Revista Iberografias Nº 19
Revista Iberografias Nº 19
Revista Iberografias Nº 19
be
ro
gra
fi
as
Revista
de estudos
ibericos
fi
chate
c
ni
ca
Coordenação deste número
Rui Jacinto
Alexandra Isidro
Apoio à Coordenação
Ana Margarida Proença
Impressão
Marques & Pereira, Lda
Edição
Centro de Estudos Ibéricos
Rua Soeiro Viegas, 8
6300-758 Guarda
[email protected]
www.cei.pt
ISSN: 1646-2858
Depósito Legal:
231049/05
novembro 2023
RUI JACINTO*
*
Centro de Estudos Ibéricos e Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território.
10 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
***
A nível editorial, como já foi referido, foram lançadas três publicações, com
a chancela do CEI-Âncora, duma série e preparação, que vão ficar associada às
comemorações do Centenário de Eduardo Lourenço:
14 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
(i) Vida Partilhada. Todos nós Ibéricos, a versão ampliada da edição Vida Parti-
lhada. Eduardo Lourenço, o CEI e a cooperação cultural (2013), que acrescenta
nove ensaios, posteriormente publicados por Eduardo Lourenço, aos 30 tex-
tos inicialmente dados à estampa;
(ii) Eduardo Lourenço: uma bibliografia (1923-2020), obra que compila todos
os textos publicados desde 1943 até à data da sua morte (2020). Sem pre-
tender ser uma lista definitiva, porquanto é bem possível que existam muitos
outros textos publicados, este repertório constitui uma ferramenta muito útil
para todos os pesquisadores que desejem começar a estudar a obra de Eduar-
do Lourenço.
(iii) Iberografias ― Revista de Estudos Ibéricos, dedica o Nº 19 (2013) a Eduardo
Lourenço, apresentada como uma edição especial, temática, sobre a obra e o
pensamento de Eduardo Lourenço.
***
Não há razão para Eduardo Lourenço não dialogar com seus companheiros de
jornada e de vida, com os escritores mais representativos da sua geração cujos
romances prefaciou e respetivas obras estudou com profundidade, como mostra
O Canto do signo. Impõe-se, pois, retomar um diálogo nunca interrompido como
procuramos estabelecer neste número com Aquilino Ribeiro, Carlos Oliveira, Eu-
génio de Andrade, Fernando Namora, Miguel Torga e Vergílio Ferreira. Este frater-
no convívio não só continua a conversa com interlocutores prediletos como define
com mais precisão os nós estruturantes da geografia literária da Beira.
A leitura enriquecida das várias unidades espaciais onde centrarem algumas
das suas obras não proporciona apenas uma reinterpretação mais assertiva da
Beira como permite olhar para a região com olhos de futuro. E, nesta perspetiva,
o contributo de Eduardo Lourenço não pode ser dispensado. O Roteiro Eduardo
Lourenço, como é dito no texto respetivo, prossegue três objetivos fundamen-
tais:
― Territorializar um pensamento desterritorializado. Certos que a obra e o
pensamento de Eduardo Lourenço, apesar de ser eminentemente desterri-
torializado, não deixa de conter em muitos ensaios uma geograficidade que
importa descodificar e interpretar.
― Cartografar uma geografia vivida: lugares de memória, memória dos lu-
gares. O itinerário da vida de Eduardo Lourenço é pontuado por lugares,
cidades e universidades, onde nasceu (S. Pedro de Rio Seco/Almeida), por
onde passou e ensinou, onde existem Cátedras com o seu nome, universi-
dades que o distinguiram com Doutoramentos “honoris causa”, instituições
por onde dispersou o seu espólio, localizadas na Guarda, em Coimbra e em
Lisboa.
― Estruturar um Roteiro Eduardo Lourenço: do património cultural ao turismo
literário. O território Lourenciano é disperso, tem origens em S. Pedro de Rio
Seco (Almeida), passa por Guarda e Coimbra, lugares que definem um eixo
que atravessa a Região Centro segundo uma diagonal que vai da fronteira ao
litoral. Coimbra foi um cais de partida que levaria Eduardo Lourenço a percor-
rer Mundo, de Vence a Salvador da Bahia, de Hamburgo a Lisboa.
ROTEIRO
EDUARDO LOURENÇO:
ROTAS LITERÁRIAs,
ITINERÁRIOS CULTURAIS
GEOGRAFIAS LITERÁRIAS E LITERATURAS
GEOGRÁFICAS: ESPAÇO, NARRATIVA E
SER*
INTRODUÇÃO
“A literatura e as artes não são meros instrumentos de apoio para o estudo e o
conhecimento geográfico, na verdade fundamentam o conhecimento do
ser-no-mundo, ou seja, do que trata em essência a geografia.”
Werther Holzer (2020: 144)
*
Texto originalmente composto como base da Aula Inaugural do Programa de Pós-Graduação em Cultura e
Sociedade da Universidade Federal do Maranhão, São Luís, Maranhão (Brasil), proferida no dia 16 de agosto
de 2010. A presente versão foi ampliada e revisada para esta publicação.).
**
Professor Associado da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
Limeira, São Paulo (Brasil). [email protected].
22 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
GEOGRAFICIDADE E LITERACIDADE
Se é necessário repensar a forma de relacionamento entre Geografia e Li-
teratura, precisamos começar situando-as nos termos próprios desta reflexão.
Vamos começar pela geografia. Não a ciência, com letra maiúscula, conheci-
mento moderno sistematizado e institucionalizado a partir do século XIX. Atual-
mente, quando se fala em conhecimentos geográficos, há os detentores e os não
detentores deste conhecimento. Há legislações que determinam quem pode e
quem não pode ser chamado de geógrafo e de geógrafa. Há cátedras e títulos
de doutorado.
