Venus Das Peles
Venus Das Peles
Venus Das Peles
LÉOPOLD SACHER-MASOCH
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A VÊNUS DAS PELES
LÉOPOLD SACHER-MASOCH
A VÊNUS
DAS PELES
Por
LEOPOLD SACHER MASOCH
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Levantei os olhos a custo. Vi a mão que me tocava, mas a mão era cor
de bronze e a voz, áspera, de bebedor de aguardente, a do meu antigo
cossaco, que com a sua altura de cerca de seis pés se erguia à minha
frente.
— Levante-se — continuava dizendo o bom homem. — É uma
vergonha.
— O quê?
— Deixar-se adormecer vestido com um livro ao lado — apagou as
velas quase consumidas e recolheu o volume caído —, com um livro —
consultou a capa — de Hegel. Além de mais, é hora de ir a casa de
Dom Severino, que nos espera para o chá.
— Estranho sonho! — disse Severino quando acabei. — Apoiou o
braço sobre o meu joelho, enquanto contemplava as suas formosas
mãos com delicadas veias, e mergulhou numa meditação profunda.
Eu sabia que já há muito tempo não se podia mover, que perdera
quase inteiramente o vigor, tendo chegado ao ponto de a sua conduta
não ter nada de estranho para mim, porque ao cabo de três anos que
mantinha com ele relações de boa amizade acostumara-me a todas as
suas originalidades. Ninguém podia negar que era estranho, louco
quase perigoso, passando como tal, não somente entre os seus amigos,
mas em todo o círculo de Colomea. Para mim, a sua existência não só
era interessante, mas até simpática, o que fazia que eu também
passasse, para alguns, por um tanto louco.
Sendo um senhor da Galiza, proprietário, jovem, pois pouco mais tinha
de trinta anos, dava provas de uma singular sobriedade de vida, de
certa severidade e até de certo pedantismo. Vivia com uma
minuciosidade exagerada segundo um sistema meio filosófico, meio
prático, regular como um relógio, como o termômetro, o barômetro, o
anemômetro, o higrômetro, segundo os preceitos de Hipócrates,
Hufeland, Platão, Kant, Knigge, e Lorde Chesterfield, tendo por vezes
violentos acessos de fúria, no meio dos quais intentava esmagar a
cabeça contra a parede, o que faria se não o impedissem.
Ele sumido no seu mutismo, o fogo crepitava na lareira, cantava o
grande e venerável samovar, rangia o cadeirão ancestral em que me
balanceava fumando, cantava um grilo nas velhas paredes e eu deixava
cair os olhos sobre o estranho mobiliário: esqueletos de animais,
pássaros dissecados, gesso e moldagens amontoados no seu escritório,
quando de repente atraiu a minha vista um quadro que havia visto com
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MEFISTÓFELES
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AO AMOR
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Graça dos céus! Eis que aí vem a nossa velha. Cada dia que passa
redu-la mais. Mas acima, entre o entrelaçado dos ramos verdes, flutua
outra vez o traje branco. É Vênus ou a viúva?
Desta vez deve ser a viúva, porque a senhora Tartakuska faz uma
reverência e procura-me em seu nome para que lhe empreste livros.
Corro ao meu aparta-mento e tomo um par de volumes.
É já tarde quando me lembro que o retrato de Vênus vai dentro de um
deles. A dama branca inteirar-se-á das minhas expansões.
Que dirá?
Ouço-a rir.
Será por acaso de mim?
Lua cheia! O astro aparece já sobre o cimo dos abetos que bordejam o
parque; um vapor argentífero envolve o terraço, os grupos de árvores,
toda a paisagem, até perder-se de vista na distância, como uma onda
palpitante.
Não posso resistir; tudo isto me atrai e me chama tão estranhamente,
que volto a vestir-me e saio ao jardim.
Dirijo-me para a pradaria, a sua, da minha deusa, a bem-amada.
A noite é fresca. Estremeço. O ar está cheio de aroma de flores e
madeiras. Embalsama.
Que calma! Que música em redor! Um rouxinol queixa-se. As estrelas
palpitam docemente com um brilho azul-pálido. A planície parece um
espelho, a capa gelada de um lago.
Augusta e sorridente se ergue a imagem de Vênus. Mas que é isto?
Das costas marmóreas da deusa cai-lhe até aos pés uma grande e
escura capa de peles. Fico estupefato junto a ela; de novo se apodera
de mim um indizível temor a esta mulher, e tento empreender a fuga.
Apresso o passo. Vejo então que me enganei na avenida, e ao voltar
lateralmente por uma senda encontro-me cara a cara com Vênus; a
formosa mulher de pedra, não; a verdadeira deusa do amor, cujo
sangue é quente, cujo pulso bate, erguida ante mim num banco de
pedra. Sim, sem dúvida já me ama, como aquela outra estátua que se
animou para o seu autor. Já a primeira surpresa desapareceu. A branca
cabeleira da deusa parece ainda de pedra; o seu branco vestido brilha
como a Lua — a não ser um efeito da seda — e dos seus ombros cai a
pele sombria. Mas os seus lábios são vermelhos, as suas faces estão
coloridas, saem dos seus olhos dois raios verdes, diabólicos, sobre
mim, e ri.
