Caliman Cidadanias Biologicas
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Trago aqui a fala de Kandel para destacar inicialmente o papel crucial que a
biologia tem assumido nas sociedades ocidentais, marcadas pelas biotecnologias e
pela biomedicina. A conclusão final de Kandel é que a psiquiatria não chegará a
lugar nenhum sem as marcas biológicas do sofrimento mental. E se hoje ele vem
ao Brasil para participar do Congresso Brasileio de Psiquiatria é porque ele, bem
como os psiquiatras brasileiros, espera e acredita que um dia tais marcas serão
reveladas. E esta é somente uma crença pontual no âmbito mais geral de uma cul-
tura marcada pela ênfase no corpo, ou melhor, no cérebro, como sendo a sede da
alma, da identidade, da política, da religião, do sentimento moral, do sofrimento
mental. Para a biopsiquiatria hoje em voga, um sofrimento só é sofrimento, uma
doença só é doença, um diagnóstico só é um diagnóstico quando este for um bio–
diagnóstico; tudo o mais é apenas psicológico ou social e, portanto, menos real.
Uma patologia só é realmente real quando sua existência biológica é comprovada.
É este pano de fundo que gostaria de trazer à tona em minha fala para discutir
alguns de seus efeitos em nossas vidas.
Hoje, portanto, neste simpósio – intitulado “Cidadania biologizada e judicia-
lizada: a produção do sofrimento psíquico” –, gostaria de analisar com vocês o que
estou chamando de “bio–diagnósticos na era das cidadanias biológicas”. Tomo
como panorama de nossa discussão um contexto histórico, fortalecido na atua-
lidade, no qual a prática diagnóstica assume uma centralidade excepcional. Na
racionalidade médica ocidental, na produção de sentidos e na garantia de direitos
do que Rose5 e Novas6 designam como cidadanias biológicas, os bio–diagnósticos
tornaram–se entidades desejadas, almejadas e necessárias. Não é por acaso que
em 1952 tínhamos apenas 106 diagnósticos descritos no DSM I e hoje o DSM
IV agrupa 297 diagnósticos, e ainda não sabemos quantos mais serão descritos no
DSM V. Não é também por acaso que uma pesquisa realizada no ano de 2005,
valendo–se de uma amostra de 9.000 americanos, estimava que a cada ano 26,2%
dos adultos americanos poderiam relatar sintomas que os enquadrariam em al-
gum diagnóstico do DSM IV7. Parece que presenciamos, portanto, uma expansão
crescente de bio–diagnósticos psiquiátricos.
Uma pergunta–problema inspira minha fala: “O que produz um bio–diag-
nóstico?”. Tal pergunta sugere dois caminhos analíticos. Primeiro, ela interroga
o contexto que produz a necessidade, o desejo e a legitimidade dos bio–diagnós-
ticos, ou seja, interroga como eles se tornaram tão fundamentais, tão importan-
tes, tão legítimos. Em segundo lugar, a pergunta–problema “o que produz um
bio–diagnóstico?” nos leva a indagar sobre os seus efeitos. Qual o seu impacto no
sujeito diagnosticado e em sua família? Qual o seu impacto nas instituições que
serão por ele marcadas, por exemplo, o impacto na escola de uma criança que re-
5 Rose, N. The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power, and Subjectivity in the Twenty–First
Century. Princeton: Princeton University Press, 2007.
6 Novas, C.; Rose, N. Genetic risk and the birth of the somatic individual. Economy and Society,
v. 29, n. 4, p. 485–513, 2000.
7 Kessler, R. C. et al. Lifetime prevalence and age–of–onset distributions of DSM–IV disorders
in the National Comorbidity Survey Replication. Archives of General Psychiatry, v. 62, n. 6, p.
593–602, 2005.
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cebe o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH)
ou dislexia? Ou na Câmara que recebe um projeto de lei voltado para o TDAH?
Qual seu impacto em nosso sistema de direitos? Neste caso, a pergunta–problema
“o que produz um bio–diagnóstico?” interroga sobre seus efeitos politicos, sociais,
subjetivos, ou seja, de produção de realidade. O ato de classificar produz efeitos.
