185-Texto Do Artigo-296-1-10-20180418
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social do trabalho,
história pública1
Acervo CSBH-FPA.
Tais projetos apresentavam em comum a forte ênfase na história das
comunidades de trabalhadores, analisada a partir de baixo, da perspectiva dos
próprios trabalhadores(as). Não por acaso, a expressão “dar voz aos traba-
lhadores” era comumente utilizada, e o desenvolvimento concomitante da
história oral como metodologia foi fortemente estimulado. Naquele mesmo
período, em diferentes países, fortaleceu-se o vínculo entre história social
e diversos movimentos sociais – feminismo, movimento negro, movimento
camponês, entre outros.
A mesma dinâmica também se aplica ao Brasil, onde a emergência da his-
tória social do trabalho como área específica de investigação acadêmica ocorreu
no contexto das lutas pela redemocratização do país a partir do final dos anos
1970. Como é sabido, a forte presença do movimento dos trabalhadores nesse
processo marcou decisivamente a nova história social do trabalho que emergia
nas universidades. A criação do Arquivo Edgard Leuenroth na Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), em 19746, por exemplo, ocorreu no contexto
dessa estreita colaboração entre historiadores e diversos movimentos sociais
visando a acabar com a ditadura militar no país. De fato, o acervo do militante
anarquista Edgard Leuenroth, que deu origem à própria instituição, foi resgata-
do e levado à universidade em operação organizada por um grupo de intelectu-
ais e exilados políticos que souberam da existência da documentação escondida
na cidade de São Paulo e sob risco de apreensão pela polícia.
Uma narrativa similar sobre a interação entre o trabalho acadêmico e os
movimentos sociais possa, talvez, ser contada para o caso da escravidão e as
várias controvérsias sobre o seu legado na sociedade brasileira. Um momento-
chave nesse caso foi o centenário da Abolição da escravidão, em 1988, que
deu origem a uma série de iniciativas governamentais de celebração do even-
to. As efemérides propiciaram aos historiadores ocasião para divulgar uma
nova historiografia, cuja ênfase principal estava nos escravos como sujeitos de
sua própria história, na importância da atuação deles no processo de extinção
da escravidão. Simultaneamente, o movimento negro ocupava a cena pública
criticando de modo incisivo as celebrações e a ideia da Abolição como conces-
são, dádiva. Desde então, o dia 13 de maio perdeu grande parte do seu apelo
público de comemoração do final da escravidão, sendo em grande medida
substituído pelo dia 20 de novembro (inclusive como feriado oficial em várias
cidades do país), o dia em que Zumbi dos Palmares morreu. A visão crítica
de historiadores e de militantes negros sobre as celebrações de 1988 transfor-
mou a sensibilidade pública e a interpretação de eventos históricos, recons-
truindo o significado da Abolição e os discursos sobre raça no Brasil, num
processo que continua até os dias de hoje, com o intenso debate sobre ações
afirmativas, por exemplo. Desde o final dos anos 1990, mas em especial nos
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dos descendentes de africanos no Brasil. Esse evento vincula-se diretamente
às transformações no campo da história da escravidão e do diálogo, não mui-
to sistemático porém sempre presente, entre historiadores sociais e o movi-
mento negro.
A historiografia brasileira recente vem abordando a agência escrava a
partir de três perspectivas diferentes. Primeiro, ao enfatizar a participação dos
escravos numa cultura legal. Por exemplo, os arquivos cartoriais brasileiros
contêm milhares de processos cíveis, mais precisamente ações de liberdade,
que contam histórias de luta dos escravizados para conquistar a liberdade por
meios legais, independentemente da anuência de seus senhores9.
