De O Mundo Inimigo A Redemoinho - o Romance de Ruffato No Filme de Villamarim

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DE O MUNDO INIMIGO A REDEMOINHO: O ROMANCE DE RUFFATO NO


FILME DE VILLAMARIM

Carlos Augusto Viana da Silva1


Reginaldo de Souza Rodrigues2

RESUMO

O presente trabalho busca analisar a tradução da obra O mundo inimigo. Inferno provisório
vol. II (2005), de Luiz Ruffato para o cinema, na obra Redemoinho (2017), de José Luiz
Villamarim. Dessa forma, tentamos mostrar como o cineasta adaptou para a tela a prosa
caleidoscópica de Ruffato, em que passado e presente se entrecruzam, causando conflitos
entre o individual e o social e revelando como as transformações sociais de uma cidade se
refletem na vida dos sujeitos que ali residem.

Palavras-chave: Literatura. Cinema. Adaptação. Luiz Ruffato

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Doutor em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Bahia – UFBA.
Professor Associado do Departamento de Estudos da Língua Inglesa, suas Literaturas e Tradução e do
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará – UFC. E-mail:
[email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3316600178531895.
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Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará – UFC.
Email: [email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1510590888099955.
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TRADUÇÃO E ADAPTAÇÃO FÍLMICA

A questão da traduzibilidade é um problema que atravessa os séculos e tem


ocupado os teóricos da tradução ainda nos dias de hoje. Um ponto no qual eles têm se
debruçado é sobre o que é possível ou não ser traduzido e, se é possível, qual a melhor
maneira de fazê-lo: aproximar-se do exotismo da obra ou busca-se aclimatá-la de forma a
domesticá-la na língua-alvo? Assim, se esses são problemas enfrentados pela tradução
interlingual ou tradução propriamente dita, na formulação de Jakobson (1991, p. 64), a
tradução intersemiótica ou transmutação tem, além desses, uma série de outros obstáculos
a serem superados. Podemos entender, portanto, que, embora existam muitas barreiras a
serem transpostas na realização da atividade tradutória, as experiências cognitivas em
qualquer língua são passíveis de serem traduzidas.
Tal entendimento é alargado por Plaza (2001) ao comentar a definição de signo
peirciana, no qual qualquer pensamento é tradução. Por ocasião de sua formulação teórica
sobre Tradução Intersemiótica, afirma o autor: “Quando pensamos, traduzimos aquilo que
temos presente à consciência, sejam imagens, sentimentos ou concepções […] em outras
representações que também servem como signos” (Plaza, 2001, 18). Além disso, outra
questão abordada pelos estudos da tradução, pelo menos nas abordagens mais tradicionais,
é sobre o que se perde e o que se ganha ao se materializar uma obra traduzida. Na visão
mais prescritiva, a regra é o que consta no conhecido ditado italiano traduttore traditore,
em que se verifica a fidelidade (ou não) e a subalternidade do texto-alvo em relação ao
texto-fonte.
Desse modo, podemos avançar na compreensão de que as traduções não devem ser
entendidas como obras menores, mas devem se libertar da sua “condição ancilar”, como
aponta Berman (2002). Tais obras carregam em si a possibilidade de ampliar a significação
do texto-fonte e fazer emergir outros sentidos, trazendo-os para a superfície na obra de
chegada. Assim, a adaptação de um romance para o cinema, por exemplo, nunca é
desprovida de uma leitura específica do diretor, no seu tempo histórico. Esse modo de ler
poderá potencializar o que a obra de partida traz em camadas mais profundas de sua
significação, sendo capaz de ampliar leituras para adequá-las às demandas discursivas dos
contextos receptores, ainda que essa ampliação de leitura possa, inclusive, questionar ou
subverter o texto traduzido.
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Assim, os produtos culturais resultantes de uma tradução estão cada vez mais
inseridos na percepção de convergência entre as artes e linguagens. Incluem-se nessa
dinâmica as adaptações cinematográficas que, na visão de Cattrysse (2014, 47), podem ser
analisadas também como uma tradução, uma vez que a adaptação como tradução segue
critérios de aproximação ou distanciamento de um texto de partida e, portanto, não pode
ser dissociada da prática tradutória. Entretanto, a questão da produção e da recepção deve
ser considerada como elemento importante de distinção entre a tradução linguística ou
literária e a adaptação fílmica, considerando que o contexto social de produção e recepção
de um texto literário é bem diferente da “leitura” e da recepção de um filme.
É, portanto, no contexto da intermidialidade (Elleström, 2014) que podemos
pensar de que forma se materializa as relações entre literatura e cinema, já que há um
estreito diálogo entre as duas artes, desde o início da história do cinema. Se, nos
primórdios da arte cinematográfica, os cineastas buscavam nas narrativas clássicas do
século XIX uma espécie de modelo, trazendo alguns de seus procedimentos para dentro do
cinema, com a modernidade literária no século XX, a própria literatura passa a incorporar
técnicas do cinema.
Saraiva (2003, 9), ao tratar dessa conexão, afirma que as narrativas literárias e
fílmicas estão ligadas às inúmeras narrativas do mundo e assumem diferentes substâncias
de expressão, diferentes funções socioculturais e vários recortes pragmáticos. E ainda
reforça que:

