01 - Garotos Mortos 1 Garotos Mortos Não Contam Segredos (Mark Miller)

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Fronteiraverso

Além da fronteira – volume 1


Além da escuridão – volume 2
Além da tempestade – volume 2.5
Além das chamas – volume 3
Além das cinzas – volume 3.5
Além do alvorecer (conto)
Além do crepúsculo (conto)

Eastverso

Garotos mortos não contam segredos –


volume 1
ã
Garotos mortos não contam mentiras –
volume 2

Aquele garoto – volume 1
GAROTOS MORTOS NÃO CONTAM SEGREDOS
Copyright © 2021 Mark Miller.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Proibida a reprodução deste
livro, no todo ou em parte, através de quaisquer meios, sem a permissão escrita do autor, exceto em
casos de pequenas citações usadas em resenhas ou artigos críticos.
Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações, eventos e incidentes são,
ou parte da imaginação do autor, ou usados de maneira ficcional. Quaisquer semelhanças com
indivíduos reais, vivos ou mortos, eventos ou lugares são inteiramente coincidentes.

Os direitos morais do autor foram assegurados.

Leitura Crítica: Brendon Idzi Duhring


Revisão: Brendon Idzi Duhring, Nathally Coltro
Diagramação: Bruno Louvres, Mark Miller
Capa e Ilustrações: Senara Sousa
Ilustração de Personagens © Arda Artworks
Emblema de Eastview © C. M. P. Vargas

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


Primeira edição, 2021.
Para aqueles que tiveram um Ensino Médio infernal e conseguiram sobreviver. Se esse livro prova
alguma coisa... é que nem todos conseguem ;)
Sumário

Sobre Eastview
Playlist
Aviso de gatilho

Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis

Garotos mortos não contam mentiras


Agradecimentos
Sobre O Autor
Eastview é um colégio particular de Ensino Médio fundado em 1903 pelo
benfeitor puritano Carlos Wolmer, localizado em Eastview, São Paulo.
Está na vanguarda da pesquisa acadêmica e intelectual. Aqueles que
se aventuram aqui - para aprender, pesquisar, ensinar, trabalhar e crescer -
se juntam a mais de um século de tradição e estudantes que buscam pela
verdade, conhecimento e pela construção de um mundo melhor.
Como a maior instituição de renome do Brasil, Eastview estará
sempre focada em criar oportunidades educacionais para os jovens que
representam o futuro da nação - e do mundo.
Esse livro possui uma playlist cuidadosamente organizada para
complementar a experiência de leitura. Acesse-a através do código abaixo
(abra a barra de busca do spotify, clique sobre o ícone da câmera e o
escaneie), ou busque pelas palavras-chave “Garotos Mortos Não Contam
Segredos – Playlist Oficial” no serviço de streaming.
N ão consigo dormir esta noite. Deito na cama, mas não durmo.
Encaro o teto azulado do quarto por horas sem fim, mas não durmo.
Viro de um lado para o outro. Levanto. Olho para a vista noturna através da
janela fenestrada. A alguns quilômetros daqui, está o Colégio Eastview para
Jovens de Elite. A alguns quilômetros daqui, está o cadáver de um dos meus
colegas de sala.
Volto para a cama. Me sento. Pego meu celular pela milionésima
vez, ligo para Matty pela enésima. A linha toca, toca, toca. Ninguém atende
— mais uma vez.
Me jogo na cama. Volto a olhar para o teto, me lembrando da cena
macabra que presenciei. Aperto os olhos tentando me esquecer, mas não
consigo. A imagem estará presa em minha mente para sempre, como
chiclete na sola de um sapato.
Fico assim por mais algumas horas. O céu passa de anil a azul
escuro, de azul escuro a laranja. Os primeiros raios de sol se erguem no
horizonte. Apanho meu celular outra vez, mas não para ligar pra Matty.
Abro a caixa de mensagens, e no topo está a que eu tanto queria que tivesse
desaparecido. Revê-la faz meu coração palpitar. Pulo da cama e me
aproximo da janela outra vez. Olho as duas esquinas da rua, me certificando
de que a figura encapuzada não me seguiu.
Respiro fundo uma, duas, três vezes.
Vejo alguns vizinhos caminhando pelas calçadas, passeando com
animais de estimação, fazendo seus exercícios matinais. Isso me dá uma
sensação de segurança, de normalidade.
Volto à cama. Apanho o celular. Clico na mensagem outra vez.
Releio a primeira linha.

E não consigo ler o resto.


