HAROCHE, Claudine. A Condicao Sensivel (Livro)

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A CONDIÇÃO SENSÍVEL

FORMAS E MANEIRAS DE SENTIR NO OCIDENTE

Claudine Haroche

TRADUÇÃO
Jacy Alves de Seixas
Vera Avellar Ribeiro [prefdcio, cap. > r conclusão]
COPYRIGHT ©, 2008 Claudine Haroche

IMAGEM DA CAPA
Giovanna Rasaria, Sem título, óleo sobre tela, 150 x 200 cm, 2003

CAPA, PROJETO GRÁFICO E PREPARAÇÁO


Contra Capa

HAROCHE, Claudine
A condifáo sensível: formas e maneiras de sentir no Ocidente
rraduçáo Jacy Alves de Seixas e Vera Avellar Ribeiro
Rio de Janeiro: Conrra Capa, 2008

240 p, 16 x 23 cm

1. Sociologia. 2. Antropologia. 3. Hisrória


1. Título. 11. Claudine Haroche

2008
Todos os direiros desra edição reservados à
CONTRA CAPA LIVRARIA LTDA.
<[email protected]>
www.conuacapa.com.br
Rua de Santana, 198 I Centro
20230-261 1 Rio de Janeiro - RJ
Tel (55 21) 2508.9517 1 Fax (55 21) 3435.)128
A cominuidade ou a repetição
diminui a sensibilidade;
ela exalta a mobilidade.

Félix Ravaisson
AGRADEÇO A Srella Bresciani, de quem, há muitos anos,
recebo apoio decisivo, por meio de reflexões, projetos
e trabalhos em comum. Stella, cuja generosidade é
conhecida por todos, levou-me a trabalhar com Jacy
Seixas e Marion Brepohl, que manifestaram intenso
e contínuo interesse por esse trabalho, e me fizeram
não só importantes sugestões e observações, como
também críticas construtivas que o enriqueceram.
Jacy também traduziu quase todos os textos aqui
reunidos com profunda compreensão de seu espírito.
Gostaria, portanto, de expressar-lhes meu mais sincero
reconhecimento. Devo igualmente exprimir minha
gratidão a Christina Lopreato e, de modo mais amplo,
aos membros do grupo História e Linguagens Políticas,
do CNPq, que decidiram acolher-me como membro
associado. Todos me ajudaram e me encorajaram, ao ler
esses textos com extrema atenção e sugerir referências
por mim ignoradas. Mais recentemente, Olgaria Maros
me incitou a prosseguir a reflexão, porém tornando
novas direções. Por fim, gostaria de agradecer a Joel
Birman, incansável trabalhador do pensamento, que
sempre se mostrou disponível. No que me diz respeito,
todos eles não cessaram de manifestar interesse e
generosidade excepcionais do ponto de vista tanto
científico quanto intelectual. Devo-lhes uma qualidade
de escuta, leitura, troca e discussão que torna o ofício da
escrita uma atividade intensamente apaixonante.
I
SUMARIO

Apresentação - Joel Birman 13

Prólogo 19

PARTE I

I Governo de si, governo dos outros 25

2 Os gesros no fundamento das instituições políticas 37

3 O comportamento de deferência:
do cortesão à personalidade democrática 53

PARTE II

4 O d i 1 ~iro à consideração.
notas de antropologia política e história 73

5 Forr o i' e maneiras na democracia

6 Sub i tividadcs e aspirações:


os n ;. l; imentos de juventude na alernanha (1918-1933) 103
PARTE III

7 Maneiras de ser e sentir do indivíduo hipermoderno 121

8 Descontinuidade e inapreensibilidade
1.•.
da personalidade contemporânea 133

9 Formas de ver, maneiras de olhar


nas sociedades contemporâneas 143

PARTE IV 1
í
!\
IO Processos psicológicos e sociais de humilhação: ,\
o empobrecimento do espaço interior 167

II Crise da consciência contemporânea e


expansão de um saber não-cumulativo 183

I2 Transformação das maneiras de sentir


nos fluxos sensoriais das sociedades contemporâneas

Conclusão 219

Referências bibliográficas 229


APRESENTAÇÃO

Joel Birman
UMA TRANSFORMAÇÃO ANTROPOLÓGICA DO SUJEITO

I. BORDAS, CONFINS, PROBLEMÁTICAS

Este livro de Claudine Haroche é redondo, sem arestas. Trata-se de uma marca que,
no percurso de sua escrita concisa e elegante, impõe-se inequivocamente ao leitor.
Do começo ao fim, mantém-se uma linha de desenvolvimento que demarca com
precisão uma problemdtica central, não obstante os deslocamentos temáticos pre-
sentes em cada uma de suas quatro partes. A articulação conceituai se torna cada vez
mais densa, em razão do inevitável efeito de posterioridade que cada um dos textos
provoca na leitura daqueles que lhes antecedem. Na toada de seus 12 capítulos, os
temas se diversificam e a estes se acrescem uma introdução e uma conclusão, em
que a direção geral da obra se define. Sem qualquer favor, pode-se dizer que se trata
de uma sinfonia teórica, declinada, de modo efetivo, em suas diversas variações.
Dos pontos de vista teórico e metodológico, trata-se de uma obra que decorre
de uma pesquisa eminentemente transdisciplinar ou indisciplinar, dependendo de
como se denominem as investigações inscritas nas bordas de diferentes disciplinas.
Digo bordas, e não fronteiras, porque, nos confins de cada disciplina, sempre existe
algo que provoca ruído na leitura de certas temáticas, e que, por isso mesmo, exige
a interlocução com outras disciplinas para a sua devida elucidação teórica. De um
lado, a existência de ruídos evidencia os limites epistemológicos das disciplinas; de
outro, indica uma ampliação do campo de indagação teórica e a constituição de
novos estilos de pesquisa.
Ao se inscreverem como linguagem, tais ruídos podem aceder ao registro da
voz pela transformação da cacofonia informe numa escrita dotada de vigor e rigor.
Ass im, o que está em pauta nessa modalidade contemporânea de investigação é a
co nstrução de novas problemáticas pela costura meticulosa de janelas entreabertas
p0 r diferentes discursos teóricos. Ao mesmo tempo, o campo de cada uma das
disciplinas concernidas se transforma pelo efeito de ricochete que se promove na
d eclinação das problemáticas investigadas.

1 13
No que concerne a este livro, a costura se realiza pela leitura dos discursos da
antropologia, da sociologia, da política e da filosofia. A colaboração da psicanálise
se faz em surdina, quase sempre de maneira latente, como uma espécie de partitura
que busca evidenciar as formações do inconsciente. Em sua composição, sobressa-
em-se dois ensaios culturais de Sigmund Freud: "Psicologia das massas e análise do
eu" e "O mal-estar na civilização"'.

2. O INDIVÍDUO E O SUJEITO EM QUESTÃO

Mas de que problemática se trata, afinal de contas? Com a intenção primordial


de analisar os registros do sentido e do sentimento, Claudine Haroche trata de
uma genealogia das categorias de indivíduo e sujeito na tradição ocidental, desde o
século XVI até a contemporaneid:ide. Do Renascimento à atualidade, o significado
atribuído a essas categorias se trarJsforma de maneira radical, mas essas mudanças
só podem ser evidenciadas por uma acurada leitura genealógica. Ademais, a leitura
dessas categorias tem como conrraponto permanente a interlocução com as formas
assumidas pelas ordens social e política, cruciais para um empreendimento dessa
envergadura. Com efeito, apartada dessas condições e concepções sociopolíticas, a
leitura em questão se esteriliza, pois reduz as categorias de indivíduo e sujeito ao
registro psicológico, empobrecendo a análise em curso.
Dito de outro modo, da sociedade de Corte à democracia contemporânea, pas-
sando pelo Antigo Regime e pela emergência do Estado Republicano, na aurora
do século XIX, as diversas modalidades sociais e políticas se correlacionam às di-
ferentes formas assumidas pelo ser do sujeito e pela condição do indivíduo. Por
isso, ao se pensar devidamente as Formas trágicas assumidas por essas categorias na
atualidade, a leitura teórica proposta se revela inseparável de uma genealogia que
ilumine suas diferentes concepções na longa duração histórica.
Sendo a contemporaneidade a condição de possibilidade dessa análise, evidencia-
se a presença ostensiva do significante fluidez, como marca antropológica eloqüen-
te tanto da subjetividade quanto da individualidade. Ainda que esse significante
remeta, de maneira óbvia, ao que é corrente na obra de Zygmunt Bauman, isto
é, w líquido\ o que a autora pretende evidenciar é a emergência. no individuo,
de maneil'as inéditas de sentir. A genealogia presente na análise empreendida por
Claudine Haroche se impõe para indicar o que existe de original na condição atual,

1 FREUD, Sigmund. "Psycho logi e des fou les et analysc du moi" (!921). Em: Essais de psychanalyse.
Paris: Payot, 1981; MalLlise dtzm la civilisation (1930). Paris: PUF, 1971.
2 BAUMAN , Zygmunr. Liquid modemity. Cambridge: Poliry Press, 2000.

14 1 CLAUDINE ll AROC HE
isto é, para que as diferenças em relação às condições e figurações anteriores do sujei-
to se evidenciem numa leitura que atravessa cinco séculos da história do Ocidente.
O ponto de partida de sua exposição é a caracterização da individualidade pelas
marcas da moderação e da deferência. No ritualismo que delineou as maneiras de
parecer, havia um código de distância e de proximidade que definia a cartografia
do espaço social. Pela mediação desse código simbólico, os laços sociais, conforme
a proposição de Cario Ginzburg3, permeavam-se da oposição embaixo x acima. Em
conseqüência disso, as fronteiras entre os registros da intimidade, da privacidade e
do público se mantinham no campo tanto do indivíduo quanto dos laços sociais.
Seria justamente isso a condição de possibilidade do enunciado da problemática da
governabilidade nesse contexto histórico, no qual a governabilidade da pólis implicaria
a sua estrita articulação com a governabilidade de si. Essa problemática, rigorosamente
falando, foi a retomada, nos séculos XV1, XVII e XVJII, do que se desenvolvera na filosofia
política da Grécia clássica, quando Platão sustentou o imperativo da governabilidade
de si como condição precípua para a governabilidade do espaço social4• No contexto
pós-renascentista, as teorias da civilidade procurariam realizar tal articulação por meio
de duas estratégias retóricas, quais sejam, a politização da família e a familiarização da
política, consideradas as diferentes tradições francesa e inglesa.
Essas marcas e rituais, bem estabelecidos na sociedade da Corte, começam a
ser implodidos com a emergência da modernidade e da democracia no século XIX.
Desde então, tais diferenças têm sido progressivamente silenciadas, bem como
liquefeitas as espacialidades que lhes eram correspondentes, promovendo-se uma
mistura ostensiva das cartas do jogo da civilidade. Outra gramática e outra sintaxe
passam não só a regular os gestos das individualidades, como também a subverter a
forma de ser do sujeito, pari passu a ascensão triunfante do individualismo.
A codificação da formalidade e do ritualismo, presentes nas maneiras de ser e de
sentir, esfacela-se e a informalidade tende a ocupar a cena nos registros do indiví-
duo e dos laços sociais. Tal informalidade, portanto, apaga as distâncias, ao mesmo
tempo que a consideração se dilui, tendo como seu desdobramento mais espetacu-
lar a crescente psicologização da experiência social, enunciada por Richard Sennett
acerca da decadência do espaço público. 5
Em outros termos, a individualidade desengajada se constitui como a contrapar-
tida do incremento da desigualdade, da injustiça e da indiferença. No que concerne
à última, aliás, Alexis de Tocqueviile assinalou a disseminação de suas conseqüên-

1 GINZBURG, Cario. Myther. emb/)mes, traces: morphokJgie et histoire (1986). Paris: Flammarion, 1989.
1 FOUCAULT, Michel. Hermeneutique du sujet (1982). Paris: Gallimard/Seuil, 1003.
' SEN NETT, Richard. Les tyrannies de l'intimité (1977). Paris: Seuil, 1979.

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 15
cias morais na democracia norte-americana já durante a primeira metade do século
XIX, 6 explicando-se, assim, como a categoria ética de respeito perde importância
com a naturalização da humilhação e a constituição de indivíduos marcados pela
insignificância.
·1 1 A conjunção de todos esses fatores indica uma transformação antropológica de
·,-- grande porte, na qual a exteriorização crescente do sujeito é correlata ao seu empo-
"\ brecímento interior. Num mundo marcado pela tirania da visibilidade, a desarricu-
, ~ \ lação entre os registros do ver e do sentir pode estabelecer-se de forma eloqüente.
,\ A figura do pdria, analisado por Hannah Arendt no que concerne à condição
~ ·1 judaica7, generalizou-se com a globalização, de tal forma que, no limite, a ünica
·) coisa possível à individualidade é possuir a si mesma.
'{\
Nesse mesmo contexto, o registro do sensível se transforma de maneira radical.
No capitalismo avançado, as transformações tecnológicas têm conduzido à inaten-
ção, ao estreitamento da comcíêncía e à falta de simbolização dos sentimentos, que se
reduzem às sensações, conduzindo as individualidades, cada vez mais, para a ordem
do corpo. O divertir-se passou a ser conjugado com o ensurdecer-se, e ambos têm
1se declinado pelo isolar-se. Metamorfoseado, o sensível adquire autonomia como
sensação, algo inédito até há pouco tempo, já que se mantinha regulado pelos
códigos e rituais da consideração e da deferência.
O progressivo estreitamento da consciência, desdobrada numa alteração do re-
gistro do pensamento, é a resultante mais pronunciada de tal transformação antro-
pológica do sujeito. A articulação entre os registros da duração e do espaço, como
enunciada por Henri Bergson8, quebrou-se, fazendo com que o pensamento perdes-
se sua efetiva base da sustentação. Por isso, em face da perda catastrófica dos pontos
de referência simbólicos em que o sujeito estava ancorado, a fluidez ampla, geral e
irrestrita não só nos condena, cada vez mais, a ordem corporal reduzida à pura senso-
rialidade, como também nos conduz, de forma evidente, à grande desordem. 9
Evidentemente, está em pauta nesse questionamento, num desdobramento
inesperado da democracia contemporânea, o impasse da governabilidade, uma vez
que a regulação do espaço social se desatrelou da regulação do sujeito. Descoladas
de maneira trágica, essas duas modalidades de governabilidade, da pólis e de si,
anunciam, enfim, uma catástrofe de proporções incalculáveis.
\

6
TOCQUEVILLE, Alex:is de. De la Démocratie m Amérique (1835). Paris: Vrin, 1990.
7
ARENDT, Hannah. Le systeme totalitaire. Les origines du totalitarisme (1951). Paris, Le Seuil, 1972.
8
BERGSON, Henri. Essai sur les donées immédiates de la conscience (1913). Paris: PUF, 1970; Durée et
simultanéité: à propos de la théorie d'Einsteín (1922). Paris: PUF, 1998.
9
BALANDll!R, Georges. Le grand dérangemmt. Paris: PUF, 2005.

16 1 CLAUDINE HAROCHE
PRÓLOGO

Quanto mais remontamos no tempo, mais o


estilo de mmportamento [...] é determinado
exclusivamente pelo "hábitos existentes". [...]
A transição dos costumes para a convenção e o
direito se evidencia como algo absolutamente
flutuante. Por toda parte, o que é costume esteve
na origem do que é obrigatoriamente válido.

Max Wt.>ber
GENEALOGIA DA FLUIDEZ

Max Weber estabeleceu a existência de continuidades profundas, quase sempre


despercebidas e impalpáveis, entre as condutas, os hábitos, os usos e o Direito.
Parte dos estudos aqui reunidos se propõe a elucidar os fundamentos da mode-
ração, a apreender a natureza de suas exigências, decorrentes da questão geral das
formas que estruturam as maneiras de ser e de se portar em sociedade. Trate-se
quer de Georg Simmel, quer de Marcel Mauss, ela está no cerne das preocupações
dos fundadores da sociologia.
A moderação supõe uma representação distinta do corpo, uma relação que ins-
taura e permite a existência do sujeito. Tangível no espaço, ela revela o papel des-
sa relação na construção da identidade social, assim como indica a posição nela
ocupada pelo indivíduo. Tal posição decorre de uma distribuição específica de
indivíduos no espaço: estabelece o valor, por meio de afastamentos e aproximações
entre os corpos, daqueles que:: têm poder, mais poder do que os demais; traduz-se
igualmente por gestos, posturas e atitudes exteriores (Mauss) que contribuem para
exprimir deferência, consideração, respeito, reconhecimento e dignidade, em fi.m-
ção da qualidade e do valor social (Simmel) reconhecido num indivíduo.
As formas e as maneiras de ser e de se comportar que ordenavam os níveis e as
hierarquias no Amigo Regime perduram, sob formas muitas vezes diferentes e re·
novadas, nos tempos democráticos (Aléxis de Tocqueville). Elas regulam as distân-
cias, esmeram-se em prevenir o corpo-a-corpo, a fusão e, além disso, a ameaça de
indiferenciação: o papel decisivo das formas e das maneiras transparece no corpo
de cada um e entre os corpos de todos.
A propriedade visível de si nos gestos e nas condutas (Karl Marx, Maurice
Halbwachs) é atestada, portanto, no espaço concreto, físico, material das institui-
ções, em particular, e dos espaços sociais, de modo mais amplo. Induz a um deter-
minado tipo de comportamento: as posturas e as atitudes são regidas por usos e

1 19
rituais codificados, segundo uma ordem de precedências. O começo e o fim de um
cerimonial, a hora e o local de onde sentar-se, o lugar ocupado, à frente, atrás ou
sentado, quando alguns estão de pé ou se levantam, o respeito a posturas de submis-
são, vassalagem, inferioridade ou superioridade são regulados de maneira estrita.
O imperativo de moderação em jogo nos tratados de civilidade dos séculos XVI
e XVII lembra os limites que o indivíduo deve observar no que diz respeito ao seu
próprio corpo em razão de pudor e respeito aos outros, ou para se conformar ao
bom desenrolar da vida religiosa, social e institucional: esse preceito tende a se
transformar num dever de consideração e, a partir do século XVIII, num direito
político, ames de se tornar, no século xx, uma reivindicação simultaneament.: po-
lítica, social, psicológica e ética. Tais reivindicações concernem aos direitos morais
e sociais, aos direitos da pessoa: lembram a existência de necessidades psíquicas
raramente consideradas como tais, bem como instauram, traduzem, garantem e
reforçam a existência de uma fronteira - original, porém hesitante - entre o ho-
mem exterior e o homem interior.
No começo, não medimos nem o interesse, nem a amplidão das questões que fo-
mos levados a abordar ao longo deste livro. Tampouco pressentimos algumas apro-
ximações passíveis de esclarecer, em aspectos particulares, questões hoje cruciais:
o papel do espaço como elemenro decisivo de solidez na construção e na formação
da identidade, e a valorização e a aspiração à estabilidade. O recuo contemporâneo
da função do espaço parece, portanto, suscetível de acarretar uma transformação
mais ampla dos modos de subjetivação, dos próprios tipos de subjetividade e, além
destes, quem sabe dos funcionamentos psíquicos: incerteza ampliada, desarvora-
mento profundo, angústia difusa, sentimento de despossessão de si, confissão de
impotência e de desconfiança em relação a si mesmo e aos outros.
A separação dos indivíduos no espaço acompanhou e calvez tenha permitido
uma concepção de sujeito que se define - ao menos no Ocidente - por uma forma
de propriedade que supõe a delimitação de si segundo hábitos que implicam a
moderação, a postura: atitudes de polidez, consideração, estima, honra, esses usos
que ocorrem num espaço de formas de mediação são, na modernidade, progressi-
vamente tornados direitos.
\ A atualização do papel das interações faz com que se passe, no início do século XX,
1 de uma representação da fixidez, da estabilidade, para uma diminuição e mesmo um
\ distanciamento da moderação. Valendo-nos disso, nós nos demos de conta de que
podíamos contribuir para esclarecer alguns modos de funcionamentos sob os quais
se delineia um conjunto de questões fundamentais em jogo no individualismo con-
temporâneo - o "individualismo qualitativo", evocado por Simmel -, nas diferentes
formas de troca capitalista, no cerne nas mais recentes evoluções tecnológicas, na
globalização e nos abalos psíquicos induzidos por esses modos de funcionamento.

20 1 CLAUD INE HAROCHE


Assim, pretendemos esclarecer aqui uma transformação que tende a interrogar
os limites do eu e do corpo, a relação com eles e, além disso, a própria capacidade
de imaginar e representar. O apagamento das fronteiras entre o homem exterior e
o homem interior, entre os corpos institucionais e os corpos individuais, leva-nos a
observar, com base nas formas, nas maneiras e nos usos, e também em seu declínio,
a proximidade, a familiaridade, a ascensão do informal; um verdadeiro desaprumo
das formas, que pode culminar no corpo-a-corpo, na fusão, na indiferenciaçáo.
, A ignorância dos limites, sua rejeição ou mesmo sua denegação levam aos efei-
ws de sua ausência: o sentimento de um algo indomável que é não só interior
ao sujeito, mas também acarretado por um exterior que se revela, cada vez mais,
imaterial e virtual, implicando volatilidade, liquidez e fluidez dos laços, suscetíveis
de conduzir, por fim, ao apagamento dos contornos do indivíduo, que se põe a
flutuar num estado d e sensação permanente. O estado de fluidez que atualmente ,
incorpora as sociedades contemporâneas, o mundo, pode, ao fim e ao cabo, acarre-1
tar estados de indistinção entre um e outro, entre os corpos, os eus e, por fim, entre
o real e o virtual, para atingir, assim, a vida da representação (Pierre Legendre) ou
mesmo para induzir a sensação de eus não separados, ilimitados e indiferenciadas.
A flutuação, própria, segundo Weber, à fronteira entre os usos, os costumes e
o Direito, deslocou-se, de maneira considerável, num movimento instável e fluido,
e já atinge a própria existência dessa fronteira, ou seja, a capacidade tanto de per-
ceber quanto de imaginar e de representar o outro para si mesmo.
Trara-s<:, pois, de funcionamentos contemporâneos inéditos em sua intensidade e
em seu cadter contínuo, que provocam efeitos consideráveis no laço social, na identi-
dade de si, no sujeito, no eu e no corpo. Por esse motivo, exploramos uma abordagem
em que se misruram o soriológico, o anrropológico, o psicológico e o político - ao
mesmo tempo pré-disciplinar (Louis Dumont) e transdisciplinar (Mauss, Simmel)
-, aventurando-nos nas camadas profundas e nos alicerces da fluidez em marcha nas
sociedades contemporâneas, para delas extrair os elementos de uma genealogia.
A esse respeito, indicamos algumas balizas. A propriedade de si da nobreza, dos
governantes, que era nítida para rodos no espaço e na sociedade de corte, é obser-
vada aqui nas identidades fixas e estáveis regidas pelas precedências. Em contrapar-
tida, o scgLrndo exemplo utilizado se relaciona ao desaprumo do institucional, à
aspiração surda, à superação de si, à denegação incessante dos limites, à fusão, nos
comporta mentos e ideais, dos movimentos da juventude alemã de 1918a1933, com
o intui to de fazer aparecer algumas das dimensões negligenciadas e mesmo perdi-
das do espírito corporativo em suas relações com o espaço público na democracia.
Hoje, as fo rmas de propriedade se vêem confrontadas e subordinadas ao movimen-
to contírn 10, à atividade permanente, excedendo a capacidade de funcionamento
sensorial e p erceptivo, e tornando a pôr em questão, de modo agudo, o sentido.

.• C ONDIÇÃO SENSÍVEL 1 21
O deslocamento e a mobilidade incessantes tomam de empréstimo as vias, tan-
to materiais quanto imateriais e virtuais, e assim, de um lado, abalam o papel
estruturante do espaço, transformando-o e relegando-o a form as tradicionais de
funcionamento, e, de outro, acarretam formas de propriedade ilimitadas de si e
dos outros. Elices onipotentes, desterritorializadas, concomitantes a formas inédi-
tas de apropriação de si, por meio de novas tecnologias, multiplicam e induzem
eus instáveis e efêmeros. Ao mesmo tempo, acarretam formas de despossessão de
si para um número sempre crescente de indivíduos encerrados em territórios cada
vez mais pobres ou coagidos a se deslocarem, a fim de sobreviver.
As formas conhecidas e reconhecidas de estabilidade, fixidez, ancoragem psí-
quica e emocional, estabelecimento psíquico e subjetivo no espaço, são perturba-
das e acarretam uma ausência de enquadramento espacial, de limites, bem como
/ provocam um desenraizamento subjetivo (Legendre 2006: cap. XXI). Esse processo
paradoxal tende a uma depauperação, a um estreitamento e, mesmo, a uma ex-
tinção do espaço interior no individualismo contemporâneo: tende, com efeito, a
exteriorizar, a setorizar na superflcie o homem interior, fazendo-o desaparecer, e,
no mesmo movimento, a estender e a intensificar as sensações - ou então a erans-
formar, de forma radical, as maneiras de sentir, a enfraquecê-las pela submissão ao
ritmo de um consumo contínuo e acelerado.
/
Desde então, pareceu-nos interessante examinar a transformação das maneiras
de sentir nos fluxos sensoriais contemporâneos, interrogando-nos também sobre
as condições e a própria capacidade de sentir. Essas questões, como se sabe, são
abordadas, formuladas e apresentadas com grande profundidade nos trabalhos de
Georges Balandier, que distingue o apagamento e mesmo a desaparição de antigas
categorias e a emergência de "novos novos mundos". Zygmunt Bauman partilha
essas interrogações, ao insistir na desterritorialização das formas de vida numa
condição de fluidez, de "liquidez", assim como Pierre Lege11dre, que pressente, na
indiferenciação, a ameaça de uma regressão.

22 1 C LAUOINE HAllO C HE
PARTE 1

MODERAÇÃO, POSTURA E DEFER~NCIA

NOS GESTOS E NAS MANEIRAS DE SER


GOVERNO DE SI, GOVERNO DOS OUTROS

É absolutamente necessário que um homem saiba


governar a si mesmo antes de comandar outros,
seja como pai de famíiia, o que diz respeito à
economia, seja como soberano, magistrado ou
ministro de Estado, o que é próprio à poiítica.

François de La Mothe le Vtzyer

Norbert Elias faz da postura, do controle de si, da moderação, do autogoverno


bem mais do que questões psicológicas ou sociológicas; trata-se, como afirma, de
temas eminentemence políticos (Elias, 1990). De fato, ele recupera urna tradição
há muito esquecida, ou ao menos negligenciada, pela filosofia política. Uma tradi-
ção que insiste na necessidade de esclarecer idéias e teorias pela história das práticas,
das maneiras e dos comportamentos. 1
É no âmbito de uma antropologia política que se aborda aqui a questão da
civilidade e do governo de si nas sociedades francesa e anglo-saxã dos séculos XVI
e xvn; busca-se, portanto, apreender o político, levando em consideração seus
aspectos mais negligenciados, seus componentes rituais e psicológicos, o que per-
mite um "conhecimento mais completo da dinâmica do político e dos processos
de formação e de transformação do poder" (Balandier, 1985). O governo de si é um
componente essencial do poder, o mais seguro entrave à desordem, um fundamen-
to do governo dos outros, o complemento necessário da lei. Em outras palavras,

1
Em cerla medida, essa é a perspectiva dos trabalhos conremporâncos de Mona Ozouf, Roger Char-
tier, Gérard Noiriel, Keith M. Baker, bem como os de John Greville Agard Pocock, na fronteira
enrre história , ciências sociais e política; Cf. ainda Luc Boltanski e Laurent Thévenor, que, ao
examinar as grandes obras da filosofia política, articulam-nas como "obras de gramáticos do laço
político" (Bolcanski & Thévenot, 1991).

25
a antropologia política revela que "o corpo é um verdadeiro operador político e
social'', parte essencial e constitutiva do poder(: 3n-2).
É preciso ainda aproximar as perspectivas da antropologia daquelas mais propria-
mente historiográficas. Veja-se, por exemplo, o trabalho de Jean-Claude Schmitt,
quando sugere que é preciso perceber um signo de poder na lentidão de um passo
ou na postura de um movimento. O historiador vê nesses gestos a expressão de urna
metáfora cósmica que marca, de modo vigoroso, a reflexão filosófi ca e científica du-
rante o século XII, e conclui: "Entre a mobilidade e seus contrários há uma hierarquia
que [... ] contribui para modelar os julgamentos emitidos sobre os gestos. Não são o
gesto suspenso e a imobilidade da majestade divina ou real signos da perfeição e da
soberania, diante dos quais os demais dão mostras de agitação e configuram uma su-
jeição moral ou socia1?" 2 A mobilidade descontrolada, a excitação, o rebuliço apare-
cem, então, como signos de despossessão, de uma posição de inferioridade, ao passo
que o domínio de si representa algo superior e um elemento central de dominação,
justamente o que Norbert Elias sublinhou a respeito da sociedade de corte.

A GOVERNAMENTALIDADE

Os trabalhos de Norbert Elias e os de Max Weber (1920), Michel Foucault (1984a,


r984b) e Michael Walzer (1965) consideraram - mesmo sob ângulos diferentes - o
governo de si como algo indissociável do governo dos outros, ou seja, um elemen-
to central no desenvolvimento das formas políticas e sociais modernas no seio das
sociedades ocidentais.
A nosso ver, Foucault foi, ainda que seus trabalhos sobre a questão geral da
racionalidade do governo (do que chama de "governamentalidade"' nos séculos

2
O historiador examina nas e timologias (de motus e gestus, cm particular) os efeitos complexos
dessas metáforas sobre a concepção dos gestos e dos movimentos do corpo: "o movimento dos
astros e, mais amplamente, o do cosmos constitui para os gestos um mode lo dos mais valorizados,
porque celeste. Motus, todavia, evoca tamhém a mobilidade que, ligada ao co rpo, rcm, cm vez
disso, urna conotação pejorativa. Com efeito, para a cultura crista da Idade Média, a mobilida-
de participa do transitório, do instá,d". A propósito do domínio dos gestos, Schmitt sublinha
ainda o medo da desordem que rev(ste o termo gesticulatio: "Na cultura letrada da Idade M é-
dia, 'gesticulações' são todos os gestos percebidos como excess ivos, conturbados, em desordem.
O par inimigo gestus-gesticulatio é urra das grandes figuras do antagonismo da ordem e da desor-
dem na cena medieval dos gestos" (Schmitt, 1989: 29-30). Ver, adiante, o capítulo 7.
3 "Queria fazer algo como uma históriada governamentalidade" (Fo ucault, 1986: 14). Foucault nota
que o problema do governo explode 110 século xvr, a propósito de questões muito diferentes, refe-
rindo-se simultaneamente a questões éticas, religiosas, pedagógicas e, enfim, políticas.

c :. AUDrNE 1-JAROC lfE


XVI e XVII) tenham sido mais esboçados do que concluídos4 , quem melhor intuiu
toda a dimensão histórica, teórica e política do tema. Foucault tentou elucidar, por
meio dos tratados destinados à educação de príncipes que dizem respeito à arte de
governar5, "o conceito de governo entendido no sentido mais geral de conduta de
vida, mais exatamente, o conjunto de procedimentos e meios desenvolvidos pelos
grupos e pelos organismos dirigentes para assegurar-se, numa determinada socie-
dade, da conduta de vida dos demais" (Pasquino, 1986: 17-8).
Colin Gordon sintetiza o que Foucault entendia por "governo" do seguinte modo:
o filósofo pensou o termo governo num sentido, a um só tempo, amplo e restrito.
Propôs uma definição do termo "governo em geral" como a "conduta da conduta",
isto é, uma forma de atividade que visa modelar, influir ou orientar a conduta de
uma pessoa ou de um conjunto de pessoas. [... ]O governo corno atividade regulava
a relação de si a si, as relações entre pessoas privadas, que implicavam certa forma
de controle ou de influência, as relações no interior das instituições sociais e das
comunidades, e, finalmente, as relações relativas ao exercício da soberania política.
Foucault estava fundamentalmente interessado nos vínculos estabelecidos entre as
diversas formas e as diversas significações do governo (Gordon, 1991: 2).

Ainda a propósito das análises de Foucault, Gordon nota que a cultura política
moderna se define por dois traços característicos: de um lado, a ciência do Estado;
do outro, a existência de um estreito laço entre os princípios da ação política e
aqueles que guiam a conduta pessoal. Por que o tema da conduta ganha tal relevo
ao longo dos séculos XVI e xvn? 6

4
Ao contrário, vale relembrar as análises empreendidas sobre o governo de si na Antigüidade greco-
latina. Colin Gordon destaca o título dado por Foucault às conferências que proferiu nos dois
últimos anos de vida, bem corno o do projeto de trabalho que tinha em mente: "O governo de si
e dos outros" (Gordon, 1991: 2) .
5 Entre outros, aqueles dos chamados eruditos libertinos: Pierre Charron, Gabriel Naudé, La Mothe
le Vayer. Ver sobre esse ponto, lvléchoulan (!985).
'' "Co rno observa Foucault, é possfvel que nunca, nem antes nem depois, a atividade de governo
tenha sido percebida de modo tão fundamentaimente dependente do governo de si, tanto pelos
governantts quanto pelo governados" (Gordon, 1991: 22). Lembre-se, no entanto, que a tradição
dos miroirs des pri11ces e dos tratados de educação dos príncipes remonta a muito antes dos séculos
XVI e xvn (Schmitt, 1989; Krynen, 1981). Sobre o contexto em que se manifesta esse interesse pelas
condutas, ver o próprio Gordon, que sublinha a influência da filosofia neo-estóica: "Os conflitos
que agitaram a Roma Antiga foram considerados semelhantes àqueles que agitam a Europa desses
séculos. Forma de conhecimento 'prático', o neo-estoicismo surge como um meio de restaurar a
ordem, de reafirmar uma ética diante dos conflitos que atravessam a sociedade e provocam em
cada homem uma enorme perturbação" (1991: 12-3).

A COND I ÇÃO SENSfYEL 27


São esses tratados que contêm preceitos para instruir cada uma das pessoas
sobre a conduta que convém observar em sociedade que nos ocuparão aqui em
primeiro lugar, quer se trate dos escritos humanistas do Renascimento, que tan-
to interessaram a Elias, ou dos escritos puritanos que informaram as análises de
Walzer; quer se trate de Erasmo de Roterdã, François de La Mothe le Vayer, de
François Fenelon, de Antoine de Courtin, ou ainda de William Perkins, Richard
Baxter, John Milton ou William Gouge. Mesmo quando os destinatários variam,
quando sua inscrição nas culturas religiosas e políticas nacionais diferem, os con-
selhos e regras em matéria do governo do corpo e do governo de si aí contidos são,
algumas vezes, idênticos (Gueissaz, 1990).
Veja-se a ilustração em Erasmo ou em Courtin, em La Mothe le Vayer ou Fenelon.
Conhece-se a análise de Elias a esse respeito: a partir do Renascimento, uma mudan-
ça geral afeta os costumes na Europa, sobretudo com a mudança dos imperativos da
civilidade no conjunto da sociedade. 7 É preciso, desde então, refrear as paixões, dissi-
mular as reações afetivas. Os costumes se civilizam, o governo dos corpos se intensi-
fica. Ao evocar a nova vida dos cavaleiros na corte, Elias sublinha que "o novo espaço
vital e a nova forma de integração impõem aos homens uma nova autodisciplina,
atitudes infinitamente mais contidas" (Elias, 1939). 8 O governo de si, quer se trate do
corpo, quer dos sentimentos, exige postura: o bem-estar do próximo e o respeito por
ele, o exercício constante de um controle vigilante de si mesmo. Deixar o corpo falar
e exprimir muito francamente os sentimentos em sociedade são, portanto, atitudes
a proscrever. ·É preciso lutar contra o excesso de interesse por si mesmo e manifestar
atenção, deferência, respeito e consideração pelo outro.

7 O problema do governo do corpo surge muito antes do Renascimento: a) na tradição dos miroirs
des princes, que, surgida na Antigüidade, conhece significativa renovação no século xm: essas obras se
ocupam do comportamento e dos gestos reais, da educação do príncipe cristão, da formação moral e
política dos reis. Jean-Claude Schmin evoca Gilles de Paris e a obra que ele oferece ao futuro Luís vm,
na qual apresenta Carlos Magno como um "modelo de temperança no comer e no beber, um homem
cujo gesto jamais foi relapso" (1989: 192); b) em toda literatura endereçada aos monges: Guibert de
Nogent, no início do século XII, reconhece a gratidão que deve ao futuro arcebispo de Canrerbury
por lhe ter mostrado não somente "como eu devia conduzir o homem interior, !mas também] como
era conveniente, em vista do governo do meu jovem corpo, transportar-me aos direitos da razão" (ci-
tado por Schmitt, 1989: 28); e c) na tradição da etiqueta de mesa que se desenvolve a partir do século
XII (em particular, com a constituição das cones feudais), e que, entendendo reger as "maneiras de
mesa'', convidam ao controle de si e à moderação (Glixclli, 1921).
•Ver ~ambém Leites (1986), em particular o terceiro capítulo, "Os fins sociais da constância". Deixa-
mos de lado aqui o movimento barroco, que, ao se opor ao espírito da Renascença, a seu raciona-
lismo, a sua exigência de medida, a seus ideais de conhecimento de si e de domínio de si, valorizou
as aparências e a exterioridade.

28 1 CLAUDINE HAROCHE
APRENDER A SE GOVERNAR

Elias imputa esse fenômeno global a novas esrruturas sociais: à reunião em cúria
dos cavaleiros, m as principalmente à centralização do poder que impõe ao Estado
o monopólio da violência e lhe incumbe de constranger os homens a viver em paz. 9
As relações sociais se rornam, assim, mais reservadas. Tamanho comedimento nas
condutas ce rtamente produz enormes efeitos nos cost umes e nas estruturas sociais,
sendo essa a análise que alimenta a interpretação feita por Elias acerca do pequeno
tratado de Erasmo publicado em 1530, e cujo objeto é a educação de jovens de toda
sorte (Erasmo de Roterdã, 1530: 57) .
Desde se u preàmbulo, trata-se de governo do corpo e de si mesmo: convém,
escreve Erasmo, que o homem regre e regule seu aspecto, seus gestos, seu vestir,
assi m como sua inteligência. Capítulo após capítulo, ele se mostra preocupado
com a decê ncia, a reserva, o d ecoro. Seja a atitude pia no espaço da Igreja, seja
o comportamento à mesa e os encontros ou jogos juvenis, qualquer gesticulação,
qualquer gesto impulsivo deve ser proscrito: o recolhimento, a devoção e o respei-
to devem se exp ressar pela postura, pela m oderação e pelo controle das atitudes
corporais:
manifesta teu recolhimento pela tua postura[ ...]. Enquanto se reza a missa, mostra
tua devoção pela tua atitud e [... ]. Genuflexo, o alto do corpo inclinado, por respeito
[... ].Se te pedem para dizer o Benedicite, mostra uma reserva plena de recolhimento
[.. . ]. Não convém a uma criança bem-educada agitar os braços, gesticular com as
mãos, balançar os pés; não convém, enfim, falar menos com a língua do que com o
corpo [... ]. Uma criança deve observar a mesma reserva tanto no jogo quanto à mesa
(: 75, 77, 79, 98 e 104).

Ninguém, contudo, soube dar da reserva, d a moderação, uma descrição mais


literal do que Antoine de Courtin. Em Novo tratado da civilidade que se pratica na
França e alhures entre homens de bem 10, um tratado de civilidade cristã que conhece,
desde sua publicação em 1671, vivo sucesso e inúmeras reedi ções, Courtin oferece
uma d efini ção da co ntenção [contenance] e da reserva que recorre quase explicita-

" Outras formas de violência que fazem uso da moderação, da reserva, do domínio de si e da igual-
dade nos humores, porém infinitamente mais filtradas, vêm à luz também no Renascimento. Ver,
adiante, o capítulo 8.
10
N. do T. Em francês , honnêtrs gens. () te rmo conhece mais tJ.rdr.::, com a crírica aos cos tumes <l a
corte, uma acepção pejorativa. Cf o artigo de Oiderot na Encyclopédie em que ele opõe honnête
homme a homme honnéte. Na época de Courtin, honnête hornme, ou honnêtes gens, referia-se tanto à
posição de superioridade ocupada na sociedade aristocrática quanto ao valor moral dessa posição.

A CON DI Ç ÃO SENSÍVE L 1 29
mente à etimologia: "A própria palavra contenção o indica: vindo de comer [con-
tenir], considera-se uma pessoa contida porque contém, em primeiro lugar, suas
paixões e, depois, seus membros ou suas ações, sua língua ou suas palavras, nos
limites em que todas essas coisas devem estar contidas [... ]. Diz-se de um homem
[... ] que ele possui a si mesmo porque domina seu interior, ou suas paixões; e, em
seguida, porque, estando as paixões contidas, tudo o que se vê exteriormente desse
homem parece pousado ou tranqüilo" (Courtin, 1671: 322-3) 11
Possuir-se equivale, portanto, a ser guardião do próprio corpo e, ainda, dos
limites e das fronteiras desse corpo no espaço, "conter-se" no interior de si próprio,
reservar-se, reter-se ... (Courtine k Haroche, 1988: cap. 5)
O vínculo entre essa perspectiva e aquela desenvolvida, na mesma época, pelos
miroirs des princes, tratados destinados à educação dos soberanos, é significativo.
Vale ressaltar aqui, no entanto, evidentemente sem negar à civilidade pueril ma
extensão, que Erasmo dedicara, em 1530, o De civilitate morum puerilium [Da civi-
lidade dos costumes das crianças] a um filho de príncipe, Henrique de Borgonha.
Um século mais tarde, esse elo ainda aparece nos escritos pedagógicos que La
Mothe le Vayer dedica ao Delfim.12 A moral, que é a ciência dos costumes, ensina
a maneira de governar a si mesmo pelas regras da razão, bem como rege a econo-
mia e a política. Desse modo, todo ser humano, pai de família ou soberano, deve
saber se disciplinar, regrar a si mesmo, subtrair-se aos impulsos do sentimento e
submeter-se às regras da razão.
Saber conduzir uma família ou, em outras palavras, ser 11m bom ecônomo e bem
governar um povo provêm fundamentalmente de uma mesma exigência - fruto de
longo aprendizado -, de um mesmo princípio, de uma mesma qualidade: saber go-
vernar a si mesmo. Que não se presuma, escreve o filósofo, "que uma pessoa incapaz
de bem ordenar sua casa, possa levar a contento o governo público" (La Mothe le
Vayer, 16)3: 3). La Mothe !e Vayer define essa ciência, esse saber, como um savoir-faire
que o monarca deve adquirir para exercer a arte de governar. O rei deve saber fazer-se
amado, mas também respeitado e obedecido (: 136-7) 1', ou seja, a arre de governar
repousa tanto sobre a habilidade quanto sobre a força do monarca.

11
É a propósito da exigência de domínio de si e da postura que se aproximam aqui Ecasmu e Antoine
de Courtin; deve-se, todavia, lembrar que o racionalismo da fim do século XVII, corno o de
Courtin - nacional e não mais cosmopolita: centralizador e não mais emancipador -, opõe-se ern
muitos aspectos àquele do século XVi e ao de Era.smo, em particular.
12
A política do príncipe (1653) é urna obra que se inscreve na tradição ancestral dos miroín dt'.< pri11ces,
dos tratados de educação do príncipe cristão.
13
Ver, em especial, ''As cerimônias e os rituais de corte: os instrumentos de uma política de com u-
nicação".

30 1 CLAUDINE llAROCl-IE
Quer se trate de economia doméstica ou de política, o governo de si é indispen-
sável ao governo dos outros. A maioria dos miroirs des princes não cansa de repetir
que se trata aí tão-somente de amor. É preciso saber governar docilmente, e não
apenas pelo uso e pela manifestação da força, sendo o autogoverno do príncipe a
condição do amor que os súditos lhe dedicam. 14 Ser mestre de si mesmo para se fa-
zer amar, ser mestre de si para ser mestre de outros. O mesmo princípio, a mesma
exigência ética e política de domínio de si permeiam a vida de todo homem, chefe
de família ou monarca: o pai de familia, cuja autoridade e afeição não se põem em
dúvida no lar, é considerado um príncipe; um juiz, um magistrado, ou o príncipe,
que deve saber se dominar para dominar - isto é, impor a outrem a autoridade
de sua majestade e o mistério dela emanado -, é tido como um pai, o pai de seus
súditos, o pai de seu reino. Eis os homens diante de uma máxima, de um princípio
de ordem e dominação social e política: para bem governar, é preciso amar com
um amor paternal. is
No fim do século XVII, François de Salignac de La Morhe-Fenelon, arcebispo de
Cambrai, publica Direções para a consciência de um rei, redigidas para a instrução
de Luís de França, um dos filhos de Luís XIV, então duque de Borgonha, de quem
era preceptor. Já na introdução, ele acentua o caráter indissociável entre o império
de si e o império sobre o próximo. O Delfim ainda é uma criança e Fenelon se
dirige a ele nestes termos:
Ninguém deseja mais do que eu mesmo, Meu Senhor, que um grande número de
anos vos proteja ainda dos perigos inseparáveis da realeza. Eu o desejo por zelo de
conservação da pessoa sagrada do rei, tão necessária ao reino, e de Meu Senhor, o
Delfim. Eu o desejo por vós, pois uma das maiores infelicidades que pode vos suce•
der é a de ser mestre de outrem numa idade em que o sois tão pouco de vós mesmos
(Fenelon, 1734: 1-2).

Em tratados de educação dos príncipes ou manuais de civilidade, impõe-se uma


mesma exigência: saber controlar-se, possuir-se, postar-se. Na tradição dos míroirs
de prince, importa aprender a dominar a si próprio para dominar outros, bem
como comer suas paixões para ~anter a ordem cristã, social e política: é preciso,

14
La Mothe le Vayer alerta o Delfim contra a; tentações do poder, que nascem, na maioria das ve-
zes, da impotência em dominar a si inesmo: "acontece, de ordinário, que mais [os soberanos] se
mostram poderosos, mais são impotentes para moderar suas vontades e, às vezes, os transportes do
cspírico, que não conseguem evitar, nem submeter a um exame razoável" (1653: 136).
11 La Mothe le Vayer funda, enfim, a soberania que o monarca exerce sobre seus súditos em matéria
de amor: "Pode-se dizer que um rei é ainda mestre da vida e dos bens de seus sujeitos, porque,
amai:do-os de um amor paternal, ele os conserva" (16n: 132-3) . Ver também Filmer (1680).

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 31
numa palavra, possuir-se para possuir seus súditos. Dito de outro modo, na tradi-
ção das civilidades, importa aprender a se dominar para respeitar o próximo no es-
paço social, pois essa é a finalidade das civilidades erasminianas ou cristãs. Importa
também aprender, como na tradição das civilidades barrocas, a possuir-se para se
subtrair ao poder dos outros e para saber, quando conveniente, dominá-los. 16

O DOMÍNIO POLÍTICO DE SI

Os escritos e sermões puritanos se referem com freqüência à maneira de governar


uma família ou, ainda, às maneiras da aristocracia, às maneiras de se comportar em
sociedade, à arte de ser fidalgo. 17 Michael Walzer vê nos modelos que incitam ao
domínio e ao controle de si a afirmação de certo gênero de vida, uma resposta ao
fim do mundo feudal e uma forma de expressão do "eu" adequada aos progressos da
gentry: um modelo que pretende fazer do comportamento em sociedade e no mun-
do a expressão de novas normas de atividade social e política. Tais atividades, que
dizem respeito à vida profissional e são também uma vocação, exercem-se em nome
da coisa pública, do bem comum. A propósito do Tratado das vocações, de Perlcins,
Miegge observa que vocação, para os puritanos, é um "gênero de vida ordenado e
imposto ao homem por Deus, em vista do bem comum [... ], certa maneira de con-
duzir nossas vidas neste mundo" (Perkins, 1603 citado por Miegge, 1989: 35).
Tais escritos desenvolvem considerações éticas e religiosas - e às vezes políticas,
como em Milton - sobre a postura e a reserva, que pouco ou nada diferem daque-
las formuladas pelo tomismo e que, na mesma época, o catolicismo desenvolve. 18

16
Ver, em particular, os seguintes tratados de corte italianos: O cortesão (1528), de Baldassare Casti-
glione; A conversação civil (1592), de Stefano Guazzo; Galateo ou dor costumes (1558), de Giovanni
della Casa; e O herói (1637) e O homem de corte (1647), de Baltasar Gracián. Sobre os tratados de
civilidade erasminianos, cristãos e barrocos, ver Courcine e Haroche {1988).
17
"Pode-se conceber os cem anos que precederam 1640 como a época de educação do fidalgo: nas
'artes da cidade', na 'arte nova das maneiras da aristocracia', no método da santidade e, finalmente,
na 'arte parlamentar', [...] os manuais de savoir-vivre fazem parte de sua formação tanto quanto os
sermões puritanos" (Walzer, 1965: 273). É preciso, no entanto, notar que os tratados que, no puri-
tanismo, incitam à contenção foram redigidos para o uso da 11ew gentry por puritanos da segunda
ou terceira geração. De fato, a primeira literatura puritana se caracteriza mais por uma grande
violência política. Sobre esse ponto, ver Walzer (1965) e Darnrosch (1985).
18
O que justameme lembra Werner Sombarr: "Os preceitos do puritanismo tratam dos mesmos
objetos e se assemelham quase palavra a palavra àqueles do romismo [... ];às virtudes burguesas [... ]
descritas e expostas[ ...] nos livros sobre o governo da fam ília de Alberci [... ].A moral protestanre
teve apenas de se apropriar do que o tomismo criou" (Sombart, 1928: 244, 247).

32 1 CLAUDINE HAROCHE
Assim, Richard Baxter lembra, nos preceitos concernentes à vida cotidiana de seu
Diretório cristão (!698) , a necessidade de reprimir sentimentos excessivos, descon-
trolados, exortando cada um de seus leitores a "sedeixa r guiar não pelo sentimento,
e sim pelas razões clicadas pela razão" (citado por Sombart, 1928: 243).
Na relação que o governo de si emretém com o político, contudo, os escritos
puritanos diferem daqueles evocados anteriormente. La Mothe le Vayer percebia
no governo de si uma exigência moral que domi11ava a e conomia e o político; diri-
gia-se ao monarca, <: apenas a ele. Os escritos puritanos, ao conjugar norma moral,
preceito social e regra política, pretendem estender a todos e a cada um o apren-
dizado do domínio de si para dele fazer uma "conduta de vida", a "vocação" do
príncipe, do súdito, do m agistrado, assim como do chefe de família: "Por exemplo,
a vocação (calfing) do rei é passar seu tempo a governar seus súditos; e a do súdito
consiste em obedecer aos magistrados. O estado e a condição de pastor (minister)
é conduzir sua vida na predicação do Evangelho e da palavra de Deus. A do chefe
(rnaster) de família, a de governar a casa. Eis suas respectivas vocações" 19 •
John Milton, em A tenência de reis e magistrados (1649), estima que tal domínio
de si é uma garantia contra o governo de um só homem sobre todos os outros:
"Se os homens fossem governados pela razão contida no interior deles próprios, se
não se abandonassem tanto à tirania de costumes exteriores a eles e às paixões cegas
que trazem em seu íntimo, discerniriam melhor o '-lue encoraja ou, ao contrário,
previne o tirano de uma Nação" Qones, I97T 34).
A relação que o governo de si entretém com o político se traduz ainda pela
concepção que os puritanos têm da família. Walzer observa que o "pai é príncipe e
mestre de escola, ministro e juiz em sua casa, mas cada um desses papéis é menos
uma função de sua afeiçã;:; do que um dever de seu ofício. Os sentimentos naturais
desemp enham aí papel ínfimo; devem, ao contrário, ser consciente e rigorosa-
mente reprimidos, de modo que as crianças não se mirnem pelo excesso de afeição.
O primordial é o autogoverno e o autocontrole" (Walzer, 1965: 207) .
Ser pai de família, chefe da casa, tem uma finalidade mais política do que afe-
tiva, como indica a leitura de William Gouge: "Cumprir conscienciosamente seus
deveres familiares pode ser considerado uma função pública" (Gouge, 1622 citado
por Wa lzer, 1965: 207). C omo Miegge observa, o pater familias nos parece hoje
uma figura da vida privada, mas "Calvino, juista e legislador, não emprega as
palavras ao acaso. Sabe muito bem que, na legislação romana, o paterfamilias é
o suj eito eminente do direito privado e público, o ator da vida pública. [... ] Sua
tar<: fa, ou melhor, seu ofício , é o de 'b<:m governar su a família" (Miegge, 1989: 13).

''' "A vo cação é certo gcnero J e vida[ .. . ] imposto ao hornem por Deus em vista do bem-comum[ ... ],
j certa maneira de co nduzir nossas vidas no mundo" (Perkins, 1603 citado por Miegge, 1989: 35).

!
1 A C ONDIÇÃ O SEN S ÍV EL 1 33
Walzer vê na disciplina individual, no governo do próprio corpo e de si mes-
mo, urna forma específica da obediência política, cujo lugar de aprendizado e de
exerdcio é constituído pela família, "um terreno de treino para a obediência po-
lítica" (Walzer, 1965: 208). Mas, como sublinha, essa educação encoraja - ao lado
da sujeição - certas capacidades de rebelião, em particular a política. Nos termos
de Gouge, "uma família é uma pequena igreja e uma pequena república, em que
se pode pôr à prova todos aqueles aptos a ocupar uma posição de autoridade [... ];
ou, antes, é urna escola onde se aprendem os primeiros princípios e os primeiros
fundamentos do governo e da sujeição". À mesma época, os tratados de educação
do príncipe o exortam a amar seus súditos com um amor paternal; assim, ao passo
que a tradição puritana insiste na dimensão política da família, a tradição católica
busca ressaltar a dimensão familiar do político.
Os tratados humanistas de civilidade (séculos xvr a xvm), os escritos purita-
nos (séculos XVI e x:vn) e os manuais de educação de príncipes reconhecem uma
mesma exigência: o controle e o domínio de si, entendidos corno disposições ne-
cessárias ao governo da família e ao governo político do Estado. Uns e outros con-
tribuíram para formar a civilização dos costumes que marcou a França e os países
anglo··saxõcs, apesar de difrrcn\·as que pnmitcm entrever as csp<:cificidadcs das
formas de sociabilidade e de culturas políticas no mundo anglo-saxão e puritano,
de um lado, e no francês e católico, do outro. Uma relação com si mesmo que
insiste na parte de cada um na formação de si, um espaço interior de autonomia e
de responsabiliàade, um rigor moral relativo à.s vidas privada e pública, e uma in-
junção à transparência das condutas marcariam, em especial, a tradição anglo-saxã.
A tomada de consciência da aceitação ou, ao menos, da existência de regras que
não se aplicam sempre com o mesmo rigor aos comportamentos privados e aos
comportamentos públicos, um espaço interior subordinado à existência de uma
hierarquia eclesiástica, urna divisão mais nítida entre comportamentos püblicos e
condutas privadas, e urna necessidade mais marcada de opacidade dos indivíduos
caracterizariam melhor a tradição católic:::.

A POSTURA: UM MODELO PSICOLÓGICO, SOCIAL E POLÍTICO

Norma social, exigência ética, imperativo político, o preceito de postura e de mode-


ração das atitudes e dos gestos acompanha o exercício do governo de si e do governo
dos outros. A postura, que estrutura, em profundidade, certo tipo de economia psí-
quica, certa forma de subjetividade, exalta um modelo fundamental de representa-
ção do sujeito. Ela é, sem dúvida, um dos elementos essenciais de uma antropologia
histórica e política das formas do laço social nas sociedades ocidentais.

34 1 C l. A UOT N r. 1-IAR OClt E


O próprio termo elucida determinados modos de funcionamento cruciais.
O que é, de fato, a "postura"? Uma capacidade, no sentido próprio da palavra: o
corpo é um receptáculo fechado, ameaçado do interior e do exterior, pois o que
põe em risco a "postura" são os arroubos, os excessos, o que não se controla, o
que não se governa em si próprio, mas também o ingovernável no outro e ainda
as trocas, percebidas como uma ameaça à integridade, à identidade, à virtude de
cada um.
Trata-se de um modelo fundamentalmente psicológico. 20 Implica a consciência,
o reconhecimento do próximo e o respeito por ele, ao mesmo tempo que constitui
uma delimitação de si; disposições psicológicas como a reserva, a moderação, o
controle e a prudência se vêem literalmente requisitadas pela postura. Não se pode
ver em tal concepção de eu tanto uma condição quanto um traço do lento proces-
so de estruturação psicológica do governo das condutas que modelou a economia
psíquica e orientou os laços sociais <los homens no Ocidente?
Postar-se, conter-se em si mesmo e dominar-se são atitudes cruciais na represen-
tação da pessoa, ao que parece, como tentamos mostrar, indissociáveis do político.
Ao simbolizar e realizar a aceitação de constrangimentos que se exercem sobre o
eu cm sociedade, a postura não desempenharia o papel de um desses "enunciados
transversais" que Alain Bourreau enumera, ao se referir a uma "história restrita
das mentalidades" e indicar, com precisão, a relação entre a história e as ciências
sociais? Estas, diz Bourreau, estudariam "a incorporação do real nesses momentos
raros e estruturantes. [... ] os enunciados transversais que dão urna unidade forte a
um tempo, a uma transformação, nos mais diversos campos, nos mais diferentes
registros sociais" (Bourreau, 1989: 1498).
Bourreau, aliás, entrevê na "teoria dos dois corpos do rei'', formulada por Ernst
Kantorowicz, um exemplo de~sa transversalidade. Com efeito, Kantorowicz mos-
trou "que um aspecto crucial da vida política, o assentimento universal ao Estado,
enraizava-se num processo metafórico que propiciava uma estrutura forte e pouco
visível à linguagem social européia entre os séculos XIII e xvn". Esse "processo

' "Esta referência, vinda de um campo de sa ber bastante distinto. parece-me esclarecedora: os traba-
lhos psicanalíticos que Didier Anzieu consagrou ao "eu-pele". Ao ver na pele "o saco que contém
e retém no interior o bom e o cheio", mas também "a interface que marca o limite com o de fora
e mantém-no exterior [...] a barreira que protege da penetração [... ], d:I> agressões vindas dos
outros, seres ou objetos" {!9850 39), Anzieu faz d~ possibilidade e da necessidade de contenção
um elemento central do funcion amento do eu, fundanclo-se em particular sobre esse princípio
essencial da psicanálise que pretende que o que é psíquico se desenvolve em relação à experiência
corporal (: 82). "() eu é explicitamente designado corno 'envelope psíquico'. Com efeito, é esse
'envelope contingente' (que contém), que faz com que o aparelho psíquico seja suscetível de possuir
conteüdos" (: 81, 83).

A COND IÇÃO SENSÍVEL 1 35


metafórico'', ao retirar seus fundamentos de uma diversidade de campos heterogê-
neos, quer se trate do direito, da teologia, da poesia ou do mito, acaba por "invadir
pouco a pouco a totalidade do campo do pensamento político"(: 1498).
É certo que a questão da postura está situada num registro diferente: concerne
ao eu em companhia, ao indivíduo em sociedade e ao vínculo estabelecido com
o outro mais do que à relação com o Estado. Constitui, no entanto, um forte
"enunciado transversal" que atravessa e unifica um conjunto de campos distin-
tos (o religioso, o antropológico, o político) e materiais heterogêneos (maneiras à
mesa; preceitos para o uso de clérigos, religiosos e príncipes; regras de conesia e
de civilidade em ação nas múltiplas situações que põem em jogo o laço social na
vida cotidiana: conversação, igreja, mesa, dança). Tratar-se-ia, pois, de um desses
esquemas coletivos fundamentais na história do Ocidente, suscetíveis de explicar
aspectos cruciais da vida psicológica, social e política, e tendendo a estruturar,
pouco a pouco, o campo de uma antropologia política ocidental.
Por meio do exame dessas formas de governo de si, buscamos elucidar o signifi-
cado de uma rac.ionalidade nas condutas e mostror não só como normas, preceitos
e idéias de uma época podem ser incorporados em gestos, posturas e movimentos,
mas também como determinados comportamentos dão nascimento a rituais e
refletem usos e costumes. Quisemos, portanto, retraçar os fundamentos antro-
pológicos, as origens históricas dessa postura que se traduz no corpo de cada um,
mas também no corpo social, localizando elementos passíveis de esclarecer relações
entre disposições psicológicas, qualidades morais, laços sociais e comportamentos
políticos.

CLAUDINE HAROCHE
OS GESTOS NO FUNDAMENTO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

A posição se traduz pela prerrogativa de sentar-se


e de caminhar.

Charles Loyseau

Nl' funcionam ento e na significação íntima do cerimonial de corte, Norbert Elias


percebeu "um tipo de organização" em que cada gesto, cada postura, designava
simbolicamente a posição, o status e o poder de cada indivíduo. Ele precisou que
"a regulamentação [do cerimonial] não apenas visava à representação exterior, à
conquista de um melhor status e de maior potência, uma segregação no que diz
respeito aos simples mortais, como também demarcava mentalmente as distâncias
que separavam entre si, no plano interno, os membros da sociedade" (Elias, 1969:
rn8; cf. Le Roy Ladurie, 1987).
Os trabalhos de Elias sobre os corpos e as atitudes corporais convidam a que se
reintroduza t1m conjunto de questões essenciais à inteligibilidade de alguns com-
ponentes antropológicos do poder político. 1 É nessa perspectiva que se abordam
aqui a função e a significação da distância, ou seja, da proximidade e do afasta-
mento espacial, esforçando-se por elucidar suas origens longínquas em espaços
institucionais.

A LEI DOS GESTOS

Os trabalhos de Marcel Mauss e de Maurice Halbwachs têm, a esse respeito, muito


interesse: com efeito, eles incitam a encontrar o papel, a importância das formas,

1
Sobre esses componentes, ver Geenz (1983: 156). Sobre a mise-en-sâne e a cearralidade do poder,
Balandier (1967; i980; 1985), Marin (1981) e Ansart (1983).

1 37
do componente tanto material quanto simbólico e afetivo dos funcionamentos
institucionais, o papel dos gestos e das posturas nas instituições, indicando vias de
pesquisas relativamente pouco exploradas sob essa ótica.
Como afirmou Mauss, pode-se dizer "que a forma de uma civilização é tudo o
que caracteriza de maneira especial, inigualável, as sociedades que constituem essa
civilização". Mauss enumerou grande variedade de objetos que contribuíam para
definir essa forma. Uma lista que ia da palavra ao conto, de uma espécie de arranj o
do solo à estrutura interior ou exterior da casa, de um a ferramenta a um gesto ou a
uma démarche: "Tudo tem urn tipo, um modo e, em muitos casos, além de sua na-
tureza e de sua forma-padrão, um modo próprio de utilização" (Mauss, i929: 89).
As observações de Mauss sobre as formas materiais das sociedades - sobre os
gestos, as posturas, os movimentos em qu e a antropologia discerne elementos des-
sas formas - são capitais: convidam a prolongar a rcfll:xão, conduzem a retomar
questões que ainda são fundamentais. Esparsas, lacunares, inacabadas, muitas ve-
zes gerais, diversas dessas observações de Mauss continuam a surpreender: "a in-
certeza histórica, em casos precisos, não deve desencorajar a pesquisa. O fato geral
permanece"(: 89).
No que concerne à ciuestão das origens sociais da.\ formas e dos gestos, Mauss
foi influenciado pelos trabalhos de Robert Hertz e d e Émilc Durkhcim. Em estu-
do sobre a polaridade religiosa, de 1905, H ertz se deteve na preeminência da mão
direita, que ele opunha à mão esquerda "desprezada", considerada inferior, levan-
do-nos a aprofundar as relações entre posturas, posições, status e espaço. À mão
direita, afirmou Hertz, cabem "as honras", "as prerrogativas"; ela é "o símbolo e o
modelo de todas as aristocracias", permanecendo sem explicação, como notou, "a
razão pel;; qual um privilégio de instituição humana [vinha] acrescentar-se a [um]
privilégio natural" (1905: 85-6). Hertz enfatizava que a sociologia pode contribuir
para elucidar o fato de que os lados direito e esquerdo de nosso corpo têm valores
diferentes, próprios a uma "instituição social". Ao observar a existência de relações
entre os lados direito e esq uerdo do corpo e o espaço, disse que "a direita repre-
senta o alto, o mundo superi or, o céu", para concluir, de maneira clara, embora
um tanto enigmática, que foi 'sob o império de crenças e emoções religiosas que
nasceram e cresceram os ideais que, laicizados, dominam ainda hoje a nossa con-
dutà' (: 88-9).
Em As formas elementares da vida religiosa, de 1912, DurkJ1eim reconhec~ u igual-
mente que "a organização social serviu de modelo para a organização es pacial [.. .].
Até então, não havia distinção entre direita e esquerda, a qual, longe de es tar impli -
cada na natureza do homem em geral, não fos~;c, muito vcrossimi lrncntc, produto
de representações religiosas e, portanto, coletivas". Ao observar que o espaço deve
ser "dividido" e "diferenciado" , Durkheim se interroga sobre a origem dessas divi-

1 : 1.AUD l ~~ E !f ,\Jl.CH . llF.


sões que lhe são essenciais. "Por si mesmo, o espaço não tem nem esquerda, nem
direita, nem alto, nem baixo". E conclui: "todas essas distinções decorrem, eviden-
temente, do fato de que foram atribuídos diferentes valores afetivos [de origem
social] às regiões" (Durkheim, 1912: 55-6).
Mauss insiste sobre o papel crucial do concreto, do material, ao dizer que "é
sobre uma matéria concreta e plena de movimento que se exerce a abstração do
sociólogo" (1909: 358). É preciso tomar esses termos de maneira literal e avaliar o
interesse, o alcance, de um estudo como "A oração", no qual, ao tratar do movi-
mento, ele mostra, de maneira concreta e precisa, que as formas de gestos, atitudes
e posturas "têm origem exclusivamente social" (: 378).
Mauss retomaria a natureza social das condutas corporais num texto posterior,
dedicado às técnicas do corpo. Tais técnicas devem ser entendidas corno "maneiras
pelas quais os homens, em cada sociedade, e de modo tradicional, sabem servir-se
de seu corpo". Em seus termos, "os hábitos variam não apenas com os indivíduos
[... ], mas sobretudo com as sociedades, as educações e as conveniências". "Há um
conjunto de atitudes permitidas ou não, naturais ou não", de acordo com as quais
"olhar fixamente" é símbolo de polidez no Exército, porém "sinal de descortesia"
na vida cotidiana. Desse modo, são as tradições que permitem compreender "por
que [um homem] faz um gesto e não outro" (: 378). Com efeito, são as tradições
que impõem ou interditam um determinado gesto. Os movimentos, as atitudes ou
próprios olhares são regidos por regras, princípios, cuja origem é social. Embora
descreva todas essas condutas, Mauss confessa sua insatisfação diante da incapa-
cidade em designá-las de maneira precisa. "Não sabia qual nome, qual título dar
a tudo isso" (: 371). Formas, maneiras, atitudes, hábitos, tendências, inclinações,
traços de personalidade, modos de vida? Ele conclui que se deve, em todos esses
modos de ser, em todos esse~ modos de agir, esta é a expressão que emprega, "dis-
cernir 'técnicas': 'as técnicas do corpo"(: 371). De tudo isso, devemos manter, sem
dúvida, que as formas, as posturas, os gestos e os movimentos são, em grande parte,
atos cuja origem é social.
Desses modos de agir, dessas condutas corporais, destaca-se, de modo muito
nítido, "que, por toda parte, encontramo-nos diante de montagens fisio-psico-
sociológicas de série de atos" (: 37i. Cf. Bourdieu, 1971). Ao notar o caráter mais ou
mt:nos habitual e antigo desses atos num indivíduo 011 numa sociedade, Mauss vai
ainda mais longe: neles percebe meios, instrumentos e também objetivos. "Essas
séries de atos [... ] são montadas pela e para a autoridade social" (: 384). A seguir,
ele revela como, no posto de cabo, ensinava "a razão de cerrar fileiras e de marchar
cm colunas de quatro ao passo". Conta que proibia "a marcha acelerada e colunas
duplas de quatro", e que "obrigava o esquadrão a passar entre duas árvores do
pátio". O que ocorria então? "Eles marchavam uns sobre os outros. Assim, deram-

!\ COND1ÇÃO SENSÍVEL 1 39
se conta de que o que se lhes obrigava não era cão rolo" (: 384). Dessa historieta
ele infere: "Em todo conjunto da vida em grupo, há uma espécie de educação
dos movimentos em fileira cerrada". Uma aprendizagem do gesto, da atitude, do
domínio de si. Em poucas palavras, por meio de um relato breve, concreto, e feito
inicialmente em tom jocoso, Mauss permite que apreendamos não só o papel da
marcha e da démarche, como também a necessidade de ordem . Em outras palavras,
de códigos de comportamento, de saber-viver, de etiquetas e mesmo de protoco-
los que governam as condutas dos homens em sociedade (Déloye, Haroche e Ih!,
1997; Haroche, 1997).
Mauss menciona ainda inúmeros elementos de reflexão para os trabalhos que
realizaram uma antropologia crítica elos mundos contemporâneos e para os estu-
dos de antropologia histórica, cultural, social e política em que encontramos uma
atenção contínua e aprofundada do papel dos gestos, das atitudes e das posturas, e
mesmo o interesse pela maneira com que os homens recorrem a um uso simbólico
de seu corpo. Tendo como base abordagens, contextos e documentos de diferentes
períodos, esses trabalhos permitem discernir, avaliar o papel profundo e constante,
mas muitas vezes despercebido, de gestos específicos na compreensfo da existência
de uma ordem nas sociedades. Como Lévi-Strauss enfatiza em sua introdução à
obra de Mauss, "nesse domínio de estudos sobre o corpo, não há nada de fútil,
nada de gratuito, nem de supérfluo" (Lévi-Strauss, 1950).

A ORDEM E O ESPAÇO

Halbwachs, que se dedicou ao estudo das formas materiais das sociedades, à sua
inscrição no espaço, fala de morfologia geral, social e política. Incita a conside-
rar as formas, os modos e as maneirm inseridas no espaço das instituições, quer
se trate, como veremos adiante, do espaço religioso, parlamentar ou judiciário.
No artigo "Consciência individual e espírito coletivo", ele observa que todas as
instituições comportam elementos psicológicos e elementos materiais, articulados
de modo complexo. É justamente a complexidade dessa relação que nos parece
interessante para pensar a interação entre o componente material e o componente
psicológico das instituições. Como propõe Halbwachs, "admitamos que as ins-
tituições sejam, em primeiro lugar, formas estáveis e estabilizadas dos modos de
vida. Mas se remontamos à origem dessas estruturas, encontramos estados mentais,
representações, idéias e tendências que, ao se tornarem estáveis, cristalizam-se de
algum modo". As antigas instituições "perderam parte de [seu] conteúdo mental'',
mas sua existência e seu caráter não podem ser compreendidos, sem que lembre-
mos e retomemos "o pensamento coletivo que [lhes] deu origem", um pensamento,

40 1 CLAUDINE HAROCHE
a panir de então, "diminuído e reduzido'', "porém suscetível de ser reanimado"
(Halbwachs, 1939: 160-1).
A representação do es pJÇO seria devida ao seu ca r~he r intrínseco - dividido, di -
ferenciado - , co ndição de uma identidade que poderia se revelar na coincidência
entre posição espacial e posição social. Seu papel pode ser avaliado, por exemplo,
nas reg ras de etiqueta do cerimonial na sociedade de corte.
Ao observar que "uma organização política é moldada nas condições espaciais",
Halbwachs esclarece, de maneira profunda , o fun cionamento e a origem do espa-
Çv institucional: de fato , ele propõe uma reflexão acerca da coincidência entre a
posição no es paço concreto, m aterial, físico, e a posição na ordem social e polí-
tica no es paço institucional (Halbwachs, 1938: 17). No exame das origens do que
chama de "quadros sociais da memórià', ele ressalta que a potência de um senhor
repousa, em particular, "no seu lugar na hiera rquia, em cujo topo está o rei, ou seja,
na maior ou menor distância que os separam". Assim, enfatiza, "por trás dessas
famílias, a existência de uma realidade substancial que fundamenta sua situação
social", traduzida, entre outras coisas, pela "proximidade dos príncipes e da corte"
(: 26-7). Halbwachs defende o interesse de estudar esse período longínquo da Ida-
de M édia e sua fisionomia "singularment~ concreta e particular", pois isso permite
entrever elementos "essenciais" comuns e "perm:inentes" das formas elementares,
cuja existência foi suposta por Durkheim no que concerne às religiões (Halbwachs,
1925: 243). Ao se deter nas relações entre elementos simbólicos ou psicológicos, e
eleme ntos materiais ou concretos nos grupos, na imagem, na representação do
grupo e em sua existência real, Halbwachs mostra que, no que concerne ao espaço
religioso, é preciso, ao bdo ao sentido simbólico, tomar também em sentido literal
a expressão "corpo da Igreja". Em suas palavras, "o conjunro dos fiéis se apresenta
como uma massa material " (224-6) . Ele também observa que o corpo judiciário é
"obrigado a interpor toda espécie de barn:iras entre seus membros e aqueles a que
julga m, a fim de resistir a influências externas [... ]. Por essa razão, por seu hábito,
o lugar que ocupam no pretório [... ] torna perceptível a distância que os separa dos
demais[ ...] de acordo com algumas formalidades" (: 226) .2
A disposição dos indivíduos no quadro do espaço judiciário ou parlamentar
permite apreender certos fun cionamentos materiais e simbólicos das institui-
ções: ela constituiria um exemplo particular das representações fundamentais e

' Em As/Urmas t:lo11cutrtrrJ da u1:dr1 rt:!igiust1, Durkh c.: im f(nmulo11 q111.:, "11;1 base de todos os sisrcma.11
de crença e de todos os cultos deve haver necessariamente certo número de representações funda-
mentais e atitudes rituais que, apesar da diversidade das formas que umas e outras puderam revestir,
tê m em roda parte a mesma signifi cação objetiva, bem como preenchem em qualquer lugar as
mesmas fun ções" (191z: 45) .

