Intercambios Angolano-Brasileiros

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INTERCÂMBIOS ANGOLANO-BRASILEIROS: TRAJETÓRIAS


INTELECTUAIS E INSTITUCIONAIS NO ATLÂNTICO SUL (1948-1970)

Gilson Brandão de Oliveira Junior1


Doutor em História (UnB)
Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia
[email protected]

José Francisco dos Santos2


Doutor em História (PUC/SP)
Professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia
[email protected]

Resumo: Este trabalho reúne parte das pesquisas doutorais dos seus autores, as quais versaram sobre os
intercâmbios intelectuais e institucionais angolano-brasileiros, todavia, em períodos distintos e
subsequentes. Sua afinidade temática e a concomitância da sua elaboração são, em si, testemunhos da
atualidade e da pertinência deste debate. Nosso principal objetivo é mostrar a heterogeneidade discursiva
de alguns dos intelectuais que fizeram parte da geração que deu origem ao Movimento Popular de
Libertação de Angola (MPLA) e à sua luta cultural, política e emancipacionista, ainda no período
anterior à eclosão da guerra anticolonial (1961). Nossa perspectiva parte das dimensões da história
atlântica, dos intelectuais e das instituições, ao analisarmos as relações tecidas entre grupos de jovens
intelectuais, angolanos e brasileiros, que dialogaram e trocaram materiais políticos e literários.
Palavras-chave: Intercâmbios angolano-brasileiros; trajetórias intelectuais; produção literária; guerra
anticolonial; diálogos sul/sul.

ANGOLAN-BRAZILIAN EXCHANGES: INTELLECTUAL AND INSTITUTIONAL


TRAJECTORIES IN THE SOUTH ATLANTIC (1948-1970)
Abstract: This work brings together part of the doctoral research of its authors, which dealt with
Angolan-Brazilian intellectual and institutional exchanges, however, in different and subsequent
periods. Its thematic affinity and the concomitance of its elaboration are, in themselves, testimonies of
the relevance and relevance of this debate. Our main objective is to show the discursive heterogeneity
of some of the intellectuals that were part of the generation that gave rise to the Angolan Popular
Liberation Movement (MPLA) and its cultural, political and emancipationist struggle, even in the period
before outbreak of the anti-colonial war (1961). Our perspective starts from the dimensions of Atlantic
history, intellectuals and institutions, when analyzing the relationships woven between groups of young
intellectuals, Angolans and Brazilians, who dialogued and exchanged political and literary materials.
Keywords: Angolan-Brazilian exchanges; intellectual trajectories; literary production; anticolonial
warfare; south/south dialogues.
Texto recebido em: 28/06/2019
Texto aprovado em: 15/11/2019

1
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4923251336499512. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8040-0172.
2
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2746256151454516; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9247-
5585?lang=en.

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O fim da segunda grande guerra gerou uma importante alteração nos paradigmas do
mundo ocidental: o questionamento das noções e hierarquizações rácico-culturais. Este
fenômeno abriu novos horizontes para a humanidade, sendo que esta própria categoria passou
a ser repensada após a emergência das campanhas e lutas anticoloniais. No entanto, a
consolidação dessas mudanças ocorreria mesmo a partir de 1948, ano da aprovação da
declaração universal dos direitos do homem na assembleia geral da ONU. O momento era de
incertezas e demandava por outros referenciais políticos e culturais.

Também em 1948, dois grupos de jovens situados nas margens do Atlântico Sul, um
brasileiro e outro angolano, motivados por questões distintas, passaram a se organizar em nome
da promoção da cultura e de um modernismo autóctone em suas terras. Tratava-se do Círculo
de Arte Moderna (CAM) em Florianópolis, no Brasil, e do Movimento dos Novos Intelectuais
de Angola (MNIA) de Luanda, em Angola.

O Círculo de Arte Moderna era uma entidade de caráter cultural, sobretudo literário, que
começara a atuar na imprensa catarinense desde o ano anterior (1947). Este grupo foi
responsável pela difusão do modernismo em Santa Catarina, desenvolvendo diversas atividades
culturais, tais como teatro, artes plásticas, cinema, além da literatura, e tinha as suas ideias
veiculadas através da revista Sul (1948-1958).

Igualmente de caráter cultural, o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola entoava


o lema “Vamos descobrir Angola!” e buscava alterar os paradigmas culturais coloniais e
desenvolver uma literatura eminentemente angolana (ou a ‘angolanidade’), tendo na revista
Mensagem (1951-1952) o principal veículo agregador das suas ideias.

Ambos os grupos de intelectuais articular-se-iam em princípios da década seguinte,


gerando um frutífero intercâmbio cultural com importantes consequências para a luta política e
emancipacionista angolana. Geralmente esses grupos são analisados como pertencentes a
gerações distintas, o que suscita a ideia de homogeneidade do seu pensamento e ação. Contudo,
há uma latente heterogeneidade entre esses intelectuais, seja em suas produções literárias, mas,
principalmente, nas diferentes posições ocupadas por eles na luta emancipacionista.

Fruto desses intercâmbios, em uma época de propagação das descolonizações, diversos


comitês de apoio às independências dos países africanos surgiram em cidades como São Paulo

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e Rio de Janeiro, além de muitas outras no Brasil e alhures. No meio deles situa-se o Movimento
Afro-brasileiro Pró-Libertação de Angola (MABLA)3. Entre as suas principais atuações
enumeramos o apoio à literatura africana, sendo publicadas no Brasil obras de autores
angolanos, moçambicanos dentre outras nacionalidades, bem como a difusão da literatura
brasileira naquelas nações, a publicação de livros sobre história do continente africano, além de
outros meios de denúncia dos violentos conflitos decorrentes das guerras de independência.

Entre as décadas de 1960 e 1970, além do incremento da produção bibliográfica


africanista, surgiram no Brasil centros de estudos especializados no continente africano.
Destacam-se o Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia (CEAO-UFBA,
1959), o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (CEA-USP, 1965) e o
Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos (IBEAA-Itamaraty, 1961), convertido
posteriormente em Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes
(CEAA-UCAM, 1973), além de outras instituições.

O resgate dessas questões do passado alimenta as nossas reflexões no presente, já que


nos ajuda a pensar sobre os significados hodiernos do postulado da angolanidade. O diálogo
entre esses intelectuais também expõe a ausência de intercâmbios político-culturais análogos
que poderiam ser realizados hoje, em detrimento da pluralidade dos meios disponíveis e das
condições políticas atuais, comparativamente, mais favoráveis.

O conceito de geração

A primeira questão a ser debatida é o próprio conceito controverso de geração. Este


pode ser preliminarmente definido como uma identidade terminal assumida por sujeitos
marcados por experiências comuns, pelo compartilhamento de referenciais cronológicos e
etários compatíveis, e/ou pela origem dos seus círculos de sociabilidade. A noção de geração
suscita, a priori, certa ideia de homogeneidade das posturas dos seus membros, que é rompida
no instante em que as informações sobre os indivíduos e suas trajetórias são contrastadas com
os processos mais amplos que marcam a sua individualidade (identidade política), diante do
exame do seu processo de inserção nesses amplos círculos de sociabilidade. Embora

3
Para saber mais ver (SANTOS, 2014 e SANTOS, 2010).

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frequentemente façamos uso da categoria geração para examinar a ação política de sujeitos
distintos num dado contexto histórico, é imprescindível sempre termos em mente que ela é
formada por diferentes personagens que, sendo autônomos, têm posicionamentos, condutas e
posturas diversas.

Ao rotular-se como geração, um mesmo grupo pode ser designado de maneiras


diferenciadas, seja por autodenominação, ou por atribuição/associação, a depender da adoção
de distintas perspectivas analíticas.

O grupo dos intelectuais angolanos foi designado por nomes bem diferentes: Geração
dos anos 1920, atribuída por Mário Pinto de Andrade, se refere à década em que nascera a
maioria dos sujeitos; Geração de 1940, denominada por Luís Kandjimbo, faz alusão ao início
das atividades culturais da maioria dos seus membros; Geração de 1950, assim referida por
Alfredo Margarido e Carlos Serrano, se associa à década da emergência das organizações
políticas derivadas das referidas instituições culturais; Geração da Utopia, como foi designada
na obra literária de Pepetela, associa criticamente as frustrações dos objetivos iniciais do grupo
aos resultados pós-coloniais; e Geração da Mensagem, como intitulada por Salvato Trigo
(1979), uma vez que “Mensagem” foi o nome atribuído aos veículos difusores das ideias desse
grupo-geração, fosse a revista ou o boletim, editados respectivamente em Luanda e em Lisboa.
Sucedendo Mensagem, a geração da Cultura, à qual estão associados alguns intelectuais
pertinentes ao nosso contexto-tema, foi igualmente batizada com o nome do periódico.

O grupo de intelectuais brasileiros também recebeu alcunhas bem diferenciadas: Círculo


de Arte Moderna foi o modo como o próprio grupo escolheu para nominar-se, levando em
consideração o principal objetivo dos seus intelectuais e ativistas (romper o parnasianismo
vigente e implantar o modernismo na província de Santa Catarina), enquanto a crítica literária
os apelidou de Grupo Sul por causa do nome da sua revista.