Começo a hiperventilar. Corro para o banheiro.
De lá, ouço sons no andar de baixo. Devem ser apenas Laura e Edgar
acordando. Não tenho motivos para me preocupar. Estou na minha casa.
Estou seguro. Inspiro fundo. Estou seguro. Inspiro fundo. Estou —
O celular vibra sobre a cama.
Fico paralisado. Até notar que é o alarme das 6h.
Aperto as laterais de mármore da pia com as mãos e me inclino
sobre ela. Vomito pela décima vez desde que voltei para casa. Levo um,
talvez dois minutos até me recuperar. Limpo a boca com o antebraço.
Observo meu reflexo acabado no espelho. As manchas escuras e vermelhas
ao redor e sob meus olhos são assustadoras, retiradas direto de um filme de
terror. Vou ter algum trabalho para sair daqui de forma apresentável, para
não levantar suspeitas para os dois adultos que me esperam lá embaixo de
que fiquei a noite inteira acordado e chorando.
Como eu ficaria calado diante de Edgar? E se ele fizesse perguntas
demais? Como eu mentiria para um maldito policial investigativo?
Merda. Merda. Merda. Merda.
Para Matty era fácil. Ele só precisava voltar pra casa e dizer que
esteve comendo uma garota qualquer naquela noite. Tenho certeza de que
seu pai lhe daria um tapinha nas costas e ainda diria “esse é o meu garoto!”.
Já eu tinha que voltar pra casa e encarar um possível questionário dos meus
pais adotivos, ligados diretamente à polícia do bairro.
Tudo era muito fácil pra Mateus Armani. Jogador de basquete.
Popular entre as garotas. Admirado pelos garotos. Todo mundo queria ser
como ele. Ou foder com ele. Talvez a coisa mais difícil em sua vida fosse
eu. Babaca.
Abro a torneira da pia e lavo meu rosto com água gelada. Isso me
desperta, me dou conta de que tenho o pior dia da minha vida pela frente na
escola. Talvez as aulas sejam canceladas; talvez não.
As pessoas deste bairro são sociopatas.
Escovo os dentes. Tomo banho. Tento afastar a expressão de medo e
derrota que parece pintada em meu rosto como uma máscara. Saio do
banheiro com a toalha enrolada na cintura. Abro meu closet. Não penso
muito, apanho o primeiro uniforme de Eastview que vejo pela frente. O
tecido anil parece frio e sem vida. Ótimo.
Retiro a toalha. Visto o uniforme. Aperto bem a gravata em frente ao
espelho do closet. Estou mais apresentável, talvez consiga passar por meus
pais adotivos sem chamar muita atenção.
Mas, por dentro, ainda me sinto como se tivesse acabado de ser
atropelado por um caminhão. Não tem chance alguma de que eu consiga
aguentar este dia sem uma cápsula de cafeína.
Apanho minha mochila e a abro sobre a cama. Jogo o notebook pra
cá, os cadernos pra lá. Alcanço o pequeno recipiente de plástico branco
onde guardo minhas cápsulas. Abro uma. Aspiro. Abro outra. Aspiro. Abro
uma terceira. Penso um pouco, talvez já seja suficiente. Talvez não.
Aspiro.
Guardo o recipiente no fundo da mochila. Me olho no espelho outra
vez. Por um segundo, a imagem de Alexis sendo asfixiado retorna à minha
mente. Fico sobressaltado e viro em direção à janela, fugindo da minha
própria imagem.
O celular vibra outra vez sobre a cama. 6h15.
Suspiro. Sinto meu coração acelerar por conta da cafeína. Apanho a
mochila e o celular. Engulo em seco. Antes de deixar o quarto, leio a
mensagem completa do assassino novamente. Um calafrio passa pela minha
espinha quando relembro tudo.
M attheus despencou sobre mim suavemente, seu peito suado
colando-se ao meu, subindo e descendo no mesmo ritmo. Nossa
respiração estava em sincronia; nossos olhos, fechados. Seus dedos
passearam pelos fios escuros do meu cabelo por um breve momento antes
de ele virar para o outro lado.
Deitamos de bruços no chão gelado da quadra de basquete,
escondidos atrás da fileira mais alta de bancos da arquibancada. Inspiramos
fundo, recuperando nossos fôlegos.
Abri os olhos. Fitei o teto alto e cheio de veias de metal da quadra.
— Como foi? — ele perguntou depois de alguns minutos.
Virei o rosto para encará-lo.
— Incrível.
Matty me lançou um sorrisinho cínico e me deu um último selinho.
Levantou do chão e colocou de volta as roupas que haviam ficado
espalhadas ao nosso redor. Fechou o zíper da calça e, em seguida, sentou no
chão para vestir as meias e calçar os tênis esportivos. O peito continuou
desnudo. Observei os músculos de suas costas até sentir o desconforto nas
minhas por deitar naquele chão duro e pouco ergonômico.
— A gente devia arranjar um lugar mais confortável — comentei
casualmente. Como eu havia esperado, Matt fechou o rosto e vestiu a
camiseta número 10 do time de basquete de maneira abrupta. Apertei os
lábios. Vesti minhas próprias roupas. Depois de passar a camiseta do clube
de xadrez sobre os ombros, complementei: — Na academia tem aqueles
colchonetes de treino. Talvez pudéssemos trazer um pra cá.
— Já te disse, Tommy — rebateu imediatamente e se levantou do
chão. Escondeu as mãos nos bolsos, sentou em um banco da fileira mais
próxima e analisou a quadra vazia com uma expressão taciturna irritante. —
Muito arriscado.
Também levantei do chão, logo sentei ao seu lado.
— Por quê? — perguntei em um tom elevado, estava inconformado.
Ele inspirou fundo e me lançou um olhar repreensivo. — Não tem ninguém
na porra da escola, Matt. — Sua expressão não se desfez. Levantei do
banco e gritei em direção à quadra: — Olá! Tem alguém aí?
Ele me puxou por um dos braços e me fez sentar no banco outra vez.
— Para com isso!
— Para de ser um covarde!
Ele esfregou o rosto com as mãos, levantou do banco e caminhou de
um lado para o outro na minha frente. Por fim, descansou as mãos na nuca e
murmurou:
— Você é impossível. Talvez a gente devesse só acabar com isso de
uma vez por todas.
Estreitei os olhos. Entreabri os lábios, mas não tinha nada a
responder. Era incrível como ele só se importava consigo mesmo naquela
relação. Às vezes, era como se eu não existisse.
E, honestamente... talvez eu já estivesse cansado de tudo isso.
Deixei a arquibancada para trás e caminhei para longe de Matty,
bufando. Tentava me convencer de que as lágrimas em meus olhos eram de
raiva. Quando coloquei a mão sobre a maçaneta da porta da quadra, o ouvi
gritar atrás de mim, mas estava irritado e frustrado demais para parar.
— Tommy! Tommy, espera, porra! Eu não quis...
Matt começou a correr atrás de mim. Precisei apressar meus próprios
passos para sair daquele colégio sem que ele conseguisse me alcançar. Mas,
de qualquer forma, ele o conseguiu em um dos corredores do primeiro
andar. Cruzei os braços diante do peito, minha mandíbula retesada, meu
sangue fervendo. Como eu podia ser tão estúpido? Como podia me
submeter a uma relação como aquela? Era melhor ficar sozinho do que
continuar naquela porra de armário com ele.
— Tommy! Tommy, me escuta! — ele me puxou por um dos braços
novamente.
Me desvencilhei de seu toque e segui andando. Meus tênis idiotas
faziam um som agudo e irritante quando eu andava rápido daquele jeito,
ainda mais no linóleo polido dos corredores. Matt ficou para trás. Cruzei
um novo corredor e parei.
Eu tinha dezesseis anos. Ele também. Apesar disso, estávamos
agindo como crianças de dez. Fechei os olhos e me apoiei contra a parede
mais próxima, onde ficava o mural com avisos impressos. Esperei até ele
me alcançar novamente.
— Não quis dizer aquilo, tudo bem? — continuou com o tom
exasperado.
Encarei o vidro da porta da sala dos professores à minha frente.
Estava silenciosa e escura, bem como a escola inteira. Ninguém costumava
ficar em Eastview depois das 19h, e já eram mais de 20h. Essa era a razão
pela qual só podíamos ficar juntos naquele momento do dia — o momento
em que não havia ninguém por perto para nos ver.
— É claro que quis — rebati. Tentei não soar tão magoado, mas não
consegui. Matt se aproximou com um pouco mais de cuidado. Escondi as
mãos nos bolsos da minha jaqueta grossa e cinza de moletom. — É isso que
você quer, não é? — Finalmente o encarei. — Terminar tudo? — Ele ficou
em silêncio. Espalmei as mãos em seu peito e o empurrei para trás. — Só
diz logo e pronto!
Ele me olhou assustado, quase contemplativo. Algo passava por sua
mente, mas eu não sabia o quê. Seus lábios se abriram, mas logo se
fecharam. Suas mãos se aproximaram, e então se afastaram.
— Eu... — balbuciou depois de um tempo. — Eu... — Inspirei
fundo. Era melhor que ele arrancasse o band-aid logo, que acabasse com
aquilo de uma vez por todas. — Eu te amo.
Oh, merda.
Meus braços penderam inertes ao lado do corpo. Meu cenho se
franziu, e fui consumido por uma desconfiança vertiginosa.
— O quê?
— Eu te amo, seu idiota — insistiu em um tom sóbrio e firme. Se
aproximou, os olhos castanhos me fitando profundamente. — Eu te amo, e
quero ficar com você. — Tocou as laterais do meu rosto com as mãos, os
polegares acariciaram minhas bochechas. Tive uma sensação estranha no
estômago, meus pés ficaram mais leves. Não sentia nada que não fosse seus
dedos me tocando. Matt fez uma pausa antes de prosseguir em um tom
triste: — Mas não posso. Não ainda. — Cerrei os olhos. Umedeci os lábios.
— E você sabe disso. — Acenei sutilmente com a cabeça. Toquei as mãos
dele no meu rosto, apertando seus dedos. — Então, me desculpa, tá bom?
Às vezes, falo umas merdas que não quero dizer de verdade.
Abri os olhos outra vez. Ele ainda me encarava daquela forma
contemplativa. Não havia qualquer dúvida em sua voz.
Talvez eu não devesse desculpá-lo. Não importava o que ele sentia
por mim, ou o que eu sentia por ele. Aquela relação era dolorosa. Ter que
fingir que eu não estava perdidamente apaixonado por ele durante o dia
para então ter alguns poucos minutos com ele de noite era torturante. Não
era bom pra mim. Não era bom pra ele.
Mas era a única coisa que tínhamos por agora. Então sussurrei contra
seu rosto:
— Tudo bem...
E ele assentiu de volta, da forma como sempre fazia quando
tínhamos aquela mesma discussão. Sempre começava do mesmo jeito.
Sempre terminava do mesmo jeito.
— Vem aqui.
Ele me puxou contra seu peito. Seus quinze centímetros a mais de
altura faziam minha cabeça encaixar perfeitamente no ponto entre seu
pescoço e seu peito. Envolvi suas costas com os braços; ele fez o mesmo, e
apoiou o queixo sobre minha cabeça.
Depois de alguns segundos daquela forma, rodeados por armários