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L e i a - s e t a m b é m apetite. (N. do T.)
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Eu próprio me assustei com o atrevimento que lhe disse; mas não ela,
que entreabriu um pouco os lábios, deixando ver uma dentadura
branca, e disse num tom ligeiro, como uma coisa sem importância:
— Quereis ser meu escravo?
— No amor — repliquei eu com solene sinceridade — não há
justaposição, e se me deixais optar entre mandar ou ser mandado,
parece-me muito irritante ser o escravo de uma bela mulher. Onde
encontraria eu a mulher que, sem exercer a sua influência através de
mesquinhas querelas, dominasse absoluta, mas tranquilamente,
mantendo consciência de si própria?
— Todavia, não seria difícil.
— Quereis acreditar...
— Eu... por exemplo — exclamou rindo e deitando-se para trás —,
tenho disposições de déspota... também possuo a peliça
indispensável... Mas, de verdade? Tivestes sinceramente medo de mim
esta noite?
— Sinceramente.
— E agora?
- Agora, sinceramente, continuo tendo.
Dia a dia, estamos juntos Vênus e eu; completa-mente juntos.
Tomamos o pequeno-almoço no meu bosquezito e o chá no seu
gabinete, dando-me ocasião de mostrar os meus pequenos,
pequeníssimos talentos. Com que objetivo me instruí eu em todos os
ramos dos conhecimentos humanos, me ensaiei em todas as artes, não
possuindo uma encantadora mulherzita?
Mas esta não tem nada de pequena e impõe-se-me de uma maneira
prodigiosa. Hoje desenhei o seu retrato e compreendi séria e
claramente quão pouco está feito o nosso penteado moderno para a
sua cabeça de camafeu. Tem pouco de romano, mas muito de grego
nas feições.
Tanto me comprazo a pintá-la de Psiquis, como em Astarte, dando
sempre aos seus olhos uma expressão exaltada ou semilânguida de
voluptuosidade extinguida; mas o que ela quer verdadeiramente é um
retrato.
Agora quero pôr-lhe umas peles.
Ai! Para quem, senão para ela, pode ser concebida uma peliça real?
Estava ontem à tarde com ela lendo-lhe as elegias romanas. Depressa
abandonei o livro e me pus a fazer algumas reflexões. Pareciam
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— Falo com toda a seriedade. Adoro-a de tal modo que quero suportar
tudo de si, conquanto possa passar a minha vida ao seu lado.
— Severino, advirto-o de novo.
— Inutilmente! Faça de mim o que quiser, mas sem me afastar.
— Severino, sou uma mulher jovem e sem tino. E perigoso para si
entregar-se tão inteiramente; ao fim e ao cabo converter-se-á num
brinquedo meu. Quem lhe assegura que eu não abusaria da sua
demência.
— A vossa nobre conduta.
— O poder entontece.
— Faça-o, espezinhe-me.
Wanda rodeou-me o pescoço com os braços, olhou-me nos olhos e
sacudiu a cabeça.
— Tenho medo de não poder fazê-lo; mas tentarei, por ti, meu bem, a
quem amo como nunca amei ninguém.
De repente, hoje, tomou o seu xale e sombrinha e tive de acompanhá-
la ao bazar. Ali fez com que lhe mostrassem látegos, látegos longos de
cabos curtos, próprios para cães.
— Estes serão bons — disse o vendedor.
— Não, são demasiado pequenos — disse Wanda, mirando-me de
soslaio. — Quero-os maiores.
— Talvez para algum dogue? 5
— Sim, como os que usavam na Rússia para os escravos rebeldes.
Escolheu, por fim, um; estava com um ar inquietante que me
surpreendeu.
— Agora adeus, Severino. Tenho de fazer outras
compras e não necessito que me acompanhe. Despedi-me e dei um
passeio. Ao voltar vi Wanda a sair de uma casa de peles. Chamou-me.
— Pense bem — começou por me dizer de bom humor. — Nunca lhe
ocultei que a sua seriedade e o seu ar sonhador me cativaram.
Encanta-me ver um homem sincero entregar-se inteiramente a mim,
extasiar-se a meus pés; mas, durará este encanto? A mulher ama o
homem, mas ao escravo pisa-o e maltrata-o.
— Expulsa-me então a pontapé, se te cansaste de mim. Quero ser teu
escravo.
— Vou descobrindo que há instintos perigosos adormecidos em mim —
juntou Wanda daí a pouco — e que os despertas, não certamente em
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Casta de cão de pêlo curto, focinho chato, beiços grossos e índole feroz. (N. do T.)
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teu proveito. Que dirias tu, tão hábil em pintar as sensações do gozo,
da crueldade com tanto orgulho, se experimentasse tudo isso em ti,
como Dionísio, que fez queimar o inventor do boi de bronze no seu
mesmo invento para ver se os seus lamentos, os seus queixumes de
morte, se pareciam de fato com o mugido do boi? Não poderia ser eu
um Dionísio fêmea?
