Texto de Apoio 4 - Hermenêutica em Gadamer

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Hermenêutica em Gadamer

1. Os Preconceitos como condição da Compreensão

Gadamer analisa o descrédito sofrido pelos preconceitos durante o Iluminismo. Estes, que representam
juízos prévios não definitivos, foram considerados obstáculos a serem removidos na busca do
conhecimento e da verdade. Qualquer imposição externa e dogmática do antigo levaria a uma aceitação
independente de juízos.

No período áureo de valorização da racionalidade, só podia ser verdadeiro o que passasse pelo crivo da
razão, ou seja, “a tendência geral do Aufklãrung é não deixar valer autoridade alguma e decidir tudo
diante do tribunal da razão“. A verdade coincidia com a certeza proveniente de um exercício racional
metodológico. Nesse sentido, desconsidera-se a historicidade dos sujeitos, uma vez os preconceitos dela
oriundos representam um entrave à razão, na medida em que levam a enganos e a contingências.

Os preconceitos, dessa forma, advêm do respeito à autoridade, “uma obediência cega” sem qualquer
critério, somada à precipitação, que induz ao erro. Para superar todo esse condicionamento, os homens
devem valer-se do próprio entendimento, norteados por um método, um “caminho” passível de ser
refeito e comprovado por todos os seres pensantes. Embora a crítica tenha dirigido-se directamente à
leitura dogmática das escrituras sagradas, acabou tomando proporções bem maiores que o esperado.

Diante disso, Gadamer, propõe uma releitura da autoridade e da tradição. Partindo das premissas
filosóficas de Heidegger, deve-se compreender o ser, visto que a história é a estrutura ontológica da
“pre-sença”, do “ser-no-mundo”, ladeada pelas particularidades do momento histórico.

Não mais se estabelece “um muro entre sujeito e objecto, sentenciando uma total desintegração entre
o investigador e o objecto investigado”, mas uma compreensão do homem imerso em conexões com
factos, pessoas e coisas. O ser humano quer compreender a si mesmo na sua forma de existência, logo,
“ao ser a presença coloca em jogo seu próprio ser e ao mesmo tempo pré-compreende este ser”. A
hermenêutica liga-se à própria possibilidade de existência.

A autoridade não se confunde com uma “obediência cega” ou desprovida de racionalidade, nem se
opõe diametralmente à razão, como pensavam os “esclarecidos” do período das luzes. É, antes de tudo,
“um atributo de pessoas”, pelo qual se conhece e reconhece o maior acerto do juízo do outro. Por
conseguinte, torna-se impossível uma aceitação pura e simples sem critérios.

Trata-se de uma atitude de liberdade, jamais de outorga ou imposição, passível de ser revisada sempre.
Tendo como ponto de partida os invitáveis preconceitos formadores da pré-compreensão, o intérprete
testa a legitimidade destes no encontro com o outro, conforme Gacki:

“Na verdade, o preconceito próprio só entra realmente em jogo na medida em que já está metido nele.
Somente na medida em que se exerce, pode experimentar a pretensão de verdade do outro e oferecer-
lhe a possibilidade de que este se exercite por sua vez”.
Como a tarefa hermenêutica vai muito além de uma simples atribuição de sentido ao texto fundada na
pré-compreensão, deve-se pôr à prova os preconceitos. Por diversas vezes, incorre-se em erros e
substitui-se a perspectiva inicial. A autoridade é exactamente esse reconhecimento de que a
compreensão do outro possa ser mais adequada. Sob tal aspecto, a obediência a ordens apenas ocorre
quando já existe uma autoridade reconhecida como, por exemplo, do especialista.

A tradição é também forma de autoridade tornada anónima, mas que continua a influenciar e a
determinar os comportamentos sociais por ser a “forma de validez” dos costumes. Assim como já
discutido anteriormente, o autor também detecta um tratamento errôneo conferido à tradição, seja
pelo seu total descarte no iluminismo, seja pela concepção romântica, para a qual se trata de “um dado
histórico ao modo da natureza”.

Conforme Gadamer, “na realidade, a tradição é sempre um momento da liberdade e da própria


história”. Mesmo de forma inconsciente, a tradição mantém-se viva em virtude de seu cultivo. A atitude
histórica humana afirma-se e conserva-se por um acto racional, o que se percebe quando se operam
revoluções e muita coisa da conjuntura anterior ainda permanece mediante uma forma nova de
validade. Assim, a conservação dá-se de forma tão livre quanto a destruição ou a mudança.

