CHÉTOCHINE O Blues Do Consumidor

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ºBluesdo

CONSUMIDOR
POR QUE SEU CLIENTE
NÃO ESTÁ SATISFEITO

Pearson Education

EMPRESA CIDADÃ
GEORGESCHETOCHINE

ºBluesdo
CONSUMIDOR
POR QUE SEU CLIENTE
NÃO ESTÁ SATISFEITO

TRADUÇÃO

GEORGES KORMIKIARIS

RE VISÃO TÉCN ICA

M ARCELO ANGELETTI

SóCIO-DIRETOR DO (HETOCHINE (ONSULTING GROUP BRASIL

-------
PEARSON
Prentice
Hall

São Paulo

Brasil Argentina Colô mbia Costa Rica C hile Espanha


Guatemala M éxico Peru Porto Rico Venezuela
© 2006 Pearson Education do Brasil
© 2005 Éditions d 'Organisation, Paris, France
Tradução autor izada da edição original em francês Le blues du consommateur,
de Georges C hetochine.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação


poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo
ou po r qualquer o utro meio, eletrônico o u mecânico, incluindo fotocópia,
gravação o u qu alquer o utro tipo de siste ma de armazenamento e transmissão
de informação, se m prévia auto rização, por escrito, da Pearson Education do Brasil.

Gerente editorial: Roger Trimer


Editora sênior: Sabrina Cairo
Editora de desenvolvimento: Mari1eide Go mes
A ssistênda de produção editorial: Bibiana Leme
Preparação: M ariana Echalar
R evisão: M arcela Vieira e Cristina Yamagami
Capa: Daniel R ampazzo / Casa de [déias
Editoração eletrônica: RR Donnelley Moore

Dados internacionais de catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Chetochine, Georges
O blues do consumidor: por que seu cliente não está satisfeito / Georges Chetochine;
tradução Georges Kormikiaris ; revisão técnica Marcelo Angeletti.
-- São Paulo : Financial T imes - P rentice Hall, 2006.
T ítulo original: Le blues du consommateur.
Bibliografia.
ISBN 85-7605-073-0
1. Consumidores - Comportamento 2. Consumidores - Preferências
3. Consumidores - Satisfação 4. Marketing I. T ítulo.

06-4298 CDD-658.8342

Índices para catálogo sistemático:


1. Componamento dos consumidores : Administração de marketing 658.8342
2. Consumidores : Comportamento :Administração de marketing 658.8342

2006
Direitos exclusivos para a língua po rtu guesa cedidos à
Pearson Educatio n do Brasil ,
uma empresa do grupo Pearson Education
Av. Ermano Marchetti, 1435
CEP: 05038-001 - Lapa - São Paulo - SP
Te!. : (11) 2 178-8686 Fax: (11) 3611 -0444
e-mail: [email protected]
DEDICATÓRIA

Para R oxane, sua irmã, seu irmão,


suas primas, seus primos.

AGRADECIMENTOS

Gostaria antes de tudo de agradecer à m inha mulher, Fran çoise, por sua con tribui-
ção na elaboração desta o bra. Foi preciso que e la, d urante m eses, se impregnasse e dis-
cutisse minhas teses ao mesmo tem po em que dava continuidade ao seu trabalho de
con sultora internacio nal. Suas observações sem ne nhuma con cessão, suas críticas cons-
tru tivas m e fo rçaram a dem on strar todos os m e us pontos de vista.
D evo agradecer a C hristine Arnaud, minha assistente, que teve a paciên cia e a gen -
tileza de m e aj uda r a expurgar todos os dej etos gram aticais que minha pena capricho-
sa insistia em criar.
Agradeço particularme nte a m e u amigo C hristian Viton p elo tempo que dedicou
a o uvir minhas teses e por suas reflexões enriq uecedoras.
Finalmen te, agradeço a C hristian e Bienfait por seu apoio moral no momento em
que a amizade sup lanto u a d úvida.
Livro de Ezequiel, 28, 1:10

E foi-me dirigida a palavra do Senhor, a qual diz ia: Filho do homem, diz e ao príncipe de
Tiro: Isto diz o Senhor D eus: Pelo motivo de que o teu coração se elevou, e tu disseste: Eu sou
Deus, e estou assentado sobre a cadeira de Deus no meio do mar: sendo homem, e não Deus, e
avaliaste o teu coração como o coração de um Deus. Eis aí está que tu és mais sábio que Daniel:
nenhum segredo há ocu lto a ti. Tu te fi zeste poderoso pela tua sabedoria, e pela tua prudência: e
ajuntaste ouro, e prata nos tesouros. Tu acrescentaste o teu poder pela extensão da tua sabedoria,
e pela multiplicação do teu comércio : e o teu coração se elevou na tua forta lez a.
Por cuja causa isto diz o Senhor Deus : Pelo motivo de que o teu coração se elevou, como se
fosse o coração de um D eus: por isso eis aí vou eu a faz er vir sobre ti uns estrangeiros, os mais
poderosos dentre as gentes: e desembainharão as suas espa das contra a formosura da tua sabedo-
ria, e afearão a tua belez a. Eles te matarão, e te precipitarão do trono : e tu morrerás na perda dos
que serão mortos no coração do mar. A caso fa larás tu diante dos teus matadores, diz endo: Eu sou
Deus: sendo tu um homem sujeito ao poder dos que te matam, e não um D eus? Tu morrerás da
morte dos incírcuncidados, à mão de estrangeiros. Porque eu sou o que fa lei, diz o Senhor Deus.

Evangelho de São Mateus, 23, 1:12

E ntão fa lou J esus às turbas, e aos seus discípulos, diz endo : Sobre a ca deira de Moisés se
assentaram os escribas, e os fariseus. Observai pois, e fa zei tudo quanto eles vos disserem: porém
não obreis segundo a prática das suas ações : porque dizem, e não fa z em. Porque atam cargas pesa-
das, e incomportáveis, e as põem sobre os ombros dos homens: mas nem com seu dedo as querem
mover. E fa zem to das as suas obras, para serem vistos dos homens : por isso traz em as suas largas
tiras de pergaminho, e grandes franjas. E gostam de ter nos banquetes os primeiros lugares, e nas
sinagogas as primeiras cadeiras. E que os saú dem na praça, e que os homens os chamem mestres.
M as vós não queirais ser chamados mestres: porque um só é vosso M estre, e vós todos sois irmãos.
E a ninguém chameis pai vosso sobre a terra: porque um só é o vosso Pai, que está nos céus. Nem
vos intitu leis mestres: porque um só é vosso Mestre, o Cristo. O que de entre vós é o maior, será
o vosso servo. Porque aquele que se exaltar, será humilhado: e o que se humilhar, será exaltado.

Textos extraídos de: BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de Padre Antôn io
Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica Publishers, 1980. Edição
Ecumênica.
SUMÁRIO

Prefácio à edição brasileira ................................................................................... vi u

Prefácio à edição francesa .......................................................................................1x

Prefácio ................................................................................................................... x

Introdução ............................................................................................................ xii

CAPITULO 1
Compreender os con sumidores do futuro:
ainda há um consumidor na escuta? ......................................................................... 1

CAPITULO 2
O fim da sociedade do H omo consoma tio: o começo da era do Homo cliens ............... 35

CAPITULO 3
Uma situação paroxística: a economia da atenção ................................................... 61

CAPITULO 4
Desfrutar a qualquer preço .................................................................................... 71

CAPITULO 5
A mística- cliente na economia psíquica ................................................................. 86

CAPITULO 6
E depois de tudo :
os vencedores e os perdedores da nova economia psíquica! ................................... 128

CAPITULO 7
Causar impacto para comunicar em uma econo mia psíquica ................................ 142

Conclusão ........................................................................................................... 159

Referências bibliográficas .... ... ........... .. .. .. ........... ... .. .. ........... .. .. ... .................... ..... 160

Índice .................................................................................................................. 162


PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Quem tentar fazer uma simples operação aritmética com os números romanos X,
C,V e I p erceberá a dificuldade em obter a solução. J á ao formular essa mesma opera-
ção com números arábicos, tudo ficará mais claro.
Para qu e isso fosse possível, foi necessária uma mudança que p arece simples, mas é
radical: incluir o zero, o nada, na formulação da operação. Mas o que isso tem a ver com
o consumidor?
Nós que trabalhamos com marketing ouvimos e lemos todos os dias que é cada vez
mais dificil criar ou defender um diferencial. Que precisamos de novas soluções.Vemos
que a realidade muda e, com ela, o consumidor. Sabemos ta mbém que o marketing pre-
cisa de ferramentas de reflexão capazes de contemplar os novos fen ômenos que essas
mudanças geram.
Porém, continuamos apelando às mesmas idéias dos anos 50, 60 e 70. Falamos com
insistência em "atender às n ecessidades do con sumidor" , "criar uma imagem na mente"
e "comunicar as van tagens do produto".
O paradoxo é evidente: nós queremos fazer a diferença, mas resistimos a pensar e agir de
forma diferente.
Assim, as ' novas idéias' e as soluções 'criativas' quase sempre acabam ficando dentro
dos limites do convencional.
As soluções realmente diferentes sempre começaram com um olhar diferente. É a
formu lação de um problema - e não a aplicação de uma receita - o que requer a
verdadeira criatividade. O s tij olos para construir a diferença são a perspectiva com que
observamos, o modo como ouvimos, os conceitos com os quais pensamos, as perguntas que
questionamos. E não as verdades conhecidas, verdadeiros obstáculos para fazer con sidera-
ções diferentes.
Neste livro, Georges Chetochine mostra a o usadia e a perspicácia que sempre lhe
foram características. Aquelas que lhe permitem descobrir fatos que aparecem diaria-
m ente diante de nós - nas gôndolas, n a interação com os balconistas, nas ligações aos
SAC etc. - , mas que quase sempre passam despercebidos. E , sobretudo, ele mostra
como esses fatos são as grandes oportunidades para construir a dife rença. Quem faz
estratégias, marketing ou comunicação sabe que ali pode estar a possibilidade de ganhar
ou não o combate.
Bom Blues!

Marcelo Angelettí
Sócio-diretor do Chetochíne Consu lting Group Brasil
PREFÁCIO À EDIÇÃO FRANCESA

Georges Chetochine é irritante. Ele é irritante porque geralmente tem razão. Quando,
há 27 anos - precisamente em 1979 -, ele disse aos profissionais do grande comércio que
as marcas próprias que eles estavam para lançar iriam canibalizar o mercado das grandes
marcas, ninguém acreditou nele. Quando disse aos industriais dos produtos de grande con-
sumo que, ao aceitar fabricar produtos genéricos à margem dos que ostentavam as suas
cores, eles estavam organizando uma concorrência que ameaçava sufocá-los, ninguém lhe
deu ouvidos ... "Chetochine faz o marketing da provocação", dizia-se.
Quando, alguns anos mais tarde, Georges C hetochine afirmou e demonstrou que
as fórmulas do hard discount' superariam no futuro todas as outras fórmulas de distribui-
ção, ninguém o levou realmente a sério . . . mais uma provocação.
Hoje, em que pé estão as coisas? As marcas próprias ocupam a maior parte das gôn-
dolas dos hipermercados, e as lojas do tipo hard discount abocanharam boa parte dos pro-
dutos de alto consumo (produtos de limpeza, higiene, beleza . .. ). O fenômeno é tão
importante que põe novamente em questão o equilíbrio e as perspectivas de crescimen-
to das grandes redes de hipermercados . . . E fragiliza as grandes marcas de produtos ali-
mentícios ou de limpeza ...
Georges C hetochine explica muito bem essa revolução. O consumidor responde
evidentemente a fatores conjunturais. A estagnação do poder de compra o impele a
procurar sistematicamente por menores preços ... mas se fosse apenas isso, como duran-
te muito tempo acreditaram os distribuidores, seria muito simples. Georges Chetochine
explica em seu livro que evidentemente existem o utros fatores ...
O surgimento de novos produtos ligados às tecnologias de comunicação obrigam o
consumidor a acomodar o orçamento em detrimento das despesas de con sumo normal. A
conta do telefone aumentou, conseqüentemente o carrinho do supermercado se esvaziou.
Mas isso não é tudo: o consumidor provavelmente está cansado das inovações freqüentes
demais para serem reah11ente inovadoras. Resultado: ele se volta para produtos mais básicos.
Por fim, o con sumidor tem tudo ou quase tudo. Ele tem coisas demais. Suas neces-
sidades estão satisfeitas, saciadas. Ainda assim ele continua a ter desejos, portan to está
cada vez mais frustrado. A recuperação da máquina econômica depende da capacidade
de as empresas responderem não às necessidades, mas às fr ustrações . . .
Georges Chetochine não se apóia nas ferramentas clássicas do m arketing, mas na obser-
vação e na análise do comportamento do consumidor. Ele trabalha como os antropólogos.
Georges C hetochine é irritante, porque mais uma vez tem razão.
J ean-Marc Sylvestre
Jornalista econômico - R edator-chefe da TFJ [Télévision Française 1]

R edes de lojas menores, com pequeno sortimento de produtos e preços de 30 por cento a 40 por cento mais baixos que
a concorrência. [N. do T.]
PREFÁCIO

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O BEHAVIORISMO

O behavio rismo é um m ovimen to da psicologia q ue preconiza a utilização de pro-


cedimentos experimentais para estudar os mecanismos psíquicos por m eio do compor-
tam ento, considerado uma resposta ao ambiente (ou aos estímulos) . A con cepção beha-
viorista da psicologia tem suas raízes n os estu dos sobre o associacionismo 1 dos filósofos
britânicos. Também é derivada da escola am erican a de psicologia do funcionalismo 2 e
da teoria darwinista da evolução, que, tanto uma quan to a o utra, salientam o modo p elo
qual os indivíduos se adap tam ao seu ambien te.
O behaviorismo foi fundado n o com eço do século XX pelo psicólogo american o
Jo hn B roadusWatson (1878-1958). A psicologia era considerada, en tão, o estudo dos
estados interiores o u dos sentimen tos por m eio de m étodos subjetivos de introspecção
(entrevistas clínicas, discussões em grupo). Sem n egar a existência dos estados de cons-
ciên cia que estão notadam ente na base dos estudos de marketing sobre as necessidades
e as expectativas dos con sumidores, Watson insistia no fato de que, não sendo observá-
veis, esses estados não podiam ser estudados. Ele foi muito influ enciado pelas pesquisas
p ioneiras dos fisiologistas ru ssos Ivan Petrovitch Pavlov (1849-1936) e Vladimir
Mihailovich Bekhterev (1857-1927) sobre o condicion am ento dos animais.
Watson propunha fazer da psicologia uma disciplina científica utilizando-se
som ente de procedimentos objetivos, com o as experiên cias de laboratório, com vistas a
estabelecer resultados exploráveis estatisticam en te. Essa concepção beh aviorista lhe per-
mitiu formular a teoria psicológica do estímulo-resposta, que podemos defini r, em
resumo, pela seguinte analogia: o com por tam en to é uma reação a uma situação.
Segundo essa teoria, todas as formas comp lexas de comportam en to - emoções, hábi-
tos etc. - são compostas por elemen tos musculares e gland ulares simples, que podem
ser observados e me nsurados. Watson susten tava que as reações emocion ais são o resul-
tado de uma ap rendizagem, da mesma forma q ue as o utras aptidões h uman as.
A teoria do estímulo-resposta de Watson suscitou uma onda imensa de pesquisas
sobre a aprendizagem n os an im ais e n os homen s, da infân cia à idade adul ta .

Escola psicológica baseada nas teorias dos filósofos empiristas ingleses Oohn Locke, J ohn Stuart Mill, David Hume), que
conceb iam a consciência como rnna coleção de ' idéias' ou de ' unidades elementares da consciência', q ue se atrairiam ou
se repeliriarn segundo certas leis, dando assin1 orige111 a representações 111ais ou 111enos cornpJexas.
Teoria definida nestes termos por Claude Riviere em I11trod11aion à /'anrhropologie (Paris: Hachette, 1995) :"recolocar em seu con-
texto social os fatos descritos, a fim de interpretá-los, em seguida (. .. ] explicar um fenômeno social pela totalidade na qual ele se
inscreve e na qual se postula que tenha uma ou mais funções, assim como relações com cada um dos elementos do cortjunto".
De 1920 até quase a metade do século passado, o behaviorismo dominou a psico-
logia nos Estados Unidos e ao mesmo tempo exerceu uma influência poderosa em todo
o mundo. A partir dos anos 50, esse novo movimento h avia produzido uma tal massa
de dados q ue psicólogos experimentais americanos como Edward Chace Tolman
(1886-1959), C lark Leonard Hull (1884-1952) e Burrhu s Frederic Skinner (1904-
1990) pu deram formu lar suas próprias teorias de aprendizagem e comportamento,
baseando-se em experiências de laboratório e não na introspecção.
Tal como Watson , Skinner, defensor do 'behaviorismo radical', considera que a psi-
cologia é o estudo do comportamento observável dos indivíduos na sua interação com
o meio ambiente.

0 BEHAVIORISMO NA PRÁTICA

Desde 1967, na empresa de consu ltoria que fundei, assim como nos meus cursos
na Universidade de Paris IX Dauphine, eu aplico com os meus colaboradores e assis-
tentes a regra básica do behaviorismo, a saber: o consumidor reage às situações e é isso
que define o seu comportamento de escolha, de compra. Portanto, eu imagino situa-
ções para daí deduzir os comportamentos. Coloco em prática modelos de pesquisa, crio
situações nas quais insiro tanto clientes de hipermercados como de lojas tradicionais, de
VPC [venda pelos correios] o u on-line. Do mesmo modo, crio técnicas e conceitos de
análise para entender como os consumidores compram suas marcas, seus jornais, seus
can ais de televisão o u elegem os políticos. Meus trabalhos têm aplicações na comuni-
cação, na administração, no marketing, no merchandising, no consumo e nas estra tégias
empresariais e, em particu lar, no mundo da distribuição, porque é n os pontos-de-ven da
que se percebem e se medem pe1feitamente os comportamentos de consumo.
INTRODUÇÃO

TALVEZ NEM TUDO CORRA TÃO BEM COMO GOSTAR IAMO S, A NÃO SER QUE. ..

Neste começo de terceiro milênio, no mo mento em que escrevemos estas páginas, o


mundo inteiro espera a retomada econômica. Os especialistas da Bolsa garantem que os fun-
damentos das empresas foram finah11ente recuperados, que estas não estão mais endividadas
e dão por encerrados certos desvarios do passado e que, portanto, podemos esperar uma
retomada. N o entanto, nada é m enos verdadeiro! Prova disso é que o consumo não deco-
lou tão bem qu anto se desejava. N a Europa, o desemprego continua! N a França, na Alema-
nha, na Inglaterra, a situação torna-se mais do que preocupante, tanto para os trabalhadores
e para os estudantes quanto para os empresários, que não vêem salvação a não ser na transfe-
rência de suas empresas para países em que a m ão-de-obra e os impostos são mais baratos.
A economia européia está efetivam ente em pane. O qu e está ocorrendo, então? Por
que o consumidor não responde mais às múltiplas solicitações das empresas, dos seus novos
p rodu tos, assim como da sua comunicação ou das suas p rom oções? Por qu e os hipermer-
cados e os supermercados, esses templos do consumo, são cada vez m enos procurados?
A resp osta a essas questões p ode ser expressa por uma fórmu la sim ples: "o marke-
ting da n ecessidade está obsoleto".
Em o utras palavras, por falta de poder criar novas necessidades o u por fa lta de saber
com o responder às necessidades existentes, a fonte de lucro e de criação de riqueza das
emp resas parece realm ente ter se esgotado.
Essa explicação talvez seja espan tosa dem ais, violenta dem ais e m an iqueísta dem ais
para ser aceita de pronto.
Neste livro, explicarei por que o m arketing da necessidade está e m vias de desapa-
recer, mas sobretudo pelo que se deverá substituí- lo. Adoraria, graças a esta obra, abrir
uma nova base de lançam ento a fim de colocar o consumo novamen te em órbita e, por
que n ão, fa zer as pazes com novos '30 glo riosos' 1!
Apoiado n a minha experiên cia de consulto r de grandes m arcas, das gran des redes
de distribuição (tanto de produtos alim en tícios quan to de o utros) e de certos políticos,
m ostrarei página após página que, para retom ar o crescimento, é preciso m udar radical-
m ente os esquemas de reflexão e converter-se a o utro marketing.

Expressão cunhada pelo economista fran cês Jean Fourastié para designar o período histórico do capitalismo que vai do fim
da Segunda Guerra Mundial, em 1945, à primeira crise do petróleo, em 1974. Período conhecido pela grande prosperi-
dade econômica vivida por alguns países, inclusive a França. [N. do T.]
COMPREENDER OS

CONSUMIDORES DO FUTURO:

AINDA HÁ UM CONSUMIDOR

NA ESCUTA?

A
sociedade - isto é, nós e os outros - não cansa de nos surpreender, e até
de nos trair!
Ontem, os consumidores corriam com entusiasmo para os hipermercados,
essas grandes fábricas d e vender, que não can sam de se modernizar, de se enfeitar desde
a sua criação, em 1963. Lá , sob um mesmo teto, eles encontravam tudo a preços de
desconto. Ganhavam tempo, dinheiro, liberdade para escolh er e aproveitar os n ovos
produtos, as promoções abundantes; e tudo isso sem nenhuma limitação. H oje, eles
viram as costas desavergonhadamente para esses templos do consumo. Preferem os
pontos-de-venda d o tipo hard discount, pequenos, sem luxo aparente, sem serviços, sem
escolhas.
Ontem, os con sumidores tinham preferência apenas pela marca e por seus valores
simbólicos. Qu eriam essas expressões modernas e midiáticas do m arketing n o café-da-
manhã , n o alm oço, no jantar, no combustível do carro, nas roupas, nas canetas esfero-
gráficas, nos lenços de papel etc. H oje, compram pneus da m arca do distribuidor, assim
como iogurtes, manteigas, geléias, televisores, computado res etc.
Ontem, na França, não vo tar era con siderado uma traição à pátria. H oj e, se 51 por
cento dos cidadãos se dão ao trabalho de ir às urnas para eleger o presidente ou opinar
sobre a Europa, nós já n os damos por satisfeitos.
Enfim, ontem os consumidores eram fiéis tanto a sua m arca de carro com o a sua
marca de raquete de tênis, de mochila; e preferiam as que saíam das fabricas fran cesas.
Hoje, eles trocam de marca como trocam de camisa; e passam sem culpa da francesa
para a Japonesa.
1 O b l ues do consum i dor

Os OPERADORES SÃO MfOPES?

Nessas mil e uma mudanças mais do que surpreendentes da nossa sociedade de


consumo, o ponto mais interessante é obviamente a própria mudança, mas é também,
e sobretudo, a aparente miopia ou ainda a possível credulidade dos dirigentes, indus-
triais, distribuidores, publicitários e jornalistas de ontem e de hoje! Tudo parece indicar
que eles não previram nada daquilo que ocorreria e ainda ocorre hoje. A questão que
se coloca agora é compreender e explicar por que aqueles que têm o poder de mudar
o curso das coisas, em razão da sua visão de futuro e das decisões que podem tomar,
parecem não ter previsto aquilo que para alguns industriais ou distribuidores é um ver-
dadeiro desastre.
Por mais que se consultem os arquivos, nenhum jornal ou artigo menciona duran-
te os anos 70, momento em que as marcas próprias surgiram na França, a preocupação
das grandes indústrias alimentícias. Muito pelo contrário, nota-se que o assunto era tabu
naquela época. Nos anos 80, não era de bom tom mencionar diante dos industriais o
sucesso das diferentes tentativas de lançamento de marcas próprias, como Casino,
Carrefour, Euromarché, para fa larmos apenas daquilo que se fazia na França . Do mesmo
modo, em nenhum lugar se encontra um traço sequer de agitação entre os distribuido-
res no momento em que surgiram as primeiras lojas de hard discount no norte do país,
em 1989, no município de Croix. Ninguém se preocupou na época com o entu siasmo
dos clientes por esse novo tipo de formato comercial. Pelo contrário, considerava-se
que esses pontos- de- venda eram muito defasados, muito austeros para os franceses, e
imaginava-se um futuro dourado para os hipermercad os! No entanto, esse formato de
ponto-de- venda j á proliferava na Alemanha e na B élgica. M as apa rentemente isso não
era ra zão suficiente para os o bservadores!
De onde vem, então, essa ausência concreta de visão? Ela é própria de uma gera-
ção de homens, de um m omento, de urna circunstância? Os que hoje decidem vão abrir
os olhos ou, ao contrário, vão continu ar a não ver corno o mundo evolui?
Para compreender essa aparente miopia passada e talvez presente, vamos examinar
o caso de John B. M ac Kittrick. Em 19 57, Kittrick era presidente da General Electric
e refletiu longamente a respeito do desenvolvimen to dessa empresa. Ele constatou que
o fato de sempre se querer fabricar m elho r e m ais barato conduzia a um impasse! C laro,
os Estados Unidos j á consumiam naquela época. H avia carros, produtos para j ardina-
gem, magníficos cortadores de grama, batedeiras e urna pilha de produtos de beleza para
deixar a mulher e o h om em mais fortes, m ais dinâmicos, mais norte- americanos. No
entanto, a con corrê ncia era acirrada, tanto mais porque o poder nas empresas estava n as
m ãos dos engenheiros. Eram eles que diziam se era possível ou não fazer esta ou aqu e-
Cap í t u l o 1 - Compreender os consum i dores do futuro 1 3

la modificação, utilizar esta ou aquela cor, lançar este ou aquele novo produto. Além
disso, eles decidiam, e não era o menos importante, os preços dos produtos - não ape-
nas em função do que o consumidor podia pagar, mas também em função da margem
bruta - e, com isso, decidiam os lucros da empresa!
Kittrick tinha a profunda convicção de que essa situação não podia perdurar. Se o
que se queria eram empresas fortes, competitivas e que dominassem seu mercado -
e, desse modo, uma nação forte - , era necessário acabar com o poder das fábricas e
voltar as atenções para o mercado. Hoje, reflexões corno essa parecem óbvias! Mas na
época não se viam as coisas do mesmo modo. Voltar as atenções para o mercado é
fabricar aquilo que agrada ao consumidor. É responder às suas necessidades. Nestas
duas últimas frases , há duas palavras essenciais, a saber, 'consumidor' e 'necessidade'.
Essas duas palavras não existiam no voca bulário das empresas nos anos 50. Os empre-
sários tinham consciência apenas do seu desempenho industrial. Nunca antes, no esta-
do-maior da Ford, da Chrysler e de outras empresas, se ousou dizer que o consumi-
dor podia ter necessidades e que é da natureza da empresa responder a elas para
aumentar os lucros.
Então, em 1957, Kittrick inventou um novo termo: 'marketing'. Somente a língua
inglesa permitia uma acrobacia gramatical desse gênero; transformar um substantivo
('market', ou seja, 'mercado') em um verbo não faz muito sentido para nós, que somos
latinos. M as Kittrick fez mais do que inventar um verbo: ele definiu um n ovo con cei-
to. Para produzir riquezas, é necessário e suficiente investigar, pesquisar as necessidades
dos consumidores e simplesmente responder a elas.
De um só golpe, a religião do consumidor se impôs! Tornou-se incontornável para
todos, fabricantes, distribuidores e até políticos. A religião do consumidor tirou sua
força do sucesso dos novos produtos, dos lançamentos bem-sucedidos, das campanhas
publicitárias que impressionavam, chocavam , en cantavam, das empresas que incessante-
mente conquistavam partes do mercado com aparente facilidade.
O consumidor tornou -se, portanto, o centro do dispositivo. Substituiu a produção
e seu cortejo de engenheiros. Foi constantemente analisado, dissecado. Para lançar novos
produtos e ter condições de impô- los ao mercado, para sair à frente dos concorrentes,
é preciso, antes de tudo, ter idéias novas. Para isso, torna- se obrigatório para as empre-
sas dar o uvidos a todas as n ecessidades, das mínimas expectativas aos desejos mais secre-
tos. Todos os operadores sabem disso e se aplicaram na sua con cretização, on tem e hoj e.
Evidentemente, essa n ecessidade de análise permanente do consumidor conduz a per-
guntas sobre a transform ação tanto do con sumidor quanto da socie dade. É necessário
antecipar as mudanças na p u blicidade, na distribuição, no consumo. É n ecessário ter a
segu rança de tom ar as decisões certas n o momento oportuno, se não se quer que o con -
4 1 O b l ues do consum i dor

corrente passe à frente. Nessas condições, é n ecessário ter consciência das novas expec-
tativas, das novas necessidades. É necessário definir com a maior precisão possível os
valores que serão levados em conta, assim como aqueles que serão abandonados.

FREUD E O FUTURO

Sigmund Freud, Ernest Dichter e muitos outros psicólogos e sociólogos serão de gra nde valia
para essa nova religião do marketing. Ao fornecer um discurso e uma teorização sobre a realidade
da necessidade de segurança, de amor e de reconhecimento, ao esclarecer aq uilo que compõe e
motiva uma necessidade, eles permitirão que as empresas cheguem mais perto do objeto de todas
as suas atenções, a saber, aquilo que pode interessar ao consumidor.
Hoje, a exploração psicológica se completa com análises cotidianas que a informatização gene-
ralizada permite. A possibilidade de coletar e explorar milhares de dados permite analisar as tendê n-
cias profundas da evolução da atividade econômica. Podemos, por exemplo, desve nda r as relações
existentes entre um tipo de consumo e o grau de instrução, o fato de ser esportista, segui r uma reli-
gião, ser casado ou amante de filmes pornô ...
Todos esses métodos, por mais interessantes que sejam, têm o defeito de se apoia r ape nas no
passado ou, na melhor das hipóteses, no presente imediato, em um momento em que por toda a
parte se vêem turbulências no consumo, geralmente inesperadas e sempre desconcertantes. Todo
mundo tem consciência desse inconveniente. Por falta de um método melhor, na maior parte dos
casos ainda continuamos a imaginar o futuro do consumidor a partir da análise do presente e do
passado, como se as coisas devessem se inscrever em uma espécie de ciclo pré-programado linear
e constante.
Para diminuir esse inconveniente, é claro que recorremos às pesquisas. Por meio de questioná-
rios e entrevistas adequados, sondamos a opinião dos consumidores sobre o futuro. Uma vez reali-
zado o trabalho de coleta de informação, resta apenas, segundo os próprios especialistas, extrapo-
lar as informações coletadas e descrever após análise quais serão as expectativas, as necessidades
prováveis do futuro. O método é aparentemente interessante. Ele empolga mesmo! Os jornais, as
revistas, as redes de TV e estações de rádio adoram isso. É verdade que é fasci nante sabe r quais
serão as necessidades, as expectativas dos consumidores, e saber antes de todo mundo o que vai
acontecer no futuro.
Esse método, no entanto, também apresenta um problema. Ele não é tão confiável quanto se
desejaria. Em certos casos, é até perigoso. Quem não se lembra de pesquisas que previam a vitória
de tal líder, de tal partido político, enquanto a realidade se revelava inteiramente diferente? Todo
Capí t ul o 1 - Compreender os con s umid o re s do f uturo 1

mundo na França lembra que, de acordo com os institutos de pesquisa, o primeiro-ministro Édouard
Balladur deveria se eleger presidente da República com mais de 60 por cento dos votos 1•
Quem não se lembra do mundo idílico que os pesquisadores nos prometiam e os jornais dos anos
80 nos descreviam? Todo mundo se lembra do que se dizia a respeito da segurança, da previdê ncia,
do automóvel etc. Éforçoso constatar que as pesquisas de opinião se enganam com tanta freq üên-
cia que não se pode realmente confiar nelas para saber o que acontecerá no futuro a parti r da visão
que o consumidor possa ter.
Refletindo um pouco, talvez seja natural que as pesquisas se enganem, aliás! Como é possível
serem exatas quando se apóiam essencialmente naquilo que os consumidores, os cidadãos, reconsti-
tuem do que eles imaginam do seu futuro? Nada indica que o entrevistado tenha uma idéia clara
sobre o futuro. Nada indica tampouco que esse seja um exercício no qual ele se sobressaia e que pra-
tique de maneira espontânea! Os consumidores, assim como os cidadãos, podem desejar um certo
futuro, mas nada indica que esse será o futuro que lhes convirá e muito menos que se realiza rá! Da
mesma maneira, quando declaram em entrevistas minuciosas, em mesas-redondas conduzidas por um
psicólogo, em um questionário ou em uma simples conversa de salão: "eu amo", "eu detesto", "é
bonito", "é feio", "votarei", "comprarei", "farei, se... " etc., eles apenas exprimem em palavras suas
opiniões, suas vontades, suas frustrações com relação a um produto, um serviço ou um político.
Nada indica, isso posto, que essas opiniões, esses pontos de vista, essas tomadas de posição,
essas atitudes correspondem efetivamente àquilo que o sujeito consumidor ou eleitor fará. Todos
temos experiência com intenções declaradas com firmeza tanto por pessoas próximas a nós como por
nossos dirigentes, do tipo: "eu farei", "eu não farei", "quando eu for... ", "eu tomarei a decisão", "eu
comprarei", "eu votarei" etc., que se traduzem na prática por ações inteiramente contrárias ! Os con-
sumidores, assim como os cidadãos, não fazem necessariamente aquilo que dizem e nem sempre
dizem aquilo que efetivamente fazem, o que complica ainda mais a compreensão do seu imaginário.

0 HOMO CLIENS, OU O HOMO COMPARATOR

Aquilo qu e Kittrick não disse ou n ão previu qu ando lan çou o conceito de m arketing
é que, por trás do con sumidor que se acredita estar n o centro do d isp ositivo, se escon -
de um o utro indivídu o ainda mais importante: o H omo cliens o u ainda o H omo compa-
rator (o comprador, o adquiridor).
Em 1957, o lado cliente do consumido r não era m uito aparente. Nos anos 90, ele
se tornaria fundamental.

O autor se refere à eleição presidencial de 2000, vencida pelo adver,;ário de Balladur,Jacques C hirac. (N. do T.J
6 1O b l ues do consum i dor

O Homo consomatio (o consumidor) é aquele que utiliza o produto ou o serviço. É


ele também que já se imagina dono do carro, da casa que viu nos anúncios publicitá-
rios. É ele que é tentado todos os dias por produtos que o deixariam mais bonito, mais
forte, mais alto, mais jovem, por viagens fabulosas e pelo dinheiro facil da loteria. Tudo
isso o consumidor deseja, quer e não desiste nunca de ter. Por essa razão, ele é o verda-
deiro motor do marketing e do mercado moderno.
O Homo cliens, ou comparator, é aquele que compra para si mesmo, para a família ou
para os amigos. É ele que se confronta com o espinhoso problema da escolha na prate-
leira do supermercado ou do hipermercado, da loja de departamentos ou da lojinha de
bairro. Cabe a ele decidir se comprará a marca que o impressionou no último anúncio
da TV, ou o vice-líder do mercado de quem todo mundo começou a falar, ou ainda a
marca da loja, que se diz menos cara e tão boa quanto as outras. Cabe a ele também
não se enganar quando compra um vestido ou um par de sapatos que está na moda ou
o vinho que combinará com os pratos que serão servidos no jantar com seus sogros.
Enquanto o Homo consomatio sonha, o Homo comparator escolhe e compra! Enquanto
o consumidor deixa o seu espírito vaguear e se presta voluntariamente à hipnose da
mídia, o cliente deve se virar com o dinheiro que o Homo consomatio ainda acredita ter.
Nesse cenário com ares de Dr. Jekyll e Mr. Hyde [O médico e o monstro], a prolifera-
ção dos produtos, dos meios de comunicação e, portanto, das tentações de toda sorte
aliadas ao desenvolvimento da distribuição terá um papel decisivo na dualidade consu -
midor/ cliente de cada indivíduo.
Kittrick, quando criou o conceito, não podia imaginar que mais do que os produtos, o
que se desenvolveria mais e mais rápido seriam a distribuição e os meios de comunicação.
Em 1957, os hipermercados faziam apenas uma tímida aparição na França. Não se
imaginava nem mesmo encontrá-los um dia na Espanha, na Argentina, na China ou na
Polônia. O Wal- Mart não existia! O s category killers', como D ecathlon, Leroy Merlin ou
Home Dépôt, ainda nem tinham sido concebidos por seus criadores, que n essa época
eram simples estudantes ou ainda usavam calças curtas. Quanto mais o con sumidor se
prestasse ao jogo do consumo, mais o seu lado cliente teria de tomar decisões corne-
lianas3 com relação a suas escolhas de lojas ou de produtos. A multiplicação das seções
nos pontos-de-venda, a liberdade de pegar e de devolver os produtos desarrumaria os
hábitos de consumo. O aumento ao infinito da oferta e das formas de compra faria do
personagem 'cliente' o outro centro do dispositivo de marketing.

Lojas de porte médio ou grande, do setor não-alimentício, com grande quantidade de produtos. Em inglês no original.
[N. doT.]
Que causam conflito entre o sentimento e o dever. [N. do T.]
Cap í t u l o 1 - Compreender os consum i dores do futuro 1 7

Dizer que o lado cliente do indivíduo estava em dualidade com o seu lado consu-
midor significava dizer também que no marketing do consumo, para ser eficaz, era
imperativo que se acrescentasse o lado do cliente.Veremos, aliás, que em certos setores
mercantis o lado consumidor do indivíduo desapareceu completamente e cedeu lugar
para o lado cliente. Isso explica, por exemplo, a ofensiva dos produtos genéricos.
O consumidor é abordado por suas atitudes, suas opiniões, em urna palavra, por
aquilo que ele declara. O cliente só é abordado por aquilo que ele faz, isto é, seu com-
portamento.
As atitudes traduzidas pelo juízo declarativo (aquilo que sentimos, aquilo que dize-
mos, já que é disso que se trata) são produzidos por uma alquimia complexa que os psi-
quiatras e os psicanalistas nos fazem compreender e partilhar segundo o progresso de
suas pesquisas e de seus trabalhos. Hoje, os responsáveis pelas empresas já dominam bem
esse mundo de atitudes. Isso tem corno conseqüência o fato de a complexa realidade
do consumidor ser b em conhecida por aqueles que têm de tomar as decisões em ter-
mos de comunicação, de publicidade ou de gestão das necessidades.
Ao contrário das atitudes, o comportamento é aquilo que fazemos e não o que
dizemos! Um comportamento não se declara, observa-se. Quando urna dona-de-casa
fica furiosa e abandona o carrinho cheio de compras, depois de te r percorrido todos os
corredores do hipermercado a passos largos, porque acha que está esperando demais no
caixa e tem de se apressar, andar rápido para pegar o filho na saída da escola, ela não
exprime urna atitude, mas sim um comportamento.
Ora, na linguagem comum, não prestamos muita aten ção ao emprego acadêmico
dos termos 'atitude' o u 'comportamento' . Empregamos de bom grado um pelo outro e
v ice-versa. Afirmarem os, por exemplo, qu e o cliente tem um comportamento favorável
às marcas quando diz o que pensa da Coca-Cola, da Danone, da Kleenex de forma elo-
giosa e que tem uma atitude muito m arcada pelas marcas próprias e pelos preços bai-
xos quando enche o carrinho de compras com produtos Carrefour, Casino o u Auchan.
Está muito claro que nesses dois últimos casos teria sido necessário falar da atitude
da con sumidora com relação às grandes marcas e de seu comportamento de compra-
dora com relação às MD D [marques de distributeurs, o u m arcas de distribuição própria].
A atitude se escuta, o comportam ento se observa.

0 MUNDO DO COMPORTAMENTO

O mundo do com portamento possui uma n atureza bem diferente daquele das ati-
tudes. N esse mundo, não se fala, como Abraham H . M aslow (1908-1970), e m motor
8 1O b l ues do consum i dor

da ação ligado à necessidade de realização de si mesmo, de reconhecimento, de amor,


de segurança, à necessidade fisio lógica, de realizar seu potencial etc. Fala-se simples-
mente em reações, isto é, do conceito estímulos-resposta.
Tudo aquilo que diz respeito aos comportamentos é, afinal, muito pouco conheci-
do, reconhecido e utilizado pelas empresas. A força da psicologia clássica é tal, a impor-
tância do lado consumidor do indivíduo é tão presente nas decisões de marketing, que
falar de comportamento e de cliente parece ser apenas uma outra maneira, talvez mais
sofisticada, mais moderna, de falar das atitudes e do consumidor.
Evidentemente, não é nada disso! Quando se fala de comportamento, deve-se pen-
sar em Ivan P. Pavlov e Vladimir M. Bekhterev, apaixonados pelo condicionamento dos
animais! Mas também em Edward C. Tolman, C lark L. Hull e Burrhus F. Skinner, fun-
dadores da psicologia reativa, que puderam formular suas próprias teorias de aprendi-
zagem e de comportamento baseando-se em experiências de laboratório e não na
introspecção freudiana. Mais próximos de nós, nos anos 90, há Leda Cosmides e John
Tooby, dois nomes célebres entre os fundadores da teoria revolu cionária da psicologia
evolucionista, que sustenta que o nosso cérebro não é uma cera inerte, uma 'tábula rasa'
moldada pela cultura, mas antes uma caixa de ferramentas feita de circuitos neuronais
programados por m ilhões de anos de evolução. O comportamento - era esse precisa-
mente o assunto de Jean Rostand, Pierre Bourdieu, Konrad Lorenz e, em geral, de todos
os etnólogos, antropólogos, sociólogos, que permitiram a formulação das bases da ciên -
cia cognitiva.
Esses autores, cujo conhecimento, no entanto, é essencial se quisermos compreen -
der o lado cliente do consumidor, são hoje mais apreciados por seus trabalhos sobre os
chimpanzés do que pelos modelos de explicação do comportamento de compra dos
homens. Esse desconhecimento é lamentável quando nos propomos a definir o futuro
da nossa economia.
É evidente que hoje, para imaginar o futuro, não é mais suficien te con siderar ape-
nas a evolução das atitudes do con sumidor, se se admite a dualidade consumidor/ clien -
te. É indispensável também que se con siderem, talvez an tes de qualqu er o utra coisa, os
comportamentos em cu rto, médio ou longo prazos.
É n ecessário, portanto, avaliar de um lado as opiniões, as atitudes dos consumido-
res sobre os fatores que amanhã determinarão a reputação, o valor de urna marca, de
uma bandeira de distribuição, de um produto ou serviço, algo que sabemos fazer muito
bem hoje; por outro lado, é imperativo determinar a evolução dos comportamen tos e
dos critérios que nos fazem escolher um produto em detrimento de outro, uma rede
de distribuição em detrimen to de outra, algo que n ão sabemos fazer tão bem.
Cap í t u l o 1 - Compreender os consum i dores do futuro 1 9

0 COMPORTAMENTO É ANTES DE TUDO OBSERVAÇÃO

Observem os - com o faríam os com qualquer mamífero c ujo comportamen to esti-


véssem os estudando - uma cliente dentre ta ntas o utras na seção de produ tos de higiene
e beleza de um supermercado. Ela olh a as marcas, as promoções anunciadas nas pratelei-
ras. Ela está em silêncio. R eflete. Talvez estej a comparando as embalagens? Talvez esteja
fazendo cálculos com parativos entre as prom essas de cada produto e os preços afixados?
Podem os supor tudo isso, mas nunca saberem os de fato, m esm o se pergu ntássem os (algo
que é sempre tentador, mas sem grande utilidade) ! As ú nicas coisas que podemos consta-
tar são: o qu e ela faz, o qu e ela toca, pega, devolve, se vai comprar e o qu e vai compra r.
Continu emos a observação. Evidentem ente, dado o te mpo q ue a clien te gasta n a
seção, ela proc ura alguma coisa que n ão está encontrando o u está com dific uldade para
escolher. Urna dem on strado ra ou vendedora se aproxim a gen tih11en te, pergun ta de
mane ira educada se pode ajudar, u tilizando as p alavras mais n eutras que se possam ima-
ginar, d o tip o: "A senho ra p rocura alguma coisa? Posso ajud ar?". D e repen te, in espera-
dam en te, a clien te responde com raiva e de m aneira agressiva: "Não!". Em seguida,
interrompe seus devan eios e sai resmungando da seção, bru scame nte. É provável que
não tenha se dado conta do que fez, do que disse, muito m enos do seu tom de voz
quando respondeu de m an eira agressiva à pessoa que tentava ajudá-la.
Na verdade, a clien te apenas reagiu a uma situação p rovavelme nte criada pela ven -
dedora . Sem se dar con ta, esta última ultrapassou o perímetro natural de defesa ineren -
te a cada ind ivíd uo. Ela chegou mu ito perto, com gestos que p re tendiam ser afáveis, mas
que fo ram m al interp re tados, portan to mal viven ciados. A consumidora talvez tenha se
sentido agredida, posta em perigo por esse gesto, por essa proximidade, pelo tom de voz
talvez muito m eloso da ve ndedora. E m um instante, ela pode ter imaginado mil coisas,
com o: "Vão me forçar a comp rar aquilo que eu n ão quero!"; "A vendedora n ão vai lar-
gar do meu pé, e u não vo u saber resistir, ela vai insistir, sem dúvida, ela ganha uma
comissão sobre as vendas, seus conselhos são, por definição, o rien tados por alguém e,
portan to, não são confiáveis" etc.
Po uco importa como a clien te descreverá a cena o u aquilo que vive nciou. Pouco
impor tam as razões que dará para justificar seu comportame nto ! O que con ta é o que
ela fez. M ostrou-se agressiva e foi em bora sem comprar n ada . E m o u tras palavras, fez o
con trário daquilo que queria a vendedora, o con trário também d o que esperava esta
última, que acreditava ter utilizad o tão bem as fórmu las ensinadas pelo departamen to
de treinamen to da empresa.
Por que a consumidora teve essa condu ta? Trata-se de um com portamen to n ovo
e, se sim, por quê? Quais são os elementos e os fatores que levaram a consu midora a
10 1 O b l ues do consum i dor

esse comportamento à primeira vista irracional, completamente aleatório? Esse com-


portamento se repetirá? É o sinal de uma nova maneira de ser? Quais são as soluções
para evitá-lo?
Diante desses comportamentos, se considerarmos o bom andamento da loja, os
resultados do gerente de vendas ou o sucesso das marcas presentes nas prateleiras, deve-
mos tentar entender se se trata de um ato isolado ou se diante dessa mesma situação a
maioria dos clientes reage do mesmo modo. Da mesma maneira, será n ecessário deter-
minar se esse tipo de situação sempre gerou, no passado, o mesmo tipo de comporta-
mento ou se essa agressividade do cliente é algo inteiramente novo e cada vez mais pre-
sente na maioria dos indivíduos observados! Se se trata de um caso isolado, o melhor é
esquecê-lo! Se, ao contrário, observamos que, a cada vez que um vendedor se aproxi-
ma de um cliente que está sonhando acordado diante das gôndolas, ele o faz fugir e se
tornar agressivo, e se estamos convencidos de que se trata de um comportamento muito
recente, será necessário deduzir que alguma coisa mudou na relação cliente/ vendedor
e que a nova sociedade de consumo impõe novas formas de venda.

A SITUAÇÃO-MOTRIZ DO COMPORTAMENTO

Se o comportamento daquela cliente pode ser considerado a priori uma reação à


abordagem da vendedora, isto é, à situação criada por esta última , ainda seria necessá-
rio determinar mais precisamente o que o termo 'situação' recobre. Nesse caso especí-
fico, é o procedimento da ve ndedora , a cor do seu cabelo, o seu jeito de andar o u a
conjunção 'dificuldade de escolha da cliente/imagem dos vendedores em geral, nature-
za do ponto-de-venda em particular'? Estamos diante de urna tipo logia de cliente o u
de um segmento em particular?
Sabemos por experiência que certos clientes consideram a presença de vendedores
nas lojas algo intolerável, sobretudo quando sentem que n ão têm absolutamen te nenhu -
ma necessidade deles! Isso os leva a serem agressivos com esses pobres rapazes e moças
que a direção do ponto- de- ve nda n ão cansa de motivar de diversos modos para que
sejam dinâmicos e presentes no contato com os clientes. Outros, ao con trário, aceitam
o u to leram a presença dos vendedo res, sobretudo quando consideram que se trata de
jovens que estão tentando fazer seu trabalho direito e se esforçando de todas as manei-
ras para fugir do desemprego. Isso os leva a serem benevolentes, e algumas vezes até a
comprarem mais!
A razão dessa diferença de comportamento, na verdade, não é de natureza tipoló-
gica, como muitas vezes se quer acre ditar por pura simplificação das coisas. Não exis-
Cap í t u l o 1 - Compreender os consum i dores do futuro 1 11

tem os que gostam e os que não gostam dos vendedores. Não nascemos pró ou con-
tra os vendedores; percebemos uma situação, há uma reação e disso decorre o com-
portamento.
No dia-a-dia, deparamos repetidas vezes com esse tipo de situação que coloca em
jogo a relação percepção/comportamento. Por exemplo, no pedágio de uma rodovia,
quando um motorista demora para encontrar o dinheiro e ainda brinda a funcionária
do caixa com um longo e amigável discurso, depois de finalmente ter pago, não é raro
que quem está atrás dele acabe mostrando sinais evidentes de nervosismo. Também não
é raro que essa pessoa ouça do carona, do colega, da esposa ou de um dos filhos: "Não
ligue, fique calmo. Está tudo bem, temos tempo, para que ficar nervoso?" .
Por razões que lhe são próprias, naquele momento, esse motorista está sinceramen-
te convencido de que é vítima de uma grande injustiça o u de uma tremenda falta de
sorte. Pelo fato de ter algo importante para fazer, de q uerer chegar antes do horário de
fechamento da loj a onde deve comprar alguma coisa que julga importante, ele tem uma
percepção muito particular dessa cena. Para outras pessoas, ela seria simpática ou abso-
lutamente normal! Para ele, é inaceitável. Quanto mais espera, mais o motorista fica
irritado e desagradável.Vocifera muitas vezes de maneira inquietante! Qualquer coisa é
suficiente para tornar a situação explosiva, sobretudo se um dos passageiros faz uma
observação que ele julgue estúpida o u incoerente, do tipo: " Quem espera sempre alcan-
ça". As crianças, passageiros forçados n os carros dos pais, conhecem bem esse tipo de
discussão e têm medo.
Nada indica que nesse mesmo pedágio, em um outro d ia, o mesmo motorista não
terá um comportamen to completam ente diferente. Pelo fato de estar com tempo de
sobra , de o rádio do carro estar tocando uma música que lhe agrada ou de os policiais
estarem por perto, ele ac hará que o motorista da frente, que demora para pagar, é um
'caipira', m as não é uma má pessoa. Confirmará sua opinião aos passageiros, referindo-
se à placa do autom óvel, rindo : " Não me espanta, ele é do interior!" .
A situação vivida aqui pelo motorista que espera é própria a ele. É a conseqüên -
cia de sua percepção. A percepção que ele tem daquilo que se passa n o pedágio per-
tence a ele. O comportamento que ele manifesta não está em discussão. Podemos até
dizer a ele que isso o u aquilo n ão se faz o u não se diz, m as não adiantará nada. Ele não
do mina sua percepção, tampo uco suas reações. N inguém pode sentir a situação vivida
por um terceiro. O famoso 'coloque- se no meu lu gar', nesse caso, n ão tem n enhum
sen tido !
A reação a urna situação é apenas, segundo múltiplas observações que foram feitas,
urna questão de percepção. Em o utras palavras, é o observador que, em um dado
momento, define a situação, e não o contrário. N essas condições, portanto, n ão existe
12 1 O b l ues do consum i dor

situação boa ou má, ou ainda situação justa ou injusta. O que existe é o que vemos,
ouvimos, sentimos, interpretamos em um dado momento, e que define o que chama-
mos de situação e que nos leva a reagir!
A realidade da importância do observador na definição da situação é perfeitamen-
te demonstrada por todos os exemplos da nossa vida cotidiana. Gostamos de tal restau-
rante porque o ambiente nos agrada, os fun cionários nos convêm e a carta de vinhos
não é ruim. Inversamente, não gostamos daquele outro restaurante, embora a comi da
seja boa, a carta de vinhos seja correta e os preços sejam acessíveis. Achamos o ambien-
te frio, os clientes um pouco chiques e conservadores demais para o nosso gosto. Nada
indica , aliás, que um dia não acharemos esse restaurante perfeito porque percebemos
uma evolução no ambiente. A percepção do restaurante que temos por meio dos nos-
sos cinco sentidos nos faz perceber uma situação que apenas nós mesmos podemos jul-
gar boa ou ruim. Assim como j ulga o restaurante, o cliente julga o supermercado. Sem
se dar conta, reagirá à ilu minação, aos funcionários, aos corredores da loja, ao merchan-
dising, à música ambiente. E le se sentirá então em território antigo ou inimigo. Terá
von tade de comprar ou, ao contrário, de se liv rar rapidamente das compras e ir termi-
ná-las em o utro lugar. Se mora perto do ponto-de-venda e não gosta dele, ele fará suas
compras mais longe ou se sentirá obrigado a comprar ali e nu trirá um ódio feroz por
aquela bandeira.
Nas férias, isto é, em um o utro ambiente, em outros horizontes, nada indica que
essa bandeira n ão será novamente freqüentada por esse mesmo cliente.

Os MECANISMOS DE PERCEPÇÃO - O EFEITO DE ATERRISSAGEM

Os mecanismos do percebido, isto é, das definições de situação, são h oje bem conhe-
cidos. Em primeiro lugar, o con sumidor percebe n aturalmen te. Por seus diferentes sen -
tidos, ele está em contato com o o bjeto, a coisa, o momento, o acontecimento, o lugar.
Ouve, toca, vê, cheira, experimen ta. Em seguida, em função da escolaridade, da idade,
da experiência, da condição, ele interpreta aquilo que percebe. Finalmente, conforme o
momento e aquilo que ele é ou representa, o cérebro do cliente faz uma comparação
entre o que ele interpreta (realidade) e o que ele desejaria ou, ainda, o que deveria ser
idealmente para ele aqu ilo que ele percebe (valor).
O consumido r carrega seu cérebro com a publicidade de um determinado produto.
Ele tem uma imagem provavelmente ideal desse produto. Como está n a sua fase con -
sumidor, e le talvez fantasie a respeito das for mas, das cores, da utilidade, do desempe-
nho. Ao chegar ao ponto-de- venda, ele vê o produto n a prateleira ou sobre o balcão da
Cap í t u l o 1 - Compreender os consum i dores do futuro 1 13

loj a. Inconscientemente, seu cérebro vai traçar o caminho que existe entre a imagem
que ele tinha do produto e aquilo que ele vê na realidade. Ocorrerá aí aqu ilo que se
convencionou chamar de 'efeito de aterrissagem' .A percepção do cliente aterrissará do
'valor' à 'realidade'. Está claro que, se o efeito de aterrissagem for n egativo, ele terá uma
grande decepção ou, ao contrário, uma bela surpresa.
O percebido situa-se, portanto, entre esses dois pólos, isto é, en tre a realidade e os
valores.
A dificuldade de interpretação do percebido, portanto das reações, poder ia vir do
fato de que é provável que cada consumidor, conforme sua c ultura, sua classe social,
sua idade, pode ter uma certa idéia do modo como as coisas são (realidade) e como
deveriam ser (valores). Nesse caso, seria dificil fazer proj eções sobre as reações de massa
ou globais que sejam do interesse tanto dos distribuidores corno dos industriais para
suas decisões estratégicas! Felizmente, um grupo de antropólogos iconoclastas, Dan
Sperber, Pascal Boye r e Scott Altran, fervorosos pesquisadores da psicologia evolucio-
nista e da antropologia cognitiva, demonstrou , já há alguns anos, que, ao contrário do
. . ,
que 1magmava mos:
D as culturas não são va riáveis e singulares - muito pelo contrário, existem inva-
riantes culturais;
D o pensamento formata as culturas e não o inverso, contrariamente àquilo que
acreditamos há séculos.
E m outras palavras, n o México, em M oscou ou em Limoges, as pessoas se compor-
tam do mesmo modo nos supermercados e escolhem os produtos da mesma maneira.
As Galerias Lafayette são, n esse sentido, um ótimo exemplo. Os clientes japoneses
ou americanos têm cada um - ou pelo menos imaginamos que tenham - uma certa
idéia daquilo que é uma loja de departamentos parisiense. Também têm sua própria
idéia de como as coisas deveriam ser com relação à experiência, à expectativa, à vivên -
cia adquirida em lojas de seus países de origem o u em suas v iagens. A percepção osci-
la, portanto, entre esses dois pólos da realidade e dos valores. M as, ao contrário do que
poderíamos imaginar, não observam os grandes diferenças en tre aquilo que é percebido
pelos j apon eses e aquilo que é percebido pelos americanos. O fato é que eles simples-
mente têm os mesmos efeitos de aterrissagem, porta nto a m esma percepção e as m es-
mas reações. Os clien tes americanos o u japon eses têm , afinal, as mesmas ' invariantes cu l-
turais'. Aprenderam desde cedo, isto é, desde que eram crian ças, o que era uma loja de
departamentos e acabam vendo as coisas hoje da mesma maneira.
Portanto, em função do potencial de compra próprio dessas duas populações, os
respon sáveis por essa loja de departamen tos devem refletir bem sobre aquilo que que-
rem vender a uns e a outros, as marcas e os preços. Em hipó tese algu m a devem se
14 1 O b l ues do consum i dor

preocupar em fazer, como propõem alguns, uma loja para japoneses ou para america-
nos e un1 'canto' para os franceses.
Se estamos de acordo sobre o que acaba de ser escrito, devemos admitir que o
modo como vemos a loja induz o modo como pensamos a seu respeito e, portanto, o
modo como nos comportamos diante das gôndolas.A percepção não é apenas ver; tam-
bém é tocar, sentir. O cliente quer tocar o roupão, a chave de fenda que ele está pen-
sando em comprar, a madeira do corrimão da escada, pisar no tapete ou no ladrilho.
Em algumas seções de bricolagem pudemos observar que colocar certos produtos
em blisters ou vitrines diminuiu a possibilidade de tocá-los, portanto de percebê-los e
comprá-los. Quando compramos um carro novo, tocamos os bancos de couro. Proibir
isso é privar o cliente de urna sensação muito intensa, que pode levar à compra.
As lojas Sephora entenderam que era necessário deixar o cliente tocar os perfumes, os
batons, os produtos de beleza a fim de estabelecer nele urna percepção de liberdade total.
Assim, a percepção é mais completa do que a simples v isão do objeto, do ponto-
de-venda ou dos corredores da loja.
Embora seja o observador e somente ele quem define a situação, isso não se dá ao
acaso. Há para cada situação, a cada vez, urna explicação possível dos mecanismos da
percepção.

