Artigo Saneamento, Arboviroses e Determinantes Ambientais Impactos Na Saúde Urbana

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

DOI: 10.1590/1413-812320202510.

30712018 3857

Saneamento, Arboviroses e Determinantes Ambientais:

Artigo Article
impactos na saúde urbana

Sanitation, Arboviruses, and Environmental Determinants


of Disease: impacts on urban health

Lorena Sampaio Almeida (https://orcid.org/0000-0002-6653-9370) 1


Ana Lídia Soares Cota (https://orcid.org/0000-0001-8220-7846) 1
Diego Freitas Rodrigues (https://orcid.org/0000-0001-5698-596X) 1

Abstract What are the repercussions of poor- Resumo Quais as repercussões da urbanização
ly planned urbanization for population health? mal planejada na saúde da população? Entender a
Understanding urban health, the risks posed by saúde urbana, os riscos acarretados pelas cidades,
cities, health repercussions, and urban social re- as repercussões na saúde e as relações sociais au-
lations helps urban planners to decide where to xiliam no planejamento no qual a prevenção deve
target prevention interventions. We conducted a ser investida. Assim, com o objetivo de verificar
qualitative descriptive analytical study based on a relação entre urbanização e saúde urbana, em
a document analysis and bibliographical review especial as infecções ocasionadas pelo vetor “Ae-
to explore the relationship between urbanization des aegypti”, foi realizado um estudo qualitativo
and urban health, focusing on diseases transmit- e uma investigação descritiva e analítica através
ted by the mosquito Aedes aegypti. Our findings de busca documental e bibliográfica. Os resultados
show that environmental degradation and in- apontam que os impactos ambientais decorrentes
adequate infrastructure pose a serious risk to da falta de infraestrutura resultante da urbaniza-
human health, insofar as the disposal of waste ção podem oferecer riscos à saúde humana, visto
in dumps and landfills can cause exposure to que a disposição de resíduos em lixões e aterros
hazardous chemicals. In addition, inadequate podem ocasionar exposição a substâncias quími-
urban infrastructure and sanitation is conducive cas perigosas à saúde. Além disso, o saneamento
to the transmission of water-borne diseases and ineficaz pode acarretar em doenças veiculadas
the reproduction of vectors of other diseases such pela água e propiciar a reprodução de vetores de
as Aedes aegypti, responsible for the transmis- outras enfermidades, como é o caso do “Aedes ae-
sion of arboviruses (dengue, chikungunya, and gypti”, responsável pela transmissão das arboviro-
Zika). Research on environmental and urban ses (dengue, chikungunya e Zika). Dessa forma,
health therefore provides an important founda- estudar saúde ambiental e urbana proporciona
tion for improving the quality of life of people embasamento para a promoção de qualidade de
living in cities and developing measures de- vida das pessoas que residem nessas áreas e permi-
signed to prevent diseases related to unplanned te propor medidas que evitem doenças relaciona-
1
Centro Universitário urbanization. das à urbanização.
Tiradentes. Av. Gustavo
Paiva 5017, Cruz das Key words Urbanization, Urban health, Zika Palavras-chave Urbanização, Saúde da popula-
Almas. 57038-000 ção urbana, Zika
Maceió AL Brasil.
lorenasampaioalmeida@
hotmail.com
3858
Almeida LS et al.

Introdução seus habitantes apresentem um equilíbrio da


economia com a sociedade e ambiente natural,
Os temas de saúde e meio ambiente sempre esti- e a Constituição Federal em seu artigo 5°, abor-
veram interligados ao longo da história das po- da essa determinação ao trazer a função social
líticas públicas mundiais. Um exemplo prático é da cidade como um cumprimento dos direito à
que o processo de urbanização e a formação de vida, à segurança, à igualdade, à propriedade e
cidades são movimentos fundamentais para a à liberdade, assim como garantia a todos de um
incidência e a proliferação de doenças infecto- piso vital mínimo, compreendido pelos direitos
contagiosas além de epidemias e pandemias nas à educação, saúde, lazer, trabalho, previdência
diferentes regiões do mundo1. social, maternidade, infância, assistência dos de-
O crescimento urbano é um fenômeno que samparados, entre outros5.
ocorre com velocidade impressionante, estima- O aumento populacional, as migrações, as
se que no período de 2007 a 2050 a população viagens aéreas facilitadas, a urbanização inade-
mundial passará de 6,7 para 9,2 bilhões, com cer- quada, o funcionamento irregular dos sistemas
ca de 6,4 bilhões de pessoas (60%) localizadas em de saúde e o aumento da densidade populacional
centros urbanos2. são fatores que influenciam na garantia da ativi-
No Brasil não é diferente, a urbanização se dade de “função social da cidade” e que são fun-
deu de forma desordenada, sem planejamento damentais para a ocorrência de doenças infecto-
adequado, o que acarretou problemas no abas- contagiosas, em especial as arboviroses (dengue,
tecimento de água, esgotamento sanitário e ocu- chikungunya e Zika), que tem como principal
pações irregulares o que eleva consideravelmente vetor o mosquito Aedes aegypti, cuja reprodução
os riscos de infecções transmitidas por veiculação é acentuada em áreas urbanas, inclusive já há es-
hídrica, e por vetores que se multiplicam nessas tudos que comprovam que as condições socio-
áreas vulneráveis, com risco elevado para popu- ambientais do Brasil são favoráveis à proliferação
lações urbana3. do mosquito6.
Estabelecer essa relação, entre ambiente e Desta forma, o objetivo deste estudo é verifi-
saúde, é importante para que haja maior preven- car as relações entre urbanização e saúde urbana,
ção desses agravos à saúde, entendendo que para em especial as infecções ocasionadas pelo vetor
o controle de vetores de doenças em áreas que Aedes aegypti. Para alcançar este objetivo busca-
apresentaram rápida urbanização são necessárias remos responder a seguinte questão norteadora:
não somente ações de saúde, mas que hajam po- quais as repercussões da urbanização mal plane-
líticas que integrem a mobilização da sociedade, jada na saúde da população?
saúde, educação ambiental, melhorias de habita-
ção, saneamento e ações para evitar mais desma-
tamento3. Métodos
Com base nessas relações surgiu um novo
ramo da saúde pública, o conceito de saúde ur- Consiste em um estudo com abordagem quali-
bana, que explora os fatores de riscos das cidades, tativa. Os principais procedimentos qualitativos
suas repercussões na saúde da população e nas são a amostragem intencional, a coleta de dados
relações sociais urbanas4. abertos, a análise de textos ou de imagens, o che-
Considerando esse novo conceito e os aspec- cklist e o diagrama de interação para melhor vi-
tos que envolvem a saúde urbana, três pontos de- sualização e discussão, além de interpretação dos
vem ser esclarecidos: apesar de sempre se esperar achados.
vantagens da urbanização, a mesma pode acar- Realizou-se uma investigação descritiva e
retar prejuízos também, sociais, econômicos e analítica, por meio da técnica de investigação
ambientais de alto impacto e de difícil avaliação; documental e bibliográfica, em textos de artigos
aspectos físicos e sociais de uma cidade e seus científicos e de descrição do processo de urba-
bairros podem atingir a saúde dos indivíduos; nização e suas relações, no que diz respeito às
e que, utilizando uma visão mais abrangente, os consequências, com destaque para o âmbito da
agravos ao processo saúde-doença do indivíduo saúde.
podem estar associados ao meio urbano onde Foram utilizados como fontes primárias:
estão inseridos, sobrepujando os atributos indi- legislações e documentos oficiais (plano dire-
viduais4. tor; mapeamentos e boletins epidemiológicos).
A ideia de “função social da cidade” surge Como fontes secundárias, recorreu-se a artigos
então como ideia de que a cidade possibilita que científicos publicados em periódicos nacionais
3859

