Hermes Fernandes
Hermes Fernandes
Hermes Fernandes
Será que teremos que desistir de amá-las? Será que Deus nos submeterá a
uma amnésia? Será que pais que foram salvos terão que se esquecer da
existência dos filhos condenados à perdição?
Por duas vezes lemos no livro de Apocalipse que Deus enxugará dos nossos
olhos toda lágrima (7:17; 21:4). As razões pelas quais não haverá mais choro
é que também “não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem
dor.” Se ainda houver dor em algum lugar do cosmos, então, haverá motivo
para lágrimas. Não apenas por parte dos que forem condenados, mas também
dos que com os tais se importarem.
O ponto em que almejo tocar é se o sofrimento daqueles que nos são caros
não poderia igualmente nos afetar. Se não, de que maneira poderíamos
desfrutar das bem-aventuranças prometidas aos misericordiosos, se nem ao
menos fôssemos capazes de nos compadecer deles? Se sim, como conciliar a
doutrina do sofrimento eterno no inferno com os prazeres indizíveis que a
presença imediata de Deus nos proporcionará?
Dante Alighieri, escritor e poeta italiano que viveu entre 1265 e 1321, foi
responsável por disseminar as fantasias acerca do inferno que hoje povoam o
imaginário popular. Em sua obra “Divina Comédia”, Dante descreve o
inferno de acordo com a concepção medieval, formado por nove círculos, três
vales, dez fossos e quatro esferas. O inferno se tornaria mais profundo a cada
círculo, de acordo com a gravidade dos pecados cometidos pelos que para lá
fossem enviados. O adjetivo “dantesco”, sinônimo de horripilante, terrível,
macabro, advém da descrição dos horrores perpetrados pelos demônios nos
condenados à pena eterna. A parte de sua obra dedicada a descrever o
infortúnio dos réprobos tornou-se conhecida como “O inferno de Dante”.
Para o poeta italiano, o Diabo é o rei do inferno, bem como o anfitrião e
algoz das almas que para lá vão.
Nem Dante, nem Milton, tão pouco Mary Baxter com sua “Divina Revelação
do Inferno” poderão nos oferecer uma visão equilibrada acerca do assunto.
Para termos um vislumbre do verdadeiro inferno, teremos que deixar nossos
pressupostos de lado e mergulhar nas límpidas águas das Escrituras.
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O Inferno como recurso retórico
termo Hades foi usado por Jesus em outros contextos que fugiam ao conceito
original. Por exemplo, quando quis chamar a atenção dos moradores
Paulo faz usou da mesma analogia em Efésios 4:9-10, onde diz que o mesmo
Cristo que desceu às partes mais baixas da terra, também subiu acima de
todos os céus para encher todas as coisas. A expressão “partes mais baixas
da terra” é uma referência clara ao submundo, ao Hades. Algo similar pode
ser encontrado em Filipenses 2:6-11, onde lemos que Jesus, “sendo em forma
de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si
mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e,
achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à
morte, e morte de cruz. Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e
lhe deu um nome que é sobre todo o nome; para que ao nome de Jesus se
dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra e
toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus
Pai.” Repare que neste texto, temos a nítida impressão de que a
chamada kenósis (esvaziamento) experimentada por Cristo foi como o descer
uma escada, degrau por degrau, humilhando-se até chegar ao fundo. De fato,
como diz o Credo Apostólico, Cristo desceu ao inferno, quer tenha sido
literalmente ou figuradamente, ao descer o mais baixo degrau experimentado
pelo ser humano destituído da glória original. Ele não morreu a morte dos
mártires, dos heróis, mas a morte dos proscritos e marginais. Foi no mais
profundo inferno existencial que Ele, sentindo-se abandonado e entregue à
própria sorte, indagou: “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” (Marcos 15:34). Não creio que houvesse um degrau a mais
para que Ele descesse além deste. O sepulcro seria apenas o lugar onde Seu
corpo seria depositado. Mas sua alma experimentou a fúria do inferno no
momento que antecedeu a rendição do Seu espírito ao Pai.
