01 - Garotos Mortos 1 Garotos Mortos Não Contam Segredos (Mark Miller)
01 - Garotos Mortos 1 Garotos Mortos Não Contam Segredos (Mark Miller)
01 - Garotos Mortos 1 Garotos Mortos Não Contam Segredos (Mark Miller)
Eastverso
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Proibida a reprodução deste
livro, no todo ou em parte, através de quaisquer meios, sem a permissão escrita do autor, exceto em
casos de pequenas citações usadas em resenhas ou artigos críticos.
Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações, eventos e incidentes são,
ou parte da imaginação do autor, ou usados de maneira ficcional. Quaisquer semelhanças com
indivíduos reais, vivos ou mortos, eventos ou lugares são inteiramente coincidentes.
Sobre Eastview
Playlist
Aviso de gatilho
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Matt dirigia tão rápido que quase fomos atropelados três vezes no
caminho para longe de Eastview. Eu olhava para trás o tempo todo com
medo de que o assassino estivesse à sombra de uma esquina qualquer com a
arma apontada para nós. Mas não estava.
Talvez o tivéssemos matado.
Matty conduzia a moto sem uma direção certa. Ainda estava
chocado demais, assim como eu. Acabamos parando sobre uma das pontes
que conectavam Eastview ao resto de São Paulo. Um canal circundava o
bairro, e os únicos pontos de acesso a ele eram pontes como essa — o que
era útil caso você quisesse controlar a entrada e saída de visitantes
indesejados.
Assim que Matt desligou a engrenagem, desci do banco de trás em
um pulo. Destravei o capacete e o retirei da cabeça; Matt fez o mesmo. Me
apoiei na balaustrada da ponte e observei as águas escuras do canal fluírem
sob a estrutura.
— Porra, o que foi isso? — Matt vociferou. Logo depois, se
aproximou de mim com o olhar mais solícito que já havia visto nele.
Pensei um pouco no que responder: minha mente parecia um papel
branco amassado e sanguinolento.
— Eu não sei — falei. Ele esfregou a testa e se apoiou de costas na
balaustrada da ponte. Meu coração ainda estava acelerado. Subitamente,
algo me atingiu. — Nós temos que voltar.
— O quê?
— Temos que voltar e ajudar Alexis, Matt! — gritei, mesmo que não
quisesse voltar. Gesticulei na direção de Eastview com as mãos. Cada fibra
do meu corpo estava exasperada. — Ele ainda pode estar vivo! Não
podemos, não podemos deixá-lo...
— Enlouqueceu? — esbravejou com os olhos arregalados. — Vivo?
Alexis tá morto, Tommy, morto! — Eu dava um passo para trás a cada
palavra enfurecida que ele gritava. — Se voltarmos lá, serão três cadáveres
que encontrarão de manhã, não um.
Passei os dedos pelos fios escuros do meu cabelo. Olhei em volta
outra vez, com medo de que a figura encapuzada pulasse sobre minhas
costas e me derrubasse da ponte. Estava entrando em um colapso nervoso.
— Oh, porra! Porra, porra...
Matty me segurou pelos ombros e fez nossos olhares se encontrarem.
— Escuta, vai ficar tudo bem — falou, assentindo freneticamente.
Tentou soar firme, mas pareceu assustado.
Mordi o lábio inferior.
— Ele nos viu, Matt. Sabe que estávamos lá.
Ele deixou de assentir e soltou meus ombros; logo deu alguns passos
para trás, o olhar baixo e perdido.
— Isso quer dizer que... — murmurou.
— Ele pode estar vindo atrás de nós. — Vasculhei nosso entorno
outra vez.
— Talvez ele saiba que estávamos juntos — disse, cortando minha
linha de pensamento com a sua própria.
Me dei conta lentamente da merda que ele queria dizer com aquilo.
— Tá falando sério? — perguntei assombrado. Senti meu medo se
transformar em fúria. Fitei seu rosto. — Um cara acabou de ser morto na
nossa escola e tudo com o que você se preocupa é sua reputação de merda?
— Ele ergueu os olhos em direção aos meus, franziu o cenho como se eu
falasse o óbvio. — O que tem de errado com você?
Espalmei seu peito outra vez e o empurrei para trás com força. Matt
se segurou na balaustrada da ponte para não cair no chão. Apertou os lábios,
mas não revidou. Sabia que estava errado, que o que havia dito beirava à
sociopatia.
Esfreguei minha nuca e olhei para as correntes calmas do canal.
— Liga pra polícia — ele balbuciou depois de algum tempo.
— O quê?