Ciência & Saúde Coletiva, 25(10):3857-3868, 2020


e internacionais disponíveis, além de livros que sigualdades sociais e regionais e a promoção do
abordavam aspectos relacionados à temática. bem de todos sem qualquer forma de discrimi-
Após a seleção dos textos que constituíram o nação5. Quando se observa o princípio da função
alicerce metodológico do estudo, procedeu-se social da cidade, é possível identificar que o mes-
a uma análise de conteúdo dos documentos re- mo defende uma vida com mais qualidade aos
lacionados e análise espacial para ilustrar casos seus habitantes.
pontuais que correlacionam urbanização e saúde E tais preocupações, das consequências das
pública. condições ambientais e/ou urbanas na saúde da
A apresentação dos resultados foi dividi- população são apresentadas desde muito tempo,
da em três unidades de análise. Na primeira foi houve uma intensificação entre os séculos XVIII
realizada uma síntese dos conceitos referentes à e XIX com a associação da saúde e os efeitos do
urbanização e metropolização, bem como a as- processo de industrialização e urbanização. O
sociação desse movimento com a saúde da po- movimento do Sanitarismo surgiu então com o
pulação; na segunda foram distribuídos os riscos discurso pautado no saneamento básico e con-
e as vulnerabilidades decorrentes do processo de trole de vetores como principal estratégia, am-
urbanização, com o foco especial nos impactos pliando a abordagem do problema socioambien-
ambientais; em um terceiro momento foram tal urbano1.
destacados os impactos ambientais responsáveis A Carta de Ottawa, criada na I Conferência
pela proliferação do Aedes aegypti e infecção pelo Internacional de Promoção da Saúde realizada
vírus Zika, principalmente no que diz respeito à no Canadá, em 1986, reforçou esta informação,
falta de saneamento. ao afirmar que as condições e os requisitos para
a saúde consistem na paz, educação, moradia,
alimentação, renda, ecossistema estável, justiça
Resultados e discussão social e equidade1. Trazendo então a saúde não
somente como a ausência de doença, mas como
Metropolização e saúde um conjunto de características para um bem-es-
tar físico, mental e social.
Saúde e meio ambiente sempre estiveram A revolução urbana e o crescimento das
interligados, Hipócrates, no ano de 460 a.C. já cidades ocasionaram e ainda repercutem em
destacava isso, em sua obra Áreas, águas e lugares consequências ambientais consideráveis, prin-
em que apontava o meio ambiente na determi- cipalmente no que diz respeito a países não de-
nação e evolução de patologias, embora se con- senvolvidos, que não apresentam legislação de
siderasse nesse período o meio ambiente como controle ambiental, ou que existe, porém, de
um elemento a ser observado passivamente, sem forma ineficiente. Nesses países, a urbanização
qualquer intromissão ou domínio7. acelerada e não planejada ocasionou uma infra-
A partir dos séculos XVI e XVII a concepção estrutura inadequada, com serviços que não co-
de ambiental foi então destacada novamente com operam para a qualidade de vida da população:
a Teoria dos Miasmas, que considerava o ar e os sem serviços básicos de abastecimento de água,
odores como forma de transmissão de doenças. saneamento, coleta e destinação de lixo; condi-
Mesmo essa teoria sendo hegemônica até o sé- ções inadequadas de moradia que trazem riscos
culo XIX, a crescente urbanização da Europa e o para a saúde das pessoas8.
modo de produção baseado em fábricas fizeram Nota-se que a discussão sobre meio ambiente
com que os movimentos sociais atribuíssem as e saúde está sempre relacionada às condições de
condições de vida como fator importante para vida da população. É impossível atuar na prote-
surgimento de doenças, dando ao meio ambiente ção da saúde das pessoas sem realizar cuidados
um caráter predominantemente social8. básicos ao meio ambiente, assim como, não se
Assim, uma sociedade deve manter uma re- pode falar em danos ao meio sem associar às re-
lação equilibrada entre a situação econômica e percussões na saúde individual e coletiva. Nessa
ambiental, e quando se trata de uma sociedade discussão estão envolvidos temas relacionados à
urbanizada, localiza-se a função social da cida- terra, à água, ao saneamento básico, à alimenta-
de no que determina o artigo 3° da Constituição ção, à moradia e às doenças, associando a crise
Federal, ao demonstrar a necessidade da constru- ambiental no setor de saúde e a forma como as
ção de uma sociedade livre, justa, solidária, com cidades foram criadas9.
garantia de seu desenvolvimento, erradicação da Para esquematizar as possíveis consequência
pobreza, da marginalização, com redução das de- da urbanização existente no Brasil, não planejada
3860
Almeida LS et al.

