Oficina de Cerâmica:: O Ensino Da Arte para Alunos Com Necessidades Educacionais Especiais
Oficina de Cerâmica:: O Ensino Da Arte para Alunos Com Necessidades Educacionais Especiais
Oficina de Cerâmica:: O Ensino Da Arte para Alunos Com Necessidades Educacionais Especiais
OFICINA DE CERÂMICA:
O ensino da Arte para alunos com
necessidades educacionais especiais
São Paulo
2009
Comissão Julgadora
Aos alunos do Núcleo
Agradecimentos
Aos meus irmãos Andrea, Paulo e Daniel, à pequena Camila e à querida Giulia.
This dissertation aims to deliminate some specific resources and adjustments that are up
to embrace all the particularities related to learning arts to public with special needs.
Our theoretical reference was based on the Wallon's genetic psychology that guided our
educational actions in the field of special education. The author’ s experience as a
teatcher in a pottery workshop produced in a private school specialized in special
instruction to teenagers and adults scholars diagnosticated with a number of mental
syndromes, during the period of 2004 and 2008 in Sao Paulo, brought up a sort of
reflections about strategies, textbooks and educational resources capable to favour the
cognitive, affective, motion, simbolic, poetic and esthetic development in students with
special needs. In short, being Arts a granted enviroment for the individual constitution
and strengthen of its identity and criative activity a phenomenon produced by the
interection between the individual and its enviroment, this paper makes a reflection of
the many possibilities of social and cultural inclusion due to arts activities.
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................ 01
Metodologia de Pesquisa......................................................................................... 15
Sujeitos.................................................................................................................... 16
Instrumentos............................................................................................................ 16
Procedimentos..........................................................................................................17
Cuidados Éticos....................................................................................................... 17
Capítulo I
1. Uma breve introdução acerca da perspectiva teórica walloniana....................... 19
2. Os conjuntos funcionais....................................................................................... 26
2.1. O movimento.................................................................................................... 26
2.2. A inteligência.................................................................................................... 33
2.3. A afetividade..................................................................................................... 44
2.4. A pessoa............................................................................................................ 49
3. Henri Wallon e o Ensino da Arte em alunos com Deficiencia Intelectual.......... 55
3.1. Os conjuntos funcionais e ação educativa em Arte.......................................... 70
Capítulo II
1. A Oficina de Cerâmica: Diário de Experiência................................................... 89
2. Conhecendo a Argila através dos sentidos.......................................................... 93
2.1. Cantando Tarantella e fazendo pizzas com Bia............................................... 95
2.1.1. Imagens.......................................................................................................... 104
3. Introduzindo técnicas básicas.............................................................................. 106
3.1. Jogos, brinquedos e brincadeiras de Julia......................................................... 108
3.1.1. Imagens.......................................................................................................... 113
3.2. O universo gastronômico de Cássia.................................................................. 115
3.2.1. Imagens.......................................................................................................... 123
4. Trabalhando com Idéias, Imagens, Sentimentos................................................. 124
4.1. Vasos gregos de Ester....................................................................................... 125
4.1.1. Imagens.......................................................................................................... 130
4.2. As imagens religiosas de Jaber......................................................................... 134
4.2.1. Imagens.......................................................................................................... 143
5. Desenvolvendo projetos......................................................................................148
5.1. Peças para escritório de Cleiton........................................................................ 150
5.1.1. Imagens.......................................................................................................... 155
6. Conhecendo o processo criativo de uma Ceramista:
o trabalho com a artista Shoko Suzuki.................................................................... 158
7. Visita à uma exposiçao: Coleção de Cerâmica do MAE..................................... 161
7.1. Imagens............................................................................................................. 176
8. “Modelar o som”: Um projeto Interdisciplinar...................................................179
8.1. Imagens............................................................................................................. 183
Conclusão................................................................................................................ 185
Bibliografia.............................................................................................................. 198
Introdução
2
Núcleo Aprendizagem e Desenvolvimento. http://www.nucleoap.com.br/
Os participantes desta pesquisa são conhecidos meus de longa data e por isso
não faz sentido me restringir e me pautar nas meras descrições das etiologias de sua
deficiência para definir estes sujeitos. Mais vale o conhecimento que tenho das pessoas
que são, elemento que orientou nosso trabalho na oficina. Desta forma conheço os
alunos desta escola há alguns anos, o que permitiu a criação de vínculo necessário para
pensar uma ação educativa como esta. Mais do que alunos, são meus amigos e também,
meus mestres, pois me ensinaram muito ao longo desta caminhada.
O Núcleo – Aprendizagem e Desenvolvimento3 desenvolve propostas educativas
que desejam contribuir com idéias e ações que possam articular discurso e ação, através
de uma ressignificação da concepção de escola de Educação Especial.
Difere-se da Escola de Educação Especial tradicional constituída no modelo
médico-pedagógico e terapêutico a qual baseia suas intervenções somente nos aspectos
deficitários e negativos do aluno. Estas instituições adotam um enfoque psicométrico
para a promoção da aprendizagem, ao utilizarem testes psicológicos e exames
fisiológicos que acabam por nortear a organização da estrutura do plano de trabalho a
ser desenvolvido.
Os profissionais do Núcleo – Aprendizagem e Desenvolvimento têm seu
trabalho voltado para o âmbito educacional, acreditando que as diversas experiências
sociais, oferecidas no ambiente escolar, contribuem para a formação do sujeito,
respeitando o compasso de seu desenvolvimento cognitivo e sócio-afetivo.
Esta instituição preconiza que a Escola de Educação Especial não está a serviço
da segregação do aluno deficiente, quando busca não compará-lo com a pessoa normal,
aceitando e reconhecendo as diversas peculiaridades existentes em qualquer ser da
espécie humana. Esta instituição parece compreender que as pessoas apresentam um
curso de desenvolvimento diferenciado, e portanto, as diferenças precisam ser
consideradas no ato de aprender.
A meta do Núcleo – Aprendizagem e Desenvolvimento é construir um trabalho
que possa atender às particularidades de cada aluno, ampliando as possibilidades de
desenvolvimento dos mesmos, desenhando caminhos junto com eles, para que possam
assumir sua posição na sociedade, de acordo com as próprias perspectivas, desejos e
possibilidades, de forma atender as necessidades individuais, respeitando a condição de
3
Proposta Pedagógica da escola Núcleo – Aprendizagem e Desenvolvimento desenvolvida por Sandra
Ferrini e Sonia Maria do Carmo no ano de 2006.
sua existência humana. Para isso se faz necessário uma educação que capacite o aluno a
fazer escolhas.
O Núcleo – Aprendizagem e Desenvolvimento não pretende ser uma escola de
Educação Especial que recupere condições, mas pretende, sim, ser uma escola de
Educação Especial que esteja centrada na condição humana.
Dessa forma, o currículo não pretende enfocar apenas o desenvolvimento
cognitivo. As percepções e emoções também serão levadas em consideração, de modo
que o aluno possa compreender e significar a realidade a sua volta, a partir do seu olhar.
São as abordagens teóricas sócio-construtivistas, sobre desenvolvimento e
aprendizagem, que sustentam a concepção educacional da Escola. Essas teorias, embora
sustentadas por premissas diferentes, procuram compreender a constituição do sujeito
na sua totalidade e contribuem para entender a aprendizagem como processo,
considerando o ‘conhecimento” enquanto construção efetuada através das experiências
vividas pelo aluno, o qual torna-se agente do seu processo. A operação dos mecanismos
de funcionamento da inteligência é própria do sujeito, no entanto, trata-se de um
processo interativo e social. Fazer junto permite a todos os alunos como também ao
educador adquirir novos instrumentos para a atividade de pensamento. O processo
ensino-aprendizagem deve ser marcado pela escuta das reais demandas do aluno, o que
implica em colocar-se no lugar do outro, permitindo a construção de vínculos. A
aprendizagem significativa implica em realizar a tarefa de ensinar considerando os
aspectos cognitivos enlaçados aos aspectos subjetivos; acolher e desafiar ao mesmo
tempo.
O tema de minha pesquisa buscou delinear a natureza da prática pedagógica em
Arte para pessoas com necessidades educacionais especiais, de modo a contribuir para o
aprimoramento do ensino da Arte para alunos com deficiência intelectual. Em vista de
uma pesquisa realizada no cotidiano e espaço de uma instituição especializada, optamos
por utilizar a metodologia pesquisa-ação. A pesquisa- ação apresenta-se como possível
metodologia experimental para transformar os profissionais da educação em
pesquisadores reflexivos de sua prática profissional, abrindo campo de trabalho para que
os professores possam atuar como investigadores em sua sala de aula com seus alunos.
Esta metodologia tem sido elegida nos últimos anos no Brasil na formação de
professores que passam a atuar como “co-protagonistas nos processos de auto-
4 5
formação” e tornam-se “colaboradores, interlocutores, co-autores” de sua prática
educativa. Jesus (2008) em seu artigo sobre a utilização da pesquisa–ação em Educação
Especial atesta que esta metodologia promove “uma ação deliberada de mudança, ou
seja, uma nova inscrição do pesquisador, uma outra postura diante do conhecimento e
um novo lugar de/para os que estão na prática”.6 A pesquisa- ação, segundo este autor,
permite ao professor
sair de seu isolamento, intensificando o diálogo com o
conhecimento, para o exercício da reflexão crítica,
ressignificando a relação entre os saberes da prática e o
conhecimento da área fazendo, assim, a produção do
conhecimento para o exercício da reflexão coletiva no âmbito
da escola e das esferas mais amplas. 7
4
JESUS, D.M. O que nos impulsiona a pensar a pensar a pesquisa ação colaborativo-crítica como
possibilidade de instituição de práticas mais inclusivas? In: III Seminário Nacional de Pesquisa em
Educação Especial, São Paulo, ago. 2007, p. 139
5
Ibidem, Loc. Cit.
6
Ibidem, Loc. Cit.
7
Ibidem, p.142
8
ALMEIDA, Maria Amélia. Algumas reflexões sobre a pesquisa-ação e suas contribuições para a área da
educação especial. In: Educação Especial: diálogo e pluralidade. BAPTISTA, Claudio Roberto (org.).
Porto Alegre: Mediação, 2008, p. 173
9
Ibidem, Loc. Cit.
10
Ibidem, loc.Cit.
palavras as bordadeiras devem conservar a pele dos dedos lisa e delicada da juventude,
algo que, infelizmente não pode preservar, após sua vinda para o Brasil, quando
começou a trabalhar com sua família em empregos braçais dos mais diversos.
Esta imagem ilustra-me talvez o objetivo de meu trabalho com Arte junto a
alunos com deficiência. Acredito que metodologias e referenciais teóricos não
substituem o trabalho mais sensível de um professor que deseja conhecer, aprofundar e
manter uma relação amorosa com seu oficio. É necessário refinar o olhar, a
sensibilidade, o contato para aprimorarmos a qualidade da interação humana que deve
estabelecer-se. Em compensação a uma postura mais técnica e objetivista, necessária
para coletar dados e produzir resultados, o professor não deve esquecer-se de que está
diante de pessoas que devem ser respeitadas em sua integridade humana. Penso que é
preciso que não percamos de vista a dignidade e o cuidado com o ser de cada pessoa,
enquanto dimensão original que se expressa no contato e no convívio com o outro.
Parece-me importante ressaltar que a principal característica da aprendizagem de
pessoas com deficiência é priorizar suas necessidades especificas. Por isso, mostra-se
um tanto suspeito aportar em uma sala com alunos com deficiência previamente munida
de planos e conteúdos previamente sistematizados, pois é no contato, na convivência, na
proximidade com estes alunos que podemos conhecer suas especificidades e construir
um trabalho educativo. Seremos capazes de compreender como um indivíduo aprende
conhecendo-o na interação que este realiza com os meios e as linguagens artísticas.
Conhecer o outro demanda tempo, sensibilidade apurada, abertura, neutralidade.
Exige nos colocarmos em seu lugar e observá-lo. A capacidade de observação, neste
caso, requisita nos desvencilhar de nossos cárceres intelectuais, nossos conhecimentos
prévios, preconceitos e pré-julgamentos. Trata-se de um exercício de suspensão que
pretende nos conduzir ao abandono de nossos entendimentos prévios e desanuviar nosso
olhar dos rígidos esquemas que condicionam nossa percepção e relação com a realidade.
Acredito que a Arte não só possui um elevado valor educacional, mas transcende
este âmbito, ao permitir que o indivíduo possa atingir modos de expressão universais da
alma humana, bens acessíveis a qualquer um de nós. Refiro-me em especial à relação
que podemos fazer entre Arte e seu fazer com a idéia de Felicidade, para os gregos
antigos, um bem que se constitui enquanto finalidade suprema da existência.
Pergunto-me neste momento como a Arte pode nos levar a experienciar a
Felicidade? Como a Arte nos permite sermos mais felizes?
Para Aristóteles em sua Ética a Nicômacos a felicidade era tida como meta final
da vida humana, o melhor, mais belo e mais agradável dos bens , podendo ser obtida
por atividades capazes de conciliar e proporcionar de modo simultâneo prazer e
conhecimento, meios através dos quais o homem seria capaz de acessar estados de ser
mais plenos. Embora tais conceitos pareçam muito abstratos e distantes de nossa
realidade atual, visto a relatividade de valores em que o cenário pós-moderno nos coloca
(não sabemos mais dar sentido a nossas vidas, não somos mais capazes de dar
prioridades a nossa existência, ou ainda somos tomados por uma alienação, tédio e
angústia que nos direciona a buscar bens meramente materiais e não duradouros,
destituídos de valores humanos mais profundos) sinto necessidade de utilizá-los,
resgatá-los e atualizá-los para compreender os objetivos e dinâmica das aulas em nossa
oficina de cerâmica, visto que as linguagens artísticas em geral, são por definição vias
de conhecimento sensíveis e práticos, assim como constituem –se enquanto atividades,
capazes de mobilizar em nós experiências de prazer derivadas do ato de criar.
Ao longo de quatro anos e meio de trabalho na oficina tivemos como objetivo
orientar nossos alunos a desfrutar do fazer artístico enquanto linguagem capaz de
proporcionar a exploração e concretização do universo simbólico, imagético e subjetivo
dos alunos, do adentramento em seus sentimentos e emoções, da utilização e
desenvolvimento de recursos cognitivos indispensáveis ao ato de conhecer, como
também na ampliação de repertório acerca das principais representações artísticas no
universo da Cerâmica.