azulados e portas para salas de aula naquele corredor longo e envolto em
penumbra, me afastei de seu peito e o encarei.
— Agora você pode me abraçar, então?
Ele riu baixinho e me deu um beijo na testa.
— Pode calar a boca e só aproveitar?
Eu podia, e o fiz.
Ele envolveu meus ombros com um dos braços e caminhamos pelo
corredor. Seguimos em direção ao primeiro andar, e então iríamos para a
saída do colégio e para a moto de Matty no estacionamento. Eu subiria na
garupa e ele me levaria de volta pra casa. Como sempre. Como toda noite.
Calados, o único som na escola inteira era o estampido de nossos
passos. Vez ou outra, eu virava para encará-lo de relance. Tínhamos algum
futuro além do Ensino Médio? Ou seríamos apenas uma relação efêmera
que esqueceríamos assim que entrássemos na universidade?
Amor bastava para manter uma relação como essa?
Eu não sabia, mas sentia que—
Algo foi derrubado em uma sala próxima, no corredor logo à frente.
Merda.
Matt retirou o braço dos meus ombros.
— O que foi isso? — Encarei sua expressão de completo assombro.
O barulho se repetiu, dessa vez mais alto. — Matty? — sussurrei.
Ele parecia tão perdido quanto eu. Talvez fosse apenas um animal
que havia invadido a escola ou algo do tipo. Não era possível que ainda
houvesse alguém ali. Não naquele horário, certo? Não havia seguranças em
Eastview. Quase ninguém naquele bairro saía para fora de casa quando a
noite chegava.
A respiração de Matt começou a ficar mais pesada. Ele deu alguns
passos à frente, em direção ao corredor de onde os sons vieram. Era a
primeira sala à direita, 009, o laboratório de biologia. Segui Matt com um
pouco de hesitação.
Como todas as salas de aula em Eastview, a parede junto do corredor
tinha enormes janelas de vidro. Sobre nossas cabeças, as luzes das lâmpadas
embutidas ao teto do corredor estavam quiescentes. Havia penumbra
demais — particularmente naquele corredor.
Engoli em seco. Toquei no braço de Matt e o fiz se voltar para mim.
— O que você tá fazendo? — sussurrei quase sem voz. Ele deu de
ombros, curiosidade mórbida estampada em seu rosto. Eu também estava
curioso, mas algo em minhas entranhas me dizia que era melhor darmos o
fora dali imediatamente. Mas como diria isso a ele sem parecer um idiota?
Outro barulho veio da sala, mais vivo e agudo. Definitivamente
havia alguém ali. Puxei a manga de Matt novamente, mas ele se virou em
direção à janela escura da sala. Logo depois, se inclinou em direção a ela,
tentando ver que merda estava acontecendo lá dentro. Olhei para os dois
lados do corredor, que subitamente havia adquirido um tom macabro.
Inspirei fundo e dei alguns passos à frente até estar ao lado de Matt.
Estreitei os olhos para ver o interior da sala.
Estava completamente imersa em escuridão. Consegui identificar as
silhuetas de algumas cadeiras, os cabos de eletricidade no chão, a lousa
digital gigantesca.
Estreitei os olhos um pouco mais.
Foi quando ouvi outro impacto. E mais um. E mais um. Havia
alguém se debatendo lá dentro, cadeiras sendo empurradas, mesas
derrubadas. Me concentrei um pouco mais e consegui ouvir alguns
grunhidos.
Droga. Droga. Droga. Tínhamos que sair dali naquele instante.
Quando meus olhos finalmente se ajustaram à escuridão da sala, e as
silhuetas se tornaram mais nítidas; meus pés ficaram paralisados no lugar.
Entreabri os lábios, era como se meu coração parasse por um segundo. Não
era apenas uma pessoa, mas duas. Uma delas encapuzada, vestindo um
sobretudo longo e preto que a fazia parecer uma sombra em meio à
escuridão. A outra...
Merda.
A outra era Alexis Luna, o presidente do clube de xadrez.
Dei um passo para trás.
Ele estava sendo estrangulado contra o chão. Seus olhos estavam
fechados, mas as mãos agarravam os pulsos do agressor. Os lábios abertos
deixavam grunhidos baixos escaparem.
Quando Matt também deu um passo para trás, o rosto pálido, os
olhos arregalados e as pupilas dilatadas, percebi que eu não estava louco,
que ele via o mesmo que eu. Alternava o olhar entre ele e o crime que era
cometido no interior da sala. Tínhamos que ajudá-lo, não tínhamos?
A figura encapuzada parecia alta e forte, no entanto, e eu não sabia
se era um adulto ou um adolescente. De qualquer jeito, não sabia se ele
tinha ou não uma arma escondida em algum lugar. As mãos cobertas por
luvas grossas demonstravam que aquele crime havia sido premeditado.
Merda.
Puxei o braço de Matt outra vez. Não havia nada que podíamos fazer
naquele instante. Precisávamos sair dali e chamar a polícia o mais rápido o
possível. Ele me fitou com os olhos assombrados, mas não se mexeu. Tive
que incitá-lo a me seguir com um olhar desesperado em retorno. Ele o fez
por alguns passos, mas então parou abruptamente e retirou o celular de um
dos bolsos da calça.
Fiquei confuso, até que ele abriu a câmera e a direcionou para dentro
da sala escura através da janela. Está muito escuro, seu idiota, pensei em
dizer, mas ele foi rápido demais. Em um segundo, retirou o celular do
bolso; no outro, o apontou na direção do vidro; no terceiro, clicou sobre o
ícone da câmera e registrou o assassinato de um dos nossos colegas de sala.
Só percebeu que a câmera estava com o flash ligado quando era
tarde demais.
Meu coração parou.
A figura encapuzada se voltou em nossa direção, nos fitando através
da janela.
Porra!
Porra, porra, porra, porra.
Notei cada músculo no corpo de Matt ficar tenso. Minha mente se
desligou por um milésimo de segundo, pelo menos até o assassino largar o
corpo sem vida de Alexis no chão e correr em direção à porta, e então para
o corredor. Foi como ser acordado bruscamente de um transe.
— Porra, corre! — Matt gritou. Em seguida, me puxou pelo braço
antes que eu pudesse processar qualquer coisa. — Corre!
Corremos na direção oposta à saída da escola. No meio do caminho,
olhei para trás. A figura encapuzada — com a face coberta por um capuz e
o corpo por um sobretudo — nos seguia velozmente. Quando retirou uma
arma da parte de trás da calça, me desesperei ainda mais.
Corri ainda mais rápido. Matt era muito mais ágil do que eu; em
vários pontos, precisou parar e me puxar pelo braço. Depois de um ou dois
minutos nesse ritmo, fiquei exausto. Corremos sem direção pelos corredores
longos e serpenteantes do colégio. As luzes piscavam, me deixando
desnorteado. Fiquei sem ar. Precisei largar a mão de Matt e me apoiar na
parede mais próxima. Era uma parede de armários.
— Tommy? Tommy? — Matt se aproximou e tocou meus ombros.
— Tommy, não podemos parar...
— Eu não consigo... — tentei falar, mas era como se minha garganta
estivesse selada. Ou eu respirava, ou falava.
Via o desespero no rosto de Matt, mas não conseguia fazer nada.
Tentei mover meus pés conscientemente, mas pareciam feitos de chumbo.
Enquanto isso, os passos do assassino se aproximavam no corredor ao lado.
Porra.
Matt olhou para os dois lados do corredor. Pela sua expressão,
pareceu ter uma ideia. Abriu o armário mais próximo de mim que não
estava trancado. Era alto e espaçoso, como todos os outros, o suficiente para
caber uma pessoa. Olhei para a porta de metal aberta.
— Se esconde — ele disse, e indicou o armário com os olhos.
Franzi o cenho.
— O quê? — consegui dizer.
Ele começou a correr na direção oposta àquela pela qual o assassino
se aproximava.
— Se esconde, merda! — gritou antes de desaparecer.
De um instante para o outro, eu estava sozinho no corredor. Talvez
Matt quisesse distrair a figura e afastá-la de mim. Ele podia pelo menos se
comunicar melhor.
Entrei no armário e fechei a porta no exato segundo em que o
assassino entrou no corredor com passos apressados. Engoli em seco, mas
permaneci em silêncio — ou tentei permanecer. Cobri a boca com as mãos
e prendi a respiração. Meu coração estava acelerado, no entanto, conseguia
ouvir o som do sangue fluindo pelas veias mais próximas ao meu ouvido.
A ansiedade e medo pareciam me consumir.
Por algum motivo, a figura encapuzada diminuiu o ritmo ao entrar
no corredor. Ele não tinha como saber que eu estava ali, certo? Não poderia.
Mas então por que não estava seguindo Matt?
Oh, porra.
Ele passou na frente do armário lentamente, quase como se pudesse
me farejar. Havia dezenas de armários naquela parede, e mais centenas
espalhadas pelo colégio. Ele não poderia abrir um por um. Não poderia.
Com os passos lentos, a figura encapuzada se afastou na direção que
Matt havia seguido. Pelas frestas do armário, notei que seu rosto estava
completamente coberto pelas sombras do capuz e pela lapela erguida do
sobretudo; não havia sequer um centímetro exposto de sua pele. Por conta
disso, não conseguia deduzir sua idade, cor, gênero ou qualquer outra coisa.
Merda.
Fechei os olhos. Tentei me acalmar. Estava seguro. Estava seguro.
Estava seguro. Só tinha que prender a respiração por mais alguns segundos
e então poderia sair dali. Não havia nada naquele armário que pudesse
denunciar que eu estava ali. Simplesmente não havia.
A não ser…
A não ser…
Abri os olhos. Olhei para cima. Havia o desenho de um tabuleiro de
xadrez no topo. Aquele armário não estava destrancado, tinha sido
arrombado.
Era o armário de Alexis Luna.
A porta foi aberta bruscamente e fui banhado pela escassa
iluminação do corredor. A figura encapuzada estava na minha frente, e
apontou a arma na direção do meu peito. Ainda não conseguia ver seu rosto.
Ainda não sabia quem podia ser.
Meu coração parou. Eu iria morrer.
O dedo coberto pela luva grossa de couro se aproximou do gatilho.
Me recostei sobre a parte de trás do armário.
Eu iria morrer.
— Quem é você? — consegui dizer sobre o pânico que me
dominava, mas não tive resposta alguma.
O dedo afundou sobre o gatilho, mas não morri. Ao invés disso, algo
atingiu a cabeça do assassino por trás, fazendo-o cair de joelhos. O revólver
deixou sua mão antes que o dedo se afundasse totalmente no gatilho e caiu
perdido no chão.
Logo atrás dele estava Matty, com um extintor de incêndio. Ele o
largou no chão e me puxou para fora do armário rapidamente.
— Vem, vem agora!
Corremos para longe do corredor. Antes de cruzá-lo em outra
direção, dei uma última olhada de relance para a figura encapuzada.
Será que a matamos?
Será que a matamos?
Será que a matamos?
Matt me puxou para fora de Eastview.

