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BAKHTIN E SEU CÍRCULO: PRECIOSAS CONTRIBUIÇÕES PARA A


PESQUISA EM CIÊNCIAS HUMANAS

Vanildo Stieg1

Resumo: Este texto discute aspectos da perspectiva teórico-metodológica pautada no


pensamento de Bakhtin e de seu Círculo. Tem como objetivo central acenar possíveis
contribuições dessa perspectiva para/na realização de investigações em Ciências Humanas,
sobretudo em temáticas de pesquisas em torno dos Estudos linguísticos. O texto, a partir de
uma pesquisa bibliográfica, é tecido levando em consideração a seguinte pergunta-problema:
como o pensamento de Bakhtin e seu Círculo pode colaborar no processo de investigação em
ciências humanas, sobretudo no campo da língua(gem) (Estudos Linguísticos)? O estudo
pretendeu evidenciar alguns elementos para subsidiar essa questão.

Palavras-chave: Bakhtin e Seu Círculo. Perspectiva bakhtiniana de pesquisa. Estudos


linguísticos.

BAKHTIN AND HIS CIRCLE: PRECIOUS CONTRIBUTIONS TO RESEARCH IN


HUMAN SCIENCES

Abstract: This text discusses aspects of the theoretical-metological perspective based on the
Bakhtin’s thinking and his Circle. Its main objective is to point out possible contributions
from this perspective to/in conducting research in the Humanities, especially in research
themes around linguistic studies. The text, based on a bibliographic research, is fabricated
taking into consideration the following problem question: how can the thinking of Bakhtin
and his Circle collaborate in the process of research in the humanities, especially in the field
of language? The study aims to bring some elements to support this issue.

Keywords: Bakhtin. Bakhtinian research perspective. Linguistic studies.

1 “PRIMEIRAS” PALAVRAS...
Todo o enunciado – desde a breve réplica (monolexemática) até o romance ou o
tratado científico – comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes do seu
início, há os enunciados dos outros, depois de seu fim, há os enunciados-respostas
dos outros (ainda que seja como uma compreensão responsiva ativa muda ou como
um ato-resposta baseado em determinada compreensão) (BAKHTIN, 2003, p. 294
grifo nosso).

1
Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito
Santo PPGE/UFES. Professor do Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS/IFES, Vitória/ES. E-mail:
<[email protected]>.
Pró-Discente: Caderno de Produção Acadêmico-Científica. Programa de Pós-Graduação em Educação, Vitória-
ES, v. 25, n. 2, p. 33-52, jul./dez. 2019.
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Este texto, um “enunciado científico”, entendido como está expresso na epígrafe


mencionada, não possui um começo absoluto (nem terá um fim absoluto). Ele foi se
constituindo dos/nos diálogos tecidos entre os pesquisadores que estiveram no Simpósio 2 que
coordenamos, intitulado Pesquisa e ensino de língua: como nossas investigações têm
dialogado com Bakhtin e seu Círculo, o qual fez parte da programação do III Congresso
Nacional de Linguística (CONEL), ocorrido na Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES),3 em novembro de 2015.
Nessa ocasião, convidamos para compor uma mesa de debates, pesquisadores que em
suas investigações assumem como referencial teórico-metodológico o pensamento de Bakhtin
e seu Círculo. Desse modo, tivemos a apresentação de três pesquisas, sendo elas: Cadernos
escolares: lugares de autoria desenvolvida por Fernanda Zanete Becalli4; Contribuições do
Círculo de Bakhtin para o estudo dos gêneros do discurso acadêmico em libras de Philipe
Domingos5 e Práticas de leitura no ciclo de alfabetização de Bárbara Cristina Jorge da Silva 6.
Observamos que o modo como as pesquisas foram apresentadas possibilitaram
participações/interações entre os expositores e ouvintes 7, instaurando-se dialogia: palavras e
contra-palavras circulavam/emergiam. Ao longo desse movimento, fomos tomando nota dos
diferentes e diversos questionamentos, dúvidas, “complementações”, refutação etc. E mais,
pelas colocações, em âmbito geral, realizadas pelos ouvintes, foi possível perceber que
desejavam aprofundar o diálogo com Bakhtin e seu Círculo na/para a realização de suas
investigações. Naquele contexto, um dos questionamentos mais recorrentes pode ser expresso
nos seguintes termos: é notório que Bakhtin e seu Círculo, na atualidade, tem instigado (cada

2
A ideia de pensar e desenvolver o Simpósio, com a temática citada, teve suas origens nas discussões
desenvolvidas no Grupo de Estudos Bakhtinianos (GEBAKH/UFES), coordenado pelo Professor Doutor
Luciano Novaes Vidon, do curso de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo
(PPGEL/UFES). Entre as atividades desse grupo, centra-se, como uma de suas principais, a realização de estudos
de textos produzidos por Bakhtin e seu Círculo bem como de textos de pesquisadores nacionais e internacionais
que tomam a perspectiva bakhtiniana na produção de suas pesquisas.
3
Página do site com toda programação desse evento: http://www.conelufes.com.br/. Acesso em: 05 jan. 2016.
4
Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito
Santo (PPGE/UFES). Professora do IFES/Vila Velha. Membro do Núcleo de Alfabetização, Leitura e Escrita do
Espírito Santo (NEPALES/UFES).
5
Mestre em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGEL/UFES). Professor do
IFES/Vitória. Membro do Grupo de Estudos Bakhtinianos (GEBAKH).
6
Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito
Santo (PPGE/UFES). Membro do Grupo de Estudos Bakhtinianos (GEBAKH) e do Grupo de Estudos e
Pesquisas sobre apropriação da Língua Portuguesa (GEPALP).
7
Enquanto tomei nota, na roda de conversa, foi possível correr o olho na lista de frequência, onde constavam os
nomes dos inscritos e de onde advinham. Verifiquei que aqueles colegas – sem mencionar os da UFES -
advinham de diferentes lugares (regiões/estados brasileiros) e de diversos Programas de Pós-Graduação
(Mestrado e Doutorado) em Ciências Humanas (diferentes áreas), sobretudo a área dos Estudos Linguísticos.
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vez mais) a academia a pensar pesquisas no campo das ciências humanas. Porém, como o
pensamento de Bakhtin e seu Círculo pode colaborar no processo de investigação em Ciências
Humanas, sobretudo no campo da língua(gem) (Estudos Lnguísticos)?
Diante desse questionamento, (elo discursivo na comunicação ininterrupta
presentificada no/pelo grupo), naquela ocasião, foi possível debater e acenar aspectos que
pudessem colaborar com a compreensão daqueles pesquisadores (de maneira rápida, pois
havíamos pouco tempo para encerrar o Simpósio). Desse modo, foi necessário “encerrar” o
debate. Porém, saí daquela ambiência percebendo a necessidade de retomar tal questão, em
um texto. Certo estou que não é possível conseguir, e nem é a nossa pretensão, esgotar as
possibilidades de responder tal indagação, aqui, neste texto. Porém, atrevo-me a procurar
trazer, responsivamente, alguns aspectos em torno do pensamento de Bakhtin e de seu Círculo
que poderão ampliar/expandir o questionamento apontado pelo grupo.
Assim, para cumprir a finalidade deste texto, vamos nos “limitar” em acentuar
apontamentos em torno de três aspectos que consideramos fundamentais na perspectiva
bakhtiniana e que podem colaborar com o pesquisador em suas questões de investigação: a)
Bakhtin, filósofo humanizador das Ciências Hmanas: em defesa da “palavra viva”; b) Bakhtin
e a instauração de uma concepção dos Estudos Linguísticos (metalinguística) questionando os
estudos linguísticos “de sua época” e c) Pensando o sujeito bakhtiniano no contexto de
pesquisa.