e acelerada, a seguir encontra-se um diagrama de indústria passa a ser o setor mais importante da
interação com algumas possíveis linhas de reper- economia nacional, caracterizando a transição
cussões (Figura 1). de uma economia agrário-exportadora para uma
O termo “urbano” tem sua origem do latim e economia urbano-industrial, porém, foi somente
dois significados: de urbanun (arado) e de povo- na década de sessenta que o aumento da popula-
ação. Este deu origem a dois termos, urbe e urbs, ção urbana se mostrou tão intenso que esta ca-
o último faz referência à cidade de Roma, conhe- mada começou a ser maior do que a população
cida como cidade-império. No século XVI, o ter- rural10.
mo urbano foi então resgatado, sendo utilizado Com o aumento da população urbana, no de-
para abordar as cidades e seu entorno, a palavra correr dos séculos XIX e XX, os centros urbanos
“urbanicidade” para relacionar condições de saú- concentraram pobreza, deslocamento social e cri-
de associadas a áreas urbanas em um momento, me. E a falta de planejamento urbano, com infra-
utilizando-se de uma abordagem transversal. E estrutura não adequada acarretou consequências
“urbanização” refere ao “complexo processo me- sobre a saúde da população, doenças infectocon-
diante o qual a cidade cresce (ou diminui), mo- tagiosas se proliferaram, demonstrando a impor-
difica e influencia a saúde (visão longitudinal)”4. tância de se avaliar a saúde urbana e a qualidade
O processo de urbanização no Brasil teve ambiental urbana, sendo este último conceito en-
início na primeira metade do século XX, inten- trelaçado a quatro aspectos do ambiente urbano:
sificando-se a partir de 1950, período em que a espacial, biológico, social e econômico11.

Ausência de Redução da
Contaminação Risco para
saneamento biodiversidade
da água a saúde
básico aquática

Criação Alteração da Limitação


Urbanização de novos qualidade do das opções de
ambientes solo uso do solo

Degradação Criação
Aumento da Ocupação
ambientaç do de novos
população irregular
espaço ambientes

Disseminação Perda da Resíduos


Proliferação de
de doenças cobertura depositados
vetores
infectocontagiosas vegeral em áreas
urbanas

Figura 1. Diagrama de Interação Urbanização.

Fonte: Elaboração própria.


3861

Ciência & Saúde Coletiva, 25(10):3857-3868, 2020


Essa intensa urbanização que aconteceu no residem sob um mesmo teto, os quais são carentes
Brasil a partir de 1950 vem sendo seguida pelo de uma ou mais das seguintes características: aces-
processo de metropolização, que consiste no so à água potável; acesso a instalações sanitárias de
“processo de integração de território a partir de qualidade; área de moradia suficiente, sem ocor-
uma cidade-núcleo, configurando um território rência de lotação; estrutura da moradia de quali-
ampliado, em que se compartilha um conjunto dade e durável; e segurança de posse15.
de funções de interesse comum”, uma ocupação Visualizando estes locais nota-se a iniquidade
urbana que por ocorrer de forma contínua trans- na forma como ocorreu o desenvolvimento no
cende os limites dos municípios10. país, a distribuição de renda irregular e a con-
A partir dos anos de 1970 esse processo de ur- sequente desigualdade são traduzidas na forma
banização somado ao estágio da metropolização como o espaço urbano é utilizado14. Visualizamos
acarretou um aumento considerável de áreas ur- essa desigualdade nos números: à medida que
banas extensas, provocando o acúmulo de milhões 20% dos indivíduos mais pobres nas cidades lu-
de habitantes em diversas cidades. Desta forma, ao tam para chegar aos 55 anos de idade, 40% dos
passo que o país se urbanizou, a população passou mais ricos vão além dos 70 anos15.
a se encontrar aglomerada nos espaços metropo- As condições existentes nestas localidades re-
litanos10. presentam um risco para a saúde da população,
O Censo demográfico, realizado pelo Insti- visto que a saúde é um produto social, influencia-
tuto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, da pelo espaço urbano, tornando-os vulneráveis a
constatou a presença de 39 regiões metropolitanas surtos de doenças contagiosas, até mesmo predis-
(RM), e demonstrou que 55% da população urba- pondo a doenças causadas por vetores que têm sua
na brasileira reside nestas áreas, o que representa presença relacionada às características ambientais
47% dos habitantes do Brasil12. existentes no local, como as arboviroses1,15.
Os efeitos da metropolização são os mais di- Diversas doenças encontram meios favoráveis
versos, se por um lado a mesma amplia as relações para a disseminação em meio à desorganização
econômicas, por outro potencializa a desigualda- das cidades. O mosquito Aedes aegypti, principal
de social e a vulnerabilidade ambiental, visto que vetor das arboviroses (dengue, Zika e Chikun-
permite a contiguidade espacial, o adensamento gunya), adaptou-se facilmente ao ambiente urba-
populacional urbano e a conectividade da econo- no, devido ao maior número de habitantes aglo-
mia, proporcionando avanço do setor, o que pode merados e uma maior quantidade de criadouros
ser verificado nos dados existentes: as 15 maiores artificiais1.
metrópoles do país são responsáveis pela maior A relação do Aedes aegypti com a qualidade de
parte da riqueza nacional, em média 50,3% do vida urbana da população é íntima e baseia-se nas
Produto Interno Bruto – PIB brasileiro13. condições de planejamento urbano, presença de
Negativamente, através da visualização das saneamento básico, coleta de lixo eficiente e higie-
metrópoles fica evidenciada a pobreza urbana, a ne1. Por isso, há a necessidade de entender como
concentração de riqueza e a pobreza configurada ocorreu o processo de urbanização, a ligação des-
pela segregação socioespacial, instalada nas peri- te movimento com a saúde, para assim procurar
ferias das cidades, os denominados aglomerados prevenir os agravos decorrentes dele.
subnormais, comumente chamados de favelas, ou Importante destacar que apesar do principal
assentamentos precários, locais situados nas peri- vetor da transmissão das arboviroses ser o Aedes
ferias, distante dos centros urbanos, ou até mes- aegypti, outros mosquitos como Aedes albopictus,
mo em zonas centrais, que apresentam topologia Aedes africanus, Aedes luteocephalus, Aedes vitta-
imprópria para sua existência, em situação de tus, Aedes furcifer, Aedes hensilli e Aedes apicoar-
risco geológico, frequentemente sem infraestru- genteus também podem transmitir, assim como
tura urbana adequada e serviços de esgotamento mosquitos dos gêneros Anopheles, Eretmapodites e
sanitário, coleta de lixo irregulares, precariedade Mansonia são potenciais vetores para a dissemina-
do transporte público, dentre outros. Somadas a ção da doença, porém são pouco difundidos nas
essas características há também a presença de in- Américas16.
segurança física, ambiental e, por diversas vezes, Em 02 de Março de 2016 houve uma revira-
social14. volta dos estudos referentes ao ZIKV. A cientista
Aproximadamente um quarto da população Constância Ayres, da Fundação Oswaldo Cruz
mundial urbana permanece vivendo nesses tipos (Fiocruz) em Pernambuco, revelou que o vírus
de assentamentos. O qual a Organização das Na- fora encontrado ativo na glândula salivar (o que
ções Unidas (ONU) define como indivíduos que demonstra que o mosquito foi capaz de replicar o
3862
Almeida LS et al.