1.1. O Círculo Hermenêutico

Gadamer recorre ao círculo hermenêutico desenvolvido por Heidegger – “o movimento de sentido do


compreender e do interpretar” – tido como estrutura ontológica da compreensão. A consciência do
homem ultrapassa a mera “regra” do antigo cânone hermenêutico, oriundo da retórica, para o qual se
deveria compreender o todo em relação às partes e vice-versa. Devem ser agregados elementos da
autoridade e da tradição, fontes da pré-compreensão.

Antes de se chegar ao ponto pretendido, é preciso fazer uma referência a Schleiermacher. Este, no seu
projecto de uma hermenêutica geral, embora exclua expressamente a jurídica pelo escopo diferenciado
de aplicação ao caso concreto, realiza, conforme Costa, “uma descrição dinâmica (e não mais estática)
do processo de compreensão que, posteriormente, recebeu a denominação de círculo hermenêutico”.
Quando se deseja compreender um texto, inicia-se com uma pesquisa do aspecto gramatical da
linguagem. Como, nessa etapa, há análise impessoal de regras linguísticas, segue-se uma incursão na
seara psicológica do autor, capaz de levar o intérprete a conhecê-lo melhor que ele próprio,
reproduzindo o acto de criação.

“A proposta de Schleiermacher afirma a possibilidade de reconstruir na compreensão a determinação


original de uma obra. Assim, poderíamos reconstruir o sentido de uma obra de arte ou literária
transmitida do passado e que, por isso, nos chega desenraizada de seu mundo original”.

Contudo, Gadamer tece algumas críticas. É impossível que se alcance a constituição psíquica do autor,
tentando “re-produzir o que foi a produção original do autor”. A compreensão não se confunde com
uma “comunhão misteriosa de almas”, pela qual algo praticamente divino permitiria alcançar o íntimo
do autor. Ademais, a tarefa hermenêutica empreendida pelo teólogo visa a uma generalidade formal,
consoante a pretensão de objectividade científica dada pelo método, desprezando-se a historicidade e a
consciência histórica do homem. A leitura de um texto ultrapassa as intenções do autor, já que o
diferente contexto altera e inclusive amplia os sentidos originalmente pensados pelo escritor. A
interpretação nunca se dissocia de seu componente histórico e cultural. Não há o conhecimento da
“coisa em si”, mas sua mediação com a tradição e com os preconceitos do autor.

“Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projectar”. Inicia-se a leitura com uma
determinada expectativa, uma opinião prévia em relação ao objecto de estudo, que é a chamada pré-
compreensão, a partir da qual se estabelece um projecto de compreensão para o todo. Esta pré-
compreensão não é subjectiva, uma vez que as pessoas comungam uma tradição em contínua
formação, variável e construída conforme se participa da tradição e compreende-a, nos termos de
Mello:

“O círculo serve, em realidade, como uma metáfora que viabiliza a descrição da compreensão que se dá,
como num jogo, em que há o intercâmbio entre o movimento da tradição e o movimento do intérprete.
Constata-se a partir dele que há uma antecipação de sentido que guia, por exemplo, a interpretação de
um texto, a qual não é um acto da subjectividade, já que se determina a partir da comunhão que nos
une com a tradição. Esta relação com a tradição é referida por GADAMER como um processo em
contínua formação, que não significa uma prévia observação de cada homem, como se este homem
desde sempre estivesse “ali”, aguardando a percepção de um observador mais arguto, mas sim como
um processo instaurado continuamente por nós mesmos, na medida em que compreendemos, na
medida em que participamos do acontecer da tradição e continuamos determinado-o a partir de nós
próprios. O círculo descreve antes um momento estrutural ontológico da compreensão”.