2 BAKHTIN, FILÓSOFO “HUMANIZADOR” NAS CIÊNCIAS HUMANAS:


DEFENSOR DA “PALAVRA VIVA”

Ao longo do Simpósio mencionado, fizemos questão de anunciar aos participantes que


o filósofo da linguagem Mikhail Mikhailovich Bakhtin e seu Círculo tem instigado, cada vez
mais no Brasil e no mundo, a academia em suas diferentes áreas do conhecimento, a
(re)pensar a vida (e com ela se relacionar) por meio de uma perspectiva dialética e dialógica
de pesquisa. Entre essas áreas, encontram-se os Estudos Linguísticos. Ressaltamos que
Bakhtin e seu Círculo ao anunciarem, em seus textos na Rússia dos anos de 1920, o
“dialogismo” como princípio constitutivo da linguagem e, portanto, constitutivo do sujeito,
que viver é dialogar, ofertaram a nós, pesquisadores dos Estudos Linguísticos, a possibilidade

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de pensarmos/problematizarmos/ampliarmos, de modo crítico, os fundamentos


epistemológicos dos Programas de Investigação Científica (PIC) e as várias orientações
teórico-metodológicas que constituem a ciência da linguagem, elaborados, historicamente, em
diferentes épocas e por diferentes pensadores 8.
Entendemos que na época de Bakhtin e de seu Círculo havia uma séria inclinação da
academia russa para pensar a vida, as instituições sociais, a política, a economia, etc, a partir
das correntes epistemológicas idealistas e empiristas (MEDVIÉDEV, 2012). Bakhtin e seu
Círculo irão questionar essa posição oficial. Por isso, destacamos, aqui, que não foi por
qualquer razão que Bakhtin em um pequeno ensaio por ele esboçado entre o final dos anos
1930 e início dos anos 1940, denominado Os fundamentos filosóficos das ciências sociais
humanas, (que mais tarde dará origem ao texto que se chamará Metodologia das ciências
humanas, consistindo em um dos capítulos do livro A estética da criação verbal - obra
póstuma), já expressava que “[...] o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante.
Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado”
(BAKHTIN, 2003, p. 395, grifo do autor). Desse modo, o autor informa que, para ele, é
inconcebível que exista um eu interior absoluto (em nós) e um eu absoluto (fora de nós). O
que há é um sujeito datado, concreto historicamente e que, mesmo ao interagir nas diferentes
esferas da sociedade em que habita, não perde a sua singularidade e autoria.
É importante lembrarmos que Bakhtin viveu na Rússia czarista a intensa revolução de
1917, os oito anos de governo do Estadista Vladimir Ilyich Ulyanov (Lênin), e todo o período
de governo do Estadista Joseph Stálin, sofrendo, algumas vezes, sérias represálias. Quando
entramos nos textos produzidos por Bakhtin e seu Círculo levando em consideração o
contexto político e ideológico (período de 1917 a 1960) da Rússia governada pelos dois
estadistas mencionados, começamos a compreender que as produções desse grupo de
pensadores foram desenvolvidas corajosamente diante das tensões presentificadas naquela
época, em especial, no período stalinista. Por essa razão é possível, sob a nossa perspectiva,
pensarmos que as opções dos temas para estudo tomadas por Bakhtin e seu Círculo tinham
relação estreita com o contexto e/ou trânsito geográfico em que vivenciaram no período já

8
MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Org.). Introdução à linguística: fundamentos
epistemológicos. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2011, trazem um significativo panorama sobre os Programas de
Investigação Científica historicamente construídos em torno dos estudos linguísticos. Tal panorama abrange dos
“Estudos pré-saussurianos” a “Diferentes caminhos da filosofia da linguagem”. Uma obra escrita com a
participação de importantes linguistas pertencentes a diferentes universidades brasileiras e que por essa razão
tende a situar os que se inclinam a investigar os Estudos Linguísticos.
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citado. A situação em torno de doenças vividas por Bakhtin associada ao fato dele assumir
posições políticas que não coadunavam com as posições do estado stalinista fez com que este
filósofo, a partir de 1924, permanecesse transitando, geograficamente, por algumas cidades da
Rússia9.
Bakhtin tinha, efetivamente, um auditório para endereçar suas enunciações,
marcadas/povoadas pelas tensões vividas por ele e seu Círculo, após a Revolução
Bolchevique e a legitimação do Partido Comunista Soviético

[...] que sob o comando de Vladimir Ilitch [Lênin] teve como uma de suas principais
metas a criação de um Estado Revolucionário permanente, através da
institucionalização de uma hegemonia armada e de uma hegemonia especialmente
singular, capaz de movimentar suas forças para elevação do nível cultural das
massas urbanas e do campesinato (ZANDWAIS, 2005, p. 83).