vírus) e no intestino do mosquito Culex quinque- coletividade humana. Os eventos naturais eram,
fasciatus, conhecido popularmente como mos- até bem pouco tempo, os maiores riscos que uma
quito doméstico, pernilongo ou ainda muriçoca. sociedade estava exposta, com a urbanização ge-
Tal conclusão ocorreu após a equipe da cientista neralizada, presente na humanidade, este perfil
realizar três infeções em aproximadamente 200 mudou, tornando as cidades vulneráveis a di-
mosquitos do gênero Culex e após sete dias de versos agentes perturbadores, quer seja exógeno,
alimentação destes mosquitos com sangue infec- endógeno, natural ou técnico. Por esse motivo,
tado o vírus se manteve vivo. Porém é necessária estima-se que 2/3 dos indivíduos acometidos por
cautela, pois ainda segundo a cientista, o fato do catástrofes sejam provenientes de áreas urbanas19.
mosquito ser infectável, não indica que ele possa Desta forma, a noção de riscos urbanos tor-
transmitir o vírus16,17. na-se primordial para a prevenção dos demais.
Os estudos ainda são incipientes, mas se re- Um exemplo consiste na ocupação irregular, que
almente comprovado o papel do Culex na trans- predetermina riscos a natureza do clima e confli-
missão da infecção por ZIKV, os brasileiros en- tos entre as pessoas19.
frentarão um grande problema, visto que esse Os impactos ambientais são notáveis em nos-
gênero de mosquito existe em um número muito sas cidades, a degradação ambiental consequente
maior que o Aedes, sem falar que o mosquito põe de uma urbanização descomprometida com os
ovos em qualquer acúmulo de água, que não pre- aspectos físico-ambientais pode ser visualizada
cisa necessariamente ser limpa. Percebe-se então na erosão, no deslizamento de encostas, compro-
que a reprodução deste mosquito é ainda mais metimento da qualidade da água, assoreamento
relacionada à falta de infraestrutura, devido ao dos corpos hídricos que podem predispor a en-
fato de suas fêmeas depositarem seus ovos em chentes, acarretando prejuízos sociais e danos
qualquer forma de acúmulo de água, observa-se materiais.
muito mais áreas de riscos para que isso ocorra. Para compreensão deste processo se faz ne-
Além disso, o Culex apresenta, diferente do Aedes, cessário entender os conceitos de impacto am-
hábitos noturnos, o que significa que as pessoas biental, que são os mais diversos possíveis. A
estariam correndo risco 24 horas por dia16,17. legislação brasileira define impacto ambiental
como qualquer alteração, de caráter físico, quími-
Riscos e vulnerabilidades decorrentes co e biológico do meio ambiente acarretada por
da urbanização qualquer forma de matéria ou energia resultado
de ações humanas que direta ou indiretamente
A intensa urbanização e crescimento urbano interferem na “saúde, segurança e bem estar da
somado ao uso inadequado do solo intensificam população; nas “atividades sociais e econômicas”;
ameaças consequentes de eventos naturais, como na biota; nas “condições estéticas e sanitárias do
tempestades, enchentes e deslizamentos, ou de meio ambiente”; na “qualidade dos recursos am-
incidência induzida de agravos como doenças e bientais”20. Alguns autores definem ainda que im-
violências. Tais problemas são presentes em di- pacto ambiental consiste na alteração e/ou efeito
versas cidades no mundo, em especial, na Améri- da ação humana sobre o meio ambiente19-21.
ca Latina e no Brasil18. Os impactos ambientais tornam-se uma rea-
No Brasil, a ocupação de áreas de risco, as- ção em cadeia, visto que são interligados, o solo
sociada às situações socioeconômicas deficientes, desmatado em declives para a construção de vias
acarreta no aumento dos grupos sociais acome- e casas, podem provocar erosão e desestabilização
tidos, devido a vulnerabilidade existente nessas de encostas, que por sua vez causam carreamento
áreas18. Porém, antes de relatar quais são os riscos de sedimentos para os corpos hídricos, poluin-
e vulnerabilidades, é importante que haja a com- do as águas e tornando a população susceptível
preensão do sentido desses termos, como consta a doenças transmitidas pela água contaminada e
no Quadro 1. por diversas pragas e vetores que se reproduzem
A Figura 2 apresenta uma área de risco loca- nesse tipo de ambiente22,23.
lizada em Maceió, denominada “Vale do Reginal- Os diversos impactos ambientais consequen-
do”, no bairro do Jacintinho, em que a infraes- tes da falta de infraestrutura decorrente da urba-
trutura não é adequada, com aglomerações; não nização podem também oferecer riscos à saúde
há saneamento básico e o lixo é encontrado nas humana, a disposição de resíduos em lixões e
áreas urbanas, próximo das residências. aterros podem ocasionar exposição humana a
Toda e qualquer sociedade está sujeita a um substâncias químicas, com reflexo no aumento
ou mais riscos, inerentes ao modo que se vive e à de anomalias congênitas, baixo peso ao nascer,
3863

Ciência & Saúde Coletiva, 25(10):3857-3868, 2020


Quadro 1. Definições de Vulnerabilidade, Risco e Área de Risco.
Vulnerabilidade Grau de perda para um dado elemento, grupo ou comunidade dentro de uma
determinada área passível de ser afetada por um fenômeno ou processo.
Risco Possibilidade do acontecimento de um certo processo ou fenômeno, e a amplitude
de danos ou consequências econômicas e/ou sociais em um possível elemento, grupo
ou comunidade. Tal conceito segue interligado a vulnerabilidade, quanto maior a
vulnerabilidade, maior o risco.
Área de risco Área passível de ser atingida por fenômenos ou processos naturais e/ou induzidos que
causem efeito adverso. A população que habita neste local está susceptível a danos ao
bem físico, perdas materiais e patrimoniais, e geralmente essas pessoas pertencem a
núcleos habitacionais de baixa renda, os assentamentos precários.
Fonte: Adaptado de Cidade, 2013; Brasil, 2007.

