119 - Matheus Viana Braz

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Trabalho, Sociologia Clínica e Ação

Direção Editorial
Lucas Fontella Margoni

Comitê Científico

Prof. Dr. Francisco Hashimoto


Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Prof. Dr. Guilherme Elias da Silva


Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Prof. Dra. Maria Therezinha Loddi Liboni


Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Prof. Dr. Marcos Mariani Casadore


Centro Universitário UNIFIO

Prof. Dr. Marcos Paulo Shiozaki


Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Trabalho, Sociologia Clínica e Ação

Alternativas à individualização do sofrimento

Matheus Viana Braz


Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de


cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva
responsabilidade de seu respectivo autor.

Todos os livros publicados pela Editora Fi


estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


BRAZ, Matheus Viana

Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: alternativas à individualização do sofrimento [recurso eletrônico] / Matheus Viana Braz
-- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.

295 p.

ISBN - 978-65-5917-119-4
DOI - 10.22350/9786559171194

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Trabalho; 2. Sociologia; 3. Clínica; 4. Estado; 5. Brasil; I. Título.

CDD: 331
Índices para catálogo sistemático:
1. Trabalho 331
Dedico este trabalho à minha mãe, Luciana.
Agradecimentos

Agradeço primeiro à minha mãe, Luciana, ao meu pai (in memo-


riam), aos meus irmãos, Gabriel e Camila e aos meus avós, Teresa e Áureo.
Sem o afeto e apoio de vocês, a construção deste livro não seria possível.
Ao meu amigo e orientador do trabalho que deu origem a este livro,
Francisco Hashimoto, principal modelo para a construção de minha traje-
tória socioprofissional. As conversas que tivemos nessa última década vão
muito além da academia.
À Marcela Ribeiro, que me acompanhou durante todo o processo de
escrita deste livro. Sua empatia, incentivo e companheirismo foram deter-
minantes nos momentos de desânimo e desgaste mental.
Ao Marcos Mariani Casadore e Guilherme Elias da Silva, que me
acompanharam desde o mestrado e contribuíram novamente de forma
significativa à construção deste trabalho.
Aos meus amigos e companheiros de jornada, Abílio, Vinícius, Ma-
theus Mancuso, Pedro e Maico. Nossas conversas despertaram reflexões
fundamentais para a consolidação do percurso materializado neste livro.
Ao Vincent de Gaulejac, mentor e amigo que me instigou a adentrar
no campo das intervenções em Sociologia Clínica. Sem sua generosidade e
empatia eu não teria construído as bases de minha identidade profissional.
À Christiane Girard, por aceitar o convite à escrita do prefácio deste
livro. É uma honra poder contar com sua sensibilidade, generosidade e
profundo conhecimento da Sociologia Clínica.
Aos colegas do Laboratório Interinstitucional de Subjetividade e Tra-
balho (LIST-UEM), do Laboratório de Trabalho, Saúde e Processos de
Subjetivação (LATRAPS-UEMG) e do Réseau International de Sociologie
Clinique (RISC). As discussões e reflexões que fazemos em nossos
encontros alimentam minha vontade de perseverar na academia e de lutar
contra toda forma de precarização do trabalho.
Aos amigos da Universidade Estadual de Maringá (UEM), em especial
da área do trabalho, que me acolheram com muito afeto quando me mudei
para Maringá. Guilherme, Fábio, Marcos, Lucas, Daniele, Therezinha e Sil-
via, saibam que embora minha passagem pela UEM tenha sido breve, teve
um significado inestimável em minha vida. É impressionante o quanto
aprendi com vocês. Muito obrigado.
Aos colegas da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), so-
bretudo do colegiado de Psicologia. Encontramos na UEMG desafios e
obstáculos que por vezes parecem intransponíveis, porém que ao mesmo
tempo nos possibilitaram uma renovação substancial de nossos laços de
solidariedade, cooperação e engajamentos mútuos. Alimentamos constan-
temente nossa força em defender o potencial de transformação social da
universidade pública, gratuita e de qualidade.
Por fim, agradeço aos trabalhadores que participaram direta e indi-
retamente da pesquisa relatada neste livro. Em cada um de nossos
encontros encontrei a potência das abordagens biográficas e percebi o por-
quê esse trabalho vale a pena.
Lista de siglas

AISLF Association Internationale des Sociologues de Langue Française

ARIP Association de Recherche et d’Intervention Psychosociologique

ASA American Sociological Association

BNDE Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico

CEGOS Commission d’Étude Générale d’Organisation Scientifique

CIRFIP Centre International de Recherche, de Formation et d’Intervention en Psy-


chosociologie

CLT Consolidação das Leis de Trabalho

CND Conselho Nacional de Desestatização

CNP Conselho Nacional de Petróleo

CNRS Centre National de Recherche Scientifique

CSN Companhia Siderúrgica Nacional

DSR Descanso Semanal Remunerado

FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

FMI Fundo Monetário Internacional

FGV Fundação Getúlio Vargas

GACSR Greek Association of Clinical Social Research

GIM Grupos de Implicação e Mudança

GIR Groupe d’Implication et de Recherche

GIP Grupo de Implicação e Pesquisa

GREP Groupe de Recherche et d´Échange de Pratiques

IISC Institut International de Sociologie Clinique

ISA International Sociological Association


JPM Japanese Productive Model

LCS Laboratoire de Changement Social

LER/DORT Lesão por Esforço Repetitivo / Distúrbio Osteomuscular relacionado ao Tra-


balho

OCDE Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico

OIT Organização Internacional do Trabalho

PARS Pôle Autonome en Recherche Sociale

QVT Qualidade de Vida no Trabalho

RAFRAP Rien à Faire, Rien à Perdre

RC-46 Research Committee 46 - Clinical Sociology

RH Recursos Humanos

RISC Réseau International de Sociologie Clinique

UBS Unidade Básica de Saúde

UdelaR Universidad de la República

UEM Universidade Estadual de Maringá

UEMG Universidade do Estado de São Paulo

UFF Universidade Federal Fluminense

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

UFSJ Universidade Federal de São João Del-Rei

UNAM Universidad Nacional Autónoma de México

UNB Universidade de Brasília

UNC Universidad Nacional de Córdoba

UNESP Universidade Estadual Paulista


Sumário

Prefácio..................................................................................................................... 15
Christiane Girard Ferreira Nunes

Apresentação ............................................................................................................ 19

Narrativa de vida e relato autobiográfico de uma trajetória socioprofissional ....... 30

1 ................................................................................................................................ 53
Trabalho, emprego e a escalada da precarização no Brasil
1.1 Considerações históricas sobre trabalho e emprego......................................................55
1.2 Globalização financeira e os impasses psicossociais do trabalho no Brasil ............... 60
1.3 As novas formas de sofrimento e a divisão social do trabalho .................................... 64
1.4 O futuro do trabalho em xeque ....................................................................................... 71

2 ................................................................................................................................ 81
Construção da Sociologia Clínica: reflexões históricas e epistemológicas
2.1 Sobre as fontes da abordagem clínica ............................................................................ 82
2.2 Sociologia Clínica na França: história e filiações teóricas ........................................... 96
2.3 Sociologia Clínica na América do Norte: o protagonismo dos Estados Unidos e
Canadá ............................................................................................................................ 113

3 .............................................................................................................................. 126
Desenvolvimento da Sociologia Clínica no mundo: proposição de um mapeamento
breve
3.1 Sociologia Clínica na Europa, Ásia, África e Oceania .................................................. 127
3.2 O projeto da abordagem clínica na América Latina ....................................................143
3.3 O movimento brasileiro ................................................................................................. 154
4.............................................................................................................................. 167
Narrativas de vida e dispositivos de pesquisa e intervenção: detalhamento dos
enquadres metodológicos
4.1 Da dinâmica afetiva dos grupos à epistemologia da complexidade: a análise dialética
de Max Pagès ........................................................................................................................ 168
4.2 O sociodrama de Jacob Levy Moreno ........................................................................... 175
4.3 O teatro-fórum de Augusto Boal .................................................................................. 180
4.4 Grupos de implicação e pesquisa ................................................................................. 188
4.4 Organidrama ................................................................................................................... 197

5 ............................................................................................................................. 203
Alternativas metodológicas à individualização do sofrimento e dos conflitos no
trabalho
5.1 A intervenção como processo: análise da demanda, contrato, contradições do
diagnóstico e a transferência .............................................................................................. 205
5.2 Trabalho reflexivo e emocional nos grupos: análise de um grupo de implicação e
pesquisa .................................................................................................................................216
5.3 A construção da escuta e da implicação nas intervenções: o que é se afirmar como
sujeito no trabalho? ............................................................................................................. 233
5.4 Limites e impasses da abordagem: transmissão da Sociologia Clínica na universidade
e os grupos de implicação e pesquisa nas organizações .................................................. 248

À guisa de conclusão .............................................................................................. 263

Referências ............................................................................................................. 271


Prefácio

Christiane Girard Ferreira Nunes 1

O livro Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: alternativas à individua-


lização do sofrimento é um importante trabalho de epistemologia da
Sociologia Clínica. Matheus descreve como nasce esse campo, como se de-
senvolve, em quais países, seus diálogos e seus desafios. Mais do que isso,
o livro apresenta a metodologia utilizada, que tem como objetivo principal
explicar ao leitor como proceder para compreender uma teoria da ação,
considerando que quem age é um sujeito “total”, numa referência Maussi-
ana. Isto é, sem fracionar o Sujeito, o que significa considerar não apenas
o homo economicus que age, mas um sujeito que é também existencial e
social, herdeiro e produtor de historicidade.
Um sujeito cuja compreensão pode ser abordada a partir das articu-
lações desses diferentes níveis, que devem orientar nossas reflexões. No
entanto, seria um erro pensar em uma justaposição de níveis ou à plurali-
dade sem fim de diferentes tipos de epistemologias. A questão posta
conduz a interrogação fundamental de nosso campo: o que nos permite
Ser sociedade, Ser sócio dela, sendo igual e diferente? É para analisar essas
problemáticas que numerosos pesquisadores produzem e testam incansa-
velmente diversas metodologias e é para contribuir com esse esforço que
o autor nos apresenta uma sistematização do campo da Sociologia Clinica,
com foco na sua epistemologia e metodologia.
O que aparece nessa metodologia tão claramente exposta é a possibi-
lidade de conceitualizar as problemáticas postas. A orientação teórica dada
nos permite esclarecer que, mesmo se somos seres determinados por

1
Professora no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UNB). Coordenadora do núcleo Diálogos
em Sociologia Clínica.
16 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

diferentes fatores, isso não significa que não há margem para a liberdade,
numa clara referência a Sartre. Significa igualmente que nós “não somos
mestres na nossa própria casa” parafraseando Freud. Ou seja, a história
age em nós, nós produzimos a história incorporando hábitos que por sua
vez nos identificam socialmente (Bourdieu). Essas grandes opções teóricas
são uma sólida base para entender as trajetórias de diferentes grupos que
compõem a sociedade e as respostas dadas aos conflitos, particularmente
envolvendo a esfera do trabalho.
Para aqueles que desejam se aprofundar no campo da Sociologia Clí-
nica, a leitura desse livro é indispensável. Ele é fundamental para todos
que estão preocupados em avançar na compreensão dos desafios da reali-
dade contemporânea. Mas a sua façanha consiste ainda em colocar em
evidência o quanto a Psicossociologia e a Sociologia ganham com o cami-
nho indicado para esclarecer novas dinâmicas do social, como aquelas
relativas ao mundo do trabalho, por exemplo. Convivemos com configu-
rações inquietantes para nossa sociabilidade, de modo que os motivos
possíveis das ações belicosas devem ser compreendidos para evitar que
sejamos instrumentalizadas por elas. Permitir utilizar essa metodologia
para esse fim, estar o mais perto possível da experiência dos sujeitos, den-
tro de uma análise do contexto sócio histórico no qual estão envolvidos, é
a tarefa a qual se dedica este livro.
Para realizar este intento, Matheus Viana compartilha experiências
de trabalho diferenciadas envolvendo tanto organizações privadas, quanto
organizações públicas onde o pesquisador e sua equipe são convidados a
intervir. Nas organizações privadas são consultorias, já nas organizações
públicas as intervenções são realizadas com estagiários de Psicologia e a
partir do modo de reminiscências do pesquisador. O autor mostra as múl-
tiplas formas de conflitos nos ambientes de trabalho e do não-senso de
tentar interpretá-los culpabilizando os indivíduos ou psicologizando as
instituições. Matheus mostra como os Grupos de Implicação e Pesquisa
(GIP) e os Organidramas podem desvendar os nós sócio-psíquicos. Sabe-
mos o quanto a gestão do trabalho exclui, atualmente, uma grande parte
Christiane Girard Ferreira Nunes | 17

dos trabalhadores que não têm resiliência suficiente para lidar com os de-
safios oriundos de demandas paradoxais. Logo, trata-se de uma
abordagem que leva em conta o sofrimento e, ao mesmo tempo, colabora
para o estabelecimento de organizações mais saudáveis.
Estamos diante de um trabalho extremamente precioso e do qual pre-
cisávamos. Há poucas obras traduzidas dos autores francófonos ou de
língua inglesa sobre o tema. Matheus apresenta uma sistematização sócio-
histórica deste campo e mostra que cada continente, a partir da sua reali-
dade, repensa e encontra novos conceitos para um diálogo fecundo. Por
essa razão, trata-se de um livro de referência para todos os pesquisadores,
professores e estudantes interessados na questão do trabalho em nossa
sociedade.
O caminho utilizado foi também bastante interessante. O autor pri-
vilegiou o campo dos conflitos de trabalho nas organizações, onde teve
experiências como interventor. Mencionamos o quanto o mundo do tra-
balho e, particularmente, as formas de gestões do trabalho adoecem a
todos os trabalhadores. E, paradoxalmente, os fazem se sentir indispensá-
veis durante um tempo da atividade, até o esgotamento aparecer e o
trabalhador ser descartado. Matheus mostrou por meio da epistemologia
a importância da observação complexa da situação, da vivência a partir de
dinâmicas de grupos (entre 8 a 12 pessoas) e a reflexão possível sobre o
que é vivido nesses quadros.
Insisto, o livro de Matheus é o mais completo documento sobre como
respeitar os procedimentos no quadro escolhido (Organidrama ou GIP)
para permitir desvendar o que é central, a saber, como se articulam as
problemáticas existenciais e sociais. Em função dessa escolha, o autor re-
vela a necessidade de uma co-construção entre o pesquisador, seus
assistentes (observadores) e o grupo. A necessária implicação exige a re-
flexão sobre a transferência e contratransferência, bem como uma
presença extremamente atenta, capaz de revisitar os contextos socio-his-
tóricos mencionados pelos participantes, lançando luz sobre sua leitura
sociológica. Uma regra é imprescindível para realizar um trabalho em
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grupo: ninguém é obrigado a dizer mais do que deseja dizer e todos devem
respeitar a confidencialidade das histórias dos participantes.
Outra contribuição importante do livro consiste em mostrar a possi-
bilidade de estar à escuta de novos temas em diferentes regiões do mundo.
O que há em comum e de singular, por exemplo, entre as crescentes radi-
calizações religiosas que surgem em lugares totalmente diferentes? O livro
permite colocar questões novas à História sempre em movimento. É um
diálogo fecundo que considera a singularidade da cultura e sua instrumen-
talização em dinâmicas globais. Não se trata somente de refletir sobre
indivíduos falados por suas histórias e trajetórias, mas desvendar temas
que podem ser vistos de maneira mais ampla, sem esmagar ou aniquilar a
força dos sujeitos nas dinâmicas históricas.
Finalmente, quero destacar a honra e a alegria que senti quando meu
colega e amigo Matheus Viana me convidou para apresentar o livro. É um
livro que precisávamos, feito por alguém que conhece o campo e genero-
samente compartilha suas descobertas. Obrigada, Matheus!
Apresentação

A mais alta responsabilidade da universidade consiste no


exercício das funções de órgão de criatividade cultural e
científica, e de conscientização e crítica da sociedade.
(Darcy Ribeiro)

Este livro representa a evolução e continuidade de um trabalho que


se iniciou há oito anos, a partir de uma pesquisa que contou com auxílio
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e
cujo objetivo era explorar as contribuições da Psicanálise freudiana à Psi-
cossociologia e à Psicodinâmica do Trabalho, especificamente em relação
ao conceito de desejo e sublimação nas organizações hipermodernas. Pos-
teriormente, em trabalho de mestrado, sob orientação do professor
Francisco Hashimoto, realizamos uma pesquisa sobre os enlaces entre os
sistemas mediadores das gestões de organizações multinacionais, localiza-
das na Região Metropolitana de São Paulo, e as vivências de seus
respectivos quadros gerenciais. Nessa ocasião, por intermédio de um fo-
mento da FAPESP tivemos a oportunidade de realizar parte desse estudo
no Laboratoire de Changement Social et Politique da Université Paris 7 Di-
derot, na França, com a orientação do professor Vincent de Gaulejac. O
produto final deste trabalho foi materializado na produção de livro re-
cente, intitulado Paradoxos do trabalho: as faces da insegurança, da
performance e da competição (Viana Braz, 2019).
Ao avaliar de forma retrospectiva o desenvolvimento do referido es-
tudo, é preciso que façamos uma ressalva. Com o receio de ultrapassar as
fronteiras que garantiam o anonimato dos participantes da pesquisa, re-
conhecemos hoje que falhamos na contextualização de nossas entrevistas,
o que fez com que algumas narrativas fossem dispostas de maneira dis-
persa, eventualmente desconectadas de suas respectivas genealogias
20 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

sociofamiliares. Como resultado, se a riqueza de nossos encontros não foi


devidamente explicitada, por vezes, no processo de compreensão das nar-
rativas dos sujeitos, não conseguimos transparecer com fidelidade as
inter-relações temporais entre passado, presente e futuro de suas histórias
de vida. Apesar desses equívocos, atribuímos substancial valor ao produto
final desse trabalho. O diálogo entre as realidades narradas pelos traba-
lhadores e nossas teorias foi feito com coerência, rigor e possibilitou a
construção de problemas e reflexões frutíferas à compreensão das vivên-
cias e sofrimento dos trabalhadores inseridos nas organizações.
Uma vez que o pesquisador realizou na França as formações acerca
aos dispositivos1 de intervenção da Sociologia Clínica e as vivenciou na
prática, delimitamos como foco do doutorado e, por conseguinte, deste li-
vro, a análise em profundidade de dois dispositivos de pesquisa e
intervenção específicos no contexto de trabalho brasileiro: os Grupos de
Implicação e Pesquisa (GIP) e o Organidrama. A partir de uma perspectiva
compreensiva e enquanto metodologias grupais, tais ferramentas parecem
representar alternativas profícuas no processo de exploração das relações
entre os conflitos vividos no espaço de trabalho e as contradições existen-
tes nas organizações. Nessa esteira, a espinha dorsal deste livro se traduz
em alguns questionamentos: quais os fundamentos teórico-metodológicos
da Sociologia Clínica? Como são operacionalizados seus dispositivos de in-
tervenção? Em quais condições e enquadres são realizadas as
intervenções? Quais seus diferenciais no âmbito do contexto de trabalho
brasileiro?

1
A noção de dispositivo, neste livro, é emprestada da Análise Institucional (Lourau, 1970/2014) e se remete a um
operador cuja função consiste em movimentar elementos instituídos das relações sociais em favor da emergência de
forças instituintes.
Matheus Viana Braz | 21

Trabalho, paradoxo e sofrimento

Em um trabalho anterior (Viana Braz, 2019), foi escolhido o contexto


das multinacionais fundamentalmente por dois motivos. Impulsionadas
pela globalização do comércio, dos produtos e finanças, essas organizações
lograram um poder sociopolítico e econômico sem precedentes na história.
Tornaram-se as principais difusoras de metodologias de gestão que sim-
bolizam valores como a eficiência e o progresso social (Niewiadomski,
2012; Viana Braz, 2019). Além disso, a literatura indica (Gaulejac, 2007;
2011; Dujarier, 2015) que a partir da análise desses cenários é possível
compreender denominadores comuns, encontrados também em outras
organizações, reveladores de lógicas paradoxais inerentes ao funciona-
mento organizacional e que, por sua vez, são vinculados às novas formas
de sofrimento no trabalho.
Em consonância com a literatura (Dujarier, 2012; 2015; Gaulejac &
Hanique, 2015), identificamos que nos últimos 20 anos uma nova reconfi-
guração social e organizacional ganhou contornos mais aparentes.
Observamos os efeitos da recusa ou interiorização do ethos difundido pelo
mercado de trabalho e dos imperativos econômicos, políticos, ideológicos
e psicológicos da gestão das organizações estudadas. Lateralmente, no re-
gistro dos vínculos com as empresas, predominou nos relatos dos
trabalhadores sentimentos como a descrença, desconfiança, desencanta-
mento, pessimismo, saturação, instabilidade, insegurança e, inclusive, a
incoerência em relação aos ambientes nos quais estavam inseridos. A
busca pelo destaque social, pela excelência, assim como o culto à urgência
e a autorreferenciação foram significantes também categóricos.
A abundância de dispositivos de prescrição como softwares de gestão,
manuais de boas práticas, planilhas de indicadores de desempenho, meto-
dologias de controle de qualidade e avaliações de relacionamento com
stakeholders, desvelou uma gramática paradoxal vivida pelos trabalhado-
res. Por se descolar mormente do trabalho vivido, esses dispositivos
distorcem a realidade e se pautam na finalidade de fazer do particular a
22 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

grande escala, de transformar a exceção em regra e o ideal em norma,


inclusive passíveis de punições. O gerenciamento numérico vai ao encon-
tro da destruição do valor do trabalho real, em proveito de uma produção
artificial de resultados. Se outrora o sujeito que fazia bem seu trabalho
consequentemente era bem avaliado, hoje esse binômio perde sua relação
causal. Nessa conjuntura, o trabalhador melhor avaliado não necessaria-
mente é aquele que faz o trabalho com mais qualidade, mas é aquele que
melhor se articula com os dispositivos de prescrição e as engrenagens do
poder organizacional (Dujarier, 2015; Viana Braz, 2019).
Esta pesquisa, portanto, parte da tese que na medida em que o ins-
trumento do gerenciamento é produzir paradoxos (Gaulejac, 2011;
Gaulejac & Hanique, 2015), as vivências dos trabalhadores tendem a ser
cada vez mais incoerentes e contraditórias. Diante da impotência e impos-
sibilidade de romper com estruturas discursivas nas quais alternativas não
são concebíveis, proliferam-se as respostas estanques e cristalizadas: “o
mercado é competitivo”, “joga-se o jogo”, “o que importa são os números”,
“não me importa se o pato é macho ou fêmea, eu quero é ovo”. Em nosso
trabalho de dissertação, foi marcante que por mais paradoxal que seja a
situação colocada pela gestão, é sempre o trabalhador quem deve tomar
decisões, sem errar. E ele é inclusive individualmente cobrado para cons-
truir a harmonia em meio à desordem, pois é pago para “trazer soluções e
não problemas” (Viana Braz, 2019).
A racionalização do trabalho passa por um crivo sobremaneira nu-
mérico e o realismo econômico se impõe como ideologia majoritária. As
exigências de rentabilidade e os critérios de avaliação por vezes são vividos
como contraditórios e distantes do cotidiano laboral. O trabalho, nesse ín-
terim, é alçado como palco principal para a ultrapassagem de si e
realização pessoal. Os trabalhadores que contestam os ideais hegemônicos
são considerados “desajustados”, “fora do perfil”. Já os que interiorizam o
discurso gerencialista, porém que não superam as expectativas da organi-
zação, são associados a figuras como a mediocridade, fraqueza e
acomodação. Denominamos este fenômeno de pejoração da média,
Matheus Viana Braz | 23

comumente ligado a sentimentos de inferioridade, vergonha, pessimismo


ou incompetência (Viana Braz, 2019).
Em face do aumento da descartabilidade e da instabilidade profissio-
nal, o vínculo do trabalhador com a organização passa a ser permeado pela
preocupação com a empregabilidade. Em uma sociedade dividida entre
“ganhadores” e “perdedores”, ninguém quer ser excluído, se tornar um
desfiliado (Castel, 2003; Gaulejac, 2011). Em um trabalho anterior, obser-
vamos que

[...] os trabalhadores “mais adaptados” podem fundamentalmente ser dividi-


dos em três grandes grupos: o primeiro é representado pelos profissionais que
incorporam de forma intensa os valores da cultura do heroísmo, da corrida ao
mérito e acumulam um número significativo de experiências positivas e con-
quistas. Já no segundo grupo, encontram-se os profissionais que “jogam o
jogo”, o “faz de conta”, mas que conseguem melhor equilíbrio na realização
das distinções entre as demandas e atribuições do espaço profissional e fami-
liar. Em um terceiro grupo, porém, localizam-se os trabalhadores que
interiorizam em demasia os valores da cultura da excelência, todavia se frus-
tram continuamente por não “alcançar seu lugar ao sol” ou por não ter seus
trabalhos reconhecidos de forma suficiente (Viana Braz, 2019, p. 260).

As organizações parecem tratar a dimensão emocional de modo su-


perficial, sob a égide de uma lógica utilitária da psicologia humana.
Predomina a concepção segundo a qual os conflitos devem ser gerenciados
e colocados a serviço da estrutura de rentabilidade da empresa. Fala-se em
Inteligência Emocional (IE), Inteligência Relacional (IR), resiliência, auto-
motivação, paixão pelo risco, versatilidade, mas ao mesmo tempo se
limitam os espaços de expressão genuína das emoções. Afinal, se o traba-
lhador exprime suas ansiedades e angústias, pode ser considerado pelos
demais como uma pessoa fraca e vulnerável. Os conflitos, portanto, são
psicologizados e individualizados, em detrimento da pulverização das co-
letividades e da consciência de classe. Exige-se criatividade e autonomia
dos trabalhadores, mas para isso precisam se submeter a processos seria-
lizados de socialização e são impedidos de questionar as estruturas
24 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

ideológicas e de poder inerentes à gestão das organizações (Vandevelde-


Rougale, 2017).
Diante desse contexto, fundamentalmente duas respostas se desve-
lam majoritárias. No primeiro cenário, quando emerge nas organizações
grande carga de sofrimento ou, inclusive, adoecimento, a resposta da ges-
tão e dos trabalhadores tende a direcionar a questão para o indivíduo.
Logo, por se tratar de “instabilidade emocional”, “fragilidade emocional”,
“dificuldade em administrar seu estresse” etc, a resolução do problema é
vista de forma categórica: indica-se a procura por médicos e/ou psicólo-
gos, profissionais especialistas e encarregados de mitigar o sofrimento. No
segundo cenário, convocam-se consultores especializados em Desenvolvi-
mento Organizacional. Subtende-se que são profissionais preparados e
aptos a resolverem as situações conflituosas, cuja finalidade é garantir a
harmonia dos grupos para que o status quo não seja ameaçado. Em geral,
a partir de metodologias de mudança organizacional consagradas no
mundo corporativo (Programação Neurolinguística, Coachings diversos,
Eneagrama etc), os referidos consultores atuam no plano dos comporta-
mentos, segundo o paradigma da Abordagem-Solução2, de forma diretiva,
focados em resultados esperados e com cronogramas delimitados. Certa-
mente essas abordagens alcançam notáveis êxitos e são consagradas por
lograrem os resultados desejados, mas não deixam de ser adaptativas e
instrumentalizadoras. Não é nossa pretensão, contudo, se debruçar sobre
essas questões.
Chamamos atenção para o fato de que em ambos os cenários se ocul-
tam as origens dos conflitos. Individualiza-se toda sorte de sofrimento e se
psicologizam amiúde problemas cujos determinantes são de natureza so-
cial ou organizacional. Descarta-se que todo conflito psíquico tem em sua
gênese um conflito social e que o mal-estar no trabalho tende a ser fruto

2
Utilizado, sobretudo, na esfera do Desenvolvimento Organizacional, parte-se do pressuposto que o desenvolvimento
do potencial humano deve ser encarado na perspectiva de um benefício à empresa (Amado, Faucheux, & Laurent,
1993). Os conflitos são tratados no nível da comunicação organizacional e da mudança de comportamentos, cuja
finalidade é garantir a harmonia e adaptação dos trabalhadores à organização.
Matheus Viana Braz | 25

de contradições estruturais não resolvidas pelas organizações (Gaulejac,


2011).

Intervenção em Sociologia Clínica como terceira via de ação

Por fim, a Sociologia Clínica oferece uma terceira via e nos convida a
intervir nas organizações de forma sistêmica, colocando em questão tam-
bém sua estrutura coletiva e jogos de poder (Gaulejac, 1999/2012). É
reforçada a necessidade de analisar os cenários de acordo com a perspec-
tiva clínica da complexidade, incluindo ingredientes como a historicidade,
as narrativas de vida, as emoções genuínas (inclusive as consideradas
ameaçadoras) e as angústias. Tratar de fato os conflitos implica sair do
paradigma da imediatidade e assumir que para mudar é preciso abando-
nar posições maniqueístas e metodologias prescritivas. Por meio da
intervenção em Sociologia Clínica, é possível compreender o indizível, o
não-dito e as contradições estruturais que permeiam os conflitos nas or-
ganizações de trabalho. O foco, portanto, a partir de intervenções grupais
no espaço de trabalho, consiste em se aproximar o máximo possível do
trabalho real e vivido pelos trabalhadores.
Nessa óptica, a vivência de um trabalhador se inscreve em movimen-
tos existenciais dialéticos, frutos da confrontação de determinações sociais,
familiares, genealógicas e psíquicas. Na tentativa de evitar tanto a indivi-
dualização do sofrimento como a psicologização das contradições sociais,
considera-se que problemáticas individuais e sócio-organizacionais se vin-
culam irredutivelmente a uma dimensão coletiva, que exige de qualquer
interventor uma postura analítica compreensiva, crítica e complexa. Ao
rejeitar perspectivas patologizantes ou instrumentalistas, a Sociologia Clí-
nica convoca o pesquisador a construir uma postura sensível e aberta à
compreensão dos sofrimentos dos trabalhadores, em situações mediadas
ou não por uma institucionalidade formal. Igualmente, sua matriz pluri-
disciplinar coloca a abertura epistemológica como condição a realização de
pesquisas e intervenções (Gaulejac, 2011).
26 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Neste livro, exploramos as possibilidades e dificuldades da utilização


de dois dispositivos de intervenção da Sociologia Clínica (os Grupos de Im-
plicação e Pesquisa e o Organidrama), de modo a analisá-los enquanto
alternativas de ação no contexto de trabalho brasileiro. Para tanto, três
objetivos foram norteadores às nossas aspirações: 1) explorar a construção
histórica e o desenvolvimento teórico-metodológico da Sociologia Clínica;
2) analisar as possibilidades de construção de espaços de escuta, implica-
ção e mudança a partir de suas modalidades de intervenção e postular
possíveis adaptações de seu arcabouço metodológico, considerando as es-
pecificidades do cenário de trabalho brasileiro; 3) explorar e problematizar
as dificuldades e impasses na utilização dos Grupos de Implicação e Pes-
quisa e do Organidrama nas organizações, a partir das experiências e
reminiscências do pesquisador.
Orientamo-nos pela tradição francesa de pesquisadores e intervento-
res que buscam compreender as transformações do mundo do trabalho.
Nossa pesquisa, portanto, situa-se na continuação dos trabalhos pioneiros
de Pagès et al. (1987), Aubert e Gaulejac (1991/2007), Enriquez (1997a;
1997b) e ao lado de reflexões mais recentes, conduzidas no bojo do Labo-
ratoire de Changement Social et Politique e do Réseau International de
Sociologie Clinique (Hanique, 2004; Dujarier, 2012; 2015; Gaulejac, 2007,
2011; Gaulejac & Hanique, 2015; Vandevelve-Rougale, 2017; Gaulejac &
Coquelle, 2017; Viana Braz, 2019).
No âmbito metodológico, esta pesquisa foi realizada mediante abor-
dagem qualitativa, transversal e descritiva (Turato, 2003). Uma vez que o
pesquisador conduziu intervenções nos últimos quatro anos, em organi-
zações públicas e privadas, a partir da Sociologia Clínica, os dados obtidos
provêm de sua prática cotidiana. Em consonância com a metodologia uti-
lizada por Tavares (2009) e de modo a resguardar eticamente a
identificação das organizações e trabalhadores envolvidos, o material ana-
lisado foi proveniente de fragmentos das intervenções realizadas,
constituídos a partir das reminiscências do próprio pesquisador em sua
trajetória profissional. Esta metodologia parte do pressuposto que as
Matheus Viana Braz | 27

experiências compartilhadas no cotidiano das organizações prescindem da


reprodução literal e absoluta dos conteúdos trabalhados. O foco deste livro,
portanto, consiste em analisar na prática, dialética e recursivamente, as
possibilidades e dificuldades de utilizar os Grupos de Implicação e Pesquisa
e o Organidrama em situações de trabalho distintas, vivenciadas pelo pes-
quisador na condição de interventor.
A materialização deste livro se justifica por múltiplos fatores. Há es-
cassos relatos na literatura nacional sobre o Organidrama e os Grupos de
Implicação e Pesquisa (GIP) e, dentre eles, nenhum realiza uma análise
pormenorizada dos pressupostos e enquadres metodológicos desses dis-
positivos. Logo, nosso trabalho pode contribuir significativamente para a
consolidação desse campo de estudos, considerando as particularidades do
cenário de trabalho brasileiro. Além disso, os GIP e o Organidrama consi-
deram a complexidade da lógica organizacional, ao partir da premissa que
saúde mental e trabalho devem ser compreendidos como frutos de uma
miríade de fenômenos de ordem familiar, social e existencial, mas também
de estruturas políticas, ideológicas e gestionárias. Ao colocar a intervenção
em Sociologia Clínica como pedra angular deste livro, busca-se dar visibi-
lidade a um arcabouço teórico, técnico e metodológico ainda pouco
explorado no Brasil, mas que nos convida a sermos mais sensíveis ao so-
frimento no trabalho, para além do realismo econômico. Seu diferencial
reside na superação do paradigma hegemônico e individualizante de in-
tervenção, pelo fato que as intervenções em situações de mal-estar,
conflitos e sofrimento no trabalho se dão condicionalmente em grupo e/ou
no espaço laboral.
No plano estrutural, uma vez que tratamos neste livro sobre inter-
venções fundamentadas nas abordagens biográficas, fizemos um exercício
de análise de implicação, a partir de um relato autobiográfico da trajetória
socioprofissional do autor que subscreve este trabalho. Despimos-nos da
formalidade exigida na academia e foi exposto ao leitor vulnerabilidades,
conflitos e a construção de um percurso intelectual notadamente marcado
28 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

por vivências emocionais conflituosas e por determinantes sócio-históri-


cos específicos.
Depois, efetivamente no primeiro capítulo, nos dedicamos à circuns-
crição das metamorfoses ocorridas no mundo do trabalho no último
século. Discutimos o papel da globalização financeira na divisão social do
trabalho brasileira, problematizamos seus impactos psicossociais, imbri-
cados nas novas formas de sofrimento no trabalho e vislumbramos
demarcar como o campo da Psicologia Organizacional e do Trabalho se
modificou historicamente. Encerramos esse tópico com algumas reflexões
sobre a gramática global do futuro do trabalho.
No segundo capítulo direcionamos nossos esforços à elucidação da
construção e genealogia da Sociologia Clínica. Enfatizamos seus principais
pressupostos conceituais e suas filiações epistemológicas. Depois, fizemos
uma incursão institucional por três movimentos centrais, localizados na
França, nos Estados Unidos e no Canadá.
No terceiro capítulo esboçamos um mapeamento breve do desenvol-
vimento da Sociologia Clínica na Europa, Ásia, África, Oceania e na
América Latina. Identificamos e exploramos um processo de divisão da
abordagem clínica francófona e anglófona, o que nos permitiu compreen-
der as particularidades do movimento brasileiro e de sua inserção nas
universidades de nosso país.
No quarto capítulo adentramos de fato nas discussões sobre as pre-
missas e enquadres metodológicos do Organidrama e dos Grupos de
Implicação e Pesquisa, objetos deste livro. Para tanto, exploramos como se
operam os métodos da análise dialética e da dinâmica afetiva dos grupos,
prefigurados por Max Pagès, bem como apresentamos os fundamentos do
sociodrama de Jacob Lévy Moreno e do teatro-fórum de Augusto Boal.
O quinto e último capítulo deste livro foi estruturado a partir de ex-
periências que tivemos em organizações públicas, privadas e em grupos
abertos (espontâneos). Subsidiados pelas discussões precedentes, refleti-
mos sobre como se opera a construção das intervenções, explicitamos as
principais premissas que sustentam a escuta e a implicação do interventor
Matheus Viana Braz | 29

e, por fim, problematizamos alguns impasses e limites encontrados na uti-


lização dos Grupos de Implicação e Pesquisa nas organizações.
Narrativa de vida e relato autobiográfico de
uma trajetória socioprofissional

[...] O tempo andou riscando meu rosto


Com uma navalha fina
Sem raiva nem rancor.
O tempo riscou meu rosto com calma
Eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença.
Acho que a vida anda passando a mão em mim.
A vida anda passando a mão em mim.
Acho que a vida anda passando.
A vida anda passando.
Acho que a vida anda.
A vida anda em mim.
Acho que há vida em mim.
A vida em mim anda passando.
Acho que a vida anda passando a mão em mim.
E por falar em sexo
Quem anda me comendo é o tempo
Na verdade faz tempo
Mas eu escondia
Porque ele me pegava à força
E por trás.
Um dia resolvi encará-lo de frente
E disse: Tempo,
Se você tem que me comer
Que seja com o meu consentimento
E me olhando nos olhos
Acho que ganhei o tempo
De lá pra cá
Ele tem sido bom comigo
Dizem que ando até remoçando
(Viviane Mosé)
Matheus Viana Braz | 31

Neste primeiro tópico, apreendido como uma apresentação do traba-


lho subsequente, prescindirei brevemente da convenção acadêmica do nós
para escrever na primeira pessoa do singular. Uma vez que este livro é
permeado de reflexões sobre modalidades de intervenção centradas nas
narrativas de vida, penso ser coerente iniciar este texto com um relato au-
tobiográfico sobre minha trajetória de vida, meus encontros com a
Sociologia Clínica e minhas escolhas socioprofissionais. Na esteira das con-
tribuições de Devereux (1967/1980), acredito que a reflexividade subjetiva
biográfica se coloca como condição hermenêutica fundamental ao trabalho
de produção de conhecimento sobre os sujeitos nas ciências sociais. Nesse
sentido, complementa o autor,

uma ciência do comportamento autêntica existirá quando aqueles que a pra-


ticam se derem conta que uma ciência realista da humanidade só pode ser
criada por homens que são mais conscientes de sua própria humanidade, pre-
cisamente quando a colocam totalmente em prática em seu trabalho científico
(Devereux, 1967/1980, p. 211).

Na clínica narrativa “[...] jamais se trata o ser humano como uma


ferramenta, um instrumento, uma variável, mas como um sujeito capaz
de enunciar um saber sobre sua própria existência e sobre sua história”
(Gaulejac, 2012, p.2602). Nesse sentido, entendo que a reflexividade bio-
gráfica e a construção escrita de sua própria história constituem vetores
elementares no processo de formação de um pesquisador precavido a não
cair nas armadilhas da dominação dos paradigmas objetivantes e instru-
mentalistas de produção de conhecimento.
Espero também que esse intento desperte no leitor o interesse na
imersão sobre sua própria história, para que possa exercitar sua potenci-
alidade de biografização (Niewiadomski, 2012, p. 33), ou seja, para que

1
No original: Une science du comportement autenthique existera quand ceux qui la pratiquent se rendront compte
qu’une science realiste de l’humanité ne peut être créée que par des hommes qui sont les plus conscients de leurs
propre humanité, précisément lorsqu’ils la mettent le plus totalement à l’ œuvre dans leurs travail scientifique.
2
No original: [...] ne jamais traiter l’être humain comme un outil, un instrument, une variable, mais comme un sujet
capable d’énoncer un savoir sur sa propre existence et sur son histoire.
32 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

busque compreender as contradições das multideterminações que condi-


cionam (porém que não decidem) suas escolhas, afetações,
comportamentos e os modos como enfrenta seus conflitos, na esfera pes-
soal como na profissional.
Ao longo da história da humanidade, é notável como os seres huma-
nos são afeitos a contar histórias. Da infância à velhice, no teatro, em
livros, jornais, filmes, novelas e seriados, nos fascinamos por romances
mais ou menos fantasiosos. A identificação eventual por alguma trama,
enredo ou personagem alimenta nossas fantasias, nosso mundo anímico e
nos proporciona experiências que transpassam a racionalidade de nossa
vida cotidiana. Nessa perspectiva, o filme O fabuloso destino de Amélie
Poulain (2001), dirigido por Jean-Pierre Jeunet, retrata com sensibilidade
ímpar a vida de uma jovem garçonete na cidade de Paris. Os sentidos de
seu trabalho e seus projetos de vida não passam por feitos e sonhos excep-
cionais, mas se consumam mediante atos aparentemente banais de seu dia
a dia. Ao telespectador, o romance da trama de Amélie Poulain oferece a
possibilidade de perceber que, tal como na história da protagonista, sua
própria vida também pode ser instigante. Ao espectador é dada a oportu-
nidade de sonhar, de identificar que é na rotina e no caráter comezinho da
vida que construímos nosso romance e sentido de nossa existência social.
Se faço essa observação, enfatizando a riqueza de sentidos dos aspec-
tos ordinários de nossas vidas, é porque busco colocar o trabalho
biográfico e, logo, os romances familiares, em polos diametralmente opos-
tos ao storytelling3, abordagem popular e amplamente difundida no
universo corporativo. Não questiono o êxito que este método alcança no
processo de conquista da atenção e identificação para com seu público, po-
rém ele se distancia das abordagens biográficas aqui referidas pelo fato
mesmo que tenta transformar as histórias de vida em propagandas ou em
roteiros sedutores aos seus espectadores. Em contraposição, na clínica
narrativa baseada na Sociologia Clínica não se trata de construir um

3
O storytelling consiste em um método de contação de histórias, baseado em técnicas inspiradas em escritores e
roteiristas, cuja finalidade é transmitir ao espectador uma história e mensagem de forma inesquecível.
Matheus Viana Braz | 33

imaginário ou enredo enganoso, os quais ocultam ou distorcem alguns ele-


mentos (em geral aqueles considerados “negativos” ou prejudiciais), em
favor da supervalorização de conquistas e momentos de superação. Tal
como na trama de Amélie, trata-se de retomar a história de vida de cada
sujeito, de compreender suas vivências considerando os aspectos ordiná-
rios de suas experiências, sem que haja necessariamente vilões e heróis.
Quando me remeto à noção de história de vida, tampouco me refiro
às trajetórias sociais das pessoas como se fossem frutos de acontecimentos
sucessivos, vivenciados sempre por um mesmo agente, desconectado das
mudanças sócio-históricas de seu entorno. Se acreditasse nisso, estaria me
submetendo às armadilhas da ilusão biográfica, evocada por Bourdieu
(1986). Para além dos fatos propriamente concretos, reproduzo aqui um
conjunto de percepções singulares sobre minhas vivências e suas signifi-
cações. Quando retorno ao meu passado, entendo que sou produto de
processos contínuos e ininterruptos de subjetivação. O Matheus do pre-
sente, portanto, é um sujeito substancialmente diferente daquele que
vivenciou acontecimentos, frustrações e conquistas os quais acesso so-
mente de forma retrospectiva. Não obstante, tentarei organizar meu relato
a partir de uma cronologia mais ou menos coerente, reconhecendo que
este não é um empreendimento fácil. O retorno sobre a nossa história não
se dá de forma linear, como se os acontecimentos e memórias fossem se
encaixando como um quebra-cabeça ou em ritmos harmônicos, sincroni-
zados uns aos outros. Ao contrário, os significados e vivências
apresentados foram constituídos de forma gradual, em períodos de maior
introspecção, de trabalho mais intenso sobre minha interioridade, mas
que também foram acompanhados de dias (ou meses) de distanciamento,
como se fosse necessário driblar e evitar o confronto com minha angústia
existencial por alguns momentos.
34 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Raízes familiares e sociais: uma história laboral em questão

Nasci em São José do Rio Pardo, uma pequena cidade no interior do


estado de São Paulo, com cerca de 50 mil habitantes. Meu avô materno
trabalhou toda sua vida como eletricista em uma companhia de energia
elétrica da cidade (por mais de trinta anos) e, depois de sua aposentadoria,
continuou suas atividades prestando serviço como autônomo. Sua esposa,
minha avó, assumia tradicionalmente a responsabilidade dos cuidados do
lar. Ambos foram criados na zona rural, em condições materiais precárias,
contudo que lhes conferiram (em especial ao meu avô) um respeito e amor
fiel a terra. Seus três filhos já foram criados na zona urbana, mas sempre
em contato constante com o campo. Do lado paterno, meu avô era cami-
nhoneiro, ficava a maior parte de seu tempo viajando, porém não o
conheci, pois faleceu aos 36 anos de idade, após enfrentar um processo de
adoecimento que lhe deixou acamado e com metade de seu corpo parali-
sado durante meses. Minha avó, por sua vez, foi quem criou seus quatro
filhos, equilibrando as responsabilidades domésticas com dois outros tra-
balhos concomitantes, de inspetora em uma escola municipal e costureira.
Ainda que oriunda de uma família modesta, minha mãe teve uma
infância confortável materialmente. Aos 19 anos, enquanto namorava meu
pai, ficou grávida de minha irmã (a primogênita da família) e os dois re-
solveram se casar. Nessa época, minha mãe trabalhava como caixa em um
banco, mas pediu demissão de seu emprego durante sua gravidez para po-
der se dedicar aos cuidados de minha irmã. Ao mesmo tempo, minha mãe
começou a trabalhar como autônoma, produzindo e vendendo chocolates
e outros doces. Meu pai, proveniente de uma família mais pobre, conse-
guiu fazer um curso técnico em informática e também atuava como
autônomo nesse período. Seguido do nascimento de minha irmã, após
cerca de um ano e meio, meu irmão veio ao mundo. Enfim, meu nasci-
mento data exatamente de um ano depois da chegada de meu irmão.
Ao longo de minha infância meu pai trabalhou como datilógrafo e
como técnico de informática, na maior parte do tempo em outras cidades
Matheus Viana Braz | 35

o que o permitia voltar para casa aos finais de semana, quando era possí-
vel. Minha mãe, então, era responsável pelo cuidado de três filhos
pequenos (o que imagino não ter sido tarefa fácil) e vendia doces e salga-
dos que fazia em casa no escasso tempo que lhe sobrava. O salário de meu
pai era utilizado nas despesas de nossa casa, mas as dificuldades financei-
ras foram uma constante durante esse período.
Em determinado momento, ainda durante minha infância, meu pai
conseguiu um trabalho em uma indústria de grande porte de nossa cidade,
o que o possibilitou voltar a morar conosco. Tenho a percepção de que
nesse período vivemos uma vida bastante harmoniosa, com menos confli-
tos familiares, e maior estabilidade financeira. Sobretudo aos finais de
semana, fazíamos programas em família e tenho a sensação de que me
aproximei mais de meu pai. Poucos anos depois, todavia, ele foi demitido,
na ocasião da realização de processo de demissão coletiva da empresa. Te-
nho ainda viva a lembrança de quando se reuniu com minha mãe e meus
irmãos, para nos dar a notícia. Sentimos o clima de tristeza e parecia que
sabíamos que as coisas voltariam a piorar, mas meu pai e minha mãe per-
maneciam fortes e tentavam transmitir o otimismo e a sensação de
equilíbrio para nós três.
Depois dessa demissão meu pai atravessou um longo período de de-
semprego (embora esporadicamente ainda fizesse algum trabalho como
autônomo), mas auxiliava minha mãe no preparo e venda de doces e pra-
tos salgados. Ambos tentaram inclusive abrir um pequeno
empreendimento no setor alimentício, mas que em pouco tempo foi fe-
chado, em função de dificuldades administrativas e financeiras.
Entre meus 10 e 16 anos, lembro que meu pai trabalhou como free-
lance em nossa cidade natal. Em um determinado momento, ele se mudou
para a cidade de Porto Alegre, onde conseguiu um trabalho, mas como a
distância geográfica era muito grande, em menos de um ano retornou à
nossa casa. Minha mãe sempre ficou à frente de nosso cuidado, embora
tivéssemos também uma aproximação constante com meus avós. Ela tra-
balhava como cozinheira, também autônoma, em alguns momentos
36 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

trabalhou em outras áreas, mas tampouco tinha uma efetiva estabilidade


financeira. Ainda durante minha adolescência, meus pais resolveram se
divorciar. Lembro-me que esse processo, o qual levou alguns meses, foi
bastante conturbado em nossa família.
Quando retomo minha infância, há uma dialética existencial sempre
presente. De um lado, tenho a lembrança de vivências permeadas de afe-
tos, simplicidade, cumplicidade e muito carinho em nosso núcleo familiar,
como também na relação com meus avós e tios. Éramos todos muito uni-
dos e valorizávamos os encontros familiares. Por outro lado, a
instabilidade de trabalho e financeira em nossa casa se revelava um deter-
minante categórico de nossa história, o que culminava em endividamentos
e conflitos constantes entre meus pais. O aspecto financeiro, portanto, re-
presentava para mim uma espécie de termômetro relacional de nossa
dinâmica familiar.
Sempre fui muito próximo ao meu avô materno. Desde a infância, eu
o seguia em todo momento. Íamos juntos para o campo quase toda semana
e foi com ele que aprendi a andar a cavalo. Aos 13 anos de idade, comecei
a acompanhá-lo em alguns dos serviços que prestava como eletricista.
Gradualmente, aquilo que era um hobby se tornou mais sério e comecei a
trabalhar com ele no contraturno em que não estava na escola. Ele passou
a me pagar semanalmente e começou de fato a me ensinar seu ofício de
eletricista. Meu avô tinha um estilo particular de transmitir sua sabedoria.
Oriundo de uma criação cristã bastante rígida, ele sempre cobrou muita
disciplina, ética, seriedade e atenção na realização de nossas atividades. A
educação e respeito com os clientes também não eram exigências secun-
dárias. Embora tenha estudado somente até a terceira série do ensino
fundamental, sempre admirei sua inteligência (aprendida na prática ao
longo dos anos), capacidade de raciocínio lógico, além de uma invejável
didática na transmissão de sua sabedoria. Tem que estudar, pra ser alguém
na vida, era uma frase que ouvi centenas de vezes de meu avô. O conheci-
mento nunca me foi passado de forma passiva. Meu avô não era do tipo
que dava as soluções prontas. Antes, ele sempre me fazia inúmeras
Matheus Viana Braz | 37

perguntas, para que eu exercitasse minha capacidade reflexiva na resolu-


ção de determinados problemas. Trabalhei dos 13 aos 18 anos com ele e,
novamente, hoje consigo significar minhas vivências a partir de um olhar
mais integrativo. Explico-me. Em especial quando estava no auge de mi-
nha adolescência, vivi essa experiência com expressiva contradição. Eu
sempre gostei de acompanhar meu avô, o admirava muito, reconhecia os
aprendizados oriundos dessa experiência e o dinheiro que recebia era es-
sencial em minha vida, todavia também me lembro de vários momentos
de sofrimento. Alguns trabalhos que fazíamos eram de fato muito árduos.
Ficar a tarde toda, por exemplo, fazendo a parte elétrica de uma casa, pre-
gando roldanas em seu forro, em temperaturas efetivamente intensas, era
muito extenuante. Além disso, me lembro de momentos em que não pude
acompanhar colegas em atividades de lazer, pois tive que ir trabalhar.
Questionava-me, por vezes, sobre o porquê muitos jovens tinham uma
vida mais confortável que a minha e não precisavam se submeter às con-
dições de trabalho que faziam parte da minha realidade.
Hoje, percebo que essa experiência se revelou um elemento determi-
nante da constituição de minha identidade genealógica (Gaulejac, 2009),
de minha história de vida, no sentido da transmissão de capitais culturais,
simbólicos, econômicos e ideológicos (Grenfell, 2018). Estudei, da infância
à adolescência, em escolas públicas. Convivi diariamente com jovens muito
mais pobres que eu, os quais viviam em condições de aguda precariedade
social. Por outro lado, tive também amigos de classe média, que tinham
um nível econômico de vida superior ao meu e que desfrutavam de mais
recursos materiais e simbólicos. Baseado em Antunes (2018), penso que
minha família se encaixava muito bem na condição daquela classe que vive
do trabalho, porém que flerta constantemente com o sonho e valores de
classes mais elitizadas. A culpabilização e sensação de impotência se colo-
cavam como ditames de nossa conjuntura social. Ou seja, sentíamos os
efeitos da precarização do trabalho, interiorizávamos os valores e aspira-
ções do topo da pirâmide social, contudo nossas condições em termos de
consumo e qualificação formal eram majoritariamente inferiores. A
38 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

concepção de sucesso profissional, portanto, hegemônica nos projetos pa-


rentais de minha família, passava pela conquista de um emprego estável,
em uma empresa reconhecida, na qual proporcionasse status social e a
aquisição de bens “essenciais”, como um carro e casa própria. Aliadas a
uma efetiva devoção cristã, tais elementos eram considerados motores
fundamentais à constituição de uma “família plena e feliz”.
Segundo uma perspectiva dejouriana (Dejours, 2012), penso que meu
desenvolvimento psicoafetivo, no âmbito de minha relação psíquica com o
trabalho, abarcou alguns significantes centrais. A partir da percepção que
eu tinha da experiência de meus pais (os quais considero figuras essenciais
em minha vida), em minha infância o trabalho esteve associado à penibi-
lidade, obrigação e um imperativo para ascensão social. Com meu avô,
interiorizei também que o trabalho, como um meio de subsistênca, confe-
ria ao homem dignidade, integridade, identidade profissional e poder de
consumo, mas que para isso cobrava um preço alto do ponto de vista do
desgaste físico e mental. E, claro, aprendi que o mundo do trabalho nem
sempre é justo. Decerto que nessa época essas questões não eram claras
para mim, pois nunca havia feito essas reflexões, tampouco tinha consci-
ência de classe e do lugar que ocupávamos na sociedade.
Em minha história de vida, a construção propriamente de uma iden-
tidade narrativa (Gaulejac, 2009) foi marcada pelas minhas escolhas
profissionais subsequentes. Quando conclui o Ensino Médio não pensava
em fazer faculdade. Queria me dedicar ao trabalho de eletricista para ga-
nhar mais dinheiro. Entretanto, influenciado por alguns colegas que
começaram a ingressar em universidades, me inscrevi em um cursinho
pré-vestibular, no qual acompanhava no contraturno de meu trabalho.
Esse foi o primeiro momento em que percebi como minha educação for-
mal foi deficitária. Enquanto muitos alunos estavam revisando conteúdos
que já dominavam, a maior parte era totalmente nova para mim. Soma-se
a isso o fato que eu não gostava de estudar quase nada do que via em sala.
Decorar aqueles conteúdos, para passar em um vestibular, não fazia sen-
tido. Eu me sentia um ignorante. Ao longo desse ano, porém, fui
Matheus Viana Braz | 39

persistente, me dediquei aos estudos com muita disciplina e enfim comecei


a flertar com as possibilidades de cursar História, Psicologia ou Relações
Públicas. Hoje percebo que essa escolha não foi clara, mas optei pela Psi-
cologia. Embora tivesse pouco conhecimento da grade do curso, me
despertava curiosidade e vontade de estudar.
A essa altura, o desenho de uma narrativa própria se confrontou pela
primeira vez com meus projetos parentais. Quando disse ao meu avô que
queria cursar Psicologia, em uma universidade pública, lembro-me que ele
me fez três perguntas que são representativas à compreensão de minhas
heranças sociais e culturais: Isso não é curso de mulher? Isso dá dinheiro?
Será que universidade pública é pra gente, filho? Embora tivesse a expec-
tativa que eu fizesse Engenharia Elétrica, gradualmente meu avô
compreendeu meus anseios e incentivou minhas escolhas. Nessa mesma
linha, a opção pela Psicologia causou estranhamento em meus pais, con-
tudo eles também me apoiaram de modo irrestrito. Vejo que esse incentivo
me coloca em uma situação de privilégio, quando comparado a pessoas em
situações de maior precariedade. A condição, porém, era somente uma: eu
teria um ano para tentar a aprovação em uma universidade pública. Caso
não conseguisse, para não perder tempo, iria continuar trabalhando e bus-
caria um curso em alguma faculdade privada da região onde residíamos.

Trajetória socioprofissional e a construção de uma historicidade

Produto de muito estudo, mas também de uma expressiva sorte, fui


aprovado no vestibular da Universidade Estadual Paulista (UNESP) para
cursar Psicologia no outro lado do estado de São Paulo, no campus de As-
sis. O problema agora era a questão financeira. Mesmo assim, meu avô e
minha mãe se esforçaram e me deram um dinheiro que possibilitaria me
manter na cidade por dois meses. Ao me mudar, descobri que na univer-
sidade havia uma moradia estudantil gratuita para estudantes de baixa
renda e, além disso, consegui um auxílio permanência de 290 reais men-
sais. Em contrapartida, eu precisava me inserir em uma pesquisa de algum
40 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

professor do curso. Ao longo de toda minha graduação, eventualmente mi-


nha mãe conseguia algum dinheiro e depositava em minha conta. Eram
atos admiráveis, pois sei que muitas vezes ela deixou de pagar contas para
ajudar a me manter ou para ajudar meu irmão, que também havia ingres-
sado em uma universidade na cidade de Campinas. Para complementar
minha renda, nesse período eu fazia também alguns bicos, realizando tra-
balhos pontuais como eletricista e limpando repúblicas de outros
estudantes.
No primeiro semestre de faculdade fiquei deslumbrado. Deparei-me
com um mundo totalmente novo, instigante e conheci pessoas de diferen-
tes estratos sociais, com outras perspectivas de vida. As aulas, em
contraposição, não me interessavam e eu me sentia ainda mais limitado
intelectualmente que no cursinho pré-vestibular. Eu admirava a inteligên-
cia de meus professores, mas me faltavam recursos de leitura e escrita
para compreender os textos que discutíamos em sala. O segundo semestre,
contudo, teve extrema relevância em minha formação. Foi em uma disci-
plina sobre Sigmund Freud que senti pela primeira vez a curiosidade
epistemofílica evocada pela Psicanálise e que remete a um processo no qual
a inteligência do corpo é colocada em movimento, possibilitando a experi-
ência de emancipação no trabalho. Embora nebulosa, nesse momento a
Psicanálise me desafiava. Dediquei-me exaustivamente nos anos seguintes
as leituras de Freud. Participei de grupos de estudo e quanto mais eu as
compreendia, mais sentia que estava me desenvolvendo como pessoa. Mi-
nha disciplina e dedicação minimizavam cada vez mais aquele sentimento
de ignorância e limitação intelectual.
No segundo ano de faculdade, como condição para o recebimento do
auxílio permanência estudantil, eu participava de uma pesquisa sobre a
incidência da infecção pelo HIV em pacientes psiquiátricos. Resolvemos,
então, submeter um projeto de pesquisa de iniciação científica para a Fun-
dação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Para minha
surpresa, esse projeto foi aceito. Troquei, então, o auxílio permanência
pelo fomento da FAPESP, que me pagava quase 400 reais na época. Ao
Matheus Viana Braz | 41

longo de 24 meses, fizemos um trabalho de coleta e análise de dados no


Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade de Assis, que resultou em
um artigo publicado na Revista Mudanças – Psicologia da Saúde. Nesse
período, trabalhei ainda em projetos de extensão voltados a pessoas com
obesidade em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e com mulheres cadas-
tradas no Programa Renda Cidadã, em um Centro de Referência em
Assistência Social (CRAS).
No terceiro ano de faculdade pleiteei uma bolsa de excelência acadê-
mica para estudantes de baixa renda, oferecida pelo setor de Relações
Internacionais da UNESP, para a realização de um intercâmbio. Fui seleci-
onado na primeira etapa, na qual os alunos do campus de Assis concorriam
entre si, e participei das entrevistas finais na reitoria da universidade, na
cidade de São Paulo. Para minha surpresa e alegria, fui aprovado nesse
processo e, no segundo semestre, me mudei para Santiago de Compostela,
na Espanha, cidade na qual eu residiria por seis meses. Esse foi, sem dú-
vidas, um ponto alto de minha formação pessoal e profissional. Conhecer
outras culturas e universidade foi sensacional, uma experiência única que
me abriu novos horizontes. As disciplinas cursadas, atrelada a intensifica-
ção dos estudos sobre a língua espanhola, me rendia uma rotina árdua de
trabalho, porém amplamente gratificante. Tive o privilégio de conhecer o
sistema de saúde mental da Galícia, o que me possibilitou ampliar a pro-
posta de minha iniciação científica e fazer um estudo comparativo da rede
espanhola com o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Tive também a
oportunidade de apresentar minha pesquisa em congressos na universi-
dade e, após muita dedicação, fui aprovado em todas as disciplinas que
cursei e meu relatório final, entregue à Assessoria de Relações Externas da
UNESP, foi apreciado positivamente. Esta sem dúvidas era uma experiên-
cia inimaginável antes de ingressar no curso de Psicologia e, não fosse à
bolsa recebida4, nessa ocasião seria impossível arcar pessoalmente com os
custos de um intercâmbio acadêmico.

4
A bolsa recebida contemplava meus custos de mobilidade (do Brasil à Espanha), os custos de moradia estudantil,
além de uma quantia mensal de cerca de 400 euros.
42 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Na transição do terceiro para o quarto ano de Psicologia, escolhi duas


ênfases para fazer estágios: clínica psicanalítica, do campo de Freud e La-
can, e Psicologia do Trabalho e Organizacional. Quanto ao primeiro, nos
dois anos seguintes pude aprofundar meus conhecimentos em Psicanálise,
mediante atendimentos individuais e grupais, sob a supervisão dos pro-
fessores Gustavo Henrique Dionísio e Abílio da Costa Rosa.
Concomitantemente, nesse período iniciei uma psicoterapia de base psica-
nalítica, com uma psicóloga da universidade em um projeto social. Em
relação ao segundo estágio, meu conhecimento sobre a Psicologia do Tra-
balho e Organizacional era superficial, mas eu tinha interesse em me
aprofundar no campo e conhecia indiretamente o trabalho do professor
Francisco Hashimoto, bastante elogiado e reconhecido entre os discentes
do curso. Eu não sabia, entretanto, que esta escolha se traduziria em um
divisor de águas em minha trajetória socioprofissional.
Focado nas clínicas do trabalho, sobretudo na Psicodinâmica dejou-
riana e na Psicossociologia francesa, o professor Francisco foi quem
expandiu meus horizontes dentro do campo da Psicologia. No âmbito teó-
rico, foi graças a ele que tive acesso pela primeira vez a textos clássicos
como O poder das organizações (Pagès, Bonetti, Gaulejac, & Descendre,
1987), Da horda ao Estado (Enriquez, 1990), A organização em análise (En-
riquez, 1997), Gestão como doença social (Gaulejac, 2007), O sujeito social
(Barus-Michel, 2004), assim como outros trabalhos de brasileiros como
Teresa Carreteiro, José Newton de Araújo, Vanessa Andrade de Barros e
Marília Novais da Mata Machado. Eu me fascinei pela abordagem original
e pelo rigor teórico-metodológico da Psicossociologia. O rompimento com
os enclausuramentos disciplinares atrelado a uma óptica crítica sobre os
campos da Sociologia e da Psicologia faziam cada vez mais sentido. Mais
ainda, na Psicossociologia encontrei reflexões que eram ignoradas pelos
psicanalistas, mas que me incomodavam há tempos. Instigado pelas leitu-
ras, já nesse momento comecei também a estudar o idioma francês,
sonhando com uma possibilidade futura de estudar na França.
Matheus Viana Braz | 43

Em paralelo, no quarto ano fiz um estágio no departamento de Re-


cursos Humanos (RH) de uma indústria sucro-alcoeira da região e
também iniciamos um trabalho de pesquisa-intervenção em um pronto-
socorro da rede de saúde da cidade (porém que foi interrompido antes de
concluirmos as intervenções). O trabalho no RH me permitiu conhecer o
funcionamento cotidiano de uma grande empresa, em especial em relação
às práticas de Recrutamento e Seleção, Treinamento e Desenvolvimento e
Cargos e Salários. Como estava implicado a me aprofundar nas Clínicas do
Trabalho, o professor Francisco aceitou me orientar em um novo projeto
de iniciação científica.
No ano seguinte, também com o fomento da FAPESP, desenvolvemos
uma pesquisa teórico-reflexiva cujo objetivo consistia em compreender os
enlaces entre as noções de desejo, sublimação e sujeito nas organizações
estratégicas, à luz da Psicodinâmica de Dejours e da Psicossociologia. Foi a
partir deste trabalho que decidi de fato seguir o percurso acadêmico. De-
diquei-me às leituras e me descobri admirado pelas problemáticas
relacionadas ao mundo do trabalho. A aproximação com o professor Fran-
cisco, nesse sentido, foi determinante nessa escolha. Em momentos
críticos, de dificuldades pessoais quase incontornáveis, sua ajuda e conse-
lhos foram de extrema importância. Sua escuta sensível, amizade e
generosidade alimentavam minha busca em me tornar um professor e
pesquisador a sua altura. Hoje, mais que o principal mentor de minha vida,
o considero como um amigo único.
Meu último ano de faculdade foi marcado por jornadas exaustivas,
mas também enriquecedoras. Afora as aulas, os atendimentos clínicos e a
pesquisa de iniciação científica, eu comecei dois novos estágios e ingressei
em um projeto de extensão, voltado à orientação profissional de jovens
que estudavam no cursinho pré-vestibular comunitário da universidade.
O primeiro estágio era realizado no RH de uma empresa de tecnologia da
informação e o segundo em um projeto social voltado à educação socio-
ambiental de crianças e adolescentes. Deparei-me com novas demandas e
desafios, o que significou também outros aprendizados.
44 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Assim que conclui minha graduação, recebi duas propostas de traba-


lho: uma na empresa de T.I e outra no projeto social, cujo foco era
orientação psicopedagógica com os jovens. Na primeira, eu deveria viajar
constantemente para duas outras cidades em que a empresa possuía uni-
dades subsidiárias. Na segunda, embora a remuneração fosse
significativamente inferior, eu teria uma sobrecarga menor de trabalho.
Como estava focado em ingressar e seguir no mestrado, optei pela última
opção. Vale destacar que tanto durante o estágio como depois, essa expe-
riência foi relevante em minha trajetória, pois pela primeira vez eu pude
me aproximar da realidade de crianças e adolescentes que viviam em situ-
ação de extrema pobreza, os quais amiúde não tinham nem o mínimo
necessário para sobreviver. Apesar de todas essas dificuldades e da distân-
cia social que nos separava, esses jovens eram autênticos e aprendíamos
juntos, construindo vínculos genuínos a partir de nossas trocas.

