Villa Lobos e A Educao Musical No Brasil Subsdios para Uma Avaliao Crtica

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Novembro de 2012

VILLA-LOBOS E A EDUCAÇÃO MUSICAL


NO BRASIL: SUBSÍDIOS PARA UMA AVALIAÇÃO CRÍTICA

Fernando Pacífico Homem

Doutorando pela Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (UFBA),


Mestre em Música pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atuou como primeiro
flautista na Orquestra Sinfônica Brasileira e integrou o Quinteto Villa-Lobos no Rio
de Janeiro. É professor de Flauta Transversal da Escola de Música da Universidade
do Estado de Minas Gerais (ESMU-UEMG), músico da Orquestra Sinfônica de
Minas Gerais. Bolsista pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas
Gerais (Fapemig).

[email protected]

Maria da Conceição Costa Perrone

Mestre e doutora em Etnomusicologia na Universidade Federal da Bahia. Professora


da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduada em
piano e pesquisdora na área de Musicologia e História da Cultura. Como bolsista da
CAPES, estudou flauta, cravo e fortepiano na Holanda (1984-1986).

[email protected]

Resumo
Neste ensaio, fornecemos informações e subsídios
para um julgamento crítico do papel exercido pelo
compositor Heitor Villa-Lobos dentro da educação
musical no Brasil na época da Ditadura Vargas,
também conhecida como Estado Novo.

Palavras-chave: Educação Musical; Villa-Lobos;


canto orfeônico; guia prático.

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NO BRASIL: SUBSÍDIOS PARA UMA
MODUS
AVALIAÇÃO CRÍTICA

Introdução

A associação de compositores a regimes ditatoriais e sua utilização como ferramenta


de manipulação das massas é algo bastante comum na história da música. Partindo
desse pressuposto, associa-se Wagner ao nazismo alemão, Mascagni e Casella ao
facismo italiano, Shostakovich ao comunismo russo e Villa-Lobos à Ditadura Vargas.

Seria Villa-Lobos um mero instrumento do Estado Novo1? Ou teria ele sabiamente


se aproveitado do contexto histórico e do regime político vigente para disseminar
suas ideias sobre a formação humanística através da música no Brasil?

Neste ensaio será abordada a questão específica de Villa-Lobos desde o início de


sua trajetória, passando por sua opção pelo nacionalismo musical, seu primeiro
emprego oficial, a implantação de seu projeto de educação musical baseado no canto
orfeônico, as relações do compositor com o regime político na época do Estado
Novo e as críticas que sofreu. Ao oferecer tais subsídios, proporcionamos ao leitor
a oportunidade de fazer sua própria avaliação crítica sobre a atuação do compositor
nesse processo e seu papel na educação musical do Brasil.

O surgimento de uma “nova tendência”

No início do século XIX quase toda criação e produção musical ocidental estava
compreendida no eixo Alemanha, França e Itália. Os músicos e compositores da
maior parte do mundo eram oriundos desses três países ou buscavam neles suas
referências, estudos e ideais interpretativos. O grande desafio histórico para uma
nova estética nacional, calcada nas raízes da própria terra e no folclore, partiu de um
movimento em oposição à hegemonia alemã.

Uma das primeiras manifestações tipicamente nacionais partiu do compositor russo


Mikhail Glinka (1804-1857). Após passar um período estudando composição na
Itália, Glinka voltou à Rússia e compôs, em 1836, a ópera Uma vida pelo Czar.
Segundo ele próprio, baseada na nostalgia de sua terra natal, quando viveu afastado
dela. A ópera foi sucesso na Rússia no ano de sua composição. Apresentada em
1867 na Exposição Universal de Paris, a música causou espanto pela utilização de
elementos estéticos do folclore russo em meio às harmonias ocidentais. Seguindo o
caminho trilhado por Glinka, surge na Rússia, o famoso Grupo dos cinco: Balakiev,
Borodin, Cui, Mussorgsky e Rimiski-Korsakov, cujo objetivo era compor em um

1 Convencionou-se chamar de Estado Novo o regime político brasileiro implantado por Getúlio Vargas em 10 de
novembro de 1937, que durou até 29 de outubro de1945. O período foi caracterizado pela centralização do poder,
nacionalismo, anticomunismo e autoritarismo.