Uma infraestrutura urbana inadequada pro-


porciona situações susceptível para a reprodução
de pragas e vetores de diversas patologias. O prin-
cipal transmissor das arboviroses por exemplo, o
Aedes aegypti, como já tratado anteriormente,
tem sua reprodução favorecida por poças de água
em áreas urbanas, e esses ambientes, com água
parada, são comum em locais com lixo acumula-
do nas ruas peridomicílio, com abastecimento de
água ineficaz, e sem saneamento básico. Podendo
considerar então que a população residente em
Figura 2. Vale do Reginaldo, Maceió, Alagoas. regiões com tais características estão mais sujei-
tas a se infectar pelo vírus transmitido por esse
Fonte: Google Earth.
vetor.

Determinantes ambientais e o Zika Vírus


(ZIKV)

abortos e óbitos neonatais e incidência de alguns As doenças infecciosas apresentam algumas


tipos de câncer24,25. peculiaridades que as diferenciam de outras
Além disso, o saneamento ineficaz pode acar- doenças humanas, tais como o caráter impre-
retar doenças veiculadas pela água, como é o caso visível e explosível com que se disseminam, em
de diarreias, hepatite e esquistossomose. E pode um nível global; a transmissibilidade; a estreita
propiciar a reprodução de vetores de outras do- relação com o comportamento humano e o meio
enças, como é o caso do Aedes aegypti, principal ambiente; e a capacidade de serem prevenidas e
responsável pela transmissão da febre amarela e erradicadas24.
das arboviroses. Boa parte dos agentes patogênicos responsá-
A transformação de um ambiente rural em veis por doenças infecciosas que acometem o ho-
urbano sempre resultará em alterações ambien- mem apresentam origem zoonótica, ou seja, que
tais, porém, compete ao ser humano tornar tais são mantidos na natureza em ciclos que envol-
impactos os mínimos possíveis, adequando o vem um vetor e um animal selvagem (macaco ou
processo de urbanização às características do uma ave por exemplo), e devido às ações antró-
ambiente, a fim de evitar os efeitos negativos. Um picas, principalmente relacionadas as atividades
planejamento urbano que leve em consideração econômicas, muitos vetores, como os mosquitos,
os aspectos ambientais pode reduzi-los. Tal pla- tornam-se sinantrópicos, que se adaptam a viver
nejamento deve objetivar a ordenação do espaço junto ao homem, o que favorece a transmissão de
físico e o suprimento das necessidades humanas, patógenos para a população humana24.
para garantir um meio ambiente que ofereça Por isso, ao longo dos últimos 10 anos hou-
qualidade de vida a população atual e futura26. ve o surgimento de doenças transmitidas por
3864
Almeida LS et al.

mosquitos, principalmente arbovírus como chi- car o nascimento de um local como esse na Figu-
kungunya, nilo ocidental e o ZIKV24. Através do ra 3, que demonstra um local de acúmulo de lixo
processo de urbanização acelerado, áreas foram no município de Rio Largo, em Alagoas.
desmatadas e situações de acúmulo de água fo- A epidemia das arboviroses é fruto da pre-
ram criadas, propiciando a proliferação de veto- sença de áreas como as retratadas nas figuras, um
res. modelo de desenvolvimento excludente que vem
O principal vetor das arboviroses, o Aedes sendo instituído no Brasil há séculos, sem atentar
aegypty, tem sua trajetória associada com o há- para o ambiente, com saneamento inadequado e
bitat humano, caracterizando-o com um com- destino incorreto de resíduos urbanos, sem abas-
portamento sinantrópico e antropofílico, que tecimento de água para consumo humano. Os
acompanha o homem e seu deslocamento. Di- maiores índices de infestação são localizados em
versos estudos explicam que há fatores que de- bairros com alta densidade populacional e baixa
terminam a distribuição geográfica deste vetor cobertura vegetal, em que há falta de infraestru-
e a consequente infecção por arboviroses, entre tura e onde o mosquito encontra alimento de
eles encontram-se o clima, sendo que o tropical forma mais fácil27.
e o subtropical mostram-se mais susceptíveis à O agravante do Aedes aegypti é que seus ovos
presença do vetor; fluxo populacional; condições podem passar meses viáveis em local seco, mas
precárias de saneamento básico; abastecimento no momento em que são molhados seguem sua
de água inadequado; moradia inapropriada; co- reprodução, dando origem às larvas, em seguida
leta de lixo insuficiente, acarretando acúmulo de pupas e mosquitos adultos, o que revela a difi-
lixo como possível foco de vetores; e fatores edu- culdade de manter as áreas urbanas longe desse
cacionais e culturais25,26. vetor, pois além de não ter água parada, os am-
Alguns desses fatores de interferência e mo- bientes devem passar por constantes limpeza,
dificação do ecossistema pela ação humana e a afim de que sejam destruídos quaisquer vestígios
associação com a disseminação de arbovirores de reprodução27.
consistem nos movimentos populacionais vo- Desta forma, entende-se que o modelo “ma-
luntários, para o trabalho, o estudo e o lazer, ou ta-mosquito” instituído com sucesso por Oswal-
involuntários, como os refugiados por exemplo, do Cruz para erradicação do mosquito no século
que aumentam os riscos dos viajantes transpor- XX ou ainda o uso de mosquitos manipulados
tarem patógenos não detectados em outras áreas, para ocasionar esterilidade do vetor e inseticidas
ou mesmo novos sorotipos resistentes, fazendo já não dão conta da complexidade da realidade
com que haja um surto. O aquecimento global atual, com a urbanização, a aglomeração e a po-
é um aspecto importante para a transmissão de pulação não cooperativa. É preciso deixar de lado
patógenos, o aumento da temperatura global o veneno e realizar uma limpeza e o saneamento
afeta os vetores, reduzindo o tempo de desenvol- ambiental de forma participativa e integrada27.
vimento das larvas, aumentando rapidamente a
população destes mosquitos. Além disso, reduz
o período de incubação extrínseca, fazendo com
que o tempo para o vírus alcançar a glandular sa-
livar do mosquito seja menor e tornando-o ade-
quado para a transmissão da infecção24.
Um ponto que deve ser destacado que tor-
na difícil o controle dos vetores é o crescimento
urbano desordenado, aliado à poluição de rios
e valas, fornecendo sítios para a proliferação e
a disseminação de mosquitos, especialmente do
Aedes aegypti24.
Um caso de urbanização de consequências
desastrosas é a formação de “lixões”, locais ina-
dequados de disposição de resíduos sólidos, ca-
racterizado pela simples descarga de lixo sobre o
solo, a céu aberto, sem medidas de proteção ao
meio ambiente ou à saúde pública18. Geralmen- Figura 3. Nascimento de um “lixão”. Rio Largo,
te esses locais surgem através do depósito de lixo Alagoas.
em áreas abertas pela população, pode-se verifi-
Fonte: Google Earth.
3865

