Complexidade e Transdisciplinaridade - Américo Sommerman
Complexidade e Transdisciplinaridade - Américo Sommerman
Complexidade e Transdisciplinaridade - Américo Sommerman
Américo Sommerman
Centro de Educação Transdisciplinar - CETRANS
Apresentação no
I Encontro Brasileiro de Estudos da Complexidade
11 a 13 e julho de 2005, Curitiba
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Nesse contexto, mostraram-se cada vez mais necessários uma razão complexa, que
buscasse estabelecer relações entre esses pólos contraditórios, e, também, diálogos cada vez
mais amplos entre as disciplinas e entre os saberes.
Surgiram, então, o Pensamento Complexo, trabalhando com essa razão complexa, a partir
da interseção de várias teorias (teoria da informação, teoria dos sistemas, teoria da auto-
organização, teoria do caos) e as abordagens e as metodologias pluri, inter e
transdisciplinares.
O Pensamento Complexo
Vimos que o desenvolvimento das ciências naturais derrogou as três idéias fortes que
sustentavam o conhecimento da ciência moderna: “a partir do início do século [XX] ocorre
algo realmente revolucionário no campo da ordem e da certeza: é o surgimento da
desordem e da incerteza” (Morin, 2001, p. 23). A desordem começou a emergir na ciência
quando Boltzman enunciou o segundo princípio da termodinâmica, demonstrando que a
entropia tende a crescer no universo. Daí surge a tendência para a degradação, para a
desordem nos sistemas, uma vez que “no tempo haveria perda da capacidade da energia
transformar-se em trabalho” (ibid.). No entanto, isso não instaurou a desordem, pois “foram
detectados quatro princípios de organização – o da gravitação, o das interações
intracelulares fortes, o das interações fracas e o das interações eletromagnéticas” (ibid.).
Instaurou-se a presença contínua da ordem e da desordem. Foi um grande golpe no
paradigma da simplicidade.
Lupasco, o formulador da lógica do terceiro incluído, lembra que, “se o Segundo Princípio
da Termodinâmica estipula que um sistema que não puder receber mais energia do
exterior” se degrada em energia térmica ou calor (cf. Lupasco, s/d, pp. 10-11), por outro
lado, a energia “manifesta uma heterogeneidade crescente” que foi denominada
neguentropia progressiva.
A outra separação, entre o observador e o objeto da sua observação, também mostrou sua
limitação. “Nenhum ser vivo pode viver sem seu ecossistema, sem seu meio ambiente. Isso
quer dizer que não podemos compreender alguma coisa de modo autônomo, senão
compreendendo aquilo de que ele é dependente.” (ibid., p. 25) Isso também significou uma
revolução no pensamento, que, até então, postulava que o conhecimento ideal exigia que se
fechasse inteiramente um objeto e, assim isolado, fosse estudado exaustivamente. A não-
separabilidade entre observador e seu objeto emergiu não apenas na física do interior do
átomo, mas também na sociologia e na antropologia. “Não passava de uma ilusão quando
acreditávamos eliminar o observador nas ciências sociais. Não é só o sociólogo que está na
sociedade; conforme a concepção hologramática, a sociedade também está nele: ele é
possuído pela cultura que o possui. Como poderia julgar sua própria sociedade e as outras
sociedades?”1 (Morin, 2000, p 185). A fronteira entre a ciência e a filosofia também vai
deixando de ser pertinente em muitas questões fundamentais da ciência de hoje: “quando a
ciência física aborda os problemas das origens do universo, esbarramos em questões
filosóficas” (Morin, 2001a, p. 26). “Tudo isso não é só uma volta à modéstia intelectual,
também é voltar a uma aspiração autêntica da verdade.” (Ibid., 2000, p. 185)
1
Mircea Eliade, falando sobre a maneira como os antropólogos e sociólogos estudavam os textos e as obras
de outras culturas observa que esses “documentos humanos haviam sido estudados anteriormente com o
desinteresse e a indiferença que os naturalistas do século XIX dedicavam ao estudo dos insetos. Agora
começa-se a perceber que esses documentos exprimem situações humanas exemplares, que fazem parte
integrante da história do espírito. Ora, o meio apropriado para se apreender o sentido de uma situação humana
exemplar não é a ‘objetividade’ do naturalista, mas a simpatia inteligente do exegeta, do intérprete” (1991, p.
4).