Matt dirigia tão rápido que quase fomos atropelados três vezes no
caminho para longe de Eastview. Eu olhava para trás o tempo todo com
medo de que o assassino estivesse à sombra de uma esquina qualquer com a
arma apontada para nós. Mas não estava.
Talvez o tivéssemos matado.
Matty conduzia a moto sem uma direção certa. Ainda estava
chocado demais, assim como eu. Acabamos parando sobre uma das pontes
que conectavam Eastview ao resto de São Paulo. Um canal circundava o
bairro, e os únicos pontos de acesso a ele eram pontes como essa — o que
era útil caso você quisesse controlar a entrada e saída de visitantes
indesejados.
Assim que Matt desligou a engrenagem, desci do banco de trás em
um pulo. Destravei o capacete e o retirei da cabeça; Matt fez o mesmo. Me
apoiei na balaustrada da ponte e observei as águas escuras do canal fluírem
sob a estrutura.
— Porra, o que foi isso? — Matt vociferou. Logo depois, se
aproximou de mim com o olhar mais solícito que já havia visto nele.
Pensei um pouco no que responder: minha mente parecia um papel
branco amassado e sanguinolento.
— Eu não sei — falei. Ele esfregou a testa e se apoiou de costas na
balaustrada da ponte. Meu coração ainda estava acelerado. Subitamente,
algo me atingiu. — Nós temos que voltar.
— O quê?
— Temos que voltar e ajudar Alexis, Matt! — gritei, mesmo que não
quisesse voltar. Gesticulei na direção de Eastview com as mãos. Cada fibra
do meu corpo estava exasperada. — Ele ainda pode estar vivo! Não
podemos, não podemos deixá-lo...
— Enlouqueceu? — esbravejou com os olhos arregalados. — Vivo?
Alexis tá morto, Tommy, morto! — Eu dava um passo para trás a cada
palavra enfurecida que ele gritava. — Se voltarmos lá, serão três cadáveres
que encontrarão de manhã, não um.
Passei os dedos pelos fios escuros do meu cabelo. Olhei em volta
outra vez, com medo de que a figura encapuzada pulasse sobre minhas
costas e me derrubasse da ponte. Estava entrando em um colapso nervoso.
— Oh, porra! Porra, porra...
Matty me segurou pelos ombros e fez nossos olhares se encontrarem.
— Escuta, vai ficar tudo bem — falou, assentindo freneticamente.
Tentou soar firme, mas pareceu assustado.
Mordi o lábio inferior.
— Ele nos viu, Matt. Sabe que estávamos lá.
Ele deixou de assentir e soltou meus ombros; logo deu alguns passos
para trás, o olhar baixo e perdido.
— Isso quer dizer que... — murmurou.
— Ele pode estar vindo atrás de nós. — Vasculhei nosso entorno
outra vez.
— Talvez ele saiba que estávamos juntos — disse, cortando minha
linha de pensamento com a sua própria.
Me dei conta lentamente da merda que ele queria dizer com aquilo.
— Tá falando sério? — perguntei assombrado. Senti meu medo se
transformar em fúria. Fitei seu rosto. — Um cara acabou de ser morto na
nossa escola e tudo com o que você se preocupa é sua reputação de merda?
— Ele ergueu os olhos em direção aos meus, franziu o cenho como se eu
falasse o óbvio. — O que tem de errado com você?
Espalmei seu peito outra vez e o empurrei para trás com força. Matt
se segurou na balaustrada da ponte para não cair no chão. Apertou os lábios,
mas não revidou. Sabia que estava errado, que o que havia dito beirava à
sociopatia.
Esfreguei minha nuca e olhei para as correntes calmas do canal.
— Liga pra polícia — ele balbuciou depois de algum tempo.
— O quê?
— Liga pra polícia e denuncia o assassinato. Talvez eles consigam
capturá-lo se ainda estiver por perto.
Pisquei rapidamente várias vezes. Ele estava certo, precisávamos
fazer isso. Nossos nervos estavam aflorados, ambos estávamos em
desespero. Talvez eu tivesse me apressado demais no julgamento de Matt.
— Tá certo...
Retirei o celular do bolso e desbloqueei a tela. Então vi o primeiro
ícone que havia aparecido.
— Oh, merda.
O mundo parou por um instante. Fiquei completamente sem reação.
O aparelho caiu da minha mão e se espatifou no chão. Matt franziu o cenho
e se agachou para pegá-lo; não demorou a ver o ícone que havia me feito
ficar daquele jeito.
— Merda...
Me encarou com o rosto e os lábios pálidos outra vez, lágrimas de
pavor nos olhos. Eu sentia como se fosse vomitar. Me inclinei sobre a
balaustrada em direção ao canal lá embaixo. Vomitei.
Apertei os olhos. Era um pesadelo. Só podia ser um pesadelo.
Mas quando os abri, ainda estava ali. Não estava sonhando, aquilo
estava mesmo acontecendo. Engoli em seco, meu esôfago queimava. Me
voltei em direção a Matt outra vez. Seus olhos estavam presos na tela do
celular, lia a maldita mensagem.
Quando terminou, me devolveu o aparelho. Foi a minha vez. Meus
dedos tremiam.
Vomitei de novo. Matt pegou o celular da minha mão e releu a
mensagem. Quando consegui me recuperar, murmurei:
— Como ele tem o meu número?
Peguei meu celular de volta.
Matt socou a balaustrada da ponte. Com certeza doeu, mas ele não
fez uma careta sequer.
— Ele sabe quem somos, sabe de tudo! — Socou o concreto
novamente; um grunhido de frustração deixou sua garganta. Observei
calado. Não sabia que merda dizer, ainda estava em choque. Ele se voltou
para mim: — Você contou sobre nós pra alguém? — Franzi o cenho. —
Tommy?
— Não! Não, eu nunca... nunca faria isso.
Neguei com a cabeça, mas tirei um segundo para ponderar sobre
aquilo. Fazia sete meses desde que fui adotado por Edgar e Laura, dois
desde que o semestre começou.
Eu tinha falado com alguém?
Não. Sequer havia alguém com quem falar. Matty era meu único
amigo — ao menos eu tentava me convencer de que sim.
— Merda! — ele disse, e se apoiou na lateral da ponte. Os músculos
de seu antebraço se flexionaram.
Olhei para a tela do meu celular, para aquela maldita mensagem
aberta. Bloqueei o número estranho que a havia enviado. Considerei jogar o
celular no canal, mas como explicaria isso a Edgar e Laura? Além disso, eu
já deveria estar em casa.
— O que vamos fazer? — perguntei para Matt. Ele não respondeu.
— Ainda podemos ligar pra polícia —
— Se a polícia aparecer lá agora — ele me interrompeu bruscamente
—, ele vai saber que fomos nós que ligamos.
Apanhei minha mochila e joguei o celular lá dentro, não queria mais
ter que lidar com aquela mensagem. Quando voltei o olhar para Matt, me
senti completamente perdido em frustração.
— Isso não importa, Matty — insisti. — E daí que você é gay?
Aquele time idiota pode enfiar o preconceito deles no cu. Estamos lidando
com a vida de uma pessoa aqui. — Ele cerrou os dentes e mirou ao canal.
Parei por alguns segundos, tentei me acalmar. — Além do mais, talvez
tivessem mais pessoas na escola que—
— Não, Tommy — me interrompeu outra vez —, não podemos
contar pra ninguém.
Fiquei pasmo. Pasmo e decepcionado. Quem era aquele cara com
quem eu dormia? O quão longe ele estava disposto a ir para encobrir nossa
relação?
— Você realmente vai fazer isso, Matt?