Segundo Gadamer, tendo em vista a concepção ontológica da hermenêutica, há um sentido positivo em


tal processo, pois permite assegurar o conceito a partir da “coisa, ela mesma”, evitando os possíveis
enganos e desvios da pré-compreensão. Ressalta-se que não se trata de uma arbitrariedade, pois se
verifica a legitimidade da opinião prévia e coloca-se em discussão. Pode-se alterar o sentido definido por
várias vezes, à medida que se estuda o texto. O conhecimento adquirido tem por alicerce a pré-
compreensão naturalmente limitada, mas a aquisição de novas informações torna sua possibilidade
infinita, ou seja, constroem-se círculos concêntricos, nos termos de Zanini:

“GADAMER mostra que, no encontro com o texto, somos irremediavelmente guiados por nossa pré-
compreensão. Esta resulta de nossa formação pessoal, de nossos valores, de nossa cultura, de nossa
língua, de nossa história, enfim, de nosso contacto com o mundo. Cada um de nós tem um determinado
conjunto de referências que é utilizado na constante busca da construção de sentido: os pré-juízos,
referências que, para o autor, não representam algo forçosamente negativo. Nosso lastro de juízos
prévios não indica, necessariamente, sob o prisma gadameriano, que estamos condenados a uma
espécie de incapacidade intelectual que inviabilizaria qualquer atitude crítica, ou que estamos atados a
um passado imutável, permeado de tradições dogmáticas e interpretações fixistas, que traduziriam uma
limitação absoluta da nossa liberdade – significa, apenas, que somos, em parte, condicionados por nossa
finitude e historicidade”.
1.2. O Significado da Distância Temporal

A hermenêutica histórica tradicional entende a distância temporal como um problema que afecta a
compreensão. Quanto mais “puro” e livre de preconceitos, mais verdadeiro é o conhecimento nos
moldes metodológicos do século XIX. O historiador precisa reconstruir o facto com a maior fidelidade
possível, portanto, deve tentar livrar-se de tudo aquilo que o influencie e o molde dentro dos
parâmetros actuais. É preciso enxergar o passado nos seus padrões e características próprios, sob pena
de se prejudicar a objectividade histórica. Entretanto, conforme expõe Lopes, a verdadeira
compreensão dos fenómenos históricos dá-se justamente pela historicidade.

Com a ontologia fundamental, a distância deixa de constituir um abismo, passando a ser, nos dizeres de
Almeida, “o fio condutor que liga horizontes distintos e, pelo processo dialógico, torna possível a fusão
entre eles”. A distância representa uma possibilidade positiva de compreensão, permitindo que o
verdadeiro sentido de uma coisa se expresse, conforme Côrtes:

Consoante Gadamer, o aparente vazio da distância temporal “está preenchido pela tradição e pela
herança histórica, a cuja luz nos é mostrado todo o transmitido”. A consciência hermenêutica deve ser a
consciência dos preconceitos que participam do processo de compreensão. Faz-se necessário colocá-los
em jogo, sabendo sempre da importância de filtrá-los, o que se torna possível com a distância temporal.
Não obstante a pré-compreensão dê suporte ao processo hermenêutico, é preciso encarar o texto como
outro e deixar que venha à fala.

1.3. A Consciência da História Efeitual

Gadamer finaliza a abordagem da distância temporal com uma reflexão sobre os enganos do
objectivismo histórico, cuja crença no método retira a validade de qualquer preconceito questionável.
De acordo com essa concepção, sempre que houver dúvida ou margem para incertezas, deve-se
imediatamente deixá-lo de lado. O mal-entendido precisa ser substituído por outro juízo “correcto”,
sujeito à verificação objectiva por parte de qualquer indivíduo. Percebe-se, assim, uma ausência de
pensar sobre a própria historicidade da consciência histórica.

“A consciência da história efeitual é em primeiro lugar consciência da situação hermenêutica”, ou seja, o


intérprete pertence à tradição que quer compreender. Segundo adverte Pereira, “a tradição histórica
não está morta inteiramente, mas está viva em nossa cultura, em nossos ‘preconceitos’”. Isso faz com
que a tradição não seja vista através das lentes de um telescópio preciso e sim pelos óculos do
intérprete, que é parte integrante da “paisagem”, portanto, dispõe de uma visão menos ampla.

Diante do exposto, permite-se retomar o conceito de horizonte, entendido como o ângulo de visão
máximo referente a determinado ponto. Em outras palavras, considerando que o intérprete se encontra
imerso na tradição e munido de diversos preconceitos, a compreensão tem um espectro possível, não
obstante se deva percebê-la no seu aspecto positivo. Elaborar a situação hermenêutica significa, assim,
“ganhar” o horizonte correcto de compreensão.
A historicidade do homem é inarredável. Embora o vangloriado acto de se transportar para o horizonte
do outro retire do intérprete a análise de sua própria posição, não há entendimento ou diálogo. O
filósofo inclusive compara tal situação com determinadas consultas médicas nas quais o profissional
apenas pode conhecer o paciente e suas queixas, sem chegar a qualquer tipo de entendimento. A
compreensão dá-se de forma produtiva, logo, é preciso dialogar, ter abertura para que o texto venha à
fala, conforme esclarece Mello:

