Hermes Fernandes

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1

Inferno ou amor: Que chama


arderá para sempre?

C hamem-me de sentimentalista, se quiserem. Mas é inadmissível que


aqueles em que se deve encontrar “o mesmo sentimento que houve em
Cristo Jesus” sintam-se confortáveis ante a realidade do inferno.

Se é verdade que o amor jamais se acaba, logo, estamos “condenados” a amar


para sempre os que nos acompanham na estrada da existência. Mesmo depois
que adentrarmos os portais celestiais, nosso amor por cada um deles
permanecerá e, talvez, até aumente, uma vez que estaremos livres dos ruídos
de nossa natureza pecaminosa. Quem ama, certamente se importa com o bem
do ente amado. Como, então, poderíamos nos sentir plenamente felizes
desfrutando da glória destinada aos filhos de Deus, sabendo que em algum
lugar do universo, as pessoas a quem tanto amamos estarão sendo torturadas,
e que seu sofrimento não duraria um dia, nem um ano, ou mesmo um século,
mas por toda a eternidade?

Será que teremos que desistir de amá-las? Será que Deus nos submeterá a
uma amnésia? Será que pais que foram salvos terão que se esquecer da
existência dos filhos condenados à perdição?

Por duas vezes lemos no livro de Apocalipse que Deus enxugará dos nossos
olhos toda lágrima (7:17; 21:4). As razões pelas quais não haverá mais choro
é que também “não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem
dor.” Se ainda houver dor em algum lugar do cosmos, então, haverá motivo
para lágrimas. Não apenas por parte dos que forem condenados, mas também
dos que com os tais se importarem.

Mas se formos submetidos a uma espécie de lobotomia, e nossa memória for


afetada, logo, não seremos quem realmente somos. Como poderemos
agradecer por havermos sido salvos, se nem ao menos nos lembrarmos de quê
fomos salvos? Como bendizê-lo se minha alma simplesmente se esquecer de
seus benefícios? Para lembrar-me de tais benefícios, terei que recordar de
todos quantos foram instrumentos de Deus para me abençoar, incluindo os
que, porventura, não houverem sido salvos. Não poderá haver lapsos de
memória.

Ainda que os vínculos familiares se dissolvam na eternidade, o amor que os


nutriu não poderá apagar. Os que hoje gozam do status de pais ou de filhos,
na eternidade serão irmãos. Marido e mulher seguirão em seus
relacionamentos, não mais como cônjuges, mas irmãos.

O ponto em que almejo tocar é se o sofrimento daqueles que nos são caros
não poderia igualmente nos afetar. Se não, de que maneira poderíamos
desfrutar das bem-aventuranças prometidas aos misericordiosos, se nem ao
menos fôssemos capazes de nos compadecer deles? Se sim, como conciliar a
doutrina do sofrimento eterno no inferno com os prazeres indizíveis que a
presença imediata de Deus nos proporcionará?

Este dilema só se mantém de pé devido à concepção que temos do inferno,


que julgo equivocada. Muito do que temos ouvido acerca do inferno não tem
qualquer respaldo bíblico, mas é fruto do sincretismo entre a fé cristã e o
paganismo. É lamentável constatar a ignorância que boa parte do povo
evangélico demonstra sobre o assunto. Basta assistir aos testemunhos de
quem afirma ter visitado o inferno e se deparado com caldeirões onde pessoas
eram cozinhadas vivas, com diabos portando tridentes, enormes chifres, rabo
pontiagudo, e expelindo enxofre, incumbido de torturar os condenados. Não é
preciso conhecer profundamente a teologia cristã para perceber que tudo isso
não passa de mitologia grotesca. Tem mais a ver com Dante e Milton do que
com a Bíblia.

Dante Alighieri, escritor e poeta italiano que viveu entre 1265 e 1321, foi
responsável por disseminar as fantasias acerca do inferno que hoje povoam o
imaginário popular. Em sua obra “Divina Comédia”, Dante descreve o
inferno de acordo com a concepção medieval, formado por nove círculos, três
vales, dez fossos e quatro esferas. O inferno se tornaria mais profundo a cada
círculo, de acordo com a gravidade dos pecados cometidos pelos que para lá
fossem enviados. O adjetivo “dantesco”, sinônimo de horripilante, terrível,
macabro, advém da descrição dos horrores perpetrados pelos demônios nos
condenados à pena eterna. A parte de sua obra dedicada a descrever o
infortúnio dos réprobos tornou-se conhecida como “O inferno de Dante”.
Para o poeta italiano, o Diabo é o rei do inferno, bem como o anfitrião e
algoz das almas que para lá vão.

Outro escritor que ajudou a disseminar a concepção que se tem hoje do


inferno foi John Milton (1608-1674), autor do clássico “Paraíso Perdido”. Foi
ele quem colocou nos lábios de Satanás a frase “é melhor reinar no inferno
que servir no céu”, que se tornou célebre nos lábios de Al Pacino no filme “O
Advogado do Diabo”.

Nem Dante, nem Milton, tão pouco Mary Baxter com sua “Divina Revelação
do Inferno” poderão nos oferecer uma visão equilibrada acerca do assunto.
Para termos um vislumbre do verdadeiro inferno, teremos que deixar nossos
pressupostos de lado e mergulhar nas límpidas águas das Escrituras.

Há diversos vocábulos, tanto do hebraico, quanto do grego, que são


traduzidos em nosso idioma como “inferno”. Porém, cada um deles encerra
um significado distinto. Não são sinônimos. A primeira delas é Sheol, que em
hebraico significa “sepultura” e aparece 62 vezes no Antigo Testamento.
Sheol jamais sugeriu a ideia de um lugar de suplício ou de punição para os
mortos. Esta ideia só surge a partir do Novo Testamento. Sheol é o destino do
qual compartilha todos os seres humanos, independente de crença. A única
certeza que se tem na vida é a morte. E deveríamos encarar isso com a maior
naturalidade. Imagine se todos fôssemos Highlanders condenados a viver
para sempre? A terra não poderia suportar tanta gente. A menos que ninguém
mais nascesse. Caso contrário, haveria uma explosão populacional que
esgotaria rapidamente os recursos do planeta. O escritor de Eclesiastes afirma
que é necessário que uma geração vá para que outra geração venha e assim, a
terra permaneça para sempre (Eclesiastes 1:4).

A segunda palavra é Hades, encontrada dez vezes no Novo Testamento e que,


às vezes, é usada por seus escritores como tradução de Sheol. Entretanto,
trata-se de conceitos um tanto quanto diferentes. Para os gregos, o Hades não
era apenas a sepultura, mas o submundo, a região onde os mortos eram
confinados. A sepultura seria apenas a porta de acesso ao Hades.

Um exemplo do intercâmbio entre as palavras Sheol e Hades é encontrado na


tradução do Salmo 16:10, onde Davi diz: “Pois não deixarás a minha alma
no inferno (Sheol=sepultura), nem permitirás que o teu Santo veja
corrupção”. Pedro toma esta passagem profética e a aplica a Jesus em seu
primeiro sermão que fora registrado por Lucas em grego: “Pois não deixarás
a minha alma no inferno (Hades=região dos mortos), nem permitirás que o
teu Santo veja a corrupção” (Atos 2:27).

O uso do vocábulo grego Hades em substituição ao hebraico Sheol ocorre por


conta da proximidade entre os conceitos, ainda que os mesmos tenham
escopos diferentes. O conceito de Hades é bem mais elaborado e sofisticado
do que o de Sheol. Enquanto o Sheol se limitava aos sete palmos da sepultura
onde o corpo era depositado, o Hades era amplo o suficiente para receber
todos os homens, sendo dividido em duas partes: os Campos Elíseos,
destinados aos bons, aos justos, aos vitoriosos; e o Tártaro, para onde iriam
os maus e injustos.

Os judeus contemporâneos de Jesus estavam bem familiarizados com tais


conceitos devido ao processo conhecido como helenização em que a cultura
grega foi disseminada mundo afora. Talvez o verso vetero-testamentário que
tenha servido de ponte entre os dois conceitos seja o que diz que “o Sheol
aumenta o seu apetite, e abre a sua boca desmesuradamente; para lá descerá
a glória deles, a sua multidão, a sua pompa e os que entre eles
folgam” (Isaías 5:14). Portanto, o Sheol seria bem mais que uma sepultura
individual, mas o destino comum a todos os homens.

Na parábola de Lázaro, Jesus faz uso deliberado destas categorias “gregas”,


porém, adaptando-as a uma visão mais judaica. Os Campos Elíseos seriam
para os judeus o equivalente ao Seio de Abraão, para onde foi Lázaro. O rico
da parábola foi para o que seria o Tártaro grego. Tanto o Seio de Abraão,
quanto o lugar de tormento para onde foi o rico se situavam no Hades, o
submundo dos mortos. O Seio de Abraão não é o paraíso, tampouco o céu,
mas um lugar reservado para os descendentes de Abraão dentro do próprio
Hades. Digamos que, um ‘inferno’ com ar-condicionado. Há, entretanto,
algumas diferenças entre o Hades grego do Hades judeu. Por exemplo: para
os gregos, o que separava os Campos Elíseos do Tártaro era um muro. Para
os judeus, o que separava o Seio de Abraão do resto do Hades era um abismo
intransponível. Foi, deveras, corajoso de parte de Jesus lançar mão dessas
categorias para passar uma mensagem aos seus ouvintes.