A similaridade que integra ambas as modalidades narrativas não se esgota na


pretensão de instalar um mundo aparentemente possível através de uma
linguagem convencional: o ato comunicativo sobre o qual a narrativa literária e a
fílmica se fundam, a finalidade que as orienta e técnicas discursivas aproximam
uma e outra, embora a diversidade de seus planos de expressão mantenha a
fronteira entre os territórios. (SARAIVA, 2003, 10).

Percebemos que o ponto de partida para uma possível delimitação de fronteira entre
as narrativas literária e fílmica seria a diversidade de seus planos de expressão, ou seja, a
forma de apresentação de cada discurso. Nessa medida, o ato de narrar não seria
simplesmente a representação de uma série de acontecimentos, reais ou fictícios, por meio
da linguagem, algo tão evidente como se contar uma história, por exemplo, como afirma
Genette (1971), mas como uma atividade que pode traduzir o verídico ou instaurar a
ficção. E daí surge a questão apontada pelo autor sobre a necessidade de observar o caráter
não evidente do ato narrativo e sim do seu “aspecto singular, artificial e problemático”
(GENETTE, 1971, 255).
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Embora se reconheçam os muitos caminhos em que a linguagem do cinema e da


literatura se encontram, não se pode também deixar de considerar aspectos inerentes a cada
uma delas. Marcel Martin (2011), ao tratar mais especificamente do cinema, aponta um
traço que o distingue de todos os outros meios de expressão cultural, o fato de sua
linguagem funcionar a partir da “reprodução fotográfica da realidade” (MARTIN, 2011,
18). Entendemos que, apesar de, à primeira vista, parecer que toda representação
(significante), coincide de forma exata com a informação conceitual que veicula
(significado), na verdade, essa representação é sempre mediatizada pelo tratamento
fílmico, dado pelo roteiro e pela direção, por meio de técnicas específicas do sistema
cinematográfico, tais como: o movimento de câmera, a montagem, o som e a própria
escolha das imagens que já desencadeiam um direcionamento da leitura para o texto na
tela. Todo esse aparato é constituinte de uma realidade própria, um construto de segmentos
autônomos que, ao serem articulados e interligados, dão sentido ao conjunto narrativo, ou
seja, o filme, que Christian Metz chama “o sintagma máximo do cinema” (1979, 202).
Vale destacar que a autonomia desses segmentos é, portanto, limitada, uma vez que
o sentido tomado por cada um deles só se constrói em relação ao filme. Existe, na própria
relação interna desse texto cinematográfico, um conjunto de elementos que interagem e se
completam através de suas relações. Isto se consolida por meio da influência direta das
instâncias operacionais na realização do filme, ou seja, o roteiro, a filmagem, a direção e a
edição. Assim, a realidade que se apresenta na tela nunca é totalmente neutra, mas sempre
um signo de algo mais, ou que o Martin chama de “dialética de significante-significado”
(2011, 18). Ao comentar essa relação, o autor reforça que:

Essa ambiguidade da relação entre o real objetivo e sua imagem fílmica é uma
das características fundamentais da expressão cinematográfica e determina em
grande parte a relação do espectador com o filme, relação que vai além da crença
ingênua na realidade do real representado à percepção intuitiva ou intelectual dos
signos implícitos como elementos de uma linguagem [grifo do autor].
(MARTIN, 2011, 18).

