Tese - 9707 - Bruna Breda Bigossi - Versão Final-17-25
Tese - 9707 - Bruna Breda Bigossi - Versão Final-17-25
Tese - 9707 - Bruna Breda Bigossi - Versão Final-17-25
FIGURA 1: Diário da Manhã, 8 de junho de 1916, capa. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
É simbólico, interessante e até revelador que a escolha desta data para fundar o
local destinado a promover a escrita da história oficial de um estado “tão rico de
tradições”, seja justamente no dia em que se celebraria a morte de Domingos José Martins.
Personagem razoavelmente conhecido pelos capixabas e desconhecido por boa parte dos
brasileiros, ele parece sintetizar, ao menos para os fundadores do IHGES, o espírito de uma
identidade histórica republicana – que será melhor explicada no decorrer da dissertação.
Por que não Maria Ortiz, que segundo o dito popular, com bravura de uma mulher ousada
para seu tempo expulsou holandeses a baldes de água quente; ou José de Anchieta, o padre
jesuíta que marcou seus passos de Vitória à cidade que atualmente leva seu sobrenome? -
18
Mas por que a escolha recaiu sobre a figura de Domingos José Martins?
Assim, volto ao caso dos institutos históricos e geográficos,1 pois muitas são as
pesquisas acerca dessas instituições e de temas a elas relacionadas, podendo-se destacar
dois historiadores pioneiros – os quais a presente dissertação utilizará como aportes
historiográficos –, considerados referências que influenciaram e influenciam pesquisadores
que se debruçam sobre este assunto. A primeira trata-se de Lúcia Maria Paschoal
Guimarães,2 que se dedica desde a década de 1980 a estudar a dinâmica do IHGB e a
produção histórica na RIHGB. Sua tese principal é a de que este instituto foi responsável
por produzir, além de uma História, uma memória nacional.3 Para ela ainda, esse lugar foi
expressão de uma societé savante do século XIX, ou seja:
1
Antes do surgimento da história acadêmica no Brasil, ou seja, aquela vinculada à criação dos cursos e da
pesquisa histórica nas universidades coube ao IHGB e aos institutos históricos provinciais (depois estaduais)
a tarefa de escrever a história do passado, tanto da nação quanto de sua região.
2
Lúcia Guimarães é Professora Titular de Teoria da História na Uerj e é a maior referência nos estudos sobre
o IHGB. Dentre seus textos, destaco: Da Escola Palatina ao Silogeu. Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007 e Debaixo da imediata proteção
imperial: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). São Paulo: Annablume, 2011.
3
Numa entrevista concedida a Valdei Araújo, ela diz: “Ele não produz uma história. Ele produz uma
memória [...] Era uma história-memória. O que faziam os fundadores do IHGB? Estavam organizando os
materiais, estavam dando as orientações. [...] Era uma nação que tínhamos que construir. Para isso, tinham
que dotá-la de um passado comum; criar na população o sentimento de pertencimento.” In.: ARAÚJO,
Valdei. Entrevista com Lúcia Maria Paschoal Guimarães. História da Historiografia, Ouro Preto, n.3, 2009,
p. 250-1.
4
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. O periódico de uma societé savante: a Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (1839-1889). ArtCultura, Uberlândia, n. 25, 2012, p. 39.
19
Coloco em debate outra autora, Lilia Schwarcz, que também entende o instituto
brasileiro como os dois anteriores. Para ela, o IHGB
[...] cumpria o papel que lhe fora reservado, assim como aos demais institutos
históricos: construir uma história da nação, recriar um passado, solidificar mitos
de fundação, ordenar fatos buscando homogeneidades em personagens e eventos
até então dispersos.9
5
Falecido em 2010, foi professor de Teoria da História na Universidade Federal do Rio de Janeiro. A
respeito de suas contribuições para o campo, a revista História da Historiografia publicou um dossiê em sua
homenagem no ano de 2013. Alguns textos são: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Um mestre
de rigor: Manoel Luiz Salgado Guimarães e a delimitação do campo de estudos de historiografia no Brasil.
História da Historiografia, Ouro Preto, n. 13, p. 144-153, 2013 e TURIN, Rodrigo. História da
Historiografia e memória disciplinar: reflexões sobre um gênero. História da Historiografia, Ouro Preto, n.
