Megaprocessos e Exercício Do Direito de Defesa (Bottino e Prates)
Megaprocessos e Exercício Do Direito de Defesa (Bottino e Prates)
Megaprocessos e Exercício Do Direito de Defesa (Bottino e Prates)
abordagem empírica
Fernanda Prates
Pesquisadora do Centro de Justiça e Sociedade (FGV Direito Rio). Pós-doutoranda em
Direito (FGV Direito Rio), Pós-doutorado em Criminologia (Universidade de Ottawa,
Canada). Doutora em Criminologia (Universidade de Montréal, Canada). ORCID:
orcid.org/0000-0001-6420-6778. [email protected]
Thiago Bottino
Pós-Doutor em Direito pela Columbia Law School. Doutor e Mestre em Direito
Constitucional pela PUC-Rio. Professor Adjunto e Coordenador de Graduação da FGV
Direito Rio. Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO). Membro efetivo da Comissão Permanente de Direito Penal do IAB. ORCID:
orcid.org/0000-0003-0557-5412. [email protected]
Esse novo modelo processual é o resultado de uma nova estratégia de forças policiais
visando a neutralização das atividades do crime organizado, dando ênfase em
investigações longas e complexas que visam a prisão massiva de membros de uma
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organização criminosa . Se, por um lado, este novo modelo pode trazer um impacto
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positivo na redução da criminalidade organizada , por outro lado, ele levanta questões
importantes em relação à aplicação dos princípios fundamentais da justiça criminal,
tanto no âmbito da investigação, quanto do processo penal.
No que diz respeito ao processo criminal, dois aspectos merecem ser ressaltados. Em
primeiro lugar, o princípio da individualização da pena estabelece que a sentença seja
imposta de forma individualizada e proporcional à responsabilidade do autor. Ora, o
elevado número de réus, de acusações e de provas presentes nos megaprocessos cria
sérios obstáculos à individualização da pena, podendo dar ensejo a verdadeira
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“condenação por associação” . Em segundo lugar, o direito a uma defesa plena dá ao
réu o direito de ter o perfeito conhecimento das pretensões de seu adversário, de seus
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argumentos e das provas que ele apresenta .
Nesse sentido, cabe indagar qual a real capacidade do acusado de tomar conhecimento
da totalidade de uma prova que pode ser composta por mais de 40 mil horas de
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gravação de interceptação telefônica, como no caso da “Operação Furacão” , ainda
mais levando em conta que muitos advogados não possuem recursos ou infraestrutura
suficiente para analisar todo esse volumoso material probatório. Apesar da crescente
presença dos megaprocessos na âmbito da justiça penal, a pesquisa brasileira sobre o
assunto ainda se encontra em estágio inicial.
Sumário:
“É um volume brutal. O último processo no qual eu fiz alegações finais, eu estimo que eu
tenha lido dentre autos principais e apensos contendo medidas cautelares, inquéritos e
termos de homologação de acordos de colaboração, termos de homologação de acordos
de leniência, anexos, etc., algo em torno de 20.000 a 25.000 páginas. Sem nenhum
exagero. Só os autos principais tinham 7.500 páginas. Então, evidentemente que, nesse
contexto, a não ser aquele defensor que ou é extremamente zeloso e abnegado e passe
o final de semana estudando o processo, como eu fiz, ou um defensor que tem uma
equipe grande que possa dividir a leitura e fazer um índice dos documentos relevantes é
praticamente impossível conhecer o inteiro teor dos autos do processo.” (Advogado 02)
“A polícia e o Ministério público ficaram investigando um, dois anos, ouvindo a vida dos
outros, tem vários outros procedimentos investigatórios...aí vem o horror, você pega a
ação penal, a denúncia, ela faz referência a vários procedimentos. Você tem mídias e
mídias, anexos e anexos, você consegue ver isso apenas em dez (dias)? Eu tenho uma
equipe grande aqui e não consigo. Então, a impressão que me fica, é que a forma pela
qual são veiculadas as denúncias, já é feito isso de uma maneira tal para dificultar a
defesa.” (Advogado 03)
“Mas o que eu tenho visto também é: véspera de uma audiência, vamos supor, aí o
Ministério Público junta lá 500 mil páginas, 500 mil tô exagerando, vamos dizer 5 mil
páginas na véspera da audiência e diz: a defesa teve acesso, está disponível no processo
eletrônico desde ontem (...) na véspera da audiência foram juntadas num evento, se eu
não me engano, 5 mil páginas. E aí como é que eu vou me manifestar? Não tem como
se manifestar.” (Advogado 01)
“Isso sem contar com um outro problema que, como você tem muito compartilhamento
de provas por processos diferentes (...) muitas vezes você não tem autos de um
procedimento de investigação formalmente encapado e autuado que tem uma cronologia
dos atos praticados no curso da investigação. Hoje não é raro que denúncias sejam
como petições inicias do processo civil, em que o acusador elenca documento 1, 2, 3 e
assim por diante e junta documentos avulsos que há na posse dele e, evidentemente
que nesse contexto é muito difícil pra defesa saber se tudo que dizia respeito àquele
acusado, se aquele fato de fato foi juntado ou não aos autos de processo e,
eventualmente, se aquilo que poderia beneficiar o investigado.” (Advogado 04).