Assim, pensando na linguagem cinematográfica e tentando compreender o seu


diálogo constante com a linguagem literária, é que buscamos analisar aqui o filme
Redemoinho (2017), de José Luiz Villamarim, adaptação de O mundo inimigo. Inferno
provisório vol. II (2005), de Luiz Ruffato. Observamos como o filme lida com a
construção do entrecruzamento entre presente e passado e os conflitos resultantes desses
embates sobre os personagens, causando tensões entre o individual e o social, que revelam
como as transformações sociais de uma cidade se refletem na vida dos sujeitos que lá
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habitam. Nesse sentido, a adaptação fílmica como um processo de tradução (Cattrysse,


2014) está, portanto, cada vez mais presente no cotidiano dos sujeitos leitores e/ou
espectadores contemporâneos como forma de acesso a produtos culturais oriundos, ou não,
da tradição literária.

O MUNDO INIMIGO EM REDEMOINHO

Inferno provisório foi o nome dado a uma série de romances escritos por Luiz
Ruffato entre os anos de 2005 e 2011. Reeditada no ano de 2016 em volume único, a obra
traz fusões e uma nova organização dos capítulos, mantendo alguns títulos e criando
outros. De maneira geral, Inferno provisório conta a história dos operários de uma pequena
cidade do interior de Minas Gerais – Cataguases – entre meados da década de 1950 até o
início do século XXI. Os personagens de Ruffato são, em suma, trabalhadores
precarizados, como atesta Dalcastagnè (2012):

No lugar dos intelectuais e artistas que circulam com desenvoltura por tantos
romances e contos, ele empurra para dentro da trama costureiras e operárias
cansadas; em vez de traficantes sanguinários (e exóticos) traz ladrões baratos que
tropeçam nas próprias pernas ou homens bêbados, envergonhados por não
conseguirem sustentar os filhos [...] Indivíduos, que, com suas trajetórias
pessoais, ajudam-nos a compor um painel mais plural sobre a vida no país nos
dias de hoje. (DALCASTAGNÈ, 2012, 545).

Como podemos perceber, seus personagens se distanciam de um espectro comum


da tradição literária e traz a classe trabalhadora mais precarizada, os desvalidos, para o
centro da discussão. O projeto literário de Ruffato passa, necessariamente, por um projeto
de país, ou ainda, pela busca de uma utopia em que a literatura tem papel preponderante.
Dessa forma, o autor tenta apreender a diversidade de tipos anônimos que caracterizam o
Brasil contemporâneo, como demonstram Guimarães e Walty:

É justamente porque o país são vários que várias são as tendências de sua cultura
e de sua literatura. Ruffato faz do romance desenraizado e fragmentado a
percepção de um tempo e de um espaço, ou melhor, de diferentes tempos e
espaços em movimento; um romance que, mais que a história da classe operária
no Brasil, é o cruzamento de histórias várias em seu jogo de busca de
visibilidade. (GUIMARÃES; WALTY, 2017, 59).

É com esse material que José Luiz Villamarim é confrontado na tradução da obra
de Luiz Ruffato para o cinema. O primeiro trabalho para o cinema do diretor tem como
centro o livro O mundo inimigo, publicado pela primeira vez em 2005 e, mais
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especificamente, o capítulo “Amigos” do mesmo livro. A história se concentra no