Ciência & Saúde Coletiva, 25(10):3857-3868, 2020


A migração da população das zonas rurais Falta de saneamento e ZIKV:
para as áreas urbanas, com uma infraestrutura uma relação causal?
precária, incluindo o abastecimento de água e
o saneamento básico a desejar contribui para a Em outubro de 2015 foi observado o aumen-
proliferação de mosquitos. Na região Nordeste to abrupto do número de crianças nascidas com
do Brasil, mais de 75% dos locais de reprodução microcefalia, meses depois foi comprovada que
dos vetores surgem devido ao armazenamento de este agravo era consequência da transmissão au-
água precário, enquanto que na região sudeste a tóctone da infecção pelo vírus Zika. Até dezem-
maioria dos locais de reprodução ocorrem em bro de 2016 já haviam sido confirmados 215.319
ambientes domiciliares, jarros, vasos de plantas e casos de Zika e 2.366 casos de microcefalia30.
calhas de telhado por exemplo25. Devido à alta incidência do vírus na popu-
O aumento da frequência de chuvas, observado lação brasileira e a consequência grave que o
em alguns locais, acarreta o acúmulo de água em mesmo acarreta, visto que a microcefalia é um
diversos recipientes, principalmente naqueles depo- agravo crônico que interfere na qualidade de vida
sitados irregularmente nas ruas, elevando a oferta das crianças acometidas pelo restante de sua exis-
de criadouros naturais ou artificiais para mosqui- tência, os cientistas de forma geral iniciaram seus
tos fêmeas depositarem seus ovos. Por outro lado, estudos a fim de incentivar a prevenção do vetor
locais com períodos de seca prolongada obrigam a desta patologia.
população a armazenar água em barris e em outros O principal responsável pela transmissão do
tipos de depósitos que atuam como locais de proli- ZIKV é um velho conhecido da sociedade bra-
feração de vetores24. sileira, desde o início do século XX o mosquito
Porém, apesar dos países tropicais, como o Aedes aegypti já era considerado um proble-
caso do Brasil, apresentarem condições sociais, ma no território brasileiro, visto que é também
ambientais e climáticas condizentes para a trans- responsável pelos surtos, durante a história, de
missão de novas doenças infecciosas, a circulação febre amarela, dengue e chikungunya. Essas ar-
de alguns arbovírus está presente em alguns paí- boviroses começaram a se propagar em território
ses de clima temperado também24. ocidental devido às condições favoráveis à proli-
O município de Natal - RN confirma essa feração do mosquito, que deposita ovos em reci-
associação entre a proliferação do vetor com as pientes de água domésticos e se alimenta de san-
condições sanitárias da região, a maioria dos gue humano, momento que transmite os vírus32.
casos eram oriundos da Zona Norte da Cidade, A urbanização desorganizada trouxe com ela
onde somente 5% da rede de esgotamento sanitá- diversos aspectos que propiciam a proliferação
rio é adequadamente tratada28. É importante res- do vetor: a inadequação de infraestrutura agre-
saltar que além do homem, o ZIKV pode infectar gada ao déficit do saneamento básico; aumento
animais, sendo possível que estes possam exercer de geração de resíduos de composição diversa; as
um papel significativo na disseminação dos casos formas de vida no meio ambiente; a debilidade
no Brasil29,30. dos serviços e as campanhas de saúde pública; tal
Sobre os fatores socioeconômicos que in- como a falta de capacitação dos Agentes de Com-
fluenciam na distribuição do vetor e consequen- bate a Endemias e a população em geral sobre as
te incidência do ZIKV e arboviroses em geral, patologias causadas pelo vetor1.
Wilkinson e Pickett31 explicam que há uma inter- O professor de filosofia da Universidade Fe-
ferência social na saúde das pessoas, a desigual- deral de Pernambuco, Érico Andrade, chega a se
dade social e a posição que o indivíduo ocupa aprofundar mais nas relações causais das arbo-
em relação aos demais importa ao perceber que viroses ao delimitar as fronteiras, da geografia do
aqueles que ocupam lugares mais altos gozam de Zika, ideia também associada a dengue e à chi-
mais saúde quando comparados aos que se en- ckungunya. O mesmo afirma que a infecção por
contram na base. Essa relação pode ser associada esses vírus é reflexo da ocupação desordenada,
com os casos do vírus Zika, em que há maior pro- divisão de classes e a segregação urbana, tornan-
liferação do mosquito transmissor em locais com do o ZIKV e a microcefalia agravos decorrentes
déficits de saneamento básico, com esgoto a céu da desigualdade social33.
aberto, moradia imprópria, e as pessoas expostas Essa relação entre desigualdade social e saúde
a essa situação geralmente são aquelas que estão foi confirmada por Wilkinson e Pickett, que ao
na base da pirâmide da desigualdade social. realizarem uma pesquisa em países ricos identi-
ficaram que países mais desiguais apresentavam
uma menor expectativa de vida e que a morta-
3866
Almeida LS et al.

