nos mostra a origem e fundamentos do patrimonialismo,
estrutural e estruturante das relações e dos papéis sociais de gênero.
Porém, não podemos, particularmente em culturas de origem judaico-
cristão, compreender essas relações e atribuições de papeis por gênero sem
analisar a influência da moral religiosa neles.
No entanto, como falamos, o capitalismo reconfigura e refuncionaliza
todas as relações e funções sociais. Assim como transforma o racismo próprio
de uma sociedade escravista, num racismo funcional à lógica capitalista,
transforma as relações e papéis de gênero também em função da sua lógica e
dinâmica.
Aqui, sem nos adentrarmos nos seus detalhes, é importante registrar a
análise marxiana do papel econômico do uso da força de trabalho feminina no
processo de produção e valorização do capital.
Conforme analisa Marx, com a máquina-ferramenta na indústria,
“tornando supérflua a força muscular”, o capital pode empregar “trabalhadores
sem força muscular”, com mulheres e crianças (1980, p. 449). Com isto, se
antes “o valor da força de trabalho era determinado [...] pelo [tempo de
trabalho] necessário a sua manutenção e à da sua família”, agora, “lançando a
máquina todos os membros da família ... reparte ela [a máquina] o valor da
força de trabalho do homem adulto pela família inteira. Assim, desvaloriza a
52

força de trabalho adulto” (idem p. 450). Desta forma, a máquina “revoluciona


radicalmente o contrato entre o trabalhador e o capitalista”, ampliando o grau
de exploração. “Antes, vendia o trabalhador sua própria força de trabalho [...].
Agora vende mulher e filhos” (idem, p. 451). É o que Marx chama de
“apropriação pelo capital das forças de trabalho suplementares” (idem, p. 449).
Com isto, o capital não apenas amplia o exército de reserva de
trabalhadores, quebrando seu poder de luta e diminuindo sua remuneração,
mas também tem acesso a uma força de trabalho mais barata: as mulheres e
crianças, já que sua remuneração seria complementária à reprodução familiar.
Efetivamente, o capital precisa constantemente ter acesso a suprimento
de mão de obra mais barata. Assim, a mulher, o jovem (aprendiz), o
trabalhador negro, o imigrante (especialmente ilegal), o portador de deficiência,
fornecem esta força de trabalho de mais baixa remuneração.
Desta forma, o que de um lado, o da mulher, é uma conquista
civilizatória – o ingresso da mulher ao mercado de trabalho, e com isso a
conquista da sua independência econômica, e tudo o que dela devêm –, de
outro, o do capital, é a forma de ampliar a oferta de força de trabalho,
promovendo sua desvalorização, assim como a fonte de uma mão de obra
mais barata.
Isto é, as causas identitária, em torno de relações de opressão, de
discriminação, de desigualdade, são expressões concretas da estrutura social,
manifestações da chamada “questão social”. Pensar criticamente estas
questões, por um lado, exige considerá-las a partir dos fundamentos da
sociedade capitalista. Pensar a sociedade capitalista na diversidade de
expressões e manifestações concretas, nas suas formas e relações de
opressão e desigualdade, exige, por seu turno, saturar a análise da sociedade
capitalista destas questões particulares.
Neste sentido, não dá para analisar o patriarcalismo e o machismo, as
relações desiguais de gênero e a determinação de papéis sociais, isolando
esta questão, como se fosse uma mera “identidade”, da moral judaico-cristã e
da estrutura social capitalista. O mesmo caminho deveríamos trilhar para a
compreensão, como fenômenos estruturais, da questão indígena, da xenofobia,
da intolerância religiosa etc.
53

B) A necessidade e urgência das lutas antiopressivas (“identitárias”).


É a partir da compreensão desses fenômenos, como estruturais,
refuncionalizados e reconfigurados pelo MPC a partir da sua nova estrutura e
dinâmica, que podemos ter um entendimento crítico das culturas racistas,
machista, homofóbica etc., das relações institucionais de opressão delas
derivadas, e dos comportamentos individuais ou grupais, de preconceito,
discriminação e violência, como expressões dessa estrutura.
Essas culturas, essas relações institucionais de opressão e
desigualdade, esses atos individuais ou grupais, não são outra coisa se não a
materialização, institucional e pessoal, da estrutura racista, patriarcal etc.
Nesse sentido, assim como “gênero masculino” e “gênero feminino” são
construções sociais, culturais, caracterizando o papel social que se espera de
cada um deles, e transformando o sexo, como determinação biológica, em
gênero, como questão social (ver BUTLER, 2003), a “raça branca” como a
“raça negra” também são construções sociais, e portanto culturais (ver
ALMEIDA 2019, p. 76-77).
Por tal motivo, podemos, e devemos, afirmar que as lutas antiopressivas
não podem esperar ao socialismo. Elas são necessárias e urgentes, para hoje.
Não se trata de travar uma luta (de classe) em torno da exploração,
deixando para depois as lutas em torno das formas particulares de opressão
(ver item 7.1-C). Não se trata de transformar o universal, para depois resolver o
particular. Não se trata de pensar que com a superação da ordem burguesa, e
a construção do socialismo, como resultado direto teremos resolvido as formas
e relações opressivas do capitalismo.
É uma arrogância incomensurável pretender que o negro, a mulher, o
imigrante, o praticante de uma religião não aceita, o LGBT etc., suportem a
desigualdade e opressão estruturais, a discriminação e a violência (simbólica
ou real), esperando a superação do capitalismo.
As lutas de classes e a luta anticapitalista devem caminhar juntas e
mancomunadas com as lutas antiopressivas particulares (ditas “identitárias”)
(ver item 7.3). Uma sem a outra não conseguem alcançar a emancipação, seja
política, seja humana. Uma precisa da outra. As lutas de classes e
anticapitalistas precisam das lutas antiopressivas para ganhar adesão popular,
penetrando na epiderme social, e ganhando a diversidade de suas
54

manifestações. As lutas antiopressivas, por sua vez, precisam das lutas de


classes, e da perspectiva anticapitalista, para orienta-las num caminho
universalista, conseguindo compreender e combater os fundamentos
estruturais dessa opressão.

C) Contribuições da análise e lutas “identitárias”.


Sem dúvidas, se não tratadas de forma autônoma, deshistoricizadas,
desconectadas da totalidade social, a categoria “identidade”, e as diversas
formas e relações de opressão, assim como as suas lutas antiopressivas,
representam avanços e trazem significativas contribuições à análise social
crítica e às lutas pela emancipação.
Elencaremos algumas contribuições desta categoria que consideramos
centrais.
Por um lado, a “identidade” permite ampliar nossa análise e
compreensão da realidade, indo além da (mas a ela atrelada) classe social, e
brindando um conhecimento das diversas particularidades que, na sociedade
capitalista, representam as variadas formas de desigualdade, de opressão e de
discriminação sociais. As “identidades” ampliam e adensam nossa
compreensão da realidade social, dando uma dimensão concreta à diversidade
de grupos que compõem a sociedade e as classes sociais.
Por outro lado, a “identidade” remete não só à autopercepção (com
variados níveis de consciência) de um indivíduo sobre sua condição subalterna,
numa dada relação de opressão, mas também à compreensão coletiva dessa
realidade, condição ou situação compartilhada com outros, que passam a se
organizar e lutar em torno da causa comum.
Neste sentido, as lutas de classes podem, e devem, ser articuladas às
lutas antiopressivas particulares (“identitárias”), e vice-versa.
Desta forma, podemos afirmar que sem as lutas “identitárias”, que
combatam as formas de opressão e desigualdade social, não há emancipação
política nem humana possível. Elas representam demandas importantes,
necessárias e urgentes, que não podem esperar a revolução socialista para
entrar em pauta. Ao contrário, elas devem fazer parte do conjunto de lutas
cotidianas do agora e devem ser parte do projeto de revolução socialista, por
uma sociedade verdadeira e efetivamente emancipada.
55

II- ... AO “IDENTITARISMO” PÓS-MODERNO.


A “identidade”, portanto, enquanto categoria que expressa uma realidade
(seja ela de base objetiva, subjetiva, ou ambas), é algo inegável, e que, quando
articulada com a diversidade de processos de opressão, de desigualdade e de
exploração, e inserida na totalidade social, enriquece tanto a análise da
dinâmica social como a ação política.
Porém, sua transformação em “identitarismo”, a partir da perspectiva
pós-moderna, inserida dentro de uma “lógica” polarizante, autonomiza as
“identidades” da estrutura social, polariza o “nós” do “eles”, o grupo “identitário”
do diferente, e procede a uma individualização ou a uma subjetivação das
ações sociais.
Vejamos as análises de um dos seus principais formuladores na ala
“esquerda” desta corrente, Boaventura de Souza Santos, para em seguida
tratar do que aqui chamamos de “lógica identitarista”.

2.4- A “identidade” nas análises de Boaventura de Souza


Santos.
Boaventura de Souza Santos, um dos mais respeitados e influentes
pensadores pós-modernos no campo progressista, nos apresenta o papel do
conceito de “identidade” tanto para a caracterização da sociedade
contemporânea como para a ação política “emancipadora”.
No seu “Pela mão de Alice”, o autor afirma que as “identidades”
(culturais) são processos, não rígidos nem imutáveis, mas transitórios e
fugazes, de identificação. As “identidades” são processos em curso de
identificações (SANTOS, 1995, p. 135), processos onde os indivíduos vão se
identificando e desenvolvendo um sentimento de pertencimento com questões
específicas da sua vida.
Ainda, conforme aponta, as identificações “são dominadas pela
obsessão da diferença e pela hierarquia das distinções” (ibidem). Neste
sentido, Boaventura trata como “identidades”, tanto o gênero (mulher, homem),
a nacionalidade, como as classes sociais.
56

Sim, para o autor, a classe constitui mais uma identidade, como


qualquer outra (trataremos disto nos itens 2.5 e 6.3-A).
Assim, o sociólogo português questiona o suposto reducionismo
marxista vinculando a “identidade” de classe apenas à estrutura econômica;
conforme afirma: “é errôneo reduzir a identificação, formação e estruturação
das classes à estrutura econômica da sociedade” (idem, p. 42).
Ainda mais, segundo aponta ao tratar da “ação coletiva e [a] identidade”,
em função de que, particularmente nas últimas três décadas do século XX, os
movimentos e as lutas políticas mais importantes “foram protagonizadas por
grupos sociais congregados por identidades não diretamente classistas” (idem,
p. 40), e dada “a primazia explicativa, como a primazia transformadora” que o
marxismo atribui às classes sociais, segundo ele, esta corrente de pensamento
já não seria capaz de compreender a nova dinâmica social, assim como o
processo de lutas e transformações sociais. Como afirma: “ao privilegiar a
opressão de classe, o marxismo secundarizou e, no fundo, ocultou a opressão
sexual [e muitas outras faces da opressão] e, nessa medida, o seu projeto
emancipatório ficou irremediavelmente truncado” (p. 41).
Para ele, a “emancipação social” (que o autor não esclarece de que se
trata) não estaria mais centrada nas lutas de classes, mas na diversidade de
outras “identidades”.
Boaventura faz uma análise das origens do identitarismo, encontrando
sua raiz na modernidade, após o colapso da cosmovisão teocrática medieval,
com o desenvolvimento da subjetividade e da individualidade próprios do
humanismo renascentista (p. 136). Constitui-se aqui a compreensão liberal da
“identidade”, que prioriza tanto a subjetividade individual por sobre a coletiva,
como a subjetividade abstrata em detrimento da subjetividade contextual (ou
concreta) (p. 137-138). Neste processo, conforme o autor, a subjetividade e
individualidade (“identidade”) para o pensamento liberal é polarizada e
descontextualizada.
Para a superação da visão liberal, conforme o autor, surgem as
contestações do romantismo e do marxista. Enquanto a contestação romantista
propõe uma recontextualização da “identidade” por via dos vínculos étnico,
religioso e na relação com a natureza, e revalorizando o irracional, o
inconsciente, o mítico e o popular (p. 140-141), a contestação marxista procura
57

recontextualizar o indivíduo concreto nas relações de produção, passando a ter


centralidade, portanto, a “identidade” de classe (p. 140).
Assim, descartando as vertentes liberal, romantista e marxista, será a
pós-modernidade quem protagonizará o “regresso das identidades” (p. 143).
Para ele:
A recontextualização e reparticularização das identidades e das práticas
está a conduzir a uma reformulação das interrelações entre os diferentes
vínculos atrás referidos, nomeadamente entre o vínculo nacional classista,
racial, étnico e sexual (idem. p. 145).

Para ele, contrario ao processo de descontextualização (liberal) e de


universalização (marxista) das identidades e das práticas, que permitiram
projetos universais de emancipação, “o novo contextualismo e particularismo
[pós-moderno] tornam difícil pensar estrategicamente a emancipação” (p. 147).
Nestes casos, afirma: “as lutas locais e as identidades contextuais tendem a
privilegiar o pensamento táctico em detrimento do pensamento estratégico”
(ibidem). Ou seja, para o autor, a “emancipação social” passa pelas lutas locais
(táticas) em torno de “identidades contextuais” (particulares), em detrimento da
ação estratégica, de emancipação universal, global (“humana”). Para ele:
a crise do pensamento estratégico emancipatório, mais do que uma crise
de princípios, é uma crise dos sujeitos sociais interessados na aplicação
destes e também dos modelos de sociedade em que tais princípios se
podem traduzir (p. 147).

Para Boaventura, estes são os verdadeiros “sujeitos sociais


emancipatórios”, constituídos a partir dos processos de identificações, das
identidades locais, promovendo as ações no plano tático em detrimento do
estratégico. Mas o autor transfere o antagonismo marxiano das classes sociais
para todas as “identidades”, equalizando a contradição e antagonismo entre as
classes com um suposto antagonismo em torno do sexo, da raça etc. Surgem
os “inimigos” a partir da diferença de “identidades”. Conforme afirma o autor, “a
multiplicação e sobreposição dos vínculos de identificação [...] particulariza as
relações e, com isso, faz proliferar os inimigos [...]” (p. 147).
Uma década mais tarde, Boaventura de Sousa Santos, ainda
pretendendo “renovar a teoria crítica” e “reinventar a emancipação social”,
esboça alguns comentários críticos sobre o “identitarismo” que tomou conta da
esquerda no mundo. O fundamento da crítica está na desarticulação operada
58

pela extrema segmentação própria da “lógica identitarista”. Assim, ele afirma:


“sem articulação, não iremos muito longe” (SANTOS, 2007, p. 99), e amplia:
Há um excesso de teorias de separação e muito poucas teorias de união,
por uma tradição nefasta, a meu ver, na política de esquerda: a crença de
que politizar uma questão é polarizar uma diferença. Para nossa tradição,
politizar significa polarizar (ibidem) (grifos nossos).

Boaventura parece ter acertado em cheio o nervo da cultura política pós-


moderna, que ele mesmo ajudou a constituir e difundir: a “lógica identitarista”
pós-moderna funda a ação política a partir da polarização de “micro-
identidades”, ou de “identidades” específicas, criando uma
oposição/polarização entre membros/não-membros, idênticos/diferentes;
oposição e polarização esta equalizada ao antagonismo de classes. Assim,
sustenta o autor que “é preciso buscar outra cultura política, que tem de se
basear no que chamo de pluralidades despolarizadas” (p. 99 e 101).
A pesar do fundamento da (auto)crítica ser profundo, o autor não avança
muito mais nele. Para o autor, esta “pluralidade despolarizada” de grupos e
processos de lutas representa uma “incompletude de [suas] propostas
políticas” (p. 101), sugerindo que o positivo destes processos está em não
apresentar de forma acabada um projeto político, de emancipação, um
resultado concreto a alcançar. E complementa que é preciso unir essas lutas,
mas “sem uma teoria geral” (p. 101 e 102) “que diga qual é o mais importante”
(p. 102), quais seriam as lutas, as reivindicações, os grupos, as “identidades”
mais importantes.
Claramente está batendo em tendências que no marxismo afirmaram (ou
ainda afirmam) ser a questão de classe mais “importante” que as questões de
gênero, raça etc. Certamente é um equivoco (teórico e político) afirmar que a
desigualdade de gênero, ou racial etc. sejam “secundárias”, ou “menos
importantes” que a contradição de classe (ver MONTAÑO e DURIGUETTO,
2010, p. 126-127; voltaremos a isso no item 6.3-B), mas como compreender a
realidade social, e como articular os movimentos e lutas “sem uma teoria
geral”, universal? Ao questionar e pretender eliminar a “teoria geral” ou
universal, na verdade, Boaventura está querendo excluir toda teoria social
moderna – liberalismo, marxismo, positivismo etc. –, colocando como teoria
interpretativa da realidade atual (apenas e unicamente) a teoria pós-moderna,
59

que se funda na ausência de uma compreensão universal e macrossocial da


realidade, apresentando teorias contingenciais, particularistas.
Ora, mesmo que algumas tendências do marxismo tenham realmente
secundarizado as formas de desigualdade, discriminação e opressão, apenas
legitimando a contradição de classe com superior, supostamente “primária” e
“mais importante” (e há que se fazer a crítica a estas afirmações), uma “teoria
geral” ou universal, particularmente a teoria marxista, que visa a superação da
ordem orientada para a emancipação humana, não tem por que priorizar qual
forma de opressão e/ou de luta é mais importante que as outras. Porém, uma
teoria universal deve nos mostrar os fundamentos sistêmicos da sociedade
(capitalista) que determinam e condicionam qualquer forma de opressão, de
discriminação e/ou de desigualdade social. Sem ela, não teremos a
compreensão dos fundamentos que articulam a questão de gênero, racial, de
classe, ecológica, nacional etc., no cerne da sociedade capitalista. Assim, toda
visão será parcial e necessariamente desarticuladora dos processos e lutas
particulares; cada um será visto e compreendido como fenômeno autônomo,
sem fundamentos comuns.
Vejamos então, por um lado, a equalização da categoria “classe social”
como mais uma “identidade”, e, por outro, os fundamentos pós-modernos sobre
a “identidade” e sua transformação em “identitarismo”, na construção de uma
“lógica identitarista”.

2.5- A “classe” como “identidade” no pensamento pós-


moderno.
O pensamento pós-moderno concebe a classe social como sendo mais
uma “identidade”: a “identidade de classe”. Neste sentido equalizam-se classe,
gênero e etnia, assim como outras formas de “identidades” (nacionalidade,
bairro, religião, grupo social, time de futebol, orientação sexual, necessidades
especiais etc., etc., etc.), como sendo todas da mesma espécie. Apenas
variando no impacto e abrangência social, mas todas elas “identidades”, que
peculiarizam um indivíduo e o identificam a um grupo, em oposição ao
diferente, ao não possuidor do atributo ou condição em questão.
60

Há aqui, ou uma “substituição” da categoria classe pela noção de


“identidade”, ou ao menos uma “equalização” da questão de classe como
sendo mais uma “identidade”, o que equipararia a classe com qualquer outra
forma de “identidade” pessoal ou grupal.
Para Ernest Laclau, conforme Woodward, “não somente a luta de
classes não é inevitável”, mais ainda, não seria “mais possível argumentar que
a emancipação social esteja nas mãos de uma única classe” (in SILVA, HALL e
WOODWARD, orgs., 2014, p. 30), optando pelas diversas e novas
“identidades” no lugar da classe.
Ellen Wood afirma ser oriundo da “teoria do pós-fordismo” e dos
“‘estudos culturais’ pós-modernos”, a percepção de que “as relações de classe
constitutivas do capitalismo [atual] representam apenas uma ‘identidade’
pessoal entre muitas outras” (WOOD, 2006, p. 205). A autora sustenta ser esta
visão gerada a partir da “fragmentação ‘pós-fordista’” da atual economia
capitalista, onde cada “fragmento” “abre espaço para lutas emancipatórias”
(ibidem). É produto desta fragmentação – de relações, experiências, estilos de
vida, “identidades” – que, conforme essas teorias, estaríamos vivendo num
“mundo pós-moderno”, “um mundo em que diversidade e diferença” teriam
dissolvido, conforme tais teorias, “todas as antigas certezas e todas a antigas
universidades” (idem, p. 220), derivando naquilo que Bauman (2003 e 1998)
chamou de realidade “líquida”.
Conforme aponta Wood, para o pensamento pós-moderno o conceito de
“identidade” teria “a virtude de, ao contrário das noções ‘reducionistas’ ou
‘essencialistas’ como classe, ter a capacidade de [...] abranger tudo, desde
gênero a classe, de etnia até raça ou preferência sexual”, sendo, para essa
perspectiva, a “identidade”, por esta maior abrangência, mais fecunda para
estudar a atual sociedade plural e multifragmentária do que a “classe” (WOOD,
2006, p. 220-221).
Porém, ao diluir a classe como mais uma “identidade”, se por um lado
nos permite ampliar o conhecimento da diversidade social, das variadas formas
de relação de opressão, de discriminação, de desigualdade, no entanto, por
outro, retira da nossa compreensão aquilo que remete aos fundamentos
estruturais da sociedade capitalista, isto é, a centralidade da classe social (da
qual trataremos no item 6.3).
61

Assim, com tal caracterização da “classe”, como sendo mais uma


“identidade”, o pensamento pós-moderno afirma não ser mais esta uma
questão, uma “identidade” central no capitalismo de final do século XX e no
século XXI.
Ao compreender a classe como uma “identidade”, num mesmo patamar
e dimensão, e equalizando-a às demais formas de “identidade”, o pensamento
pós-moderno fala de classe, gênero, etnia etc., como formas de “identidade”.
Neste sentido, todas essas “identidades” (incluindo a “classe”) são postas
igualmente na mesma perspectiva polarizadora: trabalhador vs. burguês;
homem vs. mulher; branco vs. negro etc.
Neste sentido, há, nesta corrente de pensamento, uma equivalente
oposição, na “identidade de classe”, entre trabalhadores e burgueses, como na
“identidade” de gênero, opondo homens e mulheres, na identidade racial,
contrapondo negros, brancos etc.
Assim, se como os pós-modernos entendem, a classe correspondesse a
mais uma “identidade”, então seria correto afirmar – como o fazem tanto um
pós-marxista como Jürgen Habermas, como um pós-moderno como
Boaventura de Sousa Santos – que esta, dado o elevadíssimo índice de
desemprego, de população expulsa ou excluída do mercado de trabalho, dos
trabalhos autônomos e informais, da subcontratação, do chamado
“empreendedorismo”, da chamada “classe média” etc., já não seria mais central
tanto para compreender a dinâmica do mundo contemporâneo como para
fomentar e congregar as lutas sociais. A classe, enquanto “identidade”, teria
perdido sua centralidade, na medidada que importantíssimos contingentes
populacionais já não se reconhecem nem se identificam com o (ou como)
trabalhador.
Isto, por um lado, leva a reflexão pós-moderna a reduzir a questão de
classe a uma questão de (auto) “percepção” individual ou coletiva dos sujeitos:
se o indivíduo (um camelô, ou trabalhador autônomo, ou um desempregado, ou
um “empreendedor”, ou membro de uma cooperativa etc.) não se “sentir”
pertencente à classe trabalhadora, então a questão de classe não lhe diria
respeito, não o identificaria, ou não se identificaria com ela, perdendo esta
categoria, para o pensamento pós-moderno, poder heurístico explicativo, e
poder político de convocatória, articulação e luta. Ora, a condição de classe (a
62

“classe em si”, conforme caracterização de Marx, em MARX e ENGELS, 1977,


p. 277), independe da (auto) percepção que o indivíduo tenha, de como se
“identifica”.
Mas, por outro lado, leva a análise pós-moderna a conceber a classe
como uma “identidade” dentro de uma relação de opressão, como outra
qualquer forma de “identidade”. Ora, a relação de classe não envolve apenas
uma questão de opressão, mas formas de alienação e particularmente de
exploração da riqueza socialmente produzida (ver item 6.3).
Ainda mais, por outro lado, ao absolutizar a “identidade” (racial, de
gênero, de orientação sexual, religiosa etc.), se desimportando com a
contradição de classes no seu interior, a análise pós-moderna não consegue
diferenciar as mulheres trabalhadoras das mulheres burguesas, os negros
trabalhadores dos negros burgueses, os muçulmanos trabalhadores dos
muçulmanos da elite política e econômica, os LGBTs trabalhadores dos LGBTs
burgueses. E ainda, como as chamadas pautas identitaristas pós-modernas
centram-se em direitos individuais ou grupais (e não universais) e na dimensão
cultural (e não estrutural), então acaba-se festejando, como conquistas dessas
pautas identitaristas, o sucesso de indivíduos que representam essa
“identidade”, mesmo que pertencendo às classes burguesas ou à elite, no
acesso ao poder político e ao establishment: um Barack Obama, uma
Condoleezza Rize, uma Margareth Tatcher, um Clodovil, uma Damares etc.,
mesmo que essa “conquista individual” em nada tenha alterado a relação de
opressão.
Desta forma, segundo afirma Ellen Wood, o problema das análises
identitaristas pós-modernas:
é que teorias que não distinguem [...] entre as muitas instituições e
“identidades” sociais são incapazes de enfrentar criticamente o
capitalismo. Como forma social específica, o capitalismo simplesmente
desaparece diante de nossos olhos, enterrado sob um monte de
fragmentos e “diferenças” (2006, p. 223).

Segundo a autora, para compreender (e para transformar) o capitalismo


contemporâneo, é necessário:
reconhecer que, ainda que todas as opressões tenham o mesmo peso
moral, a exploração de classe tem um status histórico diferente, uma
posição mais estratégica no centro do capitalismo; e a luta de classes
talvez tenha um alcance mais universal, um maior potencial de progresso
63

não somente da emancipação de classe, mas também de outras lutas


emancipatórias (idem, p. 224) (grifos nossos).

Assim, complementa a autora, é preciso uma teoria e um projeto social


“que reconheça a unidade sistêmica do capitalismo e que tenha a capacidade
de distinguir entre as relações constitutivas do capitalismo e outras
desigualdades e opressões” (ibidem). Isto é, uma teoria e um projeto
revolucionário, anticapitalista, que consiga aglutinar e articular todas as formas
de opressão e desigualdade particulares, com a contradição central da
sociedade capitalista entre capital e trabalho (o que trataremos nos capítulos 6
e 7).

2.6- Da categoria de “identidade” ao conceito de


“identitarismo”: a “lógica identitarista” pós-moderna na
polarização “nós”/“eles”.
É considerando os diversos níveis de consciência (ver item 2.2), e
portanto de construção de “identidades”, que vamos abordar a transformação
pós-moderna da “identidade” em “identitarismo”, a partir da construção de uma
“lógica identitarista” fundada na polarização “nós”/”eles”.
Se trata de uma mudança conceitual e categorial de análise da
realidade. Por tal motivo, primeiramente trataremos como o uso dos diferentes
conceitos e categorias impactam no conhecimento do real e nas ações políticas
neles fundados.

A) Categorias e conceitos de análise, e seu impacto no conhecimento e


nos processos de lutas.
Há uma distinção entre “conceitos”, como construções do pensamento, e
“categorias”, como “expressões realmente existentes da realidade” transpostas
ao pensamento. Assim, conforme Lukács,
as categorias não são elementos de uma arquitetura hierárquica e
sistemática [classificatória], mas, ao contrário, são, na realidade, “formas
de ser, determinações da existência”, elementos estruturais de complexos
relativamente totais, reais, dinâmicos, cujas inter-relações dinâmicas dão
lugar a complexos cada vez mais abrangentes (LUKÁCS, 2012, p. 297).
64

Estas categorias, na concepção marxiana, são do pensamento por


serem constitutivas (e extraídas) da realidade.
Assim, as categorias ou os conceitos empregados na análise dos fatos
condicionam o tipo de conhecimento produzido, o alcance da compreensão
sobre a realidade, e, portanto, as formas de ação delas desencadeadas. As
categorias e conceitos funcionam, para o cientista social, como o microscópio
ou o reagente para o biólogo. Conforme esclarece Marx, no Prefácio à 1ª
edição de O Capital, “na análise das formas econômicas, não se pode utilizar
nem microscópio nem reagentes químicos. A capacidade de abstração substitui
esses meios” (1980, p. 4), lembrando que a “abstração” constitui o primeiro
caminho metodológico do conhecimento, que vai da totalidade concreta real
para as particularidades e categorias mais simples. Isto é, mediante a
abstração chegamos às categorias que compõem a totalidade da realidade
concreta.
Desta forma, o tipo de categoria ou conceito empregado para o
conhecimento da realidade social, como o tipo de microscópio ou de reagente
na pesquisa micro-orgânica, vai levar a conhecimentos diferentes sobre o
mesmo fenômeno. Não é a mesma coisa o conhecimento alcançado sobre a
realidade contemporânea a partir da análise de umas ou outras categorias ou
conceitos: contradição ou disfunção, antinomias e harmonia; exploração ou
exclusão; classe social (fundada no processo de produção), ou classe rica e
pobre (ou alta, média e baixa), ou ainda cidadania ou povo; lutas de classes ou
ação social; imperialismo ou globalização; sociedade civil ou terceiro setor;
transformação ou mudança etc.
Por quê? Porque a contradição trata do antagonismo, do movimento e
da transformação, mas a “harmonia” ou a “disfunção” pressupõem um sistema
perfectível mas perene; a exploração faz referência à relação contraditória
entre as classes fundamentais no processo de produção do MPC (capital e
trabalho), e sua eliminação supõe a superação da ordem capitalista, enquanto
a “exclusão” remete a qualquer forma de desigualdade, e sua resolução passa
pela “inclusão” (dentro da ordem social vigente); a classe social (fundada no
processo de produção, como analisada por Marx) remete à relação
contraditória entre os dois sujeitos fundamentais da produção capitalista (donos
de força de trabalho e donos de meios de produção), entretanto a noção de
65

“classe” como ricos ou pobres trata de uma diferença (de poder aquisitivo,
como a interpretação weberiana) mas não de uma contradição, e ainda,
enquanto a classe mostra a contradição fundada na divisão social do trabalho,
o povo e a cidadania a escondem; as lutas de classes remetem a um processo
de conflito (manifesto ou latente) que enfrenta as classes antagônicas, mas a
ação social via de regra está ligada à colaboração ou parceria entre classes, e
induz o ocultamento de tais antagonismos e contradições, supondo uma
abstrata comunhão de interesses; o imperialismo remete a uma ordem mundial
marcada pelo monopolismo, pela fusão do capital bancário e industrial, pelo
desenvolvimento desigual e combinado (países de centro e periferia, em
relação de dependência), sendo que a chamada “globalização” esconde um
processo histórico, o naturaliza e oculta o sujeito; a sociedade civil remete
(mesmo com tratamentos diferentes por autores de diversas tradições teóricas)
a uma esfera da totalidade social saturada de contradições e lutas, enquanto o
chamado “terceiro setor” supõe sua desarticulação da totalidade e sua
homogeneidade e harmonia; a transformação significa a superação estrutural
da ordem burguesa, do MPC, mas as “mudanças” remetem a alterações dentro
do sistema vigente.
As categorias e os conceitos representam o arsenal heurístico, as
ferramentas de pesquisa do cientista social, apontando aonde e o que vai se
observar da realidade. Portanto, o grau e tipo de conhecimento alcançado
dependem do tipo de categorias e conceitos observados e analisados.
Mas estas categorias, mais universais no MPC, não ajudam a
compreender apenas a estrutura social mais ampla. Seu emprego no processo
de conhecimento dos fenômenos particulares – a questão do Estado, as
políticas sociais, a desigualdade de gênero, a questão étnica, assim como as
questões “identitárias” etc. – ou até singulares e locais – questões num grupo,
numa família, num território determinados –, também é fundamental para o
conhecimento crítico que consiga captar a essência desses fenômenos no
interior da totalidade social.
Em sentido contrário, as correntes de pensamento formalistas e
abstratos (positivismo e neopositivismo), tratam dos fenômenos e das
particularidades na sua dimensão abstrata, isto é, como processos autônomos
da totalidade social, prescindindo das categorias universais, ou mediante
66

conceitos, construídos intelectivamente, como a “globalização”, o “terceiro


setor” etc., sem existência real objetiva. Por seu turno, o pensamento pós-
moderno, autonomiza os fenômenos ao nível da sua singularidade, porém
constituída pela subjetividade, a partir da vivência, da percepção dos
indivíduos.
Neste sentido, por um lado, tratar questões reais, condições objetivas de
vida, como a opressão, discriminação e desigualdade racial, de gênero, por
orientação sexual etc., como “identidades”, formas de auto-percepção,
construções simbólicas, individual ou coletivamente, certamente expressa uma
mudança conceitual-categorial significativa, orientada pela primazia da
subjetividade (da percepção subjetiva dos fatos, na construção de
“identidades”) por sobre a condição ou situação objetivas. Nesta mudança
conceitual-categorial, que desconsidera ou relativiza a “condição objetiva” e
passa a se sustentar na “identidade”, há profundos impactos no conhecimento
da realidade e portanto na ação política.
A partir daí, e por outro lado, tratar das lutas antiopressivas, voltadas às
causas particulares, como “pautas identitárias”, igualmente constitui uma
significativa mudança conceitual-categorial, que entendemos, contribui com
uma certa despolitização. A transformação das causas e lutas antiopressivas
(compreendidas a partir da totalidade social) em “pautas” (conjunto de
reivindicações), também, gera impactos profundos tanto na apropriação teórica
do real como na ação política.
Há aqui, uma substituição das categorias objetivas, realmente
existentes, enquanto “formas de ser” e “determinações da existência”, inseridas
numa totalidade social, por conceitos e termos onde prima a subjetividade, a
auto-percepção, o universo simbólico, e ainda dissociados da totalidade.
Certamente, com esta mudança conceitual-categorial, assim como no uso de
diferentes reagentes ou microscópios do biólogo, há uma fundamental diferente
compreensão dos fenômenos particulares, primando a subjetividade sobre a
condição real, e autonomizando o fato da dimensão estrutural, universal.
Em síntese, no plano cognitivo, a substituição de “condições objetivas de
vida” por “identidades”, onde prima o aspecto simbólico e subjetivo, leva a um
tipo de conhecimento sobre estes processos, que, se por um lado nos amplia o
conhecimento da diversidade de fenômenos sociais, por outro lado representa
67

uma perda no processo de compreensão da realidade objetiva, inserida numa


totalidade, que será subordinada à construção e elaboração subjetiva.
Em idêntico sentido, no plano político, a substituição do conceito de
“lutas antiopressivas” por “pautas identitárias”, como na formulação pós-
moderna, impacta profunda e visivelmente na compreensão, e na orientação e
ação política desses grupos.
Não se trata apenas de “termos” diferentes, mas de conceitos e
categorias diferentes, portanto, de instrumentos de análise e compreensão da
realidade diversos, produzindo conhecimentos, e portanto ações, distintos.
O uso dos conceitos oriundos da racionalidade pós-moderna certamente
não poderia deixar de impactar na compreensão dos fenômenos e na ação
política em torno deles.
Ora, não se trata de uma escolha entre abrangência de fenômenos ou
profundidade da análise. Ou elegemos conceitos que dizem respeito a maior
número e diversidade de casos e fenômenos – como a “exclusão social” –,
perdendo a capacidade de compreensão dos mesmos na sua essência, nos
seus fundamentos, na sua articulação com a totalidade social. Ou escolhemos
categorias que dão conta da complexidade dos mesmos, alcançando a
compreensão de seus fundamentos, sua essência, chegando às suas raízes –
como a “exploração” da mais-valia –, porém, mais restritas a fenômenos
determinados e específicos. O caminho do conhecimento crítico deve ser
abrangente, sem deixar de tratar a diversidade da realidade social, e profundo,
alcançando a essência e seus fundamentos na totalidade social. Como afirma
Eduardo Galeano, devemos ter “um olho no telescópio” e o “outro olho no
microscópio”.
É por isto que, em certos textos Marx se debruça mais nos fundamentos
estruturais do MPC (em O Capital, por exemplo), entanto em outros trata das
variadas manifestações das relações sociais (em Luta de Classes na França,
por exemplo). Isto é, combinando a análise estrutural com a análise
fenomênica, na vida cotidiana, ou o que o próprio Marx chama de “formações
econômicas e sociais”.
68

B) “Identidade” subalterna/oprimida e “identidade”


hegemônica/dominante.
Geralmente associamos a “identidade” e as causas e lutas identitárias
aos grupos ou coletivos oprimidos e subalternos, às chamadas “minorias”, aos
grupos ditos “marginais” ou “periféricos”.
Pareceria que o conceito e o processo de “identidade” existissem
apenas nesses grupos e coletivos.
Certo é que o termo ganha notoriedade precisamente por surgir
vinculado às lutas desses grupos, que não querem mais suas vozes
silenciadas, seus direitos desrespeitados, e que se insurgem contra a
opressão, a discriminação e a desigualdade.
Porém, se a “identidade” existe num grupo subalterno é porque ela
representa o lado não dominante numa dada relação, geralmente de opressão,
discriminação ou desigualdade social. Não haveria, por exemplo, “identidade”
racial num país onde não há desigualdade ou até diferenças raciais. Ela se
desenvolve apenas em contextos onde a raça foi pretexto para a escravidão, a
partir da qual se monta todo tipo de discriminação e desigualdade,
perpetuando-se mesmo após a superação do regime escravocrata.
A “identidade”, por sua natureza, tem necessariamente ao menos dois
lados, sem o qual não teria sentido a mesma. Não tem sentido uma
“identidade” sobre um atributo que está presente na totalidade dos indivíduos, e
que não gera diferença, desigualdade, opressão, discriminação e, portanto,
polarização social. Isto é, as pautas feministas, antirracistas, LGBT etc., de um
lado, só tem sentido porque elas existem em função do outro lado, o
machismo, o racismo, a homofobia, constituindo uma relação, não de
igualdade, mas de opressão, discriminação, desigualdade e discriminação.
Desta forma, se o conceito de “identidade” geralmente está associado a
grupos oprimidos, subalternizados ou discriminados, e a suas causas, “pautas”
e lutas antiopressoras e progressistas, não obstante, existem também
“identidades” entre grupos dominantes e de perspectivas conservadoras ou
moralistas, como a “identidade nacional” e o “patriotismo”, como o
“supremacismo branco”, como certas “identidades religiosas”, como a
“identidade” com um bairro de elite etc.
69

Isto é, tal como é frequentemente entendida, a “identidade” diz respeito


ao lado subalterno e oprimido dentro de uma determinada relação social, de
gênero, racial etc., assim, a “identidade” da mulher, do negro, do imigrante,
LGBT, dos povos originários etc.
O outro lado da relação, o lado dominante, hegemônico, não se
apresenta como “identidade”, mas como o “normal”, o “status quo”, o “superior”,
o “dever ser”. Não se fala, pois, nem parece haver uma construção social de
“identidade” do homem, do branco, heterossexual, do nacional.
Para Tomaz da Silva, “fixar uma determinada identidade como a norma
é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades e das
diferenças”; desta forma, continua, “normatizar significa eleger –
arbitrariamente – uma identidade específica como o parâmetro em relação ao
qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normatizar significa
atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis” (in
SILVA, HALL e WOODWARD, orgs., 2014, p. 83). Assim, “a força da
identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas
simplesmente como a identidade” (ibidem).
Aqui radica o profundo erro conceitual... e político, de boa parte das
interpretações sobre a “identidade”.
Se a “identidade” expressa um coletivo, situado no polo subalterno e
oprimido de uma relação, então ela diz respeito a essa relação social.
Portanto, se o conceito remete a uma relação social, ele
necessariamente está presente em ambos os lados ou polos da relação.
Assim, se há uma “identidade” subalterna ou oprimida, então há uma
“identidade” hegemônica ou dominante.
É claro que o reconhecimento social aparece como exclusivo apenas
dos grupos e coletivos subalternos. Isso basicamente por dois motivos: porque
assim é tratado nos discursos, e porque é o grupo que, por ser oprimido,
silenciado, subalternizado, precisa se construir como grupo identitário para
enfrentar e se opor a essa relação de opressão e desigualdade, entanto o
grupo hegemônico transforma ideologicamente sua “identidade” em
“normalidade”. Não precisa se constituir como grupo... apenas quando se sente
“ameaçado” pelos grupos subalternos.
70

Porém, e mesmo que de forma camuflada como “natural”, ou escondida


atrás de uma suposta “normalidade”, há sim uma construção ideológica dessa
“normalidade” e “superioridade” nas “identidades” branca, masculina,
heterossexual, rica, católica, nacional. Dessa ideologia de raça superior (e
inferior), religião verdadeira e santa (e pagã), de sexo forte e racional (e débil e
emocional), de orientação sexual moral (e profana, amoral), de família nuclear
sagrada (e herege) etc., legitima-se toda a dominação, opressão e
desigualdade sobre os que não cumprem com estes atributos tidos como
“normais”, como “corretos” ou como “superiores”.
Manter camuflada e não reconhecer esta “identidade” hegemônica
representa, como afirmamos, um profundo equívoco conceitual e teórico, pois
nos faz pensar a questão da “identidade” como expressão apenas de grupos
subalternos, nos impedindo perceber que se trata de uma relação social.
Porém, também o mencionamos, este erro teórico pode derivar num
profundo erro político. Aceitando a suposta “normalidade” e o “dever ser”, não
como uma “identidade” hegemônica, do elo dominante da relação de opressão,
pode-se pensar que a solução da desigualdade passaria pela eliminação da
diferença, levando todos à condição de “normal”.
Ora, a diferença entre as pessoas é insuprimível, considerando que cada
indivíduo, e cada grupo de indivíduos, têm suas características e atributos
particulares. Há uma distinção fundamental entre igualdade e desigualdade
sociais e entre identidade e diferença (trataremos disso a seguir e no item 6.1).
Desta forma, com tal erro conceitual, deriva-se numa ação muito mais focada
nos indivíduos do que na estrutura e na cultura de opressão e desigualdade,
muito mais individualista e menos estrutural.

C) A “lógica identitarista” pós-moderna na polarização entre “nós” e


“eles”.
É a partir da existência destes, ao menos, dois lados da relação, que a
análise pós-moderna opera uma polarização pessoalizada entre “nós” e “eles”,
fundada no que aqui vamos chamar de “lógica identitarista”.
Parece evidente afirmar que, se há “identidade” num grupo ou coletivo, é
porque há a “diferença” com outro/s grupo/s ou coletivo/s, os “diferentes”. O
71

mesmo atributo que cria a “identidade” num grupo (“nós”), é aquele que
constitui a diferença com os outros (“eles”).
Porém, como vimos, por se tratar, via de regra, de uma relação de
desigualdade, discriminação e opressão, na análise pós-moderna, todo e cada
sujeito diferente passa a ser visto e tratado, individual e pessoalmente, como
“opressor”, como “inimigo”, como “vitimário”, real ou potencial. Assim, a relação
“identidade”/“diferença” passa a ser considerada a partir da polarização entre
“nós” e “eles”, “vítimas” e “vitimários”, “identitários” e “inimigos”. A análise pós-
moderna opera uma dada polarização, onde cada sujeito diferente será visto,
real ou potencialmente, como inimigo.
Assim, neste processo analítico, da estrutura e da cultura racista,
machista etc., se passa para a pessoa e o indivíduo racista, machista etc.,
onde toda pessoa branca será vista, real ou potencialmente, como inimiga da
pessoa negra, onde todo homem será considerado, real ou potencialmente,
como vitimário e agressor da mulher etc. O inimigo, e portanto o alvo da luta,
deixa de ser a estrutura, a cultura, e passa a ser a pessoa, o indivíduo
diferente.
Há, portanto, nesta racionalidade, que despreza as macro-teorias e a
análise estrutural, uma individualização e pessoalização na polarização entre
“nós” e “eles”, entre o “identitário” e o “diferente”, a partir do qual se funda uma
“lógica identitarista”.
O pensamento “identitarista” pós-moderno centra-se na diferença entre
as formações ou grupos sociais. A relação estrutural é substituída pela
oposição (ou polarização) inter-pessoal.
Há aqui um par dialético “identidade/diferença” (trataremos das dialéticas
“identidade/diferença” e “igualdade/desigualdade” no item 6.1). É neste sentido
que, tratando do “pós-modernismo e a louvação da diferença”, Kenan Malik
atribui ao pensamento pós-moderno o fato de tratar “o sentido das formas
sociais não em relações, mas em diferenças” (in WOOD e FOSTER, 1999, p.
125).
A partir desta identidade/diferença, que identifica o “nós” e o diferencia
do “eles”, o pensamento pós-moderno estabelece uma articulação, uma
vinculação entre os sujeitos que compartilham o mesmo atributo, a mesma
“identidade”, e uma polarização, uma antagonização entre “nós” e “eles”. A
72

“identidade” teria na atualidade, para pensamento pós-moderno (herdeiro,


nesse aspecto, do “princípio de oposição” do acionalismo), um poder
aglutinador e mobilizador muito maior que a questão de classe.
Com isto, na “lógica identitarista” pós-moderna, é em torno de
“identidades” que os sujeitos se organizam para tratar das questões (de direitos
e acesso a bens e serviços) ligadas a essa “identidade”, e desenvolver sua
ação política tendo o diferente, o não possuidor desse atributo, como seu
adversário, como seu inimigo, como responsável da falta de direito e como
obstáculo para sua consecução, pondo-o como alvo e objetivo de sua luta,
perseguindo sua destruição, submissão, ou a punição do outro, do diferente.
A “lógica identitarista”, portanto, é uma lógica polarizadora, oposicionista,
antagonista de todos e cada indivíduo em ambos os lados da relação, impondo
a necessidade do extermínio do outro, tido como inimigo.
Trata-se, portanto, da polarização entre “nós” (o semelhante, o co-
identitário) e “eles” (o “diferente”), vivenciando uma relação de ameaça do
“diferente” (algozes, reais ou potenciais) sobre os sujeitos da “identidade” (as
reais ou virtuais e potenciais vítimas). Porém a polarização não se dá com todo
indivíduo diferente, ou não pertencente à “identidade” em questão, mas com
aquele diferente considerado oposto, antagônico, contrário. A polarização via
de regra envolve dois polos, não apenas distintos, mas vistos como contrários.
A “lógica identitarista”, assim, estimula uma compreensão binária da
realidade, separando o “nós” do “eles”, os que pertencem a essa “identidade” e
aqueles de fora, que não pertencem a ela. E nesta compreensão e divisão
social, cria um antagonismo entre “nós” e “eles”. Quanto mais forte a
“identidade” na percepção do sujeito, mais ele verá o mundo dividido e
antagonizado entre “nós” e “eles”, mais essa “identidade” será objeto de
organização e de luta, mais se amará o membro da “identidade”, e se odiará o
diferente. Desta forma, a tática e a estratégia política pós-moderna consistem
em tornar cada vez mais intensa a “identidade” em questão, tendo uma
percepção cada vez mais impactante para os indivíduos, para acirrar mais a
oposição entre “nós” e “eles”, com o objetivo assim de promover a maior
adesão e solidariedade internas, e as organizações e movimentos sociais e
ações políticas identitaristas.
73

Para Woodward, ao tratar da relação “identidade”/diferença, fundadas


culturalmente, “as culturas fornecem sistemas classificatórios, estabelecendo
fronteiras simbólicas entre o que está incluído e o que está excluído” (in SILVA,
HALL e WOODWARD, orgs., 2014, p. 50). Segundo ela, as “identidades” são
construídas e formadas em relação a outras identidades (diferentes), sendo
que “essa construção aparece, mais comumente, sob a forma de oposição
binária” (ibidem). Conforme aponta a autora, “Derrida argumenta que a relação
entre os dois termos de uma oposição binária envolve um desequilíbrio
necessário de poder entre eles” (idem, p. 51). Para ela, citando Cixous, nesta
oposição binária, um lado “é a norma” e o outro lado “é o outro”, o diferente,
“visto como ‘desviante ou de fora’” (idem, p. 51-52). Porém, em contraste,
Irigaray entende que a diferença não é necessariamente oposição, assim, “as
mulheres e os homens têm sexualidade diferentes mas não opostas” (idem,
p.53).
Em sintonia com o anterior, também numa perspectiva anti-essencialista,
conforme Tomaz T. da Silva,
a identidade e a diferença têm que ser ativamente produzidas. Elas não
são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do
mundo cultural e social. Somos nós que as fabricamos, no contexto de
relações culturais e sociais. A identidade e a diferença são criações sociais
e culturais [...]
[...] identidade e diferença são o resultado de atos de criação linguística [...]
(in SILVA, HALL e WOODWARD, orgs., 2014, p. 76).

O autor continua, sendo, a “identidade” e a diferença, uma produção


simbólica e discursiva, elas representam também “uma relação social”, mais
especificamente uma “relação de poder” (idem, p. 81). Para ele, “a identidade
está sempre ligada a uma forte separação entre ‘nós’ e ‘eles’”, pressupondo e
reafirmando uma “relação de poder”. “Nós” e “eles” expressam “posições-de-
sujeito fortemente marcadas por relações de poder” (idem, p. 82).
Segundo Silva, para Jacques Derrida, “as oposições binárias não
expressam uma simples divisão do mundo em duas classes simétricas: em
uma oposição binária, um dos termos é sempre privilegiado, recebendo um
valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga negativa” (idem, p. 83). Para
ele, “as relações de identidade e diferença ordenam-se, todas, em torno de
oposições binárias: masculino/feminino, branco/negro,
heterossexual/homossexual” (ibidem).
74

Por seu turno, para Stuart Hall, um dos referentes teóricos do


identitarismo cultural, “as identidades são construídas por meio da diferença e
não fora dela. Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que
[em concordância com Derrida, Laclau e Butler] é apenas por meio da relação
com o Outro, da relação com aquilo que não é [...], com aquilo que tem sido
chamado de seu exterior constitutivo [...]” que a identidade pode ser construída
(in SILVA, HALL e WOODWARD, orgs., 2014, p. 110). Conforme ele, “as
identidades podem funcionar [...] como pontos de identificação e apego apenas
por causa de sua capacidade para excluir, para deixar de fora, para transformar
o diferente em ‘exterior’, em abjeto” (ibidem). O autor concorda com Laclau
para quem “a constituição de uma identidade social é um ato de poder”, pois,
“se uma identidade consegue se afirmar é apenas por meio da repressão
daquilo que a ameaça”; conforme Laclau, “Derrida mostrou como a constituição
de uma identidade está sempre baseada no ato de excluir algo e de
estabelecer uma violenta hierarquia entre os dois polos resultantes –
homem/mulher etc.” (ibidem).
Ora, nesta concepção, apresentada por Woodward, por Silva e por Hall,
em concordância com Derrida e com Laclau, sempre e necessariamente a
“identidade” se apresenta numa relação binária com o “diferente”, e sempre
expressando necessariamente uma relação desigual de poder, isto é, uma
relação de opressão. Neste sentido, entre homens e mulheres, por exemplo,
sempre deverá haver uma relação de dominação, de desigualdade, de
opressão. Cabe perguntar, então: como e por quê combater a desigualdade e
opressão entre dois grupos (duas “identidades” opostas) entre os quais sempre
haveria necessariamente uma relação de opressão?
Neste processo de polarização e necessária opressão, conforme esta
análise, formam-se “novos” sujeitos, organizados a partir de suas “identidades”,
em grupos, coletivos ou movimentos sociais “identitários”, com forte presença e
articulação nas redes sociais.
Assim, conforme Jameson, na formação destes “novos sujeitos
históricos”, ou estas “novas identidades coletivas”, foi preciso a constituição “de
inimigos de fora para sobreviver como grupo, para criar e perpetuar um sentido
de coesão e identidades coletivas”, passando a ver o “outro”, o “diferente”, o
“eles” como inimigo do “nós” (1991, p; 98). Conforme o autor, este processo de
75

constituição de novas identidades levará ao desenvolvimento de “unidades


menores e mais confortáveis de microgrupos em confronto direto” com seus
adversários imediatos (idem, p. 98-99).
Por conta disto, e a partir da afirmativa pós-moderna (assim como
também, pós-estruturalista e pós-marxista) de que o trabalho e a classe não
representam mais uma força de articulação política, estas correntes entendem
que o novo e mais forte elemento de congregação e mobilização é a
“identidade”. A “identidade” representaria um maior potencial de aglutinação e
mobilização política, maior que a classe social. Isto aparece, por exemplo, no
manifesto de 1977 do Coletivo Combahee River, onde se afirma que “a política
mais profunda, e potencialmente mais radical, vem diretamente da nossa
própria identidade, em oposição a trabalhar para pôr fim à opressão de outrem”
(apud HAIDER, 2019, p. 32 e LILLA, 2018, p. 69).
Porém, a “lógica identitarista” pós-moderna, por um lado procede a uma
pessoalização dessa polarização “nós/eles”, e ainda opera também uma
destotalização da questão, a qual é levada para sua mera singularidade, como
questão autônoma retirada da dimensão universal, da totalidade social (ver
item 7.2-B). Neste procedimento cognitivo, a compreensão enviesada da
questão traz consigo certos riscos não pequenos. As causas pontuais, quando
absolutizadas e desarticuladas da totalidade, quando retiradas dos
fundamentos capitalistas da contradição de classe, pode pender para um lado
progressista ou conservador.
Pensemos, por exemplo, nas reivindicações das mobilizações de junho
de 2013 no Brasil, inicialmente por “passe livre”, depois contra a corrupção, e
como elas acabaram sendo “tomadas” e conduzidas (manipuladas) pela grande
mídia (Globo à frente), derivando no golpe institucional de Estado
(impeachment) da presidenta Dilma Roussef. Lembremos também, nas lutas
contra a opressão do Estado, do Sindicato “Solidariedade” (Solidarność), na
Polônia, liderado por Lech Walesa, nos anos 80, se tornando um movimento
eminentemente anti-comunista e anti-soviético. Consideremos o processo do
Bréxit, na Inglaterra, como um movimento que se tornou fundamentalista, de
extremo nacionalismo, e ultraconservador.
Desta forma, a polarização operada pela “lógica identitarista” pós-
moderna, a partir da sua pessoalização e destotalização, mesmo que com um
76

sentido progressista, tem os mesmos fundamentos que a polarização


identitarista própria dos grupos dominantes (da extrema direita, do
fundamentalismo religioso, e até do fascismo, visando a eliminação, individual
e coletiva, dos diferentes, tidos também como ameaças e como “inimigos”). É
neste sentido que Haider aponta que a “eficiência da armadilha identitária está
no seu duplo funcionamento, que serve tanto à ‘direita’ quanto à ‘esquerda
antirrevolucionária’” (HAIDER, 2019, p. 13) ou “possibilista”.
Também o antropólogo liberal, Antonio Risério, aponta o fato desta
lógica identitarista ter um lado, na esquerda, e outro, na direita, apontando que
“em matéria de ‘caça às bruxas”, muito embora com sinais ideológicos
pretensamente opostos” podemos encontrar na direita “o velho macarthismo” e
na esquerda “o novel identitarismo” (2019, p. 22).
O ultra-nacionalismo de direita, a xenofobia, o “supremacismo” branco, o
fundamentalismo religioso, tudo isso se funda (numa outra moral) também
numa “lógica identitarista”.
A diferença (não pequena) está em que o identitarismo de esquerda
trata dos oprimidos, enquanto o de direita diz respeito, em geral, aos
opressores. Mesmo assim, é também uma característica dos grupos fascistas
(mesmo os “supremacistas” e opressores/dominadores) a sua “vitimização” tal
como aponta Stanley (2019, p. 97 e ss.), vendo o “outro” como vitimário, como
ameaça.
Na mesma trilha, o italiano Umberto Eco (2018) aponta, dentre as 14
características do fascismo, por um lado, a busca do consenso e unidade
exacerbando o “medo à diferença” (idem, p. 49-50), a partir da exploração da
“frustração individual”, típica das “classes médias”, “frustradas” e que se
sentem “ameaçadas” pelos de “baixo”, e tendo o “nacionalismo” como uma
fonte de identidade social (ibidem) que aglutina e organiza este movimento. 5
Também Stanley, ao tratar do fascismo como “a política do ‘nós’ e ‘eles’”,
afirma que “no cerne do fascismo está a lealdade à tribo, à identidade étnica, à
religião, à tradição ou, em uma palavra, à nação” (STANLEY, 2019, p. 101),
fundando uma espécie de “vitimização”, ou seja, tratando o grupo de

5 Ver também em: <https://outraspalavras.net/outrasmidias/onze-sinais-do-fascismo-


segundo-umberto-eco/>; ou <https://operamundi.uol.com.br/samuel/43281/umberto-eco-14-
licoes-para-identificar-o-neofascismo-e-o-fascismo-eterno>; acesso em: dez. de 2019.
77

“identidade” como “vítima”, perante o diferente como seu opressor (idem, p. 97


e ss.); isto é, o fascismo se legitima quando consegue criar num grupo de
identidade (particularmente a “nação” e o “supremacismo” racial) a sensação
de sentir os diferentes como inimigos, como ameaças, como opressores, como
risco contra o considerado “normal”, exacerbando o desejo de se levantarem
contra esse inimigo, contra essa ameaça, contra os diferentes, e destruí-lo,
aniquilá-los, antes de serem aniquilados.
Em síntese, a polarização “nós”/“eles” está presente tanto no campo
progressista, das esquerdas, dos grupos subalternos, quanto no campo
conservador e até fascista, da direita, muitas vezes presente nos grupos
dominantes. A análise pós-moderna concebe essa polarização, não no plano
estrutural, mas como uma oposição ou antagonismo entre pessoas, na esfera
individual.
Ora, uma coisa é conceber a opressão como uma relação social de
opressão, portanto, uma questão estrutural, plasmada institucional e
culturalmente. Outra coisa completamente diferente – e aqui o subjetivismo do
pensamento pós-moderno deita as bases para tal entendimento – é supor que
esta relação se esgota no plano interpessoal, não tendo um fundamento
estrutural, cultural, histórico. Vejamos.

D) Da opressão como expressão estrutural à relação interpessoal.


Como vimos, não podemos negar a existência real da/s “identidade/s”,
e nem o fato de muitas delas estarem sujeitas a estruturas e culturas
discriminatórias, de opressão e relações de desigualdades (ver itens 2.1 e 2.3-
A).
Os indivíduos são constituídos por várias “identidades”, ou, melhor
dizendo, por vários “atributos” e condições (tenham ou não clareza ou
consciência deles, ou ainda, sejam eles ou não assumidos ou centrais na vida
das pessoas), ou situações (muitas delas expressando relações de
desigualdade, discriminação e opressão).
Assim, a diversidade de atributos e situações (objetivos) e de
“identidades” (representações subjetivas) que fazem parte dos indivíduos e
coletivos é uma realidade inegável. Alguns deles tornam-se mais relevantes e
centrais para os sujeitos, por ocuparem uma dimensão maior, ou pelo impacto
78

que tem na vida e na formação da personalidade dos indivíduos,


particularmente aquelas “identidades” objeto de discriminação, opressão,
desigualdade.
No entanto, dada a diversidade de características, atributos e situações
que fazem parte das pessoas, e de “identidades” constitutivas dos indivíduos e
coletivos, não podemos ignorar que eles respondem a tipos de relações
diferentes e têm pesos e determinações diversos, havendo aspectos ou
“identidades” transitórios (como questões relacionadas a uma fase da vida) ou
permanentes (como uma característica física), socialmente relevantes (como
questões raciais, religiosas etc.) ou de menor resistência (como preferências
nutricionais, musicais ou estilos visuais), que representam estar do lado dos
dominantes (como o pertencimento a uma casta socialmente dominante) ou
dos subalternos (como sua condição de “minoria”), que representa alto grau de
paixão ou envolvimento pessoal (com o pertencimento a uma torcida de
futebol, ou com uma igreja fundamentalista) ou não, de forte impacto na
construção da personalidade (como ter sido objeto de abuso sexual na
infância) ou não.
Assim, tanto os atributos (objetivos), as “condições reais” que fazem
parte da vida dos sujeitos, quanto suas formas de percepção, de construção de
suas “identidades” (subjetivas), todos eles possuem existência real, que não
pode nem deve ser desconhecida ou desconsiderada. Aqui, portanto, não está
em questão reconhecer a existência real desses “atributos” e dessas
“identidades”.
Porém, o problema aparece, por um lado, quando o pensamento pós-
moderno trata de igual forma e como a mesma relevância e peso social todos
os atributos e “identidades”. Assim, como afirma Malik:
O reconhecimento de que seres humanos estão sujeitos a reivindicações e
identidades conflitantes é de evidente importância. O problema surge,
contudo, quando todas as ‘identidades’, quaisquer que sejam suas formas,
são tratadas como equivalentes, de modo tal que preferências pessoais
em estilo de vida, como os ‘estilos musicais’, recebem o mesmo peso e
importância que atributos físicos, tais como ‘deficiência física’ ou alguns
produtos sociais como raça e classe, enquanto, ao mesmo tempo, cada
identidade é concebida à parte de relações sociais específicas (in WOOD e
FOSTER, 1999, p. 127).

A intelectual marxista Ellen Wood também vai tratar deste ponto,


afirmando que o “novo pluralismo” (pós-moderno), fundado no conceito e
79

política de “identidade” – diferente do “velho pluralismo” liberal –, teria, segundo


seus defensores, a virtude de:
abranger tudo, desde gênero a classe, de etnia até raça ou preferência
sexual. A “política de identidade” afirma então ser mais afinada em sua
sensibilidade com a complexidade da experiência humana e mais inclusiva
no alcance emancipatório do que a velha política do socialismo (WOOD,
2006, p. 220-221).

É neste sentido, também, que Asad Haider vai questionar o que chama
da “divina trindade” identitarista: “raça, gênero e classe”, na medida em que
cada uma trata de um tipo de relação social inteiramente diferente (HAIDER,
2019, p. 36).
Porém, reconhecer a real existência de atributos e identidades dos
sujeitos não significa afirmar a “lógica identitarista”. A “identidade” (como
condição ou como percepção do real) não equivale a “identitarismo”, ou à
“lógica identitarista”; pois enquanto a “identidade” expressa uma realidade
(objetiva ou subjetiva) das pessoas, a “lógica identitarista” representa a sua
compreensão pós-moderna.
Há aqui, na apropriação pós-moderna, a passagem da categoria de
“identidade”, enquanto construção simbólica da auto-representação do
sujeito, individual ou coletivo, a partir de uma relação social de opressão, em
alguns casos estrutural (ver item 2.3-A), para o de “identitarismo”, fundado
no que chamamos de uma “lógica identitarista”.
Assim, a “lógica identitarista” pós-moderna (que alguns autores tratam,
a partir da experiência norte-americana, como “política identitarista”, como
HAIDER, 2019, p. 31, LILLA, 2018 e WOOD, 2006, p. 205), reduz a questão da
“identidade” a apenas uma delas, isolando-a das outras, e do sistema social
mais amplo, além de operar uma individualização, pessoalização e
subjetivação da “identidade”. É aqui, no isolamento e individualização de uma
única “identidade” dos indivíduos, que esta passa a ser tratada, no pensamento
pós-moderno, a partir da “polarização”: “nós”/“eles”.
A “lógica identitarista” pós-moderna, portanto, transforma a oposição (da
qual trata Touraine, ver item 1.1-A) em torno de uma cultura, de uma estrutura
(machista, racista, xenofóbica, homofóbica etc.) em oposição entre indivíduos
(como expressões dessa cultura), abandonando, ainda mais, o princípio
80

tourainiano de totalidade, limitando a luta política a “um conflito específico” a


partir de uma “identidade” específica.
As lutas emancipatórias centradas nas estruturas de desigualdade de
classes e de setores sociais, se orientam para alcançar a igualdade social.
Aqui, o que está em questão são as estruturas de opressão e desigualdade, e
o que se almeja é a transformação desse sistema estruturalmente desigual e
opressor, visando a igualdade social (ver itens 6.1, 6.3 e 7.2).
Contrariamente, as lutas centradas na “lógica identitarista” pós-moderna
não combatem a estrutura de desigualdade, mas as relações entre sujeitos
diferentes, enfrentando os sujeitos de uma “identidade” aos “diferentes”, o “nós”
contra o “eles”. Estas, portanto, não se orientam para alcançar a igualdade
estrutural, mas se orientam em torno das diferenças individuais.
A diferença fulcral entre ambas as formas de lutas está em uma
conceber a opressão como estrutural, e a partir daí combater a estrutura, e a
outra conceber a opressão como meramente relacional, e portanto combater o
indivíduo do outro lado da relação, o “diferente”.
Ora, quando uma relação de opressão e discriminação se funda em atos
e comportamentos individuais, o alvo a combater (e criminalizar) será o
indivíduo. Porém, quando uma relação de opressão é estrutural e cultural, a
prioridade deve ser o combate e superação dessa estrutura e dessa cultura.
Assim, a partir da “lógica identitarista” o objetivo político imediato e mais
relevante passa a ser a derrota e/ou punição (individual) do “outro”, o diferente,
considerado inimigo, deixando em segundo plano, ou para o longo alcance, o
objetivo da igualdade. O objetivo da mudança estrutural cede lugar ao objetivo
da confronto individual, o que servirá como conquista “exemplarizante” dando
maior “visibilidade” à causa, à luta (voltaremos a isso no item 4.1).
Antônio Risério, ao questionar a “esquerda identitária”, expressa como o
identitarismo de alguma maneira promove “ações virulentas contra qualquer
expressão de dissenso político ou ideológico e a rejeição radical da outridade”
(RISÉRIO, 2019, p. 12), num “quadro de polarização violenta, brutal mesmo,
onde a norma é o ataque e a agressão ao outro, ao diferente, ao desviante”
(idem, p. 131).
A relação de opressão é reduzida pela razão pós-moderna e
transformada numa polarização quase pessoalizada. Esta polarização em torno
81

de “identidades”, fundamentada na “lógica do identitarismo”, sustenta-se na


individualização: “vítima/vitimário”, “oprimido/opressor”.
Se pensarmos do ponto de vista político-institucional, existem realmente
as estruturas e culturas (amparadas em leis, em instituições, em hábitos, em
ideologia, em formas de discriminação, opressão e desigualdade etc.)
machista, racista, homofóbica, xenofóbica, de intolerância religiosa etc., onde
de fato se desenvolve a opressão, a discriminação, a desigualdade. E estas
estruturas e culturas devem ser combatidas urgente e energicamente. O
problema é quando a “lógica identitarista” (pós-moderna) individualiza esta
questão, isto é, torna todos e cada membro da “identidade” como
necessariamente vítimas de todos e cada indivíduo que a ela não pertence.
Assim, a “lógica identitarista” leva à noção de que todo homem (por sua
condição) é, real ou potencialmente, agressor e opressor de toda mulher, que
todo homem branco é no fundo racista, e inimigo de todo homem negro, que
todo indivíduo heterossexual é no fundo homofóbico, que todo evangélico será
intolerante e agressor das religiões afro-brasileiras etc.
Nesta lógica (identitarista e polarizadora) o alvo das lutas políticas deixa
de ser as culturas (e estruturas) machista, racista, etc., passando a ser o
indivíduo não pertencente, o diferente, tido, por definição, como encarnação
dessas culturas, portanto, como inimigo. Há, desta forma, uma espécie de
“santificação” da “identidade”, e de “satanização” do diferente. É questionando
esta lógica que Elisaberth Badinter, referência da luta histórica feminista, afirma
que “é preciso renunciar a uma visão angelical das mulheres, que serve de
justificativa para a demonização dos homens” (BADINTER, 2005, p. 92). A
autora e militante feminista, desta forma, questiona a visão de oposição
mulher-homem como uma relação necessária e geral de vítima-opressor (idem,
p. 146). Em sentido semelhante, a também feminista Judith Butler também
questiona o “fundacionalismo” presente na “política identitária” (apud HAIDER,
p. 36).
A lógica polarizadora identitarista, como aponta Malik, “na melhor
hipótese [...] provoca nossa indiferença [no sentido de desinteresse] pelo
destino do Outro; [e] na pior [hipótese], dá-nos permissão para odiar e maltratar
os que são diferentes” (in WOOD e FOSTER, 1999, p. 132).
82

Ora, a ultradireita fascista, a exemplo do QAnon e as denúncias de


pedofilia de políticos e artistas, no caso brasileiro recente apelou ao moralismo
e à repugnância sobre certas afirmações, para gerar coesão social, de um lado,
e ódio e repulsa, por outro. É assim que funcionaram, durante o pleito eleitoral
de 2018, as fake news das “mamadeiras eróticas” e o “kit gay”, supostamente
distribuídos nas escolas durante a gestão do ex-ministro da Educação nos
governos do PT, e então candidato concorrente à presidência, Fernando
Haddad. Com isso, constitui-se um movimento de rejeição pelo candidato. Os
temas de aborto, pedofilia, troca de sexos, satanismos, doutrinação ideológica,
são recorrentes pela ultradireita no processo de aglutinação e medo, repulsa e
ódio pelo “outro”. Assim se constituiu o fascismo e o nazismo, no início do
século XX, e o neo-fascismo atual.
Porém, o que verificamos é que a esquerda pós-moderna, a partir desta
“lógica identitarista” polarizadora, trabalha com os mesmos mecanismos e
métodos visando a geração de repulsa, ódio e/ou medo, tanto para aglutinar,
de um lado, em torno da “identidade”, como para repelir e destruir o diferente,
do outro lado.
Assim, a “lógica identitarista” pós-moderna reconfigura completamente a
questão da “identidade”, deixando-a presa da relação estrutural e dominante
que polariza opressores e oprimidos, dominantes e subalternos. Passa a
enfrentar o opressor (enquanto indivíduo), e não a relação de opressão
(enquanto estrutura e cultura). Fica presa nesta lógica e nesta relação, apenas
agindo sobre indivíduos.
Ora, uma coisa é a “identidade” em si, outra é o conteúdo que se dá a
ela. A “identidade”, como autoidentificação, como autorrepresentação, como
autoimagem, como “processo identitário” (Hall), pode existir em qualquer
indivíduo, e seu conteúdo pode expressar e representar, ora o lado opressivo e
dominante, ora o subalterno e dominado da relação social. Porém, “relação
social” de opressão não é a mesma coisa que relação individual. É esta
distinção que a polarização da “lógica identitarista” deixa de fazer, identificando
todo indivíduo como adversário, inimigo, opressor, do outro, transformando a
opressão, como expressão estrutural, agora reduzida a uma relação
interpessoal.
83

E) Da análise teórica da “identidade” múltipla, líquida e flexível, para a


utilidade política de “identidade” “essencialista”: única, fixa e natural.
Neste processo, por outro lado, a “lógica identitarista” pós-moderna,
paradoxalmente, esvazia o aspecto “líquido”, flexível, mutável da “identidade”,
conforme desenvolvido pelas abordagens pós-marxistas e pós-estruturalistas
(Castells, Bauman e Hall; ver item 1.2), e volta-se pragmaticamente a uma
concepção rígida, fixa, “naturalizada”.
Ou seja, do “anti-essencialismo” com que esses autores tratam a
questão da “identidade”, pragmaticamente retorna-se a um “essencialismo”,
fundando a “identidade” numa rígida questão histórica ou biológica, “apelando
seja à ‘verdade’ fixa de um passado partilhado seja a ‘verdades’ biológicas”
(Woodward in SILVA, HALL e WOODWARD, orgs., 2014, p. 15). O
“essencialismo”, conforme Woodward, “pode, assim, ser biológico e natural, ou
histórico e cultural”, mas o que há em comum “é uma concepção unificada de
identidade” (idem, p. 38).
Este processo, paradoxal no plano teórico (teoricamente não se justifica
uma abordagem pós-moderna que torne a “identidade” algo rígido,
“essencialista”), tem muito mais a ver com a utilidade política deste conceito,
num evidente pragmatismo político. Do ponto de vista da associação de
pessoas a partir de uma “identidade”, da polarização com a “identidade”
antagônica, e das lutas ou ações políticas, um conceito flexível e cambiante de
“identidade” parece pouco útil. Politicamente seria mais útil conceber a
“identidade” como algo rígido, inflexível, fixo... e natural, contrastado como
polos opostos com o “outro”. Por tal motivo, parece haver, nas análises pós-
modernas e nas pautas de grupos com elas identificadas, uma re-naturalização
das questões de gênero, racial etc., nas análises amparadas nesta
polarizadora “lógica identitarista” pós-moderna. Ao naturalizar a oposição
homem/mulher, negro/branco, nacional/estrangeiro etc., as relações de
opressão são transformadas em uma relação própria das, e natural às,
diferenças entre os sujeitos... portanto, estes últimos passam a ser vistos como
“inimigos naturais”. É neste aspecto que há o divisor de águas entre as
demandas e lutas (de gênero, racial etc.) igualitaristas, por um lado, e aquelas
que polarizam “nós/eles”, “vítima/vitimário”, por outro lado.
Ainda, conforme Douglas Rodrigues Barros,
84

a exaltação da identidade como fixo e não relativo é a pura expressão de


forma de valorização do capital como fim em si mesmo que precisa
assegurar alguns indivíduos como colônia ainda viável de exploração. É
esse fenômeno que busca uma identidade estanque, ideal e não relativa,
um Eu=Eu, como forma inconsciente de realização de valorização do
capital, que chamo identitarismo (BARROS, 2018).

Desta forma, a “lógica identitarista” pós-moderna não só polariza a


relação “nós”/”eles”, não só individualiza ou pessoaliza essa ralação, mas torna
a “identidade” uma questão transcendental, classificatória, “essencialista”. A
“identidade” passa a ser vista na sua singularidade (e não multiplicidade de
“identidades”), e como uma condição rígida, fixa, imutável, portanto,
transcendental ao sujeito, como um questão que define o indivíduo e do qual o
mesmo não mais pode superar. A “identidade” deixa de ser um processo de
identificação múltipla, de auto-construção do indivíduo, para ser uma etiqueta
classificatória, discriminatória, onde, paradoxalmente, o sujeito desaparece.
Ora, se a “identidade” remete a relações sociais e a situações que os
indivíduos vivenciam, e se estas relações podem mudar, e se as situações que
os indivíduos vivem podem mudar, então as “identidades”, além de diversas e
muitas vezes contrárias, são processos que mudam, que se transformam.
Tornar a “identidade” um processo único e fixo, quase natural, representa um
reducionismo teórico, que apenas atende a uma aparente, imediata e
transitória utilidade política.
Naturalizam-se e biologizam-se as diferenças sociais entre homens e
mulheres, negros e brancos etc., fazendo desta relação social de opressão
uma relação pessoal de opressão natural. Assim, nesta perspectiva, não
adianta enfrentar a cultura, a estrutura, pois o inimigo é o “outro” individual; é
ele que dever ser enfrentado e anulado.
Em função disto, cada vez que uma bandeira de lutas civilizatória e
emancipatória é usada para benefício pessoal, em torno de relações individuais
ou grupais, certamente ocorre uma degradação e redução desse princípio
universal de luta num instrumento pessoal. A transmutação de históricas
bandeiras de lutas pela igualdade em posturas “vitimistas” é claro exemplo
dessa degradação e reducionismo.
O problema, portanto, não é a “identidade” em si... é a “lógica
identitarista” pós-moderna.
85

A “identidade” é um fato real; as pessoas se auto-identificam com


fenômenos, atributos ou características que sentem como próprios e
determinantes nas suas vidas, sejam esses fatos reais ou construídos
simbolicamente. E em função deles se identificam entre si, em grupos e
coletivos. E quando essa “identidade” expressa uma relação de opressão ou
discriminação, elas podem se organizar e lutar contra essa opressão e na
defesa de seus interesses em comum, luta necessária, justa e urgente.
Porém a “lógica identitarista” pós-moderna trabalha com a noção de
polarização social, onde o atributo ou a “identidade” assume características
absolutas e imutáveis, onde o indivíduo “diferente”, e não a cultura ou a
estrutura, é visto como inimigo, e onde o objetivo de vida e/ou de luta se
centrará na aniquilação e/ou subordinação do “outro”, numa individualização da
luta que acaba perpetuando a relação de polarização e a estrutura de
dominação e opressão, apenas visando a punição individual do “outro” e a
inclusão do “nós”.
Desta forma, não se trata de “santificar” a “identidade” (tal com é feito
pela razão pós-moderna), porém também não se trata de “satanizá-la”. Trata-
se, sim, de avaliar criticamente suas contribuições e limites, tanto para a
análise da realidade como para a organização e lutas emancipatórias.
Vejamos então as potencialidades e os limites desta abordagem.

F) Os limites do “identitarismo” e da “lógica identitarista” pós-moderna.


A “identidade”, como vimos, remete à autopercepção e representação
dos indivíduos, grupos e coletivos sobre suas condições, situações e as
experiências de vida (reais ou percebidas) mais imediatas e/ou diretas, as mais
impactantes na sua vida, mediante as quais (se me permitem a redundância) o
sujeito se identifica como tal, e em muitos casos expressando uma dada
relação de opressão/subalternidade.
Porém, “identidade” não se limita à autoimagem individual, pois ela
expressa também, e fundamentalmente, uma construção coletiva. Portanto, a
“identidade” não é apenas a forma como o indivíduo se identifica com a
realidade que o rodeia ou constitui, mas também a forma como se identifica
com outros, com seus pares, com aqueles com quem compartilha a mesma
realidade, condição ou situação.
86

Via de regra, portanto, a “identidade” é construída coletivamente por um


grupo que sofre algum tipo de opressão ou discriminação, o que marca sua
vida, sua auto-percepção, seu lugar no mundo, e determina um tipo de relação
(real, ideológica, direta ou indiretamente) com o “diferente”, não só com o grupo
oposto à “identidade” em questão, mas com todos os outros.
Desta forma, as “identidades” representam questões, causas, demandas
e lutas, que são legítimas, necessárias e urgentes, em torno dessa relação de
opressão ou de desigualdade.
Assim, a partir do exposto, nos afastamos tanto daquelas visões que
rejeitam a “identidade”, como algo desimportante ou secundário, numa evidente
“satanização” da questão de “identidade”, como também daquelas que
reivindicam a “identidade” como o novo conceito de articulação e ação política,
em substituição da classe social, em clara “santificação” daquela.
Porém, vimos que a transformação pós-moderna da “identidade” em
“identitarismo”, a partir da construção de uma lógica polarizadora e
autonomizadora, tende a esvaziar e despolitizar esta categoria e as lutas
identitárias.
Assim, após a consideração das contribuições da categoria “identidade”
(ver item 2.3-C), cabe aqui apontar alguns limites da “lógica identitarista” pós-
moderna, tanto para o conhecimento da realidade, como para a articulação e
ação políticas.
A nossa análise até aqui nos mostra alguns limites da “identidade” (como
percepção subjetiva) e do “identitarismo” (apropriado pela lógica pós-moderna),
quando entendido como questão singular e autônoma, desarticulada das outras
questões particulares (outras “identidades”) e da totalidade social (da
estrutura), derivando num reducionismo, tanto na reflexão da realidade, como
no processo de ação e lutas sociais.
Pelos motivos expostos, as causas (tornadas “pautas”) e as lutas
identitárias, quando isoladas e desarticuladas da totalidade social e de uma luta
universal, tendem a se orientar numa ação tática (secundarizando questões
estratégicas), pessoalizadas, quando não individualizadas, com efeitos
práticos, imediatos e diretos.
87

O combate contra a estrutura e a cultura tende a ser substituído pela


ação contra indivíduos. O inimigo não é mais a estrutura e a cultura, mas sua
encarnação, sua pessoalização, o sujeito, individual ou grupal.
Os objetivos (táticos) de suas ações passam a ser, tanto a punição do
“outro”, como o reconhecimento e a inclusão (pelo direito e pelo acesso a bens
e serviços) dos pertencentes à “identidade”, assim como o chamado
empoderamento dos setores vulneráveis, relegando a segundo plano, ou
desconsiderando, qualquer objetivo de transformação estrutural e cultural. As
lutas identitárias, quando permanecem na sua singularidade ou como
particularidade desarticuladas e isoladas da totalidade social, se não se
tornarem lutas universais, não conseguem alcançar e golpear as estruturas de
opressão, fincando apenas no plano da conquista de direitos específicos, na
punição individual exemplarizante de indivíduos, e no chamado
“empoderamento” (trataremos disto nos itens 4.1, 4.2 e 4.3).
Neste sentido, como sustenta Bosco, as lutas identitárias, quando
isoladas da totalidade, “não se voltam [...] contra o ‘inimigo-mor’” (o sistema, a
estrutura, a cultura dominantes), mas contra o “inimigo imediato” (o “diferente”,
o “outro”) (2017, p. 81).
Isto é, se o racismo é estrutural, como mostra Silvio Almeida (2019), e se
o machismo se sustenta numa estrutura patriarcal, então as lutas antirracistas
e feministas devem procurar atingir e transformar essas estruturas.
Em entrevista ao programa Roda Vida, da TV Educativa (em
22/06/2020), ao tratar da luta antirracista e da questão da “identidade”, Almeida
afirma:6
O racismo é um elemento muito complexo na sociedade no mundo todo. E
não podemos deixar de ver o racismo na sua ligação intrínseca com outros
elementos da vida social. Como, por exemplo, a economia, como o direito,
como a política, e também como a produção do imaginário social. [...]
Não há mais lugar para raciocínios ou pra pensamentos sobre o racismo
que não estejam dispostos a ir além de atos individuais e questões
comportamentais, ou mesmo que pensem o racismo como parte de um
mal funcionamento institucional.

