HAROCHE, Claudine. A Condicao Sensivel (Livro)
HAROCHE, Claudine. A Condicao Sensivel (Livro)
HAROCHE, Claudine. A Condicao Sensivel (Livro)
Claudine Haroche
TRADUÇÃO
Jacy Alves de Seixas
Vera Avellar Ribeiro [prefdcio, cap. > r conclusão]
COPYRIGHT ©, 2008 Claudine Haroche
IMAGEM DA CAPA
Giovanna Rasaria, Sem título, óleo sobre tela, 150 x 200 cm, 2003
HAROCHE, Claudine
A condifáo sensível: formas e maneiras de sentir no Ocidente
rraduçáo Jacy Alves de Seixas e Vera Avellar Ribeiro
Rio de Janeiro: Conrra Capa, 2008
240 p, 16 x 23 cm
2008
Todos os direiros desra edição reservados à
CONTRA CAPA LIVRARIA LTDA.
<[email protected]>
www.conuacapa.com.br
Rua de Santana, 198 I Centro
20230-261 1 Rio de Janeiro - RJ
Tel (55 21) 2508.9517 1 Fax (55 21) 3435.)128
A cominuidade ou a repetição
diminui a sensibilidade;
ela exalta a mobilidade.
Félix Ravaisson
AGRADEÇO A Srella Bresciani, de quem, há muitos anos,
recebo apoio decisivo, por meio de reflexões, projetos
e trabalhos em comum. Stella, cuja generosidade é
conhecida por todos, levou-me a trabalhar com Jacy
Seixas e Marion Brepohl, que manifestaram intenso
e contínuo interesse por esse trabalho, e me fizeram
não só importantes sugestões e observações, como
também críticas construtivas que o enriqueceram.
Jacy também traduziu quase todos os textos aqui
reunidos com profunda compreensão de seu espírito.
Gostaria, portanto, de expressar-lhes meu mais sincero
reconhecimento. Devo igualmente exprimir minha
gratidão a Christina Lopreato e, de modo mais amplo,
aos membros do grupo História e Linguagens Políticas,
do CNPq, que decidiram acolher-me como membro
associado. Todos me ajudaram e me encorajaram, ao ler
esses textos com extrema atenção e sugerir referências
por mim ignoradas. Mais recentemente, Olgaria Maros
me incitou a prosseguir a reflexão, porém tornando
novas direções. Por fim, gostaria de agradecer a Joel
Birman, incansável trabalhador do pensamento, que
sempre se mostrou disponível. No que me diz respeito,
todos eles não cessaram de manifestar interesse e
generosidade excepcionais do ponto de vista tanto
científico quanto intelectual. Devo-lhes uma qualidade
de escuta, leitura, troca e discussão que torna o ofício da
escrita uma atividade intensamente apaixonante.
I
SUMARIO
Prólogo 19
PARTE I
3 O comportamento de deferência:
do cortesão à personalidade democrática 53
PARTE II
4 O d i 1 ~iro à consideração.
notas de antropologia política e história 73
8 Descontinuidade e inapreensibilidade
1.•.
da personalidade contemporânea 133
PARTE IV 1
í
!\
IO Processos psicológicos e sociais de humilhação: ,\
o empobrecimento do espaço interior 167
Conclusão 219
Joel Birman
UMA TRANSFORMAÇÃO ANTROPOLÓGICA DO SUJEITO
Este livro de Claudine Haroche é redondo, sem arestas. Trata-se de uma marca que,
no percurso de sua escrita concisa e elegante, impõe-se inequivocamente ao leitor.
Do começo ao fim, mantém-se uma linha de desenvolvimento que demarca com
precisão uma problemdtica central, não obstante os deslocamentos temáticos pre-
sentes em cada uma de suas quatro partes. A articulação conceituai se torna cada vez
mais densa, em razão do inevitável efeito de posterioridade que cada um dos textos
provoca na leitura daqueles que lhes antecedem. Na toada de seus 12 capítulos, os
temas se diversificam e a estes se acrescem uma introdução e uma conclusão, em
que a direção geral da obra se define. Sem qualquer favor, pode-se dizer que se trata
de uma sinfonia teórica, declinada, de modo efetivo, em suas diversas variações.
Dos pontos de vista teórico e metodológico, trata-se de uma obra que decorre
de uma pesquisa eminentemente transdisciplinar ou indisciplinar, dependendo de
como se denominem as investigações inscritas nas bordas de diferentes disciplinas.
Digo bordas, e não fronteiras, porque, nos confins de cada disciplina, sempre existe
algo que provoca ruído na leitura de certas temáticas, e que, por isso mesmo, exige
a interlocução com outras disciplinas para a sua devida elucidação teórica. De um
lado, a existência de ruídos evidencia os limites epistemológicos das disciplinas; de
outro, indica uma ampliação do campo de indagação teórica e a constituição de
novos estilos de pesquisa.
Ao se inscreverem como linguagem, tais ruídos podem aceder ao registro da
voz pela transformação da cacofonia informe numa escrita dotada de vigor e rigor.
Ass im, o que está em pauta nessa modalidade contemporânea de investigação é a
co nstrução de novas problemáticas pela costura meticulosa de janelas entreabertas
p0 r diferentes discursos teóricos. Ao mesmo tempo, o campo de cada uma das
disciplinas concernidas se transforma pelo efeito de ricochete que se promove na
d eclinação das problemáticas investigadas.
1 13
No que concerne a este livro, a costura se realiza pela leitura dos discursos da
antropologia, da sociologia, da política e da filosofia. A colaboração da psicanálise
se faz em surdina, quase sempre de maneira latente, como uma espécie de partitura
que busca evidenciar as formações do inconsciente. Em sua composição, sobressa-
em-se dois ensaios culturais de Sigmund Freud: "Psicologia das massas e análise do
eu" e "O mal-estar na civilização"'.
1 FREUD, Sigmund. "Psycho logi e des fou les et analysc du moi" (!921). Em: Essais de psychanalyse.
Paris: Payot, 1981; MalLlise dtzm la civilisation (1930). Paris: PUF, 1971.
2 BAUMAN , Zygmunr. Liquid modemity. Cambridge: Poliry Press, 2000.
14 1 CLAUDINE ll AROC HE
isto é, para que as diferenças em relação às condições e figurações anteriores do sujei-
to se evidenciem numa leitura que atravessa cinco séculos da história do Ocidente.
O ponto de partida de sua exposição é a caracterização da individualidade pelas
marcas da moderação e da deferência. No ritualismo que delineou as maneiras de
parecer, havia um código de distância e de proximidade que definia a cartografia
do espaço social. Pela mediação desse código simbólico, os laços sociais, conforme
a proposição de Cario Ginzburg3, permeavam-se da oposição embaixo x acima. Em
conseqüência disso, as fronteiras entre os registros da intimidade, da privacidade e
do público se mantinham no campo tanto do indivíduo quanto dos laços sociais.
Seria justamente isso a condição de possibilidade do enunciado da problemática da
governabilidade nesse contexto histórico, no qual a governabilidade da pólis implicaria
a sua estrita articulação com a governabilidade de si. Essa problemática, rigorosamente
falando, foi a retomada, nos séculos XV1, XVII e XVJII, do que se desenvolvera na filosofia
política da Grécia clássica, quando Platão sustentou o imperativo da governabilidade
de si como condição precípua para a governabilidade do espaço social4• No contexto
pós-renascentista, as teorias da civilidade procurariam realizar tal articulação por meio
de duas estratégias retóricas, quais sejam, a politização da família e a familiarização da
política, consideradas as diferentes tradições francesa e inglesa.
Essas marcas e rituais, bem estabelecidos na sociedade da Corte, começam a
ser implodidos com a emergência da modernidade e da democracia no século XIX.
Desde então, tais diferenças têm sido progressivamente silenciadas, bem como
liquefeitas as espacialidades que lhes eram correspondentes, promovendo-se uma
mistura ostensiva das cartas do jogo da civilidade. Outra gramática e outra sintaxe
passam não só a regular os gestos das individualidades, como também a subverter a
forma de ser do sujeito, pari passu a ascensão triunfante do individualismo.
A codificação da formalidade e do ritualismo, presentes nas maneiras de ser e de
sentir, esfacela-se e a informalidade tende a ocupar a cena nos registros do indiví-
duo e dos laços sociais. Tal informalidade, portanto, apaga as distâncias, ao mesmo
tempo que a consideração se dilui, tendo como seu desdobramento mais espetacu-
lar a crescente psicologização da experiência social, enunciada por Richard Sennett
acerca da decadência do espaço público. 5
Em outros termos, a individualidade desengajada se constitui como a contrapar-
tida do incremento da desigualdade, da injustiça e da indiferença. No que concerne
à última, aliás, Alexis de Tocqueviile assinalou a disseminação de suas conseqüên-
1 GINZBURG, Cario. Myther. emb/)mes, traces: morphokJgie et histoire (1986). Paris: Flammarion, 1989.
1 FOUCAULT, Michel. Hermeneutique du sujet (1982). Paris: Gallimard/Seuil, 1003.
' SEN NETT, Richard. Les tyrannies de l'intimité (1977). Paris: Seuil, 1979.
A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 15
cias morais na democracia norte-americana já durante a primeira metade do século
XIX, 6 explicando-se, assim, como a categoria ética de respeito perde importância
com a naturalização da humilhação e a constituição de indivíduos marcados pela
insignificância.
·1 1 A conjunção de todos esses fatores indica uma transformação antropológica de
·,-- grande porte, na qual a exteriorização crescente do sujeito é correlata ao seu empo-
"\ brecímento interior. Num mundo marcado pela tirania da visibilidade, a desarricu-
, ~ \ lação entre os registros do ver e do sentir pode estabelecer-se de forma eloqüente.
,\ A figura do pdria, analisado por Hannah Arendt no que concerne à condição
~ ·1 judaica7, generalizou-se com a globalização, de tal forma que, no limite, a ünica
·) coisa possível à individualidade é possuir a si mesma.
'{\
Nesse mesmo contexto, o registro do sensível se transforma de maneira radical.
No capitalismo avançado, as transformações tecnológicas têm conduzido à inaten-
ção, ao estreitamento da comcíêncía e à falta de simbolização dos sentimentos, que se
reduzem às sensações, conduzindo as individualidades, cada vez mais, para a ordem
do corpo. O divertir-se passou a ser conjugado com o ensurdecer-se, e ambos têm
1se declinado pelo isolar-se. Metamorfoseado, o sensível adquire autonomia como
sensação, algo inédito até há pouco tempo, já que se mantinha regulado pelos
códigos e rituais da consideração e da deferência.
O progressivo estreitamento da consciência, desdobrada numa alteração do re-
gistro do pensamento, é a resultante mais pronunciada de tal transformação antro-
pológica do sujeito. A articulação entre os registros da duração e do espaço, como
enunciada por Henri Bergson8, quebrou-se, fazendo com que o pensamento perdes-
se sua efetiva base da sustentação. Por isso, em face da perda catastrófica dos pontos
de referência simbólicos em que o sujeito estava ancorado, a fluidez ampla, geral e
irrestrita não só nos condena, cada vez mais, a ordem corporal reduzida à pura senso-
rialidade, como também nos conduz, de forma evidente, à grande desordem. 9
Evidentemente, está em pauta nesse questionamento, num desdobramento
inesperado da democracia contemporânea, o impasse da governabilidade, uma vez
que a regulação do espaço social se desatrelou da regulação do sujeito. Descoladas
de maneira trágica, essas duas modalidades de governabilidade, da pólis e de si,
anunciam, enfim, uma catástrofe de proporções incalculáveis.
\
6
TOCQUEVILLE, Alex:is de. De la Démocratie m Amérique (1835). Paris: Vrin, 1990.
7
ARENDT, Hannah. Le systeme totalitaire. Les origines du totalitarisme (1951). Paris, Le Seuil, 1972.
8
BERGSON, Henri. Essai sur les donées immédiates de la conscience (1913). Paris: PUF, 1970; Durée et
simultanéité: à propos de la théorie d'Einsteín (1922). Paris: PUF, 1998.
9
BALANDll!R, Georges. Le grand dérangemmt. Paris: PUF, 2005.
16 1 CLAUDINE HAROCHE
PRÓLOGO
Max Wt.>ber
GENEALOGIA DA FLUIDEZ
1 19
rituais codificados, segundo uma ordem de precedências. O começo e o fim de um
cerimonial, a hora e o local de onde sentar-se, o lugar ocupado, à frente, atrás ou
sentado, quando alguns estão de pé ou se levantam, o respeito a posturas de submis-
são, vassalagem, inferioridade ou superioridade são regulados de maneira estrita.
O imperativo de moderação em jogo nos tratados de civilidade dos séculos XVI
e XVII lembra os limites que o indivíduo deve observar no que diz respeito ao seu
próprio corpo em razão de pudor e respeito aos outros, ou para se conformar ao
bom desenrolar da vida religiosa, social e institucional: esse preceito tende a se
transformar num dever de consideração e, a partir do século XVIII, num direito
político, ames de se tornar, no século xx, uma reivindicação simultaneament.: po-
lítica, social, psicológica e ética. Tais reivindicações concernem aos direitos morais
e sociais, aos direitos da pessoa: lembram a existência de necessidades psíquicas
raramente consideradas como tais, bem como instauram, traduzem, garantem e
reforçam a existência de uma fronteira - original, porém hesitante - entre o ho-
mem exterior e o homem interior.
No começo, não medimos nem o interesse, nem a amplidão das questões que fo-
mos levados a abordar ao longo deste livro. Tampouco pressentimos algumas apro-
ximações passíveis de esclarecer, em aspectos particulares, questões hoje cruciais:
o papel do espaço como elemenro decisivo de solidez na construção e na formação
da identidade, e a valorização e a aspiração à estabilidade. O recuo contemporâneo
da função do espaço parece, portanto, suscetível de acarretar uma transformação
mais ampla dos modos de subjetivação, dos próprios tipos de subjetividade e, além
destes, quem sabe dos funcionamentos psíquicos: incerteza ampliada, desarvora-
mento profundo, angústia difusa, sentimento de despossessão de si, confissão de
impotência e de desconfiança em relação a si mesmo e aos outros.
A separação dos indivíduos no espaço acompanhou e calvez tenha permitido
uma concepção de sujeito que se define - ao menos no Ocidente - por uma forma
de propriedade que supõe a delimitação de si segundo hábitos que implicam a
moderação, a postura: atitudes de polidez, consideração, estima, honra, esses usos
que ocorrem num espaço de formas de mediação são, na modernidade, progressi-
vamente tornados direitos.
\ A atualização do papel das interações faz com que se passe, no início do século XX,
1 de uma representação da fixidez, da estabilidade, para uma diminuição e mesmo um
\ distanciamento da moderação. Valendo-nos disso, nós nos demos de conta de que
podíamos contribuir para esclarecer alguns modos de funcionamentos sob os quais
se delineia um conjunto de questões fundamentais em jogo no individualismo con-
temporâneo - o "individualismo qualitativo", evocado por Simmel -, nas diferentes
formas de troca capitalista, no cerne nas mais recentes evoluções tecnológicas, na
globalização e nos abalos psíquicos induzidos por esses modos de funcionamento.
.• C ONDIÇÃO SENSÍVEL 1 21
O deslocamento e a mobilidade incessantes tomam de empréstimo as vias, tan-
to materiais quanto imateriais e virtuais, e assim, de um lado, abalam o papel
estruturante do espaço, transformando-o e relegando-o a form as tradicionais de
funcionamento, e, de outro, acarretam formas de propriedade ilimitadas de si e
dos outros. Elices onipotentes, desterritorializadas, concomitantes a formas inédi-
tas de apropriação de si, por meio de novas tecnologias, multiplicam e induzem
eus instáveis e efêmeros. Ao mesmo tempo, acarretam formas de despossessão de
si para um número sempre crescente de indivíduos encerrados em territórios cada
vez mais pobres ou coagidos a se deslocarem, a fim de sobreviver.
As formas conhecidas e reconhecidas de estabilidade, fixidez, ancoragem psí-
quica e emocional, estabelecimento psíquico e subjetivo no espaço, são perturba-
das e acarretam uma ausência de enquadramento espacial, de limites, bem como
/ provocam um desenraizamento subjetivo (Legendre 2006: cap. XXI). Esse processo
paradoxal tende a uma depauperação, a um estreitamento e, mesmo, a uma ex-
tinção do espaço interior no individualismo contemporâneo: tende, com efeito, a
exteriorizar, a setorizar na superflcie o homem interior, fazendo-o desaparecer, e,
no mesmo movimento, a estender e a intensificar as sensações - ou então a erans-
formar, de forma radical, as maneiras de sentir, a enfraquecê-las pela submissão ao
ritmo de um consumo contínuo e acelerado.
/
Desde então, pareceu-nos interessante examinar a transformação das maneiras
de sentir nos fluxos sensoriais contemporâneos, interrogando-nos também sobre
as condições e a própria capacidade de sentir. Essas questões, como se sabe, são
abordadas, formuladas e apresentadas com grande profundidade nos trabalhos de
Georges Balandier, que distingue o apagamento e mesmo a desaparição de antigas
categorias e a emergência de "novos novos mundos". Zygmunt Bauman partilha
essas interrogações, ao insistir na desterritorialização das formas de vida numa
condição de fluidez, de "liquidez", assim como Pierre Lege11dre, que pressente, na
indiferenciação, a ameaça de uma regressão.
22 1 C LAUOINE HAllO C HE
PARTE 1
1
Em cerla medida, essa é a perspectiva dos trabalhos conremporâncos de Mona Ozouf, Roger Char-
tier, Gérard Noiriel, Keith M. Baker, bem como os de John Greville Agard Pocock, na fronteira
enrre história , ciências sociais e política; Cf. ainda Luc Boltanski e Laurent Thévenor, que, ao
examinar as grandes obras da filosofia política, articulam-nas como "obras de gramáticos do laço
político" (Bolcanski & Thévenot, 1991).
25
a antropologia política revela que "o corpo é um verdadeiro operador político e
social'', parte essencial e constitutiva do poder(: 3n-2).
É preciso ainda aproximar as perspectivas da antropologia daquelas mais propria-
mente historiográficas. Veja-se, por exemplo, o trabalho de Jean-Claude Schmitt,
quando sugere que é preciso perceber um signo de poder na lentidão de um passo
ou na postura de um movimento. O historiador vê nesses gestos a expressão de urna
metáfora cósmica que marca, de modo vigoroso, a reflexão filosófi ca e científica du-
rante o século XII, e conclui: "Entre a mobilidade e seus contrários há uma hierarquia
que [... ] contribui para modelar os julgamentos emitidos sobre os gestos. Não são o
gesto suspenso e a imobilidade da majestade divina ou real signos da perfeição e da
soberania, diante dos quais os demais dão mostras de agitação e configuram uma su-
jeição moral ou socia1?" 2 A mobilidade descontrolada, a excitação, o rebuliço apare-
cem, então, como signos de despossessão, de uma posição de inferioridade, ao passo
que o domínio de si representa algo superior e um elemento central de dominação,
justamente o que Norbert Elias sublinhou a respeito da sociedade de corte.
A GOVERNAMENTALIDADE
2
O historiador examina nas e timologias (de motus e gestus, cm particular) os efeitos complexos
dessas metáforas sobre a concepção dos gestos e dos movimentos do corpo: "o movimento dos
astros e, mais amplamente, o do cosmos constitui para os gestos um mode lo dos mais valorizados,
porque celeste. Motus, todavia, evoca tamhém a mobilidade que, ligada ao co rpo, rcm, cm vez
disso, urna conotação pejorativa. Com efeito, para a cultura crista da Idade Média, a mobilida-
de participa do transitório, do instá,d". A propósito do domínio dos gestos, Schmitt sublinha
ainda o medo da desordem que rev(ste o termo gesticulatio: "Na cultura letrada da Idade M é-
dia, 'gesticulações' são todos os gestos percebidos como excess ivos, conturbados, em desordem.
O par inimigo gestus-gesticulatio é urra das grandes figuras do antagonismo da ordem e da desor-
dem na cena medieval dos gestos" (Schmitt, 1989: 29-30). Ver, adiante, o capítulo 7.
3 "Queria fazer algo como uma históriada governamentalidade" (Fo ucault, 1986: 14). Foucault nota
que o problema do governo explode 110 século xvr, a propósito de questões muito diferentes, refe-
rindo-se simultaneamente a questões éticas, religiosas, pedagógicas e, enfim, políticas.
Ainda a propósito das análises de Foucault, Gordon nota que a cultura política
moderna se define por dois traços característicos: de um lado, a ciência do Estado;
do outro, a existência de um estreito laço entre os princípios da ação política e
aqueles que guiam a conduta pessoal. Por que o tema da conduta ganha tal relevo
ao longo dos séculos XVI e xvn? 6
4
Ao contrário, vale relembrar as análises empreendidas sobre o governo de si na Antigüidade greco-
latina. Colin Gordon destaca o título dado por Foucault às conferências que proferiu nos dois
últimos anos de vida, bem corno o do projeto de trabalho que tinha em mente: "O governo de si
e dos outros" (Gordon, 1991: 2) .
5 Entre outros, aqueles dos chamados eruditos libertinos: Pierre Charron, Gabriel Naudé, La Mothe
le Vayer. Ver sobre esse ponto, lvléchoulan (!985).
'' "Co rno observa Foucault, é possfvel que nunca, nem antes nem depois, a atividade de governo
tenha sido percebida de modo tão fundamentaimente dependente do governo de si, tanto pelos
governantts quanto pelo governados" (Gordon, 1991: 22). Lembre-se, no entanto, que a tradição
dos miroirs des pri11ces e dos tratados de educação dos príncipes remonta a muito antes dos séculos
XVI e xvn (Schmitt, 1989; Krynen, 1981). Sobre o contexto em que se manifesta esse interesse pelas
condutas, ver o próprio Gordon, que sublinha a influência da filosofia neo-estóica: "Os conflitos
que agitaram a Roma Antiga foram considerados semelhantes àqueles que agitam a Europa desses
séculos. Forma de conhecimento 'prático', o neo-estoicismo surge como um meio de restaurar a
ordem, de reafirmar uma ética diante dos conflitos que atravessam a sociedade e provocam em
cada homem uma enorme perturbação" (1991: 12-3).
7 O problema do governo do corpo surge muito antes do Renascimento: a) na tradição dos miroirs
des princes, que, surgida na Antigüidade, conhece significativa renovação no século xm: essas obras se
ocupam do comportamento e dos gestos reais, da educação do príncipe cristão, da formação moral e
política dos reis. Jean-Claude Schmin evoca Gilles de Paris e a obra que ele oferece ao futuro Luís vm,
na qual apresenta Carlos Magno como um "modelo de temperança no comer e no beber, um homem
cujo gesto jamais foi relapso" (1989: 192); b) em toda literatura endereçada aos monges: Guibert de
Nogent, no início do século XII, reconhece a gratidão que deve ao futuro arcebispo de Canrerbury
por lhe ter mostrado não somente "como eu devia conduzir o homem interior, !mas também] como
era conveniente, em vista do governo do meu jovem corpo, transportar-me aos direitos da razão" (ci-
tado por Schmitt, 1989: 28); e c) na tradição da etiqueta de mesa que se desenvolve a partir do século
XII (em particular, com a constituição das cones feudais), e que, entendendo reger as "maneiras de
mesa'', convidam ao controle de si e à moderação (Glixclli, 1921).
•Ver ~ambém Leites (1986), em particular o terceiro capítulo, "Os fins sociais da constância". Deixa-
mos de lado aqui o movimento barroco, que, ao se opor ao espírito da Renascença, a seu raciona-
lismo, a sua exigência de medida, a seus ideais de conhecimento de si e de domínio de si, valorizou
as aparências e a exterioridade.
28 1 CLAUDINE HAROCHE
APRENDER A SE GOVERNAR
Elias imputa esse fenômeno global a novas esrruturas sociais: à reunião em cúria
dos cavaleiros, m as principalmente à centralização do poder que impõe ao Estado
o monopólio da violência e lhe incumbe de constranger os homens a viver em paz. 9
As relações sociais se rornam, assim, mais reservadas. Tamanho comedimento nas
condutas ce rtamente produz enormes efeitos nos cost umes e nas estruturas sociais,
sendo essa a análise que alimenta a interpretação feita por Elias acerca do pequeno
tratado de Erasmo publicado em 1530, e cujo objeto é a educação de jovens de toda
sorte (Erasmo de Roterdã, 1530: 57) .
Desde se u preàmbulo, trata-se de governo do corpo e de si mesmo: convém,
escreve Erasmo, que o homem regre e regule seu aspecto, seus gestos, seu vestir,
assi m como sua inteligência. Capítulo após capítulo, ele se mostra preocupado
com a decê ncia, a reserva, o d ecoro. Seja a atitude pia no espaço da Igreja, seja
o comportamento à mesa e os encontros ou jogos juvenis, qualquer gesticulação,
qualquer gesto impulsivo deve ser proscrito: o recolhimento, a devoção e o respei-
to devem se exp ressar pela postura, pela m oderação e pelo controle das atitudes
corporais:
manifesta teu recolhimento pela tua postura[ ...]. Enquanto se reza a missa, mostra
tua devoção pela tua atitud e [... ]. Genuflexo, o alto do corpo inclinado, por respeito
[... ].Se te pedem para dizer o Benedicite, mostra uma reserva plena de recolhimento
[.. . ]. Não convém a uma criança bem-educada agitar os braços, gesticular com as
mãos, balançar os pés; não convém, enfim, falar menos com a língua do que com o
corpo [... ]. Uma criança deve observar a mesma reserva tanto no jogo quanto à mesa
(: 75, 77, 79, 98 e 104).
" Outras formas de violência que fazem uso da moderação, da reserva, do domínio de si e da igual-
dade nos humores, porém infinitamente mais filtradas, vêm à luz também no Renascimento. Ver,
adiante, o capítulo 8.
10
N. do T. Em francês , honnêtrs gens. () te rmo conhece mais tJ.rdr.::, com a crírica aos cos tumes <l a
corte, uma acepção pejorativa. Cf o artigo de Oiderot na Encyclopédie em que ele opõe honnête
homme a homme honnéte. Na época de Courtin, honnête hornme, ou honnêtes gens, referia-se tanto à
posição de superioridade ocupada na sociedade aristocrática quanto ao valor moral dessa posição.
A CON DI Ç ÃO SENSÍVE L 1 29
mente à etimologia: "A própria palavra contenção o indica: vindo de comer [con-
tenir], considera-se uma pessoa contida porque contém, em primeiro lugar, suas
paixões e, depois, seus membros ou suas ações, sua língua ou suas palavras, nos
limites em que todas essas coisas devem estar contidas [... ]. Diz-se de um homem
[... ] que ele possui a si mesmo porque domina seu interior, ou suas paixões; e, em
seguida, porque, estando as paixões contidas, tudo o que se vê exteriormente desse
homem parece pousado ou tranqüilo" (Courtin, 1671: 322-3) 11
Possuir-se equivale, portanto, a ser guardião do próprio corpo e, ainda, dos
limites e das fronteiras desse corpo no espaço, "conter-se" no interior de si próprio,
reservar-se, reter-se ... (Courtine k Haroche, 1988: cap. 5)
O vínculo entre essa perspectiva e aquela desenvolvida, na mesma época, pelos
miroirs des princes, tratados destinados à educação dos soberanos, é significativo.
Vale ressaltar aqui, no entanto, evidentemente sem negar à civilidade pueril ma
extensão, que Erasmo dedicara, em 1530, o De civilitate morum puerilium [Da civi-
lidade dos costumes das crianças] a um filho de príncipe, Henrique de Borgonha.
Um século mais tarde, esse elo ainda aparece nos escritos pedagógicos que La
Mothe le Vayer dedica ao Delfim.12 A moral, que é a ciência dos costumes, ensina
a maneira de governar a si mesmo pelas regras da razão, bem como rege a econo-
mia e a política. Desse modo, todo ser humano, pai de família ou soberano, deve
saber se disciplinar, regrar a si mesmo, subtrair-se aos impulsos do sentimento e
submeter-se às regras da razão.
Saber conduzir uma família ou, em outras palavras, ser 11m bom ecônomo e bem
governar um povo provêm fundamentalmente de uma mesma exigência - fruto de
longo aprendizado -, de um mesmo princípio, de uma mesma qualidade: saber go-
vernar a si mesmo. Que não se presuma, escreve o filósofo, "que uma pessoa incapaz
de bem ordenar sua casa, possa levar a contento o governo público" (La Mothe le
Vayer, 16)3: 3). La Mothe !e Vayer define essa ciência, esse saber, como um savoir-faire
que o monarca deve adquirir para exercer a arte de governar. O rei deve saber fazer-se
amado, mas também respeitado e obedecido (: 136-7) 1', ou seja, a arre de governar
repousa tanto sobre a habilidade quanto sobre a força do monarca.
11
É a propósito da exigência de domínio de si e da postura que se aproximam aqui Ecasmu e Antoine
de Courtin; deve-se, todavia, lembrar que o racionalismo da fim do século XVII, corno o de
Courtin - nacional e não mais cosmopolita: centralizador e não mais emancipador -, opõe-se ern
muitos aspectos àquele do século XVi e ao de Era.smo, em particular.
12
A política do príncipe (1653) é urna obra que se inscreve na tradição ancestral dos miroín dt'.< pri11ces,
dos tratados de educação do príncipe cristão.
13
Ver, em especial, ''As cerimônias e os rituais de corte: os instrumentos de uma política de com u-
nicação".
30 1 CLAUDINE llAROCl-IE
Quer se trate de economia doméstica ou de política, o governo de si é indispen-
sável ao governo dos outros. A maioria dos miroirs des princes não cansa de repetir
que se trata aí tão-somente de amor. É preciso saber governar docilmente, e não
apenas pelo uso e pela manifestação da força, sendo o autogoverno do príncipe a
condição do amor que os súditos lhe dedicam. 14 Ser mestre de si mesmo para se fa-
zer amar, ser mestre de si para ser mestre de outros. O mesmo princípio, a mesma
exigência ética e política de domínio de si permeiam a vida de todo homem, chefe
de família ou monarca: o pai de familia, cuja autoridade e afeição não se põem em
dúvida no lar, é considerado um príncipe; um juiz, um magistrado, ou o príncipe,
que deve saber se dominar para dominar - isto é, impor a outrem a autoridade
de sua majestade e o mistério dela emanado -, é tido como um pai, o pai de seus
súditos, o pai de seu reino. Eis os homens diante de uma máxima, de um princípio
de ordem e dominação social e política: para bem governar, é preciso amar com
um amor paternal. is
No fim do século XVII, François de Salignac de La Morhe-Fenelon, arcebispo de
Cambrai, publica Direções para a consciência de um rei, redigidas para a instrução
de Luís de França, um dos filhos de Luís XIV, então duque de Borgonha, de quem
era preceptor. Já na introdução, ele acentua o caráter indissociável entre o império
de si e o império sobre o próximo. O Delfim ainda é uma criança e Fenelon se
dirige a ele nestes termos:
Ninguém deseja mais do que eu mesmo, Meu Senhor, que um grande número de
anos vos proteja ainda dos perigos inseparáveis da realeza. Eu o desejo por zelo de
conservação da pessoa sagrada do rei, tão necessária ao reino, e de Meu Senhor, o
Delfim. Eu o desejo por vós, pois uma das maiores infelicidades que pode vos suce•
der é a de ser mestre de outrem numa idade em que o sois tão pouco de vós mesmos
(Fenelon, 1734: 1-2).
14
La Mothe le Vayer alerta o Delfim contra a; tentações do poder, que nascem, na maioria das ve-
zes, da impotência em dominar a si inesmo: "acontece, de ordinário, que mais [os soberanos] se
mostram poderosos, mais são impotentes para moderar suas vontades e, às vezes, os transportes do
cspírico, que não conseguem evitar, nem submeter a um exame razoável" (1653: 136).
11 La Mothe le Vayer funda, enfim, a soberania que o monarca exerce sobre seus súditos em matéria
de amor: "Pode-se dizer que um rei é ainda mestre da vida e dos bens de seus sujeitos, porque,
amai:do-os de um amor paternal, ele os conserva" (16n: 132-3) . Ver também Filmer (1680).
A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 31
numa palavra, possuir-se para possuir seus súditos. Dito de outro modo, na tradi-
ção das civilidades, importa aprender a se dominar para respeitar o próximo no es-
paço social, pois essa é a finalidade das civilidades erasminianas ou cristãs. Importa
também aprender, como na tradição das civilidades barrocas, a possuir-se para se
subtrair ao poder dos outros e para saber, quando conveniente, dominá-los. 16
O DOMÍNIO POLÍTICO DE SI
16
Ver, em particular, os seguintes tratados de corte italianos: O cortesão (1528), de Baldassare Casti-
glione; A conversação civil (1592), de Stefano Guazzo; Galateo ou dor costumes (1558), de Giovanni
della Casa; e O herói (1637) e O homem de corte (1647), de Baltasar Gracián. Sobre os tratados de
civilidade erasminianos, cristãos e barrocos, ver Courcine e Haroche {1988).
17
"Pode-se conceber os cem anos que precederam 1640 como a época de educação do fidalgo: nas
'artes da cidade', na 'arte nova das maneiras da aristocracia', no método da santidade e, finalmente,
na 'arte parlamentar', [...] os manuais de savoir-vivre fazem parte de sua formação tanto quanto os
sermões puritanos" (Walzer, 1965: 273). É preciso, no entanto, notar que os tratados que, no puri-
tanismo, incitam à contenção foram redigidos para o uso da 11ew gentry por puritanos da segunda
ou terceira geração. De fato, a primeira literatura puritana se caracteriza mais por uma grande
violência política. Sobre esse ponto, ver Walzer (1965) e Darnrosch (1985).
18
O que justameme lembra Werner Sombarr: "Os preceitos do puritanismo tratam dos mesmos
objetos e se assemelham quase palavra a palavra àqueles do romismo [... ];às virtudes burguesas [... ]
descritas e expostas[ ...] nos livros sobre o governo da fam ília de Alberci [... ].A moral protestanre
teve apenas de se apropriar do que o tomismo criou" (Sombart, 1928: 244, 247).
32 1 CLAUDINE HAROCHE
Assim, Richard Baxter lembra, nos preceitos concernentes à vida cotidiana de seu
Diretório cristão (!698) , a necessidade de reprimir sentimentos excessivos, descon-
trolados, exortando cada um de seus leitores a "sedeixa r guiar não pelo sentimento,
e sim pelas razões clicadas pela razão" (citado por Sombart, 1928: 243).
Na relação que o governo de si emretém com o político, contudo, os escritos
puritanos diferem daqueles evocados anteriormente. La Mothe le Vayer percebia
no governo de si uma exigência moral que domi11ava a e conomia e o político; diri-
gia-se ao monarca, <: apenas a ele. Os escritos puritanos, ao conjugar norma moral,
preceito social e regra política, pretendem estender a todos e a cada um o apren-
dizado do domínio de si para dele fazer uma "conduta de vida", a "vocação" do
príncipe, do súdito, do m agistrado, assim como do chefe de família: "Por exemplo,
a vocação (calfing) do rei é passar seu tempo a governar seus súditos; e a do súdito
consiste em obedecer aos magistrados. O estado e a condição de pastor (minister)
é conduzir sua vida na predicação do Evangelho e da palavra de Deus. A do chefe
(rnaster) de família, a de governar a casa. Eis suas respectivas vocações" 19 •
John Milton, em A tenência de reis e magistrados (1649), estima que tal domínio
de si é uma garantia contra o governo de um só homem sobre todos os outros:
"Se os homens fossem governados pela razão contida no interior deles próprios, se
não se abandonassem tanto à tirania de costumes exteriores a eles e às paixões cegas
que trazem em seu íntimo, discerniriam melhor o '-lue encoraja ou, ao contrário,
previne o tirano de uma Nação" Qones, I97T 34).
A relação que o governo de si entretém com o político se traduz ainda pela
concepção que os puritanos têm da família. Walzer observa que o "pai é príncipe e
mestre de escola, ministro e juiz em sua casa, mas cada um desses papéis é menos
uma função de sua afeiçã;:; do que um dever de seu ofício. Os sentimentos naturais
desemp enham aí papel ínfimo; devem, ao contrário, ser consciente e rigorosa-
mente reprimidos, de modo que as crianças não se mirnem pelo excesso de afeição.