Sobre as primeiras experiências com os grupos de implicação e


pesquisa e o organidrama

Sob orientação do professor Francisco Hashimoto, à luz da Psicosso-


ciologia e da Sociologia Clínica, no mestrado objetivamos compreender
como se operava a incorporação ideológica, as vivências de sofrimento e
os laços subjetivos estabelecidos entre trabalhadores e empresas. Posto
que muitas de nossas hipóteses reflexivas partiram dos estudos empreen-
didos em O poder das organizações (Pagès et al., 1987) e em O custo da
excelência (Aubert & Gaulejac,1991/2007), realizamos a pesquisa em com-
panhias multinacionais, públicas e privadas, de setores variados,
localizadas na Região Metropolitana de São Paulo: varejo, indústria quí-
mica, pesquisa de mercado, mineração e metais, indústria farmacêutica,
consultoria de gerenciamento, tecnologia da informação, editoração e bio-
tecnologia. A partir da abordagem biográfica, tentamos nos aproximar da
vivência de trabalhadores que ocupavam posições de gerência ou diretoria,
em organizações oriundas de distintas nacionalidades (Brasil, Holanda,
Matheus Viana Braz | 45

Israel, Estados Unidos, México, Índia, Espanha, França, Argentina, Itália,


Suíça, Japão, Inglaterra e Irlanda). Com foco na compreensão das novas
formas de sofrimento no trabalho, o referido estudo foi intitulado Para-
doxo gerencialista e hiperperformance: sobre os laços psicológicos e
ideológicos nas organizações multinacionais. Não entrarei nas discussões
e resultados encontrados, pois faremos essa retomada ao longo deste livro,
mas no âmbito pessoal sinto que dei um salto substantivo na compreensão
do campo da Psicossociologia e da Sociologia Clínica.
Como eu já estudava francês há alguns anos, pude me aprofundar
nas leituras de várias obras centrais, ainda não publicadas no Brasil, refe-
rente à Sociologia Clínica. Em especial, as reflexões do professor Vincent
de Gaulejac sempre me pareceram certeiras e carregadas de um rigor teó-
rico admirável. No trabalho de campo realizado, para além do status social
atribuído aos trabalhadores, encontrei vivências de fragilidade, vulnerabi-
lidade, culpabilização e, inclusive, por vezes de incredulidade relacionada
aos seus trabalhos. A hiperatividade e exigências de produtividade cada
vez mais intensas eram categóricas. As contradições organizacionais apa-
reciam como elementos difusos nas narrativas dos entrevistados e
questões como a construção de sentido, as dinâmicas de prazer, sofri-
mento, os sistemas de mediação da gestão das organizações, se revelaram
centrais em minhas reflexões. O que significa, afinal, tornar-se sujeito? O
que condiciona nossa forma de pensar, nossas escolhas profissionais e a
forma como nos portamos nas organizações? Como integrar o subjetivo na
análise social do trabalho? Como nossa historicidade se inscreve em nosso
contexto de trabalho e o quanto isso pode se tornar uma armadilha à cons-
trução de sentido no trabalho? Se eu colocava sempre essas interrogações
no trabalho de análise das transcrições das entrevistas, também o fazia em
relação à minha história de vida.
É preciso ainda resgatar que durante o mestrado eu pedi demissão
do projeto social no qual trabalhava e comecei a atuar como prestador de
serviços na empresa de tecnologia na qual havia feito estágio. Ao mesmo
tempo em que pude conhecer de forma mais aprofundada a dinâmica dos
46 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

subsistemas de RH, tive autonomia para propor algumas mudanças que


tiveram impactos expressivos. Sobretudo em treinamentos e nos progra-
mas de desenvolvimento dos trabalhadores, me servia do arcabouço
teórico-metodológico da Sociologia Clínica e da Psicossociologia para tra-
balhar a dimensão dos conflitos da empresa. Decerto que limitações
vieram à luz nessas tentativas, mas seguramente esse trabalho foi impor-
tante e reconhecido pelos trabalhadores. Foi também durante esse período
que comecei a trabalhar como professor em uma universidade privada da
região. Nessa experiência, descobri a paixão pela docência, malgrado as
dificuldades impostas por essa carreira no contemporâneo. Mesmo nos
dias em que eu começava uma aula saturado, cansado, me percebia minu-
tos depois extasiado, praticamente gritando na sala. As trocas com os
alunos, por sua vez, sempre foram enriquecedoras e representam até hoje
o principal motor de minha implicação e engajamento na universidade.
Em outubro de 2015, fui à Brasília para participar de uma semana de
formação em Sociologia Clínica, organizada pela professora Christiane Gi-
rard (a qual, é preciso sublinhar, me recebeu com muita abertura,
sensibilidade e empatia) e seu grupo de pesquisa, na Universidade de Bra-
sília (UNB). Na época, além das palestras que faziam parte da
programação da jornada, ao longo de três dias participei (pela primeira
vez) de um Grupo de Implicação e Pesquisa (GIP)5, intitulado Trajetórias
sociais e escolhas profissionais, mediado pela Christiane e por Vincent de
Gaulejac. Até então, só conhecia esse dispositivo de intervenção pelas lei-
turas que havia feito.
No curso desse processo de reflexão e de trabalho coletivo, me dei
conta de como a dimensão da implicação em relação à pesquisa se desvela
fundamental. Percebi o quanto meu objeto de pesquisa e meu interesse
pela Sociologia Clínica estavam ligados à minha história de vida. Na busca
para me tornar professor, pesquisador e, portanto, para construir minha
historicidade, eu precisei questionar uma concepção utilitária de conheci-
mento que existia no núcleo de minha família e do contexto social no qual

5
Groupe d’Implication et de Recherche (GIR).
Matheus Viana Braz | 47

fui subjetivado. Nesse grupo também pude me confrontar com o hiato en-
tre a escolha de uma profissão (a Psicologia) com pouco prestígio social e
retorno financeiro e as expectativas predominantes inerentes aos meus
projetos parentais. Apreendi, também, que conforme fui construindo uma
trajetória que fugia dos estereótipos de sucesso profissional hegemônicos,
isso também influenciou positivamente na mudança de perspectiva de tra-
balho de alguns integrantes de minha família.
Refletir sobre minhas escolhas profissionais implicava doravante
compreender qual a concepção de trabalho hegemônica em minha histó-
ria. Embora aparentemente óbvia, tomei consciência dessa ligação
somente neste momento. Todavia, outras contradições vieram à tona. Nos
últimos anos, ficava evidente que eu havia assumido maior protagonismo
na construção de minha trajetória profissional, mas paguei um preço alto
por isso. Em razão de dificuldades financeiras e por falta de tempo, du-
rante minha graduação e mestrado eu retornava muito pouco para minha
cidade de origem. No ano de 2015, grande parte de minha família ainda
residia na cidade, mas meus irmãos e meus pais haviam se instalado em
Campinas. Meu irmão foi o primeiro a se mudar, para fazer faculdade.
Anos depois, minha irmã também foi a trabalho e, posteriormente, cursou
Ciências Contábeis. Meu pai, anos depois do divórcio, conheceu outra mu-
lher e foi morar com ela, em Campinas. Enfim, no ano de 2014, em função
de dificuldades financeiras, minha mãe se mudou também para a cidade,
onde trabalha como cozinheira. Portanto, o efeito colateral de minhas es-
colhas foi um distanciamento relativo com minha família, no qual
reconheço que fui o principal responsável.
No ano de 2016 eu havia me preparado, encarei a árdua burocracia
da FAPESP e submeti um projeto para pleitear uma Bolsa de Estágio e Pes-
quisa no Exterior, cuja finalidade era ampliar meu trabalho de mestrado e
realizar uma pesquisa no seio do Laboratoire de Changement Social et Po-
litique da Université Paris 7 Diderot, em Paris, na França, sob orientação
do professor Vincent de Gaulejac, que havia aceitado me receber. Para mi-
nha surpresa e extrema felicidade, o projeto foi aprovado. No dia 31 de
48 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

dezembro eu embarcaria para a França e trabalharia no referido laborató-


rio no ano seguinte.
Nesse ínterim, contudo, eu me depararia com um dos momentos
mais difíceis de minha vida. No fim do mês de agosto daquele ano, após
sentir por vários dias dores agudas no que pensava ser seu nervo ciático,
repentinamente meu pai foi diagnosticado com um melanoma, já em es-
tado de metástase em sua coluna vertebral. Nos três meses seguintes,
passei a viajar todos os finais de semana para Campinas, nossa família se
uniu como nunca, mas vi meu pai perder mais de 30 quilos. Aproximei-
me ainda mais dele e tivemos conversas realmente muito intensas. Todo
seu tratamento foi feito no Hospital das Clínicas da Unicamp, com uma
sofisticada estrutura, mas ele não resistiu e faleceu no meio do mês de
novembro. Nenhum de nós esperava por isso. Vimo-nos impotentes, sem
saber o que fazer diante desse golpe abrupto da vida.
Toda a euforia que eu sentia com a possibilidade de ir para a França
se dissipou. Cheguei a procurar informações sobre como declinar da bolsa
oferecida pela FAPESP, mas como os trâmites burocráticos já estavam to-
dos assinados, as passagens compradas e o dinheiro em minha conta, os
desfechos jurídicos desse processo seriam morosos e talvez custosos de-
mais. Minha mãe e meus irmãos, contudo, me incentivaram a não desistir
do projeto e então resolvi embarcar para Paris no mês seguinte. Embora à
época eu tenha me culpado por me distanciar novamente de minha famí-
lia, hoje vejo de forma positiva minha escolha. Se tivesse desistido, minha
trajetória teria tomado outros rumos e eu não teria conhecido pessoas que
também ocupam posições centrais em minha vida atualmente.
Janeiro de 2017 sem dúvidas foi um mês peculiar em minha trajetó-
ria. Imerso em conflitos pessoais, tive dificuldades em me adaptar ao
inverno parisiense, em me expressar no idioma francês e não conhecia
ninguém na cidade. Felizmente, nos meses seguintes conheci colegas e
pesquisadores excepcionais, residentes na Cité International Universitaire.
Já nesse mês, eu participei de meu segundo Grupo de Implicação e Pes-
quisa, intitulado O sujeito face ao trabalho, mediado por Catherine Besse
Matheus Viana Braz | 49

e Vincent de Gaulejac. Sobretudo no primeiro dia, ainda estava muito re-


cluso e com receio de me comunicar. Vi-me submerso na angústia e
imobilizado pela vergonha de não falar com fluência a língua francesa (eu
compreendia bem o idioma, mas tinha dificuldades em me exprimir). Nos
dias subsequentes, o trabalho de reflexão individual e coletiva, no núcleo
do grupo, foi intenso e frutífero. Tomei consciência de que, diante de situ-
ações de conflito, eu era atravessado por inúmeros fenômenos ligados à
minha trajetória de vida. Pude discutir algumas questões relacionadas à
morte de meu pai e percebi, também, que eu tinha pouco conhecimento
do passado e origem de minha família, em especial sobre os antepassados
de meus avós, o que refletia certa depreciação coletiva de nossa própria
genealogia.
Aprendi e vivenciei realmente o que é a abordagem clínica em Socio-
logia, para além da teoria. Os movimentos de implicação pessoal, atrelados
ao trabalho coletivo, me fizeram perceber como se opera a compreensão
das multideterminações que atravessam nossa história. Conheci também
o Organidrama e visualizei nesse dispositivo um veículo profícuo para aná-
lise e reflexão de conflitos grupais.
O terceiro Grupo de Implicação e Pesquisa no qual participei era in-
titulado O sujeito face ao trabalho e foi mediado por Vincent de Gaulejac e
Fabienne Hanique. Nessa ocasião, assumi uma postura mais ativa no
grupo, pois já sentia mais segurança com a língua francesa. Ao retomar as
reflexões sobre a trajetória profissional de meus pais, entendi com mais
clareza o porquê seus ideais de sucesso eram permeados por uma lógica
utilitarista. Eu percebia que suas vivências no trabalho passavam por sig-
nificantes como a penibilidade e a saturação, mas tomei consciência
também que suas experiências não podem ser dissociadas de contextos
sociais específicos de exploração, precarização, exclusão e instabilidade fi-
nanceira.
Questionei junto aos participantes como as contradições que encon-
trava entre minha história e historicidade refletiriam uma angústia de um
deslocamento de classe, isto é, um medo de abandonar minhas origens e
50 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

posição social. Decerto que não nos referíamos a uma distância que passa
por ganhos financeiros (pois isso não ocorreu), mas que se opera no plano
dos capitais culturais, ideológicos e simbólicos. Porém, o que significaria
mudar de classe? Isso é factível?
Aqui, percebi um ponto de inflexão. Primeiro, reconheci que ocupo
uma posição privilegiada em nossa sociedade, afinal sou branco, fiz uma
pós-graduação em uma universidade pública, assim como estou dentro
dos padrões estéticos e heteronormativos hegemônicos. Reconheci tam-
bém que me distanciei de certos paradigmas de minha família,
relacionados ao trabalho. Em contraposição, em substância valores funda-
mentais como o respeito, honestidade, sensibilidade, empatia e humildade
permaneceram enraizados na forma como enxergo o mundo. Logo, outras
questões se revelaram: Qual posição social eu ocupo na sociedade? Qual
posição ocupo na esfera de minhas relações intrafamiliares? Seria possível
dissociar história pessoal e história familiar? Do ponto de vista da trans-
missão psíquica, de onde ou de quem eu herdei a ambição de me tornar
professor e pesquisador?
Malgrado atualmente eu conviva em contextos diferentes daqueles
conhecidos por minha família, me sinto fiel às minhas raízes, sou grato e
admiro minhas figuras parentais. Em última análise, a perda do meu pai
me ensinou que essa família é central em minha vida e, se vislumbro uma
melhoria em termos de condições financeiras, é porque tenho a expecta-
tiva de poder ajudá-la no futuro (e aqui me remeto sobremaneira à minha
mãe). A capacidade, portanto, de construir esse futuro, passa inexoravel-
mente pela implicação em compreender as contradições de meu passado
e presente.
Ao longo de 2017, durante minha estadia na França, participei dos
seminários do Mestrado Acadêmico em Sociologie Clinique et Psychosoci-
ologie, do Mestrado Profissional em Théories et Pratiques de l’Intervention
Clinique dans les Organisations e do Doutorado, oferecidos no quadro do
Laboiratoire de Changement Social et Politique. Além disso, graças à gene-
rosidade do professor Vincent de Gaulejac, pude participar de duas outras
Matheus Viana Braz | 51

instâncias formativas, focadas nos dispositivos de pesquisa e intervenção


da Sociologia Clínica e oferecidos pelo Réseau International de Sociologie
Clinique (RISC). A primeira consistia em um programa de formação, inti-
tulado Théâtre, Sociologie Clinique et Intervention, ministrado por ele e
por René Badache, e o segundo era denominado Groupe de Recherche et
d’Échange de Pratiques (GREP), coordenado por Gaulejac e Christophe
Niewiadomski. Neste último, acompanhávamos Grupos de Implicação e
Pesquisa de variados temas, como participantes (e, depois, como observa-
dores), e refletíamos sobre nossas experiências, mediante um trabalho de
implicação e articulações teóricas coletivas.
Ao retornar ao Brasil, voltei a atuar como professor na mesma uni-
versidade, prestei outros serviços para a referida empresa de tecnologia e,
depois, passei a trabalhar como consultor, em organizações privadas. Em
ambos os lugares, fundamentei minhas práticas no campo da Sociologia
Clínica e pude mediar Grupos de Pesquisa e Implicação e sessões de Orga-
nidrama em diferentes contextos. Em 2019, trabalhei como professor
temporário na Universidade Estadual de Maringá (UEM) e no início de
2020 tive a felicidade de ser aprovado em um concurso para professor
efetivo na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), no campus
de Divinópolis, cidade onde resido atualmente. Os resultados desses últi-
mos trabalhos constituem a pedra angular das reflexões que o leitor
encontrará a seguir.
Entre Psicologia e Sociologia, onde se situa a Sociologia Clínica? Teo-
ricamente, essa é uma questão que por anos me foi muito cara. Somente
após ter imergido em um processo de formação sobre os dispositivos de
pesquisa e intervenção desse campo minhas interrogações foram elucida-
das. Sem me dar conta, ao passo que me aprofundei em minha história e
historicidade, compreendi do que se trata a clínica da complexidade e a
abordagem clínica em Sociologia.
Todo trabalho acadêmico corresponde à produção de uma forma de
saber e poder. Logo, na escrita clínica isso implica que o pesquisador se
confronte com suas contradições e vulnerabilidades, para não incorrer no
52 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

equívoco da instrumentalização. A partir deste relato autobiográfico, bus-


quei trazer à tona minha trajetória pessoal e intelectual, de modo que
tentei refletir sobre as determinações sociais e psíquicas que atravessam
minha história e, por conseguinte, o movimento de construção de minha
tese de doutorado e deste livro. Com efeito, se a historicidade compreende
um processo de interpretação e reconstrução de nossa própria história,
individual e coletiva, a escrita clínica nos convoca a um trabalho angusti-
ante, de exposição de nosso próprio narcisismo, mas que se coloca com
condição fundamental e fecunda ao desenvolvimento de uma pesquisa.
Enfim, nesse relato não citei figuras que foram centrais em minha
trajetória. Não foi minha pretensão minimizar ou desconsiderar a influên-
cia que muitas dessas pessoas tiveram em minha formação, mas meu
propósito consistiu em me centrar nos núcleos familiares e em minhas
escolhas socioprofissionais. Ademais, se muitas das interrogações que fiz
não foram respondidas, é porque esse trabalho de implicação e reflexão é
ininterrupto, o que faz com que esse texto permaneça inacabado. Não há
certezas, não há final feliz e as contradições não se esgotam, mas esse tal-
vez seja o genuíno caminho da construção de uma postura clínica do social.
1

Trabalho, emprego e a escalada da precarização no Brasil

Antônio Carlos, São Paulo, Zona Leste, novembro, terça-feira...

05h30. Trim trim trim, Despertador toca. Mais um dia. Vontade de ficar na cama é
enorme, mas as melhores corridas são as do início da manhã. Crio forças. Me levanto,
lavo o rosto, troco de roupas, tomo um café forte. Pão com manteiga. Coloco uma maçã
na minha bolsa, pra comer no meio da manhã e preparo um pão, com presunto, queijo
e ovo. Não deu tempo de preparar a marmita ontem. Antes de sair, passo pelo quarto
dos meus filhos: Pedro e Eduarda, doze e quinze anos. Ainda estão dormindo, como mi-
nha esposa, que logo vai acordar para sair para procurar trabalho. Desempregada há
onze meses. Tô com medo dela cair em depressão. Tá distante nos últimos dias. O Brasil
não tá fácil pra ninguém...

Pego o carro, ligo o aplicativo e vou pro centro da cidade. São Paulo, cidade que nunca
dorme, sempre tem corrida. Uma, duas, três, quatro... doze, o tempo tá voando hoje.
Lembrei que não abasteci o carro ontem. O jeito é encher o tanque aqui pelo centro
mesmo. Álcool é mais caro aqui do que perto de casa. Culpa. Tô perdendo dinheiro. Fila
no posto... Não é possível. Tô perdendo tempo. Enrolação desses frentistas. Povo que
não gosta de trabalhar, penso comigo. Olho o celular. Não posso aceitar as corridas.
Olho o hodômetro do carro. Mais de 2000 km percorridos na semana passada. Lembro
que já passou o prazo da revisão. Agora não tenho nem condições. Vai do jeito que tá
mesmo. Carro 2014, ainda pagando financiamento, falta mais sete anos para quitar. Mas
já tá batendo cento e cinquenta mil km. Tá desvalorizando. Sem chance de trocar agora.
Ansiedade começa a aumentar. Paro de pensar nisso. Foco nos problemas do presente.
Não posso ser pessimista. Como a maçã. Olho o celular enquanto abasteço o carro, para
distrair. Email, Whatsapp, Facebook, Linkedin, notícias... Instabilidade política e econô-
mica. Desemprego atinge 12,6 milhões de pessoas. O Brasil não tá fácil pra ninguém...

Até que enfim. Saio do posto. Volto pras corridas. Crianças, trabalhadores, jovens, em-
presas, escola, passeios, gente bacana, gente chata, uns querem conversar, outros
54 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

parecem ter medo de mim. Já perdi as contas de quantas corridas foram hoje. Dia não
tá fácil. Só corrida pequena. O dinheiro não rende. 11h30, paro rapidinho, 15 minutos.
Como o pão com ovo e tomo água. Ufa, hoje o dia tá passando rápido. Graças a Deus.
Pego o celular. Portal de notícias: Reforma da Previdência. O Brasil precisa equilibrar as
contas. Do jeito que tá, se ninguém intervir o país entra em colapso. 59 anos, desempre-
gado há três, quatro entrevistas nesse período. Tem gente que fala que nunca vou
conseguir recolocação. Ainda tenho fé. Lembro do passado. Sempre gostei de trabalhar
na área administrativa. Quase 20 anos na mesma empresa. Colaborador exemplar, mas
a empresa foi pra outro Estado. Mudaram a operação sem avisar pra quase ninguém.
Fomos abandonados. Ganhava pouco, mas o salário pingava todo mês. Nunca ia imagi-
nar que me deixariam na mão, que nem meu fundo de garantia tavam pagando. Saí com
uma mão na frente e outra atrás. Fé em Deus pra que o processo ande logo. A justiça
tarda, mas não falha. Pelo menos a rescisão tenho que receber. Borá lá, não adianta ficar
chorando, as contas não param de chegar e semana que vem vence o aluguel. Celular
chamando, corrida à vista. Só quero encerrar o dia.

Não consegui parar a tarde toda. Uma corrida atrás da outra. As costas começam a doer,
como sempre à tarde. Vamos, Antônio, falta pouco, sem mimimi. Não fecha a cara, por-
que senão o cliente dá avaliação negativa. Tem que ser simpático. O cliente acima de
tudo, ele tem sempre razão. Fim de tarde. Trânsito em São Paulo tá cada vez pior. Esse
povo não sabe dirigir, não é possível. Marginal, Radial Leste, nunca vi tanto radar, por
isso para tudo. Fábrica de multas. Mais uma forma do governo roubar meu dinheiro. 19
horas. Começo a direcionar as corridas no sentido de casa. Próximo cliente, fora do per-
curso de casa, mas a corrida é boa. Vale a pena, apesar do atraso. Aviso minha esposa
que vou chegar mais tarde, que eu janto depois. 20h horas. Enfim chegando perto de
casa. Não tenho ideia de quantas corridas foram hoje. As costas quase travando. Paro
na garagem. Faço as contas. Tirando o combustível, o lucro hoje foi de 120 reais. Não foi
ruim nem bom. Tô na média. Graças a Deus venci mais um dia. Não fosse a iniciativa
privada, eu tava na merda. O Estado só tá aí pra quebrar as empresas. Se não tivesse
tanto imposto teria mais empregos com carteira assinada... Distração. Foco, Antônio. Só
depende de você, penso eu.

Entro em casa. Dou um beijo nas crianças. Pra mim sempre vão ser minhas crianças, a
razão da minha vida. Quero que elas tenham a oportunidade de estudar, fazer tudo que
eu sonhei pra minha vida... Converso com minha esposa. Ela diz que não encontrou nada,
nenhuma entrevista, mas que conseguiu duas faxinas no fim da semana. 80 reais o dia.
A tarde assou algumas roscas. Amanhã eu levo pra tentar vender nas corridas. Agrade-
cemos a Deus. Depois de jantar, tomo um banho. 21h30, tô exausto, mas tenho que sair
da minha zona de conforto. Vejo uns vídeos de desenvolvimento pessoal no youtube. Leio
Matheus Viana Braz | 55

um pouco sobre como a mudança de hábitos e de mindset só depende de nós mesmos.


Na crise sempre têm oportunidades. Enquanto uns choram outros vendem lenços. Al-
gum dia ainda vou empreender, só me falta o insight de uma ideia inovadora. Agora tô
sem dinheiro. Mas quando vou sair dessa zona de conforto? Preciso me aperfeiçoar pro-
fissionalmente, desconstruir minhas crenças limitantes, me adaptar ao mercado, voltar
pra área administrativa. Fazer mais cursos, ler mais, entregar mais currículos... Força,
Fé, Foco. Esse trabalho é provisório... Tomo o remédio pra ansiedade e o relaxante mus-
cular. Sem eles não dou conta do dia seguinte. Meia noite já. Respiro fundo, amanhã vai
ser diferente... Trim trim trim, Despertador toca, 05h30.

O texto que abre este capítulo é um relato fictício, de nossa autoria,


mas que seguramente abarca de forma arquetípica as vivências de muitos
trabalhadores na contemporaneidade, assim como nos oferece pistas para
compreendermos a morfologia do trabalho na sociedade brasileira. Nessa
perspectiva, colocamos alguns questionamentos preliminares: quais as
principais mudanças operadas no mundo do trabalho no último século?
Como a Psicologia se inseriu nesse contexto? Em que medida isso alterou
as relações entre os processos de subjetivação, as dinâmicas identitárias e
os novos modos de sofrimento e adoecimento? Os principais problemas en-
contrados são frutos de políticas locais ou de uma lógica global, que toca
também outros países, emergentes, subdesenvolvidos ou desenvolvidos?
Quais seriam os principais balizadores que nos permitem identificar as ca-
racterísticas do futuro do trabalho e emprego na hipermodernidade?

1.1 Considerações históricas sobre trabalho e emprego

Para além do realismo econômico, partimos da premissa que a noção


de trabalho remete primeiramente a uma categoria sócio-histórica, hí-
brida e multifacetada. Compreendido em sua integralidade, concebemos o
trabalho em uma tripla dimensão: material, social e existencial (Dujarier,
2015). Trabalhamos para suprir necessidades concretas, via consumo de
objetos e experiências, porém no registro social o trabalho também con-
fere ao ser humano uma função e posição específicas, circunscritas nos
capitais simbólico, político, cultural e ideológico que o trabalhador tem e
56 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

constrói perante as pessoas de seu entorno (Gaulejac, 2009). Articulando


os registros do Ter e do Fazer, a dimensão existencial do trabalho (Ser) se
revela na atribuição singular de sentido que damos às nossas atividades e
relações com nosso trabalho. O sentido, por sua vez, seria o produto de
uma tripla elaboração: agir, sentir e significar (Dujarier, 2015). Esses pres-
supostos são importantes, pois nos indicam que o mal-estar e sofrimento
no trabalho provêm de um déficit em uma ou mais dimensões (por exem-
plo, atividade desvalorizada, sem sentido e/ou não reconhecida), bem
como de um descompasso no processo de significação das vivências do
trabalho real (Dejours, 2012). Com efeito, é em função dessa complexidade
que a atividade é mobilizadora de prazer, reconhecimento, emancipação,
realização pessoal, mas também é vetor de angústia, sofrimento, servidão,
alienação e adoecimento.
Uma das principais transformações do mundo do trabalho foi repre-
sentada pela 1º e 2º Revolução Industrial (nos séculos XVIII e XIX).
Sustentados pela classe burguesa emergente, apoiados no avanço do para-
digma tecnocientífico moderno e impulsionados pela expansão da
exploração de terras comunais, das riquezas coloniais e da hegemonia da
propriedade patrimonial latifundiária, esses movimentos foram determi-
nantes para a institucionalização do trabalho na forma do emprego e para
a consolidação de uma sociedade salarial (Castel, 2003). Nesse momento,
o trabalhador perdeu o protagonismo no processo produtivo, o trabalho
artesão se pulverizou e a produção em massa, realizada em grandes par-
ques industriais, expandiu-se de forma substancial. A segmentação dos
processos de trabalho culminou ainda na separação radical entre aqueles
que concebiam e aqueles que executavam o trabalho (Canêdo, 1985).
No início do século XX, sobretudo entre 1910 e 1920, a emergência do
taylorismo e do fordismo representou a consolidação de um novo para-
digma de gestão: a administração científica dos processos produtivos.
Centralização do poder, compartimentalização radical do trabalho, dimi-
nuição das interfaces entre tarefas, vigilância e controle rígido sobre o
tempo mediante sanções e punições, eram algumas das características
Matheus Viana Braz | 57

centrais deste modo de gestão. Imersos em rotinas repetitivas, jornadas


exaustivas e em condições precárias, os trabalhadores se tornaram ainda
mais descartáveis. O sofrimento e os conflitos eram desconsiderados e não
faziam parte do rol de prioridades da gestão das organizações. Em outras
palavras, embora o estresse, fadiga, exaustão, assim como casos de doen-
ças osteomusculares (como Lesões por Esforços Repetitivos e outros
Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho) fossem crescentes,
não eram apreendidas como o produto do funcionamento organizacional
(Antunes, 1999). Nesse momento, atrelada epistemologicamente a Enge-
nharia e a Administração, houve o surgimento da Psicologia Industrial (ou
do Ajustamento), criada para extinguir os problemas relacionados à fa-
diga, produtividade e ao esforço nas organizações. Os psicólogos
orientavam suas ações com vistas a criar formas de mensuração da fadiga,
das atitudes, da moral dos trabalhadores, de padrões apropriados de rit-
mos e movimentos. Os conhecimentos gerados, por sua vez, eram
transformados em regras de condutas, colocadas em prática de maneira
disciplinar e normatizadora (Tiffin, 1975). Predominava nesse campo uma
visão tecnicista do ser humano, de modo que se concebia que o trabalhador
devia se ajustar aos postos de trabalho, modificados em razão dos desen-
volvimentos tecnológicos e das mudanças operadas pela administração
científica da produção. Essa Psicologia foi também a responsável pela cri-
ação dos primeiros instrumentos de avaliação psicológica (como exemplo,
os testes de inteligência, de visão industrial, de escritório, de aptidões es-
tenográficas, de destreza e manipulação), fundamentados na psicometria
e que emergiram com a promessa de mitigar os conflitos nas empresas,
garantindo a manutenção da ordem e dos padrões de trabalhos estabele-
cidos (Tiffin, 1975).
Nos anos de 1940, após a Segunda Guerra Mundial, a globalização do
comércio e da produção foi impulsionada pela primeira onda de interna-
cionalização da economia mundial, protagonizada pelo setor
automobilístico estadunidense (Fleury & Fleury, 2012). Sob a égide do
American System os Manufacturing, empresas como a Singer, Caterpillar,
58 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Ford e General Motors sofisticaram seus processos produtivos em etapas


e geografias distintas, organizando-se em torno de zonas de mercados. Se
esse processo endossou o estatuto de potência mundial dos Estados Uni-
dos, foi também porque o país se beneficiou majoritariamente pelos
acordos realizados nas conferências de Bretton Woods, em 1944, quando
o dólar se tornou moeda oficial de trocas internacionais.
Nesse período, a Psicologia Industrial se revelou paulatinamente
pouco efetiva para responder as demandas organizacionais da internacio-
nalização dos processos produtivos. Ao conceber o espaço da empresa
como um sistema técnico, inerte, no qual os trabalhadores deveriam se
adaptar de forma unilateral, essa Psicologia foi convocada a ampliar seus
horizontes analíticos (Malvezzi, 2000). Nascia, nesse ínterim, outra Psico-
logia (Organizacional), que bebia da fonte dos primeiros trabalhos sobre
mudança de grupos realizados no Instituto de Tavistock (na Inglaterra) e
se aproximava das ciências comportamentais (distanciando-se da enge-
nharia). No bojo desse instituto, foi criada a Escola Sociotécnica (de Eric
Trist), a qual dialogava com a Escola das Relações Humanas (de Elton
Mayo) e defendia a tese de que o homem possui necessidades básicas e
sociais, relacionadas às suas motivações, sociabilidade e aspirações de re-
alização pessoal no trabalho. A defesa pela democratização das relações
entre as pessoas e a organização constituía, portanto, pauta central dessa
abordagem humanística (Malvezzi, 2000).
Após as crises do petróleo, em 1973 e 1978, a entrada de novos atores
no mercado global se deu por intermédio da segunda onda de internacio-
nalização da economia mundial, protagonizada pelo acelerado
desenvolvimento industrial e econômico dos Tigres Asiáticos (Hong Kong,
Cingapura, Coreia do Sul e Taiwan). Ulteriormente difundido como toyo-
tismo, o Japanese Productive Model (JPM) representou um movimento
disruptivo, pois se mostrou mais eficiente e eficaz, quando comparado aos
modelos fordistas e tayloristas de produção. O paradigma da qualidade to-
tal se servia da reprodução de estratégias globalmente difundidas no meio
industrial, mas integrava também em sua gestão novos padrões de
Matheus Viana Braz | 59

informatização, automação, bem como colocava em primeiro plano a alta


valorização da qualificação técnica e da multiprofissionalização. Supe-
rando a dissociação taylorista entre concepção e execução do trabalho, o
toyotismo se construiu mediante processos enxutos, flexíveis e instaurou
novos padrões de competição no mercado internacional (Antunes, 1999).
Consagrou-se, portanto, a era da acumulação flexível do capital (em detri-
mento da acumulação concentradora), do Just in time, do aperfeiçoamento
contínuo e da engenharia de projetos.
O Japão se consolidou como uma nova potência mundial, com picos
exponenciais de crescimento entre 1980 e 1997, seguido posteriormente
pela Coréia do Sul, cujo destaque foi conquistado mediante políticas go-
vernamentais expansionistas de investimentos em conglomerados
empresariais do país (Fleury & Fleury, 2012). As companhias ocidentais
(em especial as norte-americanas), responderam à ameaça do mercado
asiático com o aumento do investimento em componentes de base micro-
eletrônica. Simultaneamente, colocaram em marcha também novos
padrões de reestruturação produtiva, cuja finalidade era criar modelos
mais ágeis e eficientes de produção. Foi nesse contexto que surgiram me-
todologias como Balanced Scorecard, o International Motor Vehicule
Program e o Lean Six Sigma, norteados por um paradigma de gestão que
substituía o planejamento local por uma concepção de estratégia global
das organizações. A competição internacional, portanto, centrou-se cada
vez mais na busca por formas flexíveis e dinâmicas de se obter maiores
margens de lucros, com menos recursos e no menor tempo possível.
A evolução da produtividade, a tendência à diminuição de custos in-
ternos e o aumento da automação tecnológica, somadas às mudanças nos
padrões de competição internacionais, culminaram em uma onda global
de enxugamentos de pessoal. O downsizing surgiu como um anglicismo
corporativo que justificava conjunturalmente as demissões em massa, sob
a alcunha da defesa e garantia da “sobrevivência das organizações” (Cal-
das, 2000). Nos Estados Unidos, por exemplo, entre 1979 e 1983 mais de
onze milhões de postos foram extintos, em função de enxugamentos ou
60 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

fechamento de fábricas. Entre 1981 e 1988, igualmente mais de onze mi-


lhões de estadunidenses foram demitidos de seus empregos (Fraze, 1988;
Caldas, 2000). Na América do Norte, como na Europa Ocidental e na Ásia,
sucessivos programas de demissão em massa foram realizados nas déca-
das de 1980 e 1990 (Caldas, 2000).
No início dos anos de 1990, impulsionada pela maturação da Revolu-
ção Digital, consolidou-se no mundo a globalização não somente do
comércio e dos produtos, mas também financeira. Com a explosão das re-
des eletrônicas e de comunicação, o capital financeiro se tornou interligado
globalmente, em tempo real. A exploração do setor de serviços em escala
mundial produziu a flexibilização das barreiras comerciais e o aumento da
mobilidade das organizações multinacionais. Com a valorização dos preços
das commodities agrícolas, minerais e energéticas, ocorreu no mundo a
terceira onda de internacionalização da economia, cujos expoentes foram
os países dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) (Fleury &
Fleury, 2012).

1.2 Globalização financeira e os impasses psicossociais do trabalho no


Brasil

Não faremos uma discussão pormenorizada sobre a internacionali-


zação da economia brasileira1, mas é preciso apresentar algumas
considerações históricas sobre o cenário político e econômico de nosso país
até o momento de sua abertura comercial. Além de ser uma república
substancialmente jovem, até o início do século XX o Brasil possuía uma
economia dependente da exportação de um principal produto agrícola: o
café. Com o advento da crise de 1929 e após o governo brasileiro recorrer
à compra, estocagem e queima do café excedente que era produzido (de
modo a controlar a desvalorização cambial nacional), a retração econô-
mica global revelou a fragilidade de nossa economia, assentada em uma

1
Para uma discussão mais aprofundada desse período, indica-se a leitura de Viana Braz (2019) e Fleury & Fleury
(2012).
Matheus Viana Braz | 61

monocultura de uma commodity agrícola. Foi somente a partir da “Revo-


lução de 1930”, marcada pela tomada de poder de Getúlio Vargas no
governo provisório, que o Brasil adotou um modelo de substituição de im-
portações como estratégia para fortalecer sua produção industrial
doméstica (Viana Braz, 2019).
Nos 30 anos seguintes, a Era Vargas revelou contradições até hoje
presentes do tecido simbólico social brasileiro. O presidente Vargas foi res-
ponsável pela instauração de um regime ditatorial no Brasil, representado
pelo Estado Novo (entre 1937 e 1945), no qual houve o fechamento do Con-
gresso Nacional, assim como foi suprimida a liberdade partidária e a
independência entre os poderes. Embora populista e amiúde autoritário,
o varguismo foi o responsável pela industrialização da economia brasileira.
Em 1942, foi instituída a criação da Companhia Vale do Rio Doce, que ga-
rantia o suprimento de minério de ferro para a Companhia Siderúrgica
Nacional (CSN). Igualmente, após as descobertas das reservas de petróleo
na Bahia, em 1953 Vargas definiu as diretrizes do Conselho Nacional de
Petróleo (CNP) e criou a Petrobrás. No ano anterior, o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico (BNDE) foi instituído como principal vetor
de investimentos de empreendimentos em infraestrutura e industrial no
Brasil (Gremaud, Vasconcellos, & Toneto Junior, 1999).
Pela primeira vez na história de nosso país um governo de matriz
trabalhista estava à frente da política. Em 1943, a instituição da Consoli-
dação das Leis de Trabalho (CLT) representou uma conquista fundamental
no processo de fiscalização e regulação de condições mínimas de saúde,
higiene e segurança nos locais de trabalho. Na era Vargas houve também
a promulgação da carga horária semanal de 48 horas, do salário mínimo,
das férias remuneradas, do direito a previdência social e do Descanso Se-
manal Remunerado (DSR). O trabalho Infantil foi regulamentado e se
operacionalizou um Plano Nacional de Desenvolvimento, mediante inves-
timentos expressivos em indústrias de base, como a siderurgia, a
metalurgia e o setor de energia (Gremaud, Vasconcellos, & Toneto Junior,
1999).
62 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

A industrialização no Brasil se deu de forma tardia e assimétrica, em


especial no âmbito geográfico. O modelo de substituição de importações
de fato se concretizou durante o governo Juscelino Kubitschek (JK), mas o
Plano de Metas do presidente negligenciou investimentos sociais em fren-
tes essenciais, como alimentação e educação (Benevides, 1979). Em um
contexto social marcado pela aceleração inflacionária e aumento da con-
centração de renda, após a renúncia de Jânio Quadros, João Goulart
assumiu a presidência do Brasil em 1961. Também alinhado ao traba-
lhismo, Jango tentou implementar suas Reformas de Base, isto é, uma série
de medidas direcionadas à realização de mudanças estruturais nos setores
fiscal, educacional, político e agrário (Gremaud, Vasconcellos, & Toneto
Junior, 1999). Este processo, contudo, foi impedido de ser concretizado
pela instauração do Golpe de 64, que marcou o início da ditadura militar
brasileira.
O crescimento econômico alcançado pela ditadura militar se deu a
expensas de um regime duramente repressivo, autoritário e que produziu
como efeito colateral o aumento da importação de bens de produção, que
culminou na intensificação da dívida externa brasileira e na consolidação
de uma crise cambial, reveladora do esgotamento do regime de substitui-
ção de exportações e do fraco desenvolvimento tecnológico de nossa
indústria nacional (Gremaud, Vasconcellos, & Toneto Junior, 1999).

Para tentar reverter esse cenário, já na Nova República, posterior ao movi-


mento das “Diretas Já”, o combate à inflação constituiu a meta principal nos
planos econômicos que viriam a ser edificados (Plano Cruzado, Bresser, Verão,
Collor I, Collor II e Real). Todavia, o desencadeamento de tentativas pouco
exitosas culminou em grandes oscilações nas taxas de inflação na década de
1980 e na deterioração das contas públicas brasileiras, cujas taxas de juros
substancialmente flutuantes foram também influenciadas por atividades es-
peculativas no mercado internacional de câmbio, impasses na renegociação da
dívida externa e expansão do endividamento interno. Cabe sublinhar que em-
bora na década de 1990 do ponto de vista do ajuste fiscal o Plano Real,
implantado por Itamar Franco, não tenha promovido importantes mudanças,
a folga comercial obtida, junto à rápida queda da inflação, permitiu
Matheus Viana Braz | 63

significativa recomposição e estabilidade nos mecanismos de crédito da eco-


nomia brasileira (Viana Braz, 2019, p. 85).

Sob o controle do presidente Fernando Henrique Cardoso, sobretudo


entre 1994 e 2002, o Brasil se alinhou às premissas preconizadas pelo
Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Consenso de Washington (es-
tabelecido em 1989) e se aproximou das políticas toyotistas, atravessadas
pelos princípios do laissez-faire de investimento na iniciativa privada e
abertura internacional de seus mercados, em detrimento das políticas in-
dustriais domésticas.

Paradoxalmente, ainda que um dos pilares motivadores do Programa Nacional


de Desestatização fosse a redução da dívida pública brasileira, na prática essa
dívida, que era de 60 bilhões de dólares em 1994, alcançou 245 bilhões em
1998. Assim, como o patrimônio líquido do Estado diminuiu, restringiram-se
também os aportes financeiros para combatê-la (Viana Braz, 2019, p. 87).

Com o enfraquecimento das barreiras protetivas do Estado e a dimi-


nuição de subsídios à indústria local, a economia brasileira se revelou
pouco competitiva no mercado internacional. À guisa de ilustração, entre
1994 e 1998, por exemplo, sob a égide das políticas do Conselho Nacional
de Desestatização (CND) e da aceleração da automação tecnológica no se-
tor bancário, Caldas (2000) destaca que quase duzentos mil postos de
trabalho foram extinguidos no setor. Ainda de acordo com o autor (Caldas,
2000), embora os enxugamentos de massa tenham sido mais intensos no
setor público2, eles também ocorreram na iniciativa privada, em empresas
como a Alpargatas, Andrade Gutierrez, Brastemp, Duratex, Ericsson, Ford,
Gradiente, Hering, IBM Brasil, Kaiser, Riachuelo, Mangels, Pão de Açúcar,
Perdigão, Philips, Pirelli, entre outras.
Acreditava-se, até o fim dos anos de 1990, que o downsizing consti-
tuía um fenômeno conjuntural e que uma vez superadas as crises
econômicas, as demissões seriam acompanhadas de readmissões.

2
No processo de privatização da Ferrovia Paulista S/A (Fepasa) e da Vale do Rio Doce, por exemplo, foram extintos
cerca de 28.600 empregos (Caldas, 2000).
64 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Ocorreu, contudo, que os enxugamentos contínuos foram incorporados


pelas organizações hipermodernas (Enriquez, 1997) e, no Brasil como em
outros países desenvolvidos e em desenvolvimento, constatou-se que as
ondas de corte foram inclusive superiores em cenários de estabilidade eco-
nômica, quando comparados a momentos de crise (Caldas, 2000; Bresser-
Pereira, 2010; Rodrik, 2011).
O fenômeno referido é essencial, pois representa como o “capital hu-
mano”, nessa nova conjuntura econômica global, é visto sobremaneira
como um custo o qual deve ser reduzido constantemente. O trabalho, por
conseguinte, teve sua natureza alterada de forma radical. À medida que os
processos se tornaram menos rígidos, exigiu-se dos trabalhadores identi-
dades flexíveis, polivalentes, com alta capacidade de adaptação. A
flexibilização se impôs como síntese ordenadora dos modos de sociabili-
dade do cenário de trabalho atual (Antunes, 2018).

1.3 As novas formas de sofrimento e a divisão social do trabalho

Segundo Gaulejac (2007; 2011), ao passo que se exacerbaram os pres-


supostos toyotistas, sedimentou-se no mundo a denominada Revolução
Gerencialista, emergente inicialmente no seio de organizações multinaci-
onais, públicas e privadas, em variados países emergentes e desenvolvidos,
mas que se coloca de forma imperativa no contemporâneo nas demais or-
ganizações. O aumento da proteção ao trabalho nesse paradigma gera
paradoxalmente a perda da confiança dos mercados. A lógica da produção
se submete cada vez mais à economia financeira. O desempenho e produ-
tividade tendem a ser medidos no curto prazo, sobretudo em contextos
nos quais as exigências de rentabilidade financeira estão a serviço dos in-
teresses de acionistas. Enfim, os enlaces entre subjetividade, identidade e
trabalho passaram nos últimos 30 anos por metamorfoses incontornáveis.
Imerso em um universo de urgência e imediatismo, não basta que o
trabalhador faça seu trabalho com qualidade. A exigência de excelência e
performance é alçada à condição de imperativo e signo insofismável
Matheus Viana Braz | 65

(Gaulejac & Hanique, 2015). O planejamento e o especialismo perdem lu-


gar gradualmente para a estratégia e a polivalência. A atividade passa a ser
cada vez mais mediada pela tecnologia e por sistemas de prescrições.
Exige-se do trabalhador que seja flexível, reativo, que tenha paixão pelo
risco. Nessa lógica atravessada pelo utilitarismo, pelo funcionalismo e ins-
trumentalismo, espera-se que o trabalhador produza cada vez mais, com
cada vez menos recursos e no menor tempo (Pagès et al, 1987; Aubert &
Gaulejac,1991/2007).
A Revolução evocada por Gaulejac é caudatária de uma ideologia ge-
rencialista específica, hegemônica na atualidade, que consagra a era da
individualização dos percursos, da “luta pelos lugares” (Gaulejac & Tabo-
ada-Leonetti, 1994) e da corrida ao mérito. Embora ela carregue em seu
bojo importantes avanços, quando comparada ao fordismo e ao taylo-
rismo, do ponto de vista da Saúde Mental sua lógica produtiva encerra os
trabalhadores em um círculo insidioso. Gaulejac (2011), nesse sentido, de-
monstra que historicamente as condições físicas de trabalho melhoraram
de forma considerável, sobretudo em economias emergentes ou desenvol-
vidas. Em contraposição, alerta o autor, as condições subjetivas de
trabalho parecem se deteriorar cada vez mais. A escalada dos índices e in-
cidências do esgotamento profissional (burn out), das depressões
nervosas, da insegurança, das ansiedades paranoides, da hiperatividade
laboral, do estresse, do cansaço de si e, inclusive, do suicídio ligado ao tra-
balho (Rhéaume, 2004; Aubert, 2008; Dejours, & Bègue, 2010; Gaulejac,
2007; 2011; Da Silva, & Hashimoto, 2012; Marangoni, Viana Braz, & Hashi-
moto, 2016; Cardoso et al., 2017; Viana Braz, 2019; Gonçalves, Schweitzer,
& Tolfo, 2020), indica que essa Revolução Gerencialista trouxe consigo
efeitos colaterais, ligados à intensificação do trabalho, da pressão, das co-
branças pessoais e às novas formas de sofrimento no trabalho.
A ideologia gerencialista induz à exacerbação da competição, da con-
corrência e naturaliza o estresse, a agressividade e a rivalidade,
individualizando toda sorte de sofrimento. Um conflito que outrora era
vivido como um conflito coletivo, fruto de um pertencimento de classe,
66 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

nesse cenário tende a ser apreendido como um problema individual (Gau-


lejac, 2011). Solidariedade, estima, cooperação e coletividade são termos
presentes no nível discursivo das gestões, contudo que comumente são
banalizados no cotidiano das organizações. As formas de dominação e ser-
vidão assumem novas roupagens. Mediante uma série de mecanismos e
sistemas compensatórios, suscitam-se dos trabalhadores modos de ser, fa-
zer e pensar específicos.
Quando o trabalhador falha ou “quando não atinge os objetivos e re-
sultados esperados”, por vezes se psicologizam os conflitos
organizacionais: “perfil incompatível ou disfuncional”, “estrutura emocio-
nal fraca”, “falta de inteligência emocional ou relacional”, “baixa resiliência
e automotivação”. Não faltam, aqui, exemplos que nos permitem ilustrar
como eventualmente as organizações mascaram e ocultam suas contradi-
ções, direcionando os problemas da gestão para os trabalhadores,
individualmente. Embora muitas vezes os conflitos vivenciados pelos tra-
balhadores sejam sintomas de contradições não resolvidas pelas próprias
organizações, é comum que sejam interiorizados como fracasso pessoal,
culpabilização ou vergonha (Vandevelde-Rougale, 2017; Viana Braz, 2018).
O dogma do crescimento e o imperativo de ultrapassagem de si se
tornam ditames absolutos na hipermodernidade, um fardo que todos de-
vem carregar. O homem de profissão, cuja identidade era relativamente
estanque, é substituído pelo indivíduo cuja identidade é versátil e maleável.
Aquele que precisa se adaptar, segundo esta lógica, já está atrasado. É pre-
ciso se antecipar às mudanças, se destacar dos demais e ser autorreferente.
A nova morfologia do trabalho contemporâneo, de acordo com Antunes
(2018), é marcada pela compressão do espaço e do tempo, pela diminuição
das fronteiras entre atividade laboral e a esfera de nossas vidas privadas.
Com os quadros das organizações cada vez mais enxutos, a intensificação
da flexibilização conduz ao enfraquecimento das representações sindicais,
à precarização do trabalho (mediante a criação de trabalhos em tempos
parciais ou por processos como a terceirização e quarteirização) e ao au-
mento da informalidade.
Matheus Viana Braz | 67

Até junho de 2019, 38,8 milhões de brasileiros trabalhavam na infor-


malidade, o que representa 41,4% da população ocupada (a mais alta taxa
já vista na história do país). Como os trabalhos informais possuem os me-
nores salários e níveis de produtividade, ainda que haja maior circulação
na economia de consumo, esses índices não traduzem aumento real do
ponto de vista da renda da população economicamente ativa. Além disso,
quase 3,5 milhões de brasileiros trabalham em mais de uma atividade para
lograr seus sustentos (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019).
Reflexo também do declínio dos níveis de empregos nos setores primários
e secundários, tal como no caso de Antônio Carlos, ilustrado no início desse
capítulo, atualmente 3,8 milhões de brasileiros têm como principal fonte
de renda o trabalho mediante aplicativos de mobilidade (Instituto Brasi-
leiro de Geografia e Estatística, 2019), fazendo com que o fenômeno da
uberização (Antunes, 2018) se coloque como incontornável em território
nacional. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva (Oliveira
et al., 2019), as plataformas de entrega de produtos e mobilidade já pos-
suem mais de 5,5 milhões de trabalhadores cadastrados.
Quanto à população desempregada, ao fim do segundo trimestre de
2019 atingiu a marca de 12,8 milhões de pessoas. Se somarmos a esse nú-
mero o contingente da população subutilizada (o que inclui as pessoas
subocupadas ou em situação de desalento), há a escassez de trabalho para
28,4 milhões de brasileiros (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
2019).
De acordo com a pesquisa A escalada da desigualdade, coordenada
por Marcelo Neri (2019), na Fundação Getúlio Vargas (FGV), desde o início
da recessão econômica de nossa economia, no final de 2014, até o segundo
trimestre de 2019, a renda de 50% da população mais pobre do Brasil teve
uma queda de 17%, enquanto a renda das pessoas que compõem o 1%
mais rico cresceu 10%. No acumulado de doze meses, até julho de 2019
haviam sido criados 521,5 mil novos empregos formais em território naci-
onal. Quando analisamos esses dados, observamos dois aspectos
relevantes. Embora haja uma leve recuperação dos salários médios de
68 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

contratação, esses postos se mantêm abaixo dos salários de quem tem sido
demitido. Ademais, 98% dos empregos criados possuem remuneração
máxima de até dois salários mínimos (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada, 2019). Ressalta-se ainda que até o terceiro trimestre de 2019 foi
constatado que cerca de 104 milhões de brasileiros sobreviviam com até
R$413,00 por mês (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019).
Constata-se, também, no trabalho de Neri (2019) que entre 2014 e
2017 houve um aumento de 33% na pobreza no Brasil, o que corresponde
ao acúmulo de um contingente suplementar de 6,27 milhões de pessoas,
totalizando 23,3 milhões de habitantes em situação de miséria3. Os dados
apresentados pelo autor indicam que a minimização da desigualdade so-
cial em território nacional não teve nesse período uma correlação positiva
com o aumento geral da renda da população, mas refletiu maior concen-
tração de riquezas.
Uma vez que há um excedente de trabalhadores precarizados ou de-
sempregados, que buscam a inserção no mercado formal,
consequentemente ocorre a queda da média dos salários das novas con-
tratações. Essa relação, todavia, não é fruto tão somente de uma dinâmica
própria à conjuntura atual econômica brasileira, mas reflete um processo
de flexibilização global do trabalho. A globalização trouxe consigo a emu-
lação de um sistema de mercado que tende à diminuição do papel dos
Estados na economia. Baseados nas contribuições de Rodrik (2011), obser-
vamos duas assimetrias sociais geradas por essa lógica. Em primeiro
plano, se a pressão por qualificação constante e pela polivalência se coloca
como um ditame é porque a abertura dos mercados conduz à redução da
demanda por trabalhadores menos qualificados em países desenvolvidos.

Como os países em desenvolvimento tendem a exportar produtos que fazem


um uso relativamente intensivo de mão de obra não qualificada, o comércio
com esses países desaloja a produção de mão de obra intensiva não qualificada
nos Estados Unidos e na Europa Ocidental e, desse modo, reduz a demanda de
mão de obra não qualificada nesses locais. Em termos técnicos, o comércio

3
Renda igual ou menor a 233 reais/mês por pessoa.
Matheus Viana Braz | 69

resulta em um deslocamento interno na curva da demanda por mão de obra


não qualificada nesses países avançados (Rodrik, 2011, p. 17, grifo do autor).

A partir do momento em que as práticas de terceirzação e outsour-


cing ultrapassam as fronteiras nacionais, os trabalhadores locais se
tornam ainda mais descartáveis e desvalorizados, pois passam a ser com-
parados, em termos de custos, com a mão de obra de países periféricos,
com menores níveis de proteção social e poucas restrições tributárias. Com
o aumento correlativo da premiação da especialização em países desenvol-
vidos, a competitividade e a corrida ao mérito se exacerbam ainda mais
(Rodrik, 2011). Em ambas as economias (subdesenvolvidas, emergentes e
desenvolvidas), esse fenômeno produz a precarização das condições de
trabalhos que exigem baixa qualificação, já que a abundância de mão de
obra conduz à redução dos salários ou ao aumento do desemprego.
Em segundo plano, ao passo que a integração do comércio global pro-
duz o crescimento da elasticidade dos padrões de mão de obra, o
acirramento da competição entre as organizações exige reduções de custos
e margens de preços. O aumento da premiação pelo trabalho qualificado,
nesse sentido, também está ligado ao declínio dos honorários dos traba-
lhadores com baixa qualificação, intensificando ainda mais a desigualdade
entre ambos os grupos. A insegurança, instabilidade e preocupação com a
empregabilidade, porém, refletem-se na população geral (Rodrik, 2011).
Para além da conjuntura econômica brasileira atual, a precarização
do trabalho, sobretudo em relação aos níveis de salário, empregos e à di-
minuição do poder de barganha dos trabalhadores (Rodrik, 2011),
constitui elemento fundante da globalização financeira. A análise com-
plexa da morfologia do trabalho no Brasil exige, portanto, que passemos
invariavelmente pela compreensão da qualidade e condições dos empregos
gerados, bem como pelo entendimento da dinâmica da distribuição de ri-
queza e concentração de renda em território nacional.
Em um relatório recente, intitulado Under Pressure: The Squeezes
Middle Class e coordenado pela Organização para a Cooperação e o Desen-
volvimento Econômico (Organisation for Economic Cooperation and
70 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Development, 2019), foi constatado um enfraquecimento da classe média4


dos 36 países que compõem o grupo, nas últimas três décadas5. Em 1980,
a renda conjunta dessa classe nos membros da OCDE era quatro vezes
superior à renda dos mais ricos. Em 2019, entretanto, essa proporção foi
inferior a três vezes, os 10% mais ricos detinham quase metade da riqueza
total das nações, enquanto os 40% mais pobres possuíam apenas 3%, o
que revelou que o crescimento econômico dos países não se refletiu em
desenvolvimento social, do ponto de vista da distribuição de riqueza e me-
lhoria das condições de vida.
Aqui, temos um ponto sensível. Não somos contra o desenvolvimento
financeiro e pessoal das famílias. Atualmente, contudo, ocorre que o cres-
cimento econômico, quando atrelado a níveis elevados de concentração de
riqueza e a flexibilização do trabalho, não tende a gerar a mesma propor-
cionalidade de empregos, em condições salariais compatíveis com o
aumento dos ganhos e margens de lucros das organizações financeiras.
Em vez de denotar um movimento de prosperidade econômica, esse qua-
dro parece traduzir um estado de choque e desorientação das democracias
liberais.
Embora o Brasil não seja membro da OCDE, os dados supracitados
são corroborados com declínio da classe média brasileira, atrelado aos
crescentes custos de seus estilos de vida, mas também à precarização do
trabalho e à diminuição dos empregos. Segundo o relatório da OCDE (Or-
ganisation for Economic Cooperation and Development, 2019) as classes
médias desempenham um papel central nos sistemas de proteção social
(mediante suas tributações), sustentam o consumo das nações e são res-
ponsáveis por parte significativa de investimentos em saúde, habitação e
educação. Em sociedades menos desiguais, com classes médias fortes, as
taxas de criminalidade são reduzidas, o que confere às pessoas maior

4
Compreendida como a classe cuja renda se localiza entre 75% e 200% da renda média nacional, segundo o relatório
(Organisation for Economic Cooperation and Development, 2019).
5
Constatou-se também que esse enfraquecimento só não foi maior pois houve nesse período a entrada de muitas
mulheres (esposas) no mercado de trabalho, o que garantiu que muitas famílias não regredissem ainda mais suas
condições de vida.
Matheus Viana Braz | 71

confiança, qualidade de vida e sensação de estabilidade política (Organisa-


tion for Economic Cooperation and Development, 2019). No atual quadro
socioeconômico, porém, estagnadas, descrentes e com seus poderes aqui-
sitivos deteriorados, observou-se na pesquisa também a tendência de que
essas famílias, tradicionalmente consideradas “moderadas” politicamente,
se aproximem de narrativas populistas e antissistemas.
Desde o processo de redemocratização do Brasil, passando pelos go-
vernos de Fernando Henrique Cardoso, de Luís Inácio da Silva (Lula),
Dilma Rousseff, Michel Temer, até chegar ao atual presidente Jair Bolso-
naro, não houve em nossa história recente um radical combate à estrutura
da concentração de riqueza que produz a desigualdade social de nosso país
(Antunes, 2018). Por que, todavia, isso não ocorreu? Pois, ao que parece,
os rentistas e financistas, os quais maximizam seus ganhos na operação
da economia especulativa, pela distorção dos créditos bancários e/ou me-
diante as altas taxas de juros fixadas pelo Banco Central, são aqueles com
maiores poderes econômicos e de influência sobre a plutocracia política de
nossos governos. Em meio a um cenário de crise econômica, por exemplo,
entre julho de 2018 e o mesmo mês de 2019, os bancos brasileiros regis-
traram seu maior lucro nominal desde o lançamento do Plano Real (em
1994). Com um resultado 18,4% superior ao exercício anterior, no período
referido os bancos lucraram 109,5 bilhões de reais - isentos de impostos,
uma vez que no Brasil não há taxação de lucros e dividendos sobre essas
organizações. Ademais, o Retorno sobre o Patrimônio Líquido (ROE) no
setor bancário atingiu a marca de 15,8%, taxa superior a países como Aus-
trália (12,9%), Rússia (11,1%), Reino Unido (7,5%), China (13,2%),
Turquia (14,2%), Japão (7,3%) e França (6,5%) (Banco Central do Brasil,
2019).

1.4 O futuro do trabalho em xeque

A política, portanto, submetida à economia financeira, pauta sua


agenda em torno da garantia da confiança dos mercados e da manutenção
72 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

das forças econômicas (Gaulejac & Hanique, 2015). Paradoxalmente, ela


amiúde se distancia da economia real e perde a confiança dos trabalhado-
res.

Ao passo que o trabalho se torna tributário ao emprego, o desemprego, nesse


reduto, tende a ser apreendido como o produto de um fracasso pessoal. Pul-
veriza-se o pensamento complexo e o indivíduo se vê como um pária diante
da constante necessidade de adaptar-se às novas demandas do mercado. A
descrença no Estado, nas coletividades, nas instituições sociais, na política e
em seus partidos, correlativamente serve como um mote central para adesão
à “teologia do empreendedorismo”, que enaltece as individualidades e coloca
tão somente o indivíduo como figura responsável pela garantia de melhores
condições para sua vida. Assim, o ganho pelo ganho doravante distancia-se de
qualquer função social. Ora, ganhamos porque temos valor ou temos valor
porque ganhamos? Em outros termos, nossa sociedade não vê mais motivos e
sentido para travar lutas coletivas, orientadas por um sentimento imperecível
de pertença. Nossa autorrepresentação se inverteu: parece que não mais as
individualidades compõem uma coletividade, senão que são sobrepostas, for-
mando grupos intersectados e ligados estritamente por sistemas de interesses
sem vinculação concreta, mas que ora se coadunam, ora se desarmonizam (Vi-
ana Braz, 2019, p. 44-45).