— Liga pra polícia e denuncia o assassinato. Talvez eles consigam
capturá-lo se ainda estiver por perto.
Pisquei rapidamente várias vezes. Ele estava certo, precisávamos
fazer isso. Nossos nervos estavam aflorados, ambos estávamos em
desespero. Talvez eu tivesse me apressado demais no julgamento de Matt.
— Tá certo...
Retirei o celular do bolso e desbloqueei a tela. Então vi o primeiro
ícone que havia aparecido.
— Oh, merda.
O mundo parou por um instante. Fiquei completamente sem reação.
O aparelho caiu da minha mão e se espatifou no chão. Matt franziu o cenho
e se agachou para pegá-lo; não demorou a ver o ícone que havia me feito
ficar daquele jeito.
— Merda...
Me encarou com o rosto e os lábios pálidos outra vez, lágrimas de
pavor nos olhos. Eu sentia como se fosse vomitar. Me inclinei sobre a
balaustrada em direção ao canal lá embaixo. Vomitei.
Apertei os olhos. Era um pesadelo. Só podia ser um pesadelo.
Mas quando os abri, ainda estava ali. Não estava sonhando, aquilo
estava mesmo acontecendo. Engoli em seco, meu esôfago queimava. Me
voltei em direção a Matt outra vez. Seus olhos estavam presos na tela do
celular, lia a maldita mensagem.
Quando terminou, me devolveu o aparelho. Foi a minha vez. Meus
dedos tremiam.
Vomitei de novo. Matt pegou o celular da minha mão e releu a
mensagem. Quando consegui me recuperar, murmurei:
— Como ele tem o meu número?
Peguei meu celular de volta.
Matt socou a balaustrada da ponte. Com certeza doeu, mas ele não
fez uma careta sequer.
— Ele sabe quem somos, sabe de tudo! — Socou o concreto
novamente; um grunhido de frustração deixou sua garganta. Observei
calado. Não sabia que merda dizer, ainda estava em choque. Ele se voltou
para mim: — Você contou sobre nós pra alguém? — Franzi o cenho. —
Tommy?
— Não! Não, eu nunca... nunca faria isso.
Neguei com a cabeça, mas tirei um segundo para ponderar sobre
aquilo. Fazia sete meses desde que fui adotado por Edgar e Laura, dois
desde que o semestre começou.
Eu tinha falado com alguém?
Não. Sequer havia alguém com quem falar. Matty era meu único
amigo — ao menos eu tentava me convencer de que sim.
— Merda! — ele disse, e se apoiou na lateral da ponte. Os músculos
de seu antebraço se flexionaram.
Olhei para a tela do meu celular, para aquela maldita mensagem
aberta. Bloqueei o número estranho que a havia enviado. Considerei jogar o
celular no canal, mas como explicaria isso a Edgar e Laura? Além disso, eu
já deveria estar em casa.
— O que vamos fazer? — perguntei para Matt. Ele não respondeu.
— Ainda podemos ligar pra polícia —
— Se a polícia aparecer lá agora — ele me interrompeu bruscamente
—, ele vai saber que fomos nós que ligamos.
Apanhei minha mochila e joguei o celular lá dentro, não queria mais
ter que lidar com aquela mensagem. Quando voltei o olhar para Matt, me
senti completamente perdido em frustração.
— Isso não importa, Matty — insisti. — E daí que você é gay?
Aquele time idiota pode enfiar o preconceito deles no cu. Estamos lidando
com a vida de uma pessoa aqui. — Ele cerrou os dentes e mirou ao canal.
Parei por alguns segundos, tentei me acalmar. — Além do mais, talvez
tivessem mais pessoas na escola que—
— Não, Tommy — me interrompeu outra vez —, não podemos
contar pra ninguém.
Fiquei pasmo. Pasmo e decepcionado. Quem era aquele cara com
quem eu dormia? O quão longe ele estava disposto a ir para encobrir nossa
relação?
— Você realmente vai fazer isso, Matt?
— Ninguém pode sonhar que gosto de garotos, ninguém. —
Arregalou os olhos, parecia assustado. — É o fim da linha pra mim. Não
vou ser mais um jogador de basquete qualquer, vou ser o jogador de
basquete gay. Vou perder qualquer oportunidade que já sonhei em ter.
Movi minha mandíbula de um lado para o outro. Me apoiei na ponte
como ele havia feito antes.
— Você não pode ter certeza disso — tentei rebater.
A expressão dele se fechou. Se aproximou rapidamente me mim e
apontou o indicador para o meu peito.
