Catolicismo No Recôncavo Da Guanabara: No Século XVIII
Catolicismo No Recôncavo Da Guanabara: No Século XVIII
Catolicismo No Recôncavo Da Guanabara: No Século XVIII
Catolicismo no Recôncavo
da Guanabara
no século XVIII
LIVE FRANÇA 1
This article intends to demonstrate the introduction of the Recôncavo da Guanabara in Portu-
guese empire through the Catholicism. Besides its formation, attended by benedictine monks,
we highlight the edification of religious temples and inspections (visitations) on the rituals con-
ducted in the region during the eighteenth century. Based on the documentation it is possible
to observe the attempt to adjust the region to the Tridentine reform with the need to adapt the
standard to the local reality.
Keywords: Catholicism, ritual, visitations, Recôncavo da Guanabara, chapels.
1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Desenvolve pesquisa sobre as capelas do
Recôncavo da Guanabara no século XVIII, orientada pela Prof.ª Dr.ª Beatriz Catão Cruz Santos.
Cf. Mariza de Carvalho Soares; Nielson Rosa Bezerra. Escravidão africana no Recôncavo da Guanabara (séculos XVII-
XIX). Rio de Janeiro: Eduff, 2011; Guilherme Peres. Baixada Fluminense: os caminhos do ouro. Duque de Caxias:
Gráfica Register, 1993; Denise Vieira Demetrio. Famílias escravas no Recôncavo da Guanabara - séculos XVII e XVIII.
Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro: UFF, 2008.
N
35 LIVE FRANÇA
2 Cf. Mariza de Carvalho Soares; Nielson Rosa Bezerra. Escravidão africana no Recôncavo da Guanabara (séculos
XVII-XIX). Rio de Janeiro: Eduff, 2011; Guilherme Peres. Baixada Fluminense: os caminhos do ouro. Duque de
Caxias: Gráfica Register, 1993; Denise Vieira Demetrio. Famílias escravas no Recôncavo da Guanabara - séculos
XVII e XVIII. Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro: UFF, 2008.
3 A freguesia de Santo Antônio de Jacutinga contava com os rios Cachoeira de Santo Antônio do Mato, D’ouro
e Riachão que despejavam águas nos rios Iguaçu, Sarapuí e Meriti, formando “importantes vias de transporte e
comunicação que cortavam o território de jacutinga.” Denise Vieira Demetrio. “A família escrava em Jacutinga,
1686-1721”. In: Mariza de Carvalho Soares; Nielson Rosa Bezerra. Escravidão africana no Recôncavo da Guanabara
(séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Eduff, 2011 p.26-27.
4 Sobre as transformações que levaram à construção da imagem da Baixada Fluminense como periferia, muitas
vezes relacionada à criminalidade ler: Elen Araújo de Barcellos Gamarski; Edileuza Dias de Queiroz. “Baixada
Fluminense: entre o passado e o futuro”. In: Anais do I Simpósio Nacional de Geografia Política, Território e Poder.
Curitiba. 2009.
5 Mariza de Carvalho Soares; Nielson Rosa Bezerra. Escravidão africana no Recôncavo da Guanabara (séculos XVII-
XIX). Rio de Janeiro: Eduff, 2011. p. 15.
6 Utilizamos a noção de região de Ilmar Mattos. Segundo o autor, a concepção de região supera os limites
administrativos e a mera distribuição de seus habitantes em um determinado território. Ainda que a delimitação
de uma região dependa de “base territorial”, ela apenas pode ser formada a partir das relações sociais entre os
agentes que a compõem e aqueles que a ocupam, ou seja, a partir de relações internas e externas que estabelece.
Portanto, uma região distingue-se por ser um espaço socialmente construído, dinâmico, com uma localização
temporal que não se diferencia “por sua localização meramente cronológica, e sim como um determinado tempo
histórico, o tempo da relação colonial.” Ilmar Rohloff de Mattos. O Tempo Saquarema: a formação do Estado
imperial. São Paulo: Hucitec, 2004.
7 Com base nas informações de Monsenhor Pizarro, Nielson Rosa Bezerra afirmou que faziam parte do território
do Recôncavo da Guanabara as freguesias de São João de Trairaponga (1647), Santo Antônio da Jacutinga (1657),
Nossa Senhora da Piedade de Magé (1657), São Nicolau do Suruí (1683), Nossa Senhora da Piedade de Inhomirim
(1696), Nossa Senhora do Pilar (1717), Nossa Senhora da Guia de Pacobaíba (1722), Nossa Senhora da Conceição
de Marapicu (1737) e Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu (1759). Nielson Rosa Bezerra. “Escravidão, farinha e
tráfico atlântico: um novo olhar sobre as relações entre o Rio de Janeiro e Benguela (1790-1830)”. In: Fundação
Biblioteca Nacional – MinC, 2010. Disponível em <http://www.bn.br/portal/arquivos/pdf/Nielson_Bezerra.pdf>.
Último acesso em novembro/2012. Disponíveis para análise, encontramos apenas documentos referentes às
freguesias de Santo Antônio de Jacutinga, Nossa Senhora do Pilar do Iguaçu, Nossa Senhora da Conceição de
Marapicu e Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu. Todas as freguesias, portanto, tinham denominações católicas
Com base em documentos do arquivo do Mosteiro de São Bento, Dom Clemente Maria
da Silva Nigra afirmou que a região do Recôncavo da Guanabara, ao redor do rio Iguaçu, foi o
primeiro território ocupado pelos monges beneditinos na América portuguesa.