— Ninguém pode sonhar que gosto de garotos, ninguém. —
Arregalou os olhos, parecia assustado. — É o fim da linha pra mim. Não
vou ser mais um jogador de basquete qualquer, vou ser o jogador de
basquete gay. Vou perder qualquer oportunidade que já sonhei em ter.
Movi minha mandíbula de um lado para o outro. Me apoiei na ponte
como ele havia feito antes.
— Você não pode ter certeza disso — tentei rebater.
A expressão dele se fechou. Se aproximou rapidamente me mim e
apontou o indicador para o meu peito.
— Você não conhece o time como eu. Não conhece o treinador Fleet
como eu. Não conhece... desviou o olhar para o chão — meu pai... —
Voltou então a me fitar. — E, principalmente... — inspira fundo — você
não está exposto à escola do mesmo jeito que eu.
Me sentia preso. Preso e sem saída. Queria ser um babaca insensível
como ele, queria poder ser egoísta e colocar o que queria sobre os desejos
de qualquer outro, mas não podia. Eu o amava. Eu o amava tanto que não
podia fazer aquilo com ele.
— Ninguém pode saber disso, Tommy. — Tocou as laterais do meu
rosto. — Por favor.
— Matt... — murmurei.
Mas nosso breve momento de reconciliação se dissolveu assim que
ele se deu conta de que estamos em público. Se afastou como se eu tivesse
tentado golpeá-lo ou algo assim. Aquilo me magoou. Fiquei em silêncio,
debatendo internamente sobre que merda devia fazer.
— O que você acha que vai acontecer com sua bolsa se estiver
envolvido em um escândalo como esse?
Aquilo me pegou de surpresa.
— O quê?
Matt umedeceu os lábios e arqueou as sobrancelhas.
— A única coisa que importa para o diretor Wolmer é a reputação de
Eastview, Tom. — Suspirou. — E ele não tem exatamente a fama de ser
misericordioso quando se trata disso.
Fiquei ainda mais sem chão.
— Acha que posso perder minha bolsa?
Ele ponderou sobre a pergunta.
— Acho que ambos temos muito a perder.
Retirei meus óculos do rosto e esfreguei os olhos. Meus joelhos
fraquejaram, não me esforcei para contê-los. Me arrastei lentamente pela
balaustrada da ponte, de costas, até sentar no chão. Meus olhos estavam
fixos nas engrenagens da moto de Matt, perdidos.
— Que porra devemos fazer então?
— Nada.
— Nada?
Ele se agachou até ficar na altura do meu olhar.
— Voltamos pra casa, ficamos calados até a manhã — sussurrou. —
Talvez tudo esteja normal até lá. Talvez não. De qualquer forma... — seu
olhar mergulhou no meu outra vez —, não podemos contar nada a ninguém.
Encostei a cabeça na lateral da ponte. Uma ideia me veio à mente.
— Se falássemos disso pra Edgar...
— Tommy... — repreendeu.
— Se falássemos com Edgar — continuei —, ele poderia nos
proteger desse assassino, tenho certeza disso.
Matt apertou os lábios e olhou para os dois lados da ponte.
— E o que Edgar faria sobre nossa saída do armário? — disse.
Nunca senti tanta vontade de socá-lo quanto naquele momento. Me levantei
às pressas do chão, irado. Ele fez o mesmo. Virei de costas. — Por favor,
Tommy. Se você sente qualquer coisa por mim, fique calado. Especialmente
próximo de Edgar. — Aquilo era demais. Era oficialmente demais. Estava
chegando próximo do meu ponto limite. — Você vai ficar calado? — Bati
os pés no chão, inspirando e expirando de forma rápida e profunda. — Fala
comigo, merda! — elevou o tom de voz.
— Eu vou! Tudo bem? — Me virei em sua direção, possesso. Não
conseguia me controlar, não conseguia filtrar o que saía da minha boca. —
Eu vou esconder a porra do seu segredo e a porra do garoto morto na nossa
escola! Está feliz agora? — disse tudo em sequência; no final, estava
ofegante. Cruzei os braços diante do peito.
Ele olhou ao redor mais uma vez e se aproximou.
— Obrigado... — sussurrou.
Não consegui sequer fitá-lo por muito tempo. Me sentia sujo e
indesejado. Mas então um momento específico daquela noite me atingiu
como um disparo. Perdi o ar por alguns segundos.
— O que foi? — ele perguntou diante do meu semblante ansioso.
Entreabri os lábios.
— Se não fosse por você... — comecei em um murmuro. Me lembrei
do cano da arma apontado para o meu peito. — Se não fosse por você, ele
teria me matado. No armário.
E, por alguma razão — por estresse, medo, preocupação, pavor ou
ansiedade — aquela noção me fez entrar em colapso. As lágrimas
começaram a descer dos meus olhos antes que percebesse. Algo doía no
meu coração, mas não sabia o que. Precisava urgentemente voltar para casa,
me trancar no quarto e tentar esquecer daquela noite de merda.
Matt me tomou nos braços pela primeira vez desde que fugimos e eu
afundei meu rosto em seu peito. Que se foda se alguém estivesse olhando.
Que se foda esse maldito bairro e essa escola homofóbica.
— Tudo bem, tudo bem — ele murmurou contra o meu cabelo. Não
me largou. — Vai ficar tudo bem, Tommy.
Seu uniforme ficou úmido com as minhas lágrimas. Quando por fim
secaram, quando por fim coloquei para fora tudo o que tinha guardado ali,
nos afastamos.
— Se jogarmos os joguinhos dele — ele disse enquanto me fitava
—, talvez nos deixe em paz.
— Tem certeza? — meus lábios tremeram.
Um silêncio tenso se ergueu entre nós até ele responder:
— Não.
Fechei os olhos e assenti. Minha mente voou até o corpo de Alexis
no laboratório de biologia, até a figura encapuzada que talvez ainda
rondasse os corredores da escola naquele momento. Quando os abri, Matt
estendeu o capacete do passageiro em minha direção, e eu o apanhei. Ele
também colocou o dele.
— Vem, vou te levar de volta pra casa.
N ão estou preparado para este dia. Não estou preparado para
viver. Só queria ficar preso no quarto pelo resto do dia, da semana, do
mês. Mas não posso.
Me aproximo da escada que leva ao primeiro andar. O cheio de
torradas, chá e café preenche a casa inteira. Laura e Edgar provavelmente já
me esperam junto da mesa. Seguro a alça da mochila com uma mão e, com
a outra, checo o Twitter atrás de alguma informação relevante sobre a noite
passada. Rolo, rolo e rolo pela timeline. Tudo o que vejo são posts sobre a
vitória da equipe de ginástica no campeonato interestadual e garotos do
time de futebol treinando cedo pela manhã.
Nada sobre Alexis. Nada sobre um assassinato em Eastview. Bom,
talvez as coisas realmente estejam melhor. Bloqueio o celular. Mas quando
coloco o primeiro pé na escada, sinto a vibração de uma nova mensagem.
Checo o número e a prévia pela tela de bloqueio.
Merda. Merda. Merda.
Paro de andar, me apoio no corrimão. Logo começo a hiperventilar.
Olho para baixo, para os degraus em minha frente. É ele. Eu sei que é ele.
Ou ela, seja lá quem for a pessoa que tirou a vida de Alexis ontem à noite.
Mas nós não abrimos a porra da boca. O que o assassino ainda quer
conosco?
Meu medo se transforma em fúria. Desbloqueio o celular novamente
e clico na mensagem.