— Você não conhece o time como eu. Não conhece o treinador Fleet
como eu. Não conhece... desviou o olhar para o chão — meu pai... —
Voltou então a me fitar. — E, principalmente... — inspira fundo — você
não está exposto à escola do mesmo jeito que eu.
Me sentia preso. Preso e sem saída. Queria ser um babaca insensível
como ele, queria poder ser egoísta e colocar o que queria sobre os desejos
de qualquer outro, mas não podia. Eu o amava. Eu o amava tanto que não
podia fazer aquilo com ele.
— Ninguém pode saber disso, Tommy. — Tocou as laterais do meu
rosto. — Por favor.
— Matt... — murmurei.
Mas nosso breve momento de reconciliação se dissolveu assim que
ele se deu conta de que estamos em público. Se afastou como se eu tivesse
tentado golpeá-lo ou algo assim. Aquilo me magoou. Fiquei em silêncio,
debatendo internamente sobre que merda devia fazer.
— O que você acha que vai acontecer com sua bolsa se estiver
envolvido em um escândalo como esse?
Aquilo me pegou de surpresa.
— O quê?
Matt umedeceu os lábios e arqueou as sobrancelhas.
— A única coisa que importa para o diretor Wolmer é a reputação de
Eastview, Tom. — Suspirou. — E ele não tem exatamente a fama de ser
misericordioso quando se trata disso.
Fiquei ainda mais sem chão.
— Acha que posso perder minha bolsa?
Ele ponderou sobre a pergunta.
— Acho que ambos temos muito a perder.
Retirei meus óculos do rosto e esfreguei os olhos. Meus joelhos
fraquejaram, não me esforcei para contê-los. Me arrastei lentamente pela
balaustrada da ponte, de costas, até sentar no chão. Meus olhos estavam
fixos nas engrenagens da moto de Matt, perdidos.
— Que porra devemos fazer então?
— Nada.
— Nada?
Ele se agachou até ficar na altura do meu olhar.
— Voltamos pra casa, ficamos calados até a manhã — sussurrou. —
Talvez tudo esteja normal até lá. Talvez não. De qualquer forma... — seu
olhar mergulhou no meu outra vez —, não podemos contar nada a ninguém.
Encostei a cabeça na lateral da ponte. Uma ideia me veio à mente.
— Se falássemos disso pra Edgar...
— Tommy... — repreendeu.
— Se falássemos com Edgar — continuei —, ele poderia nos
proteger desse assassino, tenho certeza disso.
Matt apertou os lábios e olhou para os dois lados da ponte.
— E o que Edgar faria sobre nossa saída do armário? — disse.
Nunca senti tanta vontade de socá-lo quanto naquele momento. Me levantei
às pressas do chão, irado. Ele fez o mesmo. Virei de costas. — Por favor,
Tommy. Se você sente qualquer coisa por mim, fique calado. Especialmente
próximo de Edgar. — Aquilo era demais. Era oficialmente demais. Estava
chegando próximo do meu ponto limite. — Você vai ficar calado? — Bati
os pés no chão, inspirando e expirando de forma rápida e profunda. — Fala
comigo, merda! — elevou o tom de voz.
— Eu vou! Tudo bem? — Me virei em sua direção, possesso. Não
conseguia me controlar, não conseguia filtrar o que saía da minha boca. —
Eu vou esconder a porra do seu segredo e a porra do garoto morto na nossa
escola! Está feliz agora? — disse tudo em sequência; no final, estava
ofegante. Cruzei os braços diante do peito.
Ele olhou ao redor mais uma vez e se aproximou.
— Obrigado... — sussurrou.
Não consegui sequer fitá-lo por muito tempo. Me sentia sujo e
indesejado. Mas então um momento específico daquela noite me atingiu
como um disparo. Perdi o ar por alguns segundos.
— O que foi? — ele perguntou diante do meu semblante ansioso.
Entreabri os lábios.
— Se não fosse por você... — comecei em um murmuro. Me lembrei
do cano da arma apontado para o meu peito. — Se não fosse por você, ele
teria me matado. No armário.
E, por alguma razão — por estresse, medo, preocupação, pavor ou
ansiedade — aquela noção me fez entrar em colapso. As lágrimas
começaram a descer dos meus olhos antes que percebesse. Algo doía no
meu coração, mas não sabia o que. Precisava urgentemente voltar para casa,
me trancar no quarto e tentar esquecer daquela noite de merda.
Matt me tomou nos braços pela primeira vez desde que fugimos e eu
afundei meu rosto em seu peito. Que se foda se alguém estivesse olhando.
Que se foda esse maldito bairro e essa escola homofóbica.