Mas deixemos isso tudo de lado. Vamos pensar na geografia enquanto parte
do mundo, antes de Humboldt, Ritter, Ratzel ou La Blache nascerem. Que geo-
grafia seria essa?
Para alguns, a pergunta correta seria se havia geografia. No entanto, pode-
mos deixar de lado este ceticismo do mito fundador. Nenhuma Ciência surge
do vazio. Sua sistematização é sempre uma reação, retardada, ao mundo. Nem
vamos perder tempo tentando identificar quem foi o primeiro geógrafo. Se Heró-
doto e a ideia de diferenciação de áreas, ou Aristóteles e sua geografia física, ou
Ptolomeu e sua análise matemática do espaço terrestre, ou ainda Heráclito com
sua preocupação original sobre a influência do clima sobre os homens (isso se
mantivermos a perspectiva centrada no Ocidente).
Por que não vale perder tempo com tudo isso? Porque a geografia faz parte
do mundo. Ela não é meramente o que homens pensantes, utilizando a razão e O
método delinearam como um campo de conhecimento a ser produzido e repro-
duzido. A geografia é uma das dimensões da existência.
Esta compreensão, defendida de maneiras diferentes por autores distintos,
encontra em Éric Dardel (2011) talvez sua mais sensível formulação. Sua ideia de
geograficidade, essência do modo-de-ser geográfico, implica que o geográfico
não é apenas uma episteme, mas é o modo de ser-e-estar-no-mundo. Ser e mun-
do, portanto, seriam geográficos, tanto quanto são históricos, culturais, sociais, e
assim por diante. Não há como se furtar, pois somos sendo geográficos.
Isso significa que o conhecimento sistemático geográfico, a Ciência que sur-
ge do grande período de fragmentação dos saberes (séculos XIX e XX), é uma
Ciência que se refere a uma dimensão essencial do Ser. Não é por acaso isso.
Geograficidade, enquanto modo do ser-no-mundo, é a forma própria e inaliená-
vel da nossa experiência e existência. Se a Modernidade e a busca racional por
padrões aparentemente ofuscaram esta dimensão da existência, isto ocorreu
somente em determinados planos. Não há conhecimento geográfico que não se
refira, mesmo que marginalmente, à geograficidade.
Husserl (2012) havia sinalizado isso quando fez sua crítica à objetivação da
Ciência Moderna, mostrando que mesmo as Ciências da Natureza estão
24 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
no mundo (Marandola Jr. 2010). Similarmente, não poderia haver geografia que
não seja literária. Ou não? Se ambas estão no mundo, sendo constituintes do
mundo e, portanto, da existência, elas têm que estar no mesmo patamar.
Então, por que é mais simples percebermos a geografia na literatura, e não
a literatura na geografia? Não deveria ser ponto pacífico a composição de geo-
grafias literárias tanto quanto de literaturas geográficas? Por que a Geografia
tem conseguido escapar da Literatura enquanto a Literatura não pode se furtar
ao geográfico?
Creio que seja a diferença entre a adoção de um discurso científico e de uma
orientação artística, voltada para a expressão/criação cultural. Até o momento
em que a geografia não se sistematizou como Ciência, mantinha uma literacida-
de latente. Todo relato de naturalista ou de viajante ocidental até o iluminismo
era ao mesmo tempo geográfico, histórico e literário. Não se podia identificar
tal divisão, pois ela simplesmente não existia. A Geografia, ao aspirar para si o
estatuto científico providenciou o expurgo dos traços literários que lhe eram pe-
culiares e inerentes. Aliás, alguns geógrafos já afirmaram, como Milton Santos,
que este foi o grande erro da Geografia: decidir ser Ciência em vez de Arte.
Já a Literatura permaneceu enquanto ficção, embora vários movimentos ar-
tísticos tenham defendido o realismo, ou a aderência lógica e racional ao plano
do mundo material. Mas é interessante notar que a teoria e a crítica literárias se
constituíram marcando-se como não-ficção: assumindo uma linguagem austera
e técnica, tentando não se “contaminar” com a literacidade, própria da literatura.
Compagnon (2014) revisita esta discussão no capítulo “O mundo”, de seu “O
demônio da teoria”. O autor repercorre a historicidade da discussão da mimesis,
buscando mostrar que entre os diferentes posicionamentos que a celebraram
como criação ou a condenaram como mera ilusão, um dos pontos fulcrais da
discussão se refere à referencialidade. Dito de outro modo: o quanto a literatura,
entre criação e materialidade, pertence ou não ao mundo.
A perspectiva representacional remete à literatura como um discurso que
“paira” sobre a realidade, observando o mundo de um ponto de vista distan-
ciado, cuidando de manter-se verossímil (referente), mas, ao mesmo tempo, in-
dependente, visando garantir sua objetividade racional. A perspectiva literária
assume que a literatura não fala de nada a não ser dela mesma, ou seja, não
possui uma continuidade (compromisso?) em relação ao próprio mundo.
Compagnon nos provoca a ultrapassar as duas perspectivas, assumindo a
impossibilidade de ambas. A literatura não apenas se refere ao mundo, mas está
nele fundada, emergindo como parte constituinte e a ele devedora, não com seu
reflexo ou como sua representação, mas como habitante do mundo. O autor nos
instiga a “sair da lógica binária, violenta, disjuntiva, onde se fecham os literatos
– ou a literatura fala do mundo, ou então a literatura fala da literatura –, e voltar
ao regime do mais ou menos, da ponderação, do aproximadamente; o fato de a
26 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
literatura falar da literatura não impede que ela fale também do mundo.” (Com-
pagnon 2014: 123).