Desta maneira, nossos alunos puderam beneficiar-se da Arte enquanto atividade
capaz de dar um sentido prazeroso ao ato de conhecer. Além de ser, indubitavelmente,
uma disciplina de grande valor educacional, a Arte permite vivenciar genuínos
momentos de felicidade, porém não uma felicidade que nos acomete de forma súbita e
por acaso, externa e sem razão específica, um mero instante de contentamento fugaz,
mas um estado que se alcança como fruto de um longo e extenso trabalho, como
seqüência de ações que agregam valor ás atividades nas quais investimos e dispomos
nossos mais nobres sentimentos e segredos, um laborioso exercício da alma, conquista
erigida no passar do tempo, bem supremo que quanto mais atualizado e repetido, mais
simples, espontâneo e consciente se torna, sem que no entanto se perca na simplicidade
a complexidade e profundidade desta experiência.
Sinto que os trabalhos realizamos nos últimos tempos em nossa oficina são um
exemplo concreto deste pensamento. O progressivo domínio e refinamento dos alunos
nas técnicas e procedimentos que constituem a Arte da Cerâmica permitiu-os
experienciar seu processo criativo de maneira mais fluida e natural, menos ansiosa e
tensa, em vista da assimilação de tantas aprendizagens e habilidades, mais prazerosa,
pelos resultados obtidos, pelo sentido e significado que adquiriu o ato de dar forma ao
barro. A felicidade é uma escolha voluntária, e vejo que nossos alunos optaram de
forma deliberada pelo belo nos objetos que produziram. Não se trata aqui de uma beleza
consensual, medida em parâmetros fixos, beleza de fácil arrebatamento, mas aquela que
brota do aperfeiçoamento da confiança em auto-expressar, em auto poetizar-se, em
manifestar aquilo que nos pertence por inteiro e que nos é mais precioso, a verdade de
cada um.
Gostaria de relatar aqui a transcrição de um sonho que tive em outubro de 2008 e
que ilustra com fidelidade meus sentimentos em relação ao trabalho desenvolvido na
oficina de Cerâmica até os dias de hoje.
Estou em alto-mar, conduzindo uma jangada, sobre um oceano
agitado, altas ondas modulam a navegação da embarcação.
Atrás de mim, na mesma embarcação, estão os alunos da
oficina de Cerâmica do Núcleo. Em certo momento, avisto terra
firme. Vou remando em direção a este ponto, parece-me seguro
aportar por lá. Estamos quase chegando, os alunos querem
descer, mas eu os impeço, ainda estamos sobre a água. Vou
puxando a barca até chegarmos a areia. Todos descem alegres.
Sinto-me tranqüila.
11
VON FRANZ, Marie Louise. O caminho dos sonhos. Editora Cultrix. São Paulo, 1988.
experiência. Quanto a mim, aportar significa serenidade! Serenidade, que aos poucos
vamos adquirindo em nossa experiência ao obtermos maior capacidade de deliberação
acerca de nossos propósitos, o que não significa, termos certeza de tudo, estarmos
absolutamente cônscios, mas sim, sermos capazes de assumir as escolhas que fizemos, e
transformá-las em guias para nossa rotas.
Esta narrativa, um tanto quanto homérica, não esgota a complexidade de todos
os elementos presentes no sonho (há tantas formas de conhecê-lo!). São apenas uma
amostra, uma lente de aumento que cumpre a função de auxiliar-me a compreender
nosso trabalho, mas acaba por ser útil em resumir, poeticamente (pois é função dos
sonhos preencher nosso cotidiano de uma pitada de lirismo) nossa concepção sobre os
significados que possui a educação por meio da Arte realizada em nossa oficina de
Cerâmica.
Através da Arte, o indivíduo pode, de uma forma inédita, utilizar-se dos signos
pertencentes ao universo cultural em que está circunscrito ou, ainda, dos signos
oportunizados pelo ambiente educacional a que pertence para dar forma à instâncias de
seu íntimo tais como afetos, desejos, imagens que permaneciam sem meios para serem
comunicados. É através dos códigos culturais que pertencem a um determinado grupo
social, que podemos constituir nossa subjetividade e singularidade, devolvendo a este
mesmo grupo, por meio do trabalho de criação, nossa própria imagem, única e
autêntica, derivada, no entanto, de um substrato comum. Por sentir-se integrado,
pertencente ao amplo oceano do qual todos nós fazemos parte, o indivíduo pode, por
esta mesma razão, tornar-se hábil em trilhar outros modos de ser e estar na realidade,
mais consciente de suas possibilidades de existência, de maneira a configurar-se sua
autêntica experiência no mundo.
Esta vivência em meu sonho resulta em um estado de alegria e contentamento,
índice deste processo de autêntico encontro consigo mesmo, valor tão obscurecido nos
dias de hoje pelas camadas de entulho despejadas pela industrial cultural, a qual ao ditar
padrões de comportamento e aparência, sufoca e obnula este aprofundamento no modo
de ser da cada um, este burilar que é se conhecer por dentro, privando-nos de
saborearmos de um prazer tão singelo, e ao mesmo tempo, tão necessário e vital.
Metodologia
Optamos por utilizar a metodologia educacional Pesquisa-Ação enquanto
perspectiva epistemológica e metodológica que contribui para a formação continuada e
para a reflexão da atividade educativa. Trata-se de método de natureza qualitativa capaz
de guiar a pesquisa realizada em uma instituição de ensino, por meio da qual o
pesquisador pode realizar intervenções diretas no meio investigado, ação que, neste
contexto, torna-se o próprio objeto de estudo. Para Jesus (2007)
12
JESUS, D.M. O que nos impulsiona a pensar a pensar a pesquisa ação colaborativo-crítica como
possibilidade de instituição de práticas mais inclusivas? In: III Seminário Nacional de Pesquisa em
Educação Especial, São Paulo, ago. 2007, p.21
Sujeitos
Os sujeitos envolvidos são alunos adultos com deficiência intelectual que
participaram da oficina de Cerâmica de uma escola especial particular de São Paulo,
durante o período que compreende os anos de 2005 a 2009, atividade de caráter extra-
curricular com freqüência de uma vez por semana e duração de duas horas. São ao todo
cinco sujeitos circunscritos em uma faixa etária entre 20 e 30 anos.
Instrumentos
Como meios de registro adotou-se relatórios de planejamento de atividades
propostas em aula e relatórios de avaliação de desempenho dos alunos confeccionados
semestralmente e compartilhados e discutidos com os pais e responsáveis. Optou-se
ainda por utilizar o registro em vídeo das aulas, como um meio capaz de coletar
situações práticas de ensino. O material áudio-visual, neste sentido, nos fornece registro
fidedigno para a compreensão do fenômeno estudado, de modo a nos fornecer
informações acerca dos elementos presentes no percurso de ensino e aprendizagem
realizado neste contexto, tais como reações e respostas às propostas de ensino ali
realizadas, assim como os comportamentos, ações, expressões dos alunos durante
período prolongado de tempo, o que nos permite obtermos uma noção processual, e não
apenas o registro pontual de intervenções isoladas e eventuais. A captação destas
situações é, portanto, imprescindível para a reflexão e compreensão deste trabalho,
assim como indispensável para alimentar e suscitar subseqüentes proposições de ensino,
tornando o pesquisador sujeito ativo e participante de sua própria atuação. Utilizou-se
ainda a fotografias dos trabalhos plásticos realizados pelos alunos, conjunto de imagens
que torna visível a produção material empreendida e indica a trajetória de criação dos
participantes, ao representar a realização concreta das concepções pedagógicas
propostas. Recorremos ainda como fonte de informação adicional a documentos
escolares dos alunos fornecidos pela escola tais como prontuários, diagnósticos,
histórico escolar.
Procedimentos
As aulas e situações de ensino foram gravadas e, posteriormente, transcritas.
Procedeu-se a seleção de trechos mais significativos. Durante todo o período de
realização da pesquisa fizemos registro fotográfico dos trabalhos produzidos. Com
apoio de arcabouço teórico e os dados coletados ao longo desta pesquisa, pudemos
confeccionar reflexões sobre a experiência realizada, e tecer conclusões a respeito da
pesquisa empreendida.
Cuidados éticos
Esta pesquisa foi para todos os efeitos considerada como de risco mínimo. As
imagens realizadas no espaço da instituição e veiculadas em formato de portfólios
digitais, estão acompanhadas de Termo de Consentimento assinados pela direção da
escola onde realizamos a pesquisa. As descrições de aula, obtidas a partir de registro em
vídeo preservam a identidade dos participantes, mantendo-os no anonimato. Outros
dados referentes a documentos consultados, tais como prontuários, foram mantidos em
situação de privacidade. Podemos ainda constatar a produção de benefícios imediatos
para os sujeitos participantes, pois trata-se de um trabalho reflexivo, que pretende
significar e construir conhecimentos acerca do fenômeno estudado. Oferece ainda
contribuições a comunidade acadêmica e a profissionais envolvidos na área de educação
especial, por dispor de conhecimentos acerca de possíveis meios para o trabalho com
arte junto a alunos com necessidades educacionais especiais.
1. Uma introdução acerca da perspectiva teórica walloniana
13
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo:Vozes,
2002, p. 23
14
Ibidem. Loc. Cit.
15
Ibidem, p. 11
realidade concreta é inseparável: o indivíduo”16 . Vale dizer que tais domínios
apresentam-se durante a vida indissociáveis e em plena e contínua interação. Seu
contínuo amadurecimento e especialização culminam na formação de um quarto campo
funcional, a pessoa.
O movimento de constituição da pessoa obedece ao principio de integração
funcional e pode ser resumido enquanto a tendência do psiquismo em formar um
conjunto único, um sistema completo, composto da configuração singular dada na
relação entre os componentes motor, intelectual e afetivo e dos fatores determinantes
orgânicos e sociais que se formam em cada fase da vida (em cada período o arranjo
entre estas dimensões reflete tanto as condições dadas pelo ambiente e as características
orgânicas atuais, quanto às possibilidades e necessidades de interação do indivíduo).
Em suma, cada etapa constitui-se em um tipo específico de comportamento e disposição
mental presentes no sujeito.
A pessoa constitui-se enquanto principio organizador da evolução psíquica e
manifesta-se na formação da singularidade de personalidade de cada ser, atingindo seu
ápice na tomada de consciência objetiva de si e conquista de autonomia, resultando na
unificação da dimensão corporal e psíquica frente às relações com o ambiente.
Wallon atribui grande peso à dimensão orgânica, ao colocar que a alternância e
dinâmica dos vários campos funcionais somente ocorre na articulação com o curso
natural de amadurecimento e de maturação de estruturas neurológicas e crescimento dos
órgãos físicos. Os fatores orgânicos atuam como princípios funcionais responsáveis por
determinar uma seqüência razoavelmente previsível para o curso de desenvolvimento.
Embora sejam leis relativamente constantes, há de se esperar variações dadas por outros
elementos e fatores presentes. Para Wallon “toda função psíquica supõe um
17
equipamento orgânico” e ainda “o homem é determinado fisiológica e socialmente,
sujeito, portanto a uma dupla história, a de suas disposições internas e a das situações
18
exteriores que encontra ao longo de sua existência” . Os fatores orgânicos
determinam de início a seqüência e duração das etapas de desenvolvimento, porém,
segundo Galvão (2002) autora muito bem sucedida na atualização crítica das principais
idéias do sistema teórico de Wallon
16
MAHONEY, A. A. A constituiçao da pessoa na proposta de Henri Wallon. São Paulo: Loyola, 2004, p.
16
17
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 29
18
Ibidem, Loc. Cit.
Mais determinante no inicio, o biológico vai progressivamente
cedendo espaço de determinação ao social (...) a influência do
meio social torna-se muito mais decisiva na aquisição de
condutas psicológicas superiores, como a inteligência simbólica.
É a cultura e a linguagem que fornecem ao pensamento os
instrumentos para sua evolução. O simples amadurecimento do
sistema nervoso não garante desenvolvimento de habilidades
intelectuais mais complexas. Para que se desenvolvam, precisam
interagir com alimento cultural, isto é linguagem e
conhecimento. 19
19
Ibidem, p. 41
20
MAHONEY, A. A. A constituiçao da pessoa na proposta de Henri Wallon. São Paulo: Loyola, 2004, p.
15
21
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 40
O plano segundo o qual cada ser se desenvolve depende,
portanto de disposições que ele tem desde o momento da sua
primeira formação. A realização desse plano é necessariamente
sucessiva , mas pode não ser total e, enfim, as circunstancias
modificam-na mais ou menos. Assim, distinguiu-se do genótipo
o fenótipo, que consiste nos aspectos em que o indivíduo se
manifestou ao longo da vida. A história de um ser é dominada
pelo seu genótipo e constituída pelo seu fenótipo.22
22
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Edições 70, 2005, p. 50
expressão da dimensão fisiológica e comunicação da criança com o seu meio. Já na fase
categorial a inteligência assume maior carga de atividade, quando o sujeito está
inteiramente voltado para o conhecimento e exploração da realidade externa. As fases
mais atuais incorporam as conquistas efetuadas pelos momentos anteriores e utiliza
estas aquisições a favor do desenvolvimento de novas funções.
O psiquismo seria para Wallon uma verdadeira realidade movediça, repleta de
constantes contradições, retrocessos e transformações (a passagem de uma fase para a
outra é marcada por momentos de conflitos e crises que propulsionam o
desenvolvimento). Segundo suas próprias expressões trata-se de movimentos de “fluxo
23
e refluxo” , a cada etapa emergem, progressivamente, “formações novas da vida
24
mental” . Afirma ainda que o “desenvolvimento da criança não se faz por simples
progressos que iriam sempre no mesmo sentido. Apresenta oscilações (...)
25
alternâncias” e a seguir conclui “Assim se escalonam desde as funções mais
fisiológicas ou elementares até as funções mais múltiplas, as mais complexas” 26.
A noção de alternâncias, de direções que se opõe com a finalidade de integração,
leva- o a identificar orientações diversas para o crescimento, “fases de orientação
27
alternativamente centrípeta e centrifuga” . Ora o sujeito está voltado para o
28
“estabelecimento das suas relações com o exterior” próprios aos mecanismos de
29
adaptação, conhecimento e “reação ao meio” (direção centrípeta), ora está marcado
30
por um movimento de “íntima elaboração” (direção centrífuga), quando o sujeito
dirige-se para suas próprias atividades e despende suas energias para a realidade
psíquica interna.