13, p. 144-153, 2013. Para ler o autor, destaco as seguintes referências: SALGADO GUIMARÃES, Manoel
L. Salgado. História e Natureza em von Martius: esquadrinhando o Brasil para construir a nação.
Manguinhos - História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p.391-413, 2000; Nação e civilização
nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, p. 5-27, 1988.
6
CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In.: A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1998.
7
SALGADO GUIMARÃES, Manoel Luiz. Historiografia e nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro:
Eduerj, 2011, p. 83.
8
SALGADO GUIMARÃES, Nação e civilização nos trópicos... Op. cit., p. 6.
9
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
(1870-1930). São Paulo: Cia das Letras, 1993, p. 129.
20
exemplo, que já foi fartamente estudado).10 O desejo é que este texto abra portas para que
outros historiadores, especialmente vinculados à universidade, possam me acompanhar
nesta jornada.
Elenco agora alguns estudos que possuem o IHGES como objeto de análise ou que
ofereçam alguma abordagem sobre ele. Embora enfatizando vida e obra da intelectual
Maria Stella de Novaes, Juçara Luzia Leite dedicou um capítulo em sua tese de doutorado
defendida junto a Universidade de São Paulo em 2002, a apresentar alguns aspectos da
elite intelectual capixaba que marcava presença no IHGES.11 Encontrei também uma
pequena reflexão dedicada ao instituto na dissertação de mestrado defendida na
Universidade Federal do Espírito Santo por Fernando Achiamé, que atualmente faz parte
da diretoria da instituição e membro assíduo nas reuniões e eventos.12
O personagem feito mito me trouxe a hipótese de que o IHGES foi criado sob
orientação republicana, já que a Revolução de 1817 teve forte conteúdo antimonárquico,
10
Os estudos mais conhecidos dedicados ao IHGES são de autoria de Getúlio Marcos Pereira das Neves,
atual presidente. Ver: NEVES, Getúlio Marcos Pereira. Notícia do Instituto Histórico e Geográfico do
Espírito Santo. Vitória: Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 2003; Para que tantas gerações
não passem quase obscuramente: reflexões sobre o IHGES. Vitória: Instituto Histórico e Geográfico do
Espírito Santo, 2014; Estudos de cultura espírito-santense II: de livros, leituras e leitores. Instituto
Histórico e Geográfico do Espírito Santo: Vitória, 2016.
11
Cf. LEITE, Juçara Luzia. Natureza, folclore e história: a obra de Maria Stella de Novaes e a
historiografia espírito-santense no século XX. 2002. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
12
Cf. ACHIAMÉ, Fernando. O Espírito Santo na era Vargas (1930-1937): elites políticas e reformismo
autoritário. Rio de Janeiro: FGV, 2010, p. 197-201.
21
Ou seja, com esses dados mais elementares já foi possível responder as duas
questões lançadas neste capítulo: quem eram essas pessoas e o que elas faziam. Cabe
lembrar que a aplicação do método prosopográfico, conforme salienta o historiador inglês
Lawrence Stone em artigo de 1971,
13
HEINZ, Flávio (org.). Por uma história das elites. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 8.
14
STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista de Sociologia Política. Curitiba, n. 39, p. 115, 2011.
22
Portanto, surge deste capitulo inicial, a partir das considerações desenvolvidas, uma
pergunta: seria Domingos Martins representante dos valores destas lideranças da Primeira
República capixaba? É o que começo a responder desde o segundo capítulo, no qual
examino como este personagem foi interpretado por três textos do século XIX que
narraram a Revolução Pernambucana. Neste capítulo, além dos autores que o intitulam,
dialogo com a produção do IHGB naquele período e com pesquisas recentes sobre a
Revolução, visto que em 2017, ano passado, foi o bicentenário deste evento.
Ainda neste capítulo também mostro que Domingos Martins era considerado
importante para o Espírito Santo antes mesmo da fundação do instituto. No artigo de Lúcia
Guimarães,15 Primeiro Congresso de História Nacional, breve balanço da atividade
historiográfica no alvorecer do século XX, podemos ver, por exemplo, a apresentação de
um estudo sobre a biografia de Domingos Martins pelo deputado capixaba, Marcílio
Teixeira de Lacerda em 1914, ou seja, dois anos antes da fundação do IHGES. Este
congressista também propôs a construção de uma estátua de Domingos Martins esculpida
em bronze, que comentarei em outro momento durante o trabalho.