“(...) a realidade, porém, é que você não consegue ter acesso imediato a esses setenta e
sete outros procedimentos, porque você não é parte neles, não advoga pra ninguém
neles, então você não consegue ter acesso. E aí, até você ter acesso, seus dez dias já se
foram.” (Advogado 03).
“Mas eu ainda tenho determinadas situações que eu deixo de investigar porque eu não
dou conta do volume de informação, volume de recursos, dados probatórios disponíveis.
Então, por exemplo, a quantidade de áudios que eu tenho interceptados não dou conta,
a análise que tem que fazer não dou conta e hoje em dia com investigação digital, eu
não consigo analisar o que foi apreendido, então eu não dou conta hoje, pelo menos
para o universo geral, não estou falando de forças tarefas, né, elementos destacados,
para o universo geral você não tem como processar o apreendido.” (Ministério Público
01)
“A gente evita ao máximo chegar nesse ponto de dar um corte na investigação, mas
existem situações em que a gente tem que ponderar qual vai ser a efetividade daquela
informação que a gente está pedindo.” (Ministério Público 03)
“Então hoje em dia, por exemplo, grandes processos, esse de 9X réus …eu só tomo
conhecimento junto com o grande público, né...eu ligo a televisão e vejo junto com todo
mundo que o fulano foi preso, etc. e descubro que eu ganhei mais um processo de ‘cem
mil’ réus. É assim que funciona, porque o cara da investigação é incapaz de me procurar
e falar: olha, estamos investigando assim, assim, assado, vai acontecer isso… joga uma
bomba para a minha promotoria, e o que é pior, não se tem a tradição, né, de entrega
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Megaprocessos e o exercício do direito de defesa: uma
abordagem empírica
Cabe ressaltar que este ponto foi mencionado fundamentalmente por membros do
Ministério Público que não contam com a estrutura de uma força-tarefa em sua atuação
diária. Em relação a esse aspecto, as considerações dos promotores que não atuam em
uma força-tarefa se aproximam muito das falas dos advogados quando levantam a
questão da dificuldade para analisar a integralidade da prova nos megaprocessos, tendo
em vista o volume de informação, a falta de estrutura e o breve lapso temporal dentro
do qual precisam se manifestar. De fato, a estrutura das forças-tarefas aparece na fala
dos entrevistados como elemento essencial para o adequado fluxo e desfecho de um
megaprocesso, como é possível notar no trecho abaixo:
“Olha só, processos enormes como esses, na verdade, eles são tremendamente
desgastantes (...) então é absolutamente imprescindível que você tenha uma
força-tarefa trabalhando. Só que é absolutamente impossível que você tenha
forças-tarefas do tamanho da força-tarefa da Lava Jato em todos os casos que forem
grandiosos.” (Ministério Público 04)
“Para o bem e para o mal, nós, como órgão de investigação, estamos adquirindo uma
expertise que é ímpar no mundo. Por conta disso estamos conseguindo uma carga
probatória muito robusta. Este na verdade é um dos problemas que um processo grande
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desses apresenta. É possível exemplificar isso por meio da Operação XXX . Nesta
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operação as defesas em conjunto arrolaram cerca de 19X testemunhas. Logo, são
cerca de 19X depoimentos que temos que recolher em juízo (...) então os problemas são
de diversas ordens.” (Ministério Público 05)
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abordagem empírica
“Vou falar do meu cliente, vamos colocar assim, ele era entregador da empresa, tem um
caso gigante aqui (...) aí eu estou com 8, ali não tem delação, não tem nada. Mas, ali
naquele processo o negócio é tão bizarro, que eu advogo para um segundo escalão da
organização, vendedoras, recepcionista, secretarias (...) Cada uma responde por 1600
peculatos. Coloca no mesmo saco? Tudo no mesmo saco. Aí você vai falar assim: ‘MP,
Juiz, não é bem assim, ainda que ela tenha participado tem que identificar culpa’, se não