É necessário ressaltarmos um ponto que nos parece central em sua teoria, seu
comprometimento em articular os campos da pedagogia e psicologia. Seu empenho em
compreender o psiquismo humano não se constitui enquanto a mera formulação de um
sistema teórico explicativo para este fenômeno, mas sim enquanto ávido esforço para
contribuir com o avanço das práticas pedagógicas de sua época, visto sua experiência
como professor (em 1902 forma-se em filosofia e atua como docente no ensino
secundário) e atuação constante nos meios educativos (em 1908 conclui o curso de
23
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Edições 70, 2005, p. 111
24
Ibidem, Loc. Cit.
25
Ibidem, Loc. Cit.
26
Ibidem, p. 127
27
Ibidem, p. 111
28
Ibidem, Loc. Cit.
29
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Edições 70, 2005, p. 112
30
Ibidem, Loc. Cit.
medicina, e atua até 1931 como médico em instituições psiquiátricas atendendo crianças
com deficiências neurológicas e distúrbios de comportamento).
A experiência com pacientes com lesões neurológicas, vitimas da primeira
guerra mundial, soma conhecimentos valiosos para a construção de sua teoria, pois a
partir de 1925 funda o Laboratório de Psicobiologia da Criança destinado ao
atendimento clínico de crianças com deficiências e outros distúrbios. Esta instituição
funcionava junto a uma escola da periferia de Paris, o que aproxima seu pensamento e
atuação da realidade concreta educacional de sua época. Como podemos constatar a
ligação com o contexto educacional faz-se presente ao longo de toda sua trajetória
profissional, aspecto que o leva a permear seu estudo acerca do psiquismo humano e do
desenvolvimento infantil pela necessidade de entrelaçamento entre psicologia e
pedagogia, debruçando-se com vigor e entusiasmo em oferecer contribuições para o
campo da educação. Para o autor “a psicologia, por sua vez, ao construir conhecimentos
sobre o processo de desenvolvimento infantil, ofereceria um importante instrumento
para o aprimoramento da prática pedagógica” 31.
É notável seu envolvimento e empenho em aproximar as duas áreas, ação que
ganha maior expressão na formulação do plano de reforma do sistema educacional
francês Langevin-Wallon, projeto minuciosamente detalhado e que, infelizmente não
entra em vigor, mas que nos parece ser a “expressão mais concreta de seu pensamento
32
pedagógico” . Neste sentido o referencial teórico de Wallon é reconhecidamente
importante no campo educacional em vista das possibilidades de aplicação pedagógica
práticas (conduta esta defendida pessoalmente pelo autor em muitas de suas obras),
tornando possível o constante diálogo entre ciência e ação, pesquisa e prática.
Nos próximos sub-capítulos pretendemos conceituar as atividades descritas por
Wallon referentes aos conceitos de campos funcionais (movimento, afetividade,
inteligência e pessoa). Tais conteúdos serão tratados separadamente, respeitando um
procedimento didático defendido pelo autor em sua obra A Evolução psicológica da
criança. Para Wallon (2005)
As necessidades da descrição obrigam a tratar separadamente
alguns grandes conjuntos funcionais, o que não deixa de ser um
artifício, sobretudo de início, quando as actividades estão ainda
pouco diferenciadas. Algumas, porém como o conhecimento
31
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 23
32
Ibidem, p. 25
surgem manifestadamente tarde. Outras pelo contrário, surgem
desde o nascimento. Existe entre elas uma sucessão de
preponderância. Aliás, para reconhecer isto é necessário saber
identificar o estilo próprio de cada uma e não nos limitarmos a
simples enumeração dos traços que são simultaneamente
observáveis.33
33
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Ediçoes 70, 2005, p. 131
2. Os conjuntos funcionais
2.1. O movimento
O conjunto motor abrange a dimensão do movimento responsável por
intermediar a atuação do homem com o ambiente social, o meio físico e os objetos. É
resultado da atividade muscular e distingue-se em três tipos descritos a seguir. O
movimento de equilíbrio, o qual tem a função de exercer compensação e ajustamento ao
corpo em atividades variadas tais como engatinhar, ficar de joelhos ou de pé. O
movimento de locomoção representa a necessidade de deslocamento no espaço. E por
fim as reações posturais que cumprem a função de efetuar o deslocamento dos
segmentos corporais e permitem atitudes expressivas e mímicas, necessitando para tanto
da regulação de diferentes graus de tônus muscular que modulam e dão forma
determinada aos membros do corpo.
Há dois tipos de função exercidas pelo aparelho muscular. A primeira faz
menção à função cinética, responsável pelo deslocamento do corpo e de suas partes e
alteração de seu posicionamento no espaço. A segunda refere-se à função tonica e diz
respeito à regulação de tensão e forca do tônus efetuada pelo aparelho muscular na
execução dos movimentos com a finalidade de fornecer equilíbrio à unidade corporal,
permitir a execução dos gestos e conferir consistência e forma determinada ao músculo.
A regulação do tônus muscular objetiva a manutenção da “estabilidade dos gestos e (...)
34
equilíbrio do corpo” e sua variação possui a finalidade de assegurar harmonia “nas
relações entre as forças corporais e as forças do mundo exterior” 35.
Wallon descreve a evolução do movimento ao longo da vida e propõe uma
seqüência de desenvolvimento desta dimensão que se inicia pelos movimentos reflexos
e involuntários (provenientes de sensibilidades internas que causam excitação nervosa e
são responsáveis por incitar as trocas com o meio), amplia-se na aprendizagem de
movimentos que se se tornam, gradativamente, automáticos (são gestos instrumentais
que pretendem adequar-se as demandas do meio) e atingem maior refinamento e
consciência com a execução de ações voluntárias (os quais supõem a projeção e
representação mental do movimento). O desenvolvimento do conjunto motor está
relacionado ao progressivo amadurecimento das funções neurológicas (áreas corticais) e
cumpre diferentes finalidades em cada idade e fase da vida.
34
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. Vozes, 2002, p. 70
35
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. Vozes, 2002, p.70
O movimento constitui-se na primeira forma de interação com o ambiente por
meio da impulsividade motora (zero a um ano) manifestação que ocorre durante os
primeiros meses de vida quando a atividade psíquica restringe-se a acontecimentos
orgânicos e o recém nascido mantém-se em estado de simbiose fisiológica com o meio.
Observamos que a interação da criança com o ambiente é marcada por
movimentos involuntários condicionados à atuação do sistema nervoso à nível medular
de caráter periférico. Esta espécie de movimento é caracterizada pela impulsividade e
automatismo. Trata-se de gestos globais e indiferenciados, sobre os quais o indivíduo
pouco possui controle, pois são expressões da imaturidade neurológica e da turbulenta
atividade fisiológica interior. O funcionamento do organismo é acionado pela atividade
das sensibilidades internas que incitam a satisfação das necessidades fisiológicas. A
consciência, nesta fase, constitui-se em mecanismos intero e proprioceptivos que são
responsáveis pela atividade motora da criança marcada pelos atos reflexos, impulsivos
os quais mobilizam descargas motoras e possuem a função de gerar alivio da tensão
proveniente da fome, frio e outras sensações aflitivas. As respostas provenientes do
meio a estes primeiros movimentos reflexos constituem o primeiro tipo de contato e
comunicação. Neste momento o movimento vai aos poucos adquirindo outra
característica, torna-se expressivo. Se no início era apenas uma manifestação
fisiológica, adquire, gradualmente, um teor afetivo, constituindo-se a passagem do
orgânico ao psíquico. O tônus muscular carregado de emoção cumpre a função de
comunicar e afetar o meio.
A aquisição da marcha (a partir do primeiro ano de vida) concede autonomia à
criança a qual pode explorar e investigar o meio externo. Esta conquista amplia o campo
de intervenção no meio, possibilitando a investigação e exploração do espaço e dos
objetos. Com a progressiva maturação da região do córtex cerebral, observamos a
aquisição de uma efetiva capacidade de controle voluntário da ação motora. Da pura
impulsividade, o movimento caminha para o refinamento e especialização (motricidade
voluntária) a qual constitui-se no processo de aprimoramento dos gestos, que de início
se adaptam mal às coisas e meios físicos e tornam-se aos poucos “mais adequados às
36
características do objeto” . O ato motor mais primitivo (já descrito acima como
motricidade involuntária) evolui para a denominada atividade circular (que ocorre entre
a idade de um a três anos) na qual a motricidade alimenta-se da mera experimentação e
36
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. Vozes, 2002, p.73
os gestos são realizados pelo “gosto e pela repetição, o prazer das coisas
reencontradas”37. O aparecimento dos movimentos circulares cumpre a necessidade de
coordenar os campos sensório e motor a fim de ajustá-los aos objetos e tarefas
exteriores. A obtenção casual de um efeito leva a criança a repetir a mesma ação, em
reações circulares. A repetição leva a diversificação do gesto e a descoberta de
movimentos casuais que permitem a criança investigar e descobrir as conexões entre
seus atos e efeitos. A atividade circular consiste na coordenação do sistema sensório
motor, possibilitando o ajustamento do gesto ao efeito, refinando os progressos de
preensão, percepção e linguagem. Observamos a organização de ações através da
discriminação de diferentes movimentos e efeitos sensoriais (visuais, auditivos e
sinestésicos). Nesta fase o movimento é ainda expressivo.
Os movimentos circulares são responsáveis por organizar o aparelho sensório-
motor sobre as quais se estruturam e se desenvolvem os movimentos instrumentais ou
praxias (que ocorrem por volta dos dezoito meses à três anos a partir da fase sensório-
motor projetiva). Observamos o aparecimento do que o autor denomina de inteligência
prática, quando surgem os gestos instrumentais. De uma motricidade desorganizada,
manifestam-se no plano sensório-motor ações nas quais o indivíduo realiza “a
38
discriminação e inventário das qualidades próprias das coisas” onde exige-se a
coordenação da função motora com as faculdades de outros campos de percepção
sensoriais. Estes gestos exigem para sua execução diversas combinações e exercícios
sensórios- motores que orientam o conhecimento do mundo físico, como por exemplo,
as competências que integram a coordenação das mãos à percepção visual na
manipulação e exploração de toda sorte de objetos e de suas qualidades e representam a
coordenação mútua dos campos sensoriais e motores que culminam em finalidades
funcionais para o cumprimento objetivos de tarefas. O gradual aperfeiçoamento do
gesto e seus efeitos leva a aquisição de condutas instrumentais. Nesta fase, há uma
intensa exploração sensorial da realidade marcada pela rica diversidade de pegar,
desmontar, abrir, descobrir. A especialização motora parece estar estritamente vinculada
ao “ambiente cultural que demanda o aprendizado do uso próprio (cultural) dos
objetos. Mas depende também de exercício e maturação das funções nervosas” 39. Tais
gestos estão atrelados à aquisição e aprendizagem de condutas práticas, em sua
37
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Edições 70, 2005, p. 160
38
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. Ediçoes 70, 2005, p.166
39
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil.São Paulo: Vozes,
2002, p.75
utilização rotineira, usual, instrumental e funcional e fazem parte do repertório de ações
que adquirimos nas variadas situações cotidianas que nos exigem diversificadas e
variados esquemas motores. No entanto, o autor não nega a possibilidade criativa deste
tipo de movimento. Não se trata apenas de esquemas funcionais e objetivos, pois o
40
movimento pode organizar-se “livremente em seu campo de atividade” . O autor
afirma que “o ato prático é inventivo, é guiado por uma espécie de intuição plástica
41
que o leva a experimentar e utilizar as qualidades ou propriedades das coisas”
dando origem a novas variações. Para Wallon a inteligência prática
44
WALLON, H. Do ato ao pensamento. São Paulo: Vozes, 2008, p.122
45
WALLON, H. A evolução psicológica da criança. São Paulo: Edições 70, 2005, p. 147
46
WALLON, H. Do ato ao pensamento. Vozes, 2008, p.116
47
Ibidem, Loc. Cit.
De fato, a necessidade de exploração e conhecimento do ambiente físico, dos
objetos e materiais atesta a dimensão cognitiva do movimento e marca as relações
intelectuais com o meio. Em diferentes fases e idades podemos identificar relações entre
a dimensão motora e mental, pois “as variações tônicas refletem o curso do pensamento
(...) ao mesmo tempo, a função postural dá sustentação à atividade de reflexão mental.
48
Entre ambas há uma relação de reciprocidade” . Desta maneira, no curso de
crescimento, assistimos à gradual internalização do ato motor ao âmbito da
representação, visto que “o pensamento precisa do auxilio dos gestos para se
exteriorizar, o ato mental ‘projeta-se’em atos motores” 49.
Há, portanto, uma origem corporal na posterior aquisição, ao longo da vida, da
atividade mental de caráter simbólico e representativo. Para Galvão
48
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p.71
49
Ibidem, p.47
50
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p.73
51
DUARTE, M. Henri Wallon. Psicologia e Educaçao. São Paulo: Ediçoes Loyola, 2000, p. 19
2. 2. A Inteligência
52
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Edições 70, 2005, p. 194
53
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 83
Há nesta fase o predomínio da afetividade sobre a atividade cognitiva, visto que
a emoção contamina a representação e estruturação da realidade. Os significados
pessoais atribuídos às experiências e aos eventos vividos adquirem maior relevância,
pois até que “a inteligência se diferencie da afetividade, tende a representar os objetos
e situações como um conglomerado em que se misturam os motivos afetivos e objetivos
de suas experiências” 54.
Wallon compreende o sincretismo enquanto um momento em que não há
separação entre “sujeito e o objeto pensado, os objetos entre si, os vários planos do
conhecimento, ou seja, noções e processos fundamentais de cuja diferenciação depende
os processos da inteligência” 55.
Desta forma, Wallon conclui que o sincretismo não é insuficiente ou incompleto,
qualitativamente inferior em relação à fase categorial. Pelo contrário, por tratar-se de
uma condição mental em que há ausência de objetividade, do raciocínio e da lógica que
discriminam os objetos, constitui-se em uma “actividade completa em presença das
coisas” 56 atividade na qual “só existe o todo vivido simultaneamente pela criança” 57.