reencontro de dois amigos, Luzimar (Irandhir Santos) e Gildo (Júlio Andrade), que há
muito tempo não se viam. Os dois personagens são originários de Cataguases, cidade onde
Luzimar vive e trabalha numa fábrica de tecidos. Gildo, no entanto, fora embora para São
Paulo e agora está fazendo uma visita à sua mãe na véspera de Natal. No reencontro dos
dois amigos emergem muitas boas lembranças, mas também muitos ressentimentos e
rancores. É nesse reencontro que vislumbramos as relações conflituosas entre passado e
presente, representadas pelos diálogos deles. Além disso, a obra levanta algumas questões
importantes acerca das decisões de Gildo e Luzimar: ficar na sua cidade de origem ou
partir para uma outra em busca de melhores condições de vida? Quantas e quais
reminiscências estão autorizadas a fazer parte dos novos cotidianos?
A narrativa de Redemoinho estabelece desde o início alguns aspectos substanciais
de ligação clara com a narrativa de O mundo inimigo. Inicia-se mostrando, por meio de um
flashback em câmera lenta, a ponte sobre o rio Pombas e uma chuva ensurdecedora ao
fundo, com uma baixa resolução, tornando a imagem quase indefinida. Na sequência da
cena, após a exposição do título da obra, em fade-in, justapõe-se à imagem inicial, um tear
mecânico e um barulho de máquinas fabris. O filme continua exibindo detalhes das
máquinas e, em seguida, nos apresenta Luzimar. A câmera acompanha o personagem,
mostrando-o pelas costas num ritmo que faz alusão ao movimento da câmera visto na
primeira imagem da ponte, fazendo, assim, uma rima visual desses dois momentos no
tempo. Essa sequência inicial pode ser interpretada como uma antecipação de fatos da
narrativa, pois já dá ao espectador algumas pistas de como Villamarim a conduzirá: a
imagem da ponte sob forte chuva estará presente durante toda a projeção, expondo um dos
ressentimentos antigos entre Gildo e Luzimar.
Após essa sequência inicial, o barulho continua enquanto a câmera faz uma tomada
panorâmica da fábrica e mostra Luzimar caminhando até sumir no meio de uma infinidade
de máquinas, simbolizando a sua completa imersão naquele ambiente. Em seguida,
contrapondo esse cenário barulhento, automatizado e cinza, vemos imagens de montanhas
verdes e silenciosas. Em enquadramento parecido, com a câmera posicionada atrás do
personagem, Gildo é mostrado conduzindo seu carro. Neste momento, há mais uma
justaposição de sentidos, agora com relação à introdução dos personagens: Luzimar é
apresentado enquanto trabalha, cercado por uma fotografia de tons frios e sóbrios, já Gildo
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é mostrado enquanto viaja de férias, representado com tonalidades mais vibrantes,


estabelecendo-se, assim, uma clara dessemelhança entre os protagonistas.
Desta forma, enquanto no livro, observamos uma descrição do personagem num
plano mais geral do ambiente de trabalho, no filme, a apresentação de imagens
contrastando os dois amigos é feita de maneira mais detalhada, apontando para as
diferenças entre os dois. No livro, o capítulo se inicia com a saída dos operários da
Manufatora e a preocupação de Luzimar em comprar algum presente para sua esposa,
Soninha. O personagem, então, monta na bicicleta e segue para a rua do Comércio, quando
ao passar em frente à casa de dona Marta (Cássia Kis), mãe de Gildo, percebe um carro
estacionado. Ele inicia uma conversa com ela e, perguntando sobre o carro, Luzimar
descobre que Gildo veio passar o Natal com a mãe. Assim, essa conversa ocasional marca
mais um dos pontos importantes de dessemelhança entre os personagens, já que seus meios
de transporte são usados no filme para evidenciar suas diferenças de renda salarial.
Além do delineamento visual mais direcionado para a apresentação dos
personagens em seus ambientes no filme, a construção dos diálogos também reforça
diferenças com relação ao livro. É o caso da apresentação do primeiro diálogo de
reencontro entre Luzimar e Gildo. No livro, a percepção de Luzimar ao falar sobre a cidade
é de que as coisas não mudaram muito:

— E você? [fala de Gildo]


— Tudo bem, graças a deus.
— E as novidades?
— Novidades? Aqui não acontece nada...
— Ah, lá isso é verdade. Tem uns sete anos que eu fui embora e... o quê que
mudou por aqui? Nada!
— É... (RUFFATO, 2016, 243).