A CON DI ÇÃO S ENSÍVEL 1 41


atitudes rituais que, no espaço institucional, decorrem de formas elementares.
Mas é ao examinar o funcionamento do espaço da igreja e do grupo religioso
que Halbwachs faz observações essenciais à compreensão dos modos de fun-
cionamento institucional: "mais do que qualquer outro, ele necessita apoiar-se
num objeto, em alguma parte da realidade que dure, pois ele próprio almeja que
nada mude, ao passo que, à sua volta, todas as instituições e costumes se trans-
formam". Sem poder apoiar-se no mundo demasiado instável dos pensamentos
e dos sentimentos, a Igreja deve assegurar seu equilíbrio "na matéria e numa ou
em muitas partes do espaço". "Por seu aspecto interior'', pela "distribuição e
arranjo de suas partes", uma igreja responde "às necessidades do culto e se ins-
pira das tradições e pensamentos do grupo religioso". Em seguida, ele sublinha
a existência de "posições diferentes" rese rvadas às "diversas categorias de fiéis",
acrescentando que "as principais formas de devoção encontram aí o sítio que
lhes convém". Halbwachs liga elementos materiais a elementos simbólicos nos
modos de funcionamento institucional: "a própria Igreja impõe aos membros de
seu grupo uma forma de distribuição e atitudes; grava em seu espírito um con-
junto de imagens tão determinadas e imutáveis quanto os ritos e as orações", para
concluir, sobre as co!l.dições de existência e sobrevivência do grupo religioso --
e, por extensão, de todo grupo -, que "a religião se exprime sob formas simbó-
licas que se desenvolvem e se aproximam no espaço: apenas sob essa condição
estamos seguros de que ela subsiste" (Halbwachs, 1950: 228- 30). "É no espaço
que a sociedade deve ensiná-los a entrar em acordo", escreve ele, ao insistir no
caráter fundador do componente morfológico e espacial do social, conferindo à
sua reflexão profundidade notável.
Ao permitir que os membros de uma mesma sociedade se encontrem, entrem
em acordo e, para tanto, se submetam às distâncias e às proximidades impostas,
garantias da ordem social, o espaço impõe maneiras de ser comuns. São essas ma-
neiras que se deixam notar, por exemplo, na disposição dos convidados em torno
da mesa na sociedade de corte: elas realçam, de modo mais amplo, o papel decisivo
do espaço nos modos de funcionamento institucional e social. "A maioria dos
grupos[ .. . ) delineia, de algum modo, sua forma no chão [... ] no enquadre espacial
assim definido. Toda sociedade, para adquirir consistência e, simplesmente, durar,
deve permitir que seus membros concordem uns com os outros, aproximem-se e
encontrem-se, de modo a realizar coletivamente o que é a sua própria razão Je ser
[... ]. Porque o grupo vive num determinado espaço e num solo, é sobr~ este que
seus membros se dispersam e se devem reencontrar" (: 232- 5).

42 1 C LAUDINE llAROCIIE
AS PRECED~NCIAS

São esses enquadramentos formais e materiais em que uma sociedade se delineia,


valendo-se de gestos, movimentos e posturas que indicam o status, isto é, posições
de superioridade ou inferioridade numa sociedade e em suas instituições, que con-
figuram o interesse de retrabalhar as formas que constituem, em particular, o ritual
da vassalagem na Idade Média ou ainda as precedências no espaço parlamentar
no século XVII, bem como as lutas de que foram objeto. Com efeito, o protocolo
constitui um dispositivo que, em razão de uma mise-en-sâne do poder político,
pretende dar a ver a hierarquia das funções políticas. Ele se define como um modo
de repartir as pessoas e os corpos no espaço político. Ao indicar a cada um - em
função dos títulos, das condições, dos níveis, dos cargos - a sua posição, os gestos
que deve realizar, o protocolo inscreve uma ordem nos corpos e entre os corpos:
ordena que se fique sentado ou de pé, determina a altura dos assentos, coorde-
na movimentos e deslocamentos, regula a distância que afasta ou, ao contrário,
aproxima alguém de uma autoridade política. Ele se estabelece por um sistema
detalhado de precedências que se traduzem essencialmente em sentar-se e marchar,
segundo uma ordem determinada, que remete, em especial, à exigência de deferir
ou preceder (Déloye, Haroche & Ihl, 1997; Bourdieu, 1982; 1986).
Dois exemplos permitem dar concretude ao papel dos gestos, das posturas e dos
movimentos nos espaços institucionais. Jacques Le Goff, em trabalhos de antro-
pologia histórica, ded icou-se aos gestos numa instituição fundamental da socieda-
de medieval: o ritual de vassalagem. Na homenagem, importa, como ele observa,
"a expressão da subordinação, mais ou menos marcada, do vassalo em relação ao
senhor''. "A desigualdade das condições e das atitudes aparece nos gestos. [... ] no
gesto do senhor, há, por meio da promessa de proteção [... ], a ostentação de um
poder [... ] superior''. Ao contrário, "no gesto do vassalo, há, quando não humi-
lhação, ao menos um sinal de deferência e de inferioridade" (Le Goff, 1991: 367-
8). Como enfatiza Le Goff, no espaço simbólico em que se desenvolve a entrada
na vassalagem, "há deslocamento dos contratantes para que o ritual se realize" .
O deslocamento reflete a nature?..a do laço entre o senhor e o vassalo: este, ao se
apresentar àquele, manifesta sua deferência (: 396-7). Observa ainda que devem
ser consideradas as posições reciprocas dos contratantes ao longo da cerimônia:
"O senhor está sentado?'', ele se pergunta: "Em que tipo de assento? Mantém uma
postura sobrelevada? O vassalo está de pé ou ajoelhado?" (: 399).
Muitos textos, entre os quais tratados jurídicos, escritos políticos e memórias,
fixam , pela atenção aos gestos, certa concepção da monarquia e da ordem, cuja
elaboração foi protegida, defendida e, eventualmente, questionada por eles. Por
exemplo, a precedência sobre a qual Guillaume D'Oncieu, presidente do Senado

A C ONDIÇÃO SENSÍ V EL 1 43
de Savóia, detém-se longamente requer distância no espaço e na altura, isto é,
uma distância, tanto simbólica quanto literal, que situa o nobre acima dos outros
homens (D'Oncieu, 1593) . Ela se traduz em marcas exteriorizadas de respeito , que
consistem em flexionar os joelhos diante de uma personagem, tirar o chapéu na
sua presença e lhe dar passagem. É preciso ver aqui, portanto, um dispositivo de
visibilidade da hierarquia, que permite, por meio de um conjunto de regras, dis-
cernir os homens mais ou menos dignos de estima e de consideração.
Redigido pouco depois e publicado em 16!0, 'fratt1do drJs ordens e simples dig-
nidades, obra de Charles Loyseau sobre a potência pública, começa com uma ob-
ser1ação geral sobre a ordem: "É preciso haver Ordem em todas as coisas, para a
conveniência e para a direção delas", indicando que a necessidade desta se deve ao
que se assenta, à conveniência. Loyseau enfatiza ainda que a ordem é indispensável
à organização dos homens em sociedade, bem como lembra que, embora os seres
humanos não "possam subsistir sem Ordem'', esta "é mutável e sujeita a vicissi-
tudes" (Loyseau, 16rn: l). A ordem, princípio de organização e repartição geral e
concreta dos estados e das funções, distingue-se por meio de ornamentos visíveis
e também por posturas, posições e movimentos. Para ele, provêm das ordens du;::;
prerrogativas específicas: o nível e o título, nos quais distingue as precedências.
O primeiro deles se traduz na "prerrogativa de sentar-se e caminhar". Como Loyse-
au observa, "as ordens, sobretudo, produzem-na. [...] a própria palavra ordem a de-
nota e significa" (: 4) . Ele, portanto, vai ao encontro do que D 'Oncieu chamava de
precedências, com as quais Saint-Simon se mostraria constantemente preocupado.
Uma profunda inquietação percorre esses textos: distinguir - e distinguir-se -
mediante marcas exteriores, precedências que, ao se inscreverem nos corpos, nos ges-
tos, nas atitudes, nas posturas, estabelecem uma distinção entre os corpos e as ordens.

A MEDIDA DA DESIGUALDADE

Saint-Simon relatou longamente testemunhos de legisladores nas querelas que os


ergueram, no Parlamento, contra os pares a propósito da ordem hierárquica, da
etiqueta e das precedências. Com efeito, o memorialista nos permite apreender o
papel decisivo da dimensão material das precedências: a busca de anterioridade,
de altura e de distância está no cerne delas, das luras suscitadas por elas. Suas
Memórias ilustram, com base em fatos concretos - por vezes anedóticos, ainda
que muito reveladores de aspirações profundas - , a luta pela obtenção de pri-
vilégios, prerrogativas das quais alguns corpos políticos se beneficiavam, ao pas-
so que outros os invejavam, entregando-se a querelas grotescas e intermináveis
(Saint-Simon, 1691-1723: tomo v). Saint-Simon detalha as posturas e a ordem dos

44 1 CLAUDINE HAROCHE
movimentos e deslocamentos: ordem segundo a qual se entra ou sai de uma sessão
no Parlamento; sentado ou de pé, a postura traduz o nível, a posição, a altura, a
grandeza, enrendidos em senrido ranto literal quanto simbólico - alturas desiguais
são, de fato, um dos elementos essenciais do protocolo. Ao se dirigirem ao rei, o
Parlamento e o Terce iro Esrado devem estar corn a cabeça descoberta e de joelhos,
o que lhe era, escreve Saint-Simon, "um grande desgosto, pois [os legisladores]
viam os pares [... ) opinar sentados e com as cabeças cobertas" (: 47, 63).
Os divnsos conflitos de prccnlências que opõem os prcsi<lrnccs dos Parbmcnros
a seüs pares se referem, em parcicular, a posturas, a assentos, a altura destes e a sua
distribuição no espaço. Seu relato da "questão do barrete" e das iniciativas voltadas
para o esvaziamento das cadeiras dos pares e a ocupação dos assentos dos presidentes
são exemplos célebres em que os presidentes de Parlamento queriam nivelar os pares
(: 54-5). Os gestos mais anódinos, como colocar seu barrete diante de alguém, não
são inocentes: pode se rratar de um sinal de poder, de uma marca de superioridade
daquele que se cobre ou, ainda mais, do que permanece coberto.
Ao lembrar o que se devia entender como par de França na corte de Luís XIV,
desde a origem da monarquia - "o que ficou conhecido [... ] pelo nome e título
de par de França foi o faro de se ter assento ao lado do trono"-, o duque de Saint-
Simon indica um elemento essencial na etiqueta parlamentar: a proximidade em
relação ao rei. Estar próximo ao monarca era algo crucial. Tocar no trono com o
cotovelo, um privilégio. A reivindicação de igualdade em matéria de proximidade
e de altura provoca conflitos de precedência imensos e recorrentes, quase sempre
resoividas pela instauração, mas também, às vezes, pela inversão de alturas desi-
guais (Saint-Simon, 169r-1723: tomo v: 7). Compreende-se assim que os gestos
aparentemente mais insig!lificantes pudessem se provar decisivos no plano das
instituições políticas.
A atenção às precedências, ao ligar e separar os homens no espaço institucional,
instaurar entre eles distâncias e aproximações, permite, por meio da observação
dos corpos individuais, de seus movimentos, gestos e posturas, vislumbrar o faro
geral por trás do fato histórico, o social ou coletivo no individual, ou mesmo
reencontrar usos, tradições e costumes delimitando corpos políticos numa deter-
minada sociedade.
O estudo dessas séries de atos, dessas técnicas do corpo, já percebidas por Mauss,
e impostas, ordenadas por e para a autoridade social, permite esclarecer formas
institucionais constituídas pelas precedências, processos subjacentes à elaboração
e ao funcionamento das instituições políticas e jurídicas, ou seja, à formulação e a
imposição de uma ordem nas relações de deferência.
Os gestos e as posições no espaço e na sociedade que remetem ao status diferem
de acordo com as sociedades, as épocas e os sistemas políticos. Eles, no entanto,

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 45
expressam e traduzem cuidados, e mesmo aspirações contínuas e fundamentais,
como a preocupação com a proximidade de posições de poder, a altura e a anteriori-
dade, no contexto de uma economia vivida por todos com intensidades variáveis.

OS PRIVILÉGIOS DA IMOBILIDADE

Reanimar o pensamento coletivo que originou a etiqueta da sociedade de corte, eis


o sentido da reflexão aqui empreendida. As origens do cerimonial de corte se mis-
turam, de maneira indistinta, elementos antropológicos, psicológicos e políticos,
que valorizam e buscam uma posição de superioridade. Nas exigências e funções
do cerimonial de corte, Elias procurou discernir, justamente nas maneiras de ser dos
homens, o modo como eles eram psicologicamente marcados, os tipos de economia
psíquica encorajados, impostos por essa sociedade, a maneira como tal cerimonial
e tal sociedade marcavam "mentalmente as distâncias que separavam, no plano
interno, os membros entre si" (Elias, 1969: 108).
Cario Ginzburg e Jean-Claude Schmitt nos levam a interrogar as origens da
valorização do gesto dominado e, de modo mais amplo, as origens do domínio do
movimento e do gesto, de que Elias faz o elemento central do tipo de economia
psíquica característica da racionalidade de corte.
Ginzburg reconhece não só o caráter conjetural de sua hipótese, como ram-
bém o âmbito universal ela oposição entre o alto e o baixo. De acordo com ele,
essas categorias "têm, evidentemente, uma significação cultural ou simbólica, e
não apenas biológicà' (Ginzb1ug, 1986: roo) . Por certo, reconhecemos que "algo
é elevado ou superior", o que é emir.entemente significativo, mas nem sempre
somos conscientes das razões pelas quais "aquilo a que atribuímos maior valor
(a bondade, a força etc.) deve ser colocado no alto". Em suas palavras, "é um fato
que o simbolismo da 'altura' esteja profundamente associado, como o revelam ,
ainda hoje, as línguas indo-e uropéias, ao poder político" (: 101).
Já Schmitt, referindo-se a Marc Bloch, inscreve seus trabalhos na cultura do
Ocidente medieval, em que o gesto e o corpo têm importância determinante. Am-
bos nos levam a compreend<'r que a lentidão da démarche tem origem em represen -
tações remoras. Ao estudar atentamente as atitudes relacionadas ao corpo, Schmirt
enfatiza que "os gestos mais solenes e mais sacralizados" podem fazer "o histot ia-
dor penetrar no que há de mais profundo do funcionamento de uma sociedad~"
(Schmitt, 1989: 20) 1.

3
Sobre a história dos ges tos, ver também Brcmmer & Roodenburg (r991), cm particular a introdu -
ção <le Keith Thomas e os artigos dos organizadores.

C l. :\\JDlf'l E ll AROC l-IF.


Ele se detém, sucessivamente, na significação das palavras gestus, gesticulatio
e motus. Gestus designa um gesto particular e também um movimento ou uma
atitude do corpo com um todo. Em gesticulatio, há a idéia de gesto excessivo,
desordem, transbordamento. A palavra motus, por sua vez, comporta múltiplas
significações. Algumas vezes, não passa de um sinônimo de gestus, limitando-se
ao domínio do corpo; em outras, refere-se à "categoria mais geral do movimento,
de que o gesto é apenas uma espécie particular, entre outras". Schmitt lembra que
motus pode corresponder tanto "ao movimento dos astros e, mais amplamente,
do cosmos" quanto à mobilidade dos corpos. O movimento dos astros, celeste,
é um dos modelos que mais são valorizados para os gestos. Quando qualifica o
corpo, a mobilidade possui, ao contrário, uma conotação pejorativa. Com efeito,
"para a cultura cristã da Idade Média, a mobilidade participa do transitório, do
instável, [... ] do terrestre [... ]: ela caracteriza o homem de carne e osso, a tentação
do pecado e a agitação do vício; contrasta com o movimento celeste, regular, de
ciclos imutáveis e, no limite, com a completa ausência de movimento [... ], signos
da eternidade e de Deus" (Schmitt, 1989: 28-9). Disso Schmitt deduz, com muita
razão, que entre a mobilidade e a ausência de movimento existe "uma hierarquia
que organiza as crenças e a ideologia, e contribui para moldar os julgamentos sobre
os gestos". Assim, podemos compreender que os rituais medievais que encenam
signos de poder e de sacralidade tenham privilegiado a imobilidade, "o hieratismo,
a ostentação dos corpos e dos rituais, as démarches lentas e solenes [... ], atributos
do poder e [...] signos de sacralidade: de um bispo, de um rei ou de um papa''.
Do mesmo modo, acrescenta ainda Schmitt, é preciso observar que, de modo ge-
ral, "a Idade Média valorizou tudo o que nos gestos decorre da postura mais do que do
movimento, por exemplo, a imobilidade na oração, sinal de recolhimento e escuta
do divino" (: 28-9).

A TEATRALIZAÇÃO DO ESPAÇO JUDICIÁRIO

Essas observações são cruciais, mas as hipóteses, embora testemunhem uma am-
plidão surpreendente, permanecem conjeturais: elas se detêm no limiar de uma
explicação, de uma interpretação que toca aos fundamentos, à questão da origem
última das formas e instituições sociais. De fato, oferecem tão-somente respostas
fragmentárias, lacunares: repelem a questão do social, do religioso, ou seja, respon-
dem ao como, mas não ao por quê. Em suma, convidam a este fato: é por meio da
contestação da ordem imposta pela instituição, como nas querelas de precedências,
e ainda mais por seu questionamento e por seu declínio que podemos encontrar
elementos de respostas que tocam à institucionalização, à rejeição de determinadas

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 47
formas numa sociedade. Essa é a importância decisiva de trabalhos como os de
Elias, que observam um declínio de tais formas nas sociedades contemporâneas,
e os de Legendre, que, numa antropologia dogmática do Ocidente, dedica-se
ao processo de desinsrirucionalização, a uma parte irredutível de teatralidade
e opacidade no fundamento da instituição (cf., sobretudo, Elias, 1989: cap. r;
Legendre, 1999). 4
Nos anos 1970, Raymond Firrh mostrou, ainda que implicitamente, os limites
de tais observações, ao reconhecer a parte de indeterminação irredutível própria
aos fundamentos e realçar que "o problema fundamental para um antropólogo
consiste não em se pronunciar sobre a realidade última, mas sim em estudar as
formas de expressão simbólica, com o intuito de compreender o sistema de idéias
expresso por elas, a ordem desse sistema e os efeitos provocados pelo uso de tais con-
ceitos simbólicos" (Firth, 1973: 428).
Antoine Garapon, em trabalhos sobre o ritual e o espaço judiciário, nos quais
ratifica o papel decisivo dos gestos e das posturas, define sua posição nos seguintes
termos: "dirigir ao mundo judiciário a exigência de um exame global que habita
o pensamento sociológico francês, de Durkheim a Lévi-Strauss", reabrindo, o que
nos parece, vias relevantes de pesquisa (Garapon & Jacob, 1992: 316).
Ao sublinhar as origens ancestrais desse espaço, ele detalha a ordem dos lugares
e a codificação das posturas na instituição judiciária: "o ritual judiciário se organi-
za em torno de três posturas fundamentais: andar, ficar de pé e sentar-se. O sim-
bolismo do corpo associado à função judiciária é muito antigo e praticamente não
mudou desde os tempos bíblicos". Ao longo do processo, a postura de cada um
está cuidadosamente prevista: "no tribunal, deposita-se, responde-se e se pleiteia
de pé. Nas sessões, o acusado só se levanta para responder às questões do presiden·-
te; no restante do tempo, permanece sentado em seu lugar". Ele proscgue:
O acusador se levanta, endireita-se, insurge-se, opõe-se; ele acusa, aponta com o
dedo, cria uma ruptura corporal e cênica: trata-se da magistratura de pé. O juiz está
sentado, escuta, toma pareceres e seus gestos são menos visíveis, menos espetaculares;
ele não se mexe. Delibera, vira a cabeça para um lado e para o outro, permanece
circunspeto: trata-se da magistratura sentada. A imagem do homem de pé evoca
um afrontamento e o advogado, por sua vez, se levantará para replicar. A imagem
do homem sentado evoca tranqüilidade, serenidade e estabilidade. Levanta-se para
se defrontar, senta-se para trocar. Todo mundo sabe que um homem agress ivo que
aceita sentar-se está parcialmente calmo [... ].Todas essas atitudes corporais do ritual
inspiraram à instituição suas principais balizas (Garapon, I99T II5-8).

4
Ver, a respeito dessas questões, o capítulo 5 deste livro.

CLAUDINE HAROCHE
Garapon rambém encontra o papel decisivo da ordem e do espaço, tal como
realçado por Halbwachs: "o que a sociedade busca na sacralização do espaço é a
conquist,l da ordem. Esta é ranto a rtgra organizadora (1uanto o mundo organi-
zado". E, ao se referir aos trabalhos de Benvcniste, lembra que a ordem é "uma
das noções cardinais do universo jurídico e também religioso e moral dos indo-
europeus: a 'ordem' que regula tanto a ordenaçáo do universo, o movimento dos
astros, a periodicidade das estações e dos anos quanto às relações dos homens e dos
deuses, enfim dos homens entre eles próprios. Nada do que se refere ao homem,
ao mundo, escapa ao império da 'ordem'. Trata-se, portamo, do fundamento tanto
religioso quanto moral de toda sociedade"(: 44).'
A seguir, enfatiza: é raro que as ciências jurídicas considerem "sua relação com
a fun ção que alojam e para a qual foram concebidas". Ele insiste no interesse de se
debruçar sobre a questão do espaço e da forma: "Pensar a forma seria ultrapassar
um e ourro pontos de vista, restituir um e outro continentes e conteúdos, rein-
tegrar elementos, de ordinário, considerados separadamente". Com efeito, Gara-
pon observa que, nas ciências jurídicas, "a reflexão sobre o simbolismo é ocasional,
marginal. Situa fora-se dos campos próprios ao Direito. Ninguém cogitaria ver
nisso Ltm questionamento suscetível de tocar na própria identidade da instituição" .
E acrescenta de modo muito justo: "Se o núcleo duro da racionalidade jurídica
permanece cercado por uma gangue de irracionalidade mágico-simbólica é porque
essa gangue também tem um papel. Chegar a decifrar seus signos equivaleria ades-
velar um foco de sentido suscetível de esclarecer, com uma luz inteiramente nova,
o discurso texwal do direito" (Garapon & Jacob, 1992: 315-6).
Dito de outro mo<lu, Garapon enfatiza um processo já ressaltado por Elias em
outros termos, a propó>ito do declínio geral das formas nas sociedades contem-
por;'rncas; o mesmo pron:sso que Marcel Cauchi:t imputou ao declínio religioso
e que teve como efeito um desencantamento do mundo. Esse processo toca à
questão da distância, interior ou exterior, psíquica, mental; à distância entre os
homens, à distância na relação consigo mesmo. Toca ao que Gauchet realçou nos
seguintes termos: "A distância se faz interior. De fato, a sociedade democrática
está condenada a reintroduzir internamente a distância que ele não mais encontra
na transcendência" (Garapon, 1997= 31). Tal distância, doravante interior à demo-

' As obs.:rva~ôes de ( :arapon se aproximam das que Scwell , em arrigo dedicado ao vocabulário social e
político do Amigo Regime, associou à abordagem jurídica e política uma abordagem ancropológica
para elucidar a import:incia desses termos, bem como enfatizou que, se os historiadores foram sen-
síveis à ordem hierárquica, não d eram a atenção merecida aos termos que a definem (Sewell, 1974).
O exame atento dos "fimdamentos de urna sociedade [sendo] inscritos em sua língua[ ... ] pode nos
escla recer bastante sobre os princípios que ordenam urna sociedade" (eirado por Haroche, 1997: 50).

A CON OIÇÃO SENS ÍVEL 1 49


cracia, formula, com acuidade e de modo paradoxal, a questão das formas, bem
como testemunha uma desconfiança intrínseca às distâncias, num processo ainda
acentuado nas democracias contemporâneas. "Com a eufemização [da arquitetura
judiciária], o seu afastamento do religioso e da simbólica cosmológica, desencadeia-
se um processo de crescente abstração das representações, de silêncio simbólico,
que tende a se intensificar. A história do simbolismo judiciário vai da riqueza de
sentido ao seu enfraquecimento" (: 30).

UMA ARQIJEOLOGIA DOS HÁBITOS CORPORAIS

As hipóteses conjeturais de Ginzburg, as interpretações hipotéticas de Schmitt e


as observações de Garapon convidam à reflexão. Como se pode, por intermédio
da observação das maneiras de ser, inferir tipos de economia psíquica, aspirações
ou sentimentos? Pode-se discernir ou apreender o homem interior e as profundas
mudanças por que ele passa valendo-se de condutas exteriores?
Tradicionalmente consideradas detalhes fúteis, gestos insignificantes que eram
objeto de preocupações irrisórias, as precedências veiculam, como nos esforçamos
pHa mostrá-lo, tradições, sentimentos e crenças; numa palavra, conteúdos que,
há muito tempo, parecem ter se ausentado de condutas formais e se submetido
a usos mesquinhos. As precedências, contudo, são parte desses gestos, sobre os
quais Lévi-Srrauss afirmava serem "aparentemente insign ificantes, transmitidos de
geração em geração e protegidos por sua própria insignificância. [... ] exemplos de
uma arqueologia dos hdbitos corporais, que, na Europa moderna [... ], propiciaria ao
historiador das culturas conhecimentos tão preciosos quanto a pré-história ou a
filologia" (Lévi-Strauss, I95Q: XIV).
A distribuição dos indivíduos nas instituições decorre, pois, do que Lévi-Strauss
mostrou a respeito das maneiras à mesa e, de modo mais amplo, das maneiras de
ser. Supõe o governo de si, bem como revela e fundamenta o governo dos outros.
Trata-se do que ele lembrou, em algumas linhas surpreendentes, na conclusão de
A origem dos modos à mesa. Ao apresentar a dimensão fundamentalmente antro-
pológica das maneiras à mesa, diz que "as boas maneiras, os utensílios de mesa
preenchiam muitas funções" e ernm "meios da mediação" (1968: 420). O bom
uso, as formas, a etiqueta, a posição e a Jisposição dos convidados, mas também o
couvert são partes desses meios da mediação entre os homens, ou seja, trata-se de
meios materiais e simbólicos que contribuem para distribuir os homens no es paço
e evitar a desordem, a confusão e a violência de um corpo-a-corpo.
Os usos e a etiqueta definida pela atribuição de um lugar fixo, de uma posição,
refletem a função de impor uma ordem social, de fazer com que ela seja reconhecida,

50 1 C LJ\U OINE HARO C l lE


de submetê-la e de submeter-se a ela, de acordo com um ritmo, uma cadência
específica num espaço ou contexto delimitado. "O emprego obrigatório [desses
meios da mediação] atribui a cada gesto social urna duração razoável, pois, enfim,
o bom uso exige que [...] nada se cumpra de maneira precipitadà' (: 14).
As observações de Lévi-Strauss conduzem à reformulação de questões funda-
mentais. Ao destacar a importância do espaço - cada um tem um lugar que lhe foi
atribuído, simbólica e, por vezes, concreta ou fisicamente -, seu texto, insistindo
sobre as maneiras e as formas como técnicas de distribuição no espaço, conduz
ao reexame de temas políticos essenciais, entre os quais o governo das condutas
individuais corporais e a posição do corpo de cada um na sociedade.
É justamente a função atribuída por Lévi Strauss aos "objetos técnicos" e à
cultura que os engendra: a um só tempo, separar e unir, desunir e ligar os seres,
"prevenindo que eles sejam demasiadamente aproximados ou afastados um do ou-
tro" (: 14). De maneira geral, essa função permite regular e dominar as distâncias
e as proximidades pela instituição de deveres e obrigações de deferência, com os
quais se retraça uma continuidade entre a civilidade, a cortesia, as boas maneiras e
os direitos do homem e do cidadão.
Os gestos na base das instituições levam a laços negligenciados, esquecidos, ao
restabelecimento de uma continuidade entre a gesta - epopéia, relato, história -,
que considera, integra gestos individuais e coletivos, e os gestos, condutas corporais,
individuais, de cada um. 6 Com efeito, é preciso considerar os gestos que estrutu-
ram, simbolizam, materializam, ilustram a gesta como elementos fundadores das
instituições jurídicas e políticas, e então tentar precisar o papel das posturas, das
atitudes, dos movimentos nos modelos de comportamentos coletivos e nos siste-
mas institucionais, jurídicos e políticos, tanto passados quanto contemporâneos.
O interesse em reler e reremar hoje os textos de Mauss, de Hertz e de Halbwa-
chs é evidente: a antropologia jurídica, a história do Direito e as relações entre a
religião e o Direito suscitam questões que permanecem fundamentais. As formu-
lações quase sempre gerais que se podem encontrar em Hertz ou em Mauss são
igualmente essenciais e constituem vias de pesquisa muito relevantes. Meditemos,
ainda uma vez, acerca da já aludida observação de Mauss: "É sobre uma matéria
concreta e plena de movimento que se exerce a abstração do sociólogo".

''A etimologia reflete essa continuidade: gesto é uma palavra tomada de empréstimo (ro8o) do latim
clássico gesttl, 'ações', e, especialmence, 'proeza'; em seguida, gesttl foi utilizada no lacim medieval
no sentido de ' relato', 'história', em títulos de obras históricas, por exemplo, Gesta Francorum.
[... ] Gesto (de gest v. 1213) é um empréstimo do latim gestus, 'aticude', 'movimento de corpo',
Cf. Dictionnaire historique de la langue française (1993). Sobre a utilização de etimologias, ver
Kosdleck (1979).

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 51
O COMPORTAMENTO DE DEFERÊNCIA:

DO CORTESÃO À PERSONALIDADE DEMOCRÁTICA

O s homens[ ... ] reconhecem aqueles que lhes sáo


iguais, sentem a superioridade que alguns têm
sobre eles, e aquela que exercem sobre outros;
nasce daí entre eles a famil iaridade, o respeito, a
deferência, o orgulho ou o desprezo. Dessa ma-
triz advém que, em lugares públicos ou em que
as pessoas se reúnem, encontremo-nos, a todo
instanre, entre aquele que procur3mos abordar
ou saudar, e aquele que fingimos não conhe-
cer e com u qual não nos queremos unir; que
queiramos a honra de um e a vergonha de ourro,
podendo ocorrer inclusive que aquele honrado
por vós e que quereis rerer seja quem se sente
incomodado e vos deixa.

jean de L11 Bruyêre

O hábito da desatenção deve ser considerado o


maior vício do espírito democrático.

Alexis de Tocquevi!le

Em 1959, em nora dc rodapé de sua obra consagrada aos ritos de interação, Erving
Goffman agradece a Edward Shils a sugestão de trabalhar sobre o comportamento
de deferência (1974: 51). Goffman vê na deferência um conceito que designa, a
um só tempo, um tipo de comportamento, um sistema de regras de conduta e um
conceito capaz de abranger as interações subentendidas tanto nas relações sociais

1 53
mais cotidianas e insignificantes, "as mfmicas mais fugazes", quanto nos mecanis-
mos institucionais e sociais mais estruturados e visfveis. Poucas linh as lhe bastam
para esboçar o modo de funcionamento e a função da deferência numa sociedade:
"Pela palavra deferência, designo um componente simbólico da atividade humana,
cuja função é exprimir nas regras destinadas a um beneficiário a apreciação a ele diri-
gida, ou a qualquer coisa de que ele é o sfmbolo, a extensão ou o agente (: 50-1)

A DEl:'ERflNCIA D!FlJSA OU CERIMONIAL

Goffman busca estudar as maneiras pelas quais, em nossa sociedade, a pessoa vê


reconhecida de forma eloqüente, ainda que imprecisa, uma "espécie de sacralidadc".
Tal sacralidade se exprime por comportamentos, gestos, posturas e posições subme-
tidas a regras. Com o recurso a termos do que chama de "antropologia comum", ele
propõe dois conceitos que julga determinantes para o reconhecimento e o funciona-
mento da sacralidade da pessoa: a deferência e a postura. Debruça-se, ass im, sobre
as regras de conduta nas quais a deferência se configura e inspira, para observar que,
"em todas as sociedades, as rcgras de conduta tendem a se organizar cm códigos que
garantem as conveniências e a eqüidade", e precisar que, nas ocidentais, as regras de
conduta chamadas de cerimoniais se distinguem daquelas que designa como subs-
tanciais: "as primeiras concernem à etiqueta; as segundas, à moral e à lei" (: 49).
Ao afirmar a presença desses dois tipos de regra em todas as sociedades,
Goffman enfatiza que o componente cerimonial e o componente substancial não
são necessariamente idênticos: certas atividades comportam uma parte cerimonial,
enquanto sua parte substancial pode, ao que parece, ser negligenciada, mas "toda
atividade cuja importância é primeiramente substancial comporta igualmente cer-
ta significação cerimonial" (: 50) 1
A regra cerimonial é "uma regra que gui a a conduta em relação às at ividades
consideradas pouco ou nada importantes nelas próprias, mas que valem acima de
tudo - ao menos, oficialmente - como meios de comunicação convencionais, à luz
dos quais o indivíduo dá significação ao seu personagem ou porta uma apreciação
sobre os outros" (: 48-9). Apesar da distinção entre regras cerimo niais e sul..istan-
ciais, de acordo com a importância de que se revestem para os indivíduos, existe
entre elas uma continuidade, ex:pressa na existência de uma parte cerimonial ramo
em interações cotidianas quanto em situações solenes: "Esforçando-me para subl i-
nhar o que aproxima os apertos de mão das coroações, serei levado a negligenciar o

1
Daniela Romagnoli vê diferença análoga nos tratados de civilidade, que fixam a ex istência de um
vínculo profundo entre a ética e a etiqueta (Rnmagno!i, I995).

54 1 C l. AllD I N E ll i\ RO C ll E
que os separa, a um ponto que muitos antropólogos julgarão excessivo". Goffman,
então, reconhece "afastar-se do uso comum do termo 'cerimônià, carregado de
conotações solenes"(: 49).
A deferência em que ele procura apoiar-se - a deferência cerimonial - é a que se
estabelece entre dois indivíduos no curso de interações breves ou, ao menos, limi-
tadas no tempo. Dá como exemplos as saudações, os cumprimentos e as desculpas,
para acrescentar que "rodo ato de deferência implica, da parte de seu autor, certa
consideração que inclui, com freqüência, uma apreciação global do beneficiário"
(: 52). Observa também que se esse tipo de interação parece relativamente claro,
o sentimento que a acompanha é muito mais obscuro: mesmo "banal", não se
"precisa com facilidade". Assim, a importância desse tipo de sentimento se revela
quando consideramos que Goffman, em muitas passagens, ressalta o papel da de-
ferência obtida junto aos outros para a constituição do eu2 •
Além disso, a expressão de deferência não se limita necessariamente ao momen-
to preciso da cerimônia e nem à deferência formal, tangível, ou seja, ela pode ser
difusa, atenuada e desimportante, mas também difusa e decisivamente relevante.
Há dificuldade em avaliar justamente essa deferência impalpável, porém essencial.
Ao discernir na deferência um mecanismo inerente às sociedades e relativo
a questões que respeitam a cerimônias, ritos e interações, Goffman adota uma
abordagem antropológica e sociológica análoga, em muitos aspectos, à de Herbert
Spencer, para os cerimoniais, e às de Ferdinand Tonnies e Georg Simmel para o
costume (Spencer, 1879; Simmel, 1908; Tonnies, 1909) .
Com os trabalhos de Spencer e os de Tonnies e de Simmel, a antropologia
britânica e a sociologia alemã não só refundaram as bases da primeira como for-
mularam as categorias-chave da segunda (cf. Weber, 1922, tomo 1: 61-3). Esses
trabalhos, valendo-se de um enfoque essencialmente sociológico e antropológico
(com exemplos tirados ora da história, ora da etnologia e do direito), analisaram
profundamente questões como as instituições cerimoniais, as origens dos costumes,
as relações entre estes e a moral, e entre as formas e os conteúdos da sociabilidade.
Permitiram também a inscrição da deferência num quadro teórico geral, em que
foram ressaltados os elementos que a fundam, subentendem, envolvem e inspiram,
ou seja, em que se conformou a questão mais ampla do costume - referimo-nos
aqui à deferência devida aos mais velhos e à tradição.

2
As análises de Goffman são próximas daquelas desenvolvidas em certos trabalhos jurídicos, como
os de teoria moral e jurídica que incidem sobre a dignidade e outras questões relativas ao reconhe-
cimento. É o caso, em particular, dos escritos de Robert Post, que, retomando recentemente as
questões tratadas por Goffman, lembra que "a integridade da pessoa individual depende, em parte,
da observância das regras de deferência" (Post, i989).

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 55
Com efeito, os textos de Spencer, Tonnies e Simmel, presentes nas análises de
Goffman sobre a deferência, instigam-nos a uma abordagem genérica das formas, dos
conteúdos, das origens e dos modos de exercê-la. Shils, por sua vez, sublinha a neces-
sidade de aproximar a deferência do prestígio, da honra, do respeito, do renome, da
glória e da dignidade. Em conjunto, tais análises nos levam a reconsiderar a questão
do valor social de um indivíduo tanto aos seus próprios olhos 4uanto aos olhos dos
outros, isto é, a questão da auto-estima e, uma vez mais, a problemática dos sentimen-
tos morais. Nessa ótica, pode-se compreender, por exemplo, em que a sociedade do
Antigo Regime difere de uma sociedade democrática no que concerne aos modos de
obter e atribuir a deferência, bem como aos tipos de comportamento e de personali-
dade implicados por ela. Ao passo que sociedades aristocráticas subordinam o valor de
cada um à sua condição, à posição hierárquica que ocupa na sociedade, as instituições
democráticas procuram conformar a idéia de si, atribuir o valor pessoal, em função da
qualidade do ser humano e de seu mérito pessoal (Tocqueville, 1835).

AS ORIGENS DA DEFERÊNCIA: AS CERIMÔNIAS E OS COSTUMES

Spencer localiza as origens das formas da deferência nas mais antigas instituições
cerimoniais das sociedades humanas, que precederam todas as formas de organiza-
ção religiosa, jurídica e política. Ele ressalta, sobretudo, que a existência de formas
implicando a subordinação constitui "o faro político mais antigo narrado na his-
tória européia": "Nas épocas em que importava a questão de saber quem deveria
dominar nos pequenos e nos grandes territórios, eram raras as formas de regnlação
instauradas posteriormente pelas formas de governo civil" (Spencer, 1879: 6-7).
Eram constantes, contudo, a submissão e a subordinação como expressões da
humildade e da deferência, traduzidas em gestos, em posturas, na inclinação e,
muitas vezes, na prosternação do corpo. Como Spencer ressalta, os juramentos
de fidelidade aos superiores e as recorrentes manifestações de lealdade, em que
"o vassalo se ajoelhava, descoberto e sem espada diante de seu suserano", eram mui-
to importantes (: 7; cf. também Le Goff, 1991). Nessas cerimônias, a deferência se
traduzia de diversas maneiras, por meio de formas dotadas de intensidade mais ou
menos acentuada, como a prosternação no interior do espaço religioso ou em face
do senhor ou do monarca. Em seu relato, lê-se sobre a "genuflexão em presença
dos ídolos, dos chefes e dos companheiros" e que "descobrir a cabeça é um sinal de
reverência, de lealdade e respeito" (Spencer, 1879: 12).
A importância das cerimônias, no entanto, tende a desaparecer lentamente,
sendo suas funções progressivamente substituídas por regulamentações políticas e
religiosas. Estas, a princípio, insistem "sobre a conduta que exprime a submissão, a

CLAUOINE HAROCHE
obedi ência aos governantes"; em seguida, com a promulgação de regras morais, de-
senvolvem-se e afirmam -se segundo a perspectiva de constrangimentos inrerioriza-
dos e igualmente compartilhados, distribuídos e repartidos. Tais regulamentações,
<JUe se acompanham de uma atenuação das posturas, passam a ser exercidas nas
forma s de conduta entre os indivíduos , em qu e os os preceitos éticos que servem
de guia para os co mponamcnros contribuem, uda vc1. mais, para a rcdw;:io da
esfera das instituições cerimoniais (: 12).
A análise de Spencer, portanto, ajuda a esclarecer o declínio das formas corporais
de subordimção explícita, aspecto ressaltado por Raymond Firth, assim como escla-
rece o processo enfatizado por Goffman, ou seja, a existência de uma continuidade
entre cerimônias e interações cotidianas, "apertos de mão e coroações" 3 • Pode-se, no
entanto, ir além da constatação de que a deferência é apenas uma dimensão consti-
tutiva do cerimonial? Nascida das cerimônias, ela também exprime uma necessidade
elementar, uma disposição fundamental da pessoa, a ponto de Goffman ter sido
levado a pensá-la como um atributo fundamental do ser humano?
Os trabalhos de Simmel e Tonn ies sobre o costume também contribuem para o
encendimenro dos modos de funcionamento da deferência. O primeiro sublinha,
em abordagem análoga à de Spencer, cuja ênfase recai sobre a anterioridade das
cerimônias em relação à religião e ao direito, a existência de um estágio de indi-
ferenciação, em que os costumes constituíam "a única forma de regulamentação".
A seguir, traça um quadro teórico geral do funcionamento das interações sociais,
assim co mo dos métodos de obse rvação para as interações individuais mais intan-
gíveis. É no interior d esse quadro que, mais tarde, Goffman se situa, para distinguir
regras cerimoniais e substanciais, e afirmar que estas se referem à moral e à lei.
Dcsibno tuJo aquilo que se manifesta ncs e entre os indivíduos I...],sob a forma de
tcn<lências, imcress<:s, fins, indinaçôcs, co nformiJade e mobilidade psíquica, como
o conteúdo, a matéria da socialização. A socialização, portanto, é a forma que se
realiza seguindo inumeráveis e dife rentes maneiras, graças às quais os indivíduos, em
virrude de interesses - sensíveis, momentâneos ou duráveis, conscientes ou incons-
cientes [... ] - , se soldam.
Essa vida tão vibrante que liga os seres uns aos omros revel a, para além das formas
de associação que aspiram ao título de vastos organismos, um número enorme de ou-
tras formas, que permanecem de alguma maneira em estado de fluidez e movimento,
mas sobre as quais se fundam as relaçôes dos indivíduos e se form a o estado social.
l'csso;is qu<: s<: ohsnvam, in ve jam-se, corr<:spondcm-sc, jantam juntas, v<:stcm-sc e
enkirarn-se umas para as outras, atraem-se ou repudiam-se, independentemente de
qualquer interesse palpável (Simmel, 19ua: 122 , r9nb: 224).

1
A propc\,ito d o dt:dínio das formas de subordinação, ver Thomas (!991) .

A COND IÇÃO S E NS ÍVE L 1 57


Já Têinnies se apóia na tradição para afirmar que o costume é imemorável. Consi-
deram-se as práticas ancestrais, corno ele ressalta, o fundamento essencial dos deveres
a que os homens se apegam. Pode-se tratar, entre outras coisas, de uma reverên cia,
como a que as crianças dão testemunho a seus pais: Em geral, tal reverência é consi-
derada um dever. Intrinsecamente, ela se funda não sobre o costume, e sim sobre a
natureza, sobre a "lei natural", isto é, sobre uma compreensão tácita do que deve ser
(Têinnies: 1909: 44--5). Em sua argumentação, recorre à língua alemã:
A palavra reverência (Ehrfurcht) é composta, em alemão, de honra (Ehre) e de medo
(flircht). É natural que o fraco honre o forte, e que a criança honre o adu lto. Hormll"
quer dizer admirar, considerar gra nde e poderoso. Ao mesmo tempo, honrar alguém
equivale a considerá-lo bom, isto é, de alguma maneira, generoso e gentil em relação
aos demais. [... ] É também natural que o fraco terna o fone e a criança, seus pais.
A reverência se fundamenta no fato de que quem é temido não é rejeitado, nem detes-
tado corno um inimigo, mas esrirn ado e honrado como um amigo, como um apoio e
um reconforto, um senhor e mestre. Ora, em si, a reverência é esse terror vago que [.. .]
emana de uma atitude venerável e se traduz de forma misteriosa e solene (: 45).

A deferência, portanto, aparece como um aspecto das cerimônias e uma di-


mensão dos costumes . Para além dos usos, d:is regras e dos cosntmcs, gostarí;imos
agora de aprofundar o seu conteúdo, a necessidade que revela e os sentimentos que
suscita, e os comportamentos que a exprimem por meio de excessos e ausêncjas 4 •

A DEFER~N C IA: QUESTÃO DE FORMA OU DE FUNDO?

Ao abordar temas fundamentais como dignidade, honra, julgamento social, eti-


queta e ritos de apresentação, o texto de Goffman contém grande número de
observações e intuições marcantes. Em sua leitura, surge recorrentcmente uma
mesma questão: o que se deve entender por deferência? Ela se refere a uma condu-
ta relativamente codificada, traduzida por gestos em ações delimitadas no tempo?
Trata-se de um comportamento que, ao acompa nhar ;is interações individuais e
responder a necessidades e sentimentos profundos de estima e consideração, pos-
sui obrigatoriamente caráter difuso? A deferência dirigida a uma pessoa varia em
função da sociedade, das condições, das posições e de valor social de um indivíduo,
ou depende das qualidades rspecíficas do ser humano?

1
' A maior pane <los scnrimcntos morais, hens ou atributos da pcsso:1 ~~o difíce is Jt.: ddlnir de manei -
ra positiva e se torna1n sensíveí.s e perceptíveis apenas quando es tão au.scnre~; . Assim se pass~1 com a
dignidade: percebemos sua necessidade pela falta dela, dos atentados de que é objeto.

58 1 C L 1\ UDINE llt\ROCl!E
Parece-nos oportuno prosseguir o trabalho de Goffman e desenvolver certos
elementos de sua análise, à luz dos escritos de Jean de La Bruyere (1688) e Aléxis
de Tocqueville (1835; r856). Os de La Bruyere sobre a sociedade de corte do século
xv11 constituem fonte de incomparável riqueza para a análise dos comportamentos
e dos caracteres nas lutas de poder, bem como contribuem para elucidar certos as-
pectos subjacentes aos mecanismos mais profundos e, muitas vezes, imperceptíveis
das sociedades 5•
Para além da "sociologia das circunstâncias" pretendida por Goffman, delineia-
se nos escritos de La Bruyere uma antropologia social, que exprime um ponto de
vista moral e ético sobre a qualidade das condutas e dos caracteres; um julgamento
de valor sobre o fundamento e o conteúdo dos comportamentos - e não apenas
sobre suas formas ou regras; e uma sociologia das condições, dos estados e das
qualidades que revela a existência de mecanismos sociais fundamemais 6•
À maneira de Norbert Elias, que desenvolveu, com base nas Memórias de Saint-
Simon, uma análise sociológica dos mecanismos da sociedade de corre, apoiamo-
nos aqui nas observações de La Bruyere sobre os caracteres e os costumes do século
XVII, e na análise comparada que Tocqueville, valendo-se da observação das socie-
dades do Antigo Regime, consagrou às maneiras e aos temperamentos, para assi-
nalar certas sim ilaridades co m aquelas características das sociedades democráticas
(Elias, 1939: capítulo sobre a etiqueta e a lógica do prestígio).
As demonstrações de deferência podem se exprimir e se reforçar por meio de
certos comportamentos, entre os quais um gesto, uma moderação, uma postura,
"uma pose que manifeste insolência ou obsequiosidade", e também pela posição no
espaço, "o fato de passar na frente ou de sentar-se à direita, e não à esquerda de
alguém", afirma Goffman. Mas, ao notar que "pode ocorrer de o suposto benefi-
ciário não receber os sinais de deferência que esperava, ou perceber que os recebe
com evidente má vontade"; ou ainda que, "às vezes, um indivíduo estime que a
deferência que lhe testemunham não lhe é apropriada, seja porque o situa muito

'Atendo-se ao mérito , Roland Banhes sublinhou que "ao menos a metade das classes de objetos
referidas por La BruyCre não tem mais do que uma existência vetusta; ninguén1 hoje faria um ca-
pítulo sobre as mulheres, o mérito ou a conversação: ainda que continuemos a nos casar, a 'vencer
na vida' ou a falar, esses comportamentos passaram para ourro nível de percepçfo". E acrescentou:
"Se chegamos a pensu no 'caráter' de alguém, é para experimentar a universalidade insignificante
(o desejo de promoção social, por exemplo) ou a complexidade intraduzível (quem ousaríamos
hoje chamar de enfatuado?), para concluir: "Em suma, o que mudou do mundo de La Bruyere
ao nosso é o que é digno de se r notado: nós não percebemos mais o mundo como La Bruyêre"
(Ban hes, 1964).
1
··frabalhos de teoria moral e política têm-se preocupado com os conteúdos de comportamenros em
matéria de dignidade, respeito ou reconhecimento. Ver Walzer (1983) e Honneth (1996).

A CON DIÇ.:\.O SENSÍVEL 59


acima ou o rebaixa em demasia'', ele nos convida a retomar La Bruyere, que dis-
cerne nos comportamentos de deferência tanto os excessos quanto as carências: a
bajulação e a obsequiosidade ou, ao inverso, a auto-suficiência, a condescendência
e o desprezo (Goffman, 1959: 50-4).
A deferência que extrapola o âmbito das cerimônias depende de regras morais,
ou seja, de regras que orientam as condutas em assuntos considerados importantes
por si só: diz respeito, ao mesmo tempo, à auro-estima e ao apreço demonstrado
ou experimentado em relação aos outros. Tais regras e comportamentos morais
refletem necessidades essenciais dos indivíduos, assim como determinam, de ma-
m~ira profunda, a qualidade das relações tecidas entre eles_
Em Caracteres, La Bruyere se dedicou justamente à observação de tais compor-
tamentos, referindo-se a regras gerais que remetem à idéia de um valor intrínseco
aos comportamentos e às qualidades morais, de maneira independente das condi-
ções e da posição ocupada pelas pessoas - ou ao seu desmascaramento, à "corrup-
ção dos sentimentos morais" que desvelam o excesso ou a falta no que se refere à
deferência 7 •

O AMOR PELOS MAIS IMPORTANTES, O ÓDIO PELO IGUAL

Interessando-se por questõ1:s como o mérito pessoal, a sociedade, a corte, os "mais


importantes" e os julgamentos de valor, La Bruyere sublinha a falta de atenção em
relação ao outro, a ausência de consideração, a baixeza que pode chegar ao avilta-
mento, numa palavra, a ausência de (regras) moral(ais) nos comportamentos.
Esmiuça, nessa direção, o caráter de Mopse, Celse, Pamphile e Drance. Todos
são cortesãos, dos quais observa, com atenção, as maquinações e intrigas: num
momento, a bajulação e a obsequiosidade; noutro, a insolência e a arrogância, ou
ainda a indiferença, a grosseria e a presunção. Confidentes, intermediários, in-
trigantes, praticam o excesso ou, ao contrário, a falta de deferência: ao dar a apa-
rência de negligenciar, ignorar ou desprezar a ordem da deferência, insinuam-se,
utilizam-se dela, para tentar manipulá-la em proveito próprio.

7 Adam Smith se referia à origem da corrupção dos sentimentos morais nos seguintes termos: "Essa
disposição a admirar e quase venerar os ricos e os poderosos, assim como a desprezar ou negli-
genciar as pessoas pobres e de condição humilde, ainda que necessária para estabelecer e manter a
distinção entre as hierarquias e a ordem na sociedade, é ao mesmo tempo a causa maior e a mais
universal da corrupção de nossos sentimentos morais. Os moralistas de todas as épocas lamen-
taram que a riqueza e a grandeza fossem freqüentemente olhadas com o respeito e a admiração
devidos unicamente à sabedoria e à virtude" (Smith, 1759: 103).

60 1 CI.AUDINE HAROCHE
O cortesão é alguém que se agita, circula, desloca-se, esquiva-se; tem personali-
dade murável e inconstante, inatingível, cuja impressão é ser mais instável do que
realmente é: seu natural é não ter personalidade. Fala ou se cala, mas não diz e não
deixa escapar nada de realmente importante. Observa, espia, para, enfim, lançar-se
e ocupar o bom lugar. Comporta-se sem moderação, sem reservas, sem tato. Sua
força está no que não sente, em nada sentir. Por isso, não acha que importuna,
atrapalha ou incomoda. Não se sente bem ou mal: desconhece limites, não se
pergunta sobre o que experimenta, ou o que os outros sentem em relação a ele.
Não observa a diferença entre os lugares, os espaços, as situações, as condições e
as pessoas: é indiferente, cheio de si mesmo, satisfeito consigo próprio, auto-sufi-
ciente. Raramente, trata-se de alguém a quem se é indiferente, porém não é amado.
É mais ou menos suportado e tolerado, algumas vezes remido, e dá a entender que
não se importa com nada disso.
Desprovido de olhar, paiavra, sentimentos e atenção, Mopse pode visitar pesso-
as que não conhece. Para atingir seus objetivos, segue sempre a mesma via: vigiar-
se, controlar-se, ser falso, alternar entre a falta e o excesso.
i'.lc roga a P'"'soas que não conhece para lcv;í-lu na casa <le outras, onde não é conhe-
cido. Insinua-se no círculo das pessoas ~espeiráv.:is, que não sabem como ele é, e lá,
sem esperar ser interpelado, sem sentir qüe interrompe, fala sem parar e de maneira
ridícula (La Bruyêrc 1688: w2).

Nada o atinge, roca ou fere; nada o demove de suas investidas. Sem profun-
didade, ele nã.o tem pudor, dignidade, honra ou vergonha. Ignora a ordem das
deferências, apesar de con:1ecê-las com perfeição. Utiliza-se dela, manipula-a em
proveito próprio, para se insinuar, introduzir-se, apropriar-se. Celse, do mesmo
modo, conhece rodas as pequenas práticas que permitem participar de um deter-
minado círculo: "as pessoas importantes o suportam, ele não é douto, mas mantém
relações com os sábios; possui poucos méritos, mas conhece pessoas que os têm
em profusão" (: 103)
O que faz exatamentt? Como procede? "Ele não faz nada, diz e escuta o que os
outros fazem" (: w3). Abusado e grosseiro, seu comportamento permite desvelar as
rivalidades entre os cortesãos. Drance quer ostentar a proximidade, preencherdes-
se modo a distância que o separa dos mais importantes - literalmente -, intervir
nas posturas e nas reservas, e dessa forma se antecipar, pela proximidade espacial,
simbólica e psicológica, a seus rivais.
Servil e dominador, perverso, Drance "quer dar a entender que governa seu
senhor". Estuda as poses, mas é preciso que se interponha e interrompa os outros;
chega a "falar sem parar a um senhor [a quem serve] nos lugares e horas menos
convenientes, dizer-lhe algo ao pé do ouvido ou em termos misteriosos, rir às

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 61
gargalhadas em sua presença, interromper-lhe". É preciso que se posicione, "que
se ponha entre ele [o senhor] e aqueles que lhe falam"; para isso, é necessário que
persista e manifeste-se com constância, que, teimosa e obstinadamente, dissuada,
desencoraje, afaste, despreze, "desdenhe aqueles que vêm fazer a corte [ao senhor]
ou espere com impaciência que se retirem, permanecendo perto dele e ostentando
uma postura descuidada, tocando-o e dando a impressão de lhe ser fam iliar, to-
rnando liberdades" (: 144-5).
A finalidade de rodos esses movimentos e deslocamentos, de toda essa agi tação,
é conquistar, manipular, dominar. Atingir a posição ambicionada, instalar-se: e
nela manter-se. É preciso, portanto, que manifeste excesso ou falta de atenção, de
sensibilidade em relação às pessoas, às situações ou às circunstâncias: ele ignora a
polidez e as precedências.
Até que ponto a grosseria pode ir? Troi'le pode "franzir a testa", "desviar o
olhar":
Abordado, não se levanta; se sentam perto dele, ele se afasta; se falam com ele, não
responde; se insistem em lhe falar, muda de aposento; se lhe seguem, sobe as escadas;
subiria andar por andar, preferiria jogar-se pela janela, a rcun ir-se com alguém que
tem um rosto ou um tom de vo7, que desaprova(: 154).

Fascinado pelos notórios, Pamphile quer ser um deles. Existe apenas nas proxi-
midades e sob o olhar de alguém mais importante. Pensa unicamente nas prerro-
gativas e dignidades. É obcecado pela idéia de grandeza, de sua própria gra ndeza,
de ser visto r reconhecido: que vergonha ser visto com um homem simples, um
pobre, um homem obscuro, sem relações!
Se, por vezes, sorri para um homem inrcrior, para um i;aiato, de o faz num rcmpo
tão curro, que nunca é pego em tal ato: o rubor lhe subiria à face se fosse , por uma
infelicidade, surpr~endido numa situação íntima com alguém que não é opulento ou
poderoso, nem am igo de ministro, sc11 aliado ou tampouco empregado (: 264- 5).

Fugir do menos importante, esquivar-se de sua presença, valendo-se de todos os


meios, sem hesitar, inclusive, a demonstrar voracidade. Pamphíle é:
severo e inexorável com aquele que ainda não fez fortuna. Ele percebe você um dia
numa galeria e 0 evi ta; no dia seguinte, se encontra você num lugar menos púhlico,
uu mesmo público, na companhia de alguém importante, toma coragem. dirige-se
a você e lhe diz: "Ontem, pJrece que você não nos viu". Ora, deixa você de lado
bruscamente para encontrar um senhor ou um primeiro secretário; ora, se os vê
conversando com você, ele lhe interrompe e os leva para longe. Você o aborda nourra
ocasião, ele não se detém. Não se preocupa com os preceitos, menos ainda com os
princípios (: 265).

62 1 CLA ll lllNE llARO C ilE


La Bruyere observa atentamente o homem de sucesso, aquele que conseguiu fa-
zer carreira. É por intermédio de seu rosto, de sua postura, que podemos perceber
sua baixeza, sua falta de dignidade, e compreender a falsa deferência: percebemos
o obsequioso e adulador sob a roupagem do ambicioso, o arrivista em busca de
sucesso na corte. "Ele já não chama as coisas por seu nome; para ele, todos são
escroques, hipócritas, rolos e impertinentes".
Submete suas opiniões e posturas a uma contínua vigilância; tem o hábito do
eufemismo, do subentendido e das alusões; protege-se com o não-dito; usa da
hipocrisia e da duplicidade, da falsidade e da mentira. É desconfiado e teme dizer
as coisas de modo claro; teme que, procedendo assim, sua ascensão possa ser retar-
dada ou mesmo paralisada.
Aquele para quem evita dizer o que pensa é o mesmo que, se viesse a sabê-lo, o im-
pediria de progredir; pensa mal de todo mundo, mas não fala mal de ninguém; quer
apenas o seu bem, porém pretende dissuadir que quer o bem de todos, a fim de que
todos lhe queiram bem ou, ao menos, que ninguém lhe seja contrário.

Quais os efeitos de tal conduta sobre o seu comportamento? Ele é determinado,


lacônico, sem brilho, "circunspecto em sua conduta e discursos"; constrangido à
prudência, à frieza, à indiferença e a fazer ouvidos moucos. Ostenta "um sorriso
forçado, atenções disfarçadas, uma conversação interrompida e distrações freqüen-
tes"; mostra-se medroso até o momento em que, naturalmente, torna-se covarde,
de forma permanente e sem despender maiores esforços. Assim, posiciona-se em
face "das observações feitas sobre a corte e sobre o cortesão; e porque as ouviu,
acredita-se cúmplice e responsável por elas" (: 235). E sabe também fazer de conta
que sai dessa frieza e exprimir um entusiasmo fingido, um calor glacial: não hesita,
portanto, cm seduzir valendo-se da bajulação.
O amor pelos mais importantes é o que move o cortesão, o que o ilumina; tra-
ta-se de um sentimento que se nutre do desdém pelos homens mais simples, um
amor pelo mais importante que se desdobra num ódio pelo igual. O cortesão é um
homem de comportamento deslocado: ao recusar o lugar que é o seu, quer a todo
preço ocupar outra posição, próxima de alguém importante; não porque pretenda
opor-se a esse alguém ou lutar contra ele: quer se aproximar para engrandecer-se -
ainda que, para tanto, tenha de se rebaixar, de se aviltar-, anular as distâncias, ou
seja, instaurar a proximidade para dominar.
É legítimo pensar que o amor que o obceca pelos que são mais importantes
concretiza a auto-estima do cortesão, e que essa auto-estima equivale, para ele, ao
amor em si pelo mais importante? Esse aspecto esclarece o caráter de Lucile, que
"prefere passar sua vida a se fazer suportar pelos mais importantes do que se ver re-
duzida a viver familiarmente com seus iguais" (: 251). Em suma, um indivíduo que

A CONDIÇÃO SEN!)ÍVEL
se sente rebaixado procura alguém proeminente para conseguir amar a si próprio
ou, ao menos, suportar-se.
Trata-se, aqui, de um desvio da auto-estima? Nesses termos, o cortesão seria um
homem inconsistente, sem qualidades particulares, oco, vazio, que vive a experi-
mentar para existir, tanto aos seus olhos quanto ao olhar dos outros, que necessita
se engrandecer, à custa de aiguém que lhe é superior.
O que fazer, interroga-se La Bruyere, "contra uma doença da alma tão impeni-
tente e contagiosa"? Esquivar-se da dependência em relação aos poderosos: aspirar,
procurar - ou, ao menos, suportar - a igualdade e, então, amar o igual, o seme-
lhante. Ou ainda, aceitar ser aquilo que se é, não procurar, nem se obstinar em
ser mais, em possuir mais. "Contentemo-nos com pouco e com menos aind~, se
possível for; saibamos, eventualmente, perder: essa receita é infalível" (: 266).
Haveria aí uma máxima profunda, que incita ao respeito de si próprio, condi-
ção para respeitar o oucro e evitar "ser posto porta afora pela multidão inumerável
de clientes ou de cortesãos que deságua na casa de um ministro várias vezes ao dia;
postar-se em sua sala de audiência; pedir-lhe uma coisa justa tremendo ou balbu-
ciando, suportar sua gravidade, seu sorriso amargo e seu ar lacônico"?
Condição e exigência para não mais odiar e invejar, levando à idéia de uma
deferência igualitária:
Ele não me faz nenhuma solicitação, nem eu lhe faço; somos iguais, talvez [o mais
importante] não esteja tranqüilo, porém eu estou. Há uma filosofia que nos faz ne-
gligenciar os cargos e aqueles que nos proporcionam esses cargos; que nos isenta de
desejar, pedir, rogar, solicitar, importunar(: 266, 366).

São os gestos, os movimentos e os olhares que fornecem, portanto, a matéria


aos vínculos, às interações que conduzem ao sentimento de superioridade ou infe-
rioridade. Deles nasceriam o respeito, a deferência ou o desdém. Há algum meio
de se furtar aos excessos da deferência? "Sobressair-se por coisas que não depen-
dem dos outros, mas unicamente de si mesmo", escreve La Bruyhe. A questão,
então, não é tanto se destacar, e sim aceitar-se, ser aquilo que se é, respeitando os
próprios limites. O valor social não se expressas mais nos mesmos termos: é atribuí-
do, assegurado a todo homem, pobre ou poderoso, pelas instituições e sociedades
democráticas. Eis os efeitos do fim dos privilégios e das hierarquias: cada um tem,
daqui em diante, "uma opinião elevada de seu valor pessoal".
"Renunciar a sobressair-se"? Le Bruyhe enfrenta a questão com clareza: trara-sc
de um princípio inestimável, "pernicioso para os senhores, pois diminui sua co1Te,
ou melhor, o número de seus escravos, destrói sua empáfia, juntamente com parte
de sua autoridade, [... ] retira-lhes o prazer que experimentam com os rogos, as
solicitações, ao fazer esperar ou recusar, ao prometer e nada dar" (: 93-4).

64 1 CLAUDINE HAROCHE
As sociedades democráticas suprimiram as cortes, mas terão conseguido banir
"os conchavos, as intrigas, as disputas, a baixaria, a adulação'', e instaurar "a digni-
dade em homens de rodas as classes, a serenidade em seus rostos"?

O ESPÍRITO DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS:


PARTILHAR A DEFERÊNCIA

As instituições democráticas que pretendem "dar aos homens uma ampla e genéri-
ca idéia deles próprios" conseguiram afastar os aduladores e obsequiosos, permitin-
do-nos repensar a ordem da deferência, essa ordem que fazia alguns recebê-la mais
do que outros? Os cortesãos, tipos de caráter do século XVII, encorajados por um
certo tipo de sociedade, perdurariam em outras formações sociais?
A esse respeito, a leitura de Tocqueville é esclarecedora, quando evoca 1789 e
as instituições democráticas que "querem não apenas destruir os privilégios, mas
também reconhecer e consagrar direitos". A deferência teria lugar neste projeto?
É possível falar de deferência igualitária?
Um dos capítulos menos comentados de A dc-mocracia na América está no centro
dessa discussão. Nele, Tocqueville aborda a questão da austeridade dos americanos,
para a qual vê duas causas: a primeira, o orgulho e a elevada idéia de si próprio;
a segunda, "mais íntima, mais poderosa'', diz respeito ao fato de que nada parece
estar fora de seu alcance. "Acredito que a austeridade dos americanos nasce, em
parte, de seu orgulho'', escreve, para acrescentar que, "nos países democráticos,
mesmo o pobre tem uma devada idéia de seu valor pessoal", o que afasta a vergo-
nha originada de uma posição social inFerior, presente nas sociedades não igualitá-
rias do Antigo Regime (1835-40, cap. xv: 187).
Os americanos se preocupam com a austeridade na apresenração que fazem de
si: é preciso ser grave para ser - ou parecer - digno. A austeridade não é facilmente
acompanha de afetação e remorso? Não tenderiam os americanos a experimentar
em relação a si mesmos o que o cortesão sentia em relação aos mais importantes:
o amor pela grandeza, por sua própria grandeza, deixando entrever a auto-sufici-
ência, que se exprimiria numa atitude austera? A austeridade que emana de uma
atitude contida, a impressão que ela provoca seriam um dos meios de exprimir a
deferência, assim como de obtê-la.
Nesses termos, as instiwiçõcs dcmocdticas parecem encorajar certos traços de
comportamento, caráter, temperamento e humor, entre os quais a gravidade, a se-
riedade, a austeridade, na condição de meios de traduzir e atribuir-se auto-estima.
Ora, essa auto-estima, essa deferência compartilhada, é um mecanismo paradoxal,
uma vez que aparece como efeito e também como causa, um elemento que per-

A CONDIÇÃO SENSÍVEL
mite nivelar as condições, mas também o auto-engrandecimento e a ausência de
limites individuais.
O orgulho que explicaria a austeridade dos americanos, como observa Tocque-
ville, tem sua origem no método filosófico, que consiste em "situar apenas neles
próprios as regras de seu julgamento" (: 14). Ela conduziria à igualdade e teria
conseqüências sobre a existência e a expressão da deferência nas sociedades demo-
cráticas. Tocqueville, contudo, assinala outra causa, que considera "mais íntima
e mais poderosa". É ela que "produz instintivamente nos americanos essa auste-
ridade surpreendente". Desde então, todo bem é acessível àquele que vive numa
democracia. Agitado, apressado, intempestivo, auto-suficiente, arrogante, "ele faz
todas as coisas de forma apressada, contenta-se com mais ou menos, e pára não
mais do que um instante para considerar cada um de seus atos" (: 187-8).
Ocupar-se incessantememe, agir de forma inconsiderada, conceder pouco tem-
po e atenção às atividades, às interações, enfim, às pessoas: "os povos democráticos
são austeros porque seu estado social e político os ocupa incessantemente [... ],
agem de modo inconsiderado porque dão pouco tempo e atenção a cada uma
dessas coisas [ ... ]. O hábito da desatenção deve ser considerado o maior vício do
espírito democrático" (: 188).
Ora, a deferência, quer decorra da amabilidade, da urbanidade, do prazer das
maneiras suaves e agradáveis, quer participe de um mecanismo sociológico, com-
porta uma parte intrínseca e irredutível de atenção (autêntica ou aparente) que
pode ser mal utilizada nas democracias. Desatenção, pressa e orgulho próprio,
auto-estima que se alimenta do olhar dos outros, e que se exprime na preocu-
pação com a independência, na afirmação da autoconfiança e, em seguida, na
arrogância e na auto-suficiência, valorizam de forma excessiva a apresentação de si.
A sociedade democrática, que tolera e promove a desatenção, pode, então, encorajar -
ou, ao menos, deixar que se instale - a indiferença, a inércia. Daí em diante, são
esses os perigos que ameaçam as democracias.
No Antigo Regime, concedia-se a atenção em função das condições e das hie-
rarquias, e a maioria das pessoas, de fato, não recebia qualquer tipo de atenção.
Na democracia, a atenção deve ser igualmente distribuída: cada indivíduo deve
receber sua parte, porém, ao mesmo tempo, a pressa e o orgulho fazem com que
eia não seja mais tão ·;alorizada.
O fato de a deferência sofrer desvios foi algo a que o pensamento de La Bruyêre se
mostrou sensível, assim como o de Tocqueville, que se ateve a outras causas: a uma auto-
confiança excessiva - provavelmente aparente-, encorajada por uma contínua inciração
a modos de funcionamento e a valores exclusivos das sociedades democráticas. Dessa
forma, a desatenção se torna apanágio de rodos. Mas se a atenção é um componente
da deferência, como fazer para respeitar o semelhante, o igual, de maneira desatenta?

66 1 C l.Al/DI N E ll A RO C llE
Tocqueville busca compreender a ausência de deferência nos americanos e cons-
tata, em primeiro lugar, que eles "se moldam por outro costume". Nas sociedades
do Antigo Regime, o costume em relação à deferência era imposto do exterior,
em função das hierarquias e das condições; o dos americanos consiste em "situar
apenas neles próprios as regras de seu julgamento, o que leva seu espírito a outros
hábitos". Nessa ótica, cada indivíduo se apóia unicamente em si mesmo.
A seguir, ele diz: "é ao seu próprio testemunho que eles têm costume de se refe-
rir"; conseqüentemente, "apreciam ver com muita clareza o objeto de que se ocu-
pam; eles o retiram, portanto, tanto quanto possível, de seu envoltório, afastam
tudo que o separa deles e que o esconde dos olhares" (: 14). Será essa a razão pela
qual os americanos não apreciam as formas, nem as formalidades, e vão direta-
mente ao ponto? "Esta disposição de espírito os conduz rapidamente a desprezar as
formas" e, com elas, aquelas próprias à deferência, que supõem o reconhecimento
de uma ordem.
Devemos concluir, portanto, que é o sistema de deferência - seus modos de
atribuição, obtenção e repartição - que, ao se modificar, muda de sentido; que, ao
ser submetido à igualdade de condições, absorve os progressos do individualismo,
ou que, ao contrário, é a própria noção de deferência que tende a desaparecer com
a igualdade de condições? A esse respeito, Tocqueville ressalta uma conseqüência
teórica, social e política presente na noção de revolução: toda revolução tem como
efeito, em maior ou menor proporção, "remeter os homens a si mesmos e abrir no
espírito de cada um deles um espaço vazio e quase ilimitado" (: 17). A liberdade e
a igualdade fazem com que eles abandonem as formas tradicionais de dependência
e de deferência, o costume de se inclinar diante da opinião dos antigos ou dos
poderosos, incitando-os a terem-na por si só.
O que isso quer dizer? Trata-se apenas de rejeitar a deferência institucional ou
de uma recusa de toda deferência? É a possibilidade do respeito devido a cada
homem que se delineia aqui, mas de modo algum a garantia ou a certeza desse
respeito. Todas essas disposições psicológicas, todos esses sentimentos, são opos-
tos ao exercício da deferência, ao reconhecimento de uma ordem das deferências.
Tocqueville conclui nos seguintes termos: "Cada um busca, então, bastar-se, em-
penhando-se em ter sobre todas as coisas crenças que lhe sejam próprias" (: 18).
Não deve surpreender, pois, que a democracia, apesar de ter tornado as relações
cotidianas entre os americanos mais simples e fáceis, "não tenha associado mais
fortemente os homens uns com os outros".
Quando a ordem das deferências se estabeleceu em função do nascimento, o
sistema subjacente era preciso e manifesto: cada qual conhecia a sua posição na es-
cala social, "não [procurava] ascender'', "não [temia] ser rebaixado". Nas lutas que,
opondo diferentes classes sociais, precedem a igualdade de condições, Tocqueville

A CONDIÇÃO SEN S Í V EL
discerne "a inveja, o ódio e o desprezo pelo semelhante, o orgulho e a confiança
exagerada em si mesmo" (: 18, 149).
Suprimidos, os privilégios se reconstituem: as lutas para a obtenção de deferên-
cia, valor e utilidade social perduram sob outras formas.
Estabelece-se, então, uma guerra surda entre todos os cidadãos; uns, esforçando-se,
por meio de mil artifícios, para penetrar, na realidade ou em aparência, entre aqueles
que estão acima deles; outros, combatendo sem descanso, para repelir esses usurpa-
dores de seus direitos; ou, o que é mais comum, o mesmo homem fazendo as duas
coisas; enquanto procura introduzir-se na esfera superior, luta sem rréguas ccnrra o
esforço dos que vêm de baixo (: 149) .