Diante desses pares de contraditórios que emergem nesses três pilares do conhecimento da
ciência moderna, a ordem, a separabilidade e a razão, Morin sugere que se caminhe em
direção a uma razão aberta, que não se restrinja aos princípios da lógica clássica. Não se
trata, segundo ele, de substituir a ordem pela desordem, a separabilidade pela não-
separabilidade, nem a lógica clássica por uma outra lógica ou por uma desrazão.
Apoiando-se então numa razão aberta ou complexa (que busca uma articulação dialógica
entre esses pares de contraditórios) e nessas várias teorias: Teoria da Informação (década de
40), Teoria dos Sistemas (também nos anos 40), teorias da auto-organização (década de 70)
e a Teoria do Caos (décadas de 70 e 80), foi sendo elaborado o Pensamento Complexo.
Além dessa derrogação das três idéias centrais da ciência moderna: a ordem, a
separabilidade e a razão, a premissa do reducionismo: a existência de um único nível de
realidade, aquele descrito pela física clássica e percebido pelos cinco sentidos, foi
derrubada.
Essa física clássica, que passou ser o modelo da ciência empírico-racional, está
fundamentada em duas idéias gerais: (1) a de continuidade: pois de acordo com os órgãos
dos sentidos “não se pode passar de um ponto a outro do espaço e do tempo sem passar por
todos os pontos intermediários” (Nicolescu, 2001, p. 18); (2) a de causalidade local:
“qualquer fenômeno físico poderia ser compreendido por um encadeamento contínuo de
causas e efeitos”, sendo que cada causa gera um efeito próximo e cada efeito advém de uma
causa próxima. Ambas geram um terceiro conceito, (3) o de determinismo: pois “se
soubermos as posições e velocidades dos objetos físicos num dado instante, podemos
prever suas posições e velocidades em qualquer outro momento do tempo” (ibid., 19).
Nicolescu observa que a simplicidade e a beleza desses três conceitos fascinaram grande
parte dos cientistas e intelectuais dos últimos séculos, que proclamaram a física a rainha da
ciência e reduziram toda a realidade ao físico e ao biológico, gerando a ideologia
cientificista, que se tornou hegemônica na elite intelectual do século XIX. A conseqüente
redução do funcionamento do Universo ao de uma máquina perfeitamente regulada e
previsível fez com que todos os outros níveis de realidade e de percepção fossem
descartados e o Universo fosse dessacralizado para ser conquistado. Todos os outros níveis
da Natureza e do ser humano foram lançados “nas trevas do irracional e da superstição”
(ibid., 20) e o sujeito foi transformado em objeto. Essa simplicidade aparente das leis da
Natureza gerou uma euforia cientificista que contagiou muitas mentes, que postularam a
existência de correspondências entre essas leis e as leis econômicas, sociais e históricas,
gerando várias teorias e ideologias mecanicistas e materialistas ⎯ como, por exemplo, o
marxismo e capitalismo. Essas teorias e ideologias tornaram a idéia “da existência de um
único nível de realidade” hegemônica nos ambientes científicos e acadêmicos.
No entanto, no início do século XX, Max Planck fez uma descoberta que começou a
demolir o paradigma científico vigente na época. Ele descobriu que a energia tem uma
estrutura descontínua: ela se move por saltos, “sem passar por nenhum ponto
intermediário” (ibid., p. 18). Essa descoberta, que derrubou um dos pilares da física
clássica, a idéia de continuidade, colocou em questão outro dos seus pilares, a causalidade
local. Mas foi apenas na década de 70 que o tipo de causalidade do mundo quântico foi
esclarecido e verificado: a causalidade global. No mundo subatômico “as entidades físicas
continuam a interagir qualquer que seja o seu afastamento” (ibid., p. 25). Essa
comprovação da causalidade global derrogou um dos pilares metodológicos da ciência
moderna, a separabilidade (por exemplo, entre sujeito e objeto), e um novo conceito
emergiu na física, a não-separabilidade. No entanto, isso não colocou em dúvida a
causalidade como um todo, mas mostrou a existência de outro tipo de causalidade, além da
local, que não nega a objetividade científica, mas apenas “uma de suas formas: a
objetividade clássica, baseada na crença de ausência de qualquer conexão não-local” (ibid.,
p. 26). Algumas décadas mais depois da descoberta de Planck, outro dos pais da física
quântica, Werner Heisenberg, derrubará o terceiro pilar da física clássica, a idéia de
determinismo, pois suas equações mostraram que as entidades quânticas encontradas por
Planck (os quanta: os pacotes de energia que se movem por saltos) não podem ser
localizados num ponto preciso do espaço e num ponto preciso do tempo. Essas entidades
quânticas, muito diferentes dos dois tipos de objetos bem distintos que eram estudados pela
física clássica, os corpúsculos e as ondas ⎯ pois são as duas coisas ao mesmo tempo ⎯,
não podem ter sua trajetória prevista. Portanto, na escala subatômica (o interior do átomo)
reina um indeterminismo. No entanto, este não significa acaso ou imprecisão, pois, por um
lado, as entidades quânticas não respeitam, como vimos, as idéias fundamentais da física
clássica, a continuidade e a causalidade local, e, por outro, as previsões probabilísticas da
mecânica quântica são muito precisas no que diz respeito a essas entidades.