“A compreensão humana, nessa linha de pensamento, é vista e respeitada como ela realmente se dá, ou
seja, com todas as suas contradições, complexidades e limitações. Finalmente a compreensão é
apresentada como um processo constante e infindável, de modo que a história efeitual propicia que o
sujeito alcance entendimentos históricos não mais sob a óptica do certo ou do errado, mas sim
percebendo que, dentro da sua própria tradição, conscientemente ele procurará afastar os preconceitos
inautênticos – por meio do questionamento – sabendo que esse novo entendimento é o resultado de
um projecto desde sempre em constituição, ou seja, de seu ser e da historicidade que se revelou na
coisa segundo as tradições a ele inerentes”.

A partir disso, o escritor de Verdade e Método questiona o chamado “deslocamento” ao


horizonte daquilo que se quer compreender. Na verdade, não há dois horizontes distintos (o do passado
da tradição e o presente), o que inviabiliza estar num ou noutro separadamente. Pelo contrário,
segundo Gadamer, o “horizonte é, antes, algo no qual trilhamos nosso caminho e que connosco faz o
caminho”. Portanto, “deslocar-se” significa fundir o horizonte do passado com as concepções presentes,
formando uma universalidade diferente das anteriores, que “rebaixa tanto a particularidade própria
quanto a do outro”.

1.4. A Experiência Hermenêutica

Segue-se ao estudo da consciência efeitual o reconhecimento de que ela se estrutura sob a forma de
experiência. Nesse sentido, é preciso compreender o significado da experiência hermenêutica,
especialmente por se tratar de um conceito de difícil entendimento, “dos que menos possuímos”. A
supervalorização do conhecimento científico, notadamente no século XIX, levou a uma distorção do seu
real valor.

Na óptica científica, experiência é tudo aquilo que pode ser repetido por quem quer que deseje a
qualquer tempo, ou seja, liga-se fundamentalmente a um “caminho” objetivador do conhecimento.
Logo, não se pode falar de qualquer historicidade interna da experiência, já que esta é a própria retirada
das contingências em favor da cientificidade.

Dessa forma, Gadamer faz uma revisão do conceito analisado, perpassando diversos matizes filosóficos,
para que se livre das amarras de sua intrínseca correlação com as ciências naturais e se permita
vislumbrar sua possibilidade hermenêutica. Com as críticas tecidas acerca das concepções apresentadas,
chega até a real nuance da experiência hermenêutica. De forma bastante resumida, faz-se necessário
percorrer o panorama traçado pelo autor.
Husserl tentou livrar a experiência da parcialidade de sua vinculação com a ciência, alegando que esta
ocorre no mundo da vida, portanto, é anterior à sua idealização. Como se sabe, inspirado por Descartes,
o fenomenólogo demonstrava “repúdio pelas ciências empíricas”, o que denota a falta de apreço pelas
experiências. Se só pode ser verdadeiro aquilo que se torna evidente na consciência, certamente os
sentidos levam a enganos. Contudo, Husserl permaneceu preso àquilo de que queria libertar-se.

Para Bacon, todo conhecimento deveria vir da experiência. Assim, critica a forma habitual e
despretensiosa de encarar a experiência como uma generalização válida até que seja contraposta,
propondo a interpretatio natura, via de acesso“gradual as generalidades verdadeiras e sustentáveis“.
Por meio da observação da natureza, o método indutivo permite o acesso ao geral, elevado a essa
categoria após a organização racional dos dados obtidos e a comprovação das hipóteses.

No entanto, a maior contribuição de Bacon reside na discussão acerca dos possíveis erros na busca do
conhecimento. Há falsas noções (denominadas ídolos), de diversas naturezas, como a linguagem, a
autoridade e a tendência humana de se prender a falsas generalizações, que permeiam todo o processo
do conhecer. Mesmo com o avanço obtido pela percepção dos preconceitos, o autor continua ainda
preso à tradição metafísica, além de seu método resultar em algo interminável.