— Seja, e o meu sonho ver-se-á realizado. Pertenço-te no bem e no
mal; escolhe tu própria. A fatalidade impele-me, está no meu coração,
diabólica, onipotente!
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Olhei em volta.
— Não, continua de joelhos! — foi à chaminé e tomou o látego, e
olhando-me enquanto ria, fê-lo sibilar no ar. Depois levantou com
ligeireza as mangas da kazabaika.
Eu murmurava:
— Admirável mulher!
— Cala-te, escravo! — e o seu olhar adquiriu um tom sombrio, até
selvagem, e descarregou-me uma chicotada. Quase instantaneamente
passou com muita delicadeza o braço em redor do meu pescoço e
inclinou-se compassiva para mim.
— Magoei-te? — perguntou-me entre confusa e cheia de angústia.
— Não — respondi —, e se o tivesses feito, as dores seriam para mim
um prazer. Castiga-me outra vez, se te agrada.
— Mas se não me causa nenhum prazer...
A estranha embriaguez apoderou-se de mim.
— Castiga-me — repliquei —, castiga-me sem piedade!
Wanda brandiu o látego e flagelou-me duas vezes.
-É bastante?
— Não.
— Deveras que não é?
— Flagela-me, rogo-te; é um prazer para mim.
— Sim, porque sabes que não é a sério, que o meu coração não quer
fazer-te mal. Este jogo bárbaro repugna-me; se eu fosse de fato uma
mulher que açoita os seus escravos, ficarias assustado.
— Não, Wanda, amo-te mais que a mim mesmo; entreguei-me a ti na
vida e na morte e podes fazer contra mim tudo o que o teu orgulho te
sugira.
— Severino!
— Espezinha-me —e estendi-me à sua frente com a cara no chão.
— Repugnam-me as comédias! — exclamou Wanda impaciente.
— Então maltrata-me.
Houve uma pausa inquietante.
— Severino, pela última vez!
— Se me amas, sê cruel para mim — implorei erguendo os olhos para
ela.
—Se te amo? Estamos bem arranjados! — Retrocedeu olhando-me
com um ar sombrio. —Sê, pois, meu escravo, e aprende o que é um
homem entregar-se a uma mulher. E dizendo isto deu-me um pontapé.
— Que tal, escravo?
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— E em seguida?
— Serás meu escravo.
— E tu?
— Eu? Que mais queres? Eu sou uma deusa que às vezes desce,
ligeira, muito ligeira, quase furtiva-mente, do seu Olimpo para ti. Mas
que significa tudo isto? — disse Wanda apoiando a cabeça entre as
mãos, o olhar perdido no vácuo, face a um sonho dourado que não se
realizaria jamais. Tinha-se estendido pelo seu ser uma melancolia
latente, inquieta. Nunca a tinha visto assim.
— E porque não há de realizar-se?
— Porque a escravidão não existe entre nós.
— Vamos pois onde ela existe; ao Oriente, à Turquia.
— Verdade que queres, Severino?
Os seus olhos ardiam.
— Sinceramente quero ser teu escravo; quero que o teu poder sobre
mim esteja consagrado pela lei, que a minha vida esteja nas tuas
mãos, que nada me proteja ou me defenda contra ti. Que prazer
quando souber que dependo dos teus caprichos, dos teus gestos, dos
teus gostos! Que delícia, se fores tão graciosa que permitas alguma vez
ao escravo beijar os lábios de que depende o seu decreto de vida ou de
morte!
Arrojei-me aos seus pés e apoiei a minha fronte ardente sobre os seus
joelhos.
— Tens febre, Severino — disse Wanda excitada. — Amas-me
verdadeiramente, com um amor infinito? — estreitou-me contra o peito
e encheu-me de beijos. — Quer-1o? — acrescentou vacilante.
— Aqui, frente a Deus e sobre a minha honra, juro que serei teu
escravo quando quiseres, quando mandares — exclamei quase fora de
mim.
— E se te tomar à letra?
— Fá-lo.
— É um encanto sem igual saber que um homem que me adora, que
me ama com toda a sua alma, se dá completamente a mim para
depender da minha vontade, do meu capricho; para ser meu escravo,
enquanto eu... — e olhou-me com um ar singular. — Estou-me
tornando demasiado frívola e a culpa é tua. Creio mesmo que tens
medo de mim; mas tenho o teu juramento.
— Cumpri-lo-ei.
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— Deixa-me por esta noite. Agora tenho Deus por testemunha que não
há de ser só um sonho. Tu serás meu escravo e eu serei A Vênus das
Peles.
Pensava conhecer e compreender a fundo esta mulher, e agora vejo
que terei de começar o meu estudo. Com que repugnância não acolhia
ela antes as minhas quimeras e com que zelo não persegue hoje a sua
realização!
