Inconclusibilidade
Inconclusibilidade
Inconclusibilidade
Vanildo Stieg1
Abstract: This text discusses aspects of the theoretical-metological perspective based on the
Bakhtin’s thinking and his Circle. Its main objective is to point out possible contributions
from this perspective to/in conducting research in the Humanities, especially in research
themes around linguistic studies. The text, based on a bibliographic research, is fabricated
taking into consideration the following problem question: how can the thinking of Bakhtin
and his Circle collaborate in the process of research in the humanities, especially in the field
of language? The study aims to bring some elements to support this issue.
1 “PRIMEIRAS” PALAVRAS...
Todo o enunciado – desde a breve réplica (monolexemática) até o romance ou o
tratado científico – comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes do seu
início, há os enunciados dos outros, depois de seu fim, há os enunciados-respostas
dos outros (ainda que seja como uma compreensão responsiva ativa muda ou como
um ato-resposta baseado em determinada compreensão) (BAKHTIN, 2003, p. 294
grifo nosso).
1
Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito
Santo PPGE/UFES. Professor do Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS/IFES, Vitória/ES. E-mail:
<[email protected]>.
Pró-Discente: Caderno de Produção Acadêmico-Científica. Programa de Pós-Graduação em Educação, Vitória-
ES, v. 25, n. 2, p. 33-52, jul./dez. 2019.
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2
A ideia de pensar e desenvolver o Simpósio, com a temática citada, teve suas origens nas discussões
desenvolvidas no Grupo de Estudos Bakhtinianos (GEBAKH/UFES), coordenado pelo Professor Doutor
Luciano Novaes Vidon, do curso de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo
(PPGEL/UFES). Entre as atividades desse grupo, centra-se, como uma de suas principais, a realização de estudos
de textos produzidos por Bakhtin e seu Círculo bem como de textos de pesquisadores nacionais e internacionais
que tomam a perspectiva bakhtiniana na produção de suas pesquisas.
3
Página do site com toda programação desse evento: http://www.conelufes.com.br/. Acesso em: 05 jan. 2016.
4
Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito
Santo (PPGE/UFES). Professora do IFES/Vila Velha. Membro do Núcleo de Alfabetização, Leitura e Escrita do
Espírito Santo (NEPALES/UFES).
5
Mestre em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGEL/UFES). Professor do
IFES/Vitória. Membro do Grupo de Estudos Bakhtinianos (GEBAKH).
6
Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito
Santo (PPGE/UFES). Membro do Grupo de Estudos Bakhtinianos (GEBAKH) e do Grupo de Estudos e
Pesquisas sobre apropriação da Língua Portuguesa (GEPALP).
7
Enquanto tomei nota, na roda de conversa, foi possível correr o olho na lista de frequência, onde constavam os
nomes dos inscritos e de onde advinham. Verifiquei que aqueles colegas – sem mencionar os da UFES -
advinham de diferentes lugares (regiões/estados brasileiros) e de diversos Programas de Pós-Graduação
(Mestrado e Doutorado) em Ciências Humanas (diferentes áreas), sobretudo a área dos Estudos Linguísticos.
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vez mais) a academia a pensar pesquisas no campo das ciências humanas. Porém, como o
pensamento de Bakhtin e seu Círculo pode colaborar no processo de investigação em Ciências
Humanas, sobretudo no campo da língua(gem) (Estudos Lnguísticos)?
Diante desse questionamento, (elo discursivo na comunicação ininterrupta
presentificada no/pelo grupo), naquela ocasião, foi possível debater e acenar aspectos que
pudessem colaborar com a compreensão daqueles pesquisadores (de maneira rápida, pois
havíamos pouco tempo para encerrar o Simpósio). Desse modo, foi necessário “encerrar” o
debate. Porém, saí daquela ambiência percebendo a necessidade de retomar tal questão, em
um texto. Certo estou que não é possível conseguir, e nem é a nossa pretensão, esgotar as
possibilidades de responder tal indagação, aqui, neste texto. Porém, atrevo-me a procurar
trazer, responsivamente, alguns aspectos em torno do pensamento de Bakhtin e de seu Círculo
que poderão ampliar/expandir o questionamento apontado pelo grupo.