Segundo, os historiadores aprenderam a revolver fontes policiais e pro-
cessos criminais em busca de registros mais densos e diversificados sobre as
práticas de resistência escrava. Nesse sentido, as pesquisas surpreendem, re-
velando situações na escravidão brasileira inimagináveis até há bem pouco
tempo: cantos de jongo em que os senhores eram desafiados e ridicularizados;
pequenos atos de sabotagem, como roubos e quebra de ferramentas; organiza-
ção de greves; envenenamento da família dos senhores; formação de comuni-
dades de escravos fugitivos de vários tamanhos e diversos graus de hostilidade
e/ou cooperação com as comunidades vizinhas etc.10
Terceiro, há o reconhecimento de que a escravidão no Brasil foi for-
temente africana até um período bastante tardio. Devido à continuidade do
tráfico negreiro até o início dos anos 1850, uma fazenda de café típica no in-
terior das províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo tinha 80% ou 90% dos
seus escravos nascidos na África. A cidade do Rio de Janeiro possuiu a maior
concentração de cativos da escravidão moderna no Ocidente, com cerca de
110 mil deles no final da década de 1840, 60% dos quais nascidos na África.
Destarte, as pesquisas do historiador Robert Slenes demonstram que a coe-
xistência, nas províncias do Sudeste brasileiro, de diferentes povos oriundos
da África Ocidental fez que essas gentes de variadas etnias “descobrissem a
África no Brasil”. Em outras palavras, foi o destino compartilhado no Novo
Mundo que lhes permitiu entender, em grande medida, o que havia de simi-
laridades e/ou congruências em suas línguas e culturas, possibilitando-lhes
articular interpretações e estratégias comuns sobre a experiência da escravi-
dão e o modo de lidar com ela no cotidiano11.
Essas características da historiografia contemporânea da escravidão
brasileira surgiram num contato próximo – o que não significa necessaria-
mente encontros e diálogos regulares e sistemáticos – com um movimento
negro empenhado em consignar os seguintes pontos: primeiro, a africanidade
como uma referência central de identidade para os brasileiros de ascendência
africana; segundo, a importância de políticas públicas que reconheçam o ra-
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legais disponíveis através dos tribunais do trabalho para atingir objetivos pró-
prios e garantir direitos12.
De novo, a relação entre uma agenda política contemporânea – isto é, a
resistência à desregulamentação das relações de trabalho e à perda de direitos –
e o debate acadêmico na área de história social produz um leque de iniciativas
para convencer as autoridades judiciais e a sociedade como um todo de que é
importante ter políticas públicas para preservar a documentação da Justiça do
Trabalho. Multiplicam-se seminários e conferências reunindo advogados, juízes
do trabalho, arquivistas e historiadores sociais para discutir o tema. Ademais,
juízes do trabalho em diferentes regiões têm concordado em criar centros de
documentação para coletar, preservar e disponibilizar os processos trabalhistas
a pesquisadores, trabalhadores e público em geral13. Quando as circunstâncias
não parecem permitir a criação de um centro de documentação, os acervos
são, por vezes, doados a universidades que aceitam recebê-los, permanente ou
temporariamente, sempre na crença de que a pesquisa nesse tipo de fonte pode
ajudar a aumentar o interesse em sua preservação.
Num país como o Brasil, em que uma das características centrais da
desigualdade social tem sido a ausência de uma educação básica de qualidade
para os mais pobres, os trabalhadores têm sido analfabetos quase por defi-
nição na maior parte de nossa história, sendo os escravos, de fato, proibidos
de frequentar escolas. Como consequência, a grande maioria dos trabalhado-
res nunca pode escrever memórias, autobiografias, cartas. Assim, processos
judiciais de natureza diversa – criminais, cíveis, trabalhistas – constituem
fontes indispensáveis para que procuremos dar respostas plausíveis a per-
guntas inescapáveis, não importa qual o período histórico sobre o qual nos
debrucemos: o que querem os trabalhadores? O que, para eles, é importante
conquistar? Como eles veem a sua própria situação e qual tipo de perspectiva
crítica eles têm a respeito do seu mundo? Por certo a resposta a cada uma
dessas questões exige metodologias complexas que ponderem a circunstância
de que os depoimentos dos trabalhadores às autoridades judiciais obedecem
aos critérios de anotação do escrivão, ao roteiro do interrogatório dos juízes,
mas também aos próprios interesses dos trabalhadores em obter determinado
desfecho legal que os beneficie. É certo ainda que tais metodologias têm sido
parte do ofício dos historiadores sociais do trabalho há décadas. No entanto,
sequer poderíamos aventar essas questões aqui não fosse o fato de que tive-
mos a sorte de encontrar, às vezes salvos do descaso e da fogueira por mero
acaso, os processos judiciais que analisamos em nossas pesquisas14.
