Dor de Existir
Dor de Existir
Dor de Existir
Carlos Lannes**
Objeto é talvez uma das palavras mais usadas em psicanálise assim como
sujeito é uma palavra que remete a várias significações. Green cita, em um de
seus trabalhos, o fato curioso de que o Dicionário da Academia Francesa Littré
dá o mesmo significado, quando define a palavra sujet e quando define a pala-
vra object: “corpos naturais são o sujeito da física, corpos naturais são o objeto
da física”. No dicionário francês-português, sujet tem como sinônimos “causa”
e “objeto”, assunto. Na verdade, ambos os termos guardam uma relação de
complementariedade: não há objeto sem sujeito e não há sujeito sem objeto.
Desde Freud, nossas teorias psicanalíticas não conseguem evitar se confrontar
com essa verdade.
Minha proposta é examinar o conceito de objeto nas teorias de Lacan e
Winnicott, destacar as conjunções possíveis e, certamente, as disjunções exis-
tentes. Inicialmente, a proposta é fazer uma breve passagem por este conceito
em alguns pontos da obra freudiana, pois, como é sabido, foi a partir do legado
de Freud que tudo começou.
Freud, de certa maneira, quebrou, rompeu a velha relação entre sujeito e
objeto. Ao invés de opor um ao outro, como colocado pela tradição filosófica,
ele juntou, relacionou o objeto com a pulsão, e esta, evidentemente, não pode
assumir uma função subjetiva. Na teoria freudiana, nada mais impessoal, me-
* Nota do Editor. Esta conferência fez parte da mesa-redonda realizada no CPRJ em 14/04, com
o título Objeto Perdido para Sempre, em que também participaram Adelina Freitas, cuja confe-
rência está aqui publicada sob a forma de artigo temático, e Marcos Comaru, cuja conferência
se encontra publicada em outra revista, também sob a forma de artigo.
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Psicanalista, membro efetivo/CPRJ.
nos capaz de uma vontade própria do que a pulsão. Está enraizada no corpo e
é associada com as características da espécie como tal, embora certamente dis-
tinta da noção de instinto (nome pelo qual foi inicialmente traduzida, trazen-
do consequências para seu entendimento). Freud propõe a noção de “recalque
orgânico”, partindo do fato da posição ereta assumida pelo ser humano, que
poderia explicar o desaparecimento do instinto. Com o desenvolvimento da
teoria das relações objetais o conceito freudiano de ego não podia mais dar
conta, ou seja, complementar teoricamente as novas formulações do objeto
que emergiam. Tentativas de explicar essas novas formulações levaram à ela-
boração de conceitos como o do self e mesmo o do eu. Assim, a subjetividade
do sujeito, desaparecida na obra de Freud, reaparece na teoria psicanalítica.
Reaparece explicitamente na teoria de Lacan que, dentro do movimento estru-
turalista, insiste em seu caráter impessoal e relaciona seus efeitos com os do
conjunto de combinações não representáveis que ele vai denominar, a partir de
Lévi-Strauss, de “ordem simbólica”.
Winnicott também se afasta do conceito freudiano de ego, optando pelo
conceito de self, que de certa maneira se aproxima da noção acadêmica de su-
jeito, mas não guarda relação com a função de sujeito vista do ponto de vista
estruturalista. O próprio Winnicott não conseguiu definir o conceito de self,
deixando a chance, a meu ver, de comprovarmos como o significante realmen-
te nos comanda.
Depois de tais considerações, torna-se necessário traçar uma breve traje-
tória referente ao uso da noção de objeto na obra de Freud. Sirvo-me, a seguir,
amplamente do pensamento de André Green.
O objeto é parte de um conjunto em relação ao qual ele é simultaneamen-
te interno e externo. É interno à medida que é um elemento constitutivo deste
conjunto (montagem) sendo, portanto, constitutivo do aparelho pulsional. A
fonte, a pressão, o alvo e o objeto da pulsão compõem esse aparelho. A fonte e
a pressão têm uma origem física e, assim, não são deslocáveis. A substituição
de uma fonte por outra não elimina o problema da pressão na fonte original.