Um diagnóstico, por ser uma classificação, produz efeitos, produz realidade, diria
Ian Hacking8. Vejo, portanto, os bio–diagnósticos como tecnologias subjetivas
que não apenas revelam o real, mas participam de sua criação.
Quero destacar, no entanto, que os bio–diagnósticos não funcionan apenas
como tecnologias que controlam, classificam e estigmatizam. Na era das cida-
danias biológicas, um bio–diagnóstico pode participar ativamente da produção
do que Ortega9 chamou de bioidentidades e Paul Rabinow10 de biossociabilida-
des. Ou seja, eles atuam na constituição de novas identidades e sociabilidades
desejadas pelos sujeitos diagnosticados. Ao mesmo tempo, muitas vezes, nas
cidadanias biológicas, ter um bio–diagnóstico é a única possibilidade de acesso
a todo um sistema de direitos e possibilidades. Podemos dizer ainda que nas
cidadanias biológicas nem sempre está em questão uma des–responsabilização
dos sujeitos diagnosticados pelos seus atos, mas uma nova forma de responsa-
bilidade é exigida.
Hoje, gostaria de destacar, portanto, a importância de que os movimentos
atuais que problematizam os processos de medicalização – como o Fórum que
aqui se reúne e do qual participo – levem em consideração, em suas agendas, a
análise do impacto político, subjetivo e social dos bio–diagnósticos no contexto
das cidadanias biológicas. Este impacto não é óbvio e não pode ser definido a
priori, ele precisa ser interrogado, narrado pelos sujeitos que vivem cotidianamen-
te a experiência de ser diagnosticado ou de cuidar de alguém diagnosticado. Na
minha fala, aponto apenas algumas direções, alguns efeitos possíveis, talvez mais
previsíveis, mas de forma alguma únicos ou definitivos.
Mas o que estou chamando aqui de cidadanias biológicas ou biocidadanias?
E como os bio–diagnósticos a elas se articulam?
O termo “cidadanias biológicas” é utilizado por Nikolas Rose (2007) e
Carlos Nova (2000) para descrever os projetos políticos que, desde o século
XIX, basearam suas concepções de cidadania na existência biológica dos seres
humanos. Em outras palavras, propostas nas quais um indivíduo pertence ou
não a um projeto de cidadania por partilhar ou não um certo traço biológico,
por exemplo, sanguíneo ou genético. Logo pensamos nos projetos políticos de
cunho eugênico e racista: todos baseados em pressupostos biológicos definido-
res dos indivíduos e das populações. Mas são as cidadanias biológicas contem-
porâneas que nos interessam aqui.
8 Hacking, I. Kinds of people: moving targets. Proceedings of the British Academy, v. 151, p. 285–
318, 2007.
9 Ortega, F. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cadernos Saúde Coleti-
va, v. 11, n. 1, p. 59–77, 2003.
10 Rabinow, P. Antropologia da razão. Organização e tradução João Guilherme Biehl. Rio de Janei-
ro: Relume Dumará, 1999.
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Vivemos em um momento no qual o corpo biológico passou a ser visto como
aquilo que nos define enquanto sujeitos. Como vimos, Eric Kandel destaca a
importância de marcadores biológicos para que a prática psiquiátrica sobreviva:
a ciência que cuida dos “males da alma” deve ser uma biociência. Nosso sofri-
mento psíquico, nossos medos, angústias, comportamentos e emoções, sejam eles
normais ou anormais, devem, necessariamente, ter origem e causa biológica, caso
queiram ser considerados reais e legítimos. É neste sentido que as pessoas estão
descrevendo a si e aos outros através de uma linguagem somática. O corpo, quase
sempre reduzido ao cérebro, está no centro das explicações sobre quem somos,
sobre quem fomos e sobre o que seremos. O interessante para nós aqui é que, mais
e mais, este corpo é um corpo patológico. Grande parte das biocidadanias tem
em sua base uma patologia. Tomo o diagnóstico de TDAH como exemplo de um
suposto bio–diagnóstico que sustenta a luta pela biocidadania dos sujeitos diag-
nosticados. Teríamos que perguntar, então, quais os efeitos políticos, existenciais
e sociais de ter ou ser TDAH?