Ao considerar as observações anteriores sobre as interações entre a his-
tória social do trabalho e uma história pública, ou sobre as formas como a
história social do trabalho torna-se pública, talvez seja apropriado concluir
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melhor à causa da justiça social quando se empenham, modestamente, em
fazer pesquisa histórica e tornar conhecidas as verdades que escavam nos ar-
quivos. Por definição, a verdade é subversiva, não precisando ser outro o lema
de qualquer história pública que careça existir.
NOTAS
1
Em inglês, o termo Public History remete a iniciativas de natureza diversa destina-
das a tornar o conhecimento histórico disponível ao público em geral, almejando-se
também que o cidadão comum, leigo na disciplina histórica, possa participar de al-
gum modo na produção desse conhecimento. Neste texto, adotamos talvez uma defi-
nição mais flexível ou imprecisa, pois focalizamos também algumas experiências de
interlocução entre historiadores e movimentos sociais, sem que tais experiências te-
nham necessariamente se localizado em instituições ou iniciativas específicas. Uma
versão inicial deste artigo foi apresentada em junho de 2008 por ocasião do Global
Labour History Summer Institute na Universidade de Toronto, Canadá. Agradecemos
aos professores Rick Halpern e Dan Bender, organizadores daquele evento, pelo gen-
til convite para dele tomarmos parte.
2
Professor titular no Departamento de História da Universidade Estadual de Campi-
nas (Unicamp). Contato do autor: [email protected].
3
Professor adjunto do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contem-
porânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV). Contato do autor:
[email protected].
4
Fundado no Ruskin College em Oxford em 1966, o History Workshop teve como figu-
ra central o historiador Raphael Samuel. Inspirado na History from below, perspectiva
historiográfica que enfatiza a importância fundamental da história social dos setores
subalternos da sociedade, o History Workshop estimulava a ideia de que a produção da
história era um empreendimento coletivo que deveria envolver necessariamente outros
atores para além do historiador profissional. A partir de 1976 o movimento passou a
editar a influente revista History Workshop Journal. As ideias e iniciativas do History
Workshop influenciaram uma série de outros movimentos similares na Europa e na
América do Norte.
5
Dig Where you Stand é o nome de um livro de Sven Lindqvist, publicado na Suécia em
1978, e de um forte movimento popular que chegou a contar com cerca de 10 mil grupos
de trabalhadores(as) que se reuniam por todo o país para pesquisar e escrever a história
de seus próprios ofícios, locais de trabalho e de suas experiências de vida.
6
O Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) – Centro de Pesquisa e Documentação Social,
foi fundado em 1974 a partir da aquisição do acervo documental de Edgard Leu-
enroth, militante anarquista do início do século XX. Inicialmente, propunha-se a
preservar e divulgar a memória operária do Brasil Republicano. Porém, com o passar
dos anos e a crescente doação de fundos e coleções documentais, o AEL ampliou
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13
Para um exemplo bem-sucedido, visite-se a página do Memorial da Justiça do Tra-
balho do Rio Grande do Sul, <http://iframe.trt4.jus.br/portaltrt/htm/memorial/index.
htm>.
14
Um dos autores deste artigo escreveu dois livros usando fontes judiciais, um sobre
escravos, outro sobre trabalhadores ditos “livres”. Ver CHALHOUB, Sidney, Visões
da liberdade e Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
Belle Époque. 2ª ed. Campinas: Unicamp, 2001.