Então é isso: chantagem. Ótimo, minha vivência no Ensino Médio já


não é miserável o suficiente, agora tenho que viver com um psicopata me
perseguindo. Mas por que ele está tão preocupado com a possibilidade de
eu dizer algo a Edgar? Não é como se a figura encapuzada estivesse
presente em nossas vidas depois da noite passada, certo?
...certo?
Olho para trás instantaneamente. Agora que pensei na possibilidade,
não é possível ignorar que o assassino pode estar onde eu menos esperar.
Uma brisa fria toca meu pescoço.
E se...
E se o assassino for um dos estudantes de Eastview?
Olho para a mensagem novamente. Uma coisa chama minha atenção
pela primeira vez: a assinatura. E.V.
E.V.
E.V.
E.V.
EastView.
Oh, porra.
— Tommy? — Laura me chama da sala de jantar.
Oh, porra.
Tenho que contar a Matty que o assassino é alguém de Eastview.
Ligo novamente, mas ele não atende.
— Tommy! — Laura insiste.
Mesmo contrariado, não tenho opção além de continuar andando e
descer aqueles degraus.
— Tô descendo!
Aperto o celular entre minhas mãos e percebo que estou suando frio.
A comida parece feita de papel e cinzas. Me dá ânsia. Não tenho
fome alguma. Tento comer um pedaço da torrada e me forço a engoli-
lo. Bebo um pouco do suco de laranja, que desce com um gosto amargo.
Minha mente está presa naquelas mensagens. No corpo sem vida de Alexis.
Em Matty.
Por que caralhos ele não me atende?
— Por que chegou tarde de Eastview ontem? — Laura pergunta, mas
estou distraído demais para entendê-la.
— Uh? — digo quando volto à realidade.
Ela franze o cenho. Só então percebo que estive sendo péssimo em
esconder meu desconforto. Me ajeito na cadeira e puxo o prato para mais
perto para fingir que tenho fome.
— Você tá bem? — ela pergunta.
A mesa de jantar é larga e espaçosa, então ao menos posso manter
meu semblante abalado afastado deles. Fecho os olhos e suspiro.
— Estou, é só que esse trabalho idiota de mecânica me manteve
acordado a noite inteira — minto.
Me sinto horrível. Laura e Edgar são pessoas incríveis, merecem
mais de um filho do que mentiras. Apanho meu celular outra vez e checo as
notificações. 0 mensagens. 0 chamadas de Matt.
— Posso preparar um café bem concentrado pra você levar pra
escola, se precisar — minha mãe adotiva comenta com as sobrancelhas
erguidas e um sorriso altruísta no rosto.
Meu estômago revira.
— Obrigado... — murmuro, e coloco o celular na mesa com a tela
virada para baixo —, mas já tive a dose de cafeína necessária por hoje. Se
tomar mais... — Faço uma careta, sem querer finalizar a frase.
Laura entende, e seu sorriso se entristece. Está sentada na lateral da
mesa, seu lugar de sempre. Já Edgar está na ponta oposta à minha, o tablet
nas mãos aberto na página de jornal qualquer. Ele abaixa o aparelho e o
esquece na mesa assim que ouve minha recusa. Seu semblante está sério.
— Está usando as cápsulas de novo, não está? — Seu tom é severo.
— Eddie... — Laura tenta se intrometer sem necessidade.
Afasto de vez o prato na mesa, sequer consigo fingir que estou com
fome.
— Todos usamos, Edgar — rebato, o tom exausto. Abro as
notificações no celular outra vez, evitando o olhar dele. — É impossível
fazer tudo o que preciso pra manter a bolsa e ter qualquer tipo de descanso.
Ele suspira e abaixa o olhar para o próprio prato.
— Eu sei... — Pausa. Toma um gole da xícara de chá. — Mas
precisa mesmo aspirá-las? Sua mãe pode fazer um café bem forte pra você
todas as manhãs, como ela disse.
Sinto vontade de rir — tanto da ideia de que café líquido teria o
mesmo efeito que as cápsulas quanto da forma casual com que ele usou a
palavra “mãe”.
Como eu disse, eles merecem mais.
— Então, meu estômago não suportaria uma semana sequer —
respondo com o rascunho de um sorriso no rosto. — Mas obrigado pela
preocupação.
E eles parecem convencidos com aquilo.
Olho para meu celular outra vez. Decido deixar a mesa antes que
acabe dando sinais demais de que há algo errado. Entreabro os lábios para
me despedir, mas, neste instante, Edgar recebe uma ligação. Inspiro fundo.
— Vilarreal falando.
Checo a timeline do Twitter novamente, esperando a ligação acabar.
Edgar ergue os olhos em minha direção abruptamente. Me sobressalto.
Merda.
— Hmm...
Tento entender o que falam do outro lado da linha, mas a mesa é
larga demais. Tudo o que consigo é ver a expressão assombrada de Edgar.
Laura limpa a boca com um guardanapo de colo e também começa a se
preocupar.
— Em Eastview?
Oh, porra. Matty, seu filho da puta, esse seria um ótimo momento
pra me ligar.
Tento controlar minha respiração, parecer normal. Eu não deveria
saber de nada, afinal de contas. Estava fazendo um trabalho de mecânica
com Matt e voltei tarde pra casa, só isso. Assinto para mim mesmo.
— Sim, sim... Vou aí imediatamente — Edgar finaliza a ligação.
Coloco outro pedaço de torrada na boca e fujo de seu olhar ansioso.
— Eddie, o que aconteceu? — Laura questiona.
O policial entreabre os lábios, mas fica em silêncio por um tempo.
Seu olhar parece perdido. Por fim, responde:
— Um garoto foi assassinado em Eastview.
Laura arfa e encobre a boca com uma das mãos. Os dois dirigem os
olhares a mim. Sinto minha nuca queimar. Lentamente, ergo os olhos em
direção a eles, fazendo meu máximo para parecer surpreso com a notícia.
— Quem? — questiono em um tom abalado.
Edgar volta a fitar o próprio prato, parece ter perdido a fome.
— Não me passaram um nome, mas estou indo pra lá agora. —
Merda.
— Falaram algo sobre cancelamento das aulas? — pergunto ansioso.
— Não — responde, um pouco distante. — Você quer ficar em casa?
— Sim — falo imediatamente. Edgar assente, sem se importar
muito.
Talvez eu não tenha que passar por aquele inferno, afinal. Mas meu
olhar paira sobre a tela escura do celular, o silêncio de Matt me
assombrando como a figura encapuzada. Preciso falar com ele.
— Quer dizer... não — corrijo depois de alguns segundos. — Se
houver aulas, não posso perder nenhuma... por causa da bolsa — digo com
uma sensação amarga na boca.
Edgar assente novamente.
— Vou te dar carona.
Ele joga o guardanapo de colo sobre a mesa, afasta a cadeira para
trás e se retira. Um silêncio afiado se ergue na sala enquanto seus passos
barulhentos se afastam em direção ao quarto no terceiro andar. Ele
provavelmente pegará o resto do equipamento: a arma, o colete, o boné da
polícia de Eastview; e descerá em alguns minutos.
Tento me concentrar no que vou dizer quando estivermos sozinhos
no carro e ele começar a fazer perguntas demais. É então que percebo que
Laura ainda está em um estado de choque.
— Você tá bem? — pergunto a ela.
Ela assente e toca um dos meus braços.