Segundo José de Anchieta, “sete ou oito frades brancos franceses [...] mandados por
Villegaignon, em 1560 ou 1561, fizeram entre os tamoios o seu estabelecimento e ensinaram a
alguns meninos do gentio, os quais traziam vestidos com seu hábito.”8 Os primeiros relatos sobre
o Recôncavo da Guanabara, portanto, demonstram a presença da Ordem de São Bento na região.
Jorge Victor de Araújo Souza afirmou que, ao final do século XVI, os monges de São
Bento chegaram à América portuguesa “graças a uma reforma ocorrida em sua Congregação
e a deliberações na política filipina que visavam ao reequilíbrio dos poderes eclesiásticos nos
territórios do Império português.”9 Este reequilíbrio dos poderes eclesiásticos favoreceu o
cumprimento da dimensão social do catolicismo, que aliava a intenção da Igreja de inserir-se em
laços profanos à formação territorial. As Ordens religiosas possibilitaram, portanto, a articulação
entre a disseminação da fé católica e a formação do Império português, congregando o objetivo
universalista10 do catolicismo à necessidade de adaptação da Igreja ao cenário colonial.
Segundo Maria Regina Celestino de Almeida, a Ordem de São Bento no Rio de Janeiro
destacou-se mais pelas suas posses e pelo seu poder local do que por práticas missionárias ou
por atividades ao serviço do Rei. Por este motivo, a Ordem foi uma das menos beneficiadas pela
Coroa portuguesa, dedicando-se prioritariamente aos moradores.11 Embora haja relatos sobre o
trabalho de catequização dos beneditinos às margens do rio Iguaçu, é inegável a associação da
Ordem à elite colonial12. O estabelecimento dos religiosos de São Bento na região foi possível,
graças ao apoio destes senhores.
Dom Clemente Maria da Silva Nigra afirmou que “quase todo o terreno doado pelas
sesmarias de 05 de setembro de 1565 e de 16 de outubro de 1567 à Cristóvão Monteiro passou a
ser propriedade do mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro”.13
8 Dom Clemente Maria da Silva Nigra. “A antiga fazenda de São Bento em Iguaçu”. In:
Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. nº.7. Rio de janeiro,
1943. p. 257.
9 Jorge Victor de Araújo Souza. “Poder local entre ora et labora: a casa beneditina nas tramas do Rio de Janeiro
seiscentista”. In: Tempo. Revista do Departamento de História da UFF. v. 32. Rio de Janeiro, 2012. p. 70.
10 Segundo Luiz Felipe Baêta Neves, o objetivo de universalidade do catolicismo envolvia integração e unidade.
Desta forma, para que a expansão ocidental fosse possível, eram necessárias as incorporações territorial e
espiritual, no intuito de alterar os territórios profanos e reencontrar as regiões afastadas física e espiritualmente
do projeto de Deus. Luiz Felipe Baêta Neves. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios:
colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978. p.27.
11 Maria Regina Celestino de Almeida. “Evangelizar e Reinar: poder e relações sociais na prática missionária do Rio
de Janeiro colonial.” In: Caminhos. vol. 4, nº. 1. 2006. p.118.
12 Segundo João Fragoso, a Coroa, a partir da conquista de Ceuta, concedia postos administrativos ou militares aos
conquistadores. Desta forma, no Rio de Janeiro, a economia de plantations, típica do século XVII, contribuiria para
uma diferenciação das oportunidades econômicas dos coloniais. Detinham maiores poderes locais aqueles que
pertencessem “às melhores famílias da terra”, ou seja, aqueles que se destacavam pelas suas posses, que incluíam
fazendas e escravos. Essa elite senhorial e seus descendentes carregavam um sentimento de conquistadores que
os enquadrava numa posição econômica e socialmente superior ao restante da população. Ao final do século XVIII,
tornou-se comum, por meio do comércio, que alguns colonos se transformassem em donos de engenho. João
Fragoso. “A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos
XVI e XVII)”. In: TOPOI: Revista de História do Programa de Pós-Graduação em História da UFRJ. vol. 1, 2000.
13 Dom Clemente Maria da Silva Nigra. “A antiga fazenda de São Bento em Iguaçu”. Revista do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n.7, Rio de janeiro, 1943. p.258.
Conforme foi observado anteriormente, a contribuição dos leigos, membros da elite, no que se
refere ao estabelecimento dos beneditinos no Recôncavo da Guanabara foi essencial nos séculos
XVI e em parte do XVII. No século XVIII, o quadro religioso de Santo Antônio de Jacutinga17 sofreu
14 Jorge Victor de Araújo Souza. “Poder local entre ora et labora: a casa beneditina nas tramas do Rio de Janeiro
seiscentista”. In: Tempo. Revista do Departamento de História da UFF. vol. 32. Rio de Janeiro, 2012. p.72.
15 Ana Cristina Nogueira da Silva e Antônio Manuel Hespanha consideraram três principais identidades, a católica,
a europeia e a hispânica, que influenciaram e formaram a identidade portuguesa. Para os autores, a identidade da
respublica christiana era a mais importante dentre as três. “Uma identidade que se manifestava positivamente no
sentido da unidade da república dos crentes, quotidianamente veiculada na liturgia, na pregação, na organização
eclesial ou, mesmo, na ordem processual canônica, pois de todo o orbe católico se podia apelar ao papa.” Como
característica negativa, este sentimento de identidade causava um estranhamento à tudo que fosse diferente
da comunidade católica. Por ter sido o primeiro Reino de Espanha à converter-se ao cristianismo, os portugueses
acreditavam ter a missão de “combater os infiéis e dilatar a fé de Cristo”. Antônio Manuel Hespanha; Ana Cristina
Nogueira Silva. “A identidade portuguesa”. In: José Mattoso (dir.). História de Portugal: O Antigo Regime (1620-
1807). Editorial Estampa, 1998.