2
O Inferno como recurso retórico
termo Hades foi usado por Jesus em outros contextos que fugiam ao conceito
original. Por exemplo, quando quis chamar a atenção dos moradores

O de Cafarnaum, cidade que foi cenário do maior número de milagres


que realizou em Seu ministério terreno:

“E tu, Cafarnaum, que te ergues até ao céu, serás abatida até ao


inferno; porque, se em Sodoma tivessem sido feitos os prodígios que em
ti se operaram, teria ela permanecido até hoje.” Mateus 11:23

Estaria Jesus ameaçando os habitantes daquela cidade a uma eternidade de


horrores no inferno? Estou certo que não. Mesmo porque, Jesus tinha um
número crescente de discípulos ali. Os termos “céu” e “inferno” nesta
advertência significam “exaltação” e “humilhação”, respectivamente. Quando
foi que aquela cidade foi elevada até o céu? Quando Deus a escolheu como
cenário para alguns dos mais notáveis milagres de Jesus. Todavia, isso não
foi suficiente para que ela se arrependesse e se convertesse a Deus, por isso,
estava destinada a se deteriorar até sucumbir. Sua incredulidade e indiferença
a tornavam tão pecadora quanto Sodoma, que, por sua vez, se ao menos
houvesse presenciado tão grandes manifestações da graça de Deus, teria se
arrependido e sido poupada do fatídico fim que teve.

Paulo faz usou da mesma analogia em Efésios 4:9-10, onde diz que o mesmo
Cristo que desceu às partes mais baixas da terra, também subiu acima de
todos os céus para encher todas as coisas. A expressão “partes mais baixas
da terra” é uma referência clara ao submundo, ao Hades. Algo similar pode
ser encontrado em Filipenses 2:6-11, onde lemos que Jesus, “sendo em forma
de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si
mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e,
achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à
morte, e morte de cruz. Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e
lhe deu um nome que é sobre todo o nome; para que ao nome de Jesus se
dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra e
toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus
Pai.” Repare que neste texto, temos a nítida impressão de que a
chamada kenósis (esvaziamento) experimentada por Cristo foi como o descer
uma escada, degrau por degrau, humilhando-se até chegar ao fundo. De fato,
como diz o Credo Apostólico, Cristo desceu ao inferno, quer tenha sido
literalmente ou figuradamente, ao descer o mais baixo degrau experimentado
pelo ser humano destituído da glória original. Ele não morreu a morte dos
mártires, dos heróis, mas a morte dos proscritos e marginais. Foi no mais
profundo inferno existencial que Ele, sentindo-se abandonado e entregue à
própria sorte, indagou: “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” (Marcos 15:34). Não creio que houvesse um degrau a mais
para que Ele descesse além deste. O sepulcro seria apenas o lugar onde Seu
corpo seria depositado. Mas sua alma experimentou a fúria do inferno no
momento que antecedeu a rendição do Seu espírito ao Pai.

Num certo sentido, Vitor Hugo tinha razão ao afirmar que “todo o inferno
está contido nesta única palavra: solidão”. Durante toda a Sua peregrinação
terrena, o Pai estava com Ele. Porém, naquele instante em que todos os
pecados da humanidade lhe foram imputados, abriu-se um abismo entre Ele e
Seu Pai (João 16:32). O Pai estava com Ele no Getsêmane, durante os
flagelos perpetrados pelos romanos, e durante as seis horas em que esteve
pendurado no madeiro. Mas nos instantes finais, pela primeira vez, Jesus Se
viu inteiramente só. Este era o preço que teria que ser pago para que, ao ser
exaltado, recebendo um nome sobre todos os nomes, então, todos os joelhos
se dobrassem, tanto no céu, quanto na terra e... debaixo da terra. Cristo é o
Senhor de todos os céus. Ele é o Senhor de toda a terra. Ele é o Senhor até do
inferno. Não há esfera existencial da qual Ele não seja soberano. Portanto,
Dante, Milton, Mary Dexter e outros estão redondamente equivocados ao
atribuir a Satanás o senhorio do inferno, seja de que natureza for.

Receber um nome que é sobre todos os nomes é o mesmo que “subir acima
de todos os céus”, assim como humilhar-se tomando a forma de homem, se
fazendo servo e sendo obediente até a morte é o mesmo que “descer às
partes mais baixas da terra”.

O inferno não é um lugar geograficamente localizável. Lendas urbanas se


propagam afirmando que cientistas teriam ouvido os gemidos de almas presas
no centro da terra, onde estaria o destino final dos ímpios. Mesmo que Cristo
e os apóstolos tenham se utilizado de categorias que pareçam afirmar isso,
seu objetivo era tão-somente facilitar a compreensão dos seus interlocutores.

Há uma corrente ligada à teologia da prosperidade que defende que Cristo


teria descido ao inferno para ser torturado por Satanás, e, assim, pagar por
completo o preço de nossa redenção. Se isso fosse verdade, Ele não teria dito
antes de Seu último suspiro: “Está consumado” (João 19:30). A obra da
redenção foi finalizada na cruz. Ainda que tenha descido a um inferno literal,
não foi para completar nada, mas tão somente para anunciar o que já havia
feito (1 Pedro 3:18-19).

Outra lenda que se tem disseminado entre muitas igrejas é a de que o Diabo
promovia um verdadeiro carnaval no inferno enquanto Jesus era crucificado.
Porém, Jesus teria interrompido a celebração e tomado das mãos do Diabo as
chaves do inferno. Nada mais distante da verdade que isso. Jamais foi
intenção do Diabo que Jesus morresse na cruz. Pelo contrário. Ele fez de tudo
para impedir que isso acontecesse, pois sabia que através de Sua morte, seu
império seria desbaratado. Por isso, foi capaz de usar até os lábios de Pedro
para tentar dissuadir Jesus (Mateus 16:22-23). Já no início do ministério de
Jesus, o Diabo lhe ofereceu um atalho para reaver os reinos deste mundo, e
assim, não precisasse passar pela cruz (Mateus 4:8-9). Mesmo durante Seu
suplício no calvário, o Diabo insistia em que Ele descesse da cruz, valendo-se
dos lábios de várias pessoas, incluindo um dos ladrões que morriam ao Seu
lado (Lucas 23:39; Marcos 15:30). A cruz sempre foi o centro do plano
divino para a redenção de toda a criação (Atos 2:23). Ela foi a porta pela qual
Jesus passou para adentrar o território da morte e libertar os que ali estavam
cativos.
3
O império da morte

uem dizem os homens que eu sou?”, foi a pergunta dirigida por


“Q Jesus aos Seus discípulos. Pedro foi o único a oferecer uma
resposta satisfatória: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus
vivo.” Segundo Jesus, tal declaração não era uma conclusão proveniente da
mente humana, mas uma revelação vinda diretamente de Deus, sobre a qual a
igreja seria edificada, “e as portas do inferno não prevalecerão contra
ela” (Mateus 16:18).

O que seriam as portas do inferno?

Possuir as portas significa possuir limites, fronteiras, domínio. Era como se


Jesus atribuísse ao Hades o status de cidade ou reino. Quando um exército
marchava contra uma cidade para tomá-la, seus moradores reforçavam seus
portões para impedir que a conquistassem. A igreja, representante do reino de
Deus, seria o exército invasor que marcharia contra o império da morte para
conquistá-lo.

Paulo captou este conceito e o expressou como ninguém ao afirmar que “pela
ofensa de um só, a morte reinou por esse”, mas que agora, “os que recebem
a abundância da graça, e o dom da justiça, reinarão em vida por um só,
Jesus Cristo” (Romanos 5:17).

O pecado foi a pedra fundamental na construção do império da morte. Toda a


humanidade estava refém daquele que o detinha, a saber, o diabo.

Como para os gregos, o Hades era o território sobre o qual a morte exercia
seu domínio, tanto Jesus quanto Paulo se apropriam deste conceito para
designar o domínio exercido pela morte desde a queda do primeiro homem,
Adão.

A igreja fundada sobre a revelação da identidade de Cristo seria uma espécie


de célula rebelde cuja missão é provocar uma insurreição contra o império da
morte. Não há no mundo uma comunidade de caráter mais subversivo que a
igreja. Na medida em que ela marcha, o império da morte retrocede.
Igualmente, se ela retrocede, o mal avança. Cada passo que a igreja dá para
trás é espaço que ela cede a Satanás. Todavia, não é a igreja que deve estar
numa posição defensiva contra os ataques do Hades. São as portas do Hades
que enfrentam o assédio da igreja. O império da morte sofreu a invasão da
igreja e não foi sequer necessário que se arrombasse a porta, pois nosso
general, Cristo Jesus, tem as chaves do inferno e da morte (Apocalipse 1:18).
E é bom que se diga que Ele não a tomou do diabo, como geralmente se crê.
Ele as tem porque é soberano, Rei dos reis e Senhor dos senhores. Ele é
Senhor da vida e da morte, do céu, da terra e de todos os infernos.