Como podemos perceber, esse diálogo mostra certo conformismo de Luzimar


diante dos fatos. No filme, em outra perspectiva, essa fala demonstra o desconforto dele
com esse tipo de pergunta por parte de seu amigo, sugerindo um questionamento a uma
possível ideia de desenvolvimento da cidade:

— E você? [fala de Gildo]


— Tudo bem, graças a deus.
— E as novidades?
— Novidades? Tudo tranquilo.
— E o quê que mudou aqui, na cidade?
— Ó só, Gildo, a cidade cresceu, né? Tem mais gente. Mais carro.
— Ô, Luzimar, cê não sabe o que é cidade grande, rapaz. (REDEMOINHO,
2016).
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Logo em seguida, a conversa continua sobre alguns personagens conhecidos que


fizeram parte do passado dos dois: seu Marciano, pai de Gildo cuja morte desencadeou a
ida de tio Gesualdo a São Paulo, levando os sobrinhos Gilmar e Gildo consigo, e seu
Marlindo, pai de Luzimar, que vendia pipoca em frente ao colégio. Neste diálogo, os dois
amigos entram em contato sobre detalhes do que aconteceu durante o tempo que passaram
sem se ver. O assunto dessa conversa estabelece uma relação de identidade entre os dois
protagonistas ao determinar uma memória compartilhada. Então, o diálogo converge para o
trabalho de Luzimar:

— (...) E você?, trabalhando aonde? [fala de Gildo]


— Na Manufatora.
— Na Manufatora?
— É, algodão hidrófilo... Sabe?, aquele que a gente usa pra passar mertiolate...
— Ah! E o quê que você faz lá?
— Eu? Embalagem.
— Embalagem?
Gildo levanta.
— Viu a televisão que eu trouxe pra mãe? Último modelo. Uma nota!
(RUFFATO, 2016, 244).

Como podemos ver, Gildo interrompe bruscamente a conversa para falar da


televisão que comprou para sua mãe, demonstrando certo desapreço pela vida presente de
Luzimar. Essa falta de interesse pode ter sido motivada, não só pelo distanciamento entre
os dois, mas também pelas diferenças que os separam no presente. A relação que se
estabelecerá entre os dois, daqui em diante, será sumamente artificial, pois a cumplicidade
de outrora não está mais evidente.
Partindo do relato de fatos do passado, a conversa avança e o diálogo passa a ser a
atual situação de Gildo e sobre São Paulo, cidade em que ele mora atualmente:

— E... E São Paulo? [pergunta de Luzimar]


— Quê que tem?
— É... bonita?
— Bonita? É grande... Eu não posso reclamar não... Fui pra lá, arrumei emprego,
ganho bem, comprei até carro, você viu?, um fusquinha verde aí fora (...)
— Você se deu bem, né, Gildo?
— É, mas não foi fácil não, cara... Pastei muito, no começo...
— Mas é melhor do que ficar aqui, né?
— Ô se é! Também, essa cidade é uma bosta, não tem nada...
Exaltado, emoldura-se na porta da sala e dá uma banana para a rua:
— Aqui, ó! Cidade de merda! Povinho escroto!
Luzimar ri, sem graça. Levanta. (RUFFATO, 2016, 246).

Aqui, o autor estabelece entre os dois amigos um constrangimento acerca do


descompasso de suas vidas atuais e uma divergência na percepção que cada um tem sobre
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elas. Enquanto Gildo está efusivo com sua vida em São Paulo, pelas promessas de
progresso e prosperidade econômica; Luzimar, de outra forma, preza pelo conforto de sua
cidade natal, reforçando que é isso que vale à pena. Gildo, entretanto, não concordando
com essa postura, tenta convencer Luzimar de como sua vida podia ser muito melhor num
grande centro urbano, emulando toda uma tradição no Brasil das inúmeras pessoas que
saem de sua cidade rumo a outras em busca de melhores condições de vida.