Primeiramente, destaco o efeito político de um biodiagnóstico na era das
biocidadanias. Para Rose (2007), as cidadanias biológicas tomam corpo em de-
mandas por políticas específicas para um grupo que compartilha, de acordo com
o conhecimento médico ou científico, um traço biológico. Neste caso, advoga–se
por uma certa política baseado em um direito vital. Os projetos de lei voltados
para o TDAH e a dislexia, que tramitam pelo Brasil afora, amplamente discutidos
neste Seminário, são um exemplo. O argumento é que indivíduos com TDAH ou
dislexia compartilham um traço biopatológico comum, um traço que passa a defi-
ní–los enquanto sujeitos de direito. É por ter ou ser TDAH que se advoga possuir
o direito a certas condições especiais na escola e no trabalho. Para dar apenas um
exemplo, retirado de uma reportagem na Revista do Brasil:
C. S. A. (que pede para não se identificar), reprovado várias
vezes em vestibulares, depois de um laudo médico que compro-
vava sofrer de dislexia obteve a autorização de algumas insti-
tuições para fazer seu exame de forma diferenciada – com mais
tempo para as provas e com a presença de alguém que lê as ques-
tões e auxilia na conferência dos gabaritos. Com esses recursos,
ele foi aprovado em várias universidades públicas importantes,
como Unesp, USP e UFMG. Optou pelo curso de Geologia na
Unesp de Rio Claro (SP)11.
Assim, nesta face das biocidadanias, ter um biodiagnóstico transforma
C. S. A. em um sujeito de direito. Falo, portanto, de um dos efeitos políticos de
um biodiagnóstico. Destacaria ainda seu efeito existencial. Venho de uma cidade
do interior do Espírito Santo onde as pessoas ainda se identificam através de seus
sobrenomes ou pelo trabalho exercido: sou Luciana Caliman, filha de Milton Ca-
liman que jogava futebol e etc. Ou ainda, sou psicóloga, professora…, mas parece
11 Correia, J.; Oliveira, C. Quem precisa de remédio? Revista do Brasil, edição 64, outubro de 2011.
Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/64/saude>
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que atualmente isso vem mudando, e mais e mais uma identificação biopatológica
ganha força: sou Paulo e tenho TDAH, sou Ana e tenho dislexia, sou autista, sou
bipolar. Falo aqui, portanto, do efeito identitário dos bio–diagnósticos. Nikolas
Rose (2007) afirma que as biocidadanias contemporâneas são individualizantes,
pois modelam as individualidades interferindo diretamente na forma através da
qual o indivíduo se vê, se percebe, se comporta, atua sobre si e sobre o mundo.
É neste sentido que podemos compreender os relatos de muitos sujeitos diag-
nosticados com TDAH: “agora eu compreendo quem sou e como devo agir”.
O diagnóstico de TDAH oferece ou forja uma narrativa de vida que passa a
ter em seu centro o próprio diagnóstico. Ortega (2003) fala da constituição de
bio–identidades ou da prática de uma bioascese. Pensemos nos adultos diagnos-
ticados com TDAH. Para receber esse diagnóstico na vida adulta é preciso olhar
para o passado e lá encontrar uma criança com TDAH, mesmo que o sujeito
nunca tenha sido diagnosticado. Neste caso, é dito que os traços TDAH estavam
lá, de forma oculta, e que agora podem ser revelados e devidamente nomeados.
Uma vez diagnosticado, parte do tratamento é o sujeito aceitar que o transtorno
permanecerá para sempre com ele, e que a partir de agora seu estilo de vida será
alterado, moldado de acordo com as descrições do transtorno e as exigências de
tratamento. Uma modelagem que é, sobretudo, uma automodelagem, um traba-
lho sobre si que tem como norte o biodiagnóstico de TDAH e suas características.
Trata–se aqui de uma forma de autoconstituição norteada pelo diagnóstico.
Muitos sujeitos diagnosticados e pais de crianças TDAH relatam um senti-
mento de conforto e de alívio ao aderirem à narrativa oferecida pelo transtorno.
Nela, eles não mais são descritos como culpados, incapazes, preguiçosos, moral-
mente defeituosos e passam a não mais se descrever como tal. Trago alguns exem-
plos de outra reportagem recente da revista TRIP, intitulada “Geração Ritalina”12:
Na infância me chamavam de abobada e plasta. Hoje, de
TDA. Ganhei um nome adequado, não pejorativo e a atenção
da ciência. Relutei por 8 anos em iniciar um tratamento medica-
mentoso (um desperdício de vida).
