Carta Ao Pai
Carta Ao Pai
Carta Ao Pai
Franz Kafka
Querido pai,
1
Apenas mais tarde compreendi que tu de fato sofrias muito por causa da tua filha
incerta. É certo que minha mãe era de uma bondade ilimitada comigo, mas para mim tudo
isso estava relacionado a ti, ou seja, em uma relação nada boa. Inconscientemente ela
exercia o papel do batedor na caça. Se em alguma hipótese improvável tua educação,
através da obstinação, da antipatia, ou até mesmo do ódio engendrado tivesse me
tornado independente, então mamãe restabeleceria o equilíbrio pela bondade, pelo
discurso, pelos rogos, e eu me veria trazida mais uma vez de volta à tua órbita, da qual
em outro caso talvez tivesse me evadido para vantagem tua e minha. Mas apesar de
tudo, de tudo mesmo, papai era sempre papai. Quem é que sabe disso hoje em dia? O
que é que as crianças sabem? Será que uma criança é capaz de entender tudo isso hoje
em dia? Se eu quisesse fugir de ti, teria de fugir também da família, até mesmo de
mamãe. A gente sempre podia encontrar proteção junto dela, mas apenas no que diz
respeito à relação contigo. Ela te amava demais no início e havia se entregado a ti de
maneira demasiado fiel, para que, na luta pela filha, pudesse representar um poder
espiritual autônomo por muito tempo. Ela lutava contra o amante e não contra o homem.
Tu sempre foste afetivo e atencioso com ela, mas nesse aspecto a poupaste tão pouco
quanto nós a poupamos. Sem consideração, jogamos às costas dela nossas desavenças,
tu da tua parte, eu da minha. Era uma distração, não pensávamos nada de mau,
pensávamos apenas na luta, que tu travavas conosco e nós contigo, e sobre mamãe
descarregávamos tudo. Por certo mamãe não teria conseguido suportar tudo isso, se ela
não tivesse extraído do amor a mim e da felicidade desse amor a energia para suportá-lo.
Eu perdi a autoconfiança diante de ti, que foi substituída por uma consciência de culpa
ilimitada. A desconfiança que tu procuraste me ensinar contra a maioria das pessoas,
inclusive contra mamãe, essa desconfiança, que enquanto pequena não se confirmou em
parte nenhuma aos meus próprios olhos, transformou-se dentro de mim em desconfiança
contra mim mesma e em medo permanente diante dos outros. Aquilo que tu me
aconselhavas era, na tua e muito mais ainda na minha opinião à época, a coisa mais suja
que poderia haver. O fato de tu quereres impedir que eu trouxesse qualquer sujeira para
casa era secundário; com isso tu protegias apenas a ti mesmo e à tua casa. E justamente
tu me atiravas, com um par de palavras francas, a essa sujeira, como se eu estivesse
destinada a ela. Tu foste mais minucioso e mais claro, mas já não consigo me lembrar
dos pormenores; talvez a minha vista tenha se nublado um pouco e ainda que estivesse
completamente de acordo contigo, quase me interessei mais em ver que, pelo menos,
minha mãe lutava por mim. Para mim o teu casamento com mamãe foi, em muitos
aspectos, um modelo, na fidelidade, a qual tu duvidaste... Quando a filha cresceu e
perturbou cada vez mais a paz, o casamento nem por isso deixou de permanecer
intocável. Morreste casado com ela! Naturalmente, o resultado é que, nas entrelinhas, e a
despeito de todos os 'discursos' sobre modo de ser, natureza, desconfiança, oposição e
desamparo, fui eu a agressora, enquanto tudo o que tu fizeste foi apenas autodefesa.
Portanto, agora tu já terias conseguido o bastante com tua insinceridade, pois provaste
três coisas: primeiro, que tu és inocente; segundo, que eu sou culpada e, terceiro, que tu
estavas disposto, por pura grandiosidade, não só a me perdoar, mas, a demonstrar e crer
pessoalmente que eu também sou inocente. Tu meteste na cabeça a idéia de viver
completamente para mim. Tu demonstravas que a próprio bolso. Tudo é registrado, mas
nunca submetido a um balanço. Mas então chega o dia em que o balanço é obrigatório e
isso significa uma tentativa de união. E no que tange às grandes somas com que é
preciso contar, é como se nunca tivesse existido o mínimo lucro e tudo fosse uma única e
grande dívida. Tu deverias ter te unido a mim sem ficar louco!