O autor se esforça em identificar saídas para este impasse, esta interdição
que cisma em fragmentar aquilo que fenomenologicamente é indissociável. Ri-
coeur (2012) e sua narratologia são recuperados pelo esforço de articulação da
tripla mimesis, por exemplo, apontando para a associação do escritor, do mundo
e do leitor. Trata-se de uma fenomenologia que recupera o peso da referenciali-
dade (a materialidade histórico-cultural e simbólica), sem simplificar a experiên-
cia de escrita e de leitura ao psicologismo (a biografia do autor, as condições de
recepção).
Neste sentido, poderíamos pensar o elo entre geograficidade e literacidade:
como modos de ser-e-estar-no-mundo, articulando a referencialidade (em sua
multiplicidade) e suas formas de expressão.
Em vista disso, nas obras literárias é possível sempre perceber a geografi-
cidade inerente, como parte da própria obra. Basta que aprendamos a lê-la e a
senti-la. Mas as geografias literárias, por outro lado, ainda precisam ser compos-
tas. Envolve compreender as geografias literárias na colisão com as literaturas
geográficas.
Mas, de que se trata?
Em 1961, o crítico literário pernambucano Mauro Mota publicou Geografia
literária. Este pequeno livro instigante trazia algo que hoje parece singelo: uma
coletânea de ensaios entre Geografia e Literatura. Autor de vasta cultura, em
um tempo de conhecimentos menos fragmentários, ele defende a importância
da Geografia (humana, na época) intercalando com comentários sobre Gilberto
Freyre e outros autores nordestinos, além de um ensaio em particular intitulado
“Geografia na literatura”. Este é um compêndio de romances que contêm, na
visão do autor, Geografia, e por isso mereciam atenção do geógrafo naquilo que
traziam de conhecimento geográfico.
Segundo Collot (2012, 2014), o termo atravessou o século XX, presente nos
estudos literários, buscando evidenciar os vínculos dos autores com seus luga-
res. Mais recentemente, o geógrafo Tiago Vieira Cavalcante recupera o termo em
seu estudo de Rachel de Queiroz, buscando entrelaçar vida e obra da escritora
cearense por meio de suas geografias materiais e imateriais (Cavalcante 2019).
Esta perspectiva busca um limiar para além do embate “literatura fala do mundo”
ou “literatura fala de literatura”, identificando pela expressão a ultrapassagem
deste limite, compreendendo a ampliação que a geografia literária oferece “so-
bre o espaço geográfico, mas também o quanto esse espaço é ressignificado
por e para aqueles que acreditam na potência da palavra em transformar vidas”
(Cavalcante 2020: 193).
E as literaturas geográficas? Estas, me parece, ainda estão por serem res-
gatadas, ou redesenhadas, a partir do entendimento da literacidade (como a
GEOGRAFIAS LITERÁRIAS E LITERATURAS GEOGRÁFICAS: ESPAÇO, NARRATIVA E SER
27
Eduardo Marandola Jr.
ESCRITURAS DO MUNDO
Talvez este ensaio tenha se estendido desnecessariamente quando, na ver-
dade, ele possui uma mensagem bem mais simples: buscar a colisão geografias
literárias-literaturas geográficas implica, dentre muitas coisas, assumir que tanto
a Geografia quanto a Literatura são escrituras do mundo. Ser escritura do mundo
implica, no entanto, que tal ofício não seja restrito a praticantes profissionais,
mas que, como geograficidade e literacidade, tais escrituras aconteçam de ma-
neira cotidiana na existência mundana.
Retornamos, assim, ao cerne do argumento do texto, qual seja: o embate
entre perspectivas de conhecimento modernas, que se pautam pela objetivida-
de, a divisão estrutural do conhecimento e sua racionalidade, e uma perspectiva
que denuncia os limites de uma visão epistemológica do mundo e da existência,
fissurando tal edifício a partir da espacialidade, da narratividade e da ontologia.
Neste trajeto, é interessante retomar a ponderação de Rancière (1995) a
respeito da mudança operada entre os séculos XVIII e XIX da Literatura como
conjunto de estudos dedicados a um tema, como um saber (as belas-artes) para
um exercício da arte da escrita, tal como conhecemos hoje. Para o autor, houve
um deslizamento de sentido que foi interpretado comumente como uma comple-
mentaridade e como continuidade, mas que o autor salienta o caráter de ruptura
fundamental operado justamente na constituição das Ciências Modernas. Para
Rancière, o que se perdeu no deslizamento foi justamente a conexão com os
saberes tradicionais, constituindo-se no rompimento com uma longa tradição de
transmissão de saberes que poderiam ser remontados até a antiguidade clássi-
ca.
Segundo Rancière (1995: 29), a literatura moderna se constituiu justamente
como substituta, a partir das margens (o romance e a poesia lírica), operando
na supressão pela impossibilidade da continuidade da tradição (a eloquência e
a poesia épica e dramática, respectivamente), cedendo “lugar ao ato indiferen-
ciado e à arte sempre singular de escrever”. O autor busca refletir os esforços
de localização da literatura na Modernidade, chegando à dificuldade inerente de
encontrar um corpo para ela: “a literatura não aloja a si mesma”, é expressão de
tal situação incômoda de uma posicionalidade entre a ficcionalidade e o vácuo
deixado pelo deslizamento de sentido. Rancière (1995: 50) afirma:
Ela se aloja no espaço dessas aventuras da letra onde o ciumento que quer fazer com
que os corpos falem responde ao louco que quer dar corpo às palavras, nesse espa-
ço delimitado por duas fábulas-limite [...]. A literatura não existe nem como resultado
de uma convenção nem como efetuação de um poder específico da linguagem. Ela
existe na relação entre uma posição de enunciação indeterminada e certas fábulas
que põem em jogo a natureza do ser falante e a relação da partilha dos discursos
com a partilha dos corpos.