Também neste sentido, e ao tratar do feminismo e questionando o


“identitarismo”, Maria Lygia Quartim de Moraes aponta que “a questão do

6 Ver em: <https://www.youtube.com/watch?v=L15AkiNm0Iw> (22/06/2020); acesso


em jun. de 2020.
88

feminismo foi acabar com o mito da ‘mulher’ [...] [e] desbiologizar as diferenças
sociais. O que o machismo, o racismo [...] fazem [...] é a tentativa de dizer ‘é
assim porque [...] nasceu assim”,7 atribuindo papeis e lugares sociais a partir
da sua condição biológica.
Na verdade, do que se trata é de superar a biologização das diferenças
(de raça, de sexo, étnicas etc.) como pretexto para as desigualdades sociais e
a opressão.
Desta forma, conforme afirmam Petras e Veltmeyer, neste “novo modo
(pós-moderno) de fazer política”, há uma “política do antipoder, com o fim de
evitar a confrontação e não se dirigir contra as estruturas de poder econômico
e político, mas sim de construir o capital social dos pobres [ou das “minorias”]
para se comprometer em projetos de desenvolvimento local nos espaços
disponíveis dentro da estrutura de poder” (2004, p. 330).
Assim, essas lutas ou pautas identitárias, a partir da “lógica identitarista”
pós-moderna, acabam sendo subsumidas à própria dinâmica do capital, presa
ao Estado e ao direito burgueses. É o que sustenta, segundo Haider, a
feminista Judith Butler, para quem o termo “sujeito” carrega um duplo sentido:
significa, por um lado, capacidade de protagonismo e ação, e por outro,
sujeição e subordinação a outro ou a um poder externo. Assim, em função
disso, “a política no liberalismo se caracteriza por nos tornarmos sujeitos que
participam na política através da sujeição ao poder” (in HAIDER, 2019, p. 35).
Neste sentido, Butler sugere que “o que chamamos de política identitária é
produzida por um Estado que só pode dar reconhecimento e direitos a sujeitos
totalizados pela particularidade que constitui seu status de demandante” (apud
HAIDER, 2019, p. 35).
Desta forma, se para Butler “a afirmação de direitos e reivindicações de
benefícios só podem ser feitas com base numa identidade singular lesada”
(apud HAIDER, 2019, p. 35), então, conforme afirma Haider, “se podemos
reclamar que somos de algum modo lesados com base em nossa identidade
[...], [então] podemos demandar reconhecimento do Estado com base nisso. E,
uma vez que são a condição da política liberal, as identidades se tornam cada
vez mais totalizantes e reducionistas. Nossa capacidade de ação política

7 Ver em: <https://www.youtube.com/watch?v=QoLFVyFHuTQ&feature=youtu.be>


(postado em 27 de maio de 2016); acesso em jun. de 2020.
89

através da identidade é exatamente o que nos prende ao Estado, o que


assegura nossa contínua sujeição” (ibidem) ao Estado e à ordem burguesa.
Ainda, o autor, ao analisar as lutas de Malcom X, entende ser a “Política
identitária” uma forma de “neutralização” dos movimentos contra a opressão
(idem, p. 37).
Finalmente, o “identitarismo” e a “lógica identitarista” pós-modernos, a
partir do isolamento da “pauta”, desarticulada de outras causas e da totalidade
social, e da pessoalização da luta, deriva em dois problemas políticos
fundamentais:
1) Quem lutará por aqueles grupos (ou “minorias”) que não tem
capacidade de organização e força para lutar?
Estamos falando das comunidades dos povos originários,
particularmente aqueles isolados. Estamos nos referindo às crianças e
adolescentes. Incluímos aqui os portadores de necessidades especiais,
particularmente aqueles com distúrbios de ordem psicológica ou até
intelectuais e cognitivos: portadores de transtorno de espectro autista, de
síndrome de down etc. Falamos daqueles contingentes populacionais
analfabetos, que no Brasil representam dezenas de milhões etc.
Em um debate sobre “cotas raciais” nas universidades, em face da
demanda de incluir os povos originários nas mesmas, alguém disse: “se os
índios não estão organizados e representados aqui, não tem que ser incluídos
nas cotas”.
Ora, se a “lógica identitarista”, acompanhada do “lugar de fala”, se funda
numa luta de “cada um por seus interesses específicos”, então aqueles que
não têm organização política, que não têm condições de uma “fala” consciente,
sequer de se reconhecer como sujeito, com demandas específicas, eles não
tem como se auto-defender, como defender e lutar por seus direitos, sequer,
em muitos casos, tem como falar por si mesmos desde seu “lugar de fala”.
Se esta “lógica” exclui a possibilidade de uma luta conjunta por direitos
particulares de grupos específicos – negros e brancos contra o racismo, e na
defesa dos povos originários, mulheres e homens contra o machismo, LGBTs e
heteros contra a homofobia, nacionais e imigrantes contra a xenofobia, pais e
mães pelos direitos das crianças etc. –, se apenas cada “identidade” pode falar
por si (“lugar de fala”) e lutar por seus direitos específicos (na “lógica
90

identitarista”), então aqueles que não podem se organizar, falar e lutar por seus
direitos, ficarão fora dos mesmos, excluídos do status de cidadãos, pois, nesta
“lógica”, ninguém pode lutar pelos direitos alheios, de outrem.
Como, então, uma comunidade ribeirinha, de baixa instrução e elevado
isolamento social (o que dificulta até de trata-la como “comunidade”) vai lutar
contra o desmatamento ou poluição das águas? Como uma comunidade
indígena vai reivindicar por demarcação de terras, por proteção contra
garimpos, ou até por respiradores no meio da pandemia de Covid 19? Como
um pequeno povoado do sertão vai demandar e lutar por acesso à água
potável? Como crianças vão lutar contra a prática da alienação parental e por
seus direitos de convivência familiar e construção de identidade?
Crianças, povos originários, portadores de transtornos psicológicos e
mentais, pessoas analfabetas etc. etc., serão abandonados a sua própria sorte
e capacidade de luta. Nada mais neoliberal do que isto: deixar os indivíduos
concorrerem “livremente” no mercado, sem interferência estatal, a partir das
suas capacidades (ver HAYEK, 1990, p. 58 e 1985, p. 88).
2) Quem lutará pelos valores, direitos e demandas universais, comuns,
humano-genéricos?
Estamos falando, aqui, de questões que não envolvem aspectos
particulares de um grupo específico, mas que são comuns à toda a
humanidade, tal como a preservação meio-ambiental, o avanço e socialização
do conhecimento científico, a socialização da riqueza socialmente existente, a
luta contra a desigualdade social, a saúde pública, a educação pública, a
defesa da democracia etc. etc.
Questões que, como podemos observar, estão fora das “pautas
identitárias”, por não tratar das causas específicas de cada grupo identitário. E
que de fato estão perdendo força, teórica e política, nos processos de lutas
sociais. Basta observar as manifestações populares por estas questões,
insignificantes ao lado das manifestações populares de grupos identitários.
Não se trata aqui, novamente o afirmamos, de desestimar a importância
destas últimas manifestações e lutas particulares, as quais, como já
sustentamos, são necessárias, justas e urgentes. Trata-se sim de mostrar
como a “lógica identitarista”, que polariza, pessoaliza e isola as causas
(transformadas em “pautas”) e lutas identitárias (reduzidas a ações pontuais e
91

de efeito imediato), também abandona ou deixa em segundo plano as lutas


universais, comuns, humano-genéricas.
Assim, da mesma forma que esta “lógica” pós-moderna, abandona as
lutas pelos “outros” (os que não têm como se perceber como grupo, nem como
se organizar, falar e lutar), também abandona as lutas pelas demandas
universais.
A luta revolucionária não pode se esgotar nos interesses próprios,
específicos identitários; ela tem de se constituir ou confluir em lutas universais.
A “lógica identitarista” (e as “políticas identitárias”), estimula um
abandono das bandeiras mais universais, das questões comuns de uma luta
humanista, ou ainda, socialista. Todas aquelas demandas ou causas que não
sejam específicas da “identidade” em questão tendem a ser abandonadas ou
secundarizadas.
Assim, em princípio, o movimento negro não precisa ter uma postura
sobre o aborto; o movimento LGBT não necessita se posicionar sobre a
questão racial; o movimento feminista não tem que ter uma posição sobre a
xenofobia; o movimento estudantil não tem que definir postura sobre a
flexibilização das leis trabalhistas etc. Quando o fazem é necessariamente
porque vão além das suas “pautas identitárias”, porque conseguem articular as
demandas dos diversos grupos ou coletivos identitários, e as causas
universais. Como inserir nas pautas identitárias uma luta comum, como saúde
ou educação públicas e universais, ou como a reforma tributária, ou os direitos
trabalhistas? Apenas indo além dessas “pautas identitárias”, incorporando
objetivos universais.
A emancipação humana não é a somatória de causas particulares; ela
precisa de um elemento aglutinador, que dê sentido e articule as diversas
pautas particulares numa finalidade comum. Sem isso, cada luta particular se
esgotará com a conquista (ou a derrota) de sua pauta particular.
Neste sentido, ao tratar das lutas sobre a limitação da jornada de
trabalho, instituída pelo Estado em troca do apassivamento da classe e do
abandono de bandeiras de maior alcance, Marx, com forte ironia e crítica,
afirmara: “o pomposo catálogo dos direitos inalienáveis do homem será
substituído pela modesta Magna Carga que limita legalmente a jornada de
trabalho... Que transformação!” (1980, p. 345). Nós poderíamos dizer, sobre
92

nossa particular questão: a luta pelos direitos universais, pelas conquistas


comuns e a luta anti-capitalista, pela transformação social e por uma sociedade
integralmente emancipada é substituída pelas “pautas identitárias”... Que
transformação!
Em síntese, mais do que “identitárias” (o que remete a uma auto-
representação subjetiva), preferimos falar de causas e lutas antiopressivas e/ou
particulares (retomaremos esta questão no item 7.2-C).
93

3. OUTROS FUNDAMENTOS IDEOLÓGICOS E


(A)POLÍTICOS DO PENSAMENTO/AÇÃO PÓS-
MODERNOS: O TRIPÉ DA “LÓGICA
IDENTITARISTA”

O “identitarismo” pós-moderno representa uma “lógica”, uma


racionalidade ideológica e (a)política, fundada num tripé mutuamente
articulado: a) a lógica polarizadora, b) o chamado “lugar de fala”, que
aparece como o referencial do discurso político a partir do qual se produzem as
vozes identitárias, e c) a denominada “pós-verdade”, como expressão de uma
“realidade”, não objetiva, nem amparada nos fatos ou evidências, mas tal como
ela é concebida pelo sujeito, e que portanto se coloca como o objeto da ação
política. Nos resta completar o tripé tratando destes dois últimos. Vejamos.

3.1- O “lugar de fala” como referencial do discurso político.


Este conceito, o chamado “lugar de fala”, assumiu centralidade política
na “lógica identitarista”, representando uma “adaptação” tergiversada pelo
pensamento pós-moderno da noção de conhecimento interessado e engajado.
A expressão de “lugar de fala” tem dimensões tanto cognitivas − quem
pode conhecer e falar sobre as questões que envolvem as diversas
“identidades” –, como políticas – o fator de articulação e ação políticas. Assim,
sobre esta segunda dimensão, afirma Wilson Gomes que o:
“lugar de fala” tem sido uma ferramenta largamente usada nos últimos
tempos, tanto para reforçar os vínculos identitários de certos estratos da
94

esquerda quanto para mobilizar e engajar para a luta política, tanto para
orientar a ação política dos mobilizados e engajados como para oferecer
justificativas de superioridade moral para a ação praticada (2019, p. 3).

Antes de ingressar na sua análise, vamos buscar os fundamentos desta


expressão na sua origem.

A) O direito à voz dos subalternos.


Por um lado, a expressão “lugar de fala”, na sua origem e com claro viés
progressista, visava reivindicar o direito à voz dos subalternos, os que não
tinham fala.
Assim, ao que tudo indica, o uso inicial da expressão “lugar de fala” pode
ser encontrado em texto da professora indiana Gayatri Spivak intitulado “Pode
o subalterno falar?”, originalmente publicado em 1985, com versão brasileira de
2010 (SPIVAK, 2010). A partir da referencialidade a autores pós-modernos,
como Foucault, Guattari, Deleuze, Derrida, trata do silêncio dos “subalternos”,
ou seja, segundo seu prefaciador, e partindo do conceito gramsciano, aqueles
“cuja voz não pode ser ouvida” (idem, p. 13), compostos pelas “camadas mais
baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos
mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem
membros plenos no estrato social dominante” (ibidem). Assim, para a autora,
não se pode falar em nome do subalterno, mas é ele próprio quem tem que ter
a palavra, para poder falar desde sua condição de subalternidade, a partir de
seu “lugar”.
A autora analisa, a partir disso, a “violência epistêmica” dos setores
dominantes e colonizadores (idem, p. 63), que neutraliza o subalterno ou
colonizado, silenciando-o e inviabilizando-o como sujeito político.
Ainda, a autora identifica dois significados do termo “representação”: o
primeiro no sentido de “falar por”, como ocorre na política, e o segundo como
“re-presentação”, como na arte e na filosofia (idem, p. 39). Assim, conforme a
autora, “nenhum ‘intelectual e teórico (...) [ou] partido ou (...) sindicato’ pode
representar ‘aqueles que agem e lutam’” (ibidem). Isto estaria reproduzindo as
estruturas de poder (idem, p. 14). Como sujeitos de desejo e de poder “os
oprimidos podem saber e falar por si mesmos” (idem, p. 56, 78). Isto é, ao falar
95

por si mesmo, o subalterno não precisa ser representado por outros, pois ele
próprio se auto-representará.
Desta forma, a origem da expressão “lugar de fala” se vincula à
necessidade dos subalternos terem voz própria, de falarem por si mesmos, a
partir das suas vivências concretas, dos seus lugares. Que os subalternos
tenham direito a sua própria voz constitui um aspecto fundamental no processo
civilizatório no caminho para a igualdade social e política, nas conquistas
progressistas.
No entanto, se a origem da expressão visa reivindicar o direito de voz e
fala dos subalternos, das chamadas “minorias”, dos dominados e “excluídos”,
hoje podemos dizer que o mesmo sentido – de que só aquele pertencente à
“identidade” pode falar por “nós” – existe nos grupos de “identidades”
dominantes, sejam eles ligados a questões raciais, religiosas, de gênero etc.
Isto é, de uma bandeira exclusiva dos setores subalternos, dos silenciados,
agora passou a ser apropriado pelos grupos dominantes, perdendo qualquer
orientação progressista.

B) Todo discurso é social e politicamente situado e posicionado.


Por outro lado, em tese, o termo “lugar de fala” pareceria remeter à
noção de que todo discurso é social e politicamente situado e posicionado,
expressando sua particular visão de mundo.
É sabido que para o pensamento marxista – contrariamente à noção
positivista de “neutralidade” científica ou gnosiológica, ou à “neutralidade
axiológica” de Weber – o nosso conhecimento da realidade depende dos
valores, interesses, ideologias, posicionamentos políticos, ou seja, de quem
somos e que lugar ocupamos no mundo e como percebemos isso,
particularmente em relação aos aspectos da realidade em questão, e às
perspectivas, opções e escolhas que fazemos em torno da realidade que
vivemos. O conhecimento é, portanto, “saturado de interesses” (ver
HABERMAS, 1982).
Porém, esta afirmativa também nada tem a ver com a noção pós-
moderna de “lugar de fala”. Vejamos.
Para a razão positivista como para a teoria marxista, a realidade é
objetiva, material, e independente do conhecimento que se tenha sobre ela;
96

porém, estas correntes do pensamento se distanciam na compreensão dos


fundamentos do conhecimento sobre a realidade. Assim, se para o positivismo
o conhecimento deve ser “neutro”, em oposição, para o pensamento marxista,
trata-se de um conhecimento “engajado”.
No entanto, e contrariamente, para o pensamento pós-moderno, a
realidade não é material, ontológica, mas vivencial, interpretativa, ou seja, ela é
subjetiva. Portanto, a realidade (e a verdade) tem a ver com o significado que
as coisas têm para cada sujeito. Não havendo realidade objetiva nem teoria
universal, para a razão pós-moderna só pode se produzir conhecimento a partir
da vivência, isto é, do “lugar de fala”.
Ora, uma coisa é entender que não há discurso imparcial, neutro,
objetivo, mas que todo discurso é ética e politicamente posicionado (consciente
ou inconscientemente), assim, cada um fala a partir de seus interesses, de
seus valores, de sua visão de mundo. Porém, outra coisa, completamente
distinta, é afirmar que “o lugar” desde onde falamos (o “lugar de fala”), a nossa
vivência, a nossa condição social, vai definir uma determinada (e uniforme)
maneira de ver o mundo, ou até, uma determinada (e uniforme) “perspectiva”,
ou, ainda mais, um “epistemologia” específica.

C) “Lugar de fala” como “ponto de vista” comum a partir de um “lugar


social”.
Em texto recente sobre o termo “lugar de fala”, a filósofa e ativista dos
Direitos Humanos, Djamila Ribeiro, visando confrontar as críticas ao mesmo,
afirma que na verdade o “lugar de fala” remete ao “lugar social” que as pessoas
ocupam (2019, p. 54, 59, 72). Tal assertiva surge, a modo de hipótese, da
teoria do “ponto de vista”, que Ribeiro extrai de Patrícia Collins sobre o
“feminist standpoint” (idem, p. 57, 59, 60, 62, 72). Assim, afirma a autora:
“Nossa hipótese é a de que, a partir da teoria do ponto de vista feminista é
possível falar de lugar de fala” (idem, p. 59 e 72).
Conforme Collins, esse “lugar social” “é a localização social comum nas
relações hierárquicas de poder” (apud, RIBEIROS, 2019, p. 61), representando
assim um lugar numa relação de poder, ou hierárquica, que desencadearia
uma relação de opressão. Assim, o “lugar de fala” surgiria do “lugar social” que
remete ao lugar numa relação hierárquica e de desigualdade de poder.
97

Visão semelhante parece ter Stuart Hall. Conforme Woodward, esse


autor “toma como seu ponto de partida a questão de quem e o que nós
representamos quando falamos. Ele argumenta que o sujeito fala, sempre, a
partir de uma posição histórica e cultural específica” (in SILVA, HALL e
WOODWARD, orgs., 2014, p. 28).
Por seu turno, essa “localização social”, ainda conforme Ribeiro a partir
de Collins, não seria o resultado da somatória de decisões individuais (como
apontariam seus críticos), mas produto das condições de “desigualdades em
que esses indivíduos se encontram” nas relações de poder (idem, p. 60-63 e
67). Ou seja, o que determinaria a localização social não seria a percepção
individual, mas a real condição de desigualdade que vive um determinado
coletivo a partir da sua condição social.
Essas experiências comuns dos grupos subalternos fazem com que
seus saberes e sua voz sejam silenciados, ou também subalternizados. Ainda,
também impedem que essa população acesse certos espaços (idem, p. 63).
A partir disto, Ribeiro entende assim o “lugar de fala”: primeiramente,
como forma não só de expressar a voz, mas de “poder existir” (idem, p. 64) e,
por outro lado, como forma de “refutar a historiografia tradicional e a
hierarquização de saberes consequente da hierarquia social” (idem, p. 64 e
69).
Porém, conforme a autora, ao tratar esta questão do ponto de vista
estrutural e não individual (como a abordagem pós-moderna) (idem, p. 67), o
“lugar de fala” “absolutamente não tem a ver com uma visão essencialista de
que somente o negro pode falar sobre racismo, por exemplo” (idem, p.. 64).
Ainda, afirma a partir de Collins, “ocupar localização comum em relações de
poder hierárquicas não implica em se ter as mesmas experiências” (ibidem). E
continua, sustentando que “o fato de uma pessoa ser negra não significa que
ela saberá refletir crítica e filosoficamente sobre as consequências do racismo”
(idem, p. 67). Portanto, conforme a autora, “o lugar social não determina uma
consciência discursiva sobre esse lugar”, mas “o lugar que ocupamos
socialmente nos faz ter experiências distintas de outras perspectivas” (idem, p.
69).
Ora, por um lado, tudo isto pareceria negar o próprio conceito de “lugar
de fala”.
98

Por outro lado, se o “lugar social”, isto é, o lugar que os sujeitos ocupam
em uma dada situação de poder, e que compartilham com um coletivo, não
significa que só esse grupo identitário pode tratar do tema, nem que todos
tenham uma mesma experiência, e nem que essa experiência (ou esse lugar
de subalternidade que ocupa numa relação de poder) determina consciência
crítica, então o que seria “lugar de fala”? Este termo tão polêmico apenas
expressaria que se trata de “falar desde um lugar”?
Definitivamente o uso deste termo, apropriado pela razão pós-moderna,
de fato não se restringe a isso, particularmente quando efetivamente se trata
de trocar o silêncio dos subalternos pelo silêncio dos dominantes, e caindo num
isolamento das falas (cada um fala para os “seus”), quando se trata, ainda, de
fazer do “lugar social”, da experiência, uma fonte de consciência homogênea
(para todos os membros) e necessariamente crítica, como se a mera vivência
basta-se para uma compreensão dos fundamentos do fenômeno em questão.
Porém, compreender o “lugar de fala” como “falar desde um lugar”
parece ser o entendimento de Ribeiro quando, ao diferenciar o “lugar de fala”
(falar por si) da “representatividade” (falar por outro) (idem, p. 82), afirma: “uma
travesti negra pode não se sentir representada por um homem branco cis, mas
esse homem branco cis pode teorizar sobre a realidade das pessoas trans e
travestis a partir do lugar que ele ocupa [...] A travesti negra fala a partir de sua
localização social, assim como o homem branco cis” o faz a partir da sua
(idem, p. 82-83).
Então se trataria de afirmar que todos podem falar, mas cada um fala,
sempre e irremediavelmente, desde seu lugar, não podendo, na sua fala, “sair”
do mesmo. O homem branco cis sempre falará como tal, enquanto a travesti
negra o fará inalteradamente desde o próprio. Não haveria como fugir disso.
Portanto, um, o que ocupa o lugar dominante, sempre falará como dominador,
opressor, enquanto o outro, que ocupa o lugar subalterno, sempre falará como
dominado, oprimido.
Isto é, a fala do dominante sempre será entendida como expressão,
manifestação e perpetuação dessa dominação, a qual o subalterno, que visa
combater essa relação de opressão, deverá necessária e permanentemente
repelir.
99

Ora, e se o homem branco cis, por exemplo, tiver um filho travesti? Essa
experiência não poderia mudar sua vivência, sua percepção, sua
compreensão, seus valores e seu posicionamento?
O “outro” nem sempre fala como dominador, opressor.
A noção de “lugar de fala” leva, em primeiro lugar, à absolutização da
vivência ou do “lugar social”, como se esta experiência fosse suficiente para
uma compreensão crítica da mesma, como se a consciência crítica fosse um
mero reflexo da vivência, numa clara apropriação dos fundamentos pós-
modernos sobre a relação entre vivência e verdade.
Mas, ainda, em segundo lugar, o “lugar de fala” se aplica para uma
relação determinada (para uma “identidade” específica) dentre as diversas
relações, “identidades”, lugares e circunstâncias que fazem parte da vida dos
sujeitos. E esse lugar garantiria um “ponto de vista” comum. Assim, seria esse
lugar único, específico, que estaria determinando toda a compreensão do
sujeito sobre um assunto. Por exemplo, em todo o texto sobre o “lugar de fala”,
nenhuma única vez se menciona a “classe social” à que pertence o sujeito,
como se ela não tivesse nada a ver tanto com o “lugar social” quanto com a
“compreensão” das pessoas, enquanto trabalhador assalariado ou como
burguês, nas diversas outras dimensões ou relações de sua vida: de gênero,
racial etc. É como se ser operária ou burguesa em nada incidisse sobre o
“lugar de fala” de mulher.
Em terceiro lugar, o conceito de “lugar de fala” remete a uma noção de
identidade unidimensional, significando que a “localização social” desde onde
falamos estaria constituindo uma determinação única e absoluta sobre a
compreensão das coisas, deixando sem qualquer efeito o papel da ideologia,
da formação de consciência crítica, dos valores, das crenças religiosas, dos
projetos sociais universais, da capacidade de suspensão do cotidiano, dos
meios e grupos que frequenta, do acesso a conhecimento teórico crítico, das
outras vivências etc. Tudo isto, na verdade, pode fazer com que um “homem
branco cis” possa questionar e até combater o machismo, o racismo, a LGBT-
fobia etc.
Isto é, nem ocupar o lugar dominante numa relação específica impede
uma compreensão crítica do processo, e nem ocupar um lugar subalterno na
mesma garante tal compreensão. Há uma multiplicidade de fatores, de
100

relações, de visões de mundo, de valores, de ideologias, de crenças, e não


apenas o lugar numa única relação, que interferem na capacidade dos sujeitos
de compreender a realidade.
O “ponto de vista” de uma pessoa não é resultado apenas do “lugar que
ocupa” numa única relação de poder. Muito pelo contrário, ele pode estar numa
posição subalterna, e por isso submetido a processos alienantes, a
compreensões românticas, místicas, mágicas ou religiosas, à manipulação dos
fatos etc., e apresentar uma compreensão da sua própria realidade distorcida e
funcional com o discurso dominante. E vice-versa, pode ocupar uma condição
privilegiada ou dominante nessa relação, mas pela sua condição social ou de
classe, pela sua militância, pela sua ideologia etc., apresentar uma visão crítica
do fenômeno ou relação específica de poder.
O “ponto de vista” é resultado de um processo multidimensional, e,
portanto, o “lugar social” numa relação de poder, que determinaria um suposto
“lugar de fala”, não produz em absoluto um necessário “ponto de vista”, nem
comum aos membros dessa “identidade”, e nem necessariamente crítico da
realidade.
Ainda mais, não basta a consciência ou auto-imagem que um sujeito tem
de si (ver item 2.2), por mais crítica e profunda que ela seja, para determinar o
“lugar” e o “papel” que os indivíduos ocupam e desempenham na sociedade.
Não basta, portanto, a sua “identidade” como autopercepção, como construção
individual e coletiva do seu ser, do seu lugar, da sua condição, da sua posição
numa relação de desigualdade e opressão.
Os “lugares” e as funções dos indivíduos na sociedade não são
autodeterminados; imaginar isto significa cair numa visão notoriamente
voluntarista, que exacerba a força da auto-consciência, da auto-imagem, do
sujeito sobre as determinações estruturais da realidade. Pensar assim significa
conceber que o indivíduo que se auto-percebe como sujeito, que constrói uma
“identidade”, com isto se desvencilha dos constrangimentos e determinações
sociais, auto-referenciando-se e auto-construindo-se como sujeito.
Pensar que a “identidade, a partir do lugar social que o indivíduo ocupa,
constrói necessariamente um pensamento crítico, comum, consciente, da sua
condição e situação, fundando um determinado seu “lugar de fala”, significa
desconsiderar as determinações sociais, não só sobre o seu lugar, não só
101

sobre seu papel ou função social, não só na posição em relação à relação de


opressão, mas sobre a sua própria consciência e capacidade de compreensão
de seu próprio ser.
Bastaria, nessa concepção voluntarista do “lugar de fala”, que o sujeito
crie uma “identidade” para ter ele consciência comum e homogênea (com seus
semelhantes) de seu “lugar”, e da sua “fala”.
Assim, o “lugar de fala”, nesta concepção, estaria determinado pelo
“lugar social”. Portanto, esta noção de “lugar de fala” implica imaginar que a
partir do “lugar social” que o indivíduo ocupa emanará dele um determinado, e
comum (a todos os que compartilham o mesmo “lugar social”), conhecimento
crítico sobre sua situação particular, e sobre o mundo. Há aqui um claro
determinismo absoluto do “lugar” sobre a “fala”, sobre o sujeito. Neste
processo, o sujeito desvanece em face do seu lugar, se torna um mero reflexo
da sua posição/condição social, sem subjetividade, comum, homogêneo.
O conhecimento, e sua fala, seriam mero reflexo do seu lugar.
Enfim, para se ter uma compreensão crítica, profunda e fundamentada
sobre a situação vivida, a mera vivência não basta. Ela apenas nos proporciona
as emoções, a experiência, a visão fenomênica, aparente, pseudoconcreta diria
Kosik (1976). Para alcançar um conhecimento crítico da realidade, dos seus
fundamentos, da sua essência, para alcançar a raiz do fenômeno (MARX,
2005, p. 151), é essencial a superação ou “suspensão” teórico-científica da
vivência, do plano fenomênico, factual, saturando de determinações e
particularidades o fenômeno ou situação em questão, desenvolvendo uma
visão de totalidade (ver MARX, 1977, p. 218-221; LUKÁCS, 1966, p. 50; KOSIK,
1976, p.73, 77; HELLER, 1991, p. 34, 2014, p. 41 e ss.).

D) Só quem vivencia uma situação ou pertence a uma “identidade” tem


direito à fala?
Outro aspecto em geral presente no conceito de “lugar de fala” é a
suposição de que só está habilitado a falar sobre uma condição ou situação
aquele que apresenta tal condição ou vivencia tal situação, a partir da
“identidade” que lhe é própria. Isto é, os “outros” não podem falar a respeito de
“nós”.
102

O equívoco do “lugar de fala” é chegar a pressupor que para


compreender a pobreza (ao tratar dela) o sujeito (pesquisador) deve ser pobre.
Compreender (teoricamente) seria equivalente a vivenciar (empiricamente).
Pressupõe-se aqui, muito ao gosto pós-moderno, que a vivência ou a
experiência vivida produziria necessariamente a capacidade de compreensão e
interpretação críticas da realidade. E ainda mais, de que apenas quem possui
tal vivência pode falar sobre ela. Isto é, quem não tem tal experiência de vida,
quem não apresenta determinada “identidade”, não teria capacidade,
idoneidade, competência para compreender e interpretar a realidade alheia,
portanto não terá autoridade para falar.
O que se afirma com a noção de “lugar de fala” é que a capacidade de
conhecimento crítico e de interpretação da realidade é o resultado necessário
da vivência pessoal.
Ora, sentir e saber não são a mesma coisa, e nem necessariamente
confluem. Quem padece ou vivencia uma situação, uma condição social, uma
forma de opressão, discriminação ou desigualdade, certamente é o único que
pode falar sobre seus sentimentos, sobre como se sente ou o quê sente;
porém, isto não quer dizer que seja, pela sua mera condição ou vivência, o
melhor para compreender os fundamentos dessa realidade de forma crítica.
Para isto é necessário superar, ir além da realidade vivida, atrelando a mesma
à totalidade social, que a contêm e determina historicamente.
Contra esta noção, de que todo sujeito que possuir certa
vivência/identidade, e apenas eles, são naturalmente capazes (e os únicos
capazes) de conhecer e interpretar sua realidade, citemos dois exemplos marx-
engelsianos importantes:
Primeiramente, Engels faz uma opção pelo engajamento e luta do
proletariado, não pertencendo a esta classe nem a esta condição social, mas
tendo origem numa família burguesa industrial. Desde o alcance do “lugar de
fala” Engels nada poderia dizer sobre o proletariado, pois apenas estes podem
falar por eles. Nem todo membro que pertence à “identidade” ou possui a
“experiência de vida” determinada mecanicamente alcançará o conhecimento
crítico e radical da sua realidade. E nem todo sujeito alheio a estas
necessariamente não tem nada a dizer sobre ela. O que a vivência nos dá são
sensações, percepções, sentimentos, e um conhecimento imediato da
103

aparência, do manifesto, da realidade pseudoconcreta. Para alcançar os


fundamentos da realidade, para chegar à raiz dos fenômenos, para superar a
singularidade e a particularidade, alcançando a totalidade, há que ir além da
mera vivência, superando e suspendendo a vivência cotidiana.
Em segundo lugar, ao ser criticado pelos leitores alemães de que o livro
O Capital de Marx apenas trataria da realidade inglesa, em nada contribuindo
para o conhecimento da sociedade alemã, Marx lhes responde: “De te fabula
narratur!” (é de vocês que este texto fala!) (1980, p. 5), garantido que, mesmo
não tratando da realidade empírica concreta da Alemanha e sim da Inglaterra,
o livro trata dos fundamentos do capitalismo iluminando o conhecimento dessa
realidade. O conhecimento acumulado, e não apenas experiencial, vivencial,
experimental, é fundamental para alcançar a totalidade, os fundamentos, a
essência da realidade.
Porém, “totalidade”, fundamentos, são questões expressamente
repelidas pela racionalidade pós-moderna!
Aqueles que forem silenciados, pertençam a um grupo ou outro,
finalmente se levantarão para dar voz às suas ideias e sentimentos, seja numa
rebelião antiopressiva ou num surto proto-fascista, como o fenômeno do
bolsonarismo no Brasil. Como afirma Idelber Avelar (2020), em seu artigo “A
rebelião do eles: léxico, morfologia e sintaxe do fascismo bolsonarista”, “uma
das características retóricas essenciais do bolsonarismo é a necessidade
permanente de uma estrutura antagônica”, pois “não há bolsonarismo sem a
permanente produção de antagonismos”. Assim, conforme o autor: “o
bolsonarismo se cacifa e se legitima, em amplos setores da sociedade
brasileira, como uma rebelião dos eternamente designados como ‘eles’”. 8

E) A vítima ou o oprimido sempre tem a verdade?


João Bosco (2017) questiona, em seu livro, se “a vítima tem sempre a
razão?”. A pergunta apresenta algo que costuma não ser questionado.
Pressupõe-se, com costumeira frequência, que a vítima tenha sempre a razão.
Assim, quando há um declarada vítima, o direito de defesa pareceria ser uma

8 Disponível em: <https://estadodaarte.estadao.com.br/rebeliao-eles-fascismo-


bolsonarista-idelber-avelar/>, acesso em jul. de 2020.
104

desnecessária perda de tempo, e a presunção de inocência um certo “vicio de


impunidade”.
Ora, em toda relação sempre há uma verdade e pelo menos duas
versões. E nem sempre a verdade contida na realidade corresponde
plenamente a uma das versões. Mesmo a versão da denominada vítima nem
sempre, e nem plenamente, corresponde à verdade. Porém, em não poucas
vezes tende-se a identificar liminarmente a versão da declarada vítima com a
verdade.
O devido processo – a presunção de inocência, o contraditório, o direito
à defesa, a constituir provas etc. – justamente vem para tentar evitar a liminar
identificação de uma das versões como verdade.
Em absoluto isto significa cair no relativismo ou fazer qualquer
concessão à impunidade.
Ao contrário, o devido processo é uma conquista dos setores oprimidos,
populares, das classes trabalhadoras, como garantias de justiça contra as
condenações liminares por parte de quem controla o poder (punitivo) do
Estado, as elites, as classes e setores socialmente dominantes. É contra o
poder inquisidor da Igreja na caça às “bruxas”, contra o poder absoluto do
Estado monárquico, ou contra o poder da guilhotina do Tribunal Revolucionário
da Revolução Francesa, ou dos tribunais de justiça brancos no Aparthaid sul-
africano, ou da justiça burguesa na condenação de Sacco e Vanzetti etc. etc. É
contra tudo isto que o devido processo se constitui como uma conquista
civilizatória a partir das lutas e demandas dos setores populares, dos de baixo.
Assim, mesmo quando se toma partido pela vítima, condenar ou
esvaziar o devido processo representa uma profunda regressão e retrocesso
nas garantias, particular e principalmente, dos setores menos poderosos, dos
subalternos, das minorias.
Ainda mais, porquanto estamos falando de “identidades” – enquanto
construções simbólicas, imagens, subjetiva, coletiva e social e culturalmente
construídas –, como já vimos (STANLEY, 219, p. 97 e ss.; ECO, 2018, p. 49-
50; ver itens 2.6-B e C), também setores dominantes ou opressores, muitas
vezes constroem suas identidades a partir da sua auto-identificação como
“vítima”, vendo o outro como “ameaça”.
105

Neste sentido, se descartarmos a verdade material, objeriva, da


realidade, se apenas concebermos a “identidade” cultural e subjetivamente
construída, a auto-imagem, encontraremos sujeitos de ambos os lados das
relações se entendendo e se apresentando como “vítimas”. A vitimização é um
processo que também serve aos setores dominantes/opressores das relações
particulares: o trabalhador local se sente ameaçado pelo imigrante, o religioso
ortodoxo sente ameaçado seus valores nas conquistas sociais, o trabalhador
da “classe média” sente sua condição sob ameaça a partir do aumento de
tributos para financiar políticas focalizadas etc. etc.
Isto é, a verdade (objetiva) não pode ser atribuída, nem mecânica e
automaticamente, nem sempre e plenamente, à declarada vítima, liminarmente
identificando-a com sua “versão”, com sua “fala” a partir do sou “lugar”, a partir
do seu “lugar de fala”.

F) Alguns argumentos críticos sobre o “lugar de fala”.


Gomes (2019, p. 3-5) apresenta alguns argumentos “contra a ferramenta
ideológica do ‘lugar de fala’”, dos quais destacamos:
Tratando o “lugar de fala” como um novo “fundamentalismo político” de
“dogmáticos e intolerantes”, onde se concedem “prerrogativas de superioridade
moral”, sustenta que o “lugar de fala” de uns constitui o “lugar do ‘cale-se’”
daqueles que não pertencem à identidade em questão, derivando no
“monopólio da fala”. Conforme o autor, ainda, “a artimanha principal das
reivindicações do ‘lugar de fala’ consiste em punir ou recompensar indivíduos
singulares em virtude da classe de indivíduos em que eles se situam”,
disfarçando a “intolerância” com o outro, e levando a um patrulhamento da
“identidade”. Neste sentido, afirma, “a ideologia do ‘lugar de fala’ virou
adversária do pluralismo, das diferenças e da tolerância”. No debate, a
verdade, as provas, os argumentos ficam em segundo plano, pois “o que
realmente importa” é a que “espécie identitária” pertence cada um. Sua fala
será ouvida e incorporada, ou rejeitada, em função da “identidade” do falante.
Finalmente, afirma, se a esquerda criou a expressão “lugar de fala”, ela apenas
é eficiente no campo da esquerda, já que a “extrema-direita [...] é imune aos
constrangimentos das reivindicações do lugar de fala”, concluindo que “o ‘lugar
de fala’ se transformou em mais uma das formas com que a esquerda se
106

autodevora”. É o que conclui o também professor Luis Felipe Miguel (2017), ao


afirmar que “o ‘lugar de fala’ serve para obstruir as articulações entre [os
diversos] grupos dominados e afastar, até mesmo pintar com as cores do
inimigo, aqueles que [mesmo não pertencentes à identidade em questão, ao
‘lugar de fala’] poderiam ser seus aliados”.
Em síntese, alguns comentários críticos precisam ser apresentados
sobre esta expressão, “lugar de fala”, e seu uso político.
Por um lado, e como já mencionamos, se a origem da expressão visa
reivindicar o direito de voz e fala dos subalternos, hoje o mesmo sentido, de
que apenas podem falar sobre o assunto os membros, restringindo-se a
palavra a todo ator externo, é empregado por grupos dominantes.
Por outro lado, se bem é verdade que a pós-modernidade sempre tem
reivindicado a necessidade de dar espaço às múltiplas e diversas vozes – e
aqui há um aspecto extremamente positivo e progressista na sua proposta
política –, no entanto, essas vozes praticamente tem se restringido à
individualidade, à singularidade, sem qualquer possibilidade de construção de
uma teoria e uma ação de caráter universal.
Um terceiro aspecto a destacar é que o uso político atual da expressão
“lugar de fala” foi além do direito de voz, de fala, dos subalternos, da auto-
representação, da auto-compreensão, e passou a incorporar a noção de que só
o subalterno pode falar sobre sua condição (como trataremos a seguir). Assim,
do direito à voz e fala dos subalternos se passou para a proibição ou
desqualificação da voz e da fala do “outro”. Nesse sentido, conforme Gomes,
da reivindicação de falar por si mesmos, de não ser reduzidos
perenemente à condição de objeto ou assunto, chegou-se rapidamente à
reivindicação de superioridade absoluta da autorrepresentação, à
interdição da fala que não se situa na minoria [subalterna] (2019, p. 3).

Desta forma, o uso que foi dado à expressão de “lugar de fala” se


deslocou de uma origem progressista – “é preciso garantir a voz do subalterno,
para falar em seu nome” –, para uma compreensão tão extremista como
equivocada – “quem não tem a vivência particular subalterna não poderá
compreender os meandros da mesma e portanto falar sobre ela”.
Este pressuposto contido na compreensão do “lugar de fala” é, ainda,
politicamente errado, pois parte do princípio que só a partir desse “lugar de
fala”, ou seja, a presença dos atributos identitários, poderá se compreender a
107

realidade específica, desprezando qualquer conhecimento externo, e


impedindo qualquer forma de solidariedade, de engajamento na luta particular
e de articulação política. Isto é, desde este ponto de vista, o homem não só não
poderá compreender a situação da mulher numa sociedade patriarcal, ele
também não poderá falar sobre a questão, e, portanto, não poderá se somar na
luta contra o machismo. O mesmo vale para qualquer outra “identidade”, onde
o diferente é tido inimigo e não possui “lugar de fala”, não podendo se somar
na luta dos oprimidos. E ainda, as causas particulares, a partir das diversas
formas de opressão, desigualdade e discriminação, também não poderão
desenvolver uma solidariedade entre elas, não podendo se articular numa luta
conjunta.
Muitas vezes o debate, o confronto argumentado de ideias, é eliminado
e substituído pelo juízo moral, que anula o “outro”, em função do não
pertencimento ao “lugar de fala” exigido. Neste caso, não só a fala (os
argumentos, as ideias) do outro é descartada, desmoralizada e desautorizada –
como uma fala de outra “identidade” contrária –, mas o próprio interlocutor é,
em si, desmoralizado e descartado –, tratado como “inimigo” a ser eliminado.
Busca-se, em lugar do debate, do confronto de ideias, “lacrar” (expressão
usada no campo progressista para encerrar o debate mediante a
desqualificação do “outro” e apelando à emoção dos “semelhantes”) ou “mitar”
(seu sinônimo, mas de uso no campo conservador). O conteúdo argumentativo
nem entra em questão, nem é objeto de polêmica, nem é submetido à crítica...
é simplesmente descartado pelo juízo moral que devêm da lógica e uso do dito
“lugar de fala”.
Desta forma, a lógica que contêm a noção de “lugar de fala” condena a
luta e defesa das “pautas” particulares a permanecerem restritas aos grupos
identitários, sem jamais poder se tornar uma causa social ampla. Jamais a luta
feminista pela igualdade de gênero poderia ser abraçada por homens, a luta
contra o racismo poderia ser desenvolvida por brancos etc.
É fundamental que os membros das ditas “minorias”, dos grupos
subalternos, daqueles que padecem as diversas formas de opressão,
dominação, desigualdade ou discriminação possam ter voz, própria e
autônoma. Mas as lutas pelas causas particulares que visam a igualdade social
em todas as suas dimensões não podem se restringir ao grupo particular, a
108

risco de torná-las isoladas. Ao contrário, elas devem se constituir uma bandeira


civilizatória e humanista do conjunto da sociedade. Sem esta apropriação,
jamais ela será uma luta universal, continuando e condenado a ser
eternamente uma luta restrita de um grupo, de uma minoria.
Outra questão, derivada do anterior, é como o “lugar de fala” anula o
debate de ideias, substituído pela destruição do “outro”. Não o confronto com
os argumentos do outro, não o debate ou polêmica entre reflexões, mesmo que
ética e politicamente posicionados e divergentes, mas a destruição da
credibilidade e da legitimidade do outro como interlocutor. O debate, ou até
disputa de ideias, é substituído pelo confronto, anulação e aniquilação do
sujeito. Não se bate nos argumentos, bate-se no interlocutor, na pessoa. Trata-
se, portanto, de um “debate sem debate”. O guru da extrema direita brasileira,
o astrólogo Olavo de Carvalho, em seu curso de “filosofia”, conforme relata o
jornalista Denis Russo Burgierman, que assistira suas aulas, afirmou: “É aí que
está o erro do pessoal conservador: imaginar que existe uma luta de ideias e
que temos de derrotar o marxismo. Temos de derrotar é os marxistas”, e
continuou: “não puxem discussão de ideias. Investiguem alguma sacanagem
do sujeito e destrua-o”, completando: “nós não discutimos para provar que o
adversário está errado. Discutimos para destruí-lo socialmente,
psicologicamente, economicamente”.9
Ao que tudo indica, este método da extrema direita vem sendo
amplamente usado pela esquerda pós-moderna. Aqui, o “cancelamento”, o
escracho, o linchamento público, virtual ou real, para a destruição do indivíduo
(estas ações só podem ser feitas a indivíduos ou pequenos grupos; não se
“cancela” uma cultura), são métodos presentes tanto no campo progressista
(na polarizadora “lógica identitarista” pós-moderna) como no conservador.
Um último aspecto a destacar é que o sentido de “verdade” será
atribuído em função do “lugar de fala”. O efeito concreto disto é o de que as
pessoas repelirão ou aceitarão as falas em função do lugar dos interlocutores;
algo assim como: se o discurso é realizado por alguém do meu “lugar” (da
minha “identidade”), será aceito; porém, se for realizado por alguém de outro
“lugar” (alheio à minha “identidade”), será rejeitado... em ambos os casos, a

9 Ver em: <https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-olavismo-a-ascensao-e-a-queda-


do-bolsonarismo/>; acesso em: out. de 2020.
109

aceitação ou a rejeição, são feitas acriticamente. Este processo, portanto,


relativiza o sentido da verdade e sua conexão com a realidade objetiva,
material, desencadeando o que será conhecido como “pós-verdade”.
Enfim, por um lado, o resultado teórico do chamado “lugar de fala”, é que
no campo progressista, não há mais diálogo, debate, discussão de ideias, entre
diferentes “identidades”, ficando cada uma com sua “verdade”, com sua pauta,
com sua luta. Já, por outro lado, o resultado político geral do “lugar de fala” é
que a esquerda, internamente, é esfacelada, rasgada, desarticulada,
enfrentada internamente.

3.2- A “pós-verdade” como expressão da “realidade


concebida” e objeto de ação política.
A noção de “pós-verdade” trata de uma expressão recente e pouco
conhecida, mas muito nos diz sobre a forma como o irracionalismo pós-
moderno concebe a verdade, e seu impacto na compreensão do real e na ação
política. Trata-se de mais um dos fundamentos claramente atrelados à sua
“lógica identitarista”.

A) Verdade e “pós-verdade”.
Da “alegoria da Caverna” de Platão à “Matrix”, passando por Descartes,
Kant, Hegel, Marx etc. etc., o conceito de verdade está em questão: o que é o
real?, o que é o conhecimento verdadeiro?
O conceito de “verdade” remete a dois momentos, ou possui duas
dimensões fundamentais. Por um lado, representa a realidade objetiva,
material, a realidade dos fatos, o ser-realmente-existente; trata-se da “verdade
das coisas”, representando a dimensão concreta, material, objetiva. Por outro
lado, diz respeito ao conhecimento que temos sobre essa realidade, e a como
esse conhecimento expressa, reflete ou reproduz a mesma no nosso
pensamento, ou seja, em que medida ele representa um “conhecimento
verdadeiro”, fiel ao real, representando aqui a dimensão cognitiva, intelectiva,
subjetiva.
Estas dimensões objetiva e subjetiva constituem, portanto, dois
momentos da “verdade”, certamente relacionadas, porém notoriamente
110

diferentes. E as diversas correntes filosóficas e cognitivas abordarão


diferentemente tanto uma como a outra, concebendo a existência da
objetividade do real, como as correntes modernas (desde o positivismo ao
marxismo) ou a recusa à realidade objetiva (como o irracionalismo pós-
moderno), concebendo o conhecimento desde o ceticismo e o relativismo
cognitivo, a neutralidade científica e axiológica, ou o conhecimento engajado.
A noção de “pós-verdade” se opõe a esta diversa tradição filosófica
racionalista sobre a “verdade”, dissociando o “conhecimento” e a “verdade” da
“realidade” material. Ela se funda no irracionalismo, de Nietzsche, para quem
“não há fatos, apenas interpretações” (apud D’ANCONA, 2018, p. 24), ao pós-
moderno, que vincula a “realidade” à “vivência” individual.
Nesta esteira irracionalista (e antimoderna), a noção de “pós-verdade”
produzirá um hiato, um divórcio, uma autonomização, uma dissociação entre a
“verdade das coisas” ou a “realidade objetiva” e o “conhecimento (considerado)
verdadeiro”. Ou seja, este último não precisaria estar de acordo com o primeiro,
o conhecimento não precisa estar ancorado na realidade, mas na sua
“narrativa”.
E quando o conhecimento não está amparado na realidade dos fatos, a
“verdade” cede lugar e é substituída, ora pela falsidade (ou mentira), ora pela
ilusão, ora pela ficção.
Há hoje, ainda, a substituição da realidade (material, empírica) pela
realidade virtual. A realidade cede lugar à virtualidade, e na mesma proporção
e em decorrência disso, a “verdade” cede lugar à “pós-verdade”.
Para Dunker (in DUNKER, TEZZA et alii, 2018, p. 18), enquanto uma
“nova expressão cognitiva” irracionalista, “a versão contemporânea da pós-
verdade retoma, de maneira modificada, vários aspectos pré-modernos da
verdade, ou seja, uma verdade inflacionada de subjetividade, mas sem nenhum
sujeito”. Conforme o autor, o fenômeno da “pós-verdade” é mais complexo do
que uma “suspensão completa da referência a fatos e verificações objetivas,
substituídas por opiniões”, pois ele “envolve uma combinação calculada de
observações corretas, interpretações plausíveis e fontes confiáveis em uma
mistura que é, no conjunto, absolutamente falsa e interesseira” (idem, p. 38),
na medida em que “transfere a autoridade da ciência ou do jornalismo sério
para a produção e as opiniões” (idem, 39).
111

A verdade, como conhecimento atrelado à realidade, alicerçada na


confiança da relação entre o real e sua representação cognitiva, passa a ser
concebida como algo desvinculado da materialidade, e agora, como “pós-
verdade”, se sustenta na confiança com o interlocutor.
Assim, transmutada em “pós-verdade”, a “verdade” não mais será
alcançada a partir do conhecimento da realidade, mas da “narrativa” e da
confiança no narrador. Prova material e argumento racional são substituídos
por crença e fé.
Não é mais preciso recorrer à realidade para buscar o dado
comprobatório, pois ele é encontrado na internet, um mercado enorme de
ofertas tão diversas e variadas de “dados” (e opiniões) onde se pode escolher
aquele mais conveniente ou mais agradável. Se a comprovação da “verdade” é
o resultado da equiparação do conhecimento com a realidade (a partir de um
método científico), a aceitação e plausibilidade da “pós-verdade” é o resultado
da escolha entre “narrativas” (a partir da fé, da conveniência, e da confiança no
narrador).
Na “pós-verdade” pouco importa a materialidade ontológica ou empírica
dos fatos, pouco importa a existência real dos fatos, a verdade da coisa-em-si.
O que importa aqui é o que cada um acredita sobre os mesmos. Se uma
afirmativa ou narrativa desperta a crença subjetiva das pessoas, mesmo não
sendo empiricamente comprovada (e até podendo ser bastante improvável),
ela se torna “plausível”, aceitável.
É o caminho oposto do conhecimento científico. Trata-se de um
“conhecimento” da “verdade” mais próximo da crença religiosa, onde esta
última responde e se sustenta na “fé” e não nas provas empíricas. Aliás, não só
a fé não precisa de provas materiais, mas mais do que isso: a fé é incompatível
com as provas. Na religião, quem exigir provas da existência de deus é um
“homem de pouca fé!”. De igual forma, quem exigir provas a um membro do
seu grupo identitário, sobre suas afirmações, será igualmente reprendido. Em
ambos os casos deve bastar a fé, a crença, a confiança.
Neste sentido, como afirma D’Ancona, “muitas vezes, rejeitamos [...]
aqueles que se atrevem a discordar. A consequência é que as opiniões tendem
a ser reforçadas, e as mentiras, incontestadas” (2018, p. 53)
112

Por tudo isto, e em função da relevância contemporânea deste processo,


o termo “pós-verdade” foi escolhido em 2016 como “palavra do ano” pelo
Dicionário Oxford na Inglaterra, e lá definido como “circunstâncias em que os
fatos objetivos são menos influentes em formar a opinião pública do que os
apelos à emoção e à crença pessoal” (D’ANCONA, 2018, p. 20). E é a partir
daí que o jornalista britânico Matthew D’Ancona vai publicar um estudo crítico
sobre a “Pós-verdade. A nova guerra contra os fatos em tempos de Fake
News”.

B) Os fundamentos da “pós-verdade”.
É a partir dessa caracterização que o conceito de “pós-verdade” ganha
notoriedade e força, expressando um fenômeno que recentemente assume
relevância cognitiva e política. Não se trata de um termo pós-moderno, mas
que certamente expressa como o irracionalismo pós-moderno concebe e lida
com a verdade, passando a constituir vivamente a sua “lógica identitarista”.
Comecemos pois, salientando alguns aspectos dessa corrente de pensamento,
para em seguida tratar diretamente do significado e alcance da “pós-verdade”.
a) O irracionalismo pós-moderno. Conforme aponta D’Ancona, a “pós-
verdade” tem “uma base na filosofia pós-moderna do final do século XX” (2018,
p. 84), claramente orientada para a “esquerda desiludida” (idem, p. 88), ou para
“classe média frustrada” da qual fala Umberto Eco (2018, p. 50). Já para
Christian Dunker (in DUNKER, TEZZA et alii, 2018), mesmo que “fica claro que
a pós-verdade não pode ser pensada apenas como expressão e
desdobramento de uma cultura pós-moderna” ‒ estando também presente em
vertentes neoliberais e ultraconservadoras ‒, no entanto ele também afirma
que “a pós-modernidade é a condição ideológica a partir da qual a pós-verdade
pode emergir como uma espécie de reação regressiva”, se aproveitando “de
uma percepção social de que há um excesso de indefinições contido em
termos como: politicamente correto, relativismo, multiculturalismo, igualitarismo,
coletivismo, ecologismo e secularismo” (idem, p. 40-41). Para ele, “a pós-
verdade é o falso contrário necessário do pós-modernismo” (idem, p. 12), como
uma “espécie de segunda onda do pós-modernismo” (idem, p. 13).
Portanto, os fundamentos da “pós-verdade” podem, em parte, ser
encontrados nos fundamentos da razão pós-moderna.
113

Existem vertentes pós-modernas tanto de orientação política


progressista como conservadoras, que D’Ancona chama de “pós-modernismo
bom e mau” (2018, p. 84), mas que confluem nos seus fundamentos filosóficos
e cognitivos. Vejamos.
A racionalidade pós-moderna, em relação ao conhecimento racional
sobre a realidade, apresenta um forte apelo ao “relativismo cognitivo”. Nesta
racionalidade não existe a realidade material, objetiva, mas as vivências dela,
portanto não existe a “verdade objetiva” mas as “verdades subjetivas”, motivo
pelo qual, na contramão da Modernidade, se trata efetivamente de um
irracionalismo.
Porém, este relativismo acaba desaguando na negação ou total
relativização do conhecimento científico (moderno, isto é, sustentado na razão),
tal como afirma Boaventura de Sousa Santos ao sustentar que “a ciência em
geral e as ciências sociais em especial atravessam hoje uma profunda crise de
confiança epistemológica” (2005, p. 14), concluindo sobre o exaurimento do
“paradigma da ciência moderna” (idem, p. 25).
Desta forma, dois pilares centrais sustentam o prédio filosófico do
irracionalismo pós-moderno. Por um lado a negação da materialidade
objetiva do real, reduzida a uma interpretação ou representação subjetiva. Por
outro lado, a negação (ou descrença) das “metanarrativas” ou “macro-
teorias” totalizantes, ou seja, das teorias universais, substituídas por
conhecimentos fragmentários e transitórios de fragmentos da realidade (ver, p.
ex., LYOTARD, 1993).
Para Lyotard (1993), as metanarrativas, próprias do Iluminismo, da
Modernidade, como “razão”, “progresso” e “verdade”, e as teorias “totalizantes”,
não mais são adequadas à condição pós-moderna da sociedade
contemporânea, voltando-se para as pequenas narrativas individuais.
Desta forma, conforme afirma D’Ancona, em sintonia com diversos
críticos da pós-modernidade, “ao questionar a própria noção da realidade
objetiva, desgastaram muito a noção de verdade” (2018, p. 85). A verdade,
amparada no conhecimento científico sobre a realidade material, e portanto, a
própria cientificidade, começam a ser minadas pelo irracionalismo pós-
modernos, desaguando na “pós-verdade”.
114

Assim, o “relativismo cognitivo” assume contornos e dimensões centrais


no irracionalismo pós-moderno, que vai confluir na atribuição da “verdade” não
mais à materialidade objetiva do real, mas à interpretação vivencial dos
sujeitos; por tal motivo, não haveria mais a verdade, mas as verdades de cada
indivíduo. Desta forma, para o mesmo autor, “se tudo é um ‘constructo social’,
então, quem vai dizer o que é falso?” (2018, p. 85). Isto é, em face do absoluto
relativismo cognitivo, não há como afirmar o que seja falso, e o que seja
verdadeiro, a não ser a partir da convicção individual. Esta verdadeira
indefinição ou indiferenciação entre “verdadeiro” e “falso” constitui a base
epistemológica fecunda para o desenvolvimento da chamada “pós-verdade”.
Para Boaventura de Sousa Santos, “a verdade é a luta de verdades”
(1989, p. 95), havendo assim uma disputa das teorias por uma “dupla verdade”,
entre a “verdade científica” e a “verdade social” (idem, p. 96).
Assim, este autor afirma que “a verdade é a retórica da verdade”
(ibidem), sugerindo assim uma verdade muito mais sustentada na retórica, na
narrativa, do que na realidade material. Desta forma, ao conceber a “verdade
científica”, não amparada na realidade material, mas no consenso científico,
Santos afirma que: “se a verdade é o resultado, provisório e momentâneo, da
negociação de sentido que tem lugar na comunidade científica, a verdade é
intersubjetiva e, uma vez que essa intersubjetividade é discursiva, o discurso
retórico é o campo privilegiado da negociação de sentido. A verdade é, pois, o
efeito de convencimento dos vários discursos” (idem, p. 96). Temos assim uma
noção de “verdade” completamente distanciada da realidade material, mas
apenas embasada em retórica, discurso, negociação intersubjetiva. É aqui que
o irracionalismo pós-moderno se expressa em todas suas dimensões.
Assim, conforme o marxista, crítico da pós-modernidade, Frederic
Jameson, a teoria pós-moderna não visa a descoberta da verdade (do real),
mas é o resultado de uma “luta acerca de formulações puramente linguísticas”
(1991, p. 105).
A verdade (da coisa-em-si) passa a ser substituída pelo “signo” (no
discurso ou comunicação).
O signo, no processo comunicacional, se compõe do “significante” (o
“veículo material” da comunicação: a imagem, a voz ou a palavra escrita) e o
“significado” (a imagem mental que o receptor faz da comunicação, o sentido
115

atribuído à mensagem, a interpretação). Aqui, segundo afirma Jameson, o


“referente” ou objeto externo do signo, a coisa-em-si, a realidade material,
passa a ser excluída, “embora continue a rondá-la como pós-efeito residual
fantasmagórico (ilusão ou ideologia)” (idem, 108).
Para o autor, os “teóricos do signo” (os teóricos pós-modernos) deslizam
de uma concepção do referente como o “objeto real”, a coisa-em-si, externo ao
signo (unidade do significante e do significado), para “uma posição em que o
próprio Significado – ou o sentido [...] – torna-se de alguma maneira
identificado como o referente” (idem, p.109). Isto é, a realidade material (o
“referente”) já não importa mais na elaboração da ideia (o “significado”, o
sentido, a representação mental). O significado se torna auto-referenciado. A
ideia, o conhecimento, a teoria, já não terá mais como referência a realidade
material, mas a própria ideia ou sentido do sujeito. A realidade objetiva perde
importância para a subjetividade.
Desta forma, como derivação desta ruptura filosófica ou gnosiológica
com a realidade objetiva, a política pós-moderna passa a abandonar qualquer
projeto de transformação da realidade social (objetiva), focando-se nas
mudanças subjetivas, culturais, simbólicas: “mude a si mesmo antes de querer
mudar o mundo!”, “a verdadeira transformação está em você!”.
Assim, o “signo”, conforme Jameson, passa a constituir “uma imagem
útil do processo de transformação da cultura em geral, que deve, num primeiro
momento [...], separar-se do referente [realidade objetiva] – o mundo existente
e histórico” (idem, p. 109), e, num segundo momento, chegando a uma
completa autonomia do signo em relação ao referente, passando o signo a ser
auto-referenciado (idem, p. 110), enquanto o referente passa a ser considerado
como “um mito” inexistente (idem, 113). Para o autor, “num primeiro momento a
reificação ‘liberou’ o Signo de seu referente”, o discurso, o conhecimento, a
teoria, já não tem referente na realidade, autonomizando-se o “signo”. Porém,
num segundo momento o próprio “signo” (da comunicação) dissocia suas
partes constitutivas, “libertando o Significante do Significado, ou do próprio
sentido” (idem, p. 113-114). Assim, como afirma, esse “jogo” (a
intercomunicação) já não é mais “de um domínio de Signos, mas de
Significantes puros ou literais, libertos dos lastros de seus Significados, de seus
antigos sentidos”, gerando um “novo tipo de textualidade”, projetando a
116

“miragem de linguagem última de puros Significantes que é frequentemente


associada ao discurso esquizofrênico” (idem, p. 114). Neste segundo momento,
da “cultura do Significante ou do Simulacro”, deriva-se “uma certa ‘autonomia’
da esfera cultural” (ibidem).
Isto é, primeiramente o Signo (composto de um Significante e um
Significado) se dissocia do referente (da realidade material e objetiva). Mas,
num segundo momento, o próprio Signo passa a dissociar o Significado do
Significante. A comunicação, e portanto todo o conhecimento, se resume à
troca de Significantes, não apenas libertos da realidade material e objetiva,
mas também autonomizados do Significado. Só nos resta o Significante, a
palavra, a voz, a expressão, a narrativa.
A partir deste processo, Jameson caracteriza a pós-modernidade como
“uma sociedade do espetáculo, da imagem, ou do simulacro”, onde finalmente
tudo “tornou-se cultural, desde as superestrutura aos mecanismos da própria
infra-estrutura” (idem, p. 115).
b) O papel da “narrativa” e do “relato” na “pós-verdade”. A “pós-
verdade”, portanto, não se funda no conhecimento (empírico, racional) da
realidade, mas nas “narrativas” (discursos ou versões), e a crença ou
identificação de cada um com elas.
Nesta esteira, Jean-François Lyotard (1993) distingue o “saber científico”
(idem, p. 59) do “saber narrativo” (idem, p. 49) – tal como Santos diferencia a
“verdade científica” da “verdade social” (SANTOS, 1989, p. 96). Lyotard admite
tanto os “relatos populares” (LLYOTARD, 1993, p. 52), como uma “pluralidade
de jogos de linguagem” (ibidem).
Isto é, a “verdade social” (para Santos) ou o “saber narrativo” (para
Llyotard) tratam de verdades/saberes que não se amparam na realidade
objetiva, mas na retórica, na linguagem, na narrativa.
Como afirma D’Ancona, na “era da ‘pós-verdade’” há uma centralidade
na narrativa, onde “a emoção [que cada narrativa provoca] está recuperando
sua primazia, e a verdade, batendo em retirada” (idem, p. 38). Segundo
sustenta o autor, “tudo o que importa é que as histórias pareçam verdadeiras”
(idem, p. 56), e não que elas sejam verdadeiras.
Assim, o conhecimento (particularmente científico) – que dá sustentação
à concepção de verdade – é substituído pela “narrativa”, pelo discurso. A
117

reflexão racionalista (moderna) é substituída pela mera “convicção”. Os


argumentos e as provas são substituídos pela confiança e fé no discurso de
quem ocupa nosso “lugar de fala”. Enfim, a verdade objetiva, empírica, é
substituída, bem ao gosto pós-moderno, pelas “verdades” “minha”, “tua” e
“dele”.
Neste sentido, conforme Jameson, “observa-se [...] um número infinito
de interpretações narrativas da história” (1991, p. 83). Portanto, teremos um
número infinito de “verdades”, concebidas a partir da convicção, da crença, da
confiança ou da fé de cada um com o discurso ou com o narrador.
Neste mundo de narrativas, exponenciado pelas redes sociais e pela
internet, qual delas é a verdadeira, ou a mais próxima da realidade? Em
tempos de “pós-verdade” não há resposta para isto, pois as verdades (de cada
um) dependerão da convicção em uma ou outra narrativa. No máximo, tudo fica
numa “disputa de narrativas” ou de “versões”.
Conforme análise de Lukács, diferentemente da “descrição”, feita a partir
do ponto de vista do espectador dos fatos, de um sujeito externo, a “narrativa”
é realizada a partir do ponto de vista do participante, do indivíduo que faz parte
e participa do fenômeno, do contexto ou dos fatos narrados (LUKÁCS, 2010, p.
150). A “narrativa” estaria, assim, associada a um “lugar de fala”. Porém, na
“pós-verdade” pouco importa se o interlocutor é externo ou interno, espectador
ou participante dos fatos, pois o que é relevante é que o discurso atinja a
subjetividade, as emoções do ouvinte. Isto é, o relevante não é o envolvimento
do narrador com os fatos (participante ou espectador), mas o que importa é o
envolvimento emocional do narrador (ou do discurso) com o ouvinte ou
receptor.
Porém, contrariamente ao caminho pós-moderno que substitui verdade
por “pós-verdade”, a missão dos setores críticos e progressistas, conforme
afirma D’Ancona, dever ser de repor o vínculo da narrativa com a realidade
material, objetiva, assim, “a narrativa nunca deve violar ou embelezar a
verdade; deve ser seu veículo mais poderoso” (idem, p. 119). Assim, a
narrativa, fundada no conhecimento racional (se possível científico), deve
recompor sua articulação e embasamento com a realidade.
Um exemplo por demais eloquente do uso da narrativa como forma de
apresentar uma sua “verdade” (ou pós-verdade), mesmo contrária a qualquer
118

evidência, é o discurso do presidente brasileiro, Bolsonaro, proferido na ONU,


em 21/09/2020, apresentando “versões” que não correspondem à realidade
sobre o combate à pandemia, sobre a questão ambiental etc.10
c) A “pós-verdade” como resultado de escolhas a partir de
crenças/sentimentos. Dada a desvinculação da “pós-verdade” de uma
materialidade ou de comprovações, a atribuição do status de “verdade” a um
discurso se dará a partir das escolhas dos sujeitos. Assim, por um lado, a
“verdade” (ou melhor, a “pós-verdade”) passa a ser o resultado de “escolhas”
pessoais.
A inundação na internet de informações e opiniões, de todo tipo, muitas
vezes sem qualquer fonte, permite que as pessoas possam (ou exige que as
pessoas devam) “escolher” com qual delas fica, em qual vai acreditar; uma
escolha feita em função de qual agrada mais ou é mais útil. Temos então uma
“verdade” que é o resultado de uma escolha pessoal e subjetiva. A afinidade da
“verdade escolhida” é com a subjetividade da pessoa, e não mais com a
objetividade material da realidade. O sujeito escolherá aquela “verdade” que
esteja mais próxima de seus valores, crenças, emoções e autoimagens, sem
se importar com a comprovação da mesma, nem com sua fidelidade com a
realidade objetiva.
Conforme D’Ancona, “a epistemologia da pós-verdade incita que
aceitemos que existem ‘realidades incomensuráveis’ e que a conduta prudente
consiste em escolhermos lados, em vez de avaliarmos evidências” (2018, p.
90). A “verdade”, portanto, na era da “pós-verdade”, seria o resultado de
escolhas pessoais. Se escolhem lados (“lugares”), e a partir deles se escolhem
quais discursos ou narrativas condizem com esse lado, e quais não. Os
primeiros (os discursos adequados ao lado escolhido) serão aceitos como
“verdadeiros”, enquanto os segundos serão rejeitados e condenados.
E aqui, a disseminação de “fake news” (de mentiras), e a forma de
apreensão das mesmas pela população, como “pós-verdade”, como uma
“narrativa” que será aceita ou rejeitada segundo as emoções que despertar e a
fé e confiança na fonte, encontra uma enorme caldo de cultivo na era da
internet e das “redes sociais” virtuais, as quais acabam facilitando e

10 Ver: <https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2020/09/22/veja-o-que-e-fato-ou-fake-
no-discurso-de-bolsonaro-na-onu.ghtml>, acesso em: set. de 2020.
119

estimulando a noção de que se trata de uma escolha entre as várias


“narrativas” dentro de um enorme mercado de informações, ou, como chama
D’Ancona, um “bazar digital” (idem, p. 50).
Para ele, essa tecnologia também foi um “motor muito importante,
primordial e indispensável da pós-verdade” (idem, p. 52). Aqui, além do mais, o
“anonimato” da internet amplia ainda mais a falta de compromisso e
responsabilização com as falsas notícias (idem, p. 54), seja para quem as
dissemina, como para quem as “consome” e incorpora.
Desta forma, as notícias não são mais selecionadas pelas “agências de
notícias”, mas por cada consumidor, por cada indivíduo. Isto pareceria um
avanço da liberdade individual, e uma limitação do controle corporativo das
notícias. Afinal, é o próprio indivíduo, e não a agência, quem define que
notícias serão vistas e incorporadas. Parece, mas não é bem assim, por dois
motivos. Primeiramente, e sem desconhecer o real controle da informação por
estas “agências de notícias”, certamente manipuladoras e a serviço dos
interesses hegemônicos do grande capital, porém, elas dependem de
credibilidade, e portanto tem um limite nas suas possibilidades de manipulação.
Em segundo lugar, a internet é um oceano quase infinito de notícias,
verdadeiras e falsas, de opiniões fundamentadas técnica e cientificamente e
opiniões sem embasamento, ou de julgamentos preconceituosos e visões
alienadas da realidade, tornando impossível a seleção à maioria dos
indivíduos, leigos e sem possibilidade de verificação, acabando por incorporar
aquela informação mais destacada na internet, ou mais simpática à sua crença,
independentemente da veracidade da mesma. Conforme Dunker (in DUNKER,
TEZZA et alii, 2018, p. 29), “vivemos hoje com um acervo de instrumentos e
meios que excedem o limite de nossas faculdades mentais ‘em estado
natural’”. Assim, como afirma D’Ancona, “a web é o vetor definitivo da pós-
verdade, exatamente porque é indiferente à mentira, à honestidade e à
diferença entre os dois” (2018, p. 55).
Em 8 de julho de 2020 – depois de ter disseminado notícias falsas,
polarizando a sociedade, e ajudando à eleição de Bolsonaro na presidência do
120

Brasil –, o Facebook removeu as contas falsas do chamado “gabinete do


ódio”.11
Enfim, essas escolhas, não sustentadas na verdade material, na
realidade concreta, objetiva, mas na aceitação ou rejeição da “narrativa”, são
realizadas a partir da afinidade subjetiva com a ela, a partir de crenças e
sentimentos. Ou, como afirma Dunker (in DUNKER, TEZZA et alii, 2018, p. 28),
“do ponto de vista das relações intersubjetivas [...] a principal característica da
pós-verdade é que ela requer uma recusa do outro ou ao menos uma cultura
da indiferença que, quando se vê ameaçada, reage com ódio ou violência”.
Desta forma, por outro lado, tal escolha entre narrativas, que o sujeito
adota como sua (pós) “verdade”, fundar-se-á nas “crenças” e “sentimentos”, e
até na “conveniência” ou “interesses”, sendo o sentido de “verdade” atribuído
à aquilo em que o sujeito “acredita” ou “sente”, ou lhe é conveniente. A “pós-
verdade” admite que, contra a verdade matemática universal de que 2+2=4,
alguém possa afirmar que 2+2=22. Cada um com sua “verdade”, na qual cada
um acredita. Seria arrogante e pretensioso querer que todos acreditem
igualmente na verdade do outro, mesmo que essa seja uma verdade
matemática. Cada um teria o direito e a liberdade de acreditar na “sua”
verdade. Resulta mais simpático ser “uma metamorfose ambulante do que ter
aquela velha opinião formada sobre tudo”, dizia Raúl Seixas.
O próprio Barack Obama, em seu discurso de despedida em janeiro de
2017, afirmara: “Nós nos tornamos tão seguros em nossas bolhas que
começamos a aceitar apenas informações, verdadeiras ou não, que
correspondessem às nossas opiniões, em vez de basearmos nossas opiniões
nas evidências que estão por ai” (apud D’ANCONA, 2018, p. 52).
Um exemplo concreto e gritante deste processo de “escolhas” entre
narrativas a partir de crenças, sentimentos e interesses, podemos verificar na
Pandemia do “novo corona vírus”, em 2020, onde particularmente no Brasil
importantes contingentes populacionais acreditaram ser a Covid 19 uma
“gripezinha” sem grandes riscos e passível de tratamento mediante a
Cloroquina, porém, exagerada pela mídia e políticos. A pesar de toda a

11 Ver em: <https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/07/08/facebook-


remove-rede-de-contas-falsas-relacionada-ao-psl-e-a-gabinetes-da-familia-bolsonaro.ghtml>,
acesso em 10/07/2020.
121

evidência contrária dos dados, estes setores da população aceitaram essa


narrativa como a (pós)verdadeira, seja pela crença no discurso negacionista do
presidente Bolsonaro, tido como um “mito” para seus seguidores, seja pela
necessidade de voltar a trabalhar (e reaver seu salário ou renda) ou de voltar a
pôr seu pequeno negócio ou oficina em funcionamento. A crença no narrador,
ou a necessidade e conveniência de retornar à atividade, fez com que se
ignorassem os dados gritantes da realidade, e se adotasse uma narrativa
estapafúrdia.
Assim, no racionalismo cientificista, do positivismo ao marxismo, a
“verdade” no discurso deve representar a realidade constatável (a partir das
provas); contrariamente, na lógica da “pós-verdade”, o discurso deve estar
adequado com as crenças ou convicções (a partir da “identidade”), derivando
numa realidade concebida.
d) A “pós-verdade” não é sinônimo de mentira ou “fake news”...
mas pode lhes dar status de “verdade”. A “pós-verdade” não é equivalente à
mentira. Como sustenta D’Ancona, “as mentiras, as manipulações e as
falsidades políticas enfaticamente não são o mesmo que pós-verdade” (2018,
p. 34).
A expressão de “pós-verdade” não é sinônimo de “fake news”. Ela
remete muito mais à forma como os sujeitos tomam as “narrativas” – sejam
elas falsas e mentirosas ou verdadeiras –, prescindindo das provas ou
evidências empíricas, a partir das suas crenças, sentimentos e emoções, dos
seus interesses, ou da confiança que tenha na informação ou no informante, o
autor da “narrativa”. O termo expressa não o grau de veracidade ou falsidade
do comunicante ou do comunicado, mas a forma emocional de apropriação do
ouvinte. Como afirma D’Ancona, a “pós-verdade” não expressa a mentira ou a
“desonestidade dos políticos, mas a resposta do público a isso”, que, apático e
indiferente, acaba sendo conivente (idem, p. 34) e adotando uma “resignação
cognitiva” (idem, p. 36), e eu acrescentaria, uma “conveniência cognitiva”. Esta
apatia, “indiferença” e “resignação cognitiva”, ou sua “conveniência”, que leva à
conivência com as narrativas “pós-verdadeiras”, está ligada ao que D’Ancona
chama de “colapso da confiança” nos políticos e nos cientistas, o que se
constitui na “base social da era da pós-verdade” (idem, p. 42). E, como ele
122

afirma, “uma comunidade sem confiança acaba se tornando não mais do que
um atomizado conjunto de indivíduos” (ibidem).
Por sua vez, este “colapso de confiança” das pessoas está ligado às
crises institucionais e financeiras (ver idem, p. 45) e sua consequente
desconfiança nos políticos, nas instituições, nos experts financeiros, nos
cientistas.
Assim, conforme o autor, na “pós-verdade” “o que importa não é a
ponderação racional, mas a convicção arraigada” (idem, p. 36), sustentada na
noção de que “a verdade é uma questão de crença. [...] Essa coisa de fatos
não existe” (ibidem).
Desta forma, a chamada “pós-verdade” não é sinônimo de, nem
corresponde necessariamente à mentira, falsidade ou fake news. Ela diz
respeito à forma subjetiva como os discursos são apropriados pelos sujeitos,
muito mais em função de suas convicções, crenças e sentimentos, do que na
veracidade comprovada dos fatos. Porém, não sendo sinônimo de falsidade ou
fake news, a “pós-verdade” pode lhe outorgar status de “verdade”, quando o
sujeito acredita e confia num discurso falso ou mentiroso; nesse caso, o falso
será aceito como (pós) verdadeiro.
e) Conhecimento engajado da verdade não é “pós-verdade”. Como
já vimos, há em Marx, como em diversos outros autores, a convicção de que
todo conhecimento é fundado em valores, perspectivas e visões de mundo, e
orientado ideológica e politicamente.
Não há conhecimento desprovido de valores, de interesses, pois, sendo
a realidade material, objetiva, a apropriação dela pelo conhecimento só pode
ser carregado de subjetividade. A realidade é objetiva, pois diz respeito a uma
existência concreta (o ser-precisamente-assim) que independe do
conhecimento que dela se tenha, mas o conhecimento é permeado por
subjetividade, na medida em que remete à apropriação, pelo sujeito, do real,
transformado-o em conhecimento, em representação intelectiva, ideal, sendo
esse conhecimento da realidade, portanto, um processo permeado por toda a
subjetividade, valores, interesses, perspectivas, do indivíduo cognoscente.
Particularmente, o método de conhecimento materialista-histórico e
dialético, o método marxista, funda-se na “perspectiva de revolução”, que visa
conhecer para transformar a realidade. Assim, contrariamente à neutralidade
123

axiológica de Durkheim ou ao conhecimento contemplativo de Feuerbach, para


Marx o conhecimento é engajado, comprometido, orientado para a
transformação social e a emancipação humana.
Porém, conhecimento engajado não quer dizer que o sujeito deva
adequar o seu discurso teórico, o conhecimento científico, aos seus interesses,
negando ou manipulando os dados da realidade material, concreta, segundo
seu interesse. Isso não constitui outra coisa que falseamento ou manipulação
da realidade. O conhecimento, mesmo que engajado, fundado no materialismo
histórico e dialético, deve ser veraz, deve representar e reproduzir o mais
fielmente possível a realidade. O conhecimento engajado, mesmo que
ideologicamente fundado, não corresponde a falsidade ou manipulação da
realidade, mas exprime a fiel reprodução do real no pensamento.
Contrariamente, na chamada “pós-verdade”, o “conhecimento” é
transformado em discurso, em “narrativa”, e este não tem que ter nenhuma
relação ou correspondência necessária com a materialidade, com a realidade
empírica, apenas com as convicções dos indivíduos, suas crenças, suas
emoções, a partir da sua “identidade” ou condição social, o que determinaria o
seu “lugar de fala”. A “narrativa” (e não o conhecimento) deve se adequar
apenas e exclusivamente às crenças dos sujeitos e às suas emoções.
Porém, só emoções, convicções, sentimentos, sem qualquer
comprovação empírica ou racional, não dá conta da “verdade”, mas de uma
“pós-verdade”. Para atingir a verdade dos fatos, para um conhecimento veraz,
é preciso combinar convicções com empiria, emoções com razão. Nesta
esteira, afirma D’Ancona que “a batalha entre sentimentos e racionalidade é, de
certa forma, uma dicotomia falsa” (2018, p. 114).
Para Marx, há sim emoção, “coração”, envolvidos no conhecimento
engajado da realidade, na medida em que o engajamento significa
envolvimento do sujeito na mesma, não uma atividade contemplativa, porém,
em absoluto significa a substituição do dado empírico, da realidade concreta,
que dever ser apropriado pela razão. O conhecimento engajado envolve,
portanto, a emoção e a razão.
Para ele, o conhecimento crítico funda-se na razão, no pensamento
racional, na capacidade reflexiva do conhecimento científico crítico, sem o qual
ela será meramente romântico, ingênuo ou moralista. Não se trata de um
124

conhecimento intuitivo, vivencial, místico ou moralista, mas de um


conhecimento racional e científico.
Porém, não basta a razão; o conhecimento meramente reflexivo leva a
um saber “neutro”, “desengajado”, a uma atitude “contemplativa” do sujeito. O
conhecimento crítico deve se alimentar da indignação, da paixão, que levam ao
comprometimento, ao engajamento do sujeito, à necessidade de transformar a
realidade, a conhecer para transformar. Desta forma, com afirma Marx:
[...] a crítica [o conhecimento crítico] não é uma paixão do cérebro, mas o
cérebro da paixão. Não é um bisturi anatômico, mas uma arma. [...] A
crítica não é mais um fim em si mesmo, mas apenas um meio; a
indignação é o seu modo essencial de sentimento, e a denúncia sua
principal tarefa (2005, p. 147).