Resumindo:
O objeto é parte do aparelho pulsional: o objeto incluído.
O objeto é externo à pulsão: o objeto excluído, inicialmente objeto da ne-
cessidade torna-se, por apoiar-se na necessidade, o objeto do desejo.
O objeto é o componente da pulsão mais facilmente substituível.
O objeto ausente pode ser substituído por outro objeto externo ou por um
objeto parcial, a partir do próprio objeto externo (o seio) como algo do próprio
corpo (dedo).
O objeto pode ser incorporado, pode ser introjetado como processo psí-
quico, pode ser objeto de identificação e pode ser internalizado.
O objeto é inicialmente confundido com aquilo que o apresenta como
objeto, ou seja, com aquilo que objeta, podendo resultar num caos se não hou-
ver objeto.
A distinção entre objeto e não-objeto é conquistada pela integração da
perda do objeto; sua consequência é a criação de um objeto interno, distinto
do objeto externo.
Corolário disto é a produção do objeto fantasiado. Seu oposto é o objeto
real. O primeiro, regido pelo principio do prazer, o segundo, pelo principio da
realidade.
A escolha objetal depende de um critério múltiplo. Os modelos são o ob-
jeto narcísico, baseado no narcisismo do não-objeto, entendido como o eu em
formação, e o objeto anaclítico, baseado no objeto objetal.
O jogo das diferenças que caracterizam o objeto pode ser situado em vá-
rios eixos, mas dois deles têm um papel dominante: a separação em objeto
bom e objeto mau e a separação de acordo com a diferença de sexos: objeto
castrado versus objeto fálico.
O objeto é ligado, atado, tanto ao desejo quanto à identificação. Identifica-
ção é o primeiro modo de relação com o objeto, levando a uma segunda iden-
tificação com o objeto do desejo. O objeto pode ser um produto da
construtividade ou da destrutividade das pulsões. Pode ser construtivo ou des-
trutivo para o não-objeto (ego ou self).
O objeto erótico (o objeto investido pelas qualidades construtivas de Eros,
na teoria final de Freud) evolui para a sublimação, enquanto o objeto da des-
trutividade evolui, não para o caos objetal, mas para o nada objetal (ponto zero
da excitação), porque o objeto é sempre uma fonte de excitação, não importa
se externo ou interno, prazeroso ou não prazeroso.
Eis aí, então, um resumo (resumo necessariamente compacto) da concep-
ção da evolução em Freud da noção de objeto.
Os herdeiros do legado freudiano fizeram alguns adendos nas definições
antes apresentadas. Muitos obtiveram resultados frutíferos. Poucos acabaram
afetando a harmonia da obra por inteiro. Além disso, surgiram disparidades en-
tre os fatos encontrados na prática, em relação à teoria correspondente a esses
fatos, levando à hipervalorização de um ou outro aspecto parcial da teoria. Com
Reich, os problemas da análise de caráter levaram-no a enfatizar a relação com o
objeto externo. Com Abraham, o verdadeiro pioneiro da teoria das relações ob-
jetais, o debate genético levou à especificação de subfases do desenvolvimento,
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a Dolto. Não que ele se manifestasse claramente dessa forma, pois faziam par-
te da mesma Associação até aquele momento. Porém Lacan se coloca do lado
da elaboração de Winnicott, pois o que na imagem aparece diz respeito ao
objeto. Lacan está aí se colocando, portanto, contrário à imagem do corpo
tratada como totalidade; todo o seu esforço é no sentido de demonstrar que o
objeto do desejo é algo distinto da imagem total.