Embora frequentemente façamos uso da categoria geração para examinar a ação política
de sujeitos distintos num dado contexto histórico, é imprescindível sempre termos em mente
que ela é formada por diferentes personagens que, sendo autônomos, têm posicionamentos,
condutas e posturas diversas. Não podemos perder de vista essa premissa, sobretudo quando
analisamos as trajetórias dos sujeitos, e levamos em consideração as suas personalidades,
individualidades e idiossincrasias (com)textuais.

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Anos 1950: intercâmbios entre grupos de intelectuais no Atlântico Sul

No ano de 1948, coincidentemente, jovens intelectuais angolanos e brasileiros criaram


organizações por meio das quais fizeram reverberar os seus projetos culturais após o término
da segunda grande guerra.

Esse foi o ano da criação da Revista Sul, do CAM, organização cultural que buscava
“disseminar o Modernismo, cultivar valores nacionais, e elevar o nível cultural catarinense”
(SABINO, 1982, p. 132). Para tal desenvolvia diversas atividades culturais. No teatro, criaram
o grupo TECAM (Teatro Experimental do Círculo de Arte Moderna); este foi um meio para o
financiamento dos seus demais projetos, sobretudo o literário, tendo ousado encenar pela
primeira vez uma peça de Jean-Paul Sartre em nosso país. Nas artes plásticas foram
responsáveis pela criação de um clube de gravura, além de promover diversas exposições e
palestras com artistas convidados de outros estados. Um desses visitantes foi Marques Rebelo,
quem estabeleceu uma profunda relação com os seus membros, além de a sua intervenção ter
culminado na fundação do Museu de Arte Moderna de Santa Catarina, que também foi o
primeiro do gênero criado no país. Esse grupo também criou o Clube de Cinema do Círculo de
Arte Moderna, responsável pela realização do primeiro filme rodado no Estado de Santa
Catarina em 1957. Contudo, a literatura teria sido a principal atividade empreendida pelo grupo-
geração.

No mesmo ano, na margem oposta do Atlântico, surgia em Angola o MNIA,


organização cultural inspirada no modernismo brasileiro que buscava romper com os
paradigmas culturais do colonialismo, além de criar uma literatura própria e autêntica. Tratava-
se de um momento de grande incômodo diante da permanência salazarismo e do colonialismo
no período pós-guerra. Localmente, Luanda passava por diversas alterações socioespaciais com
a intensificação da imigração de portugueses e a consequente urbanização, especulação
imobiliária e periferização das populações negras e pobres, processo que originou a cisão entre
a cidade de asfalto e os ditos musseques. Como outros de seu tempo, esse movimento

incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os seus aspectos através de um


trabalho colectivo e organizado; exortava a produzir-se para o povo; solicitava o
estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e

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nacionalizar as suas e nacionalizar as suas criações positivas válidas; exigia a


expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem que se
fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se
no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas (Mário Pinto de
Andrade apud ERVEDOSA, 1979, p. 102; Viriato da Cruz apud TRIGO, 1979, p. 41-
42).

Nos anos 1950, concomitantemente ao lançamento de Mensagem em Luanda, surgiu um


frutífero intercâmbio literário entre as supracitadas gerações de intelectuais. O período em que
esses escritores escreveram era de grande repressão do regime salazarista, pois nesta década
deu-se a promulgação da lei do indigenato, que separava as pessoas em subclasses; os que
sabiam ler e escrever em português eram considerados civilizados (assimilados), e os que não
sabiam eram tutelados pelo Estado português e não tinham acesso à cidadania plena (indígenas).
A vigilância dos órgãos censores coloniais era intensa, e a revista brasileira serviu tanto como
meio alternativo para a publicação dos trabalhos dos intelectuais angolanos, como meio para
obtenção de materiais literários considerados subversivos. Contudo, a Revista Sul não
contribuiu somente para a formação intelectual desses escritores, mas também com a sua
estrutura elementar de ensino, haja vista que os conteúdos solicitados não eram somente de
livros ditos “subversivos”, mas os de estrutura básica de ensino. Esse foi um importante meio
de encontro entre essas duas gerações de intelectuais no Atlântico Sul.

Era comum entre os angolanos do período que fossem estudar na metrópole. Estes
ficaram conhecidos como os “do exterior”, enquanto aqueles que permaneceram no país natal
eram chamados de os “do interior”. Apesar do distanciamento físico, a relação entre esses dois
grupos nunca deixou de existir, sendo partes de um mesmo grupo-geração. Os seus anseios e
preocupações eram frequentemente partilhados, assim como suas produções literárias e
atividades políticas. Diante desses contatos, suas trajetórias se interferiam mutuamente,
encontrando-se mesmo que indiretamente.

As ações e o intercâmbio entre cada um desses grupos interferiam mutuamente nessas


três porções do Atlântico, direta ou indiretamente, sendo de suma importância considerar tal
dimensão espacial entre as distintas gerações e suas trocas intelectuais. Três intelectuais do
MNIA tiveram os seus textos publicados na revista Sul: Antônio Jacinto, Viriato da Cruz e
Mário Antônio F. de Oliveira. Cada um deles manteve distintas relações com Agostinho Neto,
bem como diferentes papeis na luta anticolonial.

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Os novos intelectuais de Angola na Revista Sul

Buscamos perscrutar as contribuições, os diálogos e as influências na obra de Agostinho


Neto dos três intelectuais mensageiros residentes em Angola que estabeleceram
correspondência e tiveram trabalhos publicados nos cadernos Sul: Antônio Jacinto, o
inaugurador das relações entre o MNIA e o CAM; Viriato da Cruz, o teorizador dos movimentos
e das organizações políticas nos anos 1950; e Mário Antônio Fernandes de Oliveira, entusiasta
das literaturas euro-americanas e do luso-tropicalismo, ideal que passou a ser refutado na
segunda metade da década de 1950. Partindo desses encontros, examinamos as relações e as
influências efetivadas entre Agostinho Neto e esses membros do MNIA, buscando elementos
culturais e políticos significativos para a fundamentação das suas ideias, em particular, e para
a construção do discurso nacionalista angolano de maneira geral.

Antônio Jacinto inaugurou os contatos do MNIA com os intelectuais da Sul. Solicitou


em sua correspondência o envio de materiais marxistas, de cultura brasileira, e de trabalhos
inéditos para serem publicados em Angola; enviou obras angolanas para serem publicadas no
Brasil, além de tonar-se um divulgador da revista Sul em Angola. Ao lado de Viriato da Cruz,
Mário Antônio e Idílio Machado, foi fundador do efêmero e clandestino Partido Comunista
Angolano, que mantinha relações com o PCB brasileiro. Jacinto teve quatro trabalhos
publicados em três edições da revista Sul entre 1952-53. Em Convite aos outros, Jacinto
convidava os “descrentes” a juntar-se à caminhada rumo à concretização dos ideais entoados
pelo “poeta do ‘Movimento’” (dos Novos Intelectuais de Angola). Iniciou o texto Quero cantar
e cantarei com uma dedicatória a Miguel Torga, autor neorrealista português fortemente
vinculado ao Brasil. Nele reivindicou o poder da voz que, naquele contexto, se figurava pelo
cantar. Já o texto Autobiografia trata, em resumo, da exortação de outra noção de humanidade,
a qual também deveria incluir o autobiografado. Jacinto não apenas compôs poemas, mas
também escreveu contos; bem como fez uso de diversos pseudônimos, como o utilizado na
publicação na Sul de 1953 (Orlando Távora). O título O Conto Estrangeiro. Orpheu faz
referência indireta à Revista do Brasil e à geração d´Orpheu, projeto modernista luso-brasileiro
do início do XX. Orpheu também é o protagonista do conto, que narra o seu percurso numa
paisagem urbana decadente. Ao adentrar em uma taberna-prostíbulo, Orpheu passou a observar

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a realidade derredor e a escrever “um novo poema da madrugada”. Ali o poeta torna-se, então,
símbolo romantizado desse tipo de ambiente, ícone prontamente reconhecido e saudado, cuja
missão é criadora, libertadora, e cheia de esperança pelo “Amanhã”. Seja em termos temáticos,
poéticos ou políticos, esses trabalhos de Jacinto são representativos do papel que ocupou nesse
grupo-geração.

Viriato da Cruz foi um dos principais idealizadores da angolanidade, tendo sido


reconhecido em seu tempo como o mais importante poeta angolano (Cf. ANDRADE;
TENREIRO, 1953). Ele reconheceu a importância cultural e política do referido intercâmbio
atlântico meridional, já que em um artigo datado de 1964 escreveu que,

os contatos entre jovens angolanos e jovens escritores brasileiros levaram a


contrabandos de livros e revistas de Angola, [fazendo com que] parte da juventude se
engajasse no debate sobre os principais problemas das questões sociais do pós-guerra,
o fascismo e a democracia, do colonialismo e de auto-determinação dos povos, etc.
(apud SANTIL, 2006, p. 406).

Uma das principais contribuições de sua obra foi a dimensão universalista, segundo a
qual defendia que toda a cultura não-africana não deveria ser rejeitada em favor da afirmação
da cultura africana. No que tange às relações culturais mantidas com o nosso país, “Viriato
recuou as estruturas de identificação com o Brasil com base no parentesco. [...] Assim, Viritato
mostra que ele tem cada vez menos uma visão idílica do Brasil” (SANTIL, 2006, p. 411).