Assim, para cumprir a finalidade deste texto, vamos nos “limitar” em acentuar
apontamentos em torno de três aspectos que consideramos fundamentais na perspectiva
bakhtiniana e que podem colaborar com o pesquisador em suas questões de investigação: a)
Bakhtin, filósofo humanizador das Ciências Hmanas: em defesa da “palavra viva”; b) Bakhtin
e a instauração de uma concepção dos Estudos Linguísticos (metalinguística) questionando os
estudos linguísticos “de sua época” e c) Pensando o sujeito bakhtiniano no contexto de
pesquisa.
8
MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Org.). Introdução à linguística: fundamentos
epistemológicos. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2011, trazem um significativo panorama sobre os Programas de
Investigação Científica historicamente construídos em torno dos estudos linguísticos. Tal panorama abrange dos
“Estudos pré-saussurianos” a “Diferentes caminhos da filosofia da linguagem”. Uma obra escrita com a
participação de importantes linguistas pertencentes a diferentes universidades brasileiras e que por essa razão
tende a situar os que se inclinam a investigar os Estudos Linguísticos.
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citado. A situação em torno de doenças vividas por Bakhtin associada ao fato dele assumir
posições políticas que não coadunavam com as posições do estado stalinista fez com que este
filósofo, a partir de 1924, permanecesse transitando, geograficamente, por algumas cidades da
Rússia9.
Bakhtin tinha, efetivamente, um auditório para endereçar suas enunciações,
marcadas/povoadas pelas tensões vividas por ele e seu Círculo, após a Revolução
Bolchevique e a legitimação do Partido Comunista Soviético
[...] que sob o comando de Vladimir Ilitch [Lênin] teve como uma de suas principais
metas a criação de um Estado Revolucionário permanente, através da
institucionalização de uma hegemonia armada e de uma hegemonia especialmente
singular, capaz de movimentar suas forças para elevação do nível cultural das
massas urbanas e do campesinato (ZANDWAIS, 2005, p. 83).
Interessante é observar que Bakhtin não se permitiu constituir, nesse contexto, como
um intelectual curvado ao modo de ordenamento dos interesses do Estado Bolchevique.
Conforme lembra Zandwais (2005, p. 86), será “[...] a partir da relação paradoxal entre a
soberania do intelecto sobre os interesses institucionais e a possibilidade de converter-se
intelectuais em produtores para o aparelho político-partidário, na qualidade de porta-vozes de
suas ‘razões institucionais’ [...]”, que se inscreve Mikhail Bakhtin e seu Círculo no contexto
histórico da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Segundo lembra essa
autora, Bakhtin e seu Círculo não se colocaram apenas
[...] como ‘pensadores não-oficias’, mas como intelectuais que ousaram discordar de
seus contemporâneos, produzindo leituras críticas acerca da superficialidade com
que determinadas áreas de conhecimento serviram-se do materialismo histórico para
reduzi-lo à condição de materialismo puramente empírico ou imediatista
(ZANDWAIS, 2005, p. 86).
Zandwais (2005, p. 87), citando Laurat (1951, p. 3), ajuda-nos a compreender como se
materializava o governo stalinista e o modo como as instituições produtoras da cultura e
conhecimento eram vistas durante sua hegemonia.
[...] após 1929 nada se podia fazer sem a aprovação de Stalin, sendo organizadas,
periodicamente, em intervalos cada vez mais breves, as ‘depurações ideológicas’
atingindo a todos os ramos da ciência e das artes, englobando a pintura e a música,
em um país onde sábios, literatos e artistas são reduzidos a um papel de autômatos,
de ‘matracas das teses oficias’ [...].
9
BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin e seu Círculo. São Paulo: Contexto, 2009. Esta obra discute de forma instigante
o trânsito geográfico de Bakhtin por diferentes cidades da Rússia, a mando do poder oficial da sua época.