A DINÂMICA DA PERCEPÇÃO

A percepção não é somente impressio nista: ela é dinâmica, para n ão dizer cin ética!
Na loja, o cliente é movido por duas forças antagônicas e interativas. Por um lado,
ele tem a necessidade de encontrar aquilo pelo qual foi até o ponto-de-venda. Ele sabe
por experiência própria que sua marca preferida talvez estej a em falta ou que a orga-
nização das gôndolas da loja mudo u; em suma, que por urna razão ou outra corre o
risco de não encon trar sua marca favorita. Esse risco existe e tem conseqüên cias. Não
encontrar o produto é voltar para casa de mãos abanando. É desapontar a família. É, tal-
vez, passar por idiota. Não en contrar é um ato que preocupa fortemente o cliente! Por
outro lado, ele sabe que deve fazer as compras em um tempo mais o u menos determi-
nado. Ele tra balha o u tem filhos, um marido o u urna esposa à sua espera. Tem um cré-
dito de tempo para as compras, que con cede a si mesmo ou do qual tem con sciência, para
comprar, encontrar, pagar.
A necessidade de encontra r é uma espécie de an siedade que observamos em cer-
tos clientes n o m om ento da compra. Se o lado consumidor pode predeterminar aqui-
lo que ele procura em termos de marca, preço, tamanho, o lado clien te pode, por vezes,
Cap í t u l o 1 - Compreender os consum i dores do futuro 1 15

se perguntar se o produto que procura está disponível ou p erder a paciência por não
encontrá-lo de fato e de imediato nas prateleiras da loja. A mãe de família, por exem-
plo, pode se sentir frustrada cada vez que tem de comprar pilhas para os br inqu edos do
filho, se não entender a disposição nas prateleiras, as cores e sobretudo o tamanho das
pilhas. Inversamente, o cliente pode não ter identificado com precisão aquilo que pro-
cura. Por exemplo, ele quer uma camisa nas cores da moda , mas não muito vistosa, nem
muito cara. À medida que procura, diante da fartura de escolhas ou da total falta de
opção, ele pode se desesperar por não encontrar. Tanto em um caso como no outro, a
necessidade de encontrar pode fazer com que o consumidor entre em uma espécie de
turbilhão de ansiedade. Esse turbilhão criará uma situação ou um elemento de situação
e produzirá o comportamento.
O crédito de tempo para as compras, isto é, o tempo que nos damos para fa zer as
compras, pode adquirir importâncias muito diferentes conforme o cliente é pressiona-
do pelo cônjuge que está p erdendo a paciência , importunado pelo filho que n ão pára
ou se não encontra aquilo que procura. O vendedor que responde mal e faz o cliente
perder sua calma e seu tempo também é um fator importa nte na percepção do crédi-
to de tempo para as compras.
Portanto, necessidade de encontrar, de um lado, e crédito de tempo para as com -
pras, de outro, são os valores que criam uma certa situação e, com isso, uma percepção
da loja e dos comportamentos.
Conforme o tipo de distribuição, o tipo de compra (por prazer ou por dever), e
tam bém o segmento de clientela (m ães de família, idosos), essas duas forças antagôn icas
interagirão e se influenciarão de m odo bem diverso.
No setor de móveis, o crédito de te mpo para compras não é limitado. Perambu -
lamos sem dificuldade pelas lojas: visitamos de bom grado os quartos, as cozinhas e, de
passagem, as salas de estar. Muitas vezes, n ós nos concedemos a tarde toda para fazer o
tour dos pontos-de-venda! A necessidade de encontrar é freqüentemente pouco ou não
determinada.A ansiedade é baixa. N ão sabemos muito bem o que estamos procurando
e, por fim, podemos comprar alg uma coisa q ue não havíam os imaginado antes de entrar
na loja! As duas forças não se opõem necessariamente. A percepção que temos da situa-
ção de compra, n esse caso, está muito mais ligada aos vendedores e à sua disponibilida-
de, à decoração, aos o utros clientes.
Já que temos tempo para olhar, vamos aproveitar! Isso explica por que a Ikea pode
obrigar os clientes a seguir um trajeto que passa o brigatoriamente por todos os móveis
expostos na loja. Está claro que isso n ão seria possível em uma loja onde o crédito de
tempo para as com pras do con sumido r é muito curto ou a necessidade de encontrar é
pe1feitamente definida.
16 1O b l ues do consum i dor

Na distribuição de produtos alimentícios, a situação é totalmente diferente. O cré-


dito de tempo para as compras é geralmente muito curto. Temos pressa e não encara-
mos necessariamente como lazer o fato de fazer compras para encher a geladeira! Em
compensação, a necessidade de encontrar se refere a produtos bem identificados em ter-
mos de marca, preço, tamanho e cor. Não agüentamos procurar por muito tempo!
Geralmente sabemos onde encontrar nossas marcas favoritas, os melhores preços etc.
Estas duas forças, a necessidade de encontrar e o crédito de tempo para as compras, vão
sucessivamente se opor ou, ao contrário, se harmonizar no todo ou uma em relação à
outra. É a presença de uma série de elementos (presença ou ausência de certas marcas
nas gôndolas, largura dos corredores etc.) e de fatores (temperatura ambiente, qualida-
de do piso, uniforme dos funcionários etc.) que influenciará a dupla crédito de tempo
para as compras/necessidade de encontrar.
Se as gôndolas estiverem dispostas de forma confusa, o tempo de compra parecerá
tão mais longo quanto mais determinado ou decidido previamente fo r o produto pro-
curado e maior a pressão para ir buscar o filho na saída da escola. Inversamente, se a
arquitetura propuser tetos altos, desobstruídos, se as cores forem apaziguadoras, se a tem-
peratura for baixa no verão, nós nos sentiremos menos oprimidos, menos pressionados
e, com isso, o tempo de compra e a necessidade de encontrar não serão vivenciados da
mesma maneira.
A percepção global que prende o cliente a um ponto- de-venda não é, portanto,
uma simples impressão ou uma imagem mais ou menos fugaz de sua passagem pelo
ponto-de- venda. A temperatura da loja, o número de clientes presentes, a apresen tação
dos produtos, o tipo de piso, a iluminação, os odores, a cor, o mobiliário, a mú sica, a
altura do teto e o tipo de decoração são, na verdade, uma sucessão de estímulos que
criam uma situação ligada ao crédito de tempo para as compras e à n ecessidade de
encontrar. Portanto, a percepção do ponto- de-venda tem efeitos comportamentais,
visto que provoca reações.
A necessidade de, em um primeiro momento, definir de maneira global esses ele-
mentos e fatores e, em um segundo momento, observar sua interdependência torna-se,
portanto, uma prioridade a partir do momento em que desejamos influenciar favora -
velmente a compra feita pelo consumidor.
Na estratégia de diferenciação dos pontos-de-venda, na necessidade de fazer que o
cliente compre mais e melhor, na necessidade de fidelizar e de satisfazer o cliente con-
quistado, a estratégia do percebido já surge, hoje, como algo incontornável. No futuro,
será provavelmente o grande fator de sucesso dos distribuidores. Devemos esperar para
o futuro, portanto, uma vontade marcada, por parte de todo tipo de distribuidores, de
fazer de tudo para oferecer aos clientes lojas bonitas, que incitem muito mais à compra
Cap í t u l o 1 - Compreender os consum i dores do futuro 1 17

do que h oj e. Te remos n ão só loj as bo nitas, mas sobretudo po ntos-d e-ven da nos quais o
ambien te será definido para criar diretamente comportamentos favoráveis a ' mais com -
pras' e a 'melho res compras': para aí se voltarão os grandes investim entos.
Portanto, o percebido, isto é, a situação, se tornará o primeiro estímulo comporta-
m ental d o p onto-de-venda.
O qu e vale para o p on to-de-venda també m vale para o utros lugares, com o nas
estradas: a visão d o p olicial faz o m oto rista desacelerar, m esm o que ele não estej a fazen -
do nada de errado. Urna estrada recém - recapeada, bonita e lisa, com faixas n ovas, favo-
rece o excesso de velocidade ! U ma m ulher rica geralm ente p arece m ais bonita do que
urna mulher pobre'.

A NATUREZA DAS PERCEPÇÕES COLETIVAS

E mbo ra tenhamos uma percep ção individual muito específica das situações q ue vive-
m os, o qu e n os leva a ter nossas próprias reações, po rta nto comportam en tos que pode-
ríamos chamar de únicos, seria prem aturo imaginar q ue some nte essas reações devem
ser levadas em con ta para definir o que fará no futuro o consumidor com tal e tal
p on to-de-venda, com tal e tal re de de distribuição. Observam os, com efeito, que em
termos de grupo (sindicatos, en tidades patronais, grevistas . . . ), de m ultidão, de massa,
existe um outro tipo de reação, uma reação coletiva . É com o se em um dado m om en -
to n ós tivéssem os u m a percepção comum da situação que v ivemos e, por isso mesm o,
um com portamento idêntico ao de todos.
E m um estádio de fu tebol, parte dos espectadores se levanta no mesmo momen to,
simultaneamente, quando a equipe pela qual torcem ameaça marcar um gol. E n quan to
isso, a o utra m e tade da platéia exprime uma p rofunda tristeza, uma amargura indescri-
tível com gestos de desespero. Se pedíssem os a 50 mil fi guran tes para represen tar essa
cena, seriam n ecessárias horas de p reparação p ara que os m ovimentos e os gestos esti-
vessem e m sincronia. Com toda a certeza, seria necessário repetir a cena uma infinida-
de de vezes, para desespero do d iretor.
Assistindo ao j ogo, bem o u m al, a multidão faz a sua parte sem dem o ra, sem pre-
paração. Ela tem um comportam ento de massa n ão ditado, não organizado e, n o en tan -
to, pe1feitam ente preciso.

CONNIFF, R ichard. U11e histoire 11at11relle des tres triis ric/1es. Paris: Éditions Maxima, 2003. [Ed. brasileira: Hist6ria natural dos
ricos. R io de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.)
GOUILLOU, Philippe. Po11rq11oi les f e111111es ricl,es so11t belles. Louvain-la- Neuve: Éditions D uculot, 2003.
18 1 O b l ues do consum i dor

A mesma coisa acontece quando vemos um acidente na pista contrária de uma


estrada. Todos diminuem a velocidade no mesmo lugar, olham para a mesma cena e vão
embora já esquecidos do susto.
O que vale para um estádio vale também para uma estação de trem, as marginais
que rodeiam a cidade, a bolsa de valores, as lojas de departamentos ou os hipermerca-
dos, a escolha de políticos ou de partidos políticos. Todos os dias, nós fazemos juntos os
mesmos gestos e temos os m esmos comportamentos diante de situações semelhantes.

A PREVISÃO DOS COMPORTAMENTOS COLETIVOS

É certo que hoje nós sabemos mais sobre o comportamento coletivo dos animais
ou das bactérias do que dos seres humanos. Konrad Lorenz, ganhador do prêmio
Nobel, e outros especialistas de etologia descreveram com perfeição o comportamento
dos gansos selvagens, dos peixes dourados, mas infelizmente não o das multidões no 14
de julho 5 ou o das mamães na saída do maternal.
Todos os especialistas em marketing haviam previsto que durante a Copa do
Mundo de futebol de 1998, na França, as mulheres não assistiriam à televisão. "Fu tebol
é coisa de homem", afirmavam. Assim, as redes de televisão não acharam por bem ven-
der espaço publicitário para essa famosa dona-de- casa de m enos de 50 anos que é alvo de
todas as atenções dos publicitários e dos especialistas em marketing.
Por motivos inexplicáveis na época, as mulheres, para surpresa geral, tiveram um
comportamento inesperado. Passaram a assistir aos jogos um após o o utro e tornaram-
se torcedoras indiscutíveis da seleção francesa. Poderíamos ter previsto esse comporta-
mento? Havia alguém disposto a defendê- lo antes das oitavas de fina l? A resposta é,
infelizmente, não !
Mais surpreendente ainda foi o enco ntro espontâneo de mais de um milhão de
pessoas, de todas as raças, de todos os grupos socioprofissionais, misturados e abraçados,
comemorando nos Champs-Élysées depois da final e da vitória da Fran ça. Durante a
Copa, ninguém mostrou o caminho, nenhuma organização preparou a festa, n enhuma
palavra de ordem criou a dinâmica de união. O público reagiu a uma situação e sentiu
necessidade de se comportar de uma maneira inesperada .
Muitos analistas atribuíram esse comportamento coletivo a uma reação saudável às
teses racistas da Frente Nacional (partido de extrema direita francês), muito férteis n a
época. Os franceses teriam saído às ruas porque estavam orgulhosos da seleção forma -

D ata da Queda da Bastilha e feriado nacional na França, [N, do T.)


Cap í t u l o 1 - Compreender os consum i dores do futuro 1 19

da por brancos, negros e beurs 6 • Se quiséssemos rep etir uma operação dessa dimensão,
seria necessário muito esforço e não teríamos garantia do resultado!
Os comportamentos coletivos sempre foram muito importantes para a compreen-
são do funcionamento das sociedades, de sua história e de seus conceitos sobre elemen-
tos essenciais, como liberdade, direito do indivíduo, religião etc. Para compreender e
definir os contornos da nova sociedade do Homo cliens que se delineia em nome da dua-
lidade consumidor/ cliente, o estudo dos comportamentos coletivos da nossa sociedade
é passagem obrigatória.
Diante do desenvolvimento dos meios de comunicação, da sua irradiação instantâ-
nea e planetária, deve-se esperar que situações 'comuns' sejam compartilhadas no
mesmo instante por grandes coletividades. A ssim se criarão comportamentos similares
e generalizados por todo o planeta. Todo o mundo assiste ao mesmo tempo à final do
campeonato de futebol, ao atentado de 11 de setembro de 2001, à guerra no Iraque e
ao massacre na Eslovênia. Todo o mundo se encontra nas mesmas situ ações de tristeza,
de alegria ou de frustração. Todo o mundo compartilha, portanto, de comportamentos
comuns. O mundo das raças e das culturas diferen tes será substituído talvez por aquele
das reações. Essa é uma tese que alguns não se privam de anunciar.
Robert Winston, biólogo e divulgador científico, muito conhecido na Grã-
Bretanha pelo grande público por conta de seus inúmeros documentários sobre o
corpo humano, o nascimento da vida e a evolução, chocou muitas pessoas quando
publicou seu livro Human Instinct1. Para ele, as coisas são simples!

Po r que os homens casados aparentemen te fel izes têm fa ntasias co m mulheres jovens e boni-
tas no metrô e colocam em risco a felicidade de sua parceira, de seus filhos e a sua própria tran-
qüilidade po r uma aventura sexual passageira? Por que existem tantas pessoas, principalmente
homens, que passam o final de semana inteiro absolutamente preocupados em saber se o Arsenal
ganhará o próximo jogo de futebol contra o M anchester United ou se os Diamondbacks do
Arizona co nseguirão derrotar os New York Yankees? O que faz com que alguns pisem no acele-
rador tão fundo quanto possível quando o farol fica verde para arrancar o mais rápido possível?

A resposta a essa questão tem duas palavras: instintos humanos. O instinto human o
é urna bom ba-relógio que as situações (percepções) podem detonar para o bem ou para
o mal.

'Be11rs' é a palavra francesa para definir um algeriano nascido na França, filho de pais algerianos. Eles são fran ceses ofi-
cialmente, mas não na prática. [N. do R .T.]
New York: Bancam Books, 2002. Essa obra é o complemento de um programa em quatro episódios produzido pela BBC .
20 1 O b I u e s d o e o n s u m i do r

A NOÇÃO DE CAOS

Não podemos falar de comportamento sem falar de caos. O caos, teoria matemática
preciosa e complexa que devemos, entre outros, ao matemático francês Henri Poincaré,
pode ser resumida grosseiramente no que se convencionou chamar de efeito borboleta.
Essa teoria afirma que uma borboleta que bate as asas na Amazônia pode desencadear
um furacão na Flórida. Em outras palavras, no momento em que um efeito é produzi-
do em um local, ele cria em um outro local desconhecido um fenômeno pouco ou não
previsível. Podemos dizer, assim, que a Lua não é, como crêem alguns, o resultado da
criação do universo, mas simplesmente a conseqüência de um efeito 'caótico'.
Os astrofisicos afirmam que um asteróide de alguns quilômetros de diâmetro, cha-
mado de Impacto Gigante, teria se chocado com a Terra há 4,6 bilhões de anos. Esta
colisão teria gerado uma onda de calor equivalente a mais de 200 bombas atômicas do
tipo utilizado em Hiroshima, assim como uma nuvem de poeira inimaginável.A nuvem
de pedras e rochas teria se dividido em partes m en ores e criado a Lua!

UM BELO EXEMPLO DE CAOS ...

Quando o presidente Jacques Chirac dissolveu a Assembléia Nacional, em 1997, não só a direi-
ta perdeu poder, mas, como era previsível, foi da esquerda que saiu o primeiro-ministro. O menos
provável era que Lionel Jospin, candidato derrotado nas eleições presidenciais de 1995, fosse cata-
pultado à frente da cena política, sem ter procurado por isso. A dissolução teve como primei ro efei-
to caótico, portanto, colocar no cargo de primeiro-ministro um homem que já não esperava, pelo
menos em médio prazo, assumir um papel de destaque.
O cúmulo da história é que, depois das eleições presidenciais de 1995, segundo os boatos, Jospin
teria solicitado ao primeiro-ministro na época, Alain Juppé, o posto de embaixador da França na
China. Este último nem sequer se dignou a responder. O que teria acontecido se efetivamente Lionel
Jospin tivesse sido nomeado embaixador da França em Pequim?
O caos não é o fato de Jospin ter sido escolhido primeiro-ministro. Não; para as empresas, o caos
são as 35 horas8 • Sem Jospin, isso não teria acontecido. Mas o responsável por essa jornada de tra-
balho imposta a todos é, sem dúvida nenhuma, o senhor Juppé !

Em 1998, a França instituiu po r lei a jornada de trabalho de 35 horas sem anais. [N . do T.]
Cap í t u l o 1 - Compreender os consum i dores do futuro 1 21

A eleição de George Bush não ocorreu sem deixar um gosto amargo na boca dos
cidadãos norte-americanos. Muitos consideraram que a farsa da contagem e reconta-
gem de votos na Flórida não só prejudicou o candidato Al Gore, como também man-
cho u a imagem dos Estados Unidos. E sentiam saudades do presidente C linton, de seu
sorriso e de sua gentileza.
Os especialistas em comunicação de George Bush se indagavam seriamente se
poderiam recuperar a imagem de um presidente sem legitimidade, particularmente
contestado e sem maioria no Congresso, depois da passagem para o campo inimigo de
um dos seus aliados.
Na mesma época, o prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, encerrava com difi-
culdades seu segundo mandato. Nas ruas, corriam boatos de todo tipo a seu respeito.As
pessoas falavam da sua vida privada, da sua personalidade antipática, dos métodos pouco
ortodoxos que ele havia utilizado para restabelecer a ordem na cidade. Já o con sidera-
vam uma lembrança ruim e estavam particularmente felizes com a sua saída.
Depois dos terríveis atentados de 11 de setembro, tanto Bush q uanto Giuliani se
tornaram subitamente homens adulados, admirados, pe1feitamente legitimados. Giuliani
terminou o mandato com o título de 'homem do ano'. O presidente Bush foi o homem
poderoso que os americanos respeitaram sem discussão, fossem eles democratas o u
republicanos. Ao lançar um ataque inominável contra o World Trade Center, os terro-
ristas fizeram pelo presidente e pelo prefeito de Nova York o que milhões gastos em
p ublicidade jamais conseguiriam fazer.
Mesmo assim, o caos talvez esteja no fato de o presidente Bush ter iniciado uma
guerra no Iraque!
T ivemos também os atentados de Madrid e a que da do governo Aznar! Du as
semanas antes das e leições, a questão era se o Partido Popular teria a maior ia absolu ta
nas assembléias legislativas locais. Por falta de comunicação, erro de avaliação dos com-
portamentos, o PSOE - que havia sido dado como derrotado - ganho u as eleições
com m aioria absoluta. Quais serão os efeitos caóticos dessa situação? N inguém, h oj e,
seria capaz de dizer. O que se sabe é q ue muitas coisas mudarão na Europa por con ta
disso.
Ao contrário do que gostariam de n os fazer acreditar, a criação dos hipermercados
não é nem conseqüência de uma análise sofi sticada da distribuição n os an os 50, nem
uma intuição de alguns gênios do consumo. O verdadeiro motivo principal é a simples
teoria do caos. Em 1958, dois distribuidores da região de Annecy, D efforey, de produ-
tos alimentícios, e Fournier, do setor têxtil feminino, foram convidados a participar, n a
Câmara do Comércio da cidade, de uma conferência dada por um distribuidor não
conformista da época, um certo Édouard Leclerc. Este criticava viva me nte os comer-
22 1 O blues do consum id or

cian tes q ue praticavam altas m argen s de lu cro e p rom etia se instalar em A nnecy para
aniquilar os preços! Édo uard Leclerc usou Fo urnier e D effo rey como exemplo e os
ac usou de enriquecer às custas dos consumido res. Eles se assustaram , saíram da sala e
decidiram agir o mais rápido possível. Lançaram imediatam ente o primeiro ponto-de-
venda a preços baixos. Um con tribuiu com os produtos alimentícios e o outro, com os
têxteis. E les se instalaram no cruzamento de duas estradas e abriram o ponto an iqui-
9

lando os preços. O sucesso superou as previsões m ais otim istas.


Enquanto isso, os distribuidores líderes n a época, Codec e Unico, n em imaginavam
o cataclismo que desabaria sobre os seus negócios. Eles simplesm ente desapareceram.
Bastou que duas borboletas batessem as asas em Annecy para que o m undo da dis-
tribuição mudasse para sem pre.
Prever o que será a nova sociedade dos consumidores/ clientes imp lica que levemos
em conta a teoria do caos, isto é, q ue estejam os preparados para compreen der todas as
manifestações comportamen tais, a todo momento. Está claro que, não se podendo pre-
ver os efeitos caóticos, só uma vigilân cia con stante dos fatos pode perm itir uma previ-
são dos compor tam en tos dos consumidores, assim com o dos cidadãos.

A BIFURCAÇÃO CONDICIONAL

O comportam ento tam bém gerou a teoria da bifurcação condicional. Para sermos
compreen síveis, simplifiquemos o con ceito. Os indivíduos, assim como as sociedades,
fazem muitas vezes escolhas voluntárias o u n ão. Essas escolhas m odificam para sempre
seu fu turo, assim como o da humanidade.
Em 1789, o povo norte-american o, composto por imigran tes vindos de toda a
E uropa, foi obrigado a escolher uma língua oficial. O Con gresso se reun iu para deci-
dir. Três líng uas estavam n a disputa: alemão, inglês e fran cês. O Con gresso votou a favor
do inglês, não por un anim idade, m as q uase isso.
Essa escolha, essa bifurcação condicio nal, teria conseqüências incalculáveis. O que
teria acontecido com o m undo se os Estados U nidos tivessem escolhido, por exemplo, o
alemão? Teriam ocorrido uma Primeira e um a Segunda Guerra M undial? É algo a se per-
guntar. Agora que estamos em paz, qual seria a configuração da Europa? O que teria sido
da França e sobretu do da Inglaterra sob a hegemonia da língua alemã? O que teria acon -
tecido se a língua escolhida tivesse sido o francês?

En1 francês carrefour, ou seja, cruzarnento. O jogo de palavras do autor é, portanto, intraduzível para o português,já que a
mesma palavra funciona no original como substantivo comum e nome próprio do empreendimento (Carrefour). (N. do T.)
Ca p í t u I o 1 - Compreender os e o n sum i d ores d o futuro 1 23

Quando o exército alem ão remilitarizou a zon a tampão da R enânia, em 7 de


março de 1936, o governo francês n ão opôs resistên cia. Albert Sarrault, presidente do
Conselho na época, ju rou p or todos os deuses:"N ão deixarem os a catedral de Estrasburgo
sob o fogo dos canhões alem ães" ! D epois desse brilhante discurso, o R eichswehr' 0 sim -
plesm ente ocupa os bairros da cidade sem ser incom odado.
A França decidiu não intervir, receando d esencadear um conflito generalizado.
Muito temp o depois da Segunda Guerra Mund ial, soube-se pelos arquivos militares
alem ães qu e o comportamento do com andan te fran cês havia surpreen dido e descon -
certado os generais da Wehrmacht" . Pe rcebeu-se que estes últimos n ão estavam prepa-
rados para a g uerra . Con tavam com um exército de apenas 100 mil homens. Nessas
condições, teriam tido grande dificuldade para resistir a uma ofensiva relâmpago do
exército fran cês. Esp eravam uma reação que não veio !
Hitler previra isso! E, sem dúvida, saiu fortalecido aos olhos dos seus generais nesse
episódio. Ele ap ostou e ganho u com o comportam ento dos franceses.
O que teria acontecido se a França tivesse revidado? Nunca saberemos. Podemos
supor apen as que os acon tecime ntos teriam seguido o utro rumo. Édouard D aladier e
N eville C hamberlain talvez tivessem negociado com Munique em o utras condições. O
Führer talvez tivesse revisto suas preten sões para baixo.
Se a Igreja do C hile o u a C IA, ou ambas, não tivessem se oposto à candidatura do
p oeta Pablo N eruda, prêmio N o bel de literatura, à presidência da república ch ilena,
com toda a certeza o general Pinochet teria permanecido no modesto posto de chefe
das Fo rças Armadas e nunca teria se tornado o carrasco inominável que foi.
Pelo fato de o poeta ter hábitos q ue a mo ral da época reprovava n o país, as autori-
dades bem -pen santes barraram seu caminho e p referiram Allende. Este sen ador dign o
de toda a nossa consideração n ão possuía a aura internacio nal de N eru da, muito men os
o carisma e a ligação com as m assas operárias do país.
Sabe mos com o a história continua. A democracia chilen a, embora desenvolvida
e, n esse sentido, provavelmente única n a América Latina, ca iu n a desordem política e
vários hom e ns e mulheres pagaram muito caro por esse aspecto da bifurcação co ndi-
cional.
A n oção de bifurcação condicion al não se reserva apen as aos gran des fatos da h is-
tória. E la também tem sen tido n a evolu ção de um ram o de atividade o u de uma pro-
fissão. Não é preciso muito para que as coisas tomem um rumo diferen te daquele que
se imaginava o u se supunha em um dado momento.

10
As forças militares do Reich alemão. Em alemão no original. [N. do T.)
O exército de Hitler na Segunda Guerra Mundial. Em alemão no original. [N. do T.)
24 1O b I u e s d o e o n s u m i do r

Por muito pouco a distribuição francesa, que hoje é uma indústria poderosa con-
centrada nas mãos de algumas bandeiras como Carrefour,Auchan e Leclerc, não tomou
uma forma inteiramente diversa.
Em 1989, o distribuidor Casino, com seus hipermercados, supermercados e m.ini-
mercados, era provavelmente um dos distribuidores franceses mais completos e pode-
rosos do país. Naquela época, Carrefour,Auchan, Leclerc ainda não tinham o tamanho
que têm hoje. Casino pertencia à central de compras Paridoc, que abriga, entre outros,
o grupo Docks de France e seus cem hipermercados Mammouth. Naturalmente,
Antoine Guichard, proprietário do Casino, e Michel Deroy, proprietário do Docks de
France, planejavam uma fusão. Isso faria dessas duas empresas a maior da França e abri-
ria as portas para a expansão no exterior. Eles começaram o trabalho de convencimen-
to dos acionistas e dos bancos. As negociações seguiam bastante bem e estavam perto
de um acordo quando, de repente, o presidente do D ocks de France teve urna dúvida!
E le se perguntava se a fusão não lesaria os acionistas históricos da bandeira.Achava sin-
ceramente que a fusão não seria boa, j usta ou suficientemente favorável aos interesses
da sua família. E suspendeu as conversações!
A fusão não se realizou e o tabuleiro da distribuição francesa se viu completamen-
te mudado. Alguns anos depois, Auchan recomprou o Docks de France. Carrefour fez
o mesmo com o Continent e se tornou o segundo maior grupo distribuidor do mun-
do. Provavelmente nada disso teria ocorrido se o presidente do grupo D ocks de France
tivesse tornado o utra decisão, a favor da fusão.
A Lei Royer, que favoreceu o desenvolvimento da grande distribuição no forma -
to gigantesco e, q uerendo o u não, lançou o pequeno comércio das regiões cen trais da
cidade em urna situação catastrófica, ao proibir a criação de pontos-de-venda de um
determinado tamanho nas grandes cidades, incito u os distribuidores modernos a
implantar seus hipermercados em pequenas comu nidades afastadas. Com isso, e com
grandes e freqüentes promoções, esses pontos-de-venda tiraram os clientes das cidades
e deixaram os cen tros às moscas!
A Lei Galland, querendo proteger os fabricantes da ferocidade dos departamentos
de compra dos grandes distribuidores, teve efeitos devastadores para aqueles que se que-
riam proteger, assim corno para os distribuidores e os consumidores. Ao proibir os dis-
tribuidores de vender a preços abaixo do custo o u muito baixos, todos os distribuido-
res se v iram na m esma situação. Tiveram de comprar pelo mesmo preço e, sobretudo,
vender pelo mesm o preço.
Nessas condições é dificil fazer a diferença; a lei pareceu esquecer que, para atrair
os clientes, a bandeira deve mostrar que tem os melhores preços. Comparar preços ainda
é o primeiro reflexo dos clien tes!
Cap í t u l o 1 - Compreender os consum i dores do futuro 1 25

Para se destacar nos p on tos-de-venda, os fabricantes reagiram, p or sua vez, inven -


tando um truque conhecido como 'desconto ao distribuidor', o u sej a, colaborando com
os distribuidores. Assim, os fabricantes ajudavam os distribuidores a desenvolver ações
como promoções e pu blicidade, sem qu e seus cu stos fossem repassados aos clientes n os
preços. D e m od o q ue os distribuido res j amais ganharam ta nto dinheiro, nem foram tão
12
ricos e tão caros para o cliente. Por fim , a Lei Galland fez os preços subirem. Isso era
previsível desde que a lei foi promulgada.
H oj e, como os distribuidores da grande distribuição não podem mais desenvolver
estratégias baseadas n o preço, as loj as de hard discount prolife ram , para grande alegria do
público. Com marcas de distri buição própria, elas detêm os verdadeiros preços baixos.
A Lei Galland acabará p or fazer a grande distribuição desap arecer da Fran ça, algo para
o qual ela , com certeza, não foi prevista. A bifurcação condicional não gera apenas efei-
tos positivos.

0 EFEITO BILHAR

O bilhar é um j ogo sutil, em que semp re ficam os surp resos de ver os grandes j oga-
dores fazerem j ogadas incríveis usando as tabelas, depois d e muito refle ti r, para alcançar
uma bola impossível de atingir diretam ente. Em matéria de comportamento, as coisas
são um pouco com o n o bilhar. Atingimos uma bola, ela se choca con tra as o utras, bate
nas tabelas, volta, ricocheteia e assim sucessivam ente. A dife rença é qu e nunca sabemos
com o os ricochetes se com portarão e qual bola atingirem os!
Em maté ria de comportam en to, e portanto de econ omia, de consu mo e de distri-
buição, o efeito bilhar é um fato r com con seqüên cias perversas.
Assim, por exemplo, o bservamos hoj e que por con ta do uso prolo ngado das trite-
rap ias, os pacientes soropositivos auto maticam ente ganham peso. Alguns pacientes
administram m al essa situação. Ficam tentados muitas vezes a abandonar o tratamento,
o q ue não deixa de p reocupar os médicos e as famílias.
O ISF [impôt de solidarité sur la fortune, o u imposto de solidariedade sobre a fortu -
na], imposto cuj a con tribuição para os cofres do Estado, segundo alguns especialistas, é
muito discutível, parece ter com o efeito bilhar o fa to de inúmeros 'poderosos' se expa-
triare m para a Suíça, M ônaco o u o utros lu gares! Isso fez com que Guy Forget, capitão

12
Vale notar que os preços aos quais o autor se refere são os dos produtos convencionais e não os de marca própria. A Lei
Galland não se aplicava a estes últimos e foi esta a saída encontrada pelos grandes distribuidores para vender produtos mais
baratos e com descontos. [N. do T.)
26 1O b I u e s d o e o n s u m i do r

da equipe francesa da Copa Davis, se tornasse um expatriado, assim como Alain Prost,
campeão mundial de Fórmula l, Zinedine Zidane e a maioria dos jogadores da seleção
francesa de futebol, sem contar as fortunas geradas pelas indústrias. Além das conse-
qüências econômicas que qualquer iniciado conhece perfeitamente bem, há elementos
menos visíveis, mas igualmente perigosos para a imagem do Estado. Uma porcentagem
não negligenciável de cidadãos que pagam seus impostos honestamente (pequenos pro-
prietários, comerciantes, altos funcionários) não compreendem por que o Estado deixa
que pessoas que têm a sorte de estar 'por cima' passem ao largo de uma obrigação de
qualquer cidadão, sem lhes tirar a nacionalidade e permitindo que aproveitem os bene-
ficios da previdência social.
Os efeitos bilhar da Lei das 35 Horas Semanais são inúmeros e muitas vezes cômicos!
Um dos mais inesperados é a inveja emergente que pudemos observar na adminis-
tração. Desde que foi necessário aplicar a lei, constatamos que o clima entre os departa-
mentos e/ ou o pessoal administrativo às vezes desandava. A explicação é simples. O pes-
soal administrativo, que trabalhava 25 horas antes da lei, se sentiu lesado em comparação
com os colegas que trabalhavam 39 horas e se beneficiaram de uma redução na jornada
de trabal ho. D epois da aplicação da lei, eles não tinham mais as vantagens de antes!
Se nos projetarmos no futuro, podemos dar o exemplo dos produtos que propiciam
a ereção. OViagra e, em geral, todos os produtos que permitiram ao homem ma.is velho
ter um desempenho sexual comparável ao que ele tinha aos 45 anos provavelmente
terão efeitos bilhar inesperados.
Na nossa civilização, podemos admitir que um homem de 55 anos ainda sej a muito
jovem! Se cuida do seu peso, da sua condição fisica, da sua aparência, se faz muscula-
ção, ele não aparenta a idade que tem. Nada impede então que tenha uma namorada
o u companheira de 30 o u 35 anos, ou até menos.Afinal de contas, as revistas dos 'famo-
sos' estão cheias de histórias que fazem os cinqü entões e os sessentões sonharem: Jean -
Paul Belmondo ou Sean Connery são exemplos que nos são propostos ao lo ngo dos
artigos. Com o Viagra, caso seja necessário, o Apolo grisalho será irresistível.
Alguns dos casais assim formados conhecerão o amor verdadeiro, o utros terão ape-
nas uma aventura. Seja qual for o caso, ela trará a juventude, o frescor; e ele, a experiên -
cia, a gentileza, a paciência.
Alguns casais pensarão em casamento e, n aturalmente, desejarão formar uma ver-
dadeira família, com um ou mais filhos. N essas condições, o marido sera pai aos 55
anos. Q uando os filhos tiverem 20 anos, o pai terá 75 anos.
Não há nada de criticável nisso, exceto que não sabemos como esses 'pais- avós'
poderão educar e se comunicar com seus filh os. Como esses pais transmitirão aos seus
filhos os princípios da nossa sociedade ocidental, das nossas religiões, dos n ossos ideais
Cap í t u l o 1 - Compreender os consum i dores do futuro 1 27

políticos? Como seus filhos,jovens cidadãos, conviverão com pais que terão - o que
é normal - dificuldade em compartilhar do entu siasmo por certos filmes, certos líde-
res etc.?
Quando os filhos tiverem 20 anos, a m ãe terá 50. É provável que essas mães con-
sigam se comunicar sem problema, de modo inteiramente natural com sua prole.A dife-
rença de idade não será uma barreira nesse caso. Por o utro lado, a barreira será o fato
de que muitas delas, pelo efeito bilhar, serão viúvas. Pois não sabemos ainda quais serão
os efeitos em longo prazo dos nossos modernos e lixires da juventude, sobretudo depois
de um uso sem moderação! Mas, seja como for, sabemos que a expectativa de vida dos
homens, mesmo que aumente de maneira muito satisfatória no n osso país, não permi-
tirá que os maridos ultrapassem um certo limite de idade. Serão raras aquelas que ch e-
garão aos 60 anos com o pai de seus filhos a seu lado.
O que a sociedade deverá fazer, nesse caso, para ajudar essas viúvas ainda j ovens?
Como serão pagas as pensões? Como as cidades, as associações, os centros comunais de
ação social poderão aj udá-las? E, em um outro donúnio, cabe perguntar o que essas jo-
vens viúvas consumirão e como o farão. Portan to, quais produtos, meios de comunicação
e formas de distribuição surgirão para atender essas consumidoras ou para lucrar com elas?
O Viagra, por seu efeito bilhar, colocará em pauta todos esses problemas, mas para
alguns, corno as companhias de seguro, por exemplo, será urna oportunidade excepcio-
nal. Será necessário garantir o bem- estar dessas viúvas, o futuro desses órfãos etc.
Querendo o u não, os respon sáveis políticos serão 'agarrados' pelo terna e deverão, eles
tam bém, encontrar formas de assistência, de sustento para essas pessoas. O discurso polí-
tico deverá se inspirar n o problem a. E les o brigatoriamente travarão urna batalha a gol-
pes de promessas sobre o terna para colher de forma legítima os votos necessários para
se elegerem. Com isso, o gasto do Estado só aumentará!
Em matéria de efeito rebatida, a p ílula anticoncepcional é outro exemplo interessante.
Os vendedores de m óveis, assim corno muitos outros tipos de ven dedores ligados
ao mercado infantil, da família ou de utensílios domésticos não poderiam imaginar que
os negócios, a profissão seriam completamen te transformados o u , para alguns, comple-
tamente arruinados porque em um dia de maio de 1960 - no dia 20 para sermos mais
exatos - o primeiro anticon cepcion al v ia oral foi posto à venda n o mercado n orte-
americano e, sete anos depois, foi autorizado na França pelo Congresso Nacio nal. D o
mesmo modo, outros empresários n ão poderiam imaginar situação melhor para fazer
fortuna.
Entre as rebatidas geradas pela pílula, podemos dizer qu e a queda da natalidade foi
urna das primeiras. É urna rebatida clara, e quem vendia carnas para crianças, berços o u
roupas para bebê j á esperava por isso!
28 1O b I u e s d o e o n s u m i do r

Aquilo que talvez menos esperávamos era a diminuição dos casamentos e


sobretudo um novo modo de vida chamado de ' uni ão livre' ou 'co ncubinato'. É
provável que o fato de poder ter uma ligação duradoura ou não, tanto para a mulher
quanto para o h omem, sem 'perigo', favoreceu esse novo comportamento. Se con-
sultarmos os discursos e as polêmicas, os artigos de j ornal e as minutas parlamenta-
res da época, não encontraremos nem sinal dessas previsões, algo que é, no m ínimo,
surpreendente!
Para ficar nas décadas mais p róximas de nós, observamos que o número de casa-
mentos caiu 45 por cento desde 1972 e que em 1993 houve a menor taxa de casamen-
tos do século na França, com um índice de 4,4. Sendo assim, 9 entre cada 10 casais
começam a vida hoje sem passar pelo juiz de paz. D os casais que se casaram em 2002,
60 por cento j á viviam j untos. Eram apenas 8 por cento na mesma situação entre 1960
e 1969. Assinalemos, por fim , que a idade média do primeiro casamento recuou seis
anos desde 1970 e que as mulheres se casam em média aos 28 anos e os homens dizem
'sim' aos 30 anos.
Os casais que vivem juntos antes de se casar geralmente não investem muito em
bons móveis. Preferem esperar antes de comprar bens duráveis, ter certeza da solidez da
v ida a dois. Isso é, sem dúvida, um dos fatores que explica por que os móveis tradicio-
nais desapareceram pouco a pouco do nosso ambiente. D e país conhecido por seus
móveis estilo Luís XV, Luís XVI, Império, Charles VIII e seus marceneiros da corte, a
França passou para os móveis Ikea ou Fly. Na verdade, esses casais escolhem móveis
modernos, não muito caros, disponíveis para pronta entrega, que podem ser encontra-
dos com facilidade nas grandes redes e não pesam n a consciên cia quando a união chega
ao fim , o que é muito provável.
Muitos desses casais têm filh os antes do casamen to, o utros se casam exclusivamen -
te por conta disso. Seja qual for o caso, as m ães j á n ão são m ais tão jovens quando têm
o primeiro filho. Por receio de passar do período natural de fecundidade, elas desejam,
por reação, ter logo um, dois e até três filhos antes dos 40 an os. Isso não ocorre sem
deixar marcas n o casal. Se ele resistir a isso. Uma mulher de 30 an os deseja ter dois filhos
em menos de quatro anos. O que significa que o casal acostumado à liberdade, às férias,
às baladas, à convivên cia com os ami gos no C lub M ed, terá de mudar radicalmente seu
estilo de vida. Vamos trocar fraldas dos 30 aos 35 an os! Isso n ão ocorre sem provocar
problemas para o casal. ..
Isso explica, talvez, porque 50 por cen to dos casais que viveram muito tempo jun -
tos antes do casamento acabam por se divorciar. Ele n ão aceita que a companheira se
torne uma mãe coruja e ela n ão en tende por que ele n ão pode ser pau para toda obra
em casa!
Ca p í t u I o 1 - Compreender os e o n sum i d ores d o futuro 1 29

A sociedade e os políticos que fizeram de tudo para que a mulher fosse igual ao
homem foram pegos de surpresa nessa história. A mulher de 33 anos que tem um filho
e está grávida de um segundo não é, digam o que disserem , 'barata' para os gerentes das
empresas. C laro, todos ficam felizes que uma mulher que se mostrou uma executiva
exemplar, uma funcionária digna de grandes responsabilidades se afaste da empresa para
ter, finalmente, seu primeiro filho. Todos acham a licença-maternidade absolutamente
natural, e até fazem festa e compram presentes quando a futura mamãe sai de licença
por alguns meses.As coisas mudam de figura quando essa mesma mamãe decide ter um
segundo filho. Ela ficará ausente durante três anos 13 , no final das contas, e terá de ser
reintegrada ao posto que ocupava anteriormente. O que se faz com aquela ou aquele
que durante esse tempo prestou serviços à empresa? Uma grande empresa talvez tenha
meios para superar essa dificuldade, mas uma empresa de pequeno ou médio porte não!
Seja como for, em qualquer caso, essa mulher, digna de estima, será punida por fina l-
mente ser mãe e ter os filhos de que tanto a sociedade tem n ecessidade, entre o u tros
motivos para pagar as aposentadorias.
Os efeitos rebatida consecutivos ao surgimento da pílula não param por aí.
Quando os filhos são criados em lares com apenas um dos pais (30 por cento), por
causa de divórcios e, entre outros motivos, por causa da existên cia da pílula an ticon cep-
cional, quando essas crianças são criadas a maior parte do tempo sem 'o' pai no lar ou
com a alternância dos pais, quando crescem sem um ' h omem' na casa, podemos formu -
lar a hipó tese de que quando conhecerem por acaso o utras crianças na mesma situação
que elas, em escolas grandes, em colégios desuma nos por causa do seu tamanho, as con -
dições para os 'problemas' críticos estarão reunidas. Se, além disso, a m ãe o u os avós não
estiverem esperando por elas na saída das aulas, muitas correm o risco de acaba r mal, às
vezes até muito mal, independentemente de suas origen s.
Evidentemente, a pílula não está n o centro de todos esses problem as, mas ela reba-
te em o utros elementos e cria situações que provocam uma reação. Em 1967, quando
a pílula foi liberada na França, já não se poderia ter previsto medidas em defesa das
crianças em risco? A Igreja e os intelectuais deram um tom m oralizante ao debate, os
progressistas trataram- n o de forma leviana e irônica, mas n os atemos ao discurso, sem
levar em conta con cretam ente o efeito bilhar.

Na França, as mães podem optar po r se licenciarem do trabalho por um período entre um e três anos. [N. do T.]
30 1 O b I u e s d o eo n su m i d o r

0 EFEITO BILHAR E A WINDOWS THEORY (TEORIA DAS JANELAS)

NOVA YORK, COMEÇO DOS ANOS 80 :


2 mil homicídios
600 mil casos de agressão
6 mil ônibus pichados

PLANO KELLING E WILSON ( WINDOWS THEORY)


Em 1982, os antropólogos Wilson e Kel ling desenvolveram a teoria das janelas quebradas,
segundo a qual o crime seria o resultado inevitável da desordem. Assim, se as janelas quebradas não
forem consertadas, logo outras janelas ao redor serão quebradas e o fenômeno se propagará por
todo o bairro e depois por toda a cidade.
George Kelling afirma que: "O nome 'janelas quebradas' não foi escolhido por acaso. Trata-se de
uma metáfora: se as suas janelas estão quebradas, é bom você consertá-las logo. Senão, isso signi-
ficará que ninguém se preocupa com elas, então por que parar por aí? Isso gera um agravamento
dos delitos menores, depois dos delitos maiores e, finalmente, a uma verdadeira decadência urbana.
Nossa teoria consiste em dizer que as pequenas coisas têm uma importância considerável, geralmen-
te mais do que as grandes coisas!".

NOVA YORK, COMEÇO DOS ANOS 90 :


Queda de 75 por cento no número de agressões
Queda de 2/3 do número de homicídios

A FORÇA DO GESTO

Se em uma festa você p erguntasse aos seus amigos: " Qu em foi R odolfo Valentino,
Ramon Novarro, Mirna o u Gloria Swanson?", seria pouco provável qu e obtivesse uma
resp osta correta, sobretudo se os seus amigos tiverem m enos de 30 an os. Alguns resp on -
deriam que são marcas de perfume, o utros diriam que são grandes estilistas o u ainda
m afiosos o u cantores italianos, patinadores etc. Som en te os seus pais o u cinéfilos aten -
tos diriam qu e se trata de grandes estrelas do cinema mudo, do mesm o rúvel de Charlie
Chaplin, Buster Keaton ou Laurel e H ardy.
Essas estrelas marcaram o grande público do seu tempo de um m odo inimaginável
p ara os n ossos espectadores e telespectadores de h oj e.
Cap í t u l o 1 - Compreender os consum i dores do futuro 1 31

Em 1926, q uando R odolfo Vale ntino m o rre u de uma cn se à toa de apen dicite
aos 3 1 anos, mais de 2 milhões de mulhe res seguiram o cortej o e acompanharam o
caixao até o túmulo. Observaram -se comportam entos inac reditáveis de pesar e dor
en tre a multidão e há relatos de que ho uve um número significativo de suicídios.
Ainda h oj e, o túmulo de R odolfo Valentino no cemitério de H ollywood está sempre
fl orido.
Agora que o cinema é falado e tem os à disposição todos os efeitos especiais possí-
veis, é difícil imaginar a razão por que filmes mudos com o O encouraçado Potemkin, de
Sergei Einsenstein , o u Napoleão, de Abel Gan ce, marcaram tanto o n osso incon sciente
coletivo. Como nossos pais e avós p uderam chorar, fi car pasm os e até desmaiar ao ver
Os quatro cavaleiros do Apocalipse, O filho do Sheik o u Blood and sand?
A resposta talvez estej a n o seguinte: na m en sagem q ue um político ten ta tran smi-
tir a seus eleitores durante um com ício, na de um ator em uma peça de teatro o u sim -
plesmente na de um vendedor, aquilo que é dito, isto é, o texto (as idéias, as propostas)
con ta 7 por cen to, o tom de voz, 35 por cento, o m ovimen to dos olhos, das mãos, do
corpo, 58 por cento.
D evemos a R ay Birdw histell 14 , assim como a M argaret M ead 15 e a Edward Sapir 16,
o lançamen to,já em 1950, das bases de uma antropologia da gestualidade. Com eles e
tantos o utros, como Ferdinand de Saussure 17 e G regory Bateson 18 , a linguagem do corpo
se torno u um elemento essencial da ciência da comunicação.
Foram os estudos de M ead e Bateson que indicaram o caminho. Em Balinese
character, esses dois pesqu isadores m ostram, com o apoio de mais de 700 fotos de ges-
tos, a importân cia do corpo e da gestualidade na introjeção dos m odelos da cul tura bali-
nesa. É por m eio das experiên cias corporais que a crian ça balinesa se torna membro da
cul tura. Ray Birdwh.istell , por sua vez, estudo u a gestualidade dos índios Ku ten ai. Estes
têm a particularidade de serem bilíngües. Birdw histell percebeu que a gestualidade dos
índios muda quando eles passam do kutenai para o inglês. E le interpretou essa mudan -
ça com o uma im itação não voluntária do homem branco. D eu prosseguimento às suas
pesquisas e realizou uma experiência com o político Fiorello La Guardia.

Antropólogo da Universidade de Toronto, nascido em 1918 e autor, em especial, de "The language of the body: t he natu-
ral environment of words" (ln: SI LVERSTEIN, A. H11111a11 co1111111111icatiou: theoretical explorations. Hillsdale, New York:
Erlbaum, 1974. pp. 203-220); " La communication non verbale" (ln: ALEXAND RE, P. L'aventure lwmaine: encyclopédie
des sciences de l'H omme. Paris: Éditions de la Grange Bateliere, 1967. v. 5, pp. 157- 166); e Kiuesics and colltext: essays on
body-motion communication . H armondsworth : Penguin, 1973.
Antropóloga norte-americana (1901- 1978) .
Antropólogo e lingüista norte-americano (1884-1939) .
Ling üista suíço (1857- 1913).
18
Antropólogo de origem inglesa (1904- 1980), foi casado com Margaret Mead.
32 1O b l ues do consum i dor

Este falava fluentemente o ídiche, o inglês e, lógico, o italiano. Birdwh istell o fil-
mava, enquanto o fazia falar estas três línguas em seqüências diferentes. Em seguida,
projetava o filme para pessoas que conheciam essas três culturas, mas antes tomava o
cuidado de cortar o som. Todos conseguiam identificar qual língua La Guardia utiliza-
va em cada momento. Seus gestos eram diferentes conforme a língua que utilizava.
Birdwhistell concluiu que o homem muda de linguagem corporal quando muda de lín-
gua, isto é, de expressão.
Mas a experiência mais divertida foi realizada por Margaret Mead.
Por volta do fim da guerra, corria a história entre os soldados norte-americanos
estacionados na Inglaterra de que as jovens inglesas eram moças fáceis; paralelamente,
corria a história entre as jovens inglesas de que os soldados norte-americanos eram
cafaj estes. Reconstituída por Mead e Birdwhistell, a explicação é a seguinte. A aproxi-
mação amorosa se conduz respeitando um certo número de etapas. Cada etapa supera-
da é um sinal verde para avançar para o objetivo seguinte. Mas essas etapas estão sub-
metidas às variações cu lturais. Na Inglaterra , é necessário passar por urna longa série de
pontos antes de chegar ao beijo na boca, e o beijo não está muito longe da última etapa
do acasalamento. Nos Estados Unidos, em compensação, o beijo está entre os primei-
ros procedimentos. Conseqüentemente, quando o soldado norte-americano, preparan-
do o cenário segundo as regras norte-americanas, beijava a jovem inglesa na boca, esta
ou fugia ou iniciava as manobras que levam à relação sexual.
Os estudos sobre o acasalamento dos peixes-espinho realizados n a mesma época
por etologistas indicaram situ ações parecidas. Deve-se ver nessas pesqu isas, como chama
a atenção Yves Winkin 19 , o esboço da análise do comportamento social cujo represen-
tante mais conhecido é Erving Goffrnan 20 •
Tudo indica que, em cada um dos nossos dedos, existam de 1.600 a 1.800 termi-
nações nervosas que estão diretamente ligadas ao centro responsável pela crença no
nosso cérebro. Não podemos fugir, portanto, dos fenômenos reflexos que conectam o
p ensamento, o centro cerebral da crença e os gestos que fazemos.
As estrelas do cinema mudo reforçavam os gestos e é isso que fazia com que n ós
os compreendêssemos perfeitamente, que sentíssemos as emoções que, mesmo hoj e, o
extraordinário som das salas de projeção não consegue comunicar. Temos todos na
memória a famosa cena de Em busca do ouro, em que C harles C haplin, faminto, faz os

La 11011velle co1111111micatio11. Paris: Éditions du Senil, 2000.


Sociólogo canadense (1922-1982), especialista da interação humana. É conhecido por suas teorias segundo as quais as ações
sociais cotidianas indicam que o homem experimenta uma vontade natural de exprimir sua identidade. Autor conhecido
por Les rites d'i11teractio11.(Paris: Éditions de Minuit, 1974) e La mise ei, sce11e de la vie q11otidie1111e (Paris: Éditions de Minuit,
1973) .
Ca p í t u I o 1 - Compreender os e o n sum i d ores d o futuro 1 33

pãezinhos dançarem com os garfos. Choramos e choramos de novo ao vê-lo em Luzes


da ribalta com a pequena florista cega!
Nessa nova sociedade, em que o Homo consomatío está próx imo do H omo cliens, o
vendedor ocupa um lugar primordial. Estimulado pela publicidade, pelas promoções das
grandes marcas, o consumidor desejará os produtos. Quando for concretizar seus dese-
jos, ele freqüentemente estará frente a frente com um vendedor. Nem tudo se compra
por auto-serviço!
Hoje, quer se trate de móveis, esporte, equipamento para a casa, vestimenta ou
aluguel de carros, os ve ndedores (salvo exceções) não são muito b em cotados pelos
clientes.
Quem nunca ouviu estas críticas e reflexões na saída de uma loja:
" A vendedora era péssima , ela nem se preocupou conosco ";
"Ela não parava de falar, só queria vender o creme (em uma perfumaria), era só
nisso que estava interessada";
"Nessa padaria , a moça nem o lha na nossa cara";
"Na loja X, quando pedimos uma informação sobre uma máquina d e lavar, temos
a impressão de estar incomodando".
Nada indica, no entanto, que os vendedores de hoj e sejam piores dos que os do
passado. O que provavelmente mudou é que hoje, para convencer o cliente, não basta
ter um disc urso apropriado. Observamos que na maioria dos casos, durante o treina-
mento, os vendedo res aprendem essencialmente a apresentar os produtos, responder às
perguntas capciosas dos clientes e induzir a perguntas que têm como único objetivo
facilitar um bom desenrolar das etapas que levam à conclusão da venda. Quase nunca
se fala do modo de impostar a voz ou dos gestos que convém ter dian te do cliente.