Para Wallon no pensamento sincrético “a percepção das coisas ou das situações
58
continua a ser global, isto é, o pormenor permanece indistinto” em oposição ao
pensamento categorial, por meio do qual o conhecimento dá-se através de operações de
análise e síntese, efetuadas por distinções de categorias, classes e noções de causa e
efeito. No pensamento sincrético tal “diferenciação ocorre, mas é efetuada por outros
59
mecanismos” ou seja, o foco das atividades fundamenta-se na atenção e interesse do
sujeito, ou seja, é mobilizada por motivos internos, que por sua vez, integram a
atividade do sujeito em seus aspectos intelectuais, perceptivos, motores e afetivos. Em
vista disto, a criança estabelece conexões entre os objetos e si própria, experiências que
“tem sentido somente para ela e que o adulto considera extravagantes ou absurdas” 60.
Para o autor o sincretismo define-se, primordialmente, enquanto uma atividade global, e
segundo suas palavras
As impressões, os hábitos, as intenções, as experiências que a
criança procura nas coisas, ela as transforma na substância
54
Ibidem, Loc. Cit
55
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 81
56
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Ediçoes 70, 2005, p. 181
57
Ibidem, p. 195
58
Ibidem, p. 181
59
Ibidem Loc. Cit.
60
Ibidem, p. 194
comum das coisas. A criança as une na medida em que seus
interesses e sua conduta a levam a participar da realidade das
coisas de maneira semelhante. As impressões que a criança deve
a cada situação ou a cada objeto formam um conglomerado,
onde se misturam os motivos afetivos e objetivos de suas
experiências (...) sem que o indivíduo saiba habitualmente
distinguir entre os dois. 61
Nas atividades artísticas, portanto, operam muitas vezes as qualidades deste tipo
de configuração psíquica, o trabalho do artista ou do inventor consiste em desfazer o
aspecto convencional e tradicional das coisas e dar-lhes um novo formato, uso e
significado. O pensamento sincrético “ao misturar e confundir idéias possibilita o
surgimento de relações inéditas. Necessário ao ato criador o sincretismo é essencial à
invenção verdadeiramente nova” 63.
Cabe ao professor aproveitar-se desta condição própria à atividade mental
humana (não restrita a idade infantil) para identificar no aluno seus interesses (mesmo
que se mostrem confusos e não tão distintos) a fim de suscitá-los para orientar as
atividades criativas a serem realizadas, visto que
61
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 87
62
Ibidem, p. 81
63
Ibidem Loc. Cit.
64
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 81
Ao longo do desenvolvimento assistimos a passagem do sincretismo para a fase
categorial, momento que representa a superação de obstáculos que dificultam a
compreensão objetiva da realidade. A aquisição da linguagem seria responsável por
promover a passagem do pensamento sincrético ao pensamento categorial. Para Galvão
65
Ibidem, p. 78
66
Ibidem Loc. Cit.
ocupar de assuntos objetivos que demandam ajustar à percepção às exigências de
adequação com a realidade. Há o que se denomina de contaminação afetiva.
A perseverarão é um fenômeno que traz resquícios do sincretismo. Há
dificuldade na atividade mental em se desligar de suas motivações espontâneas e atuais
e voltar-se para temas exigidos pelo meio externo. Nesta fase, o pensamento não opera
no sentido de inibir temas subjetivos para voltar-se para uma matéria de origem exterior.
Para Galvão (1992) “o pensamento persiste no conteúdo espontâneo. Percebemos uma
aderência do pensamento a um dado conteúdo. A capacidade de inibir conteúdos
subjetivos é frágil.” 67. A mesma autora ainda afirma que
67
GALVÃO, I. O espaço do movimento. Investigação no cotidiano de uma pré-escola à luz da Teoria de
Henri Wallon. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 1992, p.39
68
Ibidem Loc. Cit.
relações objetivas. Espaço, tempo e causalidade não se distinguem e há intensa
impregnação da atividade mental por temas e conteúdos afetivos. A comunicação verbal
é marcada pela elisão, fala confusa, descontextualizada e sem seqüência e pela
fabulação, realidade permeada de fantasia.
O processo de inibição e discriminação que possibilita a aquisição de habilidades
próprias ao pensamento categorial consiste na capacidade do pensamento de bloquear e
impedir o fluxo de conteúdos que invadem a consciência e não pertencem à atividade
atual. O contato com os instrumentos simbólicos tais como imagens, signos e palavras
também ocupam a atividade mental e sobrepõem-se aos conteúdos de perseverarão,
afastando o pensamento das obnulações provenientes de estímulos excitantes. Para
Galvão
69
GALVÃO, I. O espaço do movimento. Investigação no cotidiano de uma pré-escola à luz da Teoria de
Henri Wallon. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 1992, p.40
70
Ibidem, p. 41
71
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 86
conflito que marca a passagem entre o pensamento sincrético ao categorial se dá entre
as aptidões intelectuais da criança e as tarefas que o meio lhe impõe, entre os seus
72
recursos e a estrutura das coisas” . O pensamento categorial também não é uma
conquista irrefutável, pois pode ser abalado pelo efeito de estados emocionais capazes
de desorganizar o pensamento.
O advento do pensamento categorial (que se dá a partir dos nove anos e
continua na puberdade e vida adulta) representa a substituição do pensamento
sincrético, quando o campo de conhecimento passa a atuar a partir da utilização de
novas estruturas do intelecto que consistem em “organizar o real em séries, classes,
apoiadas sobre um fundo simbólico estável. É uma função de diferenciação que
73
favorece a objetivação do real.” . A afetividade permanece latente, adormecida,
predominam as relações cognitivas com o meio. Assistimos ao desenvolvimento de
74
novas capacidades ditas enquanto “tarefas essenciais do conhecimento” tais como
formar categorias gerais e abstratas para as coisas e operar análise, síntese,
generalizações e comparações, definir e explicar e obter clareza nas relações para a
compreensão de um objeto ou situação. Obtém-se capacidade de discriminação entre
causa e efeito, tempo e espaço e relação entre eventos. A objetivação do real supõe a
separação entre realidade e coisa. Os atributos deixam de ser relacionados à
exclusividade dos objetos (superação do pensamento por pares) de modo a formar na
mente, categorias gerais e abstratas. A fase categorial consiste ainda na preparação para
o pensamento abstrato e conceitual da próxima fase, a puberdade. O sujeito adquire
maior controle das suas ações, podendo agir não mais a partir de situações concretas,
imediatas e espontâneas. A mobilização da ação inicia-se por fatos passados ou motivos
abstratos ou sociais.
Há neste período o amadurecimento do Sistema Nervoso Central, mais
especificamente dos centros de inibição e discriminação situados no córtex frontal,
ultima região do cérebro a se desenvolver. Por conseguinte, observamos a influência de
aspectos orgânicos, responsáveis por inibir o teor afetivo da atividade mental e propiciar
a capacidade de discriminação própria ao pensamento categorial, momento em que
assistimos a “consolidação das disciplinas mentais, capacidade da qual depende o
72
Ibidem Loc. Cit.
73
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 84
74
Ibidem, p. 85
75
controle voluntário dos movimentos” e no qual ocorre uma considerável redução da
instabilidade psíquica, própria ao pensamento sincrético carregado de teor afetivo. A
conquista de estabilidade, relacionadas às capacidades de inibição e discriminação
exigem um lento processo de consolidação (atenção voluntária e controle do
movimento) e são pré-requisito para a preparação para o desenvolvimento do
pensamento abstrato e conceitual da próxima fase.
Assistimos ao desenvolvimento das já citadas disciplinas mentais que se
distinguem em dois tipos a atenção concentrada (focalização da consciência) na qual o
campo da consciência é capaz de focalizar um único conteúdo e afastar outros temas
externos ou internos e a atenção distribuída (vigilância) quando a consciência consegue
estabelecer unidade em sua atividade, que inclui uma multiplicidade de ações que são
interligadas de forma coerente por meio de objetivos em comum. A independência de
cada ação é aparente, pois participam de uma mesma finalidade. O sujeito está apto para
integrar os estímulos e atividades de forma simultânea.
A atenção voluntária, em oposição ao estado de inércia mental, permite que a
ação seja controlada pelo sujeito, sem que este seja passivo em relação aos estímulos do
ambiente ou temas afetivos significativos. Há controle no foco de percepção e inibição
dos estímulos que efetuam dispersão. A ação torna-se voluntária, pois têm à sua
disposição os instrumentos simbólicos, as imagens, signos que possibilitam o
desligamento da realidade imediata, a ação não é mais condicionada pela percepção
imediata, ocupando outro plano. A consciência parece adquirir maior capacidade para
controlar suas reações aos estímulos, resistir às distrações e manter-se ocupada em uma
mesma atividade
O crescente domínio da linguagem, decorrente do convívio e contato social,
fornece ao indivíduo um vasto repertório simbólico de signos, palavras, imagens. Para
Wallon
75
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 85
76
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo:
PauloVozes, 2002, p. 86
A linguagem constitui-se enquanto fundamento para a articulação e
concretização das representações, e desta forma, supera os “dados imediatos e atuais da
77
experiência, o que é a própria condição do pensamento e do conhecimento” . O
conjunto de signos oferecidos pela linguagem é um universo, segundo o autor, que
exige do sujeito “lentas tentativas para que a criança consiga penetrar o seu sentido,
78
reconhecer as suas partes e ajustar cada uma ao seu significado próprio” . Com o
advento da linguagem o pensamento pode encontrar terra firme para expandir suas
possibilidades, a atividade mental antes restrita ao meio físico pode alçar vôos para
construir uma variedade de pontos de vista, os quais habitam meramente o plano do
pensamento.
No entanto para Wallon, a adequação entre percepção e realidade, a qual
culmina no realismo, é uma ilusória idéia de ápice do conhecimento humano, o qual
deve ser buscado no “ato total da percepção, a qual consiste em uma investigação com
numerosas referencias que inclui tanto as relações entre as coisas quanto com os
79
órgãos que as percebem” . Não se trata, segundo Wallon de atingir o realismo
enquanto finalidade máxima do conhecimento, de legitimar categorias ainda mais
extensas de objetos.
A passagem de uma condição mental mais amadurecida resulta
na mudança de uma bagagem de esquemas inicialmente
demasiadamente parciais e demasiadamente grosseiros para a
variabilidade da experiência e cujo progresso intelectual consiste
numa acomodação gradual de suas representações às coisas80
77
Ibidem, p. 200
78
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. Ediçoes 70, 2005, p. 179
79
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 94
80
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 189
81
Ibidem, p. 94
2.3. A Afetividade
86
Sensibilidade interoceptiva refere-se à sensibilidade interna do organismo relacionada à atividade dos
órgãos e vísceras.
87
A sensibilidade proprioceptiva está relacionada às sensações ligadas às funções de equilíbrio, às
atitudes e aos movimentos e possui a função de percepção da atividade muscular. Localiza-se nos
tendões, articuações e nos próprios músculos.
88
DER. C. In: MAHONEY, A. A.; ALMEIDA, L. R. (orgs.) A constituição da pessoa na proposta de
Henri Wallon. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 63
gerando alívio e obtenção de prazer, outra variedade de manifestação da emoção.
Segundo as palavras de Wallon “o prazer ou o alívio parecem acompanhar os
89
espasmos em que se desprende uma tensão excessiva” . Desta dinâmica de caráter
reativo, originam-se, como já foi dito, o primeiro repertório de emoções, as quais ou são
produto de variações da tensão e contração do tônus muscular ou seu respectivo alivio e
dissolução. Para Wallon estes movimentos representam a “evasão de energias retidas e
acumuladas dos aparelhos viscerais e motores” 90 que encontram canal de expressão na
91
“atividade tônica dos músculos” e tendem a se tornar cada vez mais precisos e
adequados ao ambiente ao longo do desenvolvimento. Observamos, neste sentido que a
emoção exerce a função de modelar os músculos por meio de descargas motoras. A
emoção torna-se assim o primeiro vínculo de comunicação com o meio social e físico
(na relação bebê-mundo) e necessita para isso evocar a extensão do aparelho muscular.
O contato com o ambiente dado no início da vida por meio dos recursos de
comunicação e sobrevivência oferecidos pelas sensibilidades proprioceptivas,
interoceptiva e exterioceptiva caminha com o tempo para o alcance de uma interação
afetiva mais precisa e refinada, os gestos e expressões transformam-se em respostas
mais específicas e particulares a cada tipo de estímulo presente e sua exteriorização vai,
ao longo do desenvolvimento, tornando-se mais específica e diferencia-se em variadas
expressões emotivas de medo, alegria, raiva, ciúme, tristez Para Galvão
89
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. Ediçoes 70, 2005, p. 138
90
Ibidem, Loc. Cit.
91
Ibidem, Loc. Cit.
92
GALVAO, I. O Espaço do movimento. Investigação no cotidiano de uma pré-escola à luz da Teoria de
Henri Wallon. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo. 1992, p. 19
93
MAHONEY, A. Psicologia da Educação, 20, 1º sem. De 2005, p.20
O contacto emotivo, quando se estabelece, é na realidade uma
espécie de contágio mimético, cuja conseqüência é a princípio
não a simpatia, mas a participação. O sujeito está todo cometido
na sua emoção; está unido, confundido por ela com as situações
que lhe correspondem, quer dizer, com o ambiente humano de
que provêm.94
94
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Ediçoes 70, 2005, p. 201
95
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 29
96
Ibidem, p. 45
97
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Edições 70, 2005, p. 144
98
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. Ediçoes 70, 2005, p. 145
99
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. Ediçoes 70, 2005, p. 145
categorial (a partir dos seis anos) permite o surgimento de uma expressão afetiva mais
controlada, onde observamos o predomínio da representação e do conhecimento.
100
TRAN-THONG. Estadios e conceito de Estádio de desenvolvimento da criança na psicologia
Contemporanea. São Paulo: Ediçoes Afrontamento, 1981, p. 163
101
MAHONEY, A. A. Afetividade e Aprendizagem: Contribuições de Henri Wallon. Edições Loyola,
São Paulo: 2007
102
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. Ediçoes 70, 2005, p. 145
103
Ibidem, Loc. Cit.
104
Ibidem, Loc. Cit.
2.4. A Pessoa
105
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 65
106
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Edições 70, 2005, p. 206
107
Ibidem, Loc. Cit.
construção visto a necessidade e imperativo interno do sujeito de
construir-se enquanto uma obra única. 108
108
Ibidem, p. 205
109
WALLON, H. A evolução psicológica da criança. São Paulo: Edições 70, 2005, p. 209
110
Ibidem, p. 210
111
Ibidem, Loc. Cit.