— [...] Você devia é ir pra São Paulo, cara. Logo-logo arrumava uma colocação,
ia ganhar muito dinheiro, ficava bem de vida!
— Bobagem, Gildo... Pra mim não dá mais não... Agora, então, que casei...
— Mas você não tem nem onde cair morto, cara! Desculpa eu falar assim, mas é
mentira? Você tem que largar isso aqui, ir embora... Tem um mundo esperando
lá fora...
Gildo puxa Luzimar à janela.
— O quê que você vê daqui?
— Daqui?
— É. O que você vê?
— A chácara. E depois?
— O campinho.
— E depois?
— O Bairro-Jardim.
— E depois?
— Depois?
— É, depois.
— Depois? Depois não dá pra ver mais nada...
Gildo empurra Luzimar de volta ao sofá, e, de pé, fala, exaltado:
— Está vendo! Depois do Bairro-Jardim você não vê mais nada. Mas o mundo
está é lá atrás, cara! O mundo! Essa cidade é uma merda [...]
— Ô, Gildo, mas não é assim também não... Foi aqui que a gente nasceu...
cresceu... fez amigos... (RUFFATO, 2016, 247-248)

Podemos perceber, portanto, que Ruffato problematiza uma questão social e


histórica do país, a da saída de sujeitos dos seus lugares de origem para outras regiões
economicamente mais privilegiadas do país, em busca de melhores condições de trabalho,
atraídos por um discurso de prosperidade. Ao ser cooptado por esse discurso, os valores
que movem a vida de Gildo passaram a ser muito diferentes daqueles que movem a vida de
Luzimar. Para este, a ligação com a família, com os amigos de infância, ou ainda, com a
história de sua cidade são as razões que o fazem permanecer em seu lugar de origem. Para
Gildo, esses valores não são importantes, o que importa é ganhar dinheiro para poder
comprar carro e casa em uma cidade grande e, permanecer em Cataguases, uma pequena
cidade de interior, não o ajudaria a conquistar esses objetivos.
Esse afastamento entre os dois personagens e os modos de vida representados por
cada um deles, certamente entraria em choque mais cedo ou mais tarde. Embora os dois
tenham compartilhado um passado em comum, o deslocamento feito por Gildo modificou
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não só seu lugar de moradia, mas também o seu modo de pensar. Para este personagem,
não há muito o que se ganhar com o passado, o que ficou para trás deve ser enterrado e
esquecido. Dessa forma, torna-se incompatível uma relação de afeto entre os velhos
amigos, pois Gildo sente desprezo pela vida atual de Luzimar e não aceita como legítimas
as escolhas feitas por ele:

Gildo retorna.
— Eu tenho pena de você, cara. Pena mesmo, juro... Porque você está fodido
[...] Um dia, quando menos perceber, acabou... é o fim da linha... E que merda de
vida você levou, cara!, que merda de vida!
Luzimar levanta.
— Ê, Gildo, quem é você pra falar assim comigo?
— Eu? Ninguém... Mas, espera pra ver... Eu me dei bem, entende? Todo mundo
que foi embora se deu bem [...]
Luzimar caminha rumo à porta.
— Espera aí, cara, não vai ainda não!
— Eu tenho de ir.
Gildo agarra com força o braço esquerdo de Luzimar.
— Senta aí, cara. Deixa de ser bobo. Você ficou chateado comigo? [...]
— Me larga, Gildo, eu tenho de ir embora!
— Espera aí, Luzimar. Vamos lá na rua do Comércio comprar o presente da sua
mulher, como é mesmo o nome dela?, depois te levo pra casa.
— Me larga, porra! [...]
Luzimar [...] apanha a bicicleta, sai pedalando rapidamente.
Mesmo contido pela mãe, Gildo corre para o meio da rua:
— Vai, panaca, vai cuidar da mulherzinha! Vai, bundão! Trouxa! Panaca! Vai!,
grita, acendendo um rastilho de lâmpadas nas casas vizinhas. (RUFFATO, 2016,
248-249)