0 EFEITO MENTIRA

Para um behaviorista, a mentira é apenas um comportamento, isto é, um ato refle-


xo, uma reação a uma situação.
Por exemplo, colocamos em um quarto uma criança de três anos sen tada em uma
cadeira e uma enfermeira toda vestida de branco, com óculos pesados e o cabelo preso
em um coque, que diz a ela, chamando- a pelo n om e: "Vou sair, mas não olhe para trás
de jeito nenhum enquanto eu não estiver, mesmo que você ouça algum barulho" . Se,
ao sair, a enferm eira ligar um brinque do barulhento e musical que está atrás da crian -
ça, há grandes chances de que esta última se vire para ver o que está fazendo barulho.
Qu ando a enfermeira voltar e perguntar à crian ça se ela se v irou , esta m entirá por medo
34 1O b I u e s d o e o n s u m i do r

de levar uma bronca. O sujeito nunca aprendeu a mentir. Ele o faz naturalmente, por
espírito de preservação da espécie.
Se repetirmos a mesma experiência, colocando no lugar da enfermeira um simpá-
tico palhaço, a criança se virará, mas não sentirá necessidade de mentir,já que o palha-
ço não lhe parece um perigo iminente.
Portanto, a cu lpa na mentira não é daquele que mente, mas antes daquele que cria
uma situação que, ao colocar o outro em perigo, o força a se proteger, logo a mentir
para não ser punido.
Isso equivale a dizer que, quando o indivíduo se sente em perigo, ele terá um com-
portamento muito particular, que muitas vezes parecerá ao observador um comporta-
mento pouco natural. Quando mentimos, as palavras, o tom de voz e os gestos não estão
mais em coerência. Pior, quanto mais mentimos, mais tentamos compensar as incoerên-
cias e mais demonstramos que estamos mentindo.
Em matéria de venda em lojas, nem toda a verdade deve ser dita. Não se pode dizer
a uma pessoa que está comprando um vestido:"Senhora, isso não lhe cai bem; é melhor
perder alguns quilos do que tentar parecer magra apertando a barriga com as duas
mãos, comprimindo o quadril e encolhendo o traseiro". Também não se pode ir con-
tra o desejo de compra de um cliente explicando a ele que, em vez de comprar um
carro o u uma moto, que custa muito caro (e ele será obrigado a comer sanduíches du-
rante anos até pagar todas as prestações), seria melhor continuar a andar de metrô e eco-
nonuzar.
Hoje é mais dificil esconder a verdade do cliente do que era antigamente. Isso vem
do fato de o Homo cliens estar cada vez mais habituado a ver pela televisão a explicação
de como os vendedores procedem.
Se hoje o vendedor não for capaz de ser um especialista em comunicação global
(discurso, tom de voz, gestos, postura do corpo), há grandes chances de ele não ser con-
vincente e levar a uma percepção ruim que causará reações hostis.
A sociedade do consumidor/cliente impõe a todos a comunicação global.
0 FIM DA SOCIEDADE DO

HOMO CONSOMATIO:

O COMEÇO DA ERA DO

HOMO CLIENS

O
s 'm arque teiros', já que é assim que atualmente se deno minam os adeptos
da ' religião d os con sum idores' de Kittrick, se deram con ta j á n os anos 70
de que a idéia de colocar o consumidor n o cen tro do dispositivo para
aume ntar e assegurar os lucros das empresas não era suficien te. Isso, é claro, n ão colo-
cava em questão os fundamentos do con ceito de pesquisa das necessidades. Mas a idéia
mesma de descoberta, de pesquisa, de resposta e de exploração sistem ática dessas n eces-
sidades logo en con trou seus limites na prática cotidiana.
As em presas, com o sabemos, se interessam na turalmen te e de forma absolutamen -
te lógica pelo mesmo mercad o ao m esmo tempo, partindo do princípio an cestral de
que m ais vale estar com mu itos em um bom negócio do que estar sozinho em um mau!
Essa regra foi mil vezes com provada.
Está claro n essas cond ições q ue todo mu ndo se interessou ao mesmo tempo
pelas m esm as necessidades . Portan to, a pesquisa e a exploração destas últimas n ão
era m mais uma arma absoluta para se distingu ir dos co ncorrentes. Por último, que-
re ndo o u n ão, pouco a pouco se volto u à situação anterior ao adve n to do con ceito
de marketing!
A situação an terior era aquela n a qual as empresas encon travam dificuldades para
se distinguir dos concorrentes se não fosse pelos processos de fa bricação (que logo setor-
naram os m esm os por toda parte). O ponto de vista de Kittrick , na verdade, não mudou
a regra do mercado, a saber: para vender m ais e mais rápido do que os con corren tes, era
necessário e suficiente ser diferente ! As empresas tin ham, portan to, a o brigação de sem-
p re fabricar melhor e m ais barato, ao mesm o tem po em que ofereciam mai s aos clien-
tes. E ra necessário oferecer m ais serviços, m ais van tagens ou preços men ores, sem o que
36 1O b I u e s d o e o n s u m i do r

as empresas seriam iguais aos concorrentes, isto é, sem diferença. Sem diferença, os pro-
dutos são vendidos com dificuldade. Sem diferença, os preços desabam e as margens de
lucro desaparecem!
Portanto, apesar das novas leis do marketing, a diferença continuo u sendo o motor
da participação de mercado e da criação de riquezas para as empresas!
Logo se constatou que para ser diferente não bastava identificar as necessidades
existentes ou latentes dos consumidores e mobilizar todos os recursos para ser o pri-
meiro no mercado.
A solução apareceu rapidamente! Em vez de se desdobrar para esmiuçar as n eces-
sidades no máximo sigilo, era mais simples e mais proveitoso criá-las de cabo a rabo. O
jogo consistia em não só criar a n ecessidade, por intermédio da marca, como se apro-
priar completamente dela!
Criar uma necessidade não é responder a uma necessidade, é algo mais complexo
e mais sutil. Criar uma n ecessidade é criar um desejo que faz o consumidor se sentir
obrigado a comprar. Em o utras palavras, é criar uma vontade e/ou uma obrigação no
consumidor. Para tanto, é n ecessário começar por encon trar os territórios de expecta-
tiva, de esperança, de insatisfação, de medo. Em seguida, é necessário exacerbar, drama-
tizar a existência desses territórios à força de publicidade e de propaganda. Para finali-
zar, os produtos e serviços que foram definidos como indispensáveis são apresentados
ao consumidor.
Nesse sentido, o exemplo das fra ldas para bebês e as medidas tomadas pelas empre-
sas especializadas n o produto é significativo.
Nos anos 60, havia uma necessidade amplamente compartilhada pelas mães de
família. Elas queriam dispor de uma nova forma de higiene para os bebês, algo que
substituísse tanto a famosa calça p lástica, cuja utilização não era das mais agradáveis,
quanto as fraldas de pano, que era necessário mandar lava r todos os dias e cujo uso dei-
xo u lembran ças dolorosas nos seus inúmeros usuários.
Os meios à disposição das mães de família eram, então, custosos e sobretudo
pouco agradáveis . Com o tempo, surgiu n o mercado a fralda com enchimen to de
celulose. Ela substituiu todas as formas de higiene co nhec idas até en tão. Surgia um
novo mercado. No início, essas fraldas eram vendidas em farmácias, especialmente
as da Polivé . Essa marca, conheci da pela excelência na fabricação de curativos,
inventou um produto revolucionário, a famosa 'fralda n oturna', que permitia aos
pais manter o bebê seco d urante a n oite e sobretudo n ão ter de se levan tar para
trocá- lo. Graças a essa inovação, os pais se viram livres dessa obrigação. H ouve aqui
e ali certo sentimento de cu lpa da parte das jovens m ães q ue foram criticadas por
suas mães ou sogras por n ão cu idarem dos filhos 'como an tigamente', mas n o fim
Cap í tu l o 2 - O f i m da soc i edade do Homo consomatio : o começo da era do Homo cli ens 1 37

ve nceu a facilidade de u tilização. O produto se democratizou e logo podia ser


encontrado nos supermercados e hipermercados. A fralda para bebês é um produto
caro. Mas é indispensável e, nessas condições, os preços com d escon tos rapida m en-
te superaram a desconfiança dos consumidores que achavam que um produto ven -
dido em farmácia tem mais qualidade do que o vendido em gôndolas, o chamado
auto-serviço.
O s fabricantes, diante desse m ercado mundial considerável, estudaram todas as
necessidades das mães de família, desde o nascimento do bebê até o ponto em que ele
se mantém naturalmente 'seco'. Foram criados produtos esp ecíficos para o recém-
nascido, para os 'primeiros passos' etc. O peso da criança, a idade e o sexo foram manei-
ras de segmentar as n ecessidades e, com isso, oferecer produtos qu e respondessem a
todas as expectativas que pudessem ser recenseadas entre as jovens mães. Com o tempo,
os fabricantes se deram conta de que não era suficiente propor os produtos, também
era preciso exacerbar a necessidade de manter a criança 'seca e limpa'. À força de muita
propaganda, as diferentes marcas foram convencendo os pais, dia após dia, pelo jogo da
comunicação, que a criança seca era sinal de uma criança criada por bon s pais e que,
ao contrário, a criança úmida só pode ser fruto de maus pais, que não fazem aquilo que
se esp era deles!
A ação foi tão bem conduzida, a necessidade foi tão bem criada que as crianças que
estavam sempre secas não aprenderam a se manter limpas naturalmente. Constata- se que
hoje um bebê precisa de 20 por cento mais tempo para se tornar autônomo em rela-
ção à sua higiene.
Partindo da simples necessidade de aj udar a jovem mãe nos meios e nas maneiras
de trocar uma fralda, criou -se rapidamente uma série de n ecessidades que atinge todos
os estratos da sociedade.
Ricos e pobres quiseram dispor de m e ios para mostrar que seus filhos eram
mantidos limpos e que, nesse sentido, eles estavam dentro da no rma impo sta pela
sociedade!
Essa vontade de cnar a necessidade, de responder a ela e sobre tudo de saber
manej ar a diferença estava presente em todos os m ercados e em todos os momentos
da era do m arketing. Em matéria de brinqu edos infantis, foram inve ntados e promo-
vidos, por exemplo, o Po kém o n , o Tamagotchi o u o Yu -Gi-Oh. Esses j ogos invadiram
nossas casas pelo simples motivo de serem novidade e, co mo d irão algu n s, inutilida-
de. Corroborados pelos meios de comunicação, os usuários foram apresentados como
sentinelas ava nçadas o u guerreiros valorosos do mundo da novidade, do extraordiná-
rio, do fabu loso. Havia os qu e compreendiam o brinq uedo e os o utros, os retardatá-
rios, que olharam espantados para esses n ovos h eróis dos tempos m odernos, os que se
38 1 O b I u e s d o e o n s u m i do r

devem seguir, os n ovos guias de uma sociedade amigável e competitiva, na qual se


deve ven cer, como n os videogam es, antes de mo rre r. O s pais desses novos campeões
não m ediram os gastos, e a televisão, em seus program as econ ômicos, n ão poupou
elogios aos criadores indifere ntes, poré m milionários, desses n ovos mercados.
D a mesm a maneira, crio u-se a n ecessidade da magreza, primeiro para a m ulher e
depois p ara o homem. A obesidade foi atacada com uma avalan che de produtos light,
fórm ulas de baixas calorias e regimes, e criou-se um n ovo m ercado mundial.
M as é, sem dúvida, na área dos autom óveis qu e se pode observar a m aior determi-
nação de se criar n ecessidades.
Apesar de a velocidade estar sendo reduzida em toda parte e ser con siderada uma
calamidade mundial, é p erm itido q ue os velocím etros dos car ros indiquem 200 km/ h
ou mais. Isso não é exclusividade dos carros de altas cilindradas. M esm o os carros men os
poten tes têm direito a um belo m ostrador de velocidade e às vezes até a um tacômetro
an exo, com o n os carros de corrida.
A necessidade de velocidade continua sendo um dos fatores determ inantes para o
m arketing e a venda de autom óveis. Fingimos esquecer que, ao forçar o motorista a
pisar fundo no acelerador, o incentivamos a rodar cada vez m ais rápido e, portanto, a
ser cada vez mais perigoso!
D a mesm a m an eira, os fa bricantes constroe m mo tores superpossantes que atingem
altas velocidades em poucos segundos, com o risco de o motorista acabar na d elegacia
de polícia e ficar sem a carteira de habilitação por m eses o u até an os!
Com relação à criação de necessidades, o veículo 4x4, é um exemplo significativo.
Os m oradores das grandes cidades, que não tê m real n ecessidade de veícu los parrudos,
com tração nas quatro rodas e bloqueio de difere ncial, se en tusiasm aram com o efeito
da m o da de com prar veículos en ormes, fortes e poderosos por fora e superespaçosos
por dentro - verdadeiros salões de h otel cinco estrelas.
A velocidade, os carros de altas cilindradas, os 4x4 são respostas às necessidades e à
criação de n ecessidades.
Assim, os fa bricantes, auxiliados por suas equipes de 'marq ueteiros', aplicaram ao
mercado automobilístico como a ta ntos outros, sem nenhuma medida, os tesouros e os
segredos da pirâmide de Maslou/, representada a seguir.

Abraham M aslow (1908-1970), psicólogo norte-americano.A pirâmide de M aslow permite compreender a hierarq uia das
necessidades hun1anas.
Cap í tu l o 2 - O f i m da soc i edade do Homo consomatio : o começo da era do Homo cl iens 1 39

Necessidade
de auto-realização:
satisfação pessoal,
criatividade...
Necessidade de auto-estima:
autoconfiança, independência,
conhecimentos, prestígio...
Necessidades sociais:
pertencimento, ajuda, afeto...

Necessidade de segurança:
estabilidade, proteção, dependência ...

Necessidades fisiológicas:
0 comer, dormir .. .

Eles comp reenderam e utilizaram as motivações e os m ecanism os das n ecessidades


de osten tação, de au to-suficiência, de relação com o o u tro, para faze r o ma rketing fu n -
cion ar melhor. C riaram situações que fizeram com que ninguém pudesse resistir aos
novos produtos, às n ovas modas, o u ficaria desmoralizado!
Assim, n ovos valores foram propostos, para não dizer impostos, aos con sumidores e
aos cidadãos. Esses valores eram simp les: "É n ecessário ser melh or do que o o utro, é
necessário ser d iferen te do o u tro" . E o produto e a m arca é que permitiam isso. Possui r
com o o o utro seria insuficiente, a não ser que este o utro fosse o m odelo-padrão.

A BATALHA DOS CICLOS DE VIDA

Para criar sem parar n ovas necessidades, era necessário - e isso logo se tornou evi-
den te - não esperar q ue o produ to se esgotasse ou que o consu mi dor aba ndon asse
uma m arca e tivesse o u tro desej o. A estratégia não con sistia apen as em criar necessida-
des, m as tam bém e com toda a segurança eliminar o novo produto na origem. Em
o u tras palavras, n ão se esperava mais até que o produto atingisse naturalmen te o fim do
seu ciclo de vida! Este era artificialmente encurtado.
Um carro mal ch ega ao mercado e o utro j á começa a despon tar. Este n ão é forçosa-
men te diferente daquele em termos tecn ológicos, só é up-to-date. U m a calota aqui, faróis
diferen tes ali, duas o u três n ovidades astuciosas acolá e o antigo m odelo perde a validade!
40 1 O b I u e s d o e o n s u m i do r

O marketing de interrupção, pois esse é o nome do novo procedimento, além dos


ciclos de vida dos produtos encurtados, leva à idéia de que se pode incessantemente e
sem grandes dificuldades, à base, é claro, de muita comunicação, criar a necessidade de
compra da inovação.
Para que esses produtos com ciclo de vida curto interessem ao consumidor e sejam
comprados, é preciso que ele compreenda que só terá status de pessoa decente e den-
tro da norma aos olhos dos outros se obedecer à condição de estar imperativamente
up-to-date. A condição prática é simples. Não é uma questão de ter urna caneta para
escrever, é necessário ter o último modelo proposto pelas grandes marcas. A mesma
coisa ocorrerá com relação aos trajes de banho, ao último modelo de automóvel etc. É
preciso explicar que o 'bom' é estar à frente e o ' importante' é sobretudo não ficar para
trás com relação ao o utro, que o ideal é estar na última moda. É claro que se omite o
fato de que o último é sempre e por princípio o penúltimo!
D esenvolveu-se assim uma nova filosofia de vida. Ela é simples: " Para existir, basta
ser aquele que possui o produto da moda"! É um dever, é um novo valor de vida!
Isso leva a uma civ ilização do produto e da marca, algo que não desagrada n eces-
sariamente ao consumidor.

0 PRINCIPIO DE LIBERDADE DO PRODUTO

Talvez tenhamos sido um pouco precipitados quando dissemos que o con ceito de
'marketing' era apenas a pesquisa da resposta às necessidades dos consumidores. Essa tal-
vez seja uma visão muito redutora.
No momento em que, em um supermercado, a dona-de-casa de 35 an os, tão cor-
tejada pelos meios de comu nicação, se pergunta qual iogurte deve comprar para satis-
fazer sua família, ela pode escolher entre mais de 200 variedades de uma grande quan-
tidade de marcas, 40 pelo menos, que vão do produto biológico ao light, passando pelos
originais, os cremosos, os de beber, os com frutas, os aromatizados, os n aturais, os com
e sem açúcar, os com polpa etc. Diante dela , há uma gama de preços e de embalagens
pe1feitamente adaptados ao seu poder de compra e ao tamanho da sua família. Diante
dessa profusão, ela talvez acredite, como é dito nos meios de comu nicação, que o mer-
cado responde perfeitamente a todas as suas necessidades! Na verdade, ela não sabe que
está enganada!
Sim, é claro que todos esses iogurtes respondem à n ecessidade da gula, ou então à
necessidade de ingerir vitaminas, o u talvez à n ecessidade de se alimentar sem ganhar
peso ou à necessidade primordial e ntre as crianças de comer laticínios com prazer.
Cap í tu l o 2 - O f i m da soc i edade do Homo consomatio : o começo da era do Homo cli ens 1 41

Tudo isso é verdade! N em por isso os iogurtes deixam de responder a uma n ecessida-
de mais importante, mais universal , mais profunda, a saber, a da simplificação da vida
cotidiana.
Hoje, no momento em que a dona-de-casa compra um iogurte, sem saber, sem ter
verdadeiramente consciência disso, ela se desincumbe de uma série impressionante de
tarefas e obrigações maçan tes. Com apenas um gesto, o de pegar o produto na gôndo-
la, ela compra instantaneam ente uma porcentagem de liberdade.
Há 50 anos, nos anos 50, a mãe dessa consumidora não conseguia comprar iogur-
tes na leiteria do bairro com a mesma facilidade. Geralmente preferia fazer ela mesma
o iogurte. Para isso, em primeiro lu gar ela tinha de comprar o fermento lácteo em uma
farmácia. O deslocamento tomava tempo, o que n em sempre era fácil, sobretudo para
quem trabalhava em fábricas. Mais do que isso, ainda não existiam grandes supermer-
cados nem auto-serviço, portanto a compra do fermento lácteo era uma compra a mais
entre tantas o u tras. Era uma fila a mais em uma loja e mais tempo de lazer perdido.
Depois de comprar o leite de um pequeno comerciante, ela enchia os potinhos,
dosava a quantidade e colocava tudo na máquina de fazer iogurtes, a iogurteira. E ra uma
máquina grande, que tomava espaço e tinha de ser lavada a toda hora! Enquanto isso, o
marido lia o j ornal, escutava o rádio, fumava, e as crianças faziam a lição de casa. Não
era uma tarefa muito demorada , mas, afinal de contas, exigia momentos preciosos da
v ida. Ligava-se a iogurteira à tom ada e esperava- se até o dia seguinte, quando a fermen-
tação se completava. Obtinham-se então seis o u doze iogurtes feitos em casa!
Conforme o gosto da época, o iogu rte era aromatizado com bau nilha ou canela, acres-
centando-se a cada potinho o extrato favorito das crianças.
Com uma despesa bastante razoável, tinha- se iogurte feito em casa! É eviden te que
tinham de ser consumidos logo. Uma semana depois,já não era mais possível consum.i-
los, sobretudo se ficavam no guarda- comida n o verão !
Ao lançar o iogurte industrial em 1958, a Dano ne, que produzia somente 200 mil
unidades por ano, democratizou o produto e abriu o caminho da simplificação para as
mulheres. Com uma validade de 26 dias a 6 grau s, hoje é possível manter um estoque
na geladeira sem receio de con sumir o produto estragado. É possível fazer compras ape-
nas uma vez por semana. Com as embalagens longa vida, que surgiram pouco tempo
depo is, não era mais necessário limpar aqueles potinhos de vidro que sempre acabavam
por quebrar e nunca se sabia onde g uardar.
O q ue vale para o iogurte vale também para to d os os produtos da casa, do jar-
dim, do escritório e tc. Todas as inovações que vieram à lu z, an o após ano, compra
após compra, acabaram por simplificar a vida do con sumidor. Cada uma delas trou-
xe sucessivamen te uma pequena cota de libe rdade, de facilidade, de simplificação, e
42 1O b I u e s d o e o n s u m i do r

eliminou os incômodos que dificultavam o dia-a-dia. O ferro de passar se tornou


simples de usar. Não é mais necessário ter braços mu scul osos para passar lençóis ou
camisas. Ele é elétrico, esquenta rápido, solta vapor e não pesa quase nada. D á até
para facilitar ainda mais a vida com sprays que tornam o deslizar do fer ro ain da mais
agradável.
A máquina de lavar lo uça, graças à qual não é m ais necessário m ergu lhar as mãos
na água gordurosa depois das refeições com a família e os amigos, e que se põe em fun-
cionamento com um toque de botão, é uma nova liberdade. A máquina que lava e seca
roupas e desobriga de estendê-las no varal é um incomparável poupador de tempo. É
impossível viver sem o controle remoto da TV, que nos livra de ter de levan tar da pol-
trona onde estamos tão confortavelmente instalados para procurar outro canal, um canal
em que finalmente se encontre alguma coisa de interessante. A agenda telefônica, q ue
memoriza os nomes e nos dispensa de ter boa memória, e o corretor ortográfico nos
computadores, que tornou desnecessário abrir o dicionário, são outros tantos saltos em
direção à facilidade total!
A experiência da dificuldade desaparece pouco a pouco.
É claro que a p ublicidade que exalta os n ovos produtos e a nova cota de liberdade
propiciada por eles informa a todos os estratos da população, de mil maneiras diferen-
tes, que não há razão para complicar a vida. Ao mesmo tempo que provoca em todos
o desejo de mudar de vida, ela sublinha para aqueles que não têm meios para isso que
a liberdade de marketing tem seu preço. Em uma certa medida, esses consumidores, n a
impossibilidade de comprar tudo para si e seus filhos, tomam consciên cia de que estão
perdendo a chan ce de se apropriar dessa liberdade que aparentem ente está ao seu alcan -
ce. Cria- se ali uma verdadeira fratura social!
A distribuição moderna, em especial pela possibilidade que oferece de tocar os pro-
dutos sem restrições, pelo simples jogo do auto-serviço e das gôndolas à disposição do
con sumidor, favorece igualmente o salto adiante em direção da liberdade e da ausên cia
de restrições. Ela também sublinha para aqueles que n ão têm recursos que eles podem
tocar, mas não necessariam ente pegar e consumir.
Em breve, como con seqüên cia da 'liberdade de m arketing propiciada pelo produ -
to', o consumidor não terá mais a m esma percepção do mundo, o m esmo sen tido do
esforço que tinham seus pais e avós. Essa ausência de restrições, essa liberdade adquiri-
da por meio do produto com o simples esforço da compra, essa liberdade cada vez mais
aprimorada pelo novo produto o u pelo n ovo serviço criarão uma situ ação de facilida-
de singular, nunca antes experimentada pelo indivíduo!
Capítulo 2 - O f im da soc iedade do Homo consomatio : o começo da era do Homo cliens 1 43

0 PRINCIPIO DO HÁBITO

"A cada manhã na África, um antílope se levanta. Ele sabe que deve correr mais
rápido do que o leão ou será morto. A cada manhã na África, um leão se levanta. Ele
sabe que deve correr mais rápido do que o antílope ou morrerá de fome. Pouco impor-
ta se você é um antílope ou um leão, de manhã, quando se levantar, você terá de cor-
rer!" (Provérbio africano.)
O caçador nômade também tem de correr horas a fio para caçar o antílope. À pri-
meira vista, a corrida parece inútil. O antílope é o mamífero mais rápido do mundo.
Pode atingir 100 km / h , velocidade inalcançável para o caçador. Entretanto, o antílope
será alcançado e abatido. Assim que vê o caçador, desaparece com uns poucos saltos.
Pára , olha, vê o homem, corre, pára de novo e assim sucessivamente até à noite. Dez
vezes, vinte vezes no dia , a cena se repete. Embora pequeno, magro, lento, o caçador
encurrala o antílope. Ele está sempre no rastro do animal! À noite, o antílope está exaus-
to, vê mais uma vez o caçador e tenta correr. Mas as patas não obedecem. E le não
agüenta mais! O caçador venceu!
Como isso é possível?
A resposta é dada por Bernd Heinrich, biólogo da Universidade de Vermont:

O homem é o único primata que pode correr, porque é bípede. Suas duas pernas, assim
como a configuração da sua bacia, estão perfeitam ente adaptadas ao caminhar e à corrida. O s
outros primatas, na melhor das hipóteses, andam desajeitadamente no solo. Além disso, os seres
humanos dispõem de um trunfo primordial, que lhes permite co rrer e caminhar durante muito
tempo: eles não têm pêlos e transpiram. Co m efeito, seu sistema muito particular de regulação
de temperatura corporal repousa na ausência de pêlos sobre o corpo, o que assegura a libera-
ção do calor corporal durante o esforço. M ais do que isso, eles transpiram graças às glândulas
sudoríparas dispostas por todo o co rpo. Esse dispositivo permite a realização de esforços pro-
longados. O leão, o antílope, o leopardo, anim ais excessivamente rápidos, são incapazes de man-
ter um esforço a longo prazo. A pelage m e a ausência de glândulas sudoríparas levam a um
aumento do calo r interno, que logo se torna insuportável. O ho mem cor re lentamente, mas por
mais tempo. [.. . ] Eis por que o nômade alcançará o antílope. Este último não pôde resfriar-se,
sua temperatura interna ao final do dia é muito elevada, o antílope está esgotado. 2

Se o caçador vivesse n o ar-condicionado, se fi zesse tudo para não transpirar, ele


perderia a resistên cia e o antílope poderia escapar. Hoje, o caçador é moderno, tem difi-

Raâ11g the a111elope: what animais can teach us about mnning and life. New York: Cliff Street Books, 2001.
44 1O b Iu e s d o e o n s u m i d o r

culdades para correr atrás do antílope. Sem dúvida, j á se esqueceu dos incômodos que
a savana impõe aos caçadores!
O mesmo acontece com o consumidor. O lado consumidor do indivíduo j á se
esqueceu dos incômodos que até bem pouco tempo atrás ele suportava com bom
humor, afinal. O Homo consomatio se habituou à vida mais facil que os produtos, as mar-
cas e os serviços lhe proporcionaram.
Em menos de 50 anos, o consumidor foi mimado como nunca, ajudado, adulado,
baju lado, tanto pelos fabricantes como pelos distribuidores. Em menos de 50 anos, os
operadores do m ercado fizeram o possível para oferecer ao consumidor inovações que
tinham como missão fundamental permitir que ele eliminasse a maioria dos incômo-
dos fastidiosos da vida comum.
Foi o fim dos sabonetes que não faziam espuma, que não tinham um perfume agra-
dável, ou não tinham perfume nenhum, que ressecavam as mãos e não protegiam da
agressão das águas calcárias! Foi o fim da desagradável tarefa de lavar roupas uma vez
por semana em pesados caldeirões, os quais era preciso erguer e colocar sobre o fogão,
trabalho qu e era concluído inevitavelmente com o fastidioso estender de roupas n a
sacada, no jardim à vista dos vizinhos ou, de maneira mais discreta, na lavanderia. Foi o
fim da ingrata obrigação de lavar louça, arear panelas, fogões e frigideiras.
Foi o fim das temíveis manivelas para dar partida nos carros que não queriam pegar
de j eito n enhum nas manhãs chuvosas. Foi o fim também dos pontos-de-venda peque-
nos, mal-abastecidos, o nde reinavam comerciantes que tin ham os seus clientes preferi-
dos e seus bons e mau s clientes.
H oj e, tanto os mercados como os pontos-de-venda foram totalmente democrati-
zados. Em toda parte, ao alcance da mão, o consumidor tem um ponto de compra para
seus alimentos, seus sapatos, seu pão, sua carne, seu jornal. Não há mais problema para
se abastecer com o que quer que seja.
Em menos de 50 anos, o dia-a-dia do Homo consomatio mudo u completamente;
quer more na cidade ou no campo, ele dispõe do telefone celular ou do fixo (e recen te-
mente da Internet) para se comunicar com os amigos no mundo todo instantanea-
m ente, quase de graça, para perguntar "Com o está o tempo por aí?", pedir uma pizza,
alu gar um carro, verificar o trân sito nas estradas ou saber a previsão do tempo para o
próximo fim de semana.
Se o H omo consomatio está feliz, o H omo cliens não vê as coisas da mesma m aneira!
Cap í tu l o 2 - O f i m da soc i edade do Homo consomatio : o começo da era do Homo cli ens 1 45

0 TEMPO PERDIDO OU A VIDA DESPERDIÇADA DO HOMO CLIENS

Enquanto o H omo consomatio se congratula, sonha e age como a cigarra da fábula,


o Homo cliens sofre com a face oculta das novas imposições da sociedade de marketing.
É verdade que o produto elimina algumas imposições, mas é evidente que o sistema de
marketing também produ z outras. Ele é a formiga que deve suportar e aceitar uma série
inimaginável de freios, obstáculos e ta refas desagradáveis, antes de finalmente ter o pra-
zer de consumir.
Notamos, entre outros comportamentos, que já há algum tempo o H omo cliens não
admite mais perder seu tempo. Quando vai ao supermercado para comprar para ele e sua
tribo de H omo consomatio, não suporta mais esperar na seção de carnes, de frios ou de
queijos. A espera nos caixas do supermercado, nas lojas de bricolagem ou nos pedágios
das rodovias é um pesadelo para ele. O Homo cliens não quer mais pegar filas para ir ao
cinema ou a um espetáculo, para abastecer o carro ou comprar o que quer que seja.
Quando sai de férias, ele não entende que ainda haja congestionamentos no caminho ou
que os funcionários do TGV 3 sejam obrigados a pedir desculpa aos passageiros pelo atra-
so! Por que o TGV tem de atrasar ma.is uma vez? Seu tempo de cliente se tornou um
bem precioso. É como se tudo aquilo que agrada ao H omo consomatio se tra nsformasse
em limitação de tempo para o Homo cliens. Os distribuidores e os indu striais previram
tudo, exceto o fato de que seus esforços para responder às necessidades e às limitações
do Homo consomatio fizeram com que o H omo cliens não tenha mais tempo para viver!
Além da irritação contra o tempo perdido, o H omo cliens quer tudo 'sem demora'!
E le não aceita mais sentir fa lta do que quer que seja! Se deve esperar para ser atendido,
não só não compreende por que demoram tanto para anotar seu pedido n o restauran -
te, corno fica indignado quando lhe dizem que não tem ou acabou aqu ilo que ele tanto
desej ava !
O fato de lhe tornarem tempo e de não dispor de tudo sem demora, induz o
H omo consomatio a se sen tir 'vítima' em todos os lu gares, o tempo todo. Durante as com-
pras, é vítima das gôndolas com mercadorias dispostas de maneira confusa, onde não
encontra de imediato os produtos, as m arcas que lhe foram 'pré-vendidas'. É vítima do
modo pelo qual são organizados os corredores das lojas, que o o brigam a caminhar qui-
lômetros e quilômetros para pegar o sabão em pó, as frutas, os legumes, e a refazer o
caminho para procurar o que esqueceu. Ele tem certeza de que tu do é pensado para
fazê-lo passar o maior tempo possível n o ponto-de-venda a fim de que, cansado, esgo-
tado, termine, como o antílope, por sucumbir à última promoção.

Sigla de traiu à sra11de viresse, como são conhecidos na França os trens de alta velocidade ou trens-bala. [N. do T.]
46 1 O b I u e s d o e o n s u m i do r

Ele se sentirá tanto mais v ítima quanto mais o seu lado consumidor quiser com-
prar, quanto mais o seu lado cliente for su bme tido às imposições de todo tipo, coisas às
quais ele não está m ais habituado.
Mas a v itimização não pára por aí.
O H omo cliens não se sente vítima somente nas lojas! Sente-se vítima em todos os
lugares o nde vai fazer compras, se informar, trocar, comunicar. Sente-se vítima dos fim-
cionários da prefeitura quando vai ren ovar o passaporte para a próxima fabulosa viagem
que a agência de viagens lhe vendeu. É ví tima quando pega o avião a tra balho ou para
seus deslocamentos pessoais. É vítima das empresas locadoras de veículos, do encanador,
do técnico que faz a manutenção da calefação, da Fran ce Télécom 4 e das suas concorren-
tes. Ninguém parece ter compreendido que seu tempo é precioso e que ele não agüen-
ta mais esses atendimentos telefônicos automáticos, que supostamen te existem para servi-
lo 24 horas por dia , sete dias por semana e que, afinal, não levam a nada, a n ão ser a refa-
zer a ligação. E, é claro, ele é vítima do Estado, da poluição, do aquecimento global etc.

0 CLIENTE INIMIGO!

A vitimização do Homo cliens o indu z a comportamen tos n o núnimo surpreenden -


tes, como atesta o caso descrito a seguir.
O Airbus A340 da Air France que faz a rota Buenos Aires-Paris (Aeroporto
C harles de Gaulle) estava perfeitamente dentro do ho rário. Levou 13 h oras para ligar as
duas capitais, com o fora previsto com antecedência. H avia poucos instantes, o coman -
dan te fizera o anúncio com gen tileza, educação e uma pitada de humor a fim de acor-
dar os passageiros. Informo u em três línguas (francês, espanho l e ing lês), quase vitorio-
sam ente, que um 'vento de cauda' muito forte fez com que ganhassem pelo menos meia
ho ra durante o lo ngo traje to de 12 mil quilômetros.
O vôo ocorreu sem o menor incidente. Em menos de 30 minutos, estariam em terra.
Po uca gen te na econômica e alguns lu gares vagos na executiva permitiram que os
passageiros, n a maioria executivos, funcionários de grandes empresas francesas implan -
tadas na Argentina e en genheiros de companhias petrolíferas que voltavam da 'Terra do
Fogo', fi cassem mais à vontade do que de costume.
A primeira classe estava ocupada apen as pela metade dos passageiros, o que lhes
permitiu ter o assen to ao lado vago, com o máximo do conforto ! Na parte dian teira do
avião, os passageiros dormiram bem, deitados nas poltronas reclináveis a 180 graus que

Principal empresa de telecomunicações da França. [N. do T.]


Cap í tu l o 2 - O f i m da soc i edade do Homo consomatio : o começo da era do Ho m o cli en s 1 47

faziam o orgulho da companhia. Puderam descan sar e se preparar para uma dura jor-
nada de trabalho! D ois ou três passageiros até usaram o telefone localizado no braço da
poltrona para ligar para o escritório e avisar que ch egariam antes da hora prevista.
Tudo foi feito para que os passageiros ficassem satisfeitos, descansados, tranqüilos. Na
partida, o j antar em cada classe foi servido rapidam ente para não atrapalhar a noite de
quem quisesse descansar. Isso foi notado e apreciado, basta ler as respostas ao questionário
sobre a satisfação do cliente distribuído durante o vôo. O s vídeos individuais funcionaram
bem, os programas eram bons.As aeromoças estiveram de prontidão a noite toda! Antes da
chegada, elas refizeram a maquiagem para estar à altura da imagem da companhia.
Nesse momento, ainda a cerca de 250 km da chegada, a qualidade do serviço, o
conforto, a gentileza, o profissionalismo do pessoal de bordo faziam com que os passa-
geiros nem sonhassem em ser infiéis à Air France! Aliás, até com entaram isso entre si.
Quem gostaria de pegar um avião das Aerolineas Argentinas? Quem gostaria de
fazer o traj eto com a British Airways ou sabe-se lá qual outra companhia que propu-
sesse tarifas bem mais interessantes para os passageiros assíduos da rota? "Não, com cer-
teza, para viagens longas a Air France é ótima", diziam os mais fiéis!
Infelizmente, as coisas n ão perman eceram assim! O avião pousou, efetivamente, 20
minutos adiantado.
D Primeira irritação, primeiro sentimen to de vitirnização: o pessoal de bordo
anunciou que o avião não iria até o terminal, m as ficaria na p ista. Na prática,
como o avião não partiria n ovam ente, os passageiros seriam desembarcados não
pela passarela que leva diretamente ao terminal, mas transportados em ôn ibus
desde a área de taxiamen to, lon ge do aeroporto. Era realmente uma pena, por-
que é tão melhor desembarcar direto pela passarela! Como os passageiros geral-
mente carregam sua bagagem , eles ganham um tempo infinito. É claro que,
desembarcando na pista, o tempo que foi ganho seria perdido n ovamen te.
D Segundo efeito de vitimização : os ônibus não estavam à espera dos passagei-
ros! Chegariam a qualqu er momento, anunciou o comandante. Todos estavam
de pé, com as malas n a m ão. Começou o fa latório. E as reclamações! "É sem-
pre assim na Air France", "Não fazem nada direito, como em qualquer empre-
sa estatal". A te nsão aumen to u. O s passageiros se amon toa ram dia n te da porta
aberta . Os passageiros da primeira classe n ão eram os primeiros da fila.
Qu ando os ô nibus chegassem, os passageiros da classe executiva seriam os pri-
meiros a poder sair! Os passageiros da classe econ ômica e stava m vigil an tes; eles
não estavam lon ge da porta. Fazia frio. Era inver no em Paris.
D Terceiro efeito de vitimização: os ônibus chegaram , m as não havia escada! Os co-
mentários corriam soltos, o escândalo estava arm ado, a sabotagem era eviden te.
48 1 O b I u e s d o eo n su m i d o r

A crise se agravou quando a escada finalmente chegou, mas ninguém foi capaz de
colocá-la no lugar. Três pessoas tentavam empurrá-la, mas não adiantou nada. Os
passageiros da classe executiva zombavam e não poupavam críticas à companhia.
Uma funcionária protestou. A guerra estava declarada!
D Quarta razão de vitimização: a escada estava no lugar e os passageiros começa-
ram a descer sem a intervenção das aeromoças, que não se preocuparam em
fazer quem pagou três vezes mais pelo assento sair antes dos outros. Em outras
palavras, os passageiros da primeira classe, da executiva e da econômica se viram
juntos na mesma escada e no mesmo ônibus. O escândalo atinge seu auge! No
ônibus, as pessoas fa laram mal da Air France, dos funcionários, do serviço, dos
aviões, do presidente, dos sindicatos, das greves e dos beneficios dos funcioná-
rios. D e repente, já não havia mais nenhuma consideração pelo pessoal de
bordo. E les não existiam mais! A imagem da companhia decaiu tanto quanto o
tempo que o ônibus demorou para chegar ao terminal, que evidentemente não
era aquele onde os passageiros haviam estacionado seus carros.
Todo o pessoal de bordo, todos os atendentes de todas as companhias aéreas conhecem
perfeitamente o desenrolar dessa história. Ela se repete tanto na rota Paris-Nova York
quanto na Orly-Clermont-Ferrand. É claro que, em todas as companhias, os funcionários
aprendem a gerenciar essas situações de crise e sobretudo a não reagir, a não dizer nada para
evitar o furioso e ameaçador "Vocês vão ver só, vocês não sabem com quem estão brincan-
do" dos passageiros. Eles sabem o que devem e, sobretudo, o que não devem dizer.
O Homo cliens sabe muito bem que o fato de ter desembarcado na pista, de o ôni-
bus ter se atrasado ou de o terminal ter sido mudado não é culpa da companhia, mas
da administração do aeroporto. Não importa, ele não está interessado ou, como ele
mesmo diz , não é problema dele. Nesse caso, ele precisa de um bode expiatório, por-
que parte do princípio de que, depois de ter comprado a passagem, tudo deve ser dado
a ele sem restrições. Afinal, os PNC 5 das companhias estão lá para isso!
Nos aviões, nas lojas, na maioria das situações em que o H omo cliens se sente víti-
ma , ele deixa de agir normalmente e se comporta corno um inimigo. Ele é levado por
seus impulsos. Diante das imposições muitas vezes alheias à vontade dos operadores,
comissárias de bordo, atendentes, prestadores de serviço, funcionários, o cliente se com -
porta corno um verdadeiro inimigo. Ele não q uer mais entender, compreender, separar
as coisas. Opta pela solução terrorista. Quebra,joga longe, xinga e geralmente não tem
nenhuma consideração pela dignidade do outro.

Sigla de perso1111el 11av(gaut commercial, como são chamados coletivamente os funcionários das companhias aéreas. [N. do T.)
Cap í tu l o 2 - O f i m da soc i edade do Homo consomatio : o começo da era do Ho m o cli en s 1 49

A FIDELIZAÇÃO E O HOMO CLIENS

Todos os dias nas grandes loj as, nos pequenos comércios, nas farmácias, nas escolas, em
todos os lugares onde existe uma relação cliente/fornecedor, encontramos essas relações
exacerbadas, esse sentimento de vitimização do cliente que o induz ao comportamento de
inimigo. Evidentemente, desde que o Homo cliens se sinta contrariado ou considere que não
estão fazendo como ele gostaria, isto é, imediatamente, ele ataca seu interlocutor e quase
morde (no sentido figurado) quem está ali supostamente para aj udá-lo, servi-lo ou atendê-
lo. Chega ao ponto de ameaçar nunca mais voltar ali! Ele é inimigo declarado do sistema.
Esse comportamento é ainda mais injusto porque, como todos dizem, escrevem e
pensam: "Sem fidelidade do con sumidor, não há salvação" ! Em outras palavras, gastam-
se rios de amabilidade para justamente fazer desse cliente um rei e este parece nem levar
em conta todos os esforços realizados! Pior, toma a direção oposta e se comporta de
maneira absurda.
A religião do cliente fiel parece valer para grandes lojas especializadas, estacionamentos,
locadoras de veículos, provedores de Internet e de telefonia moderna, companhias de avia-
ção, TGV, hotéis, entregadores de pizza, fabricantes de todos os produtos e de todos os
tamanhos, comerciantes de laticínios do bairro e com ércio tradicional do centro da cidade.
Apesar de não se conhecer nem seu criador, nem a data de sua revelação, a religião
do cliente fiel se impôs a todas as empresas, dia após dia, venda após venda, transação
após transação! H oje, por mais incrível que pareça, e apesar do comportamento dos
clientes, ninguém se atreveria a colocá- la em dúvida .
Na verdade, essa religião se baseia em um dogma único e simples, que rapidamen-
te se propagou por todas as línguas e diz o seguinte:
D O cliente é fiel se estiver satisfeito.
D Inversam ente, o cliente se torna radicalmente infiel a partir do m omento em
que deixa de se sentir satisfeito !
D O cliente satisfeito, portanto fiel por natureza, diz isso a pelo menos três pessoas
e alimenta sistematicam ente um boca-a-boca favorável, sendo este o meio de
comunicação indiscutível para a fama de um com ércio, de uma empresa de ser-
viços ou de fabricação de equipamentos o u de produtos de grande consu mo.
D O cliente insatisfeito, portanto infiel, diz isso a pelo menos dez pessoas, amigas
ou não, o que tem como con seqüência alimentar um outro tipo de boca-a-
boca, o boca-a-boca desfavorável, que destrói qualquer boa imagem de serv iço
na sua passagem!
D O ho rror, o apocalipse que deve ser evitado a todo custo, é a propagação do
boato negativo. Um serviço con siderado ruim por um clien te m édio, desconhe-
50 1 O b I u e s d o e o n s u m i do r

ciclo, que nem se sabe se comprou realmente alguma coisa, pode se tornar uma
verdadeira catástrofe comercial!
D O bom é a satisfação do cliente, o mau é a sua insatisfação.
Se na história moderna das empresas nunca se investiu, se refletiu, se discorreu, se
ensinou, se teorizou e se escreveu tanto sobre a fidelidade do cliente e seu corolário,
sobre o serviço e a satisfação do cliente, é porque existe uma série de boas razões para
isso.A primeira delas, a mais freqü entem ente citada, que milita pelas estratégias de fide-
lização e de excelência na relação com o cliente, é que para a maioria das empresas que
se encontram em mercados hipercompetitivos é absolutamente necessário encontrar
em algum ponto uma diferença qualquer para ser a escolhida ou a citada pelo cliente.
A fidelização surge como um dos últimos recursos estratégicos que ainda restam às
empresas para tentar se destacar em meio a esse mal endêmico e atual da economia que
se define pela fa lta de diferença!
Influenciadas pelos mesmos consultores (executivos formados nas mesmas grandes
escolas e nas mesmas universidades), pelos mesmos princípios de reflexão, em muitos
casos pelo mesmo pensamento único, as empresas de produtos, de varejo ou de servi-
ços, intimidadas pela cotação da bolsa , não podem ou não querem mais fazer a diferen-
ça, seja nas fabricas, nos departamentos de pesquisa, nas lojas, seja por meio do marke-
ting ou mesmo da publicidade de seus produtos. Portanto, tudo acontece na relação
com o outro, isto é, com o cliente.
Em outras palavras, há 50 anos o centro de gravidade da diferença vem se deslo-
cando da fabricação para o marketing, e do marketing para a relação com o cliente.
Ter um bom serviço é, na verdade, ter esperança de m ostrar sua diferença ao clien-
te! É acreditar e sustentar que, ao tomar consciê ncia dessa diferen ça, o cliente escolhe-
rá a sua empresa e será fiel a ela não porque goste ou simpatize com você, mas porque
vê aí uma vantagem egoísta.
A segunda razão que leva a procurar e desenvolver estratégias de fidelização de ser-
v iço e de excelência na relação com o cliente é que muitas empresas precisam com-
pensar a fa lta de relações humanas que existe no auto-serviço com a oferta de melho-
res preços, promoções etc.
A fórmula é conhecida. Para ser diferente, por falta de inovação ou porque qualquer
inovação é imediatamente copiada, primeiro se oferecem bons preços ao m ercado. A
experiência mostra que isso geralmente dá bons resultados, pelo m enos em curto prazo.
A partir do m omento em que se oferecem bo ns preços, deve-se obrigatoriamente
aumentar a produção ou encontrar em algum lugar uma maneira de economizar. Para
aumentar a produtividade e fazer econo mia, é preciso dispor de uma logística melhor,
de uma informática melhor, de menos estoques e, via de regra, menos funcionários.
Cap í tu l o 2 - O f i m da soc i edade do Homo consomatio : o começo da era do Homo cli ens 1 51

Eliminar funcionários é, por definição, estar menos à disposição das expectativas


dos clientes. É conceder menos tempo, menos atenção, menos serviço e, com isso, cor-
rer o risco de n ão satisfazer os clientes, portanto, de criar a infidelidade.
Nessas condições, para criar a fidelidade é necessário encontrar e promover, para
além do con tato humano, m eios artificiais para fazer os clientes esquecerem que não há
ninguém ali para servi-los e convencê-los de que, apesar disso, a empresa fa z tudo por
eles e, em troca, espera ter sua fidelidade.
Os postos de gasolina que vemos em estradas e cidades fran cesas são um bom exem-
plo dessa 'fidelização artificial'! Todos têm em comum a particularidade de colocar o
mínimo de funcionários possível à disposição dos motoristas. Ainda assim, estes últimos
supostamente escolhem ser fiéis a um posto de gasolina em função do melhor acolhi-
mento, do melhor serviço prestado. Nesse caso, o problema da fidelização é muito mais
dificil, porque para ter o serviço o motorista tem de aprender a encher ele mesmo o
tanque de gasolina, a calibrar os pneus, a lavar o carro nas m áquinas automáticas, a lim-
par o pára-brisa e a verificar os níveis de óleo e de água. Em termos de contato huma-
no, ele tem de se con tentar com o sorriso do rapaz ou da moça do caixa, desde que
tenham sido treinados, como geralmente é o caso, para olhar para o cliente e ter em
m ente que ele não é apenas um número de código em um cartão de crédito ou em um
cartão de fidelidade. Para compensar a falta de serv iço, todas as marcas fazem esforços
custosos e bem conhecidos. Os postos de gasolina geralmente são bonitos, limpos e
racionais, desde a área de estacionamento até os banheiros. Exibem cores que aquecem
o ambiente, como o verde, o amarelo ou o vermelho. Cartazes de boas-vindas recep-
cionam os m o toristas e luvas de p lástico e rodos ficam à disposição para que e les não
sujem as mãos e possam secar o pára-brisa de seus carros sem grande esforço. Todo um
material de marketing está ali para lembrar o cliente que a empresa de petróleo o ama,
que ele é importante para ela e que lá é ele quem m anda. É claro que ela n ão faz isso
para que o cliente nunca esqueça que postos limpos e caixas educados é o mínimo que
qualquer motorista tem o direito de esperar diante do preço do combustível! Portanto,
o serviço e seu corolário, a fidelização, se expressam de o utro modo.
Eles estão nos jogos, nos cartões de fidelidade, nos brindes, desde que, evidente-
mente, se comprem gasolina, óleo ou qualquer o utro produto para o carro. O s especia-
listas vêem esses recursos como verdadeiros elementos de fidelização, sem os quais o
cliente n ão estaria feliz e, portanto, satisfeito.
O que vale para os postos de gasolina vale também para as grandes lojas de produ-
tos alimen tícios.
Para ser competitivo em ter mos de preço, os supermercados e os hiper mercados
devem mais uma vez resistir à tentação de con tra tar funcion ários.
52 1 O b I u e s d o e o n s u m i do r

Como n os p ostos de gasolina, o cliente aprendeu a escolher sozinho os produtos


na gôndola, a encher o carrinho, a p esar frutas e legumes, a colocar tudo na esteira do
caixa e depois devolver tudo ao carrinho, sem h esitar e sem reclam ar. Para compensá-
lo e conseguir sua fidelidade, as emp resas acredita m que devem oferecer preços, quali-
dade, música am biente, cores agradáveis nas paredes, cartazes com m otivos alegres e
divertidos, e toda uma série de m eios promocionais: cartão de fidelidade, j ogos, cupons
premiados, e tudo em um ambien te que tenta ser agradável, caloroso e amistoso. Não
é preciso dizer q ue tudo isso som ente é possível se ho uver um m áximo de econo mia
de funcio nários e m eios para p restar um bom serviço. Sendo assim, dentro das estraté-
gias de fidelização, o H omo cliens semp re foi um problem a para as em presas de serviço
e de distribuição. Com o fid elizar o clien te-vítima, que acredita que sair satisfeito é uma
coisa absolu tamente natural (aliás, é o núnimo que se espera!), que sair insatisfeito é lite-
ralmen te um escândalo e qu e a satisfação de hoj e n ão é forçosam en te a garantia da fi de-
lização de amanhã?

A CRIAÇÃO DE VALOR

Para contornar a infidelidade do Homo cliens enq uan to vítima, outra idéia prospe-
ro u: a da criação de valor.
O que você fa ria, por exemp lo, se fosse um grande distri buidor, especialista, mul-
tiespecialista ou generalista, e seus con corren tes d iretos, seus colegas - aqueles mesmos
que o cumprimen ta m com um acen o amistoso quando cruzam com você no sindica-
to - , reduzissem os preços das grandes m arcas com as quais você trabalha, lançassem
prom oções m alucas com o reforço de prospectos o u enchessem suas prateleiras com
m arcas de distribuição p rópria, produtos a preços mais baixos ou genér icos?
O que você faria ainda se o bservasse, dia após dia, que os esforços devastadores,
quase insa nos, dos con correntes o o brigaram a reduzir os lu cros, a cor tar as despesas e
a pôr os fun cion ários em 'dieta' de q ualquer hipotético aumen to salarial, tudo para se
manter vivo?
Além de m aldizer os concorrentes, você deve reconhecer q ue isso é con seqüên cia
de uma total ausên cia de diferen ça e ntre você e eles. M esmo q ue você se agarre à idéia
de que a sua loja é mais ami stosa, mais bem abastecida, m ais foca da n o clien te do que
as dos concorren tes, você terá de admitir que, para o Homo cliens m édio, acostumado há
anos à distribu ição moderna, tu do se parece, tu do é igual, tudo é conhecido!
Só lhe resta então uma única solu ção para responder a esses bárbaros! Não aquela
que vem de imediato à cabeça e consiste em oferecer p reços ainda mais baixos e um
Cap í tu l o 2 - O f i m da soc i edade do Homo consomatio : o começo da era do Homo cli ens 1 53

brinde extra por um euro a mais! Mas aquela que exige mais reflexão, m ais sangue- frio,
mais senso estratégico, e consiste em agregar valor ao serviço que você e seus vende-
dores propõem aos clientes que ainda lhe restam.
A idéia é aparentemente muito simples e parece óbvia para muitos. Diante de um
cliente atraído, magnetizado, hipnotizado e desviado pelas ofertas inconsideradas de
preços e vantagens propostas pelos concorrentes, bastaria agregar um ' algo a mais' qua-
litativo para dar fim a essa vontade irresistível do cliente de freqüentar lojas que pro-
põem tudo a preço de nada.
Evidentemente, esse valor agregado assume as mais diversas formas e aspectos con-
forme o setor de atividade.
O farmacêutico que começa a se sentir ameaçado pelos descontos de certos cole-
gas que, como ele constata e lamenta, tiram-lhe, dia após dia, seus clientes e portanto
seus lu cros, acredita que estará agregando valor se der orientações gratuitas aos clientes.
E le está convencido - e n em poderia ser diferente, porqu e é o que se diz em todos os
seminários dos quais ele já participou - de que a orientação bem dada, bem recebida,
fideliza e elimina os efeitos de um desconto, mesmo grande!
É claro que esse farmacêutico não imagina que seu colega dos descontos possa dar
as m esmas orientações qu e ele dá aos seus clientes. N em passa por sua cabeça que os
clientes o considerem tão bom farmacêutico quanto ele mesmo. Enfim, não acredita
que esse colega dos descontos p ossa ter a mesm a legitimidade que ele diante de uma
con stipação, uma tosse crônica ou uma d o r de cabeça. Ele esquece que aos o lhos do
público ambos são farmacêuticos diplomados e estão ali para responder de graça e ime-
diatamente a todas as pergun tas que forem feitas.
Os fabricantes de m óveis, como But, Atlas, Crozatier e outros, n ão ficam atrás n a
idéia de valor agregado que permite combater os descontos. Também nesse caso, eles
tentam se valer da qualidade dos vendedores, da von tade de encon trar o móvel que
convém ao cliente e de uma determinação o bstinada de o ferecer um bom serviço.
Embora aqui o desconto não sej a tão direto como no caso da farmácia ou das grandes
redes de supermercad os, ainda assim ele é um obstácu lo para qualquer estratégia de
marketing que vise a colocar o famoso 'valor' à frente do preço.
Evidentemente, n em os distribuidores nem os fabricantes de m óveis são ingênuos.
E les sabem muito bem que o m óvel tem a maravilhosa propriedade de não entrar n a
categoria dos produtos aos quais se pode da r um preço exato. Todo mundo n esse ramo
sabe que são raros os clientes que, ao ver um m óvel em uma loja o u em um catálogo,
conseguem dizer m ais ou m enos qu anto ele c usta. Conforme ele sej a de madeira colada
o u cavilhada , o preço irá do simples ao do bro. Conforme seja de carvalho m aciço, de
cerej e ira o u simp lesmente de uma imitação de m adeira, o valor será completam en -
54 1O b I u e s d o eo n su m i d o r

te diferente. O que marca o futuro comprador é apenas a relação aspecto / preço. Por
mais que se diga no prospecto que o cliente é 'enganado' pelo concorrente, que sem-
pre se deve olhar do que é feito o fundo das gavetas, a parte traseira dos móveis, nada
disso adianta. O cliente só acredita naquilo que imagina ver. Nessas condições, agregar
valor não é uma questão fácil. Tanto isso é verdade que o cliente sabe muito bem que,
pechinchando um pouco, ele pode conseguir um belo desconto, entrega gratuita e
muito mais. Ele não se engana. Na verdade, todos os vendedores de móveis estão sub-
metidos às mesmas regras salariais. A marca para a qual trabalham paga o salário núni-
mo garantido pela categoria. Se quiserem ganhar mais, eles têm de vender. Está claro
que, no dia 15 do mês, quando o vendedor percebe que não atingirá sua meta, vale tudo
para conseguir a venda. Como tem a possibilidade de fazer pequ enas alterações nos pre-
ços de venda , ele aproveita. É uma prática compreensível, e que o cliente, sem saber,
utiliza para seu beneficio próprio! Por força das circunstâncias, todo profissional da área
moveleira, com raríssimas exceções, em algum momento se dedica ao prazer de criar os
preços.
Em matéria de serviços, as coisas não são mais fáceis. Móveis são comprados com
pouca freqü ência, urna vez a cada três anos em média! Além disso, não existe de fato
um serviço pós-venda obrigatório, como no caso de um carro. Não se faz a revisão de
um armário, de uma cama ou de um sofá a cada três anos. Nessas condições, salvo a
entrega gratuita, não existe de fato um serviço que determine um tal valor agregado
pelo qual preferiríamos pagar caro para ter certeza do beneficio do serviço.
Apesar disso, os distribuidores de móveis acreditam piamente que sua salvação está
na agregação de valo r que eles oferecem ao cliente. Eles procuram esse valor e muitas
vezes acreditam tê-lo encontrado. É verdade que só a fé salva !
Ninguém escapa à idéia de criar a diferença pela busca e pelo valor agregado!
Poderíamos descrever as expectativas específicas dos com ercian tes independentes de
pneus que pomposamente se autodenominam 'consultores pneumáticos'. Eles prome-
tem aos clientes, obviamente, opção entre as grandes marcas, mas sobretudo garantem
um pe1feito alinhamento do veículo antes da colocação dos novos pneus. Esse serviço,
esse novo valor, tem por objetivo proteger o motorista contra o rápido desgaste dos
pneus em conseqüência de uma deformação do chassi. Com isso, eles querem mostrar
aos clientes e sobretudo aos não-clientes que eles agregam valor à atividade básica que
con siste no ato extremam ente simples, mas suj o, de colocar pneus novos em um carro
velho! A idéia desse valor seria interessante se tanto as grandes redes, como Midas,
Speedy e Norauto, quanto a mais humilde das concessionárias perdida nos confins do
país não oferece ssem esse mesmo serv iço, às vezes até de graça, mas sempre com des-
con to!
Cap í tu l o 2 - O f i m da soc i edade do Homo consomatio : o começo da era do Ho m o cli en s 1 55

Já que o computador permite a qualquer mecânico verificar imediatamente e de


forma simples as deformações do chassi causadas pelas batidas que os m otoristas dão n o
m eio-fio, e visto que bastam alguns apertos de parafuso para pô r tudo em ordem, aqui-
lo que poderia ser de fato um valor se torna uma obrigação. É a ausência desse servi-
ço h oje que seria fatal!
Assim, valor agregado pode ser efetivo desde que não se torne um instrumento sis-
tematicamente copiado e proposto por todos os concorrentes.
O mesmo vale para os distri buidores de produtos de arte e artesan ato (tubos e cai -
xas de pintura , cavaletes, pincéis etc). Nessa atividade que começa a crescer, os peque-
nos comerciantes do centro da cidade, que estão no mesmo local há décadas, acreditam
que, agregando valor, eles podem lu ta r eficazmente contra os novos formatos de ponto-
de-venda instalados na periferia,j un to das grandes lojas.
Esses novos pontos-de-venda , que têm nomes como Arteis ou Cultura, oferecem
preços, decoração, modernismo, estacionamento, espaço e opções ao alcance das mãos,
em outras palavras, auto-serviço para uma nova clientela que esculpe, pinta, decora e
desenha. A primeira idéia salvadora qu e ocorre a esses comerciantes tradicionais é,
como no caso dos farmacêuticos, dar a contribuição das 'boas sugestões' .
Essa idéia é corroborada nos fundos das lojas ou nas reuniões sindicais por estudos
sérios que apontam para o fato de que aquele que pinta ou desenha procura, antes dos
preços, um ouvido amigo capaz de lhe dizer qual óleo utilizar, qual pincel o u qual mol-
dura escolher. Assim, de uma só vez, para se salvar, uma área profissional inteira p lan eja
mudar e passar de distribu idora para consultora especializada. Isso é esquecer mais uma
vez que os n ovos concorrentes tam bém dão o rientação e que nem todos os clientes têm
forçosamente perguntas a fazer a cada vez que compram alguma coisa para concluir suas
o bras-primas.
As grandes lojas do ramo alimentício, hipermercados e supermercados, foram as
primeiras a sentir os efeitos n efastos da ausência de diferença e a se interessar pelo con -
ceito de valor agregado em lu gar notadam en te da oferta de preços.
Lembramos que por volta de 1995 a ausên cia de diferença se viu repentinam ente
amplificada pela promulgação da Lei Galland. Essa lei proibia e ainda proíbe que os dis-
tribuidores ofereçam preços 'baixos demais' em suas loj as. Procurava-se desse modo evi-
tar as vendas sem lucro, vendas abaixo do preço de compra e, com isso, a propagan da
que fazia a alegria das lojas de descontos e a tristeza dos fabricantes. Está claro que, para
proteger as grandes marcas con tra as práticas 'selvagens' de certos distribuidores, p refe-
riu -se eliminar a diferen ça que estes últimos estabeleciam por meio dos preços. Na prá-
tica, a partir do decreto de promulgação da lei, ninguém podia ser mais barato do que
o outro.
56 1O b I u e s d o e o n s u m i do r

Embora em um hipermercado ou em um supermercado tudo se faça por auto-


serviço e o segredo da boa rentabilidade, sobretudo em tempos de crise, consista em
passar para o cliente o máximo de tarefas para economizar nas despesas com funcioná-
rios (é o cliente quem pega os produtos nas prateleiras, coloca tudo na esteira dos cai -
xas, devolve ao carrinho etc.), os distribuidores se convenceram rapidamente - depois
da promulgação da lei e diante da realidade das cifras de vendas e do recuo das margens
de lu cro - da utilidade de oferecer aos clientes algo mais do que promoções no alto
das gôndolas. Falou-se muito de teatralização, de universo de ambientação, isto é, de
meios que colocariam o cliente em um estado alterado de alegria, de bem-estar e o dei-
xaria tão feliz que ao fim ele seria mais fiel e menos sensível às ofertas de preços. Estava
lançada a moda do 'hipermercado amigável'!
O conceito de valor agregado provavelmente teria funcionado se, diante de uma
perda significativa de participação no mercado, um dos atores importantes do mercado
não tivesse se lançado em uma operação espetacular de promoção que permitiu de uma
só vez recuperar o atraso e voltar ao primeiro lu gar.
Com seu "cupom Leclerc: o cupom que rende", as lojas Leclerc mostraram a quem
estivesse disposto a acreditar que, no final das contas, o cliente prefere uma bela recom-
pensa quantitativa a qualquer promessa qualitativa !
O princípio do cupom Leclerc pode ser explicado de maneira muito simples e
compreensível para todos:
Quando você fizer suas compras na rede Leclerc, escolha os produtos indicados
pelo logotipo; eles valem pontos! No caixa, o montante dos pontos é registrado no final
da fatura. Esse é o seu cupom Leclerc. Nos 15 dias seguin tes a essa operação, você com-
pra o que quiser com os cupons Leclerc.
Hoje, os fatos são gritantes! O Homo cliens quer preços, presentes, um 'algo a mais'
tangível, e não discursos confortantes a respeito do fato de o am arem mais do que todo
mundo e mais do que em qualquer o utro lugar do mundo! Aos olhos dele, o serviço
que lhe oferecem é um dever.
Já que não se encontrou um valor real para oferecer ao cliente como um diferen-
cial, a questão prioritária dos grandes distribuidores é ter uma imagem de preços aces-
síveis! A guerra dos preços em todos os sentidos se tornou a única solução para provar
que a empresa é e sempre foi barateira, logo diferente!
Já que a lei não permite mais lançar mão de estratégias ferozes de redução de pre-
ços, a maioria dos distribuidores encontrou, o u melhor, reencontrou o conceito de pri-
meiro preço. O primeiro preço é por definição o produto m ais barato que o mais barato
de todos. Até então, conhecíamos o desconto sobre as grandes marcas que os distribui-
dores praticavam nos anos 80. D epois, surgiram as marcas do distribuidor ou marcas
Ca pí tu l o 2 - O f i m da soc i edade do Homo consomatio: o começo da era do Ho m o cli en s 1 57

próprias, algo como uma cópia das grandes marcas, que, pelo fato de carregar o nome
da rede varejista, deveria provar e garantir ao cliente que ele poderia comprar bem por
um preço menor. Nos anos 90, com a chegada dos hard discounters e seus preços terri-
velmente mais baixos em produtos exclusivos de suas marcas próprias, vimos aparecer
aqui e ali nas prateleiras dos hipermercados e dos supermercados o primeiro preço. Por
definição, esses produtos, mais baratos que as marcas próprias, tinham a missão de mos-
trar aos consumidores que o hard discount vindo da Alemanha não havia inventado nada
de novo e que as empresas francesas podiam contra-atacar as marcas do hard discount,
como Aldi e Lidl, com produtos não muito ruins. O primeiro preço não podia ser tão
bom e mais barato que a marca própria. E le podia ser bom e de fato mais barato, ou
então não muito ruim, mas sempre mais barato. Por volta de 1995, conscientes do peri-
go que os produtos de primeiro preço representavam para a manutenção das marcas
próprias, os distribuidores logo compreenderam que era necessário fazê-los desaparecer
das gôndolas. A marca própria era um meio de fidelizar o cliente, uma boa maneira de
obter lucros e estabelecer uma sólida imagem de qualidade! Nessas condições, estava
fora de cogitação oferecer aos consumidores produtos cuja relação qualidade/ preço não
pudesse ser garantida.
Como a fome faz o lobo sair do mato, não demorou muito para que as grandes redes
- que, apesar de tudo, ainda pregavam a teoria do valor agregado para clientes em busca
de diferença - relançassem a velha idéia do primeiro preço, mesmo sob o risco de con-
denar sua marca própria, de oferecer aos clientes um produto de qualidade medíocre e
de levar todo um ramo de atividade por um caminho no mínimo espinhoso.

