Resenha (Perícopes, Teologia e Aplicação - Kuruvilla) - Flávio

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SEMINÁRIO PRESBITERIANO DO SUL

FLÁVIO CARDOSO DE PÁDUA

RESENHA: O TEXTO PRIMEIRO - CAPÍTULO 02 (PERÍCOPES,


TEOLOGIA E APLICAÇÃO) - ABRAHAM KURUVILLA

Campinas
2022
Neste capítulo, o autor do livro, Kuruvilla, trata sobre perícopes, que são os
trechos menores contidos na Bíblia. Ele aponta que há muito tempo os trechos maiores
(os livros separados) têm recebido maior atenção, enquanto as perícopes têm sido
desprezadas. Por isso, a intenção do autor, nesse capítulo, é mostrar a função das
perícopes no meio eclesiástico.
Para ele a teologia da perícope é um segmento do mundo bíblico, apontado na
própria perícope, que mostra Deus e o relacionamento com o Seu povo. Essa teologia é a
ponte entre a interpretação do texto e a circunstância do ouvinte. Portanto, o processo de
pregação é ir da perícope para a teologia e, por sua vez, da teologia para a aplicação na
vida da igreja (sem que haja qualquer conflito com o texto sagrado).
Para melhor definir uma perícope, Kuruvilla afirma que ela é uma seção
(passagem) que se refere a uma porção do texto sagrado para se manusear, de maneira
homilética, no ambiente eclesiástico. Ele explica que o termo é mais comum dentro dos
Evangelhos, mas, aqui, será usado para todos os livros bíblicos.
Segundo o autor, é por meio dessas perícopes que as congregações conhecem a
Palavra de Deus, visto que o tempo das reuniões impossibilitam a leitura de toda a Bíblia.
Então, semana após semana, estudando as demais partes (perícopes) do texto, é que se
pode chegar ao conhecimento completo das Escrituras, causando um verdadeiro impacto
na vida da igreja: mudança de vida dos membros para a glória de Deus. Porém, essa
mudança acontece de forma gradual.
Kuruvilla mostra que desde sempre as Escrituras fizeram parte das reuniões da
igreja, onde se liam os profetas (AT) e, posteriormente, as “lembranças dos apóstolos”
(NT). Desde os tempos mais remotos, as perícopes eram lidas de modo contínuo (lectio
continua), tradição que foi transmitida dos judeus para a igreja. Porém, feita de modo
incorreto, esse método poderia (e ainda pode) dar margem para trazer o texto para fora de
seu contexto. Por isso, todo expositor deve lembrar seus ouvintes do contexto imediato
do texto a ser trabalhado, do contexto do livro do cânon e de toda a Bíblia.
Segundo o autor, com as festas e datas comemorativas os lecionários foram
elaborados e, com isso, a leitura contínua foi substituída por uma leitura seletiva (lectio
seleta), de acordo com as datas. A Idade Média foi o período que a igreja mais sofreu de
uma privação da leitura continuada. Essa prática volta somente na época dos
reformadores. Então, os reformadores ensinaram que esse tipo de leitura mostra que todo
o cânon é digno de ser lido e explicado e ainda que a aplicação do texto bíblico aos
ouvintes contemporâneos é o maior objetivo do expositor.
De acordo com o autor, a função teológica das perícopes é alinhar os fiéis com o
Seu Deus, por meio de um relacionamento. Mas infelizmente, esse é um assunto de pouco
interesse entre os acadêmicos, que dão maior ênfase na teologia dos livros individuais,
aos amplos temas e à Palavra como um todo, e se esquecem de que é por meio da teologia
extraída dessas perícopes que a mudança de vida acontece entre os membros da igreja.
Além disso, a função teológica também proporciona a facilitação da renovação da aliança
e o correto relacionamento entre o homem e Deus.
Em seguida, o autor utiliza o texto de Neemias 7:73b-8:12 (descrição mais antiga
de uma liturgia bíblica) para exemplificar a renovação da aliança que a teologia da
perícope traz ao povo. Por Deus ser um Deus misericordioso, Ele liberta o Seu povo para
que não haja mais nenhum “senhor” entre Ele e os Seus (como se pode ver no Êxodo, no
exílio e, finalmente, em Jesus Cristo). Por isso, voltando-se para a Palavra de Deus, é
possível passar pela renovação da aliança que permite o povo se concentrar em suas
responsabilidades para com Deus. Essa renovação, exemplificada em Neemias, segue o
padrão das antigas alianças do Oriente Próximo (entre vassalos e suserano). A resposta
do povo deveria ser positiva para obedecer aos mandamentos do Senhor (buscar
fidelidade). Eis o padrão dessa renovação: a) término da construção dos muros da cidade;
b) lista dos habitantes ancestrais; c) renovação da aliança; b’) repovoamento de
Jerusalém; a’) dedicação dos muros da cidade. Assim, essa renovação, centrada nas
Escrituras, redescobriu e reestabeleceu a nação de Israel diante de Deus. Por isso, assim
como os levitas fizeram nesta perícope, a renovação da aliança do povo de Deus deve ser
considerada o objetivo do expositor bíblico para a comunidade (explicação que leva ao
entendimento que, por sua vez, leva à obediência).
Como o autor demonstrou, Neemias 7-8 é um exemplo a ser seguido por todas as
