De O Mundo Inimigo A Redemoinho - o Romance de Ruffato No Filme de Villamarim
De O Mundo Inimigo A Redemoinho - o Romance de Ruffato No Filme de Villamarim
De O Mundo Inimigo A Redemoinho - o Romance de Ruffato No Filme de Villamarim
RESUMO
O presente trabalho busca analisar a tradução da obra O mundo inimigo. Inferno provisório
vol. II (2005), de Luiz Ruffato para o cinema, na obra Redemoinho (2017), de José Luiz
Villamarim. Dessa forma, tentamos mostrar como o cineasta adaptou para a tela a prosa
caleidoscópica de Ruffato, em que passado e presente se entrecruzam, causando conflitos
entre o individual e o social e revelando como as transformações sociais de uma cidade se
refletem na vida dos sujeitos que ali residem.
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Doutor em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Bahia – UFBA.
Professor Associado do Departamento de Estudos da Língua Inglesa, suas Literaturas e Tradução e do
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará – UFC. E-mail:
[email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3316600178531895.
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Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará – UFC.
Email: [email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1510590888099955.
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Assim, os produtos culturais resultantes de uma tradução estão cada vez mais
inseridos na percepção de convergência entre as artes e linguagens. Incluem-se nessa
dinâmica as adaptações cinematográficas que, na visão de Cattrysse (2014, 47), podem ser
analisadas também como uma tradução, uma vez que a adaptação como tradução segue
critérios de aproximação ou distanciamento de um texto de partida e, portanto, não pode
ser dissociada da prática tradutória. Entretanto, a questão da produção e da recepção deve
ser considerada como elemento importante de distinção entre a tradução linguística ou
literária e a adaptação fílmica, considerando que o contexto social de produção e recepção
de um texto literário é bem diferente da “leitura” e da recepção de um filme.
É, portanto, no contexto da intermidialidade (Elleström, 2014) que podemos
pensar de que forma se materializa as relações entre literatura e cinema, já que há um
estreito diálogo entre as duas artes, desde o início da história do cinema. Se, nos
primórdios da arte cinematográfica, os cineastas buscavam nas narrativas clássicas do
século XIX uma espécie de modelo, trazendo alguns de seus procedimentos para dentro do
cinema, com a modernidade literária no século XX, a própria literatura passa a incorporar
técnicas do cinema.
Saraiva (2003, 9), ao tratar dessa conexão, afirma que as narrativas literárias e
fílmicas estão ligadas às inúmeras narrativas do mundo e assumem diferentes substâncias
de expressão, diferentes funções socioculturais e vários recortes pragmáticos. E ainda
reforça que:
Percebemos que o ponto de partida para uma possível delimitação de fronteira entre
as narrativas literária e fílmica seria a diversidade de seus planos de expressão, ou seja, a
forma de apresentação de cada discurso. Nessa medida, o ato de narrar não seria
simplesmente a representação de uma série de acontecimentos, reais ou fictícios, por meio
da linguagem, algo tão evidente como se contar uma história, por exemplo, como afirma
Genette (1971), mas como uma atividade que pode traduzir o verídico ou instaurar a
ficção. E daí surge a questão apontada pelo autor sobre a necessidade de observar o caráter
não evidente do ato narrativo e sim do seu “aspecto singular, artificial e problemático”
(GENETTE, 1971, 255).
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Essa ambiguidade da relação entre o real objetivo e sua imagem fílmica é uma
das características fundamentais da expressão cinematográfica e determina em
grande parte a relação do espectador com o filme, relação que vai além da crença
ingênua na realidade do real representado à percepção intuitiva ou intelectual dos
signos implícitos como elementos de uma linguagem [grifo do autor].
(MARTIN, 2011, 18).
Inferno provisório foi o nome dado a uma série de romances escritos por Luiz
Ruffato entre os anos de 2005 e 2011. Reeditada no ano de 2016 em volume único, a obra
traz fusões e uma nova organização dos capítulos, mantendo alguns títulos e criando
outros. De maneira geral, Inferno provisório conta a história dos operários de uma pequena
cidade do interior de Minas Gerais – Cataguases – entre meados da década de 1950 até o
início do século XXI. Os personagens de Ruffato são, em suma, trabalhadores
precarizados, como atesta Dalcastagnè (2012):
No lugar dos intelectuais e artistas que circulam com desenvoltura por tantos
romances e contos, ele empurra para dentro da trama costureiras e operárias
cansadas; em vez de traficantes sanguinários (e exóticos) traz ladrões baratos que
tropeçam nas próprias pernas ou homens bêbados, envergonhados por não
conseguirem sustentar os filhos [...] Indivíduos, que, com suas trajetórias
pessoais, ajudam-nos a compor um painel mais plural sobre a vida no país nos
dias de hoje. (DALCASTAGNÈ, 2012, 545).