lidade infantil era maior. Esses autores colocam proliferação dos mosquitos; as chuvas promo-
ainda que a desigualdade de renda é tão relevante vem o acúmulo de água em moradias impróprias
que as condições de saúde em países ricos depen- ou onde há resíduos depositados; os esgotos a
dem mais da redução das desigualdades que do céu aberto, que atuam também como depósitos
crescimento econômico29. de lixo de forma inadequada. Todas essas formas
A influência da desigualdade humana na de incentivo à reprodução do vetor poderiam ser
saúde humana tem sido muito discutida nas pes- evitadas com abastecimento de água; e um sane-
quisas em saúde coletiva, um sistema que sabe amento básico e coleta de lixo eficazes37.
produzir, porém não sabe distribuir torna-se in- Assim, pode-se considerar que condições fa-
suficiente e isso reflete na sociedade e na quali- voráveis de abastecimento de água e saneamento
dade de vida da mesma. A doença e a saúde são básico são necessárias para prevenção de arbovi-
pensadas como fatos influenciados pela cultura, roses e são sinônimo de menor mortalidade en-
contexto e sociedade em que estão inseridos, de tre a população. É importante salientar que não
forma dinâmica e multicausal, por isso, é preciso existe solução única para o enfrentamento desta
analisar aquilo que antecede os fatores de risco e epidemia, mas deve-se lançar mão de todas as es-
que se destacam diferentemente, como os com- tratégias existentes38,39.
portamentos de grupos e individuais, os estilos Um exemplo de área que torna propícia a
de vida, os locais onde a população está inserida. reprodução do vetor das arboviroses é a região
Entendendo assim que as circunstancias sociais em torno do riacho salgadinho, como consta na
são causas importantes da saúde e da doença34. Figura 4, um local com água parada e acúmulo
A gestão ambiental desta forma mostra-se de lixo, fatores que predispõem água parada e a
importante, pois estão associados os aspectos reprodução do mosquito. A foto aqui em ques-
ambientais, econômicos e de saúde pública. Para tão mostra a área em que o riacho se estabelece
a incidência do ZIKV, por exemplo, o saneamen- na região central de Maceió, mas sabe-se que este
to desempenha importante papel, visto que a complexo lagunar Salgadinho integra a Bacia do
Organização Mundial de Saúde – OMS define sa- Reginaldo, sua nascente ficava no poço Azul, no
neamento como “controle de todos os fatores do bairro Petrópolis, em Maceió, porém, essa já não
meio físico do homem, que exercem ou podem existe, secou em 2006, devido a desmatamento da
exercer efeitos nocivos sobre seu bem estar físico, vegetação nativa e a impermeabilização do solo
mental e social”. Por isso, a gestão ambiental e a para a construção de habitações e a explosão de
saúde pública devem andar intimamente ligadas. poços particulares artesianos, transformando o
De certa forma, as preocupações com a proble- riacho em um corredor para despejo de esgotos
mática ambiental sempre estiveram envolvidas sanitários e chuvas40.
com a saúde pública, desde sua origem, porém, A urbanização trouxe consigo o desenvolvi-
somente a partir de 1950 houve a estruturação de mento econômico e o crescimento das cidades.
uma área exclusiva para tratar dessas questões35,36. Teoricamente imaginaríamos que por ter de-
Por serem infecções preveníveis e fortemente sencadeado evolução econômica, traria também
associadas aos centros urbanos, a Sala Nacional
de Coordenação e controle para o enfrentamento
à dengue, ao vírus chikungunya e ao vírus Zika
publicaram a Diretriz Número 3, referente a sa-
neamento básico, que orienta estados e muni-
cípios acerca das ações relativas a essa questão,
principalmente no que diz respeito a armazena-
mento de água e eliminação de resíduos sólidos,
com a finalidade de eliminar os criadouros do
mosquito Aedes argypti37,38.
Desta forma, a grave epidemia da microce-
falia ocasionada pela infecção congênita pelo ví-
rus Zika chama a atenção para a necessidade da
realização de investimentos para a melhoria nas
condições de vida da população urbana no Bra-
sil e os problemas são inúmeros: a falta de água
Figura 4. Riacho Salgadinho, Maceió, Alagoas.
nas residências faz com que as pessoas tenham
de armazenar água, criando locais propícios para Fonte: Google Earth.
3867

Ciência & Saúde Coletiva, 25(10):3857-3868, 2020


melhorias nas condições de saúde e vida da so- de serviços nos centros urbanos, sem adequados
ciedade, mas não foi isso que aconteceu ou que serviços de esgotamento sanitário, abastecimento
vem ocorrendo. O que acontece é a ocorrência da de água e coleta de lixo, que possibilitam a repro-
degradação ambiental, o aumento da pobreza e dução do vetor responsável pela transmissão.
da desigualdade, além da introdução continua- Compreende-se, pelos dados a que se tem
mente de novos agravos à saúde humana e a ma- acesso, que a urbanização está presente atual-
nutenção de doenças que já foram consideradas mente e tende somente a aumentar no futuro,
sob o controle. revelando a necessidade de estudar a saúde am-
Um exemplo de patologias que se dissemi- biental e urbana, afim de promover uma melhor
nam nessas situações são as arboviroses, em des- qualidade de vida aos indivíduos residentes em
taque atualmente pela incidência elevada, vê-se cidades e evitar doenças que poderiam ser pre-
tais infecções como reflexo dessa precarização veníveis.

Colaboradores Referências

LS Almeida, ALS Cota, DF Rodrigues trabalha- 1. Mendonça FA, Veiga e Souza A, Dutra DA. Saúde pú-
blica, urbanização e dengue no Brasil. Sociedade &
ram na concepção do artigo, na elaboração da
Natureza 2009; 21(3):257-269.
metodologia, na busca de artigos, contextualiza- 2. World Health Organization (WHO). World Urbani-
ção de resultados e na redação final do texto. zation Prospects: The 2007 Revision. United Nations
Department of Economic Social Affairs/Population Di-
vision. New York: WHO; 2008.
3. Machado CJS, Miagostovich MP, Leite JPG, Vilani
Agradecimentos
RM. Promoção da relação saúde-saneamento-cidade
por meio da Virologia Ambiental. Revista de informa-
Fundação de Amparo de Pesquisa de Alagoas ção legislativa 2013; 50(199):321-345.
(FAPEAL); PROCAPS/UNIT/AL. 4. Calaffa WT, Ferreira FR, Ferreira AD, Oliveira CL, Ca-
margos VP, Proietti FA. Saúde urbana: “a cidade é uma
estranha senhora, que hoje sorri e amanhã te devora”.
Cien Saude Colet 2008. 13(6):1785-1796.
5. Brasil. Senado Federal. Constituição da República Fe-
derativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988.
6. Barbosa IR, Silva LP. Influência dos determinantes
sociais e ambientais na distribuição espacial da den-
gue no município de Natal-RN. Revista Ciência Plural
2015; 1(3):62-75.
7. Hipócrates. Aires, aguas y lugares. In: Organización
Panamericana de la Salud (OPS), Organización Mun-
dial de la Salud (OMS). El desafio de la epidemiologia:
problemas y lecturas seleccionadas. Washington: OPS/
OMS 1988.
8. Gouveia N. Saúde e meio ambiente nas cidades: os de-
safios da saúde ambiental. Saúde Soc 1999; 8(1):49-61.
9. Camponogara S, Viero CM, Erthal G, Diaz PS, Ros-
sato GC, Soares SA, Peres RR. Visão de profissionais
e estudantes da área de saúde sobre a interface saúde
e meio ambiente. Revista Trabalho, Educação e Saúde
2013; 11(1):93-111.
10. Romanelli C, Abiko AK. Processo de Metropolização no
Brasil. São Paulo: USP; 2011.
11. Ribeiro H, Vargas HC. Urbanização, globalização e
saúde. Revista USP 2015; (107):13-26.
12. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Censo Demográfico 2010. Características da população
e dos domicílios: resultados do universo. Rio de Janeiro:
IBGE; 2011.
3868
Almeida LS et al.