32 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
REFERÊNCIAS
Brousseau M. (1996). Des romans-géographes: essai. Paris: L’Harmattan.
Calvino I. (1992). As cosmicômicas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia. das Letras.
Cavalcante T. V. (2019). Geografia literária em Rachel de Queiroz. Fortaleza: Edições
UFC.
Cavalcante T. V. (2020). Por uma geografia literária: de leituras do espaço e espaços
de leitura. Revista da ANPEGE, v. 16, n. 31, pp. 191-201.
GEOGRAFIAS LITERÁRIAS E LITERATURAS GEOGRÁFICAS: ESPAÇO, NARRATIVA E SER
33
Eduardo Marandola Jr.
Collot M. (2012). Rumo a uma geografia literária. Gragoatá, n. 33, pp. 17-31.
Collot M. (2013). Poética e filosofia da paisagem. Trad. Ida Alves et al. Rio de Janei-
ro: Oficina Raquel.
Collot M. (2014). Pour une geographie littéraire. Paris: Corti.
Compagnon A. (2014). O demônio da teoria: literatura e senso comum. Trad. Cleoni-
ce P. B. Mourão; Consuelo F. Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Dardel E. (1946). L’Histoire, science du concret. Paris: PUF.
Dardel E. (2011). O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. Trad. Wer-
ther Holzer. São Paulo: Perspectiva.
Dilthey W. (2010). Introdução às ciências humanas: tentativa de uma fundamenta-
ção para o estudo da sociedade e da história. Trad. Marcos Casanova. Rio de
Janeiro: Forense Universitária.
Feitosa M. M. M. (2020). Literatura e Geografia: Relato de experiência, reflexão teó-
rico-metodológica, aproximação entre arte e ciência. Revista da ANPEGE, v. 16,
n. 31, pp. 150-162.
Heidegger M. (2001). Construir, habitar, pensar. In: Heidegger M. Ensaios e conferên-
cias. Petrópolis: Vozes.
Heidegger M. (2008). Carta sobre o humanismo (1946). In: Heidegger M. Marcas do
caminho. Trad. Enio P. Gianchini e Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, pp. 326-376.
Heidegger M. (2012). Ser e tempo. Trad. Fausto Castilho. Campinas: Ed. UNICAMP;
Petrópolis: Vozes.
Holzer W. (2020). Geografia Humanista e as Humanidades: por uma epistemologia
fenomenológica. Revista da ANPEGE, v. 16, n. 31, pp. 142-149.
Husserl E. (2012). A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental:
uma introdução à filosofia fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense Universitá-
ria.
Malpas J. (2008). Heidegger’s topology: Being, Place, World. Cambridge: MIT Press.
Marandola Jr. (2010). Eduardo. Geograficidades vigentes pela literatura. In: Silva M.
A., Silva H. R. F. (Org.). Geografia, Literatura e Arte: reflexões. Salvador: EDUFBA,
pp. 21-32.
Marandola Jr. (2016). Eduardo. O imperativo estético vocativo na escrita fenomeno-
lógica. Revista da Abordagem Gestáltica, v. 22, pp. 140-147.
Marandola Jr. (2020). Eduardo. Fenomenologia como abertura para a interdiscipli-
naridade. Revista do NUFEN, v. 12, pp. 1-25.
Marandola Jr. (2020b). Eduardo. Lugar e lugaridade. Mercator, v. 19, pp. 1-12.
Marandola Jr. (2020). Eduardo. Chaveiro E. F., Gratão L. H. B. Geografia e Litera-
tura: Diálogos e desafios contemporâneos. Revista da ANPEGE, v. 16, n. 31, pp.
136-141.
Marandola Jr. (2009). Eduardo. Oliveira L. de. Geograficidade e espacialidade na
literatura. Geografia, v. 34, pp. 487-508.
Merleau-Ponty M. (1971). Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes.
34 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Title
Literary geographies and geographical literatures: space, narrative and Being
Resumo
A propósito da pergunta pela relação Geografia e Literatura, o ensaio busca uma
perspectiva ontológica para compreender as geografias literárias e as literaturas
geográficas em colisão. Espaço, narrativa e Ser são dispositivos desta reflexão, des-
dobrando as consequências de uma perspectiva orientada para a geograficidade e
para a literacidade do ser-no-mundo. A escrita do mundo é apresentada como um
ponto de convergência, de aproximações topológicas como narratividade.
Palavras-chave: Geograficidade; Literacidade; Ser-no-mundo; Escrita.
Abstract
With the aim of reflect the question of the relationship between Geography and Lite-
rature, this essay seeks an ontological perspective to understand literary geographies
and geographical literatures in collision. Space, narrative and Being are the devices
of this reflection, unfolding the consequences of a perspective oriented towards the
geographicity and literacy of being-in-the-world. The writing of the world is presented
as a point of convergence, of topological approximations as narrativity.
Keywords: Geographicity; Literacy; Being-in-the-world; Writing.
LITERATURA E AMBIENTE:
imagens do ambiente natural e humano
na ficção literária portuguesa*
1.
