HAN, Byung-Chul. A Crise Da Narração - 20240809 - 0001

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BYUNG.

CHUL HAN
A crise da narração

Tradução de Daniel Guilhermino


Dados Internacionais de catalogação na publicação (clp)
(Câmara Brasileira do Livro, SR Brasil)

Han, Byung-Chul
A crise da narra çáo I Byung-chul Han ; tradução
de Daniel Guilhermino. - petropolis, RI : voz es,2023.

Título original: Die krise der narration

1" reimpressão, 2024.

ISBN 97 8_85 _326_6s69 _0

1. Filosofra z.Informação 3. Narração (Retórica)

I
4. Narrativas I. Título.

23-162839 cDD_ 100


EDITORA
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100 YOZES
Elaine de Freitas Leite Petrópolis
- Bibliotecária - cRB glg4l5
lrt

@ Matthes & Seitz Berlin Direitos de publicação em


Verlag, Berlin,2023. língua portuguesa - Brasil:
2023, Editora Vozes Ltda.
Tradução do original em Rua Frei Luís, 100
alemão intitulado 25689-900 Petrópolis, RJ
Die Krise der Narration www.vozes.com.br
Brasil

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D iagram açao : Monique Rodrigues


Revisão grafica: Luciana Quintão de Moraes
Capa: Editora Yozes

ISBN 978-85-326-6569-0 (Brasil)


ISBN 978-3-751 8-0564-3 (Âlemanha)

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

I
Sumário

I't tltitio,9
I )rr narração à informação, 17

l'olrrcza de experiêrrcia, 31

r\ vicla narrada, 43
A vida desnuda, 59

l)csencantamento do mundo, 69

I )o choque ao like, gl
'li'oria como narração, l0l
Narração como cura, 111
( llrnunidade narrativa, l2l
Storyselling, 129 llllllll
iirr

Prefácio

Atualmente, fala-se muito em narrativas.


l'irrirtloxalmente, o uso inflacionário de narra-
llvas revela uma crise narrativa. Em meio a um
lrirrrrlhento storytelling,há um vácuo narrativo
(f uc se manifesta como um vazio de sentido e

t orrro desorientação. Nem o storytelling nem a


I:,
guinada narrativa serão capazes de ocasionar llil
t:'
iltl
lill
o ratorno da narraçao. A tematização específi- lirr
llil
cil de um objeto e sua transformação em um iilt
objeto de pesquisa popular pressupõe uma
profunda alienaçao. O forte apelo às narrativas
irponta para sua disfunçao.
Quando as narrações nos ancoravam no
ser, ou seja, quando nos atribuíam um lugar
c transformavam o ser-no-mundo em um es-

tar-em-casa, dando à vida significado, apoio e

orientação, isto é, quando a própria vida era


vmnarrar, não se falava em storytelling ou em

I
narrativas. Esses conceitos são usados
de modo
t'svaziada de significado. Os dias festi-
inflacionário justamente quando as narrativas
rt'ligi«rsos são o ponto alto e de destaque de
já perderam sua força originária, sua
gravita_
nnrração. Sem narração não há festa, não
ção, seu mistério, e mesmo sua magia.
euan_ festiva, não há sentimento de festivi-
do sua construção é percebida, elas perdem seu
na Íorma de um senso intensificado de
mo,4nento interno de verdade. Elas próprias
são
u.r', nlrls apenas trabalho e lazer, produção e
percebidas como contingentes, como
substi_
r on§ur]'ro. Na época pós-narrativa, as festas
tuíveis e mutáveis. Não são mais vinculantes
r.rlo comercializadas como eventos e espetácu-
ou unificadoras. Não mais nos ancoram
no
hrs.'larnbém os rituais são práticas narrativas.
ser. Apesar do atual alarde sobre as
narrativas,
lilcs cstão sempre inseridos em um contexto
vivemos em uma época pós_narrativa.A
cons_
rlc narração. Como técnicas simbólicas de
ciência narrativa, que emana da constituição
rrbrigo, eles transformam o ser-no-mundo em
supostamente narrativa do cérebro humano,

cstar-em-casa.
é possível em uma época pós_narrativa,
uma
Uma narração que modifica e que desve-
época estrarrha ao poder de vinculaçao
caracte_
lir um mundo não é posta arbitrariamente no
rístico da narrativa.
rnundo por uma única pessoa. Na verdade, ela
A religião é uma típica narração com um
deve seu surgimento a um processo complexo
momento interno de verdade. Ela narraa
con-
no qual diferentes forças e atores estão envol-
tingência, evitando-a. A religião cristã
é uma
vidos. Em última análise, ela é a expressão da
meta-narração que abrange cada canto
da vida
tonalidade afetiva de uma época. Essas narra-
e a ancora no ser. O próprio tempo
se torna
narrativamente carregado. O calendário ções com um momento interno de verdade se
cris_
opôem às narrativas diluídas e substituíveis que
tão faz com que cada dia pareça significativo.
se tornaram contingentes, quais sejam, as micro-
Na época pós-narrativa, este calendário
é des_
narrativas do presente que carecem de qualquer
narrativizado e transformado em uma simples
gravidade, de qualquer momento de verdade.
10
11

I
A narração é uma forma de desfecho. EIa Consumidores são solitá-
"sto-
constrói uma ordem fechada que cria signi- lirrntatn uma comunidade' Os
ficado e identidade. Na modernidade tardia, plittitlirrmas sociais náo são capazes de

que se caracteriza pela abertura e pela dissolu- o váctto narrativo. EIes nada mais são
,rlll(]l)l'()lll()çiles pornográÍlcas ou anún-
ção de fronteiras, as formas de conclusão e de
|,ost.lr', ctrrtir e compartilhar como
práti-
encerramento vão sendo cadavez mais demoli-
, ,n\utllistils intensificam a crise narrativa'
das. Ao mesmo tempo, em face da crescente per-
.\lr.rvt's tl,o storytelling, o capitalismo se
missividade, a necessidade de formas narrativas
da narração. Ele a submete ao con-
de desfecho está aumentando. As narrativas
,lllll() O srorytelling produz narrações na for-
populistas, nacionalistas, extremistas de di-
,,t,t ,1,' consumo. Com sua ajuda, os produtos
reita ou tribais, inclusive as narrativas conspi- prometem
lr, ,lttl (itrrcgaclos de emoçóes' Eles
ratórias, atendem a essa necessidade. Elas sào
rrrr'ttr-ias especiais' E assirn que comPramos'
aceitas como propostas de sentido e identidade.
r'f ',lrl(',,I()s e consumimos narrativas e emoçoes'
Entretanto, na era pós-narrativa, com a cres- .scl/. Storytelling é Storyselling'
',1,11 1'.s
cente experiência da contingência, as narrati- Narração e informação são forças oPostas'
da
vas não revelam qualquer poder de vinculação. ,'\s irtÍirrrnaçÓes intensificam a experiência
As narrações criam uma comunidade. O ( ()ntitrgência, enquanto a narração a
reduz' na

rrrt'tlitlrr em que transforma o acaso em


storytelling, por sua vez, só cria uma commu- necessi-

,l,rrlc. h-alta, às informaçôes, a solidez do


nity na forma de mercadoria. A community ser'
e llltl

formada por consumidores. Nenhum story- ( ,onttt observa Niklas Luhman de forma pers-
'A cosmologia da informação e uma
telling seria capaz de reacender a fogueira em picaz:
torno da qual as pessoas se reúnem e narram t osrrrologia não do ser, mas da
contingência"r'

histórias umas às outras. A fogueira já foi


extinta faz tempo. Ela está sendo substituída 1 LUHMAN, N. Entscheidungen in der lnformotíonsge'
teiscn oÍt. Dispon ível em : https://www fen'ch/texte/gast-
pela tela digital que isola as pessoas na forma luhmann-informationsgesellschaft'htm

13
12
I
lilil ll

Ser e inÍarmação
sao mutuamenfu
excludentes. niu'rar)ros cada vez menos histórias
Assim, é inerente à
sociedade da informaçao Irrr oulros na nossa vida cotidiana. A
uma carência de ser,
um esquecimento do transformada em troca de in-
ser.
Á informação é aditiva e cumulativa.
Ela não faz desaparecer a narração de his-
é portadora de sentido, 'lirrrrbcnr quase náo há histórias sendo
i
enquanto a narração,
por sua vez, transporta
o sentido. Origina- rras plataformas sociais. Histórias
riamente, sentid< T
lllll0('l0tn as pessoas umas com as c,utras, na
hoje, portan,", ;r:::1::,H::H,:T* nrtlltlrr cm que fomentam a capacidade de
iltililtillilllilillililiill
desorientados. Além
disso, a informação ,tnpütlu. Elas criam uma comunidade. A per-
frag_
menta o tempo em rh tlrr cnrpatia na era do smartphone é um
lllllillllililllllll I li i l1 I I ll i I I i i I I r I i

uma simples sequência


do ilil ilil
presente. A narração, rlttrrl cloquente de que ele não é um meio de
lilI r

por outro lado, produz


um contínuo temporal, turrução. Seu próprio dispositivo técnico di-
ou seja, uma história.
por um lado, lk ultl a narração de histórias. O ato de di-
a informatização da socie_
dade acelera sua gltrrr «ru deslizar não é um gesto narrativo. O
dr
Iado, em rrrrrrtphone permite apenas uma troca acele-
-.," ""1T;ix:th::;::; llllilull ilill l t

desperta a necessidade lrrtln de informações. Além disso, a narração


de sentido, identidade
e orientação, ou
seja, a necessidad Irrcssupõe escuta e uma atenção profunda. A
e d.e ilumi_
nar a densa tomunidade narrativa é uma comunidade de
floresta de informações na
qual ouvintes atentos. Estamos, contudo, visivel-
ameaçamos nos perder.
A
atual enxurrada
de narrativas efrmeras, nlente perdendo a paciência para estar à escu-
incluindo teorias da
conspiração, ta e a paciência para narrar.
e do tsu
Justamente quando tudo se tornou tão ar-
em úrtima anárise,
JH:::ol,,:fi:X: bitrário, fugaze aleatório, e quando desaparece
da. Em meio ao
mar de informações
e dados, aquilo que vincula, associa e unifica, ou seja,
buscamos âncoras
narrativas.
em meio à tempestade de contingências do
14
15
Fi-

presente, o storytelling
se faz ouvir em
alto c
bom som. A inflação
de narrativas revela
a ne
cessidade de superar
a contingên cia. à informação
O story
telling, no entanto,
não é capazde reconverter
a sociedade da inforr I
desorientada e va-
zia de sentido
estáver. pero
"_ ur'utão
comunidade narrativa
contrár.ra
ta um renôm","
0,,"*l,J:?Ííf,"Tffi:* llyppolytc de Villemessant, fundador do
crise narrativa possui
uma longa pré_história. l,,rrr,rl li'irrrcts Figaro, resume a essência da
O presente ensaio Irrl.r nrilç:io Ira seguinte fórmula: "para meus
a investiga.
lr rtotr.s, o incêndio num sótão do Quartier
l,rtrrr ú rnais importante que uma revolução
, rrr Mirtlri". Para Walter Benjamin, essa obser-

r ,rq,ro rlcixa subitamente claro que 'b saber que


r,'rrr rlc longe encontra hoje menos ouvintes
rIl(' ir informação sobre acontecimentos pró-
rrnros"'. A atenção do leitor ao jornal não vai
,rltirrr do que está mais próximo. Ela se reduz à
t rrriosidade. O leitor de jornal moderno pula
rlt' urna notícia à outra, em vez de deixar seu
,rllrar vaguear à distância, e demorar-se ali.
() olhar longo,lento e demorado se perdeu.

., IIENIAMIN, W. O narrador - Considerações sobre a obra


rlt Nikolai Leskov. ln; BENJAIVIN, \N. lVlogio e técntco, orte e
lxtlítico: ensoios sobre literoturo e histório do culturo. São
I',rulo: Brasiliense, 1985, p. 202 [Obras Escolhidas, vol. 1]
16
17

I
Por tudora
de
A notícia, que está sempre inserida em (l (luc está Por vir Ela e

uma história, possui uma estrutura espaço- l:l rr possui uma inerente amPlitude
temporal completamente diferente da infor- narrativa.
mação. Ela vem 'de longe'l A distância é sua lrrlirrrnação é o meio do
repórtet qt:e
O
marca distintiva. O desmantelamento sucessi- o mundo em busca de novidades'
não
vo da distância é uma característica da moder- é sua contrafigura' O narrador
exige
nidade. A distância clesaparece e cede lugar à rrcm explica' A arte de narrar
ausência de afastamento. A informação é uma irs inÍormações sejam
retidas: "metade da
As
manifestação genuína da ausência de afasta- rritrrativa está em evitar explicações"a'
evi-
mento que torna tudo disponível. A notícia, retidas, isto é, as exPlicaçóes
por outro lado, caracteriza-se por uma distân- t,rrl.ts, ltttttentam a tensão narrativa'
cia indisponível.Ela anuncia um acontecimen- destrói tanto a
A itttsôncia de afastamento
to histórico que se exime da disponibilidade quanto a distância' A proximida-
l,r.,xirttitlirde
de afastamento'
e da previsibilidade. Estamos entregues a ela rh' llilo c idêntica à ausência
proximidade'
como a tm poder do destino.
1,ors a clistância está inscrita na
A informação não sobrevive ao instante condicionam e se
l'roxitlriclade e distância se
do seu conhecimento: "a informação só tem justamente essa in-
,rttitltittrt mutuamente' E
valor no instante em que é nova. Ela só vive e distância que
t('r'irçalo entre proximidade
de uma
nesse instante, precisa entregar-se inteira-
l,rotlttz a aura'. "o rastro e a aparição
mente a ele e, sem perda de tempo, tem que se
l,roximidade,
por mais longínquo que esteja
é a aparição de
explicar nele"r. Em contraste com as informa- ,rrltrilo que o deixou' A aura
ções, a notícia possui uma amplitude temporal ;rlgo longínquo, por mais
próximo que esteja
que a remete para além do instante e a relacio-

3 lbid., p. 204 (tradução modificada). 4 lbid., P. 203.


19
18
I

aquilo que a evoca',s.


A aura é narrativa por_
que está impregnada tltlttrlrtttcs:'tada manhã recebemos notícias
de distância. A informa_
ção, por outro
& [tlu o mundo. E, no entanto, somos pobres
lado, retira a aura e
desencanta
o mundo ao abolir a distância llt ltlrklrlas surpreendentes. A razão é que os
. Ela apre_ hkrr fú nrts chegam acompanhados de expli-
senta o mundo. A
ltlt'lÍr, l,lm outras palavras: quase nada do que
"rastro,r
or" ro"r,l'iT.j'J:il*:iffi:: aurillcce está a serviço da narrativa, e quase
é rico em alusões e
representa uma tentação
para a narração. Ittrhr crlú a serviço da informaçãd'7.
llcnJomin alça Heródoto ao posto do an- ilililililut

A crise narrativa da modernidade


se deve llpr rrtcstre da narração. A história de Psam-
ao fato de que o mundo
está inundado de in_ lllllllllllltilll llii ilttli ililli rl I I
ii

Irrr,rrll serve como exemplo de sua arte da


r

formações. O espírito
da narração está sendo ilfiilfl ltililtilffi ilfl fl fiilfl fiilfl fl il]tfl fl ilItilfl flilfl

sufocado pela enxurrada


nru r rrçflo. Quando o rei egípcio Psammenit foi
de informações. Ben_
jamin aÍirma: ..se a lr;rt1116do pelo rei persa Cambises, após sua il1ilIilililtililililllilililt

ar
rlr,r rota, Cambises humilhou o rei egípcio, for-
a dirusão au inro,-ltç"#Jl"jll,llJ" ll-
ponsável por esse declínio,,6. \rul(lo-o a assistir o triunfo persa. Ele fez com
Informações re_ ffiililflJlilflilflflilllillilliillillffi
rlrrr' l)sammenit pudesse ver sua filha passan-
primem acontecimentos arre
^a^ ^^^ _.^ -
,
de explicação, mas
rr"-::::ffijiH: rlo, lilha esta que fora capturada e subjugada à
r orrdição de criada. Enquanto todos os egíp-
ções geralmente possuem margens
de milagre r los rlue estavam à beira do caminho lamenta-
e de mistério. EIas não
são compailveis com
r,,rnl este fato, Psammenit permanecia imóvel
informações, que são
a contrafigura do mis_
c scrn palavras, os olhos fixos no chão. Logo
tério. Explicação e narração
são mutuamente
rlcpois, quando viu seu filho sendo levado

5 BENiAMtN, W. passoqens Irilril ser executado, continuou imóvel. Quan-


Belo Horízonte:Editora
são pauio: ,;;;"ffii|;i' uFMG;
do Estado de São paulo, tkr, porém, reconheceu um de seus servos en-
p.490. 2009,