Viriato da Cruz publicou na Sul o texto intitulado Na encruzilhada, em 1953. Nele o


autor fez uma dedicatória a Agostinho Neto, sendo esta a sua única menção naquela revista, o
que denota a afinidade e admiração nutrida até aquele momento. Já a dedicatória feita a W.E.B.
Du Bois nos permite averiguar as suas referências pan-africanistas e negritudinistas. Essas
dedicatórias posicionam o autor na encruzilhada do exógeno e do endógeno, e manifesta o seu
apreço pelos encontros entre as duas gerações da Mensagem. Mas também suscita a sua noção
de universalismo, associada a uma “encruzilhada de civilizações”. Ademais, este texto é um
exemplar das aproximações temáticas e estilísticas entre A. Neto e Viriato (Cf. SANTOS, E.,
2010).

Mário Antônio Fernandes de Oliveira foi um membro mais novo que os demais na
sua geração, e por isso não foi contemporâneo de Viriato da Cruz e Antônio Jacinto no Liceu
Nacional Salvador Correia, tendo visto Agostinho Neto saindo de lá. Desde a década de 1950

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os seus escritos passaram a ser publicados em diversas revistas luandenses, com destaque para
a Mensagem, na qual participou ao vencer um concurso da entidade e integrou, a partir de então,
o MNIA. Como funcionário da administração colonial, contribuiu na imprensa da época e
esteve ligado às diversas organizações políticas angolanas de meados dos anos 1950, como o já
mencionado Partido Comunista Angolano. O seu destino literário se dispersou, pois, embora
fosse um escritor anticolonialista, antirracista e defensor de valores humanistas e democráticos,
não abriu mão completamente dos fundamentos e ideias básicas do luso-tropicalismo, o que
intensificou as críticas que passou a sofrer desde o interstício das décadas de 1950-60.

Na revista Sul, Mário Antônio publicou dois poemas nos anos de 1955 e 1956,
intitulados respectivamente como Tropa Negra e Solidariedade. Ambos os poemas são
exemplares da sua primeira fase, integrados à poética da Mensagem e do MNIA. Mário Antônio
seguirá um rumo próprio a partir da segunda metade dos anos 1950 e início da década seguinte.
Enquanto a maioria dos integrantes do MNIA deixaria de lado a fase denominada reformista e
partiria para uma nova fase revolucionária, Antônio permaneceria ligado às influências euro-
americanas e europeias, enfatizando a crioulidade da sua literatura. Ainda assim, ambos os
poemas têm em comum o fato de terem sido escritos num contexto em que os clamores
anticoloniais estavam muito mais evidentes do que na primeira metade daquela década. O
conteúdo de Tropa Negra é, em termos gerais, denunciativo do sofrimento perante o
recrutamento dos africanos para lutarem ao lado das tropas portuguesas (PAULA; CORREA,
2016, p. 28). Solidariedade também é um poema que exprime o espírito vivenciado à época:
escrito em 1956, momento de profundas reflexões acerca dos modelos de organização
sociopolítica e econômica, o poeta parece criticar os meios utilizados pela sociedade moderna
para estimular o consumo, atrelando-os à mulher como objeto de desejo. Assim, alerta e reage
contra a alienação atinada pela ideia de progresso da modernidade.

Os três autores do MNIA “do interior” que publicaram textos na revista Sul também
mantiveram relações diferenciadas com os intelectuais “do exterior”, e particularmente com
Agostinho Neto. Apesar de este ter rumado para Portugal com o intuito de estudar medicina no
ano imediatamente anterior à organização do MNIA, distanciando-se dos conterrâneos, a sua
relação com os “do interior” nunca desvaneceu.

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Agostinho Neto e os novos intelectuais de Angola

Apesar de estar integrado aos mensageiros do interior, Antônio Jacinto sempre


manteve um relacionamento amistoso e profundo com Agostinho Neto, em detrimento à
distância que os separava. Compartilharam ideias e preocupações políticas e literárias, e
buscavam se ajudar mutuamente ainda nos anos 1950, antes mesmo da organização da luta
anticolonial. Jacinto foi preso pela primeira vez em 1959, em virtude do “processo dos 50”, e
cumpriu doze anos em seu segundo cárcere em 1961. Ele exerceu importantes funções na
administração do Estado angolano após a independência, tais como as de ministro e secretário
da educação e cultura, além da direção do MPLA-partido. Além disso, foi membro da União
dos Escritores Angolanos (UEA) e homenageado com importantes prêmios literários. Morreu
em Lisboa, em 1991.

No interstício dos anos 1940-50 Agostinho Neto mantinha contato estreito com Viriato
da Cruz, em quem se inspirou profundamente em suas iniciativas culturais. Desde meados dos
anos 1950 a sua obra escrita passou a se concentrar muito mais nos tratados políticos do que na
senda poética. No início da década seguinte, já como MPLA, Viriato atuou nele como primeiro
secretário até 1962, data da sua I Conferência Nacional. Derrotado, criou uma dissidência para
rivalizar com a direção eleita, mas acabaram sendo expulsos dele em 1963. Decepcionado com
o seu isolamento, refugiou-se em Argel e Paris antes de se fixar definitivamente em Pequim,
onde, mantendo a sua postura crítica, faleceu em 1973 por falta de cuidados médicos. A
detração da sua imagem e o apagamento da sua personalidade foi fortemente estimulada pela
direção do MPLA, tendo Viriato sido acusado de traidor e precursor do fraccionismo em
Angola.

Mário Antônio de Oliveira foi o primeiro dentre os mensageiros a consagrar um artigo


sobre Agostinho Neto. Sua obra crítica e literária suscita o embate entre duas qualificações
atribuídas à literatura angolana, ambas suscitadas desde a Mensagem: a negritude e a
crioulidade. A dispersão na trajetória de Mário Antônio ao cânone dos mensageiros não se deu
somente em termos poético-literários, mas acompanhou-o biograficamente, uma vez que
abandonou a militância no Partido Comunista em 1957, apesar de dois anos depois ainda
estivesse arrolado entre os presos do “processo dos 50”. Por isso “Mário Antônio foi o ponto

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de dispersão por excelência onde se inscreveram essas novas formas de compreensão da


literatura angolana” (ABRANTES, 2007, p. 113).

No trabalho intitulado A sociedade angolana através da literatura (1978), o professor


Fernando Mourão chamou atenção à importância da literatura para formação do nacionalismo
angolano ao longo do século XX, em especial nas décadas de 1930, 1940 e 1950. Portanto, a
troca feita entre escritores brasileiros e angolanos a partir dessa última década influenciou de
alguma maneira a formação do nacionalismo angolano.

Os intelectuais em questão emanaram a sua mensagem do “Sul do mundo”. Embora


Agostinho Neto concebesse boa parte da sua obra em Portugal, a fez em consonância com
aqueles que ficaram em Angola e de lá proferiam a sua angolanidade na revista Mensagem, de
modo análogo àqueles que se reuniram em torno da Casa dos Estudantes do Império e também
exprimiam sua voz por meio do boletim homônimo.

O lugar de onde falam é o Sul, donde expressavam e reportavam ao mundo os seus


anseios por libertar-se da condição colonial, clamando pela valorização da sua identidade, sem,
contudo, deixar de lado os aprendizados exógenos por eles interiorizados: buscavam novos
sentidos, além de uma nova concepção de humanidade na qual necessariamente eles deveriam
estar incluídos e atuando como protagonistas.

Os intelectuais também emitiram mensagens para o Sul, uma vez que tiveram o Sul
como interlocutor e alvo das suas exortações. Dialogaram com outros movimentos, como a
negritude, e se inspiraram no neorrealismo português e na moderna literatura brasileira.
Estiveram preocupados em resolver as questões deixadas em aberto no após-guerra, sobretudo
aquelas que concerniam à manutenção das relações assimétricas entre colonizadores e
colonizados: denunciaram os males do colonialismo; dignificaram o homem colonizado;
bradaram pela liberdade e exortaram a esperança na vitória final.

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Anos 1960 e 1970: o MABLA e a luta anticolonial

O questionamento das noções e hierarquizações rácico-culturais derivado do fim da


segunda grande guerra também gerou uma importante alteração nos paradigmas da política
internacional portuguesa: a adoção da obra de Gilberto Freyre (Cf. CASTELO, 1998). A tese
propalada pelo autor brasileiro desde 1933 no clássico Casa grande e senzala não havia sido
bem acolhida em Portugal, até então. A partir da década de 1950, conceituada como
lusotropicalismo, a pretensa teoria gilbertiana passou a receber todo o apoio do salazarismo
para legitimar a manutenção da sua exploração na África. Assim, ao passo que a inspiração dos
mensageiros para a construção da sua angolanidade inspirava-se parcialmente na moderna
literatura brasileira remetida da Sul, foi contra esse outro ideário oriundo do Brasil que
converteram sua luta em anticolonial. Essa alteração se deu, sobretudo, a partir da segunda
metade da década de 1950, e se acentuou incontornável e definitivamente com o interstício da
década seguinte.