Interessante é observar que Bakhtin não se permitiu constituir, nesse contexto, como
um intelectual curvado ao modo de ordenamento dos interesses do Estado Bolchevique.
Conforme lembra Zandwais (2005, p. 86), será “[...] a partir da relação paradoxal entre a
soberania do intelecto sobre os interesses institucionais e a possibilidade de converter-se
intelectuais em produtores para o aparelho político-partidário, na qualidade de porta-vozes de
suas ‘razões institucionais’ [...]”, que se inscreve Mikhail Bakhtin e seu Círculo no contexto
histórico da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Segundo lembra essa
autora, Bakhtin e seu Círculo não se colocaram apenas

[...] como ‘pensadores não-oficias’, mas como intelectuais que ousaram discordar de
seus contemporâneos, produzindo leituras críticas acerca da superficialidade com
que determinadas áreas de conhecimento serviram-se do materialismo histórico para
reduzi-lo à condição de materialismo puramente empírico ou imediatista
(ZANDWAIS, 2005, p. 86).

Zandwais (2005, p. 87), citando Laurat (1951, p. 3), ajuda-nos a compreender como se
materializava o governo stalinista e o modo como as instituições produtoras da cultura e
conhecimento eram vistas durante sua hegemonia.

[...] após 1929 nada se podia fazer sem a aprovação de Stalin, sendo organizadas,
periodicamente, em intervalos cada vez mais breves, as ‘depurações ideológicas’
atingindo a todos os ramos da ciência e das artes, englobando a pintura e a música,
em um país onde sábios, literatos e artistas são reduzidos a um papel de autômatos,
de ‘matracas das teses oficias’ [...].

9
BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin e seu Círculo. São Paulo: Contexto, 2009. Esta obra discute de forma instigante
o trânsito geográfico de Bakhtin por diferentes cidades da Rússia, a mando do poder oficial da sua época.
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Bakhtin estava interessado em constituir uma abordagem teórica e literária para além
do cientificismo pelo cientificismo, do formalismo, das normas e formas que se voltavam a
prescrições da academia. A partir de suas discussões teórico-literárias, esse autor estava
interessado em constituir uma abordagem autêntica capaz de apontar os equívocos produzidos
por seus contemporâneos, equívocos que pretendiam reger os interesses teórico-práticos que
subsidiariam “o consenso institucional” do “Estado Bolchevique”.
Segundo Zandwais (2005), Stalin (1950) buscava sustentar a construção de um projeto
identitário nacional pela reificação de uma língua homogênea – o Grande Russo. Conforme
coloca Zandwais (2005), Bakhtin discordava de tal posição, pois, para ele, a unidade
identitária do Estado não poderia encontrar sustentação empírica no pressuposto de uma
língua homogênea, em um simples culto à personificação da língua. Na verdade, conforme
lembra Zandwais (2005, p. 94),

[...] esta seria a falsa fórmula encontrada por Stalin a fim de suplantar tanto a divisão
entre os estados que compunham a União Soviética, como para apagar as diferenças
étnicas, culturais e religiosas que povoaram as condições históricas de formação do
Estado Soviético, enfim, a utopia de que uma sociedade dotada de uma única e
mesma língua não estaria mais sujeita a redivisões ou a cisões.

O casal Clark e Holquist (2008), considerados arqueólogos dos arquivos de Bakhtin,


lembram que, somente no fim da vida, Bakhtin desfrutava do reconhecimento e respeito que
merecia e sua obra começava a conquistar grande repercussão internacional. Embora
aposentado desde 1961, o autor não interrompera sua atividade intelectual, acompanhava as
revistas soviéticas Questões de Literatura, Literatura Estrangeira, Ciência e Vida e o Jornal
Pravda, como também iniciou novos projetos de estudos e revisou diversos antigos. Em
meados de 1974, o estado de saúde do pensador russo agravou-se de modo a impedi-lo de
trabalhar. Bakhtin faleceu em março de 1975, após uma longa enfermidade. No entanto, sua
trajetória de vida nos mostra que ele deixou muitas contribuições para os estudiosos que
viriam se atrever, assim como ele, a se posicionar perante a vida de modo dialético e
dialogicamente.
A compreensão que vimos desenvolvendo sobre a vida e lutas de Bakhtin e seu
Círculo, até esse ponto deste texto, já nos permite pensar que uma das significativas
contribuições de Bakhtin para o campo das Ciências Humanas e dos Estudos Linguísticos é a
crítica declarada contra o caráter coisificante/positivado do ser humano. Bakhtin propõe, ao
invés de coisificação, a humanização.

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Sob nossa perspectiva, o pesquisador do campo das Ciências Humanas tem, neste
breve panorama, elementos para entender que Bakhtin e seu Círculo desejam romper em sua
época com qualquer tipo de autoritarismo, de imposição na relação com o outro. Bakhtin não
negocia a perspectiva dialógica diante da vida. Por isso, acentua em seus estudos as categorias
alteridade e exotopia; Palavra e contra-palavra na direção que possa qualificar/ampliar a
compreensão dos interlocutores em profunda interação. Esse movimento é precioso na vida de
um pesquisador ao procurar se relacionar com seu objeto e/ou questões de pesquisa.
Entendemos que orientações como essa, acenadas pelos estudos realizados por
Bakhtin e seu Círculo, eram nutridas pelo desejo de que a palavra viva (slovo) pudesse
circular no contexto que habitavam. De fato, em 1918 (um ano após a revolução), foi fundado
o Instituto Palavra Viva (Institut Zhivogo Slova - 1918), no tocante aos estudos e pesquisas
em linguagem na Rússia, o qual foi criado pelos membros do Círculo de Bakhtin. É
interessante pensarmos qual princípio sustentava esse Instituto. Conforme aponta Brandist
(2012, p. 138), na abertura desse instituto, o Comissário para a Educação, Anatoli
Lunacharski, “[...] declarou que a revolução havia tornado possível e necessário ensinar todo
o povo a falar publicamente, ´do pequeno ao grande´. Estava assim proclamado o princípio da
isçgoria, ou igualdade do discurso, base da democracia ateniense [...] com referência à antiga
Atenas, à inseparabilidade entre a palavra viva e a democracia” (INSTITUT ZHIVOGO
SLOVA, 1919, p. 8, citado por BRANDIST, 2012, p. 132). Basicamente, foi esse princípio que
Bakhtin e seu Círculo assumiram para nuclear os seus trabalhos. Bakhtin, por exemplo, toma
como base em seus textos o argumento de que, assim como na praça pública grega, que
constituía o Estado e todos os órgãos oficiais, “[...] não havia nada para ‘alguém sozinho’,
nada que não estivesse sujeito ao controle e à causa do Estado público. Ali, tudo era
inteiramente público [...]”, conforme aponta Brandist (2012, p. 21-22). Bakhtin e seu Círculo
conceberão a ideia de que na construção de uma sociedade deve haver espaços em que todos
pudessem exercer sua voz em pé de igualdade, assim como na praça pública ateniense. No
entanto, logo no início dos anos de 1920, tal Instituto é fechado pelo poder oficial. Bakhtin e
seu Círculo continuam defendendo a proposição do Instituto e por isso, algumas vezes,
ameaçados e aprisionados (CLARK; HOLQUIST, 2008). Porém, continuaram a pensar,
escrever e publicar suas ideias, incansavelmente, em defesa da palavra viva (slova) em
oposição a palavra morta (positivismo) que passou a ser oficial/autoritária.