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Bakhtin estava interessado em constituir uma abordagem teórica e literária para além
do cientificismo pelo cientificismo, do formalismo, das normas e formas que se voltavam a
prescrições da academia. A partir de suas discussões teórico-literárias, esse autor estava
interessado em constituir uma abordagem autêntica capaz de apontar os equívocos produzidos
por seus contemporâneos, equívocos que pretendiam reger os interesses teórico-práticos que
subsidiariam “o consenso institucional” do “Estado Bolchevique”.
Segundo Zandwais (2005), Stalin (1950) buscava sustentar a construção de um projeto
identitário nacional pela reificação de uma língua homogênea – o Grande Russo. Conforme
coloca Zandwais (2005), Bakhtin discordava de tal posição, pois, para ele, a unidade
identitária do Estado não poderia encontrar sustentação empírica no pressuposto de uma
língua homogênea, em um simples culto à personificação da língua. Na verdade, conforme
lembra Zandwais (2005, p. 94),
[...] esta seria a falsa fórmula encontrada por Stalin a fim de suplantar tanto a divisão
entre os estados que compunham a União Soviética, como para apagar as diferenças
étnicas, culturais e religiosas que povoaram as condições históricas de formação do
Estado Soviético, enfim, a utopia de que uma sociedade dotada de uma única e
mesma língua não estaria mais sujeita a redivisões ou a cisões.
Sob nossa perspectiva, o pesquisador do campo das Ciências Humanas tem, neste
breve panorama, elementos para entender que Bakhtin e seu Círculo desejam romper em sua
época com qualquer tipo de autoritarismo, de imposição na relação com o outro. Bakhtin não
negocia a perspectiva dialógica diante da vida. Por isso, acentua em seus estudos as categorias
alteridade e exotopia; Palavra e contra-palavra na direção que possa qualificar/ampliar a
compreensão dos interlocutores em profunda interação. Esse movimento é precioso na vida de
um pesquisador ao procurar se relacionar com seu objeto e/ou questões de pesquisa.
Entendemos que orientações como essa, acenadas pelos estudos realizados por
Bakhtin e seu Círculo, eram nutridas pelo desejo de que a palavra viva (slovo) pudesse
circular no contexto que habitavam. De fato, em 1918 (um ano após a revolução), foi fundado
o Instituto Palavra Viva (Institut Zhivogo Slova - 1918), no tocante aos estudos e pesquisas
em linguagem na Rússia, o qual foi criado pelos membros do Círculo de Bakhtin. É
interessante pensarmos qual princípio sustentava esse Instituto. Conforme aponta Brandist
(2012, p. 138), na abertura desse instituto, o Comissário para a Educação, Anatoli
Lunacharski, “[...] declarou que a revolução havia tornado possível e necessário ensinar todo
o povo a falar publicamente, ´do pequeno ao grande´. Estava assim proclamado o princípio da
isçgoria, ou igualdade do discurso, base da democracia ateniense [...] com referência à antiga
Atenas, à inseparabilidade entre a palavra viva e a democracia” (INSTITUT ZHIVOGO
SLOVA, 1919, p. 8, citado por BRANDIST, 2012, p. 132). Basicamente, foi esse princípio que
Bakhtin e seu Círculo assumiram para nuclear os seus trabalhos. Bakhtin, por exemplo, toma
como base em seus textos o argumento de que, assim como na praça pública grega, que
constituía o Estado e todos os órgãos oficiais, “[...] não havia nada para ‘alguém sozinho’,
nada que não estivesse sujeito ao controle e à causa do Estado público. Ali, tudo era
inteiramente público [...]”, conforme aponta Brandist (2012, p. 21-22). Bakhtin e seu Círculo
conceberão a ideia de que na construção de uma sociedade deve haver espaços em que todos
pudessem exercer sua voz em pé de igualdade, assim como na praça pública ateniense. No
entanto, logo no início dos anos de 1920, tal Instituto é fechado pelo poder oficial. Bakhtin e
seu Círculo continuam defendendo a proposição do Instituto e por isso, algumas vezes,
ameaçados e aprisionados (CLARK; HOLQUIST, 2008). Porém, continuaram a pensar,
escrever e publicar suas ideias, incansavelmente, em defesa da palavra viva (slova) em
oposição a palavra morta (positivismo) que passou a ser oficial/autoritária.