6 BENJAMiN, W. O norrodor.
Op. cit., p. 203.
/ tbid
20
21

I
lllllí rr i

tre os prisioneiros,
um homem idoso e A ttrtt rrtçilo, de acordo com Benjamin, "não
frágil,
bateu em sua cabeça
com os punhos e ex_ crrr si rnesma'i Ela "preserva sua força
pressou sua profunda
üisteza. A partir des.sir Iütttttlttlu em seu interior e é capaz de se des-
história de Heródoto,
Benjamin acredita *{rnl tlcpois de muito tempoi Informações
ser
possível reconhecer
o que é uma verdadeira
narrativa. Na sua opinião, Ftrlton uma temporalidade bem diferente.
todas as tentativas ht ,,rtnu de sua margem estreita de atualidade,
de explicar por que
o rei egípcio só se dm rr ctgotam muito rapidamente. Seu efeito
lamen- é
ta ao ver o servo destroem
â rêhcã^ altt,nrul ntomentâneo. Não se assemelham a se-
j ustam enre
" "_*.u":1.1;;l';:ffix J
sencial para a verdade.
lmr,nlcil com poder de germinação eterno, mas
Ilfi
llÍfl

illiliill[itillllilitiiilrtriltiltltiltrlr

A narração a[, i(,!i de poeira. Falta-lhes qualquer poder de lrilffi lfl lffi 11fl1ilIilililfl Iflltffi Iru

dispensa quarquer iilill1ililil]1ililili1ilil1ililil]1ilil1xtil[

",,u]f,::.lção' pr rrrlnação. Uma vez notadas, elas se afundam


Heródoto não explica flfl lilliltilíltililfl ilililtililt

nada. trrr lrrsignificância, tal qual mensagens já ouvi-


Seu relato é dos mais
secos.
por isso, rl,r,, tlc uma secretária eletrônica.
essa história do
antiso
Egito ainda é capaz,depois l'ara Benjamin, o primeiro sinal do declí-

rrlo cla narração é o surgimento do romance
ã::;::;f ::'..,,,H:i::x.. iliiiliuiuluiulilliuliililtillililt

sementes de trigo que durante


rro ittício da época moderna. A narração se
flliltiilffilflifllxlflülillüfllflll

milhares de anos ficaram


fechadas
,rllrrrenta da experiência e a transmite de uma
hermeti< 'b narrador retira da
gcração para a outra:
o,.u*;:T;::;:::ilIT,:.' r.xperiência o que ele conta: sua própria ex-
hoje suas forças germinativasr.
Pcriência ou a relatada pelos outros. E incor-
lx)ra a história narrada à experiência dos seus
or,rvintes"e. Com sua riqueza de experiência
8 tbid., p. 204. Benjamin
menit de modo riterar.
n a história de psam- c sabedoria, a narração sabe aconselhar so-
o .,:,:,i:11:.1'z
I direre consrderavermente
a" ruu r"rrrlliià
Montaisne, o;" "ir,I,ll'*''a
;;;."*H11"J:il"Jão de Micherde
') lbid., p. 201 (tradução modificada).
22
23
ilIil1t lililt tillilililillll lillllllililllllllilllllllllilllllllllillllillllillllillllilrllillllillllill

I I

breavida.Orom
a' prorunda
r.;#::.:Tj *J-';T.: I :,: : l:li::i:1,:i : ::'#.T ;#;.*"
Enquanto a narração tlt' tor»unicação é a informaçãor'].
é formadora de urrr,,
comunidade, a gênese r,rrr,r r('(lu('r'unt estado de distensão.
do romance está rr,
indivíduo em sua ,, ,,t,,rtil ,,,rrrPrccncle o tédiO COmO O ápiCe
e isolamento' A.
contrário ,o .o-untolidão t, ,lr r, rr..ro psi1111iça. O tédio é "o pássaro de
rce' que psicologiza
e reir
Iiza interpretações, rlrr' .lroea os ovos da experiência"r3,
narraÇâo procede rrlr,r
de m:r
neira descritiva: .b ,. r,1,,, rrvt'nlo c quente, forrado por dentro
"t eo miracu
loso são narrados rrr r ,, rl,r tlas crlres mais variadas e vibran-
a-xtraordinário
o contexto
ao leitor"il. Não
p,i.orogi.T;H"
é, contudo, o romance,
i #:llffi ' . r,' (luitl "llos enrolamos quando sonha-
' t I lrirrulho das informações, o "menor
o mas
advento da informi ,, ,r r o rrrrs Íolhagens"r5 espanta o pássaro de
Ieva a narraor"
; ;J:::;,;1::"'-" o'" ,,,,1r,, \;15, Íblhagens, "ninguém mais fia ou
por outro
lado, verificamos r. r Sornente informações são produzidas
que com a consolidação
da , , ( 'r',ulni(lils na forma de estímulos.
burguesia _ da qual
n i.f.".r..,
' l.l,u rirr e escutar atentamente histórias
é umdos
;Tl;*r*.rismo,
mais importantes _
, , on(licionam mutuamente. A comunidade
o"rau.ol"n,o. forma de rr,rr r.rl rva é uma comunidade de ouvintes aten-
..-,,,:-:::ma
3açao que, por
mais /,,',
antigas que fossem I Jrna atenção especial é inerente à escuta
suas origens,
nunca havia infl
uenciado , rrr,l.rtklsa. Quem escuta atentamente, esquece
decisivar a forma épica.
oro., .r,"''"
l exerce essa influência.
EIa é tão estranha
l.' lbid., p. 202.
à narrativa
II lbid., p. 204.

10 lbid. l4 BENIAMIN, W. Possogens. Op. cit., p. 145.

L1 tbid., p. 203 l', BENJAIVIIN, W. O narrador. Op. cit., p. 204.

lí, lbid., p. 205.


24
25
I ilil Ulllt tlil uillt uilit uli utilt ull I ull
E

de si mesmo e se afunda naquilo que escuta: ',rr p,u.r rrrn modo contemplativo. O tsunami
'quanto mais o ouvinte se esquece de si mes- rl, rrrlor ruaçoes fragmenta a atenção. Ele impe-

mo, mais profundamente se grava nele o que ,1, ,, rlr'nlorilr-se contemplativo que é constitu-
cl

ouvido"rT. Estamos perdendo cadavez mais o I tr r r rlo irlo cle narrar e escutar.

dom da escuta. Nós zlos produzimos, otwimos


.\ tligitalização poe em movimento um

secretamentels, em vez de nos entregarmos à l,rrr ('\s() tltre Benjamin, devido à sua época,
rr,r, r |o1lg prever. Benjamin associa a informa-
escuta atenta.
Não há mais ninho do pássaro de sonho na ,,,r[ t()r'n a imprensa. A imprensa é um meio

Internet, que é a folhagem digitaL Os caçado- ,l' , ()nlunicação que se segue à narração e ao

res de informações o espantam. Na hiperati- l,nr,urcc. No decorrer da digitalização, a in-


vi<lade atual, em que é importante não deixar l,rr s|1;1t'i,, alcança um status completamente
que o tédio apareça, nunca alcançamos o es- ,lrlcrcrrte. A propria realidade passa a ser mol-

tado de profunda distensão psíquica. A socie- ,lrtrlrt ltor inJ'ormações e dados. Ela passa a ser

dade da informação está dando início a uma rrrlor rrrirtizada e moldada por dados. Perce-
epoca de alta tensao espiritual, pois o estímulo l,r'rnos a realidade principalmente com vistas

da surpresa é a essência da informação. O tsu- ,r rnlorrnação ou por meio de informações. A

nami de informações garante que nossos ór- rrrlrrrrnação é uma representação, ou seja, uma

gãos de percepção estejam permanentemente rr' lrrcscntação. A informatizaçáo da realidade

estimulados. Eles não são mais capazes de pas- ,,rntlrrz à atrofia da experiência da presença
rrrrt'tliata. Através da digitalização na forma
,ll rnlirrmatrzação, a realidade é diluída.
17 tbid Urn século depois de Benjamin, a infor-
18 O termo alemão é "belauschen", que signífica ouvir às ilt:r1iro está se desen.rolvendo como uma nova
escondidas, como quando ouvimos a conversa de alguém
por trás da porta, por exemplo. Han o contrasta, aqui, ao Irtrtrra de ser; na verdade, como uma nova for-
termo "lauschen", que significa "escutar atentamente", sem
t,tú (lc dorninaçao. Em conjunto com o neoli-
esse sentido de ser às escondidas IN.T.].

27
26

I
beralismo, está se estabelecendo tm regime dc rlililrill, controlado por algoritmos, e do qual
informaçao que não é repressivo, mas sedutor. ilrto somos conscientes. Estamos entregues à
Ele assume uma forma inteligente fsmartl. Ele r,trt(.l preta algorítmica. As pessoas estão de-
não opera com mandamentos ou proibições. ltrrlrirnclo e se transformando em um conjunto I
Não nos impóe o silêncio. Em vez disso,
domínio inteligente exige constantemente que
esse ,1,'tlirrl«rs que pode ser controlado e explorado.
I
No regime de informação, as palavras de
comuniquemos nossas opiniões, nossas ne- ( rcor'g Büchner ainda soam válidas: "somos
cessidades e preferências, exige que narremos rrr,rrionetes, cujos Íios são puxados por pode-
nossa vida, que postemos, compartilhemos e r,'t rlcsconhecidos; não somos nada, nada nós
curtamos. A liberdade não é suprimida, mas rrrr'srnos!". Os poderes estão apenas se tornan-
completamente explorada. Ela se transforma ,hr rrrais sutis e invisíveis, de modo que não
em controle e direção. A dominação inteligen- tlrrros rnais consciência dele. Nós até confun-
te é muito eficiente, pois não precisa aparecer. ,lrrrros isso com liberdade. O Íilme de animação
Ela se esconde sob a aparência de liberdade e r ()nr bonecos de Charlie Kaufmann, Anoma-
comunicação. Enquanto postamos, comparti- /r,rr, ilustra a lógica da dominação inteligente.
lhamos e curtimos, submetemo-nos ao nexo li rrtir-se de um mundo em que todas as pessoas illllilllillllll ill lll lir l, I

de dominação. l('ilI il rnesma aparência e falam com a mesma


Atualmente, estamos atordoados pelo fre- loz. ll.sse mundo retrata um inferno neoliberal
nesi da informação e da comunicação. No en- rl(' nlesmice, no qual se recorre paradoxalmen-
tanto, não somos mais os amos da comunica- lc lt autenticidade e criatividade. O protagonis-
ção. Em vez disso, expomo-nos à troca acele- t,r Michael Stone é um treinador motivacional
rada de informação que escapa ao nosso con- Irt'rrr-sucedido. Um dia, ele se dá conta de que
trole consciente. A comunicação é cada vez ri rrnr boneco. A parte da boca cai de seu rosto.
mais controlada de fora para dentro. Ela pa- lllt' a segura em sua mão. Ele se assusta porque
rece obedecer a um processo automático, ma- ,r lroca caída continua a tagarelar sozinha.

28 29

I
lltrurrt

Pobreza de experiência

Itcrrjamin inicia seu ensaio Experiência


t l,t,l,rcza com a fábula de um homem ido-
,,() (luc, em seu leito de morte, diz a seus fi-

llros rlue um grande tesouro está escondido


r'llt scu vinhedo. Seus filhos, então, cavam no
r rrrlrctlo dia após dia e em toda parte, mas não
r'rrr ontram nenhum tesouro. Quando chega o
.trlono, porém, eles entendem que o seu pai
llrt's havia transmitido uma certa experiência:
.r lelicidade não está no ouro, mas no traba-
llro iirduo, pois as vinhas produzem mais que illlililllilillll

,pnlcluer outra na região. É característico da


t'x1rg1iQn6i3 que ela possa ser narrada de uma
Benjamin lamenta a perda
licr rrção para outra.
,lir cxperiência na modernidade: 'que foi feito
rlt' tudo isso? Quem encontra ainda pessoas
(ltc saibam contar histórias como elas devem
\('r contadas? Que moribundos dizem hoje

31
palavras tão duráveis que possam ser trans- rr,rt,. \('r' ttilrrada, a sabedoria também entra
mitidas como um anel, de geração em gera- Ela é substituída pela técnica
, rrr rlr'. ittlôtrcia.

ção? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio


,lr rrr/tt(trt) de problemas. A sabedoria é uma
oportuno?"re. A sociedade está ficando cada tttrlrtrlr'rurrada. 'A arte de narrar está defi-
rrlr,rrtrkr l)orque a sabedoria - o lado épico da
vez mais pobre em experiências transmissíveis
que correm da boca ao ouvido. Nada mais é
, , r , I ,r tle está em extinçáo '22.

transmitido e narrado.
A cxperiência pressupõe tradiçáo e conti-
, ,r l,l,rtlc. Illa torna a vida narrável e a estabiliza'
O narrador é alguém que, segundo Ben-
t Jrr,rrrtlo as experiências se deterioram, quando
jamin, "sabe dar conselhos"2o. O conselho não
rr,r, t'xiste nada vinculante ou duradouro, há
promete uma solução para o problema. Ele
,fllr'ilirs trnta vida desnuda, uma sobrevivência'
é muito mais uma sugestão de como conti-
It''nliurtin expressa de forma inequívoca seu ce-
nuar uma história. Tanto a pessoa que busca
lr, r\nro crn relação à modernidade e à sua po-
o conselho quanto a que o dá pertencem a
uma comunidade narrativa. Aqueles que bus- l,r trrt tlc exPeriência:
[...] não, está claro que as ações
cam conselhos devem ser capazes de narrar. O da exPeriência estão em baixa
conselho é buscado e dado na existência que é [...]. Uma geração que ainda fora
vivida na forma de um nexo narrativo. Como à escola num bonde Puxado Por
cavalos viu-se abandonada, sem
sabedoria, ele é "tecido na substância viva da
teto, numa Paisagem diferente em
existência"2r. A sabedoria está incorporada tudo, exceto nas nuvens, e em cujo
na vida como narração. Se a vida não puder centro, num camPo de forças de
correntes e explosões destruidoras'
estava o frágil e minúsculo corPo
19 BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. ln: Mogia e téc-
humano23.
nico, orte e político: ensoios sobre literoturo e histório do
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 114 [Obras Esco-
lhidas, Vol. 11.

20 BENJAMIN, W. O norrodor. Op. cit., p. 200. // lbid., p. 200-201.

21 rbid. /I BENJAMIN, W. Experiência e pobrezo' Op'cit', p' 114-L15'

33
32

/
I

Apesar da dúvida interior, Benjamin se I't t,tt ll,io do novo:'A essa estirpe de constru-
mostra reiteradamente otimista em relação à I'rtr'\ l)crtenceu Descartes, que baseou sua
modernidade. Com frequência, ele muda abrup_ ltlo,,olia numa única certeza - penso, logo
tamente de um tom elegíaco para um tom eufo_ r r t,,lo c dela partiu"26.
rico. Mesmo com a perda da experiência, ele ) rrovo bárbaro celebra a pobreza da ex-
(

acredita poder vislumbrar uma "nova belezd'. l'rr('ncia como emancipação: "pobreza de
A pobreza de experiência representa uma es_ r r Is'1 ii11çi3' não se deve imaginar que os ho-
pécie de nova barbárie, mas algo de positivo rrrr'rrs irspirem a noyas experiências. Não, eles
pode ser dela extraído: "barbárie? Sim. Res- ,r,,1ruilnr a libertar-se de toda experiência, as-
pondemos afirmativamente para introduzir I'tr,rnr ir um mundo em que possam ostentar
um conceito novo e positivo de barbárie. pois t,ro ;r11Ji1 e tão claramente sua pobreza externa
o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de
' ltl('nra, que algo de decente possa resultar
experiência?"2a. ,lr,,sri""'. Benjamin cita uma série de artistas e
A experiência cria um contínuo histórico. r'..r lilores modernos que não se iludem com
O novo bárbaro se emancipa do contexto da ,r ;'obreza de experiência e se deixam inspirar
tradição no qual uma experiência está inseri_ pol csse "começar de novo". Eles se despe-
da. A pobreza de experiência o impele a,,par- ,h'rrr rcsolutamente da burguesia empoeirada
tir para a frente,
a começar de novo"2s. Ele é "l),u'il dirigir-se ao contemporâneo nu, deitado

animado pelo páthos do novo. Antes de mais r ()ilro um recém-nascido nas fraldas sujas de
nada, ele faz tâbula rasa. Ele não se vê como rr,rssir época"28. Eles professam a transparên-
narrador, mas como 'tonstrutor". Benjamin ( r,r c â falta de mistério, ou seja, professam a
generaliza a nova barbárie e a transforma no

/í, lbid.

24 lbid., p.115-116. // lbid., p. 1L8.


25 rbid. Itl lbid., p. 116.

34 35

I
a uma figura
falta de aura. Também rejeitam o humanismo Nkruse. Ele alça o Mickey Mouse
tradicional. Benjamin ressalta que eles gostam ,lt' rcdenção, pois ele traz de volta o encanto
de dar a seus filhos nomes "desumanizados'l ilo lllUndO:
como "Pekal "Labu" ou'Aviachim", aludin- [...] aos olhos das Pessoas'
fatigadas com as comPlicações
do a uma companhia de aviação. Para Ben- infinitas da vida diária e que veem
jamin, a casa de vidro de Paul Scheebart sim- o objetivo da vida aPenas como o

boliza a vida das pessoas do futuro: "não é por mais remoto Ponto de fuga numa
interminável PersPectiva de
acaso que o vidro é um material tão duro e tão
meios, surge uma existência que ilil l illlLlil liltltLr I ltLl ltlt I 1

liso, no qual nada se fixa. E também um ma- se basta a si mesma' ["'] do


modo

terial frio e sóbrio. As coisas de vidro não têm mais simPles e mais cômodo' e
na qual um automóvel náo Pesa
nenhuma aura. O vidro é, em geral, o inimigo
mais que um chaPéu de Palha' e
do mistério"2e. uma fruta na árvore se arredonda
Benjamin também coloca o Mickey Mouse como a gôndola de um baláo3''

entre os novos bárbaros: 'bo cansaço segue-se O ensaio Pobreza e experiência de Benja-
o sonho, e não é raro que o sonho compen- rrrirt é repleto de ambivalências'
No final do

se a tristeza e o desânimo do dia, realizando ('nsilio, a efusiva apologia da modernidade
a existência inteiramente simples e absoluta- lrrgar à desilusão, o que denota o
profundo ce-
moderni-
mente grandiosa que não pode ser realizada tit ismo de Benjamin com respeito à
Mun-
durante o dia, por falta de forças. A existência rlitde. Prenunciando a Segunda Guerra
do camundongo Mickey é um desses sonhos do tlial, Benjamin escreve:
Ficamos Pobres' Abandonamos
homem contemporâneo"3o. Benjamin admira
uma dePois da outra todas as
aleveza que caracteriza a existência do Mickey
Peças do Patrimônio humano'
tivemos que emPenhá-las muitas

29 lbid., p. Lt7.
30 lbid., p. 118. r I ltrid., P. 119.