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estilo de caráter que fosse genuinamente russo. O fenômeno, que seria batizado
como nacionalismo, extrapolou as fronteiras da Rússia, atingindo outros países
como a Boêmia (Tchecoslováquia) através de Smetana e Dvorak; a Noruega, com
Grieg e o Brasil, com Villa-Lobos.

O século seguinte

A corrente nacionalista consolidada na segunda metade do século XVIII, tendo


como marco musicológico o já referido Grupo dos cinco, adentrou pelo século
XX. Um dos pioneiros a utilizar metodologicamente a música de tradição oral na
educação foi o húngaro Zoltan Kodaly (1882-1967), que, com a ajuda de Bela
Bartók (1881-1945), recolheu e transcreveu cantos folclóricos não só húngaros, mas
eslovacos, búlgaros, albaneses e de outros países do leste europeu. Foram estudados
minuciosamente seus padrões rítmicos e melódicos, frequência métrica, modos e
escalas, até então incomuns. Dando prosseguimento ao ideal nacionalista, vários
foram os compositores que seguiram caminhos semelhantes, utilizando canções e
material folclórico de seus países.

Os primeiros reflexos no Brasil

No final do século XIX, surgem no Brasil as primeiras tentativas tímidas de se


compor uma música nacional. Não havia ainda coletas folclóricas. As primeiras
foram realizadas pelo pernambucano Sylvio Romero (1851-1914), que em seu
trabalho não registrou indicativos melódicos ou rítmicos. Radicado no Rio, Romero
alcançou notoriedade como crítico literário e em 1883 publicou a obra: Cantos
populares do Brasil, sem transcrições musicais. O Conservatório do Rio de Janeiro
tinha dificuldades para sobreviver e, a partir de 1857, apoiou um ambicioso projeto
para criação da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional. A iniciativa foi
proposta pelo imigrante espanhol José Amati e foi extinta em 1860, substituída no
mesmo ano pela Ópera Lírica Nacional.

Das tentativas sempre cercadas de escândalos financeiros envolvendo o empresário


Amati, o único compositor a se sobressair foi Antonio Carlos Gomes (1836-1896).
O sucesso de sua primeira ópera A noite no castelo valeu o apoio do imperador Dom
Pedro II, que lhe concedeu uma bolsa de estudos em Milão. Segundo Guérios
(2003), a língua portuguesa, ainda o único elemento nacional presente nas óperas
de Gomes, cedeu lugar ao italiano. Apesar do sucesso obtido com Il Guarany, cuja
temática se baseia no drama indígena e luso-brasileiro, a música era tipicamente
italiana, com notória influência de Verdi.

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A música na República e o surgimento de Heitor Villa-Lobos

Com o advento da república em 1889, dois músicos se destacaram na tentativa de


compor uma música nacional: Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Alexandre Lévy
(1864-1892). Nepomuceno trabalhou intensamente na estruturação de um campo
profissional para a música erudita na recém-proclamada República. Entretanto
suas canções (Lieder), apesar da língua portuguesa, eram influenciadas pela estética
alemã. Já Lévy usou em sua música elementos étnicos da cultura popular brasileira,
tendo citações africanas, do jongo e ainda do fadinho. Apesar da influencia italiana,
suas obras são consideradas como precursoras de uma estética musical genuinamente
brasileira. Por volta de 1920, o surgimento de Villa-Lobos (1887-1959) deu nova
configuração do que estaria reservado ao futuro do nacionalismo brasileiro na
música: uma releitura do folclore e da tradição oral.