10
Usamos aqui a versão de MFL como um manifesto de homenagem a tal texto. Esse foi um dos primeiros
textos traduzidos para a língua portuguesa de Bakhtin e seu Círculo e que alcançou os estudiosos da perspectiva
bakhitiniana, no Brasil. Cabe ressaltar que no ano de 2017 foi lançado, pela Editora 34, um novo texto com nova
tradução – contendo notas e glossário – pelas pesquisadoras Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. O texto
intitula-se “Valentin Volóchinov (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem”.
11
Isso, segundo Bakhtin e Volochínov (2012), acarretaria, por suposto, uma distinção radical entre essas duas
orientações para todas as demais questões que se colocam em linguística.
12
MFL aponta uma brilhante exposição acerca das duas orientações acima citadas. Como não é nosso objetivo,
neste texto, explorar as minúcias acenadas por esse texto acerca dessas orientações, não atentaremos a explorá-
las, aqui.
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E continua o texto:
pois
Desse modo, em MFL, é defendida a concepção de que “[...] a língua vive e evolui
historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das
formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,
2012, p. 128). Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua deve ser o
seguinte:
Para a obra MFL é nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua:
as relações sociais evoluem (em função das infrastruturas), depois a comunicação e a
interação verbais evoluem no quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala evoluem
em consequência da interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, na mudança
das formas da língua. A filosofia marxista da linguagem deve colocar como base de sua
doutrina a enunciação como realidade da linguagem e como estrutura sócio-ideológica. Após
ter mostrado a estrutura sociológica da enunciação, MFL nos convida a voltar às duas
orientações do pensamento filosófico linguístico para obtermos algumas considerações
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2012). Desse modo, MFL formula o próprio ponto de vista
sobre linguagem, com as seguintes proposições:
Não será, evidentemente, por outro motivo que Bakhtin na obra Problemas da poética
de Dostoiévski vai propor a criação de um novo campo de estudos. Um campo que extrapola a
linguística estruturalista13 e dialoga com outras ciências, o que ele chama de metalinguística.
13
Bakhtin não desconsiderava a importância da linguística quando se pensa nos fins que motivaram a sua
produção. Ele até mesmo acredita que as abstrações feitas pela linguística são legítimas e necessárias para o
estudo de alguns aspectos do discurso (BAKHTIN, 2008, p. 207).
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Assim, Bakhtin encontrou uma forma que pudesse entender/expressar a língua no seu
movimento real vivo, não limitado a um mero sistema de abstrações estáticas, conforme
expresso pela corrente estruturalista para os estudos linguísticos e/ou para os estudos
literários, por exemplo, pois para Bakhtin, como um projeto para o estudo da vida do discurso
a linguística se torna uma ferramenta limitada, pois o discurso, pensado no movimento vivo
das relações intersubjetivas, passa a ser um objeto atravessado por muitas interfaces, essas,
por sua vez, são passíveis de serem submetidas a múltiplos olhares.
Como esse projeto bakhtiniano (metalinguística) tem a ver com a discussão que
Bakhtin realiza acerca da personagem nos estudos de Dostoiévski? Consideramos que essa
compreensão é rica e pode ajudar o pesquisador a estudar o ser humano em plena articulação
com a vida. No tópico a seguir, vamos tratar dessa questão.
pela apresentação do mundo e da vida como experiência, como escola, pela qual todo
indivíduo deve passar em educação;
3) O romance de formação do tipo biográfico (e autobiográfico). Sem características
cíclicas, a formação é resultado das mudanças durante a trajetória de vida
(BAKHTIN, 2003, p. 221);
4) O romance de formação que ele chama de didático-pedagógico. É o romance que
traz a ideia pedagógica concebida, em maior ou menor amplitude (BAKHTIN,
2003, p. 221);
5) O romance de formação, que na concepção de Bakhtin, chamado de realista, é o
mais importante. “Nele a formação do homem efetua-se no tempo histórico real com
sua necessidade, com sua plenitude, com seu futuro, com seu caráter profundamente
cronotópico” (BAKHTIN, 2003, p. 221). Além disso, em Bakhtin, o romance realista
congrega, em seu bojo, os demais tipos de romances.