16 José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo. Livro de Visitas Pastorais na Baixada Fluminense no ano de 1794.
Prefeitura de Nilópolis, 2000.
17 Dentre as freguesias do Recôncavo da Guanabara, com fontes disponíveis para análise, Santo Antônio de
Jacutinga é a mais antiga, mencionada como freguesia nos documentos desde 1686. Dedicada à Santo Antônio,
Jacutinga diferenciou-se das demais freguesias com invocação mariana, sendo a única a incorporar o nome de uma
aldeia indígena. Trabalhamos com esta freguesia, considerando a sua antiguidade, a quantidade e a qualidade
das fontes sobre ela. “Santo Antônio de Jacutinga foi o núcleo originário dos territórios de partes dos atuais
municípios de Nova Iguaçu, Belford Roxo, São João de Meriti, Duque de Caxias, Nilópolis e Mesquita, hoje
integrantes da Baixada Fluminense.” Denise Vieira Demetrio. “A família escrava em Jacutinga, 1686-1721”. In:
Mariza de Carvalho Soares; Nielson Rosa Bezerra. Op. Cit., p.27.
A capela de Santo Antônio foi um dos templos do Recôncavo da Guanabara que precisou
ser transferido para um local mais acessível à população que crescia graças à intensificação do
comércio na região. Conforme observou Guilherme Pereira das Neves, os próprios moradores
suplicavam os desmembramentos das freguesias, alegando a dificuldade de acesso aos templos,
fosse pela distância ou pelos obstáculos geográficos, como os rios. Em Santo Antônio de Jacutinga,
os paroquianos tornaram-se agentes religiosos devido à sua influência direta na edificação e
no desmembramento das capelas, como pôde ser observado a partir do trecho transcrito do
documento, que justifica a transferência da capela pela impossibilidade de se chegar até ela em
algumas estações do ano.
Além do crescimento populacional, acredita-se que o reconhecimento das capelas pela Igreja
estivesse relacionado ao interesse de construir e manter uma referência religiosa à população em
desenvolvimento. A existência de capelas possibilitava uma forma de controle social, facilitando
o trabalho de fiscalização e enquadramento dos bispos e dos demais visitadores. Desta forma, o
difícil acesso à elas não era apenas prejudicial aos habitantes do Recôncavo da Guanabara, mas
também aos agentes eclesiásticos.
Segundo as Notícias do Bispado do Rio de Janeiro de 1687, a população de Santo Antônio
contava com 100 fogos (residências) e 212 pessoas de comunhão. Já as Visitas Pastorais do
Monsenhor Pizarro no ano de 1794 documentaram que a população da freguesia de Santo Antônio
18 Raphael Bluteau. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das
Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. p.280. Disponível em:< http://www.ieb.usp.br>.
19 José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo. Op. Cit., fl.78.
de Jacutinga contava com 343 fogos, 2.340 almas capazes de sacramentos e 597 menores.20
Quanto aos números mencionados nas Visitas Pastorais, o próprio Monsenhor Pizarro reconheceu
a sua imprecisão21. Mas, ainda assim, é possível ter ideia do crescimento populacional da região
no século XVIII a partir desta documentação. Um dos motivos, portanto, para a transferência da
igreja de Santo Antônio de Jacutinga era facilitar o acesso de um número maior de paroquianos
ao templo religioso, onde eram realizados os sacramentos de batismo e matrimônio.
Segundo Monsenhor Pizarro, antes de se tornar freguesia, a capela de Santo Antônio
funcionava como capela curada22.
Inicialmente, poderiam ser construídas a partir do auxílio financeiro da elite colonial, nas
fazendas ou engenhos destas famílias, sendo mantidas por doações da população dos arredores.
A partir da necessidade de promoção destas capelas à igrejas paroquiais, os cuidados com relação
à sua estrutura e aos rituais realizados nestes espaços religiosos foram intensificados com base
nas disposições das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Estes cuidados se estendiam
às demais capelas presentes no território da freguesia e estavam relacionados ao receio de
que práticas religiosas não católicas tomassem conta do cotidiano colonial. Neste sentido, foi
necessário criar uma legislação que correspondesse às especificidades da América portuguesa
e ao mesmo tempo retomasse algumas exigências do Concílio Tridentino. O objetivo de reforma
católica só ganharia espaço no ultramar a partir do século XVIII.
Neste contexto, é possível refletir sobre o objetivo das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. Considerando a experiência anterior de seu autor, D. Sebastião Monteiro
da Vide, no arcebispado de Lisboa e a sua capacidade de adaptação à Salvador, pode-se pensar
que a obra não teve senão características semelhantes às do seu autor. O arcebispo dedicou-se
à criação de uma legislação para o arcebispado da Bahia, que devido à sua importância na época,
foi adotado como um instrumento normativo próprio da Igreja luso-americana. Para que as
Constituições fossem aceitas e entrassem em vigor foi necessário justificar as suas disposições
com base nas normas dispostas pelo Concílio Tridentino. As determinações do documento foram
“difundidas pelas paróquias por meio de cartas pastorais e decisões dos bispos comprometidos
com esse monumental esforço de adequar o clero colonial às exigências tridentinas.”24
Lana Lage observou a tensão presente na relação entre a Igreja e a Coroa a partir da vigência
das Constituições. Segundo a autora, embora tenha havido protestos por parte do procurador da
Coroa, atento à possibilidade da nova legislação ignorar ou contrariar os interesses da monarquia,
20 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Notícias do Bispado do Rio de Janeiro no anno de 1687; José
de Souza Azevedo Pizarro e Araújo. Op. Cit..