— Tudo bem, tudo bem — ele murmurou contra o meu cabelo. Não
me largou. — Vai ficar tudo bem, Tommy.
Seu uniforme ficou úmido com as minhas lágrimas. Quando por fim
secaram, quando por fim coloquei para fora tudo o que tinha guardado ali,
nos afastamos.
— Se jogarmos os joguinhos dele — ele disse enquanto me fitava
—, talvez nos deixe em paz.
— Tem certeza? — meus lábios tremeram.
Um silêncio tenso se ergueu entre nós até ele responder:
— Não.
Fechei os olhos e assenti. Minha mente voou até o corpo de Alexis
no laboratório de biologia, até a figura encapuzada que talvez ainda
rondasse os corredores da escola naquele momento. Quando os abri, Matt
estendeu o capacete do passageiro em minha direção, e eu o apanhei. Ele
também colocou o dele.
— Vem, vou te levar de volta pra casa.
N ão estou preparado para este dia. Não estou preparado para
viver. Só queria ficar preso no quarto pelo resto do dia, da semana, do
mês. Mas não posso.
Me aproximo da escada que leva ao primeiro andar. O cheio de
torradas, chá e café preenche a casa inteira. Laura e Edgar provavelmente já
me esperam junto da mesa. Seguro a alça da mochila com uma mão e, com
a outra, checo o Twitter atrás de alguma informação relevante sobre a noite
passada. Rolo, rolo e rolo pela timeline. Tudo o que vejo são posts sobre a
vitória da equipe de ginástica no campeonato interestadual e garotos do
time de futebol treinando cedo pela manhã.
Nada sobre Alexis. Nada sobre um assassinato em Eastview. Bom,
talvez as coisas realmente estejam melhor. Bloqueio o celular. Mas quando
coloco o primeiro pé na escada, sinto a vibração de uma nova mensagem.
Checo o número e a prévia pela tela de bloqueio.
Merda. Merda. Merda.
Paro de andar, me apoio no corrimão. Logo começo a hiperventilar.
Olho para baixo, para os degraus em minha frente. É ele. Eu sei que é ele.
Ou ela, seja lá quem for a pessoa que tirou a vida de Alexis ontem à noite.
Mas nós não abrimos a porra da boca. O que o assassino ainda quer
conosco?
Meu medo se transforma em fúria. Desbloqueio o celular novamente
e clico na mensagem.
FIM DO LIVRO UM
D irigir e ler ao mesmo tempo é mais difícil do que parece. Devia
haver um curso pra ensinar esse tipo de coisa. Paro no sinal vermelho, e
tenho alguns segundos pra ler a passagem aberta no meu colo.
De fato vêm.
O sinal abre novamente. Toco o volante emborrachado e piso de leve
no acelerador. O carro não arranca a mais de 30km/h; as ruas mais próximas
da delegacia de Eastview são pouco agitadas. Ergo o livro na altura dos
olhos, pois a linha seguinte me chama a atenção:
Pego meu marcador de texto amarelo largado no painel e destaco a
passagem: talvez seja esse o problema de Tommy. De qualquer forma, ele
vai se abrir conosco quando for o tempo certo. Estamos com ele há poucos
meses, mas não tem dúvida alguma em meu peito de que adotá-lo foi a
melhor decisão que Laura e eu já tomamos. Um sorriso se abre em meu
rosto.
Paro em frente à delegacia. Desligo as engrenagens, pego meu
revólver e o acoplo no coldre do cinto. Apanho alguns relatórios que
preparei durante o fim de semana e saio do carro.
Ser policial em Eastview é como ser um policial em uma cidade
pequena: todo mundo conhece você e coloca em seus ombros o peso de
resolver até as mínimas inconveniências. Ainda assim, amo meu trabalho.
Amo a equipe com a qual trabalho. Amo esse bairro.
O problema é que nunca tivemos uma situação como essa antes.
Nunca antes um crime desses foi cometido em Eastview, menos ainda um
suicídio tão suspeito. Tenho a sensação de que algo bastante perigoso está
acontecendo, o que pode arruinar a paz deste bairro. Isso não posso deixar
acontecer.
Entro na delegacia. Sou recepcionado pela visão de sempre: meu
parceiro, Eduardo Scooper, sentado em sua mesa ao lado da minha, um
copo largo e borbulhante de café preto nas mãos, um sorriso torto no rosto
de mandíbula bem definida e as insígnias douradas presas no peito do
uniforme amarronzado.
— Bom dia, Vilarreal — cumprimenta.
Passo direto por ele e me aproximo da cafeteira. Sirvo um copo
grande de café para mim.