Num certo sentido, Vitor Hugo tinha razão ao afirmar que “todo o inferno
está contido nesta única palavra: solidão”. Durante toda a Sua peregrinação
terrena, o Pai estava com Ele. Porém, naquele instante em que todos os
pecados da humanidade lhe foram imputados, abriu-se um abismo entre Ele e
Seu Pai (João 16:32). O Pai estava com Ele no Getsêmane, durante os
flagelos perpetrados pelos romanos, e durante as seis horas em que esteve
pendurado no madeiro. Mas nos instantes finais, pela primeira vez, Jesus Se
viu inteiramente só. Este era o preço que teria que ser pago para que, ao ser
exaltado, recebendo um nome sobre todos os nomes, então, todos os joelhos
se dobrassem, tanto no céu, quanto na terra e... debaixo da terra. Cristo é o
Senhor de todos os céus. Ele é o Senhor de toda a terra. Ele é o Senhor até do
inferno. Não há esfera existencial da qual Ele não seja soberano. Portanto,
Dante, Milton, Mary Dexter e outros estão redondamente equivocados ao
atribuir a Satanás o senhorio do inferno, seja de que natureza for.
Receber um nome que é sobre todos os nomes é o mesmo que “subir acima
de todos os céus”, assim como humilhar-se tomando a forma de homem, se
fazendo servo e sendo obediente até a morte é o mesmo que “descer às
partes mais baixas da terra”.
Outra lenda que se tem disseminado entre muitas igrejas é a de que o Diabo
promovia um verdadeiro carnaval no inferno enquanto Jesus era crucificado.
Porém, Jesus teria interrompido a celebração e tomado das mãos do Diabo as
chaves do inferno. Nada mais distante da verdade que isso. Jamais foi
intenção do Diabo que Jesus morresse na cruz. Pelo contrário. Ele fez de tudo
para impedir que isso acontecesse, pois sabia que através de Sua morte, seu
império seria desbaratado. Por isso, foi capaz de usar até os lábios de Pedro
para tentar dissuadir Jesus (Mateus 16:22-23). Já no início do ministério de
Jesus, o Diabo lhe ofereceu um atalho para reaver os reinos deste mundo, e
assim, não precisasse passar pela cruz (Mateus 4:8-9). Mesmo durante Seu
suplício no calvário, o Diabo insistia em que Ele descesse da cruz, valendo-se
dos lábios de várias pessoas, incluindo um dos ladrões que morriam ao Seu
lado (Lucas 23:39; Marcos 15:30). A cruz sempre foi o centro do plano
divino para a redenção de toda a criação (Atos 2:23). Ela foi a porta pela qual
Jesus passou para adentrar o território da morte e libertar os que ali estavam
cativos.
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O império da morte
Paulo captou este conceito e o expressou como ninguém ao afirmar que “pela
ofensa de um só, a morte reinou por esse”, mas que agora, “os que recebem
a abundância da graça, e o dom da justiça, reinarão em vida por um só,
Jesus Cristo” (Romanos 5:17).
Como para os gregos, o Hades era o território sobre o qual a morte exercia
seu domínio, tanto Jesus quanto Paulo se apropriam deste conceito para
designar o domínio exercido pela morte desde a queda do primeiro homem,
Adão.
O Diabo jogou sujo desde o início, mas Deus não Se rebaixou a jogar em
seus próprios termos. Ele preferiu agir dentro das regras que Ele mesmo
instituiu. O escritor sagrado diz que devido ao fato de sermos participantes
comuns de carne e sangue, “também ele semelhantemente participou das
mesmas coisas, para que pela morte aniquilasse o que tinha o império da
morte, isto é, o Diabo; e livrasse todos os que, com medo da morte, estavam
por toda a vida sujeitos à escravidão” (Hebreus 2:14-15).