Que imagens do ambiente natural e da paisagem humanizada lavraram os
escritores da Literatura Portuguesa nas suas obras de ficção? Em que moldes
nos legaram um certo conhecimento da nossa geografia física, incluindo a na-
tureza climática, e da nossa ecologia humana, entendida esta como o vínculo
orgânico entre os habitantes e os recursos naturais de que dispõem? Há nos
romances, novelas e contos portugueses matéria relevante à luz das modernas
questões ecológicas, suscetível de conduzir a literatura até ao palco dessas
inquietações?
Estas são perguntas clássicas e centrais da Ecocrítica literária – que ex-
plora a Literatura e a Poesia com foco no seu teor ecológico, paisagístico e
da relação humana com a Natureza, na certeza de que muitos textos literários
guardam um potencial de consciencialização e sensibilização geográfica e am-
biental útil às sociedades do presente e do futuro.
Já este século, o meio académico português das Letras e das Ciências Am-
bientais foi timidamente aderindo a esse campo interdisciplinar, com artigos
e publicações de vários investigadores e encontros científicos no contexto de
diferentes instituições de ensino e ciência. Faltava, porém, um projeto editorial
de fundo que, numa lógica de diálogo entre as linguagens científica e artística,
olhasse a Literatura Portuguesa sob o signo das temáticas ecológicas e climá-
ticas que vêm progressivamente agitando o mundo.
Esta necessidade deu origem à coleção “Literatura e Ambiente”. Dirigida
a partir do Centro de Investigação Interdisciplinar da FCSH Nova, é coeditada
por oito investigadoras de seis universidades e politécnicos – Universidade
Nova de Lisboa, Instituto Politécnico de Beja, Universidade da Beira interior,
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Universidade de Coimbra e Uni-
versidade do Algarve –, publicada pelas Edições Colibri e cofinanciada pela
Fundação para a Ciência e Tecnologia.
*
Cics.Nova, FCSH Nova de Lisboa.
36 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
2.
Vencido o dilema metodológico de que partição territorial adotar na sequên-
cia dos volumes, o planeamento global da coleção e a organização de cada livro
seguiram uma metodologia centrada nos conteúdos (escritores e obras a estu-
dar) e no perfil de colaboradores (autores, revisores dos capítulos e entidades
coletivas envolvidas). Limitações temporais, assim como de espaço editorial e
financiamento ditaram que os autores de capítulo se obtivessem por convite di-
reto, tendo-se prescindido da habitual chamada para apresentação de artigos.
Esses convites obedeceram a critérios de autoria prévia de trabalhos acadé-
micos e/ou organização e moderação de encontros na área interdisciplinar da
Ecocrítica ou outros estudos na interface Ambiente e Literatura. Procurou-se
uma diversidade e um equilíbrio entre nomes oriundos dos campos da Teoria Li-
terária, Etnografia e da Geografia e Ciências Naturais. Outro critério foi a diver-
sidade de centros de investigação de origem, visando o máximo de cooperação
institucional, critério extensível aos revisores científicos, já que era imperativo o
escrutínio mediante revisão duplamente cega por pares.
Ao nível dos conteúdos, optou-se por uma coleção maioritariamente cen-
trada na literatura de ficção dos séculos XIX, XX e XXI, da mais interventiva à
mais contemplativa. O conjunto de obras analisadas em cada livro resultou
ora de propostas dos próprios autores ora de sugestões feitas pelas organi-
zadoras, em resultado de leituras exploratórias de obras sobre cada região
geográfica em apreço. No propósito de uma obra abrangente porém sem in-
tenção antológica, os escritores a abordar devem cumprir o critério de reco-
nhecimento histórico por parte do público, por forma a que o potencial de
consciencialização ambiental e geográfica das suas obras venha a alcançar o
maior número possível de leitores. Várias exceções foram aceites, sempre que
LITERATURA E AMBIENTE: IMAGENS DO AMBIENTE NATURAL E HUMANO NA FICÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA
37
Ana Cristina Carvalho
3.
A premissa de que a Literatura Portuguesa se caracteriza por uma riqueza de
conteúdo capaz de subsidiar a literacia dos leitores quanto ao património am-
biental e paisagístico, quanto a conceitos da clássica Ecologia e quanto a algu-
mas problemáticas ambientais ficou profusamente ilustrada nos dois volumes já
publicados. Em alguns capítulos essa valência é mais evidente, mais acentuada
ou até mais pura do que noutros, mas em todos deixa forte presença. No n.º 1,
Alentejo(s) – …, e a título meramente exemplificativo, conhecemos a “geografia
1
afetiva” de Urbano Tavares Rodrigues, entre Moura e a fronteira com Espanha;
2
o “Sentir perdidamente a paisagem” do interior alentejano nos contos e poe-
mas de Florbela Espanca; a planície povoada de trabalhadores, “animizada e
3
animalizada, humanizada” , que José Saramago lavrou em Levantado do Chão
(1980); as descrições das estações e da luminosidade do sul nos três romances
que Manuel Ribeiro, “autor de referência do neorromantismo português, o mais
4
lido em Portugal na década de vinte do passado século” , consagrou ao Baixo
Alentejo. O neorrealismo de tema exclusivamente alentejano surge bem repre-
sentado através do romance de 1960 Suão, de Antunes da Silva, que transmite
“uma natureza entre o hostil e o aprazível, fortemente manifestada na compo-
nente clima”, fazendo a “denúncia do insustentável viver dos labutadores rurais
5
do Alentejo da época, agravado pelo fenómeno atmosférico” que lhe serve de
título:
Era verdade que a planície morria de sede nos anos de torrina. Desde o alvor da ma-
nhã à biquinha da noite, nem um susto de aragem, mesmo morna que fosse. Nada.