A falta de atenção e de consideração é a conseqüência maior do fato de os ame-


ricanos cultivarem uma elevada idéia de seu valor pessoal: "Um americano não se
vê obrigado a demonstrar atenção particular a cada um de seus semelhantes, nem
cogita exigir isso para si mesmo". Respeitando cada homem em função de sua
qualidade de ser humano, e não mais em função de urna condição ou hierarquia
social, "não desprezando ninguém em razão de sua condição, ele não imagina que
alguém possa desprezá-lo por essa mesma causa e, até que tenha percebido com
clareza a injúria, não acredita que queiram ultrajá-lo"(: 151).
É legítimo pensar que esses americanos dos anos 1830, não muito sensíveis às
maneiras, às formas e aos detalhes, desprovidos de tato, opunham-se radicalmente
aos membros da sociedade de corte, ignorando ou desprezando a sedução exercida
pelas honras e precedências e, de modo mais amplo, pelos privilégios?
Observei várias vezes que, nos Estados Unidos, não é fácil fazer com que um ho-
mem compreenda que sua presença é importuna. [... ] Eu contradigo um americano
em todas as suas opiniões, para que ele sinta que seus discursos me fatigam; [... ]
mantenho um .silêncio obstinado e ele imagina que estou refletindo profundamente
sobre as verdades que me apresenta; e, quando, de súbito, escapo finalmente à sua
perseguição, supõe que um assunto urgente me chama. Esse homem não compre-
enderá jamais que ele me exaspera sem que eu lhe diga, e eu só poderei escapar dele,
tornando-me seu inimigo mortal (: 151).

Tocqueville se propõe, então, a refletir sobre a psicologia, os sentimentos e os


valores que acompanham o exercício tÚ uma deferência democrática. Afirma que "o
gênero humano experimenta necessidades permanentes e gerais" de que a deferên-
cia faria parte. Dessas necessidades nasceram as leis morais, cuja "inobservância
todos os homens naturalmente vincularam, em todos os lugares e em todos os
tempos, às idéias de censura e vergonhà' (: 192). Eram justamente a inobservância,
a ignorância e o distanciamento dessas leis morais que chocavam La Bruyere.

68 1 CLAUDINE HAROCHE
Tocqueville rraça o percurso que vai do estado social e das instituições políticas
da Idade Média às instituições democráticas, um percurso que parte da dependên-
cia, da fidelidade , da deferência a um homem particular no interior do mundo
foudal. "Nas sociedades feudais, roda ordem pública se apoiava, portanto, sobre o
sentimenlO de fidelidade à pessoa do senhor" As sociedades democráticas, em que
"cada um busca se bastar", modificam substancialmente as formas e a própria idéia
de deferência? 'focqueville, que vê relações estreitas entre honra, glória, considera-
ção e deferência, observa que, nas democracias, os homens são "mais descuidados
com sua hollía", porém acrescenta: "idéia sutil e talvez falsa" (: 151).
É precisamente sobre esse tipo de questão que Edward Shils se debruça no fim
dos anos 1960. Ao constatar "uma atenuação da deferência explícita", "uma indife-
rença em relação a ela" nas sociedades democráticas contemporâneas, ele procura
saber se a deferência persiste nas relações entre iguais. Para el e, apesar de a minúcia
do ritual tender a desaparecer, a deferência não cessa de existir: "Ela sobrevive sob
uma forma difusa e impalpável que penetra todas as relações, por meio do tom
dos discursos, da postura, da precedência" (Shils, 1974: 230-1). Em seus termos,
era preciso adotar outra 2bordagem - até então pouco desenvobida - para estudar
a deferência: abordagem que considerasse o fato de que a deferência está "estreita-
mente ligada não só a fenômenos como prestígio, honra, respeito, renome, glória,
dignidade", mas também, e inversamente, "à obscuridade, à vergonha, à desonra,
ao desrespeito, à infâmia e à indignidade"(: 230-r).
Defrontamo-nos aqui com um espaço que não é facilmente apreendido. Espaço
em que entrevemos as necessidades permanentes e gerais sugeridas por Tocqueville,
nas quais se articulam os comportamentos e os sentimentos, e se exprimem, ou
ao menos se revelam, os sentimentos morais, individuais. Trata-se de sentimentos
pouco explicitados, mais vivenciados do que di1os - às vezes, difusos e mesmo
indefinidos, que não são facilmente qualificáveis por aqueles que os observam ou
pressentem, nem mesmo por aqueles que os sentem. Sentimentos que podem ter
inspirado acontecimentos políticos importantes e que, hoje, inspiram movimentos
políticos decisivos, entre os quais aqueles relativos às políticas de reconhecimento.
É possível ultrapassar a descrição empírica do uso dos títulos, das honras e dig-
nidades, e também dos sentimentos inferidos pelas post uras, para precisar certas
constantes ligadas às sociedades humanas, à pessoa humana? Compreendem-se as
razões pelas quais os homens gostam de se distinguir? Trata-se de uma necessidade
de engrandecimento de si mesmo ou de algo que fundamentaria o próprio senti-
mento mesmo de existir?
Gestos ou posturas podem provocar impressões, induzir sensações, refletir uma
disposição psicológica ou determinado estado de espírito. Compreendemos, as-
sim, o interesse em estudar expressões, atitudes corporais e gestos, como ressaltado

A CONDIÇÃO SENSÍVEL
por Raymond firth em sua pesquisa sobre as atitudes e os gestos de respeito.
Ao passo que a honra, a consideração, o reconhecimento, a auto-estima, o respeito
e a deferência se constituíram em objeto das reflexões morais nos séculos XVII e
XVIII, as atuais teorias moral e política fazem da deferência um tema central das
reivindicações de reconhecimento e respeito.
A releitura de um autor como La Bruyere ganha todo o sentido, quando a moral
e a ética intervêm para lembrar a importância do olhar social: o temor, a baixeza,
a covardia que esse olhar estim ula e reforça, ou sobre os quais se cala. La Bruyere
discerniu a ambigüidadc e a duplicidade dos cios entre auto-estima e estima do
outro, afirmando que "estimar-se corresponde a iguahr-se": "quantas pessoas que
amam e enchem você de mimos na vida privada se sentem incomodadas em públi-
co e, ao levantar para sair ou na missa, evitam olhá-lo e encontrá-lo?" (La Bruyere,
1688: 224).
Retomemos, uma última vez, as preocupações de Goffman, ao reconhecer que a
"banalidade" do sentimento que acompanha a deferência não torna mais fácil a ta-
refa de "defini-lo com precisão". E, igualmente, o pensamento de Firth, ao obser-
var que, embora "a antropologia social moderna não se tenha afastado em demasia
da realidade empírica", tem demonsrrado mais interesse por "modelos do que por
comportamentos; por símoolos mais do que por hábitos e costumes" (hrt h, 197r
163). Não conviria dar novamente importância à observação e à qualificação dos
comportamentos e dos sentimentos morais?

70 1 C! .Al i DI NE !l :\ROCllE
PARTE II

FORMAS, FORMAL,

INCREMENTO DO INFORMAL
O DIREITO À CONSIDERAÇÃO.

NOTAS DE ANTROPOLOGIA POLÍTICA E HISTÓRIA

Assim que a idéia de consideração se formou nos


espíritos, cada um pretendeu ter direito a ela[ ... ],
e deixou de ser possívei qu e ela faltasse impune-
mente a alguém.

O reconhecimento é um dever que é preciso


prestar, mas não um direito que se possa exigir.

jean-Jacques Rou;;eau

Em 25 de agosto de 1725, a Academia de Bordeaux ouviu a leitura de urna dis-


sertação do barão Charles de Montesquieu. Tratava-se de um opúsculo que não
mereceu, verdadeirameme, a atenção de ninguém, uma monografia que, além de
possuir imporrantes eleme11tos de reflexão sobre o mérito, a estima pública e ores-
peito, tinha como temas a considcraç:io e a rq1uLaç:io (Monlcsquicu, 1725: 120-5).
Montesquieu distingue uma de outra. A reputação, por ser frágil e contingente,
necessitaria da visibilidade no espaço público, estaria ligada às honras e à glória.
Na consideração, por sua vez, haveria urna diferença entre o mérito de uma pessoa,
que co nduz a vínculos forces e autênticos com os outros, e o respeito convencional
e codificado que, acompanhando-se de sinais visíveis de distinção, supõe uma
forma de reserva'. A idéia de consideração estaria, assim, estreitamente vinculada

1 As erimologias revelam os diversos conteúdos da consideração: de um lado, o cuidado de visibilidade,


as marcas exreriores; de outro, a esrima e o mérito mais próximos das qualidades interiores. O termo
consideração correspondeu, a princípio, ao olhar, "ao exame atento dos olhos"; em seguida, às aten-
ções, à estima. C om a palavra "considerar", passa-se da idéia de "julgar" à de "tomar conhecimento
de" (1643). Reconhecer quer dizer, entre outras coisa>, o fato de atribuir uma qualidade a alguém e
de admitir oficialmenre a sua existência. Cf Dictionnaire historique de la langue ftançaise (1993).

73
às expressões sociais de honra e, ao mesmo tempo, ao mérito pessoal traduzindo
qualidades interiores.
Ao retomar as diferenças evocadas, Montesquieu observa que "as qualidades
reais", a probidade, a boa-fé, a modéstia, "constituem apenas um mérito geral", de-
masiado discreto, instável e episódico, pois é preciso, como sublinha, "uma distinção
para o instante presente"(: 120). Distinguir-se constitui um fim constante, contínuo:
"Não nos é suficiente distinguirmo-nos durante o curso de nossa vida; queremos ain-
da nos distinguir a cada instante e, por assim dizer, nos pormenores" (: 120)

CORTESIA E CONSIDERAÇÃO

Montesquieu, em sua tentativa de elucidar as razões da constante necessidade de


consideração e distinção, localiza-as no amor próprio, no amor por si mesmo. Em
suas palavras: "Todos os sentimentos se reduzem ao apreço e ao amor que temos
por nós mesmos" (: 121) 2 •
As reivindicações políticas contemporâneas relativas ao reconhecimento não
são, portanto, totalmente ineditas. A consideração desenvolvida por Montesquieu,
assim como a necessidade de um hipotético direito ao reconhecimento dimensio-
nado por Jean-Jacques Rousseau e, a seguir, pelo abade Emmanuel Joseph Sieyes
atestam a importância que se deve dar ao tema. O interesse em repensar a questão
do reconhecimento e da consideração no Amigo Regime se justifica porque nele
percebemos em curso práticas de elaboração e de teorização, num contexto que
contribui para explicá-las. Tnra-se, em particular, dos processos que se traduziram
nas lutas pela consideração, situadas no cerne da Revolução Francesa e que leva-
ram à codificação, à institucionalização, na Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, de sentimentos ligados à auto-estima e à dignidade 1 .

2
Os tratados de civilidade erasmianos e cristãos incitaram, a parcir do século xiii , à manifestação
de apreço e de respeito em relaçio ao outro. Esforçaram-se em definir a urbanidade, a cortesia. a
polidez, a preocupação com a ccosideraçáo. As civilidades de corte, ba;rocas , ao insistir ,,,hretudo
nos gestos de consideração, nas marcüs de respeito, preocuparam-se cotn a ho nra, a estima püblica,
os sinais exteriores e visíveis de rrivilégios, revelando, desse modo, uma ordem desigual da consi-
deraç2o expressa em relação a .:!I da um. Sobre os uacaJus de c ivilidade, ve r, e m panicular, Charti c r
{1987) e Romagnoli (1995).
·' Gostaria d e precisar que utilizar<i indiferentemente os termos reconhecimento e wnsideraçáo. Serei
igualmente levada a me referir à; quesrões de honra, respeito e dignidade. Ainda que esses termos
sejam empregados em épocas, contextos e fins diferentes, possuem um elemento comum, subli-
nhado por Walzer: trata-se de termos de valorização (Walzer, 1983).

74 1 CLAUD INE llARO CllE


Os tratados jurídicos, os escritos de direito público e os textos políticos do sécu-
lo precedente, como Tratado das ordens e das simples dignidades (1610), de Charles
Loyseau, ou O Leviatã (1651), de Thomas Hobbes, mesmo quando seus objetivos
diferem, partilham de uma mesma preocupação: a consideração. Em poucas linhas,
num dos textos mais célebres sobre o político, Hobbes se detém nas marcas exte-
riores pelas quais a consideração se traduz: destaca, assim, as atitudes, as reservas,
as posturas, o olhar, os gestos, as atenções e os cuidados que desempenham papel
central e surpreendentemente concreto em sua expressão. Ele sublinha, ainda, as
prerrogativas judiciárias, os empregos públicos, os títulos, que constituem sinais
de valor, da "importância pública de um homem", e que devem assegurá-la.
As marcas de respeito e de honra, as demonstrações de estima em relação a uma
determinada pessoa se traduzem em comportamentos, posturas, posições, atitudes
de atenç~o e em precedências codificadas. "Falar com alguém com consideração,
apresentar-se a ele com uma postura conveniente e simples, e escutar seus con-
selhos ou, de maneira geral , o que diz equivalem a honrá-lo" (Hobbes, 1651: 85),
assim como "ceder o passo ou o lugar, quando uma prerrogativa está em jogo" (:
84-5), reconhecendo-se a existência de um poder maior4• Sentar-se e permanecer
sentado marcam uma posição de superioridade; levantar-se e permanecer de pé,
sujeição em face de alguém numa posição superior; dobrar o joelho ou tirar o
chápeu diante de uma pessoa importante, e deixá-la passar na frente constituem
um conjunto de regras, um dispositivo de visibilidade da hierarquia, que permi-
tem separar os homens, os corpos e ordens mais ou menos dignas de estima e
consideração.
Nesses textos, é central a atenção a condutas corporais, gestos, posturas, cor-
pos e prerrogativas, a todas as honras que constituem e traduzem a consideração.
O estado de espírito, a psicologia que envolve as condutas, e as posições no espaço
refletem valores e ideais constantes, o amor à ordem e às ordens, a hierarquia, a
honra e a dignidade, a estima. làis valores fundam e ilustram as regras que gover-
nam os movimentos, atribuem lugares, constrangem a posturas e à submissão a
determinada ordem 5•

' Sobre a questão das precedências, ver Haroche (1997: 65-80).


5 É por essa razão que, no fim do século XVI, Guillaume D'Oncieu observa que cada um deseja o
respeito concreto, físico, de suas prerrogativas, o respeito estrito à reverência que funda o respeito
no próprio instante em que é expresso (D'Oncieu, :593).

A CCN01ÇÁO SENSÍVEL 1 75
DESEJO DE PREEMINÊNCIA, DIREITO À CONSIDERAÇÃO

Condutas corporais, posições espaciais e sinais são elementos fundadores das ins-
tituições: permitem retraçar seus processos e modos de funcionamento (Haroche
e Momóia, 1995). De modo geral, escreve Hobbes, "fazer a alguém aquilo que é
considerado por ele um sinal de honra ou que é estabelecido como tal pela lei ou
costume equivale a honrá-lo" (Hobbes, 1651: 85) .
Impõe-se aqui a referência a Rousseau, que localiza o desejo e, mais do que isso,
a necessidade de consideração e de estima pública no momento em que os homens
começam a viver juntos, em sociedade. Poucas palavras lhe bastam para narrar a
emergência da consideração: "Cada um começou a olhar os outros e a querer ser
olhado por eles: a estima pública começou a ter valor". Assim, constata que "o
mais bonito, forte, ágil ou eloqüente" se tornaria "o mais considerado" (Rousseau,
1754: 210).
O hábito de comparar, observar, perceber e estabelecer diferenças em socie-
dade produziria "sentimentos de preferência" e conduziria, portanto, à idéia de
mérito. Penso que é precisamente nesse ponto que Rousseau prolonga a reflexão
de Montesquieu: "Deu-se aqui o primeiro passo em direção à desigualdade" (:
210), impondo-se esta conclusão: não pode existir igualdade na consideração e no
reconhecimento.
Ao desenvolver o tema da consideração, Rousseau afirma que ela seria indisso-
ciável da visibilidade, do desejo de ser visto pelo maior número de pessoas. É do
olhar, da necessidade de ser olhado para ser considerado, e mesmo para existir, que
nasce, de modo inevitável, a desigualdade. Com isso, observa haver "uma espécie
de homens para os quais importam os olhares do resto do mundo, que se tornam
felizes e ficam contentes consigo mesmo pelo olhar dos outros mais do que pelo
próprio olhar". 6 Nesse momento, Rousseau afirma a necessidade do olhar social e
a exigência de autenticidade do eu, ligadas à interioridade de cada um.
A própria origem da desigualdade no estado de natureza e no estado de socieda- /
de se encontra, portanto, inscrita na natureza do homem, no olhar, na necessidade
de estima: a inevitável rivalidade nascida da vida em sociedade não pede demons-
tração, pois é algo evidente. "Assim que a idéia de consideração se formou nos
espíritos, cada um pretendeu ter direito a ela [... ] e deixou de ser possível que ela
faltasse impunemente a alguém" (: 210). Rousseau nos alerta contra a tentação de
ver na consideração um direito. Com o exemplo do laço que une pai e filho, lem-
bra que se deve ver aí tão-somente um dever, um dever de civilidade. Com o passar

6
Rousseau ressalta a dependência em relação ao olhar social, à sociedade, reconhecendo nesse ato a
necessidade da consideração do outro.

CLAUDINE HAROCHE
do tempo, "o filho, totalmente independente do pai, deve-lhe apenas respeito [... ],
pois o reconhecimento é um dever que é preciso prestar, mas não um direito que
se possa exigir" (: 224).
Roussea u se esforça para trazer à tona os mecanismos profundos dessa neces-
sidade de reconhecimento e de consideração: a "concorrência", a "rivalidade", o
desejo de superar seus se melhantes, o gosto não tanto da excelência, e sim da
preeminê ncia. É preciso perceber na consideração "menos uma verdadeira neces-
sidade, ou um desejo profundo e legítimo", e mais o desejo de "se pôr acima dos
outros", "o desejo velado de tirar proveito em detrimento de outrem" (: 235-6) .
Esses "males", segundo Rousseau, alimemariam e estimulariam a desigualdade nas-
cente, levando à competição e à lura pelo reconhecimento. Mona Ozouf chama a
atenção para o fato de "que uma igualdade abstrata e impalpável [... ] se torna em
Rousseau a norma ideal tanto da vida coletiva quanto da vida pessoal, ao passo que
uma desigualdade dissimulada e constantemente reposta tende a se reconstituir em
todos os lugares [... ]" (Ozouf, 1988: 148).
As lutas pela consideração constituem o cerne "dos debates que querem su-
primir as desigualdades e os privilégios" 7 • A consideração é igualmente central
nas reflexões de Sieyes, em seus combates contra as prerrogativas. Nascidos, por
definição, da desigualdade, os privilégios representam também urn dos elementos
da consideração, pois asseguram e garantem certas formas de expressão. Assim,
podemos perceber em sua célebre interpelação: "Eu reclamo não a perda de um
direito, mas a sua restituição" a exigência de um direito ao privilégio para todos;
um mesmo direito à consideração, ao reconhecimento 8 •
Apesar de não transigir sobre a igualdade de direitos, Sieyes reconhece a exis-
rên cia de uma d es igualdade em matéria de talentos. Procura abordar a questão dos
privilégios e dos méritos, distinguindo o que chama <le "posição correta" dos "fru-
tos do talento". ''A lei comum [... ] não impede que cada um, seguindo suas facul-
dades naturais e adquiridas, seguindo acasos mais ou menos favoráveis, aumente
sua propriedade com tudo o que a próspera sorte ou o trabalho mais fecundo pode
nela acrescentar, e consiga, sem ultrapassar o espaço legal, elevar-se ou compor a
felicidade de forma mais próxima de seus gostos e mais digna de inveja". Adverte,

-. Aspecto ressaltado por François Furet e Mona Ozout: que veem na ausencia de consideração, na
humilhação, um dos motivos determinantes da Rerolução. "O mowr da Revolução foi, com
efeito, [... ] a revanchc contra a humilhação, o remédio aos sofrimentos do amor próprio" (Furer
& Ozouf, 1988: 140).
8
Para Sieyes, "é certamente verdade que, na França, não somos nada quando temos para nós apenas
a proteção da lei comum. Se não se possui algum privilégio, é preciso se d ecidir a suporta~ o des-
prezo, a injúria e os vexames de toda espécie" (!988: 45).

A CONDIÇÃO SE N S ÍVEL 1 77
no entanto, que "a lei, ao proteger os direitos comuns de rodo cidadão, protege
cada cidadão em tudo o que ele pode ser, até o ponto em que suas tentativas pas-
sam a ferir os direitos de outrem" (: 148).
O reconhecimento compreendido como o respeito liminar a todo ser humano
deve ser considerado um direito natural e formal. Pode-se conceber, todavia, o
direito a uma consideração concreta? O reconhecimento ligado ao trabalho, aos
talentos e ao mérito, desigual por definição, poderia ser apenas desigualmente
repartido, distribuído. Dessa maneira, o reconhecimento poderia constituir-se
apenas num direito abstrato.
Sieyes, a exemplo de Rousseau, vê na consideração a necessidade de hierarquia,
a vontade de se distinguir: "Vocês se importam menos em serem distinguidos
por seus concidadãos do que em distinguir-se deles" (Sieyes, 1788: 98). O desejo
de estar acima, de ocupar uma posição preeminente, difere da reivindi cação ao
respeito, da aspiração moral e ética a ser estimado. "Não é à estima e ao amor de
seus semelhantes que vocês aspiram; ao contrário, vocês só obedecem [... ] a uma
vaidade hostil contra homens, cuja igualdade lhes fere" (: 99). 9
Vê-se aqui a necessidade de distinguir "a superioridade dos privilégios", que Sieyes
qualifica de "absurda e quimérica", de outra forma de superioridade, "legal", e que
"supõe apenas governantes e governados"(: 103). O abade separa a questão da ordem -
necessária - daquela da desigualdade: uma é politicamente real; a outra, relacio-
nada à condição humana, inevitável. "Ela não envaidece a alguns, nem humilha
outros; trata-se de uma superioridade de funções, e não de pessoas" (: 99)

O DESEJO DE SER RECONHECIDO NAS SO C IED A DES IGUALITÁRIAS

O problema da consideração continua em vigor, com intensidade renovada, nas


democracias contemporâneas, ainda que em termos e contextos diferentes. Nu-
merosos trabalhos de psicologia social, sociologia, ciência política, antropologia e
história têm abordado, desde os anos 1970, questões que tocam, direta ou indire-
tamence, a esse problema. Nos campos da sociologia, da psicologia interacionista
e ainda da antropologia, â.utores como Peter Berger (1970), Raymond Firth (1973) ,
Erving Goffman (1959), Edward Shils (1975) e Pierre Bourdieu (1979) se interessa-
ram por questões análogas relativas à honra e à digilidade, por meio da ap resenta-
ção de si, dos ritos de interaçáo, da estratificação social, da distinção e das marcas
de respeito desigualmente distribuídas.

9
"A necessidade de ser o primeiro, um desejo insaciável de dominação. Este desejo, infeli zmente rão
análogo à constitui ção humana, é uma verdadeira doença anti-soc ial " (S icyes, 1788 : 99).

CLAUD I NE HAROCllE
Esses temas foram reformulados nos anos 1985- 1990, nos campos da antropo-
logia social e da antropologia, da ciência e da teoria políticas'º· Michael Walzer
(1983), Charles Taylor (1992) e Jean Cohen (1996) tratam, com base em enfoques
diversos, as exigências de respeito nas sociedades democráticas contemporâneas.
Seus trabalhos, preocupados com temas relativos às minorias, às identidades polí-
ticas ou à consideração da e das diferenças nas democracias, trazem à discussão, de
maneira fundamental, a necessidade e as estratégias de reconhecimento, com vistas
a uma política identitária.
A busca de reconhecimento, elemento comum em todos eles, seja nas socieda-
des não igualitárias do Antigo Regime, seja nas sociedades democráticas contem-
porâneas, evidencia-se na continuidade entre as políticas de reconhecimento, tal
como abordadas por Walzer ou Taylor, e a deferência tratada por Shils ou Goff-
man, ou ainda o direito à honra analisado por Frank Henderson Stewart (1994).
O que se apresenta como novidade nas sociedades contemporâneas é a insistente
explicitação da necessidade de reconhecimento, de um direito ao reconhecimento:
a tentativa de concretizar, de codificar um direito à consideração, afirmar vínculos
entre o Direito e os sentimentos de auto-respeito e de respeito ao outro, entre
os sentimentos e a própria idéia de justiça (Walzer, i983; Taylor, i991; Haroche e
Montóia, 1995). Nesse contexto, emergem movimentos que, partindo das m ino-
rias e do multiculturalismo, procuram promover, de maneira sistemática, o direito
a inscrever o reconhecimento e a consideração em novas legislações.
As tensões e os paradoxos que atravessam a construção problemática das identi-
dades políticas nas sociedades contemporâneas fazem ressurgir essas questões com
acuidade, atestando a importância e, de modo mais preciso, o estatuto a ser atribuí-
do ao reconhecimento: devemos reconhecer nele uma necessidade indeterminada,
indeterminável, porém contínua e fundamental? E, indo um pouco mais longe,
um direito concreto que decorra e se traduza em legislações específicas?
Nos anos 1970, Edward Shils viu na deferência e no respeito elementos essen-
ciais da estratificação social. Na primeira, percebeu inclusive "o fundamento da
formação das classes. Em todas as sociedades, mesmo nas democracias", existe uma
inevitável "estratificação da deferência" . Assim, suas manifestações reconhecem "a
dignidade ou a falta de dignidade". Em suas palavras, "a dignidade consiste em
aigc obscuro. [... ] Poderíamos dizer que o desejo 'de ter valor' é uma 'necessidade'
dos seres humanos" (Shils, 1975: 277, 285).
Na mesma época, Goffman buscou esclarecer a maneira pela qual a considera-
ção se traduz nas interações face a face e, em particular, nos momentos de enfren-

10
O que Marc Augé, em particular, designa por antropologia das sociedades contemporâneas (Augée,
1994). Sobre a questão do reconhecimento, ver Honneth (1996).

A CO N DIÇ ÃO SEN S ÍV EL 1 79
tamento, em que cada qual tende a se conduzir de maneira a salvar a própria pele.
"O que uma pessoa protege e defende é uma idéia de si mesma": cerra dignidade
(Goffman, 1974: 40) 11 •
Ao retomar recentemente as questões sublinhadas por Goffman, Robert Post
lembra que as regras de civilidade têm por objetivo garantir o respeito de cada
um (Post, 1989). Assim, ressalta que "cada sociedade enuncia as regras de civili-·
dade que garantem o respeito da esfera privada, individual". Como sugere Post,
"a integridade da personalidade individual depende em parte da observância das
regras de deferência'', ou seja, "a violação das regras de civilidade traduz uma falta
de respeito para com a dignidade da pessoa", uma vez que "os direitos da pessoa
privada protegem e mesmu .::ontribuem par<1 estruturar as formas de reconheci-
mento mútuo e elaborar os rituais sociais pelos quais a identidade de cada um é
reconhecida" (: 252).
Todos esses trabalhos, ao tratar de questões aparentemente diversas, remetem
essencialmente à questão do reconhecimento e da dignidade, levando-nos, assim,
à problemática dos direitos da pessoa e da personalidade. Enquanto Goffman se
preocupa com os comportament0s e eafatiza o papel da apresentação de si nas
interações sociais, o autodomínio para ganhar o respeito do outro, Michael Walzer,
apoiando-se em textos do século XVIII, considera os comportamentos indissociáveis
de valores sociais, éticos e políticos. "Honra, respeito, estima, prestígio, posição,
dignidade, reputação, distinção, deferência, consideraçã0, reconhecimento e gló-
ria" são termos empregados em épocas, contextos e fins freqüentemente diferentes
(Walzer, 1983: 252). Possuem em comum, no entanto, um elemento fundamental:
sempre aparecem como termos de valorização, traduz.indo a consideração (: 253),
o que não impede Walzer de perceber uma diferença "entre a honra pela qual os
aristocratas combatiam e a lura contínua, multiforme e incerta pela consideração e
o respeito, aberta a todos, nas sociedades contemporâneas" (: 258).

O RECONHECIMENTO, UM DIREITO IMPRECISO E FUNDAMENTAL

Walzer ressalta, igualmente, os efeitos perversos do reconhecimento nas sociedades


democráticas contemporâneas: "Porque não há posição fixa, porque ninguém sabe
onde se situar, cada um deve impor seu próprio valor, o que pode ser feito apenas
pelo reconhecimento de seus pares" (: 253). Daí, ele infere que "a igualdade de

11
Goffman relata que "o material conceitua!" a que recorre provém, em parte, de um estudo dirigido
por Edward Shils, cujo objeto é estabelecer "um inventário provisório das estratificações sociais"
(1975: 51)

80 1 CLAUDINE HAROCHE
reconh ecimento é impossível", já que, na luta por ele, "n ão há igualdade de resul-
tados; ap<.:nas a de possibilidades é factível ". Como conclui, "um reconh<.:cimemo
mínim o se tornou uma exigê ncia mo ral que devemos respeitar, a ele que toda
pessoa pode ser objeto ele manifestações de honra e admiração, torna ndo-se, em
decorrência di sso, um rival e m es mo um a ameaça"(: 255-8). Ora, as reivindicações
políticas contemporâneas querem, por interm cclio elas ide ntidades, sobretudo a
das minorias , ga rantir e impo r o recon hecimento de forma concreta e imediata:
impor, de fato, um direito - igualitário - ao reconhecimento.
No início dos anos 1990, C harles Taylor observa, a esse respeito, que a necessi-
dad e 0 11 a exigência de reconh eci mento fundada na idéia de que os seres humanos
possuem direito ao respeiLo está no centro das reivindicações políticas dos grupos
minoritários e, de modo mais amp lo, das reivindicações políticas contemporâneas
(Taylor, 1992). Ele vincula a necessidade de reconhecimento ao princípio universal
da igualdade dos seres humanos e também ao fato de a identidade ter se tornado
uma questão política crucial nas sociedades democráticas.
A d emocraci a, escreve, inaugurou "urna políti ca de reconh ecimenro igualitário"
que se explica por uml muda nça, uma vez que, no Antigo Regime, a noção Je
honra, intrinsecamente ligada às desigualdades, defi nia as identidades, traçando
as fronteiras entre cada um e designando posiçóes e lugares devidos. Distingue-se,
portanto, da no ção de dignidade, que, universalista e igualitária, pretende ser reco-
nhecid a "em rodo ser hum ano" (Taylor, 1992: 43, 1994: 54). Modificada e ampliada
pela co ncepção de identidade individual, que emerge no fim do século XVIII, a
qu estão do reconhecimento é, hoje, indissociável da questão do indivíduo: trata-se
de "uma identidade indi vidualizada , afirm ada e reivindicada nos direitos reconhe-
cidos a todo homem" (T1ylo r, 1992).
Os n:centes tr;ihalhus d e Jean Cohen, ao s<.: i11 sc rcvcrcm no âmbito das socieda-
des democráticas contemporâneas, revel am-se enremarnente instigantes. Para que
a consideração e o respeito sejam assegurados, ela insiste na necessidade de que se
garanta e proteja a integridad e, haja vista a importância qu e o espaço interior ou
foro íntimo tem p ara cada indivíduo (Cohen, 1996) 12 . Assim, defende os direitos
que garantem a esfera privada e o respeito às di fe renças, sem que isso a faça nomeá-
las ou imobilizá-las, bem como fazer d elas, ou ele uma diferen ça em particular, a
condição de um reconhecimento valorizado. "Os defensores de políticas identitá-
rias afirmam a superioridade ela diferença como tal, como se isso bastasse para que
o reconhec im ento seja alcançado" (Cohen, 1996)
N a verdade, Jean Cohen retoma questões abordadas anteriormente por
Goffman e, no início do século, por Georg Simmel. Ela as reinscreve no campo do

"Sobre a questão do foro íntimo, ver Haroche (1995) .

A CONDI ÇÃO SEN S ÍVEL 1 Sr


político pela consideração de que o respeito ao espaço privado é essencial a todo
projeto democrático. "Os direitos que protegem a esfera privada [... ] constituem
um escudo invisível a defender a integridade dos indivíduos. [...] A possibilidade
de se conciliar identidade e diferença, universal e particular, depende não apenas
de proteção às múltiplas formas de diferença, [... ] mas também, em grande parte,
do fato de que se restitua a devida importância ao privado" (: 191, 203; cf. também
Wolff, 1950; Goffman, 1959).

IMPOR UMA IGUALDADE DE RECONHECIMENTO

Vê-se, assim, que não se pode descartar, com facilidade, a questão levantada por
Rousseau e Sieyes: a busca da excelência e do mérito se distinguiria ou, ao contrá-
rio, se acompanharia da busca de preeminência (e mesmo se confundiria com ela),
constituindo-se numa luta pelo reconhecimento? A luta para "ser reconhecido
como consciência de si autônomà' (Hegel, 1806) traduz uma necessidade essencial,
uma especificidade do ser humano?
A questão da coHsideração toca fundamentalmente em questões antropológicas
ligadas ao direito e ao político, decorrentes dos direitos do homem e da pessoa nas
sociedades democráticas contemporâneas. A consideração e o respeito, "categoria
jurídica, portadora de direitos", são parte dos direitos da pessoa, "cuja afirmação
tem por finalidade a proteção dos valores relativos ao ser humano" (Errera, 1993=
146). Precisamos, portanto, interrogar se a necessidade de reconhecimento e as lu-
tas que lhe são tributárias - subjacentes às questões decorrentes dos direitos numa
democracia - não ultrapassam necessariamente os próprios princípios que fun-
dam a democracia. É possível, é concretamente possível, impor, por meio de um
sistema de compensações, exigências de reconhecimento e respeito à dignidade
de cada ser humano?
As instituições democráticas, que são essencialmente governadas por princípios
gerais abstratos, devem detalhar nas sociedades contemporâneas o direito ao res-
peito, para assim concretizá-lo, ou seja, devem levar em conta a necessidade de
consideração e de reconhecimento? Não se pode negligenciar ou esquecer que o
direito ao respeito estrutura nossa sensibilidade e constitui um valor ético e políti-
co que, desde Kant, supõe a idéia de justiça. Esse direito põe em jogo smtimentos
que atribuem significados il integridade, à dignidade e ao valor morai que um ho-
mem possui aos seus próprios olhos e aos olhos da sociedade. É possível proteger
esse direito? Como fazê-lo? A resposta não é fácil: a idéia de um direito ao respeito,
à proteção da pessoa humana, jamais cessou de ser problemática (Haroche, 1996).
Sua definição, suas condições de exercício, as regras que o governam, abstratas e

CLAUDINE. llARO C llE


gerais, com freqüência, imprecisas, talvez devam permanecer assim para, parado-
xalmente, melhor garantir os modos de funcionamento democráticos.
Em sentido amplo, o respeito poderia traduzir tão-somente um reconhecimen-
to mais formal do que real em seu interesse pelo outro. Apenas os gestos visí-
veis de honra e consideração podem ser objeto de legislação, aspecto ressaltado
por Stewart, ao analisar, com o auxílio da antropologia jurídica, os trabalhos de
Anselm von Feuerbach, um dos autores alemães mais conhecidos do século XIX em
matéria de direito penal. "Respeitar uma pessoa é reconhecer-lhe o valor. Quando
esse respeito se manifesta por sinais exteriores, a questão da honra se apresenta
[...]. O respeito em si não poderia, de forma alguma, ser objeto de uma exigência,
de uma reivindicação legal. Só quando os sinais exteriores de respeito entram no
campo de aplicação da lei é que se pode falar [... ) de um direito ao respeito" (Von
Feuerbach citado por Stewart, 1994: lp). 13
O respeito e a consideração se constituem em objetos antropológicos e políticos
intangíveis, porém fundamentais. A atenção às manifestações visíveis de respeito
e a sensibilidade às expressões de consi<leração permitem vislumbrar a existência
de uma continuidade que se dirige das formas e deveres da civilidade aos direitos
inalienáveis do homem.
Dignidade, honra, respeito, reconhecimento e consideração são valores con-
temporâneos que estruturam nossa sensibilidade política. Ainda que as formas de
reconhecimento igualitário tenham sido essenciais à cultura democrática, a idéia
de dignidade, de um direito à honra, de proteção da pessoa humana, jamais deixou
de ser problemática: pode-se, com efeito, legislar sobre comportamentos, proibi-
los, constrangê-los com a ameaça de sanções. Sentimentos podem ser incitados,
mas não coagidos. Adam Smith se mostrou especialmente preocupado em distin-
guir entre sentimentos e comportamentos. Em Tratado sobre os sentimentos morais,
lê-se: "Negligenciar inteiramente as leis relativas aos costumes, aos sentimentos,
expõe a República a desordens monstruosas; levando-as demasiado longe, destrói-
se pouco a pouco toda liberdade, toda justiça" (Smith, 1759: 92).

11
Stewart lembra que von Feuerbach foi profundamente influenciado por Kant.

A CONDIÇÃO SENSfVEL
FORMAS E MANEIRAS NA DEMOCRACIA'

A rendência democrárica [... ] consisre em ir ao fim-


do das coisas, sem prestar arenção à forma [... ] Em
certo senrido, pode-se dizer que o efeiro da demo-
cracia não é dar aos homens derermir.:i.das manei-
ras, mas sim impedir que renham maneiras.

Alexis de Tocqueville

No mês de serembro de 1837, Alexis de Tocqueville, ao examinar a influência da


democracia sobre os costumes, inicia a redação do capítulo "Algumas reflexões
sobre as maneiras americanas", de sua obra A democracia na América. 2 Em carta
a Francisque de Corcelle, manifesta seu embaraço em relação à questão das ma-
neiras e sente necessidade de justificar seu interesse: "Não acho que seja indigno
da seriedade do objeto de que trato examinar a influência que a democracia pode

l
i
exercer sobre as m aneiras". Ele pensa consagrar ao tema ape nas um capítulo menor.
Escreve: "Espero em cerca de oiro dias rer terminado e entrar nos grandes capítulos
que concluem o livro". Ainda nessa carta, confessa: "Discuto as maneiras, tema

1
l
' Agra<leço as sugestôcs e críticas <le Pierre Ansart, Yves Déloye, Gen evieve Koubi e Jacy Seixas.
f. ' A edição de A democracia na América que utilizo é a histórico-crítica, revista e aumentada por Edu-
t
f ardo Nolla (Paris: Vrin, 1990, 2 tomos). A leitura concomitante do manuscrito, dos rascunhos e
da versão definiriva dessa obra oferece grande interesse, pois permite que percebamos as hesitações,
as in certezas, os progressos e a profundidade da reflexão de Tocqucville sobre os vínculos entre
man eiras e política. Na rubrica que contém o manuscrito, lêem-se, por exemplo, estas palavras:
"Cortes ia, civilidade. Palavras negligenciadas de que é preciso fazer uso", e este comentário: "Ree-
xaminar com mais cuidado do que as outras notas. E1Koncra-se aqui, em germe ou ern desenvol-
vimento, grande nt'.1111 ero de idéias que não pude exprimir num primeiro momento" (Tocqueville,
1835-40: manuscrito, p. 182).
difícil para todo mundo, e particularmente para mim, que me sinto desconfortá-
vel diante dos pequenos detalhes da vida privada" (citado em Tocqueville 1983-40,
cap. xrv: 182, nota a).
Tocqueville, no entanto, parece prever o papel político desses pequenos detalhes
da vida privada. Observa seu caráter paradoxal: "não há nada que, à primeira vista,
pareça menos importante do que a forma exterior das ações humanas, e não há
nada a que os homens atribuam maior apreço", inferindo dessa observação que
"vale a pena examinar, com seriedade, a influência exercida pelo es tado social e
político sobre as maneiras". Ao concluir, enfatiza a importância tanto das ma neiras
quanto das formas para as sociedades: "A forma influi mais do que acreditamos
sobre a base das ações humanas" (: 182).
Mas que relações ele estabelece entre maneiras, co rtesia e civilidade? Quai s as re-
lações existentes entre a polidez e a etiqueta, entre as regras do savoir-vivre, os usos
e o cerimonial? Não se pode dizer que ele confunda esses termos, mas, preocupa-
do com a questão geral das formas na sociedade, não vê interesse em distinguir
a realidade recoberta por essas palavras. Reafirmo que os escritos de Tocqueville
apresentam interesse considerável acerca dessas questões, pois discutem o caráter
paradoxal das m a neiras e das form as democráticas e aristocráticas, e da difi cu ldade
de analisar as m es mas em suas decorrências da esfera política.
Assim, é levado a interrogar as razões pelas quais a democracia tem um cerimo-
nial mais simples do que a aristocracia. Busca-se com isso desencorajar ou entravar
a própria idéia de maneiras? Tratar-se-ia de uma resposta histórica e política ao
Antigo Regime, de uma vontade explícita e constante de abolir privilégios e desi-
gualdades, de banir os costumes e as maneiras de corte, suas intrigas e complôs?
A democracia teria escutado as severas críticas de Jea n de La Bruyere e François La
Rochefoucauld, assim como as d e Jean-Jacques Rousseau no século seguinte, que
denunci~.ram a falsidade e a dissimulação das maneiras do Antigo Regime? "Sus-
peitas, sombras, temores, frieza, reserva, ódio e traição esconder-se-ão sem cessar
sob o véu uniforme e pérfido da polidez, sob essa urbanidade tão celebrada que
devemos às luzes de nosso século" (Rousseau, 1751: 40) 3
A idéia de dissimulação, de falsidade, es taria implícita no próprio termo "ma-
neiras"? Corresponderia à distância em relação a outrem, respeito ~o outro?
Ao remet~r às formas exteriores no que elas podem comportar de superficialidade,

J Para Tocqueville, as maneiras tendem a revelar os sentin1entos, ainda que, às vezes, permitam
certa duplicidade: "o inrerior das corres permiriu ver que as grandes aparências podiam esco nder
corações baixos. [...]As maneiras da aristocracia produziam belas ilusões sobre a narureza humana,
e ainda que o qu ad ro fosse freqüenremente mentiroso, ex perimentava-se um nobre prazer em
contemplá-lo" (1835-"40: 186).

86 1 CLAUO I NE HAROCllE
aparência, dissimulação e falsidade, as maneiras representam, ao mesmo tempo,
a consideração e o respeito pelo outro 4 • Elas constituem a principal razão dos
códigos de comportamento relativos ao distanciamento, nascidos da reserva e da
atenção requeridas pela consideração.
A democracia torna as maneiras impraticáveis por razões intrínsecas, estrutu-
rais? Estimula, em nome de valores e aspirações à igualdade, a uniformização e a
valorização da autenticidade nas relações e nos comportamentos?
As maneiras perpetuariam os privilégios e as prerrogativas por meio de marcas
visíveis - às vezes, pouco visíveis - de desigualdade, mas apareceriam, igualmen-
te, por meio de regras de civilidade e polidez, como formas de igualdade apa-
rente. Nesses termos, seriam compensações, substitutos, de desigualdades muito
visíveis, ou intensas. As maneiras, as formas, constituem relações e perpetuam
usos e tradições: exprimem as instituições, inspiram um espírito, revelam um
clima social e político. Ao se concretizarem, se manifestarem em comportamen-
tos, atitudes, posturas, reservas, gestos, olhares, exprimem ou sugerem paixões
e sentimentos. Delicadas e amáveis, ou desagradáveis e bruscas, arrogantes e
brutais, as maneiras, a um só tempo, nutrem, influenciam e refletem tanto o
social quanto o polític:o.
Nessa perspectiva, pode-se compreender o caráter profundamente paradoxal
delas: nada parece menos importante, nada a que os homens confiram maior apre-
ço. A estima, a honra e a consideração representam bens inestimáveis e preciosos,
no entanto constantemente subtraídos; trata-se de bens que se situam na origem
ou participam ativamente de transformações políticas importantes, de gestos he-
róicos, sacrifícios, desesperos, revoluções sangrentas, lutas que, muitas vezes, de-
sembocam na morte. Podem uniformizar ou distinguir, reconhecer a qualidade
ou o valor, mas também ferir e humilhar, provocar a amargura, o ressentimento
e o ódio. Por intermédio das distâncias e dos afastamentos que instauram e a que
se submetem, as maneiras procuram estabelecer formas de mediação e prevenir o
contato direto dos corpos. Tentam impedir a irrupção do imediato, da violência,
pretendendo desse modo proteger o eu profundo, o foro íntimo.

A NECESSIDADE DAS fORMAS

Algumas linhas foram suficientes para Tocqueville formular questões decisivas so-
bre o fundamento das sociedades democráticas e tecer considerações gerais sobre a
tendência democrática em evitar as maneiras com o intuito de instaurar a igualdade,

4 Sobre o caráter funcional da dissimulação e do segredu nas formas, ver Simmel (1908; i917) ..

A CONDIÇÃO S ENSÍVEL
antevendo, de certa forma, o progresso do informal. "A tendência democrática [... ]
consiste em ir ao fando das coisas, sem prestar atenção à forma[ ... ] Em certo senrido,
pode-se dizer que o efeito da democracia não é dar aos homens determinadas manei-
ras, mas sim impedir que tenham maneiras" (Tocqueville, 1835-40: 19).
Em numerosas passagens de seus escritos, todavia, Tocqueville enfatiza a impor-
tância das formas, hesitando entre seu caráter imperativo e um papel mais incerto
e fluido: "Acredito firmemente na necessidade das formas" ou ainda "não nego em
absoluto a sua utilidade" (: 36). Ele anteviu a importância de questões que não
deixaram de ser decisivas para modos de funcionamento e processos sobre cs quais
importa hoje refletir. As formas e a dimensão que chamamos de formal designam
relações, regras, usos, comportamentos codificados, enfim, leis que protegem o
indivíduo, a pessoa e o cidadão. O formal, porém, traz consigo a dificuldade de
tratar com rigor seus objetos como participantes do espaço político, pois isso equi-
vale à possibilidade de se abordar o político por meio de sinais e detalhes tidos por
muito tempo como insignificantes. As regras de polidez, as maneiras, podem re-
velar, a olhos estrangeiros, o estado social e político de uma sociedade, permitindo
saber se um determinado país vive sob as leis da democracia ou da aristocracia .
Tocqueville observou o comportamento dos americar;os na Europa e na Améri-
ca, bem como a diferença de suas maneiras de se comportar, tirando daí conside-
rações gerais quanto ao papel das formas e das maneiras nos sistemas democráticos
e aristocráticos. Parece opor fundo e forma, mas em que sentido e até que ponto?
Por "fundo das coisas" Tocqueville entende as idéias essenciais, substanciais, a um
tipo de sociedade, ou se refere a sentimentos que, experimentados pelos indivíduos
no mais íntimo de si mesmos, são entrevistos pelas maneiras e pelo temperamento?
Porque a democracia privilegia o fundo sohrc a forma, é possívd pt:rccber nela a
consideração dos sentimentos dos indivíduos como um componente intrínseco ao
seu funcionamento?
Como afirma Tocqueville,
Os homens que vivem nos séculos democráticos não compreendem facilmente a uti-
lidade das formas, sentindo por elas um desdém instintivo [.. .]As formas provocam
o desprezo e, a seguir, o ódio. Como aspiram habicualmente apenas a prazeres fáceis
e presentes, eles [os indivíduos) se lançam impetuosamenre em direção ao objeto de
seus desejos; os mínimos detalhes os exasperam. Esse temperamento que transpõem
para a vida pública os indispõe contra as formas que retardam ou paralisam, dia após
dia, alguns de seus projetos(: 274-5).

Nas democracias, os homens preferem relações simples e diretas; tudo o que


lhes parece formal os irrita, os exaspera. Ao distinguir as maneiras aristocráticas das
maneiras democráticas, Tocqueville sublinha que estas exprimem o desrespeito e,

88 1 CLAUDINE HAROCHE
mesmo , a ausência de stwoir-vivre; "Cada um age mais ou menos como lhe apraz,
remando sempre cena incoerência nas maneiras, porque elas se conformam mais
aos sentimentos e às idéias individuais de cada um do que a um modelo ideal dado
antecipadamente à imitação de todos'".
Ele reconhece a futi lidade "dessas coisas", mas logo acrescenta:
A ca usa que as produz é séria. Você tem diante de seus olhos os mais leves sincomas de
um grande mal . Esteja certo de que, quando um homem acredita poder decidir sozi-
nho sobre a forma de uma vestimenta ou as conveniências da linguagem, não hesita em
julgar todas as coisas por si m esmo; sempre que as pequenas convenções sociais são tão
mal observadas, já se verificou uma importante revolução nas grandes (; 183- 4)

O respeito aos usos e às formas, às regras de polidez e de civilidade, é necessário


a toda vida social. Ele instaura e prescreve a forma dos vínculos existentes entre os
homens, bem como participa da construção de um modelo de homem psicológico
e social. 6 Em seguida, Tocqueville tece uma série de observações e interrogações
decisiv~s sobre o temperamento por meio das maneiras e das formas. Nuança bre-
vemente a divisão estabelecida originalmente por ele mesmo entre as maneiras no
estado aristocrático e no estado democrático. Ao que parece, deseja que o estado
democrático reconheça a necessidade de se conformar a modelos fixos, à obriga-
ção de respeitar as convenções, às maneiras comuns destinadas a fortalecer o laço
social entre os homens. Na pasta que contém o manuscrito do capítulo intitulado
"O método fi losófico dos americanos", figura esta observação: "Não há sociedade
possível sem convenções sociais, isto é, sem um acordo simultâneo da maioria dos
cidadãos sobre cerras crenças, idéias ou usos, que são admitidos urna vez, para que
sejam sempre seguidos" (: 18)
Ele prossegue; "Nas dt:rnocracias, as maneiras ião, cotr1 frt:qü ência, mais com-
placentes e sinceras. [... ] formam uma espécie deveu delicado e mal tecido, através
do qual os sentimentos verdadeiros e as idéias individuais de cada homem são fa-
cilmente entrevistos. Freqüentemente, portanto, a forma e o fundo das ações huma-
nas se encontram em íntima relação"(: 185). A democracia, em que os sentimentos
individuais triunfam sobre as maneiras, conheceria assim menos hipocrisia .

. ., F aind:1: "N as sociedades ari stocr:íri cas f ... J, as rclaçócs de ex terioridade dos homens entre si sáo
submetidas a <.:o nvcrn.;íks mais ou nH.:nos fixas . Ca<la um acredita, então, saber de maneira precisa
por quais sinais exprimir seu respeito ou marcar sua benevolência" (: 183).
'' É necessário nos referirmos aqui aos tratados de educação dos príncipes º"ainda aos man llais de civi-
lidade, de etiqueta e de polidez para nobres, e mais tarde, para burgueses; tratados que buscam formar
as condutas e comportamentos. Ver, a esse respeito, a análise de Elias sobre os tratados de civilidade
(Elias, 1939) e também Chartier (!987); Ansarr (1983); Courrine e Haroche (!988: 16, 233-4).

A CONDIÇÃO SENS ÍVEL


Maneiras, formas e fundo: Tocqueville analisa as formas na democracia e na
aristocracia, assim como o modo como elas encobrem o fundo, a natureza, o tem-
peramento, a personalidade, os sentimentos; ou, ao contrário, os revelam, encora-
jam, estruturam: as maneiras fazem transparecer cerro tipo de comportamento e
de temperamento.
A pessoa que vive nos Estados Unidos tem um aspecto austero, no qual impera um
não sei que de inquietude e preocupação no olhar; sua aparência é afetada e se vê,
facilmente, que oferece às impressões exteriores apenas a menor parte de sua alma.
Algumas vezes, é sombrio e está sempre circunspecto(: 187)

As maneiras, de forma geral, nascem dos costumes e dos sentimentos, que, por sua
vez, elas tendem a gerar, encorajar ou impedir. "A forma das ações humanas se origi-
nou[ ... ] do fundo dos sentimentos e das idéias"(: 187). Tocqueville nos instiga, assim,
a pensar sobre uma questão fondamental do político, da democracia e, sobretudo,
das sociedades individualistas: a parte relativa às formas, indissociáveis dos proces-
sos de socialização, a influência do institucional sobre os tipos de comportamento,
temperamento e sen timenro que são valorizados. De forma enigmática, escreve estas
palavras, que nos levam a reíletir: "Não quero dizer que o temperamento não influa
bastante no c1dtcr daquclcsquc viV('lll nos Fstados Unidos. l'cmo, 110 entanto, que
as instituições políticas contribuem muito mais para conformá-lo"(: 187).
A natureza das relações entre forma e fundo mudara na passagem do Antigo
Regime para a democracia, mas deve-se interrogar se uma sociedade cujos mem-
bros deixam de observar as convenções sociais sofre de um mal que a conduzirá
a transformações profundas. É aqui que se delineia a origem mais longínqua do
progm;so do informal e, sobretudo, da aspiração e da exigência de transparência
e de autenricidade, ou a recusa da opacidade das motivações; em conjunto, esses
fatores levariam a uma ameaça de anomia.

A ASCENSÃO DO INFORMAL

Ocorreria, hoje, um enfraquecimento e declínio das formas e maneiras, do que ora


denominamos r.ivilidade ou polidez, ora cortesia ou urbanidade, pari passu um
p1ogresso do informal, acompanhado da ascer..são da insignificância (Castoriadis,
1996), de um processo de <lesinstitucionalização (Legendre, 1999) e descivilização,
observado por Norbert Elias (1989) cm relação ao século XX , ou ainda de um de-
sengajamento profundo, um desligamento geral (Gauchet, 2002)!
O declínio das formas - a familiaridade, a grosseria, a brutalidade, a violência,
o progresso do informal, a decadência das formas e mesmo o excesso de informali-

90 1 C l. 1\UDI N E T-IAROCllE
dade compreendido no sentido de insignificante - situa-se no cerne de interroga-
ções fundamentais a respeito das sociedades democráticas ocidentais. Ao proceder
de causas simultâneas ou desconexas, esse declínio ou decadência constitui uma
ameaça profunda ao desenvolvimento dessas sociedades, afetando. a própria idéia
de democracia e, até mesmo, de organização social. Entre os trabalhos contempo-
râneos que evocam, com insistência, a questão das formas - ainda que muitas vezes
de forma incidente e nem sempre explícita -, retemos aqui os de Elias e Marcel
Gauchet, cujas sugestões trazem, em meu ponto de vista, elementos decisivos para
a compreensão do papel das maneiras na política.7
Elias aborda o declínio da civilização e o concomitante progresso do informal.
Gauchet busca apreender os efeitos do declínio do religioso, a desinstitucionali-
zação da família, em que se destaca a incivilidade, conseqüência da destruição da
"precedência do social" na personalidade contemporânea, e a necessidade de uma
antropologia da democracia (Elias, 1989: 23-44; Gauchet, 1998: 164-81). Suas aná-
lises convergem, ainda que pontualmente, para a abordagem de certos problemas
e objetivos, e a perspectiva de uma história atenta à longa duração, ignorando-se
as fronteiras disciplinares.
Apesar da dificuldade da tarefa, um e outro retomam e dão continuidade às aná-
lises de l(icquevillc sobre a questão das formas e das maneiras, esforçando-se para
qualificar os comportamentos individuais e os traços de personalidade advindos dos
processos de individualização. Ambos contribuem, assim, para a elaboração de uma
psicologia coletiva voltada para o esclarecimento de questões políticas de base.
Inspirando-se nas observações de Tocqueville sobre o comportamento de america-
nos e franceses, e as maneiras no Antigo Regime e nas sociedades democráticas, Elias
analisa o comportamento dos alemães do ponto de vista de sua formalidade, evocando
a época das grandes monarquias européias anteriores à Primeira Guerra Mundial, os
Habsburgo, os Hohenzollern e os Romanov. Escreve que, nesse período, "o grau de
variação entre o formal e o informal era menor do que no século xvm", mas "muito
mais importante do que na República de Weimar. Conhecerá um forte aumento com
os nazistas e diminuirá de maneira considerável no pós-G~erra'' (Elias, 1989: 29).

1
Trabalhos fundadores em sociologia e antropologia trataram da questão das maneiras e das formas:
os de Simmel sob re a sociabilidade, os de Lévi-Strauss sobre as maneiras na mesa, e os de Elias so-
bre a civilidade e, de modo mais amplo, sobre a civilização dos costumes. Na ciência política, nu-
merosos trabalhos se dedicaram ao longo dos últimos anos à civilidade, à polidez e à incivilidade:
são raros, no entanto, aqueles que tentaram verdadeiramente sublinhar o interesse das instituições
políticas pela civilidade, chegando mesmo a impor o respeito, ainda que conscientes do risco aos
princípios democráticos. São exceções a isso os trabalhos de teoria moral e política do liberalismo
à democraci a cotidiana de Judith Shklar (1991) e Nancy Rosenblum (1996).

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 91
Em obra consagrada a eles e às relações entre a civilização e a ascensão do infor-
mal no século XIX na Alemanha, Elias afirma que mudanças nos modelos de com-
portamento e de sentimento são indissociáveis de transformac,:ões nas c::stru mras da
sociedade como um todo. Entre estas, insiste nos movimentos de emancipação, em
particular aqueles que afetaram as relações entre os sexos e as gerações(: 24-5). 8
Considera um dos principais efeitos da emancipação as maneiras se terem tor-
nado uma questão problemática. Os códigos de comportamento tradicionais, "que
dependiam de uma ordem extremamente hierarquizada, deixaram de se adaptar às
relações amais". Como enfatiza, há um o vínculo entre as tendências igualitárias à
uniformização e os processos de individualização que se encontram nas origens -
tanto longínquas quanto recentes - do progresso do informal (: 25) 9 • Sem pre-
tender explicar essa mudança de estrutura, Elias se limita a observar seus efeitos,
alguns dos quais lhe parecem decisivos: é o caso, por exemplo, do profundo sen-
timento de incerteza que, em virtude das mudanças nas relações de poder entre
grupos, manifesta-se num grande número de indivíduos.
Ao evocar os termos de reverência absoluta a que o pai de Mozart recorria para
solicitar algo de seu arcebispo: "Eu me prosterno humildemente aos seus pés"(: 27),
ele comenta:
Qualquer que seja a situação, o cerimonial a que a pessoa de nível inferior deve se
submeter na presença de uma pessoa de nível superior, quando dela se aproxima para
uma solicitação, representa uma diferença de poder. [... ] ela deve declarar, constan-
temente, a inferioridade de sua condição, sua submissão às pessoas mais importantes,
pela observância de um ritual formal(: 27-S)JO

Sua afirmação de que "as relações entre o formal e o informal variam segundo as
épocas, as condições, os momentos e as situações" (: 31) de certo modo retoma as
análises de Tocqueville, deslocando-as e prolongando-as a partir de uma abordagem
mais sociológica e antropológica. 11 Utiliza como exemplo a Inglaterra e a Alemanha:

8
Com essa análise, Elias visa à história das relaçóes conflituosas, desde a Idade Média, entre as classes mé-
dias e a aristocracia, enfatizando que o nazismo, de faro, porá um termo à supremacia da aristocracia.
9
Sobre o progresso do informal, ver Bremmer & Roodenburg (1991) , em particular a "Introdução"
de Keirh Thomas.
'º Sobre as formas de subordinação nos rituais de savoir-vivre, ver Firrh (1970: )7-60); Haroche
(19?7= 213-29).
11
Elias analisa as relaçóes entre formal e informal no contexto de uma análise sobre a ascensão do fas-
cismo: as causas e efeitos do progresso do informal, que se conclui com o relaxamento bárbaro do
nazismo, não podem ser, de forma algwna, confundidos com o progresso do informal que marca
a passagem das sociedades do Antigo Regime para as sociedades democráticas.

92 1 CLAUDINE HAROCHE
a distância entre o formal e o informal é aparentemente maior na Alemanha, onde o
comportamento formal se mostra muito mais forte do que na Inglaterra. 12
Co m ê11L1sc 110 cid1cr extremamente: l(Jrmal doscomponani cntos na época de:
Mozart, observa que as formalidades não se estendiam a rodos os momentos da
vida. Embora "a formalidade ritual entre pessoas de condição superior e inferior
ui trapassasse rodos os graus de formalidade existentes nas sociedades industriais
contemporâneas", a mesma época histórica conheceu, num mesmo grupo ou entre
pessoas profundamente desiguais, dependendo dos momentos e situações, "um có-
digo de comportamento e de sentimento que superava em muito nossa própria falta
de formalidade"; "uma ausência de fonr.alidade que superava o que, hoje, permite-se
em relações sociais entre pessoas de status relativamente equivalente" (: 28)
Para Elias, há no caráter formal dos comportamentos um componente do pro-
cesso civilizador que merece ser analisado com extremo: "A estrutura dessa varia-
bilidade se transforma ao longo do desenvolvimento de uma sociedade estatal" (:
28-31). De modo semelhante a Tocqueville, para quem as formas são indispensá-
veis à própria idéia de sociedade, ele observa que, seja qual for o tipo de sociedade,
sociedades diferenciadas ou sociedades mais simples, há "tipos de situações sociais
em que os códigos sociais exigem que seus membros se comportem de maneira
formal ou, valendo-se de um termo mais preciso, exigem a formalidade no com-
portamento". Em compensação, existem outros tipos de situação social "em que,
segundo o código em vigor, um comportamento informal, isto é, um grau de
informalidade mais ou menos acentuado, é oportuno". Com o intuito de compre-
ender esse aspecto da civilização de um ponto de vista sociológico, Elias afirma a
necessidade de se precisar "o grau de variabilidade entre o nível de formalidade e
informalidade existente numa determina<la sociedade" (: 28)
Em seu interesse pela questão da ascensão do informal nas sociedades contem-
porâneas, ele nota que "as gerações nascidas após a Guerra se esforçaram, de forma
consciente, para suprimir a formalidade nos comportamentos. A tendência, simul-
taneamente voluntária e involuntária, consistiu em adotar o mesmo comporta-
mento em todas as situações", numa espécie de relaxamento nos comportamentos
que se acabou se estendendo ao conjunto da sociedade(: 29).
De acordo com seu pomo de vista, seus trabalhos mostraram que a especifici-
dade do processo civilizador reside na mudança da relação entre coerções sociais
externas e coerções individuais internalizadas. Consciente do fato que essa é ape-
nas uma das características de tal processo, dedicou-se a ela, a fim de ter "acesso

" Elias observa que "o aperto de mão formal entre todos de um grupo, tradicional na Alemanha no
momento da chegada e da partida, foi substituído na Inglaterra por um não menos tradicional
discreto sinal de cabeça" (: 30).

A CO NDIÇÃO .SENSiVEL 1 93
relativamente direto a um problema que está longe de ser simples: a tendência
contemporânea ao progresso do informal" (: 33)
O exemplo de Elias se vale das relações entre sexos e gerações na Alemanha
antes da Primeira Guerra Mundial e nos códigos de comportamento contempo-
râneos. Em suas palavras, "a tendência ao informal aparece de maneira particular-
mente clara nas relações entre homens e mulheres por meio da comparação dos
códigos de comportamento que governam as relações entre os sexos". Em tom
pessoal , aborda "o modo de vida dos cstudanres" em sua juventude, comparando-
º com o de hoje: "A primeira coisa que me espanta é o tipo de comportamento
extremamente hierárquico dos tempos do Imperador e o tipo de comportamento
excessivamente igualitário das gerações do pós-Guerra" (: 35. 38).
Em sua concepção, a diferença entre esses dois tipos de comportamento se deve
ao fato de que, no início do século x.x, os estudantes eram membros de fraternida-
des, e "que essas fraternidades inculcavam atitudes em que a dominação e a sub-
missão eram demarcadas de maneira clara" (: 38). Elias, portanto, afirma a ligação
entre individualização e progresso do informal, enfatizando que na origem desse
progresso, no que tange às maneiras, residem os paradoxos da emancipação. Como
observa, se a emancipação permite a igualdade, estimulando a uniformização dos
comportamentos, provoca igualmente o desamparo e a ansiedade. Esses comporta-
mentos, que põem em jogo o eu profundo, a sensibilidade, os sentimentos e a vida
emocional, deixam os indivíduos "se confrontarem com uma sociedade que ofere-
ce, no presente, poucas regras e normas de comportamento ou de ajuda" (: 37).
Ainda que Elias reitere restringir-se ao domínio da sociologia, parece-me importan-
te considerar também se essa modificação nas formas tem ou não efeitos sobre o tipo
de economia psíquica, a personalidade, a consciência e a relação consigo mesmo.

O INDIVÍDUO DESENGAJADO

Ao retomar as interrogações de Tocqueville sobre o papel das formas e das maneiras


nos comportamentos e na personalidade, assim como as de Elias sobrc o papel dos
processos de individualização no progresso do informal, Gauchet isola traços de
personalidade específicos às sociedades individualistas contemporâneas. Em en-·
saio consagrado à psicologia contemporânea, ele analisa os efeitos do apagamento
das formas sobre a "personalidade ultracontemporânea", caracteriLada, essencial-
mente, pela ignorância "do modelo da precedência do sociaí em cada um de nós"
(Gauchet, 1998). Assim, apreende-se o papel decisivo das formas nas sociedades
democráticas contemporâneas pela transformação no "modo de socialização", ou
seja, por uma mudança que provoca efeitos importantes na sociedade.

94 1 CL AU O I N E 1-\ A RO C llE
Como lembra Gauchet, essa socialização resulta da aprendizagem pela qual po-
demos nos abster de "implicações imediatas". "Numa cultura tradicional, o vín-
culo societário não se formula como algo decorrente da ação dos indivíduos; em
vez disso, é proposto como um modelo que os precede de modo radical" (: 173).
Em seguida, ressalta o papel das formas, evoca a polidez e a civilidade, e observa
que, por meio dessa socialização, inscrevemo-nos num mundo "que se ordena em
meio a formas previamente regulamentadas de coexistência com os outros [...],
formas pelas quais ele nos é significado e com as quais admitimos, praticando-as,
que o social nos precede"(: 173). Ora, a "aderência a si'', que Gauchet compreende
como traço característico da personalidade contemporânea, é algo incompatível
com essa aprendizagem de desligamento.
Mais do que um declínio das formas, ele chama a atenção para um verdadeiro
apagamento da distância na relação consigo mesmo e com os outros, expresso pela
ausência de formas, de maneiras, de polidez, da civilidade mais elementar. "No im-
pressionante declínio da dimensão do público nas sociedades", encontra um funda-
mento antropológico, explicando sua razão de ser pela "dificuldade em dissociar o
elemento público do elemento pessoal", bem como percebendo no desengajamento
e no descompromisso pessoais um dos traços do individualismo atual (: 172) 13
Em sua análise, Gauchet destaca um elemento que nos parece prolongar, des-
locar e radicalizar a análise de Tocqueville, de acordo com o qual o "voltar-se para
si mesmo" era um perigo: "Nós caímos, recentemente, num individualismo de
desrngajamento e desvinculação, em que a exigência de autenticidade se torna
antagônica à inscrição num coletivo." "O gesto por excelência do indivíduo con-
temporâneo não é o de se afirmar engajando-se" - o que chama de individualismo
de personalização -, e sim o de "é afirmar-se desvinculando-se" (: 172).
Gauchet, com efeito, insis~e na "dimensão da desafeição", fala de "desvincula-
ção", para acrescentar que "não se trata de um individualismo 'positivo', ou seja,
que se baseie na afirmação de si, pública ou privada. Trata-se antes de um indivi-
dualismo 'negativo', que se fundamenta na distância e na desconfiança em relação
ao outro e a todo engajamento passível de estabelecer um laço" (: 77). Nesse fenô-
meno, percebe algo de inédito, que não pode ser explicado por uma valorização da
idéia de autonomia. Para ele, há outra origem, que:
Enraíza-se nos desenvolvimento~ do ser interior. Até hoje, os progressos do indivi-
dualismo haviam se traduzido por uma personalização crescente das relações e dos

" Em seus termos: "Até o presente, a ascensão do individualismo se traduziu por uma exigência
crescente de personalização das adesões", isto é, por um engajamento, um envolvimento da pessoa
(!998: 172). Esse aspecto havia sido realçado por Sennett, ao falar de psicologização da sociedade
(Sennctt, 1974).

A CONDI ÇÃO SENSiVEl. 1 95


envolvimencos: a insistência na vida pública gue traduz o caráter voluntário dos
engajamentos e adesões, o reforço dos valores de intimidade. Parece-me gue, recen-
cemence, entramos numa ecapa suplementar, em gue a psicologização começa a agir
contra a própria capacidade de estabelecer vínculos(: 77).

Nessa perspectiva, compreende-se o papel crucial das maneiras, do formal, que,


ao encobrir o privado e proteger o eu, possibilitam o vínculo, assim como dis-
tingui-lo desse outro componente do formal que - por falsa aproximação, fami-
liaridade, psicologização - torna o indivíduo intercambiável, negando a própria
idéia de vínculo, o que leva Gauchet a dizer que, "por si só, o vínculo se torna
problemático".
Ao evocar a coerção exercida pelas formas - "quem diz forma diz meu vínculo
com os outros obedece a uma norma que não foi feira por mim" -, Gauchet lem-
bra que é pelo "consentimento a essa interioridade das formas" que "reconheço e
admito que a sociedade é anterior e está acima de mim, que a regra que me associa
aos outros está fora de mim, é independente de mim". Insiste, então, em que "é
essa dimensão de precedência que se encontra hoje deslocada e desagregada pelo
avanço do princípio de individualidade"; e em que "esses avanços levam à dissolu-
ção das formas da civilidade" (Gauchet, 1998: 173-4)
Ainda que os termos da análise de Gauchec e suas conclusões não sejam idênticos
aos de Elias, a preocupação com os processos de individualização os aproxima. Apro-
fundando as análises de Eiias sobre a interiorização das coerções, Gauchee observa que
"é a inscrição psíquica da precedência do social que está em jogo nessas transformações"
(: 174). Traça, então, um modelo de personalidade que completa a análise de Elias do
ponto de vista da psicologia contemporânea e lembra o que Tocqucvilk escreveu sobre
o temperamento americano, com seu desdém e seu ódio pelas formas:
O que conca é o gue permite ou impede de ser você mesmo, salvo gue "ser você
mesmo" não quer dizer mais, como na época da personalidade moderna[ ... ], saber o
gue leva a agir com vontade e liberdade interior. Corresponde a não estar bloqueado,
consciente ou inconscientemente, pela apreensão das oportunidades gue se apresen-
tam externamence (: 177).

A identidade supõe e coincide com a desvinculação em relação a si mesmo e com


a desenvoltura e a indiferença paca com os outros. Sem engajamentos, continuidades,
fidelidades, deveres, sem estados de alma, aspirações e transcendências, porém com
direitos. O indivíduo contemporâneo sabe fazer respeitar seus direitos, mostra-se ex-
tremamente processual: "Eu estou em condições de me desligar de todo modelo ou
adesão, quaisquer que eles sejam'' (: 178) Ao concluir, Gauchet afirma que "caminha-
mos para um mundo em que a construção das identidades se fará sobre outras bases e

CLAUDINE HAROCHE
talvez mais negativa do que positivamente"(: 179). A recusa das formas, das maneiras,
ou simplesmente sua ignorância, torna-se um elemento essencial nesse processo.
Há na análise de Gauchet uma descrição do comportamento e da psicologia
da personalidade contemporânea: o indivíduo está "ligado, mas distante". Experi-
menta "a necessidade da presença dos otnros, mas no distanciamento que mantém
em relação a eles", abstratos, intercambiáveis, inexistentes, inconsistentes. Essa dis-
tância não pode se tornar um elemento, uma condição da sociabilidade. Exterior e
superficial, ela traduz a desconfiança e o temor do outro, relacionados à ausência
de formas, geradas, em suma, por essa ausência(: 180). Essa distância, que poderia
exprimir o incômodo e o embaraço de que fal'1va Tocqueville, em vez de permitir o
respeito pelo outro, exprime um profundo mal-estar e, por fim, extravia-se. Trata-
se do formal esvaziado de roda substância, de rodo conteúdo, tendo se tornado o
elemento cenrral dos modos de funcionamento das sociedades democráticas con-
temporâneas . Gauchet credita "essa distância e esquiva" à ausência de formas, à
"ausência de um mecanismo simbólico capaz de regular a distância em relação ao
outro." Como mostra, este está "ora demasiado longe, ora muito perco. É perigoso
quando se aproxima, pois não sabemos em qual lugar fixá-lo" (: 180)
As maneiras traduzem, instauram e lembram a necessidade e a função das dis-
tâncias entre os indivíduos, de um espaço entre uns e outros (Lévi-Strauss, 1968).
Ao separar e unir os indivíduos, as ma neiras e as formas fazem parte do que Lévi-
Strauss chamou de "meios de mediação'', meios materiais e simbólicos destinados,
porque instauram deveres e obrigações <le deferência, a "prevenir que não se esteja
muito próximo ou muito afastado uns dos outros" (: 421).
Progresso do informal, d;;sencantamenco, desengajamenco, desinstitucionali-
zação, dcscivilização. ascensão da insignificância: rodos esses termos tentam, de
maneira imprecisa, qualificar comportamentos individuais, traços <le personalida-
de, assim como mecanismos e modos de funcionamento coletivos e institucionais,
relativos a um passado trágico, a um presente inquietante e à intuição de um
futuro ameaçador. Elias, tendo em mente os processos de individualização e os pa-
radoxos da emancipação, escreveu a propósito da ascensão do informal no século
xx nos seguintes termos: "Quando a estrutura desse processo estiver finalizada e
compreendida, poderemos começar a responder a questão de saber se é o começo
de um processo de barbárie [... ] do fim do processo de civilização européia ou de
sua continuidade num nível diferente" (Elias, 1989: 337) 14

11
' Sobre os processos de desinstitucionalização, ver os trabalhos de Legendre, sobretudo Sobre a q11ertão
dogmática no Ocidente (1999), A respeito do desengajamento e da indiferença, ver: Donegani e Sa-
doun (1999); Rosanvallon (2000). Para o conjunto destas questões, remeto aos trabalhos de Castoria-
dis, em particular A instituiçáo imaginária da sociedade (1975) e O aumento da insignificância (1996).