Por sua vez, Aristóteles entende a experiência como um pressuposto da ciência. Na tentativa de superar
o idealismo platónico, afirma não existir um mundo das ideias, mas apenas aquele da experiência, de
onde partem todas as investigações. De uma série de percepções individuais, chega-se a uma unidade
geral e, a partir dela, dá-se a passagem para o logos. Gadamer traz o exemplo de determinada erva
usada pelas pessoas para algum fim medicinal, como a cicatrização. Tem-se um dado empírico, mas
ainda inexiste uma explicação racional, pois esta ocorre posteriormente, motivada pela generalidade da
experiência. Nesse caso, os cientistas apenas investigam e descobrem o porquê das propriedades
terapêuticas após conhecerem o dado experimental.

Opõe-se à objecção de simplificar o processo de produção da experiência, focando-se na sua relação


com a ciência e com a formação dos conceitos. O processo de experiência verdadeiramente dá-se no
seu lado negativo, ou seja, desconstrói generalidades e tipicidades, não corresponde às expectativas.
Segundo explica Gadamer, “a negatividade da experiência possui, por conseguinte, um particular
sentido produtivo. Não é simplesmente um engano que se torna visível e, por consequência, uma
correcção, mas o que se adquire é um saber abrangente”.

O sentido negativo da experiência e a abertura constante a novas possibilidades remetem à dialética,


questionamento este elaborado por Hegel, para quem a experiência representa uma manifestação do
cepticismo. Jamais se refaz uma experiência. Embora possa confirmar-se pela repetição, tal acto nunca
representará algo novo, segundo explica Almeida:

“Ora, Hegel soube captar exemplarmente o momento dialético da experiência. No entanto, ao concluir a
ciência da experiência da consciência logrou abarcar a própria experiência pressuposta, pois, para ele, a
experiência era vista “como realização do cepticismo” e, por isso, deveria ser tomada apenas como um
momento negativo de um todo positivo – a ciência filosófica. Após fazer a experiência, Hegel a possui de
tal modo que tudo quanto antes era inesperado passou a ser previsto”.
Nesse sentido, fala-se numa inversão da consciência. A experiência traduz-se num movimento dialético
da consciência consigo mesma. Em última instância, no saber absoluto percebe-se uma identidade de
sujeito e objecto. Isso retira toda a possibilidade e a legitimidade da experiência, já que o homem tem
de estar no próprio conteúdo para aceitá-lo e a consciência adquirir certeza de si mesma. Segundo
Gadamer, “a essência da experiência é pensada aqui, desde o princípio, a partir de algo no qual a
experiência já está superada. Pois a própria experiência jamais pode ser ciência.“Ademais, Heidegger
adverte que Hegel não pensa a experiência como dialética; pelo contrário, visualiza a dialética a partir da
experiência.

Se da experiência jamais se faz ciência por haver “uma oposição insuperável com o saber e com aquele
ensinamento que flui de um saber teórico ou técnico”, fica-se sempre diante de uma abertura para
outras experiências. Deve-se aceitar o facto de que certezas e dogmas não perduram eternamente e são
passíveis de alteração. A única certeza plausível é impossibilidade de se conhecer tudo. Quanto mais
experimentado é um indivíduo, mais consciência tem das infinitas possibilidades do ser humano.

Após ultrapassar todo esse caminho, Gadamer possui elementos para concluir que a experiência é a
consciência da própria finitude humana e das limitações. A referência a Ésquilo é bastante ilustrativa:
“aprender com o sofrer”, ou seja, de forma dolorosa, o homem torna-se ciente da sua separação da
divindade e da temporalidade de sua existência.

Toda experiência, por mais que se pense consumada ou exaurida, constitui sempre abertura. Nem
mesmo o próprio homem possui uma essência. O ser significa um poder ser si mesmo, pois tem por
características a indefinição e as infinitas possibilidades. Dessa forma, torna-se incoerente falar da
experiência no sentido teleológico, à semelhança de Husserl e Bacon, e da forma descaracterizada de
Hegel.

A experiência hermenêutica é aquela que assume a consciência da história efeitual. A tradição precisa
ser compreendida verdadeiramente como um tu. Toda alteridade tem algo a dizer e deve ser respeitada
sua condição de outro. Não se pode impor pretensões ou concepções prévias. A abertura dá-se de
forma mútua, isto é, entre quem “escuta” e aquele que “fala algo”, inclusive com a possibilidade de que
seja contrário ao intérprete, conforme Gadamer:

“A consciência hermenêutica tem sua consumação não na certeza metodológica sobre si mesma, mas na
pronta disposição do homem experimentado ao que está preso dogmaticamente. É isto que caracteriza
a consciência da história efeitual, como poderemos pronunciar mais detalhadamente a partir do
conceito de experiência”.