foi um comportamento culposo. E a cooperação, será que ela, uma funcionária, tinha
uma noção do grande esquema criminoso que tinha por trás dessa organização? Os
pequenos quando se encontram nessa situação estão ferrados. Porque o juiz vai botar no
mesmo saco. Aí tá todo mundo: ‘Ah, se ela não tivesse vendido, comprado’. Cara, como
assim, cara? Sabe? "Ah não a contribuição foi relevante, sem ela a organização não
funcionava", sem ela, pô, atender um telefone e fazer uma compra. E aí fica no mesmo
saco e aí ela vai fazer delação? Fazer delação do que?” (Advogado 05)
“tarefa que requer tempo necessário e indispensável para efetuar investigações, recolha
e individualização de provas, diálogos entre o acusado e seu defensor , elaboração de
atos em que se se apoiam os argumentos e fundamentações sobre a posição defensiva e
demais trabalhos que não são possíveis de se realizar com eficácia sem os meios e o
tempo adequado”.
Para além dos problemas práticos que decorrem da atuação neste tipo de processo, os
advogados levantam questionamentos importantes em relação à eventual fragilização do
exercício de defesa decorrente da celeridade acentuada de determinados
megaprocessos, como bem indica o trecho a seguir:“Uma outra característica do
processo da Lava Jato é a rapidez, e a rapidez dos processos, ela tem que ser pensada
num duplo sentido. Quando a gente fala na razoabilidade na duração do processo penal,
ou dos processos em gerais, isso tem que ser pensado, com perdão da redundância,
num duplo sentido. Por quê? Tem que ter razoabilidade pra não demorar ao infinito. E
tem que ser uma razoabilidade pra não tão rápido que impeça o exercício da defesa. E
hoje a gente trabalha muito com a ideia de razoabilidade só num primeiro sentido, que é
o da rapidez. Agora, muita velocidade impede de as coisas assentarem também, pra
você poder fazer um trabalho eficaz, consistente. Você tá fazendo seu trabalho de
doutorado, tem só meia hora. E aí? Que trabalho você vai fazer? É um trabalho mais
difícil. Claro, o trabalho não pode durar dez anos também. A gente vive num momento
que se cobra muito resultados. Então, ação, ação, quer dizer, mas eles atropelam muito
a defesa. Uma quarta coisa que eu queria falar é que muitos requerimentos são
indeferidos. Requerimentos, às vezes, importantes (...) é eficiente. É muito eficiente.
Pode botar aí. É muito eficiente. É eficiente demais. Mas à custa da defesa, eu acho. À
custa das garantias da defesa (...) é uma máquina que engole a defesa.” (Advogado 03)
“Aqui (...) impera um fluxo informativo frenético, que exige da informação: rapidez,
impacto, espetáculo, novidade (...) A comunicação vive do movimento, não da
permanência. O impacto atual dos meios de comunicação social explica que a sua
influência se faça sentir também no campo do direito. Esta influência se exerce em
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vários planos, tendo consequências mais ou menos profundas.”
Nessa lógica orientada para o resultado, o sistema penal se centra em sua própria
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atividade e seu bom funcionamento se transforma em um fim em si mesmo . Mais
ainda, a ideia de “combate” à criminalidade organizada nos remete à análise feita por
Sheptycki, mostrando que a noção, não de qualquer crime, mas aquela de “crime
organizado”, bem como de seu combate, se tornam fundamentais para o fortalecimento
e legitimação do Estado. Essa construção da figura do crime organizado como um objeto
de governança constitui, segundo o autor, uma tendência global de coexistência entre o
enfraquecimento do conceito de Estado-nação e a centralização da figura do “crime
organizado” no âmbito do discurso oficial de combate à criminalidade, observando assim
que “ turning organised crime into an object of governance was one way for sovereign
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state actors to assert the importance of the estate in the practice of governance” .