Para Mário de Andrade, o nacionalismo brasileiro abriga diferentes estados de


consciência: o primeiro ele chamou de “internacionalismo”, no qual se importavam
músicas europeias dentro de uma temática nacional. Em uma segunda fase, o
surgimento de uma consciência musical nacional já estava presente, mas de forma
limitada. Apenas a terceira fase, da qual Villa-Lobos seria o expoente máximo,
poderia ser considerada nacionalista e caracteriza-se pela pesquisa de melodias
folclóricas, urbanas e indígenas como materiais para composição e educação musical
à semelhança do que fizeram Bartok e Kodaly2 na Hungria.

A inclusão da música no ideal pedagógico do início do século XX

Baseado nas ideias do educador norte americano John Dewey3 e do sociólogo francês
Emile Durkheim4, surge no Brasil, em 1927, um movimento pedagógico batizado
de “Escola Nova”. Esse movimento defendia a ideia da reconstrução nacional ampla
através da educação, priorizando a escola pública obrigatória voltada para os interesses
do aluno. Acompanhando a modernização do país durante a década de 1920, vários
estados brasileiros sob o comando de jovens intelectuais como Anísio Teixeira, Fernando
Azevedo, Lourenço Filho e Rodrigo de Campos promoveram reformas educacionais
baseados nos princípios da Escola Nova. Dentro desse ideal, a arte deveria ser retirada
do pedestal elitista em que se encontrava e colocada no centro da comunidade.

Na escola, o ensino de música não deveria mais se restringir aos alunos talentosos
abastados ou às prendas das jovens ricas enquanto esperavam o casamento, mas
2 Ambos acreditavam que o estudo musical infantil deveria partir das canções folclóricas de seus próprios países de origem.
3 John Dewey (1859-1952): filósofo, pedagogo e escritor norte-americano. Foi um pioneiro em psicologia funcional e
representante principal do movimento da educação progressiva norte-americana durante a primeira metade do século XX.
4 Emile Durkheim (1858-1917): filósofo e sociólogo francês. É considerado um dos pais da sociologia moderna, tendo sido
o fundador da escola francesa, posterior a Marx, que combinava a pesquisa empírica com a teoria sociológica. É amplamente
reconhecido como um dos melhores teóricos do conceito da coesão social.

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ser acessível a todos, contribuindo para a formação integral do ser humano. Em


simbiose com esse pensamento, surge o movimento modernista nacionalista liderado
por Mário de Andrade (1893-1945). Poeta, musicólogo, historiador, pianista e
crítico de arte, ele foi figura central e força motriz da Semana de Arte Moderna de
1922. O evento reformulou a literatura, as artes visuais e os conceitos artísticos até
então vigentes no Brasil. Defensor de uma estética genuinamente brasileira, Mário
de Andrade defendia a função social da arte, a valorização do folclore e da música
popular. Coube a Villa-Lobos a tarefa de unir as novas tendências artísticas ao novo
projeto educacional da época, colocando em prática um modelo de educação musical
cujo alcance, como se verá a seguir, jamais foi alcançado no país.

Os primeiros contatos políticos de Villa-Lobos para


a implementação de um novo projeto

O início da década de 1930 foi particularmente difícil na vida de Villa-Lobos. Recém


chegado de Paris, onde conseguia relativo sucesso de suas composições e se mantinha
sob os auspícios de seu rico mecenas Carlos Arnaldo Guinle, o compositor viu-se
subitamente obrigado a garantir sozinho seu próprio sustento. Os irmãos Guinle já
haviam deixado claro que não mais continuariam financiando sua estada em Paris. De
volta ao Brasil, o compositor continuava alimentando o firme propósito de angariar
fundos para voltar a Europa o mais cedo possível. Uma temporada de concertos
em São Paulo, conseguida a duras penas através da senhora Olívia Penteado, estava
longe de assegurar os recursos para seu objetivo.