0 CASO DA GASOLINA NA FRANÇA

A França é um dos raros países do mundo onde mais de 50 por cento do consumo de gasoli na e
óleo diesel é fornecido com desconto no preço ao consumidor pelas grandes redes de distribuição. Os
supermercados e os hipermercados podem oferecer todos os produtos derivados do refino do petró-
leo por preços muito mais baratos do que as bombas de gasolina tradicionais que se encontram nas
estradas nacionais e departamentais e nas pequenas cidades, sem por isso infringi r a lei. A razão é
muito simples! As grandes redes de distribuição têm o direito de lançar os salários e os encargos
sociais dos funcionários do posto de gasolina na folha de pagamento das suas lojas, supermercados
ou hipermercados. Em outras palavras, o preço de bomba em uma grande loja pode ser mais ba rato
do que o preço de bomba em qualquer posto de gasolina da cidade, sem que ela precise vender abai-
58 1O b I u e s d o eo n su m i d o r

xo do preço de compra, já que sobre os seus preços não há incidência direta de salários. Todos fica-
ram consternados com essa situação que provocou o desemprego de milhares de pessoas. Mas, por
razões desconhecidas, nada mudou e a gasolina continua mais barata nas bombas das grandes lojas!
Nessas condições, é difícil aplicar a idéia do valor agregado para contra-ataca r o peso do des-
conto. Como sempre nesses casos, em todos os ramos de atividade, sempre surge umcavaleiro bra n-
co, um campeão no sentido etimológico da palavra, que aceita o desafio e mostra que se pode fazer
melhor sem recorrer apenas aos preços. Foi assim que um dos maiores operadores desse mercado,
que chamaremos de Total para não citar o nome verdadeiro, resolveu afirmar que ninguém mais iria
até ele por acaso. Em outras palavras, todo o foco seria no cliente e na sua satisfação, pa ra que ele
optasse pela Total com todo o conhecimento de causa. No plano da publicidade e do ma rketi ng, a
idéia era interessante. Era notório que o acolhimento nesses postos de gasolina era efetivame nte
melhor do que em qualquer outro. Era notório também que o serviço oferecido aos clientes, os car-
tões de fidelidade e as promoções eram bem aceitos e bem recebidos pelos clientes na época. Mas
a dificuldade é que, alguns anos depois, a empresa Total transformou uma parte da rede em lojas
de descontos para não perder sua participação no mercado para as grandes lojas que sabiam muito
bem que ninguém ia até elas por acaso, mas pelos bons preços! Ao transformar uma parte da rede
Elf em loja de descontos, a Tota l provou que o preço ainda era a melhor maneira de atrair o cliente,
e que o valor agregado só tinha sentido para preços equivalentes!

Não podemos iniciar o capítulo sobre o possível impacto do valor agregado para o
consumidor sem citar o exemplo das companhias aéreas.
Entre as companhias- modelo citadas há décadas como referência em termos de ser-
viços em terra e a bordo, a Swissair foi provavelmente a mais apontada como exemplo
a ser seguido. Ela ainda estaria à frente se, por razões diversas, não tivesse sido obrigada
a decretar falência . Tudo ia às mil maravilhas em terra, no ar, na primeira classe, na exe-
cutiva e na econômica! As aeromoças tinham um estilo, uma habilidade para lidar com
os incidentes, um profissionalismo invejado por companhias maiores. Os serviços ofe-
recidos eram considerados superiores aos de todas as outras empresas aéreas.
Em 2000, antes de todas as outras, a Swissair ofereceu gratuitamente aos clientes
uma fonte de alimentação para seus com putadores portáteis, a fim de que pudessem
continuar a trabalhar durante os longos vôos, sem receio de ficar sem bateria! Não havia
um congresso internacional, uma convenção de companhias aéreas o u de profissionais
do ramo em que não se pedisse a Jan Carlzon, presidente da SAS (Scandinavian Airline
System), que contasse seu segredo. Muito educadamente, e le se prestava ao jogo, mas
quando era perguntado sobre o treinamento do pessoal de bordo ou dos atendentes da
Cap í tu l o 2 - O f i m da soc i edade do Homo consomatio : o começo da era do Ho m o cli en s 1 59

empresa, ele infalivelmente respondia: " Nós não treinamos os funcionários para serem
amáveis, como nas companhias de vocês. Eles são naturalmente assim, porque só admi-
timos na SAS mulheres ou homens que cresceram no campo, qu e têm irmãos e irmãs
e que sabem por natureza o que é viver sob condições dificeis e em grupo. Para eles,
entrar na SAS é uma forma de ascen são social. Só queremos colaboradores que sejam
naturalmente amáveis, porque isso não se aprende! Nós damos a e les somente uma for-
mação técnica. Isto é, nós ensinamos ao pessoal de vôo, por exemplo, como servir um
whisky durante uma turbulência, sem se esquecer do gelo e dos sa1gadinhos" 6 •
Air France, British Airways, Delta, TWA, US Air, American Airlines, Cathay Pacific
e muitas mais, sem chegar evidentemente ao nível de excelência da Swissair, se desdo-
braram para oferecer aos seus clientes o melhor serviço possível para obter sua fideli-
dade.
Quem colocaria em dú vida que a SAS foi a primeira a ter a idéia de ofere cer urna
classe executiva para os homens de n egócios? Quem não se lembra de que a Air France
foi a primeira companhia a oferecer verdadeiros leitos na primeira classe e assentos mais
do que confortáveis na classe executiva? Quem não se lembra do luxo e do conforto
da primeira classe na British Airways e do fabuloso serviço em terra? Quem não foi
todo elogios para a Cathay Pacific depois de um vôo sobre Hong Kong?
Hoje, constatamos que nada disso serviu para grande coisa. A maioria dessas com -
p anhias estão p erto de decretar falência. Seus inimigos são simplesmente as companhias
aéreas que utilizam os mesmos aviões, as mesmas rotas, nem sempre os mesmos aero-
portos, m as que estipulam preços realmente m ais baratos. Easy Jet e R yan Air são com-
panhias que não oferecem n enhum serviço e não se preocupam com o conforto do
cliente, m as oferecem um vôo Paris-Genebra por 50 euros em vez de 550 e uros!

CONCLUSÃO

Desde os anos 90, o Homo cliens se distingue aos n ossos olhos n os pontos-de-venda,
no momento da compra e essencialmente na relação com os vendedores, por seu com-
portamento de vítima! H oje, por simples reação, ele está sempre descontente e insatis-
feito. Somente se interessa por aquilo que lhe é efetivam ente dado.As promessas não lhe
interessam ou não lhe interessam mais. Ele quer algo palpável e que valha alguma coisa.
As estratégias que visam a fidelizá-lo e a agregar valor parecem, n a m aioria, vontades

C ARLZON, Jan. M o111e111s of rnu/1. N ew Yo rk: Harp er Perennial, 1987. (Ed. brasileira : Hora da verdade. Rio de Janeiro:
Sextante, 2005.]
60 1O b l ues do consum i dor

custosas sem futuro e sem conseqüência. Essa vitimização, vista por alguns como pato-
lógica, geralmente leva a comprar menos, mais barato e sobretudo de modo diferente.
Assim, por exemplo, o surgimento do hard discount não foi forçosamente, como
alguns gostariam que acreditássemos, uma questão de preços de produtos oferecidos à
clientela. A comparação de preços entre lojas, hipermercados e supermercados mostra
exatamente o contrário. A realidade parece mais simples.
Ao se sen tir vítima de hipermercados agressivos demais em termos de promoções,
cores, ruídos da massa e merchandising, o Homo cliens se defende indo a um ponto-de-
venda sóbrio, simples, pouco sedutor. Em outras palavras, um ponto-de-venda simples-
mente mais orientado para os seus desejos do que para as aspirações e sonhos do Homo
consoma tio!
Q uanto maior o esforço realizado pelos p ublicitários, pelas marcas, pelos distribui-
dores, pelas empresas de serviço para reconquistar sua participação n o mercado, mais
eles recorrerão ao H omo consomatio (por puro h ábito ou porque ainda não sabem agir
de outra maneira) e mais colocarão, sem saber, o H omo cliens sob tensão. Por causa de
uma publicidade que dispara em todas as direções, a diferença de percepção en tre o real
(aquilo que vemos) e o valor (aquilo que imaginamos) só fará o ressentimento do Homo
cliens aumentar!
UMA SITUAÇÃO

PAROXÍSTICA:

A ECONOMIA DA A TENÇÃO

óbvio que, quando fazemos nossas as virtudes e as práticas do conceito de


marketing, isto é, quando queremos desenvolver um plano de novos produtos
com ciclos de vida cada vez menores, estabelecer uma crença baseada no prin-
cípio do marketing de interrupção, criar sem parar novas n ecessidades, fidelizar e satis-
fazer o cliente, é necessário comunicar intensamente. A regra e a prática exigem que
seja n ecessário comunicar e comunicar ainda mais para tornar os produtos e a marca
conhecidos, derrotar o concorrente em seu próprio terreno, convencer ou mostrar uma
diferença e sobretudo provocar cada vez mais desejo de consumir.
Para fazer o cliente comprar, particu larmente nos períodos difíceis, é necessário
conven cer, ao mesmo tempo, todos os segm entos do m ercado. N ão podemos nos con -
tentar somente com o mercado dos ' ricos' ou o dos 'afi ccionados' . O marketing se ali-
m enta da massa. Portanto, é obrigatório que os consumidores potenciais sejam tentados
por belas imagens, por belas histórias, e que o discurso se apóie na 'parte do sonho'. À
primeira v ista, a comu nicação sob todas as suas formas é necessária para que o concei-
to de marketing possa simplesmente ser aplicado! Sem comunicação não há marketing
bem-sucedido.
Tanto é verdade que se observa que o H omo consomatio, por natu reza, não é cons-
tantemente ávido por produtos, publicidade, promoções, novidades. E le tem expectati-
vas, desejos, necessidades, mas também é muito ligado aos seus hábitos, é prisioneiro
deles. Não procura a todo instante, como gostaríamos que fi zesse, a melhoria, a exce-
lência da vida unicamente por intermédio do produto. E sabe também - o H omo cliens
está lá para lembrá-lo - que seu bo lso tem limites. Na verdade, ele não entra de manei-
ra espontânea, irre fletida e estúpida n o jogo do hiperconsumo.
62 1 O b I u e s d o e o n s u m i do r

Por mais que coloquem o produto e a marca debaixo do seu nariz, o Homo conso-
matio não vai prestar atenção forçosamente àquilo que querem dizer a ele, à mensagem
subliminar que deveria fazê-lo comprar. Ele geralmente tem uma lista de compras,
alguns desejos e idéias em mente e não vai forçosamente mais longe do que isso.
Portanto, a criação de necessidades, os ciclos de vida curtos e a comunicação nem sem-
pre são suficientes para disparar as compras de maneira permanente ou ocasional.
Comunicar surge como um ato vital para a civilização do marketing.
Os fatos mostram que comunicar, no sentido próprio do termo, não é o suficien-
te para disparar o desejo de comprar!

A ECONOMIA DA ATENÇÃO: O DESAFIO!

Desde os anos 30-40, segundo Pierre Lévy ', a atenção do público se tornou a
maior aposta das atividades políticas e culturais. A ascensão das núdias impressas e pos-
teriormente do rádio e do cinema abriram um novo campo da consciência coletiva,
logo ocupado pelas batalhas de propaganda travadas pelos regimes fascistas e totalitários,
e em seguida por todas as forças presentes na Segunda Guerra Mundial. Depois da
guerra e da política, o comércio tomou esse novo espaço com os anúncios, que explo-
diram nos anos 50. A s 'indústrias culturais', notadamente as revistas, o cinema e a tele-
visão, foram aos poucos se apossando de uma fração cada vez maior da consciência e da
atenção coletivas. Devemos a Theodor Adorno 2 (1940) e aos situacionistas3 comentários
preciosos sobre a fenomenologia da fabricação de 'momentos de con sciên cia pré-fabri-
cados' e 'conteúdos de consciência' pelos industriais.
Desde 1970, à medida que se instala essa hipercivilização de consumo, constata-
se qu e ela só pode sobreviver sob a condição de uma supercomunicação, isto é, se ela
tiver a propriedade cardeal de atrair, manter, estimular, polarizar permanentemente a
atenção do indivíduo. Não só é necessário criar 'conteúdos de consciência', como,
para fixar no cérebro a mensagem e a oferta comercial, é necessário antes prender a
atenção.
Para favorecer e atrair a atenção para o produto, a marca ou o serviço, os meios ofe-
recidos às empresas são globalmente de três ordens. É necessário:

World pl,i/osophy: le marché, le cyberespace, la conscience. Paris: Odile Jacob, 2000. (Ed. brasileira: A conexão planetária: o
mercado, o ciberespaço, a consciência. São Paulo: Editora 34, 2001.)
Theodor Adorno (1903-1969), filósofo da Escola de Frankfurt.
Notadamente Guy D ebord (1931-1994) e R.aoul Vaneigem (1934).
Ca p í t u I o 3 - U m a s i t u a ç ã o p a r o x í st i e a : a e e o n o m i a d a a t e n ç ã o 63

D 'fazer barulho' e, se possível, mais do que os concorrentes;


D surpreender;
D ou, é claro, fazer os dois ao mesmo tempo.
Fazer barulho é uma coisa bastante simples. É necessário gritar alto e não largar o
indivíduo um só instante!
De manhã , de tarde e à noite, ele deve ser inundado por mensagens. Para isso, é
necessário multiplicar as mídias e dar aos anunciantes a possibilidade de nelas estarem
permanentemente. Rádio, televisão, imprensa escrita, revistas, noticiários, brochuras,
prospectos, cartazes e agora as mídias do ciberespaço se multiplicam ao infinito. Trata-
se apenas de uma questão de meios!
Notemos que os hipermercados, os supermercados e, em geral, todos os comércios,
foram, cada um no seu nível, excelentes dispositivos de amplificação dessa vontade. Eles
inundaram as caixas de correio com ofertas atraentes. Ainda que o público fale mal de
toda essa comunicação nas pesquisas de opinião, ainda que afirme a todos que lhe per-
guntam que a publicidade e os prospectos não o fazem comprar, o industrial ou o dis-
tribuidor que acreditar um só instante nessa conversa fiada e parar de comunicar verá
seu faturamento despencar. O s consumidores detestam os prospectos (atitudes), mas
lêem todos (comportamentos), e eles vendem!
Portanto, estimular e prender a atenção é, antes de tudo, ocupar o terreno ininter-
ruptamente. É tomar permanentemente a decisão de não deixar o cérebro do consu -
midor descansar. Ele deve receber o máximo de mensagens no mínimo de tempo, e isso
de maneira constante.
Um con sumidor, segundo um estudo da Universidade de Harvard (Harvard
Bu siness School Research) , recebe 1.800 mensagens por dia (imprensa, rádio, televisão,
cartazes, prospectos, Internet etc.) , o uve apenas 80 e somente 15 prendem a sua aten-
ção. Industriais e distribuidores são, portanto, obrigados a supercomunicar se querem
atingir seu alvo. É evidente que isso criou comportamentos em to dos os níveis do sis-
tema de con sumo, notadamente no Homo clíens, que os fundadores do marketing não
podiam prever.
Se fazer barulho é simplesmente uma questão de m eios e de vontade, su rpreender
a todo instante é mais dificil e implica uma certa criativ idade.
Barnum, criador do circo do mesmo n ome, descreveu j á em 1880, em um famoso
livro4, as diferen tes receitas que existem para despertar o u chama r a atenção e atrair
multidões. Q uem não se lembra do sucesso da mulher barbada, do homem-elefante, da

BARNUM, Phineas Taylor. Art of 111 011ey getting : or, golden rules for making money. Bedford, MA : Applewood Books,
1999. [N. do T.)
64 1 O b lu es do consum i dor

mulher com três seios e da parada de Buffalo Bill diante da rainha da Inglaterra, em
Londres? Desde então nada mudou de fato, as receitas continuam as mesmas.
No Tour de France 5, os ciclistas, usando camisetas cobertas de mensagens, devem
cruzar a linha de chegada com o tronco ereto para que na tela da televisão apareçam
apenas eles e a marca patrocinadora. Mas só isso não basta, porque seria apenas fazer
baru lho. São necessários recordes, histórias, atos heróicos, queridinhos, mocinhos e ban-
didos, doping, mortes e emoção para manter o encantamento e, por conseqüência, a
atenção. Em outras palavras, é necessário trocar a mensagem sistematicamente, substi-
tuir a que está lá por uma nova, mais forte, mais surpreendente!
A Surpresa com 'S' maiúsculo é a relação entre o esperado (aquilo que todo mundo
espera ver ou ouvir) e o inesperado (aquilo que ninguém nem imaginava).
Tomemos alguns exemplos. Quando o papa João Paulo 1, antigo cardeal de Veneza,
morreu no dia 29 de setembro de 1978, depois de pouco mais de 30 dias de pontifica-
do, esperava-se que seu sucessor fosse romano ou veneziano - isso era o esperado.
Ninguém imaginava que ele pudesse ser polonês! João Paulo II , eleito para a surpresa
de todos, foi o papa mais midiático de todos os tempos - por causa da relação espe-
rado/inesperado. Ele manteve essa energia midiática durante todo o seu pontificado.
Quando o primeiro secretário-geral do partido comunista da antiga União Sovié-
tica, Iuri Andropov, morreu em 1984, o mundo inteiro esperava que seu sucessor fosse
velho, doente e membro do KGB. A inesperada eleição de Mikhail Gorbatchev foi a
expressão máxima do inesperado. Ele era jovem e sorridente, e sua esposa era elegante,
bonita e magra. Esses eram critérios inesperados para líderes soviéticos!
Todos os dias, o inesperado é a pepita de ouro que todos procuram para vender
suas idéias, com a condição de serem os primeiros ou únicos a explorá-la.
Mas a coisa é um pouco mais complicada. Existem dois tipos de inesperado:
D o natural;
D o artificial.
Quem trabalhava na mídia ficou individual e profundamente chocado com os
atentados de 11 de setembro em Nova York, corno também com a chegada de Le Pen
ao segundo turno na eleição presidencial francesa em 2002 ou com os atentados de
Madri em 2004. No plano midiático, é evidente que esses acontecimentos, por sua
natureza e por seu valor de inesperado, foram extraordinários catalisadores de atenção.
Nunca houve no mundo uma audiência tão grande como na Fran ça. Nunca se criou
tão naturalmente tanta atenção. Esses acontecimentos, infelizmente naturais, continham
uma relação inesperado/esperado extremamente forte.

A mais importante prova ciclística do mundo. [N. do T.)


Ca p í t u I o 3 - U ma s i tu a ç ã o par o x í s t i e a : a e e o n o m i a d a ate n ç ão 65

Não é todo dia que os meios de comunicação têm a 'oportunidade', para não dizer
a 'sorte', de encontrar o inesperado bem diante de sua porta.
Sendo assim, eles ficarão tentados ou serão obrigados a criá-lo! A criação perma-
nente do inesperado artificial se tornou uma regra.
A receita é simples. Pega-se um acontecimento, aumenta-se, repete-se e depois sim-
plifica-se o acontecimento para que cause mais impacto e penetre no cérebro de todos!
Por exemplo, a apresentação em primeira mão das fotos da morte da atriz Marie
Trintignant na revista Paris Match fez as vendas aumentarem 35 por cento!
Vândalos põem fogo em um carro, em dez carros, em cem carros, e já não é o fato
de pôr fogo nos carros que conta, mas o número, o placar. Se esses atos de vandalismo
são freqüentes em uma determinada cidade, como, por exemplo, em Estrasburgo, na
véspera da provável ocorrência do incidente são apresentadas reportagens sobre as ocor-
rências anteriores e no dia seguinte ao incidente são apresentadas reportagens para
comparar o aumento ou a diminuição desse tipo de incidente de um ano para outro
ou de uma semana para o utra. De toda forma, há mais interesse pelo delinqüente do
que pela vítima. Um final de semana sem graves acidentes nas estradas, sem mortes n a
Palestina, sem ameaças de Bin Laden e se torna absolu tamente necessário relembrar um
acontecimento do passado ou fabricar um acontecimento novo, sob pena de se perder
a atenção do consumidor.
O anormal se torna normal e o normal, anormal.
Os meios de comunicação são, sem dúvida, obrigados a participar da evolução dessa
'civ ilização da atenção'. Em primeiro lugar, é preciso admitir que, em todo o mundo,
são os anúncios que sustentam os meios de comunicação e não o contrário! Em outras
palavras, se não houver publicidade dos produtos dos grandes anunciantes, n ão haverá
jornal televisivo, Tour de France, Copa do Mundo, Troféu Júlio Verne, Rali Dakar,J ogos
Olímpicos etc.
É o marketing, a publicidade e as marcas que pagam para que a informação possa
se infiltrar no cérebro do Homo consomatio.
A televisão, mas também o rádio e os diferentes formatos cotidian os da imprensa,
como revistas mensais, semanais e noticiários, são, em primeiro lugar, fabricantes de
audiência e, portanto, de atenção. Se a audiência é grande, os fabricantes correm para a
faixa de horário da transmissão televisiva o u para a primeira págin a de urna publicação
semanal. Dispõem- se a pagar caro para aparecer em um bom lugar. Querem ser ouvi-
dos. Cabe aos meios de comunicação criar a atenção e o inesperado !
Fabricar a aten ção é, antes de tu do, fabricar a audiência. É preciso surpreender o
telespectador, durante e depois do jornal televisivo, antes da faixa q ue vai das 22h45 às
24 horas, de segu nda a domingo, de 1~ de janeiro a 31 de dezembro.
66 1O b I u e s d o eo n su m i d o r

Isso vale p ara a manch ete de capa das revistas semanais o u d os simples diár ios
regio nais. Com o os ciclistas do Tour de France, os redatores-chefes da impre nsa escri-
ta, da televisão, os produ tores, os j ornalistas e m ais comumente tod os aqueles qu e são
resp on sáveis por um programa, uma coluna de jornal o u um m eio de comunicação
querem estar à frente e ter os melhores índices de audiên cia. D o con trário, serão des-
p edidos, esqu ecidos pelas emissoras e p elos produtores. O s anuncian tes n ão p agarão
m ais e p ode m os imaginar o desastre q ue seria para as emissoras de televisão, a impren -
sa em geral , as rádios. O s meios de comunicação vivem em uma econo m ia de bicicle-
ta, o u seja, se param de pe dalar, caem .
Embora a m oral mui tas vezes reprove o m o d o de agir d os op erad ores de TV, rádio
e impren sa, ele é perfeitam en te justificad o, assim com o seu fascínio e sua depen dência
com o audíme tro [medido r de audiên cia]. Nada m ais natural. N a imen sa in certeza em
qu e se en contram os m eios de comunicação, vale tudo para chamar a ate nção. Não
existem lim ites. É preciso colar n a atualidade e até m esm o, se fo r preciso, criá-la, ex-
plo rar tudo aquilo que possa fazer com que o telespectador e o leitor abandonem
tod os os o utros m eios de comunicação e se surpreendam dian te daq uele sob a nossa
responsabilidade.
Com o o H omo consomatio se torno u com o tempo um especialista n o inesperado,
a p artir d o m o m en to em que vê as image ns da T V o u d os j ornais, ele logo adivinha
p o r aquilo que é m ostrado se se trata de um ve rdadeiro acontecimento inesperado o u
de uma ten tativa artificial de surp reendê-lo. Durante 50 anos, viu em preto-e-bran co
e em cores ta ntas guerras, seqüestros, crimes, assassinatos, acidentes com petroleiros e
vazamentos de ó leo no m ar, car ros em chamas nas estradas e n as cidades, acidentes de
avião, casam en tos de príncipes, que pouca coisa ainda pode assombrá- lo. Ele se tor-
no u um especialista em vio lê ncia e, co m o conseqüê ncia, n ada m ais o surpreen de. Se
os joven s, por vezes m uito j oven s, torturam o u v iolam , se os grandes deste m undo tra-
paceiam e enriq uecem , se divorciam o u se suicidam , tudo isso entra na n orma au dio-
v isual.
Porta nto, os meios de comunicação têm de se tornar rapidam ente especialistas n a
arte de fazer o ou tro acreditar no excepcio nal ou perdem pontos de audiên cia e desa-
parecem.
H oj e, ninguém , m eios de comunicação o u anunciantes, m ede de fato a quantidade
m áxima de ru ído o u de inesperado que um indivíd uo pode receber. N inguém mede o u
conhece as conseqüên cias da exposição excessiva à violência e às imagens surpreedentes
para a vida p rivada, para os desej os de compra etc. Ninguém, governo, partidos políticos
o u associações, fornece indicações sobre o tempo m édio aceitável de exposição à
influência dos meios de comunicação e não cham a a atenção de uns ou de outros para
Ca p í t u I o 3 - U ma s i tu a ç ã o par o x í s t i e a : a e e o n o m i a d a ate n ç ão 67

os riscos da superexposição a certos tipos de imagem. É curioso que haja tanta preocu-
pação com a velocidade nas estradas, com a exposição ao sol, com a votação de leis sobre
a medição do radônio, mas que não se diga nada sobre a importância dos meios de
comunicação na vida do indivíduo. A única coisa objetiva que se diz hoje é que os ado-
lescentes e os adultos que assistem televisão demais engordam!
A questão da exposição aos meios de comunicação parece nem passar pela cabeça
das pessoas! Ela não se coloca como um problema! Todo mundo imagina que ruído
demais mata o ruído, ou que qualquer dia desses o indivíduo ou o Homo consomatio
acaba surdo! Mas, como não há medições disponíveis, todos agem como se isso nao
fosse nada. Simplesmente vão em frente!
O que vale para os m eios de comunicação tradicionais vale também para os do
ciberespaço. Como diz Pierre Lévy em World phílosophy, "a ausência de bloqueio ou de
censura vai trazer à luz do dia pela primeira vez a imensidão do espírito humano sob
todas as suas facetas. Não existe mais censura, separação, bloqueio do 'mau', do 'sem interesse',
do vergonhoso, do absurdo e do fútil. Tudo acaba por se exprimir" [grifo nosso].
A única coisa que sabemos com certeza quando observamos os índices de audiên-
cia é que os indivíduos estão cada vez mais exigentes em matéria de inesperado. Para
que concedam sua atenção, um minuto que seja, a uma marca ou a uma informação, é
preciso fazer muito mais do que há 30 ou 40 anos, isto é, mais do que no começo da
era do marketing!
O que vale para os meios de comunicação tradicionais vale também para os do
ciberespaço. A ausência de bloqueio ou de cen sura vai trazer à luz do dia pela primei-
ra vez a imensidão do espírito humano sob todas as suas facetas. Diante dessa situação,
o indivíduo está sujeito a um primeiro comportamento. Seja ele jovem, idoso, h omem,
mulher, urbano o u rural, ele se habitua aos encontros com hora marcada com o extraor-
dinário, com o inesperado, isto é, com os jornais televisivos e os jornais das diferentes
rádios periféricas. E le responde presente automaticamente, sobretudo para a previsão do
tempo.As curvas de audiência dos grandes jornais televisivos e das rádios n ão diminuem
no geral e são idênticas em todas as camadas da população! Isto vale para todos os paí-
ses do mundo!
O indivíduo está permanentemente exigindo e pedindo estímulos de atenção. Não
procura necessariamente informação, mas an tes a emoção da informação. Se n ão rece-
be sua ração de inesperado, vai embora. É por isso que é chamado de 'zapeador'. O sal
da vida, para ele, é a emoção veiculada pela informação!
Essa necessidade de sensações, de novidades, tem uma razão de ser. Essa razão, esse
motor, é o fato de o indivíduo estar convencido de que, se não estiver a par do inespe-
rado, algo lhe faltará. Ele tem a impressão de que perderá status aos olhos dos outros,
68 1O b l ues do consum i dor

de que não poderá compartilhar suas novas emoções com a família, os amigos ou os
colegas de trabalho! Ele estará por fora das coisas! Será visto como um personagem
associa!.
Ele deve, portanto, não importa quanto isso lhe custe, fazer parte da corrida pelo
sensacional como todos os outros. Diz que detesta imagens de violência, mas assiste
a elas.
É patente que a necessidade de sensação não combina com a monotonia do co-
tidiano. Por isso as pessoas se aborrecem tão rápido nas lojas quando não há novos
produtos à vista! Enjoam de ver sempre as mesmas embala gens nas prateleiras, os mes-
mos políticos. A Fórmula 1 perde espectadores quando os campeões são sempre os
mesmo s, no caso Schumacher e Ferrari. Cansam de ver sempre os mesmos tenistas
chegarem à final do campeonato. Enquanto as empresas acreditam na durabilidade, o
mercado só deseja a novidade.
Para agradar ao Homo consomatio, seria necessário mudar a cada dois anos as emba-
lagens, os líderes, os desafiantes. Seria necessário reformar as lojas a todo instante e,
sobretudo, nunca exibir imagens conhecidas. Contudo, são sempre os mesmos produ-
tos que se compram e sempre os mesmos comentaristas que dão receita. A contradição
está nisto: queremos o novo, mas só pegamos o velho.
Na França, como em o utros lugares, a distribuição contribuiu em grande medida
para a instalação desse tipo de economia da atenção. Assim, assistimos a uma aceleração
da atenção do desejo. As gôndolas cheias de produtos, o merchandising sutil, os preços
atraentes, as promoções e a posição favorável no alto das estantes dão vontade de pos-
suir, de comprar. Pode-se tocar, pegar, sonhar, mesmo que não se tenham os meios
necessários. Caviar, lagosta, champanhe de marca e bons vinhos estão, nas grandes lojas,
ao alcance de todos os consumidores, ricos e pobres. As pessoas enchem o carrinho de
compras sem se preocupar com a despesa, porque sempre têm a possibilidade de deixa-
rem tudo ao passar pelo caixa, caso tenham tido o olho maio r do que a car teira enquan-
to peregrinavam pelos corredores.
Portanto, a distribuição não distri buiu apenas, mas foi a primeira núdia de criação
de necessidades e de economia da atenção.
Ela foi aos corredores das lojas para tentar, por todos os meios, chamar a atenção
do cliente e disparar a compra. Aqui é 20 por cento a mais de produto em um creme
de barbear, ali é o sorteio de uma viagem, m ais à frente são as famosas cabeças de gôn -
dola desabando com tantos produtos e ofertas.
Ca p í t u I o 3 - U m a s i t u a ç ã o p a r o x í st i e a : a e e o n o m i a d a a t e n ç ã o 69

o MARKETING
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8080
1

Entre os procedimentos de comunicação que visam a atrair a atenção do público,


os publicitários têm especial predileção por um deles. Eles testam notadamente a saga-
cidade dos telespectadores com anúncios publicitários curtos, engraçados, irreais e algu-
mas vezes simplistas. Os personagens que atuam nessas peças têm geralmente papéis
curiosos, e até estúpidos. Para promover uma marca de tinta para paredes, os publicitá-
rios não recuam diante da idéia de apresentar dois jogadores de tênis se enfrentando
munidos de rolos de pintura. Para vender uma marca de automóvel ou de adubo para
grama, não hesitam em colocar Guy Roux, o excelente técnico da equipe de futebol
de Auxerre, em cenas que beiram o ridíc ulo. Sem contar os discos voadores que trazem
à Terra uma multidão de homenzinhos verdes para degustar nossos patês, comprar uma
apólice de seguros ou depositar dinheiro em um banco que se quer promover.
Da manhã à noite, mensagens a respeito do ganho em termos de qualidade, bene-
ficios, vantagens e diferença das marcas, dos bancos, da EDP, da Gaz de France 7 são
encaminhadas ao cérebro do Homo consomatio em tom de diversão, de histórias em qua-
drinhos. A idéia é simples: divertir para chamar a atenção! Em outras palavras, o con-
ceito de marketing de Kittrick implicaria a necessidade de tratar da maneira menos
séria possível coisas que nem por isso deixam de ser sérias, a saber, participação no mer-
cado, posição da marca etc.
O público não rejeita essa relação com a Disney ou com o Asterix . Mais ainda,
nota-se que, se essas coisas são tratadas com seriedade, o índice de atenção dispensada
às marcas cai de maneira alarmante, o que fez Georges Duhamel dizer, em seu livro
Scenes de la víe future 8 : "O método norte- americano encanta os seres simples e agrada
muito às crianças. Todas as crianças que conheço raciocinam como norte-americanos,
desde que se trate de dinheiro, prazer, glória, poder e trabalho". N ão é preciso muito
para associar essa reflexão à idéia de que, afinal, todo esse 'marketing' apenas infantiliza
o H omo consomatio e a sociedade na qual ele vive.
Que imagem extraordinária a dos austeros executivos, todos vestidos de cm za,
refletindo muito seriamente nos edificios perfeitamente climatizados de La D éfense 9
sobre a última peça publicitária que terão de aceita r - e que funciona, apesar de a con -
siderarem incrivelmente estúpida - , apresentada por um profissional criativo (apesar de

Sigla de Électricité de France, uma das principais em presas de distribuição de energia da França . No Brasil, a EDF é a con-
troladora da Light, fornecedora de energia elétrica para a cidade do R.io de Janeiro, entre outras localidades. [N. do T.)
Empresa estatal francesa de distribuição de gás . [N. do T.)
Paris: Éditions 1001 Nuits, 2003 .
Bairm planejado que concentra os negócios em Paris, com seus arranha-céus e arquitetura moderna. [N. do T.)
70 1O b I u e s d o e o n s u m i do r

não se barbear e n ão usar gravata) e que deve au mentar as vendas e garantir a confian -
ça dos acionistas.
A infantilização do indivídu o não é uma idéia n ova. Pascal Bru ckner falou sobre
ela em L a tentatíon de l'innocence 10 • Sim, n ós estamos em plen a 'bobolândia', com o ele
anuncia em seu livro.
Como não achar que vivem os na 'bobolândia', se de um minuto para o o utro pas-
sam os das lágrimas ao riso p orque algo nos ch am a a atenção?
Como se surpreender com o fato de qu e a sociedade se comporta com o crian ça
se, imediatam ente ap ós a veiculação de uma notícia terrível (estupro, guerra, in cêndio,
mortes, torturas ... ) p elo rádio, p or uma revista ou pela televisão, anuncia-se em todos
os tons p ossíveis o famoso tema pu blicitário baseado na felicidade, n o bem-estar e n a
alegria de viver para vender escovas de den te, pn eus de auto móvel ou qu alq uer o utro
produ to?
Como a n ossa sociedade poderia ser 'séria' se no rádio ex-ministros saídos da famo-
sa ENA 11 tratam de imbecis os novos ministros saídos da m esm a ENA (e, pior, da
m esma turma)?
Todo mundo sabe que, quando os p ais brigam , as crianças não fazem a lição de casa
com o a professora gostaria! E ntão, n ão é insen sato imaginar que, nessas condições, o
H omo consoma tio se comporta hoj e com o N apoleão com sua esp osa: "Eu tenho o direi-
to de responder a todas as acusações com um etern o 'sou o que sou'. Encontro-me à
parte de todo o mundo e não aceito condições de ninguém.Vocês devem submeter-se
a todas as m inhas fa ntasias e ach ar n atural q ue eu me en tregue a tais ou tais distrações"
(N apoleão à sua esposa; citado por Friedrich Nietzsche em seu livro Le Cai Savoir 12) .
Isto posto, a distribuição ainda é o melhor ' infa ntilizador' à escolha! D en ise, a j ovem
p rovinciana de Zola, em A u Bonheur des D ames 13 , é descri ta corno uma criança "trans-
tornada pela engenhosidade das vitrines, p ela exposição das sedas, dos cetin s, dos velu -
dos em tons delicados, por esse incêndio de tecidos"; a jovem é literalmente possuída
de corpo e alma: "àquela h ora da noite, com seu brilho de fornalha, a Felicidade das
Senhoras acabava por tom á-la por inteiro" .

10
Paris: Éditions Grasset, 1995 . [Ed. brasileira : A tm tação da inocência. Rio de Janeiro: Rocco, 1997].
Sigla de É cole Nationale d' Administration (Escola Nacional de Administração), responsável pela formação dos futuros diri-
gentes públicos e dos oc upantes dos cargos mais elevados da burocracia estatal fran cesa. [N. do T.]
Ed. brasileira : A Caia Ciência . São Paulo : Companhia das Letras, 2001.
Texto menos conhecido de Zola, que trata do período em que o pequeno com ércio fàmiliar em Paris, pelo movimento
da própria economia, dá lugar às grandes lojas de departamento. Sem tradução no Brasil. [N. do T.]
DESFRUTAR A

QUALQUER PREÇO

N
a introdução à obra de Charles Melrnan, L'homme sans gravité: jouir à tout
prix (en trevistas com j ean-Pierre Lebrun)1, Jean-Pierre Lebrun,psiquiatra e
psicanalista, ex-presidente da Associação Freudiana Internacional, escreve:

O ntem , inclusive provérbios e o utras máximas lembravam ao sujeito que nem tudo era pos-
sível - "Não se pode ter tudo !" - , que é preciso assumir as co nseqüências de seus atos -
"Quem sem eia vento colh e tempestade!" - , q ue se deve levar em consideração o que se faz
- "Não adianta correr, tem-se que sair na hora!" . H oje em dia, o adágio mais comumente evo-
cado, obvia mente, é:" Assoviar e chupar cana" .
Ali o nde, ontem, para a maioria dos pacientes que se dirigia m ao psicanalista, tratava-se de
e nco ntrar uma saída dife rente da neurose para o caráter conflituoso do desejo, hoje, os que
e ncontram o caminho de se u consultó rio vêm, com freqüê ncia, falar-lhe de seu enviscamento
e m um desfrute excessivo. O que, e ntão, se passou para que assim , regularmen te, o desfrute
triunfe sobre o desejo?

Difícil responder a essa questão, mas é igualmen te difícil nao relacion ar esse
com entário sobre o desfrute àquilo que ocorre antes na economia da aten ção.
O Homo consomatio desfru ta e quer desfrutar! O s fatos estão aí.
Como sublinha C h arles Melman , editorialista da revista Passage e um dos diretores
da Escola Freudiana de Paris: "Passamos de urna cultura fundada n o recalque dos dese-

Paris: Éditions D enoel, 2002. [Ed . brasileira: O homem sem gravidade. R.io de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.)
72 1 O b l ues do consum i dor

j os e, p ortanto, cultura da neurose, a uma outra que recomenda a liv re expressão e pro-
move a p erversão. Assim a 'saúde m en tal', hoj e em dia, não se origina mais em uma
harmonia com o ideal, mas com um obj eto de satisfação".
Essa noção de saúde m ental ligada à satisfação imediata se mostra claram en te como
uma das principais explicações para o compo rtamen to atual do H omo cliens. Este não
vai a uma loj a, a um restaurante apenas para comprar o u fazer um pedido. Ele está
ali p ara p rolon gar e confirmar o desfrute sentido e desej ado p elo H omo consomatio.
O clien te só se sen te bem quando o processo de satisfa ção ime diata não é de maneira
nenhuma alterado.
As coisas p oderiam parar p or aí se a satisfação imediata do cliente p udesse ser efe-
tiva. Infelizm ente, ela n ão pode! Pio r, ela é cada vez m enos possível.
Se o marketing e sua comunicação favorecem o processo de desfru te e a n ecessi-
dade de satisfação imediata, a realidade de campo (po ntos-de-venda, g uichês, balcões,
complexidade dos p rodu tos) lhes são op ostos o u os contrariam .
Não se pode atender todos os clien tes ao m esm o tempo, n ão se pode não fa zê-los
esp erar, não se p ode ter atenden tes semp re com imagem perfeita, com o gostaria o m ais
agressivo dos clien tes insatisfeitos. Não se pode gastar m ais com a satisfa ção (serviço) do
que com o desfru te (produto) em um mundo do lu cro. Não se pode fabricar produtos
que nunca d ão defeito. N ão se pode dizer ao mundo, aos passageiros, aos operados, às
crianças que o risco zero n ão existe.
E M elman sublinha: "Em um mundo o nde o ho mem con siderou o fato de que o
céu está vazio, tanto de D eus quanto de ideologias, de prom essas, de referências, de
p rescrições, e que os indivíduos tê m de se determinar por eles m esmos, singular e cole-
tivam ente", é lógico, nesse caso, admitir que toda satisfação adiada conduz inevitavel-
m ente à fru stração.
A frustração n ão é uma 'decepção' com o podem os ter q uando compramos um ves-
tido por impulso e logo percebem os que ele n ão agrada tanto assim! Tam bém não é
uma 'contrariedade' que vem , por exemplo, da triste con statação de que ninguém, nem
seus amigos, nem sua família, pensou em lhe da r os parabén s pela festa, pelo an iversá-
rio o u p elos 30 anos de casam ento. Também não é uma desca rga de adrenalina ligada a
uma rejeição, a uma falta, a uma ausência de serviço, de escolha etc.

UMA ECONOMIA NA FRUSTRAÇÃO

A fru stração é um e stado m ais com p lexo, m ais pro fun do e m ais sign ifi cativo
do q ue sube n ten de a acepção u su al do te rmo. Estar frustrado é, de aco rdo co m o
Cap í tu l o 4 - Desfru tar a qua l que r pr eço 1 73

Petit Larousse2, encontrar-se na "situação de uma pessoa que está impossibilitada de


satisfazer uma pulsão".
A 'pulsão' se define como um "estado de excitação que orienta o organismo para
um objeto graças ao qual a tensão será reduzida" (a teoria psicanalítica opõe pulsão, que
é algo concreto, ao instinto, que é um conceito teórico). Em outras palavras, se o sujei-
to que sente uma pulsão não é capaz de amenizar a tensão da sua excitação, ele se sente
fru strado: "eu quero tudo, sem demora", " um licor Ricard 3 ou nada".
No contexto de uma civilização de marketing, a p ulsão orienta o indivíduo para o
obj eto que lhe proporciona o desfrute. Esse objeto de desfrute pode ser um produto, um
serviço, um preço baixo, um programa de televisão etc. Essa pulsão é tanto mais forte na
m edida em que o indivíduo está convencido, hoj e, de seu ' direito inalienável ao desfrute'
imediato. Essa convicção é induzida pelas promessas dos meios de comunicação, da publi-
cidade feita em torno dos produtos, do objeto, dos serviços, da marca, da vida em geral!
Nessas condições, a frustração é a sensação de estar impossibilitado de sentir a exci-
tação de sua pulsão se reduzir ou desaparecer. Por exemplo, o indivíduo em um restau-
rante sente uma von tade avassaladora de fumar (pulsão); ele é lembrado de que é proi-
bido e que deverá fumar do lado de fora, onde está fazendo frio e chovendo (frustra-
ção). Na verdade, a frustração induz no consumidor um estado de n ão-satisfação gen e-
ralizada. Esperar no caixa de um supermercado é uma frustração dificilmente suportá-
vel, sobretudo quando o carrinho está ch eio, levamos mais de uma hora para fazer as
compras e não podemos abandonar tudo ali porque n ão temos tempo de refazê-las em
outro lugar! Essa é uma privação injusta!
Para que haja frustração bastam, portan to, alguns ingredientes bem particulares. É
necessário, primeiramente, que o sujeito tenha a percepção de seu direito inalienável ao
desfrute a partir do m omento em que tenha feito a escolha de possuir ou de ser: " I shop
therefore I am"4, como o diz D orninique Rou x.
Em seguida, é n ecessário que o sujeito tenha a percepção de uma injustiça . Essa
injustiça intervém no processo que o conduz subitam en te a n ão poder mais fruir legi-
timamente das vantagens do objeto escolhido e de seus 'beneficios' prometidos.
Notamos que a verdadeira frustração se acompanha muitas vezes de um direito de
' rancor' contra aqueles que são considerados os responsáveis pela v itimização.
Em um capítulo de seus Ensaios de psicanálise aplicada, Sigmund Freud dedica-se a
descrever esse sentimento de rancor. Ele nota o caráter de certos indivíduos que, em

Conhecido dicionário da líng ua fran cesa. [N. do T.]


O licor Ricard é considerado o melhor e mais requintado da França; isso faz com que ele se torne um verdadeiro símbo-
lo do imaginár io francês. [N. do R. T.]
"Compro, logo existo." Em inglês no original. [N. do T.]
74 1O b l ues do consum i dor

conseqüência de uma doença ou de infortúnios sofridos durante a infância, se acham


dispensados do sacri6cio. Encontramos aí a sensação de direito ao rancor do frustrado:
"Todos acreditamos ter o direito de guardar rancor à natureza e ao destino em razão
dos prejuízos congênitos e infantis, reclamamos por compensação às precoces mortifi-
cações do nosso narcisismo, do nosso amor-próprio. Por que a natureza não nos agra-
ciou com a fronte elevada do gênio, os traços nobres do aristocrata? Por que nascemos
no quarto do burguês e não no palácio dos reis?".
Enfim, o sujeito deve se sentir vítima. Freud esboça essa idéia sublinhando que
em mu itos casos "o indivíduo contemporâneo tem a tendência a deplorar sua pró-
pria sorte".
Sim, o frustrado é vítima dessa sorte que o persegue, dessa injustiça que ele não
merece e obviamente de sua inocência diante dos fatos: " D eus é justo: sabe que sofro e
que sou inocente" Gean-Jacques Rousseau, em Devaneios do caminhante solitário).
Encontramos esse direito de vingança em diferentes lugares, como nos pontos-de-
venda ("Eu nunca mais volto aqui, acabou"; "Nunca mais compro dessa marca, bem
feito para vocês"), nos restaurantes ("Chega, eles j á me enganaram uma vez, mas nunca
mais me enganarão"), na época das eleições ("Azar deles, não terão meu voto, dessa vez
eles exageraram").
Em matéria de venda, economia e marketing, o primeiro frustrado é evidentemen-
te o Homo cliens. Ele está na linha de frente na fila do supermercado, do cinema, do
pedágio da estrada etc. Ele tem uma percepção clara e individual de seus direitos. Tem
também a percepção aguda da injustiça que está sofrendo: "Sou cliente, pago meus
impostos, lu tei na guerra, trabalho" . Sua percepção do direito de rancor em relação aos
responsáveis por fazerem dele uma vítima é perfeitamente clara.
Sendo assim, sua fru stração não se discute. É constatada. É própria à sua percepção.
Como toda percepção, induz a uma reação e daí a um comportamento. Aqui, observa-
mos que o comportamento do Homo cliens frustrado se caracteriza por sua agressivida-
de súbita e freqüentemente não contida , por sua recusa em experimentar, comprar, se
comunicar. Nada consegue diminuir essa agressividade, exceto a condenação dos cul-
pados (direito de vingança) e a reabilitação de sua inocência.
Por trás da palavra 'frustração', e de suas complexas definições, se esconde m fatos
pequenos ou grandes, simples, evidentes, q ue tornam agressivos no cotidiano m ilhares
de indivíduos - o que não deixa de provocar efeitos do tipo bilhar não negligenciá-
veis sobre a economia.
Hoje em dia, por exemplo, o telefone celular, instrumento mágico com múltiplas
funções (despertador, agenda eletrônica, agenda de endereços, fax, emissor e receptor de
mensagens eletrônicas, máquina fotográfica etc.) se insere em um m ercado de uma mag-
Cap í t ul o 4 - Desfrutar a qua l que r p r eço 1 75

nitude impressionante! As operadoras de telefonia, para desenvolver esse mercado e atin-


gir todos os alvos (idade, categoria socioprofissional, indivíduos, empresas etc.), deram
mostra de uma criatividade sem precedentes em termos de marketing. Ano após ano, os
novos modelos sucederam aos novos modelos, encurtando assim os ciclos de vida dos pro-
dutos! Mês após mês, as sucessivas inovações criaram novas necessidades e levaram o indi-
víduo a comprar novos aparelhos para estar sempre up-to-date! Mês após mês, as tarifas
de telefonia fixa aumentaram, fazendo a massa acreditar qu e o celular não custa caro!
Tudo isso fez com que o número de usuários não parasse de aumentar, assim como
o número de aparelhos por indivíduo, a quantidade de SMSs etc.
Mas por trás do telefone celular se escondem as maiores frustrações. Para destacar
apenas uma , quem nunca ouviu frases do tipo: "Eu não suporto mais o meu celular. .. ele
perde o sinal a toda hora ... é um escândalo, chegamos ao aeroporto de Roissy com duas
horas de atraso (por causa de um pacote-bomba , na verdade uma maleta que tinha sido
esquecida) e era impossível telefonar, o aeroporto não tem sinal, é inadmissível.. .".
Frustrado por não poder exercer seu direito de utilização imediata do celular, o
usuário, por ter certeza de que a ligação qu e deve fazer é ' urgentíssima', se considera
v ítima de um fato escandaloso. Mesmo que aquilo que tenha para comunicar sej a de
uma evidente banalidade: " Oi! Sou eu, cheguei. É um escândalo, tivemos um atraso
de três horas. Até amanhã", e le considera que seu ' direito ao prazer de se queixar' foi
gravem ente prejudicado: "Eu tenho o direito d e me queixar do que quiser n a h ora
em que quiser".
Esse frustrado logo se tornará vítima de seu magnífico instrumen to. Aliás, dupla-
mente vítima , nesse caso ... Ele é vítima de quem esqueceu a maleta no aeroporto e víti-
ma de quem n ão fez o mínimo necessário para qu e a rede de transmissão funcionasse.
O celular, criador de grandes prazeres, também traz todos os dias sua porção de frus-
trações, o que torna o frustrado agressivo e vingativo.
Isso quer dizer que o frustrado vai parar de utilizar o celular ou que vai diminuir
o número diário de chamadas? Nada permite afirmar tal coisa .Talvez n o futuro ele reaja
a essa vitimização e mude de comportamento no seu m odo de consumir. Mais uma vez,
nada permite essa previsão. Não dispom os ainda de recuo suficie nte para decifrar quais
serão os comportame ntos dos usuários de celular em um futuro próximo ou distante.
A única coisa da q ual podemos estar certos é que essa frustração se somará a outras.
Elas se multiplicarão ao infinito.
A utilização do carro, de manhã, para chegar ao trabalho, será causa de frustração:
"Todas as manhãs é a m esm a chateação, uma hora para atravessar o túnel! O que é que
elas estão fazendo atrás d o volante? Em vez de instalar radares, e les deviam mandar
guardas para fazer andar essa mulherada que dirige como...".
76 1 O b lu es do consum i dor

A dona-de-casa que espera h á dois dias a p assagem do serviço de m anu ten ção do
gás (o aqu ecedor não está funcionando) ou do telefone (a linha foi cortada em con se-
qüên cia de um rep aro, o chip do celular não está funcio nando) e obtém com o respos-
ta apenas a voz fria de uma gravação telefô nica ("Se o senhor deseja o bter informações
sobre n ossas tarifas, tecle 1, se o senho r desej a m arcar uma v isita, tecle 2" ) ficará extre-
mamente fru strada e se sen tirá vítima do sistema.
A secretária que não con segue en trar em con tato com o serviço pós-venda do
fabricante de computad ores o u o m o torista qu e teve o esp elho retrovisor de seu belo
sedã alem ão arran cado por um motoqueiro e que o uve o funcion ário da oficin a mecâ-
nica dizer por telefone e em um tom lacônico qu e a peça não existe em estoqu e, mas
chegará n a próxim a sem ana o u n o começo da o utra, ficarão am bos frustrados. E o serão
tanto m ais quan to maior a insistên cia do forn ecedor em destacar na publicidade, n os
contatos, seu serviço de p ós-venda, sua von tade de fidelizar e satisfa zer os clientes.
Esse sen tim en to de frustração n ão pára n o H omo cliens: p or força das circu nstân cias,
ele atin ge também o H omo consomatio!
A multiplicidade de informações que n os inunda, sem critério e sem hie rarquia
(desde a vaca lo uca até os crim es contra crian ças praticados por reincidentes soltos
ap ós um tempo na prisão), gera uma confusão de fru strações e v itirnizações cujos res-
p o nsáveis são evide ntem ente os poderes públicos, geralm en te os governan tes e por fim
o sistema.
N as grandes cidades, as greves repentinas dos transportes p úblicos (trem , metrô,
ônibus) que paralisam várias vezes por ano a vida dos usuários, assim como dos moto-
ristas, também alim entam essas fr ustrações e apontam para os m esm os culpados. No
período de fé rias, sej a no verão o u no inverno, as greves altern adas e con secutivas de
todo tipo (carregadores de m ala, bom beiros, funcionários de pista, pilotos, comissár ios
de bordo, atendentes, agentes da SNCP) fru strarão ainda mais o H omo cliens porque h á
m eses ele sonha em fugir para a p raia, para as ilhas o u para as m ontanhas para esquecer
esses problemas.

Os SETE TIPOS DE FRUSTRAÇÃO

Entre as fr ustrações q ue oprimem o H omo consomatio, assim como o H omo cliens,


p ude mos isolar sete grandes famílias o u tipos de fr ustrações.

Sigla de Société Nationale des Chemins de Fer, empresa estatal de trens francesa. [N. do T.]
Cap í t ul o 4 - Desfru tar a qua l que r preço 1 77

PRIMEIRA FRUSTRAÇÃO: A PERDA DE TEMPO

A perda de tempo (injustificada ou não) é considerada hoje a coisa mais inaceitá-


vel que existe. Tudo indica que o Homo clíens não tolera a perda de tempo. Aliás, ele se
torna intratável com quem o faz p erder tempo ou não se preocupa em ajudá-lo a
ganhar tempo. Qualquer espera se tornou, para ele, insuportável! Trata-se de suprimir
qualquer intervalo entre o anúncio de um desejo e sua realização.
D Nas grandes lojas de produtos alimentícios ou nas lojas especializada s, ele não
compreende por qu e a passagem pelo caixa consome tanto do seu precioso
tempo. Surpreende-se que depois de 40 anos ainda não se tenha feito nenhum
progresso n esse sentido. Enquanto lhe são necessários apenas alguns instan tes
para comprar um produto (l minuto e l l segundos por marca em média nas
grandes lojas) e seu tempo médio de compra global é de apenas 37 minutos
no supermercado e de 49 minutos no s grandes hipermercados, ele estima que
a passagem pelo caixa consuma mais de 25 por cento desse tempo dedicado
às compras para a família e para si m esmo. Ele sabe que essa percepção de
perda de tempo nos caixas é exagerada. Mas o que conta é a percepção do
tempo, n ão o tempo em si. O H omo clíens n ão gosta mais dos hipermercados!
D No avião, ele prefere levar a bagagem com ele a despachá-la , apesar do risco de
se cansar, de se ver impossibilitado d e encontrar lugar no maleiro, de brigar com
os outros passageiros, com o pessoal de bordo etc. E le não tolera esperar diante
da esteira rolante até a bagagem chegar.
D Em matéria de transporte, ele se revolta quando o TGV não respeita o horário pre-
visto. Doze minutos de atraso na linha Paris- Lyon se torna um escândalo para todos
os passageiros e provoca um pedido de reembolso. A Internet de baixa velocidade
foi provavelmente um dos maiores freios a todas as tentativas de venda on-line.
D E le zapeia de um canal de televisão para outro a partir do m omento em que não
se satisfaz m ais e começa a se entediar.
Esta fru stração ligada ao tempo tem o inconveniente, na maioria dos casos, de limi-
tar a vontade de compra global do H omo clíens por um lado e, por outro, de torná- lo
muito agressivo. Frustrado pelo tempo, faz men os compras impulsivas, como também
se interessa menos pelas promoções. Enfim, seu comportamento submete a uma dura
prova o pessoal de vendas, que pensa mais em se proteger do que assumir o risco de
forçar a venda (quando ainda querem vender)! Tudo isso faz com que, n a sua forma
atual, os investimentos próprios ao desenvolvimento de estratégias de fidelização e de
satisfação das marcas e dos distribuidores geralmente acabem como despesas de baixo
retorno sobre o investimento. D ada a realidade da frustração 'tempo' , temos o direito
78 1 O b l ues do consum i dor

de perguntar: por que os fabricantes de eletrodomésticos e outros se esforçam tanto


para oferecer manuais em várias línguas, ilegíveis, incompreensíveis, que exigem uma
intolerável decifração de esquemas uns mais complicados do que os outros? Como esses
especialistas em marketing podem imaginar que o Homo consomatio lerá pacientemente
a brochura , deixando suspensa sua necessidade de desfrute imediato?

SEGUNDA FRUSTRAÇÃO : A RELAÇÃO COM AS NORMAS

Por que é preciso uma licença de construção para instalar uma varanda pré-fa-
bricada no meu jardim se a compra foi feita de maneira inteiramente legal na Leroy
Merlin, grande loja especializada? Porque ultrapassa a extensão permitida em um metro
quadrado! Ridículo! Por que o filho menor de um casal divorciado precisa da autori-
zação do pai ou da mãe para viajar de férias para o exterior com um dos dois? Por que
o horário de abertura dos correios não corresponde às horas q ue convêm a quem tra-
balha e tem de bu scar uma carta registrada? Por que os motoristas devem respeitar os
limites de velocidade, enquanto os motoqueiros podem correr na velocidade que lhes
convêm? Por que devemos respeitar normas que, na realidade, são apenas 'proibições'
impostas pela sociedade?
Por que então se preocupar com todas essas restrições cotidianas ligadas às leis, às
proibições, às n ormas, se elas foram geralmente promu lgadas por pessoas do passado para
situações passadas que evidentemente n ão se aplicam mais ao tempo da vida moderna?
Para muitos H omo cliens, a norma é insuportável. Não só porque muitas vezes se
mostra ineficaz, como ainda por cima não é ou não é m ais respeitada. O poder do
governo, das grandes o rganizações como ban cos, companhias de seguro, com visões
geralmente con sideradas estreitas, e seu direito absoluto 'vitimizam ' n o mais alto grau
os infelizes clientes.
É dificil fazer os passageiros que desembarcam de um longo vôo notu rno com-
preenderem que, às 7 ho ras da manhã, na chegada do vôo, há apenas dois funcio nários
da polícia e da imigração para verificar todos os passaportes. É dificil fazer a multidão
que desembarca de diversos vôos charter [fretados] v indos de todas as partes do mundo,
cheios de mu lheres, crianças, pessoas da terceira idade e alguns homens de negócios,
compreender que é preciso esperar de pé, apertados uns contra os outros e suportar que
sejam olhados com o bandidos. É dificil, sobretudo, fazer as pessoas aceitarem a perti-
nên cia da mistura de passageiros, se em outros países os residentes têm prioridade. É
difícil, enfim, explicar que esse constrangimento é conseqüência do rearranj o da j o rna-
da de trabalho dos funcion ários de aeroportos.
Cap í tu l o 4 - Desfru tar a qua l que r preço 1 79

A frustração ligada às normas tem o efeito de criar um estado p ermanente de 'rebe-


lião' e de incitar à desobediência civil. Nas lojas, os clie ntes fazem o que bem enten-
dem. Tocam nos obj etos mesmo que seja proibido, não esperam a vendedora para expe-
rimentar uma roupa e fazem escândalo quando ouvem que é proibido fumar ou tocar
nos produ tos. O s banhistas não levam em con ta os conselhos dos salva-vidas e esquiar
fora das pistas se tornou um direito.
Como observa Pascal Bruckner:

Assim, queremos tudo e seu contrário: que essa sociedade nos proteja sem nos proibir de
nada, que nos dê cobertura sem nos obrigar a nada, que nos auxilie sem nos importu nar, que
nos deixe em paz, mas que mante nha conosco também uma relação afe tuosa ao longo de núl
obstáculos.