O primordial é o autogoverno e o autocontrole" (Walzer, 1965: 207) .
Ser pai de família, chefe da casa, tem uma finalidade mais política do que afe-
tiva, como indica a leitura de William Gouge: "Cumprir conscienciosamente seus
deveres familiares pode ser considerado uma função pública" (Gouge, 1622 citado
por Wa lzer, 1965: 207). C omo Miegge observa, o pater familias nos parece hoje
uma figura da vida privada, mas "Calvino, juista e legislador, não emprega as
palavras ao acaso. Sabe muito bem que, na legislação romana, o paterfamilias é
o suj eito eminente do direito privado e público, o ator da vida pública. [... ] Sua
tar<: fa, ou melhor, seu ofício , é o de 'b<:m governar su a família" (Miegge, 1989: 13).
''' "A vo cação é certo gcnero J e vida[ .. . ] imposto ao hornem por Deus em vista do bem-comum[ ... ],
j certa maneira de co nduzir nossas vidas no mundo" (Perkins, 1603 citado por Miegge, 1989: 35).
!
1 A C ONDIÇÃ O SEN S ÍV EL 1 33
Walzer vê na disciplina individual, no governo do próprio corpo e de si mes-
mo, urna forma específica da obediência política, cujo lugar de aprendizado e de
exerdcio é constituído pela família, "um terreno de treino para a obediência po-
lítica" (Walzer, 1965: 208). Mas, como sublinha, essa educação encoraja - ao lado
da sujeição - certas capacidades de rebelião, em particular a política. Nos termos
de Gouge, "uma família é uma pequena igreja e uma pequena república, em que
se pode pôr à prova todos aqueles aptos a ocupar uma posição de autoridade [... ];
ou, antes, é urna escola onde se aprendem os primeiros princípios e os primeiros
fundamentos do governo e da sujeição". À mesma época, os tratados de educação
do príncipe o exortam a amar seus súditos com um amor paternal; assim, ao passo
que a tradição puritana insiste na dimensão política da família, a tradição católica
busca ressaltar a dimensão familiar do político.
Os tratados humanistas de civilidade (séculos xvr a xvm), os escritos purita-
nos (séculos XVI e x:vn) e os manuais de educação de príncipes reconhecem uma
mesma exigência: o controle e o domínio de si, entendidos corno disposições ne-
cessárias ao governo da família e ao governo político do Estado. Uns e outros con-
tribuíram para formar a civilização dos costumes que marcou a França e os países
anglo··saxõcs, apesar de difrrcn\·as que pnmitcm entrever as csp<:cificidadcs das
formas de sociabilidade e de culturas políticas no mundo anglo-saxão e puritano,
de um lado, e no francês e católico, do outro. Uma relação com si mesmo que
insiste na parte de cada um na formação de si, um espaço interior de autonomia e
de responsabiliàade, um rigor moral relativo à.s vidas privada e pública, e uma in-
junção à transparência das condutas marcariam, em especial, a tradição anglo-saxã.
A tomada de consciência da aceitação ou, ao menos, da existência de regras que
não se aplicam sempre com o mesmo rigor aos comportamentos privados e aos
comportamentos públicos, um espaço interior subordinado à existência de uma
hierarquia eclesiástica, urna divisão mais nítida entre comportamentos püblicos e
condutas privadas, e urna necessidade mais marcada de opacidade dos indivíduos
caracterizariam melhor a tradição católic:::.
' "Esta referência, vinda de um campo de sa ber bastante distinto. parece-me esclarecedora: os traba-
lhos psicanalíticos que Didier Anzieu consagrou ao "eu-pele". Ao ver na pele "o saco que contém
e retém no interior o bom e o cheio", mas também "a interface que marca o limite com o de fora
e mantém-no exterior [...] a barreira que protege da penetração [... ], d:I> agressões vindas dos
outros, seres ou objetos" {!9850 39), Anzieu faz d~ possibilidade e da necessidade de contenção
um elemento central do funcion amento do eu, fundanclo-se em particular sobre esse princípio
essencial da psicanálise que pretende que o que é psíquico se desenvolve em relação à experiência
corporal (: 82). "() eu é explicitamente designado corno 'envelope psíquico'. Com efeito, é esse
'envelope contingente' (que contém), que faz com que o aparelho psíquico seja suscetível de possuir
conteüdos" (: 81, 83).
CLAUDINE HAROCHE
OS GESTOS NO FUNDAMENTO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS
Charles Loyseau
1
Sobre esses componentes, ver Geenz (1983: 156). Sobre a mise-en-sâne e a cearralidade do poder,
Balandier (1967; i980; 1985), Marin (1981) e Ansart (1983).
1 37
do componente tanto material quanto simbólico e afetivo dos funcionamentos
institucionais, o papel dos gestos e das posturas nas instituições, indicando vias de
pesquisas relativamente pouco exploradas sob essa ótica.
Como afirmou Mauss, pode-se dizer "que a forma de uma civilização é tudo o
que caracteriza de maneira especial, inigualável, as sociedades que constituem essa
civilização". Mauss enumerou grande variedade de objetos que contribuíam para
definir essa forma. Uma lista que ia da palavra ao conto, de uma espécie de arranj o
do solo à estrutura interior ou exterior da casa, de um a ferramenta a um gesto ou a
uma démarche: "Tudo tem urn tipo, um modo e, em muitos casos, além de sua na-
tureza e de sua forma-padrão, um modo próprio de utilização" (Mauss, i929: 89).
As observações de Mauss sobre as formas materiais das sociedades - sobre os
gestos, as posturas, os movimentos em qu e a antropologia discerne elementos des-
sas formas - são capitais: convidam a prolongar a rcfll:xão, conduzem a retomar
questões que ainda são fundamentais. Esparsas, lacunares, inacabadas, muitas ve-
zes gerais, diversas dessas observações de Mauss continuam a surpreender: "a in-
certeza histórica, em casos precisos, não deve desencorajar a pesquisa. O fato geral
permanece"(: 89).
No que concerne à ciuestão das origens sociais da.\ formas e dos gestos, Mauss
foi influenciado pelos trabalhos de Robert Hertz e d e Émilc Durkhcim. Em estu-
do sobre a polaridade religiosa, de 1905, H ertz se deteve na preeminência da mão
direita, que ele opunha à mão esquerda "desprezada", considerada inferior, levan-
do-nos a aprofundar as relações entre posturas, posições, status e espaço. À mão
direita, afirmou Hertz, cabem "as honras", "as prerrogativas"; ela é "o símbolo e o
modelo de todas as aristocracias", permanecendo sem explicação, como notou, "a
razão pel;; qual um privilégio de instituição humana [vinha] acrescentar-se a [um]
privilégio natural" (1905: 85-6). Hertz enfatizava que a sociologia pode contribuir
para elucidar o fato de que os lados direito e esquerdo de nosso corpo têm valores
diferentes, próprios a uma "instituição social". Ao observar a existência de relações
entre os lados direito e esq uerdo do corpo e o espaço, disse que "a direita repre-
senta o alto, o mundo superi or, o céu", para concluir, de maneira clara, embora
um tanto enigmática, que foi 'sob o império de crenças e emoções religiosas que
nasceram e cresceram os ideais que, laicizados, dominam ainda hoje a nossa con-
dutà' (: 88-9).
Em As formas elementares da vida religiosa, de 1912, DurkJ1eim reconhec~ u igual-
mente que "a organização social serviu de modelo para a organização es pacial [.. .].
Até então, não havia distinção entre direita e esquerda, a qual, longe de es tar impli -
cada na natureza do homem em geral, não fos~;c, muito vcrossimi lrncntc, produto
de representações religiosas e, portanto, coletivas". Ao observar que o espaço deve
ser "dividido" e "diferenciado" , Durkheim se interroga sobre a origem dessas divi-
!\ COND1ÇÃO SENSÍVEL 1 39
se conta de que o que se lhes obrigava não era cão rolo" (: 384). Dessa historieta
ele infere: "Em todo conjunto da vida em grupo, há uma espécie de educação
dos movimentos em fileira cerrada". Uma aprendizagem do gesto, da atitude, do
domínio de si. Em poucas palavras, por meio de um relato breve, concreto, e feito
inicialmente em tom jocoso, Mauss permite que apreendamos não só o papel da
marcha e da démarche, como também a necessidade de ordem . Em outras palavras,
de códigos de comportamento, de saber-viver, de etiquetas e mesmo de protoco-
los que governam as condutas dos homens em sociedade (Déloye, Haroche e Ih!,
1997; Haroche, 1997).
Mauss menciona ainda inúmeros elementos de reflexão para os trabalhos que
realizaram uma antropologia crítica elos mundos contemporâneos e para os estu-
dos de antropologia histórica, cultural, social e política em que encontramos uma
atenção contínua e aprofundada do papel dos gestos, das atitudes e das posturas, e
mesmo o interesse pela maneira com que os homens recorrem a um uso simbólico
de seu corpo. Tendo como base abordagens, contextos e documentos de diferentes
períodos, esses trabalhos permitem discernir, avaliar o papel profundo e constante,
mas muitas vezes despercebido, de gestos específicos na compreensfo da existência
de uma ordem nas sociedades. Como Lévi-Strauss enfatiza em sua introdução à
obra de Mauss, "nesse domínio de estudos sobre o corpo, não há nada de fútil,
nada de gratuito, nem de supérfluo" (Lévi-Strauss, 1950).
A ORDEM E O ESPAÇO
Halbwachs, que se dedicou ao estudo das formas materiais das sociedades, à sua
inscrição no espaço, fala de morfologia geral, social e política. Incita a conside-
rar as formas, os modos e as maneirm inseridas no espaço das instituições, quer
se trate, como veremos adiante, do espaço religioso, parlamentar ou judiciário.
No artigo "Consciência individual e espírito coletivo", ele observa que todas as
instituições comportam elementos psicológicos e elementos materiais, articulados
de modo complexo. É justamente a complexidade dessa relação que nos parece
interessante para pensar a interação entre o componente material e o componente
psicológico das instituições. Como propõe Halbwachs, "admitamos que as ins-
tituições sejam, em primeiro lugar, formas estáveis e estabilizadas dos modos de
vida. Mas se remontamos à origem dessas estruturas, encontramos estados mentais,
representações, idéias e tendências que, ao se tornarem estáveis, cristalizam-se de
algum modo". As antigas instituições "perderam parte de [seu] conteúdo mental'',
mas sua existência e seu caráter não podem ser compreendidos, sem que lembre-
mos e retomemos "o pensamento coletivo que [lhes] deu origem", um pensamento,
40 1 CLAUDINE HAROCHE
a panir de então, "diminuído e reduzido'', "porém suscetível de ser reanimado"
(Halbwachs, 1939: 160-1).
A representação do es pJÇO seria devida ao seu ca r~he r intrínseco - dividido, di -
ferenciado - , co ndição de uma identidade que poderia se revelar na coincidência
entre posição espacial e posição social. Seu papel pode ser avaliado, por exemplo,
nas reg ras de etiqueta do cerimonial na sociedade de corte.
Ao observar que "uma organização política é moldada nas condições espaciais",
Halbwachs esclarece, de maneira profunda , o fun cionamento e a origem do espa-
Çv institucional: de fato , ele propõe uma reflexão acerca da coincidência entre a
posição no es paço concreto, m aterial, físico, e a posição na ordem social e polí-
tica no es paço institucional (Halbwachs, 1938: 17). No exame das origens do que
chama de "quadros sociais da memórià', ele ressalta que a potência de um senhor
repousa, em particular, "no seu lugar na hiera rquia, em cujo topo está o rei, ou seja,
na maior ou menor distância que os separam". Assim, enfatiza, "por trás dessas
famílias, a existência de uma realidade substancial que fundamenta sua situação
social", traduzida, entre outras coisas, pela "proximidade dos príncipes e da corte"
(: 26-7). Halbwachs defende o interesse de estudar esse período longínquo da Ida-
de M édia e sua fisionomia "singularment~ concreta e particular", pois isso permite
entrever elementos "essenciais" comuns e "perm:inentes" das formas elementares,
cuja existência foi suposta por Durkheim no que concerne às religiões (Halbwachs,
1925: 243). Ao se deter nas relações entre elementos simbólicos ou psicológicos, e
eleme ntos materiais ou concretos nos grupos, na imagem, na representação do
grupo e em sua existência real, Halbwachs mostra que, no que concerne ao espaço
religioso, é preciso, ao bdo ao sentido simbólico, tomar também em sentido literal
a expressão "corpo da Igreja". Em suas palavras, "o conjunro dos fiéis se apresenta
como uma massa material " (224-6) . Ele também observa que o corpo judiciário é
"obrigado a interpor toda espécie de barn:iras entre seus membros e aqueles a que
julga m, a fim de resistir a influências externas [... ]. Por essa razão, por seu hábito,
o lugar que ocupam no pretório [... ] torna perceptível a distância que os separa dos
demais[ ...] de acordo com algumas formalidades" (: 226) .2
A disposição dos indivíduos no quadro do espaço judiciário ou parlamentar
permite apreender certos fun cionamentos materiais e simbólicos das institui-
ções: ela constituiria um exemplo particular das representações fundamentais e
' Em As/Urmas t:lo11cutrtrrJ da u1:dr1 rt:!igiust1, Durkh c.: im f(nmulo11 q111.:, "11;1 base de todos os sisrcma.11
de crença e de todos os cultos deve haver necessariamente certo número de representações funda-
mentais e atitudes rituais que, apesar da diversidade das formas que umas e outras puderam revestir,
tê m em roda parte a mesma signifi cação objetiva, bem como preenchem em qualquer lugar as
mesmas fun ções" (191z: 45) .
42 1 C LAUDINE llAROCIIE
AS PRECED~NCIAS
A C ONDIÇÃO SENSÍ V EL 1 43
de Savóia, detém-se longamente requer distância no espaço e na altura, isto é,
uma distância, tanto simbólica quanto literal, que situa o nobre acima dos outros
homens (D'Oncieu, 1593) . Ela se traduz em marcas exteriorizadas de respeito , que
consistem em flexionar os joelhos diante de uma personagem, tirar o chapéu na
sua presença e lhe dar passagem. É preciso ver aqui, portanto, um dispositivo de
visibilidade da hierarquia, que permite, por meio de um conjunto de regras, dis-
cernir os homens mais ou menos dignos de estima e de consideração.
Redigido pouco depois e publicado em 16!0, 'fratt1do drJs ordens e simples dig-
nidades, obra de Charles Loyseau sobre a potência pública, começa com uma ob-
ser1ação geral sobre a ordem: "É preciso haver Ordem em todas as coisas, para a
conveniência e para a direção delas", indicando que a necessidade desta se deve ao
que se assenta, à conveniência. Loyseau enfatiza ainda que a ordem é indispensável
à organização dos homens em sociedade, bem como lembra que, embora os seres
humanos não "possam subsistir sem Ordem'', esta "é mutável e sujeita a vicissi-
tudes" (Loyseau, 16rn: l). A ordem, princípio de organização e repartição geral e
concreta dos estados e das funções, distingue-se por meio de ornamentos visíveis
e também por posturas, posições e movimentos. Para ele, provêm das ordens du;::;
prerrogativas específicas: o nível e o título, nos quais distingue as precedências.
O primeiro deles se traduz na "prerrogativa de sentar-se e caminhar". Como Loyse-
au observa, "as ordens, sobretudo, produzem-na. [...] a própria palavra ordem a de-
nota e significa" (: 4) . Ele, portanto, vai ao encontro do que D 'Oncieu chamava de
precedências, com as quais Saint-Simon se mostraria constantemente preocupado.
Uma profunda inquietação percorre esses textos: distinguir - e distinguir-se -
mediante marcas exteriores, precedências que, ao se inscreverem nos corpos, nos ges-
tos, nas atitudes, nas posturas, estabelecem uma distinção entre os corpos e as ordens.
A MEDIDA DA DESIGUALDADE
44 1 CLAUDINE HAROCHE
movimentos e deslocamentos: ordem segundo a qual se entra ou sai de uma sessão
no Parlamento; sentado ou de pé, a postura traduz o nível, a posição, a altura, a
grandeza, enrendidos em senrido ranto literal quanto simbólico - alturas desiguais
são, de fato, um dos elementos essenciais do protocolo. Ao se dirigirem ao rei, o
Parlamento e o Terce iro Esrado devem estar corn a cabeça descoberta e de joelhos,
o que lhe era, escreve Saint-Simon, "um grande desgosto, pois [os legisladores]
viam os pares [... ) opinar sentados e com as cabeças cobertas" (: 47, 63).
Os divnsos conflitos de prccnlências que opõem os prcsi<lrnccs dos Parbmcnros
a seüs pares se referem, em parcicular, a posturas, a assentos, a altura destes e a sua
distribuição no espaço. Seu relato da "questão do barrete" e das iniciativas voltadas
para o esvaziamento das cadeiras dos pares e a ocupação dos assentos dos presidentes
são exemplos célebres em que os presidentes de Parlamento queriam nivelar os pares
(: 54-5). Os gestos mais anódinos, como colocar seu barrete diante de alguém, não
são inocentes: pode se rratar de um sinal de poder, de uma marca de superioridade
daquele que se cobre ou, ainda mais, do que permanece coberto.
Ao lembrar o que se devia entender como par de França na corte de Luís XIV,
desde a origem da monarquia - "o que ficou conhecido [... ] pelo nome e título
de par de França foi o faro de se ter assento ao lado do trono"-, o duque de Saint-
Simon indica um elemento essencial na etiqueta parlamentar: a proximidade em
relação ao rei. Estar próximo ao monarca era algo crucial. Tocar no trono com o
cotovelo, um privilégio. A reivindicação de igualdade em matéria de proximidade
e de altura provoca conflitos de precedência imensos e recorrentes, quase sempre
resoividas pela instauração, mas também, às vezes, pela inversão de alturas desi-
guais (Saint-Simon, 169r-1723: tomo v: 7). Compreende-se assim que os gestos
aparentemente mais insig!lificantes pudessem se provar decisivos no plano das
instituições políticas.
A atenção às precedências, ao ligar e separar os homens no espaço institucional,
instaurar entre eles distâncias e aproximações, permite, por meio da observação
dos corpos individuais, de seus movimentos, gestos e posturas, vislumbrar o faro
geral por trás do fato histórico, o social ou coletivo no individual, ou mesmo
reencontrar usos, tradições e costumes delimitando corpos políticos numa deter-
minada sociedade.
O estudo dessas séries de atos, dessas técnicas do corpo, já percebidas por Mauss,
e impostas, ordenadas por e para a autoridade social, permite esclarecer formas
institucionais constituídas pelas precedências, processos subjacentes à elaboração
e ao funcionamento das instituições políticas e jurídicas, ou seja, à formulação e a
imposição de uma ordem nas relações de deferência.
Os gestos e as posições no espaço e na sociedade que remetem ao status diferem
de acordo com as sociedades, as épocas e os sistemas políticos. Eles, no entanto,
A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 45
expressam e traduzem cuidados, e mesmo aspirações contínuas e fundamentais,
como a preocupação com a proximidade de posições de poder, a altura e a anteriori-
dade, no contexto de uma economia vivida por todos com intensidades variáveis.
OS PRIVILÉGIOS DA IMOBILIDADE
3
Sobre a história dos ges tos, ver também Brcmmer & Roodenburg (r991), cm particular a introdu -
ção <le Keith Thomas e os artigos dos organizadores.
Essas observações são cruciais, mas as hipóteses, embora testemunhem uma am-
plidão surpreendente, permanecem conjeturais: elas se detêm no limiar de uma
explicação, de uma interpretação que toca aos fundamentos, à questão da origem
última das formas e instituições sociais. De fato, oferecem tão-somente respostas
fragmentárias, lacunares: repelem a questão do social, do religioso, ou seja, respon-
dem ao como, mas não ao por quê. Em suma, convidam a este fato: é por meio da
contestação da ordem imposta pela instituição, como nas querelas de precedências,
e ainda mais por seu questionamento e por seu declínio que podemos encontrar
elementos de respostas que tocam à institucionalização, à rejeição de determinadas
A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 47
formas numa sociedade. Essa é a importância decisiva de trabalhos como os de
Elias, que observam um declínio de tais formas nas sociedades contemporâneas,
e os de Legendre, que, numa antropologia dogmática do Ocidente, dedica-se
ao processo de desinsrirucionalização, a uma parte irredutível de teatralidade
e opacidade no fundamento da instituição (cf., sobretudo, Elias, 1989: cap. r;
Legendre, 1999). 4
Nos anos 1970, Raymond Firrh mostrou, ainda que implicitamente, os limites
de tais observações, ao reconhecer a parte de indeterminação irredutível própria
aos fundamentos e realçar que "o problema fundamental para um antropólogo
consiste não em se pronunciar sobre a realidade última, mas sim em estudar as
formas de expressão simbólica, com o intuito de compreender o sistema de idéias
expresso por elas, a ordem desse sistema e os efeitos provocados pelo uso de tais con-
ceitos simbólicos" (Firth, 1973: 428).
Antoine Garapon, em trabalhos sobre o ritual e o espaço judiciário, nos quais
ratifica o papel decisivo dos gestos e das posturas, define sua posição nos seguintes
termos: "dirigir ao mundo judiciário a exigência de um exame global que habita
o pensamento sociológico francês, de Durkheim a Lévi-Strauss", reabrindo, o que
nos parece, vias relevantes de pesquisa (Garapon & Jacob, 1992: 316).
Ao sublinhar as origens ancestrais desse espaço, ele detalha a ordem dos lugares
e a codificação das posturas na instituição judiciária: "o ritual judiciário se organi-
za em torno de três posturas fundamentais: andar, ficar de pé e sentar-se. O sim-
bolismo do corpo associado à função judiciária é muito antigo e praticamente não
mudou desde os tempos bíblicos". Ao longo do processo, a postura de cada um
está cuidadosamente prevista: "no tribunal, deposita-se, responde-se e se pleiteia
de pé. Nas sessões, o acusado só se levanta para responder às questões do presiden·-
te; no restante do tempo, permanece sentado em seu lugar". Ele proscgue:
O acusador se levanta, endireita-se, insurge-se, opõe-se; ele acusa, aponta com o
dedo, cria uma ruptura corporal e cênica: trata-se da magistratura de pé. O juiz está
sentado, escuta, toma pareceres e seus gestos são menos visíveis, menos espetaculares;
ele não se mexe. Delibera, vira a cabeça para um lado e para o outro, permanece
circunspeto: trata-se da magistratura sentada. A imagem do homem de pé evoca
um afrontamento e o advogado, por sua vez, se levantará para replicar. A imagem
do homem sentado evoca tranqüilidade, serenidade e estabilidade. Levanta-se para
se defrontar, senta-se para trocar. Todo mundo sabe que um homem agress ivo que
aceita sentar-se está parcialmente calmo [... ].Todas essas atitudes corporais do ritual
inspiraram à instituição suas principais balizas (Garapon, I99T II5-8).
4
Ver, a respeito dessas questões, o capítulo 5 deste livro.
CLAUDINE HAROCHE
Garapon rambém encontra o papel decisivo da ordem e do espaço, tal como
realçado por Halbwachs: "o que a sociedade busca na sacralização do espaço é a
conquist,l da ordem. Esta é ranto a rtgra organizadora (1uanto o mundo organi-
zado". E, ao se referir aos trabalhos de Benvcniste, lembra que a ordem é "uma
das noções cardinais do universo jurídico e também religioso e moral dos indo-
europeus: a 'ordem' que regula tanto a ordenaçáo do universo, o movimento dos
astros, a periodicidade das estações e dos anos quanto às relações dos homens e dos
deuses, enfim dos homens entre eles próprios. Nada do que se refere ao homem,
ao mundo, escapa ao império da 'ordem'. Trata-se, portamo, do fundamento tanto
religioso quanto moral de toda sociedade"(: 44).'
A seguir, enfatiza: é raro que as ciências jurídicas considerem "sua relação com
a fun ção que alojam e para a qual foram concebidas". Ele insiste no interesse de se
debruçar sobre a questão do espaço e da forma: "Pensar a forma seria ultrapassar
um e ourro pontos de vista, restituir um e outro continentes e conteúdos, rein-
tegrar elementos, de ordinário, considerados separadamente". Com efeito, Gara-
pon observa que, nas ciências jurídicas, "a reflexão sobre o simbolismo é ocasional,
marginal. Situa fora-se dos campos próprios ao Direito. Ninguém cogitaria ver
nisso Ltm questionamento suscetível de tocar na própria identidade da instituição" .
E acrescenta de modo muito justo: "Se o núcleo duro da racionalidade jurídica
permanece cercado por uma gangue de irracionalidade mágico-simbólica é porque
essa gangue também tem um papel. Chegar a decifrar seus signos equivaleria ades-
velar um foco de sentido suscetível de esclarecer, com uma luz inteiramente nova,
o discurso texwal do direito" (Garapon & Jacob, 1992: 315-6).
Dito de outro mo<lu, Garapon enfatiza um processo já ressaltado por Elias em
outros termos, a propó>ito do declínio geral das formas nas sociedades contem-
por;'rncas; o mesmo pron:sso que Marcel Cauchi:t imputou ao declínio religioso
e que teve como efeito um desencantamento do mundo. Esse processo toca à
questão da distância, interior ou exterior, psíquica, mental; à distância entre os
homens, à distância na relação consigo mesmo. Toca ao que Gauchet realçou nos
seguintes termos: "A distância se faz interior. De fato, a sociedade democrática
está condenada a reintroduzir internamente a distância que ele não mais encontra
na transcendência" (Garapon, 1997= 31). Tal distância, doravante interior à demo-
' As obs.:rva~ôes de ( :arapon se aproximam das que Scwell , em arrigo dedicado ao vocabulário social e
político do Amigo Regime, associou à abordagem jurídica e política uma abordagem ancropológica
para elucidar a import:incia desses termos, bem como enfatizou que, se os historiadores foram sen-
síveis à ordem hierárquica, não d eram a atenção merecida aos termos que a definem (Sewell, 1974).
O exame atento dos "fimdamentos de urna sociedade [sendo] inscritos em sua língua[ ... ] pode nos
escla recer bastante sobre os princípios que ordenam urna sociedade" (eirado por Haroche, 1997: 50).
''A etimologia reflete essa continuidade: gesto é uma palavra tomada de empréstimo (ro8o) do latim
clássico gesttl, 'ações', e, especialmence, 'proeza'; em seguida, gesttl foi utilizada no lacim medieval
no sentido de ' relato', 'história', em títulos de obras históricas, por exemplo, Gesta Francorum.
[... ] Gesto (de gest v. 1213) é um empréstimo do latim gestus, 'aticude', 'movimento de corpo',
Cf. Dictionnaire historique de la langue française (1993). Sobre a utilização de etimologias, ver
Kosdleck (1979).
A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 51
O COMPORTAMENTO DE DEFERÊNCIA:
Alexis de Tocquevi!le
Em 1959, em nora dc rodapé de sua obra consagrada aos ritos de interação, Erving
Goffman agradece a Edward Shils a sugestão de trabalhar sobre o comportamento
de deferência (1974: 51). Goffman vê na deferência um conceito que designa, a
um só tempo, um tipo de comportamento, um sistema de regras de conduta e um
conceito capaz de abranger as interações subentendidas tanto nas relações sociais
1 53
mais cotidianas e insignificantes, "as mfmicas mais fugazes", quanto nos mecanis-
mos institucionais e sociais mais estruturados e visfveis. Poucas linh as lhe bastam
para esboçar o modo de funcionamento e a função da deferência numa sociedade:
"Pela palavra deferência, designo um componente simbólico da atividade humana,
cuja função é exprimir nas regras destinadas a um beneficiário a apreciação a ele diri-
gida, ou a qualquer coisa de que ele é o sfmbolo, a extensão ou o agente (: 50-1)
1
Daniela Romagnoli vê diferença análoga nos tratados de civilidade, que fixam a ex istência de um
vínculo profundo entre a ética e a etiqueta (Rnmagno!i, I995).
54 1 C l. AllD I N E ll i\ RO C ll E
que os separa, a um ponto que muitos antropólogos julgarão excessivo". Goffman,
então, reconhece "afastar-se do uso comum do termo 'cerimônià, carregado de
conotações solenes"(: 49).
A deferência em que ele procura apoiar-se - a deferência cerimonial - é a que se
estabelece entre dois indivíduos no curso de interações breves ou, ao menos, limi-
tadas no tempo. Dá como exemplos as saudações, os cumprimentos e as desculpas,
para acrescentar que "rodo ato de deferência implica, da parte de seu autor, certa
consideração que inclui, com freqüência, uma apreciação global do beneficiário"
(: 52). Observa também que se esse tipo de interação parece relativamente claro,
o sentimento que a acompanha é muito mais obscuro: mesmo "banal", não se
"precisa com facilidade". Assim, a importância desse tipo de sentimento se revela
quando consideramos que Goffman, em muitas passagens, ressalta o papel da de-
ferência obtida junto aos outros para a constituição do eu2 •
Além disso, a expressão de deferência não se limita necessariamente ao momen-
to preciso da cerimônia e nem à deferência formal, tangível, ou seja, ela pode ser
difusa, atenuada e desimportante, mas também difusa e decisivamente relevante.
Há dificuldade em avaliar justamente essa deferência impalpável, porém essencial.
Ao discernir na deferência um mecanismo inerente às sociedades e relativo
a questões que respeitam a cerimônias, ritos e interações, Goffman adota uma
abordagem antropológica e sociológica análoga, em muitos aspectos, à de Herbert
Spencer, para os cerimoniais, e às de Ferdinand Tonnies e Georg Simmel para o
costume (Spencer, 1879; Simmel, 1908; Tonnies, 1909) .
Com os trabalhos de Spencer e os de Tonnies e de Simmel, a antropologia
britânica e a sociologia alemã não só refundaram as bases da primeira como for-
mularam as categorias-chave da segunda (cf. Weber, 1922, tomo 1: 61-3). Esses
trabalhos, valendo-se de um enfoque essencialmente sociológico e antropológico
(com exemplos tirados ora da história, ora da etnologia e do direito), analisaram
profundamente questões como as instituições cerimoniais, as origens dos costumes,
as relações entre estes e a moral, e entre as formas e os conteúdos da sociabilidade.
Permitiram também a inscrição da deferência num quadro teórico geral, em que
foram ressaltados os elementos que a fundam, subentendem, envolvem e inspiram,
ou seja, em que se conformou a questão mais ampla do costume - referimo-nos
aqui à deferência devida aos mais velhos e à tradição.
2
As análises de Goffman são próximas daquelas desenvolvidas em certos trabalhos jurídicos, como
os de teoria moral e jurídica que incidem sobre a dignidade e outras questões relativas ao reconhe-
cimento. É o caso, em particular, dos escritos de Robert Post, que, retomando recentemente as
questões tratadas por Goffman, lembra que "a integridade da pessoa individual depende, em parte,
da observância das regras de deferência" (Post, i989).
A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 55
Com efeito, os textos de Spencer, Tonnies e Simmel, presentes nas análises de
Goffman sobre a deferência, instigam-nos a uma abordagem genérica das formas, dos
conteúdos, das origens e dos modos de exercê-la. Shils, por sua vez, sublinha a neces-
sidade de aproximar a deferência do prestígio, da honra, do respeito, do renome, da
glória e da dignidade. Em conjunto, tais análises nos levam a reconsiderar a questão
do valor social de um indivíduo tanto aos seus próprios olhos 4uanto aos olhos dos
outros, isto é, a questão da auto-estima e, uma vez mais, a problemática dos sentimen-
tos morais. Nessa ótica, pode-se compreender, por exemplo, em que a sociedade do
Antigo Regime difere de uma sociedade democrática no que concerne aos modos de
obter e atribuir a deferência, bem como aos tipos de comportamento e de personali-
dade implicados por ela. Ao passo que sociedades aristocráticas subordinam o valor de
cada um à sua condição, à posição hierárquica que ocupa na sociedade, as instituições
democráticas procuram conformar a idéia de si, atribuir o valor pessoal, em função da
qualidade do ser humano e de seu mérito pessoal (Tocqueville, 1835).
Spencer localiza as origens das formas da deferência nas mais antigas instituições
cerimoniais das sociedades humanas, que precederam todas as formas de organiza-
ção religiosa, jurídica e política. Ele ressalta, sobretudo, que a existência de formas
implicando a subordinação constitui "o faro político mais antigo narrado na his-
tória européia": "Nas épocas em que importava a questão de saber quem deveria
dominar nos pequenos e nos grandes territórios, eram raras as formas de regnlação
instauradas posteriormente pelas formas de governo civil" (Spencer, 1879: 6-7).
Eram constantes, contudo, a submissão e a subordinação como expressões da
humildade e da deferência, traduzidas em gestos, em posturas, na inclinação e,
muitas vezes, na prosternação do corpo. Como Spencer ressalta, os juramentos
de fidelidade aos superiores e as recorrentes manifestações de lealdade, em que
"o vassalo se ajoelhava, descoberto e sem espada diante de seu suserano", eram mui-
to importantes (: 7; cf. também Le Goff, 1991). Nessas cerimônias, a deferência se
traduzia de diversas maneiras, por meio de formas dotadas de intensidade mais ou
menos acentuada, como a prosternação no interior do espaço religioso ou em face
do senhor ou do monarca. Em seu relato, lê-se sobre a "genuflexão em presença
dos ídolos, dos chefes e dos companheiros" e que "descobrir a cabeça é um sinal de
reverência, de lealdade e respeito" (Spencer, 1879: 12).
A importância das cerimônias, no entanto, tende a desaparecer lentamente,
sendo suas funções progressivamente substituídas por regulamentações políticas e
religiosas. Estas, a princípio, insistem "sobre a conduta que exprime a submissão, a
CLAUOINE HAROCHE
obedi ência aos governantes"; em seguida, com a promulgação de regras morais, de-
senvolvem-se e afirmam -se segundo a perspectiva de constrangimentos inrerioriza-
dos e igualmente compartilhados, distribuídos e repartidos. Tais regulamentações,
<JUe se acompanham de uma atenuação das posturas, passam a ser exercidas nas
forma s de conduta entre os indivíduos , em qu e os os preceitos éticos que servem
de guia para os co mponamcnros contribuem, uda vc1. mais, para a rcdw;:io da
esfera das instituições cerimoniais (: 12).
A análise de Spencer, portanto, ajuda a esclarecer o declínio das formas corporais
de subordimção explícita, aspecto ressaltado por Raymond Firth, assim como escla-
rece o processo enfatizado por Goffman, ou seja, a existência de uma continuidade
entre cerimônias e interações cotidianas, "apertos de mão e coroações" 3 • Pode-se, no
entanto, ir além da constatação de que a deferência é apenas uma dimensão consti-
tutiva do cerimonial? Nascida das cerimônias, ela também exprime uma necessidade
elementar, uma disposição fundamental da pessoa, a ponto de Goffman ter sido
levado a pensá-la como um atributo fundamental do ser humano?
Os trabalhos de Simmel e Tonn ies sobre o costume também contribuem para o
encendimenro dos modos de funcionamento da deferência. O primeiro sublinha,
em abordagem análoga à de Spencer, cuja ênfase recai sobre a anterioridade das
cerimônias em relação à religião e ao direito, a existência de um estágio de indi-
ferenciação, em que os costumes constituíam "a única forma de regulamentação".
A seguir, traça um quadro teórico geral do funcionamento das interações sociais,
assim co mo dos métodos de obse rvação para as interações individuais mais intan-
gíveis. É no interior d esse quadro que, mais tarde, Goffman se situa, para distinguir
regras cerimoniais e substanciais, e afirmar que estas se referem à moral e à lei.
Dcsibno tuJo aquilo que se manifesta ncs e entre os indivíduos I...],sob a forma de
tcn<lências, imcress<:s, fins, indinaçôcs, co nformiJade e mobilidade psíquica, como
o conteúdo, a matéria da socialização. A socialização, portanto, é a forma que se
realiza seguindo inumeráveis e dife rentes maneiras, graças às quais os indivíduos, em
virrude de interesses - sensíveis, momentâneos ou duráveis, conscientes ou incons-
cientes [... ] - , se soldam.