Contudo, a pertinência dos papeis atribuídos à literatura, aos livros e aos projetos
editoriais se manteve diante do adensamento das lutas anticoloniais e da atuação dos comitês
de apoio às independências dos países africanos. Isso porque as pessoas ligadas ao MABLA,
direta ou indiretamente, no Brasil ou em Angola, consumiam livros para um melhor
conhecimento da África. Além do mais, a maioria deles teve a sua formação cultural e política
influenciada pelo intercâmbio intelectual de que tratamos há pouco.

Por exemplo, o emigrado angolano José Manuel Gonçalves Rosas, hoje conhecido como
Jonuel Gonçalves (docente UFF), expõe em seu depoimento que, quando aluno secundarista
em Angola, ele e seus colegas adoravam ler autores da literatura brasileira como Graciliano
Ramos, Jorge Amado entre outros. Sobre a difusão da literatura brasileira em terras angolanas,
esse membro do MABLA reiterou o papel desempenhado pela revista Sul, editada pelo CAM
de Salim Miguel em Santa Catarina. Sobre esse assunto é importante reconhecer a divulgação
feita nas colônias portuguesas da África, tanto do trabalho literário como das denúncias da
guerra pela independência.

Percebe-se assim que o intercâmbio do grupo de Salim Miguel com os autores-ativistas


angolanos, mediatizado pela revista Sul, não se circunscreveu aos mensageiros. José Graça
(Luandino Vieira), autor-ativista geralmente associado à geração da Cultura, escreveu em carta

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ao amigo Salim Miguel que a coleção da revista Sul passava de mão em mão e fazia grande
sucesso entre os jovens de Luanda, apesar de ressalvar as dificuldades dessa divulgação criadas
pela constante vigilância da censura de imprensa.

Entre as cartas endereçadas a Salim Miguel houve um contato de 30 de março 1963, de


uma editora angolana que desejava adentrar o mercado brasileiro. Nessa carta, Garibaldino de
Andrade demonstra interesse em editar livros no Brasil, menciona um representante – João
Alves das Neves – que, nas suas palavras, seria um “delegado para todo Brasil”. Relatou que
editava a “Coleção Imbondeiro” desde janeiro de 1960. Salim Miguel explica que a coleção era
composta por livretos de cerca de trinta páginas, incluindo novelas ou contos, e contava com a
colaboração de escritores brasileiros, como Lygia Fagundes Telles, Reinaldo Castro, Antonio
D`Elia e Jorge Medauar, e que, segundo o próprio Garibaldino de Andrade, possuía cerca de
três mil exemplares.

Em depoimento, o professor Fernando Mourão4 recordou que a escritora Fagundes


Telles foi colaboradora do MABLA (entrevista concedida em 29/05/2009). Também importa
lembrarmos que a editora Coleções Imbondeiro também foi mencionada no seu livro A
sociedade angolana através da literatura (1978, p. 83).

A carta de Garibaldino inclui na negociação a troca de livros literários por pedagógicos.


Sobre a troca, Salim Miguel comentou:

Estamos, por outro lado, em conseguir assinantes no Brasil e em trocarmos livros


nossos por livros pedagógicos brasileiros, na base de 60$00 de livros nossos = a livros
pedagógicos. As assinaturas das nossas colecções são da ordem dos 60$00,
respectivamente: Col. Imbodeiro – 12n°; Mákua – 4 n°; Imbondeiro Gigante – 2n°. O
livro de Bolso Imondeiro – 6 n°. Essas assinaturas poderão também ser pagos em
livros pedagógicos. Poderá o camarada valer-nos nestas nossas pretensões? Poderá o
camarada interessar algum livreiro nesta troca, vantajosa para os dois lados?
(MIGUEL, 2005, p. 49).

4
Fernando Augusto Albuquerque Mourão foi um dos fundadores do MABLA, assim como membro do MPLA.
Fez Direito na Universidade de Lisboa e, ao regressar ao Brasil na década de 1960, seguiu carreira acadêmica,
sendo um dos fundadores do Centro de Estudos Africanos da USP, CEA, além de professor titular de Sociologia
na mesma instituição (SANTOS, 2014, p. 61 e SANTOS, 2010, p. 28).

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Vê-se novamente que, no caso, os angolanos sofrem com o déficit de conhecimentos


técnicos e procuram suprir essa deficiência justamente a partir dos contatos com o Brasil. Sobre
esse assunto, em outra carta a Salim Miguel, Garibaldino de Andrade reforçou a necessidade
do envio de livros pedagógicos, citando até as editoras brasileiras donde gostaria que os livros
fossem adquiridos, como Fundo de Cultura, Cultrix e Atualidade Pedagógica. Miguel ressalta
que os livros pedagógicos requeridos por Garibaldino tinham uma destinação prática, servindo
de ferramenta pedagógica para uma “escola do magistério primário” e que não tinha nenhum
material.

Vê-se que o Estado salazarista não se interessava na formação educacional dos


indígenas da colônia, nem mesmo da educação elementar, justamente porque, segundo a
longeva lei do indigenato, a alfabetização era um critério crucial de acesso à cidadania. Embora
na data de 1963 a lei do indigenato já estivesse extinta, como reflexo dos questionamentos dos
paradigmas hierárquicos rácico-culturais, as suas consequências ainda se faziam presentes,
como expõe o historiador Marcelo Bittencourt:

O longo período de expropriação a que haviam sido expostos impedia-os de agora


usufruir da igualdade jurídica. Os poucos que conseguiram tal feito eram em número
tão irrelevante que só confirmavam a discriminação (BITTENCOUT, 2006, p. 87).

Além de a desinformação facilitar o controle social, a falta de investimentos


educacionais teria em seu âmago um significado ainda mais perverso, uma vez que, sem
alfabetização, a exploração do trabalho braçal estaria automaticamente legitimada sob o
argumento de que os serviços “laborais” civilizariam aqueles incautos “indígenas”.

Paralelamente, nos anos de 1960 surgiu editoras que mantinham estreitas relações com
grupos ligados aos movimentos de pró-libertação das colônias africanas, como o MABLA, o
periódico Portugal Democrático e o Partido Comunista Português. O jornalista Miguel Urbano
Rodrigues aborda a iniciativa dos membros do MABLA e do periódico Portugal Democrático5
na divulgação de conhecimento sobre a África, além da atuação das editoras brasileiras, como
Anhembi, Civilização Brasileira, Arquimedes Editora, Felman-Rêgo, Brasiliense, ou mesmo de
órgãos institucionais, como Instituo Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos, ligado à Presidência

5
O periódico Portugal Democrático foi um jornal criado pela comunidade portuguesa residente no Brasil, em
especial em São Paulo e durou entre a década de 1950 a 1970. Ver SANTOS, 2014, p. 71 e SANTOS, 2010, p. 23.

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da República, na década de 1960, nos governos Jânio Quadros e João Goulart. Urbano
Rodrigues (2004a) também descreveu o apoio dado por essas editoras na divulgação das
atrocidades decorrentes do salazarismo.

Membro do MABLA, Paulo Duarte era à época editor chefe da revista Anhembi, além
de presidente do Comitê Brasileiro de Ajuda aos Refugiados de Angola (CBARA). Segundo
Urbano Rodrigues, ele conseguiu a edição do livro Quando os lobos uivam, de Aquilino
Ribeiro, que havia sido proibido de ser editado em Portugal e na França6. Vejamos um trecho
da carta que relata a questão da publicação deste livro:

Quando se soube em São Paulo que a PIDE proibira a venda do livro, procedendo à
sua apreensão, escrevi a Aquilino pedindo-lhe carta branca para lançar a obra no
Brasil. Ele concordou logo. A Difusão Européia do Livro, uma editora média de
grande prestígio, assumiu a responsabilidade pela iniciativa. Entretanto, a poucos dias
da data prevista para o lançamento, Monteil, o director e principal accionista da
editora, chamou-me e, envergonhado, contou que havia recebido pressões no sentido
de renunciar à publicação do livro de Aquilino Ribeiro. Motivo: a Difusão estava
comercialmente ligada à Bertrand e poderia daí resultar problemas. Não ficou claro
que pressões tinham sido exercidas sobre ele, nem qual a sua origem. Não tentei
aprofundar o assunto, porque o próprio Monteil havia já resolvido a questão principal.
O livro estava pronto; apenas faltavam a encadernação e a capa. Monteil falara com
Paulo Duarte e Quando os Lobos Uivam seriam apresentados sob a responsabilidade
da editora Anhembi (sic), dirigida por aquele destacado escritor e professor
universitário, um dos intelectuais brasileiros mais detestados pelo fascismo português
pelo seu combate permanente à ditadura de Salazar (RODRIGUES, 2004, p. 55).

A editora Difusão Europeia, citada por Urbano Rodrigues, teve em seus quadros
Fernando Correa da Silva7 e Vítor Cunha Rego8, este membro do Partido Socialista Português
(PSP) e fundador da editora Felman-Rêgo. A editora propunha justamente editar livros que não
conseguiam ser editados em Portugal, e divulgar aos brasileiros a luta encampada nas colônias
portuguesas9.

6
Dentre as reflexões de Urbano Rodrigues (2004a), o mesmo vislumbra a atuação da PIDE fora dos domínios
portugueses.
7
Depoimento de Fernando Mourão em sua residência em Caucaia do Alto, em 28/02/2010.
8
A professora Maria Hermínia Tavares aponta que Vítor Rego foi editorialista do OESP no período da década de
1960. Entrevista concedida por e-mail, em 24/03/2009.
9
A informação da criação da editora Felmam está baseada no depoimento de Fernando Mourão concedido em sua
casa, em 29/05/2009, e no livro de Urbano Rodrigues (2004, p. 55).