Wallon denomina de formação do quarto campo funcional, ou seja, a Pessoa, o qual por
sua vez expressa os arranjos e organizações específicos da consciência de cada sujeito
frente às incitações do meio e as evoluções orgânicas que se dão naturalmente. As
variadas circunstâncias e experiências presentes requisitam a cada sujeito dar curso ao
seu desenvolvimento em um movimento onde se ordena e combina-se uma nova forma
de consciência, a formação de um eu original e autônomo.
O desenvolvimento humano caminha segundo a psicogenética de Wallon para o
conhecimento de si ou tomada de consciência de si, processo que representa o momento
em que o sujeito torna-se capaz de retirar-se das situações de simbiose que o ligam ao
meio humano ao qual pertence para promover a diferenciação de sua personalidade.
Para Wallon este processo define-se pelo modo como o sujeito “eliminará das reações
que o misturam ao meio aquilo que não é dele com o que vem de fora112” trata-se de
operações de diferenciação que devem ser feitas na “experiência real” 113 do indivíduo,
ou seja, em sua existência e relação com os contextos onde interage e com as pessoas
com quem convive.
Como já dito, o desenvolvimento, não se resume ao mero amadurecimento
cognitivo, motor e afetivo, mas constata-se nas alternadas transformações na
personalidade do sujeito ao longo de sua vida. Esta diretriz é marcada pela busca por
autonomia e independência do meio e das figuras afetivas mais relevantes, sendo
marcada, sem dúvida por conflitos, crises, oposições, os quais possuem a necessidade
implícita do individuo de traçar e definir sua própria existência no mundo e de afirmar
seu próprio ser, momentos estes que podem ser vivenciados com intensas emoções.
A unidade da Pessoa constrói-se para Wallon na diversidade de circunstâncias e
relações com as quais o indivíduo tem de lidar, nas atividades que elege e nas condutas
que expressam suas reações perante o meio e as pessoas. Desenvolver-se segundo esta
perspectiva significa tornar-se capaz de responder com reações cada vez mais
especificas a situações cada vez mais variadas.
Wallon sugere que devemos como educadores estimular o cultivo por atividades
que suscitam o gosto e interesse dos alunos (postura que faz referência direta, segundo o
autor às noções “centro de interesse” de Decroly) componente natural e oportuno na
formação da personalidade do sujeito, ou seja, na constituição de sua unidade, em
oposição as tarefas que segundo Wallon desligam “a criança de seus interesses
112
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Edições 70, 2005, p. 205
113
Ibidem, p. 202
espontâneos e muito frequentemente não se obtém dela mais do que um esforço
constrangido, uma atenção artificial ou mesmo uma verdadeira sonolência intelectual”
114
. Para Wallon, a capacidade de “distinguir objectos e de selecionar segundo cor,
115
forma, dimensões” evidencia a manifestação deste processo de diferenciação da
personalidade. É através da linguagem simbólica que o sujeito pode operar
gradualmente um caminho de individuação.
114
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Edições 70, 2005, p. 206
115
Ibidem, p. 212
3. Henri Wallon e o Ensino da Arte em alunos com deficiencia intelectual
Wallon116
116
BRULFERT, J. N. Wallon. Psicologia. São Paulo: Editora Atica, 1986, p.21
117
REILY, L. História, arte, educação: reflexões para a prática de arte na educação especial. In:
BAPTISTA, C. R. (org.). Inclusão e Escolarização. Múltiplas Perspectivas. Porto Alegre: Editora
Mediação, 2006, p.221
desenho com objetivos específicos para desenvolver habilidades cognitivas, físicas e
expressivas.
Reily (2008) faz referência à Anitta Malfatti, artista com deficiência congênita
responsável por causar-lhe atrofia no braço direito. Esta limitação levou a artista a
pesquisar meios de adaptação que a permitissem dar curso ao seu trabalho como pintora.
Acredita-se que a artista, em vista de sua experiência pessoal, tenha recebido em seu
atelier, dentre outros, alunos com deficiência.
A pesquisa de Amanda Tojal (1999) “Museu de Arte e Público Especial”
destaca-se como uma amostra da utilização de concepções pós-modernistas de ensino da
Arte. A autora enfatiza a necessidade da Instituição museológica em desenvolver
programas educativos em Museus que primem pelo desenvolvimento de exposições
adaptadas, a formação de profissionais especializados e o aprimoramento de um serviço
educativo que contemple o acesso da pessoa deficiente ao objeto artístico e ao
patrimônio cultural nacional e oportunizem ainda um serviço educativo com atividades
práticas. Para Tojal
Este programa, além de possibilitar um acesso qualitativo e
especializado desse público com o objeto artístico, contribui
também para a melhoria do ensino e aprendizagem da arte
contemporânea, bem como para a produção artística,
principalmente das pessoas portadoras de deficiências, pessoas
estas muitas vezes situadas à margem da produção artística e
cultural do nosso tempo, da nossa sociedade e do nosso país. 119
118
Campos, Regina Helena de Freitas. Helena Antipoff: razão e sensibilidade na psicologia e na
educação. Estud. av. vol.17 no. 49 São Paulo Sept./Dec. 2003.
118
TOJAL, A. Museu de arte e público especial. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de
São Paulo, 1999, p. 11
5
p. 74
A ação educativa do projeto “Museu e Público Especial” fundamentou-se em
metodologias contemporâneas do ensino da Arte, as quais segundo a autora
Tojal afirma que a ênfase deste trabalho afirma-se, no entanto, na Proposta Triangular
de Ana Mae Barbosa, uma abordagem pós-moderna do ensino da arte
5
TOJAL, A. Museu de arte e público especial. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São
Paulo, 1999, p. 74
121
Ibidem, p. 77
122
PITOMBO, P. Prática artística para todos: As artes plásticas no cenário da inclusão social na cidade
de São Paulo. Dissertação de mestrado. Unicamp. Campinas: p. 57
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) intitulado Educação Artística
sob o enfoque da Educação Especial123 de 1993. Este material possui um enfoque
interdisciplinar e oferece orientações para atender alunos com diferentes deficiências
nas diversas linguagens artísticas (música, teatro, artes visuais, dança) por meio de
sugestões de atividades baseadas em teorias de desenvolvimento humano. Segundo este
material
Além de considerar, em cada, estágio de desenvolvimento, as
características que são altamente relevantes, é necessário que o
professor tenha o cuidado de, em seu planejamento, encadear
atividades levando em conta o perfil global do educando. Deve
haver muita coerência e articulação em conteúdos e atividades
dos diferentes componentes curriculares. 124
123
Educação Artística sob o enfoque da Educação Especial. São Paulo: SE/CENP, 1993
124
Ibidem, p. 24
125
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL. Estratégias e
orientações sobre artes. Respondendo com Arte às necessidades especiais. Brasília, 2002, p.10
126
Ibidem, p. 8
127
e enfatizando a arte como “vetor de inclusão” . Segundo a Federação de Arte –
Educadores do Brasil (FAEB) esta iniciativa tem como missão
127
Ibidem, p. 11
128
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL. Estratégias e
orientações sobre artes. Respondendo com Arte às necessidades especiais. Brasília, 2002, p.12
fim de utilizá-los para orientar nossas ações educativas no âmbito da Educação
Especial.
A escolha deste autor na fundamentação teórica do presente trabalho tem como
objetivo alargar e ampliar as possibilidades de atuação do Arte-educador, a partir da
apropriação dos conhecimentos oriundos da Psicologia, enquanto ramo do saber que
oferece à prática educativa valiosas contribuições acerca dos processos de
aprendizagem, assim como sobre a natureza da vida psíquica humana, dimensões tão
presentes nos contextos educacionais e que deve ser observada e considerada.
Wallon foi um sensível apreciador da produção artística de seu tempo (gosto que
o levou a juntar uma considerável coleção de pinturas de artistas de sua época). O
interesse por esta área da atividade humana leva-o a inclusive à tentativa (visível em
alguns trechos e textos menores) de compreender o funcionamento da consciência
humana quando envolvida em atividades criativas. O campo estético encontra eco em
sua teoria no que diz respeito às realizações humanas marcadas pela expressividade.
Para Wallon (1968)
129
Entretien avec Henri Wallon. In Zazzo, R. (dir) Enfance, 1968, 1-2 apud GALVÃO, 2002, p.20
130
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. Ediçoes 70, 2005, p. 132
desenvolvimento da infância surgem das observações realizadas nesta época com
crianças ditas anormais, visto que a obra Evolução Psicológica da Criança (1995) é
escrita após os estudos de Wallon sobre crianças com diversas anomalias. Tran Thong
(2007) afirma que a observação de Wallon sobre estas crianças “não é um olhar frio
sobre um objeto. É ao mesmo tempo, animada por uma atitude de respeito e de simpatia
e sustentada por uma atenção ponderada visando compreender, penetrar na profundeza
do ser observado” 131
Neste livro o autor descreve os estágios e a constituição da consciência dos
sujeitos pesquisados, priorizando neste estudo a importância da progressiva maturação
dos centros de integração do tônus, posturas e atitudes no posterior desenvolvimento e
amadurecimento das funções relacionadas à consciência, emoção e cognição no
comportamento do indivíduo. Os dados recolhidos para o estudo das diversas síndromes
catalogadas pelo autor contam com “informações sobre os antecedentes familiares e
sobre a anmese da criança, por resultados de exames médicos e neurológicos e
sobretudo por observações minuciosas do conjunto dos comportamentos manifestados
pela criança em sua vida cotidiana.”132. Segundo Tran Thong
131
Prefácio de Tran Thong para a obra WALLON, H. A criança turbulenta. São Paulo: Ed. Vozes, 2007,
p. 10
132
Ibidem, p. 9
133
Prefácio de Tran Thong para a obra WALLON, H. A criança turbulenta. São Paulo: Ed. Vozes, 2007,
p. 10
ramificações nos diferentes campos funcionais ou suas diversas
síndromes.134
Sabemos que a maioria dos déficits presentes nas mais variadas síndromes estão
atrelados a causas orgânicas, as quais determinam, em maior ou menor grau, o curso de
desenvolvimento destas pessoas, embora seu crescimento dependa em contrapartida das
oportunidades oferecidas pelo ambiente, que quando bem orientadas por meio de uma
estimulação rica e consistente pode muitas vezes dar novos rumos às disposições
iniciais dadas em vista do genótipo de uma deficiência. A importância da cultura na
formação humana impede-nos que tenhamos uma visão fatalista e determinista. A
educação deve promover condições que respeitem as leis que regulam o processo de
desenvolvimento, levando em consideração as possibilidades orgânicas do sujeito e seu
estado interno.
Em função da particularidade do público trabalhado, parece-nos ser de vital
importância, no ensino de pessoas com deficiência, integrar na prática docente em Arte
conhecimentos acerca dos processos de aprendizagem e desenvolvimento psicológico.
Consideramos que em sua maioria indivíduos com deficiência trazem em sua
história de vida escassas oportunidades de desenvolvimento cognitivo, motor e
emocional decorrentes de insuficiente estimulação proporcionada desde a primeira
infância. O estigma da incapacidade marca profundamente a relação destas pessoas com
seus semelhantes, e por esta razão, tais sujeitos parecem ser depositários da
incredulidade e niilismo diante da possibilidade de um desenvolvimento bem sucedido e
favorável.
134
Ibidem, p. 12
135
WALLON, H. A criança turbulenta. São Paulo: Ed. Vozes, 2007, p. 266
Para Galvão (1992) “A psicogenética walloniana não define um limite para o
desenvolvimento do sujeito; este depende das condições oferecidas pelo meio e do grau
de apropriação que o sujeito fizer delas”.136
Neste sentido, influenciados pela perspectiva walloniana, somos levados e nos
apropriar de seu entusiasmo frente ao potencial oferecido pela cultura e suas
possibilidades de fornecer uma formação mais adequada às pessoas com necessidades
educacionais especiais. Para Brulfert (1986) “A concepção de Wallon sobre a educação
se caracteriza, essencialmente, pelo otimismo, otimismo decorrente de sua concepção
da criança e de seu desenvolvimento. Para Wallon, a fatalidade não existe“ 137.
O conhecimento das características próprias a cada etapa do desenvolvimento
nos fornece subsídios para a formulação de ações educativas que atentem às
características presentes nas condições de cada um de nossos alunos, promovendo uma
aprendizagem qualitativa, pois a “descoberta da atividade predominante permite
reconstituir quais as necessidades primordiais num dado momento, quais os objetivos
mais importantes, quais as prioridades”138. As características de cada etapa do
desenvolvimento representam o uso e aprimoramento de um ou mais tipos de atividades
(com predomínio alternado em cada uma delas da função motora, cognitiva ou afetiva).
Sendo assim cada fase representa o advento de um conjunto de aspectos e predomínio
de um tipo de função psíquica, pois “conforme as disponibilidades da idade, assim
como de suas próprias condições físicas a criança interage com o meio, retirando dele
os recursos para seu desenvolvimento”139. A contribuição de Wallon não apenas
oferece “recursos para a construção de uma prática mais adequada às necessidades e
possibilidades de cada etapa do desenvolvimento”140 mas também uma educação para
“a pessoa como um todo”141 e por isso o educador deve se dedicar a oferecer recursos
que se afinem com as condições mais prementes de cada indivíduo.
Ressaltamos que tal arcabouço de idéias nos impede de mensurar e fixar as fases
em uma seqüência rígida a fim de estabelecer parâmetros móveis para o curso de
desenvolvimento. Trata-se de uma perspectiva influenciada pelo pensamento marxista,
que em seu caráter materialista- dialético prevê e concebe as contradições da realidade e
136
GALVAO, I. O Espaço do Movimento. Investigação no cotidiano de uma pré-escola à luz da teoria de
Henri Wallon. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo: 1992, p.13
137
BRULFERT, J. N. Wallon. Psicologia. Editora Atica, 1986, p.21
138
Ibidem, p. 14
139
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p. 40
140
Ibidem, p. 113
141
Ibidem, p. 114
suas mudanças e transformações inerentes. A influência do pensamento marxista na
obra de Wallon evidencia sua crença na inegável relação do psiquismo com outras
instâncias e realidades. A consciência encontra-se em situação de antagonismo, de
semelhança e conflito com a realidade orgânica, social, cultural e interpessoal e esta
interação faz parte de seu desenvolvimento e devir.