Deste modo, o ponto de partida do conhecimento crítico (seu objeto) é a


realidade; seu motor é a indignação (contra as formas de desigualdade,
dominação, exploração, subordinação) e a teoria é a ferramenta (que permite
passar da indignação ao conhecimento verdadeiro dos fundamentos e da
essência dos fenômenos).
Razão e paixão, cérebro e coração, realidade e emoção, conhecimento
científico e ação política, é a combinação necessária para o conhecimento e o
engajamento críticos.
O conhecimento crítico tem, assim, um início, um meio e um fim. Ele tem
como ponto de partida a realidade (não idealizada, não o “dever ser”, mas o
realmente existente). A razão e a paixão, a capacidade científica de produzir
conhecimento teórico veraz, o mais fiel possível à realidade, mas um
conhecimento engajado, comprometido, orientado na perspectiva de
transformação. Enfim, a teoria crítica e a indignação/engajamento constituem
os meios, as ferramentas e o motor do conhecimento crítico (radical). Por
último, por não se tratar de um conhecimento “neutro”, “contemplativo”, o
conhecimento crítico e engajado tem por finalidade a sua apropriação por parte
das massas, dos trabalhadores, dos subalternos, visando assim constituir-se
em uma ferramenta para a transformação social, já que para Marx, “a arma da
crítica não pode substituir a crítica das armas, [...] o poder material tem que ser
derrubado pelo poder material, mas a teoria se converte na força material
quando penetra nas massas” (MARX, 2005, p. 151-152).
125

C) As formas de expressão ou manifestação da “pós-verdade”.


Com a “pós-verdade” se materializam visões antes muitas delas parcial
ou completamente desqualificadas e marginais, que agora, com a ajuda das
redes sociais e da internet, ganham “plausibilidade” e “credibilidade”, e,
perigosamente, ampla aceitação popular. Podemos identificar algumas das
suas mais notórias formas de expressão, a saber:
a) O negacionismo científico. Ao tratar, por exemplo, da ampla
abrangência negacionista sobre o efeito benéfico das vacinas nos EUA e no
Reino Unido, D’Ancona observa como “o recuo em relação à ciência se torna
perigoso quando ameaça a saúde pública ou a segurança dos outros” (2018, p.
68). Neste caso, como uma espécie de premonição, tal observação pode ser
constatada na tragédia das mortes pela Covid 19, a partir do negacionismo
científico, fundamentalmente presentes nos governos de Bolsonaro no Brasil, e
Trump nos EUA. As afirmações do mandatário brasileiro, de que se tratava de
uma “gripezinha”, que os cientistas e a OMS tinham criado uma “histeria” na
população, que as medidas de quarentena eram “exageros”, ou até, as
acusações da autoridade norte-americana à OMS, ou a “prescrição” de ambos
do uso da “Cloroquina”, tudo isto levou a um afrouxamento da quarentena – por
parte de quem confiou na “pós-verdade” dessas lideranças –, o que colocou
imediatamente ambos países no topo do “pódio” de mortes pelo novo corona
vírus, chagando a representar só esses dois países o 50% dos novos casos da
doença no mundo.12
Mas o negacionismo científico vai muito além da questão sanitária da
vacina ou da quarentena em face da Covid 19, atingindo o avanço do
conhecimento científico em diversas áreas.
Negando a “esfericidade” da Terra, se defende, contra qualquer
evidência científica ou até empírica, a “Terra plana” ou o “terraplanismo”,
defendido entre outros pelo astrólogo Olavo de Carvalho, e retrocedendo às
épocas anteriores a Copérnico, Galileu e Cristóvão Colombo. Negando a
“Teoria da evolução das espécies”, de Darwin, promove-se o “criacionismo”, tal
como ocorreu no governo Bush, nos EUA, ensinando nas escolas ambas

12 Ver em: <https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/brasil-e-eua-representam-50-dos-


novos-casos-diarios-de-covid-19-diz-oms/>, acesso em jul. de 2020.
126

“teorias”,13 retrotraindo o conhecimento da origem e evolução das espécies e


do ser humano ao século XVIII, numa proporção assustadora, onde “ao menos
um em três norte-americanos ainda rejeita a ciência darwinista” (in D’ANCONA,
2018, p. 65). Contra toda evidência científica, nega-se igualmente o
“Aquecimento global”, ou o desmatamento na Amazônia, afirmando que se
trata de estudos manipulados que visam inibir o progresso produtivo.
Exemplos negacionistas são muitos, levando a um recuo do
conhecimento humano até, ao menos, o obscurantismo medieval. O
“iluminismo”, a era das luzes, que superou o “obscurantismo” medieval, agora
parece se reverter numa nova era obscurantista, onde não mais a razão, o
conhecimento científico e o progresso, a partir das evidências, conduzem o
saber, mas apenas a crença e a fé é que definem o que é “certo” e “verdadeiro”
e o que não.
Porém, não podemos imaginar que tal “negacionismo científico” é algo
ingênuo, sem propósito, de pessoas alucinadas ou ignorantes. O negacionismo
tem uma utilidade política central nos dias atuais. 14
O “negacionismo científico” põe em pé de igualdade as opiniões
cientificamente fundadas (mesmo que controversas e polêmicas) com o
“achismo” vulgar e efêmero. O que encontra nas redes sociais um campo fértil
e um estímulo. Assim, da mesma forma que todo mundo se sente “técnico de
futebol” e opina sobre a escalação do time, igualmente todo mundo sente que

13 Não podemos deixar de considerar que inclusive o Vaticano tem aceitado


amplamente a “Teoria da evolução”. Vejamos:
Em sua encíclica “Humani Generis”, em 1950, o papa Pio XII já afirmara que o
“magistério da Igreja não proíbe o estudo da doutrina do evolucionismo, que busca a origem do
corpo humano em matéria viva preexistente”. Por outro lado, em 22 de outubro de 1996, o
papa João Paulo II, em discurso na Pontifícia Academia das Ciências, afirmara que a evolução
“já não era uma mera hipótese, mas uma teoria". Já o arcebispo Gianfranco Ravasi, ministro da
Cultura do Vaticano, declarou, em 2008, sobre os 150 anos da publicação da obra “A Origem
das Espécies”, de Darwin, que “a teoria da evolução é compatível com a Bíblia”. Atualmente, o
papa Francisco afirmou, em 27 de outubro de 2014, na Pontifícia Academia de Ciências, que a
Teoria da Evolução e o Big Bang são reais, e criticou a interpretação das pessoas que leem o
“Gênesis”, livro da Bíblia, achando que Deus “tenha agido como um mago, com uma varinha
mágica capaz de criar todas as coisas”.
Ver: <http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL996835-5602,00-
VATICANO+CONSIDERA+NAO+HAVER+CONTRAPOSICAO+ENTRE+FE+E+EVOLUCAO.ht
ml>; <http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL761923-5603,00-
VATICANO+ACEITA+EVOLUCAO+MAS+NAO+SE+DESCULPA+COM+DARWIN.html>;
<http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2014/10/papa-diz-que-big-bang-e-teoria-da-
evolucao-nao-contradizem-lei-crista.html>; todos acessos em maio de 2020.
14 Ver, por exemplo, sobre o “terraplanismo” o documentário da Netflix “A Terra é
plana” (de 2018), ou o documentário que deu origem ao movimento anti-vacina, “DPT: Vaccine
Roulette” (de 1982).
127

pode opinar sobre a Pandemia do novo corona vírus, sobre a eficiência de


remédios ou de tratamentos médicos, e sobre a necessidade de quarentena,
ou se ela é resultado de uma “histeria coletiva” criada por uma nação para
“dominar o mundo”.
Tudo, conhecimento científico e senso comum, tudo é posto no mesmo
lugar, como opiniões equivalentes. A manipulação política que isto abre é
evidente, e a vivenciamos no atual contexto brasileiro e mundial.
b) O revisionismo histórico. Neste caso, reconstruindo as “narrativas”,
e disputando o lugar da “verdade histórica”, o “negacionismo científico” assume
sua particularidade no “revisionismo histórico”, como se se estivesse
reescrevendo ou reinterpretando a história. Até ai tudo bem. Podemos e
devemos reinterpretar a história constantemente; porém, o problema é quando
se faz a partir da negação de dados e fatos comprovados histórica e
cientificamente, e sustentando apenas interpretações subjetivas, convicções e
emoções, sem comprovação alguma, como se a interpretação da história fosse
apenas uma questão de opinião, de convicção, de “narrativas”. Dois exemplos
se destacam, no plano internacional e brasileiro.
No primeiro caso, o exemplo mais destacado e impactante é, sem
dúvida, a negação do Holocausto na Alemanha Nazista. D’Ancona (2018, p. 75
e ss.) traz a tona o processo judiciário ocorrido na Inglaterra, em 2000, no qual
a acadêmica e historiadora Deborah Lipstadt e sua editora responderam a
denúncia por difamação promovida pelo escritor negacionista (ou revisionista)
do Holocausto David Irving.15 D’Ancona também constata a impressionante
presença negacionista do Holocausto na internet (idem, p. 73-74).
O segundo exemplo, neste caso brasileiro, remete ao profundo
revisionismo histórico promovido pelo “bolsonarismo”, negando tanto a
“Ditadura militar de 64” – com Bolsonaro definindo-a como “um novo 7 de
setembro”,16 ou como um “movimento”, segundo o ministro do STF Dias
Tóffoli17 −, como a Escravidão no Brasil – com Bolsonaro afirmando que “os
portugueses nem pisaram a África”, mas foram “os próprios negros que

15 O caso foi tratado no filme “Negação” (2016, dirigido por Mick Jackson e escrito por
David Hared).
16 Ver em: <https://veja.abril.com.br/politica/doze-vezes-em-que-bolsonaro-e-seus-
filhos-exaltaram-e-acenaram-a-ditadura/>; acesso em: ago. de 2020.
17 Ver em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/toffoli-diz-que-hoje-prefere-
chamar-ditadura-militar-de-movimento-de-1964.shtml>; acesso em: ago. de 2020.
128

entregaram os escravos”;18 ou com o presidente da Fundação Palmares,


Sergio Nascimento de Camargo, ao sustentar que a escravidão foi “benéfica”
para os descendentes19 −, ou até reinterpretando o Holocausto − com a
afirmação do chanceler Ernesto Araújo, 20 e confirmada pelo presidente 21
(contra toda evidência histórica), de que “o nazismo era de esquerda”, pois se
denominava “nacional-socialismo”, arrepiando seus anfitriões em Israel.
O revisionismo histórico tem um sentido ideológico e político
fundamental na interpretação da história e na manipulação política da
população.
c) O fundamentalismo religioso. Este não é um fenômeno novo, mas
ele adquire relevância particular neste contexto. Neste caso, a gravidade do
impacto ideológico e político se acresce, na medida em que aqui se toma como
“verdade divina” o discurso do líder religioso, e como profano, o das outras
religiões.
Na vida social das pessoas isto já gera impactos profundos em como os
indivíduos interpretam desde os fenômenos naturais até os processos políticos
e econômicos, desde o plano pessoal, individual e familiar, até na esfera social
mais ampla. Mas quando o “fundamentalismo religioso” chega à esfera da
política, do Estado, o malefício é total. Não mais se debate, com argumentos,
com dados, mas apenas se sustentam as posições, rígidas, doutrinárias,
inalteráveis da fé. Não há mais negociação e busca de consensos. Não há
mais tolerância para aquele que não compartilha a mesma crença e fé, pois
não é um “homem de deus”. A crença e a fé na verdade divina, na palavra de
deus, expressada pelo seu “representante na Terra”, dá um status especial à
“pós-verdade”.
No Brasil, após as eleições de 2018, a “bancada evangélica” no
Congresso passou a ser de 195 deputados federais (de 513) e 8 senadores (de
81). Estes números não incluem representantes católicos ou de outras

18 Ver em:<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/07/portugueses-nem-pisaram-
na-africa-diz-bolsonaro.shtml>; acesso em: ago. de 2020.
19 Ver em: <https://istoe.com.br/chefe-de-fundacao-palmares-fala-em-escravidao-
benefica-para-descendentes/>; acesso em: ago. de 2020.
20 Ver em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/03/ernesto-araujo-diz-a-canal-
de-youtube-que-nazismo-foi-movimento-de-esquerda.shtml>; acesso em: ago. de 2020.
21 Ver em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/04/02/no-memorial-do-
holocausto-bolsonaro-diz-que-nazismo-era-de-esquerda.ghtml>; acesso em: ago. de 2020.
129

religiões, apenas dos evangélicos, que tem uma especial opção de articular
religião com poder de Estado.22
O uso político do fundamentalismo religioso é evidente e especialmente
constatável no Brasil atual, quando “pastores” de igrejas definem em quem
devem votar os fieis, que tipo de valores ou posições devem defender, gerando
uma intransigência incompatível com a dinâmica da atividade política: como
negociar com um político algo que é tido como determinação divina, segundo
expressa o “pastor”, representante de deus na igreja?
d) A moralização dos fatos. Em parte derivado da questão religiosa,
mas não restrita a ela, há uma profunda moralização dos fatos, onde se
condena, mediante a disseminação de fake news criando uma “pós-verdade”
sobre os mesmos, desde a “educação sexual” na escola – como se fosse uma
forma de indução à vida sexual, à mudança de sexo etc. –, a “ideologia de
gênero” – como algo “contra-natura” ou pagão ‒, o “aborto na gravidez
indesejada ou de risco” ‒ como algo amoral ‒, entre tantos e infindáveis outros
exemplos.
Novamente a internet e as “redes sociais” virtuais são exemplo do
volume de opiniões apenas sustentadas em juízos de valor, moralistas.
Desta forma, os detentores da “moral”, sejam eles de uma religião, ou de
uma tendência política, ou de um determinado grupo social, irão determinar o
pensamento, opinião e julgamento das pessoas, comandando plenamente suas
“identidades”.
e) A expansão das teorias conspiratórias. D’Ancona, a partir do texto
de Richard Hofstadter, “The Paranoid Style in American Politics” (“O estilo
paranoico na política norte-americana”), publicado em 1964, trata das “teorias
conspiratórias” como uma “paranoia” contemporânea (2018, p. 61). Porém, a
paranoia conspiratória atual tem uma importante novidade em relação àquela
descrita por Hofstadter nos anos 60, meio século antes: a atual teoria
conspiratória, da “era da pós-verdade”, não é mais um “fenômeno psíquico”
que afeta a uma pequena “minoria modesta da população” (idem, p. 62), mas

22 Ver a matéria: “Domínio da fé e da política: o projeto de poder dos líderes


evangélicos no Brasil”, disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/01/17/dominio-da-
fe-e-da-politica-o-projeto-de-poder-dos-lideres-evangelicos-no-brasil>, acesso em maio de
2020.
130

atinge vastos contingentes populacionais, tendo na internet e nas “redes


sociais” virtuais um importante vetor de propagação (idem, p. 64).
Assim, afirmações como a “existência de armas de destruição de
massas no Iraque” (em 2003), ou a afirmação das queimadas na Amazônica
serem organizadas por ONG (em 2020), ou a “produção em laboratório do novo
corona vírus para a China dominar o mercado mundial” (em 2020), em tempos
de “pós-verdade”, mesmo considerando sua inverossimilhança e falta de
provas, passa a ser apropriado por parte da população passível de influência,
dotando de legitimidade as ações dos governos em resposta a tais “narrativas”.
Não podemos deixar de lado as “teorias conspiratórias” mais
excêntricas, como os extraterrestres na “Área 51”, o “Apocalipse Maia” dentre
tantos outros. Meras afirmações, massivamente aceitas como “pós-
verdadeiras” por grandes contingentes da população, porém, com profundos
impactos sociais, políticos e econômicos.
Um dos exemplos mais notórios, nos EUA, mas com forte influência no
Brasil e no mundo, é a da teoria conspiratória denominada de “QAnon”
(aparentemente um desdobramento da teoria conspiratória de 2016, chamada
de “Pizzagate”), iniciada em 2017 e hoje com milhares de seguidores, que
apresenta a ideia de um plano secreto e golpista de um suposto “estado
profundo” contra o presidente Donald Trump, contra quem conspirariam desde
Barack Obama, Hillary Clinton a George Soros, envolvendo também atores
liberais de Hollywood, políticos democratas, altos funcionários, com a prática
do satanismo e com o suposto tráfico sexual de crianças e um rede
internacional de pedofilia.23
Também, especialmente no Brasil da “era Bolsonaro”, mas com
abrangência global, há o resurgimento de uma “teoria conspiratória” sobre uma
“ameaça marxista” ou “comunista” para dominar o mundo... Isso mesmo! em
pleno século XXI, e com a derrota de quase toda experiência do chamado
“socialismo real”, com um espaço tão reduzido no espectro político em quase
todas as nações para as correntes marxistas e socialistas, a ideia de uma

23 Ver matérias em: <https://www.dn.pt/mundo/qanon-a-teoria-da-conspiracao-que-


cresce-no-facebook-e-vai-chegar-ao-congresso-dos-eua-12516449.html>;
<https://g1.globo.com/mundo/eleicoes-nos-eua/2020/noticia/2020/08/26/o-que-e-qanon-o-
movimento-conspiracionista-a-favor-de-trump-que-e-visto-pelo-fbi-como-ameaca.ghtml>; e
<https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/07/22/qanon-twitter-elimina-contas-de-
grupo-que-propaga-teoria-de-conspiracao-nos-eua.ghtml>; acesso em: ago. de 2020.
131

“conspiração marxista-comunista” volta a provocar o medo de setores da


população, aceitando – ou até clamando por – uma intervenção militar, para
frear tal avanço. Especificamente, no caso brasileiro, no contexto da eleição e
do governo Bolsonaro, houve a teoria conspiratória, propagada por fake news,
da ameaça do “marxismo cultural”, da “doutrinação marxista e feminista” das
crianças nas escolas, do “satanismo” encoberto por meio do Rock etc.
A utilidade das teorias conspiratórias para os setores dominantes é clara
e contundente; por meio delas, disseminadas e aceitas pela população, pode
se legitimar uma intervenção militar num país estrangeiro (a exemplo da guerra
do Iraque, em 2003), ou no próprio país, levando a governos autoritários (a
exemplo das ditaduras na América Latina, nos anos 60, 70, 80, e os pedidos
por um novo “AI5” no Brasil), pode se manipular a vontade popular para definir
uma eleição ou plebiscito (a exemplo das eleições nos EUA, em 2016, e do
Brasil, em 2018, ou os plebiscitos/referendo do “Brexit”, em 2016 na Inglaterra
ou do “desarmamento das FARCs” na Colômbia, em 2016).24
f) A disseminação de fake news. Falamos que “pós-verdade” não é
sinônimo de mentira, ou de “fake news”. Porém, como forma de lidar com a
informação, dando credibilidade ou não segundo a crença, confiança,
sentimentos e interesses do sujeito, e não mais às provas, evidências e
argumentos sobre o informado, a “pós-verdade” é um campo fértil para a
disseminação de “fake news”.
Os exemplos são milhares, milhões. A constatação de seu uso político é
evidente (do qual trataremos no item 5.2). Apenas mencionemos aqui dois
exemplos. Por um lado, a falsa notícia de Barack Obama “pertencer à Al
Qaeda”, e o uso político que disso se fez. O outro, as fake news no pleito
eleitoral no Brasil, em 2018, que elegeu Jair Bolsonaro para a presidência, tais
como o “Kit gay” e a “mamadeira ‘erótica’” supostamente dada às crianças nas
escolas na gestão do ex-Ministro da Educação do governo Lula e candidato
concorrente no segundo turno, Fernando Haddad; a filiação ao PSOL de quem

24 Ver, por exemplo, o filme “Teoria da Conspiração” (de 1997, dirigido por Richard
Donner, com Mel Gibson e Julia Robert).
132

proferiu a “facada” ao candidato Bolsonaro; a defesa do incesto e da pedofilia


do candidato Haddad, dentre tantos outros.25
Assim, a fake news, tomada sem hesitação como “pós-verdadeira”, nos
ouvidos atônitos de quem faz juízos moralistas, tem a enorme utilidade e o
peso suficiente como para manipular vontades e definir eleições.
g) A “lógica identitarista”. Seja da direita ultraconservadora, como no
ultranacionalismo ou no “supremacismo branco”, seja da esquerda pós-
moderna, em ambos os casos antagonizando os discursos, as “narrativas”, ou
as (pós) “verdades”, a partir de pertencerem ou não ao grupo “identitário”, tem
tido um peso cada vez maior na convocatória e articulação de indivíduos e de
oposição e enfrentamento, polarizando entre o “nós” e o “eles”, ao ponto de
esta “lógica identitarista” conformar a atual forma hegemônica de ação política.
Mas tratar disto é o objetivo deste texto.

D) A “pós-verdade” como ferramenta política da direita ultraconservadora


e da “esquerda pós-moderna”.
Por tudo o exposto, a “pós-verdade” serve como ferramenta política
tanto à direita ultraconservadora (de um fundamentalismo, seja religioso, neo-
fascista ou racial) como à esquerda pós-moderna.
Ao manipular o que as pessoas vão considerar como verdadeiro ou
falso, controlam-se os valores, desejos, adesões políticas, e as ações, ou como
afirma D’Ancona, “a pós-verdade alimenta a alienação” (2018, p. 98), e um
povo alienado é um povo controlado.
Nas redes sociais tanto se cria uma adesão ao “terraplanismo” ou à
inexistência do Holocausto, como também se condena e escracha um
indivíduo, em ambos os casos sem requerer de provas, sem debate científico,
sem espaço para argumentação, apenas permitindo uma única “narrativa” que
será aceita por afinidade emocional, ou confiança no narrador, como “pós-
verdade”.
Assim, por um lado, D’Ancona (2018) mostra, com riqueza de exemplos
e dados históricos, na eleição do Trump, nos EUA em 2016, no referendo do

25 Ver matéria “Cinco ‘fake news’ que beneficiaram a candidatura de Bolsonaro”,


disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/actualidad/1539847547_146583.html>, acesso em
maio de 2020.
133

Brexit, na Inglaterra em 2016, e podemos complementar com o plebiscito sobre


as FARCs, na Colômbia em 2016, e a eleição de Bolsonaro, no Brasil em 2018,
como a direita ultraconservadora se valeu da “pós-verdade” para desqualificar
as “narrativas” contrárias, mesmo que sustentadas em provas empíricas ou em
avaliações científicas, e assim impor sua própria (e única) “narrativa”. A
estratégia da “pós-verdade”, disseminando “fake news”, que serão apropriadas
pelo público “crente” como “verdade”, serviu politicamente por “oferecer à
grande massa de eleitores brancos uma série de inimigos contra quem eles
poderiam se unir” (D’ANCONA, 2018, p. 26).
Tal estratégia se vale de uma multimilionária “indústria da
desinformação” (idem, p. 46), no uso de robôs de disseminação de notícias
falsas (ver item 6.2).
No Brasil contemporâneo, os exemplos do uso político da “pós-verdade”
por parte da direita ultraconservadora são inúmeros, mas, apenas a modo de
exemplo, citemos apenas dois:
1) O astrólogo (guru do governo Bolsonaro) Olavo de Carvalho, sobre
um vídeo fake news atribuído às Farcs, afirma: “pouco importa que, em
si, o vídeo das Farc seja Fake. O sentido do que ele expressa é verdade
pura” (26/10/19).26 Isto é, mesmo reconhecendo a inveracidade do
vídeo, aceita a falsidade, a mentira, em nome de uma suposta e abstrata
(não comprovada por fatos, mas apenas aceita pela fé, pela crença)
“verdade maior”.
2) Na acusação contra Lula, sobre o “triplex” (que levou à prisão e a
inelegibilidade do candidato com maior intenção de votos, portanto
abrindo o caminho para o triunfo eleitoral de Bolsonaro), os procuradores
da operação “Lava Jato”, afirmaram: primeiramente, “não teremos aqui
prova cabal” (Henrique Pozzobon), porém, manifestaram a “convicção”
sobre a culpabilidade (Deltan Dallagnol).27
Por sua vez, no campo da esquerda pós-moderna, também a “pós-
verdade” se torna útil, a partir de discursos ou narrativas funcionais aos

26 Ver em: <https://twitter.com/olavoopressor/status/1188167295773872129?lang=pt>,


acesso em: abr. de 2020.
27 Ver em: <http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/09/afinal-
procurador-da-lava-jato-disse-nao-temos-prova-temos-conviccao.html>, acesso em: abr. de
2020.
134

objetivos (polarizantes e punitivistas) da “lógica identitarista”. Assim, de igual


forma,determinando o “inimigo”, antagonizando o “nós” ao “eles”, a “identidade”
ao “inimigo”, toda e qualquer narrativa que pareça “favorecer” os interesses de
um grupo será aceita como “pós-verdade”, independentemente da sua
veracidade. Pareceria existir aqui a mesma motivação de aceitar narrativas
inverídicas em nome de uma suposta e abstrata “verdade” (ou interesse) maior.
Ainda mais, quando a “pós-verdade” se vincula à noção de “lugar de
fala”, cria-se um absoluto e total desinteresse com a verdade sustentada nas
provas, nas evidências ou na razão. Basta que alguém pertencente ao “nós”,
com quem se compartilha a mesma “identidade”, a partir de “nosso lugar de
fala”, de interesse comum, com quem desenvolvemos portanto total
confiabilidade e credibilidade, faça qualquer afirmativa, para que ela seja aceita
inquestionavelmente, como verdadeira, sem precisar de provas, e as vezes até
contrariando qualquer prova objetiva, como algo que todo o coletivo identitário
deve aceitar e cultuar, passando até a ser considerado uma bandeira do
mesmo, passando a representar a “verdade” desse grupo.
O “lugar de fala”, portanto, se torna o pretexto e a base para,
independentemente de evidências e provas, se assumir um discurso como
“verdadeiro” ou “falso”, em função da crença e confiança que se tenha sobre o
interlocutor a partir desse seu “lugar de fala”. Juntos, “pós-verdade” e “lugar de
fala” tornam a realidade material, empírica, factual, uma mera questão de
retórica, sem qualquer relevância para se conceber uma “pós-verdade”, e para
a ação política a partir dela.
135

4. OS TRÊS INSTRUMENTOS E OBJETIVOS


CENTRAIS DA LUTA “IDENTITARISTA” PÓS-
MODERNA

Com tais fundamentos (a)políticos da esquerda pós-moderna e sua


“lógica identitarista”, três são os instrumentos de luta e os objetivos centrais a
alcançar nesse cenário: o punitivismo dos indivíduos (dos “outros”), a
representação e a inclusão social (do “nós”, os membros das “identidades”),
assim como o chamado “empoderamento”.
Não se trata de afirmar que o “punitivismo”, a “representação” e
“inclusão” e o “empoderamento”, sejam apenas instrumentos e objetivos da
razão pós-moderna; eles aparecem em variadas e diversas perspectivas ídeo-
teóricas. Trata-se sim de afirmar que, nesta racionalidade, esses aspectos
(instrumentos e objetivos da ação política) encontram um espaço fecundo para
seu desenvolvimento, e que eles são fundantes desta racionalidade.
Na “lógica identitarista”, presa, como já afirmamos, à relação
pessoalizada opressor/oprimido, sem conseguir dela fugir, ou superá-la, se
almeja, como objetivos da luta, a punição individual do opressor, como forma
de reparação, ou o sucesso individual do oprimido, como exemplo a seguir, na
fantasia de que todos o alcançarão mesmo sem transformar o sistema social,
ou até a garantia, mediante a ação estatal, de certos direitos igualitários (como
o “casamento igualitário”), alcançando o status de cidadãos, ou ainda, de uma
ação compensatória do Estado, o que em nada, ou muito pouco, alteram as
bases da relação de opressão e da cultura e ideologia discriminatória.
136

Três são, portanto, os objetivos centrais e prioritários das pautas nessa


“lógica identitarista”, a) a punição individual do “outro”, como um tipo de
reparação, b) o reconhecimento e a inclusão social do grupo identitário, do
“nós”, como uma forma de compensação, assim como c) o chamado
“empoderamento”.
Vejamos aqui o tripé da ação política pós-moderna.

4.1- O “punitivismo” (de esquerda) como um objetivo político.


Um dos objetivos centrais da “lógica identitarista” pós-moderna é a
punição individual do “outro”, considerado ameaça ou inimigo. Vejamos.

A) Punitivismo e a “lógica polarizadora”.


A lógica do “punitivismo”, plenamente afinada à “lógica identitarista” pós-
moderna, é a polarização social de indivíduos e grupos, num processo de
“vitimização” do semelhante (eu/nós) e “criminalização” do diferente
(ele/eles). Esta lógica – “vitimização/criminalização” – está presente
independentemente de efetivamente existir atos criminosos concretos. Existe
como pressuposto da relação “nós/eles”.
O apelo à sensação de medo, à vitimização, ao sentimento de ameaça
pelo “outro”, pelo diferente, considerado inimigo, que funda a visão polarizada
das relações sociais, levando ao ódio do “outro” e ao anseio de sua destruição
e aniquilação, ou à compensação e reparação, é a base e sustento do
punitivismo. Isto é, o punitivismo tem por base o medo e o ódio em relação ao
diferente, na polarização social entre “nós” e “eles”, entre vítimas (reais ou não)
e inimigos (virtuais e potenciais ou reais).
A lógica sustenta-se, assim, primeiramente, na criação de uma divisão,
uma cisão, uma polarização entre “cidadãos de bem” e “bandidos” (na visão
ultraconservadora) ou os indivíduos “politicamente corretos” e “transgressores”
(na perspectiva progressista). Ou mais específica e concretamente, se dá uma
polarização entre supostos contrários: homem-mulher, branco-negro, hetero-
LGBT, local-imigrante, religião A-religião B, conservadores-progressistas etc.
A partir daí, promove-se a sensação de insegurança, de ameaça, seja
em função de uma questão real ou induzida, onde o “nós” se sinta ameaçado
137

pelos “outros”, pelo diferente, a partir de seu pertencimento ou não a certa


“identidade”. A partir daí se vê com receio o “outro”, se teme, se desperta o
medo em função dele.
A seguir, afirma-se a frouxidão das medidas penais, ora culpando os
“Direitos Humanos”, induzindo a ideia de que estes constituem mecanismos de
garantia e defesa dos “bandidos” (na visão ultraconservadora), ora
responsabilizando as leis e o Judiciário por seus fundamentos “machistas”,
“racistas” etc.
A solução, portanto, para ambas as tendências políticas, passaria a ser
o aumento radical das penas, seja nos processos judicial/penal, seja nas
formas paralelas de “fazer justiça”, nas redes sociais e espaços públicos,
promovendo uma sensação de segurança social maior e/ou de “justiça” e
compensação à vítima.
A resposta ao medo, ao sentimento de ameaça, e às perdas (reais ou
potenciais), passa, nesta lógica polarizadora, pela punição, o mais forte
possível. Isto supostamente afastará o medo e o sentimento de ameaça,
trazendo uma sensação de reparação pessoal.
Este caminho punitivista é duramente questionado tanto pela ex-
defensora pública e Juíza aposentada do TJ-RJ, Maria Lúcia Karam, 28 ao tratar
da “esquerda punitiva” (KARAM, 1996, 2015 e 2016), como pela a militante e
intelectual feminista, a francesa Elizabeth Badinter 29 (2005), ao fundarem suas
análises críticas à lógica polarizadora e punitiva que hoje comanda boa parte
das lutas progressistas.
Badinter (2005), em seu texto “Rumo Equivocado”, ao apontar que
“depois do feminismo [como luta pela igualdade], [veio] a guerra dos sexos

28 Defensora Pública no Rio de Janeiro desde 1979 e Juíza Penal de 1982 a 1990,
caracterizando-se por absolver acusados por posse de drogas para uso pessoal, sob o
fundamento da inconstitucionalidade de leis criminalizadoras de condutas que não atingem
direitos de terceiros. Por tal motivo, foi transferida em 1990 para a Justiça de Família. Autora
dos livros: “De Crimes, Penas e Fantasias” (Niterói, Luam, 1993), “Competência no Processo
Penal” (SP, RT, 2005); “Juizados Especiais Criminais – A Concretização Antecipada do Poder
de Punir” (SP, RT, 2004). Membro da Diretoria de Law Enforcement Against Prohibition (LEAP)
e Presidente da Associação dos Agentes da Lei Contra a Proibição (LEAP BRASIL); membro
do Conselho Consultivo de Students for Sensible Drug Policy (SSDP); membro do Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e da
Associação Juízes para a Democracia (AJD).
29 Filósofa francesa nascida em 1944, é uma das vozes mais importantes e polêmicas
do movimento feminista francês. Autora dos livros: “Um amor conquistado: o mito do amor
materno”, “Um é o Outro. O Que é uma Mulher”, “O Conflito – a Mulher e a Mãe” (2011) e
“Rumo equivocado”.
138

[como polarização]”, defende a necessidade da luta pela “igualdade entre


homens e mulheres” em lugar da “vitimização” que polariza homens contra
mulheres. Para ela, houve uma retomada do “mito da mãe” que repõe a
“diferenciação dos papéis sexuais” mediante as determinações biológicas
(BADINTER, 2005, p. 157 e ss.), o que deriva num recuo das lutas pela
“igualdade de gênero” que cede espaço à lógica polarizadora da “vitimização”
(idem, p. 146 e ss.). Assim, afirma: “ao fazer da diferença biológica o critério
supremo da classificação dos seres humanos, fica-se condenado a pensá-los
em oposição um ao outro” (idem, p. 157). Segundo a autora, na verdade,
“homens e mulheres não constituem dois blocos separados” (idem, p. 159),
sendo ainda as determinações socioeconômicas um aspecto que não pode se
desprezar, pois “há muito menos diferenças entre um homem e uma mulher de
igual condição social e cultural do que entre dois homens ou duas mulheres de
meios diferentes” (ibidem).
Badinter, insistindo na luta pela “igualdade de gêneros”, manifesta que “a
diferença entre os sexos é uma realidade, mas não predestina aos papéis e as
funções”, uma vez que “a indiferenciação [a igualdade] dos papéis não equivale
à das identidades” (idem, p. 171). Com isso, conclui a autora: “militar pela
indiferenciação dos papéis [...] constitui o único caminho para a igualdade entre
os sexos” (idem, p. 170).
A luta pela igualdade social entre os diferentes (“identidades” diversas”)
não se ampara na lógica polarizadora nem na opção punitivista.

B) Punitivismo à direita e à esquerda.


O “punitivismo” tem sido desde tempos uma das ferramentas principais
da direita moralista. Particularmente com crescimento nos anos 80, promovido
por programas televisivos jornalísticos de cunho moralista, expõem-se de forma
espetacular e sensacionalista casos individuais de crimes comuns, assim como
conflitos familiares e de vizinhança, manipulando emoções e apelando para o
sentimento de “insegurança social” das “pessoas de bem”, a partir do que se
conclama pela pena de morte, pelo endurecimento das punições, pelo
linchamento público, pela baixa da idade de imputabilidade penal, pela
criminalização do aborto, apresentando a máxima: “bandido bom é bandido
morto!”. O punitivismo de direita se associa ao uso da violência do Estado; o
139

que Weber chama do “monopólio legítimo da coação física” (2012, p. 34), ou o


que Marx e Engels caracterizam como função instrumental de dominação de
classe do Estado enquanto “comitê para gerir os negócios comuns de toda a
classe burguesa” (2010, p. 42). É, portanto, a expressão de desejo, instituida
em leis e sistemas prisionais, orientada à manutenção dos privilêgios (materiais
e simbólicos) dos setores dominantes e opressores.
Trata-se o diferente como inimigo, como ameaça, como expressão da
insegurança. Fomenta-se o ódio e o medo ao/do diferente. Não há dúvida de
que esse caminho fomentou as “guerras santas” (como se a crença em outro
deus, em outra religião, considerado “profano”, fosse uma ameaça ao que se
entende como “sagrado”), fundou o “nazismo” (concebendo uma raça superior,
ameaçada genética e culturalmente pelos seres “biologicamente inferiores”),
legitimou o “combate ao terrorismo” (mediante um medo induzido de que nossa
civilização e modo de vida estão ameaçados pelos “terroristas”), fomentou as
intermináveis guerras entre famílias ou clãs, como nos EUA do séc. XIX (tal
como as lendárias lutas entre os clãs Hatfield e McCoy; no caso do Brasil
dramatizado no filme “Abril Despedaçado”, de Walter Salles).
Os grupos sociais dominantes e os Estados por eles comandados
sempre incentivaram o medo, a vitimização e a polarização e oposição a um
(suposto) inimigo, “satanizado”, interno ou esterno, para legitimar e fomentar o
uso da violência e o controle social.
Por sua vez, mais recentemente, particularmente a partir da segunda
década do século, o fundamentalismo religioso da ultra-direita neofascista
funda-se também numa acirrada lógica de polarização a partir do apelo a
“identidades” – como o ultranacionalismo, o fascismo, o “supremacismo” racial,
o fundamentalismo religioso –, onde o objetivo é ou a conversão (como no caso
religioso), a defesa de “milícias” na busca de uma “justiça paralela”, sem os
constrangimentos da legalidade, ou a submissão e aniquilação do diferente,
considerado inimigo. A polarização aqui é levada à sua maior expressão.
Assim, esta polarização criada entre “pessoas de bem” e “bandidos”,
fundada numa “lógica identitarista” de direita e moralista, tem se orientado
politicamente na direção do “punitivismo”. O identitarismo, que transforma o
diverso, o diferente, em “inimigo”, alia-se ao punitivismo, como objetivo
imediato da ação política.
140

Porém, desde os anos 90, com a expansão da “lógica identitarista” na


esquerda pós-moderna – que em boa medida hoje comanda uma visão da
realidade e das lutas sociais –, podemos observar o desenvolvimento de um
“punitivismo” de esquerda, como forma de ação política e como um dos
objetivos centrais dela, e como mecanismo de luta e/ou de reparação dos
setores excluídos, subalternos, das chamadas “minorias”. É aqui que Maria
Lúcia Karam (1996), apresenta sua análise sobre o que denominou de
“esquerda punitiva”.
Essa lógica “punitiva” e “criminalizadora” aparece na contemporaneidade
também em tendências de cunho progressista; a criminalização surge aqui
como caminho para resolver manifestações de discriminação e desigualdade,
como machismo, homofobia, xenofobia, racismo etc.
A razão (ou o irracionalismo) pós-moderna contida na “lógica
identitarista” vai da mão e funda a ação “punitivista” da esquerda. Ou seja, o
“identitarismo” pós-moderno cria os grupos ou “coletivos” identitários, e os
enfrenta a seus supostos antagonistas. Grupo contra grupo, indivíduo contra
indivíduo, vítima contra vitimário.
Isto é, se, em função da polarização “identitarista”, os “idênticos” são
antagonizados aos “diferentes”, numa lógica “nós” x “eles”, concebido o “outro”
como “inimigo”, então o caminho das lutas passa a ser o da eliminação ou
submissão desse “inimigo”. Surge, assim, e se expande rapidamente, a
estratégia punitivista na esquerda.
Em síntese, encontramos um “punitivismo” tanto de direita
(particularmente fundado na tese do “inimigo interno”, no qual sustentam as
ditaduras e a ação repressiva do Estado na criminalização das lutas sociais),
como de esquerda (fundado na tese de subalternidade, opressão e vitimização
das “minorias”, entendendo o “diferente” como opressor), onde se criam os
mecanismos de combate e enfrentamento, a partir da eliminação do “outro”,
tido como o “inimigo”. Só que o suposto “inimigo”, neste caso, não é o
antagonista de classe, mas o diferente e o desigual em relação ao credo, à
orientação sexual, à raça, ao gênero, à procedência etc. etc., em geral
expressando uma relação de opressão (voltaremos a isso no cap. 6).
Assim, a “lógica identitarista” gera polarização entre os membros e os
não-membros dessa “identidade” específica, que somada ao “lugar de fala”, à
141

“pós-verdade” e ao “punitivismo” de esquerda, acirra a polarização social por


“identidades”, concebendo cada indivíduo diferente como inimigo, e agindo, de
ambos lados, com o objetivo da aniquilação e eliminação do indivíduo diferente:
nesse processo estão tanto o muro de Trump na fronteira mexicana, assim
como o escracho nas redes sociais do “condenado publicamente” como
diferente (ou transgressor); o primeiro sustenta-se na “identidade”
nacional/patriótica e supremacista, da direita, no segundo caminho está o
punitivismo de esquerda de várias “identidades” particulares (ou “minorias”
oprimidas). Sem confundir os fundamentos reacionários, xenofóbicos e
fascistas num caso, e o caráter progressista e humanista no outro caso, em
ambos os casos o caminho, sustentado na polarização por “identidades”, está
na eliminação do diferente, tido como inimigo.
Neste sentido, setores de direita e de esquerda, de conservadores e de
progressistas, ambos proclamam o mesmo caminho para a defesa dos seus
valores; na mesma lógica de polarização e criminalização do comportamento
diferente e contrário ao defendido por um ou outro setor ideopolítico, a
penalização mais severa será apresentada como o único ou melhor caminho e
solução: uma “punição exemplar”. A solução a tudo, o combate à ameaça ou a
reparação, passa, para esses setores, pelo castigo ao “infrator” individual,
mediante uma pena que, quanto mais severa, sirva de exemplo inibidor a
outros “potenciais infratores”.
Não é possível ignorar ou relevar o fato de que os objetivos do
punitivismo de esquerda e direita são essencialmente contrários: enquanto um
quer enfrentar e superar a opressão e a desigualdade, e até obter uma
“reparação” por elas, a partir da ação das chamadas “minorias”, grupos
subalternos ou oprimidos, o outro visa a confirmação e manutenção do status
quo, afastando a “ameaça” aos privilégios, representando os setores
dominantes da sociedade.
Certamente, como nos ensina Malcom X, não devemos confundir “a
reação do oprimido com a violência do opressor”. 30 Novamente afirmamos, o
punitivismo de esquerda e de direita diferenciam-se em que o primeiro remete
à ação dos grupos oprimidos, enquanto o segundo aos opressores.

30 Ver: <https://revistaforum.com.br/noticias/violencia-opressor-e-reacao-oprimido/>;
acesso em: set. de 2020.
142

Porém, o que aqui estamos afirmando é que ambos sustentam-se na


mesma “lógica identitarista” polarizadora e pessoalizada, considerando o outro
(o diferente) como “inimigo” e visando sua aniquilação individual ou grupal. A
ação “punitivista” de esquerda, funda-se nos mesmos pressupostos que a de
direita: a anulação ou extermínio do diferente, do contrário, do não pertencente
ao grupo identitário... do “inimigo”.
Ainda, o punitivismo, em ambos extremos, igualmente ignora todo o
contexto social, cultural e estrutural, no qual se circunscreve o ato infracionário,
dissociando-o desses aspectos macrossociais, e individualizando ou até
psicologizando tais ações.
Assim, a pretensão punitiva sobre um indivíduo que furtou o cordão de
um turista, desconsidera as condições de privação e penúria em que este
sujeito vive, num sistema desigual, frente à ostentação de riqueza do outro. Da
mesma maneira, a pretensão punitiva sobre um genitor que atrasa o
pagamento de “alimentos” ignora as condições de vida criadas pela estrutura
social. Nem um deve assaltar, nem o outro deve atrasar o pagamento da
pensão do filho, porém a análise crítica e de totalidade deve ter uma
capacidade de compreensão integral dos processos, superando as meras
visões fenomênicas e individualizadoras dos processos sociais, e a punição
como única “solução”.
Para o conservador e moralista, é tão horroroso e ameaçador um
latrocínio ou um aborto – desconsiderando as determinações que sobre o
fenômeno tem a estrutura social extremamente desigual e apenas vendo a
responsabilidade do indivíduo –, como o é, para o progressista, um
comportamento misógino ou racista – podendo ter também a uma visão
individualizada de um fenômeno que também é estrutural e culturalmente
determinado. Em ambos os casos, a resposta passa a ser a mera
criminalização e punição do indivíduo.
Tal afã polarizador (nós-eles; vítimas-agressores; inocentes-culpados;
amigos-inimigos) e punitivista, se apresenta como a opção e solução das
questões contemporâneas, tanto para amplos setores da direita como da
esquerda, para tendências conservadoras e progressistas. Solução essa que
trata tais questões de forma individualizada, exemplarizante, sem considerá-las
143

como manifestações da “questão social”, o que demandaria uma ação muito


mais estrutural e de consciência social do que a punição individual.
Trata-se, portanto, na “esquerda pós-moderna”, assim como na “direita
ultraconservadora”, da mesma lógica polarizadora, transformando o diferente
em inimigo, em ameaça, e do mesmo instrumento e tática de enfrentamento: a
aniquilação (individual ou coletiva) do (dito) inimigo.
Enquanto a direita visa punir o pobre, o militante, pregando “tolerância
zero”, promovendo o aumento das penas e a baixa da idade de imputabilidade
penal, a criminalização do consumidor de drogas ilegais, da mulher que realiza
aborto etc., parte da esquerda tem embarcado numa lógica semelhante,
visando punir exemplarmente o transgressor daquilo considerado
“politicamente correto”.
Assim, nesta época de extrema polarização, a criminalização e a
penalização são apresentadas como a única ou principal solução dos conflitos.
Esse caminho, tão antigo para as tendências conservadoras, revitaliza-se na
contemporaneidade com a adesão de grupos no campo das “esquerdas”. Hoje,
setores de direita e setores de esquerda aderem ao caminho da polarização e
da criminalização e punição como solução.
No contexto atual, ainda mais, amparados na “lógica identitarista”, no
“lugar de fala” e na “pós-verdade”, a punição individual exemplarizante realizar-
se-ia a partir de uma condenação sumária, mediante as redes sociais, sem
requerer dos demorados processos judiciais, controlados, segundo uns, por
garantistas dos direitos humanos, e conforme outros por homens brancos
cristãos. Para quê provas?, para quê garantir a defesa e o contraditório?, que
horror os “Direitos Humanos”!, que horror a “presunção de inocência”! Qual o
sentido de tudo isso quando se está convencido da culpabilidade do outro?
Pareceria, para a esquerda punitivista, que clama por linchamentos
pessoais, de igual forma que para a direita punitivista, que responsabiliza os
direitos humanos pelas penas brandas e pela insegurança pública, que para
alguns o devido processo não deveria ser aplicado.
Se trata, na verdade, em ambos os casos do punitivismo, à esquerda e à
direita, não de um endurecimento geral das leis e sistemas punitivos, mas de
um endurecimento seletivo, com dois pesos e duas medidas. Enquanto a
direita punitivista visa a garantia dos “Direitos Humanos para os humanos
144

direitos”, para os “cidadãos de bem”, que possam ter cometido um “deslize”,


porém, bradando por penas duras e sem garantias processuais para os
“bandidos”, por seu turno a esquerda punitivista também reivindica o amparo
das leis e Direitos Humanos e processuais para os “seus”, para os subalternos,
pois seus atos representariam formas de “reparação”, porém, clamando por
condenação pública sumária e linchamentos diretos àqueles indivíduos
considerados inimigos, sem qualquer garantia do devido processo judicial.
Se deixarmos de lado o grupo social e a ideologia que cada um
representa, direita e esquerda punitivistas, ambas coincidem na mesma
proposta.
Disso se trata a extrema polarização que vivemos nos dias de hoje, e da
qual a “lógica identitarista” pós-moderna representa um dos lados.
Não se pode combater o punitivismo de direita com punitivismo de
esquerda. Isso, na verdade, vem a legitimar e reforçar o punitivismo estatal, o
Estado penal (conforme WACQUANT, 2004).

C) Havendo crime, deve ter punição, não impunidade.


A crítica ao “punitivismo de esquerda”, com único ou principal objetivo de
luta, não significa afirmar que os crimes cometidos em torno de causas
identitárias permaneçam impunes. Não se trata em absoluto disto. Trata-se sim
de que a esquerda não tenha a punição como seu fim político, imaginando que
com ela se combate a estrutura, a cultura e a ideologia que funda uma forma
de desigualdade, opressão ou discriminação particular. Não o faz; a punição
castiga individualmente alguns sujeitos, sem impactar nos fundamentos
estruturais da desigualdade em questão. O “exemplo” da punição de
indivíduos, se tem algum efeito nos outros, no entanto, não impacta nas formas
em que essa desigualdade, opressão ou discriminação se sustenta. Pois ela é
estrutural, e faz parte de uma cultura, de uma ideologia, de uma idiossincrasia
social.
Claro que, havendo o crime, esse deve ser tratado com a punição a
quem o praticou, porém, muitas expressões de desigualdade e discriminação
são manifestações de uma idiossincrasia arraigada na cultura e/ou expressões
de questões estruturais, e não de comportamentos individuais isolados. O
caminho da penalização pessoal pune os indivíduos e deixa intacta a
145

idiossincrasia e as estruturas. Com o punitivismo como principal ferramenta e


objetivo de luta, na verdade não se busca enfrentar a estrutura e erradicar as
culturas e idiossincrasias machista, xenofóbica, racista, homofóbica,
preconceituosa e discriminadora contra o diferente, mas apenas castigar
algumas pessoas.
Como afirma Almeida, “o racismo é uma imoralidade e também um
crime, que exige que aqueles que o praticam sejam devidamente
responsabilizados” (2019, p. 37); isto é, “pensar o racismo como parte da
estrutura não retira a responsabilidade individual sobre a prática de condutas
racistas e não é um álibi para racistas” (idem, p. 51), porém, conforme aponta
(idem, p. 37), este caminho centrado no punitivismo está sustentado na
“concepção individualista” do racismo, e por tanto resulta frágil e limitado.
Em síntese, a crítica à lógica criminalizadora/punitiva não pode ser
interpretada como defesa à impunidade. Não se trata de afirmar, repetimos,
que quem pratica ato criminoso ou infracional, julgado em processo, não seja
punido; trata-se de apontar que este caminho deixa intactas as estruturas e as
culturas que fundam tais atos. Combater os fundamentos de atos
criminosos/infracionais mediante a “punição exemplarizante” apenas impacta
em certos indivíduos, contudo jamais altera os fundamentos deles, punindo,
claro, principalmente os sujeitos mais carentes. Vejamos.

D) Punitivismo remete a uma ação individualizada, e não contra a


estrutura, o sistema ou a cultura sociais.
O punitivismo de esquerda visa criminalizar todo comportamento fora do
considerado “politicamente correto”, erradicando o mais possível os indivíduos
que apresentam atitudes, machistas, racistas, homofóbicos etc. Assim, a
esquerda punitivista está voltada para o indivíduo, e não o sistema: pode se
penalizar o indivíduo infrator, mas não pode se punir o sistema que promove
tais comportamentos.
Desta forma, a lógica polarizadora/criminalizadora se mostra eficiente
para casos individuais... mas é absolutamente ineficiente para alterar a
estrutura, a cultura e o sistema que fundam e promovem tais atos e
comportamentos. Apenas servem para o circo midiático que os grandes meios
146

de comunicação fazem desses casos individuais, e para reafirmar a lógica do


“Estado punitivo”.
A “punição” do indivíduo como objeto e tática políticos, se superpõe à
luta estratégica no combate contra a estrutura social e a cultura opressora e
discriminadora.
Pune-se o indivíduo, e não mais se combate o sistema. Não se enfrenta
a cultura machista, racista, homofóbica, nem até o sistema capitalista, visando
sua transformação, mas a ação visa apenas a punição de indivíduos que
representam tais culturas. Trata-se de punir exemplarmente indivíduos,
supondo que desta forma combater-se-á o sistema ou cultura
opressor/discriminador; em lugar de combater e transformar o sistema, a
cultura, para eliminar essas formas de opressão, discriminação e desigualdade.
Como afirma Karam:
a imposição da pena [...] não passa de pura manifestação de poder,
destinada a manter e reproduzir os valores e interesses dominantes em
uma dada sociedade. Para isso, não é necessário nem funcional acabar
com a criminalidade de qualquer natureza e, muito menos, fazer recair a
punição sobre todos os autores de crimes, sendo, ao contrário, imperativa
a individualização de apenas alguns deles, para que, exemplarmente
identificados como criminosos, emprestem sua imagem à personalização
da figura do mau, do inimigo, do perigoso, assim possibilitando a
simultânea e conveniente ocultação dos perigos e dos males que
sustentam a estrutura de dominação e poder (1996, p. 82).

Desta forma, continua:


a monopolizadora reação punitiva contra um ou outro autor de condutas
socialmente negativas, gerando a satisfação e o alívio experimentados
com a punição e consequente identificação do inimigo, do mau, do
perigoso, não só desvia as atenções como afasta a busca de outras
soluções mais eficazes, dispensando a investigação das razões
ensejadoras daquelas situações negativas, ao provocar a superficial
sensação de que, com a punição, o problema já estaria satisfatoriamente
resolvido. Aí se encontra um dos principais ângulos da funcionalidade do
sistema penal, que, tornando invisíveis as fontes geradoras da
criminalidade de qualquer natureza, permite e incentiva a crença em
desvios pessoais a serem combatidos, deixando encobertos e intocados os
desvios estruturais que os alimentam (ibidem) (grifos nossos).

Desta forma, na ação punitivista, como arma e alvo principais da luta, no


lugar de enfrentar uma dada cultura estruturalmente fundada – machista,
sexista, racista, homofóbica etc. – visa-se, como sendo uma “ação
exemplarizante”, punir o indivíduo (o suposto “inimigo”), visando influenciar ou
inibir a conduta dos outros, porém deixando intacto o sistema.
147

À direita e à esquerda, quando se abandona o projeto de transformação


estrutural, o objetivo passa a ser pessoal, individual, a aniquilação da pessoa,
do “outro”, tido individualmente como “inimigo”; relembremos a afirmação do
astrólogo e conspiracionista da extrema direita brasileira, Olavo de Carvalho,
aos seus alunos: “Investiguem alguma sacanagem do sujeito e destrua-o”, “nós
não discutimos para provar que o adversário está errado. Discutimos para
destruí-lo socialmente, psicologicamente, economicamente”.31
Como já foi dito (item 2.3), na medida em que o racismo é estrutural e o
machismo sustenta-se numa estrutura patriarcal, determinando a cultura e as
instituições, os que por sua vez sustentam os comportamentos individuais, é
preciso ter como alvo central da luta, não o indivíduo, mas a estrutura, a cultura
e as instituições.
Assim, no caso da questão racial, Almeida afirma que, na medida em
que “o racismo é estrutural”, então os “comportamentos individuais e processos
institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não
exceção” (2019, p. 50). Assim, sustenta o autor, é quando se concebe o
racismo como um problema de ordem individual, como “uma espécie de
‘patologia’”, ou como “fenômeno ético ou psicológico de caráter individual ou
coletivo”, e não como uma questão estrutural, que se pensa na forma de
combatê-lo mediante ações “no campo jurídico por meio da aplicação de
sanções civis [...] ou penais” (idem, p. 36). Isto é, o “punitivismo” como
estratégia central de luta sustenta-se numa visão individualizada (como
centrada nos comportamentos de indivíduos), e não estrutural da questão.
Ora, a análise crítica e de totalidade não individualiza ou psicologiza as
causas dos fenômenos sociais (como comportamentos individuais, patológicos,
ou disfuncionais), mas os concebe como manifestações da “questão social”, e,
portanto, não individualiza ou pessoaliza as soluções, mediante punição
exemplarizante de indivíduos, pois estes são corporificações de determinantes
estruturais. A luta não pode se centrar no “exemplo”, na “punição exemplar”, na
penalização individual, mas no combate aos fundamentos das formas de
preconceito, opressão e desigualdade. Em concordância com isso, Karam
afirma que com o objetivo da “punição individual exemplarizante” há “um apelo

31 Ver em: <https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-olavismo-a-ascensao-e-a-


queda-do-bolsonarismo/>; acesso em: out. de 2020.
148

à natureza simbólica e à função comunicadora das leis penais criminalizadoras”


(2015, p. 5), portanto:
privar da liberdade; estigmatizar; causar sofrimento e acabar por arruinar a
vida de um indivíduo, para comunicar a mensagem de que determinada
conduta é negativa ou ‘má’, não parece ser um comportamento harmônico
com o conceito de direitos humanos fundamentais. Ao contrário, tal
comportamento se ajusta perfeitamente à ideia do ‘bode expiatório’ a ser
sacrificado no altar do sistema penal – um ‘bode expiatório’ que,
naturalmente, será preferencialmente selecionado dentre os mais
vulneráveis, os pobres, os marginalizados, os não brancos e desprovidos
de poder, eventuais autores daquela ‘má’ conduta (2015, p. 5).

A “punição exemplarizante” não tem qualquer efetividade na alteração


do sistema ou da cultura opressora/discriminadora/desigual. Basta dar uma
olhada para a punição de qualquer prática delituosa, que muito pouco impacta
nessa prática em geral, nem sequer reduzindo o índice de reincidência. A
lógica punitivista seria efetiva se alcança-se a punição de todos os diferentes,
os considerados “inimigos” (potenciais), lotando as prisões com eles.
Assim, a ânsia, quase fanática e irracional, por destruir a vida de um
indivíduo machista ou racista (como se esses comportamentos fossem de mera
responsabilidade deste, como se fosse uma patologia psicológica do indivíduo)
é a mesma que visa erradicar da sociedade um bandido que furtou ou uma
mulher que abortou. Num caso se busca o ostracismo social, a morte em vida,
no outro se clama por pena de morte.
Porém, nem sempre se brada por punições a partir de atos criminosos
ou infracionais efetivamente praticados; muitas vezes o clamor por penas
severas se sustenta em “pós-verdades” sem evidências, apenas “convicções”.
Neste sentido, seja como objetivo central em face de atos infracionais,
seja fundados em pós-verdades sem evidências, a lógica punitivista visará o
castigo mais severo. Esta punição, a partir de se tratar de uma crime/infração
com ou sem evidências, tenderá a seguir dois caminhos centrais.
O “punitivismo” de esquerda, por tanto, tem dois caminhos principais.
Um deles está em encaminhar a punição para a ação institucional repressora
do Estado. O outro é a condenação sumária do diferente e sua punição,
extrainstitucional, particularmente nas redes sociais ou pela ação direta de
grupos nos espaços públicos.
Por um lado, quando o crime ou ato infracional é constatado a partir de
indícios, evidências e provas, via de regra, o caminho seguido tende a ser a
149

punição pela ação do Estado, mediante os sistemas judiciário, policial e


penal.
Porém, por outro lado, até quando na ausência de indícios, provas ou
evidências, apenas existindo a “convicção” sobre um eventual ato, tomado
como uma “pós-verdade”, em cuja narrativa se acredita, pela confiança
depositada no, ou pelo “lugar de fala” do narrador, o caminho tende a ser o da
punição fora do Estado, particularmente nas redes sociais. Vejamos a seguir.

E) O punitivismo fundado no Estado e no Direito burgueses: a


despolitização da ação política.
No caso de crimes ou atos infracionais, com indícios, evidências ou
provas, recorre-se à punição do Estado penal. Aqui, conforme afirma Karam
(1996 e 2015), “amplos setores da esquerda aderem à propagandeada ideia”
que, em “perigosa distorção do papel do Poder Judiciário, constrói a imagem
do bom magistrado a partir do perfil de condenadores implacáveis e severos”
(1996, p. 80). Para a autora,
inebriados pela reação punitiva, estes setores da esquerda parecem
estranhamente próximos dos arautos neoliberais [...], não conseguindo
perceber que, sendo a pena, em essência, pura e simples manifestação de
poder – e, no que nos diz respeito, poder de classe do Estado capitalista –
é necessária e prioritariamente dirigida aos excluídos, aos desprovidos
deste poder. Parecendo ter se esquecido das contradições e da divisão da
sociedade em classes (idem, 81).

Karam sustenta ainda que “o sistema penal só atua negativamente [...]


no sentido de atuar proibindo condutas, intervindo somente após o fato
acontecido, para impor a pena como consequência da conduta criminalizada” já
realizada (2015, p. 4), sendo que os dispositivos garantidores dos Direitos
Humanos se orientam a uma intervenção positiva dos Estados, de forma tal
que “criem condições materiais – econômicas; sociais; e políticas – para a
efetiva realização daqueles direitos. São essas ações de natureza positiva
(ações que promovem direitos) – e não ações negativas (ações que proíbem
condutas) – que devem ser realizadas pelos Estados para tornar efetiva a
proteção dos direitos humanos fundamentais” (ibidem), pois:
o sistema penal nunca atua efetivamente na proteção de direitos. [...] na
medida em que as leis penais criminalizadoras, na realidade, nada tutelam,
nada protegem, não evitam a ocorrência das condutas que criminalizam,
150

servindo tão somente para materializar o exercício do enganoso, violento,


danoso e doloroso poder punitivo (ibidem).

A ação punitiva é diferente, senão contrária, de uma ação preventiva, na


medida em que se dirige para as consequências e não para as causas da
questão. Assim, continua, a autora:
a adesão de amplos setores da esquerda à ideologia da repressão, da lei e
da ordem, seu interesse por um implacável combate à criminalidade, sua
“descoberta” do sistema penal, surgem em um tempo em que os
sentimentos de insegurança e o medo coletivo difuso [...] aliam-se à
decepção enfraquecedora das utopias e à necessidade de criação de
novos inimigos e fantasmas capazes de assegurar a coesão em formações
sociais [...].
O quadro vivido neste novo tempo, proporcionando campo extremamente
fértil para a intensificação do controle social, proporciona e alimenta o
crescimento da demanda de maior repressão, de maior rigor punitivo, de
maior intervenção do sistema penal, trazendo desmedida ampliação do
poder punitivo do Estado.
Sofrendo mais diretamente aquela decepção enfraquecedora das utopias,
consequente ao desmoronamento das traduções reais do socialismo,
amplos setores da esquerda voltam-se para objetivos mais imediatos,
abandonando a perspectiva de construção de uma nova sociedade e se
entregando a um pragmatismo político extremamente distante dos
princípios e ideais que a viram nascer (idem, p. 90-91, grifos nossos).

Para Karam, “quando se aceita a lógica da reação punitiva, está se


aceitando a lógica da violência, da submissão e da exclusão, em típica
ideologia de classe dominante” (idem, p. 91-92).
Aceita-se o Estado burguês, e todo seu aparato repressor, como a
solução “progressista”.
Ora, Marx e Engels nunca manifestaram uma inclinação às lutas de
classes se desenvolverem prioritariamente mediante o poder punitivo do
Estado burguês contra o inimigo de classe. Aliás, há uma clara incredulidade
em Marx em que o Estado e o Direito (burgueses) possam ser instrumentos de
garantia de “justiça” e “igualdade” − veja-se o texto do jovem Marx (2005)
“Crítica da filosofia do direito de Hegel”. A “justiça” é a justiça do Estado
burguês, do Estado opressor, hegemonicamente instrumentalizado pela classe
e setores dominantes.
Pareceria haver uma passagem das “lutas sociais” progressistas, da
esfera do que Gramsci chamou de “sociedade civil” (o espaço privilegiado de
lutas e disputa pela direção social, ocupado pelos aparelhos privados de
hegemonia) para a esfera estatal por ele denominada de “sociedade política” (o
151

espaço ocupado pelos aparelhos de dominação e coerção, orientados à pura


repressão e dominação) (ver GRAMSCI, 2000b, p. 244).
Isto torna-se mais evidente, por quanto sabemos que a “justiça” não é
realmente “cega”, observando a realidade a partir dos valores que a fundam –
os valores burgueses e judaico-cristãos, além de fazer parte de uma cultura
machista, racista etc. –, e, ainda mais, trata diferentemente as pessoas em
função das condições econômicas, dados os “custos operacionais” do devido
processo na defesa dos envolvidos. Os “pobres” não podem arcar com os altos
custos dos processos, e acabam indo muito mais rapidamente para os
cárceres.
Ainda mais, a lógica punitivista é realmente uma lógica particularista,
esvaziada da contradição de classe, “desclassada”. Pode-se, efetivamente,
punir um ato de discriminação e opressão, racista, homofóbico, xenofóbico,
machista etc.; porém, nem a lei e nem a sociedade, pune a prática da
exploração de classe.
Assim, essa tendência ou opção de enfrentar as manifestações da
“questão social” mediante o papel punitivo do Estado acaba vindo ao encontro
da “função punitiva” de que fala Loïc Wacquant (2004), quando a instituição
estatal (que de fato representa os interesses hegemônicos do grande capital)
se retira paulatinamente do tratamento social, operando “direitos sociais”, para
a “criminalização” da “questão social”, indo do “Estado social” para o “Estado
penal”. Da mesma maneira que a indústria bélica se alimenta dos conflitos
bélicos, o sistema penal se alimenta da existência de apenados... e a “indústria
jurídica do litígio” se robustece estimulando essa lógica.
O punitivismo de esquerda, em síntese, significa confiar e pôr nas mãos
do Estado burguês, e nas suas instituições (justiça, polícia, sistema repressivo
e prisional), o sucesso das lutas antiopressivas para a superação das
estruturas e culturas de opressão, discriminação e desigualdade. É quase a
mesma coisa que acreditar e depositar nas instituições burguesas a garantia do
regime democrático, as lutas e conquistas populares, ou a superação da
exploração do trabalho.
Ora, os grupos oprimidos, os setores subalternos, assim como o
conjunto da classe trabalhadora, devem possuir mecanismos de lutas para
além das instituições propriamente burguesas.
152

Se é verdade que tanto a direita moralista e ultraconservadora quanto


esquerda punitivista clamam por punições mais rígidas e sumárias, por outro
lado, as instituições neste processo (polícia, judiciário etc.) pertencem ao
Estado burguês, motivo pelo qual as prisões estão cheias de negros, de
trabalhadores e de pobres, enquanto o chamado crime de “colarinho branco”,
os crimes raciais etc., permanecem proporcionalmente impunes.
Isto é, além de equivocado, o caminho punitivista não parece ser uma
opção sensata para a “esquerda” e os setores subalternos, que não controlam
o poder punitivo do Estado (burguês).
Neste processo, ainda mais, a “punição” deixa de ser uma ferramenta
(legal, jurídica) de ação, um meio, para agora se tornar um objetivo, uma
finalidade. Enquanto objetivo ou finalidade, e não meio, a esquerda punitivista
alcança sua meta quando se pune o indivíduo transgressor, o “diferente”. A luta
alcançou sua meta, se mantendo apenas para fiscalizar, patrulhar e punir
outros transgressores... ou simplesmente: os “outros”. A finalidade deixa de ser
o combate ao sistema, à cultura, à idiossincrasia, e sim alcança-se o fim
quando se pune o indivíduo. É como se – seguindo a mesma lógica penal
burguesa – punindo o(s) indivíduo(s) se estivesse eliminando os fundamentos
do racismo, do machismo, da intolerância religiosa etc.

F) A punição fora do Estado, particularmente nas redes sociais: a


moralização da ação política.
Como falamos, particularmente quando sobre o suposto crime/infração,
ou sobre o executor, não existem provas, evidências, sequer indícios, mas
apenas “convicções”, convencimentos sobre uma “pós-verdade”, em função da
confiança ou conveniências na narrativa ou no narrador, seja por seu “lugar de
fala”, seja pelas emoções (a rejeição e até a repugnância) que mobiliza o
suposto ato; ou quando não se confia na justiça – “branca”, patriarcal, cristã e
burguesa –, que se entende promoverá juízos e sentenças parciais, a partir
dessa condição; ou até em função da lentidão dos processos, do devido
processo e todas suas instâncias e recursos, e dos fundamentos processuais,
como a presunção de inocência, o direito a ampla defesa e ao contraditório
etc.; a partir de alguma ou todas estas questões, o punitivismo (tanto de
153

esquerda como de direita), tende a seguir o caminho da condenação e


punição sumárias, fora do Estado.
O devido processo, os direitos e os Direitos Humanos, são desprezados,
e substituídos pela “convicção” (crença) que se tem da culpabilidade. Para quê
julgamento quando se tem convicção do crime? Por quê aceitar a lentidão do
devido processo? Por que dar direitos e presumi-lo inocente a alguém que se
considera pós-verdadeiramente culpado? Como confiar numa justiça “branca”,
machista, cristã e burguesa?
Com questionamentos como estes, o julgamento tende a ser substituído
pela convicção, pela “pós-verdade”, e a pena e castigo será aplicada fora do
sistema estatal, e das garantias do processo.
Geralmente apoiada e potencializada pelas redes sociais, onde os
“condenados” a penas terão suas vidas sociais destruídas.
Os escrachos, reais (em praça pública ou espaços residenciais) ou
virtuais (nas redes sociais), que consistem em chamar a atenção publica para
denunciar um sujeito por seus crimes ou abusos, são uns dos principais
métodos de punição fora do Estado e dos processos penais formais.
Outro método consiste numa espécie de moderno “ostracismo”,32
denominado hoje como “cancelamento”. O chamado “cancelamento”,
principalmente aplicado com impactos devastadores nas figuras públicas,
consiste em literalmente “cancelar” ou anular a pessoa como referente social,
nas suas funções e representações, nas suas relações sociais, mediante a
destruição da imagem pública, queimando ou descartando os livros, CDs ou
filmes do “cancelado” etc., e silenciando sua voz.
Outra forma de ação punitiva fora do Estado é a intimidação, por meio
de ameaças, denúncias, acusações; independentemente de base empírica ou
real (baseado em verdade ou em pós-verdade), o método visa macular a
imagem pública do adversário, com vistas à sua anulação política. Mas, do que
o “outro” é acusado? No fundo, de não pertencer ao “lugar de fala” em questão.

32 O “ostracismo” tem origem na Grécia antiga, particularmente na Atenas do século V


a.c., e consistia num tipo de punição especialmente a quem atenta-se contra a liberdade dos
cidadãos. Nestes casos, os atenienses votavam escrevendo o nome do cidadão a condenar
num pedaço de cerâmica, ou “óstraco”, que, alcançando o número de votos, levava ao
condenado a um desterro ou exílio por 10 anos. O procedimento foi abandonado, quando
começou a ser utilizado por aqueles no poder contra seus adversários, o que enfraqueceria a
democracia.
154

Claro exemplo disto é o episodio na Sessão da Comissão de Assuntos Sociais


(CAS) do Senado, em 20/06/2017 – em pleno governo de Temer, que assumiu
a partir do Golpe parlamentar de Estado em Dilma Rousseff em 2016 –,
quando, debatendo a Lei de “terceirização” do trabalho estendida às atividades
fins, a presidenta da Comissão, Marta Suplicy (ex-Prefeita e ex-Ministra pelo
PT, e então no PMDB, que apoiou o golpe), impedindo o ingresso de dirigentes
sindicais, intimidou e calou o Senador da oposição Lindberg Farias (do PT) –
quem recordando o passado da senadora defendia o ingresso dos
trabalhadores –, com a frase: “Olha o machismo e se cuida!”... o resultado da
intimidação foi: o silêncio do senador intimidado (ameaçado) e o não ingresso
dos trabalhadores à sessão que precarizou ainda mais os contratos de
trabalho.33 Vejamos, o “Lugar de fala” aqui é a mera condição de mulher, e não
a defesa de uma bandeira feminista pela igualdade de gênero, da qual a
senadora Suplicy não tem qualquer histórico de lutas nesta aérea e nem a de
defesa dos/as trabalhadores; e a intimidação visa apenas anular ou cancelar o
“outro”, o discordante, ameaçando destruir sua imagem pública, com claros
objetivos políticos, sejam eles de esquerda ou de direita, como o exemplo em
questão.
A destruição da imagem pública do “outro” já é secular e próprio dos
setores autoritários, opressores e dominantes – basta dar uma olhada aos
processos da Inquisição, da colonização das Américas, do Nazi-fazismo, das
ditaduras militares etc. –, assumindo novas determinações, potenciadas pela
internet e as redes sociais – como é claro exemplo o chamado “Gabinete do
ódio” vinculado aos filhos de Bolsonaro, no Brasil, disseminando desde a
campanha eleitoral de 2018, e durante o governo, fake news buscando destruir
socialmente os adversários. 34
Porém, a partir da polarizadora “lógica identitarista” pós-moderna,
fundados na “pós-verdade” e no “lugar de fala”, estes métodos punitivistas,

33 Ver noticia em: <https://noticias.uol.com.br/videos/index.amp.htm?id=olha-o-


machismo-e-se-cuida-diz-marta-a-lindbergh-em-sessao-sobre-reforma-
04024D1A3370D0916326>; acesso em: ago. de 2020.
34 Sobre o “Gabinete do ódio” ver em: <https://istoe.com.br/o-cancelamento-do-
gabinete-do-odio/>, <https://www.gazetadopovo.com.br/republica/gabinete-do-odio-alvo-cpmi-
fake-news/>; <https://theintercept.com/2020/07/11/mbl-luciano-ayan-renan-santos-fake-news/>
e <https://harpers.org/a-letter-on-justice-and-open-debate/>; acessos em: ago. de 2020.
155

sumários e fora do Estado, particularmente nas redes sociais, assumem


dimensões relevantes agora também na ação de setores das esquerdas.
Assim, o fundamento deste tipo de ação punitivista da esquerda (assim
como de direita) está na enorme polarização social e na intolerância, e visa a
anulação do debate de ideias e a eliminação sumária do “adversário”, o
que leva à transformação de questões políticas em questões de ordem
moral.
Este processo se agravou de tal maneira, com profundos impactos na
vida social, cultural, intelectual e acadêmica, e política, que levou mais de 150
artistas e intelectuais nos EUA, de diversos espectros políticos, dentre os quais
o linguista marxista Noam Chomsky e a jornalista e ativista feminista Gloria
Steinem, a assinarem uma “Carta sobre a Justiça e Debate aberto”. 35 A
mesma, que inicia apoiando os protestos, após o assassinato de George Floyd
(EUA, em 2020), contra a desigualdade racial e a brutalidade policial contra
negros nos EUA, em seguida passa a questionar o moralismo e a intolerância
que tem se instalado, não só no campo da direita, mas particularmente na
esquerda, e que tendem a “enfraquecer as normas do debate aberto e da
tolerância às diferenças em favor da conformidade ideológica”. Na carta os
signatários afirmam ter se instalado uma “intolerância a pontos de vista
opostos, uma moda de promover a vergonha e o ostracismo públicos e a
tendência de reduzir questões políticas complexas a certezas morais cegas”.
Para eles, “a forma de combater ideias ruins é pela exposição, debate e
persuasão, não por tentar silenciá-las”, e afirmando que, “como escritores,
precisamos de uma cultura que nos deixe espaço para experimentação, riscos
e até erros”.
Em síntese, o punitivismo, por tudo o exposto, transforma a luta política,
ora em ação penal estatal – ao criminalizar a questão, tornando a punição seu
objetivo central, leva a uma despolitização da mesma –, ora em ação sumária,
direta e moral fora do Estado – mediante o ajuizamento moral dos fatos e dos
supostos atores, o que significa a moralização da luta política.

35 Publicada, em 7/7/2020, na revista Harper’s. Ver matérias em:


<https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/07/em-carta-aberta-artistas-e-escritores-de-
destaque-alertam-para-clima-de-intolerancia-nos-eua.shtml>; e
<https://brasil.elpais.com/cultura/2020-07-08/chomsky-rushdie-steinem-e-outros-150-
intelectuais-reivindicam-o-direito-de-discordar-nos-eua.html>; acesso em: ago. de 2020.
156

Não se trata aqui, como já apontamos, nem de questionar a ação penal,


nem o escracho ou outros métodos de ação direta ou extraestatal. O que
estamos apontando aqui é o problema de fazer de estes processos os métodos
e os objetivos centrais ou exclusivos das lutas políticas, especialmente quando
não baseado nos fatos, nas evidências, mas nas convicções sobre uma “pós-
verdade”.
É neste sentido que, em entrevista, Haider afirma: “se você tem uma
organização ou um movimento que é dominado por homens brancos, isso é um
problema político e estratégico. [Porém] Se ele for tratado como um problema
moral, não haverá como resolvê-lo” (2018, p. 5).
Desta forma, a ação punitivista individualizada, como objetivo central da
luta política, deriva numa clara moralização e despolitização de uma questão
que é essencialmente política, fazendo o mesmo com a categoria de
“identidade” e as causas e lutas antiopressivas.
O escracho, real ou virtual, na praça pública ou nas redes sociais, como
uma forma de denunciar, desmoralizar e até de “cancelar”, levando ao
“ostracismo” social, constitui uma das principais ferramentas do “punitivismo de
esquerda” (e de direita), justamente porque não depende de processos
judiciários, sustentados nos princípios da “presunção de inocência”, do
“contraditório”, da análise de provas, mas apenas da convicção, do pré-
julgamento, numa clara relação com a chamada “pós-verdade”.
Ora, a partir da polarização moral, o linchamento público e o escracho
virtual nas redes sociais, com palavras de ordens, só impacta, via de regra, os
sujeitos do próprio campo, tornando-se ineficiente quando se visa atingir o
outro campo político.
Quando se “moraliza” a política, a ação só impacta àqueles que
compartilham da mesma moral, sendo inócua para os “outros”.
É tão inútil quando desde a esquerda se chama de homofóbico, racista,
machista a alguém que se inscreve conscientemente nesses valores, como é
igualmente carente de impacto quando desde a direita se taxa de comunista,
esquerdista ou defensor dos Direitos Humanos, a quem se identifique com tudo
isso. No Brasil isto foi por demais visível, quando desde setores progressistas
se chamou Bolsonaro, e seus aliados, de fascistas, milicianos, homofóbicos,
racistas etc. Eles são tudo isso mesmo, mas nunca esconderam e nem tem
157

vergonha ou problema, sequer eleitoralmente com essa crítica. Ao contrário,


tem um público e um eleitorado que os segue e apoia precisamente por isso.
Isto é, a esquerda desenvolveu uma tática “política” – despolitizando a
política e transformada em questão moral – que é inócua contra o adversário
político maior, mas que internamente, na esquerda, é terrivelmente destrutiva e
divisionista.
Ainda mais, como já afirmamos, pareceria que na lógica punitivista, tanto
da esquerda, que visa os linchamentos sumários, como para a direita, que
condena os Direitos Humanos pelas penas brandas, o devido processo só deve
existir para alguns (o “nós”, os “cidadãos de bem” ou os “politicamente
corretos”) e não para outros (precisamente para os “outros”, os inimigos).
Desta forma, a lógica punitivista, via de regra, tende a fundamentar a
ação ou “justiça” independente das (ou desprezando as) garantias jurídicas do
Estado, seja por entende-lo marcado pelos “Direitos Humanos” (na visão
ultraconservadora), seja por entende-lo controlado e representativo dos setores
opressores, machista, racista etc. (na perspectiva progressista), e, em ambos
os casos, rejeitando as garantias do devido processo. Ainda mais, quanto mais
repugnante aos nossos sentidos e emoções for o crime imputado, menos
interessados tendemos a estar nas garantias do devido processo, dos direitos,
nos princípios jurídicos de “presunção de inocência”, do contraditório, no direito
de ampla defesa, nas provas... enfim, na verdade dos fatos, e mais tendemos a
clamar por punições mais severas. Neste mesmo sentido Karam condena:
a atitude de quem se intitula “garantista”, mas nega o mínimo de garantias
quando se vê diante de um alegado fato visto como especialmente
ofensivo a suas crenças, sentimentos ou posicionamentos políticos, revela
clara adesão à antiga, nefasta e hipócrita prática de trabalhar com “dois
pesos e duas medidas”, sob o aético princípio de “fins justificam os meios”,
não se incomodando em manipular dores e tragédias (reais ou não),
instrumentalizar fatos, eleger e sacrificar “bodes expiatórios”, em nome de
uma suposta necessidade de fazer avançar suas justas (ou não)
reivindicações político-sociais (2016, p. 3).

Assim, continua a autora, “silenciando ou até mesmo aplaudindo a


violação a normas constitucionais, quando esta atinge seus ‘inimigos’, os
setores progressistas comportam-se exatamente como seus adversários”
(ibidem), “reivindicando direitos e garantias para uns [os “amigos”] e
desenfreado rigor punitivo para outros [os “inimigos”]” (idem, p. 4).
158

Ora, primeiramente, o devido processo constitui direito de todos os


indivíduos, e se eles não são aplicados igualitariamente por um Estado
discriminador, a luta deve ser por garantir tais direitos para todos, por mais
arrepiante que entendamos seja o crime imputado... justamente porque é
“imputado”, e não “comprovado”. É nesta passagem entre a imputação e a
comprovação que, particularmente, o devido processo deve ser garantido, para
evitar condenações judiciais sumárias, como a de os imigrantes italianos nos
EUA, Sacco e Vanzetti,36 condenados a morte na década de 1920, ou para
evitar linchamentos extra-judiciais, levando ao ostracismo e no limite ao
suicídio, como o caso do reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, em
2016.37
Em segundo lugar, e como já afirmamos, a defesa dos direitos e do
devido processo em absoluto significa uma defesa da inocência ou da
impunidade do sujeito.
Desta forma, a polarização da “lógica identitarista”, a pós-verdade e o
punitivismo se unem. Quando se confia e acredita no discurso da vítima (real
ou não), parece não ser necessárias as provas e o devido processo é visto
como “perda de tempo” ou como sinônimo de “impunidade”. Neste caso, a
(suposta) “justiça”, mediante a punição, deverá ser direta, sumária e
implacável.
O sentido da “justiça” se esgota e limita na punição. Assim, ambos
conceitos, justiça e punição, passam a ser vistos como sinônimos. O indivíduo
é punido, mas a estrutura opressiva é poupada, e permanece incólume.