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Apesar de fazer parte da luta antisalazarista, Vítor Cunha Rego não era muito próximo
do PCP, como expõe Urbano Rodrigues, que ainda o notabiliza como um “franco atirador” 10.
Todavia, apesar da sua distância do PCP e do Portugal Democrático, em seus primeiros
trabalhos Vítor Rego editou A resistência em Portugal, de Amílcar Gomes Duarte, autor ligado
ao PCP. Este livro reunia breves textos sobre a luta do povo português contra o salazarismo11.

Além dos livros sobre a luta em Portugal, a editora Felman-Rêgo lançou a obra Angola
através dos textos (1967), uma antologia de ensaios destinada a ampliar o conhecimento sobre
as atrocidades cometidas pelos portugueses na colônia de Angola. Este livro conta com a capa
de Fernando Lemos12, artista plástico português que lutou contra o salazarismo e fez parte do
periódico Portugal Democrático e que, desde aquela época, reside em São Paulo. A capa tem o
rosto de duas crianças negras com olhares enigmáticos e, na orelha do livro, o seguinte poema
de Agostinho Neto:

Sons de grilhetas nas estradas


cantos de pássaros
sob as verduras úmidas das florestas
frescura na sinfonia adocicada
dos coqueirais
fogo
fogo no capim
fogo sobre o quente das
chapas de cayatte.
Caminhos largos cheios de gente,
cheios de gente
cheios de gente em êxodo de toda a parte
caminhos largos para horizontes fechados
mas caminhos
caminhos abertos por cima
da impossibilidade de braços.

Do poema “Fogo e Ritmo” (Agostinho Neto, apud REGO e MORAIS, 1962).

10
“Vitor assumira uma posição esquerdista de contornos pouco claros. Não ligava a qualquer organização maoísta,
mas perante as grandes questões internacionais definia-se antes de mais por um anti-soviético cuja fundamentação
teórica provinha sobretudo das teses chinesas” (RODRIGUES, 2004, p. 56).
11
“Em relação ao livro, Urbano Rodrigues evidencia que no Brasil poucos deram conta que o autor ocultava sob
um pseudônimo; os três pronomes eram os nomes que na clandestinidade usavam Sérgio Vilarigues, Pires Jorge e
Álvaro Cunhal. Somente alguns anos mais tarde, já em plena ditadura dos generais, foi revelado no Brasil que o
autor do trabalho fora o escultor José Dias Coelho, assassinado pela PIDE” (RODRIGUES, 2004, p. 56).
12
Registramos que Fernando Lemos, juntamente com Fernando Correa da Silva, o almirante Alfredo Moraes Filho
do Clube Positivista do Rio de Janeiro e Noémio Weniger vieram a montar uma editora infantil denominada
Giroflé. Depoimento Fernando Mourão em sua residência em Caucaia do Alto, em 28/02/2010.

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Os textos do livro de Rego e Morais (1962) incluem reportagens que foram


anteriormente publicadas em diversos periódicos, como o Portugal Democrático, Le Monde,
The Washington Post e Tribuna Livre; entrevista de líderes como Agostinho Neto, Mário Pinto
de Andrade e Viriato da Cruz; trechos de livros; resenhas dos livros de José Honório Rodrigues,
Brasil e África – outro horizonte, e de Basil Davidson, O despertar da África e The new
statesman, ambos de 1961, entre outros jornais e livros. Não obstante, havia documentos do
MPLA, como seu programa de 1961, que tinha como uma de suas principais metas a imediata
e completa independência de Portugal.

A pretensão do livro era a de informar ao público brasileiro o que acontecia além-mar.


Por isso, seus organizadores selecionaram variados textos da imprensa nacional e internacional,
além do próprio MPLA. O trabalho de 223 páginas era na realidade uma introdução temática
para o público leigo, o qual, muitas vezes, chegava a ignorar qual era a língua oficial falada em
Angola.

Como na década de 1950, os anos 1960 e 1970 não dissociavam arte e política. À época,
mesmo a arte menos engajada possível também era considerada política, como confirmam as
pesquisa de autores como Elio Gaspari (2003) e Zuenir Ventura (1989).

A editora Felman-Rêgo, que tanto apoiou a divulgação da situação sobre a guerra


anticolonial promovida pelo colonialismo português, também não deixou de lançar livros sobre
literatura. O poeta, artista plástico, arquiteto e que ex-deputado em Angola, Fernando da Costa
Andrade, membro do MABLA, teve seu trabalho de poesia editado por Vítor Cunha Rego. O
livro Tempo em Itália, de 1963, reúne vários poemas do período em que Costa Andrade esteve
exilado na Itália. Seus poemas são “odes” à independência de sua terra:

Não acredito
Que este povo que venera a Resistência
Seja contra a liberdade
(a liberdade não conhece a geografia do fascismo
a liberdade não conhece Franco e Salazar)
A liberdade é a raiz da Resistência:
Resistência italiana
cubana
ou argelina.
A Resistência de Angola.
Este povo está connosco (sic) eu sei
Mas não basta que eu o saiba.

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Confirmem-no os que podem claro e forte.


A vocação africana apregoada
Será depois uma verdade
Estreitando as nossas mãos.
(ANDRADE, 1963, p. 73).

O poema de Costa Andrade convoca o povo à “Resistência”, em maiúsculo, dizendo


justamente que a vontade de liberdade era maior que os regimes de cunho totalitário
mencionados, como o franquismo que solapou a Espanha até década de 1970, o fascismo, que
assolou a Itália até meados da década de 1940, e o próprio salazarismo, cujo regime Costa
Andrade conhecia muito bem e expressava em seus escritos.

A noite não é a mesma em toda a parte


Todos sabemos disso
Em Itália durou mais de vinte anos
Em Angola, bem diferente, dura há quinhentos anos.
Hoje à noite
aqui também é outra
Não tem Kissanges chorando
Nem incursões fascistas
Nem besugo contra angolano
(besugo à noite tem medo
de dia tem bombas napalm
pelotões de tortura
Capitães eichman
Besugo é como o rafeito)
(ANDRADE, 1963, p. 55).

Nesse poema Costa Andrade fala dos vinte anos de fascismo vivenciados na Itália, ao
se referir à duração da noite nesse país. Contudo, quando chama atenção para Angola, o caso é
mais grave, já que não fala somente do salazarismo, que vem desde 1928, mas refere-se a todo
período de colonização dos portugueses na África. Trata-se de uma longa trajetória que inclui
vários regimes políticos e processos históricos.

Levemos em conta os regimes políticos: inicialmente a monarquia, o período da


ocupação francesa bonapartista em Portugal, que originou o Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarves, quando Angola foi comandada do Brasil, passando pelo retorno da monarquia em
Portugal, à República, e o regime de exceção denominado Salazarismo, até 24 de abril de 1974,
com a Revolução dos Cravos, a noite colonial foi bem longa. Costa Andrade carrega em seus
versos quinhentos anos de exploração: seu poema vislumbra ainda os efeitos do napalm, das

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bombas jogadas em território angolano que mataram e mutilaram milhares de pessoas, além do
cometimento de diversas torturas.

O ponto de vista explorado por Costa Andrade chama atenção para duas visões do
processo colonial: uma que enfatiza que o “inimigo” era o salazarismo, e não o povo português;
outra que se contrapunha ao Estado português, englobando todo o período da colonização.
Livros recentes sobre a história de Angola enfatizam que a reação ao colonialismo não foi um
acontecimento próximo, mas assinalam que ela existiu em vários momentos, desde séculos
passados.

A orelha desse livro foi escrita pelo professor Fernando Mourão, que descreve as
qualidades artísticas de Costa Andrade, as quais, segundo ele, são perceptíveis desde o período
quando era aluno secundarista em Angola, tendo participado de diversos movimentos culturais,
além de, mais tarde, estudar na Escola de Belas Artes de Lisboa. No final dessa orelha, Mourão
faz-lhe um pedido:

Formulo um pedido ao poeta e ao amigo: ao abandonares o Brasil – agora para ti terra


de exílio – e antes que cantes o Grande Dia, não deixes de escrever Tempos Angolanos
no Brasil (Fernando Mourão apud ANDRADE, 1963).

Rodrigues (2004) relata ainda que, em 1964, com o golpe civil-militar, a editora Felman-
Rêgo acabou fechando e Vítor Cunha Rego saiu do país. O pesquisador afirma que à época
Rego estava traduzindo, do francês para o português, um livro de Lenin intitulado O
imperialismo, fase superior do capitalismo. No entanto, como fora visto anteriormente andando
pela editora com uma delegação chinesa, ele temia ser preso.