O diagnóstico da TDAH veio como um alívio pra mim,
porque eu sempre achei que era incapaz de mudar, mesmo com
grande esforço tinha rendimento inferior ao das outras pessoas.
E, na verdade, não era falta de esforço ou falta de vontade como
muitas pessoas dizem ser (...).
A consciência desse problema me libertou, toda a culpa e
raiva que eu sentia de mim mesma, por ser dispersa, esquecida e
dorminhoca, caiu por terra.
Eu já sofri muito, já me culpei muito, já me deprimi mui-
to por me achar “burra”, perdida, desligada, esquecida. Estava
12 Kaiser, M. Geração Ritalina. TRIP, n. 203, setembro, 2011. Disponível em: <http://revistatrip.
uol.com.br/revista/203/reportagens/geracao–ritalina.html>
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letividades são formadas em torno de uma concepção biológica de identidade
compartilhada. Aqui se incluem as entidades e associações como a Associação
Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA), bem como as comunidades internau-
tas que agrupam os indivíduos diagnosticados com TDAH.
Até aqui, portanto, vimos que um biodiagnóstico pode conferir direitos
politicos, educacionais, trabalhistas em uma sociedade altamente excludente e
desigual, na qual o comum é ver–se alijado de seus direitos de cidadão. Vimos
ainda que um biodiagnóstico oferece para muitos uma explicação, um sentido
e uma narrativa de vida que alivia o fardo moral sob o qual somos todos subju-
gados em uma sociedade extremamente individualizante. Nela, somos sempre,
e a todo o momento, responsabilizados por todos os nossos fracassos, como se
nossas vidas, nosso destino dependesse unicamente de nós. Nas biocidadanias,
os biodiagnósticos também possuem o poder de agrupar, criar coletivos que
lutam por um mesmo fim, que possuem a mesma bandeira, que se autoafirmam,
que são, acima de tudo, considerados iguais entre si. Nas biocidadanias, os sofri-
mentos e queixas relatados são tidos como reais porque vistos como biológicos
e, portanto, legítimos.
As biocidadanias operam ainda, em seu aspecto individualizante e co-
letivizante, através de “tecnologias da esperança”. Rose (2007) fala de uma
economia da esperança ou uma economia política da esperança que tem se
formado em torno da biomedicina contemporânea. Uma promessa é explícita
ou implicitamente oferecida e continuamente alimentada a cada nova desco-
berta de uma nova droga, de um novo tratamento ou de um novo diagnóstico.
Acredita–se que a biomedicina tem ou terá a resposta para perguntas ainda
não respondidas, doenças sem cura, problemas e sofrimentos que não se de-
seja ter, que se espera aliviar. Há uma expectativa, um sentimento de que,
“enfim, a resposta chegou ou chegará”.
Neste ponto, estamos no campo dos afetos, das crenças, das apostas, e mui-
tos apostam todas as suas forças existenciais e mesmo econômicas. Como afirma
Rose (2007), o paciente espera a cura ou uma explicação para sua dor; o médico
espera uma prática médica mais efetiva, menos duvidosa, mais científica; in-
dústrias farmacêuticas esperam a expansão de seu mercado e mais e mais lucro;
cientistas esperam fama e reconhecimento profissional. Como vimos, opera ain-
da a crença, a fé em que um dia o estigma vivenciado pelos “anormais” seja bio-
medicamente sanado, a esperança de que ser visto como “doente” seja menos
doloroso, mais aceitável, menos culposo do que carregar o fardo da diferença.
Para finalizar minha fala, recordo um episódio ocorrido no I Seminário Inter-
nacional de Educação Medicalizada, realizado em 2010, do qual também tive a
oportunidade de participar. Conversando, no elevador, com Helena Rego, sobre
TDAH fomos interrompidas por um jovem que disse algo assim: “TDAH? Eu
tenho TDAH, fui diagnosticado e você nem sabe como isso mudou minha vida.
Vocês são especialistas?”. Imediatamente eu falei do evento, fiz propaganda, en-
treguei a programação e disse “aparece aí mais tarde”.
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