Quando refletimos sobre o futuro do trabalho, incluindo ingredientes


como a aceleração do desemprego estrutural6, esse cenário parece se tor-
nar ainda mais complexo. Na esteira da tese da “destruição criativa” do
economista austríaco Joseph A. Shumpeter (1911/1982), nos anos de 1980
economistas liberais (Caldas, 2000) defendiam que a Revolução Digital
traria consigo a redução dos custos de produção, o estímulo ao aumento
da demanda dos consumidores e de novos mercados, assim como daria
cada vez mais oportunidades para as pessoas trabalharem, mediante salá-
rios mais altos, em funções ainda inexistentes, mormente nos setores de
tecnologia. De fato, as primeiras premissas se consolidaram. A automação
possibilitou diminuição de custos e aumento da demanda agregada,

6
O desemprego estrutural corresponde a um descompasso entre a procura e a oferta de trabalhadores (mão de obra
disponível em determinado mercado). Notadamente atrelado a automações e disrupções tecnológicas, esse desajuste,
contudo, é preocupante, pois não é temporário, mas permanente (Antunes & Pochmann, 2007).
Matheus Viana Braz | 73

mediante o crescimento escalável de rendimento e liquidez das organiza-


ções. A multiplicação das oportunidades e dos altos salários, entretanto,
não se efetivou, pois atualmente a evolução das tecnologias torna possível
a criação de modelos de negócios escaláveis e repetíveis, cujo aumento de
receita não é acompanhado de expansão proporcional de custos com in-
fraestrutura e pessoal7. Esse é o caso das startups, isto é, organizações que
se utilizam de inovações tecnológicas e automação para escalar suas recei-
tas, rentabilidade e multiplicar seu valor de mercado, sem que haja
aumento proporcional de custos. A startup de rede de transportes 99app
(em sua criação denominada 99 táxi), por exemplo, é ilustrativa do fenô-
meno no qual nos referimos. Fundada em 2012, cinco anos depois a
empresa já recebeu um aporte de investimentos de 320 milhões de reais,
o que a possibilitou criar mais de 250 novas vagas de trabalho na empresa.
Enfim, em 2018 a companhia foi adquirida pelo principal concorrente glo-
bal da Uber, o grupo chinês Didi Chuxing, por cerca de um bilhão de
dólares8 e atualmente possui uma média de 1500 funcionários. Há cin-
quenta anos, esse modelo de negócio era inimaginável. Nos setores
primários e secundários seria praticamente impossível que uma indústria
atingisse o valor de mercado da 99app em sete anos com somente 1500
funcionários. Para que uma organização conseguisse uma escalabilidade
dessa ordem, em termos de valorização de mercado e aumento de renta-
bilidade, inevitavelmente ela seria obrigada a ampliar na mesma
proporção suas estruturas físicas e custos com pessoal.
Sobretudo após os anos de 2010, acompanhamos o crescimento das
disrupções tecnológicas inclusive no setor de bens e serviços, outrora ca-
paz de acolher a demanda dos desempregos causados nos setores
primários e secundários. Em vez de ampliar a oferta de trabalho, o desem-
prego estrutural, bem como a intensificação da precarização e da

7
É em função desta premissa que autores como Jeremy Rifkin (2014) defendem que a economia do compartilha-
mento tende a permitir que empresas logrem, com cada vez mais frequência, um custo marginal de serviços que
tende a zero.
8
As informações apresentadas foram retiradas do site institucional do grupo (https://99app.com/empresas/) e de
sua página oficial na plataforma LinkedIn (https://www.linkedin.com/company/99app/life/778c3f85-2a8e-4bf8-
b530-1ca66e8b83f2/)
74 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

informalidade, se revelou determinante no ordenamento do mercado glo-


bal de trabalho.
Contrariamente ao que acreditava Shumpeter, após a virada do sé-
culo XXI a intensificação da automação gerou novos empregos, mas que
não foram superiores aos postos extintos (que se tornaram obsoletos), isto
é, a perda de empregos globalmente ainda foi maior que a criação de em-
pregos (Harari, 2018). Além disso, via de regra esses novos empregos
exigem altos graus de qualificação técnica ou se traduzem no aumento do
trabalho precário e informal, o que nos permite compreender um ele-
mento fundamental da desigualdade social atualmente. Se a globalização
produziu a ampliação dos fenômenos de concentração de riqueza e a dis-
tância entre aqueles trabalhadores qualificados e com baixa qualificação, o
cenário atual nos indica que com a proliferação da automação tecnológica
esse hiato será ainda mais expressivo.
As tecnologias inteligentes, portanto, caminhariam na direção da su-
peração do trabalho humano? Embora as transformações tecnológicas
(Huws, 2014), sejam a principal responsável pela supressão de uma quan-
tidade incalculável de empregos formais, tais ferramentas não são tão
autônomas como difundem as startups e demais empresas do segmento
(Cardon & Casilli, 2015). Empresas globais como Amazon, Microsoft, Uber,
Facebook, Google, Tesla (assim como a quase totalidade de empresas que
se servem de I.A. e Big Data), dependem de atividades elementares do ser
humano à construção de seus algoritmos via machine learning (Gray &
Sury, 2019). O desenvolvimento dos sistemas de I.A. passa necessaria-
mente pelo aprendizado de padrões, mediante análise de milhões de
dados. Esse processo, que exige o trabalho vivo para a realização de re-
gressão, identificação, reconhecimento e classificação de informações, é
segmentado pelas empresas em microtarefas, as quais são vendidas como
microsserviços em variadas plataformas no mundo (Casilli, 2019; Gray &
Sury, 2019).
Pautadas no conceito de Business Process Outsourcing (BPO), para
reduzir seus custos internos empresas de tecnologia terceirizam, em
Matheus Viana Braz | 75

plataformas específicas (como Amazon Mechanical Turk, LionBridge,


Foule Factory, Microwork, Appen etc), microtarefas que servem para ali-
mentar seus sistemas e treinar seus algoritmos de I.A. Remetemo-nos,
portanto, a atividades de moderação de conteúdo, categorização e reco-
nhecimento de imagens, análise de expressões faciais, traduções pontuais,
criação de palavras-chave para textos, experimentação e teste de produtos,
transcrição de áudios, digitalização de documentos, preenchimento de
questionários em pesquisas acadêmicas ou de mercado, visitas de sites
para geração de tráfego ou mesmo ao desenho de estruturas geométricas
em mapas e geolocalizações específicas (como é o caso, por exemplo, dos
datasets usados nos softwares de veículos autônomos) (Casilli, 2019). A
cada Human Intelligence Task (HIT) finalizada e aprovada pelo requisi-
tante, o microtrabalhador contabiliza em sua conta online alguns centavos
de dólares, os quais variam em função da qualificação do serviço (Berg et
al., 2018; Casilli, 2019).
O microtrabalho difere das demais práticas de outsourcing existentes
no mercado, pois o indivíduo realiza microtarefas de pouca complexidade,
que exigem pouca qualificação e, além disso, ele não conhece quem solici-
tou seu serviço e nem sabe qual a finalidade da tarefa que lhe foi
requisitada. Mais ainda, trata-se de um vínculo laboral sem nenhum tipo
de regulamentação, no qual os trabalhadores são pagos em função das mi-
crotarefas realizadas, não possuem margens para negociações, não
usufruem de comissões e tampouco qualquer tipo de proteção social ou
trabalhista (Casilli, 2019).
Enfim, podemos inferir que nos próximos 20 ou 30 anos os ciclos de
desemprego ligados ao desenvolvimento tecnológico tenderão a ser cada
vez mais curtos, ocorrerá a ampliação do hiato entre mão de obra pouco
qualificada e especializada e o microtrabalho (assim como outras formas
de plataformização do trabalho, como a uberização) irá se expandir cada
vez mais, o que indica uma tendência de maior enfraquecimento dos sin-
dicatos e maiores dificuldades na garantia de proteção trabalhista. Decerto
que estamos no plano das ideias e nossas reflexões são limitadas ao caráter
76 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

imprevisível do futuro. Mas, se os Estados-nações não buscarem mecanis-


mos de regulação da economia do conhecimento (por intermédio de uma
nova instituciona-lidade jurídica) em poucos anos uma multidão expres-
siva de trabalhadores pode tornar-se ainda mais precarizada e
invisibilizada, se colocando definitivamente nas franjas da informalidade.
Mas o que isso tudo tem a ver com a Psicologia? Para responder a essa
questão, temos que nos remeter a uma divisão circunscrita no campo da
Psicologia Organizacional e do Trabalho.
Notadamente centrada nas noções de desenvolvimento, cultura e
comportamento organizacional, a era de ouro da Psicologia Organizacio-
nal foi inaugurada com a globalização dos modelos de produção toyotistas,
na década de 1980. Os Departamentos Industriais, que no início do século
XX tinham por função trabalhos burocráticos, administrativos, voltados à
garantia da ordem estabelecida (se servindo, sobretudo, da centralização
do poder e de sanções e punições), foram substituídos pelos Departamen-
tos de Recursos Humanos, com subsistemas em constante evolução. A área
de desenvolvimento organizacional (Treinamento e Desenvolvimento)
passou a congregar os processos de liderança, grupais e de comunicação
organizacional, atrelados ao direcionamento estratégico das empresas. Os
conflitos, em vez de serem concebidos como algo nocivo à empresa,
quando bem geridos passaram a ser encarados como vetores elementares
à alimentação da estrutura de inovação organizacional (Malvezzi, 2000).
Expandiram-se os programas de Qualidade de Vida no Trabalho
(QVT), discutiram-se estratégias para garantia da motivação, satisfação e
aumento da performance e desempenho dos trabalhadores nas empresas.
Nos processos seletivos (internos como externos), para além das tradicio-
nais avaliações técnicas, sofisticaram-se as “avaliações de perfis
comportamentais” e ganhou protagonismo as avaliações de adequação e
identificação com a cultura organizacional (avaliação de fit cultural). Do
recrutamento à seleção final, em cada etapa se colocou como imperativo a
criação de métricas (por exemplo, no caso dos funis de contratação) que
auxiliam os trabalhadores no planejamento e otimização de seus processos
Matheus Viana Braz | 77

decisórios. As pesquisas de clima e diagnósticos de cultura, feitas com fre-


quência nas organizações, passaram a ser cada vez mais valorizadas à
definição do direcionamento estratégico das empresas. Novas metodolo-
gias de avaliações de desempenho surgiram e foram constantemente
aperfeiçoadas (360º, Matriz Nine Box, Escala Gráfica, Autoavaliação, Ava-
liações de Performance, de Potencial, de Resultados, de Aprendizagem
Organizacional etc). Os treinamentos, não mais restritos a aspectos técni-
cos do trabalho, construíram-se como vetores centrais à transmissão de
cultura e aprendizagem organizacional. Hoje, essa Psicologia Organizacio-
nal se aproxima também da Neurociência e do Marketing Digital,
transformando-se e fundamentando novas estratégias nas organizações,
tais como o onboarding, o candidade experience, o employer branding e as
trilhas de carreiras. Mais ainda, na última década acompanhamos a en-
trada das denominadas RHTechs em território brasileiro9, isto é, startups
de tecnologia que se utilizam de realidade virtual, gamificação, Big Data,
Blockchain e/ou Machine Learning no processo de automação de tarefas
relacionadas à Gestão de Pessoas.
Face às transmutações do mundo do trabalho, a Psicologia Organiza-
cional se debruça sobre a relação entre Homem e Empresa e seus
pressupostos teórico-práticos se fundamentam nas ciências gerenciais,
comportamentais e cognitivistas. Ainda que avanços consideráveis sejam
logrados por essa vertente, ela ainda permanece vinculada às exigências
de lucratividade e rentabilidade das organizações, o que a conduz amiúde
à tentativa de gerir os conflitos para que sejam colocados a favor da pro-
dução. Enfim, nessas intervenções predomina uma abordagem utilitarista
na relação entre trabalhador e empresa, o que denota limites evidentes do
ponto de vista da produção de saúde mental no trabalho.
Sobretudo durante a década de 1980, porém, surgiu no campo da Psi-
cologia um movimento crítico à Psicologia Organizacional, doravante no
que diz respeito ao seu compromisso com o aumento da produtividade e

9
Como, por exemplo, a Gupy, Revelo, Convenia, GoGood, Pin People, Love Mondays (adquirida recentemente pela
Glassdoor), Match Box e Kenoby.
78 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

ao caráter adaptativo, pragmático, instrumental e funcionalista predomi-


nante em sua concepção de ser humano. Reconhecendo os limites das
ciências gerenciais e das ciências comportamentais, esse movimento bus-
cou outras fontes epistemológicas para problematizar a relação entre
Sujeito e Trabalho, aproximando-se da Psicologia Social Crítica (S. Lane e
W. Codo), da Sociologia do Trabalho (R. Sainsaulieu), da Psicanálise, da
Saúde Coletiva, da Análise Institucional (G. Lapassade, R. Lourau, J. Oury)
e das Clínicas do Trabalho (Psicossociologia e Sociologia Clínica, Psicodi-
nâmica do Trabalho, Clínica da Atividade e Ergologia).
A nascente Psicologia do Trabalho, em vez de se voltar à interação do
trabalhador com a organização, focou-se na relação do Sujeito com seu
Trabalho, para além da esfera do emprego. Ao passo que expandiu seus
referenciais teóricos e como não manteve compromisso com aumento de
produção ou lucro, colocou-se no centro desse campo as preocupações re-
lacionadas à Saúde do Trabalhador, a construção de sentido no trabalho,
as dinâmicas de reconhecimento, de sofrimento, adoecimento e a aliena-
ção no trabalho. Marcadamente crítica, a Psicologia do Trabalho não se
restringe ao nível da análise dos comportamentos, pensados a partir de
competências, mas questiona e se interessa também pela compreensão dos
conflitos políticos e ideológicos circunscritos no funcionamento das orga-
nizações e das instituições.
Sem dissociar teoria e prática, a Psicologia do Trabalho se debruça
sobre as mudanças de diferentes formas de grupalidades, em trabalhos
mediados ou não por fronteiras institucionais, em espaços públicos e pri-
vados. Uma vez que abandona o funcionalismo e rejeita posições
instrumentalizadoras e solipsistas, essa Psicologia não concebe o conflito
nas empresas como um elemento a ser frutificado em favor do aumento
de produtividade. Ao contrário, no trabalho de escuta das vivências dos
trabalhadores, a Psicologia do Trabalho compreende que mormente esses
conflitos são também produtos e sintomas de contradições ocultadas pela
própria estrutura da gestão dessas organizações (Gaulejac, 2011). Ela cen-
tra-se, portanto, na dialética das vivências singulares e sentidos atribuídos
Matheus Viana Braz | 79

aos trabalhadores em relação aos seus trabalhos, a partir de suas histórias


de vida.
Em resumo, a evolução da Psicologia Organizacional e do Trabalho
revela-se produto das mudanças em curso no mundo do trabalho, mas
também reflete as formas como essa mesma Psicologia, em suas diversas
facetas, também contribuiu para a produção e compreensão das relações
entre Homem e Trabalho na sociedade atual. No plano epistemológico, as
Psicologias Industrial, Organizacional e do Trabalho se distinguem subs-
tancialmente, o que faz com que seus enfoques, campos de atuação, objetos
e modalidades de intervenção também sejam diferentes.
Embora não seja nossa pretensão prolongar o debate sobre a cisão
entre Psicologia Organizacional e Psicologia do Trabalho, acreditamos que
um psicólogo de Recursos Humanos, por exemplo, ao inserir em suas prá-
ticas questionamentos como as dinâmicas de prazer, sofrimento,
reconhecimento e a construção de sentido no trabalho, torna possível a
ampliação das possibilidades de se criar modos mais emancipatórios, de
singularização e subjetivação no trabalho. Defendemos ainda que embora
haja limitações e entraves nessa aproximação, ela é mais profícua do que
nociva, o que nos leva a crer que os desafios desse campo se endereçam à
necessidade da ruptura das fronteiras disciplinares dos psicólogos organi-
zacionais, em favor da adoção de uma postura plural e complexa, a qual
coloca o trabalhador no centro da questão. Refletir, portanto, sobre o papel
do psicólogo nas organizações, é também pensar na produção de saúde
mental no trabalho, o que atualmente implica ir além do plano comporta-
mental e questionar os efeitos institucionais da revolução gerencialista e
da ideologia hegemônica de trabalho em nossa sociedade.
Demarcamos, enfim, o ponto de intersecção entre o campo da Socio-
logia Clínica e da Psicologia do Trabalho no Brasil. Esse caminho é
importante, pois além de demonstrar suas convergências em um dado
contexto histórico, nos serve para elucidar nossa filiação institucional e
ideológica, ou seja, para situar o leitor sobre qual nosso lugar de fala e
análise, que constitui a espinha dorsal da abordagem compreensiva das
80 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

intervenções que colocamos em marcha em distintos contextos do mundo


do trabalho atual. Por isso, nas discussões que faremos no último capítulo
deste livro, o leitor perceberá que não temos a pretensão de construir mo-
delos serializados, esquemas explicativos ou sistemas de prescrição
oriundos de nossas pesquisas-intervenções. Posto que abandonamos a po-
sição de especialista, em favor da abertura de espaços que proporcionem
aos trabalhadores a expressão de conflitos, de suas vivências e sofrimentos
em relação às suas atividades, nosso objetivo consiste em lançar luzes com-
preensivas sobre as dificuldades e potencialidades na utilização dos
Grupos de Implicação e Pesquisa (GIP) e do Organidrama nos cenários
laborais nos quais tivemos a oportunidade de atuar. Ambos os dispositivos,
contudo, ainda que tenham enquadres específicos e delimitados, caracte-
rizam-se pela versatilidade, de modo que podem ser adaptados e
modificados em função da demanda dos trabalhadores.
2

Construção da Sociologia Clínica:


reflexões históricas e epistemológicas

Só um sentido de invenção e uma necessidade intensa de criar levam o homem


a revoltar-se, a descobrir e a descobrir-se com lucidez.
Pablo Picasso

As primeiras aparições conjuntas dos termos Sociologia e Clínica da-


tam do início do século XX, contudo a Sociologia Clínica só foi desenvolvida
e consolidada a partir dos anos de 1970, em especial na França, Estados
Unidos e Canadá (Fritz, 1993). Atualmente, remete-se a um campo de co-
nhecimentos teórico-metodológicos cuja finalidade é a compreensão e
intervenção, sistêmica e integrada, da interpenetração de fenômenos soci-
ais e psíquicos. Ao se focar no trabalho sobre histórias de vida e trajetórias
sociais, busca-se atuar no nível das emoções, corporal e dos processos so-
ciais, com base em uma postura clínica favorecedora da construção
coletiva de sentido (Gaulejac, Hanique & Roche, 2012).
Embora a Sociologia Clínica adquira contornos distintos em âmbito
global, em função de especificidades históricas e demandas locais de cada
país, os pesquisadores desse campo compartilham entre si inquietações e
interesses comuns. Por romper com o método experimental e classificató-
rio, a abordagem clínica afirma sua postura anti-instrumentalista e
pluridisciplinar, bem como rejeita a oposição entre Psicologia e Sociologia,
interioridade e exterioridade, objetivação e subjetivação, e assume a irre-
dutibilidade entre o social e o psíquico. Isto é, embora esses elementos
possuam uma autonomia relativa, pois obedecem a lógicas distintas, am-
bos se nutrem uns dos outros de forma permanente e indissociável
82 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

(Gaulejac, 2009), o que faz com que o pesquisador norteado pela Sociolo-
gia Clínica seja desafiado a compreendê-los enquanto processos sócio-
psíquicos em constante articulação.
Como a própria construção dessa noção sugere, o termo Sociologia
prenuncia a necessidade de compreender a inter-relação das diversas con-
tradições sociais que nos atravessam e como elas interferem nas histórias
individuais, seja pela reprodução de formas específicas de ser e agir no
mundo, seja pela canalização e condicionamento de sentidos e significa-
ções. A Clínica, por outro lado, remete ao movimento de compreensão dos
processos sócio-psíquicos, os quais somente podem ser efetivamente ana-
lisados (ou apreendidos) mediante a conceituação e interpretação de
experiências e vivências reais (Gaulejac, 1987/2016). Sociologia e Clínica,
portanto, são indissociáveis e indispensáveis, pois é nessa articulação que
encontramos a coerência para a produção de conhecimentos que contem-
plem o registro da produção de sentido das pessoas, sem desprezar os
determinismos sociais que as constituem.
Pelo fato de não se voltar a um objeto específico e ser multirreferen-
ciada por diversos campos de estudo, parece que muitas vezes a Sociologia
Clínica tem seu estatuto científico questionado. Afinal, essa abordagem clí-
nica do social possui uma base de conhecimentos consolidada e
ferramentas próprias de intervenção? Ou se configura tão somente como
uma colcha de retalhos, se servindo de variadas fontes epistemológicas?
Qual denominador comum orienta seus pressupostos metodológicos? Em
que medida a Sociologia Clínica difere da Psicossociologia? Tentaremos,
nas páginas procedentes, responder a essas e outras interrogações.

2.1 Sobre as fontes da abordagem clínica

O termo Sociologias Clínicas, empregado no título de um livro (Gau-


lejac & Roy, 1993) fruto de um colóquio realizado no ano de 1992 no
Laboratoire de Changement Social, em Paris, demarca que a questão cen-
tral da Sociologia Clínica é mais seu método do que seus objetos. O uso do
Matheus Viana Braz | 83

plural parece traduzir o esforço de seus precursores em afirmar que mais


do que uma disciplina ou uma escola, remete-se a um campo pluridiscipli-
nar que encontra seu denominador comum na consolidação de uma
abordagem clínica do social.
A despeito do nascimento dessa abordagem, é possível demarcar
duas perspectivas. A primeira, na qual nos debruçaremos posteriormente,
refere-se a movimentos localizados institucionalmente em diferentes paí-
ses. A segunda, talvez mais relevante para a compreensão de seus
pressupostos conceituais, é evidenciada pela identificação da influência de
autores cuja função foi determinante para a consolidação do arcabouço
teórico-metodológico atual da Sociologia Clínica. Dentre esses protagonis-
tas, coloca-se em primeiro plano as heranças e filiações epistemológicas
oriundas da Sociologia Compreensiva de Max Weber e da Sociologia de
Marcel Mauss.
Ainda que Émile Durkheim seja compreendido como um objetivista,
em um de seus últimos trabalhos (1912/2000) sua óptica analítica é am-
pliada ao direcionar seus esforços à elucidação das relações existentes
entre o “psiquismo individual” e o “psiquismo coletivo”, bem como dos
papéis e funções das emoções e crenças na vida em sociedade. O sociólogo
não deixa de afirmar uma posição determinista do social, pois ainda con-
sidera ilegítimo qualquer estudo que aborde consciências individuais como
elementos geradores de fatos sociais, contudo fica evidenciado em seu
texto um desejo de prefigurar uma psicologia coletiva, mobilizada por ex-
periências, paixões e sensações (Enriquez, 1993). Marcel Mauss, nesse
sentido, sobrinho e discípulo de Durkheim, inspirado em alguns desses
questionamentos, rompeu com a ortodoxia do positvismo sociológico
(principal mantenedora da desconfiança perante a Psicologia) e passou a
se interessar pelos sentidos atribuídos aos sujeitos, colocando-os como
protagonistas de suas vidas.
Em 1924, em texto intitulado Relações reais e práticas entre a Psico-
logia e a Sociologia (Mauss, 1924/2003), elaborado na ocasião de sua posse
como presidente da Sociedade Francesa de Psicologia, o sociólogo
84 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

reconheceu a divisão entre ambos os campos de saber, mas discutiu seus


pontos de intersecção, especialmente aqueles que permitiam que fossem
discutidas convergências mediante a noção de Psicologia Coletiva (ou So-
ciologia Psicológica, conforme propôs o autor), para além dos estudos
sobre as interações individuais ou sobre as representações grupais. A esse
respeito, sublinhava Mauss: “os fenômenos sociológicos são fenômenos da
vida. Logo, a Sociologia não é senão parte da Biologia assim como a Psico-
logia, pois tanto vós [psicólogos] quanto nós [sociólogos] lidamos somente
com homens em carne e osso, que vivem ou que viveram” (1924/2003, p.
319). “Quer estudemos fatos especiais ou fatos gerais, no fundo é sempre
com o homem completo que lidamos” (Mauss, 1924/2003, p. 337).
É curioso observar, conforme elucida Enriquez (1993), que é justa-
mente por esse compromisso em confrontar o antipsicologismo que as
contribuições de Mauss foram mais divulgadas na Antropologia do que na
própria Sociologia. Especialmente no meio universitário, a Sociologia clás-
sica até a primeira metade do século XX foi refratária aos posicionamentos
teórico-metodológicos adotados pelo autor.
A partir de Mauss (1925/2008), mas passando também pela Sociolo-
gia de Georges Bataille, Jules Monnerot e Roger Caillois, inaugurou-se um
movimento sociológico que rejeitava a noção na qual fenômenos sociais
deveriam ser compreendidos como coisas e cuja pedra angular se assen-
tava no esforço analítico em construir uma Sociologia viva, da experiência,
que levava em conta os conflitos, mitos fundadores e as relações existen-
ciais que permeiam o laço social (Enriquez, 1993). Anos depois, em 1987,
ficou evidente a influência exercida por esses autores (acrescida do pensa-
mento de Jean-Paul Sartre) às reflexões realizadas por Gaulejac
(1987/2016) acerca das relações entre o Ser do Homem e o Ser da Socie-
dade1. Este aforismo nos ensina que a constituição do sujeito é atravessada
por contradições constantes entre as interiorizações históricas que faze-
mos do social, as quais condicionam nossas maneiras de ser, agir e pensar,
mas também é influenciada pelo inconsciente, pela dinâmica pulsional,

1
No francês: être de l’home et être de la société.
Matheus Viana Braz | 85

pelo funcionamento psíquico dos afetos e pelos conflitos de nossa sexuali-


dade.
Superando uma abordagem instrumentalista e pragmática, Gaulejac
(1987/2016) discorre que a vertente clínica da Sociologia deve se abrir ao
pluralismo epistemológico no trabalho de compreensão da complexidade
dos fenômenos sociais. Mauss (1925/2008), nesse sentido, representa até
a atualidade uma figura central, que encorajou os sociólogos clínicos a
romperem essas fronteiras disciplinares historicamente cristalizadas e a
se implicarem na criação de modalidades de pesquisas e intervenções ba-
seadas em análises objetivas, porém integradas com as particularidades da
subjetividade dos indivíduos.
A segunda grande influência da Sociologia Clínica é representada por
Max Weber que, mobilizado pelo idealismo alemão, foi crítico duro do po-
sitivismo e das ciências que se propunham a oferecer explicações para a
totalidade da sociedade. A Sociologia Compreensiva inaugurada pelo autor
consistia em analisar seus objetos a partir de seu interior, sem perder de
vista que toda atividade social é condicionada por comportamentos huma-
nos. Ora, se para Mauss (1925/2008) dar, receber e retribuir constituem
elementos simbólicos fundantes do laço social, não menos importante é o
papel da alteridade na dinâmica social nessa perspectiva. Para Weber, as
ações, comportamentos e, por conseguinte, as coletividades, só podem ser
compreendidas a partir dos sentidos atribuídos pelos sujeitos. Quando o
autor (Weber, 1905/2009) afirma que mais do que um sistema econômico,
o capitalismo constitui uma ética, subtende-se que o principal vetor de
sustentação desse sistema é antes de tudo o conjunto de crenças (religiosas
ou não) e normas de ação a ele veiculadas. E é por isso que nolens volens
o método de investigação weberiano é diametralmente oposto ao materi-
alismo histórico de Karl Marx. Embora Weber seja radical e injustamente
tachado amiúde como antimarxista2, é notável que suas reflexões se

2
Em Economia e Sociedade (Weber, 1956/1991), por exemplo, na versão completa organizada e publicada por sua
esposa (Johannes Winckelmann), ao revisitar sua análise das situações dos operários agrícolas alemães, Weber se
aproxima das ideias marxistas que colocam a luta de classes como componente central da ordem social, especial-
mente aquelas relacionadas à racionalização das explorações.
86 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

distanciam do marxismo ao elevarem componentes psicológicos do laço


social ao estatuto de determinantes do espírito (e, logo, do desenvolvi-
mento) do capitalismo (Weber, 1956/1991). Decerto que se considera que
as condições materiais circunscrevem a ação humana, mas na perspectiva
weberiana se compreende que as vivências dessas condições são plurais e
variadas. Em contraponto ao marxismo dogmático3, que faz da subjetivi-
dade um epifenômeno de forças produtivas materiais (Castro, 2019a),
Weber se interessa pelo devir humano e pelas experiências dos indivíduos.
Se seu método de investigação foi nomeado de Sociologia Compreen-
siva, é porque a apreensão das relações sociais implica análises
sociológicas, culturais, axiológicas e psicológicas. Investigar os objetos a
partir de seu interior, portanto, envolve reconstruir relações de sentido,
reconhecendo no sujeito a sua capacidade de agir. Sem desprezar as estru-
turas, o foco se dá nas conjunturas. Esse processo é perceptível, por
exemplo, quando o autor, em suas pesquisas acerca dos operários alemães
da indústria, buscou explorar como se davam as relações entre os traba-
lhadores, suas vivências fora do trabalho, bem como outras questões
voltadas a domínios ético-religiosos, familiares e intergeracionais (Weber,
1956/1991).
Fica mais claro, a essa altura, o porquê Weber pode ser considerado
um dos “pais” da Sociologia Clínica. A Sociologia weberiana inaugurou no
campo sociológico a concepção de que o social é indissociável da intersub-
jetividade, à medida que esta se manifesta simbolicamente nos sistemas
de ações (Palmade, 2005). O sociologismo, nessa esteira, corresponderia a
interpretações que levam em conta apenas a objetificação desses sistemas
enquanto frutos de uma racionalidade formal. Já a psicologização do social
envolveria lógicas analíticas cujo foco é direcionado somente aos elemen-
tos do domínio afetivo. Em contraposição, o autor propôs uma terceira via,

3
Entendemos por marxismo dogmático o movimento de marxistas ortodoxos que restringem seu campo analítico
a uma radicalização materialista (sobretudo de raízes econômicas) e mecanicista, deixando de lado a subjetividade,
a ação criativa e totalizadora dos seres humanos. Trata-se, portanto, de uma matriz de conhecimento que pretende
fazer de seus conceitos eternos e imutáveis, pois compreende a história como totalidade acabada e por isso reduz os
indivíduos a produtos de processos sociais (Sartre, 1960).
Matheus Viana Braz | 87

da interpretação psicocultural, na qual se coloca em articulação dinâmica


o conjunto dessas significações culturais, a saber, o registro da ação, da
racionalidade e de suas expressões afetivas (Weber, 1956/1991).
Ao passo que seus métodos de pesquisa vislumbravam diminuir a
distância entre sujeito e objeto, as proposições weberianas colocaram em
xeque o modus operandi da Sociologia funcionalista durkheimiana, mar-
cada pela recusa ao singular e ao pessoal. Com efeito, suas contribuições
foram essenciais para que os precursores da Sociologia Clínica se engajas-
sem em apreender a dimensão existencial das relações sociais, se
propondo a chegar o mais perto do vivido dos atores (Gaulejac, 1999/2012)
e reiterando o interesse em analisar de que maneira a história de vida de
cada um de nós é a expressão de um destino particular, mas que ao mesmo
tempo reflete também a interiorização da sociedade da qual fazemos parte.
Portanto, ao rejeitar a oposição entre objetivação e subjetivação, entre psí-
quico, biológico e social, a Sociologia Clínica se revela marcadamente
weberiana.
Mauss e Weber contribuíram para o surgimento da Sociologia Clínica
ao defenderem que os fenômenos sociais somente podem ser apreendidos
quando consideradas as formas como os sujeitos os vivenciam, os interio-
rizam, os reproduzem e os transformam. Sob essas influências, além de
outras diferentes filiações teóricas4, sobretudo após os anos de 1960, na
França, Canadá e Estados Unidos, pesquisadores como Eugène Enriquez,
Robert Sévigny, Jan Fritz, Gilles Houle, Vincent de Gaulejac, Max Pagès,
Nicole Aubert, Jacqueline Barus-Michel e Jacques Rhéaume (para citar al-
guns) passaram a questionar e a refutar a oposição das abordagens
psicológicas e sociológicas. Criticava-se, nesse momento, a clivagem radi-
cal gerada pelos enclausuramentos disciplinares, que culminavam na
criação de dois registros independentes: do indivíduo e da sociedade. O
primeiro correspondia aos fenômenos psíquicos, singulares, tributário ao
mundo anímico dos seres humanos, como os afetos, as representações, os

4
Retomaremos essa discussão posteriormente.
88 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

sentimentos e as emoções. E o segundo se remetia a exterioridade, a es-


trutura das relações sociais, econômicas, políticas e culturais.
Essa crítica à rigidez das fronteiras disciplinares é importante para a
apreensão das modalidades de intervenção da Sociologia Clínica, pois é o
que demarca com rigor sua especificidade. Diferentemente de outros mo-
vimentos, como por exemplo, a Sociologia Urbana, da Religião, da Miséria,
a Psicologia da Saúde ou mesmo a Psicossociologia das Organizações, que
se debruçam sobre um campo específico de saber (ou a uma questão cen-
tral), a Sociologia Clínica não possui um objeto definido, mas se consolidou
pela sua abordagem. Em outras palavras, o que faz com que seja possível
distingui-la de outros campos de conhecimento é justamente sua maneira
particular de abordar os problemas, cujos princípios oferecem subsídios
que tornam possível compreender a realidade articulando a análise obje-
tiva com elementos singulares das vivências e subjetividade dos sujeitos.
Parte-se do pressuposto que entre o social e o psíquico há uma rela-
ção de influência recíproca, contudo jamais de simetria ou equivalência,
pois invariavelmente o social, assim como o biológico, preexiste ao psí-
quico. Esse ponto é sensível e diverge inclusive da avaliação de alguns
psicossociólogos5, mas para a Sociologia Clínica as influências do biológico
e do social são anteriores ao psíquico (Gaulejac, 1999/2012). Ora, aspectos
elementares da biologia, como a neurofisiologia ou mesmo a psicomotri-
cidade, afetam o desenvolvimento psicossexual dos indivíduos. O contexto
social e histórico condiciona o funcionamento psíquico. O acesso à lingua-
gem depende de forma direta do ambiente e do registro grupal.
Igualmente, nossos desejos, inclinações, vontades e escolhas também so-
frem a influência de nossas heranças afetivas, culturais, familiares e
ideológicas. Todavia, há uma irredutibilidade entre ambos, pelo fato de
que os efeitos do psíquico sobre os demais registros são retroativos e pos-
teriores (Gaulejac, 1999/2012). O funcionamento biológico, por exemplo,
é regularmente influenciado pelo psíquico, em especial quando tratamos

5
Lévy (2001a), por exemplo, não concorda com as teses sobre a precedência do social sobre o psíquico e argumenta
que isso reflete um desejo de hegemonia da Sociologia.
Matheus Viana Braz | 89

os processos psicossomáticos. Além disso, desde Freud sabemos também


que a dinâmica pulsional, a transmissão psíquica e outros processos aní-
micos, como a idealização, a identificação, a projeção e a introjeção,
modificam a organização do social à medida que medeiam à interação en-
tre natureza e experiência.
Observa-se, portanto, uma dinâmica recursiva e dialética do psíquico
sobre o social, que faz com que o produto se torne também produtor da-
quilo que o produziu. Para compreender a construção dessas teses e a
posição epistemológica da Sociologia Clínica, retomamos o percurso ana-
lítico desenvolvido por Gaulejac (1999/2012), notadamente no que diz
respeito à noção de inconsciente para Freud e Bourdieu.
Para apreender a construção da identidade na teoria de Bourdieu,
faz-se necessário voltar à noção de incorporação de habitus, entendida en-
quanto o produto das experiências biográficas dos indivíduos e o reflexo
da sua capacidade de responder às condições concretas de sua existência
em determinado momento. O componente histórico assume um peso re-
levante nessa conjuntura, pois esse processo é também transmitido
intergeracionalmente, mediante a reprodução de maneiras específicas de
ser e de se posicionar no mundo. A esse respeito, sublinha Gaulejac
(1999/2012): “o indivíduo é no início um herdeiro6. [...] O que chamamos
de destino é somente a expressão do que fomos destinados por aqueles
que nos precederam7” (p. 50).
A incorporação de habitus se manifesta nos gostos, condutas, atitu-
des, maneiras de se comunicar e nas escolhas dos indivíduos, mas não se
trata de um processo cristalizado, pois permite a geração de novas práticas
sociais e condições de existência, embora ainda suscetíveis a disposições
herdadas. Todavia, ao passo que possui também uma dimensão inconsci-
ente, sua reprodução é permeada de negação, ocultação, esquecimento ou
desconhecimento. Aqui temos uma questão central. Para Bourdieu, as

6
No original: L’individu est au départ un héritier.
7
No original: Ce que l’on appelle la « destinée » n’est que l’expression de ce à quoi on a été destiné par ceux qui nous
précèdent.
90 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

malhas subjetivas do inconsciente refletem um processo de produção do


social à medida que são edificadas pela incorporação da exterioridade. O
inconsciente, portanto, para o sociólogo, corresponde ao social interiori-
zado, mormente em relação às determinações históricas que fogem ao
controle do indivíduo e que amiúde o alienam (Bourdieu, 1974/2015;
Grenfell, 2018).
Os movimentos da história, na Sociologia de Bourdieu, se reduzem
ao possível, ao provável, a estados incorporados, e os processos psicológi-
cos são concebidos como veículos da transmissão de hábitos. Logo, a
superação da alienação se daria por intermédio da racionalização das ações
e dos processos de reprodução do social. Gaulejac (1999/2012), nesse sen-
tido, se serve das contribuições de Bourdieu, especialmente aquelas
relacionadas ao peso da incorporação histórica enquanto vetor de repro-
dução social, porém não deixa de criticar a predominância de uma posição
determinista do social sobre o psíquico em suas acepções. Embora Bour-
dieu se dedique a elucidação dos efeitos da incorporação de habitus, o
mesmo não ocorre com os caminhos possíveis para que o indivíduo supere
os conflitos oriundos desse processo. Para o sociólogo, a lógica do funcio-
namento psíquico é secundária, de modo que parece haver um imperativo
cronológico e linear entre passado e presente, que os tornam intransponí-
veis.
Gaulejac (1999/2012) vê na Psicanálise as respostas às limitações das
reflexões feitas por Bourdieu. Ao desvelar o funcionamento do aparelho
psíquico, do ponto de vista dinâmico, topográfico e econômico Freud deu
origem a uma nova compreensão dos processos de interiorização do social.
O método psicanalítico evidenciou as limitações de uma análise estrita-
mente intelectual no desenvolvimento emocional do ser humano. O Eu não
é senhor em sua própria casa8, dizia Freud (1918/1996, p. 135). Além disso,
em contraponto à Sociologia de Bourdieu, o inconsciente para a Psicanálise
é atemporal e dilui as barreiras entre passado, presente e futuro. Não raro,
na cura analítica são perceptíveis fenômenos nos quais experiências

8
No original: el yo no es el amo en su propia casa.
Matheus Viana Braz | 91

vividas em nossa primeira infância vêm à tona no presente ou nos impe-


dem de projetar algum plano futuro. Trabalha-se no presente, nesse
sentido, não para mudar o passado (pois isso não é possível), mas para
elaborar essas representações anteriores, modificando suas significações e
inclusive talvez as reorganizando a um estado anterior. Igualmente, é co-
mum que a formação de sintomas seja fruto do imbricamento de conflitos
do passado vinculados a expectativas de futuro que se editam no presente.
Para Freud, portanto, o aparelho psíquico obedece a uma lógica não linear
e recursiva, o que faz com que a história seja constantemente atualizada
no inconsciente.
Na óptica freudiana, a construção identitária e da personalidade do
sujeito se dá, primeira e predominantemente, por intermédio de identifi-
cações primárias e secundárias (de cunho maternal e paternal, de forma
respectiva), figuras estas cardeais para seu desenvolvimento psicossexual.
Partindo da premissa que na vida psíquica o outro (e aqui não nos restrin-
gimos às figuras parentais) se coloca sempre como modelo, adversário ou
ajudante, Freud defende que toda Psicologia individual deve ser concebida
simultaneamente como Psicologia Social (Freud, 1921/1996). Nessa es-
teira, em Totem e Tabu (Freud, 1913/1996), o autor faz também
prefigurações sobre a repetição da filogênese pela ontogênese, lançando
luz sobre processos de transmissão psíquica como a culpa, os ideais, as
interdições, as defesas, a organização das relações objetais e, inclusive, os
sintomas. Aqui, chegamos a um ponto de inflexão. Qual seria então a crí-
tica da Sociologia Clínica à Psicanálise?
Na esteira das críticas feitas no bojo do movimento institucionalista
(Barus-Michel, 2004), se a Sociologia Clínica (Gaulejac, 1987/2016) critica
Bourdieu por seu posicionamento excessivamente determinista do social,
em contrapartida também entende que Freud atribui um peso maior ao
psíquico, pois tende a buscar a compreensão do social a partir de sua ins-
crição na psique humana (por exemplo, como faz em sua análise da
Psicologia das Massas). Gaulejac é contrário ainda à ênfase majoritaria-
mente dada aos atributos psicológicos nos processos de identificação e
92 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

subjetivação dos indivíduos. A identificação, de acordo com o autor (Gau-


lejac, 1999/2012), não pode se reduzir a esfera intrafamiliar, como se as
relações vividas na infância determinassem o destino das pessoas, pelo
fato mesmo de ser atravessada historicamente pelas relações sociais, o que
nos convoca a sublinhar também o peso das posições e determinações so-
ciais herdadas, para que seja possível compreender como interferem em
nossas escolhas e em nossas formas de pensar. Por exemplo, sem menos-
prezar a relevância da sexualidade para o desenvolvimento psíquico, em
seu livro Neurose de Classe (1987/2016), Gaulejac elucida casos em que a
produção de sintomas neuróticos e conflitos identitários se encontram in-
trincados à interiorização de relações sociais de dominação e à
deslocamentos de classes vividos como patogênicos.

Se consideramos que o destino de um indivíduo é determinado pela história,


ele não é redutível à história das relações afetivas entre a criança e os adultos
que a circundaram para seguir seus primeiros aprendizados. Essas relações
são, elas mesmas, portadoras de uma série de registros que as determinam.
Elas são portadoras de aspectos não somente afetivos, mas igualmente ideoló-
gicos, culturais, sociais e econômicos, cada um desses níveis não podendo ser
dissociados dos outros na medida em que é sua imbricação que produz a es-
trutura de programação, o sistema de hábitos e o quadro referencial sobre os
quais a criança vai construir sua própria história (Gaulejac, 1987/2016, p. 48)9.

Fizemos essa incursão reflexiva para demonstrar como a Sociologia


Clínica se serve, por exemplo, de Freud e Bourdieu, aceita suas respectivas
teses, mas as considera insuficientes. É então mediante a articulação de
suas contribuições e contradições que se opera a construção de uma abor-
dagem clínica do social. E é em razão da irredutibilidade entre social e
psíquico que a Sociologia Clínica se interessa pela exploração dos múltiplos
determinantes que atravessam nossas histórias de vida. Para tanto,

9
No original: Si l’on considere que le destin d’un individu est detérminé par l’histoire, celle-ci n’est pas réductible à
l’histoire des relations affectives entre l’enfant et les adultes que l’ont entouré pour suivre ses premiers apprentis-
sages. Ces relations sont elles-mêmes portées par une série de rapports qui les déterminent. Elles sont porteuses
d’enjeux non seulement affectifs mais également idéologiques, culturels, sociaux et économiques, chacun de ces ni-
veaux ne pouvant être dissocié des autres, dans la mesure où c’est leur intrication qui produit la structure de
programmation, le système d’habitus, le cadre référentiel sur lesquels l’enfant va construire sa propre histoire.
Matheus Viana Braz | 93

abdica-se da acepção cujo desenvolvimento do indivíduo caminharia no


sentido de um equilíbrio ou homeostase. Na abordagem clínica considera-
mos que viver em sociedade, trabalhar em organizações, se relacionar com
pessoas ou buscar construir uma narrativa própria, implica invariavel-
mente confrontos constantes com as contradições de nossas trajetórias
sociais.
“A oposição entre racional e emocional não é somente artificial, mas
radicalmente inumana”, discorre Gaulejac (1999/2012, p. 7510). O senti-
mento de incoerência, oriundo do confronto com essas contradições, de
acordo com o sociólogo provém do hiato entre o racional e o emocional,
isto é, entre o que pensamos e o que sentimos. Portanto, é no aprofunda-
mento dessas relações que podemos encontrar alguma coerência. Ainda
que isso pareça óbvio para alguns leitores, é preciso observar que estamos
na hipermodernidade (Aubert, 2004) cercados por imperativos sociais que
vão de encontro com essa premissa (Viana Braz, 2019). Nas redes sociais,
como também no processo de proliferação de gurus e experts de toda
sorte, nos deparamos com estratégias milagrosas cujas promessas se ba-
seiam, de um lado, na possibilidade de suprimir, ocultar ou dominar a
qualquer preço nossas emoções e, de outro, de maximizar nossa raciona-
lidade para que sejamos cada vez mais produtivos e eficazes. Predomina a
perspectiva na qual as emoções são tratadas no plano comportamental,
segundo um viés funcionalista, operatório e pragmático (Viana Braz,
2018). Raras são as abordagens difundidas em nosso cotidiano que consi-
deram que as emoções são fundamentais ao desenvolvimento do sujeito,
afinal, aqueles que se permitem vivenciá-las, refletir sobre seus sentimen-
tos e escutar a si mesmos, são julgados como se tivessem perdendo tempo.
A esse respeito, retomamos ainda as preocupações colocadas por Gaulejac
& Hanique (2012, p. 367): como validar hipóteses sobre a influência de
processos intrapsíquicos mediante uma abordagem sociológica não indivi-
dualizante? Qual quadro metodológico e prático poderia permitir o

10
No original : L’opposition entre ratinnel et émotionnel est non seulement artificielle mais radicalement « inhu-
maine ».
94 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

aprofundamento da análise dos processos sócio-psíquicos, inclusive em


sua dimensão inconsciente?
A Sociologia Clínica foi edificada para que as pessoas pudessem ana-
lisar seus conflitos, encontrar mediações e criar respostas diante das
contradições de suas vidas, sem caírem nas armadilhas do sociologismo,
do economicismo ou do psicologismo (Gaulejac, Viana Braz, & Da Silva,
2020). Ao romper com o método experimental, seus precursores se enga-
jaram na criação de uma abordagem que integrasse o conhecimento
intelectual e o conhecimento sensível, isto é, o plano da reflexão e o da
experiência. No bojo dessas inquietações, dois registros assumiram cen-
tralidade: o da história e o da historicidade.
A história remete a nossa história social, ou seja, as heranças trans-
mitidas em termos de estruturas sociais, de classe, ideológicas, culturais,
econômicas, familiares e afetivas. Quando Gaulejac (1999/2012, p. 21)
pontua que o indivíduo é produto de uma história na qual busca se tornar
sujeito, há em sua afirmação um duplo sentido. Ao mesmo tempo em que
nos diz que sua história provém de uma história comum, a qual condiciona
sua identidade, ela é também uma história profundamente singular, pois
cada ser humano é diferente do outro. Em outras palavras, a história in-
fluencia nossos destinos e escolhas, mas não os decide. O indivíduo não se
reduz a um depositário passivo de transmissões e heranças. Como bem
destaca Enriquez (1994), mesmo o indivíduo mais conformado aos dita-
mes e determinismos sociais está sempre em condições de manifestar sua
ipseidade e parcela de autonomia. Logo, a historicidade se refere a essa
capacidade de agir, modificar sua própria história, confrontar suas raízes
e fantasmas. É na construção de sua historicidade que o indivíduo afirma
sua existência social e sua identidade narrativa como sujeito de desejo, cri-
ador de sua própria história. Aqui, notamos que essas conceituações se
aproximam do pensamento de Jean-Paul Sartre. Quando o autor prefigura
que “o importante não é o que se fez do homem, mas sim aquilo que ele
faz daquilo que fizeram dele11” (Sartre, 1952, p. 55), coloca-se em primeiro

11
No original: L’important n’est pas ce qu’on a fait de l’homme, mais ce qu’il fait de ce qu’on a fait de lui.
Matheus Viana Braz | 95

plano a capacidade do sujeito de se historializar, mudar sua relação com o


mundo e construir seu “Projeto de Ser”.
O conjunto das historicidades individuais naturalmente gera fraturas
e mudanças na organização da sociedade. À esse processo, Gaulejac
(1987/2016) dá o nome de historicidade coletiva. As metamorfoses opera-
das historicamente no mundo do trabalho, nos ditames da excelência,
performance e no consumo são representativas desses fenômenos, frutos
de um constante movimento de produção e reprodução das normas e es-
truturas sociais da contemporaneidade (Viana Braz, 2019). Para conseguir
colocar em articulação todos esses registros, a Sociologia Clínica se utiliza
do trabalho de análise e compreensão das trajetórias sociais dos sujeitos a
partir de suas narrativas de vida. Abandona-se, portanto, qualquer pers-
pectiva favorável à cisão entre vida pessoal e profissional, sistemas de
papéis ou quaisquer outras vias analíticas que trabalhem a partir da frag-
mentação do social.
Aproximar-se da vivência dos indivíduos implica um esforço do pes-
quisador em conhecê-los em suas pluralidades subjetivas, entendidas
enquanto os produtos de suas vivências, contradições e sofrimentos. E é
por isso que se denomina clínica da complexidade a abordagem da Socio-
logia Clínica. Nunca veremos o indivíduo em sua integralidade, mas nos
esforçamos para compreendê-lo em sua complexidade. Nas pesquisas e
intervenções nesse campo, não há neutralidade do pesquisador/interven-
tor. Continuamente ele deve se debruçar sobre um trabalho analítico de
implicação de si mesmo e dos outros. O conhecimento e as mudanças são
frutos de um movimento de confrontação de saberes múltiplos de todas as
pessoas envolvidas, o que implica renúncia à posição de expert e à racio-
nalização defensiva de sua prática.
Em suma, desde os anos de 1980, baseados nas premissas supracita-
das e a partir de diferentes formas de confrontação e construção teóricas,
variados grupos se mobilizaram na construção de caminhos possíveis de
intervenção e pesquisa com objetos distintos. Nos tópicos seguintes,
96 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

tentaremos localizar os principais movimentos institucionais e seus cam-


pos de atuação na Sociologia Clínica ao redor do mundo.

2.2 Sociologia Clínica na França: história e filiações teóricas

A Sociologia Clínica germinou na França no pós-guerra, em um con-


texto intelectual marcado pelo marxismo e pela Psicanálise. Inicialmente
atrelada à Psicossociologia, se desenvolveu primeiro fora das universida-
des, em especial após os anos de 1970, no seio do movimento
institucionalista francês, junto a uma heterogeneidade de práticas. Des-
taca-se, nesse movimento, a Pedagogia e Psicoterapia Institucional (com
R. Pagès, J. Oury, F. Tosquelles e F. Guattarri), a Análise Institucional (sob
o protagonismo de R. Lourau e G. Lapassade), a Socioanálise (com J. e M.
Van Bockstaele) e a Sociopsicanálise (G. Mendel). Posteriormente, Didier
Anzieu e René Kaës desenvolveram, ainda, a intervenção em Psicanálise
Grupal, a partir de técnicas psicodramáticas, com base no conceito de
“aparelho psíquico grupal”, cujo intento era a compreensão de fenômenos
psíquicos que atravessam os grupos e instituições (Gaulejac, Hanique, &
Roche, 2012).
Como a Sociologia Clínica nasceu vinculada a Psicossociologia, com-
partilharam variadas influências em comum. Embora não seja nosso
objetivo explorar em detalhes essas origens12, faz-se necessário apresentar
algumas de suas principais filiações. Nesse quadro, a Escola de Chicago
constitui uma das primeiras inspirações à emergência da Psicossociologia.
Influenciadas pelo pensamento do sociólogo alemão Georg Simmel,
amplamente difundido nos Estados Unidos no início do século XX, as pro-
duções oriundas da Escola de Chicago desde os anos de 1920 chamaram a
atenção de franceses que tiveram a oportunidade de realizar estudos no
exterior. Esse movimento norte-americano, posteriormente nomeado in-
teracionismo simbólico, garantiu sua originalidade pela via do
questionamento do estatuto das ciências puras, controladas em ambientes

12
Uma exploração aprofundada das origens da Psicossociologia pode ser encontrada em Viana Braz (2019).
Matheus Viana Braz | 97

artificiais. Ao tomar a “cidade como laboratório” (Mata Machado, 2010) se


demarcou uma aproximação entre Sociologia e Psicologia Social, assim
como se evidenciou um esforço de confronto com o reducionismo do be-
haviorismo postulado por J. Watson. Interessados pelos processos de
socialização na relação entre comunidade e indivíduo, autores como Ge-
orge Herbert Mead reconheceram o estatuto privilegiado da linguagem na
vida em sociedade e buscaram descrevê-la e interpretá-la a partir de suas
formas simbólicas em situações reais. Posteriormente, proveniente dessa
mesma escola, Erving Goffman e Carl Rogers foram também importantes
para a emergência da Psicossociologia francesa (Viana Braz, 2019).
Nos anos seguintes, destacou-se o papel de atores específicos que
cumpriram a função de difusores de outras correntes que influenciaram a
nascente Psicossociologia francesa. Após a Segunda-Guerra, por exemplo,
Anne Ancelin-Schützenberger foi aos Estados Unidos para estudar as di-
nâmicas de grupo no Research Center for Groups Dynamics, vinculado à
University of Michigan e criado por discípulos de Kurt Lewin. Ao se apro-
ximar dos trabalhos de Jacob Levy Moreno, a psicóloga francesa encontrou
no psicodrama ferramentas metodológicas profícuas para o trabalho com
grupos. Com efeito, Ancelin-Schützenberger não somente foi a responsá-
vel por levar o pensamento moreniano para a França, como também
durante mais de vinte anos se encarregou de desenvolver seus trabalhos
no Laboratoire de Psychologie Sociale et Clinique da Université de Nice So-
phia Antipolis (Gaulejac, 1999/2012; Viana Braz, 2019).
Edificada por Elliot Jaques e sua equipe no Tavistock Institute of Hu-
man Relations, em Londres, a Socioanálise também influenciou
diretamente a primeira geração de psicossociólogos franceses. Nesse con-
texto, Jaques foi o precursor em se servir da Psicanálise (sobretudo a
kleiniana) em um processo de mudança organizacional. A partir de 1948,
em intervenção que durou três anos, realizada na Glacier Metal Company,
atento aos conteúdos manifestos e latentes oriundos de seu trabalho, o au-
tor se propôs a fazer uma leitura do funcionamento dos grupos na fábrica
(Jaques, 1952; 1982). Mormente nas décadas de 1950 e 1960, seu
98 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

pensamento ganhou ampla visibilidade em território francês. Seu texto,


intitulado Os sistemas sociais como defesas contra a ansiedade depressiva
e a ansiedade persecutória, publicado em 1955, se tornou uma referência
para os franceses interessados na utilização da Psicanálise em intervenções
organizacionais (Amado, 2001).
Igualmente, a teoria do campo e da mudança de Kurt Lewin foi fun-
damental para a conceituação da noção de pesquisa-ação na
Psicossociologia francesa. O psicólogo alemão, desde seus primeiros tra-
balhos de mudança social realizado no Comitê Federal Sobre Hábitos de
Nutrição, nos Estados Unidos, até suas intervenções no meio industrial,
com o poder público ou com entidades que combatiam a discriminação de
grupos minoritários, se consolidou como um expoente da nascente área
do desenvolvimento organizacional (Viana Braz, 2019). Sua influência foi
tamanha que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econô-
mico (OCDE) criou, no início dos anos de 1950, um programa cuja
finalidade era transmitir para europeus os métodos de mudança social
preconizados por Lewin (Gaulejac, 1999/ 2012).
Voltando à Escola de Chicago, quando Max Pagès (cuja formação em
Psicologia se deu em meio ao movimento de expansão da Psicologia Expe-
rimental e da Psicometria) se encontrou com Carl Rogers nos Estados
Unidos, em 1950, ficou impressionado com seu método clínico de orienta-
ção não diretiva (Nunes & Silva, 2018). Nessa ocasião, Pagès obteve uma
bolsa de pós-doutorado para trabalhar com Rogers. A originalidade da
perspectiva rogeriana era representada por sua disposição em romper
com enclausuramentos disciplinares, articulando posições aparentemente
contrárias, como uma exigência rigorosa de conceituação, verificação e um
interesse pela dimensão subjetiva do ser humano, apreendida como vetor
essencial do processo terapêutico. Pagès parece ter se espelhado em Ro-
gers também no que diz respeito à sua postura clínica, marcada pela
empatia, congruência, abertura e capacidade de reconhecer suas próprias
emoções (Gaulejac, 1999/2012).
Matheus Viana Braz | 99

Desde 1952, Pagès tomou para si a missão de propagar a abordagem


rogeriana na França. Sua admiração pelo autor ficou evidente quando, ao
escrever o prefácio da tradução francesa do livro On becoming a person
(traduzida somente em 1966, embora tenha sido publicada originalmente
em 1956), enalteceu Rogers, junto a Marx e Freud e caracterizou seu mé-
todo como legítimo, existencial e relacional (Peretti, 2005). Durante essa
década, Pagès desenvolveu variados trabalhos em organizações na França,
a partir da perspectiva não diretiva em dinâmicas de grupo.
Nos anos de 1950, alguns trabalhos publicados por Pagès (1952; 1959)
evidenciam que o autor realizou intervenções em diferentes contextos gru-
pais: de escolas a empresas, públicas e privadas, passando por grupos de
apoio, com distintas finalidades (terapêuticas, de orientação profissional
ou mudança social). Influenciado também pela Psicanálise, pelos trabalhos
de mudança organizacional concebidos por Lewin, pela Socioanálise de Ja-
ques e pelo sociodrama de Moreno, percebe-se nesse momento um
processo de construção de uma nova abordagem, no qual Pagès se con-
frontou continuamente com diferentes contradições. Embora encontrasse
na orientação não diretiva uma via profícua para a exploração da dinâmica
subjetiva dos grupos, também reconhecia o desafio em conjugar, sem
prescindir do rigor teórico, repertórios metodológicos que por vezes par-
tiam de hipóteses transversalmente contrárias.
Na década seguinte, a partir da publicação de dois livros, l’Orientation
non-directive en psychothérapie et en psychologie sociale (1965/2005) e La
vie affective des groupes (1968/1984), o psicólogo francês explorou de
forma sistemática as contribuições e limitações da teoria rogeriana e da
Psicanálise no trabalho de análise e interpretação dos conteúdos afetivos
engendrados nas dinâmicas grupais. Desse momento em diante, Pagès se
assumiu psicossociólogo e passou a referenciar suas práticas a partir dessa
terminologia. Compreender a estrutura afetiva dos diferentes grupos, por-
tanto, para o autor consistia em uma tarefa de suma importância para o
processo de mudança da ordem grupal nas intervenções psicossociológi-
cas. Em contraposição as abordagens positivistas e experimentais, Pagès
100 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

(1965/2005) concebia que o papel do pesquisador/interventor jamais seria


neutro, pois sua presença incidia substancialmente nas emoções e senti-
mentos dominantes compartilhados pelos membros de determinado
grupo. Uma vez que nesse processo pesquisa e ação se confundiam e trans-
formavam umas as outras, tornavam-se também indissociáveis.
Em termos institucionais, Pagès protagonizou também diferentes
movimentos. Junto a Guy Palmade, reuniu pesquisadores como Eugène
Enriquez, Jean Dubost, André Levy e Jean Claude Rouchy (que naquela
ocasião se interassavam pelas intervenções grupais), e juntos fundaram,
no ano de 1959, a Association de Recherche et d’Intervention Psychosocio-
logique (ARIP). Pela primeira vez, formalizou-se um veículo
multirreferencial de formação em Psicossociologia, organizado por seus
fundadores, com seminários ministrados por psicólogos, psicanalistas,
historiadores, sociólogos, economistas e antropólogos (Gaulejac,
1999/2012). Conforme elucidam Gaulejac (1999/2012) e Nunes & Silva
(2018), nesse momento a Psicossociologia encontrava resistências acadê-
micas de variadas frentes, o que justifica seu tardio reconhecimento no
meio científico. A Sociologia a rejeitava por seu excessivo estreitamento
com a Psicologia, além de acusá-la de servir aos interesses do patronato
em suas intervenções. Já a Psicologia se encontrava enredada pelas dispu-
tas entre psicanalistas, cognitivistas e experimentalistas. A
Psicossociologia tampouco encontrou interlocutores no campo da Psicolo-
gia Social, uma vez que naquela ocasião esta última estava atravessada
pela crescente onda positivista e cientificista na Europa.
Gaulejac (1999/2012) caracteriza as décadas de 1960 e 1970 como a
idade de ouro da Psicossociologia. Sua expansão, porém, não se deu de
forma linear e harmônica, mas mediante dolorosos debates. A ruptura das
fronteiras disciplinares não se demonstrou tarefa fácil. Posto que cada pes-
quisador provinha de uma formação teórico-prática específica, inclusive
entre os membros da ARIP houve intensas discordâncias. Encontrar a uni-
cidade em meio a essa diversidade implicou decuplicados conflitos.
Matheus Viana Braz | 101

Duas vertentes psicanalíticas, por exemplo, se desenharam no bojo


da ARIP. A primeira, representada por alguns trabalhos de Rouchy13, com-
preendia o trabalho clínico com grupos restritos e cuja finalidade era a
psicoterapia ou a formação pessoal (Lévy, 2001a). Em contraposição, Lévy
(2001a) e Enriquez (1983) viam na Psicanálise teses as quais permitiam
aventar que fatos sociais deviam também ser concebidos como fatos psí-
quicos. Ambos os pesquisadores criticavam a mera transposição dos
conceitos e técnicas da Psicanálise sem considerar estruturas sociais e es-
pecificidades locais. Adeptos da ampliação do campo psicanalítico,
direcionaram suas atenções à compreensão dos grupos e sujeitos em situ-
ações reais. Mediante processos de mudanças realizados em empresas,
hospitais e variados coletivos locais, bebiam da fonte da Psicanálise para
intervir em situações conflituosas. As contribuições de Jaques (1952)
acerca dos mecanismos de defesa grupais e dos processos de identificação
projetiva, que incidiam na organização do trabalho e nas tomadas de deci-
sões, foram nesse início norteadores importantes das intervenções
colocadas em marcha por membros da ARIP. Conforme descreveu Lévy:

Mais do que a teoria psicanalítica, foi a experiência pessoal que conduziu nu-
merosos praticantes a descobrir o papel determinante dos processos
inconscientes – nas relações interpessoais, nos grupos e nas organizações so-
ciais. Foi a Psicanálise, mais ainda que as teorias marxistas ou neomarxistas,
que fez com que se tomasse consciência das dimensões ideológicas das teorias
que reduziam os conflitos psíquicos e sociais a um conhecimento insuficiente
dos respectivos sistemas de representações dos atores sociais e das metodolo-
gias baseadas na ideia que seria suficiente melhorar as comunicações para
reestabelecer a coesão social (Lévy, 2001a, p. 44).

O excerto supracitado é importante, pois evidencia também outra di-


vergência que germinou no seio da ARIP. Ao passo que a Psicanálise trouxe
em primeiro plano o questionamento de posições ideológicas, especial-
mente Enriquez e Lévy, em suas intervenções passaram a se interrogar

13
Enquanto membro da Société Française de Psychothérapie Psychanalytique de Groupe, Rouchy se aproximou tam-
bém dos trabalhos de Didier Anzieu, René Kaës e Wilfred Bion.
102 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

sobre as estruturas de poder e de reprodução social nas organizações. Para


além de uma análise no nível grupal, revelava-se central a construção de
uma investigação institucional em que o campo de análise não fosse con-
fundido com o campo de intervenção. Lévy (2001a) questionava também
a teoria rogeriana e as experiências lewinianas, no sentido de que ambas
se colocavam a serviço da ordem estabelecida. Criticava-se, portanto, que
eventualmente, sob o pressuposto da reparação de ligações perturbadoras,
da reeducação emocional e em nome de valores como a liberdade e a inde-
pendência, essas abordagens se furtavam a analisar as origens dos
conflitos nas organizações.
A mudança social e, logo, os trabalhos com grupos, deveriam se ori-
entar por uma inspiração revolucionária, mediante o confronto com as
elites e o rompimento das estruturais do capitalismo? Seria possível recu-
sar uma postura utilitária, adaptativa e transformar as relações humanas
com intervenções pontuais? De que modo o desenvolvimento pessoal e gru-
pal se contrapunha aos métodos clínicos terapêuticos? Foi nesse embate,
entre Marxismo e Psicanálise, Estruturalismo e Fenomenologia, Psicologia
e Sociologia, que questões caras ao movimento institucionalista francês fo-
ram motores de debates entre os psicossociólogos (Gaulejac, 1999/2012).
Malgrado os avanços provenientes desse contexto, em função de de-
sentendimentos na gestão da ARIP e de conflitos ideológicos
(especialmente relacionados a discordâncias quanto à abordagem rogeri-
ana), Pagès se retirou da associação em 196914. No mesmo ano, fundou na
Université Paris-Dauphine o Laboratoire de Changement Social (LCS), pos-
teriormente transferido para a Université Paris-Diderot VII.
Gradualmente, os demais membros também saíram da ARIP, de modo
que, dentre os fundadores, somente Jean Rouchy permanecera na associ-
ação. O antigo grupo, contudo, fundou em 1992 o Centre International de

14
Alguns anos antes, Pagès convidara também André de Peretti para fazer parte da ARIP. Como ambos eram os
pesquisadores mais ligados à abordagem rogeriana, Peretti também se retirou da associação nessa ocasião (Rouchy,
2009).
Matheus Viana Braz | 103

Recherche, de Formation et d’Intervention en Psychosociologie (CIRFIP15),


entidade que atua ainda hoje de forma ativa, promovendo a formação em
Psicossociologia e integrando sucessivas gerações de pesquisadores (Car-
reteiro & Barros, 2011; Viana Braz, 2019). Enquanto a ARIF editava a
revista Connexions, o CIRFIP criou a Revue Internationale de Psychosocio-
logie16, organizando uma série de números temáticos e seminários de
formação.
A partir dos anos de 1980, no núcleo do Laboratoire de Changement
Social17, a Psicossociologia encontrou uma unicidade e podemos afirmar
que se endereçou à consolidação de uma orientação própria, com contor-
nos identitários e epistemológicos específicos, para além da articulação de
constructos teóricos feitos por outros movimentos. É notável que nesse
momento a Psicanálise ganhava maior proeminência entre os psicossoci-
ólogos franceses, em detrimento da orientação rogeriana. Já em 1979, a
publicação do livro L’emprise de l’organization18 (sob a autoria de Max
Pagès, Michel Bonetti, Vincent de Gaulejac e Daniel Descendre) represen-
tou um marco que materializou esse processo de amadurecimento. Fruto
de uma pesquisa-ação desenvolvida ao longo de alguns anos na IBM, essa
obra traduziu a criação de uma autêntica abordagem teórico-metodoló-
gica. À medida que explora a estrutura de poder da empresa, sob uma
perspectiva pluridisciplinar, esse estudo é ainda hoje referência elementar
para a compreensão das dimensões políticas, econômicas, ideológicas e
psicológicas das organizações. À guisa de ilustração, embora o livro não
faça qualquer menção a IBM, sabemos atualmente que os dirigentes da
empresa, quando realizaram a leitura do relatório final da pesquisa, fize-
ram inúmeras pressões para impedir sua publicação, chegando inclusive a

15
Alguns pesquisadores, representantes da segunda geração de psicossociólogos franceses, fizeram parte da fundação
dessa nova rede. Dentre eles, figuram Gilles Amado e Jacqueline Barus-Michel. Para mais informações, indicamos o
website do centro: https://cirfip.org/
16
Atualmente nomeada Nouvelle Revue de Psychosociologie.
17
Em 1981, Pagès passou a diretoria do laboratório para Vincent de Gaulejac, que permaneceu na função até 2014.
18
Traduzido para o português como O poder das organizações (Pagès et al., 1987).
104 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

propor aos pesquisadores a compra dos resultados encontrados19. Se trou-


xemos esse detalhe, é porque revela a ousadia, protagonismo e entraves
encontrados pelos autores no processo de elucidação dos novos mecanis-
mos de dominação engendrados nas malhas de poder das organizações.
Outro marco foi a publicação, em 1983, do livro De la horde à l'Etat:
essai de psychanalyse du lien social20, fruto da tese de doutorado de Enri-
quez. É notável, no percurso de produção acadêmica do autor, a
reivindicação da filiação psicanalítica na origem da Psicossociologia. Nessa
obra, Enriquez explorou com originalidade as inter-relações entre o de-
senvolvimento da civilização e as manifestações do inconsciente nas
estruturas sociais, histórias e políticas de nossa sociedade. Além de Freud,
a Sociologia weberiana também é utilizada em suas críticas à racionaliza-
ção dos fenômenos sociais e em sua análise das diferentes figuras de poder
incorporadas pelo Estado Moderno. A vasta abrangência e pioneirismo do
trabalho de Enriquez são evidenciados à medida que sua obra se propõe à
compreensão das dinâmicas grupais, organizacionais, da servidão volun-
tária, das relações de poder (de identificação e idealização) fundantes do
laço social, bem como da submissão ao Estado e suas vinculações com os
destinos individuais e o destino societal.
Nesse momento, percebe-se que a Psicossociologia francesa se assen-
tou enquanto um campo de conhecimento singular, distinto de seus
movimentos antecessores. Sociologia Clínica e Psicossociologia, em conso-
nância, se misturavam e compartilhavam entre si fundamentações
teóricas homogêneas, reforçadas pela postura antipositivista.
No início dos anos de 1990, ao discutir as demarcações entre Sociolo-
gia Clínica e Psicossociologia, Enriquez (1993) defendeu que não havia
diferenças significativas entre ambas as abordagens. Sublinhou que pare-
cia ter se convencionado a atribuir à Psicossociologia os trabalhos
realizados com grupos ou organizações cujas fronteiras e limites eram

19
Essa história pode ser encontrada em detalhes no seguinte documento: http://www.vincentdegaulejac.unisite-
creation.com/wp-content/uploads/2012/10/Sautoriser-%C3%A0-penser.pdf
20
Traduzido para o português em 1990.
Matheus Viana Braz | 105

delimitados claramente por uma regulação jurídica formal. Já à Sociologia


Clínica, caberiam os trabalhos realizados em espaços abertos, nos quais as
fronteiras não eram especificadas ou estanques. Figuravam neste domínio
as intervenções em bairros, comunidades e coletividades que não eram
determinadas por estruturas formais cristalizadas. De acordo com o autor,
a primeira seria mais sensível ao trabalho psíquico, enquanto a segunda
ao trabalho histórico, porém se tratava mais de uma acentuação do que de
uma distinção elementar.
As demarcações feitas por Enriquez (1993) foram assertivas, especi-
almente quando consideramos o contexto de produção acadêmica e das
intervenções da Psicossociologia e Sociologia Clínica realizadas nos anos
de 1980. Atualmente, contudo, nos permitimos discordar das acepções do
autor, de modo que especialmente na França e nos Estados Unidos essa
distinção se operou com contornos mais claros, os quais refletem o desen-
volvimento da Sociologia Clínica em duas perspectivas: institucional e da
criação de ferramentas específicas de intervenção.
Na perspectiva institucional, conforme exploramos em trabalho an-
terior (Viana Braz, 2019), desde seu surgimento em território francês a
Psicossociologia enfrentou inúmeras resistências, o que a fez ser categori-
zada como uma disciplina bastarda e marginal. Até os anos de 1970, não
teve seu reconhecimento por parte do Centre National de Recherche Scien-
tifique21 (CNRS) e tampouco encontrou espaços de inserção nas
universidades, pois tanto a Sociologia como a Psicanálise e a Psicologia a
rejeitavam. Mesmo assim, seus precursores foram combativos em sua di-
fusão e transformação, de modo que o primeiro colóquio da
Psicossociologia na França ocorreu já no ano de 1962, em Royaumont, in-
titulado Le Psychosociologue dans la cité: L'école, l'hôpital, l'entreprise, le
syndicat (Viana Braz, 2019). Os trabalhos realizados no bojo da ARIP igual-
mente foram essenciais para a maturação e desenvolvimento dos
psicossociólogos franceses. Nesse contexto, os Sociólogos Clínicos também

21
Órgão francês correlato ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no Brasil.
106 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

foram caracterizados como marginais secantes22, porém, por se expandir


mais tardiamente, parecem ter encontrado menos barreiras institucionais.
Foi somente na década de 1980 que se concretizou a institucionaliza-
ção da Sociologia Clínica, quando Robert Sévigny (Canadá) e Jan Marie
Fritz (Estados Unidos) pela primeira vez criaram um grupo de trabalho
sobre o tema, vinculado à International Sociological Association (ISA)23.
Depois, em 1988, Vincent de Gaulejac, Gilles Houle, Robert Sévigny e Eu-
gène Enriquez organizaram outro grupo de trabalho na Suíça, na ocasião
de um colóquio da Association Internationale des Sociologues de Langue
Française (AISLF). Enfim, o primeiro colóquio em Paris sobre a Sociologia
Clínica ocorreu no ano de 1992, no núcleo do Laboratoire de Changement
Social24 da Université Paris-Diderot VII (Viana Braz, 2019). Esse momento
foi importante, pois reuniu mais de 150 participantes de mais de 15 países,
além de ter originado o livro Sociologies Cliniques (Gaulejac & Roy, 1993).
Tal como a Psicossociologia havia criado a ARIP e o CIRFIP, a articu-
lação entre sociólogos clínicos de diversos países culminou na criação, em
2001, do Institut International de Sociologie Clinique (IISC), sediado em
Paris e que contava com representantes na França, Canadá, Bélgica, Gré-
cia, Rússia, Itália, México, Brasil, Uruguai, Chile e Estados Unidos (Viana
Braz, 2019). Com veículos próprios de formação e sob a matriz temática
inicial dos Romances Familiares e Trajetórias Sociais, baseadas nas análi-
ses sobre histórias de vida, a Sociologia Clínica gradativamente
desenvolveu dispositivos específicos de intervenção, distintos daqueles
adotados pela Psicossociologia. Em 2014, o IISC encerrou suas atividades,
após enfrentar sucessivas crises financeiras, mas já no ano seguinte, em
abril, foi oficialmente fundado o Réseau International de Sociologie

22
Nas palavras de Gaulejac (2001): “O termo secante é tirado da trigonometria. Se tomarmos unicamente como
referência a Sociologia e a Psicanálise, o Sociólogo Clínico ocuparia, em relação aos dois campos disciplinares, um
lugar marginal, pois é refutado tanto num como no outro, embora se encontre justamente na intersessão das duas
retas que cortam os dois campos” (p. 36).
23
Em 1992, foi criado um grupo de pesquisa permanente de Sociologia Clínica na ISA (RC-46).
24
Desde 2014, após fusão com o Centre de Sociologie des Pratiques et des Représentations Politiques, o referido
laboratório passou a se intitular Laboratoire de Changement Social et Politique.
Matheus Viana Braz | 107

Clinique (RISC)25, que atualmente conta com correspondentes na França,


Bélgica, Espanha, Brasil, Chile, Uruguai, Itália, México, Noruega, Argen-
tina, Canadá, Grécia, Haiti, Turquia e Rússia (Nunes & Silva, 2018; Viana
Braz, 2019). Ademais, na França, por meio de parceria realizada com a
editora Desclée de Brouwer, entre os anos de 1996 e 2002, 16 livros inscri-
tos nessa filiação foram publicados (Gaulejac & Roche, 2012). A partir de
2002, a coleção Sociologia Clínica migrou para a editora Érès e, dirigida
por Gaulejac, contabilizou, até o final de setembro de 2020, 41 publicações.
Dentre elas, destaca-se a criação do primeiro Dicionário de Sociologia Clí-
nica (Vandevelde-Rougale & Fugier, 2019). Fruto de um trabalho que
envolveu 131 pesquisadores de diferentes países, vinculados direta ou in-
diretamente ao RISC, esse material contém 245 verbetes que contemplam
conceitos, métodos, problemáticas, objetos e campos de pesquisa de gra-
vitam em torno da Sociologia Clínica.
Os sociólogos clínicos e psicossociólogos, entretanto, não se distanci-
aram. Uma vez que a maior parte dos precursores do movimento francês
se vinculou à Université Paris-Diderot VII, academicamente sua difusão se
deu de forma majoritária mediante o trabalho conjunto de ambos os cam-
pos. Destacam-se na universidade os programas de Master Recherche em
sociologie clinique et psychosociologie, o Master Pro em théories et prati-
ques de l’intervention clinique dans les organisations e, por fim, o
doutorado voltado às linhas de pesquisa Sociologie clinique et psychosoci-
ologie e Psychosociologie et sociologie de l’intervention26. Desde os anos de
1980, pesquisadores de variados países intercambiaram saberes e realiza-
ram seus estudos nessa instituição, que se consolidou como um dos
principais centros de pesquisa e intervenção na abordagem clínica do so-
cial no mundo.
Para compreendermos a segunda perspectiva, relacionada à origem
e desenvolvimento das ferramentas de intervenção da Sociologia Clínica, é
preciso realizar uma incursão pela trajetória socioprofissional de Vincent

25
https://www.sociologie-clinique.org/
26
http://lcsp.univ-paris-diderot.fr/
108 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

de Gaulejac, principal expoente da Sociologia Clínica francesa, mormente


a partir dos anos de 1980.
Aos 20 anos de idade, enquanto estudante e após participar do movi-
mento de maio de 196827 na França, Gaulejac se sensibilizou ainda mais
com as vinculações entre Sociologia, Psicologia e a ação política. Nesse
mesmo ano, quando ingressou no doutorado28 em Sciences des Organisa-
tions na Université Paris-Dauphine, encontrou Max Pagès pela primeira
vez, que na ocasião estava admirado pela orientação rogeriana. Enquanto
discípulo de Pagès, Gaulejac se debruçou sobre a obra de Rogers, mas tam-
bém sobre a Psicanálise freudiana, que descobrira simultaneamente. Em
relato29 sobre sua trajetória profissional, o autor testemunhou que sempre
teve uma relação complicada com a Sociologia. Não concordava com os
movimentos mais ortodoxos, os quais defendiam que o pesquisador não
devia portar julgamentos de valores sobre os fenômenos sociais, pois não
acreditava na possibilidade de uma neutralidade absoluta na relação entre
sujeito e objeto. Enquanto os sociólogos o desencorajavam ao percurso
acadêmico, Gaulejac encontrou na Psicossociologia as provocações que
procurava desde quando iniciou seus estudos na graduação em Sociologia.
No início dos anos de 1970, após Pagès convidar Gaulejac a fazer parte
de uma pesquisa pluridisciplinar voltada à compreensão do poder nas or-
ganizações, seu interesse sobre a temática das histórias de vida se
intensificou. Junto a Michel Bonetti, também membro dessa equipe, em
1975 Gaulejac propôs uma oficina, intitulada Contradições sociais, contra-
dições existenciais, cuja finalidade consistia em trabalhar sobre histórias
de vida a partir de diferentes ópticas analíticas, de modo a compreender

27
O movimento de maio de 1968 traduziu um processo de efervescência nacional que começou com uma onda de
protestos organizada por estudantes e cuja demanda consistia em uma reforma no sistema educacional francês. Esse
movimento se expandiu e passou a agregar greves de trabalhadores que se colocavam contra o governo do presidente
Charles de Gaulle.
28
Ao longo de sua trajetória, Gaulejac realizou três teses de doutorado. Neste estudo, a primeira tese defendida na
Paris Dauphine, seu trabalho foi baseado em uma intervenção psicossociológica que realizou em uma agência de
publicidade.
29
Esses relatos pessoais podem ser encontrados na narrativa escrita por Gaulejac sobre sua história de vida e suas
escolhas profissionais: http://www.vincentdegaulejac.unisite-creation.com/wp-content/uploads/2012/10/Sautori-
ser-%C3%A0-penser.pdf
Matheus Viana Braz | 109

as inter-relações entre determinismos sociais, familiares e inconscientes


(Gaulejac, 1999/2012). Nesse mesmo ano, o sociólogo e historiador Jean
Fraisse se interessou pela abordagem colocada em marcha pelos dois pes-
quisadores e se juntou a eles, sugerindo técnicas para a exploração da
genealogia dos participantes das oficinas. Começava, nesse momento, a se
desenhar um dispositivo metodológico que permitia aos indivíduos com-
preenderem as contradições provenientes das múltiplas determinações
que influenciavam suas escolhas de vida. Após alguns meses, os grupos
Romance familiar e Trajetória social se consolidaram definitivamente
como ferramentas de implicação e pesquisa (Gaulejac, Hanique, & Roche,
2012).
A partir desses grupos, depois nomeados de Seminários de pesquisa
e intervenção, construiu-se um dispositivo de intervenção breve baseado
no cruzamento das narrativas de vida dos participantes, em um duplo mo-
vimento de implicação e análise sobre si, mas também de produção
coletiva de hipóteses analíticas (Gaulejac, 1999/2012). Segundo Gaulejac
(1999/2012), nos anos seguintes o trio de pesquisadores experimentou
múltiplas técnicas, de modo a aperfeiçoar o dispositivo criado: desenhos
projetivos, sociodrama, dança, alternância entre expressões verbais e não
verbais, árvores genealógicas, dentre outros suportes.
Jean Fraisse e Michel Bonetti, após a concretização deste projeto, se-
guiram outras direções em suas trajetórias. Pagès, todavia, se aproximou
novamente de Gaulejac e o encorajou a se aprofundar nesse dispositivo de
intervenção e pesquisa. Enquanto o interesse pela abordagem biográfica
se expandia na Psicologia como na Sociologia francesa30, nos anos de 1980
e 1990 Gaulejac aperfeiçoou essa proposta de ação, realizando grupos com
diferentes temáticas: histórias do dinheiro, romance amoroso e trajetória
social, o sujeito diante da vergonha, romance familiar e trajetória ideoló-
gica, emoções e histórias de vida, violências da conquista etc (Gaulejac,
1999/2012). Os principais livros que publicou nesse período - a saber, a La
névrose de classe (1987/2016), Femmes au singulier (1990), Le coût de

30
A esse respeito, ver Niewiadomski (2012) e Gaulejac e Legrand (2013).
110 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

l’excellence (1991/2007), La lutte des places (1994), Les sources de la honte


(1996/2008) e L’histoire em héritage (1999/2012) -, possuem como ope-
rador metodológico comum a intervenção baseada nos relatos de vida e
trajetórias sociais.
Após a criação do IISC, essa metodologia se difundiu globalmente,
consolidando-se inclusive como vetor de formação em Sociologia Clínica.
Gaulejac e outros pesquisadores realizaram formações em diversos países
onde havia correspondentes do instituto, contabilizando mais de cinco mil
participantes. A esse respeito, destacou o autor:

Elas [as pessoas participantes] vêm de horizontes diversos, mas compartilham


o gosto pela clínica e o desejo de escapar aos enclausuramentos disciplinares
que muitas vezes dominam as teorias e práticas nas ciências do homem e da
sociedade. Suas motivações estão no cruzamento da formação, do desenvolvi-
mento pessoal e da pesquisa. Para compreender por si mesmo, para
aperfeiçoar sua prática profissional e para descobrir novas ferramentas de
análise. Esses três aspectos estão sempre presentes. Na encruzilhada do de-
senvolvimento pessoal, da formação e da pesquisa, a organização desses
seminários permite ir e voltar entre os registros do vivido, da aprendizagem e
da conceituação, ou ainda entre o trabalho sobre a história pessoal, a imple-
mentação de uma abordagem metodológica e a aquisição de ferramentas
teóricas subjacentes (Gaulejac, 1999/2012, p. 1431).