21 Idem. fl.78.
22 Segundo Fânia Fridman, as capelas curadas eram aquelas que dependiam das “benesses de pé de altar”, ou
seja que sobreviviam, sobretudo a partir de doações dos devotos. Fânia Fridman. “Freguesias do Rio de Janeiro
ao final do século XVIII”. In: Mneme Revista de Humanidades da UFRN. vol. 9. Natal: Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, 2008.
23 José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo. Op. Cit., fl.78.
24 Lana Lage. “As Constituições da Bahia e a Reforma Tridentina do Clero no Brasil”. In: Bruno Fleiter & Evergton
Sales Souza (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a Vigência das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp. 2011.p.148.
os bispos do século XVIII procuraram fazer cumprir em suas dioceses as novas Constituições.25 Elas
se constituíram, portanto, como um marco da tentativa de implementação da Reforma católica
na América portuguesa.
Bruno Feitler e Evergton Sales Souza observaram a importância da análise do documento
para a compreensão da Igreja católica e do catolicismo no Brasil no século XVIII.26 Neste artigo,
combinadas às visitas pastorais, as Constituições foram utilizadas como uma fonte auxiliar para a
compreensão das dimensões do catolicismo em Santo Antônio de Jacutinga do século XVIII.
No que diz respeito às normas para a construção de capelas na América portuguesa, o
documento definiu que
25 Idem. p.151.
26 Bruno Fleiter & Evergton Sales Souza (orgs.). A Igreja no Brasil: Normas e Práticas durante a Vigência das
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp. 2011.
27 Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título: XVII. Cláusula 692.
28 José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo. Op. Cit..
29 Asunción Lavrin. Espiritualidad en el claustro novohispano del siglo XVII. v.4, n.2. New York: Colonial Latin
American Review, 1995.
Na América portuguesa, a figura da Virgem Maria foi utilizada pelos missionários para
aproximar as mulheres das normas. Compreendida como um modelo de vida para os fiéis,
associada ao ideal de humildade, é possível observar a sua aceitação, inclusive, entre os escravos.
Segundo Juliana Beatriz de Souza e Ronaldo Vainfas, a Virgem transformou-se em um símbolo de
fidelidade à Igreja e seu culto esteve presente nas práticas religiosas católicas, que objetivavam a
sua proteção em meio às dificuldades.30
Edificadas em nome de invocações da Virgem Maria, as capelas encontravam-se nas fazendas
e tinham permissão para realizar determinados rituais católicos. A de Nossa Senhora do Rosário,
construída na fazenda do Mosteiro de São Bento, tinha permissão para realizar batismos e
sepultamentos, desde que recebesse a devida licença do pároco para realizá-los. A de Nossa
Senhora da Conceição do Pantanal, ereta por Antônio Quintanilha, com a permissão do bispo
Antônio do Desterro, possuía apenas a pia batismal, podendo realizar batismos. A de Nossa
Senhora do Engenho da Cachoeira, construída por Manoel Correa Vasques, foi concedida pelo
bispo Antônio de Guadalupe, podendo realizar sepultamentos. Para as demais capelas, não há
informações sobre a realização de batismos ou sepultamentos, embora os registros da freguesia
demonstrem batismos de escravos realizados na capela de Nossa Senhora da Conceição de
Sarapuí.31 Não consta em nenhuma delas a realização de casamentos, estando este sacramento
reservado apenas à igreja paroquial de Santo Antônio de Jacutinga.
A partir das Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro no ano de 1794 é possível ter acesso
às informações sobre as capelas que cumpriam ou não os pré-requisitos necessários ao seu
funcionamento no que diz respeito ao patrimônio, ou seja, à disposição de objetos sagrados.
Segundo o visitador, as de Nossa Senhora do Rosário, de Nossa Senhora do Engenho da
Cachoeira, de Nossa Senhora da Conceição do Pantanal e a de Nossa Senhora da Madre de Deus
apresentavam-se com muito “asseio e decência”. Este critério estava relacionado à exigência das
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de que em cada uma houvesse
30 Ronaldo Vainfas; Juliana Beatriz de Souza. Brasil de Todos os Santos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
p.44-45.
31 ACMRJ. Livro de batismos de escravos de Santo Antônio de Jacutinga (1790-1807).
32 Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título: XVII. Cláusula 707.
33Idem. Cláusula 705.
É notável o valor dado pelo documento às ofertas dos fiéis. A prática foi incentivada pela
Igreja por acreditar-se que as doações demonstravam o reconhecimento da intercessão divina
e da intermediação dos santos pelos fiéis. Ao mesmo tempo, acredita-se que a população
reconhecia os códigos católicos ao oferecer voluntariamente auxílio à manutenção das capelas. O
documento também deixou claro que as ofertas deveriam ser feitas nas próprias capelas e ficar
sob a responsabilidade dos párocos, que tinham o direito canônico de utilizá-las “se as tais [...]
34 Guilherme Pereira das Neves. E Receberá Mercê. A Mesa da Consciência e Ordens e o clero secular no Brasil
1808-1828. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. p.227.
35 Em uma capela colada, os párocos, escolhidos por concurso, eram mantidos pela Fazenda Real. Fânia Fridman.
“Freguesias do Rio de Janeiro ao final do século XVIII”. In: Mneme Revista de Humanidades da UFRN. v. 9. Natal:
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2008.
36José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo. Op. Cit..