Se o indiv íduo é frustrado pela norma, também é pelo olhar ou pelo comporta-
mento do outro.

TERCEIRA FRUSTRAÇÃO: A RELAÇÃO COM O OUTRO

O outro é o sujeito que intervém em todos os processos de comunicação, isto e,


de troca (segundo definição de Jacques Lacan).
É importante lembrar aqui que, segundo Gregory Bateson e Jurgen Ru esch 6:

(... ) a comunicação não se refere apenas à transmissão de mensagens ve rbais explícitas e


intencio nais; tal como utilizada na nossa acepção, a co municação incluiria o conjun to dos pro-
cessos pelos quais os suj eitos se infl uenciam mutuamente, essa definição se baseia na premissa
de que toda ação e todo aco ntecimento oferece m aspectos comunicativos a partir do momen-
to em que são percebidos por um ser humano.

Partindo do princípio de que tudo, h oj e, pode ser considerado comunicação,


con statamos que esta última deve ser o brigatoriam en te 'afetuosa'. O indivíduo não
suporta os mal-educados. Isso é verdade tanto para a pessoa que retira seu pagamen -
to 7 nos correios quanto para a funcionária qu e entrega o vale - postal. Todos devem se
comunicar com o o utro da maneira mais edu cada, mais civilizada possível, o u se

Co1111111111icario11 er Société. Paris: Éditions du Seu il, 1988.


Na França, é comum a transferência de valores por meio dos correios. [N. do T.)
80 1 O b l ues do consum i dor

expõem a uma enxurrada de injúrias e a um comp ortam en to n egativo da par te do


an tagonista. O vendedor, o professor, o agen te dos correios, a recepcion ista do hotel
devem ser gen tis em todos os casos. Um olhar um p o uco duro, uma palavra um pouco
violenta , e o clien te se sen te vítima. Ou se torna agressivo e ' m ostra suas gar ras', o u vai
em bora para nunca m ais voltar. A s relações com erciais, as relações com o governo e
até mesm o as relações en tre os indivíduos nunca foram tão ten sas. A gen tileza da caixa
do posto d e gasolina é o m aior fa to r de fidelização que existe. Nas sacristias, a 'gen ti-
leza' dos padres ou dos leigos que recebem os pais não-pratican tes p ara o batismo do
recém - nascido o u os noivos p ara a preparação do casam en to é certamen te o maior
trunfo para a conversão fu tura! Essa frustração não é inocente. Fora das relações
com erciais, em que p ode criar situações delicadas, ela se m anifesta na relação com o
ou tro, n o tadamente naqu ela que liga os fun cion ários aos seus superio res. Nas gran des
emp resas, e m que há um grande número de funcion ários, notam os que cada vez mais
e com mais freqüência os d ireto res, os funcion ários de todos os níveis trocam beij os
ao se encontrar de m anhã. N ão chegam os ao ponto de ver hom ens se beijarem como
em certos países, m as o o bstáculo a ser ultrapassado não p arece um fosso abissal. Esse
ritual de comunicação é d e fato uma resposta aos riscos de frustração com relação ao
o utro. O beij o, mais do q ue o abraço, não significa nada e não garante de modo
ne nhum que o ambiente den tro da em presa é o u será bom . Simplesmen te permite aos
o utros comunicar que n ão desejam declarar guerra, pelo menos ao lon go daquele dia,
e que ado tarão uma relação 'afetuosa' .
As palavras, o olhar, o tom da voz, o gestual são a garantia da paz com o o utro.
Essa paz com o o u tro - sem a qu al a troca e, portanto, o co mércio e o m arke-
ting são impossíveis - é freqüentem e nte contrariada p ela quarta fr ustração, a ch a-
m ada 'assimetria' .

QUARTA FRUSTRAÇÃO: A ASSIMETRIA

Para explicar essa frustração, deixemos C harles Melman e Jean- Pierre Lebru n 8 falar.
Jean - Pie rre Lebrun: "É verdade que a multiplicação das possibilidades de desfru te
oferecidas n o quadro da n ova economia psíquica pode parecer favorecer, até prom over
a equalização dos desfrutes".
C harles M elman: "Em lu gar de respeitar o fa to de que haj a inveja, de que haj a dese-
jo, o que, afinal, é o grande motor social e o grande motor do pensamento, assistimos

MELMAN, Charles, op. cit.


Cap í tu l o 4 - Desfru tar a qua l que r pr eço 1 81

hoje a uma denúncia de todas as assimetrias em proveito de uma espécie de igualitaris-


mo que, evide ntemente, é a imagem mesma da morte".
Os fatos estão aí. O H omo consomatío, assim como o H omo cliens, não supo rta mais
as assimetrias. Existem, como sempre, muitas explicações para essa realidade.
"Cada um acredita qu e é insubstituível e vê os o utros como uma massa indistinta,
mas essa crença será imediatamente varrida pela igual pretensão de todos os outros"
propõe Pascal Bruckner. Ou ainda, "conve ncido da crença de ser único, quando se des-
cobre urna pessoa qualquer, prefere muito mais impedir o o utro de ser diferente dele
do que lutar para se diferenciar desse outro". Essa realidade se traduz por comporta-
mentos muito simples.
Está fora de cogitação paga r mais do qu e o outro e passar por alguém 'pior' (menos
inteligente, menos esperto) do que esse o utro! A Darty 9 percebeu isso claramente, e
com seu 'contrato de confiança' 1º assegura ao indivíduo que ele não será menos do que
o outro em termos de preço e de serviço. Está fora de cogitação que o outro tenha o
direito de correr mais n a estrada, que passe na frente. Grandes o u pequenos, os carros
devem poder fazer as mesmas coisas. Ninguém nas estradas, nos hospitais, nas escolas é
superior ao outro. Admite-se que estrelas de cinema ou televisão tenham a possibilida-
de de passar na frente porque são semideu ses, mas o restante das pessoas devem fazer
tudo da mesma maneira. É de se notar que essa frustração de assimetria, essa vontade
de ser igual não tem o mesmo significado daq uela inscrição n o frontispício dos edifi-
cios públicos franceses: " Liberdade, Igualdade, Fraternidade" . O que se quer é proibir
o outro de fazer uma ultrapassagem! Não se procura mais lutar contra a opressão ou o
opressor, com o expressa esse lema republican o e francês.
Vítima da fru stração de assimetria, foram n ecessá rios anos para que a Air Fran ce
embarcasse se us passageiros em fun ção d o número d o assento, portanto em um espí-
rito ' diferen cial'. D e todas as co mpanhias aéreas, ela ainda é, talvez, a única que n a
maio ria d os casos deixa os passageiros embarcarem em ba ndo, porque os fun cion á-
rio s n ão gostam de fazer o papel de polícia ou relutam em se tornar agen tes de dis-
simetria .
Em 1981, o slogan dos socialistas na época das eleições presidenciais era: "Menos
desigualdades sociais". Nada poderia responder melh or à fru stração de assimetria. Esse
slogan se opõe àquele o utro, m enos inteligente: " Mais liberdades individuais", que
obviam ente só reforça o m edo de ver o outro passar n a frente.

Grande rede de lojas fran cesa de eletroeletrônicos. [N. do T.]


Contrato de serviços oferecidos pela rede aos seus clientes; consta de dez artigos, entre os quais, melhores preços, garantia
estendida aos produtos, entrega gratuita e outros. [N. do T.]
82 1 O b I u e s d o eo n su m i d o r

Essa frustração é ainda mais importante na medida em que freqüentemente está


associada à quinta frustração.

QUINTA FRUSTRAÇÃO: "TUDO SEMPRE AO ALCANCE DA MÃO E EM


ABUNDÂNCIA"

O Homo consomatio e o Homo clíens estão convencidos de que vivem em uma socie-
dade de abundância. Sejam quais forem seus recursos financeiros, o indivíduo deve ter
direito a tudo. Ele não suporta a ruptura. Assim, por exem plo, o principal motivo de
abandono de um ponto-de-venda é a falta de estoque de produtos. Se, diante de uma
gôndola , o cliente vê um vazio, um buraco, e não encontra sua marca favorita, ele faz
um escândalo simplesmente porque isso é inadmissível. O distribuidor está ali para que
ele tenh a tudo, sem demora e sem pensar muito. Nada irrita e frustra mais quem quer
alugar um carro grande no aeroporto porque precisa chegar ao seu destino o mais rápi-
do possível já que seu vôo foi cancelado, do que ouvir um "só sobrou um Clio ...".
Como uma grande empresa de locação de veículos, que distribui cartões de beneficios
aos seus melhores clientes, pode deixá-los na mão ou quase em um dia de greve? O
turista de férias, acompanhado de sua família, chega um pouco tarde a um restaurante
e fica extremamente frustrado quando lhe dizem para fazer logo o pedido porque o
chef está fec hando a cozinha e só resta o prato do dia. D evemos nos espantar então com
a vitalidade dos fast Joods?
Basta a imprensa infor mar que eventualmente, por diferentes razões, fa ltará creme
de castanhas II no Natal para que todos, mesmo aqueles que nunca con somem creme de
castanhas, corram aos pontos-de-venda a fim de fazer um estoque e não ficar sem!
O esforço para ter acesso àquilo que é devido parece insuportável e, por isso
mesmo, frustrante. É possível imaginar urna televisão sem controle remoto? C laro que
não! É preciso ter acesso a todos os programas naquele mesmo instante para aproveitar
o espetácu lo, sem demora e sem esforço.
Nesse sentido, é espantoso que os fabricantes de leitores de DVD não tenham com-
preendido que a complexidade dos controles remotos, a quantidade de botões e o
tamanho diminuto dos caracteres pudessem ser um sério obstáculo à compra e em
seguida à utilização, principalmente para os mais velhos.

Na França, a ceia de Natal inclui, como sobre mesa, um rocambole recheado com creme de castanhas chamado 'b1íc/1e de
Noel', ou seja, 'lenha de N atal'. (N. do T.]
C a p í t u I o 4 - D e s fruta r a q u a I q u e r p r e ç o 1 83

SEXTA FRUSTRAÇÃO: A INACEITAVEL IMPERFEIÇÃO

Essa frustração se baseia na idéia de que as coisas devidas não podem ser 'imperfei-
tas' , quaisquer que sejam as razões para tal.
O cirurgião que deixa uma cicatriz muito grande em uma operação de apendici-
te será processado sob o pretexto de que a senhora ou a senhorita levada ao hospital às
pressas não poderá se exibir na praia em traj es de banho depois de se restabelecer. Esse
dano incalculável nunca será reparado, mesmo que os juízes dêem razão à paciente. A
frustração será eterna.
Em sua busca por prazer, o Homo cliens recusa a possibilidade da incerteza, isto é,
da fatalidade! Nada o frustra mais do que ter de admitir que a ordem natural das coi-
sas não pode ser controlada, seja pelos responsáveis pelo Estado, seja pelos donos das
empresas. Como o indivíduo entregou seu destino nas mãos dos dirigentes, ele avalia
que estes últimos têm o dever de protegê-lo contra tudo, 24 horas por dia, 7 dias na
semana, 365 dias por ano. Mais ainda, toda catástrofe deve ter sempre um responsável:
voltamos ao direito de vingança. Esse direito deveria, como pensa a maioria das pessoas,
estar na Constituição! A tabela de basquete que desaba em uma área de recreação (feliz-
m ente sem causar vítimas), porque era velha (o que não é certeza) e com freqüên cia
servia de 'galho mais alto' aos Tarzans mirins para impressionar os colegas (o que é
muito provável), será a principal manchete do jornal da TV à noite. Não é inimaginá-
vel que o prefeito, e até mesmo o ministro, se desloquem para reconfortar as famílias,
que felizmente dessa vez não precisarão lamentar a perda de um filho.
As frustrações parecem ter a capacidade de se acumu lar em um mesm o indivíduo
ou em uma multidão para criar comportamentos inesperados. Em outras palavras, uma
fru stração não exclui outra frustração!
No iníc io de agosto de 2004, os passageiros do TGV que ia de Lyon a Paris fica-
ram muito fru strados quando souberam pelo fisca l do trem que os fun cion ários do
vagão- bar estavam em greve e que, por ca usa disso, não poderiam comprar nada para
beber. Frustrados pelo fato de serem inju stamente privados de beber, quando em
todo lugar só se falava do forte calor e da n ecessidade de fazer os velhos e as crian -
ças se hidratarem , fru strados por n ão lhes oferecerem uma solução, fru strados por
estarem confinados aos vagões, frustrados por ning uém levar em conta o estado de
vítimas em que se encontravam, frustrados por ter ainda de e nfre ntar uma greve etc.
Assim, alguns passageiros, ajudados pelo fisca l do trem, decidiram arrombar a porta
do depósito do vagão - bar, pegar as garrafas de água e distribuí- las aos viaj antes, que
ficaram muito satisfeitos com o comportamento do fisca l e co m essa situação pré-
revolucionária.
84 1 O b l ues do consum i dor

Em uma loja, uma Homo cliens pode ficar frustrada, por exemplo, com a maneira
como a vendedora a olhou, com uma cliente que está procurando o mesmo vestido que
ela e ocupa todo espaço diante da arara, ou com aquele vestido cobiçado que infeliz-
mente não está mais disponível no tamanho ou na cor que ela quer etc. O desfrute pre-
visto (a compra do vestido para ficar mais bonita e surpreender as amigas) pode se
encontrar assim fortemente contrariado por uma soma de frustrações que,juntas, con -
duzirão a cliente a talvez abandonar definitivamente a vontade de comprar. Essa soma
de frustrações, ao criar uma situação insuportável para o Homo cliens, se traduzirá em
um comportamento em que a agressividade e a vontade de vingan ça podem levar a
cliente a dizer a quem quiser ouvir: " Não coloco mais os pés aqui".

SÉTIMA FRUSTRAÇÃO: A FRUSTRAÇÃO DA FRUSTRAÇÃO

Quando o indivíduo frustrado não pode exprimir o que sente, quando as regras da
sociedade o prendem a uma conduta estereotipada, ele sofre. Se perdemos um en te que-
rido, não é conveniente cair em pranto, gritar, bater no peito.A regra definida por nossa
sociedade diz que devemos con ter n ossas emoções. Podemos chorar, m as às escondidas.
Fazê-lo em público provoca crítica e reprimenda. Quando vemos nos jornais televisi-
vos as mulheres que choram alto e ao mesmo tempo arranham o rosto e batem n o
peito, na Palestina, na Chechênia, depois de um atentado, ficamos sinceramente com
pena delas. É evidente que compartilhamos sua dor, sentimos compaixão, mas nós oci-
dentais muitas vezes ficamos surpresos com essa manifestação incontida de emoção.
A emoção deve permanecer disfarçada , oculta, pessoal. Pode ser expressa segun do
nossas regras e nossos costumes, na rua, e1n un1a greve, n o 111eio d o povo, con1 a con -
dição de que seja d igna e, sobretudo, que ninguém tenha um comportamen to assimé-
trico com relação à massa.
Em Alchemies ef the
mind: rationality and the emotions 12 , Jon Elster 13 analisa as emo-
ções. E le confirma a hipótese segundo a qual " nossos comportamentos sociai s norma-
tivos dependem, em grande parte, das emoções que estão em jogo".
Diante da impossibilidade (ou da proibição) de exprimir uma frustração ou de
fazer com que seja reconhecida, ocorre uma o utra fr ustração. Sua intensidade é de uma
força insuspeita e pode produzir efeitos incontroláveis. Toda frustração que não e ncon -
tra resposta e q ue, pelo contrário, é exacerbada por uma vontade de n ão-resposta da

Cambridge: Cambridge University P ress, 1998.


Sociólogo de origem norueguesa.
Cap í tu l o 4 - Desfrutar a qua l que r p r eço 1 85

parte do Estado, do cônjuge e, mais em geral, do outro, desencadeia uma emoção não
racional e comportamentos erráticos.
Tomemos um exemplo simples, extraído de uma história real. Um motorista dei-
xou seu carro no estacionamento do terminal 2F do aeroporto de Roissy, na França .
Ao voltar de viagem, encontrou o carro inteiramente depenado, o painel frontal rasga-
do a golpes de estilete. Roubaram um rádio e um aparelho de GPS [Global Positioning
System, ou Sistema de Posicionamento Global] . Para levar o equipamento, cortaram
toda a fiação e létrica do carro. O motorista ainda conseguiu dar a partida, mas não havia
mais como dar seta (ele ainda não sabia disso). Ele apresentou queixa no aeroporto. O
encarregado informou que a única coisa a fazer era preencher o formu lário e ressaltou
que aquilo era muito comum em Roissy e que, portanto, não havia nada de anormal
no caso. Ele deveria dar queixa na delegacia ou no posto policial do bairro onde mora-
va. O motorista estava frustrado, é claro. Mas se resignou, afinal j á haviam roubado as
rodas do seu carro naquele mesmo aeroporto! Mas ele estava apenas no começo de sua
sétima frustração.
No caminho de volta, os outros motoristas o xingaram porque ele estava sem as
setas, coisa que continuava a não saber. Um policial rodoviário o parou porque e le virou
à esquerda sem dar seta. Ele se explicou, mostrou os estragos feitos no carro. Não adian-
tou, havia infringido a regra do código de trânsito que diz que o motorista deve exa-
minar o carro antes de partir para verificar se tudo está em ordem. Mas o pior é que
pouco tempo depois ele recebeu uma carta oficial da companhia de seguros advertin-
do- o de que não poderia ter mais nenhum sinistro, do contrário não seria mais assegu -
rado pela companhia. Em nenhum momento o m otorista encontrou um ouvido com-
petente ou compassivo para exprimir sua emoção. Pior, a polícia e a seguradora aumen -
taram sua frustração. É provável que esse motorista ten ha descontado a frustração por
sua frustra ção em alguém ou em alguma coisa.
A maioria das greves na França, notadamente no setor das empresas públicas, é cau-
sada por essa sétima frustração. Frustrados por um problema prático, os sindicatos das
empresas públicas entram em greve com freqüência porque o governo n ão ouve suas
reclamações. São despachados com discursos geralmente lenitivos, sorrisos hábeis e pro-
messas vãs, e deixados à própria sorte, isto é, à própria frustração. Então a greve adqui-
re proporções que ultrapassam a razão e que, na verdade, estão bem distantes da frus-
tração inicial.
Essa sétima fru stração não é inocente e é, sem dúvida, a mais terrível de todas. O
pecado mortal para os católicos é pecar sabendo que se está pecando. Com a frustração
é a mesma coisa. É pecado mortal frustrar um frustrado.
A MÍSTICA-CLIENTE

NA ECONOMIA PSÍQUICA

D
evemos a Charles Melman por ter sido o primeiro a propor a idéia de uma
'economia p síquica' para definir a nova era na qual entramos. A definição
dessa nova economia visaria assim a fazer com que admitíssemos que "a
grande filosofia moral de hoje é que cada ser humano deveria encontrar obrigatoria-
mente no seu ambiente aquilo com o que pudesse se satisfazer p lenamente".
Em outras palavras, diante da atual von tade visceral do indiv íduo de fru ir de tudo
sem demora , os atores da economia, assim como os da política, terão de admitir em um
fu turo próx imo que seu único objetivo será fornecer a cada um a resposta, o meio que
lhe trará o sentimento de satisfação total, isto é, a melhor saúde m ental possível ou ainda
um cotidiano sem n enhuma fru stração.

A NOVA DIALÉTICA

Não podemos negar a realidade atual da necessidade de desfrute por m eio do pro-
duto. N essas condições, portanto, podemos admitir que essa necessidade é um dos fato-
res de satisfação do consumidor o u do cliente. M as, se n ão tomarmos cuidado, logo sere-
m os tentados a pensar que afinal essa noção de economia psíquica, essa necessidade de
'satisfazer plenamente' o indivíduo é apenas uma outra m aneira, talvez mais moderna,
de interpretar um marketing que deveria ser ainda mais orientado para os serviços aos
clientes. A s técnicas de CMR ' não existem justamente para melhorar o s serviços? É de

C11stomer ma11ageme11t relatio11slúps, ou adn1inistração do relacionan1ento corn o cliente. E1n inglês no orig inal. [N. do T.)
C a p í tu I o 5 - A m í s t i e a d o e I i ente n a e e o n o m i a p s í q u i e a 87

fato n ovidade afirmar que a satisfação do cliente deve estar no centro do dispositivo,
quando sabemos que urna grande corren te de pensamen to propõe j á há algum tempo
que as empresas se reestru turem o m ais rápido p ossível e passem do atual estado de socie-
dade product-centric2 para o de client-centríc:3, a fim de se livrar, entre o utras coisas, da guer-
ra de preços? Por fim, o marketing one to one4 não é a p rova de que as m arcas, assim como
os distri buidores, dispõem de técnicas, para não dizer teorias, que lhes permitem con -
centrar os esforços n as expectativas dos consumidores?
D e fato, para comp reender a realidade a que se aplica essa noção de econo mia psí-
quica, talvez sej a preciso an alisar de m an eira totalmen te n ova os conteúdos das palavras
'satisfa zer' e ' plenamente' que en contram os na citação de C harles M elman: "( ... ) deve-
ria encontrar obrigatoriam ente n o seu ambiente aquilo com o q ue pudesse se satisfa-
zer plename nte" .
Tradicio nalmente, as empresas se desenvolveram apoiadas no fa to de qu e todo obje-
to, todo serviço, é por natureza portador de suas p róprias contradições. Assim , a espera
no caixa de um supermercad o é a contradição do auto-serviço, qu e po r sua vez favorece
o ganho de tempo e o one stop shopping5; o fato de o tempo p ara ir até o aeroporto ser
maio r do q ue o tempo de vôo é a con tradição do transporte aéreo etc.
Essas con tradições ine ren tes a todas as coisas foram , com o sabemos, platafor m as
p ara as in ovações desd e tem pos re motos.Afinal, inovar, n ão é simplesmen te responder
às con tradições dos p rodutos preced entes? O barbeado r m anual da Gillette n ão é a
resposta à contradição d a navalha de nossos avôs? A can eta esfe rográfica a resposta à
con tradição da pena, o barbeador descartável da Bic a resposta à con tradição do bar-
beado r manu al, a fri gideira Tefal a resposta à con tradição das frigideiras de ferro e
depois de alumínio, as len tes de con tato a resposta à contradição dos óculos etc?
Obviame nte sim!
Portanto, satisfazer é p rimeiro dar uma solução para aquilo que incomoda, limita,
dificulta, se opõe etc. Em que en tão a n oção de econo mia psíquica define uma n ova
abo rdagem ?
A contradição natural, inerente a cada produto, é considerada de modo totalmente
inédito nessa n ova economia, como prova a evolu ção do ferro de passar. H á cem anos,
nossas avós utilizavam ferros pesados, pouco práticos. A base grossa e pesada era indis-
pensável porque m antinha o calor por m ais tempo e permitia, assim, eliminar as rugas
dos lençóis, das camisas etc. Esse ferro foi sendo substituído ao lo ngo dos anos por um

Algo como 'produtocêntrico', o u centrado no produto. (N. do T.]


Algo como 'clientecêntrico', o u centrado no cliente. (N . do T.]
Um para um. Em inglês no original. (N. do T.]
l oja onde se compram todos os produtos necessários de uma só vez. Em inglês no original. (N. do T.]
88 1O b l ues do consum i dor

aparelho mais leve, elétrico, que permitiu a nossas mães se cansarem menos. Mas como
ainda era necessário fazer força para eliminar as rugas mais rebeldes, as grandes marcas
tiveram a idéia de inovar e oferecer ferros que soltavam vapor e tornavam a tarefa de
passar ainda mais facil e eficaz. É indiscutível que as inovações trazidas pelo ferro de pas-
sar elétrico a vapor são a conseqüência direta de uma vontade de responder às contradi-
ções do ferro pesado, pouco prático, de nossas avós.
Diante da evolu ção dos produtos e da lu ta contra as contradições, temos o direito
de perguntar quais serão as próximas inovações do ferro de passar e, conseqüentemen-
te, a quais novas contradições os fabricantes terão de responder.
Todas as pesquisas mostram que, no ponto de progresso a que chegou o produto, a
única contradição que as donas-de-casa vêem atualmente é ainda serem obrigadas a
passar roupa. Em outras palavras, a contradição do ferro de passar é justamente o pró-
prio ato de passar.Assim, a nova contradição que o consumidor quer ver superada pelo
ferro de passar do futuro é a supressão pura e simples do ato de passar roupa. Com cer-
teza, essa idéia pode surpreender! Mas, para a dona-de-casa, passar roupa é um ato res-
tritivo, ingrato, que, além do mais, consome um tempo infinitamente longo, que ela
adoraria consagrar a outra coisa. A contradição do ferro de passar moderno reside no
tempo que ele exige para passar roupa e não mais, como outrora, no peso, na dificul-
dade para deslizar e no tempo que demorava para aquecer. É a frustração do tempo per-
dido para executar uma tarefa que não traz nenhuma satisfação (a não ser a de chegar
ao fim), o que é, na realidade, a contradição dialética à qual é preciso responder.
Se amanhã um fabricante inventar um ferro de passar que permita não ter mais de
passar roupa ou que reduza o tempo de passar pela metade e elimine toda ou parte da
fru stração pelo tempo perdido, ele terá enfim respondido à frase de Charles Melman:
"encontrar obrigatoriamente (... ) aquilo com o que pudesse se satisfazer plenamente".
Com esse exemplo simples, vemos com clareza que a contradição na economia psí-
quica abandonou o campo do real e se encaminha para o campo do virtual. Nessas con-
dições, portanto, será dificil para os fabricantes de ferros de passar encontrarem novas
contradições e, daí, inovações interessantes para a dona-de-casa se con tinuarem a agir
como no passado. Eles terão de se voltar para um outro tipo de inovação. É óbvio que,
antes de as grandes marcas lançarem um ferro de passar que dispen se de passar roupa
ou uma máquina de passar inteiramente automática, os indu striais provavelmente
desenvolverão mais uma vez estratégias do tipo clássico. Alguns lan çarão ferros de pas-
sar cada vez mais sofisticados e baratos fabricados na C hina. Outros criarão anúncios
que exaltarão o ato de passar e mostrarão que a verdadeira mulher do lar ainda usa os
ferros de passar originais. Outros ainda inventarão um ferro de passar para homens o u
uma tábua de passar roupa com televisão integrada para distrair. Finalmente, veremos,
C a p í tu I o 5 - A m í s t i e a d o e I i ente n a e e o no m i a p s í q u i e a 89

como j á é o caso, produtos anexos, do tipo Fabulon, cujo objetivo é facilitar o deslizar
do ferro e diminuir o tempo gasto para passar a roupa. Todos os produtos serão amigá-
veis, com cores fortes, não muito caros, e obviamente haverá marcas de distribuição
própria e primeiros preços!
Enquanto os indu striais estiverem buscando soluções para esses problemas, a situa-
ção favorecerá, é claro, os fabricantes de tecidos que não amarrotam ou o estilista que
lançar a moda do amassado.
A economia psicológica reserva muitas oportunidades para quem souber aproveitá-las!
É evidente qu e essa nova dialética, esse novo sentido dado às p alavras ' contradição'
e 'inovação' surpreende, desconcerta , desestabiliza. Isso é verdade sobretudo se perde-
mos de vista que a única coisa que interessa ao indivíduo é seu desfrute imediato.
Na mesma ordem de idéias, a espera nos caixas do supermercado não constitui
mais, para a economia psíquica, a principal contradição do supermercado! A contradi-
ção atual é o fato de ser obrigado a investir tempo de 'vida' e de 'lazer' dentro das loj as!
É claro que isso só é compreensível se concordarmos que não existe grande prazer para
a dona-de-casa em desperdiçar seu tempo para abastecer a casa de p ão, carne, peixe,
cenouras, detergentes o u produtos não-perecíveis, coisas que excluem a poesia, o pas-
seio no shopping, o contato agradável no momento da compra. Essa dona-de-casa se
sente frustrada por ser obrigada a perder tempo para comprar produtos ' maçantes' . Esse
tempo estupidamente investido fará falta quando ela for passear em lojas onde se pode
sonhar à vontade, o lhar coisas bonitas, roupas bo nitas, perfumes etc.
Podemos perguntar, então, por que as vendas on-line das g randes bandeiras de
supermercados encerraram o balanço com um fra casso retumbante nos anos 2000. A
compra on- line não permitiria à dona- de-casa poupar seu famoso tempo de vida ou
de lazer liberando-a de uma tarefa tediosa? É incontestável que a venda de produtos ali-
m entícios pela Internet traria uma grande economia de tempo à dona- de-casa. N esse
sentido, o princípio de compra o n- line parecia se inserir n o quadro de uma vontade de
superar a contradição ligada à perda de tempo em pontos-de-venda. M as as con tradi-
ções da Internet foram mais fortes do que as contradições ligadas à perda de tempo no
supermercado! É claro que a Internet era muito len ta e algumas don as-de- casa tinham
m edo da falta de segurança na re de, havia evidentemente o problem a da entrega para
aquelas que tra balhavam fora, mas o cerne da q uestão é que, além de n ão querer per-
der tempo, a don a-de- casa também não quer ficar sozinha em casa. É aí que a venda
on-line peca. A cliente quer m enos tarefas desagradáveis, mas quer ao mesmo tempo
mais ami zades e relacionamentos! Ela quer continuar a ser a pessoa que escolhe a carne,
o queijo, as frutas e os legumes para ser cumprimentada e reconhecida por seu círcu lo
de relações. Mais uma vez a Internet não pode, h oje, lhe dar essa satisfação. O ferro de pas-
90 1 O b I u e s d o eo n su m i d o r

sar, assim com o o supermercado, são fru strantes pelo tempo que tom am inj ustamen te e
não po r tal ou tal fraqu eza, tal ou tal defeito funcio nal, peso, preço, ta manho etc. Esta-
m os agora dian te de n ovas con tradições, ditas ' funcio nais' . N ão se exige mais do ferro
de passar qu e ele passe be m o u melhor a roupa , e do supermercado que ele distribua
bem e tenha os melhores preços. O que se que r é simplesme nte não ser frustrad o p ela
p erda de tem po viven ciada nos d o is caso s como algo injusto.
Uma boa solução (imaginável) seria talvez oferecer uma p assadeira a cada m ulh er
que trabalha fora o u não, e, às donas-d e-casa, uma p essoa qu e as acomp anhasse às loj as
p ara fazer as compras desinteressantes e as fizesse ganhar tempo, ou u m formato de
p on to-de-venda do tipo hard discount.
Essa nova economia, que envolve ao m esm o tempo H egel, M arx e Kittrick, não é mais
condicio nada pela p esquisa da n ecessidade, mas po r uma nova forma de relacionam ento.

A NOVA EQUAÇÃO DA ECONOMIA PSIQUICA

O com p u tador portátil , c uj as vendas não p aram de crescer, parece um exem plo in -
teressante para compreender os mecanism os da n ova econom ia. Essa m áquina extraor-
dinária p ermite enviar e receber m ensagen s eletrô nicas, o uvir rádio, gravar m úsicas,
assistir a DVD s e filmes n a Internet, telefonar, ver fo tos digitais e transformá- las em
fotos impressas, classificar, guardar, armazen ar, desenhar, consultar a distância fo n tes
sobre quase todos os domínios, fazer cálculos, e tu do isso sem nenhum incômodo. Não
há mais necessidade de ir aos correios para com prar selos e envelopes, o u ir a urna loja
p ara escolh er um C D o u um DVD entre os últimos sucessos do m ercado, nem de reser-
va r um lugar para o uvir música, rádio, ver filmes o u consulta r um dicion ário pesado.
G raças ao W iFi estam os completam ente livres, podem os ser perfeitamen te nô mades.
N em por isso as m arcas se distinguem urna das o utras. Todos os com p u tadores são bons,
tanto os comprados na Internet quanto os distribuídos pelas redes especializadas. Nessas
condições, a diferen ça se estabelece, corno sem pre, pelo preço e talvez pelo serviço de
pós- venda . M as aí também as poucas ma rcas que dominam o m ercado estão todas n o
m esmo nível! E m que, então, a nova econ omia intervém n esse mercado? Que solução
estratégica deve ser apresen tada às em presas que fabricam esses pro dutos para que elas
não caiam na indiferença do mercado e n a o brigação de reduzir suas margens de lucro,
seus c ustos etc.?
Já que a pesq uisa da n ecessidade, a criação de uma nova necessidade o u a técn ica
dos ciclos de vida curtos já n ão levam a nada, é necessário inventa r urna nova maneira
de refletir sobre esses problem as.
Cap í tu l o 5 - A m í st i ca do c li ente na econom i a ps í qu i ca 91

Qual é, então, a nova perspectiva de reflexão para os fabricantes de compu tador?


Partindo do princípio de que a evolução e a inovação nos computadores portáteis se
espalham à velocidade da lu z, percebemos que a frustra ção do consumidor vem do fato
de que, uma vez comprado, o computador portátil já está obsoleto. Ontem, todos que-
riam ter um computador portátil com W iFi. Essa inovação era considerada uma revo-
lução. Hoje, não poder se conectar à Internet no aeroporto o u no quarto de um hotel
parece uma situação arcaica, insuportável. Hoj e, o novo con ceito é a 'convergência digi-
tal'. A máquina deve poder conversar com todas as outras máquinas (apare lho fotográ-
fico, outro computador... ), caso con trário ela é muda, limitada a si mesma.
Assim como acontece com o computador, o futuro é que agora, dia após dia, a ino-
vação tecnológica muda o compu tador! Infelizmente para o usuário, essas inovações
estarão fora de seu alcance. Como é dificil que a maioria dos consumidores possa tro-
car de computador a cada seis meses, sempre haverá uma parte do mercado completa-
mente frustrada.
Para os fabricantes, a solu ção não passa apenas pela corrida da inovação para ofe-
recer máquinas mais rápidas, com melhor desempenho e mais baratas. As novas m áqui-
nas interessam aos novos clientes, é claro, mas também é preciso permitir aos clientes
antigos estarem sempre up-to-da te. É preciso, portanto, ou organizar um mercado de
venda de usados ou oferecer assinaturas que permitam trocar de máquina a cada seis
m eses, o u ainda pensar em máquinas que se modernizam à distância o u por meio de
kits apropriados.
A economia psíquica obriga em primeiro lugar a levar em con sideração, de um
lado, o desfrute do produto, seu efeito imediato, e, de outro, a frustração ligada à con -
tradição funcional (nesse caso, a evolução contínua). Para ser diferente e captar o mer-
cad o, o industrial deve oferecer o computador mais avan çado e ao m esm o tempo garan -
tir aos clientes que eles terão sempre à disposição as últimas inovações. O industrial
deve resolver aquilo que alguns definem como a quadratura do círculo, ou seja, fazer
de modo que a relação 'desfru te ime diato/total de fru strações' seja sempre positiva.
Nesse exemplo, vem os bem que a simples busca da necessidade (nesse caso, as van-
tagens tecnológicas do computador) é sempre um dos motores do mecanismo geral de
consumo, mas a compra, a apropriação propriamente dita do produto ou do serviço
somente se desen cadeará em favor da marca se a relação desfrute/ frustração for positiva.
O fabricante deve ser o primeiro a encontrar a resposta à fru stração genérica (nesse
caso, ter um computador de última geração), a consolidar sua participação no m ercado
e evitar a guerra de preços. Se, por acaso, nenhum fabricante quiser ou puder se desen-
volver na economia psíquica, n ão é improvável que o consumo de renovação de com-
putadores diminua. Com efeito, podemos imaginar que, fru strado por nunca ter o últi-
92 1 O b I u e s d o e o n s u m i do r

mo modelo de um computador, e cansado da batalha, o consumidor desista de com-


prar ou procure apenas os preços mais baixos. Essa nova relação desfrute imediato/total
de frustrações define aquilo para o qual deverá tender o novo marketing. Algumas
empresas já deram o primeiro passo. O hard discount, por exemplo, do qual tanto se falou
nos últimos anos, é a prova da pertinência dessa nova relação desfrute/imposição.
Esse formato de loja garante efetivamente à dona-de-casa a não-frustração com a perda
de tempo graças à proximidade, ao sortimento necessário e suficiente, ao tamanho
reduzido das lojas e ao desfrute imediato propiciado pelos p reços baixos em todos os
produtos.
A inovação dessa economia repousa, portanto, em uma nova dialética. Esta última
não está mais ligada às contradições diretas do produto, mas justamente às contradições
que dizem respeito à função desse produto.
A economia psíquica exige dos empreendedores que abandonem o princípio da
pesquisa ou da criação de necessidade (para obter lu cro) e o substituam pelo princípio
que visa a considerar prioritariamente a resposta às frustrações experimentadas pelo
consumidor.

ENTRAR NA ECONOMIA PSIQUICA

Certamente n ão é fácil entrar n essa n ova economia quando há mais de cinqüe nta
anos se está habituado a um marketing orientado para a necessidade. É claro que, quan-
do se pratica há gerações a regra dos quatro Ps (Preço - Promoção - Publicidade -
Packaging'), a importância do princípio da fru stração só pode desestabilizar. É verdade,
a economia psíquica é uma nova filosofia do lu cro desconcertante, inquietante. O com-
portamento dos distribuidores atuais em relação ao hard discount é a prova disso.Apenas
para recordar, foi em 1986 que o hard díscount en trou em funcionamento n a Bélgica e
começou a aniquilar os hipermercados do grupo GB. Naquela época, todos acharam
que mais urna vez os belgas n ão sabiam o que estavam fazendo! Em 1989, surgiu a pri-
meira loja de hard díscount na França. Mais uma vez, ninguém acreditou n o modelo, ape-
sar das provas, das conferên cias, dos livros que tratavam do problema. Na década de 90,
todos os distribuido res, sem exceção, viam nesse tipo de formato apenas um quebra-
galho para os pobres.
Conhecemos o fim da história. De onde vem o engan o dos operadores? Qual é a
origem dessa cegueira da qual dão prova a cada dia se considerarmos os erros grossei-

O autor substitui o clássico place, ou ponto-de-venda, por packagi1i~, ou embalagem, anglicismo adotado em francês. [N. do T.)
C a p í tu I o 5 - A m í s t i e a d o e I i ente n a e e o no m i a p s í q u i e a 93

ros que cometem e as solu ções impraticáveis que apresentam? O s distribuidores, e não
podemos censurá-los, acreditam firmemente na famosa regra dos quatro Ps da econo-
mia passada .Acham que devem oferecer preços ainda mais baixos (primeiro P), promo-
ções ainda mais numerosas (segundo P), cada vez mais p ublicidade (terceiro P) e, fina l-
m ente, reformar as lojas, isto é, packaging (quarto P). Não con seguem compreender que
tudo isso não serve para muita coisa e que é no campo da relação desfrute/frustração
que se definirá a reconquista do cliente.
A necessidade de suprimir as imposições para entrar na nova economia implica
uma mudança radical na compreensão, na interpretação dos modos de fazer ou de ser
do Homo consomatio, assim como do H omo cliens. A título de exemplo, nos anos 80, as
v ias periféricas que circundavam Paris estavam saturadas. Milhões de veículos circula-
vam por elas dia e noite. Os motoristas se sentiam frustrados por se verem literahnen-
te prisioneiros nas intermináveis filas de automóveis e caminhões. A fru stração causada
pela impossibilidade de fugir dessas vias periféricas conduzia naturalmente à agressivi-
dade e da agressividade ao nervosismo etc. Após inúmeras pesquisas de opinião com os
usuários, tudo levava a crer que a necessidade deles residia essencialmente na melhor
fluidez do tráfego. Diversas solu ções foram consideradas para resolver o problema: cons-
truir uma segunda v ia periférica, proibir a circulação de determinados veículos em
horários determinados etc. Cada uma dessas soluções trazia imposições tão fortes que
acabaram todas sendo abandonadas.
H oje, as vias periféricas continuam saturadas, mas os m otoristas se sentem menos
vítimas, isto é, menos frustrados. Bastou que fossem colocados em todos os acessos a
Paris, nas vias periféricas, sina.is luminosos indicando o tempo necessário para chegar
aos outros acessos, às rodovias etc. Assim, os usuários ficam sabendo que serão necessá-
rios 53 minutos para chegar à Porta de O rléan s e 59 minutos para chegar à Porta
Maillot. O tempo aí não significa muita coisa, o que importa é que o motorista foi pre-
venido. Além disso, a tecnologia m oderna do celular permite que ele previna o o utro
de seu provável atraso. Ele não se vê mais como prisioneiro do sistema. Não p recisa
mais satisfazer a p ulsão que naturalmente consiste em querer fugir.
O ponto interessante, como parece aqui, é que a solução escolhida não con sistiu
em responder à necessidade de fluidez, mas à frustração causada pela impossibilidade de
o indivíduo satisfazer a p ulsão legítima de fuga diante da situação de obstrução das vias
periféricas sobrecarregadas. O motorista não ganhou tempo. Continua nas mesmas
condições dos anos 80. O que mudo u foi sua percepção da situação. Seu comportamen -
to agora é mais calmo, e a ausência de gestos obscenos dirigidos aos outros motoristas,
de gestos de impaciência ao volan te mostra que o usuário das vias periféricas não está
mais sob ten são.
94 1O b I u e s d o eo n su m i d o r

A síndrome da fuga não é novidade entre os manúferos. Uma experiência de labo-


ratório mostra que se impedirmos um rato de avançar, retendo-o com uma cinta no
nível do abdômen, ele rapidamente desenvolverá uma úlcera de estômago. O ra to não
pode viver se não consegue avançar. Em compensação, assim que o soltamos, a úlcera
desaparece!
O diretor de uma prisão norte-americana dizia que em seu presídio os prisionei-
ros nunca fugiam. Seu segredo não estava na ferocidade dos cães de guarda, na ha bili-
dade de tiro dos guardas, na u tilização mais sofisticada do que em outros lugares dos sis-
temas eletrônicos. Não, seu segredo estava na cozinh a. O diretor afirmava que o deten-
to que come bem não tem vontade de fugir. E acrescentava: "Aqui, nós respeitamos os
prisioneiros, falamos com eles como seres humanos e, por fim, eles acabam, bem ou mal,
se conformando!".
O sucesso das lojas Sephora pode ser analisado de diferentes maneiras. Alguns afir-
mam que esse sucesso reside no fato de as loj as Seph ora terem sido o primeiro auto-
serviço em perfumaria; outros acham que a decoração moderna, o v isual das lojas, teria
sido uma revolu ção para a época etc. M as também é possível fazer uma análise partin-
do das fru strações do H omo clíens. Hoje, muitas clientes ainda se sentem frustradas n os
pontos-de-venda tradicionais, onde devem obrigatoriamente 'passar' por uma consultora.
A fr ustração provém do fato que a consultora às vezes 'empurra' marcas caras, espe-
cialmente de cremes e produtos de higiene pessoal, q ue a cliente gostaria de recusar,
mas se o briga a comprar para não decepcio nar o u contrariar a ve ndedo ra, ou en tão para
não aca bar desacreditada aos olhos dela.A clien te muitas vezes supõe ou sabe por ouvir
dizer q ue a con sultora sempre 'empurra' produtos sobre os quais provavelmente tem
uma comissão paga pelas m arcas. Obviamente, isso apenas aumenta sua frustração. Ela
tem certeza de que está comprando um p roduto muito caro para o uso que fará dele.
Tem certeza, então, de que foi e nrolada! Sente-se uma covarde por não ter recusado e
sai da loja com a con sciência pesada: em vez do prazer que deveria sen tir com a com -
pra, ela se sente infeliz. E ficará ainda mais 'triste' porque n ão terá coragem de desaba-
far com as amigas por receio de parecer ridícula!
Indo às loj as Sephora, onde ninguém se impõe (as consultoras só se apresen tam se
forem chamadas), onde a cliente pega, abre, experimen ta, fech a e coloca os produtos n o
lugar com total liberdade, sem que ninguém interven ha, a sensação de manipulação
desaparece. A cliente é liv re. Ela en contra os mesmos produtos dos pontos-de- venda
tradicion ais, as mesmas marcas, os mesm os preços, m as com muito mais liberdade! Sem
fazer promoção, sem fazer propaganda com o as lojas clássicas, a bandeira atrai, por dia,
duas vezes mais clien tes.A base do conceito de ' liberdade' com o arma de combate con -
tra as frustrações é suficientem ente fo rte para atrair o cliente.
C a p í tu I o 5 - A m í s t i e a d o e I i ente n a e e o no m i a p s í q u i e a 95

Todos reconhecem que as lojas com a bandeira Zara são um sucesso mundial. J á
não se conta mais o número de reportagens , de programas de televisão sobre essa
história de sucesso. Mais uma vez, pode-se ver aqui a aplicação de uma vontade mar-
cada de combater as frustrações das clientes.
O que diz a Zara? Coisas simples, que podemos traduzir da seguinte maneira:
D A moda é efêmera!
D Por definição, a moda custa caro!
D Então, quando se compra um produto que está na 'moda', a partir do momen-
to em qu e é feita a compra , ele começa a sair da moda. E, infelizmen te, não
sobrou dinheiro para comprar o novo produto da moda.
Com essa lógica simples, a Zara confirma que, para algumas clientes, a moda pode
estabelecer uma situação que as leva à frustração por não poderem estar sempre atuali-
zadas. Ao se propor a copiar a moda , e copiá-la direito, a marca assegura às suas clien-
tes que elas nunca mais se sentirão frustradas.
A empresa Kodak atravessa momentos no núnimo dificeis. Número 1 no mundo
do filme fotográfico, ela teve de engolir (n ão há outro termo) o desenvolvimento fu l-
minante da fotografia digital. Quem diz máquina fotográfica digital diz fotos no com -
putador, a rigor fotos impressas por impressoras a laser, nunca fotos reveladas.
Muitos especialistas previram um fim dificil para a empresa.
Hoj e, a Kodak propõe à sua clientela que ela transforme suas fotos digitais em ver-
dadeiras fotos em papel, explicando e destacando que as fotos são muito mais bonitas e
muito m ais fortes como veículos de uma emoção quando podem ser tocadas. Na ver-
dade, a Kodak se propõe a com bater a fru stração que muitos compartilham por não
poder aperta r contra o peito a foto de uma pessoa falecida, do último neto, de um ente
querido, ou por não poder levar na carteira a foto da família toda.
O prefeito de Paris talvez esteja prestes a descobrir a quadratura do círculo. Ele é
socialista, portanto é de se esperar que suas idéias sejam cri ticadas pela direita. Isso é
normal, faz parte do jogo. No lançamento da Praia de Paris, tudo estava pronto para
um ataque em regra . As vias na o rla do rio foram fechadas, logo os m otoristas sairiam
frustrados! Dois bilhões de euros foram gastos para divertir, com o dinheiro dos con -
tribuintes de direita , os cidadãos de esqu erda que moram e m Paris e nunca saem de
férias . Melho r ainda, diante da prefeitura da cidade, foi erguida uma quadra de bocha!
Está claro que a iniciativa do prefeito e de seus auxiliares visava a 'desfrustrar' os mora-
do res da cidade. O slogan "Paris é dos parisien ses, não dos auto móveis" soava bem para
os ecologistas. Exceto por alguns chatos rem atados, ninguém criticou . Todo mundo
ac ho u a iniciativa formidáve l. A quadratura do círculo estava resolvida! Em 2004,
foram as m arcas que pagaram, não os contribuintes. A circulação fluiu bem , porque
96 1 O b l ues do consum i dor

todo m undo j á sabia q ue era m elho r não passar pelo cais! Todos estavam sinceram en -
te felizes. A realidade é que, ao criar uma praia em Paris, o prefeito de u uma solução
para a fru stração dos mo radores da cidade. O s cidad ãos am am Paris, mas se sentem
fru strados por não poder nadar nas águas do Sena , por não p oder desfru tar a beleza do
cais, da vista que se tem dessa cidad e m aravilhosa. A iniciativa do pre feito permite q ue
se dê um ar fresco à cidade e se tenha por alguns d ias o sentimen to de que Paris é
novam ente Paris.
A econo mia p síquica surge como uma econ omia em qu e todos os empreendedo-
res, todos os op eradores devem fazer de tudo para que n ão h aj a m ais n enhuma frustra-
ção no Homo consomatio, assim com o n o H omo cliens, tan to no ato de consumo quanto
no ato da compra o u duran te o período de utilização e de destruição do prod uto. Para
alguns, seria uma economia sem força de gravidade, e m que o ho mem fin almente teria
a p ossibilidade d e não sofrer a atração terrestre. Seria o fim da obrigação de utilizar
pilhas elétricas, que se tornam um estorvo quando descarregam e poluem o am biente,
dos ó leos lu brificantes que degradam a terra , troca após troca, das loj as que tornam
nosso tem po livre, dos trens, dos aviões cuj o pessoal de bo rdo geralmente nos trata
corno se fôssem os gado, d os autom óveis que n ão evitam acidentes causados pelos o utros
o u por n ossa lamen tável tendên cia ao excesso de velocidade, do pão que faz en gordar,
dos pratos que aumen ta m n osso colesterol etc.

A MfSTICA-CLIENTE

Em econo mia psíquica, m ais do qu e de um modo de fazer, trata-se de uma ma nei-


ra de crer. Não podem os e ntrar nessa econo mia se n ão ado tarmos uma nova doutri-
na. Com o em 1957, quando Kittrick definiu a n oção de p esquisa das n ecessidades para
a geração de lucros, hoje é p reciso admitir que o motor do desenvolvimento é a rela-
ção desfrute/ frustração do clie nte. Essa n ova doutrina coloca no cen tro do universo
d os m ercados uma n ova n oção : a mística-cliente. O con ceito de mística-clien te diz q ue
é preciso simplesm ente acreditar qu e, ao compar tilhar das p rincipais frustrações dos
clien tes, a emp resa poderá se impor aos concorrentes e o bter lucro.
Se a companhia aérea estimar que a p rio ridade n ão é voar, servir urna boa refeição
aos clientes executivos o u ser amável, m as encon trar soluções para as mil frustrações dos
clientes, desde seu ponto de partida até seu ponto de chegada, ela ganhará efetivamen -
te o direito de continu ar a operar e ob ter lu cros. Se o fabrican te de automóveis enten -
der que seus investimentos devem ser orien tados antes de tudo para a atual fr ustração
do m otorista diante da perda de pon tos n a carteira, dos acidentes pelos quais n ão é res-
C a p í tu I o 5 - A m í s t i e a d o e I i ente n a e e o n o m i a p s í q u i e a 97

p on sável, dos en garrafa men tos, dos ro u bos e da deterioração dos carros, ele con solida-
rá sua posição.
Essa do u trina, e é nesse sentido que ela é inovadora, leva todos os operadores, da
direção geral até as fá bricas, p assando pelo departamento fin an ceiro, pe lo m arketing e
pelas vendas, a ter apen as uma prioridade : contribuir na busca de novas idéias para eli-
minar os elem en tos frustrantes da vida dos clientes.
A m ística-clien te se define como o compromisso de toda a empresa e m par tilhar
sinceramente de uma o u mais frustrações dos clientes e fazer disso o eixo estratégico
único p ara o R &D 7, o marketing, a distribuição, a comunicação. Portan to, para en trar
na mística- cliente, é preciso rever de alto a baixo os princípios e m o delos de raciocí-
nio, conhecidos e utilizad os até aqui, p ara conquistar o u reconquistar partes d o merca-
do e fidelizar os clientes.
A mística-cliente visa a substituir as práticas atuais do marketing qu e fazem com
que, por exem plo, u ma empresa que se sinta ameaçada pelos concorrentes, por não
p ode r se diferen ciar, que ira com o reação investir para en con trar novos posicio nam en -
tos, um 'algo a m ais' o u um p reço melho r para que o clien te não se volte para o fertas
mais atraentes.
Para a rede de hiperme rcados em declínio q ue para reconquistar a clien tela inves-
te em reformas n a loj a, em arquite turas chamativas, em novas cores para o p rodu to que
se to rnou obsole to e para o qual se quer fazer obrigatoriam ente um n ovo reposicio na-
m ento, uma nova embalagem e um novo site na Internet para parecer m ais j ovem e
mais moderno q ue o concorrente, a m ística-clien te proclam a: de que adian ta en feitar
urna loj a se ainda é preciso esperar nos caixas, se esfo rçar para encon trar u m produ to e
atravessar um estacio nam en to mal iluminado em dias nublados, de neve e de tempera-
tura polar? D e que adian ta urna n ova embalagem se a frustração é o utra?
A m ística- clie nte n ão é proporcionar m ais p razeres, é proporcion ar meno s imposi-
ções até conseguir eliminá-las totalmente. N ão se combatem as frustrações com efeitos
de p ublicidade o u de marketing tradicio nais. Com batem -se com a von tade de deslocar
o centro de gravidade da fi gura!

MfSTICA-CLIENTE E DIMENSÃO CRIATIVA

Se há um seto r de atividade em que o p rincíp io da mística-cliente é esse ncial n os


dias de h oj e, com certeza é o da hotelaria, n o tadamen te o dos grandes hoté is de luxo

Researc/1 a11d developmem, ou pesquisa e desenvolvimento. Em inglês no o riginal. [N. do R . T.J


98 1O b I u e s d o eo n su m i d o r

internacio nais. As grandes redes de q uatro e cinco estrelas afirmam j á há m uito tempo
sua vontade de serv ir bem e responder a todas as necessidades dos clien tes. A Fo u r
Seasons, uma rede no rte-am erican a de hotéis de luxo, não enunciou o seu "Welcome to
the extraordinary" [" Bem -vindo ao extraordinário"]? Já o Holiday Inn afirmou: " To day's
H oliday Inn gives you more. And more is better" [" O H oliday lnn atual lhe dá mais. E m ais
é me lhor"], ou ainda: " Holíday Inn, the world innkeeper" [" H o liday Inn , o hoteleiro do
mundo"]. O Sofitel lançou um " D estino : em oções" e, finalmen te, o H ilton evoca sua
"excelência".
Apesar de to das essas e mpresas praticare m a excelência n a gestão e se esforçarem
para que os clien tes con tem naturalmen te com o m elhor serviço, é fo rçoso constatar
qu e, po r exemplo, quando chegam a esses p alácios, dep ois de ho ras den tro de um carro
ou de um avião, os clientes devem esp erar sua vez de pé, com o e m qualquer o u tro
lugar, para p egar a chave d o qu arto. Con forme o dia o u a hora, essa espera é mu itas
vezes qu alifica da de insuportável, interminável, o diosa, desu ma na! Essa sen sação é
tan to mais exacerbada na m edida em qu e há grandes chances de ocorrere m mil inci-
den tes duran te a espera.
Assim, por exemplo, um fun cionário n ão encontra a reserva de um clien te que
seguramen te grita de raiva e amaldiçoa to do o pessoal! O telefone não pára de tocar e
sempre te m prioridade sobre qu em espera m ais o u m enos pacientem en te na fila etc.
Po r mais que a rede internacio nal a que p ertence o h o tel faça p ropaga nda nos m elho -
res j ornais, m ostre imagen s idílicas do restaurante em um site n a Internet o u em fo lhe-
tos produzidos em quadricromi a e coloque flo res nos quartos, a imagem do h otel, a
repu tação, a relação qualidade/preço, a qualidade d o serviço dependem da percepção
que os clientes têm dessa situação.
O bviam en te, n esse setor d e atividade, os fun cion ários estão sempre em treinam en -
to intensivo para acolher melhor o clien te, responder às o bjeções mal-intencionadas e
resolver todos os problem as cotidianos. E m alguns estabelecimen tos, chega-se ao ponto
de recebe r o clien te em u ma m esa baixa, a fim de evita r o efeito desk, que semp re colo -
ca o interlocu tor em posição de inferio ridade com relação ao funcio nário bem in sta-
lado atrás do balcão.
Não obstan te, quando é preciso fazer esperar um hóspede an sioso para encerrar o
dia, que alternativa resta aos funcio nários em situações tão frustrantes com o a espera n o
check in o u , pior ainda, no check out, quando todos querem pagar ao mesmo tempo e n a
m esma ho ra para ir em bora logo?
A resposta parece ó bvia! O s funcion ários devem ser amáveis, é o m ínimo que se
espera deles. D evem desc ulpar-se caso alguma coisa der errado. E m suma, os funcio ná-
rios devem ser perfeitos! D evem conhecer o program a de formação de cor e salteado
Ca pí t u I o 5 - A mí s t i e a d o e I i e n t e n a e e o n o m i a ps í q u i e a 99

e ser cap azes d e aplicá-lo em qualquer circunstância. N o melho r dos casos, deveriam ir
ao p on to de abdicar de sua própria p ersonalidade.
Obviam en te, isso é impossível! É claro que comissões, incen tivos, funcionários dis-
farçados de clientes e concursos recompen sarão os colaboradores m ais zelosos. A
empresa editará um j ornal, em q ue serão h om enageados os vencedores e em cada esta-
belecimento será afixada a fo tografia do m elho r funcio nário do mês.
M as n a realidade esses recep cionistas são seres humanos iguais aos o utros. Eles não
têm forçosam ente um salário que con sideram bo m em relação aos seus esforços. As
comissões n ão são forçosam ente m otivantes! Eles têm seus próprios problemas (relações
mais ou m enos difíceis com os superiores, uma p essoa doen te na famíli a, divórcio, pro-
blemas com os filhos, distorção en tre o luxo do hotel e a condição precária das mora-
dias em alguns países, lo ngos trajetos para ir do ho tel p ara casa etc.). Em bora tenham
orgulho de falar vários idiom as, vestir o uniforme do grande hotel internacion al o nde
se h osp edam pessoas ilu stres, como grandes empresários, p ersonalidades do espor te e da
televisão, eles também se expõem a situações difíceis. Sentem muitas vezes que são tra-
tados de m an eira injusta pelos clien tes e sobretudo n ão vêem com o sair desse tipo de
situação que se rep ete todos os dias.
A questão qu e se coloca é com o uma estratégia baseada n o p rincípio da mística-
clien te pode mudar essa situação.A partir do mom ento em que os fun cio nários têm cons-
ciência de que é a fru stração própria de cada cliente que o torna dificil, agressivo e insa-
tisfeito, e não a sua n atureza íntima ou o fato de pertencer a esse ou aquele tipo sociop-
sicológico, eles comp reendem que não existe uma solução, mas sim uma multiplicidade
de solu ções adequadas para cada caso particular que se apresenta na recepção do hotel.
Os funcion ários comp reendem qu e as soluções são, an tes de qualquer coisa, suas
idéias, suas iniciativas, aliadas às dos o utros colegas! Com alguns clientes, é preciso
inventa r um olhar certo, uma ho ra cer ta, que diga muito e faça o cliente esperar. Com
aqueles que se impacienta m , é o gesto generoso que os faz compreender que o funcio-
nário compartilha de sua frustração. Com o utros ainda, é o caso de enviar sem n inguém
ter pedido um funcio nário que aj ude a senho ra cujo bebê está chorando e irritan do
todo mundo. Com todos, é p reciso compor tar-se amigavelmen te, fazer rir, mostrar boa
von tade, nunca se irrita r e responder m al etc. É possível chegar até m esmo a inven ta r
solu ções com o a que a rede Hilton implanto u no aeroporto de Nova York, em que o
check in é feito n o ônibus que leva os hóspedes do aeroporto para o hotel por um fun-
cion ário q ue verifica as reservas em um com putador portátil. É o q ue faz também uma
equipe n a Alemanha, que acompanha os atrasos e os problem as em vôos tra nsatlânticos
e recebe os hóspedes que estão com várias horas de atraso o u tiveram um vôo particu-
larmen te dificil.
100 1O b l ues do consum i dor

O ponto essencial do sucesso de uma estratégia baseada na mística-cliente se


encontra no comportamento desses funcionários. Eles devem ser criativos nos mínimos
detalhes, a todo instante e a propósito de tudo. Para isso, é preciso que eles possam pra-
ticar o princípio da 'inteligência coletiva'. Cada um deles deve se tornar autor e pro-
prietário das idéias que tendem a eliminar a frustração escolhida.
O que vale para o pessoal da recepção também vale para os maitres, os cozinhei-
ros, os garçons, as arrumadeiras, as telefonistas, os j ardineiros, o pessoal da manutenção
etc. O caixa do supermercado, o recepcionista no aeroporto, o vendedor nas lojas Darty,
as pessoas que atendem ao telefone nas empresas de assistência e, em geral, todos aque-
les que estão em contato com o outro. A secretária , o chefe do departamento de con-
tabilidade que nunca vê os clientes, que só os conhece por ouvir falar, sem saber tam-
bém estão submetidos à mesma lei. Eles são a alma da marca, da criatividade deles
depende a pertinência das soluções encontradas para combater as frustrações e promo-
ver a legitimidade e a autenticidade da marca.
A economia do marketing, a competição por meio do produto e do serviço obri-
garam as empresas a implantar formas de administração que favorecem a atuação com-
petitiva! D essa maneira, a excelência na preparação, na reflexão, na realização de estra-
tégias tornou-se um culto, o obj etivo que todos devem atingir dentro da empresa. Já é
tradição que todos os colaboradores de uma empresa participem do bom andamento
do produto, da marca ou do serviço. Para isso, eles são treinados e motivados para apli-
car as regras e os procedimentos que permitem ao p roduto satisfazer o cliente. Todos
fazem, cada qual em seu nível, e graças à organização dos departamentos e às diversas
técnicas de administração que os estimu lam, o possível para que as 'promessas' definidas
pelo marketing sejam concretizadas.
Para que o produto seja elaborado, definido, fabricado e vendido nas melhores con -
dições, para que o serviço que o acompanha seja irrepreensível e conduza à satisfação
da clientela, a solu ção passa pela vontade de excelência da cadeia que vai da idéia do
produto ao seu con sumo.
Ainda que a aplicação e o controle dos processos de excelência esbarrem n os limi-
tes organizacionais de inúmeros operadores, ainda que os esforços do passado não
tenham permitido que todas as empresas chegassem ao grau de excelência desejado
para satisfazer a clientela, ainda que algumas empresas com grande desempenho como
Google sejam criticadas por seu sucesso em meio à desorganização, o exemplo do
sucesso das empresas que melhor souberam ser excelentes confirma ainda hoje a perti-
nência desse conceito.
Hoje, a verdadeira questão é saber em que se transformará o conceito de excelência em
uma economia psíquica, em que seguramente a própria natureza da excelência mudará.
Cap í tu l o 5 - A m í st i ca do c li ente na econom ia psíquica 1 101

Se em uma economia clássica já é difícil aplicar a regra do perpetuai ímprovement 8,


regra fundadora do conceito de excelência que visa à permanen te reavaliação de tudo,
quais serão então, em uma economi a psíquica, as relações entre indivíduos, entre indi-
víduo e empresa, entre empresa e mercado? No caso das empresas que criam suas estra-
tégias com base na mística-cliente, os papéis dos colaboradores são completamente dife-
rentes. D e fato, a frustração do cliente não é um dado fixo como a necessidade, que
pode ser facilmente registrada em um memorando, como o são, por exemplo, a defini-
ção de um produto e seu posicio namento em um plano de m arketing. A frustração é,
na verdade, uma série de sofrimentos sucessivos experimentados pelo indivíduo.
Portanto, não existe urna solução para a frustração, mas um cortejo de ações positivas,
de propostas que implicam urna espécie de interatividade entre a empresa, o cliente, o
problema deste e o apaziguamento de seus sofrimentos. O funcionário e o responsável
pela empresa não devem somente fazer o melhor possível em seu nível hierárquico, mas
devem a todo instante encontrar, criar a boa solu ção, tornar decisões para gerir a crise,
isto é, a frustração do cliente. D ecidir apoiar o futuro da empresa sobre um procedi-
mento de mística-cliente exige que todos os colaboradores tenham o desejo de parti-
cipar do esforço que consiste em se apropriar dessa frustração do cliente. Portanto, é
tarefa de cada indivíduo na empresa ter a responsabilidade de mudar as regras e os
modelos de decisão da empresa diante dos clientes, para evitar de imediato as pu lsões
negativas e seu corolário de agressividade destruidora. Isso subentende uma criativida-
de permanente da parte da cada um, um clima de confiança total entre todos e tam-
bém com os superiores. Isso também autoriza a possibilidade de errar quando as coisas
não ocorrem corno previsto. É claro que isso exige urna participação ainda maior por
parte dos colaboradores, já que são eles afinal a alma da empresa. O problema é tanto
mais complexo porque n ão se trata de pedir somente aos colaboradores que estão em
contato com o cliente que adotem uma conduta focada na mística-cliente, mas a todos
da empresa, isto é, a toda a cadeia que vai da concepção à destruição do produto.
Para que a relação 'desfrute imediato/imposição' seja sempre positiva, é preciso evi-
dentemente que o conceito de excelência se apóie sobre bases novas. A companhia
aérea não deve apenas ser excelente nos guichês de embarque, no atendimento a bordo,
na configuração do espaço das cabines e do serviço. Ela deve ser excelen te também no
modo corno os ônibus levam os passageiros aos aviões, na entrega das bagagens, na segu-
rança dos estacionamentos, na fluidez do trânsito no caminho até o aeroporto etc. Para
que o cliente n ão fique fru strado, a companhia deve ter consciên cia de sua responsabi-
lidade de excelência ao longo de toda a cadeia de prováveis frustrações do indivíduo

Melhoria perpétua. Em inglês no original. [N. do T.]