Como esse dispositivo se desenvolveu predominantemente voltado a


adultos, preocupações e angústias relacionadas ao trabalho apareciam com
frequência nos grupos. Enquanto a alternativa para responder ao sofri-
mento no trabalho se limitava a ofertas terapêuticas de intervenções
individualizadas, centradas na pessoa, como psicólogos clínicos, psicana-
listas, médicos e demais áreas afins, os grupos postulados pela Sociologia

31
No original : Elles viennent d’horizonts divers mais partagent toutes le goût pour la clinique et le désir d’échapper
aux cloisonnements disciplinaires qui dominent trop souvent les théories et les pratiques dans les sciences de
l’Homme et de la Société. Leus motivations sont au croisement de la formation, du développement personnel et de
la recherche. Comprendre pour soi, pous approfondir sa pratique professionnelle et pour découvrir de nouveaux
outils d’analyse, ces trois aspects sont toujours présents. Au correfour du développement personneel, de la formation
et de la recherche, l’organisation de ces séminaires permet des va-et-vient entre les registres du vécu, de l’apprentis-
sage et de la conceptualisation, ou enconre entre le travail sur l’histoire personnelle, la mise en œuvre d’une
démarche méthodologique et l’acquisition des outils théoriques qui la sous-tendent.
Matheus Viana Braz | 111

Clínica sedimentavam de forma progressiva um local privilegiado para re-


fletir sobre questões relacionadas ao universo laboral, com o diferencial de
tratá-las fora das organizações e coletivamente. Enfim, esse dispositivo se
revelou promissor metodologicamente, pois ainda que de forma breve, se
colocava contra qualquer tipo de individualização das contradições de
nossa sociedade, sem tampouco aceitar a hegemonia dos determinismos
sociais.
Atualmente, nomeado Grupo de Implicação e Pesquisa (GIP), esse
dispositivo de intervenção é fruto de um quadro metodológico específico,
pautado em acepções teórico-técnicas inspiradas no sociodrama de Mo-
reno, no Teatro-Fórum desenvolvido por Augusto Boal e na análise
dialética, a partir da leitura proposta por Pagès. No quarto capítulo deste
livro, detalharemos a operacionalização desses grupos, bem como seus
respectivos enquadres.
Nos últimos anos, embora alguns psicossociólogos tenham passado a
se servir dessa metodologia, nota-se que ela foi criada nos domínios da
Sociologia Clínica e se difundiu nessa esfera institucional. Ademais, se dis-
cordamos da distinção postulada por Enriquez (1993), no início dos anos
de 1990, é porque a própria Sociologia Clínica se desenvolveu e passou
também a atuar em organizações e grupos fechados. Como veremos nos
próximos capítulos, Grupos de Implicação e Pesquisa passaram a ser rea-
lizados em organizações públicas, privadas e, além disso, outros
dispositivos metodológicos foram criados no bojo do desenvolvimento da
Sociologia Clínica. Da mesma forma, temos inúmeros exemplos (discuti-
remos isso posteriormente) de psicossociólogos que realizam intervenções
em espaços abertos, como periferias, comunidades de bairro, centros ur-
banos e outros grupos. É mister sublinhar, todavia, que na França, como
no Brasil, Chile, México e Uruguai, muitos pesquisadores participam das
redes institucionais tanto da Psicossociologia como da Sociologia Clínica.
Em relação a essa distinção, discorre Gaulejac (2001):

A Sociologia Clínica não se opõe à psicossociologia. Ao contrário, ela tenta pro-


longar no campo sociológico os diferentes elementos do projeto
112 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

“psicossociológico”, tal qual foi desenvolvido, particularmente pelos fundado-


res da Associação de Pesquisa e Intervenção Psicossociológica. Na França e,
sobretudo, nos demais países francófonos, a Sociologia Clínica se situa na fili-
ação a diferentes autores aos quais a psicossociologia se identificou desde a
década de 1950. Por que, então, mudar de nome? (Gaulejac, 2001, p. 35).
[...] O termo psicossociologia sempre me trouxe problemas, uma vez que se
trata menos de trabalhar sobre as relações entre dois campos disciplinares que
sobre as relações entre “o” social – que apresenta dimensões emocionais, sub-
jetivas, afetivas e inconscientes – e “o” psiquismo – enquanto modelado pela
cultura, pela língua, pelo simbólico e pela sociedade -, ao mesmo tempo em
que se trata de introduzir um questionamento mais fenomenológico sobre “o
sujeito” e a sua historicidade, isto é, sobre as capacidades e as resistências que
conduzem os indivíduos e os grupos a produzirem sua história, a quererem
mudar o mundo e a operarem mudanças neles próprios (Gaulejac, 2001, p.
36-37).

Em resumo, se defendemos a distinção entre ambas as abordagens,


não é porque buscamos distanciá-las, nem tampouco localizar a hegemo-
nia de uma sobre a outra. Ao contrário, tentamos demonstrar que em suas
respectivas evoluções há contrastes institucionais que se endereçam a per-
cursos específicos. Por conseguinte, foram efetivamente esses caminhos
traçados pela Sociologia Clínica que permitiram a germinação de metodo-
logias próprias de intervenção e pesquisa. Quando Gaulejac (2001)
enfatiza um questionamento mais fenomenológico sobre o sujeito e sua
historicidade, não entendemos que o autor tenta descaracterizar as moda-
lidades de intervenção da Psicossociologia, mas sim reafirmar a
autenticidade do arcabouço teórico-metodológico da Sociologia Clínica na
análise da dimensão existencial das relações sociais. Ademais, quando nos
debruçamos sobre o desenvolvimento da Sociologia Clínica em outros pa-
íses, para além das filiações francófonas, percebemos que algumas
heranças epistemológicas compartilhadas pela Psicossociologia se revelam
mais difusas ou enfraquecidas, se compararmos ao contexto aqui referido.
Para clarear essa discussão, nos próximos tópicos nos propusemos a ex-
plorar a difusão e ampliação desse campo nos Estados Unidos e Canadá.
Depois, no terceiro capítulo, faremos um breve mapeamento da
Matheus Viana Braz | 113

construção dessa abordagem em alguns países da Europa, Ásia, África e


Oceania. Por fim, esse percurso nos possibilitará elucidar a entrada e de-
senvolvimento do projeto da Sociologia Clínica no Brasil e outros países da
América Latina.

2.3 Sociologia Clínica na América do Norte: o protagonismo dos


Estados Unidos e Canadá

A primeira vez que os termos Sociologia e Clínica apareceram asso-


ciados na língua inglesa data de 1930, ocasião em que o patologista Milton
C. Winternitz propôs a criação de um departamento com esse nome, na
Faculdade de Medicina da Yale University. Outros médicos, no início dos
anos de 1930, como Louis Wirth, Harvey Zorbaugh e Leonard Cottrell, em
seus trabalhos com a clínica pediátrica, propuseram a ampliação de suas
práticas a partir da então denominada Clinical Sociology. Entendia-se que
o sociólogo clínico deveria ocupar um lugar nas equipes terapêuticas, com
vista a lograr três objetivos: ensino do enfoque cultural aos médicos, psi-
cólogos e trabalhadores sociais, realização de pesquisas e prestação de
auxílio a esses profissionais no que dizia respeito aos problemas encontra-
dos pelos pacientes em suas comunidades (Yzaguirre & Castillo Mendoza,
2013). Nos quarenta anos seguintes, esses termos apareceram ainda em
uma quinzena de textos nos Estados Unidos, mas eram utilizados de forma
difusa, genérica e incluíam geralmente propostas de análises de pesquisa
ou intervenções tomadas como práticas separadas (Fritz, 1993). A expres-
são Sociologia Clínica costumava ser utilizada como sinônimo ou algo
similar à Sociologia Aplicada e representava um movimento de institucio-
nalização de uma “nova profissão”, que ia de encontro a Sociologia
tradicional (Austin, 1981).
Foi somente nos anos de 1970 que Jan Marie Fritz32, principal precur-
sora da Sociologia Clínica estadunidense, começou a se interessar pela
abordagem clínica em seus trabalhos. Nessa esteira, a socióloga define a

32
Vinculada atualmente ao Center for Sociological Research da University of Cincinnati, no estado de Ohio.
114 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Sociologia Clínica como “[...] uma criativa, humanista e multidisciplinar


especialização que busca melhorar as situações de vida de indivíduos e co-
letividades”33 (Fritz, 2008, p. 1). Diferentemente da Sociologia Clínica
francesa, que buscou se consolidar como um campo independente de co-
nhecimentos, sem preocupação com o estabelecimento de contornos
identitários, o movimento norte-americano se desvela singular por seu es-
forço em buscar reconhecê-la e, inclusive, localizá-la, como uma
especialidade da Sociologia. Nossa tese encontra alicerces, por exemplo, no
trabalho empreendido pelos membros fundadores da American Sociologi-
cal Association (ASA)34, cuja finalidade era ganhar maior visibilidade
política e institucional em território nacional. Esse movimento se consa-
grou pelo documento redigido no Ministério do Trabalho, intitulado
Occupational Outlook Handbook (Fritz, 1993), no qual houve pela primeira
vez o reconhecimento da Sociologia Clínica como um dos domínios da So-
ciologia norte-americana. Destaca-se que a referida associação, fundada
em 197835, assumiu substancial importância na difusão dessa vertente teó-
rico-metodológica, por meio da elaboração de artigos, boletins, da criação
de revistas36, do financiamento de livros, bem como da realização de coló-
quios anuais e de programas de formação (nessa época nos estados da
Califórnia, Ohio, Wisconsin e Michigan) (Clark, 1990; Fritz, 1993).
Nos anos de 1980, estimulada no núcleo da Clinical Sociology Associ-
ation (à época com mais de 200 membros filiados), a Sociologia Clínica se
expandiu em território norte-americano. Junto a Elizabeth J. Clark, Fritz
publicou dois importantes livros sobre o tema: Clinical Sociology Courses
(Clark & Fritz, 1984) e The Clinical Sociology Resource Book (Fritz & Clark,
1986). Com a mesma relevância, em 1985 foi lançada a obra The Clinical
Sociology Handbook (Fritz, 1985). Frutos de programas de formação

33
No original: […] a creative, humanistic, and multidisciplinary specialization that seeks to improve life situations
for individuals and collectivities.
34
No contemporâneo, essa associação é nomeada Sociological Pratice Association.
35
No encontro anual da American Sociological Association (ASA), realizado em São Francisco.
36
Dentre elas, destaca-se a Clinical Sociology Review, criada em 1982, porém que teve seu último volume publicado
em 1998. Todos os manuscritos da revista se encontram disponíveis no seguinte website: https://digitalcom-
mons.wayne.edu/csr/
Matheus Viana Braz | 115

oferecidos pela associação, esses materiais se tornaram essenciais para a


difusão dessa vertente nos Estados Unidos (Fritz, 1989).
Na década seguinte, a Sociologia Clínica se ampliou e ganhou mais
visibilidade, porém algumas preocupações e entraves eram identificados
por seus principais representantes. Primeiro, havia uma indefinição rela-
cionada às diferenças entre a aplicação da Sociologia e as mudanças
propostas pela abordagem clínica sociológica. Segundo, além de muitos
sociólogos clínicos não publicarem seus trabalhos, parte significativa das
produções existentes nesse domínio era desprezada pelos sociólogos da
época, o que dificultava seu reconhecimento. Terceiro, do ponto de vista
institucional os sociólogos clínicos não se integravam a instâncias decisó-
rias em diferentes associações e universidades de Sociologia. Logo, não
conseguiam responder positivamente à necessidade de se criar mais cur-
sos ou linhas de pesquisa em programas de doutorado sobre esse campo.
E quarto, órgãos de representação profissional de Psicologia e do Trabalho
Social, por exemplo, delimitavam regras que dificultavam a entrada de so-
ciólogos clínicos em instituições públicas (Clark, Fritz, & Rieker, 1990).
Fritz (1993), nesse sentido, defendia que a Sociologia Clínica deveria se
colocar politicamente em favor da interdisciplinaridade e contra esse pro-
tecionismo territorial, que fazia com que algumas práticas ficassem
restritas a algumas disciplinas.
Embora a Sociologia Clínica norte-americana encontre atualmente
importantes convergências com as premissas básicas da corrente francesa
(como a indissociabilidade entre pesquisa e ação, por exemplo), ela parece
ter se preocupado menos com o rompimento das clausuras disciplinares,
tornando-se inclusive mais pragmática e empirista. Isso se dá em razão de
influências epistemológicas e culturais, nesse caso notadamente distintas
das filiações teóricas francesas. Como discorre Fritz (1993; 2008), os so-
ciólogos clínicos dos Estados Unidos também foram influenciados por
Elliott Jaques, pelo interacionismo simbólico da Escola de Chicago e pela
teoria do campo e da mudança de Lewin (como no caso das filiações fran-
cófonas), mas por outro lado se serviram de outras bases, como a teoria
116 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

geral de sistemas (proposta pelo biólogo Ludwig Von Bertalanffy), a teoria


dos conflitos (prefiguradas pelos marxistas Lewis Coser e Ralf Dahren-
dorf), o funcionalismo estrutural e, inclusive, em seu início, o
comportamentalismo (sobretudo a partir da perspectiva de John B. Wat-
son)37. Essas influências ficam perceptíveis quando Fritz discorre que:

[...] os sociólogos clínicos trabalham com sistemas dos clientes para avaliar
situações e evitar, reduzir ou eliminar problemas por meio de uma combina-
ção de análise e intervenção. A análise clínica implica a avaliação crítica de
crenças, políticas ou práticas, com interesse em melhorar a situação. A inter-
venção é baseada na análise contínua; na criação de novos sistemas, bem como
na mudança dos sistemas existentes [...] (Fritz, 2008, p.138).

Nessa mesma linha, de acordo com a definição encontrada no web-


site da Association for Applied and Clinical Sociology40, criada na Eastern
39

Michigan University, em parceria com o College of Southern Nevada, e vol-


tada inclusive à formação e certificação de sociólogos clínicos, a “Sociologia
Aplicada e Clínica engendra a utilização de teorias, métodos e habilidades
sociológicas para coletar e analisar dados e para comunicar as descobertas
relacionadas ao entendimento e resolução dos problemas pragmáticos dos
clientes”41 (grifo nosso). Ora, ao utilizar a noção de sistemas e clientes,
ambos os excertos colocam em evidência suas filiações epistemológicas, o
que por sua vez explica o porquê, durante os primeiros anos de seu desen-
volvimento, a Sociologia Clínica dos Estados Unidos se debruçava
predominantemente sobre impasses relacionados aos domínios da medi-
ação nos trabalhos de intervenção, do funcionamento das organizações e

37
Até onde alcançamos com nossas pesquisas, não observamos quaisquer influências do pensamento de Rogers e
Moreno na Sociologia Clínica dos Estados Unidos.
38
No original: Clinical sociologists work with client systems to assess situations and avoid, reduce, or eliminate
problems through a combination of analysis and intervention. Clinical analysis is the critical assessment of beliefs,
policies, or practices, with an interest in improving the situation. Intervention is based on continuing analysis; it is
the creation of new systems as well as the change of existing systems.
39
https://www.aacsnet.net/mission/what-is-applied-and-clinical-sociology/
40
A Association for Applied and Clinical Sociology é inclusive reconhecida pela American Sociological Association
(ISA). Para mais informações, acessar: https://www.aacsnet.net/
41
No original: Applied sociology is the utilization of sociological theory, methods, and skills to collect and analyze
data and to communicate the findings to understand and resolve pragmatic problems of clients.
Matheus Viana Braz | 117

dos problemas relacionados ao envelhecimento (Fritz, 1993). Posterior-


mente, contudo, embora essas influências tenham permanecido presentes,
esse movimento empreendeu esforços para buscar outros referenciais
(como, por exemplo, Weber, Freud e Mauss) e expandiu também seus
campos de atuação, por meio de intervenções em programas de prevenção
de saúde, em situações de vulnerabilidades sociais, como o aumento da
criminalidade juvenil e a expansão do desemprego, de conflitos culturais,
bem como se inseriu em diversas instituições sociais públicas (Fritz,
2008). Em consonância, embora não haja consenso, alguns pesquisadores
(com destaque para Margareth Hall), das gerações mais recentes da Soci-
ologia Clínica estadunidense passaram também a defender as narrativas
de vida como método basal dessa abordagem (Hall, 2006).
Atualmente, de modo a se diferenciar da Sociologia Aplicada e reafir-
mar sua identidade, a Sociologia Clínica dos Estados Unidos definiu alguns
princípios norteadores de suas práticas. Dentre eles, concebe-se em pri-
meira instância que as abordagens clínicas em Sociologia devem garantir
a harmonia entre o social e o econômico em suas intervenções. Enquanto
um compromisso político, não há problemas em contribuir positivamente
para a economia, contudo isso não pode se dar em detrimento da quali-
dade de vida das pessoas envolvidas. Além disso, a Sociologia Clínica deve
se colocar em favor da proteção de populações vulneráveis, como refugia-
dos, imigrantes, vítimas de guerras e minorias que sofrem cotidianamente
com preconceitos raciais, étnicos e de gênero. Ademais, cumpre à Sociolo-
gia Clínica demonstrar o papel de fatores históricos e socioculturais nos
comportamentos e escolhas dos indivíduos (Fritz, 2008).
É notável o caráter multidisciplinar da Sociologia Clínica dos Estados
Unidos, contudo parece que até os anos de 1980 havia uma predominância
da vertente sociológica sobre os demais campos de conhecimento. Esse
quadro só foi tensionado quando Fritz, Clark e outros pesquisadores inte-
ressados na Sociologia Clínica se aproximaram da Sociologia francófona,
realizada em Québec, no Canadá. Para compreendermos esse processo, é
preciso fazer uma digressão.
118 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

O termo Clinical Sociology surgiu explicitamente no Canadá pela pri-


meira vez em 1950, associado ao trabalho do sociólogo e filósofo canadense
Fernand Dumont. Crítico do conservadorismo do governo de Québec
dessa época, o autor empreendia análises sobre a ideologia do desenvolvi-
mento cultural, no bojo da prefiguração de sua teoria geral da cultura
moderna. A Sociologia Clínica, nesse contexto, de acordo com Dumont
consistia em um método de exploração da especificidade de culturas e ins-
tituições locais (como escolas, igrejas e prefeituras), edificado mediante
análises estatísticas, documentais, questionários e observação partici-
pante. Embora distante da Sociologia Clínica a qual nos referimos hoje, é
importante observar que o autor à época era filiado à Laval University,
onde, na década de 1960, Gilles Houle postulou a realização de análises
sobre histórias de vida, cuja finalidade era compreender as transformações
das estruturas sociais a partir das histórias individuais, selecionadas de
acordo com critérios específicos de pesquisa (Rhéaume, 1993).
A ARIP, na França, por ter ramificações internacionais, mantinha la-
ços com pesquisadores de Québec e, dentre eles, estava Fernand Dumont,
além do psicólogo social Bernard Mailhiot, à época interessado nas contri-
buições lewinianas sobre a dinâmica de grupos. Ao realizar parte de seus
estudos na Laval University, o sociólogo Robert Sévigny conheceu a Psi-
cossociologia francófona por intermédio de Dumont e Mailhiot (Garcia &
Carreteiro, 2001). É importante mencionar que Sévigny já estava interes-
sado nesses trabalhos desde 1950, quando foi aos Estados Unidos, no
National Training Laboratory, para se aprofundar nas proposições de Le-
win. Na década de 1960, já vinculado ao departamento de Sociologia da
Université de Montréal, o sociólogo experimentou algumas intervenções
em grupos, em instituições públicas e privadas. Influenciado sobretudo
pela Sociologia de Mauss, sua identificação com a Psicossociologia crescia
cada vez mais, o que o conduziu a assumir a frente das correspondências
com a ARIP, dedicando-se a difusão internacional das produções francesas
(Rhéaume, 1993).
Matheus Viana Braz | 119

Nos anos de 1960 e 1970, na Laval University como na Université de


Montréal e na Université de Québec à Montréal, proliferaram-se trabalhos
voltados ao entendimento das transformações sociais em perspectivas in-
terdisciplinares. Influenciado pelo interacionismo simbólico oriundo da
Escola de Chicago (em especial Mead e Goffman), por sociólogos europeus
como Mauss, Weber e pela emergente Psicossociologia francesa, um grupo
expressivo de profissionais colocou em marcha pesquisas e intervenções
que se aproximavam de uma perspectiva clínica do social, em detrimento
às metodologias etnográficas anteriormente utilizadas (Sévigny, 1977;
Rhéaume, 2008). Os campos de atuação, nessa época, eram diversos (em-
presas, escolas, comunidades e associações, que abarcavam conflitos
interpessoais, familiares, problemas com a imigração, alcoolismo e po-
breza, para citar alguns), mas se pautavam em uma óptica multidisciplinar
na análise das histórias de vida em contextos grupais. Além de Sévigny,
fizeram parte desse movimento de consolidação da Psicossociologia que-
bequense pesquisadores como Jacques Rhéaume, Gilles Houle, Roger
Tessier, Michelle Roussin, Yvan Tellier, Ives-Saint-Arnaud e André Car-
rière (Rhéaume, 1993).
Nos anos de 1970, Sévigny e Rhéaume conduziram também interven-
ções focadas no desenvolvimento comunitário, em meios urbanos e rurais.
A noção de mediação social, junto a um posicionamento político crítico,
ganhou atenção especial, o que exigiu que os pesquisadores buscassem re-
cursos em outros referenciais, como, por exemplo, as experiências da
organização comunitária empreendidas em Chicago por Saul D. Alinsky e
os trabalhos de alfabetização realizados por Paulo Freire, no Brasil e no
Chile. Além disso, tal como na França, a dualidade entre as perspectivas
de Lewin e de Rogers também se fez presente. Convencionou-se então o
uso da orientação não diretiva para trabalhos mais centrados no plano in-
dividual, enquanto a abordagem lewiniana era utilizada em contextos mais
pragmáticos, nos quais se exigiam a resolução de problemas pela via cole-
tiva, em especial em contextos industriais (Rhéaume, 1982; 1993).
120 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Como a Sociologia Clínica canadense nasceu atrelada à Psicossocio-


logia francesa, diferentemente do caso dos Estados Unidos desde seu início
havia o interesse por problemáticas ligadas ao poder público, à macropo-
lítica e as relações de autoridade, em especial nas organizações e
instituições. A Psicanálise freudiana, assim como as propostas althusseri-
anas à renovação do marxismo, igualmente influenciaram as reflexões
desse movimento em Québec (Sévigny, 1977). Ainda em relação a essa di-
ferença, segundo Gurdin (1986), a Sociologia dos Estados Unidos recebia
montantes expressivos de dinheiro para a realização de suas intervenções,
sobretudo por meio de subvenções governamentais. Mas por que isso
ocorria? Exatamente pelas propostas de seu enquadre, mais voltadas a
uma linguagem prática, com foco em problemas específicos e, acima de
tudo, pela sua preocupação constante em manter relações positivas com
seus subsidiários. Nesse sentido, ainda na perspectiva de Gurdin (1986),
ao receber um recurso financeiro do exército, por exemplo, para a realiza-
ção de um trabalho com seus soldados e cujo objetivo era reduzir o
consumo de álcool ou interromper o uso de outras drogas, os sociólogos
clínicos dos estados-unidos seguiam suas intervenções analisando o con-
texto a partir de problemas sociais específicos (nesse caso, o uso de
drogas). Se de um lado isso lhes conferia maior prestígio profissional e
suportes financeiros, por outro ficavam impedidos de questionar a dinâ-
mica das relações de poder na organização. Nessa conjuntura, limitava-se
o questionamento sobre como a estrutura de autoridade e institucional do
exército estaria ligada à produção das adicções (questão essa basal e im-
prescindível para o campo sociológico francófono).
A noção Sociologia Clínica era utilizada desde os anos de 1960 no Ca-
nadá, porém, ora era atrelada a prática psicossociológica em meios
abertos, ora aparecia vinculada à Sociologia Sociográfica criada por Du-
mont. Foi somente nos anos de 1980 que ela ganhou força, tal como a
conhecemos hoje42. Algumas publicações desse período merecem atenção
especial. Já em 1982, em texto sobre a pesquisa-ação nas ciências sociais,

42
Tanto na fundação do CIRFIP quanto do IISL, o movimento canadense esteve presente ativamente.
Matheus Viana Braz | 121

Rhéaume (1982) defendeu que mais do que uma metodologia de interven-


ção, a proposta lewiniana implicava a transformação de uma nova relação
entre o pesquisador e o grupo, engajado em uma dinâmica de ação. Ao
ampliar o campo de atuação da Sociologia, ao mesmo tempo em que rom-
pia com o discurso científico dominante, abria-se espaço para novas
práticas voltadas à mudança social. Passando pela Psicossociologia fran-
cesa, pela Socioanálise inglesa e pelas intervenções realizadas em Québec,
Rhéaume (1982) reivindicou o desenvolvimento de uma orientação socio-
política43, engajada na transformação social mediante a conjugação de
saberes teóricos, práticos e culturais, sem desprezar os jogos de poder que
incidiam na relação entre o interventor/pesquisador e o meio no qual es-
tava inserido. Houle (1987), nessa esteira, ao discorrer sobre a necessidade
de se integrar o conhecimento do senso comum na compreensão das his-
tórias de vida das pessoas, defendia que o estatuto da análise clínica
deveria prescindir da falsa oposição entre métodos qualitativos e quanti-
tativos, entre explicação e interpretação. Quando se trata de ciências
humanas, segundo o autor, a interpretação não poderia ser evitada, toda-
via atenção deveria ser dada ao tratamento da natureza e premissa das
regras de descrição e de explicação do objeto estudado - e cujo sentido
sempre antecederia a pesquisa e ultrapassaria o pesquisador. Construir
uma metateoria explicativa dos fenômenos sociais que nos circundam,
nessa óptica, seria impossível ou culminaria em explicações artificiais.
Tais propostas estão conectadas com artigo publicado depois, fruto
de uma experiência prática, intitulado Pour une sociologie de l’intervention
en santé mentale. Nessa ocasião, Rhéaume e Sévigny (1988) postularam a
noção de Sociologia Implícita para se remeterem a uma modalidade de co-
nhecimento que funda as práticas dos trabalhadores no campo da saúde
mental, como psicólogos, psiquiatras, enfermeiros e trabalhadores sociais.
Trata-se de um saber mais ou menos organizado sobre o social, que não é
explícito, mas que define as orientações de seus trabalhos. Trazemos um

43
Nesse período, a Sociologia francófona de Québec se distanciava da Sociologia canadense anglófona exatamente
por seu engajamento e propensão para atuar no campo político (Fournier & Houle, 1980).
122 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

exemplo deste tipo de conhecimento. Quando um trabalhador possui uma


preconcepção de que determinado comportamento é anormal ou normal,
nolens volens essa referência influencia suas escolhas, ofertas de cuidado
ou mesmo interfere na sua relação com seus pacientes. Quando conside-
ramos que cada trabalhador provém de uma especialidade acadêmica
distinta, bem como possui um repertório de vida singular, essa encruzi-
lhada de conhecimentos, amiúde difusos e imperceptíveis, produz uma
série de conflitos e fissuras sociais no cotidiano de trabalho. Noções como
adaptação, normal, patológico, saúde, marginalidade, reinserção e comu-
nidade assumem, portanto, significados variados e polissêmicos. A
depender da equipe e da circunstância em que o paciente é acolhido, as
respostas em termos de cuidado seriam, nessa perspectiva, substancial-
mente diferentes. A oposição entre vida pública e vida privada, indivíduo
e sociedade, subjetividade e objetividade, expressaria tão somente uma po-
larização artificial ou produziria a exacerbação de saberes hegemônicos,
oriundos de relações de poder estabelecidas. Enfim, se nos debruçamos
sobre essas discussões, propostas por Rhéaume e Sévigny (1992), é porque
identificamos aqui uma influência importante do movimento canadense
na construção da abordagem sócio-clínica. Conforme exploraremos no úl-
timo capítulo deste livro, essas problematizações estão estreitamente
relacionadas ao trabalho de implicação, basal para as pesquisas e interven-
ções em Sociologia Clínica.
Malgrado suas diferenças, a aproximação dos movimentos dos Esta-
dos Unidos e Canadá foi concretizada quando, em 1982, Sévigny e Fritz
pela primeira vez criaram um grupo de trabalho sobre a Sociologia Clínica,
em congresso organizado pela International Sociological Association (ISA),
realizado no México. Dez anos depois, o comitê de pesquisa da Sociologia
Clínica (RC-46) na referida associação já era reconhecido formalmente e
contava com mais de 150 membros de 27 países distintos (Fritz, 1993). Em
janeiro de 1990, foi então realizado o primeiro colóquio dedicado a esse
campo de estudos em Québec, ocasião que contou com a participação de
Matheus Viana Braz | 123

pesquisadores44 de variadas nacionalidades, inclusive da América Latina.


Discutiu-se uma heterogeneidade de questões: relações entre trabalho e
organização, saúde mental e terapia, problemas sociais, histórias de vida e
a abordagem biográfica, possibilidades de intervenção e entraves metodo-
lógicos (Rhéaume, 1993). O tema central do encontro, A análise clínica em
ciências humanas, deu origem a uma obra coletiva homônima, organizada
por Enriquez, Houle, Rhéaume & Sévigny (1993).
Sévigny e Fritz não somente foram figuras fundamentais para a cri-
ação do eixo da Sociologia Clínica na ISA, como também assumiram
protagonismo na difusão desse campo de conhecimento nos Estados Uni-
dos, Canadá, África do Sul e China (conforme veremos adiante). Ao longo
dos últimos 38 anos, a ISA se transformou em uma das principais institui-
ções cuja finalidade é articular uma rede internacional de pesquisadores
comprometidos em aperfeiçoar a abordagem da Sociologia Clínica em di-
ferentes estratos e enquadres sociais. A heterogeneidade e alcance deste
grupo (RC4645) na associação podem ser observadas pela composição de
sua gestão atual (2018-2022), que conta com a seguinte organização46:

➢ Presidente:
Emma PORIO (Ateneo de Manila University, Filipinas) – maio de 2019 – Atual
Jan Marie FRITZ (University of Cincinnati, Estados Unidos) – janeiro de 2018 –
abril de 201947
➢ Vice-presidentes:
Relações Internacionais: Jacques RHÉAUME (Université du Québec à Montréal,
Canadá)
Desenvolvimento: Sharon Lindhorst EVERHARDT (Troy University, Estados
Unidos)
Programas: Tina UYS (University of Johannesburg, África do Sul)
➢ Secretário-tesoureiro:
Weizhen DONG (University of Waterloo, Canadá)

44
Participaram do colóquio mais de 120 pessoas, dentre elas sociólogos, psicólogos, psicanalistas, assistentes sociais,
profissionais da saúde, da educação e gestores de empresas (Rhéaume, 1993).
45
O estatuto do grupo pode ser lido no seguinte website: https://www.isa-sociology.org/uploads/files/RC46-
statutes-2013-approved.pdf
46
Mais informações podem ser encontradas no website: https://clinical-sociology.org/
47
Fritz saiu da presidência da associação e passou a fazer parte da Assessoria Presidencial ao Conselho Executivo.
124 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

➢ Membros Adicionais do Conselho Executivo:


Emma PORIO (Ateneo de Manila University, Filipinas) -Sociólogos Juniores –
Atividades e Divulgação
Mariam SEEDAT KHAN (University of KwaZulu-Natal, África do Sul) - Perfis
dos membros e Conexões
Melodye Gaye LEHNERER (College of Southern Nevada, Estados Unidos) – Cer-
tificações e Carreiras
Suava ZBIERSKI-SALAMEH (The Haverford Institute of Public Sociology, Esta-
dos Unidos) – Representações regionais
Natalia EROKHOVA (RUDN University, Rússia) – Relações Internacionais: sele-
ção de projetos
➢ Assessoria Presidencial ao Conselho Executivo:
Vincent DE GAULEJAC (Réseau Internacional de Sociologie Clinique, França)
Robert SÉVIGNY (Université de Montréal, Canadá)
➢ Representantes Regionais:
Coordenação: Suava ZBIERSKI-SALAMEH (The Haverford Institute of Public So-
ciology, Estados Unidos)
Nagaraju GUNDEMEDA (University of Hyderabad, Índia)
Fernando DE YZAGUIRRE (Universidad del Atlántico, Colômbia)
Melati Puspa WAN (SEGi University, Malásia)
Isabelle RUELLAND (Université du Québec à Montréal, Canadá)
Anastasia-Valentine RIGAS (University of Crete, Grécia)
Anna DOMARADZKA (University of Warsaw, Polônia)
Kathrin BOGNER (Johannes Gutenberg University Mainz, Alemanha)
Gianluca PISCITELLI (Diretor Editorial do Quaderni di Sociologia Clinica, Itália)
Anthony KAZIBONI (University of Johannesburg, África do Sul)
Johanna O. ZULUETA (Soka University, Japão)

Em síntese, na América do Norte, embora a Sociologia Clínica se po-


sicione como uma abordagem pluridisciplinar e resguardadas suas
distinções, parece que em maior ou menor grau os esforços empreendidos
pelos movimentos canadense e estadunidense se voltaram historicamente
à tentativa de assentar e caracterizar a Sociologia Clínica como uma espe-
cialidade da Sociologia. Institucionalmente, esse percurso se revela
coerente e os frutos colhidos têm sido positivos. Por exemplo, a própria
inserção e expansão da Sociologia Clínica na ISA é fruto dessa corrente,
que tomou para si a expansão anglófona e, consequentemente, mais
Matheus Viana Braz | 125

globalizada da abordagem sócio-clínica. Não à toa, os trabalhos realizados


na Oceania, na África e em países asiáticos seguem uma linha metodoló-
gica mais próxima dessa vertente. Na América Latina, em contraposição,
a Sociologia Clínica já nasceu vinculada institucionalmente a cursos de Psi-
cologia e, por isso, dialogou predominantemente com os movimentos
franceses. No capítulo seguinte, reconhecendo nossas limitações e alcance,
buscaremos fazer um sobrevoo pelas principais produções relacionadas a
esse campo em alguns países da Europa, Ásia, África e Oceania. Esse per-
curso nos dará mais propriedade para compreendermos as características
do projeto da Sociologia Clínica na América Latina, com destaque ao Brasil.
3

Desenvolvimento da Sociologia Clínica no mundo:


proposição de um mapeamento breve

A elaboração de um diagnóstico sobre o estado da arte da Sociologia


Clínica na Europa, Ásia, África e Oceania poderia ser objeto de outro livro.
Diante da complexidade desse intento, temos a humildade de reconhecer
que essa não é nossa pretensão. Ao contrário, o objetivo aqui colocado se
volta a um breve mapeamento, de autores que consideramos centrais, os
quais permitem o delineamento de contornos institucionais que refletem
características e percursos específicos da Sociologia Clínica em diversos
países. Mais ainda, ao final deste tópico pretendemos responder a algumas
interrogações: a Sociologia Clínica, em âmbito global, ainda encontra cor-
respondentes e denominadores comuns em relação a seu arcabouço
teórico-metodológico ou sua expansão representou um movimento difuso,
que a tornou fragmentada ao longo dos últimos 40 anos? Podemos afirmar
que há uma unicidade nas produções em Sociologia Clínica ou as divergên-
cias entre as vertentes anglófonas e francófonas ainda se revelam
presentes?
Metodologicamente, optamos por seguir um fio condutor institucio-
nal, mediante uma revisão narrativa. Ou seja, fizemos uma imersão pelas
principais publicações relacionadas aos membros do RC-46 da ISA e do
RISC1. Além disso, nos guiamos por conteúdos presentes em documentos
dessas redes, como newsletters, anais de congressos e outros instrumentos
informativos. Parte significativa desses materiais pode ser encontrada nos

1
As duas principais redes institucionais sobre a Sociologia Clínica no mundo.
Matheus Viana Braz | 127

respectivos websites dessas associações, conforme já identificamos nos tó-


picos precedentes. Há, ainda, uma pequena parcela de documentos que é
restrita ao público geral, mas que tivemos acesso por sermos também
membros do RC-46 da ISA e do RISC.

3.1 Sociologia Clínica na Europa, Ásia, África e Oceania

Um dos precursores da Sociologia Clínica na Bélgica foi Francis Loicq,


vinculado ao Institut Cardjin, em Louvain-la-Neuve. O sociólogo foi mem-
bro do conselho do RC-46 da ISA já em sua primeira gestão2, assim como
participou do primeiro colóquio de Sociologia Clínica realizado em Paris
no ano de 1992. Embora atualmente já esteja aposentado, dedicou sua vida
profissional a desenvolver a abordagem biográfica (em especial em insti-
tuições educacionais), pois enxergava nela uma fonte profícua para a
exploração das interações entre conhecimento de si e do social. Com o re-
lato de vida, “[...] o social se torna matéria humana viva, e não somente
regularidade abstrata, exterior aos atores”3, enfatizava o autor (Loicq,
1987, p. 15). Em suas produções (Loicq, 1987; 1998; Halleux & Loicq, 2013),
a partir de intervenções sobre relatos de vida, Loicq dialogava constante-
mente com a Sociologia Clínica francófona, inclusive se servindo de seu
arcabouço teórico-metodológico. Decerto isso se deu também por sua pro-
ximidade com o Psicossociólogo belga Michel Legrand, bastante envolvido
com as perspectivas biográficas e fundador da Association pour l'approche,
la recherche biographique et la réappropriation de son histoire (ARBRH),
em 1988 (Legrand, 1999; Gaulejac & Legrand, 2013). Além disso, as teses
iniciais do psicossociólogo Marcel Bolle De Bal (2001) relacionadas à cria-
ção de uma Sociologia Existencial foram também fonte de influência ao
desenvolvimento da Sociologia Clínica no país.

2
O histórico completo dos membros dos conselhos do RC-46 da ISA pode ser encontrado no seguinte link: https://cli-
nical-sociology.org/about/past-board-members/
3
No original: [...] le social devient matière humaine vivante, et pas seulement régularité abstraite, extérieure aux
acteurs.
128 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Também no campo da abordagem clínica, John Cultiaux (que fora


membro do conselho do RC-46 da ISA na gestão de 2006-2010) organizou
uma obra coletiva, junto a Thomas Périlleux, publicada na coleção Socio-
logie Clinique da editora Érès, intitulada Destins politiques de la souffrance
(Périlleux & Cultiaux, 2009) e cuja delimitação consistia em explorar as
dimensões psíquicas e sociais do sofrimento em diferentes enquadres po-
líticos e institucionais.
Mais recentemente, pesquisadores de distintas áreas de atuação na
Bélgica têm se aproximado da Sociologia Clínica. Sublinhamos, por exem-
plo, a presença de alguns belgas no colóquio fundador do RISC, em 2015:
Jean-François Leroy (Université de Liège), Harmony Glinne-Demaret
(Université catholique de Louvain), Célia Kestemon (Université de Liège).
Ênfase especial deve ser dada a duas outras figuras. Fundamentada na So-
ciologia Clínica e em parceria com o RISC, Isabelle Seret criou o projeto
Rien à faire, Rien à perdre4 (RAFRAP), voltado a jovens (e seus familiares)
envolvidos na radicalização islâmica. Os frutos e resultados desse trabalho
foram publicados no livro Mon enfant se radicalise: des familles de dijahis-
tes et des jeunes témoignent (Gaulejac & Seret, 2018), no qual Gaulejac e
Seret propõem que a prevenção da radicalização, para além de suas con-
trovérsias deontológicas, deve contemplar um trabalho clínico com os
jihadistas que buscam se “reconverter”, o acompanhamento de suas famí-
lias, assim como uma política de luta contra as diversas formas de estigmas
e discriminação. Igualmente, Jan Vandewattyne, vinculado à Université de
Mons-UMONS, tem desempenhado importante papel no desenvolvimento
da Sociologia Clínica na Bélgica. Em 2019, o autor tomou para si a inicia-
tiva da reedição da obra O poder das organizações, realizando inclusive
uma pesquisa suplementar, que entrou também nessa nova edição (Pagés
et al., 1979/20195), com vista a analisar as mudanças na IBM, 40 anos de-
pois da publicação original. Por fim, cabe também destacar que de modo
geral as referências ao movimento da sócio-clínica anglófona não

4
Para mais informações sobre o projeto, consultar o seguinte link: http://www.dgde.cfwb.be/index.php?id=7547
5
https://www.sociologie-clinique.org/lemprise-de-lorganisation-7e-edition/
Matheus Viana Braz | 129

aparecem na produção belga, talvez em função de sua maior aproximação


com os franceses, sobretudo geograficamente.
Em Genebra, na Suíça, Myriam Christinat, estimulada por Roland Le-
febvre, se aprofundou em pesquisas sobre as narrativas de vida,
particularmente em empresas, o que a levou ao encontro da Psicossocio-
logia e da Sociologia Clínica. Depois, junto a Yohanan Jean-Baptiste
Lefèbvre, passou a incluir em suas intervenções técnicas do trabalho tea-
tral, sobretudo aquelas propostas por Augusto Boal (Cristinat, Lefebvre, &
Lefebvre, 2013). Nesse sentido, os diálogos entre os grupos franceses, suí-
ços e belgas, centrados na abordagem biográfica, foram determinantes
para o aperfeiçoamento dos dispositivos de pesquisa e intervenção em So-
ciologia Clínica.
Mélinée Schindler, também em Genebra, ao longo dos últimos anos
tem desenvolvido estudos sobre a clínica narrativa. Tomando como base a
experiência que teve com um Grupo de Implicação e Pesquisa conduzido
por Niewiadomski, em torno do tema Histórias de vida e Saúde, em traba-
lho recente (Schindler, 2018) a autora explorou as fronteiras entre a
proposta de formação da Sociologia Clínica e seus efeitos terapêuticos, isto
é, as fronteiras entre as abordagens biográficas e as psicoterapêuticas. As-
sertivamente e em concordância com Niewiadomski (2012), Schindler
defendeu que não compete à Sociologia entrar neste campo, pois não está
em seu alcance a oferta de uma cura analítica. Consideramos pertinente
esse estudo, pois nele são tecidas críticas agudas ao projeto pluridisciplinar
da abordagem clínica em Sociologia, especialmente no que diz respeito à
dimensão do trabalho emocional empreendido nos grupos.
Presente na fundação do RISC e também membro do CIRFIP, o psi-
cossociólogo Daniel Lambelet, professor na Haute école de travail social et
de la santé, em Lausana, também dialogou com o campo da Sociologia Clí-
nica nos últimos anos (Lambelet, 2009). Na mesma cidade, o sociólogo
Christophe Pittet, correspondente internacional do RISC na Suíça, fundou
o Pôle Autonome en Recherche Sociale (PARS), associação que tem por ob-
jetivo promover projetos de pesquisa, formação e práticas profissionais
130 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

relacionadas ao campo da assistência e trabalho social, a partir das pro-


postas da Sociologia Clínica francófona6.
Na Grécia, o desenvolvimento da Sociologia Clínica ficou primeiro a
cargo de Klimis Navridis, professor na University of Athens. Membro do
primeiro comitê do RC-46 da ISA, até 1994, o psicólogo esteve também
presente no colóquio sobre o tema realizado em Paris, em 1992. Enfren-
tando resistências institucionais e na contracorrente da expansão das
abordagens empiristas e estatísticas na Grécia, nos anos de 1980, Navridis
estabeleceu parcerias com sociólogos, psicólogos, psicossociólogos e antro-
pólogos, para construir propostas de pesquisa-ação interdisciplinares,
unindo os campos da Sociologia e da Psicologia. Essas aproximações abar-
caram objetos variados, a partir da abordagem biográfica, como a
integração econômica e social do mundo rural da sociedade grega, proble-
mas relacionados à imigração, às identidades sexuais e ao impacto da
música pop no país (Navridis, 1993). Depois, em 1998 Navridis reuniu 25
pesquisadores interessados nessa abordagem e fundou a Greek Associa-
tion of Clinical Social Research (GACSR) (Rigas & Papadaki, 2008).
Anastasia-Valentine Rigas, vinculada à University of Crete, também
figura como uma das protagonistas da Sociologia Clínica grega. Enquanto
pesquisadora do GACSR foi membra do conselho do RC-46 da ISA de 1999
a 2002. Dentre os trabalhos desenvolvidos pela psicóloga desde 1991, en-
fatizamos suas intervenções com diversos grupos minoritários em
instituições sociais e com usuários abusivos de drogas (Rigas & Papadaki,
2008; Rigas & Triantafyllidou, 2008). É curioso também notar que a So-
ciologia Clínica na Grécia foi notadamente impulsionada por psicólogos e,
embora essa corrente produza materiais acadêmicos tanto na língua in-
glesa quanto na francesa, tendem a priorizar as fontes francófonas,
dialogando de forma frequente com a Psicanálise e com pesquisadores in-
teressados nas narrativas de vida.

6
Para consultar as recentes publicações do autor e de seus colaboradores, indicamos o website da associação:
http://www.pars.education/web/page/publications
Matheus Viana Braz | 131

Na Rússia europeia, no início dos anos de 1990, Igor Masalkov, filiado


à Lomonosov Moscow State University, em Moscou, já intercambiava ex-
periências com as correntes francófonas. Desde a derrocada da União
Soviética até a consolidação da economia de mercado russa, o sociólogo
enfrentou inúmeras barreiras no processo de difusão da Sociologia Clínica.
Enquanto professor, interventor em organizações e se servindo da Socio-
logia Clínica francófona7 (inclusive dos Grupos de Implicação e Pesquisa),
Masalkov se debruçou sobre variados objetos em suas pesquisas e inter-
venções: a gestão social nas usinas soviéticas, a força dos símbolos
socialistas na esfera do trabalho, as identidades da população, a pobreza
do país e a emergência de uma nova classe de empresários. Além de criar
uma rede institucional sobre a abordagem clínica, o autor foi responsável
pela tradução de alguns livros franceses da Sociologia Clínica para o russo8
(Masalkov, 1993; 2009; 2014). Masalkov, nos últimos cinco anos, publicou
ainda quatro artigos em coautoria com Gaulejac em uma revista denomi-
nada Desenvolvimento da Personalidade, porém não conseguimos acessá-
los, pois todos estão escritos em russo.
Na Itália, Michelina Tosi, na Universitá “S.Pio” V, foi vice-presidente
do RC-46 da ISA de 1994 a 1998. Junto a Massimo Corsale, foi responsável
pela inserção dos primeiros seminários sobre a Sociologia Clínica no país.
Ambos os pesquisadores enfrentaram entraves importantes nesse per-
curso, uma vez que a Sociologia em território italiano hegemonicamente
era concebida como um campo de conhecimentos restrito ao domínio das
produções teóricas, sem qualquer relação com atividades práticas. Focados
nos anos de 1990 em trabalhos no campo da saúde médico-sanitária, pos-
teriormente esse movimento cresceu, de modo que os trabalhadores
interessados na Sociologia Clínica (de inspiração francófona) passaram a
intervir em instituições educacionais, sociais e em empresas públicas e pri-
vadas, a partir da metodologia das narrativas de vida (Gargano, 2008).

7
Aparecem também, na construção da Sociologia Clínica russa, as influências da psicanálise de grupos, do socio-
drama de Moreno, bem como de Lewin e Rogers.
8
Os congressos, programas de formação e demais atividades organizadas pelo autor podem ser encontradas em:
https://www.sociologie-clinique.org/russie/
132 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Além disso, em 2013, no seio do Laboratorio di Sociologia Pratica: Appli-


cata e Clinica, foi criado o Quaderni di Sociologia Clinica, periódico dirigido
por Gianluca Piscitelli e que já conta com 20 volumes publicados9.
Em relação à Alemanha, nossas buscas foram inconclusivas. Embora
Kathrin Bogner (atualmente pesquisadora na Johannes Gutenberg Univer-
sity Mainz) faça parte da gestão atual do RC-46 da ISA e seja designada
como representante regional da associação, não encontramos publicações
de sua autoria fundamentadas nos referenciais da Sociologia Clínica10. Nos
arquivos da ISA, foram identificados resumos11 os quais indicam que
Kathrin apresentou dois trabalhos no XIX Congresso Mundial de Sociolo-
gia organizado pela ISA em Toronto, no ano de 2018. O primeiro abarca a
análise de um programa focado em reinserção profissional para professo-
res em uma cidade alemã e o segundo é voltado à implantação de uma
pesquisa survey online para avaliação de riscos ocupacionais de professo-
ras grávidas em uma escola no país. Outras publicações, de autoria e
coautoria de Kathrin (Bogner, Pforr, & Menold, 2018; Menold, Wolf, &
Bogner, 2018), são voltadas à análise quantitativa dos efeitos da organiza-
ção visual de escalas de pesquisa tipo survey, sem quaisquer
correspondências com a abordagem clínica. Ademais, tampouco encontra-
mos trabalhos de outros pesquisadores relacionados à Sociologia Clínica
alemã, o que indica que possivelmente se trata de um campo de conheci-
mento ainda bastante incipiente no país.
Quem primeiro se interessou pela abordagem clínica em Sociologia
na Espanha foi o sociólogo José Ramón Torregrosa12, quando já estava no
fim de sua carreira profissional. Apesar disso, resolveu fazer um intercâm-
bio acadêmico em 2004, na Université Paris-Diderot VII, ocasião em que
teve a oportunidade de conhecer e trabalhar com Jacqueline Barus-Michel.

9
Para mais informações sobre as publicações na língua italiana, consultar os seguintes domínios: https://www.so-
ciologie-clinique.org/italia/ / https://rc46sociology.files.wordpress.com/2018/05/clinical-sociology-basic-readings-
and-websites-august-2017.pdf / https://sociologiaclinica.it/le-pubblicazioni/
10
Não tivemos acesso aos seus trabalhos publicados na língua alemã.
11
Podem ser encontrados em: https://www.isa-sociology.org/en/conferences/world-congress/toronto-2018/
12
Torregrosa foi quem introduziu a Psicologia Social na Espanha, quando trabalhava na Facultad de Ciencias Políticas
y Sociología de la Universidad Complutense de Madrid.
Matheus Viana Braz | 133

Após seu retorno, junto a Lorenzo Navarrete, Torregrosa organizou o pri-


meiro curso espanhol sobre a Sociologia Clínica, com a presença de Barus-
Michel e Gaulejac. A missão de desenvolver essa abordagem em território
nacional, contudo, ficou a cargo do colombiano Fernando de Yzaguirre,
que residia em Madrid e trabalhava com Torregosa. Após concluir o mes-
trado em Sociologia Clínica em Paris e seu doutorado em Madrid, em 2013
Izaguirre criou na Universidad Complutense de Madrid uma associação
denominada Comisión de Sociología Clínica do Colegio Nacional de Soció-
logos. Aproximando-se também do RC-46 da ISA, foi mediante esta
entidade que se iniciou a difusão da Sociologia Clínica no país (Yzaguirre
& Castillo Mendoza, 2013). Destaca-se que em 2014, na referida universi-
dade, já eram oferecidos cursos e formações especializadas na abordagem
clínica. Embora esteja em processo de germinação, a referida comissão
criou um Instituto de Sociologia Clínica13, que atualmente já conta com um
número expressivo de pesquisadores14 interessados na pesquisa-interven-
ção no âmbito das organizações, da prevenção de riscos psicossociais e
vulnerabilidades sociais15.
Na Noruega, trabalhos fundamentados na Sociologia Clínica surgi-
ram somente após os anos 2000. Gwynyth Jones Overland, coordenadora
dos representantes regionais do RC-46 da ISA entre 2010 e 2014, assumiu
protagonismo nessa cena. Atualmente vinculada ao Regional Trauma Cen-
tre and the Clinic for Psychosomatics no Sorlandet Hospital, a socióloga
desde os anos de 1990 se dedica às intervenções e pesquisas com refugia-
dos. Na abordagem clínica em Sociologia, parece ter encontrado as
respostas que buscava para romper as fronteiras disciplinares entre Psico-
logia e Sociologia. Não por coincidência, reuniu pesquisadores escoceses,
holandeses, marroquinos, franceses, noruegueses, norte-americanos e or-
ganizou uma obra sobre o tema, intitulada Sociology at the Frontiers of

13
Para mais informações, consultar o website do instituto: http://www.socioclinica.com/iscle/
14
Dentre eles, destacam-se as correspondentes internacionais do RISC Matilde Fernandez-Cid, Alicia Garrido e Isabel
Cerdeira Gutierrez.
15
Essas informações foram obtidas nas atas do colóquio de fundação do RISC, disponível em: https://www.sociolo-
gie-clinique.org/actes-du-colloque-fondateur-du-reseau-international-de-sociologie-clinique-2/
134 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Psychology (Overland, 2006). Overland publicou também outro livro, Post


Traumatic Survival: The Lessons of Cambodian Resilience (2013), fruto de
pesquisas realizadas ao longo de sua trajetória profissional com refugiados
cambojanos sobreviventes. Nesta obra, a autora propõe a ampliação da
noção de resiliência, para além de sua dimensão psicológica e reivindica a
necessidade de compreender a complexidade das vivências dessa popula-
ção, rompendo com os estigmas em torno da questão dos refugiados. A
abordagem clínica da vertente anglófona é presente em muitas reflexões
da socióloga, contudo não há referências à Sociologia Clínica francófona, o
que justifica, talvez, o porquê a pesquisadora optou pelo uso de metodolo-
gias como a observação participante e as entrevistas semidirigidas, em
detrimento das abordagens biográficas.
Representante regional do RC-46 da ISA entre os anos de 2010 e
2014, Hans Petter Sand é outro defensor da abordagem clínica na Noruega.
Nesse período, o autor publicou um artigo (Sand, 2013) no qual teceu crí-
ticas agudas às análises marxistas feitas por sociólogos noruegueses em
relação aos conflitos entre as gangues no país. Para o autor, esses pesqui-
sadores se utilizavam de uma perspectiva hegemônica cultural para criar
um sistema de valores artificial, que traduzia uma visão de mundo deter-
minada contraditoriamente por uma classe dominante e que, portanto,
não correspondia com a realidade (pela própria posição ocupada pelos pes-
quisadores). Tocando inclusive no tema do racismo entre classes sociais,
Sand postulou que para evitar uma leitura reducionista sobre os conflitos
entre gangues, isto é, para lograr uma visão adequada desse complexo pro-
blema, pesquisas e intervenções a partir da Sociologia Clínica deveriam ser
colocadas em marcha, mediante uma aproximação à realidade da popula-
ção que vivenciava os embates entre as gangues.
Igualmente recente parece ter sido o surgimento da Sociologia Clínica
na Polônia. Nesse país, vinculados desde 2018 ao RC-46 da ISA, figuram
os pesquisadores Suava Zbierski-Salameh (Haverford Institute of Public
Sociology), Anna Domaradzka (University of Warsaw) e Zbigniew Woz-
niak (Adam Mickiewicz University). Todavia, não temos propriedades
Matheus Viana Braz | 135

para discorrer sobre esse movimento, pois não encontramos publicações


desses autores relacionadas à abordagem clínica. Aparentemente, Zbi-
erski-Salameh toca nessa questão em seu livro, nomeado Bitter Harvest:
Antecedents and Consequences of Property Reforms in Post-Socialist Po-
land, mas não conseguimos acesso à obra.
Por fim, na fronteira da Europa e Ásia, a Sociologia Clínica turca
emergiu com pesquisadores vinculados à Galatasaray University, em Is-
tambul. Esse movimento se intensificou em 201516, depois que a psicóloga
Iclâl Incioglu realizou seu doutorado na Université Paris-Diderot VII, sob
orientação de Gaulejac, com pesquisa sobre o processo de transmissão in-
tergeracional de histórias traumáticas, a partir das narrativas de vida
(Incioglu, 2013). Não obstante as dificuldades relacionadas à restrição das
liberdades intelectuais impostas pelo regime totalitário de Tayyip Er-
doğan, psicólogos e sociólogos turcos têm se empenhado para difundir a
abordagem clínica enquanto alternativa de ação ao trabalho de superação
das mazelas sociais presentes no país (Incioglu, 2013). Além de traduzir
para o turco algumas obras da Sociologia Clínica francesa, Incioglu, junto
a Verda Irtis e Metin Cevizci (também correspondentes internacionais do
RISC), desenvolveram pesquisas e intervenções com refugiados na Tur-
quia, em torno fundamentalmente de questões relacionadas à memória
familiar, violência política e transmissão traumática geracional17.
Para sair da Europa e chegar à Ásia, é preciso primeiro retomar o
percurso profissional de Sévigny. Já nos anos de 1980, o sociólogo cana-
dense começou a estudar o mandarim sem qualquer compromisso
profissional. Em 1988, enquanto realizava um ano sabático em Nova Ior-
que, um de seus professores chineses o colocou em contato com
pesquisadores em Beijing, que o convidaram para fazer uma conferência
sobre a abordagem clínica para estudantes de 75 universidades na China.
Interessado pelo campo da saúde mental, essa aproximação culminou na

16
Para acompanhar os congressos e programas de formação da Sociologia Clínica turca, indicamos o link:
https://www.sociologie-clinique.org/turkiye/
17
Sobretudo em relação ao Golpe de Estado militar na Turquia, em 1980 (Incioglu, 2013).
136 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

criação de um projeto, em 1994, subvencionado pelo governo canadense,


cuja proposta consistia em realizar um trabalho de pesquisa e intervenção
sobre a experiência da esquizofrenia com pacientes de hospitais psiquiá-
tricos em Beijing. Nos vinte anos seguintes, focado em propostas de
reabilitação psicossocial dessa população, as pesquisas do autor gravita-
ram em torno da compreensão sobre como as vivências da esquizofrenia
eram atravessadas pelas mudanças políticas, sociais e culturais colocadas
em marcha desde os anos de 1980 na China urbana (Sévigny, 2004; 2009;
Sévigny & Loignon, 2005; Tang et al., 2007; Sévigny, Chen, & Chen, 2009;
Sévigny, Sheying, & Chen, 2010). Com efeito, sobretudo no domínio da
Saúde Mental, pesquisadores filiados a University of Science and Techno-
logy seguiram os trabalhos iniciados pelo sociólogo francês e, atualmente,
desenvolvem pesquisas a partir da Sociologia Clínica. Esse movimento, po-
rém, não possui representantes no RC-46 da ISA e tampouco no RISC, de
modo que os diálogos com ambas às redes ainda permanecem centrados
em Sévigny.
No Japão, em função da rigidez de seu sistema universitário e da so-
brevalorização de uma produção acadêmica utilitária, positivista e
funcionalista, a Sociologia Clínica ainda é incipiente. Segundo Yuji Nogushi
(2008), integrante do conselho do RC-46 da ISA e mais próximo às pro-
duções estadunidenses, o movimento japonês ainda não se consolidou, de
modo que se confunde com modalidades de Sociologia Aplicada. Logo, em-
bora alguns sociólogos utilizem o termo Sociologia Clínica, é comum que
suas pesquisas não sejam correspondentes com as fundamentações teó-
rico-práticas desse campo. Afora Noguchi (filiado a Tokyo Gakugei
University), Johanna O. Zulueta (Soka University) tem empreendido es-
forços no desenvolvimento da Sociologia Clínica no país18. Na última
década, a autora realizou pesquisas com os métodos das histórias de vida
(a partir das vertentes anglófonas) para compreender a realidade de mi-
grantes. Destacamos, aqui, dois de seus trabalhos. No primeiro, Zulueta

18
Bibliografias no idioma japonês relativas à Sociologia Clínica podem ser encontradas em: https://rc46sociology.fi-
les.wordpress.com/2018/05/clinical-sociology-basic-readings-and-websites-august-2017.pdf
Matheus Viana Braz | 137

(2012), se debruçou sobre as ambivalências identitárias, conflitos de per-


tencimento e preconceitos vivenciados por filhos de filipinos nascidos no
Japão. No segundo (Zulueta, 2016), lançou um olhar sócio-clínico sobre as
percepções de morte, família, lar e pertença social entre mulheres idosas
migrantes na cidade de Okinawa. É singular neste trabalho a análise que
faz a autora sobre as influências, no registro identitário, da construção so-
cial do próprio processo do morrer, forjado por crenças culturais, étnicas
e de gênero, como se a morte representasse em última instância um re-
torno à terra natal para essa população.
Quem assumiu as principais responsabilidades de levar a abordagem
clínica para as Filipinas foi a atual presidente do RC-46 da ISA, Emma Po-
rio, filiada à Ateneo de Manila University, no Department of Sociology and
Anthropology and Department of Environmental Science. A universidade
atualmente é um importante centro promotor de pesquisas-ações em di-
ferentes contextos sociais. Porio, nesse sentido, crítica às degradações
sociais e ambientais oriundas do neoliberalismo, em expansão no país
desde os anos de 1970 (Holden, Nadeau, & Porio, 2017), tem se dedicado
ao trabalho com as comunidades localizadas em cidades costeiras em risco
do país. Dialogando inclusive com a norueguesa Gwynyth J. Overland, em
seus trabalhos a socióloga interroga as dimensões sociais da resiliência,
propondo uma ampliação do conceito (Porio, 2011). Além disso, seus estu-
dos contemplam vasta gama de problemáticas: os efeitos da seca e da
urbanização, a expansão da criminalidade, o impacto das comunidades
eclesiais de base que prestam assistência no país em situações de catástro-
fes, assim como questões de gênero relacionadas à migração filipina
(Porio, 2007; Porio et al., 2019). Cabe sublinhar que embora Porio seja
uma importante referência para a Sociologia Clínica da ISA, suas fontes se
restringem ao movimento estadunidense, de modo que as filiações france-
sas ou canadenses não aparecem em seus trabalhos.
Na Malásia, A. Halim Wan (membro do conselho do RC-46 da ISA
entre 2006 e 2010) foi quem levou a Sociologia Clínica ao país. Além de ter
criado a Clinical Sociology Consultancy, empresa privada voltada à
138 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

prestação de serviços de mudança social, Wan realizou estudos sobre a di-


versidade étnica da sociedade malaia. É interessante a classificação
postulada pelo autor, no âmbito da mediação comunitária e das relações
étnicas. Segundo Wan (2008), as propostas de intervenção variam con-
forme seus objetivos. Quando se trata da promoção de algum propósito ou
comportamento, refere-se a intervenção de promoção; se o foco é a pre-
venção da ocorrência de um problema social iminente, remete-se à
intervenção de prevenção; e, se o trabalho abarca o reestabelecimento de
relacionamentos em situações pós-conflituosas, denomina-se intervenção
de reabilitação. Apoiada nessas premissas, a filha de Wan, Melati Puspa
Wan (SEGi University), também representante regional do RC-46 da ISA,
nos últimos anos colocou em marcha intervenções de promoção, na pers-
pectiva grupal, voltada ao empoderamento de mulheres muçulmanas que
passam por processos de divórcio (Wan & Wan, 2008). Tal como no caso
do Japão e das Filipinas, não percebemos quaisquer influências dos movi-
mentos francófonos nos trabalhos dos autores malaios.
Na Índia, há dois pesquisadores vinculados ao RC-46 da ISA: Naga-
raju Gundemeda, membro do conselho RC-46 da ISA entre 2014 e 2018 e
professor de Sociologia na University of Hyderabad, na região de Telan-
gana; e Rajesh Singh Yadav (2018-Atual), vinculado ao Department of
Criminology and Forensic Science, na Harisingh Gour Central University.
Ocorre, no entanto, que não encontramos nenhum trabalho desses pes-
quisadores relacionados estritamente à perspectiva clínica em Sociologia.
Enquanto Gundemeda (2015) tem se dedicado à Sociologia da Educação,
mediante trabalhos com estudantes universitários, Yadav (Sankhwar et
al., 2016) se volta à toxicologia forense e aos mecanismos moleculares pre-
sentes nas práticas de diagnóstico em cenas de crimes. De um lado, não
temos dados suficientes para saber do porquê e como esses trabalhadores
estão ligados ao RC-46 da ISA. De outro, também fizemos pesquisas em
múltiplos periódicos sobre os termos clinical sociology e India, mas tam-
pouco encontramos algum resultado. Com efeito, apesar de serem
Matheus Viana Braz | 139

representantes regionais na ISA, não temos propriedade para avaliar a


emergência da Sociologia Clínica no país.
Já no continente africano19, o principal vetor de difusão da Sociologia
Clínica está na África do Sul, sobretudo na University of Johannesburg. Foi
a discípula de Fritz, Tina Uys (atual vice-presidente do RC-46 da ISA),
quem assumiu a frente desse movimento desde os anos de 1990. Com de-
cuplicadas pesquisas e intervenções no mundo do trabalho, Uys
desenvolveu estudos sobre as políticas de proteção (ou retaliação) aos tra-
balhadores que denunciam irregularidades nas empresas, especificamente
no que toca as fronteiras entre a lealdade organizacional e a ética profissi-
onal (Lewis & Uys, 2007). Ética, moralidade, resiliência, lealdade e traição
são alguns dos fenômenos contemplados nas análises da autora sobre os
impactos da gestão das organizações (públicas e privadas) nas relações de
confiança entre os trabalhadores. Igualmente, problemas relacionados à
exclusão social e a concepção de cidadania na África do Sul pós-apartheid
também já foram objetos de estudo de Uys (Bews & Uys, 2002; Uys & Pa-
tel, 2018; Vandekerckhove et al., 2014). Além dos autores citados, outros
pesquisadores desenvolvem pesquisas fundamentadas na Sociologia Clí-
nica, como Anton Senekal, Mariam Seedat Khan, Anthony Kaziboni,
Tapiwa Chagonda, Boni Moagi, Kammila Naidoo e Anneke Venter, para
citar alguns. Nessa esteira, com vistas a avaliar o crescimento dessa abor-
dagem, Uys se dedica atualmente à organização de uma obra coletiva
acerca da Sociologia Clínica na África do Sul. Cumpre sublinhar também
que as produções do país dialogam predominantemente com o movimento
anglófono, o que justifica, talvez, a ausência da utilização das abordagens
biográficas como método de pesquisa e intervenção.
Por fim, a Sociologia Clínica na Oceania possui, atualmente, repre-
sentantes na Austrália. Filiado a James Cook University, em Queensland,
Spencer (2009) fez um mapeamento desse movimento no país e descobriu
que já nos anos de 1950 havia pesquisadores australianos que utilizavam

19
Não conseguimos acesso a informações conclusivas sobre a Sociologia Clínica nos demais países da África. Por isso,
restringimos nossa análise à África do Sul.
140 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

os termos Clinical Sociology, porém ainda no sentido atribuído por Wirth.