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3 BAKHTIN E A INSTAURAÇÃO DE UMA CONCEPÇÃO DE LÍNGUA(GEM) PARA


OS ESTUDOS LINGUÍSTICOS (METALINGUÍSTICA)

Outra questão significativa que pode favorecer os pesquisadores das Ciências


Humanas e, em especial os investigadores dos Estudos Linguísticos a melhor se relacionar
com suas questões de investigação, seria a compreensão acerca da concepção de linguagem
em Bakhtin/Volochínov (2012). Entendemos que para chegarmos a tal compreensão é sempre
bom retornarmos à obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (MFL)10. Nela, sobretudo nos
capítulos IV, V e VI, será discutido o percurso teórico realizado na direção de se defender a
concepção de linguagem acolhida pela perspectiva bakhtiniana.
No capítulo IV de MFL, intitulado Duas orientações do pensamento filosófico-
linguístico ao questionar “o que é a linguagem?”; “O que é a palavra?”, não no sentido de
formularem conceitos em tornos desses termos mas antes de tudo, de conquistarem o real
objeto de sua pesquisa, delimitando suas fronteiras, tratando-o a partir de uma perspectiva
filosófica, Bakhtin/Volochínov naquele, contexto histórico (anos 1920), apresentam as
soluções que a filosofia da linguagem e os estudos da linguística geral já haviam criado,
divulgado e assumido como verdades oficiais. Segundo Bakhtin/Volochínov (2012, p. 74-92),
na filosofia da linguagem e nas divisões metodológicas correspondentes da linguística geral,
encontravam-se a presença de duas orientações principais, as quais consistiam em isolar e
delimitar (fazer um recorte) tomando a linguagem como objeto de estudo específico 11.
Bakhtin/Volochínov (2012) denominam a primeira orientação de subjetivismo idealista,
representada por Wilhelm Humboldte, o qual estabeleceu seus fundamentos e a segunda
orientação de objetivismo abstrato, representada pela escola de Genebra, com Ferdinand de
Saussure, a qual mostrava-se como a mais brilhante expressão do objetivismo abstrato nos
tempos de Bakhtin/Volchínov (2012)12.

10
Usamos aqui a versão de MFL como um manifesto de homenagem a tal texto. Esse foi um dos primeiros
textos traduzidos para a língua portuguesa de Bakhtin e seu Círculo e que alcançou os estudiosos da perspectiva
bakhitiniana, no Brasil. Cabe ressaltar que no ano de 2017 foi lançado, pela Editora 34, um novo texto com nova
tradução – contendo notas e glossário – pelas pesquisadoras Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. O texto
intitula-se “Valentin Volóchinov (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem”.
11
Isso, segundo Bakhtin e Volochínov (2012), acarretaria, por suposto, uma distinção radical entre essas duas
orientações para todas as demais questões que se colocam em linguística.
12
MFL aponta uma brilhante exposição acerca das duas orientações acima citadas. Como não é nosso objetivo,
neste texto, explorar as minúcias acenadas por esse texto acerca dessas orientações, não atentaremos a explorá-
las, aqui.
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Enquanto para a primeira orientação, subjetivismo idealista, a língua constitui um


fluxo ininterrupto de atos de fala, onde nada permanece estável, nada conserva sua identidade,
pois o psiquismo individual constitui a fonte da língua (tendo como base as leis da psicologia
individual), para a segunda orientação, objetivismo abstrato, a língua é um arco-íris imóvel
que domina esse fluxo. Assim, para Saussure a língua é considerada como sistema de signos
arbitrários e convencionais, essencialmente racionais. Segundo essa tendência, defendida pelo
autor como o centro organizador de todos os fatos da língua, o que faz dela o objeto de uma
ciência bem definida, situa-se, no sistema linguístico, a saber: o sistema das formas fonéticas,
gramaticais e lexicais da língua. Desse modo, os Estudos Linguísticos deveriam se deter a
estudar o código.
A língua entendida e aceita nesses termos ao ser ensinada na escola e/ou
entendida/legitimada pela sociedade moderna, “[...] a começar do nível mais elementar de
relações com o poder, se constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao
poder [...]” dos seus usuários (GNERRE, 1991).
Diante do que pontua Gnerre (1991), perguntamos: e para que serve o arame farpado?
Serve para ameaçar/ferir, conter a vida, impedir, bloquear, delimitar espaços de um mundo
mais amplo daqueles que estão dentro, certamente, de uma ambiência cercada. Gnerre (1991),
ao usar a metáfora da língua como arame farpado, faz-nos pensar que é imposto, por exemplo,
aos usuários de sua própria língua a ideia de que já existe, a priori, um sistema linguístico já
pronto e acabado, sugerindo-lhes que naturalizem essa concepção. Desse modo, aprender
língua seria aprender código. Seguindo esse modo de pensar, está implícito que não há
linguagem e um mundo para se fazer/construir/ampliar/transformar, mas tudo já está imposto.
Nega-se a verdadeira natureza da linguagem e, por conseguinte, a verdadeira condição
humana: a condição de inacabamento.
Desse modo, Bakhtin/Volochínov (2012) no V Capítulo de MFL intitulado Língua,
fala e enunciação que:
enquanto uma forma linguística for apenas um sinal e for percebida pelo receptor
somente como tal, ela não terá para ele nenhum valor linguístico. A pura
"sinalidade" não existe, mesmo nas primeiras fases da aquisição da linguagem. Até
mesmo ali, a forma é orientada pelo contexto, já constitui um signo, embora o
componente de "sinalidade" e de identificação que lhe é correlata seja real. Assim, o
elemento que torna a forma linguística um signo não é sua identidade como sinal,
mas sua mobilidade específica; da mesma forma que aquilo que constitui a
descodificação da forma linguística não é o reconhecimento do sinal, mas a
compreensão da palavra no seu sentido particular, isto é, a apreensão da orientação
que é conferida à palavra por um contexto e uma situação precisos, uma orientação

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no sentido da evolução e não do imobilismo (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2012, p.