Vemos, com isso, que o paradigma da simplicidade da física clássica, que se apoiava na
idéia de continuidade, causalidade local e determinismo perdeu seu estatuto ontológico2
com a verificação da descontinuidade, da causalidade global e do indeterminismo nas
escalas muito pequenas do interior do átomo. Como vimos acima, a física clássica tinha se
tornado o paradigma da ciência moderna, que, com isso, viu seu modelo de ciência se
transformar.
Além disso, a descoberta de que, no nível das escalas muito pequenas (subatômicas), as leis
físicas são diferentes daquelas do nível das escalas macroscópicas invalidou todas as
epistemologias reducionistas (mecanicismo, positivismo, fisicalismo) e seu dogma “da
existência de um único nível de Realidade” (ibid., p. 28), hegemônico nas elites intelectuais
dos séculos XIX e XX, pois foi comprovada a existência de pelo menos dois níveis de
realidade.
Inter e transdisciplinaridade
2
Deixou de ser respaldado na realidade dos seres ou entes (ón, ontos) existentes na natureza e estudados pela
ciência.
Vimos que, concomitante e paralelamente ao Pensamento Complexo, surgiram as
abordagens e metodologias pluri, inter e transdisciplinares para tratar os problemas
complexos, muitos deles problemas decorrentes do reducionismo e da hiperespecialização
dele resultante.
3
Le Moigne(2002, p. 29), Piaget, Gusdorf, Pineau.
4
Carta da Transdisciplinaridade (I Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, Portugal, 1994) e Síntese do
Congresso de Locarno (Congresso Internacional de Transdisciplinaridade, Suíça, 1997).
vez de uma série de monólogos justapostos”, como acontece no caso da
interdisciplinaridade de tipo pluridisciplinar, houver “um verdadeiro diálogo” (ibid.), o que
requer o favorecimento das trocas intersubjetivas dos diferentes especialistas, onde cada um
reconheça em si mesmo e nos outros não só os saberes teóricos, mas os saberes práticos e os
saberes existenciais.
Assim, vemos que entre esses diferentes tipos ou graus de interdisciplinaridade, do mesmo
modo que entre eles e os diferentes graus de transdisciplinaridade não há fronteiras
estanques, pois em cada um deles sempre há algo do outro e o outro tipo ou grau sempre
pode emergir. Dependerá do pólo ou prefixo que se enfatizar, da complexidade menor ou
maior do problema que se quiser resolver e dos sujeitos que constituírem o grupo de
pesquisa e de ação.
Essa categorização, com observei acima, é a que me parece mais heurística, pois, com ela,
podemos manter em movimento a “valsa desses prefixos”: o diálogo vivo entre a
disciplinaridade, a multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade, e entre os diferentes tipos
ou graus de interdisciplinaridade e de transdisciplinaridade.
Sem isso, voltaremos a criar barreiras, feudos, estruturas fechadas, bloqueios no corpo do
saber, reduções do olhar, fragmentações do ser e cairemos em impasses semelhantes
àqueles disciplinares dos quais temos buscado sair.
Um Pensamento Complexo de tipo transdisciplinar forte, por outro lado, propõe uma
modelização e uma metodologia muito mais ampla e aberta, que atravessa as disciplinas e
vai além delas, incluindo não só os saberes não disciplinares, mas as diferentes culturas, os
diferentes níveis do sujeito e os diferentes níveis da realidade.
Podemos, então, definir uma complexidade restrita, uma complexidade ampliada e uma
complexidade plena.