Apesar de sua rebelião, o Diabo jamais se constituiu numa ameaça à


soberania divina. Poderíamos dizer que ele era um problema para o homem,
mas não para Deus. Seu império jamais teve sua legitimidade reconhecida,
funcionando sempre na clandestinidade. Todavia, teve no homem seu aliado,
cúmplice e, ao mesmo tempo, refém e escravo.

Ao rebelar-se contra o Criador, o homem sujeitou-se ao Diabo e entregou-lhe


de mão-beijada sua posição de domínio neste mundo que lhe havia sido
outorgada. Por isso, o Diabo se tornou o príncipe deste mundo. Em vez de
interferir como Deus, passando por cima da autoridade que Ele mesmo
constituiu, e recobrando a posição usurpada por Satanás, Deus preferiu fazer-
Se um de nós, para que, como homem, reaver seu domínio.

O Diabo jogou sujo desde o início, mas Deus não Se rebaixou a jogar em
seus próprios termos. Ele preferiu agir dentro das regras que Ele mesmo
instituiu. O escritor sagrado diz que devido ao fato de sermos participantes
comuns de carne e sangue, “também ele semelhantemente participou das
mesmas coisas, para que pela morte aniquilasse o que tinha o império da
morte, isto é, o Diabo; e livrasse todos os que, com medo da morte, estavam
por toda a vida sujeitos à escravidão” (Hebreus 2:14-15).

Repare que o texto é claro ao afirmar que o Diabo “tinha” o império das
trevas. Tinha, não tem mais. Ele nem mesmo continua sendo o príncipe deste
mundo. Quando Jesus o chamou deste modo, ainda não o havia aniquilado
pela morte. No entanto, estava prestes a fazê-lo. Confira o que Ele diz:
“Agora é o juízo deste mundo; AGORA será expulso o príncipe deste
mundo” (João 12:31). Pouco depois, Ele disse: “O príncipe deste mundo já
está julgado”(João 16:11).

Foi à luz desta verdade que Paulo pôde declarar veementemente que
Jesus “tendo despojado os principados e potestades, os expôs publicamente
ao desprezo e deles triunfou na cruz” (Colossenses 2:15).

A cruz de Cristo desbaratou completamente o império do Diabo. Numa só


tacada, ele perdeu sua posição de príncipe deste mundo, o império da morte
e, de quebra, seu emprego de promotor de acusação na corte celestial
(Apocalipse 12:10). Sabe o que lhe restou? O cartaz que muitos ainda dão a
ele. E isso, devido à sua ignorância.

Quem antes era chamado “príncipe deste mundo”, agora é


chamado “príncipe das potestades do ar” (Efésios 2:2), indicando que ele
perdeu o chão, o seu quinhão, o seu domínio. O Diabo foi desterrado.
Expulso tanto do céu, quanto da terra. Seu castelo de areia ruiu. Com os
escombros do império da morte, ele construiu o império das trevas (Atos
26:18, Colossenses 1:13).

Quando as Escrituras falam de trevas, referem-se à ignorância. Apesar de ter


sido destituído, o Diabo se aproveita da ignorância que ainda predomina entre
os homens, mas mantê-los cativos (Efésios 4:18). Por isso, somente o
conhecimento da verdade pode libertá-los (João 8:32). Os homens precisam
ouvir as boas novas do reino para que se libertem das amarras de Satanás. E
as boas novas do reino constituem-se no fato de que “os reinos deste mundo
passaram a ser do Senhor e do seu Cristo, e Ele reinará para todo o
sempre” (Apocalipse 11:15). Não há, portanto, um único centímetro
quadrado desde mundo sobre o qual o Diabo tenha direito de exercer
domínio.

As portas do Hades foram escancaradas e compete à igreja tomar de assalto o


que por muitas eras tem sido mantido em cativeiro.

4
Em que consiste o inferno?
O vocábulo mais usado por Jesus para referir-se ao que comumente
chamamos de inferno é geena. O geena era o aterro sanitário que
havia do lado de fora da cidade de Jerusalém. Era considerado um
lugar maldito, onde o verme não morria e o fogo nunca apagava.

Para entendermos melhor a natureza do geena, proponho que reflitamos sobre


as implicações práticas de algumas das exortações feitas por Jesus. Repare,
por exemplo, na advertência abaixo:

“E se a tua mão te fizer tropeçar, corta-a; melhor é entrares na vida


aleijado, do que, tendo duas mãos, ires para o inferno, para o fogo que
nunca se apaga. {onde o seu verme não morre, e o fogo não se apaga.}
Ou, se o teu pé te fizer tropeçar, corta-o; melhor é entrares coxo na
vida, do que, tendo dois pés, seres lançado no inferno. {onde o seu
verme não morre, e o fogo não se apaga.} Ou, se o teu olho te fizer
tropeçar, lança-o fora; melhor é entrares no reino de Deus com um só
olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no inferno.” Marcos
9:43-47

Ora, sabemos que ao ressuscitarmos no último dia, teremos novos corpos,


perfeitos e incorruptíveis. Ninguém vai ressuscitar com ausência de algum
membro de seu corpo. Não haverá mutilados na glória eterna! Então, o que
Jesus quis dizer com isso? O que significaria “entrar no reino de Deus com
um só olho”? Trata-se de uma analogia. Algo só era jogado no lixo, quando
não tinha mais utilidade. As figuras dos vermes e do fogo inextinguível foram
usadas por Jesus para enfatizar. Enquanto ali se depositassem lixos orgânicos
(restos de comida, carcaças de animais e etc.), os vermes jamais morreriam.
O cheiro era insuportável. Para diminuir a quantidade dos detritos, ateava-se
fogo, que por sua vez, nunca se apagava, porque era constantemente
alimentado por lixo novo. Jesus faz uma comparação entre “entrar na vida” e
ser lançado na lixeira. Era melhor viver sem os membros, do que ser
considerado inútil por Deus, mesmo tendo todos os membros.

O geena é o destino de tudo o que se faz inútil dentro do escopo dos


propósitos divinos. Isso nos remete a Romanos 3:10-12a:
“Como está escrito: Não há um justo, nem um sequer; não há ninguém
que entenda, não há quem busque a Deus. Todos se extraviaram, e
juntamente se fizeram inúteis...”

Não fosse a misericórdia de Deus, todos terminaríamos na lixeira do Reino de


Deus.

Portanto, podemos afirmar que o geena representa o fim dado a tudo o que
não pode ser aproveitado, que teve sua existência como um fim em si mesmo,
que se negou a abrir-se para a vida e que, por isso mesmo, será descartado.

Jesus faz referência ao geena em várias passagens: Mateus 5:22,29-30; 10:28;


18:9; 23:15, 33; Marcos 9:43,45,47; Lucas 12:5.

É neste contexto que quem chama seu irmão de “tolo” estará sujeito ao fogo
do geena (Mateus 5:22). Devemos temer, não os que matam o corpo, e não
podem matar a alma, e sim “aquele que pode fazer perecer no geena tanto a
alma como o corpo” (Mateus 10:28).

Jesus também denuncia os escribas e fariseus hipócritas, que percorriam “o


mar e a terra para fazer um prosélito (novo convertido)”, para depois torná-
lo filho do inferno duas vezes mais do que eles. Com isso, Ele estava
demonstrando a inutilidade de todo o esforço empreendido por eles (Mateus
23:15). “Como escapareis da condenação do inferno” (v.33)?

Em Tiago 3:6, lemos: “A língua também é fogo, mundo de iniquidade situada


entre os nossos membros. Ela contamina todo o corpo, inflama o curso da
natureza, e é por sua vez inflamada pelo inferno (Geena)”. O “inferno” aqui
é uma referência clara à lixeira. Tiago está falando da lixeira que há no
coração humano, e confirmando o que Jesus disse: “Ainda não compreendeis
que tudo o que entra pela boca desce para o ventre, e é lançado fora? Mas o
que sai da boca, procede do coração, e é isso o que contamina o homem.
Pois do coração procedem maus pensamentos, assassínio, adultério,
prostituição, furto, falso testemunho, blasfêmia”(Mateus 15:17-19). Em outra
passagem, Jesus diz: “Pois da abundância do coração fala a boca”(Lucas
6:45b). No dizer de Paulo quanto àqueles que se extraviaram e se fizeram
inúteis, “a sua garganta é um sepulcro aberto; com as suas línguas tratam
enganosamente. Veneno de víbora está debaixo dos seus lábios”(Romanos
3:13). Não me admira Jesus ter-lhes chamado de “raça de víboras”!

5
Quanto durará o inferno?

“A ssim será na consumação do século. Virão os anjos e separarão


os maus dentre os justos, e os lançarão na fornalha de fogo,
onde haverá pranto e ranger de dentes.” Mateus 13:49-50

À luz desta advertência concluímos que ser lançado no geena envolve dor,
sofrimento e privação (ranger de dentes é não do que se alimentar). Talvez
por isso Jesus fosse tão enfático em Suas admoestações. Ele sabia o que
estava em jogo e queria poupar-nos a todos de tal destino.

Surge, então, uma questão inevitável: quanto tempo durará tal sofrimento no
inferno? Para a maior parte dos cristãos atuais, a resposta inequívoca, deve
ser dada em uníssono: eternamente.