Repare que o texto é claro ao afirmar que o Diabo “tinha” o império das
trevas. Tinha, não tem mais. Ele nem mesmo continua sendo o príncipe deste
mundo. Quando Jesus o chamou deste modo, ainda não o havia aniquilado
pela morte. No entanto, estava prestes a fazê-lo. Confira o que Ele diz:
“Agora é o juízo deste mundo; AGORA será expulso o príncipe deste
mundo” (João 12:31). Pouco depois, Ele disse: “O príncipe deste mundo já
está julgado”(João 16:11).
Foi à luz desta verdade que Paulo pôde declarar veementemente que
Jesus “tendo despojado os principados e potestades, os expôs publicamente
ao desprezo e deles triunfou na cruz” (Colossenses 2:15).
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Em que consiste o inferno?
O vocábulo mais usado por Jesus para referir-se ao que comumente
chamamos de inferno é geena. O geena era o aterro sanitário que
havia do lado de fora da cidade de Jerusalém. Era considerado um
lugar maldito, onde o verme não morria e o fogo nunca apagava.
Portanto, podemos afirmar que o geena representa o fim dado a tudo o que
não pode ser aproveitado, que teve sua existência como um fim em si mesmo,
que se negou a abrir-se para a vida e que, por isso mesmo, será descartado.
É neste contexto que quem chama seu irmão de “tolo” estará sujeito ao fogo
do geena (Mateus 5:22). Devemos temer, não os que matam o corpo, e não
podem matar a alma, e sim “aquele que pode fazer perecer no geena tanto a
alma como o corpo” (Mateus 10:28).
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Quanto durará o inferno?
À luz desta advertência concluímos que ser lançado no geena envolve dor,
sofrimento e privação (ranger de dentes é não do que se alimentar). Talvez
por isso Jesus fosse tão enfático em Suas admoestações. Ele sabia o que
estava em jogo e queria poupar-nos a todos de tal destino.
Surge, então, uma questão inevitável: quanto tempo durará tal sofrimento no
inferno? Para a maior parte dos cristãos atuais, a resposta inequívoca, deve
ser dada em uníssono: eternamente.
Por mais que se acredite nisso, isso jamais deveria nos deixar confortáveis.
Afinal, estamos nos referindo a seres humanos, criados à imagem e
semelhança de Deus. Recuso-me a acreditar que alguém tenha prazer nesta
“verdade”. Só mesmo um sádico se alegraria no fato de alguém ser
condenado a uma pena irrevogável e eterna. Que pecado seria tão grave que
deveria valer o sofrimento de alguém por eras intermináveis? Não seria algo
desproporcional? Haveria desproporcionalidade na justiça divina? Antes de
nos atrevermos a uma resposta, vejamos o que leva muitos a crerem que o
inferno será eterno.
Em Mateus 25:41 lemos que o justo Juiz dirá “aos que estiverem à sua
esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, destinado ao
Diabo e seus anjos.”
Ora, se o fogo é eterno, logo, o sofrimento provocado por ele também deverá
sê-lo. Esta é a conclusão a quem muitos chegam a partir desta passagem em
particular. Porém, precisamos entender o significado da palavra “eterno”
neste texto. Quando o adjetivo aionios significando “eterno” é usado no
grego juntamente com substantivos de ação, ele se refere ao resultado da
ação, não ao processo. Assim a expressão “castigo eterno” é comparável a
“redenção eterna” e a “salvação eterna”, sendo todas expressões bíblicas. Os
que se perdem não passarão eternamente por um processo de castigo, mas
serão punidos uma vez por todas com resultados eternos.
Na lei mosaica havia um arranjo pelo qual um escravo serviria ao seu amo
“para sempre” (olam) (Êxodo 21:1-6), mas esse “para sempre” é relativo ao
tempo de vida do indivíduo, o que poderia significar “por breve período” ou
“por longos dias”, dependendo da longevidade do mesmo.