Segundo Coll (1995) a pessoa com deficiência não possui apenas um atraso em
seu desenvolvimento mas um déficit ou seja
Interessa-nos considerar que qualquer aprendizagem não deve ser vista nos
resultados ou produto, mas no processo em que se estabelece, ou seja no caminho,
lógica e solução encontrada pelo sujeito para realizar uma atividade, o que equivale a
dizer que devemos valorizar sua experiência com o meio e utilizá-las para orientar seu
processo de construção de conhecimento que obviamente será singular e peculiar,
diferenciado, porém não será inferior qualitativamente.
A ação educativa, neste sentido, deve ter um olhar atento em priorizar e respeitar
as singularidades de cada aluno em suas necessidades, interesses, possibilidades e
particularidades, assim como em seu estado e condição atual de desenvolvimento. Para
Galvão (1992) “A educação deve conhecer as possibilidades infantis para, adequando-
se a elas, favorecer a aquisição de novas possibilidades, deve também alimentar suas
possibilidades atuais.” 143
Tradicionalmente, os métodos de ensino para o público especial enfatizam um
modelo educacional, no qual o indivíduo é levado a efetuar aprendizagens baseadas na
repetição e mecanização de atividades com o intuito de promover a aquisição de
habilidades específicas, tal como vemos em oficinas abrigadas, voltadas para a
confecção de enfeites e presentes de todo tipo, e filosofias educacionais que defendem
142
COLL, C. Desenvolvimento Psicológico e Educação. Necessidades educativas especiais. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1995, p. 232
143
GALVAO, I. O Espaço do Movimento. Investigação no cotidiano de uma pré-escola à luz da teoria de
Henri Wallon. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 1992, p.17
a aprendizagem como um processo de treinamento e condicionamento de
comportamentos e hábitos (uma herança behaviorista muito utilizada até os dias de hoje
e que suprime toda e qualquer subjetividade no processo educacional).
Os conhecimentos dos processos psicológicos presentes nas situações de
aprendizagem artística, no entanto, não estão disponíveis para grande parte dos
professores de Arte que atuam não apenas no Ensino Especial, mas também nos
estabelecimentos da rede regular, os quais recebem ou trabalham com alunos com
comprometimentos de toda ordem, fato que muitas vezes os impede de obter avanços
mais significativos com estes alunos.
A compreensão e conhecimento de tais idéias torna-se elemento fundamental
para a ação pedagógica em Arte para pessoas com deficiência de modo a possibilitar
que as intervenções educativas neste campo favoreçam e primem pelo crescimento
global dos alunos.
Pretendemos adotar neste trabalho a concepção de que o ensino da Arte deve ter
como objetivo e finalidade a formação integral da pessoa. O fazer artístico refere-se a
uma experiência que abrange com plenitude uma complexa gama de aprendizagens,
porém transcende este âmbito, sendo capaz de fornecer ao indivíduo a oportunidade de
vivenciar uma experiência de integração. A Arte enquanto área do conhecimento
humano fornece ao homem a possibilidade de integrar e associar em sua experiência
cognição, afetividade e ação física, vistas, tradicionalmente, enquanto dimensões
dicotomizadas e separadas no funcionamento psíquico.
Ao analisarmos historicamente a trajetória do ensino da Arte no Brasil
observamos grandes impasses no que se refere à delimitação de concepções e objetivos
desta disciplina, de forma que, se fez necessário, nas últimas décadas, a implementação
de princípios capazes de abarcar a complexidade de possibilidades de aprendizagem
oferecidas por este campo do conhecimento, de modo a atualizar suas metodologias e
nortear a prática de professores e Arte-educadores.
Em vista da ausência de referencias teóricos mais consistentes, as aulas de Arte
foram, em geral, compreendidas como momentos nas quais predominam atividades
irrefletidas, desconexas e sem planejamento. A criação artística, neste sentido, é vista
como um instrumento propício para o exercício da vontade de expressão do indivíduo,
não havendo nenhuma necessidade de elaboração de uma prática de ensino que
contemple a utilização de métodos, sistematização de conteúdos e planejamento de
atividades, tampouco uma concepção clara e pertinente sobre a avaliação do processo de
aprendizagem dos alunos. Em suma, a aula de Arte é para muitas escolas e educadores,
um momento de pura expressão e livre criação, baseada no mero prazer de execução de
atividades, muitas vezes descontextualizadas e sem significado e na exploração aleatória
de materiais e técnicas expressivas. Neste sentido, a natureza dos processos de
aprendizagem, de construção de conhecimento e de desenvolvimento psicológico do
indivíduo, em suas diferentes dimensões, raramente é levada em consideração.
Ana Mae Barbosa (2001) em sua obra John Dewey e o ensino da Arte no Brasil
relata a trajetória de Artus Perrelet (1930), educadora e pesquisadora do Instituto
Rousseau, conhecido internacionalmente como o centro de pesquisa de Jean Piaget. A
pesquisa de Perrelet centrava-se na investigação e sistematização de métodos de ensino
da Arte que pretendiam contrapor-se às concepções baseadas nas idéias de livre
expressão recorrentes em sua época. Influenciada pelas pesquisas que procuravam
aplicar os conhecimentos da psicologia no âmbito educacional, Perrelet defendia a
intrínseca relação entre ação, emoções e idéias no processo de aprendizagem da Arte,
propondo uma metodologia que estivesse a serviço da integração entre corpo, mente,
experiência prática, raciocínio e percepção sensorial.
Herbert Read (1893- 1968), pesquisador pioneiro na área de Arte- Educação,
professor na Universidade de Edinburgh e diretor do Departamento de Cerâmica do
Victoria and Albert Museum em Londres, autor, muitas vezes, considerado datado e
ultrapassado nos dias atuais, em seu livro A educação pela Arte (1958) apresenta a tese
defendida segundo a qual a Arte deve ser vista como a base e eixo de toda educação.
Esta afirmação é rigorosamente defendida pelo autor por meio de um consistente
embasamento e fundamentação teórica que reúne e relaciona com extrema coerência,
perspicácia e originalidade (atitude corajosa na época em que vivia, marcada pelo rigor
da especialização acadêmica) informações de diferentes áreas do conhecimento tal
como a filosofia e a psicologia (o autor remonta-se à argumentos clássicos de escolas
filosóficas da Antiguidade, como também à correntes psicológicas tais como a Gestalt e
Psicanálise freudiana) para enfatizar a importância da Arte e sua aprendizagem no
contexto escolar, descrevendo meticulosamente os processos psicológicos envolvidos
no fazer artístico, assim como a importância social da formação artística na constituição
do caráter e personalidade dos indivíduos. Segundo o autor, todas as faculdades de
pensamento, tais como a lógica, memória, atenção estão envolvidas no processo
criativo, assim como, nenhum aspecto educacional está excluído do fazer artístico,
conferindo à educação estética um prioritário valor no ambiente escolar, afirmação que
soava, na década de 50 (época não tão distante de nossos tempos), como algo totalmente
inédito e de pouco valor, visto o desconhecimento, descaso e indiferença em relação à
contribuição desta atividade no desenvolvimento dos indivíduos.
A empreitada do autor, em relacionar diferentes áreas do conhecimento a fim de
compreender a importância da educação estética mostra-se extremamente atual e
relevante, visto a tendência contemporânea de unificar saberes, postura defendida por
autores tais como Edgar Morin (2005) e Humberto Maturana (1998), representantes
respectivamente da abordagem sistêmica e da transdisciplinaridade, tendências que se
opõe ao conhecimento compartimentalizado e especializado, propondo uma concepção
epistemológica integradora e relacional do saber.
Algumas pesquisas mais avançadas pretendem comprovar cientificamente os
benefícios advindos de atividades criativas, como é o caso da Neurociências, área que
investiga, por meio de procedimentos de neuroimagem, a alteração dos estados de
funcionamento cerebral durante situações específicas, tais como realizar um desenho ou
modelar uma escultura. Estes procedimentos comprovam a eficácia das atividades
artísticas na qualidade do funcionamento cerebral, ao proporcionarem não só sensações
de bem-estar, mas colaborando para a formação e crescimento da rede neural, ativando
inúmeras regiões do cérebro responsáveis pela percepção, memória, imaginação e
raciocínio.
Como a Arte, mais do que proporcionar e a aquisição de habilidades, mais do
que permitir que façamos um maior número de sinapses (explicação tão em voga nos
dias de hoje para justificar a eficiência de uma ou outra atividade) nos permite estarmos
mais plenos e conscientes de nós mesmos?
O processo criativo é marcado por intensas trocas afetivas com o meio, como
também pela necessidade constante de efetuarmos operações cognitivas a partir da
interaçao com os materiais e uso dos multiplos códigos pertencentes a linguagem,
possibilitando a manifestação da realidade subjetiva de cada indivíduo, assim como o
exercício de faculdades próprias ao pensamento. Todos estes processos resultam em
uma construção de conhecimento qualitativa, pela intensa construção de relações
únicas e originais efetuadas na produção de objetos carregados de significados, os quais
manifestam a natureza singular de quem os criou, conferindo ao fazer artístico uma
qualidade de integração das diferentes dimensões psíquicas.
Integrar os dominios cognitivo, afetivo e motor através de uma linguagem
artística seria, portanto, unificar em uma mesma atividade, habilidades motoras,
expressivas e intelectuais. Ter idéias, representá-las, manipular a matéria e dar-lhe um
caráter expressivo unficando o pensar, o sentir e agir na produção de objetos que tragam
significados e mensagens próprias de quem os executou, consiste não só em um
processo de criar, mas também de construir conhecimentos acerca da realidade e de si
mesmo.
Para Pillar (1996) a construção do conhecimento em Arte desenvolve aspectos
cognitivos visto que consiste na ação do sujeito sobre um objeto, no caso uma
materialidade de natureza bi ou tridimensional, efetuando-se, por conseguinte, uma
estruturação da realidade e da experiência vivida, permitindo ao indivíduo elaborar
significados pessoais, num processo em que estão envolvidos dimensões temporais e
causais. Por outro lado, a Arte se mostra como instrumento de expressão e manifestação
da dimensão afetiva, seja através da ação motora carregada de expressividade sobre os
meios, seja através da possibilidade que esta linguagem oferece de representar
conteúdos simbólicos, que mantém estreita relação com os sentimentos do indivíduo.
Em seu estudo sobre psicologia da arte, Vygotsky (2001), coloca que a
atividade criativa possui um caráter relacionado ao trabalho do pensamento, mas que no
entanto não se restringe a este, uma vez que a emoção específica da forma é condição
necessária da expressão artística. O mesmo autor enfatiza a importância da atividade
criadora no âmbito escolar, pois trata-se de um processo que envolve organização e
reflexão de experiências vividas e a construção de novas realidades, a partir de desejos,
necessidades e motivações do indivíduo.
Durante uma de nossa aulas na oficina de Cerâmica, ao disponibilizar aos alunos
o catálogo de uma exposição da ceramista Shoko Suzuki ocorrida há alguns anos em
São Paulo, encontramos o seguinte depoimento: “A Cerâmica permite-nos falar
diretamente de nossa alma”. Um dos alunos indaga-me: “O que é alma?”. Fico
surpresa e, ao mesmo tempo, hesitante. A pergunta me desconcerta, não apenas pela
complexidade conceitual que o termo traz, mas pela dificuldade em traduzí-lo de
maneira compreensível ao aluno. Respondo ser esta questão muito difícil de ser
esclarecida, pois muitos homens sábios ao longo da história falaram coisas diferentes a
respeito deste assunto. Questiono os outros alunos sobre seu entendimento acerca da
natureza da alma. Ester logo afirma com convicção que a alma não está no corpo, mas
dentro dele. Indica o coração com as mãos e prossegue: “O coração é a alma”. Cleber
continua a reflexão, acrescentando: “Quando alguém que gostamos morre, nossa alma
fica triste, a alma é aquilo que a gente pensa”. Esta reflexão acerca da natureza da alma
demonstra uma concepção que abarca uma intrínseca ligação entre processos
psicológicos relacionados ao ato de pensar e sentir, de modo que parece ser difícil,
segundo um dos alunos, não deixar de atrelar um sentimento, tal como a tristeza, a um
pensamento de igual conteúdo. A situação ocorrida, de certa forma, resume o trabalho
realizado pela oficina, e leva-me a refletir sobre questões inerentes ao ensino e
aprendizagem da Arte em nossas aulas, visto que, como já foi dito, a atividade artística
quando adequadamente direcionada, proporciona a integração das diferentes dimensões
psíquicas do indivíduo, ao fornecer situações de aprendizagem que estimulam o
desenvolvimento da ação motora, o amadurecimento da dimensão afetiva e o exercício
de funções cognitivas.
A idéia de promover ações educacionais que favoreçam o desenvolvimento do
indivíduo em sua totalidade, remete-nos ao pensamento de um dos mais eminentes
representantes da psicologia humanista, Carl Rogers (1977), que em seu livro Liberdade
para aprender traz importantes contribuições acerca desta temática. O autor acredita
que não se pode separar a aprendizagem em dois compartimentos isolados, afirmando
que “deveria haver um lugar para a aprendizagem pela pessoa toda, com seus
sentimentos e idéias integrados”144, referindo-se a uma postura que pesquisou durante
anos, na qual consiste em “reunir a aprendizagem cognitiva, que foi sempre necessária,
com a aprendizagem “afetivo-vivencial”145. Desta forma, propõe com esta afirmação
uma aprendizagem da “pessoa inteira”146, em oposição à educação que se concentra
unicamente no aspecto cognitivo, para Rogers uma “educação do pescoço para
cima”147. Coloca ainda que um dos grandes problemas da educação atual seria o
“conhecer sem sentir”148, pois “graças em parte ao nosso bem sucedido ensino
cognitivo compartimentalizado, conhecemos os fatos intelectuais e não sentimos nosso
conhecimento”149.
O estudo acerca do processo de construção de conhecimento oportunizado pela
linguagem da Cerâmica e Modelagem merece ser estudado com maior profundidade,
uma vez que o aprendizado das técnicas de Cerâmica pode contribuir de maneira
expressiva no desenvolvimento motor, afetivo e simbólico de pessoas com deficiência
mental. A argila é um material artístico que oportuniza inúmeras possibilidades de
144
ROGERS, C.R. Liberdade para aprender. São Paulo: Edusp, 1997, p. 143
145
Ibidem, Loc.Cit.