Só sol e poeira […]. Nem uma pinga de água por certos caminhos abandonados,
1
Expressão do título do Cap. 9, de Joana Portela (Univ. Évora).
2
Expressão do título do Cap. 12, de Teresa Mendes e Luís Miguel Cardoso (Inst. Polit. Portalegre).
3
Cap. 4 (p.86), de Carlos Nogueira (Univ. Vigo).
4
Cap. 1 (p.33), de Gabriel Rui Silva (apos. Univ. Évora).
5
Cap. 8 (p.163), de Ana Cristina Carvalho (Univ. Nova de Lisboa).
38 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
6
Expressão do título do Cap. 1, de Jorge Costa Lopes (Univ. do Porto).
7
Expressão do título do Cap. 6, de Rui Jacinto (Univ. Coimbra e Centro de Estudos Ibéricos).
LITERATURA E AMBIENTE: IMAGENS DO AMBIENTE NATURAL E HUMANO NA FICÇÃO LITERÁRIA PORTUGUESA
39
Ana Cristina Carvalho
8 9
de Tomás e Branquinho da Fonseca ; percorremos as “paisagens fluviais” , as
águas e as galerias ribeirinhas da “terra nativa”, que Ferreira de Castro legou
no seu romance de estreia, Emigrantes (1928): “O azul do Caima ia-se tornando
negro, a água confundia-se já com a terra, sob o mesmo véu escuro, e os amiei-
ros, apagado o recorte da folhagem, ficavam ali como vultos de sonho, como
embuçados perscrutando o mistério da noite.”
Como em todos os volumes, também este se inicia com um texto “ilustrativo”
do vigor da Literatura Portuguesa na representação da identidade geográfica e
biofísica do território português: é o texto de 1916 A Beira (num relâmpago), de
Teixeira de Pascoaes:
São João de Areias também lá vai… E a sua ausência, que tem um aspeto iluminado
e harmonioso de fogueiras e descantes, começa a notar, com tristeza, o fim da Beira
Alta.
As árvores emagrecem, a terra põe-se amarela; as casas são dum barro frágil, como
os seus moradores; e o verde, num clássico gesto lutuoso, cobre-se de cinza, na pai-
sagem que, desolada, se precipita no Mondego. O rio é lágrima profunda, deslizando
pela face dum cadáver. Alguns pinheiros marginais lembram círios abrindo, ao alto,
em triste flama verde-negra; a sua luz de sobra extática escurece o ermo melancólico
dos montes.
Dir-se-á que a alma da Beira, descarnada, anda a penar, neste trecho solitário e do-
loroso do Mondego. Aqui, não é o Mondego das lágrimas de Inês, camoniano, que
banha os campos de Coimbra; é um Mondego cismático e obscuro: líquidos crepes
adormecidos.
A ponte de Tábua liga duas almas: a do Norte, verde, montanhosa, activa, de granito,
e a alma do Sul, lívida e plana, como caída numa síncope.
4.
Os três livros concluídos reuniram um painel de cerca de meia centena de
investigadore/as, que assinam os ensaios onde releem, sob a perspetiva eco-
crítica, a ficção de dezenas de escritore/as portugueses, onde se incluem os já
referidos e ainda Almeida Garrett e Júlio Dinis, José Luís Peixoto e Mário de Car-
valho, Vitorino Nemésio e Miguel Torga, Fialho de Almeida e Manuel Alegre, Eça
de Queiroz e José Rodrigues Miguéis, Agustina Bessa-Luís e Carlos de Oliveira,
João Araújo Correia e Manuel Ribeiro, etc.
O Quadro 1 sintetiza em termos numéricos, com base nos três primeiros vo-
lumes, a natureza abrangente que esteve na base do planeamento da coleção
“Literatura e Ambiente”: em termos quer de conteúdo – escritore/as e obras
8
Cap. 11, de Maria Mota Almeida (Escola superior de Turismo do Estoril) e Teresa Branquinho (Biblioteca
Municipal de Mortágua).
9
Expressão do Cap. 13, de Maria Ilheú (Univ. Évora).
40 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
10
Note-se que apenas é possível saber o total exato do número de obras ficcionais já analisadas e do número
de universidades estrangeiras já envolvidas, pois os valores das restantes colunas podem incluir repetição,
em dois ou mais volumes, de escritores estudados, autores de capítulo e instituições.
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA:
A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS
ESCRITORES*
RUI JACINTO**
1. APRESENTAÇÃO
O título do presente ensaio sinaliza um tema, um espaço e sugere a revi-
sitação de obras de escritores que, por força do nascimento ou outra circuns-
tância, estabeleceram uma relação íntima e cúmplice com a velha Beira, atual-
mente designada por Região Centro de Portugal. Importa explorar a ficção que
retrata múltiplas facetas duma região diversa, retalhada por imprecisas fron-
teiras, limites de unidades relativamente homogéneas que são correlativas das
usadas habitualmente para interpretar dicotomicamente o país. Tais assime-
trias, embora estruturantes, não deixam de expressar uma visão maniqueísta,
portanto redutora, onde o litoral se opõe ao interior, o urbano ao seu entorno
rural e o Norte surge em contraponto ao Sul.
A Beira é, pois, um espaço de transição onde coexistem reminiscências
do Norte, mais húmido, de maior pendor atlântico, com uma topografia mais
movimentada, onde impera o minifúndio, e do Sul, mais seco, que antecipa
a peneplanície mais vazia, onde se instalou o latifúndio e os horizontes mais
fundos e luminosos preanunciam o Mediterrâneo. Retalhos de muitas obras
literárias descrevem as subtilezas desta Geografia e a sua sensibilidade su-
pera as descrições técnicas que se esgotam, quase sempre, em epidérmicas
interpretações setoriais e restritivas. É possível detetar em algumas páginas o
diálogo subtil, implícito e não assumido entre certos escritores e alguns geó-
grafos, sobretudo os da geração fundadora da moderna Geografia portuguesa,
onde pontificam Amorim Girão, Orlando Ribeiro ou Alfredo Fernandes Martins.