“(Sobre contratação de perito) qualquer profissional que eu precise eu tenho (...) Só que
o cliente tá com os bens todos bloqueados, como é que eu pago? Isso acaba com o
direito de defesa, até com pagamento de honorários, é algo assim que a gente tem tido
dificuldade. Eu falo pro cliente: ‘olha tem um profissional que vai te custar R$
100.000,00’ e o cliente: ‘olha daqui a 10 anos eu pago, tô com os bens bloqueados’.
Entendeu? Aí o advogado se vira. Você tem que se virar. E eu acho que o Ministério
Público percebeu que sufoca.” (Advogado 05)
De acordo com a fala do advogado, o bloqueio de bens ensejaria assim uma limitação
prática ao direito de defesa, impedindo a utilização de profissionais capazes de produzir
dados e análises importantes para seu exercício e diminuindo, portanto, a qualidade da
defesa técnica proporcionada aos investigados e acusados em megaprocessos. Para além
da limitação quanto à qualidade da defesa oferecida, os advogados entrevistados
abordaram o impacto do bloqueio de bens em sua própria prática profissional bem como
no desfecho do processo. Assim, dois advogados observam que:
“É, esse é um problema grave, porque essas operações, quando é deflagrada a chamada
fase ostensiva delas, além de medidas cautelares probatórias, como busca e apreensão
residencial e de coação pessoal, como condução coercitiva e prisão temporária ou
preventiva, a regra é que haja um bloqueio universal de bens e valores da pessoa. Os
juízes tendem a só permitir o desbloqueio daquilo que tem natureza alimentar: pensão,
aposentadoria, salário... e manter todo o resto bloqueado. O resultado prático é que a
pessoa fica sem liquidez e solvência pra contratar um escritório de advocacia e,
portanto, fica sem liquidez e solvência pra ter uma defesa técnica combativa e
adequada. Acho que seria temerário eu dizer que isso é um objetivo, certamente não é
um objetivo declarado, me pergunto se é um objetivo não declarado dessas medidas, de
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Megaprocessos e o exercício do direito de defesa: uma
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justamente dificultar o exercício da defesa técnica por parte dessas pessoas que sem
liquidez ou solvência, ou vão contratar um profissional menos qualificado, que tá
disposto a fazer por um preço aviltante ou de graça.” (Advogado 02).
Por mais que este não seja o caso na totalidade dos procedimentos, a fala dos
entrevistados parece importante por trazer novas nuances à imagem popular dos
advogados criminalistas que estão enriquecendo de forma quase que instantânea com a
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atuação em megaprocessos . Outro aspecto amplamente abordado entre os advogados
entrevistados diz respeito às consequências da utilização do bloqueio de bens (e, por
certo, também da prisão) no processo de decisão do acusado no que se refere à
possibilidade de acordo de colaboração premiada. Assim, vários entrevistados sugerem
que tais práticas são empregadas, sobretudo para criar um processo de asfixia,
impedindo o exercício pleno de defesa, o que terminaria por ensejar a realização da
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colaboração pelo investigado/acusado . As falas dos entrevistados trazem à tona o
impacto que as medidas não privativas de liberdade tais como o cerceamento
patrimonial decorrente do bloqueio de bens podem ter na escolhas dos acusados em
megaprocessos, devendo desta forma ser aplicadas com a parcimônia necessária.