Em seu quarto seminário, Lacan propõe que se parta da “noção de falta
de objeto”. Esta noção encontra-se baseada no artigo de Freud, de 1925, intitu-
lado A negativa. Do referido artigo, destaco a seguinte passagem: “Assim, o
objetivo principal e mais imediato do teste da realidade não é encontrar um
objeto como percepção real, correspondendo àquilo que é representado (na
mente), mas reencontrar tal objeto – para se convencer de que ele está ainda
lá.... Uma pré-condição essencial para a instituição do teste da realidade é cla-
ramente que objetos tenham sido perdidos, objetos que tenham anteriormente
propiciado satisfação real”.
Lacan interpreta este texto dizendo que se o objeto nunca foi deliberada-
mente encontrado; falando estritamente, isto se dá porque ele talvez seja de na-
tureza essencialmente fantasística, não correspondendo a nenhuma experiência
de satisfação. Nunca houve este objeto. Ele é constituído como perdido, uma vez
que nunca pôde ser encontrado em nenhum lugar, fora da fantasia ou da vida
onírica. Em suas palavras, “Freud não afirma que o objeto é, por sua natureza,
perdido num sentido absoluto. Um objeto é encontrado no início e não ativa-
mente buscado pela criança, porque a criança não é capaz de buscar um objeto
a não ser após este encontro”. Lacan afirma que não há nenhum encontro deli-
berado com um objeto, apenas um re-encontro com um objeto. Usando o texto
freudiano como ponto de partida, ele aponta que o objeto pode ser visto como
sempre, desde sempre, já perdido. O seio não é, durante a primeira experiência
de satisfação, constituído como um objeto, muito menos como um objeto sepa-
rado do corpo da criança. Só é constituído como tal após várias tentativas da
criança de repetir aquela primeira experiência de satisfação, quando a mãe está
ausente. É a ausência do seio, em outras palavras, o não conseguir satisfação, que
leva à constituição de um objeto como tal, isto é, separado e fora do controle da
criança. Uma vez constituído, ou seja, simbolizado de alguma forma, a criança
jamais poderá (re)encontrar o seio como vivido da primeira vez, como algo não
separado de seus lábios, língua ou boca, ou seja, separado de si mesma. Parte de
si mesma é perdida (para sempre, desde sempre) e o seio real nunca será igual
ao perdido. Algo, entretanto, sobra, fica como resto desta experiência de consti-
tuição do objeto, algo que foge, que escapa à simbolização.
Este resto é o que Lacan vai chamar de objeto a, resto que “lembra” alguma
coisa, algo talvez perdido, mas que, quem sabe um dia, pode ser achado. O
objeto a é, então, primeiramente definido como um resto não simbolizado da
unidade hipotética mãe-criança perdida. Perdida por incidência da Lei, ordem
simbólica, a partir da metáfora paterna. A criança se agarra a esse resto em
suas fantasias, para conseguir um senso de unidade, de totalidade, como obje-
to de jouissance, como aquela parte da mãe que leva consigo após a separação,
como causa de sua existência.
Impossível não ver aqui aquilo que Winnicott percebeu genialmente. Gos-
taria de destacar o uso de termo genialmente, aqui empregado. Winnicott con-
ceituou o que estava lá para todos verem, mas que ninguém tinha ainda
observado, com tal acuidade. No Brasil, por exemplo, é curioso dizer que quan-
do a criança está brincando, fazendo algo que não vemos, algo “transgressivo”,
dizemos que ela está fazendo “arte”. Imagino que o próprio Winnicott não per-
cebeu de imediato a importância de seu achado. Só mais tarde, após a grande
repercussão de seu trabalho sobre objetos e fenômenos transicionais, é que ele
decidiu retomar o tema e produzir seu último livro Playing and reality. Não
receio afirmar que, para Winnicott, também o objeto não existe. Enquanto a
teoria vigente em sua época falava do ego e do objeto, desde sempre ele afirma-
va a não existência de ambos: sem o eu não existe objeto e vice-versa. É dele o
conceito de “momento de ilusão”, ilusão dupla que inclui a ilusão do observador
que pensa que há troca entre mãe e criança. Para ele não há troca. A criança
mama em si mesma e a mãe é mamada por uma parte de seu corpo. Não há eu
e objeto. Tudo acontece no corpo da criança. A ênfase é na mãe-ambiente, mãe-
-envoltório voltada para o bebê e que está ocupada em produzi-lo como tal.