97).

E continua o texto:

Assim, na prática viva da língua, a consciência linguística do locutor e do receptor


nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas, mas apenas com a
linguagem no sentido de conjunto dos contextos possíveis de uso de cada forma
particular. Para o falante nativo, a palavra não se apresenta como um item de
dicionário, mas como parte das mais diversas enunciações dos locutores A, B ou C
de sua comunidade e das múltiplas enunciações de sua própria prática linguística
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2012, p. 98).

Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou


mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis,
etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico
ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas
que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2012. p. 98-99 grifo do autor).

Assim, para Bakhtin/Volochínov, a orientação

[...] da palavra em função do interlocutor tem uma importância muito grande. Na


realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de
que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui
justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de
expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao
outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie
de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa
extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território
comum do locutor e do interlocutor (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2012, p.117),

pois

a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de


formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui
assim a realidade fundamental da língua. O diálogo, no sentido estrito do termo,
não constitui, é claro senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da
interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra "diálogo" num sentido amplo,
isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a
face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2012, p. 127 grifo do autor).

Desse modo, em MFL, é defendida a concepção de que “[...] a língua vive e evolui
historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das
formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,
2012, p. 128). Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua deve ser o
seguinte:

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1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas


em que se realiza.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita
com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala
na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação
verbal.
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2012, p. 129).

Para a obra MFL é nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua:
as relações sociais evoluem (em função das infrastruturas), depois a comunicação e a
interação verbais evoluem no quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala evoluem
em consequência da interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, na mudança
das formas da língua. A filosofia marxista da linguagem deve colocar como base de sua
doutrina a enunciação como realidade da linguagem e como estrutura sócio-ideológica. Após
ter mostrado a estrutura sociológica da enunciação, MFL nos convida a voltar às duas
orientações do pensamento filosófico linguístico para obtermos algumas considerações
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2012). Desse modo, MFL formula o próprio ponto de vista
sobre linguagem, com as seguintes proposições:

1. A língua como sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma


abstração científica que só pode servir a certos fins teóricos e práticos particulares.
Essa abstração não dá conta de maneira adequada da realidade concreta da língua.
2. A língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da
interação verbal social dos locutores.
3. As leis da evolução linguística não são de maneira alguma as leis da psicologia
individual, mas também não podem ser divorciadas da atividade dos falantes. As leis
da evolução linguística são essencialmente leis sociológicas.
4. A criatividade da língua não coincide com a criatividade artística nem com
qualquer outra forma de criatividade ideológica específica. Mas, ao mesmo tempo, a
criatividade da língua não pode ser compreendida independentemente dos conteúdos
e valores ideológicos que a ela se ligam. A evolução da língua, como toda evolução
histórica, pode ser percebida como uma necessidade cega de tipo mecanicista, mas
também pode tornar-se "uma necessidade de funcionamento livre", uma vez que
alcançou a posição de uma necessidade consciente e desejada.
5. A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A enunciação como
tal só se torna efetiva entre falantes. O ato de fala individual (no sentido estrito do
termo "individual") é uma contradictio in adjecto (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,
2012, p.131-132).

Não será, evidentemente, por outro motivo que Bakhtin na obra Problemas da poética
de Dostoiévski vai propor a criação de um novo campo de estudos. Um campo que extrapola a
linguística estruturalista13 e dialoga com outras ciências, o que ele chama de metalinguística.

13
Bakhtin não desconsiderava a importância da linguística quando se pensa nos fins que motivaram a sua
produção. Ele até mesmo acredita que as abstrações feitas pela linguística são legítimas e necessárias para o
estudo de alguns aspectos do discurso (BAKHTIN, 2008, p. 207).
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Assim, Bakhtin encontrou uma forma que pudesse entender/expressar a língua no seu
movimento real vivo, não limitado a um mero sistema de abstrações estáticas, conforme
expresso pela corrente estruturalista para os estudos linguísticos e/ou para os estudos
literários, por exemplo, pois para Bakhtin, como um projeto para o estudo da vida do discurso
a linguística se torna uma ferramenta limitada, pois o discurso, pensado no movimento vivo
das relações intersubjetivas, passa a ser um objeto atravessado por muitas interfaces, essas,
por sua vez, são passíveis de serem submetidas a múltiplos olhares.
Como esse projeto bakhtiniano (metalinguística) tem a ver com a discussão que
Bakhtin realiza acerca da personagem nos estudos de Dostoiévski? Consideramos que essa
compreensão é rica e pode ajudar o pesquisador a estudar o ser humano em plena articulação
com a vida. No tópico a seguir, vamos tratar dessa questão.