4.2- O “reconhecimento” e a “inclusão” (mediante o direito,


políticas e acesso a bens e serviços) como outro objetivo
político.
Outra finalidade central a partir da “lógica identitarista” está vinculada às
demandas por “reconhecimento” e pela “inclusão social”. Elas são
reivindicações históricas das lutas de classes certamente importantes como

36 Ver o filme Sacco e Vanzetti (1971), disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=PdhIMUVfpPM>, acesso em: jul. de 2020.
37 Ver: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/04/politica/1507084756_989166.html>,
acesso em: jul. de 2020.
159

meios, mas a “pauta” identitarista pós-moderna as destotaliza e as coloca como


uma finalidade. Vejamos.
Por um lado, as demandas e a lutas pelo “reconhecimento”
historicamente referem ao reconhecimento da sua humanidade (ex. dos
escravos), dos seus direitos igualitários (ex. das mulheres), do reconhecimento
e dos direitos LGBTs, como o de constituir matrimônio legítimo, dos direitos
civis (ex. dos imigrante), isto é, pelo reconhecimento de sua cidadania.
A noção de demandas ou lutas por “reconhecimento” já está presente
nos debates políticos clássicos do século XIX, particularmente, a partir de
Hegel, em Marx. Conforme o marxista italiano Domenico Losurdo, as lutas de
classe tem expressão e reivindicações tanto de “redistribuição de renda” (em
torno da exploração e distribuição da riqueza) como de “reconhecimento” (em
torno da opressão). Para ele, “a luta proletária promovida por Marx e Engels,
além da vigente distribuição da renda, tem como alvo as relações de coerção e
os processos de desumanização que constituem a sociedade capitalista.
Ademais, não é possível traçar uma linha clara entre a luta pela redistribuição e
a luta pelo reconhecimento” (LOSURDO, 2015, p. 112).
Isto é, na obra marxiana, conforme o autor italiano, ao tratar de lutas por
“reconhecimento”, em torno das relações de coerção e de opressão, está se
falando de um aspecto das lutas de classes, complementário das lutas por
“redistribuição da renda”, historicamente presentes nas “três frentes
emancipadoras da luta de classes”, a da “libertação das ‘nações oprimidas’” e
coloniais, a da “emancipação política e social da mulher” e a da “emancipação
dos escravos afro-americanos” (idem, p. 91-92).
Losurdo afirma que “a reivindicação do reconhecimento” aparece entre
aqueles que, “de uma maneira ou de outra, percebem estar submetidos a
cláusulas de exclusão, que humilham e esmagam sua dignidade humana”
(LOSURDO, 2015, p. 94). Assim, sustenta ele, “em toda etapa da luta de
classes observamos emergir a reivindicação do reconhecimento” (idem, 96).
Para ele, os embates dos “povos coloniais, das classes subalternas [e] das
mulheres” representam “uma prolongada luta pelo reconhecimento. O conflito
social é ao mesmo tempo [que uma luta por redistribuição] uma luta pelo
reconhecimento” (idem, p. 115).
160

Conforme aponta Losurdo, “na visão de Marx e Engels, os escravos


assalariados [o proletariado] dão o primeiro passo na luta pelo reconhecimento
entrando em relação entre si”, já que “entrando em contato entre si, os
membros de uma classe [...] oprimida [...] aprendem a se conhecer e sacodem
o descrédito e o autodescrédito impostos pela classe dominante” (LOSURDO,
2015, p. 116).
Nesta esteira, Vladimir Safatle defende a luta pelo igualitarismo num
projeto que numa primeira dimensão “diz respeito à luta contra a desigualdade
econômica”, e numa segunda dimensão “se refere à estrutura das demandas
de reconhecimento da vida social” (2018, p. 26-27). A partir dessa análise,
Safatle também entende as demandas e lutas por “redistribuição da renda” e
por “reconhecimento” como componentes das lutas de classes (idem, p. 21).
No entanto tudo isto, o tratamento pós-moderno do reconhecimento,
atrelado à “lógica identitarista”, retira sua condição de classe e sua vinculação
com as paralelas demandas por “redistribuição”, fazendo do “reconhecimento”
uma demanda autônoma, dissociada da questão da exploração e distribuição
da riqueza e arrancada da totalidade social, transformando ainda estas
demandas como meios, em fins da ação política.
Nesta perspectiva, desarticulam-se e autonomizam-se as duas esferas
das lutas de classes: a) por um lado, as lutas pela “redistribuição da renda”,
lutas “econômicas”, em torno da exploração, reduzindo as lutas de classes a
apenas estas dimensão, e consideradas relevantes até a crise capitalista e o
esgotamento do chamado socialismo real (nos anos 70-80); e b) por outro lado,
as lutas pelo “reconhecimento”, como lutas desgarradas das lutas de classes,
apenas “políticas”, em torno das relações de opressão, e consideradas como
de maior (ou absoluta) relevância no processo de lutas a partir das crises
mencionadas, e da eventual emersão de uma sociedade “pós-moderna” (ver
LOSURDO, 2015, p. 91). Nas palavras de Losurdo, ocorre assim, “a partir da
crise e do colapso do ‘campo socialista’”, uma suposta “mudança de
paradigma”, do “paradigma da redistribuição (cujo intérprete seria o movimento
operário)” para o “paradigma do reconhecimento (que encontraria sua
encarnação em primeiro lugar no movimento feminista [em seguida se
estendendo para os movimentos identitários em geral])” (idem, p. 312). O
resultado é uma “fragmentação da luta de classes” (idem, p. 313), separando
161

primeiramente as demandas econômicas (redistributivas) das políticas (por


reconhecimento), e em segundo lugar desarticulando estas últimas umas das
outras.
Isto é, a luta pelo “reconhecimento” é apresentada por Marx e pela
tradição marxista, e faz parte das lutas de classes, mas elas só podem ser
compreendidas, e seu potencial político, atreladas às lutas por “redistribuição”;
isto é, as lutas políticas e econômicas não são processos isolados e
dissociados um do outro, mas ambas são constitutivas das lutas de classes.
Porém, na análise e na programática pós-modernas, o
“reconhecimento”, e as lutas por “reconhecimento”, são arrancadas e
dissociadas da base econômica; isto é, a reflexão pós-moderna separa as lutas
políticas das econômicas, não mais como duas dimensões das lutas de
classes, mas como processos independentes e desarticulados, e até
alternativos.
Assim, nesta perspectiva, o “reconhecimento” será um mero resultado
da inserção na sociedade capitalista.
A luta pelo reconhecimento, transfigurada pela razão pós-moderna,
representa, desta forma, uma demanda e um objetivo meramente inclusivista.
Assim, por outro lado, o conceito de “inclusão” parte, primeiramente, da
ideia de que se trata de sujeitos “excluídos”, seja do poder político, seja do
acesso a bens e serviços, seja de direitos, ou até da condição plena de
cidadania.
A noção de “exclusão” precisa ser bem ponderada, pois, por um lado,
ela faz referência a um processo real e concreto, quando setores sociais são
efetivamente excluídos em algum grau destas questões. Porém, por outro lado,
este conceito merece algumas observações. Primeiramente, quando as
análises pós-moderna e liberal o empregam em evidente substituição da
categoria de “classe social”. Em segundo lugar, por se tratar de um conceito
amplo, ele pouco nos diz sobre cada uma das expressões dessa exclusão. Em
terceiro lugar, porque o apelo pós-moderno ao conceito em questão se faz em
clara dissociação do mesmo em relação aos determinantes estruturais do
MPC. Finalmente, em quarto lugar, porque tende-se a interpretar a “exclusão”
como uma espécie de “marginalidade”, quando na verdade se trata de uma
162

forma de inserção particular no sistema social, e não uma plena marginalização


(ver NUN, 2001). Sobre este último aspecto, Osório afirma que:
a exclusão no capitalismo não é senão uma face particular da inclusão na
valorização e domínio do capital, e expressa o excesso de uma
universalidade que integra expulsando. Por isso, quando [...] pensam a
exclusão como elemento exterior, com um algo alheio, suas soluções
passam por pensar em como incluir o que de fato já está incluído
(OSORIO, 2012, p. 109).

Trata-se, portanto, de incluir “plenamente” o que já está incluído


“parcialmente”, porém, sem jamais superar a subordinação e opressão
estruturais. Conforme o autor, parte da população excedente, por um lado,
“cumpre um significativo papel na valorização” do capital (idem, p. 111),
entanto outra parte, mesmo que plenamente fora da economia, mal chamada
de “marginal”, tem um papel político importante (como massa de manobra) nos
processos eleitorais (idem, p. 116).
Trata-se, portanto, de uma “inclusão excludente” (idem, p. 121), porém,
que o capital, assim como as análises pós-modernas, tratam como grupos
alheios ao sistema, marginais, externos; e, a partir dessa compreensão, a
resposta passa pela elaboração de políticas orientadas a “incluir o que de fato
lhe pertence e já se encontra incluído” (idem, p. 124).
Desta forma, a programática pós-moderna fala de inclusão digital, pela
dança, pelo esporte, artística etc. etc. etc. A solução pareceria ser incluir os
indivíduos excluídos. Vejamos bem.
Nas dicotomias exclusão/inclusão, conforme a linguagem pós-moderna,
semelhante ao disfuncional/funcional, no positivismo, ou marginal/integrado, na
teoria sistêmica, certamente partindo de pressupostos e perspectivas políticas
diferentes, no entanto, todas estas antinomias remetem a uma noção estável
do todo, do sistema, para o qual o indivíduo precisa ser integrado, incorporado,
incluído, refuncionalizado. Assim, a superação da exclusão passa pela
inclusão, a correção da disfuncionalidade passa pela refuncionalização, a
eliminação da marginalidade exige a integração.
Numa lógica totalmente diversa, a categoria exploração não tem uma
antinomia, pois não tem forma de superação dentro da ordem do capital.
Exploração não remete a um sistema estável e um indivíduo a ser nele
163

incluído, mas diz respeito de um sistema (capitalista) que, para sua superação,
deve ser transformado (trataremos disso no item 6.3).
Ora, a inclusão, como “meio”, certamente é muito importante e em
muitos casos estas atividades representam avanços que não podem ser
desprezados, porém, incluir necessariamente significa a aceitação do lócus, do
sistema, aonde quer se incluir. Isto é, a “inclusão” significa incluir dentro da
ordem burguesa, da sociedade capitalista.
É também neste sentido que Haider afirma que: “reivindicar inclusão na
estrutura da sociedade como ela é significa se privar da possibilidade de
mudança estrutural” (2019, p. 48). Isto é, o objetivo da inclusão na sociedade
estabelecida, nas suas regras sociais, nos direitos civis, pode, em algum grau e
no imediato, representar um objetivo progressista, incorporando os setores
subalternos aos direitos, amenizando em certos aspectos a desigualdade, o
que não pode ser desprezado ou desqualificado; porém, também não pode
desconhecer-se que “incluir” tem como pressuposto a manutenção da
estrutura, e portanto sua legitimação. Não teria nenhum sentido, a não ser
como algo transitório, reivindicar a “inclusão” em algo que é rejeitado e se
procura transformar.
Assim, conforme Wendy Brown – cientista política norte-americana e
autora, entre outros, de “Regulating Aversion: Tolerance in the Age of Identity
and Empire” e “States of Injury”, e companheira de Judith Butler –, a política
identitária visa a inclusão social, tendo na classe média “o ideal ao qual as
identidades que não são de classe” devem se orientar (apud HAYDER, 2019,
p. 48). Desta forma, continua, “o que temos chamado de política identitária é
parcialmente dependente da perda de uma crítica do capitalismo e dos valores
culturais e econômicos burgueses” (apud HAYDER, 2019, p. 47),
complementando que, quando ausentes de uma crítica ao capitalismo:
as políticas identitárias [...] aparecerão não como um complemento da
política de classe, não como uma expansão das categorias de esquerda de
opressão e emancipação, não como uma ampliação enriquecedora de
formulações progressistas sobre poder e pessoas [...], mas como
vinculadas a uma ideia de justiça que reinscreve um ideal burguês
(masculinista) como sua medida (apud HAIDER, 2019, p. 47).

Desta forma, quando a inclusão deixa de ser um meio para se tornar


uma finalidade (o objetivo central), por um lado, a perspectiva de transformação
164

social é substituída pela aceitação, legitimação e reprodução da ordem, e com


isso, por outro lado, produz-se uma inclusão num sistema que é
estruturalmente excludente e desigual, reforçando o próprio sistema social que
gera essas formas de desigualdade e exclusão.
Com seu caráter aparentemente (ou momentaneamente) positivo, no
plano imediato, no entanto, no processo de inclusão o grande ausente é a
classe social, a esfera econômica (e a distribuição da riqueza) e o sistema
capitalista.
É nesta direção que a historiadora brasileira, Virginia Fontes, analisa o
processo de desenvolvimento deste tipo de ações ou de políticas afirmativas.
Conforme ela aponta, nos anos 90, desde a destituição do governo Collor,
mediante o impeachment de 1992, a passagem para seu vice Itamar, e nos
governos FHC, podemos encontrar a origem no Brasil destas ações. As
mesmas tem, conforme a autora, uma clara conotação “apartidária” e “anti-
classe”. Para a autora, desde o “Movimento Ética na Política”, que exigia a
destituição de Collor, e que se converteria, após o impeachment, em “Ação da
Cidadania” e finalmente no “Movimento pela Ação da Cidadania contra a
Miséria e pela Vida” (capitaneada pelo sociólogo Hebert de Souza, o Betinho,
mediante o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, IBASE), o
que se verifica é um movimento político que “eximia-se da perspectiva de
organização de classes, limitando-se a uma abordagem moralizante”
(FONTES, 2010, p. 274). Conforme a autora,
o tema da desigualdade começava a travestir-se de pobreza. A miséria foi
apresentado sob um formato de grande impacto emocional e cultural, de
base mobilizadora e filantrópica (doações) (idem, p. 274-275, grifos
nossos).

Em seguida, articulando ONGs com fundações de empresas privadas e


ações do governo, mediante o programa “Comunidade Solidária”, coordenada
pela então primeira dama Ruth Cardoso, nos governos FHC, a ação social
passa a desempenhar-se mediante um abstrato “terceiro setor” (ver
MONTAÑO, 2002), onde, novamednte, o grande sujeito ausente é a classe
trabalhadora, e a grande questão ausente é a exploração, como fundamento da
desigualdade, da pobreza e particularmente da fome. Como se a fome fosse
autorreferenciada aos famintos, e não uma manifestação da contradição que
funda uma sociedade estruturalmente desigual: a exploração de classe. Nessa
165

visão, combater a fome passa por uma ação “solidária” que reúne todos os
cidadãos (independentemente de classe, e de instituição, ONG, fundação
empresarial e Estado) num objetivo e causa (supostamente) comum. Inicia-se o
processo de deseconomização e desclassamento da ação (a)política.
Desta forma, segundo afirma Fontes, surge a “nova tática burguesa de
‘administração’ de conflitos”, que leva a transformação “da demanda de
igualdade para o terreno da ‘inclusão’” (idem, p. 275).
Deixa de se pensar a pobreza como uma manifestação da desigualdade
estrutural, que relaciona e opõe acumulação e pobreza (MONTAÑO, p. 278 e
ss.), e portanto a ação passa a centrar-se no resultado imediato – pois, como
afirma o slogam da campanha “quem tem fome tem pressa” 38 –, abandonando-
se a luta pela transformação estrutural, perpetuando-se o fundamento da
desigualdade, a exploração.
Neste processo, as lutas sociais e de classes contra os fundamentos da
desigualdade são reduzidas à institucionalização de conflitos, orientada a
ações multiclasses por (supostas) “metas comuns”; assim, conforme Fontes, “a
proposta da redução democrática à gestão de conflitos imediatos se
disseminava” (idem, p. 281). Neste sentido, a autora mostra que assim
“deslocara-se a articulação entre as lutas, que até então mantinham uma
unidade tensa em torno da configuração das classes sociais no Brasil, para o
terreno mercantil-filantrópico [...] voltado para a pobreza [...]. A pobretologia – e
não um estudo da relação entre as classes e destas com as formas específicas
da acumulação de capital – se difundia” (idem, p. 347). Conforme ela, neste
processo “aprofundava-se um ativismo estéril ao lado do apassivamento diante
da precarização das condições de trabalho” (ibidem).
Desta forma, no plano imediato, a pauta inclusivista sustenta-se no
acesso, mediante o direito e as políticas de tipo compensatórias e/ou
afirmativas, a bens e serviços, à maior presença e ingresso institucional, e à
condição formal de plena cidadania.
Por um lado, do ponto de vista institucional, o processo de inclusão é
realizado a partir das chamadas políticas e ações “afirmativas”.

38 Ver site da ONG “Ação da Cidadania” em:


<https://www.acaodacidadania.com.br/nossa-historia>; acesso em: ago. de 2020.
166

Este tipo de políticas ou ações são “afirmativas” porque partem do


reconhecimento da desigualdade social a partir de diferenças de gênero,
raciais, étnicas, religiosas etc., portanto, não trabalham com conceitos
abstratos de igualdade (de cidadania), mas com a realidade concreta da
desigualdade. A partir deste reconhecimento factual da desigualdade racial, de
gênero etc., as políticas ou ações afirmativas – segundo pertençam à esfera
estatal ou da sociedade civil e do mercado, e em função de conformar políticas
públicas ou ações pontuais – visam compensar ou reparar as desigualdades
históricas mediante mecanismos institucionais, transitórios, que garantam a
real igualdade de oportunidades de acesso (ao ensino público, à emprego, à
representação etc.).
Isto é, mesmo que a Constituição (no seu art. 5°) e a legislação
brasileiras tratem (formal e abstratamente) todo cidadão como igual, a
realidade fática mostra uma enorme desigualdade social em função de gênero,
raça, etnia, religião etc. É justamente para reverter ou compensar essa
desigualdade fática, e garantir a igualdade constitucional, que as ações e
políticas afirmativas tratam desigualmente os desiguais (ver item 6.1-B), tal
como vem no conceito de “discriminação positiva”. Ou seja, a determinação
jurídica da igualdade (formal) é importante, mas não suficiente para concretizar
a mesma; num contexto de desigualdade estrutural e histórica, é preciso o
estabelecimento de medidas que visem combater a desigualdade.
O conceito de “ação afirmativa” surge nos anos 60 nos EUA,
fundamentalmente orientado a questões de discriminação e desigualdade
racial. Já no Brasil o mesmo é incorporado como política de Estado no
“Estatuto da Igualdade Racial” (Lei 12.288/2010), no governo Lula, “destinado a
garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a
defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à
discriminação e às demais formas de intolerância étnica”,39 e acompanhado de
diversas leis estaduais, anteriores, fundamentalmente orientadas à reserva de
vagas ou cotas sociais (por renda ou provenientes da rede publica de ensino)
e/ou étnico-raciais para o ingresso nas universidades públicas. 40 Ainda há

39 Ver em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-


2010/2010/Lei/L12288.htm>; acesso em: ago. de 2020.
40 Ver em: <http://gemaa.iesp.uerj.br/legislacao/>; acesso em: ago. de 2020.
167

precedentes, como o caso das cotas nas empresas reservadas à contratação


de pessoal reabilitado ou portador de deficiência, conforme art. 93 da Lei
8.213/1991.41
Por seu turno, a noção de “discriminação positiva” se contrapõe à
discriminação, ou “discriminação negativa”. Isto é, num ambiente de igualdade
social real em tese não há discriminação; porém, numa sociedade
estruturalmente desigual, mesmo com a afirmação da igualdade formal, a
discriminação precisa ser combatida (ou revertida) como medidas
compensatórias e reparadoras, que consigam compensar ou contrarrestar a
mesma, conformando a noção de “discriminação positiva”, a qual se constitui
como fundamento e pilar das “ações afirmativas”.
Conforme aponta Silvio Almeida, “ações afirmativas são políticas
públicas de promoção de igualdade nos setores públicos e privados, e que
visam a beneficiar minorias sociais historicamente discriminadas”, como as
políticas de “cotas raciais” (ALMEIDA, 2019, p. 145).
Para o autor, no caso do racismo, se este é um fenômeno estrutural (ver
itens 2.3-A e 6.2), suas instituições, enquanto representam e reproduzem tais
formas de dominação e desigualdade, precisam sofrer mudanças nos seus
“mecanismos discriminatórios [...] inclusive atribuindo certas vantagens sociais
a membros de grupos raciais historicamente discriminados” (idem, p. 41). E,
como o autor afirma, “um exemplo dessa mudança institucional são as políticas
de ação afirmativa, cujo objetivo é, grosso modo, aumentar a
representatividade de minorias raciais e alterar a lógica discriminatória dos
processos institucionais” (idem, p. 42), enquanto políticas de tipo
compensatórias e reparadoras.
Porém, complementa Almeida, essas mudanças institucionais
desenvolvidas mediante as chamadas políticas ou ações “afirmativas”, que do
ponto de vista dos grupos subalternos representam conquistas, do lado
institucional ou dos setores dominantes, representam “concessões [que] terão
de ser feitas para os grupos subalternizados a fim de que questões essenciais
como o controle da economia e das decisões fundamentais da política
permaneçam no grupo hegemônico” (idem, p. 41). Ainda, não poucas vezes, as

41 Ver em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>; acesso em: ago.


de 2020.
168

“ações afirmativas” são questionadas, tanto por setores dominantes como por
grupos subalternos da população, por não compreender o papel do princípio de
“discriminação positiva”, como representando privilégios. Certamente os
fundamentos neoliberais assim o compreendem,42 porém, este entendimento
aparece em outros grupos sociais subalternos e precarizados, nos estratos
sociais mais baixos da população trabalhadora.
Neste sentido, as políticas e ações “afirmativas” carregam uma certa
ambiguidade ou dualidade intrínseca: por um lado, elas visam compensar,
reparar ou diminuir as desigualdades geradas a partir das diferenças de
gênero, étnico-raciais etc., constituindo políticas ou ações específicas
orientadas a certos grupos historicamente subalternos e desfavorecidos, mas
por outro lado, elas precisam afastar o risco de reforçar os fundamentos dessa
discriminação e desigualdade atrelados a essas diferenças.
Assim, as chamadas políticas ou ações “afirmativas” enquanto
processos institucionais, táticos e compensatórios imediatos são certamente
positivas, quando dentro de uma estratégia de luta estrutural mais ampla contra
a opressão e pela igualdade. Porém, se transformadas em finalidades, elas
podem vir a se tornar funcionais à manutenção da ordem, perpetrando os
fundamentos da desigualdade social. Por tal motivo, as políticas e ações
afirmativas precisam ser desenhadas com os cuidados e o zelo para não
induzir a reprodução e legitimação das discriminações e desigualdades que
visam superar.

42 Para Hayek, qualquer intervenção estatal na economia, mesmo procurando a


igualdade e a justiça social, significaria uma afronta ao princípio da liberdade. Assim, conforme
afirma, os direitos individuais ou a igualdade de direito das minorias perdem “todo o valor num
Estado que empreende o controle integral da vida econômica” (HAYEK, 1990, p. 96), isto é, “a
liberdade econômica” “constitui o requisito prévio de qualquer outra liberdade” (idem: 107), e
esta não aceita intervenção estatal. Segundo ele, “se submeter a um poder capaz de coordenar
os esforços dos membros da sociedade com o objetivo de atingir determinado padrão de
distribuição considerado justo” (HAYEK, 1985, p. 82), “levará à destruição do único clima em
que os valores morais tradicionais podem florescer, ou seja, a liberdade individual” (idem: 86).
Segundo o autor, “é importante que, na ordem de mercado (enganosamente chamada
de ‘capitalismo’) os indivíduos acreditem que seu bem-estar depende, em essência, de seus
próprios esforços e decisões [e não do esforço de toda a sociedade através do Estado]. De
fato, poucas coisas infundirão mais vigor e eficiência a uma pessoa que a crença de que a
consecução das metas por ela mesma fixadas depende sobretudo dela própria” (1985, p. 93).
Para ele, “qualquer política consagrada a um ideal substantivo de justiça distributiva leva à
destruição do Estado de Direito”, já que, “para proporcionar resultados iguais para pessoas
diferentes, é necessário tratá-las de maneira diferente” (Hayek, 1990, p. 91), o que é
considerado pelo nosso autor como um sistema de “privilégios” (sic).
169

Por outro lado, do ponto de vista sistêmico, a inclusão tem por base o
direito e a norma jurídica, que permita a plena condição e exercício da
cidadania.
Há aqui, por exemplo, as demandas de casamento igualitário, do
movimento LGBT, de descriminalização do aborto, do movimento feminista, de
legalização do imigrante etc.
Estas demandas, da mesma forma que as demandas trabalhistas por
limitação da jornada de trabalho, ou por melhores salários etc., só podem ser
garantidas por meio do direito... do direito burguês!
Falar de “direito burguês” não significa que seja da “classe burguesa”,
mas é da “ordem burguesa”, e como tal, representando a correlação de forças
sociais, as lutas de classes, dentro e a partir da hegemonia burguesa (da
“classe burguesa”), e portanto, funcional a este modo de produção e de
relações de produção.
Desta forma, não temos um direito “neutro”, imparcial, equidistante (ver
PACHUKANIS, 2017)... nem uma justiça realmente “cega”. Mas um direito
constituído e funcional à base econômica, às necessidades do capital e às
lutas de classes.
Ora, para Marx, a “superestrutura jurídico e política” (MARX, 1977, p.
24), na qual se situa o direito, eleva-se a partir e em função da “estrutura” ou
“base econômica” (ou infraestrutura), que chama de “sociedade civil” ou
“sociedade burguesa” – esfera na qual se criam as “condições materiais de
vida” e se desenvolvem as relações de produção.
Neste sentido, conforme afirma Engels, “o Estado, o regime político [e
jurídico: a superestrutura], é o elemento subordinado, e [...] as relações
econômicas [ou de produção: a base ou estrutura econômica], é o elemento
determinante (in MARX e ENGELS, 1975, p. 111). Assim, como ambos
afirmam em A Ideologia Alemã:
A estrutura social e o Estado nascem [...] do processo de vida de
indivíduos determinados [...] tal e como atuam e produzem materialmente
e, portanto, tal e como desenvolvem suas atividades sob determinados
limites, pressuposto e condições materiais, independentes de sua vontade
(MARX e ENGELS, 1993, p 36).

Isto é, para Marx e Engels, “não é o Estado que molda a sociedade mas
a sociedade que molda o Estado. A sociedade, por sua vez, se molda pelo
170

modo dominante de produção e das relações de produção inerentes a esse


modo” de produção (CARNOY, 1990, p. 66), em que pese se tratar de uma
“determinação em última instância” (ver item 5.3-C).
Silvio Almeida concorda com isto, ao afirmar que: “as relações que se
formam a partir da estrutura social e econômica das sociedades
contemporâneas é que determinam a formação das normas jurídicas” (2019, p.
139). Neste sentido, afirma, “se o direito é produzido pelas instituições, as
quais são resultantes das lutas pelo poder na sociedade, [então] as leis são
uma extensão do poder político do grupo que detém o poder institucional”
(idem, p. 135).
Para ele, coexistem as duas visões sobre o direito enquanto instrumento
de combate ao racismo: por um lado, “o direito é a forma mais eficiente de
combate ao racismo, seja punindo criminal e civilmente os racistas, seja
estruturando políticas públicas de promoção da igualdade”; mas, por outro lado,
“o direito, ainda que possa introduzir mudanças superficiais na condição de
grupos minoritários, faz parte da mesma estrutura social que reproduz o
racismo enquanto prática política e como ideologia” (idem, p. 140).
Assim, não podemos apostar apenas em mudanças no Estado sem
também lutar por mudanças na base econômica da sociedade, já que aquelas
em parte dependem destas.
Ainda, apostar no direito (burguês) o destino das lutas sociais é, decerto,
entregar o projeto de transformação social para o guardião da ordem social.
Desta forma, mesmo reconhecendo o direito a ter direito das chamadas
minorias, dos excluídos, dos grupos subalternos, e em que pese que as
demandas e conquistas por direitos representam passos em torno da
“emancipação política” (voltaremos a isto no item 7.1-B), o projeto que visa a
“inclusão” pelo direito não constitui, em si mesmo, um projeto revolucionário, e,
a não ser que estas conquistas estejam inseridas num projeto de maior fôlego
e alcance, anticapitalista, que vise a transformação social, tende a perpetuar e
legitimar a ordem social.
Isto é, quando a luta pelo direito deixa de ser um meio para se tornar
uma finalidade, em que pesem as conquistas realizadas, o processo se torna
funcional à reprodução da ordem social vigente.
171

É por isso que Almeida afirma que o direito, neste processo, deve ser
um “meio e não fim”, orientado para a “consecução de objetivos políticos e para
a correção do funcionamento institucional, como o combate ao racismo por
meio de ações afirmativas, por exemplo” (2019, p. 135).
Assim, conforme afirma Almeida ao prefaciar o livro de Haider (2019), a
“armadilha” da esquerda não está na “identidade” em si, mas no fato de reduzir
as lutas e políticas às “identidades específicas” (ver Almeida, in HAIDER, 2019,
p. 12), paralisando a esquerda, e “tornando-a refém da política identitária”, seja
quando só se fala de “identidade”, seja quando se recusa a falar de
“identidade” (idem, p. 14).
Quando só se fala da “identidade”, como é o caso da pauta da esquerda
pós-moderna, afirma Almeida:
a esquerda restringe-se a movimentos dentro dos estreitos limites do
sistema, esperando que ele [o sistema] atenda à suas reivindicações na
forma de “direitos”. No fim das contas, a política identitária limita as
organizações de esquerda ao figurino jurídico da luta por “mais direitos”
(idem, p. 14).

Já quando se recusa a falar de “identidade”, como no caso das correntes


economicistas do marxismo, aparece “a incapacidade de se conectar com o
cotidiano de sofrimento, humilhação e privação” das minorias e grupos
identitários (idem, p. 15-16).
Em síntese, o projeto que tem por finalidade (e não um meio) a inclusão
(dentro da ordem), é um projeto que abandona a perspectiva de
transformação, a luta anticapitalista, e portanto, a emancipação humana
(voltaremos a isso no item 7.1-A e B).
Nesta esteira de análise, Ellen Wood vai afirmar que a substituição do
projeto socialista, que supere o capitalismo,
por um sistema indeterminado de democracia [como o “outro mundo
possível”], ou a diluição das relações sociais diversificadas e diferentes em
categorias gerais como “identidade” ou “diferença”, ou conceitos frouxos
de “sociedade civil”, representa a rendição ao capitalismo e a todas as
suas mistificações ideológicas (2006, p. 224).

A esquerda identitarista (pós-moderna) se conforma em não transformar


a ordem, para transformar a sociedade civil. Projeto este afinado com a
“descolonização do mundo da vida” de Habermas, com as pautas hegemônicas
172

do “Fórum Social Mundial”, como as propostas de “empoderamento”, com as


ações do chamado “terceiro setor”. É aqui, conforme sustenta Wood,
que o culto da sociedade civil, a sua representação como a esfera da
diferença e da diversidade, fala mais diretamente às preocupações
dominantes da nova esquerda. Se há algo que une os vários “novos
revisionismos” – desde as mais herméticas teorias “pós-marxistas” e “pós-
modernistas” até o ativismo dos “novos movimentos sociais” – é a ênfase
na diversidade, na “diferença”, no pluralismo (2006, p. 219).

Enfim, como se desprende da análise anterior, a grande ausente nas


propostas da esquerda pós-moderna é a igualdade econômica. Pareceria que
seria possível e suficiente, no seu projeto “emancipador”, uma sociedade
culturalmente diversa, sem opressão política, sem discriminação de nenhum
tipo, mas, persistindo a exploração como forma de enorme desigualdade
econômica... qualquer semelhança com o projeto liberal burguês de igualdade
cidadã, e liberdade econômica, não é mera coincidência!!!

4.3- O “empoderamento” do indivíduo e o desempoderamento


da classe.
Poderíamos dizer que uma das formas de inclusão social, a partir da
retirada neoliberal da ação social estatal, é mediante o chamado
“empoderamento” dos grupos subalternos. Mas trata-se de uma forma de
inclusão à inversa, pois o dito “empoderamento” se funda no afastamento da
ação social estatal, portanto, do direito do cidadão a ter suas demandas
respondidas pelo Estado, e na atribuição aos próprios sujeitos carentes da
responsabilização pela auto-resposta às suas necessidades.
Para uma analise crítica do alcance deste conceito de “empoderamento”
parece obvio e necessário determinar de que “poder” ele trata.
Um dos conceitos centrais vinculado às relações de opressão,
dominação e desigualdade, é o de poder.
O poder, na sua dimensão social, não natural, pode ser primeiramente
concebido de duas formas fundamentais: como “poder sobre os outros” ou
como “poder sobre si”; ou seja, como “dominação” ou como “potência”. Neste
sentido, Erich Fromm afirma que “a palavra ‘poder’ tem um duplo sentido. Um é
a posse de poder sobre alguém, à capacidade de dominá-lo; o outro sentido é
173

posse de poder para fazer algo, é ser capaz, é ser potente” (1983, p. 133, ou
1980, p. 186).
A primeira forma de poder remete a uma relação social, uma relação
homem-homem. A segunda forma trata do indivíduo (ou grupo) consigo
mesmo, numa relação homem-necessidades.
O poder como “relação social” é o poder político. Já o poder “sobre si”
chamaremos de poder subjetivo, como “potenciação” ou auto-poder.
● Assim, o poder político, nas diversas e polêmicas perspectivas do
pensamento político, econômico, sociológico e filosófico, tem sido associado à
capacidade de tomada de decisão, à correlação de forças sociais, à hegemonia
ou à dominação. Sempre, portanto, o poder político foi conceituado como uma
dada desigual relação social ou correlação de forças.
Sem pretensão de nos adentrarmos na concepção geral de poder em
cada um dos autores, apenas salientando a questão do “poder político” como
“relação social”, vejamos alguns exemplos disto:
Maquiavel (1996), iniciando a “ciência política” no estudo sistemático do
poder, deu lições de como o Príncipe (e o Estado) pode exercer seu poder
sobre os súditos, impondo o “temor” e/ou o “amor” (p. 97-100): os súditos
aceitarão seu poder na medida em que temerem e/ou amarem seu soberano.
O poder, como relação de dominação/subordinação, pode ser exercido tanto
pelo temor (dominação) como pelo amor ao Príncipe (aceitação). Para o autor,
o poder remete à relação do Príncipe (o Estado) com seus súditos.
Por sua vez, Marx e Engels (2010), ao tratarem dos fundamentos do
capitalismo, se debruçam na relação contraditória entre as classes
fundamentais: capital e trabalho. Tal relação expressa o desigual poder de
cada classe, fundando as lutas de classes. No entanto, eles não concebem o
“poder” como categoria abstrata, ou como conceito universal, mas tratam do
poder como uma particularidade do Modo de Produção Capitalista (MPC), ou
seja, como relação entre as classes sociais, envolvendo a exploração, a
dominação, a alienação e a ideologia, como aspectos constitutivos das
relações de poder entre as classes. Para Marx o poder envolve, assim, não
apenas uma dimensão econômica (exploração), como também política
(opressão) e ainda cultural (alienação, ideologia).
174

O fundamento da desigual relação de poder econômico no MPC, entre


as classes, radica, para Marx, na separação da força de trabalho dos meios de
produção, cada um de propriedade de uma classe. Sua reunião, no processo
produtivo, se dá mediante a venda da força de trabalho ao capital, constituindo
uma relação salarial, que funda a produção (pelo trabalhador) e exploração
(pelo capitalista) de mais-valia (MARX, 1980). Esta desigual relação de
exploração, determina, por um lado, a apropriação privada da riqueza, a
acumulação capitalista, fundamento primeiro da dominação (econômica,
política e ideológica) da classe burguesa,43 e por outro, a pauperização
absoluta e relativa do trabalhador, e sua subordinação ao capital.
Envolve também, e portanto, um desigual poder político: primeiramente
pela “subsunção real do trabalho ao capital” (MARX, 1969) onde o próprio
processo produtivo é cada vez mais controlado pelo capital, fundando a
alienação do trabalhador do controle da produção de valores, transformando-o
numa mera extensão da máquina; em segundo lugar, pelo controle
hegemônico do Estado (instrumentalizado para a dominação de classe) pelo
capital, de onde promove a opressão de classe (MARX e ENGELS, 2010).
Ainda, a relação de poder entre as classes envolve também uma dimensão
cultural, mediante a formação de uma ideologia que transforme as ideias e
valores dominantes (da classe dominante) em ideias e valores socialmente
aceitos. Assim, segundo Marx e Engels, n’A Ideologia Alemã:
as ideias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as ideias
dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante é, ao mesmo
tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição
os meios de produção materiais, tem ao mesmo tempo os meios de
produção espiritual, o que faz com que a elas sejam submetidas, ao
mesmo tempo e em média, as ideias daqueles a que faltam os meios de
produção espiritual. As ideias dominantes não são mais que a expressão
ideal das relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto,
a expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante;
portanto, as ideias de sua dominação. Os indivíduos que constituem a
classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e,
por isto, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam
todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em toda a
sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem também
como pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e
distribuição de ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por isso
mesmo, as ideias dominantes da época (MARX e ENGELS, 1993, p. 72).

43 Nos termos de Marx e Engels: “a condição essencial para a existência e supremacia


da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de particulares” (2010, p. 51).
175

Nesta tradição teórica e política, Gramsci, observando a “socialização da


política” no século XX, amplia a noção de poder, ainda como correlação de
forças fundada nas relações de produção entre as classes, mas não apenas
como uma relação unidirecional de dominação e coerção (na esfera da
“sociedade política”), e sim desenvolvendo também uma relação de direção, de
hegemonia, de consenso (na esfera da “sociedade civil”), onde a desigual
relação de poder envolve certa troca entre as partes, resultado de correlação
de forças (ver GRAMSCI, 2000b, p. 254 e ss.).
Referência no pensamento político moderno, Weber (2012 e 2012a),
caracteriza o poder como “toda probabilidade de impor a própria vontade numa
relação social” (WEBER, 2012, p. 33); enquanto a “dominação, no sentido
muito geral de poder”, é conceituada como a “possibilidade de impor ao
comportamento de terceiros a vontade própria” (WEBER, 2012a, p. 188 e 191),
ou a “probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado
conteúdo” (2012, p. 33). Por seu turno, a dominação, quando remete a um
“poder legítimo”, pressupõe certo grau de aceitação do “dominado”; tal
legitimação pode ser de tipo “legal”, “tradicional” ou “carismática” (2012a, p.
193 e ss.). Poder e dominação, portanto, para este autor, sempre remetem a
uma relação social.
Um outro exemplo bem diferente, na chamada “Teoria dos Jogos”
(oriunda da matemática aplicada, mas depois incorporada pelas teorias
econômica, política e militar), o poder é entendido como um jogo de “soma
zero”, que expressa claramente uma relação de poder, onde o ganho de um
jogador representa necessariamente, e na mesma proporção, a perda para o/s
outro/s jogador/es (ver FIANI, 2006).
Já Hannah Arendt (2009), claramente influenciada pelo terror do
Holocausto nazista, diferencia a força do poder. Para ela, “enquanto a força é a
qualidade natural de um indivíduo isolado, o poder passa a existir entre os
homens quando eles agem juntos e desaparece no instante em que eles se
dispersam” (idem, p. 212). A primeira, quando exercida por um indivíduo sobre
as massas, expressa a dominação. O segundo, o poder, exercido mediante a
ação, onde os “homens agem e falam em conjunto” (idem, p. 214), é expressão
da “condição humana da pluralidade”. Para a autora, “o único fator material
indispensável para a geração do poder é a convivência entre os homens”
176

(idem, p. 213), mostrando claramente a concepção de poder como relação


social. Arendt, assim, ao diferenciar força de poder, distingue a ação isolada da
ação mancomunada, relacional, na medida em que, conforme ela aponta, “o
que mantém unidas as pessoas depois que passa o memento fugaz da ação
[...] e o que elas, por sua vez, mantêm vivo ao permanecerem unidas, é o
poder”, porém, “todo aquele que [...] se isola e não participa dessa convivência,
renuncia ao poder e se torna impotente, por maior que seja a sua força e por
mais válidas que sejam suas razões” (idem, p. 213).
Num outro caminho, Michel Foucault faz uma inflexão na sua discussão
sobre o poder. Diferentemente da concepção institucionalista-estatista do poder
– como dominação, como poder de negação, tal como assim o concebeu no
tratamento da prisão, do hospício, do hospital –, na sua “Microfísica do Poder”
(FOUCAULT, 1985) ele trata de um poder que não nasce do Estado nem
necessariamente a ele se orienta; um poder periférico, local, existente em toda
a capilaridade social. Aqui, se distanciando do que chama a “concepção
jurídica ou liberal” e a “concepção marxista” (ou, como reconhece, “uma certa
concepção corrente [vulgar?] que passa como sendo a concepção marxista”)
(idem, p. 174), tidas elas como visões economicistas, Foucault desenvolve a
ideia de um poder existente em todos os microespaços e localidades. Se esta
concepção abre o caminho para se pensar num “poder” que emana dos micro-
espaços e pequenos grupos, o “poder local”, sem alterar a correlação de forças
macro-sociais – o que certamente subsidia o debate do “empoderamento” –,
ainda não parece haver em Foucault uma concepção plenamente subjetivista
do poder, de um poder apenas “sobre si”, que não represente uma relação
social entre forças sociais distintas, por mais locais, micro ou singulares que
estas sejam.
Enfim, sem prejuízo de se tratar de concepções realmente diversas,
diferentes e divergentes, e por que não antagônicas, o poder político é sempre
concebido como uma relação social, macro ou micro, consensuada ou não.
Vejamos, agora, a noção de poder subjetivo.
● Entretanto, o poder subjetivo, como auto-poder ou “poder sobre si”,
trata de um poder pessoal, interno, psicológico, considerando o indivíduo fora
(ou independente) das relações sociais: o indivíduo (ou grupo) consigo mesmo.
Um “poder” que não remete à relação homem-homem (poder político), mas à
177

relação homem-necessidade, a uma relação de cada indivíduo (ou grupo) com


suas necessidades diretas. Onde alcançá-las não dependeria de correlações
de forças sociais, mas apenas e simplesmente da potencialidade ou
capacidade de cada um.
É aqui que se insere o chamado “empoderamento”.
No mesmo viés que a “auto-ajuda”, a “motivação”, a “auto-estima”, o
“empreendedorismo”, o “desenvolvimento subjetivo”, o “auto-emprego”, o dito
“empoderamento” se orienta a potenciar subjetivamente o indivíduo (ou grupo)
sem qualquer perspectiva de mudança de correlação de forças, nem local, nem
sistêmica. Nos termos de Arendt, é o desenvolvimento da “força” individual,
mas não do “poder”.
Coloca-se o indivíduo, grupo ou comunidade para tratar autonomamente
de seus assuntos específicos, para o qual precisam ser “empoderados”. É
neste sentido que Petras e Veltmeyer afirmam que os organismos multilaterais,
como o BM e o BID, promovem a implementação de projetos de nível local,
desviando, primeiramente, “a atenção da necessidade de uma mudança
‘estrutural’”, assim como, em segundo lugar, produzindo “um foco programático
sobre as capacidades individuais, minimizando a preocupação pelas causas
‘estruturais’ (sociais e políticas) da pobreza” (2004, p. 340). Para eles,
esse enfoque, antes apolítico (social?) e gerencial (microprojetos) do
desenvolvimento da comunidade, implica a noção liberal de
“empowerment” [“empoderamento”] na qual os pobres são estimulados a
encontrar uma solução empresarial a seus problemas. Nesse contexto, a
OCDE define seu enfoque em termos de “ajudar os povos do mundo a
desenvolver suas destrezas e capacidades para resolver seus próprios
problemas”. [...] o BM adotou uma estratégia do “empoderamento” e
“participação” (idem, p. 340).

Estes autores apontam ainda que esta noção (neoliberal) de


“empoderamento” é completamente diferente da noção de poder alternativo, ou
de contrapoder. Assim, “neste discurso neoliberal sobre o ‘empowerment’, o
indivíduo, como reserva de recursos humanos [...] é posicionado ao mesmo
tempo como o problema e a solução ao problema da pobreza” (idem, p. 341).
Desta forma, o conceito ideológico de “empoderamento”, e os projetos a
ele ligados, remetem à segunda forma de “poder” (subjetivo). Ou seja, não se
trata do poder político, não se trata de correlação de forças, mas do poder
subjetivo, psicológico, sobre si, da força individual. Concebido assim o poder,
178

como “empoderamento”, o conceito não atinge (nem pretende atingir) as


relações de dominação, de opressão e subalternidade, e de exploração. Aqui o
poder, e o “empoderamento”, remetem a processos de “conscientização”,
“motivação”, “auto-controle”, “crescimento pessoal”, numa lógica de auto-
responsabilização do indivíduo (ou grupo) pela solução das suas
necessidades ou carências.
Trata-se, como afirmamos (MONTAÑO, 2014, 38 e ss.) de uma
ideologia, que chamamos do “terceiro setor”, onde confluem os projetos
neoliberais (presentes nos documentos e propostas do BM, do FMI etc.) com
os da “esquerda possibilista”, de forte base pós-moderna, sustentados no tripé
da “autorresponsabilização dos sujeitos por suas próprias condições de vida e
pela solução de seus problemas e satisfação de suas necessidades”, da des-
responsabilização do Estado sobre a ação social, e da desoneração do capital
no seu financiamento (idem, p. 41).
Portanto, mais do que um projeto que altera a correlação de forças,
ampliando o poder dos de baixo, dos subalternos, dos que ocupam a base da
pirâmide social, trata-se de um projeto que confirma e amplia a desigual
correlação de forças, retirando ainda os direitos e políticas conquistadas
historicamente por estes segmentos sociais.
Assim, o dito “empoderamento”, mais do que “poder”, remete a uma
“potencialidade” ou “potenciação” individuais. O conceito associado a este
projeto não deveria ser “empoderamente” (relação de poder), mas
“potenciação” (poder subjetivo).
Trata-se de um processo de crescimento pessoal (ou grupal) subjetivo
que em nada altera os fundamentos do poder político, nem a correlação de
forças. Muito afinado aos discursos do tipo: “não mude o mundo, mude a si
próprio”. Vejamos.
Qualificar um grupo de desempregados pode permitir a esses indivíduos
ter melhores condições de acesso ao mercado de trabalho, porém não criará
novos postos de emprego, sendo o sucesso destes o insucesso de outros
trabalhadores. Nem cria novos postos de emprego, nem altera em absoluto o
controle do capital sobre o mercado de trabalho. Ou ainda, qualificá-los para
atividades produtivas autônomas (como o “empreendedorismo” ou a “economia
solidária”, ver MONTAÑO, org. 2014), antes que constituir um aumento do
179

poder da classe trabalhadora, fornece força de trabalho precarizada para o


capital, numa relação de terceirização. Outra coisa seria, por exemplo,
mediante as lutas de classes, conquistar uma redução na jornada de trabalho
que obrigue a um aumento de contratações, impactando no grau de exploração
do capital.
Por outro lado, organizar uma comunidade a construir cisternas, ou
responsabilizá-las pela sua manutenção, pode efetivamente permitir “resolver”
o problema de falta de água, no entanto confirmará e consolidará o
esvaziamento de um direito humano essencial de garantia ao acesso a água
potável, promovendo a resignação sobre a desresponsabilização estatal na
garantia desse direito. Diferente é a organização para lutar pela efetivação do
acesso à água como direito humano fundamental garantido pelo Estado.
Claro que para quem não tem fonte de renda, ou para quem não tem
acesso a água potável, ações que lhes permitam renda ou o líquido vital,
mesmo que de forma paliativa, precária e transitória, são importantes. O
problema é “vender” este processo como “empoderamento”, como aumento de
poder dos pobres, dos subalternos, dos “de baixo”, como se isso ainda
significasse um caminho para “um mundo melhor”, quando na verdade
consolida a subordinação, confirma a dominação e amplia a hegemonia e
acumulação do capital, sob o comando neoliberal, retirando ainda o Estado da
efetivação desses direitos.
Aqui está uma ideologia que leva a apostar/acreditar num dito
“empoderamento” (como potenciação subjetiva, individual ou grupal)
abandonando as lutas que visam tencionar a correlação de forças sociais e os
fundamentos do poder econômico, político, cultural. Neste dito
“empoderamento” funda-se na verdade a ideologia da auto-responsabilização
do indivíduo, onde confluem o projeto neoliberal com o da “esquerda
possibilista”, particularmente pós-moderna (ver MONTAÑO, 2014, p. 37).
Desta forma, se a máxima da ação política é “divide e reinarás”, as
propostas de “empoderar o indivíduo” (ou grupo), na medida em que separam
indivíduos e grupos (retirando a unidade de classe), e segmentam as questões
a tratar por cada um (retirando os fundamentos da contradição de classes),
acaba, no fundo, por “desempoderar a classe”; assim, o “empoderamento” de
indivíduos/grupos, quando desagrega a classe trabalhadora e não altera a
180

correlação de forças com seu antagonista, o capital, promove, na verdade, um


“desempoderamento” da classe trabalhadora e setores subalternos.
181

5. A INVASÃO PÓS-MODERNA (NA IDEOLOGIA


E NA POLÍTICA) DA ESQUERDA, E A
NECESSIDADE DA CRÍTICA E SUPERAÇÃO DA
“LÓGICA IDENTITARISTA” PARA O
ENFRENTAMENTO DO AVANÇO
ULTRACONSERVADOR E A EMANCIPAÇÃO

Tratamos até aqui da “identidade” como categoria política, e da sua


apropriação pós-moderna fundando uma “lógica identitarista”.
Cabe agora verificar como ela, desde o remoto Maio de 68, chegou hoje
a se constituir numa vertente hegemônica no campo das esquerdas,
comandando a visão de mundo e a ação política a partir de seu identitarismo
pós-moderno.
É, por sua vez, a partir desta visão de mundo e desta ação política,
emolduradas nessa “lógica identitarista”, que a esquerda enfrenta,
internamente dividida e enfraquecida, o crescimento e avanço de uma
ultradireita, no Brasil e no mundo.
Para isto, consideramos extremamente necessário contribuir para uma
crítica à “lógica identitarista” pós-moderna.
Não se trata, como já deixamos claro em diversos momentos, de uma
negação ou secundarização da “identidade” enquanto categoria social,
submetida a formas de opressão, desigualdade ou discriminação, a partir das
182

quais os sujeitos se identificam em categorias e se organizam para reivindicar e


lutar por seus direitos e contra a opressão.
Trata-se sim, de uma crítica à visão construída a partir do pensamento
pós-moderno, transformando “identidade” em “identitarismo”, numa lógica
polarizadora e pessoalizada, desconectada da totalidade social.
A reflexão crítica aqui se faz necessário, primeiramente, em termos
gerais, pelas profundas deformações operadas na compreensão da realidade,
das formas de opressão e desigualdade, não como formas particulares e
manifestações da “questão social”, não como fenômenos estruturais, mas
entendidas nessa perspectiva como processos de polarizações interpessoais.
Ainda, pelas transformações nas lutas políticas, não mais voltadas para
a emancipação política e/ou humana, mas para “pautas” pontuais, enfrentando
ainda internamente o campo progressista a partir das polarizações entre
sujeitos nessa “lógica identitarista”.
Porém, em segundo lugar, na particularidade do caso brasileiro
contemporâneo, a crítica a esta lógica polarizadora pós-moderna se torna
imperiosa em função da desarticulação do campo progressista, internamente
enfrentado, em face do avanço ultraconservador e neofascista, articulado no
“bolsonarismo”.
A crítica e superação desta “lógica” é essencial para reconstruir o projeto
revolucionário, anticapitalista, que, no caminho a uma sociedade emancipada,
venha combatendo toda forma de discriminação, opressão e desigualdade, e
no particular, para rearticular o campo progressista para enfrentar e reverter o
retrocesso ultraconservador e a ameaça neofascista.

5.1- A hegemonia da “lógica identitarista” pós-moderna na


esquerda.
A chamada esquerda pós-moderna tem se tornado, decerto,
hegemônica no campo progressista, pautando a forma de ver a realidade, os
conceitos empregados na análise, e portanto orientando as lutas sociais, em
torno de “pautas” de ação.
183

Variados processos confluem numa crise ou perda de protagonismo da


“esquerda classista”, particularmente de matriz marxista, e uma ampliação
paulatina da “esquerda identitarista” pós-moderna.
Como já vimos, o grande ausente da análise e das pautas pós-modernas
é a igualdade econômica. Pareceria bastar uma sociedade multicultural,
mesmo com desigualdade na distribuição da riqueza. Como se garantindo o
igualitário status de cidadania política, a emancipação social já estaria
garantida, mesmo existindo exploração e desigualdade econômica... e nisto o
projeto emancipador pós-moderno pouco tem a se diferenciar com a igualdade
liberal burguesa e a liberdade econômica.
Bosco lembra que, como tratamos no capítulo 1 deste texto, “os
movimentos identitários [...] tem uma história” que “remete à década de 1960,
notadamente ao momento político de Maio de 1968” (2017, p. 71). Podemos
situar nesse contexto político uma guinada teórica, ideológica e política, que
paulatinamente vai retirando o foco da “classe” (e a exploração) e orientando-o
para a “identidade” (e os processos de “exclusão” e “opressão”), com ênfase na
subjetividade e no “multiculturalismo”. Este processo tem inicialmente raízes
teóricas claramente neo-weberianas, por via dos estudos acionalistas dos
NMS, mas vai assumindo dimensão ideologicamente hegemônica a partir da
expansão do pensamento pós-moderno no campo das esquerdas, ou melhor,
no surgimento de uma “nova esquerda” (a “New Left”) – hoje se fala de
“renovar a esquerda” –, posteriormente orientada para o que não hesitamos em
chamar de “esquerda possibilista” (MONTAÑO, 2014, p. 36, ver também
PETRAS, 1999, p. 17-20).
Conforme periodiza Jameson, o surgimento e expansão da razão pós-
moderna, e seus desdobramentos na cultura, na arte, na arquitetura, na
filosofia e na política, vincula-se, inicialmente, ao processo da virada dos anos
60, articulando movimentos contra-culturais como Woodstock e Hippies,
movimentos pacifistas contra a guerra de Vietnã, movimentos político/culturais
do “Maio (francês) de 68”, e as lutas independentistas/descolonizadoras na
África e na América Latina (JAMESON, 1991, p. 84, 89-90).
Como movimentos progressistas, porém, não mais pautados na classe
operária e nas lutas de classe, estes processos e “novos movimentos sociais”
dos anos 60-70 encheram os olhos de ativistas e teóricos, por dar a voz e o
184

protagonismo político a sujeitos antes não presentes na cena política, pelo


menos não de forma autônoma (estudantes, mulheres, gays, negros,
imigrantes etc.), “as ‘minorias’, os marginais e as mulheres” (idem, p. 85). Estes
processos poderiam ser vistos como um capítulo da “história da liberdade
humana”, da “conquista da autoconsciência de si”, da “emergência de novos
“sujeitos da história’” e da “conquista do direito de falar” (ibidem).
Constituem-se, aqui, conforme aponta Jameson, “novas ‘identidades’
coletivas” (o “colonizado”, a raça, a marginalidade, o gênero e similares) a partir
de “uma crise daquela categoria mais uniforme que até então parecia subsumir
todas as variedades de resistência social, qual seja, a concepção clássica de
classe social” (idem, p. 86).
Com a mesma tônica, para Eric Hobsbawm (1995), as manifestações
estudantis de 68 centradas no Quartier Latin, em Paris, foram mais marcadas
pela emersão de uma cultura individualista e hedonista do que por uma crítica
anticapitalista, substituindo a “revolução socialista” por uma “revolução
cultural”. Essa revolução cultura, segundo o historiador marxista, não se
orientava para um novo projeto societário, mas na defesa da autonomia da
subjetividade e das escolhas de vida pessoais, perfeitamente compatíveis com
os valores individualistas e consumistas do capitalismo (HOBSBAWM, 1995, p.
327; ver MONTAÑO e DURIGUETTO, 2010, p. 260 e ss.).
Temos, nas lutas do Maio francês de 68, e na formação de novos atores
sociais, o estopim que acendeu a faísca do “identitarismo” no seu viés pós-
moderno.
Paralelamente a isso, desde algum tempo, setores da esquerda em
geral, e particularmente do marxismo, questionam-se sobre a contradição
fundante da nossa sociedade, sobre o sujeito da transformação social e sobre
a centralidade ou não da “classe”.
Desde o debate dos marxistas franceses, presente nas teorias do
“capitalismo monopolista de Estado” (ver BOCARA, 1976, 1977, 1977a,
1977b), que opuseram setores “monopolistas” e “não-monopolistas”, relegando
a um segundo plano a contradição capital/trabalho (ver LOJKINE, 1981, p.
111), passando pelas reflexões de um Lojkine (1990), quem estuda a “classe
operária em mutação”, e chegando ao conceito de “multidão” de Michael Hardt
e Antonio Negri (2005), e até a ilusão de “mudar o mundo sem tomar o poder”,
185

de John Holloway (2003), para citar só alguns, e só no campo do marxismo.


Neste sentido, o marxismo, em face das mudanças estruturais do capitalismo e
do “socialismo real”, vem debatendo, ao nosso ver nem sempre de forma
correta, estas questões, deixando às vezes a impressão de que a categoria
“classe” tivesse esgotado seu poder heurístico, precisando ser substituída.
Uma fragilização, entendo eu, do protagonismo do marxismo na análise e nas
lutas de classes. Um erro teórico, político e histórico.
É assim que, a partir dessa fragilização de alguns setores do marxismo
sobre a centralidade da “classe”, do impacto após o maio francês de 68, das
fortes mudanças nas relações de produção no cenário de crise capitalista, do
fim da experiência soviética e do avanço das necessárias e fundamentais “lutas
antiopressivas particulares” no caminho da emancipação política, que o
pensamento pós-moderno passa a comandar cada vez mais a compreensão da
realidade e orientar as lutas sociais a partir da transformação da categoria de
“identidade” num “identitarismo” sustentado numa polarizadora e autonomista
“lógica identitarista”.
Surgem, e se expandem cada vez mais, até alcançar um patamar de
hegemonia ideológica e política, os chamados movimentos ou coletivos
“identitários” que, quando sustentados na “lógica identitarista” pós-moderna,
rompem seu lastro dos fundamentos estruturais do capitalismo e das lutas de
classes.
Como Bosco aponta, a partir de Safatle (2018), “o que todos esses
movimentos têm em comum é uma luta contra o poder e pelo reconhecimento”
(BOSCO, 2017, p. 74), que encontra nas “redes sociais digitais [...] um meio
ótimo para a luta por reconhecimento” (idem, p. 78). Só que uma luta (justa e
necessária) por “reconhecimento”, porém não articulada, mas substituindo
(como alternativas) as lutas econômicas, em torno da contradição de classes e
da exploração.
Desta forma, o debate acadêmico e as disputas políticas foram sendo
substituídas por uma defesa exclusiva, e por vezes quase fundamentalista, das
“identidades”, em clara substituição (ou equiparação) da categoria de classe
social, visando a literal “aniquilação” do contrário, do diferente, tido como
inimigo.
186

No debate pós-moderno não se trata de articular e complementar as


categorias classe e “identidade”, mas de substituir a primeira pela segunda,
assim como de ofuscar as lutas de classes com as lutas “identitárias”.
Neste sentido, é a “lógica identitarista” pós-moderna que vai ganhar
terreno, até se constituir em força e perspectiva hegemônica no campo das
esquerdas.
Vários são os autores que afirmam o avanço de uma “esquerda pós-
moderna”, com sua “lógica identitarista” (pautando as “políticas identitárias”),
tomando o lugar das tendências da esquerda mais orientadas na contradição e
lutas de classes, particularmente o marxismo, como Wood (2006, p. 205 e ss. e
227 e ss.), Malik (in WOOD e FOSTER, 1999), Stábile (in WOOD e FOSTER,
1999), Risério (2019, esp. p. 11, 40-41, que inclui o “pós-estruturalismo”),
Safatle (2018), Haider (2019), Pierucci (1990, 2000), Angélica Lovatto,44 entre
outros.
Assim, o avanço paulatino da esquerda pós-moderna, chegando à atual
hegemonia da “lógica identitarista” no campo progressista (na compreensão da
realidade e nas lutas sociais), se dá, como vimos, a partir de alguns cenários
históricos; a saber: o Maio de 68, a extinção do Bloco Soviético, as
transformações no capitalismo, a ofensiva ideológica e as transformações
neoliberais, as crises dos movimentos operários, a funcionalidade da razão
pós-moderna.
Nesse cenário, conforme aponta Risério, “de repende, a esquerda pós-
moderna deu meia-volta [...], assumiu o que a direita norte-americana sempre
quis [... e] rebatizou o pluralismo de multiculturalismo” (2019, p. 41). A
expansão e adesão dos movimentos sociais à esquerda pós-moderna se deu
quando, segundo este autor (idem, p. 41), a partir do afastamento dos
chamados novos movimentos sociais da esquerda classista, marxista, –
particularmente a partir do Maio de 68, a New left, até chegar ao identitarismo
(idem, p. 74) –, estes migram para o discurso, organização e ação política pós-
modernos, passando a abandonar os projetos revolucionários (totalizantes)
(idem, p. 41), para se orientar nas mudanças pontuais, fundamentalmente em
torno de direitos, dentro da ordem.

44 Ver palestra em: <https://www.youtube.com/watch?v=AgS-SVHe37A&t=30s>,


acesso em abr. de 2020.
187

Assim, continua Risério, com a “lógica identitarista” (que substitui a


classe), o multiculturalismo (que substitui o pluralismo) e o “politicamente
correto” (que pretende uma transformação a partir do linguajar considerado
“correto”, ocorre uma “erosão” e até um “abandono” da centralidade da
categoria de classe social (idem, p. 73-75).
Lembremos, como já afirmamos, que é diferente falar de “identidades”
do que de “lógica identitarista” (ou de “política identitária”).
Assim, como afirma Almeida, ao prefaciar o livro de Haider, distinguindo
entre “identidade” e “política de identidade”, a “identidade” se torna uma
armadilha quando se converte em uma política, ou, mais precisamente, em
“política de identidade” ou “identitarismo” (in HAIDER, 2019, p. 9).
Ainda, o autor sustenta que a “identidade” não constitui “uma armadilha
em si”, mas “a armadilha antirrevolucionária apresenta-se quando a política se
reduz à afirmação de identidades específicas” (in HAIDER, 2019, p. 12). Neste
sentido, ele aponta como o “identitarismo paralisa a ‘esquerda’”, ao torná-la
“refém da política identitária”, o que pode acontecer de dois modos: “1) quando
a esquerda só fala de identidade; 2) quando a esquerda se recusa a falar de
identidade” (idem, p. 14). Ou seja, é tão problemático que a esquerda negue as
identidades, e as causas identitárias, apenas tratando da “classe”, como o é
que a esquerda apenas trate das “identidades”, negando a “classe” ou
reduzindo-a a mais uma “identidade”.
Na compreensão e ação pós-moderna contra as formas de
discriminação, opressão e dominação, alguns aspectos ideológicos e políticos
na análise e na ação pós-moderna, precisam ser salientados.
● Primeiramente, um elemento central é a linguagem, mobilizadora e
representativa de todo um universo simbólico. Assim, por um lado, cria-se a
expectativa de que os sistemas de discriminação, opressão e dominação
podem ser superados se for mudada a linguagem que carrega e expressa tais
sistemas. Por outro lado, investe-se na mudança de linguagem, na criação de
um novo linguajar: investe-se na linguagem (dita) “politicamente correta”.
Começa a ditadura do “politicamente correto”.45

45 Veja-se a Cartilha “Politicamente Correto & Direitos Humanos”, elaborada pelo


Governo Lula (PT), em 2004. Disponível em:
188

O sujeito que empregar uma linguagem fora do considerado o


“politicamente correto” será tratado como preconceituoso e duramente
penalizado e punido socialmente, numa espécie de “tolerância zero” de
esquerda. Acirra-se, com isto, a polarização social entre os “oficialmente
corretos” e os “incorretos” objeto de punição. Porém, o problema maior não é
esse, e sim a pretensão – pós-moderna, romântica – de que com a mudança
de linguagem, e a punição individualizada do transgressor do “politicamente
incorreto”, superar-se-ia todas as estruturas sociais de preconceitos,
desigualdade, dominação e opressão.
Neste sentido, Risério aponta como “as pessoas se dispuseram a agir
sobre a língua para mudar o mundo”, em lugar de “agir sobre o mundo para
mudar a língua” (2019, p. 117).
Também Haider menciona o fato de que, por um lado, na academia e
nos movimentos sociais não houve reação séria às tentativas de cooptação do
legado de certas causas e lutas sociais, como, por outro, “intelectuais e
ativistas permitiram que a política fosse reduzida ao policiamento da linguagem
[...] enquanto as estruturas institucionais de opressão racial e econômica
permanecem” (2019, p. 45-46). E o autor complementa: como resultado dessa
aparente “ação política” focada no novo linguajar, considerado “politicamente
correto” e sem preconceitos, “as linguagens progressistas dos novos
movimentos sociais, desenraizadas de sua base popular, seriam apropriadas
como nova estratégia da classe dominante” (idem, p. 132).
Assim, como já afirmamos (ver MONTAÑO, 2014, p. 28 e ss.),
“substituem-se termos considerados ‘preconceituosos’ por outros considerados
‘politicamente corretos’” (idem, p. 28). No entanto, sem questionarmos o dado
inegável das palavras portarem e legitimarem preconceitos e discriminações, “a
mudança de termos pouco altera a questão de fundo, mas, ao contrário, acaba
por ocultá-la” (idem, p. 28-29). E este “ocultamento” dos preconceitos, formas
de opressão e discriminação, camuflado pelo uso do termo “politicamente
correto”, paradoxalmente, torna-se funcional à perpetuação da mesma
discriminação, dominação e opressão que visa superar. Resulta muito simples
para os dominantes perpetuar a relação de dominação: basta apropriar-se dos

<http://www.dhnet.org.br/dados/cartilhas/a_pdf_dht/cartilha_politicamente_correto.pdf>, acesso
em: abr. de 2020.
189

termos “politicamente corretos” para satisfazer e pacivizar os dominados; assim


a apropriação de categorias e termos progressistas passam a ser funcionais a
projetos de direita. O exemplo evidente é a Rede Globo, suas novelas, seus
jornais, incorporando a linguagem “politicamente correta”, supostamente
abraçando causas identitaristas; ou as Fundações empresariais; ou os
documentos e projetos do Banco Mundial, da ONU e demais organismos
multilaterais. Hoje a esquerda e a direita parecem falar os mesmos termos. A
pergunta que cabe fazer é: esta mudança de linguagem representa um primeiro
passo na superação das relações de opressão e discriminação sociais, ou se
trata de uma concessão dos dominantes para camuflar e perpetuar a estrutura
de dominação?
Esta tem sido, segundo Petras, a terceira forma de cooptação da
intelectualidade de esquerda por parte dos setores hegemônicos no século XX
(PETRAS, 2000, p. 89 e ss., in MONTAÑO, 2014, p. 31-32). Hoje muitos “pós-
marxistas” (que já abandonaram o pensamento crítico e o projeto
revolucionário há tempos) promovem e festejam o “identitarismo” atual. Porém,
muitos outros “marxistas-impenitentes” ficam calados, inertes, ou
oportunistamente se valem dele. Adaptação e/ou oportunismo,46 ambos os
caminhos seguidos por muitos!
Neste sentido, parafraseando Lukács em “A Teoria do Romance”, cria-se
“uma linguagem de esquerda escondendo um projeto de direita” (ver
MONTAÑO, 2014, p. 29). As palavras, assim, tem hoje mais a função de
esconder do que de desvelar, constituindo assim o que chamamos de “cantos
de Sereia” (idem, p. 30).
Tal substituição conceitual/categorial envolve, primeiramente, uma
significativa alteração heurística; ou seja, não se trata apenas de “linguagem”,
de “termos”, mas do arsenal heurístico, dos instrumentos de que dispomos e
usamos para a compreensão da realidade (ver item 2.6-A). Em segundo lugar,
esta substituição projeta uma alteração significativa nos objetivos e finalidades
militantes: renunciando ao projeto socialista, aos objetivos anticapitalistas ou
até trabalhistas, e se reorientando para o campo das ideologias subjetivistas,
para as necessidades imediatas e pontuais (idem, p. 32).

46 Oportunismo contra o qual lutaram, entre outros, Marx e Engels, Lênin, Luxemburgo
e Lukács.
190

Funda-se aqui aquilo que denominamos de “ideologia do ‘Terceiro


Setor’”, oriunda da esquerda pós-moderna, caracterizada pela orientação de
uma ação social centrada no indivíduo ou pequenos grupos, no âmbito de uma
abstrata sociedade civil (idem, p. 38), sem remeter à estrutura e à totalidade
social (idem, p. 39), sustentada num tripé conceitual e programático: a) a auto-
responsabilização dos indivíduos por suas próprias condições de vida e pela
solução de seus problemas e satisfação de suas necessidades, b) a des-
responsabilização social do Estado com as respostas sociais por via de
políticas sociais, e c) a desoneração do capital nessa tarefa (idem, p. 41).
Neste tripé se materializa a programática desta “esquerda possibilista”
(que vem ao encontro das programáticas neoliberais), como o
“empoderamento”, a “economia solidária” ou “social”, a participação na
“sociedade civil organizada”, a solidariedade do “terceiro setor”, o
“empreendedorismo” entre outras (ver MONTAÑO, org., 2014).
● Um segundo aspecto ideológico e político na análise pós-moderna
sobre as formas de opressão a partir da sua “lógica identitarista” consiste em
não tratar as “identidades” e as “causas identitárias” como complementos da
questão de classe e das lutas de classes, mas como substitutivos:
“identidades” no lugar de classes. Isto porque, como já foi dito, a análise pós-
moderna (e nisto é herdeira da acionalista) afirma ser a “identidade” um
elemento aglutinador e mobilizador muito mais forte do que a classe social.
É neste sentido que Haider afirma que:
as políticas identitárias [...] aparecerão não como um complemento da
política de classe, não como uma expansão das categorias de esquerda de
opressão e emancipação, não como uma ampliação enriquecedora de
formulações progressistas [...], mas como vinculadas a uma ideia de justiça
que reinscreve um ideal burguês [...] (2019, p. 47).