É justamente porque o país são vários que várias são as tendências de sua cultura
e de sua literatura. Ruffato faz do romance desenraizado e fragmentado a
percepção de um tempo e de um espaço, ou melhor, de diferentes tempos e
espaços em movimento; um romance que, mais que a história da classe operária
no Brasil, é o cruzamento de histórias várias em seu jogo de busca de
visibilidade. (GUIMARÃES; WALTY, 2017, 59).
É com esse material que José Luiz Villamarim é confrontado na tradução da obra
de Luiz Ruffato para o cinema. O primeiro trabalho para o cinema do diretor tem como
centro o livro O mundo inimigo, publicado pela primeira vez em 2005 e, mais
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elas. Enquanto Gildo está efusivo com sua vida em São Paulo, pelas promessas de
progresso e prosperidade econômica; Luzimar, de outra forma, preza pelo conforto de sua
cidade natal, reforçando que é isso que vale à pena. Gildo, entretanto, não concordando
com essa postura, tenta convencer Luzimar de como sua vida podia ser muito melhor num
grande centro urbano, emulando toda uma tradição no Brasil das inúmeras pessoas que
saem de sua cidade rumo a outras em busca de melhores condições de vida.
— [...] Você devia é ir pra São Paulo, cara. Logo-logo arrumava uma colocação,
ia ganhar muito dinheiro, ficava bem de vida!
— Bobagem, Gildo... Pra mim não dá mais não... Agora, então, que casei...
— Mas você não tem nem onde cair morto, cara! Desculpa eu falar assim, mas é
mentira? Você tem que largar isso aqui, ir embora... Tem um mundo esperando
lá fora...
Gildo puxa Luzimar à janela.
— O quê que você vê daqui?
— Daqui?
— É. O que você vê?
— A chácara. E depois?
— O campinho.
— E depois?
— O Bairro-Jardim.
— E depois?
— Depois?
— É, depois.
— Depois? Depois não dá pra ver mais nada...
Gildo empurra Luzimar de volta ao sofá, e, de pé, fala, exaltado:
— Está vendo! Depois do Bairro-Jardim você não vê mais nada. Mas o mundo
está é lá atrás, cara! O mundo! Essa cidade é uma merda [...]
— Ô, Gildo, mas não é assim também não... Foi aqui que a gente nasceu...
cresceu... fez amigos... (RUFFATO, 2016, 247-248)
não só seu lugar de moradia, mas também o seu modo de pensar. Para este personagem,
não há muito o que se ganhar com o passado, o que ficou para trás deve ser enterrado e
esquecido. Dessa forma, torna-se incompatível uma relação de afeto entre os velhos
amigos, pois Gildo sente desprezo pela vida atual de Luzimar e não aceita como legítimas
as escolhas feitas por ele:
Gildo retorna.
— Eu tenho pena de você, cara. Pena mesmo, juro... Porque você está fodido
[...] Um dia, quando menos perceber, acabou... é o fim da linha... E que merda de
vida você levou, cara!, que merda de vida!
Luzimar levanta.
— Ê, Gildo, quem é você pra falar assim comigo?
— Eu? Ninguém... Mas, espera pra ver... Eu me dei bem, entende? Todo mundo
que foi embora se deu bem [...]
Luzimar caminha rumo à porta.
— Espera aí, cara, não vai ainda não!
— Eu tenho de ir.
Gildo agarra com força o braço esquerdo de Luzimar.
— Senta aí, cara. Deixa de ser bobo. Você ficou chateado comigo? [...]
— Me larga, Gildo, eu tenho de ir embora!
— Espera aí, Luzimar. Vamos lá na rua do Comércio comprar o presente da sua
mulher, como é mesmo o nome dela?, depois te levo pra casa.
— Me larga, porra! [...]
Luzimar [...] apanha a bicicleta, sai pedalando rapidamente.
Mesmo contido pela mãe, Gildo corre para o meio da rua:
— Vai, panaca, vai cuidar da mulherzinha! Vai, bundão! Trouxa! Panaca! Vai!,
grita, acendendo um rastilho de lâmpadas nas casas vizinhas. (RUFFATO, 2016,
248-249)
Gildo, causando uma briga entre eles. Existem, pelo menos, duas diferenças a serem
consideradas na narrativa do filme quanto a essa questão: primeiro, a mudança do nome da
personagem do livro, que é Soninha e não Toninha; segundo, a explicitação de que ela já
foi prostituta. Ao assim proceder, o diretor sugere a criação de outro personagem que se
distancia do romance de partida, criando um elemento dramático na narrativa que reforça o
caráter nobre de Luzimar, uma vez que o personagem não parece se importar com o
passado da esposa, o que, por si só, geraria preconceitos em uma sociedade moralista e
conservadora.