37 Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XXVII. Cláusula 431.
As visitas pastorais
Conforme observou Lana Lage, para promover uma reforma religiosa era necessário prestar a
atenção devida à própria estrutura interna da Igreja. Para expandir a reforma e cumprir o objetivo
universalista do catolicismo, era indispensável zelar pela conduta dos clérigos para que pudessem
retomar o seu legítimo papel na instrução da fé católica. Um dos argumentos mais utilizados pelos
reformadores protestantes era justamente a má conduta dos clérigos, considerando que muitos
deles estavam longe de ser exemplos de “bons cristãos” para a população. O mau comportamento
do clero estava, muitas vezes, associado à compra e à venda de benefícios paroquiais, à cobrança
sobre a realização dos sacramentos ou à qualquer atitude profana, como a “mancebia” pública, a
participação em jogos ilícitos ou quaisquer outros excessos.39
A instituição eclesiástica necessitava garantir a sua legitimidade perante a sociedade,
reafirmando o catolicismo como o único e verdadeiro cristianismo. O modelo de bispo pré-
tridentino que incluía, em sua maioria, sacerdotes jovens, pouco instruídos, que “negligenciavam
as obrigações de residência ou de pastoral, acumulavam benefícios e dispensavam as rendas de
suas igrejas em suas próprias casas”40, precisava ser combatido de uma vez por todas para que a
reforma fosse possível.
Perante a necessidade de “organizar a casa” de Deus, coube ao Concílio de Trento habilitar os
bispos por meio de uma legislação que os permitisse vigiar os fiéis e ao mesmo tempo zelar pela
sua própria conduta com o auxílio das visitas pastorais. A partir destas visitas era possível registrar
casos de maus clérigos e templos mal administrados pelas autoridades da Igreja.
O catolicismo moderno precisou diminuir a participação “popular” presente na Idade Média,
que levou um grande número de pessoas a almejar uma comunicação mais direta com Cristo e a
questionar a autoridade do clero, pouco ortodoxo, como mediador desta comunicação. Para inibir
estes e outros questionamentos, tão defendidos pelos “movimentos heréticos”, a Igreja precisou
separar o que era litúrgico do que não era, argumentando que o progresso real da reforma apenas
seria possível quando o “hábito da observância paroquial uniforme”41 fosse realmente adotado.
Este hábito seria representado pela constituição de um padrão religioso e administrativo que
alcançasse toda a cristandade, no sentido de igualar a construção de capelas e os rituais aos
modelos organizados ou retomados pelo Concílio Tridentino.
Embora fosse o papel da Igreja converter e devolver os territórios profanos aos domínios
de Deus, esta instituição precisou adaptar-se a algumas condições de seu tempo e às diversas
realidades às quais se inseria. A reforma, portanto, deveria partir de dentro da Igreja para o
mundo, com o auxílio de agentes e instrumentos que permitissem manter a cristandade42 em
ordem. As visitas pastorais, que se tornaram obrigatórias após Trento, funcionavam como um
instrumento para controlar o comportamento do clero, as condições dos templos religiosos e, até
mesmo, o cotidiano religioso dos paroquianos.
Conforme observou Charles Boxer, as igrejas deveriam ser dirigidas pelo clero secular, “sob
o controle direto, jurisdição, visitação e retificação dos bispos”, que se submetiam à autoridade
do papa, como sucessor de São Pedro.43 Os bispos eram os responsáveis pela administração
das igrejas por serem os sucessores dos apóstolos. Embora o trabalho missionário pioneiro no
além-mar fosse de responsabilidade do clero regular, os privilégios concedidos pela Santa Sé às
ordens religiosas entraram em conflito com as disposições do Concílio Tridentino, que teve como
um dos principais objetivos “fortalecer a autoridade do prelado diocesano em todas as fases da
vida religiosa e da disciplina eclesiástica no âmbito de sua jurisdição territorial.”44 Desta forma, o
papel delegado anteriormente ao clero regular deveria voltar à responsabilidade dos bispos, que
inseridos no mundo, tinham a obrigação legítima de pregar a doutrina católica e curar as almas.
Reafirmava-se assim, conforme afirmou Juliana Torres, “a imagem do bispo como um pastor
cujo dever era conduzir o rebanho de fiéis sob sua responsabilidade à salvação.”45 As visitas
pastorais deveriam cumprir o seu papel de uniformização paroquial, demonstrando o olhar da
Igreja sobre o seu rebanho.
Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,
43 Charles R. Boxer. A Igreja Militante e a Expansão Ibérica: 1440-1770. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
p.85.
44 Idem.
45 Juliana Torres Rodrigues Pereira. Bruxas e demônios no Arcebispado de Braga: Uma análise da Visitação
Inquisitorial de 1565. Dissertação (Mestrado em História Social). Rio de Janeiro: UFRJ, IH, 2012. p.51.
46 Livro quarto das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Cláusulas 870 e 871.
47 Francisco Neto Sales apud Francisco Javier Müller Galdames. Entre a cruz e a Coroa: a trajetória de Mons.
Pizarro (1753-1830). Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro: UFF, 2007. p.30.
A partir desta transcrição é possível notar que as visitas pastorais cumpriram em Santo
Antônio de Jacutinga o seu papel em relação à fiscalização da conduta do clero. Conforme pôde
ser observado, há, no documento, informações sobre o comportamento dos reverendos. Neste
caso, são informações consideradas positivas, referentes ao moralismo, bons costumes ou “aos
sentimentos próprios de um eclesiástico sério”. Há também informações sobre os religiosos que
contrariavam a doutrina católica, mas que não foram interpretadas por Monsenhor Pizarro como
pontos negativos. O fato de todos os religiosos mencionados assumirem funções seculares, já que
além de suas ordens, viviam de sua lavoura ou engenhos, parece não ter incomodado o visitador,
já que não há qualquer ressalva em seu relato sobre o assunto.