E o que dizer do “fogo eterno” que queimou Sodoma e Gomorra, mas não
está queimando até hoje? Comparando-se diferentes traduções bíblicas
percebe-se que o texto de Judas 7 foi alterado ilegitimamente por tradutores
na Versão Almeida Revista e Atualizada em português. No original grego
consta pyròs aioniou (fogo eterno), caso genitivo, que qualifica o termo
“punição”. Então, não resta dúvida que a melhor tradução é “sofrendo a
punição do fogo eterno”.
Se nos atentarmos nos versos abaixo percebe-se algo que talvez nunca haja
chamado a atenção de muitos leitores da Bíblia e que ilustra bem a
relatividade de sentidos das palavras hebraicas traduzidas por “eternamente”,
“para sempre”. Profetizando acerca de Jerusalém, o profeta Isaías declara:
Um castigo com duração eterna não parece fazer jus à imagem de Deus que
emerge das Escrituras como um todo. Lemos, por exemplo, no verso 5 do
Salmo 30 que “a sua ira dura só um momento; no seu favor está a vida. O
choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã.” Leia
novamente para não ter dúvida: Sua ira dura só um momento. Enquanto “sua
misericórdia dura para sempre”(Sl.106:1). Tenho a impressão que temos
apresentado ao mundo um deus que é o inverso deste, cuja misericórdia dura
só um momento, mas sua ira dura para sempre.
Estou certo de que não estamos tratando com uma divindade bipolar! Se Ele
diz que não repreende perpetuamente, quem somos nós para discordar? E há
uma razão lógica para isso. O profeta Miquéias diz que “Ele não retêm a sua
ira para sempre, porque tem prazer na misericórdia” (Miquéias
7:18). Somente uma divindade sádica teria prazer no sofrimento de suas
criaturas. Mas pelo jeito, tem quem tenha mais prazer em saber que enquanto
uma pequena minoria estará gozando das beatitudes eternas, a grande maioria
estará ardendo num inferno eterno.
Quem ama, certamente se importa com o bem do ente amado. Como, então,
poderíamos nos sentir plenamente felizes desfrutando da glória destinada aos
filhos de Deus, sabendo que em algum lugar do universo, as pessoas a quem
tanto amamos estarão sendo torturadas, e que seu sofrimento não duraria um
dia, nem um ano, ou mesmo um século, mas por toda a eternidade?
Será que teremos que desistir de amá-las? Será que Deus nos submeterá a
uma amnésia? Será que pais que foram salvos terão que se esquecer da
existência dos filhos condenados à perdição? Por duas vezes lemos no livro
de Apocalipse que Deus enxugará dos nossos olhos toda lágrima (7:17; 21:4).
As razões pelas quais não haverá mais choro é que também “não haverá mais
morte, nem pranto, nem clamor, nem dor.” Se ainda houver dor em algum
lugar do cosmos, então, haverá motivo para lágrimas. Não apenas por parte
dos que forem condenados, mas também dos que com os tais se importarem.
O próprio Jesus dá testemunho de que para tal Ele viera ao mundo: “Vim
lançar fogo na terra; e que mais quero, se já está aceso?” (Lucas 12:49). É
este fogo que põe à prova nossas obras. Tudo o que é feito para durar, escapa
ileso à sua fúria. Mas o que visa tão-somente alimentar nossa arrogância e
narcisismo e suprir nossa busca desenfreada por prazer será fadado a ser
consumido. Só vale a pena manter o que transcende à nossa própria
existência; o que não tem prazo de validade; o que visa não apenas o nosso
bem, mas o do nosso próximo. É o que Jesus chama de "ajuntar tesouros no
céu." E quando digo “próximo”, não me refiro apenas à proximidade
geográfica ou similitude, mas também àquele que vem depois de nós, e que
desfrutará do nosso legado. Amar o próximo também é amar que vem após
nós; aquele que ocupará o lugar que hoje ocupamos, e que usufruirá do fruto
de nosso trabalho. Tudo o que for feito visando apenas nosso aprazimento,
não resistirá à prova do fogo, e, portanto, não sobreviverá a nós.