Ao realizar seu último concerto programado para São Paulo


ainda em 1930, o compositor vivia uma situação atípica: não
dispunha de recursos, já havia composto uma vasta obra que
não lhe angariava renda para conseguir sobreviver e se via
obrigado a atuar como intérprete de violoncelo, algo muito
distante de sua realidade (GUÉRIOS, 2003, p. 167).

O fim da temporada de concertos em São Paulo coincidiu com o início da Revolução


de 1930, liderada por Getúlio Vargas. Após a vitória dos revolucionários, a primeira
providencia de Vargas foi dissolver o Congresso, as Assembleias Legislativas e Câmaras
de Vereadores sob o pretexto de acabar com os vícios da velha república. A queda da
bolsa de Nova Iorque em 1929 coloca sob suspeita o liberalismo econômico e político,
dando lugar a uma concepção intervencionista do Estado como responsável pelo
equilíbrio social e econômico além de provedor das necessidades básicas da população.

A adesão de Villa-Lobos ao novo regime foi imediata. Estava ali a oportunidade de


alguém de peso assumir a construção de um espaço para a arte brasileira, algo que
se encaixava e servia perfeitamente ao ideal nacionalista da Revolução. Villa-Lobos,
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vislumbrando as novas portas que se abriam, publicou vários artigos em jornais da época,
exortando o novo regime e indiretamente oferecendo seus préstimos5. Ainda em 1930,
Villa-Lobos travou relações com o interventor nomeado de São Paulo, João Alberto Lins
de Barros, que era também músico compositor e pianista. O compositor o conheceu
em um de seus concertos na capital paulista e passou a frequentar reuniões em sua casa.

No final daquele mesmo ano, o interventor patrocinou uma série de concertos de


Villa-Lobos pelo interior do estado. O objetivo da excursão seria levar a música a um
público que não tinha acesso a concertos nem contato com a música erudita. Estava
aí iniciado o papel que o compositor teria nos próximos 15 anos como educador
e civilizador. A Excursão Artística, como foi chamada, percorreu 54 cidades e era
integrada pelo compositor que tocava violoncelo, sua então esposa, Lucília, ao
piano, o violinista belga Maurice Raskin, a cantora lírica Nair Duarte, além dos
pianistas Souza Lima e Guiomar Novais, que se alternavam entre os concertos. Foi o
sucesso desse projeto que lhe abriu caminho para realizar e dirigir a primeira grande
concentração coral de sua vida - A exortação cívica de maio de 1931.

Com o apoio do interventor, Villa-Lobos conseguiu pela primeira vez uma multidão
para cantar e ouvir um programa que incluía a protofonia O guarani, de Carlos
Gomes; o Hino nacional brasileiro, o Hino universitário, também de Carlos Gomes
além de suas composições Na Bahia tem e Prá frente ó Brasil. A imprensa colaborou
com o evento, divulgando locais e horários de ensaios de acordo com as diferentes
vozes. Professores de música e regentes de coro corresponderam ao chamado para
ensaiar o povo em diferentes teatros à noite. Uma firma cedeu dez pianos para ensaios,
e a polícia colaborou com a organização do evento enviando dois mil militares. No
dia 24 de maio de 1931, no Clube de Futebol São Bento, Villa-Lobos regeu um coro
com o número estimado de quinze mil vozes. O impacto e o sucesso da apresentação
certamente foram decisivos para que o compositor abandonasse seus planos de voltar
a Paris e se concentrasse em uma nova trajetória, que o levou a ocupar o posto de
maior educador e disseminador da música de todos os tempos no Brasil.