37
36

I
FF I
-
vezes a um centésimo do seu
rr,,'r,r tltl Íirturo. As narrativas reais do futuro
valor para recebermos em troca a apari-
moeda miúda do "atual'l A crise
rr r,rrltrtrtt unla aura, pois o futuro é uma
econômica está diante da porta, l rlrr r/r' dgo longínquo.
atrás dela está uma sombra, a A ntodernidade é animada por uma cren-
próxin-ra guerra.I
pela ênfase na ruPtura' na
',,r n() progresso,
Os modernos tinham, em todo caso, yi- pelo espí-
r, , rr tle ttitção e no começar de novo'
sôes. O vidro, o verdadeiro protagonista dos
rrtrr tlit revolução. O Marufesto comunistalam-
escritos visionários de Paul Scheerbart, foi
1,,'rrt rtpresenta uma narrativa do futuro que se

concebido como um meio do futuro para alçar O


,rl,rslit rcsolutamente da ordem tradicional'
a cultura humana a um nível superior. Em seu de toda
rrr.rniÍcsto fala da "derrubada violenta
ensaio Arquitetura de vidro, Scheerbart fala da
,r olrlctrl social existente"r{' Trata-se de uma
beleza que surgiria na Terra se o vidro fosse que vem'
t'tttttd(' narração sobre a sociedade
usado em todos os lugares. A arquitetura de
de Bertolt Brecht' é inerente à
l..l,rs 1'ralavras
vidro transformaria a Terra, "como se ela fosse "sentimento de ini-
rrr.,tlcrnidade um enfático
revestida com joias de diamante e de esmalte".
, r,rntc". Depoisde limpar a mesa' ela "joga" na
Teríamos, então, na Terra, 'toisas mais encan- ''1irit rtcle tábula rasa"ss'
tadoras do que as dos jardins das Mil e uma
li,m contraste com a modernidade e com
noites"33. Em um mundo de edifícios de vidros
,,ilirs narrativas do futuro e do progresso'
brilhantes, coloridos e suspensos, as pessoas
nr seu anseio por uma forma de vida dife'
( (f
seriam mais felizes. As visões de Scheerbart mais o
rr',ríc, il modernidade tardia não tem
são de beleza e felicidade humanas. Elas con-
de uma nova ordem ou
l',itlros revolucionário
ferem uma aura especial ao vidro como um
São Paulo:
i4 MARX, K.; ENGELS, F. lv4onifesto comunisto'
ll(,rl('rnpo, 2005, P. 69.
32 tbid.
Notizen 1941'-1955'
i', IIRECHT, B. Journole 2. Autobiogrofische
33 SCHEEBARI P. Glosarchitektur. Berlim, 19L4, p. 29
I r,urkfurt, t995, P. 19

38 39

I
TF I
-
I
efeito no presente' C)
de um começar de novo. Falta-lhe qualquer l,r,,rluz n"rais qualquer
de
espírito de ruptura. Assim, ela se enfraquece, lrrlrrtt se reduz a um update permanente
reduzindo-se a um continuar assim, sem alter- ' nr\,ts
iltuais. Assim, existimos sem história'
uma história' Não só as
natiyas. Ela perde toda sua coragem narrativa, I'or(luc a narração é
toda coragem para uma narrativa transforma- na forma de um tempo compacta-
' \lr('riêr'rcias
na forma
dora do mundo. Storytelling quer dizer, prin- r/rr, ttlils também as narrativas futuras
para
cipalmente, comércio e consumo. Enquanto rlr' urn temPo a ser descoberúo se perdem
storytelling, a modernidade não tem o poder rros. A vida que se desloca de um presente

de transformação da sociedade. A exausta mo- () ()utro, de uma crise para a outra' de um


l',u il
reduz-se a uma sobre-
dernidade tardia é alheia ao "sentimento de l,r.rlllcma para o outro,
iniciante", à ênfase no 'tomeçar de novol Nós r rvi'ttcia. A vida é mais do que
solução de pro-

não "professamos" nada. Estamos permanen- lrk'nlils. Aqueles que só solucionam problemas
temente confortáveis. Entregamo-nos à conve- 1,r rtritr possuem futuro'
Somente a narração

niência ou ao like, que não precisa de nenhu- ,lcsvcla o futuro, somente ela nos dá esperança'
ma narrativa. A modernidade tardia carece
de qualquer anseio, qualquer visão, qualquer
coisa longínqua. Assim, ela é completamente
sem aura, ou seja, semfuturo.
O tsunami de informaçoes de hoje inten-
sifica a crise narrativa, afundando-nos no fre-
nesi de atualidade. As informações fragmen-
tam o tempo. O tempo é reduzido aumafaixa
estreita de coisas atuais, Falta-lhe amplitude
e profundidade temporais. A compulsão pela
atualização desestabiliza a vida. O passado nào
41
40
A vlda narrada
T
!

Na obra das Passagers, Benjamin obser-


vil (lue: tilil

Nós só Podemos imaginar a


felicidade no ar que resPiramos,
entre as Pessoas que viveram
conosco. Em outras Palavras,
na ideia de felicidade [...] übra iltililtffiilil

conjuntamente a ideia de redenção


[...]. Nossa üda é, em outras
palawas, um músculo que Possui
força suficiente para contrair todo
o temPo histórico. Ou ainda, a
autêntica concePçâo do temPo
lllllllllillllilll
histórico baseia-se inteiramente na
imagem da redenção36.

A felicidade não é um acontecimento pon-


luol.Elatem uma longa cauda que se estende
rté o passado. Ela se alimenta de tudo o que foi
vlvldo. A forma de sua aparição não é o bri-

, lll l'l 14N,4 lN, W Possogens. OP. cit., P. 521

43
Iho, mas o pós-brilho. Devemos a felicidade r\ r' ilrlr' () r'csgirte do passado como a tarefa do
salvaçao do passado. Esta salvação exige uma nttt t tttlttt'. A ctrnclusão da Recherche é:
Pelo menos, se tne fosse
resiliência narrativa que prende o passado ao
conceclido temPo sllficiente Para
presente e permite que aquele continue atuan I Ininha obra, Iralo
ternlinar
do sobre este, até mesmo para ressurglr. Dessir deixaria eu, Priureiro, de nela
forma, a felicidade ecoa a redenção. Quando descrever os hontens, o qtle os
fària se assemelhareln a criaturus
tudo nos lança em um frenesi de atualidade,
nlonstruosas, colllo se oc[lPassenl
quando estamos no meio da tempestade de ttm lugar tão considerável, ao
contingências, somos infelizes. lado daquele tão restrito que lhes
é reservado no esPaço, ul-r-r lugar
A vida como um músculo exigiria uma
[...] no'lernPo""'.
força enorme se, como em Marcel Proust, as
ltnr',r drofia muscular aflige a vida na mo-
pessoas fossem imaginadas como aquele ser
rrrrrlittlc. lrla é ameaçada pela desintegraçào
,1,
temporal que se equilibrasse sobre o passado
,1" l('f f rl)(). Com sua Recherche, Proust tenta
como "em pernas de pau vivas, que crescessem
, , ,r rrlr.rlcr t atrofia temporal, a perda do tempo
incessantemente, às vezes mais altas que cam-
,ln, ',('tLi rtir forn-ra de utrra atrofia muscular'
panários"r7. A conclusão da Recherche e tudo
I t tt't'il(ottlro do tempo aparece em 1927' Neste
menos um triunfo: "assombrava-me que as mi-
rrr,,, I lt'itlcgger publica Ser e tempo. Heidegger,
nhas já fossem tão elevadas sob os meus passos,
t,,,l,rvr.l, lanrbem escreve resolutamente contra
e julgava não ter ainda forças para sustentar por
,,1111tlitt lcmporal da modernidade, que deses-
muito tempo ligado a mim esse passado que já
r,rl,rlrzir c l'ragmenta a vida. A fragmentação e
se prolongava tanto para baixo'38. Proust en-
r ,rlrolirt da vida na modernidade são contra-
"cx-tensão de toda a existência", "na
1rr,,l,rs r)
37 PROUSI M. Em busco do tempo perdido. Volume 3. Rio
de laneiro: Nova Fronteira, 2016, p. 830.

38 tbid. r r llrtrl

44 45
L,
T
-
qual o seÍ-ai [Dasein, a designação
ontológica rlruttt;rcnha um papel tão eminente em Ser e
do ser humano], enquanto destino, tilri,fo, tumbém faz parte da patologia do ser
manténr
'inseridos] em sua existência,
nascimento, mor_ Ittttnruto moderno que não encontra mais um
te e o seu 'entre,,,a0. O ser humano
não existc ;uttlu tlc apoio no mundo. A morte também
na forma de um instante para o
outro. Não c rtfur urlú mais inserida em uma narrativa sig-
um tipo de ser momentâneo. Sua existência rrlllr rrllva de redenção. Em vez disso, é a zi-
abrange todo o período entre
o nascimento e ,rrrr, ntorte, que só eu devo assumir. Como ela
a morte. Devido à falta de orientação yezpoÍ todas, o
externa, 'r,,rlrrr com o meu eu de uma
devido à falta de ancoragem narrativa n,r contrai em si mesmo diante da morte. É
no ser, ,rl sc
é do próprio eu que tem que
emanar a força ú lttn tir da presença constante da morte que des-
para contrair o intervalo de tempo
entre o nas_ ltt',ltt rt ênfase no eu. Aespasticidade existencial
cimento e a morte, transformando_o rLr rr'r'.aí encerrado em si mesmo desenvolve
em uma
unidade viva que permeia e engloba ,r rr,riliência, a força musculaç que preserva o
todos
os eventos e acontecimentos.
A continuidade ,,r'r ,ri rla ameaça da atroÍia temporal e o ajuda a
do ser é garantida pela ccntinuidade
do eu. rrL rillÇilt uma continuidade temporal.
A 'tonstância do eu', forma o eixo central (l sar-si-mesmo de Heidegger é anterior ao
do
tempo que deve nos proteger da onlcxto narrativo da vida produzido poste-
fragmentação '
do tempo. r O ser-aí se assegura de si mesmo
lor rucnte.
Ao contrário do que afirma Heideggea de narrar a si mesmo uma história coe-
',,,rr's
Ser e tempo não é uma análise
atemporal da rlrrtc referente ao mundo da interioridade. O
existência humana, mas um reflexo lrr rrilo é construído através de ocorrências
da crise
temporal da modernidade. A angústia, o(.lclttes do mundo interior. Somente a "ex-
que r

Icrrsâo de toda a existência" cria a "autêntica

40 HEIDEGGER, M. Sere
Irr:loricidade'i Contra a atrofia do tempo, bus-
tempo. parte il. petrópolis: Vozes,
2Oo5, p.197 loptamos por traduzir r ,r sc Lrrnâ estruturação temporal da existência,
oor"in por'r"lài 1í1.1.

46
47

I I
-

uma "ex-tensão de toda a existência,


I
originii tlr' ,r ()utril. O Snapchat incorpora acomunica-
ria, que nem se perde e nem necessita
de unr ,,t,t ttr:ltutltlnea dígital. o mensageiro expressa
nexo"''. EIa deve garantir que o ser_aí,
como ,r t, rrrporalidade do digital em sua forma mais
unidade pré-narrativa, não se desintegre
enr l,rrtt Sornente o momento importa. Snaps são
uma "soma das realidades momentâneas
dc rrrrr,,rrrdlnimo de "realidades momentâneas".
vivências que vêm e desaparecem
uma após a l',r1 11,1;1y, eles desaparecem após um curto
outra"a2. Ela retira o ser_aí da ..multiplicidadc
r, nrp(). A própria realidade se desintegra em
infinda das possibilidades de bem_estar, ,rrrl/rr. l)essa forma, somos arrancados da an-
sim-
plificar e esquivar-s e,,, e o ancora na ..simplici_
. ,r,rll('nl temporal estabilizadora. Os "stories"
dade de seu destino',a3. Têr um destino
signifi_ ,1,r,, grlittaÍbrmas digitais, como Instagram ou
ca assumir o controle de si mesmo.
euem se Lr, ,'lrook, não são narrações em sentido au-
rende às "realidades momentâne as,, não possui tr'nlrco. Eles não possuem duraçao narrativa.
destino, nao possui "historicidade autêntica,,.
'r,to nrcrâS sequências de fotos momentâneas
A digitalização intensifica a atrofia do tem_
'lu(' nio narram nada.
Na realidade, eles não
po. A realidade se desintegra em informaçôes
f
f rr r\iun de infor m aç õ e s v i suai s que desaparecem
com uma margem estreita de atualidade.
As I rrf ri1f x111sn1" . Nada permanece. Um dos slogans
informações vivem do fascínio da
surpresa. prrlrlicitários do Instagram diz o seguinte: "pu-
Assim, elas fragmentam o tempo. Também
a lrltrluc momento da sua rotina nos stories. Eles
atenção é fragmentada. As informações ,,,kr crrgraçados, casuais e só
não podem ser vistos
permitem que nos demoremos.Na troca
acele_ 1wr 24 horas'i A limitação temporal cria um
rada de informaçoes, uma informação
perse_ r,lcito temporal especial. Ela evoca uma sen-
rrrçilr de impermanência que cria uma sutil
41, tbid., p. 197. r orrrpulsão para se comunicar mais.
42 tbid., p. I78. As selfies também são fotografias instantâ-
43 lbid., p. 189. llrrr.s. Iilas são válidas apenas para o momen-

48
49
I
I
-
to. Diferentemente das fotografias analógicas,
lrrr rlleutlas no ponto zero da narrativa. Elas
que eram meios de recordação, as selfies
são
ilfur uu, trm meio de narração, mas um meio
informações visuais fugazes. Ao contrário
das
rll lrrklrmação. Funcionam de forma aditiva,
fotografias analógicas, elas desaparecem
de r rrílo rrnrrativa. As informaçoes reunidas não
uma vez por todas após um curto tempo.
Elas
não são usadas para recordação, mas
l, r utttlensam em uma narração. À pergunta
para co_
i urro laço para criar ou editar um aconteci-
municação. Em última análise, elas anunciam
Irrlrrlo no meu perÍil do Facebook?", a respos-
o fim da pessoa sobrecarregada com
o destino 'tlique em sobre e em Acontecimentos
lr ,,r'r'ú:
e com a história.
lrrl nlcl'lu à esquerda". Os acontecimentos são
O Phono sapiens se rende ao momento,
ltrrlrl(los como meras informações. Nenhuma
à "soma das realidades momentâneas
de vi_ il'r r ilçiio longa é tecida a partir deles. Eles são
vências que vêm e desaparecem uma após
a
,,ex_tensão 'rltrrlrirclos
de forma sindética, sem nenhum
outra". E-lhe estranha a de toda rrlro narrativo. Nunca é realizadauma sínte-
a existência" que abrange o período da
vida .,' t,ttrrativa dos eventos. Nas plataformas di-
entre o nascimento e a morte, e isso faz
com
fill,tis, uma elaboração narrativo-reflexiva e a
que ele carregue este período dando ênfase
, nrrrlcnsação das vivências não são possíveis
a si-mesmo. Ele não existe historicamente.
rl'rrr tlcsejáveis. O dispositivo técnico das pla-
Selfies de funerais e enterros apontam
para Irrloluras digitais, por si só, não permíte uma
a ausência da morte. Ao lado de caixões,
as
Ir ,i x is narrativa e demorada.
pessoas sorriem alegremente para
a câmera.
 memória humana faz escolhas. Nesse
Até mesmo a morte pode ser curtida. O pho_
,r\p('clo, ela se diferencia de um banco de da-
no sapiens está claramente deixand o
o Homo rLrs. Mlssa memória é narratiya, enquanto o
saPiens, que precisa de redençao, para
trás.
ril nril7.€Ílâm€nto digital é aditivo e cumulati-
Plataformas digitais como Twitter, Face_
vo. A narração se baseia na seleção e na vin-
book, Instagram, Tiktok ou Snapchat estão r rrllçiio de acontecimentos. Ela é seletiva. A
50
51