A CONDIÇÃO S ENSÍV E L 1 97
DESIGUALDADE, INJUSTIÇA, INDIFERENÇA

A questão das civilidades remete às aspirações e aos ideais formulados no século


XVIII, sobretudo a propósito da felicidade e da desigualdade moral. Outrora,
a consideração e a deferência eram reservadas à aristocracia; hoje em dia, nas
sociedades democráticas contemporâneas, exige-se uma atitude de considera-
ção em relação a qualquer indivíduo. É preciso discernir nessa consideração
um reconhecimento mínimo do ser humano. Ela se fundamenta não mais nos
sentimentos morais, e sim numa obrigação moral, como se fosse possível não
considerá-los, ao passo que no século xvm eles ocuparam o centro das reflexões
mais relevantes.
Rousseau leva ntou questões que permanecem incompreendidas nas socieda-
des democráticas contemporâneas: questões relativas - ao lado da desigualdade
econômica e social ·-· à desigualdade moral, à desigualdade de reconhecimento, de
consideração, ou seja, ao fato que os homens são desigualmente reconhecidos e
considerados. A supressão dos privilégios, que extinguiu as desigualdades de nasci-
mento, não suprimiu aquelas ligadas ao reconhecimento. Nossa preocupação com
as formas, as maneiras, tem a intenção de realizar uma crítica da democracia, do
ponto de vista do declínio das primeiras nos processos de igualdade, isto é, uma
crítica das ambigüidades e dos limites do que é formal.
O caráter geral das análises de Tocqueville nos parece decisivo a esse respeito.
Ele faz com que nos detenhamos sobre esta questão fundamental do político e da
democracia: a importância das formas, indissociáveis dos processos de socialização,
a influência do institucional sobre o tipo de comportamento, de temperamento,
de sentimentos que são valorizados; ou ainda sobre a formação e a construção
da identidade. Faz-nos pensar sobre o que entender por maneiras democráticas,
por personalidade democrática, pelo papel das formas para o desenvolvimento do
processo de democ1·atização dos comportamentos: tanto o seu excesso quanto a
ausência de formas, a obsequiosidade, a bajulação, a familiaridade e a grosseria que
dificultam e desviam este processo.
Elias realizou uma reflexão análoga, ao enfatizar que "um dos casos mais inacre-
ditáveis do racionalismo a-histórico do século xx se manifestou na crença, ainda
vigente para enorme número de pessoas, de que- ~ democratiz~ção dm comporta-
mentos, c;enças e convicções seguiria naturalmente a estruturação de instituições
democráticas parlamentares". A tarefa é problemática, urgente e imprecisa: retraçar
e interrogar a complexa gênese, às vezes obscura, dos modelos de comportamento
e sentimento; perceber, por intermédio das maneiras e das formas, as transforma-
ções profundas e muitas vezes de emancipação, mas também desconcertantes e
ameaçado ras da relação que se mantém consigo mesmo.

Cl.AUDINE llARO CI IF
Refaz-se, assim, a oposição forma-fundo abordada por Tocqueville em relação
aos conteúdos e à substância das reivindicações que visam a direitos concretos: os
indivíduos necessitam de formas que os protejam, ainda que minimamente, e lhes
garantam direitos, ou seja, formas que os reconfortem. Mas como levar os senti-
mentos em consideração, sem pôr em causa a sociedade democrática? É legítimo
confundir o formal - que possibilita a proteção, o reconforto - com o superficial,
o fútil, o insignificante?
Os comportamentos e sentimentos individuais, mesmo aqueles relativos à esfe-
ra privada, têm efeitos sobre a sociedade e o espaço público (Ansart, 1983; Owuf,
1989). Por isso, a necessidade de qualificar com precisão os comportamentos in-
dividuais, distinguir os traços de personalidade, inferir os sentimentos, avaliar seu
papel nos sistemas jurídicos, considerar o caso das legislações sobre o assédio ins-
tituídas em face da ausência do direito à dignidade. Encontra-se aqui, sem dúvi-
da, um dos problemas cruciais decisivos presentes nas formas de individualismo
contemporâneo, e que evidenciam as relações entre política e ética: a expressão de
sentimentos muito tempo recalcados ou pouco considerados, e que se manifestam
de maneira muitas vezes violenta e incontrolável.
A recusa das desigualdades jurídicas e políticas e a explicitação e a reivindica-
ção de necessidades fundamentais nutriram as sensibilidades, os sentimentos, as
maneiras e as formas democráticas. As mais constantes reivindicações sociais e
políticas contemporâneas em matéria de dignidade, respeito e consideração, as
assim chamadas políticas identitárias e de reconhecimento, nasceram dessa parte
esquecida dos direitos do homem: os direitos morais. Estes, ao se vincularem à as-
piração por uma repartição igualitária do reconhecimento entre as pessoas, tendem
a confundir desigualdades e injustiça, do ponto de vista dos sentimentos morais.
A consideração, a dignidade, o respeito, não obstante os efeitos perniciosos da
política! correctness, bem como as legislações sobre o assédio traduzem a necessida-
de de formas de civilidade novas ou, ao menos, renovadas. As sociedades demo-
cráticas contemporâneas se confrontam com uma indistinção entre sentimentos e
direitos morais, à diferença do que se passou no século XVIII, em que se procurava
evitar a confusão entre sentimentos e deferências. 15
Os trabalhos de Judith Schklar trouxeram, a esse respeito, elementos de re-
flexão extremamente relevantes. Ao se preocupar com o sentimento de injustiça,
afirmou que ele ocupa o cerne da sensibilidadepolítica democrdtica, uma vez que se
inscreve no mais profundo de uma sensibilidade que busca rejeitar injustiças e de-
sigualdades. Esse sentimento de injustiça, no entanto, ultrapassa inevitavelmente

15 Sobre essas questões, ver Haroche e Vatin (1999); Koubi e Guglielmi (2000: parte 1); Haroche e
Montoia (1995: 379-95).

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 99
os quadros de rodo sistema jurídico. Em suas palavras, "ainda que nos inclinemos
a sentir a injustiça em casos particulares, a justiça, por definição, deve ser geral"
(Schklar, 1990). A análise de Shklar, portanto, leva-nos a pensar que não podemos
mais ignorar esse sentimento de injustiça, atribuindo-lhe demasiada importância,
confundindo-o com as desigualdades e tornando-o um objeto de legislação, mas
negligenciando o fato que ele pode pôr em risco os princípios democráticos.
Defrontamo-nos aqui com uma das aporias centrais das sociedades democrá-
ticas contemporâneas, sobre a qual alguns aurores se debruçaram recentemente.
Genevieve Koubi, em análise consagrada à consideração, buscou apreender os me-
canismos subjacentes às exigências do direito ao respeito que todo indivíduo tem
(Koubi, 1998). Sem deixar de incluir eiementos do direito jurídico-político e dos
direitos morais, Koubi lembra que "a palavra respeito implica o conhecimento do
outro e demanda, em conseqüência, um tempo transcorrido junto, certo partilhar
de valores", não se podendo, portanto, como afirmam Jeanne-Hélene e Pierte-
Patrick Kaltenbach, "respeitar na complacência, na indiferença ou na ignorâncià'
(: 168). Ora, "esses três modos de comportamento são aqueles a que são condu-
zidos os poderes públicos numa república laica: a complai.:ência pela intolerância,
a indiferença pela neutralidade, a ignorância pelo desconhecimento". Koubi, no
entanto, acrescenta que "a reterência constante aos direitos do homem limitou
seus efeitos perversos" (: 169).
A maneira pela qual o direito considera atualmente os sentimentos é um dos
aspectos e efeitos da psicologização da sociedade, insidiosa na maioria das vezes.
Parece-me importante reafirmar que, apesar de, freqüentemente, fatos e sentimen-
tos serem indissociáveis, é importante tentar distingui-los, inclusive quando eles
tendem a se confundir de maneira inevitável, a fim de possibilitar uma reflexão
geral sobre os sentimentos, suas modalidades de expressão, o grau de recalque, e a
intensidade de sua repressão ou denegação. 16

O DIREITO AO RESPEITO

A afirmação dos vínculos entre o direito e os sentimentos de respeito a si mesmo


e ao outro, entre os sentimentos e a própria idéia de justiça, torna-se cada vez
mais explícita, levando a que se perceba, na desigualdade moral e, de modo mais
amplo, na própria idéia de desigualdade, seja ela qual for, uma injustiça. Funda-
meritalmente, o reconhecimento e o respeito levantam questões antropológicas

16
Pode-se aquilatar o interesse de uma reflexão sobre o ressentimento, tema central canto na Revolu-
ção Francesa quanto na ascensão do nazismo. Ver, a esse respeito, Ansarc (2001).

IOO j CLAUDINE HAROCHE


relacionadas ao Direito e ao político nas sociedades democráticas contemporâneas.
O direito ao respeito operacionaliza sentimentos que remetem, em particular, à
representação de si, à integridade, à dignidade, enfim, ao valor moral que um
homem possui aos seus próprios olhos e aos olhos da sociedade.
Devem as instituições democráticas, governadas intrinsecamente por princípios
gerais e abstratos, concretizar e exigir, até os detalhes mais pessoais e ínfimos, a
necessidade de consideração e de recon hecimento, o dire ito ao respeito? As pro-
fundas mudanças nas sociedades e as aspirações individuais podem ser ignoradas?
Devem0s limitar o reconhecimento a uma necessidade indeterminada e indeter-
minável, porém contínua e fundamental? Trata-se de questões antropológicas re-
lalivas ao que o ser humano aspira e pode aspirar, ao que pode suportar ou aceita
suportar; comportamentos, atitudes, gestos, opiniões que, se repetidos de modo
sistemático, discreta e insidiosamente, podem atingir a auto-estima e a dignidade
da pessoa, bem como causar danos morais. 17
O declínio das formas, o progresso do informal (que pode se acompanhar de
um excesso de formalismo) e a ascensão da insignificância constituem uma via para
a compreensão dessa face sombria do processo de individualização nas sociedades
democráticas contemporâneas. Penetramos aqui num::t zona de difícil apreensão,
no limite intangível, pois seus objetos muitas vezes indiscerníveis, seus sinais in-
significantes, referem-se ao que Freud traduziu como m al-estar. O declínio das
formas constitui, portanto, uma questão central, a do declínio das mediações, que
tendem a desaparecer, deixando face a face os fracos contra os fortes, os indivíduos
sem lugar na sociedade contra aqueles que têm lugar ou, ao menos, ocupam uma
posição.
Junro com seu progresso, é preciso considerar a questão da apreensão do que
constitui o informal, seus modos de funcionamento e expressão, o tipo de relação
que tende a instaurar, encorajar e manter. Subentendendo códigos, relações de
poder e de dominação muitas vezes mais insidiosos e violentos do que aqueles
característicos do formal, o informal, por possuir um lado inapreensível, move-
diço e fluido, não se define como o contrário das formas, ou como a ausência de
formas e distâncias. O informal exprime também a recusa profunda e radical das
formas, uma busca constante tanto deliberada quanto involuntária de violência,
in staurada seja pelo face a face, seja pelo corpo-a-corpo, queridos os sofridos, lado
ameaçador do espírito corporativo.
Um de seus aspectos essenciais consiste na mistura de registros, gêneros e níveis:
baseia-se em embaralhar e confundir espaços privados e públicos, revelando uma
prática difusa e profunda que desencoraja qualquer veleidade de resistência dos in-

17
Sobre a ausên cia d e reconhecimento, ver Honneth (1996).

A CONDIÇÃO SENS ÍVEL 1 101


divíduos diante dos fenômenos de personalização. Nesses termos, o informal está
estreitamente ligado à psicologização geral da sociedade, surgindo mesmo como
sua conseqüência inelutável. As formas implicam uma separação dos espaços, ao
passo que o informal repousa na interpenetração indiscernível, redunda num mo-
vimento constante, de difícil apreensão, na indistinção entre os espaços provenien-
tes de um processo em que a esfera pública se vê progressivamente aniquilada.
A ascensão do informal não recriaria as hierarquias sob outras formas, cada vez
mais insidiosas? Elias parece ter percebido esse perigo, ao enfatizar a organização
extremamente formal, hierarquizada e autoritária das primeiras associações de es-
tudantes, as fraternidades nacionalistas, comparando-as com os comportamentos
dos atuais estudantes, que preferem formas de organização mais igualitárias. Ainda
que as diferenças entre as duas situações sejam claras, "os jovens que se reúnem
hoje num grupo igualitário são incapazes de evitar o ressurgimcnro de uma hierar-
quia" (Elias, 1989: 38).
Formal e informal designam e decorrem não tanto de espaços diferentes quanto
de uma articulação singular dos espaços, público, privado e íntimo. É necessário,
portanto, considerar que, no registro dcmocdtico, apenas as formas, condição da
integridade psíquica e moral, permitem a constituição do espaço nio só privado -
o reconhecimento e o respeito do foro íntimo do indivíduo -, como também
público.

102 1 C LJ, LJD INE !-IAROC HE


SUBJETIVIDADES E ASPIRAÇÕES:

OS MOVIMENTOS DE JUVENTUDE NA ALEMANHA (1918-1933)

Formar sei tas de fanáticos e jamais verdadeiras


comunidades. [... ] Seria muito inquietante se
cada professor que ocupa uma cátedra [na uni-
versidade) tivesse o sentimento de se defrontar
com a exigência de mostrar que é um chefe

Max Weber

Não é sem razão, portanto, que o sentimento


pliblico experimenta um distanciamento cada
vez maior em relação ao diletante e aos homens
que, apaixonados exclusivamente pela cultura
geral, recusam-se a se deixar prender nas teias da
organização profissional. Eles, com efeito, não
se importam com a sociedade ou, se preferirmos,
a sociedade não se importa com eles. Escapam
dela e, justamente porque não a sentem com a
vivacidade e continuidade necessárias, não têm
consciência de rodas as obrigações que sua con-
dição de ser social lhes impõem.

Émile Durkheim

Em 1938, logo após a conferência de Elie Halévy sobre a "era das tiranias" (Halévy,
1938), Marcel Mauss lhe escreve uma longa carta, em que afirma "reconhecer com
facilidade acontecimentos como freqüentemente se passaram na Grécia, tão bem
descritos por Aristóteles, acontecimentos característicos das sociedades arcaicas e
talvez do mundo inteiro" . Trata-se da "sociedade dos homens", com suas confrarias
simultaneamente públicas e secretas, no interior da qual "age a sociedade dos jovens".

1 103
Mauss afirma: "Sociologicamente talvez seja uma forma necessária de ação, mas se
trata de uma forma obsoleta. Ela satisfaz à necessidade de segredo, influência, ação,
juventude e, com freqüência, tradição" (citado por Hollier, 1995: 849).
Nessas poucas linhas, ao se referir à sociedade dos homens, aos jovens e à ne-
cessidade de ação e influência, Mauss toca em elementos fundamentais do "espí-
rito corporativo". Pretendemos aprofundá-los aqui pela discussão dos modelos de
comportamento e de tipos de aspiração psicológica, afetiva e moral presentes, de
forma mais ou menos acentuada, nas associações profissionais, nas confrarias e nos
movimentos de jovens. 1 O termo espírito corporativo é utilizado em seu sentido
genérico de espírito de grupo, o qual, em determinados aspecros, confunde-se com
os espíritos comunitário, tribal, ciânico e sectário (Freud, 1920). 2
Em que o estudo dos movimentos de juventude, sobretudo os da Alemanha
pós-guerra de 1914, e seu caráter apolítico ou sua politização pronunciada, seus
mecanismos de funcionamento, aspirações e modelos de comportamento podem
contribuir para a compreensão dos mecanismos de funcionamento das sociedades
contemporâneas? Esses movimentos, desenvolvidos numa atmosfera caracterizada
pelo recalque e pela rejeição, e mesmo pelo ódio endereçado à velhice, pela nega-
ção dos limites revelada na busca obsessiva de juventude, no amor por aquilo que
é jovem, têm especificidades que podem esclarecer certos fenômenos contemporâ-
neos, como o culto à juventude, o espírito ciânico e os movimentos sectários.

A FUSÃO DOS CORPOS

O que o corpo, entendido no sentido de grupo, confraria3 , comunidade, provoca

1
É importante assinalar que as associações profissionais o u os movimentos de juvenmde não desen-
volvem todas as atitudes e valores hoje inquietantes.
2
Entiquez argumenta que "todo grupo conhece um dia a tentação da comunidade [.. .]. Esse mo-
mento comunitário me parece indispensável porque permite que todos os membros do grupo se
apóiem um sobre os outros e sobre o próprio grupo. Por outro lado, se o grupo se fixa nessa etapa,
em breve não conseguirá mais a mínima ação capaz de pôr em questão seu equilíbrio. O confor-
mismo dos sentimentos se torna a regra, a submissão idealizada ao grupo [... ]. a única possível.
Mais inquietante ainda é o crescimento de uma metáfora comum, a do corpo pleno, sem falha,
carência ou temporalidade" (Enrique-L, 1999: 742).
3 É interessante observar a evolução da etimologia da palavra fere {irmão) na língua francesa, de
onde deriva irmandade, confraria (confrérie): "Desde o francês arcaico (c. de 1050), a palavra se
aplica ao homem como membro da 'família' humana, particularmente na religião (1690), referin -
do-se aos homens como criaturas do mesmo deus. Irmão designa {e. II75) os membros de certas
comunidades religiosas e é o nome que se dá os franco-maçons (u64) . Por extensão, 'irmãos' no

104 1 CLAUDINE HAROCHE


nos indivíduos, em seus corpos e em seu espírito, em sua maneira de ser e de vi-
ver? Ele os força a determinados comportamentos, envolvendo-os, protegendo-os
e, de certa forma, servindo de apoio, incitando-os à superação de si mesmo pela
abnegação e a renúncia aos interesses privados, pela sensação e a vontade de po-
der, e mesmo pelo conformismo e a submissão ao grupo, por medo ou angústia.
O corpo repercute tanto sobre o corpo quanto sobre a personalidade individual
(cf o capítulo 7).
O que certas formas de comunidade estimulam na personalidade? A força, o
poder, a energia, a lealdade, a submissão, a ausência de senso crítico. E, ao con-
trário, o que se apaga do "eu"? O senso crítico, a reflexão, a recusa, o desacordo, a
independência de espírito, a rebelião, a revolta. O que deixamos se desenvolver em
nome da coletividade e da sociedade por ideal ou complacência, inconsciência ou
mesmo niilismo?
Dois modelos de comportamentos e de tipos de aspiração aparecem com cla-
reza, mesmo se, às vezes, de maneira indistinta: a aspiração à superação de si não
tem o mesmo significado e não responde a valores idênticos na moral republicana
e na comunidade emocional dos movimentos de juventude, nos agrupamentos
profissionais. Eles diferem em sua relaçâo com o limite. o respeito, a ignorância mais
ou menos deliberada e repetida, a transgressão sistemática. l\1ecanismo complexo,
que, em sua ambigüidade, pode se tornar ameaçador e revelar dois tipos de aspi-
ração: o desejo e a necessidade de proteção, de apoio, que conduz à associação, à
corporação, e implica uma abnegação capaz de ser racional e regulada pela coleti-
vidade; e a condução à comunidade emocional, fusional, à anulação deliberada de
si mesmo, desejada ou imposta, ao sacrifício do eu em nome da coletividade. Às
vezes imbricadas e mesmo indiscerníveis, :.:mbas as tendências revelam permanên-
cias fundamentais do político. 4

plural se aplica, como no latim, ao homem em relação àqueles que compartilham com ele dos
mesmos sentimencos, interesses [...] 'irmãos de arma' designou (meados do século XV) os guerrei-
ros unidos entre si por uma aliança, urilizando-se hoje para aqueles que lutam pela mesma causa,
os membros de uma associação". Cf O verbete "Frere" <lo Dictionnaire Historique de la langue
Française Robert. fu relações entre irmão, aliado, e normas, leis e princípios de funcionamento
participam das relações complexas e muráveis entre "espírito de família" e "espírito corporativo".
4
Pierre l.cgendrc aborda a questão <lJ superação e do limite nos seguintes termos: "Fabricar o ho-
mem é dizl.'1 -lhc.: seus lirnitcs , ensinar-lhe um 'além' dL: .sua pL'.o.,soa; sc..;parar o homem c.k si mesmo.
[... ] Cada civilização produz seu estilo de educação considerando essa separação" (1996: 22- 4).
O espírito corporativo representa uma forma específica de separação e <le associação dos indi-
víduos em grupo: quando deslocado, pode se tornar um lugar de fusão, de ausência de limites.
Legendre percebe no nazismo e na Shoah "a derrota do princípio normativo do limite" e alerta para
o fato de que há uma renúncia em relação à análise das "decorrências institucionais da Shoah, a

A CONDIÇÃO SEN S ÍVEL 1 105


Algumas dessas questões foram formuladas em contextos históricos diversos.
Por exemplo, por Durkheim , que procurou, em estudos dedicados aos grupos
profissionais e à solidariedade, contribuir para as bases da República, da demo-
cracia social, e afastar os perigos da "anomia", e por Weber, que, dese ncantado,
pessimista, discerniu a existência de um profundo mal-estar revelador de certa
desconfiança quanto à natureza do vínculo social. Em r933, foram retomadas, de
maneira intensa, pelos movimentos de juventude na Alemanha, as co nfrarias, e
hoj e reaparecem , sob prismas igualmente intensos e, em alguns aspectos, inéditos,
em cerras formas de com unitarismo, integrismo, fundamentali smo e sectarismo.
Nas sociedades individualistas contemp o râneas, questões rela tivas à superação
e ao engrandecimento de si apresentam modos de funcionamento paradoxais, em
que a fus ão e a exclusão podem surgir a um só tempo: mecani smos de exclusão
e rej eição exacerbada, acompanh ados de ignorância e recusa de se relacionar com
o limite; exclusão do outro, da alteridade e fusão com os corpos dos o utros na
ignorância da especificidade do eu de cada um, das pessoas, da singularidade e
da especificidade de cada indivíduo. Mas, afinal, o que se funde, os corpos e os
espíritos num todo que os ultrapassa? O que é excluído e negado, a singul a ridade
de cada um, sua capacidade de reflexão e de recusa?
Trata-se de questões que nos instigam a desenvolver esta reflexão sobre os gru-
pos, a identidade e a "ilusão grupal" .' Trata-se de um aspecto cru cial qu e opera na

saber, a dmir,;bolizaçáo generalizada de que são vítimas as novas gerações do Ocidente". Ad emais,
identifica aí "os efeitos de um hiticrismo sem no me [... J um neo-totalitarism o de fe itura liberal
[que] transmite ao cerne da civilização de direito civil a ideologia da at"ência de li mites" (I.egcn-
dre, i999). A recusa dos limites e da lei constitui o centro da análise que, por sua vez. Ernmanuel
Diet faz d os mecanismos sectários. Esse auto r descreve com precis5.o os rnccanismo.s sectári os que,
hoje, 113.0 cessam de se expandir com o isolamento e a crcset: ntc precari edade dos indivíduos: "as
o rgani1.ações secdrias [... ] exigem a adesão incondicional ao seu di.scur.so tk ccrtcz:1s; c b.~ isolam
e pro íbem a seus adeptos todo co ntato com o mundo exteri or e seus valores, exceto aqueles cuja
fi nalidad e é de proselitismo e infiltração [... ], tod as as seitas têm necessidade, para aS>cgurar seu
d o mínio , de impor a seus adeptos a dessocializaçiío e a deculturaçíio. [ .. . ]A renração e a possibilida-
de de uma deri va sectária estão presentes em todo grupo ideológico: o isolamen to dos adeptos, a
recusa de tod a alteridade e todo diálogo, o fechamento do grupo sobres ; mes mo, a p ro ibição de
toda crit ica e rcb ção com o mundo exterior, d ;·ccusa e a negaç:io d os valores e leis que csr:-ulll ra m
o campo social e cultural , o d omínio totalitário de todos os aspectos da vida do rnjeito e a vo ntade
de controlar se u pensamento e se11 desejo, a d es truição dos vínculos de pertença ante riores, todos
esses fato res pe rmitem caracteri zar a vio lência específica relacio nada ao ódio e à destr utivi dade
seciárins" (Diet, 1999: 51- 4).
~ Ca ri o G inzburg propôs questão an:Hoga c:m rel açã o às front eiras do cu, ~t ausénc i;i de lirnitc:s cm
certos tipos de associação e comunidade durante o TCrceiro Reich , que ex prinúam inte resse e
cuid ados exclusivos com o corpo e as sensações, bem co mo val o ri zava m os jovens. cu lm i1u ndo no

106 Cl. r\ l l J) I NE !I AROC ll E


própria idéia àe comunidade, no desenvolvimento simultâneo de formas extremas
de individualismo e de espírito ciânico: a aspiração ao vínculo, à sua proteção e
calor, pode ser compreendida como algo que vem preencher um déficit de laços
oriundo do isolamento e do caráter impessoal da lei na democracia (em relação
à igualdade). As sociedades democráticas individualistas contêm uma distância,
instauram a impessoalidade, reforçam uma frieza irredutível, que pode explicar, de
um lado, o desenvolvimento de urna atmosfera de radicalidade, ideais negativos,
niilismo e movimentos integristas, em resposta a fenômenos de anomia, ausência
de referências, incertezas e angústias presentes nas sociedades contemporâneas. 6

ASSOCIAR-SE, EXCEDER-SE, AGREGAR-SE

Em 1893, Durkheim publica Da divisão do trabalho social, livro relevante para a


nossa reflexão, no qual aborda fragmentos da história das corporações e contri-
bui com a compreensão dos fundamentos da democracia social, do solidarismo.
No prefácio à primeira edição, esclarece que a questão central de que se ocupa "é a
das relações entre a personalidade individual e a solidariedade social" (1893: xun).
Durkheim redige outro prefácio para a segunda edição, no qual trata o problema
de um ângulo diferente: enfatiza não mais as relações entre a personalidade indi-
vidual e a solidariedade social, e sim os agrupamentos profissionais, afirmando
que "a corporação é chamada a se tornar a base ou uma das bases essenciais de
nossa organização política" (Durkheim, 1893: XXXI). Em outras palavras, acentua
a necessidade das corporações, dos agrupamentos profissionais que "respondem a
necessidades duráveis e profundas", e exercem intensa influência moral, instauram

que se rornou conhecido como jeunisme !juventudismo). Ao sublinhar a atualidade dessa questão,
Ginzburg se interroga sobre a existência "de uma comunidade ideológica entre a mitologia indo-
européia em sua vertente germânica e as realidades políticas, sociais e institucionais do Terceiro
Reich" (1986: 193).
" As redes comunitárias no mundo contemporâneo aparecem como formas inéditas do espírito
ciânico, paradoxal e frio. É precisamente essa dimensão que Zygmunc Bauman procura esclarecer:
"As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam sensações. A palavra 'comunidade' é
uma delas. Ela sugere algo bom: o que quer que "comunidade' signifique, é bom 'ter uma comu-
nidade', 'estar numa comunidade'. !... ]. As empresas ou a sociedade podem ser más, mas não a
comunidade. A comunidade, sentimos, é sem pre uma coisa boa. !... ] a comunidade é um lugar
'cálido', confortável e aconchegante. É como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada,
como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia frio . Lá fora, na rua, toda espécie
de perigo está à espreita [... ]. Na comunidade, podemos relaxar[ ... ] contar com a boa vontade dos
ourros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar novamente de pé" (2001: 1-2).

A CONDIÇÃO SENSÍVEL
certo tipo de vínculo e são capazes de "manter, no coração dos trabalhadores, o
sentimento vivo de sua solidariedade comum, impedindo que a lei do mais forte
se aplique de forma brutal" (: xn). 7
Seu texto detalha a atmosfera reinante nas corporações romanas: "mesmo nas
corporações operárias, as pessoas se associavam, sobretudo, pelo prazer de viver
junto", e se refere a Boissier, "para encontrar fora de casa distrações para fadigas
e aborrecimentos, criar uma intimidade menos restrita do que a família, porém
menos extensa do que a cidade, tornando, assim, a vida mais fácil e agradável"
(Boissier citado por Durkheim, 1893: XiV) Como ele sublinha, "a vida comum é
atmtiva e ao mesmo tempo coercitiva. O constrangimento é necessário para levar o
homem à superação de si mesmo"(: xvn) .
Todos esses termos são importantes, mas podem ser assim resumidos: as pessoas
se associam para se superarem, ou seja, é a associação que efetivamente permite a
superação de si. Para Durkheim, essa superação se faz em nome da moral republi-
cana democrática, já que ele vê na associação a condição de possibilidade do bem-
estar e da proteção, em nome da comunidade, da vida moral: a associação oferece as
condições de uma superação moral e psicológica de si.
Quando indivíduos que acham ter interesses comuns se associam não é apenas para
defender esses interesses; é para não mais se sentirem perdidos em meio a adversários,
para sentir o prazer de comungar, de ser um em muitos, quer dizer, para levar uma
mesma vida moral(: XVIII).

A superação que impede o isolamento do indivíduo, ou seja, que implica cer-


ta renúncia de si e desencoraja o egoísmo é, portanto, fundamentalmente moral.
Durkheim enfatiza - aqui também todos os termos são importantes - que um
grupo "não se resume a uma autoridade moral regendo a vida de seus membros.
[... ] ele libera um calor que aquece e reanima os corações, que os abre à simpatia e
derrete os egoísmos" (: xxx).
Em seguida, define não apenas os fundamentos do espírito corporativo, como
de toda moral:
a subordinação da utilidade privada à utilidade comum, seja ela qual for, sempre tem
caráter moral, pois implica necessariamente algum espírito de sacrifício e de abnegação.
Essas prescrições [procedem] de sentimentos morais que ainda são os nossos(: XV).

7 Durkheim se detém na evolução do papel das corporações na história: "ao passo que em Roma ela
[a corporação] começou quase fora dos quadros normais, serviu de quadro elementar em nossas
sociedades aruais [... ],posto que a comuna era uma reunião de corporações e se formou seguindo
o tipo da corporação, sendo esta que, em última análise, serviu de base a rodo o sistema político
oriundo do movimento comunal" (: xx).

108 1 CLAUDINE HAROCHE


Ele, no entanto, considera a possibilidade de degenerescência e desvio de toda
instituiçáo: as regras podem se tornar "inutilmente persecutórias", os mestres "se
preocuparem muito mais em salvaguardar seus privilégios do que em velar pelo
bom nome da profissáo e a honestidade de seus membros" (: xv1).
A superaçáo moral de si, que assegura também o prazer de estar junto, náo tem
nada de inquietante para Durkheim. Ela se faz cm nome d a moral republicana de-
mocrática, algo que se revela fundam entalmente diferente do que Weber pressente
nos movimentos de juventude. Co m efeito, em 1919, Weber se sensibiliza com
outros aspectos das corporações, das comunidades e dos movimentos de juventu-
de, isto é, com as possibilidades de deriva do espírito corporativo e com o aspecto
ameaçador que pode conter e esconder.
Ao descrever e resumir em poucas linhas a emergênci a dos movimentos de ju-
ventude, Weber se mostra sensível à atmosfera da época, à racionalizaçáo e ao cli-
ma de desencantamento. Como Durkheim, lembrada necessidade de estabilidade
dos pequenos círculos, das comunidades e das relações entre os homens, porém,
em vez d e falar de corporações, agrupamentos profissionais e superação moral de
si, atém-se às universidades, aos movimentos de juventude, às confrarias universi-
tárias, e a fenôm enos ambíguos capazes de se transformar em ameaças à sociedade
democrática: a busca do corpo-a-corpo, a anulação das distâncias e o declínio das
mediações que acompanham o culto do chefe numa busca de superação, transcen-
dência e fusáo (Weber, 1919; Freud, 1921). 8
Ao alertar contra a mitificação, Weber tece comentários a que devemos dar,
hoje, a maior atençáo possível. Fala, por exemplo, de um fenômeno que "consis-

' Emmanuel Diet, ao enfatizar a especificidade dos fenô mmos sectários, chama a atenção para as
dimensões ameaçadoras desse deslocamento do espírito corporativo. Insiste sobre o fato de que as
seitas destroem, com suas práticas, a função simbólica, assim como instauram uma violência que
leva a uma incapacidade de simbolização massiva e insidiosa; é essencial, portanto, "marcar sua es-
pecificidade em relação aos movimentos religiosos . filosóficos o u associativos com os quais as seitas
esforçam-se em se confundir[ .. .]". Ao se opor à posição de certos historiado res ou sociólogos das
religiões que se arêm ao discurso maniffsco sem examinar as práticas e suas conseqüências, banali-
zando e minimii.a ndo o fe nômeno sectário sob a denominação de "novos movimentos religiosos",
Diet afirma que é preciso considerar a singularidade histórica d as "novas seitas", irredutíveis a
m eros "grupos minoritários, heréticos ou exóticos [...]. Tendo fracassado em sua vontade de sujei-
ção ao mesmo, agitadas pela história, aceita ndo certo pluralismo e o diálogo com a racionalidade
científica, as grandes d o utrinas e associações filosóficas e religiosas instituem leis e interditos com
vocação universal, aos quais sacerdo tes e crentes se submerem de m aneira igual, enquanto a lógica
sectárir1 [... ] jwtifica todas as violências contra aqueles que se opõem àJ ações do grupo e criticam sua
doutrinr1. Mesmo se a intn·diçáo de pensar está sempre presente, as religiões, apoiadas em seu dogmatis-
mo, asseguram uma fimçiío simbólica" (1999 : 52-3, grifo adicionado) .

A COND I ÇÃO SENS IV E L 1 109


te em algo de muito sério e sincero, ainda que, muitas vezes, interpretemos sua
significação de maneira errônea. Quero falar dos movimentos de juventude que se
desenvolveram ao longo dos últimos anos, com o objetivo de dar às relações pes-
soais, no interior de uma comunidade, o sentido de uma relação religiosa, cósmica
ou mística" (Weber, 1919: 95-6) . Tratava-se de uma "época caracterizada pela ra-
cionalização, a intelectualização e, principalmente, o desencantamento do mundo,
[o que] levou os humanos a banir os valores mais elevados e sublimes da vida pú-
blica". Ora, esses valores supremos, os valores de fraternidade e cordialidade, de
apoio e proteção, que os movimentos de juventude tentavam reinstituir "encon-
traram refúgio sej a no reino transcendente da vida mística, seja na frate rnidade das
relações diretas e recíprocas entre indivíduos isolados. Não há nada fortuito[ ... ] no
fato de que encontremos unicamente nos pequenos grupos comunitários, no con-
tato homem a homem, algo que corresponda ao profético que, outrora, inflamava
as grandes comunidades e as mantinha unidas"(: 96).
Weber, portanto, pressente o lado extraordinariamente ameaçador de tais movi-
mentos de juventude, das confrarias universitárias, de seus modelos de comporta-
mento e tipos de aspiração que exigiam - ou valorizavam - as qualidades de chefe no
professor, e não tinham mais nada a ver com aquelas descritas por Durkheim. Trata-
va-se, então, da comunidade emocional e do culto do chefe. Nos termos de Weber:
Vocês vêm aos nossos cursos exigindo de nós, que somos os seus professores, qualida-
des de chefe sem jamais pensar que de cada cem professores noventa não têm, nem
devem ter a pretensão de serem campeões de futebol [... ], nem "chefes., nas tarefas
que dizem respeito à condu1a de nossa vida. Não se deve esquecer que o valor do ser
humano não depende necessariamente das qualidades de chefe, que ele pode pos5llir
ou não. De qualquer form a, as disposições que fazem de um homem um cientista
eminente e um professor universitário certamente não são as mesmas que poderiam
fazer dele um chefe na conduta prática da vida. [.. .] Seria muito inquietante se cada
professor que ocupa uma cátedra tivesse o sentimento de estar em face da exigência
de mostrar que é um chefe. (: 87).

A pretensão ou as piração à superação de si não é a mes ma: não se trata mais do


caráter atrativo e do bem-estar proporcionado pela vida numa associação ou num
grupo profissional, da dedicação e da abnegação de cada indivíduo à s0ciedade,
da renúnci~, moral a si mesmo. Trata-se antes da eventualidade do fanatismo e da
radicalização, do culto ao chefe. Weber previne: "Profecias que saem das cátedr;is
universitárias têm como resultado exclusivo a form ação de seitas de fanáticos, e
jamais comunidades verdadeiras" (: 96).
Os estudos de Thomas Lacqueur e de Peter Gay sobre as fraternidades, as cor-
porações e os movimentos de juventude nos ajudam a precisar certos aspecros e a

llO 1 Cl. ,\l l OINE 1-IAR OC I I F.


distinguir a comunidade de pertença, fundamental e necessária, da comunidade
fusional (Lacquer, 1962; Gay, 1968; 1993).

COMUNIDADES DE EMOÇÃO, CULTURAS DO ÓDIO

As análises de ambos sublinham nos movimentos de juventude a importância atri-


buída à idéia de comunidade emocional que não se pode dizer: a superação·de si se
manifesta no engajamento apaixonado e confuso, na exaltação e no desejo de fusão,
que se apóiam implícita e mesmo explicitamente em ideais viris, acompanhados
com freqüência de um profundo desengajamento político. Lacquer escreve:
cada um atribuía importância considerável ao espírito de grupo, importância sentida
confusamente, mas expressa com fervor cm excursões, cantos, fogueiras, vendo nisso
experiências que visavam restaurar os laços primitivos (Lacqueur, r962: vn). 9

Todos esses movimentos, que apresentam diferenças importantes ao pregar os


ideais de uma comunidade orgânica autêntica, privilegiavam a vida coletiva e tinham
determinada concepção da natureza dos vínculos entre os indivíduos no grupo.
Valorizavam "a abnegação e a aptidão ao comando", a lealdade, qualquer que fosse
seu conteúdo, assim como a devoção ao chefe. Além disso, funcionavam como res-
postas ao medo da fragmentação materialista, às formas arcaicas de angüstia anterio-
res à função simbólica existente em toda sociedade, o que nos ajuda a compreender
por que "esses movimentos sempre foram extremos, descompromissados, emocio-
nais e entusiastas: jamais moderados e racionalistas" (: v1). Exprimiam, como enfati-
za Lacqueur, uma oposição apolítica a uma civilização que "tinha pouco a oferecer às
novas gerações: representavam um protesto contra a falta de vitalidade, entusiasmo,
emoções e ideais. Aspiravam a desenvolver um contato fusional" (: vn).
Pouco importa se uns fossem "revoltas contra a repressão das emoções indivi-
duais" e outros, expressões de patriotismo contra o autoritarismo prussiano ou
a Revolução francesa: essencial era o fato de participarem de lucas comuns que
revelavam uma mentalidade guerreira e belicosa. Todos criticavam o mundo dos
adultos e proclamavam uma valorização da juventude como tal:
O movimento era pré-libera!, romântico e, sob certos aspecros, medieval [... ).
A única maGeira de restaurar uma sociedade harmoniosa era se conformar o mais ri-
gorosamente possível aos modelos de comportamento da Idade Média, com senhores
e vassalos (: 3).

'' Lacqueur distingue na história dos movimentos de juventude uma primeira fase, a dos Wandervo-
gel, que se estende de 1896 a r919, da fase do Bund, que termina em 1933.

A COND I ÇÃO SEN S ÍVEL 1 Ili


A diferença em relação aos grupos profissionais evocados por Durkheim é evi-
dente: seus membros eram honestos, "pretendiam-se puros, leais com seus cama-
radas e corajosos", mas esses movimentos de forma alguma os preparavam para
"uma cidadania ativa". Seus professores e chefes lhes ensinavam latim e grego, mas
"em geral deixavam de lhes ensinar que as humanidades representavam também a
crença nos direitos do indivíduo e na dignidade, não unicamente os direitos dos
membros de seu grupo particular, e sim de todo o ser humano" (: 4!)
Em O cultivo do ódio (1993), Peter Gay desenvolve e detalha as idéias de La-
cqueur, precisando os contextos social, psicoíógico e poiítico do aparecimento
dos movimentos de juventude'º· Lembra que "os homens se sentiam obrigados
a demonstrar, desde a idade da adolescência [... ], qualidades viris, ousadia, força
física e resistência ao esforço e ao sofrimento". Aspiravam a se tornar homens
duros e forres. O prestígio constituía o sentido e a finalidade última de sua exis-
tência. Eram jovens que temiam o fracasso e, "continuamente em situação de pro-
va, viam-se coagidos a adotar uma atitude belicosa em face de rivais e eventuais
adversários" (: 121-3)
Nos trabalhos em que analisa a República de \Y/eimar, Peter Gay estuda os mo
delos de comportamento alemães, vendo neles duas dimensões, dois tipos distin-
tos de preocupação: a do "auto-aperfeiçoamento, a bildung [... ], livre de toda po-
lítica, e aquela, inferior e sórdida, dos assuntos humanos, com seus compromissos
e questões de ordem práticá' (Gay, 1968: 98). A coexistência entre esses dois tipos
de valores se desenvolve numa combinação específica de ingenuidade, estupidez
adolescente e pragmatismo tanto maquiavélico quanto sádico. Os Wandervogel,
escreve Peter Gay:
buscavam na cordialidade e camaradagem um escape às menriras engendradas pela
cultura da pequena burguesia, um modo de vida sadio [... ] e, sobretudo, uma exis-
tência em comum, capaz de se elevar acima dos interesses particulares e da política
mesquinha dos partidos.

10
Gay analisa a valorização da coragem e da energia que, no século XIX, tornam-se um verdadeiro
culto da força e da virilidade, lembrando que, "em 1906, o sociólogo francês Georges Sorel se la-
mentava da moleza da classe média[ ... ], mais preocupada em se engajar em ações humanitárias do
que na luta" (1993: io9). Ressalta também que, "em 1895, em seu discurso de admissão à Academia
Francesa, o romancista e ensaísta Paul Bourget declarou que o espírito moderno sofria de atrofia
da vontade e que tinha sido atingido por uma crise de niilismo e pessimismo" (: 108); que, "longe
de ser uma invenção da época moderna, atestava a permanência dos ideais aristocráticos e os da
Grécia antiga" (: 107); e que "o ideal viril se revela um mecanismo incerto destinado a faci litar a
liberação das pulsões agressivas" (: 107).

112 1 CLAUOINE HAROCHE


Nesses movimentos, havia chefes e discípulos que utilizavam linguagem e estilo
específicos, elemento e imagem de "sua intimidade emocional", e celebravam cer-
tas palavras, como Gerneinschaft: "a comunidade era a seus olhos uma invocação
mágica". As aspirações e os valores dos Wandervogel exprimiam "sua busca de alma,
sua desconfiança em relação ao espírito" (: 105)
Para falar do complexo de sentimentos e reações que exprime o espírito desse mo-
vimento de juventude, Gay se vale da expressão "busca de unidade", que representa,
segundo seu ponto de vista, uma regressão oriunda de um grande medo: "o medo
da modernidade". De acordo com sua argumentação, as abstrações que Ferdinand
Tõnrries e outros utilizaram, como Volk, Führer, Organismus, Reich, Entscheidung,
Gerneinschaft e Aufhebung (termo hegeliâno que quer dizer tanto elevação e anulação
quanto preservação), "revelam uma necessidade desesperada de raízes e pertença a
uma comunidade, constituem uma rejeição radical da razão, a que se acrescenta o
apelo à ação direta ou à submissão a um chefe carismático". E observa que "esse con-
glomerado de sentimentos hostis que se fazia passar por filosofià' incitou Ernst Tro-
eltsch, em 1922, a assinalar o perigo de tal inclinação, aos seus olhos especificamente
alemã, que favorecia uma "mistura de misticismo e brutalidade" (: n3-4) 11•

ESPÍRITO CORPORATIVO, COMUNIDADES DE RECREAÇÃO

Retomemos a carta de Mauss, em que ele evoca o tipo de ação obsoleta, arcaica -
"regressiva", diria Freud- da sociedade de jovens na "sociedade dos homens". Indo
ao encontro das análises de La..::queur e de Gay, Pierre Bourdieu se debruçou sobre
o espírito corporativo e enfatizou "os laços afetivos intensos e duráveis de frater-
nidade que se instauram necessariamente entre os adolescentes das universidades"
(Bourdieu, 1989: 257; 1994: 123-31). Sua análise se conclui com um comentário que
merece ser retomado e aprofundado:
O amor sempre é, assim como a "fraternidade" ou a "sororitê' 12 escolar, a manifes-
tação de uma forma particular de espírito corporativo[ ... ]. O amor de si nos outros

11
Peter Gay se detém em aspectos que nos parecem decisivos: "nem todos aqueles que, nos anos 1920,
buscavam integração e unidade cederam à tentação da regressão [... ].Recorreram à razão mais do
que ao irracionalismo, não por niilismo, e sim pela construção, tern10 que deve ser considerado
literalmente, pois foram os arquitetos que formularam essa filosofia moderna e democrática em
seus escritos, e a puseram em prática em seus edifícios" (: 125). Ver também Dumont a propósito
de bildung, "a idéia alemã de liberdade, segundo Ernst Troeltsch" (1991: 61).
12
N.do T. Em francês, sororité corresponde à solidariedade feminina. O termo provém da combina-
ção do latim sororco m o inglês sorority, e remete aftaternité(fraternidade).

A C ü ~ D IÇÁO SENSÍVEL 1 n3
e no grupo favorecendo a reunião prolongada de semelhantes é o verdadeiro funda-
mento do que chamamos 'espírito corporativo", do qual o espírito familiar é um caso
particular (Bourdieu, 1989: 257-8).

Os sociólogos alemães Tonnies, Weber, Wilhelm Reich, Theodor Adorno, Elias,


e também a psicanálise com Sigmund Freud (1920; 1930) abordaram essas questões
no fim do século xrx. Hoje, elas ressurgem de maneira problemática e urgen-
te. O que teria mudado nos modelos de comportamento e aspirações nesse tipo
de associação, nos movimentos de juventude e, mais amplamente, nos tipos de
comunidade contemporâneos? E, em contrapartida, o que teria permanecido ao
longo de épocas, sistemas, mudanças e transformações?
Todas as análises foram sensíveis ao caráter potencialmente ameaçador dessas
formas de associação, uma vez que elas admitiam, instauravam e encorajavam uma
tendência favorável não à seita, no sentido estrito do termo, e sim ao espírito e à
mentalidade sectários. Ao lembrar a organização extremamente formal, hierarquiza-
da e autoritária das primeiras associações de estudantes, as confrarias nacionalistas,
Elias comparou-as com os comportamentos dos estudantes que, nos anos 1980, ten-
diam a formas de organização mais igualitárias: ele temia que esses estudantes não
fossem capazes de evitar o ressurgimento das hierarquias (Elias, 1989: 38). Enfarizava,
tendo em mente a República de Weimar, que as pessoas haviam acreditado "que uma
democratização dos comportamentos, das crenças e das convicções acompanharia,
naturalmente, a instalação das instituições democráticas parlamentares", mas os fatos
revelaram uma busca permanente de organização e hierarquia(: 337).
Reich desenvolveu, a propósito da psicologia de massas do fascismo, uma aná-
lise profundamente esclarecedora das confrarias, dos movimentos de juventude na
Alemanha, ao sublinhar a estrutura de caráter que foi aí instaurada, encorajada e
imposta. Em suas palavras:
A atualização da estrutura de caráter era uma tarefa essencial de roda democracia,
que não poderia se limitar à supressão de instituições ditatoriais e autoritárias, qu e
não poderia se limitar à instalação de instituições novas, pois essas institui ções dege-
nerariam infalivelmente em outras instituições ditatoriais e autoritárias: era preciso
esforçar-se para suprimir, ou ao menos reduzir, a fixação do mrdter cio 11bsol11tismo
autoritdrio nllS massas.

Assim, a questão fundament<il que, desde i917, se impôs à psicologia de massas


foi saber se "a nova ordem socioeconômica da sociedade russa se repiOduziri::t, e
de qual maneira, na estrutura de caráter dos homens? O novo homem soviético
seria liberal, antiautoritário e racional, e transmitiria essas qualidades a seus filhos?"
(Reich, 199r 198; cf. também Adorno, 1951).

!14 1 CLAUD l NE HAROCllE


Parece-nos decisivo hoje retomar e aprofundar essas idéias, levando em con-
sideração as mudanças na personalidade e na estrutura de caráter do indivíduo
contemporâneo. Ir além do caráter autoritário e rígido presente na análise de
Reich e interrogar a instabilidade e a inconsistência de caráter, focando outra
vez a questão da energia e da ebulição. De fato, esses tipos de personalidade e de
caráter estão presentes de forma aguda em tipos de associação, que as encorajam
e das quais emergem, na natureza dos laços que fomentam, nos comportamen-
tos e nas atitudes que incitam, assim como nos tipos de valores e atividades que
promovem.
Recentemente, Bauman buscou compreender a natureza, o funcionamento e o
desenvolvimento das comunidades contemporâneas no contexto da globalização
(2001: xx). Insistiu sobre a profunda e irredutível necessidade de pertença, sobre o
fato de que essa necessidade tem aumentado e se tornado cada vez mais intensa, a
ponto de, pouco a pouco, substituir os direitos e deveres de cidadania por expres-
sões - e reivindicações - identitárias. Ao ilustrar o caráter complexo e eminente-
mente problemático de uma "comunitarização" das sociedades contemporâneas,
Bauman nos leva a repensar a diferença entre comunidade ética, de que falava
Durkheim, e o caráter ameaçador da comunidade emocional, tal como evocado
por Weber. ' 3 Ele, contudo, vai além desse aspecto, pois discerne uma comunidade
específica às sociedades contemporâneas, a "comunidade estética", que instaura e
promove tipos de laços e vínculos que não engajam.
Fixando-se nos modelos de comportamento que podem transformar a natureza
dos vínculos e as formas de associação e reunião, bem como provocar a dessub-
jetivação, Bauman nos faz perceber a dimensão superficial, festiva, descontínua e
instável desses grupos. Refere-se, então, a certos aspectos da comunidade estética
de Kant: "o governo dos comportamentos responde hoje a critérios mais estéticos
do que éticos. Conforma-se não mais à autoridade moral dos líderes, a seus ideais,
e sim, acima de tudo, ao comportamento de personalidades midiáticas" (: 66). 14
A conclusão de Bauman sugere a dimensão paradoxal e inédita de uma "co-
munidade de não pertença", definida como uma reunião de indivíduos isolados.
Trata-se de indivíduos que se tranqüilizam com o fato de que estar só quer dizer

u Bauman afirma que "os engajamentos que fazem que uma comunidade seja écica são do tipo fra-
cernal [... ],ou seja, aquilo que os indivíduos, ele form> verossímil, esperam da comunidade é uma
garnncia, uma promessa de certeza, de segurança e de proteção", sem deixar de acrescencar que é
precisamente desse as pecco "que escão mais privados quando isolados" (2001 :72).
14
Esse ripo de análise se aplica às formas de individualismo nas democracias; ela se mostra mais difícil
para cercas formas de comunicarismo presences nas democracias, particularmente em relação às
afirmações identitárias e à relação com o senrido.

A CONDI Ç ÃO SEN SÍV EL 1 Il5


estar acompanhado, e que lutar por si mesmo pela existência equivale a constiruir
uma comunidade.
Os ideais da comunidade estética são contrários aos ideais de uma comunidade
ética, pois induzem à confusão entre espírito e corpo, desenvolvendo formas extre-
madas de narcisismo que tendem a afastar as dimensões estruturantes do espírito
corporativo, definidas pela relação com o corpo. A primeira instaura modos de in-
clusão e de supressão, ou seja, uma continuidade implícita, não simbolizada, entre
os corpos; e constrói corpo e aparência caracterizados por meio de sensações, da
ausência de duração dos vínculos, da instantaneidade, da brevidade dos encontros
e da descontinuidade. Na comunidade estética, a negação dos limites presente na
dimensão festiva induz à superficialidade dos laços, ao desengajamento e ao declí-
nio do sentido, levando à dispersão; à fragmentação dos vínculos e dos próprios
indivíduos; ao distanciamento; e mesmo à exclusão em relação à sociedade como
um todo (Adorno, 1951; Castoriadis, 1990; 1996; Bauman, 1993). "Quaisquer que
sejam a natureza dos laços na comunidade estética, eles não ligam: são literalmente
laços sem conseqüências. Tendem a se dissolver [... ], para compensar a ausência de
recursos individuais ou a impotência" (Bauman, 2001: 71).
O desencaminhamento do espírito corporativo aparece como uma conseqüên-
cia inelutável da extensão da comunidade estética, que, reforçada por contínuas
solicitações sensoriais, pela onipresença das telas nas sociedades contemporâneas,
amplia o isolamento corporal e também o social e psíquico, a precariedade e psí-
quica dos indivíduos. As sensações contínuas atingem o corpo e sua representação,
provocando o automatismo reflexo, a compulsividade e a falta de tempo necessário
ao exercício do pensamento e da reflexão. Geram lassitude e uma fadiga crônica
propícia a reforçar a tendência à dessubjetivação e à dessimbolização. 15

15
Sobre a questão dos fluxos e solicitações contínuas, ver Illich (1995) Ver também o número dedica-
do à fadiga da Revue Française de Psychosomatique (n. 24, 2003), e Haroche (2004). Diet, por sua
vez, sublinha que, nos mecanismos sectários, "o sujeito é vítima de uma [... ] dessubjerivação, cujo
meio privilegiado é o ataque a rodas às suas bases de apoio. A princípio, são visados a imagem do
corpo e [o que nos parece aqui crucial] o mecanismo pulsional, produzindo-se, por esgotamento
e excitação, experiências-limite que, freqüentemenre, põem em risco a própria sobrevivência e
sempre têm como efeito o despedaçamento da imagem do corpo [... ].Trata-se de favorecer, pela
perda da dimensão do real e da personalidade, a realização da dominação". Dier observa também
que, "no fluxo sem limite nem obstáculo, os significados desalinhados se tornam absolutamente
arbitrários. [... ] Apenas o amor pelo senhor e a adesão ao discurso doutrinário parecem propor
ainda algum sentido num universo tornado caótico, sem fé nem lei, em que nada é verdadeiro
e tudo é ao mesmo tempo permitido e proibido; em que rudo, a todo instante, é possível". Ao
concluir, afirma que "essa confusão arcaica marca a desestabilização dos conteúdos de pensamenro"
(1999: 57-59). Ver aindaAnzieu (1985, 1993).

n6 1 CLAUDINE HAROCHE
Confronramo-nos hoj e com formas paradoxais e inéditas de vínculo e de comu-
nidade: a valorização constante e extrema do e u, "fabri cando" de maneira conrínua
o corpo, cm qu e a extensão corporal, ao provocar a recusa dos limites, apresenta-se
como algo indissociável de uma relação ora form al. ora indistinta com o outro.
Os desequilíbrios sensoriais, relacionados ao declínio do contato e à perda geral
dos sentidos, traduzida na busca de contatos sem contato, abrem-se então a re-
lações de força de extrema violência, a um corpo-a-corpo, a um face a face entre
fortes e fracos. A recusa da rel ação com os limites,. a negação de formas de rituali-
zação e de separ2ção dos corpos e dos espíritos, específica da comunidade estética,
é igualmente própria às lógicas sectárias (cf. o capítulo 5).
Pensávamos saber o que o corpo é. Hoje, somos levados a repensar certas ques-
tõ es fundam entais e elementares formuladas por Durkheim: a energia, a agitação
permanente e não cristalizada, a fus ão, todos eles fatores que se revelam ameaça-
dores e destrutivos do psiquismo (Durkheim, 1912). Para além da relação com o
limite, de sua importância ou negação, é o tipo de vínculo - de contato psíquico,
mental , psicológico e físico, in voluntário ou deliberado, a oscilar entre a fusão e
o medo do contate - que se encontra hoje no cerne do es pírito corporativo e de
sua deriva.

A CO NDI ÇÃ O SENSÍVEL 1 n7
PARTE III

A EXTERIORIZAÇÃO DO HOMEM INTERIOR


MANEIRAS DE SER E SENTIR

DO INDIVÍDUO HIPERMODERNO

Quando nos preowpamos, como eu há meio sé-


culo, com o problema da relação encre indivíduo
e sociedade, ,·evela-se de forma evidente que essa
relação não é fixa.

Norbert Elias

Em 1938, Marcel Mauss publica "Uma categoria do espírito humano: a noção de


pessoa, a de 'Eu", texto fundador, que foi lido, comentado e criticado, bem como
fomentou inúmeros outros escritos. 1 Interessado pela história social da "noção de
pessoa, a de Eu", Mauss formulou o problema em toda sua extensão, mas de forma
muitas vezes imprecisa, intuitiva - razão pela qual recebeu críticas - e profundamen-
te estimulante. Em suas palavras: "Desculpem-me se, resumindo certo número de
pesquisas pessoais e inumerá-;cis opiniões de que podemos traçar a história, adianto
mais idéias do que provas [... ]. É evidente, sobretudo para nós, que jamais existiu um
ser humano que não tenha tido o sentido não apenas de seu corpo, como também de
sua individualidade a um só tempo espiritual e corporal" (1938: 359) 2

1
Entre os trabalhos que lhe foram d edicados, destacam os o livro A ct1tegoria de pessoa. Antropologia,
filosofia. história (1985). orga nizado por Michael Carrithers, Steven Collins e Steven Lukes, sobre-
tudo os artigos de l.oui s Dumont e Charles Taylor.
' Estas questões são retornadas, desenvolvidas e comentadas em Carrithers, C ollins e Lukes (1985) .
Stevcn Lukes (: 285) sublinha que talvez seja preciso reconh ecer aí uma "estrutura de sentimento",
uma "arirude geral" ou, ainda, um ripo de crença "que perdura em d iferentes formas c ulturais"
(: 285) Michael Ca rrithers, por s ua vc,., fri sa que Mau.IS "deixa de lad o rudo o que está ligado ao
cu, à personalidade con.sci<.:ntc c omo tal", observando que, em seu texto, "apenas o legal ~ o social
ou ainda o político importam , pouco conram o psíquico ou o filosófico [... ]. o eu é colocado em
aposi ção à pessoa , l... ] como .se para as sociedades ocidcnrais modernas fossem a mesma coisa".
Na verdade, observa, Mauss afirm a que "p essoa = cu, e que este equivale à consciência [.. . J a p essoa

121
Mauss afirma que "a noção de pessoa, longe de ser uma idéia primordial, inata
e claramente inscrita [... ]no mais profundo de nosso ser, [... ]permanece imprecisa,
necessitando de uma maior elaboração". Ela se constrói lentamente, "clarifican-
do-se, especificando-se, identificando-se com o conhecimento de si, com a cons-
ciência psicológica". Na seqüência, formula um questionamento extremamente
contemporâneo: "Quem sabe se essa 'categoria', que todos acreditamos fundada,
será sempre reconhecida como tal?" (: 359, 362).
Uma observação antes de seguir adiante: neste texto, não distinguiremos o eu
das noções de pessoa, personalidade, caráter, indivíduo e individualidade. Todos
esses termos se referem a um mesmo campo paradigmático , relativamente im preci-
so e movediço, conforme o encontramos em vários autores, como o próprio Mauss,
Émile Durkheim (1894), Georg Simmel (1908) e Norbert Elias (1987) 1.
O que interessa aqui é a existência de um desengajamento, fato sublinhado de
forma reiterada em relação ~s sociedades contemporâneas: levanto, assim, a hipó-
tese de que esse desengajamento - esse descompromisso resultante das sensações
cantínuas exercidas sobre o eu - influencia, de maneira profunda e insidiosa, as
relações en tre sensação, percepção, consciência, reflexão e sentimentos, levando ao
esmaecimento das fronteiras entre objetos materiais reais e imagens virtuais. Além
disso, tal desengajamento toca os limites do eu\ com efeitos sobre as maneiras de
sentir e, sobretudo, sobre a própri a capacidade de sentir. '

ter uma hisc6ri1 social e legal não tem nada de surprcendcmc: a hi sccíria social e legal é precisamen-
te o que permite a especificidade d" p essoa" (: 234-6).
5
A respeito do eu, do sentimento de si, ver também Freud (192 1, 1923), e Janer (1889). Observe-se
ainda que, em Mauss, palavras referentes à pe"ºª aparecem vinculadas à família , enquanto Elias
privilegia o indivíduo.
'Sobre as relações entre sensação, percepção e idéias, ver Lockc (r690, livros 1e 11) . Essa obra trata
de questões ligadas àq uelas que Durkhcim aborda mais carde: a necessidade de que a ciênc ia, "ao
afastar as noçóes com uns e as palavras que as exprimem, rerorne à sensação, mat éria-prima e neces-
sária de todos os conceitos. É da sensação que provêm todas as idéi as gerais, verdadeiras ou falsas,
científicas ou gerais" (1894: 136). Sobre as relações entre reflexão e reflexo, ver Marcel Gauchet,
que cita e comenta passagem de Paul Ya léry sobre o ato refl exo: "a div; são e a distribuição dos atos-
acontecirnentos que estão em jogo ria transformação ídos] atos reflexos ou auc ~1 m;i.ricos cm ato:'
refletidos'', acrescentando que o "a ro reflf"xc é indivisível -.::: realizado exceriurmente ~UHC S que se
possa pará-lo. f... l O ato refletido[ ... ] é um ceflexo retardado - presum ido -que uma sens ibilidade_
especial - com ou sem o tempo de intervir - reprime, equilibra ou sustenta" (1992: r6J -J), rete ndo
sua conclusão: "o estado nascen te do refletido é re flexo".
5 Tomo de empréstimo de Durkheim a expressão "maneiras de ser e de sentir", presente em As regras
do método sociológico: "as maneiras de agir, de pensar e de sentir que aprcsencam a notável proprie-
dade de existir fora das consciências individuais" (1894: 96).

122 1 Cl.A\JDINF, !I AROC !IE


O INDIVÍDUO DAS SOCIEDADES LÍQUIDAS

Sob o impacto da globalização, as sociedades contemporâneas tendem a se tor-


nar sociedades que se transformam de maneira contínua; sociedades flexíveis, sem
fronteiras e sem limites; sociedades fluidas, líquidas. Tais condições têm conse-
qüências sobre os traços de personalidade, dos mais contingentes e superficiais
aos mais profundos, sobre os tipos de personalidade que tendem a desenvolver,
e mesmo encorajar, e também sobre a natureza das relações entre os indivíduos. 6
A fluidez destituída intrinsecamente de limites acarreta modificações nas estrutu-
ras e pode pôr em questão a possibilidade de estruturação e mesmo de existência
do eu. 7 É possível pensar imerso na fluidez, sob pressão permanente e ininterrupta
do fluxo? Privado de tempo, da duração exigida pelos sentimentos, o indivíduo
hipermoderno pode experimentar algo diferente de sensações?
Pretendo discutir aqui certos traços de personalidade do indivíduo contem-
porâneo, ligados e mesmo atribuídos à flexibilidade e à fluidez, por meio das
maneiras de ser, de se comportar e também, ainda que isto seja uma questão
problemática, das maneiras de sentir e exprimir, e da própria capacidade de
vivenciar sentimentos.8 Nessa perspectiva, retomo hipótese conjectura! de Lasch,
entre outros, cujas conseqüências são difíceis de discutir, pois aborda o declínio
dos sentimentos, a dificuldade e mesmo a relativa incapacidade de experimentar
sentimentos nas formas extremas de individualismo encontradas nas sociedades
narcisistas (Lasch, 1979). É oportuno, portanto, que nos detenhamos tanto nos
escritos de Émile Durkheim quanto nos de Georg Simmel para retomar ques-
tões que dizem respeito às categorias, às classificações e às próprias condições de
observação nas sociedades contemporâneas, que conhecem uma sobreposição
de referências, uma tendência à confusão e ao esmaecimento das fronteiras do

" A propósito da análise das sociedades contemporâneas, ver os trabalhos de Balandier (1994}. Sobre
a questão do desengajamento nas sociedades contemporâneas, Bauman (1998).
7 A respeito da formação e dos mecanismos do eu, ver Anzieu (1985, r993} e Bauman, (2000).
8
O caráter extremamente com plexo da questão se refere ao fato de que podemos experimentar
sentin1entos e exprimi-los; nada exprimir e nada vivenciar; vivenciar sentimentos sem exprimi-
!os; e ainda exprimir sentimentos sem vivenciá-los. Durkheim observou que "nem Locke, nem
Condillac consideraram os fenômenos psíquicos objetivamente. [... ] Eis a razão por que, embora
tenham, em certos aspectos, preparado o advento da psicoiogia científica, ela nasceu apenas muito
mais tarde, quando se chegou à concepção de que os estados de consciência podem e devem ser
considerados do exterior, e não do ponto de vista da consciência que os experimenta." (Durkheirn,
1894: 123). Para uma primeira aproximação do estudo dos sentimentos, ver o conjunto de contri-
buições organizado por Ansart (2001).

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 123


íntimo, do privado e do público, e, de modo geral, a uma psicologização das
relações (Haroche, 2001).
Ao estabelecer que "a condição de toda objetividade é a existência de um
ponto de referência constante e idêntico ao qual a representação pode ser re-
portada, permitindo eliminar tudo o que ela tem de variável", Durkheim nos
permite apreender a extraordinária dificuldade das condições de observação das
sociedades contemporâneas. Isso se dá porque a variação própria à subjetivida-
de se tornou uma dimensão específica do conjunto dessas sociedades, fazendo
com que a variabilid;ide se confunda hoje com a flexibilidade e leve, pouco a
pouco, à fluidez. (Durkheim, 1894: 137). Dito de outro modo, a enunciação por
Durkheim das condições liminares e indispensáveis à observação nos possibilita
compreender que, em face da aceleração e da fluidez dos mecanismos nas socie-
dades contemporâneas, a própria possibilidade de observação é posta em causa:
"Se os únicos pontos de referência conhecidos são eles mesmos variáveis, se são
continuamente diversos em relação a si mesmos, toda medida comum está au-
sente e não há nenhum meio de distinguir em nossas impressões o que dependi"
do exterior e o que vem de nós" (: 137).
Simmel, por sua vez, preocupado com o equilíbrio entre nós e eu, a interação e
o sentimento do eu que aí se exprime, descreve processos presentes na modernida-
de e levanta um conjunto de questões desenvolvidas igualmente por Norbert Elias
e Erich Fromm. Sua observação de que a fluidez é um estado estrutural fundamen-
tal, porém algo limitado, isto é, um estado comensurável, nos faz entender alguns
dos elementos essenciais aos processos em ação na fluidez ulterior das sociedades con-
temporâneas (Simmel, 1908). Ele reconhece a existência de 11111a imprecisão das interações
imputável a seu caráter intrinsecamente instável e sugere que as interações oscilam entre a
continuidade e a descontinuidade, a cen= e a incerteza. Assim, questiona a suposta niti-
dez existente na fronteira entre indivíduo e sociedade, e entrevê aí um movimento
incessante, uma mobilidade permanente, restrita à esfera do indivíduo, em que se
anunciam as questões mais atuais das sociedades contemporâneas, isto é, aquelas
que se referem aos limites, às fronteiras, às capacidades, aos atributos e aos traços
característicos do indivíduo.
Valendo-se da noção de interação, ele enfatiza algo de essencial relativo ao vín-
culo social, e sua permanência ou seu declínio, bem como sobre os modelos de
comportamento e a forma como se estruturam e influenciam os sentimentos. Su-
blinha, portanto, algo com que os sociólogos pouco se preocuparam: a natureza,
a fraqueza e a intensidade dos vínculos, ou seja, a qualidade das interações, que é
função da duração, uma vez que esta permite medi-la (Simmel, 1908). 9

9
Ver, também, seu ensaio "A fidelidade. Ensaio de sociopsicologia" (1913).

124 1 CLAUDINE HAROCHE


Em sua argumentação, Simmel toma o exemplo da fidelidade, considerada por
ele mais como um efeiro dos modos de vida, das maneiras de ser, do que uma con-
seqüência de elementos originais e indizíveis, levando-nos a concluir que são os
comportamentos que, de certo modo, provocam os sentimentos. 10 Nessa ótica, é
preciso pensar o que se dá com a qualidade das interações, quando a flexibilidade e
a fluidez dos sistemas econômicos contemporâneos impõem o imediatismo, a ins-
tantaneidade nas relações, e deixam de lado a eventualidade e mesmo a capacidade
de engcjamento e de inscrição no tempo (Bauman, 1993).
No fim dos anos 1980, Elias resumiu e formlril'>L1, com concisão extrema, diver-
sas questões abordadas por Mauss e por Simmel, e que ainda permanecem pro-
blemáticas: o equilíbrio entre nós e eu, a pertença, os vínculos entre comunidade
e socinladt:, a alternância entre os processos de integração e de desintegração, e
a instabilidade. Desse modo, sintetiza questionamentos atuais sobre a gênese e a
definição de indivíduo, ao mesmo tempo que divisa alguns dos maiores problemas
da conremporaneidade. De modo reiterado, insiste sobre a necessidade de superar
a idéia de uma oposição entre "indivíduo" e "sociedade". Como afirma: "Tudo leva
a pensar que não se trata de um problema pontual e individual, e sim [... ] de um
traço fundamental da estrutura da personalidade social dos indivíduos de nossa
época. [... ] a tônica do vínculo se modificou de forma decisiva com a transfor-
mação estrutural mais profunda da relação do indivíduo com todas as formas de
grupos sociais" (Elias, 198T 208, 261-3).
Elias, então, retraça e procura explicar a gênese, as origens de uma insegurança
psíquica profonda, assim como seus efeitos sobre as estruturas da personalidade
social dos indivíduos. Insiste sobre a contínua auto-reflexividade que nasce de re-
lações não permanentes, isto é, "a grande variabilidade das rdaçõcs entre os indiví-
duos", que os força, constantemente, "a um exame de suas relações, que é também
um exame de si mesmo" (:264). Assim, vêm à tona tais processos e estruturas, mas
também os efeitos psicológicos que provocam.
Em O medo à liberdade (1941), Erich Fromm se debruça justamente sobre tais
efeitos psicológicos e elabora reflexões que permanecem decisivas acerca dos tra-
ços de personalidade, de caráter, e dos modelos de comportamento encorajados
por um determinado tipo de sociedade (Reich, 1933, Adorno e Horkheimer, 1944;
Castoriadis, 1990, 1996, 1997). Enquanto Elias se preocupa, essencialmente, com
o domínio e controle dos afetos, Fromm, ao focar os processos subjacentes na , ,
emergência do indivíduo, situa-se, de certa forma, numa posição pioneira: sua
atenção se volta para a gênese desses afetos, a dúvida, o medo, a ansiedade, e para
o concomitante declínio da espontaneidade dos vínculos.

'º Além do ensaio de Simmel citado na nota anterior, ver o capítulo 8 deste livro.