Assim, a “lógica identitarista” tem como resultado, por um lado, afastar o


projeto revolucionário do horizonte político, e por outro, pulverizar os grupos
sociais, por “identidades” particulares, enfrentando internamente, como
adversários, a classe trabalhadora. Desta forma, a polarização da “lógica
identitarista” contribui com a divisão interna da classe trabalhadora, e assim,
seguindo a máxima romana, “divide e reinarás”, fragilizando a capacidade de
luta da mesma.
191

Parece muito mais uma clara, e muito efetiva, estratégia dos setores
dominantes de promover a auto-destruição, a “implosão” da unidade e do
movimento dos trabalhadores.
A Casa Grande, para perpetrar seu poder e dominação absolutos,
promove o conflito na Senzala!
Haider também aponta como a política identitária, contrariamente aos
seus objetivos, passa a constituir “uma parte integral da ideologia dominante”
(2019, p. 68), fragilizando qualquer tipo de análise e luta não afinadas à “lógica
identitarista”.
Ela é intrínseca e duplamente divisionista, pulverizando a “maioria da
classe trabalhadora” em diversas “minorias identitárias”. A ação política
derivada disso será um fracasso anunciado.
O pós-estruturalista Stuart Hall aponta um exemplo bem eloquente sobre
este processo. Conforme descreve:
Em 1991, o então presidente americano, Bush, ansioso por restaurar uma
maioria conservadora na Suprema Corte americana, encaminhou a
indicação de Clarence Thomas, um juiz negro de visões políticas
conservadoras. No julgamento de Bush, os eleitores brancos (que podiam
ter preconceitos em relação a um juiz negro) provavelmente apoiaram
Thomas porque ele era conservador [...], e os eleitores negros (que apoiam
políticas liberais em questões de raça) apoiariam Thomas porque ele era
negro. Em síntese, o presidente estava “jogando o jogo das identidades”.
Durante as “audiências” em torno da indicação, no Senado, o juiz Thomas
foi acusado de assédio sexual por uma mulher negra [...]. As audiências
causaram um escândalo público e polarizaram a sociedade americana.
Alguns negros apoiaram Thomas, baseados na questão da raça; outros se
opuseram a ele, tomando como base a questão sexual. As mulheres
negras estavam divididas, dependendo de qual identidade prevalecia: sua
identidade como negra ou sua identidade como mulher. Os homens negros
também estavam divididos, dependendo de qual fator prevalecia: seu
sexismo ou seu liberalismo. Os homens brancos estavam divididos,
dependendo, não apenas de sua política, mas da forma como eles se
identificavam com respeito ao racismo e ao sexismo. As mulheres
conservadoras brancas apoiavam Thomas, não apenas com base em sua
inclinação política, mas também por causa de sua oposição ao feminismo.
As feministas brancas, que frequentemente tinham posições mais
progressistas na questão da raça, se opunham a Thomas tendo como
base a questão sexual. E, uma vez que o juiz Thomas era um membro da
elite judiciária [...], estavam em jogo,nesses argumentos, também questões
de classe social.
A questão da culpa ou da inocência do juiz Thomas não está em discussão
aqui; o que está em discussão é o “jogo de identidades” e suas
consequências políticas (HALL, 2006, p. 18-20).
192

Hall não consegue “resolver” esta equação, pois ele mesmo assume que
não há, na complexa sociedade contemporânea, pós-moderna, um “dispositivo”
ou categoria aglutinador, nem a classe social (idem, p. 20-21), mas consegue
apontar claramente o problema, e seu impacto político destas “‘políticas’ da
fragmentação ou ‘pluralização’ de identidades” (idem, p. 18).
Com isto, podemos observar o desdobramento deste divisionismo,
próprio da “lógica identitarista” pós-moderna, nos seguintes aspectos; a saber:
Em primeiro lugar, o dito “lugar de fala” impede que alguém não
pertencente a esse “lugar” possa tratar, falar, sobre a questão que em tese
“não o envolve” – assim, que um branco pense a questão racial, que um
homem fale sobre a questão de gênero, que um heterossexual analise a
questão LGBT, que um europeu estude as sociedade latino-americanas. Nesta
lógica, o conhecimento só poderia ser produzido pelo membro da “identidade”,
pelo pertencente a “nós”, descartando todo conhecimento alheio, elaborado por
“eles”. Com isto há um descarte, e/ou um desprezo, de todo conhecimento
“alheio”. Marx, por exemplo, enquanto homem branco e europeu, deveria ser
prontamente descartado. Ora, isto parece ser tudo o que os grupos dominantes
querem!
Assim, imaginemos se Marx tivesse rejeitado os textos e análises de
Smith e de Ricardo, por pertencerem a outro “grupo identitário”, por não ocupar
o mesmo “lugar de fala” que Marx. Imaginemos se a classe trabalhadora
inglesa tivesse rejeitado a obra de Marx por ele não pertencer à classe
trabalhadora, por não ter o “lugar de fala” dado pela condição de classe, por
não ter a mesma “identidade” dos trabalhadores operários, do proletariado.
Imaginemos a rejeição à obra marxiana por se tratar de um pensador de
origem judaica. Imaginemos, ainda mais, se os trabalhadores e intelectuais
latino-americanos rejeitassem a obra de Marx por não ter esta “identidade”
regional.
Porém, ao vincular o “lugar de fala” (que descarta a “fala”, o
conhecimento, do “alheio”, dos “outros”, do “eles”) com a chamada “pós
verdade” (que afinca a noção de verdade, não nas provas, na materialidade,
na objetividade, mas na crença, na opinião, a partir da afinidade identitária),
cada grupo, o “nós” e o “eles”, terá a sua própria versão da realidade, a sua
própria “verdade”. Funda-se aqui um “diálogo de surdos”! Cada um fala para os
193

“seus”, e ignora/rejeita a fala dos “outros”. Não só você não pode falar a meu
respeito, como ainda, tudo o que você falar será ignorado ou rejeitado. Com
esta base, jamais o conhecimento se somará, jamais o entendimento se
alcançará.
Esta lógica não está presente apenas na esquerda, dividindo-a em
múltiplas frações enfrentadas, mas também no campo da direita, a exemplo do
atual governo Bolsonaro, onde o presidente não articula com partidos, não fala
e responde à imprensa, não governa para toda a nação, mas apenas se
comunica unidirecionalmente por suas redes sociais, falando suas “verdades”
(sobre a pandemia, sobre as queimadas, sobre as milícias etc.) apenas para o
seu público de seguidores, para os “seus”.
Porém, este divisionismo não fica apenas no plano teórico, do discurso,
da “fala”, mas opera também no plano de ação política.
Assim, em segundo lugar, a “lógica identitarista” também faz com que no
plano da ação política a maioria, articulada em torno da classe, se pulverize em
diversas minorias desarticuladas. Desta forma, por exemplo, uma mulher
branca e uma mulher negra, uma mulher trabalhadora e uma mulher
empresária, podem se reunir para lutar pela questão de gênero, pelos direitos
igualitários das mulheres contra a violência de gênero. Porém, na polarização
operada pela “lógica identitarista”, um homem não pode se somar à luta
feminista, pois ele é o “outro”, o adversário, o alvo da luta. Uma pessoa branca
não pode se somar à luta contra o racismo, pela igualdade racial. De igual
forma, o heterossexual não pode se fazer presente na luta LGBT. E nesta
lógica, não teria sentido que Marx, e especialmente Engels, não pertencendo
ao proletariado, possam fazer parte das lutas operárias. Nesta lógica, a
solidariedade entre as diversas “identidades”, dentro da classe trabalhadora,
por parte daqueles que se somam às diversas causas civilizatórias e
emancipatórias, se torna impraticável.
Assim, a “lógica identitarista” pós-moderna, atrelada ao “lugar de fala”, à
“pós-verdade” e ao “punitivismo” na esquerda, fragilizam ao extremo a
necessária unidade (na diversidade) da classe trabalhadora, que passa a se
enfrentar internamente, a se multifragmentar, e a destruir a vida de indivíduos
(trabalhadores militantes) que nesta racionalidade passam a ser considerados
“inimigos” (antagonizados a esta ou àquela “identidade”), comprometendo e
194

abalando assim a unidade e o poder de luta da classe trabalhadora. É o


paraíso dos setores dominantes.
Não é estranho, ao perceber isto, entender por quê o “identitarismo” é
fortemente promovido pelas corporações multinacionais, pela grande mídia, a
exemplo da Rede Globo, por atores e atrizes de Hollywood etc., que
incorporam a linguagem identitarista, certamente não por terem tomado
consciência da importância do combate às diversas formas de desigualdade,
opressão e segregação sociais. A Globo facilmente pode adotar linguagem e
promover ações identitaristas; o que não pode é adotar uma discurso a favor
da classe trabalhadora e das lutas de classe. Risério também aponta como “o
canal de televisão Globonews [...] é hoje o grande porta-voz de massas do
identitarismo” (RISÉRIO, 2019, p. 79). Aqui vale a máxima do velho Brizola:
“Quando vocês tiverem dúvidas quanto a que posição tomar diante de qualquer
situação, atentem… Se a Rede Globo for a favor, somos contra. Se for contra,
somos a favor!”.47
● Um terceiro aspecto ideológico e político está na desarticulação da
questão identitária da totalidade social e o correlato abandono de um projeto
anticapitalista.
Assim, a ação “política identitarista” pós-moderna tem, por um lado,
como objetivo e finalidade o “punitivismo” do “outro”, via de regra buscando
sua eliminação pessoal, entanto visto como inimigo. Este objetivo tático esgota
e é a finalidade e o horizonte político. Assim, não há estratégia política, ou ela é
deixada em segundo plano e subsumida pela ação tática.
Ora, até a eliminação da exploração, que poria fim à classe capitalista,
exige a superação da ordem burguesa, mas não constitui na eliminação dos
indivíduos que compõem a classe. Com a superação da ordem burguesa, a
condição de “burguês” (donos dos meios de produção) dos indivíduos
desaparece. Há que suprimir a condição de burguês (socializando os meios de
produção), mas não aniquilar com os indivíduos, com as pessoas, que hoje tem
esta condição. Da mesma forma, eliminar o machismo, o racismo, a homofobia
etc., exige enfrentar a estrutura, os sistemas, as culturas machista, racista,

47 Ver em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-Globo-sequestrou-a-


democracia-e-urgente-uma-Rede-da-Legalidade-contra-o-Golpe/4/35724>, acesso em: abr. de
2020.
195

homofóbica etc. Porém, a “lógica identitarista”, ao criar uma polarização


individual, entre os sujeitos, tendo o “punitivismo” como ação política central,
visa a eliminação (ou subjugação) dos indivíduos contrários à “identidade” em
questão. Como se não fosse possível suprimir a relação de opressão, mas
apenas alterar as posições de dominante e dominado.
Por outro lado, o objetivo e finalidade da “lógica identitarista” pós-
moderna se esgota no “reconhecimento” e na “inclusão”, na conquista de
direitos, no dito “empoderamento” dos sujeitos, nas políticas inclusivas ou
compensatórias.
Trata-se, portanto, de objetivos necessários e urgentes, certamente
progressistas, e dentro do horizonte de “emancipação política”, mas que não
corroem a ordem burguesa, antes pressupõem a manutenção da mesma.
A partir de tudo o que foi exposto até aqui, podemos identificar uma
múltipla funcionalidade da “lógica identitarista” com a reprodução da lógica do
capital, e particularmente com seu projeto neoliberal. Vejamos.
a) Funcionalidade política. Primeiramente, a “lógica identitarista” pós-
moderna, a partir dos fundamentos apontados, apresenta uma funcionalidade
política com o capital, e particularmente seu projeto neoliberal.
Por um lado, ela conduz a uma desarticulação das lutas de classes.
Desta forma, fragiliza, e muito, a luta e resistência contra os avanços
neoliberais e ultraconservadores.
Assim, a desarticulação da classe e a fragilização das lutas de classe
têm como corolário o fortalecimento da classe dominante; isto é, com a
redução do poder do trabalhador há a consolidação e ampliação da correlação
de forças favorável ao grande capital. Neste sentido, num exercício analítico,
Trotsky afirma que:
se admitirmos – e vamos fazê-lo por um momento – que a classe operária
deixe de se levantar numa luta revolucionária, e permita que a burguesia
dirija os destinos do mundo durante numerosos anos, [...] então
certamente alguma espécie de novo equilíbrio será estabelecida. A Europa
será violentamente lançada num retrocesso. Milhões de operários
morrerão de desemprego e desnutrição. Os Estado Unidos serão
compelidos a se reorientar no mercado mundial, a reconverter sua
indústria e a sofrer restrições durante considerável período (in Mandel,
1982, p. 153-4).
196

Para Trotsky, isto é excessivamente abstrato e unilateral, na medida em


que é impossível especular com a ausência das lutas de classes. Porém, não
ignorando a real presença destas lutas, mesmo num contexto de tensão social
interclasses, o fato é que no período pós-70 o poder político, o nível de
organização e adesão das classes trabalhadoras tem diminuído
significativamente, e particularmente a partir dos anos 90, e especialmente
2000, as lutas de classe tem paulatinamente sido substituídas (e não
complementadas) por lutas parciais ou particulares, numa “lógica identitarista”,
sob orientação pós-moderna; nestas condições, a afirmação de Trotsky resulta
profética.
Ainda, como afirma Petras, “o declínio ou avanço dos direitos sociais
variam com o nível e intensidade da luta de classe, as mudanças no poder
político e o compromisso dos líderes em tomar ações decisivas. O retrocesso
dos direitos trabalhistas e sociais não é o resultado de processos globais
abstratos, mas o resultado de políticas de Estado, relações de classes e
liderança política e social” (1999, p. 66). Para o autor, “onde o poder de classe
do trabalhador permanece coeso, a retirada [dos direitos conquistados] é
menos evidente” (idem, p. 54).
Como já questionamos, se não a luta universal da classe trabalhadora,
quem lutará para garantir ou conquistar direitos sociais universais?
Por outro lado, ela transforma o objetivo/alvo das lutas: estas deixam de
se orientar contra o sistema (burguês) ou contra os sistemas (patriarcal, racista
etc.), e se concentram em lutas orientadas contra os indivíduos (portadores
dessas culturas), o “diferente”, o “inimigo”.
Ainda, orienta (e, via de regra, esgota) suas demandas em torno dos
direitos burgueses. Portanto, o projeto político é basicamente de inclusão (no
sistema burguês).
Assim, a “lógica identitarista”, como já afirmamos, ao priorizar o aspecto
tático (a conquista de curto prazo por direitos e pela punição de indivíduos)
sobre a estratégia, acaba abandonando os objetivos mais mediatos, finalistas,
voltados à transformação social, e inclusive de médio prazo, como a necessária
unidade da esquerda contra o avanço ultraconservador e fascista, aglomerado,
no caso brasileiro, no “bolsonarismo”. Neste sentido, como sustenta Ortellado,
se por um lado “as identidades oferecem [...] uma comunidade política e uma
197

visão comum de mundo [..., por outro] elas às vezes se mostram obstáculos
incontornáveis para a ação estratégica” (2019, p. 3).
A funcionalidade política da “lógica identitarista” manifesta-se, ainda,
como uma polarização, tanto dentro da esquerda identitarista, como da direita.
Como foi tratado, se há uma “lógica identitarista” de esquerda (e certamente de
orientação progressista), há também um “identitarismo” de direita (centrado no
nacionalismo extremo, no fundamentalismo religioso, no machismo e no
racismo, todos eles expressando uma identidade conservadora, até
reacionária). Assim, a “lógica identitarista” se expressa nos dois lados, na
esquerda e na direita, no “nós” e no “eles”; se há uma “identidade” que unifica o
“nós”, o “eles” também se aglutina a partir de uma outra “identidade”.
Isto é claro e expressivo na realidade brasileira contemporânea, o que
explica o surgimento e expansão do “bolsonarismo” (sua vertente militarista-
fascista, sua vertente evangélica, e sua vertente “olavista” ou “ideológica”) é a
reunião, a partir do anti-petismo e do combate ao “marxismo cultural”,
fanatizada porém tensa, destas “identidades” diversas em torno dessas
vertentes. É o que afirma o colunista da Revista Cult, Wilson Gomes: “O
bolsonarismo [...] é também um movimento importante no jogo da política
identitária” (2018, p. 2), sendo que “ambos os lados, o bolsonarismo ou a
esquerda identitária, satanizam o seu inimigo predileto” (idem, p. 5). Isto é, na
direita ou na esquerda, a lógica polarizadora do “identitarismo” pós-moderno
sustenta-se na satanização do outro, tido como inimigo, o qual precisa ser
exterminado.
Politicamente, ainda, a “identidade” cumpre uma função eleitoral,
organizando nichos eleitorais aos quais os candidatos devem se orientar nos
seus discursos e propostas pré-eleitorais, como, nos EUA, os eleitores latinos,
negros, mulheres etc. Mas, como aponta Lilla (2018), fazer campanha dirigida a
um público (de certa “identidade”) acaba afastando os outros, o que, segundo
ele, favoreceu a eleição de Donald Trump contra Hillary Clinton. Porém, no
caso brasileiro, esta questão é superada, na medida em que o processo
eleitoral é sobre pessoas, e não chapas ou listas eleitorais, podendo cada
candidato escolher seu nicho eleitoral, aquela “identidade” que vai atender no
seu discurso e propostas; aqui cada Partido, através de seus candidatos
individuais, poderá direcionar sua campanha aos mais diversos setores da
198

sociedade: os taxistas, os garçons, os portadores de necessidades especiais,


os aposentados, os torcedores de um time etc. etc. etc.
Finalmente, o apelo à “identidade” muitas vezes é usado para justificar e
legitimar algumas posturas contrárias aos interesses universais, ou de classe.
Podemos relembrar o caso da Senadora Marta Suplicy, quando presidia a
Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, em 20/06/2017, que tratava
da terceirização dos trabalhadores, ao intimidar o oposicionista Lindberg
Farias, afirmando: “Olha o machismo e se cuida!” (ver item 4.1-F); o apelo
identitarista certamente buscava calar o opositor e facilitar o projeto de
precarização do trabalho. Ou ainda, outro caso emblemático, quando a jovem
Deputada Tábata Amaral, contrariando posição de bancada do PDT, partido
pelo qual fora eleita e ao qual pertencia, votou a favor da Reforma da
Previdência, em 07/08/2019. Tempo depois declarara em programa de TV
(14/10/2019) que ela era criticada “por ser ‘mulher e jovem’”; 48 sem prejuízo da
notória constatação de que o fato de ser mulher e jovem certamente representa
fonte de discriminação e desigualdade, neste caso o apelo identitarista buscava
abafar as críticas fundadas na sua aprovação dessa impopular e regressiva
reforma, traindo seu eleitor e seu partido, e buscando a solidariedade em
função da sua condição identitária.
Para a direita, para os setores dominantes e para o projeto
ultraconservador, trata-se de uma potencial ferramenta que, tanto pode ser
usada para anular ou inibir qualquer liderança ou militante oposicionista,
popular, progressista, como também pode gerar legitimidade e aceitação por
propostas impopulares e contrárias aos interesses da classe trabalhadora.
b) Funcionalidade ideológica. Num segundo lugar, podemos observar
uma funcionalidade ideológica da “lógica identitarista”.
Por um lado, ela tende a eliminar a centralidade de classe,
segmentando, ainda mais, a classe em várias “identidades” opostas.
Cria a sensação ideológica, em primeira instância, de que é a
“identidade”, mais do que a classe, o que determina e conforma os aspectos
principais da auto-percepção e da constituição da personalidade dos

48 Ver matérias: <https://www.camara.leg.br/noticias/567178-camara-aprova-texto-


base-da-reforma-da-previdencia-em-2o-turno-por-370-votos-a-124/>; e
<https://capricho.abril.com.br/comportamento/deputada-diz-que-e-criticada-na-politica-por-ser-
mulher-e-jovem/>, acesso em Nov. de 2020.
199

indivíduos, e, em segunda instância, de que esta “identidade” se constitui com


total independência da esfera econômica. É neste sentido que afirma Wood
que, para a razão pós-moderna, ao operar uma radical separação entre “a
exploração econômica e as forças e identidades extra-econômicas”, cria-se a
sensação de que haveria “uma ampla gama de relações sociais externas à
estrutura de produção e exploração, que criam uma variedade de identidades
sociais sem ligação imediata com a ‘economia’” (WOOD, 2006, p. 239), e de
que “as identidades de classe” teriam “importância limitada [...] na experiência
de vida dos seres humanos” (idem, p. 240).
Ainda, ideologicamente, a análise pós-moderna, se por um lado
“sataniza” o “outro”, por outro lado produz uma visão romântica e “santificada”
da “identidade”, do “nós”.
Ela, primeiramente, tende a conceber a “identidade” como uma
construção absolutamente determinada pelos setores subalternos, e portanto,
genuinamente subalterna e antiopressiva. Ora, já vimos (item 2.1) que a
“identidade” tem aspectos individuais e subjetivos, de autoimagem, que ela
responde ainda a uma construção coletiva, a partir da comunhão de pessoas
de uma mesma situação, condição ou atributo, mas que também é produto de
uma construção social, atribuída. Isto é, a “identidade” de mulher, de negro, de
índio, de gay, carregam também aspectos atribuídos pelas estruturas e culturas
patriarcais e machistas, racistas e etnicistas, e homofóbicas. A imagem,
portanto, de uma “identidade” “pura”, autoconstruida, e portanto cem por cento
antiopressiva e liberta de preconceitos, é uma visão romântica do limitado
pensamento pós-moderno.
Porém, em segundo lugar, e em decorrência do anterior, esse
romantismo se expressa também, amparado nas noções de “lugar de fala” e de
“pós-verdade”, no fato de que, assim como tudo o que vem do “outro” deve ser
sumariamente considerado como falso, preconceituoso, expressão de
dominação, e portanto rejeitado, tudo o que vem do “nós”, da “identidade”, do
“nosso lugar”, será, também automaticamente considerado como “verdadeiro”,
e potencialmente contestatório e transformador. A noção de verdadeiro ou
falso, de correto ou incorreto, de conservador ou crítico, a partir desta “lógica
identitarista”, parece ser um resultado direto do “lugar” de onde se fala, o “nós”
ou o “eles”.
200

Finalmente, uma outra funcionalidade ideológica da “lógica identitarista”


pós-moderna, está no que chamamos de “ideologia do terceiro setor”
(MONTAÑO, 2014, p. 38 e ss.), isto é: a auto-responsabilização dos indivíduos
pelas respostas às suas necessidades, a desresponsabilização social do
Estado, e a desoneração do capital. Processo este, próprio da ortodoxia
neoliberal, mas que a esquerda pós-moderna torna palatável e transfere para o
campo progressista mediante seus “cantos de Sereia” (ibidem).
c) Funcionalidade econômica. Mas, a “lógica identitarista” não apenas
se mostra funcional ideológica e politicamente (dimensão imaterial) aos
interesses dos setores dominantes, particularmente do projeto neoliberal. Essa
funcionalidade assume também uma dimensão material concreta. Ao dividir,
enfrentar e fragilizar internamente a classe trabalhadora e os setores
subalternos, acabam cumprindo uma funcionalidade econômica para com o
capital e suas reformas contemporâneas.
Várias são as utilidades para o capital:
Primeiramente, criando nichos de mercado a partir dos perfis identitários.
Assim, citando Zizek, Risério afirma neste sentido que as sociedades
capitalistas tiram proveito do “identitarismo”, criando nichos de mercado
segmentados e orientados para cada grupo específico (2019, p. 78).
Os processos de toyotização, de automação e robotização e de
terceirização da produção, levam a uma grande transformação das outrora
indústrias fordistas, de produção padronizada e em massa, para uma firma
sobcontratando uma enorme rede de empresas ou trabalhadores (ver
ANTUNES, 1999). Com isto, dentre outras significativas novas particularidades
da produção pós-fordista, uma é visível e contundente: as indústrias não mais
restringem sua produção a um conjunto limitado de produtos padronizados,
nem sequer a um ramo de produção, como é fundamento da indústria fordista.
Com tais transformações tecno-organizativas, uma firma pode, a partir da sua
rede de empresas e trabalhadores terceirizados, produzir e comercializar uma
vasta variedade de produtos. Exemplo disto é a empresa Pierre Cardin, que
produz/comercializa artigos nos ramos de vestimentas, de perfumaria, de
colchões, de bijuteria, relojoaria, impossível de serem produzidos num único
espaço industrial, exigindo uma rede de micro e pequenas empresas (ver
MONTAÑO, 1999, p. 28 e ss.).
201

Neste sentido, esta nova empresa, diversa e diversificada na produção e


na oferta de produtos variados, pode atender simultaneamente variados nichos
identitários de mercado, o que além de ampliar o consumo de mercadorias de
uma mesma empresa, pode compensar a queda de demanda de certos
produtos pela ampliação de consumo de outros.
Em segundo lugar, há uma utilidade econômica para o capital como
mecanismo de redução dos custos da força de trabalho, a partir da “inclusão”
de determinadas categorias no mercado de trabalho.
Se no século XIX, como apontado por Marx (1980, p. 449 e ss.), ao
analisar a “apropriação pelo capital das forças de trabalho suplementares”, são
as mulheres e as crianças aquelas que brindam ao capital uma força de
trabalho mais barata, hoje, com as conquistas laborais das mulheres, e com os
limites legais ao trabalho infantil, são particularmente o trabalhador de baixa
instrução, o negro, o indígena, o imigrante (principalmente irregular) ou o
refugiado, o retirante, o portador de necessidades especiais, o ex-convicto, o
jovem aprendiz etc., os que proporcionam ao capital mão de obra barata, seja
para substituir trabalhadores “mais caros”, seja para desempenhar atividades
de maior periculosidade ou insalubridade ou de menor qualificação, impróprios
para o trabalhador “padrão”.
O capitalismo requer de segmentos sociais de baixa remuneração;
precisa esta distinção identitarista como forma de obtenção de força de
trabalho mais barata para aquelas atividades de menor complexidade
tecnológica, ou de piores condições de salubridade ou segurança, pagando
salários mais baixos, e criando ainda uma tendência decrescente do valor da
força de trabalho em geral.
Assim, do ponto de vista econômico, a raça, o gênero, a nacionalidade
etc., proporcionam ao capital uma classificação, uma estratificação, uma
distinção para fornecer força de trabalho diferencial, remunerando menos
aqueles trabalhadores/as de determinados grupos (ou “identidades”), mais
susceptíveis à precarização.
E, como a classe está dividida (e desarticulada), a luta comum,
mancomunada, unitária, está igualmente (e por derivação) fragilizada e
secundarizada.
202

Trata-se, portanto, de nichos de consumo, perfis identitários de mercado,


e força de trabalho barata para o capital.
Não que a inclusão destas categorias no mercado de trabalho, assim
como no mercado específico de consumo, não represente, por um lado, e do
ponto de vista dessas categorias, uma conquista para esses segmentos;
certamente representam conquistas importantes no plano imediato. Mas o que
aqui queremos resaltar é que, por outro lado, e contraditoriamente, tal inclusão
representa, para o capital, um enorme benefício, ao fornecê-lo de força de
trabalho “suplementar” mais barata, e ao criar espaço para escoar a produção
variada.
Trata-se de um processo contraditório, que, como Marx afirmara ao
tratar da exploração da mais-valia a partir da compra e venda de força de
trabalho: “o que de teu lado [do capitalista] aparece como valor do capital [a
mais-valia], é do meu lado [do trabalhador] dispêndio excedente de força de
trabalho [trabalho excedente]” (1980, p. 263). No nosso caso, diríamos: o que
do lado dos grupos identitários representa inclusão no mercado de trabalho e
de consumo, do lado do capital significa redução dos custos da força de
trabalho e criação e ampliação de nichos específicos de consumo.
Se tudo isto, toda esta funcionalidade, já se mostra profundamente
benéfica à burguesia e seu projeto neoliberal, fragilizando política e
ideologicamente a classe trabalhadora na correlação de forças sociais, torna-se
muito mais grave e dramático no cenário de recrudescimento do
ultraconservadorismo, e particularmente do neo-fascismo, como é o caso
recente do Brasil.

5.2- O avanço do ultraconservadorismo no Brasil, e a esquerda


pós-moderna.
A guinada ultraconservadora no Brasil tem diversos motivos que não
exploraremos aqui: os erros dos governos do PT, Lula e Dilma (corrupção,
alianças com setores conservadores, abandono de pautas trabalhistas,
concessões ao capital financeiro etc.); a fragilização das organizações
classistas e das lutas sociais e de classes, secundarizadas por esses governos
em face dos interesses do projeto neoliberal; a manipulação das mobilizações
203

de 2013 pela grande mídia, que a direcionou exclusivamente ao combate à


“corrupção petista”; a insatisfação popular, cooptada pelo discurso antipetista,
supremacista, racista, machista e neofascista de Bolsonaro; o interesse norte-
americano e das grandes corporações pelo petróleo do “pré-sal” no Brasil, o
avanço ultraconservador em outros países, como Inglaterra, França e EUA etc.
etc. etc.
Aqui partiremos do golpe institucional de Estado de 2016, que põe fim à
“era PT”. Mas, por que pôr fim a esta era petista que garantiu reformas de
interesse do grande capital (como a da Previdência), que permitiu lucros
recordes ao capital financeiro, que não fez as reformas política, tributária,
midiática, constitucional etc.?
Ora, no Brasil, o problema, para o grande capital financeiro internacional,
ao promover o Golpe institucional do Estado, em 2016, não era o Lula, ou a
Dilma, ou sequer o PT. O problema era a, mesmo formal e limitada,
“democracia”. Era ela que permitia manifestações, resistência e oposição (do
movimentos sociais e de trabalhadores) e, mesmo que fortemente controlada
pelas grandes corporações internacionais e nacionais de notícias, a
necessidade/possibilidade de acesso à informação, inibindo a agenda de
privatizações do pré-sal, da Embraer, e de tudo o que restou de empresa
lucrativa no âmbito do Estado brasileiro, o desmatamento da Amazônia para
construir terra cultivável, assim como as reformas trabalhista, da previdência,
etc., e o fim da gratuidade para a educação (particularmente universitária) e a
saúde.
Em termos gerais, o capital, após 5 décadas de crise cumulativa (ver
MÉSZÁROS, 2011), precisa afastar ainda mais a atividade reguladora estatal e
os limites impostos por um regime democrático.
Portanto, a continuidade/ampliação da agenda neoliberal, agora
radicalizada, não podia mais ser aplicada em governos (por mais funcionais
que fossem) em ambiente democrático.
O golpe de Estado institucional, após as mobilizações de junho de 2013,
não foi contra o governo, mas contra a democracia. E ele foi o primeiro passo
para, em seguida, instituir um governo autocrático, militarizado, uma “ditadura
por via eleitoral”, o governo Bolsonaro. Aqui, como se estivesse falando da
204

realidade brasileira, afirma D’Ancona que “tornou-se corriqueiro empregar a


palavra ‘mito’ como sinônimo de ‘mentiras rotineiras’” (2018, p. 114).
Há, a partir da segunda década do século, um recrudescimento do
ultraconservadorismo, no mundo inteiro e particularmente no Brasil; não só os
governos de Trump, Macri, Macron, Piñera, May (ou Boris Johnson) e seu
“Brexit”, e Bolsonaro, para citar só alguns, mas o resurgimento de uma
idiossincrasia e uma ideologia neo-fascista, supremacista e fundamentalista –
surgindo expressões de extremo machismo e misóginas, ultranacionalistas, de
“supremacismo branco” e novos grupos do Ku-Klux-Klan, de fanatismo e
fundamentalismo religiosos, grupos de extermínios de moradores de rua, nova
perseguição aos “marxistas culturais”, ataques à população LGBT etc. –, que
perpassa boa parte das populações, de diversos e variados setores e estratos
sociais, econômicos e culturais.
Pierucci caracteriza este avanço ultraconservador como uma “nova
direita”, que “prima por diagnosticar a crise geral do mundo contemporâneo
como uma crise primeiramente cultural, uma crise de valores, de maneiras,
crise moral” (2000, p. 85), de forte apelo moral e fundamentalista religioso, se
opondo a todos os avanços sociais (sobre união homoafetiva, aborto, igualdade
de gênero, educação sexual etc.) e “visando a conservação de valores morais
convencionais” (idem, p. 84).
Portanto, este avanço ultraconservador, no mundo, e particularmente no
Brasil, vai muito além de um projeto econômico conservador, tendo fortes
conotações neofascistas. Rapidamente podemos encontrar na figura de Steve
Bannon um articulador deste processo. Bannon, um ex-banqueiro e produtor de
filmes, esteve à frente do site de extrema direita “Breitbard News”, que passou
a se constituir como o espaço de uma plataforma da “Alt-Rigth”, uma proposta
de “direita alternativa”, ultranacionalista, anti-establishment, crítica ao (tímido)
“conservadorismo tradicional”, passando a adotar posturas “supremacistas” e
racistas, sexistas e antifeministas, xenofóbicas, ultranacionalistas e anti-
imigrantes, homofóbicas, anticomunistas e antissemitas. Juntamente com o
bilionário ultraconservador Roberth Mercer, Bannon funda em 2013 a
“Cambridge Analytica”, vinculada à “Strategic Communication Laboratories
Group” (SCL), empresa dedicada, além da mineração, à análise de dados e
comunicação estratégica com fins eleitorais, com sede na Inglaterra, e
205

escritórios hoje nos EUA, Malásia e Brasil. Em 2016, a Cambridge Analytica vai
participar dos processos eleitorais de Donald Trump, nos EUA, e do “Brexit”, na
Inglaterra, dentre outros cenários, como o plebiscito sobre as FARCs na
Colômbia. Seu enorme sucesso eleitoral, em todos estes casos, teve como
eixo o uso (criminoso) dos dados de perfis do Facebook (de 50 milhões de
pessoas só nos EUA), a partir de um supostamente “inocente” teste de
personalidade, chamado “thisisyourdigitallife” (“esta é a tua vida digital”),
elaborado pelo professor de psicologia Aleksandr Kogan, a partir de um
aplicativo. Mediante esse aplicativo, os usuários forneciam à Cambridge
Analytica os dados pessoais, como identidade, localização, preferências,
costumes, valores, consumos etc., além das listas dos contatos. Em posse
desses perfis, a Cambridge Analytica passou a relacionar esse “estudo de
personalidade” com as preferências ideológicas, políticas, e por fim, eleitorais.
Com isto inicia-se o caminho para influenciar o voto da população alvo
(considerada passível de ser manipulada e levada para o campo da direita
ultraconservadora) a través de: a) uma onda de fake news, b) “teorias
conspiratórias” e c) indução ao “medo” e ao “ódio” mediante a extrema
polarização social e a sensação de ameaça. Toda esta operação criminosa foi
revelada, após a delação de um dos principais técnicos diretamente envolvidos,
Christopher Wylie, conjuntamente pelos jornais The New York Times e o The
Observer (do The Guardian), e apresentada no documentário “Privacidade
Hackeada” (de 2019).
Assim, conforme aponta D’Ancona, para compreender o processo
eleitoral nos EUA, não basta “registrar as mentiras contadas por Trump”.
Devemos atentar para o fato de que ele “não recorreu a dados verificáveis, mas
a ressentimentos e medos” (2018, p. 115). Isto é, a mentira do comunicador
deve ter uma pessoa receptiva, disposta a acreditar, para o qual a frustração, o
ressentimento e o medo são os vetores fundamentais.
No Brasil de 2018, após o golpe institucional de Estado que depós a
presidenta eleita Dilma Roussef, em 2016, pondo fim ao “ciclo do PT”, a disputa
política parece coincidir com a mesma estratégia antes descrita. Vejamos:
Temos Jair Bolsonaro, um irrelevante deputado do “baixo clero” por quase três
décadas, que fora capitão expulso e mandado a retiro do Exército, que de
repente surge com uma enorme força eleitoral, representando a ultradireita e o
206

neofascismo. Temos o ideólogo das “teorias conspiratórias”, Olavo de


Carvalho, um blogueiro, ex-jornalista e astrólogo, “terraplanista”, que vê o
mundo ameaçado pelo “comunismo cultural”. Temos um pool de grandes
empresários, liderados por Luciano Hang (da empresa Havan), para financiar,
com até R$ 12 milhões (ao que tudo indica, produto de “caixa 2”), o exército de
robôs de propagação “microdirecionada” de fake news por whatsapp (hoje
investigado em CPI no Congresso) – como as “mamadeiras eróticas” e os “kits
gays”, estimulando nas escolas públicas a homossexualidade entre crianças, e
ainda a doutrinação ideológica comunista no ensino público etc., etc. Temos o
anúncio do Facebook, em 25 de setembro de 2018, do hackeamento (em pleno
pleito eleitoral) de 400 mil perfis, obtendo informações pessoais de 30 milhões
de brasileiros. Temos um escritório da Cambridge Analytica no Brasil, desde
2017, associada à empresa “Ponte Estratégia” do marqueteiro André Torretta,
e com relações com o ex-deputado Roberto Jefferson. E finalmente, coroando
o processo no Brasil, temos a participação do próprio Steve Bannon, que se
reúne com o filho do candidato, Eduardo Bolsonaro, em agosto de 2018, em
Nova York.49
O que vemos é a inegável semelhança do processo eleitoral no Brasil,
que levou ao triunfo da candidatura de Bolsonaro, com os processos do Brexit
na Inglaterra e das eleições de Trump nos EUA.
É a partir daí que avança hegemonicamente no Brasil, e no mundo, a
“lógica identitarista” pós-moderna, moldando as visões de mundo, as pautas e
as ações ou lutas sociais da esquerda. A visão pós-moderna do munda e a sua
“lógica identitarista” como forma de organização das lutas, encontra terreno
fértil na polarização ultra-conservadora que avança no mundo inteiro e
particularmente no Brasil. Nesta direção, Bosco sustenta que:
Os fatores causadores da sistematização e intensificação das lutas
identitárias foram, portanto, além do fator indireto do colapso do lulismo e
das revoltas de junho [de 2013] – enquanto marcos de tensionamento
social generalizado –, o bloqueio permanente do sistema político [...] e a
relação [...] entre a natureza das lutas identitárias e a natureza do novo

49 Ver: <https://oglobo.globo.com/mundo/as-figuras-chave-do-escandalo-da-
cambridge-analytica-22512997>; <https://tecnoblog.net/236612/facebook-cambridge-analytica-
dados/>; <https://www.cartacapital.com.br/politica/as-pistas-do-metodo-201ccambridge-
analytica201d-na-campanha-de-bolsonaro/>;
<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/opinion/1539892615_110015.html>;
<https://www.brasildefatopr.com.br/2018/11/05/bannon-e-bolsonaro-a-democracia-hackeada>;
acessos em: maio de 2020.
207

espaço público (que tem como núcleo as redes sociais digitais ...): um e
outro operam no âmbito do reconhecimento, mais do que naquele das
transformações institucionais diretas (2017, p. 71).

A partir daí, a sociedade brasileira – que já iniciara esse processo desde


as marchas junho de 2013, e ainda mais, desde o golpe institucional de Estado
de 2016 – vem se polarizando dramática e fanaticamente... mas não a
polarização de classe. Polarizou-se de forma multifragmentária e extremista ou
fundamentalista, numa clara generalização da “lógica identitária”, seja pós-
moderna, seja ultraconservadora. Polarização esta que encaixou
perfeitamente, como lados contrários, mas com a mesma racionalidade e forma
de ação, com o “identitarismo” e o “punitivismo” de esquerda, por um lado, e o
ultraconservadorismo e neofascismo, fundados na noção do “inimigo interno”,
por outro.
Só que a polarização no campo da direita se articulou no “bolsonarismo”,
enquanto a esquerda permaneceu, e cada vez mais, dividida, fragmentada,
desunida e internamente enfrentada.
Nesse sentido, Risério aponta o recrudescimento da polarização social
entre a direita ultraconservadora e “fascista” (hoje representada no Brasil pelo
“bolsonarismo”) e a “esquerda identitarista” (2019, p. 140).
A esquerda, sob hegemonia pós-moderna, não tinha um método e uma
lógica antagônicos aos da direita ultraconservadora, se igualando assim nos
métodos e objetivos (porém de conteúdos diferentes) nesta polarização e
pessoalização das lutas. Não conseguiu enfrentar o projeto ultraconservador e
neofascista, porque se concentrou no enfrentamento polarizado e pessoalizado
(particularmente interno) a partir da “lógica identitarista” pós-moderna.
Isto é, se tirarmos o caráter progressista e a origem subalterna de um, e
o caráter conservador e opressor do outro, o que fica é a mesma “lógica”
polarizadora, os mesmos métodos de aniquilação do “outro”, os mesmos
objetivos punitivistas, o mesmo motivador: o medo, o ódio a sensação de
ameaça e insegurança.
Assim, a radical polarização da sociedade promovida pelo ódio
bolsonarista ao diferente daquilo considerado “normal” ou “do bem” (branco,
cristão, moralmente aceitável), tem seu correlato na lógica do “politicamente
correto” presente na “esquerda pós-moderna”. A polarização da “lógica
208

identitarista”, entre “nós” e “eles” encontra, necessariamente, dois lados. A


extrema polarização social que vive hoje a sociedade brasileira não se deve
apenas ao “bolsonarismo”; este, na verdade, encontra seu correlato funcional
na polarizadora “lógica identitarista” pós-moderna.
Mais ainda, ao fragmentar os setores progressistas e enfrentá-los
internamente, as possibilidades da esquerda de se contrapor ao projeto
representado no bolsonarismo são fortemente reduzidas a expressões e
manifestações por grupos identitários, com pouquíssimo impacto político. Esta
lógica, hoje ao que tudo indica hegemônica nas esquerdas, tem levado, por
exemplo, a uma dinâmica de crítica e oposição à “Reforma da Previdência” em
2019 a partir do impacto por “identidades” (o impacto para o aposentado, para
a mulher, para o trabalhador jovem etc.), dificultando uma visão universal, de
que ela é prejudicial para o conjunto da classe trabalhadora, fragilizando assim
a articulação para a resistência à mesma.
Assim, esse recrudescimento da direita ultraconservadora, em boa
medida como resultado da mesma “lógica polarizadora”, encontra a classe
trabalhadora fragilizada, multifragmentada, se auto-degladiando, sem qualquer
unidade para enfrentar esse avanço ultraconservador.
É com esta esquerda, orientada hegemonicamente pela “lógica
identitarista” (polarizando e pessoalizando a luta, e secundarizando ou
eliminando a contradição de classe) e pela ação tática “punitivista” e “inclusiva”
(secundarizando também ou deixando de lado a luta contra a estrutura
econômica e política e os sistemas culturais e ideológicos), que se enfrenta
hoje esse crescimento e avanço do ultraconservadorismo.
Conforme Malik, a “louvação pós-moderna da indeterminação é
reforçada pela hostilidade à teoria universalizante, ou a ideias de totalidade” (in
WOOD e FOSTER, 1999, p. 129), porém, afirma, para haver um respeito e
valorização de questões de “identidades/diferenças” devem estas ser objeto de
“alguns princípios universalistas, totalizantes, de igualdade ou justiça social”
por exemplo (idem, p. 132).
O que temos, a partir desta breve reflexão, é a evidência da necessidade
de uma crítica e superação da “lógica identitarista” pós-moderna, a partir de
uma visão de totalidade e universalidade, para entender o momento atual e
organizar as lutas contra o avanço ultraconservador, contra as diversas formas
209

de opressão, no horizonte de uma luta anticapitalista. É o que discutiremos no


seguinte item, e nos dois capítulos finais deste texto.

5.3- Os principais tipos de crítica ao identitarismo.


Para uma crítica ao “identitarismo” (não à “identidade”), devemos
apresentar sucintamente as diversas críticas esgrimidas desde vriados campos
filosóficos, ideológicos e políticos.
Como aponta Haider, há críticas tanto da “direita” como da “esquerda
economicista” (ver HAIDER, 2019, p. 46), dentre outras. Vejamos algumas das
principais críticas, de campos diversos, para, finalmente, apresentar os
fundamentos de uma crítica radical, sustentada a partir do “marxismo histórico-
dialético”.

A) A crítica da ultra-direita ao identitarismo.


Primeiramente, há uma crítica (na verdade, uma veemente rejeição) ao
“identitarismo” oriunda da direita ultraconservadora, proveniente, em parte dos
grupos e setores dominantes, supremacistas, opressores, mas em parte de
grupos sociais, mesmo que de estratos socioeconômicos baixos ou de setores
subalternos, que se filiam a fundamentalismos religiosos e/ou tendências
ideológica ultraconservadoras e de extrema direita.
Conforme Haider, as críticas da “direita” são oriundas de “homens
brancos”, “desinteressados pela experiência dos outros”, das ditas “minorias”,
dos setores subalternos que reivindicam direitos igualitários (idem, p. 46).
Na verdade, a direita ultraconservadora não faz uma crítica ao
identitarismo ou à “lógica identitarista”, pois ela se funda na exaltação da
diferença (ver item 6.1-A).
Não poderia, pois este setor tem, ele mesmo, sua própria base
identitária – o ultranacionalismo, o “supremacismo branco”, o fundamentalismo
religioso, o “anti-marxismo”, a defesa da “família tradicional”, das “tradições etc.
–, a qual está também inserida numa lógica polarizadora e de aniquilação e/ou
submissão do diferente, considerado como “inimigo” e ameaça.
Ao tratar da crítica, ou melhor, da rejeição e do combate da direita
ultraconservadora, devemos ter clareza, por tanto, que não se trata da negação
210

ou ataque à noção de “identidade” em si, nem à polarizadora “lógica


identitarista”, pois estas aglutinam indivíduos que se identificam em ambos os
lados da polarização identitarista. Isto é, se as causas e pautas feministas
convocam as mulheres de um lado, de outro estão os homens identificados
com o machismo e o patriarcalismo; se de um lado as causas antirracistas
convocam a população negra, de outro estão os “supremacistas” brancos; se a
luta pela liberdade de orientação sexual e igualdade de direitos identifica os
grupos LGBT, de outro estão reunidos os moralistas, homofóbicos etc. A
“identidade”, por definição, tem ao menos dois lados, sem o qual não teria
sentido a mesma.
Portanto, na verdade, e em função do exposto, o que esta direita faz é
rejeitar e combater, não a “identidade” em si, nem a “lógica identitarista”, mas a
“identidade dos subalternos”, as causas progressistas, as “pautas identitárias”
de esquerda, principalmente aquelas que se colocam mais distantes das suas
“pautas conservadoras”, que enfrentam os privilégios dos grupos dominantes:
assim, as identidades e as pautas feministas, LGBT, de combate ao racismo, a
descriminalização do aborto, do consumo de maconha, a defesa dos Direitos
Humanos etc.
Temos, portanto, à esquerda (pós-moderna) e à direita
(ultraconservadora) a mesma polarizadora “lógica identitarista”, antagonizando
com absoluta intolerância o diferente, e enfrentando-os como inimigos, visando
a aniquilação e o extermínio do “outro“, numa polarização entre o “nós” e o
“eles”, fundada no medo, no ódio, na sensação de ameaça.
Enfim, esta crítica da direita, se baseia na mesma lógica polarizadora
identitarista pós-moderna. Isto é, não se trata, portanto, de uma crítica à noção
de “identidade”, pois essa mesma direita possui “identidades”, trata-se, isso
sim, de uma crítica às “identidades” das minorias, dos grupos subalternos, à
sua organização e suas pautas progressistas, antiopressivas. Trata-se de uma
rejeição à “identidade subalterna”.

B) A crítica liberal ao identitarismo.


Como foi tratado anteriormente (item 1.3-B), Lilla, um “liberal
democrata”, apresenta uma análise crítica ao que ele chama de “liberalismo
211

identitário”, no qual, conforme analisa, o Partido Democrata teria


paulatinamente ingressado já a partir da era Reagan, nos anos 80.
O autor compara o discurso e pauta do “movimento das minorias da
década de 1960 com o atual”, afirmando que o primeiro “dizia ‘somos todos
iguais e queremos ser tratados com igualdade’. Já essa segunda política
identitária se baseia na afirmação da diferença e na exigência de respeito à
singularidade” (Lilla in PINHEIRO, 2018).
Segundo ele, essa mudança no discurso e na política dos liberais,
propiciou, por um lado, um abandono dos projetos universais, em torno da
nação e do cidadão, e ingressado no terreno do discurso e projetos por
“identidades”. Assim, afirma o autor, “todo progresso da consciência identitária
liberal tem sido marcado por um retrocesso da consciência política liberal”
(LILLA, 2018, p. 15). O autor sustenta que “não pode haver política liberal sem
uma consciência de coletividade – do que nós somos como cidadãos” (idem, p.
18).
Por outro lado, esta guinada ideológica e programática, ainda conforme
o autor, seria responsável pela derrota de Hillary Clinton, e, portanto, pelo
triunfo de Donald Trump nas eleições de 2016, nos EUA. Conforme aponta o
jornalista liberal, esse seria “o motivo de os democratas estarem perdendo
terreno” eleitoral (idem, p. 15). Para o autor, alicerce da sua crítica ao
“liberalismo identitário”, a forma de, numa democracia, defender os direitos das
“minorias” “é ganhar eleições e exercer o poder no longo prazo [...]. E o único
jeito de conseguir isso é ter uma mensagem com apelo para o maior número
possível de pessoas e assim uni-las. O liberalismo identitário faz exatamente o
oposto” (idem, p. 16).
Isto é, Lilla não só responsabiliza a política identitária que tomou corpo
no Partido Democrata pela derrota eleitoral contra Trump, mas, e justamente
por conta disso, o “liberalismo identitário” é responsabilizado pelos retrocessos
em torno das causas das “minorias”.
Para o autor, como já foi apontado, “se os liberais [o Partido Democrata]
esperam algum dia recapturar o imaginário dos Estados Unidos e se tornar
uma força dominante [...] deverão oferecer uma visão do nosso destino
baseada numa coisa que todos os americanos, de qualquer condição, de fato
212

compartilhem. E essa coisa é a cidadania. Precisamos reaprender a falar aos


cidadãos como cidadãos” (idem, p. 18).
Assim, para este cientista político e jornalista liberal, a superação da
“identidade” passaria pela retomada do (homogeneizador e indiferenciador)
conceito (abstrato) de “cidadania”, em torno do qual voltem a se configurar o
discurso e as políticas universais.

C) A crítica do marxismo “economicista” e “estruturalista” ao


identitarismo.
Já no campo progressista, encontramos a crítica à noção e às lutas
identitárias a partir das tendências economicistas da esquerda, em geral, ou do
marxismo, em particular.
Segundo Haider, as críticas da “esquerda economicista”50 ao
identitarismo acabam descartando ou secundarizando “qualquer demanda
política que não esteja alinhada com o que é considerado um programa
puramente ‘econômico’” (2019, p. 46).
Esta crítica, particularmente do “marxismo economicista”, e de alguma
forma “estruturalista”, conforme aponta o autor, sustenta-se na “recusa
apriorística da identidade” (idem, p. 15), descartando sua existência ou
compreendendo-a como uma questão secundária e sem importância política.
Haider afirma que tal crítica é marcada pela sua “incapacidade de se conectar
com o cotidiano de sofrimento, humilhação e privação” (idem, p. 16), apenas
reconhecendo a exploração do trabalhador, e desconsiderando ou retirando a
importância de qualquer outra forma de opressão, discriminação ou
desigualdade.
É verdade que já desde os últimos anos de vida de Marx, no contexto da
“I Internacional”, tendências “marxistas” tem surgido desvirtuando seus
fundamentos, e enveredando para um economicismo, isto é, para uma
absolutização da dimensão econômica sobre as demais. Ainda mais no período

50 Haider a denomina como “tradicional” ou “classista”. Discordamos desta


caracterização, pois confunde ou identifica o “marxismo economicista” com o “tradicional” ou
“classista”. Ora, estes últimos, que podemos identificar na obra de Marx e Engels, e no
“marxismo ortodoxo” – que conforme Lukács está na fidelidade com o método de Marx
(LUKÁCS, 1974, p. 15) –, são claramente opostos ao “economicismo”, como veremos a seguir.
Por tal motivo tratamos esta corrente como “economicista”, e não “classista ou tradicional” do
marxismo.
213

emoldurado pela “II Internacional”: por exemplo Lafargue, no seu livro “O


determinismo econômico de Karl Marx” (publicado em 1909), atribuía
equivocadamente a Marx uma visão economicista, perdendo a dimensão
dialética na concepção de história (ver KONDER, 1999, p. 150); ou Kautsky,
quem tendia a assimilar a realidade social aos fenômenos biológicos, reduzindo
a teoria marxiana a uma espécie de “darwinismo social” (ibidem.); ou até
Bernstein, quem promoveu “um abandono da dialética, da herança hegeliana
do marxismo, e um retorno a Kant (KONDER, 2003, p. 63). Mas as principais
deformações dos fundamentos da obra marxiana situam-se no cenário da “III
Internacional”, a partir da “autocracia stalinista” e a (de)formação do “marxismo-
leninismo” como uma doutrina para orientar a ação política. Assim, para
Lukács, segundo atesta na “Carta sobre o Stalinismo” (redigida em 1962), além
de “um culto à personalidade”, sob o stalinismo “as necessidades táticas
imediatas subordinaram a elaboração teórica e paralisaram o pensamento
marxista, submetendo-o a exigências rasteiramente pragmáticas e
oportunistas” (apud NETTO, 1983, p. 72-3; também ver LUKÁCS, 2008, p. 134
e LUKÁCS, in PINASSI e LESSA, 2002, p. 126), influenciando boa parte da
ação política e da produção teórica afinada a esta “doutrina”, incidindo até,
como ainda observa Lukács na “Contribuição ao debate entre a China e a
União Soviética” (de 1963), no “maoismo”, tido como “uma derivação sectária
neostalinista” (NETTO, 1983, p. 73).
É por este tipo de questões ditas/feitas em nome do “marxismo” que
Engels, em carta a J. Bloch (em 1890), tratando sobre o excessivo
economicismo, afirma que “não pode eximir desta crítica a muitos dos mais
recentes ‘marxistas’, pois também deste lado tem surgido os lixos mais
assombrosos” (in MARX e ENGLES, 1987, p. 381), enquanto Marx, de forma
ainda mais contundente, comentara ao seu genro, Paul Lafargue (expoente do
economicismo marxista): “Ce qu'il y a de certain c'est que moi, je ne suis pas
Marxiste” (“O que eu tenho certeza é que eu não sou Marxista”). 51
Ora, para Marx e Engels, e para o “marxismo histórico-dialético”, ou
“ortodoxo” conforme caracterização de Lukács a partir da sua fidelidade com o

51 Tal como registra Engels em cartas a Bernstein (em 03/11/1882) e a Schmidt (em
05/08/1890). Ver em: <http://www.marxists.org/archive/marx/works/1882/letters/82_11_02.htm>
e <https://www.marxists.org/archive/marx/works/1890/letters/90_08_05.htm>, acessos em: jun.
de 2020.
214

método de Marx (LUKÁCS, 1974, p. 15), as relações de produção e toda a


base econômica determina o Estado, a superestrutura jurídico e política, e o
conjunto das relações sociais, mas numa determinação “em última instância”
(sobre esta questão ver COHEN, 2013, p. 173 e ss.). Conforme Engels afirma:
“segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância
determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem
eu temos afirmado nunca mais do que isto. Se alguém o distorce dizendo que o
fator econômico é o único determinante, ele transformará aquela tese em uma
frase vazia, abstrata e absurda” (in MARX e ENGELS, 1975a, p. 520).
Desta forma, concordando com Bosco, devermos “problematizar a
hipótese de que a desigualdade econômica é a fonte exclusiva dos
preconceitos sociais e consequentes assimetrias de reconhecimento, e que,
abolida aquela, desapareceriam também esses” (2017, p. 83).
Não se trata de primeiro transformar a base econômica, construindo um
socialismo apenas nas suas relações de produção, e só depois pensar na
eliminação das formas de opressão, ou de imaginar que esse “socialismo
econômico” as eliminaria automaticamente, como constitui a hipótese central
da esquerda e o marxismo economicistas, como fundamento para ignorar ou
secundarizar a “identidade” e as lutas identitárias ou antiopressivas.

D) Para uma crítica ao identitarismo fundada no “marxismo histórico-


dialético” (ou ortodoxo).
Nossa análise crítica ao “identitarismo” (não à “identidade”, como viemos
afirmando), se distancia nos seus fundamentos e projetos das críticas expostas
anteriormente. Ela se funda, ao contrário, no “marxismo ortodoxo”, isto é, no
materialismo histórico e dialético.
Conforme Lukács, em notória distinção dos reducionismos
economicistas ou politicistas, o “marxismo dialético” ou
o marxismo ortodoxo não significa, pois, uma adesão sem crítica aos
resultados da pesquisa de Marx, não significa uma “fé” numa ou noutra
tese, nem a exegese de um livro “sagrado”. A ortodoxia em matéria de
marxismo refere-se, pelo contrário, e exclusivamente, ao método. Implica a
convicção científica de que, com o marxismo dialético, se encontrou o
método de investigação justo (LUKÁCS, 1974, p. 15).
215

Não teceremos aqui, portanto, a nossa análise crítica ao identitarismo, e


à “lógica identitarista”, fazendo qualquer concessão nem à crítica de direita,
nem a liberal e nem a crítica da “esquerda economicista”.
Nos casos anteriores, a “crítica” constitui antes uma forma de rejeição ou
negação à “identidade” ou sua secundarização, do que efetivamente uma
análise crítica.
Visamos aqui apresentar uma crítica radical, tal como caracterizada por
Marx. Para ele, a crítica radical visa alcançar a raiz dos fenômenos, superando
sua visão aparente, manifesta, e atingindo sua essência e seus fundamentos,
compreendendo as causas e não apenas as consequências. Como afirma
Marx: “ser radical é tomar as coisas pela raiz” (MARX, 2005, p. 152).
A crítica aqui, portanto, não consiste em negar ou rejeitar as diversas
formas de opressão, discriminação ou desigualdade sociais. Ainda, também
não afirma que essas questões sejam secundárias ou menos importantes que
a questão de classe. Finalmente, nossa análise crítica não se orienta a
secundarizar as lutas antiopressivas, particulares, ou “identitárias”, deixando-as
em segundo plano, ou para “depois” da grande transformação social.
Nossa crítica parte do reconhecimento e da importância destas questões
e da necessidade e urgência das lutas para sua superação. Mas ela se
direciona à apropriação e compreensão que a racionalidade pós-moderna faz
dela, transmutada em “identitarismo”, fundando uma “lógica” polarizadora de
enfrentamentos pessoais.
Ora, os conceitos e as categorias teóricas não tem uma determinação
meramente objetiva, mas elas são capturadas pela razão, portanto,
apresentam um importante espaço para a subjetividade dos indivíduos.
Subjetividade atribuída a partir dos valores, dos interesses, da ideologia, do
lugar que ocupa no mundo, das visões de mundo ou perspectivas teórico-
metodológicas etc. Isto é, cada categoria da realidade, ou cada conceito
teórico, será incorporado subjetivamente pelos indivíduos a partir destas
questões. Portanto, cada categoria e cada conceito terá um significado e uma
forma de compreensão para cada sujeito. Assim, a categoria “classe social”
para Marx tem uma compreensão notoriamente divergente daquela que possui
Weber; o “trabalho” em Lukács é, na sua dimensão ontológica, totalmente
diferente do conceito habermasiano de trabalho; a compreensão do alcance e
216

significado da categoria “liberdade” é distinta no pensamento Marx-lukacsiano


do que na tradição liberal; a “democracia” é compreendida de forma diferente
nas tradições marxista e liberal etc. etc. etc.
Isto é, toda categoria e conceito tem um significado e compreensão a
partir da apreensão subjetiva de cada indivíduo, em função dos seus valores,
perspectivas, interesses etc.
Os conceitos de “identidade”, de “causa identitária” e de “luta identitária”
não poderiam fugir dessa regra. Eles são apropriados, como vimos,
diferentemente a partir da análise liberal, pós-moderna ou marxista (ortodoxa).
Isto posto, cabe afirmar que não se trata, aqui, de uma crítica à categoria
de “identidade”, mas à sua apropriação pelo pensamento pós-moderno como
“identitarismo”, em função do que aqui chamamos de “lógica identitarista”, uma
“lógica” que põe a “identidade” no plano da oposição e antagonismo pessoal
com o diferente, pelo menos aquele que se encontra no polo oposto:
homem/mulher, negro/branco, heterossexual/LGBT, nacional/imigrante etc.
Lógica esta, também, onde “luta” se transforma em “pauta”, onde a “ação
política” é levada ao plano do indivíduo, e onde o horizonte político é a inclusão
dos grupos identitários, e não mais a luta contra o sistema, contra as
estruturas, a superação da ordem social.
Já mostramos as semelhanças, nesta questão, na ultradireita e na
esquerda pós-moderna, em torno da polarização operada por uma “lógica
identitarista”, a qual, alicerçada no incentivo ao medo e/ou ao ódio, assume-se
como “inimigos” os indivíduos diferentes ou não pertencentes à “identidade” em
questão, e cujo objetivo imediato é sua destruição pessoal, individual ou grupal
(item 2.6). Mostramos também como o objetivo punitivista, seja sobre o
diferente, seja sobre o infrator, aparece igualmente na ultradireita como na
esquerda pós-moderna (item 4.1). Mostramos ainda como a pós-verdade tem
se tornado uma ferramenta central para fazer política, tanto na ultradireita, no
neo-fascimo, no fundamentalismo religioso, como também na esquerda pós-
moderna, como forma de aglutinar os indivíduos em torno de uma narrativa
considerada “verdadeira”, sempre visando a polarização mediante o apelo
emocional, moral, de uns indivíduos contra outros (item 3.2). Mostramos
também como o chamado “lugar de fala” da esquerda pós-moderna guarda
muitas semelhanças com o uso que a ultradireita – o fanatismo e
217

fundamentalismo religioso, o fascismo, e os grupos de uma direita “moralista”,


que constrói uma visão moral sobre os fatos, sobre a realidade – faz do seu
“lugar”, da sua posição, da sua condição, da sua crença, do seu líder, da sua
moral, como forma de gerar adesão incondicional a discursos ou “narrativas”
próprios, repelindo sumariamente aquelas que tem outra origem, em função do
“lugar” de onde partem, e independente da verdade dos fatos (item 3.1).
Ora, quando a esquerda (ou setores dela) apresenta métodos,
fundamentos, lógicas e metas ou objetivos semelhantes à ultradireita, quando a
intimidação e aniquilação (física ou social) do “outro” se tornam os principais
métodos de luta de uma esquerda pós-moderna ao igual que são métodos da
extrema direita fundamentalista, alguma coisa errada está acontecendo.
Esta lógica polarizadora, que como já vimos fragmenta o campo
progressista e o enfrenta internamente, fragilizando a sua capacidade de luta
por uma sociedade emancipada, ao compartilhar métodos, metas etc., como a
direita ultraconservadora, fragiliza-se ainda mais, como campo alternativo,
distinta, diferente deste, em face do avanço ultraconservador da realidade
contemporânea, como é o caso emblemático, e dramático, do Brasil atual.
218

SEGUNDA PARTE

A ANÁLISE MARXISTA E A NECESSÁRIA

ARTICULAÇÃO DAS LUTAS DE CLASSE E

ANTIOPRESSIVAS
219

6. CONTRADIÇÃO (DE CLASSE) E


DESIGUALDADE (IDENTITÁRIA) NA ANÁLISE
MARXISTA

Temos afirmado recorrentemente que a reflexão crítica neste texto não


significa a rejeição ou secundarização da categoria “identidade”, ou das
chamadas lutas identitárias (antiopressivas), nem ainda representa um
desconhecimento do valor desta categoria para a análise da complexidade e
diversidade de processos e relações sociais e destas lutas para o caminho de
uma sociedade real e plenamente emancipada.
É neste sentido que se torna fundamental, neste momento, distinguir,
sem no entanto enfrenta-las como alternativas ou mutuamente excludentes, as
categorias de “identidade” e de classe, assim como diferenciar os significados
de desigualdade e contradição. Em seguida, trataremos das “identidades”
concretas, e suas relações de opressão, discriminação e desigualdade, como
processos historicamente determinados, e manifestações da “questão social”.
Finalmente, nos debruçaremos sobre as relações exploração, opressão e
desigualdade.

6.1- Duas dialéticas diferentes: “Identidade/diferença” e


“igualdade/desigualdade”.
Apesar de geralmente tratadas como equivalentes, “igualdade” e
“identidade” não são sinônimos, pois representam dialéticas diferentes.
220

Aqui há duas dialéticas geralmente confundidas. Por um lado, a dialética


igualdade/desigualdade (social), e por outro, a dialética identidade/diferença
(individual/grupal). Vejamos bem.
O antônimo da “diferença” não é a “igualdade”, mas a “indiferença” (a
inexistência de diferença), ou seja, a “identidade”: identidade x diferença, e
remete às esferas individual ou grupal.
Sendo assim, por sua vez, se a “igualdade” não tem como antônimo a
“diferença”, tem sua antítese na “desigualdade”: igualdade x desigualdade, que
remete à dimensão social.
Desta forma, por um lado, a “identidade” entre os membros de um grupo
tem como correlato a diferença com os não membros. Nesta dialética, que se
expressa na dimensão individual ou grupal, há coexistência dos contrários; isto
é, não existe a noção de “identidade” sem o contraste com o diferente: a
“identidade” e a diferença existem simultaneamente.
Por outro lado, igualdade ou desigualdade dizem respeito a um sistema
social, à dimensão estrutural da sociedade, onde os antônimos não são
complementários ou correlatos, e sim excludentes, conformando, mesmo que
em termos relativos, um sistema estruturalmente igualitário ou desigual.
Assim, contrariamente à equivocação apontada inicialmente, a
“igualdade” – que remete à dimensão social – supõe a “diferença” – que remete
ao plano individual ou grupal. Isto é, uma sociedade igualitária pressupõe a
coexistência, em igualdade de condições, dos indivíduos diferentes.
Em sentido inverso, a “identidade” no interior de um grupo exclui o (ou
se opõe ao) “diferente”.
A confusão entre “igualdade” e “identidade” é tão elementar quanto
comum. Portanto, a questionaremos com um exemplo elementar e comum: o
documento do registro oficial de uma pessoa física é a “identidade”, ou “carteira
de identidade” (através da qual nos apresentamos como pessoa única,
diferenciada de todas as demais), e não uma “igualdade” (o que expressa a
comunhão de direitos, condições e acessos). No nosso cotidiano, portanto,
mesmo que imperceptivelmente, temos a compreensão do que representa uma
identidade, como aquilo que nos diferencia dos outros, e a igualdade sendo
aquilo que nos unifica aos outros.
221

Assim, trata-se de duas dialéticas de ordem diferentes: por um lado, a


identidade pressupõe a diferença – neste par dialético um só existe pelo outro
–; por outro lado, e contrariamente, a igualdade pressupões a supressão da
desigualdade – neste par dialético um existe sobre a eliminação do outro.
Conforme Marx e Engels descrevem em A Sagrada Família, a
“igualdade”, entanto bandeira dos revolucionários franceses, expressa a
“consciência” e o “comportamento do homem em relação ao outro homem
como seu igual”, assim, a égalité,
é a expressão francesa para a unidade essencial humana, para a
consciência de espécie e para o comportamento de espécie próprio do
homem, para a identidade prática do homem com o homem, quer dizer,
para a relação social ou humana do homem com o homem (MARX e
ENGELS, 2003, p. 51).

A partir da clara compreensão destas duas dialéticas, podemos tirar


algumas conclusões importantes para nossa discussão.

A) Há que diferenciar o “igualitarismo” do “identitarismo”.


No plano dos projetos societários, ou dos sistemas sociais, devemos
distinguir os projetos e lutas por uma sociedade igualitária daqueles orientados
a uma sociedade indiferenciada, isto é, há que diferenciar o “igualitarismo” do
“identitarismo”. Como mencionamos, a igualdade remete ao plano do sistema
ou estrutura social, e o projeto de construção da mesma constitui um projeto
“igualitarista”. Contrariamente, como viemos também afirmando, a “identidade”
remete ao plano individual ou grupal, porém, o “identitarismo”, como projeto
social, representa a apropriação pós-moderna, a partir da multi polarização
social, da “identidade” (e da “diferença”). Isto é, o identitarismo, como projeto
social, se funda, ora na anulação do diferente, ora na primazia e aporia da
diferença.
Em sentido semelhante, Celso Frederico, em artigo crítico às “políticas
identitárias”, aponta para a “oposição entre o universalismo e o culto às
diferenças”, distinguindo “de um lado, os defensores do secularismo, do
racionalismo, dos direitos universais do homem e de seu corolário político (a
democracia) e filosófico (o pensamento totalizador)”, e “de outro, os críticos
modernos do universalismo [que] apelarão para a particularidade, a
222

diversidade, o direito à diferença, o pluralismo, a tolerância e seu corolário


político (o liberalismo) e filosófico (o nominalismo)” (2020, p. 2; ver item 7.2-B).
Já segundo o cientista político liberal Norberto Bobbio, o igualitarismo,
que ele opõe ao liberalismo, é caracterizado pelo “acento colocado no homem
como ser genérico [...] e, por conseguinte, nas características comuns a todos
[...] e não tanto nas características individuais pelas quais um homem se
distingue de outro (que é, ao contrário, o que caracteriza as doutrinas liberais)”
(1996, p. 37). Para este importante pensador italiano, “conforme o acento seja
colocado nas desigualdades econômicas ou nas políticas [...] as doutrinas
igualitárias se distinguem em socialistas (ou comunistas) [de base marxista] e
anarquistas” (ibidem). Para Bobbio, “enquanto a liberdade [que se centra no
direito à diferença] é em geral um valor para o homem como indivíduo [...], a
igualdade é um valor para o homem como ser genérico” (idem, p. 13). Desta
forma, afirma, se “é possível existir uma sociedade na qual só um é livre (o
déspota), [no entanto] não teria sentido afirmar que existe uma sociedade na
qual só um é igual” (ibidem). A instigante reflexão de Bobbio, no entanto,
apresenta um problema de fundo: opõe, como valores antitéticos, a igualdade
(como fundamento do igualitarismo) à diferença individual (como fundamento
do liberalismo); oposição incorreta, por se tratar de duas dialéticas diferentes.
Um projeto social “igualitarista”, portanto, pressupõe a igualdade social
entre os diferentes. Um projeto “identitarista” exige, ora a eliminação do
diferente, do “outro”, ora a exaltação da diferença, não fundada na igualdade
entre eles. No projeto onde se exalta a diferença (entre grupos), a igualdade
(social) é considerada uma forma de ofuscar a diferença. Assim,
paradoxalmente o “identitarismo” (no interior dos grupos) é a exaltação da
diferença (entre indivíduos e grupos).
Um projeto social “igualitarista” exige a igualdade tanto econômica
quanto política, sem exploração e sem opressão, sem desigualdade, porém,
culturalmente diversa. Um modelo “identitarista” centra-se na diversidade
cultural, no multiculturalismo, sem se focar na questão da igualdade
econômica.
Desta forma, a luta pela “igualdade” (social) é, paradoxalmente, contrária
à luta pela “identidade” (individual ou grupal).
223

O igualitarismo, a política igualitarista, ou as lutas igualitaristas (pela


igualdade social), que visam enfrentar e superar a desigualdade econômica,
política e social, pressupõem a diferença (sujeitos individualmente diferentes);
assim, contempla a presença de “identidades” diversas no mesmo projeto
societário. Porém, pressupõem, não a “identidade” definida a partir de uma
relação de opressão, de discriminação, de desigualdade, mas de “identidades”
como expressões de diferenças pessoais, de características individuais e
grupais, eliminado a desigualdade entre elas.
Já o identitarismo apresenta um caminho, no capo político da direita e
dos grupos dominantes, fundado na anulação ou submissão do diferente,
considerado fora da norma, assim como um outro caminho, no campo da
esquerda (pós-moderna), que se funda na defesa do direito à diferença.
Assim, por um lado, a postulação pós-moderna, contida na “lógica
identitarista”, prega e centra-se (ou se esgota) no direito à diferença (como
correlato da “identidade” individual ou grupal). Contrariamente, e por outro lado,
a postulação marxista, presente nas lutas de classes, se orienta pelo direito à
igualdade (contrário de desigualdade social). Ambas as lutas se fundam em
pressupostos, e perseguem objetivos, completamente distintos, mesmo que
não antagônicos. As lutas pós-modernas se centram no binômio
identidade/diferença (individual ou grupal), enquanto as lutas orientadas no
marxismo (dialético) se centram no binômio igualdade/desigualdade (social).
Porém, os embates pela igualdade econômica e social não se
contrapõem às lutas contra a opressão política e pela igualdade nas relações
sociais. O que se contrapõe é a “lógica identitarista” com o projeto
“igualitarista”. Lembremos como Losurdo apresenta as lutas de classes no
pensamento marxiano, como respondendo a duas questões: a) a demandas
por “redistribuição da riqueza” (lutas de cunho econômico, em torno da
exploração) e b) a demandas por “reconhecimento” (lutas de caráter mais
político, em torno das situações de opressão) (LOSURDO, 2015; ver item 4.2).
É neste sentido que Vladimir Safatle, seguindo a distinção marxista entre
demandas e lutas por “redistribuição da renda” e por “reconhecimento” (ver
item 4.2), ao propor para a esquerda uma “defesa radical do igualitarismo”
(2018, p. 21), afirma que “a esquerda deve ser ‘indiferente às diferenças’”, e
assim, “de certa forma, a política atual da esquerda só pode ser uma política da
224

indiferença” (ibidem), não se centrando nas diferenças/identidades (pessoais),


mas na desigualdade/igualdade (sociais).
Para ele, “a luta contra a desigualdade social e econômica é a principal
luta política. Ela submete todas as demais” (ibidem), e o papel do Estado, na
implementação de políticas redistributivas, é central e único, motivo pelo qual
“em nome do combate à desigualdade econômica, a esquerda não pode abrir
mão do fortalecimento da capacidade de intervenção do Estado” (idem, p. 23).
Porém, afirma o autor, contrariamente a isso, o que fazem os movimentos
sociais “identitaristas” é “transformar o problema da tolerância à diversidade [ou
diferença] cultural, ou seja, o problema do reconhecimento de identidade
cultural, no problema político fundamental” (idem, p. 27), desconsiderando a
questão da distribuição e redistribuição da riqueza, isto é, levando a
desigualdade econômica para um segundo plano, e transferir a
responsabilidade estatal no processo de redistribuição para a sociedade civil.
Conforme afirma o autor: há no identitarismo uma certa “secundarização de
questões marxistas tradicionais vinculadas à centralidade de processos de
redistribuição e de conflito de classe na determinação da ação política” (idem,
p. 28).
O projeto político da esquerda (radical e emancipatória), contrariamente
à lógica polarizadora do “identitarismo” pós-moderno, deve lutar contra as
desigualdades que estão presentes nas relações opressivas entre “identidades”
opostas, superando as desigualdades e a opressão, mas mantendo as
diferenças pessoais e grupais. Isto é, um projeto “igualitarista”, não
“identitarista”.
O que há que combater e eliminar é a relação de opressão entre
“identidades” opostas ou diferentes, e não a supressão dessas “identidades” ou
da submissão de uma delas.
Neste sentido, conforme Safatle, o igualitarismo, como projeto social e
como processo (como luta), numa primeira dimensão “diz respeito à luta contra
a desigualdade econômica”, e numa segunda dimensão “se refere à estrutura
das demandas de reconhecimento da vida social” (2018, p. 26-27). Ou seja,
estruturalmente, e a longo prazo, centra-se na superação da desigualdade
econômica e toda forma de desigualdade política e social, mas, no curto e
médio prazo, remete tanto às demandas econômicas por “redistribuição de
225

renda”, quanto, politicamente, à “necessidade de uma política da indiferença”


(idem, p. 27), obviamente não eliminado as diferenças pessoais, mas
superando a noção da “diferença como valor maior para a ação política”
(ibidem), o que permita superar a opressão e desigualdade (não apenas
econômica) presente nas relações sociais identitárias.
Isto é, o direito à igualdade (social) e o direito à diferença (interpessoal)
não são direitos contrapostos, mas complementares. Apenas quando
apresentados como alternativos – como o “marxismo economicista” absolutiza
o primeiro, e como a “lógica identitarista” pós-moderna faz o próprio com o
segundo –, é que um parece excluir o outro.
As lutas antiopressivas particulares, pelo reconhecimento, pela
igualdade nas relações sociais (para além do econômico), constituem
demandas que, do ponto de vista dos setores subalternos, são notoriamente
necessárias. Afinal, estes setores reivindicam sua “identidade”. E o corolário da
reivindicação da própria “identidade” (do “nós”) é a manifestação da “diferença”
(em relação ao “eles”). A demanda, e a luta, pelo direito à diferença é, em
essência, uma demanda pelo reconhecimento da sua “identidade”, e, portanto,
da sua voz e seus direitos e interesses particulares.
Assim, a demanda por direito à diferença, ou por reconhecimento da
“identidade”, é justa e necessária.
Justa e necessária, sim. Porém, quando o projeto societário e as lutas se
centram ou esgotam nela, como é o caso da “lógica identitarista” pós-moderna,
resulta política e estrategicamente errada.
Ora, justamente o grupo dominante – em geral, ou de uma específica
relação de opressão – quer preservar a diferença, e sobre ela sustentar e
perpetuar a desigualdade, a discriminação, os privilégios e a opressão. O
supremacista branco, por exemplo, quer manter e explicitar a diferença racial,
não superá-la. Lembremos como os nazistas marcavam os judeus, para
diferencia-los, e a partir daí comandar o holocausto. Os imperadores maias,
também, deformavam os crânios da sua prole, para se diferenciar dos súditos,
e poder reinar. O Apartheid, na África do Sul, sustentava a discriminação a
partir das diferenças raciais. A vestimenta, a linguagem, os hábitos, são
símbolos de diferenças entre dominantes e subalternos. Pierucci e Rodrigues
relatam ainda o “caso Sears”, no final dos anos 1970, quando a justiça deu
226

ganho de causa à empresa, demandada pelas trabalhadoras mulheres,


justificando a desigualdade de salários e condições de trabalho em função da
diferença de sexos (PIERUCCI, 1990, p. 18 e ss.; 2000, p. 35 e ss.; e
RODRIGUES, 2014, p. 369).
Isto é, se há alguém que quer perpetrar as diferenças são os
dominantes, os privilegiados, os opressores, os socialmente “superiores”!
As diferenças, para os dominantes, tem a função de dar suporte para a
desigualdade, para a discriminação e para a opressão dos subalternos. Os
dominantes “usam a diferença para hierarquizar e organizar a vida social”
(PIERUCCI, 1990, p. 15; 2000, p. 30; também em RODRIGUES, 2014, p. 369),
e a partir daí garantir o status quo, os privilégios e as relações de poder e
dominação.
Desta forma, a defesa do “direito à diferença” não contribui para a
eliminação, ou sequer para a diminuição da desigualdade, mas, ao contrário,
em tese, tende a reforçá-la.
É o que afirma Antônio Pierucci, para quem “a bandeira da defesa das
diferenças, hoje empunhada à esquerda [...] foi na origem – e permanece
fundamentalmente – o grande signo das direitas [...]. Pois, funcionando no
registro da evidência, as diferenças explicam a desigualdades de fato e
reclamam a desigualdade (legítima) de direito (PIERUCCI, 1990, p. 11; 2000, p.
19). Conforme sustenta,
para a direita [...] o discurso que afirma as diferenças [...] é o discurso
inaugural, a enunciação fundante, a evidência primeira [...]. Os
mecanismos que se seguem a esta constatação [...] das diferenças [...] é
que vão transformá-la numa tomada de posição racista [...] excludente e
destrutiva da(s) diferença(s) selecionada(s) como alvo (1990, p. 13; 2000,
p. 27).

Citando pesquisa de Pierucci, ao resenhar o livro de Safatle (2018),


Carla Rodrigues sustenta que o campo conservador é “devoto da diferença”
(2014, p. 369). Contrariamente ao que possa se pensar, o racismo não é a
rejeição, “mas a obsessão com a diferença” (PIERUCCI, 1990, p. 12; 2000, p.
26). Trata-se, o racismo, como qualquer hierarquização de direita, da defesa e
exaltação da diferença, mas da repulsa e submissão do diferente (1990, p. 13;
2000, 27). Ainda mais, a defesa da diferença é a base para a rejeição do
227

diferente. Aqueles que rejeitam o diferente, e visam submetê-lo ao seu


domínio, são os que mais defendem e enaltecem a “diferença”.
O que a direita e os opressores rejeitam, não é a constatação da
diferença (sob a qual justificam a desigualdade), mas o “diferente”, no fundo
rechaçando a ideia de igualdade entre diferentes. Desta forma, a defesa da
“diferença”, por sobre a defesa da “igualdade”, via de regra, vem fundar o
combate do “diferente”. Quem enfatiza e exalta as diferenças tende a
abandonar, ou até a condenar, a luta pela igualdade, focando na manutenção,
ou na alteração dos polos, da desigualdade e opressão.
Ainda mais, conforme Pierucci (1990, p. 13; 2000, p. 27-28), a direita e
os opressores radicalizam a diferença, e a desigualdade nela justificada, ao
concebê-la de forma “essencialista”, ou seja, fundada em bases biológicas
(como o racismo e o sexismo) ou culturais (como a homofobia e a xenofobia).
Desta forma, o que é a “exaltação da diferença”, pela direita, espelha-se
na defesa do “direito à diferença” ou do “respeito às diferenças”, por parte da
esquerda (pós-moderna). Num lado ou noutro do espelho, a igualdade e a
diferença são apresentada como alternativas. A direita escolhe a diferença
rechaçando a igualdade; a esquerda (pós-moderna) prioriza o direito à
diferença secundarizando a luta pela igualdade (ver PIERUCCI, 1990, p. 14-15;
2000, p. 29).
Funda-se aqui, à direita e à esquerda, um (falso) antagonismo entre
diferença vs. igualdade, onde o campo da direita, moralista, conservadora ou
reacionária, enfatiza a diferença para justificar a desigualdade, ou, no campo
da esquerda identitarista pós-moderna, exalta-se a “identidade” (corolário da
diferença). Neste caso, a defesa da diferença envolve, no caso da direita, um
projeto anti-igualitário, enquanto que para a esquerda representa um projeto
“identitarista”. Desta forma, segundo Pierucci, “a focalização na diferença
acaba roubando perigosamente a cena da igualdade, posta sempre já como
antítese” (1990, p. 27; 2000, p. 47).
A esquerda fundada na “lógica identitarista” pós-moderna, escolhe o
caminho da luta pela defesa do direito à diferença, contida no projeto
“identitarista”, deixando em segundo plano o projeto “igualitarista”. Este é,
conforme Pierucci, o “efeito perverso por excelência do enfoque na diferença
228

[...] como bandeira de luta dos movimentos de esquerda” (1990, p. 14; 2000, p.
28). E, continua,
daí que esta atmosfera pós-moderna que hoje muitos de nós respiramos
nos ambientes de esquerda, essa onda de celebração neobarroca das
diferenças, de apego às singularidades culturais, de apologia da
irredutibilidade das particularidades e especificidades culturais, sociais e
ambientais, tudo isso assusta muito pouco as cabeças de direita [...].Trata-
se de um discurso absolutamente palatável e familiar à direita popular
(1990, p. 14; 2000, p. 28-29).

É desta forma, como afirma Bosco, que “a lógica identitária [acaba]


servindo, aqui, para a legitimação do mais tradicional discurso dos
preconceitos. Assim, a defesa da identidade [como corolário da diferença] corre
o risco de realimentar a desigualdade, pois [como afirma Rodrigues a partir de
Pierucci, ibidem] ‘a rejeição da diferença vem depois da afirmação enfática da
diferença’” (BOSCO, 2017, p. 84).
Porém, conforme aponta a historiadora Joan Scott (apud PIERUCCI,
1990, p. 19; 2000, p. 36; BOSCO, 2017, p. 85 e RODRIGUES, 2014, p. 369), “é
falsa a disjuntiva entre igualdade e diferença”, e desta maneira “não se deve
nem abandonar o direito à diferença, nem o direito à igualdade” (BOSCO,
2017, 85). Afirma Scott que se igualdade e diferença acabaram se
“cristalizando nos termos de uma disjuntiva ‘ou...ou...’”, “na verdade, a própria
antítese (igualdade-versus-diferença) oculta a interdependência dos dois
termos, porque a igualdade não é a eliminação da diferença, e a diferença não
obsta a igualdade” (apud PIERUCCI, 1990, p. 19; 2000, p. 36). Para ela é
necessário “que se desconstrua a oposição binária igualdade/diferença”, e
“uma vez desconstruida a antítese igualdade-versus-diferença, será possível
não só dizer que os seres humanos nascem ‘iguais, mas diferentes’, como
também sustentar que ‘a igualdade reside na diferença’” (apud PIERUCCI,
1990, p. 26; 2000, p. 46).
Assim, os grupos ou movimentos subalternos, e a esquerda (radical) em
geral, mais do que reivindicar o direito à diferença, deveriam priorizar as
baterias contra a desigualdade que se expressa tanto nas relações de
opressão como de exploração. Não se trata de abandonar o direito à diferença,
trata-se de eliminar sua centralidade ou exclusividade, focando na igualdade,
pois, as lutas exclusivamente identitárias, a partir da “lógica identitarista”, que
demandam exclusiva ou centralmente o direito à diferença, mesmo sendo uma
229

demanda justa e necessária, no entanto, acabam contribuindo para a


manutenção da desigualdade e opressão.
O “igualitarismo” se funda numa sociedade de diferentes sob condição
de igualdade social.
Já o “identitarismo” se funda no direito à “identidade”, que é o direito à
“diferença”. Assim, garantir o direito à “identidade” (e à “diferença”) passaria por
eliminar a opressão sobre a “minoria”; porém, na medida em que, numa lógica
“essencialista” (como a assumida na “lógica identitarista” pós-moderna), se
concebe a “identidade” a partir de uma necessária e natural relação de
opressão pelo “diferente”, então, paradoxalmente, para garantir o direito à
“identidade” seria necessário eliminar (ou submeter) o “diferente”.
Paradoxalmente, a afirmação do “direito à diferença”, se funda, no projeto
identitarista, na eliminação do diferente, concebido como necessariamente
opressor, inimigo, ameaça, ou na sua submissão, perpetrando a opressão
(considerada da natureza da relação polarizada) mas no sentido contrário.
Ora, contrariamente a esse “essencialismo identitarista”, por um lado,
historicamente a luta do movimento feminista foi travada justamente em torno
da superação da diferença de papeis sociais atribuídos por sexo, visando a
igualdade de gênero. Por outro, boa parte dos movimentos antirracistas tem
lutado pela superação das diferenças raciais, ou até pela superação do próprio
conceito de “raças”.
Claro que os grupos ou coletivos “identitários” podem ter necessidades
específicas – seja pelas suas próprias condições – como o período de
amamentação de uma mãe –, seja justamente pela situação ou relação de
opressão, fundando uma secular desigualdade – como o trabalhador negro
numa sociedade que escravizou o negro por séculos –, exigindo medidas
especiais (direitos especiais ou políticas e ações corretivas, compensatórias ou
reparadoras), tratando desigualmente os desiguais (o que veremos em
seguida). Assim, as lutas particulares pelo direito à diferença, reforçamos, são
justas e necessárias; porém, constituem lutas parciais e de curto prazo, que a
esquerda (radical e emancipatória) precisa articular numa luta estrutural e de
longo prazo.
Neste sentido, afirma Rodrigues, ao se referir às lutas feministas, que
“ao mesmo tempo que pretendia garantir a universalidade dos direitos entre
230

homens e mulheres, também lutava para que se reconhecessem as diferenças,


a fim de atender às ‘necessidades específicas’” (2012, p. 369). Desta forma, na
medida em que “igualdade” e “diferença” não são expressões antitéticas,
portanto alternativas, e sim complementares, a autora entende que “o direito à
diferença [...] não deveria ser incompatível com o direito à igualdade” (ibidem).
Ao contrário, continua, “antes de se reivindicar a diferença, tem sido preciso
que as mulheres” reivindicassem “igualdade – de direitos civis, como o voto
que mobilizou as sufragistas, de direitos trabalhistas, como salários
equivalentes para funções iguais” (ibidem).
Não se trata, portanto, de anular as diferenças (pessoais ou coletivas),
mas de focar as lutas no projeto societário baseado na igualdade (social). Não
o projeto pós-moderno do “identitarismo”, que pressupõe focar na diferença,
mas o projeto igualitarista, que preserva as diferenças numa condição de
igualdade (suprimindo tanto a desigualdade econômica quanto a opressão).
Uma luta pela universalidade de direitos, ou seja, pela igualdade social,
não deve excluir as lutas particulares por direitos que atendam certas
especificidades ou visem compensar certas desigualdades de determinados
coletivos (“identitários”). No mesmo sentido, as lutas por estes direitos
específicos não deve se dissociar das lutas por direitos universais, pela
igualdade social, pela transformação estrutural.
É neste sentido, a partir do questionamento às políticas da diferença,
que Safatle afirma “a urgência da esquerda em colocar novamente suas lutas
sob a bandeira da igualdade radical e da universalidade, abandonando
qualquer tipo de veleidade comunitarista ou de entificação da diferença” (2018,
p. 34).
Podemos dizer, então, que uma coisa é a defesa da igualdade (social)
entre diferentes – diferentes sexos, etnias, religiões, nacionalidades etc. – e o
combate à opressão e discriminação; porém, outra muito distinta é a
eliminação/submissão do diferente, como promove a lógica (ou tática)
polarizadora e punitivista (numa infundada equiparação com a contradição de
classes, o que veremos no capítulo 7). Superar a desigualdade não equivale a
eliminar os diferentes (ou as diferenças). Deve-se superar a desigualdade
(social) sem eliminar as diferenças (pessoais) ou submeter o diferente. A luta
antiopressiva deve ser uma luta pela igualdade, não pela eliminação ou
231

submissão do diferente – mesmo que esse “diferente” ocupe o lugar de


opressão, visa eliminar a relação de opressão.
As lutas e o projeto igualitarista, que visam uma sociedade de igualdade
social entre os diferentes, combinam elementos e aspectos específicos no
processo das lutas particulares (antiopressivas, ou até identitárias) com um
horizonte universalista. O projeto e as lutas igualitaristas, por uma sociedade
emancipada, não só permite, mas exige as lutas específicas, particulares,
antiopressivas, ou “identitárias”, que no curto prazo tenham o objetivo de
reparação e de compensação, ou de acesso a bens e serviços pelos grupos
subalternos. Porém, este projeto igualitarista e suas lutas não se sustentam na
“lógica identitarista” pós-moderna, de polarização social por “identidade”, num
processo de pessoalização das ações e autonomização das mesmas e de
antagonização dos diferentes.
A questão central é que as diferenças entre sujeitos em torno de
“identidades” não devem nem podem ser suprimidas. Os diferentes sempre
permanecerão diferentes em relação às suas preferências afetivas e sexuais,
religiosas, políticas, em relação às suas raízes e origens culturais, linguísticas,
regionais, em relação às suas condições étnico-raciais, de gênero etc. As lutas
identitárias não devem, e nem podem, eliminar as diferenças entre os sujeitos.
Portanto, se não podem eliminar as diferenças entre os sujeitos, não deveriam
ver o diferente como naturalmente inimigo, antagônico, adversário, pois isso
exigiria eliminar o diferente, e isto não tem qualquer relação com uma luta
humanista e emancipatória. O que visa eliminar é a opressão, a discriminação,
a desigualdade, a cultura segregacionista, mas não o indivíduo diferente. Pode,
e deve, haver igualdade entre diferentes, entre diversas “identidades”, se
eliminado o sistema de opressão, discriminação e desigualdade, se eliminada a
cultura segregacionista.
Isto é, se trata de que as diferenças naturais, culturais, pessoais,
nacionais, biológicas, religiosas e de valores que existem (algumas
irremediavelmente) entre as pessoas, não constituam pretextos e fonte para a
desigualdade social e para relações de opressão. Se trata de garantir o direito
à diferença num cenário de igualdade social. Uma sociedade emancipada de
sujeitos diferentes mas iguais.
232

Uma sociedade igualitária (sem desigualdade social) não equivale a uma


sociedade sem diferenças entre os sujeitos.
Porém, enquanto a desigualdade (econômica, política e relacional)
persistir, a diferença (quando a partir dela se produz desigualdade) entre
grupos sociais requer de um tratamento diferenciado. Vejamos.

B) Há que tratar desigualmente os desiguais, mas não os diferentes.