A complexidade restrita se manteria nos limites do disciplinar, tecendo as disciplinas
científicas, mantendo-se, portanto, no âmbito da interdisciplinaridade de tipo
pluridisciplinar ou centrífuga.
A complexidade ampliada iria além das disciplinas, incluindo em sua tessitura não só todos
os saberes disciplinares, mas “todas” as dimensões da subjetividade humana: a razão, a
emoção, a pulsão; incluindo o lúdico, o irracional e a poesia, enquanto expressões das
emoções, sentimentos e intuições humanas. A “agulha” de sua tessitura corresponde,
portanto, à interdisciplinaridade forte, que propõe uma inclusão forte do sujeito, e à
interdisciplinaridade de tipo transdisciplinar, na qual modelos multidimensionais começam
a emergir.
Para tanto, essa razão complexa desse Pensamento Complexo Pleno poderia se utilizar dos
três pilares da metodologia da pesquisa transdisciplinar definidos acima: 1) níveis de
realidade (complementando os níveis de organização da complexidade restrita e da
ampliada), 2) lógica do terceiro incluído (complementando a lógica clássica e a dialógica) e
3) complexidade de cada nível de realidade (complementando a complexidade de um
cosmo unidimensional do Pensamento Sistêmico e da Complexidade Restrita).
Se, no que diz respeito ao sujeito, o Pensamento Complexo considerar um ser humano
razoável e não-razoável (homo sapiens demens) e não só sua dimensão racional (como
buscou fazer o reducionismo). Se considerar também a emoção, a pulsão, a intuição e a
imaginação, teremos também uma Pensamento Complexo de tipo Transdisciplinar, pois ele
poderá ir além das disciplinas. Porém, não chegará a ser uma complexidade plena se
considerar no pólo demens o irracional e não abrir o diálogo deste para a possibilidade de
um daimôn8 supra-racional e para o que as tradições sapienciais chamam de Homem Total
5
Os níveis sapienciais e iniciáticos das tradições grega, judaica, islâmica, cristã, budista, hindu, das tradições
nativas das américas, da África e da Oceania.
6
O princípio da emergência diz que o todo é superior à soma das partes e o princípio da imposição diz que o
todo é inferior à soma das partes (exemplo: um coral de vozes).
7
Carta da Transdisciplinaridade, artigo 14.
8
Para Plotino, o daimôn é sempre o nível logo acima do nível mais ativo de cada ser humano. Se o nível mais
ou Universal9. Será uma complexidade de uma natureza transdisciplinaridade mais restrita,
pois não dialogará, de fato, com a quase totalidade das outras culturas: as que viam e vêem
o ser humano e o cosmo como multidimensionais.
Precisamos, portanto, propor uma educação que inclua esses três níveis de Pensamento
Complexo: complexidade restrita, complexidade ampliada e complexidade plena. Sem
isso, não instauraremos um diálogo realmente novo e aberto, pois mesmo a complexidade
ampliada não dialoga, de fato, com as outras culturas. Precisamos reencantar a educação e,
para isso, a multidimensionalidade é indispensável, pois quanto mais estreita e mais plana é
a realidade, menor e mais pobre é o sentido da vida humana.
_________________
Referências bibliográficas
ativo for o dos sentidos, o daimôn será a razão (logos); se o mais ativo for a razão, o daimôn será a
Inteligência (nous); se for a Inteligência, será o espírito (pneuma) e o próprio Deus (cf. Plotino, 2002, p. 99)
9
O al-Insân al Kâmil (Homem Perfeito ou Universal) da tradição islâmica, o Adam Kadmon (Homem
Arquetípico) da tradição judaica, o Anthrôpos Teleios (Homem Perfeito ou Divinisado) da tradição cristão, o
Nandjejara (Senhor dos Três Mundos) da tradição tupi, o Cheun-jen (Homem Transcendente) da tradição
taoísta.
MORIN, Edgar. Por uma reforma do pensamento. In: O pensar complexo: Edgar Morin e a
crise da modernidade. Nascimento, Elimar Pinheiro do; Pena-Veja, Alfredo (orgs.). 3ª ed.
Rio de Janeiro: Garamond, 2001.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. 4a ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.
NICOLESCU, Basarab. O manifesto da transdisciplinaridade. 2a ed. São Paulo: Triom,
2001.
PLOTINO. Tratados das Enéadas. São Paulo: Polar, 2002.