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 125


Posto que a personalidade autoritária é fortemente integrada, são <?~2rocessos
P ~1lt~§...filh~ill.!llilJ'.aS, mais do que seus respectivos traços, qlliWJ~~­
trj~ir para a com reensão do indivíduo conte~eorâ_rm.:i. Tanto a personalidade
autoritária quanto a personalidade contemporânea ameaçam não só as idéias de
individualidade, autonomia, singularidade e não-conformismo, como também a
própria idéia de personalidade.
Ao lembrar que a ~rutu!~ja s2çi~c;illde e da p~qp.ali@~odifica de maneira
Qf~P_fim..dª_ldade -~ª· Fromm enfatiza que o indivíduõSeliberrou dos
vínculos pessoais tradicionais de indivíduo a indivíduo. e que essa emancipação afetaria,
de modo radical, ;u:str.utura do caráter. Desse modo, e!e torna \/isíveis Qs.prornssos-que
levam ao iso/.amento e à impotência do indivíduo, à falta de proteção das novas condi-
ções que ·p~;;;oc.am efeitos psicológicos maiores: a liberdade do indivíduo faz nascer a
dúvida, a incerteza e um sentimento de impotência e de insegurança, outra maneira de
dizer que essa autonomia acompanha a emergência de um sentimento complexo e que
é fome de angústia, o sentimento do eu, o medo de perdê-lo. 11
Em seguida, Fromm insiste sobre a importância decisiva de compreender a
questão da dúvida, da incerteza, e também os tipos de respostas que lhe foram
dadas. Nesses termos, o.autoritarismo é um dos dois mecanismos sí uicos pelos
qyais..Q.11º.m~m p.LO.QJ!i!...i:S.Qpar_do...isg.lam.en to _e._d~~ti_mentos d.e..ii:i:i2otência e
co_n[usão engendrados pelo mundo -~_oder_l)_Q. O outro modo de reação c~-nstitui
o que Fromm chama de 'cco~fÕ-~mi~~ll2P~lsivo", que tende a evitar o auíori- 1
tarismo. Como observa, é o "conformista", e não o autoritário, que possui condições deJ.I ,y
responder às nen:ssidades geradas nas sociedades industriais avançadas (Fromm, 1941).

FLUIDEZ E DESENGAJAMENTO

Segundo nosso próprio ponto de vista, esse conformismo, ainda que interiorize o
autoritarismo sob formas particularmente insidiosas, pode perfeitamente integrar
l
o movimento e a atividade incessante e compulsiva, encarnando-se nos tipos de
persoualidade contemporâneos. Alguns trabalhos recentes, consagrados, sobretu- l
do, à família, às telas, à internet, ao trabalho e à psicologia contemporânea, assi m

11
Ao precisar os efeitos da emancipação evoc2dos por Frnmm, Elias enfatiza que o indivíd1w era ou
devia ser autônomo. "O termo 'indivíduo' tem hoje por função essencial exprimir que toda pessoa
humana, em todas as partes do mundo, é ou deve ser um ser autônomo que comanda sm própria
vida, e também que toda pessoa humana é, em certos aspectos, diferente de todas as outras, ou
talvez devesse sê-lo. Realidade fatual e postulado se confundem facilmente, quando empregamos
esta palavra" (1987: 208) .

126 1 CLAUDJNE l-IAROCJI E


como, de maneira mais geral, aos efeitos do mercado e da globalização sobre o in- .
divíduo, centraram-se sobre a questão do eu, do indivíduo, da personalidade ou J
do caráter comemporâneo: Lasch (1979), Turckle (1995), Castel e Haroche (2001), ~
Enriquez (!991, 2004), Sennetr (1998), Ba.uman (1998), Gauchet (1998) e Kaufman
(2003) se interessaram pela personalidade contemporânea, pela maneira de ser um in~
di~!!~ ÍOl]!l_as : xtremas do individualismo contempor~!!_eo. Atentos a diferentesj
dimensões, detiveram-se sobre os traços de comportamento e de caráter específicos, ,,
como a indiferença, o desinteresse, o desengajamento, a falta de elã, a ausência de !P
espontaneidade, o cálculo permanente, a instrumentalização de si e do outro, os -~~
comportamentos fugidios e o desvencilhar-se. ~:J;:;,
Lasch atribui à evolução da família as modificações conhecidas pelo indivíduo V""
contemporâneo. Ao citar Horkheimer, observa que, enquanto a família burguesa V:->"
"tinha como função fabricar certo tipo de personalidade, um tipo de caráter autori- ("
tário", a família atual educa, constrói um tipo de personalidade radicalmente dife-
rente, isto é, um tipo de personalidade descomprometido, adaptado à flexibilidade
e sem engajamento quanto à duração (Horkheimer citado por Lasch, 1979: 91).
Em seu entendimento, os pais, hoje em dia, abstêm-se de inculcar em seus filhos
preceitos e normas inúteis num mundo em constante transformação; a família
forma para vínculos que não engajem, haja vista a flexibil idade na educação se ter
tornado "uma necessidade absoluta" (: 134-41).
Sherry Turckle, em trabalhos __qu~ inc~em sobre os efeito.LP~~dl_!zidos_ na iden-
tidade pela presença contínua das telas, interessol1:_se_p _el_;i _fl~xibilidade e a Ít<!g-
-mentãÇaõ dõ · eu,
chall1anâo a aten ão ara a profunda evolu ão ocorrick_ç_n tr_e
·0-peiTcXI~falávamos de "forjar3..P..e~§~naj_if{ad_!!'_'.,_tida..c.om_o.11m t_odo, .f_C>_
preseõte;-em-quenãô"cessamõs-~s._o_!!straj_r:__ç.J:_ec:;Qnm.l!ÍLÍ.dentidades_múltiplas,
~undarri _n~~ -tipÕ ~.::_eer;?!1a_U.4a~~-fl~~~e1 Ao corroborar, de certa manei-
ra, a.s ãfirmaÇÕes de Lasch, Turckle ressalta algo também abordado por Sennett: :~
§~e era, outrora, soclãíeculturalmente valorü:;i_çla [...]. º-~~_i~i.sivo
agora é a flexibilidade, a_ER._~cidaduk_adaptação_e_d~mu_da'!Ça", pi:Lvilegú1_das eni
de·t;fuiento d;-~stabilidade, considerada algo rígido (1995: 255).
Ems eus -~Sêudos sobre o rr; balho,smnetpercebeuma "corrosão do caráter",
que imputa à flexibilidade do sistema, e vê na idéia de "carreira'', atualmente aban-
donada em proveito do "job", a encarnação dessa flexib ilidade. Como le1llbr..a,~o
job, ue no in _lês sJculo XIV era "um fr~mento ou Pceda o de algy_ma coisa",
uaduz-S;o'. hQje no caráter descontínuo e nas atividades fragmentadas e fracionadas -
p~iq-uicamente f;~~l!t§rlas - ligadas ~ -~r~b-;~~_(Se~il~t, I99s;_ _9) 12• D~se

12
"Em suas origens inglesas, a palavra carriere designava uma estrada para os carros (carriages) ; aplicada ao
trabalho, d esignou a via pela qual se seguia a vida em seus propósitos econômicos" (Sennett 1998: 9).

A CON DIÇÃO SENSÍVEL 1 127


modo, Sennen se questiona sobre "como preservar o que tem valor durável numa
sociedade [... ]que se interessa apenas pelo imediato", ou seja, "como cultivar enga-
jamentos a longo termo no seio de instituições que são constantemente deslocadas
_ ou perpetuamente reelaboradas" (: n). O fluxo contínuo, por provocar efeim,~ \ .
\ de profunda alienação e destruição do eu, leva-o a insistir sobre a necessidade de; e ~
1

\~ "salvar o sentimento de sidõ1luxo sensonal" (: 61) .


13

Marcel Gauchet, em traoal os próximos aos de Lasch e de Sennett, não só vê


no "desenga·amento da pessoa" um fenômeno inédito, como esboça um amplo
quadro da psico og1a contemporânea, no qual observa o apagament~~ia
~~fa.ç.fü:_s_çpJU_ Q Qutrp e na rela ão consigo mesmo, isto é, uma "aderência a si"
transformada em traço carac~rístico da per~;;-n;iidade contemporânea (Gauchet,
1998). Nesse ~texto desenha-;e um modek;de- ;;;o-;;;;Jid;;Je-7r;;doxalmente ir-
__!!/ktida e imers~!}_~..!Yf:!._f!_-re&Í_l)i~.!..P_ermanente, em que "ser e_u m~_mo" n~o
qgg_dizeunais "saber g_que leva a agirco~tãae e lihe-rda~~ r", ou estar
p~isacfo, _mas sim poder moviment~e;·d;si;~~r-se __d~_m;n-eira con~r_e (:177f
O_~m~SQQU11UQ e!!:_f!!!va a possibilidade de reflexão, a ~~en~!1id~~-e
q~!!!!l~ hesitaç~o, a possibiliJ_ade de istanciame~o, processos de dab_~ação das <f,
J :x;Q

~~p_çQ.(:~-~iJ._§S.ado nau.mgções. Dessa forma, a personalidade hipermoderna


se caracterizaria pela ausência de engajamento, com a qual o indivíduo está "li-
gado, porém distante" . Ele experimenta "a necessidade da presença dos outros,
mas afastado deles", que permanecem abstratos, inconsistentes, permutáveis ou
inexistentes. Sem continuidade, sem aspirações afirmadas na duração, o indivíduo
hipermoderno, "na aderência a si" e em deslocamentos incessantes, só consegue ser
ele próprio "se pode desprender-se de rodo modelo ou adesão, sejam eles quais fo-
rem". Só se comunica ou relaciona sob o modo da prudência, do controle de si, da
dominação: "ele se afirma não ao se comprometer, mas ao se destacar" (: 172,179). V
Em termos.s imi"lares;-BãUilíãil su in a um desengajamento análogo nos com-
portamentos e vê na mobilidade, no deslocamento incessante, a quintessência do
poder nas sociedades contempo râneas. Em sua descrição da atmosfera do funcio-
nário e de seu modo de vida, do (fabalho, da cidade, percebe que "nada permanece
parecido, imutável, durante muito tempo, nada dura o suficiente para se tornar
familiar, acolhedor e tranqüilo", nada responde, portanto, às aspirações de vínculo
e à necessidade de pertença (Bauman, 2001: 46). "As lojas desaparecem, os rostos
atrás dos balcões não cessam de mudar", esmaecendo-se "tudo o que é contínuo,
estável e sólido'', tudo o que sugeria a existência de um quadro social dudvel, se--
guro, pacífico e pacificador, e ainda "a certeza de poder rever-se com regularidade,
freqüência e durante muito tempo" (: +7).

13
O eu conheceria hoje um momento inédito de alienação. Cf. Marx (1844, 1859).

128 1 CLAUDINE HAROCHE


Pode-se dizer que tais observações constituem "os fundamentos epistemológicos
da experiência da comunidade", de certo modo, "de-umãCõmunidade estreitamente
~a" (: 47). Seria tal experiência que, hoje, faria falta, ou seja, sua ausência expli'ca-
ria o declínio da comunidade, uma vez que a falta de expecr::i:rivãS, d~ elã, to~n~m
O~ vínculos da comunidade progressivamente COnS_!!mfveis: "perecíveis" (: 48). '
e
Dick Pountain David Robins pensam que o descompromisso, o desengaja-
mento e o frio definem o espírito do tempo dos dias de hoje. "Çool" corres onde
à_gpacidade de fugir, de escapar dos sentimentos, "de viver num mundo fácil
que questiona e recusa vínculos possessi~o:;" (cTtado por Bauman, 2001: 51...:.2).
Õs engajamentos duráveis, que constroem--vbculos e em que a individualidade
é valorizada pela exigência, foram substituídos por encontros breves, banais e in-
tercambiáveis, nos guais as rela ões começam_ tão__r:Ípido_ quan.m ter~- Os
~íncuios, hoje, são_mais _fr~geis e efê~s . O estar junto tende a ser brev:e, d~ cyrta
duração e desprovido de projetos, r_orni!ndo o desengajamenro um novo modo de
p~der -e cki-rD;~ ã~~Com is! º• o ~i:!lP-Qr_f!!!I_1.e_!!!2-@~fües- $_erraduz"--irn.~~i.~ e ~
fundamentalmente, "na capacidade de escapar da comunidade" (: 57).
-Em-ãi-êigo recente, Dany-Robert Dufour chama a atenção para ~ê.ncia
de uma estupefação profunda e mesmo de um niihsm9, explicados pela acelera-
çã~ da difusão do modelo de mercado (Dufour, 2003)_ Ao descrever os processos
presentes no niilismo ~ ntemp~ân~o que respondem a imperativos econômicos -1
funcionais, Dufour esclarece as razões da fluidez fundamental das sociedades de (
mercado contemporâneas, em que se necessita de "tudo menos do que possa en-)
travar a circulação das mercadorias", assim como seus efeitos psicológicos sobreº )
indivíduo, "efeitos desestrutu1antes que provocam uma profunda redefinição da
forma moderna do sujeito" (Duíour, 2003).
De acordo com Dufour, portanto, o mercado se esforça em suprimir as resistências
~~1:1~º' Sl!ils_b_e~aç~es, indecisões ~-reflexões: o merca o acomo a-se mal com
um traço específico da forma-sujeito [-:-:-.f,OTíVi-e-arbítrio crítico que leva, com efeito,
a discutir tudo, a constantemente retarda r a decisão da compra"_ Em outras palavras, ,
o mercado procura "suprimi! qs_vÍC!f.l!!2s, os elo~, º! se~ri~ento~ gu~_ão odem ser \ ~
convertidos em valores mcrc~{ stim~do c.QJ1!0uam_çrne as sensações, COU) ()_ 1 ®~
intuito de desenvolver Ó co~sumo e dispo;, -;;m suas palavras, "de indivíduos clclrni-)
dos por nada n1ais do que a ne°"2essiàade de consumo setnpre ampliada,, 14. '

1
·• ( )llllCse tr:H.luz na~ , ,b~c r v~u;ões <lt: Kaufm~111. ao pcrccbl'r uma nunaçáo alllropolôgica profunda
que concerne ao cu , à busca permanente <le visibilidade de si, à própria produção do eu na visi-
bili<lade e na quantidade: "a identidade, outrora outorgada pelo lugar social, deve ser produzida J'
agora numa quanti<ladc tão grande quanto possível, ampliada cm seu ser pelas imagens e outros ~
traços de si" (Kaufm.rnn, 2003).

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 129


Lasch se referiu do "porco" , equivalente à família para indivíduos isolados num
mundo indiferente, sem coração, duro e frio. Elias, de modo mais gené ricm, discu-
tiu a "necessidade elementar de calor direto e espontaneidade que rodo indivíduo
experimenta em suas relações com os outros" 15• Ora, a fluidez isola, emperra e
evita os vínculos, os elos e o elã: tende a produzir vínculos formais e superficiais,
falsos vínculos e, mesmo, a ausência de vínculos, acompanhando-se do próprio
medo de se vincular, do medo dos outros (Haroche , 200!) .
Penso ser releva nte, po na nto, inte rrogarmo- nos sobre a imbricação e o respec-
tiv~ pel das sensações e dos sentimentos no indivíduo co nrempor1 n ~o, ::_trm. de
que retomemos questionamentos gerais presentes em trabalhos seminais tanto na
~osofia política e na sociologia quanto na sicolo ia social; obras ue ~ ue _tio..Qa-
ram a maneira como exprimimos os sentinienros e a qualidade e a natureza dag_i:i-
!~ue ~rimi~ mo tamõéiliã.o _g_ue, e 1 erada ou involuntariamente, não
exprimimos e do que calamos ou recalcamos de maneira permanente, bem como l1
~ncia e, inclusive, a incapacidade de vivenciar sentimentos ponrâneos. 1''
Em texto de 1921 dedi~_~ressã~óri~sentimentos", Mauss
esboçou questões ainda não resolvidaS. Urge retomá-las, pois p~mmeiii repensar
a pessoa e a~manciras de .\ cr e de sentir do indivíduo co ntcmpod1_1co (Maw;s,
19 21). Como el e observou, "t<_ida cspéciedt:_~x p1:c!?.:\i!Q_o.ral d ~ S(:'.IHiIUQ!!.os [... ! é,
em.Ei_~nçia, .n~o . tLD! fenôme;;~-~;·clusivamente psi.m!Qgi_s_q_.Qll__ftsisi_L~ ico2...~~ m
um fen~111eno so_<ial, marcados, de modo eminente, pelo sinªLde não espontanei-
dade e a mais [email protected]". Apesar de admitir que os ritos mais si mples que
estudara não cinham "um caráter com pletamente público e social", Mauss notou
que "lhes faltava , em alto grau, o caráter de expressão individual do sentimento
experimentado de forma exclusivamente individual" (: 269, 272).
Ao afasta r a questão da espontaneidade individual, abordou os sentimentos por
; me-io de modelos e de sua rituali zação, sublinhando a necessidade de que eles
fossem ditos: "se é preciso dizê-los, é porque todo o grupo os compreende" .~2
insistiu em que "fazemos mais do que manifestar nossos sentimentos; nós os ma-
( ~estamos aos outros~_pois é preciso manifestá- los. Manifestamos a nós mesm(;s,
exprimindo-O~§ _O.JI..tr.os e e~_:::_i_rtuie<los oucros" (: ?.77-::.sr. I;'.!s~ m -5w;;, o
sentido u_e._1!.P-reen<f_e14.ii!1.l.~ºnvençõ(':s~ · J~; -reg~Íaridad es __q~:_~_::~pe rta~a m-sua·
atenção.
,/ - . -·-· _____,
11
l'i Existem limiccs à variação pjra que a pessoa permaneça a pessoa? São neccss:ir io" l in~ iccs - leis,
regra .\ , normas - par:1 qu <.: a.s pc.o.;.-;oa .'I .... cjam prot <.:gi da .. ; e, r11 :1 i.-. do q 11 L: i .1.,~o. p:n :1 q11c po.\~; 1111 cx i... tir.
C f. Edclman (1999).

130 1 C. l. AllD I NE lfA ROClft:


. os dias de h.oje, faz-se necessário aborda_.rJ!_~_!)tudo dos sentim!;JllQs_p.elo-Yiés....d a A~
N
relação com o_~e111_p~-~ bus__c:~_gçµsar _dJJa,'i__Ç_~f!lSm9.es_pre entes ruui.tualizaçji.QÂ.o s rJ
s;;:i"tim ffiros: :;t~-~~ção e a ausênci;i_~ ~em_!4_o_:_{\ falta de tempo prece-
deria, daqui em diante, a expressão dos sentimentos? Trata-se de algo desconcertante
para nossa maneira de conceber os sentimentos como próprios à esfera do irracional
e mesmo do indizível. A ininteligibilidade, a erda de sentido na relação com os
outros e consigo próprio, ~velaria um entrave, um declíni~esmo umJ!Jf!~Rªci- . /
dade não tanto de exprimir seny_i!l~nt~ de~~~im_e_Qtá-lg~1~- senti-1()~_? e
Pgdc-se conceEíer e--r;;~ginar uma sociedade_J>em_&e_!_os, s_em sentimentos, mas
nã~2_e__p_ode_5Q~-la se1E_ _r~tu;iis q~; sej;i~ _4Jscern_!vei~, inr~figlyeis e_recoº"he- -
~ - A_S!]?!!_cj datl_ui.e ..s.ent-i-i:-estaria_enipr_o_cesso_Je _d~lípjo_n:I!' formas extremas -@
~ individualismo? A .i!}i_!!__t~l~g~?i!id<l:~~ p_1:g':'_()C:~4UJ.e~~ s~~~~ç§~s _con!ínuas _~~~ia = ~
afastado a expressão dos sentimentos em relação_aos outros e a si mesmo, as.sim
~ a capacidade de vi~enciar sentimentos? O sentir renderia, _hoi!,~arrelar-se - ®
e a co-1 ;fundi~-s~ -~~m a sensaç_;fg_,__C..OI!LQ~fluxo? Sentir ainda pode ser con~
~;;Jio da ord;~do sentido e do sentimento inscritos !!ª--si_I:!_~? Trata-se
li
de questões que, em nosso ponto de vista, situam-se no cerne da problemática do
indivíduo hipermoderno.

A CONDlÇÃO SENSÍVEL
DES CON TINIJ!D A DF E INAPREENSIB ILI DADE

DA PERSONALID ADE CONTEMPORÂNEA

Sem o renô meno que chamamos de fidelidad e,


a sociedade, na forma em que existe atualmente,
náo ceria como subsistir durante bom tempo.

Ceorg Simmel

Em recente artigo dedicado a pensar as formas extremas de individualismo na ~ so-


ciedades democráticas contemporâneas, ·Marcel Gauchet obs~rva que "a nature~a.
específica do individualismo contem12orin~~J:.J.i re_sponsável por uma n!:widade/ ~­
ag_tropológka ab~lma". Alétp das conseqüências soc!_ai~_.:_~forma_de in~~v~)
d_uª!ism ~a c_onseqiiências p~ofund!1_5_I1~- i_c!_er:i_t!dade, na subjetividade dos
indivíduos (Gauchet, 1998: 167-8). ----
~et chama a atenção para as modificações que os tipos de personalidade{::;
conhecem nessas sociedades. ''Assisti.mos à emergência_<k_ununo_dclQ..gçral de çqn-
du ras n j'i base é a evita ·ão do confronto"(: 166). Em seu entender, os atuais modos
de comportamento, !Tiovidos unicamente p.d.1Lin.tcre.sse..po1:-si-mesu10, caracterizam-
se por uma espécie de mobilidade, pela tendência a um deslocamento constante.
lnacessíveLe.Jndiscerní'<d, o indivíduo designado como "ig.divíduo hipercontempo-
r.ânei'... não sk.i.~a de associ'!r a.s:sQULYa..à..parti.ciµa.s:ê_o. Trata-se de um indivíduo g!!_e
es!i!bel~ce vín,culos ap_çQas sob o mg_do_<kRrudêJ}cia e d_y controle, adquirindo como
fQrma geral_ul]l. conSJ.ill:fil_~uivar~f..Jo ei:aro momen~~ ~ part!~9.~vª/J.'@
s~, afirm_a~d~s~penas quando se desvincula _(Enriquez, 1991). /;

/" --- ---· ~· ------ -- .. ··--'


~ A MUTAÇÃO ANTROPOL~GICAj

lo ind.ivíduo indiscernível se furta à anális0 Ref]erir sobre sua subjetividade, além


da.mm.L~t?ção da indiferença e da instabilidade nos comportamentos, apontari'a

1 133
p~-~yat~gi.~__sk_ln_cg_ns_is_t_~cia._42 eu, isto é, delimitaria uma modificação nos
vínculos, nas disposições psicológicas, nas qualidades morais e na força e estabi-
lidade das convicções e das rebções? Teria se estahclecido uma modific_~ç~o _ na_
maneira d_e ex erimentar e exprimir os sentimentos em relação aos outros e a si
~mo? A_!:Je._cessidade dc:Js:p_t~n~ir,__d!';_JIJª;;r~rofü~º-s_s_e:_!]._ci~~~~os, _a D_<!t~- 1 /
reza e o modo de expressão dos sentimentos nas sociedades individualistas se im- / /
p.Q.e, P'.:li_s essâ~ s~~i~d;de~-ç~-~1~eÇerr;fo~;;B~_d~~ingi_y0t!alism<J e _çle !lªr~is!Sí-i=i-;q~;e , f_)-
1nodifü;arn e p.õ~m em <;_Jues!lj~cul~ ~l!imentos ent1:~~víduos. t'.)
G'.11!.c_l:i~~es~1llliJanças o tra o e~o t:.'..'H~Fológico _9._l_~~!?~í- 1.--" 1
tico, de urna -nova- i:elaçã.uin.d.iYi.íill_al com l\~~ Para ele, os indivíduos não se 'r·
inscrevem mais no tempo ou o fazem de forma rad icalmente diferente daquela que
faziam. São testemunhos disso as maneiras como vivem, fazem planos, avaliam,
decidem, julgam e interagem uns com os outros. Per_ç_ebem, r~gem e _s~__<o2nduzem
num reg_istro imediat9, ~~~l1e?-'- se1!1_q~gm:nLa..~xp.rirrijr um_ínij_çg~!ã
de-~~RcLl).!.a11eidade. ['ruderrt~s, mais.s_!~~~º1!112!~!!.1.!&W9s...d_Q_ que calculis_i:..as, <l_in-_
co_nsistência de seu e~1 se faz acorrip;mh_aI_ d'!_ falta de continuidade e engajamento
nos .:::_Lfi."°Zul?s," e -;p_e_smo _q_e 11ma inaptidão pa~a os ~vírictili_Js : GÇos~;timen.i:os .
. "De tanta insistência para que não exista relaÇão alguma e nt~e o que eu era ontem,
\ o que sou hoje e o que poderei ser amanhã, nasce uma inccrt:cza radical sobre a
1 , - - - - - - - - -- - - - - - - - --
! continuidade e a consistência do eu. E nesse tempo da mudança, com o poder
\ quep roporc1ona ein·-;-~laçã~ a~ eu,que reconheço, por excelência, a personalidade
\ ultra-contemporânea" (:178)
A_R()SSe de si s~__ _;póia não mais na substância, nas qualidades, nas aspirações e
, nos valores morais, mas sim na capacidade de se cl_e_~yin_ç_iJ.l<Lr_e de se fty-rar_ill_<ôl~ ive
1 --· ----·--·-···
. ,JJ_.,,,
P ê!_a ~_stabili_dade _e_m_.r..e_illção a si mesmo. Tratar-se-ia de urna nova forma de niilismo,
de uma estratégia de dominação perversa ou de um tipo específico de economia
psíquica que implica a anulação de si ou, ao menos, uma hesitação, um mal-estar e
uma perturbação permanentes? Hoje, a posse de si parece requerer a inconsistência
do eu ou conduzir até ela.
Gauchet percebe aí o efeito de uma aprendizagem ou valorização do desen-
gajamento em relação a si e, portanto, em relaçfo ao outro, algo que contraria a
necessidade das formas e reservas que toda vida cm sociedade implica. O dcscnga-
jamento, o descompromisso, acarreta uma relação específica co;1sigo mesmo e con1
o outro, caracterizada pela ausência, pela ignorância de todo movimento espontâ-
neo1, pela inconsistência e, por fim, pelo intercambiamento e a instrumentalização

1 Numerosos trahalhos consagrados os cnrn1·<>cs rdictclll o i111crc.5 'c C'lll!Ínuo pela c 111crgé11cia,~
inesperado e pelo efêmero d:1s ex pres~õc.s emocionais do indivíduo, mas tendem a negligenciar
uma <limcn<io igu;dmcnte irnporranre, a dos sent imc ni-o": silen c ioso.<,. e in:..c riro.'- 11~1 longa d ur;1 r,·~ío,

134 1 C L\ LI DI NE 11 :\HO CllF


de si e dos outros, que tendem a reforçar uma equivalência generalizada por meio
da inexpressividade e, mesmo, da inexistência de sentimentos. Em outros termos,
o desengajamento traduz e instaura uma relação com o tempo que leva a recusar
a inscrição na_Qggç_ão, a se furtar à dependência, a ev~~~-9 e!:!lp~nh~, a escapar
da história dos_vínculos entre OS indivíduos e meSll!.Q_!.l_a história, de manetra mais
fundamen!_<!UI:'.nriquez, 1991). O estatuto e a identidade profunda do sujeito, da--
subjetividade são postos aqui em questão 2 •

VÍNCULOS FUGAZES, RELAÇÕES EFÊMERAS

Embora trabalhe num nível bastante geral, fundamentalmro.te_antr.op.ológiço,


Gauchet considera os enfoques sociológico, jurídico e político. Elabora, na verda-
de, uma antropologia da democracia, pela qual insere sua análise na longa duração
e busca apreender tanto o declínio do religioso quanto a crise dos valores, o declí-
nio das formas e a desinstitucionalização da família. Nesse sentido, confina muitas
vezes, embora com enfoque diferente, com a abordagem de Pierre Legendre, que
privilegia o processo de desinstitucionalização que desestabiliza a base das socieda-
des ocidtntais, e a de Cornclius Ca~~~~uja__ê_~fos~~ca i sobre o pr<_Jg!~~<;_o ~a j
~nificância nas sociedades contem orâneas. 3
Essas análises, ao nascer num momento de crise que traduz um "aumento do
princípio da individualidade" e contribui para anular, em cada indivíduo, o reco-
nhecimento e a "inscrição psíquica" da "precedência do social" (Gauchet, 1998:
205), remetem aos fundamentos paradoxais da democracia, em particular àqueles
relativos à questão da igualdade: dos direitos sociais, dos direitos morais e em
matéria de respeito, consideração e reconhecimento. As reivindicações relativas
aos direitos morais se acompanham de uma sensibilidade extremada em relação ao
eu e são indissociáveis de reivindicações identitárias que se traduzem em formas
de individualismo e narcisismo dificilmente compatíveis com a própria idéia de
sociedade democrática.
Podemos avali ar, assim, o interesse que a releitura de certos textos sociológicos
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~-------...._

. nc mais profundo da subjetividade e d ~ sensibilidade do ind ividuo, assim como suscetíveis, quan-
/ do a:neaçados ou gravemente questionados, de provocar grandes transfonn:3.çóes sociais e políticas
l ;as sociedades. Ver, a esse respeito, Ans.~rt (2001) _
· A respeito da ausência de pensamento da falta de sentimento, de desligamento pulsional e das
1>crsonalidadcs perversa,, ver heud (r9 o, !92.3> 1930), Bouvet (1954) e Winnicott (1971) .
1
As an.íliscs de Gauchet cruzam de forr a mais indireta com as de Elias (1989: 21-44) sobre a infor-
malizaç'.!o e com as de Sennctr (19 74: 05) .

A COND IÇÃO SEN S ÍVEL r35


de Simmel apresenta no sentido de esclarecer e mesmo aprofundar a análise de
Gaucher (Simmel, 1908) 4 • Pouco abordados nas reflexóes políticas sobre as socieda-
des democráticas contemporâneas, os remas e as prcocupaçóes a que Simmel se de-
dicou se situam no cerne de uma reflexão antropológica, psicológica e sociológica
sobre o político. As questões analisadas por ele no início do século xx conrribuem
para esclarecer o pensamento de Gaucher sobre as sociedades contemporâneas.
Simmel desenvolve suas análises num momento <lc crise, numa socicdad<.: frag-
~entada e arormentada, atravessada por tensões ameaçadoras; destaca remas da
psicologia social, esforçando-se em caracterizar, de modo preciso, ~_çza das J_-
interações individuais. Seguindo um enfoque microssociológico, priviiegia os de-
r es .~ ~significantes da vida c~idi~na, çlistanciando-se dos sistemas
~baliz~-~_c d~~de~ quadros tra~ici~n_~is de apr~~:ão_d_? s~Cͪ~
Nesse sentido, os artigos "A fidelidade, ensaio de sociopsicologia" e ".~
sobre a sociolQgia dos sentidos" constituem estudos que, aq2_!!blinhar m_aJ}ifeg_'!-
ç~~etalhes-da-v.ida._sncial aparentemente ~erficiais e insignjficante~, trazem
à luz pmçessos-suhºacentes resentes tanto nas form-ª!i de socialização ~to em
a.s.sru:ia.çíieB.,..i1m~ões e Esrndos.
Os Estados e sindicatos, as diferentes formas de clero e de família, as corporações e
fábricas, a formação das classes e a divisão do trabalho são os órgãos e sistemas que, ao
lado de outros do mesmo gênero, parecem formar a sociedade e constituir o campo
de observação das ciências que a ela se vinculam. ~ssasJi:u:mas,_..11a_v:ei:.dade,_sã!Lcris.­
t~.iz;i_çQ.es...da vida r dos seres associados. [... ] Essa v~Cj!~ ~olda os~~
ugs aos outros exprime, além das formas de associação que ostentam o título de vastos
or~Ís--;;~rand~c!s:_d~~ue p,e_rmanecem de alg~~a
em estado de fluidez [... ], mas sobre as quais se fundam as relações entre os indivíduos,
{<, '.
formando o estado social [... ].Trata-se de essoas que se observam, sentem ciúmes, cor- / 1
ja~j~t~~e_~~~~~~~ j' V
1
res.pondem-se,
ou repudiam-se independentemente de todo interesse palpável (Simmel, 1908).
1
-
-- ----- -~- -

' Os textos que formam a sociologia de Simmel foram reunidos em francês no livro Sociologia: estudo«
sobre as formas de socialização (Paris: PUF, 1999). A respeito do contexto, do período de efervescência
cultural, a profunda crise de valores, o ceticismo generalizado e o clima de ruína moral em que
Simmel escreve, assim como seus conceitos fundamentais, a distinção entre formas e conteúdos, ª'
continuidades que se aram e a.s origens da.s formas e seu caráter funcional, ver Lévine (1971), para
quem as formas "não são fixas e imutáveis, mas nascem, desenvolvem-se e evenrualmenre desapa-
recem ao longo do tempo". Ainda que Simmel não renha consagrado um esrudo específico sobre o !
tempo, seus trabalhos abordam de maneira indireta, ma.s decisiva a questão do tempo nos valores,~
nos modos de vida e nas interações.

136 1 CLAUDINE HAROCHE


AS SOCIEDADES INFIÉIS

A análi se de Sim mel chama a atenção E!~c i sa_!!l_ente para_a_ iinRonância dessas re-
[~ções móyei ;~, fü azes ,Tugiti~s,~fê~eras e impalpáve is, insistindo sobre um ç_~n­
ceiro essencial E?-ra a con-:;-p reensão das sociedades e ;-e~ência, a manutenção
e _2" dec)ín io _i? vínculo ~ocial: a i1~teração, conceito central~~ se-; s- trabalhos _e
indissocdvd da ( l~cstão ;lo ;cm ~o e da intermitência dos vínc~1fo; sociais. Ela
r~ tém e~a-~pécie d e instabilidade ermanente dos estados, que, ao mesmo tempo,
,,> contribuem ara instalá- la; me~rn_o_i_nst~\'e isc po~em aEmentar relações duráveis,
.,) Ol!_t;_[Il_~s~t~~~vessá-las ou des~uí-las 12~r_fl_1~i()_da ii:is::_t'1·teza e da__angústia çi_ue
- \ são suscetíveis de criar.
Mais do ql1e àsJo2:m:!s propriamente ditas, Simrnel se interessa pelos ~os / . . _;-/.!
s:i bjacente.:_; ~~.1~1'.! s: p~~~aç~o, pelos inces_!)~n~eL!!:!_ovimen!os_de _va!~~ll.· ,'e+ -
pela mobilidade permanente dos processos que dão origem às formas sociais e ,
psicológic~;, ~;;-~2!e~fl_~~i:i:!-5!___ s~P-_<:me-da c~~São~~dOflincio-;;_amento t;nto j
do indivíduo quanto dos sistemas institucionais . A questão do tempo, portanto,
é situada por Simmel nas fronteir~s-co~nte-;;:;;nte móveis entre os indivíduos e
a sociedade, as relações cotidianas e os modos de funcionamento institucionais, a
interioridade e a exterioridade: "a cada dia, a cada hora, refaz-se a urdidura tecida
pelos vínculos, eles escapam e são substitu_!_2~or ou_.!!:Qs, tecidos por sua vez c_o m
~~o~ f!_os". Apena; ;que Sim~el chama de "m_!_croscopia psicológica~ pode apre-
endê-los . "As grandes formas que proporcionaram à ciência seus primeiros objetos
de estudo não púderiam, de forma alguma reconstituir a vida social tal como dada
pela experiência" (: 224) em ~1\as relações momentâneas ou duráveis, conscientes
ou i nêõn~>iciêi'i res, que nos atam !". nos separam, conclui 1. ~
Simmel, portanto, distingue a forma exterior, estável, d as instituições, dos siste- J
mas e dos organismos, d e sua forma interior: --

' O restabelecimento dessa continuidade, que vai dos usos aos sistemas e direitos instituídos, das
in terações individuais aos sistemas sociais e Estados, também foi abordada, no âmbito da socio-
logia alemã, por Ferdinand Tiinnies (1909) e Max Weber (1922). W eber aborda os problemas de
continuidade a propósito dos elos entre costumes, usos e direitos nesta passagem, que prima pela
extrema concisão: ''.A transição do costume para a convenção e o direiro é abso1uramente incons-
tante j.,.J. O que diz respeito ao costume se situa n a orige m Jo que é obrigatoriamente válido"
(: 61). Sobre a continu id ade: entre formas e con teúdos, ver esta afrrmaç5o de Lévine: "Os conteú-
dos se revestem de um sentido particular quando d esignam necessidades, aspirações e fins que
conduzem os indivíduos a imeragir de forma contínua. As formas constituem os processos pelos
quais são constituídas unidades supra-individuais, estáveis ou transitórias, solidárias ou confliruo-
sas, de acordo com o caso" (1971: xxm).

A CONDIÇÃO SENS ÍVEL 137


uma relaç~_9ye é_ um _pxoçe~so em mobjl!Qalli:.? em devir permanente, ganha exte-
~i;;me;;-~~ um;forma de certo modo estável; as for;;-;;;~iógicasD a representa-
ção voltada para o exterior, não podem jamais se moldar exatamente nas flutuações
internas da relação [... ]; os d.ois níveis possuem seu próprio ritmo de desenvolvi-
mento. [... ] a forma exterior se caracteriza, com freqüên cia, pelo fato de que ela,
propriamente falando, não se desenvolve. [... ] é, evidentemente, a norma jurídica, a
norma exterior mais poderosa, que permite fixar as relações instáveis interiormente
(: 67-68) .

A dur_~ão das interações p_rr..rp.~ir '!..,,q11alidad~9~~3'.§e_s s~ciais, aspecto


re~saltado com partini!_~clar~E ~~açãià -fidelidade,~~-;:;_iiderada- por SimmeÍ
a própria ~~ndlçã~ - da existência da sociedade~ "Sem o fenômeno que chamam~s
d~ fidelidade, a sociedade, na forma em que existe atualmente, não teria como
subsistir durante bom tempo". Entre os fatores "que conservam e mantém" a so-
ciedade, Simmel distingue componentes elementares e outros contingentes. Todos,
contudo, quer seja a persuasão, o constrangimento, o hábito mecânico, o senti-
mento de dever ou o amor, "não poderiam preservá-la da decomposição, se náo
fossem acompanhados pelo fator fidelidade"(: 64).
Assim, ~.inserir a fidelidade no contexto mais ~ra l das form as de sociabi lida- ~
de, dos modos de vida e das maneiras de ser em sociedad;,-S i~;eTfaz dela- L;-;;;_
dem~o que reflete a ~f>~_ssão de uma vqntaq~, u1n ·m~iQ_~ tamb_é!!l condi ··ão de
perpetuação da sociedô.de.
Õque s-e dizã°"~speito .dos Estados, que os meios que os fondaram são os mesmos
que permitem a sua manutenção, é apenas parcialmente verdadeiro [... ]. Uma vez
constituído, o vínculo sociológico, seja qual for sua origem, o sentimento ou a mo-
tivação prática, desenvolve uma aptidão para a autoconservação, para a preservação
autônoma <l c sua fcnma, independentemente dos motivos que, na origem, fizeram os
elementos se atarem. Sem ma capaci<ladc de perdurar, uma vez instituídas, as células
da sociabilidade, a sociedade em seu conjunto, se esfacelariam a todo instante ou , en-
tão, se transformariam de 111aneira imprevisível(: 64-58. cf. também Mauss, 1929).

Que o senrimento em geral represente o fundamento ou as origens das formas,


ou que seja, em vez disso, um efeito das formas e dos vínculos soci~is, não é essen-
cial à análise de Simmel. O fato de a fidelidade Sêr uma forma ou um 'emimento
não possui, igualmente, grande i.nteresse. Parece-lhe primordial q11e a duração re-
pr5'.sente o elemen.IQ.q.u.e cria ~de, ou"Seja:q-~e um-ii10do--:9éjõu~Tídade .e
um_tip_o de interação _ins_crit9s na duraçã.o_cngendrem e perpetuem a fidelidade.
Às rela.çÔe~ -;;ascentes engajadas pelos indivíduos corresp~;le n~Íes um sentimento
específico [... ]. Se a relação prosseguir e Jurar, aparecerá. então, interagindc com sua

138 1 CLAUDINE llARO C llF.


continuidade e persistência, um sentimento particular, ou melhor, a situação psíqui-
ca original e fundadora se metamorfoseia (nem sempre, mas em muitos casos), de
forma a fazer aparecer uma forma partirnlar que chamamos de fidelidade (: 65).

A fidelidade originada de um modo de vida estável é esse sentimento específico


que busca a conservação e a preservação da relação com o outro:
É preciso almejar, a propósito de um grande número de relações ou de vínculos
que unem os homens - o que é, de forma geral, Ui;!!ª-das..LCllldições...du:xistência da
s9ciedad - , que o mero hábito de estar junto e o fato de uma relação adquirir certa
duraçi_q_fu~ surg~i:J:.J~esen a do sen~o. [... ] Isso amplia o conceico de
fidelidade e introduz um facor muito importante: a situação sociológica cal como
existe em sua forma exterior, o fato de estar junto de alguma maneira, atrai os senti-
mentos que lhe são .especificamente correspondentes, mesmo que esses sentimentos
não estivessem presentes em sua origem e não contassem entre as causas que funda-
ram a relação (65-6).

Sifil_m_eLp.uuantu,_m~_çgtQ.§_J;entiment9s mais como efeitos dos amores,


dos mo.do.L9~a. das maneiras do qJK._ÇQ_mo elementos originários, inefáveis
e indizíveis. S~_formas , Q.S comportamenÇQ.h_que induzem os sentiment!?s.
Seu pensamento privilegia aspectos que nos parecem essenciais à compreensão
de certos procedimentos das sociedades democráticas contemporâneas, os quais
dependem, simultaneamente, de fatos e de sentimentos: trata-se de procedimentos
próprios às_!!.ivindicaçóes identitárias, que mohilizam.fu.rmjts, por vezes extremas
e_fregüe11temmte pe.rnício$as, d_~_pi:_oJ:~çãq do indiv(!i_y_o; trata-se ainda -de -l~gisl;:­
çóes que buscam dar conta da afirmação, algumas vezes paradoxal, da expressão
dos sentimentos morais. A questão da fidelidade traz em seu cerne uma concepção
de pessoa que se situa no próprio fundamento dos direitos da pessoa .

....-------- - - - - - - - - -
s IN~UOS INSIGNIFICAN]."~
- ---
Trabalhos recentes de teoria moral e política, assim como de teoria jurídica, têm se
dedicado a refletir sobre os processos presentes na gênese e na elaboração de nor-
mas, de políticas e de procedimentos jurídicos, buscando caracterizar, com acerto,
as interações presentes em determinados procedimentos jurídicos (Honneth, 1996).
Genevieve Koubi, em estudo sobre a "consideração", mostra-nos, de maneira sin-
tética, procedimentos paradoxais subjacentes às reivindicações do direito ao. res-
peito. Por comportar, a um só tempo, elementos do direito jurídico-político e dos
direitos morais, "o termo respeito supõe o conhecimento do outro e demanda, em

A CON DI Ç ÃO SENSÍVEL 1 139


conseqüência, algum tempo em comum, certa partilha de valores [... ]. O respei-
to não existe na indulgência, na indiferença, nem na ignorância" (Kautenbach &
Kautenbach citados por Koubi, 1999: 268). Na República laica, os poderes públi-
cos têm sido conduzidos por estes três modos de comportamento: "complacência
pela tolerância, indiferença pela neutralidade e ignorância pelo desconhecimento;
a referência constante aos direitos do homem tem limitado seus efeitos perversos.
Estas barreiras não foram contornadas: é a garantia das liberdades fundamentais
que permite sua apreensão" (: 268).
O interesse dos trabalhos de Simmel nesse tipo de análise é manifesto, pois per-
mitem qualificar, com precisão, os tipos de comportamento que provêm de faros
freqüentemente indissociáveis de impressões, sensações e sentimentos talvez difu-
sos, porém experimentados com ímpeto no mais íntimo do indivíduo. Ora, são
justamente questões como essas que as legislações sobre o assédio buscam tratar
nos dias de hoje: elas se confrontam com dificuldades inextrincáveis, em virtude
da existência de fronteiras móveis e incertas entre comportamentos, fatos e senti-
mentos, situados muitas vezes no limite do intangível. Trata-se, por exemplo, da
violência simbólica ou dos assassinatos psíquicos (Irigoyen , 1998) . É preciso, pois,
questionar o caráter passivo ou ativo de um indivíduo, a neutralidade, a indiferen-
ça e a apatia de eventuais testemunhas e da vizinhança, em particular6 •
Desse ponto de vista, um caso nos parece hoje muito interessante tanto do pon-
to de vista do método quanto da inspiração que reside em sua origem. Falamos do
assédio moral e das legislações relativas ao assédio, de modo mais amplo. Os códi-
gos e as legislações sobre assédio moral buscam levar em consideraçáo a observação
e a qualificação de detalhes insignificantes, de pequenos sinais que refletiriam a
negligência, a ignorância e o desprezo pelo outro. Em termos fundamentais, o as-
sédio revela uma relação específica com o tempo e implica a rapidez, a desatenção,
a ausência de consideração, isto é, o fato de uma pessoa ser considerada intercam-

6
Nos Estados Unidos, certas universidades se apresen taram como precursoras na discussáo dessas
questões nos anos 1990. As normas de conduta do Massachusetts Institute ofTechnology (MIT)
sobre assédio nos levam a pensar que rodo discurso, comportamento ou atitude podem ser consi-
!
derados agressivos. Trata-se de compo rtamentos difíceis de serem avaliados e, a fortiori, de serem
legislados. Foi isso, no entanto, que o MIT buscou sancionar: as condutas verbais ou físicas que
criam uma atmosfera hostil, ameaçadora oü simplesmente desagradável para a universidade nas
relações profissionais ou humanas, de maneira geral. A questáo que existe aqui in cide sobre o
que, se legisla ou se pretende legislar: "Podemos, ou devemos, vincular na legislaçáo um elemento
de fato e comportamentos tangíveis - o ser insultado - a um sentimento interior, ao sentir-se J
insultado? É preciso distinguir entre o que constitui um fato tangível, ser objeto do assédio, e •
uma impressáo, uma sensaçáo freqüentemente situada no limite do intangível, sentir-se objeto do
assédio" (Koubi, 1998).

CLAUDINE HARO C HE
biável no que possui de singular ou insubstiruível. Em outros termos, a ignorância
do 1 itmo, do tempo do outro, a pressa e a pressão podem traduzir seja uma mani-
pulação, seja a instrumentalização do outro ou o desrespeito pelo indivíduo.
Desse modo, indivíduos que experimentam em relação à sua pessoa hostilidade
difusa, reticências ou reservas, traduzidas ora por um gesto ou olhar, ora por uma
palavra, têm , há algum tempo, o direito de se queixarem de desatenção humilhan-
te ou indiferença sistemática. Dito de outro modo, têm o direito de exigir atenção,
consideração, gentileza, amabilidade e compaixão por meio da força, de leis que
obrigam ao rl'.speito e ao reconhecimento, bem como prevêem sanções pelo des-
prezo sofrido.
Questões relacionadas aos direitos da pessoa, quando demasiado absuatos e for-
mais, e, portanto, contrários àquilo que declaram, podem se acompanhar de uma
ausência de concretização e, conseqüentemente, de engajamento. Detenhamo-nos,
uma vez mais, no pensamento de Simmel: "Interrompendo aqui minhas pesquisas,
estou consciente de seu caráter fragmentário, mas elas talvez tenham facilitado , ao
menos, o acesso à camada profunda em que o conhecimento deve inspirar-se para
encontrar as condições das associações concretas [... ]entre os homens. Ao se tentar
compreender o tecido da sociedade, os fios delicados e invisíveis que se tecem de
homem a homem não serão mais considerados indignos de observação"(: r66). Uma
série de oposições vem contribuir, assim, à consideração da qualidade dos vínculos
enrre os indivíduos, implicando, de modo fundamental, sua inscrição na duração:
engajamento-desengajamento, compromisso-dcscompromisso, dependência-inde-
pendência, continuidade-descontinuidade, duração-ruptura, estabilidade-instabili-
dade, fidelidade-infidelidade , ·:ínculo-isolamento, certeza-incerteza e consistência-
inconsistência. Ainda que o cng;i;amcnto e a inscrição no tempo permitam, por si só,
a construção do sujeito, é preciso que nos interroguemos sobre o que acontece com
o sujeito quando o progresso da "insignificâncià' é de tal ordem, que as sociedades
tendem a se tornar insensatas, opacas e incompreensíveis.
A esse respeito, Gaucher nos fornece uma síntese concisa e profunda das modi-
ficações antropológicas que afetam, por intermédio do equilíbrio entre as normas
e regras do social, de um lado, e as leis jurídicas, de outro, a relação que o indiví-
duo mantém hoje com o tempo. "Outrora, o conflito social ou o conflito consigo
mesmo implicava a idéia de uma permanência; a identidade estável aparecia como
um ideal, um objetivo que engajava a pessoa em relação a si mesma e em relação
aos demais". Hoje, porém, esse engajamento em relação a si mesmo e aos outros
desaparece em face do desprendimento de si mesmo e dos vínculos com as pessoas.
"O resultado disso é outra maneira de ser e de agir, em que se prefere a ruptura à
necessidade de continuidade" (Gauchet, 1998: 167).

A CONDlÇÃO SEN S ÍVEL 1 141


FORMAS DE VER, MANEIRAS DE OLHAR

NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS 1

Pensávamos saber o que é sentir, ver, ouvir; hoje,


essas palavras constituem um problema. Somos
incitados a voltar às próprias experiências que
elas designam, para defini-las outra vez.

Maurice Merleau-Ponty

O que vemos, de fato, são os indivíduos. As so-


ciedades não se vêem. Não podemos, portanto,
dizer que elas existem e que são "reais" da mes-
ma maneira que dizemos dos indivíduos que as
compõem. Por fim, tudo o que podemos dizer
das estruturas sociais provém da observação dos
indivíduos e do que eles dizem ou produzem.

Norbert Elias

Em 1935, Walter Benjamin ressaltou o caráter histórico das maneiras de sentir,


perceber e olhar, ao observar a profunda transformação nelas provocada pelo ad-
vento da reprodução mecânica da obra de arte nas sociedades de massa (Benjamin,
1935). Tais mudanças, afirmou, surgiram das relações com a nova re~Jidadc técnica,
indicando que, "durante longos períodos da história de seu modo de existência, as
comunidades humanas viram sua maneira de perceber se transformar. [... ] A ma-
neira pela qual a percepção opera - o meio pelo qual ela se realiza - depende não
apenas da natureza humana, como também da história" (: 74)

1
Agradeço a Michele Ansart-Dourlen, Pierre Ansart, Yves Déloye, Eugene Enriquez e Genevieve
Koubi pela leitura atenciosa e as numerosas observações, críticas e sugestões.

1 143
O crescimento da reprodução mecânica tem efeito decisivo sobre o olhar, sobre
a maneira de olhar e, mesmo, sobre a própria capacidade de olhar, já que acarreta
uma significativa incapacidade não só de olhar, como de ver e sentir. Nessa trans-
formação, Benjamim entrevê "a submissão e a configuração da realidade às massas,
assim como das massas à realidade [... ] um processo de imenso alcance tanto para
o pensamento quanto para a intuição" (: 76).
Dando continuidade aos escritos de Benjamin, Theodor Adorno e Max
Horkheimer perceberam, na produção industrial de bens culturais, um processo
de racionalização e mistificação das massas (Adorno e Horkheimer, 1944) . Esse
processo produz uma movimentação permanente que incide sobre as maneiras
de ser e de viver, e também sobre as maneiras de olhar e de sentir: uma agitação
constante que, por sua vez, leva a uma ausência de reflexão imposta pela rapidez,
pela instantaneidade e pelo imediatismo, avessos à alternância entre paralisação e
movimento requerida tanto pela percepção quanto pela reflexão; ~essos , ortanto,
~pria possibilidade de olha!!_
Adorno e Horkheimer afirmam que a imaginação e a espontaneidade dos indiví-
duos, transformadas pelas mídias em consumidores e espectaJores, "auofiam-se":
os próprios produtos são constituídos de tal sorte que paralisam todos esses meca-
nismos. [... ] é preciso [daqui em diante] um espírito rápido, <lons de observação,
competência para compreendê-los perfeitamente, mas [as mídias] interditam toda
atividade mental ao espectador que não quiser perder os fatos que desfilam a toda
velocidade ante seus olhos"(: 135) .

Eis a finalidade essencial da indústria de bens culturais: atuar de forma contí-

l
nua, por meio de fluxos ininterruptos, para "marcar os sentidos dos homens com
o selo do trabalho em cadeia, desde sua saída da fabrica, à noite, até sua chegada
ao relógio de ponto, na manhã seguinte"(: 140),
Incitado e continuamente estimulado a consumir, ocupado pelo acúmulo e o
excesso de solicitações, o indivíduo transformado em espectador, cuja imaginação
e capacidade de representação se encontram emperradas e, muitas vezes, destruídas,
vê sem ver: ele vê sem ter a capacidade de fixar, analisar, compreender, apreender e,
em conseqüência, torna-se incapaz de criticar e recusar de modo livre. --

A DESATENÇÃO NA DEMOCRACIA

As análises de Benjamin e de Adorno analisaram os efeitos políticos contemporâ-


neos provocados na subjetividade pelo movimento contínuo, osJlux..q uens_Q!.i.ais,
-~s~~como os m~~os ~~~!o~gínquas das maneiras de não olhar e de

144 1 CLAUDINE HAROCHE


Ci:I~~ [ormJ.s d~1eira,__gue sem dúvida exprimem uma mudança nas maneiras
de srnrir e n:velam indiferença, insuficiência e incap:1cidade psíquica no sentir. 2
Ao cria;-;;:;e.;nismos de ali~çã;-;reificaçáo, esses efeitos podem, pouco a pou-
co, despojar o indivíduo de sua capacidade de ver, privá-lo de seu olhar e de seu
senso crítico. Çc:i~s_tituem-se, p_or~an~q, f_m problemas cru_ciais_p_aI<U! <l_c;m_qcraciª,
a sub· etividad~1 'ª-pess~~:
As maneiras de olhar remetem a importantes ~estões sociais e políticas das so-
ci_edades deo1ocrá_ti__cau_1_1di':'.ic!.~a~~~·-bem como à-wcessidade ae-atenção, ~~nsi­
deração, respeito, reconhecimento e dignida~. Todas elas são maneiras de nomear
e designar a necessidade d e uma maior atenção 3.s dimensões não visíveis da pessoa,
que se acompanham de um direito ao olhar visando à proteção da integridade "
mais íntima de cada um. ~'-· f~
t:.~v\..'-..:r-::.J
A_~ernQcraci'!,_;J.() sgp_r_i_!llir ~-a~ ções desi~ais, de certa forma ignoro ~~ ne- ,
cessidade de atenção individual e impôs uma desatenção igualitária, residindo aqui ol,_,.,.,__-ó"'~"'..v:i
7uma de suas _!!poria_s: ~o-~9_otato ·ae s-erofl;;d;;-fiãdesatençã~e na inc!_iferença
_,,.J) _ p_ode satisfazer a necessidade de ser olhado? 3

O indivíduo, sit:iado no centro das preocupações sociais e políticas, recebe hoje ,c -y-.1..,v 1
mais e mais atenção. A qualidade e a onipresença dessa atenção superficial, formal ,L. t..-v-
e fragmentária tende, no entanto, a despojá-lo da capacidade psíquica de olhar.
oJ.v.~ -
E:_le é continuamente constrangido a olhar e, ao mesmo tempo, des ossuído ~a
'/,;,., ,J 1 (
c~cidade de olhar; a -~~_:~lus_~~-e in ~s~nt~~-r:ci'.?~ada ~~imensõe~ vi- , -c;,,,..O-t>< V---

