Carta Ao Pai

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Carta ao Pai

Franz Kafka

Querido pai,

Depois de vinte anos quero conversar contigo:


Tu me perguntaste um dia por que afirmava ter medo de ti. Eu não soube o que te
responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem
tantos detalhes na justificativa desse medo, que eu não poderia reuni-los no ato de falar
de modo mais ou menos coerente. Trabalhaste pesado durante tua vida inteira,
sacrificaste tudo pela tua família, e sobretudo por mim, enquanto eu "vivi numa boa". Não
exigiste gratidão em troca disso, tu conheces "a gratidão de tua família” mas pelo menos
um pouco de boa vontade, algum sinal de simpatia; em vez disso eu sempre me esquivei
de ti em meu quarto. Se resumires teu veredicto a meu respeito, te darás conta de que
não me acusas de nada indecoroso ou mau, é verdade, mas sim de frieza, estranheza,
ingratidão. E tu me acusavas de tal modo, como se fosse culpa minha, como se eu
pudesse, com uma guinada no volante conduzir tudo para outra direção, ao passo que tu
não tens a menor culpa a não ser talvez pelo fato de ter sido demasiado bom para
comigo. Curiosamente sinto que tu tens alguma noção a respeito daquilo que estou
querendo dizer. Tu não conseguias fingir e isso era a expressão disfarçada de que as
coisas entre nós não estavam em ordem e de que tu ajudaste a provocá-las, mas sem
culpa. Naturalmente, não quero dizer que me tornei o que sou apenas através da tua
ascendência. É bem possível que eu, mesmo se tivesse crescido totalmente livre da tua
influência, não pudesse me tornar um ser humano na medida em que o teu coração o
desejava. Seja como for, éramos tão diferentes e nessa diferença tão perigosos um para
o outro, que se alguém por acaso quisesse calcular por antecipação como eu, a filha que
se desenvolvia devagar, e tu, o homem feito, se comportariam um em relação ao outro,
poderia supor que tu simplesmente me esmagarias sob os pés, a ponto de não sobrar
nada de mim. E isso não chegou a acontecer; o que restou vivo não pode ser calculado,
mas talvez tenha acontecido algo ainda pior. Tu influíste sobre mim conforme tinhas de
influir, só que tinhas de parar de considerar uma maldade especial da minha parte o fato
de eu ter sucumbido a essa influência. Eu teria precisado de um pouco de estímulo, de
um pouco de amabilidade, de um pouco de abertura em meu caminho, e é significativo
que até hoje tu apenas me encorajarias de fato naquilo que te afetarias pessoalmente. Tu
havias subido tão alto contando apenas com tuas próprias forças, a ponto de teres
confiança ilimitada em tua própria opinião. Da tua poltrona, tu regias o mundo. Tua
opinião era certa, qualquer outra era disparatada, extravagante, anormal. De modo que,
em relação a mim, tu de fato tinhas razão com espantosa freqüência. Para mim sempre
foi incompreensível tua falta total de sensibilidade em relação à dor e à vergonha que
podias me infligir com palavras e veredictos; era como se tu não tivesses a menor noção
da tua força. Tu nos golpeavas com tuas palavras, sem mais nem menos, não tinhas pena
de ninguém, nem durante nem depois; contra ti a gente estava sempre completamente
indefeso. O fato é que as tuas medidas educativas acertaram o alvo. Perdi a confiança
nos meus próprios atos. Tornei-me instável, indecisa. Eu me tornei uma criança
rabugenta, desatenta, desobediente, sempre pensando em uma fuga, na maior parte das
vezes em uma fuga interior. Assim tu sofrias, assim sofríamos nós.