146
Ibidem, Loc. Cit.
147
Ibidem,Loc. Cit.
148
Ibidem, p.146
149
Ibidem, p.147
expressão, e o processo de produção plástica através da Cerâmica está intimamente
relacionado ao tipo específico de sensibilidade que cada indivíduo desenvolve em
relação ao material e como adapta este material às suas necessidades pessoais de
expressão. Portanto, muito mais que habilidades e conhecimentos técnicos, o fazer
artístico na Cerâmica exige o contato direto do indivíduo com o barro, configurando-se
uma experiência integrativa, visto a diversidade de operações mentais, a riqueza de
conteúdo afetivo e a variedade de ações físicas envolvidas no processo de dar forma a
este material.
Sandra Richter
150
TRAN-THONG. Estadios e conceito de Estádio de desenvolvimento da criança na psicologia
O educador pode explorar a utilização dos diferentes tipos de movimentos
estudados por Wallon ao longo do desenvolvimento e sua interação com linguagens
artísticas a fim de conduzir os alunos a concretizar novas aquisições motoras. Segundo
ATACK (1995)
para aquelas crianças portadoras de deficiências motoras, cujas
oportunidades de experimentar os efeitos de suas próprias ações
são limitadas, as atividades artísticas simples tem um valor
muito especial. 151
152
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Ediçoes 70, 2005, p. 188
153
Ibidem, p. 183
154
Ibidem, p. 210
aproveitada para fomentar e iniciar a realização de trabalhos plásticos, visto que a
atividade da pessoa com deficiência é favorecida quando orientado pelos interesses e
motivos afetivos.
Interessa-nos ainda a relação entre sincretismo e a criação artística realizada por
Wallon, que elege esta condição mental como propicia à atividades artísticas. Para
Galvão (1992)
há terrenos da atividade psíquica em que o sincretismo, é ao
contrário, preciosidade, em que ao invés de ser reduzido deve
ser resgatado. Trata-se da criação artística, processo que tem
semelhança com o funcionamento do pensamento sincrético
(livre-associação, analogias, predominância dos aspectos
sensório-motor e afetivo sobre a conotação objetiva das
palavras.155
155
GALVÃO, I. O espaço do movimento. Investigação no cotidiano de uma pré-escola à luz da Teoria de
Henri Wallon. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, 1992, p.41
156
GALVÃO, I. Henri Wallon.Uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. São Paulo: Vozes,
2002, p.81
Percebemos ainda que o discurso verbal destes alunos não obedece à seqüência
dos fatos. As narrativas são confusas e elípticas, havendo circularidade de causa e efeito
e em evidente desacordo com a realidade e relações objetivas. Espaço, tempo e
causalidade não se distinguem e há intensa impregnação da atividade mental por temas
e conteúdos afetivos. A comunicação verbal é marcada pela elisão, fala confusa,
descontextualizada e sem seqüência e pela fabulação na qual a realidade é permeada de
conteúdos imaginários.
O contato com o conhecimento organizado pela cultura, mais especificamente
pelo universo da Arte, pode favorecer a conquista de maior organização mental e
reduzir a confusão e indiferenciação referentes ao sincretismo.
A inteligência segundo Wallon constrói-se, gradativamente, a partir da aquisição
da linguagem e do contato com a cultura. Desta forma, podemos constatar que a Arte
enquanto linguagem e conhecimento pode auxiliar pessoas com deficiência a obter
consideráveis aquisições de faculdades cognitivas mais complexas e elaboradas, tais
como capacidade de planejamento representação mental, memorização, organização de
etapas e seqüência para o trabalho, manutenção da atenção à estímulos e informações
transmitidas, sustentação do foco e concentração nas atividades, estabelecer relações
entre causa e efeito.
Podemos constatar um exemplo do pensamento sincrético de alunos com
deficiência intelectual no contato com o material artístico, quando observa-se a atitude
dos alunos de misturar as cores sem perceber sua distinção. Parece não ser significativo
saber diferenciar suas tonalidades. A atividade pode, muitas vezes, restringir-se a mera
manipulação com fins exploratórios, que apenas requerem variações de movimento
sensório-motor.
No entanto, o percurso de aprendizagem de uma técnica ou linguagem exige do
pensamento efetuar e refinar tais habilidades requeridas nas atividades de composição.
É próprio ao pensamento categorial conceber a qualidade cambiável dos objetos e das
coisas
157
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Edições 70, 2005, p. 210
158
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. Ediçoes 70, 2005, p.210
159
Ibidem, p. 180
priorizam o desenvolvimento da dimensão cognitiva dos educandos, em detrimento do
desenvolvimento afetivo, de igual peso no processo de constituição e integração
psíquica dos indivíduos. Tal questão mostra-se muito relevante, visto a necessidade de
atribuir-se a verdadeira importância a presença dos sentimentos e emoções na
aprendizagem de pessoas com deficiência intelectual, pois os afetos quando legitimados
e considerados podem facilitar e catalisar processos cognitivos nestes alunos, levando-
nos a acreditar na impossibilidade de dissociarmos estas duas áreas do psiquismo
humano no âmbito escolar.
Em alunos com comprometimentos motores mais visíveis, podemos perceber a
ênfase da emoção enquanto recurso privilegiado de interação com o meio. A dimensão
afetiva, a emoção, orienta e media a relação com o meio físico. A precariedade da
linguagem, o predomínio da função motora mais expressiva, não deve ser cunhado em
seu teor de atraso, mas deve ser considerada enquanto condição atual, sobre a qual
devemos nos debruçar e respeitar, de modo a propiciar uma experiência legitima com
Arte. A emoção deve ser vista enquanto um instrumento privilegiado de interação com
o meio.
O educador deve ser hábil por identificar e valorizar esta forma de comunicação
mais afetiva e emocional, de modo à transformá-la em meio para o desenvolvimento de
outros campos, como por exemplo da exploração sensório-motora do mundo físico ou
de operações cognitivas.
Em nossa experiência prática priorizarmos a aprendizagem significativa, a qual
pode ser favorecida ao evocarmos o universo afetivo e vivencial do aluno, estimulando
a expressão de elementos significativos e que façam a vinculação e associação com os
conteúdos trabalhados em Arte. A introdução de técnicas e informações podem ser
facilitados pela utilização de recursos lúdicos tais como brincadeiras, jogos e elementos
da experiência do indivíduo manifestos em aula, os quais podem facilitar a
aprendizagem e assimilação dos conhecimentos veiculados.
O processo de aprendizagem com estes indivíduos não se fundamentou apenas
na assimilação de técnicas ou na produção de objetos bem acabados que fossem
destinados a queima. Muitas aulas não eram orientadas a partir de um projeto de
trabalho inicial, mas tinham o objetivo de explorar situações de aprendizagem, a partir
da manipulação livre com a matéria e proposições de situações lúdicas que
desencadeassem interações variadas.Oportunizamos momentos de descontração e
brincadeira por meio de diferentes formas de exploração do material, nos quais os
alunos puderam expressar sentimentos e vivenciar situações que lhe fossem próximas e
significativas. As idéias para os trabalhos surgiram durante as aulas a partir de
elementos verbalizados pelos alunos.
Em vista de sentimentos de inferioridade e baixa estima alunos com deficiência
estão suscetíveis a apresentar comportamentos agressivos e destrutivos. O professor
deve lidar com atitudes negativas, manejando a ansiedade e sentimentos
contraproducentes, tais como a destruição de trabalhos em situações de insatisfação com
os resultados ou desânimo e frustração com possíveis dificuldades. São comuns
comportamentos provocativos e de manipulação tais como ingerir materiais e fazer
interferências nos trabalhos dos colegas. Estes comportamentos devem ser tratados com
naturalidade. O professor pode conversar com o aluno para que este reflita e
conscientize-e sobre estes sentimentos. Deve-se dar um significado mais produtivo ao
erro, não o considerando como um sinal de fracasso, mas ao contrário, encarando-o
como um momento oportuno para a aprendizagem, baixando as expectativas dos alunos
em relação aos resultados, exercitando a responsabilidade e autoria pelo seu processo e
produto obtido.
Dificuldades motoras e comprometimentos físicos além de demandarem
adaptações materiais exigiram um recurso específico desenvolvido na oficina
denominado de “fazer junto”. Em vista da dificuldade de realizar certos movimentos e
de adequar a postura para executar procedimentos técnicos o “fazer junto” permitiu ao
aluno internalizar certos movimentos (que seriam rapidamente assimilados pela
observação ou por meio de orientação oral por alunos sem maiores comprometimentos).
A atividade pode ser realizada por meio de recurso cooperativo, quando o professor
poderá “emprestar “ seu movimento e efetuar a atividade em parceria de modo a
conduzir o aluno a executar a atividade imprimindo-lhe o movimento. A
impossibilidade motora pode ser amenizada pela condução de um auxiliar, enfatizando a
experiência do movimento, a qual em um segundo momento, por meio de internalização
do gesto, poderá ser realizada com autonomia. Esta ação apresenta efetivos resultados e
pode ser feita de forma lúdica, seguida de uma narrativa sobre o que está sendo
realizado. O professor pode conferir a esta ação uma certa carga de expressividade,
buscando imprimir entonações afetivas ao movimento, as quais podem favorecer sua
assimilação.
Outro aspecto que enfatiza a dimensão afetiva consiste na adequação das
orientações verbais, as quais podem ser transmitidas com modulação do tom de voz,
possibilitando que aluno seja afetado por sentimentos de alegria, delicadeza, prazer e
satisfação. Tais expressões podem posteriormente ser incorporadas a experiência do
aluno.
Acreditamos ainda ser favorável circundar o ambiente com estímulos afetivos
aconchegantes e receptivos, o que significa primar pela qualidade da relação com os
alunos, incentivar, elogiar, alegrar-se com suas conquistas e presença, reagir de forma
positiva e construtiva ao processo de criação de cada aluno, contribuindo para permear o
ambiente de aula com valores afetivos que enfatizem a aceitação, o crescimento e o
potencial de cada indivíduo.
A aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo podem ser favorecidos por
experiências prazerosas com os meios artísticos. O professor deve atuar no sentido de
vincular o fazer artístico a vivências satisfatórias, capazes de aumentar a probabilidade
de êxito nas aprendizagens, assim como proporcionar que a mesma seja significativa.
Desta forma todas as atividades podem proporcionar deleite, desde a manipulação e
ação exploratória, o planejamento de uma atividade, ou a realização bem sucedida de
uma peça.
Wallon elege o riso como uma expressão afetiva previligiada no
desenvolvimento humano, por tratar-se de um regulador natural das energias psíquicas,
podendo ser utilizado como um elemento fortuito no processo de aprendizagem. Esta
manifestação pode fornecer efeitos benéficos nas aulas de Arte pois ao mesmo tempo
em que o riso mobiliza momentos prazerosos, de alívio e descontração, possibilita diluir
e dissolver tensões e canalizar , drenar a energia psíquica. O riso pode ser estimulado
enquanto recurso para o inicio do trabalho, por sua capacidade de diluir as tensões
psíquicas e físicas “O próprio riso normal é uma cascata de sacudidelas que consome a
tensão dos músculos e que habitualmente os amolece, suprimindo toda a capacidade de
esforço” 160
Este trabalho parte do principio e premissa de que qualquer individuo seja
deficiente ou não, apenas torna-se capaz de aprender quando possui dentro de si o
desejo de conhecer. Atualmente deparamo-nos com a premente necessidade, por parte
das escolas e profissionais envolvidos no processo de ensino e aprendizagem de pessoas
com Deficiência intelectual em adequar os conteúdos disciplinares às necessidades e
possibilidades educacionais destes alunos a partir da criação de recursos e métodos
160
WALLON, H. A evoluçao psicológica da criança. São Paulo: Ediçoes 70, 2005, p. 138
pedagógicos especializados. No entanto, uma aprendizagem apenas pode ser
concretizada quando se torna significativa para o sujeito, isto é, quando o conhecimento
e informações veiculados pelo professor afinam-se, sintonizam-se, de certa forma, com
o universo de vivências e experiências do aluno, impedindo que o processo educacional
transforme-se na repetição e transmissão vazia de conteúdos por parte do professor.
Embora exista um grande esforço e iniciativa por parte dos diversos setores
educacionais envolvidos no contexto da Educação Especial em adaptar e adequar os
conteúdos acadêmicos às ditas necessidades destes alunos, esta idéia vaga como um
navio fantasma pelas escolas e classes especiais que recebem alunos com necessidades
educacionais especiais, pois na maioria das vezes, trata-se apenas de simplificar e tornar
mais “fácil” o currículo, padronizando-se um plano de trabalho normatizado. Não há
iniciativas que se debrucem a efetivamente conhecer, observar, sentir, adentrar no
universo vivencial de cada aluno, comunicando-se, dialogando, construindo vínculos
através de uma interação que forneça elementos que possam, enfim, dar início ao
trabalho educacional especializado.
Ao invés de conduzí-los (nós professores detentores seculares que somos do
conhecimento!) deixemos que eles nos conduzam e nos mostrem como podemos
efetivamente participar de sua aprendizagem (tornando-nos seus parceiros), permitindo
que nos mostrem e indiquem suas vontades e desejos, manifestando mesmo que por
meio de uma linguagem precária, por gestos, por reações espontâneas, o foco de seus
interesses, de forma a torná-los autores, ativos em seu processo de conhecer.
O professor, neste contexto, coloca-se em uma posição de eqüidade, de
colaborador, acompanhando o aluno em sua aprendizagem, dando subsídios teórico-
práticos que facilitem seu processo. Os conhecimentos em Arte, neste sentido, são
introduzidos a partir das necessidades do sujeito, enfatiza-se a dimensão afetiva do
indivíduo e o significado que tais conteúdos possuem em sua experiência.
O campo da PESSOA por sua vez auxilia-nos a pensar nas possíveis relações
entre Arte e Inclusão, ou seja, nos fornece orientações para pensarmos a Arte como um
vetor inclusivo.
Para refletirmos sobre esta questão utilizaremos como subsídio as noções acerca
da constituição da personalidade no curso do desenvolvimento psíquico referentes ao
que Wallon denomina de formação do quarto campo funcional ou constituição da
Pessoa e que nos serve para compreender o processo de formação da identidade,
quando por meio da conquista da noção de um eu diferenciado dos demais, estabelece-
se a unidade psíquica, momento em que o indivíduo atinge o que denomina-se de
consciência de si.