É a mesma unidade mãe-criança hipotética à que Lacan se refere. Cabe a
esta mãe “ambiente” e não à mãe objeto, a “apresentação de objetos”; nenhum
deles pedidos, nem perdidos pela criança, objetos apresentados de maneira
muito especial, de modo que a criança possa vivê-las como criações suas. Criar
é inventar algo que não existe – o bebê só mama no seio que ele criou. Dar o
seio, apresentá-lo à criança, é, para além do atendimento de uma necessidade
física, uma dádiva de amor. Um bebê pode ser alimentado sem amor, mas um
handling sem amor e impessoal não terá sucesso na produção de uma nova e
autônoma criança humana. Interessante lembrar a afirmação de Winnicott: “o
bebê, isso não existe”. Cabe à função materna transformar essa unidade bioló-
gica, orgânica, que nasceu num bebê.
Lacan fala do objeto a como causa de desejo. Já que é um resto, um resíduo
não simbolizado, permanece como falta, movendo permanentemente a cadeia
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menos que tem início com a constatação da separação, dos quais se destacam
as fantasias com o padrão pessoal, singular, que as marcam. É uma “possessão”,
algo de que a criança faz “uso-fruto”. Winnicott faz alusão à incidência da Lei,
tal como é definida por Lacan, quando diz que há uma ab-rogação da onipo-
tência e, portanto, um sacrifício, uma renúncia ao estado anterior. Sua descri-
ção deste objeto é extremamente apurada e deixa entrever a elaboração que,
iniciando aqui, será também tarefa para toda a existência. O objeto objetivo é
inalcançável. A origem e a possibilidade deste objeto e destes fenômenos é o
que ele chama de momento de ilusão, correspondendo exatamente a essa uni-
dade hipotética mãe/criança.
As teses elaboradas por Winnicott e por Lacan estão muito mais próximas
do que se pode pensar a princípio. Falam da mesma coisa (causa).
A ênfase em Winnicott é na presença, na existência, de uma possessão lite-
ralmente criada-achada, feito pela criança, esse objeto que pode não existir e
que é a parte visível de todo um processo que aí se inicia para durar toda a
existência. Esse objeto é testemunha desse processo ou de processos necessá-
rios, para se fazer a ponte (valor de mito) entre dois mundos heterogêneos,
processos que visam à homogeneização desses mundos, realidade interna e
realidade externa, mantendo o espaço entre eles permanentemente potencial.
É o lugar onde se origina o sintoma com sua dimensão fantasística. A ênfase é
no processo ou processos. Diz Winnicott: “(...) testemunhamos tanto o pri-
meiro uso de um símbolo como sua primeira experiência do play”.
Para Winnicott, o objeto transicional corresponde a uma falha da mãe
diante do apelo da criança e sua função é impedir a emergência da angústia.
Pode-se dizer, escreve Winnicott, “que existe um acordo entre a mãe e o bebê
sobre o objeto transicional, que nos impede de colocar a questão: essa coisa
você a concebeu ou foi lhe apresentada de fora?” O que é importante é que não
se espera nenhuma decisão sobre esse ponto. A questão mesma não tem que
ser formulada.
Lacan define o objeto transicional como “o ganho obtido pelo sujeito em
relação à dependência do Outro, na relação do sujeito ao Outro da demanda”.
Este objeto constitui uma vitória sobre a angústia. Enquanto o objeto transi-
cional se apresenta como aquilo que supre a falta a ser do sujeito, o objeto “a” é
o índice desta falta. O objeto transicional encobre totalmente esta falta.
Objeto causa – expressão contraditória postulada por Lacan, e espaço po-
tencial em Winnicott – para mim, embora conceitos diferentes, são alusões ao
mesmo processo: são resultados de uma separação, ou melhor, da constatação
de uma separação. Falta, causa de desejo e espaço, permanentemente potencial,
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