Outra ferramenta menos comum, mas também frequente nos megaprocessos, diz
respeito às prisões processuais. Não abordaremos aqui a discussão acerca de sua
validade ou legitimidade e sim o impacto da privação de liberdade na construção de uma
defesa de qualidade, levando em consideração a natureza complexa temas jurídicos e
fáticos tratados nos megaprocessos. Sobre este tópico, os advogados levantam os
seguintes pontos em suas falas:
“O contato é dificultado; hoje, por exemplo, eu visitei uma unidade e tinha uma fila de
uns 10 advogados na porta esperando pra falar com seus clientes. Em regra, se fala num
parlatório coletivo, em que não há a menor privacidade, são três advogados atendendo
os seus respectivos clientes ao mesmo tempo. Essa unidade até tem duas salas
‘reservadas’, entre aspas, mas a direção só deixa que o advogado use com autorização
judicial expressa, e a sala dita ‘reservada’ tem uma porta vazada no meio, em que era
pra ter um vidro e tiraram o vidro. Então, na verdade, ela não é nada reservada (...) isso
se agrava com o fato de que hoje o STJ entende que, se o alvo original de uma
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Megaprocessos e o exercício do direito de defesa: uma
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“O grande problema você fala pelo interfone. Qual a segurança que eu tenho de falar
com um cliente meu pelo interfone. Ponto 1: zero. Ponto 2: Eu preciso exibir documento,
então eu preciso sentar do lado do meu cliente (...) você não consegue, por exemplo, o
processo é eletrônico hoje, eu não consigo entrar com um tablet, qual o problema de
entrar com um tablet e mostrar pro cliente o processo?” (Advogado 04).
Um último aspecto muito abordado pelos advogados reflete um receio crescente da boa
parte da classe profissional, em especial aqueles atuando em megaprocessos de grande
repercussão midiática. Nesse sentido, vários advogados falam de maneira extremamente
preocupada sobre os riscos de criminalização da pratica da advocacia criminal, em suas
mais variadas dimensões, como demostram as passagens a seguir:
“Qual o limite do exercício de defesa? Acho que esse é o ponto central, até tava
conversando com alguns advogados que não fazem delação, que orientavam o cliente a
não fazer delação. Aí eles falam hoje em dia: ‘nem oriento mais a isso, não tenho nem
mais coragem, porque se ele vai amanhã no MP e fala que eu mandei não fazer delação,
isso pode ser interpretado como obstrução à justiça, e a gente tem N casos de suspeita
de obstrução’. Então, assim, eu acho que tem sido feita uma interpretação muito
equivocada com relação a limite, qual o limite? Eu posso orientar o cliente a não
confessar, por exemplo, eu posso orientar a não fazer delação? Eu entendo que sim,
porque eu acredito que vou absolver ele, que a prova é fraca. Então, tá ocorrendo? Tá
ocorrendo, não tenho dúvidas que tá ocorrendo.” (Advogado 03)
“Você dizer que o fato de você exercer um direito que está previsto em lei, ou seja, você
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tá fazendo um ato processual que está previsto em lei e isso ser considerado obstrução
de justiça, para mim é o fim dos tempos, assim, acaba a advocacia então. Tem para
quê? É considerar que o advogado só serve para sentar do lado do cara e delatar (...) os
desvios de conduta têm que ser apurados, em qualquer profissão, mas a gente não pode
criminalizar o ato de dizer que não quer fazer delação ou se envolver em entidades de
direitos de defesa ou de estudo mesmo das ciências criminais.” (Advogado 02)
Nesse sentido, as falas aqui retratadas refletem um receio constante na prática dos
advogados, e indicam as pressões e o cerceamento aos métodos tidos como mais
combativos dentro da advocacia criminal, sugerindo a existência de uma tendência ao
sufocamento da defesa técnica e um favorecimento às práticas de colaboração premiada.
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Este aspecto é analisado por Diogo Malan , entendo haver aí uma clara ameaça às
prerrogativas dos advogados. De fato, o direito ao silêncio, previsto constitucionalmente,
sugere que as orientações dadas por advogados no exercício de sua função e mesmo o
concerto de versões entre este e seu cliente ou outro advogado integraria a estrutura
normativa dessa garantia fundamental. Nesse sentido, se o investigado pode mentir,
silenciar ou omitir fatos que o incriminem, torna-se plausível o argumento de que ele
também poderia, no contexto do exercício da autodefesa, ajustar sua versão dos fatos
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com outro investigado .
Considerações Finais
de pressão para que a classe deixe de lado a forma tradicional do exercício da advocacia
em prol de uma nova prática centrada nas colaborações premiadas O artigo mostra que,
de modo geral, os problemas estruturais do megaprocessos, aliados a seus predicados
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de eficácia e eficiência , trazem à tona o delicado equilíbrio entre este modelo
processual e exercício dos direitos fundamentais dos acusados, questionando ainda a
qualidade da justiça proporcionada pelos megaprocessos e os riscos de erros judiciários
45
decorrentes dessa estrutura processual.