102 1 O b I u e s d o e o n s u m i do r

que a escolheu para realizar seu vôo. Não se trata, portanto, de ser excelente em seu
campo de atividade, é preciso ser excelente em tudo aquilo que estruturalmente não
diz respeito à empresa, isto é, na cadeia de imposições que não começa nem termina
no ponto em que começa o campo de atividade da companhia. As grandes marcas de
produtos de consumo, assim como as grandes empresas prestadoras de serviços, obede-
cem naturalmente ao princípio da 'batata quente'. Em outras palavras, elas deixam de
atuar a partir do momento em que o produto ou o serviço sai de sua 'área de respon-
sabilidade'. Elas passam a dificuldade para os outros e fecham os olhos.
Qual grande marca se preocupa com o m erchandising frustrante desse ou daquele
distribuidor? Qual grande marca se preocupa com a fa lta de produtos nas gôndolas?
Qual grande marca se preocupa com os caminhões que ela despacha e que bloqueiam
ou dificultam o trânsito? Qual companhia aérea se preocupa com os engarrafamentos
que frustram os passageiros estressados com a idéia de perder o vôo? Seria muito sim -
ples criar uma rádio FM da própria companhia que informasse aos clientes: "Passageiros
da companhia aérea X, são 19h30, nós sabemos que a estrada está parada por causa de
um acidente na altura de Rungis, mas não se preocupem, nós n ão vamos abandoná-los.
Telefone para tal número (um por vôo) e verificaremos se, em caso de um atraso muito
grande, é possível en caixá-lo em outro vôo". Mais ou menos como o sistema implan-
tado na Disney World (Orlando).
É lógico q ue é ten tador ver no princípio da mística-cliente apen as um n ovo
método reservado às empresas prestadoras de serviços o u aos distribuidores em busca
de diferencial o u de fidelização da clientela. Nesse caso, seria tomar um partido arris-
cado! É certo que as empresas prestadoras de serviços que contri buem para criar
imposições ao H omo cliens devem fazer o máximo para eliminá- las e, portan to, tomar
o partido da mística-cliente. Não é menos verdade que as marcas também são gerado-
ras de frustrações e, por con seqüên cia, estão mais do que capacitadas para en trar n a
mística-cliente.

A INTELIG~NCIA COLETIVA: A CHAVE DA MfSTICA-CLIENTE

São todos os fun cionários do ho tel , assim com o os do supermercado, da grande


marca de automóveis e do fabricante de computadores, que devem encon trar a respos-
ta e formular os meios para resolver as frustrações do cliente. Para fazer de modo que
a relação desfrute/frustração seja claramente superio r a ' 1', os funcionários não podem
esperar de braços cruzados para aplicar aquilo que é proposto a eles. Não é só o mar-
keting, o RH , a agência de publicidade, os consultores que devem encon trar a solução
C a p í tu I o 5 - A m í s t i e a d o e I i ente n a e e o n o m i a p s í q u i e a 1 103

m ilagrosa, é com o u sem eles que toda a empresa deve criar! A primeira con dição desse
princípio encontra resposta no processo chamado ' inteligência coletiva' .
Com o sublinha Pierre Lévy, segundo a abordagem neodarw inian a, a evolução bio-
lógica resulta da compe tição cooperativa dos genes para sua sobrevivên cia: "É com o se
os genes 'egoístas' quisessem se perpetuar e usassem os organism os para se tran smitir e
se multiplicar (... ). O s gen es, na verdade, estão engaj ados em um vasto processo de coo-
p eração. Eles devem se relacio nar uns com os o utros para reger cole tivamen te a m aior
parte d os aspectos da vida de um o rganism o". E acrescen ta :"Se os genes de um m esm o
organism o se opusessem, se fossem mutuamente incomp atíveis, o o rganismo em ques-
tão simplesm ente não seria mais viável".
Esta última frase destaca o qu e aconteceria com uma empresa inserida n a econ omia
p síquica se as células esp erassem a crise passa r o u se opu sessem às soluções salvadoras!
Para qu e haja inteligência coletiva, é preciso respeita r certas condições. A primeira
p ode ser definida assim : " N ão é possível ser criativo se o destino da empresa corre peri-
go cada vez qu e surge uma idéia" . H á regras no j ogo e é preciso respeitá-las.
N otam os, por exem plo, que em algumas grandes empresas onde, por diversas
ra zões, mui tos funcion ários graduados fo ram sacrificados no altar da prod utividade o u
do lucro, a criativ idade diminui a proporções alarman tes. Isso se deve ao fato de que
tod os se põem de sobreaviso e n ão to mam n enhuma iniciativa .
A segunda é que deve ser p roibido repetir e rep roduzir aquilo que fazem o u sem-
p re fizeram os vizinhos.Alguns adeptos do benchmark talvez fiquem escan dalizados com
essa afirmação. É permitido o bserva r o que os outros fazem , sem d úvida, mas n ão n eces-
sariam ente copiar. N ão existe pensamento único, mas isso não q uer d izer que não exis-
ta organização de esquemas, n em regras.
A terceira é que o pode r central não deve basear sua legitimidade n o direito de
decidir o u u tilizar a supremacia que o capital lhe dá. Ele deve se impor, é claro, m as
unicamente por sua capacidade de aceitar, organizar e imp lem en tar a criação dos
o u tros.
A quarta é q ue a emp resa deve ser um local de liberdade.

A co mpe tição, isto é, a m ultiplicação das formas, é a dimensão da liberdade da inteligê ncia
coletiva (... ). O ato de liberdade não é uma escolha entre po ssibilidades existentes em um dado
m omento em uma situação deternúnada, mas antes a ampliação do campo das associações e das
cooperações possíveis.9

Pierre Lévy, op. cit .


104 1O b l ues do consum i dor

Assim, podemos nos perguntar por que as grandes bandeiras de hipermercados, que
estão todas em situação crítica, fazem o possível para só falar de preços dos produtos
alimentícios, quando a maior frustração dos clientes vem da espera nos caixas e do sor-
timento de produtos não alimentícios pouco sofisticados. A resposta é simples: a inteli-
gência coletiva está totalmente ausente n essas empresas de estrutura piramidal. No en-
tanto, a tecnologia moderna põe à disposição dessas lojas mil meios para reduzir o
tempo que o Homo cliens gasta para passar nos caixas!
Quando surge um novo problema , ninguém sabe de antemão quais são as boas ou
as más soluções! A única coisa que se sabe é que há pelo menos uma solução e que é
preciso que todos a procurem para que ela convenha a todos e a cada um!
Finalmente, e esta não é a m enor das condições, "a marca da inteligência é a sua
fecundidade, não o seu poder de ganhar".
A inteligência coletiva não defende o 'está bom' contra o 'é idiotice' ou o 'é impos-
sível'. Segundo Pierre Lévy, ela "é uma expansão da consciência, uma manifestação do
poder criativo da vida" .
Quem poderia ser contra essa idéia de inteligência coletiva? Ninguém! A questão,
no fundo, não é ser contra ou a favor, mas definir o como fazer!
Com seus trabalhos e sobretudo com seu livro Fish!'º, Stephen C. Lundin , John
Christensen e Harry Paul tentaram encontrar uma solução simples para esse grave pro-
blema. Por natureza, afirmam eles, a empresa é um lu gar que pode ser gerador de fru s-
trações para dirigentes, executivos, funcionári os o u operários. Essas frustrações impe-
dem a difusão da inteligên cia coletiva! As tarefas qu e se cumprem ali, as relações com
os outros, a pressão exercida sobre cada um para que se atinjam os objetivos, a estrutu -
ra da empresa, a qualidade dos responsáveis, os métodos de trabalho, a rotina das tare-
fas, a publicidade da empresa, os produtos vendidos, a visão do seu próprio futuro na
empresa, da sua posição associada aos problem as familiares, existen ciais... tudo isso
determina uma situação que cria, por intermédio da percepção de cada um, compor-
tamentos, pulsões e, portanto, frustrações.
Via de regra, o que complica a vida dos gerentes é que as pessoas não têm as m es-
mas fru strações e, obviamente, não necessariam ente n o mesmo momento!
Em uma economia psíquica, a empresa também deve mudar. Ela não é mais apenas
o local de criação de riqu ezas, ela deve ser antes de tudo o local de criação de felicidade.
No mercado de peixes de Pike Fish Market, em Seattle, o exemplo cotidian o de
feli cidade dos peixeiros é contagiante. Eles não trabalham, parecem se divertir. Riem e

Paris: Éditions Michel Lafon, 2001. [Ed. brasileira: Peixe!: como mot ivar e gerar resultados . 10. ed. R.io de Janeiro: Campus,
2000.]
C a p í tu I o 5 - A m í s t i e a d o e I i ente n a e e o no m i a p s í q u i e a 1 105

fazem rir. O calor, o frio, os clientes chatos, os dias de vendas ruins o u de tempestade,
nada disso os atinge: eles tran spiram felicidade. São os me lhores n esse m ercado cheio de
p eixes.A quem se deve isso? AJo hnny Yo koyam a, o p roprietário da p eixaria , que soube
encontrar a solu ção. Ele desenvolveu uma administração muito simp les, qu e evita frus-
trações nos funcionários e n os clien tes e põe tod os em uma situ ação gratificante!
An tes de tudo, é fo rçoso constatar, diz J o hnny, qu e a frustração cr ia uma 'energia
tóxica' na empresa . O fr ustrado não é um elemen to ne u tro dentro de um sistema. Essa
energia tóxica paralisa tan to as suas iniciativas com o as dos o utros. Uma grande qu an -
tidade de frustrados em u ma emp resa cria um verdadeiro 'p ântan o de en ergia tóxica'.
Tudo então po de estar suj eito a uma escalada n o processo de frustração. É essa e nergia
tóxica q ue é preciso eliminar an tes de qualqu er coisa.
Se não som os n ós que necessariam ente escolhem os nossa profissão, acrescenta
J o hnny, ao m enos podem os escolher com o exercê-la e a m aneira de lidar com os o u tros
no cotidian o da empresa. Tornar-se u m verdadeiro com baten te da fru stração dos clien -
tes na fila de esp era do grande hotel p ode ser um m od o de m otivar o recepcion ista .
Transformar-se em um São B ernardo para os clientes e ser reconhecido como tal por
chefes e clien tes pode p ermitir a eliminação da en ergia tóxica que o colega não m oti-
vado lança sobre você! Permitir aos colaboradores escolherem aquilo que querem ser
dentro da empresa é admi tir também que eles não são o brigados a ter o papel que gos-
taríam os de vê-los rep resentar. Em o utras palavras, é deixa r esp aço suficiente para a apti-
dão de ser assertivo 11 • Esse é um com portam ento funda men tal na comunicação. Nós
temos um capital desigual de assertividade a desenvolver e otimi zar.
M as, insiste Yo koyama, tudo isso d eve ser feito com alegria. É preciso encon trar
solu ções criativas para que os colaboradores se divirtam enqu anto trabalham. O escri-
tório n ão é uma prisão ne m uma mina. É lá q ue passam os a m aior parte da nossa vida .
N ão é à toa que na tela de descanso de cada u m dos comp u tadores, sej a das secretárias,
dos funcionários o u d o presidente da em presa, vêem -se peixes passando, ilhas distan tes
e maravilhosas, fotos de fa mília, vulcões, a lua etc. Cada um procura sua janela para a
v ida, cada um se con cede alguns mome ntos agradáveis ao lon go do dia, ao mesmo
tempo em que exerce uma forma de criatividade. M as é preciso ir mais longe, o rgani-
zar jogos, u ma o utra maneira de se aceitar. Existem mil oportunidades de se divertir em
uma em presa, desde que se desej e isso! N o combate contra as fr ustrações, há distribui-
ção de medalhas de o uro, de p rata e de bron ze. A em presa deve, an tes de tudo, ser um

Se entrarmos em uma biblioteca unive~itária nos Estados Unidos, encontraremos pilhas de livros sobre a assertividade. Na
Europa continental, ocorrerá exatamente o contrário : encontraremos alguns poucos exemplares traduzidos do inglês.
Assertividade vêrn do verbo inglês 'assert' , que quer dizer 'ousar, afirn1ar' seus pontos de vista, seus direitos. Para sitnplifi-
car, significa: não se sentir obrigado a dizer 'sin1' quando se pensa 'não' .
106 1O b l ues do consum i dor

local de jogos se se quer que cada colaborador seja criativo e encontre sua solução para
combater uma frustração interna ou externa!
Finalmente, conclui Johnny, "tudo isso só pode ocorrer se cada um tem a missão
de iluminar o dia do outro, o dia da secretária, assim como do chefe da contabilidade
ou do cliente! Iluminar o dia do outro é encontrar o p equeno detalhe ou a grande idéia
que fará o dia não ser cinza, quaisquer que sejam as tensões dentro da empresa ou fora
dela. Também é mostrar criatividade para eliminar uma frustração do outro, quando ele
não espera por isso. Mas iluminar o dia do outro é desencadear neste último uma série
de efeitos positivos. J á está provado que, quando iluminamos o dia do outro, fisiologi-
camente entram em operação dispositivos de transmissão que provocam urna transfor-
mação na secreção da serotonina, e o indivíduo se sente capaz de um melhor desem-
penho, menos cansado, mais presente no trabalho". O mecânico pode iluminar nosso
dia quando nos devolve o carro limpo, brilhando, depois da revisão. A secretária da ofi -
cina ou o responsável pela limpeza geralmente são mídias mais importantes. Isso quer
dizer, conclui Johnny, que cada um deve estar 'presente'. É preciso estar inteiro no tra-
balho, mas alé m disso é preciso antecipar a fru stração do outro. É preciso encarar os
colegas e os clientes como o atleta encara a corrida e o recorde que terá de bater. "Os
maus alunos são antes de tudo ausentes; eles estão sempre pensando em outra coisa, não
gostam da escola, da classe, dos colegas, da matéria ensinada, eles escapam."
Isso implica que o pessoal da empresa seja perfeitamente informado do que se passa
em campo e sobretudo dos resultados de sua iniciativa .
O Grupo R adclyffe, com sede em Fairfield (New Jersey), é um importante escri-
tório de engenharia que desenvolve soluções inovadoras de interação entre clientes para
os centros de atendimento ao consumidor. O grupo en trevistou 400 funcionários de
centros de atendimento ao consumidor de 16 empresas diferentes. O relatório - inti-
tulado "The true face of business: how employee satisfaction and contact center cultu -
re impact the bottom line" 12 - mostrou que os funci on ários tentam fornecer um ser-
viço de qualidade, mas muitas vezes faltam informações que lhes permitam saber se
atingem o u n ão seu objetivo.Assim, 86 por cento dos fun cionários dos centros de aten-
dimento ao con sumidor sabem o que se espera deles, mas somente 46 por cen to se
beneficiam de informações atualizadas que indicam o grau de satisfação dos clientes
com os produtos ou serviços fornecidos. Quanto mais informados, treinados e envol-
vidos estiverem, mais os funcionários estarão capacitados para oferecer um serviço de
qualidade e aumentar a satisfação do cliente. A enquete demonstra que o nível do ser-
viço fornecido pelos agentes pode representar um fator vital do sucesso da empresa. Ela

"A verdadeira fa ce dos negócios: como a satisfação do funcionário e a cultura do centro de atendimento ao consumidor
influenciam o resultado global."
C a p í tu I o 5 - A m í s t i e a d o e I i ente n a e e o no m i a p s í q u i e a 1 107

revela , com efeito, que, se o serviço ao cliente de uma empresa não é satisfatório, 59 por
cento dos clientes deixam de fazer negócio com ela , 53 por cento aconselham os ami-
gos e a família a não recorrer a elas e 57 por cento escolhem os produtos ou serviços
de outra empresa (as pessoas entrevistadas podiam selecionar m ais de uma resposta) .
Por outro lado, 45 por cen to deles tomavam o tempo n ecessário para reclamar com
um representante da empresa e 16 por cento em alguma associação de defesa do con -
sumidor. O estudo mostra igualmente que um excelente nível de serviço incita uma
esmagadora maioria de clientes - 82 por cento - a recomendar a empresa para ami-
gos e familiares.Além disso, 78 por cento dos consumidores que tiveram uma experiên-
cia positiva podem se tornar clientes fiéis. Somente 24 p or cento dos clientes se decla-
ram muito satisfeitos com o serviço fornecido por telefone. A maioria - 52 por cento
- respondeu que estava bastante satisfeita.Já 78 por cento declararam q ue sua satisfa-
ção aumentaria se os agentes da empresa fossem capazes de fornecer mais informações
e serviços em vez de passá-los para outros agentes.A enqu ete do Grupo R adclyffe tam-
bém deixou claro que o tempo dedicado à resolu ção de um problema constitui um
fator muito importante de satisfação do cliente. De acordo com as conclusões do estu-
do, dois terços da clientela teria sua satisfação aumentada se fosse colocada mais rapida-
m ente em contato com um CSR 13 •

Os clientes têm uma consciê ncia aguda do te mpo gasto para tentar resolver os problemas
(... ). Eles se lembram das experiências anteriores, e não responder às suas expectativas pode ter
um efeito desastroso sobre a sua fidelidade. A satisfação do cliente também é muito importan-
te para os agentes do serviço de atendimento ao cliente que faze m qu estão que seus interlocu-
tores fiqu em satisfeitos. Nós chegamos à conclusão que a satisfação do cliente está dire tamente
relacionada à satisfação que os CSR obtêm no se u trabalh o, a qual, quando elevada, lim ita a
rotatividade, o que em troca melhora a satisfação do cliente e vice-ve rsa.

Para um bom número de empresas, parecerá dificil, para não dizer impossível, apli-
car de um dia para o o utro solu ções do tipo daquelas propostas pela filosofia Físh de
Lundin, Christensen e Paul e/ou instalar as estruturas, as condições que favoreçam a
inteligên cia coletiva. N as empresas industriais, nas grandes lojas, nos hipermercados, n as
empresas prestadoras de serviços, nas PME 14 e n as PMI 15 , o peso da tradição, o peso dos

Sigla de wstomer s11pport representarive, ou representante do atendimento ao cliente. Em inglês no original. (N. do T.]
Sigla de petires et moyennes e11treprises, o u pequenas e médias em presas. Na França, segundo o INSEE (Institut Nacional de
la Statistique et des Études Économ iq ues), uma empresa é classificada como pequena se tiver menos de 50 funcionários;
se tiver m enos de 250 funcionários, é considerada média. [N. do T.]
Sigla de petires et 111oye1wes i11d11stries, ou pequenas e médias indústrias. Seguem a mesma classificação das PME. (N. do T.]
108 1O b l ues do consum i dor

hábitos, a desconfiança de uns com relação aos outros, a crença na perenidade da eco-
nomia da necessidade são evidentemente o maior obstáculo.
Isso é tanto mais verossímil na m edida em que é necessário incluir novos persona-
gens na empresa, no lu gar ou em colaboração com o RH: os behavior and psychologic
officers' 6 [B&PO]. Estes terão a responsabilidade de animar os colaboradores na empre-
sa. A proposta pode parecer, no mínimo, curiosa, mas hoje em dia não há um incêndio
florestal, um acidente nas estradas ou nas ferrovias, sem que uma célula psicológica se
apresente para cuidar dos sobreviventes, das famílias em choque e até mesmo das equi-
pes de socorro e dos bombeiros. Esses B &PO terão como matéria-prima o comporta-
mento de cada colaborador. Não serão nem big brothers nem 'comissários políticos' a ser-
viço dos acionistas via presidente da empresa! Serão especialistas em comportamento.
Sua missão será propor uma organização que permita a cada colaborador, em todos os
níveis hierárquicos, reagir da maneira correta e se sentir feliz na empresa. E les estarão
ali para favorecer e encorajar cada um a assumir os riscos da criatividade. Também serão
' investigadores' imparciais das frustrações dos clientes. Mostrarão vídeos dos clientes aos
colaboradores da empresa para que estes possam compreender e participar da busca de
solu ções reais. Evidentemente, podemos nos perguntar se esses B&PO farão parte do
quadro funcional ou serão consultores de um novo tipo.
Na Espanha, uma bandeira de supermercados lançou com sucesso uma estratégia
de mística-cliente. Antes de tudo, a empresa decidiu não se comunicar mais por meio
de mala direta, partindo do princípio de que era um ato fru strante para o cliente, mas
também, e sobretudo, para os colaboradores! Enviar uma mala direta toda semana ainda
funcio na, mas entope as caixas de correio do destinatário. O mais terrível, porém, é que
a mala direta tem um resultado muito fra co.Toda semana, os chefes de seção, os ch efes
de departamento têm de quebrar a cabeça para encontrar idéias diferentes da semana
an te rior e sobretudo das outras bandeiras con corren tes.
Acredita-se ter encontrado uma b oa idéia, mas afinal se constata que todo mundo
faz a mesma coisa. Às vezes, o mesmo produto apa rece n a mala direta do concorren -
te a um preço melho r. É uma catástrofe, briga na certa! Começa então a eterna série
de discussões frustrantes entre os chefes de departamento, que acusam o departamen -
to de compras por não ter con seguido bons preços, o departa m ento de compras, que
se volta contra os fornecedores, e todo o pessoal, que põe a culpa n o depar tamento de
publicidade e marketing. Tudo isso adquire uma dimensão ainda mais dramática quan-
d o se sabe que no ramo da distr ibuição os resultados das vendas são conhecidos hora
a hora e as cifras de ontem podem ser comparadas com as de h oj e, ou com as do ano

Funcionários do d epartamento de com portamento e psicologia. Em inglês no orig inal. [N. do T.]
C a pí t u I o 5 - A m í s t i e a d o e I i e n t e n a e e o n o m i a ps í q u i e a 1 109

an terio r, na mesma data e na mesma h ora! A pressão sobre cada um é extrema, coíbe
a criatividade salutar e cria um am bien te em que as pessoas raram en te são felizes.
A econo mia feita pela emp resa com a eliminação da mala direta perm itiu que ela
investisse em uma equipe de B &PO. São 80 fun cion ários em toda a Espanha, trabalhan -
do de m aneira to talmente revolu cion ária!
Tod os os clientes d os pon tos-de-venda recebem gratuitam ente um cartão do tipo
fidelidade. Esse cartão tem sobre tudo a missão de traça r o percurso dos clien tes. Sabe-se
onde esses clientes m oram , quem são eles, quan tas pessoas m oram n a casa, quanto eles
deveriam consu mir etc. O cartão é p rom ovido de tal maneira que os clien tes n u nca se
esquecem dele e deixam , po rtan to, um traço de cada uma de suas passagen s. C ada chefe
de departam ento o u de seção p ode observar, com a ajuda de um coordenador, qual por-
centagem de clien tes não com pra o u compra m enos carne, frutas, legumes, aves o u
vinho, e definir se esses clientes são da mesma tipologia (idade, profissão, m eio em que
v ive ... ). Evidentemente, graças a essas informações, é possível ter acesso à pessoa , à famí-
lia , ao consumo desta última. Munidos dessas informações, 80 p sicólogos visitam os
clientes que apresentam problemas, dep ois de uma lon ga conversa telefônica com eles.
Sua missão é compreender quais são as fru strações desses clientes, o que faz com que eles
não com prem m ais o u n ão comprem alguns produtos n aquela loj a. A s visitas são reali-
zadas quando a família está presente. O s p sicólogos aproveitam a tarde para se re unir com
os vizinhos. Eles n ão tentam vender, mas sim compreender as frustrações. A informação
é em seguida an alisada com os chefes de seção e os chefes de grupos. Eles põem em prá-
tica as soluções encon tradas em grupo e info rmam os clien tes por carta circular ou e-
m ail. A bandeira faz cada vez m enos prom oções, m as adota a clássica estratégia do E DLP
(every day low price'7). O s resultados são excelen tes e os clientes parecem satisfeitos.

0 FUTURO DAS MARCAS NA ECONOMIA PSIQUICA

Podem os contar com o fato de q ue as noções de econ omia psíquica e de mística-


cliente m udem com ple tam en te a maneira de interpre tar os conceitos estabelecidos por
Kittrick em 1957 e, por isso mesm o, os m eios de obter lucros n a emp resa! Os esque-
m as n os quais se baseiam a econo mia de mercado e o marketing devem ser obrigato-
riamen te revistos,já que a n ecessidade n ão está m ais no cen tro do dispositivo!
Um dos e le men tos mais essenciais do sistema de m arketing elaborado por Kittrick
é, sem sombra de dúvida, o do princípio da 'marca'. H oje, todos con cordam que a marca

Preços baixos todo dia. Em inglês no original. (N. do T.J


110 1O b l ues do consum i dor

existe para defender o produto - a empresa portanto - contra todas as formas de


agressão (publicidade, promoção, preço) dos concorrentes. Ela existe também para criar
a fidelidade da clientela à empresa e assegurar sua perenidade, graças à sua imagem, à
sua personalidade. Finah11ente, a marca é o símbolo do capitalismo moderno. Em troca
da fidelidade dos clientes, a empresa, por meio de uma espécie de contrato de confian-
ça, deve oferecer, permanentemente, uma garantia de qualidade, de imagem , de inova-
ção. A marca é também um meio de financiar a informação; sem marca, n ão há publi-
cidade, não há mídia rentável, não há sociedade de atenção e, portanto, há menos ven-
das. Mas a marca é também, e sobretudo, a impressão de um traço forte, indelével no
cérebro do Homo consomatio, produzida pela firma. A palavra inglesa 'brand' não vem da
palavra francesa 'brandon', que designa o ferro com o qual os vaqu eiros marcavam o
gado? A imagem da marca e sua notoriedade são ainda hoje os valores aos quais a
empresa mais se refere para exprimir seu poder!
Hoj e, a realidade da importância da marca na economia é tal, que ela provoca na tu-
ralmente como reação, por toda parte, movimentos contestatários antimarcas. A revista
Casseurs de Pub, o movimento RAP (Résistance à l'Agression Publicitaire, ou Resis-
tência à Agressão Publicitária), o jornal La Décroissance e o best seller No logo 18, da jor-
nalista canadense Naomi Klein, avaliam que a marca aliena o livre-arbítrio dos consu-
midores por essa marcação voluntária dos cérebros. Inversamente, movimentos de de-
fesa , como o ILEC (lnstitut de Liaisons et d'Études des Indu stries de Consommation) 19,
o Promo marque, assim com o as grandes agências de publicidade, afirmam que a marca
é o único meio eficaz da liberdade de escolha dos clientes.
Infelizmente para os 'antimarcas', assim como para os 'pró-marcas', esse con ceito
hoj e, na nova economi a que se prepara, n ão parece nem restring ir o consumidor a esco-
lhas predeterminadas, nem garantir perfeitamente a boa marcha das empresas, com o era
o caso há pelo m enos 15 o u 20 anos. D e todas as partes, de fato, os olhares e os favo-
res dos con sumidores foram solicitados q uer pelas marcas de distribuição própria, quer
pelas 'contramarcas', quer pelos produtos genéricos, e isso em todos os segmen tos do
m ercad o, em tod os os setores de atividade. É importante lembrar que não se tratou de
uma demanda explícita dos consumidores, m as muito m ais de uma von tade das gran -
des bandeiras de distribuição de atrair o cliente mostrando seu desempenho e sua dife-
rença em matéria de preço.
Em outras palavras, n ão se respondeu a uma necessidade, m as se criou uma intei-
ramente nova.

18
Arles: Éditions Actes Sud, 2001. (Ed, brasileira: Sem logo, Rio de Janeiro: Editora Record, 2002.)
Instituto de estudos e relações das indústrias de consumo, (N, do T.)
Cap í tu l o 5 - A m í st i ca do c li ente na econom i a ps í qu i ca 1 111

Essas 'submarca s', ou ainda 'marcas falsas', 'cópias' ou 'clones', segu ndo a defini-
ção dada pelos fabricantes, são, à primeira vista, de fato realmente mais baratas. O
diferencial de preço pode levar a uma eco nomia de quase 25 por cento, às vezes mais!
Além disso, apesar de realmente mais baratas, essas contramarcas valem-se, segundo
seus produtores, de uma qualidade comparável e até mesmo superior àquela das 'gran-
des marcas'!
Seja como for, o fato é que muitas grandes marcas estão hoj e em situação de con-
corrência preocupante. Como têm dificuldade para comunicar suas diferenças - dado
que estas se atenuaram com o tempo, ou porque realmente não interessam mais ao
público - , como enfim é quase impossível evitar as cópias e o Homo cliens tem adota-
do novos comportamentos de compra, elas resistem cada vez menos à agressão dos pre-
ços das marcas falsas. Aliás, freqüentemente se vêem abandonadas pouco a pouco por
seus melhores clientes.
Isso se explica tanto melhor na medida em que na economia p síquica o indivíduo
que quer tudo, sem demora , se proíbe de ter qualqu er freio aos seus desejos. Nessas con -
dições, é compreensível que ele se sinta pressionado a comprar baseando-se n o preço
para ter a possibilidade de concretizar todos os seus desejos, de economizar aqui para
comprar mais ali etc.
Em resposta a essa situ ação, notamos que os indu striais têm recorrido cada vez mais
às ações de promoção, onde quer que possam dar algo a mais ao cliente para que este
não os troque por preços mais baixos. Agindo assim, alguns industriais muitas vezes
investem menos recursos para defender os valores de sua marca pela propaganda do que
para fazer os clientes comprarem nas lojas pelo viés da promoção. Dão razão assim
àqueles que propõem a opção pelo preço para gerar con sumo.
Qual é então o futuro d o conceito de marca n essa econo mia psíquica? Quais
modificações o con ceito de marca deve sofrer em um princípio de mística-cliente para
que se privilegie mais a reputação do que o preço?
Para responder a essa questão, é preciso an tes de tudo apresentar a diferença entre
as marcas distribuido ras de produtos alimentícios o u não alimentícios, vendidos em sis-
tema de auto-serviço, e os produtos vendidos em loja, como o vestuário e os produtos
para a prática de esportes, em que a assistên cia do vendedor é quase obrigatória.
Sabemos que o Homo cliens tem compo rtamentos muito diferentes conforme esteja em
uma situação de perfeita liberdade de escolha ou deva se confrontar com um vendedor
para se informar, ser acon selhado etc.
No sistema de auto- serviço, o H omo cliens está sozinho diante da escolha que deve
fazer entre as marcas e os preços. É ele, e som ente ele, quem pode tom ar a decisão.
Ninguém pode se colocar no seu lugar para aj udá-lo a fazer as comparações, os cálcu -
112 1O b l ues do consum i dor

los infinitamente longos e complicados para definir qual é seu interesse, quais são os ris-
cos e a probabilidade de satisfação no momento da posse ou do consumo.A publicida-
de das marcas na mídia, a qualidade da embalagem, as promoções, os anúncios nas lojas,
a posição nas gôndolas são os únicos elementos capazes de criar uma situação que
influencia a escolha entre o preço, de um lado, e a grande marca, de outro!
Nas lojas onde os produtos não estão ao alcance do consumidor, a situação é total-
mente diferente. Nesse caso, o cliente não está realmente sozinho. Não é mais livre
como seria se estivesse consigo mesmo diante de uma gôndola. Não está mais concen-
trado em si mesmo. Não fala mais de si para si e não está absorto em seus pensamen-
tos íntimos para fazer sua escolha . Ele não é mais o único ocupante da sua 'bolha de
reflexão'. Deve se posicionar diante da personalidade do vendedor e enfrentar uma si-
tuação que nunca é neutra. Na verdade, ele precisa do vendedor para fazer sua escolha.
O vendedor, por sua vez, geralmente treinado para convencer, empurrará o clone, se
esse for o seu interesse ou o objetivo estabelecido pela direção da loja. Argumentará e
tentará, com isso, exacerbar as vantagens do preço em relação às vantagens da grande
marca. Garantirá a qualidade da marca de distribuição própria tão bem ou melhor e com
mais impacto do que a publicidade veicu lada em mídia consegue fazer para a grande
marca. Durante o tempo que o cliente lhe conceder, ele mostrará as van tagens do preço
e da qualidade do clone. A publicidade de imagem da grande marca terá então a con -
corrência forte e direta do tempo que o vendedor dispuser para a sua argumentação.
Mesm o q ue faça questão de uma marca, o cliente terá algumas vezes de ser firme
para poder comprá-la ...
No caso da concorrência entre as grandes marcas e os clo nes em sistema de auto-
serviço, é preciso admitir que a situação atual é fruto, antes de tudo, de uma evolução
que se construiu durante mais de 20 anos. É de se n o tar, por exemplo, que historica-
m ente os fabricantes de grandes marcas não se abalaram quando viram que os distri-
buido res haviam compreendido perfeitamente, desde meados da década de 1980, que
não deveriam mais frustrar os Homo clíens propondo a eles somente produtos econômi -
cos austeros e sem graça.
Os 'produtos livres' dos anos 70, tanto os 'brancos' como os 'laranjas' 2º, não tiveram
afinal o sucesso tão esperado por seus ' inventores'. Na verdade, esses produtos eram por-
tadores na época de uma m ensagem política que só interessava a alguns intelectuais. Sob

Em 1976, os supermercados Carrefour lançaram os chamados 'prodmos livres', pro dutos de distribuição pró pria com
embalagens d esprovidas d e qualque r arte, a não ser o nom e da bandeira. Nos meses seguintes, outros super mercados lan-
çaram produtos do m esmo tipo, utilizando-se da cor para diferenciá-los no mercado. Assim, a rede C ontinent lanço u pro-
dutos de distribuição própria com embalagens brancas e a rede Euromarché lançou sua linha laranja. N a França, os ter-
mos viraram sinônimos de produtos econômicos ou baratos. [N. do T.)
Cap í tu l o 5 - A m í st i ca do c li ente na econom i a ps í qu i ca 1 11 3

o impulso dos democratas norte-americanos e do presidente John Kennedy, os produtos


'antimarketing' surgiram nas prateleiras dos supermercados norte-americanos. E ra m reco-
nhecidos pela embalagem branca, sem nenhum apelo publicitário, e pelos preços baixos!
Na França, nessa época, o marketing estava apenas começando. O que havia de mais
frustrante então para uma mãe de família que fazia suas compras em um grande super-
mercado do que levar para casa, para os filhos, chocolates, sucos de frutas, geléias e bis-
coitos mais baratos, de boa qualidade sem dúvida, mas acondicionados em embalagens
para 'pobres'? A resposta é simples: nada! Fazer isso era obviamente mostrar à fanú lia
que eles não tinham meios para viver como os outros nessa nova sociedade de marke-
ting que se abria para todos. Também era sentir, no ponto-de-venda, a frustração de ter
de escolher entre a marca, com sua imagem, sua embalagem maravilhosa e seu preço
elevado, e os produtos econômicos, com seus preços baixos e suas apresentações sem
graça. O discurso antimarketing precoce dos norte-americanos não interessava na época
à dona-de-casa ávida por publicidade, marketing e cor!
Esse detalhe não escapou , na época, aos responsáveis pelo marketing das marcas de
distribuição das grandes bandeiras. Eles rapidamente substituíram esses produtos por
outros, mais bonitos, mais amistosos, geralmen te copiados das grandes marcas. Criaram
assim uma nova situação de compra. É certo que essa estratégia, que consistia em
melhorar a imagem das cópias de marca, dos clones, por meio de embalagens bonitas,
respondia perfeitamente à fru stração ocasionada pelos produtos livres e sua mensagem
de 'marketing zero' . Embora essa maneira de agir tenha sido fortemente criticada pelos
industriais, que compreenderam que havia o risco de os consumidores não consegui-
rem mais distinguir a marca fa lsa da verdadeira (alguns chegaram até a processar as ban -
deiras que copiavam suas embalagens), com o passar do tempo as coisas acabaram se
arranj ando. Os distri buidores aprenderam rapidamente a fazer suas próprias embalagens
e a conservar nestas últimas apenas o código de cores das grandes marcas, supostamen-
te para n ão desestabilizar os clientes n o momento da escolha, mas na verdade para ten -
tá-los melhor!
Hoje, os Homo cliens estão habituados a essas marcas de distribuição própr ia . Em
algumas categorias de produtos, são elas agora líderes.
A marca de distribuição própria, a contramarca, o p rimeiro preço, por sua presen-
ça permanen te ao lado das grandes marcas, criaram novos comportamentos de compra.
Em muitos casos, o cliente nem h esita mais no momento da escolha entre as 'grandes
marcas' e as soluções mais baratas oferecidas n as p rateleiras. São esses novos comporta-
mentos que fazem com que para certas grandes marcas o impasse no qual elas se encon-
tram hoje seja simplesmente crítico ou mesmo irreversível. A defesa das gran des mar-
cas confrontadas com clones mais baratos permanece, portanto, como o tema crucial
114 1O b I u e s d o e o n s u m i do r

para as economias da zona de luxo, que define os países ricos onde primeiro se expri-
miu a economia psíquica. Diante dessa realidade, a questão que se coloca é por quanto
tempo ainda as grandes marcas, que hoje resistem aos preços baixos, con seguirão evita r
deslocar sua produção para continuarem competitivas. No momento, as coisas estão
dificeis. De fato, observamos, anúncio após anúncio, que comunicar pelo modo clássi-
co da tentação, da criação de valor e do beneficio da marca não permite, em certas cate-
gorias de produtos, recuperar os clientes que passaram para as contramarcas e estancar
a hemorragia das vendas.
A parte do sonho não é mais uma alavanca capaz de combater o ben eficio do
preço. Os posicionamentos clássicos não definem mais territórios suficientemente con-
cretos, diferentes e confiáveis para interessar quem se voltou para os preços baixos.
Encontramos aí, provavelmente, as razões que fazem muitas das grandes marcas se sen -
tirem obrigadas a fabricar, sem nenhum pudor, clones de sua própria marca para con -
tentar a distribuição!
Por ter uma visão objetiva desses novos comportamentos de compra dos H omo cliens,
pesquisas sérias foram realizadas, ano após ano, para comparar a evolução da força das gran-
des marcas com relação à atração das marcas falsas, no caso da venda em auto-serviço.
Nas diferentes gôndolas em que as grandes marcas convivem com as submarcas, os
pesquisadores fizeram os preços dos produtos oferecidos aos clientes variarem durante
m eses. O s iogurtes de marca, p or exemplo, foram apresentados com seu preço h abitual,
enquanto os clones foram oferecidos sucessiva mente com 10 por cento, depois com 20
por cento e finalmente com 30 por cento de desconto.
A pesquisa realizada em diferentes pontos-de-venda e nos países o nde a m arca de
distribuição está presente mostra que os clien tes não reagem todos da mesma maneira
à atração do preço.
No domínio dos iogurtes de grande m arca, para retomar o exemplo, apesar de a
marca de distribuição o u o clo ne terem sido oferecidos com 30 por cento de descon-
to, mais de 40 por cento de clientes ainda preferiram pagar mais caro, mas ter certeza
de aproveitar as vantagens de sua marca . Se a marca perde 60 por cento de seus clien-
tes por conta do preço, é forçoso con statar que ela mantém, contra tudo e con tra todos,
uma porcentagem considerável para qualquer que seja o preço da concorrência.
Isso é ainda mais verdadeiro para as marcas de sabão em pó! Neste caso, 85 por
cento d os clientes permanecem fiéis à grande m arca, qualquer que sej a o descon to que
a su bmarca ofereça . Em compensação, no donúnio dos legumes em conserva o u dos
con gelados, pouco mais de 20 por cento dos clientes permanecem fiéis às suas marcas.
A pergunta que temos o direito de fazer diante desses resultados é por que, apesar
dos preços muito baixos e das embalage ns idênticas, algu ns clientes permanecem fiéis a
Cap í tu l o 5 - A m í st i ca do c li ente na econom i a ps í qu i ca 1 11 5

sua marca, que pode ser 20 por cento ou 30 por cento mais cara do que as marcas de
distribuição própria. Do mesmo modo, por que esses mesmos clientes, embora sen sí-
veis à grande marca, mudam de comportamento e compram clones mais bara tos em
outras categorias de produtos? Por que, enfim, esses consumidores que se dispõem a
pagar o preço da marca para os azeites, a Coca-Cola, os patês, os produtos para gatos
ou cães mudam de idéia quando se trata de encher o tanque do carro ou comprar papel,
água mineral, legumes congelados etc.?
Não podemos negar que os preços baixos, sob qualquer forma que se apresentem,
são tentadores tanto para um H omo consomatío como para um H omo cliens! E les permi -
tem desfrutar de tudo, sem moderação, sem constrangimento. Também permitem, em
algumas categorias de produtos, te r acesso ao consumo, economizar para comprar mais
e ter o prazer de não pagar o preço mais alto etc. A tentação do preço, portanto, exis-
te para todos e em relação a todos os produtos, sejam eles do tipo commodities ou shop-
ping goods 21 • Já que, ainda por cima, nenhum esforço particular é exigido do indivíduo
para que ele possa se apropriar dos preços mais baixos, e o seu anonimato é perfeita-
m ente respeitado graças ao auto-serviço, não é anormal que nessas condições o preço
baixo seja o grande concorrente da grande marca! É claro que descobrir um preço
muito baixo na gôndola ou uma grande diferen ça de preço entre a marca e o clo ne
cria uma pulsão no indivíduo. D ependendo do nível de preço do objeto desejado ou
procurado, da raridade, da intensidade d o desejo que se tem por ele e do montante do
desconto oferecido, as pu lsões adquirem intensidades diferentes! Algumas vezes são
irresistíveis.
No entanto, observamos que o H omo clíens, no m omento da escolha entre a marca
e o clone mais barato, freqüentemente se coloca a questão do risco assumido ... Os clien -
tes, ainda hoje, querem saber se o preço baixo n ão esconderia por acaso um risco, um
perigo. O risco está ligado ao tipo de produto e ao m esmo tempo à percepção de cada
consumidor. Para alguns produtos, como lenços de papel, gasolina, óleo diesel, o risco
percebido pela m aioria dos indivíduos é baixo, ou até m esm o inexistente22 • O consumi-
dor, de fato, mal o u nem imagina que esses produtos possam ser de m á qualidade. Para
o café que se toma de manhã , o risco parece mínimo para a grande maioria dos con su -
midores. Isso é bem m enos verdade para o café que se toma depois das refeições e ainda
menos para os cafés que não tiram o sono à noite! Para os sabões em pó, o risco é con -
siderado m áximo por quase todos. Os consumidores tremem diante da idéia de que o
sabão possa lavar mal o u, pior, estragar a lingerie, o vestido etc. Po rtanto, cada produto é

Produtos a granel e de varejo, respectivam ente. Em inglês no original. (N . do T.]


" A natureza dessas categorias pode mudar conforme o país. [N. do R . T.]
116 1O b l ues do consum i dor

naturalmente portador de uma cota de risco. Isso está ligado ao seu uso, àquilo que se
espera dele, à sua composição, à sua história, às diferentes experiências passadas que o
consumidor pôde ter ao mudar de marca ou ao tentar utilizar as marcas de preços bai-
xos, enfim, ao grau de informações e de conhecimentos que possui o consumidor.
Percebemos também que, conforme o indivíduo, o risco inerente a cada produto pode
ser percebido e imaginado com uma intensidade maior ou menor. Isso estaria ligado à sub-
cultura a que o indivíduo pertence, a uma espécie de tipologia da percepção do risco.
Assim, para alguns consumidores, o risco de comprar um produto que no uso possa
se revelar menos resistente, com um desempenho inferior ou sem um atendimento pós-
venda real pode ser urna boa razão para não se deixar tentar pelo preço. Para outros, ao
contrário, esses mesmos receios não pesam tanto diante da vantagem do preço! Essa
percepção tão diferenciada é particularmente verdadeira no caso dos eletrodomésticos,
dos aparelhos de som ou de televisão. Para alguns, o risco na compra das contramarcas,
nessa família de produtos, é total; para outros, o risco apenas existe. Nos produtos ali-
mentícios industriais, o risco de um gosto menos saboroso, de urna consistência dife-
rente pode fidelizar alguns clientes à marca, enquanto para outros esse receio, se existe,
é considerado um argumento que não merece que se deixe de aproveitar um preço ver-
dadeiramente baixo. Obviamente, sempre existe o risco de que o produto seja realmen-
te ruim ou perigoso para a saúde, mas em urna sociedade em que tudo é controlado,
medido, raros são os indivíduos que ao fim imaginam o pior!
Além de cada produto ser portador de um coeficiente de risco que poderíamos
chamar de 'estrutural', isto é, ligado ao seu estado ou ao seu uso, e cada indivíduo ter
urna certa percepção desse risco, observou-se recentemente que um novo fator é leva-
do em conta por alguns clientes quando escolhem entre a marca e o preço. Trata- se da
'frustração imaginária a priori' . É como se no momento da compra o indivíduo imagi-
nasse e projetasse o arrependimento, a frustração que ele sentiria no momento do con-
sumo caso tivesse decidido privilegiar o preço e não a grande marca . É o sentimento
que a dona-de-casa tem, por exemplo, quando imagina, no momento de ser seduzida
pelo preço, que o marido, os filhos ficarão frustrados por não encontrar suas marcas
favoritas e, com isso, certas referências, tais como o gosto, a cor e a parte de sonho liga-
dos à marca qu e eles preferem.
É também a consumidora que, ao ve r na prateleira, ao lado de sua marca habitual,
um produto clone para cachorros, prefere talvez pagar o preço m ais alto da grande
marca para não sentir a eventual frustração de ver seu fiel animal de estimação se rec u-
sar a comer a submarca .
É ainda a consumidora dividida entre um creme de barbear de marca e um produ-
to de marca de distribuição própria mais barato, que faz sua escolha baseada na frustra -
Capí tu l o 5 - A m í st i ca do c li ente na econ o m ia ps í qu i c a 1 11 7

ção que experime ntaria se seu esposo o u companheiro se sentisse decepcio nado por
não ter à disposição a m arca que ele u tiliza habitualmente.
A fru stração imaginária a priori é um sentimento novo, estreitam en te ligado à eco-
no mia psíquica, que dep ende ao m esmo tempo da imagem da marca, da relação do
indivíduo com esta última, de sua nostalgia, de sua experiência de comprad o r e de seu
grau de culpa dian te de uma sociedade de desfrute imediato qu e o desarma! O sen ti-
m ento de frustração imaginária a priori provém igualmen te do fato de que h oj e a idéia
de qu e possam os nos arrepender de qualquer coisa con stitui um constrangim en to insu-
p ortável. É essa frustração imaginária a priori que se tra nsformo u em um dos maiores
sustentác ulos da grande marca se sou bermos com o explorá-la. Essa ansiedade, essa pré-
fru stração, p arece estar em perfeita concordâ ncia com o buzz Jamily marketing 23 (marke-
ting de con tágio baseado n o rumor, no boca-a-boca e na fa mília) descri to, en tre outros,
por Richard Laeme r 24 • O autor lem bra que a d o na-de-casa não compra somen te para
ela q uando vai a u ma loj a. Ela é a 'compradora n om eada' dos diferentes membros da
' tribo' . N esse sen tido, ela tem a resp onsabilidade de comprar aquilo que convé m , m as
tam bém aquilo q ue n ão frustre aquele que lhe p assou a encom enda, em outras palavras,
o destinatário final da compra.
As observações feitas a p ropósito desse con ceito de buzz Jamily marketing m ostram
que após as compras, quando os produ tos chegam na casa e cada destinatário recebe sua
encomenda, não é raro que h aj a discussões na fam ília sobre o porquê das marcas esco-
lhidas o u não escolhidas, sobre o valor das comp ras etc.
O H omo cliens ' nomead o' p ara as compras de u ma família, de um grupo de amigos
o u de colegas sente, dependendo das m arcas, ou uma frustração imaginária a priori dire-
ta pelas com pras que lhe dizem respeito, ou uma frustração indireta p elas compras que
dizem respeito somente aos m emb ros de seu círc ulo.
Com o conclusão, podem os afirmar que os consumidores que escolhem a grande marca
o u a m arca em detrimento dos preços baixos são consumidores que levam em con ta tan to
a percepção tradicional do coeficiente de risco veiculado pelo produto, aliada à percepção
que venham a ter, q uanto à frustração imaginária a priori que eles têm com relação à ma rca.
Portanto, para defender suas marcas, os ind ustriais têm várias possibilidades em termos
de estratégia de comunicação. Podem , por exemplo, exacerbar os riscos estruturais ineren-
tes aos seus produtos por m eio de uma p ublicidade que provoque ansiedade. As pastas de
dente inventa m ' medos' que só a marca pode resolver, como os problemas cau sados pela
p laca bacteriana, pelas gengivas sensíveis etc. Para os sabões em pó, é a ansiedade ligada ao

" Emanuel Rosen defin e essa noção em sua obra Tl,e a11atomy efb11zz: how to c reate word ofmouth m arketing. N ewYork:
D o ubleday C urrency, 2002.
" Fui/ fro11tal PR: building buzz about your business, your product, or you. New York: WW N orton & Co. 2004 .
118 1O b l ues do consum i dor

calcário, ao depósito de sujeira, à perda de cor lavagem após lavagem que fideliza à marca,
marca essa que depois de ter lançado o problema é a única capaz de resolvê-lo.
As marcas também podem exacerbar essa frustração imaginária a priori. Apenas
algumas poucas firmas , como a Darty,já utilizam esse procedimen to em seus comerciais
de televisão. Para fazer o consumidor compreender que pode ocorrer uma frustração
imaginária a priori se ele não comprar em suas lojas, a Darty coloca em cena uma per-
sonagem cuj a filmadora digital apresenta defeito num domingo. Por não poder desfru-
tar da festa com sua mu lher ou seus amigos, ele é criticado por não ter comprado na
loj a que fica aberta justamente aos domingos, a saber, a Darty!
Essas ações logo se multiplicarão. E las têm o inconveniente de se basear em uma
criatividade nova, qu e terá de ser descoberta pelos publicitários e sobretudo aceita pelos
anunciantes! Esse não será o menor dos problemas.
Quando se trata de comparar o desempenho da grande marca com o dos clones,
no caso das compras em que há uma quase obrigação de passar por um vendedor, as
coisas são mais di6ceis. Embora os riscos ligados ao produto e as fr ustrações imaginá-
rias a priori ainda existam, no caso da venda em loj a é preciso levar em conta a interfe-
rência do efeito vendedor.
Nas farmácias, os pacientes hipertensos, por exemplo, hesitam em trocar a marca
que utilizam há anos por produtos genéricos.Afirmam que não se sentem tão bem com
esses produtos sem marca do que com o da grande marca. Todas as pesquisas conver-
gem, no en tanto, para explicar que se trata n esse caso de um efeito placebo. A substân -
cia ativa é a m esma, apenas o excipiente desses medicamentos é diferente por nature-
za, o que não muda o produto em n ada. N o entan to, as mudan ças de gosto e de cor,
cujos efeitos objetivos são nulos, podem ter efeitos subjetivos que são, é preciso reco-
nhecer, efetivos! Po r exemplo, a pressão, a taxa de colesterol o u a qualidade do sono do
paciente podem ser seriamente prejudicados pela frustração imaginária a priori que ele
sente. É o farmacêutico quem terá de convencer o pacien te que o gen érico é exata-
m ente da mesma natureza e tão bom quanto o medicamento original. Autorizado e
forçado pelo governo a su bstituir a marca prescrita pelo m édico por um genérico, ele
se obriga a vender o produto genérico ao maior número possível de pacientes. Ao
mesmo tempo, deve estar muito atento à frustração que ele pode provocar n os clien tes.
O vendedor de pneus das bandeiras Speedy ou Midas, por exemplo, provavelmen -
te fará de tudo para que o cliente que o procura para trocar os pneus compreenda que
a grande marca que ele quer é boa, m as não para alguém corno ele, que roda pouco,
que fez apenas 80 mil quilômetros em cinco anos, que nunca ou raramente faz trajetos
muito lon gos, que n ão mora em urna região m o ntanhosa, onde as estradas são ruins para
os pneus etc.
Cap í tu l o 5 - A m í st i ca do c li ente na econom ia psíquica 1 11 9

Ele dirá que na atual conjuntura comprar a grande marca, 20 por cento mais cara, é
uma heresia! Mostrará que a compra do clone não apresenta riscos, que, portanto, não é
preciso temer um perigo qualquer ou uma frustração a posteriori. Se o vendedor for bom,
ele conseguirá inverter a situação e frustrar quem queria pagar mais para ter uma marca!
No caso das lojas em que o papel do vendedor é primordial para as contramarcas,
os clientes que, apesar de tudo, permanecem fiéis à grande marca são, como no caso da
venda em auto-serviço, Homo cliens hiperconscientes da frustração e do risco que assu-
miriam ao dar ouvidos ao vendedor. O Homo cliens que, depois de todos os argumen-
tos do vendedor e da certeza da economia que faria ao escolher a marca de distribui-
ção própria, compra quatro pneus da grande marca deve estar intimamente convenci-
do de que prefere pagar mais caro e garantir sua tranqüilidade. Essa tranqüilidade no
momento do consumo se torna então, em uma economia psíquica, a verdadeira salva-
guarda das marcas contra as marcas de distribuição própria!
Se o coeficiente de risco do produto é alto e a frustração imaginária a priori é muito
nítida, como é o caso, por exemplo, das marcas de pneus para chuva, o vendedor nem se dá
ao trabalho de tentar apresentar o produto de marca de distribuição própria. Ele sabe que
não há nenhuma chance de o cliente mudar seu ponto de vista.As marcas fortes não temem
os esforços dos vendedores em favor da marca de distribuição própria. Convém apenas que
não se esqueçam de lembrar a eles os medos e as prováveis frustrações dos clientes.
Essa tranqüilidade pré-compra assegurada pela marca, e particularmente eficiente nos
produtos de moda, é o principal argumento de defesa da marca con tra o preço. Os respon-
sáveis pelo marketing devem compreender que sua estratégia de marca não deve evocar
somente as qualidades positivas da marca, corno é o caso atualmente, mas ressaltar também
os medos, as ansiedades, as frustrações imaginárias a priori das marcas. A comunicação da
grande marca deve ser, na verdade, um ato de prevenção e de advertên cia que visa a pro-
teger o consumidor contra sua própria tentação pelo preço. A comunicação de marca se
torna, entre outras coisas, o anjo da guarda do consumidor contra suas próprias tentações
e suas possíveis decepções. Um claro exemplo disso, no Brasil, é a comunicação da marca
Tigre, que, com muita criatividade e bom humor, oferece ao consumidor a escolha entre
comprar Tigre ou 'pagar mico', transformando, assim, uma commoditie em uma marca.