O conteúdo das respetivas descrições parece irmaná-los na ideia que Miguel
Torga preconizava, de se escrever um “capítulo do íncola da Beira numa coro-
grafia da Beira” (Diário II 1943: 147).
*
Texto publicado em: Beira(s) – Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção.
**
CEGOT, Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Ibéricos (CEI)
42 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
que estragou o perfil de certa fraga. Ora eu sugeria o alargamento desse critério
estreito, e que se fizesse do homem um dos elementos fundamentais da Geogra-
fia. Que no processo científico de qualquer troço do mundo figurasse o habitante
do sítio, considerado já como factor natural, a par do relevo ou da vegetação. Ao
lado doutras formas de conhecimento, um capítulo do íncola da Beira numa coro-
grafia da Beira. Seria, em meu fraco entender, uma contribuição substancial para
melhor compreensão da sua íntima realidade. (Diário II, Coimbra, 21 de Março de
1943: 147-151).
1
Orlando Ribeiro e A. Fernandes Martins . Após o trabalho pioneiro de G. A. Perry
e dos alicerces lançados em vários estudos de Geografia regional, surgiram dife-
rentes Geografias de Portugal abarcando o conjunto do país. É de realçar a que
foi dada à estampa por Girão (1941), por ser a primeira e pela ampla divulgação
que alcançou, acabando por ter influência designadamente entre os escritores.
Estas obras têm abundantes referências à Beira, dedicando-lhes alguns capítu-
los ou fornecendo informação que moldou o olhar e influenciou o modo de ler e
interpretar o país e a Região.
O Guia de Portugal, embora não possa ser considerado um verdadeiro con-
traponto geográfico ou literário, contem ingredientes e aflora matérias afins. No
Volume I (Lisboa e arredores, 1924), apesar da advertência do autor, não deixa de
almejar pretensões literárias: “A ordem rigorosamente itinerária que seguimos
nesta obra é talvez a menos conveniente aos efeitos literários, mas a mais útil
para o fim que tivemos em vista – que não foi encantar os Portugueses com a
nossa prosa, mas levá-los à descoberta de Portugal. Se há aqui literatura (e da
melhor), ela não constitui um fim em si mesma, mas um meio de sugestão, um co-
mentário vivo e inteligente das excursões a efectuar e a maneira de tornar mais
flagrante a expressão da realidade”. Após esta nota de abertura, Raul Proença
elucida-nos como é ténue a fronteira entre viagem, Literatura e Geografia ao
colocar no frontispício, além duma referência de Byron, duas citações lapidares
que constituem um verdadeiro um apelo à viagem: (i) “estas excursões não são
apenas um consolo, um descanso e um ensinamento; são antes de mais, e so-
bretudo, um dos melhores meios de cobrar amor e apego à pátria […] Em todo
o país deveriam preocupar-se os que o regem e conduzem que seus filhos o
conheçam de vista e de contacto” (Miguel de Unamuno); (ii) “Nada há no mundo
mais saborosamente aprazível para um coração lusitano do que viajar, simples,
modesta, obscuramente em Portugal” (Ramalho Ortigão).
Esclarece-se no prefácio que a obra pretende ser um “minucioso roteiro do
País”, “um repertório artístico” e “um testemunho dos estrangeiros sobre Por-
tugal”, além de conter “uma bibliografia escolhida do que se tem escrito sobre
Portugal”. Estamos perante “uma obra de sóbria literatura descritiva que, sem
as desfigurações e alucinações caras aos românticos, os incidentes das recor-
dações pessoais, os desenvolvimentos eruditos, as divagações retóricas e os
devaneios poéticos”. O Guia pretende ser “uma antologia da nossa literatura
pitoresca, que seja o escrínio de tanta jóia perdida reflectindo ainda hoje, com
limpidez por vezes maravilhosa, as impressões dos nossos maiores ante as
belezas desta terra pródiga” […], “onde se reúnam as páginas mais evocativas
1
Parcelas da Beira estudadas: Amorim Girão: A Bacia do Vouga (1922), Viseu (1925), Montemuro (1940),
Maciço da Gralheira (1942); Carlos Alberto Marques: A Bacia Hidrográfica do Côa (1935) e A Serra da Estrela
(1938); Alfredo Fernandes Martins: O esforço do homem na bacia do Mondego (1940) e O Maciço Calcário
Estremenho (1949); Orlando Ribeiro: Contribuições para o estudo do pastoreio na serra da Estrela (1941).
48 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
2
O profundo conhecimento do país foi adquirido através de incessantes viagens, como se verifica pelas deze-
nas de entradas nos quatro primeiros volumes do Diário, publicados até 1950, ano em que editou Portugal.
Destacamos um exemplo lapidar deste peregrinar de Torga: “Pareço um doido a correr esta pátria. Do Gerez
a Monchique e do Caldeirão a Bornes, não tenho sossego. E sem saber ao certo para quê! Não sou geógrafo,
tenho um patriotismo suspeito, sou fraco apreciador de petiscos, de modo que nem eu chego a saber por
que é tanta peregrinação. Mas continuo, e só não amiúdo os passos por não ter saúde, nem tempo, nem
meios. Talvez sem eu ter consciência disso cultivo-me assim pelos olhos e pelos pés, no alfabetismo íntimo
das cousas, expressivas na sua luz, no seu clima e no seu paralelo particular. A terra não é igual em lado
nenhum. Aqui encolhe-se, ali espalma-se, acolá afunda-se” (Fundão, Serra da Gardunha, 4 de Fevereiro;
Diário III, 1946 [3ª ed. 1973]: 88).