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7 PIEHL, A.M, COOPER, S.J., BRAGA, A.A. & KENNEDY, D.M. (2003). Testing for
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10 Barreau du Québec (2004). Rapport final du comité en droit criminel sur les
megaprocès. Disponível em:
[http://www.barreau.qc.ca/pdf/medias/positions/2004/200402-rapportfinalmegaproces.pdf].
12 Disponível em:
[http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI172498,21048-Transcricao+de+interceptacao+telefonica+
(Magistrado 01). Diante de tais dificuldades, foi criada foi criada pelo Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro em 05.09.2009 a Central de Assessoramento Criminal (CAC/TJ/RJ),
que tem como finalidade o processamento de feitos criminais de grande complexidade
encaminhados pelos juízes do foro central que versem, especialmente, sobre crime
organizado, observados, entre outros critérios, o número de réus e a extensão da
instrução. Para garantir a segurança dos trabalhos, o local onde funciona a Central é
monitorado por um sistema de câmeras, os servidores trabalham em sistema de rodízio,
substituídos a cada quatro meses e supervisionados por um juiz indicado pela
presidência do TJ/RJ e os funcionários processantes são identificados apenas por
códigos.
commitment has become too burdensome for the defendant's retained counsel. The
court also noted the tremendous legal fees incurred by defendants in cases where a trial
runs several months”. CODE, Michael. Law reform initiatives relating to the mega trial
phenomenon. 53 Crim. L.Q. 421, 2007-2008, p. 01. Disponível em:
[https://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/clwqrty53&div=31&id=&page=].
Acesso em: 11.04.2019.
27 JAUCHEN, Eduardo M. Tratado de Derecho Penal. Santa Fé: Rubinzal Culzoni, 2012.
Tomo I, p. 168.
28 QUEIJO, Maria Elisabeth. Direito ao tempo e aos meios necessários para a preparação
da defesa técnica. In.: MALAN, Diogo & MIRZA, Flavio (Org). Advocacia Criminal: Direito
de Defesa, Ética e Prerrogativas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. Pp. 125, 126.
29 Ressalte-se que tal dinâmica se mostra, de fato, extremamente perigosa, ainda mais
levando-se em conta o fato de que o “ direito de defesa transcende o interesse particular
do acusado, possuindo importantíssima dimensão objetiva, consubstanciada em
verdadeira garantia ético-política de legitimidade da jurisdição penal (nemoiudex sine
defensione)”. MALAN, D. & MIRZA, F. Apresentação. In. : MALAN, Diogo & MIRZA, Flavio
(Org). Advocacia Criminal: Direito de Defesa, Ética e Prerrogativas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2014.
33 PACKER, H. (1968). The Limits of the Criminal Sanction, Oxford University Press,
AVIRAM, H. (2011). Packer in Context: Formalism and Fairness in the Due Process
Model. Law & Social Inquiry, Volume 36, Issue 1, pages 237–261.
37 É nesse sentido a seguinte fala: “Aliás, todo mundo fica: ‘Ah, fulano cobrou 3
milhões’. Eu tenho promessa hoje de 10 milhões. Sabe quando eu vou receber? Tenho
certeza que nunca. Hoje em dia eu brinco: ‘Eu prefiro receber dez mil reais hoje do que
uma promessa de 10 milhões’”. (Advogado 05).
39 É o que prevê o inciso III do artigo 7º do EOAB, in verbis: “Art. 7º - São direitos do
advogado: (...) III - comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo
sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em
estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis”.
41 MALAN, D. & MIRZA, F. Apresentação. In.: MALAN, Diogo & MIRZA, Flavio (Org).
Advocacia Criminal: Direito de Defesa, Ética e Prerrogativas. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2014.
44 MACKAY,R. Résumé législatif du projet de loi C-53: Loi sur la tenue de procès
criminels équitables et efficaces. 2011. Disponivel em:
[http://www.parl.gc.ca/About/Parliament/LegislativeSummaries/bills_ls.asp?ls=c53&source=library_prb
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