O primeiro emprego oficial e a criação da


Superintendência de Educação Musical e Artística - SEMA

Após o sucesso da Exortação Cívica, Villa-Lobos ganhou prestígio e destaque na


imprensa, mas seu principal apoiador político, o interventor do estado de São Paulo,
João Alberto, deixou o cargo para se dedicar a iniciativa privada. Sem emprego e sem
dinheiro, o compositor voltou ao Rio de Janeiro logo após um concerto de despedida
da capital paulista em 21 de outubro de 1931. A mudança de situação só ocorreria

5 Vários dos artigos publicados pelo compositor em jornais da época estão relacionados em Guérios (2003, p. 169).

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em fevereiro de 1932. Motivado pela criação do Serviço Técnico e Administrativo de


Música e Canto Orfeônico, subordinado ao então Distrito Federal (Rio de Janeiro),
Villa-Lobos redigiu um memorial intitulado Apelo ao chefe do governo provisório. O
documento foi publicado no Jornal do Brasil de 12 de fevereiro de 1932. Nele o
compositor anexou uma estatística na qual afirmava serem mais de trinta e quatro mil
os artistas desempregados no país. Devido ao prestígio e notoriedade já alcançados
pelo compositor na época, a estratégia produziu efeito imediato: alguns dias após a
publicação, Anísio Teixeira, Secretário da Educação, o convidou para montar um
programa de ensino do canto orfeônico nas escolas.

Em setembro de 1933, um decreto transformou o setor de Villa-Lobos numa


superintendência subordinada ao Departamento de Educação do Distrito Federal: a
Superintendência de Educação Musical e Artística (SEMA)6. Como superintendente, o
compositor passou a ganhar um salário mensal de 24 contos de réis. Chefiava um staff de
94 funcionários entre professores, assistentes, datilógrafos, serventes e motoristas. Ainda
em 1933, o compositor criou três níveis de cursos para professores que quisessem se
aperfeiçoar no assunto, recebendo certificados de professores de música e canto orfeônico.

Figura 1 - Certificado de estágio no Curso de Professor de Canto Orfeônico


concedido a Sebastião Viannna por Villa-Lobos, habilitando-o a dirigir
estabelecimentos de formação de professores e a exercer o magistério dessa
disciplina.
Fonte: Família Vianna – arquivo pessoal de Sebastião Vianna.
6 A SEMA, baseada na reforma que instituiu o ensino obrigatório de Canto Orfeônico no Município do Rio de Janeiro,
foi criada através do Decreto n. 19.890 de 18 de abril de 1931 As atividades eram subdivididas em cursos de Declamação
Rítmica e de Preparação ao ensino do Canto Orfeônico, destinados aos professores das escolas primarias. Também foram
criados o Curso Especializado de Música e Canto Orfeônico e de Prática de Canto Orfeônico, destinados à formação de
professores especializados.

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Em 1934 Gustavo Capanema assume o Ministério da Saúde Educação e Cultura.


Homem afeito às artes e à cultura, Capanema convidou artistas e intelectuais para
compor seu ministério. Tendo o poeta Carlos Drumond de Andrade como seu chefe
de gabinete, sua equipe era integrada ainda por nomes como Mário de Andrade,
Lúcio Costa, Afonso Arinos, Cecília Meireles além do próprio Villa-Lobos. Foi
o empurrão que faltava para a inclusão do canto orfeônico no currículo escolar
brasileiro e a propagação da prática através dos espetáculos gigantescos.

Figura 2 - Concentrações orfeônicas reunindo milhares de


estudantes nas décadas de 1930 e 1940.
Fonte: GUÉRIOS, 2003, p. 193.