Como vimos, devemos focar as lutas emancipatórias na desigualdade,
não na diferença. Assim, quando há desigualdade, devem se buscar
mecanismos para reverter ou compensar a mesma.
Neste sentido, conforme ensina o jurista e escritor Rui Barbosa, no seu
“Oração aos Moços”:
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos
desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social,
proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da
igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura.
Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria
desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos
conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a
cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se
todos se equivalessem (1999, p. 26).

Na sua formulação, os iguais devem ser tratados igualmente, porém,


quando há desigualdade exige-se, em nome da igualdade superior e geral, um
tratamento específico desigual: tratar desigualmente os desiguais. A legislação
trabalhista é exemplo notório disto.
Por seu turno, Vladimir Safatle sustenta que uma Nação ou um Estado:
devem ser assim absolutamente indiferentes às diferenças, no sentido de
aceitá-las todas e esvaziar a afirmação da diferença de qualquer conteúdo
político.
O espaço do político não deve ser marcado pela afirmação da diferença,
mas pela indiferença absoluta em relação a qualquer exigência identitária
(SAFATLE, 2018, p. 31).

A afirmação do filósofo cabe, e com ela concordamos, em dois sentidos:


a) se falarmos de ênfase nos processos de organização, articulação e lutas
emancipatórias, isto é, a ênfase deve estar na igualdade social (econômica e
política) num contexto de diferenças pessoais, grupais e culturais; b) se
falarmos de ideal social a alcançar, isto é, se descrevermos o projeto societário
como o de uma sociedade de igualdade social na diversidade e
233

multiculturalidade de indivíduos – como afirma o autor: “uma sociedade


verdadeiramente multicultural é uma sociedade radicalmente universalista e
indiferente às diferenças” (idem, p. 35). Porém, a afirmação não cabe, e dela
discordamos, ao tratar de uma sociedade, como a capitalista, machista,
patriarcal, que é estruturalmente desigual, e onde a garantia do Estado tratar a
todos com iguais já está presente, formal e juridicamente, nas determinações
constitucionais de muitas nações, estabelecida como igualdade cidadã. 52 Para
além dessa igualdade formal e jurídica de cidadania, a real desigualdade
econômica, política, racial, de gênero, cultural, religiosa, é gritante. Assim,
neste contexto não basta o Estado ser “indiferente às diferenças” quando essas
diferenças são a base e suporte da desigualdade. É preciso que o Estado e a
Nação tratem “desigualmente os desiguais”. Porém, voltamos aos pontos de
acordo com o autor, sem tornar esta questão o eixo central da luta política, e
sem tornar esta demanda, que deve ser transitória e tática, numa demanda
permanente, estrutural, estratégica, ou seja, sem transformar algo que deve ser
um meio e um instrumento, numa finalidade.
Isto é, tratar desigualmente os desiguais não significa, por um lado,
eliminar as diferenças, mas superar (contrarrestando ou compensando) a
desigualdade realmente existente. Também não se trata, por outro lado, de
uma ação que oponha indivíduos uns contra outros, eliminando o diferente,
mas que procure eliminar ou diminuir a desigualdade.
Cabe observar uma importante questão neste processo. A formulação
significa “tratar desigualmente os desiguais”... não de “tratar desigualmente os
diferentes” (por “identidades”).
Isto é, o tratamento especial (na legislação, políticas e ações especiais),
que suspende a universalidade do direito e da política, deve ser aplicado em
função, não da “diferença”, mas da “desigualdade”.
Não é a mera “diferença” entre as pessoas (“identidades” diferentes) o
que deve justiçar o tratamento desigual. Esta é a opção conservadora, dos
grupos dominantes: justificar um tratamento desigual (no salário, no acesso ao

52 O Art. 5º da Constituição brasileira estabelece que “Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade”. Ver em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>;
acesso em ago. de 2020.
234

estudo, na tomada de decisões etc.) em função da mera diferença (de gênero,


de raça ou etnia, de religião, de nacionalidade etc.). Ao contrário, é a existência
de “desigualdade”, o que para os setores progressistas justifica substituir o
direito universal pelo direito específico, “identitário”, pelo “tratamento desigual”.
Porém, como também vimos, a partir de certas diferenças (raciais, de
gênero, de orientação sexual, culturais, religiosas etc.) se fundam relações de
opressão e desigualdade. Decerto, pode haver desigualdade a partir das
diferenças (por “identidades”), quando a “diferença” entre os sujeitos se
expresse numa situação ou relação de opressão. Nestes casos, a diferença
(pessoal) traz consigo a desigualdade (social), e portanto, ela deve ser objeto
de ações e políticas específicas, tratando desigualmente os
diferentes/desiguais, mediante leis, política e ações orientadas a compensar ou
diminuir as desigualdades estruturais.
Isto é, quando (e apenas quando) as diferenças (identitárias) são o
suporte das desigualdades, “tratar desigualmente os desiguais” significa,
simultaneamente, “tratar desigualmente os diferentes”.
A desigualdade, portanto, tem origem e é sustentada tanto na
contradição de classes e nas relações de exploração, como também nas
diferenças identitárias onde há relações de opressão.
Esta abordagem é chamada, na atualidade, por Silvio Almeida de
“discriminação positiva”, que consiste em um “tratamento diferenciado a grupos
historicamente discriminados com o objetivo de corrigir desvantagens causadas
pela discriminação negativa”, como é o caso, segundo o autor, das “políticas de
ação afirmativa” (2019).
Desta forma, conforme vimos (item 4.2), as ações ou políticas
“afirmativas”, fundadas no princípio da “discriminação positiva”, visam reverter
ou compensar a desigualdade real, mesmo no contexto de uma abstrata e
formal igualdade jurídica, procurando a igualdade real, mediante mecanismos
que garantam o acesso igualitário, aos estudos, à saúde, ao emprego, à
política etc. Isto é, é para garantir a igualdade (constitucional) que, num
contexto de desigualdade, opressão e discriminação reais, se desenvolvem
ações fundadas no princípio da “discriminação positiva”, ou no tratamento
desigual dos desiguais/diferentes.
235

Porém, estas “ações afirmativas”, compensatórias ou reparadoras,


certamente importantes e necessárias no curto prazo, no entanto, não devem
substituir ou se sobrepor à luta pela igualdade, pela eliminação da
discriminação e da opressão estruturais. É preciso, como já afirmamos, ter os
cuidados para que a política de tratamento desigual aos desiguais não acabe
por confirmar e legitimar os mesmos fundamentos da desigualdade que visa
combater.
A partir das reflexões de Safatle (2018) sobre um “Estado indiferente”
em relação às diferenças, Rodrigues distingue dois tipos de situações nas
quais o Estado deve ser mais presente e ativo, ou mais indiferente em torno
das diferenças. Assim, por um lado, no caso do casamento entre pessoas do
mesmo sexo, a “indiferença” do Estado, não regulando ou impedindo a
liberdade de escolha, universalizando o direito ao matrimônio para todos,
independentemente de orientação sexual, possibilitaria garantir esta demanda
específica. Por outro lado, e como questão datada em função da especificidade
da realidade, no caso da violência doméstica contra a mulher, o Estado, por via
da “Lei Maria da Penha”, deve ter uma presença e regulação, um direito não
universal, para atender esta questão específica (RODRIGUES, 2014, p. 372).
Isto é, o tratamento desigual a pessoas desiguais/diferentes,
substituindo o direito (e as políticas) universal pelo direito (e políticas) orientado
ao grupos particulares, “identitários”, deve existir quando a circunstâncias
exijam, quando a desigualdade seja oriunda das diferenças. Trata-se, portanto,
de um processo necessariamente datado (durante a existência da
desigualdade). Trata-se de uma ação compensatória (desigual em sentido
contrário). Porém, mirando no horizonte a igualdade social e a universalidade
do direito, estas sim como fim último.
Assim, por um lado, esta prática, certamente importante num
enfrentamento a curto prazo, em relação às seculares desigualdades raciais e
de gênero, por exemplo, precisaria ser estendida e alcançar outros grupos
sociais oprimidos ou subalternos, tais como os povos originários, imigrantes,
além da população trabalhadora de precárias condições sociais etc. E por outro
lado, esta prática, importante como mecanismo compensatório no curto prazo,
não pode constituir a longo prazo uma forma de naturalização e reprodução
das desigualdades que pretende combater.
236

Isto é, se é preciso tratar desigualmente os desiguais,53 como propõe


Rui Barbosa, isto deve ser feito com o cuidado e a sabedoria de não reforçar o
fundamento da relação de opressão e desigualdade estruturais. Ou seja, de
não constituir um mecanismo compensatório, por um lado, que, no entanto, e
por outro lado, reproduza e consolide a desigualdade estrutural que almeja
superar.
As desigualdades sociais têm aspectos específicos (particulares a cada
“identidade”), mas têm também uma dimensão estrutural e universal.
Na desigualdade social, na desigual distribuição e acesso à riqueza, e
por derivação ao conjunto de bens e serviços, há aspectos próprios das
desigualdades por “identidades” – de gênero, racial, religioso, de orientação
sexual etc. –, más há uma dimensão universal, que reúne todos eles num
mesmo lado: o lado que não acumula riqueza, e que portanto se vê privado do
acesso aos bens e serviços produzidos socialmente. E esse caráter universal é
dado pelo lugar que cada um ocupa nas relações que, na nossa sociedade, o
MPC, se estabelecem para produzir a riqueza, e que determinam a parte dela
com que cada um vai ficar: as relações de produção, a relação capital-trabalho
(da qual trataremos no item 6.3).
O quê vamos priorizar – os aspectos específicos ou a dimensão
universal, ou a combinação de ambos – é que é a questão central da política e
do direito, para não absolutizar a diferença (ou “identidade”), nem despreza-la.
Assim, uma política ou um direito universais, nos seus fundamentos,
podem sim conter, mesmo que pontualmente ou transitoriamente, questões
específicas que atendam os grupos (ou “identidades”) subalternos, e que
exijam esse “tratamento desigual”.
Isto é, o “tratamento desigual para os desiguais”, quando ele é
necessário como elemento compensador, ou como forma de alcançar a (ou se
orientar à) igualdade, não é incompatível com o princípio universalista. Ou seja,

53 Registremos que, para Hayek, principal “fundador” do neoliberalismo, tratar


desigualmente os desiguais representa um privilégio, por um lado, e uma forma de inibir a
liberdade, por outro. Segundo o autor, “qualquer política consagrada a um ideal substantivo de
justiça distributiva leva à destruição do Estado de Direito”, na medida em que “para
proporcionar resultados iguais para pessoas diferentes, é necessário tratá-las de maneira
diferente”, constituindo assim um “privilégio” (HAYEK, 1990, p. 91; também em MONTAÑO,
2002, 82), complementando que “um governo que vise a assegurar a seus cidadãos posições
materiais iguais [...] teria de tratá-los muito desigualmente” (HAYEK, 1985, p. 103; também em
MONTAÑO, 2002, p. 83).
237

tratar especialmente a “identidade” subalterna, quando necessário, não se


antagoniza a um projeto igualitarista.
Porém, a “lógica identitarista”, que absolutiza a dimensão específica,
isolando-a tanto das outras como da dimensão universal, transformando os
meios em fins, ela sim é incompatível com o igualitarismo, com uma luta por
políticas e direitos universais.

6.2- As “identidades” são historicamente determinadas,


conformando manifestações da “questão social”.
Nenhum fenômeno, nenhuma opressão, desigualdade ou discriminação
e nenhuma “identidade” são a-históricas, a não ser quando consideradas de
forma abstrata. Todas elas, quando abordadas como questões concretas,
mesmo pré-existindo ao longo das diversas civilizações, não são
independentes do sistema social no qual existem e se desenvolvem: a ordem
burguesa e o Modo de Produção Capitalista.
Contrariamente a isto, conforme o autor pós-moderno Boaventura de
Sousa Santos, “a opressão e a dominação têm muitas faces” e “nem todas são
diretamente um efeito do capitalismo global, como a discriminação sexual, a
discriminação étnica ou a xenofóbica” (2005, p. 23).
Ora, é evidente que elas existem antes da sociedade capitalista, mas
certamente o capitalismo as refuncionaliza e determina. É o que sustenta
Almeida, quando afirma que os “conflitos raciais, sexuais, religiosos, culturais e
regionais” “podem remontar a períodos anteriores ao capitalismo”, porém,
neste sistema eles “tomam uma forma especificamente capitalista” (2019, p.
97).
Pensar estas formas de opressão sem pensá-las historicamente
situadas e determinadas constitui uma representação abstrata dos
fenômenos.54 Para superar esta visão abstrata e lhes atribuir concretude

54 Marx trata a abstração como as particularidades mais simples da realidade (1977,


p. 218). Não porque estas particularidade não existam. Elas são reais, como a “mercadoria”, a
“população”, o “dinheiro” etc. Mas porque elas não existem isolada e independentemente da
totalidade social. Não há mercadoria, dinheiro, mais-valia, fora da realidade como um todo, fora
da sociedade que a contêm e determina. Assim, por exemplo, “a população é uma abstração
se desprezarmos [...] as classes sociais de que se compõe [...] se ignorarmos os elementos em
que repousam” (ibidem). Neste sentido, considerar as identidades de gênero, raça, religião etc.,
238

histórica precisam ser historicamente situadas, compreendidas dentro e em


função de um sistema social específico. Vejamos alguns exemplos disto.
A pobreza decerto existia bem antes do capitalismo, mas enquanto nas
sociedades pré-capitalistas ela está relacionada fundamentalmente à escassez,
no capitalismo a pobreza não é determinada pela escassez, dada a abundância
produtiva deste sistema, mas pela exploração e acumulação capitalista (ver
MONTAÑO, 2012).
Também a questão racial existe muito antes da sociedade burguesa,
constituindo o fundamento das sociedades escravistas, das relações de
escravidão, das suas relações de produção (a raça determinando quem é
escravo e quem é proprietário dele). Já na sociedade capitalista (mesmo com
os desdobramentos herdados do escravismo, onde o trabalhador negro
ingressa na classe trabalhadora assalariada mas portando toda a herança de
opressão e preconceito daquele contexto), a questão racial assume um
fundamento inteiramente diferente, ampliando e complexificando a exploração
e outras formas de desigualdade e opressão, mas sem funda-la (ver ALMEIDA,
2019).
A discriminação sexual, própria das sociedades patriarcais, também é
bem anterior ao capitalismo. No entanto, como é sabido a partir do debate
feminista, o “gênero” é uma construção social, e portanto jamais pode ser
concebido como algo a-histórico, independente do cenário, do contexto, do
sistema social em que hoje se desenvolve; na sociedade capitalista a questão
de gênero assume contornos próprios particulares (ver ENGELS, 2002).
O problema ambiental também é um desafio muito anterior ao
capitalismo – que o digam os habitantes de Rapa-Nui (Ilha de Páscoa) e os
Maias que povoaram as grandes cidades como Tikal, Chichen-Itzá etc. Mas na
sociedade capitalista assume níveis dramáticos e claramente relacionados à
produção e circulação de bens de consumo, de mercadorias, voltada para o
lucro e acumulação capitalistas (ver FOLADORI, 1996; e FOSTER, 2010).
Estes fenômenos não evoluem autonomamente ao longo dos tempos,
com independência dos contextos históricos, das relações econômicas, dos
regimes políticos, dos Estados etc. Ao contraio, é, dentro de cada cenário

sem considerar a totalidade social concreta que a contêm e determina, constitui uma
abstração.
239

histórico e em função do modo de produção e do tipo de organização


econômica e política, das classes sociais fundamentais e das relações de
produção e distribuição de riqueza, que todas estas questões – raciais, de
gênero, ambientais etc. – são refuncionalizadas e reconfiguradas, funcional e
instrumentalmente adequadas a cada contexto histórico.
Assim, podemos afirmar que a pobreza e as questões raciais, de gênero,
ambientais etc., de hoje, não se sustentam nos mesmos fundamentos em que
se baseavam em sociedades pré-capitalista. Elas não são, portanto, uma
evolução autodeterminada e independente da estrutura social, mas uma
reconstituição a partir da nova sociedade capitalista, refuncionalizada a partir
das configurações desta sociedade (ver MONTAÑO, 2013, p. 392-397).
O mesmo acontece com as classes sociais e as relações de produção.
Também as classes fundamentais na sociedade capitalista não correspondem,
nem evoluem das classes em sociedade pré-capitalistas. O trabalhador
assalariado não é uma evolução do trabalhador escravo, por exemplo, mesmo
que em contextos como o Brasil individualmente um trabalhador escravo possa
ter se tornado um assalariado. São classes diferentes em sistemas e relações
de produção diferentes, e desempenhando papeis e funções diferentes (ver
MARX e ENGELS, 2010, p. 40 e ss.; e DOS SANTOS, 1987).
Isto é, não é a evolução real das categorias e fenômenos (ou, neste
caso, das “identidades”) ao longo dos diferentes Modos de Produção e
organizações políticas (e independentemente deles) o que vai nos iluminar
sobre os mesmos; ao contrário, é o lugar que ocupam e a função que
desempenham essas categorias ou esses fenômenos no Modo de Produção
Capitalista, que os determina concretamente, o que nos permite a clara
compreensão dos mesmos. Ou dito de outra forma: não é a fase anterior do
fenômeno, mas seu lugar e função na sociedade atual, o que permite a
compreensão dos fundamentos do mesmo. O fundamento de cada fenômeno
ou categoria, conforme Marx, não é dado pela fase ou estágio anterior, mas
pelo “lugar diferente que estas mesmas categorias [ou fenômenos] ocupam em
diferentes estágios de sociedade” (MARX, 1977, p. 226; e 2011, p. 61).
O ponto de partida da análise das categorias ou fenômenos (ou até, das
“identidades”) é, portanto, a realidade concreta, o sistema social (geral), o
Modo de Produção e de organização política, que contêm e determina todas as
240

categorias, processos e fenômenos que no seu interior se desenvolvem. Assim


sendo, não é a evolução autônoma de cada categoria ou fenômeno ao longo
da história, mas sua inserção na totalidade do sistema social (concreto), o que
constitui o ponto de partida da análise histórica para Marx: a “análise concreta
da situação concreta”, conforme afirmara Lênin (1989, p. 284).
Aqui, cada categoria (fenômeno, ou categoria identitária), se
desarticulados da totalidade, do sistema social, das relações com outras
categorias e determinações, enfim, se separada da história concreta, expressa,
conforme Marx, uma abstração. Se tomarmos, por exemplo, o “trabalho”,
enquanto categoria simples, enquanto abstração, ele existiu em todas as
sociedades, portanto, constitui uma categoria ou fenômeno abstrato, sem
concretude histórica.
Assim, da mesma maneira que o pensamento pós-moderno concebe as
“identidades” de forma abstrata, sem concretude histórica, para Marx a
chamada “economia nacional”, no pensamento burguês, trata o trabalho de
forma abstrata, sem concretude histórica, ao longo das épocas e ignorando as
particularidades de cada modo de produção determinado, como um
desenvolvimento linear e autoderminado. Segundo o autor:
A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável, na
medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum poupando-
nos assim da repetição. Entretanto, esse Universal, ou o comum isolado
por comparação, é ele próprio algo multiplamente articulado, cindido em
diferentes determinações. Algumas determinações pertencem a todas as
épocas; outras são comuns apenas a algumas. [Enquanto certas]
determinações serão comuns à época mais moderna e à mais antiga.
Nenhuma produção seria concebível sem elas (MARX, 2011, p.41).

Conforme ele afirma, tiradas as particularidades do processo de


produção de cada época histórica, de cada modo de produção:
a diferença entre o capitalista e o rentista fundiário (Grundrentner)
desaparece, assim como entre o agricultor e o trabalhador em manufatura,
e [...], no final das contas, toda a sociedade tem de decompor-se nas duas
classes dos proprietários e dos trabalhadores sem propriedade (MARX,
2004, p.79).

Porém, “as assim chamadas condições universais de toda produção


nada mais são do que esses momentos abstratos, com os quais nenhum
estágio histórico efetivo da produção pode ser compreendido” (MARX, 2011,
p.44). Desta forma, a visão histórica do pensamento burguês sobre o trabalho
241

nada nos diz sobre os fundamentos do Modo de Produção Capitalista (MPC). E


assim sendo, a exploração de mais-valia fica oculta, não compreendida
(MARX, 2004, p. 82).
Contrariamente a isso, para Marx, é importante estudar a categoria
“trabalho” (e os fenômenos a ele ligados) a partir do Modo de Produção
concreto, do sistema social que o determina e nele está inserido, nas múltiplas
relações que estabelece com outras determinações e categorias. É neste
sentido que afirma o autor:
Este exemplo do trabalho mostra com toda a evidência que até as
categorias mais abstratas, ainda que válidas – precisamente por causa da
sua natureza abstrata – para todas as épocas, não são menos, sob a
forma determinada desta mesma abstração, o produto de condições
históricas e só se conservam plenamente válidas nestas condições e no
quadro destas (MARX, 1977, p. 223 – grifos nossos).

Como categoria abstrata, o trabalho é visto como processo ao longo e


independentemente dos sistemas sociais específicos, do modo de produção
determinado: o trabalho é aqui uma abstração. Como categoria concreta, o
trabalho é historicamente determinado pelo modo de produção específico.
Desta forma, se o “trabalho”, enquanto categoria abstrata, existe em todas as
sociedades, justamente por isto esta categoria nada nos diz sobre o processo
de produção, as relações de produção e as formas específicas de apropriação
e distribuição da riqueza no capitalismo. Para entender os fundamentos da
sociedade capitalista é preciso compreender o “trabalho” como uma categoria
inserida e determinada pelo Modo de Produção Capitalista (MPC), como uma
categoria que assim assume concretude histórica. O “trabalho” nas suas
múltiplas determinações na sociedade concreta, no MPC, se enriquece assim
de sentido histórico. O “trabalho”, desenvolvido e compreendido na ordem
burguesa, deixa seu caráter de categoria abstrata e assume concretude
histórica: passa a ser “trabalho assalariado”, “trabalho produtor de mais-valia”,
“trabalho subsumido ao capital”, “trabalho explorado”, “trabalho alienado”,
“trabalho fundado na mercantilização da força de trabalho” etc., e, portanto, só
válido para o “trabalho” no MPC, assumindo assim, esta categoria (agora
concreta e histórica), força heurística para explicar os fundamentos da ordem
social burguesa.
242

Para o autor, são as condições que o trabalho assume no MPC o que


determina seus fundamentos atuais, e não sua evolução das formas sociais
anteriores. Assim:
Um dos pressupostos do trabalho assalariado e uma das condições
históricas do capital é o trabalho livre e a troca de trabalho livre por
dinheiro [salário] [...]. Outro pressuposto é a separação do trabalho livre
das condições objetivas de sua efetivação – dos meios e do material de
trabalho [dos meios de produção] (MARX, 1985, p. 65).

Portanto, só posso compreender o sentido e função do trabalho na


atualidade se conhecer os fundamentos do atual MPC (que o funda e
determina); da mesma forma, compreender tais fundamentos exige a clara
caracterização do sentido do trabalho (livre, assalariado, mercantilizado,
vendido ao capital, produtor de mais-valia, explorado, alienado etc.), que
peculiariza este modo de produção específico. Como poderia compreender o
trabalho se não a partir das determinações estruturais que o fundam? Como
poderia compreender um determinado modo de produção sem caracterizar as
formas concretas que assumem o trabalho e as relações de produção e
apropriação do valor?
Dito de outra forma, o caráter “assalariado”, “explorado” e “produtor de
mais-valia” que assume o trabalho no capitalismo não está contido (nem de
forma embrionária) no trabalho escravo ou no feudal, que o precedem, nem é
uma consequência direta e evolução destes. O trabalho escravo não evolui em
trabalho assalariado! Mas são duas formas diversas de trabalho e de relações
de produção, constituídas a partir de dois diferentes modos de produção,
apresentando – para além do lugar comum de ambos produzirem valores,
mercadorias – fundamentos diferentes em cada ordem social. O trabalho
escravo só pode ser compreendido plenamente no interior do Modo de
Produção Escravista, e o trabalho assalariado só pode ser compreendido
integralmente no contexto do Modo de Produção Capitalista, onde assumem
todas as determinações do seu fundamento.
Por outro lado, assim como o “trabalho assalariado” (fundado na
mercantilização da força de trabalho) não devêm, como uma consequência
necessária, do “trabalho escravo” (fundado na pose e mercantilização do
trabalhador), tampouco o “burguês” (enquanto classe social) é a derivação
inevitável do “senhor do engenho”. É o que sustenta Florestan Fernandes
243

(2006). Conforme esclarece, é um equívoco afirmar que o “burguês” e a


“burguesia”, no Brasil, tenham “surgido e florescido com a implantação e a
expansão da grande lavoura exportadora, como se o senhor do engenho
pudesse preencher, de fato, os papéis e as funções socioeconômicas” do
capitalista na ordem burguesa (2006, p. 32). Para o pai da sociologia crítica
brasileira “não se pode associar, legitimamente, o senhor de engenho ao
‘burguês’ (nem a ‘aristocracia agrária’ à ‘burguesia’)” (ibidem). Tal associação,
sustenta Fernandes, representa “uma espécie de historicismo anti-histórico [...],
como se a história fosse uma cadeia singular de particularidades” (idem, p. 33).
Cada um tem uma função diferenciada e uma forma de apropriação do
valor, a partir da formação socioeconômica, do modo de produção particular e
da organização política a ele funcional. O valor apropriado pelo senhor do
engenho, como excedente econômico, “nada tinha a ver com o ‘lucro’
propriamente dito” do burguês (idem, p. 33). Seus fundamentos, suas funções
sociais, são essencialmente distintos. Portanto, afirma, “nada justificaria
assimilar o senhor do engenho ao ‘burguês’, e é um contra-senso pretender
que a história da burguesia emerge com a colonização” (ibidem).
Um não é o resultado da evolução o outro.
Se no plano individual, um sujeito singular que fora um trabalhador
escravo, com a “Lei Áurea” pode ter se tornado um trabalhador assalariado, ou
um indivíduo que fora “senhor do Engenho” pode ter virado um industrial,
contrariamente, no plano estrutural, das categorias sociais, a escravidão (como
modo de produção) não evoluiu para o capitalismo, nem o trabalhador escravo
evolui no assalariado!
Neste sentido, para Marx, não são as categorias ou os fenômenos mais
simples, abstratos (porque isolados da totalidade), que explicam seu
desenvolvimento histórico, partindo do cenário mais antigo até chegar à
sociedade moderna. Ao contrário, é na sociedade contemporânea que as
categorias assumem concretude, onde elas se complexificam, expressando
mais determinações históricas, articulada à totalidade social.
Assim, o mesmo que tratamos sobre o Trabalho, a classe trabalhadora e
as relações de produção, vale também para analisar as “identidades”, os
grupos sociais, as formas e relações de opressão; eles devem ser
244

compreendidos a partir e em função da totalidade social, do sistema e estrutura


social, que os contêm e determinam.
Isto quer dizer que estes fenômenos, que constituem verdadeiras
manifestações da “questão social” (fundada na contradição capital-trabalho),
ou, no caso que ora nos ocupa, estas “identidades”, mesmo tendo suas
particularidades e especificidades, não podem ser compreendidas, e nem ser
objeto de embates e lutas políticas, à margem e com independência dos
fundamentos da sociedade capitalista (ver RISÉRIO, 2019, p. 61). Ou seja, se,
por exemplo, os gêneros e a questão de gênero são histórica, cultural e
socialmente construídos, é essa “construção” (a totalidade social) que deve ser
combatida e superada, e não apenas os indivíduos que delas são meras
expressões.
Em síntese, não é apenas o secular patriarcado que funda o machismo e
a desigualdade de gênero hoje. Não é apenas a escravidão que explica a
questão racial hoje. Não é apenas a relação necessidade/consumo que
determina a crise ambiental hoje. É muito mais como a sociedade capitalista
absorve todas essas questões e as refuncionaliza, determinando seus novos
fundamentos, funcionais à ordem burguesa, ainda mais em contexto de crise e
transformações neoliberais, o que explica todas estas questões.
Almeida, ao prefaciar a edição brasileira do livro de Haider, afirma que
para o autor, a “armadilha” do “identitarismo” não está na constatação das
“identidades” realmente existentes, mas em tratá-las com se elas fossem
independentes e exteriores às “determinações materiais da vida social” (in
HAIDER, 2019, p. 9). Assim, agora nas palavras do autor, a “‘identidade’ é um
fenômeno real”, que “corresponde ao modo como o Estado nos divide em
indivíduos, e ao modo como formamos nossa individualidade em resposta a
uma ampla gama de relações sociais”, porém, continua, a “identidade” é uma
verdadeira “abstração”, “que não nos diz nada sobre as relações sociais
específicas que as constituíram” (idem, p. 35). Assim, ao tratar do movimento
dos Panteras Negras nos EUA, o autor afirma que para eles, “falar de racismo
sem falar de capitalismo é esconder o que é necessário para que o povo tenha
de fato o poder em suas mãos” (idem, p. 44).
Em sentido semelhante, Malik afirma que “se tratarmos a raça [como
qualquer outra “identidade” particular] como sendo apenas uma ‘identidade’
245

separada de quaisquer determinantes sociais, então ela se torna não uma


relação social historicamente específica, mas um aspecto eterno da sociedade
humana” (in WOOD e FOSTER, 1999, p. 125). Na verdade, complementa, as
“diferenças raciais” são e expressam “relações sociais”, não como meras
“preferências pessoais”, mas como relações historicamente determinadas
(idem, p. 128). Desta forma, conclui, “o pós-modernismo termina efetivamente
por negar por completo relações históricas determinadas – e, dessa maneira,
abandona de todo seu princípio original de que a identidade e o sujeito humano
são socialmente construídos” (ibidem), arrancando os fatos “de seu contexto
vivo” e compreendendo-os “apenas em isolamento” (idem, p. 131).
A questão racial no Brasil atual, por exemplo, não é igual no contexto do
capitalismo do que na sociedade escravista. Hoje os fundamentos que
refuncionalizam esta questão devem ser encontrados, em que pese a herança
cultural e ideológica da escravidão, na sociedade capitalista, que faz com que o
trabalhador negro tenha se tornado assalariado, submetido à exploração
capitalista, mas preservando a opressão e o preconceito do branco do seu
passado, como bem trata Florestan Fernandes em sua análise sobre “Brancos
e Pretos em uma sociedade de classes” (FERNANDES, 1976, p. 305 e ss.).
Por exemplo, a reforma trabalhista de 2017, que estende a terceirização
do contrato de trabalho para as atividades fins, impacta sobremaneira o
trabalhador negro, assim como a trabalhadora mulher. Temos aqui um exemplo
de como a questão particular, a “identidade”, é atravessada, e só pode ser
compreendida em todas suas determinações, pelos fundamentos históricos da
estrutura social em que efetivamente existe e se desenvolve, o modo de
produção capitalista e seus fundamentos e dinâmicas. Igualmente, de como a
questão de classe é complexificada pela análise da múltipla composição
identitária da mesma.
Assim, compreendemos a “identidade”, e suas relações de opressão,
discriminação e desigualdade, como manifestações da chamada “questão
social”.
A pesar de oriundo do pensamento conservador do século XIX, que
visava tratar o “social” como algo isolado dos fundamentos políticos e
246

econômicos,55 o conceito de “questão social” é apropriado dialeticamente pelo


pensamento marxista para designar os fundamentos do capitalismo, expressos
na contradição central entre capital e trabalho, no processo de produzir valor e
nas contradição de interesses e lutas de classes (ver NETTO, 2001;
IAMAMOTO, 2001 e SANTOS, 2012).
Assim, a central “questão social” constitui fundamento das suas diversas
formas de manifestação ou expressões: a pobreza, o desemprego, a fome, a
violência, as relações de opressão etc. Compreender estes fenômenos como
manifestações ou expressões da “questão social” significa, como viemos
considerando neste item para a categoria trabalho e relações de produção,
concebê-los a partir e em função dos fundamentos da contradição capital-
trabalho, ou, o que é o mesmo, dos fundamentos do MPC. Isto é, todos os
fenômenos e relações sociais na sociedade capitalista são refuncionalizados,
reconfigurados, reconstituídos conforme esta ordem social, e portanto,
constituem manifestações particulares, expressões diversas e concretas dos
seus fundamentos, da contradição fundante entre capital e trabalho. Esta última
certamente não as esgota, nem as explica ou determina plenamente, mas
certamente as constitui, determina e explica “em ultima instância”, nos seus
fundamentos.
Assim, como vimos, as questões racial, ambiental, de gênero, de
nacionalidade etc., mesmo preexistindo à sociedade capitalista, são, no
capitalismo reconfiguradas. Portanto, as “identidades” são historicamente
determinadas, e constituem assim manifestações da “questão social”.

6.3- A centralidade da contradição de classe. Exploração,


opressão e desigualdade no pensamento marxista.
Antes de passar, no nosso último capítulo, à consideração da articulação
das lutas identitárias e antiopressivas e as lutas de classes, torna-se
fundamental tratar da centralidade da contradição de classes, o que ela

55 Compreensão esta que trata as “questões sociais” como fenômenos ou problemas


autônomos e diversos, a qual reaparece em pensadores contemporâneos como Robert Castel
e Pierre Rossanvallon, ao falar de uma “nova questão social”.
247

significa e o que não significa, assim como o alcance das categorias de


exploração, opressão, contradição e desigualdade.

A) Classe não é “identidade”, e exploração não é diferença.


A primeira distinção a fazer é entre classe e “identidade”, assim como
entre exploração e opressão, e contradição e diferença.
a) Classe não é “identidade”. Como vimos (item 2.5), o pensamento
pós-moderno identifica a classe como sendo uma “identidade” específica, e a
exploração é reduzida a uma determinada forma de opressão ou de diferença
social.
Na análise crítica marxista, porém, a classe não corresponde a uma
“identidade”. Não o é pelos seguintes motivos:
Primeiramente, porque o real pertencimento a uma classe social (a
“classe em si”) independe inteiramente da identificação ou percepção que o
indivíduo possa ter desse fato. O sujeito (por estar desempregado, por se sentir
integrante à dita “classe média”, por ser um “empreendedor”, um trabalhador
autônomo etc.) pode não se sentir pertencente à classe trabalhadora, não se
identificar com ela, não ter essa autocompreensão; no entanto, para além da
eventual autopercepção dos indivíduos, o seu pertencimento à classe é uma
condição social objetiva.
Isso acontece com o camelô, com o trabalhador “uberizado”,
subcontratado, com o chamado empreendedor, com o “autônomo”, com
indivíduo da “classe média”, com o desempregado, em geral não se entendem
como membros da classe trabalhadora, não tem uma “identidade” ou uma
autopercepção de trabalhador, não tem um sentimento de pertencimento à
classe trabalhadora.
O pensamento marxista diferencia claramente a autoimagem e
percepção subjetivos, do dado da realidade. Isto é, mesmo o indivíduo não se
sentindo e não se identificando com a classe trabalhadora, a sua condição –
dada a necessidade da venda da sua força de trabalho (seja de forma direta ou
indireta), em troca de um salário (seja por tempo ou por peça, ver MARX, 1980,
I, p. 626-647), para sua sustentação – é objetivamente de trabalhador,
pertencente à ampla e variada classe trabalhadora.
248

Assim, por um lado, a “identidade” remete a uma forma de consciência


ou autopercepção que os indivíduos ou coletivos têm de si, em função de
alguma característica ou atributo que possuem e reconhecem conscientemente
como central na sua vida. Contrariamente, e por outro lado, a classe remete a
uma condição social, fundada na necessidade da venda da sua força de
trabalho para participar do processo produtivo e de distribuição da riqueza
social, que independe da consciência ou percepção que o sujeito tenha de si.
Um segundo aspecto, é que a classe social, diferentemente das castas e
dos estamentos, remete a uma forma de estratificação tipicamente econômica
da sociedade, tanto para Marx (1985, p. 1012 e ss.) como para Weber (2012a,
p. 175 e ss.); enquanto a “identidade” representa uma diversidade de aspectos,
condições, atributos, com os quais um indivíduo ou coletivo geram sua
autoimagem e representação social, via de regra a partir de uma dada relação
de desigualdade, opressão ou discriminação.
Em terceiro lugar, a classe não pode ser tratada como uma “identidade”
em oposição ao “diferente”, como acontece nas identidades de gênero, racial,
de orientação sexual, de nação, religião etc. Na questão da classe não há uma
“identidade” de trabalhadores, em oposição aos “diferentes”, os burgueses.
Entre burguesia e proletariado não há uma diferença, há sim uma contradição.
Uma contradição estrutural, fundada não numa diferença ou até desigualdade
(de riqueza ou patrimônio, de poder político, ou cultural subjetiva), mas na
exploração da mais-valia produzida por um (o trabalhador) e apropriada por
outro (o burguês). E esta contradição entre as classes trabalhadora e burguesa
é ineliminável e insuprimível na sociedade capitalista: uma classe existe porque
existe a outra, uma existe em relação com a outra, e essa relação é de
inexorável antagonismo, a partir da exploração de uma classe por outra.
Desta forma, a análise marxista certamente mostra uma substantiva
distinção entre a contradição entre as classes e as formas de opressão,
desigualdade e/ou discriminação existentes em torno das diversas
“identidades”. A exploração envolve uma contradição, um antagonismo entre as
classes, insuprimível na sociedade capitalista, enquanto as diferenças em torno
das “identidades” particulares, envolvendo formas de opressão, discriminação e
desigualdade, podem ser superadas no interior da ordem comandada pelo
capital.
249

b) Porém, se a classe não é uma “identidade”, no entanto pode


existir “identidade” ou identificação do sujeito com a classe, que ainda
está atravessada por diversas “identidades”. Enquanto “classe para si” o
sujeito não tem uma identificação ou uma autopercepção com sua classe,
porém, ele pode passar ao que Marx chamou de “classe para si”, ao tomar
consciência de sua condição e interesses, ao se identificar com a classe (ver
MONTAÑO, 2010, p. 97-98).
E ainda, mesmo não sendo uma “identidade”, a classe está atravessada
por diversas “identidades”, é composta por uma gama de “identidades”, de
condições e atributos dos seus membros.
Marx, para mostrar a importância de saturar de determinações as
categorias, superando sua apropriação abstrata, e dotando-a de concretude
histórica, nos dá o exemplo (já referenciada em nota anterior) da população;
conforme afirma:
A população é uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as classes
sociais de que se compõe. Por seu lado, essas classes são uma palavra
oca se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo, o
trabalho assalariado, o capital etc. Estes supõem a troca, a divisão do
trabalho, os preços etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho
assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc., não é nada
(MARX, 1997, p. 218).

Se substituirmos a categoria “população” pela “classe”, poderíamos,


seguindo o mesmo caminho metodológico, afirmar: a classe é uma abstração
se desprezarmos, por exemplo, as “identidades” de que se compõe. Por seu
lado, essas “identidades” são uma palavra oca se ignorarmos as relações a
partir das quais se estabelecem: relações de gênero, raciais, culturais e
religiosas, de nações etc., a partir das quais se desenvolvem formas de
opressão, discriminação, desigualdade.
A classe trabalhadora é, portanto, pluri-identitária. Ela é composta e
atravessada por múltiplas “identidades”, envolvendo internamente indivíduos de
ambos os gêneros, negros/as, brancos/as, pardos/as, asiáticos/as, indígenas
etc., dos mais variados credos, ou orientações sexuais, de diversas culturas,
nações etc. Silvio Almeida, neste sentido, afirma que:
as classes quando materialmente consideradas também são compostas de
mulheres, pessoas negras, indígenas, gays, imigrantes, pessoas com
deficiência, que não podem ser definidas tão somente pelo fato de não
serem proprietários dos meios de produção. [...] Para entender as classes
250

em sentido material, portanto, é preciso, antes de tudo, dirigir o olhar para


a situação real das minorias [que as compõem] (ALMEIDA, 2019, p. 98).

Isto é, a classe social, na sua concretude histórica, é composta das mais


diversas “identidades” e setores da sociedade. Falar de classe, sem perceber
que ela se compõe de mulheres e homens, de trabalhadores de raças e etnias
diferentes, de grupos sociais etc. etc. representa uma abstração da mesma.
Marx já mostrara como o capital emprega mulheres e crianças para usar
uma força de trabalho de mais baixo custo e menor organização política (1980,
p. 449 e ss. – cap. XIII-3-a). Na atualidade, particularmente no Brasil e região,
países marcados pela escravidão de povos de origem africana e em algum
grau indígenas, poderíamos adicionar o trabalhador negro, o nordestino, assim
como o “latino” nos EUA etc. Estamos, portanto, no entrecruzamento da classe
com a questão étnico-racial, de gênero, etária, de procedência etc., articulando
a questão de classe com as variadas condições e/ou “identidades” particulares
dos seus membros.
Não só dentro de uma mesma nação, ou ainda numa indústria
específica, o capital conta com força de trabalho precarizada e pior remunerada
– a mulher, o trabalhador negro, o imigrante etc. –, mas mais ainda, no
contexto de internacionalização da produção pode ter partes do processo
produtivo em regiões de menor qualificação e maior precarização do trabalho,
como nos países periféricos ou como as regiões nordestinas no Brasil.
Assim, alicerçado nesta análise marxiana sobre o papel destes
segmentos populacionais como forma de fornecimento de força de trabalho
mais barata e precarizada, Almeida afirma que o “racismo normaliza a
superexploração do trabalho, que consiste no pagamento de remuneração
abaixo do valor necessário para a reposição da força de trabalho”, a qual
“ocorre especialmente na chamada periferia do capitalismo” (2019, p. 172).
É claro que a questão de gênero ou racial, por exemplo, não existem
como meros desdobramentos ou como formas de manifestação da classe.
Mas, assim como a classe é composta por “identidades” – de gênero, racial, de
orientação sexual etc. –, por sua vez, essas diversas “identidades” são
refuncionalizadas e determinadas, são atravessadas pela questão de classe,
assumindo novos fundamentos e determinações no interior da sociedade
capitalista. Há, por exemplo, entre as mulheres, trabalhadoras e capitalistas,
251

entre a população negra, aqueles que pertencem à classe trabalhadora e


aqueles da burguesia.
Desta forma, precisamos compreender e afirmar, que se bem é
importante dar concretude histórica à categoria classe, dotando-a de todas as
“identidades” que a compõe, a classe social só deixa de ser uma categoria
abstrata quando é posta no contexto histórico concreto, quando a classe
trabalhadora estabelece relação de compra e venda da força de trabalho com a
classe burguesa, fundando uma relação de produção historicamente
determinada, uma relação salarial, que constitui uma relação de exploração de
mais-valia.
c) Exploração não é diferença. Como afirmamos, a classe não é
“identidade”. Assim, entanto as classes, no MPC, representam relações de
exploração, e a “identidade” tem como corolário a diferença, é mister aqui
afirmar que, no mesmo sentido, a exploração não é diferença.
Para esta análise vamos nos remeter, brevemente, às concepções de
classe social em Weber e em Marx.
● Classe social em Weber, como diferença de poder aquisitivo. Um dos
autores mais referenciados, que desenvolve seu conceito de classe em
oposição ao de Marx, é Max Weber. O autor pensa a estratificação social em
três dimensões: da riqueza (determinando as classes), do prestígio
(caracterizando os estamentos, ou status) e do poder (conformando os partidos
políticos) (2012, p. 185).
Para o autor a primeira determinação para a constituição das classes na
sociedade capitalista divide a população entre “proprietários” e “não
proprietários”, os que possuem algum tipo de bem − distinguindo-se pelo tipo
de propriedade: de indústrias, máquinas, capitais, terras, conhecimentos etc. −
e os que não possuem bens − diferenciados pelo tipo de serviço que prestam.
Portanto, classe está ligada à riqueza (idem, p. 176-177). Conforme afirma:
Falamos de uma classe quando 1) uma pluralidade de pessoas tem em
comum um componente causal específico de suas oportunidades de vida,
na medida em que 2)este componente está representado, exclusivamente,
por interesses econômico, de posse de bens e aquisitivos, e isto 3) em
condições determinadas pelo mercado de bens ou de trabalho (idem, p.
176).
252

Para Weber, o conceito de classe remete, por tanto, à situação dos


indivíduos no mercado − possuir ou não bens determina o tipo acesso
diferenciado ao consumo no mercado. As classes sociais para o autor
constituem-se do conjunto de indivíduos que partilham de uma determinada
posição no mercado.
A concepção weberiana coincide com uma compreensão corriqueira de
classe social, determinada em função do acesso ao mercado, da capacidade
de consumo, diferenciando as classes segundo o poder aquisitivo: ricos e
pobres, classe alta, média e baixa etc. Um conceito tão generalizado como
inócuo para a clara compreensão dos fundamentos da sociedade capitalista.
Claramente em oposição à compreensão marxiana, Weber concebe uma
noção de classe social que não se funda no capitalismo, nem sobre ele nos
ilumina. Trata-se de uma estratificação econômica, no mercado, em função das
posses e do poder aquisitivo, do tipo classes “rica”, “média” e “pobre”, ou “alta”,
“média” e “baixa”. Uma tal caracterização de classe social passa incólume por,
e independente de, todos os sistemas econômicos e modos de produção.
Assim, conforme Weber, por exemplo, “as lutas salariais acontecem na
Antiguidade e na Idade Média, até a Época Moderna” (idem, p. 179). Desta
forma, do ponto de vista teórico-conceitual, trata-se de uma concepção abstrata
e anistórica de classe, centrada na diferença de poder aquisitivo, entanto do
ponto de vista ídeo-político, ela tem como efeito a naturalização das
desigualdades de classes, e portanto a legitimação da ordem burguesa,
enquanto não fundaria tais desigualdades.
● Classe social em Marx, como contradição, a partir do lugar e papel no
processo produtivo, que funda a exploração de um pelo outro. O conceito de
classe surge teoricamente, para Marx, como concreção da análise de um
determinado modo de produção (ver SANTOS, 1987, p. 15). Neste caso, o
autor tratará as classes sociais modernas como expressões do Modo de
Produção Capitalista, onde “as pessoas só interessam [na reflexão teórica] na
medida em que representam categorias econômicas, em que simbolizam
relações de classe e interesses de classe” (MARX, 1980, p. 6). Sendo assim,
são tendências do capitalismo a separação do trabalhador dos meios de
produção, exigindo deste a venda da sua força de trabalho para o proprietário
daqueles, fundando uma relação salarial (MARX, 1985, p. 1012).
253

Para Marx, diferentemente de Weber, as classes sociais não


correspondem, a não ser a primeira vista, ao tipo e volume de suas rendas
(idem, p. 1013), nem se fundam no mercado, mas se determinam
geneticamente na esfera produtiva, onde os sujeitos desempenham uma
determinada função ou papel no processo produtivo (ver SANTOS, 1987: 41 e
ss.).
Essa função ou papel desempenhado no processo de produção da
riqueza remetem a três aspectos: (1) se fundam no tipo de propriedade que
possuem as pessoas para a atividade produtiva, (2) determinam as relações de
produção e (3) condicionam as formas de enfrentamento que, a partir de seus
interesses diversos, desenvolvem os sujeitos de uma classe contra as outras.
Vejamos.
(1) A propriedade que os indivíduos possuem a partir da qual participam
no processo produtivo próprio do MPC, remete basicamente a três tipos
fundamentais: a) a propriedade de força de trabalho, b) a propriedade dos
meios de produção e c) a propriedade da terra. Conforme Marx, estes tipos de
propriedade caracterizam as “três grandes classes da era moderna, fundada no
regime capitalista de produção”: “os proprietários de simples força de trabalho,
os [proprietários] de capital e os [proprietários] de terra”, ou seja, a) a classe
trabalhadora (operária), b) a classe capitalista (burguesia), e c) a classe
proprietária da terra (idem, p. 1012). Como aponta Marx n’O Capital (idem, p.
1012-1013), a cada uma dessas classes, dada sua propriedade específica no
processo produtivo, corresponderá um tipo de remuneração ou renda
particular; assim “o salário, o lucro e a renda fundiária”.
Assim, não é a renda que determina a classe, mas é o tipo de
propriedade no e para o processo produtivo que determina o tipo e volume da
renda dos indivíduos e das classes. É esta propriedade (da força de trabalho,
do capital ou da terra) que vai determinar o lugar que ocupam, o papel que
desempenham e as relações que os sujeitos tendem a desenvolver no
processo de produção de riqueza.
Conforme a terra transforma-se em meio de produção, apropriada pelo
capitalista, estas duas classes (proprietários de terras e de capital) tendem a
fundir-se numa só. Assim, Engels, em nota 1 à edição inglesa do Manifesto do
Partido Comunista, caracteriza as duas classes fundamentais do MPC:
254

Por burguesia compreende-se a classe dos capitalistas modernos,


proprietários dos meios de produção social, que empregam o trabalho
assalariado. Por proletários compreende-se a classe dos trabalhadores
assalariados modernos que, privados de meios de produção próprios, se
vêem obrigados a vender sua força de trabalho para poder existir (in
MARX e ENGELS, 2010, p. 40).

(2) Aparece aqui o segundo aspecto em questão: as relações de


produção próprias da produção capitalista. Surge da nota de Engels, que o
capitalista (proprietário de terra, de meios de produção, de consumo ou
financeiros) precisa empregar o trabalhador, ou seja, comprar sua força de
trabalho, enquanto o trabalhador necessita vender a mesma, constituindo-se
assim a relação de compra-venda de força de trabalho, uma relação salarial.
É a partir desta relação salarial, de emprego, que se funda a exploração
do valor produzido por um (o trabalhador, que alienou sua força de trabalho em
troca do salário) e apropriado pelo outro (o capitalista). Há, portanto, aqui, uma
relação de opressão e desigualdade, mas centrada na exploração, e não na
diferença.
Trata-se não de uma relação de desigualdade entre diferentes, mas de
uma relação contraditória: o valor (a mais-valia) produzido por um é apropriado
(explorado) pelo outro. E esta contradição, a exploração de uma classe pela
outra, é constitutiva e ineliminável da ordem burguesa.
(3) É a partir dessa contradição, que constitui antagonismo de interesses
de classe, de sua capacidade de percepção e compreensão, e das formas de
organização coletiva que os sujeitos de uma classe (ou fração de classe)
desenvolvem formas de enfrentamento, de lutas, entre as classes antagônicas.
Assim, a análise marxiana de classe social não se sustenta numa
diferença (naturalizada) entre distintos graus de poder aquisitivo, mas funda-se
na ineliminável (no âmbito do capitalismo) contradição entre uma classe que
acumula riqueza a partir da exploração do valor produzido pela outra, que
tende a uma pauperização absoluta ou relativa (ver MARX, 1980, p. 717 e ss.).
Desta forma, contrariamente à noção weberiana de classe, como uma
diferença de poder aquisitivo, sempre existente em todas as organizações
sociais, e passível de mudança individual, a categoria classe social em Marx,
fundada na contradição de classe a partir da exploração de uma por outra,
mostra que a transformação social e a superação da ordem capitalista não
255

constitui uma questão ideológica, mas uma necessidade para a emancipação,


já que não há capitalismo sem exploração.
Ainda mais, a classe trabalhadora é composta, diversamente, por todos
aqueles que têm sua força de trabalho como único ou principal meio de acesso
ao processo produtivo, e portanto como fonte de renda. Desta forma, a classe
trabalhadora não se limita à massa empregada. Trabalho não é sinônimo de
emprego, nem trabalhador é sinônimo de empregado. A classe em si integra-se
de trabalhadores empregados, subempregados e desempregados. O que dá a
condição de pertencimento à classe não é o emprego, mas sua dependência
de vender sua única posse, a sua força de trabalho.
Portanto, toda argumentação de que a classe trabalhadora perdeu
centralidade dado e elevado grau de população desempregada, fora do
processo produtivo, portanto, sem ser submetida diretamente à exploração,
resulta da equivocada equiparação entre trabalho e emprego.
Assim, a classe trabalhadora, empregada ou não, constitui a enorme
maioria da população, e seu entendimento e articulação uma força
revolucionária. Como afirma Marx, “todo entendimento entre empregados e
desempregados perturba o funcionamento” (1980, p. 743) do comando do
capital. Assim, introduzir na classe uma divisão de percepção de interesses
entre trabalhadores empregados e desempregados é a primeira tarefa do
capital para dividir essa maioria de classe. O segundo passo é segmentar os
trabalhadores empregados a partir de uma pluralidade de modalidades
contratuais e salariais. E em seguida, secundarizar a condição de classe em
face de outras dimensões da vida, enfrentando-a internamente a partir da
contraposição identitarista. Isto é, o objetivo do capital é reduzir o poder e a
unidade da classe trabalhadora, promovendo a divisão interna a partir da
condição de empregado/desempregado, do vínculo contratual e salarial, e da
primazia das identidades (polarizadas) por sobre a condição de classe.
Isto nos põe em face da centralidade da classe social.

B) A centralidade da contradição de classes.


Em posse das reflexões anteriores, é mister neste momento tratarmos
da centralidade da contradição de classe.
256

Ao falar de centralidade precisamos apontar o que ela significa, e o que


não significa, fundamentalmente para, novamente, não cair nos equívocos
próprios dos dois lugares comuns quando se trata desta questão: por um lado,
o lugar comum de entender por “centralidade” uma determinação exclusiva e
absoluta da exploração que funda a contradição de classes por sobre outras
formas de relação e dominação, negando ou secundarizando as “identidades”,
as relações de opressão, de desigualdade etc.; por outro lado, o lugar comum
de equalizar a classe a qualquer forma de “identidade”, e a exploração à
qualquer forma de opressão, ou até de negá-la ou secundariza-la, em face das
“identidades”.
Afirmar a centralidade da exploração de classe requer precisar seu
alcance, e sua articulação com a “identidade” e as relações de opressão e
desigualdade. Vejamos.
a) A centralidade da exploração de classe não significa primazia ou
maior importância em ralação às outras formas particulares de
desigualdade/opressão. Ao tratar a exploração de classe como “central”, em
contraste ou comparação com a “não-centralidade” da opressão e da
“identidade”, é necessário primeiramente descartar aquilo que a “centralidade”
não significa.
Primeiramente, centralidade não quer dizer maior “importância”; a
questão da exploração de classe não é mais importante que qualquer forma de
opressão, discriminação ou desigualdade.
Também, centralidade não significa uma primazia ou hierarquia da
classe em relação às formas de opressão.
Por outro lado, a centralidade da exploração de classe não significa uma
precedência, seja teórica ou histórica, a partir da qual suponhamos que é a
exploração que cria e explica plenamente todas as formas de opressão e
desigualdade, sedo estas meras “manifestações” decorrentes da exploração.
Ainda, centralidade de classe não significa uma relação de precedência
política, em que primeiro deva se resolver a contradição de classe, em torno da
exploração, para só depois tratar das relações de opressão e desigualdade (ou
“identidades”).
Isto é, falar da centralidade da exploração de classe não pode nos levar
a uma escolha entre classe ou “identidade”, ou entre exploração e opressão,
257

mesmo que este seja um erro frequente (especialmente nas abordagens


“economicistas” e estruturalistas ou “identitaristas”). Elas não são categorias
excludentes ou alternativas, mas mutuamente articuladas e presentes na
dinâmica da heterogênea realidade cotidiana.
Desta forma, como afirma Almeida, a escolha entre raça (ou outras
“identidades”) ou classe é “um falso dilema” (2019, p. 185). Assim, sobre o
“dilema ‘luta de classes/luta de raças’”, o autor cita Florestan Fernandes, para
quem “uma não esgota a outra e, tampouco, uma não se esgota na outra”, já
que, conforme o sociólogo marxista, “ao se classificar socialmente, o negro
adquire uma situação de classe proletária”, embora continue “a ser negro e a
sofrer discriminações e violências” (in ALMEIDA, 2019, p. 188).
Como sustenta o autor, em torno da questão racial, “a negação da
classe como categoria analítica não interessa à população negra” (2019, p.
188).
Assim, não se trata, portanto, nem de desprezar as causas e lutas
particulares, antiopressivas, das diversas “identidades”, em nome de uma
suposta superioridade da questão de classe, nem de renunciar à luta de classe
em nome de um maior impacto imediato para a vida das pessoas das lutas
identitárias. Trata-se, sim, de articular ambas formas de lutas num projeto
emancipatório comum e complementário (voltaremos a isto no item 7.1-C).
Tendo visto o que não significa “centralidade”, cabe agora analisar o
efetivo alcance da centralidade da exploração de classes.
b) A “centralidade” da classe remete ao fato de constituir um
fundamento da sociedade burguesa, do Modo de Produção Capitalista,
que o distingue de outras formações sociais. Como afirmamos
anteriormente, classe e “identidade”, e exploração e opressão, não são
categorias excludentes ou alternativas... porém, também não são equivalentes.
Vejamos por que.
Toda sociedade, mesmo que complexa, diversa e de múltiplas relações
e processos sociais, na medida em que a primeira e fundamental necessidade
é a produção de seus meios de vida, se organiza a partir de um determinado
“modo de produção”. Desta forma, conforme Marx e Engels, “o primeiro
pressuposto de toda história humana é naturalmente a existência de indivíduos
humanos vivos” (MARX e ENGELS, 1993, p. 27). Neste sentido, afirma Marx,
258

“na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações


determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de
produção que corresponde a um determinado grau de desenvolvimento das
forças produtivas materiais” (MARX, 1977, p. 24).
Assim, “o modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida”
constitui seu “modo de produção”, que se trata não só da “reprodução da
existência física dos indivíduos”, mas, muito mais, “de uma determinada forma
de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos mesmos” (MARX e
ENGELS, 1993, p. 27).
Porém, o “modo de produção” não diz respeito apenas ao processo de
produção, mas às relações de produção. É través delas que os indivíduos não
somente se relacionam para produzir a riqueza, mas são essas mesmas
relações (de produção) as que determinam quem produz e quem se apropria
da riqueza, e mediante quê processos se dá essa usurpação da mesma.
Assim, em toda sociedade de classes há quem produza a riqueza, e há
quem se aproprie da maior parte dela. Saber quem produz e quem usurpa a
riqueza nos mostra as classes fundamentais dessa sociedade; entretanto,
conhecer a partir de quê relações se produz e se expropria essa riqueza nos
mostra o modo de produção específico: assim o sr. feudal e o produtor, numa
relação de proteção/pagamento de impostos, no Modo de Produção Feudal; o
dono da terra e o escravo, mediante propriedade do trabalhador, no Modo de
Produção Escravo; e o burguês e o proletário, através da relação salarial, no
Modo de Produção Capitalista. Estas são as classes fundamentais nesses
modos de produção.
É por tal motivo que o fundamento que distingue um do outro, e que
peculiariza cada “modo de produção” constitui elemento central para
compreender o conjunto das relações sociais de cada época. Esse “modo de
produção” (formas de produzir, classes fundamentais e relações entre elas)
condiciona, mesmo que em última instância, todas as demais relações sociais.
Todas elas são refuncionalizadas de acordo com os fundamentos desse “modo
de produção”, como modo de produzir a riqueza e fundamento de apropriação
e distribuição da mesma.
Desta forma, como afirma Marx, “é importante distinguir as
determinações que valem para a produção em geral [comum a todas as
259

sociedades], a fim de que a unidade [...] não nos faça esquecer a diferença
essencial” entre as diversas formas de organização social (1977, p. 203).
Então, o que é que distingue cada “modo de produção”, constituindo o
fundamento, aquilo que peculiariza cada organização social, determinando e
condicionando (mesmo que não plenamente) o conjunto das relações sociais?
Conforme afirma Marx em O Capital, “o que distingue as diferentes
épocas econômicas não é o que se faz, mas como, com que meios de
trabalho se faz” (MARX, 1980, p. 204). Isto é, não é o tipo de produto ou de
mercadoria o que vai caracterizar cada sistema social, mas sim, primeiramente,
os meios utilizados para produzi-las.
Por outro lado, e em segundo lugar, são fundamentalmente as relações
de produção/usurpação o que diferencia as sociedades uma das outras.
Como afirma Marx, “só a forma em que se extrai do produtor imediato, do
trabalhador, esse trabalho excedente distingue as diversas formações
econômico-sociais, a sociedade da escravidão, por exemplo, da sociedade do
trabalho assalariado” (MARX, 1980, p. 242-243).
No feudalismo é o pagamento de impostos, na escravidão é a
propriedade e posse do trabalhador, no capitalismo é a exploração, a partir da
compra e venda da força de trabalho, da relação salarial.
Isto é, a exploração é o mecanismo central e fundante do MPC, a través
do qual o capitalista (que compra a força de trabalho, mediante pagamento do
salário) se apossa de parte de valor (a mais-valia) produzido pelo trabalhador
assalariado. A exploração é, assim, componente central das relações de
produção, fundamento da sociedade capitalista, que distingue e peculiariza
esta sociedade das outras.
A exploração, ainda, é insuprimível, ineliminável, na sociedade
capitalista. Sem exploração de mais-valia não há capitalismo. Isto é, o MPC se
funda na exploração da mais-valia produzida por um (o trabalhador) e
apropriada por outro (o capitalista), a partir da relação salarial, onde o
trabalhador aliena sua força de trabalho (e o produto da mesma) em troca de
um salário.
Sendo insuprimível, a exploração, por último, não expressa uma mera
“diferença” entre as classes, mas uma contradição entre as classes: uma
produz valor, enquanto a outra o usurpa. Derivado desta relação de
260

produção/usurpação (ou exploração) do valor, o burguês acumula riqueza,


enquanto o trabalhador (que a produz) é submetido à pauperização, seja
absoluta (carência de meios para sua subsistência) ou relativa (relação entre o
valor que produz, e o valor que recebe como salário, como parte da produção,
representando o grau de exploração) (ver MARX, 1980, p. 717 e 747).
Assim, a contradição de classe diz respeito não a uma diferença, mas a
um antagonismo entre as classes, entre a burguesia e o proletariado: a
exploração. Esta questão, diferentemente de todas as formas de discriminação,
desigualdade, opressão, preconceito etc., não pode ser superado sem superar
a sociedade comandada pelo capital. A exploração é constitutiva da ordem
burguesa. Não há modo de produção capitalista sem exploração do valor
produzido pelo trabalhador e apropriado pelo capitalista. Eliminar a exploração
exige a superação, a transformação da sociedade capitalista.
Isto não acontece com as formas de desigualdade social, tratadas ora
como “identidades”, como “minorias”, como formas de “exclusão social”, como
grupos subalternos etc. Nelas, as lutas pela superação dessas formas de
desigualdade e opressão não pressupõe a superação da ordem burguesa. Ao
contrário, como já observamos, se desarticuladas da totalidade, são lutas em
si, orientadas à superação da “exclusão”, ou seja, para a “inclusão”,
fundamentalmente mediante o direito e as políticas, e portanto, passíveis de
ser alcançadas dentro da sociedade capitalista.
“Contradição” não é equivalente ou sinônimo de “desigualdade”, e
portanto, a contradição de classes não é equivalente às diversas formas de
desigualdade social e de opressão: de gênero, racial, religiosa etc.
Portanto, entre as “identidades” e as “classes” há lógicas e fundamentos
essencialmente diferentes: a questão de classe envolve uma contradição e
antagonismo (havendo as classes continuará esse antagonismo: a exploração);
já nas questões (e pautas) identitárias há formas de opressão, discriminação e
desigualdades (não contradição entre os sujeitos) que podem ser superadas
dentro da ordem burguesa e sem a eliminação do sujeito, do diferente.
A contradição (de classe) se expressa como fundamento estrutural da
sociedade capitalista, enquanto a desigualdade (em todas suas formas
particulares) são expressões, manifestações, desdobramentos desses
fundamentos contraditórios.
261

Isto, em primeiro lugar, não quer dizer que as questões particulares


(ditas identitárias), enquanto manifestações da “questão social”, se esgotem na
– ou sejam um mero reflexo da – contradição capital-trabalho. A contradição de
classes (centrada na relação de exploração) não explica nem determina
completamente as relações sociais em geral, nem particularmente as relações
de opressão, discriminação e desigualdade.
Cada uma delas tem sua especificidade e suas particularidades. A
desigualdade de gênero, a discriminação racial, o preconceito homofóbico ou
xenofóbico, cada um deles tem suas particularidades que vão muito além da
contradição de classes. É neste sentido que afirma Petras que “a opressão de
gênero não é uma mera manifestação do Capitalismo”, e complementa:
“metodologicamente, admitiremos a existência de um certo grau de ‘autonomia’
entre as esferas” sócio-econômicas e as relações de gênero (1999, p. 411)
(grifo nosso), como qualquer outra relação de opressão (identitária).
Porém, trata-se de um fenômeno particular, específico, que não se reduz
a um mero reflexo da questão de classe, mas para nada auto-determinado,
autônomo, independente ou desarticulado da totalidade social, que o contêm e
determina. Não são apenas manifestações (meros reflexos) da contradição de
classes, mas eles estão sim perpassados, fundados, parcialmente
determinados e refuncionalizados pelos fundamentos da sociedade capitalista.
Desta forma, em segundo lugar, isso também não quer dizer que as
formas de desigualdade (de gênero, de raça, de religião, de orientação sexual
etc.) tenham surgido no capitalismo. Claro que não; a desigualdade de gênero
tem raiz no patriarcalismo (ver Engels, 2002), as raciais e étnicas, com as
guerras, invasões e conquistas, sejam bélicas ou “guerras santas”, e a
escravidão dos povos conquistados, ao longo de toda a história da
humanidade.
Porém, como já foi tratado, em cada organização social, elas assumem
novos contornos, novos fundamentos. Assim, na sociedade capitalista estas
formas de desigualdade são reconfiguradas segundo os fundamentos deste
ordenamento social. A questão racial, por exemplo, na sociedade escravista, se
funda na “propriedade” do escravo, enquanto na sociedade capitalista, mesmo
que tenha desdobramentos daquela, tem outros fundamentos. A questão de
gênero, no contexto da inquisição medieval, tem fundamentos claramente
262

diferentes desta questão na atualidade. O capitalismo refunda e refuncionaliza


todas as questões, a partir dos seus fundamentos sistêmicos.
Em terceiro lugar, não quer dizer que um (a contradição de classes) seja
mais importante que os outros (as desigualdades particulares). Como já
afirmamos anteriormente, “não é mais importante a desigualdade de classe que
a desigualdade de gênero ou de raça etc.” (ver MONTAÑO e DURIGUETTO,
2010, p. 126-127), assim como “a exploração [...] não é mais importante que a
discriminação racial, sexual ou qualquer outra” (idem, p. 126). Quem padece
qualquer forma de desigualdade, discriminação ou opressão não aceitará que
sua condição seja menos importante que a outra, e tem igual direito de se
revelar e lutar contra ela, pela igualdade de direitos. Também isto não quer
dizer que a exploração (de classe) explica e determina plenamente toda forma
de opressão, discriminação e desigualdade. A exploração diz respeito apenas à
relação capital trabalho.
Porém, para além da igual importância de todas as formas de opressão,
discriminação e desigualdade, e da necessidade de lutas em torno de todas
elas para sua superação, a classe tem uma dimensão central, na análise
social, na organização política e na luta anti-sistêmica, por representar um
fundamento da sociedade capitalista. A exploração de uma classe por outra
constitui um fundamento da ordem burguesa; isto é, a classe “não é mais
‘importante’, mas é ‘fundamento’. O fundamento que explica a sociedade e que
lhe confere caráter central na(s) luta(s) pela emancipação [...]. É central porque
é fundamento do MPC, porque peculiariza e caracteriza esta formação social”
(idem, p. 127).
Em quarto lugar, também não quer dizer que as lutas contra as diversas
formas de desigualdade (“lutas particulares”) não sejam necessárias e válidas.
Ao contrário, lutar contra toda forma de desigualdade constitui o “bom
combate”, necessário no caminho da igualdade e da emancipação política,
visando a emancipação humana.
Porém, há que apontar que se isoladas, estas lutas não constituem
ameaça aos fundamentos do MPC, antes tendendo a perpetuá-lo. Se isoladas
estas lutas, ficam na esfera das manifestações, e não dos fundamentos da
sociedade capitalista.
263

Podemos afirmar que, constatando a existência de uma estrutura


machista e patriarcal, ou uma estrutura racista, isto não faz de cada homem
opressor e inimigo natural de cada mulher, e de cada pessoa branca opressor
e inimigo natural de toda pessoa negra – a relação de opressão de gênero ou
racial não é natural, mas histórica –; porém, a estrutura de classes sociais faz
sim, necessariamente e por sua natureza e condição social, com que cada
burguês explore todo trabalhador assalariado; neste caso a exploração é
constitutiva e insuprimível (no capitalismo) da condição de classe e da relação
entre uma classe e outra – isto é: a própria existência da burguesia e do
trabalho assalariado está indissoluvelmente atrelada à exploração entre eles.
Pode existir relação entre homens e mulheres não opressiva; pode existir
relação entre diferentes origens étnico-raciais sem opressão; mas não pode
existir relação entre burguesia e proletariado sem exploração: ela é constitutiva
e expressão das classes antagônicas.
Numa análise marxista da “questão social”, há uma contradição, um
antagonismo entre burgueses e proletários, porque um existe pela/para a
exploração do outro, fundando a contradição de classes. O burguês, pela sua
própria condição e natureza, antagoniza-se nos interesses ao proletariado,
dado que só existe o burguês entanto e porquanto explora o trabalho,
constituindo-se em “inimigos de classe”, e a solução a esse conflito de
interesses (a exploração de um pelo outro) passa pela eliminação das classes.
No entanto, nas questões raciais (racismo), de gênero (machismo), de
orientação sexual (homofobia), de procedência (xenofobia) etc., um “grupo” não
é por definição, por sua natureza, inimigo, antagônico ou contraditório ao outro:
o branco inimigo do negro, o homem inimigo da mulher, o heterossexual
inimigo do homoafetivo, o sulista inimigo do nordestino, ou o residente inimigo
do imigrante, mas a estrutura e a cultura que fazem de um grupo dominante e o
outro subalterno. O alvo a combater e destruir, portanto, não é, o indivíduo ou
grupo diferente, mas a estrutura, a cultura e a idiossincrasia (machista, racista,
xenofóbica, homofóbica etc.) que fundam o preconceito, o privilégio e a
desigualdade social entre uns e outros.
A distinção, portanto, entre as lutas de classes contra a exploração e as
lutas contra as diversas formas de discriminação e opressão (incrível que os
pós-modernos ainda não percebam isso) está nos próprios fundamentos. Se
264

extinguir a exploração exige superar o “capitalismo” e a “sociedade burguesa”,


que leva à extinção da própria classe burguesa, do capitalista e de todas as
classes, contrariamente, erradicar o “machismo” não supõe acabar com os
homens, eliminar o “racismo” não significa exterminar os “brancos”, combater a
“homofobia” não pressupõe eliminar os “heterossexuais” etc.
Não se trata de que todos sejam iguais, idênticos (nas suas condições,
opções, comportamentos, pensamentos etc.), mas de que haja igualdade entre
os diferentes.
A conquista da igualdade em torno das “identidades” pode e deve ser
alcançada, a partir da igualdade de direitos. Porém, não há como alcançar
igualdade ou conciliar os interesses das classes antagônicas (burguesia e
proletariado), pois elas se fundam na insuprimível (dentro da ordem capitalista)
exploração da mais-valia produzida por um e apropriada por outro.
Ainda mais, as lutas antiopressivas particulares (“identitárias”),
contrariamente às lutas contra a exploração, tem seu horizonte de realização
possível dentro da ordem capitalista, sem impactar ou precisar transformar a
ordem burguesa. Assim, como afirma Wood,
Embora o capitalismo possa usar e faça uso ideológico e econômico da
opressão de gênero [de raça, de nações etc.], essa opressão não tem
status privilegiado na estrutura do capitalismo. Ele [o capitalismo] poderia
sobreviver à erradicação de todas as opressões específicas das mulheres,
na condição de mulheres – embora não pudesse, por definição, sobreviver
à erradicação da exploração de classe (2006, p. 232).

Obviamente duas precisões se fazem necessárias para evitar


interpretações apressadas desta afirmação de Wood.
Primeiramente, como ela mesmo esclarece, “isto não quer dizer que o
capitalismo tenha passado a considerar a libertação das mulheres [ou de
outras categorias sociais subalternas] necessária ou inevitável” (ibidem).
Significa, isso sim, “que não há necessidade estrutural específica de opressão
de gênero [ou racial etc.] no capitalismo, nem mesmo uma forte disposição
sistêmica para ela” (ibidem).
Em segundo lugar, é necessário assinalar que a afirmação de que “essa
opressão”, das mulheres, negros, imigrantes, LGBTs etc., não tenha “status
privilegiado na estrutura do capitalismo”, não quer dizer que, para a autora, tais
formas de opressão não sejam importantes, ou sejam secundárias. Quer dizer,
265

isso sim, que para os fundamentos e a estrutura do capitalismo elas não são
essenciais. O capitalismo subsistirá sem essas formas de opressão.
Portanto, quando classe e “identidade” são vistas como equivalentes
tende-se, com isso, a substituir ou equalizar a contradição de classe por/com
as desigualdades a partir das “identidades”, e as lutas de classes passam a ser
secundarizadas ou abandonadas pelas ações identitaristas. Note-se,
reafirmamos, que não estamos falando de que as lutas particulares e suas
causas não sejam importantes e fundamentais, mas de que elas devem ser
travadas para superar uma cultura, e não para eliminar o suposto “inimigo”.
É preciso, portanto, apontar o erro conceitual e político de, na melhor
das hipóteses, equiparar as desigualdades oriundas das “identidades” com a
contradição de “classes”, e, na pior das hipóteses, substituir a segunda com a
primeira.
Ora, como apontamos, entre as classes burguesa e proletária não há
apenas diferenças, não há somente uma desigualdade; há sim uma
contradição. Contradição esta insuprimível no MPC. Trata-se, portanto, não de
um aspecto cultural, mas fundante da ordem burguesa. Contrariamente, a
pesar de todas as diferenças e desigualdades existentes em uma cultura
racista, homofóbica e machista, não há contradição insuperável nas questões
de gênero, de raças, de orientação sexual etc.
É por isso que, para superar a contradição de classes é condição a
superação da ordem capitalista, mas a superação das culturas racista,
machista etc. e as formas de discriminação e desigualdade oriundas delas,
podem sim ser alcançadas ainda dentro da ordem social vigente. As “lutas
particulares” constituem portanto embates fundamentais no caminho da
emancipação política e no avanço civilizatório e dos “direitos humanos”.
Porém, se as “lutas antiopressiva” particulares são fundamentais e
confluem com as “lutas de classe”, no entanto, a “lógica identitarista” fragmenta
a classe trabalhadora e pulveriza sua luta, criando uma lógica internamente
devastadora, opondo e enfrentando a classe em torno das “identidades”,
antagonizando-os: homem x mulher, negro x branco, heterossexual x LGBTI,
pressupondo constituírem elas relações de antagonismo na mesma base que a
relação contraditória entre as classes: capital x trabalho.
266

A contradição de interesses entre o burguês (o capitalista) e o


trabalhador depende basicamente da estrutura econômica, entanto um, por sua
condição, explora o outro, constituindo-se o antagonismo de classe. E dessa
forma, superar tal contradição exige superar a ordem que constituiu tal relação,
eliminando assim as classes sociais. Contrariamente, nas formas de
desigualdade e opressão machista, racista, homofóbica, xenofóbica, de
intolerância religiosa etc., o que deve ser enfrentado, nestes casos, e
contrariamente à contradição de classes, são as culturas em questão,
conquistando a igualdade entre homens e mulheres, entre raças, entre
imigrante e local, entre indivíduos diversos. Derivar do antagonismo de classe
um (suposto) antagonismo por “identidades” diferentes leva a conceber o
“diferente” como inimigo, não em função de uma cultura estrutural, mas pela
sua própria condição de indivíduo “diferente” de determinada “identidade”. O
resultado desta lógica é a pulverização da classe trabalhadora, sem unidade,
sem um projeto comum, portanto, sem possibilidade de enfrentar, a ofensiva
burguesa, os programas neoliberais e o avanço ultraconservador atual.
Não podem se pensar, portanto, as relações sociais de opressão
(identitárias) a partir do mesmo antagonismo com que se estruturam as
relações de classe social.
O antagonismo de classes, na sociedade capitalista, se funda na
exploração fundada na relação de compra e venda da força de trabalho, na
relação salarial. Assim, a superação da desigualdade fundada no antagonismo
de classe exige a superação do sistema social, da ordem, do modo de
produção em questão, e a extinção dos próprios sujeitos – não dos indivíduos,
mas dos sujeitos, enquanto categorias econômicas: do trabalhador escravo e
do proprietário de escravos, no escravismo, e do trabalhador assalariado e da
burguesia industrial, no capitalismo. Por que? Porque a constituição dessas
categorias econômicas, burguesia industrial e trabalhador assalariado, existem
porque e na medida em que haja exploração capitalista; não pode existir
burguesia industrial sem exploração, e nem trabalhador assalariado sem a
mesma; portanto, para eliminar a exploração é preciso eliminar os sujeitos da
mesma, a burguesia e o assalariado industriais.
Isso não ocorre em outras relações sociais. Mesmo relações desiguais e
opressivas, não há antagonismo entre pessoas negras e brancas, entre
267

homens e mulheres, entre praticantes desta ou daquela religião; há diferenças,


há até desigualdade, há relações de opressão... mas não há antagonismo,
contradição entre eles. O que há que superar, nestes casos, para a eliminação
da desigualdade e da opressão (preservando as diferenças), é a estrutura e
cultura machista e patriarcal, racista, xenofóbica, etc., mas não
necessariamente o sistema social capitalista, nem eliminar os sujeitos em
questão. Não é necessário, por exemplo, e nem razoável, eliminar ou submeter
o homem para conquistar a igualdade de gênero. Os sujeitos permanecem,
mas a relação de opressão e desigualdade é superada. Superar o racismo,
também, em absoluto significa eliminar o homem ou a mulher brancos, mas
destruí-los dos fundamentos do sistema de privilégios e de opressão racial.
Portanto, não pode se tratar como relações equivalentes, o antagonismo
e contradição de classes, com a desigualdade e opressão de gênero, racial e
étnica etc. E nem a superação de um, o antagonismo de classe que exige a
eliminação dos próprios sujeitos e do modo de produção, como a superação
dos outros, a desigualdade e opressão identitária, que pressupões a presença
igualitária dos sujeitos, superando a estrutura e culturas opressivas.
Só na relação contraditória entre classes, a superação da desigualdade
resultante da mesma exige a eliminação dos próprios sujeitos (categorias
econômicas), a burguesia industrial e o trabalhador assalariado.
Porém, é isto que faz a polarizadora “lógica identitarista” pós-moderna:
tratar o “outro” como inimigo, antagonizado, e buscar sua aniquilação pessoal.
Desta forma, devemos equalizar a importância de superação de toda
forma de desigualdade, opressão e exploração. Mas equalizar as formas de
relação de gênero, raciais, culturais etc. com as relações de classe
representam um reducionismo monumental na capacidade de compreensão
das relações sociais em geral. Equalizar classe, gênero e etnia representa um
equívoco teórico enorme, com sequelas na organização e ação políticas.
A igualdade de classes só é alcançada quando eliminado o fundamento
que as torna desiguais, e com isso a eliminação das próprias classes e a
superação da própria ordem social.
Enfim, em síntese, a contradição de classe não explica tudo para todas a
relações sociais, não dá conta de todas as formas de opressão, de
discriminação e de desigualdade. Assim, afirmar que a contradição de classes
268

é central e perpassa todas as dimensões, todas as questões e todas as


relações no âmbito da sociedade capitalista, não quer dizer que ela explica
plenamente todas essas dimensões, questões e relações, todas as formas de
opressão e todas as “identidades”. Quer dizer apenas que as dota das
particularidades e determinações no âmbito da sociedade capitalista.
Desta forma, parafraseando Engels, podemos afirmar: segundo a
concepção materialista da história, a exploração do trabalho pelo capital
constitui um fator central que, em última instância, funda e determina o
conjunto das relações na vida social burguesa. Não afirmamos mais do que
isto. “Se alguém o distorce dizendo que o fator econômico é o único
determinante, ele transformará aquela tese em uma frase vazia, abstrata e
absurda” (ver ENGESL in MARX e ENGELS, 1975a, p. 520).
Podemos pôr a questão da centralidade desta forma: a “identidade” é
algo central para o indivíduo ou grupo, que tem sua vida marcada por esta
condição a partir de uma relação de desigualdade, opressão ou discriminação,
fazendo da luta antiopressiva algo de suma importância e urgência no caminho
da emancipação. Enquanto a classe é central no sistema capitalista, que se
funda na exploração da força de trabalho. Por conta disto, a contradição
estrutural de classe é central para a superação da ordem. Assim, representa
um profundo equívoco tratar a classe como mais uma “identidade”.
269

7. LUTAS DE CLASSES E LUTAS


ANTIOPRESSIVAS PARTICULARES
(“IDENTITÁRIAS”) NA ANÁLISE MARXISTA

Neste último capitulo, a partir das discussões precedentes, visamos,


distantes de ambos “lugares comuns” – a rejeição sumária da “identidade” e
das lutas antiopressivas particulares (ou “identitárias”), por um lado, e a
substituição ou equiparação da classe, e as lutas de classes, com/por aquelas,
por outro –, tratar da necessária articulação, em relação de
complementaridade, e não de exclusão, nem de equiparação, das categorias
classe e “identidade”, na análise da complexidade social, e das lutas de classes
e antiopressivas ou “identitárias”, no processo de construção de uma sociedade
efetiva e plenamente emancipada.
Para isto, partiremos inicialmente de alguns pressupostos teórico-
políticos na análise marxista.