I síveis comporta uma dimensão alienante, reificadora, que pode levar à desatenç_ão
crimino~a, negadora do indivíduo, da pessoa e élã-su~etiyLdade.
Várias questões se apresentam nes;e c~ntexto~~ntre as quais estas duas: a demo-
cracia induz a um tipo de relação específica entre o indivíduo e o olhar? A desatenção
~~~

~ inrrínscca i1 democracia?'; Sem dúvida, a n.:rnsa de distinções e desigualdades impôs


aos princípios democráticos uma indistinção e,_alÇm disso, urna clcs.ateJlÇ_ã.o_igualitá-
ria, isto é, a igualdade na desatenção a todos os indivíduos (c( o capítulo 3). ---- -
(( _- '"Havéfiã_ n~s ~ociedades democ_ráticas~ um r,roc~s,so ~e transfõ rmaçâo que tende~ ~V
ignorar, mm1m1zar e apagar as d1mensoes nao v1s1ve1s da pessoa, bem como a pn-
vilegiar unicamente as dimensões visíveis, conduzindo a um culto das aparências?
---~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~·-------~

r
~ ~~~:-:-:~t:~:J:-a~ :::~l:;~·C ~~~~~~~CJ~~~~~~~~lSp~~ílCÍa- ~:··-~estrói a in~;~:f~
L sisremas roralirários, ver Arendr (1963).. ___ _
1
GL:ncvil:vt.: Koubi sublinhou, crn cstu<lo <lc<li ca<lo ao respeito, que não se.: pode rcspeirar na indi-
ferença, bem como observou que se conduzem para esse modo de comporramenro "os poderes
públicos na República lai ca: a indiferença pela neutralidade" (Koubi, 1998: 268).
·• AJexis de Tocqueville viu na desatenção "o maior vício do espírito democrático" (1835- 40: 188). Ver
também o capítulo 3.

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 145


~--------------.

~.
A questão do olh~ygrl~xiliax. 11a ç_ompreen_são dos modos e funcionamento ,
~associe s..c.o.ntemp.o.râu_eas~--- _ _ --·--·-·--·__.----'
A ausência no olhar e a desatenção podem, com efeito, aparecer como uma
indiferença protetora, mas podem igualmente revelar uma indiferença ue nega
a pessoa no indivíduo. Alguns textos fundadores da socio og1a e a antropologia
abordaram a questão <las man_eir_as A~..ii-~~~-~r, e também como compreen-
dê-las por meio de classificações e categorias. 5 FoLNorbert Elias, todavia, quem,
nos an9s 1~4~ .. abordou e resumiu um conjunto de questões . r5l.il!iY:<!SJ!Q~_às
maneiras de ~lh.;ir, e também à consciência de si e às maneiras de sentir, exprimir
e recalcar os sentimento_s. Suas reflexões tê~ h~je interess;;--particular par;;-z0r;i_
preensão do papel do olhar nas democracias c_ontS:!llp_oLâneas, das relações pouco

A exploradas entre-a necessidade 4~ ~!enção, a dimensão protetora ou ame;ç;d~-ra­


da desatenç~o, e a .c;.apacidade psíqt1ica do olhar nas socieci;desfle-;Lv..cG~m que
@ fl.uxos de infor~a5_ões contín~_s estimulam a ~_!:!Qerficíalidade (Elias, 1990).

~\J. . . .
Em séus trabalhos, Elias expõe os fragmentos de uma história do olhar, do Ilu-
minismo à modernidade e às formas extremas de individualismo, expíicitando suas
,., ),,.J condições de possibilidade, que supõem uma paralisação no fluxo das sensações vi-
/" { suais. 6 Sua análise esboça os contornos de um espaço onde se inscrevem as maneiras
:/'- )l'J de olhar e se abre a todo um conjunto de questões decisivas em que o antropológico,
(i.r,....,.- o sociológico, o político e o psicológico se cruzam de maneira constante.

~~,
J"~ .
)..li c,'l)
.r {'"\
' Durkheim (18~4) e Weber (!922) se interrogaram sobre as catego rias fundamenwi s da sociologia
e levantaram questões que remetem aos rrlOdelos de comportamento e, indissociavel mente, às
maneiras de sentir. Sobre estas questões, ver Haroche (2006).
" Estudos antropológicos e históricos foram explicitamente consagrados ao olhar. Ver Mauss (1936),
Havelange (1998); Courtine e Haroche (1988); Haroche (1997, 2002). Q estudo do olhar se faz por
meio dos gc.stos, posturas e movi~s uc rcvela~ ~ocia l~ coletivo, e que ig~~c ~c:_r..s,.11!..f
interioridade da pe;;;;Tocteinder de rituais, aprendi1..agens ;;nodelos de comportams:!!fo, de um
lado, e de reflexos e automatismos, de~ olhar não pode ser completamente contro lado. Por
exemplo, consid era-s;; um gesto, algo mais enigmático do que a palavra, mais adaptado para traduzir
a dignidade e o poderio dos príncipes. C hastcl se refere, assim, à dedicatória de A <1rte dos gestos, de
Giovanni Bonifacio: "Aos príncipes, que, em razão de sua dignidade, fa1.em-se compreender princi-
palmente por gestos e não por palavras". C hastel ta1nbém come~ta que AJb<:> rti di 1.ia que "os afclO!:
da alma são expressos pelo movimento dos membros" e f11.1C:: Leonardo da Vinci afirm:P:a que "u bom
pintor tem essenc ialmente duas coisas a repre$entar: o personagem e o conteüdo do seu per~samcnto".
Eis, como observa, "o programil. de uma pintura em que a figura pintada está lá para rerresentar não
uma condição ou uma qualidade, e sim um ser". Para que isso se ja 3tingido , uma única condiç3.o:
"a ajuda dos gestos e movimentos dos membtos" (: 22, +1). Ernst Combrich wnbém foi sensível;,
ques tão do olhar, ao afirmar que "não temos na arte um estudo sistemático das rrncas Je olhar; nem
mesmo o desenvolvimento preciso da expressão facial é co nhec ido" (1982: rm).

q6 Cl .\l' P!'\ F !IAR<h' ll!"


Sem fixar uma origem precisa, el~_çli.§_tingue nas condições de vida sncia.1 das )~
'
sociedades do passado, assim como nas sociedades do presente, 1!1udanças que
atingem a 2ercfP-2_0 sensorial e afetam tanto a visão quanto~:
Todas as crianças conhecem essa mudança ao crescer; um número cada vez mais
importante de atividades que originalmente faziam com que o indivíduo interviesse
inteiramente, com todos os seus membros, limitam-se agora aos olhos. [... ]À medida
que os movimentos do corpo se restringem, a importância da visão aumenta: a crian-
ça ouve acualmence: "Você pode olhar, mas não coque". A ela é imperativamente
prcsc riro não cocar com as miios 7 (Elias, 1941- 50: 165).

Elias estabelece uma relação entre o pensamento e o corpo, em _particular o con-


trole do movimento: retraça a genealogia do processo de reflexão e representação q~~
é concomi~;;te ~~ sentimento de renúncia, condição da emergência simultânea da
consciência e do olhar individual, da representação da pessoa e da observação dos ou-
tros e de si mesmo. Afirma que: "a suspensão e a reflexão se consolidaram como uma
atitude constante e, assim transformadas, engendraram no observador a representação
dele mesmo como um ser apartado dos demais e existindo independentemente deles"8 J
(: 152). Em seguida, sublinha que o progresso da visão emperra, limita, desencoraja e 1

coíbe o movimento espontâneo e incontrolado, incita e impõe o controle, o domínio \


de si, exigindo por vezes a imobilidade que terá por efeito crescente afastar o contato, o

7
Este é um rema que Elias desenvolve em O processo civili:uidor (1939). O controle de si, o governoJ-
\ i
do corpo, a exigência de contenção, o respeito à distância e a esquiva do contato transparecem )
mesmo nas admoestações mais contemporâneas, menos pensadas e mais cotidianas, como "não
toque na minha mão". _,.---
• Elias remon_t'!_a R~_QJJes~a.ne~dª--de de obs.i;n:ar_e_p~i:i_~r. ªE~ ~agir, de temporizar" -A leitura
de Jean-Pa!,!l__Sartre e de i'y1auri~e_ fli-'rlea_\l_-P'!!'t)'._ ~clar_:_ce a q_11CSrão d~- ~ha;_ por -~eio de UJTia
fenomenologia dos mecanismos de percepção e de reflexão que supõe a articulação do sentido com Í
os ;encido; S~me afirm~q;;-~- "rod~ olhardi;igido~inha-direção-se ~wifesra ;;nculad~ ao
;;p;;:;:ci n;;;nro de uma forma sensfvel <;_Ql!lOSso campo__de__perceP-Ç!ío; ~as, a; c~~trário do que ;;-;;;~di- /
tarnos, isso não está li!\~~"-E_C_!))luma fo~nH..dtt~qnin~_a. Por certo, o que um olhar manifesta, mais
freqüentemente, é ~ ~onvergência em minha direção de dois globos oculares. Isso, contudo, ocorrerá
também no momen ro de uma fri cção de galhos, de um ruido não seguido de silêncio, da abertura de
u111a persiana, do leve movimenro de uma cortina" (!943: 297). Merleau-Ponry, p<>r sua vel, diz que
o fato de possuir ~entidq_s_mr.lliLp!lliÍYtl_a_Qp_a_cidaàe__d~ "encontra;;;;;:-;ntido p;~-ce;t~~. asp~~tos
do ser", precisando qlli' o olhar P-ro!'.Srruk_'-!'!!-" elab_c>~o da p~;ce[>ção. A~enfarizar o flux~tl­
nuo da percepção ! _11da_9 movimento, ele an_a!i~()_s me;;;,j !_m~~ e_(>~()C~so~ q':!-'levam da sensaçã~
à percepçáo, da irreflexão~- reflexão, para mostrar~--° ~enrido só é possível na alternância ~mre _.,
movimenrn__c ii:ite!:!:uNº· Conclui-~a análise d<lorma extrem;;;:;-;~r~~intér;;:;;:-;;,k~-do-~~ de uma
definição geral de percepção: "~pecto d:u;_Qisa q~_!!_~ossa percee_<[â_a.J:J~l'~-'!S_l!!llil
p~~lis~ momenrânea no processo perceptivo" (194): 269-70). f

A CO N DI Ç ÃO SE N SfVEI. 1 47
toque, e prevenir e impedir aproximações e proximidades entre os corpos. Ele observa,
então, uma redistribuição e um desequilíbrio na divisão de trabalho dos sentidos
posta pela civilização, concluindo que: "os prazeres dos olhos e dos ouvidos se tornam
im-11
mais intensos, mais ricos, mais sueis e difundidos. Os prazeres dos membros são cada
vez. mais limitados por prescrições e interdições[ ... ]. Percebemos muitas coisas sem nos
mexer. Pensamos e observamos sem tocar" (Elias, 1941-50: 165) 9
A visão é considerada menos perigosa do que o tato; é conveniente, portanto,
evitar o contato e tocar apenas com os olhos. Elias foca numerosos mecanismos so-
ciológicos, psicológicos e antropológicos que se abrem, por sua vez, a um conjunto
de observações e interrogações fundamentais. 10 Ao indicar a própria capacidade de
ser uma pessoa, o olhar se constitui, desde o século XVIII, como um atributo, um
dever e um direito reconhecido a todo indivíduo 2õn5íderado proprietário de si
mesmo (Castel e Haroche 2001). Em outras palavras, o olhar supõe e permite o
exercício tanto de um olhar para si mesmo quanto de um olhar para os outros, um
olhar a um só tempo interior e exterior que depende e participa de um olhar social,
elemento e condição da auto-estima, da dignidade de todo indivíduo. Trata-se de
características que fazem dele uma das condições e dos objetivos da Jemocracia.

EDUCAÇÃO DO OLHAR E CONTROLE DOS MOVIMENTOS

Marcel Mauss e Clifford Geertz destacaram o pa e! decisivo do olhar pela ênfase


<!_e que não há uma maneira natural de 0~11 A~fo~_exemRIQ,

9
É importante, no entanto, distinguir as culturas cm que o foto de tocar faz parte das relações
cotidianas daquelas nas quais o contato é objeto de normas de conduta extremamente codificadas.
Cf. Castel e Haroche (2001).
'° Deve-se enfatizar a extraordinária atualidade das questões relativas à aparência. Lembremo-nos,
por exemplo, dos problemas provocados, na França, pelo porte do véu islâmico.
11
Geerrz afirma que "não existe discurso social bruto" e que "urna das características da etnografia
consiste em interpretar o fluxo do discurso social" (1973: 9). Ve~a Cook (1977:- 65) e-Exline
e Fehr (1978). SCack e Piam lembra;.;;- que, de maneira geral, "oJ_~, fixar, perscrutar são signos
não_verbais da comunicação humana. Deixando de lado os casos p~-;,--;-squiv~ de~;,,
olharÍ nsÍstente, pa~~Jh;;do fixamente (sobretudo por estranhos) é sentido como algo
ameaçador ou, ao menos, d~confortável ou ermrba~or, i1! . uieta~ te" (1982: 363). Há alguns anos,
os turistas que chegavam a Nova York recebiam um aviso que, deixando-os em guarda contra a
insegurança, recomendava-lhes evitar rodo "contato visual" (: 367). Os aurores comentam que
"os comportamentos que, em diversas espécies, fazem do olho um mecanismo de defesa pa~ecern
confirmar descobertas experimentais concernentes às respostas comportamentais ao contato visual
(eye-contact) ou ao fato de olhar fixamente presente nos primaras e no homem" (: 365).

CLAUDINE HAROCHE
Pº.l1EI _Q __olhaLÇ.m_ ª lguém s;._desyjá.:lQ por delicad_ç_~a r~spei~o _e cq_rri12a1~ou
p:i,rn_~IJ~~ouiesp.lTIQ_Q\!.Je!~º.!l. dedi!lam _1;1rr_ 1a_séE_ie _d:_caracterís~c~e m~_as
q~is· dir~çã.o 1olhar os pés, a terra, olhar do alto, olhar de viés, olhar d e baixo para
cima); 6 u; lidage Bireto, franco, dissimulado, grosseiro, equivocado, libidinoso);
__intensid;;a~gajado, cordi al, caloroso, frio , esquivo, glacial, neutro), e mesmo
r: ;(_115~~1.-ru;n olhar inex pressivo, indiferente, indecifrável, impe netrável ou hermé-
tico). D esse modo , as..m;uLciras_de olhar 12ara o_QJ1U:Q,..!k_ahs.ei:Yádo e de encará-lo
se_r_daçiu_nam a ~ ren.diE~p~_ódigos d e com ortamento acom2anhan~9-
se inevitavelmente de interr- retações e também - o que é de difuilapreensão - de
cons.tâ.'l.cias_.antmp.o lóg.iQs. -- -----
M;Iuss djjerencia...o_oll1ar fixo. no exército e na vida cotidiana: no primeiro,_a
fi xidez_exprime obi:.diência,_s_ub.or.dina_ção submissã_g_;_11a seg!!_nga é considerada
inco nyenicnte, familiar e, às vezes, uma grosseria. Co mo comenta, "te_mos ui:n
conjunro de arirudes_permitidas ou não, naturais ou não. Assim, atribuímos valo-
res diferentes ao fato d e se olhar fixamente: no exército, um símbolo de polidez; na
vida cotidiana, de impolidez" (Mauss, 1936: 372).
A origem e a razão dessas diferen ças remetem a tradições e modelos de educação
que j_!!lpõem ce rto s_p r~ Q!Ji_o_s aos movimentos. Ele cita, nesse semido, a educação
do andar e do olhar, e a aprendizagem de maneiras, que re_.:i_und~ generi_c:_~n­
te numa "educação do autocontrol e". Trata-se de observação análoga a de Elias
s<_!bre a c~ n~ÇfcJ, ou seja, ce rto controle gerai do movimento requerido pela vida
e_m~Q°Çi_eijaà~ e mesmo um "fI!ecanis!!!~de reJifÓ;imçntõ_;ctelliibição __dos ~~vi­
mentos deso rdenados" , ou ainda de distanciamento, temporização_e__mediação:
um ~~~a~ismo que visa estab-:lecer furm-;_s (: 385). Para Mauss, "essa resistência
~-~1~1oção i~<Jl~illtã-é alg:> de fundamental ~-ª vida social e mental" (: 385) que se
acompanha de~ controle sobr~ o n1ovi;11cntQ__qw.:__cmana da 12cssQa_, F, mais impor-
tante a esse respeito, uma pessoa é percebida pelas maneiras e formas de olhar, ou-
rrf modo de dizer que o olhar supõe, exige a pessoa.'2 Como ele ressalta, a pessoa,
originalmente entendida como m áscara, é "um fato fundamental do direito", uma
vez que separa o espaço interior do exterior e induz as regras que protegem a intui-
midade. A p essoa dissimula e esconde o espaço íntimo, o foro ínrimo da cada um,
da vista de todos e, em decorrência, protege-o e preserva-o do caráter inquisidor
que o olhar do outro pode comportar.
. Geerrz,· por sua vez, retQm ª_!.un..texto...de-Gilb.e.r.t_fule ~rata do caráter ad-

J
3-_Uiri~o , social e cultural d as _maneiras de olhar gara enfatizar a dificuldade -ae

12
Mauss afirma que a construção do eu se faz ao abrigo do olhar: "a noção de persona latina quer
dizer máscara, máscara trágica, máscara ritual e máscara ancestral". Daí advém as questões relativas
à consciência individual Cf. Mauss (!936: 348, 1938). _,
,_,/

A CONDIÇÁO SENSÍVE L 1 149


d.iscernir a intenção na troca de olhares, por exemplo, no piscar ~s (!973: 6) 13 •
"Observemos o que se passa num encontro enr-i;-c:IO;s-~paze; ambos 'contraem
brevemente a pálpebra direita'; um pisca involuntariamente e o outro, ao contrário,
faz 'um sinal cúmplice a um amigo". De acordo com Geertz, os dois movimentos
são indiscerníveis "como movimentos", e não podemos de forma alguma saber
"de um ponto de vista estritamente fenomenológico qual deles é uma piscadela
e qual é um sinal, ou se ambos são piscadelas e sinais de reconh ecimento" (: 6).
Ao concluir, afirma um aspecto fundamental para as ciências sociais de maneira ·
geral, O de que el as pmais cessaram de -s~ copfrontar_COft!. sinai,s_e deta}hes ins ig~i­
ficantts 12orénÚ~m:ibfui~~ttiJ.QLdi_r.:rnria.ni.rote_ significantes, situando-se nos limite~
do visível, do_percept(vel ~ do tangíve~ 14

O IMEDIATISMO DISTANTE

Ao passo que ~a1~~onp_a C_?n.:1:_o caráter educado das maneiras de olh!lr e


Geerrz com a sua si nifi@Çi_O; Simmel se j_nteressa pela forma como ele contEibui
p;;ra dar sen.tid.o_.à.s_~n.te.r.açóes-SQf.i ª1".,, 12roccdcndo a uma análise com dcscnvolvi-
me~t~~- b~~t~~~~ próx_imos aos do primeiço. Sensível ao nível de interação entre os
in-dl'víd~os, Simmel afirma que a questão do olhar está intrinsecamente ligada à
\ singularidad.e da individualidade, da pessoa, ou seja, o olhar nasce do sentimento r§i)
.}\. de s~ f!lesm_o___:_i__uma_de..su condições (1908)
~: ~ A princípio, ele enfatiza a ausência de mediação na troca de olhares, "talvez seja
)'J\-'""' a ação recíproca[ .. .] mais direta que exista". Em seguida, reconhece que o olhar
- .l não é facilmente apreendido, definido, qualificado: ao se inscrever no mais pro-
fundo do vínculo social, de certa forma o emperra, o dificulta, em virtude de seu
caráter fugaz e, muitas vezes, inconsistente. Em outras palavras, o olhar instaura
e requer um espaço comum, porém instável e transitório. "É a possibilidade, a
eventualidade do olhar face a face que ordena os vínculos" 1', razão pela qual , ao

"Y:eu amhérn- P-'!!'ª esses sinais ínfimos e às vezes d ecisivos: 'focqu eviilc (1 83 5-40) , Mac." (19 36 ) e

"\
14
-----
,.-Ginzb;,:g (1980)': -...
'
diferença, impalpável , entre uma piscadela e um gesto é cl.ua. "Aquel e <1ue ,i.; '.!ma piscadela se
~ comunica, de forma precisa e es pecífica: z. deliberada m enre; 2. com al gu ém em particul ar; 3. para
\. V / transmitir uma me nsagem precisa; 4. e m funç ão de um código so cial preexisten te ; 5. à revelia dos
f\'V!
"~ ourros. C ons titui uma piscadela co ntra ir a pálpebra na e xistê n cia de có d igo púhlico cm qu e fa zê-lo
' r' / equivale a enviar um sinal cúmplice" (G eerrz 1973: 6).
0\, I
15
Georg Simmel faz análises imporranres so bre o olha r e m " Excursus sobre a sociolog ia dos se ntidos"

:r I (Simmel, 190 8).

J uiJ~~' ~ / \i~h"> I 150 J cr AUD I N F llJ\RO C ll F


distinguir a interioridade durável do caráter fugidio do momento, ressalta que o
olhar supõe um contato imediato, todavia efêmero.
Ao contrário dos vínculos sociológicos que, "possuindo um conteúdo objetivo", ··~
deixam traços tangíveis, Simmel observa que "olhar no olho" exerce uma ação re-
cíproca que "não se cristaliza num produto objetivo: a união que ele cria entre [os
homens] se dissolve imediatamente no acontecimento, em sua função", acrescen-
tando que "a compreensão mútua ou a repulsa recíproca, a intimidade e a frieza, j
transformar-se-iam de forma incalculável se esse tipo de olhar não existisse"(: 630). 16 1
Como argumenta, o olhar implica uma troca, mesmo quando assimétrica, desigual ~1
e aparentemente inexistente: "Pelo olhar que apreende o outro, nós nos revelamos .
a nós mesmos; o mesmo aro pelo qual o sujeito busca descobrir seu objeto o expõe ;
a este". Por essa razão, "não se pode se apropriar pelo olhar sem também se dar"(: . . J
630). O caráter de um olhar expressivo ou inexpressivo; caloroso ou frio; dominador
ou assustado; conquistador ou submisso; ou arrogante ou humilde é profundamente
imbricado e não é fácil distingui-lo. A forma de olhar o outro, esquivar-se ao olhar,
evitá-lo ou desviá-lo revela a natureza dos sentimentos e, igualmente, um tempera-
mento, uma personalidade e um caráter. D-.e. . m_Q.Qº-..fu!ldamel!_t~, permite a apr_~I_l­
são <la natureza <los mecanismos de dominação e também de defe;~do·eu- .-
Sim~ei dá-;;-~~-;;peito um7x";m plo e~~e~~entêesCiãfêZ~do~ vergonha.
"Podemos compreender por que a vergonha nos constrange a abaixar os olhos e a
evitar o olhar do outro. [... ] Desviar meu olhar para a terra priva um pouco o outro
das possibilidades de me descobrir" (: 630-1) 17 • Reside aí, na questão dos sentidos,
uma de suas contribuições fundamentais: são os sentidos, tanto na relação com o
outro quanto na relação consigo mesmo, e mesmo na relação com o conhecimen-
to, que tornam possíveis a elaboração e a construção do sentido, ou seja, há uma
re;.hwão s;;;n§o-r.:ia-1-p-rcscn.t~n.o.~-fi.mg~en~.os da soc;iofogi~ e da psiç9logia. 18
. --··-----· · ~ . ···-- ·--· -··· -~·- ·-·- --- ---

'" Existem sociedades, portanto, em que as pessoas (em função de nível, posição ou condição) quase
não se olham e mesmo nunca olham diretamente para outra pessoa. Tais condutas determinam, de
modo profündo, a natureza de vínculos, expeccativas, representações e valores.
, . Em Sartre, "a vergonha ou o orgulho que me revelam o olhar do outro e a mim mesmo nesse olhar,
que me fazem 11iver. e não conhecfi, a situaçâo de olhado" (1943: 300). Cf. \1(/einstein e Weinstein
(1984: 349-62).
. " Hegel escreve: "Esta maravilhosa palavra 'sentido' articula uma dupla significação: de um lado,
indica os órgãos de apreensão imediata; de o utro, entendemos a significação, o pensamento, o
universal da coisa. Assim, o sentido remete, por uma parte, à exterioridade imediata da existência
e, por outra, à sua essência interna. Ora, uma consideração dotada de sentido não separa os dois
lados: engajada numa direção, ela ainda rerém a outra, apreendendo, ao mesmo tempo, a essência
do conceito na intuição sensível imediata" (1818-29: 198).

'
J\ CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 151
Além disso, Simmel evoca a necessidade de considerar a parte que cabe à intui-
ção na interação social, definida por ele como um conhecimento sem mediações,
não elaborado ou, ao menos, não construído de forma deliberada e consciente.
"Apesar de variar bastante em termos de grau, sabemos logo no primeiro olhar com
quem estamos lidando" (: 631) . Retomando a esse respeito os trabalhos de Max
Weber e, em particular, de Émile Durkheim, Simmel observa que:
[não se trata de] nada que possamos exprimir em conceitos, dissecar em qualidades
particulares; não podemos talvez nem mesmo dizer se ele nos parece ativo ou inex-
pressivo, benevolente ou mal intencionado, cheio de impetuosidade ou indolente.
Pois todos esses aspectos [... ] são, sobretudo, qualidades gerais que compartilha rom
uma multidão de outras. [... ] o que esse primeiro olhar nos com unica não pode
absolutamente ser analisado e convertido em algo conceituai e traduzível, ainda que
constitua, a seguir, a conalidade de todo o nosso saber ulteriormente adquirido sobre
ele: é antes a apreensão imediata de sua individualidade a partir do que revela aos
nossos olhos sua aparência, principalmente seu rosto (: 632). 19

Nesse ponto, o sociólogo alemão se detém .na natureza e na especificidade dos


sentimentos gerais nascidos da importância da visão na estruturação das relações:
a própria pluralidade do que o rosto e o olhar podem revelar ou se esforçar para
esconder do olhar de outrem leva à tomada de consciência de que a incerteza em
relação ao outro, seu caráter enigmático, pode provocar a perplexidade, uma sen-
sação de mal-estar e, mesmo, uma ameaça ao eu. Como ressalta, "a vida moderna
remete de forma crescente ao sentido da visão a maior parte das relações sensoriais
entre os seres humanos"(: 633). 20
Ao esboçar uma genealogia dos processos subjacentes ao sentimento sociológico
geral que emana das relações sensoriais fundadas e estruturadas pela visão, Simmel
esclarece os modos de comportamento e os sentimentos nascidos e reforçados pelo
isolamento (ou desorientação) presente nas formas extremas do individualismo

w Simmel considera que esse primeiro olhar é uma fonre de informações de ri<p1c1.a i111lni1a: repen-
tinas e desordenadas, muitas vezes imprecisas e desestabilizantes, ela está ausente para o cego e
talvez por isso explique "o humor tranqüilo e calmo, uniformemenre amistoso pata com rodos
que constatamos com freqüência entre os cegos [... ] Por isso, aquele que vê sem ouvir será bem
mais confuso, despojado e inquieto do que aquele que ouve sem ver''. Sobre o i11forn1ulado, ver
Ansart (1983).
20
"Antes dos ônibus, estradas de ferro e bondes do século x1x, os homens simplesmente náo podiam
conhecer urna situação em que se podia ou se devia olhar mutuamente durante minutos ou horas,
sem se dirigir a palavra" (Sirnmel, 1908: 63}). Tanto Erwing Goffman quanto Richard Sennett
fazem observações análogas.

152 1 CLA UDINE HAROCHE


contemporâneo, cujos efeitos provocam agitação, inquietude e um profundo sen-
timento de vulnerabilidade. Reconhece no olho, na visáo, portanto, um fator de
unificaçáo e homogeneizaçáo que protege o comércio entre os indivíduos. 21 "Com
base em homens que apenas olhamos, construímos uma noção geral com facili-
dade infinitamente superior àquela que alcançaríamos se falássemos com cada um
deles".
Em nós, prevalece a tendência a ver o geral e não o singular, porém ouvimos
e exprimimos o particular, o que leva Simmel a afirmar: "o olho revela em grau
mais elevado do que o ouvido a similitude de todos", "evidentemente, vemos num
homem m11ito mais o que ele tem em comum com outros". Dessas considerações
retira, entáo, uma importante conseqüência política sobre a gênese e o desenvolvi-
mento das massas, sobre o papel da visáo no desenvolvimento das sociedades con-
temporâneas de massa: "a constituição de estruturas sociais muito abstratas e não
específicas é favorecida, sobretudo, pela proximidade visual e por uma ausência de
proximidade verbal" (: 636-7) .22
Em rnma, ao ressaltar o desenvolvimento da homogeneizaçáo pela proximidade
visual, Simmel tece considerações fundamentais a respeito do papel da visão na
gênese e na escrururação das sociedades de massa: outrora, a proximidade permitia
e encorajava o contato, tanto visual quanto auditivo; hoje, as massas se desenvol-
vem por intermédio de um fator comum apoiado na visão. Não só o tato, mas
toda a sensorialidade é modificada pela extensão da visão, que impõe, todavia, um
imediatismo distante e longínquo.23 O afastamento do contato carrega consigo
o esquecimento do profundo elo existente originalmente entre o olhar e o tato,
tornando-se parte do processo de emudecimento das massas.

A DESATENÇÃO CIVIL: TORNAR-SE CEGO POR DELICADEZA

Erving Goffman deu continuidade aos trabalhos de Simmel ao analisar o olhar


nas interações face a face. Viu nesse faw uma "classe de acontecimentos que supõe
uma prcscnc,:;1 conjunta e só ex iste cm virtude dcb", sublinhado tratar-se de um

' ' Simmcl escreve que "os operários num galpão de fabrica, os estudantes num anfiteatro e os solda-
dos dr um dcsL1c 1mcnro :-.c nt crn qm: fi)nnam mais 011 nu:nos um a unidade" (1908: 636).
-' -' " Pou cos l10me11s poJcm dizer com o.:ncza a cor Jos olhos de seus an 1igos ou po<lcm repn.:scn tar
concretamence pela imaginaçáo o desenho da boca de seus íntimos. Simplesmence, eles não os
viram" (: 637).
1
·' É o que Gaucht:t co m en1a a propósito da personalidade con temporânea: "co ntinuamente ligada,
porém distante" (1998).

A COND IÇÃO SENS ÍVEl. 1 153


território com limites "ainda pouco claros"; de "material comportamental" feiw
de "comportamentos menores", ou seja, de olhares, gestos e posturas "que cada um
não cessa de introduzir, intencionalmente ou não" (Goffman, r959). Já ao retomar
as observações de Mauss sobre os modelos de comportamento, a aprendizagem
das maneiras de olhar, ressaltou que são tais cód igos de interação social, tanto de
maneira geral quanto nos encontros particulares entre os sexos, que governam a
direção do olhar, suas aproximações e seus distanciamentos (Goffman, 1977)
A atenção para com o outro, a consideração, assim como a desatenção, o fato
de saber que não se olha, são alvos de regras e princípios que objetivam, pela
observância das formas, proteger e respeitar o outro, mas também proteger a si
mesmo, defender-se. Como Goffman observa, "entre pessoas estranhas umas às
outras" existe um acordo "regido pela desatenção", devendo-se entender por isso
um conjunto de comportamentos codificados, ritualizados, "que consiste em diri-
gir o olhar ao outro para lhe informar que não temos más intenções e que espera-
mos o mesmo de sua parte, e, a seguir, em desviar o olhar, exprimindo um misto
de confiança, respeito e aparente indiferença. 24
De um lado, tal desatenção depende de educação, "da capacidade de avaliar ra-
pidamente uma situaç;io soc ia l do ponto de vista de srn co111ei'ido expressivo"' e, de
modo mais genérico, de usos que implicam estratégias de encontro, contatos, trocas
de olhar. Estas são ordenadas e sustentadas por certa concepção da pessoa, do que
ela deve preservar, proteger, salvar e ganhar, ou ao menos não perder nas interações
sociais: seu semblante social, certa imagem de si mesmo, a integridade, a dignidade.
"O semblante que carregamos, assim como o dos outros são construções de uma
mesma ordem, determinadas pelas regras do grupo e a definição da situação".
Goffman, cuja análise tende a ignorar a existência de um olhar interior, explica
e subordina a aparência, o semblante, ao desenvolvimento da interação social. Ele
não só reconhece no semblante de uma pessoa "muitas vezes seu bem ma is precio-
so", como também diz que ele faz parte dos objetos que "se entrelaçam intimamen-
te às propriedades rituais das pessoas" (Goffman, 1959: ro). É pertinente reconhe-

"Goffman observa que "a desatenção civil permite ao homem e à mulher trocarem um dpido olhar
mútuo[ ...] a segunda olhadela q1.«: ela lhe dá pode significar um sina l <l•· encvrajamenro" (1977:
62). É preciso, portanto, distir.guir na desa tenção urn2 dirnensão negat iva (aquela nbscrv.-1da por
Tocqucvii1e e.rn relação à democracia) e o utra positiva . Srack e Plane escrevem: "o lhar fi xa mente ou
perscrutar parece ser um esrímulo intenso que provoca tensão, desencadeia uma rcai;1.o emocional
e suscita res postas esquivas. Em cerros casos, o faro de se fixar reciprocamente num<l inre ração
imprevista engendra uma 'emoção próxima ao pânico' ou provoca uma ' hosti lidade intensa' . Pude-
mos observar que a ~mtipatia manifesta ou a lw st ili<ladc se exprimem frcqüentcmcrHc pcl:l .-runcir:l
de o lhar. No 'olhar de ódio' há uma viob ção intenciona l da regra caractcriza<la por ( ;nffrnan como
'desate nção civil' aos cstranhoscm csp'1ÇOS públicos" (r98 2: 364).

154 1 CLAUOINE llA ROCl l l"


cer nessas características rituais os atributos mais profundos do ser humano, como
a dignidade e o sentimento do valor de si mesmo? 25 E nestes, direitos inalienáveis?
Tais características rituais têm a função de afirmar e proteger os atributos que
constituem os elementos definidores, em certos aspectos, do modelo que Goffman
procura atualizar, isto é, "o modelo de sujeito capaz de manter o semblante quan-
do interage?" Como sugere, "podemos definir o semblante como uma imagem de
si" que se exprime e se revela por características rituais. Estas "se exteriorizam nas
expressões do rosto, nas posturas e atitudes, bem como nas reservas, como reflexo
de uma interioridade, de um bem precioso inscrito no mais íntimo da pessoa: a
dignidade" (Goffmann, 1959: 9; C( também Edelman, 1999).
Dando continuidade às análises de Georg Simmel, Goffman afirma que, "quan-
do urna pessoa consegue preservar as aparências, o semblante", sente-se confiante e
tranqüila, e sua postura corporal revela seu estado de espírito interior; "pode man-
ter a cabeça erguida". Ao contrário, quando é mesquinha ou faz péssima figura,
experimenta um sentimento de vergonha e humilhação: isso é perceptível em sua

;1 st· mos1r:tr ·"cnsívtl à necessidade fun<famcntal de ser vÍ!ito, ser


·"• Ro11.'isca11 /j,j um dos primeiros
olhado, como condição de auto-estima, dignidade e integridade. Os sentimentos oriundos do
olhar co nstituem o fundam ento do sentimento de existência: a invisibilidade não desejada pode
provocar um sentimento de abandono, de inexistência. Os princípios democráticos pretenderam
impor a igualdade. A democracia pretendeu fazê-lo por meio da igualdade de desatenção, que
visava suprimir as atenções como função dos estamcncos, das condições de nascimento no Antigo
Regime. Poucas palavras bastaram para Rousseau estabelecer o papel do olhar na sociedade, seu
caráter profundamente paradoxal, pois a necessidade do olhar não é facilmente dissociável da
necessidade de atenção, alvo de lura por preferências. No mesmo instante em que quer ser olhado,
o outro é privado do olhar que procuramos atrair. Rousseau , assim , divide os homens em duas
ca tegorias, conform e se satisfaçam com um olhar interior ou persigam um olhar externo: aqueles
que experimentam o prazer de existir por meio daquilo que sentem internamente, independente-
mente do olhar dos outros, e aqu eles cujo desejo é o de serem vistos pelo maior número de pessoas,
que sentem a necessidade de serem olhados para serem considerados e, mais profundamente, para
existirem. Ro usseau descobre, desse modo, os mecanismos inerentes ao olhar: não apenas ser olha-
do, mas também , de moneira intencional ou não, "ser olhado mais do que os outros" . É aqui que
residem, segundo ele, os motivos profundos de enriquecimento: "as riquezas [... ] são construídas
apenas para atrair os o lhares e a admiração dos outros"; almeja-se ser rico para atrair os olhares,
capr:ir as atenções; "em vez de se limitar a essa mediocridadt que constitui o bem-estar, quer-se
atingir o grau de riqueza que fi xa rodos os olhos". Conclui, então, com uma articulação entre
opinião. co nsideração, aparência e olhar: "É certo, portanto, que é menos em nós mesmos do que
na opini ão de outrem que procu ramos nossa pró pria felicidade. Todos os nossos trabalhos tendem
apenas a dar a aparência de felicidade. N ão fa1.emos quase nada para sê-lo de fato, e se os melhores
entre nós parassem po r um momento de se sentirem olhados, sua felicidade e sua virtude não
seriam mais nada" (1754: 364). Ver também Ansarr-Do urlen (1985: 4 7-57) .

A C ONDI ÇÃO SEN S Í VE L 155


postura, que "se altera, verga e se quebra; experimenta embaraço e desgosto, abaixa
a cabeça" (: u-12; cf. também Sartre, 1943).
A dignidade supõe, requer e se manifesta no controle de si por meio das expres-
sões corporais, que traduzem o fato e a preocupação de manter a aparência, valen-
do-se de "atenções específicas". Tudo isso constitui "um aspecto do controle das
expressões [... ].Assim como no amor próprio, o membro de um grupo qualquer é
levado a demonstrar consideração: espera-se dele que faça o possível para não ferir
os sentimentos dos outros, nem para fazê-los perder a pose". Goffman, com efeito,
percebe nos mecanismos ativos nas interações sociais que "o efeito combinado das
regras de amor próprio e de consideração" se traduz no fato de que, "nas reuniões,
cada um tende a se conduzir de forma a manter o semblante, tanto o seu quanto
os dos demais participantes", observando que "cada pessoa, cada grupo e cada
sociedade possui certo número de semblantes" (:13)
De forma persistente, Goffman afirma que os sentimentos devem ser escondidos
e dissimulados, que devem se exprimir ao abrigo do olhar dos outros, sob pena de a
pessoa perder o domínio de si. Ele resume sua argumentação nos seguintes termos:
"Uma pessoa mantém o semblante e protege o dos outros[ ... ] A desatenção calculada
pode se aplicar aos seus próprios atos". A esse respeito, cita exemplos bem concretos,
como "permanecer impassível quando ouvimos os grunhidos do nosso estômago, ou
os dos outros", e "não 'notar' que alguém caiu". Afirma ainda que, "em geral, tornar-
se cego por delicadeza aplica-se unicamente aos acontecimentos que [... ] podem pôr
em risco a aparência dos participantes. [... ] os outros podem se distrair um momento,
a fim de lhe dar tempo de se recuperar". Ao concluir sua análise, Goffman enfatiza
"tratar-se de uma obrigação característica de muitas relações sociais: a de manter o
semblante numa determinada situação"(: 17, 20, 39)
Nessa perspectiva, situa o olhar do outro no âmago de toda relação social, per-
cebendo aí "uma situação em que uma pessoa é forçada a contar com o tato[ ... ] de
outrem para manter sua aparência, a imagem que tem dela mesma"(: 17, 20, 39) 26 •
"O que uma [pessoa] protege e defende, aquilo em que investe seus sentimentos, é
a idéia que se faz de si mesma", uma representação de si que corresponde a uma
concepção geral de si própria(: 40).
O indivíduo se instrui em aprendizagens, modelos de comportamento, do ritual
"de se vincular ao seu eu e à expressão deste por meio da aparência que preserva" 27 ,

26
O · tato possui, junto com sua significação simbólica, um sentido literal, o contato delicado, a
esquiva do contato brutal: é, pois, continuidade e sinônimo de delicadeza.
27 Ann Rawls lembra que Goffman levanta a hipótese que "o eu é de natureza ritual, que o face a face
se organiza para sua proteção durante a interação", e que "boa parte dos escritos de Goffman é
dedicada a descrever essas nuanças, os olhares de esguelha, as hesitações" (2002: 136).

C LAUDINE HAROCHE
algo que se revela neste pensamento bastante profundo de Goffman: "É possível
que o princípio fundamental da ordem ritual seja a aparência - uma imagem de si,
a apresentação de si - e não a justiça" (Goffmann, 1959: 41).

DA DESATENÇÃO CIVIL À NEUTRALIZAÇÃO DAS APARÊNCIAS

As reflexões de Goffrnan levam a questões importantes sobre as sociedades con-


temporâneas. As aparências, o mostrar-se e a apresentação de si se tornaram ele-
menios determinantes no juízo que tenho de uma determinada pessoa: revelam e
também condicionam a inserção do indivíduo nas interações sociais, afetando a
sua integridade pelo respeito ou a falta de respeito em relação à sua dignidade. O
olhar, portanto, condiciona e fundamenta o sentimento de existência ou inexistên-
cia; protege, mas pode também ameaçar, anular, destruir. 28
Vários juristas, soc.illlug s filósofos e cientistas sociais, em articular Robert
Poste Judith Burler, têm arriei ado de debates relativos ~resentaç~o de si, às
a arências e ao controle das a arências. Tra~a-se de análises que se --;:;;-~~-;;~
trabalhos de Goffman sobre a aparência
- ---------- --:---:--
-
social e -manifestam o especial interesse
.
despertado_~j_:: pela que~!_ã_q_ do in_~o. Ao .situar em profundidade a questão
do olhar, essas análises .buss;am compreenâer e interrogar o p~pel dodha_!" no j_uízo
q_ue se faz sobre um determinado indivídu<:>_. Além das aparências e das dimensõ_es
visíveis, elas questionam, nas formas <:_xtremas de jndividualis_mo, a forma de pre-
servar e proteger di111ensõ_es_nã~!:is da p_es_!>Oa relativas ao respeito e à dignida-
de, isto é, ao valor de cada UJ_i_• (Lasch, 1979).
Algumas legislações, ao procurar diminuir o papel das aparências na apreciação
e no julgamento do indivíduo numa sociedade caracterizada por "um culto das
aparências", cQ_meç_;iram iligislar sobre as p_rQ_g_ria~ªP-ª-rências, buscando neutrali-
zá-las e, se possível, torná-la~ inyisiveis. 29 Pretendem ignorar as características per-
manentes da pessoa, para não penalizar os indivíduos que não podem modificar
uma aparência que lhes é desfavorável. Tais legislações se referem, fundamental-

28
O face a face televisivo entre Giscard D 'Estaing e François Mirrerand durante as eleições presi-
denciais de 1974 é extremamente revelador do papel político do olhar. Esse debate foi objeto de
longas <liscussócs que levaram à proibição de filmar o rosto <lo adversário enquanto um dos dois
oponentes fala: seu olhar po<le, de fato, desacreditar de maneira insidiosa, ao exprimir reticências e
desprezo apenas pela postura, por gestos, por expressões ou mesmo pelo bater das pálpe~ras.
·':_O culro das apa!fru;~ e a lura contra ele (anti-looki_!_n:z_) são objeto de importantes debates
jurídicos nos Estados Unidos. Ver Robert Post (2~00 e as imporrantes contribuições de Kwame
Anthony Appiah, Judith Butler, Th~Grey e Reva B. Siegel. -
- '"'------- -- ...____.--- v7
y ~__V"
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_.. ,\:) '..;/ 0-\
/
A CONDIÇÃO SENSÍVEL
nl \J; I'> yf' 1 157
}v2f'Ú
mente, à pessoa, à sua concepção, representação e proteção, e mesmo àquilo que a
constitui como pessoa. Buscam, de modo mais amplo, lutar contra a idéia de que
os indivíduos são apenas suas faces sociais, já que consideram que eles têm uma
"aparência não social".
·~;; Pos~~dou a questão das aparências como origem de preconceitos,
chegando a sugerir que devemos nos tornar cegos às aparências. S ~ rro­
cu~Jiza~conside~tentamente a existência de dimensões da ._pJ;_~oa · i ,,,.,
qus .. e~tr_lt;i_m_mte fal~ndo, não_aparecem
. , ou sej ~cAi!:1e,!1,1,ões_ que não depe~d~m i /f.lff
lff
d1.!etamente, como diz Butler, do 9lhar d~-.9..::'E'_~ d1m ensoes da vida ps1qu1ca i llJ::'.
que permanecem não formuladas ou indizíveis, exprimindo aspectos não feno- '(,v
mênicos da personalidade, que na maior parte das pessoas permanecem fugidios, '
ocultos" (.ê_utler, 2001: 78. cf. també rn_ÇQ.f[!!}ª .n, 1963; n!.I~oum-Grappe, 2004)
O que, e;tão:' e11.~!l.ill:LCQJlliLap.a(ência_dç_uJI!ª--P.ç:.füiQ.a? Onde ~!~ '"acaba ou
começa (Turckle, 1995)? A vestimenta, o lenço, a maquiagem, a postura, a reserva,
fazem parte - podem fazer parte - dos traços e dos atributos fundamentais da
<1.parência da pessoa (Butler, 2001)?

O DESCOMPASSO ENTRE AS MANEIRAS DE VER E DE SENTIR

As maneiras de ser, de se comportar, estimulam nossa atenção para as dimensões


visíveis da pessoa, ao passo que as maneiras de ver, perceber, olhar e sentir nas
sociedades co11temporâneas te~~:_~ a realçar ~.!.~~0es C_2!11_()__eu ,J0r-ª!l.®
à,~oblematizaç~i'.1:.~[l!~.!1.~i~ d_9 ol0<tr_~_l.!ado_eara o. ~!~O OU e!..~-~.E:1!:.S~()­
Ao ánfévero"lookism" no contexto dos anos 1980, Lasch reconheceu o papel
decisivo do olhar na emergência da personalidade narcísica contemporânea: "no
pre~ente, o sucesrn profissional depende menos das aptidões [.. .] do que da visi-
hilidade". Isso implicaria a "gestão da própria imagem", o que o levou a tentar
encontrar uma explicação: "o ;;m-bie~~~~~1~~-i;;;;afd~so da burocracia moderna
parece promover e encorajar uma atirude narcísica, uma grande inquietude em re-
lação à impressão que os indivíduos produzem uns sobre os outros, uma tendência
a encarar os outros como um espelho do eu". Por isso, atribui à "prolifera~ão de
soLicitaçóes visuais e auditivas" o desenvolvimento das preocup:1ções concernentês
ao eu, em que se distinguem "traços de personalidade narcísica" em graus diversos,
em cada indivíduo. Um desses traços de personalidade consistiria "nurna certa
superficialidade protetora" (Lasch, r979: 296)
Elaine Scarry buscou aprofundar essa análise das formas da superficialidade
contemporânea, esforçando-se em atualizar as principais causas e efeitos políticos
dessa cegueira. Assim, centrou-se no vínculo entre olhar e imaginação, e em suas

CL :\U DI NF llAHO C!!E


relações com as maneiras de sentir, na insuficiência das formas de sentir e na insen- f
sibilidade em para com o sofrimento de outrem. 30 Ao lembrar que os sofrimentos
infringidos ao corpo são "uma das razões profundas do contrato social de Locke e
dos contratos mais antigos das cidades'', bem como que "a forma como nos con-
duzimos em relação aos outros é moldada pela maneira como nós os imaginamos",
Scarry sublinhou os efeitos da falta de imagl"nação de nossos comportamentos
quanto aos outros, insistindo sobre o fato de que infringir crueldades procede da
M\""'
r',,.» "incapacid ade de perceber, de se representar e de imaginar o outro como semelhan-
µ·lr( \ te", e ele que "a capacidade humana de exercer crueldades contra os outros sempre
foi maior do que a de imaginar os outros" 3 ' (Scarry, 2002: 98-103).
A incapacidade de perceber seria uma constante, como Scarry parece sugerir, ou
exprimiria - UI~··-----
desequilíbrio na sensorialidade,
--- ----- -
de ac~rdc;- cõ"m transformaçÕ~S e re-
-- - - - .__
- -
gressões ocorridas ao longo da história? Nos anos 196Q, Ander~, . ell! _sua aJ!ál~e
dos mecanismos de alienação, em que deu continuidade às intuições e análises de
Walter Benjanin e de Theodor Adorno, procurou pensar as causas e os efeitos da
incapacidade de imaginar. Ao articular ~ social, o político e a sensorialidade, fez
uma série de obs_<o!Yaçõ~ sobre os efeitos acentuados ou provocados pela técnica: "'é'
a incapacidade de imagio.;u,__de__~~ de~ (Cornille & Ivernel, 1999) 32 • Des-
se modo, atribuiu a falta de imaginação, a insuficiência da percepção e do sentir -
trate-se da questão quer do mercado, quer das sociedades totalitárias, em particular o
nazismo - à existência de um descompasso provocado pela divisão do trabalho, ou seja,
pela "fragmentação das tarefas". Dito de outro modo, a divisão do trabalho acarretaria
um desequilíbrio entre os sentidos, situado no cerne do obscurantismo e, mesmo, de
uma verdadeira cegueira: o trabalhador, assim, "perde toda idéia do produto ou do
efeito de sua atividade" (: 15), isto é, a ausência de limites e o ilimitado são respon-
sáveis pelo desenvolvimento e a extensão de tipos de economia psíquica indiferentes,
conformistas e capazes de todos os tipos de violência, em decorrência da ausência de
percepção. O processo de divisão ilimitada do trabalho provoca, portanto, uma divisão
do homem nele próprio, "uma mutilação" e, inclusive, sua "possível anulação" (: 15).

"' Scarry observa que muitos escritos políticos tiveram como ponco de partida a questão da crueldade
contra os estrangeiros (Scarry, 200 2) .
11
· "Locke, que era médico e filósofo político, menciona de forma reiterada o termo 'feridi em Segun-
do "frat11do do Governo Civil. [... ] Ou. calvez devêssemos dizer, a capacidade de infringir sofrimenro
aos outros é mais force porqu e nossa capacidade de imaginar os o utros é mais fraca" (Scarry, 2002:
ioo-2). Ver também E nriquez (2001) e Santner (!992: r43- 54).
·'-' Hannah Arend t, Jurante o processo de Eichm ann , tornou consciência, com estupefação, de sua
supcrficiali<lade, sua incapacidade de reflerir e sua ausência de reflexão e de olhar. Sobre a perso-
nalidade democrática, ver Ha roche (2004).

A CON DI ÇÃO S EN S Í VE L 1 159


Anders não só percebe a existência de uma crescente complexidade e de uma
maior mediação como causas da desorientação, como aponta a razão e a origem
do mal "no descompasso entre a capacidade de fabricar, induzida pela cécnica
moderna, e a capacidade de representar o produto, o efeito final dessa fabricação"
(: 16). Como exemplo, cita algo bem concreco, um objeto banal, um poce de
geléia, impossível de ser diferenciado_de um recipiente destinado a excerminar.
Anders enfatiza o papel decisivo da representação e da imaginação para a percep-
ção do reaL isto é, para torná-lo visível e inteligível.: "Tudo começa com a insu-
ficiência total da p"tópria percepção: nada se assemelha mais a um poce de geléia
do que as caixas de zydon B", e acrescenta que "é justameme para permanecer
no nível da empiria que temos necessidade, por mais paradoxal que isso possa
parecer, de mobilizar a imaginação"(: 17). Ao concluir, afirma que "os trabalha-
dores modernos são quase obrigados por contraco a não ver, a não compreender,
a não saber o que fazem" (: 17).
Ele também res.salta que, nas sociedades contemporâneas, o trabalhador é al-
guém que parece deter...lUilª capacjdade de produção infinitamente superior à ~~a
capacidade de--sentir, fato que tem_ co~seq4ências em sua subjetivLd~de. Desse
modo, opõe o caráter ilimitado de nossa "capacidade de fabricar" ao caráter limi-
tado de nossa "capacidade de representar". Ao observar os efeitos do processo de
alienação, afirma: "Nós renunciamos e não sabemos nem mesmo que renuncia-
mos e que seria um dever nosso representar o que fazemos. [... ] Não temos mais
uma visão de conjunto do que fazemos, do que já fizemos e do que podemos
fazer" (: 18). Sua análise prossegue com a insistência sobre o papel da capacidade
de perceber e representar requerida tanto pela compreensão quanto pelo olhar:
"Se os efeitos de nosso trabalho ou de nossas ações ultrapassam [... ) certo grau de
mediação, começam a se embaralhar aos nossos olhos. Quanto mais o aparelho no
interior do qual nos integramos se complica[ ... ), menos o vemos".
De todo esse processo conclui o seguinte: "Nosso mundo, esquivando-se à nos-
sa representação e à nossa percepção, torna-se cada dia mais obscuro. Tão obs-
curo que podemos nem mesmo reconhecer o seu obscurecimento". Em seguida,
detém-se no papel e na natureza dessa cegueira, desse processo de mistificação:
"Enquanto no passado a tática [... ) consistiu em excluir os desprovidos de poder de ~
todo esclarecimento possível, hoje ela consiste em fazer crer às pessoas que elas são ~
esclarecidas, quando não vêem que nada vêem".
Dirige-se, então, a Klaus Eichmann, para enfatizar o amálgama de índill:rcnça
e desatenção que nos torna cegos e irresponsáveis em face das conseqüências, e
portanto desengajados, e dizer-lhe que isso é o que "temos todos em comum com

160 1 CLAUD INE. HAROCHE


seu pai, essa ' indiferença" (Anders, 1988: 51)3 3• Trata-se do mesmo desengajamen-
to, da mesma frieza e da mesma insuficiência no sentir, da mesma crueldade que
descobrimos na obra de Primo Levi, quando ele observa e detalha, com extrema
precisão, o papd do olhar ~;;gaç~ d.a condição humana (: 52, 132) .
/ /
Na descrição de uma cena terrificante, Primo Leve se refere à postura dos ss que
mantêm as "pernas apartadas"; à inexpressividade, à impassibilidade do rosto, à
lencidáo e à dcsenvolrura nos gestos. Narra a chegada de um deles, com o "cigarro
na boca", os gestos lentos e o controle corporal, a maneira corno perscruta, de
forma meticulosa, os prisioneiros, indiferente e sem exp ressar a mínima emoção
ou compaixão, em que a postura ereta e a inexpressividade física se substituem à
palavra. O oficial nazista não se digna a falar, o que poderia denotar a expressão de
algum respeito. Ele continua a fumar, quando o intérprete lhe faz uma pergunta,
"atravessa-o com o olhar, como se fosse transparente, como se ninguém tivesse
falado" (Levi, 1958)34 • N~da_~~~~ia ex rimir com..J>tnt_i!.lQbrie~ça
d~.v_o1uade a intensici_a_4e de .D_fg;o1r a pessoa do oy_!!Q, Diante da nudez dos detidos,
que por vergonha cobrem o ventre com os braços, o oficial alemão continua, silen-
ciosamente, a executar s~as_ G;i_ii-;g,2.<0~ǧes_~~ti9ianªs; abre novamente a port~ e
se ocupa com alguns objetos, ignorando os indivíduo~_como pessoa, príY<!Ddo-os
de sua qualidade humana, reduzindo-o_s pel-ª'_ degra.d~ç_ão ep_elo__g~~P..SÚ~ ao
estado de _tais ~e_r~, ' Õ ss permanecia ali olhando com um ar indiferente._as
contorções que fazíamos, uns atrás dos outros, para nos proteger do frio" (: 22) .

.1.i "Dc.sdc o momcnco em que nos colocamos para executar um dos inun1eráveis gestos pardculares
que compõem o processo de produção, perdemos não apenas todo o inceresse pelo mecanismo em
seu conjunto e por seus efeitos derradeiros, corno também nos privamo, da capacidade de imaginá-
lo" (And ers, 1988: 50). Esse texto esclarece muitos aspectos do trabalho nas sociedades contempo-
râneas, analisados igualmente por Richard Sennett, que analisa as conseqüências da fluidez e da
flexibilidade no trabalho: "o qu ~ conta hoj e é a associação do flexível e do fluido com o superficial"
(1998: 102); "num regime flexível, a dificuldade é anti-produtiva. Pnr um cerrivel paradoxo, di- 1\ ~,__/
minuindo a dificuldade e a resistência, cr iamos as condiçóel de urna atividade cega e indiferente / 1.
por parte dos usuários" (: 97-8) . O indivíduo invadido e submerso pelo excesso de informações
tende in evitavelmente para a superficialidade. Hervieu Léger percebeu efeiros análogos para os
s ujcíros cm cerras formas contcmpodncas de pnítica rcligiosi: a sensação favorece de forma surda,
in sidio:-.a , i11volu11L<iria ou ddihcrada a corpon:idadc, cm dt:tri111cnto da <..:01i~trw;ão de u111 sentido
cornparcilhado. Como afirma corno precisão, "não há 'sujeito sem o dize r', e essa capacidade de
'dizer' requer como motor a confrontação com uma alreridacle, fora da qual nenhuma linguagem -
e, porta11w, nenhum rcconhccimcnlO - é possível" {l.égcr, 2001: 138).
3
' Agradeço a C laude Fischler, qu e chamou a minha atenção pira essa passagem de Primo Levi.

A CONDIÇÃO St:NS ÍVEL 161


A narrativa de Primo Levi nos permite compreender, de maneira profunda, ao
que correspondem a ausência de palavra e de olhar, a cegueira e a surdez para a ne-
gação do outro: equivalem ao ódio à palavra, à troca, ao outro, ao que se apresenta
como estranho; ódio ao próprio conhecimento. Trata-se da afirmação de um tipo
de procedimento que não requer a presença de nenhum soldado: "o 'colaborador'
diz que é preciso se calar, que não estamos numa escola rabínica. N ão existe es-
pelho, mas nossa imagem está diante de nós, refletida em cem rostos lívidos, cem
fantoches miseráveis e sórdidos" (Levi, 1958: 22).
Em face da constatação de que as recusas de olhar, de falar e de escutar cami-
nham juntas - "se nós falarmos, eles não nos escutarão" - Primo Levi relaciona a
audição à capacidade de compreensão, de inteligência: "mesmo se nos escutassem,
não nos compreenderiam" (: 23- 6) 3'. l~ro__ws~~~ que o~ ~~_s:_r!_S~a
no cerne da condiçã o humana: quando impassível, reiftcante ou glacial, visando
provocar o medo, a verg~a humilhação, e[.e deixa subsisti_r na pessoa -'! penas
o._ automático e mecânico. A _negaçãq __9.o olhar podi:, _f!:~t~J]~o ,_ l~v'.'. r à perda_ da
interiQri.d_ª4e~tirªr_4ª_ pessoa seus atributos fundamentais.
Retomemos, uma vez -;1;ai ;:-Xsõ~·7édade de -ind./;;idu~s, de Norbert Elias:
"O esquema fundamental da visão de si mesmo e da visão do homem em geral per-
manece, portanto, fundamentado, mesmo no interior das sociedades que levaram
mais longe o grau de especialização e individualização, na idéia de uma 'interio-
ridade' separada do mundo 'exterior' como por um muro invisível" (Elias, 1941:
26). Marcel Mauss, que compartilha inquietudes e angústias presemes nos textos
de Elias, e também no de Anders, reafirma a continuidade do sentimento d e si,
mesmo em face dos fluxos contínuos, das sensações ininterruptas, da existência de
um mal-estar envolvente. Ele afirma a possibilidade de uma sensibilidade despro-
vida de niilismo, interrogando-se, contudo, sobre a perenidade da categoria de Eu.
Avalia um processo histórico que "da simples mascarada à máscara, do personagem
à pessoa, a um nom e, a um indivíduo, deste ao ser portador de um valor metafísico
e moral, da consciência moral ao ser sagrado, deste a uma forma fundamental de
pensamento e de ação, completou-se" (: 73) 11 '. Qu em sabe, conclui, se "essa 'cate-

.v• Sobre os processos e a menra!ida<l~ totalitários, sobre aquilo que faz coni que não sejamos au!Ôrna-
tos. mas sujeitos capazes de recusas, disce rnimentos e dhar, ve r 1-Ld-Tn cr (1000); So!1(C o t:!naüs mo
de maneira geral, ver AnsartDourlcn (1985: parte 4, caps. 1 e 2).
_v, Merleau-Ponry formulou as condições de possibilidade do olhar também ao afln11.H que", cons-
truçáo <lo sentido se origina na sensação e 11;1 pcrccpç5n" . As maneira s de sentir e de oH13.r s11pôt'm,
junto com as tradições, uma ca p:1ci<la<l e psíquica. Em sua ardlise Jas opcr:H/1cs fundamentais
da percepção. os meca nismos cm ação no olh::1r e na visão, :lS maneiras Jc perceber e olhar, ele
aborda, por meio do olhar, :t questão dos limites e dos mccm ismos de dcfrs:1 Jo cu: o olh~ir si rua

16~ 1 t : l.Al l DJNE 11 :\ROC !IE


gorià, que todos aqui acreditamos estabelecida, será sempre reconhecida como tal?
Ela só se constitui para nós, em nós. Mesmo sua força moral - o caráter sagrado da
pessoa humana - pode ser posta em questão" 37 •
Nas sociedades contemporâneas, desenrola-se um processo de transformações
intensas que nos leva a ignorar e a apa~ as dimensões não visíveis da pessoa, pri-
vilç:gi~_nçl2_apç;ri..a.:_s ;is QlJAt:n§9s;~.visJvei~ . C~tanto, pergunrãF o queacõrltece \
quando essa interioridade, cada vez menos perceptível, parece não mais se distin- '
guir do mundo exterior. A divisão do trabalho dos sentidos, entre os sentidos, sua /
complementaridade, conhece atualmente um momento de desequilíbrio decor-
rente da extensão e da onipresença da visão. 38 As transformações contemporâneas
sociais, políticas e, principalmente, antropológicas incidem sobre o olhar, sobre
seu declínio, reforçando a ausência de reflexão que conduz a transformações ca-
pitais nas formas de mediação, em sua própria possibilidade de existir. A divisão
do trabalho provocou igualmente - e isto é sugerido pelas análises de Anders -
uma divisão profunda e inquietante em relação a certos aspectos do trabalho dos
sentidos, da sensorialidade e da sensibilidade, um afastamento ou mesmo uma

o espet:ículo à <listfu1cia ou, ao co ntrário, pode se deixar invadir por ele. "O que é fi xar' Da parte
do suj eito, é rnbstituir a visão global, na qual nosso olhar abarca todo o espetáculo e se deixa ser
invadido por ele, por uma observação, quer dizer, uma visão local". Merleau-Ponty ressalta, então,
o retrocesso generalizado , o declínio do papel do corpo na percepção: "nós desaprendemos a ver,
a ouvir e, em termos gerais, a sentir como forma de deduzir nossa organização corporal" (Mer-
leau-Pünty, 1945: 273) Mirscherlich, em estudo de psicologia social, ressalta o papel ao mesmo
tempo literal e metafó rico das percepções senso riais nos afetos: "como a expressão da simpatia e
da antipatia é manifesta com mui to vigor pelas percepções sensoriais, não podemos sentir alguém,
não podemos vê-lo, não podemos Ol!vir sua voz [... ]. Pode-se supor que o esquema afetivo que
provocará mais tarde os sentimenros de simpatia ou de antipatia foi formado muito cedo ao longo
das primeiras experiências inte r- individuais~ numa época em que as impressões sensoriais eram as
mais intensas" (t96r 116).
n Dew ine analisou , de m:tnei ra ad1nirável, o "olhar antropológico" de Mauss, ao evocar "outro
estado de espírito [que! pode existir à medida que é possível conciliar a idéia de contingência ao
sentido posi1ivo e 115.0 ilusório dos fcnbmenos sociais, de so rte que a aptidão cético-niilista não
seja absolutamente um2 conseqüência necessária da sensibilidade à contingência. [... ] Mauss subli-
"hou a positividade e não a negatividade: nfo um nada, um vazio de sentido, mas a positividade de
um 'alguma coisa', de uma posição de sentido [.. . ].que implica nela própria uma parte de possível
e de virtualidade" (2002: 269).
18
· Sobre essas questões, ver os importantes debates sobre as relações entre corporeidade e linguagem
não verbal e verbal em lngold (1998). Alfred Gel!, por exemplo, afirma num destes debates: "Eu
não di go que a linguagem deve ser verbal, mas penso que ela deve ser outra do que aquela total-
mente tomada e enclal!Surada num fluxo de movimentos corporais contínuos" (citado em lngold,
1998: 183).

A CONDIÇÃO SENSÍVEL
ruptura entre o sentimento de si mesmo e as maneiras de sentir e de olhar. Nessa
perspectiva, o estudo e a atenção às formas de olhar podem esclarecer os modos
de funcionamento mais profundos das sociedades contemporâneas. 39 Não é justa-
mente sobre o problema da extensão e do crescimento do eu, e ao mesmo tempo
sobre seu encolhimento e seus limites, tanto quanto sobre a questão dos direitos,
que devemos meditar?

39
"Não seja míope. A miséria está sob seus olhos", pode ser lido em cartazes espalhados pelo Brasil.
Que tipo de consciência ou de ausência de consciência, qual a capacidade de recalque, qual grau
de surdez, de cegueira, de ausência de olhar, é preciso para ignorar ou ser indiferente a certos níveis
de miséria, pobreza e degradação? O que quer dizer a liberdade de não ver o estado de miséria e
degradação do outro?

CLAUDINE HAROCHE
PARTE IV

O ESTREITAMENTO DA CONSCIÊNCIA
PROCESSOS PSICOLÓGICOS E SOCIAIS DE HUMILHAÇÃO:

O EMPOBRECIMENTO DO ESPAÇO INTERIOR 1

Os chefes não conhecem seus subordinados


como homens, mas apenas como instrumentos
de produção.

Quanto mais o operário se desgasta no trabalho,


mais se empobrece e mais seu mundo interior se
torna pobre.

Em seu trabalho, o operário não se afirma, ele


se nega [... ]. Ele não desenvolve uma atividade
física e intelectual livre, mas mortifica seu corpo
e arruína seu espírito

Karl Marx

Reconhecemos nessas epígrafes, extraídas de Manuscritos de 1844 e de O Capital,


o vigor do texto de Marx. 2 Trechos de incrível atualidade e que servem de ponto

1
Agradeço a Pierre Ansart, Michcle Ansarr-Dourlen, Yves Déloye, Eugêne Enriquez e Geneviêve
Koubi pe!os comell[ários críticos e sugestões. Esta contribuição se inscreve no âmbito de uma re-
flexáo de vários anos sobre as relações entre os sentimentos e o político, empreendida pelo Núcleo
História e Linguagens Políticas: Razáo. Sentimentos e Sensibilidades, do CNPq, que conta com a
participação de pesquisadores brasibros e franceses.
' Agradeço a Jacy Seixas a sugestão de retomar os textos de Marx, em p<uticular ManUJ-crÍtos dt 1844
e o primeiro volume de O Capít,d. Neste texto, parto da noção de alienação tal como formulada
por Marx, mesmo se em O Capital, como me alertou Pierre Ansarr, a noção de alienação tenda a
se ocultar. Marx nos incita a pro'5eguir sua reflexáo, ao observar que a alienação humilhante nasce
da dependência, da separaçáo e da privação da propriedade de si. Meu esforço é refletir sobre o
empobrecimento do espaço interior por meio do declfnio das mediações e das formas de produção
no capitalismo flexível, fluido. A espoliação do eu se desenvolve, paradoxalmente, pelo interesse
de partida para aprofundarmos a questão da humilhação nas sociedades contem-
porâneas.'
Ao evocar o desprezo, a pobreza interior, a privação e espoliação de si, bem
como a mortificação do corpo e a opressáo social e econômica, Marx exprimiu, em
poucas palavras, o essencial das condições de humilhação do operário de fabrica
na Europa capitalista do século XIX. Denunciou o processo de alienação do traba-
lho, de miséria econômica, material e, além disso - e este é precisamente: o ponto
que nos interessa aprofundar para a compreensão das sociedades contemporâneas
flexíveis e fluidas-, de miséria psíquica, interior, bem como os sentimentos por ela
provocados.

As humilhações devem, a partir de então, ser consideradas conseqüências das so-


ciedades de mercado sem limites, que, ao gerar ou fomentar o desenvolvimento de
humilhações intensas, não estão em condições de respeitar a condição humana e
de oferecer a todos seus membros condições de vida decentes (Margalit, 1996): na
verdade, elas levam a uma negação do reconhecimento e da existência no interior
de massas sempre mais numerosas e atomizadas. 4
Essas formas de humilhação, difusas, insidiosas e freqüentemente sem auto-
ria discernível são difíceis de serem observadas e estudadas, e nos fazem retomar
questões que se situam no fundamento das ciências sociais. 5 À diferença da ofensa,
da desonra, da vergonha e da infâmia regidas pelos códigos e ritos sociais que

exclusivo e conscante no indivíduo, que tende a se isolar e a se desinceressar; a força ou a fraqueza


do indivíduo se coma elemento determinante da condição humana e conscirui os fundamentos
de uma insegurança psíquica profunda, que considero indissociável da insegurança social, cmo
apontado por Robert Castel.
3
Sobre a etimologia de "humilhação'', ver Ginzburg (1986: 95-u7).
4 François Furet, em "A noite de 4 de agosto", lembra as humilhações infligidas ao povo pela aristo-
cracia, às quais nessa noite se quis colocar um fim com a abolição dos privilégios (Furec & Ozouf,
1988).
5 Trata-se de um problema fundamental para as ciências sociais: a observaçáo do real, o estabeleci-
mento e a qualificação dos facos, a possibilidade mesma de observar. Ver, a esse respeito, 1-laro-
che (2004). Essa é uma das razões pela qual defendemos uma abordagem transdisciplinar, a fim
de resistir, como escreveu Dumont, à "tendência moderna à compartimentagem e à especializa-
ção crescentes, ao passo que a inspiração antropológica consiste, ao contrário, em ligar, reunir"
(Dumont, 1991: 33).

168 1 CLAUDINE HAROCHE


governavam as sociedades do Antigo Regimé, e à diferença também da humilha-
ção vivida pelo proletariado no século XIX, as situações e formas de humilhação
conremporâneas acarretam uma miséria social e psíquica suscetível de afetar o
eu: 7 um eu massificado, cada vez mais isolado; um eu, a um só tempo, privado de
rderências, de contato , dependente e perdido; um eu impotente, profundamente
desorientado e, por isso, incapaz psiquicamente de se associar a ourros. 8
A divisão e a especialização do trabalho têm como conseqü ência a falta de
visão de conjunto, o parcelamenro e o isolamento 110 social (Castoriadis, 1990,
1996, 1997). O fenômeno da "vida mutilada" percebido por Adorno nos anos
19<;0 se acentuou de modo considerável, confrontado no presente com fluxos
sensoriais e de informação ininterruptos, enquanto a capacidade psíquica se vê
diminuída e, muitas vezes, destruída, reforçando a alienação. As sensibilidades
paradoxalmente intensificadas e desarmadas são, desse modo, incitadas a aceitar,
a suportar e até a colaborar ou participar de formas - intensas e insidiosas - de
alienação e humilhação do eu, que hoje se encontra sem proteção e em estado
de vulnerabilidade radical (Adorno, 1951; Bauman, 2001). Tal humilhação con-
temporánea se explica e se traduz, sobretudo, pela arrnlação das distâncias nas re-
lações, pela psicologização das relações privadas e profissionais: ~o induzir a um
encolhimento do espaço interior de cada um, atinge o núcleo mais íntimo do
indivíduo, seu próprio sentimento de identidade e de existência, seu eu (Freud,
1930; Anzieu, 1995).
No passado produtor, hoje consumidor, o indivíduo deve se vender constan-
temente e, para isso, precisa mostrar-se, exibir-se de maneira repetitiva. Em se
encontra em face de uma incitação contínua que põe em xeque sua capacidade de
escolha, de reflexão, e o conduz, em última instância, à passividade e à submissão,
quando não à anula.,:ão de seu c1 1.
ºfrata-se, então, de compreender a humilh<ição prlo 1-::ito <le o indivíduo ser situ-
ado em posição de passividade, de dependência, e experimentar um sentimento de
impotência e frustração, de intensa humilhação: confrontado à complexidade e à
opacidade crescentes, não consegue mais encontrar sentido na sociedade, nem em
si mesmo. A sociedade d e consumo desvaloriza os indivíduos, sua singularidade,

" Encontramos uma ilustração da importância da humilhação nas querelas das precedências ao ob-
servar Saint-Simon na sociedade de cone do século XVII (Oéloye, Harochc & Ihl, 1997).
-' ( :om frcqli l: ncia, mas 1H:rn se mpre, a miséria é fundamentalmente eco nômi ca . É justamente a
Jin1 en.sãu ps íquica , e não necrssariamentc.: a econômica) que: nos inrc:n:.ssa aqui.

s Convé1n, no entanto, distinguir diferentes tipos de funcion amento das massas: o homem d e mas-
sas nas sociedades tradicionais tribais não é idêntico ao homem de massas nas sociedades democrá-
ticas ocidentais. Ver Arendt (1951); Canetti (1960) .

A CONDIÇÃO SE NSÍVEL
sua criatividade e sua imaginação, a própria pessoa em cada um de nós; emperra
e destrói a subjetividade, à medida que interdita toda capacidade psíquica que
demanda o tempo necessário à reflexão, à relação consigo mesmo e à consciência
de si (Janet, 1929; Mauss, 1938). 9

II

Marx enfatizou o processo de alienação social, política e psíquica existente na obriga-


ção de se vender. A parte de si que cada um é forçado a vender não diminuiu: talvez
tenha mudado de natureza, uma vez que as formas de venda, seu conteúdo e a natu-·
reza do trabalho se modificaram. A obrigação de se vender não concerne mais unica-
mente ao operário de fábrica (Sennett, 1998), pois diz respeito a cada indivíduo e à
sua força de trabalho, levando-o à miséria físi ca, material c social. Ela atinge, como
no passado, o corpo, mas também , por intermédio dele, a esfera interior, o homem
interior, o mundo psíquico. Ao reforçar a descontinuidade e a fragmentação do eu,
ela se foz, hoje cm dia, pela injunção e a ex ibição de si: rrara-sc de oferecer não ape-
nas a força de trabalho, como também ;t própria pessoa psíquica, particip;111do dcs:;a
forma da própria condição do homem nas formas de individualismo contemporâ-
neo.' º Marx discerniu no processo de alienação, enrendido como ausência e perda
da propriedade de si, urn processo de empobrecimento interior que se acompanha
da redução da capacidade de pensar. 11 Como ele enfatizou, o trabalho do operário
o "conduz à indigência e à alienação", isto é, o "operá rio só se sente ele mesmo fora do
trabalho; neste, sente-se exterior a eie mesmo" (Marx, 1844: u2) 12•
Foi precisamente esse aspecto que se transformou no individualismo contempo-
râneo: se no trabalho, hoje como no tempo de M arx, o operário se sente exterior
a ele mesmo , em que si tuações fora do trabalho ele se srnte como o que de fato é?

9
Para as sociedades contemporâneas, ver o ca pítulo 7. Enriquez abordou a qu es tão dos indivíduos
que, levados à incapacidade <lese vender nessas formas d!..'. individualismo , tomam-se inúteis e
supér/luos (En<iquez, 2004).
111
Re tomamos aqt:i arg un1cntos desenvolvidos eu1 Castel e H;uochc (2001)
11
Marx afirma que a alienaçãQ nasce do fato que "o objeto prodmido pelo trabalho [... J se alço diante
do operário[ ... ) como um poder indepcnde~te do produtor", cm qu e vê "a perda do objeto" '-' li a
"sujeição a ele" . Marx (r844: 109).
11
•.> M'arx di scenliu a relaç:lo do oped.rio com sua própria ativid:ule co mu uma atividade cst ra nha que
não lhe pcrrcnce", definindo-a como uma "atividade <.JUe i: p;1ssividadc, uma forç a que L: impotên-
cia", ben1 como sublinhando que "a e nerg ia psíquica e intelectual d o opt rário, sua vi da pessoa l 1 .. j
é tran!'fo rnu<l:1 cm ativid~1Jc dirigida co lll ra ele mesm o" (: 11 l).

170 1 C! ·\l ' DI '.-J F 11 :\! { 0l.liF


Concretamente, o que entender por esse "fora" em que o operário poderia viver,
ter meios de vida, sentir-se útil e ocupar um lugar? O operário, o empregado ou,
em termos genéricos, o trabalhador existe independentemente da atividade profis-
sional, da identidade conferida pelo trabalho? 13 Esse "fora" pode existir quando a
sociedade não é mais uma sociedade de produtores, quando a alienação não pro-
vém mais da própria atividade produtiva, desconectada da atividade de consumo,
e sim quando o consumo tende a prevalecer sobre a produção? Quando, por outro
lado, o consumo cede lugar cada vez maior à própria idéia de consumo? Não nos
confrontaríamos aqui com um empobrecimento do mundo interior resultante de
um novo tipo de alienação, de uma exclusão da sociedade em seu conjunto, e não
mais apenas do trabalho como pensado por Marx? 14
Os efeitos da divisão do trabalho foram descritos por Marx como o encoraja-
mento de atividades repetitivas, automáticas e compulsivas que instrumentalizam
o indivíduo e o fazem desinvestir de suas capacidades psíquicas de pensar e criar:
são as condições de trabalho que "estropiam o trabalhador, fazem dele alguma
coisa de monstruoso, ao ativar o desenvolvimento artificial de sua destreza para
o detalhe, [fazendo] do operário um ser desprovido de sentido e de necessidades"
(Marx, 1859: 266).
Esse aspecto mudou nª _condição do indivíduo: hoje em <lia, çle é invadido por
necessidades de consumo contínuas e i!i~i~~c!_a~. A f!!!_es1ão do s.emi.4<!.:- e--ti_mbém
d_Q_s ~ririQ~ - se apresenta -d~ fo~ma ambígua, raramente explicitada. 15 Há, atual-
mente, formas de alienação e de humilhação difusas, indiscerníveis, indistintas e
ilimitadas, que acarretam a pobreza interior de cada um não apenas no trabalho,
como também fora dele. Tal pobreza interior é provocada pelas formas contempo-
râneas de trabalho nas sociedades de consumo, que implicam a psicologização das
relações profissionais e a destruição da fronteira entre interior e exterior, em razão
principalmente da redução do espaço público ao espaço privado, íntimo, à relação
consigo mesmo. 16

1.1 Seria oportuno, portanto, repensar e deslocar a oposição tradicional entre o operário e o capitalista:
essa oposição se daria agora enrre o trabalhador e o não trabalhador.
" "() trabalho alienado torna o homem estrangeiro a seu próprio corpo, ao mundo exterior assim
c.01110 a sua essência espiritual, a sua essência humana.[ ... ] O homem .se torna cad;:1 vez. mai ..;; pobre
como homem" {Marx, 1844: 116). Ver também Adorno (1951).
" As necessidades estimuladas de forma contínua pelas sensações têm tendência a emperrar a possibi-
lidade d~ apreensão de sentidos durante a atividade. Cf Lasch {1979), Illich (1995).
"'Essas formas de trabalho são provocadas igualmente por uma relação à temporalidade que estimula
a rapidez, a curta duração, a superficialidade e, conseqüentemente, o declínio dos vínculos durá-
veis nas relações, ou seja, certa friez..-:'l.

A CONDIÇÃO S ENSÍVEL 171


Marx, de modo premonitório, advertiu que "a c!_:~rização do mundo_hurn.a-
no_ ac~-~p_anhav~ a valoriza_ç_ão_do mundo material" (Marx, 1844: ro8). Ele falou
de um mundo e de uma essência humanas exteriores ao trabalho: "Não é apenas
o trabalho que é dividido, subdividido e repartido entre diversos indivíduos; é o
próprio indivíduo que é fatiado e metamorfoseado em peça automática de uma
operação[ ... ]. Certa atrofia do corpo e do espírito é inseparável da divisão do tra-
balho na sociedade" (Marx, r8w 266-72) .
As condições e a natureza do trabalho, as relações entre trabalho e esfera exterior
se transformaram: os indivíduos não estão mais tão atrofiados em seu corpo; estão