Jorge Victor de Araújo Souza observou a prosperidade política e econômica dos religiosos
da Ordem de São Bento no Rio de Janeiro. Segundo o autor, ao tentar reproduzir o modelo dos
mosteiros beneditinos de Portugal49 na América Portuguesa, os religiosos se depararam com as
peculiaridades de uma sociedade sustentada economicamente pela mão de obra escrava nos
engenhos de açúcar. Conforme mencionado anteriormente, a história do Recôncavo da Guanabara
foi marcada, desde fins do século XVI, pela presença de monges beneditinos em seu território.
O clero de Jacutinga tornou-se parte da elite colonial, detendo poder e influência locais. As
atividades seculares dos reverendos estavam ligadas à falta de auxílio da Real Fazenda, conforme
indicou Monsenhor Pizarro ao relatar a situação da igreja de Santo Antônio de Jacutinga. Além
disso, a aceitação de tais atividades pelo visitador demonstra a naturalização destas práticas entre
os religiosos da América portuguesa e pode ser compreendida como uma evidência da adaptação
do catolicismo às particularidades do ultramar.
As Visitas Pastorais de Monsenhor Pizarro no ano de 1794 possibilitaram, portanto, que através
do relato do visitador fosse possível ter uma visão geral das freguesias do Rio de Janeiro no século
XVIII. Além disso, considera-se que estas mesmas visitas tenham contribuído para a transformação
das práticas religiosas católicas no Recôncavo da Guanabara, ao passo que identificavam bons e
maus usos das capelas pelos clérigos e pelos fiéis.
No Recôncavo da Guanabara, além dessas visitas, é possível ter acesso a outros casos nos
registros de batismo, casamento e óbito da região. Monsenhor Pizarro não foi o primeiro a visitar
as capelas da região, havendo registros de visitas a partir do final do século XVII no primeiro livro
de registros paroquiais de Santo Antônio de Jacutinga. Reunidas e organizadas em um único
documento, temos conhecimento apenas das Notícias do Bispado do Rio de Janeiro no ano de 1687
e das Visitas de Monsenhor Pizarro no ano de 1794, que podem ser encontrados já digitalizados
no arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Infelizmente, graças ao mau estado de
conservação das Notícias do Bispado, não foi possível identificar o nome do visitador, como em
alguns outros casos que apresentaremos adiante. As Notícias do Bispado apresentam poucas
informações detalhadas sobre as capelas do Recôncavo da Guanabara, mas destacam-se quanto à
contagem do número de habitantes, os nomes dos padres curados e dos seus proprietários ainda
no século XVII.
Dispersas em meio à documentação analisada, foi possível reunir as outras visitas realizadas
e registradas nas capelas de Santo Antônio de Jacutinga, com a intenção de apresentá-las como
mais um indício da presença da Igreja na região.
Ao todo, foram contabilizados vinte e dois registros de visitas nos livros de assentos paroquiais
de Santo Antônio de Jacutinga50 no século XVIII. Demos preferência ao período estudado, mas é
importante ressaltar que as visitas nos documentos têm início em 1688 e diminuem no século
XIX. No livro de batismos, matrimônios e óbitos de 1686 à 1721 foram registradas, no século XVIII,
duas visitas. A primeira delas foi realizada em 1701 e a última em 1707. Por ser tratar de um livro
misto, para cada sacramento foram realizadas visitas em momentos diferentes. No mesmo livro,
na parte reservada aos matrimônios, há quatro registros de visitas realizadas, uma em 1704, duas
em 1715 e a última no ano de 1721. Não há visitas registradas na parte do documento reservada
aos óbitos. No livro de batismos de 1764 à 1796 foram registradas doze visitas. A primeira foi
datada em 1764 e as demais, respectivamente nos anos de 1768, 1772, 1774, 1781, duas em 1783,
uma em 1784 e duas em 1786. Infelizmente, duas das observações dos visitadores encontram-se
com a data ilegível, devido aos danos sofridos pelo documento. Já no livro de batismos, referente
ao período de 1790 à 1807, não há registros de visitas no período estudado. No último livro
disponível, referente aos óbitos ocorridos no período entre 1785 e 1809, há apenas dois registros
de visitas, a primeira em 1789 e a segunda em 1795.
A partir dos dados apresentados, acredita-se que não tenha havido um padrão predominante
em relação ao intervalo entre as visitas, visto que entre os anos de 1764 e 1796 elas aumentaram,
havendo, inclusive, casos de duas em um mesmo ano. Mas em outros períodos, como no caso dos
batismos referentes aos anos de 1790 à 1807, não há qualquer registro destas fiscalizações.
As observações dos visitadores foram inseridas em meio aos registros paroquiais e a maioria
seguiu o padrão simples de registrar a observação “vistos em visita”, junto ao nome da freguesia,
à data da visita e ao nome do visitador. Acredita-se que esta forma seja derivada da observação
mais completa “visto em visita, mandamos [que] se continuem na mesma forma que dispõe o
sagrado Concílio Tridentino”, que se referia à organização dos assentos pertencentes ao livro,
encontrada em outras observações.