Este é um dos assuntos principais abordados por Paulo em suas cartas. Ele
mesmo deu testemunho em sua despedida dos efésios: “Em nada, porém,
considero minha vida preciosa, contanto que cumpra com alegria a minha
carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do
evangelho da graça de Deus” (Atos 20:24). Por isso, ele não se importava de
sofrer qualquer que fosse o prejuízo, até mesmo a morte. Sua obra no Senhor
seria a evidência de que sua vida não teria sido em vão.
Só há, por assim dizer, uma maneira de ser poupado das chamas do juízo de
Deus: deixar-se consumir em vida por amor. O que não for consumido pelas
chamas do amor, será consumido pelas chamas do juízo. Era tal consciência
que movia o apóstolo de modo que não se importava em exaurir suas forças e
energias pelo bem de todos. “Eu de muito boa vontade gastarei”, testifica, “e
me deixarei gastar pela vossa alma, ainda que, amando-vos cada vez mais,
seja menos amado” (2 Coríntios 12:15). Tal postura subversiva era
alimentada pelas palavras de Cristo: “Quem ama sua vida, a perderá, mas
quem odeia a sua vida neste mundo a guardará para a vida eterna” (João
12:25). “Odiar” aqui tem o sentido de desprezar, não atribuir valor, fazer
pouco caso, desdenhar. Somos desafiados a abrir mão de nossa própria vida
por algo infinitamente maior. “Pois quem quiser salvar a sua vida, a
perderá”, diz o Cristo, “mas quem perder a sua vida por minha causa e do
evangelho, esse a salvará” (Marcos 8:35). Para nós, seguidores de Cristo, o
inferno não é o outro como dizia Sartre, o filósofo existencialista francês. O
outro é a possibilidade do céu. Viver para o outro é poupar-se de uma vida
desprovida de significado. Viver para o outro é deixar vago seu lugar no
inferno. É garantir que suas obras continuarão a repercutir mesmo depois de
sua partida, ecoando na eternidade. Eis a promessa: “Bem-aventurados os
mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, descansarão
dos seus trabalhos, pois as suas obras os acompanharão” (Apocalipse
14:13).
Tanto Paulo, quanto Moisés, parecem ter captado tal verdade. Somente isso
justificaria certas posturas radicais adotadas por eles. Paulo, por exemplo, diz
que preferia estar separado de Cristo se isso resultasse na salvação de seus
patrícios. “Porque eu mesmo”, afirma o apóstolo, “desejaria ser separado de
Cristo, por amor de meus irmãos, que são meus parentes segundo a carne; os
quais são israelitas...” (Romanos 9:3-4a). Repare: Ele estava disposto a abrir
mão da própria salvação caso isso garantisse que os judeus fossem
alcançados. Ele hipotecaria a eternidade pelo bem de quem o perseguia.
Moisés adotou postura semelhante ao pedir que Deus riscasse seu nome do
livro da vida, mas não desistisse do Seu povo (Êxodo 32:32). Uma
espiritualidade egocêntrica como a que tem sido pregada em nossos dias
jamais produziria tal disposição. Cada qual está interessado em salvar a sua
própria pele.