O canto orfeônico e o Guia Prático da Educação Musical

O canto orfeônico é uma prática vocal em conjunto originária da França do século


XIX. A denominação “canto orfeônico” foi utilizada em 1833 por Bouquillon-
Wilhem, professor de canto nas escolas de Paris, como alusão ao mito grego de
Orfeu, poeta e músico. A prática já existia no Brasil bem antes de Villa-Lobos adotá-
la. No início do século XX, João Gomes Júnior, professor de música, formou um
coral orfeão de normalistas na Escola Normal de São Paulo. A iniciativa também
foi seguida pelo educador Fábio Lozano, na Escola Normal de Piracicaba. Segundo
Fonterrada (2005), tais iniciativas tiveram grande influência no projeto concebido
mais tarde por Villa-Lobos.
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No âmbito internacional, a pedagogia orfeônica desenvolvida pelo compositor


se situa na mesma época do projeto educacional realizado por Zóltan Kodaly, na
Hungria. Através do convite do governo da Tchecoslováquia, em 1936, Villa-Lobos
participou do Congresso de Educação Popular em Praga. Encantado com o que viu,
Villa-Lobos procurou imitar o projeto de educação musical de Kodaly, adaptando-o
à realidade brasileira. O projeto baseado no canto orfeônico desenvolvido por Villa-
Lobos estava centrado em três atividades básicas:

1- A organização da prática nas escolas, incluindo a formação de docentes;


2- A formação e apresentação de grandes concentrações orfeônicas;
3- A composição, arranjo e organização de canções folclóricas e universais voltadas
ao processo pedagógico da educação musical (o “guia prático”).

Inserido em um processo pedagógico progressivo, o “guia prático” iniciava pela


conscientização da pulsação e do ritmo e emissão de sons com seus respectivos
nomes. O vocalismo de escalas era feito através da manossolfa (técnica de solfejo
utilizada por Kodaly, no qual as mãos estabelecem a altura das notas). Finalizava com
exercícios para consciência da harmonia e polifonia com peças em duas ou três vozes.
Depois de adquiridos tais conhecimentos, o aluno estaria preparado para o estudo
mais aprofundado do solfejo e da teoria musical.

A questão político ideológica

Desde a antiguidade clássica sabe-se que a música tem o poder de produzir um efeito
moral na alma (psique) e no caráter (ethos) e, se ela tem esse poder gerador de diversos
comportamentos, é claro que os jovens deveriam ser encaminhados e educados
através dela. A noção de nacionalismo, patriotismo, formação moral e civismo estão
profundamente interligadas à ideologia da exaltação da identidade cultural, desejável
no Brasil no período conhecido como Estado Novo ou Ditadura Vargas.

O nacionalismo, tanto como movimento artístico quanto como ideologia, forneceu


as principais ferramentas para a implantação do canto orfeônico de Villa-Lobos. Tal
pensamento, como já foi dito, existia desde a própria gênese do canto orfeônico na
França, uma vez que os ideais patrióticos e nacionalistas fundamentaram o sentimento
de nação na construção de um Estado Nacional pós Revolução Francesa (1789).

Cabe ressaltar que a vinculação da ideologia nacionalista não se restringia ao âmbito


artístico e musical. Toda política educacional do governo Vargas voltava-se para o
aspecto nacionalizante da educação, valorizando a brasilidade e procurando afirmar
a identidade nacional. A história nos revela a arte refletindo a ideologia e a tendência
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vigente, cabendo ao artista, no melhor desempenho simbólico da sua arte, reproduzir


o senso comum do seu tempo.

As críticas ao compositor e seu projeto

Além do grande número de pessoas que admiravam sua arte - não só o compositor,
como também seu projeto de educação musical - havia também os que o criticavam.
Para muitos, Villa-Lobos era um compositor excessivamente moderno, visto como
alguém que queria transformar a arte nacional em música selvagem. Um de seus
ferrenhos opositores era o crítico de arte Oscar Guanabarino. Em 1932, ao saber da
nomeação de Villa-Lobos para dirigir a SEMA, Guanabarino publicou um artigo no
Jornal do Commércio:

Talvez estejamos em tempo de remediar essa catástrofe. Se o


digno Interventor do Distrito Federal quiser emendar a mão
e corrigir o erro que lesa a pátria cometido por intermédio
dessa injusta nomeação do grande ilustre sambeiro para
o cargo de Diretor da música coral de nosso município,
basta revogar o respectivo Decreto e lavrar um outro...
(GUÉRIOS, 2003, p. 249).