4 PARA PENSAR O SUJEITO BAKHTINIANO NO CONTEXTO DE PESQUISA

Para o pensamento bakhtiniano, o ser humano é um ser expressivo e falante,


inacabado, dialógico. Para falarmos do sujeito bakhtiniano, nos reportamos ao texto O
Romance de Educação e sua Importância na História do Realismo, do livro Estética da
Criação Verbal (2003). Bakhtin nos apresenta uma descrição sobre “[...] o problema do
romance” (BAKHTIN, 2003, p. 217), cujo gênero ele classifica como romance de educação.
Bakhtin classifica esse romance em cinco tipos, quais sejam:
1) O romance que traz a imagem da personagem pronta. O seu destino, sua posição
social (na vida e na sociedade) e os acontecimentos mudam, mas a personagem
continua imutável, igual em si mesmo. A personagem, na fórmula do romance, é uma
grandeza constante, enquanto que o ambiente espacial, a posição social, os
elementos da vida e do destino da personagem são tidos como grandezas variáveis
(BAKHTIN, 2003, p. 219);
2) O romance de formação do homem produz a imagem do homem em formação.
Nesse caso, a personagem é a grandeza variável, ganhando significado de enredo.
Como exemplos ele traz: a trajetória da infância à juventude e da maturidade à
velhice (tempo cíclico-idílico). Esse tipo de romance de formação é caracterizado

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pela apresentação do mundo e da vida como experiência, como escola, pela qual todo
indivíduo deve passar em educação;
3) O romance de formação do tipo biográfico (e autobiográfico). Sem características
cíclicas, a formação é resultado das mudanças durante a trajetória de vida
(BAKHTIN, 2003, p. 221);
4) O romance de formação que ele chama de didático-pedagógico. É o romance que
traz a ideia pedagógica concebida, em maior ou menor amplitude (BAKHTIN,
2003, p. 221);
5) O romance de formação, que na concepção de Bakhtin, chamado de realista, é o
mais importante. “Nele a formação do homem efetua-se no tempo histórico real com
sua necessidade, com sua plenitude, com seu futuro, com seu caráter profundamente
cronotópico” (BAKHTIN, 2003, p. 221). Além disso, em Bakhtin, o romance realista
congrega, em seu bojo, os demais tipos de romances.
No romance realista de formação, a formação do homem acontece no tempo histórico
real com sua necessidade, com sua plenitude, com seu futuro. Como vimos, nos outros quatro
tipos de romance, a formação do homem acontecia sobre um fundo estático de um mundo
pronto, estável (BAKHTIN, 2003, p. 221). Em caso de mudanças nesse mundo, essas eram
periféricas, não afetando a formação do homem em seus fundamentos primordiais. Assim, no
romance realista de formação,

[...] o homem se forma concomitantemente com o mundo, reflete em si mesmo a


formação histórica do mundo. O homem já não se situa no interior de uma época,
mas na fronteira de duas épocas, no ponto de transição de uma época para outra.
Essa transição se efetivou nele e através dele. Ele é obrigado a se tornar um novo
tipo de homem, ainda inédito. Trata-se precisamente da formação do novo homem,
por isso, a força organizadora do futuro é aqui imensa, e evidentemente não se trata
do futuro em termos privado-biográficos mas históricos (BAKHTIN, 2003, p. 222).

Assim como no romance realista de formação, Bakhtin acena e reafirma na obra


Problemas da Poética de Dostoiévski (2008) a ideia de um sujeito ativo, que se concretiza nas
relações dialógicas. Para Bakhtin, Dostoiévski criou um tipo inteiramente novo: o romance
polifônico.

Ao tomarmos conhecimento da vasta literatura sobre Dostoiévski, temos a


impressão de tratar-se não de um autor e artista, que escrevia romances e novelas,
mas toda uma série de discursos filosóficos de vários autores e pensadores:
Raskólnikov, Michkin, Stavróguin, Ivan Karamázov, O Grande Inquisidor e outros.
Para o pensamento crítico-literário, a obra de Dostoiévski se decompôs em várias
teorias filosóficas autônomas mutuamente contraditórias, que são defendidas pelos
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heróis dostoievskianos. Para uns pesquisadores, a voz de Dostoiévski se confunde


com a voz desses e daqueles heróis, para outros, é uma síntese peculiar de todas
essas vozes ideológicas, para terceiros, aquela é simplesmente abafada por estas.
Polemiza-se com os heróis, aprende-se com os heróis, tenta-se desenvolver suas
concepções até fazê-las chegar a um sistema acabado. O herói tem competência
ideológica e independência, é interpretado como autor de sua concepção filosófica
própria e plena e não como objeto da visão artística final do autor. Para a
consciência dos críticos, o valor direto e pleno das palavras do herói desfaz o plano
monológico e provoca resposta imediata, como se o herói não fosse objeto da
palavra do autor mas veículo de sua própria palavra, dotado de valor e poder plenos
(BAKHTIN, 2008, p. 3).

Dostoiévski nunca teve a pretensão de renunciar a voz da personagem. Ao contrário,


há em suas obras muitas e diferentes vozes. Vozes plenivalentes, ou seja, plenas de valor, que
possam manter com as outras vozes uma relação de absoluta igualdade como participantes do
grande diálogo (BAKHTIN, 2008, p. 4).
Para Bakhtin (2008), o capitalismo criou as condições para um tipo especial da
consciência solitária. E Dostoiévski revela toda a falsidade dessa consciência, que se move em
um círculo vicioso (BAKHTIN, 2008, p. 342), que traz “sofrimento, humilhações e o não
reconhecimento do homem na sociedade de classes” (BAKHTIN, 2008, p. 342).
Vemos, assim, por meio da obra de Dostoiévski, que Bakhtin desenvolve não só seu
conceito de polifonia, mas também algumas de suas principais concepções filosóficas, a partir
da assertiva de que “o herói dostoievskiano não é apenas um discurso sobre si mesmo e sobre
seu ambiente imediato, mas também um discurso sobre o mundo: ele não é apenas um ser
consciente, é um ideólogo” (BAKHTIN, 2008, p. 87). A partir desse aspecto, podemos inferir
os seguintes conceitos desenvolvidos por Bakhtin: autoconsciência; a luta contra a
coisificação do homem; e o caráter dialógico, a inconclusibilidade do herói/mundo/romance.
Para Bakhtin, a autoconsciência, essa consciência de si, só tem valor para o herói,
quando é dele a última palavra sobre si mesmo e seu mundo (BAKHTIN, 2008, p. 53).

[...] não são os traços da realidade – da própria personagem e de sua ambiência – que
constituem aqueles elementos dos quais se forma a imagem da personagem, mas o
valor de tais traços para ela mesma, para sua autoconsciência [...] (BAKHTIN, 2008,
p. 53).