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Apenas mais tarde compreendi que tu de fato sofrias muito por causa da tua filha
incerta. É certo que minha mãe era de uma bondade ilimitada comigo, mas para mim tudo
isso estava relacionado a ti, ou seja, em uma relação nada boa. Inconscientemente ela
exercia o papel do batedor na caça. Se em alguma hipótese improvável tua educação,
através da obstinação, da antipatia, ou até mesmo do ódio engendrado tivesse me
tornado independente, então mamãe restabeleceria o equilíbrio pela bondade, pelo
discurso, pelos rogos, e eu me veria trazida mais uma vez de volta à tua órbita, da qual
em outro caso talvez tivesse me evadido para vantagem tua e minha. Mas apesar de
tudo, de tudo mesmo, papai era sempre papai. Quem é que sabe disso hoje em dia? O
que é que as crianças sabem? Será que uma criança é capaz de entender tudo isso hoje
em dia? Se eu quisesse fugir de ti, teria de fugir também da família, até mesmo de
mamãe. A gente sempre podia encontrar proteção junto dela, mas apenas no que diz
respeito à relação contigo. Ela te amava demais no início e havia se entregado a ti de
maneira demasiado fiel, para que, na luta pela filha, pudesse representar um poder
espiritual autônomo por muito tempo. Ela lutava contra o amante e não contra o homem.
Tu sempre foste afetivo e atencioso com ela, mas nesse aspecto a poupaste tão pouco
quanto nós a poupamos. Sem consideração, jogamos às costas dela nossas desavenças,
tu da tua parte, eu da minha. Era uma distração, não pensávamos nada de mau,
pensávamos apenas na luta, que tu travavas conosco e nós contigo, e sobre mamãe
descarregávamos tudo. Por certo mamãe não teria conseguido suportar tudo isso, se ela
não tivesse extraído do amor a mim e da felicidade desse amor a energia para suportá-lo.
Eu perdi a autoconfiança diante de ti, que foi substituída por uma consciência de culpa
ilimitada. A desconfiança que tu procuraste me ensinar contra a maioria das pessoas,
inclusive contra mamãe, essa desconfiança, que enquanto pequena não se confirmou em
parte nenhuma aos meus próprios olhos, transformou-se dentro de mim em desconfiança
contra mim mesma e em medo permanente diante dos outros. Aquilo que tu me
aconselhavas era, na tua e muito mais ainda na minha opinião à época, a coisa mais suja
que poderia haver. O fato de tu quereres impedir que eu trouxesse qualquer sujeira para
casa era secundário; com isso tu protegias apenas a ti mesmo e à tua casa. E justamente
tu me atiravas, com um par de palavras francas, a essa sujeira, como se eu estivesse
destinada a ela. Tu foste mais minucioso e mais claro, mas já não consigo me lembrar
dos pormenores; talvez a minha vista tenha se nublado um pouco e ainda que estivesse
completamente de acordo contigo, quase me interessei mais em ver que, pelo menos,
minha mãe lutava por mim. Para mim o teu casamento com mamãe foi, em muitos
aspectos, um modelo, na fidelidade, a qual tu duvidaste... Quando a filha cresceu e
perturbou cada vez mais a paz, o casamento nem por isso deixou de permanecer
intocável. Morreste casado com ela! Naturalmente, o resultado é que, nas entrelinhas, e a
despeito de todos os 'discursos' sobre modo de ser, natureza, desconfiança, oposição e
desamparo, fui eu a agressora, enquanto tudo o que tu fizeste foi apenas autodefesa.
Portanto, agora tu já terias conseguido o bastante com tua insinceridade, pois provaste
três coisas: primeiro, que tu és inocente; segundo, que eu sou culpada e, terceiro, que tu
estavas disposto, por pura grandiosidade, não só a me perdoar, mas, a demonstrar e crer
pessoalmente que eu também sou inocente. Tu meteste na cabeça a idéia de viver
completamente para mim. Tu demonstravas que a próprio bolso. Tudo é registrado, mas
nunca submetido a um balanço. Mas então chega o dia em que o balanço é obrigatório e
isso significa uma tentativa de união. E no que tange às grandes somas com que é
preciso contar, é como se nunca tivesse existido o mínimo lucro e tudo fosse uma única e
grande dívida. Tu deverias ter te unido a mim sem ficar louco!

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