De acordo com o autor, o precursor da Sociologia Clínica na Oceania, mais
ou menos como a concebemos atualmente, foi o psicólogo e psiquiatra Ne-
ville Yeomans, professor emérito da Western Sydney University. A partir
da pesquisa-ação em Sociologia Clínica, Yeomans acreditava ser possível
construir no país um novo paradigma de saúde mental comunitária. Para
colocar a prova seus pressupostos, o autor fundou a Fraser House, insti-
tuição de acolhimento com 80 leitos, que recebia cerca de 13 mil visitas por
ano. Sem qualquer obrigatoriedade de permanência dos pacientes, na casa
se buscava criar espaços sociais onde famílias e amigos poderiam genui-
namente se encontrar, reconstruir seus laços e construir novos vínculos.
Já nos anos de 1980, nessa “comunidade de transição” (como nomeava o
autor) eram feitas dinâmicas de grupos semanais, com pacientes e famili-
ares, mediante técnicas provenientes da socioterapia. Ao passo que sua
proposta teve resultados profícuos, outros pesquisadores se interessaram
pela incipiente Sociologia Clínica e, ulteriormente, criaram o Clinical Soci-
ology Research Study Group, com a finalidade de aperfeiçoar essa
abordagem no campo da saúde mental. A interdisciplinaridade marcou a
identidade desse grupo, que era composto por sociólogos, criminologistas,
psiquiatras comunitários, psicólogos sociais, médicos generalistas e edu-
cadores (Spencer, 2009).
Após o ano de 2004, com as mudanças institucionais operacionaliza-
das pela ampliação do programa Victorian Workcover Authority, passou a
ser possível a obtenção de subvenções governamentais para intervenções
biopsicossociais, o que conferiu maior espaço aos trabalhos realizados a
partir da abordagem clínica na Austrália. Enfim, embora esse movimento
ainda não tenha obtido o reconhecimento da reivindicação da Sociologia
Clínica enquanto uma profissão ligada à prestação de cuidados, seu campo
parece se ampliar atualmente. Além da saúde, outros projetos no âmbito
do sistema prisional, da educação e a assistência social têm se colocado em
marcha a partir da Sociologia Clínica, em especial aquela oriunda da ver-
tente anglófona (Spencer, 2009).
Matheus Viana Braz | 141

A título de fechamento, reconhecemos que em nosso mapeamento


eventualmente contribuições significativas podem ter ficado de lado. Ao
restringir nossa busca às línguas inglesa, francesa, espanhola e portu-
guesa, certamente nosso alcance fica limitado, contudo acreditamos que
nenhuma pesquisa dessa ordem possa se dar por concluída. Esperamos,
ao contrário, ter contribuído com esse sobrevoo, ainda que generalista, de
modo a possibilitar que pesquisadores interessados na área possam dar
continuidade às investigações sobre a construção da Sociologia Clínica em
distintas posições geográficas.
Retomando as interrogações que colocamos no início deste capítulo,
é preciso fazer algumas considerações. É notável que a Sociologia Clínica
se expandiu globalmente desde seu surgimento. Esse fenômeno não só
convalida seu estatuto científico, como também indica a ampla gama de
possibilidades de atuação a partir de seu corpo metodológico. Todavia, em-
bora sua expansão não tenha se dado de forma difusa e sem prescindir de
rigor acadêmico, nosso levantamento sugere que não há uma unicidade
relativa à abordagem clínica nos continentes abarcados.
Ainda que unidas institucionalmente, em especial no que diz respeito
à organização de eventos científicos, as redes do RISC e do RC-46 da ISA
se revelam desarticuladas no plano epistemológico, o que produz uma
fronteira difusa entre as correntes anglófonas e francófonas. De um lado,
o movimento francófono é representado por pesquisadores da França, Bél-
gica, Canadá, Suíça, Grécia, Turquia, Itália, Espanha, Rússia e China. Logo,
por se referenciarem, sobretudo, nas produções oriundas da França, a
abordagem biográfica e o uso dos dispositivos de intervenção da Sociologia
Clínica (como os Grupos de Implicação em Pesquisa) são bastante utiliza-
dos. De outro, as vertentes anglófonas, referenciadas em especial pelos
Estados Unidos, contemplam pesquisadores desse país, como também da
Noruega, Japão, Filipinas, Malásia, África do Sul, Austrália e Polônia. As
narrativas de vida, nesse quadro, são menos utilizadas e os autores pare-
cem desconhecer obras elementares do campo sócio-clínico francês (ou
mesmo dos latinos).
142 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

O diálogo mais recente entre ambos os movimentos ilustra nossa po-


sição. Em 2014, Fritz e Rhéaume organizaram a publicação de uma
coletânea, intitulada Community Intervention: Clinical Sociology Perspec-
tives (Fritz & Rhéaume, 2014). A obra, que conta com a participação de
pesquisadores de distintas localidades dos Estados Unidos, França, Ca-
nadá, Filipinas e África do Sul, traz ricas contribuições e reflexões sobre
pesquisas e intervenções no âmbito comunitário a partir da Sociologia Clí-
nica. O curioso, contudo, é que embora o livro seja fruto de uma parceria
entre pesquisadores das duas vertentes, os capítulos refletem uma seg-
mentação, pois os autores anglófonos não se referenciam pelos
francófonos e vice-versa.
Decerto que essa distância se dá por um entrave linguístico, mas se
considerarmos que a Sociologia Clínica canadense também produz traba-
lhos em inglês e, mais ainda, que comumente as redes realizam atividades
científicas em conjunto, nos deparamos com uma interrogação. Parece que
se naturalizou uma divisão entre essas duas correntes e ainda que estejam
ligadas institucionalmente, no plano teórico se colocam de forma indepen-
dente. O movimento francófono parece se interessar pelo campo
institucional, enquanto o anglófono se debruça mais sobre grupos e rela-
ções sociais observadas diretamente, o que reflete resquícios herdados do
empirismo durkheimiano hegemônico na Sociologia estadunidense. O
problema, a nosso ver, é que sobretudo nos trabalhos anglófonos mais re-
centes, as bases epistemológicas da Sociologia Clínica parecem ter se
perdido. Autores que foram centrais para a criação desse campo, como,
por exemplo, Freud, Weber, Marx, Mauss, Bordieu e Gaulejac, foram dei-
xados de lado, o que produz uma fragmentação dos fundamentos da
abordagem clínica.
A esta altura, nos confrontamos com alguns questionamentos: afinal,
o que delimita o campo da Sociologia Clínica? Há pressupostos epistemo-
lógicos, teóricos, metodológicos e éticos que o subentende? Como esse
processo foi desenhado em território brasileiro? Nos primeiros tópicos de
nosso trabalho, ao traçar uma espécie de genealogia da construção da
Matheus Viana Braz | 143

abordagem clínica em Sociologia, tivemos como objetivo lançar luz sobre


alguns desses alicerces. Mas, para responder de forma mais assertiva a
essas questões, antes teremos que compreender como se deu a expansão
da Sociologia Clínica nos países da América Latina. Só então conseguire-
mos problematizar esse ponto com mais propriedade. E isso é o que
faremos no próximo tópico.

3.2 O projeto da abordagem clínica na América Latina

O projeto da Sociologia Clínica na América Latina se inscreve na fili-


ação francófona e seu desenvolvimento ocorreu atrelado à
Psicossociologia. Substancialmente maduro na atualidade, esse processo
possui algumas especificidades, relativas a características sociais compar-
tilhadas por seus representantes. Embora beba da fonte das produções
francesas, a realidade cultural e social encontrada nos países latinos é dia-
metralmente oposta da Europa ocidental. De modo geral, os Estados na
América Latina não tiveram políticas públicas exitosas de bem-estar social
e seus governos sofreram fraturas democráticas recentes, frutos de regi-
mes ditatoriais. Soma-se a isso a significativa falta de equidade social e
elevada concentração de riquezas, que produzem um quadro paradoxal.
Ao mesmo tempo em que os países buscam se desenvolver economica-
mente do ponto de vista da inovação, do aumento da competitividade
doméstica em relação aos mercados globalizados e da expansão do setor
de serviços (em especial aqueles relacionados às tecnologias da informa-
ção), os governos ainda enfrentam problemas relacionados à mortalidade
infantil, educação e saúde precárias, desigualdade social, precarização sa-
nitária, miséria, fome, desemprego estrutural e informalidade laboral,
para citar alguns. Contudo, se essas particularidades colocaram obstáculos
aos trabalhos desenvolvidos a partir da Sociologia Clínica, foram elas tam-
bém que possibilitaram a unificação orgânica deste movimento e a criação
de estratégias profícuas de intervenção nesse campo.
144 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Uma das pioneiras na Sociologia Clínica da América Latina, Elvia Ta-


racena Ruiz foi quem levou a abordagem clínica ao México. Integrante do
conselho da primeira gestão do RC-46 da ISA, a pesquisadora também es-
tava presente no momento da fundação do IISC e do RISC. A Psicóloga
descobriu a Sociologia Clínica já no início dos anos de 1980, enquanto re-
alizava seu doutorado em Ciências da Educação na Université Paris
Vincennes VIII. Nessa ocasião, se aproximou do Laboratoire de Change-
ment Social e até o ano de sua morte, em 2017, ainda mantinha relações
estreitas com o laboratório, em especial com Vincent de Gaulejac. Na
França, como no Canadá, na Argentina e no México, Taracena Ruiz reali-
zou Grupos de Implicação e Pesquisa em torno de diferentes temáticas:
romance amoroso e trajetória social, romance familiar e trajetória social,
histórias do dinheiro, o sujeito em face da vergonha e história de vida e
memória corporal. Mediante esse dispositivo metodológico, a pesquisa-
dora conduziu programas de formações com professores e alunos, nos
níveis da graduação, mestrado e doutorado, para que questionassem suas
escolhas teóricas, seus conhecimentos e, além de tudo, suas posições en-
quanto sujeitos históricos, implicados em um trabalho de pesquisa
comprometido com a transformação social. Esta proposta teve início na
Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), onde estava vincu-
lada profissionalmente, mas depois se expandiu para a Universidad de
Guadalajara, para a Universidad Autónoma Metropolitana e para outras
instituições de ensino superior no México. Com efeito, foi a partir dessas
experiências que a autora se dedicou à análise dos sistemas de avaliações
das universidades públicas no país, realizando críticas agudas sobre como
o exercício do poder e as políticas partidárias nessas instituições produ-
ziam uma crise estrutural, que alterava nocivamente as relações entre
docentes, alunos e a próprio processo de produção de conhecimento (Ta-
racena Ruiz, 2002; 2010a).
Durante os 25 anos em que trabalhou para desenvolver a Sociologia
Clínica no México, Taracena Ruiz realizou pesquisas e intervenções em or-
ganizações, públicas e privadas, mas foi no terreno dos processos de
Matheus Viana Braz | 145

exclusão de populações marginalizadas que dedicou a maior parte de sua


trajetória profissional. Servindo-se dos dispositivos metodológicos da
abordagem clínica francófona (como os Grupos de Implicação e Pesquisa,
o Organidrama e as entrevistas clínicas), a autora percorreu bairros popu-
lares e comunidades com alta vulnerabilidade social para compreender as
vivências de diferentes populações, com o objetivo de traçar coletivamente
estratégias de mudança social. Nesse percurso, Taracena Ruiz trabalhou
com crianças em situação de rua de cidades metropolitanas do México,
adolescentes órfãos, idosos moradores em zonas rurais, pessoas com ano-
rexia, educadores sociais e famílias que expulsaram seus filhos de casa. A
perspectiva biográfica, atrelada à sua sensibilidade e ao seu posiciona-
mento político (atento às relações de poder desses espaços), possibilitou a
exploração, por exemplo, das representações que as crianças que trabalha-
vam nas ruas tinham de si, dos outros, assim como as imagens e
julgamentos que as pessoas portavam sobre elas. Ao se aproximar do co-
tidiano e das vivências dessas crianças, Taracena Ruiz encontrou na
Sociologia Clínica uma via profícua para compreender suas dificuldades,
carências, condições de vida, os estigmas e riscos a que estavam submeti-
dos, mas também de que maneira eram construídas suas identidades, suas
estratégias de socialização e como enfrentavam a aridez social a que eram
expostas (Taracena Ruiz, 1993; 2010a; 2010b; 2012; Moratilla-Olvera &
Taracena Ruiz, 2012; Murguía-Mier et al., 2015).
Nos trabalhos de Taracena Ruiz, sua defesa ao rompimento das bar-
reiras disciplinares é evidenciada pela pluralidade das referências
utilizadas, como a Psicanálise, a Psicologia Social da América do Sul, a Fi-
losofia e Sociologia Francesa e a Análise Institucional. Em sua vasta
produção acadêmica, destaca-se a publicação do livro Historia de vida. Psi-
coanálisis y Sociología Clínica (Gaulejac, Rodríguez Márquez, & Taracena
Ruiz, 2006), escrito em coautoria com Susana Rodríguez Márquez e Vin-
cent de Gaulejac. Enfim, atualmente não só na UNAM como em outras
universidades mexicanas, pesquisadores deram continuidade aos cami-
nhos traçados pela autora, garantindo a consolidação da Sociologia Clínica
146 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

no país. Dentre eles, assumem a frente desse movimento os atuais repre-


sentantes do RISC, Susana Rodríguez Marquez, Griselda Albarrán,
Verónica Córdova, Eugenia Espinoza, Cristina Fuentes, Patricia Murgias e
Alejandro Saldaña.
No Uruguai, encontramos outro forte movimento da Sociologia Clí-
nica. Entre seus precursores, merece destaque a figura de Ana María
Araújo, vinculada atualmente à Facultad de Psicología da Universidad de
la República (UdelaR), em Montevidéu e a qual descobriu a abordagem
clínica enquanto fazia seu doutorado em Sociologia em Paris, nos anos de
1980, na Université Paris I Panthéon Sorbonne. Nesse período, tal como
Taracena Ruiz, se aproximou do Laboratoire de Changement Social e fez
parte do primeiro conselho do RC-46 da ISA, bem como esteve presente
nas fundações do IISC e do RISC. Em consonância com o movimento fran-
cófono, a socióloga sublinha em seus trabalhos a importância de se
aproximar o máximo possível do registro vivencial, subjetivo-cultural dos
sujeitos. Além disso, nas palavras de Araújo:

Talvez o mais relevante de toda essa orientação seja a importância que para
nós tem a pesquisa e sua implicação na realidade social. Não concebemos uma
pesquisa sem uma incidência na transformação do contexto sociopolítico que
nos circunda. A Sociologia Clínica é uma epistemologia para a ação, baseada
no vínculo teórico entre o campo do inconsciente e o sócio-histórico e na rele-
vância dada ao simbólico e cultural20 (Madrazo, p. 185, 2004, grifo nosso).

Se servindo dos dispositivos metodológicos da Sociologia Clínica,


bem como de suas ferramentas práticas (como a árvore genealógica, o pro-
jeto parental e as narrativas de vida e trajetórias sócio-laborais), Araújo
dedicou suas pesquisas à compreensão do mundo do trabalho. Conduziu
intervenções junto a sindicatos, prostitutas, movimentos feministas e uma
ampla gama de classes trabalhadoras de diferentes setores

20
No original: Quizás lo más relevante de toda esta orientación sea la importancia que para nosotros tiene la inves-
tigación y su implicación en la realidad social. No concebimos una investigación sin una incidencia en la
transformación del contexto sociopolítico que nos rodea. La sociología clínica es una epistemología para la acción,
basada en el vínculo teórico entre el campo de lo inconsciente y el social-histórico y en la relevancia dada a lo simbó-
lico y cultural.
Matheus Viana Braz | 147

regulamentados (indústria, agronegócio e serviços). Nesse contexto, du-


rante mais de dez anos a socióloga se debruçou sobre as repercussões
sociais e culturais do desemprego no Uruguai21, de modo que seus traba-
lhos tiveram reconhecimento além das fronteiras de seu país, o que lhe
conferiu um posto de consultora na Organização Internacional do Traba-
lho (OIT), cujo objetivo consistiu em desenvolver programas de apoio
psicossocial a pessoas desempregadas (Araújo, 1985; 2002; Araújo &
Weisz, 2004; Madrazo, 2004).
Na última década, além da questão do desemprego, Araújo tem se
interessado pelas relações entre a hipermodernidade e o mundo do traba-
lho, em particular sobre como são transformados nosso tempo, espaço,
saúde, vínculos e, inclusive, os movimentos sindicais (Araújo & Cardozo,
2017). Especificamente em relação ao campo metodológico da Sociologia
Clínica, merece destaque o livro Sociología Clínica: uma epistemologia
para la acción (ARAÚJO, 2011), organizado pela autora e que corresponde
a uma produção coletiva, com a participação de Gaulejac, Enriquez, Rhé-
aume, além de sociólogos e psicólogos uruguaios. Também vinculados
direta ou indiretamente ao RISC, outros pesquisadores assumiram nos úl-
timos anos o papel de difusão da abordagem clínica, como Maria Cristina
Heuguerot, Sabela De Tezanos, María del Pilar Lojo, Virginia Masse, Mô-
nica Olaza, Sylvia Montanez Fiero, Betty Weisz e Fernando Mier Sosa. É
interessante também observar que o movimento uruguaio, que tem Ara-
újo em sua vanguarda, ganhou expressão e mantém uma função
importante de articulação entre os países do cone sul.
Trocando ativamente conhecimentos e experiências com pesquisado-
res dos países sul-americanos, o movimento argentino também se revela
importante e conta com correspondentes em Buenos Aires, Mendoza, Cór-
doba e Rosário. Duas pesquisadoras, que conheceram a Sociologia Clínica
e a Psicossociologia em intercâmbios realizados em Paris nos anos de 1990,
foram precursoras desse processo: Ana Maria Correa e Andrea Pujol.

21
Sobretudo nas cidades de Montevidéu, Salto e Paysandú.
148 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Filiada à Facultad de Psicología da Universidad Nacional de Córdoba


(UNC), Pujol trabalha com a abordagem clínica desde os anos de 1990.
Ainda que se sirva de metodologias etnográficas, centra-se sobremaneira
nas perspectivas biográficas. Ao longo de sua trajetória, Pujol realizou pes-
quisas-ações para compreender uma série de problemáticas, como as
relações entre trabalho, qualidade de vida e emprego na Argentina, a vio-
lência, cooperação, saúde, segurança e sofrimento no trabalho, a
aprendizagem e desenvolvimento dos trabalhadores, a gestão nas organi-
zações e suas relações com a construção de identidades profissionais,
assim como a fragmentação dos coletivos laborais no país (Pujol, 2010;
2011; 2012; 2014). Junto à Pujol, também no campo da Psicologia do Tra-
balho e vinculada à mesma universidade, Correa realizou pesquisas e
intervenções sobre variados fenômenos que tocam o mundo do trabalho,
se servindo inclusive do dispositivo dos Grupos de Implicação e Pesquisa
(Correa, 2011a). Sublinhamos, ainda, o trabalho interdisciplinar que Cor-
rea realiza desde o ano de 1999, acerca das narrativas de internos presos
no Sistema Penitenciário de Córdoba (Correa, 2011b). O interessante,
neste projeto, é que a autora problematiza os significados do trabalho atri-
buídos pelos sujeitos que se encontram em situação de privação de
liberdade. Respaldada pela perspectiva dos Direitos Humanos, Correa é
crítica da violência perpetrada pelo Estado e é sensível à imposição das
práticas e comportamentos que fabricam a subjetividade desses indiví-
duos. Passando pela análise do trabalho no tráfico de drogas e em
articulação com as narrativas dos presos, a autora propõe um olhar e es-
cuta aberta, cujo objetivo é dar espaço à expressão da vulnerabilidade
social produzida pela marginalidade, mas também captada e intensificada
pela lógica do sistema prisional argentino.
Marcela de Grande, graduada em Letras Modernas na Université de
Paris III - Nouvelle Sorbonne, aproximou-se das produções em ciências so-
ciais e também assumiu relevância no país. Após convite do movimento
da Sociologia Clínica Argentina, assumiu a posição de tradutora oficial das
produções francófonas para o espanhol. Entre seus trabalhos, enfatizam-
Matheus Viana Braz | 149

se as traduções das obras Les sources de la honte, Névrose de classe e L’his-


toire en héritage, roman familial et trajectoire sociale, de autoria de
Gaulejac.
Em 2017, Alicia López Robledo e Julio Luna criaram o Laboratorio de
Sociología Clínica, na Universidad Nacional de Rosario, o qual reúne pes-
quisadores interessados na utilização das abordagens biográficas ao
campo da educação. Enfim, outros pesquisadores como Melisa Herranz,
Fabiana Grasseli e Mariano Salomone, de demais regiões da Argentina,
coordenam equipes de profissionais que trabalham com a Sociologia Clí-
nica.
Na Argentina, tal como no Brasil, os pesquisadores dialogam cons-
tantemente com a Psicossociologia e as demais clínicas do trabalho, como
a Clínica da Atividade, a Psicodinâmica do Trabalho e a Ergologia. Talvez
isso se dê pelo fato que a Sociologia Clínica no país emergiu no seio da
Psicologia do Trabalho e foi protagonizada por profissionais insatisfeitos e
críticos às visões pragmáticas e instrumentalizadoras da hegemônica Psi-
cologia Organizacional. Tão relevante quanto os grupos brasileiro e
uruguaio, o movimento argentino foi o principal articulador do Simposio
Internacional Trabajo, Actividad y Subjetividad (TAS22), criado em 2012.
Com frequência bianual e sediado em Córdoba23, desde sua primeira edi-
ção o evento se expandiu consideravelmente e possibilitou encontros
frutíferos entre pesquisadores do Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Cuba,
Colômbia, França e Canadá. Em sua próxima edição, pela primeira vez os
organizadores desse simpósio se juntaram também ao grupo de brasileiros
que organiza o Colóquio Internacional de Psicossociologia do Trabalho. Se-
diado dessa vez na cidade de João Pessoa, na Paraíba (Brasil), o então
denominado Encontro Internacional sobre o Trabalho, foi adiado para
2021, em função da pandemia da COVID-19, mas promete ser um marco
na história das Psicossociologia e Sociologia Clínica na América Latina24.

22
Para mais informações, consultar website do simpósio: http://tas.cba3.com.ar/
23
Excepcionalmente no ano de 2018 o simpósio foi realizado na cidade de Havana, em Cuba.
24
Para mais detalhes, consultar link: https://eitajp.wixsite.com/jp2020
150 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

O surgimento da Sociologia Clínica na Colômbia converge com o per-


curso profissional traçado por Fernando de Yzaguirre. Após impulsionar a
criação do movimento espanhol, Izaguirre saiu do país em 2015 para as-
sumir o cargo de professor e pesquisador na Universidad del Atlântico em
sua terra natal. Ainda que tenha dedicado parte significativa de sua traje-
tória como gestor e diretor de projetos culturais, na iniciativa pública como
na privada, após sua aproximação com a abordagem clínica o sociólogo
desenvolveu pesquisas e intervenções voltadas à mudança social e aos con-
flitos nas organizações. A partir do repertório construído na Espanha e na
França (Yzaguirre & Castillo Mendoza, 2013), Yzaguirre tem criado diver-
sos programas e seminários de Sociologia Clínica na Colômbia. Destacam-
se os grupos voltados à situação de pós-conflito político no país, os semi-
nários de mediações de conflitos organizacionais (baseado nas técnicas do
Teatro-Fórum) e as oficinas sobre os relatos de vida de mulheres que so-
freram abusos sexuais25. Apesar de somente Yzaguirre estar atualmente
vinculado ao RC-46 da ISA, outros pesquisadores no país cumprem a fun-
ção de correspondência internacional do RISC, como Celmira Castro
Suárez, Angélica Nieto, Rogelio Hernandez, Karol Ibañez, Yineth Lugo e
María Claudia Salcedo, o que indica um processo de expansão da Sociolo-
gia Clínica na Colômbia.
No Chile, figuram entre os correspondentes internacionais do RISC
psicólogos e sociólogos como Francisca Espinoza, Marcelo Astorga, Mar-
celo Balboa, Mariela Carmona, Patricia Guerrero, Francisca Marquez e
Dariela Sharim. Em especial, assumiram a frente desse movimento duas
pesquisadoras. Feminista, crítica ao liberalismo chileno e hoje vinculada à
Universidad Católica Silva Henriquez, Patricia Guerrero foi membra do
conselho de gestão do RC-46 da ISA entre os anos de 2010 e 2014. Nessa
década, realizou seu mestrado em Sociologia Clínica e Psicossociologia, as-
sim como seu doutorado na Université Paris-Diderot VII. Foi, portanto, no
núcleo do Laboratoire de Changement Social que conheceu e desenvolveu
a abordagem clínica, assim como foi também nesse espaço que se

25
Para mais informações sobre essas iniciativas, consultar: https://www.sociologie-clinique.org/latinoamerica/
Matheus Viana Braz | 151

aproximou de pesquisadores do Brasil, Uruguai, Argentina, Colômbia,


França, Canadá e México. Suas pesquisas, nesse ínterim, giram em torno
da educação e da justiça social, o que a levou a analisar os processos de
construção de identidades, reconhecimento, diversidade, inclusão e exclu-
são social e suas relações com as mudanças individuais e organizacionais
nas escolas chilenas. Entre suas produções, destaca-se a organização do
livro Clínicas del trabajo: teorías e intervenciones (Zabala, Guerrero, & Be-
soain, 2017), que contou com a contribuição de pesquisadores do Chile,
Uruguai, Argentina e França.
Teve também relevante expressão em território chileno as pesquisas
realizadas por Francisca Espinoza (Espinoza, 2013). Durante seu douto-
rado, realizado também na Université Paris-Diderot VII, a psicóloga
trabalhou sobre o tema da transmissão histórica dos traumas produzidos
pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Metodologicamente e em
concordância com Niewiadomski (2012), Espinoza defende o uso da es-
crita, nas intervenções, como motor da produção de relatos e testemunhos
de experiências traumáticas. Nesse sentido,

A escrita pode ser compreendida como uma forma de enunciação diferente da


fala na produção de relatos portadores de experiências traumáticas. Trata-se
de um terreno original, no qual o trauma pode se expressar e que, ao mesmo
tempo, abre uma via para o trabalho de elaboração e de simbolização dessas
experiências (Espinoza, 2013, p. 23826).

As experiências traumáticas, enfatiza a autora, nolens volens são


transmitidas intergeracionalmente e impactam toda a dinâmica familiar.
No caso do regime ditatorial de Pinochet, Espinoza (2013) constatou que
os traumas eram atravessados por vazios explicativos, violências simbóli-
cas e brutalidades físicas. O trabalho de escrita dos próprios relatos, nas
intervenções, possibilitava aos sujeitos significações que ofereciam

26
No original: L’écriture peut être comprise comme une forme d’énonciation diférente de la parole dans la production
de récits porteurs d’expériences traumatiques, c’est un terrain originel dont le trauma peut faire entendre sa voix et
qui dans le même temps ouvre une voie pour penser un travail d’élaboration et de symbolisation de ce type d’expé-
riences.
152 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

subsídios à articulação temporal entre as vivências de passado, presente e


futuro, como se a construção biográfica conferisse novos sentidos e inter-
pretações às genealogias e traumas familiares.
Nesse sobrevoo pela América Latina podemos observar tanto movi-
mentos mais maduros quanto emergentes. De forma geral, no entanto,
ambos os países mantêm diálogos estreitos entre si, mas também entre
outros representantes da Sociologia Clínica francófona. As vertentes an-
glófonas, todavia, são referenciadas (e ainda de modo superficial) somente
nos trabalhos de Yzaguirre, muito embora outros pesquisadores estejam
também vinculados ao RC-46 da ISA. Retomando as discussões feitas no
tópico anterior, mantivemos ainda nossa constatação acerca da divisão e
distância epistemológica entre as correntes anglófonas e francófonas, que
somente dialogam no âmbito institucional. De modo a tornar mais didática
a leitura desse diagnóstico, representamos visualmente esse distancia-
mento na figura abaixo, na qual são apresentadas as respectivas filiações
dos países abordados.
Matheus Viana Braz | 153

Figura I – A Sociologia Clínica no mundo. Criação nossa.

No tocante à América Latina, desde os momentos germinais da Soci-


ologia Clínica já havia a presença de interlocutores argentinos, uruguaios,
mexicanos e brasileiros (conforme veremos no próximo tópico). Com
efeito, em variadas cidades do Cone Sul, constatamos a realização de ati-
vidades, pesquisas e eventos científicos que também congregam
pesquisadores de outros continentes. Desde os anos de 1980, os precurso-
res dessas vertentes se empenharam na difusão da abordagem clínica não
somente mediante suas pesquisas-ações, como também orientando alunos
de graduação, mestrado e doutorado, o que enriqueceu o desenvolvimento
da Sociologia Clínica em âmbito global. Ademais, essa união pode ser re-
presentada por dois acontecimentos relevantes. O primeiro remete à
criação da Rede Internacional de Sociologia Clínica do Cone Sul27, vincu-
lada ao RISC e organizada pelos autores supracitados, incluindo o Brasil.
Já a segunda, diz respeito à criação da Colección de Sociología Clínica28,
editada pela Sapere Aude. Formada por um comitê científico com onze
membros, de seis países distintos, a finalidade dessa coleção é fomentar a
publicação de livros sobre a Sociologia Clínica no idioma espanhol.

27
Para mais informações, consultar website da rede: https://www.sociologie-clinique.org/latinoamerica/
28
Para mais informações, consultar o website: https://editorialsapereaude.com/materia/sociologia-clinica/
154 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Por fim, diferentemente das filiações francesas, o movimento latino-


americano foi majoritariamente conduzido por mulheres, o que lhe confe-
riu maior autenticidade e energia para enfrentamentos políticos.
Trabalhar com a Sociologia Clínica em nosso continente, portanto, desde
os anos de 1990 implica se comprometer com mudanças sociais, comba-
tendo quaisquer manifestações estigmatizantes, totalitárias, maniqueístas
e preconceituosas. Para além das inspirações próprias às vertentes francó-
fonas, apareceram também nos trabalhos dos pesquisadores do Cone Sul
referências a autores como Paulo Freire, Ignacio Martín-Baró e Maritza
Montero, o que nos indica que a Psicologia Política, Social Crítica e Comu-
nitária da América Latina corre nas veias da Sociologia Clínica latino-
americana desde seu surgimento. Mais ainda, uma vez que as fraturas pro-
duzidas pelos recentes regimes ditatoriais desses países ainda não foram
integralmente fechadas, nos arriscamos a afirmar que do ponto de vista
institucional e político a abordagem clínica se assentou enquanto um mo-
vimento de resistência, comprometido com o combate à desigualdade
social e que se colocou sempre ao lado das classes trabalhadoras. No tópico
seguinte, ao compreendermos o papel desempenhado pelos pesquisadores
brasileiros nesse cenário, essas questões ficarão ainda mais evidenciadas.

3.3 O movimento brasileiro

A Sociologia Clínica busca compreender a constituição do sujeito a


partir de três registros: o sujeito da razão, ou, como destacava Descartes,
o sujeito do cogito ergo sum, capaz de produzir racionalmente o conheci-
mento sobre si e sobre o mundo que o circunda; o sujeito do desejo, tal
como Freud o concebeu, confrontado com a culpa, o interdito, a angústia
e que, portanto, ultrapassa o sujeito da razão pelo fato mesmo de ser re-
gido pelo inconsciente; e, por fim, o sujeito sócio-histórico, evocado por
Bourdieu, condicionado pelas determinações culturais, políticas, econômi-
cas e ideológicas intrínsecas à sua história e existência social. Desse modo,
se a abordagem clínica é pluridisciplinar, é justamente porque reconhece
Matheus Viana Braz | 155

que cada um desses domínios é regido por lógicas distintas, com leis pró-
prias de funcionamento (Gaulejac, 1999/2016). Entre objetividade e
subjetividade, a Sociologia Clínica é vigilante para não cair no engodo de
reduzir os sentidos dos fenômenos às expressões conscientes dos sujeitos.
Todavia, a compreensão das multideterminações, bem como da complexi-
dade dessas lógicas, só pode ser efetivada quando nos aproximamos das
vivências dos atores sociais. E, nesse aspecto, as abordagens biográficas se
revelaram historicamente bastante profícuas no trabalho de exploração e
coanálise da dimensão existencial das relações sociais.
Uma vez que a Sociologia Clínica no Brasil emergiu notadamente no
campo da Psicologia, parece que desde seu início houve maior sensibili-
dade e cuidado na operacionalização do diálogo entre os três registros
supracitados. Sabemos que nas ciências naturais como nas sociais eventu-
almente a falta de um trabalho de implicação pode culminar na produção
de conhecimentos que surgem para afirmar ou reforçar as convicções pes-
soais do pesquisador (Mynatt, Doherty, & Tweney, 1977; Klayman, 1995).
Esse, no entanto, não parece ter sido o caso do movimento brasileiro. Nos
estudos encontrados por nós, há continuamente análises rigorosas sobre
a implicação e posição dos pesquisadores e, acima de tudo, notamos sem-
pre o respeito em relação aos sentidos atribuídos pelas pessoas envolvidas
nas intervenções, mesmo quando não coadunam com o ponto de vista des-
ses pesquisadores. De modo a explorar essas reflexões, nas páginas
seguintes nos guiaremos por algumas interrogações: quais as particulari-
dades da Sociologia Clínica no Brasil? Como ela se estruturou e qual sua
abrangência em território nacional? Quais objetos foram privilegiados por
esse movimento?
Conforme discutimos em trabalho anterior (Viana Braz, 2019), a
emergência da Sociologia Clínica brasileira é intrínseca à Psicossociologia,
à filiação francófona e não se aproxima das vertentes anglófonas. Esse mo-
vimento foi iniciado por alguns pesquisadores do campo da Psicologia,
sobretudo nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Segundo Mata
Machado (2010), após convite do professor Célio Garcia (da Universidade
156 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Federal de Minas Gerais - UFMG), em 1968 Max Pagès veio ao Brasil para
ministrar seminários sobre dinâmicas de grupo na capital mineira. Nos
anos seguintes, outros precursores da Psicossociologia vinculados à ARIP
vieram ao país e fomentaram discussões sobre os instrumentos metodo-
lógicos oriundos das perspectivas de Jaques e Lewin. Já em 1974, na
ocasião da realização de uma reforma curricular, criou-se no curso de Psi-
cologia da UFMG uma disciplina denominada Intervenção
Psicossociológica (Mata Machado, 2010).
Norma Missae Takeuti, nesse cenário, foi a primeira pesquisadora
brasileira a realizar um doutorado pleno na França. Após concluir seu
mestrado na Paris IX (sob direção de Pagès), a pesquisadora desenvolveu
uma pesquisa na mesma universidade (entre 1981 e 1985) com a orienta-
ção de Jacqueline Palmade, acerca das representações míticas que havia no
meio acadêmico brasileiro sobre a cultura francesa. Segundo a autora, os
bolsistas que partiam à França para realizar seus estudos de pós-gradua-
ção levavam consigo um conjunto de crenças distorcidas, como se o país
representasse o berço da cultura ocidental e da intelectualidade, uma pá-
tria onde a liberdade de pensamento refletia o pleno funcionamento da
democracia e da garantia dos direitos humanos (Takeuti, citado por Fachin
& Cavedon, 200329).
José Newton Garcia de Araújo foi o segundo pesquisador deste movi-
mento e desenvolveu sua tese de doutorado (1985-1990) na Université
Paris-Diderot VII. Sob orientação de Pagès, o psicólogo também se debru-
çou sobre a trajetória de pesquisadores brasileiros na França,
especificamente no que concerne a articulação das noções de cotidiano e
desejo de reconhecimento (Araújo, 1990)30. Depois, entre os anos de 1986
e 1991, sob direção de Pagès, a psicóloga Teresa Cristina O. C. Carreteiro
realizou sua tese na mesma universidade, acerca das diferenças e seme-
lhanças entre grupos de jovens que viviam nas favelas do Rio de Janeiro e

29
As informações foram retiradas do artigo citado, pois sua tese não foi publicada no Brasil e tampouco tivemos
acesso direto a ela.
30
Não tivemos acesso ao seu estudo integral, mas algumas informações podem ser encontradas em: http://www.the-
ses.fr/1990PA070007
Matheus Viana Braz | 157

nas periferias de Paris. Diante da precariedade material e da aridez do co-


tidiano desses espaços, Carreteiro explorou como a ênfase nas
necessidades imediatas do presente dificultavam a construção de projetos
de vida para esses grupos mais vulneráveis (Carreteiro, 1993). No mesmo
período, Jacyara C. R. Nasciutti também iniciou seu Doutorado com a ori-
entação de Eugène Enriquez (embora o tenha finalizado com a direção de
Jacqueline Barus-Michel) e se debruçou sobre os jogos de poder e ideoló-
gicos engendrados nas relações dos sujeitos com o campo institucional.
Sublinha-se ainda que junto com Teresa Carreteiro, Nasciutti foi respon-
sável pela tradução do livro Da Horda ao Estado: psicanálise do vínculo
social (Enriquez, 1990).
Após concluir seu mestrado nos Estados Unidos, Marília Novais da
Mata Machado fez seu doutorado na Paris Nord VIII. Sob orientação de
André Lévy, a psicóloga formada pela UFMG tomou como objeto de análise
a Favela Acaba Mundo, situada em Belo Horizonte e buscou compreender
a história e organização das favelas brasileiras enquanto sistemas sociais31.
Entre os anos de 1989 e 1992, então professora da UFMG, Maria Elizabeth
Antunes Lima realizou seu doutorado na Paris IX, junto à Jacqueline Pal-
made, sobre os efeitos psicopatológicos das políticas de Recursos Humanos
emergentes na época. O objeto de análise da autora foi uma grande em-
presa brasileira, pioneira na inserção de políticas toyotistas de
administração de pessoal no país, compreendidas a partir de suas dimen-
sões psicológicas e sociológicas (Lima, 1994). Enfim, Vanessa Andrade de
Barros na década seguinte (1994-1998) também fez seu doutorado pleno
na Paris VII, sob orientação de Eugène Enriquez. Sua tese, nesse sentido,
versou sobre as trajetórias políticas de dirigentes sindicais brasileiros que
ocupavam cadeiras administrativas ou parlamentares no poder público
(Barros, 2000).
A potencialização desse movimento foi representada pela efetivação
do Acordo de Cooperação Internacional CAPES-COFECUB, entre

31
Não tivemos acesso ao seu estudo integral, mas algumas informações podem ser encontradas em: http://www.the-
ses.fr/1990PA131001
158 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

universidades brasileiras (UFMG, Universidade Federal Fluminense – UFF


– e Fundação de Ensino Superior de São João del-Rei - FUNREI32) e fran-
cesas (Paris VII, Paris X e Paris VIII), entre os anos de 1991 e 1995
(Carreteiro & Barros, 2011). Além dos intercâmbios proporcionados por
pesquisadores brasileiros, esse convênio possibilitou a realização de visi-
tas, no Brasil, de psicossociólogos como André Lévy, Eugène Enriquez,
Jean Dubost, André Nicolaï e Jacqueline Barus-Michel (Mata Machado,
2010). A partir do ano 2000, a UFMG passou a promover sistematica-
mente colóquios internacionais de Psicossociolgia e Sociologia Clínica, com
a finalidade de estreitar as trocas de conhecimentos entre as produções
brasileiras e com outros países. O primeiro desses colóquios já contou com
mais de 700 participantes e, dentre eles, havia cerca de 70 estrangeiros
(Carreteiro, 2016). Desde 2016, esse encontro foi transferido para Brasília
e atualmente é organizado pelo grupo de pesquisa Diálogos em Sociologia
Clínica, coordenado pela professora Christiane Girard Ferreira Nunes, fi-
liada à Universidade de Brasília (UNB). De naturalidade francesa, Girard
realizou sua graduação e mestrado em Sociologia na Paris VIII. Seu douto-
rado foi feito no Brasil, após migrar para o país na década de 1980. Desde
então, foi também protagonista na promoção de diálogos fundamentais ao
desenvolvimento da Sociologia Clínica nacional.
Os precursores da Psicossociologia e da Sociologia Clínica brasileira
acompanharam seu desenvolvimento em âmbito global. Uma vez que per-
maneceram vinculados ao Laboratoire de Changement Social, fizeram
parte da criação do CIRFIP, IISC, RISC e dos primeiros colóquios realizados
em Paris e Montreal. Já na ISA, destaca-se a representação de Teresa Car-
reteiro, membra do primeiro conselho de gestão do RC-46 e que, depois,
entre 1999 e 2002, foi vice-presidente desse núcleo. Igualmente, Norma
Takeuti fez parte do conselho entre 1998 e 2002 e assumiu a vice-presi-
dência de 2006 a 2010. Ademais, desde os anos de 1990 os pesquisadores
brasileiros mantêm laços estreitos com os movimentos da França, Canadá,
Uruguai, Argentina e México, participando de encontros e publicações

32
Atualmente denominada Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
Matheus Viana Braz | 159

conjuntas. Os livros Psicossociologia: análise social e intervenção (Mata


Machado et al., 1994/2001), Cenários sociais e abordagem clínica (Araújo
& Carreteiro, 2001) e Reinvenções do sujeito social: teorias e práticas bio-
gráficas (Takeuti & Niewiadomski, 2009), são frutos de parcerias com
diferentes movimentos da Psicossociologia e da Sociologia Clínica francó-
fona. Enquanto obras fundamentais à difusão da abordagem clínica
nacional, traduzem a maturidade e relevância que possui o Brasil nesse
cenário.
Atualmente, embora não exista em nosso país nenhum programa,
stricto sensu, voltado à formação de sociólogos clínicos e psicossociólogos,
parece que esse movimento permanece em expansão, em cursos de Psico-
logia, Sociologia ou, mais raramente, Administração e áreas afins. Na
figura II, apresentamos alguns de seus representantes33, de acordo com
seus respectivos estados:

33
Alguns dos nomes citados foram mencionados no trabalho de Carreteiro e Barros (2011). Sem a pretensão de
esgotar a discussão sobre os principais movimentos brasileiros na cena da Psicossociologia e da Sociologia Clínica,
adicionamos outros nomes de figuras consideradas importantes.
160 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Figura II – Sociologia Clínica e Psicossociologia no Brasil. Criação nossa.

Tal como na Argentina, no Brasil houve uma aproximação orgânica


entre os pesquisadores interessados na Sociologia Clínica (e Psicossociolo-
gia) e nas demais clínicas do trabalho, como a Ergologia (criada por Yves
Schwartz), a Psicodinâmica do Trabalho (inaugurada por Christophe De-
jours) e a Clínica da Atividade (que teve como um de seus precursores Yves
Clot). Destacamos, a esse respeito, os livros Clínicas do trabalho: novas
perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (Bendassolli &
Soboll, 2011) e Métodos de pesquisa e intervenção em psicologia do traba-
lho: clínicas do trabalho (Bendassolli & Soboll, 2014) que materializam
esse estreitamento, o qual encontra seu denominador comum nas refle-
xões acerca do cenário laboral brasileiro. Sobretudo após os anos de 1990,
foram também impulsionados os diálogos com a Psicologia Social prefigu-
rada por Silvia Lane, a Sociologia do Trabalho brasileira (fomentada por
Ricardo Antunes e Giovanni Alves) e com os movimentos institucionalistas
defensores da saúde coletiva no país.
Matheus Viana Braz | 161

Realizando pesquisas e intervenções em decuplicados contextos (ins-


tituições e organizações, públicas ou privadas), os pesquisadores
brasileiros contribuíram significativamente para o desenvolvimento e am-
pliação do campo da Psicossociologia e Sociologia Clínica. Sem a pretensão
de contemplar os esforços de todos, na Tabela I fizemos uma síntese dos
principais quadrantes de reflexão das abordagens clínicas em nosso país
(nos últimos vinte anos), seguidos de referências que poderão direcionar
o leitor a uma bibliografia inicial:
Tabela I: Principais quadrantes temáticos da Psicossociologia e Sociologia Clínica no Brasil. Criação nossa.
Quadrantes temáticos Bibliografia

Barros e Nogueira (2007)


Castro (2010)
Relações de/no trabalho, Da Silva e Hashimoto (2012)
sofrimento e adoecimento Roesler (2012)
Viana Braz e Hashimoto (2018)
Siqueira, Dias e Medeiros (2019)
Viana Braz, Casadore e Hashimoto (2020)

Mata Machado et al. (2001)


Araújo e Greggio (2008)
Barros (2009)
Hipermodernidade, trabalho,
Féres-Carneiro (2009)
exclusão e vulnerabilidades
Nunes e Silva (2011)
Nunes (2014)
Carreteiro, Araújo e Barros (2015)
Vilela e Barros (2017)

Carreteiro (2003)
Araújo (2006)
Carreteiro e Ude (2007)
Movimentos sociais, arte,
André (2007)
política e cultura
Nunes (2009)
Mata Machado (2012)
Massa (2013; 2016)
Silva (2015)

Prestes Motta e Freitas (2000)


Gestão das organizações e Azevedo (2005)
transformações no trabalho Castro, Alvarez e Luz (2017)
Hashimoto (2018)
Viana Braz (2018; 2019)
162 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Araújo e Carreteiro (2001)


Instituições sociais, Takeuti e Bezerra (2012)
educação e saúde Rossetti e Araújo (2017)
Araújo, Ferreira e Almeida (2016)
Monteiro e Araújo (2018)

Takeuti (2002)
Narrativas de vida e
Takeuti e Niewiadomski (2009)
trajetórias sociais
Carreteiro e Rodriguez (2015)
Carreteiro (2017)

A essa altura, cabe ainda uma interrogação. Afinal, no Brasil há uma


distinção entre Psicossociologia e Sociologia Clínica? Estamos diante de
uma complexa questão, mas nos arriscaremos a tecer alguns comentários
a esse respeito. Diferentemente da França, em território nacional não fo-
ram criadas associações ou instituições voltadas às abordagens clínicas,
como a ARIP, o CIRFIP ou o IISC. Com efeito, observamos dois fenômenos.
Primeiro, de modo a mitigar as resistências institucionais provenientes da
academia, parece ter se convencionado, em maior ou menor grau, a atri-
buir a noção de Psicossociologia aos movimentos nascentes em faculdades
de Psicologia (e Administração), enquanto nos departamentos de Sociolo-
gia ou Ciências Sociais preferiu-se a utilização do termo Sociologia
Clínica34. Além disso, no Brasil ambos os pesquisadores fazem parte das
redes internacionais como o RISC ou o RC-46 da ISA. Trocas de experiên-
cias, organização de eventos e livros conjuntos são práticas frequentes na
Psicossociologia e Sociologia Clínica brasileira. Segundo, parece que a dis-
tinção proposta por Enriquez (1993) não teve ressonância significativa em
nosso país. Em nossas buscas, encontramos produções acadêmicas que
versam sobre trabalhos realizados em organizações e espaços fechados,
bem como em outros locais cujas fronteiras não são reguladas ou são di-
fusas (Azevedo, Braga, & Castilho Sá, 2002; Azevedo, 2005; André, 2007;
Carreteiro, 2009; Takeuti, 2009; Takeuti & Bezerra, 2009; Moraes & Mo-
rato, 2011; Massa, 2013; Silva, 2015; Pinto, Carreteiro, & Rodriguez, 2015;

34
Com raras exceções, os movimentos brasileiros da Psicossociologia e Sociologia Clínica nasceram e foram condu-
zidos em universidades públicas.
Matheus Viana Braz | 163

Carreteiro, 2017; Hashimoto, 2018). Mas, contrariamente às proposições


de Enriquez (1993), os termos Psicossociologia e Sociologia Clínica são
usados quase que de forma genérica para ambas as situações, de modo que
não constatamos qualquer diferenciação em relação às delimitações de
suas espacialidades.
Ora, a distinção que propusemos no primeiro capítulo, relacionada ao
desenvolvimento da Sociologia Clínica francesa, não se aplicaria então à
realidade brasileira? Ou estaríamos diante de um falso problema ou de um
preciosismo acadêmico? No Brasil, as particularidades institucionais pare-
cem ter culminado em uma espécie de convenção, em que os termos
Sociologia Clínica e Psicossociologia tendem a ser utilizados nos departa-
mentos de Sociologia e Psicologia respectivamente. Do ponto de vista das
ferramentas de intervenção, contudo, encontramos uma tênue peculiari-
dade.
De acordo com nosso levantamento da literatura, observamos que na
Psicossociologia como na Sociologia Clínica há a predominância da utiliza-
ção da abordagem biográfica a partir de variadas formas: oral, escrita,
memorial, etnocinematográfica, audiovisual e fotográfica. Todavia, as
poucas menções que encontramos sobre os Grupos de Implicação e Pes-
quisa (GIP) ou sobre o Organidrama, objetos deste livro , se restringem
aos estudos que se propõem a discutir os pressupostos teórico-técnicos da
Sociologia Clínica (Castro & Guerrero, 2013; Massa, 2013; Takeuti, 2009;
Nunes & Silva, 2018). Estes, por sua vez, no cenário nacional ainda per-
manecem restritos ao trabalho de atores sociais específicos, que tiverem a
oportunidade de seguir as formações oferecidas pelo RISC35, IISC ou que
conheceram esses dispositivos enquanto realizavam intercâmbios acadê-
micos na França. Esse é o caso de pesquisadores como Ana Massa, Vera
Roesler, Fernando Gastal de Castro, Teresa Carreteiro, Christiane Girard,
Norma Takeuti e Pedro Henrique Isaac Silva, para citar alguns. Ademais,
além de não termos encontrado nenhuma pesquisa que trata diretamente

35
Para acompanhar os programas, eventos e formações da Sociologia Clínica no Brasil, acessar: https://www.socio-
logie-clinique.org/brasil/
164 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

das nuances metodológicas dos GIP (por exemplo) no Brasil, os trabalhos


nos quais identificamos breves considerações sobre o dispositivo se vincu-
lam a somente três grupos de pesquisadores. O primeiro se refere aos
estudos desenvolvidos no seio do grupo Diálogos em Sociologia Clínica,
coordenado por Christiane Girard (Brasília), o segundo aos movimentos
organizados por Norma Takeuti em Natal, no Rio Grande do Norte e, o
terceiro, às pesquisas impulsionadas por Fernando Gastal de Castro, no
Rio de Janeiro.
Ao explorar essa questão, de modo algum reivindicamos que há uma
segregação das abordagens clínicas no Brasil. Concordamos ainda com En-
riquez (1993) que as diferenças entre Sociologia Clínica e Psicossociologia
são tênues e, no fim das contas, o que não podemos perder de vista são
seus operadores correlatos, quais sejam, a postura clínica favorecedora da
mudança sociopolítica e o posicionamento contrário ao positivismo, ins-
trumentalismo e ao pragmatismo. Ao fazer essa pontuação, ensejamos tão
somente lançar luz para a compreensão do porque os estudos sobre alguns
dispositivos de pesquisa e intervenção da Sociologia Clínica (como o Orga-
nidrama e os GIP) são incipientes e não receberam atenção considerável
na produção acadêmica brasileira, tal como ocorreu, por exemplo, na
França, Canadá, Argentina e México. Este fato, portanto, justifica a neces-
sidade premente da realização de estudos sistemáticos sobre os aportes
desses dispositivos às demandas sociais circunscritas no território brasi-
leiro. Esperamos, neste livro, poder contribuir com esse propósito,
mediante a análise e problematização das especificidades dessas ferramen-
tas metodológicas, já substancialmente difundidas em outros países.
Segundo Bertaux (2009), as metodologias assentadas nos relatos de
vida podem ter três funções: exploratória, analítica e expressiva. A pri-
meira estaria relacionada às etapas iniciais da pesquisa-ação, nas quais se
busca obter informações sobre o campo estudado. A segunda serve para
colocar em movimento os atores envolvidos, bem como para sustentar de-
terminado arcabouço teórico, à medida que a análise proposta é sempre
resultante de um recorte estabelecido pelo pesquisador. Logo, a terceira se
Matheus Viana Braz | 165

refere à capacidade de síntese, seja do sujeito, seja do interventor, ligada


também ao potencial de mudança social proveniente das práticas propos-
tas. A partir da acepção de Bertaux (2009), poderíamos exemplificar que
as entrevistas semidirigidas biográficas teriam uma função exploratória e
analítica vigorosa, contudo a expressividade desses métodos seria miti-
gada por questões próprias às limitações de seus enquadres.
Reproduzimos, em consonância, as provocações feitas por Takeuti (2009):

Como desenvolver uma metodologia onde indivíduos, desejosos em se impli-


car e em se engajar em um trabalho de história de vida, ocupem o lugar
central, não só como narradores, mas principalmente como coprodutores de
sentido e de hipóteses sobre os temas que os concernem nesse dispositivo de
reflexão? Metodologia na qual eles não tenham somente o papel de alimentar
pesquisas com seus dados biográficos e relatos de suas práticas sociais e quo-
tidianas, e que tenham, antes de tudo, o papel de sujeitos sociais, os quais se
implicam em dispositivos que eles próprios ajudam a conceber com base em
suas expectativas sociais? (Takeuti, 2009, p. 83, grifos da autora).

Quando trazemos em primeiro plano dispositivos como os GIP e o


Organidrama, chamamos atenção para o potencial de se fomentar pesqui-
sas e intervenções que passam pela ação social engajada e ativa. Ainda que
flexibilizados seus enquadres, os pressupostos fundantes do arcabouço
metodológico da Sociologia Clínica parecem intensificar a função expres-
siva evocada por Bertaux (2009), no sentido da ampliação das
possibilidades de se construir coletivamente reflexões e estratégias de mu-
dança social. E é, portanto, em razão dessas características, que Takeuti
(2009) discorre que na essência desses dispositivos se encontra a experi-
ência relacional, sempre imprevisível, mas que constitui também o motor
de nossa existência social.
Até o presente momento, fizemos uma incursão pela genealogia da
Sociologia Clínica, enfatizando as principais produções encontradas na li-
teratura. Tal processo nos ofereceu subsídios para compreendermos o
contexto de nascimento e desenvolvimento do movimento brasileiro, pro-
tagonizado por mulheres (como nos demais países da América Latina) e
166 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

comprometido politicamente com o combate às múltiplas desigualdades


inerentes à história de nosso país. No próximo capítulo, nos propusemos
a sistematizar os enquadres e premissas metodológicas do Organidrama e
dos Grupos de Implicação e Pesquisa. Tal percurso se revela fundamental
para que consigamos responder, na parte final deste livro, a algumas in-
terrogações que constituem a espinha dorsal de nosso trabalho: como
pensar os dispositivos de pesquisa e implicação levando em conta a reali-
dade social e a polissemia de cenários de trabalho do Brasil? Quais os
desafios de sua utilização em organizações públicas e privadas? É possível
criar modalidades de ação que abarquem os trabalhadores mais precariza-
dos, os quais vivem nas franjas da informalidade, a margem do mercado
formal de emprego?
4

Narrativas de vida e dispositivos de pesquisa e intervenção:


detalhamento dos enquadres metodológicos 1

A Sociologia Clínica remete a um campo de escuta, implicação e mu-


dança. Ao passo que se distancia de perspectivas patologizantes,
totalizantes e adota uma postura sensível sobre a subjetividade e o sofri-
mento psíquico, ela se propõem também a fazer uma clínica do social,
distanciando-se das práticas analíticas centradas tão somente no indiví-
duo, inserido em dispositivos particulares (Lhuilier, 2011). Ao servir-se de
uma matriz pluridisciplinar, entende-se que os processos psíquicos não
bastam para compreender o sujeito em situação. Para tanto, é preciso con-
siderar as dinâmicas, relações, vínculos e imaginários sociais coletivos,
ademais de uma ampla gama de fenômenos (do intersubjetivo ao societal),
que demandam uma óptica sensível em relação aos processos de exclusão,
cristalização, alienação, dominação e instrumentalização, juntamente às
relações de conflito, solidariedade, confiança, estima e emancipação (Viana
Braz, 2019).
Iremos debruçar-nos, neste capítulo, sobre dois dispositivos de pes-
quisa e intervenção da Sociologia Clínica: os Grupos de Implicação e
Pesquisa (GIP) e o Organidrama. A partir da perspectiva compreensiva e
enquanto metodologias grupais, tais dispositivos parecem constituir alter-
nativas profícuas no trabalho de exploração das relações entre os conflitos
vividos no espaço laboral e as contradições das organizações e de nossa

1
Reflexões e fragmentos deste capítulo foram anteriormente publicados no seguinte artigo: Viana Braz, M.; Hashi-
moto, F. (2020). Grupos de Implicação e Pesquisa e Organidrama como dispositivos de pesquisa e intervenção no
mundo do trabalho. Revista Laboreal, 17(1): 01-31.
168 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

sociedade. Uma vez que já compreendemos os fundamentos teórico-me-


todológicos da Sociologia Clínica, tentaremos elucidar alguns
questionamentos: como são operacionalizados seus dispositivos de inter-
venção? Em quais condições e enquadres são realizadas as intervenções?
Tratamos de quadros metodológicos específicos, pautados em acep-
ções teórico-técnicas inspiradas no sociodrama de Moreno, no Teatro-
Fórum desenvolvido por Augusto Boal e na análise dialética da dinâmica
afetiva dos grupos, a partir da leitura proposta por Pagès. Antes de aden-
trar, stricto sensu, no campo de nossas interrogações, é preciso fazer uma
incursão por esses três operadores.

4.1 Da dinâmica afetiva dos grupos à epistemologia da complexidade:


a análise dialética de Max Pagès

Max Pagès não só descobriu a teoria de Rogers na década de 1950,


como também foi precursor da difusão da abordagem não diretiva na
França. Entre 1951 e 1958, como diretor da Commission d’Étude Générale
d’Organisation Scientifique (CEGOS), o psicólogo realizou variadas inter-
venções baseadas nessa perspectiva, assim como vislumbrava a criação de
uma sócio-terapia aplicada às organizações (Pagès, 1965/2005). Nos dois
trabalhos frutos do aperfeiçoamento de sua tese de doutorado, Pagès
(1965/2005; 1968/1984) se dedicou à articulação da teoria rogeriana com
a Psicanálise, em favor da construção de uma teoria da relação humana
que servisse de subsídio às intervenções psicossociológicas.
Em A vida afetiva dos grupos (Pagès, 1968/1984), a multirreferenci-
alidade e a visão dialética que atravessam os trabalhos de Pagès ficam
evidenciadas em suas proposições acerca das estruturas socioafetivas sub-
jacentes às organizações. Uma pesquisa e intervenção, realizada por Pagès,
Rouchy e Lévy em uma usina francesa, nos anos de 1962 e 1963, merece
destaque nessa conjuntura. Chamados pela Diretoria Geral da empresa, a
principal demanda endereçada aos pesquisadores estava ligada a proble-
mas de comunicação, os quais produziam uma cisão entre os gestores
Matheus Viana Braz | 169

jovens e os mais velhos, que por sua vez imobilizava o funcionamento da


direção. Após a formação de subgrupos, que se reuniam semanalmente
para discutir os problemas encontrados na empresa, identificou-se que
parte significativa dos obstáculos à comunicação estava vinculada a pro-
blemas afetivos e relacionais nutridos pela própria organização. Operava-
se, nesse ínterim, uma clivagem, na qual alguns Diretores Gerais eram re-
conhecidos como gestores bons e colaborativos, enquanto outros do
mesmo nível eram considerados “parasitas servis”, sobre os quais pode-
riam descarregar suas hostilidades. Mais ainda, de acordo com Pagès
(1968/1984), embora houvesse um discurso de fomento ao trabalho em
equipe, inconscientemente os próprios gestores da Diretoria Geral se tra-
tavam a partir dessa divisão, como se agressões e atitudes autoritárias
fossem justificadas por uma dinâmica organizacional que os ultrapassava.
Este exemplo nos parece representativo, pois nele Pagès elucida como
a estrutura socioafetiva da organização condicionava os comportamentos
dos trabalhadores e, inclusive, legitimava um funcionamento patológico
da empresa. Em que pese o fato de que a referida intervenção foi inter-
rompida antes de seu término e, portanto, que não foi possível modificar
as relações de autoridade e os sistemas de defesa da indústria, o trabalho
realizado com os grupos possibilitou um questionamento sobre essa dinâ-
mica organizacional, além de ter suscitado um ambiente de maior
liberdade de expressão, que perdurou após a retirada dos pesquisadores
(Pagès, 1968/1984).
Depois, na ocasião da publicação da obra O poder das organizações,
em 1979, a evolução das conceituações de Pagès culminou na criação de
uma nova epistemologia da complexidade, que conjugava influências ori-
undas da Psicanálise (sobretudo a kleiniana), do materialismo histórico de
Marx, mas também continha heranças dos debates originados no seio do
movimento institucionalista francês. Além das observações participantes
e das entrevistas realizadas com os trabalhadores da empresa, fez parte da
metodologia desse estudo pluridisciplinar a realização de um Seminário de
Implicação e Pesquisa, com os principais gestores da IBM, sob a matriz
170 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

temática Eu e a Organização (Arnaud, Fugier, & Vidaillet, 2018). Nesse li-


vro, segundo Pagès et al. (1979), ao concebermos que nas organizações há
um constante jogo de tensões, atravessado por grupos de interesses diver-
gentes2, apreendemos que em suas estruturas organizacionais são criados
sistemas mediadores (psicológicos, ideológicos, econômicos e políticos)
cuja finalidade é garantir a produtividade, ocultar essas contradições e im-
pedir a irrupção de conflitos coletivos. Assegurando o investimento
libidinal dos trabalhadores, mediante gratificações narcísicas e promessas
que passam por identificações de cunho maternal, essa dinâmica sócio-
organizacional determina formas específicas de se portar, de pensar e exe-
cutar o trabalho, direcionando os conflitos ao nível individual3. Portanto,
em vez de analisar a organização como uma coisa, mais ou menos amorfa,
a partir de critérios previamente determinados, como fazem as ciências
gerenciais positivistas, a análise dialética empreendida nesse trabalho im-
plicava essencialmente a compreensão da empresa em sua complexidade
e enquanto um produto dinâmico de sistemas de respostas às contradições
que lhe atravessam.
No campo grupal e institucional da abordagem psicossociológica, a
análise dialética pagesiana se consolidava em detrimento da orientação
não diretiva rogeriana. Também em contraposição à aplicação pura da Psi-
canálise na compreensão dos fenômenos sociais (tal como proposta por
Anzieu, por exemplo), de acordo com o autor:

A análise dialética, para dizer em poucas palavras, visa superar a hegemonia


das escolas de pensamento. O hegemonismo não se restringe às rivalidades
entre as escolas, mas ele se opera no núcleo das doutrinas científicas, no nível
das metateorias e dos princípios pan-explicativos. A análise dialética desloca a
ênfase desse nível em direção ao mais modesto dos processos. Ela estuda as

2
Podemos enxergar esse fenômeno mediante os embates constantes, por exemplo, entre as áreas de produção e
qualidade de uma indústria. Enquanto a primeira é cobrada para produzir o mais rápido possível, para alcançar as
metas que lhe são colocadas, a segunda é responsável justamente pela garantia de que os produtos criados sigam
com rigor os padrões estabelecidos. Com efeito, constantemente há tensões colocadas entre os setores, como se um
estivesse sempre atrapalhando e impedindo o trabalho do outro.
3
Interessados por essa lógica de funcionamento, realizamos uma pesquisa acerca dos sistemas mediadores em com-
panhias multinacionais brasileiras, que pode ser vista em Viana Braz (2019).
Matheus Viana Braz | 171

articulações entre processos relativos a diferentes registros da realidade, psí-


quica, emocional, corporal, social. Colocam-se em relação de oposição,
dinâmica e criativa, diferentes disciplinas das ciências humanas, como a Psi-
canálise, a Sociologia, a Etologia, teoria das emoções... Trata-se de uma
epistemologia concreta da complexidade (Pagès, 1999, p. 117, citado por Ar-
naud, 2004, p. 974).

Na esteira da noção de pensamento complexo prefigurada por Edgar


Morin, Pagès defendia a articulação entre diferentes domínios disciplina-
res e assumia que toda produção de saber implicava o reconhecimento do
estado de incompletude do conhecimento. Crítico duro dos sectarismos,
reducionismos e das escolas que se orientavam por uma matriz única de
pensamento (as quais o autor ironicamente denominava religiões científi-
cas), o psicólogo tampouco caía na armadilha da produção de colchas de
retalhos teóricas. Na epistemologia da complexidade, duas noções garan-
tiriam que multirreferencialidade não fosse confundida com justaposição.
A problematização múltipla parte do pressuposto que um mesmo fenô-
meno pode ser compreendido a partir de distintas perspectivas (sociais,
biológicas, psicológicas etc). Já a autonomia relativa diz respeito ao fato
que diferentes fenômenos obedecem a leis e lógicas específicas, mas que
são eventualmente interdependentes e indivisíveis (Pagès, 1993). O sonho,
por exemplo, poderia ser estudado enquanto um conjunto de processos de
ordem psicológica, biológica ou como produto de traços mnêmicos inscri-
tos no registro do social. Para cada perspectiva, o pesquisador deveria se
servir de sistemas de conhecimento estruturados mediante leis e referen-
ciais específicos. Nesse embate disciplinar, contudo, não haveria nenhum
hegemonismo, a autonomia relativa (e a interdependência) de cada

4
No original: L’analyse dialectique, pour le dire en peu de mots, vise à dépasser l’hégémonisme des écoles de pensée.
L’hégémonisme ne se cantonne pas dans les rivalités d’écoles, il opère au coeur des doctrines scientifiques, au niveau
des métathéories et des principes pan-explicatifs. L’analyse dialectique déplace l’accent de ce niveau vers celui plus
modeste des processus. Elle étudie les articulations entre processus concernant des secteurs différents de la réalité,
psychique, émotionnelle, corporelle, sociale. Elle place en rapport d’opposition dynamique et créatrice différentes
disciplines des sciences humaines, psychanalyse, sociologie, éthologie, théorie des émotions… C’est une épistémologie
concrète de la complexité.
172 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

processo seria respeitada e a explicação do fenômeno nunca se daria por


acabada ou completa.
Ao conjugar sua teoria das relações humanas (1968/1984) com a
epistemologia fundada em O poder das organizações (Pagès et al., 1979),
Pagès buscou ainda estruturar uma teoria da psicoterapia como prática
complexa (Pagès, 1993), que integrava a análise dialética da história social
do indivíduo, com suas emoções, conflitos psíquicos e inconscientes. Tra-
tava-se, portanto, de um dispositivo terapêutico que contemplava um
trabalho com grupos (compostos por no máximo dez pessoas), mas que
implicava também que os participantes fizessem psicoterapias individuais,
seja com um dos dois mediadores do grupo, seja com qualquer outro psi-
cólogo. A proposta, apresentada no livro Psychotérapie et complexité
(Pagès, 1993), conjugava variados referenciais cuja finalidade consistia em
produzir interpretações e mobilizações subjetivas em diversas dimensões.
Quando Pagès (1993) postula, por exemplo, o psicodrama emocional
como uma de suas estratégias terapêuticas combinadas, evidencia-se um
prolongamento do campo do psicodrama moreniano, consolidado a partir
do psicodrama triádico de Ancelin-Shutzenberger (2003) e da leitura freu-
diana e marxista dos processos grupais e institucionais. Busca-se, então,
trabalhar no campo do analítico, do individual, do grupal e do emocional,
segundo práticas que se alimentam mutuamente em função de suas opo-
sições.
Em suas principais obras (Pagès 1968/1984; 1986; 1993; Pagès et al.,
1979), Pagès empreendeu esforços na tentativa de elucidar as bases expli-
cativas das relações entre a realidade grupal e a ordem das emoções. A
afetividade coletiva, portanto, não seria um epifenômeno, próprio a uma
estrutura inerte. Ao contrário, os sentimentos dominantes compartilhados
pelos membros de determinado grupo seriam peças chaves à compreensão
de sua lógica de funcionamento. E é por isso que a análise dialética pro-
posta pelo autor carrega em seu bojo a abertura ao pluralismo expressivo,
ao diálogo aberto e espontâneo. Não à toa, uma das principais críticas que
Pagès (1968/1984) endereçava à Psicanálise residia em sua restrição a
Matheus Viana Braz | 173

zonas específicas de linguagens (em especial aquelas do domínio das in-


terpretações racionais), bem como a enquadres unilaterais de intervenção.
Enfim, se Pagès (1993) passou a utilizar em suas intervenções ferramentas
de expressão não verbal, como as técnicas do sociodrama, a dança e a mú-
sica (por meio do canto), foi também para encontrar meios de
manifestação da experiência afetiva no domínio corporal e para enfrentar
os sistemas coletivos de defesa que eventualmente se fazem presentes nas
organizações.
Diferentemente da perspectiva lewiniana, na abordagem clínica do
social a pesquisa não é complementar à ação. Na medida em que é produto
da expressão dos sentimentos e afetos da relação entre os sujeitos, ela se
assenta em uma prática transformadora e, por vezes, inclusive se con-
funde com essa ação (Pagès, 1968/1984). Se Pagès (1986) focou-se nos
fenômenos inerentes à afetividade dos grupos, é porque observou que o
enquadre grupal oferecia suporte a projeções ansiogênicas, assim como
garantia o surgimento de identificações5 laterais entre os participantes en-
volvidos. Como instância social de controle, o grupo simboliza a lei coletiva
e delimita o espaço dos conflitos que se reeditam em seu núcleo. No nível
emocional, as identificações cumprem papel determinante nesse trabalho.
Não raro, durante uma dinâmica grupal, um participante se identifica e
inclusive se emociona com os significantes evocados por outros membros.