Por mais que se acredite nisso, isso jamais deveria nos deixar confortáveis.
Afinal, estamos nos referindo a seres humanos, criados à imagem e
semelhança de Deus. Recuso-me a acreditar que alguém tenha prazer nesta
“verdade”. Só mesmo um sádico se alegraria no fato de alguém ser
condenado a uma pena irrevogável e eterna. Que pecado seria tão grave que
deveria valer o sofrimento de alguém por eras intermináveis? Não seria algo
desproporcional? Haveria desproporcionalidade na justiça divina? Antes de
nos atrevermos a uma resposta, vejamos o que leva muitos a crerem que o
inferno será eterno.
Em Mateus 25:41 lemos que o justo Juiz dirá “aos que estiverem à sua
esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, destinado ao
Diabo e seus anjos.”

Ora, se o fogo é eterno, logo, o sofrimento provocado por ele também deverá
sê-lo. Esta é a conclusão a quem muitos chegam a partir desta passagem em
particular. Porém, precisamos entender o significado da palavra “eterno”
neste texto. Quando o adjetivo aionios significando “eterno” é usado no
grego juntamente com substantivos de ação, ele se refere ao resultado da
ação, não ao processo. Assim a expressão “castigo eterno” é comparável a
“redenção eterna” e a “salvação eterna”, sendo todas expressões bíblicas. Os
que se perdem não passarão eternamente por um processo de castigo, mas
serão punidos uma vez por todas com resultados eternos.

Bem da verdade, os linguistas discutem o sentido das palavras hebraicas e


gregas que se traduzem por “eterno” e “eternamente” nas Escrituras (olam,
em hebraico; aion, aionios, no grego). Isso pode parecer meio complicado
para um leigo, mas uma maneira de entender a questão mais facilmente é
comparando várias traduções. Por exemplo, há traduções bíblicas que trazem
no Salmo 23:6: “E habitarei na casa do Senhor por longos dias”. Outras
dizem, “habitarei na casa do Senhor para sempre”. O texto original é o
mesmo, mas um tradutor verteu o termo hebraico olam por “longos dias” e
outro por “para sempre”, o que não significa exatamente a mesma coisa,
obviamente.

Na lei mosaica havia um arranjo pelo qual um escravo serviria ao seu amo
“para sempre” (olam) (Êxodo 21:1-6), mas esse “para sempre” é relativo ao
tempo de vida do indivíduo, o que poderia significar “por breve período” ou
“por longos dias”, dependendo da longevidade do mesmo.

Vejamos, por exemplo, o caso da guarda do sábado: o concerto divino com


Israel foi “perpétuo”, no entanto findou na cruz! Então, como uma coisa
perpétua pode ter um fim? Pela linguagem hebraica, assim é. O
termo olam tem um caráter relativo ao tempo de duração daquilo a que se
refere.

No Novo Testamento não é diferente. Paulo se refere a Onésimo, o escravo


convertido, que devia voltar a servir “a fim de que o possuísseis para sempre
(aionios)” (Filemon 15 e 16). Mas esse “para sempre” significava até o fim
da vida do escravo!

E o que dizer do “fogo eterno” que queimou Sodoma e Gomorra, mas não
está queimando até hoje? Comparando-se diferentes traduções bíblicas
percebe-se que o texto de Judas 7 foi alterado ilegitimamente por tradutores
na Versão Almeida Revista e Atualizada em português. No original grego
consta pyròs aioniou (fogo eterno), caso genitivo, que qualifica o termo
“punição”. Então, não resta dúvida que a melhor tradução é “sofrendo a
punição do fogo eterno”.

Se nos atentarmos nos versos abaixo percebe-se algo que talvez nunca haja
chamado a atenção de muitos leitores da Bíblia e que ilustra bem a
relatividade de sentidos das palavras hebraicas traduzidas por “eternamente”,
“para sempre”. Profetizando acerca de Jerusalém, o profeta Isaías declara:

“O palácio será abandonado; a cidade populosa ficará deserta; Ofel e


a torre da guarda servirão de cavernas para sempre (...) até que se
derrame sobre nós o Espírito lá do alto: então o deserto se tornará em
pomar e o pomar será tido por bosque.” Isaías 32: 14 e 15.

Repare que as expressões “para sempre” e “até que” aparecem num


contexto imediato. Como algo pode ser estipulado para sempre e ao mesmo
tempo até que aconteça certo fato? Isso no português não faria sentido, mas
no hebraico sim.

Outra passagem muito significativa encontra-se pouco adiante. Ao falar dos


edomitas que Deus havia destinado “para a destruição”, o profeta Isaías se
vale da mesma figura de linguagem:

“Os ribeiros de Edom se transformarão em piche, e o seu pó em


enxofre; a sua terra se tornará em piche ardente. Nem de noite nem de
dia se apagará; subirá para sempre a sua fumaça; de geração em
geração será assolada, e para todo o sempre ninguém passará por
ela.” Isaías 34: 9 e 10.
Ora, os edomitas desapareceram há muitos séculos. Será que poderíamos
afirmar que ainda existem piche ardente e fumaça subindo na terra de Edom?
É óbvio que não! Trata-se, portanto, de uma hipérbole com o objetivo de
enfatizar algo.

Tanto Jesus , quanto João no livro de Apocalipse, lançaram mão dessa


mesma linguagem para descrever a sorte final dos ímpios. O fogo é eterno
(como o que destruiu Sodoma e Gomorra), e queimará de dia e de noite com
sua fumaça subindo “para sempre”, como também se deu na terra de Edom
séculos atrás!

Um castigo com duração eterna não parece fazer jus à imagem de Deus que
emerge das Escrituras como um todo. Lemos, por exemplo, no verso 5 do
Salmo 30 que “a sua ira dura só um momento; no seu favor está a vida. O
choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã.” Leia
novamente para não ter dúvida: Sua ira dura só um momento. Enquanto “sua
misericórdia dura para sempre”(Sl.106:1). Tenho a impressão que temos
apresentado ao mundo um deus que é o inverso deste, cuja misericórdia dura
só um momento, mas sua ira dura para sempre.

O Salmo 103, versos 8 e 9 nos oferece um quadro ainda mais


nítido: “Compassivo e misericordioso é o Senhor; tardio em irar-se e grande
em benignidade. Não repreenderá perpetuamente, nem para sempre
conservará a sua ira.”

Estou certo de que não estamos tratando com uma divindade bipolar! Se Ele
diz que não repreende perpetuamente, quem somos nós para discordar? E há
uma razão lógica para isso. O profeta Miquéias diz que “Ele não retêm a sua
ira para sempre, porque tem prazer na misericórdia” (Miquéias
7:18). Somente uma divindade sádica teria prazer no sofrimento de suas
criaturas. Mas pelo jeito, tem quem tenha mais prazer em saber que enquanto
uma pequena minoria estará gozando das beatitudes eternas, a grande maioria
estará ardendo num inferno eterno.

Além de não ter prazer no sofrimento de ninguém, o Deus revelado nas


Escrituras não sofre de amnésia: Mesmo na Sua ira, Ele se lembra da
misericórdia (Habacuque 3:2).
E para reforçar ainda mais a imagem de um Deus absolutamente clemente e
misericordioso, convém salientar que “a misericórdia triunfa sobre o
juízo” (Tiago 2:13). Logo, ela sempre tem a última palavra. Não há sentença
que ela não possa revogar.

As únicas chamas verdadeiramente eternas são as do amor. “Suas brasas são


fogo ardente, são labaredas do Senhor” (Cantares 8:6).
Se é verdade que o amor jamais se acaba, logo, estamos “condenados” a amar
para sempre os que nos acompanham na estrada da existência. Mesmo depois
que adentrarmos os portais celestiais, nosso amor por cada um deles
permanecerá e, talvez, até aumente, uma vez que estaremos livres dos ruídos
de nossa natureza pecaminosa.

Quem ama, certamente se importa com o bem do ente amado. Como, então,
poderíamos nos sentir plenamente felizes desfrutando da glória destinada aos
filhos de Deus, sabendo que em algum lugar do universo, as pessoas a quem
tanto amamos estarão sendo torturadas, e que seu sofrimento não duraria um
dia, nem um ano, ou mesmo um século, mas por toda a eternidade?

Será que teremos que desistir de amá-las? Será que Deus nos submeterá a
uma amnésia? Será que pais que foram salvos terão que se esquecer da
existência dos filhos condenados à perdição? Por duas vezes lemos no livro
de Apocalipse que Deus enxugará dos nossos olhos toda lágrima (7:17; 21:4).
As razões pelas quais não haverá mais choro é que também “não haverá mais
morte, nem pranto, nem clamor, nem dor.” Se ainda houver dor em algum
lugar do cosmos, então, haverá motivo para lágrimas. Não apenas por parte
dos que forem condenados, mas também dos que com os tais se importarem.

No próximo capítulo, estaremos respondendo a questões levantadas a partir


do posicionamento que assumimos quanto à duração do inferno. Questões do
tipo “então, todos serão salvos?” serão respondidas à luz de passagens
bíblicas geralmente relegadas e outras que julgamos mal compreendidas.
6
Sim, o inferno existe
e não são os outros
"Se eu te adorar por medo do inferno, queima-me no inferno.
Se eu te adorar pelo paraíso, exclua-me do paraíso. Mas se eu
te adorar pelo que Tu és, não escondas de mim a Tua face."
Rabia, 800 d.C.