No romance realista de formação, a formação do homem acontece no tempo histórico
real com sua necessidade, com sua plenitude, com seu futuro. Como vimos, nos outros quatro
tipos de romance, a formação do homem acontecia sobre um fundo estático de um mundo
pronto, estável (BAKHTIN, 2003, p. 221). Em caso de mudanças nesse mundo, essas eram
periféricas, não afetando a formação do homem em seus fundamentos primordiais. Assim, no
romance realista de formação,
[...] não são os traços da realidade – da própria personagem e de sua ambiência – que
constituem aqueles elementos dos quais se forma a imagem da personagem, mas o
valor de tais traços para ela mesma, para sua autoconsciência [...] (BAKHTIN, 2008,
p. 53).
[...] é uma posição dialógica seriamente aplicada e concretizada até o fim, que
afirma a autonomia, a liberdade interna, a falta de acabamento e de solução para o
herói. Para o autor, o herói não é um “ele” nem um “eu” mas um “tu” plenivalente,
isto é, o plenivalente do “eu” de um outro (um “tu és”). O herói é o sujeito de um
tratamento dialógico profundamente sério, presente, não retoricamente dissimulado
ou literalmente convencional (BAKHTIN, 2008, p. 71).
esses sujeitos. É basicamente por essa razão que, nessa perspectiva, o homem não pode ser
estudado como um fenômeno da natureza, como coisa. A ação física do homem precisa ser
compreendida como um ato, porém esse ato não pode ser entendido fora de sua expressão
sígnica, que é por nós recriada. Esse entendimento chama a atenção para que o pesquisador
assuma uma atitude responsiva ativa diante dos questionamentos que se propõe investigar. É
uma atitude responsiva, porque uma investigação não pode parar apenas nos processos de
constatação/produção de sentidos. Segue para além disso... ampliando a compreensão acerca
do que se investiga e, ao mesmo tempo, modificando tanto o pesquisador quanto a vida que se
presentifica nos diferentes contextos pesquisados.
14
De acordo com Guimarães (1981), Decamerão ou Decameron: ou Príncipe Galeotto - título no Brasil ou
Decameron - título em Portugal. Vocábulo com origem no grego antigo: deca "dez", hemeron "dias", "jornadas".
Consiste em uma coleção de cem novelas escritas por Giovanni Boccaccio entre 1348 e 1353. Decamerão é
considerada um marco literário na ruptura entre a moral medieval, em que se valorizava o amor espiritual, e o
início do realismo, iniciando o registro dos valores terrenos, que veio redundar no humanismo; nele, não mais o
divino, mas a natureza, dita o móvel da conduta do homem. Foi escrito em dialeto toscano.
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últimas que todo mundo, sem exceção, aceitará como esgotantes de todas as possibilidades”
(CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 362). A partir da história de Decamerão,
Assim sendo, o dialogismo, proclamado por Bakhtin ao longo de sua vida, “[...]
baseia-se na inelutabilidade de nossa ignorância, na presença necessária de brechas em nossos
mais caros esquemas e mais elaborados sistemas”. Para os autores, Bakhtin, diante do
dialogismo, chega a ponto de regozijar-se com a “[...] fatalidade da incerteza, que ele
interpreta como a constante disponibilidade de uma via de escape, não havendo nenhum beco
sem saída” (CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 362). Assim, para Bakhtin, o dialogismo se
apresenta como uma metafísica da escapatória. Nessa direção, em consonância com os
autores, pensamos que muito embora tal “[...] fenda de escape seja a fonte de frustração, da
dor e do perigo que temos de enfrentar em um mundo tão dominado pelo incognoscível,
também constitui a necessária precondição para qualquer liberdade que possamos conhecer”
(CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 362).