Além das formas mais comuns, há informações que demonstram a preocupação dos
visitadores com a organização dos registros paroquiais. Tanto as observações positivas quanto
as negativas estavam relacionadas à disposição das Constituições Primeiras do Arcebispado
da Bahia sobre a obrigatoriedade de haver em cada paróquia um livro reservado aos assentos
de batismo, matrimônio e óbito51. O título do documento dedicado à organização do livro de
batismos estabelece um modelo que deveria ser seguido pelos párocos, que incluía os principais
dados pessoais do batizando, juntamente aos nomes dos pais e dos padrinhos. Há várias outras
recomendações no documento que dizem respeito aos sacerdotes. Aos párocos caberia organizar
e zelar pela conservação dos registros paroquiais que facilitavam o trabalho dos visitadores.
Por meio deles era possível ter acesso ao número de católicos da região e, inclusive, fiscalizar
a conduta destes mesmos párocos, analisando o seu comprometimento com as disposições do
Concílio, reafirmadas pelas Constituições.
Numa visita realizada em 1777, o visitador escreveu: “vistos em visita, deve o reverendo
padre declarar o lugar em que são moradores os pais dos batizandos. Freguesia de Jacutinga [...]
1777.”52 Neste caso, como em alguns outros, o visitador, que não foi possível identificar, adverte o
pároco por meio desta pequena observação sobre os acertos necessários nos registros vistoriados
por ele. Este tipo de ação apareceu outras vezes durante a análise dos registros das visitas nos
assentos paroquiais. Numa visita realizada pelo visitador Maryink, há a seguinte observação:
“Vistos em visita, o padre pároco declare o dia em que nasceram os batizandos. Freguesia de
Jacutinga. Aos 22 de outubro de 1786.”53 Este dois casos demonstram o hábito de observância
paroquial dos visitadores, defendido pelo Concílio de Trento. Era necessário adequar os livros de
assentos paroquiais ao padrão redefinido pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. A
maioria das observações nos registros de batismo era positiva, ou seja, nas palavras dos próprios
50 Os livros de registros paroquiais utilizados nesta análise foram os de batismos, matrimônios e óbitos de 1686
à 1721, de batismos de 1764 à 1796 e 1790 à 1807, de matrimônios de 1795 à 1804 e de óbitos de 1785 à 1809.
Disponíveis em: < https://www.familysearch.org/search/collection/list>. Último acesso:04/2011.
51 Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XX. Claúsula 70.
52 Livro de batismos de Santo Antônio de Jacutinga. 1764-1796. fl.106v.
53 Idem. fl.169v.
No caso da região de Santo Antônio de Jacutinga, a crisma foi realizada por um visitador,
nomeado pelo bispo e, portanto, um representante legal do prelado. Como parte das obrigações
de observância paroquial e instrução da fé, a realização do sacramento da confirmação era
responsabilidade dos bispos, conforme as normas do documento, mas poderia ser realizada por
enviados seus com a devida licença necessária.
Segundo o documento normativo, os registros do sacramento da confirmação deveriam
ser registrados nos livros de batismos das paróquias pelo pároco “para constar a todo tempo as
pessoas que estão crismadas e o parentesco espiritual que, em razão deste sacramento, se contrai,
conformando-nos com a disposição do sagrado Concílio Tridentino”57. Nestes registros, além da
data da realização do sacramento, o religioso escrevia o nome do bispo, arcebispo ou visitador que o
realizou, seguido dos nomes dos crismados e de seus padrinhos ao lado. As Constituições deixaram
claro que cada crismando deveria ter apenas um padrinho do mesmo sexo “por honestidade”. As
listas encontradas nos registros de Santo Antônio de Jacutinga corresponderam a esta exigência.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia prescreveram como responsabilidade dos
párocos avisar aos visitadores sobre o número de pessoas que deveriam receber o sacramento
e definiram que estes mesmos visitadores deveriam administrá-los, por obrigação, quando
achassem necessário. Os únicos casos que se têm acesso por meio dos registros paroquiais de
Santo Antônio de Jacutinga são os de 1783, 1784 e 1786, realizados pelo visitador Mayrink.
Em 1783, o vigário Sebastião da Costa Montalvão registrou 88 crismas realizadas pelo
visitador na igreja de Santo Antônio de Jacutinga. No mesmo ano, foram registrados os nomes
dos paroquianos que se declararam crismados na capela de Nossa Senhora do Pantanal e na
mesma igreja matriz de Jacutinga. Na capela mencionada, 63 pessoas declararam já ter recebido o
sacramento da confirmação, enquanto na paróquia, o número de confirmados foi de 50 pessoas.58
Conforme dito anteriormente, a capela de Nossa Senhora da Conceição do Pantanal, nos
arredores de santo Antônio de Jacutinga, possuía pia batismal, podendo realizar batismos com
a licença do pároco da região. A partir dos números, podemos observar que o sacramento da
confirmação também foi realizado na capela, que recebeu posteriormente elogios, de Monsenhor
Pizarro, sobre a sua decência e asseio. A capela superou o número de crismados declarados da
paróquia de Santo Antônio de Jacutinga neste período. Em 1784, o próprio visitador Manoel
Henrique Mayrink crismou 20 paroquianos nesta mesma capela.59 Já no ano de 1786, o número
de crismados pelo visitador aumentou, na igreja de Santo Antônio de Jacutinga, para 285 pessoas,
declaradas como brancas, forras e escravas.
O número de crismas realizadas na região demonstra a intenção das autoridades religiosas
de manter o catolicismo em Jacutinga e pode também sugerir o interesse dos paroquianos de
confirmar o seu desejo de continuar a fazer parte da cristandade. O visitador em questão, com
a devida licença para realizar este ritual, assumiu a função de pastor de almas, não apenas
organizando o livro de assentos paroquiais, mas principalmente encarregando-se de garantir a
permanência de alguns paroquianos, já batizados, na fé católica.