Durante o apogeu da era Vargas, possivelmente, muitos opositores e críticos do
compositor calaram-se porque grande parte da imprensa estava atrelada ao regime
que o sustentava. Em 1942, o rompimento definitivo das relações diplomáticas com
os países do eixo - Alemanha, Itália e Japão - implicou em um novo alinhamento
político de toda nação. A adesão às práticas do nacionalismo exacerbado que
lembravam ao fascismo e ao nazismo perdia força à medida que a maior parte do
mundo vivia e condenava os horrores da guerra iniciada pela Alemanha nazista.

O Estado Novo caminhava para seu fim levando com ele toda sustentação política
e ideológica do projeto educacional implantado por Villa-Lobos. A diminuição dos
grandes eventos e atividades cívicas foi uma consequência inevitável desse processo.
Dentro da nova realidade, em 1945, o compositor recebeu permissão para dedicar
metade do ano à sua carreira profissional de compositor e regente. A partir daí,
deixa de se envolver diretamente com os rumos da educação musical e da música no
Brasil. Villa-Lobos dedicou-se à carreira internacional que tanto sonhara, regendo
suas obras em grandes orquestras dos Estados Unidos e em vários países da Europa.

Em julho de 1959, o compositor regeria uma das últimas de suas obras, A floresta
do Amazonas, vindo falecer em sua casa no Rio de Janeiro, em 17 de novembro do
mesmo ano.
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Considerações finais

Traçou-se aqui um panorama geral sobre o surgimento do nacionalismo como


movimento universal muito antes de ser uma opção estética de Villa-Lobos. Como
demonstrado, desde seu surgimento, na Rússia, início do século XIX, essa corrente
ganhou forças no Brasil durante o século seguinte. Villa-Lobos, como músico do
início do século XX, se inseriu nesse contexto e veio a se tornar o maior expoente
da música brasileira, não só como compositor, mas também como idealista de um
projeto educacional através da música bem sucedida em sua época, cuja repercussão
e resultados nunca tiveram precedentes em toda história do país.

Quanto a sua estreita vinculação com a Ditadura de Vargas, pelo material pesquisado
e aqui apresentado, acredita-se que era preciso estar em sintonia com o governo da
época para se levar a frente um projeto de humanização dos jovens através da música.
Nomes como Lúcio Costa, Carlos Drumond de Andrade, Cândido Portinari, Manoel
Bandeira, Cecília Meireles, entre outros, assim como Villa-Lobos, em algum momento
de suas vidas, também apoiaram e integraram aquele governo. Posicionar Villa-Lobos
como artista a serviço de uma ditadura seria condenar todos esses nomes a um mesmo
julgamento. Data vênia, o artista é um ser comprometido com o seu contexto.

Como declarou Homero de Magalhães, o primeiro pianista a gravar as Cirandas de


Villa-Lobos, em entrevista ao Jornal do Brasil de 8 de março de 1987: “Considero
uma idéia barata associar o nome de Villa-Lobos ao totalitarismo; ele tinha a cabeça
muito cheia de música para pensar em outra coisa” (HORTA, 1987).

Neste ensaio, foram oferecidos elementos para uma avaliação crítica sobre a atuação
de Villa-Lobos na educação musical do Brasil na Era Vargas. Cabe ao leitor, baseado
no que foi exposto, se posicionar a respeito.

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Villa-Lobos and the musical education in Brazil:


support for a critical appraisal
Abstract:
In this essay we provide information and subsidies for a
critical judgment of the role the composer Heitor Villa-
Lobos played in music education in Brasil during the
Dictatorship Vargas, also known as the Estado Novo.

Keywords: Music Education; Villa-Lobos; orpheonic


singing; practical guide.

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