Está em posse de um contrato segundo o qual me comprometo,
mediante palavra de honra e juramento, a ser seu escravo enquanto ela
quiser. Com um braço em redor do meu pescoço leu-me este
documento inaudito, incrível. A cada cláusula um beijo servia de ponto.
— Mas o contrato estipula unicamente deveres para mim — disse-lhe
com impaciência.
— É natural — respondeu serenamente. — Tu és meu amante e eu
estou ligada a ti por estes deveres. Terás de considerar os meus favores
como uma graça: neste papel não tens mais nenhuns direitos nem
vantagens. O meu poder sobre ti não pode ter limites. Pensa que não
vais ser mais que um cão, uma coisa inerte, brinquedo que posso usar
quando isso me divirta. Tu não és nada e eu sou tudo. Compreendes?
Desatou a rir, abraçou-me, e senti um estremecimento invadir-me.
— Permitir-me-ás que estipule outras coisas?
— Que se estipulem outras coisas? — franziu as sobrancelhas. — Ah,
sim. É porque tens medo ou te arrependeste; mas já é tarde: tenho o
teu juramento, a tua palavra de homem. Todavia, escuto-te.
— A primeira cláusula que queria pôr no contrato é que nunca me
abandonarás completamente, que nunca me abandonarás à barbárie
de um qualquer dos teus adoradores.
— Mas Severino — disse Wanda com uma voz tremula e lágrimas nos
olhos —, podes pensar que me porte assim com um homem que me
ama tanto, que se entrega completamente nas minhas mãos...? — aqui
calou-se.
— Não, não! — exclamei cobrindo de beijos a sua mão —; não temo
que possas querer desonrar-me. Perdoa tão odioso pensamento.
Wanda riu deliciosamente, juntou a sua face à minha e pareceu
sonhar.
— Todavia esqueces-te de algo — juntou com malícia. — O mais
importante...
— Alguma cláusula?
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O amor não conhece a virtude nem o mérito; ama, perdoa e sofre tudo,
porque deve; o nosso raciocínio de nada nos serve para o amor; nem
preferências, nem defeitos que descobrimos, provocam a nossa
abnegação nem nos fazem retroceder assustados.
É uma doce, melancólica, misteriosa força que nos empurra; e
deixando de pensar, de sentir e de querer, deixamo-nos empurrar por
ela, sem perguntar aonde nos leva.
Pela primeira vez vimos hoje no passeio um príncipe russo que, graças
à sua atlética presença, à sua formosa fisionomia, ao luxo da sua
pessoa, causava uma sensação geral. As damas, principalmente,
olhavam-no com assombro, como a uma besta feroz; mas ele
caminhava com ar sombrio através das avenidas, sem olhar ninguém.
Seguiam-no dois servos: um negro inteiramente vestido de vermelho e
um tcherkés armado dos pés à cabeça. De repente viu Wanda, deteve
nela o seu olhar examinador, voltou a cabeça quando ela passou, e
parou a contemplá-la.
Ela devorou-o com os seus vivíssimos olhos verdes, mostrando-se
disposta a aceitar tudo dele.
A coquetterie refinada com que o olhava estrangulou-me literalmente.
Ao aproximarmos-nos de casa fiz-lhe notar isso. Ela franziu a testa.
— Que queres? O príncipe poderia agradar-me; encanta-me um tanto,
e eu sou livre e posso fazer o que quiser.
— Então já não me amas? — balbuciei assustado.
— Só te amo a ti; mas quero que o príncipe me faça a corte.
— Wanda!...
— Não és meu escravo? — perguntou com a maior tranqüilidade. —
Não sou eu Vênus, a cruel Vênus das Peles?
Calei-me, sentindo-me destroçado por tais palavras, enquanto o seu
olhar frio entrava como um punhal no meu coração.
— Vais imediatamente informar-te do nome, morada e demais coisas
sobre o príncipe. Ouviste? — Mas...
— Nada de objeções! Obedece! — exclamou
Wanda com uma dureza de que não a julgaria ser capaz. — Não voltes
a apresentar-te à minha frente sem que possas responder a todas as
minhas perguntas.
Ao meio-dia do dia seguinte pude levar a Wanda as informações que
me exigira. Tive de ficar de pé, à sua frente, como um criado, enquanto
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— Wanda!
Levanto-me e ponho-me na sua frente, os meus olhos nos seus.
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Wanda!
— Ficam proibidas essas familiaridades — disse-me, acentuando as
palavras de modo incisivo —, do mesmo modo que nunca deves entrar
no meu quarto sem que te chame nem falar-me sem que to ordene. De
hoje em diante chamar-te-ás não Severino, mas Gregório.
Estremeci de indignação — não posso negá-lo —, mas também de
prazer e de uma emoção insuperável.
— Mas, senhora, conheço bem a minha situação; eu dependo ainda do
meu pai e duvido que ele ponha à minha disposição o dinheiro que
seria necessário para essa viagem.
— Queres dizer que não tens dinheiro? — perguntou Wanda
encantada. — Tanto melhor! Assim dependerás completamente de
mim, como escravo.