A Arquimedes Edições publicou no Brasil o livro Viragem (1967), do escritor Castro


Soromenho13. Na contracapa deste há uma foto do autor e a frase “é preciso dar este livro a ler

13
“Nascido, em 1910, em Vila de Chinde, Zambézia, Moçambique, era filho de Artur Ernesto de Castro
Soromenho, antigo Governador dos Distritos de Congo, Huíla e Moxico e Governador de Luanda (Angola) e de
Stella Fernançole de Leça Monteiro de Castro Soromenho, de família Caboverdiana. Em 1960, sua atividade de
oposição ao regime político levou-o a escolher o exílio e a instar-se em Paris, de onde partiu para os Estados
Unidos a convite da Universidade de Wisconsin, em 1961. Naquela Universidade fez parte da comissão
encarregada da seleção de material para curso de Língua Portuguesa e Literatura Luso-Brasileira, e regeu o curso
de Literatura Portuguesa durante a ausência do catedrático, Professor Machado Rosa, autor do convite. Depois de
seis meses nos Estados Unidos, Castro Soromenho regressou à França em agosto de 1961, passando por Barcelona.
Foi leitor de português e espanhol da casa editora Gallimard e colaborou na revista Présence Africane e Révolution
de Paris, dedicando-se também à investigação da literatura científica portuguesa a secção da África do Museu o
Homem, em Paris, sob orientação de Michel Leiris, investigador do Centre Nacional de La Recherche Scientique.

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a muita gente, é urgente conhecer as relações humanas de que ele traça um quadro inteiramente
verossímil” (SAROMENHO, 1967). A capa tem uma imagem de mulher negra com seios
despidos e com um colar14.

A orelha desse livro foi escrita pelo professor Fernando Mourão, que corteja a obra
como uma grande contribuição para a literatura africana. Ele desenvolveu na Universidade de
São Paulo a sua dissertação de mestrado em sociologia, a qual foi, posteriormente, editada e
publicada como o livro A sociedade angolana através da literatura (1978). A obra desmistifica
a construção que o colonizador fizera sobre as colônias e as limitações da ação dos brancos,
trazendo o que ele chama de “África real”. Na apresentação da obra de Castro Soromenho,
Mourão escreveu o seguinte:

O homem negro, esse grande desconhecido da maioria do público europeu, é


apresentado ao leitor como um ser com a sua própria cultura com as suas riquezas e
misérias. O negro e a África não são cenários na obra de Castro Soromenho. Pelo
contrário é o fulcro de toda a sua obra – Mas Castro Soromenho não é um negro?
Exclamou um dia o poeta Leopold Segnhor. Para o presidente – poeta era lhe difícil
aceitar a idéia que o autor da Terra Morta e de tantas outras obras fosse um branco!
Murique, esse filho do Cuango conservou a sua personalidade de negro e acaba
endoidecendo. O desespero por vezes toma Paulina e o Alves. Sós e isolados, todos
eles num meio inóspito. Inóspito para brancos e mesmo para os negros agora
incapazes de o dominar como outrora quando eram senhores da terra que os
“germinava” e alimentava, essa terra de que soba Calendende levava “a saudade de
seu país perdido (Fernando Mourão apud SOROMENHO, 1967).

Dando continuidade ao debate sobre as trocas no âmbito da literatura e a presença de


editoras neste processo, ainda temos o registro da participação de grandes editoras como a
Civilização Brasileira e Brasiliense. A primeira foi responsável pela a edição de um clássico
dos estudos sobre as relações entre Brasil e África, o livro de José Honório Rodrigues, Brasil e

Em dezembro de 1965, parte para São Paulo, Brasil. Na Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade
de São Paulo e no Centro de Estudos Africanos, regeu os cursos de Introdução à Sociologia da África Negra, em
1966; Sociologia da África Negra, entre 1967 e 1968, bem como um curso livre de Sociologia Negra na Faculdade
de Filosofia, Ciência e Letras de Araraquara, durante um semestre. Castro Soromenho faleceu em São Paulo, a 18
de junho de 1968. No Brasil publicou um romance, A chaga, publicada posteriormente pela Editora Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1970, 189 páginas, segundo de uma trilogia começa com Viragem e que ficou por
terminar (MOURÃO, 1978, p. 123). Sobre a vinda de Castro Soromenho para o Brasil, o professor Mourão relatou
que ele teve a colaboração de dois portugueses exilados no país, Adolfo Casais Monteiro e o capitão João Sarmento
Pimentel, que conseguiram uma permissão especial de visto para Castro Soromenho e sua família, de Paris para o
Brasil, por meio do Chefe da Casa Civil do Presidente Castelo Branco, Luís Viana Filho. Essa informação foi
obtida por meio de entrevista realizada no dia 01/03/2010, em Caucaia do Alto, SP.
14
Foto colhida no documentário feito sobre o livro, intitulado A maravilhosa viagem de Castro Soromenho,
publicado em Portugal (SOROMENHO, 1967).

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África: outro horizonte (1961), que até hoje serve como base para os estudos sobre o continente
africano.

Essa mesma editora lançou o livro do médico angolano, Américo Boavida, intitulado
Angola cinco séculos de exploração portuguesa (1967). Urbano Rodrigues descreve em seu
livro como se deu a publicação daquela obra no Brasil:

[...] na época em que o MPLA tinha o quartel-general em Leopodville, eu mantivera


correspondência com Américo, um dos responsáveis pelos serviços médicos da
MPLA. Situações complexas, ligadas a problemas que o Movimento enfrentou pouco
depois, atiram o jovem médico angolano – irmão do futuro ministro Diógenes Boavida
– para Barcelona. Quando, após um intermezzo em Rabat, entrou em Angola
clandestinamente para reintegrar na luta descobrimos ambos que o sentimento nascido
do diário epistolar evoluíra. Éramos amigos. Um dia recebi um manuscrito seu
acompanhado de uma pergunta: haveria alguma possibilidade de aquilo aparecer em
livro no Brasil? A resposta não tardou muito. O trabalho, com prefácio meu, foi
editado pela Civilização Brasileira e apresentado em São Paulo numa sessão em que
embaixadores de três países africanos – Argélia, a Síria e o Egipto – (sic) autografaram
exemplares em nome do autor, que se batia, em lugares, nas savanas de Angola, contra
o colonialismo português denunciado nas páginas da sua obra. As comunicações eram
morosas. Passaram meses antes que recebesse uma carta comovia de Américo. Eram
muito diferentes das anteriores. Ele informava que recebera na Zâmbia, após longa
viagem meia dúzia de exemplares do seu livro num dia em que trabalhavam ali com
Agostinho Neto. A alegria e a surpresa foram tamanhas que improvisaram uma dança
(RODRIGUES, 2004, p. 63).

Américo Boavida, que foi um grande expoente da luta anticolonial, acabou sendo morto
no campo de batalha15. Deolinda Rodrigues, que foi uma militante do MPLA e é considerada
heroína em Angola, relatou que, quando aluna secundarista em Luanda, teve a oportunidade de
assistir a uma palestra de Boavida. A palestra teve como objetivo discutir sobre os males do
colonialismo e organizar a juventude protestante de Angola. Boavida foi o organizador do
Corpo Voluntário Angolano de Ajuda aos Refugiados (CVAAR). Com a colaboração de outros
médicos, entre eles, João Viera Lopes, Edmundo Rocha e tantos outros, acolheram os
refugiados angolanos no Congo, prática que inspirou o Comitê Brasileiro de Ajuda a
Refugiados Angolanos (CBARA).

Seu livro, como o próprio título sugere, é uma denúncia aos cincos séculos de exploração
colonial, abordando o assunto envolvendo as questões econômicas, políticas e sociais entre

15
No dia 25 de setembro de 1968, três helicópteros da Força Aérea Portuguesa metralharam durante quase duas
horas um acampamento do MPLA no Moxico, destruindo com tapetes de bombas as instalações hospitalares dessa
base (RODRIGUES, 2004, p. 65).

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Portugal e Angola. O prefácio escrito por Urbano Rodrigues exalta a falta de conhecimento dos
brasileiros sobre África. Escrita por Edson Carneiro16, a orelha elencou diversos fatos que
denunciam o anacronismo do colonialismo português, como o artigo 106 da Constituição
portuguesa, que permitia ao Estado forçar os “indígenas” a trabalharem em serviços públicos
de interesse geral da coletividade. Também denuncia a administração angolana por
“arrebanhar” nas aldeias, negros fisicamente aptos para trabalhar nas minas da Rodésia e da
África do Sul, segundo Boavida (1967), em torno de 160.000 por ano. Importa mencionarmos
ainda o extermínio por napalm, que matou mais de 300.000 angolanos naquele período.

O prefácio e a orelha do livro permitem inferir o conteúdo de denúncia do regime


salazarista, que o autor desenvolve ao longo da sua obra. Na época da sua publicação do livro
teve ampla repercussão na imprensa portuguesa e, segundo Urbano Rodrigues (2004), o autor
e a obra foram injuriados pela Voz de Portugal e o Mundo Português, que faziam apologia ao
regime salazarista.

A Brasiliense, editora do historiador e intelectual brasileiro, Caio Prado Junior, também


editou livros relacionados à África. Urbano Rodrigues aponta que o livro A guerra em Angola,
de Mário Moutinho de Pádua, foi “o primeiro e pungente relato dos crimes cometidos pelo
exército português no norte de Angola no ano de 1961” (RODRIGUES, 2004, p. 57). A
repercussão deste livro no meio estudantil foi bastante intensa e causou choque, já que o livro
trazia em minúcias os horrores da guerra.