Outro personagem que merece atenção é Zunga, já que sua trajetória é ligeiramente
diferente nas duas obras. Ele está presente em vários capítulos do livro, porém não aparece
no capítulo central para o filme. Na obra de Ruffato, Zunga é mais bem detalhado no
capítulo “Ciranda” (p. 47). É neste capítulo que o autor mostra as características do
personagem que serão, inclusive, aproveitadas e deslocadas por Villamarim no filme.
Zunga, em O mundo inimigo, é um dos três filhos de Bibica, uma ex-prostituta, que mora
vizinho à casa de dona Zulmira, mãe de Luzimar. Ele é descrito como um alcoólatra,
espécie de malandro que anda vagueando pela cidade e assíduo frequentador da Ilha. Outra
característica do personagem mostrada no livro é o fato de ele ser um pedófilo, uma vez
que, em dois momentos da obra, ele assedia sexualmente duas crianças. Uma dessas
crianças é Luzimar. O filme não traz essa questão especificamente, no entanto, não se furta
de problematizar o tema da violência sexual. Em uma das sequências mais fortes
dramaticamente da narrativa fílmica, Zunga (Démick Lopes) estupra a esposa de Luzimar,
aproveitando-se da onipresença barulhenta do trem que atravessa a cidade no momento do
crime. O que Villamarim faz, portanto, é juntar diversas características e informações
presentes no livro acerca de Zunga e as sintetiza em uma das cenas mais emblemáticas da
película, posicionando a câmera atrás do trem, de modo que o espectador não observe
diretamente o estupro e só ouça o barulho das rodas de ferro, reforçando o tom dramático
da sequência.
A tensão entre os personagens principais é mostrada de maneira fragmentada ao
longo dos vários capítulos do livro. E o leitor, aos poucos, descobre um evento específico
do passado que desencadeou esse processo, a morte de Marquinhos, ao ser jogado da ponte
para buscar a bola de Gildo que caíra no rio Pombas. No filme, essa revelação é feita nas
cenas finais quando os dois discutem violentamente. Só então, o espectador consegue
entender que se trata de um ressentimento antigo por conta dessa morte, e que a relação de
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
. Pudemos observar por meio dessa análise que tanto o livro de Ruffato quanto o
filme de Villamarim trazem questões caras ao dilema do sujeito contemporâneo no conflito
entre o individual e o social, através da discussão de questões, tais como a condição do
trabalhador pobre, operário e as pressões que sofre para sair de sua terra natal e ir buscar
melhores condições de vida em outras cidades, o esvaziamento e a repetição da vida em
uma cidade do interior, entre outros.
Concluímos então que o filme, embora discutindo as mesmas questões do livro, traz
uma nova forma de abordagem na tela. É o caso dos conflitos resultantes das escolhas
pessoais. Se, para o personagem Gildo, aquela cidade não o pertencia mais, pois já não
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reconhecia as pessoas que ali habitavam, para Luzimar, no entanto, a dúvida de que sua
vida poderia ter sido melhor se tivesse partido o atormenta sempre quando confrontado
com as conquistas de seu amigo. A verdade é que nenhum dos dois personagens aparentam
ser plenamente felizes em suas vidas e ambos carregam fantasmas de seu passado e
insatisfações com seu presente.
No livro, esses conflitos vão sendo desvelados aos poucos e o ponto central é mais
a repercussão dos fatos na vida dos personagens do que os fatos em si. Já o filme, em outra
perspectiva, opta por contar as histórias desses personagens sem aprofundamento das
implicações de suas escolhas no presente. A vida segue aparentemente da mesma forma
que antes, pois nada mudou. Isso fica explícito na última cena em que Toninha mostra o
resultado positivo do teste de gravidez a Luzimar. O personagem não esboça qualquer
reação de alegria, mas se mantém consternado e diz cabisbaixo: “A vida é... é isso
mesmo...” (REDEMOINHO, 2016). A ideia de redemoinho expressa no título é, portanto,
eminentemente interno aos personagens e não se mostra na superfície.
Por fim, é nessa existência circular e nesse embate entre presente e passado que a
literatura de Ruffato se constrói, demonstrando não haver conforto para quem vive no
andar mais baixo da sociedade. Seu projeto literário de contar a saga do operariado
brasileiro desde a segunda metade do século XX até o início do século XXI tem na
tradução fílmica de Villamarim um importante aliado. Ao produzir uma narrativa
cinematográfica sugestiva e contemplativa, o diretor consegue ampliar as camadas de
leitura da obra do escritor mineiro e apontar para novos percursos de sentido. Dessa forma,
a relação cada vez mais estreita entre cinema e literatura tem aqui um representativo
exemplo.
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REFERÊNCIAS
REDEMOINHO. Direção: José Luiz Villamarim. Produção: Vania Catani. Rio de Janeiro:
Globo Filmes, 2016. 1 DVD (100 min).
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RUFFATO, Luiz. Inferno provisório. São Paulo: Companhia das Letras, 1ª Ed., 2016.