0 NOVO POSICIONAMENTO DAS MARCAS

Entre os conceitos operacionais do marketing, o 'posicionamento' das marcas e das


empresas é um dos princípios incontornáveis que conferem a elas sua força, sua dife-
rença e seu estatuto.
120 1O b Iu e s d o e o n s u m i d o r

Segundo JackTrout e Steve Rivkin 25, tudo ocorre no cérebro dos consumidores.Ali,
a marca encontra seu verdadeiro terreno de combate, um espaço de intenções generosas
para com o consumidor. Ali, ela imprime para sempre seu nome, sua vontade e sua uti-
lidade. Mas o posicio namento é também o partido, a missão da marca . Ele se exprime
por frases , verbos, palavras que proclamam as intenções universais e eternas da marca.
Para a Nestlé é: "Comida boa, vida boa"; para a Danone: "Em todas as partes do
mundo, fazer o homem crescer, viver melhor e se desenvolver, oferecendo a ele a cada
dia uma alimentação melhor, sabores mais variados, prazeres m ais saudáveis". A N ike
afirma: ''just do it" ["Simplesmente faça!"]; a General Electric assegura: " Imagination at
work" [" Imaginação trabalhando"]; a Avis diz: "We try harder" [" Nós nos esforçamos
mais"] ; e o Carrefour garante: "É aqui que a gente vai encontrar". Assim, cada marca
adere a uma vontade de ocupar um terri tório no cérebro dos consumidores. Esse posi-
cionamento se torna , por sua vez, uma fonte de 'orgu lho' principalmente para os cola-
boradores, e até para os distribuidores, e mais em geral para todos aqueles que de perto
ou de lo nge estão ligados à marca. No caso das vendas em loja, o orgulho que o ven -
dedor sente em promover uma marca bem posicionada é um dos meios mais seguros
de evitar um desvio para os clones!
No mercado dos refrigerantes de cola, são sobretudo a Coca-Cola ("Coca-Cola é
isso aí") e a Pepsi-Cola ("Nova geração") q ue dominam o mercado. Nos anos 90, o
segundo executivo mais importante da Coca-Cola alardeava sua vontade n os seguin tes
termos: " Fazer todo o possível para que cada habitante do planeta beba Coca-Cola".
Essas marcas são fortes, planetárias, n o sentido em que seus valores, seus territór ios,
suas diferen ças e seus m eios de comunicação garan tem a elas um reconhecimento de
fato e uma h egemonia mundial. Essas duas grandes marcas n ão temem os clones.Apesar
de existirem contramarcas em todos os países, no final das con tas elas não são realmen -
te perigosas para as duas m arcas líderes.A Virgin Cola do inglês Richard Branson , assim
como a Sam's Cola do Wal-Mart, conseguiram conquistar pequen as par tes do mercado
em uma determinada época, m as o ataque dessas marcas foi rapidamen te contido pelas
duas grandes. D e tempos em tempos, um canadense, um norte-american o o u um dis-
tribuidor ten ta se apropriar de uma parte desse formidável m aná que o mercado de
refrigeran tes de cola represen ta, mas essas tentativas n ão preocupam as marcas líderes.
As coisas talvez estejam a pon to de mudar por causa da nova economia psíquica!
Na França, ao lado dos refrigerantes de marca própria, das contramarcas e das duas
grandes marcas, j á se encontram a B reizh Cola, a C hti'Cola o u a Corsica Cola.

Les 11ouvel/es /ois d11 positio1111e111e11t. Paris: Éditions Village Mondial, 2004. [Ed. brasileira: O 11ovo posicio11a111 e11to. São Paulo:
Pearson Makron Books, 1996.J
Cap í tu l o 5 - A m í st i ca do c li ente na econom i a ps í qu i ca 1 121

O pú blico vê esses refrigeran tes não com o con tram arcas, mas como refrigerantes
regio nais, p osicionados como um ' ato de resistência' à globalização e às todo-poderosas
multinacionais. Po rta nto, o com bate não é travado nos corredores dos grandes super-
m ercados, na fren te das prateleiras. Ele está nas ruas, nos j o rnais, nos eventos e, mais em
geral, em q ualque r lugar onde as comunidades possam se encon trar e partilhar suas
em oções. Assim, n o jornal Nouvel O uest nº- 95, de junho de 2003, lia-se o seguinte:
"Apesar de m inú sculo em relação aos concorrentes, o m ercado dominado pelos refri-
geran tes de cola bretões p rogride : Breizh Cola acaba de destronar a Pepsi n o Festival
Inte rcéltico de Lo rient (600 mil p essoas duran te dez dias de festa, em agosto) e a Coca
no Festival Art R ock de Saint-Brieuc (40 mil participantes) ".
M ais interessan te ainda é o exemplo da M ecca-Cola! Lan çada n o ram adã de 2002
por Tawfik Mathlo uthi e inspirada no Z am Zam Cola iraniano, ela se gaba de um n ovo
conceito: "a economia a serviço da ideologia", e se lança no financiamen to de causas
de caridade muçulman as.
A M ecca-Cola é um refrigerante de cola vendido no contexto de um posiciona-
m ento muito particular. Esse refrigerante de cola se destina aos consum idores árabes e
mu çulmanos da Europa e, em geral , de todos os países do mundo árabe. Ele propõe aos
clientes que consumam de uma m an eira diferen te e ostenta n o ró tulo : "Não beba como
estúpido, beba com compromisso!", " M ecca-Cola the taste of freedom" [" Mecca-Cola, o
sabor da liberdade"]. Além disso, a empresa Mecca- Cola Beverages p romete em seu site
na Internet "doar 20 por cento de seu lucro líq uido para obras de caridade; 10 por cento
serão revertidos às obras palestinas estritamen te huma nitárias que privilegiem a infância
e o saber.A fundação M ecca-Cola usará todos os meios à sua disposição para que a aju da
concedida não sej a desviada de seus objetivos e rem etida a facções combaten tes".
O s 10 por cento restan tes serão revertidos, no que diz respeito à Europa, a associa-
ções q ue trabalhem pela paz no mundo e apóiem o p ovo palestino em sua luta legíti-
m a pela independência. Finalmen te, a m arca pede aos con sumidores que nunca mistu-
rem o refrigeran te ao álcool, substân cia proibida p elo Corão.
M ecca-Cola, Breizh Cola e o utros que ainda estão por vir n ão se apresen ta m com o
clon es da Coca- Cola. Essas m arcas não que rem o estatuto de submarca o u con tramar-
ca. N ão oferecem um gosto m elhor, uma digestão mais fácil, um preço men or! Também
não oferecem um posicion am ento clássico, focado no ' algo a m ais', no ' melhor' . Esses
refrigeran tes de cola praticam um posicion am ento de estilo muito n ovo, que dá à marca
uma diferen ça de natureza essencialmente 'política' .
A Mecca-Cola é uma bandeira, um valor de com bate para os seus clientes.A marca
tom a partido, leva em conta a frustração daqueles que gostam do sabor da cola e são
o brigados a beber um produto n or te-american o.Assim como a Bre izh Cola e a Corsica
122 1 O b l ues do consum i dor

Cola, a Mecca-Cola inscreve seu posicionamento no campo da marca 'identitária', da


marca política! O território da marca é a contestação. Por essa razão, mais do que uma
marca, a Mecca-Cola é o que poderíamos chamar de marca claim26 • Não se trata mais
de se instalar no cérebro do indivíduo com a promessa de um ben efício do produto,
mas em seu próprio coração ou alma por uma transferência de emoção, de responsabi-
lidade. Homo consomatio e Homo cliens se confundem aqu i em uma nova entidade: o
cliente 'partidário'! Os partidários da Mecca-Cola, da Breizh Cola não são contra o
produto Coca-Cola, mas contra sua marca, sua origem , sua imagem e sua procedência.
Essas marcas colocam uma questão simples ao mercado: o que existe de mais frus-
trante hoje em dia do que ser obrigado a consumir um refrigerante de cola fabricado
pelos norte-americanos e sobretudo por marcas que são a expressão de uma ideologia
('o capitalismo'), de uma maneira de viver ('o imperialism o econômico')? O que exis-
te de mais frustrante do que imaginar que a cada vez que se compra um produ to de
uma grande marca norte-americana os fundos de pensão norte-americanos se fortale-
cem, aqueles mesmos que sustentam a globalização e a hegemonia norte-americana? O
que há de mais fru strante, por fim, do que ser prisioneiro de um sabor que se aprecia,
mas que se deveria evitar em respeito às convicções pessoais?
Essas marcas políticas interessam, obviamente, apenas aos diferentes segmen tos da
popu lação que se sentem incomodadas com a imagem excessivamente invasiva das duas
grandes marcas norte-americanas. A estratégia desses refrigerantes de cola con siste, por-
tanto, n ão mais em criar apreciadores desse tipo de bebida, com o foi o caso dos líderes
tradicionais do mercado, mas recrutar partidários, m ilitantes que acompanhem a causa
defendida pela marca . Isso implica escolher uma comunicação do tipo propaganda e
abandonar os modelos clássicos de comunicação baseados na tentação.
O que se esboça para os produtos parece se confirmar também para as marcas de
distribuição própria. Em um setor de atividade inteiramente dife rente, o distribuidor
no rte-americano de lingerie American Apparel é o exemplo de uma n ova geração de
marcas claim e de um posicionamento político.
Em 1993, o can aden se Dov C harney abriu uma fábrica nos Estados Unidos. Ele se
dizia um crítico ferrenho da transferência da indústria têxtil e das sweat shops, termo
reservado às grandes empresas acusadas de explorar a mão- de- obra para reduzir custos.
Abriu lojas em Nova York, Los An geles, M ontreal e Frankfurt para vender lingerie e
roupas íntimas comparáveis aos outros produtos do mercado, mas que veiculam um
valor forte : "o combate contra a exploração dos homens pelos homens" . Os clientes

O substantivo inglês claim pode ser traduzido por reivindicação, reclamação, pretensão, N a forma verbal, indica o ato de
reclarnar, reivindicar, afirniar seus direitos. Poderían1os, então, traduzir niarca daim por niarca 'reiv indicante' ou 'afinnativa'
de seus direitos. [N, do T.)
C a p í tu I o 5 - A m í s t i e a d o e I i ente n a e e o no m i a p s í q u i e a 1 123

apreciam as loj as, os produtos, mas sobretudo ficam felizes em saber que a American
Apparel é lucrativa, algo que nos Estados Unidos é essencial. Ela afirma empregar mais
de 1.300 funcionários e pagar aos operários cerca de 15 dólares por ho ra, enquanto nos
ateliês clandestinos os tra balhadores não registrados ganham menos de 4 dólares por
hora! Além disso, a empresa oferece aos seus funcionários um plano de cobertura social,
algo que não é pouca coisa nos Estados Unidos!
A American Apparel tem a vontade de enfrentar os problemas que tornam muitos
norte-americanos, que são menos profit oriented27 do que se pensa e mais cidadãos do
mundo do que se imagina, frustrados com o comportamento pouco caridoso de algu-
mas das suas grandes empresas líderes.
A American Apparel quer ser como a Mecca-Cola, uma empresa que toma uma
posição 'anti'. A marca procura se inserir em uma causa que envolve mais a consciên -
cia do que a salvaguarda e a segurança das vantagens conqu istadas.

A MARCA CLAIM

Para se inserir em um posicionamento político e fazer de uma marca uma marca


claím, é preciso respeitar as novas regras.Antes de tudo, é preciso redefinir a noção de mer-
cado e de consumidor. O mercado não é mais uma soma ou um amontoado de segmen-
tos de consumidores definidos por seu perfil socioecon ómico (idade, poder de compra,
situação familiar, local de moradia, tipo de emprego, profissão e tipo de necessidades).
No caso das marcas do tipo claim, o mercado deve ser con siderado um mercado de
comunidades de indivíduos caracterizados por seu grau de vitimização e suas frustrações
partilhadas, aliadas à sua von tade de resistir o u de combater um inimigo, um oponente.
A Breizh Cola se concentrou nos bretões, em sua preocupação por independência,
em sua vontade de preservar seus valores, em seu desejo de resistir às empresas líderes
da globalização. O Homo consomatio não se contenta nesse caso em saborear, em desfru -
tar o produto o u o serviço que lhe é oferecido. Ele abandona por um instante seu hábi-
to tradicional de cliente e se torna, graças à marca, um partidário, um m ilitante, um par-
ticipante de uma ação voluntária de resistência.
Q uando um jovem passeia pela avenida C ham ps-Élysées com um blu são que
ostenta nas costas a frase 'No logo', ele não faz outra coisa senão se identificar como um
militante adepto das idéias do sociólogo Paul Rey e de seu m ovimen to 'clean clothes' 28,

Orientados pelo lucro. Em inglês no original. [N. do T.]


Roupas limpas. Em inglês no original. [N. do T.]
124 1O b Iu e s d o e o n s u m i d o r

um partidário e admirador de Naomi Klein e de sua obra No logo, publicada em 2000.


E le dá, finalmente, uma 'marca' ao seu blusão. Sobre esse blusão,' No logo' não é mais
uma marca igual às outras, mas um claim, isto é, uma reivindicação! A marca claim tem,
portanto, um duplo efeito sobre o Homo consomatio. Em um primeiro momento, ela
propicia o desfrute do produto como faria uma outra marca qualquer; em um segun-
do momento, a satisfação de participar de um combate!
Nesse novo mercado feito de comunidades, partidários e militantes, convém obvia-
mente que os princípios de missão, território e posicionamento da marca sejam redefinidos.
A missão da marca claim é clara: ela está ali para livrar o consumidor das imposições
do 'sistema' , a fim de que ele desfrute do produto de maneira harmoniosa e sem remor-
sos. Ela oferece aos seus partidários uma solução única, a saber, a possibilidade de se satis-
fazer com um produto do sistema já existente, sem que por isso este último seja a causa
de uma culpa ou o motor de uma frustra ção ou de uma falta de liberdade.
O território da marca se exprime por meio de valores de combate que permitem
ao consumidor recuperar sua liberdade de escolha e, mais em geral, seu livre-arbítrio
diante da sociedade.
A marca claim, sendo por definição uma marca responsável e comprometida, obr i-
ga o consumidor a fazer uma escolha entre o bem e o mal, e não mais entre o bom e
o menos bom, o caro e o menos caro, como fazem as marcas da economia da n ecessi-
dade. Seu p osicionamento se exprime, portanto, com o uma 'vontade', bem mais do que
o de urna marca de produto. Uma marca claim fa la ao coração, n ão à razão. Nessas con -
dições, a definição dos eixos do seu combate, os motivos da sua resistência, a frustração
à qual ela se liga constituem os novos critérios fundadores do seu posicion amento.
O posicionamento político da marca subentende a idéia de qu e a empresa que a con-
trola se compromete com os clientes a defender não diretamente seus interesses pessoais,
m as os interesses da comunidade definida pelo combate. Não se trapaceia com o posicio-
namento de urna marca claim: a empresa por completo deve apoiar a escolha estratégica.
É tentador buscar experiências conhecidas na história das empresas que gostaría-
m os que fossem aparentadas com o princípio da marca claim. Nos anos 60, a FNAC
(Fédératio n Nationale des Acheteurs Cadres29) não era também, como a American
Apparels, uma bandeira com um posicionamento político? Embora a missão dessas lojas
fosse permitir aos jovens trabalhadores que aproveitassem o boorn da fotografia e do
cinema, com preços realmente mais baixos do que os preços propostos pelo comércio
especializado da época, embora os criadores da empresa, Esse! e T héret, e a maioria dos

Fe deração N acional dos C onsumidores Funcionários, isto é, uma loja para os func ionários e não para os patrões.
[N. do T.]
Cap í tu l o 5 - A m í st i ca do c li ente na econom ia psíquica 1 125

vendedores fossem revolucio nários de esquerda politicamente e ngaj ados, e e m bora eles
proc urassem mais acon selhar d o que vender, nem por isso o p osicio nam en to da empre-
sa era de fa to o p osicio nam en to de uma m arca claim. Essas loj as dava m , é claro, u ma van -
tagem substancial em termos de preço, e o cliente e ra tratad o de uma maneira n ova, ele
se tornava um partidá rio; n o e ntanto, a empresa se inseria em uma civilização da n eces-
sidade. A FNAC p ermitia ter m ais, m as n ão de m o do diferente. Pe rmi tia que o clien te
desfru tasse os prod utos, um sortimento completo a preços baixos, m as sem envolvê-lo
em uma vontade de se livrar de uma frustração.
O s super mercados Le clerc estiveram p rovavelmen te muito perto de ser uma marca
claim nos anos 80. A bandeira lutava na época contra o alto custo de vida, con seqüên -
cia de uma inflação de d o is dígitos. D enunciava os respo nsáveis po r essa situação, como
as red es (Casino, D ocks de France) e, é claro, o governo, que colocava em votação leis
que impunham preço único para os livros e p roibiam a prática de descon tos superiores
a 5 p or cento. A comunicação de tipo dialético visava à criação de partidários. Sem
inflação e sem inimigos, a bandeira se p osiciona hoj e com o uma bandeira tradicion al
de supermercad os. Com relação aos produtos, o con ceito conhecido como 'comércio
eqüi tativo' se assemelha um pouco, por seu posicionamento, com o das ma rcas claim.
E mbo ra a vontade de agir dos prom o tores se insira em um combate e para alguns se
trate de uma cau sa nobre, não é m enos verdade que estrategicame nte a bandeira pare-
ce m ais q ue rer sensibilizar o consumidor para a disfunção econ ômica do m undo do que
engaj á-lo com o militan te ativo con tra um inimigo designad o. M ais do que respon der a
uma de suas grandes frustrações, parece q ue nesse caso a bandeira se dedica essencial-
m ente a fazer o cliente participar de uma obra de m oralização da econo mia. Parece
ocorrer o m esm o com os produ tos e as m arcas dos produ tos ' naturais' . Esses produ tos
respondem o bviam ente a uma necessidade, a uma garan tia, mas não con stituem uma
plataforma de com bate esp ecífico.
Esses exem plos m ostram que o posicio namento de uma marca claim n ão deixa
espaço para com promissos, palavras bo nitas, promessas fictícias ou boas intenções. Para
que a m arca claim possa se instalar no cérebro do consumidor, é p reciso ainda que exis-
ta imperativamente uma problemática fr ustrante para os clientes e que ela se baseie
naquilo que é conveniente chamar de o rdem social. N o caso da M ecca- Cola, a ordem
social é en carnada pela hegem o nia n orte-am ericana ligada à dominação das bebidas à
base de cola. Para a American Apparel, a ordem social é a dominação das marcas que
não respeitam o trabalhador n orte-americano. No caso da FN AC e dos produ tos do
com ércio eqü ita tivo, não h avia propriame nte u ma o rdem social polarizada. Portan to, as
m arcas claim não podem apen as afirmar suas va ntagens sem provar sua participação n a
reestruturação da orde m social. É som ente com essa condição que elas podem par tilhar
126 1O b Iu e s d o e o n s u m i d o r

suas convicções e seu combate com seus partidários e militantes. Essas marcas mais se
'oposicionam' do que se posicionam.
Os efeitos psicológicos da globalização sobre os indivíduos, os problemas causados
pelos exageros do marketing da comunicação percebidos e sentidos pelos consumidores,
as divisões, a necessidade de pertencer a um grupo social oferecerão em todos os países
inúmeras possibilidades de criação de marcas claim tanto para os produtos como para a
distribuição, que terão apenas a dificuldade da escolha na hora de levar em conta a ordem
social perturbada de um dado setor de atividade. Essas serão as novas plataformas de
combate. É muito provável que em um futuro próximo smjam por quase todo o mundo
marcas claim que ofereçam aos clientes a possibilidade de participar de lutas contra, por
exemplo, a transferência de indú strias, as hegemonias, as potências etc. As marcas claim
terão a vantagem de não ser marcas 'objeto' da distribuição, mas antes marcas 'sujeito'.
Isso será uma grande mudança na relação de força entre a distribuição e a produção.
A marca claim precisará se comunicar como as outras, mas é claro que no seu modo
de comunicação; as marcas claim utilizarão princípios radicalmente diferentes daqueles
adotados até aqui pelas grandes marcas clássicas.
Enquanto a marca clássica continuará a jogar com a parte de sonho, as marcas claim,
ao contrário, se comunicarão na base da ' revelação e denúncia da frustração'. Não se
tratará mais de mostrar ao indivíduo todo o bem que o produto lhe propiciará, mas, ao
contrário, toda a frustra ção que ele evitará ao tomar uma p osição e escolher uma marca
claim. Em o utras palavras, enquanto a comunicação clássica diz: "Pegue, é bom, melhor,
mais bonito" , a comu nicação da marca claim denuncia , sensibiliza e conscientiza a res-
peito do combate. Terá apenas de dizer: "Olhe, to me consciência e fiqu e aliviado, feliz
com sua decisão correta", j á que ela precisa vender e garantir o produto.
É uma mudança radical no m odo de comunicação o que se coloca aí. Em uma
m arca claim, não são mais os beneficios proporcionados pelos produtos que trazem o
desfrute, mas sim os beneficios da escolha política que une os partidários à causa
comum.
Essa nova comunicação das marcas claim se acomodará perfeitamente à revolução
da Internet. Enquanto a comunicação tradicional está perfeitamente instalada na mídia
(televisão, revistas), que favorece a m anifestação da parte de sonho e os recu rsos da
sedução, a Internet será a nú dia privilegiada da mensagem 'revolucio nária' . Essa men-
sagem se revelará tanto mais poderosa n a medida em que, dados os custos orçamentá-
rios ínfimos, as marcas claim poderão se comunicar com seus partidários por meio de
mensagens fortes, cativantes, convincentes e envolventes, como j á é o caso da Breizh,
da Corsica e da M ecca-Cola. Graças às possibilidades do chat, à difu são do vídeo, os
clientes poderão en trar em contato com os revolucionários, isto é, com os precursores
Cap í tu l o 5 - A m í st i ca do c li ente na econom i a ps í qu i ca 1 127

da m arca, como é o caso da A me rican Apparel.As ma rcas claím ocuparão assim um espa-
ço m.idiático novo, q ue será para eles cada vez mais legítimo.
M as essa comunicação deve respe itar algumas regras.
Na economia tradicional baseada na resposta às necessidades, não é raro que a empre-
sa, por m eio de sua comunicação, no ara de seduzir, prometa demais com relação à qualida-
de, ao serviço e ao acolhimento ! Esses excessos midiáticos, com o se o bserva em todos os
setores de atividade, estão muitas vezes n a base das m aiores frustrações! Se prometer demais
tem efeitos negativos evidentes na economia clássica, em uma economia psicológica isso é
fatal N a economia clássica, a m arca pode decepcionar, mas a imagem negativa que resulta
daí não é forçosamente definitiva. Com o tempo, uma marca tradicional pode fazer com
que seus erros sejam esqu ecidos. A R enault, cuja qualidade dos veículos deixava a desej ar
em uma determinada época, do mesmo modo que o serviço pós-venda, conseguiu fazer
com que seus defeitos fossem esquecidos e reconquistar a clientela. O mesmo ocorreu com
a Peugeot que, apesar da estréia realmente dificil de algun s de seus m odelos, soube reverter
a situação desfavorável.A Coca-Cola, apesar de uma falha terrível nos anos 80, fez com que
seus erros estratégicos fossem esquecidos. Le Fo uquet's, um grande restaurante da C hamps-
Élysées, recuperou seu lugar no universo dos restaurantes chiques de Paris, depois do escân-
dalo provocado por seu abastecimento. Acontece com as m arcas o mesmo que acontece
com os grandes campeões: com muita seriedade, o retorno é sempre possível.
Na econo mia das m arcas claím, as coisas são radicalmente diferentes. Como nesse
caso o H omo consomatio é um partidário, ele n ão tolera men tiras ou abusos contra seus
bon s sentimen tos.A em presa que não respeita r seus com promissos será aba ndonada por
seus militan tes.
Como n essa n ova econo mia o H omo consomatío se define também com o parte de
uma comunidade e não mais de um m ercad o, qualque r traição tom a proporções inco-
m ensuráveis n o nível dos efeitos bilhar. Os efeitos de vingança podem adquirir ampli-
tudes ex trem as. Se am anhã se divulgasse q ue a Mecca-Cola n ão tran sfere as quan tias
prom etidas às crianças da Palestina o u que a marca per tence, por exemplo, a um grupo
no rte-am ericano, seria o fim da m arca, do mercado e provavelmente de todos aqueles
que tivessem a m esma filosofia de posicion am ento do tipo 'ato de resistên cia' .
Nessa economia do desfru te imediato sem imposições, em que a resposta às frus-
trações d o H omo cliens se define com o o m o tor da dinâmica da emp resa e a p lataform a
sobre a qual se ergue o combate da ma rca claím, não se cogita a hipótese de decepcio-
nar os consumidores.
Antes mesm o de falar em comunicação e p ublicidade, isto é, n os meios de difun -
dir a informação, assegurar e entusiasm ar os partidá rios e reunir a comunidade, é n o
nível da con sciência da emp resa q ue se devem concentrar os esforços.
E DEPOIS DE TUDO :

OS VENCEDORES E OS

PERDEDORES DA NOVA

ECONOMIA PSÍ QUICA!

S
e aceitarmos a idéia de que a pesquisa da necessidade, para os operadores,
n ão está mais no centro do dispositivo e que as empresas, para sobreviver e
prosperar, terão de encontrar respostas para a relação satisfação/imposições,
a questão que nos colocamos é a seguinte: quem ganha , quem perde, quem desaparece,
quem surge e o que acontece depois?
Prever o futuro do consumo, da distribuição, do automóvel, dos produtos alimen -
tícios, da administração, das instituições e, em geral, do mundo tal como ele é, é urna
coisa dificil, para não dizer impossível em alguns casos. M as ela se com plica ainda mais
neste começo de terceiro milênio quando se considera que, com o que por acaso, a c he-
gada da economia psíquica, que deveria mudar tudo, ocorre em um momen to mu ito
particular da evolução da economia tradicional.

A DEMORA PARA ENTRAR NA ECONOMIA PS fQUICA

Era de se esperar que as empresas com pouco diferencial procurassem com urgên -
cia formular respostas novas para necessidades an tigas o u ainda se voltassem para o estu -
do das frustrações e a pesquisa de n ovas idéias para satisfazer os clientes sem lhes impor
obrigações. Passar do m arketing da necessidade para o m arketing da fru stração parecia
uma passagem obrigatória para a maioria das grandes empresas. Na realidade, é preciso
reconhecer que, para muitas empresas, as coisas não caminham nessa direção. A história
às vezes é cheia de malícia! Prova disso é que não é segredo para ninguém q ue o atra-
so dos países comunistas em matéria de con sumo d uran te a próspera era do m arketing
Cap ít ul o 6 - E depo i s de t udo : os vencedores e os perdedores da nova econom i a ps í qu i ca ! 1 129

da necessidade dos países ricos é, hoje, o melhor aliado dessas empresas muitas vezes sem
fôlego do mundo ocidental. Tudo indica que mercados gigantescos estão se abrindo hoje,
nesses novos horizontes, para os fabricantes de automóveis, de artigos esportivos, de cos-
méticos, de moda, de artigos para bricolagem, assim como para as grandes bandeiras de
distribuição etc.
Por que então tentar responder às frustrações dos consumidores plenamente satis-
feitos e mimados das nossas regiões com novos produtos e novos serviços quando sabe-
mos que os chineses, os russos e muitos outros comprarão aos montes, graças ao nosso
know-how e ao trabalho deles, nossas marcas de automóveis, de aparelhos de televisão,
de perfumes, de sabonetes, de raquetes e bolas de tênis e, em geral, todos esses produ-
tos e marcas que fizeram nossa glória e caracterizam nossa civilização? É claro que a
perda de velocidade do marketing da necessidade em alguns de nossos mercados encon-
trará no vácuo deixado pelos 'comunistas' uma tábua de salvação, uma lufada de ar que
ao menos momentaneamente relançará a máquina!
Entre a infinidade de turbulências que esse pedido de ar vindo dos antigos países
marxistas criará, uma delas provavelmente terá conseqüências diretas sobre as estratégias
de inovação das empresas do mundo ocidental.
Como se sabe, está se tornando cada vez mais dificil satisfazer o Homo consomatio
em nossos países. Em tais condições, pode parecer mais lu crativo para alguns investir
nesses novos m ercados movidos a n ecessidade, deixando para outros os mercados movi-
dos a fru stração. N os novos mercados movidos a necessidade, como a C hina, basta reto-
mar os casos de sucesso passados e presentes de nossos mercados, em seguida transferir
a técnica, treinar os vendedores, abrir os mercados e esperar que os lucros se realizem.
Agindo assim, é provável que toda energia dessas empresas 'conquistadoras' tenda
essencialmente para esses jardins do Éden do novo consumo. O s melhores administrado-
res, assim como os diretores e os funcionários com melhor desempenho nessas empresas,
passarão alguns anos nesses países para construir, organizar, produzir, formar. E les se bene-
ficiarão de um padrão de vida excepcional, participarão de uma aventura fabulosa e só
retornarão aos seus países de o rigem para férias, festas de família ou quando se aposenta-
rem . Durante seu exílio colonialista, nunca se sentirão isolados de seus países. O telefone,
a Internet, a webcam, as tecnologias modernas de comunicação permitirão que eles este-
jam todos os dias em contato com suas famílias, seus amigos e as novidades de seu país.
Alguns jovens e grandes talentos promissores de nossos países migrarão, portanto,
para os países da Cocanha 1• Eles deixarão um grande vazio nos mercados. Para as n eces-

Cocanha é um país imaginário da mitologia medieval, onde há fartura e abundância de tudo e não é preciso trabalhar.
[N. do T.)
130 1 O b Iu e s d o e o n s u m i d o r

sidades de sua aventura, formarão por sua vez talentos entre os autóctones. Estes últimos
não descansarão enquanto não se tornarem chefes. Esses novos talentos, com muitos
conhecimentos e possibilidades de compra, terão, como é de se esperar, a idéia de imitar
seus mentores e passar férias nos países ricos por simples efeito de mimetismo. O turis-
mo dos novos talentos será um dos grandes mercados do futuro para os nossos países.
Muitas empresas fabricantes de bens de consumo acreditarão ter fina lmente se
livrado nesses novos mercados do jugo da 'internacional distribuição' representada por
Wal-Mart, Carrefour e outros. Por um momento, imaginarão que essa nova corrida do
ouro será o fim dos distribuidores ancorados em serviços de compra impiedosos, infle-
xíveis e insensíveis, e que se verão livres das marcas de distribuição própria que desa-
fiam suas marcas e imagens nas gôndolas dos supermercados.
Isso seria dar prova de uma inocente e imperdoável candura. Em todos esses novos
países, como em qualquer o utro lu gar, será necessário um sistema de distribuição. E le
será obviamente poderoso, onipresente e, é preciso dizer, indispensável. Com efeito,
como levar as marcas até o consumidor final sem passar por uma distribuição, interna-
cional ou não? Mas como esses novos consumidores, privados durante décadas do mais
simples efeito de marketing, vão dispor ainda por muito tempo de ganhos pequenos,
eles visitarão esses templos do con sumo com grandes olhos de criança, como se fossem
a um teatro grátis. Infelizmente, deixarão apenas algumas moedas na bolsa dos distri-
buidores. Guardarão seus ganhos minguados para os produtos de luxo e, para o resto,
recorrerão, com o nós temos feito, às marcas de distribuição própria, q ue o mais das
vezes são fabricadas em seus próprios países.
Seja corno for, para voltarmos aos industriais conquistadores, é evidente que eles n ão
terão mais tempo n em vontade de fazer os esforços necessários para responder às frustra-
ções dos atuais consumidores em nossas latitudes. Resolverão o problema lançando no
m ercado produtos igualmente frustrantes, m as claramente mais baratos,já que serão fabri-
cados em lugares onde o preço da mão-de-obra e as condições sociais ainda serão por
algum tempo do tipo daquelas que existiam nos tempos do Germinal2.
Os países que ainda são comunistas ou estão saindo do comunismo se tornarão, por-
tanto, os verdadeiros locais de produção e de distribuição do mundo. Serão os territórios
onde se forjarão as inteligências técnicas e com erciais do am anhã, até que seus consumi-
dores se tornem frustrados por sua vez. O que ainda assim levará algum tempo! Enquanto
isso, em nossos países, o H omo consomatio estará, é claro, ainda e cada vez mais frustrado,
mas por comprar mais barato não perderá tota h11ente o gosto pelo consumo. Poderá,

R eferê ncia à obra de Émile Zola. Clássico naturalista que descreve as condições sociais e políticas da sociedade francesa
no século XJX, G erminal se baseia na experiência pessoal do autor con10 nlineiro e1n tuna 111ina de carvão. [N. do T.]
Cap ít ul o 6 - E depo i s de t udo : os vencedores e os perdedores da nova econom i a ps í qu i ca ! 1 13 1

sobretudo, comprar mais produtos, mais serviços, ter mais férias, mais tempo livre etc.
Podemos afirmar, sem risco de nos enganar, que haverá uma contra-reação a essa opera-
ção de transferência de cérebros, de fábricas, e às suas preocupantes conseqüências sociais.
Essa contra-reação, essa rejeição da inevitabilidade anunciada da transferência, da geração
de desemprego, da perda de dignidade dos cidadãos mais humildes será, como sempre,
uma extraordinária oportunidade para aqueles que souberem aproveitar as chances!
Enquanto os industriais, tanto fabricantes quanto distribuidores, farão um esforço
considerável para crescer rapidamente nos novos mercados e ao mesmo tempo conser-
var sua participação nos países já conquistados, o Homo consoma tio dos países ricos con-
tinuará a se sentir frustrado, vítima e, conseqüentemente, por reação, começará a se
comportar de uma nova maneira. Toda a sua energia tenderá para a busca de um novo
substituto: a compensação emocional.
O indivíduo frustrado precisa encontrar rapidamente alguma coisa para fazer a fim
de recuperar o equilíbrio. Precisa compensar as obrigações com uma 'alegria', uma
emoção forte, fugaz, que não exija uma reflexão muito prolongada. O fenômeno não é
novo, apenas toma uma intensidade inesperada.
Tradicionalmente, tempos atrás, quando as coisas iam mal, quando nos sentíamos
abandonados pelos amigos, procurávamos alguma coisa que pudesse nos con solar até o
mau momento passar. Era a busca da compensação emocional. As mulheres, por exem-
plo, iam ao cabeleireiro, mudavam a maquiagem, iam às lojas, beliscavam alguma coisa;
os homens v isitavam um amigo ou urna ex-namorada, assistiam a um filme no meio da
tarde ou iam a uma concessionária ver o carro dos seus sonhos e acabavam tomando
um gole no bar da esquina!
Hoje, a maioria desses remédios ainda existe, mas sofre uma forte con corrê ncia dos
meios tradicionais, como as atividades tisicas, a bricolagem, o artesanato, e agora tam-
bém dos novos meios, como o telefone, a Intern et, os jogos ...

Os NOVOS MERCADOS DA COMPENSAÇÃO EMOCIONAL

O indivíduo se sente entediado, sozinho e abandon ado? N ão sej a por isso: graças
ao celular, ele telefona para o o utro, ou melhor, para os outros. Hoje não se diz nada
além de: "Estou mal, e você?". Enviam- se e recebem- se fotos e mensagens SMS pelo
prazer de sair da má situação em que se encontra, para respirar, compensar, partilhar o
sofrimento e 'desligar'. Nesse sentido, o telefone celular entra no arsen al dos remédios
necessários para c urar as pequenas o u as grandes depressões, do mesmo modo que o
Prozac ou outras drogas con sideradas eficazes n esses casos.
132 1O b Iu e s d o e o n s u m i d o r

Em 2003, no mundo todo, havia mais de 1 bilhão e 400 m il assinantes de celula-


res e um total de 5,6 bilhões de ligações an uais, o que equivale, por indivíduo, a 1.460
ligações por ano ou 4 por dia. O mercado total de comunicação por esse tipo de apa-
relho se eleva a mais de 11 bilhões de euros. Na França, por exemp lo, há 40 milhões de
usuários de celular e mais de 2 bilhões de m ensagens SMS foram enviadas durante o
primeiro trimestre de 2004.
O fato é que a busca de compensação emocional por meio do celular representa
entre 10 por cento e 12 por cento das despesas da casa . E esse número não pára de
aumentar! Grande gerador de emoção, o celular está apenas no começo de sua existên-
cia, se admitirmos q ue ele serve prioritariamente à busca de compensação emocional.
Esse meio tem apenas um inconveniente: consumirá uma parte cada vez maior do
orçamento do indivíduo ou das fanú lias, mas nem por isso dará mais empregos às pes-
soas. Para cada 100 euros de consumo de celular, utiliza-se apenas 0,3 por cento de
mão-de-obra, ou seja, 10 vezes menos do que para construir um avião. Enquanto o
Homo consomatio gasta seu salário com o celular, a questão que se coloca é quais produ-
tos e empresas arcarão com essa perda de receita.
A necessidade de compensação emocional se encontra, assim, no uso da Internet e
na visita aleatória do ciberespaço. O indivíduo está entediado? Rapidamente ele acessa
seu navegador da Web. Ali, ele aprende, viaja , sai do casulo, da prisão fami liar, entra em
uma outra dimensão e se esquece do peso da vida. Na França, em 2003, quase 10
milhões de indivíduos eram assinantes de p rovedores e passaram mais de 94 milhões de
horas diante do computador! M ais uma vez, a questão que se coloca é de quem são tira-
dos o tempo e o dinheiro representados por essas assinaturas? As pessoas vão menos às
lojas? Lêem menos? O cinema e as conversas em fanúlia foram trocados por esse con -
sumo mais uma vez não produtivo do tempo? N inguém sabe de fato! Mesmo assim,
tanto os fabricantes com o os distribuidores devem se preocupar com esses comedores
de orçamento e de tempo de vida . Aqueles que por causa de seus produtos já estão n o
m ercado da compensação emocional, como os cabeleireiros, os restaurantes, os fabri-
cantes de petiscos e de bebidas alcoólicas de todo tipo, devem se preocupar em com-
preender como as transformações da sociedade vão afetá-los.
Obviamente, dentro dessas n ovas formas de compensação emocional, n ão se esco-
lhe entre tal o u tal meio. Isso seria uma frustração suplementar. Ninguém diz: "Eu tele-
fono, mas não n avego na Internet" ou v ice-versa. Não, todos fazem tudo e um pouco
mais. O pouco mais é também e sobretudo o jogo. Jogar na lo to, j ogar urna partida de
Black Jack : eis aí uma compensação emocional à qual os Homo consomatio se en tregam
cada vez mais.A realidade é essa. Em 2000, e le o u ela gastou o equivalente a 4, 12 euros
na loteria francesa, 14 euros nas corridas de cavalos e 39,6 euros n os cassinos! Assim,
Capí t ulo 6 - E depois de t udo : os vencedores e os perdedores da nova economia ps íqui ca ! 1 133

1,5 por cento do PIB some na 'desfrustração'. Pode-se dizer, obviamente, que o francês
(todas as categorias sociais incluídas) é um jogador, que ele quer ganhar rápido e facil-
mente o prêmio acumulado da loteria, que ele cultua o dinheiro etc. Mas os números
não confirmam esse ponto de vista: são comparáveis em todos os países da Europa.
A aposta média do conjunto dos franceses é de 109 euros por ano contra 149 euros
em média para os países europeus. Seja como for, os jogos de azar na França represen-
tam 1O por cento das despesas culturais e de lazer, menos do que se gasta com cinema
ou viagens (19 por cento das despesas), porém mais do que o orçamento alocado para
jogos e artigos esportivos (8,8 por cento) e discos e fitas de vídeo (6,9 por cento) ...
Esse consumo não pára, longe disso. Para suprimir as imposições, as perdas de
tempo e permitir a expressão das pulsões dos indivíduos, os operadores compreende-
ram todo o interesse que há na ciberloteria. "Pode-se jogar na Internet e ninguém se
abstém", afirma François Trucy, senador da UMP 3, no relatório do Senado sobre os
jogos de azar e as loterias na França:

Segundo a empresa Netvalue, 2 milhões de franceses visitam mensalme nte os sites de jogos
de azar. O sucesso é tamanho que a cada mês um novo organizador de jogos surge na l nternet.
J á existem e prosperam os sites Bananelotto, Lotree.com, Lu ckyvillage.com , Bingopoly.com,
Eldoradowin etc.
Esses sites acenam co m a possibilidade de ganhos de ce ntenas de milhares, até mesmo
milhões de euros; mas as probabilidades de ganhar o prêmio acumulado da loteria são peque-
nas: uma chance em 14 milhões. Em julho de 2000, 1.256.470 visitantes consumiram 575 mil
ho ras de jogo em sites com uma média de permanência de 27,5 minutos, obtendo na área do
lazer uma parte da au diência correspondente a 34,6 por cento, na frente das viagens (16,4 por
cento) e dos esportes (14,6 por cento). No mesmo mês, nove sites especializados em jogos na
Internet atraíram 1 por cento dos internautas, ou seja, 60 mil visitantes.
O fe nô meno é, po rtanto, de uma importância considerável. Está apenas no começo e pro-
voca em todos os industriais do jogo um justificado pânico.'

Pelo viés de alguns de seus programas, a televisão está entrando n esse mercado da
compensação emocional.As informações difundidas a cada noite pelo jornal televisivo,
na hora em que todo mundo está em casa, assim com o alguns programas que fazem
chorar, se inserem n essa necessidade de 'dar um respiro' ao sofrimento.

Criado para as eleições presidenciais de abril de 2002, o UMP (Union pour un Mouvement Populaire) é um partido polí-
tico de direita e centro direita. Desde 28 de novembro de 2004, é presidido por Nicolas Sarkozy.
TRUCY, François. Rapport d'i1ifor111ation 223. Comission des Finances. Session ordinaire de 2001~2002. Annexe au proces-
verbal de la séance du février 2002.
134 1 O b l ues do consum i dor

Se somarmos de ponta a ponta todas as despesas de celular, assinatura de acesso


banda larga à Internet, jogos e assinaturas de TVs a cabo e por satélite, observaremos
que elas representam entre 12 por cento e 14 por cento do salário médio dos france-
ses que aderiram aos novos meios de compensação emocional.
Esses mercados nos quais encontramos setores mais tradicionais, como esporte,
entretenimento, decoração e habitação, explodirão. Eles se tornarão os mais importan-
tes da nova economia. Infelizmente, esses megamercados não gerarão os empregos de
que tanto necessitam os países ocidentais. Essa provavelmente é a maior crítica que
podemos fazer!
O problema estratégico das empresas será então de duas ordens. Por um lado, será
preciso criar novos produtos, novos programas de televisão, novos sites na Internet,
novas formas de distribuição que permitam a compensação emocional. Por outro lado,
será preciso conservar as fatias de mercado já conquistadas, prestando muita atenção
para não deixar os concorrentes dominarem esses mercados. Os cassinos não podem
deixar que as ciberloterias continuem a se desenvolver, tanto quanto a televisão não
pode aceitar que os sites na Internet roubem sua audiência.

A DISTRIBUIÇÃO E A ECONOMIA PSIQUICA

Há alguns anos, o indivíduo se livrava das preocupações e do stress com um bom jan-
ta r em família, um licor Ricard ou um whisky, um doce. H oje, busca novos meios: telefo-
nar, correr, mudar a decoração da casa, navega r na Internet. Esse fenômeno, sem a menor
sombra de dúvida, gerará mudanças profundas para os fabricantes e para os distribuidores.
Nos mercados internos, em que a frustração dos Homo cliens continuará a crescer,
as grandes bandeiras de distribuição serão as primeiras a ter de reagir e dar prova de
criatividade e audácia para se diferenciar e manter o u aumentar sua participação n o
m ercado aderindo à compensação emocional. Antes de tudo, serão obrigadas a pensar
em seu país de origem ainda por algum tempo,já que os lucros distantes não serão sufi-
cientemente elevados e seguros para que elas possam n ão se preocupar mais com o que
ocorre lá onde foram criadas. Isso vale tan to para as bandeiras distribuidoras, na maio-
ria commodity goods5, como as grandes redes de supermercados, q uanto para as bandei-
ras especializadas em shopping ou technical goods6, como as grandes loj as de bricolagem,
m óveis, vestuário, equipamentos de som, eletrodomésticos etc.

B ens de consumo. Em inglês no original. [N. do T.]


Produtos técnicos. Em inglês no original. [N. do T.]
Cap ít ul o 6 - E depo i s de t udo : os vencedores e os perdedores da nova econom i a ps í qu i ca ! 1 135

Hoje, não é mais pioneirismo afirmar que os grandes grupos de distribuição ali-
mentícia, se querem evitar as frustra ções dos clientes e fidelizá-los, devem continuar a
recitar diariamente nos países 'antigos', onde já estão instalados, os vocábulos 'mais pró-
ximo, mais rápido, mais facil, mais simples, mais barato, mais fresco, mais bonito, mais
simpático etc.'.
Todo mundo está convencido hoje, diante do crescimento das pequenas lojas de
proximidade, notadamente nos países onde os hipermercados se implantaram, como
França, Espanha, Brasil , México ou Argentina, que o comércio alimentício deve impe-
rativamente se aproximar dos clientes a fim de evitar perda de tempo e imposições de
todo tipo, causados em especial pelo uso do automóvel e pela espera nos caixas. As
grandes bandeiras compreenderam isso muito bem, pois já oferecem aos clientes, além
dos hipermercados instalados fora da cidade, supermercados, lojas do tipo hard discount,
minimercados cada vez mais próximos do domicílio do cliente.
Paralelamente, todos os estados-maiores têm consciência de que a escolha em
excesso mata a escolha e que é sobretudo o pessoal em contato direto com os clien-
tes que faz a verdadeira diferença de uma bandeira para outra. Acolher com funcioná-
rios cada vez menos frustrados, educá-los, treiná-los para não vitim.izar os clientes e
reorganizar os pontos-de-venda para evitar ao máximo as imposições se tornaram
imperativos incontornáveis para qualquer estratégia de satisfação e fidelização dos
Homo cliens.
Estes últimos, cada vez mais mimados e adu lados, vão querer em troca de sua fide-
lidade ainda mais conforto na compra, mais funcionários, m ais qualidade à sua disposi-
ção, preços cada vez meno res e promoções atraentes. N essas condições, os custos de ges-
tão aumentarão dia após dia em proporções astronômicas! A questão que se coloca então
é como essas pequenas, médias ou grandes lojas poderão ser igualmente rentáveis?
Diante da dimensão dos custo s com pessoal, da n ecessidade de multiplicar as
equipes presentes continuamente nas lojas para servir melhor e acolher melho r o
cliente, da obrigação de oferecer cada vez mais primeiros preços e da proibição de
abrir n ovos pontos-de-venda, fa lta pouco para que a rentabilidade derreta com o neve
debaixo do sol.
Portanto, para reagir a essa situação, os distribuidores terão de recorrer a estratégias
diferentes.
Alguns, para defender suas lojas de grande formato, vão 'fatalizá-las', tornando-as
mais atraentes, mais amistosas, mais próximas da natureza e menos frustrantes. Instalarão
mercados à moda antiga, como outrora, ao lado das gôndolas de produtos manufatura-
dos. Tentarão, com isso, fazer da apresentação dos produtos frescos, das frutas, dos legu-
m es, das carnes, dos frios, dos produtos regionais a ponta-de- lança da sua singularidade.
136 1O b Iu e s d o e o n s u m i d o r

Outros, ao contrário, farão pontos-de-venda ultramodernos, dignos do ciberespaço!


Outros, enfim, radicalmente ao contrário, aplicarão a regra do back to basic7 e oferece-
rão pontos-de-venda sem luxo, sem decoração, sem prestação de serviços, mas compre-
ços realmente baixos. Esses serão, de certo modo, os 'Easy Jet' 8 da alimentação. Todos
esses pontos-de-venda sustentarão seu desenvolvimento em marcas de distribuição pró-
pria mais variadas, cada uma com mais qualidade do que a outra, pelo menos do ponto
de vista da embalagem, mas cada vez menos rentáveis. Mesmo assim, as empresas per-
ceberão rapidamente que o problema da diferenciação não está resolvido e que o com-
bate pelo domínio de sua marca deve ser travado em outros terrenos. Mas de nada ser-
virá, porque o Homo cliens, cada vez mais zapeador, irá aonde bem entender, será ainda
mais exigen te e continuará a querer tudo, sem demora, mais próximo dele e sem impo-
sição de dificuldades. O s investimentos e os custos de fun cionamento serão tais que os
distribuidores acabarão por duvidar da vantagem desse tipo de estratégia! Mas o p ior
ainda está por vir!
É no nível da cidadã européia 'média', que, como se sabe, é quem mais freqüenta
as lojas de alimentação na Europa (os homens se reservam para outros tipos de loja e
de compra), que se definirão os contornos da distribuição futura. Mais uma vez, são as
fru strações das clientes que reorganizarão o m ercado. Essa consumidora européia está
intimamente convencida, pelas informações que recebe, de que a globalização não é
feita forçosamente para ela ou para os interesses de sua família. Ela con stata que, se "a
economia volto u a crescer", com o dizem por aí, foi sem ela, sem sua fanúlia, sem seu
marido e sem seus filhos! N essas condições, ela e seu círculo familiar rapidamente
tomarão o partido dos pequenos, dos fracos, das vítimas dos grandes grupos de distri-
buição, como os camponeses, que esbarram nas exigên cias das cen trais de compra das
grandes redes, o u as pequenas empresas regionais, q ue suplicam para que seu produto
seja comprado e sobretudo para que n ão sejam abandonadas. Por mais que se diga a essa
consumidora que os tomates cu ltivados na Polônia são igualmente bons e têm custos
m eno res do que os tomates cultivados no país dela, que somente as grandes empresas
internacio nais são capazes de oferecer preços competitivos, ela não estará interessada!
Assistiremos, portanto, ao desenvolvimento de um comércio alimentício cada vez
mais próximo do consumidor, m as dessa vez engaj ado, com o eram os centros Leclerc na
época do alto custo de vida, com uma inflação de dois dígitos, n os anos 80. O consumi-
dor vai querer que a distribuição ofereça tu do aquilo que ela j á oferece, porém com
menos imposições e mais m oral. As atuais bandeiras de produtos alimentícios, assim

D e volta ao básico. Em inglês no original. (N. do T.]


Empresa de aviação com passagens a baixos preços. (N. do T.]
Cap ít ul o 6 - E depo i s de t udo : os vencedores e os perdedores da nova econom i a ps í qu i ca ! 1 137

como as novas, deverão se comprometer com os clientes não apenas em termos de preço,
mas também em termos de 'moralidade' econômica. Enquanto nos anos 70 se acredita-
va que a distribuição devia ser forte e se admitia a necessidade dessas enormes multina-
cionais egoístas, que eram as únicas que podiam oferecer preços baixos e economia de
escala, hoje o Homo cliens sente que para não sofrer uma frustração ele deve escolher
empresas morais e humanas, em primeiro lugar. Nada é mais frustrante para essa consu-
midora do que saber que, comprando no ponto-de-venda próximo de sua casa, ela lucra
com a infelicidade de seu vizinho, sobretudo se ele estiver desempregado!
Em razão dessa percepção dos consumidores, de suas frustrações e do sentimento de
que todos devem se defender juntos contra os grandes grupos de distribuição, existem
grandes possibilidades de que surjam pequenos pontos-de-venda de bandeiras regionais
mantidos por famílias e que defendam em primeiro lugar o interesse local, os produtos
da região e o emprego. Esses pontos-de-venda serão alimentados por atacadistas a partir
das plataformas dos produtos frescos e diretamente por produtores locais. As atuais tec-
nologias de informação, assim como os modernos meios logísticos permitirão alimentar
todos esses pontos-de-venda a custos aceitáveis. O cooperativismo sucursalista e sua idéia
de associar os clientes ao desenvolvimento da empresa serão reinventados.
As grandes bandeiras de distribuição alimentícia terão de rever sua missão, sua ética
e, de modo geral, sua relação com o mundo. Se quiserem prosseguir seu caminho e evi-
tar que a distribuição 'de infiltração' prolifere, terão de trocar o 'think global, act local'9
pela situação inversa:' think local, act global' 1º.
É certo que as bandeiras de distribuição de produtos alimentícios ou, em geral, de
commodity goods terão grandes dificu ldades para se inserir nessa economia psíquica. Não
só os indivíduos consumirão menos, mas por várias razões essas máquinas de vender não
serão mais consideradas amigas naturais do consumidor.
No que diz respeito às bandeiras de distribuição baseadas nos shopping goods 11 e n os
technical goods, o problema é totalmente diferente. Enquanto a compra de alimentos é
v ivida geralmente como uma tarefa desagradável, salvo no caso de alguns produtos de
cozinha, comprar um vestido o u produtos para m elhorar a casa o u a decoração propor-
ciona , ao contrário, um prazer total e um m eio para a compensação emocional. É claro
que o consumidor preferirá sempre comprar o mais próximo possível de seu domicí-
lio, mas por pura satisfação pessoal e le se disporá a percorrer alguns qu ilômetros a mais
para ver o belo, o m agnífico, e por alguns instantes esquecer o esforço que tal desloca-

"Pense globalmente, aja localmente." Em inglês no original. [N. do T.)


"Pense localmente, aja globalmente." Em inglês no original. [N. do T.)
Bens comerciais. Em inglês no original. [N. do T .)
138 1 O b I u e s d o eo n su m i d o r

mento lhe impõe. Espera, portanto, passear em centros comerciais 'compassíveis', onde
o luxo, as marcas famosas, a gentileza e a compaixão transbordem da parte de todos. Ali
ele sonhará, passará o tempo e até o dia. Os grandes malls 12 ao estilo norte-americano
já respondem em parte ao problema, mas é preciso ir ainda mais longe. Como não se
pode construir shopping centers onde bem se entende, por razões essencialmente liga-
das ao preço dos terrenos e à autorização para construir, os grandes hipermercados com
baixo fluxo de clientes provavelmente se transformarão aos poucos em locais de des-
frute total. Eles já se cercaram de estacionamentos e galerias de lojas, e ainda têm espa-
ço para vender, portanto podem implantar amanhã desde cinemas até estandes de gran-
des marcas de automóveis, pistas de patinação etc.

(IBERESPAÇO E DISTRIBUIÇÃO

A ciberloteria e, em geral, todos os jogos via Internet são amplamente freqüenta-


dos pelo H omo consomatio. Em alguns setores de atividade, as vendas on-line parecem
funcionar bem. Isso é confirmado pelos números atuais de compras on-line de DVDs
e CDs.Já que a compra on-line funciona, e permite a compensação emocion al, por que
então as vendas on-line de produtos alimentícios não funcionam?
Certamente a compra on-line poderia responder de imediato à frustração da espe-
ra n os caixas! Além disso, para a con sumidora que compra sempre os mesmos produtos
e as mesmas marcas, bastaria ter uma lista padrão para se ver livre da tarefa desagradá-
vel e frustrante de procurar os produtos nas gôndo las. N o entanto, esse raciocínio sim-
ples não parece funcionar.Algu ns até poderiam ver nisso uma maneira de pôr em dúvi-
da a teoria da frustração.
Um estudo datado de 2003 fornece indicações interessantes. Em diferen tes países
da Europa onde as compras on-line são possíveis, foi reunido um grupo de consu mi-
doras exclusivamente clientes de supermercados tradicionais, mas que declaravam o
desejo de experimentar a compra on-line. Todas essas consumidoras dispunham de
conexão banda larga em suas casas e sabiam utilizar o e- mail e / ou n avegar na Internet.
Percebeu- se depois da primeira te ntativa que menos de 1 por cento do grupo
desejava repetir a compra on-line. Não foram, como se poderia imaginar, os proble-
mas de entrega o u de pagamento on- line que refrearam o interesse das consumidoras.
Foi simplesm ente um problema de fru stração ligado à lógica ergonômica dos diversos
sites utilizados.

Centros comerciais. Em inglês no original. [N. do T.]


Cap ít ul o 6 - E depo i s de t udo : os vencedores e os perdedores da nova econom i a ps í qu i ca ! 1 139

Para as donas-de-casa, esses sites made in France ou anglo-saxões têm todos o mesmo
defeito: eles se baseiam em uma arquitetura do tipo masculina, nunca do tipo feminina.
É fato que a mulher não percorre um supermercado como o homem. A dona-de-casa
segue a lista metodicamente e, como é sabido, tem medo de se esquecer de alguma coisa.
O h omem, ao contrário, segue a inspiração, perambula a esmo pelos corredores e obe-
dece a uma lógica da atração. Ele procura bons negócios em primeiro lugar.
As donas-de-casa dizem que não gostam de entrar no site do supermercado e
serem obrigadas a responder uma série de perguntas que consideram irritantes e indis-
cretas antes de ver aqu ilo que vão comprar, em outras palavras, as prateleiras. Questões
prévias à visita ao site, como: "Quando quer que seja feita a entrega? Digite o código
postal com cinco dígitos do endereço de entrega. Se você já é cliente, clique aqui. Se
você quer criar uma conta, clique aqui", criam um bloqueio. Elas perdem a vontade de
comprar! Todas as consumidoras c hamaram a atenção para o fato de que há anos elas
têm os mesmos hábitos de compra nos supermercados de toda a Europa e que não
podem mudar completamente, de um dia para o outro, a coerência de seus hábitos. Para
que sejam freqüentados e utilizados, os sites de supermercados on-line, segundo esse
estudo, deveriam se apresentar como um ponto-de-venda clássico.
As consumidoras deveriam poder entrar no site como entram em um supermerca-
do tradicional, pegar um carrinho, percorrer os corredores, passar pelas prateleiras e ver
os produtos, se aproximar, dar um zoom na marca que procuram, comparar os preços etc.
Só no m omento de passar pelo caixa virtual é que deveriam responder às questões essen -
ciais ao pagamento e à entrega. Na verdade, o que elas desejam é uma loj a efetivamen -
te virtual, que pudessem visitar pela tela do computador. Como na vida real, haveria
música, um ambiente com ruídos de fundo, que criassem uma situ ação real de compra.
O que mais surpreendeu esse grupo de consumidoras ao comprar em um super-
m ercado on-line foi que nenhum dos sites visitados procurou simular uma loja desse
tipo. Surpreenderam-se ainda mais porque seus filhos têm Playsta tions, n os quais elas
vêem que é possível dar v ida a jogadores de futebol, participar de corridas automobi-
lísticas ou combates de gladiadores m ais reais d o que na realidade.
Essa defasagem entre o que a consumidora espera e o que os técnicos produzem,
no caso específico dos supermercados on-line, tem evidentemente muitas explicações.
Para alguns, a tecno logia atual n ão permitiria realizar, em condições de custos aceitá-
veis, imagens em três dimensões como desejam as con sumidoras. Para outros, a solução
atual acabará sendo aceita, é apenas questão de hábito, portanto de tempo. Também
podemos afirmar que aqu eles que resolveram assumir o mercado de supermercados on -
line se contentaram em repetir a economia tradicional e n ão fizeram o esforço de se
adaptar à economia psíquica. A venda on- line, no caso das commodity goods, é a respos-
140 1 O b l ues do consum i dor

ta para uma fru stração, ou seja, a desagradável tarefa das compras e a perda de tempo.
No entanto, a solução para uma frustração - a venda on-line, por exemplo - não pode
sob hipótese alguma ser fonte de outra série de fru strações, nesse caso a dificuldade de
utilizar o programa. Por outro lado, comprar em urna loja é estar em um ambiente, por-
tanto em uma situação, que cria comportamentos favoráveis à compra. Está claro que os
sites atuais, sem música, sem ruído, são de urna tristeza incomensurável.
Notemos que, no grupo de consumidoras que participaram da experiência, a maio-
ria recorria freqüentemente à entrega em domicílio depois de passar o pedido por tele-
fone ao seu ponto-de-venda habitual. Isso demonstra que o princípio de compra de pro-
dutos alimentícios à distância é real. É o uso da Internet que ainda apresenta problemas.
Seja corno for, os supermercados on-line afinal ganharão a batalha que no momen-
to parece perdida. Podemos prever que, com base em sua imagem, os engajados pon-
tos-de-venda de proximidade descritos anteriormente criarão sites amigáveis próximos
dos clientes. Com isso, as consumidoras mais confiantes, que conhecem bem a loja, se
sentirão conduzidas durante a compra e criarão o hábito de comprar pela Internet.
Pouco a pouco, as compras das con sumidoras poderão ser previstas e, assim, será orga-
nizada urna logística de encaminhamento e entrega de marcas e marcas de distribuição
própria. Isso, é claro, apenas confirma a idéia de que os grandes pontos-de-venda de
produtos alimentícios terão muitas dificuldades para sobreviver.