L I
E
trajetória narrativa é estreita. Apenas os acon , rr,l, r r olll[)lctlu]lente explorado e controlado'
acaba
tecimentos selecionados são nela incluídos. r\ ,r ,rr,rllpltorre, como um playground'
vida narrada ou recordada é necessariamentc , r,,r rr,rntltr utt'r panóptico digital'
l'itçittl autobiográfica pressttpoe
ullla
incompleta. As plataformas digitais, ao contrii \ rr,rt

rio, estão interessadas em um registro complelo ,, llr r,lo Posterior sobre o que tbi
vivido' um
,, ,l,,rllto tlc recordação consciente' Os
dados
da vida. Quanto *eno, ,, narra, mais se acumu
gerados
lam dados e informações. Para as plataformas rtttlortttitçÕes, Por outro lado' sáo
repro-
digitais, os dados são mais valiosos do que as r,lilttttl(t lttrssam pela consciência' F'les
narrações. As reflexões narrativas sao indesejá ttt tlit'cttrmente nossas atividades antes
lrr,',
veis. Quando as plataformas digitais permitenr lr ., lt'llt prtlpriamente refletidos e interpre-
formatos narrativos, eles devem ser projetados r r,l.'.. ,ttltcs cle serem filtrados pela reflexão'
em conformidade com o banco de dados para r ,lrr,tlirltrde dos dados é melhor quanto menos
conce-
que produzam o máximo de dados possíveis. l: ',,tt r tt'ttt'i(t eles contêm' Esses dados
de
assim que formatos narrativos assumem, ine
os ,l' ilr ,l( t'sso a essas esferas que se isentam
Eles permitem que as plataformas
vitavelmente, formas aditivas. Os "stories" são ,
'r',' li'llciil.
projetados como portadores de informaçóes. ,lt1,rl,rts cxaminem a pessoa e controlem seu
EIes fazem com que a narração em sentido , , r1111rorlill]1€nto em um nivel pre-reflexivo'
a câmera'
autêntico desapareça. O dispositivo das pla- \\'.rlrcr Beniamin argumenta que
acâmera lenta'
taformas digitais representa o registro total , r rrf f ',('tls rccursos técnicos como
da vida. Seu objetivo é converter a vida em , un('r it rápicla ou close-ups
é capaz de acessar
'
nrovimentos
registro de dados. Quanto mais dados forem ,t tttt ttttsciente otico"lt de nossos
acessa o in-
coletados sobre uma pessoa, melhor ela po- ,l,r rrtt'stttit'fbrma que a psicanálise
analogia
derá ser monitorada, controlada e explorada ,
' 'r
r',r i('rltc libidinal' Se fizermos uma
economicamente. O Phono sapiens, que acre-
dita estar apenas brincando, na verdade está I r\l Nl^t\41N, W. O norrodor' Op cit
p 189'
r '
53
52
entre a exploração de dados e a filmadora,
I ,
r,
', r |lt('sstlo
-

arterial, temperatura corporal'


psí-
exploração agiria como uma lente de aumenl,
,,,, rn('rlto e perfis de sono' Os estados
r,,,, ,," ('tlc ânimo
são registrados regularmen-
por trás do espaço entrelaçado com a cons
as ativi-
I 'rrr tcllistro minucioso de todas
ciência e abriria um espaço entrelaçado corl
dia em
o inconsciente, que chamamos de inconscietú'
t,,l, ..ltririas é mantido' Até mesmo o
cabelo branco foi visto é
regis-
digital. Assim, a inteligência artificial obtelnr 1,r, ,r prirtr€iro
,, ,,1,, Nittla deve escapar ao registro
total da
acesso aos nossos desejos e inclinações d«r,
e apenas
quais não somos conscientes. A psicopolític,t r ( .otu isso, nada é narrado' Tudo
,,1
fornecem
,,', ."rttit(lo. Sensores e aplicativos
impulsionada por dados estaria em condiçõcs,
I r,lrr', itt'ltc)lrlaticamente'
ficando aquém da
portanto, de se apoderar do nosso comportil
e da reJTexão narrati-
mento no nível pré-conscienteas. ' ' l,t t'\t',tl(tção linguística
No chamado self-tracking, a computaçiro
,,r totljunto de dados são entào resumidos
()

toma completamente o lugar da narração. o ,,,, l,r'los gráficos e diagramas' No entanto'


, ', [,r() clizem nada sobre
lr
quem eu so]u.' O eu
self-tracking gera dados puros. O lema do
quantified self lelu quantificado) é "self knou,
,t,trt r' ttfita quantidade' mas uma qualidade'
é uma
ledge through numbers" ["autoconhecimento
r I ',,'ll knowledge through numbers"
ajuda a ter
,lurrt('t'a. Somente a narração nos
através dos números"]. Seus adeptos tentanr
rrrlrrr eu tenho que narrar a mim
trllheciffI enÍo"
obter autoconhecimento náo por meio da narra-
ilrr'r,rl(). ()s números' porém'
nada narram' A
ção, recordação ou reflexão, mas por meio da
"numerical narratives" ["narrativas
computação e de números. Para isso, o corpo ' \l'l('ssão
pode
e um oxímoro' A vida não
rrrrntriricits"l
é equipado com diversos sensores que geranr
quantificáveis'
automaticamente dados sobre frequência car ,''l ll.tl'[ada em acontecimentos
'l'lr,' antire history of you lToda a sua his-
tem-
lllrll i' o terceiro episódio da primeira
da
45 HAN, B-C. Psicopolítico- O neolíberolísmo e os novo:,
1',,t,ttlit cle Black Mirror' Nessa sociedade
técnicos de poder. Belo Horizonte: Âyine, 2020.
55
54
I I
r-

ou deixar esca-
transparência, todos usam um implante atr,r 1,r r'..r scr capaz de esquecer
da transparência
da orelha que armazena de modo complcl, , ,,, .r.itil coisa. A sociedade
e da recordaçáo'
tudo o que o usuário viu e vivenciou. Dess, ,,1'r,'.t'rllil o fim da narração
transparente' Somente
forma, tudo o que foi vivenciado e percebitl, , r'lrrrrnrl narração é
The en-
pode ser reproduzido, sem falhas, nos olhr,, ,,/,,r rrtrrlric-s e dados sao transparentes'
com a cena em que
ou em monitores externos' No controle tl' "" lrr:lttt')t o'f you termina
segurança do aeroporto, por exemplo, é soli 1,r,,l,r1yrrtistâcortaseuimplantecomumalâ-
citado que você reproduza os eventos ocorrido', '',rrr,r (l(' birrbear'
durante determinado período. Não há mirn
segredo. É impossível, para os criminosos,
esconderem o que fizeram. As pessoas estrrt,
presas em suas recordações, por assim dizcr
Se tudo o que foi vivenciado pode ser repeticlt,
sem falhas, então, em rigor, a recordação niit,
é mais possível.

A recordação não é uma repetição mecâ


nica do que foi vivenciado, mas uma narraçàtr
que deve ser novamente narrada várias vezes.
As recordaçóes são necessariamente falhas.
EIas pressupõem proximidade e distância. Sc

tudo o que foi vivenciado estiver presente senr


distância, ou seja, estiver disponível, a recorda
ção desaparece. Uma reprodução sem falhas drr
vivência não é uma narrativa, mas um relatórirt
ou registro. Quem quiser narrar ou recordar',
57
56
 vlda desnuda

(I Antoine Roquentin, do ro-


l)rotagonista
,,r ilr, (' A Nausea, de Sartre, é tomado um dia
t,"r ilillir náusea insuportável: "então fui aco-
,,, ttrhr grcla Náusea, me deixei cair no banco,
r r r.nr sirbia onde estava; via as cores girando
l, rt,uucnte em torno de mim, sentia vontade
,h l.rrlritat E é isso: a partir daí a Náusea não
,,r, rlt'ixou, se apossou de mim"a6. A Náusea
rl',rr'(c para ele como uma "propriedade das
,,rr',,rs'l l{oquentin segura uma pedra e sente
r rr r r.r cspécie de náusea nas mãos"a7 . O mundo
, 'A Náusea não está em mim: sinto-a
n,iuscil:
,it ntt l)arede, nos susPensórios, por todo lado
,ttt t(lor de mim. Ela forma um todo com o
, ttlr )ott eu que estou nela'48.

rr, ,Alt lRt, lP. A Nouseo. Rio de laneiro: Nova Fronteira,


il,tt, I 35.

t ' llrrri , p. 26.

ttt llrrri., p.36.

59

I
I-Í

Roquentin lentamente se dá conta de 11rr, \1,,r1,1, ç1i15, impóem sua existência desnuda a

o que provoca a Náusea é o mero ser-disporrr lr,,,lrrr'tttitl. Elas tornam independentes: "os
se

vel-aí das coisas, a pura facticidade, a contin ,,l,lr'tos ttrio deveriam tocar,iá que não vivem'
gência do mundo. Sob seu olhar, desintegrarrr t rrlv.rrtrtt-los, colocamo-los em seus lugares'
-se todas as referências que seriam CapâZes tL r\, nr()s tro meio deles: são úteis e nada mais'
retirar das coisas sua aleatoriedade e sua falt,r Lr ntitlt eles tocam - é insuportável' Tenho
de sentido. O mundo aparece nu para ele, det ,,,,,1o tlc entrar em contato com eles exata-
pido de toda significação. A própria existênci,r rr, rrlt'rolllo se fossem animais vivos"s"'

aparece a Roquentin como desprovida de sen Roquentin percebe que e justa-


t lrrr clia,

tido: "surgira por acaso, existia como uma pr' ,,r' nl('il ltarração de histórias que tem o poder
de
dra, uma planta, um micróbio. Minha vida s,' ,1, l,rzcr com que o mundo apareça repleto

desenvolvia ao acaso e em todos os sentidos , r rl ttltl:


eis o que Pensei: Para que o mais
Enviava-me às vezes sinais vagos; outras vezcs torne
bar-ral dos acontecimentos se
eu percebia apenas um zumbido sem impor uma aventura' é Preciso e bastâ

tância"ae. O zumbido sem sentido é insuportii que nos Ponhamos a narrá-lo'


E isso que ilude as Pessoas: um
vel. Não hâ música, não há som. O vazio insr.r
homem é semPre um narrador
portável no qual Roquentin ameaça se sufocar de histórias, vive rodeado Por
está por toda parte. O mundo náo significu suas histórias e pelas histórias dos

nada para ele. Ele também náo compreendL outros, vê tudo o que lhe acontece
através delas; e Procura viver sua
o mundo. Não há propósito, não há nenhunr
vida como se a narrasse' Mas é
para-quê ao qual ele possa submeter as coi preciso escolher: viver ou narrarsr
sas. É justamente o propósito, a finalidade c

a serventia que mantêm as coisas à distância.

',r r llrrrl., p. 26.

49 lbid., p. 103. ',1 llrrrl., P. 55.

61
60

L-.
Somente a narração de histórias eleva
I ,'
- -

r vllrt cstava ancorada em narrações. No tem-


I

vida para além de sua pura facticidade, parir pl r ol'no narração, náo há apenas segunda,
além de sua nudez. A narração consiste erl lr,t1rt, t1uarta..., mas Páscoa, Pentecostes, Na-
dar ao tempo um curso significativo, um c() lrrl,totno estações narrativas. Até mesmo os
meço e um fim. Sem narraçáo, a vida é mera rllrr rlu semana têm um significado narrativol
mente aditiva: rprúr'tn-feira é o dia de Wotans3, quinta-feira é
Quando se vive, nada acontece.
rr rllrt tle Donar etc.5a.
Os cenários mudam, as pessoas
entram e saem, eis tudo. Nunca hii Itoquentin tenta superar a insuPortável
começos. Os dias se sucedem aos lrrr llcidade do ser, a vida desnuda, por meio
dias, sem rima nem razáo: é uma
rh tutrração. No final do livro, ele decide aban-
soma monótona e interminável.
De quando em quando se procede
rlottrtr sua profissáo de historiador Para se tor-
a um total parcial, dizendo:faz ttrtt'cscritor. Ao escrever romances, ele espera,
três anos que viajo, três anos prlo menos, salvar o Passado:
que estou em Bouville. Também Um livro. Naturalmente, no
não há fim [...]. Depois disso o início seria um trabalho tedioso
desfile recomeça, voltamos a fazer e cansativo; não me imPediria de
as contas das horas e dos dias. existir nem de sentir que existo'
Segunda, terça, quarta. Abril, Mas chegaria o momento em que
maio, junho. 1924, 1925, 19265'z. o livro estaria escrito, estaria atrás
A crise existencial da modernidade na de mim, e creio que um Pouco de
claridade iluminaria meu passado'
forma de uma crise da narração é ocasionada
pelo desmantelamento da vida e da narração.
ll "Wotan" é o equivalente mitológico de Mercúrio nos
A crise é: "viver ou rrartar". A vida não parece ldlomas germânicos. Antigamente, quarta-feira lMittwochl
mais ser narrável. Nos tempos pré-modernos, ü a Wota nstog, literalmente "dia de Wotan" INÍ]'

ll "Donar" significa "trovão" em alto-alemão antigo A re-


htlncia é a Thor, deus nórdico dos trovões e das batalhas'
lm alemão, quinta-feira se diz Donnerstog, literalmente
52 lbid., p. 56.
'dlr de Donar" [N.T.].

62 63

b-
avançava em linha reta' com
Entáo, talvez, através dele, eu
toda seriedad e' in medias res: o
pudesse evocar minha vida se rrr
ritmo da narrativa' E' então' ele
repugnâncias5.
sentiu tudo aquilo que ia a seu
A percepçao em forma de narrativa é trr encontro, em sequêucia' como se
cantadora. Tudo se junta em uma ordem bcnr lossent Partes de unra narrativa

formada. Um e narrativo que se alimenta tl.r [...]''Na cerca de arame havia


farPas' Um homem velho' com
fantasia vincula coisas e acontecimentos qtrt,
um saco Plástico' abaixou-se em
concretamente falando, não teriam muita c(' direçâo a uln cogumelo da estePe'
nexão, e até mesmo nulidades, ninharias ou bir Um cachorro Passou' mancando'
equilibrando-se sobre três patas' e
nalidades são vinculados em uma narrativa n;r
lembrava umâ corça ["']' No trenl
qual a pura facticidade é superada. O mund., de Saragoça as luzes já estavam
aparece estruturado de forma rítmica. Coisas c acesas, e os Passageiros' esParsos'
iam sentados em setl interior':"'
acontecimentos não são isolados em si mesmcls.
que
Em vez disso, eles são partes narrativas. Enr  percepção em forma de narrativa'
para
Ensaio sobre a jukeboÍ, Peter Handke escreve: rr,urslirrma a pura facticidade' aparece
como uma
[...] e agora, enquanto verificava ll,rnrlke em uma outra situação
os caminhos, andando sem
r ,,lt irtógia existencial que consiste
em conver-
direção certa pela savana,
um fami-
subitamente ele se viu tomado por
tr'r o angustiante ser-no-mundo em
contexto ao
um ritmo totalmente diferente, lt,rl cstarr-em-casa, ou impor um
rlut' cstá isolado e desvinculado' A
que não era um ritmo mutável, narração
marcado por saltos, mas sim como
vrvcllciada como algo divino se revela
um ritmo coeso, uniforme e,

sobretudo, um ritmo que, em r (,rl)pulsão existencial:


vez de circundar e de rodear,

São Paulo: Estação


',r, IIANDKE, P. Ensoio sobre o iukebox
55 SARTRE, J.-P. A náuseo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2020, p.2o0. I rlrlrtlade, 7019, P 51 8.
65
64
I
aquilo já nâo era mais o poder
Lr,,tlr ril crrl torno da saúde e da otimização só
avassalador da imaginação, que
o conduzia com calidez, e sim 'l"r\\ívcl em um mundo nu e vazio de sen-
algo que brotava diretamente uLr A otimização se refere apenas à função
de seu coração, subindo_lhe em ,,rr r.lit iôncia. A narraçáo, por outro lado, não
- direção à cabeça, uma compulsiro
;rrrrh' scÍ otimizada, na medida em que ela
fria, uma corrida que sempre
se repetia, sem sentido, rumo ;rn,,rui um valor intrínseco.
a um portão que havia muito Nn rnodernidade digital tardia, encobrimos
tempo estivera fechado, e ele se
,r rrrrrlcz. e o vazio de sentido da vida postando,
perguntava se aquele narrar, que
agora lhe parecia divino, não fora '
rlrIindo e compartilhando permanentemente.
um equívoco _ uma expressão dc t t lrrrrulho da comunicação e das informa-
seu medo diante de tudo o que
\ltl.\ garante que a vida não revele um vazio
se encontrava isolado e fora de
contextosT. 'mgustiante.
A crise de hoje não é mais viver
A vida na modernidade tardia é particu_ il,, nilrrar, mas viver ou Postar. Similarmente, a

larmente desnuda. Ela carece de qualquerfan_ rrlrscssâo por selfies não pode ser atribuída ao

tasia narrativa. As informações não rr,rrcisismo. É muito mais o vazio interior quLe
se deixam
vincular em uma narração. Com isso, llvir i\ obsessão por selfies. O Eu precisa de pro-
as coisas
se desfazem. O contexto postas de sentido que possam lhe conferir uma
significativo cede seu
lugar à justaposição e à sucessão sem [lcntidade estável. Em üsta do vazio interior,
sentido
de acontecimentos. Não há horizonte clc produz a si mesmo permanentemente. As
narrati_
vo para nos elevar além da pura vida. rcllics reproduzem o si-mesmo deformavazia.
A vida
que deve ser mantida .taudável,, .btimiza_ Na sociedade da informação e da trans-
ou
da'a qualquer custo é uma sobrevivência. A Itnrôncia, a nudez se intensifica e se transfor-
tnu em obscenidade. Mas não se trata, aqui,
do obscenidade cálida do que é reprimido,
57 lbid., p. s9.
proibido ou velado, mas da obscenidade fria
66
67

I T
da transparência, da informação e da corrrrr

nicação: "Trata-se [...] da obscenidade .1,'


que não tem mais mistério, do que pode s,,
Datrncantamento do mundo
completamente dissolvido em informaç,r,,
e comunicaÇão"ss. A informação como tal ,
pornográfica, porque nao é veladd. Somerrtr
o velamento, o véu que se tece em torno rlrr,,
O autor de livros infantis Paul Maar fala'
coisas, é eloquente e narrativo. O velamento ('
uma história, de um jovem que não
sabia
a ocultação são essenciais para a narração. r\
,lll
lllrrtrle. Quando sua irmã mais nova, Susanne'
pornografia não narra nada. Ela vai direto oo
qtc re revirava na cama sem dormir' pede
ao
ponto, enquanto o erotismo, como narrativrt,
llttt[o Konrad que lhe narre uma história'
alonga-se em banalidades.
llc rudemente se recusa' Seus pais' por ou-
lto lado, adoram narrar histórias' São quase
vlclodos nisso. Eles dificilmente concordam
qusnto a quem deve narrar primeiro' Por isso'
todos
clct mantêm uma lista que garante que
lcnham sua vez. Quando o pai, Roland'
termi-
narrar uma história, a mãe escreve um R
ll[ de
mãe narrar
no papel com um lápis. Depois da
na
uma história, o pai insere um O maiúsculo
todos
llrta, referente a seu nome Olívia' Entre
oú "R' e "O", eventualmente há um Pequeno