56 Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XXI. Cláusula 76.
57 Idem. Cláusula 81.
58 Livro de batismos de Santo Antônio de Jacutinga. 1764-1796.
59 Idem, fl. 150.
No livro de batismos, matrimônios e óbitos de 1686 à 1721 há uma observação que se refere
à organização dos assentos de matrimônio. Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, os registros de matrimônio também deveriam apresentar-se em um livro próprio em cada
paróquia. O modelo regulamentado continha o nome dos casados, de seus pais e testemunhas,
além da data e do nome da igreja aonde receberam o sacramento, juntamente à assinatura do
pároco responsável.60 Em Santo Antônio de Jacutinga, a observação referente à visita de 1704,
pelo bispo D. Francisco de São Jerônimo diz respeito à necessidade de registrar o matrimônio,
especificando se eram de pretos ou pardos escravos.
No livro de óbitos de 1790 à 1807, há apenas dois registros de visitas. O primeiro, realizado em
1789, também solicitava ao pároco mais detalhes ao registrar o óbito. “Vistos em visita. Decla[rar]
os nomes dos maridos das viúvas e das mulheres dos viúvos que faleceram para melhor clareza
desses assentos [...] Freguesia de Jacutinga aos 22 de setembro de 1789. Visitador [Mayrink].”61
O segundo e último registro diferenciou-se de todas as outras observações analisadas.
Datado no ano de 1795, o próprio Monsenhor Pizarro encarregou-se de escrever no livro de
óbitos o seguinte:
Neste caso, Monsenhor Pizarro demonstrou a sua insatisfação com relação à administração
dos registros pelo pároco. Advertindo o vigário, pediu para que todos os assentos fossem escritos
por ele e citou a disposição das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia que diz respeito às
regras para confecção dos livros de batismo. O visitador referia-se à seguinte disposição:
60 Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título LXXIII. Cláusula 318.
61 Livro de óbitos de santo Antônio de Jacutinga. 1785-1807.
62 Idem. fl.64.
63 Livro primeiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Título XX. Cláusula. 70.
serviços religiosos para a população, conforme observou Jean-Claude Schmitt64 e era inadmissível
que “outra pessoa sem autoridade, redito e fé” registrasse os sacramentos ou fizesse qualquer
observação nos livros paroquiais.
Embora a relação entre clérigos e leigos fosse complementar, como definiu o autor, a função
de ambos se diferenciava. Apesar da necessidade de agir na sociedade, os clérigos se distinguiam
dos leigos pela escolha do celibato65. Eleitos por Deus, eles representavam certa superioridade
espiritual em relação aos outros fiéis, mas também recebiam a responsabilidade de garantir a
realização dos rituais religiosos. Neste caso, a insatisfação de Monsenhor Pizarro em relação à
administração do livro de registros de óbitos pode ser justificada pelo fato do pároco ter ignorado
as normas dispostas pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
A partir destas considerações, é possível observar a dimensão do catolicismo no Recôncavo
da Guanabara do século XVIII. A região do Recôncavo, construída por meio de suas relações sociais,
ganhou sentido a partir da criação e da adaptação de referências católicas em seu cotidiano.
Embora parte das fontes sobre a região encontrem-se danificadas, é possível ter acesso à ricas
informações sobre as práticas religiosas de origem católica, desenvolvidas em seus arredores.
A análise documental demonstrou o compromisso por parte dos visitadores em respeitar
as disposições do Concílio Tridentino, baseados, sobretudo, nas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, demonstrando que, embora sofresse adaptações, o catolicismo no ultramar
apoiava-se em uma base normativa.
Nomeada freguesia desde o século XVII, Santo Antônio de Jacutinga teve suas práticas
religiosas católicas intensificadas a partir do século XVIII. O crescimento demográfico da região,
possível graças à sua inserção nas rotas comerciais, coincidiu com o período em que a tentativa
de reforma católica ganhava espaço na realidade da América portuguesa. Neste período, o
desmembramento e a construção de novas capelas foram amplamente defendidos pelos fiéis,
que muitas vezes se deparavam com a impossibilidade de ter acesso aos espaços religiosos e
pelos bispos, pela possibilidade de observar de perto o comportamento dos párocos, dos fiéis
e enquadrar as práticas religiosas às normas das Constituições. As visitas, realizadas pelos bispos
ou por enviados seus, cumpriram em Santo Antônio de Jacutinga o seu papel de enquadramento
religioso, utilizadas como um instrumento de comunicação do bispo com os párocos e até mesmo
com o restante da população do Recôncavo.
Esta dinâmica do catolicismo, representada pela sua formação, adaptação e transformação,
deu sentido à região do Recôncavo da Guanabara setecentista e foi um elemento essencial para
a construção de sua história.
64 Jacques Le Goff & Jean-Claude Schmitt. “Clérigos e leigos”. In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São
Paulo: EDUSC, 2006. p.248.
65 A regra do celibato clerical foi aplicada rigorosamente a partir da Reforma gregoriana, no século XI. Cf: Brenda
Bolton. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1986; Francisco José Silva Gomes. “A Cristandade medieval
entre o mito e a utopia”. In: TOPOI: Revista de História do Programa de Pós-Graduação em História da UFRJ, vol.
5. Rio de Janeiro, 2002; Jacques Le Goff & Jean-Claude Schmitt. “Clérigos e leigos”. In: Dicionário Temático do
Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2006; Jeffrey Richards. Sexo, desvio e danação: As minorias na Idade Média.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.