Essa vida tão vibrante que liga os seres uns aos omros revel a, para além das formas
de associação que aspiram ao título de vastos organismos, um número enorme de ou-
tras formas, que permanecem de alguma maneira em estado de fluidez e movimento,
mas sobre as quais se fundam as relaçôes dos indivíduos e se form a o estado social.
l'csso;is qu<: s<: ohsnvam, in ve jam-se, corr<:spondcm-sc, jantam juntas, v<:stcm-sc e
enkirarn-se umas para as outras, atraem-se ou repudiam-se, independentemente de
qualquer interesse palpável (Simmel, 19ua: 122 , r9nb: 224).
1
A propc\,ito d o dt:dínio das formas de subordinação, ver Thomas (!991) .
1
' A maior pane <los scnrimcntos morais, hens ou atributos da pcsso:1 ~~o difíce is Jt.: ddlnir de manei -
ra positiva e se torna1n sensíveí.s e perceptíveis apenas quando es tão au.scnre~; . Assim se pass~1 com a
dignidade: percebemos sua necessidade pela falta dela, dos atentados de que é objeto.
58 1 C L 1\ UDINE llt\ROCl!E
Parece-nos oportuno prosseguir o trabalho de Goffman e desenvolver certos
elementos de sua análise, à luz dos escritos de Jean de La Bruyere (1688) e Aléxis
de Tocqueville (1835; r856). Os de La Bruyere sobre a sociedade de corte do século
xv11 constituem fonte de incomparável riqueza para a análise dos comportamentos
e dos caracteres nas lutas de poder, bem como contribuem para elucidar certos as-
pectos subjacentes aos mecanismos mais profundos e, muitas vezes, imperceptíveis
das sociedades 5•
Para além da "sociologia das circunstâncias" pretendida por Goffman, delineia-
se nos escritos de La Bruyere uma antropologia social, que exprime um ponto de
vista moral e ético sobre a qualidade das condutas e dos caracteres; um julgamento
de valor sobre o fundamento e o conteúdo dos comportamentos - e não apenas
sobre suas formas ou regras; e uma sociologia das condições, dos estados e das
qualidades que revela a existência de mecanismos sociais fundamemais 6•
À maneira de Norbert Elias, que desenvolveu, com base nas Memórias de Saint-
Simon, uma análise sociológica dos mecanismos da sociedade de corre, apoiamo-
nos aqui nas observações de La Bruyere sobre os caracteres e os costumes do século
XVII, e na análise comparada que Tocqueville, valendo-se da observação das socie-
dades do Antigo Regime, consagrou às maneiras e aos temperamentos, para assi-
nalar certas sim ilaridades co m aquelas características das sociedades democráticas
(Elias, 1939: capítulo sobre a etiqueta e a lógica do prestígio).
As demonstrações de deferência podem se exprimir e se reforçar por meio de
certos comportamentos, entre os quais um gesto, uma moderação, uma postura,
"uma pose que manifeste insolência ou obsequiosidade", e também pela posição no
espaço, "o fato de passar na frente ou de sentar-se à direita, e não à esquerda de
alguém", afirma Goffman. Mas, ao notar que "pode ocorrer de o suposto benefi-
ciário não receber os sinais de deferência que esperava, ou perceber que os recebe
com evidente má vontade"; ou ainda que, "às vezes, um indivíduo estime que a
deferência que lhe testemunham não lhe é apropriada, seja porque o situa muito
'Atendo-se ao mérito , Roland Banhes sublinhou que "ao menos a metade das classes de objetos
referidas por La BruyCre não tem mais do que uma existência vetusta; ninguén1 hoje faria um ca-
pítulo sobre as mulheres, o mérito ou a conversação: ainda que continuemos a nos casar, a 'vencer
na vida' ou a falar, esses comportamentos passaram para ourro nível de percepçfo". E acrescentou:
"Se chegamos a pensu no 'caráter' de alguém, é para experimentar a universalidade insignificante
(o desejo de promoção social, por exemplo) ou a complexidade intraduzível (quem ousaríamos
hoje chamar de enfatuado?), para concluir: "Em suma, o que mudou do mundo de La Bruyere
ao nosso é o que é digno de se r notado: nós não percebemos mais o mundo como La Bruyêre"
(Ban hes, 1964).
1
··frabalhos de teoria moral e política têm-se preocupado com os conteúdos de comportamenros em
matéria de dignidade, respeito ou reconhecimento. Ver Walzer (1983) e Honneth (1996).
7 Adam Smith se referia à origem da corrupção dos sentimentos morais nos seguintes termos: "Essa
disposição a admirar e quase venerar os ricos e os poderosos, assim como a desprezar ou negli-
genciar as pessoas pobres e de condição humilde, ainda que necessária para estabelecer e manter a
distinção entre as hierarquias e a ordem na sociedade, é ao mesmo tempo a causa maior e a mais
universal da corrupção de nossos sentimentos morais. Os moralistas de todas as épocas lamen-
taram que a riqueza e a grandeza fossem freqüentemente olhadas com o respeito e a admiração
devidos unicamente à sabedoria e à virtude" (Smith, 1759: 103).
60 1 CI.AUDINE HAROCHE
O cortesão é alguém que se agita, circula, desloca-se, esquiva-se; tem personali-
dade murável e inconstante, inatingível, cuja impressão é ser mais instável do que
realmente é: seu natural é não ter personalidade. Fala ou se cala, mas não diz e não
deixa escapar nada de realmente importante. Observa, espia, para, enfim, lançar-se
e ocupar o bom lugar. Comporta-se sem moderação, sem reservas, sem tato. Sua
força está no que não sente, em nada sentir. Por isso, não acha que importuna,
atrapalha ou incomoda. Não se sente bem ou mal: desconhece limites, não se
pergunta sobre o que experimenta, ou o que os outros sentem em relação a ele.
Não observa a diferença entre os lugares, os espaços, as situações, as condições e
as pessoas: é indiferente, cheio de si mesmo, satisfeito consigo próprio, auto-sufi-
ciente. Raramente, trata-se de alguém a quem se é indiferente, porém não é amado.
É mais ou menos suportado e tolerado, algumas vezes remido, e dá a entender que
não se importa com nada disso.
Desprovido de olhar, paiavra, sentimentos e atenção, Mopse pode visitar pesso-
as que não conhece. Para atingir seus objetivos, segue sempre a mesma via: vigiar-
se, controlar-se, ser falso, alternar entre a falta e o excesso.
i'.lc roga a P'"'soas que não conhece para lcv;í-lu na casa <le outras, onde não é conhe-
cido. Insinua-se no círculo das pessoas ~espeiráv.:is, que não sabem como ele é, e lá,
sem esperar ser interpelado, sem sentir qüe interrompe, fala sem parar e de maneira
ridícula (La Bruyêrc 1688: w2).
Nada o atinge, roca ou fere; nada o demove de suas investidas. Sem profun-
didade, ele nã.o tem pudor, dignidade, honra ou vergonha. Ignora a ordem das
deferências, apesar de con:1ecê-las com perfeição. Utiliza-se dela, manipula-a em
proveito próprio, para se insinuar, introduzir-se, apropriar-se. Celse, do mesmo
modo, conhece rodas as pequenas práticas que permitem participar de um deter-
minado círculo: "as pessoas importantes o suportam, ele não é douto, mas mantém
relações com os sábios; possui poucos méritos, mas conhece pessoas que os têm
em profusão" (: 103)
O que faz exatamentt? Como procede? "Ele não faz nada, diz e escuta o que os
outros fazem" (: w3). Abusado e grosseiro, seu comportamento permite desvelar as
rivalidades entre os cortesãos. Drance quer ostentar a proximidade, preencherdes-
se modo a distância que o separa dos mais importantes - literalmente -, intervir
nas posturas e nas reservas, e dessa forma se antecipar, pela proximidade espacial,
simbólica e psicológica, a seus rivais.
Servil e dominador, perverso, Drance "quer dar a entender que governa seu
senhor". Estuda as poses, mas é preciso que se interponha e interrompa os outros;
chega a "falar sem parar a um senhor [a quem serve] nos lugares e horas menos
convenientes, dizer-lhe algo ao pé do ouvido ou em termos misteriosos, rir às
A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 61
gargalhadas em sua presença, interromper-lhe". É preciso que se posicione, "que
se ponha entre ele [o senhor] e aqueles que lhe falam"; para isso, é necessário que
persista e manifeste-se com constância, que, teimosa e obstinadamente, dissuada,
desencoraje, afaste, despreze, "desdenhe aqueles que vêm fazer a corte [ao senhor]
ou espere com impaciência que se retirem, permanecendo perto dele e ostentando
uma postura descuidada, tocando-o e dando a impressão de lhe ser fam iliar, to-
rnando liberdades" (: 144-5).
A finalidade de rodos esses movimentos e deslocamentos, de toda essa agi tação,
é conquistar, manipular, dominar. Atingir a posição ambicionada, instalar-se: e
nela manter-se. É preciso, portanto, que manifeste excesso ou falta de atenção, de
sensibilidade em relação às pessoas, às situações ou às circunstâncias: ele ignora a
polidez e as precedências.
Até que ponto a grosseria pode ir? Troi'le pode "franzir a testa", "desviar o
olhar":
Abordado, não se levanta; se sentam perto dele, ele se afasta; se falam com ele, não
responde; se insistem em lhe falar, muda de aposento; se lhe seguem, sobe as escadas;
subiria andar por andar, preferiria jogar-se pela janela, a rcun ir-se com alguém que
tem um rosto ou um tom de vo7, que desaprova(: 154).
Fascinado pelos notórios, Pamphile quer ser um deles. Existe apenas nas proxi-
midades e sob o olhar de alguém mais importante. Pensa unicamente nas prerro-
gativas e dignidades. É obcecado pela idéia de grandeza, de sua própria gra ndeza,
de ser visto r reconhecido: que vergonha ser visto com um homem simples, um
pobre, um homem obscuro, sem relações!
Se, por vezes, sorri para um homem inrcrior, para um i;aiato, de o faz num rcmpo
tão curro, que nunca é pego em tal ato: o rubor lhe subiria à face se fosse , por uma
infelicidade, surpr~endido numa situação íntima com alguém que não é opulento ou
poderoso, nem am igo de ministro, sc11 aliado ou tampouco empregado (: 264- 5).
A CONDIÇÃO SEN!)ÍVEL
se sente rebaixado procura alguém proeminente para conseguir amar a si próprio
ou, ao menos, suportar-se.
Trata-se, aqui, de um desvio da auto-estima? Nesses termos, o cortesão seria um
homem inconsistente, sem qualidades particulares, oco, vazio, que vive a experi-
mentar para existir, tanto aos seus olhos quanto ao olhar dos outros, que necessita
se engrandecer, à custa de aiguém que lhe é superior.
O que fazer, interroga-se La Bruyere, "contra uma doença da alma tão impeni-
tente e contagiosa"? Esquivar-se da dependência em relação aos poderosos: aspirar,
procurar - ou, ao menos, suportar - a igualdade e, então, amar o igual, o seme-
lhante. Ou ainda, aceitar ser aquilo que se é, não procurar, nem se obstinar em
ser mais, em possuir mais. "Contentemo-nos com pouco e com menos aind~, se
possível for; saibamos, eventualmente, perder: essa receita é infalível" (: 266).
Haveria aí uma máxima profunda, que incita ao respeito de si próprio, condi-
ção para respeitar o oucro e evitar "ser posto porta afora pela multidão inumerável
de clientes ou de cortesãos que deságua na casa de um ministro várias vezes ao dia;
postar-se em sua sala de audiência; pedir-lhe uma coisa justa tremendo ou balbu-
ciando, suportar sua gravidade, seu sorriso amargo e seu ar lacônico"?
Condição e exigência para não mais odiar e invejar, levando à idéia de uma
deferência igualitária:
Ele não me faz nenhuma solicitação, nem eu lhe faço; somos iguais, talvez [o mais
importante] não esteja tranqüilo, porém eu estou. Há uma filosofia que nos faz ne-
gligenciar os cargos e aqueles que nos proporcionam esses cargos; que nos isenta de
desejar, pedir, rogar, solicitar, importunar(: 266, 366).
64 1 CLAUDINE HAROCHE
As sociedades democráticas suprimiram as cortes, mas terão conseguido banir
"os conchavos, as intrigas, as disputas, a baixaria, a adulação'', e instaurar "a digni-
dade em homens de rodas as classes, a serenidade em seus rostos"?
As instituições democráticas que pretendem "dar aos homens uma ampla e genéri-
ca idéia deles próprios" conseguiram afastar os aduladores e obsequiosos, permitin-
do-nos repensar a ordem da deferência, essa ordem que fazia alguns recebê-la mais
do que outros? Os cortesãos, tipos de caráter do século XVII, encorajados por um
certo tipo de sociedade, perdurariam em outras formações sociais?
A esse respeito, a leitura de Tocqueville é esclarecedora, quando evoca 1789 e
as instituições democráticas que "querem não apenas destruir os privilégios, mas
também reconhecer e consagrar direitos". A deferência teria lugar neste projeto?
É possível falar de deferência igualitária?
Um dos capítulos menos comentados de A dc-mocracia na América está no centro
dessa discussão. Nele, Tocqueville aborda a questão da austeridade dos americanos,
para a qual vê duas causas: a primeira, o orgulho e a elevada idéia de si próprio;
a segunda, "mais íntima, mais poderosa'', diz respeito ao fato de que nada parece
estar fora de seu alcance. "Acredito que a austeridade dos americanos nasce, em
parte, de seu orgulho'', escreve, para acrescentar que, "nos países democráticos,
mesmo o pobre tem uma devada idéia de seu valor pessoal", o que afasta a vergo-
nha originada de uma posição social inFerior, presente nas sociedades não igualitá-
rias do Antigo Regime (1835-40, cap. xv: 187).
Os americanos se preocupam com a austeridade na apresenração que fazem de
si: é preciso ser grave para ser - ou parecer - digno. A austeridade não é facilmente
acompanha de afetação e remorso? Não tenderiam os americanos a experimentar
em relação a si mesmos o que o cortesão sentia em relação aos mais importantes:
o amor pela grandeza, por sua própria grandeza, deixando entrever a auto-sufici-
ência, que se exprimiria numa atitude austera? A austeridade que emana de uma
atitude contida, a impressão que ela provoca seriam um dos meios de exprimir a
deferência, assim como de obtê-la.
Nesses termos, as instiwiçõcs dcmocdticas parecem encorajar certos traços de
comportamento, caráter, temperamento e humor, entre os quais a gravidade, a se-
riedade, a austeridade, na condição de meios de traduzir e atribuir-se auto-estima.
Ora, essa auto-estima, essa deferência compartilhada, é um mecanismo paradoxal,
uma vez que aparece como efeito e também como causa, um elemento que per-
A CONDIÇÃO SENSÍVEL
mite nivelar as condições, mas também o auto-engrandecimento e a ausência de
limites individuais.
O orgulho que explicaria a austeridade dos americanos, como observa Tocque-
ville, tem sua origem no método filosófico, que consiste em "situar apenas neles
próprios as regras de seu julgamento" (: 14). Ela conduziria à igualdade e teria
conseqüências sobre a existência e a expressão da deferência nas sociedades demo-
cráticas. Tocqueville, contudo, assinala outra causa, que considera "mais íntima
e mais poderosa". É ela que "produz instintivamente nos americanos essa auste-
ridade surpreendente". Desde então, todo bem é acessível àquele que vive numa
democracia. Agitado, apressado, intempestivo, auto-suficiente, arrogante, "ele faz
todas as coisas de forma apressada, contenta-se com mais ou menos, e pára não
mais do que um instante para considerar cada um de seus atos" (: 187-8).
Ocupar-se incessantememe, agir de forma inconsiderada, conceder pouco tem-
po e atenção às atividades, às interações, enfim, às pessoas: "os povos democráticos
são austeros porque seu estado social e político os ocupa incessantemente [... ],
agem de modo inconsiderado porque dão pouco tempo e atenção a cada uma
dessas coisas [ ... ]. O hábito da desatenção deve ser considerado o maior vício do
espírito democrático" (: 188).
Ora, a deferência, quer decorra da amabilidade, da urbanidade, do prazer das
maneiras suaves e agradáveis, quer participe de um mecanismo sociológico, com-
porta uma parte intrínseca e irredutível de atenção (autêntica ou aparente) que
pode ser mal utilizada nas democracias. Desatenção, pressa e orgulho próprio,
auto-estima que se alimenta do olhar dos outros, e que se exprime na preocu-
pação com a independência, na afirmação da autoconfiança e, em seguida, na
arrogância e na auto-suficiência, valorizam de forma excessiva a apresentação de si.
A sociedade democrática, que tolera e promove a desatenção, pode, então, encorajar -
ou, ao menos, deixar que se instale - a indiferença, a inércia. Daí em diante, são
esses os perigos que ameaçam as democracias.
No Antigo Regime, concedia-se a atenção em função das condições e das hie-
rarquias, e a maioria das pessoas, de fato, não recebia qualquer tipo de atenção.
Na democracia, a atenção deve ser igualmente distribuída: cada indivíduo deve
receber sua parte, porém, ao mesmo tempo, a pressa e o orgulho fazem com que
eia não seja mais tão ·;alorizada.
O fato de a deferência sofrer desvios foi algo a que o pensamento de La Bruyêre se
mostrou sensível, assim como o de Tocqueville, que se ateve a outras causas: a uma auto-
confiança excessiva - provavelmente aparente-, encorajada por uma contínua inciração
a modos de funcionamento e a valores exclusivos das sociedades democráticas. Dessa
forma, a desatenção se torna apanágio de rodos. Mas se a atenção é um componente
da deferência, como fazer para respeitar o semelhante, o igual, de maneira desatenta?
66 1 C l.Al/DI N E ll A RO C llE
Tocqueville busca compreender a ausência de deferência nos americanos e cons-
tata, em primeiro lugar, que eles "se moldam por outro costume". Nas sociedades
do Antigo Regime, o costume em relação à deferência era imposto do exterior,
em função das hierarquias e das condições; o dos americanos consiste em "situar
apenas neles próprios as regras de seu julgamento, o que leva seu espírito a outros
hábitos". Nessa ótica, cada indivíduo se apóia unicamente em si mesmo.
A seguir, ele diz: "é ao seu próprio testemunho que eles têm costume de se refe-
rir"; conseqüentemente, "apreciam ver com muita clareza o objeto de que se ocu-
pam; eles o retiram, portanto, tanto quanto possível, de seu envoltório, afastam
tudo que o separa deles e que o esconde dos olhares" (: 14). Será essa a razão pela
qual os americanos não apreciam as formas, nem as formalidades, e vão direta-
mente ao ponto? "Esta disposição de espírito os conduz rapidamente a desprezar as
formas" e, com elas, aquelas próprias à deferência, que supõem o reconhecimento
de uma ordem.
Devemos concluir, portanto, que é o sistema de deferência - seus modos de
atribuição, obtenção e repartição - que, ao se modificar, muda de sentido; que, ao
ser submetido à igualdade de condições, absorve os progressos do individualismo,
ou que, ao contrário, é a própria noção de deferência que tende a desaparecer com
a igualdade de condições? A esse respeito, Tocqueville ressalta uma conseqüência
teórica, social e política presente na noção de revolução: toda revolução tem como
efeito, em maior ou menor proporção, "remeter os homens a si mesmos e abrir no
espírito de cada um deles um espaço vazio e quase ilimitado" (: 17). A liberdade e
a igualdade fazem com que eles abandonem as formas tradicionais de dependência
e de deferência, o costume de se inclinar diante da opinião dos antigos ou dos
poderosos, incitando-os a terem-na por si só.
O que isso quer dizer? Trata-se apenas de rejeitar a deferência institucional ou
de uma recusa de toda deferência? É a possibilidade do respeito devido a cada
homem que se delineia aqui, mas de modo algum a garantia ou a certeza desse
respeito. Todas essas disposições psicológicas, todos esses sentimentos, são opos-
tos ao exercício da deferência, ao reconhecimento de uma ordem das deferências.
Tocqueville conclui nos seguintes termos: "Cada um busca, então, bastar-se, em-
penhando-se em ter sobre todas as coisas crenças que lhe sejam próprias" (: 18).
Não deve surpreender, pois, que a democracia, apesar de ter tornado as relações
cotidianas entre os americanos mais simples e fáceis, "não tenha associado mais
fortemente os homens uns com os outros".
Quando a ordem das deferências se estabeleceu em função do nascimento, o
sistema subjacente era preciso e manifesto: cada qual conhecia a sua posição na es-
cala social, "não [procurava] ascender'', "não [temia] ser rebaixado". Nas lutas que,
opondo diferentes classes sociais, precedem a igualdade de condições, Tocqueville
A CONDIÇÃO SEN S Í V EL
discerne "a inveja, o ódio e o desprezo pelo semelhante, o orgulho e a confiança
exagerada em si mesmo" (: 18, 149).
Suprimidos, os privilégios se reconstituem: as lutas para a obtenção de deferên-
cia, valor e utilidade social perduram sob outras formas.
Estabelece-se, então, uma guerra surda entre todos os cidadãos; uns, esforçando-se,
por meio de mil artifícios, para penetrar, na realidade ou em aparência, entre aqueles
que estão acima deles; outros, combatendo sem descanso, para repelir esses usurpa-
dores de seus direitos; ou, o que é mais comum, o mesmo homem fazendo as duas
coisas; enquanto procura introduzir-se na esfera superior, luta sem rréguas ccnrra o
esforço dos que vêm de baixo (: 149) .
68 1 CLAUDINE HAROCHE
Tocqueville rraça o percurso que vai do estado social e das instituições políticas
da Idade Média às instituições democráticas, um percurso que parte da dependên-
cia, da fidelidade , da deferência a um homem particular no interior do mundo
foudal. "Nas sociedades feudais, roda ordem pública se apoiava, portanto, sobre o
sentimenlO de fidelidade à pessoa do senhor" As sociedades democráticas, em que
"cada um busca se bastar", modificam substancialmente as formas e a própria idéia
de deferência? 'focqueville, que vê relações estreitas entre honra, glória, considera-
ção e deferência, observa que, nas democracias, os homens são "mais descuidados
com sua hollía", porém acrescenta: "idéia sutil e talvez falsa" (: 151).
É precisamente sobre esse tipo de questão que Edward Shils se debruça no fim
dos anos 1960. Ao constatar "uma atenuação da deferência explícita", "uma indife-
rença em relação a ela" nas sociedades democráticas contemporâneas, ele procura
saber se a deferência persiste nas relações entre iguais. Para el e, apesar de a minúcia
do ritual tender a desaparecer, a deferência não cessa de existir: "Ela sobrevive sob
uma forma difusa e impalpável que penetra todas as relações, por meio do tom
dos discursos, da postura, da precedência" (Shils, 1974: 230-1). Em seus termos,
era preciso adotar outra 2bordagem - até então pouco desenvobida - para estudar
a deferência: abordagem que considerasse o fato de que a deferência está "estreita-
mente ligada não só a fenômenos como prestígio, honra, respeito, renome, glória,
dignidade", mas também, e inversamente, "à obscuridade, à vergonha, à desonra,
ao desrespeito, à infâmia e à indignidade"(: 230-r).
Defrontamo-nos aqui com um espaço que não é facilmente apreendido. Espaço
em que entrevemos as necessidades permanentes e gerais sugeridas por Tocqueville,
nas quais se articulam os comportamentos e os sentimentos, e se exprimem, ou
ao menos se revelam, os sentimentos morais, individuais. Trata-se de sentimentos
pouco explicitados, mais vivenciados do que di1os - às vezes, difusos e mesmo
indefinidos, que não são facilmente qualificáveis por aqueles que os observam ou
pressentem, nem mesmo por aqueles que os sentem. Sentimentos que podem ter
inspirado acontecimentos políticos importantes e que, hoje, inspiram movimentos
políticos decisivos, entre os quais aqueles relativos às políticas de reconhecimento.
É possível ultrapassar a descrição empírica do uso dos títulos, das honras e dig-
nidades, e também dos sentimentos inferidos pelas post uras, para precisar certas
constantes ligadas às sociedades humanas, à pessoa humana? Compreendem-se as
razões pelas quais os homens gostam de se distinguir? Trata-se de uma necessidade
de engrandecimento de si mesmo ou de algo que fundamentaria o próprio senti-
mento mesmo de existir?
Gestos ou posturas podem provocar impressões, induzir sensações, refletir uma
disposição psicológica ou determinado estado de espírito. Compreendemos, as-
sim, o interesse em estudar expressões, atitudes corporais e gestos, como ressaltado
A CONDIÇÃO SENSÍVEL
por Raymond firth em sua pesquisa sobre as atitudes e os gestos de respeito.
Ao passo que a honra, a consideração, o reconhecimento, a auto-estima, o respeito
e a deferência se constituíram em objeto das reflexões morais nos séculos XVII e
XVIII, as atuais teorias moral e política fazem da deferência um tema central das
reivindicações de reconhecimento e respeito.
A releitura de um autor como La Bruyere ganha todo o sentido, quando a moral
e a ética intervêm para lembrar a importância do olhar social: o temor, a baixeza,
a covardia que esse olhar estim ula e reforça, ou sobre os quais se cala. La Bruyere
discerniu a ambigüidadc e a duplicidade dos cios entre auto-estima e estima do
outro, afirmando que "estimar-se corresponde a iguahr-se": "quantas pessoas que
amam e enchem você de mimos na vida privada se sentem incomodadas em públi-
co e, ao levantar para sair ou na missa, evitam olhá-lo e encontrá-lo?" (La Bruyere,
1688: 224).
Retomemos, uma última vez, as preocupações de Goffman, ao reconhecer que a
"banalidade" do sentimento que acompanha a deferência não torna mais fácil a ta-
refa de "defini-lo com precisão". E, igualmente, o pensamento de Firth, ao obser-
var que, embora "a antropologia social moderna não se tenha afastado em demasia
da realidade empírica", tem demonsrrado mais interesse por "modelos do que por
comportamentos; por símoolos mais do que por hábitos e costumes" (hrt h, 197r
163). Não conviria dar novamente importância à observação e à qualificação dos
comportamentos e dos sentimentos morais?
70 1 C! .Al i DI NE !l :\ROCllE
PARTE II
FORMAS, FORMAL,
INCREMENTO DO INFORMAL
O DIREITO À CONSIDERAÇÃO.
jean-Jacques Rou;;eau
73
às expressões sociais de honra e, ao mesmo tempo, ao mérito pessoal traduzindo
qualidades interiores.
Ao retomar as diferenças evocadas, Montesquieu observa que "as qualidades
reais", a probidade, a boa-fé, a modéstia, "constituem apenas um mérito geral", de-
masiado discreto, instável e episódico, pois é preciso, como sublinha, "uma distinção
para o instante presente"(: 120). Distinguir-se constitui um fim constante, contínuo:
"Não nos é suficiente distinguirmo-nos durante o curso de nossa vida; queremos ain-
da nos distinguir a cada instante e, por assim dizer, nos pormenores" (: 120)
CORTESIA E CONSIDERAÇÃO
2
Os tratados de civilidade erasmianos e cristãos incitaram, a parcir do século xiii , à manifestação
de apreço e de respeito em relaçio ao outro. Esforçaram-se em definir a urbanidade, a cortesia. a
polidez, a preocupação com a ccosideraçáo. As civilidades de corte, ba;rocas , ao insistir ,,,hretudo
nos gestos de consideração, nas marcüs de respeito, preocuparam-se cotn a ho nra, a estima püblica,
os sinais exteriores e visíveis de rrivilégios, revelando, desse modo, uma ordem desigual da consi-
deraç2o expressa em relação a .:!I da um. Sobre os uacaJus de c ivilidade, ve r, e m panicular, Charti c r
{1987) e Romagnoli (1995).
·' Gostaria d e precisar que utilizar<i indiferentemente os termos reconhecimento e wnsideraçáo. Serei
igualmente levada a me referir à; quesrões de honra, respeito e dignidade. Ainda que esses termos
sejam empregados em épocas, contextos e fins diferentes, possuem um elemento comum, subli-
nhado por Walzer: trata-se de termos de valorização (Walzer, 1983).
A CCN01ÇÁO SENSÍVEL 1 75
DESEJO DE PREEMINÊNCIA, DIREITO À CONSIDERAÇÃO
Condutas corporais, posições espaciais e sinais são elementos fundadores das ins-
tituições: permitem retraçar seus processos e modos de funcionamento (Haroche
e Momóia, 1995). De modo geral, escreve Hobbes, "fazer a alguém aquilo que é
considerado por ele um sinal de honra ou que é estabelecido como tal pela lei ou
costume equivale a honrá-lo" (Hobbes, 1651: 85) .
Impõe-se aqui a referência a Rousseau, que localiza o desejo e, mais do que isso,
a necessidade de consideração e de estima pública no momento em que os homens
começam a viver juntos, em sociedade. Poucas palavras lhe bastam para narrar a
emergência da consideração: "Cada um começou a olhar os outros e a querer ser
olhado por eles: a estima pública começou a ter valor". Assim, constata que "o
mais bonito, forte, ágil ou eloqüente" se tornaria "o mais considerado" (Rousseau,
1754: 210).
O hábito de comparar, observar, perceber e estabelecer diferenças em socie-
dade produziria "sentimentos de preferência" e conduziria, portanto, à idéia de
mérito. Penso que é precisamente nesse ponto que Rousseau prolonga a reflexão
de Montesquieu: "Deu-se aqui o primeiro passo em direção à desigualdade" (:
210), impondo-se esta conclusão: não pode existir igualdade na consideração e no
reconhecimento.
Ao desenvolver o tema da consideração, Rousseau afirma que ela seria indisso-
ciável da visibilidade, do desejo de ser visto pelo maior número de pessoas. É do
olhar, da necessidade de ser olhado para ser considerado, e mesmo para existir, que
nasce, de modo inevitável, a desigualdade. Com isso, observa haver "uma espécie
de homens para os quais importam os olhares do resto do mundo, que se tornam
felizes e ficam contentes consigo mesmo pelo olhar dos outros mais do que pelo
próprio olhar". 6 Nesse momento, Rousseau afirma a necessidade do olhar social e
a exigência de autenticidade do eu, ligadas à interioridade de cada um.
A própria origem da desigualdade no estado de natureza e no estado de socieda- /
de se encontra, portanto, inscrita na natureza do homem, no olhar, na necessidade
de estima: a inevitável rivalidade nascida da vida em sociedade não pede demons-
tração, pois é algo evidente. "Assim que a idéia de consideração se formou nos
espíritos, cada um pretendeu ter direito a ela [... ] e deixou de ser possível que ela
faltasse impunemente a alguém" (: 210). Rousseau nos alerta contra a tentação de
ver na consideração um direito. Com o exemplo do laço que une pai e filho, lem-
bra que se deve ver aí tão-somente um dever, um dever de civilidade. Com o passar
6
Rousseau ressalta a dependência em relação ao olhar social, à sociedade, reconhecendo nesse ato a
necessidade da consideração do outro.
CLAUDINE HAROCHE
do tempo, "o filho, totalmente independente do pai, deve-lhe apenas respeito [... ],
pois o reconhecimento é um dever que é preciso prestar, mas não um direito que
se possa exigir" (: 224).
Roussea u se esforça para trazer à tona os mecanismos profundos dessa neces-
sidade de reconhecimento e de consideração: a "concorrência", a "rivalidade", o
desejo de superar seus se melhantes, o gosto não tanto da excelência, e sim da
preeminê ncia. É preciso perceber na consideração "menos uma verdadeira neces-
sidade, ou um desejo profundo e legítimo", e mais o desejo de "se pôr acima dos
outros", "o desejo velado de tirar proveito em detrimento de outrem" (: 235-6) .
Esses "males", segundo Rousseau, alimemariam e estimulariam a desigualdade nas-
cente, levando à competição e à lura pelo reconhecimento. Mona Ozouf chama a
atenção para o fato de "que uma igualdade abstrata e impalpável [... ] se torna em
Rousseau a norma ideal tanto da vida coletiva quanto da vida pessoal, ao passo que
uma desigualdade dissimulada e constantemente reposta tende a se reconstituir em
todos os lugares [... ]" (Ozouf, 1988: 148).
As lutas pela consideração constituem o cerne "dos debates que querem su-
primir as desigualdades e os privilégios" 7 • A consideração é igualmente central
nas reflexões de Sieyes, em seus combates contra as prerrogativas. Nascidos, por
definição, da desigualdade, os privilégios representam também urn dos elementos
da consideração, pois asseguram e garantem certas formas de expressão. Assim,
podemos perceber em sua célebre interpelação: "Eu reclamo não a perda de um
direito, mas a sua restituição" a exigência de um direito ao privilégio para todos;
um mesmo direito à consideração, ao reconhecimento 8 •
Apesar de não transigir sobre a igualdade de direitos, Sieyes reconhece a exis-
rên cia de uma d es igualdade em matéria de talentos. Procura abordar a questão dos
privilégios e dos méritos, distinguindo o que chama <le "posição correta" dos "fru-
tos do talento". ''A lei comum [... ] não impede que cada um, seguindo suas facul-
dades naturais e adquiridas, seguindo acasos mais ou menos favoráveis, aumente
sua propriedade com tudo o que a próspera sorte ou o trabalho mais fecundo pode
nela acrescentar, e consiga, sem ultrapassar o espaço legal, elevar-se ou compor a
felicidade de forma mais próxima de seus gostos e mais digna de inveja". Adverte,
-. Aspecto ressaltado por François Furet e Mona Ozout: que veem na ausencia de consideração, na
humilhação, um dos motivos determinantes da Rerolução. "O mowr da Revolução foi, com
efeito, [... ] a revanchc contra a humilhação, o remédio aos sofrimentos do amor próprio" (Furer
& Ozouf, 1988: 140).
8
Para Sieyes, "é certamente verdade que, na França, não somos nada quando temos para nós apenas
a proteção da lei comum. Se não se possui algum privilégio, é preciso se d ecidir a suporta~ o des-
prezo, a injúria e os vexames de toda espécie" (!988: 45).
A CONDIÇÃO SE N S ÍVEL 1 77
no entanto, que "a lei, ao proteger os direitos comuns de rodo cidadão, protege
cada cidadão em tudo o que ele pode ser, até o ponto em que suas tentativas pas-
sam a ferir os direitos de outrem" (: 148).
O reconhecimento compreendido como o respeito liminar a todo ser humano
deve ser considerado um direito natural e formal. Pode-se conceber, todavia, o
direito a uma consideração concreta? O reconhecimento ligado ao trabalho, aos
talentos e ao mérito, desigual por definição, poderia ser apenas desigualmente
repartido, distribuído. Dessa maneira, o reconhecimento poderia constituir-se
apenas num direito abstrato.
Sieyes, a exemplo de Rousseau, vê na consideração a necessidade de hierarquia,
a vontade de se distinguir: "Vocês se importam menos em serem distinguidos
por seus concidadãos do que em distinguir-se deles" (Sieyes, 1788: 98). O desejo
de estar acima, de ocupar uma posição preeminente, difere da reivindi cação ao
respeito, da aspiração moral e ética a ser estimado. "Não é à estima e ao amor de
seus semelhantes que vocês aspiram; ao contrário, vocês só obedecem [... ] a uma
vaidade hostil contra homens, cuja igualdade lhes fere" (: 99). 9
Vê-se aqui a necessidade de distinguir "a superioridade dos privilégios", que Sieyes
qualifica de "absurda e quimérica", de outra forma de superioridade, "legal", e que
"supõe apenas governantes e governados"(: 103). O abade separa a questão da ordem -
necessária - daquela da desigualdade: uma é politicamente real; a outra, relacio-
nada à condição humana, inevitável. "Ela não envaidece a alguns, nem humilha
outros; trata-se de uma superioridade de funções, e não de pessoas" (: 99)
9
"A necessidade de ser o primeiro, um desejo insaciável de dominação. Este desejo, infeli zmente rão
análogo à constitui ção humana, é uma verdadeira doença anti-soc ial " (S icyes, 1788 : 99).
CLAUD I NE HAROCllE
Esses temas foram reformulados nos anos 1985- 1990, nos campos da antropo-
logia social e da antropologia, da ciência e da teoria políticas'º· Michael Walzer
(1983), Charles Taylor (1992) e Jean Cohen (1996) tratam, com base em enfoques
diversos, as exigências de respeito nas sociedades democráticas contemporâneas.
Seus trabalhos, preocupados com temas relativos às minorias, às identidades polí-
ticas ou à consideração da e das diferenças nas democracias, trazem à discussão, de
maneira fundamental, a necessidade e as estratégias de reconhecimento, com vistas
a uma política identitária.