O grupo é um espaço transicional entre o psíquico e o social. Ele permite ex-


perimentar, com outros, diante dos outros, interações emocionais, relacionais
e sociais, notadamente as revivendo de outra maneira, de forma menos brutal,
diferentes aspectos que “habitam” a psique e que são o rastro incorporado de
violências humilhantes (Gaulejac, 1996/2008, p. 2826).

5
De acordo com Laplanche e Pontalis (2001), a identificação corresponde a um “[...] processo psicológico pelo qual
um sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente,
segundo o modelo desse outro. A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações” (p. 226).
6
No original: Le groupe est un space transitionnel entre le psychique et le social. Il permet d’éprouver avec d’autres,
en face eds autres, des interactions émotionnelles, relationnelles et sociales notamment en revivant autrement, de
façon moins brutale, différentes affects qui « habitent » ça psyché et qui sont la trace incorporée de violences humi-
liantes.
174 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Nas pesquisas e intervenções em Sociologia Clínica, enquanto instân-


cia simbólica representante de um coletivo exterior, o grupo permite que
os participantes se situem em relação às suas histórias. São nos espaços
grupais que o sujeito reflete sobre questões naturalizadas e interiorizadas.
Ao encenar as situações, mediante o jogo de papéis, por exemplo, os sujei-
tos exprimem seus fantasmas e angústias, prescindindo do temor da
rejeição ou da vergonha da exposição. Os conflitos, portanto, podem se
ressignificar em sua dimensão sócio-histórica, mediante a expressão de
vivências pessoais.
Entre a escuta de falas individuais e a reflexão coletiva, as identifica-
ções e projeções evidenciam movimentos de tensão, de aliança e
dominação no interior dos grupos. Os interventores, atuando como medi-
adores, devem estar preparados para compreender os movimentos e
aspectos transferenciais que atravessam a dinâmica relacional do grupo
(Pagès, 1968/1984). O encontro “[...] da palavra do indivíduo com a pala-
vra do outro (outros participantes e/ou interventores) e seu
desdobramento através de um espaço-tempo estruturado, permite a evo-
lução da problemática considerada no seio do grupo: de individual, ela
torna-se organizacional e, talvez, societal” (Vandevelde-Rougale, 2012, p.
57).
Enfim, trabalha-se no plano intersubjetivo e, por meio de ressonân-
cias emocionais, busca-se a exploração de diferentes aspectos sociais e
coletivos, inerentes aos conflitos e situações imaginárias suscitadas na di-
nâmica grupal. A partir da contextualização de cada história de vida e da
produção coletiva de hipóteses interpretativas, a análise de conflitos psí-
quicos, familiares e sociais é validada e elaborada recursivamente na
abordagem clínica (Gaulejac, 1996/2008). Para lograr tal intento, a Socio-
logia Clínica bebeu também da fonte teórico-técnica de autores como
Moreno e Boal, sem abandonar, contudo, seu rigor epistemológico e seus

7
No original: La rencontre de la parole de l’individu avec la parole d’autrui (autres participants ou/et intervenants)
et son déploiement à travers un espace-temps structuré permettent l’évolution de la problématique considérée au
sein du groupe : d’individuelle, elle devient organisationnelle, voire sociétale.
Matheus Viana Braz | 175

pressupostos metodológicos, assentados nas contribuições de Pagès acerca


da análise dialética e das dinâmicas afetivas dos grupos.

4.2 O sociodrama de Jacob Levy Moreno

Nascido na Romênia (1889 – 1974), crescido na Áustria e naturalizado


estadunidense, Moreno figura entre os precursores dos estudos sobre gru-
pos na primeira metade do século XX. Além do sociodrama, Moreno foi o
criador do psicodrama, da sociometria, do axiodrama, da teoria de papéis
e da socioatria (Ancelin-Schutzenberger, 2005). Sobretudo em cursos de
Psicologia, suas contribuições são até hoje comumente difundidas em ter-
ritório brasileiro.
Quando se mudou à Viena para realizar sua graduação em medicina,
Moreno se envolveu com o movimento teatral da cidade, porém se desilu-
diu com o hegemônico teatro romântico de sua época. Motivado a buscar
alternativas para valorizar a criatividade, mediante a ampliação da espon-
taneidade no trabalho de dramatização, em 1922 o autor criou o Teatro
Espontâneo, o qual consistia na realização de cenas improvisadas sugeri-
das pelos atores ou pelo próprio público. Nesse contexto, tornou-se célebre
o “caso Bárbara”. Anna Hollering, atriz participante das sessões de Teatro
Espontâneo, ficou reconhecida pela sua capacidade e talento para repre-
sentar figuras românticas ou de heroínas. Seu marido, contudo, certa vez
confessou a Moreno que em seu reduto familiar, Hollering era hostil e
agressiva, inclusive chegando a atacar as pessoas fisicamente. Moreno, en-
tão, em sessões posteriores do teatro propôs à atriz que desempenhasse o
papel de uma prostituta, cuja personalidade era marcada pela grosseria e
vulgaridade. Nesta cena, havia outro personagem, de um assassino que
agredia e matava jovens na cidade de Viena. A partir da improvisação, Bár-
bara o xingou e o agrediu após intensas discussões. Conforme
representava cenas nas quais havia possibilidade de expressão de sua
agressividade, paulatinamente os ataques de violência da atriz diminuíam
de intensidade na vida real, segundo relatos de seu marido. O Teatro
176 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Espontâneo, portanto, foi essencial à criação posterior do psicodrama e do


sociodrama, pois permitiu que Moreno se questionasse sobre os possíveis
efeitos terapêuticos oriundos dos trabalhos de improvisação (Menegazzo,
Tomasini, & Zuretti, 1995).
O ato catártico, para Moreno, não representava somente uma des-
carga emocional, senão que instituía um modo outro de relacionamento
na representação dramática, que por sua vez enriquecia o campo de per-
cepções do sujeito sobre a realidade social na qual estava inserido. No
registro intelectual, seriam reestabelecidos vínculos conflituosos, permea-
dos de processos de negação ou repressão, o que permitia a exploração de
novos sentidos aos conteúdos trazidos nas representações. No registro
emocional, evocava-se a esfera dos sentimentos e experiências, isto é, da
discriminação e reatualização dos afetos. No registro axiológico, mediante
a liberação de formas expressivas cristalizadas no espaço cênico, a catarse
de integração possibilitava a reorganização ou surgimento de novas con-
dutas. Enfim, na inter-relação entre esses três planos, Moreno defendia
que pensamento, ação e sentimento se unificavam em um único espaço-
tempo (Menegazzo, Tomasini, & Zuretti, 1995).
Moreno acreditava em mudanças microssociais, produzidas no inte-
rior dos grupos e que nutriam as possibilidades de transformações
macrossociais. Foi, então, baseado nessas crenças que o autor criou o so-
ciodrama. Ao contrário do psicodrama, que se foca nos conflitos de um
participante do grupo, no sociodrama se priorizam análises e compreen-
sões de sofrimentos e conflitos supra-individuais, bem como de valores e
ideologias compartilhadas em relações intergrupais, comunitárias, a partir
de situações-problemas delimitados. Centra-se, portanto, nas vincularida-
des coletivas, mais do que nas fantasmáticas individuais. Justamente por
isso, Moreno utilizou o sociodrama com casais, famílias, grupos de convi-
vência, de aprendizagem, de produção e equipes institucionais (Moreno,
1978; Menegazzo, Tomasini, & Zuretti, 1995).
Trata-se de uma metodologia de pesquisa e intervenção ativa, que
coloca em articulação os conflitos que permeiam diferentes redes sociais.
Matheus Viana Braz | 177

Pela expressão de seus sentimentos, na abordagem moreniana o indivíduo


encena as situações com o apoio dos demais personagens que compõem o
espaço cênico. Há, nesse ponto, um enquadre específico, que conta com
cinco instrumentos: diretor, ego-auxiliar, protagonista, plateia e cenário.
O diretor e o ego-auxiliar8 constituem a equipe técnica, isto é, os pro-
fissionais capacitados a conduzirem as sessões sociodramáticas. O
primeiro coordena o trabalho grupal, orientando o protagonista e facili-
tando a dramatização; e o segundo oferece suporte à cena, atuando como
“ator”, representante de pessoas ausentes que aparecem na vida do prota-
gonista. Além disso, a função de ego-auxiliar pode eventualmente ser
espontânea, de modo que pode ser representada por outro membro do
grupo, escolhido pelo protagonista e que não faça parte da equipe técnica.
Ao ator central9 da cena dá-se o nome de protagonista, o qual desempenha
um papel cuja expressão traduz problemáticas de ordem grupal no socio-
drama. A plateia é composta pelas pessoas que não estão participando
diretamente da cena, porém que cumprem a função de caixa de ressonân-
cia, pois tanto ajudam o protagonista como são mobilizadas pelas
percepções, afetos e pensamentos emergentes na dramatização. Por fim, o
cenário remete ao espaço, virtual e de ação, onde transcorrem as intera-
ções dos papéis (Moreno, 1978; Menegazzo, Tomasini, & Zuretti, 1995).
No âmbito estrutural, o sociodrama se operacionaliza em três mo-
mentos: aquecimento, dramatização e comentários. O primeiro remete a
preparação para a ação sociodramática e é conduzido pelo diretor, que se
serve de ferramentas como música, exposição oral, técnicas de interação
não verbal, leituras de textos e discussões para preparar os participantes e
mobilizá-los em relação aos conflitos que surgirem no início da sessão. É
nessa etapa que se realiza o contrato dramático e a escolha dos protago-
nistas. O segundo momento contempla as representações dos papéis e a
expressão das vivências do protagonista e dos ego-auxiliares, bem como
as mudanças e diferentes caminhos que podem ocorrer na dramatização

8
Em uma sessão de sociodrama é comum que haja mais de um ego-auxiliar.
9
Pode haver em uma mesma cena mais de um protagonista.
178 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

pela via da criatividade e espontaneidade. Já os comentários contemplam


o terceiro momento, no qual há a abertura de um espaço para o compar-
tilhamento e análise coletiva de percepções, sentimentos e ressonâncias
produzidas pela encenação, a partir do olhar do protagonista como tam-
bém dos participantes da plateia (Moreno, 1978; Nery, Costa, & Conceição,
2006).
No sociodrama, o passado e futuro se reeditam nas vivências produ-
zidas no presente da dramatização. A associação de palavras, assentada na
criatividade e espontaneidade, representa um ingrediente fundamental ao
êxito desse processo terapêutico, tal como concebido por Moreno. A repre-
sentação ou jogo de papéis não possui uma função pragmática e racional,
mas imaginária e teatral. Desempenhar um papel significa abrir o campo
de possibilidades ao indivíduo para dissimular a realidade, identificando-
se simbolicamente a personagens ideais (Maisonneuve, 1977).
A essa altura é preciso fazer uma pontuação. Os precursores da Psi-
cossociologia e da Sociologia Clínica francesa conheceram os métodos de
pesquisa e intervenção de Moreno a partir de Anne Ancelin-Schützenber-
ger, figura responsável por difundir e desenvolver suas teorias na França.
Além de Moreno, a psicóloga teve sua formação notadamente marcada pe-
los estudos sobre as dinâmicas de grupo conduzidos no Research Center
for Groups Dynamics (criado por discípulos de Lewin) e pelas contribui-
ções da psicanálise freudiana. Logo, se Moreno é comumente criticado por
não ter dado a devida atenção aos fenômenos transferenciais presentes
nas dinâmicas grupais (Moreno, 1983), o mesmo não ocorreu com as pro-
postas de intervenção da autora. Em Paris, nos anos de 1960, Ancelin-
Schützenberger e Pierre Weil propuseram a ampliação do campo socio-
dramático, a partir de uma síntese dos pressupostos de Lewin, Freud e
Moreno. Cumpre sublinhar que este último, em 1963, chancelou essa pro-
posta, inclusive a intitulando de psicodrama triádico (Ancelin-
Schutzenberger, 2003). Neste método, coloca-se em primeiro plano a di-
nâmica de funcionamento e as relações transferenciais do grupo. Os
sentimentos e emoções do diretor e dos ego-auxiliares profissionais são
Matheus Viana Braz | 179

constantemente colocados em questão. Avaliar a situação do grupo e dis-


cuti-la é tão importante quanto à própria representação de papéis. Embora
as bases estruturais sejam as mesmas do sociodrama e do psicodrama mo-
reniano, nesta perspectiva não há uma dramatização necessariamente em
cada sessão. A ação sociodramática somente é evocada quando se revela
produto das interações e vivências grupais (Ancelin-Schutzenberger,
2003).
Se a Sociologia Clínica bebe da fonte do sociodrama, é porque o arca-
bouço teórico-técnico moreniano contempla de modo singular a expressão
corporal e emocional, em articulação com determinismos sociais. Entre-
tanto, é preciso demarcar que a abordagem clínica do social se aproxima
mais das proposições francesas do que de uma concepção puramente mo-
reniana. A dramatização, nesse contexto, não constitui uma finalidade,
senão que representa um recurso suplementar ao trabalho de análise e
elaboração das contradições psíquicas e sociais engendradas nos conflitos
grupais.
Ao contrário do sociodrama tal como concebido em sua origem, nos
Grupos de Implicação e Pesquisa, como no Organidrama, não se busca
atuar no plano terapêutico. Mais ainda, a prioridade não é alcançar o efeito
catártico do teatro, muito embora tal resultado possa ser desencadeado na
representação de alguma cena eventual (Gaulejac, 1999/2012). Ou seja,
ainda que nesse enquadre seja produzido um alívio no âmbito do sintoma,
a proposta da Sociologia Clínica não se assenta na oferta de uma cura. O
sociodrama se traduz em um instrumento cuja finalidade é facilitar o en-
gajamento do sujeito em relação às suas vivências, escolhas e conflitos. De
acordo com Bareicha e Nunes (2018), na Sociologia Clínica as histórias de
vida dos participantes dos grupos constituem a espinha dorsal da ação so-
ciodramática, e não o contrário. A dramatização se revela uma ferramenta
profícua para a ampliação dos meios de expressão do sofrimento e angús-
tia dos participantes do grupo, porém, em contraposição à proposta
moreniana, o momento final, de reflexão e análise acerca dos conflitos gru-
pais, ganha maior protagonismo na Sociologia Clínica.
180 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

4.3 O teatro-fórum de Augusto Boal

Embora o carioca Augusto Boal (1931-2009) tenha se graduado em


engenharia, desde sua infância se interessou pelo teatro. Aos 18 anos de
idade, já dedicava parte de seu tempo a escrever peças. Nos anos de 1950,
na ocasião da realização de sua tese de doutoramento em Engenharia Quí-
mica na Columbia University, aproveitou para estudar dramaturgia na
School of Dramatic Arts, na mesma universidade. Após seu retorno, em
1956 se integrou ao Teatro de Arena, uma das principais companhias de
teatro no Brasil, onde escreveu e dirigiu variadas peças, consagrando-se
como um dramaturgo reconhecido no eixo Rio - São Paulo (Boal, 1986).
Em 2008, Boal foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, em razão de seus
trabalhos com o Teatro do Oprimido. Seus livros foram traduzidos para
mais de 20 idiomas. No ano de sua morte, foi também nomeado embaixa-
dor mundial do teatro pela Unesco (Boal, 1975/2015). Remetemo-nos,
portanto, a uma figura histórica que marcou não só a produção de conhe-
cimentos e mudança social no Brasil, mas também no mundo.
Afeito pela articulação do teatro com a ação social política, Boal fez
parte da criação do Grupo de Opinião (1964-1982), cujo foco consistia, me-
diante a dramaturgia, em criar peças de teatro de resistência e protesto à
ditadura militar brasileira. Sob ameaças, após a promulgação do Ato Ins-
titucional nº 510, em 1968 Boal saiu do Brasil. Nos três anos subsequentes,
junto a outros artistas, difundiu as produções do Arena em países como
Estados Unidos, Peru, México e Argentina. Quando retornou ao Brasil, o
dramaturgo criou o Teatro Jornal, no qual trabalhava com dramatizações
a partir das notícias jornalísticas da imprensa brasileira. Visto como ame-
aça pelos militares, entre janeiro e maio de 1971 Boal foi ilegalmente preso

10
O AI5 foi o quinto decreto dentre os dezessete emitidos pela ditadura militar brasileira. Promulgado pelo então
presidente Artur da Costa e Silva, o AI5 marcou o endurecimento radical após o Golpe de Estado de 1964. O Congresso
Nacional e as Assembleias Legislativas (com exceção de São Paulo) dos estados foram fechados, a esfera federal pas-
sou a intervir indiscriminadamente na segurança e política dos municípios, a censura se generalizou e o Estado
naturalizou práticas de tortura contra aqueles que manifestavam resistência ou oposição ao governo (Chiavenatto,
1994).
Matheus Viana Braz | 181

e torturado no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Após a emissão de uma


condenação ilegítima e sem fundamentos, no mês de junho se exilou na
cidade de Buenos Aires (Boal, 1975/2015; 1986).
Nos seis anos seguintes, Boal trabalhou dando aulas, atuando e es-
crevendo peças, assim como realizou conferências na Argentina, Peru e
Equador. Identificado com a Teologia da Libertação emergente na América
Latina e com a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, foi nesse período
que o dramaturgo começou a pesquisar e desenvolveu o Teatro do Opri-
mido. Preocupado com a democratização do teatro, Boal começou a testar
um conjunto de técnicas cuja finalidade era vincular a atuação dramática
e a transformação social comunitária, fazendo dos espectadores atores das
cenas representadas (Boal, 1975/2015). A esse respeito, discorria o autor:

Imagine uma apresentação de teatro onde nós, os artistas, apresentássemos


primeiro nossa visão de mundo para que na segunda parte o público pudesse
criar seu próprio mundo, inventar seu próprio futuro, experimentar seus pró-
prios ideais? [...] Vamos criar esse mundo juntos primeiro no teatro, na ficção,
para estarmos preparados para fazê-lo na vida real (Boal, 1975/2015, p. 17).

A partir do teatro e de forma ativa, o dramaturgo buscava aprofundar


o diálogo e reflexão acerca de problemas de ordem política, social e cultu-
ral. O Teatro do Oprimido se revelou original, pois Boal propôs o
rompimento da “quarta parede” do teatro, que separava artistas e espec-
tadores. Logo, se endereçava a atores e não atores. A expressão espontânea
e improvisada se colocava em detrimento do rigor técnico na atuação tea-
tral (Boal, 1975/2015).
O Teatro do Oprimido pode ser praticado a partir de diferentes mo-
dalidades, como o Teatro Imagem, o Teatro Invisível, o Teatro
Investigativo, o Teatro Fotonovela e o Teatro-Fórum. Focaremo-nos, nesse
livro, neste último, uma vez que é a modalidade mais difundida no mundo
(Boal, 1975/2015) e também por constituir a principal influência na criação
dos dispositivos de pesquisa e intervenção da Sociologia Clínica.
Na década de 1970, Boal percorreu vários países aperfeiçoando suas
proposições teatrais, realizadas em espaços públicos. Após uma passagem
182 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

breve por Portugal, recebeu um convite para atuar como professor na Sor-
bonne e se mudou para a França em 197811. Em Paris, o dramaturgo
fundou o Centre d´Étude de Diffusion des Techniques Actives d’Expres-
sion, voltado ao estudo e difusão do Teatro do Oprimido.
O Teatro-Fórum, para Boal, contemplava um método de teatro e te-
rapia. A relação entre oprimido e opressor permeava suas peças, que
tratava questões como a submissão da mulher na vida doméstica, os jogos
de poder em torno do trabalho e da moral, os conflitos entre pais e filhos,
entre outras problemáticas sociais que emergiam nas sessões coordenadas
pelo autor (Boal, 1975/2015).
Operacionalmente, o Teatro-Fórum, concebido por Boal (1975/2015)
como “[...] um tipo de luta ou jogo” (p. 48), é estruturado segundo três
regras: dramaturgia, encenação e o espetáculo-jogo. Na primeira, cria-se
coletivamente um esboço de uma peça, no qual os personagens são iden-
tificados e caracterizados. Delimitam-se as situações sociais trabalhadas,
levando em conta que as proposições feitas pelos protagonistas servirão
de base ao posterior “debate-fórum”. A peça, portanto, deve apresentar ao
menos uma “falha” ou “erro”, cuja função é estimular os espectadores a
encontrar soluções e novas maneiras de confrontar a opressão referida.
Nesse ponto, uma cena pode ter naturalmente mais de um cenário, assim
como não há imposições em relação ao gênero da peça. Seja simbolista,
realista, seja expressionista, não se coloca um estilo ideal no Teatro-Fó-
rum. Objetiva-se, ao contrário, dialogar sobre questões concretas, a partir
da linguagem teatral. Quanto à encenação, os atores encarregados de re-
presentar a primeira cena se comprometem em transparecer o trabalho,
ideologias e características marcantes dos personagens.

É importante que os personagens realizem ações e façam coisas significativas,


sem as quais os espect-atores, ao substituírem as personagens, serão levados
a sentar em suas cadeiras e a fazer o “fórum” sem teatro – somente falando
(sem ações) como um rádio-fórum. É importante que todos os movimentos e

11
Em 1986 Boal retornou ao Rio de Janeiro e criou o Centro de Teatro do Oprimido (CTO), o qual dirigiu até a data
de sua morte.
Matheus Viana Braz | 183

gestos sejam significantes com significados, sejam verdadeiramente ação dra-


mática, e não pura atividade física, sem significados (Boal, 1975/2015, p. 49,
grifos do autor).

Já a terceira regra faz referência à dinâmica intelectual e artística do


Teatro-Fórum. Antes do início, o diretor ou, como nomeia Boal
(1985/2015), o “coringa”, explica as regras de funcionamento do jogo aos
espectadores, inclusive os convidando eventualmente a fazer alguns exer-
cícios de aquecimento. Em seguida, as situações esboçadas na dramaturgia
são encenadas tal como em um espetáculo convencional e devem enfatizar
ou conflito ou opressão que se busca resolver. O “espetáculo-jogo”, enfim,
começa nesse momento. Depois da encenação, o coringa se endereça a pla-
teia e questiona se estão de acordo com as soluções propostas pelos
protagonistas. Os espectadores que discordam são convidados a substitu-
írem gradualmente os protagonistas, de modo a refazerem o espetáculo
apresentando novos caminhos e soluções alternativas. Nas cenas posteri-
ores, os demais espectadores, ao sentirem que os protagonistas estão
trazendo alternativas falsas ou infrutíferas, são autorizados a se aproximar
da cena e a dizer “Pára!”. Logo, todos os atores devem se imobilizar e con-
gelar a encenação. O espectador, por sua vez, manifesta onde deseja que a
cena seja recomeçada (uma frase, momento ou movimento) e se retoma a
ação no ponto evocado. Com efeito, nesse novo momento ele se torna o
protagonista e o ator substituído assume uma função correlata ao ego-au-
xiliar no sociodrama. Os agentes incumbidos de representar as figuras de
opressão a intensificam, para mostrar ao novo protagonista as dificulda-
des em se transformar a realidade. Quando este último renuncia ou tem
suas ações esgotadas, sai do jogo e é substituído por outro espectador, con-
forma a dinâmica supracitada. Se Boal se refere ao Teatro-Fórum como
um luta, é porque se traduz em um embate entre os protagonistas que
desejam apresentar alternativas para mudar o mundo e os atores que ten-
tam oprimi-los, de forma a garantir a conservação da ordem social vigente
(Boal, 1975/2015).
184 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

No Teatro-Fórum, Boal (1975/2015) não tinha como finalidade apon-


tar ganhadores ou perdedores. O autor acreditava que esse dispositivo
possibilitava o exercício de ideias que poderiam ser transpostas em mo-
mento ulterior na vida real. Nas palavras de Boal, “[...] atores e plateia,
igualmente atuando, aprendem as possíveis consequências de suas ações.
Aprendem o arsenal dos opressores e as possíveis táticas e estratégias dos
oprimidos” (Boal, 1975/2015, p. 51).
No espetáculo-jogo, em cada intervenção realizada, cabe ao coringa
realizar uma síntese das propostas alternativas e questionar a plateia e os
atores sobre seus significados, discutindo percepções, opiniões e divergên-
cias. Seu papel, portanto, não é o de um expert e tampouco é detentor de
um conhecimento absoluto. O coringa atua como um facilitador, de modo
a fomentar que as pessoas exprimam seus conhecimentos e exercitem na
prática suas proposições (Boal, 1975/2015).
Abaixo, a título de ilustração trazemos na íntegra um breve exemplo
dado por Boal, acerca da experiência de um Teatro-Fórum realizado pu-
blicamente na praça central de uma pequena cidade da Sicília, na Itália,
nos anos de 1980.

A Família
Primeiro fizemos alguns exercícios e jogos, não só para aquecer o público e a plateia, mas também para criar
uma atmosfera agradável e certa “conexão artística”. Depois começamos a primeira cena, baseada em um acon-
tecimento real da aldeia.
1ª ação: Giuseppina, uma jovem de vinte anos, quer sair depois do jantar. Pede permissão à mãe. A mãe responde
que depende do pai. Giuseppina diz que um dos seus irmãos vai lhe fazer companhia; as duas preparam o jantar.
2ª ação: O pai chega furioso com tudo e com todos. A desculpa é o custo de vida, a má educação que a mulher
dá aos filhos, os filhos imprestáveis, a cooperativas que os homens tinham intenção de fazer e que não progride...
Chegam os filhos. Cada um exerce uma opressão diferente sobre Giuseppina. O primeiro, casca grossa, diz que
lugar de mulher é em casa e, quanto mais estúpida e ignorante ela for, mais feliz será. O segundo, mais jovem,
aponta até os menores defeitos da irmã, denuncia que flerta com o filho do vizinho etc. O terceiro banca o bom-
moço; ele acompanha a irmã, contando que ela seja obediente. Giuseppina pergunta se ela pode sair à noite,
mas, justamente naquela noite, eles estão muito ocupados. Um vai jogar futebol, o outro cartas e o terceiro
precisa fazer lição de casa.
3ª ação: O pai proíbe a filha de sair. Os irmãos podem fazer o que bem entendem, porque são homens. Giu-
seppina tem que ficar e lavar a louça, porque é mulher.
Fórum
Logo que terminou a cena-modelo, e antes que começasse a discussão em fórum, houve várias reações masculi-
nas: dois maridos ordenaram às suas mulheres que voltassem para casa. As duas se recusaram e ficaram até o
fim. Elas não tiveram coragem de subir à cena, mas tiveram coragem de ficar contra a vontade dos maridos.
Matheus Viana Braz | 185

Outros homens começaram a dizer que aquele não era um problema sério e nós deveríamos discutir somente os
problemas sérios, como o preço do tijolo e argamassa. As mulheres protestaram, dizendo que, se aquilo dizia
respeito a elas, era muito sério sim.
O fórum começou, com a mesa do jantar posta em plena praça. Três moças se ofereceram para substituir a atriz
que fazia Giuseppina e tentar romper a opressão. Os opressores, no entanto, eram muito bem “treinados” e, uma
a uma, as três voltaram para a “louça e a cozinha”. Conseguiam dizer um pouco de tudo que pensavam, mas
eram finalmente derrotadas. A quarta moça subiu em cena e mostrou o que seria, para ela, a única solução:
força. Contrariando a vontade paterna, ela sai de qualquer maneira e o pai termina por aceitar a solução, fingindo
que dava permissão.
[...] Enfim, começou a segunda parte do Fórum, e os espect-atores foram incentivados a substituir outras figuras
e mostrar ao público e aos atores novas formas de opressão. Em suas representações ingênuas (no melhor sen-
tido da palavra) e por não estarem cientes do real poder do teatro, os espect-atores frequentemente revelavam
os seus reais pensamentos, sentimentos e desejos ao desempenhar o papel de opressor. Um homem corpulento
quis substituir o pai e expulsou primeiro as crianças e então a mãe de casa: “Suma dessa casa, vai lá viver com
seu amante”. Segundo seu pensamento reacionário, se a filha comete um pecado, é porque a mãe é putana. As
mulheres protestaram furiosas!
Ao fim do fórum dessa primeira peça, uma das espectadoras comentou: “Nós tivemos coragem de dizer o que
pensamos, aqui em praça pública, na frente de todos, mas não temos a mesma coragem de dizer as mesmas
coisas em casa. Porém, com os homens, aconteceu o contrário: existem coisas que eles não se cansam de dizer
em casa, mas tiveram medo de dizer aqui, na frente de todo mundo”.
A transferência da mesa de jantar para o meio da rua teve outros efeitos. Houve ainda um momento importante,
quando um rapaz tomou o lugar da protagonista. Quando era uma moça que interpretava Giuseppina, provocava
identificação imediata em todas as outras jovens presentes. Com o rapaz, ao contrário, a identificação não existiu;
as moças observavam o rapaz, elas o viam “representar”, interessavam-se pelo que dizia, mas não se identifica-
vam com ele.
Qual a consequência prática dessa não identificação? O ator / homem era visto por elas como “ator”. A espect-
atriz, ao contrário, era uma delas, uma mulher em cena – não uma atriz! – falando em nome de todas as outras.
Não em seu lugar, mas em seu nome! Ele representava, ela vivia!
Quando um ator interpreta um ato de liberação, ele o faz em lugar do espectador e provoca a catarse. Quando
um espect-ator faz a mesma ação em cena, ele o faz em nome de todos os outros espectadores, já que eles sabem
que, caso não concordem com o que está sendo dito, eles mesmos podem subir ao palco e mostrar o que pensam
– provocando a dinamização em lugar da catarse. Nâo é suficiente que o teatro evite a catarse – o que precisamos
é de um teatro que gere dinamização.
Por fim, se os homens não ficaram muito contentes, as mulheres, ao contrário, ficaram felizes demais. No dia
seguinte, quando perguntamos à mãe de Guiseppina sobre o que ela tinha achado do espetáculo, ela respondeu:
“Eu achei sensacional e todas as minhas amigas adoraram a performance da minha filha. Elas me disseram que
em suas casas as coisas acontecem da mesma maneira. Os problemas são os mesmos. E uma de minhas amigas
disse que deveríamos procurar por soluções juntas”.
Caso retirado de Boal (1975/2015, p.65-68).

Para que o Teatro-Fórum tenha êxito, Boal (1975/2015) destacava


que devia se remeter a cenas de opressão e não de repressão. Uma vez que
esta se coloca como o estágio final da opressão, restringe-se ao domínio da
agressão e da fatalidade, o que a seu turno limitaria as possibilidades de se
pensar alternativas possíveis, fazendo dos espectadores tão somente tes-
temunhas desmobilizadas de tragédias inevitáveis.
186 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Em consonância com a Sociologia Clínica, Boal parte de uma análise


dialética para a exploração das problemáticas encenadas. Embora eventu-
almente o Teatro-Fórum permita chegar a soluções específicas, o foco
dessa metodologia é ampliar os espaços de ressonância emocional e o de-
bate sobre as situações-problemas, mesmo quando algumas alternativas
não sejam aplicáveis imediatamente. “O debate, o conflito de ideias, a dia-
lética, a argumentação e a contra-argumentação – tudo isso estimula,
aquece, enriquece, prepara o espectador para agir na vida real” (Boal,
1975/2015, p. 301). Tal como na Sociologia Clínica, mais do que encontrar
de fato uma solução, importa buscá-la, exercitando diferentes pontos de
vista e modalidades expressivas. Isso não quer dizer, contudo, que o Tea-
tro-Fórum não possa ser utilizado de forma mais diretiva. Comumente, ele
serve também como veículo de ensaio para a preparação e aperfeiçoa-
mento de planos concretos, os quais envolvem conflitos e incertezas. À
guisa de exemplificação, Boal (1975/2015) traz em seu livro experiências
em que um grupo de homossexuais ensaiou diferentes estratégias para
confrontar a discriminação em entrevistas de emprego, assim como outro
grupo, vinculado ao Sindicato dos Bancários, trabalhou sobre as formas
possíveis de iniciar uma greve, colocada em marcha dias após a sessão de
Teatro-Fórum.
Os expoentes da Sociologia Clínica se aproximaram de Boal quando
o dramaturgo vivia em Paris. Protagonizado, sobretudo, pelo ator e soció-
logo René Badache e por Yves Guerre, esse movimento acolheu grande
parte das proposições do autor. Todavia, há algumas nuances que mere-
cem destaque. Se o dramaturgo dava atenção especial à apresentação da
primeira parte do espetáculo, contando inclusive com atores paramenta-
dos que tinham por finalidade oferecer um prazer estético ao público, na
Sociologia Clínica, na maior parte das vezes são os próprios integrantes do
grupo, isto é, os não atores, quem desempenha todos os papéis, inclusive
aqueles referentes às primeiras cenas. Além disso, Boal era refratário às
dramatizações pouco teatrais, que se focavam de forma substancial nas
discussões e confrontos verbais. Não à toa, o autor denominava
Matheus Viana Braz | 187

pejorativamente essas cenas de “rádio-fórum”. Na abordagem clínica do


social, sem embargo a dramatização seja um elemento importante, ela não
se revela indispensável (Badache, 2015). Amiúde, tratar os conflitos em sua
dimensão verbal, sem a ritualidade ou o “golpe” teatral, também constitui
recurso profícuo à exploração das ambivalências que atravessam o laço
social.
René Badache (2015), baseado nos trabalhos realizados por Yves
Guerre em Paris, foi quem propôs também a inclusão da utilização da es-
crita como recurso suplementar no Teatro-Fórum. Ao final de cada sessão,
junto ao grupo o diretor (ou coringa) consolida a construção coletiva de
conhecimentos na forma de um material escrito. A partir dos aprendizados
e alternativas propostas, essa síntese permite a organização da tomada de
consciência, a incorporação das discussões e favorece a transmissão das
experiências assimiladas pelos participantes. Ademais, esse material é dis-
tribuído posteriormente aos membros do grupo, que podem utilizá-lo em
eventuais planos de mudança e ação.
Do ponto de vista operacional, ao final de uma sessão de Teatro-Fó-
rum cada participante faz uma lista, escrita em primeira pessoa do
singular e composta por frases e orações sintéticas, relacionadas a aspectos
aprendidos, a constatações ou a proposições de mudanças que vieram à
tona durante o trabalho realizado. Depois, discutem-se esses conteúdos
coletivamente e o diretor faz a composição desse material em um texto
único, sem a discriminação de qualquer autoria. Objetiva-se que esse pro-
cesso facilite a implicação de cada participante (e de todo o grupo) na
compreensão dos principais aspectos debatidos (Badache, 2015).
Boal defendia também a existência de uma correlação positiva entre
o êxito do Teatro-Fórum e o grau de explicitação das opressões dispostas
nas cenas. Na Sociologia Clínica, porém, prescinde-se dessa premissa. A
relação entre oprimido e opressor não constitui elemento obrigatório às
encenações. Ao contrário do que afirmava Boal (1975/2015, p. 300), nem
sempre um tema nebuloso provoca nebulosidade, o que conduz a Sociolo-
gia Clínica a partir do pressuposto que é possível colocar boas perguntas e
188 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

questionamentos, mesmo quando essa relação de oposição não se coloca


de forma cristalina. No campo da abordagem clínica, por exemplo, no mo-
mento em que os grupos são instruídos a discutir e a escolher as cenas que
irão representar, o mediador os orienta a escolher um título para situação
referida, que deve ser elaborado na forma de interrogação. Esse detalhe,
embora simples, parece produzir efeitos importantes nas etapas posterio-
res, de modo que mesmo quando não há uma relação de opressão em jogo,
os participantes se implicam em um processo de crítica mais profundo e
complexo (Vandevelde-Rougale, 2012).
Após a realização de uma breve incursão pelas proposições centrais
do sociodrama, do Teatro-Fórum e da análise dialética de Pagès, pavimen-
tamos o caminho para adentrar nas nuances metodológicas e técnicas dos
dispositivos centrais da presente tese, a saber, os Grupos de Implicação e
Pesquisa (GIP) e o Organidrama. Remetemo-nos, conforme explicitado
nos capítulos anteriores, a modalidades de pesquisa e implicação criadas
no núcleo da Sociologia Clínica francófona12, focadas em grupos, mas que
são pouco difundidas em território brasileiro, malgrado a proximidade que
temos com esse movimento. Nos próximos tópicos, vislumbraremos apre-
sentar os detalhes de seus enquadramentos para, por fim, problematizar
suas utilizações em contextos laborais distintos.

4.4 Grupos de implicação e pesquisa

Tanto os Grupos de Implicação e Pesquisa (GIP) quanto o Organi-


drama se consolidaram como dispositivos de intervenção e pesquisa na
década de 1990, no seio do IISC, com apoio do Laboratoire de Changement
Social da Université Paris Diderot VII, à época dirigido por Vincent de Gau-
lejac. Enquanto dispositivos independentes (porém complementares)
compartilham como denominador comum às intervenções realizadas em
grupo, de modo que ambos os dispositivos permitem aos participantes

12
Não encontramos nenhum trabalho da Sociologia Clínica anglófona baseado nesses dispositivos.
Matheus Viana Braz | 189

explorar as faces individuais e coletivas dos conflitos existentes em suas


relações com o trabalho, atravessados também por suas histórias de vida.
Os GIP, contudo, precedem o Organidrama. Conforme explicitamos
no primeiro capítulo deste livro, sua criação foi iniciada por Vincent de
Gaulejac, junto a Michel Bonetti e Jean Fraisse nos anos de 1970. Depois,
nas décadas seguintes, este dispositivo foi enfim lapidado e aperfeiçoado,
mediante um trabalho que envolveu pesquisadores de diversos países que
faziam parte do IISC. De acordo com Gaulejac (1987/2016), os GIP pos-
suem um duplo objetivo:

➢ Objetivo de pesquisa e compreensão, que consiste em elaborar um método de


investigação que permita articular analiticamente os fatores sociológicos e psi-
cológicos condicionantes das histórias individuais.
➢ Objetivo de formação, cujo propósito é oferecer aos participantes suportes de
reflexão que lhes permitam analisar suas trajetórias sociais e as relações com
cada história de vida trabalhada.

Sua operacionalização se dá em dois níveis. O primeiro remete à ex-


pressão e descrição das experiências vividas, a partir da história de vida de
cada participante. O segundo, cuja finalidade é analítica, implica a reflexão
e elaboração de hipóteses interpretativas sobre os conteúdos trabalhados
(Gaulejac, 1999/2012).
A qualidade do trabalho realizado depende do grau de implicação dos
participantes do grupo. A mobilização dos indivíduos e do interventor fa-
cilita a análise dos conteúdos emergentes. Logo, para fazer o trabalho de
mediação de um grupo, faz-se necessário que o interventor tenha feito à
formação em Sociologia Clínica e, consequentemente, que tenha partici-
pado de outros grupos, na condição de participante e, depois, de aprendiz.
Nesse percurso, também o sujeito em formação realiza um trabalho de
exploração, assimilação e elaboração das contradições e conflitos que atra-
vessam sua história de vida e trajetória social.
Tal como concebidos em sua origem, os GIP são mediados por dois
interventores, com formações de bases distintas. Gaulejac (1987/2016) de-
fende que a comediação (ou coanimação) compreende um recurso para
190 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

fomentar visões distintas sobre diferentes fatores (ideológicos, econômi-


cos, históricos e psicológicos) que emergem nos grupos. Dito de outra
forma, quando dois interventores fazem a mediação conjunta do grupo, o
autor (Gaulejac, 1987/2016) afirma que há uma confrontação mais ativa
entre diferentes disciplinas. Haveria, portanto, uma dinâmica constante de
complementaridade e de oposição entre os mediadores, a qual permitiria
que os participantes fossem colocados em uma relação de constante tensão
reflexiva. Em nossa prática cotidiana, contudo, conduzimos variados gru-
pos com somente um mediador e não constatamos prejuízos significativos,
isto é, embora haja relativa limitação da pluralidade de perspectivas disci-
plinares envolvida no grupo (provenientes da formação de só um
mediador), conseguimos operacionalizar os dispositivos de forma exitosa,
sobretudo no que diz respeito aos movimentos analíticos dos grupos e de
elaborações, individuais como coletivas.
O trabalho sobre as histórias de vida tem por finalidade integrar a
relação do passado do indivíduo com seu presente, de modo a abrir novas
possibilidades de futuro. O dispositivo se serve de suportes verbais e não
verbais que favorecem a exploração, implicação e expressão de vivências e
emoções individuais (Gaulejac, 1987/2016). O elemento grupal dá aos par-
ticipantes segurança mediante identificações laterais que emergem no
grupo e que atuam como mote propulsor do trabalho coletivo de elabora-
ção de hipóteses explicativas.
Estruturalmente, os Grupos de Implicação e Pesquisa são restritos,
entre quatro e doze pessoas, ocorrem ao longo de dois ou três dias (oito
horas em média por dia) consecutivos e se voltam a um tema específico13,
comum a todos participantes. Em um primeiro momento, os participantes

13
Dentre os temas mais frequentes trabalhados no núcleo do RISC, destacam-se: O sujeito face ao sofrimento no
trabalho, Romance familiar e trajetória social, O sujeito diante do conflito, O sujeito diante da Vergonha, Narrativas
de vida e a escrita, O sujeito e a busca de sentido, A relação com o Saber, Sujeito, luto e rupturas, O sujeito em face
do trabalho, Emoções e história de vida, História de vida e trajetória feminista, Trajetórias sociais e escolhas profis-
sionais, Arte, gênero e política.
Matheus Viana Braz | 191

do grupo se apresentam e dizem o que os trouxe até o grupo. Depois, o


interventor contextualiza a abordagem e os objetivos do grupo14:

✓ Trata-se de explorar em que medida a história individual de cada pessoa é soci-


almente determinada e se visa compreender como o tema do grupo influencia a
história de cada participante. Parte-se da premissa que a história de vida de cada
um é produto de fatores psicológicos, sociais, ideológicos e culturais. Portanto, o
foco do grupo é colocar esses operadores em interação, coletivamente.

O trabalho do grupo é ainda realizado em algumas etapas (Gaulejac,


1987/2016, p. 299-300):

✓ Trabalho sobre a genealogia familiar: foco nas “heranças” afetivas, econômicas,


culturais e ideológicas recebidas por cada integrante.
✓ Trabalho sobre a formação do “projeto parental”: foco nas projeções, desejos,
contradições e incoerências da constituição de cada participante.
✓ Trabalho sobre o romance familiar: realização de um trabalho de escrita, em que
cada participante tem a possibilidade de reescrever sua história, a história de sua
família, assimilando a construção de sua historicidade.
✓ Trabalho sobre as “escolhas e rupturas”: foco nas escolhas profissionais, ideoló-
gicas, amorosas, pessoais e rupturas familiares, de modo a compreender os
elementos estruturantes de sua trajetória social, assim como para apreender
como se dá o processo de construção de sua identidade narrativa.

Para realizar essas etapas, assentado no arcabouço teórico da Socio-


logia Clínica o interventor conta com uma série de ferramentas
metodológicas que garantem a alternância entre expressão verbal e não
verbal das situações evocadas: desenhos sobre o projeto parental, recons-
trução de árvores genealógicas, esquema de análise das trajetórias sociais
e da identidade socioeconômica, Sociodrama e Teatro-Fórum. O objetivo
é favorecer as expressões subjetivas, garantir a implicação e a análise co-
letiva dos aspectos comuns ao grupo (Gaulejac, 1987/2016).
A reconstrução da árvore genealógica consiste na orientação para que
cada sujeito, em uma folha em branco, reconstitua sua genealogia familiar,

14
À título de exemplificação, essas premissas são baseadas no grupo Romance familiar e trajetória social. A depender
do grupo, entretanto, algumas dessas estruturas podem ser alteradas.
192 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

indicando os nomes das pessoas, profissões, níveis culturais, momentos e


lugares de morte e nascimento, bem como outros traços particulares,
como frases marcantes, características físicas, de personalidades, qualida-
des e, inclusive, eventuais doenças que tiveram pertinência em relação a
suas histórias de vida. Indica-se que cada participante faça esse trabalho a
partir das últimas três ou quatro gerações. Depois, cada pessoa faz a apre-
sentação de sua genealogia e a discute com o grupo. Esse recurso
possibilita a identificação e reflexão sobre as estruturas e heranças famili-
ares, não somente pelas informações transcritas nas folhas, como também
pelos vazios encontrados eventualmente nas narrativas dos sujeitos. Cum-
pre sublinhar que a utilização que a Sociologia Clínica faz desse suporte
metodológico é diferente daquela feita nas terapias familiares sistêmicas.
Nestas, concebe-se que o genograma traduz o espaço familiar intrapsí-
quico, como se na folha fosse projetada uma representação da família,
tomada quase que exclusivamente em sua dimensão psicológica. Na abor-
dagem clínica, em contraposição busca-se apreender também dados
objetivos sobre a genealogia familiar do indivíduo, com atenção especial
sobre como a dimensão sócio-histórica condiciona suas escolhas e valores
(Gaulejac, 1987/2016). Por isso, nesse trabalho se buscam referências
acerca das características sociais das figuras abordadas. Ao não se restrin-
gir à dimensão psicológica, utiliza-se esse recurso para compreender
também as interações sociais que se encontram no núcleo da dinâmica fa-
miliar.
O projeto parental faz referência às projeções e modelos que são
transmitidos por nossas figuras paterna e materna (ou outras marcantes).
Desde Freud, reconhecemos que mesmo antes de nosso nascimento já so-
mos herdeiros das expectativas e desejos (amiúde inconscientes) de nossos
pais. Enquanto suporte metodológico, na Sociologia Clínica nos servimos
de um recurso projetivo para explorar as nuances dessas transmissões.
Orientam-se os participantes do grupo a fazerem dois desenhos, vincula-
dos a duas questões respectivamente: O que meus pais gostariam que eu
Matheus Viana Braz | 193

me tornasse? e O que eu me tornei15. Para tanto, o mediador deve oferecer


ao grupo canetas hidrográficas, lápis e gizes coloridos, dentre outros ma-
teriais que facilitem a expressão gráfica. Com efeito, os desenhos são
dispostos na sala e, primeiro, os participantes do grupo descrevem o que
estão vendo. Aqui, trata-se de um trabalho descritivo e não interpretativo
do coletivo. Depois desses comentários, o autor apresenta aos demais o
que tentou exprimir em seus trabalhos. Ao contrário da reconstrução da
árvore genealógica, esse suporte se endereça à expressão e compreensão
das representações que cada indivíduo faz de seus respectivos projetos pa-
rentais. Portanto, a elaboração de sentido é sempre construída
posteriormente, mediante atribuições do próprio sujeito sobre suas proje-
ções. Já no terceiro momento, os membros do grupo reagem sobre os
comentários, imagens, apresentações e coloca-se em discussão a explora-
ção das contradições, sentimentos, emoções, pontos compartilhados e
divergências que emergiram no trabalho grupal (Gaulejac, 1987/2016;
1999/2012).
Ao passo que o trabalho sobre o projeto parental remete a dimensão
socioafetiva dos participantes, a análise do esquema das trajetórias sociais
facilita a compreensão sobre as inter-relações entre os contornos identitá-
rios herdados e as posições sociais conquistadas. Na prática, essa atividade
costuma ser conjugada com a reconstrução da árvore genealógica, mas
essa vinculação é opcional, dependendo do tema trabalhado e das estraté-
gicas elencadas pelo mediador. Para tanto, delimita-se um esboço que
constitui um eixo norteador, na qual cada participante constrói um es-
quema em uma cartolina sobre sua genealogia familiar e trajetória social.
Aqui, possuem centralidade elementos socioprofissionais, bem como os
principais eventos pessoais e históricos que interferiram nas escolhas e
posições sociais das histórias de vida de cada participante (Gaulejac,
1987/2016). Abaixo, reproduzimos um exemplo desse esboço:

15
Essas são questões norteadoras. Em nossa prática, em vários momentos alteramos suas construções, todavia sem
perder a substância de seus significados.
194 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Figura III: Esquema de Análise de uma Trajetória Social. Traduzido e adaptado de Gaulejac (1987/2016, p. 309).

O esboço supracitado está didaticamente organizado, porém não há


regras cristalizadas quanto a sua formatação. Contanto que os elementos
destacados estejam presentes, fica a critério de cada sujeito escolher como
quer dispor graficamente (na forma de desenho ou escrita) o esquema de
sua trajetória social. Após a finalização dessa reconstituição, instruem-se
os participantes a colarem suas respectivas cartolinas nas paredes da sala
onde ocorre o grupo. Depois, cada indivíduo constrói sua narrativa de vida
e a expõe para os demais, que por sua vez podem colocar questões, tanto
a quem está apresentando sua história quanto para os outros participan-
tes. Igualmente, o mediador também pode fazer o mesmo, ademais de ficar
responsável pela articulação dos elementos trabalhados. É importante que
esse mediador fique atento para que as discussões não sejam endereçadas
a um trabalho de escuta individualizante. Ao contrário, deve-se sempre
buscar a compreensão acerca de que maneira os aspectos trabalhados,
malgrado suas especificidades, encontram correspondentes socioafetivos
na temática central do grupo e no contexto sócio-histórico na qual se ins-
crevem. A partir desse esquema, de forma opcional podem ser utilizados
métodos de escrita autobiográfica, enquanto um recurso para impulsionar
Matheus Viana Braz | 195

o processo de assimilação da trajetória social de cada sujeito, como tam-


bém para explorar as reflexões coletivas operadas ao longo das discussões.
Segundo Gaulejac (1987/2016), a análise das trajetórias se dá em um
duplo movimento, de diacronia e sincronia. Passado, presente e futuro são
colocados em um só plano. Ao mesmo tempo em que a história de vida de
cada indivíduo é produto da reprodução de posições familiares, sociais e
culturais herdadas, ela reflete também movimentos de ressignificações ou
rupturas, evidenciados como pontos fundamentais no processo da cons-
trução de percursos únicos, irredutíveis a qualquer história geral.
Em geral, após a realização do resgate e reconstituição da história dos
participantes e de suas historicidades, o Teatro-Fórum e o Sociodrama são
utilizados para explorar as questões centrais, divergentes ou convergentes,
que surgiram nas etapas ulteriores. Com o apoio do mediador e a partir
dos pressupostos teórico-técnicos de ambas as abordagens, o grupo elenca
situações conflituosas repetitivas específicas, a partir de suas vivências
concretas, para representá-las mediante a criação de um espaço cênico es-
truturado por um cenário de base. O improviso, aqui, é colocado como
elemento propulsor da criatividade e da liberdade do grupo. Ao final da
encenação de cada vinheta, pela via do Sociodrama ou do Teatro-Fórum,
reserva-se um momento de reflexão e análise coletiva. Cada ator é convi-
dado a falar sobre seus sentimentos e dificuldades na representação de seu
papel (ou papéis). Depois, uma vez que nem sempre todos os participantes
se envolvem na cena como atores, os espectadores expressam suas per-
cepções, bem como as ressonâncias emocionais produzidas nas ações
dramáticas. Ao mediador, cumpre estabelecer o fio condutor das reflexões,
a fim de fomentar o debate sobre como as diferentes configurações dos
cenários de base, bem como suas transformações, estariam mais ou menos
vinculadas com as questões que surgiram nos trabalhos anteriores.
No início de cada dia em que os GIP são retomados, reserva-se um
breve momento, cujo objetivo é discutir com os participantes as ressonân-
cias produzidas pelos trabalhos anteriores. Isso é importante, pois
eventualmente, ao término de uma jornada diária de trabalho, é comum
196 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

que os sujeitos sigam refletindo sobre o que se passou no grupo, o que faz
com que seja necessário abrir um espaço para a expressão de problemáti-
cas e angústias que podem ter sido despertadas e que precisam ser
discutidas coletivamente.
Cada participante é convidado a utilizar sua experiência pessoal para
compreender fenômenos coletivos que tocam os demais integrantes do
grupo. Alternam-se dinâmicas de expressão verbal e não verbal, de refle-
xões individuais e coletivas, de manifestações emocionais e análises
racionais. De acordo com Gaulejac (1987/2016), isso faz com que os sujei-
tos permaneçam em constante movimento, o que os permite vivenciar,
interiorizar e incorporar as mudanças operadas no grupo. Ao revisitar sua
história, o sujeito não consegue alterá-la, mas desvela-se possível modifi-
car sua relação com ela. E é esse o movimento de construção de autonomia
e de historicidade almejado nos GIP. Vislumbra-se, portanto, a realização
de um trabalho recursivo, compreensivo, no qual remete à dimensão exis-
tencial das relações sociais (Gaulejac, 1987/2016). As seguintes questões,
comumente evocadas nesses grupos, elucidam esse postulado: de que
forma os desejos de meus pais influenciam em minhas escolhas? Onde me
encontro na narrativa de minha família? Onde me situo na estrutura social
e nas diferentes matrizes ideológicas existentes em meu contexto social?
Quais valores e representações de mundo influenciam minhas escolhas?
Em que medida minha história de vida condiciona minhas escolhas profis-
sionais, afetivas e amorosas? (Gaulejac, 1987/2016).
Os participantes são convidados a confrontar as contradições e vazios
de suas histórias para que possam compreender e racionalizar processos
sócio-psíquicos, colocando em relação vivências pessoais e coletivas, no
bojo de conflitos grupais. Todavia, é importante frisar que embora possa
propiciar reflexões importantes, pautadas na implicação e orientação à
mudança, e inclusive, por vezes possa ter “efeitos terapêuticos”, a aborda-
gem adotada não se assenta na oferta terapêutica (Gaulejac, 1999/2012).
Trata-se, em síntese, de um trabalho de coconstrução cuja finalidade é con-
duzir o indivíduo a se questionar sobre suas vivências, escolhas, história e
Matheus Viana Braz | 197

seus projetos futuros, confrontando-o com seus ideais e sua implicação, no


registro existencial.
Os GIP abarcam um trabalho de objetificação, isto é, o sujeito se dis-
tancia de sua própria história, situando-a no bojo de suas relações sociais,
o que o permite relativizar sua singularidade, pois ela mesma é também
produto de uma história atravessada pelo conjunto de elementos sócio-
históricos inerentes ao grupo. Esse distanciamento facilita que o sujeito se
perceba enquanto produto de uma cultura, época e classe social específica.
Somente esse distanciamento, porém, não garante a efetividade do grupo.
Faz-se necessário que essa objetificação se vincule à experiência subjetiva
de cada indivíduo, de modo que ela deve ser fruto de expressões singula-
res, as quais permitem que o sujeito a interrogue e a coloque em questão.
É, portanto, na dialética entre o psíquico e o social, entre a objetividade e
a subjetividade, que os participantes dão sentido as questões comuns que
perpassam a dinâmica grupal (Gaulejac, 1987/2016).

4.4 Organidrama

O Organidrama16, outro dispositivo utilizado na Sociologia Clínica, foi


desenvolvido por Gaulejac17 nos anos de 1980 e 1990, a partir de interven-
ções realizadas em empresas públicas e privadas. Após os anos 2000, esse
dispositivo passou a ser usado sistematicamente em conjunto com os GIP.
Construído especialmente como alternativa de intervenção no contexto la-
boral, conjuga a interação da lógica organizacional de uma empresa com
as vivências pessoais e coletivas do grupo. Uma vez que os conflitos nas
organizações também são sintomas das contradições e paradoxos de sua
própria lógica de funcionamento (Gaulejac, 2011), busca-se a compreensão
de suas origens sem reenviar a problemática para o nível estrito individual,

16
O nome Organidrama é produto da junção das palavras Organograma (Organigrame) e Sociodrama (Sociodrame).
17
Embora o Organidrama tenha sido criado por Gaulejac, é curioso notar que o autor ainda não publicou nenhum
texto que trata especificamente desse dispositivo. Ao interrogá-lo sobre esse fato, Gaulejac testemunhou que há anos
começara um esboço desse projeto, mas que por contingências da vida o deixara de lado. Em seu próximo livro (ainda
em fase de construção), contudo, haverá um capítulo que terá como espinha dorsal o trabalho operado em algumas
sessões de Organidrama em uma organização.
198 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

mas colocando em questão os fenômenos sociais que o precedem. Como


alternativa às orientações psicologizantes, o Organidrama traz em pri-
meiro plano a dimensão emocional do trabalho vivido, interpretado
singularmente, mas o colocando em integração com a lógica organizacio-
nal e determinismos sociais presentes em cada contexto.
A partir de técnicas provenientes da representação em jogos de pa-
péis e assentado no trabalho sobre histórias de vida, no Organidrama visa-
se criar um espaço no qual o grupo experimenta situações sociais concre-
tas, baseadas em cenários de base e cenas escolhidas pelos participantes.
Diferentemente dos GIP, o Organidrama não parte de um tema geral. Em
cada sessão do dispositivo, são os próprios sujeitos que escolhem os temas
a serem trabalhados.
Suas bases metodológicas e técnicas provêm do Sociodrama de Mo-
reno, do Teatro-Fórum desenvolvido por Augusto Boal e das contribuições
de Pagès acerca do funcionamento sócio-mental dos grupos. Inserido na
Sociologia Clínica, ao reunir distintas abordagens, esse dispositivo tam-
bém não tem por finalidade a realização de uma terapia (como no
sociodrama moreniano), nem é centrado na resolução de problemas de
violência e dominação (embora eventualmente isso surja como questão),
como é fundamentado o Teatro-Fórum (Vandevelde-Rougale, 2012). O
foco é mais a compreensão dos mecanismos (psíquicos e sociais) que in-
fluenciam as ações dos indivíduos. A mudança, embora importante, tem
caráter secundário. Isso não quer dizer que elas não ocorram, mas que a
Sociologia Clínica parte do princípio que é fundamental compreender para
mudar. A mudança sem uma compreensão clara dos elementos que estão
na base dos conflitos e contradições, não constitui foco desse dispositivo.
Parte-se do princípio que a mudança baseada em uma compreensão su-
perficial das contradições que atravessam a cena de trabalho pode
eventualmente ser realizada, mas somente no plano dos comportamentos
(Viana Braz, 2019). A compreensão e a implicação no Organidrama prece-
dem à mudança, pois as intervenções incluem também as dinâmicas de
poder e investimentos psíquicos vinculados à própria dimensão estrutural
Matheus Viana Braz | 199

das organizações. E é por isso que para o êxito desse tipo de trabalho, é
importante que seja construído um espaço de palavra fundamentado em
uma tripla implicação dos participantes: corporal, emocional e reflexiva.
Estruturalmente, as sessões18 no Organidrama são restritas entre
cinco e 35 pessoas. A excedência desse limite dificulta a liberdade de ex-
pressão e a garantia da qualidade de escuta e atenção ao outro. O mediador
convida os participantes a encenar situações de trabalho que produziram
(ou produzem) mal-estar ou que evidenciam conflitos recorrentes e repe-
titivos, vividos em seus cotidianos. A criatividade e espontaneidade, pilares
do Sociodrama moreniano, constituem a espinha dorsal das improvisações
realizadas.
Em termos práticos, o dispositivo é constituído por uma sequência de
cenas representadas em três tempos fundamentais:

✓ Preparação: se inicia com a apresentação do dispositivo e de seus pressupostos


teóricos e metodológicos, análogos aos GIP. Depois, formam-se subgrupos e cada
grupo é instruído a discutir experiências pessoais de trabalho, vividas como con-
flituosas ou intensificadoras de sofrimento. Enfim, cada grupo deve escolher
uma situação, a ser encenada diante de todos os demais e deve-se dar a ela um
título, na forma de interrogação (Vandevelde-Rougale, 2012).
✓ Improvisação teatral e análise: todos os grupos fazem suas encenações, baseadas
nas premissas teórico-técnicas do Sociodrama e do Teatro-Fórum. Além dos es-
pectadores, que podem “congelar” as cenas, de modo a refazê-las de outra forma,
o mediador também pode eventualmente interrompê-las. Em cada situação re-
presentada é feito um trabalho de descrição e exploração das experiências
emocionais e corporais vividas por cada participante. Discutem-se as relações
entre as tensões encontradas nas situações encenadas, as contradições da lógica
do funcionamento organizacional e a maneira como são vividas. Todos os sub-
grupos são convidados a refletir conjuntamente sobre cada situação encenada,
de modo a compreender suas particularidades e lógicas de funcionamento.
Trata-se do tempo da reflexão coletiva, da análise de conflitos e da tomada de
consciência sobre os problemas encontrados (Vandevelde-Rougale, 2012).

18
Cada sessão dura entre duas e três horas. O número de sessões varia sempre em função da demanda da organização
e dos conflitos existentes.
200 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

✓ Ressurgimento19: tempo reservado e dedicado à exploração das ressonâncias


emocionais, compreensões e questões suscitadas no dispositivo pelos participan-
tes. É o tempo de retrospectiva das experiências vivenciadas. Integrando as
dimensões corporais e emocionais das vivências suscitadas, a atribuição de sen-
tido se dá mediante um trabalho de coconstrução sincrônica e recursiva, em que
os participantes conjuntamente elaboram as hipóteses interpretativas para os
conflitos evocados. Novos olhares e orientações comumente se direcionam para
novos posicionamentos diante de situações conflituosas repetitivas. Nas organi-
zações, esse é tempo da elaboração de propostas de ações, com vistas a
aperfeiçoar a dinâmica organizacional e melhorar as relações laborais. A partir
do trabalho realizado e com o apoio das propostas de Badache (2015) de síntese
escrita, elaboram-se conjuntamente estratégias e planos possíveis para mudar o
curso dos conflitos emergentes e do sofrimento existente, seja no âmbito relaci-
onal, seja no âmbito dos processos e da gestão da empresa (Castro & Guerrero,
2013).

Em geral, as sessões de Organidrama são realizadas com um ou dois


mediadores, com formação em Sociologia Clínica, conhecimento do dispo-
sitivo e cuja função é agir como regulador das tensões emocionais
emergentes nas cenas, bem como auxiliar na construção de hipóteses in-
terpretativas. Ainda sobre o enquadre, o interventor deve esclarecer dois
pontos aos participantes:

✓ Cada participante tem a liberdade de dizer ou não dizer, de se implicar mais ou


menos. Parte-se da premissa nem forçar, nem reter. Isto é, sobretudo na media-
ção, devem-se buscar questionamentos que abram as portas (para a palavra),
mas sem ceder ao desejo de forçá-las, com interpretações selvagens e invasivas
(Gaulejac, 1987/ 2016).
✓ Trata-se de trabalhar sobre os processos sociais (e não na forma de acompanha-
mento individualizado) e o protagonista da situação concreta elencada não pode
realizar seu próprio papel na cena representada. Essa premissa se justifica, pois
é importante que quem vivenciou concretamente a situação na cena de trabalho
a represente por outro ponto de vista e mediante outro personagem. Além disso,
os mediadores devem ser flexíveis ao enquadre. Conforme sublinha Vandevelde-
Rougale (2012), a sequência de ressurgimentos, por exemplo, só é possível
quando a lógica temporal das situações trabalhadas se remete, no âmbito

19
Résurgence, no francês.
Matheus Viana Braz | 201

coletivo, à exploração das experiências individuais, a fim de reescrevê-las em


uma óptica psicossocial. Igualmente, a temporalidade das etapas descritas pode
ser modificada em razão das demandas e da lógica de funcionamento de cada
grupo (Vandevelde-Rougale, 2012).

Pensar cada caso ou situação encenada permite racionalizar e explo-


rar situações singulares, o que por sua vez facilita a compreensão de
processos sócio-psíquicos gerais, comuns ao grupo. No Organidrama,
parte-se do singular para apreender também os fundamentos da organi-
zação do social. E é exatamente em razão dessas premissas que as cenas
improvisadas não precisam ser comuns às vivências de todos os partici-
pantes. “O jogo de papéis intervém como suporte de acesso à dimensão
simbólica e a uma reflexão que ultrapassa o caso singular, graças à opera-
cionalização de uma triangulação (atores – cena – grupo), com a mediação
dos interventores20” (Vandevelde-Rougale, 2012, p. 3).
Em suma, no Organidrama se objetiva abarcar a complexidade e mul-
tidimensionalidade dos conflitos nas organizações. Subentende-se que o
cotidiano laboral é produto da intersecção de problemáticas de ordem exis-
tencial (correlatas à história das pessoas), organizacional (vinculadas à
gestão das organizações), social (determinadas pelas estruturas e normas
sociais) e econômica (vinculadas aos modos de produção e cenários polí-
tico-econômicos) (Aubert & Gaulejac, 1991/2007). Logo, a compreensão
do sofrimento de um trabalhador passa por uma análise dialética em ter-
mos de processos sociopsíquico-organizacionais, evitando a oposição entre
indivíduo e organização. Para se afirmar e existir socialmente, se o indiví-
duo produz a organização, ela inversamente também o produz, visando
assegurar sua reprodução. É então justamente em razão desse caráter in-
trínseco entre funcionamento psíquico e organizacional que não se trata
indivíduo e organização como entidades opostas ou sobrepostas, mas in-
terdependentes e inter-relacionadas (Gaulejac, Hanique, & Roche, 2012).