S e alguém entendeu através dos capítulos anteriores que não creio na


existência do inferno, sinto informar que se enganou. O inferno existe.
Mas não é a câmara de tortura eterna que muitos imaginam que seja.
As imagens usadas para descrever o inferno nada mais são do que uma
tentativa de conscientizar às pessoas sobre a gravidade de se levar uma vida
autocentrada, alienada de Deus e de seus semelhantes. O inferno é uma
condição existencial. Ele começa a ser experimentado já nesta vida e se
plenifica após a morte. Suas chamas são uma metáfora do juízo divino sobre
toda impiedade e injustiça. Isso está claro em passagens como a de
Deuteronômio 32:22, onde lemos: “Porque um fogo se acendeu na minha
ira, e arderá até ao mais profundo do inferno, e consumirá a terra com a sua
colheita, e abrasará os fundamentos dos montes.”

Portanto, pode-se afirmar que o inferno seja a resposta de Deus à injustiça


perpetrada pelo homem.

Mesmo o batismo de fogo a que se refere o movimento pentecostal nada mais


é do que a manifestação da justa ira de Deus contra a iniquidade. Ao referir-
se àquele que o sucederia, João Batista declarou: “Eu, na verdade, batizo-vos
com água, mas eis que vem aquele que é mais poderoso do que eu, do qual
não sou digno de desatar a correia das sandálias; esse vos batizará com o
Espírito Santo e com fogo. Ele tem a pá na sua mão; e limpará a sua eira, e
ajuntará o trigo no seu celeiro, mas queimará a palha com fogo que nunca se
apaga” (Lucas 3:16-17). Repare nisso: são dois tipos de batismo que Jesus
traria: o do Espírito que visa a restauração e renovação de tudo e o de fogo
que visa a purificação. Para que haja purificação, algo precisa ser consumido.
Tudo que é palha deve ser consumido pelo fogo da justiça divina. Tudo o que
é fruto da vaidade e presunção humanas. Tudo que tem no ego a sua base de
sustentação. É a isso que o escritor sagrado se refere ao falar da “remoção
das coisas abaláveis (...) para que as inabaláveis permaneçam” (Hebreus
12:27).

O próprio Jesus dá testemunho de que para tal Ele viera ao mundo: “Vim
lançar fogo na terra; e que mais quero, se já está aceso?” (Lucas 12:49). É
este fogo que põe à prova nossas obras. Tudo o que é feito para durar, escapa
ileso à sua fúria. Mas o que visa tão-somente alimentar nossa arrogância e
narcisismo e suprir nossa busca desenfreada por prazer será fadado a ser
consumido. Só vale a pena manter o que transcende à nossa própria
existência; o que não tem prazo de validade; o que visa não apenas o nosso
bem, mas o do nosso próximo. É o que Jesus chama de "ajuntar tesouros no
céu." E quando digo “próximo”, não me refiro apenas à proximidade
geográfica ou similitude, mas também àquele que vem depois de nós, e que
desfrutará do nosso legado. Amar o próximo também é amar que vem após
nós; aquele que ocupará o lugar que hoje ocupamos, e que usufruirá do fruto
de nosso trabalho. Tudo o que for feito visando apenas nosso aprazimento,
não resistirá à prova do fogo, e, portanto, não sobreviverá a nós.

Viver para si é a essência do que as Escrituras chamam de pecado. Se


repararmos na natureza, nada vive para si. As árvores não se alimentam dos
frutos que produzem. Os rios não bebem de sua própria água. O sol não
brilha para si. As flores não sentem a fragrância que exalam. Tudo o que
Deus criou, Ele o fez para que existisse para além de si. Isso é
transcendência! Somente isso poderia nos garantir a eternidade. De acordo
com Paulo, Cristo morreu por todos “para que os que vivem não vivam mais
para si” (2 Coríntios 5:15).

Este é um dos assuntos principais abordados por Paulo em suas cartas. Ele
mesmo deu testemunho em sua despedida dos efésios: “Em nada, porém,
considero minha vida preciosa, contanto que cumpra com alegria a minha
carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do
evangelho da graça de Deus” (Atos 20:24). Por isso, ele não se importava de
sofrer qualquer que fosse o prejuízo, até mesmo a morte. Sua obra no Senhor
seria a evidência de que sua vida não teria sido em vão.

Só há, por assim dizer, uma maneira de ser poupado das chamas do juízo de
Deus: deixar-se consumir em vida por amor. O que não for consumido pelas
chamas do amor, será consumido pelas chamas do juízo. Era tal consciência
que movia o apóstolo de modo que não se importava em exaurir suas forças e
energias pelo bem de todos. “Eu de muito boa vontade gastarei”, testifica, “e
me deixarei gastar pela vossa alma, ainda que, amando-vos cada vez mais,
seja menos amado” (2 Coríntios 12:15). Tal postura subversiva era
alimentada pelas palavras de Cristo: “Quem ama sua vida, a perderá, mas
quem odeia a sua vida neste mundo a guardará para a vida eterna” (João
12:25). “Odiar” aqui tem o sentido de desprezar, não atribuir valor, fazer
pouco caso, desdenhar. Somos desafiados a abrir mão de nossa própria vida
por algo infinitamente maior. “Pois quem quiser salvar a sua vida, a
perderá”, diz o Cristo, “mas quem perder a sua vida por minha causa e do
evangelho, esse a salvará” (Marcos 8:35). Para nós, seguidores de Cristo, o
inferno não é o outro como dizia Sartre, o filósofo existencialista francês. O
outro é a possibilidade do céu. Viver para o outro é poupar-se de uma vida
desprovida de significado. Viver para o outro é deixar vago seu lugar no
inferno. É garantir que suas obras continuarão a repercutir mesmo depois de
sua partida, ecoando na eternidade. Eis a promessa: “Bem-aventurados os
mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, descansarão
dos seus trabalhos, pois as suas obras os acompanharão” (Apocalipse
14:13).

Tanto Paulo, quanto Moisés, parecem ter captado tal verdade. Somente isso
justificaria certas posturas radicais adotadas por eles. Paulo, por exemplo, diz
que preferia estar separado de Cristo se isso resultasse na salvação de seus
patrícios. “Porque eu mesmo”, afirma o apóstolo, “desejaria ser separado de
Cristo, por amor de meus irmãos, que são meus parentes segundo a carne; os
quais são israelitas...” (Romanos 9:3-4a). Repare: Ele estava disposto a abrir
mão da própria salvação caso isso garantisse que os judeus fossem
alcançados. Ele hipotecaria a eternidade pelo bem de quem o perseguia.
Moisés adotou postura semelhante ao pedir que Deus riscasse seu nome do
livro da vida, mas não desistisse do Seu povo (Êxodo 32:32). Uma
espiritualidade egocêntrica como a que tem sido pregada em nossos dias
jamais produziria tal disposição. Cada qual está interessado em salvar a sua
própria pele.

Para Paulo, Cristo é o fundamento da nova humanidade, assim como Adão


foi o fundamento da humanidade original. Cada ser humano é convidado a
escolher com que material vai edificar sua vida em cima deste fundamento.
Uns escolhem material de primeira, resistente ao tempo e ao fogo, outros,
porém, escolhem material de qualidade duvidosa.

“Segundo a graça de Deus que me foi dada, pus eu, como sábio
construtor, o fundamento, e outro edifica sobre ele. Mas veja cada um
como edifica sobre ele. Pois ninguém pode pôr outro fundamento, além
do que já está posto, o qual é Jesus Cristo. E, se alguém sobre este
fundamento levantar um edifício de ouro, prata, pedras preciosas,
madeira, feno, palha, a obra de cada um se manifestará, porque o dia a
demonstrará. Pelo fogo será revelada, e o fogo provará qual seja a
obra de cada um. Se a obra que alguém edificou sobre ele permanecer,
esse receberá galardão. Se a obra de alguém se queimar, sofrerá
perda; o tal será salvo, todavia como pelo fogo.” 1 Coríntios 3:10-15

Repare nisso: o fogo é o instrumento de controle de qualidade usado por


Deus. O que sobrevive a ele, está destinado a durar para sempre. O que
sucumbe a ele, está destinado a perecer para sempre. Mas há algo que
geralmente passa despercebido nesta passagem: “Se a obra de alguém se
queimar, sofrerá perda; O TAL SERÁ SALVO, todavia como pelo fogo.” Leia
quantas vezes quiser. O texto seguirá sendo o mesmo. Nenhum tradutor da
Bíblia ousou modificá-lo para encaixá-lo em sua doutrina.

É esta mesma esperança que encontramos numa outra passagem igualmente


ignorada: “E apiedai-vos de alguns que estão na dúvida, salvai-os,
arrebatando-os do fogo” (Judas 22-23a). Que bom que as portas do inferno
não prevalecem contra nós! Podemos simplesmente invadi-lo e tirar de lá os
que estão perecendo ainda em vida. Se é verdade que podemos salvar o que
perecem em vida, que dirá Cristo poderá arrebatar os que lá estiverem após a
morte (vamos nos aprofundar nisso adiante).
Então, o inferno não teria a última palavra? Não! Ele visa consumir o que não
foi “consumido” pelo amor. A palha do egoísmo, o feno da avareza, a
madeira da corrupção e da promiscuidade que coisifica o ser serão devorados
por suas chamas. Porém, no final, a essência do ser será salva. Embora sua
existência terrena não tenha passado no controle de qualidade dos céus, sua
essência (espírito) será salva, ainda que pelo fogo.