— Mas não estais a ver — tentei ainda objetar — que como cavalheiro
me é impossível...
— O que eu sei — interrompeu ela imperiosamente — é que, como
cavalheiro, te comprometeste, sob jura-mento e sob palavra de honra,
a seguir-me como escravo, aonde eu quisesse, e a fazer tudo o que eu
mandasse. Por agora chega, Gregório!
Voltei-me para a porta.
— Ainda não. Antes tens de beijar-me a mão.
Estendeu-me a mão com um certo orgulhoso abandono, e eu — burro,
diletante, vil escravo! — beijei-a afetuosamente com os lábios secos da
febre e da excitação.
Acenou com a cabeça, a despedir-me.
Era já tarde quando acendi a lâmpada e a chaminé, porque tinha ainda
de escrever algumas cartas e outras coisas a tratar. O vento de Outono
começava a soprar com violência, como é usual aqui.
De repente ela chamou, batendo com o cabo do látego na janela.
Abri. Estava vestida com a sua jaqueta de arminho, e cobria a cabeça
com uma touca de cossaco, alta e redonda, também de arminho, como
as que agradavam à grande Catarina.
— Estás pronto, Gregório? — perguntou com um ar sombrio.
— Ainda não, minha dona.
— Agrada-me a expressão. Chama-me sempre assim, ouves? Amanhã,
às nove, deixamos estes lugares. Até à cidade serás meu
acompanhante e amigo; uma vez que tenhamos subido para a
carruagem, serás meu servo e meu criado. Agora fecha a janela e abre
a porta.
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E desapareceu.
Em seguida passou Wanda patinando; o seu traje de seda roçagava, e
o arminho da jaqueta e da touca eram tão brancos como a neve.
Dirigiu-se a mim e abraçou-me. Imediatamente senti que o sangue
brotava do meu corpo em ondas largas e ardentes.
— Que fazes? — perguntei assustado.
Desatou a rir mas já não era Wanda Era uma enorme ursa branca que
afundava as suas garras no meu corpo.
Gritei desesperado e ouvi ainda o seu riso diabólico quando acordei.
Cheio de assombro olhei o quarto à minha volta.
Logo de manhã pus-me à porta de Wanda e quando apareceu o moço
com o café tomei conta do encargo de o servir à minha formosa dona.
Já se tinha levantado e estava soberba, fresca e rosada. Sorriu-me com
afeto e recordou a minha tentativa de afastar-me dela.
— Toma já o pequeno-almoço, Gregório, porque amos à procura de
casa. Não posso permanecer no hotel mais que o tempo indispensável.
Estamos muito mal aqui e se me acontece falar alguma vez contigo
dirão: “A russa tem boas relações com o seu criado: a raça das
Catarinas ainda não se extinguiu.”
Meia hora depois saímos. Wanda com o seu vestido de seda, a sua
touca russa; eu com a minha libré cracoviana.
Causamos sensação. Eu caminhava dez passos atrás dela, muito sério,
mas temendo a cada momento desatar a rir-me. Por todo o lado se
viam letreiros anunciando Camere ammobiliate. Wanda mandava-me
subir para que eu os visse e só subia quando eu lhe assegurava que
tinham boa aparência. Foi assim que, ao meio-dia, estava tão fatigado
como um cão de caça.
Não encontramos nada que nos conviesse. Wanda estava um pouco
contrariada. De repente disse-me:
— Severino, é deliciosa a seriedade com que desempenhas o teu
papel, e as obrigações que nos impusemos excitam-me imensamente.
Não posso mais; estás apetitoso, é preciso que te dê um beijo.
Entremos em qualquer lado.
— Mas senhora!
— Gregório!
Entramos na primeira escada que nos pareceu adequada, e enquanto
me abraçava, num transporte afetuoso, disse-me:
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Dizem que no Sul há uma grande mortalidade. Não há pois rosa sem
espinhos nem voluptuosidade sem tormento.
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Famoso passeio de Florença, admirado pelos estrangeiros.
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CONTRATO ENTRE A
SENHORA WANDA DE DUNAIEW
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EO
SENHOR SEVERINO DE KUSIEMSKI
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Fez um sinal com a mão, e antes que pudesse dar-me conta do que se
passava, as negras derrubaram-me e ataram-me de pés e mãos, ao
ponto de não poder sequer mover-me.
— Traze-me o látego, Haydée — ordenou Wanda com uma fleuma
imperturbável.
A negra deu-lho e pôs-se de joelhos.
— Tira-me esta pele tão pesada, que me incomoda!
A negra obedeceu.
— Dá-me aquela jaqueta.
Haydée voltou com a kazabaika de arminho que estava estendida na
cama e Wanda, com um gesto de inimitável graça, ordenou:
— Atem-no a essa coluna!
As negras levantaram-se, passaram uma forte corda em redor do meu
corpo e ataram-me, de pé, a uma das maciças colunas que sustinham
o teto.
Depois desapareceram tão rapidamente como haviam surgido.