“Segundo a graça de Deus que me foi dada, pus eu, como sábio
construtor, o fundamento, e outro edifica sobre ele. Mas veja cada um
como edifica sobre ele. Pois ninguém pode pôr outro fundamento, além
do que já está posto, o qual é Jesus Cristo. E, se alguém sobre este
fundamento levantar um edifício de ouro, prata, pedras preciosas,
madeira, feno, palha, a obra de cada um se manifestará, porque o dia a
demonstrará. Pelo fogo será revelada, e o fogo provará qual seja a
obra de cada um. Se a obra que alguém edificou sobre ele permanecer,
esse receberá galardão. Se a obra de alguém se queimar, sofrerá
perda; o tal será salvo, todavia como pelo fogo.” 1 Coríntios 3:10-15
E como lemos anteriormente, este fogo já está aceso. Suas labaredas podem
ser sentidas desde já. O escritor de Hebreus afirma que “se voluntariamente
continuarmos no pecado, depois de termos recebido o pleno conhecimento da
verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas certa expectação
horrível de juízo e ardor de fogo que há de devorar os adversários” (Hebreus
10:26-27). Observe bem: apesar de filhos, não somos poupados deste “ardor
de fogo”, porém, não somos devorados por ele. Afinal, o inferno
foi “preparado para o diabo e seus anjos” (Mateus 25:41). Por isso, lemos
que este fogo “há de devorar os adversários”. Aliás, para quem diz que se
trata de “fogo” diferente, como explicar esta passagem? O fogo é exatamente
o mesmo! Uma metáfora para o juízo de Deus contra toda a injustiça. Este
fogo devora uns, purifica outros. Devora demônios, purifica humanos.
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Vasos de honra e vasos de desonra
Com isso em mente, fica mais fácil entender o que Paulo intentava ao afirmar
haver entregue alguém a Satanás “para a destruição da carne, para que o
espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus” (1 Coríntios 5:5). Obviamente
que foi uma medida disciplinar drástica, usada pelo apóstolo para poupar a
igreja de um escândalo sem precedentes. Quem se atrever a acusa-lo de falta
de misericórdia, deve repensar sua postura ao defender que alguém padeceria
eternamente no inferno sem dó, nem piedade. Apesar de drástica, a disciplina
apostólica não excluía a certeza de que aquela vida seria poupada de um
sofrimento eterno. Entregar o corpo ao diabo é um eufemismo, e pode ser
considerado o mesmo que colocar a existência sob o escrutínio e juízo
divinos.
E como se dará isso? Da mesma maneira como ocorre durante a vida terrena,
mediante o reconhecimento e confissão do senhorio de Cristo sobre todas as
esferas da existência. “Se com a tua boca confessares a Jesus como
Senhor(...) serás salvo”, declara Paulo (Romanos 10:9).
Para muitos, esta confissão só tem validade durante nosso prazo de vida
terrena. Após a morte, todas as possibilidades estão esgotadas. Porém, não é
isso que encontramos nas Escrituras. O mesmo Paulo diz ao nome de Jesus se
dobrará “todo joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra” e
que toda língua confessará “que Cristo Jesus é o Senhor, para glória de Deus
Pai” (Filipenses 2:10).
Então, qual a vantagem de se servir a Cristo se no final das contas todos serão
alcançados por esta mesma graça? Caso você tenha feito esta pergunta, sugiro
que reveja sua fé. Você está adotando a mesma postura do irmão mais velho
da parábola do Filho Pródigo.
“E tudo isto provém de Deus que nos reconciliou consigo mesmo por
Jesus Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação, isto é, Deus
estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos
homens os seus pecados, e nos confiou a palavra da reconciliação.” 2
Coríntios 5:18-19
Deus não está de mal com o mundo! Esta é boa nova do evangelho! Nossa
missão é anunciar tal fato a todos para que desfrutem imediatamente o favor
divino. Não se trata de garantir passagem de ida para o céu, mas de trabalhar
para que a vontade de Deus seja feita aqui na terra como é feita no céu.
Durante muito tempo, estive entre estes. Torcia para que fosse verdade. E
acho que este deveria ser o desejo de todo discípulo de Cristo. Até que um
dia, deparei-me com um verso que deixa claro que esta não era apenas a
minha vontade, mas a vontade do próprio Deus. A partir daí, deixei de torcer
para que tal possiblidade se comprovasse verdadeira, e passei a pregá-la em
alto e bom tom, mesmo correndo o risco de ser mal interpretado. Refiro-me à
maravilhosa passagem que diz que Deus “quer que todos os homens se
salvem, e venham ao conhecimento da verdade” (1 Timóteo 2:4). Esta
passagem é confirmada pelo testemunho de Pedro de que Deus não quer “que
ninguém se perca, senão que todos venham a arrepender-se” (2 Pedro 3:9).