É notória, portanto, a incompatibilidade de visões de mundo entre os velhos


amigos, o que também revela a consequente insensibilidade que acometeu Gildo na sua
maneira de entender a vida. Isso fica evidente quando no fim do capítulo, enquanto
Luzimar corre em busca de comprar um presente para sua esposa, Gildo adormece no sofá
da casa de sua mãe e não celebra com ela o Natal, motivo de sua ida à Cataguases. É como
se a escolha de Gildo o tornasse menos humano, ou ainda, menos preocupado com as
pessoas que estão a seu redor, tornando-o uma pessoa solitária e insensível.
No filme de Villamarim, as questões supracitadas são ampliadas e o conflito entre
os dois personagens é explicitado de forma mais contundente por meio da adição de cenas
em que a oposição passado-presente se coloca de maneira categórica na tela. Por exemplo,
no filme, a esposa de Luzimar é mostrada como uma mulher que fora prostituta. Isso fica
claro na seguinte situação: Gildo dirige até a Ilha, uma casa de prostituição da cidade,
mesmo a contragosto de Luzimar. Lá, Gildo encontra algumas prostitutas que fizeram parte
de sua adolescência e sente falta de uma delas em especial, Toninha. Gildo não sabe que
Toninha se tornara esposa de Luzimar e isso passa a ser motivo de escárnio por parte de
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Gildo, causando uma briga entre eles. Existem, pelo menos, duas diferenças a serem
consideradas na narrativa do filme quanto a essa questão: primeiro, a mudança do nome da
personagem do livro, que é Soninha e não Toninha; segundo, a explicitação de que ela já
foi prostituta. Ao assim proceder, o diretor sugere a criação de outro personagem que se
distancia do romance de partida, criando um elemento dramático na narrativa que reforça o
caráter nobre de Luzimar, uma vez que o personagem não parece se importar com o
passado da esposa, o que, por si só, geraria preconceitos em uma sociedade moralista e
conservadora.
Outro personagem que merece atenção é Zunga, já que sua trajetória é ligeiramente
diferente nas duas obras. Ele está presente em vários capítulos do livro, porém não aparece
no capítulo central para o filme. Na obra de Ruffato, Zunga é mais bem detalhado no
capítulo “Ciranda” (p. 47). É neste capítulo que o autor mostra as características do
personagem que serão, inclusive, aproveitadas e deslocadas por Villamarim no filme.
Zunga, em O mundo inimigo, é um dos três filhos de Bibica, uma ex-prostituta, que mora
vizinho à casa de dona Zulmira, mãe de Luzimar. Ele é descrito como um alcoólatra,
espécie de malandro que anda vagueando pela cidade e assíduo frequentador da Ilha. Outra
característica do personagem mostrada no livro é o fato de ele ser um pedófilo, uma vez
que, em dois momentos da obra, ele assedia sexualmente duas crianças. Uma dessas
crianças é Luzimar. O filme não traz essa questão especificamente, no entanto, não se furta
de problematizar o tema da violência sexual. Em uma das sequências mais fortes
dramaticamente da narrativa fílmica, Zunga (Démick Lopes) estupra a esposa de Luzimar,
aproveitando-se da onipresença barulhenta do trem que atravessa a cidade no momento do
crime. O que Villamarim faz, portanto, é juntar diversas características e informações
presentes no livro acerca de Zunga e as sintetiza em uma das cenas mais emblemáticas da
película, posicionando a câmera atrás do trem, de modo que o espectador não observe
diretamente o estupro e só ouça o barulho das rodas de ferro, reforçando o tom dramático
da sequência.
A tensão entre os personagens principais é mostrada de maneira fragmentada ao
longo dos vários capítulos do livro. E o leitor, aos poucos, descobre um evento específico
do passado que desencadeou esse processo, a morte de Marquinhos, ao ser jogado da ponte
para buscar a bola de Gildo que caíra no rio Pombas. No filme, essa revelação é feita nas
cenas finais quando os dois discutem violentamente. Só então, o espectador consegue
entender que se trata de um ressentimento antigo por conta dessa morte, e que a relação de
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Luzimar e Gildo já estava abalada desde o episódio em questão. Ao condensar esses