A busca de reconhecimento, elemento comum em todos eles, seja nas socieda-
des não igualitárias do Antigo Regime, seja nas sociedades democráticas contem-
porâneas, evidencia-se na continuidade entre as políticas de reconhecimento, tal
como abordadas por Walzer ou Taylor, e a deferência tratada por Shils ou Goff-
man, ou ainda o direito à honra analisado por Frank Henderson Stewart (1994).
O que se apresenta como novidade nas sociedades contemporâneas é a insistente
explicitação da necessidade de reconhecimento, de um direito ao reconhecimento:
a tentativa de concretizar, de codificar um direito à consideração, afirmar vínculos
entre o Direito e os sentimentos de auto-respeito e de respeito ao outro, entre
os sentimentos e a própria idéia de justiça (Walzer, i983; Taylor, i991; Haroche e
Montóia, 1995). Nesse contexto, emergem movimentos que, partindo das m ino-
rias e do multiculturalismo, procuram promover, de maneira sistemática, o direito
a inscrever o reconhecimento e a consideração em novas legislações.
As tensões e os paradoxos que atravessam a construção problemática das identi-
dades políticas nas sociedades contemporâneas fazem ressurgir essas questões com
acuidade, atestando a importância e, de modo mais preciso, o estatuto a ser atribuí-
do ao reconhecimento: devemos reconhecer nele uma necessidade indeterminada,
indeterminável, porém contínua e fundamental? E, indo um pouco mais longe,
um direito concreto que decorra e se traduza em legislações específicas?
Nos anos 1970, Edward Shils viu na deferência e no respeito elementos essen-
ciais da estratificação social. Na primeira, percebeu inclusive "o fundamento da
formação das classes. Em todas as sociedades, mesmo nas democracias", existe uma
inevitável "estratificação da deferência" . Assim, suas manifestações reconhecem "a
dignidade ou a falta de dignidade". Em suas palavras, "a dignidade consiste em
aigc obscuro. [... ] Poderíamos dizer que o desejo 'de ter valor' é uma 'necessidade'
dos seres humanos" (Shils, 1975: 277, 285).
Na mesma época, Goffman buscou esclarecer a maneira pela qual a considera-
ção se traduz nas interações face a face e, em particular, nos momentos de enfren-
10
O que Marc Augé, em particular, designa por antropologia das sociedades contemporâneas (Augée,
1994). Sobre a questão do reconhecimento, ver Honneth (1996).
A CO N DIÇ ÃO SEN S ÍV EL 1 79
tamento, em que cada qual tende a se conduzir de maneira a salvar a própria pele.
"O que uma pessoa protege e defende é uma idéia de si mesma": cerra dignidade
(Goffman, 1974: 40) 11 •
Ao retomar recentemente as questões sublinhadas por Goffman, Robert Post
lembra que as regras de civilidade têm por objetivo garantir o respeito de cada
um (Post, 1989). Assim, ressalta que "cada sociedade enuncia as regras de civili-·
dade que garantem o respeito da esfera privada, individual". Como sugere Post,
"a integridade da personalidade individual depende em parte da observância das
regras de deferência'', ou seja, "a violação das regras de civilidade traduz uma falta
de respeito para com a dignidade da pessoa", uma vez que "os direitos da pessoa
privada protegem e mesmu .::ontribuem par<1 estruturar as formas de reconheci-
mento mútuo e elaborar os rituais sociais pelos quais a identidade de cada um é
reconhecida" (: 252).
Todos esses trabalhos, ao tratar de questões aparentemente diversas, remetem
essencialmente à questão do reconhecimento e da dignidade, levando-nos, assim,
à problemática dos direitos da pessoa e da personalidade. Enquanto Goffman se
preocupa com os comportament0s e eafatiza o papel da apresentação de si nas
interações sociais, o autodomínio para ganhar o respeito do outro, Michael Walzer,
apoiando-se em textos do século XVIII, considera os comportamentos indissociáveis
de valores sociais, éticos e políticos. "Honra, respeito, estima, prestígio, posição,
dignidade, reputação, distinção, deferência, consideraçã0, reconhecimento e gló-
ria" são termos empregados em épocas, contextos e fins freqüentemente diferentes
(Walzer, 1983: 252). Possuem em comum, no entanto, um elemento fundamental:
sempre aparecem como termos de valorização, traduz.indo a consideração (: 253),
o que não impede Walzer de perceber uma diferença "entre a honra pela qual os
aristocratas combatiam e a lura contínua, multiforme e incerta pela consideração e
o respeito, aberta a todos, nas sociedades contemporâneas" (: 258).
11
Goffman relata que "o material conceitua!" a que recorre provém, em parte, de um estudo dirigido
por Edward Shils, cujo objeto é estabelecer "um inventário provisório das estratificações sociais"
(1975: 51)
80 1 CLAUDINE HAROCHE
reconh ecimento é impossível", já que, na luta por ele, "n ão há igualdade de resul-
tados; ap<.:nas a de possibilidades é factível ". Como conclui, "um reconh<.:cimemo
mínim o se tornou uma exigê ncia mo ral que devemos respeitar, a ele que toda
pessoa pode ser objeto ele manifestações de honra e admiração, torna ndo-se, em
decorrência di sso, um rival e m es mo um a ameaça"(: 255-8). Ora, as reivindicações
políticas contemporâneas querem, por interm cclio elas ide ntidades, sobretudo a
das minorias , ga rantir e impo r o recon hecimento de forma concreta e imediata:
impor, de fato, um direito - igualitário - ao reconhecimento.
No início dos anos 1990, C harles Taylor observa, a esse respeito, que a necessi-
dad e 0 11 a exigência de reconh eci mento fundada na idéia de que os seres humanos
possuem direito ao respeiLo está no centro das reivindicações políticas dos grupos
minoritários e, de modo mais amp lo, das reivindicações políticas contemporâneas
(Taylor, 1992). Ele vincula a necessidade de reconhecimento ao princípio universal
da igualdade dos seres humanos e também ao fato de a identidade ter se tornado
uma questão política crucial nas sociedades democráticas.
A d emocraci a, escreve, inaugurou "urna políti ca de reconh ecimenro igualitário"
que se explica por uml muda nça, uma vez que, no Antigo Regime, a noção Je
honra, intrinsecamente ligada às desigualdades, defi nia as identidades, traçando
as fronteiras entre cada um e designando posiçóes e lugares devidos. Distingue-se,
portanto, da no ção de dignidade, que, universalista e igualitária, pretende ser reco-
nhecid a "em rodo ser hum ano" (Taylor, 1992: 43, 1994: 54). Modificada e ampliada
pela co ncepção de identidade individual, que emerge no fim do século XVIII, a
qu estão do reconhecimento é, hoje, indissociável da questão do indivíduo: trata-se
de "uma identidade indi vidualizada , afirm ada e reivindicada nos direitos reconhe-
cidos a todo homem" (T1ylo r, 1992).
Os n:centes tr;ihalhus d e Jean Cohen, ao s<.: i11 sc rcvcrcm no âmbito das socieda-
des democráticas contemporâneas, revel am-se enremarnente instigantes. Para que
a consideração e o respeito sejam assegurados, ela insiste na necessidade de que se
garanta e proteja a integridad e, haja vista a importância qu e o espaço interior ou
foro íntimo tem p ara cada indivíduo (Cohen, 1996) 12 . Assim, defende os direitos
que garantem a esfera privada e o respeito às di fe renças, sem que isso a faça nomeá-
las ou imobilizá-las, bem como fazer d elas, ou ele uma diferen ça em particular, a
condição de um reconhecimento valorizado. "Os defensores de políticas identitá-
rias afirmam a superioridade ela diferença como tal, como se isso bastasse para que
o reconhec im ento seja alcançado" (Cohen, 1996)
N a verdade, Jean Cohen retoma questões abordadas anteriormente por
Goffman e, no início do século, por Georg Simmel. Ela as reinscreve no campo do
Vê-se, assim, que não se pode descartar, com facilidade, a questão levantada por
Rousseau e Sieyes: a busca da excelência e do mérito se distinguiria ou, ao contrá-
rio, se acompanharia da busca de preeminência (e mesmo se confundiria com ela),
constituindo-se numa luta pelo reconhecimento? A luta para "ser reconhecido
como consciência de si autônomà' (Hegel, 1806) traduz uma necessidade essencial,
uma especificidade do ser humano?
A questão da coHsideração toca fundamentalmente em questões antropológicas
ligadas ao direito e ao político, decorrentes dos direitos do homem e da pessoa nas
sociedades democráticas contemporâneas. A consideração e o respeito, "categoria
jurídica, portadora de direitos", são parte dos direitos da pessoa, "cuja afirmação
tem por finalidade a proteção dos valores relativos ao ser humano" (Errera, 1993=
146). Precisamos, portanto, interrogar se a necessidade de reconhecimento e as lu-
tas que lhe são tributárias - subjacentes às questões decorrentes dos direitos numa
democracia - não ultrapassam necessariamente os próprios princípios que fun-
dam a democracia. É possível, é concretamente possível, impor, por meio de um
sistema de compensações, exigências de reconhecimento e respeito à dignidade
de cada ser humano?
As instituições democráticas, que são essencialmente governadas por princípios
gerais abstratos, devem detalhar nas sociedades contemporâneas o direito ao res-
peito, para assim concretizá-lo, ou seja, devem levar em conta a necessidade de
consideração e de reconhecimento? Não se pode negligenciar ou esquecer que o
direito ao respeito estrutura nossa sensibilidade e constitui um valor ético e políti-
co que, desde Kant, supõe a idéia de justiça. Esse direito põe em jogo smtimentos
que atribuem significados il integridade, à dignidade e ao valor morai que um ho-
mem possui aos seus próprios olhos e aos olhos da sociedade. É possível proteger
esse direito? Como fazê-lo? A resposta não é fácil: a idéia de um direito ao respeito,
à proteção da pessoa humana, jamais cessou de ser problemática (Haroche, 1996).
Sua definição, suas condições de exercício, as regras que o governam, abstratas e
11
Stewart lembra que von Feuerbach foi profundamente influenciado por Kant.
A CONDIÇÃO SENSfVEL
FORMAS E MANEIRAS NA DEMOCRACIA'
Alexis de Tocqueville
l
i
exercer sobre as m aneiras". Ele pensa consagrar ao tema ape nas um capítulo menor.
Escreve: "Espero em cerca de oiro dias rer terminado e entrar nos grandes capítulos
que concluem o livro". Ainda nessa carta, confessa: "Discuto as maneiras, tema
1
l
' Agra<leço as sugestôcs e críticas <le Pierre Ansart, Yves Déloye, Gen evieve Koubi e Jacy Seixas.
f. ' A edição de A democracia na América que utilizo é a histórico-crítica, revista e aumentada por Edu-
t
f ardo Nolla (Paris: Vrin, 1990, 2 tomos). A leitura concomitante do manuscrito, dos rascunhos e
da versão definiriva dessa obra oferece grande interesse, pois permite que percebamos as hesitações,
as in certezas, os progressos e a profundidade da reflexão de Tocqucville sobre os vínculos entre
man eiras e política. Na rubrica que contém o manuscrito, lêem-se, por exemplo, estas palavras:
"Cortes ia, civilidade. Palavras negligenciadas de que é preciso fazer uso", e este comentário: "Ree-
xaminar com mais cuidado do que as outras notas. E1Koncra-se aqui, em germe ou ern desenvol-
vimento, grande nt'.1111 ero de idéias que não pude exprimir num primeiro momento" (Tocqueville,
1835-40: manuscrito, p. 182).
difícil para todo mundo, e particularmente para mim, que me sinto desconfortá-
vel diante dos pequenos detalhes da vida privada" (citado em Tocqueville 1983-40,
cap. xrv: 182, nota a).
Tocqueville, no entanto, parece prever o papel político desses pequenos detalhes
da vida privada. Observa seu caráter paradoxal: "não há nada que, à primeira vista,
pareça menos importante do que a forma exterior das ações humanas, e não há
nada a que os homens atribuam maior apreço", inferindo dessa observação que
"vale a pena examinar, com seriedade, a influência exercida pelo es tado social e
político sobre as maneiras". Ao concluir, enfatiza a importância tanto das ma neiras
quanto das formas para as sociedades: "A forma influi mais do que acreditamos
sobre a base das ações humanas" (: 182).
Mas que relações ele estabelece entre maneiras, co rtesia e civilidade? Quai s as re-
lações existentes entre a polidez e a etiqueta, entre as regras do savoir-vivre, os usos
e o cerimonial? Não se pode dizer que ele confunda esses termos, mas, preocupa-
do com a questão geral das formas na sociedade, não vê interesse em distinguir
a realidade recoberta por essas palavras. Reafirmo que os escritos de Tocqueville
apresentam interesse considerável acerca dessas questões, pois discutem o caráter
paradoxal das m a neiras e das form as democráticas e aristocráticas, e da difi cu ldade
de analisar as m es mas em suas decorrências da esfera política.
Assim, é levado a interrogar as razões pelas quais a democracia tem um cerimo-
nial mais simples do que a aristocracia. Busca-se com isso desencorajar ou entravar
a própria idéia de maneiras? Tratar-se-ia de uma resposta histórica e política ao
Antigo Regime, de uma vontade explícita e constante de abolir privilégios e desi-
gualdades, de banir os costumes e as maneiras de corte, suas intrigas e complôs?
A democracia teria escutado as severas críticas de Jea n de La Bruyere e François La
Rochefoucauld, assim como as d e Jean-Jacques Rousseau no século seguinte, que
denunci~.ram a falsidade e a dissimulação das maneiras do Antigo Regime? "Sus-
peitas, sombras, temores, frieza, reserva, ódio e traição esconder-se-ão sem cessar
sob o véu uniforme e pérfido da polidez, sob essa urbanidade tão celebrada que
devemos às luzes de nosso século" (Rousseau, 1751: 40) 3
A idéia de dissimulação, de falsidade, es taria implícita no próprio termo "ma-
neiras"? Corresponderia à distância em relação a outrem, respeito ~o outro?
Ao remet~r às formas exteriores no que elas podem comportar de superficialidade,
J Para Tocqueville, as maneiras tendem a revelar os sentin1entos, ainda que, às vezes, permitam
certa duplicidade: "o inrerior das corres permiriu ver que as grandes aparências podiam esco nder
corações baixos. [...]As maneiras da aristocracia produziam belas ilusões sobre a narureza humana,
e ainda que o qu ad ro fosse freqüenremente mentiroso, ex perimentava-se um nobre prazer em
contemplá-lo" (1835-"40: 186).
86 1 CLAUO I NE HAROCllE
aparência, dissimulação e falsidade, as maneiras representam, ao mesmo tempo,
a consideração e o respeito pelo outro 4 • Elas constituem a principal razão dos
códigos de comportamento relativos ao distanciamento, nascidos da reserva e da
atenção requeridas pela consideração.
A democracia torna as maneiras impraticáveis por razões intrínsecas, estrutu-
rais? Estimula, em nome de valores e aspirações à igualdade, a uniformização e a
valorização da autenticidade nas relações e nos comportamentos?
As maneiras perpetuariam os privilégios e as prerrogativas por meio de marcas
visíveis - às vezes, pouco visíveis - de desigualdade, mas apareceriam, igualmen-
te, por meio de regras de civilidade e polidez, como formas de igualdade apa-
rente. Nesses termos, seriam compensações, substitutos, de desigualdades muito
visíveis, ou intensas. As maneiras, as formas, constituem relações e perpetuam
usos e tradições: exprimem as instituições, inspiram um espírito, revelam um
clima social e político. Ao se concretizarem, se manifestarem em comportamen-
tos, atitudes, posturas, reservas, gestos, olhares, exprimem ou sugerem paixões
e sentimentos. Delicadas e amáveis, ou desagradáveis e bruscas, arrogantes e
brutais, as maneiras, a um só tempo, nutrem, influenciam e refletem tanto o
social quanto o polític:o.
Nessa perspectiva, pode-se compreender o caráter profundamente paradoxal
delas: nada parece menos importante, nada a que os homens confiram maior apre-
ço. A estima, a honra e a consideração representam bens inestimáveis e preciosos,
no entanto constantemente subtraídos; trata-se de bens que se situam na origem
ou participam ativamente de transformações políticas importantes, de gestos he-
róicos, sacrifícios, desesperos, revoluções sangrentas, lutas que, muitas vezes, de-
sembocam na morte. Podem uniformizar ou distinguir, reconhecer a qualidade
ou o valor, mas também ferir e humilhar, provocar a amargura, o ressentimento
e o ódio. Por intermédio das distâncias e dos afastamentos que instauram e a que
se submetem, as maneiras procuram estabelecer formas de mediação e prevenir o
contato direto dos corpos. Tentam impedir a irrupção do imediato, da violência,
pretendendo desse modo proteger o eu profundo, o foro íntimo.
Algumas linhas foram suficientes para Tocqueville formular questões decisivas so-
bre o fundamento das sociedades democráticas e tecer considerações gerais sobre a
tendência democrática em evitar as maneiras com o intuito de instaurar a igualdade,
4 Sobre o caráter funcional da dissimulação e do segredu nas formas, ver Simmel (1908; i917) ..
A CONDIÇÃO S ENSÍVEL
antevendo, de certa forma, o progresso do informal. "A tendência democrática [... ]
consiste em ir ao fando das coisas, sem prestar atenção à forma[ ... ] Em certo senrido,
pode-se dizer que o efeito da democracia não é dar aos homens determinadas manei-
ras, mas sim impedir que tenham maneiras" (Tocqueville, 1835-40: 19).
Em numerosas passagens de seus escritos, todavia, Tocqueville enfatiza a impor-
tância das formas, hesitando entre seu caráter imperativo e um papel mais incerto
e fluido: "Acredito firmemente na necessidade das formas" ou ainda "não nego em
absoluto a sua utilidade" (: 36). Ele anteviu a importância de questões que não
deixaram de ser decisivas para modos de funcionamento e processos sobre cs quais
importa hoje refletir. As formas e a dimensão que chamamos de formal designam
relações, regras, usos, comportamentos codificados, enfim, leis que protegem o
indivíduo, a pessoa e o cidadão. O formal, porém, traz consigo a dificuldade de
tratar com rigor seus objetos como participantes do espaço político, pois isso equi-
vale à possibilidade de se abordar o político por meio de sinais e detalhes tidos por
muito tempo como insignificantes. As regras de polidez, as maneiras, podem re-
velar, a olhos estrangeiros, o estado social e político de uma sociedade, permitindo
saber se um determinado país vive sob as leis da democracia ou da aristocracia .
Tocqueville observou o comportamento dos americar;os na Europa e na Améri-
ca, bem como a diferença de suas maneiras de se comportar, tirando daí conside-
rações gerais quanto ao papel das formas e das maneiras nos sistemas democráticos
e aristocráticos. Parece opor fundo e forma, mas em que sentido e até que ponto?
Por "fundo das coisas" Tocqueville entende as idéias essenciais, substanciais, a um
tipo de sociedade, ou se refere a sentimentos que, experimentados pelos indivíduos
no mais íntimo de si mesmos, são entrevistos pelas maneiras e pelo temperamento?
Porque a democracia privilegia o fundo sohrc a forma, é possívd pt:rccber nela a
consideração dos sentimentos dos indivíduos como um componente intrínseco ao
seu funcionamento?
Como afirma Tocqueville,
Os homens que vivem nos séculos democráticos não compreendem facilmente a uti-
lidade das formas, sentindo por elas um desdém instintivo [.. .]As formas provocam
o desprezo e, a seguir, o ódio. Como aspiram habicualmente apenas a prazeres fáceis
e presentes, eles [os indivíduos) se lançam impetuosamenre em direção ao objeto de
seus desejos; os mínimos detalhes os exasperam. Esse temperamento que transpõem
para a vida pública os indispõe contra as formas que retardam ou paralisam, dia após
dia, alguns de seus projetos(: 274-5).
88 1 CLAUDINE HAROCHE
mesmo , a ausência de stwoir-vivre; "Cada um age mais ou menos como lhe apraz,
remando sempre cena incoerência nas maneiras, porque elas se conformam mais
aos sentimentos e às idéias individuais de cada um do que a um modelo ideal dado
antecipadamente à imitação de todos'".
Ele reconhece a futi lidade "dessas coisas", mas logo acrescenta:
A ca usa que as produz é séria. Você tem diante de seus olhos os mais leves sincomas de
um grande mal . Esteja certo de que, quando um homem acredita poder decidir sozi-
nho sobre a forma de uma vestimenta ou as conveniências da linguagem, não hesita em
julgar todas as coisas por si m esmo; sempre que as pequenas convenções sociais são tão
mal observadas, já se verificou uma importante revolução nas grandes (; 183- 4)
. ., F aind:1: "N as sociedades ari stocr:íri cas f ... J, as rclaçócs de ex terioridade dos homens entre si sáo
submetidas a <.:o nvcrn.;íks mais ou nH.:nos fixas . Ca<la um acredita, então, saber de maneira precisa
por quais sinais exprimir seu respeito ou marcar sua benevolência" (: 183).
'' É necessário nos referirmos aqui aos tratados de educação dos príncipes º"ainda aos man llais de civi-
lidade, de etiqueta e de polidez para nobres, e mais tarde, para burgueses; tratados que buscam formar
as condutas e comportamentos. Ver, a esse respeito, a análise de Elias sobre os tratados de civilidade
(Elias, 1939) e também Chartier (!987); Ansarr (1983); Courrine e Haroche (!988: 16, 233-4).
As maneiras, de forma geral, nascem dos costumes e dos sentimentos, que, por sua
vez, elas tendem a gerar, encorajar ou impedir. "A forma das ações humanas se origi-
nou[ ... ] do fundo dos sentimentos e das idéias"(: 187). Tocqueville nos instiga, assim,
a pensar sobre uma questão fondamental do político, da democracia e, sobretudo,
das sociedades individualistas: a parte relativa às formas, indissociáveis dos proces-
sos de socialização, a influência do institucional sobre os tipos de comportamento,
temperamento e sen timenro que são valorizados. De forma enigmática, escreve estas
palavras, que nos levam a reíletir: "Não quero dizer que o temperamento não influa
bastante no c1dtcr daquclcsquc viV('lll nos Fstados Unidos. l'cmo, 110 entanto, que
as instituições políticas contribuem muito mais para conformá-lo"(: 187).
A natureza das relações entre forma e fundo mudara na passagem do Antigo
Regime para a democracia, mas deve-se interrogar se uma sociedade cujos mem-
bros deixam de observar as convenções sociais sofre de um mal que a conduzirá
a transformações profundas. É aqui que se delineia a origem mais longínqua do
progm;so do informal e, sobretudo, da aspiração e da exigência de transparência
e de autenricidade, ou a recusa da opacidade das motivações; em conjunto, esses
fatores levariam a uma ameaça de anomia.
A ASCENSÃO DO INFORMAL
90 1 C l. 1\UDI N E T-IAROCllE
dade compreendido no sentido de insignificante - situa-se no cerne de interroga-
ções fundamentais a respeito das sociedades democráticas ocidentais. Ao proceder
de causas simultâneas ou desconexas, esse declínio ou decadência constitui uma
ameaça profunda ao desenvolvimento dessas sociedades, afetando. a própria idéia
de democracia e, até mesmo, de organização social. Entre os trabalhos contempo-
râneos que evocam, com insistência, a questão das formas - ainda que muitas vezes
de forma incidente e nem sempre explícita -, retemos aqui os de Elias e Marcel
Gauchet, cujas sugestões trazem, em meu ponto de vista, elementos decisivos para
a compreensão do papel das maneiras na política.7
Elias aborda o declínio da civilização e o concomitante progresso do informal.
Gauchet busca apreender os efeitos do declínio do religioso, a desinstitucionali-
zação da família, em que se destaca a incivilidade, conseqüência da destruição da
"precedência do social" na personalidade contemporânea, e a necessidade de uma
antropologia da democracia (Elias, 1989: 23-44; Gauchet, 1998: 164-81). Suas aná-
lises convergem, ainda que pontualmente, para a abordagem de certos problemas
e objetivos, e a perspectiva de uma história atenta à longa duração, ignorando-se
as fronteiras disciplinares.
Apesar da dificuldade da tarefa, um e outro retomam e dão continuidade às aná-
lises de l(icquevillc sobre a questão das formas e das maneiras, esforçando-se para
qualificar os comportamentos individuais e os traços de personalidade advindos dos
processos de individualização. Ambos contribuem, assim, para a elaboração de uma
psicologia coletiva voltada para o esclarecimento de questões políticas de base.
Inspirando-se nas observações de Tocqueville sobre o comportamento de america-
nos e franceses, e as maneiras no Antigo Regime e nas sociedades democráticas, Elias
analisa o comportamento dos alemães do ponto de vista de sua formalidade, evocando
a época das grandes monarquias européias anteriores à Primeira Guerra Mundial, os
Habsburgo, os Hohenzollern e os Romanov. Escreve que, nesse período, "o grau de
variação entre o formal e o informal era menor do que no século xvm", mas "muito
mais importante do que na República de Weimar. Conhecerá um forte aumento com
os nazistas e diminuirá de maneira considerável no pós-G~erra'' (Elias, 1989: 29).
1
Trabalhos fundadores em sociologia e antropologia trataram da questão das maneiras e das formas:
os de Simmel sob re a sociabilidade, os de Lévi-Strauss sobre as maneiras na mesa, e os de Elias so-
bre a civilidade e, de modo mais amplo, sobre a civilização dos costumes. Na ciência política, nu-
merosos trabalhos se dedicaram ao longo dos últimos anos à civilidade, à polidez e à incivilidade:
são raros, no entanto, aqueles que tentaram verdadeiramente sublinhar o interesse das instituições
políticas pela civilidade, chegando mesmo a impor o respeito, ainda que conscientes do risco aos
princípios democráticos. São exceções a isso os trabalhos de teoria moral e política do liberalismo
à democraci a cotidiana de Judith Shklar (1991) e Nancy Rosenblum (1996).
A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 91
Em obra consagrada a eles e às relações entre a civilização e a ascensão do infor-
mal no século XIX na Alemanha, Elias afirma que mudanças nos modelos de com-
portamento e de sentimento são indissociáveis de transformac,:ões nas c::stru mras da
sociedade como um todo. Entre estas, insiste nos movimentos de emancipação, em
particular aqueles que afetaram as relações entre os sexos e as gerações(: 24-5). 8
Considera um dos principais efeitos da emancipação as maneiras se terem tor-
nado uma questão problemática. Os códigos de comportamento tradicionais, "que
dependiam de uma ordem extremamente hierarquizada, deixaram de se adaptar às
relações amais". Como enfatiza, há um o vínculo entre as tendências igualitárias à
uniformização e os processos de individualização que se encontram nas origens -
tanto longínquas quanto recentes - do progresso do informal (: 25) 9 • Sem pre-
tender explicar essa mudança de estrutura, Elias se limita a observar seus efeitos,
alguns dos quais lhe parecem decisivos: é o caso, por exemplo, do profundo sen-
timento de incerteza que, em virtude das mudanças nas relações de poder entre
grupos, manifesta-se num grande número de indivíduos.
Ao evocar os termos de reverência absoluta a que o pai de Mozart recorria para
solicitar algo de seu arcebispo: "Eu me prosterno humildemente aos seus pés"(: 27),
ele comenta:
Qualquer que seja a situação, o cerimonial a que a pessoa de nível inferior deve se
submeter na presença de uma pessoa de nível superior, quando dela se aproxima para
uma solicitação, representa uma diferença de poder. [... ] ela deve declarar, constan-
temente, a inferioridade de sua condição, sua submissão às pessoas mais importantes,
pela observância de um ritual formal(: 27-S)JO
Sua afirmação de que "as relações entre o formal e o informal variam segundo as
épocas, as condições, os momentos e as situações" (: 31) de certo modo retoma as
análises de Tocqueville, deslocando-as e prolongando-as a partir de uma abordagem
mais sociológica e antropológica. 11 Utiliza como exemplo a Inglaterra e a Alemanha:
8
Com essa análise, Elias visa à história das relaçóes conflituosas, desde a Idade Média, entre as classes mé-
dias e a aristocracia, enfatizando que o nazismo, de faro, porá um termo à supremacia da aristocracia.
9
Sobre o progresso do informal, ver Bremmer & Roodenburg (1991) , em particular a "Introdução"
de Keirh Thomas.
'º Sobre as formas de subordinação nos rituais de savoir-vivre, ver Firrh (1970: )7-60); Haroche
(19?7= 213-29).
11
Elias analisa as relaçóes entre formal e informal no contexto de uma análise sobre a ascensão do fas-
cismo: as causas e efeitos do progresso do informal, que se conclui com o relaxamento bárbaro do
nazismo, não podem ser, de forma algwna, confundidos com o progresso do informal que marca
a passagem das sociedades do Antigo Regime para as sociedades democráticas.
92 1 CLAUDINE HAROCHE
a distância entre o formal e o informal é aparentemente maior na Alemanha, onde o
comportamento formal se mostra muito mais forte do que na Inglaterra. 12
Co m ê11L1sc 110 cid1cr extremamente: l(Jrmal doscomponani cntos na época de:
Mozart, observa que as formalidades não se estendiam a rodos os momentos da
vida. Embora "a formalidade ritual entre pessoas de condição superior e inferior
ui trapassasse rodos os graus de formalidade existentes nas sociedades industriais
contemporâneas", a mesma época histórica conheceu, num mesmo grupo ou entre
pessoas profundamente desiguais, dependendo dos momentos e situações, "um có-
digo de comportamento e de sentimento que superava em muito nossa própria falta
de formalidade"; "uma ausência de fonr.alidade que superava o que, hoje, permite-se
em relações sociais entre pessoas de status relativamente equivalente" (: 28)
Para Elias, há no caráter formal dos comportamentos um componente do pro-
cesso civilizador que merece ser analisado com extremo: "A estrutura dessa varia-
bilidade se transforma ao longo do desenvolvimento de uma sociedade estatal" (:
28-31). De modo semelhante a Tocqueville, para quem as formas são indispensá-
veis à própria idéia de sociedade, ele observa que, seja qual for o tipo de sociedade,
sociedades diferenciadas ou sociedades mais simples, há "tipos de situações sociais
em que os códigos sociais exigem que seus membros se comportem de maneira
formal ou, valendo-se de um termo mais preciso, exigem a formalidade no com-
portamento". Em compensação, existem outros tipos de situação social "em que,
segundo o código em vigor, um comportamento informal, isto é, um grau de
informalidade mais ou menos acentuado, é oportuno". Com o intuito de compre-
ender esse aspecto da civilização de um ponto de vista sociológico, Elias afirma a
necessidade de se precisar "o grau de variabilidade entre o nível de formalidade e
informalidade existente numa determina<la sociedade" (: 28)
Em seu interesse pela questão da ascensão do informal nas sociedades contem-
porâneas, ele nota que "as gerações nascidas após a Guerra se esforçaram, de forma
consciente, para suprimir a formalidade nos comportamentos. A tendência, simul-
taneamente voluntária e involuntária, consistiu em adotar o mesmo comporta-
mento em todas as situações", numa espécie de relaxamento nos comportamentos
que se acabou se estendendo ao conjunto da sociedade(: 29).
De acordo com seu pomo de vista, seus trabalhos mostraram que a especifici-
dade do processo civilizador reside na mudança da relação entre coerções sociais
externas e coerções individuais internalizadas. Consciente do fato que essa é ape-
nas uma das características de tal processo, dedicou-se a ela, a fim de ter "acesso
" Elias observa que "o aperto de mão formal entre todos de um grupo, tradicional na Alemanha no
momento da chegada e da partida, foi substituído na Inglaterra por um não menos tradicional
discreto sinal de cabeça" (: 30).
A CO NDIÇÃO .SENSiVEL 1 93
relativamente direto a um problema que está longe de ser simples: a tendência
contemporânea ao progresso do informal" (: 33)
O exemplo de Elias se vale das relações entre sexos e gerações na Alemanha
antes da Primeira Guerra Mundial e nos códigos de comportamento contempo-
râneos. Em suas palavras, "a tendência ao informal aparece de maneira particular-
mente clara nas relações entre homens e mulheres por meio da comparação dos
códigos de comportamento que governam as relações entre os sexos". Em tom
pessoal , aborda "o modo de vida dos cstudanres" em sua juventude, comparando-
º com o de hoje: "A primeira coisa que me espanta é o tipo de comportamento
extremamente hierárquico dos tempos do Imperador e o tipo de comportamento
excessivamente igualitário das gerações do pós-Guerra" (: 35. 38).
Em sua concepção, a diferença entre esses dois tipos de comportamento se deve
ao fato de que, no início do século x.x, os estudantes eram membros de fraternida-
des, e "que essas fraternidades inculcavam atitudes em que a dominação e a sub-
missão eram demarcadas de maneira clara" (: 38). Elias, portanto, afirma a ligação
entre individualização e progresso do informal, enfatizando que na origem desse
progresso, no que tange às maneiras, residem os paradoxos da emancipação. Como
observa, se a emancipação permite a igualdade, estimulando a uniformização dos
comportamentos, provoca igualmente o desamparo e a ansiedade. Esses comporta-
mentos, que põem em jogo o eu profundo, a sensibilidade, os sentimentos e a vida
emocional, deixam os indivíduos "se confrontarem com uma sociedade que ofere-
ce, no presente, poucas regras e normas de comportamento ou de ajuda" (: 37).
Ainda que Elias reitere restringir-se ao domínio da sociologia, parece-me importan-
te considerar também se essa modificação nas formas tem ou não efeitos sobre o tipo
de economia psíquica, a personalidade, a consciência e a relação consigo mesmo.
O INDIVÍDUO DESENGAJADO
94 1 CL AU O I N E 1-\ A RO C llE
Como lembra Gauchet, essa socialização resulta da aprendizagem pela qual po-
demos nos abster de "implicações imediatas". "Numa cultura tradicional, o vín-
culo societário não se formula como algo decorrente da ação dos indivíduos; em
vez disso, é proposto como um modelo que os precede de modo radical" (: 173).
Em seguida, ressalta o papel das formas, evoca a polidez e a civilidade, e observa
que, por meio dessa socialização, inscrevemo-nos num mundo "que se ordena em
meio a formas previamente regulamentadas de coexistência com os outros [...],
formas pelas quais ele nos é significado e com as quais admitimos, praticando-as,
que o social nos precede"(: 173). Ora, a "aderência a si'', que Gauchet compreende
como traço característico da personalidade contemporânea, é algo incompatível
com essa aprendizagem de desligamento.
Mais do que um declínio das formas, ele chama a atenção para um verdadeiro
apagamento da distância na relação consigo mesmo e com os outros, expresso pela
ausência de formas, de maneiras, de polidez, da civilidade mais elementar. "No im-
pressionante declínio da dimensão do público nas sociedades", encontra um funda-
mento antropológico, explicando sua razão de ser pela "dificuldade em dissociar o
elemento público do elemento pessoal", bem como percebendo no desengajamento
e no descompromisso pessoais um dos traços do individualismo atual (: 172) 13
Em sua análise, Gauchet destaca um elemento que nos parece prolongar, des-
locar e radicalizar a análise de Tocqueville, de acordo com o qual o "voltar-se para
si mesmo" era um perigo: "Nós caímos, recentemente, num individualismo de
desrngajamento e desvinculação, em que a exigência de autenticidade se torna
antagônica à inscrição num coletivo." "O gesto por excelência do indivíduo con-
temporâneo não é o de se afirmar engajando-se" - o que chama de individualismo
de personalização -, e sim o de "é afirmar-se desvinculando-se" (: 172).
Gauchet, com efeito, insis~e na "dimensão da desafeição", fala de "desvincula-
ção", para acrescentar que "não se trata de um individualismo 'positivo', ou seja,
que se baseie na afirmação de si, pública ou privada. Trata-se antes de um indivi-
dualismo 'negativo', que se fundamenta na distância e na desconfiança em relação
ao outro e a todo engajamento passível de estabelecer um laço" (: 77). Nesse fenô-
meno, percebe algo de inédito, que não pode ser explicado por uma valorização da
idéia de autonomia. Para ele, há outra origem, que:
Enraíza-se nos desenvolvimento~ do ser interior. Até hoje, os progressos do indivi-
dualismo haviam se traduzido por uma personalização crescente das relações e dos
" Em seus termos: "Até o presente, a ascensão do individualismo se traduziu por uma exigência
crescente de personalização das adesões", isto é, por um engajamento, um envolvimento da pessoa
(!998: 172). Esse aspecto havia sido realçado por Sennett, ao falar de psicologização da sociedade
(Sennctt, 1974).