20
No original: Le jeu de rôles intervient comme support d’accès à la dimension symbolique et à une réflexion dépas-
sant le cas singulier grâce à la mise en place d’une triangulation (acteurs – scène – groupe) avec la régulation des
intervenants.
202 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

O diferencial desse dispositivo, portanto, consiste em colocar em articula-


ção processos organizacionais (procedimentos, regras, normas,
instrumentos e práticas de gestão), mentais (discursos, representações e
percepções) e psíquicos (projeções, identificações e idealizações) (Aubert
& Gaulejac, 1991/2007).
Com os GIP e o Organidrama, a Sociologia Clínica inaugurou moda-
lidades de intervenção que adotam uma visão dialética para a
compreensão do universo do trabalho na sociedade atual. Construíram-se
dispositivos que rejeitam a ilusão determinista (que vê o homem como um
simples depositário passivo de informações e heranças sociais) e a ilusão
liberal (que o considera totalmente livre para fazer suas escolhas), para
agir na intersecção dos registros do inconsciente (pulsões, desejos e fanta-
sias), da lei (normas e regras tácitas), da sociedade (cultura) e da
reflexividade (Gaulejac, 1987/2016). Mediante os suportes metodológicos
supracitados, nesse campo se busca apreender a história dos sujeitos en-
quanto produtos de momentos de continuidade e rupturas, isto é, como
processos em constate mutação (Gaulejac, 2005). A construção da histori-
cidade, enfim, passa invariavelmente pelo exercício do confronto das
contradições entre o que o sujeito pensa, deseja, sente e faz. No próximo
capítulo de nosso livro, tentaremos explorar como se dá esse movimento
nos referidos dispositivos, a partir de intervenções em variados contextos,
o que nos permitirá articular as potencialidades e limites do uso dessa
abordagem em território nacional.
5

Alternativas metodológicas à individualização do


sofrimento e dos conflitos no trabalho 1

Como escutar ainda uma palavra que cochicha, que busca a si própria e que
não promete amanhãs que cantam, em uma sociedade tecnocrática, onde estão
os mestres da ciência e os instrumentos de gestão, justamente ao lado dos li-
beradores de todo tipo (do corpo, da mulher, do desejo da alienação etc.) que
têm todas as mensagens a levar aos outros e que se apresentam como merca-
dores da felicidade, tendo uma única palavra permitida, que é a palavra da
técnica (técnica de fabricação como técnica do corpo) ou produtiva (produção
de bens ou produção desejante), onde as ideologias prontas cruzam-se sem se
influenciarem, em um soberbo isolamento psicótico, quando não se misturam
em um magma sem nome?
Eugène Enriquez

Ao definirmos o objeto deste livro, nos deparamos com obstáculos


relacionados ao delineamento de nossos procedimentos metodológicos.
Por abarcar experiências de trabalhos passadas, não havia a possibilidade
de circunscrever nossa proposta de pesquisa segundo os critérios tradici-
onais da formalidade e institucionalidade dos comitês tradicionais de
pesquisa. Entretanto, nos preocupamos desde o início da concepção da
pesquisa em resguardar eticamente a identificação das organizações e tra-
balhadores envolvidos nas intervenções às quais nos remeteremos. Ora,
posto que os dispositivos de pesquisa e intervenção da Sociologia Clínica
se fundamentam nas abordagens biográficas, como então discutir e refletir

1
Reflexões e fragmentos deste capítulo foram anteriormente publicados no seguinte artigo: Viana Braz, M.; Hashi-
moto, F. (2020). Grupos de Implicação e Pesquisa e Organidrama como dispositivos de pesquisa e intervenção no
mundo do trabalho. Revista Laboreal, 17(1): 01-31.
204 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

sobre seus enquadres metodológicos sem trazer em primeiro plano as nar-


rativas de vida dos trabalhadores envolvidos?
Decerto que se pudéssemos explorar com maior profundidade algu-
mas das histórias de vida as quais nos deparamos, esse trabalho seria
ainda mais enriquecido. Todavia, reconhecemos também que o objetivo de
nosso estudo consiste em problematizar metodologicamente algumas das
dificuldades e potencialidades encontradas na utilização desses dispositi-
vos em diferentes contextos, o que não nos exige a reprodução literal dos
conteúdos trabalhados. Portanto, não vislumbramos o aprofundamento de
problemáticas de ordem individual, relativas à história de vida dos traba-
lhadores, senão que nos concentraremos nos denominadores comuns
presentes nas diferentes modalidades de intervenção abarcadas.
Em geral, os trabalhos no campo da Psicologia se servem do para-
digma da pesquisa acadêmico-científica, pautado na produção de
conhecimentos a partir de critérios e procedimentos científicos pré-esta-
belecidos (Minayo, 1994). Tais produções são fundamentais para a
ampliação dos alicerces compreensivos às transformações que se operam
nos registros biopsicossociais de nossa sociedade, porém nosso livro se lo-
caliza em outro polo de produção de conhecimento. Ao passo que
intervenção e pesquisa são indissociáveis na Sociologia Clínica, esse estudo
se inscreve na modalidade de pesquisa em serviço (Minayo, 1994). Trata-
se de uma produção de conhecimento que se dá a partir das atividades
profissionais desenvolvidas pelo autor A pesquisa em serviço não dispensa
o rigor das pesquisas acadêmico-científicas e tampouco se opõe a elas (Mi-
nayo, 1994), mas tem como finalidade o aprofundamento de entraves e
obstáculos encontrados na prática dos profissionais (Viana Braz, Casadore,
& Hashimoto, 2020). Em nosso caso, nos remetemos a intervenções fun-
damentadas na Sociologia Clínica, realizadas nos últimos quatro anos, na
esfera do trabalho e das organizações, as quais serão contempladas a partir
do método das reminiscências do pesquisador (Tavares, 2009). Tais expe-
riências abarcam três contornos institucionais distintos, de intervenções
em organizações privadas, conduzidas pelo pesquisador na modalidade de
Matheus Viana Braz | 205

consultoria, de trabalhos na iniciativa pública, mediante a supervisão de


estágios com discentes de Psicologia, matriculados em ênfases de Psicolo-
gia Organizacional e do Trabalho, assim como de práticas com Grupos de
Pesquisa e Implicação (GIP) abertos e espontâneos, oferecidos fora de es-
paços formais especificados.

5.1 A intervenção como processo: análise da demanda, contrato,


contradições do diagnóstico e a transferência

Na iniciativa pública como na privada, quando nos dirigimos a orga-


nizações fechadas, um dos primeiros desafios das intervenções em
Sociologia Clínica está ligado à análise da demanda. Diante de um possível
trabalho, Barus-Michel (2001) defende que algumas interrogações devem
ser colocadas pelos interventores: quem é o portador da demanda? Quais
as mudanças desejadas? Elas são endereçadas por quem e para quem?
Qual a perspectiva esperada? Ela está assentada em quais princípios?
Quais elementos ideológicos e emocionais estão em jogo?
Pela nossa experiência, essas questões já nos colocam diante de uma
primeira contradição. As intervenções no campo da abordagem clínica se
operam em um eixo que privilegia a produção de sentido. Ou seja, os pro-
cessos de mudança se pautam na abertura de espaços para expressão de
diferentes representações de mundo, de tensões, bem como de análises de
convergências e divergências de condicionantes psíquicos e sociais (Barus-
Michel, 2001). No cenário de trabalho atual, parecem majoritárias, con-
tudo, as demandas relacionadas à busca pelo aumento de performance.
Este eixo privilegia a produção de instrumentos de avaliação de desempe-
nho, focam-se no futuro, na urgência do presente e a questão do sujeito e
da palavra é vista como supérflua, uma perda de tempo (Barus-Michel,
2001). Logo, além de nossa oferta de intervenção ainda ser pouco conhe-
cida fora das fronteiras da universidade, no contexto brasileiro tende a ser
apreendida de forma depreciativa, como algo sem valor.
206 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Em nossa vivência, malgrado as dificuldades encontradas em ambos


os espaços, percebemos que nas instituições públicas há mais abertura às
nossas abordagens. Ainda que muitos gestores públicos desconheçam a
Sociologia Clínica, tivemos mais facilidade para estabelecer parcerias e de-
senhar projetos de intervenção coletivamente, embora na maior parte das
vezes existisse nas demandas expectativas de eliminação dos conflitos e
aumento da performance dos servidores. Nas organizações privadas ob-
servamos um movimento distinto. Nossa forma de trabalho parece ser
vista como algo estranho e diferente2, costumamos ser chamados em fun-
ção de indicações de pessoas conhecidas de nosso entorno social, mas
somente depois que as empresas já tenham tentado processos de mudança
com consultores que atuam a partir do paradigma do Desenvolvimento
Organizacional. Com efeito, geralmente já começamos nosso trabalho en-
frentando substanciais resistências, pois alguns trabalhadores nos
enxergam como os outros consultores que vêm para tirar dinheiro da em-
presa, não mudam nada e vão embora.
A consolidação de nossas intervenções passa também por um pro-
cesso pedagógico de desconstrução e esclarecimento sobre os princípios
que regem nosso trabalho. E o estabelecimento do contrato, nesse ínterim,
se revela fundamental. Na esteira dos trabalhos de Hashimoto (2018) e
Viana Braz, Casadore & Hashimoto (2020), na prática deixamos claro para
os dirigentes que nossas intervenções não possuem um cronograma deli-
mitado, com resultados previamente estabelecidos3. Nosso trabalho se
opera de forma processual, recursiva e gradativa. Nos encontros com os
trabalhadores, sejam individuais, sejam grupais, não compartilhamos os
conteúdos trabalhados, pois não ocupamos a posição de um “mensageiro”,
cuja função seria avaliar as pessoas e levar informações para os níveis di-
rigentes. A ética, sigilo e responsabilidade são norteadores elementares da
postura clínica, no âmbito do estabelecimento do vínculo com os sujeitos

2
Expressaremos em itálico, neste capítulo, algumas frases e expressões de trabalhadores que consideramos marcan-
tes nas intervenções realizadas.
3
Costumamos deixar aberta aos dirigentes à possibilidade de interromper o contrato de trabalho quando julgarem
pertinente.
Matheus Viana Braz | 207

envolvidos, e deixamos claro para os trabalhadores que não portamos


quaisquer julgamentos morais sobre seus sentimentos e opiniões. Igual-
mente, a participação nos grupos tampouco possui caráter obrigatório,
pois essa exigência culminaria no fracasso do desenvolvimento de nosso
trabalho. Em concordância com Hashimoto (2018), fica facultado aos tra-
balhadores decidirem o que irão levar para as instâncias superiores e cabe
ao interventor se encarregar, no máximo, da função de facilitador, os au-
xiliando na organização desse processo. Sobretudo nas organizações
privadas, em cenários de exacerbação da competição, o interventor deve
assumir uma atenção vigilante, para que não seja seduzido pelo desejo de
poder, que o leva a se colocar como um porta-voz dos trabalhadores.
O subtítulo deste tópico, homônimo a um texto escrito por André
Lévy (2001b), carrega consigo a prerrogativa de que as intervenções na
abordagem clínica são abertas e se constroem gradativamente, conforme
as demandas também assumem novas roupagens. No momento do esta-
belecimento do contrato com a organização, nos deparamos ainda com
outra contradição. Como os níveis dirigentes possuem uma expectativa de
avaliação objetiva sobre os problemas e estratégias de mudança de nossas
intervenções, as demandas manifestas surgem atreladas a solicitação de
um trabalho de diagnóstico prévio. Mas realizar um diagnóstico não seria
o mesmo que usurpar os conhecimentos dos próprios trabalhadores e se
colocar na posição de especialista? Seria possível responder a essa de-
manda dos níveis superiores construindo um diagnóstico coletivo, feito em
conjunto com os trabalhadores? Essas foram algumas das interrogações
que nos colocamos em uma intervenção realizada em uma empresa pri-
vada. A título de contextualização, traremos uma experiência vivida pelo
autor que escreve este livro.
Tratava-se de uma empresa privada, focada na produção industrial
de equipamentos agrícolas. Há poucos meses antes de nossa primeira reu-
nião, a organização havia passado por uma mudança no quadro de sua
diretoria. A demanda manifesta se concentrava na necessidade de garantir
a consolidação dessa transição, bem como de resgatar a unicidade dos
208 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

gestores. A falta de organização, a expansão dos conflitos e a ineficácia das


equipes, segundo os diretores, culminavam em problemas operacionais
graves na produção industrial. Ao explicitar as regras do contrato de tra-
balho e a forma como conduzíamos as intervenções, nossa proposta foi
apreendida com estranhamento. Como havíamos recebido uma indicação
de uma pessoa de confiança e como já haviam passado outros consultores
na empresa, a diretoria respondeu positivamente à nossa entrada. A rea-
lização de um diagnóstico prévio, contudo, se colocava como condição para
o início do trabalho.
Durante um mês, foram realizadas entrevistas com diretores, geren-
tes e outros trabalhadores de variados níveis hierárquicos da empresa. O
objetivo era se aproximar das vivências e percepções que esses sujeitos
tinham da organização e das posições que ocupavam. Compilamos os prin-
cipais resultados encontrados em um relatório, resguardando as
informações que permitiriam a identificação dos trabalhadores e esse ma-
terial foi enviado individualmente para as pessoas envolvidas. Recebemos
e acatamos as sugestões de modificações realizadas e enviamos a versão
final do relatório para a diretoria da empresa. Para além das questões per-
tinentes às demandas manifestas das instâncias superiores, evidenciamos
também outras contradições e problemas identificados pelos trabalhado-
res. Enfim, foi proposta nesse material a realização de uma intervenção
que se desdobrava em dois planos: realizaríamos um trabalho de escuta e
acompanhamento com os gerentes e supervisores interessados e, depois,
faríamos também grupos com os trabalhadores que atuavam na fábrica e
no Planejamento e Controle de Produção. Mas o que esse processo tem de
contraditório?
Inicialmente, sentimos que tivemos êxito no trabalho de expressão
das vivências e opiniões dos trabalhadores. Além disso, após a entrega do
relatório notamos que de fato foi conquistada a confiança da direção em
nosso trabalho, que acolheu o material com entusiasmo. O diagnóstico
cumpriu uma função decisiva no estabelecimento de uma transferência
positiva, o que nos deu abertura para que fizéssemos o trabalho nos meses
Matheus Viana Braz | 209

seguintes. O problema, porém, foram os efeitos colaterais produzidos por


nossas compreensões, que se restringiram a estruturas hierárquicas e de
poder pré-determinadas.
Ainda que tenhamos explicitado as contradições observadas no fun-
cionamento da organização, a síntese diagnóstica parece ter induzido a
expectativa de uma objetificação, como se ao reunir os problemas em uma
só linguagem fosse possível resolvê-los em sua integralidade. Sem perce-
ber, alimentamos a esperança da diretoria no estabelecimento de um
discurso totalizante, em sinergia com os interesses da empresa. Ocorre que
as organizações são feitas de pessoas, que embora articulem discursos co-
muns, representam de forma parcial uma mesma realidade objetiva, a
partir de diferentes olhares e interesses (Lévy, 2001b).
Ao começarmos a intervenção, percebemos que alguns trabalhadores
se sentiram representados e reconhecidos no trabalho do diagnóstico, mas
outros ficaram com a percepção de que foram negados ou colocados em
segundo plano. Baseados em Lévy (2001b), compreendemos que o relató-
rio contribuiu para o recalque das diferenças dos grupos, ao mesmo tempo
em que nutriu a crença da realização de uma síntese imaginária de repre-
sentações divergentes, reduzida a enunciados fechados e desconectados do
vivido do trabalho. Sem querer, fomos alçados a posição de expert e espe-
ravam que nosso trabalho fosse oferecer respostas concretas, na direção
da produção de um sentido unificador e de uma explicação geral para os
conflitos existentes na organização. Lévy (2001b), a esse respeito, nos
alerta:

[...] o fato de assinalar e de interpretar representações e fantasias não apenas


é insuficiente para justificar uma intervenção, mas ainda a leva a cair na ar-
madilha do levantamento de dados (para ver ou para saber) ou, o que dá no
mesmo, na pedagogia demonstrativa (para fazer saber ou para convencer –
postulando que as condutas podem ser modificadas por meio de representa-
ções) (Lévy, 2001b, p. 195)

Se incorremos em um objetivismo dos discursos dos trabalhadores,


foi porque desconsideramos que a organização é constituída por lógicas
210 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

econômicas, políticas, ideológicas e afetivas. Evidentemente, essas refle-


xões foram feitas somente a posteriori. Hoje, temos pleno conhecimento
de que a leitura do funcionamento de uma organização é sempre relativa
e dependente de situações específicas, determinadas historicamente. Para
que o leitor compreenda a importância dos fatos aqui narrados, prosse-
guiremos com alguns detalhes sobre como transcorreu nosso trabalho.
No plano organizacional, as seguintes interrogações surgiram em va-
riados de nossos encontros e com mais ou menos intensidade eram
compartilhadas pelos gestores da empresa: como fazer gestão do tempo,
sair do operacional, quando não temos tempo e o dinheiro para contratação
é cada vez menor? Como trabalhar em equipe quando alguns setores não
dialogam uns com os outros e quando a informação permanece centrali-
zada? Como cobrar economia de recursos e cumprimento de metas quando
não são todos os gestores e diretores que dão o exemplo? Como criar pro-
cessos pautados em indicadores quando nós nem sequer conseguimos
medir os custos dos nossos processos produtivos? Como estabelecer dire-
cionamento estratégico se não existe planejamento na empresa?
Para explorar essas questões, as análises das trajetórias sociais, alia-
das à retomada da história da empresa, se revelaram o caminho mais
profícuo na garantia da implicação e desenvolvimento dos trabalhadores.
Em nosso trabalho de escuta, buscamos abrir caminhos à ressignificação
coletiva dessas contradições, mediante a compreensão das vivências sin-
gulares de cada trabalhador, mas também colocando em discussão o
quanto os conflitos grupais também eram produtos da lógica socioafetiva
hegemônica na organização. Por conseguinte, alguns fantasmas recalcados
na empresa foram trazidos à tona e colocados em xeque: havia a percepção
geral de que os conflitos existentes eram também sintomas das divergên-
cias presentes na família dos fundadores, mas não se falava abertamente
disso por medo de represálias. Do mesmo modo, como no passado os tra-
balhadores já haviam atravessado momentos críticos de turbulência e
tensão, o engajamento à mudança carregava consigo a angústia de que
aquelas situações pudessem ser reeditadas no presente, tal como a
Matheus Viana Braz | 211

repetição de uma cena traumática. Predominava nos grupos também um


medo de que a companhia viesse à falência, porém que tampouco era dis-
cutido publicamente, pois se preconizava contraditoriamente uma cultura
de trabalho duro e otimismo.
Ainda no campo das contradições, naturalizou-se uma divisão entre
as áreas administrativas e a fábrica, que era inclusive legitimada pela dife-
renciação dos uniformes dados aos funcionários. Os operários que
atuavam na produção se sentiam desvalorizados, reivindicavam melhores
condições físicas de trabalho e aumento dos benefícios recebidos. Recla-
mavam ainda que eram os profissionais que mais trabalhavam e que
sustentavam os luxos de quem fica só sentado no escritório. De forma mais
ou menos automática, havia também um imaginário coletivo de que uma
progressão de carreira bem sucedida ocorria quando uma pessoa da fá-
brica era promovida a um cargo no administrativo. Junto aos
trabalhadores, essa divisão foi motor de reflexões sobre variados temas
correlatos: a escassez de infraestrutura, o estigma a trabalhadores com
baixa qualificação, a deslegitimação social naturalizada, o distanciamento
entre teoria e prática do que era difundido pelo departamento de Recursos
Humanos, assim como a resignação dos gestores perante injustiças obser-
vadas (a qual refletia uma dinâmica específica do conflito entre classes
existente na organização).
Com efeito, predominava um clima de desconfiança entre as equipes.
Dentro de seus departamentos os trabalhadores se relacionavam tranqui-
lamente uns com os outros, mas o diálogo entre as áreas era truncado,
poluído e os funcionários se portavam de forma defensiva, como se fosse
sempre necessário se antecipar a algum problema que pudesse emergir.
Esse cenário pulverizava logicamente a cooperação intergrupal, assim com
refletia a carência de espaços para questionamentos e a impossibilidade de
dar sugestões. Quando isso ocorria, as opiniões daqueles que não ocupa-
vam posições de gestão não eram devidamente consideradas. Portanto, no
nível intragrupal havia a presença de uma dinâmica de reconhecimento
que passava por relações de cooperação, estima e solidariedade, porém se
212 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

esses valores eram compartilhados internamente pelos departamentos, a


cisão existente entre as equipes mitigava o reconhecimento de utilidade4
(Dejours, 2012), oriundo da linha vertical da hierarquia empresarial.
Estabelecia-se então um círculo insidioso, pois ao mesmo tempo em
que a maior parte dos funcionários se dedicava arduamente às suas fun-
ções, os resultados colhidos eram insuficientes. A falta de diálogo entre as
áreas gerava um descompasso nos processos produtivos e intensificava a
hostilidade organizacional. Diante da iminência de um problema, cada de-
partamento se protegia e buscava informações para garantir que não era
culpado. Logo, percebemos que as principais fontes de desgaste e dispên-
dio emocional dos trabalhadores estavam relacionadas aos meandros dos
jogos de poder e de interesses da organização. Para além dos encontros
realizados individualmente, esses paradoxos somente foram tensionados
quando tratados no nível coletivo, em reuniões grupais. Ambos os espaços,
contudo, se revelaram complementares.
O trabalho de escuta realizado com Henrique (nome fictício) é eluci-
dativo desse movimento. O funcionário era proveniente de uma família
modesta de comerciantes e desde a sua adolescência começara a trabalhar
para pagar por conta própria seus estudos. Henrique ocupava uma posição
de gestão, vestia a camisa da empresa sem restrições e se dedicava inte-
gralmente a ela há mais de 15 anos. Em nossos primeiros encontros,
embora se colocasse de forma participativa e solícita, o trabalhador ex-
pressava o sentimento de saturação e estava descrente sobre as
possibilidades de que mudanças estruturais fossem realizadas. Como era
uma figura central na organização, colegas de múltiplos setores o procu-
ravam constantemente para apagar incêndios. Sempre à disposição,
ignorava a exaustão e deixava muitas vezes de fazer suas atividades para
auxiliar os demais a resolver os problemas.

4
Dejours distingue duas fontes de reconhecimento nas organizações: o julgamento de utilidade e de beleza. O pri-
meiro é oriundo da linha vertical da hierarquia organizacional, é feito pelos superiores, subordinados e, às vezes, por
clientes. Já o julgamento de beleza é proferido em essência na linha horizontal, pelos pares, colegas, membros da
equipe ou outras pessoas da comunidade profissional, o que produz ressonâncias na personalidade do trabalhador
em termos de ganhos no registro de sua identidade (Dejours, 2012).
Matheus Viana Braz | 213

Havia na vivência de Henrique um déficit significativo de reconheci-


mento de utilidade, que quando atrelado à intensificação da pressão no
trabalho resultou no agravamento de seu sofrimento. Quando nossa inter-
venção foi iniciada, as condições precárias na fábrica, a desorganização dos
processos produtivos e a entrada de novos concorrentes no mercado (com
produtos melhores e a preços mais competitivos) culminaram na queda
do faturamento da organização e produziram um efeito cascata no qual
externamente os clientes culpabilizavam a área de Henrique pelos erros
(atraso na entrega ou produtos com defeitos) que ocorriam na empresa.
Como era o gestor, esses clientes ligavam sempre em seu telefone, sobre-
maneira furiosos e com comportamentos agressivos. Henrique absorvia
tudo que lhe diziam (sem nunca ser mal-educado), mas não encontrava
espaços para expressão de suas angústias. Com seus subordinados, acre-
ditava ter a responsabilidade de não demonstrar fraqueza. De tanto
procurar seus pares para cobrar o cumprimento de prazos e o esclareci-
mento dos problemas, já não era mais ouvido. Eu tenho a impressão que
só eu me preocupo com o que tá acontecendo aqui. Quando eu desço na
fábrica eu percebo as caras e bocas. Sei que ninguém lá gosta de mim. Já
peguei até gente fazendo piada de mim lá. Falam que se eu desço lá é pra
trazer problemas.
O sofrimento oriundo do superinvestimento no trabalho tampouco
era compartilhado na esfera de sua vida privada. Eu não fico falando pra
minha mulher dos problemas que tem aqui na empresa, nem de como eu
fico. Quando tô muito estressado, prefiro chegar em casa, comer e ficar
deitado no quarto quieto. É a melhor solução pra não ser mole nem recla-
mão. Como Henrique era cobrado por colegas e clientes o dia todo,
começou a desenvolver um quadro de aversão toda vez que seu celular
tocava. Segundo o gestor, quando isso começou trocava o toque do apare-
lho semanalmente. Depois passou a deixá-lo em modo silencioso, contudo
ainda ficava respondendo clientes e atendendo ligações comumente até
cerca de meia noite, quando não acordava na madrugada para responder
mensagens recebidas. O trabalho de escuta realizado nos primeiros meses,
214 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

portanto, consistia em reconstruir a relação que Henrique tinha com seu


trabalho, considerando sua história de vida e as demandas de seu cargo.
Duas injunções paradoxais foram trazidas em vários momentos e são re-
presentativas do percurso trilhado pelo trabalhador: o que significa
investir em mim mesmo? É possível repensar minha relação com a empresa
sem perder produtividade?
A historicidade de Henrique estava vinculada no âmbito identitário à
história da organização. E foi mediante a análise desse ponto de intersec-
ção que o trabalhador pôde se confrontar com as contradições das tensões
psíquicas de seu trabalho, as quais interferiam nocivamente na gramática
de suas relações privadas. Se as fontes de julgamentos de utilidade se es-
gotavam, culminando na constante sensação de impotência diante das
demandas que lhe eram endereçadas, o que sustentava seu equilíbrio psí-
quico era a compaixão e solidariedade que recebia de seus subordinados.
Apesar de tudo, eu vejo que minha equipe tá comigo. A gente sempre sofre
junto, testemunhava o gestor.
Após a retomada e reelaboração de sua história, foi no plano coletivo
que Henrique encontrou recursos para se implicar na busca de alternativas
de mudanças. Gradualmente, o trabalhador assumiu uma função de agre-
gador, reunindo-se com os demais gestores e funcionários de outras áreas
para discutir as contradições estruturais não-ditas, geradoras de conflitos
na organização. Como era considerado uma figura central, suas iniciativas
fomentavam a abertura de espaços para a palavra, o que tornava possível
a reflexão coletiva de conflitos que não resultava no aumento da hostili-
dade organizacional.
Portanto, nos meses seguintes conseguimos superar parcialmente as
distorções geradas pelo diagnóstico. A partir das abordagens biográficas,
em nossos encontros os trabalhadores puderam refletir sobre suas respec-
tivas trajetórias socioprofissionais. Não foram todos os gestores, por
exemplo, que deram continuidade ao trabalho, mas a maior parte se im-
plicou nesse processo, o que lhes possibilitou mudanças substanciais na
forma como concebiam suas relações com a empresa. A busca por sentidos
Matheus Viana Braz | 215

únicos deu espaço a novas cadeias de significados, amiúde contraditórias


e indefinidas, mas que os permitiram construir novas referências sobre a
compreensão de conflitos organizacionais e pessoais.
No âmbito da diretoria, entretanto, não conseguimos desconstruir a
expectativa da consolidação de um discurso único na organização. Os di-
retores esperavam que as intervenções resolvessem as contradições e
oposições presentes. Se os trabalhadores pareciam usufruir dos encontros
e reconheciam as potencialidades e benefícios de nossa abordagem, a alta
direção se decepcionou com nossa falta de diretividade. Em um determi-
nado momento, o sigilo que colocávamos como condição passou a ser visto
como ameaçante. A direção passou a nos demandar indicadores de desem-
penho e relatórios sobre os perfis de personalidade dos trabalhadores.
Reiteramos nossa posição e indeferimos a solicitação. Depois de oito meses
de trabalho, em resposta ao esgotamento das expectativas dessa instância,
nossa intervenção foi interrompida. Quais lições, então, podemos aprender
a partir dessa experiência?
Falhamos na efetiva compreensão das relações de transferência na
organização. Não reconhecemos o risco de nossas decisões e nos coloca-
mos em uma posição de exterioridade radical relacionada aos
trabalhadores, quando na realidade ocupávamos uma posição de exterio-
ridade relativa na organização (Lévy, 2001b). Subestimamos a escolha dos
instrumentos de intervenção e não traçamos estratégias compatíveis com
os conflitos organizacionais e o contexto sociocultural no qual nos inseri-
mos. Se conseguimos transpor a dinâmica do recalque da palavra e a
negação dos conflitos nas intervenções com os trabalhadores, nas instân-
cias da direção nos faltou manejo, de modo que produzimos uma dinâmica
relacional pedagógica e normativa, nociva aos processos de mudança. As
representações instituídas neste plano não foram tensionadas e nos falta-
ram recursos para respondermos a aliança de poderes esperada pelos
diretores. Se tivéssemos conseguido colocar em questão as falhas do poder
instituído aos solicitantes da demanda, decerto que caminhos profícuos
seriam abertos (no sentido da enunciação de novas ações instituintes).
216 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Aprendemos também que o diagnóstico realizado, embora tenha tido uma


função central no estabelecimento de nosso vínculo com a organização,
contraditoriamente endossou um processo no qual foram minimizados os
antagonismos presentes na empresa, alimentando a ilusão de homogenei-
dade. Por fim, embora nosso trabalho não tenha sido finalizado, o retorno
que tivemos dos trabalhadores nos permite reconhecer resultados exito-
sos, evidenciados nas mudanças pessoais e profissionais observadas5 ao
longo dos meses.

5.2 Trabalho reflexivo e emocional nos grupos: análise de um grupo


de implicação e pesquisa

Em nossos trabalhos nas organizações, nos deparamos com particu-


laridades que remetem a obstáculos semânticos. Como nossas
modalidades de intervenção não são conhecidas por grande parte das pes-
soas, há certa curiosidade ou dúvida sobre o que fazemos e, mais ainda,
sobre qual o nome do trabalho que desenvolvemos. Na empresa descrita
no tópico anterior, por exemplo, após alguns encontros realizados com um
trabalhador, ele questionou: minha mulher me perguntou como se chama
isso que a gente está fazendo aqui na empresa. É coaching? O trabalhador
relatava nesse momento que estava refletindo sobre questões pessoais que
lhe eram caras em nossos encontros. Ao chegar à sua casa, por vezes as
compartilhava com sua esposa, a qual recebia esse gesto de forma positiva,
com entusiasmo, pois o marido costumava ser mais recluso e introspec-
tivo. Evidentemente, a dúvida da esposa também era compartilhada pelo
trabalhador.
Nessas ocasiões, como o desígnio interventor é pouco difundido no
cotidiano laboral brasileiro, em nossas práticas comumente nos apresen-
tamos como consultores ou orientadores, todavia enfatizamos que nosso
trabalho não é o de um expert, senão que ocupamos uma função de facili-
tação, no sentido da realização de um movimento de apoio dos

5
Exploraremos esse ponto adiante.
Matheus Viana Braz | 217

trabalhadores em relação aos conflitos encontrados nas organizações


(Hashimoto, 2018; Viana Braz, Casadore, & Hashimoto, 2020).
O nome Grupo de Implicação e Pesquisa (GIP) igualmente nos trouxe
alguns problemas. Em organizações públicas como privadas, parece que o
termo pesquisa produz um distanciamento e confusão por parte dos tra-
balhadores, que não compreendem do que se trata o trabalho. Logo, em
geral optamos por dois caminhos alternativos. Fazemos as divulgações
como Grupos de Implicação e Mudança (GIM) ou intitulamos nossas pro-
posições como Workshop de Implicação e Mudança, prosseguido de um
subtítulo que remete ao tema central proposto. Para que os participantes
não alimentem uma crença ilusória de que sempre haverá mudanças nes-
ses espaços, deixamos claro como se opera nosso trabalho e enfatizamos
que a mudança não constitui uma finalidade do dispositivo, embora possa
ser uma consequência. Quanto ao segundo caso, nada mais é do que uma
estratégia simples, para conseguir a atenção de trabalhadores que estão
imersos em contextos organizacionais onde se proliferam os anglicismos.
Para fazermos considerações acerca do trabalho reflexivo e emocio-
nal dos grupos, descreveremos abaixo uma síntese sobre uma de nossas
experiências em um Grupo de Implicação e Pesquisa (GIP), no qual tam-
bém usamos o Organidrama. Os participantes foram conhecidos na
ocasião em que o pesquisador lecionava uma disciplina em um MBA vol-
tado à Administração de Recursos Humanos. Como alguns profissionais
demonstraram interesse na abordagem da Sociologia Clínica, lhes foi feito
um convite para fazermos um grupo, cuja temática intitulou-se Workshop
de Implicação e Mudança: narrativas de vida e conflitos no trabalho. Por
restrições de tempo e incompatibilidades de horários, condensamos nos-
sos trabalhos ao longo de duas jornadas diárias. No total de participantes,
havia onze mulheres e um homem, de idades variadas (entre cerca de 20
e 50 anos), mas que compartilhavam entre si o interesse na compreensão
dos conflitos nas organizações. Cabe sublinhar que dentre os integrantes
do grupo, quatro pessoas estavam desempregadas.
218 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

➢ Primeiro Dia

No início de nossa jornada, foi feita uma explanação sobre o nasci-


mento da Sociologia Clínica, dos GIP e explicitamos que o objetivo de nosso
trabalho era refletir sobre os enlaces entre as histórias de vida (individuais
e coletivas) dos participantes e os conflitos enfrentados em suas vivências
laborais. No plano metodológico, os seguintes pressupostos teóricos foram
apresentados e aprofundados junto ao grupo:

▪ Vislumbramos a superação da oposição entre mudança pessoal e mudança cole-


tiva.
▪ Focamo-nos na articulação dinâmica entre os registros social, familiar e individual,
mediante um trabalho sobre as emoções e sobre a reflexividade.
▪ Trata-se de um dispositivo que introduz a dimensão do vivido e do exercício da
escuta sensível, sobretudo em relação a expressões de desejos, angústias e proje-
ções.
▪ Em relação às mudanças, partimos de uma perspectiva compreensiva que busca
mais alternativas do que soluções, a partir da vivência dos participantes.
▪ Os resultados de nosso trabalho somente poderão ser apreendidos a posteriori,
pois nos baseamos em uma abordagem progressiva e generativa de sentido.
▪ O desenvolvimento exitoso de nosso trabalho depende da implicação e engaja-
mento de todos os participantes.

Sobre o contrato psicológico, baseados em Gaulejac (1987/2016) rei-


teramos que ao longo de nossos trabalhos os participantes teriam a
liberdade para colocar interrogações aos demais, mas que não cederíamos
ao desejo de ultrapassar os limites dos indivíduos. Cabe sublinhar que o
principal garantidor de que essa premissa seja cumprida e não saia do con-
trole é o próprio mediador. Cumpre a ele fazer uma leitura do termômetro
emocional dos grupos e intervir quando necessário (Gaulejac, 1987-2016).
Por outro lado, é preciso citar que em nossas experiências nunca presen-
ciamos nenhum tipo de interpretação selvagem ou posicionamento
invasivo de algum participante.
Reforçamos que ninguém seria obrigado a compartilhar aspectos de
sua vida que não se sentisse à vontade ou preparado a exprimir.
Matheus Viana Braz | 219

Estabelecemos um pacto de confidencialidade e confiança acerca dos con-


teúdos trabalhados e nos comprometemos a sermos pontuais em relação
aos horários de início e fim de nossas jornadas. Começaríamos às 08h da
manhã, faríamos um almoço das 12h às 14h e finalizaríamos às 19 horas.
Em ambos os períodos, também realizaríamos uma pausa de 15 minutos.
Depois, começamos uma atividade de compreensão sobre as origens
e significados dos nomes de cada participante. Partindo do pressuposto
que somos herdeiros das fantasias, projeções e sonhos de nossas figuras
parentais (Gaulejac, 1999/2012), o intuito desse trabalho é resgatar em
quais condições e contextos se operou a escolha dos nomes dos sujeitos do
grupo. Para além do sentido restrito e semântico dessa escolha, nos inte-
ressa compreender em que medida ela está relacionada com a construção
de um projeto de vida cujas expectativas se encontram no bojo de questões
sociais e familiares. O nome, portanto, representa o primeiro elemento de
ligação do sujeito com sua herança, em um processo de inserção social que
se dá inclusive sem sua vontade, pois somos constituídos pelo desejo do
outro (Teixeira & Hashimoto, 2005).
Pela nossa experiência, essa atividade costuma ser bastante profícua
ao trabalho de reflexividade sobre si. Alguns participantes não conhecem
o enredo da escolha de seus nomes, outros têm ciência desse processo, mas
ficam instigados a procurar mais informações a respeito. Nesse dia, espe-
cificamente, ocorreu um fato interessante. Uma participante não sabia
qual a origem de seu nome. No horário do almoço, telefonou para seus
pais e pediu que a contassem como foi realizada essa escolha. Seu nome
era produto da junção das primeiras sílabas dos nomes de seu pai e de sua
mãe. Como não haviam chegado a um acordo conjunto, ambos encontra-
ram nessa opção uma solução para mitigar suas divergências e conflitos.
No trabalho seguinte de análise sobre sua trajetória social, a participante
relatou que as principais lembranças e percepções que tinha de quando
residia com seus pais envolviam situações de atritos e confrontos. Parece
que o relacionamento entre eles sempre foi alimentado por brigas constan-
tes, testemunhou. A integrante do grupo discorreu que costumava se
220 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

colocar no meio das discussões familiares, mas que amiúde se sentia divi-
dida, pois se via obrigada a assumir um lado, defendendo ora seu pai, ora
sua mãe. A participante, enfim, compartilhou conosco sobre o quanto a
escolha de seu nome traduzia, antes mesmo de seu nascimento, a dinâmica
relacional de seus pais, o que por sua vez a inseria em uma posição ambí-
gua e insidiosa.
Após os participantes dividirem suas reflexões sobre a saga da esco-
lha de seus nomes, demos início ao trabalho sobre a análise de suas
genealogias e trajetórias sociais. Apresentamos o esboço do esquema da
trajetória de vida (Figura III), explicitamos os objetivos desse instrumento,
assim como demos a cada pessoa uma cartolina e canetas esferográficas
de variadas cores. Para que reconstruíssem suas histórias, foi dado um
tempo de 40 minutos. Depois, todos os participantes colaram seus respec-
tivos esquemas em uma lousa que havia no local onde estávamos6 e
ficaram dispostos como indicam as imagens abaixo.
Figura IV: Grupo de Implicação e Mudança. Análise das trajetórias sociais. Criação nossa.

6
Fizemos esse grupo em uma universidade, que nos cedeu o espaço.
Matheus Viana Braz | 221

Até o final desse primeiro dia, nos dedicamos à exploração das traje-
tórias de vida narradas individualmente pelos participantes. Fizemos,
neste processo, um movimento de vai-e-vem constante, que possibilitou
ressignificar vivências singulares em articulação com análises coletivas.
Abarcamos também nesse trabalho as reflexões e discussões sobre a for-
mação dos respectivos projetos parentais e sobre como os principais
momentos de escolhas e rupturas estavam ligados às escolhas profissio-
nais e as maneiras com as quais as pessoas encaravam seus conflitos. Não
iremos descrever as histórias individuais dos membros do grupo, mas fa-
remos algumas reflexões sobre questões comuns, que surgiram
relacionadas ao plano social.
As primeiras pessoas que narraram suas trajetórias expressavam o
sentimento de vergonha sobre suas histórias e conflitos sociofamiliares.
Em suas genealogias, se impôs como imperativo a reprodução intrafami-
liar de violências físicas e simbólicas, bem como de desentendimentos e
222 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

traições em suas relações pessoais. Gradualmente, entretanto, a dinâmica


grupal assumiu outros contornos. Ao passo que os demais também com-
partilhavam suas experiências, os participantes trouxeram uma discussão
que perdurou por cerca de quarenta minutos. O que é uma família perfeita,
afinal? Ela existe? Essas foram interrogações disparadoras, que os levaram
a refletir sobre o peso social do mito da família perfeita. Há também nesse
ponto uma dialética existencial em jogo. Gaulejac (1996/2008) reconhece
na vergonha um meta-sentimento, em função de sua múltipla dimensio-
nalidade. Neste grupo, ela surgiu como produto de processos identitários
e de subjetivação vividos como angustiantes, relacionados a situações de
estigma, humilhação, exploração, precariedade material e desemprego. Ao
passo que o indivíduo se constitui em relação aos outros e a si mesmo, a
dinâmica socioafetiva emergente no grupo parece ter oferecido aos parti-
cipantes uma identificação projetiva (Palmade & Palmade, 2005), que
resultou tanto na diferenciação em relação aos meios aos quais provinham
como também os concedeu um sentido de pertencimento e segurança on-
tológica.
Abriu-se, por conseguinte, um espaço de reflexão sobre as possibili-
dades de ressignificar violências humilhantes. No início de nosso trabalho,
algumas participantes trouxeram à tona sentimentos de inquietude, de-
cepção e raiva, relacionadas à passividade de suas mães e avós em face de
situações de violência e deslegitimação. Havia uma ambiguidade presente
na variedade de vivências relatadas. Ao mesmo tempo em que as culpabi-
lizavam, as referiam como vítimas e pessoas centrais nas estruturas
familiares. Ao trazer essas ressonâncias individuais para o nível coletivo,
os membros do grupo discutiram sobre como a reprodução dessas relações
estavam presentes em suas vidas. O papel ocupado pela mulher no mundo
do trabalho surgiu em primeiro plano e as participantes trouxeram refle-
xões acerca de crenças e costumes, inerentes a suas dinâmicas relacionais,
que legitimavam historicamente relações de dominação contraditórias.
Em termos metodológicos, o movimento relatado, de reflexão indivi-
dual e coletiva, é elucidativo da postura compreensiva na abordagem
Matheus Viana Braz | 223

clínica. Sempre que um sujeito atribui um novo significado às suas vivên-


cias, esse conhecimento modifica a consciência que tem de si mesmo
(Sartre, 1960). Por isso, na Sociologia Clínica se fala em compreensão, des-
crição e não em explicação. Entende-se que a complexidade da dimensão
humana não pode ser reduzida a processos inertes e explicativos da reali-
dade em sua totalidade. Embora haja imperativos sociais e materiais que
condicionam nossas escolhas, eles são vividos e significados de forma in-
dividual e particular. Rejeitam-se, portanto, definições cristalizadas,
universais e abstratas, pois se concebe que o sujeito é portador de consci-
ência reflexiva (de si e do mundo), ator de sua própria história e não um
mero produto de forças incontornáveis. Se a Sociologia Clínica desde seu
surgimento renunciou a ideia de construir uma metateoria explicativa glo-
bal para os fenômenos sociais, é porque se apreende que nesse intento
inevitavelmente às ciências sociais se tornam deterministas, causais e ob-
jetivistas. Logo, parte-se de uma abordagem dialética, a qual concebe a
linguagem como vetor elementar da racionalização das vivências. A cons-
trução da historicidade do sujeito se opera na articulação entre individual
e coletivo, subjetivo e intersubjetivo, pelo confronto com as contradições
que lhe atravessam, mediante uma rede sucessiva de significações em
constante mutação.
Para a Sociologia Clínica, tão importante quanto às escolhas dos su-
jeitos são as intenções e o conjunto de sentidos que subsidiam suas ações
(Gaulejac, 1987/2016). Por isso, nos remetemos a uma abordagem que é
materialista e histórica, mas não dogmática. Amparados em Sartre (1960),
por exemplo, entendemos que um trabalhador alienado não pode ser re-
duzido a uma figura passiva e capturada pelo sistema capitalista que o
explora. Mais do que isso, esse mesmo indivíduo é também eventualmente
pai, filho, marido, isto é, ele possui uma vida além de seu trabalho e é
muito mais do que esse rótulo que lhe é conferido. É preciso, antes de por-
tar qualquer tipo de julgamento, que compreendamos como esse indivíduo
vive essa alienação, imbricada em um conjunto de ações e aspirações con-
cretas. Portanto, se o marxismo dogmático parte da objetividade para
224 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

explicar os indivíduos pela história (Sartre, 1960), na abordagem clínica se


busca o subjetivo para compreender a história pelas ações humanas. Dis-
tanciando-se tanto de um materialismo radical como de um humanismo
abstrato, o foco se dá nos processos e nos sentidos atribuídos pelos sujeitos
às suas vivências.
No caso das mulheres de nosso grupo, não bastaria somente colocar
em questão os determinantes sócio-históricos que condicionavam os posi-
cionamentos de suas mães e avós. Antes disso, a análise de suas respectivas
trajetórias permitiu um movimento de assimilação reflexiva, que passou
pela compreensão da multiplicidade de vivências e posições ocupadas por
essas figuras, como também pela reflexão sobre de que maneira a trans-
missão psíquica geracional influenciava suas escolhas, projeções e
expectativas em seus relacionamentos afetivos. O que caracteriza a abor-
dagem compreensiva, portanto, é esse duplo movimento, de objetificação
e subjetivação, de aproximação e distanciamento em relação às histórias
individuais e coletivas.

➢ Segundo dia

Iniciamos a segunda parte de nossa jornada com um momento de


ressurgimento. Reservamos um tempo para que ressonâncias emocionais
oriundas do trabalho realizado no dia anterior fossem colocadas no espaço
do grupo (Vandevelde-Rougale, 2012). Pela nossa experiência, observamos
que o mediador é responsável nesse momento pela identificação de aspec-
tos sensíveis trazidos pelos participantes. Esse tempo é ainda fundamental
no trabalho de implicação, tanto do interventor quanto dos demais mem-
bros do grupo.
Focamo-nos, depois, na realização de uma síntese interpretativa dos
pontos comuns que emergiram no grupo, relacionados à questão dos con-
flitos no trabalho. Novamente, a reprodução da forma como as figuras
centrais das trajetórias dos participantes lida com conflitos, se tornou ob-
jeto de discussão. Pais, mães, irmãos, tios, chefes e colegas de trabalho
Matheus Viana Braz | 225

foram trazidos à tona, sejam como modelos positivos, sejam como figuras
associadas a repulsa e denegação. Em suma, os significantes centrais dessa
reflexão diziam respeito a relações de dominação, de humilhação, a situa-
ções de instabilidade emocional e sentimento de impotência diante de
conflitos.
Encaminhamos em seguida nosso trabalho à realização de uma ses-
são de Organidrama. Os participantes foram divididos aleatoriamente em
dois subgrupos e cada um foi instruído a discutir vivências pessoais con-
flituosas e de sofrimento no trabalho. Depois, deveriam elencar uma
situação para ser encenada e cada grupo precisaria também escolher um
título da cena, colocado na forma de interrogação. A distribuição de papéis
era aberta, porém para que pudesse vivenciar a representação a partir da
perspectiva de outro personagem, o protagonista da situação escolhida
não poderia representar seu próprio papel.
Na mediação dos grupos, percebemos que o trabalho de aquecimento
antecedente à dramatização é de suma importância para que os partici-
pantes representem seus papéis com mais liberdade e naturalidade. É
comum nesse contexto que os trabalhadores não saibam do que se trata o
jogo de papéis e precisem de estímulos para aguçar suas percepções cor-
porais. Afora as tradicionais atividades de aquecimento oferecidas pela
teoria moreniana, colhemos resultados profícuos ao inserirmos jogos de
improviso nessa etapa.
Embora as ações dramáticas sejam condicionadas por uma situação
concreta e específica, as representações de papéis pressupõem a improvi-
sação. Os jogos de improviso, nesse sentido, se inspiraram em seu início
na commedia dell'arte, uma modalidade de teatro popular que surgiu na
Itália, no século XV. A partir de circunstâncias sugeridas pela plateia, os
atores criavam espontaneamente novas ações e desfechos em suas cenas,
as redesenhando ao longo de todo o espetáculo sem quaisquer combina-
ções prévias (Rauen & Oliveira, 2012). Desde os anos 2000, quando os
teatros fundamentados no improviso se expandiram em território nacio-
nal, inúmeros jogos dramáticos foram criados nessa perspectiva, passando
226 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

inclusive a serem utilizados em processos educativos (Spolin, 2008). Por


incluírem ingredientes como a criatividade e o humor, utilizamos esses
recursos em nossos grupos para despertar nos participantes a espontanei-
dade e criar uma atmosfera de abertura às vivências da dramatização.
No Sociodrama de Moreno, o mediador (ou diretor) pode interrom-
per o jogo de representação de papéis quando julgar pertinente. Com base
no Teatro-Fórum de Boal, após a primeira dramatização, no Organidrama
também deixamos aberta aos espectadores a possibilidade de “congelar”
as cenas, para que possam fazer sugestões de mudanças, assumindo o pa-
pel de algum personagem e lhe atribuindo eventualmente outras atitudes,
comportamentos ou características de personalidade. A título de ilustra-
ção, apresentamos uma cena representada por um dos grupos.
Qual a falta que faz o ponto?
1ª ação: Pedro7, trabalhador da fábrica, vai ao encontro de seu super-
visor (Ricardo) e lhe relata inconformado que descontaram um dia em sua
folha de pagamento, sem nenhuma justificativa, pois estava trabalhando
na empresa no referido dia. Ricardo, atarefado, diz que não pode fazer
nada e que Pedro deveria resolver a situação no RH. O trabalhador então
exclama: “só podia ser mesmo, vou lá agora!”.
2ª ação: No departamento de RH, Carla, responsável pelo setor e,
portanto, pelo fechamento do ponto e pagamento dos funcionários, sen-
tada em sua mesa conversava com Emerson, técnico de segurança do
trabalho na empresa. Havia também na cena Augusta, a auxiliar de servi-
ços gerais que fazia a limpeza do setor. Furioso, Pedro entra sem avisar no
departamento e já questiona incisivamente Carla:
Pedro – Que confusão você aprontou dessa vez? Por que você descon-
tou meu dia na semana passada?
Carla – Como assim descontei seu dia na semana passada? O que você
tá falando?
Pedro – Tem um dia a menos na minha folha de pagamento. Como
assim? Eu trabalhei o dia inteiro e você desconta?

7
Todos os nomes referidos são fictícios.
Matheus Viana Braz | 227

Carla – Primeiro, vamo abaixar o tom, vamo abaixar a voz, você não
pode entrar na minha sala assim...
Emerson – Gente, calma...
Carla – Eu segui todo o procedimento padrão da empresa. Você con-
feriu o registro do seu ponto?
Pedro – Não, isso aí é você que tem que fazer! Eu tava aqui e não
quero nem saber.
Carla – Você não sabe conversar, não tem condições de falar com
você...
Pedro – Você é burra? (Pedro dá um tapa na mesa de Carla) Resolve
isso pra mim, não posso perder esse dinheiro.
Carla, já exaltada, se levanta de sua cadeira e diz:
Carla – Eu não sou obrigada a passar por isso e ouvir esse tipo de
desrespeito. Não tem condições. Não aceito esse tipo de ofensa.
Carla e Pedro começam a discutir e não é mais possível ouvir o que
cada um está dizendo.
Emerson entra no meio dos dois, nitidamente irritados, e fala ainda
mais alto:
Emerson – Vamos resolver isso depois. Agora não dá. Vocês estão
fora de si. Pedro, sai daqui! Depois resolve!
Pedro então se retira furioso da sala e Carla começa a chorar. Au-
gusta, que ficara paralisada com sua vassoura nas mãos durante a
discussão, lhe oferece um copo de água.
3ª ação: Horas depois, Ricardo, o supervisor, é chamado no RH e se
reúne com Carla. Para fins de contextualização, na empresa os funcioná-
rios da fábrica faziam os registros manuais de seus pontos (pois
trabalhavam em plantas variadas, dependendo do momento do processo
produtivo). No fim do mês, essas folhas de registros eram validadas pelo
gestor, que as entregava ao RH e que por sua vez passava as informações
para um sistema eletrônico da empresa. Pedro, no fatídico dia se esquecera
de assinar sua folha de ponto e o erro passou despercebido por Ricardo. O
problema, contudo, agora era outro.
228 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Carla – Ricardo, não dá pra admitir esse tipo de situação. Isso que
aconteceu aqui é inadmissível. Você não tem controle da sua equipe.
Ricardo – Eu não tinha como saber o que tava acontecendo, senão
teria feito alguma coisa.
Carla – Fui humilhada aqui na frente do Emerson. Como responsável
pelo RH a gente não pode admitir isso. Não posso abaixar a cabeça, senão
vão pensar que isso aqui é uma zona. Temos que decidir o que vamos fazer
com o Pedro.
Ricardo – Eu errei, eu assumo, mas o comportamento dele não tá
alinhado com a empresa. O cara é bom, mas não tem nem dois anos que
tá aqui. Vamos ter que dispensar, senão perco a mão com a equipe. Vão
achar que todo mundo pode desequilibrar.
Após mais algum tempo de discussão, Ricardo e Carla decidem pela
demissão de Pedro, mas sem justa causa, para evitar possíveis imbróglios
e passivos trabalhistas.

Fórum

Finalizada a dramatização da cena-modelo, houve um momento de


descontração. Os espectadores aplaudiram os atores, começaram a rir e a
conversar uns com os outros. Iniciamos, em seguida, uma discussão sobre
como a cena transcorreu e como foi percebida pelos demais membros do
grupo. Nesse primeiro momento, abrimos no fórum a possibilidade de que
os espectadores pudessem substituir os personagens, exceto Pedro. Esta
escolha foi feita na mediação para que os participantes pudessem exercitar
suas capacidades reflexivas em relação às alternativas postuladas. Se Pe-
dro fosse trocado já no início, se esgotariam as possibilidades de explorar
as cenas conflituosas e situações de tensão, pois bastaria que o trabalhador
fosse representado como um personagem mais sereno e calmo.
As dramatizações procedentes tiveram variadas roupagens. Primeiro
outros participantes assumiram os papéis de Carla e Ricardo. O supervisor
entrou na sala com uma postura conciliadora, tentando acalmar Pedro,
Matheus Viana Braz | 229

mas sua tentativa não foi exitosa. A personagem de Carla se focou no pro-
blema de Pedro, porém demonstrou um posicionamento ainda mais
impositivo, o que desencadeou um novo descontrole. A cena foi interrom-
pida por um espectador, que se prontificou a substituir Emerson. Quando
as discussões se tornaram novamente calorosas, houve outra paralisação.
Carla foi novamente trocada, dessa vez representada com mais serenidade
e equilíbrio. Depois, Augusta também entrou em cena de forma mais ativa,
colocando-se em defesa da profissional de RH. Os participantes do grupo
somente conseguiram chegar à terceira ação quando Pedro foi substituído.
Como as tensões foram mitigadas, Ricardo assumiu sua responsabilidade
ao não rever com rigor a folha de ponto de seu subordinado e, junto a
Carla, foi decidido que o trabalhador receberia uma advertência formal por
sua intransigência e falta de profissionalismo. Como entendemos que a
cena já havia se esgotado, o fórum foi encerrado.

Ressurgimento e análise

Na próxima etapa, conduzimos no grupo uma exploração sobre as


vivências de cada personagem que dramatizou a cena-modelo. Os traba-
lhos realizados passaram pelas seguintes interrogações: a cena se passou
com quem na realidade? A protagonista da cena concreta ocupou o papel
de qual personagem? O que sentiu ao ver outra pessoa fazer seu papel?
Qual a percepção e sentimento experimentados por cada participante du-
rante as ações? Como isso reverberou nos registros de suas emoções e
corporal? E os espectadores, quais percepções tiveram ao ver a cena “de
fora”, com outros olhares?
Aprofundamo-nos também nas experiências dos espectadores que fi-
zeram parte da dramatização do fórum, assim como ouvimos os relatos
daqueles que não entraram em cena em nenhuma ocasião. Em seguida,
partimos para um trabalho de reflexão coletiva acerca das situações de
conflitos e das alternativas de ação propostas.
230 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Quanto à análise coletiva, alguns elementos se revelaram relevantes


nessa seção de Organidrama. No registro econômico, identificamos pro-
blemas trazidos em cena relacionados a uma perda concreta, evidenciada
pelo prejuízo financeiro de Pedro. Não temos informações suficientes para
avaliar qual o grau desse déficit, mas pela reação intempestiva do traba-
lhador, parece que lhe fora bastante caro.
A cena reflete também a lógica de uma estrutura social e organizaci-
onal específica. Ricardo, atarefado e pressionado por inúmeras demandas,
não encontra recursos para oferecer uma escuta sensível a Pedro. Ao mi-
nimizar o problema trazido pelo funcionário, incorre no equívoco de
terceirizar sua responsabilidade ao departamento de RH. Se Pedro chega
ao setor rompendo com a dinâmica hierárquica da organização, em con-
traposição o mesmo não ocorre com Augusta. Auxiliar de limpeza, a
funcionária responde às imposições das estruturas sociais e organizacio-
nais na forma de passividade e mutismo, como se não fosse permitido sair
de sua posição para se envolver em problemas alheios. Já Emerson, parece
se sentir impotente na situação. No início fica calado, para não ser incluído
na rede de conflitos da empresa, mas quando a situação foge do controle
assume um posicionamento mais ativo e interrompe os desentendimen-
tos.
A escolha do título (qual a falta que faz o ponto?) nos parece também
certeira e providencial, pois reflete as contradições da dinâmica organiza-
cional e seus efeitos no registro existencial, das vivências dos
trabalhadores. Todos os conflitos são desencadeados por sucessivos pro-
blemas ligados aos dispositivos de controle e prescrição (Dujarier, 2015)
da empresa (os registros manuais de ponto, a validação e assinatura do
gestor e a transposição dessas informações para um software de gestão).
Todavia, mesmo quando esse processo falha, ele não é questionado em
nenhuma dessas instâncias. Ao contrário, busca-se encontrar nos indiví-
duos os culpados. Ricardo menciona que não pode fazer nada, Pedro
responsabiliza Carla (Qual confusão você aprontou dessa vez?), que rebate
dizendo que seguira todo o procedimento padrão da empresa. Nessa cena,
Matheus Viana Braz | 231

temos uma elucidação fecunda de um paradoxo organizacional (Gaulejac


& Hanique, 2015), cujo conflito produzido pelos próprios procedimentos
da empresa culmina na individualização dos problemas e do sofrimento.
A despeito do destempero emocional de Pedro, não nos surpreende que
nesse contexto os trabalhadores assumam atitudes defensivas, como se
fosse preciso antes de tudo se colocar em posição de exterioridade diante
da iminência de um conflito. Quando essas tentativas fracassam, conse-
quentemente as discussões saem da esfera organizacional e atingem o
nível pessoal das relações entre os trabalhadores, evidenciados em várias
expressões: Você é burra? Você não sabe conversar. Vocês estão fora de si.
Você não tem controle da sua equipe. Fui humilhada aqui na frente do
Emerson.
Podemos explorar no Organidrama as múltiplas faces dos conflitos
representados no grupo, compreendidos mediante a articulação dialética
de registros econômicos, sociais, organizacionais e existenciais. As drama-
tizações condensam os conflitos e convidam os sujeitos a pensarem
alternativas a partir de perspectivas contrárias à culpabilização e à psico-
logização das contradições organizacionais. Esse processo, no entanto, só
é possível porque na abordagem clínica o trabalho emocional é intrincado
à experiência e à reflexividade (Gaulejac, 1999/2012). Por isso, ao contrá-
rio do sociodrama moreniano, no Organidrama não se buscam fenômenos
catárticos. Reflexão e emoção são complementares, não nos restringimos
a enquadramentos individualizados e analisamos a pluralidade de signifi-
cações sócio-psíquicas que surgem nas dramatizações (Castro, 2019b). A
esse respeito, complementa Castro (2019b):

A relação entre práticas individual e coletiva pode se produzir em termos de


reciprocidade quando o coletivo se faz mediador para a prática individual e,
inversamente, quando a prática individual se revela mediadora para a prática
do todo. Há, nesse sentido, a construção de um laço social, de um ser em co-
mum que unifica sujeito e coletivo (Castro, 2019b, p. 4448).

8
No original: La relation entre les pratiques individuelle et collective peut se produire em termes de réciprocité
lorsque le collectif se fait médiateur pour la pratique individuelle et, à l’inverse, quand la pratique individuelle se
232 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Depois que foram finalizadas as duas cenas apresentadas pelos gru-


pos, dedicamos a última hora de nossa jornada à realização de uma síntese
interpretativa sobre nossos trabalhos. As relações de dominação, humilha-
ção e sentimentos de impotências diante de situações conflituosas
repetitivas, que haviam surgido nas narrativas de vida dos participantes,
foram identificadas nas dramatizações. As vivências individuais e reflexões
coletivas, nessa óptica psicossocial ofereceram aos sujeitos do grupo sub-
sídios para discutirem alternativas de ação no trabalho que não fossem
produtoras de violências.
Em um dos Grupos de Implicação e Pesquisa (GIP) que acompanha-
mos na França, foi feita uma atividade final, na qual cada participante
avaliava o trabalho realizado e escrevia algumas reflexões breves em uma
folha. Havia, porém uma regra. As orações deveriam começar de três ma-
neiras: Eu compreendi... Eu me proponho a... Eu gostaria de continuar a
trabalhar sobre... Em seguida, esses conteúdos eram compartilhados e dis-
cutidos entre os participantes. Na ocasião do fechamento de nosso grupo,
fizemos essa mesma atividade, porém sentimos que essa proposta ficou
reduzida e fechada. Ainda que os resultados tenham sido interessantes, o
trabalho pareceu sobremaneira pedagógico, individualizante e diretivo.
Em outros grupos posteriores, experimentamos outras duas alterna-
tivas de fechamento, as quais se revelaram mais frutíferas do que a
anteriormente descrita. Na primeira, abrimos um espaço para que os par-
ticipantes façam observações e comentários relacionados ao dispositivo de
intervenção como também à avaliação de sua participação. Na segunda,
baseados nas propostas de Badache (2015), pedimos que cada participante
nos envie por e-mail uma reflexão sobre o trabalho realizado. Ao receber
todos os textos, é feita uma compilação em um único material (sem iden-
tificação de autoria) e o encaminhamos para todos os membros do grupo.
Embora essa proposta não tenha um caráter obrigatório, a maior parte

révèle médiatrice pour la pratique de l’ensemble. Il y a, dans ce sens,la construction d’un lien social, d’un être en
commun qui unifie sujet et collectif.
Matheus Viana Braz | 233

dos sujeitos se empenha nesse trabalho. Como as pessoas possuem mais


tempo e espaço para fazer essa análise de implicação, os retornos recebi-
dos são também mais complexos e enriquecidos de sentido.

5.3 A construção da escuta e da implicação nas intervenções: o que é


se afirmar como sujeito no trabalho?