Wanda acercou-se de mim. O seu vestido de seda branca flutuava
como um raio de Lua; a sua cabeleira chispava sobre as peles da
jaqueta. Com a mão esquerda na cintura, o látego na direita, disse-me
num tom desapiedado:
— A comédia acabou entre nós. Agora estás, insensato, desprezível,
entregue a mim como um brinquedo pela tua cega demência; a mim,
orgulhosa e cheia de capricho! Deixaste de ser o bem-amado; és meu
escravo e posso dispor da tua vida se quiser. Assim aprenderás a
conhecer-me. Começarás por experimentar o látego da minha mão, por
capricho, sem o teres merecido, e assim saberás o que te espera
quando cometas uma falta.
Com uma graça selvagem levantou o braço, deliciosamente coberto
pela manga orlada de arminho, e descarregou-me uma chicotada sobre
os rins.
Todo o meu corpo estremeceu. O látego entrava na minha carne como
a folha de uma faca.
— Ah! Agrada-te? — exclamou ela. — Espera, espera, vou fazer-te
uivar como um cão — acrescentou ameaçadora, voltando a golpear-
me.
Os golpes choviam duros e rápidos com espantosa violência sobre o
meu dorso, nos braços, no pescoço. Eu apertava os dentes para não
gritar. Uma das vezes o látego acertou-me na cara e o sangue saltou.
Ela desatou a rir sem deixar de me bater.
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ORDEM ESCRITA
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Wanda De Dunaiew”
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Comecei a tremer como varas verdes, pois nunca a tinha visto assim:
pálida até aos lábios e agitada. Ciumenta da escrava, Vênus das Peles
puxa repentinamente o látego e bate-me na cara com ele. Chama as
negras e ordena-lhes que me conduzam atado para a cave, que parece
uma verdadeira prisão.
Ali fiquei atado e estendido ao comprido no chão não sei por quanto
tempo, como uma besta no matadouro, sobre um montão de palha
úmida, sem luz, sem água, sem pão, sem repouso. A ela não lhe falta
nada, e deixa-me morrer de fome, se já não é de frio. Tirito. Será febre?
Sinto que vou odiar esta mulher.
Um raio de claridade vermelha como o sangue entra por uma fenda. É
luz: a porta vai abrir-se.
Wanda aparece no umbral envolta na sua zibelina, iluminando-se com
uma tocha.
— Ainda vives? — pergunta-me.
— Vens para me matar? — respondo com voz apagada e
moribunda.
Em dois saltos, Wanda chega até mim, ajoelha-se e encosta a cabeça
ao meu peito.
— Estás doente? Como reluzem os teus olhas! Amas-me? Eu quero
que me ames.
Saca de um pequeno punhal. Eu estremeço quando a lâmina brilha à
minha frente; temo que me mate. Mas ela desata a rir e corta as cordas
que me atam.
Deixou-me cear com ela esta noite; leio-lhe umas páginas e entretém-
se comigo. Parece transformada, envergonhada da barbárie de que
usou para comigo. Uma doce tranqüilidade ilumina a sua pessoa, e
quando me agarra a mão os seus olhos tomam uma expressão sobre-
humana de bondade e de amor, que nos arrancam a ambos lágrimas
com que esquecemos os sofrimentos da existência e os terrores da
morte.
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— A senhora ordena!
— Eu não ordeno, peço — acrescentou com um encanto
maravilhosamente indescritível. Em seguida levantou-se, e com a sua
linda mãozinha no meu ombro, e olhando-me: Oh! Que olhos tens! —
disse. — Severino, amo-te; não sabes quanto te amo.
— Sim — repliquei com amargura —, ao ponto de marcar um encontro
com outro.
— Faço isso para excitar-te; necessito de um adorador para não te
perder; não quero perder-te nunca, nunca, entendes? Porque te amo a
ti e somente a ti.
E colou apaixonadamente os seus lábios aos meus.
— Que pena não poder dar-te toda a minha alma num beijo...!,
assim... mas, vamos.
Pôs um vestido simples de seda negra e cobriu a cabeça com um
escuro bachelik 7. Atravessou com rapidez a galeria e subiu para o trem.
— Gregório levar-me-á — disse ao cocheiro, que ficou muito admirado.
Subi para a boleia e fustiguei os cavalos com raiva.
No lugar dos Cassinos em que a avenida principal tem mais espessas
as suas ramadas, Wanda desceu. Era de noite. Algumas estrelas
solitárias brilhavam através das nuvens cinzentas que vagueavam no
céu. Perto do Amo estava um homem envolto numa capa escura, com
um chapéu de abas, contemplando as ondas amareladas. Wanda
aproximou-se dele através do pequeno bosque e tocou-lhe no ombro.
Pude observar como ele se voltava para ela. Depois desapareceram na
espessura.
Passou sobre mim uma hora de tormento. Por fim, escutei um rumor
vindo do matagal. Voltavam.
O homem acompanhou-a até à carruagem. A luz viva de um dos faróis
caiu em cheio sobre um rosto jovem, doce e romanesco, enquadrado
por uma cabe-leira ruiva e frisada.