CLAUDINE HAROCHE
talvez mais negativa do que positivamente"(: 179). A recusa das formas, das maneiras,
ou simplesmente sua ignorância, torna-se um elemento essencial nesse processo.
Há na análise de Gauchet uma descrição do comportamento e da psicologia
da personalidade contemporânea: o indivíduo está "ligado, mas distante". Experi-
menta "a necessidade da presença dos otnros, mas no distanciamento que mantém
em relação a eles", abstratos, intercambiáveis, inexistentes, inconsistentes. Essa dis-
tância não pode se tornar um elemento, uma condição da sociabilidade. Exterior e
superficial, ela traduz a desconfiança e o temor do outro, relacionados à ausência
de formas, geradas, em suma, por essa ausência(: 180). Essa distância, que poderia
exprimir o incômodo e o embaraço de que fal'1va Tocqueville, em vez de permitir o
respeito pelo outro, exprime um profundo mal-estar e, por fim, extravia-se. Trata-
se do formal esvaziado de roda substância, de rodo conteúdo, tendo se tornado o
elemento cenrral dos modos de funcionamento das sociedades democráticas con-
temporâneas . Gauchet credita "essa distância e esquiva" à ausência de formas, à
"ausência de um mecanismo simbólico capaz de regular a distância em relação ao
outro." Como mostra, este está "ora demasiado longe, ora muito perco. É perigoso
quando se aproxima, pois não sabemos em qual lugar fixá-lo" (: 180)
As maneiras traduzem, instauram e lembram a necessidade e a função das dis-
tâncias entre os indivíduos, de um espaço entre uns e outros (Lévi-Strauss, 1968).
Ao separar e unir os indivíduos, as ma neiras e as formas fazem parte do que Lévi-
Strauss chamou de "meios de mediação'', meios materiais e simbólicos destinados,
porque instauram deveres e obrigações <le deferência, a "prevenir que não se esteja
muito próximo ou muito afastado uns dos outros" (: 421).
Progresso do informal, d;;sencantamenco, desengajamenco, desinstitucionali-
zação, dcscivilização. ascensão da insignificância: rodos esses termos tentam, de
maneira imprecisa, qualificar comportamentos individuais, traços <le personalida-
de, assim como mecanismos e modos de funcionamento coletivos e institucionais,
relativos a um passado trágico, a um presente inquietante e à intuição de um
futuro ameaçador. Elias, tendo em mente os processos de individualização e os pa-
radoxos da emancipação, escreveu a propósito da ascensão do informal no século
xx nos seguintes termos: "Quando a estrutura desse processo estiver finalizada e
compreendida, poderemos começar a responder a questão de saber se é o começo
de um processo de barbárie [... ] do fim do processo de civilização européia ou de
sua continuidade num nível diferente" (Elias, 1989: 337) 14
11
' Sobre os processos de desinstitucionalização, ver os trabalhos de Legendre, sobretudo Sobre a q11ertão
dogmática no Ocidente (1999), A respeito do desengajamento e da indiferença, ver: Donegani e Sa-
doun (1999); Rosanvallon (2000). Para o conjunto destas questões, remeto aos trabalhos de Castoria-
dis, em particular A instituiçáo imaginária da sociedade (1975) e O aumento da insignificância (1996).
A CONDIÇÃO S ENSÍV E L 1 97
DESIGUALDADE, INJUSTIÇA, INDIFERENÇA
Cl.AUDINE llARO CI IF
Refaz-se, assim, a oposição forma-fundo abordada por Tocqueville em relação
aos conteúdos e à substância das reivindicações que visam a direitos concretos: os
indivíduos necessitam de formas que os protejam, ainda que minimamente, e lhes
garantam direitos, ou seja, formas que os reconfortem. Mas como levar os senti-
mentos em consideração, sem pôr em causa a sociedade democrática? É legítimo
confundir o formal - que possibilita a proteção, o reconforto - com o superficial,
o fútil, o insignificante?
Os comportamentos e sentimentos individuais, mesmo aqueles relativos à esfe-
ra privada, têm efeitos sobre a sociedade e o espaço público (Ansart, 1983; Owuf,
1989). Por isso, a necessidade de qualificar com precisão os comportamentos in-
dividuais, distinguir os traços de personalidade, inferir os sentimentos, avaliar seu
papel nos sistemas jurídicos, considerar o caso das legislações sobre o assédio ins-
tituídas em face da ausência do direito à dignidade. Encontra-se aqui, sem dúvi-
da, um dos problemas cruciais decisivos presentes nas formas de individualismo
contemporâneo, e que evidenciam as relações entre política e ética: a expressão de
sentimentos muito tempo recalcados ou pouco considerados, e que se manifestam
de maneira muitas vezes violenta e incontrolável.
A recusa das desigualdades jurídicas e políticas e a explicitação e a reivindica-
ção de necessidades fundamentais nutriram as sensibilidades, os sentimentos, as
maneiras e as formas democráticas. As mais constantes reivindicações sociais e
políticas contemporâneas em matéria de dignidade, respeito e consideração, as
assim chamadas políticas identitárias e de reconhecimento, nasceram dessa parte
esquecida dos direitos do homem: os direitos morais. Estes, ao se vincularem à as-
piração por uma repartição igualitária do reconhecimento entre as pessoas, tendem
a confundir desigualdades e injustiça, do ponto de vista dos sentimentos morais.
A consideração, a dignidade, o respeito, não obstante os efeitos perniciosos da
política! correctness, bem como as legislações sobre o assédio traduzem a necessida-
de de formas de civilidade novas ou, ao menos, renovadas. As sociedades demo-
cráticas contemporâneas se confrontam com uma indistinção entre sentimentos e
direitos morais, à diferença do que se passou no século XVIII, em que se procurava
evitar a confusão entre sentimentos e deferências. 15
Os trabalhos de Judith Schklar trouxeram, a esse respeito, elementos de re-
flexão extremamente relevantes. Ao se preocupar com o sentimento de injustiça,
afirmou que ele ocupa o cerne da sensibilidadepolítica democrdtica, uma vez que se
inscreve no mais profundo de uma sensibilidade que busca rejeitar injustiças e de-
sigualdades. Esse sentimento de injustiça, no entanto, ultrapassa inevitavelmente
15 Sobre essas questões, ver Haroche e Vatin (1999); Koubi e Guglielmi (2000: parte 1); Haroche e
Montoia (1995: 379-95).
A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 99
os quadros de rodo sistema jurídico. Em suas palavras, "ainda que nos inclinemos
a sentir a injustiça em casos particulares, a justiça, por definição, deve ser geral"
(Schklar, 1990). A análise de Shklar, portanto, leva-nos a pensar que não podemos
mais ignorar esse sentimento de injustiça, atribuindo-lhe demasiada importância,
confundindo-o com as desigualdades e tornando-o um objeto de legislação, mas
negligenciando o fato que ele pode pôr em risco os princípios democráticos.
Defrontamo-nos aqui com uma das aporias centrais das sociedades democrá-
ticas contemporâneas, sobre a qual alguns aurores se debruçaram recentemente.
Genevieve Koubi, em análise consagrada à consideração, buscou apreender os me-
canismos subjacentes às exigências do direito ao respeito que todo indivíduo tem
(Koubi, 1998). Sem deixar de incluir eiementos do direito jurídico-político e dos
direitos morais, Koubi lembra que "a palavra respeito implica o conhecimento do
outro e demanda, em conseqüência, um tempo transcorrido junto, certo partilhar
de valores", não se podendo, portanto, como afirmam Jeanne-Hélene e Pierte-
Patrick Kaltenbach, "respeitar na complacência, na indiferença ou na ignorâncià'
(: 168). Ora, "esses três modos de comportamento são aqueles a que são condu-
zidos os poderes públicos numa república laica: a complai.:ência pela intolerância,
a indiferença pela neutralidade, a ignorância pelo desconhecimento". Koubi, no
entanto, acrescenta que "a reterência constante aos direitos do homem limitou
seus efeitos perversos" (: 169).
A maneira pela qual o direito considera atualmente os sentimentos é um dos
aspectos e efeitos da psicologização da sociedade, insidiosa na maioria das vezes.
Parece-me importante reafirmar que, apesar de, freqüentemente, fatos e sentimen-
tos serem indissociáveis, é importante tentar distingui-los, inclusive quando eles
tendem a se confundir de maneira inevitável, a fim de possibilitar uma reflexão
geral sobre os sentimentos, suas modalidades de expressão, o grau de recalque, e a
intensidade de sua repressão ou denegação. 16
O DIREITO AO RESPEITO
16
Pode-se aquilatar o interesse de uma reflexão sobre o ressentimento, tema central canto na Revolu-
ção Francesa quanto na ascensão do nazismo. Ver, a esse respeito, Ansarc (2001).
17
Sobre a ausên cia d e reconhecimento, ver Honneth (1996).
Max Weber
Émile Durkheim
Em 1938, logo após a conferência de Elie Halévy sobre a "era das tiranias" (Halévy,
1938), Marcel Mauss lhe escreve uma longa carta, em que afirma "reconhecer com
facilidade acontecimentos como freqüentemente se passaram na Grécia, tão bem
descritos por Aristóteles, acontecimentos característicos das sociedades arcaicas e
talvez do mundo inteiro" . Trata-se da "sociedade dos homens", com suas confrarias
simultaneamente públicas e secretas, no interior da qual "age a sociedade dos jovens".
1 103
Mauss afirma: "Sociologicamente talvez seja uma forma necessária de ação, mas se
trata de uma forma obsoleta. Ela satisfaz à necessidade de segredo, influência, ação,
juventude e, com freqüência, tradição" (citado por Hollier, 1995: 849).
Nessas poucas linhas, ao se referir à sociedade dos homens, aos jovens e à ne-
cessidade de ação e influência, Mauss toca em elementos fundamentais do "espí-
rito corporativo". Pretendemos aprofundá-los aqui pela discussão dos modelos de
comportamento e de tipos de aspiração psicológica, afetiva e moral presentes, de
forma mais ou menos acentuada, nas associações profissionais, nas confrarias e nos
movimentos de jovens. 1 O termo espírito corporativo é utilizado em seu sentido
genérico de espírito de grupo, o qual, em determinados aspecros, confunde-se com
os espíritos comunitário, tribal, ciânico e sectário (Freud, 1920). 2
Em que o estudo dos movimentos de juventude, sobretudo os da Alemanha
pós-guerra de 1914, e seu caráter apolítico ou sua politização pronunciada, seus
mecanismos de funcionamento, aspirações e modelos de comportamento podem
contribuir para a compreensão dos mecanismos de funcionamento das sociedades
contemporâneas? Esses movimentos, desenvolvidos numa atmosfera caracterizada
pelo recalque e pela rejeição, e mesmo pelo ódio endereçado à velhice, pela nega-
ção dos limites revelada na busca obsessiva de juventude, no amor por aquilo que
é jovem, têm especificidades que podem esclarecer certos fenômenos contemporâ-
neos, como o culto à juventude, o espírito ciânico e os movimentos sectários.
1
É importante assinalar que as associações profissionais o u os movimentos de juvenmde não desen-
volvem todas as atitudes e valores hoje inquietantes.
2
Entiquez argumenta que "todo grupo conhece um dia a tentação da comunidade [.. .]. Esse mo-
mento comunitário me parece indispensável porque permite que todos os membros do grupo se
apóiem um sobre os outros e sobre o próprio grupo. Por outro lado, se o grupo se fixa nessa etapa,
em breve não conseguirá mais a mínima ação capaz de pôr em questão seu equilíbrio. O confor-
mismo dos sentimentos se torna a regra, a submissão idealizada ao grupo [... ]. a única possível.
Mais inquietante ainda é o crescimento de uma metáfora comum, a do corpo pleno, sem falha,
carência ou temporalidade" (Enrique-L, 1999: 742).
3 É interessante observar a evolução da etimologia da palavra fere {irmão) na língua francesa, de
onde deriva irmandade, confraria (confrérie): "Desde o francês arcaico (c. de 1050), a palavra se
aplica ao homem como membro da 'família' humana, particularmente na religião (1690), referin -
do-se aos homens como criaturas do mesmo deus. Irmão designa {e. II75) os membros de certas
comunidades religiosas e é o nome que se dá os franco-maçons (u64) . Por extensão, 'irmãos' no
plural se aplica, como no latim, ao homem em relação àqueles que compartilham com ele dos
mesmos sentimencos, interesses [...] 'irmãos de arma' designou (meados do século XV) os guerrei-
ros unidos entre si por uma aliança, urilizando-se hoje para aqueles que lutam pela mesma causa,
os membros de uma associação". Cf O verbete "Frere" <lo Dictionnaire Historique de la langue
Française Robert. fu relações entre irmão, aliado, e normas, leis e princípios de funcionamento
participam das relações complexas e muráveis entre "espírito de família" e "espírito corporativo".
4
Pierre l.cgendrc aborda a questão <lJ superação e do limite nos seguintes termos: "Fabricar o ho-
mem é dizl.'1 -lhc.: seus lirnitcs , ensinar-lhe um 'além' dL: .sua pL'.o.,soa; sc..;parar o homem c.k si mesmo.
[... ] Cada civilização produz seu estilo de educação considerando essa separação" (1996: 22- 4).
O espírito corporativo representa uma forma específica de separação e <le associação dos indi-
víduos em grupo: quando deslocado, pode se tornar um lugar de fusão, de ausência de limites.
Legendre percebe no nazismo e na Shoah "a derrota do princípio normativo do limite" e alerta para
o fato de que há uma renúncia em relação à análise das "decorrências institucionais da Shoah, a
saber, a dmir,;bolizaçáo generalizada de que são vítimas as novas gerações do Ocidente". Ad emais,
identifica aí "os efeitos de um hiticrismo sem no me [... J um neo-totalitarism o de fe itura liberal
[que] transmite ao cerne da civilização de direito civil a ideologia da at"ência de li mites" (I.egcn-
dre, i999). A recusa dos limites e da lei constitui o centro da análise que, por sua vez. Ernmanuel
Diet faz d os mecanismos sectários. Esse auto r descreve com precis5.o os rnccanismo.s sectári os que,
hoje, 113.0 cessam de se expandir com o isolamento e a crcset: ntc precari edade dos indivíduos: "as
o rgani1.ações secdrias [... ] exigem a adesão incondicional ao seu di.scur.so tk ccrtcz:1s; c b.~ isolam
e pro íbem a seus adeptos todo co ntato com o mundo exteri or e seus valores, exceto aqueles cuja
fi nalidad e é de proselitismo e infiltração [... ], tod as as seitas têm necessidade, para aS>cgurar seu
d o mínio , de impor a seus adeptos a dessocializaçiío e a deculturaçíio. [ .. . ]A renração e a possibilida-
de de uma deri va sectária estão presentes em todo grupo ideológico: o isolamen to dos adeptos, a
recusa de tod a alteridade e todo diálogo, o fechamento do grupo sobres ; mes mo, a p ro ibição de
toda crit ica e rcb ção com o mundo exterior, d ;·ccusa e a negaç:io d os valores e leis que csr:-ulll ra m
o campo social e cultural , o d omínio totalitário de todos os aspectos da vida do rnjeito e a vo ntade
de controlar se u pensamento e se11 desejo, a d es truição dos vínculos de pertença ante riores, todos
esses fato res pe rmitem caracteri zar a vio lência específica relacio nada ao ódio e à destr utivi dade
seciárins" (Diet, 1999: 51- 4).
~ Ca ri o G inzburg propôs questão an:Hoga c:m rel açã o às front eiras do cu, ~t ausénc i;i de lirnitc:s cm
certos tipos de associação e comunidade durante o TCrceiro Reich , que ex prinúam inte resse e
cuid ados exclusivos com o corpo e as sensações, bem co mo val o ri zava m os jovens. cu lm i1u ndo no
que se rornou conhecido como jeunisme !juventudismo). Ao sublinhar a atualidade dessa questão,
Ginzburg se interroga sobre a existência "de uma comunidade ideológica entre a mitologia indo-
européia em sua vertente germânica e as realidades políticas, sociais e institucionais do Terceiro
Reich" (1986: 193).
" As redes comunitárias no mundo contemporâneo aparecem como formas inéditas do espírito
ciânico, paradoxal e frio. É precisamente essa dimensão que Zygmunc Bauman procura esclarecer:
"As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam sensações. A palavra 'comunidade' é
uma delas. Ela sugere algo bom: o que quer que "comunidade' signifique, é bom 'ter uma comu-
nidade', 'estar numa comunidade'. !... ]. As empresas ou a sociedade podem ser más, mas não a
comunidade. A comunidade, sentimos, é sem pre uma coisa boa. !... ] a comunidade é um lugar
'cálido', confortável e aconchegante. É como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada,
como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia frio . Lá fora, na rua, toda espécie
de perigo está à espreita [... ]. Na comunidade, podemos relaxar[ ... ] contar com a boa vontade dos
ourros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar novamente de pé" (2001: 1-2).
A CONDIÇÃO SENSÍVEL
certo tipo de vínculo e são capazes de "manter, no coração dos trabalhadores, o
sentimento vivo de sua solidariedade comum, impedindo que a lei do mais forte
se aplique de forma brutal" (: xn). 7
Seu texto detalha a atmosfera reinante nas corporações romanas: "mesmo nas
corporações operárias, as pessoas se associavam, sobretudo, pelo prazer de viver
junto", e se refere a Boissier, "para encontrar fora de casa distrações para fadigas
e aborrecimentos, criar uma intimidade menos restrita do que a família, porém
menos extensa do que a cidade, tornando, assim, a vida mais fácil e agradável"
(Boissier citado por Durkheim, 1893: XiV) Como ele sublinha, "a vida comum é
atmtiva e ao mesmo tempo coercitiva. O constrangimento é necessário para levar o
homem à superação de si mesmo"(: xvn) .
Todos esses termos são importantes, mas podem ser assim resumidos: as pessoas
se associam para se superarem, ou seja, é a associação que efetivamente permite a
superação de si. Para Durkheim, essa superação se faz em nome da moral republi-
cana democrática, já que ele vê na associação a condição de possibilidade do bem-
estar e da proteção, em nome da comunidade, da vida moral: a associação oferece as
condições de uma superação moral e psicológica de si.
Quando indivíduos que acham ter interesses comuns se associam não é apenas para
defender esses interesses; é para não mais se sentirem perdidos em meio a adversários,
para sentir o prazer de comungar, de ser um em muitos, quer dizer, para levar uma
mesma vida moral(: XVIII).
7 Durkheim se detém na evolução do papel das corporações na história: "ao passo que em Roma ela
[a corporação] começou quase fora dos quadros normais, serviu de quadro elementar em nossas
sociedades aruais [... ],posto que a comuna era uma reunião de corporações e se formou seguindo
o tipo da corporação, sendo esta que, em última análise, serviu de base a rodo o sistema político
oriundo do movimento comunal" (: xx).
' Emmanuel Diet, ao enfatizar a especificidade dos fenô mmos sectários, chama a atenção para as
dimensões ameaçadoras desse deslocamento do espírito corporativo. Insiste sobre o fato de que as
seitas destroem, com suas práticas, a função simbólica, assim como instauram uma violência que
leva a uma incapacidade de simbolização massiva e insidiosa; é essencial, portanto, "marcar sua es-
pecificidade em relação aos movimentos religiosos . filosóficos o u associativos com os quais as seitas
esforçam-se em se confundir[ .. .]". Ao se opor à posição de certos historiado res ou sociólogos das
religiões que se arêm ao discurso maniffsco sem examinar as práticas e suas conseqüências, banali-
zando e minimii.a ndo o fe nômeno sectário sob a denominação de "novos movimentos religiosos",
Diet afirma que é preciso considerar a singularidade histórica d as "novas seitas", irredutíveis a
m eros "grupos minoritários, heréticos ou exóticos [...]. Tendo fracassado em sua vontade de sujei-
ção ao mesmo, agitadas pela história, aceita ndo certo pluralismo e o diálogo com a racionalidade
científica, as grandes d o utrinas e associações filosóficas e religiosas instituem leis e interditos com
vocação universal, aos quais sacerdo tes e crentes se submerem de m aneira igual, enquanto a lógica
sectárir1 [... ] jwtifica todas as violências contra aqueles que se opõem àJ ações do grupo e criticam sua
doutrinr1. Mesmo se a intn·diçáo de pensar está sempre presente, as religiões, apoiadas em seu dogmatis-
mo, asseguram uma fimçiío simbólica" (1999 : 52-3, grifo adicionado) .
'' Lacqueur distingue na história dos movimentos de juventude uma primeira fase, a dos Wandervo-
gel, que se estende de 1896 a r919, da fase do Bund, que termina em 1933.
10
Gay analisa a valorização da coragem e da energia que, no século XIX, tornam-se um verdadeiro
culto da força e da virilidade, lembrando que, "em 1906, o sociólogo francês Georges Sorel se la-
mentava da moleza da classe média[ ... ], mais preocupada em se engajar em ações humanitárias do
que na luta" (1993: io9). Ressalta também que, "em 1895, em seu discurso de admissão à Academia
Francesa, o romancista e ensaísta Paul Bourget declarou que o espírito moderno sofria de atrofia
da vontade e que tinha sido atingido por uma crise de niilismo e pessimismo" (: 108); que, "longe
de ser uma invenção da época moderna, atestava a permanência dos ideais aristocráticos e os da
Grécia antiga" (: 107); e que "o ideal viril se revela um mecanismo incerto destinado a faci litar a
liberação das pulsões agressivas" (: 107).
Retomemos a carta de Mauss, em que ele evoca o tipo de ação obsoleta, arcaica -
"regressiva", diria Freud- da sociedade de jovens na "sociedade dos homens". Indo
ao encontro das análises de La..::queur e de Gay, Pierre Bourdieu se debruçou sobre
o espírito corporativo e enfatizou "os laços afetivos intensos e duráveis de frater-
nidade que se instauram necessariamente entre os adolescentes das universidades"
(Bourdieu, 1989: 257; 1994: 123-31). Sua análise se conclui com um comentário que
merece ser retomado e aprofundado:
O amor sempre é, assim como a "fraternidade" ou a "sororitê' 12 escolar, a manifes-
tação de uma forma particular de espírito corporativo[ ... ]. O amor de si nos outros
11
Peter Gay se detém em aspectos que nos parecem decisivos: "nem todos aqueles que, nos anos 1920,
buscavam integração e unidade cederam à tentação da regressão [... ].Recorreram à razão mais do
que ao irracionalismo, não por niilismo, e sim pela construção, tern10 que deve ser considerado
literalmente, pois foram os arquitetos que formularam essa filosofia moderna e democrática em
seus escritos, e a puseram em prática em seus edifícios" (: 125). Ver também Dumont a propósito
de bildung, "a idéia alemã de liberdade, segundo Ernst Troeltsch" (1991: 61).
12
N.do T. Em francês, sororité corresponde à solidariedade feminina. O termo provém da combina-
ção do latim sororco m o inglês sorority, e remete aftaternité(fraternidade).
A C ü ~ D IÇÁO SENSÍVEL 1 n3
e no grupo favorecendo a reunião prolongada de semelhantes é o verdadeiro funda-
mento do que chamamos 'espírito corporativo", do qual o espírito familiar é um caso
particular (Bourdieu, 1989: 257-8).
u Bauman afirma que "os engajamentos que fazem que uma comunidade seja écica são do tipo fra-
cernal [... ],ou seja, aquilo que os indivíduos, ele form> verossímil, esperam da comunidade é uma
garnncia, uma promessa de certeza, de segurança e de proteção", sem deixar de acrescencar que é
precisamente desse as pecco "que escão mais privados quando isolados" (2001 :72).
14
Esse ripo de análise se aplica às formas de individualismo nas democracias; ela se mostra mais difícil
para cercas formas de comunicarismo presences nas democracias, particularmente em relação às
afirmações identitárias e à relação com o senrido.
15
Sobre a questão dos fluxos e solicitações contínuas, ver Illich (1995) Ver também o número dedica-
do à fadiga da Revue Française de Psychosomatique (n. 24, 2003), e Haroche (2004). Diet, por sua
vez, sublinha que, nos mecanismos sectários, "o sujeito é vítima de uma [... ] dessubjerivação, cujo
meio privilegiado é o ataque a rodas às suas bases de apoio. A princípio, são visados a imagem do
corpo e [o que nos parece aqui crucial] o mecanismo pulsional, produzindo-se, por esgotamento
e excitação, experiências-limite que, freqüentemenre, põem em risco a própria sobrevivência e
sempre têm como efeito o despedaçamento da imagem do corpo [... ].Trata-se de favorecer, pela
perda da dimensão do real e da personalidade, a realização da dominação". Dier observa também
que, "no fluxo sem limite nem obstáculo, os significados desalinhados se tornam absolutamente
arbitrários. [... ] Apenas o amor pelo senhor e a adesão ao discurso doutrinário parecem propor
ainda algum sentido num universo tornado caótico, sem fé nem lei, em que nada é verdadeiro
e tudo é ao mesmo tempo permitido e proibido; em que rudo, a todo instante, é possível". Ao
concluir, afirma que "essa confusão arcaica marca a desestabilização dos conteúdos de pensamenro"
(1999: 57-59). Ver aindaAnzieu (1985, 1993).
n6 1 CLAUDINE HAROCHE
Confronramo-nos hoj e com formas paradoxais e inéditas de vínculo e de comu-
nidade: a valorização constante e extrema do e u, "fabri cando" de maneira conrínua
o corpo, cm qu e a extensão corporal, ao provocar a recusa dos limites, apresenta-se
como algo indissociável de uma relação ora form al. ora indistinta com o outro.
Os desequilíbrios sensoriais, relacionados ao declínio do contato e à perda geral
dos sentidos, traduzida na busca de contatos sem contato, abrem-se então a re-
lações de força de extrema violência, a um corpo-a-corpo, a um face a face entre
fortes e fracos. A recusa da rel ação com os limites,. a negação de formas de rituali-
zação e de separ2ção dos corpos e dos espíritos, específica da comunidade estética,
é igualmente própria às lógicas sectárias (cf. o capítulo 5).
Pensávamos saber o que o corpo é. Hoje, somos levados a repensar certas ques-
tõ es fundam entais e elementares formuladas por Durkheim: a energia, a agitação
permanente e não cristalizada, a fus ão, todos eles fatores que se revelam ameaça-
dores e destrutivos do psiquismo (Durkheim, 1912). Para além da relação com o
limite, de sua importância ou negação, é o tipo de vínculo - de contato psíquico,
mental , psicológico e físico, in voluntário ou deliberado, a oscilar entre a fusão e
o medo do contate - que se encontra hoje no cerne do es pírito corporativo e de
sua deriva.
A CO NDI ÇÃ O SENSÍVEL 1 n7
PARTE III
DO INDIVÍDUO HIPERMODERNO
Norbert Elias
1
Entre os trabalhos que lhe foram d edicados, destacam os o livro A ct1tegoria de pessoa. Antropologia,
filosofia. história (1985). orga nizado por Michael Carrithers, Steven Collins e Steven Lukes, sobre-
tudo os artigos de l.oui s Dumont e Charles Taylor.
' Estas questões são retornadas, desenvolvidas e comentadas em Carrithers, C ollins e Lukes (1985) .
Stevcn Lukes (: 285) sublinha que talvez seja preciso reconh ecer aí uma "estrutura de sentimento",
uma "arirude geral" ou, ainda, um ripo de crença "que perdura em d iferentes formas c ulturais"
(: 285) Michael Ca rrithers, por s ua vc,., fri sa que Mau.IS "deixa de lad o rudo o que está ligado ao
cu, à personalidade con.sci<.:ntc c omo tal", observando que, em seu texto, "apenas o legal ~ o social
ou ainda o político importam , pouco conram o psíquico ou o filosófico [... ]. o eu é colocado em
aposi ção à pessoa , l... ] como .se para as sociedades ocidcnrais modernas fossem a mesma coisa".
Na verdade, observa, Mauss afirm a que "p essoa = cu, e que este equivale à consciência [.. . J a p essoa
121
Mauss afirma que "a noção de pessoa, longe de ser uma idéia primordial, inata
e claramente inscrita [... ]no mais profundo de nosso ser, [... ]permanece imprecisa,
necessitando de uma maior elaboração". Ela se constrói lentamente, "clarifican-
do-se, especificando-se, identificando-se com o conhecimento de si, com a cons-
ciência psicológica". Na seqüência, formula um questionamento extremamente
contemporâneo: "Quem sabe se essa 'categoria', que todos acreditamos fundada,
será sempre reconhecida como tal?" (: 359, 362).
Uma observação antes de seguir adiante: neste texto, não distinguiremos o eu
das noções de pessoa, personalidade, caráter, indivíduo e individualidade. Todos
esses termos se referem a um mesmo campo paradigmático , relativamente im preci-
so e movediço, conforme o encontramos em vários autores, como o próprio Mauss,
Émile Durkheim (1894), Georg Simmel (1908) e Norbert Elias (1987) 1.
O que interessa aqui é a existência de um desengajamento, fato sublinhado de
forma reiterada em relação ~s sociedades contemporâneas: levanto, assim, a hipó-
tese de que esse desengajamento - esse descompromisso resultante das sensações
cantínuas exercidas sobre o eu - influencia, de maneira profunda e insidiosa, as
relações en tre sensação, percepção, consciência, reflexão e sentimentos, levando ao
esmaecimento das fronteiras entre objetos materiais reais e imagens virtuais. Além
disso, tal desengajamento toca os limites do eu\ com efeitos sobre as maneiras de
sentir e, sobretudo, sobre a própri a capacidade de sentir. '
ter uma hisc6ri1 social e legal não tem nada de surprcendcmc: a hi sccíria social e legal é precisamen-
te o que permite a especificidade d" p essoa" (: 234-6).
5
A respeito do eu, do sentimento de si, ver também Freud (192 1, 1923), e Janer (1889). Observe-se
ainda que, em Mauss, palavras referentes à pe"ºª aparecem vinculadas à família , enquanto Elias
privilegia o indivíduo.
'Sobre as relações entre sensação, percepção e idéias, ver Lockc (r690, livros 1e 11) . Essa obra trata
de questões ligadas àq uelas que Durkhcim aborda mais carde: a necessidade de que a ciênc ia, "ao
afastar as noçóes com uns e as palavras que as exprimem, rerorne à sensação, mat éria-prima e neces-
sária de todos os conceitos. É da sensação que provêm todas as idéi as gerais, verdadeiras ou falsas,
científicas ou gerais" (1894: 136). Sobre as relações entre reflexão e reflexo, ver Marcel Gauchet,
que cita e comenta passagem de Paul Ya léry sobre o ato refl exo: "a div; são e a distribuição dos atos-
acontecirnentos que estão em jogo ria transformação ídos] atos reflexos ou auc ~1 m;i.ricos cm ato:'
refletidos'', acrescentando que o "a ro reflf"xc é indivisível -.::: realizado exceriurmente ~UHC S que se
possa pará-lo. f... l O ato refletido[ ... ] é um ceflexo retardado - presum ido -que uma sens ibilidade_
especial - com ou sem o tempo de intervir - reprime, equilibra ou sustenta" (1992: r6J -J), rete ndo
sua conclusão: "o estado nascen te do refletido é re flexo".
5 Tomo de empréstimo de Durkheim a expressão "maneiras de ser e de sentir", presente em As regras
do método sociológico: "as maneiras de agir, de pensar e de sentir que aprcsencam a notável proprie-
dade de existir fora das consciências individuais" (1894: 96).
" A propósito da análise das sociedades contemporâneas, ver os trabalhos de Balandier (1994}. Sobre
a questão do desengajamento nas sociedades contemporâneas, Bauman (1998).
7 A respeito da formação e dos mecanismos do eu, ver Anzieu (1985, r993} e Bauman, (2000).
8
O caráter extremamente com plexo da questão se refere ao fato de que podemos experimentar
sentin1entos e exprimi-los; nada exprimir e nada vivenciar; vivenciar sentimentos sem exprimi-
!os; e ainda exprimir sentimentos sem vivenciá-los. Durkheim observou que "nem Locke, nem
Condillac consideraram os fenômenos psíquicos objetivamente. [... ] Eis a razão por que, embora
tenham, em certos aspectos, preparado o advento da psicoiogia científica, ela nasceu apenas muito
mais tarde, quando se chegou à concepção de que os estados de consciência podem e devem ser
considerados do exterior, e não do ponto de vista da consciência que os experimenta." (Durkheirn,
1894: 123). Para uma primeira aproximação do estudo dos sentimentos, ver o conjunto de contri-
buições organizado por Ansart (2001).
9
Ver, também, seu ensaio "A fidelidade. Ensaio de sociopsicologia" (1913).
'º Além do ensaio de Simmel citado na nota anterior, ver o capítulo 8 deste livro.
FLUIDEZ E DESENGAJAMENTO
Segundo nosso próprio ponto de vista, esse conformismo, ainda que interiorize o
autoritarismo sob formas particularmente insidiosas, pode perfeitamente integrar
l
o movimento e a atividade incessante e compulsiva, encarnando-se nos tipos de
persoualidade contemporâneos. Alguns trabalhos recentes, consagrados, sobretu- l
do, à família, às telas, à internet, ao trabalho e à psicologia contemporânea, assi m
11
Ao precisar os efeitos da emancipação evoc2dos por Frnmm, Elias enfatiza que o indivíd1w era ou
devia ser autônomo. "O termo 'indivíduo' tem hoje por função essencial exprimir que toda pessoa
humana, em todas as partes do mundo, é ou deve ser um ser autônomo que comanda sm própria
vida, e também que toda pessoa humana é, em certos aspectos, diferente de todas as outras, ou
talvez devesse sê-lo. Realidade fatual e postulado se confundem facilmente, quando empregamos
esta palavra" (1987: 208) .
12
"Em suas origens inglesas, a palavra carriere designava uma estrada para os carros (carriages) ; aplicada ao
trabalho, d esignou a via pela qual se seguia a vida em seus propósitos econômicos" (Sennett 1998: 9).
13
O eu conheceria hoje um momento inédito de alienação. Cf. Marx (1844, 1859).
1
·• ( )llllCse tr:H.luz na~ , ,b~c r v~u;ões <lt: Kaufm~111. ao pcrccbl'r uma nunaçáo alllropolôgica profunda
que concerne ao cu , à busca permanente <le visibilidade de si, à própria produção do eu na visi-
bili<lade e na quantidade: "a identidade, outrora outorgada pelo lugar social, deve ser produzida J'
agora numa quanti<ladc tão grande quanto possível, ampliada cm seu ser pelas imagens e outros ~
traços de si" (Kaufm.rnn, 2003).
A CONDlÇÃO SENSÍVEL
DES CON TINIJ!D A DF E INAPREENSIB ILI DADE
Ceorg Simmel
1 133
p~-~yat~gi.~__sk_ln_cg_ns_is_t_~cia._42 eu, isto é, delimitaria uma modificação nos
vínculos, nas disposições psicológicas, nas qualidades morais e na força e estabi-
lidade das convicções e das rebções? Teria se estahclecido uma modific_~ç~o _ na_
maneira d_e ex erimentar e exprimir os sentimentos em relação aos outros e a si
~mo? A_!:Je._cessidade dc:Js:p_t~n~ir,__d!';_JIJª;;r~rofü~º-s_s_e:_!]._ci~~~~os, _a D_<!t~- 1 /
reza e o modo de expressão dos sentimentos nas sociedades individualistas se im- / /
p.Q.e, P'.:li_s essâ~ s~~i~d;de~-ç~-~1~eÇerr;fo~;;B~_d~~ingi_y0t!alism<J e _çle !lªr~is!Sí-i=i-;q~;e , f_)-
1nodifü;arn e p.õ~m em <;_Jues!lj~cul~ ~l!imentos ent1:~~víduos. t'.)