As técnicas existentes nos dispositivos da Sociologia Clínica nos auxi-


liam a dar forma e a direcionar as intervenções, todavia o que assegura o
êxito de nossas ações são os pressupostos teóricos e metodológicos que
alicerçam a abordagem clínica. É a partir da escuta sensível, direcionada à
compreensão das emoções, sofrimentos e representações, oriundas das vi-
vências dos trabalhadores, que se torna possível desenhar propostas de
intervenção mais complexas e integrativas, no âmbito da resolução dos
conflitos sócio-organizacionais e existenciais nas organizações, sejam pú-
blicas, sejam privadas. E essa escuta, nesse sentido, é orientada por
algumas premissas centrais.
O desenvolvimento do potencial humano não é encarado somente na
perspectiva de um benefício à organização (Amado, Faucheux, & Laurent,
1993). Se não aceitamos a hipótese da fragmentação entre vida pessoal e
profissional, não concebemos a escuta restrita ao interior das organiza-
ções. Mais ainda, sabemos que muitas vezes, para que a organização se
desenvolva, exige-se comumente certo grau de alienação, subserviência e
estagnação dos trabalhadores. Isso quer dizer que nem sempre a autorre-
alização no trabalho é intrínseca a um movimento de emancipação e
singularização do sujeito.
A escuta tampouco se restringe ao nível dos comportamentos e da
comunicação organizacional. Altos níveis de satisfação e motivação, por
exemplo, avaliados mediante pesquisas de clima organizacional, amiúde
podem mascarar uma ausência de questionamento e irresponsabilidade
social (Amado, Faucheux, & Laurent, 1993). Além disso, dado que atual-
mente as novas formas de adoecimento no trabalho estão relacionadas a
234 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

situações em que a hiperatividade está correlacionada ao superinvesti-


mento psíquico e a busca pela ultrapassagem de si (Aubert, 2008), níveis
elevados de satisfação podem refletir estratégias defensivas dos trabalha-
dores, em especial quando há um empobrecimento relacional nas demais
esferas da vida dos trabalhadores (em situações em que essas vidas são
majoritariamente condicionadas pela empresa). Limitar-se à compreensão
dos comportamentos e da comunicação organizacional significa desprezar
que toda organização é constituída por relações ideológicas e de poder, o
que poderia endossar modos de ação manipulatórios e instrumentalistas,
que escamoteiam as origens dos problemas.
Diferentemente do paradigma da Abordagem-Solução (Amado, Fau-
cheux, & Laurent, 1993), não consideramos que a organização é o produto
das condutas e comportamentos individuais. Não obstante essa leitura seja
verdadeira, ela é parcial e incompleta, pois na Sociologia Clínica se concebe
que há nesse ínterim uma relação dialética, entre as ações dos trabalhado-
res, as exigências da organização e o contexto social e cultural no qual
estão inseridos (Gaulejac, 2011). Ou seja, o indivíduo produz a organização,
mas a posição que ele ocupa também condiciona modos específicos de se
portar no trabalho.
Diante da individualização dos percursos e em ambientes onde a
competição é exacerbada, percebemos com significativa frequência casos
em que trabalhadores alegam que não é mais possível ficar esperando o
reconhecimento por um trabalho exitoso e de qualidade, seja pelos pares,
seja por parte de seus superiores. Não basta fazer um trabalho excelente e
diferenciado, é preciso ser estratégico para fazer ele ser percebido, dizia um
trabalhador em uma de nossas intervenções. Ora, na sociedade da compa-
ração (Aubert, 2004), é preciso se fazer notar e se portar de acordo com
os modelos de socialização estabelecidos, porém isso gera algumas contra-
dições. Em determinada ocasião, um trabalhador que havia assumido uma
posição gerencial há menos de um ano compartilhou conosco que seu di-
retor lhe dera um feedback, dizendo que ele fazia bem seu trabalho e que
o desempenho de sua equipe era ótimo, contudo destacou que ele deveria
Matheus Viana Braz | 235

trabalhar para se parecer mais com um gerente, para não perder a credi-
bilidade das pessoas de seu entorno. Nessa organização, os gestores se
diferenciavam por suas vestimentas (usavam camisas sociais, enquanto os
demais trabalhadores utilizavam camisas polos) e tratavam uns aos outros
de forma mais fria e direta. Segundo esse diretor, ao optar pelo uso de
roupas mais informais (exceto em situações em que visitava clientes) e
como se dirigia aos demais gestores com mais sensibilidade e de maneira
coloquial, o novo gerente poderia ser interpretado como um líder fraco e
vulnerável, fora do perfil de gestão da empresa. Paradoxalmente, esse tra-
balhador passou a se cobrar, no sentido de encontrar meios para garantir
a continuidade de seu trabalho, que era reconhecido por seus subordina-
dos, mas também para buscar estratégias para se parecer mais como um
gestor, alinhado aos seus pares. Portanto, esse exemplo é representativo
do embate de forças contraditórias que se operam em uma organização e
que, se apreendidas isoladamente, privam-se de sentido e reduzem a com-
plexidade dos problemas.
Por se tratar de uma abordagem progressiva e generativa, na escuta
da abordagem clínica se compreende que o resultado está no processo
(Gaulejac, 2019). Desde a análise da demanda, passando pelo desenho das
intervenções e pela avaliação do trabalho, em espaços individuais ou gru-
pais, não há um ponto de chegada pré-estabelecido. Exercitar a escuta
sensível implica mergulhar nas histórias de vida dos trabalhadores e com-
preender como elas se entrecruzam no espaço organizacional. Para que
seja possível refletir sobre a relação com o presente e o futuro, eventual-
mente é preciso que haja momentos de regressão e desconstrução, de
modo que os trabalhadores possam se reorganizar de outra forma, com
mais recursos e condições para encarar os conflitos e as contradições exis-
tentes (Hashimoto, 2018; Viana Braz, Casadore, & Hashimoto, 2020).
Partimos também do princípio que nem sempre ao eliminar os sin-
tomas se resolvem os problemas (Gaulejac, 2019). E a esse respeito cabe
uma digressão. No paradigma taylorista se via o conflito como algo nocivo
à organização e que, portanto, deveria ser mitigado mediante a redução
236 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

das interfaces das tarefas e da segmentação dos processos produtivos. Em


uma estrutura pautada na concentração do poder, a resposta aos desacor-
dos ou às manifestações que fugiam às prescrições assumia a forma de
sanções e punições. O chefe, Supereu (no sentido atribuído por Freud) ab-
soluto da organização, atuava como figura de castração e de imposição das
condutas consideradas aceitáveis ou não. A partir dos estudos iniciais em-
preendidos sobre as dinâmicas grupais na Escola de Chicago e no Instituto
de Tavistock, passou-se a compreender as organizações enquanto micros-
sociedades. Se no espaço familiar sempre haveria conflitos, nos domínios
organizacionais não seria diferente. Os conflitos, então, foram concebidos
como elementos naturais do funcionamento das instituições, mas ainda
eram vistos como prejudiciais às dinâmicas relacionais. Após o desenvol-
vimento das práticas de acumulação flexível incorporadas pela
transposição do toyotismo no continente norte-americano, as ciências ge-
renciais (e a Psicologia Organizacional) se apropriaram dessas discussões
e passaram a se remeter a noção de gestão dos conflitos. Trata-se de en-
cará-los não somente como inevitável e inerente à condição humana, mas
também como cardeais para a alimentação da estrutura de inovação, de
criação e de produção dos sistemas mediadores organizacionais. A evolu-
ção dessas práticas, no contexto das organizações estratégicas (ou
hipermodernas), foi acompanhada da sofisticação de recursos e instru-
mentos que se servem à ocultação e gestão dos conflitos para captar a
energia libidinal dos trabalhadores, em favor da reprodução de seus siste-
mas de crenças, valores e objetivos (Gaulejac, 2007). Esta dinâmica foi
observada por Pagès et al (1979), há quarenta anos, mas conforme obser-
vamos em trabalho anterior (Viana Braz, 2019) os sistemas mediadores
dessa ideologia gerencialista foram progressivamente modificados na atu-
alidade, assumindo formas de controles mais flexíveis, sedutoras, porém
também mais paradoxais.
A Sociologia Clínica, em contraposição parte da leitura crítica da evo-
lução desse pensamento gestionário e em vez de compreender o conflito
como algo que deve servir ao aumento de produtividade, o apreende
Matheus Viana Braz | 237

enquanto produto e reflexo de contradições não resolvidas no seio da ges-


tão das organizações (Gaulejac, 2011). Nas intervenções esse ponto é
considerado crucial, pois direciona a escuta do interventor. Se no para-
digma hegemônico trata-se de criar estratégias para gerir os conflitos e
eliminar os sintomas organizacionais considerados prejudiciais (pois colo-
cam em xeque as contradições da empresa), na abordagem clínica o
objetivo é trazê-los à tona, para que sejam discutidos e debatidos coletiva-
mente. Nenhuma organização do trabalho prescinde de sofrimento, mas
se entende que é possível construir condições mais favoráveis à superação
desses impasses, em especial pela via da elaboração dos conflitos e tomada
de consciência das relações de poder que subsistem em suas estruturas. Se
Gaulejac e Hanique (2015) discorrem sobre o papel da metacomunicação9
na intervenção em Sociologia Clínica, é porque tem como finalidade trazer
à tona esses paradoxos, explicitando seus problemas a partir de um nível
de comunicação que supera o discurso gerencialista. Na prática, o foco não
é falar do conflito para refletir sobre como podemos fazer para frutificá-
lo, para buscar mais eficiência ou produtividade, mas tratá-lo como ele-
mento fundamental que condiciona as condutas e decisões das pessoas
envolvidas e, portanto, que também se revela fundante da estrutura soci-
oafetiva dos grupos.
Abandona-se a oposição entre indivíduo e organização, em favor da
análise de processos socio-psíquicos (Gaulejac, 2019). Como a escuta do
interventor se opera em um sistema social complexo, ela se orienta à com-
preensão dialética das vivências dos trabalhadores, mas sem
desconsiderar que são frutos de forças políticas, econômicas, ideológicas e
psicológicas. Analisam-se os conflitos como elementos sócio-históricos
inscritos em uma temporalidade específica, tensionada pela diacronia e
sincronia das histórias de vida dos trabalhadores. A esse respeito,

9
Segundo os autores, comumente o discurso gerencialista se reduz a um universo restrito, de modo que se fecha
para qualquer outro código de linguagem que fuja à sua lógica de poder. Se as injunções paradoxais são produzidas
nessa dinâmica, a única forma de superá-las seria exatamente colocando os paradoxos em questão, nos espaços das
organizações, porém em outros termos, que não aqueles hegemônicos baseados em critérios pragmáticos, utilitários
e funcionalistas. É então daí que surge a proposta de intervir no nível da metacomunicação para a compreensão dos
problemas produzidos pela própria estrutura organizacional.
238 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

aprendemos com o professor Francisco Hashimoto que nas organizações


a construção da escuta do interventor se opera em dois momentos distin-
tos (Viana Braz, Casadore, & Hashimoto, 2020).
O primeiro diz respeito aos primeiros encontros com os trabalhado-
res e se remete a um processo de acolhimento e resgate às suas histórias
de vida (Viana Braz, Casadore, & Hashimoto, 2020). Trata-se do momento
de integração das questões relacionadas ao trabalho com suas vivências
singulares, circunscritas na construção de suas identidades narrativas.
Igualmente, são nesses espaços que se começam a estabelecer os vínculos
dos indivíduos com o interventor. O medo do desconhecido, as resistências
(individuais e coletivas) e desconfiança são elementos constantemente
presentes nas relações transferenciais. “O medo, a dúvida e a dificuldade
de tratar suas questões, são agravadas pela própria situação: o orientador
não é uma pessoa escolhida pelo trabalhador e o espaço também não é um
local escolhido pela pessoa” (Hashimoto, 2018, p. 60). Quando as premis-
sas de nosso trabalho são discutidas abertamente com os trabalhadores e
depois que eles se asseguram sobre nosso comprometimento com o sigilo
e ética na escuta, notamos que há maior implicação no trabalho de reflexão
sobre si e maior abertura para a expressão de vulnerabilidades e dificul-
dades pessoais.
O segundo momento se remete a intervenções mais duradouras, nas
quais há a oportunidade de aprofundar os processos de mudança nas or-
ganizações. Após a reintegração e ressignificação de conflitos pessoais e
grupais, trabalhamos com uma escuta mais direcionada à atividade pro-
dutiva dos trabalhadores, o que “[...] implica auxiliar as pessoas, no tempo
que for possível, até quando tiverem disponibilidade interna e externa,
para tornarem-se mais seguras e terem a possibilidade de se desenvolver
enquanto sujeitos” (Viana Braz, Casadore, & Hashimoto, 2020, p. 09). A
ética do desejo, contudo, se sobrepõe a ética do resultado.
Nessa esteira, temos ciência de que, tal como no caso da Psicossocio-
logia francesa emergente nos anos de 1960, seremos eventualmente
criticados por nolens volens “servirmos aos interesses do patronato” em
Matheus Viana Braz | 239

nossas intervenções. De fato, no campo da Sociologia Clínica pesquisado-


res têm empreendido esforços para se pensar modelos alternativos de
trabalho (pela via do cooperativismo e da economia solidária, por exem-
plo), que fujam do paradigma hegemônico produtivista, assim como se
servem da abordagem clínica para atuar em contextos marcados pela de-
sigualdade social e diversas formas de violência. Se na França há ampla
gama de produções oriundas de intervenções em organizações privadas
(Aubert & Gaulejac,1991/2007), essa situação não é semelhante no Brasil.
Por questões institucionais, políticas e culturais, parece haver na iniciativa
privada uma posição defensiva e receio em contar com o conhecimento
das universidades para se desenhar mudanças nas organizações. Na aca-
demia, por sua vez (e aqui me refiro mormente às nossas vivências em
programas de Psicologia), aceitamos de forma passiva esse movimento e
legitimamos a recusa da possibilidade de estreitamento desses laços, para
além das fronteiras da Psicologia Organizacional. O problema é que a pre-
carização do trabalho naturalmente está nas organizações públicas e
privadas. Se não ocuparmos os espaços inclusive destas últimas, outras
pessoas o farão. Ora, se os experts como os coachs cresceram e assumiram
protagonismo nas empresas, é também porque se inseriram em lugares
nos quais não nos propusemos a ocupar. O resultado é o aumento da ins-
trumentalização e reificação do trabalhador, sobremaneira em ambientes
de maior precarização (Viana Braz, 2019).
Portanto, em primeiro lugar acreditamos que é, sim, necessário que
nos façamos presentes nesses espaços, para que seja possível preconizar
alternativas de intervenções e pesquisas que compreendem as dinâmicas
grupais e de conflitos nas organizações, levando em consideração suas es-
truturas ideológicas e de poder no processo de produção do sofrimento
dos trabalhadores. Segundo, no público como no privado apreendemos
que há por parte dos trabalhadores uma dupla demanda: de produtivi-
dade, na direção do aumento de eficiência e eficácia da organização do
trabalho; e de realização de si e produção coletiva de sentido, relacionada
à ampliação das fontes de prazer, gratificações e saúde no trabalho. Esse
240 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

aspecto é fundamental, pois remete a um posicionamento ético. Em nossas


intervenções nos colocamos sempre ao lado do desenvolvimento pessoal10
dos trabalhadores e buscamos auxiliá-los na construção de suas historici-
dades. Se esse processo for compatível com as possibilidades de destaque
e aumento da qualidade do trabalho, identificamos um caminho profícuo
para o trabalhador e para a empresa. Do contrário, não nos submetemos
a situações que possam endossar a sujeição e instrumentalização das pes-
soas. Nossa escuta e implicação caminham nessa direção, o que pode ser
entendido como uma limitação por parte de consultores tradicionais.
Trazemos um exemplo para elucidar nosso ponto. Em certa ocasião,
em uma empresa privada, a intervenção em marcha compreendia um tra-
balho de escuta e desenvolvimento de seus gestores. Um desses
profissionais, que aqui chamaremos de Eduardo (nome fictício), ao resga-
tar sua história tomou consciência de que tendia a se colocar com certa
passividade em situações de conflito no trabalho, como também em outras
relações pessoais fora da empresa. Identificou, então, que essas caracterís-
ticas refletiam a reprodução de atitudes que sempre condenara, de sua
mãe e de outras pessoas centrais de seu entorno social. Em sua casa, sem-
pre fora um filho exemplar (de acordo com suas palavras), estudioso, não
bebia, não fumava, frequentava a igreja e nunca levantara a voz para seu
pai, diferente de seus irmãos, os quais Eduardo ajudou a criar por ser o
irmão mais velho. O trabalhador se revelava bastante metódico, controla-
dor e sereno para tomar decisões em sua vida, pessoal e profissional.
Porém quando havia a emergência de conflitos em que alguém se exaltava,
respondia com passividade e tinha dificuldades em se posicionar, acatando
eventualmente decisões em que não estava de acordo e que o consumiam
substancialmente, no sentido de um desgaste psíquico (Dejours, 2012). Ao
longo dos meses em que durou nossa intervenção, Eduardo passou a se
posicionar de uma forma diferente com seus pares e com os diretores da
empresa. Em momentos de maior exaltação e conflitos, mantinha sua

10
Entendemos também que esse desenvolvimento não se dá de forma linear, mas compreende momentos de inflexão,
retrocessos e desorganização.
Matheus Viana Braz | 241

serenidade e questionava com argumentos, assertivamente. Essa mudança


foi recebida de modo positivo pela maior parte de seus pares e por um dos
diretores da empresa. Contudo, outro diretor e dois gerentes viram essa
postura como ameaçadora e nociva, pois haviam se habituado a fazer pre-
valecer suas opiniões e escolhas diante de Eduardo. Enfim, é difícil avaliar
se essas mudanças foram operadas positivamente, na direção da garantia
de maior eficiência e eficácia da organização do trabalho, pois os conflitos
latentes entre alguns líderes se tornaram manifestos, mas somente Edu-
ardo poderia dar essa resposta. O que garantimos é que de fato em relação
ao seu desenvolvimento pessoal houve ganhos consideráveis, que garanti-
ram ao trabalhador maiores fontes de prazer e saúde em suas relações
sociais, dentro e fora do trabalho.
Sublinha-se ainda que as intervenções são coconstruídas, de modo
que o interventor não exerce poder direto sobre os trabalhadores e sobre
a organização. Prescinde-se da postura de especialista, em favor da conso-
lidação de espaços que favorecem as análises coletivas feitas pelos
trabalhadores (Gaulejac, 2019). A mudança, em vez de abarcar a orienta-
ção de modelos prescritivos, tem por finalidade a afirmação do trabalhador
enquanto sujeito de desejo, que exercita sua capacidade criativa e reflexiva.
Mas o que seria se afirmar como sujeito no trabalho?
Aprendemos com a Sociologia Clínica que a constituição do sujeito se
opera segundo dois polos irredutíveis, que se colocam ora em tensão, ora
em sinergia: o desenvolvimento psicossexual e o processo de fabricação do
social (Gaulejac, 1999/2012). A construção de uma identidade narrativa,
de uma historicidade, envolve a reconstrução e ressignificação de opera-
dores fundantes da existência social do indivíduo (Gaulejac, 2009). Assim,
afirmar-se como sujeito é resistir à clausura social e psíquica, é buscar a
transformação do mundo e a construção de uma trajetória autoral. É, tam-
bém, nutrir o desejo de se recriar, mudar a si mesmo e aos outros
(Enriquez, 1994).
Ainda que o indivíduo e seu destino sejam notadamente condiciona-
dos por determinantes sociais, entendidos em termos de heranças
242 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

simbólicas, sociais, econômicas, culturais e políticas, mesmo a pessoa mais


heterônoma possui recursos para construir sua historicidade e caminhar
em direção à afirmação de sua autonomia (Enriquez, 1994). É justamente
confrontando essas multideterminações que o indivíduo se torna sujeito.
Decerto que nos remetemos a um processo que nem sempre é fácil, pois
confrontar nossos valores, escolhas, heranças ideológicas e afetivas com-
preende um percurso árduo e, inclusive, amiúde doloroso, colocando em
xeque nosso próprio narcisismo. Autonomia, vale sublinhar, não significa
o abandono de nossas raízes, mas remete à um trabalho de confrontação
com fantasmas, referências e imperativos sociais de nossa história, bem
como com desejos de onipotência e inspirações megalomaníacas que se
distanciam da alteridade e governam nossas escolhas e modos de ser.
No trabalho, afirmar-se como sujeito tampouco significa responder
de forma acrítica aos ditames de performance, competição e excelência que
se impõem na hipermodernidade (Gaulejac, 2009). Podemos inclusive fa-
zer uma provocação ao sublinhar que há uma parcela significativa de
trabalhadores que no plano social se torna referência, em termos de pro-
dutividade no trabalho, porém que no fim das contas se encontra em
posição de substancial heteronomia e assujeitamento. Trata-se de indiví-
duos que renunciam aos seus desejos e projetos de vida para responderem
condicionadamente a expectativas sociais e imperativos econômicos.
Em uma de nossas intervenções, a trajetória de vida de uma traba-
lhadora ilustra a multidimensionalidade desse processo. Ao retomar sua
história, para a profissional se afirmar como sujeito implicava se distanciar
de laços percebidos como tóxicos de seu núcleo familiar, ressignificar o
medo de que alguns traumas familiares fossem reproduzidos em sua casa
e encarar o desafio da maternidade. Entre identidade genealógica e iden-
tidade narrativa, impunha-se também o desafio de provar sua
competência profissional ao assumir uma função gerencial em um con-
texto de trabalho massivamente ocupado por homens. Tornar-se sujeito
significava rememorar e carregar consigo a força de sua mãe, a qual sem-
pre enfrentou com coragem e perseverança a responsabilidade de criar
Matheus Viana Braz | 243

duas filhas sozinha. Afirmar-se como sujeito, enfim, representava criar es-
tratégias para se desenvolver e dar visibilidade a qualidade de seu trabalho,
em um ambiente onde a competência passava majoritariamente pela afir-
mação de masculinidades.
Exercer a posição de sujeito não significa necessariamente ir contra
a disciplina, o dever e transgredir as regras, mas implica assumir o prota-
gonismo de si e se reconectar consigo, em função de circunstâncias e
condições possíveis em dado contexto histórico (Gaulejac, 2009). No tra-
balho, consiste em responder se quem estabelece o sentido e seu senso de
dever é o indivíduo ou as pessoas de seu entorno. Não há equilíbrio nesse
percurso. O culto ao hedonismo é ilusório e medidas compensatórias são
efêmeras. Ser sujeito compreende a busca de afirmação de posições dese-
jantes e de singularização, o que exige processos constantes de
transformação de si. Gaulejac (2009), nesse sentido, discorre que se afir-
mar como sujeito consiste em levar uma vida que faça sentido para si
mesmo, na qual o orgulho de si emerge de sua intimidade e não tão so-
mente do olhar do outro.
Posicionar-se como sujeito no trabalho consiste em compreender que
nós devemos ter ideais e referências, mas que precisamos ir de encontro a
modelos de serialização e massificação, em prol da construção de nossos
próprios caminhos (Gaulejac, 2009). Trata-se de aceitar-se em suas dife-
renças e singularidade, conceber falhas, imperfeições e regressões, assim
como se permitir ficar consigo mesmo, exercitar a reflexividade sobre si,
mas também aprender a se deleitar com o ócio sem culpabilização.
A abordagem compreensiva na Sociologia Clínica carrega também
em seu bojo a noção de implicação. Não basta se aproximar do sujeito e
fomentar um espaço de coprodução de sentidos. Neste processo, o pesqui-
sador precisa se interrogar sobre as ressonâncias pessoais que lhe são
provocadas pelas vivências do outro. Por exemplo, de que maneira os re-
latos dos trabalhadores estão relacionados com seus valores e sua visão de
mundo? Em que medida eles se entrecruzam com suas expectativas profis-
sionais? Qual o lugar ocupado nos grupos? A hostilidade e dificuldades
244 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

encontradas produzem quais sentimentos e desejos? Como os encontros


mobilizam sua subjetividade?
Trata-se de uma posição sempre aberta à descoberta ou ao confronto
com suas próprias contradições existenciais. A implicação, tomada nas in-
tervenções como indissociável da análise dos processos de transferência e
contratransferência (Devereux, 1967/1980), é a principal balizadora da es-
cuta sensível e da ética do trabalho, as quais fundamentam a postura do
interventor. Como não há neutralidade no vínculo estabelecido com os tra-
balhadores, cabe ao interventor empreender esforços no sentido da
suspensão de julgamentos morais, bem como do reconhecimento de seus
limites e dos fatores que deformam sua percepção. Conforme sublinha Ri-
zet (2012), o pesquisador atua a partir de seu conhecimento, mas também
com sua história, produto de investimentos subjetivos e conflitos existen-
ciais.

Logo, é preciso que esse profissional esteja disposto a se desvestir de seus dog-
mas, de visões maniqueístas, julgamentos morais, encarando seus fantasmas
e fragilidades, para se aproximar o mais próximo possível do trabalho vivido
pelos trabalhadores. O motor da intervenção é mais os questionamentos e as
interrogações do que a busca pela comprovação de suas próprias convicções.
Diante de resistências organizacionais ou mesmo da hostilidade institucional,
é a implicação do interventor que lhe dá subsídios para construir novos cami-
nhos e ter acesso a novos saberes, a partir das experiências obtidas (Viana
Braz, Casadore, & Hashimoto, 2020, p. 10).

No trabalho de mediação grupal, a implicação é indissociada da res-


ponsabilidade, da empatia e da escuta sensível. Para tanto, é fundamental
que o interventor passe por uma formação teórico-prática sólida, que lhe
habilite a trabalhar com prudência, para que os ânimos emocionais e os
conflitos não saiam do controle e não gerem prejuízo para os trabalhado-
res.
A análise de implicação, portanto, é constitutiva dos laços estabeleci-
dos com os trabalhadores, pois para que o interventor compreenda as
dinâmicas intersubjetivas produzidas por suas intervenções, há que se
Matheus Viana Braz | 245

confrontar com as múltiplas dimensões do real nas organizações, mas


também com suas ressonâncias internas (Massa, 2019). Cabe ainda subli-
nhar que com a finalidade de assegurar o rigor do trabalho de implicação,
bem como de fomentar a pluralidade disciplinar, tradicionalmente as se-
ções de Organidrama e os GIP são mediados por dois interventores. No
caso da presente pesquisa, em todas as ocasiões as intervenções foram
conduzidas individualmente pelo pesquisador11. Constatamos nesses casos
que não houve prejuízos e perdas, porém a análise dos processos de trans-
ferência e contratransferência se revelaram ainda mais importantes à
compreensão da dinâmica afetiva das relações grupais.
Pesquisa e ação se misturam na Sociologia Clínica, sujeito e objeto se
diluem para além da racionalidade, e a análise dos conflitos se dá por um
movimento duplo de implicação, do pesquisador e dos demais atores soci-
ais envolvidos. O retorno à própria história permite ao sujeito resgatar o
vivido a partir das percepções sobre a construção de sua própria historici-
dade. Se não aceitamos intervenções nas quais há a obrigatoriedade de
participação dos trabalhadores, é porque o engajamento não provém de
uma lógica autoritária e não pode ser impositivo. Após esclarecermos os
pressupostos que subsidiam nosso trabalho, cabe a cada indivíduo avaliar
se está disposto a se questionar sobre a dimensão de seus afetos e percep-
ções, engendradas à sua história de vida e ao cenário laboral no qual está
inserido.
Nas organizações, públicas e privadas, ao dar início a um trabalho,
nos decepcionávamos com a falta de interesse e esperança de grupos de
trabalhadores para se pensar e elaborar formas coletivas de mudança. Não
acredito em mais nada aqui... Já passaram várias pessoas que nem você
aqui, desde quando entrei na empresa... Não adianta ficarmos conversando
e criticando aqui, quando a gente sabe que nada disso vai sair do papel...
Isso não vale nosso esforço, vamos nos desgastar à toa. Essas foram algu-
mas das expressões evocadas variadas vezes em nossas intervenções.

11
Exceto quando colocadas em prática na universidade, ocasião em que os estagiários de Psicologia mediavam os
grupos em duplas. Voltaremos a essa questão no tópico seguinte.
246 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Quanto maior a precariedade do trabalho, menor parecia ser o envolvi-


mento das pessoas. Em consonância com Dejours (2012), percebemos que
a atitude de indiferença e resignação era produto de uma estratégia cole-
tiva de defesa, cuja finalidade era mitigar qualquer possibilidade de gastar
energia em vão. A desesperança e a descrença na possibilidade de mudança
eram reflexos do sentimento daqueles trabalhadores de que haviam per-
dido sua utilidade, assim como reforçava um posicionamento defensivo
cujo foco era evitar a insatisfação e o aborrecimento. Entendemos que para
que aquelas pessoas se implicassem em um processo de construção de
uma historicidade coletiva, era preciso antes de tudo trabalhar no sentido
do relaxamento dessas defesas (ou mesmo sua eliminação). Não se trata
de tarefa fácil, mas de forma gradual, à medida que os participantes dos
grupos percebiam que nossa intervenção os colocava como prioridade e
que também seriam gratificados com esse processo, sentiam-se mais se-
guros e dispostos e se engajar coletivamente. Devemos, porém, ser sempre
transparentes e honestos com as pessoas. Nesses momentos, a ideia de
assumir responsabilidades que fogem ao nosso alcance e fazer promessas
que não podemos cumprir parece substancialmente sedutora para o inter-
ventor. Decerto que a produção desse tipo de narrativa discursiva pode
despertar nos trabalhadores um engajamento inicial, mas que não se sus-
tenta, uma vez que diante das primeiras decepções ou obstáculos eles se
retrairão novamente, de forma ainda mais defensiva.
Em nossas práticas, portanto, percebemos que se revelam patentes
diferentes graus de implicação por parte dos trabalhadores. Quando inici-
amos nossas intervenções, em geral as dinâmicas intersubjetivas são
permeadas por uma gramática de desconfiança ou descrença, evidenciada
em posturas defensivas. A análise sobre as trajetórias sociais, nessa esteira,
cumpre um papel relevante, pois notamos que os trabalhadores percebem
que se trata de uma abordagem distinta das tradicionais, o que favorece a
construção de laços que passam por significantes como a legitimidade, cre-
dibilidade e confiança no interventor (Viana Braz, Casadore, & Hashimoto,
2020). No nível grupal, esse processo parece também alimentar a
Matheus Viana Braz | 247

aproximação entre os sujeitos. Se falar sobre o real do trabalho, sobre os


empecilhos da atividade, se revela um desafio, se propor a ouvir o que o
outro diz parece ser igualmente complexo. Por isso nos remetemos sempre
à coconstrução. Abrir-se a compreender o outro implica necessariamente
estar disposto a questionar a perspectiva da organização prescrita do tra-
balho (Dejours, 2012), reconhecendo de forma crítica imperfeições
pessoais e organizacionais, mediante as vivências de outros trabalhadores.
Observamos também que a implicação dos trabalhadores somente se
sustenta e se direciona as mudanças (individuais e coletivas) quando o
custo emocional de tal processo é menor do que a carga psíquica proveni-
ente dos conflitos presentes. Parece que as pessoas se tornam mais
receptivas às mudanças quando o estresse proveniente da situação atual
gera um prejuízo e desconforto maior do que o medo de explorar novos
caminhos. Com efeito, é a partir do retorno e reconstrução das histórias
individuais e coletivas que conseguimos acessar esse registro. Intervenções
centradas tão somente na adaptação, em uma análise sobre o presente e
futuro, amiúde mascaram as tensões, a insegurança e o sentimento de de-
samparo dos trabalhadores. Na abordagem clínica, temos que ser
vigilantes para não incorrermos no erro de classificar esses movimentos
como resistências individuais ou disfuncionalidades organizacionais, cri-
ando estratégias para suprimi-las. Sabemos que a realidade não é estática
e tampouco pode ser reduzida a um fenômeno passível de ser acessado em
sua totalidade. Portanto, cabe ao interventor criar espaços de expressão e
interlocução, de modo a compreender quais os signos inerentes às vivên-
cias dos conflitos presentes e quais as representações existentes sobre as
possibilidades de mudanças. Estas, por fim, só ocorrem quando os indiví-
duos veem uma razão para tal. Sem sentido, transparência e participação
coletiva, dificilmente algum trabalhador se engaja em um trabalho de re-
flexividade sobre si e sobre a organização.
248 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

5.4 Limites e impasses da abordagem: transmissão da Sociologia


Clínica na universidade e os grupos de implicação e pesquisa nas
organizações

Para tratar da transmissão da abordagem clínica na universidade,


trazemos um exemplo de uma intervenção, conduzida no seio de uma ins-
tituição de ensino superior na qual o pesquisador atuava como supervisor
de estágios na área de Psicologia do Trabalho. Em determinada ocasião,
chegou ao nosso núcleo uma demanda da Secretaria de Saúde de um mu-
nicípio: em razão da alta rotatividade e elevados índices de afastamentos,
havia a necessidade de promover iniciativas voltadas à Saúde do Trabalha-
dor para os servidores que atuavam nas Unidades Básicas de Saúde (UBS)
da rede.
Este contato não foi feito diretamente pelo secretário de saúde do
município, mas por duas profissionais do setor que fizeram essa mediação.
Após duas reuniões, compreendemos que a demanda inicial estava ende-
reçada a expectativa de que algumas estratégias fossem colocadas em
marcha: promoção de saúde no trabalho na rede de atenção primária;
busca de maior engajamento dos servidores; e foco na prevenção e dimi-
nuição de riscos psicossociais relacionados ao adoecimento e acidentes no
trabalho. Ao contrário da intervenção descrita no primeiro tópico deste
capítulo, não nos propusemos a elaborar um diagnóstico prévio e deixa-
mos claro nas reuniões as premissas de nossas intervenções. O foco,
portanto, seria discutir os itens supracitados com os trabalhadores, de
modo a confrontá-los com suas próprias vivências. A partir disso buscarí-
amos coletivamente a construção de alternativas de ação que fossem
compatíveis com as referidas demandas.
Fizemos uma proposta para realizar grupos semanais com os traba-
lhadores interessados, que seriam realizados no próprio local de trabalho
dos servidores. Em função do limite do número de estagiários, abarcaría-
mos quatro unidades, que foram elencadas pela secretaria por serem
consideradas as piores e as que têm mais necessidade.
Matheus Viana Braz | 249

Depois, fizemos reuniões individuais com as quatro coordenadoras


das UBSs, o que já revela um aspecto importante. Nos demos conta que
essa demanda surgiu de modo vertical, sem a devida participação dessas
profissionais. Apesar do estranhamento e de serem pegas de surpresa, as
propostas de trabalho foram bem recebidas pelas gestoras. Logo, em fun-
ção da agenda das unidades, estabelecemos horários, datas para iniciar os
grupos e cumprimos os ritos burocráticos exigidos pela prefeitura.
A intervenção durou um pouco mais de um ano e, sem entrar em
detalhes sobre as narrativas de vida dos trabalhadores, faremos algumas
considerações sobre como transcorreu nossos trabalhos. Os alunos referi-
dos estavam no quarto ano do curso de Psicologia e eram matriculados na
ênfase de Psicologia Organizacional e do Trabalho. Para além das discipli-
nas obrigatórias relacionadas a essa área, no início do estágio fazíamos um
trabalho de implicação e vivência, direcionado à análise e compreensão das
trajetórias socioprofissionais dos discentes. Nessas atividades, tínhamos
um objetivo de formação pessoal e profissional, para que eles pudessem
compreender como se operam na prática os dispositivos da Sociologia Clí-
nica metodologicamente. Em cada semana, no grupo eram feitas também
discussões teóricas, a partir de textos selecionados acerca dessa aborda-
gem. Após o surgimento da demanda, oito alunos se prontificaram a fazer
parte das intervenções, que seriam conduzidas em duplas e a cada semana
fazíamos uma supervisão, na qual discutíamos o andamento de nossos tra-
balhos.
Nas quatro unidades, dois problemas se colocaram como imperati-
vos: nem sempre havia disponibilidade de salas para realizar os grupos e,
em razão da escassez de pessoal, mormente os trabalhadores interessados
não conseguiam participar dos encontros. Em algumas semanas, foram
feitos grupos com dois servidores, outras com doze e em algumas ocasiões
os estagiários tiveram que cancelar a atividade por falta de disponibilidade.
Estávamos, portanto, confrontados com um problema objetivo, porém que
também era revelador das condições de trabalho nas UBSs.
250 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

Nos primeiros encontros nos dedicamos à abertura de um espaço de


fala, para que os trabalhadores pudessem expressar suas inquietações, an-
gústias e dificuldades acerca da organização, condições e relações de
trabalho. Problemas de infraestrutura, condições precárias, falta de equi-
pamentos básicos, a precarização do trabalho e a leniência da secretaria de
saúde diante dessas situações eram questões trazidas com frequência. A
natureza concreta e material dos problemas se refletia na dificuldade de
inserção institucional dos alunos, evidenciadas pela descrença e senti-
mento de impotência por parte dos servidores. A esse respeito,
testemunhou uma trabalhadora: fico pensando... Por que motivos vamos
ficar conversando aqui, perdendo serviço, se ninguém vai resolver nossos
problemas? Outras vezes, essas interrogações passavam pelo sentimento
de desconfiança: por que a secretaria escolheu justo a nossa unidade? Tem
várias ESFs12 muito pior que a gente. Aqui a gente se dá bem. Quando te-
mos problemas falamos na cara e já resolvemos.
No segundo mês de intervenção, como já havia se estabelecido um
vínculo mais sustentável entre as equipes e os estagiários, resolvemos uti-
lizar os métodos preconizados nos Grupos de Implicação e Pesquisa para
a análise das trajetórias de vida dos servidores. Como os encontros sema-
nais tinham duração média de uma hora e meia, não havia a possibilidade
de paralisar as atividades dos trabalhadores e condensar nossos trabalhos
ao longo de dois ou três dias seguidos. Logo, as análises e compreensões
sobre as narrativas de vida foram conduzidas ao longo dos dois meses sub-
sequentes. Percebemos, porém, que o parcelamento das atividades
produziu uma fragmentação grupal, que culminou em intervenções mais
individualizantes do que coletivas. As identificações projetivas, comu-
mente presentes nessa etapa dos GIP, não se efetivaram e houve queda
significativa da implicação dos trabalhadores.
Dois pontos oriundos dessa intervenção merecem destaque. O que
faz com que os GIP sejam vivenciados com intensidade, implicação e o que
garante a alternância de análises individuais e coletivas parece ser a

12
Estratégia Saúde da Família.
Matheus Viana Braz | 251

possibilidade de fazer um trabalho de imersão, ao longo de dois ou três


dias. Embora tenhamos tentado reconfigurar esse enquadre, em função de
limitações concretas, a alternativa encontrada não foi exitosa. O escasso
tempo, ligado à fragmentação da proposta, impedia a concretização de sín-
teses interpretativas e limitava às análises sobre os conflitos institucionais
engendrados nas dinâmicas de sofrimento dos trabalhadores.
Deparamo-nos também com uma limitação relacionada aos manejos
das situações grupais por parte dos estagiários. Embora tivessem interesse
no campo da Sociologia Clínica, hoje temos a percepção de que faltavam a
eles recursos para mediar os conflitos que emergiam no seio dos grupos.
Em uma das unidades, em determinada ocasião uma servidora se dirigiu
a uma discente no grupo e exclamou: vocês são só estagiários, são muito
jovens ainda né. Precisam aprender muita coisa na vida ainda. Eu tenho
muita estrada nessa vida. Em vez de trabalhar no sentido da exploração
do fenômeno e na interpretação da transferência e da contratransferência,
as alunas se sentiram impotentes, agredidas e ficaram nitidamente sem
reação. Em várias outras situações, que exigiam uma mediação mais ativa
dos interventores, alguns discentes não conseguiam contornar a situação,
de modo a trabalhar no nível dos conflitos grupais, o que eventualmente
culminava em uma postura individualizante dos problemas trazidos pelos
servidores ou resultava em julgamentos de ordem valorativa. Essa experi-
ência, nesse reduto, nos provê um ensinamento. Houve um equívoco de
nossa parte, pois imaginamos que algumas assimetrias no domínio da
construção da escuta poderiam ser corrigidas no decorrer de nossas inter-
venções nos espaços de supervisão. O problema é que subestimamos o
propósito dos GIP e não foi feita uma leitura adequada da compreensão
que os discentes tinham acerca de pressupostos teóricos e metodológicos
elementares à abordagem clínica.
Reconhecemos um impasse relacionado à transmissão da Sociologia
Clínica na universidade. Na abordagem clínica, cabe ao professor conciliar
e articular a existência de três diferentes saberes: o saber acadêmico, pro-
duzido por pesquisadores e transmitido no meio universitário; o saber
252 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

profissional, construído a partir da prática nas organizações de trabalho;


e o saber existencial, oriundo da experiência dos trabalhadores, de suas
descobertas e provas a partir dos impasses vividos em seus cotidianos, que
escapam a prescrição da gestão (Gaulejac, 2013). A ampliação do hiato en-
tre esses saberes ou a anulação de algum deles maximiza a dificuldade em
compreender as contradições existentes no bojo das organizações (Gaule-
jac, 2013). Nas intervenções, embora cada tipo de saber envolva uma lógica
distinta, a escuta e implicação do mediador devem se orientar à compre-
ensão de suas particularidades, auxiliando no trabalho de conciliação de
seus respectivos papéis.
Na universidade, quando os alunos iniciam suas práticas de estágio,
é função do professor/supervisor garantir que haja a adequada transmis-
são das bases teóricas e metodológicas que sustentam a escuta na
abordagem clínica. Na formação em Sociologia Clínica é preciso que o dis-
cente tenha múltiplas experiências, como participante e observador, em
dispositivos como os Grupos de Implicação e Pesquisa e o Organidrama. A
análise dos jogos de transferência e contratransferência, a expressão de
suas dificuldades, angústias, bem como a exploração das contradições que
condicionam sua existência, são ingredientes determinantes para a supe-
ração de obstáculos que emergem no trabalho de mediação dos grupos.
Quando consideramos situações de estágio, em que os alunos ficam nota-
damente ansiosos por se inserirem pela primeira vez no campo da
Psicologia, a construção de seus próprios saberes profissionais parece
eventualmente produzir um fechamento, que os impede de exercitar uma
escuta direcionada à compreensão dos conflitos vivenciados pelos traba-
lhadores. O desafio, portanto, consiste em buscar a superação desses
impasses, conciliando os três registros de saber no processo formativo do
discente. Embora essa tarefa não seja fácil e se confronte amiúde com obs-
táculos institucionais e burocráticos, oriundos da rigidez das matrizes
curriculares (que limitam a atuação do professor), somos defensores da
possibilidade de colocar esses pressupostos em prática, em favor da
Matheus Viana Braz | 253

construção de uma pedagogia fundamentada na escuta sensível (Gaulejac,


2013, p. 28313).
Voltando às intervenções citadas, em função dos percalços encontra-
dos, dois grupos foram prejudicados e ainda que não tenham sido diluídos
continuaram com no máximo quatro trabalhadores (em cada unidade)
participando de forma sistemática. Nas outras duas UBSs, reposicionamos
nosso trabalho de escuta, criamos novas estratégias de ação e houve im-
portantes avanços nos meses seguintes. Em um caso específico, as
principais fontes de sofrimento dos trabalhadores provinham da falta de
reconhecimento e de um processo de estigmatização alimentado pela pró-
pria rede de saúde. Tratava-se de uma UBS localizada em um bairro
popularmente conhecido como o bolsão da pobreza do município. Poucos
profissionais desejavam atuar naquele território, dada a ausência de infra-
estrutura adequada, assim como a alta demanda de trabalho e os riscos
inerentes à criminalidade na região. Assim, os trabalhadores que eram
transferidos à referida unidade eram em sua maioria pessoas responsabi-
lizadas por terem causado problemas ou que não deram certo em nenhum
lugar. Consolidou-se na rede de saúde o estigma segundo o qual quem
trabalhava na unidade era profissional curva de rio.
Nosso trabalho se desdobrou em duas direções. A primeira envolveu
a discussão, reflexão e produção coletiva de novos sentidos atribuídos às
vivências dos trabalhadores e às relações que tinham uns com os outros.
Esse movimento passou pelo resgate coletivo da história da unidade e pela
reelaboração das percepções sobre o impacto de seus trabalhos no territó-
rio. Os novos discursos e significados que emergiram no grupo tiveram a
função de tensionar as representações instituídas, em favor da adoção de
uma posição mais ativa e combativa perante os estigmas presentes na
rede. A segunda direção envolveu a tentativa de mobilização da coordena-
ção e de outras instâncias ligadas à secretaria de saúde, cujo objetivo era
buscar alternativas para interromper esse ciclo naturalizado de deslegiti-
mação profissional. Os caminhos e sugestões delimitadas chegaram a

13
No original: Pédagogie fondée sur l’écoute sensible.
254 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

essas instâncias, mas formalmente nenhum plano de ação integrativa foi


colocado em prática.
Identificamos, a essa altura, uma contradição também expressiva. A
demanda da intervenção foi proveniente da Secretaria de Saúde, porém
quando surgiram em cena problemas sistêmicos, que implicavam mobili-
zações de instâncias superiores, nos confrontamos com uma espécie de
desejo por uma terapêutica localizada (Lévi, 2001b). Em maior ou menor
grau os conflitos eram identificados na gestão do município, contudo se
esperava que as ações de resolução fossem restritas às UBSs individual-
mente. Aproveitamos esse ponto para fazermos um gancho e colocarmos
outra questão, que nos parece bastante cara: como avaliar o êxito das in-
tervenções na Sociologia Clínica?
Para respondermos a essa interrogação, temos que reconhecer que
impera nas organizações um controle ideológico, cujos princípios exigem
que o trabalhador produza cada vez mais, em menor tempo, de forma mais
eficiente e eficaz possível (Gaulejac, 2011). A alienação se coloca como ca-
tegórica quando se naturaliza essa premissa, de modo que esse
trabalhador se vê em um círculo insidioso: é preciso trabalhar para se
aperfeiçoar e se desenvolver a cada dia, em especial para satisfazer neces-
sidades materiais e narcísicas. Suas condutas e seu desejo passam a ser
condicionados pela ideologia gerencialista (Gaulejac, 2007).
Aqui vivemos a cultura do “fazerjamento”. Não temos tempo pra pen-
sar, para planejar. Tem que agir o tempo todo, nos dizia uma trabalhadora.
A reflexão somente é valorizada quando colocada a serviço do funciona-
lismo e da busca por soluções operacionais. Do contrário, é vista como
preciosismo. Para que seja possível compreender as dinâmicas de sofri-
mento e conflito é preciso que essa lógica seja invertida e que se valorize a
reflexão e produção de sentido, em detrimento da ação. Na prática, perce-
bemos que eventualmente no início de nossas intervenções os
trabalhadores sentem sobremaneira que estão perdendo tempo, que estão
sendo improdutivos e o sentimento de fracasso pessoal emerge em pri-
meiro plano. O critério da utilidade, portanto, é colocado como operador
Matheus Viana Braz | 255

central na produção de sentido das ações humanas (Gaulejac, 2007). Mas


se a ideologia gerencialista é fechada e determinista, o movimento de in-
teriorização de seus pressupostos é aberto e fluido, de maneira que nas
intervenções o próprio processo dialético de colocá-las em xeque incita
movimentos de transformação. O devir humano, seja individual ou cole-
tivo, é sempre vivo, cambiante e inusitado.
Embora nossas intervenções não tenham a priori um objetivo fixo e
um fim a ser alcançado, isso não quer dizer que elas prescindam de avali-
ações, mas a dificuldade em fazê-las parece residir na construção de
espaços de avaliações coletivas que superem os imperativos da ética do
resultado. A nosso ver, um trabalho exitoso na abordagem clínica envolve
a expressão de conflitos latentes, a desmistificação de crenças utilitaristas
e a tomada de consciência de processos psíquicos e sociais que subsidiam
as escolhas dos trabalhadores. O acesso a esses conteúdos desconhecidos
permite a ruptura de ciclos de repetições de conflitos, torna possível a re-
organização de sentidos e representações sobre a organização e permite
que novas ideias possam surgir, na direção da edificação de ações insti-
tuintes que possibilitem a transposição de problemas instituídos.
Sem desconsiderar a dimensão sócio-histórica do trabalho e a mate-
rialidade das estruturas organizacionais, defendemos que as avaliações
sejam feitas coletivamente e que se foquem nas transformações (objetivas
e subjetivas) percebidas pelas pessoas envolvidas. Entendemos que o tra-
balhador vive a universalidade do conflito nas organizações, mas é
mediante as dinâmicas intersubjetivas que consegue compreender o que
faz dessa vivência e como é possível atribuir um significado outro a ela.
Em nossas experiências, em geral os trabalhadores apreendem essas
mudanças e avaliam positivamente nosso trabalho. O impasse encontrado
e que assume roupagens distintas em cada organização consiste nas for-
mas como ele é reconhecido por instâncias superiores. Embora não
ignoremos que os saberes produzidos em nossos grupos carreguem con-
sigo a demanda de um efeito prático, percebemos que quando a direção
não está totalmente envolvida na intervenção ou quando não há uma
256 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

reciprocidade em termos de resultados esperados no âmbito da ampliação


da performance, enfrentamos dificuldades em fazer com que os frutos co-
lhidos sejam valorizados.
Nesses casos, as relações transferenciais com essas instâncias pare-
cem se atravessadas pela persecutoriedade (Kets de Vries & Miller, 1993).
A desconfiança, a suspeita e a hostilidade fragmentam as dinâmicas de co-
operação e se multiplicam as tentativas de controle sobre nosso trabalho.
Não temos dados conclusivos para ajudar o leitor no delineamento de um
caminho adequado para seguir nessas situações. Em nossa experiência no-
tamos que esse quadro só é revertido quando os trabalhadores assumem
maior protagonismo, defendendo a importância e continuidade do traba-
lho (o que nem sempre é possível, dado os jogos de poder presentes em
cada organização), quando há a possibilidade da reconstrução de uma pos-
tura mais ativa dos dirigentes na intervenção, para além da afirmação de
uma figura de interdição e vigilância, ou quando conseguimos fazê-los se
questionar genuinamente sobre as vulnerabilidades e contradições do
exercício de suas posições de poder.
Para finalizar este capítulo, é preciso ainda que façamos algumas con-
siderações sobre os dispositivos que constituem o objeto deste livro. Nas
organizações, variadas vezes nos servimos do Organidrama de forma iso-
lada, utilizando-o inclusive de maneira pontual em intervenções breves.
Como as iniciativas voltadas ao desenvolvimento dos trabalhadores e a
gestão de conflitos nas organizações são conduzidas majoritariamente se-
gundo uma perspectiva normativa e pedagógica, o Organidrama se revela
um dispositivo diferenciado, que rompe com essa lógica hegemônica ao
permitir que trabalhemos a partir do vivido dos sujeitos, articulando os
níveis individual e coletivo, das emoções e da reflexividade. Em organiza-
ções fechadas, públicas como privadas, assim como em grupos abertos,
comprovamos a viabilidade desse dispositivo e reconhecemos nele um po-
tente veículo de transformação social.
A utilização dos GIP com grupos abertos se revelou igualmente pro-
fícua. Nestas situações, os laços estabelecidos entre os participantes não
Matheus Viana Braz | 257

passam pela circunscrição de um único enquadramento organizacional,


mas se constroem no decorrer do trabalho. Como são as pessoas que pro-
curam o grupo e a demanda surge de maneira espontânea, os processos
defensivos são minimizados, a implicação no trabalho é mais expressiva e
a dinâmica socioafetiva grupal tende a ser mais aberta e heterogênea, o
que facilita a mediação. Defendemos também que essa modalidade consti-
tui uma via frutífera para o desenho de intervenções que contemplem os
trabalhadores mais fragilizados do cenário laboral brasileiro: aqueles que
vivem nas franjas da informalidade. Não temos dados conclusivos, mas
iniciamos recentemente um projeto no qual fazemos GIP com pessoas de-
sempregadas, a partir de três objetivos: discutir as diferentes percepções
e vivências do desemprego; refletir sobre as pressões sociais relacionadas
à experiência do desemprego; e estabelecer uma rede de relacionamentos,
de modo a criar estratégias de geração de renda e recolocação no mercado
de trabalho. Futuramente, em outro trabalho, pretendemos trazer mais
informações ao leitor a respeito dessas experiências.
Para dar continuidade às nossas reflexões, colocamos a essa altura
outra interrogação, também essencial: uma vez que os GIP foram criados
como veículos de formação pessoal, ao levarmos tais dispositivos para den-
tro das organizações, não estaríamos deturpando seu uso e sua finalidade?
A quem serve nosso trabalho?
Para que os GIP sejam utilizados em organizações fechadas, é preciso
que o interventor faça um trabalho prévio de análise sólida das dinâmicas
socioafetivas dos diferentes grupos, bem como compreenda o nível de sua
inserção institucional (a posição que ocupa na organização) e se certifique
de que se estabeleceram laços de confiança entre os trabalhadores. Como
nos ensinou o professor Francisco Hashimoto (2018), é preciso ter respon-
sabilidade, pois via de regra quando o grupo é finalizado o interventor vai
embora, mas os trabalhadores permanecem na organização. Não podemos
incorrer no erro de produzir espaços de expressão de conflitos e de expo-
sição de histórias de vida que fogem ao controle do interventor, o que pode
culminar na intensificação da hostilidade institucional e no fomento de
258 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

relações transferenciais marcadas pela persecutoriedade (Kets de Vries &


Miller, 1993). Em cenários onde impera a desconfiança, a rivalidade e a
concorrência, não indicamos a utilização dos GIP sem um trabalho prece-
dente, cuja finalidade é sedimentar a construção de espaços de proteção e
confiança, para que seja possível intervir com maior profundidade.
Se enfatizamos decuplicadas vezes que mais do que as condições de
enquadre e de seu leque de técnicas, a espinha dorsal dos dispositivos de
pesquisa e intervenção em Sociologia Clínica é constituída justamente por
seus pressupostos teóricos e metodológicos, é porque reconhecemos que
as abordagens biográficas também podem servir à instrumentalização.
Nosso trabalho serve aos trabalhadores. É a eles que nos dedicamos, é com
eles que nos comprometemos e são eles que acenam os limites de nossas
intervenções. Isso quer dizer que, para que utilizemos os GIP em organi-
zações fechadas, sejam públicas, sejam privadas, é fundamental nos
assegurarmos que relações de confiança se estabeleceram entre os traba-
lhadores que farão parte do grupo e com o interventor. Em nossa
experiência, passamos a iniciar as intervenções com encontros individuais
e grupais, cuja finalidade é compreender a estrutura de funcionamento da
organização no nível de suas normas, valores, do confronto entre trabalho
prescrito e trabalho real, bem como para levantarmos as primeiras hipó-
teses relativas à dinâmica socioafetiva e a estrutura libidinal dos grupos.
Com efeito, essa avaliação preliminar, pautada no trabalho de escuta do
interventor, é o que garante que o propósito do grupo não seja dissimulado
(caso se faça uso do dispositivo) e tampouco que instâncias decisórias ou
os próprios trabalhadores não usem o espaço dos GIP para inibir ou ma-
nipular seus pares, de forma nociva. De todo modo, aprendemos também
com a prática que quando a proposição do GIP ocorre de forma prematura,
dificilmente a operacionalização do grupo é consumada. Nesses casos, há
uma desimplicação e um mutismo que cumpre função defensiva contra
possíveis situações ameaçantes e que impedem o andamento dos traba-
lhos.
Matheus Viana Braz | 259

Nas intervenções breves em organizações fechadas e em contextos


nos quais há a exacerbação da competição, atrelada a superficial inserção
institucional do interventor, propusemos um caminho alternativo na uti-
lização dos GIP. Para evitar a manipulação do propósito e função do grupo,
fizemos uma variação do esboço das trajetórias sociais: em vez de nos fo-
carmos no aprofundamento da saga familiar e da história de vida de cada
trabalhador, enfatizamos a construção de seu percurso socioprofissional,
em especial no que diz respeito ao encontro com a organização em questão.
Para tanto, apresentamos o esboço do seguinte modo:
Figura V: Proposta de variação de esquema para análise de trajetória sócio-organizacional. Criação nossa.

No referido esquema, prescinde-se de uma imersão no contexto fa-


miliar e nos projetos parentais dos participantes em favor da exploração
de suas trajetórias socioprofissionais, sobretudo no que toca o ponto de
intersecção de seus percursos sócio-históricos e socioprofissionais. A par-
tir dessa variação proposta, objetivamos reconstruir a história de vida da
coletividade (Niewiadomki, 2012) da organização e compreender como se
opera o delineamento do que intitulamos historicidade organizacional.
Niewiadomski (2012) denomina história de vida da coletividade a
construção de uma história que vai além das narrativas formais difundidas
260 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

pelos canais institucionais de uma organização, a qual compreende mo-


mentos de conquistas, mas também de conflitos, dificuldades, medos,
desconfiança e retrocessos. Mais do que as evoluções organizacionais em
termos de infraestrutura, normas, produções de bens ou serviços, nos in-
teressa apreender como as relações interprofissionais se configuraram e
quais os valores que se tornaram predominantes nesse percurso. Para
compreender os conflitos e dinâmica de funcionamento das situações do
presente, regressamos ao momento de criação e às transformações opera-
das historicamente na organização, a partir das perspectivas de
trabalhadores que se inseriram em diferentes contextos sócio-organizaci-
onais.
Se essa história condiciona os modos de pensar dos trabalhadores,
suas escolhas também fazem com que novos caminhos sejam traçados e
que a organização seja produzida de outra forma, mediante processos de
rupturas. O que chamamos historicidade organizacional, nesse sentido, se
refere ao percurso individual de cada pessoa e traz à tona as situações em
que foi possível se afirmar como sujeito. Segundo Lévy (2001a),

A história de uma coletividade, sua organização, os conflitos e os problemas


que nela acontecem, só tem consistência e realidade por terem sido vividos por
um indivíduo particular, no curso de um itinerário único, marcado pelo acaso,
sua personalidade, os acontecimentos de sua própria vida familiar (Lévy,
2001a, p. 95).

Para apreendermos como se edificou a história coletiva da organiza-


ção, mediante a variação de nosso enfoque buscamos abrir um espaço de
expressão de percepções sobre acontecimentos fundantes, vividos de
forma distinta por cada trabalhador. Esse processo nos parece bastante
frutífero, pois permite a reconstrução dessa história, não de maneira arti-
ficial e unilateral, mas coletivamente, a partir de reflexões e discussões que
vislumbram a reelaboração das convergências e divergências que emer-
gem no seio dos grupos. Em nossas práticas, utilizamos essa variação
isoladamente, mesmo em intervenções breves em organizações fechadas,
pois não se apresentam como ameaçantes nem envolvem a exposição mais
Matheus Viana Braz | 261

aguda de nenhum trabalhador. Contudo, apesar de reconhecermos que o


nível de profundidade analítica é inferior à concepção original dos GIP,
questionamentos profícuos sobre a história e contradições das organiza-
ções se tornam passíveis de questionamento nesse formato, o que sugere
também caminhos profícuos de pesquisa e intervenção no âmbito do tra-
balho.
À guisa de fechamento, cumpre salientar que o presente estudo não
tem por finalidade a criação de protocolos experimentais, como é feito co-
mumente nas ciências naturais. Pretendemos que os exemplos discutidos
sirvam como modelos e referências, de modo a inspirar pesquisadores a
construir suas próprias intervenções. Assentados no arcabouço teórico e
metodológico da Sociologia Clínica, esperamos que o leitor tenha encon-
trado pistas interpretativas que podem ser utilizadas da forma como achar
mais adequada, desde que sejam seguidos os princípios que fundamentam
a escuta do interventor.
Na sociedade hipermoderna, pautada no culto a excelência, as fron-
teiras entre trabalho e não trabalho são cada vez mais difusas (Antunes,
2018; Viana Braz, 2019). Por isso, cremos ser limitado pensar em qualquer
forma de intervenção complexa que somente considera o trabalhador em
sua relação com a organização na qual está inserido, como se ele fosse um
objeto fragmentado. O funcionamento psíquico não é segmentado. Se in-
vestimos na potencialidade do Organidrama e dos Grupos de Implicação e
Pesquisa, é porque eles nos permitem superar as dicotomias mente e
corpo, pensamento e ação, eu e outro, subjetivo e objetivo, consciência e
matéria.
No cenário de trabalho brasileiro, há uma tendência à reificação do
humano e à humanização de coisas inertes e abstratas (Viana Braz, 2019).
O mercado e as organizações são antromorfizados e passam a ser tratadas
como se tivessem necessidades próprias. O trabalhador, nessa perspectiva
é visto como uma peça, que deve se colocar a serviço de necessidades dadas
como instituídas e inquestionáveis. Em nossas intervenções, conseguimos
tensionar essa lógica e investimos na potencialidade de transformação
262 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

social dos sujeitos. Decerto que limites e impasses são sempre colocados
nesse percurso. Não existem mudanças e resultados ideais, mas na abor-
dagem clínica se abre um espaço para a ampliação de um campo de
possibilidades em que o porvir pode ser disruptivo, para além de condici-
onantes sociais e de ações passadas.
À guisa de conclusão

A clínica da historicidade explora as áreas cinzentas da condição humana, onde


a racionalidade é falha, onde a negatividade é deixada de fora porque inco-
moda, onde a perspectiva histórica é considerada uma perda de tempo, onde
a razão se coloca em falta diante da loucura, da escalada do ódio, do sofrimento
psíquico, das violências extremas... Ela nos encoraja a pensar o impensado, a
buscar sentido no que parece insensato, a compreender situações marcadas
pelo caos, negatividade, incompreensão e violência. Ela consiste em explorar
a história vivida pelas pessoas e grupos. São eles que podem expressar a rea-
lidade dessas histórias e os efeitos em suas vidas. Essas histórias singulares
permitem uma melhor compreensão da condição humana e de como cada his-
tória individual é a sua vez produto e produtora da História dos homens e da
sociedade. Esta compreensão tem efeitos clínicos. Ela aporta um pouco de har-
monia, sentido e alívio. Restaura a confiança na humanidade e em nossa
capacidade individual e coletiva de construir um mundo melhor1.
Vincent de Gaulejac

Em diversas ocasiões em que estivemos juntos, Vincent de Gaulejac


fazia questão de sublinhar que a dimensão do vivido nas narrativas de
vida, central às intervenções em Sociologia Clínica, é tanto portadora de
sentido como de ilusão e de dissimulação. Logo depois, ele costumava re-
tomar dois célebres aforismos proferidos por Henri Lefèbvre para
denunciar as armadilhas do campo das Ciências Sociais: o vivido sem con-
ceito e o conceito sem vida. Em resumo, o primeiro corresponde à imersão

1
La clinique de l’historicité explore les zones d’ombres de la condition humaines, là où la rationalité est mise en
défaut, là où la négativité est laissée de côté parce qu’elle dérange, là où la perspective historique est considérée
comme une perte de temps, là où la raison est mise en défaut face à la folie, la montée de la haine, la souffrance
psychique, les violences extrêmes... Elle nous encourage à penser l’impensé, à chercher le sens dans ce qui semble
insensé, à comprendre des situations marquées par le chaos, la négativité, l’incompréhension et la violence. Elle
consiste à explorer l’histoire vécue par les personnes et les groupes. Ce sont eux qui peuvent exprimer la réalité de
ces histoires et les effets dans leur vie. Ces histoires singulières permettent de mieux comprendre la condition hu-
maine et comment chaque histoire individuelle est à la fois produite et productrice de l’Histoire des hommes et de la
société. Cette compréhension a des effets cliniques. Elle apporte un peu d’harmonie, de sens et d’apaisement. Elle
redonne confiance dans l’humanité et dans notre capacité individuelle et collective à construire un monde meilleur.
264 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

no vivido, nos sentimentos e emoções por um indivíduo, como se o pro-


cesso de delineamento de uma narrativa fosse, por si só, produtor de
sentido. Nossas vidas não possuem uma lógica linear, fechada e coerente.
Acreditar que o saber do sujeito advém tão somente de seu interior, da
expressão de sua narrativa, significa ceder a uma ilusão biográfica empi-
rista (Bourdieu, 1986). Qualquer análise integrativa das vivências de um
sujeito não prescinde da interrogação sobre os condicionantes concretos
de sua existência e, para isso, o rigor teórico se revela fundamental. O se-
gundo aforismo abarca a armadilha oposta, isto é, compreende os casos
em que pesquisadores emergem tão somente na teoria, ficam reclusos na
academia, se servem de esquemas conceituais substancialmente sofistica-
dos e herméticos para se analisar os determinismos de nossa sociedade,
porém acabam mitigando a subjetividade e a criatividade social. Tratam
da realidade social e do vivido como elementos estanques, de forma que
essa ilusão objetivista não concebe o devir humano, o potencial do sujeito
em construir sua própria historicidade, em mudar os cursos de sua histó-
ria.
Em nossas intervenções, sempre tomamos essa reflexão como um
pano de fundo cardeal, um aspecto regulador da construção de nossa es-
cuta. Embora potente, não basta que um trabalhador narre sua própria
história e faça um trabalho de imersão em sua interioridade. A afirmação
de sua posição de sujeito e, mais ainda, as mudanças que se desenham nas
intervenções, somente são possíveis pois fazemos um trabalho entrecor-
tado por reflexões sobre relações concretas existentes nas dinâmicas
grupais e no funcionamento organizacional. Há uma relação de irredutibi-
lidade entre essa narrativa e seu respectivo contexto, que somente pode
ser analisado mediante a consolidação de um corpus teórico-metodológico
sólido.
Nessa mesma direção, tentamos evitar cair nessas armadilhas no
processo de escrita deste livro. O maior receio que tínhamos era não con-
seguir transpor para o leitor a intensidade, riqueza e o caráter imprevisível
dos encontros com os trabalhadores, cujas histórias de vida parecem
Matheus Viana Braz | 265

sempre inenarráveis em terceira pessoa. Queríamos manter o rigor cien-


tífico próprio da abordagem clínica, porém sem passar ao leitor uma
mensagem fria e sem cair também no engodo da construção de esquemas
conceituais e sistemas de classificação. O questionamento da implicação
do pesquisador e de seu lugar de fala foi fundamental nesse percurso.
Como alcançar os objetivos propostos no livro se o próprio autor deste tra-
balho já saiu previamente em defesa dos Grupos de Implicação e Pesquisa
e do Organidrama? Seria este um fator limitador do alcance de nossas crí-
ticas?
No âmbito das limitações deste livro, decerto que algumas questões
podem ser trazidas em primeiro plano. Embora tenhamos realizado vari-
adas intervenções nos últimos anos, optamos por explorar com mais
profundidade três contextos distintos (organizações privadas, instituições
públicas e grupos espontâneos), que nos revelam as potencialidades e plas-
ticidade do repertório teórico-metodológico da Sociologia Clínica. Talvez
alguns leitores mais adeptos do empirismo, da razão analítica e causal,
possam dizer que este livro não coloca a prova efetivamente a viabilidade
da utilização dos dois dispositivos supracitadas em território brasileiro,
pois abarca uma amostragem reduzida e não replicável. Responderíamos,
neste caso, que nunca tivemos a pretensão de construir modalidades de
intervenção replicáveis, pois para isso teríamos que adotar uma linguagem
prescritiva, que foge das premissas de nossos referenciais. Em contrapo-
sição, vislumbramos que este material sirva de referência, para que outros
pesquisadores no Brasil deem continuidade a esse processo de exploração
dos Grupos de Implicação e Pesquisa e do Organidrama. Esperamos, por-
tanto, que nosso texto possa despertar no leitor a curiosidade
epistemofílica e o desejo em criar suas próprias estratégias, contando que
estejam em consonância com os princípios e diretrizes que orientam a es-
cuta e implicação do pesquisador.
O fato de o encontro com o objeto deste livro ser indissociável do pro-
cesso de formação do pesquisador, não parece ter produzido limitações
expressivas. Como trocamos o princípio da neutralidade pela postura
266 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

questionadora e vigilante de nossa implicação, foi possível manter o dis-


tanciamento necessário à realização de críticas, sobretudo àquelas
vinculadas aos enquadres metodológicos e dificuldades encontradas em
nossas intervenções. Os conteúdos deste trabalho, enfim, são também fru-
tos de uma narrativa produzida por um sujeito, no curso de um itinerário
único, o que faz com que a realidade seja sempre apreendida de forma
parcial, mediante suas faculdades intelectuais e emocionais. E é por isso
que falamos em distanciamento, mas não em imparcialidade.
Uma vez que este texto foi iniciado com um relato autobiográfico,
procedido de um capítulo sobre o trabalho e emprego na hipermoderni-
dade, intentamos sublinhar que para operar com os métodos da Sociologia
Clínica é preciso que o pesquisador se implique no processo de construção
de sua historicidade, que se confronte com as contradições de sua história
e que não perca de vista o olhar crítico acerca dos impasses psicossociais
inerentes à situação concreta de sua existência. Rejeitamos abordagens as
quais prefiguram estratégias de mudanças de grupos (em organizações)
que não questionam a natureza sócio-histórica do trabalho na sociedade
atual. Esperamos ter contribuído com esse debate, em especial no que toca
as divergências entre Psicologia Organizacional e Psicologia do Trabalho,
bem como os pontos de intersecção desta última com a Sociologia Clínica.
Ao resgatar a genealogia da Sociologia Clínica a partir de suas pers-
pectivas distintas (de sua institucionalização e de seus pressupostos
conceituais), nos deparamos com uma abordagem complexa, a qual nasce
no seio do movimento institucionalista francês e se consolida após suces-
sivos debates teóricos e embates institucionais. Tal percurso é
fundamental, porque para além da criação de dispositivos de pesquisa e
intervenção, é nesse momento que essa abordagem clínica estabelece qual
sua concepção de sujeito, de indivíduo, de sociedade, de grupos, organiza-
ções e instituições. Influenciada no campo psicológico por Freud, Rogers,
Moreno, Tosquelles, Jaques, Mendel e Lewin, assim como no âmbito soci-
ológico por Mauss, Weber, Marx, Oury, Lapassade, Loureau e Bourdieu, a
Sociologia Clínica assenta seu arcabouço compreensivo a partir de três
Matheus Viana Braz | 267

registros: o sujeito da razão, o sujeito do desejo e o sujeito sócio-histórico.


Portanto, ela aceita as análises materialistas da história, contudo coloca no
centro do debate a irredutibilidade do social e do psíquico, o que a torna
notadamente comprometida com a compreensão das vivências dos indiví-
duos, da particularidade de suas subjetividades e do potencial em se
afirmar como sujeitos de desejo. Nas intervenções, esse movimento se
constrói sem desprezar a complexidade das dinâmicas grupais, os jogos de
poder nas organizações e as projeções inconscientes nas instituições.
Permitimo-nos ainda lançar uma discussão sobre as distinções entre
Psicossociologia e Sociologia Clínica. Problematizamos a superação da
conceituação feita por Enriquez (1993) e propusemos que uma tênue dife-
renciação se delineou historicamente em torno de duas perspectivas,
sobretudo na França, Canadá e Estados Unidos: institucional e da criação
de ferramentas específicas de intervenção. No Brasil, em contraposição, no
plano institucional Psicossociologia e Sociologia Clínica são tomadas co-
mumente como sinônimos e suas distinções se deram por critérios de
conveniência, a depender dos cursos de graduação e pós-graduação em
que foram inseridas. Em relação às ferramentas de intervenção, contudo,
pudemos encontrar as bases explicativas que justificam a carência de tra-
balhos na literatura brasileira sobre os Grupos de Implicação e Pesquisa e
o Organidrama.
Sobretudo a partir dos anos de 1990, a produção intelectual da Soci-
ologia Clínica começou a se dividir em duas vertentes: o movimento
francófono e o anglófono. Três importantes instituições tornaram-se ca-
nais privilegiados de trocas de conhecimentos entre pesquisadores, a
saber, a International Sociological Association (ISA), em especial pelas re-
presentações no eixo RC-46 (Sociologia Clínica), o Institut International de
Sociologie Clinique (IISC, atualmente extinto) e o Réseau International de
Sociologie Clinique (RISC). Curiosamente, embora em termos institucio-
nais os pesquisadores das vertentes anglófonas e francófonas se
organizem entre si, mediante órgãos de representação, publicações coleti-
vas e organização de congressos, esse intercâmbio não se consolidou na
268 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

prática, de modo que há distinções expressivas entre ambos, relacionadas


às suas perspectivas epistemológicas e aos instrumentos e métodos utili-
zados em suas pesquisas e intervenções. No mapeamento breve que
fizemos das produções em torno na Sociologia Clínica a partir dessas re-
des, apreendemos que a corrente francófona é articulada por
trabalhadores da França, Bélgica, Canadá, Suiça, Grécia, Turquia, Itália,
Espanha, Rússia, China, Colômbia, México, Argentina, Uruguai, Chile e
Brasil, enquanto a anglófona abarca países como os Estados Unidos, No-
ruega, Japão, Filipinas, Malásia, África do Sul, Austrália, Alemanha e
Polônia. Nesta última, ainda que as narrativas de vida sejam utilizadas, não
encontramos nenhum estudo que tenha se servido dos Grupos de Impli-
cação e Pesquisa ou do Organidrama, o que revela um dos efeitos colaterais
da cisão identificada em nosso trabalho.
Passando pelas contribuições de Pagès, Moreno e Boal, resgatamos o
contexto social e histórico em que os Grupos de Implicação e Mudança e o
Organidrama foram criados. Explicitamos em detalhes suas condições, en-
quadres, premissas metodológicas e conceituais, notadamente
entrecortadas pelas narrativas de vida, as quais garantem a operacionali-
zação de um duplo movimento de trabalho: individual e coletivo,
emocional e racional.
No último capítulo deste livro, apresentamos ao leitor algumas refle-
xões e proposições de mudanças, construídas a partir de nossa experiência
em diferentes contextos de trabalho. Na iniciativa pública como na pri-
vada, de maneira contínua nos deparamos com uma assimetria entre o
desejo de mudanças a partir da produção de novos sentidos às vivências
dos trabalhadores e a expectativa de que a intervenção proporcionará ne-
cessariamente ganhos em termos de ampliação de performance e eficácia
organizacional. A forma como identificamos e manejamos a transferência,
nesse reduto também possui implicações na compreensão da demanda das
organizações, que por seu turno sempre estará atravessada por contradi-
ções estruturais, próprias à lógica da sociedade de produção capitalista.
Tomando como exemplo uma intervenção em uma empresa privada,
Matheus Viana Braz | 269

refletimos sobre esses impasses e sobre como eles se apresentam na dinâ-


mica afetiva dos grupos, quando utilizamos os dispositivos de intervenção
da Sociologia Clínica.
Depois, trouxemos o recorte de um Grupo de Implicação e Pesquisa
o qual conduzimos para explorar em cada etapa como se dá o manejo do
trabalho reflexivo e emocional dos participantes pelo interventor. Proble-
matizamos o potencial da análise das trajetórias sociais, articuladas com a
expressão dos projetos parentais e mostramos ao leitor em que medida
esse percurso se revela fundamental para que identifiquemos elementos
comuns que surgem na dinâmica afetiva do coletivo. Foi, então, a partir
desse material que discorremos sobre o funcionamento de uma sessão de
Organidrama e, por conseguinte, sobre as múltiplas faces dos conflitos que
emergem nessas situações. Todo esse caminho somente é possível quando
o pesquisador se compromete com a construção de uma escuta orientada
por princípios elementares da Sociologia Clínica. Acompanhado de um tra-
balho constante sobre sua implicação com o campo institucional, é isso que
o permite atuar como um facilitador, garantindo que os trabalhadores se
afirmem como sujeitos no trabalho.
Sobre os limites e impasses dessa abordagem, fizemos algumas con-
siderações sobre as dificuldades na transmissão da Sociologia Clínica nas
universidades, em especial no que concerne a construção da escuta dos
estudantes e às limitações provenientes da rigidez das instituições de en-
sino. Problematizamos como se dá a avaliação de nossas intervenções e de
que maneira ela é indissociável dos sistemas de poder e autoridade das
organizações. Concluímos que é possível e frutífero utilizar o Organidrama
de forma isolada, porém indicamos que os Grupos de Implicação e Pes-
quisa deveriam ser colocados em prática somente após o pesquisador se
certificar de que possui uma sólida inserção institucional e que tem uma
efetiva compreensão da dinâmica afetiva dos grupos onde está inserido.
Ao contrário, em cenários onde predomina a desconfiança e a rivalidade
está exacerbada, os espaços de expressão serão limitados, o que impede a
reconstrução das narrativas dos trabalhadores. Nessas situações,
270 | Trabalho, Sociologia Clínica e Ação: Alternativas à individualização do sofrimento

propusemos uma variação e modificação do esquema de análise das traje-


tórias sociais, que nos permite focar nosso trabalho no registro da
historicidade organizacional. Por fim, enxergamos nos grupos espontâ-
neos canais privilegiados, pois neles há maior implicação entre os
participantes, além de alcançarmos os trabalhadores que vivem nas fran-
jas da informalidade de nossa sociedade.
Se as organizações são apreendidas como um lugar de experiência, a
partir do qual trabalhamos em favor da construção de autonomia, eman-
cipação e mudança social, não devemos perder de vista que compete a nós,
pesquisadores, lutar contra toda forma de obscurantismo, totalitarismo e
instrumentalismo eventualmente presentes no mundo do trabalho. À
guisa de conclusão, esperamos que o leitor tenha encontrado neste texto
ferramentas conceituais e metodológicas que o auxiliem a construir outras
propostas de intervenção, contrárias a individualização do sofrimento.
Além disso, assumimos que nosso objetivo foi integralmente alcançado se
o leitor tiver também encontrado pistas para a compreensão das multide-
terminações que atravessam sua história e para a construção de sua
própria historicidade.
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