13. Observatório das Metrópoles. As Metrópoles no Censo 31. Wilkinson R, Pickett K. O nível: Por que uma sociedade
2010: novas tendências? [acessado 2016 Nov 16]. Dis- mais igualitária é melhor para todos. Rio de Janeiro:
ponível em: http:// www.observatoriodasmetropoles. Editora Civilização Brasileira; 2015.
net/ download/texto_ Metropoles 32. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Boletim Epide-
14. Gottschalg MF. Segregação Sócio-Espacial Urbana e miológico: Monitoramento dos casos de dengue, febre
Intervenção Estatal: Uma abordagem geográfica-social. de chikungunya e febre pelo virus Zika até a Semana
Minas Gerais: Conselho Regional de Serviço Social de Epidemiológica 52, 2016. Secretaria de Vigilância em
Minas Gerais; 2012. Saúde. 48(3):1-10. 2017. [acessado 2017 Fev 24].
15. Un-habitat. Urbanization and Development: Emerging Disponível em: http://portalarquivos.saude.gov.br/
Futures. World cities report 2016. United Nations Hu- images/pdf/2017/fevereiro/05/2017_002-Dengue%20
man Settlements Programme. Nairobi; 2016. SE52_corrigido.pdf
16. Fiocruz. Fiocruz identifica mosquito Culex com poten- 33. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Informe Epidemio-
cial de transmissão do vírus Zika, Fundação Oswaldo lógico n° 57 – Semana epidemiológica (SE) 52/2016 (25
Cruz: por Solange Argenta. 2016. [acessado 2016 Nov a 31/12/2016) Monitoramento dos casos de microcefalia
18]. Disponível em: http://portal.fiocruz.br/pt-br/ no Brasil. 2017. [acessado 2017 Fev 24]. Disponível
content/fiocruz-identifica-mosquito-culex-com-po- em: http://www.combateaedes.saude.gov.br/images/
tencial-de-transmissao-do-virus-zika-no-recife pdf/Informe-Epidemiologico-n57-SE-52_2016-
17. Guedes DRD, Paiva MHS, Donato MMA, Barbosa 09jan2017.pdf
PP, Krokovsky L, Rocha SWS, Saraiva KLA, Crespo 34. Fauci AS, Morens DM. Zika virus in the Americas:
MM, Rezende TMT, Wallau GL, Barbosa RMR, Oli- yet another arbovirus threat. N Engl J Med 2016;
veira CMF, Melo-Santos MAV, Pena L, Cordeiro MT, 374(7):601-604.
Franca RFO, Oliveira ALS, Peixoto CA, Leal WS, Ayres 35. Trata Brasil. A geografia do Aedes. Correio Braziliense.
CFJ. Replicação do Zika vírus no mosquito Culex 2016. [acessado 2016 Nov 18]. Disponível em: http://
quinquefasciatus no Brasil. Emerging Microbes & In- tratabrasil.org.br/a-geografia-do-aedes
fections. 2017; 16:1-11. 36. Ferreira MAF, Latorre MRD. Desigualdade social e os
18. Cidade LCF. Urbanização, ambiente, risco e vulnera- estudos epidemiológicos: uma reflexão. Cien Saude
bilidade: em busca de uma construção interdiscipli- colet 2012; 17(9):2523-2531.
nar. Cad. Metrop. 2013; 15(29):171-191. 37. Ribeiro H. Saúde pública e meio ambiente: evolução
19. Mendonça FA, Leitão SA. M. Riscos e vulnerabilidade do conhecimento e da prática, alguns aspectos éticos.
socioambiental urbana: uma perspectiva a partir dos Saúde Soc 2004; 13(1):70-80.
recursos hídricos. GeoTextos 2008; 4(1 e 2):145-163. 38. Brasil. Diretriz SNCC n° 3 – Saneamento Básico. Sala
20. Brasil. Ministério das Cidades. Mapeamento de Riscos Nacional de Coordenação e Controle para o enfrenta-
em Encostas e Margem de Rios. Brasília: Instituto de mento à dengue, ao vírus chikungunya e ao vírus Zika.
Pesquisas Tecnológicas; 2007. Brasília, 2016. [acessado 2016 Nov 18]. Disponível
21. Brasil. Conselho Nacional do Meio Ambiente (Co- em: http://combateaedes.saude.gov.br/images/sala-
nama). Resolução nº 001, de 23 de janeiro de 1986. de-situacao/diretriz-sncc-n-3-saneamento-basico.pdf
Diário Oficial da União 1986; 17 fev. 39. Mujica OJ, Haeberer M, Teague J, Santos-Burgoa C,
22. Sanchez LES. Avaliação de impacto ambiental: concei- Galvão LAC. Health inequalities by gradients of ac-
tos e métodos. 2ª ed. São Paulo: Oficina de textos; 2013. cess to water and sanitation between countries in the
23. Westman W. Measurin the inertia and resilience of Americas, 1990 and 2010. Rev Panam Salud Publica
ecosystens. BioScience 1978; 28(11):705-710. 2015; 38(5):347-354.
24. Gouveia N. Resíduos sólidos urbanos: impactos socio- 40. Albuquerque E. Responsabilidade sobre a poluição do
ambientais e perspectiva de manejo sustentável com riacho Salgadinho da capital do Estado de Alagoas. Ma-
inclusão social. Cien Saude Colet, 2012; 17(6):1503- ceió: Fits; 2012.
1510.
25. Mota S. Urbanização e Meio Ambiente, 3° edição,
ABES. Rio de Janeiro, 2003.
26. Lima-Camara TN. Emerging arboviruses and pu-
blic health challenges in Brazil.  Rev Saude Publica
2016; 50:36.
27. Marcondes CB, Ximenes MFFM. Zika virus in Brazil
and the danger of infestation by Aedes (Stegomyia)
mosquitoes. Rev Soc Bras Med Trop 2016; 49(1):4-10.
28. Sousa EPP. Influência das variáveis climáticas em casos
de dengue nas cidades da Baixada Santista (sudeste do
Brasil) e Cingapura (sudeste asiático) [tese]. São Paulo:
Universidade de São Paulo; 2013.
29. Peres AC. Aedes: ampliando o foco. RADIS 2016;
(161):12-17. [acessado 2017 Jan 10]. Disponível em:
http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/sites/default/files/
radis161_web.pdf Artigo apresentado em 30/04/2018
30. Luz KG, Santos GIV, Vieira RM. Febre pelo virus Zika. Aprovado em 15/02/2019
Epidemiol Serv Saúde 2015; 24(4):785-788. Versão final apresentada em 17/02/2019

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons

Você também pode gostar