E como lemos anteriormente, este fogo já está aceso. Suas labaredas podem
ser sentidas desde já. O escritor de Hebreus afirma que “se voluntariamente
continuarmos no pecado, depois de termos recebido o pleno conhecimento da
verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas certa expectação
horrível de juízo e ardor de fogo que há de devorar os adversários” (Hebreus
10:26-27). Observe bem: apesar de filhos, não somos poupados deste “ardor
de fogo”, porém, não somos devorados por ele. Afinal, o inferno
foi “preparado para o diabo e seus anjos” (Mateus 25:41). Por isso, lemos
que este fogo “há de devorar os adversários”. Aliás, para quem diz que se
trata de “fogo” diferente, como explicar esta passagem? O fogo é exatamente
o mesmo! Uma metáfora para o juízo de Deus contra toda a injustiça. Este
fogo devora uns, purifica outros. Devora demônios, purifica humanos.

7
Vasos de honra e vasos de desonra

E stariam todos destinados à salvação? Não! Quer dizer... depende do


que chamamos de salvação. A Bíblia é clara ao afirmar que há “vasos
de honra” destinados à salvação, e “vasos de desonra” destinados à
perdição. Todavia, precisamos entender o sentido disso, e para tal,
recorreremos a duas passagens. Em Romanos 9:21-23 lemos que da mesma
massa, Deus, o Oleiro, fez um vaso para honra e outro para desonra. Para o
autor desta epístola, o objetivo de Deus ao criar vasos para desonra era
“mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder”, e que os mesmos
estaria “preparados para a perdição”. Em contraste, o mesmo Oleiro teria
criado vasos de honra, através dos quais “desse a conhecer as riquezas da
sua glória”. Estes também são chamados de “vasos de misericórdia, que
para a glória já dantes preparou”.

Geralmente, quando lemos “vasos de misericórdia”, entendemos que se trata


de recipientes destinados a serem alvo da misericórdia divina, resultando em
sua salvação. Acho que não entendemos direito. Ser vaso não é ser
receptáculo, mas ser instrumento através do qual algo será servido. Portanto,
ser vaso de misericórdia é ser o canal pelo qual a misericórdia será servida a
outros. E como bem disse Jesus, “bem-aventurados os misericordiosos, pois
alcançarão misericórdia” (Mateus 5:7). Contudo, Tiago nos alerta que “o
juízo será sem misericórdia para aquele que não usou de misericórdia”;
mas apesar disso, mesmo que o juízo divino seja severo, “a misericórdia
triunfa sobre o juízo” (Tiago 2:13).

Pena que muitos se atêm à passagem em que Paulo distingue os vasos de


misericórdia dos vasos de ira. Bom seria se avançassem um pouco no texto e
lessem, dentre muitas coisas, o que ele diz no capítulo 11: “Assim como vós
também outrora fostes desobedientes a Deus, mas agora alcançastes
misericórdia pela desobediência deles, assim também estes agora foram
desobedientes, para igualmente alcançarem misericórdia a vós demonstrada.
Pois Deus colocou a todos debaixo da desobediência, a fim de PARA COM
TODOS USAR DE MISERICÓRDIA”(vv.30-32).

Portanto, a misericórdia revelada através dos “vasos de honra” é apenas uma


amostra grátis da que se revelará indistintamente a todos. Se invariavelmente
ela triunfa sobre o juízo, logo, a única conclusão possível é que ela, a
misericórdia, terá a última palavra. Quem se sente desconfortável com isso
precisa rever sua fé, pois esta não parece estar baseada no amor, a não ser que
seja no amor próprio.
A figura do vaso é uma referência à nossa existência terrena. O vaso,
portanto, está sujeito às contingências desta vida. Como disse Paulo em outra
passagem, “numa grande casa não há somente vasos de ouro e de prata, mas
também de pau e de barro; uns para honra, outros, porém, para desonra. De
sorte que, se alguém se purificar dessas coisas, será vaso para honra,
santificado, idôneo para uso do Senhor e preparado para toda a boa
obra” (2 Timóteo 2: 20). Mesmo os vasos de desonra servem a um propósito
divino: ser instrumentos através dos quais a justa ira de Deus é demonstrada.

Vasos de ouro e de prata estão destinados a terem suas existências


eternizadas. Suas obras os acompanharão, como vimos há pouco. Vasos de
pau e de barro são aqueles cujas existências foram desperdiçadas numa vida
autocentrada. Em se tratando de "existência", não há segunda chance. Só
existimos uma vez. Falo de existência de acordo com a definição
existencialista. Vamos levar daqui exatamente o que houvermos vivido. Mas
as obras de alguns serão queimadas. Entretanto, seu "eu essencial" será salvo.
Como disse o sábio Salomão, o corpo volta para o pó, mas o espírito volta pra
Deus que o deu. O que mais importa não é o recipiente em si, mas seu
conteúdo. Por isso Paulo identifica o homem interior, a essência, como um
tesouro em vaso de barro (2 Coríntios 4:7), e conclui afirmando que “ainda
que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova de
dia em dia” (v.16).

Com isso em mente, fica mais fácil entender o que Paulo intentava ao afirmar
haver entregue alguém a Satanás “para a destruição da carne, para que o
espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus” (1 Coríntios 5:5). Obviamente
que foi uma medida disciplinar drástica, usada pelo apóstolo para poupar a
igreja de um escândalo sem precedentes. Quem se atrever a acusa-lo de falta
de misericórdia, deve repensar sua postura ao defender que alguém padeceria
eternamente no inferno sem dó, nem piedade. Apesar de drástica, a disciplina
apostólica não excluía a certeza de que aquela vida seria poupada de um
sofrimento eterno. Entregar o corpo ao diabo é um eufemismo, e pode ser
considerado o mesmo que colocar a existência sob o escrutínio e juízo
divinos.

Ainda que a existência se perca, que a vida tenha sido um completo


desperdício, destino à lixeira do universo, a essência não pode ser perder,
haja vista ter sua origem no próprio Deus.

Para fins didáticos, faço uma distinção entre salvação e a reconciliação.


Salvação diz respeito à existência, reconciliação diz respeito à essência.
Repare no que diz Paulo aos Romanos:

“Pois se nós, quando éramos inimigos, fomos reconciliados com Deus


pela morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos
salvos pela sua vida (...) Pois assim como por uma só ofensa veio o
juízo sobre todos os homens, para condenação, assim também por um
só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens, para justificação
e vida.” Romanos 5:10,18

Parece-me claro que haja uma distinção entre salvação e reconciliação.


Através da cruz, toda a criação foi reconciliada com Deus. Somos
reconciliados pela morte de Cristo e salvos pela sua vida em nós. Esta
reconciliação, todavia, não se restringe aos que têm sua existência
ressignificada, mas a todos os homens indistintamente. O que não significa
que não possam ser condenados, isto é, ter suas existências reprovadas pelo
juízo divino e sofrer as devidas sanções. Entretanto, sua essência será
plenamente redimida para além do tempo e do espaço.

E como se dará isso? Da mesma maneira como ocorre durante a vida terrena,
mediante o reconhecimento e confissão do senhorio de Cristo sobre todas as
esferas da existência. “Se com a tua boca confessares a Jesus como
Senhor(...) serás salvo”, declara Paulo (Romanos 10:9).

Para muitos, esta confissão só tem validade durante nosso prazo de vida
terrena. Após a morte, todas as possibilidades estão esgotadas. Porém, não é
isso que encontramos nas Escrituras. O mesmo Paulo diz ao nome de Jesus se
dobrará “todo joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra” e
que toda língua confessará “que Cristo Jesus é o Senhor, para glória de Deus
Pai” (Filipenses 2:10).

João reverbera o mesmo ensino apostólico na descrição de sua visão no


Apocalipse:
“Então ouvi a toda criatura que está no céu, e na terra, e debaixo da
terra, e no mar, e a todas as coisas que neles há, dizerem: Ao que está
assentado sobre o trono, e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a
glória, e o poder para todo o sempre.” Apocalipse 5:13

Ora, a expressão "debaixo da terra" é uma alusão àquela esfera existencial a


que chamamos de inferno. Se os que lá estiverem reconhecerem a Jesus como
Senhor, serão igualmente salvos, podendo, então, usufruir da reconciliação
provida pelo sacrifício de Jesus. O que João descreve é a cena desta
promessa divina concretizada: toda criatura, inclusive as que estiverem no
inferno, prestando tributos e louvores ao Cordeiro, reconhecendo-O como
Senhor.

Ainda que suas existências tenham sido desperdiçadas, sendo lançadas no


lixão da história, sua essência será restaurada.

Então, qual a vantagem de se servir a Cristo se no final das contas todos serão
alcançados por esta mesma graça? Caso você tenha feito esta pergunta, sugiro
que reveja sua fé. Você está adotando a mesma postura do irmão mais velho
da parábola do Filho Pródigo.