58 MAAR, P Die Geschichte vom Jungen'


der keine Ges-
BAUDRILLARD, ). Dos Andere selbst. Tese de habilitação: t9
Viena,1994, p.19. chlchten erzàhlen konnte ln: Die Zeit,28 out 2004'

68 69
I I

"S", porque Susanne também está começand«r


Âtlttclcs que se rendem ao presente pontual
a desenvolver o gosto pela narração de histó lilo siio caPazes de narrar.
rias. A família forma uma pequena comunida- () paradoxo entre a geleia de morango e o
de narrativa. A narração de histórias os une. .tnat'rbraten abrange o arco narrativo' Ele evoca
Somente Konrad se afasta dela. torlrt a história da vida de uma pessoa, o drama
A família está especialmente disposta a urr rr tragédia de um curso de vida. A profunda
narrar histórias durante o café da manhã no trrtcrioridade que o olhar pensativo do pai de-
sábado e no domingo. Narrar exige ócio. Enr rrrrrrcia alimenta a recordação como narrativa'
uma comunicação acelerada, não temos tem- r\ úpoca pós-narrativa é uma época sem inte-
po nem paciência para narrar. Apenas infor- r toritlade. A informação vira tudo do avesso'

mações são trocadas. Onde existe ócio, tudo se f rrr vcz dainterioridade de um narrador, temos
torna uma ocasião para narrar. O pai diz para ,t vigilância de um caçador de informaçoes.
a mãe, por exemplo: "Olivia, você poderia, por A recordação que o pai tem do avô ao ver a
favor, me passar a geleia de morango?". Assim pllcia de morango se assemelha à mémoire in'
que o pai segura o pote de geleia na mão, ele volontaire [memória involuntária] de Proust'
olha pensativo à sua frente e narrai "isso me r)rrirrtdo Proust se abaixa para desamarrar os
Iembra do meu avô. Certa vez, quando eu ti- r,r(lilrços dos sapatos em um quarto de hotel
nha oito ou nove anos, o vovô pediu geleia de no balneário de Balbec, a imagem de sua fa-
morango no almoço. No almoço, veja bem. A L', itla avó aparece de repente diante de seus
princípio, achamos que tínhamos ouvido mal, ,rllros. A dolorosa recordaçáo de sua querida
porque estávamos comendo sauerbraten com ,rvri, clue traz lágrimas aos olhos de Proust,
macarrão, como sempre acontecia no dia 2
lltoPorciona, ao mesmo temPo, um momen-
de setembro...'i O pai introduz a história com tr r rlc flelicidade. Na mémoire involontaire, doís

"isso me lembra..l] ou "uma ve2...". Narração rrrorttentos separados de tempo se vinculam


e recordação são mutuamente dependentes. (' sc condensam em um aromático cristal de

70 71

l- I
I I I I I

tempo. Dessa forma, a agonizante conting,i'rr ,. 1,1, l, tlc sentido. E justamente graças à narra-
cia do tempo é superada, e isso é gratificarrtt' Ir(' ('scaPamos da contingência da vida.
', ' '
A narração, que cria uma forte relação errtrt ll,rttrad não sabe narrar porque seu
os acontecimentos, supera a passagem vazi.r narrá-
',,rn(l() e tlnsiste em fatos. Em vez de
do tempo. O tempo da narrativa não passrr 1,,,. r'lt' apenas os lista. Quando a mãe pede
Logo, a perda da capacidade narrativa exrr ,1,r, .'lt'crlnte como foi o dia de ontem, ele
cerba a experiência da contingência. Ela nos ,, ,pr1111lg' "ontem eu fui à escola. Primeiro
entrega à transitoriedade e à contingênci.r rr\ , nr()s matemática, depois alemão, depois
Além disso, o rosto rememorado da avó é ex l,r,,lo11,iit e depois duas horas de esporte. De-
perienciado como sua imagem verdadeira. t\ 1,,,r',,ltti para casa e fiz minha lição de casa'
verdade é tomada por verdadeira60 somente lr, pois, fiquei um pouquinho no computa-
depois. Ela tem seu lugar na recordação etr rl.r t'rltâis tarde fui paÍaa cama". Sua vida é
quanto narração. ,lIlr't tttittada por acontecimentos externos'
O tempo está se tornando cada vez mais I ll rtiio tem a interioridade que lhe permiti-
atomizado. Narrar, por outro lado, significa rr,r intcrnalizar os acontecimentos, tecê-los
vincular. Aquele que narra, no sentido prous- ()tt(lensá-los em uma narrativa.
' r

tiano, mergulha na vida e tece novos fios entre Stta irmãzinha, então, vai ajudá-1o e suge-
os acontecimentos na sua interioridade. Conr tr' "('tl sempre começo assim: era uma vez um
isso, uma densa rede de relacionamentos é for- r,rtril Konrad imediatamente pergunta: "Mu-
mada, na qual nada está isolado. Tudo aparece ',,rr.tnlto, rato doméstico ou rato-do-campo?",
l t otttitlua: "os ratos pertencem à ordem dos
tot'tltlres. Há dois gruPos, os ratos e os ratos-
60 Aqui há um jogode palavrasentre a locuçãogewahrwer
den, que significa "se dar conta de algo", "se aperceber de ,Lr campo". O mundo de Konrad está com-
algo", "tomar consciência de algo", e Wahrheit, "verdade".
lrlctanrente desencantado. É um
mundo que
Preferi traduzir a locução gewohr werden por tomor por ver
dodeiro, para preservar a palavra wohr, "verdadeiro" [N.T.]. rt' tlcsintegra em fatos e perde toda a tensão

72 73

\ I
I I

narrativa. O mundo que pode ser explicado r,r tliz: "aí está6r você, finalmente. Agora vupt!
não pode ser narrado. t lreg,ue um porco mais perto!'i Tudo aparece
O pai e a mãe finalmente percebem que para Konrad. Até mesmo a lingua-
''n('arltado
Konrad não tem habilidade para narrar histó- licrn i' estranha e enigmática. Isso lhe confere
rias. Por isso, decidem mandá-lo para a senho- ,rl1io de mágico e encantador. Konrad enfia a

rita Muhse, que também os havia ensinado a ,,rl)cça pela porta. Na escuridão, ele reconhe-
narrar. Em um dia chuvoso, Konrad vai até r l unrâ figura semelhante a uma coruja. Mui-

a senhorita Muhse. Uma senhora muito idosa, to irssustado, ele pergunta: 'quem... quem é
com cabelos brancos e sobrancelhas grossas e vocô?". "Não seja tão seboso. Vai esperar virar

ainda escuras, recebe-o com alegria na porta: vrnagre?", reclama a criatura-coruja. Konrad

"ah! Então seus pais o enviaram para que eu o ',r' al'laixa e passa pela porta. "Vá de vento em

1roça! Boca viagem!'l avoz dá risadas. No mes-


ensine a narrar". A casa parece muito pequena
nro instante, Konrad percebe que a sala escura
por fora, mas por dentro tem um corredor in-
rr,ro tem piso. Ele fica preso em um cano e cai a
finitamente longo. A senhorita Muhse coloca
r r nra velocidade vertiginosa. Ele tenta em vão se
um pacotinho na mão de Konrad e pede que
,,('ll,urar nas paredes do cano. Ele sente como
ele o leve para sua irmã no andar de cima. EIa
,,(' cstivesse na barriga de um animal enorme
aponta para uma escada estreita. Konrad a
r;trc o engoliu. Finalmente, ele é cuspido dire-
sobe. Mas a escada parece se estender ao in-
tr) na frente dos pés da senhorita Muhse. "O
finito. Espantado, ele pergunta: 'tomo isso é

possível? Eu vi a casa do lado de fora. Era um


r,l Âs falas do ser misterioso da história são repletas de
prédio de um andar. fá deveríamos estar pelo
l,,tios de linguagem com o alemão, em que palavras são
menos no sétimo andar". Konrad percebe que ,lr,.torcidas ou substituÍdas por outras com sonoridade pa-
r,.r rrla, formando expressões sem sentido. Busquei, quando
está sozinho. De repente, uma porta baixa se pr,',,,ível, adaptar ao português, privilegiando o trocadilho
,.rrr rletrimento da semântica, mantendo a intenção de brin
abre na parede próxima a ele. Uma voz rou-
, ,r ( om a sonoridade das palavras IN.T.].

74 75

I-- I
-

que você fez com o pacotinho?", ela perguntir rrrotlo hesitante. Novamente, ele cai nas en-
'1,'
com raiva. "Devo tê-lo perdido no caminh<i, Ir,rrrlrirs escuras da casa. Novamente é cuspido

responde Konrad. A senhorita Muhse enfia rr r..,, Pi.5 da senhorita Muhse. Ela dá uma longa
mão em um bolso de seu vestido preto e tirrr Ir,ry,rrtlir em um charuto fino e diz:'tonhecen-
outro pacotinho. Konrad poderia jurar quc rll vocô, suponho que de novo não entregou o

era o mesmo pacotinho que ela lhe havia en 1,,r, olinho". 'Não'i diz Konrad corajosamente.
tregado. 'Aqui'l diz a senhorita Muhse conr Nrto cstou aqui para entregar pacotinhos, es-

aspereza. "Leve isso lá embaixo para o merl lrrrr rrtqtri para aprender a narrar". "Como vou

irmão, por favor". "No porão?", pergunta Kon- ln\lnitr um garoto que não consegue nem car-
rad. "Que bobageml diz a senhorita Muhse. t.'llrll' um pacotinho escada acima a narrar?! É
"Você o encontrará no térreo. Estamos aqui lr,'llror ir para casa, você é uma causa perdi-
em cima, no sétimo andar, você sabe disso! rl,r'i tlisse a senhorita Muhse, com firmeza. Ela
Agora vá logo!'i Com cuidado, Konrad desce ,rlrrc uma porta na parede ao lado dele. "Boa
a escada estreita. Ela parece se estender ao in- lll'Ucm e tudo de pão", diz ela, empurrando
finito. Depois de cem Passos, Konrad chega a lutrritd para baixo. Novamente ele desliza
um corredor sombrio. 'Olá?", ele chama hesi- Irrrr baixo pelas infinitas curvas da casa. Des-
tante. Ninguém responde. Konrad tenta com rd vcz., porém, ele não aterrissa na frente da
um "Olá, senhor Muhse! O senhor me ouve?"' u,trlrrlrita Muhse, mas diretamente na frente
Então uma porta se abre ao seu lado. Uma voz rh t rrsa de seus pais. Seus pais e sua irmãzinha
rouca diz: 't claro que eu te juro. AÍinal, não rlrttlu estão tomando cafe da manhã. Konrad
sou pó! Vinha logo aqui!'lNa sala escura, está ,ttlrn correndo na sala e diz animado: "tenho
sentado alguém que se Parece com um cas- tlt|f contar para vocês. Vocês não vão acreditar
tor e está fumando um charuto. A criatura- no que eu vivi..ll Só que o mundo não é mais
-castor pergunta: "tá perando o quê? Venha rlpllcável para Konrad. Ele não consiste em
de nenhuma yez por todas!" Konrad entra htor objetivos, mas em eventos que desafiam

76 77
I
I I

a explicação, e é exatamente por isso que elcs lr,rpitas ou poéticas com o mundo significam
exigem uma narração. A virada narrativa clc ,lrt| ur)1â profunda simpatia conecta seres hu-
Konrad faz dele um membro da pequena c<r rrrrros e coisas. Em Die Lehilinge zu Sais lOs
munidade narrativa. O pai e a mãe olham url ,lt.. tlttilos em Sails), Novalis escreve:

para o outro com alegria.'Aí estál'i diz a màc, A rocha não se torna um
verdadeiro Tu, quando a ela me
escrevendo um grande K no papel.
dirijo? E o que sou eu senáo o
A história de Peter Maar pode ser lida conro riacho, quando olho triste para
uma crítica social sutil. Ela parece lamentar baixo em suas ondas e perco meus
pensamentos em seu deslizar?
que estamos desaprendendo a narrar histórias.
[...] Se alguém já compreendia
O desencantamento do mundo é o responsávcl as pedras e as estrelas eu não sei,

pela perda da capacidade de narrar. Isso poclt' mas certamente esse alguém deve
ter sido um ser sublime6r.
ser resumido na fórmula: as coisas existent,
mas quedam em silêncio. A magia lhes escapa.
l'rrra Walter Benjamin, as crianças são os

A pura facticidade do mero ser-disponível-aí lltrrnos habitantes do mundo encantado. Para


, 1,r.,, nada existe pura e simplesmente ai. Tlrdo
torna a narração impossível. Facticidade e narra

tiüdade são mutuamente excludentes.


, ,'lrtquente e rePleto de sentido. Uma intimi-
,l,trlt mágica as conecta com o mundo. Brin-
O desencantamento do mundo significa,
' ,ilt(lo, elas entram em contato com as
coisas,
sobretudo, que a relação com o mundo é re-
I r,rrrslilrmando-se nelas:
duzida à causalidade. A causalidade é apenas
A criança que está atrás da
uma das formas possíveis de relação. Sua to cortina torna-se ela mesma algo
Íalização leva a uma pobreza do mundo e da ondulante e branco, um fantasma.
experiência. O mundo mágico é o mundo A mesa de refeiçôes sob a qual ela

no qual as coisas se relacionam entre si fora


do contexto causal e trocam confidências. A , N( )VALIS. Die Lehrlinge zu Sois. Die Lehrlinge zu Sors- ln:
rr, rVÂl l\. Schriften. KLUCKHON, P & SAtVUEL, R. (Eds.). Vo-
causalidade é mecânica e externa. Relaçoes ,,,,rrr, I Stuttgârt, 1960, p. 71-1,1,1, aqui: p. 100ss.

78 79
I- I
-

se acocorou a faz tornar-se itlolo \, nrcsrno tempo, a aura possui um núcleo


de madeira do templo onde as
n,u r,llivo. Assim, Benjamin afirma que as ima-
pernas entalhadas são as quattll
colunas. E atrás de uma porlir t.l,r 1,, tlil recordação narrativa têm uma aura,
rrr
própria é porta, está revestida r['l.r | ilrlriilrto as fotografias não a possuem: "se as
como de pesada máscara e, conl( r
II I Lr l.l,c l'ls que emergem da mémoire inv olontaire
mago-sacerdote, enfeitiçará totl,,.,
,,'rlistinguem por possuírem aura, então a fo-
os que entram sem pressentir
nada. [...] A casa, para isso, é o tr rlir irÍia participa decisivamente do fenômeno
arsenal das máscaras. Contudo,
'lr,unril decadência da aura"'6a.
uma vez por ano, em lugares
A falta de interioridade narrativa distin-
secretos, em suas órbitas ocularcr
vazias, em sua boca rígida, há 11rrr.irs fbtografias das imagens da recordação.
presentes. A experiência mágica ,'\,, lotografias retratam o dado sem internali-
se torna ciência. A criança, conto r,r kr. Elas não querem dizer nada. A memó-
seu engenheiro, desenfeitiça a
I trr (orno narração, pelo contrário, não rePre-
sombria casa paterna e procura
ovos de Páscoa63. ,,r'Ila um contínuo esPaçotemporal. Em vez
Hoje, as crianças foram transformadas errr ,lrss«r, ela se baseia muito mais em vma sele-
seres digitais. A experiência mágica do mundo lrlo narrativr. Em contraste com a fotografia,
está se atrofiando. As crianças caçam informa ll,r i' decididamente arbitrária e incomple-
ções como ovos de Páscoa digitais. l,r. l,lla estende ou encurta a distância tempo-
O desencantamento do mundo se expres r,rl. Ir,la pula anos ou décadas6s. A narrativi-
sa como desauritização. A aura é o brilho quc ,l,rtlc se opõe à facticidade cronológica.
eleva o mundo para além de sua pura factici
dade, o véu misterioso que envolve as coisas.
r,4 IIENJAMIN, W. Über einige Motive bei Baudeloire. ln:
r,r,,,,,.rmmelte Schriften 1.2, p. 605-653, aqui: p. 646.

63 BENJAMIN, W. Rua de mõo único.São Paulo: Brasiliense l,', KRACAUER, S. Das Ornament der Masse. Essoys. Frank-
1.987, p.40. lrrrt, 1997, p. 24ss.