Ela estendeu-lhe a mão, que ele beijou respeitosamente; em seguida
fez-me sinal e o trem retomou o caminho pela interminável avenida
abobadada, semelhante a um verde toldo posto à beira rio.
Chamam à porta do jardim. É uma cara conhecida: o homem dos
Cassinos.
— A quem devo anunciar? — perguntei em francês. O meu interlocutor
abanou a cabeça com um ar embaraçado.
7
Espécie de chalé ou capuz.
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O quadro está pronto. Ela quis pagar-lhe, generosa como uma rainha.
— Oh! já me pagou tudo — recusou ele com um doloroso sorriso.
Antes de partir, abre misteriosamente a carteira e mostra-me o que lá
tem. Tenho medo. Vi a cabeça de Wanda, viva como num espelho.
— Isto é para mim e não pode tirar-mo. Bem me custou a ganhá-lo!
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—Não.
— Amante?
— Tão-pouco.
— A que teatros costuma ir?
— Esta noite vai ao Nicoli, onde trabalham a simpática Virgínia Marini
e Salvini, o mais célebre cantor de Itália, talvez de toda a Europa.
— Não deixes de arranjar um camarote. Depressa, depressa!
—Mas, senhora...
— Queres provar o látego?
— Espera na galeria — diz-me, enquanto coloco o seu binóculo e o
programa na parte da frente do camarote e o tamborete aos pés.
Saio para a galeria e encosto-me contra o muro para não cair de
ciúmes e de cólera, ou melhor — porque não é esta a palavra própria
— de agonia de morte.
Vejo-a no seu vestido de moaré azul, o grande manto de arminho
pendendo-lhe das costas nuas, mesmo em frente do camarote que o
grego ocupa. Vejo-os a devorarem-se com os olhos. A Pamela de
Goldoni, Salvini, a Marini, o público, o mundo inteiro, já não existem
para eles. E eu, que é que eu sou neste momento?
Hoje foi ao baile do ministro da Grécia. Procura-o, por acaso?
Vestiu-se de seda verde-mar, que desenha as suas formas divinas,
deixando a descoberto o busto e os braços. O cabelo, adornado com
um nenúfar branco cai-lhe sobre o pescoço numa onda única. A sua
expressão não guarda a menor emoção que deixe suspeitar o estado de
febre intensa que lhe agita a alma. Está tão tranqüila, tão tranqüila,
que sinto o meu sangue gelar e o coração se me confrange sob o seu
olhar. Lenta, com uma majestade indolente e lânguida, sobe a
escadaria de mármore, deixando arrastar a opulência do seu manto, e
penetra com abandono no salão, que uma luz de centenas de velas
enche de uma névoa dourada.
Instantaneamente desaparece da minha vista, e apanho do chão a sua
capa que, sem dar conta, deixei cair das mãos.
Beijo as peles e os meus olhos enchem-se de lágrimas.
É ele.
Vestido de seda negra adornada de valiosa zibelina escura é o formoso
déspota altivo que brinca com a vida e a alma dos homens. Chega ao
vestíbulo, olha altaneiro à sua volta e fixa-me, por longos momentos,
de um modo inquietante.
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SEVERINO KUSIEMSKI
Dei a carta a uma das negras e parti com quanta pressa pude. Cheguei
desalentado à estação dos caminhos-de-ferro, e ali senti uma violenta
ferida no coração...; detive-me...; desatei a chorar. Ah! Que ignomínia!
Quero fugir e não posso! Volto. Para onde? Para ela que me horroriza e
amo ao mesmo tempo!
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Wanda foi de trem aos Cassinos sem mim, e sem mim voltou ao teatro.
Recebeu visitas. A negra serviu-a. Ninguém me liga. Vou rondando pelo
jardim como um animal sem dono.
Estendido na relva vi dois gorriões a disputarem-se alguns grãos.
De repente ouço passos.
Wanda aproxima-se.
Veste um traje escuro de seda, de colarinho alto, e o grego acompanha-
a. Falam muito animados, mas não consigo perceber uma só palavra.
De súbito o grego começa a calcar o chão com tanta violência que faz
saltar pedras, e a fustigar o ar com o chicote. Wanda fica espantada.
Terá medo?
Onde se meteram eles?
Deixou-a; ela chama-o, mas ele não a ouve ou não quer ouvi-la.
Wanda move tristemente a cabeça e senta-se no banco mais próximo
abstraída nos seus pensamentos. Eu olho-a com uma espécie de
perversa alegria. Por fim levanto-me e acerco-me dela com um ar de
desdém.
— Venho desejar-lhe boa sorte — digo, inclinando-me. — Já vi que
encontrou o seu dono, senhora.
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— Sim, sou o culpado! Mas não sofri já o bastante? Acaba com esta
brincadeira cruel.
— Não, porque me agrada muito — respondeu olhando-me com um ar
falso e estranho.
— Wanda! — exclamei com violência. — Não abuses, olha que sou
um homem.