indefinidos, sem limites, experimentando uma impotência profunda ou acreditan-
do, ao contrário, em seu poder auto-suficiente. Em outras palavras, o homem não
está mais claramente subordinado ao outro, seja qual for esse outro; como homem,
ele está excluído da sociedade contemporânea de mercado: os indivíduos, hoje,
estão entrincheirados em seu eu, um eu privado de apoios, de proteção tanto ex-
terna quanto interna; um eu impreciso, indefinido e desengajado. Assim, podemos
compreender por que a questão da dignidade e da humilhação se tornou central
nas sociedades democráticas contemporâneas (Bauman, 1998).

III

As condições de trabalho humilhantes diziam respeito ao operário, subordinado a


um chefe, explorado, instrumentalizado e excluído da propriedade dos meios de
produção. Hoje, além das condições de trabalho, foram, mais genericamente, as
condições de existência que se transformaram e tendem a se tornar humilhantes
para todo indivíduo, pois o isolamento no individualismo contemporâneo incre-
menta a precariedade, o sentimento de impotência e humilhação. Esse isolamento
e o sentimento de impotência são reforçados pela não limitação existente nas so-
ciedades democráticas contemporâneas, de um consumo de si que atinge as fron-
teiras do eu e é suscetível de provocar ora um incremento da força, da energia física,
exterior, ora um empobrecimento psíquico, interior, uma incerteza em relação a si,
concomitantes a um sentimento seja de poder, seja de impotência e humilhação. 17

17
As sociedades de consumo, definidas pelo "uso que é feiro das coisas para satisfazer suas necessida-
des'.', cornaram-se sociedades definidas pelo uso que é feiro não apenas das coisas, mas Jc si mesmo,
satisfazendo necessidades ampliadas, ilimitadas, ligadas ao eu e suscetíveis, sob esse aspecto, de
colocá-lo em xeque. fu sociedades de consumo são, hoje, sociedades de consumição. É interes-
sante sublinhar que "consumição" designa a ação de servir, esgotar, e, na época cristã, de aniquilar,
destruir. A partir do século XVII, essa palavra é empregada nos sentidos de "ação de queimar" e

172 1 CLAUDINE HAROCHE


Nas formas de alien ação contemporânea , gostaria de sublinhar Llma dimensáo
---·------ - - - - ---
l
~
e~ecíflca e inédita referi crããViSiDiTiê!ãaecre5l:Uni ripo de visibilidade
ue ao ig- -
n~rar as ft:?~':!~~o ~mimo, do privado e do público. rend5~ ingrumc:nraliz_? r e
a [~l_f~a.!:_0__0.cii_y_L~~ç~~-~on_r ~ de si__i::iesmo, encora·ando -~
e reforçando o voyeurismo, o exibicionismo, a perda do privado, do íntimo e da W"
inre!·iorid;de, -i;;;;1 como dcsenvolvendo--réspostas-aL""i°to~niricas e m ecânica.s. Tal
alie nação. refõr -aaa- elãsrecnologi.ã s- contemporâneas, fo~ç~~indiví4_u2..J!㺠""ªV'
re_prcse~ar 1:'._ITI pedaço de si , mas a desnuda_r-se :i~m conrín uo desve~~nto d~ _si , ...faV"'-~
º.
l'!J l:_S~o, a mostrar-se p_ara ser valorizado e, fundamencalmente~~xi~i~. ,
A visibilida<k.._p._ULtant.Q,_ap.r.esenra-se como sinôniJno_çle legitimidade, de uti-
lidaqe, de garantia de qualidade: s~a freqüência, sua qua_i:i_t:ic!'!_de e, _l:!_l_esm_o~~a
continuidade valorizam o indivídu~. - A:ü' més~~~po, ela é sinônimo de inuti-
lidade, insignificânci a e inexis~~ia~ 1 8 Provocada pelas socie4ad-es in_.4ividualist~
contemporâneas, a j_nciração, ou melhor, a injunção à exibição _in~e~sante de si,
revela-se com acuidade na fragmentação, no despedaçamento específico do eu e
na al~naÇão de si. Alén~disso, tal fragmentação pela visibilidade reforça uma série
de ~posições: entre o útil e o inütil, a existência e a inexistência, o legítimo e o
ilegítimo, o signiflc:mte e o insignificante, o importante e o acessório, o essencial e
o supérfluo, o estável e o instável, o contínuo e o descontínuo, e o incluído e o ex-
cluído, outro modo de dizer que a exibição contínua de si acarreta efeitos psíquicos
de divisão dos indivíduos, conduzindo-os a formas de concorrência exacerbadas.
Ora, e~s ~busca de visibilidade, aspiração pela qual o indivíduo é valorizado,
traduz novas formas de poder, de dominação econômica, social e política, ao mes-
mo tempo que contribui paro. a alienação psíquica, acompanhando-se de profun-
das transformações do tipo de r ersonalidade, como sublinhado por Sherry Turckle, I
Richard Sennett e Zygmunr Bauman. Ao se preocupar com a flexibilidade e a frag-
mentação do eu, Turckle dedicou vários rrahã!flOi_io_b__rs:_os__efe_ito.s_da__presenç::u :;on- / ('J:;,
tínua de telas na identidade, sublinhando o mesmo aspecto sobre o qual ___5el)_n ett / \4")
i~;is_te, a s~~er)_qu: "a estabili_d~de era out~ora,soc~l~~n~e ~ culr~ralment~ ~alori;a-/
da . e que o qu~_e ago_r:a d <".gs1vo e prefe~1~ a esta5ili_<[alli::,__ço_ns1derada ng1da, e J
flexibilidade, a capacidade de ac!!ptação_e de m~ança" (Turckle, 1995). f

"de ser q ueimado" e, a té o século XVIII, d e "utilizar destruindo". Cf. Dictionnaire historique de la
langucji'flllÇ'flise (1993).
ix l:: impn rLIJllt: disri11i.;uir dikTlºIH L'~ formas de in visibilidade: a das 1nassas pohrcs não é <.: scolhida,
mas impingida (entrecortada, às vezes, por uma visibilididc humilhante, como a do indivíduo
convidado a se exibir na televisão). Tal invisibilidade náo é aquela protetora - desejada, passageira,
valorizada - da discrição das elites, concomitante à busca da visibilidade de si que permite e expri-
me 1111ia posição de poder. A respeito da visibilidade de si, ver Kaufman (2003).

A CONDIÇÃO S EN S ÍVEL
Sennet, por sua vez, ressaltou que o fluxo contínuo provoca efeitos de alienação
profunda e também de desi11tegração do eu, insistindo sobre a necessidade de "sal-
~n.ti.r.neru.o-de si do ffoicQgB_~rial'~ (Sennett, 1998). Ao contrário do tipo~
personalidade estável que se inscreve no horizonte da continuidade, na consciência
de uma continuidade passada e futura, o tipo de personalidade flexível se define,
paradoxalmente, pela máxima visibilidade e pelo movimento, pelo deslocamento
incessante, encorajando-se a capacidade de adaptação, cujos efeitos acarretam a
ignorância dos limites e, mesmo, a negação de uma relação com eles. 1 'J
Ao isolar um estado, um momento específico da sociedade, que chamou de
"modernidade líquida", Bauman se detém sobre esses traços de personalidade. Tal
estado se caracteriza pelo "desaparecimento do que é contínuo, estável e sólido", e
pelo declínio da individualidade e de sua singularidade repousando nas aspirações
de duração. O declínio de "engajamentos duráveis que constituem vínculos, e em
que a individualidade é valorizada pela exigência, foram substituídos por encon-
tros breves, ordinários e intercambiáveis". Desse modo, conclui que a ausência de
vínculos e, mais do que ele, o desengajamento descrevem, com perfeição, a atmos-
fera das sociedades individualistas contemporâneas (Rauman, 1998).
Com efeito, o descngajamemo é um traço fundamental do clima, da atmosfera
das sociedades individualistas e, mais precisamente, da personalidade flexível, na
condição de elemento essencial não só dos novos modos de poder e de dominação,
como também dos mecanismos de alienação e de humilhação. Bauman chega a
concluir inclusive que a característica do individualismo contemporâneo "não é
mais, como nas sociedades anteriores, a construção da identidade, mas o fato de
não se fixar".
Nesse contexto, Dany-Robert Dufour propõe um panorama dos efeitos de alie-
nação e humilhação produzidos pelo mercado sobre a subjetividade dos indivíduos,
sejam eles pobres ou ricos. Em seus trabalhos, procura elucidar a superficialidade
das relações reforçada pela fluidez das sociedades de mercado contemporâneas:
elas necessitam, em seus termos, "de tudo menos do que possa emperrar a circula-
ção das mercadorias", o que leva a efeitos de desestrumração sobre o indivíduo e a
profundas transformações na subjetividade (Dufour & Berthier, 2003)
Desse modo, Dufour retoma e aprofund't o que Christopher Lasch percebeu no
fim dos anos 1970 em seus trabalhos sobre as sociedades narcisistas: a indiferença,
a falta de sensibilidade para com o outro, o declínio dos sentimentos (Lasch, 1979).
Para ele, o mercado, ao incitar ao consumo permanente - em cspeci~I, ao consumo

''' Pierre Legendre ressalta que "fabricar o homem é dize r-lhe de seus limites, e nsinar-lhe um para
além de sua pessoa, separar o homem dele mesmo. Cada civilizaç5o produz seu es tilo de educação
na separ;içfo de si" (1996: 22-4).

r74 i l 1 \ 1. 1)] ~ 1 !1\ 1~ ( )( 1 1 1


permanente de si-, leva o indivíduo a se preocupar fundamentalmente apenas com
ele mesmo, pois procura "suprimir os vínculos, os elos e os sentimentos que não
são passíveis de se converter em valores mercantis": o mercado, na verdade, procu-
ra estimular as sensações de forma contínua para desenvolver o consumo e dispor,
como formulado por Dufour, "de indivíduos definidos apenas por necessidades
consumistas sempre ampliadas" (Dufour & Berthier, 2003). Ao induzir à pressa,
incitar a rapidez e a aceleração, o consumo permanente acentua a superficialidade
dos vínculos e provoca o empobrecimento interior.

IV

Passa-se, assim, de uma forma de pobreza interior provocada essencialmente por


condições de trabalho humilhantes, como observado por Marx, a uma pobreza
interior nascida das condições de trabalho e, mais amplamente, das condições da
sociedade em seu conjunto ligadas à flexibilidade e à fluidez. Tal passagem não só
acarreta uma confusão entre interioridade e exterioridade, como também impõe
um ritmo, uma velocidade e uma aceleração que afetam a capacidade psíquica, o
eu, a identidade e a subjetividade.
Contrariamente a Marx, para quem o indivíduo alienado e humilhado no tra-
balho, pertencendo a uma determinada classe, não estava sozinho, o indivíduo nas
sociedades democráticas contemporâneas se encontra "isolado" no trabalho e fora
dele; ora, é esse isolamento que facilita e encoraja o caráter repetitivo e intenso da
humilhação. 20
Tanto Norbert Elias quanto Hannah Arendt se preocuparam com os proces-
sos psicológicos e sociais de humilhação existentes no interior de grupos e entre
eles, isto é, com mecanismos de exclusão, de estigmatização e de marginalização.
Elias abordou os mecanismos de exclusão tendo como base situações que opõem
"intrusos carentes" - marginais, outsiders - a grupos estabelecidos, em que os
primeiros são inferiorizados e humilhados pelos últimos. Entre as condições de
inferioridade, lista a pobreza econômica, social e psíquica, e o total despojamen-
to que leva à ausência de autonomia. Enfatiza também a constante exposição do
grupo inferiorizado submetido às decisões e ordens de seus superiores, bem como
"a humilhação de serem excluídos de suas fileiras e as atitudes de deferência in-
culcadas" (Elias e Scotson, 1965: 49) . Ele observa que os grupos estabelecidos são
confortados "pelo sentimento de fazerem parte do mesmo mundo vis-à-vis 'os

"' A respeito dos processos de massificação, ver Arendt (1951), em particular "O sistema totalitário e
o imp e ri a li s mo'~.

1 17 5
inferiores" (: 28 7-8) e, emão, oferece uma explicação sociológica do caráte r ge ral
desse tipo de relação entre grupos que implica níveis, status, lugares, po s i ~ões e
a existência de relações de força, poder e dominação: "sempre os qu e chega m se
esforçam para melhorar sua posição, enquamo os grupos estabelecidos tentam
manter a sua [... ]. O s primeiros se incomodam com o lugar subalterno que lhes
é dado e, freqüentemente, buscam ascender, enquanto os segundos se esforçam
para preservar sua superioridade, que lhes parece ameaçada pelos que chegam"
(: 294). Elias apreende, então, uma dinâmica de inferiorização do outro, que se
acompanha da humilhação, visando acolher o sentimento de superioridade de
si. Como ressalta, os grupos inferiores, os outsiders, os excluídos, interiorizam
essa depreciação, pois o "descrédito social efetuado pelos poderosos" tem ccmo
função "inculcar no grupo menos poderoso uma imagem desvalorizada e, assim,
enfraquecê-lo e desarmá-lo." (:-42). Revela-se aqui um processo social e também
psicológico que, desenvolvendo-se entre grupos, estrutura e modela uma ima-
gem e uma consciência de si específica, ou seja, sentimentos d e inferioridade e
superioridade que se reforçam mutuamente.
Em seguida, toma o exemplo dos judeus que, no século XVIII na Alemanha,
inseriram-se numa relação social como a que existe entre estabelecidos e outsiders.
Em relação a eles, observa que um grupo inferior é tolerado e que os grupos esta-
belecidos "experimentam como uma humilhação insuportável ter de entrar em com-
petição com membros de um grupo outsider desprezado" (: 153). Ainda a propósito
dos judeus, observa que "as injúrias, as acusações a que eram expostos, assim como
a existência humilhante de outsider que levavam eram muitas vezes desagradáveis",
mas insiste no papel crucial desempenhado pela auto-estima, pelo narcisismo e pe-
los sentimentos de valorização e de desvalorização: "Não atingiam a substância do
sentimento que tinham de seu próprio valor[ ... ]. Os judeus alemães constituíam
uma sociedade burguesa de segunda ordem [...] mas não se consideravam, em
absoluto, homens de segunda ordem" (: 155-7). Estes, como o outsider desprezado,
estigmatizado e relativamente impotente, existem apenas quando seus membros se
contentam com a posição inferior que, segundo a concepção dos grupos estabele-
cidos, é a sua, ou quando se comportam em conformidade com seu status inferior,
isto é, como seres subordinados e inferiores.
"O status social superior [... ] constitutivo do sentimento que o indivíduo pos-
sui de seu próprio valor [ ... ) é ameaçado pelo fato que os membros de um grupo
outsider, na verdade desprezado, reivindicam não apenas uma igualdade social,
como 'também uma igualdade humana" (: 152). Elias observa, assim, que o grupo
estabelecido quer não apenas excluir, como também rebaixar o outro, levá-lo a
experimentar um sentimento moral e psíquico de inferioridade. Apesar da ameaça
que o outro, quando outsider e inferiorizado, pode representar para aqueles que, já

176 1 CLAUDINE HAROCHE


1nsubdos, L·•im id c: ra rn o pntcncimcnrD a 11111 grupo freqlicmemL·nre inferiorizado,
os jud eus não tê m um a imagem desvalorizada de si mesmos: conr rari amen te aos
grupos c:xcl 11id os. 0111súler.r, possuem urna profund a auto-estima q11 e não é posta
em xn1ue p<: lo despro.o dos grupos insralados. : 1
Ass im. ao opor a ''.~ onsc it: nci a fortalecida do n ós", de se u próprio va lor, ;10 sen-
timenro de desvalorizaçãn, Elias tece co nsiderações gerais sob re a evolução social
dos grupos esta belecidos qu e, ao longo dos séculos, viveram discantes de embacesu
e evoca a situ ação da Alemanha, "o nde existia a tendência de se passar de um ex-
tremo ao outro, oscilar entre o sentimento de humilhação ao sentimento de sua
própria grandez:i incomparável, de seu papei na história universal" 23 (: 153) . Em
su:i defesa da importância de prestar-se ate nção especial aos períodos de transição -
de abertura, questionamento, in certezas, interdições e, às vezes, também de re-
gressão -, Elias empreende análises sintéticas sobre as dinâmicas de exclusão, de
es tigmatiz:ição e dinferiorização presentes nas relações de dominação entre grupos
e os sentimentos que as acompanham.

Hannah Arcndt encaminha análises, em certos aspectos, análogas às de Elias e


oferece uma ampla explicação não só da exclusão e da estigmatização, como tam-
bém dos sen timentos de desvalorização e de humilhação, com foco num tipo de
m arginalidade particular, evocada apenas tangencialmeme por Elias: a do pária
na minoria judaica, de quem considera os traços de personalidade um tipo ideal.
Arendt, na verdade, busca esclarecer os processos de humilhação por meio de uma
genealogia da história dos judeus na Alemanha, e de suas relações com a ::irisrocra-
cia e a burguesia. Ao lembrar que a representação era central nos comportamentos
da aristocracia, enquanto na burguesia preponderavam os bens, ela sublinha que,
lenta e inse nsivelmente, valores e comportamentos de represe ntação foram subs-

n Essa auto-C"sLima snia uma das fonte.\ <lo anri-.o.;cmirism o, haja vi::ita os judeus ~crem censurados pelo
fa10 de serem seguros de si ·-i ndependentemente do olhar dos outros - e, além disso, arrogantes.

" Elias sublinha que "eles são mais apros e dispostos a aceitar a a ssimilação dos grupos outsiders
Jo que os povos de desenvolvimen to muitas vezes interrompido, qu e vivem na sombra de um
passado prestigioso, com um sentimento muito frágil e profimd11mente ferido de seu próprio valor"
(194i: 158) .
o; lratar-se-ia aqui da quesrâo da continuidade e da d escontinuida de na relação consigo mesmo e
na auto-estima? O u da continuidad e e da estabilidade? Em com unicação pessoal, Michele Ansart-
Dou rlen mostrou-me que passar de um extremo a outro caracteriza o radicalismo e o fanarismo.

A COND IÇÃO SENS ÍVEL 1 177


tituídos por outros ligados a bens materiais, passando-se assim da valorização da
visibilidade para a da invisibilidade (Arendt, 1958): 24
O burguês pode apresentar apenas o que ele tem [... ] ele não "representa nada", não
é uma "pessoa pública" (Wilhelm Meisrer), mas apenas um homem privado. Na so-
ciedade de representação, o homem era visível. Com a burgu es ia, que deve renunciar
ao espaço da "representação", n asce, após a dissolução dos estados gerais, a angústia
de não mais ser visível, de não mais encontrar nenhuma garantia em sua própria
"realidade" (Arendr, i978: 48. Ver também Arendr, 1958).

É preciso insistir sobre o faro que do aristocrata ao burguês a relação do indivíduo


de poder com a visibilidade e, cada vez mais, a de todo indivíduo é transformada
de maneira fundamental. Em sua retomada da condição do burguês no século xvm,
Arendt apreendeu as origens da humilhação que se desenvolveria, mais tarde, nas
sociedades individualistas. Ela percebeu uma relação íntima entre a exigência da
visibilidade de si, a obrigação de se mostrar para existir, e o reforço dos efeitos do
isolamento de cada indivíduo, isto é, a atenção insistente sobre si mesmo, o cuida-
do constante consigo próprio, levando ao questionamento da certeza em relação
à própria identidade. Para ela, os efeitos desse isolamento eram indissociáveis dos
sentimentos de desvalorização e humilhação: "ser constrangido a representar inces-
santemente qualquer coisa de particular, nem que seja para justificar o fato bruto de
sua existência, é um cansaço que chega a esgotar todas as forças", o que nos leva a
pensar no reiterado argumento do direito de existir provocando não apenas fadiga e
uma profunda humilhação, bem como deixando de ser um direito inalienável. 25
É por isso que o pária, para mim, constitui uma figura decisiva da modernidade
e das formas extremas de individualismo contemporâneo: o isolamento, longe
de corresponder a um eventual retiro, um momento de recolhimento, e em vez
de proteger o indivíduo, constitui uma grave ameaça. À evocação de Arendt dos
"inimigos felizes por conquistar um judeu totalmente isolado" segue-se a observa-
ção de que "um judeu em si é uma abstração sem integração social, nem histórica"
(Arendt, 1958: 266; cf. também Arendt, 1951).
Sua descrição precisa dos mecanismos sociais e psicológicos de isolamento do pária,
cujo eu sem defesa é extremamente vulnerável, opõe os comportamentos deste :los do

24
No elogio feito a Jaspers, Hannah Arendt indicara outra via en tre representação . vi, ibilida<le e ben s
materiais: a via do espaço interior, <la liberdade; da relação t lrns igo e com o outro, cb represe ntação
de si e da pos, ibilidade ou capacidade de representação.
).<> É preciso entender essa fadiga como uma das formas es pecíficas da alienação co ntemporânea. Ver
o número 24 da Revista Francesa de PricoSJomdtica sobre a fadiga (2003).

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privilegiado. 26 Por isso, sua ênfase no exagero da sensibilidade, de uma sensibilidade
aguda em relação a si mesmo e também de uma sensibilidade extremada em relação
ao outro. O pária prefere humilhar-se a humilhar o outro: "Eu poderia levantar a
mão contra meu próprio coração e feri-lo, mas não ofender alguém e ver esse alguém
ofendido" . Hannah Arendt ressalta ainda a manifestação de uma compaixão "que não
sabe guardar distâncias", "a expressão doentia e exagerada'' da percepção instintiva da
"dignidade inerente a todo ser provido de um rosto humano", vendo nisso a quintessên-
cia da humanidade do pária: "numa sociedade baseada em privilégios, os párias sempre
rcprcscnl:un - o que é fundamentalmente humano -, o orgulho do nascimento, a ar-
rogância do sangue" (Arendt, 1958: 257-8). Assim, oferece uma percuciente genealogia
da estigmati2ação dos judeus que nos ajuda a compreender a complexidade das relações
entre a diluição de si e a diluição do outro. Os judeus podem, por um tempo, integrar-
se do ponto de vista econômico, mas social e psicologicamente permanecem isolados.
Entre suas inquietações sobre "o estado de pária'', encontra-se a de saber se "a
ausência de um estado definido pode, algumas vezes, tornar-se um privilégio" (: 164).
Assim, ao prefigurar alguns dos traços característicos da condição do homem na mo-
dernidade, levanta esta importante questão: "o que se possui quando não possuímos
nada além de nós mesmos?", deixando-nos algo de fundamental para compreender
as formas de humilhação nas sociedades individualistas centradas no eu: o ser e o ter
tendem a ser indistintos, pois "mostrar aquilo que se tem" equivale a mostrar "o que
se é", ou seja, um eu fragmentado, despedaçado, exposto(: 82-3).
Podemos, então, compreender como a figura do pária, tal qual analisada por
Arendt, contém uma nova idéia de homem extremamente importante para a hu-
manidade moderna. A seguir, procuraremos discutir a nova idéia de homem a que
somos atualmente confrontados, bem como os efeitos do individualismo contem-
porâneo sobre as formas de fragmentação e segmentação do eu.

VI

A humilhação nas sociedades de consumo de si não é idêntica à humilhação o.as


------- -- -- -·------------------
S_2~~~~~~-~e produção.~ superficiali5:J!J.de,_Q~ç;ngªj_arnento - tanto nas relações
individuais, pessoais, priv~das quanto nas relações entre os grupos - ~tuam-se,
-----··--

"' Arendt ressalta a contínua e intensa aspiração para elevar-se socialmente, ao falar de uma "crispação
no esforço de amar". Sugere ainda, numa mistura de desprezo e crueldade, o servilismo ou certo
arrivismo "quando se está firmemente resolvido a ascender, a vencer. [...J é preciso evitar o conten-
tar-se com a obediência cega, a única exigida; é preciso sempre fingir realizar voluntariamente, e
com plena soberania, tudo o que é esperado[ ... ] dos servos e dos subordinados" (1958: 241) .

·\ C ONor ç .~o SE N SÍ VE L 1 179


b~~e alienaç~J:u.u:nilb"ª-ção n_q_ indivi~u_alism9~con­
temporâneo e nas sociedades de consumo. Ser o outro, o parceiro numa relaçáo
desengajada - em que não se tem atenção, consideração e reconhecimento, nem
existe a .fortiori um sentimento de valorização - torna-se humilhante, pois revela a
instrumentalização e o intercambiamento entre os indivíduos, e a desvalorização e
o sentimento de inexistência de si mesmo e do ourro (Enriquez, 1999). A privação
específica de si e o sentimento mais do que a consciência se encontram no cerne
da humilhação nas sociedades de consumo.
Zygmunt Bauman observa que náo ter a possibilidade de consumir numa so-
ciedade que estimula de maneira permanente o consumo constitui uma profunda
humilhação, assim como ressalta que, apesar de sabermos que as humilhações são
numerosas, não fazemos nada contra isso, pois, fundamentalmente, não sabemos
como fazê-lo. Importa perguntar, portanto, se nós não sabemos efetivamente como
fazer ou se, com a flexibilização, as qualidades e comportamentos hoje encorajados
e valorizados nos indivíduos, nós mesmos, na condição de indivíduos, não nos
tornamos progressivamente diferentes, de que maneira e a que ponto.
Tais questões, já levantadas por Erich Fromm, Theodor Adorno e Wilhelm Reich
os anos 1940, e refeitas por Elias e Arendt ao se interrogarem sobre os modos de
construção da personalidade e sobre os tipos de personalidade, são prementes nas
sociedades contemporâneas (Enriquez e Haroche, 2002). As maneiras de ser e de
sentir, os modelos de comportamento e de sentimento se modificaram em sua
relação com o tempo sob o efeito da aceleração, e em sua relação com o espaço sob
o efeito da globalização, da diluição das fronteiras encre o mundo real e os mundos
virtuais. Nas sociedades contemporâneas de mercado, as tecnologias de informa-
ção, por reforçarem e contribuírem para um ritmo acelerado, levaram a uma super-
ficialidade nas interações, nos vínculos e nas trocas - uma superficialidade não só
ligada à falta de tempo e à visibilidade permanente, como também alienante, hu-
milhante, pois priva o indivíduo de consciência e o leva a um contínuo desnuda-
mento de si mesmo. Hoje, passamos por importantes transformações nas formas
pelas quais estabelecemos relaçõe> e construímos vínculos. A duração, a qualidade,
a profundidade e a intensidade ou a superficialidade dos vínculos, assim como a
própria noção de vínculo estão sendo modificadas de forma profunda 27 , fazendo
com que o declínio dos sentimentos apareça como uma das características do in-
dividualismo contemporâneo.
Retomemos o pensamento de Arendt, ou seja, a existência de um cio profundo
entre a injunção de visibilidade de si ou a obrigação de mostrar-se para existir, o
isolamento que lhe é indissociável e os sentimentos de desvalorização e humilha-

27
O que levou Marcel Gaucher a falar numa "revolução antropológica silenciosa".

180 1 CLAUDINE HAROCHE


/ çáo qL1e estfo neles impli cJ.dos. O indivíduo d eve mostrar o que tem, e o que ele
/ tem atua lmrnte nas sociedades individualistas e de consumo - d<: consumo de si - (
não s:io a perus bcn.s ma.reriais; deve mostrar, ~ks~clar, ~ortan to, se u :spaço i nrcrior, \
í:ranspondo-se aqti l mais uma etapa em relaçao a angL1st1a do burgues evocada porj
ela, pois a incerteza quanto a si m es mo é potencializada. "O que se possui quando
se tem apenas a si mes1~10 ?" , qucsrirn10u A'.·cndc ao analisar as formas de aliena-
ção e humilhação presentes nas sociedades 111d1v1<lualistas centradas no eu. Nelas,
co m o o se r e o ter tendem a se tornar indistintos, mostrar o que se tem é, portamo,
mostrar o que se é, mostrar o próprio eu eu.
Nesses termos, a hum ilhação reside no fato de se estar reduzido ao eu e, conse-·
qi.ientem ente, ao corpo. Lévinas, ao fal ar do homem que, "acorrentado a seu corpo,
recusa o poder d e escapar de si mesmo", anunciou a atmosfera contemporânea,
seus valores e maneiras de se r e de sentir superficiais e desengajadas: "O pensamen-
to se torna jogo, o homem se compraz com sua liberdade e não se compromete de
forma definitiva co m nenhuma verdade" , como se pode ler em Algumas reflexões
sobre a filosofia do hitLerisrno. "O homem transforma seu poder de duvidar em falta
de convicção. Não se prender a uma verdade se torna para ele não engajar sua
pessoa na cri ~ção de valores espj rit_~ais" (Levina~,_J,9-34+- 2.ô=r-)2"-.------

(
_....-0'espâç~ da intimidade, do corp~;T~-i~os sentimentos mais profundos, o
lugar que abriga e protege o sentimento de existência, o sentimento de si mesmo,
mas pode ser rambém um lugar ameaçador para o eu, isro é, um espaço de clausura,
do sentimenro de vulnerabilidade e de impotência, um território onde a humilha-
ção pode se exercer de maneira constante e inelutável.
)

'" A figura do pária analisada por Arendr, por represenrar um modo de exisrência e de ser estigmatiza-
do, teria a opção ent re uma existência visível e humilhante, de um lado, e uma existência in visível
e hum ilhante, do outro.

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 181


CRISE DA CONSCIÊNCIA CONTEMPORÂNEA E

EXPANSÃO DE UM SABER NÃO - CUMULATIVO'

Toda obra científica "acabada'' não tem outro sen-


tido a não ser o de originar novas "questões": ela
reclama, portanto, ser "ultrapassada'' e envelhecer.

M ax Uíéber

No passado, a autoridade repousava sobre um ali-


cerce que [...] conferia ao mundo a permanência e
a durabilidade de que os seres humanos necessitam
precisamente porque são mortais - os seres mais
frágeis e füteis que se conhece. Sua perda equivale
à perda do fundamento do mundo, que começou
desde então a se deslocar, mudar e se transformar
com uma rapidez sempre crescente, passando de
uma forma a outra, como se vivêssemos e lutásse-
mos com um universo protéico em que tudo pode a
qualquer momento se transformar em quase tudo.

Hannah Arendt

Valendo-se de frase extremamente concisa, Benjamin nos permite pensar as ori-


gens mais profundas da crise da consciência contemporânea. Em "O narrador",
escrito em 1936, ele diz: "A expressão 'dar um bom conselho' começa a parecer
antiquada porque a experiência se tornou cada vez menos comunicável". Compre-
ende-se a observaçfo pda desatenção e a indiferença que emanam da igualdade
de condições na democracia. 2 Outrora, o professor apontava a via. da sabedoria

; Agradeço a Yves Déloyc. Eu gene Enriquez e Jacy Seixas por suas numerosas observações, críticas e
sugestões.
'"focqueville viu na desatenção o maior vício da democracia. A esse respeito, ver o capítulo 5.
e compartilhava sua experiência, distribuía conselhos, indicava modelos a que se
conformar, transmitia conhecimentos. Não conseguindo mais captar a atenção de
seus alunos, ele não é mais ouvido nem compreendido: dirige-se, desde então, a
indivíduos informados e desatentos.
Ao condensar ainda mais a sua análise, Benjamin chega ao essencial: atribui essa
incomunicabilidade ao fato de que "a arte da narrativa tende a se perder, porque
o aspecto épico da verdade, isto é, a sabedoria está em vias de desaparecimento"
(:120. Cf. Bobbio, 1996). A narrativa desaparece, pouco a pouco, em face da infor-
mação, que é instantânea e se torna rapidamente obsoleta: "a informação só tem
valor no instante em que é nova. Ela vive apenas nesse instante" (: 124). Elemento
e efeito da intensificação da instantaneidade contemporânea, a informação rem
conseqüências profundas para a transmissão do saber, para sua própria exisréncia,
bem como contribui, de maneira efetiva, para o desenvolvimento de um saber
não-cumulativo. Ela põe em xeque a possibilidade de ensinar e, além disso, a de
conhecer e atribuir sentidos, um sentido, a um só tempo, partilhado e esrrururante
do eu. A informação, ao permitir, determinar e orientar o saber, desdobrando-o,
desorientando-o e, simultaneamente, entravando-o, desempenha papel decisivo
na definição das finalidades da universidade. 3
No início dos anos 1950, Hannah Arendt, em "A crise da educação", teceu con-
siderações estreitamente próximas às de Benjamin, e que incidem sobre a relação
com o tempo, a duração, a tradição e a transmissão. Considerações que gostaria
de retomar, pois me parecem incontornáveis para compreender as questões sociais,
morais, psicológicas e políticas das sociedades contemporâneas. Arendt esclarece a
situação contemporânea, ao analisar a oposição fundamental entre gregos e roma-
nos, ou seja, entre um culto da aparência, da juventude, do abandono, do instante,
de um lado, e do respeito, do espírito, da idade, da busca da permanência e da
eternidade, do outro (Arendt, 1954a, r954b, 1958).
Atendo-se aos antigos e à autoridade moral que possuíam, Arendt sublinha que
"a essência do espírito romano [... ] era considerar o passado como passado, na con-
dição de modelo, e em todos os casos, os ancestrais como exemplos vivos para seus
descendentes. Acreditava inclusive que toda a grandeza residia naquilo que foi;
que a velhice, portanto, é o ápice da vida do homem e que o idoso, sendo quase
um ancestral, deveria servir de modelo aos vivos" (Arendt, 1954a: 248). 4

3
As tecnologias da informação emanam e reforçam o igualitarismo, o nivelamento e a burocra-
tização da sociedade. A respeico dessas questões, ver Illich (1995) e Haroche (2006). Sobre essa
intensificação e seus recentes desenvolvimentos, ver Auberr (2004).
4
Arendt lembra que "elos sempre precediam as ações dos ancestrais e o costume engendrados por
eles [... ]. Eis por que a velhice, distinguida pelos romanos da pura e simples idade adulta, era

CLAUDINE HAROCHE
Hoje , nas soci;:dades ca rc\cter izadas µd;i fluidez e em foct' da existênc ia c1cderada
e intensificada de solicitações, de fluxos sensoriais, de formas de saber ilimita-
das, pode-se ensi nar e apren der? Como fazê- lo? (Gitlin , 2003; Turckle, 1995; Illich,
1995). Q uais efeitos esses movimentos contínuos produzem na consciê ncia, na ca-
pacidade de pensar e refletir? (cf. a cap ítulo 7).
Os saberes, em cons tante mutação, implicam e provocam o transitório, o efê-
mero, o descontínuo; numa palavra, a instabilidade, isto é, um conhecimento que
tende, por razões inuínsecas à superficialidade e falta de tem po, à dificuldade
de aprofundar-se. As condições de apropriação e transmissão dos saberes nas so-
cicJ<1dcs co ntcmpodncas se transformaram de modo radi cal: a crescente massa
de inform ações co ntínuas, concomitantes à reflexividade e à fluidez permanente,
contribLti para formas inéditas de individualismo, acarretando fragmentação, dis-
persão e desengajamento, que de certa forma bloqueiam a continuidade e o senti-
mento de identidade (Bauman, 2000; Sennett, 1998; Kaufmann, 2003).
São poucos hoje os conhecimentos considerados adquiridos, definitivos; essas
condições impedem a possi bilidade d e um saber cumulativo e provocam a incer-
teza - muitas vezes, rad ical - em rel ação a si mesmo e ao o u tro, abrindo caminho
para um a insegurança psíquica profunda.
A o bra de Paul Hazard ~ob re a crise da consciência européia e a de Husserl
co nsagrada à crise das ciências européias e à fenomenologia transcendental nos
ajudam a entender a profundidade da crise da consciência contemporânea, seus
fund amentos e formas, sua especificidade (Husserl, 1936; Hazard, 1935).
Pau l Hazard aborda questões com que Arendr também se preocupou. A princí-
pio, ele lem bra a busca de permanência e d e es rab ilidade enormemente valorizada
no sécu lo xv11: "evittir todt1 mudançti [... ] é o desejo da Idade C lássica", afirma
cirando Sêneca: "o primeiro indício de um espíri to bem ordenado é poder parar
e permanecer consigo mesmo" (Hazard, 1935). Ao evocar uma crise longínqua,
operada "na consciência européia enrre o Renascimento, de onde procede direta-
menre, e a Revolução francesa, que ela prepara", mostra que essa crise diz respeito
à mudança. ao movimento, ao indivíduo: a substituição de uma civilização fundada
na idéia de dever - que abre a via para o indivíduo crítico - por outra cuja base é o
Direito, os direitos da consciência individual, os direitos do cidadão.

visra como o momento que con tém a alma da vida huniana: não tanto em virtude da sabedoria e
da experi ência acumulada, e sim em razão da maior proximidade do velho com os ancestrais e o
passado'" (1954b: 162-3).

A COND I ÇÃO SENS Í VEL


O período contemporãneo, que assiste à intensificação desse movimento, de
agora cm diante, sem limites e sem fronteiras, conhece uma nova situação de
crise, no sentido de afastar, de modo radical, a própria idéia de estabilidade
(Gitlin, 2003; Bergson, 1938). São os efeitos psíquicos da mudança e do movi-
mento contínuo que se revelam inéditos: até que ponto se pode pensar no movi-
mento e, para isso, pensar em limitá-lo, atenuá-lo, ou, ao menos, em alterná-lo
com o parar para pensar? O <JUe ocorre com os direitos da consciência individual
e com o indivíduo crítico em face da mudança permanente, da impossibilidade
de parar, da injunção de se ~1ter apenas a si mesmo, ohjcto de atenção comínua
e tormento incessante?

II

Sou grata ao texto de Hazar<l, pois me auxiliou a compreender a necessidade de


retomar Ensaio sobre o entendimento humano. Ao enunciar as condições do en-
tendimento, John Locke nos convida a interrogar a possibilidade de pensar sob
condições de transbordamentos contínuos, a meditar sobre o que pode constituir
a finalidade da universidade (Locke, 1690).
Na "Epístola ao leitor" de seu Ensaio, Locke narra os intercâmbios de um pe-
queno grupo que, pouco a pouco, conduziram à formulação das condições do
entendimento.
Se não te enfastiar a narrativa da história deste ensaio, direi que cinco ou seis amigos
reunidos em minha casa discutiam sobre questão muito diferente da aqui tratada;
rapidamente foram paralisadfjs pelas dificuldades que surgiam de todos os lados. Per-
manecemos, durante um momento, perplexos, sem chegar à solução das dúvidas que
nos assolavam; logo me veio ao espírito que tínhamos adotado um lalso começo:
antes de questionar, era preciso examinar suas próprias capacidfldes e ver quflis objetos
podiam ser examinados pelo entendimento e quais não o podiam. Foi o que propus ao
grupo, que imediatamente se pôs de acordo(: 38-9).

Quais as capacidades requeridas para o exercício do pensamento? Como


pensar, com base em quais objetos? Por si mesmo ou na companhia de ou-
tros? O que quer dizer pensar? Locke se valeu de apenas algumas íinhas para
formular condições, regras, obstáculos, exigências e objetos do entendimento.
Ao observar a formação das idéias, considerados os modos de funcionamento
da consciência, Locke encontrou na percepção "a primeira etapa em direção ao
conhecimento'', "a entrada de todo conhecimento no espírito" (: 242). Em capí-
tulo dedicado a ela e às condições de seu exercício, ele sublinha o caráter ativo

186 1 Cl.AUDI NE llAROCllE


do pensamento, que supõe "certo nível de atenção voluntária'', distinguindo-o
da percepção, que tende a ser passiva. "Na percepção pura e simples, o espírito é,
sobretudo, passivo; o que ele percebe não pode se impedir de perceber" (: 233;
cf. Merleau-Ponty, 1945).
Locke, então, propõe-se a apreender os processos em ação na percepção, evo-
cando a evidência experimentada por todo indivíduo, o papel dos sentidos nos
processos de conhecimento e no pensar: "cada um saberá disso refletindo sobre
aquilo mesmo que faz, quando vê, ouve, sente [...] ou pensa, algo melhor do que
todo discurso que eu venha a proferir" (Locke, 1690: 234). 5
Após observar as relações entre as sensações e as idéias, as percepções e os juízos,
Locke nota os vínculos entre o hábito, a repetição, a rapidez e a desatenção por ela
provocada. Observa e descreve a passagem da percepção à idéia pela repetição, pelo
hábito, bem como considera a confusão entre a percepção da sensação e a idéia for-
mada pelo juízo: "em numerosos casos, uma vez o hábito instalado e sendo objeto
de experiência freqüente, isso se produz de maneira tão constante e imediata, que
tomamos pela percepção do sensação a idéia formada pelo juízo (Locke, 1690: 239).
A seguir, ele reconhece o papel decisivo da rapidez, pela qual se explica que nem
sempre se possa distinguir de modo claro as percepções ou os juízos do espírito.
Hoje, como outrora, tudo nasceria da sensação, na qual Locke viu o fato primi-
tivo: a sensação, no entanto, não mais conduz infalivelmente à idéia; a repetição
freqüente do hábito leva a situar, em primeiro plano, a sensação e, em segundo, as
idéias e os juízos: o caráter contínuo da sensação tende a reduzir e mesmo a afastar
a idéia, o pensamento, a reflexão (cf capítulo 7).
Locke nos faz pensar sobre a evolução das formas contemporâneas de percepção em
relação, entre outros fatores, à aceleração, à velocidade e à tecnologia. Os fluxos sen-
soriais contínuos provocam uma divisão inédita do trabalho dos sentidos: ao acentuar
o papel da visão, em detrimento dos outros sentidos, induzem a uma redistribuição
das relações entre sensação, percepção, reflexão, assim como reforçam a contingência,
a instabilidade e a incerteza que estão no cerne das crises cultural e educacional (cf. ca-
pítulo 9). Ele pôs na ordem do dia a noção de indivíduo moderno. Contra a tradição,
fixou os direitos da consciência, o papel simultâneo dos fatos e da psicologia.
Mais de dois séculos depois, os escritos de Husserl problematizam precisamente
o desaparecimento dessa simultaneidade entre fatos e consciência, o distanciamen-
to dJ. consciência, da subjetividade, nos fatos. Sua reflexão permite distinguir ou-
tros elementos que conduzem à crise da consciência e da subjetividade modernas
(Husserl, 1936). Com efeito, Husserl ressalta a transformação que, no fim do sécu-
lo XIX, produziu-se nas ciências, conduzindo ao positivismo, que "deixou de lado .

' Sobre a dificuldade de definir passividade e atividade, ver Weber (1922).

A CONDIÇÃO SENSÍVEL
todas as questões [... ] metafísicas em sentido amplo, isto é, as questões especifica-
mente filosóficas" (: 13-4) 6 . Como observa, o positivismo afastou a subjetividade -
"a idéia de ciência se reduziu a uma simples ciência dos faros" - e essa redução pro-
vocou uma crise na ciência, em virtude da "perda de sua importância para a vida,
para as grandes questões relativas aos sentidos da existência" (: 9)7.
A seguir, Husserl evoca, rapidamente, o que Paul Hazard enfatizaria no início
dos anos 1960: o momento revolucionário em que a Europa do Renascimento, ao
se voltar contra os modos de existência medievais, começa a se libertar da "tradição
em geral" e procura substituí-la por uma abordagem reflexiva e crítica do mundo.
Ele comenta que as ciências pararam de se preocupar com certo número de ques-
tões maiores, relativas à subjetividade, à consciência, ao engajamento, às signifi-
cações, mostrando que "nem sempre as questões especificamente humana5 foram
banidas do domínio da ciência". Então, pergunta-se, com base no questionamento
das razões do sucesso das ciências positivas confinadas "puramente na superfície" (:
n-2), por que a ciência "perdeu o papel de guia, por que chegamos à degradação
da idéia de ciência, à limitação positivista?"
A redução positivista da ciência, a insistência exclusiva no fato e na neutralidade,
o desengajamento do sujeito do conhecimento, que se torna 'objeto', são acompa-
nhados de um afastamento do subjetivo: "as questões que ela exclui por princípio
são precisamente as questões mais delicadas[ ... ], aquelas[ ... ] que mcidem sobre o
sentido ou sobre a ausência de sentido de toda a existência humana", ou seja, trata-se
de interrogações complexas que supõem a dúvida, reconhecem a incerteza e se
situam no cerne dos problemas da universidade contemporânea (: 10) 8.
Em 1935, em conferência proferida no círculo cultural de Viena, Husserl insiste
na questão da crise das ciências contemporâneas. A crise da consciência provocada,
ou ao menos reforçada, pela relação com tempo, pela rapidez, hoje multiplicada
pela aceleração, origina-se do faro de que a ciência não ter mais tempo de aprofun-
dar as questões para além dos acontecimentos: encontrar e lhes conferir sentido.
Tal crise se traduz, pois, numa acumulação irrefletida de fatos que implicam a
ausência de aprofundamento, de problematização psicológica e antropológica, e
provocam efeitos psíquicos inéditos. 9

6
Arendt comenta sobre o desprezo de que a metafísica é objeto (Arendt, 1971).
7 Weber analisou em profundidade o processo de afastamento da subjetividade pela racionalidade
capitalista (Weber, 1904-5; 1920) .
8
Da inesma forma, Weber (1920).
9 Essa acumulação irrefletida é simultânea a uma reflexividade continua, que, no entanto, distingue-se
da reflexividade de que fala Castoriadis, da reflexão que implica tempo e uma alternância entre
momentos de pausa e de atividade no pensamento (Castoriadis, 1975). Para uma genealogia das

188 1 CLAUD IN E HAROC.HE


Ao retraçar a emergência e o modo d e desenvolvimento das idéias e da ciência,
ao distinguir sJ.ber cumulativo de saber não-cumulativo, Husserl nos faz pensar nas
condições contemporâneas da reflexáo e da consciência. As idéias, afirma, têm "uma
existência efêmera no mundo ambiente", são "formações de sentidos produzidas nas
pessoas de um modo novo e surpreendente, [... ] entram no movimento de uma reela-
boração perpétua" (Husserl, 1936: 355--6) 10 Assim, ele as opõe às aquisições científicas,
cuja "produção foi conquistada [e] possuem outra maneira de ser, outra temporalidade.
Não se tornam obsoletas, não são passageiras" (: 357) . Em outras palavras, somos leva-
dos a considerar o caráter permanente e unificado do conhecimento científico em face
do caráter efêmero, contingente e variável das idéias, das formações de sentido, cujo
estatuto é, por essa razão, depreciado, desprezado e mesmo estigmatizado.
Nos anos 1930, Husser! compreende que a ciência, apesar de eterna, absoluta,
é inacabada e, por isso, potencialmente mutável. Observa, então, que "a cultura
científica dominada pelas idéias de infinitude corresponde a uma revolução no
conjunto da cultura, a uma revolução no modo de ser de toda a humanidade em
sua condição de criadora de cultura" (: 358-9). 11
Vê-se, com clareza, por que retomar o texto de Husserl: ele permite esclarecer
a atitude em relação às idéias e à cultura em geral. O estatuto das idéias, sua
contingência e sua instabilidade são decisivos para compreender a prudência, a
desconfiança, a desvalorização, o desprezo, a rejeição e, inclusive, o ódio que, hoje,
suscitam nos espaços universitários não apenas certas idéias, mas a própria noção de
idéia. Fundamentalmente, as idéias de individualidade, singularidade, originalida-
de, variação, diferença, diversidade, irredutibilidade e incontrolabilidade: muitas
vezes, rejeita-se com violência e crueldade, pelas quais se revelam formas de niilis-
mo radical, o que pode escapar às normas e às exigências de normatividade 12:

questões presentes nas origens da modernidade, da racionalidade do capitalismo, ver Casroriadis


(1999) e os capítulos 7 e 9 deste livro.
'°"É preciso que os eruditos nas ciências do espírito não tratem o espírito simplesmente corno espíri-
to, e que recuem até a infra-estrutura corporal" (Husserl, 1936: 349). A propósito dessas questões,
ver Janet (1889) e Anzieu (1985) .
11
Todo um clima intelectual marca, ao longo desses anos, grande número de escritos importantes,
como os de Cassirer sobre o indivíduo e o cosmos, a filosofia das formas simbólicas, e o mundo
aberro e o mundo fechado.
12
Cf. as posições de Étienne Balibar (1996) e de Lindsay Waters, cuja ênfase recai sobre uma nega-
tividade profimda que teria invadido as humanidades e que, "nos esrudos literários, consistiria
sobretudo em "atacar a teori a" . Para Waters, Stanley Fish e Richard Rorry representam "uma cor-
rente dominante desse negativismo na universidade dos úlrimos trinta anos)), em que "sua posição
anti-teórica constitui a característica essencial" (2004: 68- 70).

A CONDIÇÃO SENSÍVEL
a exigência de submeter o conjunto da empiria a normas ideais, às da verdade incon-
dicional, engendra, de imediato, uma mutação que ultrapassa em muito o conjunto
da práxis da existência humana, ou seja, de toda vida cultural; esta deve se normatizar
não mais pela empiria cotidiana e pela tradição, com sua ingenuidade, e sim pela ver-
dade objetiva (Husserl, 1936: 367-8).

A experiência cotidiana e a tradição "i ngénua", os usos e automatismos delas


decorrentes, que se fazem acompanhar da falta de reflexão e de uma reflexividade
contínua, permitem distinguir nas sociedades contemporâneas uma normativida-
de e um conformismo que conservam o antigo e, ao mesmo tempo, se abrem a
idéias de infinitude.
A forma espiritual da Europa 6 um novo \:spí rito oriundo da filnsofia e da., ciências
subordinadas, um espírito de livre crítica e de normatização por meio de tarefas inces-
santes que, doravante, domina integralmente a humanidade, criando ideais novos e
infinitos(: 370) .

As finalidades da universidade revelam, pois, exigências profundamente parado-


xais e mesmo contraditórias. Em texto dos anos 1950 dedicado à crise da educação,
Hannah Arendt foi particularmente sensível a essa dimensão paradoxal:
Parece-me que o conservadorismo, tomado no sentido de conservação, é a essência
da educação, que sempre tem por tarefa envolver e proteger alguma coisa: a criança
contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o antigo, o antigo contra
o novo (Arendt, 1954a: 246).ll

III

Ao abordar a fragmentação, a descontinuidade e a ausência de transmissão entre


gerações características das sociedades contemporâneas, Arendt retoma os escritos
de Weber para observar que a crise da educação nos anos 1950 era "o reflexo de

u Arendt distingue o espírito grego do espírito romano , ao opor o papel <lo corpo, <la aparência, <la
juventude, do instante:- presente nos gregos, à experiência, ao fato de :ie tornar, com o p~ssar do
tempo, um modelo que supõe a continuidade, a permanência e a eternidade. Subiii1ha que o
espírito romano "esd cm contradição não apenas com nossa época (~ 0!) tempos modernos <lo
Renascimento, mas também, por exemplo, com a atitude grega em face da vida. !... ]A concepção
latina é justamente a de que, envelhecendo e desaparecendo pouco a pouco da comunidade dos
mortais, o homem atinge sua ma.is característica maneira de ser, mesmo se, em relação ao mundo
d2s aparências, está em vias de desaparecer, pois só então atin ge o modo de existência cm que será
uma autoridade para os demais" (Arendt, 1954a: 248).

C LACOINE HAROCI!E
uma crise muito mais geral[ ... ] de instabilidade da sociedade moderna". Exprimiu
um aspecto paradoxal do mundo contemporâneo nos seguintes termos: "é eviden-
te que, buscando instaurar um mundo próprio às crianças, a educação moderna
destrói as condições necessárias ao seu desenvolvimento"(: 238-40) 14
A diferença de Arendt, que reconhece uma evolução na crise da educação e da
cultura, Eric Voegelin centrou-se na universidade alemã, 'a firmando que é preciso
remontar essa crise a Humboldt, cuja concepção considerou a universidade apenas
um lugar de formação da consciência individual, indiferente ao espaço público.
Por se ater "ao culto <la individual idade", essa formação revela um voltar-se para
si mesmo, uma escassez de espírito, uma estreiteza de interesses, ou seja, deixa de
ser "uma educação para a expansão do espírito" e se torna seu "trancafiamento"
(Vocgdin, 1990: 330)".
Em tal tipo de universidade, Voegelin não só discerne "um espaço público de
alienação" dominante no plano social, como também explica a "desagregação da
sociedade pelo fato de que seus membros se concebem única e radicalmente como
homens privados"(: 308) 11'. Nesses termos, a universidade tem, em si mesma, uma
função ideológica: "a formação (Bildung) dispensada na universidade imuniza suas
vítimas [... ] contra a vida do espírito; ela consegue manter a alienação em posição
de dominação social e impede que o espaço do espírito se torne um espaço público
e social (: 331.).
Além disso, Voegelin procura, por meio da discussão acerca do pensamento e
da consciência críticos, apreender o funcionamento dessa universidade em rela-
ção à história. 17 Assim, opõe à história crítica, em que apenas a interpretação e o
juízo podem levar ao saber cumulativo, uma história descritiva cheia de detalhes,
porém desprovida de reflexão, de análise, isto é, uma história capaz de conduzir
a um saber desengajado, superficial, descontínuo e não-cumulativo: o acúmulo
ilimitado de fatos e de detalhes não permite a compreensão dos acontecimentos

14
Sobre as questões de continuidade, ver os capítulos 7 e 8.
"Agradeço a Paul Zawadzki ter chamado a minha atenção sobre a importância dos escritos de Voege-
lin. Ver igualmente Dumont (1991). Weber ind icara uma questão essencial na reforma procestante,
a c;nergência de t!ma racionalidade específica ao capicalismo ocidental: a especialização indissociá-
vel do individualismo crescente e das form>.s de subjetividade que •C definem pelo trabalho.
I(, Voegelin, no entanto, nota que "a universidade alemã, inúmeras vezes, concradisse a concepção de
Humboldr, em particular durante o período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial. A universi-
d ade de H eidelberg dos anos 1920, na qual escavam homens como[ ... ] Jaspers e Alfred Weber[ ... ],
era rudo menos uma universidade concebida à maneira de Humboldt" (!990: 334).
,- Marcel Gauchet, por sua vez. escuda a universidade contemporânea em relação ao ensino da filo-
sofia. Ver Gauchet e o utros (2002).

A CONDlÇÃO S ENSÍVEL
sociais e hiscóricos, não equivale à consciência, nem à acividade crícicas. Como
exemplo, coma as jovens gerações alemãs que buscam compreender o passado
naz1sca:
Vocês, jovens, não querem saber como essas coisas atrozes se desenrolaram cm se us
detalhes, mas por que chegamos lá e como isso pode ser evitado no futuro. Mas de
que modo uma descrição hiscórica poderá inrerromper a concinuidade em que vocês
se inscrevem e cornar impossível a repetição desses mesmos acontecimentos?

Isso o faz concluir que "se o espírito como instância crítica está excluído da
reflexão sobre os acontecimentos, a objetividade da descrição se transforma em
simpatia culpada por essa ausência" (: 303-5).
O conjunto de questões enfrentado por Voegelin é crucial para pensar os acuais
"objetivos da universidade" e, de modo mais amplo, as formas de individualis-
mo e narcisismo das sociedades contemporâneas. Ao procurar precisar o lugar e
a função do narcisismo na cultura, fala de uma teoria narcisista 18: a ausência de
conhecimento, de espírito e de consciência crítica provoca a conivência (mais do
que a complacência) e a simpatia, alguma coisa de intangível, da ordem do clima,
da atmosfera tanto psicológica como política: "O que falta é a compreensão verda-
deira, graças a qual o espírito, na condição de poder crítico, torna-se um fator de
ruptura da causalidade histórica, aparentemente impossível de ser rompida".
Ele acrescenta: "a universidade alemã tem como missão enclausurar as pessoas
numa forma narcísica, privá-las de toda orientação espiritual, torná-las inaptas à
vida pública, destruir a língua alemã e ensinar os idiomas da alienação" (: 305, 337),
sem deixar de notar uma mudança, ao se interrogar sobre a situação contempo-
rânea: "o que é novo em relação ao período de Weimar é o sentimento de culpa
do qual se quer libertar pelo reconhecimento objetivo e escrupuloso dos aconteci-
mentos. Ora, é precisamente o sentimento de culpa que está sujeito à caução por
contrariar a condenação fundada na alienação de nosso próprio ser".
No exame das conseqüências desse contexto, conclui que:
o sentimenco de culpa experimentado após o ato realizado náo é igual à simpatia
experimentada antes de ele ser executado. Essa simpatia e esse sentimento de cul-

18
Em relação aos estudos sobre o nazismo, Voegelin observa que o inquieta "não seu tema, mas o
'conhecimento desapaixonado da realidade', porque o prazer do conhecimcnw semp re implica 'um
pouco de aprovação". Examina, assim, a questão da universidade alemã durante o nazismo, per-
gu~tando-se "como se pode reparar uma falta pela reconstrução do passado, por mais meticulosa
que seja[ ... ]. Em nosso caso concreto , a confiança na universidade alemã poderá ser restabelecida
pela descrição do comportamento de professores e estudantes durante o III Reich ' Sem dúvida
não, porque cada detalhe novo desestabiliza ainda mais essa confiança" (1990: 305-6).

192 1 CLAUDINE HAROCHE


pa, conru<lo, es r:w inrim amt nt<: relacionados como a expressão de uma co nivência
oriunda da falra Jc cspíriro (: jOG-7). 1"

IV

Marcel Gauchet, ao abordar a educação, e Lindsay Waters, em seu interesse pela


origem e os efeitos dos saberes especializados e técnicos, debruçaram-se recen-
temente sobre a crise da consciência concemporânea. O primeiro enfatiza, nas
condições contemporâneas em que a educação se enconcra, a dificuldade e mesmo
a impossibilidade da atividade de. pensar. Tal dificuldade se manifesta pelo "retrai-
mento" do pensamento, traduzido na especialização, na comparcimentagem dos
saberes, cuja forma, ao afastar os questionamentos gerais sobre seus fundamentos,
redunda em afirmações repetitivas e prudences. 20
Gauchet chama a atenção também para um desvio da idéia de conservação,
privilegiando "um enfoque que visa à explicitação dos fundamentos e das finali-
dades". "Para que educar 1 Em vista do quê?", pergunta-se. A conservação se reduz
ao conservadorismo, que, ao se revestir da exigência de modernização do saber, da
adaptação às novas realidades sociais, entrava o saber cumulativo e induz a um
sabe r não-cumulativo, profundamente especializado e rapidamence ultrapassado
e obsoleto.
Produz-se assim no pensamento uma perda da inteligibilidade e do sentido,
uma especialização desprovida de finalidade ou razão, indecifrável: "Em seu de~en­
volvimento, os saberes perderam de vista a razão de ser" (Gauchet e outros, 20~2:
r4; cf. também Arendt, 1971. Voegelin, 1990). O indivíduo contemporâneo quer
ser informado e especializado por um mercado que lhe dá medo, e não ser edu-
cado, instruído; ele não procura um conhecimento desinteressado e que se forma
no longo prazo, ou seja, que não esteja imediatamente vinculado ao imediatismo
do mercado e vise a valores uni versais e compartilhados. "Não é que ele recuse a
educação. Ao contrário, aspira a ser formado'', mas, acrescenta Gauchet, embora
ele "não tenda a ser ineducável", "uma coisa é reivindicar educação, outra ser capaz
<li: ri:cdil:-la" (Cauchcr, WOJ: 332).

11
' Sobre ;1 co ni vê ncia, o clima, a atmosfera social e política durante a ascensão do nazismo, ver Ha-

fli1cr (2000).
'" Ga uchet loca li za essa esrreireza de forma particularmente clara na filosofia, em seu ensino. Vê sua
origem no "exercício injustificávd de uma proscriçiio, na recusa a se admitir a legitimidade de uma
filosofia compreendida não como uma história da filosofia , e uma história da filosofia d efinida de
forma cada vez mais limitada" (Gauchet e outros, 2002: 12).

A CONDIÇÃO S EN S ÍVEL 1 193


Qual tipo de personalidade e de consciência, qual forma de sensibilidade esse
tipo de educação encoraja? O que designa, hoj e, a palavra consciência? Ainda se
pode falar de atividade crítica? A reflexão e a consciência críticas declinaram e
cederam lugar a uma atitude, a uma postura crítica: por intermédio dela o indiví-
duo não pára de perscrutar, avaliar, excluir e estigmatizar, mas não se engaja, "não
participa de uma expli cação: ele co ndena" (: 349).
Será preciso lembrar qu e aprender é ser capaz de aprender o que ainda não
se sabe, o qu e só saberá após ter aprendido , o que talvez não se chegue jamais a
aprender, a conhecer e compreender? Será preciso enfati ?.ar qu e aprender supõe a
capacidade de se engajar e de pensar, de se projetar num futu ro, algo que exige e
encoraja a humildade, a dúvida e o risco de errar; al go que implica a relação com
um limite, uma consciência dos limites individuais, atitudes e práticas opostas às
certezas, ao caráter muitas vezes arrogante e categó rico que dá força aos saberes
profissionalizantes e especializados, mas se submete às formas de racion alização e
de divisão de trabalho de uma economia de mercado? 21
Lindsay Waters se debruçou justamente sobre as origens e os efeitos desses saberes
especializados, chamando a atenção para uma crise geral no exercício do juízo, à qual
relaciona a pressão a que o mercado submete a atividade de pensar: por estimular
e privilegiar o automático e o repetitivo, o mercado desenvolve um sa ber instável e
efêmero, não-cumulativo. 22 "O universitário típico se ressente cada vez mais do fato
de que ele trabalha para produzir. [... ] os chefes de empresa tiraram todo o poder dos
cientistas e desenvolveram uma cultura de avaliação que objetiva um crescente con-
trole administrativo da vida institucional e profissional" . C omo retoma com justeza,
a sociedade está "doente de ges tão" (Lawrence citado por Waters, 2004: 20) 23
Percebe-se hoje "uma relação de causa e efeito en tre a exigência corporativista
de produtividade e o fato de que toda publicação é reduzida à idéia de número"

21
Na conclusão d e sua au la in augu ral no C ollege de France em 2004 , chamada "Tradi ção e progresso,
a missão da universidade'', Théodore Berchem enfatizou que "cercas co isas q ue po<lem parecer
•inú teis' nas unive rsidades são de uma g rande utilidade :'t soci edade", acresccnrando: "Eu m e recuso
a querer ou deve r justificar tudo c m nome da ·pc rtm ência social". C om cfcirn, Bcrchcm ins istiu
no fato de que "a essê ncia das soc iedades li vres c<>nsiste em <leixa r ao in<livíduo U1!1 espaço de
atividade autônoma da qual el e não ten ha justamente de prestar conras à sociedade. Co ntribuindo
à fo rmação do indivíduo, as universidades sfo , fi nalmente, luga res de liberdade, <lcssa liberdade
institucio nal e individual q ue suscita um sentido agudo de responsabilidade" (2004 : 59 ).
" Lindsay Waters é responsável pela seção de "hum anidades" na editora univcrsitiria de H arvard.
Sobre as origens <lessas questões, ver Weber (1904- 5: 1920).
.lJ Para uma análise de co nj unto dos efeitos da ges tão nas sociedades co ntcmpo râncas , sohrcrndo na
França , ver Ga ul ejac (2004) .

194 1 CLA l l O í NE ll AROC IIF


{Waters, 2004: 6) 24 • Waters vê nisso a origem de uma intensificação aparentemente
ilimitada do controle administrativo. Desse modo, não só ressalta que o mercado
produz formas de pressão que aumentam a produtividade, como constata que "os
problemas de avaliação invadiram as instituições americanas" (: 7). O pensamento
individual dotado de originalidade parece declinar diante da corporação e do gru-
po, do coletivo: submetido à pressão, que se tornou anônima, esse pensamento se
fundamenta e se legítima pelo número, a quantidade, tendendo a se tornar, cada
vez mais, homogêneo e conformista.
Nessa direção, Waters se detém, então, na natureza do saber universitário, que
"supõe a leitura, a apropriação e a transmissão". Parece hesitar, mas logo se explica
sua hesitação, ao salientar o papel decisivo do tempo, da duração na produção do
conhecimento, do "parar para pensar", oposto à instantaneidade da informação:
Pode levar dezenas de anos para que um universitário consiga ler essa tese em latim
da universidade de Berlim, escrita por cerco James Henry Breast, a respeito da desco-
berta do mundo esquecido de Akhénaton. O papel do saber é avaliado em termos de
profundidade, não em termos de extensão, de superfície(: 19) .

O espírito empresarial, atualmente regido por um movimento incessante, por


uma ativ idade desenfreada submetida à urgência, mas desprovida de reflexão, por
uma produtividade cega e desengajada, tende, de agora em diante, a se separar
das idéias e da imaginação. Ao examinar o papel da técnica nas sociedades con-
temporâneas, Waters observa que, hoje, "o que conta é o produto" (: 36)25, assim
como constata que "o aumento das exigências em termos de produtividade se
acompanha de uma aparente interdição em termos de inovação intelectual", o que
se explicaria pelo sistema neoliberal cujo objetivo é suprimir tudo que não seja
imediatamente útil ou rentável aos olhos da sociedade(: 53).
Lembremos que, em 1941, Erich Fromm dedicou um livro ao medo da liberda-
de. De acordo com Waters, urge que nos desembaracemos "do medo de julgar que
invadiu a sociedade" (: 53), pois, no bojo da crise da consciência contemporânea
e do aumento do saber não-cumulativo, termos como "consciência, experiência e

24
"Cada vez mer.os escolas toleram a independência em relação a normas de publicação c:ida vez
mais rígidas. É como se as escolas d issessem implicitamente que para fazer parte do feudo vocês
precisassem provar que não são espíritos independentes, submetendo-se às regras e às fin~lidades
de uma produtividade intensa" (Waters, 2004: 82).
21
Adorno e Horkheimer, cm abordagens pioneiras, debruçaram-se sobre aspectos da extensão da
técnica c:m "A produção industrial de bens culturais. Razão e mistificação das massas" (r944). Mais
recentem ente, Castoriadis enfatizou a existência de uma vasta corrente social e histórica sem autor,
sem objetivos, sem projeto (1997).

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 195


verdade se tornaram um fonte de perplexidade sem fim para a maioria dos huma··
nistas durante os últimos trinta anos"(: 61). 26 "A idéia hoj e do minante na univer ·
sidade é a de evitar as idéias" , o que nos leva a meditar sobre a relação entre contar,
medir, avaliar e quantificar, de um lado, e ler, pensar e rdlerir, do ourro. É preciso,
como ele nos convida, "ousar fazer as questões fundamentais , perguntar-se, em
primeiro lugar, porque alguém quer falar, escrever ou publicar [... J, interrogar-se
sobre as finalidades do saber" 27 •
Waters conclui sua análise com a afirmação de que o pensamento reclama liber-
dade e que a exigência de produtividade se lhe opõe, uma vez que exprime uma
forma de alienação que põe em questão a própria possibilidade de pensar. Nesses
termos, distingue no termo "autoridade" dois conjuntos de elementos que diferem
de maneira profunda: o juízo, a posição, o engajamento do autor, de um iaclo, e a
porção de autoritarismo presente no componente mecânico, irreversível e acabado
do impresso, do que é publicado:
Há no pensamento uma parte de liberdade de pensar e de palavra que resiste à for-
matação material [ ... ]. Existe um conflito que as p essoas inteligentes sempre experi-
mentarão entre o auto ritarismo do escrito e a autoridade que se busca , ao se romar a
palavra e ao publicar(: 83-5).

As origens e as condições da crise da consc1encia contemporânea, sua recor-


rência e sua persistência, particularmente agudas em virtude de transformações e
evoluções profundas, do acúmulo de certo número de elementos, não são total-
mente inéditas e não podem, paradoxalmente, privar de esperança os "objetivos
da universidade".
Há em Voegelin e Linclsay Waters aspectos abordados por Weber. Em 1919, ao
discutir a emergência da burocracia em Ciência e política: duas vocações, Weber ob-
servou que, "em numerosos setores da ciência", os então recentes desenvolvimen-

26
Waters afirma que os trabalhos de Fish e Rorry contribuíram também para essa crise da consciência
contemporânea, ao afastar e mesmo negar a questão do indivíduo. A alienação, que na concepção
da universidade de Humboldt se relacionava ao enclausuramento na esfera privada, ao afasta-
r:,enro da consciência crítica, diz respeito hoje à pressão contínua de fluxos sensoriais leva ndo à
impossibilidade de pensar, de refletir. A esse respeito, ver Bauman (2001) e Gidin (2003).
27
Waters retoma os trabalhos de Fish, sem lhes conferir uma importância que não têm, vendo nesse
autor um ideal-tipo, uma figura emblemática das formas de relativismo e de niilismo insidioso
que, hoje, envolvem as ciências humanas e as sociedades democráticas contemporâneas: "Penso
que Fish procurou verdadeiramente reduzir não apenas a teoria, como também as jovens gerações
universitárias que nela se aventuram e que esperam que a teoria ou qualquer ourra coisa [... ] possa
fazer diferença. Ele não é tão contrário à teoria como às suas conseqüências, à própria causalidade,
à idéia de que seja lá o que for possa fazer alguma diferença em nossas vidas" (2004: 69).

CLAUDINE HAROCHE
ros do sisrcma 11 niversiririo alemão se orientavam "na direção do sisrema america-
no" , acresu: nrorndo qw: nilo era mais possível "geri-lcs se1n o socorro de recursos
rnmid cd1·L·i , " {\Yk bn. l\ll<J: )ú ) .
Wdi<."r. portanto, previtt os tra ços íitndamcnrais da evo lu çao Lb uni ve rsidade ale-
m:! e dos si ~: remas 11nivcrsirários em gnal em rel ação à figura do professor e ao cres-
cenrc pap<:I das massas. ! ) isringu iu dois modelos irreduríveis de comporr::imenro e
de pensamento, que, no entanto, confimdcm-se com faci lidade: o do chde e o do
professor da rradicionaJ universidade alemã. Ele fala de um "abismo" entre os tipos
de personalidade, os rraços de caráter. as condutas visíveis e as condutas mais íntimas,
tanto cxrerna quanro inrernamenre, "enrre o chefe dessa espécie de grande empresa
universirári::t capitalista e o professor titular de velho estilo"(: 57) 28 • Nessas condições,
baralha-se o talento de orador - o carisma -- com a profundidade de pensamento do
erudito, às vezes voltado para si mesmo, silencioso, e freqüentemenre imponderável
e irredutível, podendo-se perceber "o crescente papel atribuído ao número [... ]:ele se
desenvolve contra o valor reconhecido à singularidade, à originalidade do indivíduo".
Vê-se assim , concluiu Weber, por que a "quantidade de ouvinres" se tornou "um
critério numérico tangível de valor, enquanto a qualidade do cientista permanece no
domínio do imponderável". A massa se elevaria contra a aristocracia intelectual, fa-
zendo-nos pensar na advertência de \Veber: "É preciso colocar a democracia no local
que lhe convém. Com efeito, a educação científica, tal como deve ser por tradição
nas universidades alemãs, é tarefa de uma aristocracia espirituat' (: 60-1) 29
Ao considerar o caráter provisório e inacabado do conhecimento, Weber não
deixa de afirm ar que a crise de consciência é intrínseca a todo pensamento, a rodo
conhecimento:

" Sobre a oposição entre modelo de chefe e modelo de profi.'5or, ver o cap itulo 6.
,., Weber afirma: "É por isso que tudo é quase sempre subordinado à obsessão da sala cheia''. Ao retomar
elementos da análise de Weber e também as observações que Reich, em 1933, dedicou à psicologia
de massas durante o fascismo, Eric Voegelin, em tom polêmico, procura atualizar as evoh1ções pela
quais passaram as universidades. Ele sublinha que, durante o m Reich, essa aristocracia se encontrou,
sociologicamenre, em grande desconforto: "no interior da universidade, os assassinatos e as expulsóes
atingiram principalmente a elite espiritual e intelectual, de cuja qualidade dependia o nível cultural
do conjunto institucional e a conservação das normas [... ].Após a ruptura de continuidade no seio
da elite, é o segundo escalão universirário que, protegido pela sombra protetora de sua discrição e de
sua adaptab ilidade [... 1, comanda de maneira desmedida a estrutura da universidade. [... ] desde que
as proporções mudaram cnLTe as cama<las universirárias superiores e o meio dos segundos escalões
universitários, pode-se observar [... ] um provincianismo t1p-essívo [ ... J. A destruição de substância
efewada pelo nazismo foi de uma dimensão ral, que não se pode ainda observar todas as suas conse-
qüências e o pior calvez ainda esteja por vir. Eis a razão de por que hoje em dia é muito mais difícil
resolver os problemas da universidade alemã do que nos anos i920" (1990: 335).

A CONDIÇÃO SENSÍVE L 197


Não é evidente que um fenômeno que obedeça à lei do progresso possua em si mesmo
sentido e razão. Por que, então, entregar-se a uma ocupação que, na realidade, não
tem jamais uma finalidade e nem pode tê-la [... ] qual a posição pessoal do homem
de ciência em face de sua vocação? Que obra significativa ele espera realizar com suas
descobertas, destinadas invariavelmente a envelhecer, deixando-se aprisionar nessa
empresa dividida em especialidades e que se perde no infinito? [... ] O progresso cien-
tífico é um fragmento, o mais importante é verdade, do processo de intelectualização
a que estamos submetidos h:í mi lhares de anos e em relação ao qual cerras pessoas
adoram, em nossos dias, uma posição cslranhamentc negat iva (: 68- 9). 111

Estará esse processo de intelectualização bloqueado nas sociedades contempo-


râneas, trazendo novamente à tona, e de forma aguda, a questão do sentido, da
insignificância? Serão inéditas suas formas atuais, em que se impõe a necessidade
de refletir atentamente sobre o papel do movimento, da sensação e do corpo na
capacidade de pensar e no exercício de uma consciência moral?
Reforçado pela falta de tempo, pelo desengajamento, pela aceleração dos fluxos
sensoriais e de informação, e pela fluidez das sociedades contemporâneas, o exercí-
cio da consciência se vê reduzido por exigências de produtividade intensa, tornan-
do ainda mais intensas a descontinuidade, a fragmentação e, cm conseqüência, a
superficialidade e a falta de discernimento.
A leitura de Weber nos estimula a aprofundar nuanças impalpáveis e inaces-
síveis tanto da intimidade quanto da consciência, que, oriundas da desatenção e
do cansaço, da anomia ou ainda do desencantamento e do mal-estar, abrigam e
escondem, nas regiões mais profundas da subjetividade, atitudes de conivência que
podem, pouco a pouco, e de forma insidiosa, levar-nos a um niilismo difuso e a
uma violência extremada.

I() Lembremos que Weber era um critico da noção de progresso inserira na racionali<laJe capitalista
que emerge no século xvr1.

<:1,/1.ll!)J NE ll,\RO<:l Ir
TRANSFORMAÇÃO DAS MANEIRAS DE SENTIR NOS FLUXOS

SENSORIAIS DAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS'

A conseqüência desses sistemas é a superficialida-


de que pode transformar o homem que conhe-
cemos ao longo de cinco mil anos de história,
a ponto de torná-lo irreconhecível. Trata-se de