G'.11!.c_l:i~~es~1llliJanças o tra o e~o t:.'..'H~Fológico _9._l_~~!?~í- 1.--" 1
tico, de urna -nova- i:elaçã.uin.d.iYi.íill_al com l\~~ Para ele, os indivíduos não se 'r·
inscrevem mais no tempo ou o fazem de forma rad icalmente diferente daquela que
faziam. São testemunhos disso as maneiras como vivem, fazem planos, avaliam,
decidem, julgam e interagem uns com os outros. Per_ç_ebem, r~gem e _s~__<o2nduzem
num reg_istro imediat9, ~~~l1e?-'- se1!1_q~gm:nLa..~xp.rirrijr um_ínij_çg~!ã
de-~~RcLl).!.a11eidade. ['ruderrt~s, mais.s_!~~~º1!112!~!!.1.!&W9s...d_Q_ que calculis_i:..as, <l_in-_
co_nsistência de seu e~1 se faz acorrip;mh_aI_ d'!_ falta de continuidade e engajamento
nos .:::_Lfi."°Zul?s," e -;p_e_smo _q_e 11ma inaptidão pa~a os ~vírictili_Js : GÇos~;timen.i:os .
. "De tanta insistência para que não exista relaÇão alguma e nt~e o que eu era ontem,
\ o que sou hoje e o que poderei ser amanhã, nasce uma inccrt:cza radical sobre a
1 , - - - - - - - - -- - - - - - - - --
! continuidade e a consistência do eu. E nesse tempo da mudança, com o poder
\ quep roporc1ona ein·-;-~laçã~ a~ eu,que reconheço, por excelência, a personalidade
\ ultra-contemporânea" (:178)
A_R()SSe de si s~__ _;póia não mais na substância, nas qualidades, nas aspirações e
, nos valores morais, mas sim na capacidade de se cl_e_~yin_ç_iJ.l<Lr_e de se fty-rar_ill_<ôl~ ive
1 --· ----·--·-···
. ,JJ_.,,,
P ê!_a ~_stabili_dade _e_m_.r..e_illção a si mesmo. Tratar-se-ia de urna nova forma de niilismo,
de uma estratégia de dominação perversa ou de um tipo específico de economia
psíquica que implica a anulação de si ou, ao menos, uma hesitação, um mal-estar e
uma perturbação permanentes? Hoje, a posse de si parece requerer a inconsistência
do eu ou conduzir até ela.
Gauchet percebe aí o efeito de uma aprendizagem ou valorização do desen-
gajamento em relação a si e, portanto, em relaçfo ao outro, algo que contraria a
necessidade das formas e reservas que toda vida cm sociedade implica. O dcscnga-
jamento, o descompromisso, acarreta uma relação específica co;1sigo mesmo e con1
o outro, caracterizada pela ausência, pela ignorância de todo movimento espontâ-
neo1, pela inconsistência e, por fim, pelo intercambiamento e a instrumentalização
1 Numerosos trahalhos consagrados os cnrn1·<>cs rdictclll o i111crc.5 'c C'lll!Ínuo pela c 111crgé11cia,~
inesperado e pelo efêmero d:1s ex pres~õc.s emocionais do indivíduo, mas tendem a negligenciar
uma <limcn<io igu;dmcnte irnporranre, a dos sent imc ni-o": silen c ioso.<,. e in:..c riro.'- 11~1 longa d ur;1 r,·~ío,
. nc mais profundo da subjetividade e d ~ sensibilidade do ind ividuo, assim como suscetíveis, quan-
/ do a:neaçados ou gravemente questionados, de provocar grandes transfonn:3.çóes sociais e políticas
l ;as sociedades. Ver, a esse respeito, Ans.~rt (2001) _
· A respeito da ausência de pensamento da falta de sentimento, de desligamento pulsional e das
1>crsonalidadcs perversa,, ver heud (r9 o, !92.3> 1930), Bouvet (1954) e Winnicott (1971) .
1
As an.íliscs de Gauchet cruzam de forr a mais indireta com as de Elias (1989: 21-44) sobre a infor-
malizaç'.!o e com as de Sennctr (19 74: 05) .
' Os textos que formam a sociologia de Simmel foram reunidos em francês no livro Sociologia: estudo«
sobre as formas de socialização (Paris: PUF, 1999). A respeito do contexto, do período de efervescência
cultural, a profunda crise de valores, o ceticismo generalizado e o clima de ruína moral em que
Simmel escreve, assim como seus conceitos fundamentais, a distinção entre formas e conteúdos, ª'
continuidades que se aram e a.s origens da.s formas e seu caráter funcional, ver Lévine (1971), para
quem as formas "não são fixas e imutáveis, mas nascem, desenvolvem-se e evenrualmenre desapa-
recem ao longo do tempo". Ainda que Simmel não renha consagrado um esrudo específico sobre o !
tempo, seus trabalhos abordam de maneira indireta, ma.s decisiva a questão do tempo nos valores,~
nos modos de vida e nas interações.
A análi se de Sim mel chama a atenção E!~c i sa_!!l_ente para_a_ iinRonância dessas re-
[~ções móyei ;~, fü azes ,Tugiti~s,~fê~eras e impalpáve is, insistindo sobre um ç_~n
ceiro essencial E?-ra a con-:;-p reensão das sociedades e ;-e~ência, a manutenção
e _2" dec)ín io _i? vínculo ~ocial: a i1~teração, conceito central~~ se-; s- trabalhos _e
indissocdvd da ( l~cstão ;lo ;cm ~o e da intermitência dos vínc~1fo; sociais. Ela
r~ tém e~a-~pécie d e instabilidade ermanente dos estados, que, ao mesmo tempo,
,,> contribuem ara instalá- la; me~rn_o_i_nst~\'e isc po~em aEmentar relações duráveis,
.,) Ol!_t;_[Il_~s~t~~~vessá-las ou des~uí-las 12~r_fl_1~i()_da ii:is::_t'1·teza e da__angústia çi_ue
- \ são suscetíveis de criar.
Mais do ql1e àsJo2:m:!s propriamente ditas, Simrnel se interessa pelos ~os / . . _;-/.!
s:i bjacente.:_; ~~.1~1'.! s: p~~~aç~o, pelos inces_!)~n~eL!!:!_ovimen!os_de _va!~~ll.· ,'e+ -
pela mobilidade permanente dos processos que dão origem às formas sociais e ,
psicológic~;, ~;;-~2!e~fl_~~i:i:!-5!___ s~P-_<:me-da c~~São~~dOflincio-;;_amento t;nto j
do indivíduo quanto dos sistemas institucionais . A questão do tempo, portanto,
é situada por Simmel nas fronteir~s-co~nte-;;:;;nte móveis entre os indivíduos e
a sociedade, as relações cotidianas e os modos de funcionamento institucionais, a
interioridade e a exterioridade: "a cada dia, a cada hora, refaz-se a urdidura tecida
pelos vínculos, eles escapam e são substitu_!_2~or ou_.!!:Qs, tecidos por sua vez c_o m
~~o~ f!_os". Apena; ;que Sim~el chama de "m_!_croscopia psicológica~ pode apre-
endê-los . "As grandes formas que proporcionaram à ciência seus primeiros objetos
de estudo não púderiam, de forma alguma reconstituir a vida social tal como dada
pela experiência" (: 224) em ~1\as relações momentâneas ou duráveis, conscientes
ou i nêõn~>iciêi'i res, que nos atam !". nos separam, conclui 1. ~
Simmel, portanto, distingue a forma exterior, estável, d as instituições, dos siste- J
mas e dos organismos, d e sua forma interior: --
' O restabelecimento dessa continuidade, que vai dos usos aos sistemas e direitos instituídos, das
in terações individuais aos sistemas sociais e Estados, também foi abordada, no âmbito da socio-
logia alemã, por Ferdinand Tiinnies (1909) e Max Weber (1922). W eber aborda os problemas de
continuidade a propósito dos elos entre costumes, usos e direitos nesta passagem, que prima pela
extrema concisão: ''.A transição do costume para a convenção e o direiro é abso1uramente incons-
tante j.,.J. O que diz respeito ao costume se situa n a orige m Jo que é obrigatoriamente válido"
(: 61). Sobre a continu id ade: entre formas e con teúdos, ver esta afrrmaç5o de Lévine: "Os conteú-
dos se revestem de um sentido particular quando d esignam necessidades, aspirações e fins que
conduzem os indivíduos a imeragir de forma contínua. As formas constituem os processos pelos
quais são constituídas unidades supra-individuais, estáveis ou transitórias, solidárias ou confliruo-
sas, de acordo com o caso" (1971: xxm).
....-------- - - - - - - - - -
s IN~UOS INSIGNIFICAN]."~
- ---
Trabalhos recentes de teoria moral e política, assim como de teoria jurídica, têm se
dedicado a refletir sobre os processos presentes na gênese e na elaboração de nor-
mas, de políticas e de procedimentos jurídicos, buscando caracterizar, com acerto,
as interações presentes em determinados procedimentos jurídicos (Honneth, 1996).
Genevieve Koubi, em estudo sobre a "consideração", mostra-nos, de maneira sin-
tética, procedimentos paradoxais subjacentes às reivindicações do direito ao. res-
peito. Por comportar, a um só tempo, elementos do direito jurídico-político e dos
direitos morais, "o termo respeito supõe o conhecimento do outro e demanda, em
6
Nos Estados Unidos, certas universidades se apresen taram como precursoras na discussáo dessas
questões nos anos 1990. As normas de conduta do Massachusetts Institute ofTechnology (MIT)
sobre assédio nos levam a pensar que rodo discurso, comportamento ou atitude podem ser consi-
!
derados agressivos. Trata-se de compo rtamentos difíceis de serem avaliados e, a fortiori, de serem
legislados. Foi isso, no entanto, que o MIT buscou sancionar: as condutas verbais ou físicas que
criam uma atmosfera hostil, ameaçadora oü simplesmente desagradável para a universidade nas
relações profissionais ou humanas, de maneira geral. A questáo que existe aqui in cide sobre o
que, se legisla ou se pretende legislar: "Podemos, ou devemos, vincular na legislaçáo um elemento
de fato e comportamentos tangíveis - o ser insultado - a um sentimento interior, ao sentir-se J
insultado? É preciso distinguir entre o que constitui um fato tangível, ser objeto do assédio, e •
uma impressáo, uma sensaçáo freqüentemente situada no limite do intangível, sentir-se objeto do
assédio" (Koubi, 1998).
CLAUDINE HARO C HE
biável no que possui de singular ou insubstiruível. Em outros termos, a ignorância
do 1 itmo, do tempo do outro, a pressa e a pressão podem traduzir seja uma mani-
pulação, seja a instrumentalização do outro ou o desrespeito pelo indivíduo.
Desse modo, indivíduos que experimentam em relação à sua pessoa hostilidade
difusa, reticências ou reservas, traduzidas ora por um gesto ou olhar, ora por uma
palavra, têm , há algum tempo, o direito de se queixarem de desatenção humilhan-
te ou indiferença sistemática. Dito de outro modo, têm o direito de exigir atenção,
consideração, gentileza, amabilidade e compaixão por meio da força, de leis que
obrigam ao rl'.speito e ao reconhecimento, bem como prevêem sanções pelo des-
prezo sofrido.
Questões relacionadas aos direitos da pessoa, quando demasiado absuatos e for-
mais, e, portanto, contrários àquilo que declaram, podem se acompanhar de uma
ausência de concretização e, conseqüentemente, de engajamento. Detenhamo-nos,
uma vez mais, no pensamento de Simmel: "Interrompendo aqui minhas pesquisas,
estou consciente de seu caráter fragmentário, mas elas talvez tenham facilitado , ao
menos, o acesso à camada profunda em que o conhecimento deve inspirar-se para
encontrar as condições das associações concretas [... ]entre os homens. Ao se tentar
compreender o tecido da sociedade, os fios delicados e invisíveis que se tecem de
homem a homem não serão mais considerados indignos de observação"(: r66). Uma
série de oposições vem contribuir, assim, à consideração da qualidade dos vínculos
enrre os indivíduos, implicando, de modo fundamental, sua inscrição na duração:
engajamento-desengajamento, compromisso-dcscompromisso, dependência-inde-
pendência, continuidade-descontinuidade, duração-ruptura, estabilidade-instabili-
dade, fidelidade-infidelidade , ·:ínculo-isolamento, certeza-incerteza e consistência-
inconsistência. Ainda que o cng;i;amcnto e a inscrição no tempo permitam, por si só,
a construção do sujeito, é preciso que nos interroguemos sobre o que acontece com
o sujeito quando o progresso da "insignificâncià' é de tal ordem, que as sociedades
tendem a se tornar insensatas, opacas e incompreensíveis.
A esse respeito, Gaucher nos fornece uma síntese concisa e profunda das modi-
ficações antropológicas que afetam, por intermédio do equilíbrio entre as normas
e regras do social, de um lado, e as leis jurídicas, de outro, a relação que o indiví-
duo mantém hoje com o tempo. "Outrora, o conflito social ou o conflito consigo
mesmo implicava a idéia de uma permanência; a identidade estável aparecia como
um ideal, um objetivo que engajava a pessoa em relação a si mesma e em relação
aos demais". Hoje, porém, esse engajamento em relação a si mesmo e aos outros
desaparece em face do desprendimento de si mesmo e dos vínculos com as pessoas.
"O resultado disso é outra maneira de ser e de agir, em que se prefere a ruptura à
necessidade de continuidade" (Gauchet, 1998: 167).
Maurice Merleau-Ponty
Norbert Elias
1
Agradeço a Michele Ansart-Dourlen, Pierre Ansart, Yves Déloye, Eugene Enriquez e Genevieve
Koubi pela leitura atenciosa e as numerosas observações, críticas e sugestões.
1 143
O crescimento da reprodução mecânica tem efeito decisivo sobre o olhar, sobre
a maneira de olhar e, mesmo, sobre a própria capacidade de olhar, já que acarreta
uma significativa incapacidade não só de olhar, como de ver e sentir. Nessa trans-
formação, Benjamim entrevê "a submissão e a configuração da realidade às massas,
assim como das massas à realidade [... ] um processo de imenso alcance tanto para
o pensamento quanto para a intuição" (: 76).
Dando continuidade aos escritos de Benjamin, Theodor Adorno e Max
Horkheimer perceberam, na produção industrial de bens culturais, um processo
de racionalização e mistificação das massas (Adorno e Horkheimer, 1944) . Esse
processo produz uma movimentação permanente que incide sobre as maneiras
de ser e de viver, e também sobre as maneiras de olhar e de sentir: uma agitação
constante que, por sua vez, leva a uma ausência de reflexão imposta pela rapidez,
pela instantaneidade e pelo imediatismo, avessos à alternância entre paralisação e
movimento requerida tanto pela percepção quanto pela reflexão; ~essos , ortanto,
~pria possibilidade de olha!!_
Adorno e Horkheimer afirmam que a imaginação e a espontaneidade dos indiví-
duos, transformadas pelas mídias em consumidores e espectaJores, "auofiam-se":
os próprios produtos são constituídos de tal sorte que paralisam todos esses meca-
nismos. [... ] é preciso [daqui em diante] um espírito rápido, <lons de observação,
competência para compreendê-los perfeitamente, mas [as mídias] interditam toda
atividade mental ao espectador que não quiser perder os fatos que desfilam a toda
velocidade ante seus olhos"(: 135) .
l
nua, por meio de fluxos ininterruptos, para "marcar os sentidos dos homens com
o selo do trabalho em cadeia, desde sua saída da fabrica, à noite, até sua chegada
ao relógio de ponto, na manhã seguinte"(: 140),
Incitado e continuamente estimulado a consumir, ocupado pelo acúmulo e o
excesso de solicitações, o indivíduo transformado em espectador, cuja imaginação
e capacidade de representação se encontram emperradas e, muitas vezes, destruídas,
vê sem ver: ele vê sem ter a capacidade de fixar, analisar, compreender, apreender e,
em conseqüência, torna-se incapaz de criticar e recusar de modo livre. --
A DESATENÇÃO NA DEMOCRACIA
O indivíduo, sit:iado no centro das preocupações sociais e políticas, recebe hoje ,c -y-.1..,v 1
mais e mais atenção. A qualidade e a onipresença dessa atenção superficial, formal ,L. t..-v-
e fragmentária tende, no entanto, a despojá-lo da capacidade psíquica de olhar.
oJ.v.~ -
E:_le é continuamente constrangido a olhar e, ao mesmo tempo, des ossuído ~a
'/,;,., ,J 1 (
c~cidade de olhar; a -~~_:~lus_~~-e in ~s~nt~~-r:ci'.?~ada ~~imensõe~ vi- , -c;,,,..O-t>< V---
I síveis comporta uma dimensão alienante, reificadora, que pode levar à desatenç_ão
crimino~a, negadora do indivíduo, da pessoa e élã-su~etiyLdade.
Várias questões se apresentam nes;e c~ntexto~~ntre as quais estas duas: a demo-
cracia induz a um tipo de relação específica entre o indivíduo e o olhar? A desatenção
~~~
r
~ ~~~:-:-:~t:~:J:-a~ :::~l:;~·C ~~~~~~~CJ~~~~~~~~lSp~~ílCÍa- ~:··-~estrói a in~;~:f~
L sisremas roralirários, ver Arendr (1963).. ___ _
1
GL:ncvil:vt.: Koubi sublinhou, crn cstu<lo <lc<li ca<lo ao respeito, que não se.: pode rcspeirar na indi-
ferença, bem como observou que se conduzem para esse modo de comporramenro "os poderes
públicos na República lai ca: a indiferença pela neutralidade" (Koubi, 1998: 268).
·• AJexis de Tocqueville viu na desatenção "o maior vício do espírito democrático" (1835- 40: 188). Ver
também o capítulo 3.
~.
A questão do olh~ygrl~xiliax. 11a ç_ompreen_são dos modos e funcionamento ,
~associe s..c.o.ntemp.o.râu_eas~--- _ _ --·--·-·--·__.----'
A ausência no olhar e a desatenção podem, com efeito, aparecer como uma
indiferença protetora, mas podem igualmente revelar uma indiferença ue nega
a pessoa no indivíduo. Alguns textos fundadores da socio og1a e a antropologia
abordaram a questão <las man_eir_as A~..ii-~~~-~r, e também como compreen-
dê-las por meio de classificações e categorias. 5 FoLNorbert Elias, todavia, quem,
nos an9s 1~4~ .. abordou e resumiu um conjunto de questões . r5l.il!iY:<!SJ!Q~_às
maneiras de ~lh.;ir, e também à consciência de si e às maneiras de sentir, exprimir
e recalcar os sentimento_s. Suas reflexões tê~ h~je interess;;--particular par;;-z0r;i_
preensão do papel do olhar nas democracias c_ontS:!llp_oLâneas, das relações pouco
~\J. . . .
Em séus trabalhos, Elias expõe os fragmentos de uma história do olhar, do Ilu-
minismo à modernidade e às formas extremas de individualismo, expíicitando suas
,., ),,.J condições de possibilidade, que supõem uma paralisação no fluxo das sensações vi-
/" { suais. 6 Sua análise esboça os contornos de um espaço onde se inscrevem as maneiras
:/'- )l'J de olhar e se abre a todo um conjunto de questões decisivas em que o antropológico,
(i.r,....,.- o sociológico, o político e o psicológico se cruzam de maneira constante.
~~,
J"~ .
)..li c,'l)
.r {'"\
' Durkheim (18~4) e Weber (!922) se interrogaram sobre as catego rias fundamenwi s da sociologia
e levantaram questões que remetem aos rrlOdelos de comportamento e, indissociavel mente, às
maneiras de sentir. Sobre estas questões, ver Haroche (2006).
" Estudos antropológicos e históricos foram explicitamente consagrados ao olhar. Ver Mauss (1936),
Havelange (1998); Courtine e Haroche (1988); Haroche (1997, 2002). Q estudo do olhar se faz por
meio dos gc.stos, posturas e movi~s uc rcvela~ ~ocia l~ coletivo, e que ig~~c ~c:_r..s,.11!..f
interioridade da pe;;;;Tocteinder de rituais, aprendi1..agens ;;nodelos de comportams:!!fo, de um
lado, e de reflexos e automatismos, de~ olhar não pode ser completamente contro lado. Por
exemplo, consid era-s;; um gesto, algo mais enigmático do que a palavra, mais adaptado para traduzir
a dignidade e o poderio dos príncipes. C hastcl se refere, assim, à dedicatória de A <1rte dos gestos, de
Giovanni Bonifacio: "Aos príncipes, que, em razão de sua dignidade, fa1.em-se compreender princi-
palmente por gestos e não por palavras". C hastel ta1nbém come~ta que AJb<:> rti di 1.ia que "os afclO!:
da alma são expressos pelo movimento dos membros" e f11.1C:: Leonardo da Vinci afirm:P:a que "u bom
pintor tem essenc ialmente duas coisas a repre$entar: o personagem e o conteüdo do seu per~samcnto".
Eis, como observa, "o programil. de uma pintura em que a figura pintada está lá para rerresentar não
uma condição ou uma qualidade, e sim um ser". Para que isso se ja 3tingido , uma única condiç3.o:
"a ajuda dos gestos e movimentos dos membtos" (: 22, +1). Ernst Combrich wnbém foi sensível;,
ques tão do olhar, ao afirmar que "não temos na arte um estudo sistemático das rrncas Je olhar; nem
mesmo o desenvolvimento preciso da expressão facial é co nhec ido" (1982: rm).
7
Este é um rema que Elias desenvolve em O processo civili:uidor (1939). O controle de si, o governoJ-
\ i
do corpo, a exigência de contenção, o respeito à distância e a esquiva do contato transparecem )
mesmo nas admoestações mais contemporâneas, menos pensadas e mais cotidianas, como "não
toque na minha mão". _,.---
• Elias remon_t'!_a R~_QJJes~a.ne~dª--de de obs.i;n:ar_e_p~i:i_~r. ªE~ ~agir, de temporizar" -A leitura
de Jean-Pa!,!l__Sartre e de i'y1auri~e_ fli-'rlea_\l_-P'!!'t)'._ ~clar_:_ce a q_11CSrão d~- ~ha;_ por -~eio de UJTia
fenomenologia dos mecanismos de percepção e de reflexão que supõe a articulação do sentido com Í
os ;encido; S~me afirm~q;;-~- "rod~ olhardi;igido~inha-direção-se ~wifesra ;;nculad~ ao
;;p;;:;:ci n;;;nro de uma forma sensfvel <;_Ql!lOSso campo__de__perceP-Ç!ío; ~as, a; c~~trário do que ;;-;;;~di- /
tarnos, isso não está li!\~~"-E_C_!))luma fo~nH..dtt~qnin~_a. Por certo, o que um olhar manifesta, mais
freqüentemente, é ~ ~onvergência em minha direção de dois globos oculares. Isso, contudo, ocorrerá
também no momen ro de uma fri cção de galhos, de um ruido não seguido de silêncio, da abertura de
u111a persiana, do leve movimenro de uma cortina" (!943: 297). Merleau-Ponry, p<>r sua vel, diz que
o fato de possuir ~entidq_s_mr.lliLp!lliÍYtl_a_Qp_a_cidaàe__d~ "encontra;;;;;:-;ntido p;~-ce;t~~. asp~~tos
do ser", precisando qlli' o olhar P-ro!'.Srruk_'-!'!!-" elab_c>~o da p~;ce[>ção. A~enfarizar o flux~tl
nuo da percepção ! _11da_9 movimento, ele an_a!i~()_s me;;;,j !_m~~ e_(>~()C~so~ q':!-'levam da sensaçã~
à percepçáo, da irreflexão~- reflexão, para mostrar~--° ~enrido só é possível na alternância ~mre _.,
movimenrn__c ii:ite!:!:uNº· Conclui-~a análise d<lorma extrem;;;:;-;~r~~intér;;:;;:-;;,k~-do-~~ de uma
definição geral de percepção: "~pecto d:u;_Qisa q~_!!_~ossa percee_<[â_a.J:J~l'~-'!S_l!!llil
p~~lis~ momenrânea no processo perceptivo" (194): 269-70). f
A CO N DI Ç ÃO SE N SfVEI. 1 47
toque, e prevenir e impedir aproximações e proximidades entre os corpos. Ele observa,
então, uma redistribuição e um desequilíbrio na divisão de trabalho dos sentidos
posta pela civilização, concluindo que: "os prazeres dos olhos e dos ouvidos se tornam
im-11
mais intensos, mais ricos, mais sueis e difundidos. Os prazeres dos membros são cada
vez. mais limitados por prescrições e interdições[ ... ]. Percebemos muitas coisas sem nos
mexer. Pensamos e observamos sem tocar" (Elias, 1941-50: 165) 9
A visão é considerada menos perigosa do que o tato; é conveniente, portanto,
evitar o contato e tocar apenas com os olhos. Elias foca numerosos mecanismos so-
ciológicos, psicológicos e antropológicos que se abrem, por sua vez, a um conjunto
de observações e interrogações fundamentais. 10 Ao indicar a própria capacidade de
ser uma pessoa, o olhar se constitui, desde o século XVIII, como um atributo, um
dever e um direito reconhecido a todo indivíduo 2õn5íderado proprietário de si
mesmo (Castel e Haroche 2001). Em outras palavras, o olhar supõe e permite o
exercício tanto de um olhar para si mesmo quanto de um olhar para os outros, um
olhar a um só tempo interior e exterior que depende e participa de um olhar social,
elemento e condição da auto-estima, da dignidade de todo indivíduo. Trata-se de
características que fazem dele uma das condições e dos objetivos da Jemocracia.
9
É importante, no entanto, distinguir as culturas cm que o foto de tocar faz parte das relações
cotidianas daquelas nas quais o contato é objeto de normas de conduta extremamente codificadas.
Cf. Castel e Haroche (2001).
'° Deve-se enfatizar a extraordinária atualidade das questões relativas à aparência. Lembremo-nos,
por exemplo, dos problemas provocados, na França, pelo porte do véu islâmico.
11
Geerrz afirma que "não existe discurso social bruto" e que "urna das características da etnografia
consiste em interpretar o fluxo do discurso social" (1973: 9). Ve~a Cook (1977:- 65) e-Exline
e Fehr (1978). SCack e Piam lembra;.;;- que, de maneira geral, "oJ_~, fixar, perscrutar são signos
não_verbais da comunicação humana. Deixando de lado os casos p~-;,--;-squiv~ de~;,,
olharÍ nsÍstente, pa~~Jh;;do fixamente (sobretudo por estranhos) é sentido como algo
ameaçador ou, ao menos, d~confortável ou ermrba~or, i1! . uieta~ te" (1982: 363). Há alguns anos,
os turistas que chegavam a Nova York recebiam um aviso que, deixando-os em guarda contra a
insegurança, recomendava-lhes evitar rodo "contato visual" (: 367). Os aurores comentam que
"os comportamentos que, em diversas espécies, fazem do olho um mecanismo de defesa pa~ecern
confirmar descobertas experimentais concernentes às respostas comportamentais ao contato visual
(eye-contact) ou ao fato de olhar fixamente presente nos primaras e no homem" (: 365).
CLAUDINE HAROCHE
Pº.l1EI _Q __olhaLÇ.m_ ª lguém s;._desyjá.:lQ por delicad_ç_~a r~spei~o _e cq_rri12a1~ou
p:i,rn_~IJ~~ouiesp.lTIQ_Q\!.Je!~º.!l. dedi!lam _1;1rr_ 1a_séE_ie _d:_caracterís~c~e m~_as
q~is· dir~çã.o 1olhar os pés, a terra, olhar do alto, olhar de viés, olhar d e baixo para
cima); 6 u; lidage Bireto, franco, dissimulado, grosseiro, equivocado, libidinoso);
__intensid;;a~gajado, cordi al, caloroso, frio , esquivo, glacial, neutro), e mesmo
r: ;(_115~~1.-ru;n olhar inex pressivo, indiferente, indecifrável, impe netrável ou hermé-
tico). D esse modo , as..m;uLciras_de olhar 12ara o_QJ1U:Q,..!k_ahs.ei:Yádo e de encará-lo
se_r_daçiu_nam a ~ ren.diE~p~_ódigos d e com ortamento acom2anhan~9-
se inevitavelmente de interr- retações e também - o que é de difuilapreensão - de
cons.tâ.'l.cias_.antmp.o lóg.iQs. -- -----
M;Iuss djjerencia...o_oll1ar fixo. no exército e na vida cotidiana: no primeiro,_a
fi xidez_exprime obi:.diência,_s_ub.or.dina_ção submissã_g_;_11a seg!!_nga é considerada
inco nyenicnte, familiar e, às vezes, uma grosseria. Co mo comenta, "te_mos ui:n
conjunro de arirudes_permitidas ou não, naturais ou não. Assim, atribuímos valo-
res diferentes ao fato d e se olhar fixamente: no exército, um símbolo de polidez; na
vida cotidiana, de impolidez" (Mauss, 1936: 372).
A origem e a razão dessas diferen ças remetem a tradições e modelos de educação
que j_!!lpõem ce rto s_p r~ Q!Ji_o_s aos movimentos. Ele cita, nesse semido, a educação
do andar e do olhar, e a aprendizagem de maneiras, que re_.:i_und~ generi_c:_~n
te numa "educação do autocontrol e". Trata-se de observação análoga a de Elias
s<_!bre a c~ n~ÇfcJ, ou seja, ce rto controle gerai do movimento requerido pela vida
e_m~Q°Çi_eijaà~ e mesmo um "fI!ecanis!!!~de reJifÓ;imçntõ_;ctelliibição __dos ~~vi
mentos deso rdenados" , ou ainda de distanciamento, temporização_e__mediação:
um ~~~a~ismo que visa estab-:lecer furm-;_s (: 385). Para Mauss, "essa resistência
~-~1~1oção i~<Jl~illtã-é alg:> de fundamental ~-ª vida social e mental" (: 385) que se
acompanha de~ controle sobr~ o n1ovi;11cntQ__qw.:__cmana da 12cssQa_, F, mais impor-
tante a esse respeito, uma pessoa é percebida pelas maneiras e formas de olhar, ou-
rrf modo de dizer que o olhar supõe, exige a pessoa.'2 Como ele ressalta, a pessoa,
originalmente entendida como m áscara, é "um fato fundamental do direito", uma
vez que separa o espaço interior do exterior e induz as regras que protegem a intui-
midade. A p essoa dissimula e esconde o espaço íntimo, o foro ínrimo da cada um,
da vista de todos e, em decorrência, protege-o e preserva-o do caráter inquisidor
que o olhar do outro pode comportar.
. Geerrz,· por sua vez, retQm ª_!.un..texto...de-Gilb.e.r.t_fule ~rata do caráter ad-
J
3-_Uiri~o , social e cultural d as _maneiras de olhar gara enfatizar a dificuldade -ae
12
Mauss afirma que a construção do eu se faz ao abrigo do olhar: "a noção de persona latina quer
dizer máscara, máscara trágica, máscara ritual e máscara ancestral". Daí advém as questões relativas
à consciência individual Cf. Mauss (!936: 348, 1938). _,
,_,/
O IMEDIATISMO DISTANTE
"Y:eu amhérn- P-'!!'ª esses sinais ínfimos e às vezes d ecisivos: 'focqu eviilc (1 83 5-40) , Mac." (19 36 ) e
"\
14
-----
,.-Ginzb;,:g (1980)': -...
'
diferença, impalpável , entre uma piscadela e um gesto é cl.ua. "Aquel e <1ue ,i.; '.!ma piscadela se
~ comunica, de forma precisa e es pecífica: z. deliberada m enre; 2. com al gu ém em particul ar; 3. para
\. V / transmitir uma me nsagem precisa; 4. e m funç ão de um código so cial preexisten te ; 5. à revelia dos
f\'V!
"~ ourros. C ons titui uma piscadela co ntra ir a pálpebra na e xistê n cia de có d igo púhlico cm qu e fa zê-lo
' r' / equivale a enviar um sinal cúmplice" (G eerrz 1973: 6).
0\, I
15
Georg Simmel faz análises imporranres so bre o olha r e m " Excursus sobre a sociolog ia dos se ntidos"
'" Existem sociedades, portanto, em que as pessoas (em função de nível, posição ou condição) quase
não se olham e mesmo nunca olham diretamente para outra pessoa. Tais condutas determinam, de
modo profündo, a natureza de vínculos, expeccativas, representações e valores.
, . Em Sartre, "a vergonha ou o orgulho que me revelam o olhar do outro e a mim mesmo nesse olhar,
que me fazem 11iver. e não conhecfi, a situaçâo de olhado" (1943: 300). Cf. \1(/einstein e Weinstein
(1984: 349-62).
. " Hegel escreve: "Esta maravilhosa palavra 'sentido' articula uma dupla significação: de um lado,
indica os órgãos de apreensão imediata; de o utro, entendemos a significação, o pensamento, o
universal da coisa. Assim, o sentido remete, por uma parte, à exterioridade imediata da existência
e, por outra, à sua essência interna. Ora, uma consideração dotada de sentido não separa os dois
lados: engajada numa direção, ela ainda rerém a outra, apreendendo, ao mesmo tempo, a essência
do conceito na intuição sensível imediata" (1818-29: 198).
'
J\ CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 151
Além disso, Simmel evoca a necessidade de considerar a parte que cabe à intui-
ção na interação social, definida por ele como um conhecimento sem mediações,
não elaborado ou, ao menos, não construído de forma deliberada e consciente.
"Apesar de variar bastante em termos de grau, sabemos logo no primeiro olhar com
quem estamos lidando" (: 631) . Retomando a esse respeito os trabalhos de Max
Weber e, em particular, de Émile Durkheim, Simmel observa que:
[não se trata de] nada que possamos exprimir em conceitos, dissecar em qualidades
particulares; não podemos talvez nem mesmo dizer se ele nos parece ativo ou inex-
pressivo, benevolente ou mal intencionado, cheio de impetuosidade ou indolente.
Pois todos esses aspectos [... ] são, sobretudo, qualidades gerais que compartilha rom
uma multidão de outras. [... ] o que esse primeiro olhar nos com unica não pode
absolutamente ser analisado e convertido em algo conceituai e traduzível, ainda que
constitua, a seguir, a conalidade de todo o nosso saber ulteriormente adquirido sobre
ele: é antes a apreensão imediata de sua individualidade a partir do que revela aos
nossos olhos sua aparência, principalmente seu rosto (: 632). 19
w Simmel considera que esse primeiro olhar é uma fonre de informações de ri<p1c1.a i111lni1a: repen-
tinas e desordenadas, muitas vezes imprecisas e desestabilizantes, ela está ausente para o cego e
talvez por isso explique "o humor tranqüilo e calmo, uniformemenre amistoso pata com rodos
que constatamos com freqüência entre os cegos [... ] Por isso, aquele que vê sem ouvir será bem
mais confuso, despojado e inquieto do que aquele que ouve sem ver''. Sobre o i11forn1ulado, ver
Ansart (1983).
20
"Antes dos ônibus, estradas de ferro e bondes do século x1x, os homens simplesmente náo podiam
conhecer urna situação em que se podia ou se devia olhar mutuamente durante minutos ou horas,
sem se dirigir a palavra" (Sirnmel, 1908: 63}). Tanto Erwing Goffman quanto Richard Sennett
fazem observações análogas.
' ' Simmcl escreve que "os operários num galpão de fabrica, os estudantes num anfiteatro e os solda-
dos dr um dcsL1c 1mcnro :-.c nt crn qm: fi)nnam mais 011 nu:nos um a unidade" (1908: 636).
-' -' " Pou cos l10me11s poJcm dizer com o.:ncza a cor Jos olhos de seus an 1igos ou po<lcm repn.:scn tar
concretamence pela imaginaçáo o desenho da boca de seus íntimos. Simplesmence, eles não os
viram" (: 637).
1
·' É o que Gaucht:t co m en1a a propósito da personalidade con temporânea: "co ntinuamente ligada,
porém distante" (1998).
"Goffman observa que "a desatenção civil permite ao homem e à mulher trocarem um dpido olhar
mútuo[ ...] a segunda olhadela q1.«: ela lhe dá pode significar um sina l <l•· encvrajamenro" (1977:
62). É preciso, portanto, distir.guir na desa tenção urn2 dirnensão negat iva (aquela nbscrv.-1da por
Tocqucvii1e e.rn relação à democracia) e o utra positiva . Srack e Plane escrevem: "o lhar fi xa mente ou
perscrutar parece ser um esrímulo intenso que provoca tensão, desencadeia uma rcai;1.o emocional
e suscita res postas esquivas. Em cerros casos, o faro de se fixar reciprocamente num<l inre ração
imprevista engendra uma 'emoção próxima ao pânico' ou provoca uma ' hosti lidade intensa' . Pude-
mos observar que a ~mtipatia manifesta ou a lw st ili<ladc se exprimem frcqüentcmcrHc pcl:l .-runcir:l
de o lhar. No 'olhar de ódio' há uma viob ção intenciona l da regra caractcriza<la por ( ;nffrnan como
'desate nção civil' aos cstranhoscm csp'1ÇOS públicos" (r98 2: 364).