80 81
I
I
I

Inspirado por Marcel proust66, Benjamin ,,llt'trte. Náo há mais nenhumatroca de olhares
supõe que as coisas retêm o olhar que pou- olll o mundo.
'
so sobre elas. Dessa forma, elas próprias se lmersas na fluidez da memóire involontai-
tornam semelhantes ao olhar. O olhar tece o rr', iIS coisas se tornam recipientes
aromáticos
véu da aura que brilha ao redor das coisas. A é narrativa-
nos quais o que é visto e sentido
aura é justamente a 'Uistância do olhar que nrcnte condensado. Até mesmo um
nome ad-
desperta no objeto observado,'67. Ele os olha rl[ire uma aura e narra ao se estender em um
intimamente e eles desviam o olhar: ..aque_ r'sl)irço de recordação: "tal nome de um
livro
le que é olhado, ou que acredita estar sendo ,rrrtigo guarda entre suas sílabas o Yento
rópido
olhado, abre os olhos. Experienciar a aura de ( t, sol que sentíramos ao lê-lo'6e ' As
brilhante
uma aparição é dotá-la da capacidade de abrir
l,alavras também
podem irradiar uma aura'
de
os olhos. Ás descobertas da mémoire involon_
Itcnjamin cita Karl Kraus: "quanto mais
taire correspondem uma palavra' mais distante
l)crto se olha para
a isso"6s. As coisas perdem
seu encantamento, sua aura, quando perdem o
cla parece estar"7o.
olhar. Não somos olhados nem abordados por Atualmente, Percebemos o mundo prin-
elas. Elas não são mais um Tu, mas um lsso . ipalmente em termos de informaçóes' As
informaçóes não têm distância nem extensáo'
for-
66 'Alguns espíritos amantes de mistério imaginam que os lilas náo Podem conter rajadas de vento
objetos conservam algo dos olhos que os miraram, que qua-
não têm
dros e monumentos só nos aparecem sob o veu perceptível lcs nem raios de sol brilhantes' Elas
espaços auráticos' Assim, elas desauritizam
tecido pelo amor e pela contemplação de seus adoradores e
durante séculos a fio" (pROUSl, M. Em busco do tempo per_
dido - o tempo redescoberto. Vol.7. São paulo: Globo.
Edi_
ção do Kindle, 2013, locais do Kindle: 3162-3163).
(,(l PROUSI M. Em busco do tempo perdído - o tempo
67 BENJAMIN, W. Dos possogen-Werk. Frankfurt am Main, Edição do Kindle'
radescoberto. Vol. 7. São Paulo: Globo'
1991, p. 396 [Gesammelte Schriften, vol. L].
/013, locais do Kindle: 31'61-31'68'
68 BENJAMIN. über einige Motive bei Boudeloire. Op.
cit., i 0 BENJAMIN, W. Über einige
Motive bei Baudeloire' Op'
p.646.
r it., p. 647.

82

l^ 83
iltilt

-
da informa-
desencantam o mundo. A linguagem perclc A história é uma contrafigura

completamente sua aura quando se transfor' $ro, Pr)is tem um começo e um fim' Ela se dis-
iln|,,uc por seu fechamento'
que é luma forma
ma em informação. A informação represenlrr
o estágio de declínio absoluto da linguagem. ,b uma ["'] diferença fundamen-
rl,:s.lccho'."há

t,rl ctttre as histórias, por um


lado' que visam
A memória é uma prática narrativa que
liltl, um fechamento' uma conclusáo'
e
constantemente vincula novos acontecimen- rrrrr
tos e cria uma rede de relações. O tsunami de ,r trrlirrmaçáo, cuja própria
natureza é sem-

informaçóes destrói interioridade narrativa.


a incompleta, fragmentária"73' Um
I'r(' l)rlrcial,
tem magia
A memória desnarrativizadaé como a "loja dc rrrttttltl totalmente ilimitado não
sucatas", o "depósito abarrotado de todo tipo as tran-
rr'rf r cncantamento' Sáo as fronteiras'
de imagens completamente desordenadas, ,rtr)('.§ e oslimiaresque revelam a magia' Assim

mal preservadas e de símbolos desgastados"tr. r',r lcVe Susan Sontag:


As coisas na loja de sucatas formam uma pi- Pois onde há fechamento' unidade
ecoerência' deve haver limites'
lha desordenada e caótica. O amontoado é a
Tudo é relevante na jornada que
contrafigura da narração. Os acontecimentos
emPreendemos dentro desses
só se condensam em uma história se são dis- limites' Também Poderíamos
postos em camadqst2 de uma determinada ma- designar o final de uma história

neira. O amontoado de dados ou informações como o Ponto mágico no qual


essas visões mutáveis e provisórias
não tem uma história. Ele não é narrativo, fixo a Partir
se unem: o Ponto
mas cumulativo. do qual o leitor Percebe como
as

coisas que inicialmente Parecem


dísPares acabam se encaixandoTo'
71 VlRlLlO, P. lnformotÍon und Apokolypse. Die Strategie
der Tàuschung. lt/ünchen, 2000, p. 39.

72 Em alemão, o termo é "geschichtet", que é o particí- r ',r )NTAG, S. Zur gleichen Zeit' Aufsátze und Reden' Mün-
pto de "schichten", que significa "dispor em camadas". lsso
r,,,rr,,r008, p.282.
permite a aproximação, no original, com o substantivo Ges-
chichre (história) [N.T.]. 'l llrrtl., P.281

85
84
Narrar é um jogo de luz e sombra, rrlrirríamos em ser cegos"75. Não existe narra-
do vi
sível e invisível, da proximidade
e distânciir \ i t I I ransp arente. Toda narração pressupõe mis-
A transparência aniquila essa tensão dialétitir k'r io e encantamento. Somente uma cegueira
que está na base de toda narração.
O deserr ,,rrrrhada nos libertaria do inferno da transpa-
cantamento digital do mundo
vai muito alerrr tr'ncia e nos permitiria narrar novamente.
do desencantamento que Max Weber (lershom Scholem conclui seu livro sobre o
atribtrr
à racionalização por meio da ciência. lristicismo judaico com uma história hassídica:
O r/t,
sencanto de hoje remonta à informatização Quando Baal Shem Tov tinha algo
tltt
difícil para fazer, alguma obra
mundo. A transparência é a nova
fórmula pa,.(t para o benefício das criaturas,
o desencantamento. Ela desencanta ele ia para um determinado
o munclr
ao dissolvê-lo em dados e informações. lugar na floresta, acendia um
fogo e, absorto em meditação,
Em uma entrevista, paul Virilio
menciol.rir orava.-Etudooqueele
um conto de ficção científica sobre empreendia acontecia tal como
a invençào
de uma câmera minúscula. Ela ele havia planejado. Uma geraçao
é tão pequenir
mais tarde, quando Maguid de
e leve que pode até ser transportada
por flo Mezeritch se deparou com um
cos de neve. Essas câmeras são grande empreendimento, ele
misturadas enr
grande quantidade com neve artificial foi até aquele local no bosque e
e lança
disse: "não sabemos mais acender
das de aviões. As pessoas pensam:
está nevan o fogo, mas podemos fazer as
do. Na realidade, o mundo está orações". - E depois de fazê-
sendo conta_
minado por câmeras. EIe se torna las, tudo correu de acordo com
totalmentc
seu plano. Outra geração mais
transparente. Nada permanece
oculto. Não hii tarde, o rabino Moshe Leib de
mais pontos cegos. perguntado
euando sobrc
o que poderíamos sonhar se tudo /', (.yberwar, God and television, an interview with Paul
se tornasse
completamente visível, Virilio responde:,,so Vrrrlro. ln: KROKER, A. & KROKER, M. (Eds.). Digitol Delirium.
Nr ,w York, t997 , p. 41,-48, aqui p. 47 .

86
87

tl
Sassov estava para realizar
ulrr ilrro un'lâ narrativa metafórica sobre o avanço
grande feito. Lá, ele disse: ,,rràtt
sabemos mais acender
,l,r ;'1 11sg556 de secularização da modernidade.
o fogo, ttt,,,
conhecemos as meditaçôes rr nrundo está se tornando cadavez mais de-
secr t.t,,
que animam as oraçôes. .' r' ,urlildo. O fogo mítico foi extinto há muito
Mas
conhecemos o iugar na florestir
r, rrf )(). Não sabemos mais fazer oraçoes. Tam-
ao qual tudo isso pertence,
e
isso deve ser o suficiente,l _ l" rr niio somos capazes de meditações secre-
Ir
de fato, foi o suficient.
ôurn,,,, rr . ( ) lugar mítico na floresta foi esquecido.
novamente uma geração
mais llrrlr', illém disso, algo crucial foi acrescenta-
tarde, o rabino Israel de
Ruzhirr isf .11ss perdendo até mesmo ahabilidade
,lrr f
se comprometeu a realizar unlr
grande obra, ele se sentou
em ltrt rt iltüfaf que seria capaz de, retrospectiva-
uma cadeira em casa e disse: ilr' ill(,, evocar esses eventos míticos.
..não
sabemos mais fazer
o fogo, não podemos mais
fazer as orações prescritas,
não
conhecemos mais o lugar na
floresta, mas podemos ainda
narrar a história de tudo isso,l -
E a história, por si só, teve
o
mesmo efeito alcançado pelos
outros três.76

Adorno cita essa história hassídica


na inr(.
gra em seu GruJj an Gershom
G. Scholem ztttrt
70. Geburtstag
[saudaçoes a Gershom G. Scho
lem em seu 70o aniversário].
EIe a interprct.r

-
76 SCHOLEM, G. Die jüdische
Mystik in ihren Houptstrôn)ut,
gen. Frankfurt,1993, p.
3g4.

88
89
l)o choque ao like

lrrn seu estudo sobre Baudelúre, Sobre al-


rtrrr: lcmas em Baudelaire, Benjamin cita uma

1,r
rf ucnâ peça em prosa de Baudelaire, A perda
,l,t ,rttréola. A peça fala de um poeta que perde
,,r,r iruréola ao atravessar uma avenida: "há pou-
,Ir cstava eu atravessando o bulevar com gran-
,1,'Prs55x, e eis que, ao saltar sobre a lama, em

lrr'io a este caos em movimento, onde a morte


,lrt'gir a galope de todos os lados ao mesmo
tr'nlpo, minha auréola, em um movimento
l,r rrsco, desliza de minha cabeça e cai no lodo
,1,, asfalto"77. Benjamin interpreta essa história
r ()n)o uma alegoria da modernidade. Ela fala
,.obre a decadência da aura: "ele [Baudelaire]

rlt'tcrminou o preço que é preciso pagar para


,rtlquirir a sensação do moderno: a desintegra-
lt ll

// UENJAT\,41N, \N. Sobre alguns temas em Boudeloire. Sáo


l',rrrlo: Brasiliense, 1989, p. 144 [Obras Escolhidas, vol. 3].

91
ção da aura na vivência do choque,,7s. A rt,irlr quase mais importante do que
dade vai se impondo ao espectador recebê-los; o organismo está
de for.rrr,,
intermitente. Ela se desloca dotado de reservas de energia
da tela da pirrlrr
próprias e, acima de tudo, deve
ra para a tela na qual o filme
se desenrola. .\ estar empenhado em preservar as
pintura convida o espectador formas específicas de conversão
a um demt,r,r,
contemplativo. Diante dela, ele de energia nele operantes contra
se abandonrr ,r
a influência uniformizante e,
sua livre associação. Assim,
ele descansa crrr por conseguinte, destrutivas
si mesmo. O espectador do cinema,
por ou das imensas energias ativas no
tfllilflflilililtiliilI
tro lado, é como o pedestre no exterior8o.

E
meio do ca,,,
do trânsito, em que a morte corre Essas energias ameaçadoras do exterior se
em sua rli
lados: .b cinerrr.r
reção a galope, por todos os ,lescarregam em choques. Quanto mais bem-
é a forma de arte correspondente sucedida a consciência exerce seu trabalho,
aos perigo.,
existenciais mais intensos com nlcrlos sentiremos o efeito traumático do cho- il lilill ll

os quais

I
st.
confronta o homem contemporâneo,,7e. rluc. A consciência impede a penetração dos
De acordo com Freud, a principal cstímulos nas camadas mais profundas da psi-
funçiro
da consciência é a defesa dos r1tre. Quando a defesa da consciência contra os
estímulos. Fllir
tenta atribuir um lugar na consciência cstímulos falha, sofremos um choque traumá-
ao es
tímulo intruso às custas da integridade tico. Na lida com esse choque, podem concorrer
de serr
conteúdo. Benjamin cita Freud: lrrnto o sonho quanto a memória. Posterior-
para o organismo yivo, proteger-sc rucnte, eles se dão o tempo necessário na lida
contra os estímulos é uma função
( om o estímulo, tempo que antes nos faltava.
Sc o choque for aparado pela consciência, o in-
78 lbid., p. 1.45. t'idente que o desencadeia é atenuado e trans-
79 BENJAMIN, W. A obra de arte no era de sua reproduti
bilidade tecnico. São paulo: Brasiliense, j.985,
Escolhidas, vol. 11.
1üi;;r.,
p. u0 BENJAMIN, W. Sobre olguns temos em Boudeloire. Op.
r tt., p. 109.

r.
92
93
formado em uma vivência. Na modernidade, suscitá-lo ele próprio. Vailes
fala de seus gestos excêntricos.
a participação do momento de choque nas int
[...] Gautier fala das'tesuras" e
pressões individuais se torna tão grande que rr
de como Baudelaire gostava de
consciência precisa estar constantemente ativit utilizá-las ao declamar; Nadar
no interesse da proteção dos estímulos. Quan descreve o seu andar abruptosr.

to maior seu sucesso, menos eles entram nrr Baudelaire é, de acordo com Benjamin,
experiência. As experiências são substituídas rInl dos "tipos traumatófilosl Ele "abraçou como

por vivências, ou seja, por choques atenuados. \ua causa aparar os choques, de onde quer que

O olho do habitante moderno das grandes ci llroviessem, com o seu ser espiritual e físico'8r.
l:.lc "luta esgrima" com sua caneta.
dades está sobrecarregado com funções de se
Mais de 100 anos se passaram desde o es-
gurança. Eles desaprenderam a demorar-se dt'
trrdo de Benjamin sobre Baudelaire. A tela em
modo contemplativo: 'b olhar prudente pres
(lr,rc o filme se desenrolava foi substituída pela
cinde do sonho que divaga no longínquo"8r.
tcla digital que temos diante de nós quase o
Benjamin realça a experiência do choque
Icnrpo todo. Originalmente, a palavra "tela"
como o princípio poético de Baudelaire:
s i prote ção. A tela c ap tur a a r ealidade
g rr i ficava
Baudelaire fixou esta constatação
('n) imagens. Dessa forma, ela nos protege da
na imagem crua de um duelo,
em que o artista, antes de ser rt'alidade. Percebemos a realidade quase que
vencido, lança um grito de susto. lxclusivamente por meio da tela digital. A rea-
Este duelo é o próprio processo
litlade é, agora, apenas uma seção da tela. No
de criação. Assim, Baudelaire
snrartphone, a realidade é tão reduzida que
inseriu a experiência do choque
no âmago de seu trabalho ruas impressões não contêm mais um mo-
artístico. [...] Tomado pelo susto, nrcrrto de choque. O choque da lugar ao like.
Baudelaire não está longe de
ttll
;' llrid., p. 111.
81 lbid., p. 142. :I li)id.

94 95
I
I
O smartphone nos protege da realidatl,,
,' louchscreen difere da imagem como tela
de forma maximamente eficaz, na medida
errr (r't rirfln), que ainda permite que o olhar trans-
que remove completamente o olhar
o oulrrt eue. A tela digital, ao contrário, na medida
lttu'(Ça.
apresenta. O touchscreenfazcom que
a reali
dade como a contraparte em ''ur que nos blinda completamente da reali-
de rosto
forma cl<,
,l,rtlc, não permite que nada transpareça. Ela
sapareça por completo. privado da alteridarlt.,
,'pltna.
o outro se torna consumível. Segundo Lacarr,
'loda teoria da imagem reflete a sociedade
a imagem ainda possui um olhar que
me olhrr, rrir rlual ela está inserida. No tempo de Lacan,
me agarra, me encanta, me fascina, que
me cil ,, nrundo ainda é vivenciado como passível de
tiva e toma posse de meu olho: ..na imager)).
,,llntr. Também em Heidegger encontramos
um olhar é certamente sempre manifestado,'",
lormulações que são desconcertantes para
Lacan distingue entre o olhar e o olho.
O olh,, rrris, hoje. F.m Origem da obra de arte, ele es-
constrói uma imagem espelhada imagináriir
( r'cve: "utensílio: jarro, machado ou sapatos. A
que o olhar atrqvessa.
st'rventia e aquele traço fundamental a partir
O rosto exige distância. Ele é um Iz, e niio
.lo qual este ente nos olha, quer dizer, nos'pis-
um lsso disponível. podemos, assim, tocar u
r ir o olho e, com isso, vem à presença e, desta
imagem de uma pessoa com o dedo ou
att. Ionna, é este ente"8s. Na verdade, é a serventia
mesmo apagá-La, porque ela já perdeu serr
(lue faz com que o ser-disponível-aí dos entes
olhar, seu rosto. Lacan diria que a imagerrr
rlcsapareça, pois percebemos uma coisa em
enclausurada no touchscreen não tem
olhar, lcnnos de sua finalidade. O "utensílio' de Hei-
que ela serve apenas como tm deleite para
os
tlcgger ainda mantém uma dimensão do olhar.
olhos que satisfaz minhas necessidades.
Assinr, ll um oposto que olha para nós.

84 LACAN, ). Die vier Grundbegriffe der psychoonolyst


Weinheim u. a. L9g7, p. l3') HEIDEGGER, M. Caminhos de floresta. Lisboa: Fundação
1O7.
( ,rlouste Gulbekian, 1998, p.22.