eventos do passado em algumas poucas cenas, o diretor confere ao filme um tom mais
dramático, tanto pela contundência dos diálogos quanto pelo forte apelo visual conferido
aos fatos. Assim, a narrativa fílmica potencializa para o espectador traços importantes do
universo literário de Ruffato.
Nesse sentido, podemos afirmar que a adaptação de Villamarim amplia o já vasto
mundo fictício criado por Ruffato e estabelece uma potente tradução da obra do escritor
mineiro. O que Ruffato apresenta na escrita, com um estilo caleidoscópico, mesclando
discurso direto com discurso indireto e trazendo múltiplas vozes para sua narrativa,
Villamarim traduz, através de som e imagem, as múltiplas camadas de significado
presentes em O mundo inimigo. Para isso, o diretor utiliza diversos recursos da linguagem
cinematográfica, além de fazer algumas modificações na estrutura narrativa, a fim de
produzir na tela efeitos de sentido presentes na obra escrita.
Villamarim logra, portanto, uma tradução com densidade e amplitude à altura da
obra de Ruffato. No que diz respeito à questão temática, o diretor enfatiza aquela que
talvez seja a principal questão de O mundo inimigo: o desenraizamento, fazendo com que o
embate entre presente e passado esteja manifesto em cada detalhe do filme. A utilização de
longos silêncios e de longas cenas contemplativas trazem em si uma gama de significados
nessa direção. Seja o desconforto dos personagens com sua condição, seja o
constrangimento diante de pessoas que compartilham um passado, mas que já não têm
muito o que compartilhar no presente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

. Pudemos observar por meio dessa análise que tanto o livro de Ruffato quanto o
filme de Villamarim trazem questões caras ao dilema do sujeito contemporâneo no conflito
entre o individual e o social, através da discussão de questões, tais como a condição do
trabalhador pobre, operário e as pressões que sofre para sair de sua terra natal e ir buscar
melhores condições de vida em outras cidades, o esvaziamento e a repetição da vida em
uma cidade do interior, entre outros.
Concluímos então que o filme, embora discutindo as mesmas questões do livro, traz
uma nova forma de abordagem na tela. É o caso dos conflitos resultantes das escolhas
pessoais. Se, para o personagem Gildo, aquela cidade não o pertencia mais, pois já não
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reconhecia as pessoas que ali habitavam, para Luzimar, no entanto, a dúvida de que sua
vida poderia ter sido melhor se tivesse partido o atormenta sempre quando confrontado
com as conquistas de seu amigo. A verdade é que nenhum dos dois personagens aparentam
ser plenamente felizes em suas vidas e ambos carregam fantasmas de seu passado e
insatisfações com seu presente.
No livro, esses conflitos vão sendo desvelados aos poucos e o ponto central é mais
a repercussão dos fatos na vida dos personagens do que os fatos em si. Já o filme, em outra
perspectiva, opta por contar as histórias desses personagens sem aprofundamento das
implicações de suas escolhas no presente. A vida segue aparentemente da mesma forma
que antes, pois nada mudou. Isso fica explícito na última cena em que Toninha mostra o
resultado positivo do teste de gravidez a Luzimar. O personagem não esboça qualquer
reação de alegria, mas se mantém consternado e diz cabisbaixo: “A vida é... é isso
mesmo...” (REDEMOINHO, 2016). A ideia de redemoinho expressa no título é, portanto,
eminentemente interno aos personagens e não se mostra na superfície.
Por fim, é nessa existência circular e nesse embate entre presente e passado que a
literatura de Ruffato se constrói, demonstrando não haver conforto para quem vive no
andar mais baixo da sociedade. Seu projeto literário de contar a saga do operariado
brasileiro desde a segunda metade do século XX até o início do século XXI tem na
tradução fílmica de Villamarim um importante aliado. Ao produzir uma narrativa
cinematográfica sugestiva e contemplativa, o diretor consegue ampliar as camadas de
leitura da obra do escritor mineiro e apontar para novos percursos de sentido. Dessa forma,
a relação cada vez mais estreita entre cinema e literatura tem aqui um representativo
exemplo.
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REFERÊNCIAS

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cultura e tradução na Alemanha romântica. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. São
Paulo: Edusc, 2002.

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Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001.

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Globo Filmes, 2016. 1 DVD (100 min).
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