1.5. O problema Hermenêutico da Aplicação

Ao tratar do que denomina “problema hermenêutico fundamental”, o filósofo faz um retrospecto acerca
das questões da compreensão, interpretação e aplicação para que se chegue à sua premissa: “em toda
compreensão, produz-se uma aplicação, de modo que aquele que compreende, está ele mesmo dentro
do sentido do compreendido. Ele forma parte da mesma coisa que compreende”.
Inicialmente, o autor relembra a divisão antiga do problema hermenêutico nas três questões citadas
acima, como forma de se atingir a compreensão. A partir do romantismo, a interpretação passou a ter
uma relação necessária com a compreensão, ou seja, não se trata de uma complementação posterior,
mas de dois momentos que sempre ocorrem dentro do mesmo processo. Logo, a aplicação foi deixada
de lado, talvez até pela sua aparente desnecessidade na seara teológica. De acordo com Costa,

“Desde meados do século XX, as reflexões da hermenêutica filosófica acentuaram a existência de uma
co-relação circular entre interpretação e aplicação, de tal forma que a prioridade lógica tem sido
substituída pela ideia de que existe uma complementaridade circular entre interpretação abstrata e
aplicação concreta, pois essas duas actividades fazem parte de um mesmo processo de compreensão.
Nesse ponto, fica especialmente caracterizada a distinção entre a linearidade dos discursos científicos e
a circularidade dos discursos hermenêuticos”.

No entanto, o autor faz uma objecção que ataca o posicionamento romântico. Para ele, toda
compreensão inclui a aplicação, na medida em que o texto se dirige à situação actual do intérprete. A
hermenêutica possui as vertentes teológica, filológica e jurídica, não obstante Schleiermacher tenha
excluído a última expressamente de seu projecto de hermenêutica geral por considerá-la dogmática.

Na origem, tanto a hermenêutica filológica quanto a jurídica já consideravam a aplicação um momento


indispensável do processo de compreensão. Caso se queira compreender a validade de uma lei ou a
mensagem redentora de um texto, deve-se interpretá-los em cada situação de uma maneira distinta,
conforme discorre Lopes:

“A compreensão histórica da norma pretende renovar a sua efectividade histórica em relação a uma
nova situação, e não simplesmente reconstruir a intenção original do legislador, atitude que seria igual a
tentar reduzir os acontecimentos históricos à intenção dos protagonistas. A historicidade da norma,
igual a em qualquer outro texto, não é uma restrição a seu horizonte, senão que, pelo contrário, a
condição que permite sua compreensão. No Direito, essa condição se manifesta por meio do vínculo que
existe entre a pessoa obrigada e a norma, vínculo que afecta a todos por igual, e não faz da lei uma
propriedade do legislador”.

A própria hermenêutica histórica depara-se com o problema da aplicação, “pois também ela
serve à validez de sentido, na medida em que supera, expressa e conscientemente, a distância de tempo
que separa o intérprete do texto, superando assim a alienação de sentido que o texto experimentou”.

Sabendo-se que a aplicação é parte integrante de qualquer processo de compreensão, resta ainda
analisar se realmente há uma incompatibilidade entre a hermenêutica histórica e a jurídica. Para tanto,
Gadamer aborda a situação de “textos jurídicos interpretados juridicamente e compreendidos
historicamente”.

Normalmente, costuma-se dizer que a hermenêutica jurídica destina-se a aplicar a norma ao caso
concreto, enquanto cabe à compreensão histórica uma investigação do sentido originário da mesma em
âmbito geral. Contudo, tal diferenciação não analisa de maneira suficiente a questão. O jurista deve
efectuar a concordância do sentido actual com o originário, assim como o historiador precisa mediar
presente e passado, já que este só pode ser entendido na sua continuidade com aquele.

Quando se está diante de uma lei vigente, a situação hermenêutica é semelhante em ambos os casos.
Mesmo nas outras hipóteses, o juiz não pode realizar uma “tradução arbitrária” da ideia da lei ao aplicá-
la à situação concreta, podendo se parecer com o historiador. Este, por sua vez, tem como matéria-
prima a compreensão histórica, porém deve também analisar juridicamente as normas jurídicas. Logo,
“a hermenêutica jurídica recorda em si mesma o autêntico procedimento das ciências do espírito. Nela
temos o modelo de relação entre passado e presente que estávamos procurando”.

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