26
O · tato possui, junto com sua significação simbólica, um sentido literal, o contato delicado, a
esquiva do contato brutal: é, pois, continuidade e sinônimo de delicadeza.
27 Ann Rawls lembra que Goffman levanta a hipótese que "o eu é de natureza ritual, que o face a face
se organiza para sua proteção durante a interação", e que "boa parte dos escritos de Goffman é
dedicada a descrever essas nuanças, os olhares de esguelha, as hesitações" (2002: 136).
C LAUDINE HAROCHE
algo que se revela neste pensamento bastante profundo de Goffman: "É possível
que o princípio fundamental da ordem ritual seja a aparência - uma imagem de si,
a apresentação de si - e não a justiça" (Goffmann, 1959: 41).
28
O face a face televisivo entre Giscard D 'Estaing e François Mirrerand durante as eleições presi-
denciais de 1974 é extremamente revelador do papel político do olhar. Esse debate foi objeto de
longas <liscussócs que levaram à proibição de filmar o rosto <lo adversário enquanto um dos dois
oponentes fala: seu olhar po<le, de fato, desacreditar de maneira insidiosa, ao exprimir reticências e
desprezo apenas pela postura, por gestos, por expressões ou mesmo pelo bater das pálpe~ras.
·':_O culro das apa!fru;~ e a lura contra ele (anti-looki_!_n:z_) são objeto de importantes debates
jurídicos nos Estados Unidos. Ver Robert Post (2~00 e as imporrantes contribuições de Kwame
Anthony Appiah, Judith Butler, Th~Grey e Reva B. Siegel. -
- '"'------- -- ...____.--- v7
y ~__V"
-V
, \('
_.. ,\:) '..;/ 0-\
/
A CONDIÇÃO SENSÍVEL
nl \J; I'> yf' 1 157
}v2f'Ú
mente, à pessoa, à sua concepção, representação e proteção, e mesmo àquilo que a
constitui como pessoa. Buscam, de modo mais amplo, lutar contra a idéia de que
os indivíduos são apenas suas faces sociais, já que consideram que eles têm uma
"aparência não social".
·~;; Pos~~dou a questão das aparências como origem de preconceitos,
chegando a sugerir que devemos nos tornar cegos às aparências. S ~ rro
cu~Jiza~conside~tentamente a existência de dimensões da ._pJ;_~oa · i ,,,.,
qus .. e~tr_lt;i_m_mte fal~ndo, não_aparecem
. , ou sej ~cAi!:1e,!1,1,ões_ que não depe~d~m i /f.lff
lff
d1.!etamente, como diz Butler, do 9lhar d~-.9..::'E'_~ d1m ensoes da vida ps1qu1ca i llJ::'.
que permanecem não formuladas ou indizíveis, exprimindo aspectos não feno- '(,v
mênicos da personalidade, que na maior parte das pessoas permanecem fugidios, '
ocultos" (.ê_utler, 2001: 78. cf. també rn_ÇQ.f[!!}ª .n, 1963; n!.I~oum-Grappe, 2004)
O que, e;tão:' e11.~!l.ill:LCQJlliLap.a(ência_dç_uJI!ª--P.ç:.füiQ.a? Onde ~!~ '"acaba ou
começa (Turckle, 1995)? A vestimenta, o lenço, a maquiagem, a postura, a reserva,
fazem parte - podem fazer parte - dos traços e dos atributos fundamentais da
<1.parência da pessoa (Butler, 2001)?
"' Scarry observa que muitos escritos políticos tiveram como ponco de partida a questão da crueldade
contra os estrangeiros (Scarry, 200 2) .
11
· "Locke, que era médico e filósofo político, menciona de forma reiterada o termo 'feridi em Segun-
do "frat11do do Governo Civil. [... ] Ou. calvez devêssemos dizer, a capacidade de infringir sofrimenro
aos outros é mais force porqu e nossa capacidade de imaginar os o utros é mais fraca" (Scarry, 2002:
ioo-2). Ver também E nriquez (2001) e Santner (!992: r43- 54).
·'-' Hannah Arend t, Jurante o processo de Eichm ann , tornou consciência, com estupefação, de sua
supcrficiali<lade, sua incapacidade de reflerir e sua ausência de reflexão e de olhar. Sobre a perso-
nalidade democrática, ver Ha roche (2004).
.1.i "Dc.sdc o momcnco em que nos colocamos para executar um dos inun1eráveis gestos pardculares
que compõem o processo de produção, perdemos não apenas todo o inceresse pelo mecanismo em
seu conjunto e por seus efeitos derradeiros, corno também nos privamo, da capacidade de imaginá-
lo" (And ers, 1988: 50). Esse texto esclarece muitos aspectos do trabalho nas sociedades contempo-
râneas, analisados igualmente por Richard Sennett, que analisa as conseqüências da fluidez e da
flexibilidade no trabalho: "o qu ~ conta hoj e é a associação do flexível e do fluido com o superficial"
(1998: 102); "num regime flexível, a dificuldade é anti-produtiva. Pnr um cerrivel paradoxo, di- 1\ ~,__/
minuindo a dificuldade e a resistência, cr iamos as condiçóel de urna atividade cega e indiferente / 1.
por parte dos usuários" (: 97-8) . O indivíduo invadido e submerso pelo excesso de informações
tende in evitavelmente para a superficialidade. Hervieu Léger percebeu efeiros análogos para os
s ujcíros cm cerras formas contcmpodncas de pnítica rcligiosi: a sensação favorece de forma surda,
in sidio:-.a , i11volu11L<iria ou ddihcrada a corpon:idadc, cm dt:tri111cnto da <..:01i~trw;ão de u111 sentido
cornparcilhado. Como afirma corno precisão, "não há 'sujeito sem o dize r', e essa capacidade de
'dizer' requer como motor a confrontação com uma alreridacle, fora da qual nenhuma linguagem -
e, porta11w, nenhum rcconhccimcnlO - é possível" {l.égcr, 2001: 138).
3
' Agradeço a C laude Fischler, qu e chamou a minha atenção pira essa passagem de Primo Levi.
.v• Sobre os processos e a menra!ida<l~ totalitários, sobre aquilo que faz coni que não sejamos au!Ôrna-
tos. mas sujeitos capazes de recusas, disce rnimentos e dhar, ve r 1-Ld-Tn cr (1000); So!1(C o t:!naüs mo
de maneira geral, ver AnsartDourlcn (1985: parte 4, caps. 1 e 2).
_v, Merleau-Ponry formulou as condições de possibilidade do olhar também ao afln11.H que", cons-
truçáo <lo sentido se origina na sensação e 11;1 pcrccpç5n" . As maneira s de sentir e de oH13.r s11pôt'm,
junto com as tradições, uma ca p:1ci<la<l e psíquica. Em sua ardlise Jas opcr:H/1cs fundamentais
da percepção. os meca nismos cm ação no olh::1r e na visão, :lS maneiras Jc perceber e olhar, ele
aborda, por meio do olhar, :t questão dos limites e dos mccm ismos de dcfrs:1 Jo cu: o olh~ir si rua
o espet:ículo à <listfu1cia ou, ao co ntrário, pode se deixar invadir por ele. "O que é fi xar' Da parte
do suj eito, é rnbstituir a visão global, na qual nosso olhar abarca todo o espetáculo e se deixa ser
invadido por ele, por uma observação, quer dizer, uma visão local". Merleau-Ponty ressalta, então,
o retrocesso generalizado , o declínio do papel do corpo na percepção: "nós desaprendemos a ver,
a ouvir e, em termos gerais, a sentir como forma de deduzir nossa organização corporal" (Mer-
leau-Pünty, 1945: 273) Mirscherlich, em estudo de psicologia social, ressalta o papel ao mesmo
tempo literal e metafó rico das percepções senso riais nos afetos: "como a expressão da simpatia e
da antipatia é manifesta com mui to vigor pelas percepções sensoriais, não podemos sentir alguém,
não podemos vê-lo, não podemos Ol!vir sua voz [... ]. Pode-se supor que o esquema afetivo que
provocará mais tarde os sentimenros de simpatia ou de antipatia foi formado muito cedo ao longo
das primeiras experiências inte r- individuais~ numa época em que as impressões sensoriais eram as
mais intensas" (t96r 116).
n Dew ine analisou , de m:tnei ra ad1nirável, o "olhar antropológico" de Mauss, ao evocar "outro
estado de espírito [que! pode existir à medida que é possível conciliar a idéia de contingência ao
sentido posi1ivo e 115.0 ilusório dos fcnbmenos sociais, de so rte que a aptidão cético-niilista não
seja absolutamente um2 conseqüência necessária da sensibilidade à contingência. [... ] Mauss subli-
"hou a positividade e não a negatividade: nfo um nada, um vazio de sentido, mas a positividade de
um 'alguma coisa', de uma posição de sentido [.. . ].que implica nela própria uma parte de possível
e de virtualidade" (2002: 269).
18
· Sobre essas questões, ver os importantes debates sobre as relações entre corporeidade e linguagem
não verbal e verbal em lngold (1998). Alfred Gel!, por exemplo, afirma num destes debates: "Eu
não di go que a linguagem deve ser verbal, mas penso que ela deve ser outra do que aquela total-
mente tomada e enclal!Surada num fluxo de movimentos corporais contínuos" (citado em lngold,
1998: 183).
A CONDIÇÃO SENSÍVEL
ruptura entre o sentimento de si mesmo e as maneiras de sentir e de olhar. Nessa
perspectiva, o estudo e a atenção às formas de olhar podem esclarecer os modos
de funcionamento mais profundos das sociedades contemporâneas. 39 Não é justa-
mente sobre o problema da extensão e do crescimento do eu, e ao mesmo tempo
sobre seu encolhimento e seus limites, tanto quanto sobre a questão dos direitos,
que devemos meditar?
39
"Não seja míope. A miséria está sob seus olhos", pode ser lido em cartazes espalhados pelo Brasil.
Que tipo de consciência ou de ausência de consciência, qual a capacidade de recalque, qual grau
de surdez, de cegueira, de ausência de olhar, é preciso para ignorar ou ser indiferente a certos níveis
de miséria, pobreza e degradação? O que quer dizer a liberdade de não ver o estado de miséria e
degradação do outro?
CLAUDINE HAROCHE
PARTE IV
O ESTREITAMENTO DA CONSCIÊNCIA
PROCESSOS PSICOLÓGICOS E SOCIAIS DE HUMILHAÇÃO:
Karl Marx
1
Agradeço a Pierre Ansart, Michcle Ansarr-Dourlen, Yves Déloye, Eugêne Enriquez e Geneviêve
Koubi pe!os comell[ários críticos e sugestões. Esta contribuição se inscreve no âmbito de uma re-
flexáo de vários anos sobre as relações entre os sentimentos e o político, empreendida pelo Núcleo
História e Linguagens Políticas: Razáo. Sentimentos e Sensibilidades, do CNPq, que conta com a
participação de pesquisadores brasibros e franceses.
' Agradeço a Jacy Seixas a sugestão de retomar os textos de Marx, em p<uticular ManUJ-crÍtos dt 1844
e o primeiro volume de O Capít,d. Neste texto, parto da noção de alienação tal como formulada
por Marx, mesmo se em O Capital, como me alertou Pierre Ansarr, a noção de alienação tenda a
se ocultar. Marx nos incita a pro'5eguir sua reflexáo, ao observar que a alienação humilhante nasce
da dependência, da separaçáo e da privação da propriedade de si. Meu esforço é refletir sobre o
empobrecimento do espaço interior por meio do declfnio das mediações e das formas de produção
no capitalismo flexível, fluido. A espoliação do eu se desenvolve, paradoxalmente, pelo interesse
de partida para aprofundarmos a questão da humilhação nas sociedades contem-
porâneas.'
Ao evocar o desprezo, a pobreza interior, a privação e espoliação de si, bem
como a mortificação do corpo e a opressáo social e econômica, Marx exprimiu, em
poucas palavras, o essencial das condições de humilhação do operário de fabrica
na Europa capitalista do século XIX. Denunciou o processo de alienação do traba-
lho, de miséria econômica, material e, além disso - e este é precisamente: o ponto
que nos interessa aprofundar para a compreensão das sociedades contemporâneas
flexíveis e fluidas-, de miséria psíquica, interior, bem como os sentimentos por ela
provocados.
" Encontramos uma ilustração da importância da humilhação nas querelas das precedências ao ob-
servar Saint-Simon na sociedade de cone do século XVII (Oéloye, Harochc & Ihl, 1997).
-' ( :om frcqli l: ncia, mas 1H:rn se mpre, a miséria é fundamentalmente eco nômi ca . É justamente a
Jin1 en.sãu ps íquica , e não necrssariamentc.: a econômica) que: nos inrc:n:.ssa aqui.
s Convé1n, no entanto, distinguir diferentes tipos de funcion amento das massas: o homem d e mas-
sas nas sociedades tradicionais tribais não é idêntico ao homem de massas nas sociedades democrá-
ticas ocidentais. Ver Arendt (1951); Canetti (1960) .
A CONDIÇÃO SE NSÍVEL
sua criatividade e sua imaginação, a própria pessoa em cada um de nós; emperra
e destrói a subjetividade, à medida que interdita toda capacidade psíquica que
demanda o tempo necessário à reflexão, à relação consigo mesmo e à consciência
de si (Janet, 1929; Mauss, 1938). 9
II
9
Para as sociedades contemporâneas, ver o ca pítulo 7. Enriquez abordou a qu es tão dos indivíduos
que, levados à incapacidade <lese vender nessas formas d!..'. individualismo , tomam-se inúteis e
supér/luos (En<iquez, 2004).
111
Re tomamos aqt:i arg un1cntos desenvolvidos eu1 Castel e H;uochc (2001)
11
Marx afirma que a alienaçãQ nasce do fato que "o objeto prodmido pelo trabalho [... J se alço diante
do operário[ ... ) como um poder indepcnde~te do produtor", cm qu e vê "a perda do objeto" '-' li a
"sujeição a ele" . Marx (r844: 109).
11
•.> M'arx di scenliu a relaç:lo do oped.rio com sua própria ativid:ule co mu uma atividade cst ra nha que
não lhe pcrrcnce", definindo-a como uma "atividade <.JUe i: p;1ssividadc, uma forç a que L: impotên-
cia", ben1 como sublinhando que "a e nerg ia psíquica e intelectual d o opt rário, sua vi da pessoa l 1 .. j
é tran!'fo rnu<l:1 cm ativid~1Jc dirigida co lll ra ele mesm o" (: 11 l).
1.1 Seria oportuno, portanto, repensar e deslocar a oposição tradicional entre o operário e o capitalista:
essa oposição se daria agora enrre o trabalhador e o não trabalhador.
" "() trabalho alienado torna o homem estrangeiro a seu próprio corpo, ao mundo exterior assim
c.01110 a sua essência espiritual, a sua essência humana.[ ... ] O homem .se torna cad;:1 vez. mai ..;; pobre
como homem" {Marx, 1844: 116). Ver também Adorno (1951).
" As necessidades estimuladas de forma contínua pelas sensações têm tendência a emperrar a possibi-
lidade d~ apreensão de sentidos durante a atividade. Cf Lasch {1979), Illich (1995).
"'Essas formas de trabalho são provocadas igualmente por uma relação à temporalidade que estimula
a rapidez, a curta duração, a superficialidade e, conseqüentemente, o declínio dos vínculos durá-
veis nas relações, ou seja, certa friez..-:'l.
III
17
As sociedades de consumo, definidas pelo "uso que é feiro das coisas para satisfazer suas necessida-
des'.', cornaram-se sociedades definidas pelo uso que é feiro não apenas das coisas, mas Jc si mesmo,
satisfazendo necessidades ampliadas, ilimitadas, ligadas ao eu e suscetíveis, sob esse aspecto, de
colocá-lo em xeque. fu sociedades de consumo são, hoje, sociedades de consumição. É interes-
sante sublinhar que "consumição" designa a ação de servir, esgotar, e, na época cristã, de aniquilar,
destruir. A partir do século XVII, essa palavra é empregada nos sentidos de "ação de queimar" e
"de ser q ueimado" e, a té o século XVIII, d e "utilizar destruindo". Cf. Dictionnaire historique de la
langucji'flllÇ'flise (1993).
ix l:: impn rLIJllt: disri11i.;uir dikTlºIH L'~ formas de in visibilidade: a das 1nassas pohrcs não é <.: scolhida,
mas impingida (entrecortada, às vezes, por uma visibilididc humilhante, como a do indivíduo
convidado a se exibir na televisão). Tal invisibilidade náo é aquela protetora - desejada, passageira,
valorizada - da discrição das elites, concomitante à busca da visibilidade de si que permite e expri-
me 1111ia posição de poder. A respeito da visibilidade de si, ver Kaufman (2003).
A CONDIÇÃO S EN S ÍVEL
Sennet, por sua vez, ressaltou que o fluxo contínuo provoca efeitos de alienação
profunda e também de desi11tegração do eu, insistindo sobre a necessidade de "sal-
~n.ti.r.neru.o-de si do ffoicQgB_~rial'~ (Sennett, 1998). Ao contrário do tipo~
personalidade estável que se inscreve no horizonte da continuidade, na consciência
de uma continuidade passada e futura, o tipo de personalidade flexível se define,
paradoxalmente, pela máxima visibilidade e pelo movimento, pelo deslocamento
incessante, encorajando-se a capacidade de adaptação, cujos efeitos acarretam a
ignorância dos limites e, mesmo, a negação de uma relação com eles. 1 'J
Ao isolar um estado, um momento específico da sociedade, que chamou de
"modernidade líquida", Bauman se detém sobre esses traços de personalidade. Tal
estado se caracteriza pelo "desaparecimento do que é contínuo, estável e sólido", e
pelo declínio da individualidade e de sua singularidade repousando nas aspirações
de duração. O declínio de "engajamentos duráveis que constituem vínculos, e em
que a individualidade é valorizada pela exigência, foram substituídos por encon-
tros breves, ordinários e intercambiáveis". Desse modo, conclui que a ausência de
vínculos e, mais do que ele, o desengajamento descrevem, com perfeição, a atmos-
fera das sociedades individualistas contemporâneas (Rauman, 1998).
Com efeito, o descngajamemo é um traço fundamental do clima, da atmosfera
das sociedades individualistas e, mais precisamente, da personalidade flexível, na
condição de elemento essencial não só dos novos modos de poder e de dominação,
como também dos mecanismos de alienação e de humilhação. Bauman chega a
concluir inclusive que a característica do individualismo contemporâneo "não é
mais, como nas sociedades anteriores, a construção da identidade, mas o fato de
não se fixar".
Nesse contexto, Dany-Robert Dufour propõe um panorama dos efeitos de alie-
nação e humilhação produzidos pelo mercado sobre a subjetividade dos indivíduos,
sejam eles pobres ou ricos. Em seus trabalhos, procura elucidar a superficialidade
das relações reforçada pela fluidez das sociedades de mercado contemporâneas:
elas necessitam, em seus termos, "de tudo menos do que possa emperrar a circula-
ção das mercadorias", o que leva a efeitos de desestrumração sobre o indivíduo e a
profundas transformações na subjetividade (Dufour & Berthier, 2003)
Desse modo, Dufour retoma e aprofund't o que Christopher Lasch percebeu no
fim dos anos 1970 em seus trabalhos sobre as sociedades narcisistas: a indiferença,
a falta de sensibilidade para com o outro, o declínio dos sentimentos (Lasch, 1979).
Para ele, o mercado, ao incitar ao consumo permanente - em cspeci~I, ao consumo
''' Pierre Legendre ressalta que "fabricar o homem é dize r-lhe de seus limites, e nsinar-lhe um para
além de sua pessoa, separar o homem dele mesmo. Cada civilizaç5o produz seu es tilo de educação
na separ;içfo de si" (1996: 22-4).
IV
"' A respeito dos processos de massificação, ver Arendt (1951), em particular "O sistema totalitário e
o imp e ri a li s mo'~.
1 17 5
inferiores" (: 28 7-8) e, emão, oferece uma explicação sociológica do caráte r ge ral
desse tipo de relação entre grupos que implica níveis, status, lugares, po s i ~ões e
a existência de relações de força, poder e dominação: "sempre os qu e chega m se
esforçam para melhorar sua posição, enquamo os grupos estabelecidos tentam
manter a sua [... ]. O s primeiros se incomodam com o lugar subalterno que lhes
é dado e, freqüentemente, buscam ascender, enquanto os segundos se esforçam
para preservar sua superioridade, que lhes parece ameaçada pelos que chegam"
(: 294). Elias apreende, então, uma dinâmica de inferiorização do outro, que se
acompanha da humilhação, visando acolher o sentimento de superioridade de
si. Como ressalta, os grupos inferiores, os outsiders, os excluídos, interiorizam
essa depreciação, pois o "descrédito social efetuado pelos poderosos" tem ccmo
função "inculcar no grupo menos poderoso uma imagem desvalorizada e, assim,
enfraquecê-lo e desarmá-lo." (:-42). Revela-se aqui um processo social e também
psicológico que, desenvolvendo-se entre grupos, estrutura e modela uma ima-
gem e uma consciência de si específica, ou seja, sentimentos d e inferioridade e
superioridade que se reforçam mutuamente.
Em seguida, toma o exemplo dos judeus que, no século XVIII na Alemanha,
inseriram-se numa relação social como a que existe entre estabelecidos e outsiders.
Em relação a eles, observa que um grupo inferior é tolerado e que os grupos esta-
belecidos "experimentam como uma humilhação insuportável ter de entrar em com-
petição com membros de um grupo outsider desprezado" (: 153). Ainda a propósito
dos judeus, observa que "as injúrias, as acusações a que eram expostos, assim como
a existência humilhante de outsider que levavam eram muitas vezes desagradáveis",
mas insiste no papel crucial desempenhado pela auto-estima, pelo narcisismo e pe-
los sentimentos de valorização e de desvalorização: "Não atingiam a substância do
sentimento que tinham de seu próprio valor[ ... ]. Os judeus alemães constituíam
uma sociedade burguesa de segunda ordem [...] mas não se consideravam, em
absoluto, homens de segunda ordem" (: 155-7). Estes, como o outsider desprezado,
estigmatizado e relativamente impotente, existem apenas quando seus membros se
contentam com a posição inferior que, segundo a concepção dos grupos estabele-
cidos, é a sua, ou quando se comportam em conformidade com seu status inferior,
isto é, como seres subordinados e inferiores.
"O status social superior [... ] constitutivo do sentimento que o indivíduo pos-
sui de seu próprio valor [ ... ) é ameaçado pelo fato que os membros de um grupo
outsider, na verdade desprezado, reivindicam não apenas uma igualdade social,
como 'também uma igualdade humana" (: 152). Elias observa, assim, que o grupo
estabelecido quer não apenas excluir, como também rebaixar o outro, levá-lo a
experimentar um sentimento moral e psíquico de inferioridade. Apesar da ameaça
que o outro, quando outsider e inferiorizado, pode representar para aqueles que, já
n Essa auto-C"sLima snia uma das fonte.\ <lo anri-.o.;cmirism o, haja vi::ita os judeus ~crem censurados pelo
fa10 de serem seguros de si ·-i ndependentemente do olhar dos outros - e, além disso, arrogantes.
" Elias sublinha que "eles são mais apros e dispostos a aceitar a a ssimilação dos grupos outsiders
Jo que os povos de desenvolvimen to muitas vezes interrompido, qu e vivem na sombra de um
passado prestigioso, com um sentimento muito frágil e profimd11mente ferido de seu próprio valor"
(194i: 158) .
o; lratar-se-ia aqui da quesrâo da continuidade e da d escontinuida de na relação consigo mesmo e
na auto-estima? O u da continuidad e e da estabilidade? Em com unicação pessoal, Michele Ansart-
Dou rlen mostrou-me que passar de um extremo a outro caracteriza o radicalismo e o fanarismo.
24
No elogio feito a Jaspers, Hannah Arendt indicara outra via en tre representação . vi, ibilida<le e ben s
materiais: a via do espaço interior, <la liberdade; da relação t lrns igo e com o outro, cb represe ntação
de si e da pos, ibilidade ou capacidade de representação.
).<> É preciso entender essa fadiga como uma das formas es pecíficas da alienação co ntemporânea. Ver
o número 24 da Revista Francesa de PricoSJomdtica sobre a fadiga (2003).
VI
"' Arendt ressalta a contínua e intensa aspiração para elevar-se socialmente, ao falar de uma "crispação
no esforço de amar". Sugere ainda, numa mistura de desprezo e crueldade, o servilismo ou certo
arrivismo "quando se está firmemente resolvido a ascender, a vencer. [...J é preciso evitar o conten-
tar-se com a obediência cega, a única exigida; é preciso sempre fingir realizar voluntariamente, e
com plena soberania, tudo o que é esperado[ ... ] dos servos e dos subordinados" (1958: 241) .
27
O que levou Marcel Gaucher a falar numa "revolução antropológica silenciosa".
(
_....-0'espâç~ da intimidade, do corp~;T~-i~os sentimentos mais profundos, o
lugar que abriga e protege o sentimento de existência, o sentimento de si mesmo,
mas pode ser rambém um lugar ameaçador para o eu, isro é, um espaço de clausura,
do sentimenro de vulnerabilidade e de impotência, um território onde a humilha-
ção pode se exercer de maneira constante e inelutável.
)
'" A figura do pária analisada por Arendr, por represenrar um modo de exisrência e de ser estigmatiza-
do, teria a opção ent re uma existência visível e humilhante, de um lado, e uma existência in visível
e hum ilhante, do outro.
M ax Uíéber
Hannah Arendt
; Agradeço a Yves Déloyc. Eu gene Enriquez e Jacy Seixas por suas numerosas observações, críticas e
sugestões.
'"focqueville viu na desatenção o maior vício da democracia. A esse respeito, ver o capítulo 5.
e compartilhava sua experiência, distribuía conselhos, indicava modelos a que se
conformar, transmitia conhecimentos. Não conseguindo mais captar a atenção de
seus alunos, ele não é mais ouvido nem compreendido: dirige-se, desde então, a
indivíduos informados e desatentos.
Ao condensar ainda mais a sua análise, Benjamin chega ao essencial: atribui essa
incomunicabilidade ao fato de que "a arte da narrativa tende a se perder, porque
o aspecto épico da verdade, isto é, a sabedoria está em vias de desaparecimento"
(:120. Cf. Bobbio, 1996). A narrativa desaparece, pouco a pouco, em face da infor-
mação, que é instantânea e se torna rapidamente obsoleta: "a informação só tem
valor no instante em que é nova. Ela vive apenas nesse instante" (: 124). Elemento
e efeito da intensificação da instantaneidade contemporânea, a informação rem
conseqüências profundas para a transmissão do saber, para sua própria exisréncia,
bem como contribui, de maneira efetiva, para o desenvolvimento de um saber
não-cumulativo. Ela põe em xeque a possibilidade de ensinar e, além disso, a de
conhecer e atribuir sentidos, um sentido, a um só tempo, partilhado e esrrururante
do eu. A informação, ao permitir, determinar e orientar o saber, desdobrando-o,
desorientando-o e, simultaneamente, entravando-o, desempenha papel decisivo
na definição das finalidades da universidade. 3
No início dos anos 1950, Hannah Arendt, em "A crise da educação", teceu con-
siderações estreitamente próximas às de Benjamin, e que incidem sobre a relação
com o tempo, a duração, a tradição e a transmissão. Considerações que gostaria
de retomar, pois me parecem incontornáveis para compreender as questões sociais,
morais, psicológicas e políticas das sociedades contemporâneas. Arendt esclarece a
situação contemporânea, ao analisar a oposição fundamental entre gregos e roma-
nos, ou seja, entre um culto da aparência, da juventude, do abandono, do instante,
de um lado, e do respeito, do espírito, da idade, da busca da permanência e da
eternidade, do outro (Arendt, 1954a, r954b, 1958).
Atendo-se aos antigos e à autoridade moral que possuíam, Arendt sublinha que
"a essência do espírito romano [... ] era considerar o passado como passado, na con-
dição de modelo, e em todos os casos, os ancestrais como exemplos vivos para seus
descendentes. Acreditava inclusive que toda a grandeza residia naquilo que foi;
que a velhice, portanto, é o ápice da vida do homem e que o idoso, sendo quase
um ancestral, deveria servir de modelo aos vivos" (Arendt, 1954a: 248). 4
3
As tecnologias da informação emanam e reforçam o igualitarismo, o nivelamento e a burocra-
tização da sociedade. A respeico dessas questões, ver Illich (1995) e Haroche (2006). Sobre essa
intensificação e seus recentes desenvolvimentos, ver Auberr (2004).
4
Arendt lembra que "elos sempre precediam as ações dos ancestrais e o costume engendrados por
eles [... ]. Eis por que a velhice, distinguida pelos romanos da pura e simples idade adulta, era
CLAUDINE HAROCHE
Hoje , nas soci;:dades ca rc\cter izadas µd;i fluidez e em foct' da existênc ia c1cderada
e intensificada de solicitações, de fluxos sensoriais, de formas de saber ilimita-
das, pode-se ensi nar e apren der? Como fazê- lo? (Gitlin , 2003; Turckle, 1995; Illich,
1995). Q uais efeitos esses movimentos contínuos produzem na consciê ncia, na ca-
pacidade de pensar e refletir? (cf. a cap ítulo 7).
Os saberes, em cons tante mutação, implicam e provocam o transitório, o efê-
mero, o descontínuo; numa palavra, a instabilidade, isto é, um conhecimento que
tende, por razões inuínsecas à superficialidade e falta de tem po, à dificuldade
de aprofundar-se. As condições de apropriação e transmissão dos saberes nas so-
cicJ<1dcs co ntcmpodncas se transformaram de modo radi cal: a crescente massa
de inform ações co ntínuas, concomitantes à reflexividade e à fluidez permanente,
contribLti para formas inéditas de individualismo, acarretando fragmentação, dis-
persão e desengajamento, que de certa forma bloqueiam a continuidade e o senti-
mento de identidade (Bauman, 2000; Sennett, 1998; Kaufmann, 2003).
São poucos hoje os conhecimentos considerados adquiridos, definitivos; essas
condições impedem a possi bilidade d e um saber cumulativo e provocam a incer-
teza - muitas vezes, rad ical - em rel ação a si mesmo e ao o u tro, abrindo caminho
para um a insegurança psíquica profunda.
A o bra de Paul Hazard ~ob re a crise da consciência européia e a de Husserl
co nsagrada à crise das ciências européias e à fenomenologia transcendental nos
ajudam a entender a profundidade da crise da consciência contemporânea, seus
fund amentos e formas, sua especificidade (Husserl, 1936; Hazard, 1935).
Pau l Hazard aborda questões com que Arendr também se preocupou. A princí-
pio, ele lem bra a busca de permanência e d e es rab ilidade enormemente valorizada
no sécu lo xv11: "evittir todt1 mudançti [... ] é o desejo da Idade C lássica", afirma
cirando Sêneca: "o primeiro indício de um espíri to bem ordenado é poder parar
e permanecer consigo mesmo" (Hazard, 1935). Ao evocar uma crise longínqua,
operada "na consciência européia enrre o Renascimento, de onde procede direta-
menre, e a Revolução francesa, que ela prepara", mostra que essa crise diz respeito
à mudança. ao movimento, ao indivíduo: a substituição de uma civilização fundada
na idéia de dever - que abre a via para o indivíduo crítico - por outra cuja base é o
Direito, os direitos da consciência individual, os direitos do cidadão.
visra como o momento que con tém a alma da vida huniana: não tanto em virtude da sabedoria e
da experi ência acumulada, e sim em razão da maior proximidade do velho com os ancestrais e o
passado'" (1954b: 162-3).
II
A CONDIÇÃO SENSÍVEL
todas as questões [... ] metafísicas em sentido amplo, isto é, as questões especifica-
mente filosóficas" (: 13-4) 6 . Como observa, o positivismo afastou a subjetividade -
"a idéia de ciência se reduziu a uma simples ciência dos faros" - e essa redução pro-
vocou uma crise na ciência, em virtude da "perda de sua importância para a vida,
para as grandes questões relativas aos sentidos da existência" (: 9)7.
A seguir, Husserl evoca, rapidamente, o que Paul Hazard enfatizaria no início
dos anos 1960: o momento revolucionário em que a Europa do Renascimento, ao
se voltar contra os modos de existência medievais, começa a se libertar da "tradição
em geral" e procura substituí-la por uma abordagem reflexiva e crítica do mundo.
Ele comenta que as ciências pararam de se preocupar com certo número de ques-
tões maiores, relativas à subjetividade, à consciência, ao engajamento, às signifi-
cações, mostrando que "nem sempre as questões especificamente humana5 foram
banidas do domínio da ciência". Então, pergunta-se, com base no questionamento
das razões do sucesso das ciências positivas confinadas "puramente na superfície" (:
n-2), por que a ciência "perdeu o papel de guia, por que chegamos à degradação
da idéia de ciência, à limitação positivista?"
A redução positivista da ciência, a insistência exclusiva no fato e na neutralidade,
o desengajamento do sujeito do conhecimento, que se torna 'objeto', são acompa-
nhados de um afastamento do subjetivo: "as questões que ela exclui por princípio
são precisamente as questões mais delicadas[ ... ], aquelas[ ... ] que mcidem sobre o
sentido ou sobre a ausência de sentido de toda a existência humana", ou seja, trata-se
de interrogações complexas que supõem a dúvida, reconhecem a incerteza e se
situam no cerne dos problemas da universidade contemporânea (: 10) 8.
Em 1935, em conferência proferida no círculo cultural de Viena, Husserl insiste
na questão da crise das ciências contemporâneas. A crise da consciência provocada,
ou ao menos reforçada, pela relação com tempo, pela rapidez, hoje multiplicada
pela aceleração, origina-se do faro de que a ciência não ter mais tempo de aprofun-
dar as questões para além dos acontecimentos: encontrar e lhes conferir sentido.
Tal crise se traduz, pois, numa acumulação irrefletida de fatos que implicam a
ausência de aprofundamento, de problematização psicológica e antropológica, e
provocam efeitos psíquicos inéditos. 9
6
Arendt comenta sobre o desprezo de que a metafísica é objeto (Arendt, 1971).
7 Weber analisou em profundidade o processo de afastamento da subjetividade pela racionalidade
capitalista (Weber, 1904-5; 1920) .
8
Da inesma forma, Weber (1920).
9 Essa acumulação irrefletida é simultânea a uma reflexividade continua, que, no entanto, distingue-se
da reflexividade de que fala Castoriadis, da reflexão que implica tempo e uma alternância entre
momentos de pausa e de atividade no pensamento (Castoriadis, 1975). Para uma genealogia das
A CONDIÇÃO SENSÍVEL
a exigência de submeter o conjunto da empiria a normas ideais, às da verdade incon-
dicional, engendra, de imediato, uma mutação que ultrapassa em muito o conjunto
da práxis da existência humana, ou seja, de toda vida cultural; esta deve se normatizar
não mais pela empiria cotidiana e pela tradição, com sua ingenuidade, e sim pela ver-
dade objetiva (Husserl, 1936: 367-8).
III
u Arendt distingue o espírito grego do espírito romano , ao opor o papel <lo corpo, <la aparência, <la
juventude, do instante:- presente nos gregos, à experiência, ao fato de :ie tornar, com o p~ssar do
tempo, um modelo que supõe a continuidade, a permanência e a eternidade. Subiii1ha que o
espírito romano "esd cm contradição não apenas com nossa época (~ 0!) tempos modernos <lo
Renascimento, mas também, por exemplo, com a atitude grega em face da vida. !... ]A concepção
latina é justamente a de que, envelhecendo e desaparecendo pouco a pouco da comunidade dos
mortais, o homem atinge sua ma.is característica maneira de ser, mesmo se, em relação ao mundo
d2s aparências, está em vias de desaparecer, pois só então atin ge o modo de existência cm que será
uma autoridade para os demais" (Arendt, 1954a: 248).