96
97

l^
E

O desaparecimento do olhar anda «lc A mudança do choque para o like tam-


mãos dadas com a crescente narcisização
dir hórn pode ser atribuída à mudança em nosso
percepção. O narcisismo elimina
o olhar, otr
seja, o outro, em favor da imagem
,rparato psíquico. Pode ser verdade que, na
imaginária
do espelho. O smartphone acelera rnodernidade, nós percebemos o aumento da I
a expulsa,,
do outro. Ele é um espelho digital superestimulação como um choque. Com o
qu. p.,,
voca uma reedição pós_infantil lcmpo, o aparato psíquico se acostuma com
do estádio d«r
espelho. Graças ao smartphone, o aumento da quantidade de estímulos. Isso
permanece
mos em um estádio do espelho que embrutece a percepção. O córtex cerebral,
manténr ilfl|flflil[ilffiiltflflflil|lililfltil
um ego imaginário. O digital submete onde ocorre a defesa contra estímulos, fica
a tría r
llililllli i llti I lltl I tltl i i i i 1 I 11
coberto pela córnea, por assim dizer. A cama-
1 1
de lacaniana do Real, do imaginário
11 11 1

e do sim-
bólico a uma reconstrução radical. illlillllilllllllllll lli llt llr li
Ele des- rla mais externa da consciência endurece e se
constrói o Real €, em favor do imaginár torna "inorgânicd'86.
io, fat.
desaparecer o simbólico que Um tipo artístico como Baudelaire, que
incorporava os
valores e as normas da comunidade. involuntariamente evoca o assustador, parece
Em úl_
tima análise, isso resulta na erosão rrão apenas antiquado hoje, mas quase grotes-
da comu_
nidade. Na era da Netflix, ninguém
falará da co. feff Koons é o tipo artístico do presente.
experiência de choque com relação
ao filme. l.lle trabalha de forma smart. Suas obras re- ffiilillillilliltilliilffi
As séries da Netflix são tudo menos
a forma Í'letem o mundo simples do consumo, diame-
de arte correspondente aos perigos
existen_ tralmente oposto ao choque. Ele exige apenas
ciais mais intensos. Em vez disso,
o consumo tum simples "uau" do espectador de suas obras.
de séries é caracterizado pelo
bindge_watching
Sua arte é deliberadamente descontraída e de-
e pelo marat onar séries. O espectador
é engor_
sarmante. Ele quer, acima de tudo, agradar.
dado como gado consumidor.
O bindge_wat_
ching pode ser generalizado como
o -odo d" 86 FREUD, S. Jenseits des Lustprinzips. ln: Das lch und das
percepção da modernidade digital und andere metapsychologische Schriften. Frankfurt, 1978,
tardia. Es

I
p.L21,-t7t, aqui: p. 1-38.
98
99
I

Seu lema e: 'hbraçar o espectador". Nada crrr


sua arte pode assustar ou chocar o espectadrlr..
Teoria como narração
Ela está localizada além do choque. De acor
do com Koons, ela quer ser 'tomunicaçãol
Ele também poderia ter dito: o lema da minhtt
arte é o like.

Em seu ensaio The end of theory [o fim


,l,r teoria], Chris Anderson, editor-chefe da
Wired, afirma que quantidades inimagináveis
,lc dados tornariam as teorias completamente
,rhsoletas: "Hoje, empresas como Google, que
r tcSCeÍârrl em uma era de dados massivamen-
tt'abundantes, não precisam se contentar com
nrodelos errados. Na verdade, elas não pre-
, isam mais se contentar com modelos"87. A
;,sicologia ou sociologia orientada por
dados

lorna possível prever e controlar com precisão


) comportamento humano. As teorias estão
'
,.t'ndo substituídas por dados diretos: "para
lortr com toda teoria do comportamento hu-
nrilno, da linguística à sociologia. Esqueça a

l.rxonomia, a ontologia e a psicologia. Quem

lrl Wired tVagazine, 16101I2O08. https://www.wired com/


.,r x)8/06/pb theory/.

100 101
I
sabe por que as pessoas fazem aquilo que Írr l,r uma forma de desfecho que comPreende as

zem? A questão é que elas fazem, e podemo. r ()isas er7, sl e as torna, por isso, compreensí-

rastrear e medir isso com uma fidelidade serrr vcis. O Big Data, Por outro lado, é totalmente

precedentes. Com dados suficientes, os núme rtlrrto. A teoria na forma de desfecho prende
ros falam por si"88. .rs coisas em uma estrutura conceitual e as

O Big Data, na verdade, não explica naclrr. lorrla, com isso, apreensíveis. O fim da teoria
Apenas revela correlações entre as coisas. Mas rignifica, em última instância, dizer adeus ao
as correlações são a forma mais primitiva clt' tonceito como esPírito. A inteligência artificial

conhecimento. Nada é compreendido nas Irrrrciona muito bem sem o conceito' lnteligên-

correlações. O Big Data não é capaz de expli riu nõo é espírito. Somente o espírito é capaz
car Por que as coisas se comportam da manei ,lc uma nova ordem das coisas, de uma nova
ra como se comportam. Náo são estabeleci xrrração. A inteligência calcula e computa' O

das conexões causais nem conceituais. O'por t'spírito, todavia, narra. As ciências do espíri-

que" é completamente substituído pelo "lsÍo to orientadas por dados não são ciências do
- é - as sim" in c o mp re en sív el. *1tírito, mas ciências de dados. Os dados ex-
de dados
A teoria como narração cria uma ordenr lrtilsam o espírito. O conhecimento
de coisas, relacionando-as umas com as outras cstá localizado no ponto zero do espírito' Em

e explicando por que elas se comportam da trm mundo saturado de dados e informaçóes,
maneira como se comportam. Ela desenvolvc ;rcapacidade de narrar se atrofia' Com isso, a

nexos conceituais qtte tornam as coisas com. (()nstrução de teorias se torna algo mais raro,

preensíveis. Em contraste com o Big Data, ela irte mesmo arriscado.


Em Sigmund Freud é possível ver com cla-
nos oferece a forma mais elevada de conheci-
mento, qual seja, a compreensao.Ela apresen- rcz.a que teoria é narração. Sua psicanálise é

trrna narração que oferece um modelo explica-


tivo para nosso aparato psíquico. As histórias
88 ldem.
103
102
que ele ouve de seus pacientes são explicativas psicanalíticas e,
submeticlas
à sua narrativa psicanalítica, que torna ao fazê-lo, revela-se como o
corrr
herói discreto de suas próprias
preensível um determinado comportamento,
narrativas analíticass'.
um determinado sintoma. A cura supostamerr
Os diálogos de Platão já deixam claro que
te ocorre quando os pacientes concordam
corl ,r lilosofia é uma narração. Embora Platão, em
a narrativa que lhes é oferecida. O histórico tk. norne da verdade, critique o mito enquanto
caso dos pacientes e sua narrativa
psicanalític.r \'trração, paradoxalmente ele mesmo faz uso
interferem um no outro. A narrativa
é sempn, lrcquente de narrativas míticas. Em muitos
narrada novamente e adaptada ao
materiirl rliiilogos, elas desempenham um papel central.
que ela procura interpretar. Os históricos
clrs N<t Fédon, por exemplo, Platão narra o destino
casos devem se fundir em sua narrativa.
Nesst. ,la alma após a morte, assim como Dante em
processo, Freud aparece como um
herói de strrr :trir Divina Comédia. Os pecadores seriam con-
própria narração:
.lcnados ao tormento eterno no Tártaro. Somen-
como um transnarrador do que
lhe foi comunicado de forma lc os virtuosos entrâriam nas moradas celestiais
distorcida, ele não só prova ser ,rpós a morte. Depois de suas observações sobre
aquele que foca, pesa e ordena o destino da alma após a morte, Platão afirma
qualquer material inconsistente.
t;ue vale a pena ousar acreditar nele:
Nada pode lhe acontecer, pois
Afirmar, de modo positivo, que
mesmo diante de supostos
tudo seja como acabei de expor,
contratempos ele não perde a
não é próprio de homem sensato;
soberania interpretativa sobre
mas que deve ser assim mesmo ou
seu material. Isso pode até
ser presumido: quanto mais
o material a ser interpretado
::T::::ff :J,::*'."'"',.'I:
ameaça escapar de seu alcance,
mais obstinadamente ele insiste It() BRONFEN, E. Theorie als Erzáhlung: Sigmund Freud. ln:
na legitimidade de suas fórmulas MtRSCH, D. et. al. (Ed.l. Ásthetische Theorie. Zurique/Ber-
Irrn,2019, p.57-14, aqui: p.59.

104 105
ao prazer
sendo a alma imortal como sc t('compensados por renunciarmos
de
nos revelou, é proposição que rr, It'r'r€Ílo em favor da virtude' O postulado
parece digna de fé e muito
Kirnt sobre a imortalidade da alma também
prrip11., é
para recomPensar-nos do risc0
Kant' a
em que incorremos por aceitá lir ilrlra narrativa ousada. De acordo com
como tal. E um belo risco, eís o r1rt, "r'cirlização do bem supremo" pressuPõe uma
precisamos dizer a nós mesmo, it ''r'xistência que continua a existir no infini-
guisa de fórmula de encantamt:ttl,'
Essa é a razão de ter me alongnl,,
tril porque nenhum "ser do mundo sensívef'
neste mitoeo. ( capaz "em qualquer momento
de sua vida"

A filosofia como "poesid' (mythos) e wl rlir "completa adequação dos sentimentos à lei
até o in-
risco, um belo risco. Ela narra, até mesmo orr.srr, nloral': Assim, um "progresso que vai
uffia maneira nova de viver e ser. O ego cogilrt. linito' é postulado, em que os seres humanos
ergo sum de Descartes introduz uma nova ()t lrtrscam alcançar o "sumo bem"ez além da mor-
da alma'
denação das coisas, ordenação esta que repr(' tc. No que diz respeito à imortalidade
nao di-
senta a idade moderna. A orientação radicirl ,r tcoria moral de Kant enquanto fábula
em direção à certeza é um risco com respcilo Itre fundamentalmente
do mito em Platão' Em

ao novo que abandona a narrativa cristã-nr(' r orltraste com Kant, Platáo


enfatizaespecifica-

que se trata de umâ narrativa


(mythos)'
dieval. O Iluminismo também é uma narrati nrcrlte
per-
va. A teoria moral de Kant, igualmente, é urrr,r Novas narrativas Permitem uma nova
narrativa muito ousada. Nela, um Deus morll r cpção. A transvaloração de
todos os valores

.lc Nietzsche abre uma nova visão de


mundo'
garante que a bem-aventurança seja distribur
) rtrundo é transnarrado, por assim dizer'
da "na exata proporção da eticidade"er. Sor.r.rr,' t

Assim, nós passamos a vêlo com olhos comple-


Nietzsche
lirrrlente diferentes. A Gaia ciência de
90 PLATÃO. Fédon. Belém: Ed. U FPA, 2OLL, p. L14D.

91 KANI l. Kritik der proktischen Vernunft Darmstadt, 19lt I


p.239. ,)/ lbid., p. 252ss.

107
106
é tudo menos ciência no sentid.o estrito. I1l,r um futuro,
e Pressentimento de
é concebida como uma narrativa do de aventuras Próximas, de mares
futurtt,
baseada em uma "esperança,l em uma ..fé n,, novamente abertos, de metas
novamente admitidas, novamente
amanhã e no depois de amanha,l A transvakr
acreditadas'r.
ração de todos os valores de Nietzsche é unrrr
Nietzsche, como narrador, enfatiza especi-
narrativa enquanto risco e celebração,até mes
licamente súa autoria: "tenho isso em minhas
mo enquanto aventura. Ela desvela o
futuro. mãos, tenho a mão para mudar PersPectivasl
No prefácio da Gaia ciência,Nietzsche escreve :
razão pela qual uma transvaloraçao dos valo-
"Gaia Ciência,: ou seja, as
saturnais de um espírito que rcsfoi possível somente para mim"e4. Somente
pacientemente resistiu a uma na medida em que a teoria é uma narrativa é
longa, terrível pressão _
que ela também Pode ser uma Paixão. A inte-
pacientemente, severa e
ligência artificial não pode Pensar potque nao
friamente, sem sujeitar_se,
mas sem ter esperança _, e que Pode se aPaixonar, Porque nâo é capaz de uma
repentinamente é acometido narração aPaixonada.
pela esperança, pela esperança
No instante em que a filosofia reivindica
de saúde, pela embriaguez d.e
convalescença. Não surpreende ser uma ciência, ser uma ciência exata, seu de-
que então venha à luz muita coisa clínio começa. A filosofia como ciência renega
irracional e tola, muita leviana
seu caráter narrativo originário. Ela se priva
ternura, esbanjada até mesmo ent
problemas de pelos hirtos e pouco
de sua linguagem. Emudece. A filosofia acadê-
dispostos a deixar_se acariciar e mica, que se esgota na administraçáo da his-
atrair. Todo este livro não é senão
divertimento após demorada
privação e impotência, o júbilo da 93 NIETZSCHE, F, A goio ciêncía. Sáo Paulo: Companhia das
Letras, 2001, P.9.
força que retorna, da renascida
fé num amanhã e no depois de 94 NIETZSCHE, F. Nachgelassene Fragmente 1887-1889 1n:

amanhã, do repentino sentimento COLLI, G. & MONTINARI, M. (Eds ). Kritische Studienousgo-


be. Vol. 13. Berlim/Nova York 1988, p, 630'

108
109
T

tória da filosofia, é incapaz de narrar. Ela nij,,


é mais um risco, mas uma burocracia. Assinr,
a atual crise da narração também está se apo
Narração como cura
derando da filosofia e lhe pondo um fim. Ntio
temos mais coragem para a filosofia, corager)r
para a teoria, isto é, coragem para a narraçao.
Devemos estar cientes de que o pensamento l',
em última análise, ele próprio uma narrativa, Em uma de suas lmagens do Pensamen-
que ele procede em etapas narrativas. /o, Benjamin evoca a cena originária da cura:
"a criança está doente. A mãe coloca-a na
cama e senta-se a seu lado. E depois começa
a lhe narrar histórias"es. A narração de his-
tórias cura, na medida em que proporciona
um profundo relaxamento e cria um senso de
confiança básica. A voz plena e amável da mãe
acalma a criança, acaricia sua alma, fortalece o
vínculo e lhe dá apoio, AIém disso, as narrati-
vas das histórias infantis falam de um mundo
intacto. Elas transformam o mundo em um
lar familiar. Além disso, um de seus modelos
básicos é a superação feliz de uma crise. Dessa
forma, elas ajudam a criança a superar sua
doença enquanto crise.

95 BENJAMIN, W. Denkbilder. ln: Gessammelte Schriften


Vol. lV1. Frankfurt/M: 1971, p.305-438, aqui: p. 430.

110
111
T

A cura também é a mão que narra. Ben cama"es para ele. Benjamin ressalta que a narrati-
-
jamin relata um poder de cura incomum quc va que a pessoa doente faz ao médico no início

emana das mãos de uma senhora, cujos movi- início ao processo de cura'
clo tratamen to iâ dá

mentos fazparecer que estão narrando:'bs seus Freud também entende a dor como um
movimentos eram extremamente expressivos. sintoma que indica um bloqueio na história
Mas seria impossível descrever essa expressào... de uma pessoa. A pessoa é incapaz de conti-

Era como se narrassem uma história'e6. Todir nuar sua história. Os transtornos psíquicos
doença revela um bloqueio interno que pode são expressões de uma narrativa bloqueada' A

ser removido por meio do ritmo da narraçao. cura consiste em liberar o paciente desse blo-
A mao que narra libera a tensão, a congestào queio narrativo, em verbalizar o não-narrável'
e o endurecimento. Ela traz as coisas de volta O paciente é curado no momento em que ele
aos eixos, deixa-as Jluir. se narra mais livremente'
Benjamin se pergunta se "não seria toda As narrativas, como tais, revelam o poder
doença curável se se deixasse arrastar o mais de cura. Benjamin menciona os ditos mági-
longe possível - até a foz - pela corrente da cos de Merseburg, o segundo dos quais serve
narração"e7. A dor é um dique que inicialmen- como uma magia de cura. Contudo, ele não é
te resiste à corrente narrativa. Mas ela é rom- composto de formulas abstratas' Antes, narra
pida quando a corrente narrativa cresce e se a história de um cavalo ferido no qual Odin
torna forte o suficiente. Ela então leva tudo cr usa sua formula mágica. Assim, observa Ben-
que encontra em seu caminho para o mar da jamin: "não se trata apenas de repetir a formula

feliz libertação. A mão carinhosa guia o fluxo de Odin, mas de narrar os fatos que o levaram
narrativo, na medida em que 'delineia uma a utilizá-las pela primeira vet'ee'

96 rbid. 98 rbid.

97 tbid. 99 lbid., destaque de B. Han.


113
112

1 /^
Um acontecimento traumático pode ser peito"roo. A fantasia narrativa é curativa. As
superado se for integrado a uma narrativa re- preocupaçóes são despojadas de sua factici-
ligiosa que ofereça conforto ou esperança e, dade opressiva ao serem colocadas em uma
assim, nos ajude a superar a crise. Diante de aparência narrativa. Elas são absorvidas por
acontecimentos críticos, também se contam ritmos e melodias narrativas. A narrativa as

narrativas de crise que ajudam a superá-los, na elevam da pura facticidade. Elas se liquefazem
medida em que os inserem em um contexto no fluxo narrativo emyez de se endurecerem
significativo. As teorias da conspiração tam- em um bloqueio mental.

bém possuem uma função terapêutica. Elas Hoje, apesar do storytelling, o clima narra-

oferecem uma explicação simples para ques- tivo está desaparecendo. Também os médi-
toes complexas que são responsáveis pela cri- cos já quase nao narram mais. Eles não têm

se. Portanto, elas são narrativas que aparecem


tempo nem paciência para escutar. A lógica
da eficiência não é compatível com o espírito
sobretudo em tempos de crise. Com respeito
da narração. Somente a psicoterapia e a psi-
a uma situação crítica e de crise, a narraçao,
canálise ainda mostram reminiscências do
como tal, tem um efeito terapêutico, na me-
poder curativo da narração. Momo, de Mi-
dida em que lhe atribui um lugar no passado.
chael Ende, pode curar as pessoas simplesmente
Deslocada para o passado, ela não afeta mais cr
escutando-as. Ela é rica em tempo: 'b tempo
presente. Ela é, por assim dizer, posta de lado.
era a única coisa em que Momo era rica". Seu
O capítulo sobre a ação de Arendt em Vita
tempo é válido para o outro. O tempo do outro
activa oder vom tiitigen Leben tem como epí-
é tm tempo bom,Momo prova ser uma ouvin-
grafe um dito inusitado de Isak Dinesen, quc 'b que a pequena Momo podia fazer
te ideal:
é ali utilizado como mote: "todas as mágoas
são suportáveis quando fazemos delas uma
100 ARENDI, H. A condição humano. Rio de Janeiro: Foren-
história ou contamos uma história a seu res-
se Universitária,2007, p. L88.