A luta pelo homem, em Dostoiévski, ressalta a sua percepção da desvalorização


coisificante do homem em sua época. Sua tentativa foi libertar o homem de se tornar um
objeto, na perspectiva das relações de poder e do próprio capitalismo.
Quanto ao caráter dialógico, Dostoiévski dirige a palavra ao herói/personagem como
alguém presente, que o escuta e lhe pode responder. Bakhtin (2008, p. 72) destaca a

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importância da palavra tratada dialogicamente em Dostoiévski e o papel insignificante do


discurso monologicamente fechado, que não é suscetível de resposta. O autor também
salienta que não há fusão das vozes e verdades numa verdade impessoal una como ocorre no
universo monológico. Dostoiéviski, em seu romance polifônico, assume uma nova posição
artística em relação ao herói: a inconclusibilidade, afirmando que ela

[...] é uma posição dialógica seriamente aplicada e concretizada até o fim, que
afirma a autonomia, a liberdade interna, a falta de acabamento e de solução para o
herói. Para o autor, o herói não é um “ele” nem um “eu” mas um “tu” plenivalente,
isto é, o plenivalente do “eu” de um outro (um “tu és”). O herói é o sujeito de um
tratamento dialógico profundamente sério, presente, não retoricamente dissimulado
ou literalmente convencional (BAKHTIN, 2008, p. 71).

Para Dostoiévski, a verdade sobre o mundo é inseparável da verdade do indivíduo. O


enredo em Dostoiévski, por exemplo, é desprovido de funções concludentes, pois tem a
finalidade de colocar o homem em diferentes situações que o revelem e o provoquem. Busca
juntar personagens, para fazer com que choquem entre si, de forma a não permanecerem no
âmbito interior do enredo, mas de modo a ultrapassarem seus limites. As personagens de
Dostoiévski se cruzam fora do tempo e do espaço, como duas criaturas no infinito
(BAKHTIN, 2008, p. 312).
As ponderações de Bakhtin acenadas são frutuosas para o pesquisador ao se relacionar
com suas questões de pesquisa. Bakhtin no texto “Metodologia das Ciências Humanas” (já
citado) declara que é complicado as Ciências Humanas se atreverem a estudar o homem
utilizando metodologias utilizadas nas Ciências da Natureza. Bakhtin (2003) afirma que as
Ciências Humanas devem estudar o ser humano em sua especificidade humana, isto é, em
processo de contínua expressão e criação. Segundo ele, a especificidade do humano é falar, é
produzir textos. Desse modo, “[...] onde o homem é estudado fora do texto, e independente
deste, já não se trata de Ciências Humanas (mas de anatomia, de fisiologia humanas etc.)”
(BAKHTIN, 2003, p. 334). Assim entendido, considerar o homem e estudá-lo,
independentemente dos textos que cria, significa situá-lo fora do âmbito das Ciências
Humanas, significa situá-lo como nas Ciências Exatas e estas “[...] são uma forma monológica
do saber: o intelecto contempla uma coisa e emite enunciado sobre ela. Aí só há um sujeito: o
cognoscente (contemplador) e falante (enunciador). A ele só se contrapõe a coisa muda”
(BAKHTIN, 2003, p. 400, grifo do autor).
Bakhtin (2003) nos informa que não é possível compreender o ser humano, sua vida,
seu trabalho, suas lutas, senão por meio de textos, signos criados ou por serem criados por
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esses sujeitos. É basicamente por essa razão que, nessa perspectiva, o homem não pode ser
estudado como um fenômeno da natureza, como coisa. A ação física do homem precisa ser
compreendida como um ato, porém esse ato não pode ser entendido fora de sua expressão
sígnica, que é por nós recriada. Esse entendimento chama a atenção para que o pesquisador
assuma uma atitude responsiva ativa diante dos questionamentos que se propõe investigar. É
uma atitude responsiva, porque uma investigação não pode parar apenas nos processos de
constatação/produção de sentidos. Segue para além disso... ampliando a compreensão acerca
do que se investiga e, ao mesmo tempo, modificando tanto o pesquisador quanto a vida que se
presentifica nos diferentes contextos pesquisados.

5 CONSIDERAÇÕES QUE “NÃO FINALIZAM”...

Na obra intitulada Mikhail Bakhtin, o casal Clark e Holquist (2008) desenvolvem as


Considerações finais apresentando, sob nossa perspectiva, um profundo sentido para o
pesquisador no processo de feitura de suas investigações nas Ciências Humanas. Nessa parte,
os autores lembram que Bakhtin dispensa a presença de um Padre que veio realizar algum
momento solene ali com ele e em seu leito de morte. Porém, Bakhtin dispensa o Padre e faz
um pedido: que lhe contasse a sua história favorita, “[...] o relato do Decamerão14 em que se
operam milagres junto à tumba de um homem tido como santo, mas que fora na realidade um
terrível velhaco [...]” (CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 362). A partir desse fato, os autores nos
ajudam a compreender que entre as lições a serem tiradas de uma história tão complexa como
a de Decamerão, a mais significativa para entender Bakhtin é que sempre há uma escapatória:
“[...] ‘a vida é cheia de surpresas’, ou ‘Deus age por vias estranhas para realizar seus
milagres’” (CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 362). Conclusões aparentemente tão banais
reconhecem, segundo os autores, uma condição que em outro nível sempre atormentou a
metafísica: “[...] nada jamais é tão completo, nenhuma palavra é final, não há explanações

14
De acordo com Guimarães (1981), Decamerão ou Decameron: ou Príncipe Galeotto - título no Brasil ou
Decameron - título em Portugal. Vocábulo com origem no grego antigo: deca "dez", hemeron "dias", "jornadas".
Consiste em uma coleção de cem novelas escritas por Giovanni Boccaccio entre 1348 e 1353. Decamerão é
considerada um marco literário na ruptura entre a moral medieval, em que se valorizava o amor espiritual, e o
início do realismo, iniciando o registro dos valores terrenos, que veio redundar no humanismo; nele, não mais o
divino, mas a natureza, dita o móvel da conduta do homem. Foi escrito em dialeto toscano.
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últimas que todo mundo, sem exceção, aceitará como esgotantes de todas as possibilidades”
(CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 362). A partir da história de Decamerão,

Bakhtin não está só ao reconhecer a heterogeneidade e a contradição que dominam a


vida humana e a consequente especiosidade de todas as pretensões ao absoluto. Mas,
ao contrário de muitos outros, ele não julga que a ausência de certeza seja algo
deplorado. Sua singularidade reside nos múltiplos modos pelos quais celebra e
especifica o caráter impredizível do mundo (CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 362
grifo nosso).