— Fogo de palha que assusta por momentos e que se apaga tão rápido
como se ateou! Crês intimidar-me e fazes-me rir. Se fosses o homem
que julguei ao princípio, um pensador, um homem sério, ter-te-ia
amado fielmente e seria tua mulher. A mulher deseja um homem para
o qual possa levantar o olhar. Um homem como tu, que oferece
livremente o pescoço para que a mulher ponha sobre ele o pé, só pode
servir de agradável brinquedo, que sem tardar se atira fora, quando já
enfastia.
— Tenta agora deitar-me fora — repliquei desdenhosamente. — Olha
que sou um brinquedo perigoso.
— Não me provoques — respondeu Wanda. Os seus olhos e face
incendiaram-se.
— Se não posso possuir-te — exclamei desesperado —, nenhum outro
te possuirá.
— Em que drama viste isso? — exclamou com um ar de desdém que
me sufocou. Estava pálida de cólera. --Não me provoques — repetiu —
; olha que não sou cruel, mas não sei até onde chegaria se não te
moderas...
— Que pior me podes fazer do que entregares-te a
esse homem? — respondi cada vez mais exasperado.
— Posso fazer-te seu escravo. Acaso não estás em
meu poder? Não existe um contrato? Mas, francamente, seria um
prazer para ti se te amarrasse e lhe dissesse: faz com ele o que
quiseres.
— Estás louca, mulher?
— Estou em toda a minha razão. Disseste-o da última vez. Já não me
ofereces nenhuma resistência, e posso ir ainda mais longe. Sinto uma
espécie de ódio por ti, e verei com verdadeira voluptuosidade como ele
te flagela até à morte: espera, espera.
Sem domínio de mim próprio, agarrei-lhe os pulsos e deitei-a por terra,
obrigando-a a cair de joelhos à minha frente.
— Severino! — exclamou com a cólera e o medo pintados no rosto.
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“Cavalheiro:
“Agora que passaram mais de três anos sobre a fuga de Florença na
memorável noite que recordará, posso escrever-lhe para lhe dizer, uma
vez mais, quanto o amei. Mas o senhor feriu todos os meus
sentimentos com o estranho donativo que me fez da sua pessoa na sua
louca paixão. Assim que se fez meu escravo, senti que já não podia
aceitá-lo por marido. Mas parecia-me divertido assumir-me em ideal
para si, e talvez — coisa que ainda mais me divertia — chegar a curá-
lo.
“Encontrei o homem forte de que necessitava, e fui tão feliz quanto se
pode ser nesta cômica bola de barro”.
Mas, como coisa humana, a minha felicidade durou pouco. Faz apenas
um ano que mo mataram em duelo, e agora vivo em Paris como uma
Aspásia.
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“E o senhor? A sua vida não terá sido muito alegre desde que perdeu
os sonhos de escravidão, sem que tivessem sido satisfeitas as infelizes
inclinações que me tiraram desde o princípio toda a claridade de
pensamento, toda a bondade de coração, toda a sinceridade.
“Espero que o meu látego lhe tenha feito bem”.
A cura foi cruel, mas radical. Recordação dos dias passados e de uma
mulher que o amou com paixão, assim considere este quadro que lhe
envio, obra do pobre pintor alemão.
Não podia fazer outra coisa que desatar a rir. E quando estava
submergido nos meus pensamentos, apresentou-se-me, látego na mão,
a bela da jaqueta de arminho. De novo desatei a rir daquela que tanto
tinha amado, da sua famosa jaqueta de peles, meu antigo encanto, do
látego que tinha experimentado, das minhas próprias dores, e disse de
mim para mim: “Sim, a cura foi cruel, mas radical. “O essencial é que
estou curado.”
— Muito bem. E qual é a moral desta história? — perguntei a Severino,
pondo o manuscrito sobre a mesa.
— Que fui um burro! — exclamou, sem se voltar para mim. — Assim
lhe tivesse eu batido!
— Curioso processo, que pode aplicar-se às tuas camponesas.
— Ah, sim! Estão muito acostumadas! Mas pensa na sua ação sobre
as nossas formosas damas, nervosas e histéricas.
—E a moral?
— A moral é que, tal como a natureza a criou e como o homem da
atualidade a trata, a mulher é inimiga do homem; pode ser sua escrava
ou sua déspota, mas nunca sua companheira. Só quando o nascimento
tenha igualado a mulher ao homem, mediante a educação e o trabalho;
quando, como ele, consiga ter os seus direitos, poderá ser sua
companheira. Na atualidade, ou somos bigorna ou martelo. Eu fui um
burro ao fazer-me escravo de uma mulher, compreendes? Essa é a
moral: o que se deixa chicotear, merece-o. Como viste, fui ferido, mas
curei-me. As nuvens rosas do ultra-sensualismo desvaneceram-se e
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É assim que Artur Schopenhauer chama às mulheres.
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Alusão ao galo sem plumas que Diógenes lançou na escola de Platão, dizendo «Aí tens o teu
homem!»
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SENHOR VERDUGO
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