Das várias iniciativas editoriais descritas por Urbano Rodrigues, uma que não deu certo:
o livro de Basil Davidson sobre a luta na Guiné-Bissau, que foi escrito a partir de uma viagem
realizada pelo próprio autor às selvas da então colônia. Urbano Rodrigues conta que a obra
agradou tanto que escreveu a Amílcar Cabral e Basil Davidson, sugerindo a sua publicação no
Brasil – após negociações e o pagamento antecipado de mil dólares do PAIGC pela edição
brasileira, que assegurava ficar com certo número de exemplares.

Ênio da Silveira escreve uma carta ao Urbano Rodrigues, na qual diz: “não esqueço o
choque e a amargura sentido quando recebi a carta de Ênio da Silveira, impregnada de tristeza

16
Edson Carneiro é citado por Marcelo Bittencourt (2006, p. 101) como membro do comitê de solidariedade ao
povo angolano. E também num documento da Secretária de Relações Exteriores, que vai ser trabalhado no segundo
capítulo deste livro.

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e vergonha, informando que a edição inteira, imprensa em São Paulo na gráfica da Brasiliense,
havia sido destruída”17.

Ao folhear o livro, o filho mais novo de Caio Prado, em uma decisão repentina, mandou
picotar todos os exemplares. Urbano Rodrigues relata a intensificação da repressão do regime
civil-militar, todavia, diz a que era ainda dúbia. Embora censurassem obras contra o regime
brasileiro, toleravam escritos anticolonialistas18.

Dentre as publicações desse período, também destacamos a do embaixador negro


Raymundo Souza Dantas que serviu em Gana e publicou pela editora Leitura S.A, o livro África
difícil (1965). O livro aborda o período de dois anos da atuação do autor como embaixador em
Gana, o qual expõe, a partir das anotações do seu diário, suas impressões sobre o continente.

Ressaltarmos também que as publicações de órgãos do Estado também eram comuns,


pois, antes de Raymundo Dantas, o Instituto Brasileiros de Estudo Afro-asiáticos (1961), órgão
ligado à presidência da República, publicou diversas obras. Moacir Werneck de Castro escreveu
Dois caminhos da revolução africana (1962), livro que foi editado pelo IBEAA. Werneck de
Castro, que era membro do Instituto, escreveu essa obra quando foi à África a serviço do jornal
Última Hora, do Rio de Janeiro, onde trabalhava como redator-chefe. Ele dedica a obra a Mário
de Andrade, líder do MPLA, e também a Mário de Andrade, escritor brasileiro:

A Mário de Andrade, intelectual e combatente pela liberdade de Angola, terra


irmã. Á memória de Mário de Andrade, o brasileiro, a quem um dia se fez
sentir o “vento violento / que arrebenta dos grotões da terra humana / exigindo
céu, paz e alguma primavera!” (CASTRO, 1962, p. 34).

Sobre a viagem19 que fez para a África, Werneck de Castro nos conta que planejava
passar por Senegal, Guiné, Gana, Nigéria e Congo, porém, quando estava em Dakar, em agosto
de 1961, Jânio Quadros renunciou à presidência, fato que o levou a interromper o planejamento.
A renúncia pegou a todos de surpresa, pois o presidente Quadros estava implantando uma
política de aproximação do continente africano e, para isso, havia criado o IBEAA, onde
Werneck de Castro editou sua obra. Todavia, durante o período que permaneceu no continente,

17
Id. Ibid, 2004, p. 60.
18
Cumpre observarmos que Urbano Rodrigues (2004, p. 61) diz que a real causa da destruição do livro de Davidson
fora uma crise de doença mental, ainda mal diagnosticada, de que o moço sofria.
19
A que permitiu que participasse do voo inaugural da linha Panair, do Brasil para o Cairo.

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Castro conseguiu entrevistar os principais líderes africanos envolvidos na luta pela


independência. Entrevistou Gamal Nasser, líder e depois chefe de Estado do Egito, Mamadou
Dia, que foi primeiro ministro de Senegal, Kwame Nkruamah, presidente de Gana, e Mário
Pinto de Andrade, líder do MPLA.

Na entrevista a Mário Pinto de Andrade, o líder do MPLA falou sobre suas atividades
como secretário da revista Présence Africaine, editada em Paris, na qual, sob o pseudônimo de
Buanga Fele, escreveu “O que é o lusotropicalismo?”, artigo que denuncia a segregação e a
assimilação como estratégias políticas utilizadas pelo poder colonial para assegurar seus
privilégios sobre a população colonizada. Entrevista “profética”, haja vista que Mário Pinto de
Andrade acreditava que o conflito poderia tomar contornos internacionais, principalmente
porque países como a África do Sul, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, esses dois últimos
ligados à OTAN, tinham interesses geoeconômicos em Portugal e em suas colônias. Trata-se
de fatores que logo após se descortinaram, como Kenneth Maxwell discorre em seu livro:

torna-se crucial para a guerra naval no Atlântico durante a Segunda Guerra Mundial,
e Salazar manobrou em proveito de Portugal a necessidade que os Aliados tinham de
conseguir permissão para que eles, e não os alemães usassem o local como base militar
[trata-se de uma base aérea militar]. Durante a guerra, os britânicos, invocando os
antigos tratados anglo-portugueses, haviam tentado estabelecer instalações militares
no arquipélago para combater a atividade naval alemã no Atlântico, e estavam
dispostos a tomar os Açores caso Salazar persistisse em negar-lhes uma base ali.
Churchill chegou a dar um ultimato a Salazar. Finalmente as negociações, boa parte
delas conduzidas por Humberto Delgado pelo lado português, foram bem-sucedidas e
Salazar aquiesceu em agosto de 1943. Os americanos conseguiram acesso às
instalações dos Açores sob a égide da aliança britânico-portuguesa, mas nas
negociações chefiadas por Geroge Kennann, Charge d`affaires em Lisboa. Salazar
obteve uma crucial compensação de Washington: o compromisso de que, em troca do
acesso à base açoriana, os Estados Unidos respeitariam a integridade territorial das
colônias portuguesas (MAXWELL, 2006, p. 76-77).

Voltando às produções realizadas pelo IBEAA, também há o livro Senhor em diálogo


(1965), editado logo após o golpe civil-militar do Brasil. A publicação decorre de um debate
promovido pelo IBEAA na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 26 de
setembro de 1964. A mesa de conferencistas contou com a presença do presidente do Senegal,
do senador Afonso Arinos (que, no período do presidente Jânio Quadros, foi Ministro das
Relações Exteriores), Pr. Fernando B. de Ávila e o professor Cândido Mendes, que depois viria
a fundar a Universidade Cândido Mendes.

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O debate circundou, sobretudo, acerca dos desafios sofridos pelos países de terceiro
mundo e da necessidade da união dessas nações. A mensagem deixada pelo IBEAA foi expressa
por Arinos, quando coloca que

está certo de, no exercício de suas especificas finalidades nos quadros das instituições
oficiais do país, trazer a público um autêntico diálogo, aberto à nova perspectiva
histórica, africana e brasileira (ARINOS, 1965, s/p).

Os livros destacados nessa pesquisa têm como objetivo apresentar um panorama


abrangente do que foi publicado sobre o assunto entre as décadas de 1960 e 1970. Identicamente
eles mostram que, além da imprensa, as editoras também cumpriram um papel significativo
para a informação dos brasileiros sobre o que se passava na África, pelo menos acerca das partes
representadas pelos colaboradores africanos e portugueses que se exilaram no Brasil, bem como
os brasileiros que apoiaram tais manifestações.

Os centros de estudos africanos no Brasil

No interstício das décadas de 1950 e 1960 assistimos ao surgimento de centros de


estudos africanos no Brasil, importantes instituições voltadas para estimular a produção e a
divulgação de conhecimentos sobre o continente africano em nosso país.

O primeiro desses centros foi criado em setembro de 1959, na então Universidade da


Bahia (atual UFBA), antes mesmo da política de aproximação do continente africano, efetivada
poucos anos depois pelo presidente Jânio Quadros.

O CEAO [Centro de Estudos Afro-orientais], embora tenha sido lançado num


ambiente de cumplicidade com o colonialismo português, tomou, desde logo, um
rumo em direção a uma África descolonizada e a uma interação com a comunidade
negra da Bahia. A sua atuação pioneira vai se fazer sentir, principalmente, a partir do
governo Jânio Quadros (CONCEIÇÃO, 1991, p. 84).

A oportunidade da criação do centro surgiu no contexto da realização do IV Colóquio


Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, tendo como animador da ideia o professor português
Agostinho da Silva, desde há muito afeito às realidades africanas. Apoiado institucionalmente
pelo reitor Edgar Rego dos Santos, Agostinho da Silva foi o seu primeiro diretor e teve como

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colaboradores mais próximos Vivaldo Costa Lima, Waldir Freitas de Oliveira e o casal
Guilherme Souza Castro e Yeda Pessoa de Castro20.

Potenciais mercados consumidores, os jovens países africanos eram cobiçados pelos


projetos do governo Jânio Quadros, que passou a apoiar as iniciativas do CEAO.

Incentivado pela política africana dos governos Jânio Quadros e João Goulart, o
CEAO foi pioneiro em vários aspectos no exercício da cooperação do Brasil com a
África. A ele coube acolher os dois primeiros grupos de bolsistas africanos, chegados
ao Brasil através de um programa de intercâmbio iniciado no governo Quadros, e
ministrar cursos intensivos de língua portuguesa e cultura brasileira (CONCEIÇÃO,
1991, p. 87).