Conforme apontam os autores e, concordamos com eles, “[...] a capacidade, embora
altamente circunscrita como é, de a pessoa moldar em forma de diálogo significados fugazes
deu origem muito cedo à ilusão de que o significado é fixo”. As consequências desse modo de
pensar a vida permitiram que “[...] os que mantinham esse ponto de vista podiam abrir mão da
batalha e da incerteza de um mundo que está em incessante fluxo”. No entanto,
[...] o preço pago por semelhante certeza era alto: a superstição que afirma ser
possível a verdade absoluta deu origem a opressivos sistemas políticos e religiosos,
dos quais nunca conseguimos nos libertar; e jamais podemos fazê-lo enquanto
aceitarmos a condição prévia que habilitou todos eles, isto é, a possibilidade de
alguma verdade que seja absoluta. Os sistemas monológicos de crença
invariavelmente sustentam que uma só verdade está contida numa só instituição,
como o Estado, ou num só objeto, como um ídolo ou um texto, [...] o ego concebido
como um sujeito absoluto, ou o artista-gênio que produz textos únicos (CLARK;
HOLQUIST, 2008, p. 363).
que esse mesmo mosaico se evidencia no contexto contemporâneo de nossa cultura ocidental),
o “[...] dialogismo é a tentativa de Bakhtin pensar o caminho de saída de um tal monologismo
difundido por toda parte” (CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 363). Por isso, podemos pensar que
para Bakhtin, “[...] o dialogismo não pretende ser meramente outra teoria da literatura ou
mesmo outra filosofia da linguagem, mas uma explicação das relações entre povos e entre
pessoas e coisas que atalha fronteiras religiosas, políticas e estéticas” (CLARK; HOLQUIST,
2008, p. 363). É nessa direção que esses autores chegam a afirmar que:
Bakhtin, com essas reflexões, ajuda o pesquisador a se convencer de que não somos
deus da ciência capaz de dar vida ou de encerrar, de ser a última palavra, pois reconhecemos
a impossibilidade de haver términos diante da vida, diante do objeto das Ciências Humanas –
o homem. Ao mesmo tempo observamos que Bakhtin (2010) se inclina a pensar o irrepetível,
o excepcional, o incomparável, o sui generis e, portanto, não nega a possibilidade da
construção da unicidade singular, porém tal construção exige a alteridade e o compromisso
com o outro; uma singularidade em ligação com a vida do universo inteiro, que inclui na sua
finitude o sentido do infinito.
A trajetória de vida de Bakhtin chama a nossa atenção também pelo fato de que ao nos
apresentar a perspectiva do dialogismo entendemos que ela
[...] nos liberta precisamente por insistir que todos nós estamos envolvidos
necessariamente no fazimento do significado. Na medida em que todos nós estamos
envolvidos na arquitetônica da respondibilidade por nós mesmos e assim um pelo
outro, somos autores, criadores seja qual for a ordem e o sentido que o nosso mundo
possa ter (CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 363).
Com efeito, compreendemos que o ato da pesquisa deve ser um ato responsável e, sob
a nossa perspectiva, isso deve ser traduzido, por exemplo, por meio de investigações que
tenham em vista íntima intencionalidade com o bem estar comum desse outro pesquisado.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
______. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João, 2010.
BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin e seu Círculo. São Paulo: Contexto, 2009.
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 2008.
GNERRE, Mauricio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
GUIMARÃES, Torrieri. Biografia de Boccaccio. In: Decamerão, vol. I, São Paulo: Abril
Cultural, 1981.
ZANDWAIS, Ana. Relações entre a filosofia da práxis e a filosofia da linguagem sob a ótica
de Makhail Bakhtin: um discurso fundador. In: ZANDAWAIS, Ana. (Org.). Mikhail
Bakhtin: contribuições para a filosofia da linguagem e estudos discursivos. Porto Alegre:
Editora Sagra Luzzatto, 2005. p. 17-28.
STIEG, Vanildo. Bakhtin e seu círculo: preciosas contribuições para a pesquisa em Ciências
Humanas. Revista Pró-Discente, Vitória, v. 25, n. 2, p. 33-52, jul./dez. 2019.