7.1- Alguns pressupostos teórico-políticos no debate marxista:


as dialéticas reforma/revolução, emancipação
política/humana, exploração/opressão,
estrutura/superestrutura.
Apresentaremos aqui, mesmo que sucintamente, alguns debates na
tradição marxista, em torno das dialéticas reforma/revolução, emancipação
política/humana, exploração/opressão, estrutura/superestrutura, que
entendemos subsidiarão nossa discussão a seguir. Vejamos.
270

A) Reforma e/ou revolução (em Rosa Luxemburgo), e as guerras de


posição e de movimento (em Gramsci).
Neste primeiro momento, cabe discutir a diferença entre os objetivos e
meios, e a finalidade das lutas políticas. Isto porque os necessários objetivos
imediatos, cotidianos, ou particulares, podem constituir meios para uma
finalidade mais ampla, a transformação social, ou eles mesmos podem ser a
finalidade da luta em si, se esgotando ao alcançar tais objetivos particulares
dentro da ordem vigente, e sem visar sua transformação.
Para tal debate, vamos recorrer às análises de dois pensadores
marxistas, Rosa Luxemburgo (2003), no seu texto “Reforma ou revolução?”, e
as reflexões de Antonio Gramsci (2000b) sobre guerra de posição e de
movimento.
a) A disjuntiva ou a complementaridade entre a reforma e a
revolução no debate de Rosa Luxemburgo. Em 1898 e 1899, Rosa
Luxemburgo publica dois artigos, depois reunidos em livro, editado em 1900,
sob o nome (questão) “Reforma ou revolução?”. Neles a autora enfrenta o
revisionismo reformista de Eduardo Bernstein, quem abandona o projeto
revolucionário socialista pelas reformas graduais no/do capitalismo.
Já no seu prefácio a autora apresenta a questão central do livro: pode o
projeto revolucionário ser contra e se opor às reformas cotidianas? Ao qual ela
responde: “certamente que não” (2003, p. 17).
E complementa de forma taxativa e elucidativa:
A luta cotidiana pelas reformas, pela melhoria da situação do povo
trabalhador no próprio quadro [contexto] do regime existente, pelas
instituições democráticas, constitui [...] o único meio de travar a luta da
classe proletária e trabalhar no sentido de sua finalidade [...] a superação
do assalariado [do MPC] (idem, p. 17) (grifos nossos).

Grifamos aqui precisamente que se trata de um meio – as lutas


cotidianas por reformas que melhorem a situação e condições de vida da
população trabalhadora –, e uma finalidade – que está na superação da ordem
burguesa, e das relações de exploração próprias dela, fundadas nas relações
salariais entre capital e trabalho. Isto é, as reformas e a revolução não são
necessariamente alternativas excludentes, mas podem representar uma
relação entre meios e fins. Ou, nos termos da autora: “Existe um laço
271

indissolúvel entre as reformas sociais e a revolução, sendo a luta pelas


reformas o meio, mas a revolução o fim” (ibidem).
Conforme Luxemburgo, justamente é Bernstein quem por primeira vez
opõe, como alternativas, a reforma e a revolução, quando renuncia “à
transformação social”, fazendo “da reforma social – simples meio na luta de
classe – o seu fim”, ou até, não se importando com a finalidade, apenas com o
movimento (o processo) em si (idem, p. 18).
Isto é, a oposição e disjuntiva entre reformas e revolução constitui um
caminho “pequeno burguês” (idem, p. 19), que deriva quase que
inexoravelmente à renúncia do projeto (da finalidade) socialista, ficando apenas
nas reformas cotidianas.
Para Luxemburgo, quando, na esteira do revisionismo bernsteiniano, se
reduz a luta de classes aos seus objetivos imediatos, sindicais, como aumento
de salários e redução da jornada de trabalho, abandona-se a luta anticapitalista
e adota-se uma luta orientada “unicamente à regularização da exploração
capitalista” (idem, p. 44), na esfera do mercado (compra e venda de força de
trabalho, como mercadoria), sendo “vedada a ação sobre o processo de
produção” (ibidem), como uma greve, ocupação de fábrica etc., o que significa
uma luta que, “do ponto de vista econômico, não é um golpe contra a
exploração capitalista, [mas] é simplesmente uma regulação dessa exploração”
(idem, p. 49). Assim, continua a autora, “a teoria de Bernstein tira da terra firme
o programa socialista, colocando-o em base idealista” (idem, p. 58).
Na verdade, o que seriam os meios (as reformas, as conquistas dentro
da legalidade, da democracia, do mercado) de uma luta revolucionária, o
revisionismo reformista de Bernstein o transforma em finalidade, afirmando
Luxemburgo:
Segundo a concepção revisionista, dados a [suposta] impossibilidade e
inutilidade dessa conquista de poder [revolucionária], devem a luta sindical
e a luta parlamentar [e hoje poderíamos acrescentar, a luta na sociedade
civil] ter em vista exclusivamente resultados imediatos, isto é, a
melhoria da situação material dos operários, além da redução por etapas
da exploração capitalista e extensão do controle social (idem, p. 58-59)
(grifos nossos).

É a partir desta necessidade reformista de tornar a luta política numa


luta que visa resultados imediatos, que “a luta cotidiana [...] perde, em última
análise, toda relação com o socialismo” (idem, p. 60), com a luta anticapitalista.
272

Como afirma a autora, “se se fizer das reformas um fim em si, não só estas não
conduzem à realização do objetivo final socialista, mas precisamente
conduzirão ao seu contrário” (ibidem), à legitimação e reprodução da ordem
social vigente.
É aqui que o marxismo, como método de análise científica dos
fundamentos do capitalismo, e fundamento do “socialismo científico” (não
utópico) (ver ENGELS, in MARX e ENGELS, 1975, p. 5 e ss.), assim como “o
ponto de vista da classe” trabalhadora, tornar-se-ão cada vez mais em
obstáculos ao projeto reformista, em função e “a partir do momento em que os
resultados práticos imediatos venham a constituir a finalidade principal. A
consequência direta será a adoção de uma ‘política de compensações’ [...] uma
‘política de barganha’, e uma atitude conciliacionista” (LUXEMBURGO, 2003, p.
61).
O objetivo reformista, transformado em finalidade, não está mais na
superação das contradições do capitalismo, particularmente a exploração, mas
a atenuação das mesmas e um paliativo para as sequelas do capitalismo
(idem, p. 63 e 68). Ainda conforme a autora, as reformas, no fundo, “não
tendem elas à realização da ordem socialista, mas unicamente à reforma da
ordem capitalista, não à supressão do assalariado, mas à diminuição da
exploração, em suma, [à] supressão dos abusos do capitalismo, e não do
próprio capitalismo” (idem, p. 97).
Tal abandono do projeto socialista, da luta anticapitalista, transformando
meios (reformas) em finalidades, sustenta-se no também abandono da
contradição de interesses de classes. Isto é, se a finalidade é melhorar,
“humanizar” o capitalismo, então o que é uma contradição de classes – a
exploração de uma por outra (insuprimível na ordem burguesa) –, é
transformada em diferenças entre as classes (passíveis de alterar mediante as
reformas dentro da ordem).
Desta forma, como se estivesse concordando com o conceito de classe
em Weber (ver item 6.3-A-c), assim como com o “identitarismo” pós-moderno
(ver item 2.6), “Bernstein não entende por capitalista uma certa categoria da
produção, mas sim do direito de propriedade, não uma unidade econômica,
mas uma unidade fiscal, e por capital, não um fator da produção, mas
simplesmente certa quantidade de dinheiro” (idem, p. 72), “transportando a
273

noção de capitalista, das relações de produção para as relações de


propriedade [...], da relação entre o Capital e o Trabalho, para a relação entre
ricos e pobres” (idem, p. 73). Isto é, as lutas deixam de se centrar na
contradição de classe, se focando na diferença entre elas. Bernstein, como
afirma Luxemburgo, apenas busca a “transformação dos pobre em ricos” (idem,
p. 74); uma “transformação” de indivíduos, em torno das diferenças, sem
qualquer impacto estrutural. Assim, as políticas, o direito e o acesso a bens e
serviços, constituem e esgotam a finalidade do projeto reformista de Bernstein,
tanto quanto do “identitarismo” pós-moderno.
Para Bernstein, as lutas sociais visam alcançar, dentro do capitalismo,
“um modo de repartição ‘justo’” (idem, p. 85). Não se trata de uma
transformação na esfera e nas relações de produção (exploração), mas na
esfera do mercado e nas distribuição da riqueza. Ainda, trata-se, sim, de um
projeto, claramente fundado no que Marx e Engels chamaram de “crítica
romântica” ao capitalismo, visivelmente moralista, sustentado na avaliação do
que seria uma distribuição considerada “justa” ou “injusta”. Um projeto
sustentado na moralização da realidade e dos objetivos, tal como (conforme
vimos nos capítulos 2 e 3) a “lógica identitarista” pós-moderna moraliza as
relações e as lutas sociais.
Conforme aponta a marxista polonesa, realmente a injustiça produto da
desigual distribuição da riqueza é o que diretamente impacta na vida das
pessoas, e as leva para as lutas por melhores condições de vida (idem, p. 85).
Porém, as análises de Marx nos permite alcançar a compreensão de que “o
modo de repartição de determinada época não é mais [do] que uma
consequência natural do modo de produção dessa época” (ibidem). A
distribuição da riqueza é produto da exploração pelo capital do valor produzido
pelo trabalho, gerando acumulação de um lado, e pauperização (absoluta ou
relativa) de outro. A exploração que funda as relações de produção no
capitalismo é a causa que determina a distribuição da riqueza; assim, as lutas
centradas na distribuição, e que abandonam as lutas nas relações de
produção, são meramente paliativas. Desta forma, contrario ao projeto
reformista de Bernstein – assim como à inclusão identitarista pós-moderna (ver
item 4.2) – o projeto revolucionário emancipatório “não luta contra a repartição
274

[distribuição] nos quadros [contexto] da produção capitalista, e sim tendo em


vista a supressão da própria produção capitalista” (idem, p. 86).
Com tudo isto, Luxemburgo chega às suas conclusões sobre o
revisionismo e o reformismo de Bernstein. Conforme afirma, no seio do
capitalismo, não pode se dar a produção cooperativa (idem, p. 107) (a não ser
subordinada à lógica capitalista), o que faz com que Bernstein renuncie à
socialização dos meios de produção, e aspire apenas à reforma do comércio,
mediante o acesso a bens e serviços (idem, p. 107-108), isto é, o seu
reformismo se satisfaz com mudanças jurídicas (e não econômicas) na esfera
do consumo, deixando intacta a esfera e relações de produção. Com tudo isto,
como ela sustenta, Bernstein acaba abandonando a própria “luta de classe e
proclama a reconciliação com o liberalismo burguês” (idem, p. 108).
É assim, conclui, que “Bernstein desce de A a Z”: “Começou por
abandonar o objetivo final do movimento”, a revolução social e a superação da
ordem burguesa; e, como não pode haver movimento revolucionário “sem
finalidade socialista, vê-se forçado a renunciar ao próprio movimento” (idem, p.
109).
Ainda, continua Luxemburgo dissecando o reformismo bernsteiniano, e
quase como se estivesse tratando do ecletismo pós-moderno, disfarçado de
pluralismo, afirma que de todos os autores com que trabalha Bernstein,
incluídos Marx e os marxistas, no entanto, “de cada um tirou ele um pouco”,
porém, “ao abandonar o ponto de vista de classe, perdeu ele o compasso
político; ao abandonar o socialismo científico” ficou apenas vendo os “fatos
isolados” (idem, p. 110), trocando a dialética pela “gangorra intelectual do ‘por
um lado – pelo outro’” (idem, p. 111-112), e finalmente, traçando também “a
linguagem histórica do proletariado pela da burguesia”, “classificando de
‘cidadãos’, indistintamente, o burguês e o proletário” (idem, 112).
Assim, em síntese, o projeto reformista, que renuncia à finalidade
anticapitalista, sustenta-se numa “noção moral da justiça”, e não na
desigualdade social fundada na exploração capitalista, “na luta contra o modo
de repartição” ou distribuição, e não nas relações de produção onde se funda a
distribuição da riqueza, na distinção “entre pobres e ricos”, e não na
contradição de classes (idem, p. 115).
275

Contrariamente, o projeto revolucionário, que incorpora todas as


reformas no caminho à construção do socialismo, envolve “a união de grandes
massas populares para uma finalidade que ultrapassa toda a ordem social
existente, a união da luta cotidiana com grande reforma mundial” (idem, 117).
Não se trata, portanto, de optar entre reforma ou revolução, mas de
reformas e revolução. De igual forma, não se trata de escolher entre lutas
antiopressivas ou contra a exploração, mas de apostar no conjunto das lutas no
caminho à plena emancipação humana.
b) As “guerras” de posição e movimento, a partir da análise do
Estado ampliado de Gramsci.56 Para Gramsci, com a socialização da política
no cenário do capitalismo monopolista, o Estado “integral” ou “ampliado” se
forma na conjunção de uma Sociedade Política (Estado strito sensu ou Estado-
coerção) e uma Sociedade Civil (esfera da disputa da hegemonia e do
consenso) (ver COUTINHO, 1994, p. 56). Assim, diz Gramsci:
na noção geral de Estado entram elementos que devem ser remetidos à
noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado =
sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de
coerção) (GRAMSCI, 2000b, p. 244).

A natureza de classe do Estado e sua função de conservar os interesses


particulares dessa classe por meio da repressão, como registrado por Marx e
Engels, e depois por Lênin, são afirmações que são conservadas por Gramsci.
Ele denomina de “Sociedade Política” a esfera estatal cuja função é a
dominação de uma classe, conformada pelo conjunto de Aparelhos de Coerção
e Repressão através dos quais as classes dominantes impõem coercitivamente
a sua dominação (mediante aparatos policial e militar, sistema judiciário e
administrativo).
No entanto, para o autor, o Estado não era mais, nesse novo cenário do
século XX, somente o aparelho repressivo da burguesia, passando a incluir
uma nova esfera, uma nova função, de direção social, de consenso, de
hegemonia, no âmbito do que chamou de Sociedade Civil, a qual é composta
pelos Aparelhos Privados de Hegemonia, ou seja, organismos sociais aos
quais se adere voluntariamente e que representam os diversos interesses dos
atores (particularmente das classes) que a compõem. Este constitui o espaço

56 Baseado em MONTAÑO e DURIGUETTO (2010, p. 42-49).


276

por excelência, na nova fase do capitalismo, de socialização da política, das


lutas de classes.
Porém, “não há isolamento da sociedade civil com relação ao mundo da
produção. Este constitui o solo da sociabilidade a partir da qual se produzem
interesses e antagonismos, se forjam as agregações de interesses e vontades,
se produz a subordinação fundamental”. “O conceito de sociedade civil liga-se
ao terreno das relações sociais de produção, às formas sociais de produção da
vontade e da consciência e ao papel que, em ambas, exerce o Estado”. “A
sociedade civil é o momento organizativo a mediar as relações de produção e a
organização do Estado, produzindo organização e convencimento” (FONTES,
2007, p. 211-212). Este consentimento, ou consenso, que garante a direção
social do setor hegemônico, não exclui em Gramsci o conflito, o antagonismo, o
dissenso entre as classes e grupos sociais; antes eles são parte constitutiva
daquele; o consenso para este autor, pré-supõe o conflito, é o resultado deste.
Ou seja, a sociedade civil gramsciana faz parte do Estado
(superestrutura), que por sua vez é permeado pelos interesses e conflitos das
classes sociais conformadas na estrutura econômica. A sociedade civil
expressa a articulação dos interesses das classes pela inserção econômica,
mas também pelas complexas mediações ideopolíticas e sócio-institucionais
(COUTINHO, 1992, p. 73). Esta articulação entre sociedade civil, como
momento superestrutural, com a base econômica e os interesses oriundos daí,
invalida qualquer leitura (liberal, formalista, politicista, ou pós-moderna) de sua
obra.
É a partir da distinção e articulação entre sociedade política e sociedade
civil, conformando um Estado ampliado, que Gramsci vai formular os
fundamentos de uma original teoria revolucionária de transição ao socialismo.
Para tanto, distingue dois tipos de formações sociais: as “sociedades de
tipo oriental” e as “sociedades de tipo ocidental”.
A sociedade de tipo “oriental” (a exemplo da Rússia czarista) é aquela
aonde não se desenvolveu uma sociedade civil forte e articulada, sendo esta
“primitiva e gelatinosa”, e comandada pela sociedade política e a lógica da
dominação e coerção; aqui as lutas de classes travam-se tendo em vista a
conquista (pelos setores dominados) ou conservação (pela classe dominante)
do Estado em sentido estrito. O processo revolucionário nestas sociedades, em
277

conformidade com as concepções de Marx e de Lênin, se dá, segundo


Gramsci, mediante a “Guerra de Movimento” (ou “guerra de manobra ou
frontal”), como choque frontal, explosivo, com vistas à tomada do Estado, a
partir do qual se operará o conjunto de transformações sociais e econômicas.
Isto é, numa relação de precedência, primeiro lutar-se-ia pelo controle do
Estado, para só depois operar o conjunto de transformações sociais e
econômicas.
No entanto, o tipo de sociedade denominada “ocidental”, é aquela onde
a política sofreu significativa socialização, com uma relação equilibrada entre a
“sociedade política” e a “sociedade civil”, sendo esta última terreno das lutas de
classes, a partir do crescimento dos “aparelhos privados de hegemonia”. Aqui
as lutas de classes podem se orientar para uma classe dar a direção social,
para a obtenção do consenso, para a hegemonia, mesmo antes da tomada do
Estado – é necessário, afirma Coutinho, “que a classe que se candidata ao
domínio político já seja previamente hegemônica no plano ideológico” (1994, p.
59). Neste caso, diferentemente do anterior, o centro do processo
revolucionário dar-se-á como uma progressão de conquistas, de espaços no
seio e através da sociedade civil numa “Guerra de Posição” (GRAMSCI,
2000b, p. 261-262; ver também COUTINHO, 1994, p. 57-58). Isto é, primeiro se
assumiria a hegemonia ideológica na Sociedade Civil, mesmo antes de
transformar a base econômica.
Certamente o identitarismo pós-moderno faz uma apropriação
tergiversada da “guerra de posição”, centrando a luta numa abstrata “sociedade
civil”, sem se preocupar com o Estado nem com as relações econômicas de
produção. Ora , para Gramsci, não só a Sociedade Civil pertence à esfera
estatal (e não independente dele), como seus grupos e interesses se
constituem a partir dos interesses de classe oriundos das contraditórias
relações de produção.
Assim, a noção de hegemonia como “direção intelectual e moral”
assume relevância central na estratégia da “guerra de posição”. O conceito se
refere tanto ao processo em que uma classe torna-se dirigente, quanto à
direção que uma classe no poder exerce sobre o conjunto da sociedade. A
hegemonia (que não se confunde com mera dominação) expressa a direção e
o consenso ideológico (de concepção de mundo) que uma classe consegue
278

obter dos grupos próximos e aliados. Ou seja, constitui-se como classe


hegemônica significa construir e organizar interesses comuns e “tornar-se
protagonista das reivindicações de outros estratos sociais” (GRUPPI, 1991, p.
59). A conquista progressiva de uma unidade político-ideológica – de uma
direção de classe – requer, assim, a busca do consenso dos grupos sociais
aliados, alargando e articulando seus interesses e necessidades na busca da
superação dos seus limites corporativos.
Esse é o processo e o momento que Gramsci denomina de “catarse”,
isto é, “a passagem do momento meramente econômico (ou egoístico-
passional) ao momento ético-político, isto é, a elaboração superior da estrutura
em superestrutura na consciência dos homens” (GRAMSCI, 2001, p. 53).
Estamos nos referindo aqui aos processos de formação de uma contra-
hegemonia; pois hegemonia significa o predomínio ideológico das classes
dominantes sobre a classe subalterna na sociedade civil: “a hegemonia
compreende as tentativas bem sucedidas da classe dominante em usar sua
liderança política, moral e intelectual para impor sua visão de mundo como
inteiramente abrangente e universal, e para moldar os interesses e as
necessidades dos grupos subordinados” (CARNOY, 1990, p. 95).
Para Gramsci, a constituição de uma hegemonia das classes
subalternas requer uma intensa “preparação ideológica das massas”, uma
construção de uma nova concepção de mundo, de uma nova forma de pensar
(“reforma intelectual e moral”). Nesse sentido, a hegemonia, como “direção
intelectual e moral”, incorpora uma dimensão educativa, na medida em que a
formação de uma consciência crítica é um dos alicerces de uma ação política
que procura conquistar a hegemonia.
A construção do consenso é, para Gramsci, a busca das aspirações e
das demandas que estão dispersas no largo arco das classes subalternas; é
saber direcioná-las em um programa e direção política concretos e numa
perspectiva universal. Significa saber convencer, persuadir, ganhar adesão
pelo envolvimento ativo e não pela manipulação e passividade. Daí a
importância que Gramsci atribui ao trabalho ideológico dos intelectuais
orgânicos na construção ou manutenção da hegemonia.
Desse modo, a própria ação (contra-)hegemônica exige, como seu
pressuposto material-organizativo, uma práxis política consciente, coletiva e
279

articulada das classes subalternas. Como afirma Coutinho (2006, p. 55), há


uma “dimensão nitidamente política” no “conceito gramsciano de sociedade
civil, revelando sua articulação dialética com a batalha pela hegemonia e pela
conquista do poder por parte das classes subalternas”.
Pelo exposto, para Gramsci (2002, p. 62-63), a classe que se propõe
uma transformação revolucionária da sociedade (de tipo ocidental), pode e
deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental, sendo esta
uma das condições principais para a própria conquista do poder. No entanto,
ser dirigente no campo da sociedade civil, ainda que necessário, não implica
sua completa realização política, sendo fundamental a tomada do poder político
estatal por parte das classes subalternas, e criando no Estado um novo “bloco
histórico”.
● A partir do exposto, podemos observar que, no campo progressista, ou
da “esquerda” (em sentido muito amplo), há que diferenciar não dois, mas três
projetos societários: os projetos a) revolucionário, b) o reformismo
revolucionário, e c) o reformista (conservador).
Mesmo se confundindo, o primeiro e o segundo, nos seus fins, o
socialismo, e nos seus fundamentos anticapitalistas, no entanto, enquanto o
projeto “revolucionário” visa uma transformação abrupta, violenta, mediante a
tomada do Estado, e o exercício da chamada “ditadura do proletariado” (isto é,
a instrumentalização do Estado pelo proletariado para promover as
transformações na base econômica e na superestrutura jurídica e política), por
seu turno, o “reformismo revolucionário” caminha pela via pacífica, legal,
democrática, numa “guerra de movimento” (Gramsci), dentro da ordem, para ir
conquistando objetivos, alcançando a “emancipação política” (Marx), mediante
reformas (Luxemburgo), que visem o caminho para a construção paulatina do
socialismo. Porém, é preciso frisar, ambos constituem caminhos, processos e
meios diferentes para a mesma finalidade, a superação da ordem burguesa,
portanto, ambos são projetos revolucionários.
Por seu turno, mesmo se confundindo no caminho, nos meios, nas
táticas de lutas, nos objetivos imediatos, o segundo e o terceiro se diferenciam
substancialmente no projeto e na finalidade. Assim, enquanto o “reformismo
revolucionário” constitui um projeto anticapitalista, visando a transformação
social e a construção de uma sociedade socialista, o projeto “reformista” tem
280

em seus objetivos imediatos a sua finalidade, dentro da ordem burguesa, e por


isso é essencialmente “conservador”. Trata-se, este último, de um projeto
liberal, de uma democracia liberal, que regule as relações sociais e “melhore” a
distribuição da riqueza, mas perpetuando a ordem, sendo assim, portanto, um
projeto dentro e reprodutor da ordem burguesa.
Neste sentido, podemos claramente pensar nas lutas antiopressivas
particulares, ditas “identitárias”, no processo do reformismo revolucionário,
como certamente também o são as lutas sindicais econômicas (por melhoras
salariais, redução de jornadas de trabalho, condições contratuais, direitos
trabalhistas etc.), fundadas numa perspectiva anticapitalista e num projeto
emancipatório, na construção de um novo ordenamento social, no socialismo.
A questão fulcral aqui radica em quão revolucionárias ou reprodutoras essas
reformas são, o quanto elas contribuem num caminho para a superação do
capitalismo e a construção de uma nova ordem social, ou o quanto vem
reforçar e legitimar a ordem burguesa; a linha divisória aqui é tênue, móvel, e
sujeita a longas e acaloradas polêmicas.
No entanto, a “lógica identitarista” pós-moderna, sem qualquer sombra
de dúvidas, se insere no projeto (meramente) reformista, que esgota sua
finalidade nos objetivos imediatos, nas conquistas diretas de reformas no plano
jurídico, no acesso a bens e serviços, na inclusão, tudo dentro e legitimando a
ordem burguesa. Por isso ele é “reformista” sobre questões pontuais, mas
conservador em relação à estrutura social.
Nesta lógica, que polariza sujeitos na ação política, mas abandona a luta
estrutural de classes, o fundamento utópico deste projeto reformista está na
sua crença em que os benefícios da sociedade capitalista – o bem estar, o
sucesso, a riqueza, o acesso a bens e serviços, o lazer – podem ser
generalizados, a tal ponto que deixariam de existir privilégios e privilegiados,
opressão e opressores. Ora, o fundamento da sociedade capitalista não é a
opressão, mas a contradição centrada na exploração que gera uma profunda
desigualdade econômica, a qual se expressa em diversas formas e relações
sociais. Sem superar a exploração, portanto, a superação da opressão não
passará de uma utopia ilusória.
281

B) Emancipação política e humana: a questão (da “identidade”) judaica


em Marx.
A sociedade capitalista, por ser uma sociedade de classes, é
estruturalmente e irremediavelmente desigual, evolvendo múltiplas formas de
opressão e discriminação. A superação da sua desigualdade exige a
superação das suas determinantes estruturais, ou seja, a transformação da
ordem. Porém, há um campo de alterações, de reformas, de conquistas a partir
do embate das lutas sociais, de classes e antiopressivas, ainda dentro da
ordem capitalista, que podem (e devem) ser realizados em prol de melhores
condições de vida da classe trabalhadora e dos setores subalternos. Isto nos
põe em face da questão da emancipação, tanto como um fim quanto como um
processo.
Uma rápida observação mostra-nos um uso indiscriminado desse termo,
remetendo a questões diversas: emancipação jurídica, emancipação pela
educação, pela cidadania, pela descolonização do “mundo da vida”, pela
“inclusão social”, emancipação da mulher, de uma nação, de um grupo
particular etc. Pareceria, assim, que a emancipação seria o resultado de
praticamente qualquer conquista de direitos sociais ou políticos, ou de redução
de certas formas de desigualdade. Por tal motivo, vários autores – como
Boaventura de Sousa Santos (1995, 2007) – falam de uma abstrata
“emancipação social”, sem qualquer caracterização concreta do que se trate.
Afinal, o que é e em que consiste a emancipação?
Para não cair no equívoco de imaginar que qualquer conquista
representaria em si a emancipação, precisamos recorrer à diferenciação que
Marx faz entre emancipação política e humana em “A questão judaica” (2010) e
nos seus “Manuscritos Econômicos e Filosóficos” (2001).
Como é sabido, Marx responde em “A questão judaica” a Bruno Bauer,
para quem o judeu, na Alemanha, que constituía um “gueto” discriminado social
e politicamente, para se emancipar politicamente (e adquirir a cidadania plena),
antes deveria se emancipar da sua religião, ou seja, abandonar suas crenças
religiosas, renunciando assim à sua identidade como povo judeu. Assim,
conforme Marx aponta, a solução de Bauer ao antagonismo religioso está na
eliminação da religião (2010, p. 34). Desta forma, afirma nosso autor: “Bauer
exige, portanto, por um lado, que o judeu renuncie ao judaísmo, [e] que o
282

homem em geral renuncie à religião, para tornar-se emancipado como cidadão”


(idem, p. 36). Ou seja, a solução de Bauer à discriminação do judeu, ou à
relação de opressão e discriminação, passaria pela renúncia daquele atributo
que os torna diferentes: a religião. Para ser “cidadãos”, Bauer propõe que os
sujeitos renunciem àquilo que os diferencia, a sua religião.
Questionando e problematizando a “solução” desta questão apresentada
por Bauer, Marx propõe então distinguir a “emancipação política” da
“emancipação humana”.
Assim, o autor entende que a questão judaica (e religiosa em geral) tem
a ver com o tipo de Estado, religioso (como na Alemanha), constitucional (como
na França) e político (como nos EUA) (idem, p. 37). Porém, como neste último
caso, mesmo não havendo um Estado religioso, mesmo existindo a
emancipação do Estado em fase da religião, trata-se de uma sociedade, de
uma “terra da religiosidade” (idem, p. 38). É a partir daí que nosso autor
diferencia os dois tipos de emancipação.
a) A emancipação política. A emancipação política, nesta questão,
constitui a emancipação do Estado sobre a religião, mesmo que o homem
continue religioso. Segundo afirma Marx: “a emancipação política do judeu, do
cristão, do homem religioso de modo geral consiste na emancipação do Estado
em relação ao judaísmo, ao cristianismo, à religião como tal” (idem, p. 38).
A emancipação política, portanto, é a emancipação no âmbito do Estado,
no plano jurídico e político, mesmo que o homem ainda não tenha se
emancipado. O Estado se emancipa mesmo antes que o homem o faça. Esse
é, portanto, “o limite da emancipação política”, expresso:
no fato de o Estado ser capaz de se libertar de uma limitação sem que o
homem realmente fique livre dela, no fato de o Estado ser capaz de ser um
Estado livre [...] sem que o homem seja um homem livre (idem, p. 38-39).

Ou seja, o Estado pode ser livre, ainda que o cidadão não o seja; o
Estado pode se emancipar da religião (um Estado laico), mesmo que os
homens e mulheres possuam e pratiquem suas religiões; o Estado anula a
propriedade privada, constituindo a propriedade pública, mesmo existindo a
propriedade privada na sociedade civil (ibidem). Desta forma, continua Marx:
A emancipação política de fato representa um grande progresso; não
chega a ser a forma definitiva de emancipação humana em geral, mas
constitui a forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem
283

mundial vigente até aqui. Que fique claro: estamos falando aqui de
emancipação real, de emancipação prática.
O homem se emancipa politicamente da religião, banindo o direito público
para o direito privado. Ela não é mais o espírito do Estado (idem, p. 41).

Quer dizer, a emancipação política radica no fato de que, persistindo


estas questões – a religião, a propriedade privada, as diferenças – entre as
pessoas, na sociedade civil, na esfera econômica, na vida privada, no entanto
estas foram banidas do Estado. A emancipação política é, portanto, a
emancipação do Estado sobre a questão particular que diferencia as pessoas.
Desta forma, os indivíduos emancipam-se politicamente em relação às
diferenças, a partir de que o Estado trate indiferenciadamente os sujeitos, sem
distinção de raça, sexo, religião, orientação sexual etc. A emancipação política,
neste sentido, não elimina as diferenças entre os sujeitos, mas elimina o
tratamento desigual do Estado (aqui nos remetemos às questões tratadas no
item 6.1).
Significa, portanto, o tratamento igualitário por parte do Estado a todos
os indivíduos de diferentes religiões.
A emancipação do Estado sobre a religião, afirma Marx, é o “modo
político de se emancipar da religião” (idem, p. 42); e complementa: “a
emancipação do Estado em relação à religião não é a emancipação do homem
real em relação à religião” (idem, p. 46). Para nosso autor, o “Estado
consumado”, o Estado plenamente desenvolvido, é o “Estado ateu [o Estado
laico], o Estado democrático”, contrariamente, o “assim chamado Estado
cristão nada mais é do que o não Estado” (idem, p. 42), um “Estado
incompleto” (idem, p. 43), não emancipado.
A “emancipação política” do judeu, do religioso, não exige, portanto, o
abandono individual da sua crença (ou de qualquer “identidade”) (como
sustenta Bauer), mas exige que o Estado, este sim, renuncie e não possua
religião ou “identidade” específica, sendo um Estado laico, que trata igualmente
todas as religiões e todas as formas de “identidades”. Nessa luta (da
emancipação política) o alvo não é o indivíduo diferente, mas a estrutura
jurídico e política que fundam uma cultura segregadora, discriminadora,
opressora e desigual.
284

Desta forma, Marx mostra claramente que a emancipação dos judeus


não é uma questão (apenas) dos judeus, mas do Estado, caracterizando não a
emancipação de um grupo específico (os judeus) mas de toda a sociedade.
Marx destaca, ainda, a importância civilizatória da emancipação do
Estado, representando “um grande progresso”, em tanto constitui uma forma de
emancipação dentro da ordem, uma emancipação política. Porém, afirma, se
ela constitui um importante “progresso”, no entanto:
não tenhamos ilusões quanto ao limite da emancipação política. A cisão do
homem em público e privado, o deslocamento da religião do Estado para a
sociedade burguesa [sociedade civil], não constitui um estágio, e sim a
realização plena da emancipação política, a qual, portanto, não anula nem
busca anular a religiosidade real do homem (MARX, 2010, p. 42).

Marx compreende claramente que a emancipação política não se


identifica nem confunde, e nem deriva mecanicamente, como uma causa e seu
efeito, com a emancipação humana; assim, afirma: “a emancipação política não
é por si mesma a emancipação humana” (idem, p. 46), nem uma fase para
alcança-la mecanicamente.
Marx avança distinguindo duas dimensões ou partes dos direitos
humanos, afirmando que: os “direitos humanos são em parte direitos políticos”
(ou do cidadão) entanto são “exercidos em comunhão com outros”, “na
comunidade política, no sistema estatal” (idem, p. 47). A outra parte dos
direitos humanos são os “direitos do homem” – distintos dos “direitos do
cidadão”, dos “direitos políticos” –, onde estão, por exemplo, a liberdade de
consciência, de participar de culto (ibidem), ou seja, direitos de foro íntimo,
individuais, pertencentes ao “membro da sociedade burguesa”, isto é, o
“homem egoísta”, “separado do homem e da comunidade” (ibidem). A liberdade
(enquanto direito do homem), por exemplo, é a liberdade individual, desde que
não prejudique o outro; constituindo a essência da ordem burguesa: o outro é o
limite da minha liberdade (idem, p. 49).
Portanto, complementa o autor, “nenhum dos assim chamados direitos
humanos transcende o homem egoísta” (membro da sociedade burguesa,
recolhido à sua individualidade e distante da comunidade); “não o homem
como citoyen [cidadão]; assim, o homem como burgeois [burguês] é assumido
como homem propriamente dito e verdadeiro (idem, p. 50). Este homem,
285

continua, membro da sociedade burguesa, é que passa a ser “a base, o


pressuposto do Estado político” (idem, p. 52). Consequentemente, afirma Marx:
O homem não foi libertado da religião. Ele ganhou a liberdade de religião.
Ele não foi libertado da propriedade. Ele ganhou a liberdade de
propriedade. Ele não foi libertado do egoísmo do comércio. Ele ganhou a
liberdade de comércio (2010, p. 53).

Pois bem, a análise sobre a particularidade da “questão judaica”, pode


ser estendida a outros aspectos dos direitos humanos, individuais ou coletivos,
políticos, como direitos do cidadão, expressando a emancipação política na
garantia política, no âmbito estatal, de tais direitos, mesmo que ainda, no
âmbito privado, da sociedade burguesa, não alcance a vida privada, a
sociedade civil, o mercado.
Assim, as conquistas de direitos civis e políticos (direito de ir e vir, de
organização, de representação etc.), de direitos trabalhistas e sociais, o
desenvolvimento da cidadania (ver MARSHALL, 1967) e da democracia (formal
ou liberal), constituem e representam avanços em torno da “emancipação
política”. Em igual sentido, as conquistas de igualdade nas lutas antiopressivas,
sobre o machismo, o racismo, a xenofobia, a LGBT-fobia, a intolerância
religiosa etc., representam sim formas de emancipação política.
Porém, elas não expressam a superação das diferenças entre os
sujeitos, mas o tratamento indiferenciado do Estado em face das mesmas,
assim como o controle estatal sobre as formas de opressão e discriminação,
mediante a garantia legal de que a liberdade de um não represente supressão
da liberdade do outro. Isto é, mesmo representado importantes avanços
civilizatórios, em tanto formas de emancipação política, por exemplo, as
conquistas sobre “cotas raciais”, a criminalização da violência doméstica, ou o
“casamento igualitário” (hetero e homoafetivo), no entanto, elas não significam
o fim do racismo, do machismo, ou da “homofobia”; não atingem a
emancipação humana.
A emancipação política remete, portanto, ao conjunto de direitos
políticos e sociais que garantem uma “liberdade” e uma “igualdade” formais
(jurídicas) dos cidadãos. Desta forma, ela sem dúvida representa conquistas
importantes no progresso dos direitos e igualdades (formais) humanos, mas
realiza-se no interior da ordem social comandada pelo capital (assim como das
estruturas patriarcal, racista etc.), portanto, na manutenção de um sistema e
286

uma cultura estruturalmente desiguais. A emancipação política não é


incompatível com o MPC. A luta pela emancipação política não é
necessariamente uma luta anti-capitalista, nem contra o sistema de
desigualdade e opressão.
A “emancipação política” é, portanto, fundamental para atingir a
“emancipação humana”, mas não corresponde a ela, nem é garantia para sua
conquista.
b) A emancipação humana. Por seu turno, a emancipação humana é a
emancipação do sujeito, do ser humano, não do homem/mulher egoísta,
burguês (membro da sociedade burguesa), mas do cidadão, ou melhor, do
gênero humano. Neste sentido, Marx afirma que:
a emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da
sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, a
cidadão, a pessoa moral.
Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o
homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se
tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida
empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando
o homem tiver reconhecido e organizado suas “forces propres” [forças
próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si
mesmo a força social na forma da força política (MARX, 2010, p. 54).

Assim, a “emancipação humana” só pode existir na superação da ordem


burguesa (e do seu Estado) e das estruturas e culturas de dominação e
opressão; exige, portanto, a eliminação de toda forma de desigualdade,
opressão, dominação e exploração, reunindo novamente o produtor com os
meios para produzir.
Neste sentido, mesmo persistindo as diferenças de características
pessoais, de orientação sexual, de gêneros, étnicas, religiosas etc., sim
superar-se-á a desigualdade, as relações desiguais, de dominação e opressão,
entre eles. Neste sentido, sobre a particularidade das relações de produção,
Marx afirma, nos seus “Manuscritos econômico-filosóficos”:
A supra-sunção [supressão] da propriedade privada é, por conseguinte, a
emancipação completa de todas as qualidades e sentidos humanos [...]
(MARX, 2004, p. 142).

E continua:
o comunismo é a posição [a fase] como negação da negação, e por isso o
momento efetivo necessário da emancipação e da recuperação humanas
para o próximo desenvolvimento histórico (idem, p. 114).
287

Assim, se a “emancipação política” é compatível com a ordem burguesa,


a “emancipação humana” supõe sua superação.
Mas a construção da “emancipação humana” também pressupõe a
confirmação da “emancipação política”. Não há oposição, portanto, entre
“emancipação política” e “emancipação humana”, porém também não há
vinculação mecânica entre ambas. A primeira é pressuposto da segunda, mas
não a garante. Conforme já foi dito, a emancipação política não implica
emancipação humana (MARX, 2010, p. 46), e mais, e emancipação política
não avança para além da emancipação no campo político, na esfera estatal
(idem, p. 42). Contrariamente, conquistas em torno da “emancipação política”
não só não combatem o sistema, como podem ajudar na sua legitimação e
reprodução.
Todas as conquistas no âmbito dos direitos garantidos no Estado, sobre
as diversas formas de desigualdade, de opressão, de exclusão, tornam-se,
assim, importantes e fundamentais no processo da “emancipação política”, mas
isso não garante a “emancipação humana”. Para esta última, estas conquistas
devem ir além do mero espaço estatal e passar a constituir determinações
humanas, universais, do ser social.
Não haverá emancipação da “trabalhadora-mulher” numa sociedade
machista e patriarcal, assim como não haverá emancipação da “mulher-
trabalhadora” numa sociedade capitalista.
Não haverá emancipação do “trabalhador-negro” numa sociedade
racista e xenofóbica, assim como não haverá emancipação do “negro-
trabalhador” na sociedade capitalista.
A luta anti-capitalista não deve caminhar separada da luta contra o
machismo e a desigualdade sexual, contra o racismo e a desigualdade racial e
étnica, contra as diversas formas de opressão, segregação, desigualdade e
preconceito. Ela deve reunir todos estes campos de batalha, orientados no
curto prazo contra a forma específica de desigualdade (para a emancipação
política específica), e no longo prazo contra a ordem burguesa, a sociedade de
classes (para a emancipação humana). Curto e longo prazo, aqui, remetem aos
resultados, não aos processo; não se trata de um antes-e-depois, de uma luta
que preceda a outra, mas de lutas e processos concomitantes, algumas com
288

impactos e resultados de mais curtos prazos, outros representando uma


finalidade mais distante no tempo.
Por seu turno, no se trata (erroneamente) de interpretar a emancipação
política como vinculada e resultado das lutas antiopressivas particulares
(“identitárias”), e a emancipação humana como vinculada e resultado das lutas
de classe. Ambas as formas de lutas (de classe e “identitárias”) são
constitutivas dos processos de conquistas em torno tanto à emancipação
política como humana.
A emancipação política exige, portanto, tanto as lutas de classes como
as lutas antiopressivas particulares (“identitárias”). Por seu turno, a
emancipação humana, também envolvendo ambas formas de lutas, visa a
supressão da desigualdade de classes, a supressão das classes, mas a
manutenção das diferenças individuais, das diferentes “identidades”, porém
num contexto de igualdade social, ou seja, preservando as
diferenças/identidades, porém eliminado a desigualdade. Relembrando as
distinção entre as duas dialéticas: diferença/identidade e
igualdade/desigualdade (item 6.1).
As lutas identitárias (ou particulares) são urgentes e fundamentais. Mas
elas em geral operam dentro do horizonte do “direito burguês”, são portanto
lutas em torno da “emancipação política”.
Neste sentido, Haider afirma que,
quando os direitos são concedidos a indivíduos “vazios”, abstratos, eles
ignoram as formas sociais reais de desigualdade e opressão que parecem
estar fora da esfera política. No entanto, quando as especificidades das
identidades lesadas são trazidas ao conteúdo dos direitos, [Wendy] Brown
aponta que elas são “mais propensas a se tornar lugar de produção e
regulação da identidade como lesão do que veículos de emancipação”
(HAIDER, 2019, p.140-141).

Representam assim conquistas pontuais importantes sobre as


desigualdades, mas que não impactam nas estruturas que as geram. É o que
aponta Wood, ao sentenciar:
A indiferença estrutural do capitalismo pelas identidades sociais das
pessoas que explora torna-o capaz de prescindir das desigualdades e
opressões extra-econômicas. Isto quer dizer que, embora o capitalismo
não seja capaz de garantir a emancipação da opressão de gênero ou raça,
a conquista dessa emancipação [quando alcançada] também não garante
a erradicação do capitalismo (WOOD, 2019, p. 241).
289

E a autora complementa afirmando que embora as lutas anti-racista e


anti-sexista se constituam a partir de “identidades” sociais específicas, que
geram “forças sociais vigorosas”, as conquistas da “igualdade racial e de
gênero” não são antagônicas ao capitalismo, e nem o capitalismo é incapaz de
tolerá-las (idem, p. 229). Ainda, mostrando a capacidade do capitalismo de
conviver com as lutas identitárias, e com a igualdade de direitos e a superação
das formas de opressão e discriminação em torno dessas “identidades”, a
autora sustenta que “a primeira característica do capitalismo é ser ele
incomparavelmente indiferente às identidades sociais das pessoas que
explora” (ibidem), não se importando se a origem da mais-valia explorada é de
um/a trabalhador/a homem ou mulher, negro ou branco, nacional ou
estrangeiro.

C) Exploração e opressão.
O debate político, particularmente de esquerda, muitas vezes tentou
contrapor a categoria de exploração e a de opressão, como se uma, a primeira,
estivesse vinculada meramente à questão econômica, concebendo uma
superioridade da classe social, enquanto a outra, a segunda, fosse
representante apenas de fenômenos políticos, representando uma supremacia
de outros sujeitos, como movimentos sociais, família, partidos, e “identidades”.
Certamente, uma falsa, e nociva, contraposição, já que, na ordem
burguesa, exploração e opressão são fenômenos necessária e constantemente
complementares. Um não pode ser compreendido sem referência ao outro. Só
de forma abstrata pode se conceber, na sociedade capitalista, um sem o outro.
Ainda mais, e como já tratamos (item 6.3), falar de centralidade de
classe não significa uma maior importância desta em relação a outras
dimensões e relações sociais. Da mesma forma, e em decorrência disso, a
centralidade da exploração, não deve secundarizar a relevância das diversa
formas de opressão social. Trata-se, com a centralidade da exploração, de
igual forma que a classe social, de constituírem o fundamento que peculiariza o
MP capitalista, e portanto são as ferramentas heurísticas com maior explicativo.
Assim, vejamos em quê consistem a “opressão” e a “exploração”, para
em seguida tratamos dos seus nexos e articulações.
290

● Opressão. Como conceito sociológico e político, a “opressão” remete


ao ato de oprimir, submeter, subordinar ou dominar os outros. O conceito é
amplamente referenciado a diversas formas de relação, mas pouco
aprofundado como categoria de análise.
Efetivamente, quanto mais abrangente é o conceito, mais abstrato ele é,
e menos seu poder conceitual de esclarecer em profundidade e essência os
fatos concretos. Isto é, a “opressão” é apresentada como fenômeno presente
nas diversas e variadas relações de gênero, raciais, religiosas, de classes,
cultural, política, empresarial, policial, entre nações, entre regiões, por status
sociais etc. etc. Como conceito referenciado a tão vasto e diverso conjunto de
relações, o mesmo é amplo e abrangente, mas pouco profundo.
A opressão diz respeito às diversas formas de relações sociais de
desigualdade.
Quando se trata a “opressão” neste sentido tão vasto e abrangente, ela
assume sua forma abstrata, não concreta, e pouco nos diz em que consiste e
como se dá essa relação de opressão. Na reflexão pós-moderna, no entanto, o
que já era uma categoria abstrata se torna um conceito indefinido e vago,
assim, particularmente sobre as relações de opressão em torno das
“identidades”, o conceito é empregado indefinidamente para representar
qualquer relação de desigualdade.
Assim, a “opressão” aparece como sinônimo de dominação (esta sim
uma categoria sociológica mais aprofundada, a exemplo de WEBER, 2012, p.
141 e ss.), de submissão, de subalternização, de autoritarismo, de violência, de
maltrato, de discriminação, de segregação etc., e ela aparece igualmente
referenciada seja a relações interpessoais, entre grupos e segmentos sociais,
ou entre nações ou regiões.
Já em Marx e na tradição marxista, a “opressão” aparece geralmente
como categoria abstrata, porém não indefinida, isto é, presente nas relações
entre classes, gêneros e nações atravessando as diversas formações sociais.
Para Marx, ao analisar a opressão de classes, toda sociedade de classe
tem produtores de riqueza e usurpadores da mesma; a relação entre ambos,
que peculiariza cada modo de produção, se funda num tipo de opressão para
garantir, pela força e/ou pela lei, tal usurpação. N’A Miséria da Filosofia, ele
291

afirma que “uma classe oprimida é a condição vital de toda sociedade fundada
no antagonismo entre classes” (1985a, p. 159).
Porém, conforme afirma Marx, a produção capitalista diferencia-se da
pré-capitalista, em parte, em função de que, entanto a última baseia-se em
relações diretas de dominação, servidão e escravidão, a produção capitalista
pressupõe o trabalhador assalariado livre, que vende sua força de trabalho ao
capital (1980, p. 383). Na ordem burguesa, a opressão direta não é central
(como na escravidão ou no feudalismo) para garantir a usurpação do valor, já
que o trabalhador, despojado de todo meio de produção, aceita livremente
(compelido pela necessidade) em vender sua força de trabalho, cedendo todo o
resultado de sua produção, em troca de um salário.
Isto é, a exploração (ou usurpação do valor) do trabalhador assalariado,
no MPC, se dá a partir de um “livre” 57 contrato de compra e venda de força de
trabalho, e não de uma relação tipicamente de opressão. Se a opressão está
presente nas relações de exploração é certo, mas aquela não é, no
capitalismo, nas relações salariais, fundamento para esta.
Por outro lado, Engels, ao tratar das relações de gênero (para usarmos a
linguagem atual) próprias da família monogâmica, desde a antiguidade até o
presente, citando “A Ideologia Alemã”, afirma que “a primeira divisão do
trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos”
(2002, p. 65), sendo que “o primeiro antagonismo de classes que apareceu na
história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a
mulher na monogamia” (idem, p. 65-66), e completa afirmando que, portanto, “a
primeira opressão de classes [coincide] com a opressão do sexo feminino pelo
masculino” (idem, p. 66).
A “opressão” ainda aparece como categoria nas análises marxistas
sobre a questão racial (Florestan Fernandes), sobre a Teoria do Dependência
(Caio Prado Jr, Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank,

57 Mesmo que se trate de uma liberdade meramente “formal” ou “negativa”. Conforme


Erich Fromm, trata-se de uma “liberdade de”, desprovida de amarras, constrangimentos ou
obrigações (1983, p. 90 e ss., ou 1980, p. 127 e ss.), ou, segundo Norberto Bobbio, aquela
liberdade “na qual um sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, ou de não agir sem
ser obrigado” (1996, p. 48, 49). Porém, sem que esse “livre” contrato salarial envolva a outra
dimensão da liberdade, a “positiva”, que Fromm chama de “liberdade para”, como realização do
eu (FROMM, 1983, p. 205, 209, 210, ou 1980, p. 284, 289, 291), e Bobbbio entende como
aquela “na qual um sujeito tem a possibilidade de orientar seu próprio querer”, como
“autodeterminação” (BOBBIO, 1996, p. 51).
292

Vânia Bambirra), sobre as funções do Estado (Lênin, Gramsci), dentre tantas


outras questões, relações e fenômenos sociais.
● Exploração. Por seu turno, a categoria exploração tem basicamente
duas acepções, e inclusive dois usos em Marx: como conceito abstrato, por um
lado, ou como categoria que adquire concretude histórica no MPC, por outro.
Vejamos.
Enquanto conceito abstrato o termo “exploração” remete a uma
diversidade de formas, relações e ações; assim, a “exploração” do trabalho
escravo, do servo, da mulher, a “exploração” do solo, das minas, dos recursos
naturais, a “exploração” de uma região virgem, a “exploração” da colônia, a
“exploração” das capacidades do aluno etc. Neste caso, o conceito tem enorme
abrangência e muitas vezes relacionado a juízos morais de valores ou a uma
mera descrição de utilidade sobre algo ou alguém.
Já como categoria concreta, a exploração é historicamente determinada
no seio do MPC, sendo uma categoria heurística central para a compreensão
dos fundamentos desta sociedade.
Trata-se, neste caso, exclusiva e unicamente de uma relação de
produção, sustentada na particular relação de compra e venda de força de
trabalho, uma relação salarial. Portanto, constitui uma relação fundante do
Modo de Produção Capitalista.
Assim, a “exploração”, propriamente dita, apenas remete ao processo
peculiar ao capitalismo pelo qual o burguês (possuidor dos Meios de Produção)
compra a Força de Trabalho (FT) (de propriedade do trabalhador), em troca de
um salário. Nesta relação salarial, livremente acordada entre comprador e
vendedor de FT, entre patrão e empregado, entre capitalista e trabalhador, este
último produz um excedente, um valor superior ao seu próprio valor (ao seu
salário), produz uma mais valia, sem a qual não haveria interesse do
empregador em contratá-lo, nem haveria capitalismo industrial.
Aqui, a “exploração”, como categoria concreta do MPC, como
fundamento das relações capitalistas de produção, representa expressamente
o processo mediante o qual o capitalista extrai e se apropria do valor produzido
pelo trabalhador (ver MARX, 1980).
Porém, como já foi dito, se em sociedades pré-capitalistas o processo de
usurpação da riqueza das mãos de quem a produziu precisa da opressão dos
293

usurpadores sobre os produtores – pela força ou pela lei, pela escravidão ou


pelos impostos e tributos, como no escravismo, no feudalismo etc. –, na
sociedade capitalista o fundamento e o mecanismo através do qual o capitalista
usurpa (“explora”) o trabalhador, não é opressivo. Não o é porque o
trabalhador, mesmo que compelido pela necessidade, vende livremente sua
força de trabalho, em troca de um salário, e ao fazê-lo aliena todo o resultado
de sua labor.
Assim, em princípio, a exploração de mais valia não se funda na
opressão, mas no contrato (livre) entre patrão e empregado, comprador e
vendedor de FT.
Porém, mesmo a opressão não sendo fundamento da exploração, esta
última não ocorre carente de formas opressivas sobre o trabalho, seja na
duração extenuante da jornada de trabalho, nas condições de precariedade,
insalubridade e insegurança, nas formas de organização mais intensivas da
produção, na definição de salários por baixo do valor da FT (ficando aquém das
necessidade de reprodução pessoal e familiar), além do comando e controle
opressivos dos representantes dos interesses patronais, como capatazes,
inspetores, fiscais, gerentes etc. e certamente o poder opressivo do Estado.
Certamente, a exploração envolve também uma forma de opressão, ao
qual Marx vincula à passagem da subsunção formal à real do trabalho ao
capital (1969, p. 87 e ss., 1980, p. 379-380). Para Marx, nesta passagem o
aspecto novo “é a coação que se exerce, isto é, o método pelo qual o
sobretrabalho [do trabalhador] é extorquido” pelo capitalista (1969, p. 94), ou,
em outras palavras: “o capital transforma-se, além disso [do comando sobre o
trabalho], numa relação coercitiva, que força a classe trabalhadora a trabalhar
mais do que exige o círculo limitado das próprias necessidades” (1980, p. 354).
Isto é, a exploração envolve uma forma particular de opressão, mas ela
não é propriamente uma (e não se esgota numa) mera relação de opressão. A
opressão aqui está voltada diretamente para uma questão puramente
econômica: o comando e controle (pela burguesia) na produção e na
apropriação (usurpação) da riqueza (produzida pelo trabalhador assalariado).
Em síntese, no MPC, tanto a opressão (mesmo que representando
formas e relações alheias à produção, como a racial, de gênero, religiosa etc.)
só pode ser compreendida como uma particularidade da ordem burguesa,
294

assumindo novos contornos e funcionalidade nesta sociedade, portanto, como


categoria cortada e parcialmente determinada pela exploração, quanto esta
última também não pode ser entendida, nas sua complexidade, nas suas
múltiplas determinações, sem o corte das diversas formas de opressão, não
apenas entre capital e trabalho, mas ao interno da classe trabalhadora,
composta por diversos gêneros, etnias, nacionalidades, religiões etc.
Isto nos põe em face de quê tipo de relações e conexões há entre a
opressão e a exploração no MPC.
a) Exploração e opressão: duas categorias diferentes, porém não
excludentes. A partir do anterior podemos afirmar que as relações opressivas
e discriminatórias por “identidades”, e as relações de exploração entre classes,
portanto, remetem não só a fundamentos diferentes, mas também a
manifestações e representações sociais distintas. Distintas sim, mas não
excludentes ou alternativas.
Assim, não toda relação de opressão ou dominação se caracteriza
simultânea e diretamente como exploração, mas esta última as determina em
última instância no MPC. De igual forma, toda relação de exploração
certamente vem acompanhada de formas de opressão e dominação. A
exploração da mais-valia exige formas ideológicas, institucionais e estatais de
dominação e opressão, além das relações de opressão que existem ao interior
das classes.
Porém, como foi mencionado, dados os fundamentos próprios do
capitalismo – o “trabalhador livre” –, e contrariamente às relações de produção
anteriores, sustentadas direta e explicitamente em relações de dominação e
opressão, as relações capitalistas de produção, a relação salarial entre capital
e trabalho, na medida em que o trabalhador vende “livremente”, e a partir de
seus desejos e necessidades, sua força de trabalho, não haveria neste caso,
diretamente, e como fundamento, uma relação de dominação e opressão.
Como afirma Marx (1980, p. 383), a produção capitalista se diferencia das
formas pré-capitalistas de produzir, em parte porque enquanto estas últimas se
sustentam em relações (produtivas) de dominação, servidão e escravidão, a
produção capitalista pressupõe o “assalariado livre”, o trabalhador livre, porém
disposto e necessitado (compelido pela necessidad) de vender sua força de
trabalho.
295

Isto é, tudo parece como se a exploração capitalista fosses um processo


tranquilo, bem aceito pelas partes, “justo”, e portanto sem a necessidade de
mecanismos de opressão e dominação de classes. Parece, mas não é.
Ora, a princesa Isabel não promulgou a “Lei Áurea” no Brasil, nem os
legalistas do Norte (os Yankees) lutaram para abolir a escravidão na Guerra
Civil nos EUA, por mero humanismo. Esses processos foram resultado, por um
lado, das lutas da população negra contra a escravidão, mas por outro lado,
das necessidades e conveniência da lógica capitalista de contar com
trabalhadores livres, mas ávidos por vender sua força de trabalho, passando
agora a se auto-sustentar com seus salários.
Mas, por que o capitalismo se funda no “trabalhador livre”, e portanto
numa relação (de produção) em tese livremente estabelecida entre o
trabalhador e o patrão? Porque o trabalhador no MPC, por ser “livre” e auto-
sustentado, pode ser rapidamente substituído sem qualquer custo ou perda
para o capitalista, permitindo a este último levar os salários aquém das
necessidades de sobrevivência e reprodução do trabalhador individual.
Conforme Marx e Engels sustentam no “Manifesto”, “a história de todas
as sociedades [...] é a história das lutas de classes” enfrentando “opressores e
oprimidos” (2010, p. 40). No entanto, há um diferença central no fundamento
dessa relação de opressão entre as sociedades pré-capitalistas e a ordem
burguesa. Assim, segundo eles afirmam,
Todas as sociedades anteriores [...] se basearam no antagonismo entre
classes opressoras e classes oprimidas. Mas para oprimir uma classe é
preciso poder garantir-lhe condições tais que lhe permitam pelo menos
uma existência servil (2010, p. 50).

Isto é, nas relações opressivas de produção pré-capitalistas, o opressor


e usurpador do valor produzido precisa garantir a sobrevivência do trabalhador
(o escravo, por representar patrimônio, ou o pequeno produtor, por pagar
impostos e tributos).
Porém, no capitalismo, o trabalhador assalariado, entanto “livre”, terá
que garantir seu próprio sustento, mediante a venda da sua força de trabalho;
desta forma, continuam os autores,
a burguesia é incapaz de continuar desempenhando o papel de classe
dominante e de impor à sociedade [...] as condições de existência de sua
classe. Não pode exercer o seu domínio porque não pode mais assegurar
a existência de seu escravo [o trabalhador assalariado] (ibidem).
296

É a partir disto que Rosa Luxemburgo vai afirmar que, contrariamente à


opressão de classes em sociedades pré-capitalistas, nas quais “este
antagonismo encontrava expressão em relações jurídicas” (2003, p. 98), na
ordem burguesa a relação de opressão e dominação de classe não repousa
mais “em ‘direitos adquiridos’, e sim em verdadeiras relações econômicas,
[pelo] fato de não ser o salário uma relação jurídica, e sim uma relação
puramente econômica” (idem, p. 97), na medida em que “não é o proletariado
obrigado por lei alguma a submeter-se ao jugo do Capital e sim [é levado] pela
miséria, pela falta de meios de produção” (idem, p. 99) a seu dispor, sendo
assim compelido a vender sua força de trabalho a quem os possui.
Ainda mais, continua, no capitalismo, especialmente no monopolismo,
além da opressão não repousar em relações jurídicas mas econômicas (já que
é garantida juridicamente a igualdade formal), também “a exploração no interior
do sistema do salariato não repousa tampouco em leis”, mas “no fato
puramente econômico, de desempenhar a força de trabalho o papel de
mercadoria” (idem, p. 99) sujeito à compra e venda, a qual o trabalhador aliena,
a favor do capitalista, em troca do salário.
Assim, a partir desta constatação, Luxemburgo afirma que nenhuma
relação de dominação e opressão de classe, portanto, pode ser passível de
“transformação” meramente por via de reformas legais (ibidem), pois elas
precisam impactar na base econômica, nas relações de produção,
simultaneamente na opressão e na exploração.
Ainda, a natureza diferente entre as relações de opressão e de
exploração exige mais uma ponderação. A opressão e desigualdade racial, por
exemplo, expressa uma relação entre brancos e negros; assim como a
opressão e desigualdade de gênero representa uma relação entre homens e
mulheres. Porém, pode existir relação entre brancos e negros, e entre homens
e mulheres, sem opressão, a partir de uma igualdade social entre os diferentes.
Aliás, esta é bandeira central das lutas pela igualdade racial e de gênero. Isto
é, homens e mulheres, e pessoas brancas e negras, não existem em função da
opressão de uns por outros. Se existe sim uma relação de opressão, ela pode
ser superada.
297

O mesmo não ocorre na questão de classe. A exploração e a


desigualdade de classe expressa sim uma relação entre burguesia (donos dos
meios de produção) e o trabalhador assalariado (vendedor de força de
trabalho). Porém, por sua natureza, não pode existir nem o burguês e nem o
assalariado se eliminada a exploração entre de um pelo outro. No capitalismo,
a existência de um e do outro só é possível em função da exploração de um
pelo outro. Se eliminada a exploração, as classes burguesa e assalariada
deixam de existir.
Isto é, enquanto os indivíduos de diferentes “raças” ou etnias, gêneros,
orientações sexuais, crenças religiosas, nacionalidades etc. podem existir se
superadas as relações de opressão entre eles, a classe burguesa e
trabalhadora (assalariada) desaparecerão no exato momento em que for
superada a exploração entre elas.
Mas é preciso frisar que exploração e opressão, além de uma natureza e
fundamentos diferentes, mobilizam diferentemente as vivências e
representações ideológicas da sociedade.
Isto é, em geral, pelo menos no campo progressista, e em certa forma
na social-democracia liberal, relações de opressão e discriminação como o
racismo, a misoginia, a LGBT-fobia etc., tendem a nos repugnar de tal forma
que nos convocam à manifestação ou rejeição; porém, a exploração de um
trabalhador tende a ser oculta, ignorada ou naturalizada, nos parecendo
aceitável e normal. Por tal motivo é que muitos autores afirmar não ser mais a
contradição de classes, em torno da exploração, o elemento aglutinador para
as lutas sociais, e sim as diversas formas e relações de opressão por
“identidades”. No entanto, para além das formas ideológicas com que lidamos
com a opressão e a exploração, mobilizando diferentemente as emoções e
vivências, as que variam culturalmente, e das formas de consciências que
tenhamos delas, ambas as categorias são fundamentais para pensarmos a
realidade no capitalismo, e para organizarmos as lutas de classes e
antiopressivas.
Por tudo o exposto, podemos reafirmar que se trata de duas categorias,
opressão e exploração, diferentes, mas não alternativas ou excludentes.
b) Exploração e opressão, e lutas de classes e antiopressivas:
categorias complementares e não hierarquizadas. Não há na realidade
298

concreta, nem pode haver na análise teórica e na ação política, uma


hierarquização entre exploração e opressão.
Trata-se de duas formas de expressão de relação de desigualdade:
exploradores e explorados; opressores e oprimidos; dominadores e dominados;
hegemônicos e subalternos. Ainda mais, trata-se de questões mutuamente
relacionadas e complementares, não tendo jamais, no capitalismo, uma
expressão “pura”, unidimensional, como um “tipo ideal”. Exploração e opressão
não são alternativas, ou uma ou outra, mas são formas complementares de
relações de desigualdade, que aparecem articuladas e concomitantemente.
Assim, por um lado, toda exploração envolve certas formas de
dominação e opressão, que adensam e complexificam seu entendimento,
dando maior concretude histórica. Não só formas de opressão entre classe,
mas também no interior das classes, entre “identidades” diversas.
Por outro lado, nem toda forma de opressão, dominação e desigualdade
pressupõe a exploração, porém, no capitalismo, elas só podem ser
compreendidas como categorias concretas, não como abstrações, a partir da
articulação com a exploração de classes, que as atravessa, as refuncionaliza e
as determina em última instância.
Afirmar a centralidade de classe, portanto, também não significa
hierarquizar a relação de exploração por sobre as formas de opressão e
dominação, e nem a classe por sobre as “identidades”. Não se trata de uma
relação hierárquica, mas complementar.
Portanto, se opressão e exploração não são categorias hierárquicas,
mas complementares, o que podemos afirmar em relação às lutas de classes e
antiopressivas?
Por um lado, entanto a opressão remete a uma forma de relação de
poder e desigualdade fundamentalmente de ordem política, ideológica e/ou
cultural, em torno das quais se desenvolvem as chamadas “identidades”, é
sobre elas que ocorrem as lutas antiopressivas (“identitárias”).
Por outro lado, entanto a exploração representa a relação mediante a
qual parte da produção de riqueza (mais-valia) de uma classe é apropriada por
outra, as lutas de classes se centram e orientam nesta relação de exploração,
portanto, naquilo que constitui o fundamento da sociedade capitalista.
Assim precisamos fazer alguns apontamentos.
299

● A opressão, em cada fase histórica, se desenvolve a partir de um dado


modo de produzir e expropriar a riqueza, a partir de determinadas relações de
produção. É a partir desta dimensão que a opressão ganha concretude
histórica. Assim, a opressão racial, por exemplo, no modo de produção
escravista, em que pese tantas heranças desse período, tem determinações e
formas de expressão diferentes na sociedade capitalista.
É claro, é preciso frisá-lo, que um trabalhador-negro não está, via de
regra, nas mesmas condições sociais que um trabalhador-branco. O primeiro,
além de sofrer o processo de exploração e subjugação próprias das condições
de trabalho, enfrentando o efeito da pauperização, é alvo da discriminação, da
desigualdade e da opressão racial, que pode ainda (e via de regra assim
acontece) diferenciar as formas e graus da própria exploração e opressão. Da
mesma forma que uma trabalhadora mulher, além da exploração própria das
relações capitalistas de produção, recebe em média menor salário que o
homem, e ainda em muitos casos enfrenta a chamada “dupla jornada” de
trabalho, no emprego e no lar.
Porém, se é preciso reconhecer que estas questões racial e de gênero
diferenciam as condições de vida (e de trabalho) de um/a e outro/a
trabalhador/a, no entanto, não podemos ignorar que se trata, em ambos os
casos, de trabalhadores/as, todos/as submetidos/as de forma semelhante à
exploração capitalista.
● As lutas de classes e antiopressivas não representam um
antes/depois, não se trata de uma priorização ou prelação temporal.
É preciso, mais uma vez, afirmar que as lutas antiopressivas não podem
esperar o sucesso das lutas contra a exploração, ou a superação da ordem
burguesa. Suas causas exigem conquistas urgentes. Não são lutas para ser
travadas na sociedade pós-capitalista, depois da “grande virada” (como
questiona Alain BIHR, 1999), mas são lutas do processo de construção do
socialismo. Elas constituem momentos táticos e objetivos de curto prazo, mas
representam também aspectos estratégicos, atrelados à finalidade; formam
parte do processo de emancipação política, mas também da emancipação
humana.
● As lutas antiopressivas particulares (ou “identitárias”), mesmo sendo
de extrema relevância e urgência, mesmo constituindo lutas justas e
300

necessárias, a caminho da emancipação política e humana, justamente por


constituírem lutas contra as formas de opressão, não apontam, e portanto não
impactam diretamente a base econômica da sociedade capitalista, as relações
de produção, salariais e de exploração. Elas representam um potencial
transformador da relação particular de opressão e desigualdade, mas, se
afastadas da questão de classe, não constituem uma ferramenta de
transformação social geral.
Desta forma, mesmo que certamente ressaltemos a relevância, a
importância, a necessidade e a urgência das lutas antiopressivas (particulares),
que envolvem as chamadas “identidades” (item 2.3), estas formas de luta, por
si só, não impactam as bases econômicas e as relações de produção e
exploração da riqueza.
Se isoladas, as lutas antiopressivas, da esfera econômica, se retiradas
dos fundamentos da sociedade capitalista, onde repousa toda a forma de
produção e expropriação da riqueza, determinando estruturalmente a
desigualdade social que perpassa e corta todas as formas de opressão, de
gênero, racial etc., estas lutas particulares, não impactando a esfera
econômica, se concentrarão nas esferas política dos direitos no âmbito do
Estado, do consumo e cultural na Sociedade Civil, de forma claramente
deseconomizada.
Este é, claramente, o projeto habermasiano de descolonização do
“mundo da vida”, deixando intacto o “sistema” (econômico e do poder político)
(ver MONTAÑO, 2002, p. 88 e ss.). Este é o projeto hegemônico do “Foro
Social Mundial”, deixando o “Foro Econômico”, em Davos, controlado pelos
magnatas e governantes das potências imperialistas, e se concentrando na
diversidade e multiculturalidade da Sociedade Civil. Este é o projeto (atual) de
John Holloway (2003), que visa “mudar o mundo sem tomar o poder”. Este é,
enfim, o projeto do chamado “Terceiro Setor” (ver MONTAÑO, 2002 e 2014).
● Enfim, o elemento demarcador de uma perspectiva efetivamente
revolucionária orientada na emancipação humana, por um lado, e uma
perspectiva pós-moderna sustentada na “lógica identitarista”, por outro, está na
articulação ou não das duas dimensões: a presença, no projeto e lutas
socialistas (anticapitalistas), das lutas pela igualdade de gênero, racial, de
orientação sexual etc.; assim como a presença, nas lutas contra a
301

desigualdade, discriminação e opressão racial, de gênero, de orientação


sexual etc., de um horizonte (de longo alcance) anti-capitalista.
O projeto socialista certamente não pode conviver com o racismo, o
sexismo (machista), a homofobia e outras formas de discriminação, opressão
ou desigualdade social. Não há um projeto verdadeiramente revolucionário
que, transformando as bases econômicas, não transforme essa realidade
política, social e cultural. Mas, contrariamente, quando o combate ao
machismo, ao racismo etc., é fundado pela lógica polarizadora do
“identitarismo” pós-moderno, certamente também acaba-se esvaziando o
projeto socialista, abandonando assim qualquer perspectiva verdadeiramente
revolucionária e emancipatória.
Não existe, portanto, uma hierarquia sólida e definida entre causas e
lutas de classe, e causas identitárias e lutas antiopressivas.
A hierarquia é móvel e dinâmica, transitória e tática, depende das
condições e circunstâncias do momento. Por exemplo, no contexto do
Aparthaid sulafricano, as lutas contra a opressão branca é hierarquicamente
prioritária; enquanto a presença colonial dos EUA em Porto Rico atribui às lutas
independentistas hierarquia sobre as demais; por seu turno, o aumento do
feminicídio no Brasil, assim como da violência policial contra os negros nos
EUA, faz das consignas “Nenhuma a menos” e “Vidas negras importam”,
demandas hierarquicamente prioritárias; por outro lado, a gritante desigualdade
social no Brasil coloca a distribuição de renda como uma questão
hierarquicamente prioritária etc.; já no cenário da Pandemia do “novo corona
vírus”, de 2020, em face do desgoverno e minimização do problema pelo
presidente Bolsonaro, as luas por maior investimento em saúde e garantia de
renda da população assumem prioridade hierárquica. A questão ambiental se
põe como prioritária em face do aumento devastador das queimadas nos
cenários do governo Bolsonaro.
A hierarquia entre causas e lutas é essencialmente dinâmica e
conjuntural.
Existe sim centralidade da classe (e da exploração) (ver item 6.3-B), mas
não hierarquia.
Ao falar da “hierarquização das lutas de classe”, o marxista italiano
Domenico Losurdo, não trata esta hierarquia como de uma categoria (a
302

exploração de classe) sobre outra (a opressão identitária), nem como algo


rígido e fixo. Ao contrário, apontando a complexidade desta questão, o autor
afirma que:
uma situação histórica sempre é caracterizada por uma multiplicidade
variegada de conflitos, e, por sua vez, cada conflito registra a presença de
uma multiplicidade de sujeitos sociais, os quais expressam interesses e
ideais diferentes e contrastantes (2015, p. 141).

Desta forma, continua, “no geral, nos deparamos com um conjunto de


reivindicações e de direitos que, tomados separadamente, resultam todos
legítimos e até mesmo sacrossantos” (ibidem). Porém, é fundamental não
desarticular todas estas reivindicações e lutas em torno das lutas de classes,
pois, como anuncia, “é necessário rejeitar a mutilação das lutas de classes, o
que não significa ignorar o problema de que uma situação histórica [...] pode
impor uma hierarquização das lutas de classes” (idem, p. 143). Isto é, as lutas
de classe, tal como as entende o autor, envolvem todas estas lutas e
reivindicações, que, em função das situações históricas determinadas, umas ou
outras assumirão prioridade hierárquica transitória.
Só a articulação das lutas antiopressivas (lutas particulares ou
“identitárias”), sobre as desiguais relações de poder, com as lutas contra a
exploração (lutas de classes), em torno das relações de produção, conduz a
um processo de superação das formas opressivas e de desigualdade
particulares, num caminho de superação da ordem social capitalista.
Assim, por um lado, as lutas antiopressivas precisam ser também
lutas anticapitalistas. Por seu turno, e em idêntico sentido, as lutas de
classes precisam também incorporar as lutas antiopressivas (voltaremos a
isso no item 7.3).

D) Estrutura (econômica) e superestrutura (Estado e Sociedade Civil).


No seu célebre “Prefácio” de 1859, Marx apresenta brevemente sua
análise sobre a base econômica e de Estado, ou a estrutura e a superestrutura.
Diferentemente da compreensão cotidiana, dos autores liberais, e inclusive de
Gramsci, o termo “sociedade civil” em Marx (1977, p. 24), que toma de Hegel,
expressa os fundamentos da “sociedade burguesa”, representando a esfera
onde se desenvolvem as “condições materiais de existência”, as “relações de
303

produção” da riqueza e dos bens necessários para a vida, conformando assim


a “estrutura econômica” ou a “base” da sociedade.
É sobre e a partir desta que “se eleva uma superestrutura jurídica e
política”, isto é, o corpo institucional do Estado (ibidem).
Para Marx, “o modo de produção da vida material condiciona o
desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral” (ibidem), ou,
como já mencionamos (item 4.2), as relações econômicas de produção, a
estrutura econômica, é o elemento determinante, entanto o Estado (a
superestrutura) é o elemento determinado (ENGELS in MARX e ENGELS,
1975, p. 111), mesmo que represente uma “determinação em última instância”
(ver item 5.3-C).
Isto é, é em função das necessidades, interesses, relações e correlação
de forças na esfera produtiva, das condições materiais da vida, que todo o
corpo jurídico e político do Estado se desenvolve. Não como um mero reflexo,
mas certamente funcional e determinado em parte por aquelas.
Ainda, afirmam Marx e Engels (2010, p. 42), o Estado assume uma
função coercitiva para garantir os interesses da classe hegemônica.
Já no monopolismo, conforme analisa Gramsci, o Estado se amplia, e
além da função coercitiva (“sociedade política”), o Estado também assume,
com relativa autonomia, a função de direção social, consenso e hegemonia
(“sociedade civil”) (2000b, p. 244, 331).
Ainda mais, este marxista italiano afirma ser possível que as “classes
subalternas” se tornem hegemônica na “sociedade civil”, mesmo sem ainda ter
revolucionado a base econômica. Na verdade, isto é uma possibilidade apenas
nas sociedades de “tipo ocidental” (conforme vimos no item 7.1-A.b).
Porém, é uma interpretação completamente tergiversada atribuir a
Gramsci uma compreensão da transformação social sem alterar os
fundamentos da base econômica, apenas se orientando a transformar a
“sociedade civil”, ou o “mundo da vida”, de Habermas ao multicultural Foro
Social Mundial, passando por toda a reflexão e proposta de “emancipação”
pós-modernos.
Abandonar a transformação na base econômica é abandonar as lutas de
classes, as lutas pela igualdade econômica, e em suma, abandonar o
socialismo... apostando a um capitalismo mais “humanizado”,
304

“autossustentado”, “solidário”, com “responsabilidade social”, “verde” ou um


“eco ou bio-capitalismo”, enfim, preservando o mesmo sistema capitalista, mas
com outra sociedade civil.
Ao retirar, na análise, a centralidade e determinação, mesmo que em
“ultima instância”, da base econômica, das relações de produção, sobre o
conjunto de fenômenos e relações no âmbito da sociedade capitalista, retira-se,
na ação política, a centralidade das lutas de classes, das lutas que impactam a
economia, a produção e a apropriação de valor, que derivam num
empobrecimento constante, por um lado, e na acumulação de riqueza, por
outro. Basta lembrar o divisor de águas da história da humanidade em 2016:
neste ano, o 1% mais rico do mundo passou a deter a mesma riqueza que o
restante 99%.58
É neste sentido que Ellen Wood mostra como o que aqui chamamos de
“esquerda pós-moderna” abre mão do projeto socialista e o substitui pela mais
inclusiva noção de democracia, que trata a classe como qualquer outra forma
de opressão, de “identidade” (2006, p. 220). Dantas, ao tratar da
particularidade da reforma sanitária, coincide com este recuo do socialismo à
democracia formal, onde a tática acaba se sobrepondo à estratégia (2017).
Porém, devemos reconhecer, sem cair no abandono do projeto
socialista, a importância, no campo da emancipação política, da conquista do
que Wood chama de uma “comunidade democrática ideal [que] une seres
humanos diferentes, todos livres e iguais, sem suprimir suas diferenças nem
negar suas necessidades especiais” (2006, p. 221), e que “reconheça todo tipo
de diferença, de gênero, cultura, sexualidade, que incentive e celebre essas
diferenças, mas sem permitir que elas se tornem relações de dominação e de
opressão” (idem, 221).
Entretanto, a emancipação humana só será possível indo além destas
conquistas identitárias na esfera da democracia formal e no âmbito da ordem
burguesa, combatendo e superando esta ordem social, e construindo o
socialismo, onde, além de uma efetiva igualdade social entre os diferentes, se
suprima a exploração de classe.

58 Ver:
<https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza_estudo_oxfam_fn>,
acesso em: abr. de 2020.
305

Porém, é de importância fulcral compreender, e saber distinguir, que o


enfrentamento à desigualdade e à opressão que existe entre os diferentes
(entre homens e mulheres, entre brancos e negros, entre praticantes de uma
ou outra religião, entre nacionais e estrangeiros etc.) pressupõe a persistência
dos diferentes (das “identidades” diversas), e não a eliminação ou submissão
do “outro”; significa alcançar a igualdade social entre os diferentes.
Contrariamente, a superação dos fundamentos da contradição de classes, a
exploração – sob a qual se constituem as classes sociais capitalistas,
burguesia e proletariado –, pressupõe e impõe a eliminação das classes.
Assim, em relação às classes sociais, para a supressão da contradição
entre elas, para a construção da igualdade social, deve-se, necessariamente,
eliminar as próprias classes sociais. Neste sentido, contrariamente às
“identidades”, onde pode se alcançar a igualdade entre os diferentes, não pode
haver igualdade entre as classes, entre a burguesia e o proletariado, porque
sua própria existência remete inexoravelmente à exploração que uma exerce
sobre a outra; eliminar a exploração (fundamento da desigualdade de classe)
supõe eliminar as próprias classes. Sujeitos de diferentes gêneros, raças,
credos, nacionalidades, podem ser socialmente iguais, eliminando toda forma
de opressão, discriminação e desigualdade; porém, a existência de classes
sociais (capitalista e trabalhadora) pressupõe a exploração de uma pela outra.
Ou seja, mesmo eliminando a opressão de gênero, racial etc., continuam
existindo (agora em condições de igualdade) as diferenças de gênero, raça
etc.; mas ao se eliminar a exploração, necessariamente deixam de existir as
classes burguesa e proletária. Como questiona Wood, é impossível imaginar
“as diferenças de classe sem exploração e dominação”, sendo a relação (ou
contradição) de classe, por sua natureza, uma relação de desigualdade distinta
daquelas oriundas das diferenças de ordem sexual, racial, cultural (2006, p.
221). Assim, nas palavras de Wood:
a igualdade de classe significa algo diferente e exige condições diferente
das que se associam à igualdade sexual ou racial. Em particular, a
abolição da desigualdade de classe representaria por definição o fim do
capitalismo (idem, p. 221).

Conforme aponta a autora, “o desaparecimento das desigualdades de


classe é por definição incompatível com o capitalismo” (ibidem); isto é, a
eliminação das desigualdades de classe exige a superação do capitalismo, e,
306

portanto, a própria supressão das classes. Porém, continua, o mesmo (o fim do


capitalismo) não se aplica para a “abolição da desigualdade sexual ou racial”,
já que estas “não são incompatíveis com o capitalismo” (ibidem).
Em síntese, novamente afirmamos, não se trata de enfrentar como
alternativas excludentes: ou lutas no âmbito da sociedade civil (lutas
“identitárias” e dos movimentos sociais), ou na esfera do Estado (lutas políticas,
partidárias, parlamentárias), ou na base econômica (lutas de classes). Trata-se
de articular as lutas emancipatórias nestas três esferas da sociedade,
como três frentes de lutas articuladas: na base econômica, na sociedade
civil e no Estado.