Chegados em 1961, o primeiro grupo de intercâmbio de africanos foi composto por


quatorze estudantes oriundos majoritariamente de países da África Ocidental21. Dentre eles
destacamos a presença do camaronês Paul Étame Ewane, que estudou na USP até a obtenção
do grau de mestre em sociologia22, e do guineense Fidélis Cabral D`Almada, que se formou em
direito pela Universidade de São Paulo. Ambos, juntamente como Fernando Mourão,
contribuíram para a formação do Centro de Estudos Africanos da USP, do qual trataremos a
seguir.

No governo Jânio Quadros foi criado o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos


(IBEAA), órgão que esteve ligado diretamente à presidência da República. Para o primeiro
diretor do Instituto, Eduardo Portela, seu objetivo era conhecer melhor o continente africano,
conforme preconizava o governo Quadros. O Instituto foi criado a partir da inspiração da
Conferência de Bandung23 e tinha por função colaborar com o Itamaraty no planejamento das
relações entre o Brasil e os países da África e da Ásia.

20
Sobre a criação do CEAO, ver OLIVEIRA JUNIOR, 2010.
21
“As dificuldades em se relacionar com as áreas colonizadas por Portugal revelaram-se em outro empreendimento
pioneiro inaugurado pelo Centro: o intercâmbio de estudantes africanos com instituições universitárias brasileiras.
Dos quatorze primeiros estudantes africanos chegados à Bahia em 1961, apenas um era proveniente de uma colônia
portuguesa – Cabo Verde. Apesar da desproporção, o ineditismo da chegada dos estudantes ao Brasil concretizou-
se pela existência de um clima favorável para as relações exteriores com os países do terceiro mundo” (OLIVEIRA
JUNIOR, 2010, p. 205).
22
Segundo Fernando Mourão, ele estudou na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Depoimento colhido
em 19/01/2010, Caucaia do Alto – SP.
23
Vemos que quando as ex-colônias iniciaram o processo de independência, aconteceu a Conferência de Bandung
em 1955. Nesta conferência as nações africanas e asiáticas colocaram-se como não alinhadas a correntes
ideológicas, portanto, não seguiriam Socialismo (URSS), nem o Capitalismo (EUA) (SANTOS, 2018, p. 232).

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Outro diretor do IBEAA foi Cândido Mendes, que permaneceu no cargo até a
implantação da ditadura civil-militar. Segundo o professor José Maria Nunes Pereira da
Conceição, o lobby português junto ao governo “esmoreceu” as intenções do Instituto.

Outra instituição congênere foi construída na Universidade de São Paulo e ficou


conhecida como Centro de Estudos Africanos (CEA). Os principais empreendedores do projeto
foram o professor Fernando Mourão com o apoio dos professores Ruy Coelho e Eurípides de
Paula, contando com ajuda inicial de africanos que estudavam na USP.

Sua estruturação se deu por etapas. Na primeira etapa, em 1965, ainda com o nome de
Centro de Estudos e Culturas Africanas (CECA), a entidade esteve ligada à cadeira de
Sociologia II, do professor Ruy Coelho. Somente em 1969 o órgão obteve autorização para o
seu funcionamento e adquiriu o nome atual. Diferentemente dos demais centros mencionados
até então, que tinham como escopo de suas pesquisas as áreas dos estudos asiáticos, afro-
brasileiros e étnico-raciais, o CEA desde a sua fundação sempre lidou exclusivamente com
temáticas africanas.

Por último24, em 1973, houve no Rio de Janeiro a criação do Centro Afro-Asiático


(CEAA). A implantação deste Centro foi, na realidade, a retomada da iniciativa do IBEAA,
interrompida em 1964 pelo regime civil-militar, adaptada à estrutura de uma instituição privada,
o Centro Universitário Cândido Mendes. Aquele era um período de estreitamento das relações
do regime civil-militar com a África, inaugurado pela visita do ministro das relações exteriores
Mário Gibson Barboza ao continente um ano antes.

O CEAA foi criado por José Maria Nunes Pereira da Conceição e Cândido Mendes.
Cândido Mendes que, como descrito em linhas anteriores, fez parte do IBEAA, foi assessor
técnico do presidente Jânio Quadros, e visitou vários países africanos, tendo tido contato com
Leopold Senghor, Kwane N`Krumah e Julius Nyrere. Tais contatos foram de suma importância
para o desenvolvimento das relações posteriores do CEAA.

24
José Maria aponta que na década de 1970 ainda havia o Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos, da Universidade
Estadual de Londrina, pouco atuante por falta de recursos (CONCEIÇÃO, 1991, p. 10).

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Considerações Finais

Simultaneamente, em cada margem do Atlântico Sul, grupos de jovens intelectuais se


propuseram a promover e difundir cultura e granjearam ação política. Esta esteve presente nas
organizações e instituições por meio das quais, a partir da década de 1950, se firmou o
intercâmbio entre esses intelectuais, assaz proveitoso para ambos os lados: ao colocar
conhecimentos em circulação, o que à época era proibido pelos órgãos de censura salazaristas,
o intercâmbio ajudou tanto na organização da luta emancipacionista em Angola, como no
incremento dos estudos africanos no Brasil.

A ambiguidade da recepção da imagem do Brasil pelos angolanos marcou a passagem


de manifestações nativistas, para uma postura marcadamente anticolonial. Pois, a exemplo da
moderna literatura daquele país, que também havia sido colonizado no passado, era dotada de
expressão própria mesmo que em língua portuguesa, e serviu de inspiração para que os jovens
intelectuais de Angola fomentassem sua angolanidade.

Porém, enquanto aqueles intercâmbios se firmavam, o discurso luso-tropicalista foi


adotado pelo império português. Essa adoção pretendia legitimar a continuidade do
colonialismo português na África, com a promessa de promover ali “novos Brasis”.
Desmascarado por Buanga Fele (Mário Pinto de Andrade), foi justamente contra esse ideário
que a maioria dos novos intelectuais de Angola passou a lutar pela emancipação, agora não só
cultural, mas também política, do seu país.

Por meio da análise das obras dos membros do MNIA publicadas na revista Sul,
pudemos verificar sua heterogeneidade discursiva, além dos diferentes rumos tomados por cada
um deles a partir da década seguinte, ou seja, no começo da luta anticolonial. A abordagem
biográfica nos permitiu ampliar as perspectivas de uma mesma realidade, seja sobre um mesmo
objeto de estudo, ou sobre um determinado contexto histórico, rompendo com as leituras
capitaneadas por categorias generalistas e abrangentes.

De maneira geral, a passagem da década de 1950 para 1960 foi marcada pelos processos
de independência entre os países africanos. Não por acaso, 1960 ficou conhecido como “o ano
da África”, já que desde o início da descolonização até aquele ano, vinte e uma nações haviam

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conquistado a sua independência. Aquela onda de descolonizações inspirava desígnios


emancipacionistas que, em 1961, consumou-se dentre os territórios dominados pelos
portugueses, com o início da guerra anticolonial. Foi este o contexto do estabelecimento do
MABLA, um período marcadamente anticolonialista, do qual as mútuas colaborações entre
angolanos e brasileiros da década anterior teriam sido decisivas para a sua organização e
posterior atuação.

Também evidenciamos que, a partir da década de 1960, uma série de editoras brasileiras
passou a produzir livros sobre o continente africano. Com temáticas variadas, essa produção
versava desde denúncias sobre o colonialismo, passando pelas histórias e literaturas africanas,
bem como a divulgação da literatura brasileira em solo africano. Nos chama atenção que,
somente em 2003, diante da promulgação da lei 10.639, houve um retorno do interesse editorial
por esses assuntos no Brasil. Sucedeu, então, um hiato de aproximadamente quarenta anos na
produção sistemática sobre esses temas.

A breve apresentação do histórico dos centros de estudos africanos no Brasil justifica-


se, pois, por seu intermédio, demonstramos a proximidade que essas instituições tiveram com
as mobilizações pró-independência das colônias africanas. Seus atores são constantemente
mencionados como partícipes das lutas que levaram à conscientização da necessidade das
independências das colônias africanas. Percebemos uma linha tênue que separa esses centros
de uma militância pró-independência: eles surgiram naquele momento para contribuir, não só
para ampliar os rarefeitos conhecimentos sobre o continente africano, mas também para reunir
pessoas inconformadas com a manutenção do jugo colonial português na África.

Nossas pesquisas mostraram o quão frutíferos foram os intercâmbios intelectuais e


institucionais angolano-brasileiros realizados em meados do século passado. Num presente
marcado pelo anseio de descolonizar os saberes, o incremento às relações sul-sul poderá ser
uma saída importante para colocar-nos diante de outros pontos de vista, compartilhando nossas
experiências, buscando alternativas aos novos colonialismos-imperialistas que nos regem
hodiernamente. O resgate e o exame daquelas iniciativas do passado expõe a ausência de
intercâmbios político-culturais que poderiam ser realizados hoje, em detrimento da pluralidade
dos meios tecnológicos disponíveis e das condições políticas atuais, comparativamente, mais
favoráveis.

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Revista de Teoria da História — Volume 22, Número 02, Dezembro de 2019


Universidade Federal de Goiás — ISSN: 2175 - 5892
RTH Página | 211

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