O mesmo Cristo que é “a propiciação pelos nossos pecados”, também


é “pelos de todo o mundo” (1 João 2:2). Não ouse subestimar o alcance de
Sua graça.

E isso também não é justificativa para deixarmos de trabalhar pelo avanço do


reino de Deus. Cada vida salva durante sua jornada neste mundo é poupada
do ardor do fogo da justa ira divina. "Pois para isto é que trabalhamos e
lutamos”, conclui Paulo, “porque esperamos no Deus vivo, que é o salvador
de todos os homens, principalmente dos fiéis”(1 Timóteo 4:10). Ele não é
salvador de alguns. Ele é salvador de todos, ainda que, de maneira especial,
seja o salvador daqueles que n’Ele depositam sua fé. Portanto, Ele é salvador
de crentes e incrédulos! A diferença é que uns são alcançados durante a
História, enquanto outros, após ela. Os que são salvos durante sua jornada
existencial são os vasos de honra, aqueles através de quem a misericórdia é
servida ao mundo. Os que são salvos após a história são os vasos de desonra,
cujas vidas servem ao propósito de serem um sinal de advertência da justiça
divina.

A parte d’Ele está feita! Resta apenas a nossa parte.

“E tudo isto provém de Deus que nos reconciliou consigo mesmo por
Jesus Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação, isto é, Deus
estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos
homens os seus pecados, e nos confiou a palavra da reconciliação.” 2
Coríntios 5:18-19

Deus não está de mal com o mundo! Esta é boa nova do evangelho! Nossa
missão é anunciar tal fato a todos para que desfrutem imediatamente o favor
divino. Não se trata de garantir passagem de ida para o céu, mas de trabalhar
para que a vontade de Deus seja feita aqui na terra como é feita no céu.

Conhecida como “reconciliação universal”, tal perspectiva teológica


considera a possibilidade de que todos, eventualmente, desfrutarão da
comunhão com Deus, ainda que após o final da história. Se alguém imagina
que tal perspectiva seja algo novo, devo salientar que muitos cristãos sinceros
a têm esboçado ao longo dos séculos. Entre eles, destacamos C.S. Lewis,
anglicano, autor de “As Crônicas de Nárnia”, Philip Yancey, celebrado autor
norte-americano, Gerald Mann, pastor batista, Charles Schulz, metodista e
criador do Snoopy, Robert Short, pastor presbiterianos, Carl Rahner, teólogo
católico, Tony Campolo, pastor batista, Brennan Manning, ex-monge
franciscano e autor também muito celebrado entre os evangélicos brasileiros,
Karl Barth, teólogo protestante, Hans Küng, teólogo católico, Paul Tournier,
psiquiatra protestante, Emil Brunner, teólogo protestante, Rob Bell,
considerado o mais influente pastor norte-americano das últimas décadas, e
tantos outros. Até o século V era uma das vertentes mais fortes dentro da
teologia cristã. Outros como John Stott, pastor e autor episcopal, não
acreditavam propriamente numa reconciliação universal, mas se recusam a
endossar o ensino de um inferno eterno por considerá-lo incompatível com o
amor de Deus. Para estes, só uma chama poderia ser eterna, e não era a do
inferno!

Alguns como Jürgen Moltmann, autor de “Teologia da Esperança” não


chegam a afirmar categoricamente a reconciliação universal, mas deixam
aberta a porta da possibilidade de que esta seja a vontade de Deus. "Não
prego a reconciliação total, prego a todos a reconciliação na cruz de Cristo”,
declarou o teólogo suíço. “Não anuncio que todos serão remidos, mas confio
que a mensagem será anunciada até que todos se salvem. Se o futuro de Deus
se chama realmente: eis que faço novas todas as coisas, todos estão
convidados e ninguém está excluído. Mesmo para aqueles que rejeitam o
convite ele continua de pé, pois vem de Deus. Eu não sou um universalista,
mas Deus pode sê-lo. Eu não ensino a reconciliação total, mas também não
nego. Deus não sossega até que todas as suas criaturas, como o filho pródigo
da parábola, tenham retornado a seu seio.”

Durante muito tempo, estive entre estes. Torcia para que fosse verdade. E
acho que este deveria ser o desejo de todo discípulo de Cristo. Até que um
dia, deparei-me com um verso que deixa claro que esta não era apenas a
minha vontade, mas a vontade do próprio Deus. A partir daí, deixei de torcer
para que tal possiblidade se comprovasse verdadeira, e passei a pregá-la em
alto e bom tom, mesmo correndo o risco de ser mal interpretado. Refiro-me à
maravilhosa passagem que diz que Deus “quer que todos os homens se
salvem, e venham ao conhecimento da verdade” (1 Timóteo 2:4). Esta
passagem é confirmada pelo testemunho de Pedro de que Deus não quer “que
ninguém se perca, senão que todos venham a arrepender-se” (2 Pedro 3:9).

Uma coisa sou eu querer. Outra coisa é Deus querer.

Quem poderá impedir que Seu desejo se cumpra? “Operando eu, quem
impedirá?” (Isaías 43:13).

E se alguém insiste em que as coisas só possam ser resolvidas durante nosso


prazo de vida, dou-lhe a resposta dada pelos santos lábios de Jesus: “Quem
crê em mim, ainda que esteja morto, viverá” (João 11:25). Quem diria que
alguém já estando morto, ainda assim, poderia crer?

Chegará o momento em que já não haverá razão para que o inferno exista.
Seu destino está selado. Ele terá que devolver os que nele estiverem, e por
fim, será lançado no lago de fogo (Apocalipse 20:13-14). O inferno deixará
de ser.
Sabe quando você decide apagar um arquivo de seu computador? Ele
primeiro vai para a lixeira. Mas ainda está ali, na memória da sua máquina.
Até que você resolva deletá-lo de uma vez, de modo que jamais possa
recuperá-lo. De igual modo, toda existência que houver sido desperdiçada
pelo egoísmo, será banida, aniquilada para sempre, juntamente com o inferno
no lago de fogo.

Se puder enumerar vantagens (detesto este termo), posso dizer que os que
creram durante sua vida terrena serão preservados íntegros, corpo, alma e
espírito por toda a eternidade (1 Tessalonicenses 5:23). Os demais estarão
como que fragmentados, posto que sua existência terá sido descartada, mas
sua essência preservada pelos séculos dos séculos em honra às entranháveis
misericórdias de Deus.

Não desperdice sua vida! Não queira fazer escala no inferno. Um


milionésimo de segundo lá vale por uma eternidade. Viva para a glória de
Deus! E só há uma maneira de fazê-lo: vivendo para o bem de todos,
gastando-se e se deixando gastar por amor.

8
Fechado para balanço

N o penúltimo parágrafo do capítulo anterior deste livro, fiz uma


afirmação que certamente inquietou algumas mentes. Qual seria a
vantagem de se crer e obedecer às demandas do evangelho, uma vez
que todos indistintamente serão alvos da misericórdia divina? Apesar de
relutar em responder tal questão (apesar de pertinente, não gosto de falar em
vantagens. Soa-me pretensioso demais), declarei que os que crerem serão
preservados íntegros, corpo, alma e espírito para o dia de Jesus Cristo, e, por
conseguinte, para toda a eternidade. Enquanto os demais estarão como que
fragmentados, haja vista que sua existência terá sido descartada, porém, sua
essência será preservada.

Em que me baseei para chegar a esta conclusão? De primeira mão, na


passagem em que Paulo diz que o mesmo Deus de paz nos santificaria em
tudo, de modo que o nosso espírito, alma e corpo fossem plenamente
conservados íntegros (1 Tessalonicenses 5:23). Geralmente, pensamos em
integridade como uma virtude moral. Mas neste texto em particular, está se
falando de inteireza, de totalidade, de completude. Nosso ser não se dissipará,
mas chegará inteiro à eternidade. Quando se fala de “espírito” (pneuma), está
se falando da essência, daquela centelha divina que existe em cada ser
humano. Trata-se de consciência, o maior de todos os mistérios. Já a “alma”
(psique) é onde reside nossa personalidade, com suas qualidades, seus traços
peculiares, sua memória, suas emoções, suas vontades. O “corpo” (soma) é o
instrumento através do qual interagimos com o mundo à nossa volta.

Permita-me uma analogia: o computador que estou usando agora pode ser
dividido em três partes distintas, mas que trabalham em conjunto. Há o
hardware, que é a parte física, a máquina em si, com seus transistores, suas
placas, sua tela, teclado e entradas. Este equivale ao nosso corpo. Há o
software composto pelos programas instalados. Sem ele, a máquina não roda.
Este equivale à alma, nossa psique. E finalmente, há a internet que conecta o
computador, via provedor, a uma rede mundial de computadores. Este é o
espírito! E nem precisa dizer que o tal provedor é o Espírito Santo, mediante
quem temos acesso a Deus (Efésios 2:18).
A salvação proposta em Cristo é plena e abarca o ser por inteiro. Nada se
perderá! O escritor de Hebreus afirma que Cristo “pode também salvar
perfeitamente os que por ele se chegam a Deus” (Hebreus 7:25). Em Cristo,
existência e essência se fundem. Tudo o que há no céu e tudo o que há na
terra convergem (Efésios 1:10), tornando-se um todo indivisível, dois lados
de uma mesma moeda.