comunidades que desejam seguir o caminho de Deus por meio da Palavra. Por isso, as
perícopes, lidas semanalmente (trazendo conceitos e práticas), são tidas como
instrumentos literários para a renovação da aliança entre Deus e o povo.
Como bem explica Kuruvilla, a perícope não é só um objeto literário, mas também
um instrumento que projeta o mundo bíblico (o que capacita a renovação da aliança). E
como objeto e instrumento de ação, é preciso encontrar o que está “por trás” e “dentro”
do texto, que permitirá ao expositor realizar aplicações válidas para o povo, a fim de
renovarem a aliança com Deus. Então, o autor defende que a teologia da perícope é um
segmento do mundo bíblico projetado desse texto em particular.
Mais adiante o autor defende a ideia de que o texto bíblico, produzido pelos
autores, não foi escrito apenas para transmitir uma informação. Cada escritor moldou o
texto, sem fraudar os relatos, para adequá-los aos seus interesses teológicos e eclesiásticos
de acordo com sua própria ideologia (e guiado pelo Espírito). Sendo assim, eles utilizaram
os grilhões do tempo (antecipação, resumo, pausa, etc.) para compor as suas obras com
seus motivos particulares. Por isso, Kuruvilla afirma que o texto das narrativas se
assemelha mais como caricaturas (destaques em áreas específicas) do que um retrato
comum, visto que nem tudo o que aconteceu foi narrado de forma exaustiva. Sendo assim,
o sentido do autor bíblico não é encontrado na narrativa, mas em sua interpretação sobre
os fatos e, até mesmo, naquilo que ele deixou de relatar. Além disso, o texto deve ser
privilegiado e, por mais revelador que seja, não o que está por trás do texto (pois somente
o texto é inspirado pelo Espírito Santo).
Para diferenciar a abordagem proposta, o autor faz a diferenciação dela
(abordagem pragmática) e das abordagens crítica e tradicional. A visão crítica vê o autor
sacro alterando os acontecimentos históricos para uma sequência de outros
acontecimentos (como uma fraude). Já a visão tradicional entende que o autor “alterou”
certos aspectos da narrativa, mas sem alterar a realidade, sendo apenas para enfatizar a
sua perspectiva (e assim como a abordagem crítica, essa também não considera o que o
autor está fazendo). Já a visão pragmática, visa entender o texto como sendo a
característica do autor, o que ele disse, como disse e por que disse (como qualquer
narrativa). De acordo com Hayden White as narrativas têm “o desejo de moralizar os
acontecimentos dos quais trata”, e isso não danifica os fatos, mas apenas mostra como
verdadeiramente se dá uma narrativa, de fato.
Segundo Kuruvilla, a teologia da perícope especifica um segmento do mundo
bíblico relatando Deus e o relacionamento com Ele e, ainda, possui uma intenção trans-
histórica. Além disso, ela é uma mistura de pensamento e linguagem que os cristãos
podem entender a si mesmos, Deus, Sua Palavra e o Seu mundo. Segundo ele, a intenção
teológica é um trabalho em conjunto dos escritores humanos e do autor divino (o Espírito
Santo, que quer moldar os Seus para honra e glória de Deus). Porém, todas as ênfases da
Palavra recaem nas ações divina e não nas ações humanas.
Por fim, o autor passa então a distinguir a teologia da perícope da teologia bíblica
e da teologia sistemática. A teologia sistemática deriva conclusões focando em vários
textos sobre o mesmo assunto (atua em um nível mais geral), enquanto a teologia bíblica,
que também é mais geral, identifica temas bíblicos mais amplos no canôn, com grande
ênfase na temporalidade e cronologia. A teologia da perícope, por sua vez, demonstra os
pequenos detalhes que são “esquecidos” pela teologia bíblica. Porém, o que é identificado
na teologia da perícope deve ser coerente com a teologia bíblica e a teologia sistemática
(que são como guardiãs da interpretação da Palavra de Deus). Então Kuruvilla finaliza
dizendo que é preciso ser menos preocupado com o mundo que produziu a Escritura e
mais preocupado com o mundo que a Escritura produz.
Esse assunto é totalmente relevante para nós, teólogos. Como foi bem enfatizado,
nós realmente não podemos nos esquecer das perícopes e de sua teologia, pois é por meio
delas que trabalharemos com uma aplicação bíblica coerente na igreja. Não achei
nenhuma fala ou citação do autor que fira os princípios da ortodoxia cristã, visto que ele
é bem coerente em seus argumentos.
Indico a leitura com toda certeza, ainda mais por se tratar de um tema tão essencial
para nós, estudantes de teologia. Creio que todos deveriam se empenhar na leitura dessa
obra para se empenhar nos estudos minuciosos das diversas perícopes contidas na Palavra
de Deus, para entendermos a grande necessidade de se exportar o mundo bíblico para a
vida dos nossos ouvintes.

KURUVILLA, Abraham. O texto primeiro: uma hermenêutica teológica para a


pregação. São Paulo: Cultura Cristã, 2019, p. 81-108

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