114 11s
I
como ninguém era: escutar". Isso não é nada A escuta se concentra principalmente não
especial, alguns leitores poderiam dizer no conteúdo que está sendo partilhado, mas
qualquer um é capaz de escutar. Mas isso 11 na pessoa, no quem do outro. Com seu olhar
um erro. Poucas pessoas podem de fato escu profundo e amigável, Momo uisa explicita-
tar. E a maneira com que Momo sabia escutar rllente ao outro em sua alteridade. A escuta

era totalmente única". O silêncio amistoso e não é um estado passivo, mas um fazer ativo.
atento de Momo é capaz até mesmo de trazer Ela inspira o outro a narrar e abre tm espaço

ideias d outra Pessoa que estajamais teria po de ressonância no qual quem narra se sente vl-
dido pensar por conta própria. "Não porque sado, sente que lhe escutam, e até mesmo se

ela tenha dito ou perguntado algo que tenha sente amado.

trazído essas ideias ao outro; não, ela apenas O toque também tem um Poder de cura'
!!!

sentou-se e escutou, com toda a atenção e in- Assim como a narração de histórias, ele cria
teresse. Ao fazer isso, ela olhava para o outro proximidade e confiança básica. Como narra-
com seus grandes olhos escuros, e a pessoa en-t tivas táteis, ele libera tensões e bloqueios que
questão sentia que, de repente, surgiam pensa- levam à dor e à doença. É assim que o médico
mentos que nunca havia suspeitado que exis- Viktor von Weizsâcker evoca outra cena origi-
tissem nela'l Momo garante que o outro narre nária da cura:
Quando a irmà Yê seu irmaozinho
livremente. Ela cura, na medida em que libera
com dor, ela encontra, antes
bloqueios narrativos: "em outra ocasião, um de todo conhecimento, um
menino lhe trouxe um canário que não queria caminho: carinhosamente, sua
mão encontra o caminho; fazendo
cantar. Essa foi uma tarefa muito difícil para
carinho, ela quer tocá-lo
Momo. Ela teve que escutá-lo por uma sema- onde dói - eis que a Pequena
na inteira até que ele finalmente começou a samaritana se torna a Primeira

gorjear e jubilar novamente". médica. Um conhecimento

116 117
I
prévio de um efeito originário bcm rouba do outro sua alteridade e o degrada a
prevalece inconscientemente nellt
trrn objeto consumível.
ele guia seu impulso até a mâo
A crescente pobreza de contato nos adoe-
e leva a mão ao toque efetivo.
Pois é isso que o pequeno irmão ce. Se formos totalmente privados de contato,

experimentará: a rnão lhe faz l'icaremos irremediavelmente presos em nosso


bem. Entre ele e sua dor surge a cgo. O toque, em sentido enfático, arranca-nos
sensação de ser tocado por umir
rle nosso ego. Pobreza de contato, em última
mâo fraterna, e a dor se afasta
análise, significa pobreza de mundo. Ela nos
dessa nova sensaçãoror.
tleixa depressivos, solitários e ansiosos. A di-
A mão que toca tem o mesmo efeito clc
gitalização agrava essa pobreza de contato e de
cura que a voz narrativa. Ela cria proximidade
r)rundo. Paradoxalmente, a crescente conecti-
e confiança. Libera a tensão e elimina o medo.
vidade nos isola. Essa é a funesta dialética da
Hoje vivemos em uma sociedade sem toqLlc.
conectividade. Estar conectado não significa
O toque pressupõe a alteridade do outro,que lhe
estar vinculado.
despoja de sua disponibilidade. Não podemos Os "stories" nas redes sociais, que na ver-
tocar um objeto consumível. Nós o agarramos dade nada mais são do que representaçóes de
ou tomamos posse dele. O smartphone, que in- si mesmo, isolam as pessoas. Ao contrário das
corpora o dispositivo digital, cria a ilusão da narrativas, eles não geram proximidade nem
disponibilidade total. Seu habitus consumista cmpatia. Em última instância, eles são infor-
abrange todos os domínios da vida. Ele tam- mações visualmente embelezadas que tornam

bém rouba do outro sua alteridade e o degrada


a desaparecer após um curto período. Eles não
a

um objeto consumível. narram, mas anuncian. A busca por atenção


não cria uma comunidade. Na época do story-
lelling como storyselling, narração e anúncio
101 VON WETZSÀCKER, V Die Schmerzen. ln: Der Arzt und der são indistinguíveis. Nisso consiste a presente
Kronke. Stücke einer mediztnischen Anthropologle. Frankfurt,
1981, p.27-47, aquí: p. 27 [Gesammelte Schriften, vol. S]. crise da narração.

118 119

)\
Comunidade narrativa

Em seu ensaio Behutsame Ortsbes-

timmungro2, Peter Nadás narra a história de uma


aldeia em cujo centro se encontra uma enorme
pereira selvagem. Nas noites quentes de verão,
os moradores se reúnem sob a árvore e narram
histórias uns aos outros. A aldeia forma uma
comunidade narrativa. As histórias, que carre-
gam valores e normas, vinculam intimamente
A comunidade narrativa é uma co-
as pessoas.

munidade sem comunicaçao: "lem-se a sensa-


ção de que a vida aqui não é feita de vivências
pessoais [...], mas de silêncios profundos"ror.
Sob a pereira selvagem, a aldeia se entrega à
'tontemplação ritual" e ratifica o'tonteúdo co-
letivo da consciência": "eles não têm nenhuma

lO2 Locolizoçõo prudente, em tradução livre [N.T.].

fo: ruÁoes, P. Behutsame ortsbestimmung. Zwei Berichte


Berlim, 2006, p. 11.

121

) \
r

-
opiniao sobre isso ou aquilo,
I
mas narram inin_
As narrativas criam coesão social. EIas con-
terruptamente uma única grande
história,,r04.
têm propostas de sentido e transportam valores
Não sem pesat Nadás faz a seguinte
constata_
constitutivos de uma comunidade. Por isso,
ção ao final do ensaio: ,hinda me lembro como,
nas noites quentes de verão, elas devem ser diferenciadas das narrativas
a aldeia costumava
cantar baixinho [...] sob a grande que fundamentam um regime. As narrativas
pereira selva_
gem [...]. Hoje já não há mais subjacentes ao regime neoliberal impedem jus-
dessas árvores. eo
canto da aldeia emudeceu,'ros. tamente a formação de comunidades. A narra-

Na comunidade narrativa de Nadás, tiva neoliberal do desempenho, por exemplo,


uma
comunidade sem comunicação, faz com que cada um seja um empreendedor de
impera um si_
lêncio, uma harmonia tranquila. si mesmo. Todos estão em competição contra
Ela é diame_
tralmente oposta à sociedade todos. A narrativa do desempenho não cria
da informaçào
de hoje. Não narramos mais
histórias uns aos coesão social, não cria um Nós. Pelo contrário,
outros. Em vez disso,nos comunicalzos
excessiva_ ela desmantela tanto a solidariedade quanto a
mente. Postamos, compartilhamos
e curtimos. empatia. As narrativas neoliberais, tais como
Aquela 'tontemplação ritual,, que
ratifica o a da otimização de si mesmo, da autorreali-
conteúdo coletivo da
barurho da comunic;JHl:l*i]:ãj
zaçáo, ou da autenticidade, desestabilizam a
T sociedade ao isolar as pessoas. Quando todos
comunicação barulhenta silencia
totalmente
aquele'tanto" que sintoniza os reverenciam religiosamente a si mesmos e são
moradores da
aldeia em uma história e, assim, sacerdotes de si mesmos, quando todos se pro-
os une. Essa
comunidade sem comunicaçao duzem, se performalz, nenhuma comunidade
dá lugar à co_
municaçao sem comunidade. estável pode ser formada.
O mito é uma narrativa comunitária ritual-
7O4 lbid., p. 17.
mente encenada. Mas o conteúdo de consciên-
105 tbid., p. 33.
cia coletivo não é prerrogativa das comunidades
122
123
L
narrativas míticas. As sociedades modernas de estar em um lugar da Terra"'uo' De acordo
com narrativas futuras também podem de- com essa narrativa universalista, não pode ha-
senvolver vma comunidade narrativa dinâmi- ver mais refugiados. Todo ser humano usufrui

ca que permite mudanças. Aquelas narrativas de hospitalidade irrestrita. Todo ser humano
conservadoras e nacionalistas que se opõem à e um cidadão do mundo. Novalis também de-
permissividade liberal são excludentes e dis- f'ende um universalismo radical' Ele imagina

criminatórias. Mas nem todas as narrativas uma "família mundial" para além da nação e
constitutivas de uma comunidade se baseiam da identidade. Ele eleva a poesia como forma

na exclusão do Outro, na medida em que exis- de reconciliação e amor. Ela une os seres hu-

te também uma narrativa inclusiva que não manos e as coisas em uma comunidade mais

se apega a uma identidade. O universalismo intima: "a poesia eleva cada indivíduo por
radical que Kant defende em seu A paz perpe- meio de uma conexão peculiar com todo o
tua, por exemplo, é uma grande narrativa qne resto [...], a poesia forma a bela sociedade - a
inclui toda a humanidade, todas as nações, e as família mundial - a bela família do universo'
no in-
une em uma comunidade mundial. Kant ftrn- [...] O indivíduo vive no todo e o todo
damenta apazperpétua nas ideias de "cidadão divíduo. É por meio da poesia que se origina
do mundo" e "hospitalidade'l Com isso, todo a mais alta simpatia e coatividade, a comuni-

ser humano tem o direito de "se apresentar à dade mais íntima"r07. Essa comunidade mais

sociedade, em virtude do direito de posse co- íntima é uma comunidade narrativa, mas que
mum à superfície da terra sobre a qual, como rejeita a excludente narrativa da identidade'

superfície esférica, eles não podem se disper-


sar infinitamente, mas têm enfim de tolerar
106 KANT, l. À poz perpétua: um projeto t'ilosót'ico Petrópo-
uns próximos aos outros, pois originariamen- lis: Vozes, 7020, P.29.
te ninguém tem mais direito do que o outro 107 NOVALIS. Schrít'ten Op Cit , Vol ll, p 533'

125
124
iiltütil

A sociedade moderna tardia, que nà«r explicitamente a ação à narração: "pois a açào
possui um reservatório suficiente de narrativrr e o discurso, cuja estreita interrelação na con-
comunitária, é instável. Sem narrativa comu cepção grega de política já discutimos, são de
nitária, o político no sentido enfático, aquelc Íàto as duas atividades que, em última instân-
que possibilita a açao comum, é incapaz de sr, cia, sempre resultam em uma historia, ou seja,
formar. No regime neoliberal, a narrativa co em um processo que, por mais arbitrário e por
munitária está se desintegrando cada vez mais acaso que seja em seus eventos e causas indi-
em narrativas privadas na forma de modelos viduais, ainda assim tem coerência suficiente
de autorrealizaçao. O regime neoliberal inr para poder ser narrado"'08.
pede a formação de narrativas constitutivas Atualmente, as narrativas estão cada vez
de comunidade. Ele isola os seres humanos a rnais despolitizadas. Elas servem principal-
fim de aumentar o desempenho ea produtivi mente para singularízar a sociedade, criando
dade. Como resultado, somos muito pobres ern singularidades culturais como objetos, esti-
narrativas comunais e significativas. A prolifera los, lugares, coletivos ou eventos singularesroe.
ção de narrativas privadas leva a comunidacie Dessa forma, elas não possuem mais nenhum
à erosão. Os stories nas redes sociais, que pu poder de formação de comunidade. A ação
blicam o privado como autorrepresentaçoes, comum, o Nós, baseia-se em uma narrativa.
também deterioram a esfera pública político. Hoje, as narrativas são amplamente mono-
Assim, eles dificultam a formação de narrati polizadas pelo comércio. O storytelling como
vas comunitárias. storyselling nao produz uma comunidade
A ação política em sentido enf;itico pressu narrativa, mas uma sociedade do consumo. As
põe uma narrativa. Ela deve ser narrável. Senr
narrativas, o agir se degenera em açÕes e rea 108 ARENDI, H. Vito octivo oder Vom totigen Leben. Op
cit., p. 90. Destaque de B. Han.
ções arbitrárias. Á açao política pressupõe umtt
109 Ci RECKWIZ, A. Die Gesellschoft der Sinqularitoten.
coerência narrativa. Hannah Arendt vincull
Zum Strukturwondel der Moderne. Berllm, 2019.

126 127

À
narrativas sao produzidas e consumidas cont,t

mercadorias. Consumidores não formam unrl


Storyselling
comunidade, um Nós. A comercialização das
narrativas retira-lhes sua força política. Dessrr
forma, até mesmo a moralidade se torna consu
mível, quando certos produtos são adornados
com narrativas morais, tal como o comércio jus
O storytelling está em alta ultimamente'
to (fair trade). Elas são vendidas e consumidas
Até passa a impressão de que estamos voltan-
como informações eminentes. O consumo mo
do a narrar mais histórias uns aos outros' Na
ralizado, mediado por narrativas, aumenta apc
verdade, o storytelling é tudo menos o retor-
nas a autoestima. Por meio de narrativas, nào
no da narração. Em vez disso, ele serve para
nos relacionamos com a comunidade que deve fiitiiiitiitiitiiit
e comercializar as narrativas'
ilililtililililtililililtifiiiiiiitf
instrumentalizar
ser melhorada, mas com nosso próprio ego.
Ele está se estabelecendo como uma eficiente
técnica de comunicação que, não raro' tem
ob-

jetivos manipuladores. Trata-se sempre de uma iltilililililtilililililililil11il1tililililtilIilil1ilitiiiif itii

questão: "how to :use storytelling?" l"como


que
usar o storytelling!."]. Enganam-se aqueles
presumem que os gestores de produto imersos
em storytellíng representam a vanguarda de
uma nova narrativa.
Storytelling na forma de storyselling caÍe-
ce do poder que originariamente distingue
as

narrativas. As narrativas inserem as articula-


dizer' Dessa forma' elas
çóes no ser, por assim

129
128
ililillililililililililililtil1ililfl fl iltil1fl il1il1fl il1il1ilililililffi fl

dao orientação e apoio à vida. Por outro lado,,t,, alma. Dados se opõem às narrações. Eles não
narrativas na forma de produto de storytellitt, tocam as pessoas. Eles ativam mais o enten-
compartilham muitas características com as irr dimento do que a emoção. Até mesmo jorna-
formações. Tâl como as informações, elas srr,, listas iniciantes participam de seminários de
efêmeras, arbitrárias e consumíveis. Elas nlo storytelling, como se tivessem que escrever ro-
são capazes de estabilizar a vida. mances. O storytelling é usado sobretudo no
Narrativas são mais eficazes do que mer()\ marketing. O marketingprecisa transformar as

fatos ou números porque provocam emoçires coisas desprovidas de valor em bens valiosos.
Emoções respondem sobretudo às narrativas Narrativas que prometam vivências especiais
Storys sell significa, em última anâlise: emo para o consumidor são decisivas para a cria-
tions sell. As emoções têm seu lugar no sistc ção de valor. Na era do storytelling, consumi-
ma límbico do cérebro, que controla nossas mos mais narrativas do que coisas. O conteúdo
ações no nível instintivo-corporal, e do qual da narrativa é mais importante do que o valor
não temos consciência. Elas podem influen de uso. O storytelling também comercializa a
ciar nosso comportamento passando ao largo história especial de um lugar. Ela é explorada
do nosso entendimento. Com isso, as reaçoes comercialmente para agregar valor narrativo
defensivas conscientes são contornadas. Ao st' aos produtos fabricados no lugar. No entan-
apropriar deliberadamente da narrativa, o ca to, a história no sentido autêntico cria uma
pitalismo se apodera da vida em um nível pré' comunidade, conferindo-lhe uma identidade.
-reflexiyo. Dessa forma, ele escapa do controle O storytelling, por outro lado, transforma a

consciente e da reflexão crítica. história em uma mercadoria.


O storytelling abrange diferentes áreas. Atualmente, até mesmo os políticos sabem
Até mesmo analistas de dados aprendem story qae storys sell. Na luta pela atenção, narrativas
telling, pois acreditam que os dados não possuenr são mais eficazes do que argumentos. Por isso,

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elas são instrumentalizadas politicamente. C) consumo. Isso nos cega Para outras narrações,

objetivo é apelar não ao entendimento, mas às outros modos de vida, outras percepções e

emoções. Storytelling como uma técnica efi- realidades. Essa é a crise da narração na época

caz de comunicação política é tudo menos a do storytelling.

visao política que avança em direção ao futuro


e que oferece sentido e orientação às pessoas.

As narrativas políticas oferecem a perspec-


tiva de uma nova ordem das coisas, pintanr
mundos possíveis. Hoje, falta-nos justamentc
as narrativas futuras que nos dáo esperanças.
Nós nos arrastamos de uma crise para outra.
A política é reduzida à solução de proble' t]ililtlilil llil il r

mas. Somente as narrativas abrem o futuro.


Viver é narrar. Os seres humanos, como
animal narrans, diferem dos animais por se-

rem capazes de realizar novas formas de vida


por meio da narração. A narração tem o poder
de um novo comeÇo. Toda ação que transforma

o mundo pressupõe uma narraçâo. O story-


telling, por outro lado, conhece apenas uma
forma de vida, a saber, a consumista. O story
telling na forma de storyselling não é capaz dt
criar formas de vida totalmente diferentes.
No mundo do storytellirzg tudo é reduzido a«r

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