Quem poderá impedir que Seu desejo se cumpra? “Operando eu, quem
impedirá?” (Isaías 43:13).
Chegará o momento em que já não haverá razão para que o inferno exista.
Seu destino está selado. Ele terá que devolver os que nele estiverem, e por
fim, será lançado no lago de fogo (Apocalipse 20:13-14). O inferno deixará
de ser.
Sabe quando você decide apagar um arquivo de seu computador? Ele
primeiro vai para a lixeira. Mas ainda está ali, na memória da sua máquina.
Até que você resolva deletá-lo de uma vez, de modo que jamais possa
recuperá-lo. De igual modo, toda existência que houver sido desperdiçada
pelo egoísmo, será banida, aniquilada para sempre, juntamente com o inferno
no lago de fogo.
Se puder enumerar vantagens (detesto este termo), posso dizer que os que
creram durante sua vida terrena serão preservados íntegros, corpo, alma e
espírito por toda a eternidade (1 Tessalonicenses 5:23). Os demais estarão
como que fragmentados, posto que sua existência terá sido descartada, mas
sua essência preservada pelos séculos dos séculos em honra às entranháveis
misericórdias de Deus.
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Fechado para balanço
Permita-me uma analogia: o computador que estou usando agora pode ser
dividido em três partes distintas, mas que trabalham em conjunto. Há o
hardware, que é a parte física, a máquina em si, com seus transistores, suas
placas, sua tela, teclado e entradas. Este equivale ao nosso corpo. Há o
software composto pelos programas instalados. Sem ele, a máquina não roda.
Este equivale à alma, nossa psique. E finalmente, há a internet que conecta o
computador, via provedor, a uma rede mundial de computadores. Este é o
espírito! E nem precisa dizer que o tal provedor é o Espírito Santo, mediante
quem temos acesso a Deus (Efésios 2:18).
A salvação proposta em Cristo é plena e abarca o ser por inteiro. Nada se
perderá! O escritor de Hebreus afirma que Cristo “pode também salvar
perfeitamente os que por ele se chegam a Deus” (Hebreus 7:25). Em Cristo,
existência e essência se fundem. Tudo o que há no céu e tudo o que há na
terra convergem (Efésios 1:10), tornando-se um todo indivisível, dois lados
de uma mesma moeda.
O novo corpo não será a continuidade do atual. Paulo compara nosso corpo
atual a uma tenda portátil (tabernáculo), enquanto nosso corpo celestial seria
um edifício, reservado no céu para nós (2 Coríntios 5:1). As moradas a que
Jesus se refere como estando preparadas para nós não são mansões literais,
mas nossos corpos celestiais. Essa "tenda" é apenas o andaime que precisará
ser removido para dar lugar ao edifício glorioso que emergirá. De uma
maneira ou de outra, quer estejamos vivos ou mortos, o fato é que
receberemos novos corpos, que, ao mesmo tempo, será continuação do atual
no que tange à morfologia (forma), e algo totalmente novo no que tange à
natureza. Sem este novo corpo, jamais poderíamos viver no ambiente da
eternidade, composto do novo céu e da nova terra, que nada mais são do que
os atuais inteiramente restaurados à sua ordem original.
Mesmo que não seja exatamente o mesmo corpo, creio que nosso corpo
espiritual guardará várias de nossas características físicas, sobretudo, as
fisionômicas. É como se Deus guardasse nos arquivos celestiais
um backup com a sequência exata de nosso DNA, acrescido de uma espécie
de código de nossa consciência, que preservará intacta a memória de todas as
nossas experiências. Nada se perderá! A única coisa que será removida de
nossa natureza será o pecado, causador da morte. Seremos nós, nosso código
genético, nossa personalidade, nossa fisionomia, porém, aperfeiçoados, sem
enfermidades ou deformações, sejam de caráter físico ou psicológico. Talvez,
apenas algumas cicatrizes que serão como troféus, marcas de uma vida
dedicada à causa do reino de Deus e de Sua justiça.