— É claro, é só que... — É como se ela tivesse levado um soco na
cara. Sua voz está distante. — Nunca houve um assassinato neste bairro.
— Talvez seja eu e minha má sorte — falo com um sorrisinho
cínico.
A expressão de Laura se fecha ainda mais.
— Isso não é engraçado.
Nego com a cabeça.
— Desculpa.
Ela se levanta da cadeira e passa por mim em direção à cozinha.
— Vou preparar seu café pra viagem.
Me viro em sua direção.
— Mas eu não... — tento protestar, mas ela fecha a porta da cozinha
atrás de si.
Merda.
F echo a porta do lado do passageiro e passo o cinto de
segurança sobre o peito. Edgar faz o mesmo, o boné da polícia na
cabeça, o colete escuro sobre o torso e a arma presa no coldre do cinto.
Coloca a chave na ignição, e partimos em direção a Eastview em seguida.
São vinte minutos a partir dali.
Observo as casas passarem ao nosso redor, o asfalto passear sob os
pneus. Minha mente se desliga por um segundo. Mas então penso em Matty,
e as preocupações voltam a tomar conta de mim.
— Então — Edgar quebra o silêncio quando paramos no primeiro
sinal vermelho —, quem é a garota sortuda?
Pisco várias vezes.
— O quê? — falo um pouco embasbacado.
— Vamos lá... — Ele abre um sorriso sugestivo no rosto. — Sei que
você não tá desse jeito por causa de... mecânica ou algo assim. Já tive a sua
idade.
Uma lufada de ar escapa da minha boca, e não consigo evitar sorrir.
— Tá falando sério?
— Se você não quiser falar, tá tudo certo. — Ele faz um gesto de paz
com as mãos. Então, seu rosto fica sério. — Mas se lembra de usar
proteção, e que consentimento é essencial.
Arregalo os olhos. Volto a fitar a estrada à frente. O sinal abre.
— Sim, é mesmo — respondo um tanto evasivo.
Fico tão desconfortável que começo a mexer no celular, na mochila,
em qualquer coisa que distraia minha atenção de Edgar. Como eu diria a ele
que a garota que estava me deixando daquele jeito era o jogador de
basquete mais popular de Eastview?
Reviro os olhos. Abro o porta-luvas do carro.
— Ah, não mexa nisso — Edgar tenta me impedir, mas precisa focar
em um cruzamento arriscado.
Apanho um livro de bolso guardado no compartimento. O título me
faz rir por dentro.
— “14 passos para uma boa convivência com seu filho adotado.”
E percebo que aquilo o deixa desconfortável. Bom. Olho por olho,
dente por dente. Encaro Edgar de relance. Ele para em um novo sinal
vermelho, suspira e dá leves tapinhas no volante emborrachado.
— Ninguém nasce sabendo de tudo. Laura e eu não somos
diferentes.
Aperto os lábios, e concordo com a cabeça. Sou mesmo um idiota.
Ao menos, ele está tentando. Isso é reconfortante, na verdade. É mais do
que todos os outros pais adotivos que tive antes já fizeram. Guardo o livro
de volta no porta-luvas e o fecho.
Sinto um peso nos ombros pela forma como agi no café.
— Sobre as cápsulas... — murmuro. — Posso tentar diminuir a
frequência que as uso se você—
— Está tudo bem. — Ele nega com a cabeça. Faz uma nova curva.
— Apenas... tome cuidado.
Cruzo os braços sobre o peito. Olho para minha mochila e penso nas
dezenas de camisinhas escondidas nela.
— Sempre tomo.
Ele me lança um curto sorriso.
— Se precisar de conselhos quanto a garotas... ou qualquer outra
coisa...
— Pode deixar.
O ar está mórbido nos corredores. As pessoas conversam em um
tom mais baixo do que o normal. Não há bagunça, correria, ou qualquer
tipo de alvoroço. Olho para os lados. Algumas pessoas choram. Outras
sussurram que querem desesperadamente saírem dali. Há ansiedade e
tristeza espalhadas no rosto de todos.
Caminho pelos corredores com um peso enorme na nuca. De certa
forma, sinto como se eu também tivesse ajudado a matar Alexis. Olho para
as palmas de minhas mãos: estão manchadas de sangue por um segundo.
Pisco. O sangue desaparece.
Inspiro fundo. Aperto a alça da mochila nas costas.
Quando mais próximo chego do laboratório de biologia, mais
aglomeradas estão as pessoas. Tenho dúvidas se quero me aproximar
demais.
Porém, à frente da multidão, vejo a nuca de Matty. Sinto alívio e
raiva ao mesmo tempo. Me esgueiro e empurro vários uniformes azuis do
caminho até chegar à frente do corredor do laboratório, ao lado do garoto
por quem eu mantinha tudo aquilo em segredo.
A polícia interditou o corredor inteiro com fitas amarelas e pretas.
Há policiais e detetives em todas as salas investigando cada centímetro do
prédio.
Matty me olha de relance, mas não diz nada. Seus olhos estão
concentrados na porta fechada do laboratório. Através da janela, vejo
policiais e investigadores discutindo e observando o local.
Engulo em seco e aperto um pouco mais a alça da mochila. Se Matt
não vai falar, então eu vou.
— Como você tá? — sussurro.
Ao nosso redor, as pessoas parecem distraídas demais com seus
próprios murmúrios para prestar atenção em nós. Matty continua em
silêncio por alguns segundos até dizer:
— Eles acham que foi suicídio.
— Suicídio?
Meu cenho se franze. Forço o olhar em direção às janelas do
laboratório, mas não consigo identificar nada de útil. Me aproximo mais de
Matt. Ele sussurra em um tom ainda mais baixo:
— Encontraram Alexis pendurado por uma corda no pescoço,
estrangulado. — E, de forma quase macabra, um sorriso se abre em seu
rosto. — Eu disse que tudo estaria melhor pela manhã.
Perco o ar, confuso.
— Melhor?
— Ninguém sabe que ele foi assassinado, Tommy — completa em
um tom firme. Sinto meus joelhos enfraquecerem novamente, não consigo
fitar seu rosto por muito tempo. Saio às pressas dali, empurrando qualquer
um que esteja em meu caminho. — Tommy?
Me afasto daquele corredor até achar uma janela aberta. Coloco
minha cabeça para fora do prédio e fecho os olhos. Respiro ar puro. Tento
me acalmar.
— Tomas — ele se aproxima outra vez. O corredor onde estamos
está vazio, então ele aproveita para colocar uma mão no espaço entre
minhas escápulas.
Me afasto bruscamente.
— Como você pôde... — vocifero, mas me perco em minhas
próprias palavras. — Como pôde dizer essas coisas?
Mas ele não diz nada. Em vez disso, parece ficar irritado com minha
reação e dá alguns passos para trás.
— Sinto muito, Tom — diz em um tom frio —, mas é melhor assim.
Matt vira as costas para mim. Em seguida, caminha para fora do
corredor e me deixa sozinho. Como sempre fez. Como sempre vai fazer.
Agora tenho um psicopata atrás de mim. Um psicopata que sabe meu
número, onde e com quem moro. Um psicopata que matou um aluno, que
fez com que parecesse suicídio. Olho ao redor no corredor vazio, tentando
colocar as peças do quebra-cabeça no lugar. Quem era aquela pessoa? Por
quanto tempo continuaria me atormentando?
E a pergunta mais importante... Posso mesmo confiar em Matt?