Após esta discussão no século XIX, analiso no terceiro capítulo a importância dos
herois no alvorecer da República - utilizando como referências os autores José Murilo de
Carvalho e Armelle Enders – e usando como exemplo a invenção do heroi Domingos José
Martins para o estado do Espírito Santo nas páginas da RIHGES - o meio de divulgação
das ideias do instituto. Esta revista é composta por 70 números e neles analisei as
ocorrências mais relevantes do nome Domingos José Martins até o ano de 2016, no caso:
homenagens, cronograma de festas, imagens, entre outros.
Escolhi a RIHGES como fonte, pois ali estão os textos que contém as interpretações
do heroi produzidas no interior do instituto. Ou seja, ela é o elemento primordial para a
compreensão da narrativa histórica praticada neste espaço. Assim, pensando as revistas
como objeto de estudo para um trabalho de historiografia, concordo com Ana Luiza
Martins, pois segundo a qual:
15
GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal Guimarães. Primeiro Congresso de História Nacional: breve balanço
da atividade historiográfica no alvorecer do século XX. Tempo, Rio de Janeiro, v. 9, n. 18, p. 167, 2005.
23
fonte histórica vem revelando que frases e imagens de periódicos pinçadas aqui e
acolá, descosturadas do mergulho em seu tempo – vale dizer, no imaginário
construído em seu tempo, não iluminam suficientemente o passado. A
pertinência desse gênero de impresso como testemunho de período é válida, se
levarmos em consideração as condições de sua produção, de sua negociação, de
seu mecenato propiciador, das revoluções técnicas a que se assistia e,
16
sobretudo, da natureza dos capitais nele envolvidos.
16
MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: Imprensa e Práticas Culturais em Tempos de República
(1890-1922). São Paulo: Edusp: Fapesp, 2008, p. 21, grifo nosso.
17
Cf. TURIN, Rodrigo. História da historiografia e memória disciplinar: reflexões sobre um gênero. História
da Historiografia, Ouro Preto, n. 13, p. 79, 2013.
24
Ou seja, entende-se que não significa somente estudar textos de história escritos no
passado, mas também e principalmente, desnaturalizar a ideia de que as histórias se
acumulam com o passar do tempo e que cada versão é como uma camada sobreposta à
outra. Cada texto histórico é fruto de seu tempo, de seus questionamentos e dos grupos aos
quais seus autores pertenciam. Para Jurandir Malerba, este campo, além de necessário, é
legítimo:
18
ARAUJO, Valdei. História da historiografia como analítica da historicidade. História da historiografia,
Ouro Preto, n. 12, p. 42, 2013.
19
MALERBA, Jurandir (org.). A história escrita: teoria da história e a história da historiografia. 2.ed.
Curitiba: Prismas, 2016, p. 25.
25
Como se pode ver, o surgimento das primeiras revistas históricas estiveram aliadas
ao surgimento das escolas históricas. Desse modo, lançando luz às revistas dos institutos
históricos brasileiros, dou o exemplo do IHGB, fundado em 1838 e que criou sua revista
em 1839. Além de ser a primeira revista brasileira, tornou-se um espaço no qual foi posto
em funcionamento mecanismos para se construir uma memória da identidade política (e
histórica) da nação. E o êxito foi alcançado, pois muito do que se perpetuou nesta revista
permanece bem forte na história do Brasil, como por exemplo, a ideia de que o Brasil é
uma mistura de “três raças”. Foi por meio de um concurso do IHGB, vencido por Von
Martius, que esta ideia foi lançada, publicada e até hoje repetida.
Com estas discussões, minha intenção nesta introdução foi lançar os fundamentos
do que vou apresentar neste trabalho, em suma, uma pequena contribuição à história da
historiografia capixaba.
20
CERTEAU, Michel de. A escrita da história... Op. cit., p. 66.
21
DUMOULIN, Olivier. Revistas históricas. In.: BURGUIÈRE, André. Diccionario Akal de ciencias
históricas. Madrid: Akal S.A., 1991, p. 609.
22
GUIMARÃES, Lúcia. O periódico de uma societé savante... Op. cit., p. 38-39.