Assim sendo, o dialogismo, proclamado por Bakhtin ao longo de sua vida, “[...]
baseia-se na inelutabilidade de nossa ignorância, na presença necessária de brechas em nossos
mais caros esquemas e mais elaborados sistemas”. Para os autores, Bakhtin, diante do
dialogismo, chega a ponto de regozijar-se com a “[...] fatalidade da incerteza, que ele
interpreta como a constante disponibilidade de uma via de escape, não havendo nenhum beco
sem saída” (CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 362). Assim, para Bakhtin, o dialogismo se
apresenta como uma metafísica da escapatória. Nessa direção, em consonância com os
autores, pensamos que muito embora tal “[...] fenda de escape seja a fonte de frustração, da
dor e do perigo que temos de enfrentar em um mundo tão dominado pelo incognoscível,
também constitui a necessária precondição para qualquer liberdade que possamos conhecer”
(CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 362).
Conforme apontam os autores e, concordamos com eles, “[...] a capacidade, embora
altamente circunscrita como é, de a pessoa moldar em forma de diálogo significados fugazes
deu origem muito cedo à ilusão de que o significado é fixo”. As consequências desse modo de
pensar a vida permitiram que “[...] os que mantinham esse ponto de vista podiam abrir mão da
batalha e da incerteza de um mundo que está em incessante fluxo”. No entanto,

[...] o preço pago por semelhante certeza era alto: a superstição que afirma ser
possível a verdade absoluta deu origem a opressivos sistemas políticos e religiosos,
dos quais nunca conseguimos nos libertar; e jamais podemos fazê-lo enquanto
aceitarmos a condição prévia que habilitou todos eles, isto é, a possibilidade de
alguma verdade que seja absoluta. Os sistemas monológicos de crença
invariavelmente sustentam que uma só verdade está contida numa só instituição,
como o Estado, ou num só objeto, como um ídolo ou um texto, [...] o ego concebido
como um sujeito absoluto, ou o artista-gênio que produz textos únicos (CLARK;
HOLQUIST, 2008, p. 363).

Assim, torna-se significativo para o pesquisador das Ciências Humanas, em especial


para aqueles do campo dos Estudos Linguísticos pensar que se o “[...] monologismo é a cola
conceitual que mantém junto o complexo mosaico de atitudes religiosas, políticas,
psicológicas e estéticas que eram típicas da maioria das culturas no passado [...]” (e vemos
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que esse mesmo mosaico se evidencia no contexto contemporâneo de nossa cultura ocidental),
o “[...] dialogismo é a tentativa de Bakhtin pensar o caminho de saída de um tal monologismo
difundido por toda parte” (CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 363). Por isso, podemos pensar que
para Bakhtin, “[...] o dialogismo não pretende ser meramente outra teoria da literatura ou
mesmo outra filosofia da linguagem, mas uma explicação das relações entre povos e entre
pessoas e coisas que atalha fronteiras religiosas, políticas e estéticas” (CLARK; HOLQUIST,
2008, p. 363). É nessa direção que esses autores chegam a afirmar que:

apesar da enorme extensa de tópicos para os quais é relevante, o dialogismo não é o


usual sistema abstrato de pensamento. Ao contrário de outros sistemas que
reivindicam semelhante abrangência, o bakhtiniano nunca perde de vista as
miudezas da vida cotidiana, com toda a sua inabilidade, confusão e dor, [...] mas
também com toda a alegria que só a imediação do aqui e agora pode trazer
(CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 363).

Bakhtin, com essas reflexões, ajuda o pesquisador a se convencer de que não somos
deus da ciência capaz de dar vida ou de encerrar, de ser a última palavra, pois reconhecemos
a impossibilidade de haver términos diante da vida, diante do objeto das Ciências Humanas –
o homem. Ao mesmo tempo observamos que Bakhtin (2010) se inclina a pensar o irrepetível,
o excepcional, o incomparável, o sui generis e, portanto, não nega a possibilidade da
construção da unicidade singular, porém tal construção exige a alteridade e o compromisso
com o outro; uma singularidade em ligação com a vida do universo inteiro, que inclui na sua
finitude o sentido do infinito.
A trajetória de vida de Bakhtin chama a nossa atenção também pelo fato de que ao nos
apresentar a perspectiva do dialogismo entendemos que ela

[...] nos liberta precisamente por insistir que todos nós estamos envolvidos
necessariamente no fazimento do significado. Na medida em que todos nós estamos
envolvidos na arquitetônica da respondibilidade por nós mesmos e assim um pelo
outro, somos autores, criadores seja qual for a ordem e o sentido que o nosso mundo
possa ter (CLARK; HOLQUIST, 2008, p. 363).

Com efeito, compreendemos que o ato da pesquisa deve ser um ato responsável e, sob
a nossa perspectiva, isso deve ser traduzido, por exemplo, por meio de investigações que
tenham em vista íntima intencionalidade com o bem estar comum desse outro pesquisado.

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REFERÊNCIAS

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2003.

______. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João, 2010.

______. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2008.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich; VOLOCHÍNOV, Valentin Nikoláievitch. Marxismo e


filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 13.
ed. São Paulo: Hucitec, 2012.

BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin e seu Círculo. São Paulo: Contexto, 2009.

BRANDIST, Craig. Repensando o Círculo de Bakhtin: novas perspectivas na história


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introdução crítica a uma poética sociológica. São Paulo: Contexto, 2012.

MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Org.). Introdução à linguística:


fundamentos epistemológicos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem.


Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e
glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo.
São Paulo: Editora 34, 2017.

ZANDWAIS, Ana. Relações entre a filosofia da práxis e a filosofia da linguagem sob a ótica
de Makhail Bakhtin: um discurso fundador. In: ZANDAWAIS, Ana. (Org.). Mikhail
Bakhtin: contribuições para a filosofia da linguagem e estudos discursivos. Porto Alegre:
Editora Sagra Luzzatto, 2005. p. 17-28.

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Trabalho recebido em: 29/11/2018


Aprovado em: 10/06/2019
Publicado em: 06/03/2020

COMO REFERENCIAR ESTE TRABALHO CONFORME ABNT

STIEG, Vanildo. Bakhtin e seu círculo: preciosas contribuições para a pesquisa em Ciências
Humanas. Revista Pró-Discente, Vitória, v. 25, n. 2, p. 33-52, jul./dez. 2019.

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