O campo educacional tornou-se, nas últimas décadas, principal setor envolvido
nas discussões que buscam concretizar os princípios inclusivos próprios à sociedade
pós-moderna por meio da afirmação e concretização de valores humanos e
democráticos.
Inicia-se a partir da década de 90, por parte da sociedade civil, uma tomada de
consciência em relação às condições de segregação oferecidas às pessoas com
deficiência, de modo a propor movimentos e ações que garantissem a igualdade de
direitos a estas pessoas através da criação de oportunidades de acesso e permanência na
escola e em outros contextos coletivos, tais o mercado de trabalho e ambientes de lazer.
As discussões e ações exercidas pelo movimento de inclusão configuram-se
como um novo paradigma global, opondo-se as concepções de integração e
normalização muito praticados nas décadas anteriores, quando a maior parte dos
serviços oferecidos a pessoas com deficiência, ou possuíam caráter meramente
assistencialista e filantrópico, ou ainda, buscavam integrar o individuo em espaços
sociais por meio de atitudes homogeneizantes. Neste último caso as instituições não
buscam repensar suas práticas, valores e nem mesmo modificar seu olhar perante a
diversidade, de modo a considerar a especificidade da condição humana da pessoa com
deficiência, mas pelo contrário, pretendem adaptar e adequar o individuo considerado
anormal às condições pré-existentes e previamente convencionadas.
O novo paradigma inclusivo no contexto educacional pressupõe a construção de
valores humanos que ordenem a convivência pela diferença em todos os níveis, de
modo a garantir o acesso ao conhecimento à todas as crianças. No entanto a conquista
de condições que aceitem a diversidade não promovem uma educação inclusiva de fato.
Devemos primar pela qualidade do serviço educacional aos alunos com deficiência,
oferecendo-lhes condições de se desenvolverem em suas habilidades e capacidades de
modo a se constituírem em sua singularidade. Deste modo faz-se urgente enfatizar a
necessidade de se considerar a singularidade como princípio que fundamenta a prática
de uma educação inclusiva.
A inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais pressupõe que
sejam valorizados e investigados os recursos, possibilidades, necessidades, desejos e
limitações que orientam seu processo de construção do conhecimento com base em suas
possibilidades e condições atuais de desenvolvimento e aprendizagem. O trabalho com
estes alunos deve possibilitar a oferta variada de relações sociais, recursos, estratégias e
atividades para que o mesmo possa desenvolver maior autonomia e consciência de si,
por meio de atividades que exercitem e estimulem habilidades cognitivas, afetivas,
motoras e sociais. Em oposição aos movimentos de normalização do deficiente em
torná-lo igual e normal e que ignoram sua condição especifica, a fim de integrá-lo no
meio social, deve-se investir no potencial do individuo, enquanto valor único que é,
através de recursos educativos que promovam o fortalecimento de sua identidade.
O presente trabalho foi desenvolvido em uma escola de Educação Especial,
modalidade educacional a qual, embora muito criticada por movimentos inclusivos mais
radicais, mantém-se muito presente e atuante em vista do papel social que cumpre, visto
o descaso das instâncias políticas em promover uma efetiva educação de qualidade aos
indivíduos com necessidades educacionais, assim como a resistência de escolas
particulares em receberem e abrirem-se para esta demanda (poucas são as escolas
particulares que aceitam alunos especiais e mais raras são aquelas que possuem uma
concepção consistente e clara acerca do processo de inclusão). Este fato acaba por levar
muitos pais (em vista da insuficiente oferta da rede regular particular e pública) a
buscarem Instituições Especiais como possíveis soluções para a formação de seus
filhos.
Nos dias atuais, questiona-se e critica-se a limitação e impossibilidade de
promoção de um processo inclusivo no âmbito destas Instituições, embora na maioria
das vezes estas escolas são responsáveis por fornecer um serviço educativo mais
adequado às necessidades de muitos alunos, em vista por exemplo, de sua maior
experiência e conhecimento na área, ou ainda por estarem voltadas essencialmente para
o atendimento de alunos com deficiência. Parece-nos que mais vale um individuo ser
visto em suas particularidades dentro dos muros de uma escola especial, do que
permanecer apartado e apenas funcionalmente presente em uma classe regular sem um
direcionamento e orientação de ensino que lhe seja benéfica.
A concepção de inclusão que defendemos e queremos construir neste trabalho,
diverge, em alguns aspectos do recorrente conceito de inclusão que, gradualmente, é
disseminado na rede regular de ensino. A idéia de uma inclusão por meio da Arte,
elaborada a partir de minha experiência pessoal como professora, não se refere a
mudanças mais amplas tais como a luta por políticas públicas, que atendam a igualdade
de direitos deste público, possibilitando seu acesso ao ensino regular, fomentando
cursos de formação e atualização de docentes especializados, investindo em pesquisas
que busquem soluções que aperfeiçoem propostas curriculares, ações tão necessárias no
contexto educacional contemporâneo. Não pretendo, adentrar nestas querelas e
discussões, muitas vezes polêmicas e exaustivas, embora, consciente de sua relevância
no panorama atual para a construção de uma sociedade mais democrática. Incluir não
necessariamente significa que o aluno deficiente esteja na sala regular, pois ele pode se
beneficiar de outros contextos sociais capazes de promover o processo de inclusão.
Neste capítulo pretendemos pensar e significar a idéia de inclusão como um
trabalho mais intimo e interno, que diz respeito ao processo de transformação do sujeito,
o qual ao ser tocado pela oportunidade de expressão que a Arte oferece, transmuta-se
em algo novo, revela dimensões de sua pessoa que antes permaneciam adormecidas,
congeladas, quase sem nenhuma chance de serem expressas e vivificadas. A imagem da
deficiência, o estigma da incapacidade, presente desde o início de sua vida, impedem
este individuo de realizar e burilar outras possibilidades de seu ser, as quais
permanecem soterradas pelos complexos e sombras que a condição de deficiente lhe
acarreta.
Somos levados a pensar em uma inclusão simbólica, uma mudança que ocorre
dentro do indivíduo, no modo como ele passa a se olhar e enxergar, a se considerar, a se
perceber, e de que forma isto promove mudanças externas mais sólidas em suas relações
com os ambientes que frequenta.
A arte permite ao deficiente conhecer e aprofundar-se nos segredos de sua alma.
Por meio da concretização de imagens e objetos construídos no fazer artístico, este
indivíduo torna-se capaz de transformar nossas relações com o meio externo. Mais
consciente e mais próximos de si mesmo torna-se capaz de modificar o modo como se
mostra e deseja ser vistos pelo outro, não mais como o deficiente, mas como alguém
que possui um mundo subjetivo próprio, um universo particular que o difere dos
demais, que o faz ser alguém único e incomparável, não mais, nem menos, nem melhor,
nem pior, mas singular.
Através da Arte este indivíduo pode de uma forma inédita simbolizar por meio
de signos que pertencem ao universo cultural em que está circunscrito, dar forma a
instancias de seu intímo tais como afetos, desejos, imagens, que permaneciam sem
meios para serem comunicados. É através de códigos culturais que pertencem a um
determinado grupo social, que podemos constituir nossa subjetividade e singularidade,
devolvendo a este mesmo grupo, por meio do trabalho de criação, nossa própria
imagem, derivada de um substrato comum, embora única, porque não existe uma pessoa
igual a outra.
O individuo pode desindentificar-se com a condição de deficiente para buscar e
trilhar outros modos de ser e estar no mundo, mais consciente de suas possibilidades de
existência. Embora a deficiência não possa ser negada e esquecida (ela faz parte da
condição do indivíduo) o individuo não está preso e atrelado a esta única forma de ser,
existem outras possibilidades de configurar sua experiência no mundo.
Esta mudança não ocorre de forma solitária, visto que necessita de um contexto
que a oportunize e a acolha. A capacidade de modificar a imagem que se tem de si
mesmo não realiza-se de forma isolada, pois necessita de um ambiente que dê condições
para que isto aconteça. É necessário o olhar do outro, capaz de legitimar e emprestar
um significado positivo a este processo, um olhar diferenciado daquele que o individuo
recebeu desde sua infância, alvo de inúmeros valores depreciativos, desesperançados e
repleto de predicações negativas. O educador neste momento é responsável por
promover a inclusão quando concede ao aluno a oportunidade de ser visto naquilo que
ele “é”, enquanto valor humano inalienável, instância que ultrapassa todo e qualquer
conceito, idéia ou concepção de deficiência. Não se trata de modificar ou atualizar uma
concepção que se tem sobre o fenômeno da deficiência, mas em enxergar, saber
considerar a existência humana desta pessoa, valor que está além e antes de qualquer
outra explicação, compreensão ou visão que se possua sobre o individuo especial.
O mediador deve ser capaz de atribuir este olhar diferenciado em relação aos
seus alunos e alçar-se ao desafio de tentar (embora saiba-se da complexidade desta
empreitada, porque não correr os riscos?) dissolver a arraigada imagem de deficiência,
possibilitando ao aluno ocupar um “outro lugar” a fim de transformá-lo em um valor
extraordinário, prenhe em capacidades e potenciais a serem descobertos e
desenvolvidos. A Arte atua neste momento enquanto atividade capaz de favorecer a
constituição do sujeito, de renová-lo, de modo a permitir que ele se descubra em sua
singularidade, criando novos significados e referencias sobre si mesmo, construindo
novas representações sobre sua pessoa, através das formas que brotam no contato com
a linguagem artística.
A argila presta-nos o prazer de refletir aquilo que mora no interior de cada um de
nós, e poderíamos dizer que através dela, tal como um espelho, nossos alunos puderam
conhecer e identificar as imagens e afetos que, em seu interior, permaneciam ainda sem
forma, latentes, invisíveis. A Arte é um conhecimento e uma linguagem através da qual
torna-se possível comunicar e trazer ao mundo externo todo o conteúdo subjetivo que,
antes de possuir uma configuração material, era um potencial expressivo a ser realizado.
O fazer artístico deve ser visto como um meio privilegiado para constituição e
fortalecimento da singularidade, oferencendo-se enquanto a possibilidade de um
caminho pessoal e único de expressão. A atividade criativa, vista enquanto fenômeno
resultante da interação entre o indivíduo e o meio em que este se insere, pode ainda
fornecer condiçoes para que o aluno possa constituir-se em sua identidade, promovendo
possibilidades de inclusão sócio-cultural, ao favorecer que o sujeito torne-se indivíduo
ativo na construção de conhecimentos e significados acerca de si mesmo e da realidade
que o cerca através da apropriação de elementos próprios a linguagem artística.
Um dos pontos marcantes da experiência na Oficina de Cerâmica foi sem dúvida
a possibilidade de manter um contato intimo e estreito com um material artístico. A
relação com um objeto material (em nosso caso, a própria argila) nos possibilita
vivenciarmos uma situação de intimidade, quando nos propicia momentos de
proximidade, familiaridade, troca, aconchego e prazer. Desta forma, o que está dentro
de nós ganha continuidade, toma forma e se expande para o espaço que nos circunda.
Acreditamos, neste sentido, que a oficina de Cerâmica contribuiu de maneira
significativa para o processo de construção de identidade dos alunos, quando
possibilitou aos mesmos, tornarem-se conscientes da possibilidade de se perceber e de
se olhar, e por conseqüência, de se tornarem donos de sua vontade, apropriando-se de
seus recursos pessoais internos de expressão, de seu sentir, agir, pensar e fazer.
A proposta da oficina de Cerâmica elegeu desta forma o ato criativo enquanto
um processo de afirmação de identidade, uma vez que criar pressupõe que o indivíduo
possa se perceber enquanto ser autônomo e diferenciado, e ao mesmo tempo, em
constante relação com o meio e com os demais sujeitos, não consistindo-se apenas em
configurar e dar forma a uma matéria, mas também em comunicar e significar, para o
mundo e para o outro, valores e conteúdos particulares que enunciam quem somos e
como nos diferenciamos dos demais.
Mais do que a produção de trabalhos expressivos, estéticos e artísticos, importa-
nos que nossos alunos pudessem dar continuidade a este processo de auto-conhecimento
e por conseqüência, fossem capazes de enriquecer suas relações e trocas com o outro e
com o meio, tornando-se desta forma, parte ativa e integrante do ambiente em que
vivem.
A idéia de pensar a Arte como uma via para a constituição da singularidade,
pode ser verificada tanto na qualidade do processo vivenciado (facilmente evidenciado
na observação de inúmeras conquistas efetuadas pelos alunos em diversos âmbitos )
como também no progressivo refinamento de sua produção plástica, a qual mostra-se
como reflexo do ser de cada um dos alunos e evidencia a beleza única de cada um deles.
Não se trata aqui de uma beleza consensual, medida em parâmetros fixos, beleza
de fácil arrebatamento, mas aquela que brota do aperfeiçoamento da confiança em auto-
expressar, em auto poetizar-se, em manifestar aquilo que nos pertence por inteiro e que
nos é mais precioso, a verdade de cada um.
Conclusão
BARBOSA, A. M. John Dewey e o ensino da Arte no Brasil. São Paulo: Editora Cortez,
2001.
BARDI, P. M. A arte da cerâmica no Brasil. São Paulo: Banco Sudameris Brasil, 1980.
DANTAS, P. Para conhecer Wallon. Uma psicologia Dialética. São Paulo: Editora
Brasilense, 160
FERRAZ, M.H. & FUSARI, M.F. Arte na Educação Escolar. São Paulo: Cortez, 1992.
GLAT, R. Uma professora muito Especial. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.
GOMES, C. F. Argilas-O que são e para que servem. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1986.
LANE, P. Ceramic Form, Design and Decoration. New York: Bizzoli, 1982.
MAHONEY, A. A.; ALMEIDA, L. R. (orgs.) A constituição da pessoa na proposta de Henri Wallon. São
Paulo: Edições Loyola, 2000.
OE, K. Uma questão pessoal. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
PIMENTEL, L. G. Som, gesto, forma e cor. Dimensões da arte e seu ensino. Belo
horizonte: C/ Arte, 1995.
SASSAKI, R. Construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA Editora,
1999
SCOZ, B. (org). (Por) uma educação com alma. A objetividade e a subjetividade nos
processos de ensino –aprendizagem. São Paulo: Editora Cortez, 2000.
SOUZA, A. B. Educação pela Arte e Artes na Educação. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.