C LACOINE HAROCI!E
uma crise muito mais geral[ ... ] de instabilidade da sociedade moderna". Exprimiu
um aspecto paradoxal do mundo contemporâneo nos seguintes termos: "é eviden-
te que, buscando instaurar um mundo próprio às crianças, a educação moderna
destrói as condições necessárias ao seu desenvolvimento"(: 238-40) 14
A diferença de Arendt, que reconhece uma evolução na crise da educação e da
cultura, Eric Voegelin centrou-se na universidade alemã, 'a firmando que é preciso
remontar essa crise a Humboldt, cuja concepção considerou a universidade apenas
um lugar de formação da consciência individual, indiferente ao espaço público.
Por se ater "ao culto <la individual idade", essa formação revela um voltar-se para
si mesmo, uma escassez de espírito, uma estreiteza de interesses, ou seja, deixa de
ser "uma educação para a expansão do espírito" e se torna seu "trancafiamento"
(Vocgdin, 1990: 330)".
Em tal tipo de universidade, Voegelin não só discerne "um espaço público de
alienação" dominante no plano social, como também explica a "desagregação da
sociedade pelo fato de que seus membros se concebem única e radicalmente como
homens privados"(: 308) 11'. Nesses termos, a universidade tem, em si mesma, uma
função ideológica: "a formação (Bildung) dispensada na universidade imuniza suas
vítimas [... ] contra a vida do espírito; ela consegue manter a alienação em posição
de dominação social e impede que o espaço do espírito se torne um espaço público
e social (: 331.).
Além disso, Voegelin procura, por meio da discussão acerca do pensamento e
da consciência críticos, apreender o funcionamento dessa universidade em rela-
ção à história. 17 Assim, opõe à história crítica, em que apenas a interpretação e o
juízo podem levar ao saber cumulativo, uma história descritiva cheia de detalhes,
porém desprovida de reflexão, de análise, isto é, uma história capaz de conduzir
a um saber desengajado, superficial, descontínuo e não-cumulativo: o acúmulo
ilimitado de fatos e de detalhes não permite a compreensão dos acontecimentos
14
Sobre as questões de continuidade, ver os capítulos 7 e 8.
"Agradeço a Paul Zawadzki ter chamado a minha atenção sobre a importância dos escritos de Voege-
lin. Ver igualmente Dumont (1991). Weber ind icara uma questão essencial na reforma procestante,
a c;nergência de t!ma racionalidade específica ao capicalismo ocidental: a especialização indissociá-
vel do individualismo crescente e das form>.s de subjetividade que •C definem pelo trabalho.
I(, Voegelin, no entanto, nota que "a universidade alemã, inúmeras vezes, concradisse a concepção de
Humboldr, em particular durante o período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial. A universi-
d ade de H eidelberg dos anos 1920, na qual escavam homens como[ ... ] Jaspers e Alfred Weber[ ... ],
era rudo menos uma universidade concebida à maneira de Humboldt" (!990: 334).
,- Marcel Gauchet, por sua vez. escuda a universidade contemporânea em relação ao ensino da filo-
sofia. Ver Gauchet e o utros (2002).
A CONDlÇÃO S ENSÍVEL
sociais e hiscóricos, não equivale à consciência, nem à acividade crícicas. Como
exemplo, coma as jovens gerações alemãs que buscam compreender o passado
naz1sca:
Vocês, jovens, não querem saber como essas coisas atrozes se desenrolaram cm se us
detalhes, mas por que chegamos lá e como isso pode ser evitado no futuro. Mas de
que modo uma descrição hiscórica poderá inrerromper a concinuidade em que vocês
se inscrevem e cornar impossível a repetição desses mesmos acontecimentos?
Isso o faz concluir que "se o espírito como instância crítica está excluído da
reflexão sobre os acontecimentos, a objetividade da descrição se transforma em
simpatia culpada por essa ausência" (: 303-5).
O conjunto de questões enfrentado por Voegelin é crucial para pensar os acuais
"objetivos da universidade" e, de modo mais amplo, as formas de individualis-
mo e narcisismo das sociedades contemporâneas. Ao procurar precisar o lugar e
a função do narcisismo na cultura, fala de uma teoria narcisista 18: a ausência de
conhecimento, de espírito e de consciência crítica provoca a conivência (mais do
que a complacência) e a simpatia, alguma coisa de intangível, da ordem do clima,
da atmosfera tanto psicológica como política: "O que falta é a compreensão verda-
deira, graças a qual o espírito, na condição de poder crítico, torna-se um fator de
ruptura da causalidade histórica, aparentemente impossível de ser rompida".
Ele acrescenta: "a universidade alemã tem como missão enclausurar as pessoas
numa forma narcísica, privá-las de toda orientação espiritual, torná-las inaptas à
vida pública, destruir a língua alemã e ensinar os idiomas da alienação" (: 305, 337),
sem deixar de notar uma mudança, ao se interrogar sobre a situação contempo-
rânea: "o que é novo em relação ao período de Weimar é o sentimento de culpa
do qual se quer libertar pelo reconhecimento objetivo e escrupuloso dos aconteci-
mentos. Ora, é precisamente o sentimento de culpa que está sujeito à caução por
contrariar a condenação fundada na alienação de nosso próprio ser".
No exame das conseqüências desse contexto, conclui que:
o sentimenco de culpa experimentado após o ato realizado náo é igual à simpatia
experimentada antes de ele ser executado. Essa simpatia e esse sentimento de cul-
18
Em relação aos estudos sobre o nazismo, Voegelin observa que o inquieta "não seu tema, mas o
'conhecimento desapaixonado da realidade', porque o prazer do conhecimcnw semp re implica 'um
pouco de aprovação". Examina, assim, a questão da universidade alemã durante o nazismo, per-
gu~tando-se "como se pode reparar uma falta pela reconstrução do passado, por mais meticulosa
que seja[ ... ]. Em nosso caso concreto , a confiança na universidade alemã poderá ser restabelecida
pela descrição do comportamento de professores e estudantes durante o III Reich ' Sem dúvida
não, porque cada detalhe novo desestabiliza ainda mais essa confiança" (1990: 305-6).
IV
11
' Sobre ;1 co ni vê ncia, o clima, a atmosfera social e política durante a ascensão do nazismo, ver Ha-
fli1cr (2000).
'" Ga uchet loca li za essa esrreireza de forma particularmente clara na filosofia, em seu ensino. Vê sua
origem no "exercício injustificávd de uma proscriçiio, na recusa a se admitir a legitimidade de uma
filosofia compreendida não como uma história da filosofia , e uma história da filosofia d efinida de
forma cada vez mais limitada" (Gauchet e outros, 2002: 12).
21
Na conclusão d e sua au la in augu ral no C ollege de France em 2004 , chamada "Tradi ção e progresso,
a missão da universidade'', Théodore Berchem enfatizou que "cercas co isas q ue po<lem parecer
•inú teis' nas unive rsidades são de uma g rande utilidade :'t soci edade", acresccnrando: "Eu m e recuso
a querer ou deve r justificar tudo c m nome da ·pc rtm ência social". C om cfcirn, Bcrchcm ins istiu
no fato de que "a essê ncia das soc iedades li vres c<>nsiste em <leixa r ao in<livíduo U1!1 espaço de
atividade autônoma da qual el e não ten ha justamente de prestar conras à sociedade. Co ntribuindo
à fo rmação do indivíduo, as universidades sfo , fi nalmente, luga res de liberdade, <lcssa liberdade
institucio nal e individual q ue suscita um sentido agudo de responsabilidade" (2004 : 59 ).
" Lindsay Waters é responsável pela seção de "hum anidades" na editora univcrsitiria de H arvard.
Sobre as origens <lessas questões, ver Weber (1904- 5: 1920).
.lJ Para uma análise de co nj unto dos efeitos da ges tão nas sociedades co ntcmpo râncas , sohrcrndo na
França , ver Ga ul ejac (2004) .
24
"Cada vez mer.os escolas toleram a independência em relação a normas de publicação c:ida vez
mais rígidas. É como se as escolas d issessem implicitamente que para fazer parte do feudo vocês
precisassem provar que não são espíritos independentes, submetendo-se às regras e às fin~lidades
de uma produtividade intensa" (Waters, 2004: 82).
21
Adorno e Horkheimer, cm abordagens pioneiras, debruçaram-se sobre aspectos da extensão da
técnica c:m "A produção industrial de bens culturais. Razão e mistificação das massas" (r944). Mais
recentem ente, Castoriadis enfatizou a existência de uma vasta corrente social e histórica sem autor,
sem objetivos, sem projeto (1997).
26
Waters afirma que os trabalhos de Fish e Rorry contribuíram também para essa crise da consciência
contemporânea, ao afastar e mesmo negar a questão do indivíduo. A alienação, que na concepção
da universidade de Humboldt se relacionava ao enclausuramento na esfera privada, ao afasta-
r:,enro da consciência crítica, diz respeito hoje à pressão contínua de fluxos sensoriais leva ndo à
impossibilidade de pensar, de refletir. A esse respeito, ver Bauman (2001) e Gidin (2003).
27
Waters retoma os trabalhos de Fish, sem lhes conferir uma importância que não têm, vendo nesse
autor um ideal-tipo, uma figura emblemática das formas de relativismo e de niilismo insidioso
que, hoje, envolvem as ciências humanas e as sociedades democráticas contemporâneas: "Penso
que Fish procurou verdadeiramente reduzir não apenas a teoria, como também as jovens gerações
universitárias que nela se aventuram e que esperam que a teoria ou qualquer ourra coisa [... ] possa
fazer diferença. Ele não é tão contrário à teoria como às suas conseqüências, à própria causalidade,
à idéia de que seja lá o que for possa fazer alguma diferença em nossas vidas" (2004: 69).
CLAUDINE HAROCHE
ros do sisrcma 11 niversiririo alemão se orientavam "na direção do sisrema america-
no" , acresu: nrorndo qw: nilo era mais possível "geri-lcs se1n o socorro de recursos
rnmid cd1·L·i , " {\Yk bn. l\ll<J: )ú ) .
Wdi<."r. portanto, previtt os tra ços íitndamcnrais da evo lu çao Lb uni ve rsidade ale-
m:! e dos si ~: remas 11nivcrsirários em gnal em rel ação à figura do professor e ao cres-
cenrc pap<:I das massas. ! ) isringu iu dois modelos irreduríveis de comporr::imenro e
de pensamento, que, no entanto, confimdcm-se com faci lidade: o do chde e o do
professor da rradicionaJ universidade alemã. Ele fala de um "abismo" entre os tipos
de personalidade, os rraços de caráter. as condutas visíveis e as condutas mais íntimas,
tanto cxrerna quanro inrernamenre, "enrre o chefe dessa espécie de grande empresa
universirári::t capitalista e o professor titular de velho estilo"(: 57) 28 • Nessas condições,
baralha-se o talento de orador - o carisma -- com a profundidade de pensamento do
erudito, às vezes voltado para si mesmo, silencioso, e freqüentemenre imponderável
e irredutível, podendo-se perceber "o crescente papel atribuído ao número [... ]:ele se
desenvolve contra o valor reconhecido à singularidade, à originalidade do indivíduo".
Vê-se assim , concluiu Weber, por que a "quantidade de ouvinres" se tornou "um
critério numérico tangível de valor, enquanto a qualidade do cientista permanece no
domínio do imponderável". A massa se elevaria contra a aristocracia intelectual, fa-
zendo-nos pensar na advertência de \Veber: "É preciso colocar a democracia no local
que lhe convém. Com efeito, a educação científica, tal como deve ser por tradição
nas universidades alemãs, é tarefa de uma aristocracia espirituat' (: 60-1) 29
Ao considerar o caráter provisório e inacabado do conhecimento, Weber não
deixa de afirm ar que a crise de consciência é intrínseca a todo pensamento, a rodo
conhecimento:
" Sobre a oposição entre modelo de chefe e modelo de profi.'5or, ver o cap itulo 6.
,., Weber afirma: "É por isso que tudo é quase sempre subordinado à obsessão da sala cheia''. Ao retomar
elementos da análise de Weber e também as observações que Reich, em 1933, dedicou à psicologia
de massas durante o fascismo, Eric Voegelin, em tom polêmico, procura atualizar as evoh1ções pela
quais passaram as universidades. Ele sublinha que, durante o m Reich, essa aristocracia se encontrou,
sociologicamenre, em grande desconforto: "no interior da universidade, os assassinatos e as expulsóes
atingiram principalmente a elite espiritual e intelectual, de cuja qualidade dependia o nível cultural
do conjunto institucional e a conservação das normas [... ].Após a ruptura de continuidade no seio
da elite, é o segundo escalão universirário que, protegido pela sombra protetora de sua discrição e de
sua adaptab ilidade [... 1, comanda de maneira desmedida a estrutura da universidade. [... ] desde que
as proporções mudaram cnLTe as cama<las universirárias superiores e o meio dos segundos escalões
universitários, pode-se observar [... ] um provincianismo t1p-essívo [ ... J. A destruição de substância
efewada pelo nazismo foi de uma dimensão ral, que não se pode ainda observar todas as suas conse-
qüências e o pior calvez ainda esteja por vir. Eis a razão de por que hoje em dia é muito mais difícil
resolver os problemas da universidade alemã do que nos anos i920" (1990: 335).
I() Lembremos que Weber era um critico da noção de progresso inserira na racionali<laJe capitalista
que emerge no século xvr1.
<:1,/1.ll!)J NE ll,\RO<:l Ir
TRANSFORMAÇÃO DAS MANEIRAS DE SENTIR NOS FLUXOS
Hannah Arendt
As maneiras de sentir têm uma história que se revela por meio de uma hierarqui-
zação dos sentidos e se traduz pela predominância e acuidade de certos sentidos
sobre outros. Durante a Idade Média, o tato foi, ao lado da audição, o sentido
mais importante. Hoje, na modernidade contemporânea, perde em importância
tanto para esta quanto para a visão. 2 fu maneiras de sentir refletem igualmente
um determinado estado das condições sensoriais: revelam, participam e induzem,
com base em formas sensoriais inéditas, transformações profundas nos processos
de subjetivação e nos tipos de personalidade. Detenho-me, aqui, na discussão de
1
Agradeço a Jod Birman. Yves Déloye, Eugene Enriquez e Olgária Matos por seus comentários,
críticas e sugestões.
' Robert Mandrou, inscrevendo-se na filiaç.áo dos trabalhos de Lucien Febvre, mostrou a acuidade e
hierarquia dos sentidos na Idade Média. Ao lembrar a mudança ocorrida nos modos de percepção
entre o século XVI e o período contemporâneo, Mandrou sublinha que "a hierarquia [na Idade
Média] não é a mesma, pois o olho , que é hoje dominante, encontra-se no terceiro nível após a
audição e o ta to, bem como dista nciado deles". Observa, no enrànro, que "os órgãos sensoriais são
evidentemente os mesmos que os nossos" (Mandrou, 1961: 76).
1 199
algumas dessas mudanças presentes na modernidade, mantendo o foco no modo
de existência dos objetos e dos homens, nas maneiras de perceber. A esse respeito,
David Hume e Walter Benjamin escreveram:
Um objeto pode exisrir e, no encanto, não esrar em lugar algum. Afirmo não apenas
que isso é possível, como também que a maioria dos seres existe dessa maneira e em
nenhuma outra. [... ] Ora, esse é evidentemente o caso de rodas as nossas percepções e
de rodos os nossos objetos, à exceção da visão e do tato. Uma reflexão moral não pode
ser posta à direita ou à esquerda de uma paixão, e um odor ou um som não podem ser
circulares ou quadrados. Longe de requerer um lugar particular, esses objetos e percep-
ções são totalmente incompatíveis com qualquer lugar possível (Hume, 1739: 324).
3 Abordamos aqui as maneiras de sentir e os modos de percepção tendo como base enfoque trans-
disciplinar entre sociologia, antropologia e psicologia, a fim de repensar cerras questões relativas
ao eu, à pessoa, à subjetividade, ao sencir e ao sentimenco. Não entramos, porém, nos debates
internos à filosofia.
4
Balandier observa que "a instrumentalização realizada por máquinas inteligentes impõe outra inte-
ligência ao mundo e usos em que o procedimento, a maneira de fazer e o algoritmo vêm suplantar
progressivamente os demais modos de racionalização das condutas" (2005a: 43) .
" Apóio-me em alguns trabalhos, sobretudo de Balandicr, llDS quais se lê <.JU C cercas <limensÕc.'i do enten-
7
Nesse conrexro, Hume não se mostra ai nda sensível às distinçócs entre se nsaçôes, Sl'll timcnws e
emoções .
11
São questões que tratarn, fun<.bm cntalmentc, da frnmação do cu. Ver, a respeito , J\111.ieu (1985).
Mai s recentemente, lhlandicr abordou essas qw.;stôcs cm "A gra 1idc dcso1d cm" (100q) L' cm ''Ve r
;1 l é 111 , J1Cll!UI" de outro 111odo" (2CO) h).
" Hume antecipa assim Pierre Janet e Marcel Mauss, que se dedicará à noção de pessoa.
'" Em trabalhos recentes, Ralandier d edicou-se a essas questões, sugerindo reflexões sobre o exercício
dos sentidos. da percepção, dos "procedimentos que preservariam a consciência do corpo [...] a
pcrccpçao do movimento e da resistência das coisas" (2005a, 2005b).
Enquanto o filósofo inglês afirmou que, ao forjar a existência contínua das percep-
ções, atingimos a noção de eu, Janet foca, como diversos outros texros de psicologia
e de fenomenologia de sua época, a problemática do sujeito no que concerne à per-
cepção. Para isso. aborda simultaneamente a pessoa, a subjerividadc e a consciência
e sua desagregação (Janet, 1889, 1929) 11 com o intuito de compreender a questão
do eu sob um prisma particularmente interessante ao individualismo contemporâ-
neo: "a atividade humana em suas formas mais simples, mais rudimentares", a q uai
qualifica de "automácicà'. Janet, portanto, permite-nos considerar dimensões ne-
gligenciadas do sujeito nas transformações contemporâneas das percepções, quais
sejam, os modos de fragmentação e de divisão relacionados à atividade automática.
Ele nos estimula a enfrentar algo situado no cerne dos modos de formação do eu
e das formas de subjetivação nos fluxos sensoriais contínuos: ainda é possível ao
sujeito ter iniciativa em seus atos, para se movimentar?
Em 1&89, Janet defende sua tese sobre o "automatismo psicológico" e os me-
canismos sensoriais. Durante os anos que se seguem, dedica grande número de
trabalhos aos processos psicológicos e fisiológicos. 12 Sua abordagem tanto históri-
ca quanto psicológica anuncia uma mudança nos modos de percepção. Em suas
palavras: "as noções gerais sobre as percepções, a constituição dos objetos, a cons-
tituição de nosso corpo [... ] transformam-se cada vez mais" Uanet, 1889; cf. tam-
bém Merleau-Ponty, 1945; Simondon, 1958). O que mais nos interessa, contudo,
é o modo como aborda os sentimentos - "decidimos tomar hoje como objeto de
estudo 'os sentimentos em geral" -, valendo-se das condutas, da forma como as
maneiras de ser induzem, traduzem ou reforçam maneiras de sentir. Para Janet, o
11
Janet se referiu, de maneira enfática, aos escriros de Maine de Biran, a propósito dos quais Jean
Srarobinski sublinha que se esforçaram em mostrar que "o fato humano é essencialmente ativo.
É impossível reconstruí-lo a partir da sensação, que é passiva. O foco primitivo é a iniciativa moto-
ra" (Starobinski, 1999: 152) Scarobinski observa ainda que dessa psicologia, que procura se libertar
do esquema sensorial-motor constantemente evocado por Pierre Cabanis, dir··se-á um pouco mais
carde que ela representou "uma reação contra a filosofia da sensaçáo" (: 154).
12
É difícil afirmar que se trata unicamente de uma rese de filosofia, pois também é psicológica e
sociológica, e seus efeitos incidiram sobre os fundamentos da psicanálise.
Vê-se qu e Jan et in ova tanto pelo enfoque psicoló gico quanto pelos termos que utili-
za: "o automatismo não cria novas sínteses, é apenas a m anifestação das sínteses que
já foram organi zad as num momento em que o espírito era mais poderoso", reagrupa
"o conjunto desses fenômenos num mesmo termo", que c hama de "contração do
campo da consciência" (: ri, 15). Ora, nas sociedades contemporâneas, em virtude da
continuidade dos fluxos sensoriais, essa co ntração da consciência está não só intensi-
ficada, rnmo também mulriplicad;1 n:is maneiras de senrir, ver e ouvir.
Em seguida, Janet o bse rva que "a conrrac,:ão do campo d;1 consciência provoca
uma conseqüência grave: os fenômenos psicológicos não são mais sintetizados numa
única percepção p essoat' (: 16). D essa constatação retira as conseqüências psicológicas
da fragmentação e da desco ntinuidade das percepções sobre os mecanismos psico-
lógicos, algo que Hume já sublinhara, e declara ser esse o ponto que o conduzira ao
"esrndo dos fenômenos subconscientes e da divisão da personalidade"(: 16) . Haveria,
então, duas dimensões no psiquismo humano, o automatismo e a consciêncú1:
Pode-se, a um só tempo, admitir o automatismo e a consciência, e a partir daí satis-
fazer aq ueles que constatam no homem uma forma de atividade elementar comple-
ta mente dctcrmin:afa , como as de um autômato, e aqueles que querem conservar no
homem, mesmo cm suas açócs mai s simplc>, a c011sci ência e a se nsibilidade (: 24; cf.
Gauch et, 1992).
u Seria prc-ciso esperar os trdbalhos de Simrnel para que os sentimentos fossem considerados objetos centrais.
O que o leva a concluir, numa formulação densa e sintética, que "a consciência
pode existir sem nenhum juízo, ou seja, sem inteligência; o homem pode sentir e não
compreender suas próprias sensações"(: 56) 1'1• Desse modo, chega à definição de
consciência, na qual sublinha seu caráter histórico: a consciência conhece diferen-
ças de grau e intensidade, evolui ou regride, apresenta progressos, "jamais atinge
seu termo". Ela se define como "o que acrescentamos de nós mesmos para ordenar
nossas ações, para reorganizar o organismo perturbado por uma ação provocada
pelo mundo exterior". Janet considera a consciência, portanto, um princípio orga-
nizador que supõe uma parte da pessoa (Janet, 1929: 152, 165).
Além disso, dá ênfase ao papel do sentimento em seu funcionamento: o senti-
mento é condição de engajamento, o exercício da consciência o requer. Em seus ter-
mos, "um indivíduo não tem consciência de seus atos quando não tem sentimen-
tos em relação a eles", ao mesmo tempo que, em sua pessoa, não se sente engajado
num ato, numa conduta, quando não tem consciência deles. "É a ausência ou a
presença de sentimentos que permite a afirmação de que um indivíduo tem ou não
consciência"(: 160). Nessa perspectiva, pergunta-se: "o que são os sentimentos?", e
chega a uma definição análog2 à de Marcel Mauss: "regulações" (: 190). 15
A explicitação dos vínculos entre sentimentos, condutas e personalidade leva
Janet a realizar tanro uma genealogia quanto u:na história e l!ma antropologia dos
16
"Apenas o homem é sempre para os nossos sentidos permanência e fluxo", escreve Simmel em
"Excursus sobre a sociologia dos sentidos". Ver, igualmente, Bergson (1927, 1938),
percebido segundo as leis da ótica" (: 20) A observação se torna cada vez mais uma qu c.'1ão de sen-
sações e estímulos, deixando de remeter unicamente a um observador e a uma po.siçJo no espaço.
"Desde o fim do século x1x, e cada vez mais ao longo dos últimos vinte anos, o capiulismo contem -
porâneo engendrou uma renovação incessante das condições da experi(~ncia sensorial por meio <lo
que poderíamos chamar de revolução dos modos de percepção. [... J Durante os ültirnos cem anos,
os modos de percepção conhecer~m e continuam a conhecer mn estado de crise". Ao concluir, afir-
ma: "assistimos, há dez anos, a uma transformação radical nas re lações e ntre o sujeito oh.scrvador e
os modos de representação"(: 19), e se quc.:stiona .sohrc a man('ira como o corpo, incluído o corpo
que percebe, é afetado, acrescido, intensificado em suas capacidades, ou diininuíd<l, enfraqucciLlo.
"Como o corpo entra na composição de máquinas, economias e dispositivos novos. a uni só t~n1po
sociais, libidinais O?..! te-enológicos" (: 21). Como Crary sugere, a razáo rrofonda de tais mudanças
reside no desenvclvimento do consumo, que exige a canalizaçào da atenção e a criação <le novas
necessidades, de desejos ilimitados, sendo necessário para isso controlar a arividade Llas percepçõcs,
a fim de tornar o observador um consumidor. "Chegar a esst: tipo de neutralidade citica, reduzir o
observador a um estado soi-disant elen1entar, é urna condição requeri&1 para formar o oh.servador
capaz de consumir imagens e infonnaçóes visuais que imedi::trnmcntc começam <l circular em
quantidade cada vez maior" (: 141).
'/
.
-( lr daí, perceber ~ reconhe.cer. o º_urro, respeitá-lo. Os .f.l uxos sensoriais contínuos das
~ídias pro\T_oca~ : uma mudança do papel atribuÍdo ao espírito no ato da percepção"
(: 320), mas_Q_ql!~Rode: ..?_CC>_n__t:ec_g, _g):glU2.!'ºblemas surgem, CJ1!.~.ª-P-Erceoção_e .
li:'
___________________________
ou o temor de perder as idéias que faziam de si mesmos", ou ainda a própria capa-
cidade de pensar (Belting, 2001: 28). J
/
,.,/
AS METAMORFOSES DO SENSÍVEL
1'
) ---·- - .. -------
Experimentamos hoje outras maneiras de sen_0r? As formas de individualismo con-
- ··-···-·-----·-
19
Merleau Ponty e Lcroi-Gourhan levantam quesrões an;ílogas. mesmo que suas hipóteses e argu-
mentos difiram. "Leroi-Gourhan diz que é necessário um mínimo <le parti cipação para senrir
depois <lc ter afirmado que: a sc.nsibilic.bdc é o primeiro fator unifl c 1dor dos grupos humanos, isto
é, a condição r1 priori de toda i11<lividuação psicossocial. Em outras palavras, de aflrnu que a perda
de participação csré rica é um ameaça absoluta p~tra o futuro da hum anidade como um forma de
vida capaz de dar scn rido :io sm síve l" (Sticglcr, ·w os : 76-7) .
'" l\a landicr sublinha as dúvidas e paradoxos que assolam a inteligibilidade do mundo e os com-
po rtame ntos. "A concepção <lo que caracteriza o humano se encontra turvada; nós introduzimos
continuamente a difere nça em nós mesmos penetrando nele" (2003: 252) .
. , () li vro de Ami c u sobre o car:í tcr central do tato é uma exce.s:_ão (Anzieu, r995).
\ \:v c.lu..:L liVV'~·..z ...v.
J'Jv,v--t:<>Vl. ~_z_~
,
. ' j:;; '~J
.a . · . 1)-~ ""°I
~-">--'U, • Q CÁfa'"')
I 2.15
A CON DI Ç:\O SEN S ÍVE L 6
CONCLUSÃO
EXPERIMENTAR MANEIRAS INÉDITAS DE SENTIR
/ ····~
1 2 19
refletir, temporizar nas soc iedad es tornadas fl exívl'is, sem fronr eir.is exrniorl's o u
limires inrernos; perceber estados disti111os , obscrv;í-los e desc 1Tvt·- los nos flu xos
sensoriais e de informação ininrerruptos das sociedad es "líquidas") ·10m,1dos por
um movimento constante, tenderíamos a experimentar apenas impressões difusas
e voláteis, engolfados numa sensação de mudança incessante. O ritmo das trans-
formações econômicas, tecnológicas e sociais trava intenções e projetos de cada
um de nós, reduzindo-nos ao papel de atores passivos de nossa própria existência
(Simondon, 1958; Haroche, 2006).
Diversos pensadores localizaram no movimento uma questão fundamental para
a existência e a estabilidade do eu, assim como para a possibilidade de representá-
lo. Muitos entre esses pensadores se ocuparam também da consciência e de seu
estreitamento. Presentes desde os anos 1930, essas interrogações foram decuplica-
das pela intensificação dos fluxos sensoriais e de informação dos meios de comu-
nicação onipresentes. O movimento contínuo acarreta não só o estreitamento da
consciência, como também a exteriorização da esfera interior, concomitames a
uma fragmentação do eµ _e a uma esp.acialização.da.e.ic_peri.ê.Qcia: uma relação com
o tempo que parece apagar_:s_t:, uma vinculação com o espaç~i lifi1it~do, mas vinutl-
se acompanham do sentimento d·~ -;m e!11.Pº~.r~CifI!efl~ interior e _da extens~o
ilimitada da sensorialidade'. Em 1945, Merleau-Ponty afirmou q_ue a subjetividacie
decorria de uma constataÇão empírica ancorada na sensorialidade: "Disse que há
aí um homem, e não um manequim, assim como vejo que ali está a mesa, e não
uma perspectiva ou aparência de mesa. É verdade que eu não a reconheceria, se
eu mesmo não fosse um homem; se eu não tivesse (ou não acreditasse ter comigo
mesmo) o contato absoluto com o pensamento" (Merleau-Ponty, 1945: 217).
Estaria essa constatação fundamentada na persistência do modo de ser do sujeito,
que teria mudado em profundidade. As formas de inteligibilidade e de percepção do ]
real apresentadas em termos diferentes induzem efeitos psíquicos importantes nos
funcionamentos da subjetividade. Haveria hoje, então, outras maneiras de sentir,
perceber, pensar e ser, que não dependessem mais da existência de um eu, seja este
uma idéia, uma representação, ou uma necessidade prática ou psíquica? A releitura
dos livros de Félix .~vaisson e Henri BergsQn_Qfere_ce__l!fl1ll cg_ntribui ão decisva
para a compr~e~são do ~ont_e1I1por~neo: ambos se dedicaram ao esrud_o d~ fl~os
e examinara.m se~__funcion_~l}~ suscetível de esclarecer as evoluções psíquicas
mãis recentes. Considera-se Bergson, de certo modo, um pensador cuja obra serve
d~ con~, pois ele teria conseguido elucidar os funcionamentos fundamentais _da
modernidade, priyilegim1do_ as categQJias. elemenwes d~-ternpQ...e_e~fiaç.o_em....a.ç.ão
na percepção e no pensaf!l~Q.. individu:P. Assim, teria esclarecido a fluidez dos
1
Ver, sobretudo, os capítulos 7, 9, roe 11.
--------
emergência da consciência, do eu, assim como de seus modos de funcionamento.
. - ·- ------------
Ele traz à tona uma tendência a permanecer que concerne tanto ao movimento, à
mudança, quanto à imobilidade; "a tendência a persistir em sua maneira de ser", a
existir: na duração (Ravaisson, 1838: 32) . Em seguida, aborda a questão do tempo,
desraca seu c:idter ininterrupto, do qual infere o eu como um imperativo funcio-
nal, uma necessidade. "Ao longo do tempo, tudo passa, nada permanece. Como
medir esse fluxo não interrompido e essa difusão ilimitada, a não ser por meio de
alguma coisa que não passe, mas subsista e dure? E o que seria isso, se não eu?"Ele,
ent:ío, detém-se n_~fu ~1cio!:Ja1~ç_ms2 esp.:i_cial_d~l_ll;1l de_duz, de n_lodo análogo~
a fonte do definido, do um, é o eu. Ao observar que, "no indefinido do espaço, não f·Í '
hj nada-dê-definidõ, ~~- de_ín_!9i'._s>: ,_acrescenta: "não é" nessa difusão sem for~a
e sem limite que encontro a unidade'', para concluir que é "de miill, p-o-rtãnto, que
eu a extraio" (: 54-5). -
- De todo- modo, Ra'{il_i5,SilJJ.j Jurnina os mecanismos contemporâneos da per_c;ep-
Ç.iÍQLao examinar as condições de diminuição da sensibilidade e observar o exercício
da vontade: "A conrínua excitação sensorial diminui a sensibilidade" , a capacidade tf)
de vontad~ e de discernimento, que, "na sensibilidade, na atividade, desenvolve-se
[... ], por meio da continuidade ou da repetição, uma espécie de atividade obscura
que antecipa, cada vez mais, o querer e, desse modo, a impressão dos objetos
exteriores" (: 71). Ravaisson, então, delonga-se nesse conhecimento indistinto e
' Trara-se de um modo de conhecimento que seria retomado pelos fenomenólogos dos anos r930
(Fedem, 1952; Straus, 1941; Schilder, 1950)
to, e_m. primeiro lugar, queyasso de estad~stado", como se cada um deles fosse
delimitad.o com clareza. "Insisto que mudo, mas a mudança parece-me residir na
passagem de um estado para o seguinte" (Bergson, 1941: 1). Mesmo assim, ao ob-
servar os modos de existência do sujeito, afirma: "Não há afecção, nem represen-
tação, nem volição que permaneça imutável [... ] na verdade, muda-se sem cessar
[, e o] pró rio estado já é uma mudança" (: 2). Ao _i:1asso que Ravaisson isolou a
p~~1:1~:1-~ncia m~nça,B~{g~()_f!
na e11~~~~·
r.-;;-;;:Iça () a não-delimitaç_ão, a
CQl)tinuicÍaCÍe ck>s estados do eu, Q..9!-1...(:_0 Ley~ à_i_4~ia cje dw3 ão. Desse modo, che-
ti
ga a d,escf~~ nossa ex"Grênd-:i psicológica como "uma massa fluida", "uma zona
mgy_~j_ç3 ~-e _::on_ipreende ~ud;; ~ -q~-e sentimos, p~!!_Sª.!!!Q§.,_Q.!!eremos; tud~-~
sq_rn_os_ 1).!!!11 A!!i.e!min-;;fo rnÕ menro" : 3-y:-cp;opõe uma definição muito a~12la
qa noção de_es_:a~-~- mais ainda,_4 a fl_uidez_c:_ntr~ estados,-~~j;;;~~;~- pouco/'
d~semboca numa visão_d<I: re~i~:ic.!<::__ el}!~ndida...c.omo_fluidez_gen_~alizad-ª..
Após esse passo, ele examin_a a ~-c~si~a~~- Q.@!iç;t. que se situa além <!_a Eecessi-
4ª<;l~uica ~fetiya de i~obilidade: "Precisamos de imob_iJicJiefe'',- diz em con-
ferê ncia proferida em Oxford em r9n (: 159). Bergson aprofunda a natureza dessa
necessidade, ao afirmar que ~delimitação é necessária à própria possibilidade s!_e re-
P-1:.~~entação, de conceituação, de pe~samenro: O conhecimento só é possível quan-
do ap;:_eendldQ°coroQ_u1nes_t_icfo, ~~;;- rep~s~tação cfa reãliâade;!ün-eiiêa~~;~n-
to: a mudança contfnu9-, a fluidez~ -prev!ne, e!l!rava e mesmõ interdita o exercício -~
ck>__co1~_l__eci_r11_ç~. Ao se d~;~r nas Zo~diÇõ~s qu~ permite~ o; fu;;-~i~~~~entos
perceptivos, os mecanismos de entendimento, o que Bergson oferece, na verdade, é
uma visão de conjunto da solidificação das coisas, dos estados e dos seres, no mes-
mo instante em que reconhece seu caráter movente, fluido: "N.2_SS-ª..P-~s.ão tende ~
a solidificar em ima ens descontínuas a continuidade fluida do real" (Bergson 1941: j'1"'
302). Ele oferece, portanto, uma abordagem inovadora, pois estabelece que "a coisa
resulta de uma solidificação operada por nosso entendimento", para concluir que
"não há coisas (substâncias) , mas apenas ações (estados múltiplos)", que incluem
a noção de eu (Bergson 1941: 249). Ao opor automatismo inconsciente e escolha
consciente, ações que se sofre e outras que se quer, revela no automatismo uma
"consciência" adormecida: ele entrevê o despertar dessa consciência em que "renasce
a possibilidade de uma escolha" (: 262).
226 1 C LA UD I N E H A RO C ll E
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