7.2- Lutas antiopressivas particulares não equivalem à “lógica


identitarista” (pós-moderna).
É propósito da nossa reflexão, e o temos reafirmado em diversos
momentos, apontar a importância, a necessidade e a urgência das lutas
antiopressivas particulares, ou “lutas identitárias”, no campo da emancipação
política, da superação de muitas formas de desigualdade e relações de
opressão particulares. Porém, cabe aqui mostrar que a afirmação da imprtância
dessas lutas antiopressivas não significa adotar a “lógica identitarista” pós-
moderna.
Falar de lutas antiopressivas não corresponde nem equivale à
polarizadora e pessoalizada “lógica identitarista” da interpretação pós-moderna.
Contrario à compreensão pós-moderna, na análise marxista histórico-
dialética há uma complementaridade entre as lutas de classes e antiopressivas,
no caminho da emancipação política e humana. Vejamos.

A) Lutas de classe e lutas antiopressivas (identitárias).


Primeiramente trataremos das distinções e vínculos entre ambas as
formas de lutas, de classes e antiopressivas. O faremos a partir das seguintes
afirmativas.
1°- Lutas de classe (em torno da exploração) e lutas “identitárias”
particulares (em torno das formas particulares de opressão)
respondem a formas diferentes de relação social.
307

Vimos anteriormente (item 7.1-C) que opressão e exploração


representam dois tipos de relação social. A primeira, a opressão, é um conceito
abstrato que expressa uma relação de dominação, subordinação, desigualdade
etc., entre indivíduos ou coletivos sociais diversos. A segunda, a exploração,
uma categoria que assume concretude histórica no capitalismo, representa o
processo mediante o qual uma classe extrai e se apodera do valor produzido
pela outra, a partir da relação de compra e venda da força de trabalho.
Desta forma, ao falar de lutas de classes e lutas sociais, ou
antiopressivas (“identitárias”), estamos nos referindo a fundamentos diferentes
de cada uma delas, respondendo uma e outra a formas diferentes de relações
sociais.
As lutas de classes, por um lado, se fundam na contradição capital-
trabalho, a partir da relação de exploração de uma por outra. Falamos assim,
não de uma “diferença” entre as classes (como a compreensão weberiana,
sustenta na diferença de poder aquisitivo entre as mesmas), mas de uma
contradição entre as classes, a partir da insuprimível (no capitalismo) relação
de exploração (ver item 6.3-A.c). Neste sentido, como vimos anteriormente,
eliminar a exploração (fundamento da existência das classes) exige a
eliminação das próprias classes sociais. Por tal motivo, esta é uma luta
essencialmente anticapitalista, portanto, revolucionária, adquirindo assim uma
dimensão universal no processo de emancipação política e humana.
As lutas antiopressivas, por outro lado, chamadas por muitos como
“lutas sociais”, e mais recentemente como “identitárias”, se orientam
basicamente nas (e a partir das) diversas relações de opressão (como vimos,
incorporando uma ampla gama de formas e modalidades, desde a dominação,
a violência, a discriminação etc.). Neste caso, o fundamento, sob o qual se
desenvolve a relação de opressão e a desigualdade, é a diferença entre
indivíduos e grupos, por gênero, etnia, religião, nacionalidade etc. Trata-se de
diferenças que fundam uma relação de opressão, não de uma contradição;
desta forma, superar a opressão e a desigualdade decorrente dela, não exige a
superação das diferenças, as quais persistirão num ambiente de igualdade
social, quando superada a relação de opressão. Estas são lutas particulares,
específicas, sem, por si só, ter uma dimensão universal.
308

Por tudo isto, podemos afirmar que as lutas de classe (em torno da
exploração) e lutas “identitárias” particulares (em torno das formas de
opressão) respondem a formas diferentes de relação social.

2°- Porém, as lutas de classe (em torno da exploração) e as lutas


“identitárias” particulares (em torno das formas de opressão) não
são alternativas excludentes, mas complementares.
Desta forma, fundadas em relações diferentes, pareceria,
equivocadamente, que tivéssemos que optar entre uma ou outra forma de luta,
entre as lutas de classe, ou as lutas identitárias. Pareceria que ambas fossem
incompatíveis. Diversos argumentos (ou “lógicas”) promovem esta visão de
incompatibilidade, levando a uma opção entre uma ou outra formas de lutas.
Vejamos.
● Por um lado (numa lógica antes/depois), como se uma e outra
respondessem a momentos diferentes da história: a) antes, as lutas de classe,
durante o capitalismo industrial – desde meados do século XVIII, com o
desenvolvimento tecnológico que levou à industrialização da produção, até
finais do século XX, onde o trabalho e a contradição de classe teria
centralidade; e b) hoje, as lutas identitárias, a partir da crise capitalista na
virada dos anos 60-70, e no suposto advento do que alguns intelectuais
chamam de fim da modernidade, ou de modernidade “líquida”, de sociedades
pós-moderna, pós-industrial, ou informacional, de fim da história (de Robert
Cartel a Pierre Rosanvallon, de Daniel Bell a André Gorz, de Jürgen Habermas
a Alain Touraine e a Zygmunt Bauman, de Jean François Lyotard a Boaventura
de Souza Santos, de Milton Friedman a Francis Fukuyama), agora não mais
centrada no trabalho, ou na questão de classes (a exploração), mas no
multiculturalismo e as ações intercomuncacionais da sociedade civil, do
“mundo da vida” (nas “identidades” e diferenças).
● Por outro lado (numa lógica possível/utópico), resignados com a
“impotência” das lutas de classes, com a falta de adesão aos movimentos
sindicais e trabalhistas, com seu reduzido impacto na economia, com seu
utópico fundamento e finalidade anticapitalista, e otimistas com as
organizações multiculturais e com os movimentos “identitários”, na sociedade
civil, uma “esquerda possibilista” pareceria ser levada a uma substituição
309

daquelas lutas (de classes) e daqueles movimentos (sindicais) na esfera


produtiva, por estas lutas (antiopressivas) e estes movimentos ("identitários) na
esfera da sociedade civil. Aqui aparece, como um exemplo de tantos, a noção
de Marcio Pochmann de ser a “inclusão social uma utopia possível”
(POCHMAN et alii, 2006). Assim, conforme afirma Safatle:
Tudo se passaria como se, dada a impossibilidade de implementar
políticas efetivas de redistribuição e luta radical contra a desigualdade, nos
restasse apenas discutir políticas compensatórias de reconhecimento
(apud BOSCO, 2017, p. 82).

Na medida em que parece impossível transformar as estruturas sociais


de exploração, então abandonam-se as lutas de classes e orienta-se a ação e
a militância ao “empoderamento” dos estratos mais pobres da população; na
medida em que parece impossível alterar a estrutura de empregos, controlada
pelo capital, então orienta-se a ação política para a criação de “nichos” de
“Economia Solidária” (para uma crítica da Economia Solidária, ver WELLEN,
2012, e in MONTAÑO, org., 2014).
● Por seu turno (numa lógica melhor/pior), como se por se tratar de
relações de tipo diferentes – a contradição e lutas de classes, em torno das
relações de produção, uma relação de exploração, e a desigualdade e
discriminação em torno das “identidades”, significando uma relação de
opressão –, tivesse então que optar por lutas de classe ou por lutas
antiopressivas. Ou optamos pelas lutas anticapitalistas, porque só elas têm um
potencial transformador, secundarizando as lutas antiopressivas ou
qualificando-as como “pequeno-burguesas”; ou então optamos pelas lutas
identitárias, porque hoje elas têm um maior poder mobilizador das pessoas,
desprezando as lutas de classes e qualificando-as como “ultrapassadas” e
“bolcheviques”.
● Derivado do anterior, por outro lado (numa lógica da relação
direta/indireta com as pessoas), para uns deveríamos escolher entre lutas
diretamente vinculadas com nossas vidas, com nossos problemas cotidianos,
com nossa vivência (as “identidades”, as formas de opressão, discriminação e
desigualdade que vivenciamos cotidianamente), deixando de lado – e sob o
comando de quem controla as estruturas de dominação política e econômica –
aquilo que parece não estar diretamente vinculado a nossas vidas (a
exploração, o antagonismo de classes); ou então, para outros, deveríamos
310

orientar as lutas contra o sistema, porque só após sua transformação


poderemos obter mudanças significativas no nosso cotidiano. Ou lutamos por
transformar o conjunto da sociedade, e desprezamos as questões particulares;
ou lutamos por mudar aqueles fenômenos e aspectos que nos afetam
diretamente no nosso cotidiano, mas renunciamos à transformação social.
● Em decorrência do anterior (numa lógica de resultados
imediatos/mediatos, ou de curto/longo prazo), pareceria, para uns, que
tivéssemos que optar por aquilo que traga resultados imediatos para a vida das
pessoas (como afirmava o sociólogo e ativista Hebert de Sousa, o “Betinho”,
criador da “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”: “quem
tem fome tem pressa”, ou, como o economista marxista Paul Singer, que
passou a se dedicar àquilo possível no curto prazo, a “Economia Solidária”), e,
em claro pragmatismo, relegando as lutas cujos resultados não forem
imediatos; ou então, para outros, devemos orientar as lutas naquilo que
produza transformações mais estruturais e estáveis, secundarizando aquilo que
traz resultados imediatos, mas não estruturais.
● Por outro lado (nula lógica de lutas revolucionárias/reformistas), há
quem afirme que apenas há que investir naquelas lutas “verdadeiramente”
revolucionárias, pois outras formas de lutas seriam “pequeno-burguesas” e
portanto meramente funcionais aos interesses do capital. Neste caso,
reivindicam-se apenas as lutas de classes como efetivamente revolucionárias,
na medida em que elas se centram na relação de exploração, tipicamente
capitalista. Assim pareceria que apenas estas lutas devem se fundar numa
orientação anticapitalista e, portanto, revolucionária, enquanto as lutas
antiopressiva, ou “identitárias”, por se tratar de relações de opressão existentes
antes do capitalismo (relações de desigualdade e discriminação racial, sexual
etc.), fundadas nas sociedades escravocratas, patriarcais etc., não tivesse (ou
não devesse) ter uma orientação anti-sistema, anticapitalista.
● Como efeito disso (numa lógica de causa/efeito), para alguns, numa
espécie de descontextualizada “guerra de movimento”, dever-se-ia
primeiramente lutar pela transformação estrutural econômica, a “grande
transformação socialista”, mediante a tomada do Estado, a partir de onde todas
a formas particulares de opressão seriam posteriormente e consequentemente
resolvidas; ou, para outros, numa espécie de também descontextualizada
311

“guerra de posição”, deveríamos primeiramente lutar pelas reformas e


mudanças pontuais, particulares, que, consequentemente, e de forma
cumulativa, iriam construindo uma “nova sociedade emancipada”.
Ora, ambas as formas de lutas, de classes e antiopressivas, respondem
a tipos de dominação e desigualdade, e portanto as lutas em torno de uma (a
exploração, fundando a desigualdade econômico-política) e de outra (a
opressão, fundando formas particulares de desigualdade social, que Safatle e
Bosco, assim como Losurdo, chamam de “desigualdade de reconhecimento”,
SAFATLE, 2018; BOSCO, 2017, p. 82; e LOSURDO, 2015, p. 91 e ss.), não
são incompatíveis, mas, ao contrário, necessariamente complementarias.
Como afirma Bosco, “a igualdade econômica é uma condição necessária, mas
não suficiente para eliminar os preconceitos e, com eles, as assimetrias de
reconhecimento” (idem, p. 83), e continua, afirmando a complementaridade de
ambas lutas desta forma: “o melhor meio para atingir os seus objetivos [das
lutas identitárias] seria a promoção de uma radical igualdade socioeconômica”
(ibidem).
Assim, se as lutas de classe e identitárias se expressam concretamente
em formas diversas de relação social, no entanto, como também observamos
anteriormente, no capitalismo não dá para compreender, na riqueza e
complexidade das suas múltiplas determinações, as diversas formas de
opressão, assim como as lutas antiopressivas, sem a referência à exploração,
enquanto fundamento do MPC (é esta que lhe dá concretude histórica e a dota
de uma dimensão universal). Nem dá para analisar a exploração, assim como
as lutas de classes, sem satura-las da diversidade de formas de opressão e
desigualdade que configura esta relação entre classes e que compõe
internamente cada classe social (são elas que as saturam de determinações,
fazendo da exploração um fenômeno complexo e dando concretude e
complexidade à categoria de classe social, internamente composta por
diversas e variadas “identidades” e múltiplas relações de opressão).
Na verdade, quando se fala da questão de classe, deve-se tratar,
simultaneamente, da questão da mulher, do negro, do imigrante etc. Mesmo
com suas particularidades, o/a trabalhador/a negro/a, ou o imigrante, e a
mulher trabalhadora, todas elas são submetidos à exploração capitalista
312

(quando empregados) ou ao desemprego (quando compondo a


superpopulação relativa) (ver MARX, 1980, p. 730 e ss.).
Isto é, não pesa sobre a “identidade” da mulher apenas a opressão
machista e patriarcal, nem sobre a “identidade” do negro apenas a opressão
racista; pesam sobre eles também a exploração, a desigualdade e a
pauperização à qual são submetidos, enquanto trabalhadores/as
assalariados/as.
Vale dizer, por exemplo, o trabalhador negro hoje é decerto submetido
aos desígnios herdados do passado escravocrata – além da discriminação, em
média ele trabalha em piores condições e recebe salários mais baixos que o
trabalhador branco –, mas hoje ele é explorado como trabalhador assalariado.
Isto é, se há uma desigualdade de condições entre os trabalhadores branco e
negro, no fundo, ambos são explorados pelo capital, o que continua sendo
central na sua condição de trabalhador (negro). Desconhecer esta condição (de
classe) na questão racial é reduzir a compreensão desta questão e apenas
focar num aspecto dela. É tão reducionista e limitada a análise que ignora a
questão (de desigualdade e opressão) racial ou de gênero, do/a trabalhador/a
negro ou mulher, quanto o é ignorar a contradição de classe e a questão da
exploração a que são submetidos.
Isto faz da discussão que opõe raça vs. classe, uma discussão bizantina.
Apenas útil para os interesses da classe dominante e perpetuação da ordem
social vigente. A questão racial não exclui a questão da classe. A “identidade”
do negro envolve simultaneamente a opressão do racismo e exploração de
classe, e ainda, a opressão de gênero etc. Assim como a questão de classe,
especialmente num país como o Brasil e seu passado escravocrata, envolve,
também simultaneamente, a questão racial, de gênero etc.
Em um texto o jovem Engels, ao tratar do trabalhador escravo e do
assalariado, escreve,
O escravo é vendido de uma vez por todas; o proletário tem que se vender
a si mesmo a cada dia e a cada hora. O escravo individual, propriedade de
um senhor, tem, por interesse desse senhor, uma existência assegurada,
por mais miserável que seja; o proletário individual [...] que só tem seu
trabalho vendido quando alguém [o capitalista] necessita, não tem a
existência assegurada [...]. O escravo é considerado um objeto [...]; o
proletário é reconhecido [...] como pessoa (apud LOSURDO, 2015, p. 92-
93).
313

Engels, com esta passagem, está comparando aqui o trabalhador


escravo ao trabalhador assalariado (proletário); não compara trabalhadores
negros e trabalhadores brancos, mas dois modelos de expropriação do valor, a
partir de dos modos de produção. É um reducionismo inconcebível imaginar
que quando fala de escravo estaria tratando de uma raça e quando se refere
ao proletário remeteria a outra. No Brasil, e na região, o negro foi tanto um
trabalhador escravo como é na atualidade um proletário (assalariado). Sim, um
proletário que carrega a herança do passado escravocrata, mas proletário ao
fim.
Em idêntico sentido, a mulher submetida à “dupla jornada de trabalho”, o
é porque não apenas ela é sujeita à desigualdade de gênero e ao trabalho não
remunerado no lar, mas porque também é explorada pelo capital enquanto
trabalhadora assalariada. Assim, reduzir a “identidade” da mulher apena à
opressão de gênero é reduzir a questão da mulher a apenas uma das suas
dimensões, esquecendo sua condição de classe, enquanto trabalhadora
assalariada submetida à exploração.
Assim, classe e “identidade”, exploração e opressão, lutas de classes e
lutas sociais ou antiopressivas (“identitárias”), precisam ser mutuamente
referenciadas, e compreendidas de forma articulada, complementar, e não
excludente.
Para a articulação e mútua complementaridade das lutas de classes e
antiopressivas, devemos superar as lógicas “antes/depois”, “possível/utópico”,
“melhor/pior”, “relação direta/indireta”, “resultados imediatos/mediatos”, lutas
“revolucionárias/reformistas”, “causas/efeitos”.
3°- As lutas “identitárias” particulares (em torno das formas de
opressão) não equivalem à “lógica identitarista” (pós-moderna).
Vimos que as lutas de classe e antiopressivas se fundam em tipos
diferentes de relações sociais; vimos também que a pesar disso elas não são
alternativas excludentes, mas necessariamente complementares. Assim, resta-
nos agora responder se tratar de lutas antiopressivas (identitárias) equivale
necessariamente à interprestação pós-moderna contida na polarizadora e
pessoalizada “lógica identitarista”.
Não havendo uma relação de exclusão entre umas e outras, certamente
o projeto emancipatório revolucionário deve articular ambas as formas de lutas,
314

tanto em torno da exploração como das diversas e variadas modalidades de


opressão e desigualdade social.
Ocorre que o pensamento pós-moderno, por um lado, ora abandona a
luta de classes, como algo ultrapassado teórica e politicamente, ora a reduz a
mais uma questão de opressão e “identidade”, promovendo assim uma clara
desarticulação e deseconomização da análise e das lutas.
Por seu turno, a “lógica identitarista” pós-moderna, como já tratamos, se
funda numa polarização “nós/eles”, que representa tanto uma moralização e
despolitização das análises e lutas, como uma pessoalização dessa relação,
arrancada da totalidade e da estrutura sociais; assim, o que é particular é
ideológica e abstratamente transformado em universal. O que se combate,
nesta lógica, não é a estrutura opressora e desigual (o racismo, o machismo
etc.), mas o indivíduo diferente, o “outro”, a outra “identidade” da relação.
O problema, portanto, no campo do projeto emancipatório e
revolucionário, não são as lutas por interesses particulares, antiopressivas ou
identitárias, mas a polarização pessoalizada que promove a “lógica
identitarista” pós-moderna, onde por definição polarizam-se, como inimigos
antagonizados, homens e mulheres, negros e brancos, heteros e
homossexuais, cristãos, judeus, evangélicos, islamitas e umbandistas,
nacionais e imigrantes etc. Vejamos.
● Nesta lógica de polarização pessoalizada por “identidades” e
diferenças, a unidade nas lutas políticas torna-se algo inalcançável, porque
sempre existirá o antagonismo entre elas. Desta forma, como criar um
movimento de trabalhadores, se há polarização entre trabalhadores homens e
mulheres? Como alcançar uma unidade das trabalhadoras mulheres, se entre
elas há negras e brancas? Como atingir a unidade das mulheres negras, se
umas são originárias e outras imigrantes? Como unir a luta das mulheres
negras imigrantes, se umas são latino-americanas e outras de origem africana?
E assim a polarização caminha na direção da multi-setorialização e
fragmentação.
A polarização contida na “lógica identitarista” levará necessariamente à
fragmentação da classe trabalhadora, transformando uma maioria social em
diversas e enfrentadas minorias... é o paraíso para o domínio burguês,
seguindo a máxima romana “divide e reinarás!”. Vejamos bem, se em relação à
315

identidade racial, pessoas negras e brancas são tidas como inimigas, como um
trabalhador-negro poderia ocupar um mesmo espaço político e compartilhar
uma mesma plataforma política com um trabalhador-branco? Igualmente, se
dada essa “lógica identitarista” polarizam-se, como inimigos, o homem e a
mulher, como uma trabalhadora-mulher se articularia na luta comum com um
trabalhador-homem?
Mas a divisão da maioria da classe, pulverizada em minorias, segue o
caminho da hiperfragmentação: como uma mulher-trabalhadora-negra poderia
compartilhar sua luta com uma mulher-trabalhadora-branca? Ainda mais: como
uma mulher-trabalhadora-negra-imigrante poderia se unir na luta com uma
mulher-trabalhadora-negra-local? Seguindo nesta direção multifragmentadora:
como uma mulher-trabalhadora-negra-imigrante-muçulmana poderia
desenvolver uma luta comum com uma mulher-trabalhadora-negra-imigrante-
evangêlica?
É como se dois trabalhadores, que ocupam cargos diferentes na mesma
empresa, ou cujos salários e condições contratuais são diferentes, em lugar de
se articularem na luta contra a exploração capitalista comum, se enfrentassem
visando as diferenças pontuais que há entre eles.
É neste sentido que Wilson Gomes, em artigo jornalístico, afirma que “o
mundo da luta identitária acaba se tornando um conjunto de peças que nunca
formam um mosaico, porque há superposições e há colisões, em que cada
pauta identitária tende a se fragmentar em um processo infinito” (2018, p. 2).
● A “lógica identitarista” assume que se há opressão e desigualdade
para um grupo identitário, é porque todos e cada indivíduo do grupo contrário
seriam opressores. Assim, cada homem é necessariamente visto como
opressor das mulheres, cada heterossexual é considerado discriminador dos
grupos LGBTs, cada pessoa branca é por definição tido como racista e
“supremacista”. A “lógica identitarista” identifica o “diferente” como
necessariamente inimigo.
Como já foi afirmado, a constatação de uma estrutura machista e
patriarcal, ou racista etc., não faz de cada homem um inimigo natural da
mulher, nem de cada indivíduo branco um inimigo natural da pessoa negra. As
desigualdades e a opressão nessas relações são históricas, e não naturais, ou
constitutivas dos sujeitos; gêneros, etnias, orientações sexuais diversas podem
316

conviver e se relacionar sem opressão ou desigualdade, desde que superada


essas estruturas e culturas. Porém, os sujeitos (personificação de categorias
econômicas) burguês e o trabalhador assalariado, tem a exploração de um pelo
outro como fundamento constitutivo do seu ser; se tirar a exploração, elimina-
se tanto o burguês como o assalariado.
Ora, a partir da polarização promovida pela “lógica identitarista” pós-
moderna, combate-se o indivíduo em lugar de enfrentar a cultura machista,
homofóbica, racista etc. O inimigo da mulher não é o homem, mas a estrutura
patriarcal e a cultura machista; o inimigo do heterossexual não é o
homossexual, mas a cultura homofóbica; o inimigo do negro não é o branco,
mas a estrutura e cultura racistas. É a estrutura e a cultura (ou sistema
cultural), que certamente se expressa nas instituições e nos indivíduos, e que
promove a segregação, a opressão e a desigualdade, que precisa ser
combatida. Combate este que pode (e deve) unir negros e brancos, homens e
mulheres, cristãos, umbandistas e islamitas etc. numa luta conjunta contra a
homofobia, o racismo, a misoginia, a xenofobia, a intolerância religiosa etc.
Numa guerra entre nações, o objetivo político-militar está na eliminação
do inimigo, ou sua subjugação a partir da rendição. Nas lutas de classes, o
objetivo final está na superação da contradição entre as mesmas, a exploração,
que na sociedade capitalista é insuprimível, portanto, a finalidade está na
eliminação das próprias classes superando o capitalismo. Porém,
diferentemente, nas lutas por direitos civis e contra a desigualdade, a opressão
e a discriminação em relação às “identidades” subjugadas e subalternas, o
objetivo jamais está na eliminação do diferente, mas no combate à estrutura e
à cultura, normas e valores discriminatórios. Não se combate o machismo
eliminando os homens; não se combate a homofobia eliminando os
heterossexuais; não se combate o racismo eliminando o branco etc.
Isto é, ao tratar dos fundamentos da classe social e das “identidades”, e
suas formas de enfrentamento e superação, estamos falando de relações, lutas
e objetivos essencialmente diferentes.
● Ainda mais, na polarização pós-moderna da “lógica identitarista”
apenas se vê uma relação de opressão. Certamente existe uma estrutura
opressiva na relação homem-mulher, negro-branco, nacional-imigrante etc.
317

Porém não há apenas opressão nestas relações: por um lado, a relação


homem-mulher é também uma relação afetiva e amorosa e/ou familiar (de
casal, de parentalidade, de irmandade etc.); por outro lado, a relação entre
trabalhadores negros e brancos é também uma relação de membros da mesma
classe trabalhadora, sujeitos à exploração pelo mesmo patrão, assim como
igualmente uma relação de vizinhança nas comunidades; o mesmo também
ocorre na relação entre o nacional e o imigrante etc.
Ver apenas e exclusivamente uma relação de opressão é extremamente
reducionista e leva à polarização “nós/eles”. Contrariamente, entender a
diversidade de aspectos contraditórios nessas relações, mostra a necessidade
de combater e superar a opressão que funda a desigualdade, preservando não
só as “identidades” e diferenças de cada um, mas também as diversas
dimensões presentes nas relações entre os diferentes.
● Por outro lado, a diversidade de “identidades” e subidentidades de
cada indivíduo faz com que seu lugar nas diversas relações de opressão seja
variado e dinâmico. Assim, por exemplo, uma mulher branca ocupa o lugar do
sujeito subalterno nas relações de gênero, e dominante nas relações raciais; de
igual forma, um homem negro se situa no espaço dominante das relações de
gênero, enquanto representa o lado oprimido das relações raciais; outro
exemplo é o de uma mulher empresária, que é oprimida enquanto mulher, mas
explora e oprime seus empregados. Neste sentido, Domenico Losurdo aponta
como:
explorado na fábrica, o trabalhador (por exemplo, o inglês) pode ser
indiferente ou até mesmo aprovar a submissão da Irlanda ou da Índia e,
portanto, nesse sentido, tornar-se cúmplice dos opressores [...]. No caso
de uma mulher trabalhadora e irlandesa, três vezes oprimida – no âmbito
da família, na fábrica e por pertencer a uma nação oprimida – [...] ela
também é partícipe da “exploração dos filhos por parte dos pais” [...].
Em outros termos, todo indivíduo (e até mesmo um grupo) é colocado em
um conjunto contraditório de relações sociais, atribuindo a cada uma delas
um papel diferente. Longe de basear-se em uma “relação de coerção”
singular, o sistema capitalista mundial é o entrelaçamento de múltiplas e
contraditórias “relações de coerção”. O que decide a colocação final de um
indivíduo (e de um grupo) no campo dos “oprimidos” ou no dos
“opressores” é, por um lado, a hierarquização dessas relações sociais
segundo sua relevância política e social em uma situação concreta e
determinada; por outro, a escolha política do singular indivíduo (ou grupo)
(LOSURDO, 2015, p. 137).
318

Isto é, reafirma o autor, “até a classe revolucionária por excelência, o


proletariado, pode sucumbir à sedução da sereia colonialista” (idem, p. 313),
participando da opressão de um povo colonizado.
● Em síntese, não se trata de desconhecer a importância das “lutas
particulares”, claramente civilizatórias e emancipatórias em termos “políticos”.
Sem o sucesso delas não haverá emancipação política, e muito menos
humana.
Trata-se, sim, de perceber que atribuir uma “lógica identitarista” às lutas
sociais e antiopressivas transfigura completamente e pulveriza a unidade das
lutas de classes, moralizando, pessoalizando e despolitizando as importantes,
necessárias e urgentes lutas identitárias e antiopressivas.
Diferenciamos aqui, portanto, as “lutas antiopressivas particulares” (ou
identitárias) da interpretação pós-moderna contida na “lógica identitarista”.
Defendemos a importância das primeiras, mas questionamos os fundamentos
da interpretação polarizadora que delas faz o pensamento pós-moderno.

B) A relação dialética: singular / particular / universal.


Ao tratar de lutas “particulares” e de dimensão “universal” das lutas
precisamos discorrer brevemente sobre o singular, o particular e o universal, e
suas relações. Vejamos.
Para Lukács, o pensamento dialético marxiano reproduz “a ligação
existente na realidade, e que é inseparável, entre universalidade e
singularidade” (LUKÁCS, 1968, p. 110). Assim, conforme afirma, “o movimento
dialético da realidade, tal como ele se reflete no pensamento humano, é assim
um incontrolável impulso do singular para o universal e deste, novamente, para
aquele” (ibidem).
Contrariamente, como afirma nosso autor, por um lado, o “empirismo
grosseiro” e o “apriorismo formalista”, presentes na razão formal-abstrata,
realiza uma “divinização do universal”, desprezando ou secundarizando o
singular, o fenômeno específico, e operando “generalizações vaziamente
analógicas e completamente carentes de conteúdo” (idem, p. 121). Por outro
lado, como no irracionalismo pós-moderno, reduz-se o conhecimento do real a
uma absolutização, autonomização e isolamento do fenômeno singular,
desprezando sua articulação com o universal, tendendo a “excluir da história
319

todos os momentos que vão além da singularidade dos fenômenos históricos


(e, portanto, toda particularidade e universalidade)” (ibidem).
Assim, conforme Lukács, “apenas o materialismo dialético [desenvolvido
por Marx, a partir da apropriação/superação crítica da dialética hegeliana] está
em condições de colocar com justeza e de desenvolver este problema”, a
relação dialética entre o singular o particular e o universal (ibidem.).
Como faz isso? Inserindo os fenômenos singulares e suas
particularidades na totalidade social, e saturando esta última de suas
particularidades e singularidades. É a perspectiva de totalidade, em primeira
instância, a que permite superar as limitadas razão formal-abstrata e o
irracionalismo pós-moderno. Neste sentido, contrariando o que sustenta o
chamado “marxismo economicista”, segundo afirma Lukács:
Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que
distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o
ponto de vista da totalidade. A categoria totalidade, o domínio universal e
determinante do todo sobre as partes, constitui a essência do método
[marxista] (LUKÁCS apud MÉSZÁROS, 2013, p. 57).

Porém, não basta o apelo à “totalidade” para um conhecimento crítico-


dialético. Há um tipo de “totalidade” no positivismo durkheimiano, tratado como
um “todo orgânico”, ou no neopositivismo, como o “funcionalismo estrutural” de
Talcott Parsons ou como o “sistema” de Ludwing von Bertalanffy.
Desta forma, o “ponto de vista da totalidade” do pensamento marxista
opera, em segunda instância, uma determinada “relação entre o todo e as
partes”, entre o universal, o particular e o singular (LUKÁCS, 1974, p. 189),
diferente da relação orgânica entre o todo e as partes estabelecida no
positivismo e neopositivismo. Assim, afirma nosso autor:
O método dialético não se distingue do pensamento burguês
exclusivamente por ser o único susceptível de conhecer a totalidade: este
conhecimento também só é possível porque a relação entre o todo e as
partes se tornou fundamentalmente diferente daquela que existia no
pensamento reflexivo (LUKÁCS, 1974, p. 189).

Esta não é uma relação de mera soma de partes autônomas, numa


espécie de “multidisciplinaridade” (que mantém a divisão disciplinar, seguido de
sua justaposição), mas uma relação de mútua implicância, muito mais na lógica
“transdisciplinar” (que assume a perspectiva de totalidade superando a
segmentação disciplinar, e numa mutua determinação entre o singular, o
320

particular e o universal). Assim, conforme Lukács, há na teoria marxiana uma


relação dialética entre o singular, o particular e o universal, definindo uma
“tríade” lógica (idem, p. 112).
Desta maneira, temos na realidade dialética, por um lado, o “singular”,
que remete a um indivíduo ou fenômeno específicos, únicos, irrepetíveis, ou,
como Lênin descreve: é a “coisa-em-si” (LÊNIN, 2011, p. 137), sendo que
“todas as coisas são diferentes” (idem, p. 127). O singular é toda realidade
concreta, específica, que vivenciamos especialmente na nossa vida cotidiana,
portanto, nossa vida está cheia de momentos, fenômenos, situações, coisas,
pessoas, singulares. Assim, conforme Lukács, “é obvio que em nossas
relações diretas com a realidade tropeçaremos sempre diretamente com a
singularidade”, na medida em que “tudo o que nos oferece o mundo externo
como certeza sensível é imediatamente e sempre algo singular, ou uma
conexão única de singularidades; é sempre um Isto singular, um Aqui e Agora
singular” (LUKÁCS, 1967, p. 203).
Por outro lado, temos o “universal”, que diz respeito à totalidade, ao
geral, à lei universal que determina e contêm o singular, ou, nos termos de
Lênin: a “substância”, o “Ser-em-todo-o-Ser” (LÊNIN, 2011, p. 144),
expressando tanto a dimensão estrutural da realidade, como a generalidade do
fenômeno, numa dimensão abstrata.
Finalmente, completando a “tríade”, e como instância de articulação e
mediação entre o singular e o universal, temos o “particular”, que tanto brinda
de concretude o universal, como articula o singular com universalidade. Nas
palavras de Lukács: “o particular representa aqui, precisamente, a expressão
lógica das categorias de mediação entre os homens singulares e a sociedade”
(1968, p. 93). Desta forma, ainda segundo o autor húngaro, “o movimento do
singular ao universal e vice-versa é sempre mediatizado pelo particular” (idem,
p. 112).
Em síntese, para Lênin, segundo aponta Lukács, existe uma “unidade
dialética” e uma “conexão contraditória” entre “singular e universal” (LÊNIN
apud LUKÁCS, 1968, p. 109). Assim, a relação entre universal e singular não é
unívoca, unidirecional, mas mutuamente determinada e dinâmica. É o que
aponta Lênin a seguir:
321

os opostos (o singular é o oposto do universal) são idênticos: o singular


não existe senão em sua relação com o universal. [...] Todo singular é (de
um modo ou de outro) universal. Todo universal é (partícula ou aspecto, ou
essência) do singular. [...] Todo singular faz parte, incompletamente, do
universal, etc. Todo singular está ligado, por meio de milhares de
transições, aos singulares de um outro gênero (objeto, fenômenos,
processos), etc. (apud LUKÁCS, 1968, p. 109).

Trata-se, portanto, de uma relação dinâmica e multideterminada, entre o


singular, o particular e o universal, que, dependendo do contexto histórico e do
objeto em questão, pode variar a relação do que seja o universal e o particular.
Neste sentido, como afirma Lukács, opera-se, na dialética marxiana, uma
“relativização dialética do universal e do particular” (LUKÁCS, 1968, p. 92).
Para ele,
em determinadas situações concretas eles se convertem um no outro, em
determinadas situações concretas o universal se especifica, em uma
determinada relação ele se torna particular, mas pode também ocorrer que
o universal se dilate e anule a particularidade, ou que um anterior particular
se desenvolva até a universalidade ou vice-versa (ibidem).

Assim, por exemplo, a questão racial é uma particularidade do


capitalismo brasileiro, no contexto histórico do modo de produção capitalista, e
quando este último constitui nosso objeto de estudo. Aqui, o capitalismo
brasileiro expressa a dimensão universal, enquanto a questão racial constitui
uma particularidade dele. Porém, por sua vez, se nosso objeto de investigação
for a questão racial no Brasil contemporâneo, as relações capitalistas de
produção e reprodução constituem uma particularidade da mesma, que a
diferencia, por exemplo, da questão racial na sociedade escravocrata
(notadamente a relação salarial, e não de propriedade, que o trabalhador negro
estabelece com seu patrão), ou em países escandinavos.
Desta forma, por um lado, isolar a dimensão universal das suas
particularidades, e ainda, das situações e fenômenos singulares, representa
uma evidente abstração. Precisamos dotar o universal de concretude, mediante
a saturação de suas particularidades, ou seja dotando de mediações o
universal, na sua relação com o singular. Assim, conforme Marx alerta: “deve-
se evitar [...] fixar a ‘sociedade’ como uma abstração em face do individuo”
(apud LUKÁCS, 1968, p. 93).
322

A sociedade, assim como a classe social, sem indivíduos e suas


“identidades” (a partir das questões racial, de gênero, religiosa, de orientação
sexual, cultural, nacional etc.) é certamente uma abstração.
Porém, por outro lado, tratar do indivíduo, ou a “identidade”, ou seja, do
sujeito ou do fenômeno singulares, de forma desarticulada do universal, da
sociedade que os contêm e determinam, a sociedade burguesa, constitui
também uma abstração, tratando de um indivíduo e/ou uma “identidade”
abstratos, representando, nos termos de Marx, uma verdadeira “robinsoneada”
(MARX, 1877, p. 201).
A razão pós-moderna é refém da singularidade. Prisioneira do singular,
ela não supera o dado específico, a dimensão singular da realidade, para
alcançar o conhecimento universal, como é próprio da teoria social da
modernidade. O fato singular, o fenômeno isolado, a subjetividade individual
são seu único e máximo horizonte. É por isso que ela é pós moderna, é por
isso que ela é anti moderna, e mais ainda, é por isso que, no campo das
esquerdas, ela se torna anti marxista; abstrata porque é uma singularidade
destotalizada. Assim, a particularidade, como mediação entre o singular e o
universal, é transformada em mera singularidade... nada além do singular. O
universalismo esvai-se no particularismo.
Segundo Celso Frederico, ao diferenciar o “universalismo” do “culto às
diferenças” (2020, p. 2 e 8), “uma coisa é [algo] ser particular [como a
“identidade”], [e] outra é pregar o particularismo” (idem, p. 8). Para ele, “o
princípio universalista e a igualdade entre os homens foram bandeiras do
Iluminismo que informaram a Declaração dos Direitos Humanos. Na sequência,
o marxismo passou a lutar pela igualdade econômica entre os homens”
(ibidem). Assim, citando Eric Hobsbawn: “O maior perigo político imediato, que
ameaça a historiografia atual, é constituído pelo ‘anti-universalismo’ para o qual
‘a minha verdade é tão válida quanto a sua, sejam quais forem os fatos’. O anti-
universalismo seduz, naturalmente, a história dos grupos identitários, nas suas
diferentes formas, para os quais o objeto essencial da história não é o que
aconteceu, mas de que modo o que aconteceu diz respeito aos membros de
um grupo particular” (apud FREDERICO, 2020, p. 8). Para o historiador
marxista inglês, “em geral, o que conta para esse tipo de história, não é a
explicação racional, mas ‘o significado’”; assim, “o fascínio do relativismo
323

impactou a história dos grupos identitários” (ibidem). Desta forma, “Relativismo;


recusa do universal; a interpretação ao invés do acontecimento histórico; a
desmaterialização da realidade – são esses os ingredientes principais que
compõem o repertório dos Cultural Studies e dão vida ao mau-infinito das
proliferantes diferenças. Esse movimento cultural, como acreditamos, ganhou
considerável impulso com a “derrota da igualdade”. Este é o seu aspecto
regressivo” (ibidem).
A “identidade”, por conseguinte, quando desarticulada da totalidade
social, que a contêm e determina, torna-se assim uma “identidade” abstrata.
Devemos, portanto, saturas as categorias abstratas de classe social com
as diversas particularidades e “identidades” que a compõe e lhe dão
concretude histórica, tornando-a uma classe composta por homens e mulheres,
por trabalhadores negros e brancos, de nações e religiões diversas etc.,
expressando variadas relações no interior da mesma.
Devemos também contextualizar e ariticular as situações, relações e
“identidades” singulares com a universalidade, com a estrutura que as contêm
e determinam, saturando-as das múltiplas determinações e particularidades,
fazendo de cada processo identitário, de cada relação de opressão, um
processo no interior da sociedade capitalista e por ela reconfigurado e
determinado.

C) Causas, lutas e “pautas” identitárias: retomando a questão.


Retomemos, a partir do avanço de nossa discussão até aqui, os
conceitos de causas, lutas e pautas identitárias (ver item 2.6).
Por um lado, as chamadas causas identitárias são justas, necessárias
e urgentes, pois fundadas em reais e concretas relações de opressão e
desigualdade. São as causas do sexismo ou machismo, do racismo, da
homofobia, da xenofobia, da intolerância religiosa, da defesa do meio ambiente
etc., que se expressam ou manifestam como discriminação racial, sexual etc.,
como violência de gênero, policial, racial etc., como assédio, como
desigualdade salarial e de acesso e oportunidade no trabalho, na universidade
etc. Estas causas identitárias, como vimos anteriormente (item 6.2), são
expressões, manifestações da “questão social”, portanto, fundadas nesta
última. Em torno delas, os grupos e movimentos (identitários) precisam travar
324

uma luta, contra a estrutura opressiva, contra a cultura discriminatória, que se


fundam em padrões societários: o patriarcado, as heranças escravocrata e
colonial, a condição de periferia, e, por fim, o modo de produção capitalista,
que tudo refuncionaliza e reconfigura, a partir da sua lógica e dinâmica.
São causas particulares, a partir de situações singulares, dentro de uma
universalidade.
Desta forma, por seu turno, as chamadas lutas identitárias
representam uma forma de embate contra os sistemas particulares de
opressão, discriminação e desigualdade, aos quais são submetidos certos
grupos – por alguns chamados de “minorias”, por outros de “grupos
identitários”, na verdade, setores subalternos e/ou oprimidos –, os quais não
podem (não devem) autonomizar as suas lutas das lutas contra o sistema
capitalista – que contêm, reconfigura e determina (mesmo que em última
instância) todas as formas de relações e processos sociais.
São, nesse mesmo sentido, lutas justas, necessárias e urgentes. São,
assim, lutas particulares, que precisam estar articuladas às lutas mais
universais.
Por outro lado – e quase que poderia dizer: “contrariamente” –, as
chamadas “pautas” identitárias, são a interpretação e resignificação
(tergiversadas) que o pensamento pós-moderno faz daquelas causas, agora
em geral autonomizadas e desarticuladas da totalidade social, e transformadas
em “causas específicas” ou “exclusivas” de um grupo determinado,
segmentadas das outras lutas particulares e dos fundamentos universais,
agora transformadas “ações específicas”, compensatórias, afirmativas,
inclusivas, transformadas em finalidades.
As causas particulares são assim reduzidas à singularidade, e
transformadas em causas específicas, autônomas, e as lutas particulares são
desconectadas das lutas mais universais, tornando-se também, desta forma,
ações específicas orientadas exclusivamente para atender os grupos
específicos.
Ora, como aponta Frederico, “enquanto essas políticas identitárias
permanecem prisioneiras de uma concepção de cultura autonomizada que
glorifica os indivíduos híbridos, a crise estrutural do capitalismo segue em ritmo
325

frenético, desorganizando a solidariedade social e neutralizando o potencial


revolucionário das chamadas minorias” (2020, p. 9).
Assim, ao falar de questões, causas e lutas particulares (antiopressivas),
estamos claramente diferenciando-as tanto da “lógica identitarista” pós-
moderna, quanto da caracterização de pautas e ações isoladas “identitaristas”.
Vejamos bem.
Por um lado, elas não são questões, causas ou lutas meramente
identitárias. Não se trata apenas de “identidades”, de auto-percepção, de
autoimagens, de meras subjetividades. Elas fundamentalmente representam
atributos e condições reais dos sujeitos, em face de determinadas relações
concretas de opressão, discriminação ou desigualdade. Relações estas
determinadas pela estrutura social mais ampla e universal.
Por outro lado, elas também não remetem a questões, causas e lutas
singulares. Elas não são isoladas, autônomas, autodeterminadas,
independentes da totalidade social.
Trata-se, na verdade, de questões, de causas e de lutas particulares.
São “particulares”, porque representam particularidades do sistema que o
contêm e determina, são aspectos constitutivos e constituídos da/pela
totalidade social.
Em síntese, as causa e lutas particulares podem e devem fazer parte
das causas e lutas mais universais. E vice-versa.

7.3- O projeto emancipatório revolucionário deve incorporar e


articular todas as lutas de classe e antiopressivas
particulares (“identitárias”).
Chegamos no momento em que podemos, à luz das reflexões até aqui
apresentadas, tratar do projeto emancipatório revolucionário, e a necessidade
imperiosa de incorporar e articular todas as lutas, no âmbito da sociedade civil,
do Estado, do mercado e da esfera produtiva, em torno da exploração e das
diversas formas de opressão, a partir da classe trabalhadora e das variadas
“identidades” ou grupos subalternos, de curto, médio e longo prazos, visando
as reformas dentro da ordem vigente em torno da emancipação política, no
326

caminho revolucionário para a transformação social, para alcançar a


emancipação humana.
Já afirmamos que reformas e revolução não são questões alternativas,
pois as primeiras (quando não isoladas e transformadas em fins últimos)
constituem objetivos de curto prazo, enquanto a revolução representa a
finalidade de longo alcance; as reformas são meios para o fim revolucionário.
Ainda, a partir de Marx, vimos que a emancipação humana não é uma
decorrência mecânica e direta da emancipação política, mas aquela tem esta
como condição necessária.
Também vimos que exploração e opressão representam formas
diferentes de relações sociais, a primeira expressando uma contradição entre
as classes em função da apropriação do valor produzido por uma e usurpado
pela outra, contradição esta insuprimível no capitalismo, enquanto a segunda
apontando desigualdades sociais, as quais podem efetivamente ser superadas
no âmbito da sociedade burguesa. Porém, no MPC nem a exploração nem a
opressão podem ser compreendidas nas suas múltiplas determinação sem a
recorrência de uma à outra forma de relação.
Chamamos ainda a atenção para o fato de as classes sociais e as
chamadas “identidades” de grupos subalternos, não se confundirem (classe
não é “identidade”, nem esta se resume à classe), mas também não serem
excludentes. A classe (trabalhadora) está composta por diversas “identidades”,
enquanto as “identidades” estão atravessadas pela questão de classe. Os
indivíduos reais e concretos pertencem a uma classe social (mesmo que “em
si”) e simultaneamente possuem diversas “identidades”.
Em função de tudo isto, observamos que as lutas de classes e as lutas
antiopressivas (ou identitárias) envolvem processos, relações, situações e
objetivos os mais diversos, porém, ao contrário ao do que aparece na “lógica
identitarista” pós-moderna, também não são incompatíveis nem alternativas.
Por tudo isto, é mister neste nosso último item considerar a capacidade
e necessidade de articulação das lutas de classes e antiopressivas, num
projeto efetivamente emancipatório revolucionário.

A) As lutas antiopressivas (identitárias) devem se articular, como


particularidades, à totalidade social.
327

A “lógica identitarista” pós-moderna, como temos apontado, destotaliza


as lutas identitárias, as quais passam a ser autonomizadas e postas numa
polarização pessoalizada entre o “nós” e o “eles”.
Assim, ao retirar das reivindicações, causas e lutas antiopressivas
(identitárias) o fundamento capitalista e a centralidade da classe, suprimindo
assim o substrato anticapitalista e revolucionário, o que fica é apenas a
“questão particular”, reduzida à sua singularidade, como uma questão
autônoma, independente, desconectada da totalidade social: a questão racial,
de gênero, de orientação sexual etc.
Desta forma, esta “causa particular”, “identitária”, levada à singularidade,
em tese, e na realidade, poderá estar presente tanto em movimentos,
organizações e pautas tanto de esquerda como de direita. Assim, há facções
dos movimentos negro, de gênero, LGBT etc., pertencentes ao espectro
político de esquerda e de direita, ou às classes trabalhadoras e burguesa.
Basta registrar, a modo de exemplo, o chamado “Feminismo burguês”,
representado, por exemplo, pelas atrizes “globais”, ou as posições do
presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, nomeado por Bolsonaro,
ou, ainda, os chamados “Gays de direita”, representado nas posições do ex-
senador Clodovil sobre a “Parada do orgulho gay” e sobre a Ditadura militar.59
Poderá, desde fileiras de esquerda, se afirmar que eles não pertencem
aos movimentos, ou que este é um “negro embranquecido”, ou aquela uma
“mulher machista”, ou aquele outro um “gay conservador”.
Mas o fato é que, se retirada a centralidade de classe, e isolada a
questão particular da totalidade social, como o faz a racionalidade pós-
moderna, assim como o pensamento liberal, isto permite a diversidade de
formas de interpretação e “identificação” em todo o espectro ídeo-político,

59 Ver, sobre “Feminismo burguês”: <https://anovademocracia.com.br/no-34/322-a-


atualizacao-do-feminismo-burgues>; <https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-
pauta/emancipacao-dos-corpos-femininos-a-superacao-do-feminismo-burgues/>;
<http://revistaprincipios.com.br/artigos/15/cat/2245/as-diferentes-concep%C3%A7&otildees-no-
movimento-feminista.html>; <https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2016/06/10/chile-a-
cumplicidade-do-feminismo-burgues-com-o-capitalismo-e-o-estado-policial/>;
<http://novaresistencia.org/2017/09/06/o-feminismo-e-burgues/>.
Sobre “Gays de direita”: <https://epoca.globo.com/mundo/noticia/2018/06/como-
extrema-direita-francesa-conquistou-o-apoio-de-grande-parte-da-populacao-gay.html>;
<https://epoca.globo.com/politica/noticia/2018/06/gays-de-direita.html>;
<https://epoca.globo.com/politica/noticia/2018/06/gay-de-direita-clodovil-e-lembrado-por-
polemicas-no-plenario.html>. Acessos de todos em maio de 2020.
328

desde a esquerda até a direita. Uma mulher “empoderada”, dirigente


empresarial, que submete as mulheres operárias à opressão e exploração de
classe, pode se reivindicar como “feminista”, e sua conquista pessoal ser vista
como uma conquista das mulheres. Um homem negro que conquistou um lugar
na elite do futebol, da cultura, na política ou no mundo empresarial, e submete
os trabalhadores/as negros/as a tratamento semelhante aos da escravidão e
subserviência, poderá mesmo assim se reivindicar como um alguém que
conquistou o sucesso no “mundo branco”.
É preciso retotalizar as questões, as causas e a lutas identitárias,
antiopressivas, particulares, no interior da totalidade social.
Ao fazer isto, até as causas particulares, que impactam diretamente num
grupo específico, numa “identidade” particular, dizem respeito, mesmo que de
forma diferenciada, ao conjunto da sociedade. O combate ao racismo, por
exemplo, é um problema civilizatório, universal.
Assim, as lutas particulares, antiopressivas ou “identitárias” não
pertencem apenas ao grupo (identitário) em questão, mas devem ser travadas
por todos aqueles que defendem a igualdade social, a justiça e a emancipação
humana. Trata-se de uma luta particular, que impacta diretamente num grupo
específico, mas que constitui uma luta humanitária, portanto podem e devem,
para além dos grupos, minorias ou “identidades” dessas causas específicas, as
que certamente detêm um importante papel, envolver todos os sujeitos
comprometidos com a emancipação.
A luta antiopressiva, ou identitária, não deve restringir, mas ao contrário,
deve pressupor a solidariedade entre diversos sujeitos, das diversas causas, e
de diversas condições sociais: negros, brancos, amarelos, homens, mulheres,
heterossexuais, LGBTs, de todas as nações, de todos os credos, de diversos
estratos socioeconômicos, comprometidos com a emancipação. O que os une,
em cada uma das lutas particulares, não é a “identidade” específica, mas o
desejo de justiça e igualdade social, a luta pela emancipação humana, a
solidariedade de classe.
Neste cenário, só a articulação de todas estas causas, e todas estas
lutas, atravessadas pela questão de classe, permite um horizonte
anticapitalista, uma perspectiva de transformação social que exija a superação
da ordem burguesa.
329

Assim, por um lado, as lutas identitárias (ou antiopressivas particulares)


não podem ser desarticuladas ou autonomizadas da questão de classe, a risco
de se tornarem “pautas” isoladas da totalidade. Se assim fosse, estaríamos
tratando de lutas alternativas, dissociadas, desarticuladas umas das outras. Por
outro lado, também estas lutas antiopressivas particulares não podem ser
reduzidas e secundarizadas na questão de classe, pois elas tem suas
particularidades e relativa autonomia. Desta forma, conforme sustenta Petras,
ao tratar das questões de classe e gênero no processo de luta revolucionário,
devemos enfrentar as duas “falsas alternativas: o feminismo burguês e o
reducionismo classista” (PETRAS, 1999, p. 407); ou seja, nem a alternativa que
isola completamente a questão de gênero, sem a articulação com a classe,
juntando numa mesma “identidade” as mulheres patroas com as mulheres
operárias – como se sua realidade enquanto mulheres fosse equiparável –,
nem reduzir e secundarizar a luta pela igualdade de gênero, subordinado à
questão de classe – como se a desigualdade entre gêneros não fosse
relevante.

B) As lutas de classes devem incorporar as bandeiras das lutas


antiopressivas (identitárias).
Como já afirmamos, a classe trabalhadora é pluri-identitária, sendo ela
composta por diversas “identidades” que a atravessam, de gênero, étnico-
racial, religiosa, de orientação sexual, culturais, de nacionalidades etc.
Portanto, a mesma classe trabalhadora é perpassada por todas estas
questões. Não pode ignorá-las, não pode secundariza-las, não pode relega-las
para depois da “grande revolução socialista”. Precisa reconhecê-las, tratá-las
internamente, e incorporá-las, mesmo que com certa autonomia, como
particularidades e formas complementares das lutas de classes. Pois não
haverá sociedade verdadeiramente emancipada sem a superação tanto da
contradição de classes, sustentada na exploração, como das variadas formas
de desigualdade e discriminação social, sustentadas nas diversas formas de
opressão.
As lutas de classes, centradas na exploração da força de trabalho, são
lutas emancipatórias. As lutas antiopressivas, chamadas de “lutas identitárias”,
são particularidades das lutas pela emancipação, tanto política como humana.
330

Portanto, as lutas de classes devem incorporar todas as bandeiras,


causas e “pautas” identitárias, como lutas particulares de um embate universal.
“Nenhuma a menos”, ou “Vidas negras importam”, são consignas e
causas que devem constituir bandeiras das lutas de classes!, e não apenas dos
respectivos grupos identitários, porque são bandeiras emancipatórias
particulares.
Ainda mais, estas pautas pontuais e conjunturais devem ser ampliadas,
numa luta contra toda forma de opressão, discriminação e desigualdade, e
suas causas, devem ser bandeiras constitutivas e constituintes das lutas de
classes, alcançando a luta pela igualdade social em todas suas dimensões.
A luta de classes deve ser uma luta pela igualdade social, pela
emancipação, portanto impactando em todas as esferas da realidade social
onde houver opressão e desigualdade.
Neste sentido, como afirma Florestan Fernandes, mesmo que todos os
trabalhadores, enquanto tais, apresentem os mesmos interesses gerais, no
entanto “existem trabalhadores que possuem exigências diferenciais, e é
imperativo que encontrem espaço dentro das reivindicações de classe e das
lutas de classe”; já que não há contraposição, mas interpenetração, entre
classe e raça (apud ALMEIDA, 2019, p. 188).
Mas esta interpenetração (entre classe e “identidade”) é diferenciada,
pois, mesmo não havendo maior importância ou relevância, mas sim uma
centralidade na questão de classe, em torno da exploração (ver item 6.3), dado
o fato dela constituir um fundamento da sociedade capitalista, e portanto sua
superação (e apenas ela) tem como condição a superação da ordem burguesa.
Desta forma, como viemos afirmando, se a contradição de classe –
mesmo que todas as formas de discriminação, opressão e desigualdade sejam
igualmente importantes – tem uma clara centralidade, dado o fato de constituir
um fundamento da ordem burguesa, então, em idêntico sentido, e por
derivação, as lutas de classes – mesmo que as lutas particulares (identitárias)
sejam igualmente necessárias e urgentes – também tem um lugar central, dada
a sua (exclusiva) necessidade imperiosa de superar a ordem capitalista, o que
lhe confere um papel aglutinador e articulador de todas as lutas particulares.
A “identidade”, fundada na diferença, e via de regra em relações
desiguais e de opressão, quando isolada da totalidade, tende a desarticular e
331

fragmentar a organização e luta políticas, inibindo a unidade de grupos


identitários diferentes, e/ou da classe trabalhadora. Contrariamente, a classe
social, fundada no antagonismo e contradição entre capital e trabalho, quando
penetrada por todas as formas de opressão e desigualdade, permite a
confluência, no interior da classe trabalhadora (no sentido mais amplo da
palavra), de diversas “identidades”, grupos sociais, setores oprimidos, que
lutando por suas reivindicações e demandas particulares, lutam contra a
estrutura social e por uma sociedade emancipada.
Assim, enquanto a “identidade/diferença”, se isolada (como o faz a
“lógica identitarista” pós-moderna), tem uma lógica segmentadora,
fragmentadora da unidade dos setores progressistas, contrariamente estes são
potencialmente reunidos em torno da classe trabalhadora, quando ela
incorpora todas as lutas antiopressivas a partir de um projeto anticapitalista e
emancipatório.
Isto é, quando articulados pela classe, a luta feminista, pela igualdade de
gênero, se torna também luta anti-capitalista, pela igualdade social e a
emancipação humana. Aqui a igualdade de gênero é entendida como uma
particularidade da igualdade social. O particular se integrando no universal, a
tática se articula à estratégia, os objetivos imediatos se orientam nas
finalidades mediatas.
É neste sentido que afirma Petras que “a partir de uma perspectiva
estratégica, a classe molda a política de gênero [e demais causas particulares],
mas não vice-versa” (1999, p. 414), o que “não exclui a possibilidade de
algumas alianças táticas entre as mulheres de ambas classes” (ibidem). Este
“moldar” não significa subsumir uma à outra, mas uma articulação entre as
lutas particulares com as lutas de classes, porém norteadas pelo horizonte
anticapitalista, revolucionário.
Assim, as lutas particulares ampliam e enriquecem as lutas de classes
no curto prazo, entanto que estas lutas de classes brindam um horizonte de
longo alcance às causas particulares para além das suas especificidades.
Desta forma, como afirma Petras, “nem o essencialismo feminista [ou
identitarista] nem o reducionismo de classe” (ibidem).
332

Isto não significa que o conjunto das lutas emancipatórias deva se


esgotar nem na contradição de classes, nem no campo estritamente
econômico. Neste sentido, como aponta Wood,
Já não se admite sem discussão na esquerda que a batalha decisiva pela
emancipação humana vai ocorrer no campo “econômico”, o terreno da luta
de classes. Para muitas pessoas, a ênfase se transferiu para o que
denomino bens extra-econômicos – emancipação de gênero, igualdade
racial, paz, saúde ecológica, cidadania democrática. Todo socialista
deveria estar comprometido com esses objetivos – na verdade, o projeto
socialista de emancipação de classe sempre foi, ou deveria ter sido, um
meio para o objetivo maior da emancipação humana (2006, p. 227).

Isto é, nem a supremacia do econômico, nem do político ou cultural.


Porém, é necessário que estes “impulsos emancipatórios” consigam agir
“no centro da vida social, no coração da sociedade capitalista” (ibidem),
articuladas nas lutas de classe e num projeto anti-capitalista. Assim, como
sentencia a mesma autora,
não devemos confundir respeito pela pluralidade da experiência humana e
das lutas sociais com a dissolução completa da causalidade histórica, em
que nada existe além de diversidade, diferença e contingência, nenhuma
estrutura unificadora, nenhuma lógica de processo, em que não existe o
capitalismo e, portanto, nem a sua negação, nenhum projeto de
emancipação humana (idem, p. 225).

Como viemos afirmando, as lutas de classes e o projeto revolucionário


socialista devem incorporar as bandeiras contra o racismo, o sexismo ou
machismo, a discriminação LGBT etc. Sem elas não há uma verdadeira
emancipação humana.
O projeto socialista, e as lutas de classes, devem conter e incorporar as
causas e lutas ditas “identitárias”, porém, não o que aqui chamamos de “lógica
identitarista” pós-moderna. Não se trata apenas de que a questão de classe
seja incorporada no movimento feminista, ou no movimento negro, ou no
movimento ecológico. Trata-se também de que as causas e os movimentos
contra o machismo, contra o racismo, contra a homofobia etc. sejam
incorporados e articulados no movimento de classe, socialista, emancipatório.
Mas isto não significa uma primazia da classe sobre as “identidades”, ou
da exploração sobre a opressão. Não se trata de uma relação de subordinação
de uns (os movimentos antiopressivos) a outros (o movimento operário).
Também não se tratar de uma prioridade antes (as lutas operárias) e depois
(as lutas antiopressivas).
333

Trata-se do fato da luta anticapitalista e socialista ser, por sua própria


natureza, uma luta universal, em dois sentidos.
Por um lado, no sentido de poder incorporar e articular todas as lutas
antiopressivas, que com suas particularidades passam a fazer parte das lutas
do conjunto dos/das trabalhadores/as: anticapitalista e antiopressiva.
E, por outro lado, no sentido de que as lutas de classes e o projeto
socialista e emancipatório não representam uma luta contra o indivíduo
burguês, mas contra a ordem burguesa. Visa suprimir as classes, e não
inverter uma relação de dominação. Trata-se de um projeto, não de
emancipação dos trabalhadores, mas de emancipação humana. O projeto
socialista não se orienta para um sujeito particular (o trabalhador), mas para o
conjunto da humanidade. É um projeto civilizatório, emancipatório.
A organização e lutas dos e das trabalhadores/as pode dar às lutas
particulares ou identitárias essa orientação universal, que, no curto prazo, se
orientam à eliminação das formas de opressão, discriminação e desigualdade,
mas atreladas, no longo prazo, a um projeto emancipatório para toda a
humanidade.

C) O projeto emancipatório revolucionário deve incorporar e articular


todas as lutas de classe e antiopressivas (“identitárias”).
Em síntese, um projeto efetivamente emancipatório deve incorporar
todas as formas de lutas, contra a exploração e contra a opressão, de classes
e identitárias, por “redistribuição” e por “reconhecimento”, orientadas nas
conquistas particulares, como um meio para alcançar a finalidade, a
transformação social e a emancipação humana.
Assim, se, por um lado, o pensamento liberal dilui (ou esconde) a
contradição de classes na abstrata noção de “cidadão”, por outro, o
pensamento pós-moderno escamoteia a contradição de classe atrás do
conceito de “identidade”, polarizando-a de forma autônoma numa relação de
opressão ou desigualdade retirada da totalidade social.
É preciso devolver à categoria “identidade” a contradição de classe que
a atravessa, como é também necessário complexificar a compreensão desta
última, a classe, com a diversidade de “identidades” que a compõe e dão
concretude histórica.
334

É preciso ver as “identidades” compostas por classes, como é


necessário ver as classes conformadas por “identidades”.
Não temos que optar, na análise ou na ação política, por uma ou outra,
ou classe ou “identidade”, mas temos que cruzá-las, articulá-las e interpenetra-
las.
Segundo Losurdo, “a luta de classes emancipadora tende a transcender
os interesses dos explorados e dos oprimidos que a promovem” (2015, p. 91),
alcançando uma dimensão universal. Isto é, a relação de opressão aprisiona no
seu interior, mesmo que desigualmente, tanto o opressor quanto o oprimido. O
opressor é opressor sim, mas não por isso ele é livre e emancipado. Assim,
afirma Losurdo, “observamos que em diversas ocasiões Marx e Engels afirmam
que ‘não pode ser livre um povo que oprime outro’” (idem, p. 113). Portanto,
superar a opressão é uma demanda imediata do setor oprimido, mas
representa no longo prazo uma conquista humano-genérica, civilizatória.
Afirma ainda que “não é possível traçar uma linha clara entre a luta pela
redistribuição [em torno da exploração] e a luta pelo reconhecimento [em torno
das formas de opressão]” (idem, p. 112). Isto é, para Marx e Engels, conforme
este autor italiano, as lutas de classes são simultaneamente lutas pela
redistribuição de renda e pelo reconhecimento, isto é, contra a exploração e
contra as diversas formas de opressão.
Portanto, se, como afirmam os autores do “Manifesto”, “a história de
todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes”
(MARX e ENGELS, 2010, p. 40), se “opressores e oprimidos, em constante
oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta” (ibidem), e se as lutas de
classes são simultaneamente lutas redistributivas e por reconhecimento, então
resulta plenamente infundado atribuir a Marx uma primazia das lutas
econômicas (redistributivas, em torno da exploração) por sobre as lutas
políticas, antiopressivas (ou identitárias).
A contrário, podemos afirmar que na obra marxiana, e em boa parte da
tradição marxista, a história de todas as sociedades é a história do conjunto de
lutas emancipatórias, econômicas e políticas, por redistribuição de renda e por
reconhecimento, contra a exploração e contra as variadas formas de opressão,
de classe e identitárias.
335

É a partir da organização e lutas das classes “oprimidas e caluniadas”


que “os ‘bárbaros’ e os ‘selvagens’ deixaram de ser tais porque se
reconheceram reciprocamente como membros de uma classe explorada e
oprimida, convocada a alcançar a emancipação pela luta” (LOSURDO, 2015, p.
117).
Conforme aponta Losurdo, “os momentos mais altos da história” das
lutas de classes “foram aqueles nos quais se fugiu da fragmentação, de modo
que as diversas lutas confluíram em uma única poderosa onda emancipadora”
(idem, p. 312).
Neste sentido, adotando a noção marxiana, tratada por Losurdo, sobre
as duas dimensões das lutas de classe, por “redistribuição” (em torno da
exploração) e por “reconhecimento” (em torno da opressão), Safatle afirma a
necessidade da esquerda superar a primazia na organização do campo social
e político “a partir da equação das diferenças”, “tão presentes nas dinâmicas
multiculturais” (2018, p. 29), insistindo no desafio de centrar a organização e
lutas da esquerda em torno do radical projeto do “igualitarismo”, pois, para ele
“não há esquerda lá onde se abandonam ideias como a centralidade dos
processos de redistribuição institucionalizados como política de Estado, a
indiferença em relação às diferenças identitárias, o universalismo” (idem, p.
83).
Como afirma Petras, devemos diferenciar dois tipos de luta: a luta
“violenta entre classes inimigas” (lutas centradas na contradição e na
exploração de classes), e a luta “não-violenta entre homens e mulheres, no
âmbito da mesma classe” (centradas nas relações de opressão) (1999, p. 404).
Nós tratamos esta diferenciação como “lutas de classe” e “lutas sociais” (ver
MONTAÑO e DURIGUETTO, 2010, p. 117-120), ou lutas antiopressivas
(identitárias). Ali sustentamos que a multiplicidade e variedade de questões
particulares “não pode nos levar a ignorar o fato de que elas se fundam na
contradição capital-trabalho. Assim, as lutas sociais [ou “particulares”] estão
presentes diretamente nas contradições estruturais (capital-trabalho) e nas
suas manifestações (refrações da ‘questão social’), configurando [diversas]
formas e espaços das lutas de classes” (idem, p. 117). Estrutura e dinâmica,
fundamento e manifestação, são duas dimensões constituintes da realidade
social, que não podem ser separadas, nem na análise, nem na ação.
336

Neste sentido, se as formas de opressão, desigualdade e discriminação


devem ser compreendidas como manifestações e desdobramentos da “questão
social” (dos fundamentos da sociedade capitalista) ou por ela reestruturadas,
portanto, fundadas e/ou atravessadas pela/na contradição de classes; em
idêntico sentido, as lutas antiopressivas, mesmo aquelas mais orientadas
diretamente às manifestações particulares e não ao cerne ou fundamento da
“questão social”, devem ser compreendidas em parte como desdobramentos e
articuladas às lutas de classe (idem, p. 119). É neste sentido que Lukács afirma
que “o filósofo não tem, portanto, o direito de lançar um olhar arrogante sobre
as pequenas lutas do mundo e de as desprezar” (1974, p. 92).
Assim, podemos, na esteira de Losurdo (2015) a partir de Marx e Engels
(ver item 4.2), compreender as lutas de classe (em sentido amplo) nas suas
duas dimensões: como lutas por “redistribuição da riqueza” (lutas
fundamentalmente econômicas, centradas na exploração) e por
“reconhecimento” (lutas eminentemente políticas e antiopressivas).
Lutas de classe (em sentido estrito) e lutas sociais ou antiopressivas
(particulares ou identitárias) não são expressões contraditórias, alternativas,
mas formam parte de um processo comum, às vezes em níveis diferentes. As
lutas antiopressivas particulares vêm ampliar o campo político e complementar
as lutas de classe, e não substituí-las como alternativas, como surge da análise
e programática pós-modernas, que as retira da totalidade social. As lutas na
esfera da sociedade civil não são alternativas e independentes das lutas na
esfera econômica, da produção e do mercado, nem às lutas no âmbito estatal,
mas complementares. As lutas de curto prazo não podem ser autonomizadas
do horizonte de longo alcance.
É preciso, portanto, articular as lutas de classe com as lutas
antiopressivas particulares, as lutas nos campos da sociedade civil, do Estado
e da esfera econômica, as metas de curto, médio e longo prazos, os objetivos
alcançáveis “aqui e agora” com as finalidades de maior alcance. Nesta linha,
Mészáros (2003, p. 122) argumenta que:
enfatizar a importância de uma perspectiva de longo prazo não significa
que possamos ignorar “o aqui e agora”. Pelo contrário, a razão pela qual
devemos nos interessar por um horizonte muito mais amplo que o habitual
é para poder conceitualizar de maneira realista uma transição para uma
ordem social diferente a partir das determinações do presente. A
perspectiva de longo prazo é necessária porque a meta real da
337

transformação só pode estabelecer-se dentro de tal horizonte. Ademais,


sem identificar a meta adequada, seguramente seria como viajar sem
bússola e, portanto, as pessoas envolvidas poderiam desviar-se facilmente
de seus objetivos vitais. Por outro lado, a compreensão das determinações
objetivas e subjetivas do “aqui e agora” é igualmente importante. Pois a
tarefa de instituir as mudanças necessárias se define já no presente, no
sentido de que ao menos comece a realizar-se no “exatamente aqui e
agora” (mesmo que o seja de maneira modesta, mas com plena
consciência das limitações existentes e das dificuldades para sustentar a
jornada em seu horizonte temporal mais distante) ou não chegaremos a
parte alguma [...]. A verdade é que não se poderá conseguir nada se
ficarmos esperando as condições favoráveis e o momento adequado.
As pessoas que advogam por uma grande mudança estrutural devem estar
sempre conscientes das limitações que terão de enfrentar. Ao mesmo
tempo, devem estar atentas para evitar que o peso de tais limitações se
congele e se transforme na força paralisante [...] (MÉSZÁROS, 2003, p.
122).

Assim, como foi afirmado, a perspectiva de “longo alcance” não deve


subsumir a compreensão dos fenômenos cotidianos, do “aqui e agora”; a luta
pela emancipação política e humana é tanto uma luta estrutural, em torno da
central contradição de classes, fundamento do capitalismo, quanto também um
conjunto de lutas em torno das diversas e variadas manifestações da “questão
social”, das múltiplas formas de discriminação, desigualdade e opressão da
vida cotidiana das pessoas. O pensamento crítico marxista deve ter, como
afirmara Eduardo Galeano, “um olho no telescópio” e o “outro olho no
microscópio”, observando os fenômenos e processos sociais singulares e
atentos às estruturas sociais, que os condicionam e determinam.
Exploração e opressão não são categorias, e não expressam relações,
alternativas e excludentes. Ao contrário, ambas remetem a formas particulares
de desigualdade e dominação. E portanto as lutas antiopressivas e contra a
exploração podem e devem se articular para formarem parte de um mesmo
projeto de emancipação.
No mesmo sentido, as categorias de classe e de “identidade”, que
efetivamente remetem a tipos de relação diferentes – relações de produção, as
classes, e relações de opressão e discriminação, as “identidades” –, também
não são alternativas. Podemos, portanto, e devemos, articular a organização e
lutas da classe trabalhadora com a organização e lutas das mulheres, dos
negros, assim como de todo coletivo social submetido às diversas formas de
opressão, discriminação e desigualdade social.
338

É verdade, como já o afirmamos, que os fins das lutas antiopressivas


particulares, ou “identitárias”, podem em si ser alcançados dentro da ordem.
Constituem-se, por assim dizer, em lutas por reformas dentro da ordem, num
processo de emancipação política.
Isto é, o capitalismo subsiste sem discriminação racial, ou sem
discriminação de gênero, ou sem homofobia, xenofobia etc. Porém, é preciso
alguns esclarecimentos.
Primeiro, é necessário ter clareza que, se dentro da ordem burguesa é
possível conquistar a igualdade de gênero, racial etc., superando o machismo,
o racismo etc., estas são necessariamente conquistas das lutas sociais, e não
um processo de natural desenvolvimento civilizatório do capitalismo. Isto é, o
sistema capitalista pode conviver com a (e sobreviver à) superação do
machismo/patriarcalismo, do racismo etc., mas não promoverá esses
movimentos emancipatórios. Eles serão necessariamente resultado das lutas
dos setores subalternos e oprimidos.
Em segundo lugar, o capitalismo pode sobreviver e conviver com a
igualdade de gênero, ou racial, ou étnica, ou nacional etc., mas não sobrevive à
total ausência de desigualdade. Isto é, a ordem burguesa não permitirá
alcançar a igualdade em todas as formas de opressão, pois ela precisa de um
diferencial, de uma massa populacional para empregar de forma precária, com
salários mais baixos e para realizar tarefas desqualificadas, insalubres ou de
elevado risco. Desta forma, a “conjunção” gramatical deve ser “ou”, mas não
“e”. Trata-se, nos limites do capitalismo, de igualdade racial ou étnica ou de
gênero ou nacional etc.; mas não a igualdade racial e étnica e de gênero e
nacional etc.
Em terceiro lugar, a igualdade racial, de gênero etc., no capitalismo,
nunca será plena, pois, ainda no interior de cada uma dessas categorias ou
“identidades” vai persistir a desigualdade oriunda da exploração capitalista, à
qual é submetida a classe trabalhadora, composta por todas estas
“identidades”. Portanto, a emancipação não será completa, mesmo se
alcançando a emancipação política. Ou seja, a mulher, por exemplo, mesmo
quando emancipada da opressão patriarcal, do machismo, continuará sendo
explorada enquanto trabalhadora.
339

Isto é, por todos estes motivos, um projeto, mesmo que “identitário”,


efetiva y plenamente emancipatório, deve articular as lutas antiopressivas
particulares com as lutas anticapitalistas, deve articular as reformas, tanto
econômicas como políticas (como meios) com a revolução (como fim).
A possibilidade e efetividade da articulação das lutas antiopressivas
particulares (“identitárias”) e contra a exploração (de classe), está na
capacidade que umas e outras se interpenetrem mutuamente. Quando, por um
lado, as lutas contra o racismo e contra o machismo, por exemplo, tenham
como horizonte o fundamento anticapitalista e a contradição de classes,
entanto as lutas de classes, por sua vez, sejam também uma luta pela
igualdade racial e de gênero.
As organizações políticas revolucionárias, anticapitalistas, que visam a
emancipação humana, devem ter a capacidade, primeiramente, de convocar,
aglutinar e articular as diversas lutas particulares, em torno das “identidades”
específicas, relacionando os objetivos táticos dos direitos identitários, das lutas
contra as formas de opressão, discriminação e desigualdade particulares, com
a finalidade estratégica da transformação social. Mas ainda, também devem ter
a capacidade de orientar o impulso identitário, não na direção da diferença, do
antagonismo, da polarização, mas na direção da solidariedade de classe, da
cooperação dos grupos oprimidos, e dos diversos sujeitos que lutam pela
emancipação humana, da articulação das lutas... das “lutas de classes”, nas
suas duas dimensões: redistributiva e por reconhecimento, contra a exploração
e antiopressivas.
340

A MODO DE CONCLUSÃO.

Visamos neste texto nos adentrarmos criticamente nas relações entre


classe e “identidade”, e entre as lutas de classes e antiopressivas (identitárias).
Nosso caminho foi contrário tanto ao lugar comum de rejeitar a “identidade”, ou
entendê-la como algo secundário ou que pode esperar a grande transformação
socialista, como ao outro lugar comum que absolutiza este conceito,
apresentado como oposto e alternativo à classe social.
No campo das esquerdas, o primeiro caminho é seguido
fundamentalmente pelo economicismo e pelo estruturalismo, inclusive no
interior da tradição marxista. O segundo é aquele trilhado pela esquerda pós-
moderna, que transforma a “identidade”, como categoria constitutiva da
realidade simbólica social, num “identitarismo”, a partir da polarização
pessoalizada (individual e grupal) entre “nós” e “eles”, entre a “identidade” e o
“diferente”, a partir da qual o projeto pós-moderno visa basicamente eliminar o
diferente, o outro, como forma de eliminar a opressão entre eles.
Nosso caminho, ao contrário dos anteriores lugares comuns, foi o de
reconhecer as “identidades” e diferenças, em função das quais se desenvolvem
relações de opressão, e de salientar a importância, a necessidade e a urgência
das lutas antiopressivas particulares (lutas identitárias). Mas diferenciando a
questão da “identidade” da “lógica identitarista” pós-moderna.
Para tal, dividimos nosso texto em duas partes.
Na primeira, tratamos da “identidade” como categoria política, e da
“lógica identitarista” pós moderna.
Aqui, partimos, no capítulo 1, das origens desta categoria, buscando nas
análises acionalistas dos chamados Novos Movimentos Sociais, a partir das
341

reflexões de Alain Touraine e Tilman Evers. Em seguida nos voltamos para


autores pós-marxistas e pós-estruturalistas, como Manuel Castells, Zygmunt
Bauman e Stuart Hall. Finalizando com a abordagem liberal sobre as “políticas
identitárias”.
No segundo capítulo, tratamos primeiramente da constituição da
“identidade” como representação e autoimagem construída a partir de uma
condição real ou simbólica, e como esta categoria contribui para a análise
complexa da realidade complexa, assim como para o processo emancipatório.
E em segundo lugar como, na racionalidade pós-moderna, esta categoria é
transmutada em “identitarismo”, mediante a polarização pessoalizada entre
“nós” e “eles”.
O terceiro capítulo completa, conjuntamente com a polarização
“nós/eles”, o tripé da “lógica identitarista”: com o chamado “lugar de fala”, como
um referencial do discurso político, e a dita “pós-verdade”, enquanto expressão
de uma “realidade concebida”.
O Capítulo 4 é dedicado aos três principais instrumentos e objetivos
políticos sustentados nessa lógica; a saber: o “punitivismo” de esquerda, o
“reconhecimento” e a “inclusão”, e finalmente o chamado “empoderamento” dos
sujeitos.
Fechando esta primeira parte, no capítulo 5 consideramos a invasão
pós-moderna na esquerda, seu impacto no enfrentamento do avanço
ultraconservador, no Brasil e no mundo, assim como as formas de crítica ao
identitarismo, e a necessidade de uma análise crítica que, reconhecendo a
“identidade” como categoria teórica e política, supere a “lógica identitarista”
pós-moderna.
É isto que abre a segunda parte do texto, dedicada à análise marxista
(dialética) sobre a necessidade de articulação das lutas de classe e
antiopressivas.
Assim, no capítulo sexto nos voltamos para a contradição de classe e as
desigualdades identitárias, como campos diferentes, mas não alternativos de
lutas. Diferenciamos aqui as dialéticas “identidade/diferença” (individual e
grupal) e “igualdade/desigualdade” (social), o que nos permite distinguir entre
os projetos “identitarista” e “igualitarista”. Tratamos das “identidades” como
342

manifestações da “questão social”, historicamente determinadas. E finalmente


consideramos a centralidade de classe.
No nosso último capítulo, dedicamo-nos a tratar das lutas de classe e
antiopressivas, a partir da análise marxista (dialética). Iniciamos apresentando,
mesmo que sintética e didaticamente, alguns pressupostos marxistas, nas
dialéticas: “reforma/revolução”, “emancipação política/humana”,
“exploração/opressão” e “estrutura/superestrutura”. Voltamo-nos, a partir daí,
para a diferenciação entre a categoria “identidade” e a “lógica identitarista” pós-
moderna. Finalizamos nosso estudo considerando a necessidade, para o
projeto emancipatório revolucionário, da incorporação e articulação de todas as
lutas, de classe e antiopressivas (identitárias).
Neste percurso, pensamos ter dado os subsídios necessários e
suficientes para sustentar que não se trata de desconhecer a importância
dessas “lutas particulares” antiopressivas, certamente civilizatórias e
emancipatórias. Sem o sucesso delas não haverá emancipação política, e
muito menos humana. Mas que elas devem ser compreendidas e inseridas
num processo universal.
Trata-se, sim, de perceber que atribuir uma “lógica identitarista” às lutas
sociais transfigura completamente e pulveriza a unidade do processo
emancipatório.
Diferenciamos aqui, portanto, a “lógica identitarista” pós-moderna, das
“lutas particulares”, antiopressivas (identitárias). Reconhecemos e defendemos
a importância destas últimas, mas questionamos com a mesma veemência a
primeira.
Ora, quando se absolutiza e “essencializa” a “identidade”, e quando ela é
sub-repticiamente transmutada numa pessoalizada polarização “nós-eles”, o
resultado tende a ser o isolamento da “identidade” da totalidade social, e com
isso o abandono de outras bandeiras, particularmente das lutas universais,
humano-genéricas, assim como das lutas anti-capitalistas.
O projeto emancipatório revolucionário tem que ter a capacidade de
aglutinar todas as lutas antiopressivas particulares (identitárias), necessárias e
urgentes, mas articuladas numa luta anti-capitalista, anti-sistema,
complementando (e não opondo) as lutas de classes e antiopressivas.
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