Nem mesmo nosso corpo será descartado. Ele ressuscitará incorruptível!


Engana-se quem imagina que seremos espíritos desencarnados feitos
fantasminhas vagando entre as nuvens. Receberemos um corpo novinho em
folha! Convém, ainda, salientar que, a Bíblia fala da ressurreição do "corpo"
(soma), não da "carne" (sarx). Isso, porque "carne e sangue não podem
herdar o reino de Deus; nem a corrupção herda a incorrupção" (1 Coríntios
15:50). O corpo espiritual de que fala Paulo será tangível, material, mas não
carnal, nem tampouco sujeito ao desgaste do tempo e à morte.

O novo corpo não será a continuidade do atual. Paulo compara nosso corpo
atual a uma tenda portátil (tabernáculo), enquanto nosso corpo celestial seria
um edifício, reservado no céu para nós (2 Coríntios 5:1). As moradas a que
Jesus se refere como estando preparadas para nós não são mansões literais,
mas nossos corpos celestiais. Essa "tenda" é apenas o andaime que precisará
ser removido para dar lugar ao edifício glorioso que emergirá. De uma
maneira ou de outra, quer estejamos vivos ou mortos, o fato é que
receberemos novos corpos, que, ao mesmo tempo, será continuação do atual
no que tange à morfologia (forma), e algo totalmente novo no que tange à
natureza. Sem este novo corpo, jamais poderíamos viver no ambiente da
eternidade, composto do novo céu e da nova terra, que nada mais são do que
os atuais inteiramente restaurados à sua ordem original.

Mesmo que não seja exatamente o mesmo corpo, creio que nosso corpo
espiritual guardará várias de nossas características físicas, sobretudo, as
fisionômicas. É como se Deus guardasse nos arquivos celestiais
um backup com a sequência exata de nosso DNA, acrescido de uma espécie
de código de nossa consciência, que preservará intacta a memória de todas as
nossas experiências. Nada se perderá! A única coisa que será removida de
nossa natureza será o pecado, causador da morte. Seremos nós, nosso código
genético, nossa personalidade, nossa fisionomia, porém, aperfeiçoados, sem
enfermidades ou deformações, sejam de caráter físico ou psicológico. Talvez,
apenas algumas cicatrizes que serão como troféus, marcas de uma vida
dedicada à causa do reino de Deus e de Sua justiça.

Fique tranquilo, que certamente nos reconheceremos lá, mesmo com as


eventuais correções em nossa aparência. Nossa personalidade, e, por
conseguinte, nossa memória serão preservadas. Nossa história jamais será
esquecida. Caso contrário, não seríamos nós, mas outros. E não haveria
qualquer razão para ações de graça. Como agradecer por algo de que não
temos qualquer lembrança? Como poderemos louvar ao Cordeiro, se não nos
lembrarmos dos nossos pecados que O levaram à cruz?

Quando a Bíblia diz que não haverá mais lembranças das coisas passadas,
não é no sentido de que seremos submetidos a uma espécie de amnésia. Mas
no sentido de que não serão mais essas lembranças que determinarão nossa
vida. Assim como Deus diz não se lembrar dos nossos pecados. Todavia,
ninguém deduz daí que Ele sofra de amnésia.

E quanto aos que serão alvos tão somente da reconciliação universal? O que
eu quis dizer ao afirmar que os tais estarão como que fragmentados? Sua
existência terrena terá sido descartada, restando-lhe apenas a essência, a
centelha divina. Terão que conviver com a vergonha de terem desperdiçado a
oportunidade de existirem por algo mais significativo que suas próprias vidas.

Ao análogo pode ser visto em Paulo. Sua vida pregressa era motivo de grande
vergonha. Afinal, ele foi um perseguidor voraz dos seguidores de Cristo.
Apesar de inteiramente convertido, o apóstolo dos gentios teve que conviver
com um espinho em sua carne, que segundo ele, era um mensageiro de
Satanás que o esbofeteava, jogando em sua cara seu passado tenebroso. Suas
orações não foram suficientes para que tal espinho fosse removido. Em vez
disso, ouviu de Cristo que a Sua graça lhe bastava.

Pense nisso numa projeção astronômica. Mesmo não tenho o diabo para
acusá-los, nem mesmo um mensageiro dele para esbofeteá-los, terão que
conviver com a lembrança de haver desperdiçado sua existência, insistindo
em viver para si mesmos. Nada lhes poderá remover tal espinho. Todavia, a
mesma graça que bastava a Paulo, ser-lhes-á suficiente para sempre.

Uma pista disso pode ser encontrada na profecia de Enoque citada por Judas
em sua epístola: “Vede, o Senhor vem com milhares de seus santos, para
fazer juízo contra todos e para fazer convictos todos os ímpios, acerca de
todas as obras ímpias que impiamente praticaram e de todas as duras
palavras que ímpios pecadores contra ele proferiram” (Judas 1:14b-15).
Quão profunda e perturbadora será essa convicção! Se o olhar de Jesus fez
com que Pedro passasse uma noite inteira chorando arrependido por tê-lo
negado, como se sentirão aqueles que o houverem negado por toda sua vida?

Contudo, devo salientar que não creio que haverá distinção entre cidadãos de
primeira classe (que houverem sido salvos durante sua existência terrena) e
cidadãos de segunda classe (que se beneficiaram unicamente da reconciliação
universal). Todos terão consciência de que foram alvos da mesma graça. A
mesma graça que nos salvou em vida, os terá salvado de uma eternidade de
tormento. E não será uma salvação meia-boca. Abarcará igualmente seu ser
por inteiro, corpo, alma e espírito.

Serão como filhos pródigos, recebidos com festa por um pai amoroso.
Duvido que seus irmãos primogênitos se neguem a participar da grandiosa
recepção que os aguarda.

Primícias. É assim que as Escrituras se referem a nós, os que houvermos sido


alcançados pela graça salvadora ainda em vida. De acordo com o testemunho
de Tiago, “ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como
que primícias das suas criaturas” (Tiago 1:18). Somos os que “foram
comprados dentre os homens para serem as primícias para Deus e para o
Cordeiro” (Apocalipse 14:4).

Este termo é oriundo da agricultura e refere-se aos primeiros frutos da terra.


O termo também era aplicado à primogenitura. Somos os primeiros a gozar
das bem-aventuranças da nova criação. Porém, não os únicos.

Formamos o que o escritor sagrado de chama de “igreja dos primogênitos


inscritos nos céus” (Hebreus 12:23). Não somos chamados de unigênitos, e
sim de primogênitos, indicando que haja outros depois de nós.
Enquanto nos dedicamos ao nosso pai, temos irmãos que como pródigos
estão desperdiçando suas vidas. O mesmo pai que celebra nossa fidelidade e
companhia, há de celebrar seu retorno. E há de dizer: o que havia se perdido,
foi achado e o que estava morto, reviveu.

É importante que se diga que o que tenho proposto aqui está longe de ser
comparado à doutrina do purgatório. O inferno serve ao propósito de
conscientização, não de punição por punição. Quem para lá for enviado terá
que reconhecer a gravidade de seu pecado, bem como sua desesperadora
necessidade de redenção. Porém, esta redenção é mediante o sacrifício de
Jesus somente. Não se trata da pessoa pagar por seu pecado, para então ter
direito à vida eterna.

Por quanto tempo viverão no inferno? Esta é uma pergunta que perde o
sentido quando nos damos conta de que se trata de uma esfera atemporal. Um
milionésimo de segundo no inferno poderia equivaler a uma eternidade em
nosso tempo. Neste caso, a intensidade conta mais que a durabilidade.
Imagine o estrago feito por uma gota de lava vulcânica? A quantidade não
significa tanto quanto a intensidade.

Há razões bíblicas para se crer que haverá graduações de castigo. Na parábola


contada por Jesus, aquele servo que disser em seu coração: “O meu senhor
tarda em vir; e começar a espancar os criados e as criadas, e a comer, a
beber e a embriagar-se, virá o senhor desse servo num dia em que não o
espera, e numa hora de que não sabe.” Porém, “o servo que soube a vontade
do seu senhor, e não se aprontou, nem fez conforme a sua vontade, será
castigado com muitos açoites;
mas o que não a soube, e fez coisas que mereciam castigo, com poucos
açoites será castigado. Daquele a quem muito é dado, muito se lhe
requererá; e a quem muito é confiado, mais ainda se lhe pedirá” (Lucas
12:45-48). Uma boa hermenêutica não nos permite elaborar uma doutrina a
partir de uma parábola. Entretanto, esta parábola, aliada ao bom senso, nos
oferece indícios de que a justiça divina requeira penas proporcionais ao delito
praticado.

Obviamente que “açoites” deve ser entendido com um eufemismo. O algoz


que nos aplica tal açoite é a nossa própria consciência.

A eternidade é o reino da consciência. O inferno representa uma consciência


perturbada e torturada pela culpa. O céu representa uma consciência
apaziguada, em plena harmonia com os propósitos do Criador.

Na medida em que nossa consciência vai se ampliando através do processo


chamado de arrependimento (metanoia = expansão de consciência), é-nos
concedida entrada cada vez mais ampla no reino eterno de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo (Confira 2 Pedro 1:10-11).

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