mais do que uma superficialidade banal, pois
é como se a dimensão de profundidade, sem a
qual o pensamento não pode existir, mesmo no
nível da invenção técnica, desaparecesse pura e
simplesmente.

Hannah Arendt

As maneiras de sentir têm uma história que se revela por meio de uma hierarqui-
zação dos sentidos e se traduz pela predominância e acuidade de certos sentidos
sobre outros. Durante a Idade Média, o tato foi, ao lado da audição, o sentido
mais importante. Hoje, na modernidade contemporânea, perde em importância
tanto para esta quanto para a visão. 2 fu maneiras de sentir refletem igualmente
um determinado estado das condições sensoriais: revelam, participam e induzem,
com base em formas sensoriais inéditas, transformações profundas nos processos
de subjetivação e nos tipos de personalidade. Detenho-me, aqui, na discussão de

1
Agradeço a Jod Birman. Yves Déloye, Eugene Enriquez e Olgária Matos por seus comentários,
críticas e sugestões.
' Robert Mandrou, inscrevendo-se na filiaç.áo dos trabalhos de Lucien Febvre, mostrou a acuidade e
hierarquia dos sentidos na Idade Média. Ao lembrar a mudança ocorrida nos modos de percepção
entre o século XVI e o período contemporâneo, Mandrou sublinha que "a hierarquia [na Idade
Média] não é a mesma, pois o olho , que é hoje dominante, encontra-se no terceiro nível após a
audição e o ta to, bem como dista nciado deles". Observa, no enrànro, que "os órgãos sensoriais são
evidentemente os mesmos que os nossos" (Mandrou, 1961: 76).

1 199
algumas dessas mudanças presentes na modernidade, mantendo o foco no modo
de existência dos objetos e dos homens, nas maneiras de perceber. A esse respeito,
David Hume e Walter Benjamin escreveram:
Um objeto pode exisrir e, no encanto, não esrar em lugar algum. Afirmo não apenas
que isso é possível, como também que a maioria dos seres existe dessa maneira e em
nenhuma outra. [... ] Ora, esse é evidentemente o caso de rodas as nossas percepções e
de rodos os nossos objetos, à exceção da visão e do tato. Uma reflexão moral não pode
ser posta à direita ou à esquerda de uma paixão, e um odor ou um som não podem ser
circulares ou quadrados. Longe de requerer um lugar particular, esses objetos e percep-
ções são totalmente incompatíveis com qualquer lugar possível (Hume, 1739: 324).

Durante os longos períodos da história, juntamente com rodo o modo de existência


das comunidades humanas, vemos a transformação de sua forma de perceber. A manei-
ra como se opera a percepção - o meio pelo qual ela se efetua - depende não apenas
da narureza humana, como também da história (Benjamin, 1935: 74).

UMA HISTÓRIA DAS MANEIRAS DE SENTIR

Dois séculos separam os textos de um e de outro. Hume e o empirismo apostam


na ciência futura para explicar o papel decisivo do difuso, do inapreensível e do
indiscernível, enquanto Benjamin, ao se derer no modo de existência das comu-
nidades humanas, trata de questões que se situam no cerne da sociologia clássica
alemã. Formulada em termos diversos, a interrogação, espantosamente persistente
e estranhamente próxima, anuncia as preocupações fundamentais da abordagem
fenomenológica (Merleau-Ponty, 1945). 3
A passagem eirada de Hume nos parece particularmente interessante para pensar
tanto os modos de percepção na modernidade - seu caráter fragmentário, instável,
mutante e impalpável - quanto os modos de existência dos objetos, seu funciona-
mento intermitente e imaterial, intangível e virtual, nas sociedades chamadas de
pós-modernas, hipermodernas ou, numa palavra, contemporâneas. 4

3 Abordamos aqui as maneiras de sentir e os modos de percepção tendo como base enfoque trans-
disciplinar entre sociologia, antropologia e psicologia, a fim de repensar cerras questões relativas
ao eu, à pessoa, à subjetividade, ao sencir e ao sentimenco. Não entramos, porém, nos debates
internos à filosofia.
4
Balandier observa que "a instrumentalização realizada por máquinas inteligentes impõe outra inte-
ligência ao mundo e usos em que o procedimento, a maneira de fazer e o algoritmo vêm suplantar
progressivamente os demais modos de racionalização das condutas" (2005a: 43) .

.200 1 CLAUDINE HAROCHE


0 1 modo s de funci onamento sen so riais , as impressões, as sensações experimen-
r;1,bs. e' .1s fornus de· sc·nrir ·- su;is or it:<' ns. su porres. contet'1dos e intensidades -
evo l11i r.1m hisroric·Jrncntc' 11.1 111L1Lkrnicbdl' l' no i11di1·idu.il is m '' cLllll t' lllf1LH.\ nc·o:
"se mir" etiuivalc .1 cx paimc· nrH apenas sc:nsa~·õc-s demerc1s e. :lll ml'smo tempo,
conrínuas (Bauman, 2000 ; Me lm an . 2002)' A elaboraç3o de urna dim e ns :1o pes-
soal, subj etiva, na percepção é possível no interior de fluxos senso riais contínuos?
Em outros rnmos, a consc iencia de ex perime ntar srnsações, na condi<;ão de pessoa,
ainda é possível ?
1 rerrogo os efeitos_ hoj e produzidos p elos fluxos sensoriais contínuos sobre os
se.I!lil:lQ§. Ao afastar o tem o da ~o ê;--e m decorrência, emperrar o exerd-
c]Q. da consciência, as__i~ pr~sões__i: si:_11saç~e~_ C().!Jtínuas influe nc~am d e mar}eira
s~enci.?~ª' difusa e ~mpa lp ávd, porém intensa, a elaboração das percepções,_do§
conhecimentos e, de modo mais amplo, das faculà ;i d~§ psíquica~ .' Assim, levanto
a J:i i2ó_~2e d_e_ q~ elas '![eram a ~~cidade de vivenciar semimento;e,7~ p-articu-
lar, o sentimento de existência do eu e do outro. O sentimento do eu supõe certa
f; rma de-~inuidade, de duração, ou seja, requer um limite entre a interioridade
e a exterioridade. Esse limite se encontra ameaçado pelas formas tecnológicas_s,on-
t~mporâQeas,~algo qu-e tem con-seqüências - algUrriãSConhecl.~E~~~~i:;~s inéditas -
s9_bre o funcionamento da subietividad~. 6
Para pensar essa ~~Y~~áQ.siknciosa, é preciso voltar ~_s_,&~damentos e às condi-
~s da sensação, da percepção e d'!:' ~a_n~iras de semir~ 12erceber. Partiremos do sécu-
19 xy1Ü: dosescritos _di:; B.11..me; a seguir, no comexro do $ÇculQ x rx e qg_in(ci() ~~cu­
ia_xx, p~ríoc!_o_c!_e eferv~~~~'.l:.int_el~ctual_:_ a_u~~~-~ ~~~gi~çáo_crlli!9~ e científiqi.,

" Apóio-me em alguns trabalhos, sobretudo de Balandicr, llDS quais se lê <.JU C cercas <limensÕc.'i do enten-

dimento, as maneiras de pensar, os processos de subjetivação se modificaram com as formas de tecno-


logia comemporânc<1:-; que indu:t'.clll a acd c raç3o , a insta11tancidade, o imediatismo. Nossas formas de
conhecimenro, sob vários aspectos, transformaran1-sc: mulriplicadas e intensificadas, encontram-se, de
certa maneira, ultrapassadas e aniquiladas, pois a posição - o lugar, o papel - do sujeito no exercício do
pcns,1m ento deixou de ser assegurada. Kant afirmou que "certos conhecimentos abandonam o campo
das experiências possíveis e, por intermédio de conceitos, que não podem de modo algum ser dados
na experiência, um o bjeto que lhes corresponda aparcnra ampliar a extensáo de nossos juíws para
além ele todos os limites da experiência" (1787 : 97) . Com efeito, Kant abordou pontos extremamente
conten1porâneos: ".Se suprimíssemos pelo pe nsam en to nossa subje tividade ou mesmo apenas a consti-
tuição subjeriva dos senridos em geral, rodas as propriedades, rodas as relações dos objetos no espaço e
rn1 lcmpo, o pn'>prio e)paço e tcmpo, d csapa n.:ccri ~1 m, pois, como fonômenos, não podem existir em
si, mas apenas e m nós. Aquilo que poderia ser tomado como u1na caractc:rísti G1 <los próprios ohjcws,
abstração teira de roda receptividade de nossa sensibilidade, permanece-nos inteiramente desconhecido.
Não conhecemos nada além de nossa maneira de percebê-los"(: 133- 4).
1
' No presente, a experiência tenderia a ser espacializada e exibida aos olhos de rodos.

A COND I ÇÃO SENSÍVEL 201


retomaremos as qy~stões-e-as-mflexões p_anilhadas_p.QLU!_tores como Pierre Janet, Paul
V~~!ieJ-:l~rgson, evocando Georg Simmel, Marcel Ma~~~njam_in,
Theodor Adomo_ ~J~1~ ~~L Retomaremos igualmente trabalhos recentes, par-
ticularmente os de~~.!:;· c~nsagrado~_àJüstó.ria, ~ e ~~voluçãQ..d~giídias_ ~
- Trata-se de questões que abordam, de forma persistente, as maneiras de perceber, de
sentir, e também os sentimentos e seus modos de funcionamento, suas transformações
( ao longo da história e seu eventual declínio (Mauss, 1921; Lasch, 1979).
Em 1739, Hume apresenta um ciuadro geral dos modos de funcionam ento ele-
mentares do mundo sensorial, com ênfase em aspectos relevantes para a co m-
preensão da contemporaneidade, como a fragmentação e _çlescontinuidadt das
se~sações e seu papel na elaboração-d~s pcrcepções. 7 Ele distingu~-d~;;s e~pécies
de mecanismos de percepção, que emergem em dois momentos sucessivos e se di-
ferenci am por sua intensidade: as impressões, que compree ndem tanto as se nsações
e as paixões quanto as emoções, - ~ as idéi~;. " Uma impressão atinge primeiramente
os sentidos. Dessa impressão, o espírito faz uma cópia que subsiste d epois que
a impressão cessou; é isso a que chamamos de idéia" (Hume, r739: 48). Hume
estabelece, portanto, uma continuidade entre imp.r.essões e idéias, j:í que ambas
provhn dos srntidos, :1ssim Ullno ;,1i1:1~1:~7;~~ra11-J:i 11tL~nsi.I1t~· LJllL', ao fillT
nascer uma irl-lpre-;;_sã? ou_1Jma idéia, R<.:rm iJ:l.:.j.LiJi:.t:S'..!l<i.i:.@:! : "Podemos chamar as
percepções que entram _co_~ IT!.~i~ _ força_~_..Y.iQlên.cia_ de ...illipE~êS [.. .]. Por. idé ias,
entendo suas imagens enfraquecidas no pensam_ento e no racjo_çínio" (: 41) .
Estabelece-se aí uma questão que nos parece profundamente esclarecedora ela
transformação contemporânea nos modos de percepção: ao estudar o modo de exis-
tência das percepções e elos objetos, distingue nas primeiras sua qualidade "descon-
tínua, efêmera e diversa a cada aparição'', e nos últimos seu cadter "ininterrupto,
permanente e idêntico". Em seus termos, "o objeto, na realidade, continua a ex istir,
mesmo quando está ausente para nós" (: 271). A reflexão de Hume incide, portanto,
sobre as maneiras pelas quais nós percebemos e, de modo fundam ental, sobre as
razões pelas quais acreditamos nos obj etos, nos corpos. Por que percebe mos uma
continuidade onde não existe objeto, onde há - ao menos aparentemente - descon-
tinuidade? Por que razões nós experimentamos a continuidade? Seria ela uma proprie-
dade, uma dimensão do psiquismo; responderia a uma necessidade psíqui ca? 8

7
Nesse conrexro, Hume não se mostra ai nda sensível às distinçócs entre se nsaçôes, Sl'll timcnws e
emoções .
11
São questões que tratarn, fun<.bm cntalmentc, da frnmação do cu. Ver, a respeito , J\111.ieu (1985).
Mai s recentemente, lhlandicr abordou essas qw.;stôcs cm "A gra 1idc dcso1d cm" (100q) L' cm ''Ve r
;1 l é 111 , J1Cll!UI" de outro 111odo" (2CO) h).

202 1 CI A l ' !"ll N E 11.·\ RO C l lF


O MOVIMENTO E O PENSAMENTO

Essas questões, de grande atualidade, permanecem de certa maneira sem resposta.


Com efeito, ao observar que a continuidade das percepções tem caráter funcio-
nal, vendo nisso uma ficção destinada a "dissimular a descontinuidade de nossas
percepções [... ], permitindo sua existência contínua" (: 294), Hume afirma: "Nós
fingimos a existência contínua das percepções de nossos sentidos para suprimir
sua descontinuidade, e chegamos às noções de alma, de eu e de substância para
disfarçar sua variação" (: 346).'l Aborda, assim, algo essencial à compreensão dos
modos de funcionamento contemporâneos, ou seja, a alternância entre continui-
dade e descontinuidade das percepções como condição do pensamento. Segundo
sua concepção, o pensamento depende da possibilidade dessa alternância, a fim
de que se nos torne possível perceber o vínculo entre o caráter descontínuo das
percepções e o movimento, o papel do movimento, para o pensamento: "Cada
qual pode perceber que as diferentes disposições de seu corpo modificam seus
pensamentos e sentimentos" (: 338). Em outras palavras, para Hume, como já
ressaltado, a origem comum das impressões e das idéias reside nos sentidos, razão
pela qual é o movimento, a movimentação a partir da paralisação, da pausa, que se
torna "causa do pensamento e da percepção" (: 338).
Seria essa dimensão funcional assegurada pela continuidade das percepções que
desapareceu nas sociedades contemporâneas? Percepções e idéias podem perdurar,
ou mesmo existir, quando o movimento é incessante? Sensações onipresentes e
intensas, fluxos sensoriais contínuos, têm como efeito suprimir a alternância entre
continuidade e descontinuidade, que é condição da capacidade de pensar? Imobi-
lizariam ou paralisariam o pensamento porque incitariam e imporiam o movimen-
to? O caráter descontínuo das percepções se tornou, hoje, contínuo, ao passo que
as sensações substituíram as percepções, afastando a alternância entre movimento
e pausa, condição do pensamento, bem como impondo um movimento incessante
à pessoa que o emperra. 10
Hume enfatiza que "as percepções do espírito podem imitar ou copiar as percep-
ções dos sentidos, mas não podem jamais atingir inteiramente a força e vivacidade
da sensação original"(: 41). Hoje, elas tendem a se confundir com as sensações ori-
ginais, fazendo com que nos confrontemos à onipresença das percepções afetando
o sujeito, o eu, a personalidade. Esses são temas a que se consagrou Pierre Janet:

" Hume antecipa assim Pierre Janet e Marcel Mauss, que se dedicará à noção de pessoa.
'" Em trabalhos recentes, Ralandier d edicou-se a essas questões, sugerindo reflexões sobre o exercício
dos sentidos. da percepção, dos "procedimentos que preservariam a consciência do corpo [...] a
pcrccpçao do movimento e da resistência das coisas" (2005a, 2005b).

A C ONor ç ,\o SE NS Í V Ei. 1 203


o esmaecimento das percepções do espírirn e a cons1ância das sensações, levando a
atividades automáticas, isto é, atividades reflexas impregnadas de comp11lsividadc.
ou de apatia e inércia, e provocando o cansaço do ClL

O ESTREITAMENTO DO CAMPO DA CONSCIÊNCIA

Enquanto o filósofo inglês afirmou que, ao forjar a existência contínua das percep-
ções, atingimos a noção de eu, Janet foca, como diversos outros texros de psicologia
e de fenomenologia de sua época, a problemática do sujeito no que concerne à per-
cepção. Para isso. aborda simultaneamente a pessoa, a subjerividadc e a consciência
e sua desagregação (Janet, 1889, 1929) 11 com o intuito de compreender a questão
do eu sob um prisma particularmente interessante ao individualismo contemporâ-
neo: "a atividade humana em suas formas mais simples, mais rudimentares", a q uai
qualifica de "automácicà'. Janet, portanto, permite-nos considerar dimensões ne-
gligenciadas do sujeito nas transformações contemporâneas das percepções, quais
sejam, os modos de fragmentação e de divisão relacionados à atividade automática.
Ele nos estimula a enfrentar algo situado no cerne dos modos de formação do eu
e das formas de subjetivação nos fluxos sensoriais contínuos: ainda é possível ao
sujeito ter iniciativa em seus atos, para se movimentar?
Em 1&89, Janet defende sua tese sobre o "automatismo psicológico" e os me-
canismos sensoriais. Durante os anos que se seguem, dedica grande número de
trabalhos aos processos psicológicos e fisiológicos. 12 Sua abordagem tanto históri-
ca quanto psicológica anuncia uma mudança nos modos de percepção. Em suas
palavras: "as noções gerais sobre as percepções, a constituição dos objetos, a cons-
tituição de nosso corpo [... ] transformam-se cada vez mais" Uanet, 1889; cf. tam-
bém Merleau-Ponty, 1945; Simondon, 1958). O que mais nos interessa, contudo,
é o modo como aborda os sentimentos - "decidimos tomar hoje como objeto de
estudo 'os sentimentos em geral" -, valendo-se das condutas, da forma como as
maneiras de ser induzem, traduzem ou reforçam maneiras de sentir. Para Janet, o

11
Janet se referiu, de maneira enfática, aos escriros de Maine de Biran, a propósito dos quais Jean
Srarobinski sublinha que se esforçaram em mostrar que "o fato humano é essencialmente ativo.
É impossível reconstruí-lo a partir da sensação, que é passiva. O foco primitivo é a iniciativa moto-
ra" (Starobinski, 1999: 152) Scarobinski observa ainda que dessa psicologia, que procura se libertar
do esquema sensorial-motor constantemente evocado por Pierre Cabanis, dir··se-á um pouco mais
carde que ela representou "uma reação contra a filosofia da sensaçáo" (: 154).
12
É difícil afirmar que se trata unicamente de uma rese de filosofia, pois também é psicológica e
sociológica, e seus efeitos incidiram sobre os fundamentos da psicanálise.

204 1 CLAUDINE HAROCHE


se 1HÍm c 111 0 governa e rl·gul:t a s man eiras d e ser e as con dutas, razão pela qu al, em
19 2'). dcd iu na srn nmo 11 0 Coll ege de hance "i1 evolu <;:ío p siwlógica da pcrsona-
lid:1d c no 11· 111po e ao es rudo dos sen rim enros"' 1.
1\0 evocar l':rnl Valúy. rctom:1r us t n lm de M:1r<:d !Vh us., e prdlg ur:lr trJ balhos
pos te riores, co mo os de Uidi l'. r Anzi e u, ele ressaira "a estreita rclac,:ão que parece
exist ir entre os fenômenos psicológicos e os fenômenos fisiológicos, entre os pen-
sam entos e os movim ento s" (J anet, r889; Anzie u, 1985). Pretende, assim, mostrar a
indissociab ilidade entre as sensações e os movim entos: "as sensações e as imagens
são acompa nhadas por movimentos dos m embros, assim c orno o desaparecimen-
to da se nsação o u da imagem provoca uma supressão paralela dos movimentos"
(Janet , 1889: li) . Ele insiste no faro d e que "não existem dw.s facu ldades, em que
uma seria a do pen sa menrn e a outra, a da atividade. Existe apenas, a cada mo-
rnenrn, um único e mesmo fenô men o, manifes tando-se sempre de duas maneiras
diferenres" , isto é, pelo pensam ento e pelo movimento(: u) .

UMA GENEALOGIA DOS SENTIMENTOS

Vê-se qu e Jan et in ova tanto pelo enfoque psicoló gico quanto pelos termos que utili-
za: "o automatismo não cria novas sínteses, é apenas a m anifestação das sínteses que
já foram organi zad as num momento em que o espírito era mais poderoso", reagrupa
"o conjunto desses fenômenos num mesmo termo", que c hama de "contração do
campo da consciência" (: ri, 15). Ora, nas sociedades contemporâneas, em virtude da
continuidade dos fluxos sensoriais, essa co ntração da consciência está não só intensi-
ficada, rnmo também mulriplicad;1 n:is maneiras de senrir, ver e ouvir.
Em seguida, Janet o bse rva que "a conrrac,:ão do campo d;1 consciência provoca
uma conseqüência grave: os fenômenos psicológicos não são mais sintetizados numa
única percepção p essoat' (: 16). D essa constatação retira as conseqüências psicológicas
da fragmentação e da desco ntinuidade das percepções sobre os mecanismos psico-
lógicos, algo que Hume já sublinhara, e declara ser esse o ponto que o conduzira ao
"esrndo dos fenômenos subconscientes e da divisão da personalidade"(: 16) . Haveria,
então, duas dimensões no psiquismo humano, o automatismo e a consciêncú1:
Pode-se, a um só tempo, admitir o automatismo e a consciência, e a partir daí satis-
fazer aq ueles que constatam no homem uma forma de atividade elementar comple-
ta mente dctcrmin:afa , como as de um autômato, e aqueles que querem conservar no
homem, mesmo cm suas açócs mai s simplc>, a c011sci ência e a se nsibilidade (: 24; cf.
Gauch et, 1992).

u Seria prc-ciso esperar os trdbalhos de Simrnel para que os sentimentos fossem considerados objetos centrais.

A CONO IÇ)\O SENS Í VE i . 1 205


Sua teoria, complexa, afirma a concomitância de continuidades profundas e
fenômenos de fragmentação, dissociação e desagregação:
Em outros termos, não nos parece que, num ser vivo, ~ ativiJatk q11c se 11u11ifcs1a
exteriormente pelo movimemo possa ser separa<la de Jeterminada forma de inte-
ligência e de consciência que a acompanha interiormente. [...] Nossa finalidade é
demonstrar não apenas que h:í uma atividade humana que merece o nome de auto-
mática, mas também que é legítimo denominá-la automatismo psicológico(: 24).

Com o recurso a diferentes termos, Janet retoma as an:íliscs de Hume e as de-


senvolve segundo uma nova abordagem psicológica:
Se nos situarmos num ponto de vista exclusivamente psicológico, se considerarmos o
eu não mais como um ser e uma causa, e sim como certa idéia que acompanha a maioria
dos fenômenos psicológicos, seremos forçados a pensar que existem sensações sem o eu,
que podem existir fenômenos de visão, ainda que ninguém diga: "Eu vejo"(: 58).

O que o leva a concluir, numa formulação densa e sintética, que "a consciência
pode existir sem nenhum juízo, ou seja, sem inteligência; o homem pode sentir e não
compreender suas próprias sensações"(: 56) 1'1• Desse modo, chega à definição de
consciência, na qual sublinha seu caráter histórico: a consciência conhece diferen-
ças de grau e intensidade, evolui ou regride, apresenta progressos, "jamais atinge
seu termo". Ela se define como "o que acrescentamos de nós mesmos para ordenar
nossas ações, para reorganizar o organismo perturbado por uma ação provocada
pelo mundo exterior". Janet considera a consciência, portanto, um princípio orga-
nizador que supõe uma parte da pessoa (Janet, 1929: 152, 165).
Além disso, dá ênfase ao papel do sentimento em seu funcionamento: o senti-
mento é condição de engajamento, o exercício da consciência o requer. Em seus ter-
mos, "um indivíduo não tem consciência de seus atos quando não tem sentimen-
tos em relação a eles", ao mesmo tempo que, em sua pessoa, não se sente engajado
num ato, numa conduta, quando não tem consciência deles. "É a ausência ou a
presença de sentimentos que permite a afirmação de que um indivíduo tem ou não
consciência"(: 160). Nessa perspectiva, pergunta-se: "o que são os sentimentos?", e
chega a uma definição análog2 à de Marcel Mauss: "regulações" (: 190). 15
A explicitação dos vínculos entre sentimentos, condutas e personalidade leva
Janet a realizar tanro uma genealogia quanto u:na história e l!ma antropologia dos

" A propósito da reílexividade contínua, ver Bauman (2000).


1
~ J~111ct afirma <JU C: "o amor-, tal co nrn o compreendemos hoje, tem urna hisulri:l, um começo, uma
evolução e terá talvez urn fim, o <[UC, rodavia, parccc~ nos estranho" (: r9 8) . Mauss j;i Ji .\tinguira
nos sentimentos a expressão de obrig:1çõcs_

206 1 CI :\ 1·1l1 ~ F 11 1\ HI )( 1!1


sentimentos, das maneiras de sentir, de sua emergência, seu desenvolvimento e seu
declínio: os sentimentos nascem de condutas específicas e, porque são regulações,
traduzem-se nelas (Simmel, 1908). Em outras palavras, ao discutir a emergência
do sentimento, seu caráter funcional, Janet sugere não só que "a conduta humana
tinha necessidade de regulações", como também que "os sentimentos puseram
ordem nas condutas e fizeram a humanidade progredir" Qanet, 1929: 562). Há,
contudo, algo paradoxal no desenvolvimento dos sentimentos: a regulação e a
ordenação nascem ou, ao menos, acompanham-se do sentimento e do engaja-
mento, mas tendem a afastá-los ao se desenvolverem, outra maneira de dizer que
o desenvolvimento e a intensificação da regulação e do ordenamento redundam
no declínio dos sentimentos: "ao chegar a certo ponto, constatei que a descrição
dos sentimentos apresentava algo de surpreendente: à medida que os homens se
tornavam mais inteligentes, atingiam um estágio psicológico superior, mais os sen-
timentos diminuíam e desapareciam"(: 562).
Em seguida, Janet nos leva a lembrar considerações de Tocqueville acerca da
igualdade e do nivelamento de condições na democracia: "Há idade para os sen-
timentos, idade para as paixões; quando o homem se torna mais forte e crescido,
todos estes sentimentos diminuem. Podemos mesmo perguntar se os sentimentos
não tendem a desaparecer cada vez mais" (: 563). Em seu curso de i929, lê-se:
Em resumo, os sentimentos apresentaram-se a nós dotados de um começo, em vir-
mde da necessidade de regular as reações reflexas dos seres primitivos. Tiveram seu
apogeu, ao se desenvolveram na época das grandes paixões, e hoje diminuem e ten-
dem a desaparecer(: 563) .

Nesta observação, Janet de certa forma anuncia as afirmações de Christopher


Lasch no fim da década de 1970 a respeito do declínio dos sentimentos, causa-
do pelo narcisismo no individualismo contemporâneo (Lasch, 1979). Com efeito,
a atenção voltada para si, o centrar-se em si mesmo e a continuidade das sensa-
ções, concomitante à descontinuidade dos corpos, acentuaram-se de maneira con-
siderável nas sociedades fragmentadas, flexíveis e fluidas de hoje (Bauman, 2000).
Em outros termos, nas sociedades contemporâneas, a sensação contínua e o movi-
mento permanente transformaram os modos de funcionamento sensoriais: estimu-
laram o df'sinteresse, o descompromisso e o desengajamento, bem como afastaram
as idéias de limite e consciência, e a própria noção de eu. Além disso, o papel do
movimento para o pensamento, tal como proposto por Hume, modificou-se: a al-
ternância entre mobilidade e imobilidade tende a declinar e mesmo a desaparecer, já
que hoje o indivíduo em busca de poder é estimulado a se deslocar constantemente
pelo mundo, mas permanece passivo e imóvel em face dos contínuos fluxos de infor-
maçáo veiculados em telas tanto no trabalho quanto no lazer (Sennett, 1974).

i\ C O N DH.,: .: \o '\Ei'\'S Í V E I. 1 207


MUTAÇÕES TECNOLÓGICAS E ATROFIA SENSORIAL

Teriam se transformado os mecanismos da pcrcepc;ão t: declinado a possibilidade


de elaborá-los? De maneira análoga, teria mudado a significação de continuidade
de Hume e Janet às sociedades contemporâneas, no sentido de que, hoje, cons-
tituiria não uma ficção destinada a dissimular a descontinuidade das pcrcepções,
e sim a própria realidade conformada por sensações contínuas? St: isso é verdade,
pode-se dizer que os objetos tendem a ser percebidos nas sociedades fluidas como
pouco materiais ou sólidos, da mesma forma que os pensamentos o eram para
Hume (Balandier, 2005a).
Numerosos trabalhos, preocupados com o modo de existência dos objetos téc-
nicos, esforçaram-se para compreender os efeitos rápidos ou progressivos, mas
muitas vezes, imperceptíveis, das mudanças tecnológicas sobre o psiquismo (Illich,
1995). Nas sociedades contemporâneas, em razão das mídias, tais mudanças acar-
retam e refletem a acentuação, a intensificação e a transformação de escala das
condições da atividade sensorial, em particular a audição e a visão. Explícita ou
implicitamente, todos esses trabalhos se referem aos escritos de Georg Simmel,
Walter Benjamin e Theodor Adorno. 16
Simmel concebeu os sentimentos com um espírito próximo ao de Janet, ou seja,
mais como efeito dos modos de vida e menos como elementos originários, inefá-
veis e indizíveis (Simmel, 1908). São os comportamentos que induzem os senti-
mentos, ou seja, a emergência do sentimento moderno de desorientação se vincula
aos modos de existência nas grandes cidades, estendidos por ele à vida moderna
em seu conjunto. Por isso, procura apreender os traços essenciais do homem mo-
derno, que chama de "alma moderna", definindo-os pela "impressão de tensão e de
vaga melancolia, uma insatisfac;ão secreta, um sentimento de urgência que nasce
do frenesi da vida modernà' (citado em Gitlin, 2003: 51). Seriam essas disposições,
portanto, que nos levariam "a buscar uma satisfação passageira, momentânea, estí-
mulos sempre novos, sensações e atividades exteriores" (: 51).
Segundo Simmel, a desorientação em ação nas formas de individualismo se
origina ou aumenta com o isolamento e a invasão de sensações múltiplas, difusas
e essencialmente visuais, podendo-se deduzir disso que a indistinção e o ilimitado
emanam sobretudo do olhar, ao passo que a orientação e o inteligível, que reque-
rem momentos de estabilidade e repouso, fundamentam-se mais na linguagem
verbal, nas palavras e, portanto, na audição (Ingold, 1998). Assim, o audiovisual
acarreta uma transformação ainda maior, pois nele olhar e ouvir se confundem, já

16
"Apenas o homem é sempre para os nossos sentidos permanência e fluxo", escreve Simmel em
"Excursus sobre a sociologia dos sentidos". Ver, igualmente, Bergson (1927, 1938),

208 1 CLAUDINE HAROCHE


qu e.: '' aud;s·:ín perde st·u ca dter sing<1lar e iadi vidua l, e tende a assumir proprieda-
des idêntic;s !is da visão.
Adorno e l-lorkl1cimn, ao dar scqikncia aos cscr iros de Simmd e.: Walter Rcnja-
min, perceberam nos processos característicos da modernidade uma dimensão que
produz um a movimentação permanente, com efeitos sobre os modos de existência,
de ser e viver, e sobre as maneiras de sentir. Por impor a rapidez, o instantâneo,
o imcdi:1to, o movimcmo aÍ;1sra a possibilidade.: de perceber, olhar e.: ouvir dis-
tintamente, e também evita a evenrnalidade de uma hesitação ou dúvida. Chega
inclusiYe a emperrar a elaboração da percepção e da reflexão, conduzindo-nos a
um estado de surdez e cegueira tanto físicas quanto psíquicas. De acordo com esses
autores, a imaginação e a espontaneidade dos indivíduos tornados consumidores e
espectadore< peb ação da mídia se "atrofiam", já que:
Os próprios produtos são objerivamence constituídos para paralisar todos esses meca-
nismos. [Daqui em <liame], é preciso espíriro rápido, dom de observação, competên-
cia para compreendê-los perfeirameme, só que eles imerdiram roda atividade mental
ao espectador se esse não quiser nada pcnler <los fatos que desfilam , de maneira veloz,
diame de seus olhos (Adorno e Horkheimer, 1944: 135).

Assim, somos confrontados à finalidade essenciai da indústria de bens culturais


e, hoje em dia, das sociedades de mercado em sentido a1nplo: o exercitar-se de for-
ma contínua por meio de fluxos ininterruptos demarca o significado do trabalho e
da vida para os homens, "da saída da fábrica à noite até o relógio de ponto no dia
seguinte pela manhã, com o selo do trabalho em cadeia", como Adorno escreveu
nos anos 1950 (: 140). Seus escritos anunciam os efeitos psíquicos, sociais e polí-
ticos provocados pelas formas de individualismo contemporâneo: o isolamento
visual t: auditivo, o isolamcn to psíq11 ico provocado por i magc.:ns e.: sons contín uos,
a fragmentação, a dispersão e, ao mesmo tempo, a homogeneização e o conformis-
mo dos indivíduos.
Na seção seguinte, detenho-me na transformação dos mecanismos sensoriais
induzida pelo crescente papel dos fluxos visuais e auditivos em ação na mídia.
O problema da atenção em suas relações com a emergência de um campo social,
urbano, psíquico e industrial saturado de experiências sensoriais se tornou uma
questão central no século xrx.

O CAPITAL1SMO E A CULTURA DA DESATENÇÃO

Recentemente, Todd G itlin realizou estudos sobre as mídias contemporâneas que Ú


salientaram uma contínua exigência das sociedades capitalistas: captar a atenção ~-

A COND IÇÃO S ENSÍVEL 1 209


,I
de indivíduos que, na modernidade, tornaram-se desatentos e distraídos (Gitlin,~;i
2003).17 O tema desses estudos são as conseqüências psíquicas do funcionamento !
das mídias, em que separa dois elementos centrais: efeitos próprios ao capitalismo,, r/
como mobilidade, agitação e circulação, e a emergência de condições fisi9lógicas 1 !
e p~i~<?!?-~~~~s. ·----· ... . .. . -- -~
Para isso, retoma Karl Marx e Friedrich Engels, que viram no capitalismo a
origem de "uma revolução constante da produção, uma transformação contínua
de todas as condições sociais, uma incerteza e agitação permanentes. [Hoje,] rodas
as relações duráveis e estáveis, com seu correjo de preconceitos e opiniões tradicio-
nais, são varridas. [ ... ] Tudo que é sólido desmancha no ar[ ... ] [transformando-se]
numa maré incessante de imagens e sons, uma promessa sem fim de sensações e
sentimentos passageiros, uma cacofonia sem limite de energias e barulhos(: n6-7). 1,
E também Simmel, ao dizer "que os seres humanos não wmeçaram a .<entir de repente, /j
17
Referindo-se a Marx e a Simmel, Jonathan Crary afirma que a questão dos fluxos é intrínseca ao
capitalismo: "o capitalismo desenraiza e põe em movimento o que é fixo, esvazia ou oblitera o
que obstaculiza a circulação e transforma um objeto único em objeto de rroca" (Crary, 1990: 32).
Enfatiza, assim, o desenrolar paradoxal contido na destruição profunda de "to(b.s as estruturas de
pcrccpç:lo csdvcis l' contínuas" e, ao mesmo tnnpo, ~1 tL'lltativ;1 de "impor um rq~imc s<:vcm de
atenção». De acordo com Crary, a n1odernidade capitalista possui imperativos que se tradu1.em de
maneira particularmente clara no funcionamento da sensorialidade e da percepção: esses impera-
tivos "engendram técnicas capazes de impor uma ~tenção visual, racionalizar a scnsaçJo e governar
a pcro.:pção" (: 51). ()hscrva ainda que "o olho humano perde, pouco <l pouco, a 1niior pane de
importantes propriedades presentes no curso <la história; elas desaparecen1 diante de práticas em
1
que as imagens visuais não remetem n1ais à posição ocupada pelo observador num mundo "real' )

percebido segundo as leis da ótica" (: 20) A observação se torna cada vez mais uma qu c.'1ão de sen-
sações e estímulos, deixando de remeter unicamente a um observador e a uma po.siçJo no espaço.
"Desde o fim do século x1x, e cada vez mais ao longo dos últimos vinte anos, o capiulismo contem -
porâneo engendrou uma renovação incessante das condições da experi(~ncia sensorial por meio <lo
que poderíamos chamar de revolução dos modos de percepção. [... J Durante os ültirnos cem anos,
os modos de percepção conhecer~m e continuam a conhecer mn estado de crise". Ao concluir, afir-
ma: "assistimos, há dez anos, a uma transformação radical nas re lações e ntre o sujeito oh.scrvador e
os modos de representação"(: 19), e se quc.:stiona .sohrc a man('ira como o corpo, incluído o corpo
que percebe, é afetado, acrescido, intensificado em suas capacidades, ou diininuíd<l, enfraqucciLlo.
"Como o corpo entra na composição de máquinas, economias e dispositivos novos. a uni só t~n1po
sociais, libidinais O?..! te-enológicos" (: 21). Como Crary sugere, a razáo rrofonda de tais mudanças
reside no desenvclvimento do consumo, que exige a canalizaçào da atenção e a criação <le novas
necessidades, de desejos ilimitados, sendo necessário para isso controlar a arividade Llas percepçõcs,
a fim de tornar o observador um consumidor. "Chegar a esst: tipo de neutralidade citica, reduzir o
observador a um estado soi-disant elen1entar, é urna condição requeri&1 para formar o oh.servador
capaz de consumir imagens e infonnaçóes visuais que imedi::trnmcntc começam <l circular em
quantidade cada vez maior" (: 141).

210 (;!. ,\ \l l>IN J·: 11 1\J<.()( . !f l.


mas que nos séculos recentes se puseram a vivenciar, ou melhor, a experimentar /!V
tipos específicos de sentimentos, episódicos e superficiais", notando como algo r
revelador desse tipo de experiências o fato de que "os efeitos dramáticos repentinos
Áque distraem são preferidos às considerações dramatúrgicas l.ig..adas aos sentimentos
P e ao caráter. "Q ~ncadeamento das motiva~õ~s f~<:_qüei:tem~11te _~_ r9!11P.~~? Q9r
.!:!!.:1ª ló.gk<.t..<_Íi!..sem.a@'. (: 41).
Q efeitQ.. fu_~~das.Jllídias CQl}siste, portanto, .em encorajar e desenvolver
u~a culmra dos sen_ti~~~n~~s§e~,-t10L itgerrpédi9 de_c:s.!!_m~os, e . em co11gõlar j
a ª1ternân9?. .~!li':e a c~acidad_ç_de ate11ção_e_d~-d~~()· Em virtude de seu tipo /
de funcionamento, as _mfQ.i.<1.5 _f?roVQÇ<!.Ql e_iocreIDentam..a..desatenªo de cada um -
a_a~ência_de. reflel@i>J-ª-S.hlQ_e_rfü;~ -, assegurando-se e aproveitando-se dehem
imagens, informações~ es_Q~~~ulos, acontecimento~ e so!j_ci_tações visuaiLe auditi~ que
não requg~m~ Es~a ~.fyç;l_de exprimir críticas, resistências, recusas, mas n~­
s!._~qf_!g!!P-2- Em outras palavras, as dificuldades de perceber têm a ver com a sensação
contínua e a ausência de limites e de referências sólidas e duráveis. Somos envolvidos po~
u~º~oco.i:i~~o_ no nível da ercep_çfu:u:_oJltm.desmn.tínuo ~~quico, reduri-
d.a.Qclp no provisgrig, efêmem...@_indistinto. As mídias, pofC!llto, (?!Qp.Qe!Jl ~im\JJ.am
º-cl~scontír:t:º• o_ inco11~~!1te, ~. sup~i!ic:i~~de_e.sensa.~_que_ i11_çit<!ffi _co,!l~n_ua­
m_en_te ·ªbusca de outras sensações sempre mais fortes e~(: 48-51, no).
G!~lin insiste sobre os efeitos das mídias e afirma que não sabemos, com pre-
cisão, o que elas nos fazem: "parte importante da força das mídias, sua atração e
seu controle permanecem misteriosos" (: 24). Mudou, todavia, a intensificação e
a onipresença _çlsi flux!:> iliEnitado, em que se deve estabelecer não tanto a primazia
do olho<:. gg_gID'.i_do," mas sobretudo ajmbricação...erure.tl~ Nos termos de .Gli:lin,
as_ ~í~~s ~Ierecem.pr.azer~i~c:..diru:o e a promessa de ~ivenc~ar:<:Ie sen0,· 'iP~~~o ·.f$.'i
que nao saibamos verdadeiram~n!e <;.Q.11!.0_c;_Q_qy~en_t!ffi9SJ!9...!!l-ªI dumagens (: . / C::f/
52), bem corno se ainda Je1UQL<3.~i~~n~ ,f
Trata-se de sensação, satisfaçãq, prazer, o que põe em jogo tanto a passividade
quanto a atividade do eu. Embora as mídias de fato permitam ver e ouvir sem
interrupções, no imediato e sem engajamento psíquico, afetivo ou físico, Gitlin
insiste, de modo justo, em que nela "sentimos alguma _cois;i semelhante a uma
unidade e~~dade". Seja qual for a sua diversidade, "as mídias t~m um~ t_ext':!:_ra
comum, mesmo que seja difícil descrcv~: la - real e irreal, presente e ausente, ·con-
ting;nt~- eessenciãC di~ei-tlda e~~i°ve12_ts exc:_iranre._et~4!o_ii· (]f S~a hipótese, /1f}
assim, pr?e.?~.g~~~tido - a ~~entjdo, de sig~~~<l_~~o -c!!_lúiu~se f
nas sensações. Há experiências, mas experimentamos a vida por meio ae sensações
~uas, invasivas, atordoantes e incontroláveis, destituídas de sentido, ou de
certo modo "fugindo do sentido" (: 15). Numa palavra, as mídias deixaram de ser
mediações e se tornaram produtos, fins nelas próprias. Sua instantaneidade - é pre-

A CO N !ll<; .~0 SEN S ÍVEi. 1 2 11


ciso enfarizar esse aspecto - constitui um para<loxo: "como as mídias, que por de-
finição são relações, vínculos, intermediários enrre as coisas, poderiam prometer o
imediaro e, em conseqüência, a condição de não estar ligado, cm rdação?'' (: 128) .

DIVERTIR-SE, ENSURDECER-SE, ISOLAR-SE

Tais observações nos levam a questões profundas concernentes ao human9 e aos


fundamentos da civilização, razão pela qual provocam a angústia da regl essão e
de formas inéditas de barbárie decorrentes das novas possibilidades te ' ológicas.
"O que posso fazer para sobreviver no meio do show?", perguntava- e Illich, ao
argumentar qU'êeSSã questão surgiu em face d~ssidade âeàefinder ãintegri- .
dade e clareza de nossos sentidos - n~f!Xpe.riência_2ensoriq~ - con)i.a as incess~ / .LK
usurpações das multimídias no~~~>'' (Illich, 1995: 288) ./
7 Sobreviver quer dizer não apenas se movimentar, se deslocar, como rambém ter
;-' j a possibilidade de refletir, de ser ativo em seu próprio pensamento. Sobreviver, por-
v>- )' Y'' tanto, é vivenciar sensações difusas, passageiras, intensas, mas também experimentar
J
A 0 ~v . sentimentos - ,duráveis e rofundos - que permitem pensar, distanciar-se e, a partir

'/
.
-( lr daí, perceber ~ reconhe.cer. o º_urro, respeitá-lo. Os .f.l uxos sensoriais contínuos das
~ídias pro\T_oca~ : uma mudança do papel atribuÍdo ao espírito no ato da percepção"
(: 320), mas_Q_ql!~Rode: ..?_CC>_n__t:ec_g, _g):glU2.!'ºblemas surgem, CJ1!.~.ª-P-Erceoção_e .
li:'

. a reflexão_são~ubstituídas12ela s_ensação ilimitad;,-? Cerno diria Georges Balandier, ~


J\ a imersão em imagens e sons, o prazer da sensação e a individualização nos teriam <J •
1 tornado menos saciáveis, menos democratas, menos civilizados (2003, 2005a)? ,/v'
' Há em curso, nas sociedades contemporâneas, um profundo processo de trans- W1i
formação que, ao provocar o esvaziamento da capacidade de atenção, indissociável
da reflexão, ~va ao empobrecimento .~~ interioridas{e e, diversas vezes, rerira da
pessoa seus atributos mais fundamentais {ver o capítulo ro). Pode-se entender as-
sim por que Tocqueville considerou a desatenção um grande perigo, uma ameaça
real e, mesmo, o maior "vício da democracia": ela encoraja ou ao menos permite o
desenvolvimento da incapacidade física de escutar, uma surdez tanto física quanto
psíquica, porém ainda pouco estudada (Haroche, 2006: 287-301).
Na verdade, a _rransformaçã2 nas maneiras de sentir e d~ p_c;~~b~r se acomp~nha
de_ uina.mudança-da-personalidaqe_comemporânea. ~ sociedades de consumo im- -]
P~1!!-.!!!!!!!É!!~I!!º incessante e uma atividade contínua, intensa, em que a pre9Pi-
t~~Q,_o fre~i ~ a urgência em erram a ca acidade de · ul ar e romovem_!. S!!P-erfi- ~
gal_~.:_~nto e~~cl~ens culturais uanto nas relações entre os indivíd~os. _
Ao se preocupar com a personalidade induzida pelos sistemas totalitários, Hannah
Arendt previu a acuidade política de tais quesrões e também seu caráter de ameaça:

212 1 CLAUDINE HAROCHE


" t().... rJi ~h ~ • r:"'(f""~; .U.0.,5 \f
XJ 1\ c·<> 11 .' c -1i1 ;·11u.1 d c\Sn ;Í s1,·11L1.; é ,1 "'''/'nfiá,di1/, 1dc <jlle pod<' Lr:nisfor111C1 r o ho11w 111
'!"" u> nh c·ec·mm ao longo de cinco 111ii :1nos de hi mí ria , a ponto de mrn:í- lo 1rre-
co11h edvd. 'li·aL ::-;c de· m:1Í s do ( jll L 11111:1 snpcrli ci:1licl:idc ha naL poi s é co mo se a
dim emão de pwlundid ack , sem a qual o pc11~;11nemo não pod e cx isLÍr, rncsrno no
nível da invenção técnica, desaparecesse pura e simplesmente (Arendt, 1963: IOI).

A superficialidade, por estimular uma relação apressada e efêmera, evita a rela-


ção co m o outro e leva ao isolamento. A conclusão de Arendt a esse respeito é cla-
ra: "O cu e o mundo, a faculdade d e pensar e de experime ntar, perdem-se ao mes-
mo tempo" , faze ndo surgir homens se m profundidade, interioridade e consciência,
isto é, "homens dos quais não se pode mais compreender a psicologia" (: 177, 229),
O tipo de personalidade d e que elÊtrata aqui é aquele, segundo Adorno e Horkheimer,
induzido pela produção industrial de bens culturais. De fato, ao retraçar a gênese do
declínio _d.o_g~ne nto crítico provocado por essa produção, Adorno e Horkheimer
desZr~veram um modo d e vi a que valoriza a.leve!..a, a _fugacida_de, a contingênç:!_a e a
<!!:1_5ê_11cia d e reflexão: "divertir-se quer dizer estar de aco rdo" (Adorno & Horkheimer,
194+ 153), e suge1:rram, medindo plenamente as conseqüênci as dessa diversão, que:
isso só é possível, se iso larmos a diversão <lo conjunto <lo processo social, se o bruta-
lizarmos sacrificando, no ponco de parrida , a pretensão que toda obra tem, mes mo a
mais insignificante, de refletir o todo [... ]. Divertir-se quer dizer: não pensar em nada
1--l A libcraç'1o promeci<la pela diversão é a liberação <lo pensar(: 153).

Essa espécie de alegria desengajad a, porcadora do recalque d e sentimentos e


acontecimentos negativos, e mesmo de tristezas, encoraja o d esaparecimento de
divergên cias e nega as diferenças, ao ignorar ou afastar a eventualidade de desacor-
dos e d e conflitos mai o res. Oito d e outro modo, da nos permite apreender o e.a- .-"-'_t", . ·-1
ráter am eaçador da homogeneização, -d~- ~onse~~:ck> ~~nformis mo e, sohetudó, / <(
q a eventualidade d a significação_(Castoriadis, 1997). - .--
Nos últimos anos, G auche t esboçou os contornos da personalidade contempo-
rânea, caracterizada, de acordo com ele, por uma "aderência a si", "um desengaja-
m ento da pessoa". Nesses traços, em virtude de sua extensão e de sua intensidade,
descortina-se um fenômeno inédirn (Guachet, 1998), em que o "ser você mesmo"
eq__uivale a não estar obstruído, a poder movimentar-se, c!eslocar--s_~ nsta~en­
te e, dessa forma, apropriar-se e_acumular bens mima circulação incessante. N esses
termos, a perso nalidade -concemporânea, hipermoderna 18 , s~eõe a remíncj~ d~-~
e a indiferença em relação aos outros. Sem engajamento, continuidade e vínculos
- -
in Recomo termo cmprcgaJo t'm colô4 uio co n~agrado ao "indivíduo hipermodern o". Cf. Aubcrt
(1004) .

A CONI HÇÃO SENSÍVE L 1 213


duráveis, o indivíduo contemporAneo é ele mesmo, "à medida que pode ~e des-
prender de todo modelo ou adesão, seja eles quais forem" (: 178j.
Como evoluem e se definem as maneiras de sentir numa sociedade fluida, em
que os modos de funcionamento sensorial, o olho, o ouvido e os fluxos contínuos
P(:~_c:_t~~50 int_eE~9!. de c~(Bauman, 2000)? Poi:_ intermédio de tela~
e qe um_p.rolong;;imeru.cuiaidéia de.....§ÍJfil,m1.9, as_m_~c!i_~~!...~'.!EY_ossíve ~~[>er~­
ências que, produzidas pela constância d ~ s~1~~~çóes destituídas P-rogr~ssivar12_~
de significados~tor-nam-se ~un-dado imediato, fazendo com que nos defrontemos
com novas e~p;;~iênci~;d;-·vÍda e - p-~;.;~a;;~ nto~-·;ambé_m ~-~!1]._qu·~~tó~~ q~~e _4i-
z~m r_:.sp~i~_i. a~~m~~-~-e funcioriarrien~o -~ensoriais elementares: Como escreveu _(
Nférleau Ponty: Pensamos saber o que é sentir, ver, ouvir, mas agora essas palavras ~
são um problema. Somos constrangidos a voltar às próprias experiências d esigm-
das por elas, para defini-las novamente" (Merleau-Ponty, 1945). '
J
Viveríamos, então, uma transformação maior nas formas de percepção? Em suas
pesquisas sobre as imagens, Hans Belting viu na imagem de síntese a produção de
um tipo inédito, "suscetível de instituir uma nova prátic.1. de percepção e ampliar os
critérios pelos quais vinculam()S essa atividade a nosso corpo". De acordo com ele, não
compreendemos mais ou , o que é ainda mai s perigoso ao exercício da sensibilidade de
si e dos outros, não chegamos mais a saber o que t:1z pane de nosso corpo, e isso é algo
que provoca uma sensação ou estado de_a~s~ia de limites e de indiferenciação._1 "-~ ..
/ T~ata-s; de asserções que póe1nTxeque o p-;pel do observador e a subjetividade, \
e podem levar à necessidade de repensar nossas funções se~soriais_, os limites do j
corpo e mesmo o que devemos entender por corpo. Ao avaliar a dimensão dessas )
transformações para o psiquismo, Belting ressaltou que os homens, "toda vez que
foram constrangidos a novas formas de percepção, experimentaram o sentimento j

___________________________
ou o temor de perder as idéias que faziam de si mesmos", ou ainda a própria capa-
cidade de pensar (Belting, 2001: 28). J
/

,.,/

AS METAMORFOSES DO SENSÍVEL

1'
) ---·- - .. -------
Experimentamos hoje outras maneiras de sen_0r? As formas de individualismo con-
- ··-···-·-----·-

19
Merleau Ponty e Lcroi-Gourhan levantam quesrões an;ílogas. mesmo que suas hipóteses e argu-
mentos difiram. "Leroi-Gourhan diz que é necessário um mínimo <le parti cipação para senrir
depois <lc ter afirmado que: a sc.nsibilic.bdc é o primeiro fator unifl c 1dor dos grupos humanos, isto
é, a condição r1 priori de toda i11<lividuação psicossocial. Em outras palavras, de aflrnu que a perda
de participação csré rica é um ameaça absoluta p~tra o futuro da hum anidade como um forma de
vida capaz de dar scn rido :io sm síve l" (Sticglcr, ·w os : 76-7) .

214 1 C LAí l llfNE llARO C llF


temporâneQ supõem o nardsismo, o desengajamento e a frieza, ou estamos diante
de um recuo ou declínio das qualidades sensíveis, de uma transformação ou talvez
de uma destruição das formas elementares da percepção, das funções sensoriais,
em que é preciso (em virtude da onipresença das imagens, do virtual) se interrogar
sobre o declínio do tocar e do tátil? É preciso igualmente interrogar-se sobre as
formas inéditas de estruturação, divisão e fragmentação do eu, as formas radicais
de surdez, cegueira e insensibilidade (: 28)?
·V ~~~1~~){~._'!_<:_!!1.!:ldança permanente, a p_erce.r.~~ aii:.da é ~ssível? O_q~de::
v~~~~~~~<:'.Y5!.Lperce12ção (Bergson, i938)? Ao evitar a percepção das diferenças,
03.._fiuxos se_ns_oriais _C:?~ínu?~ ~vam -~ i.f1~ife!e~J3:gg. Balandier, em sua reflexão so-
bre o sentido ou não da antropologia nos dias de hoje, lembra que ela, "como modo
de conhecimento das culturas e das sociedades, explorou primeiramente o diverso".
Pergunta, então, se o fato de "o homem encontrar-se engajado numa outra história,
transformando continuamente o mundo e a si mesmo", ainda permite "recorrer ao saber
constituído antes para compreender, interpretar e definir as formas inéditas de reali-
zação do humano?" 20 • Em A grande desordem, ele chama a atenção para a necessidade
de "evitar os efeitos desastrosos de uma ameaça àquilo que esteve na origem do co-
mércio sensível com o mundo: a espacialidade, a temporalidade, a materialidade e o
viver na riquGa de sua diversidade" (Balandier, 2005a: 63-4).
Constatamos que os trabalhos sobre os modos de funcionamento sensorial têm,
até o momento, focado sobretudo a visão e a audição, e deixado de lado o tato. 21
Parece-nos importante que nos debrucemos novamente sobre o papel do tátil para j
o pensamento e que lembremos que o tato, contrariamente à indiferença e ao in-
sensível, garante, protege e possibilita o desenvolvimento e a presença do vínculo e f
do afeto no pensamento. De forma notável, Balandier soube sintetizar o paradoxo ('
;;;ntemporãneo de moaos de exi ê c"a qu_0.L_t_~umem a um~lidão imóvel em
face de telas e relações efêmeras:
O que poderia permaneccr:-como outrora, nos termos da necessidade de intensidade
de uma minoria se tornou uma maneira de estar presente nestes tempos, muito mo-
derna portanto; wna forma de existir coletivamente no interior de uma configuração fiW>
de artifícios cm que as máguinas pressionam a um máximo de performance. Trata-se
de viver o movimento pelo corpo, ~om a presença real dos outros num' grupo de afi-
nidades ou reunião, no entanto seu avesso é vivido diante de máquinas informáticas,
numa imóvel solidão(: 37).

'" l\a landicr sublinha as dúvidas e paradoxos que assolam a inteligibilidade do mundo e os com-
po rtame ntos. "A concepção <lo que caracteriza o humano se encontra turvada; nós introduzimos
continuamente a difere nça em nós mesmos penetrando nele" (2003: 252) .
. , () li vro de Ami c u sobre o car:í tcr central do tato é uma exce.s:_ão (Anzieu, r995).
\ \:v c.lu..:L liVV'~·..z ...v.
J'Jv,v--t:<>Vl. ~_z_~
,
. ' j:;; '~J
.a . · . 1)-~ ""°I
~-">--'U, • Q CÁfa'"')
I 2.15
A CON DI Ç:\O SEN S ÍVE L 6
CONCLUSÃO
EXPERIMENTAR MANEIRAS INÉDITAS DE SENTIR

/ ····~

É preciso, hoje, conceder ao lciÕVlffi~apel decisivo tanto nos IJlQdos de per~'c;­


bt.U.~tir quanto nos Rrocessos de P:eps_am~. Q _fU e a p.r_óptia idéia d~- eu, sua\
concepção como lugar e condição de síntese, estão atualment_t:. em questão. Q _fato )
d~-~D.§:'!!__~~~e._a ~e p~rder. ~_ fluxo das sensa ões. ()_~-~~..!_~iodo pensamento é
diffcil~l!Ic~.?~ºs~~.:. quando não há duraçã~, profundidade, o~~~ ~
limites e a~.)ali!-~~Q!.!!m!_çtl}~S, qu_ando faltam os momentos de pa~da, ~~
pausa. E possível ao exercício da sensibil.idad.~ e go pensamento subsistir num eu .
sem imites' .. ... . ····- · --- ----:: · ·-·---~
- Co;;fr~:C~das ::~ uma continuidade nas sensações, privadas da alternância
entre i~Eupção e fluxo, entre mobilidade e imobilidage no Q~~.c:.~sso de ensar,
~s fo1:::1asd~ perceb~e de senti~ ~m~rgem, d~s quais buscamos traçar aqui~~
Q!.ÍgIT!L!lª ffiõaegüdá~e, a fim de melhormpreender se~_ e_früos _!l__~ sociedades
contemporâneas. De fato, a int'!i ão SLJQÕeJ:_c;:rto tiQo de relação com o es aço e o
",1\,, ~ naj _ercep_ç}o da realidade. Ora, as condições do exercício contemp~rân~
)·•" da percepção antecipam o funcionamento e mesmo a existência da própria idéia
de realidade. É possível, psíquica e sensorialmente, fazer a economia de uma repre-
sentação da realidade, da própria idéia de realidade?
Retomam-sc::~'!,!!.i o_s.Je~s de Berg~<.>!}_J>ar_a I./ucidar a~ cq_ndi_~ula_p~rc~p_ç_ão
nos fl_!!~Os_l>ensori ais: se p~rceber é tender a uma iqwbili:!'.ação ll!_oment~!!_ea, como
perceber, quando a sens~ção do que se move é permane.nte? Pode-se, na condição
de sujeito, expressar uma vontade, uma escolha, uma hesitação, uma recusa, em
outras palavras, agir no movimento ininterrupto, na fluidez? Nos dias de hoje, agir
corresponderia a deslocar-se de modo incessante, tentar se adaptar ao movimento
contínuo , submeter-se a ele, o que expressaria, de acordo com Bauman, a especi-
ficidade das elites contemporâneas. Pock-~$_.'.ll_n.da, agir e pensar, subtraindo-se
@ d_o . ri_rn_~ impos.~ . ref.L!!!a n<!9_t!.i:!la~çd ~ r;i_ç-ª. inç_ontrolável? Como parar, meditar,

1 2 19
refletir, temporizar nas soc iedad es tornadas fl exívl'is, sem fronr eir.is exrniorl's o u
limires inrernos; perceber estados disti111os , obscrv;í-los e desc 1Tvt·- los nos flu xos
sensoriais e de informação ininrerruptos das sociedad es "líquidas") ·10m,1dos por
um movimento constante, tenderíamos a experimentar apenas impressões difusas
e voláteis, engolfados numa sensação de mudança incessante. O ritmo das trans-
formações econômicas, tecnológicas e sociais trava intenções e projetos de cada
um de nós, reduzindo-nos ao papel de atores passivos de nossa própria existência
(Simondon, 1958; Haroche, 2006).
Diversos pensadores localizaram no movimento uma questão fundamental para
a existência e a estabilidade do eu, assim como para a possibilidade de representá-
lo. Muitos entre esses pensadores se ocuparam também da consciência e de seu
estreitamento. Presentes desde os anos 1930, essas interrogações foram decuplica-
das pela intensificação dos fluxos sensoriais e de informação dos meios de comu-
nicação onipresentes. O movimento contínuo acarreta não só o estreitamento da
consciência, como também a exteriorização da esfera interior, concomitames a
uma fragmentação do eµ _e a uma esp.acialização.da.e.ic_peri.ê.Qcia: uma relação com
o tempo que parece apagar_:s_t:, uma vinculação com o espaç~i lifi1it~do, mas vinutl-
se acompanham do sentimento d·~ -;m e!11.Pº~.r~CifI!efl~ interior e _da extens~o
ilimitada da sensorialidade'. Em 1945, Merleau-Ponty afirmou q_ue a subjetividacie
decorria de uma constataÇão empírica ancorada na sensorialidade: "Disse que há
aí um homem, e não um manequim, assim como vejo que ali está a mesa, e não
uma perspectiva ou aparência de mesa. É verdade que eu não a reconheceria, se
eu mesmo não fosse um homem; se eu não tivesse (ou não acreditasse ter comigo
mesmo) o contato absoluto com o pensamento" (Merleau-Ponty, 1945: 217).
Estaria essa constatação fundamentada na persistência do modo de ser do sujeito,
que teria mudado em profundidade. As formas de inteligibilidade e de percepção do ]
real apresentadas em termos diferentes induzem efeitos psíquicos importantes nos
funcionamentos da subjetividade. Haveria hoje, então, outras maneiras de sentir,
perceber, pensar e ser, que não dependessem mais da existência de um eu, seja este
uma idéia, uma representação, ou uma necessidade prática ou psíquica? A releitura
dos livros de Félix .~vaisson e Henri BergsQn_Qfere_ce__l!fl1ll cg_ntribui ão decisva
para a compr~e~são do ~ont_e1I1por~neo: ambos se dedicaram ao esrud_o d~ fl~os
e examinara.m se~__funcion_~l}~ suscetível de esclarecer as evoluções psíquicas
mãis recentes. Considera-se Bergson, de certo modo, um pensador cuja obra serve
d~ con~, pois ele teria conseguido elucidar os funcionamentos fundamentais _da
modernidade, priyilegim1do_ as categQJias. elemenwes d~-ternpQ...e_e~fiaç.o_em....a.ç.ão
na percepção e no pensaf!l~Q.. individu:P. Assim, teria esclarecido a fluidez dos

1
Ver, sobretudo, os capítulos 7, 9, roe 11.

Z20 j CLA UDINE HAROCHE


m~ecfi11JÍ5·<JiCl>~ çoniempo r.âit,eo>~ q ue l'"'k in pro hkm.ni 1ar .1 ljll L' ' r.-tn du c' \L Bcr~sun
!(>i k 1 .>cio .1 1·,; rrnlll.ir 11 n ilrn do ,s,:uiio ')( l l( , num umrnrn por ,-'"no di k rcnct' dus
ponto :"I dv , .i ..,r;1 l ·1c11 rd!Lo, ll..'Ci1Íd), S <1 L i ~1l t ' p s i~.: ológi(o . intcrrn g~ u,-c-)t' S qut· rcto11i;1111
parádmt:lllê as m:ílis;:s ,]é i'vhint' de Biran ê Ravaisson: ele :iv~ifo CO!ll precis:lo o
papeterífüpórtância rai1fõ dê /Vlemó1ú1 sobi·e a injli-;ri;;ia do hdbito 1111 j(1C11ldade de
pe11s11r. darado de 1802, e a obra que J3:avaisson dedica_ a ?._h~íbito, em 1838.
Em rimeiro lugar, Maine de Biran, que for-;;m dos ci"rne ifõSã'e x licitar e a
enfatizar-o papel ativo do eu -~, a;~im, a exercer-p-;Zfunda e _ersistente influência:
"Estou ~bsolurainenre certo de que o ato que sinr; ou percebo como meu é, de
fato, produzido por mim, e não por outro ser"- Ele distingue "a consciência ou
sentimento do movimento voluntário" de automatismos em ação nos movimentos,
sem deixar de ;:;crescentar que se trata aí de um sentimento difuso e, no entanto,
decisivo, "um conhecimento náo objetivo de si" (M:1inc de Biran, 1807)2.
Cerca de trl!ita anoJ_ de ois, Ravai?SO!!._abordaria um conjunto de questões, ~
cerne das g u~s figuram o movimento, a mudança, a_p ermanência, a duração, todas
e!~ ccnrrais nos textos de Bergson. Oferece uma [1Íti<~~~c:sc_riç§9_.c!_as condi ~e

--------
emergência da consciência, do eu, assim como de seus modos de funcionamento.
. - ·- ------------
Ele traz à tona uma tendência a permanecer que concerne tanto ao movimento, à
mudança, quanto à imobilidade; "a tendência a persistir em sua maneira de ser", a
existir: na duração (Ravaisson, 1838: 32) . Em seguida, aborda a questão do tempo,
desraca seu c:idter ininterrupto, do qual infere o eu como um imperativo funcio-
nal, uma necessidade. "Ao longo do tempo, tudo passa, nada permanece. Como
medir esse fluxo não interrompido e essa difusão ilimitada, a não ser por meio de
alguma coisa que não passe, mas subsista e dure? E o que seria isso, se não eu?"Ele,
ent:ío, detém-se n_~fu ~1cio!:Ja1~ç_ms2 esp.:i_cial_d~l_ll;1l de_duz, de n_lodo análogo~
a fonte do definido, do um, é o eu. Ao observar que, "no indefinido do espaço, não f·Í '
hj nada-dê-definidõ, ~~- de_ín_!9i'._s>: ,_acrescenta: "não é" nessa difusão sem for~a
e sem limite que encontro a unidade'', para concluir que é "de miill, p-o-rtãnto, que
eu a extraio" (: 54-5). -
- De todo- modo, Ra'{il_i5,SilJJ.j Jurnina os mecanismos contemporâneos da per_c;ep-
Ç.iÍQLao examinar as condições de diminuição da sensibilidade e observar o exercício
da vontade: "A conrínua excitação sensorial diminui a sensibilidade" , a capacidade tf)
de vontad~ e de discernimento, que, "na sensibilidade, na atividade, desenvolve-se
[... ], por meio da continuidade ou da repetição, uma espécie de atividade obscura
que antecipa, cada vez mais, o querer e, desse modo, a impressão dos objetos
exteriores" (: 71). Ravaisson, então, delonga-se nesse conhecimento indistinto e

' Trara-se de um modo de conhecimento que seria retomado pelos fenomenólogos dos anos r930
(Fedem, 1952; Straus, 1941; Schilder, 1950)

A CONDIÇÃO SENSÍVEL 1 221


detalha os mecanismos que atuam nele, ou seja, as condições e as vias que levam
até ele. Assim, quando enfatiza o papel da repetição e, sobretudo, de uma repetição
contínua, da ocorrência de uma sensação permanente e de seus efeitos sobre os
sentimentos, insiste numa dimensão crucial dos modos de funcionamento con-
temporâneos: essa st;nsação, por levar à sua mobilidade, atenua-os, abranda-os,
algo que ele resume nesta fórmula extremamente concisa: "~continuidade ou a
repetição diminui a sensibilidade; ela exalta a mobilidade" (: 74- -5 ).
- , D~- que m~do~~sa mobilidade influi no eu? Mais__QQ.qJ,U:S eumana<iLpelo eu,
ela se impõe a ele, ativa-o, esgota-o, apaga-o por meio de urna espécie de aumento
de _sua hiper~tividade. Ravaisson Pe:.!:1!1Lt:.~~reender a importância do corp_~_.90
movimen i:õ;-JOhâSito, do automatismo, assim como a minoração da perso nalida-
de: "É cada vez mais distantes do âmbito da personalidade[ ... ], nos órgãos imedia-
tos-dos movimentos, que se form am as tendências que compõem o hábito"(: 79) .
Em sua obra, Bergson dá continuidade a alguns pontos abordados por Ravais-
son. Observa o movimento, precisa as condições, os efeitos e a natureza da mu-
dança: a realidade é movente, não há clareza na delimitação de seus es tados. Disso
infere q~~. "a bem- dize-i ,-·)ãmais11ãílnooíríc!ade ~rdadcii-;:-sepor!ssocruendemos
ausência de movimento. O movimento é a própria rea lidade, e o que chamamos
de imobilidade, um determinado estado de coisas" (Bergson, 1938: 159). Bergson
também distingue na imobilidade, na estabilidade, uma necessidade prática, fun -
cional. "Nossa necessidade de viver e de agir nos levou a estreitar e a esvaziar" (:
151) a percepção da realidade: o caráter funcional desse estreitamento se deve à
necessidade de estabelecer limites e de reconhecê-los. Ponto crucial, uma vez que
,º~~ - no âmago dos modos de funcion amento das sociedades con-
temporâneas - em_perra a percepção. Ele observa ainda que "a mudança é contínua
) f em nós e também ~;~~oisas"; o~ada um de nós chama de "eu" e de uma "coisa"
~ 1/ são tomados numa mudança ininterrupta, em que ambos encontram sua razão de
IJI / . ser. Disso conclui que "nossa própria pessoa é rrnívrl" (: 162).
A imobilidade, no entanto, é condição e forma de apreensão do real, ele sua
inteligência, o que Bergson explica de duas maneiras: ele é, a princípio, co ndição
da ação intencional , razão pela qual "nós, na verdade, erigimo-la [... ] e ve mos no
movimento alguma coisa que a ela se acrescenta"(: 159- 60). A segunda maneira a
toma como uma resposta à angústia difusa, profunda, impalpável, suscitada pela
mudança, pelo medo do desconhecido, do inapreensível e da ausência de senti-
do: "Temos, instintivamente, medo das dificuldades que são suscitadas em nosso !
pensamento pela visão do movimento, no que nele há de movente" (: 161). São )
necessá rios pontos fi xos, balizas, limites, ce rto tipo de estabilidade, regularidade,
para que o pensamento e a existência se ancorem no mundo, no real. É dessa
maneira, ali ás, que Bergson analisa a tendência à esquernarização: "Co nsid eramos
a instabilidade radical, e a fixidez, a imobilidade, absolutas". A esse respeito, pro- ~i
põe concepções abstratas, "tomadas externamente à continuidade da mudança real,
abstrações que, em seguida, o espírito hipostasia em estados múltiplos, de um lado,
e em coisas ou substâncias, de outro" (: 174).
i
J
Bergson chega assim à questão dos estados e de seus modos de funcionamento. - ]
A percepção da mudança nã.o é con.tínu~, ~ois requer int~rrupções, et~pa.~; supõe
estados, mesmo que estes seiam mais ps1qu1cos do que fistcamente reais. Consta- -
~';==,.

to, e_m. primeiro lugar, queyasso de estad~stado", como se cada um deles fosse
delimitad.o com clareza. "Insisto que mudo, mas a mudança parece-me residir na
passagem de um estado para o seguinte" (Bergson, 1941: 1). Mesmo assim, ao ob-
servar os modos de existência do sujeito, afirma: "Não há afecção, nem represen-
tação, nem volição que permaneça imutável [... ] na verdade, muda-se sem cessar
[, e o] pró rio estado já é uma mudança" (: 2). Ao _i:1asso que Ravaisson isolou a
p~~1:1~:1-~ncia m~nça,B~{g~()_f!
na e11~~~~·
r.-;;-;;:Iça () a não-delimitaç_ão, a
CQl)tinuicÍaCÍe ck>s estados do eu, Q..9!-1...(:_0 Ley~ à_i_4~ia cje dw3 ão. Desse modo, che-
ti
ga a d,escf~~ nossa ex"Grênd-:i psicológica como "uma massa fluida", "uma zona
mgy_~j_ç3 ~-e _::on_ipreende ~ud;; ~ -q~-e sentimos, p~!!_Sª.!!!Q§.,_Q.!!eremos; tud~-~
sq_rn_os_ 1).!!!11 A!!i.e!min-;;fo rnÕ menro" : 3-y:-cp;opõe uma definição muito a~12la
qa noção de_es_:a~-~- mais ainda,_4 a fl_uidez_c:_ntr~ estados,-~~j;;;~~;~- pouco/'
d~semboca numa visão_d<I: re~i~:ic.!<::__ el}!~ndida...c.omo_fluidez_gen_~alizad-ª..
Após esse passo, ele examin_a a ~-c~si~a~~- Q.@!iç;t. que se situa além <!_a Eecessi-
4ª<;l~uica ~fetiya de i~obilidade: "Precisamos de imob_iJicJiefe'',- diz em con-
ferê ncia proferida em Oxford em r9n (: 159). Bergson aprofunda a natureza dessa
necessidade, ao afirmar que ~delimitação é necessária à própria possibilidade s!_e re-
P-1:.~~entação, de conceituação, de pe~samenro: O conhecimento só é possível quan-
do ap;:_eendldQ°coroQ_u1nes_t_icfo, ~~;;- rep~s~tação cfa reãliâade;!ün-eiiêa~~;~n-
to: a mudança contfnu9-, a fluidez~ -prev!ne, e!l!rava e mesmõ interdita o exercício -~
ck>__co1~_l__eci_r11_ç~. Ao se d~;~r nas Zo~diÇõ~s qu~ permite~ o; fu;;-~i~~~~entos
perceptivos, os mecanismos de entendimento, o que Bergson oferece, na verdade, é
uma visão de conjunto da solidificação das coisas, dos estados e dos seres, no mes-
mo instante em que reconhece seu caráter movente, fluido: "N.2_SS-ª..P-~s.ão tende ~
a solidificar em ima ens descontínuas a continuidade fluida do real" (Bergson 1941: j'1"'
302). Ele oferece, portanto, uma abordagem inovadora, pois estabelece que "a coisa
resulta de uma solidificação operada por nosso entendimento", para concluir que
"não há coisas (substâncias) , mas apenas ações (estados múltiplos)", que incluem
a noção de eu (Bergson 1941: 249). Ao opor automatismo inconsciente e escolha
consciente, ações que se sofre e outras que se quer, revela no automatismo uma
"consciência" adormecida: ele entrevê o despertar dessa consciência em que "renasce
a possibilidade de uma escolha" (: 262).

:\ CON l'1<.,:,\ n SF.N~ÍVEL ! 223


Chega, enfim,_à q.u.esráo_do...e.u_qlle_smre.,_da_.sensib.ilidade, por meio de uma
~~Qg@ da...dpr: par!l 'Llle_haja dor, é preciso u121 sujeiro çªpaz de_se ntir. Scpsíy~l
é o ~er capaz_de...sofrer ou exp.eüme11_ta.qu:az..er, _'.l legria; e rambém a capacidacl_~de
imaginar, de pt:_~eb~ (!_prazer, bem CQ!ILo_o sofrime~to dQ_O_!!f.ro.
-H~-;- em sua abordagem da capacidade sensível, c\'.i sensibilidade do ser huma-
no para com o ourro, quesrõeSem.q ue ~ -~esifio civilizacional tem im ortância
considerável. Ele lembra que "não há percepção que não possa, por um acréscimo
d'ããÇro-&seu ~~o__no_sso_i:orpo, rornar-se afÇfÇ-ªº e, e~p a~ticular,dor.
ÀSsim, passa-se insensivelmente do contato com a agulha à pi~da. De modo in-
verso, a dor decrescente coincide, pouco a pouco, com a percepção de sua causa e
se exterioriza, por assim dizer, numa representação. Ao que parece, há diferença de
grau, e não de natureza, entre a afecção e a percepção" (Bergson, 1939: 5:J).
Bergson privilegia, portanto, algo que se manifesta de modo agudo e inédiro na
extensão dos funcionamentos automáticos contemporâneos, nos mecanismos do
pensamento, e que diz respeito ao papel desempenhado pelo sujeito no exercício
deste. Dito de outro modo, ele enfatiza que a afecção está "intimamente ligada" à
existência pessoal, perguntando-se: "o que seria uma dor separada do sujeito que
a experimenta?" (: 53-54; Honneth, 1996), para, ao que i:udo indica, concluir que
isso não se verifica. A dor sem sujeito não existe, é impensável.
Tais questões ainda são extremamente relevantes para compreender a fluidez
sem limites das sociedades contemporâneas. "Esforcemo-nos para perceber a mu-
dança tal como ela é, em sua indivisibilidade natural" (Bergson, 1938: 174). Tal
indivisibilidade não põe novamente em questão a próJJria possibilidade de cate-
gorização, de classificação? Basta dizer que o eu nasce de uma necessidade práti-
ca, funcional ou de organização exterior? Ou da percepção de realidade, de uma
necessidade psíquica? Não se pode extrair do que Berg,on disse, para além da
necessidade de sentido, a necessidade fundamental de estabilidade psicológica, de
continuidade subjetiva?
Ao prolongar as interrogações de Ravaisson e de Bergson, alguns trabalhos re-
centes se dedicaram de maneira importante às perturbações psíquicas induzidas
pela flexibilidade e pela fluidez do mundo contemporâneo. Zygmunr Bauman se
dedicou às formas de inscrição no espaço fluido de um mundo globalizado, obser-
vando que "as localidades perdem, pouco a pouco, a capacidade de produzir e de
tratar da significação; dependem, cada vez mais, de operações que lhes escapam
compleramente e estão no cerne da produção e da inrcrprcraçao do sentido". Em
suas palavras, "os atuais centros de produção de sentido e de valor esrão <lcsrerriro-
rializados" (Bauman, 1998: 9-10).
Richard Sennett, por sua vez, ressaira uma necessidade de fixid ez e de baliza-
mento análoga à de Bergson: as pesquisas que empreendeu ao longo dos últimos

224 1 CLAUDINE HAROCHE


dez anos o kvciram a notar a incerteza d os indivíduos quanto ao fi1turo , bem co rno
a enfatiz.u qu•: "dcs precisam, so bretudo , de urna ancoragem m eneai e emocional"
(~;rnnnr, 200+ 148). Isso o le vo u a se dedicar aos cfciros das org;anizai,:ócs Aexíveis
e d e curto pnzo, a fim de estudar suas conseqüências sobre o s atctos: as necessida-
des d e se inscrever na cluraçáo, de continuidade, de ter importância para os outros,
de ter um lugar, de ser reconhecido já náo podem mais ser satisfeitas. Sennetr,
enráo, resume o estado em que o suj eiro se encontra hoje cm duas form as que en-
fatizam sua passividade ou, ao co ntrário, seu caráter ativo: os indivíduos perderam
a iniciativa motora, psicológica, privando-se d e uma necessidade fundamental que
se deve "ao sentimenro de ser um agente" Oli ao faro de "pensar por si mesmo" (:
148) . A partir disso, ele se pergl!nta pela apreensáo do efeito do consumo sobre as
próprias condições do pensamenco. Nesse contexto, diferencia e opõe as atividades
automáticas , as operações mecânicas em açáo no consumo, daquelas que requerem
a refl exáo, o pensa mento, a autonomia, ou seja, um determinado tipo de relação
com o obj eto, o interesse dedicado ao trabalho, a tarefa bem feita, o prazer que se
pode ter nisso, em suma, tudo o que ele designa com a expressáo "pensar por si só".
De acordo com el e, o consumo náo coexistiria com o fato de pensar por si só, "de
procurar compreender o que faz" o bom anesáo. "Este quer co mpreender por que
um pedaço d e madeira ou um recurso informático náo resolvem o problema; por
isso , o problema se roma açambarcante e suscita d edicaçáo objetiva. Esse ideal se
realiza num ofício tradicion al como a fabricação de instrumentos musicais, mas
tamb ém num contexto mais mod erno, como um laboratório científico. É também
o caso em uma empresa bem gerida: longe de querer fug ir dos problemas, presta-se
atenção neles" (: 138).
Por fim, os trabalhos de Georges Balandier, aos <juai s nos referimos longamente
na análise da "transformação das maneiras de sentir", estáo, sem dúvida, entre
aqueles qu e foram mais longe no exame das conseqüências desses modos de fun-
cionamento: tendo antecipado o declínio e o apagamento de antigas categorias, de
classificações tradicionais, Balandier evocou o caráter crucial de tais questões em
rnuiros escriros e, bem recentemente, num texro dedicado à "desapariçáo" (Balan-
dier, 1985: cap. 6). Mais do qu e reformular ou deslocar, ele identifica nessas ques-
tões radicai s uma perrurbaçáo importante, maior, um apagamento, um sumiço
das categorias. C om efe ito, lembra que, embora a mobilidade seja urna dimensáo
intrínseca à mídia, a multiplicação e a extensáo dos domínios desta fazem com que
os efeitos de realidade rendam a se tornar roda a realidade, num crescente estado
de indistirn,::io (: 210). Desse modo, observa tJLLC :t ascensão do virtual, ao contri-
buir para a instauraçáo de uma indisrinçáo generalizada, leva ao questionamento
das categorias em que percebemos e pensamos o mundo; seus efeiros psíquicos
no indivíduo sáo suscetíveis d e atingir, de fazer vacilar a própria noçáo de eu.

A CON DI ÇÃO SENSÍVE L 1 225


"O mundo das imagens [.. ;] o mundo das máquinas informáticas, gerador de cria-
ções virtuais e de substitutos virtuais reais da realidade, completam-se. Seus efeitos
se acrescentam e se reforçam mutuamente, apagam as evidências, produzem, sem
interrupção, um universo da percepção e da interpretação em movimento instável.
Dessa forma criam a dúvida ... e fortalecem a desconfiança" (: 2rn).
Balandier insiste também no caráter automático e mecânico dessas atividades
que não requerem dos indivíduos conhecimento aprofundado e consciente. "Man-
têm sua expansão na ignorância do que eles próprios se tornam, uma ignorância
percebida como impossibilidade de saber e risco global oculto". É isso que o leva
a interrogar as categorias, os limites nos quais podemos perceber, bem como con-
cluir que, doravante, somos confrontados menos com "a passagem para um novo
período de uma história co11tínua, e mais com a passagem para tempos outros,
supermodernos, que engendram o inédito e constituem a mudança permaneme
num novo estado das coisas"(: 234, 240).
Pode-se sentir e, ao mesmo tempo, perceber, experimentar, pensar no movimen-
to contínuo e no ilimitado, na instantaneidade e na imediatez? O pensamento não
supõe a reflexão, a argumentação? Não necessitamos de estabilidade, sem que isso
corresponda !i fixid("/., !t Ímlll:tbilídadc ou !t crnnidadc? I~ preciso rcprnsar o papel
da sensorialidade e da percepção, dar outro lugar à corporeidade, ao movimento,
à mobilidade, à mudança nos processos de pensamento. Mas até onde se podem
conceber sensações e sentimentos sem eu? Será que eles podem adquirir sentido?
A duração, a estabilidade, o sentimento de continuidade, a confiança e a pro-
fundidade constituem necessidades psíquicas fundamentais que tendem, cada vez
mais, a se ausentar: constituintes de nossa humanidade, como levá-las em conta,
satisfazê-las, se, como disse Bergson, "tudo passa, nada existe"? É possível descartar
a ancoragem espaciotemporal? A que se destinaria, então, a ancoragem psíquica?
As classificações, as categorias, a própria noção de classificação, de categoria da per-
cepção, podem ser pensadas na fluidez? A que modos de existência, a que estados,
a que condição as metamorfoses do sensível nos destinam nas sociedades fluidas?

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