FIM DO LIVRO UM
D irigir e ler ao mesmo tempo é mais difícil do que parece. Devia
haver um curso pra ensinar esse tipo de coisa. Paro no sinal vermelho, e
tenho alguns segundos pra ler a passagem aberta no meu colo.

O sinal abre. Tenho que focar nas ruas novamente.


Quando a mãe de Laura me deu aquele livro, não imaginei que seria
tão útil. Mas também não imaginei que adotar um filho fosse ser tão
complicado, outra coisa que as pessoas fazem parecer mais fácil do que é na
prática.
Cruzo uma esquina e me deparo com outro sinal fechado. Ótimo.
Curvo a nuca em direção ao livro.
Reflito um pouco: Tommy é mesmo mais fechado do que
imaginamos que seria, mesmo que Laura e eu tentemos nosso melhor o
tempo todo pra entender mais sobre ele. Sempre fica na defensiva quando
se trata de conversar sobre garotas, e as cápsulas de cafeína.... Bem, as
cápsulas são uma história à parte. Leio a próxima linha na página.

De fato vêm.
O sinal abre novamente. Toco o volante emborrachado e piso de leve
no acelerador. O carro não arranca a mais de 30km/h; as ruas mais próximas
da delegacia de Eastview são pouco agitadas. Ergo o livro na altura dos
olhos, pois a linha seguinte me chama a atenção:
Pego meu marcador de texto amarelo largado no painel e destaco a
passagem: talvez seja esse o problema de Tommy. De qualquer forma, ele
vai se abrir conosco quando for o tempo certo. Estamos com ele há poucos
meses, mas não tem dúvida alguma em meu peito de que adotá-lo foi a
melhor decisão que Laura e eu já tomamos. Um sorriso se abre em meu
rosto.
Paro em frente à delegacia. Desligo as engrenagens, pego meu
revólver e o acoplo no coldre do cinto. Apanho alguns relatórios que
preparei durante o fim de semana e saio do carro.
Ser policial em Eastview é como ser um policial em uma cidade
pequena: todo mundo conhece você e coloca em seus ombros o peso de
resolver até as mínimas inconveniências. Ainda assim, amo meu trabalho.
Amo a equipe com a qual trabalho. Amo esse bairro.
O problema é que nunca tivemos uma situação como essa antes.
Nunca antes um crime desses foi cometido em Eastview, menos ainda um
suicídio tão suspeito. Tenho a sensação de que algo bastante perigoso está
acontecendo, o que pode arruinar a paz deste bairro. Isso não posso deixar
acontecer.
Entro na delegacia. Sou recepcionado pela visão de sempre: meu
parceiro, Eduardo Scooper, sentado em sua mesa ao lado da minha, um
copo largo e borbulhante de café preto nas mãos, um sorriso torto no rosto
de mandíbula bem definida e as insígnias douradas presas no peito do
uniforme amarronzado.
— Bom dia, Vilarreal — cumprimenta.
Passo direto por ele e me aproximo da cafeteira. Sirvo um copo
grande de café para mim.
— Acordou de bom humor, Scooper? — respondo em um tom alto
para sinalizar minha presença para o resto da equipe.
— O de sempre — ele dá um gole em seu café.
Chris sai de sua sala no corredor ao lado e se aproxima.
— Novidades sobre o garoto suicida? — Entrego a ela meus
relatórios e me recosto sobre o balcão onde fica a cafeteira.
— Analisamos todos os pertences dele — ela diz com os olhos nas
folhas em suas mãos —, em casa e na escola.
Chris dá um aceno sutil quando termina de ler os relatórios. O óculos
pequeno e escuro parece imóvel em seu rosto, os fios escuros na altura dos
ombros são perfeitamente alinhados.
Do corredor à minha esquerda, Samara, outra policial investigativa,
aparece e caminha até mim trazendo uma pasta escura nas mãos. Ela me
cumprimenta em silêncio com o queixo e me passa a pasta.
— O que é isso? — Abro e vasculho o conteúdo de seu interior.
— Fotos do armário — ela responde enquanto pego uma das fotos e
analiso. — Está vazio.
Meu cenho se franze. Procuro alguma coisa incomum nas fotos, mas
não acho nada. Parecem fotos ordinárias de um armário vazio.
— E isso é importante por...? — Ergo uma sobrancelha.
— Não estava vazio antes do acontecido. — Samara diz e estende o
próprio celular até mim. Na tela, vejo uma foto do garoto ainda vivo junto
de seu melhor amigo, ambos na frente do armário aberto, que tem seu
interior repleto de materiais de estudo e objetos seus.
Observo a foto do celular, e então as fotos físicas da pasta.
— Foi roubado?
Samara dá de ombros e recolhe o celular. Fecho a pasta.
— Ou esvaziado pela vítima por alguma razão. — Ela senta em uma
cadeira próxima de Scooper.
Meu parceiro ajeita sua postura antes de dizer:
— Interrogamos a família, amigos próximos, colegas distantes. —
Suspira. — Não encontramos nada que indicasse que ele estava planejando
suicídio. Nenhum histórico de transtornos psicológicos na família, nenhum
comportamento suspeito, nenhuma fala duvidosa. — Cruzo os braços sobre
o peito. Minha intuição de que algo bastante errado está acontecendo em
Eastview se acentua. — Os pais disseram que o dia da morte foi apenas um
dia normal... até notarem a ausência do filho à noite.
Movo a mandíbula de um lado para o outro pensando nisso.
Abandono a pasta com as fotos do armário, dou um gole longo no meu copo
de café. A sensação fervente e amarga me deixa um pouco mais desperto.
— Mesmo que ele quisesse se suicidar... — murmuro para meus três
companheiros de delegacia —, por que na escola?
— Pra chamar atenção? — Chris sugere em tom despreocupado.
— De quem, exatamente? — Scooper rebate. — Ninguém na escola
tinha qualquer tipo de coisa contra ele, Eddie. — Me fita brevemente.
Encaro a porta fechada da delegacia, me lembrando do que
investiguei na cena do crime e descrevi em detalhes nos relatórios que
seriam enviados às instâncias superiores da Polícia Federal mais tarde.
— A traqueia dele estava quebrada? — Chris pergunta.
— Sim — respondo, um pouco frio, um pouco ríspido.
Um silêncio estático se ergue entre nós. Um silêncio que, quando
quebrado, significará o fim da paz neste bairro. Então que eu o faça.
— Esse garoto não se matou, não foi? — pergunto em um tom mais
baixo.
É uma pergunta retórica, mas Samara a responde de qualquer forma:
— Não.
— Porra — murmuro, e esfrego os olhos. Penso em todas as pessoas
que conheço e que agora estão em perigo. Penso em Laura. Penso em
Tommy.
— Um assassino em Eastview — Scooper comenta em um tom
jocoso e ansioso. — Essa é nova.
— Devemos mesmo envolver as autoridades de São Paulo? — Chris
pergunta com certa relutância, a nuca curvada em direção aos relatórios em
suas mãos.
Todos sabemos a resposta para aquilo.
— Não. — Apanho as folhas de suas mãos. Caminho até a máquina
de cortar papel no espaço entre minha mesa e a de Scooper e retalho os
relatórios que escrevi. — Nada disso pode sair de Eastview. — Comento
em um tom sombrio quando o último pedaço de papel se fragmenta.
Retiro o canivete que guardo no cinto e passo a lâmina afiada sobre a
palma da minha mão direita. Pele e carne se rompem. Um filete delicado e
rubro de sangue escorre.
Estendo o canivete a Scooper.

LEIA A SEQUÊNCIA ELETRIZANTE AGORA


Animades pro começo do semestre? Sei que eu estou ;)
Muito obrigado a todas as pessoas incríveis que trabalharam comigo
nesse livro. Muito obrigado a Brendon pelo trabalho de edição incrível que
me fez perceber e trabalhar em muitas coisas (não apenas condizentes à
história, mas como a minha própria vida também hehehe). Obrigado por
revisar esse livro e por apontar a ironia da entrada no armário de Tommy
enquanto está fugindo do assassino.
Aos meus parceiros desde ADF (Naty, Bruno e Senara), muito
obrigado por seguirem trabalhando comigo aqui e por ajudarem a tornar
este texto melhor, tanto narrativa quanto esteticamente. Vocês são os
maiores.
E aos meus leitores maravilhosos (que seguiram do Fronteiraverso
ou que acabaram caindo de paraquedas aqui), obrigado por confiarem e
apoiarem meu trabalho. O carinho de vocês é como um combustível que me
impulsiona a criar mais histórias como essa, e me estimula a seguir me
desafiando, tanto como criador quanto pessoa.
Reencontro todes em setembro para seguirmos Tommy e Matt nessa
nova etapa macabra de suas vidas. E lembrem-se: nunca confiem em
garotos populares... especialmente quando estão mortos.
MARK MILLER É ESCRITOR PELA MANHÃ, estudante de medicina pela
tarde, e leitor voraz pela noite. Nasceu na região norte do Brasil, mas
mudou-se para São Paulo aos 14 anos de idade.
É uma pessoa de hábitos noturnos, o que talvez explique sua obses-
são por café. Não gosta de climas muito quentes, ou muito frios, adora
conhecer a cultura de outros países e ama gatos.
Escreve pelo simples desejo de ver mais representatividade em his-
tórias usualmente dominadas pelo imaginário heteronormativo, bus-cando
leitores que, como ele, desejam ver mais personagens LGBTQ+ em
posições de protagonismo.

Conecte-se com Mark no:

Twitter: @markmillerbooks
Instagram: @markmillerbooks

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