A TRANSFER~NCIA DE CONHECIMENTOS VIRTUAIS

Na economia clássica, a transferên cia do know- how tecnológico para outros países
foi sempre um elemento impo rtante para a conquista de novos mercados. Ainda hoje, a
venda do conhecimento para a con strução de aviões, trens, carros, computadores, circui-
tos eletrônicos, hipermercados, grandes lojas especializadas na fabricação de pães à moda
francesa é o centro das preocupações dos indu striais. N a economia psíquica, a tran sfe-
rên cia de know-how sobre clientes nos m ercados em que a fru stração começa a reinar
representará, com toda certeza, um n ovo maná.
O exemplo do cabeleireiro é interessante nesse sentido. N ão é n ovidade que as
mulheres vão ao cabeleireiro para se em belezar, mas também para eliminar suas frus-
trações.
É um local de intimidade no qual elas descansam, relaxam, se con centram em si
mesmas, se o bservam, analisam sua apa rência e, muitas delas, esperam ficar ainda ma.is
bonitas, mais parecidas com seu ído lo o u com a imagem que gostariam de ter. A cabe-
leireira (ou o cabeleireiro) tem missões dificeis. Ele ou ela deve fazer o corte que agra-
Cap ít ul o 6 - E depo i s de t udo : os vencedores e os perdedores da nova econom i a ps í qu i ca ! 1 141

de, na moda mas não muito, na cor da tendência que tanto se comenta e que fica tão
bem nas manequins, nas estrelas, mas não muito. Além disso, os funcionários do salão
devem ter uma h abilidade incrível para lidar com o comportamento algumas vezes
agressivo das clientes (ou dos clientes) que não gostam de se o lhar no espelho ou não
suportam a outra cliente. Devem ser sempre amáveis, atenciosos, educados, apenas o
suficiente para ganhar confiança, mas não mais do que isso.
Ao longo do dia, os funcionários devem se adaptar aos múltiplos tipos de clientes
que se apresentam, lembrar de cada um, nunca fazer algo que possa frustrar ou contri-
buir para criar um ambiente desfavorável. São esses cabeleireiros e cabeleireiras que
fazem a boa imagem do salão e forçam o cliente a voltar, portanto a ser fiel. Esse tipo
de empresa é, por natureza, propício à pequena empresa centrada no patrão ou patroa,
com poucos funcionários e, sob quaisquer circunstâncias, sempre muito ligada ao local,
isto é, ao bairro, ao vilarejo.
Há 59 mil empresas ou salões espalhados por todo o território francês e cerca de
5 mil salões franqueados sob diferentes marcas, como Franck Provost,Jacques Dessange,
Biguine e Jean-Louis David, para citar apenas os mais conhecidos. Essas marcas de fran-
quia , todas nascidas da vontade e da energia de um verdadeiro cabeleireiro empreende-
dor, espalharam-se com sucesso pela França e pelo mundo. Para isso, elas inicialmente
se apoiaram na imagem da França e de Paris, capital mundial da beleza . Em seguida,
cada uma propagou seu estilo, seu corte, sua visão da moda para as mulheres. Final-
mente, fizeram todo o possível para que em cada salão, a acolhida, o ambiente estives-
sem em harmonia com seu posicionamento e com as compensações emocionais exigi-
das pela clientela. É interessante notar que essas franquias são essencialmente fran cesas!
Essas empresas mostram, com efeito, um novo caminho. Elas n ão produzem mer-
cadorias ou uma receita, como M cDonald's, Pizza Hut, pão Po ilâne ou um desses gran-
des restaurantes franceses que se encontram em N ova York ou Tóquio. Elas simples-
mente transferem um conhecimento imaterial , urna visão que corresponde a uma
expectativa de compensação emocional por parte da clientela. N a econ omia psíquica,
esse tipo de transferência corresponderá a mercados cuja dimensão ainda hoje n ão se
con segue imaginar. A s redes de academias de musculação, ginástica e bron zeamento
artificial, de escolas de vida , de apoio psicológico, de clubes de en contro ou matrimô-
nio que existem hoje são apenas uma amostra daquilo que se inventará amanhã. A
extensão das necessidades de apoio aos jovens e à terceira idade será a plataforma de
lançamento de n ovas empresas internacionais, to das e las tendo como base o conheci-
mento de algu ns a respeito das compensações emocion ais do alvo ou do grupo em
questão. Uma nova economia internacio nal , de fato, se desenvolverá.
CAUSAR IMPACTO PARA

COMUNICAR EM UMA

ECONOMIA PSÍ QUICA

E
m seu último livro, La vache pourpre: rendez votre marque, vos produits, votre entre-
prise remarquables!1, Seth Godin, a quem devem os em particular o conceito de
marketing de permissão, declara a quem quiser o uvir que o m arketing está m orto
p orque os consumidores não o o uvem mais, po rque a publicidade é ineficaz e, enfim , por-
que as mulheres e os homens do marketing têm tanto medo de perder seus empregos que
preferem derramar rios de mensagens m ornas em suas campanhas a usar argumentos inte-
ressantes, perturbad ores, fortes, argumentos q ue fa çam as m arcas se m exerem.
A solução que ele dá é simples: pintar as vacas de roxo ! Ele explica isso com uma
divertida parábola:

Q uando atravessei a França com minha fà míli a, há algun s anos, me surpreendi ao ver, assim
como nos livros infa ntis, centenas de vacas pastando em cam pos pito rescos ao longo da estra-
da. D urante q uilômetros, nós nos d eliciamos com paisagens sublimes. No entanto, depo is de uns
20 minutos, desvia mos o o lhar, as vacas acabaram parecendo todas iguais e aquilo q ue inicial-
m ente havia nos fasc inado se to rno u comum. M ais do que co mum , enfado nho .As vacas podem
ser perfeitas, bo nitas ao olhar, co m cores que brilham ao sol. Vacas magníficas com uma perso-
nalidade extraordinária. M as elas são enfado nhas. U ma vaca roxa, eis aí o q ue despe rtaria o inte-
resse (durante algum tempo, nem é preciso dizer). Po r quê? Porque seriam notáveis.

A tese de Seth Godin é interessan te no sentido em q ue demo nstra que o ma rke-


ting da necessidade chegou ao seu limite. No fundo, esse especialista n orte-americano,

Paris: Éditions Maxima, 2004. (Ed. brasileira: A vaca roxa: como transformar sua empresa e ganhar o jogo fazendo o inusi-
tado. R io de Janeiro: Campus, 2003.]
Cap í t u l o 7 - Causar i mpac to para comun i car em uma econom i a ps í qu i ca 1 143

formado em Stanford, não propõe nada além de transformar o marketing da necessida-


de em uma espécie de marketing 'terrorista', em que os produtos ainda rentáveis seriam
'ordenhados' até o fim de seu ciclo de vida, produtos novos e acima de tudo 'surpreen-
dentes' seriam lançados e, por fim, a comunicação seria feita de tal maneira que o con-
sumidor sempre se surpreenderia. Para todos os que admitem que a economia mudou
e que hoje o sucesso está na relação frustração/obrigações e não mais em uma nova
aventura publicitária, a vaca roxa de Seth Godin é, antes, o 'canto do cisne'!
Seja como for, é verdade que comunicar hoje é uma coisa dificil. Ainda que se
encontre a maneira correta de responder às frustrações do Homo consomatio ou do H omo
cliens, ainda é preciso que os alvos visados ouçam, dêem crédito à mensagem e adotem
as solu ções propostas. O que vale para o m ercado, isto é, para os consumidores, vale tam-
bém para os colaboradores da empresa. Em um período conturbado, arriscado para todos
na empresa, não é fácil passar uma mensagem que mobilize as energias para mudar o
rumo ou simplesmente fazer o melhor possível, o que ainda dá bons resultados.

To BE OR NOT TO BE REMARKABLE2

Todos os estudos recentes realizados por diferentes institutos de pesquisa especiali-


zados em política mostram que na maioria dos países desenvolvidos o discurso e as pro-
postas dos e leitos de todos os partidos não interessam mais. Os debates entre direita e
esquerda na França interessam apenas aos aficionados. A grande m assa de eleitores vira
as costas para os debates televisivos e sobretudo para as urnas!
O cidadão m édio acha que os políticos não são dignos de crédito, que não h á mu ita
diferença entre os programas da direita e da esquerda e que, assim que chegam ao poder,
os políticos não fazem nada daquilo pelo qual foram eleitos! E, n o entanto, no meio
dessa sensaboria político-midiática surge um homem. Ele domina a tela. É ouvido por
todos, tanto da direita, da esquerda, do centro, com o por quem não se compromete;
tanto por quem o aprecia, como por quem o detesta.
Trata-se de um homem novo, vindo não se sabe de onde? Ele propõe uma n ova
maneira de ver o mundo, uma nova filosofia de vida? A resposta a essas duas perguntas
é não ! Ele propõe uma receita em q ue se paga menos imposto, se viva mais e melhor?
A resposta ainda é não, não e não! Esse homem não propõe um mundo n ovo, nem o
alvorecer do grande dia, nem que se pintem as vacas de rosa!
N icolas Sarkozy, j á que é dele que se trata, procede de acordo com um novo modo
de comunicação. Inicialmente, e, sobretudo, por meio do discurso, ele dá algumas respos-

Ser ou não ser notável. Em inglês no original. (N. do T.]


144 1O b l ues do consum i dor

tas às frustrações da maioria de seus concidadãos. É óbvio que os franceses de todas as


tendências políticas, neste momento que todos consideram di6cil, se sentem frustrados
quando constatam que os políticos eleitos são incapazes de superar suas contradições nos
discursos ou nos atos. Eles não procuram um guru, tampouco um salvador da pátria.
Querem simplesmente ter a segurança de uma figura responsável, a qual possam confiar
para a resolução dos problemas cotidianos e que chame as coisas pelo nome. Para expri-
mir seu ponto de vista e conseguir adesão às suas idéias, ele não faz rodeios, não tem
meias palavras e diz a verdade. Dá a impressão de ser um homem determinado, seguro
de si e disposto a enfrentar as contradições da vida! Causa impacto. Mesmo assim, con-
tinua gentil, amável, próximo. Sobretudo, não é agressivo. Nada indica que suas propos-
tas e suas convicções o conduzirão ao posto máximo, mas no momento ele é o único,
ou quase, a ser ouvido.
Nos Estados Unidos, durante a campanha eleitoral que opôs o presidente Bush ao
senador Kerry, pudemos notar que o candidato democrata começou no mínimo mal a
sua campanha. Na convenção democrata de Boston, em julho de 2004, quando discursou
como candidato oficial à presidência, ele não foi brilhante e se dizia que seria derrotado.
As pesquisas mostravam que ele não havia recuperado o atraso. Esse fracasso repousava
essencialmente na sua forma de comunicação, considerada desinteressante, triste, sem con-
traste. Não se via claramente em seu discurso corno se delineava sua estratégia. E le pare-
cia na defensiva e os golpes que desferia contra o adversário não eram necessariamente
compreendidos pelo cidadão médio. Um homem corno esse poderia pretender a presi-
dência da potência mais forte do mundo? O presidente Bush, ao contrário, triunfou na
convenção republicana de Nova York, no fim de agosto do mesmo an o. As pesquisas
davam a ele, naquele momento, dez pontos de vantagem. Mesmo quem discordava dele
apreciou o tom de seu discurso, sua determinação, sua calma, a maneira impactante como
se comunicava. Seus ataques contra Kerry eram claros, duros e atingiam o rosto do adver-
sário sempre no mesmo lu gar, corno em urna luta de boxe. Orientado por urna equipe
próxima do ex-presidente Clinton, o senador Kerry aprendeu, dia após dia, a se comuni-
car, tanto que, na noite do primeiro duelo televisivo de 30 de setembro de 2004, as pes-
quisas o davam como vencedor. Kerry havia recuperado o atraso.
Em vez de triste, confuso, acanhado, Kerry se mostrou simples, claro, sem papas na
língua, e atacou Bush diretamente nos pontos nevrálgicos, mas sem ser agressivo, per-
manecendo educado com o presidente que estava deixando o cargo e excluindo qual-
quer palavra ou comportamento agressivo. Quem acompanho u ao vivo esse primeiro
debate pôde ver a irritação de Bu sh com algumas observações de Kerry, algo que obvia-
mente era útil ao senador. Bu sh teve dificuldades para responder, foi surpreendido pela
súbita transformação do oponente! Mas como observou Kenneth Howard, professor de
Cap í t u l o 7 - Causar i mpac to para comun i car em uma econom i a ps í qu i ca 1 145

filosofia na Universidade de Nova York, foi no nível do gestual que Kerry ganhou o
debate. E le, o aristocrata, soube fazer gestos mais populares, perfeitamente dentro do
registro dos gestos de Bu sh. Ele soube fazer os gestos, a mímica, a entonação que tanto
agradam à classe média norte-americana.
O que houve então entre a convenção democrata e o primeiro debate na televi-
são? Kerry simplesmente aprendeu a usar as regras da comunicação impactante! Apren-
deu a controlar as palavras, o ritmo, os gestos das mãos, do rosto, do corpo para ser mais
incisivo, mais penetrante.
C laro, Kerry não ganhou as eleições. Mas todos concordam que não foi por causa
de seu desempenho nos debates da televisão.
Alguns poderão lamentar que a eleição do presidente da democracia mais podero-
sa do mundo se baseie mais na forma de uma comunicação do que no conteúdo, isto
é, no programa que visa a resolver os problemas reais dos norte-americanos e a relação
dos Estados Unidos com os grandes problemas do mundo.
Há quase 200 milhões de eleitores nos Estados Unidos, 50 por cento dos quais não
votam! O fato é que também lá as pessoas não ouvem os políticos, se sentem frustradas
com a política, os políticos e suas querelas fratricidas.
Os alvos não ouvem porque acreditam que as mensagens enviadas a eles são todas
iguais, sem surpresa, inteiramente 'marqueteadas' por eminências tediosas, como acredi-
tam os eleitores das democracias avançadas. O clínico geral não ouve mais quando rece-
be o enésimo representante de laboratório farmacêutico do dia. O comprador de uma
grande loja também não ouve mais quando tem de agüentar mais uma vez o discurso
surrado do fornecedor sobre a força e a originalidade de suas promoções ou de sua
campanha publicitária, que na verdade é igual a tudo aquilo que ele viu ao longo do
dia. Os colaboradores das empresas em perigo não o uvem quando dizem a eles que é
absolutam ente necessário reduzir as despesas e dar adeus aos aumentos de salário.
Quando os alvos não são mais capazes de atribuir os argumentos que recebem destes
ou daqueles, não adianta falar mais alto para fazer barulho, procurar palavras ou argu -
mentos novos, encenações hollywoodianas o u dobrar as despesas com mídia! É preciso
simplesmente optar por uma nova filosofia de comunicação.

A NOVA FILOSOFIA DE COMUNICAÇÃO PARA A ECONOMIA PSfQUICA

As bibliotecas das universidades estão ch eias de obras empolgantes que explicam o


que é comunicação e como se deve comunicar, tomar a palavra, fazer amigos, transmi-
tir sua mensagem nos m eios de comunicação.
146 1O b l ues do consum i dor

A palavra 'comunicação', como destaca Yves W inkin, é um termo irritante, um


incrível porta-tudo em que se encontram trens, ônibus, telégrafos, redes de televisão,
pequenos grupos de encontro, telefonia e, é claro, uma colônia de guaxinins, pois é sabi-
do que os animais se comunicam desde os estu dos de Lorenz, Tinbergen e von Frisch.
Se irrita, 'comunicação' é, no entanto, um termo fascinante e está cada vez mais em evi-
dência. Na França , o Ministério da C ultura acrescentou ao seu nome um 'e da
Comunicação'. Nos Estados Unidos, a Warner agora é Warner Communications Inc., e
a Voz da América [serviço de comunicação norte-americano] faz parte da International
Communication Agency. Comunicar-se na segunda metade do século X IV significava
'participar de', do latim communicare. No século XVI, comunicar era 'comungar'. Para os
ingleses do século XV, comunicar era 'o ato de partilhar'. Foi apenas em 1950, na Grã-
Bretanha , que o termo começou a designar as indústrias da imprensa, do cinema, do
rádio e da televisão. Em 1970, no suplemento do dicionário francês Grand R obert foi
acrescentada uma nova definição às quatro já existentes. Depois de 'ação de comunicar
alguma coisa a alguém', 'aqu ilo que se comunica', 'o ato de comunicar-se com alguém',
vem a nova definição: 'qualquer relação dinâmica que intervém em um funcionamento.
Teoria da comunicação e da regulação.Ver cibernética. Informação e comunicação' . Esse
é um ponto fundamental na história semântica do termo, uma nova acepção que pare-
ce romper totalmente com o passado. Não poderíamos nos esquecer de NorbertWiener3
e C laude Shannon 4, que foram os verdadeiros pioneiros da teorização da comunicação.
Inúmeros institutos pelo mundo todo oferecem programas de treinamento para apren-
der a falar em público, a se comunicar melhor, a n egociar melhor. Todas essas apostilas, guias,
programas e receitas de comunicação partem em geral das mesmas idéias. A primeira idéia
que prevalece é aquela que diz que, para se comunicar e dialogar bem, é necessário se adap-
tar e adaptar sua mensagem e sua linguagem ao alvo. Isso subentende um conhecimento,
um método ou uma arte da classificação psicológica ou psicomo1fológica dos alvos.
A segunda idéia é que se deve imperativamente adaptar o discurso, o comporta-
m ento aos alvos. Para tanto, é preciso ser capaz de ouvir, reformular as informações
recebidas destes e decifrar seu vocabulário, seus gestos, suas mímicas, utilizando-se de
diferentes métodos de análise.
Finalmente, depois de ava nçar uma sen e de perguntas que permitirão apreender
pe1feitamente as expectativas do alvo, é conveniente formu lar a mensagem e en trar em
um jogo de perguntas e respostas para enfim convencer, persuadir e obter resultados.

NorbertWiener (1894~1 964), matemático norte-americano considerado o pai da cibernética.


Claude Sharmon (1916-2001) , matemático e cientista da computação norte-americano, um dos pr imeiros a formular a
teoria da informação.
Cap í t u l o 7 - Causar i mpac to para comun i car em uma econom i a ps í qu i ca 1 147

A nova filosofia parte de uma primeira constatação e de um ponto de vista intei-


ramente diferente! Já que os alvos não ouvem mais, não vêem diferença nas mensagens
e nos discursos e acreditam saber de antemão o que será dito a eles, não adianta nada
tentar responder às suas necessidades previamente identificadas.
A segunda constatação é que esses alvos, que não esperam nada daqueles que se
dirigem a eles, não necessariamente os respeitam, o que não facilita em nada o diálogo,
muito pelo contrário!
A terceira constatação é que os alvos se sentem frustrados e não adianta nada tentar res-
ponder às suas necessidades, porque eles não têm necessidades ou elas são bem conhecidas.
Nessa economia psíquica, para se comunicar não é preciso começar pela busca da
melhor m ensagem ou do melhor discurso, aquele que convém ao alvo.Aqui, o importante
é que os alvos fiquem impressionados com o emissor. Assim como a película fotográfica é
impressionada por uma fonte lu minosa, é preciso que o orador, o representante, o negocian-
te impressione, apenas por sua presença, o cérebro da(s) pessoa(s) a quem ele se dirige.
É preciso que os alvos pensem: " Puxa, ele não é como os o utros, parece sincero,
determinado, confiante, claro, não é sem graça como muitos outros. Talvez ele me diga
algo interessante, diferente. Vou ouvir!".
Não se trata de fazer barulho, de se mexer para ser notado. Impressionar o cérebro
do alvo, no sentido em que se entende aqui, é sem agressividade, sem efeitos bana.is, é
marcar sua diferença, sua presença, sua personalidade. Impressionando o cérebro do
receptor, produz-se interesse, portanto atenção. Isso permitirá transmitir a mensagem
posteriormente, sob a condição de que esta demonstre interesse pelas fru strações e pelas
compensações emociona.is do alvo e seja acompanhada de palavras, gestos e tom de voz
adequados à natureza dessa mensagem.A comu nicação impactante é, portanto, em pri-
meiro lu gar, um estado de espírito que quer que tornemos, a cada vez que nos comu-
nicamos, a decisão de utilizar todas as possibilidades de causar impacto e imprimir n os
cérebros dos interlocutores os beneficios e as qual.idades dos produtos, dos serviços, das
idéias e con ceitos que temos por missão comunicar. Trata- se de impor ao receptor os
conceitos, os indicadores técnicos, as definições, o m odelo do emissor.
Devemos, portanto, partir de um postulado simples, a saber: se n ão formos capazes
de ser superiores em nossa maneira de nos comu nicar com nossos clientes, nossos inter-
locutores, nós perderemos sistematicamente 50 por cen to do investimen to e da força da
nossa mensagem. Isso subentende, portanto, uma comu nicação 'egoísta', em que não se
procura ter razão, conven cer, mas somente causar impacto. Q uando se tem uma opi-
nião, é preciso simplesmente ter a força, a e nergia de afirmá- la!
Afirmar-se, impressionar um alvo o u os alvos n ão é coisa fácil.Alguns dirão até que
isso é para algu ns poucos indivíd uos muito especiais, como o general Charles de Gaulle,
148 1O b l ues do consum i dor

o primeiro-ministro inglês Churchill, o presidente Mitterrand, para alguns advogados,


como o mestre Verges, ou ainda para os atores, como Louis Jouvet ou Sarah Bernhardt!
É certo que nem todos têm necessariamente o dom, o tom e os gestos para persuadir.
Nem todos, tampouco, enfrentam na comunicação cotidiana situações em que seja pre-
ciso ter carisma ou um comportamento fora do comum para granjear a adesão e con-
vencer. O que prevalece na economia psíquica em matéria de comunicação é a vonta-
de de criar uma situação que faça o interlocutor reagir. Para tanto, é preciso que as pala-
v ras, o ritmo, os gestos sejam coerentes e denotem a mesma vontade de se impor.
Para marcar, impressionar um alvo, há uma condição prévia. Não se trata de saber
falar, usar palavras mágicas ou ter gestos ensaiados. Não, é preciso simplesmente, antes
de qualqu er coisa, ser dominante e não fru strado, isto é, deve-se imperativamente esva-
ziar a 'caixa-preta'! Como um avião de carreira, os indivíduos que são obrigados a se
comunicar têm todos uma caixa-preta na qual eles inserem as coordenadas de vôo. Todo
indivíduo que deve se comunicar, ve nder, convencer, explicar ou negociar enche, inde-
pendentemente de sua vontade, ao longo de suas diferentes interven ções no contato
com os clientes, sua caixa-preta. Esta se enche com tudo aquilo que lhe é sistematica-
mente reprovado, com todas as críticas que são feitas ao produto ou ao contrato de ser-
v iço, por exemplo. Aí encontramos também os clichês clássicos sobre a personalidade
dos vendedores, dos políticos e, em geral, de todos aqueles que têm como profissão a
comunicação. Não podemos nos esquecer dos gestos, das mímicas observados n as vár ias
conversas prévias e cuja significação positiva o u negativa o indivíduo aprendeu a
conhecer.
Essa caixa-preta geralmente representa um sério problema para quem se comuni-
ca! Antes mesmo de se comunicar ou simplesmen te de se exprimir, o indivíduo sabe o
que o outro vai retorquir, j ogar em sua cara. Ele conhece de cor as críticas que recebe-
rá. Prisioneiro do conteúdo da caixa- preta, ele antecipa na maioria das vezes as pergun-
tas que serão feitas.Antes mesm o que alguém diga q ue seu produto é muito caro, muito
lento, muito ou pouco não se sabe o que, ele começa a falar do preço, da rapidez de
resposta da empresa n o caso de problemas na entrega etc. Ele extrai da caixa-preta todos
os pontos negativos que foram armazenados ali e começa a contra- argumentar, a se jus-
tificar e a responder ponto por ponto perguntas ou argume ntos que nem foram aven -
tados. Agindo assim, ele introduz na memória do alvo um vírus que apagará o interes-
se, a atenção e fortalecerá a opinião do alvo de que é inútil ouvir n ovas propostas. D e
fato, a análise das caixas-pretas m ostra que e las estão c heias de frustrações, pulsões que
não podem se exprimir, situações e imagens vividas como injustas.
A regra é simples: é antes de se comunicar que se deve esvaziar o conteúdo da caixa-
preta (n ão n a frente do cliente, durante a exposição).
Cap í t u l o 7 - Causar i mpac to para comun i car em uma econom i a ps í qu i ca 1 149

Enquanto na convenção democrata de Boston o senador Kerry abordou incessante-


mente, de maneira espontânea e por reação, aquilo que estava guardado em sua caixa- preta
(isto é, os pontos que os republicanos criticavam nele), em seu primeiro debate com o pre-
sidente Bush tudo levava a crer que, antes do debate, ele havia esvaziado voluntariamente
a caixa-preta. Isso permitiu qu e ele não respondesse às perguntas que não eram feitas. Que
vestígios encontramos no discurso de Nicolas Sarkozy de seu passado político, de seus con-
flitos com o presidente Chirac, de seus fracassos? A resposta é simples: nenhum. Kerry, assim
como Sarkozy, podem fa lar e interessar porque eles esvaziaram suas caixas-pretas e se
comunicam sem abordar assuntos ou questões que certamente os preocupam, mas que só
eles devem conhecer. Eles não inserem um vírus no cérebro de quem os ouve.
As pessoas geralmente acreditam que as técnicas da comunicação são para oradores, che-
fes de Estado, políticos, presidentes de sindicatos, presidentes de empresas ou vendedores.
A caixa-preta estando vazia, e isso é uma condição prévia, o comunicador pode
começar a utilizar as novas leis do impacto.

As NOVAS LEIS DO IMPACTO

As novas leis do impacto recomendam, para não dizer exigem, que a mensagem
somente seja adaptada ao alvo quando este estiver bem definido.Acabou -se o tempo da
submissão dos emissores aos seus alvos. É preciso simplesmente, de acordo com essas
leis, afirmar com força e determinação suas vantagens, seus pontos de v ista, sem se preo-
cupar com o resto. É preciso ser assertivo, ou melho r, não dizer sim quando se pensa
não ! As coisas obviamente não são tão simples assim. Está claro que diante de um alvo
fru strado, desatento, não adianta nada derramar uma enxurrada de palavras que o u não
serão ouvidas, ou serão tomadas às avessas, ou, e isso é o pior que pode acontecer, per-
mitirão ao interlocutor irromper em uma série de inverdades, de argumentos mal-
inten cionados, aos quais será dificil responder, para n ão dizer impossível. Se n ão é pre-
ciso se preocupar com o alvo, também não é preciso provocá-lo, nem desafiá-lo!
Essa é a primeira regra dessa nova comunicação.
Antes de passar uma m ensagem adiante, é preciso se certificar do lugar que se
ocupa no cérebro do(s) alvo(s) . Essa é a segunda regra!
Quem é reconhecido ou con siderado o número 1 ativo em sua área, em seu mer-
cado (como é o caso de Sarkozy), pode expor seus argumentos com tom, palavras e ges-
tos de líder. Ninguém ficará chocado, decepcionado. Ao contrário, isso corresponde à
expectativa dos recepto res. Quem é considerado um líder ativo não deve nunca decep-
cionar: isso é o pior que pode acontecer. É preciso ter uma estratégia que denuncie vee-
150 1 O blues do consum id or

mentemente as frustrações e não perca tempo com detalhes. Não se deve nunca dar a
impressão de que se deseja resolver os problemas a partir das exceções.
Quem, por outro lado, é classificado como o número 1 passivo em sua área, em seu
mercado, isto é, o has been, aquele que ainda está no topo, mas não por muito tempo
(como era o caso de Bu sh) , deve prestar muita atenção na maneira como apresentará
sua mensagem. Os gestos, as palavras, o tom de voz devem surpreender pelo dinamis-
mo, pela marca de uma vontade sincera de aceitar o desafio. É preciso levar os interlo-
cutores a duvidar da imagem passadista que eles têm do emissor.
Ronald Reagan, no debate contra Walter Mondale, foi considerado muito velho
para um segundo mandato em uma América que se pretendia jovem e forte. Era um líder
passivo para os norte-americanos médios. Depois de esvaziar a caixa-preta e esquecer
que tinha 73 anos, ele compreendeu que poderia passar essa imagem negativa. Então se
mostrou firme, calmo e divertido. Com um agudo senso de humor, isto é, com um tom
jovial, o presidente saiu dessa situação embaraçosa tirando proveito de sua velhice. "Não
vo u fazer da idade um tema de campanha. Não vou explorar a juventude e a inexpe-
riência do meu rival para fins políticos", teria dito em tom de brincadeira.
Mas sobretudo ele imobilizo u o oponente ao fazer, no final do debate, a pergunta
que se tornou famosa nos anais dos debates presidenciais: " Mas, senador, francamente,
entre o senhor e mim, where is the beef?" 5 •
Conhecemos a seqüência da história , ele foi reeleito e considerado, até o fim do
mandato, um grande comunicador!
A coisa se torna mais simples quando se tem o lu gar, o posicionamento ou a ima-
gem de ' rival' , o que era o caso do senado r Kerry. É preciso expor os argumentos em
marcha forçada e sobretudo não fraquejar ou dar a impressão de duvidar de sua sorte.
Nada é pior na comunicação impactante do que um rival triste em gestos, voz ou argu-
m entos. No primeiro debate, foi mais a dinâmica do que as propostas de Kerry que sur-
preendeu. Ele, o triste, o austero, se transformo u de um só golpe em um verdadeiro
rival, enquanto Bu sh passava a número 1 passivo.
A terceira regra não é simples em sua aplicação, mas torna o discurso ma.is eficaz. É preci-
so estar consciente de que ela exige uma excelente preparação prévia a qualquer comunicação!
Visto que os alvos não ouvem, são inertes, é preciso agir de modo que no discurso do
emissor haja elementos que os levem a questionar, a duvidar de seu ponto de vista e a reagir.
É preciso sutilmente provocar um comportamento, uma reação nos indivíduos que recebem

"Where 15 the beej?", ou "onde está o bife?", tornou-se unia frase de efeito con hecida depois que a rede de lanchonetes
Wendy's veiculou, etn 1984, urn anúncio de televisão etn que unia senhora perguntava, ao receber urn sanduíche en1 un1
restaurante concorrente, com duas fatias eno rmes de pão e um minúsculo hambúrguer como recheio: "Onde está o bife?" .
Em inglês no original. (N. do T.]
Cap í t u l o 7 - Causar i mpac to para comun i car em uma econom i a ps í qu i ca 1 151

a mensagem. Em 1980, depois de ter confundido 'depressão' com 'recessão' em um discurso,


Reagan tinha um terreno difícil para recuperar com relação aos jornalistas e à opinião públi-
ca. Foi descrito pelos jornais norte-americanos e, é preciso que se diga, franceses, como um
indivíduo inapto, sem cultura, sem bons conhecimentos da língua inglesa e um tanto senil.
Para sair dessa situação, o presidente Reagan utilizou a terceira regra da comunicação impac-
tante, a saber: agir de tal modo que os interlocutores se questionem e sobretudo duvidem de
suas certezas. Ele declarou em público, pouco tempo depois:"Disseram que eu não podia usar
a palavra 'depressão'.Vou dar a definição. Recessão é quando seu vizinho perde o emprego e
depressão é quando você perde o seu. Retomada é quando Jimmy Carter perde o cargo"6 •
Os jornalistas e a opinião pública nunca souberam se a frase veio de um de seus conselhei-
ros ou se ele a encontrou sozinho. Não importa, a resposta era impactante e isso bastava.
Nessa terceira regra , a ênfase recai na necessidade de provocar os alvos, de fazê-los
reagir, sem que por isso eles se sintam pressionados. Obviamente, é a arte de formu lar
as boas perguntas e, sobretudo, evitar as más.
Observamos na teoria clássica da comunicação que a arte de fazer perguntas se
orienta essencialmente para a busca de respostas que melhor permitam definir o públi-
co e suas necessidades. Na nova teoria , essas perguntas são de ordem inteiramente diver-
sa. Elas não servem para saber. Servem unicamente para pôr o interlocutor em movi-
mento, obrigando-o a sair de seu papel de árbitro, de observador e de distribuidor de
cartões ama relos ou vermelhos. Somente as questões úteis são interessantes.
Todas essas regras somente têm sentido se o emissor souber utilizar o tom de sua voz,
suas palavras e seu gestual para impressionar o alvo. O sucesso somente estará garantido se
houver vontade de defender as qualidades do produto, do plano, das idéias. É preciso saber
dizer não e rejeitar de modo claro as inverdades. O emissor deve estar con sciente de que
tem o direito de perguntar o que quiser de seu interlocutor e sempre se lembrar de que
ele pode dizer não às críticas deste último. N a comunicação impactante, não se trata de
pintar as vacas de roxo como propõe Godin; é preciso, com coragem, fazer aqueles a quem
nos dirigimos compreenderem que nós sabemos muito bem o que eles pensam.

A FRATURA MIDIÁTICA

Geralmente imaginamos que a comu nicação impacta nte é para quem se dirige
diretamente a um público o u a indivíduos isolados, cara a cara o u postos em contato

A primeira parte da fras e é do ex-presidente norte-americano HarryTrmnan: " lrs a recession when your 11eighbor Iases hisjob.
lrs a depression when you /ase yours". R eagan acresce ntou a tirada com seu adversário Jimmy Carter.
152 1O b Iu e s d o e o n s u m i d o r

pela intermediação de um dos grandes meios de comunicação (televisão, rádio, cine-


ma). A maioria dos estados-maiores pensa que a comunicação publicitária é de uma
outra ordem e depende de uma outra maneira de construir e veicular a mensagem.
A verdade é que a comunicação publicitária, se quiser ter efeitos sobre as vendas,
isto é, sobre o comportamento dos consumidores, deve mudar imperativamente.
Em um momento da vida das empresas em que as vendas se tornaram no núnimo
difíceis, em que as marcas não são mais respeitadas pelos distribuidores, os anunciantes
buscam antes de tudo eficácia. Hoje, eles são tentados a se voltar para meios diversos da-
queles destinados a veicular a imagem e o sonho, tradicional motor de compra.
Isso explica por que se assiste hoje a uma explosão de novos meios de comunica-
ção, como as promoções enviadas por meio de mensagens via SMS. Embora antes fosse
apenas uma ferrame nta utilizada pelos operadores para notificar faturas, graças à intero-
perabilidade das operadoras, esse meio se transformou em uma ferramenta de comuni-
cação interpessoal. D esde 2001, o SMS é utilizado de maneira exponencial na estra té-
gia das empresas, entre outras coisas como uma nova ferramenta de comunicação inte-
rativa. Em outras palavras, a questão que se coloca para os anunciantes é saber se não
vale mais a pena investir na comunicação interpessoal do que na p ublicidade de massa.
Sabendo que 91 por cento das pessoas entre 15 e 24 anos têm telefone celular e toman-
do ciência de que 83 por cento das pessoas entre 15 e 19 anos (com celular) utilizam
o SMS, e 86 por cento das p essoas q ue têm entre 20 e 24 anos fazem o mesmo, mas
que somente 24 por cento das que têm entre 50 e 59 anos e 16 por cen to das que têm
mais de 60 anos utilizam esse recurso, ch egamos a uma constatação terrível, a saber, que
os 'jovens' e os 'n ão tão j ovens' não utilizam os mesm os meios de comun icação. Saben do
que o dinheiro está nas m ãos das pessoas com 50 anos ou mais, podemos deduzir que
para atingir um j ovem que n ão tem muito dinheiro, dispom os de meios fabu losos, ao
passo que, para atingir aqueles que têm dinheiro, estamos reduzidos à publicidade clás-
sica, que segundo certos dados parece ter perdido toda a eficácia.
Para um anuncian te, comunicar-se, fazer promoções por SMS é evidentemen te uma
técnica interessante, até mesmo inevitável, mas não necessariamente para todos os seus alvos.
Na Bélgica ou na Inglaterra , onde a lei permite, o cliente pode receber ofertas pro-
mocionais personalizadas quando entra em um supermercado. Se ele tiver um cartão de
fidelidade e se forneceu no me e número de celular, é possível determinar, graças às
informações que deixa a cada vez que passa pelos caixas, o que o faz reagir, comprar
etc. Com sua autori zação, é possível enviar- lhe promoções que efetivamen te 'provo-
cam' . A experiência mostra que a promoção das vendas, ou seja, as compras dos consu -
midores que têm celular, se multiplicam em proporções consideráveis; n ão é preciso
dizer que os que não têm celular estão reduzidos a comprar como an tes. Isso põe em
Ca p í t u I o 7 - C a u s ar i m p a e to par a e o m u n i e a r em u m a e e o no m i a p s í q u i e a 1 153

questão tudo aqu ilo que sabemos a respeito do comportamento dos clientes em ponto-
de-venda. É preciso rever os próprios princípios de circulação ou merchandising,
porém o mais importante é que os anunciantes terão de reavaliar tanto seus orçamen-
tos de promoção como de comu nicação. Com 40 milhões de celulares n a França, 19
milhões de usuários de SMS e uma taxa de leitura de 92 por cento, qual marca ou dis-
tri buidor não reconsideraria seu modo de provocar a dem anda?
Vemos aí, com toda certeza, uma primeira dupla fratura da comunicação: de um
lado, a fratura entre os meios de comunicação clássicos e as novas tecnologias, entre as
quais o SMS e, de outro, a maneira totalmente diferente de receber mensagens entre os
indivíduos que têm entre 15 e 25 anos e os que têm m ais de 55 anos! Sabendo que em
2050 haverá no mundo mais velhos do que j ovens 7, parece interessante se preocupar
com essa fratura m.idiática.
Mas as coisas não param por aí. Por razões evidentes da situação econômica atual,
a publicidade das marcas multinacionais não são mais feitas para cada país, mas para o
conj unto dos mercados. Em outras palavras, os consumidores ingleses vêem mais ou
m enos no mesmo momento os mesmos anúncios que os italianos, os alemães, os argen-
tinos, os brasileiros e obviamente os norte-americanos. Sabendo que a maioria das
grandes agências de publicidade são de extração anglo-saxã, é forçoso constatar que
todos os países recebem os mesmo estímu los para os mesmos produtos. Quando se sabe
que toda publicidade veicula mensagens que traduzem obrigatoriamente a cultura do
país, é preciso se acostumar à idéia de que todos os con sumidores acabarão por ter uma
mesma cultura de consumo, gostem ou não os antiglobalização. Assistimos aí, queren-
do ou não, a uma n ova fratura midiática. A cultura anglo-saxã acabará, pelo men os n o
plano do con sumo das grandes marcas, com a 'exceção francesa', assim como a de
o utros países europeus.
Diante dessa realidade, parece essencial para os anunciantes que a publicidade de
imagem reconquiste sua posição, sobretudo n este m om en to em que a econ omia psí-
quica substitui a economia da n ecessidade. É evidente que a publicidade de imagem
sustentada pelos grandes meios de comunicação não pode se deixar reduzir à sua mais
simples expressão por meios como a Internet e o SMS, que, se n ão tomarmos cuidado,
transformarão o campo da comunicação em um campo unicam ente promocional.
A resposta às frustrações n ão passa unicamente pelas mensagens de j ogos, concur-
sos ou premiações. Por mais eficazes que ainda sejam essas mensagens, elas não garan -
tem a perenidade dos valo res das marcas e, é p reciso lembrar, interessam em grande
parte somente aos jovens e aos produtos que os entusiasm am.

CHAUNU, Pierre; CHAUNU, Huguette; R.ENARD,Jacques. Essai de prospecrive dé111ograp/1iq11e. Paris: Éditions Fayard, 2003.
154 1 O b l ues do consum i dor

As FASES DA COMUNICAÇÃO ATIVA

O estudo da comunicação de massa e de seus efeitos sobre o consumo não é um


tema novo. Já nos anos 40-50, pioneiros norte-americanos como Wilbur Schramm,
Harold Laswell, a equipe de Carl Hovland em Yale e a de Lazarsfeld na Universidade
de Columbia iniciaram pesquisas profundas para compreender como funcionava a
comunicação de massa e em que ela poderia mudar as atitudes tanto dos consumido-
res como dos eleitores (people's choice 8).
Para eles, em uma época em que a televisão não existia , a relação de comun icação
compreendia três elementos: o comunicador, a mensagem e o receptor. Segundo
Laswell, ela deve sempre ser estudada por meio de um princípio simples: "Só podemos
descrever convenientemente uma ação de comunicação se respondermos às seguintes
questões: quem diz o que, por qual canal, para quem e com que efeito" 9 •
Katz e Lazarsfeld descobriram igualmente um fenômeno que nunca será desmen-
tido e sempre será verificado, a saber: "O fluxo das idéias parece freqüentemente ir do
rádio e da imprensa para os líderes nas pesquisas de opinião e destes para os segmentos
menos ativos da população" 10 •
Hoj e, com os meios de investigação mais sofisticados dos quais dispomos para
medir os efeitos da publicidade, afinal não dizemos outra coisa: de um lado, a publici-
dade "continua sendo um meio que se dirige para um efeito" e, de outro, os líderes de
opinião são aceleradores da informação e do con sumo (H ovland, Janis e Kelly, 1953),
enfim "o emissor codifica, o receptor decodifica" (Miller e Attenave).
Depois de mais de 50 anos de exposição à publicidade e ao consumo, quais foram afinal
as grandes mudanças na apreciação e nos efeitos dos meios de comunicação para o receptor?
H oje, observam os que o receptor aprendeu a decodificar melhor e mais rápido a
mensagem publicitária, e sobretudo a conviver com a propaganda. Ele está h abituado a
todas as técnicas e é capaz de classificar os anúncios de rádio, televisão e imprensa em tipos
e categorias quando é entrevistado. Existe uma cumplicidade, uma espécie de acordo ou
conveniência entre o emissor e o receptor. O suj eito sabe quando lhe é enviada uma
publicidade, ele não confunde o programa que está vendo ou ouvindo, o artigo que está
lendo com o 'pacote publicitá rio' a que é submetido. Está seguro de que Zidane não faz
suas compras n o Leader Price, assim como não acredita que Cantona se barbeie com um

A escolha do povo. Em inglês no o riginal. [N. do T.]


Apud WINKIN,Yves. Anthropologie de la co1111111micatio11. Paris: Éditions du Seuil, 1996. [Ed. brasile ira : A nova co111u11icação: da
teoria ao trabalho de campo. Cam pinas: Papirus, 1998.]
KATZ,Elihu; LAZARSFELD, Paul. Perso11al i11fl11e11ce: the part played by people in t he fl ow of mass communications. New
York: Free Press, 1964.
Cap í t u l o 7 - Causar i mpac to para comun i car em uma econom i a ps í qu i c a 1 155

aparelho de barbear da Bic ou que tal modelo riquíssima trate os cabelos com um pro-
duto da L'Oréal e que Kersauzon aproveite as ofertas da Weldom. Em todo caso, ele sabe
que haverá publicidade, então diz a si mesmo: " Melhor que seja divertida!". Na maioria
dos casos, ele aceita até certo ponto jogar o jogo da atenção 'permanente e distraída'.
Dependendo da qualidade da publicidade, do momento em que é exibida, ele passará da
atenção distraída para uma atenção mais ativa. Depois de anos de publicidade, cada um
adquiriu hábitos próprios; alguns receptores zapeiam, outros vão beliscar alguma coisa ou
esvaziar a bexiga e outros gostam das mensagens que são enviadas e ficam para o lhar. Em
todos esses casos, em um momento ou outro os indivíduos serão fisgados pela publicida-
de. Ninguém escapa mais das mensagens. Observamos, por fim, que o que prende a aten-
ção é mais a forma da comunicação do que o conteúdo ou o produto oferecido!
N inguém tem a expectativa de assistir a uma propaganda de marca de carro ou iogur-
te. Gosta-se ou não, guarda-se na memória ou não. Em todos os casos estudados, notamos
que os receptores continu am sendo espectadores e não colaboram de fato. Eles se deixam
impregnar pelas mensagens. Estas se infiltram mais ou menos no cérebro, que muitas vezes
é representado como uma esponja saturada de água. Apesar da existência de numerosas
teorias sobre a percepção e a memória, não sabemos ainda muito bem o que se passa no
cérebro do receptor. Por que certos jingles são cantados pelas crianças? Por que certas
palavras são repetidas pelo público? Por que certos anúncios impressionam e sobretudo
por que as vendas indiscutivelmente aumentam depois das campanhas publicitárias?
Hoje, nenhuma teoria ou receita permite realmente prever os efeitos da publicidade.
Sabemos quantas pessoas serão provavelmente expostas e durante quanto tempo 11 • Sabemos
medir a notoriedade, a transformação das imagens, mas a pesquisa não vai m ais além.
Como a maioria das estratégias de comunicação v isa a formular uma promessa, um
conceito, uma criação p ublicitária agradável, o recepto r se comporta geralmente como
simples espectador ou ouvinte. Quando recebe a m ensagem da Darty, da Gaz de France,
da Air France ou da Cochonou, ele não faz nada senão recordar, se informar e desejar
a marca quando está em situação de compra. Com essas peças, imagens ou n arrativas
oferecidas a ele pelos diferentes anúncios, ele experimenta, dependendo da combina-
ção entre mensagem e meio, diferentes sensações, como alegria, emoção, desejo etc.
Acreditamos que, se aumentarmos a quantidade, a inten sidade, a repetição das mensa-
gens, a atenção se desagregará.
Diante da hipercomunicação que se con stata hoj e, do arsen al de meios utilizados
atualmente pelos anunciantes, como Internet, telefone, SMS, rádio, televisão, imprensa

SC HRAMM, Wilbur Lang. 77,e process a11d effects of mass co1111111111icatio11. Urbana-Champaign: University of Illinois Press,
1971.
156 1 O b l ues do consum i dor

em seus diferentes formatos, cartazes, folhetos, painéis luminosos animados, a questão


que se coloca é se esses meios ainda podem funcionar em uma economia psíquica. Em
outras palavras, poderemos utilizar os mesmos canais, as mesmas receitas publicitárias,
os mesmos efeitos para responder às frustra ções dos receptores e confirmar que o des-
frute que lhe é oferecido está garantido sem imposições?
Hoje, existem dois grandes processos para se comunicar. De um lado, está a dialética
de Hegel, a dialética das contradições tão cara aos comunistas e a alguns j esuítas. Ela toma
como modelo de comunicação a culpa. Culpando o receptor por suas contradições, desen-
volve-se nele uma consciência pesada e, para encerrar, introduz-se em seu cérebro um esta-
do chamado de 'consciência infeliz'. Pode-se, então, passar a mensagem. Essa mensagem
existe unicamente para mudar a ordem das coisas. De outro lado, sob uma forma in teira-
mente diversa, está a publicidade baseada no modelo anglo-saxão. Esta visa a dar uma cons-
ciência feliz, retirar a culpa e fazer com que o indivíduo se liberte de suas 'fobias'.
Foi assim que, graças à culpa, a masturbação se tornou um ato considerado repreen -
sível pela sociedade, ao passo que o preservativo, fo rtemente exposto pela publicidade
nos últimos anos de modo perfeitamente anglo-saxão, se tornou um produto familiar,
cujo uso não causa ve rgonha!
Quando se tenta estabelecer a comunicação com um sujeito fru strado, que se sen te
vítima, quando se argumenta com ele para explicar que seu problema será resolvido ou
que se tem a solução que manterá sua satisfação e eliminará as imposições, quando final-
mente se quer propor a ele uma compensação emocional, é preciso começar a comu-
nicação respeitando a primeira etapa da 'dramatização'.

PRIMEIRA ETAPA DA DRAMATIZAÇÃO

O sujeito (o receptor) necessita que se m ostre a ele que seu estado de vítima é levado
em consideração, que ele é compreendido e não está sozinho diante de sua desgraça moral.
Para isso, são usadas frases simples, do tipo:
D "Ah , sim! É mu ito injusto fazer a senhora esperar no guichê, é um escândalo,
principalmente quando sabemos que a senhora é uma dona- de-casa ocupada ...";
D "Sim, é um absurdo que marquem um ponto na sua carteira de m otorista se o
senho r estava apenas 3 km/h acima da velocidade m áxima permitida ...";
D " Reah11ente, não é no rmal obrigarem o senhor a mostrar três vezes o passaporte
antes de entrar no avião, parece que voltamos aos tempos da ocupação nazista".
O receptor toma consciência que aquele que fala (o emissor) é um amigo de ver-
dade, uma pessoa que tenta aj udá-lo, um companheiro de infortúnio. Ele com eça a
Ca p í t u I o 7 - C a u s ar i m p a e to par a e o m u n i e a r em u m a e e o no m i a p s í q u i e a 1 157

integrar o emissor ao seu sofrimento, ainda mais quando este insiste no uso do
'senhor(a)' .Agindo assim, ele se coloca em posição de atenção ativa, ele coopera na dis-
cussão. Por meio de palavras, de imagens usadas pelo emissor, o receptor decodifica a
imagem de seu interlocutor. É uma fase delicada: muitas palavras na mensagem, muita
compaixão e o sujeito se assusta, se retrai. Ele pode imaginar que o outro está tentan-
do dominá-lo, ao fazer eco à sua dor.

SEGUNDA ETAPA DA DRAMATIZAÇÃO

A segunda etapa da dramatização consiste em criticar o sistema que leva à frustra-


ção e apontar aqueles que causam a frustração:
D "Por que o senhor tem de esperar no guichê? De tanto fazer economia de fun-
cionários, o resultado é gente desempregada enquanto nós esperamos. De quem
é a culpa? Deixo o senhor adivinhar...";
D "Por qu e se instalam tantos radares? Simples, 20 por cento dos motoristas diri-
gem como malucos. Nós pagamos por eles ... É só olhar para os motoqueiros,
eles não respeitam nada".
O receptor deve obrigatoriamente concordar com essas críticas.
Essa é uma fase crítica para o emissor, porque ele deve criticar o mecamsmo de
maneira clara e firme e apontar os cu lpados. Ao mesmo tempo, e le deve ter em mente
que o sujeito tem suas idéias, suas opiniões políticas, religiosas, filosóficas. Por outro
lado, para retomar os dois exemplos precedentes, é possível que entre os alvos haja
membros da gerência ou motoqueiros ... Essas pessoas n ão podem aceitar que seus ami-
gos, conhecidos ou colegas sejam apontados como culpados.
Os mecanismos, os respon sáveis, os culpados pela fru stração, estando bem identifi-
cados e aceitos, o receptor passa cada vez mais a um estado de atenção ativa. Ele espe-
ra a seqüência e não está distante de cooperar. É a partir dessa etapa que o emissor deve
começar a construir a linha diretriz de sua proposição contra as frustrações e propor sua
solu ção em termos de serviços ou produtos.

TERCEIRA ETAPA DA DRAMATIZAÇÃO

Para tanto, o emissor apresentará em uma terceira etapa as con seqüên cias para o
receptor desses mecanism os que conduzem à frustração. Ele envolverá o receptor, mos-
trará quanto isso custa para ele e o obrigará a escolher um lado:
158 1 O b l ues do consum i dor

D " O senh or espera? É natural! Como as empresas p õem gen te n a rua para serem
mais com petitivas, é o senhor, no final das contas, que paga os pobres desempre-
gados com os seus impostos ...";
D " Po r cau sa de meia dú zia de m alu cos, as multas e as suspen sões de carteira vão
aumen ta r, as p essoas n ão vão m ais comprar carros, os fa bricantes vão se transfe-
rir, n ão haverá mais trabalho e vamos ter de pagar ainda mais impostos".
Se o receptor está convencido e tom a con sciência de quanto isso custa para ele,
então se cria n ele uma n ecessidade de informação 12 •

QUARTA ETAPA DA DRAMATIZAÇÃO

E m uma quarta fase, o emissor poderá enfim apresentar sua solu ção. Se esta com -
cidir com aquilo que o receptor espera, aceita e compreende, ele terá uma ch ance de
se inserir em seu cére bro.
A abo rdagem p ublicitária clássica (e agora cen ten ária), que v isa a criar a mensagem
a partir da tentação da imagem , d a facilitação e da simplificação das coisas, n ão corres-
ponde ao tipo de informação esperada pelos receptores n a econ omia psíquica.
Tudo indica que ela terá de u tilizar urna abordagem mais o rien tada para a 'ansie-
dade interroga tiva'. Não mais se tra tará de suscita r a von tade de consum ir unicamente
oferecendo nos anúncios um sonho a con sumidores 'passivos' . Muito pelo con trário,
será n ecessário tornar o con sum idor 'ativo', força ndo- o a reagir a um problema, a uma
alternativa . A partir do m om en to em que ele se tornar ativo, será n ecessário alimen tar
seu cére bro para obrigá-lo a refletir e enfim aderir de for ma volun tária à solução.
E m bora nessa n ova economia a p ublicidade não tente culpar, não m ais do que te nta
p inta r tudo de rosa, não é por isso que ela será men os agradável, divertida e interessan -
te. É claro que a dificuldade reside, hoje, n os formatos p ublicitários u tilizados. É difici l
respeitar as quatro fases da n ova comunicação u tilizando fo rmatos de poucos m inutos,
o u mesm o de alguns segundos, n a televisão o u no rádio !

A palavra ' informação' é tomada aqui segundo a definição de Newcomb Turner e Converse, a saber: " A informação pode
ser d efinida como aquilo que suprime ou reduz a incerteza" . A palavra não é tomada no sentido comum de ' neivs' (pala-
vra definida durante a Guerra de Secessão norte-americana para indicar as notícias vindas do norte, do l este, do oeste e do
sul). O jornal televisivo fornece notícias e pouca informação, já que, com exceção da previsão do tempo, o telespectador
não encontra necessariamente naquilo que é d estilado elementos para reduzir suas incertezas . Não é o emissor que deci-
de que sua 1nensagen1 é unia inforrnação, nias o receptor, en1 função de suas incertezas.
CONCLUSÃO

Muitas obras surgiram no início de 2005 para criticar os sistemas de administração,


as técnicas de marketing, a hipermidiatização, a televisão, nossa maneira de nos alimen-
tar, de sermos governados, de educar nossos filhos etc. O mais perturbador é que pro-
vavelmente esses livros e discursos revelam um fundo geral de fru stração. A Europa, da
maneira como se constitui, frustra a maioria dos cidadãos. O mesmo ocorre na questão
da adesão da Turquia à Comunidade Européia. A campanha presidencial nos Estados
Unidos deixará provavelmente traços indeléveis, porque os norte-americanos não vota-
ram na direção desejada pelos europeu s, isto é, contra o presidente Bush.
Nas empresas, é claro, sempre há os campeões, os obstinados. Em qualquer situa-
ção, mesmo em plena tempestade, há os capitães felizes que fazem uma boa pesca. Mas
a realidade é qu e hoje a maioria dos patrões, dos colaboradores, está fru strada ou pelo
menos se sente vítima de alguma coisa ou de alguém.
Acreditava-se qu e a passagem de um século para o outro seria catastrófica por causa
do famoso bug do ano 2000. Em 1~ de janeiro de 2000 esperava-se o pior. A Air France,
por exemplo, cancelou uma parte de seus vôos de Concorde. Felizmente, tudo se pas-
sou muito bem! Não houve catástrofe alguma. É agora que ela ameaça acontecer!
A Opel , marca automobilística da General Motors, deixará milhares de operários
desempregados porqu e, segundo o chanceler Schroder, cometeu erros de marketing e
de estratégia inaceitáveis! O governo francês liberou a propaganda de vinhos para não
pôr em dificuldade todo um setor de atividade e modificou a Lei Galland sobre as ven -
das abaixo do custo para fazer baixar os p reços ao con sumo, mas sobretudo para evita r
que as grandes lojas caiam cada dia mais n a indiferença dos con sumidores. Exemplos
dessa natureza n ão são esp ecíficos a um país. Eles são reais em todos os países dese nvol-
vidos. Nossas democracias se constroem sobre o desenvolvimento econômico, sobre o
progresso do padrão de vida, e n ão sobre a sua regressão. N ossos sindicatos existem para
ajudar a melhor administrar e partilhar a opulência, não para distribuir as migalhas.
O mundo muda, o marketing da n ecessidade está m orto.
Quanto tempo será preciso para que os dirigentes de todos os setores e os profis-
sion ais de marketing passem para a econ omia psíquica?
Quanto tempo mais será preciso para que se aceite mudar o paradigma que Kittrick
implantou em 1957 e qu e estabelece qu e o lucro vem das necessidades dos consumidores?
Quanto tempo será preciso para que se adote o n ovo paradigma, segundo o qual é
por me io das respostas às fru strações que novas aventuras serão v ividas?
Q uanto tempo será preciso para que se passe do mundo das atitudes para o mundo
dos comporta men tos?
Esperemos que os prazos sejam muito curtos! Mas ten hamos n a memór ia que "o
home m que se afoga aga rra-se a q ualquer palha" (provérbio árabe) .
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162 1 O b l ues do consum i dor

INDICE

A I
ansiedade, 117 inesperado, 64
assertivo, 105 inovação, 88
atitudes, 7
M
B mentira , 33
bifurcação condicional, 22 mística-cliente, 96
buzz family marketing, 117
N
e nova dialética , 89
caos, 20
p
client-centric, 87
compensação emocional, 131 percebido, 12
comportamento, 7 pirâmide de Maslow, 38
contradição, 87 primeiro preço, 56
criação de valor, 52 product-centric, 87
crédito de tempo para as compras, 14
ciclo de vida, 39 R
realidade, 12
E regra dos quatro Ps, 92
economia da atenção, 68
efeito bilhar, 25 u
efeito borboleta, 20 up- to- date, 39
energia tóxica, 105
esperado, 64 V
estar frustrado, 72 valor, 12
vitimização, 46
F
fru stração, 72

H
hard discount, ix, 60
H omo cliens, 5
H omo consomatio, 6

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