Quando a Bíblia diz que não haverá mais lembranças das coisas passadas,
não é no sentido de que seremos submetidos a uma espécie de amnésia. Mas
no sentido de que não serão mais essas lembranças que determinarão nossa
vida. Assim como Deus diz não se lembrar dos nossos pecados. Todavia,
ninguém deduz daí que Ele sofra de amnésia.
E quanto aos que serão alvos tão somente da reconciliação universal? O que
eu quis dizer ao afirmar que os tais estarão como que fragmentados? Sua
existência terrena terá sido descartada, restando-lhe apenas a essência, a
centelha divina. Terão que conviver com a vergonha de terem desperdiçado a
oportunidade de existirem por algo mais significativo que suas próprias vidas.
Ao análogo pode ser visto em Paulo. Sua vida pregressa era motivo de grande
vergonha. Afinal, ele foi um perseguidor voraz dos seguidores de Cristo.
Apesar de inteiramente convertido, o apóstolo dos gentios teve que conviver
com um espinho em sua carne, que segundo ele, era um mensageiro de
Satanás que o esbofeteava, jogando em sua cara seu passado tenebroso. Suas
orações não foram suficientes para que tal espinho fosse removido. Em vez
disso, ouviu de Cristo que a Sua graça lhe bastava.
Pense nisso numa projeção astronômica. Mesmo não tenho o diabo para
acusá-los, nem mesmo um mensageiro dele para esbofeteá-los, terão que
conviver com a lembrança de haver desperdiçado sua existência, insistindo
em viver para si mesmos. Nada lhes poderá remover tal espinho. Todavia, a
mesma graça que bastava a Paulo, ser-lhes-á suficiente para sempre.
Uma pista disso pode ser encontrada na profecia de Enoque citada por Judas
em sua epístola: “Vede, o Senhor vem com milhares de seus santos, para
fazer juízo contra todos e para fazer convictos todos os ímpios, acerca de
todas as obras ímpias que impiamente praticaram e de todas as duras
palavras que ímpios pecadores contra ele proferiram” (Judas 1:14b-15).
Quão profunda e perturbadora será essa convicção! Se o olhar de Jesus fez
com que Pedro passasse uma noite inteira chorando arrependido por tê-lo
negado, como se sentirão aqueles que o houverem negado por toda sua vida?
Contudo, devo salientar que não creio que haverá distinção entre cidadãos de
primeira classe (que houverem sido salvos durante sua existência terrena) e
cidadãos de segunda classe (que se beneficiaram unicamente da reconciliação
universal). Todos terão consciência de que foram alvos da mesma graça. A
mesma graça que nos salvou em vida, os terá salvado de uma eternidade de
tormento. E não será uma salvação meia-boca. Abarcará igualmente seu ser
por inteiro, corpo, alma e espírito.
Serão como filhos pródigos, recebidos com festa por um pai amoroso.
Duvido que seus irmãos primogênitos se neguem a participar da grandiosa
recepção que os aguarda.
É importante que se diga que o que tenho proposto aqui está longe de ser
comparado à doutrina do purgatório. O inferno serve ao propósito de
conscientização, não de punição por punição. Quem para lá for enviado terá
que reconhecer a gravidade de seu pecado, bem como sua desesperadora
necessidade de redenção. Porém, esta redenção é mediante o sacrifício de
Jesus somente. Não se trata da pessoa pagar por seu pecado, para então ter
direito à vida eterna.
Por quanto tempo viverão no inferno? Esta é uma pergunta que perde o
sentido quando nos damos conta de que se trata de uma esfera atemporal. Um
milionésimo de segundo no inferno poderia equivaler a uma eternidade em
nosso tempo. Neste caso, a intensidade conta mais que a durabilidade.
Imagine o estrago feito por uma gota de lava vulcânica? A quantidade não
significa tanto quanto a intensidade.