— Acordou de bom humor, Scooper? — respondo em um tom alto
para sinalizar minha presença para o resto da equipe.
— O de sempre — ele dá um gole em seu café.
Chris sai de sua sala no corredor ao lado e se aproxima.
— Novidades sobre o garoto suicida? — Entrego a ela meus
relatórios e me recosto sobre o balcão onde fica a cafeteira.
— Analisamos todos os pertences dele — ela diz com os olhos nas
folhas em suas mãos —, em casa e na escola.
Chris dá um aceno sutil quando termina de ler os relatórios. O óculos
pequeno e escuro parece imóvel em seu rosto, os fios escuros na altura dos
ombros são perfeitamente alinhados.
Do corredor à minha esquerda, Samara, outra policial investigativa,
aparece e caminha até mim trazendo uma pasta escura nas mãos. Ela me
cumprimenta em silêncio com o queixo e me passa a pasta.
— O que é isso? — Abro e vasculho o conteúdo de seu interior.
— Fotos do armário — ela responde enquanto pego uma das fotos e
analiso. — Está vazio.
Meu cenho se franze. Procuro alguma coisa incomum nas fotos, mas
não acho nada. Parecem fotos ordinárias de um armário vazio.
— E isso é importante por...? — Ergo uma sobrancelha.
— Não estava vazio antes do acontecido. — Samara diz e estende o
próprio celular até mim. Na tela, vejo uma foto do garoto ainda vivo junto
de seu melhor amigo, ambos na frente do armário aberto, que tem seu
interior repleto de materiais de estudo e objetos seus.
Observo a foto do celular, e então as fotos físicas da pasta.
— Foi roubado?
Samara dá de ombros e recolhe o celular. Fecho a pasta.
— Ou esvaziado pela vítima por alguma razão. — Ela senta em uma
cadeira próxima de Scooper.
Meu parceiro ajeita sua postura antes de dizer:
— Interrogamos a família, amigos próximos, colegas distantes. —
Suspira. — Não encontramos nada que indicasse que ele estava planejando
suicídio. Nenhum histórico de transtornos psicológicos na família, nenhum
comportamento suspeito, nenhuma fala duvidosa. — Cruzo os braços sobre
o peito. Minha intuição de que algo bastante errado está acontecendo em
Eastview se acentua. — Os pais disseram que o dia da morte foi apenas um
dia normal... até notarem a ausência do filho à noite.
Movo a mandíbula de um lado para o outro pensando nisso.
Abandono a pasta com as fotos do armário, dou um gole longo no meu copo
de café. A sensação fervente e amarga me deixa um pouco mais desperto.
— Mesmo que ele quisesse se suicidar... — murmuro para meus três
companheiros de delegacia —, por que na escola?
— Pra chamar atenção? — Chris sugere em tom despreocupado.
— De quem, exatamente? — Scooper rebate. — Ninguém na escola
tinha qualquer tipo de coisa contra ele, Eddie. — Me fita brevemente.
Encaro a porta fechada da delegacia, me lembrando do que
investiguei na cena do crime e descrevi em detalhes nos relatórios que
seriam enviados às instâncias superiores da Polícia Federal mais tarde.
— A traqueia dele estava quebrada? — Chris pergunta.
— Sim — respondo, um pouco frio, um pouco ríspido.
Um silêncio estático se ergue entre nós. Um silêncio que, quando
quebrado, significará o fim da paz neste bairro. Então que eu o faça.
— Esse garoto não se matou, não foi? — pergunto em um tom mais
baixo.
É uma pergunta retórica, mas Samara a responde de qualquer forma:
— Não.
— Porra — murmuro, e esfrego os olhos. Penso em todas as pessoas
que conheço e que agora estão em perigo. Penso em Laura. Penso em
Tommy.
— Um assassino em Eastview — Scooper comenta em um tom
jocoso e ansioso. — Essa é nova.
— Devemos mesmo envolver as autoridades de São Paulo? — Chris
pergunta com certa relutância, a nuca curvada em direção aos relatórios em
suas mãos.
Todos sabemos a resposta para aquilo.
— Não. — Apanho as folhas de suas mãos. Caminho até a máquina
de cortar papel no espaço entre minha mesa e a de Scooper e retalho os
relatórios que escrevi. — Nada disso pode sair de Eastview. — Comento
em um tom sombrio quando o último pedaço de papel se fragmenta.
Retiro o canivete que guardo no cinto e passo a lâmina afiada sobre a
palma da minha mão direita. Pele e carne se rompem. Um filete delicado e
rubro de sangue escorre.
Estendo o canivete a Scooper.
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