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA: A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS ESCRITORES
49
Rui Jacinto
Por isso, “a Beira, cuja divisão em duas secções pela serra de Estrela — Beira
Alta e Beira Baixa ― de há muito se tornou de uso corrente, melhor se poderá
dividir como fez Barros Gomes, em quatro regiões com caracteres próprios, to-
mando como base de separação os seus principais acidentes montanhosos ― Es-
trela. Gralheira, Caramulo e Montemuro” (p. 74). A divisão regional proposta por
este autor nas suas célebres «Cartas elementares de Portugal» para uso das es-
colas (1878) já havia inspirado o coordenador do Guia de Portugal, que a adotaria
logo no volume I, antes mesmo da adaptação introduzida por Girão e pelo Estado
Novo. Após a estabilização desse mapa, com a Beira dividida nas clássicas Beira
Litoral, Alta e Baixa, foi oficiosamente adotado e amplamente divulgado, sobretu-
do nas escolas. Sucessivas gerações de alunos foram obrigadas a decorar rios e
estações de caminhos de ferro nas aulas de Geografia. Tantas vezes chamados ao
mapa e a visioná-lo, a generalidade dos portugueses acabaria por interiorizá-lo e
52 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
transformá-lo num mapa mental cujos efeitos ainda perduram. Não é por acaso
que Miguel Torga e Jaime Cortesão, por exemplo, esboçaram as respetivas des-
crições do país com base na Geografia regional nele implícita. José Saramago,
décadas mais tarde e num outro contexto político, em obediência à sua filiação
e à divisão regional que o partido havia subscrito em 1976, rompe com aquele
modelo e adota uma nova Geografia para organizar a apresentação da sua Via-
3
gem a Portugal .
A Beira ganha matizes distintas consoante é descrita por geógrafos ou escri-
tores. Uns, como Jaime Cortesão, começam por se interrogar se existe uma ou
várias Beiras: “Haverá um complexo de caracteres, bem individuado, quer geo-
gráfico, quer humano, daquilo a que é costume chamar-se a Beira, abrangendo
as Beiras ― Alta, Litoral e Baixa, conforme a nomenclatura actual?” A resposta
que dá é clara: “Bem e vincadamente individuado, não. E muito menos quando
encarado no puro aspecto da Geografia. Entre a Beira minhota ― dos vales de
Cambra e de Lafões, a Beira Litoral, dos canais e polders da região de Aveiro, ou
a Beira alentejana, zona de transição do Sul da Beira Baixa para o Alto Alentejo, a
diferenciação geográfica é profunda e multiforme”. O que a Beira tem de diverso
e de comum já outros o haviam dito doutra forma: “A confluência numa extensa
região central de todas as paisagens do País, eis a Beira” (Raul Proença cit. p.
Cortesão 1987 [1964]); “a Beira representa uma súmula dos caracteres geográfi-
cos de todo o território nacional” (Silva Teles, cit. p. Cortesão: 104).
No volume I do Guia de Portugal (Lisboa e arredores, 1924), na introdução
etnográfica de Portugal feita por Aquilino Ribeiro, a região é lida segundo outro
ângulo: “A Beira, à excepção da orla litoral e do vértice sul, acusa até certo ponto
as características de Trás-os-Montes. Como já ali, existe uma diferença sensível
entre a população das serras e do vale. Esta é de maneiras brandas, mais hu-
milde por um lado, mais impulsiva por outro, todavia aventurosa e decidida ‘ao
que Deus quiser’; aquela resistente, dura, áspera, mais activa e mais inteligente,
posto que mais grosseira”. A faceta telúrica que bem conhece é recuperada ao
descrever
A aldeia serrana (da Beira) – escreve-se nas Terras do Demo – é assim mes-
mo: bulhenta, valerosa, suja, sensual, avara, honrada, com todos os sentimentos
3
A Regionalização tem sido um debate recorrente e inconclusivo (1976; 1982; 1998), a que juntou, durante o
período da troika, a implementação duma reforma administrativa, igualmente incompleta face ao anunciado.
As NUT III, criadas apenas para fins estatísticos, tiveram vários desenhos até às atuais, que foram a base das
seguintes Comunidades Intermunicipais na Região Centro: Baixo Mondego; Baixo Vouga; Beira Interior Sul;
COMURBEIRAS; Beira Interior Norte; Cova da Beira; Dão-Lafões; Médio Tejo; Oeste; Pinhal Interior Norte; Pinhal
Interior Sul; Pinhal Litoral; Serra da Estrela (Lei n.º 11/2003 de 13 de Maio). O significado destas alterações, que
têm vindo a ocorrer desde 1986, foi profundo, e transcende o âmbito estrito da Geografia, por se relacionar
com uma faceta fundamental da tão proclamada reforma da administração pública: os distritos teoricamente
desapareceram, sendo este vazio intermédio substituído pelas NUT III, unidades territoriais que se aproximam
das suas dimensões e desempenham papeis equivalentes. Concluindo, os limites exteriores da Beira, como
as suas fronteiras internas, a nível sub-regional e de freguesia, conheceram grandes mudanças.
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA: A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS ESCRITORES
53
Rui Jacinto
O escritor, como qualquer pessoa, acaba sempre por se moldar ao lugar, pois
"O homem e o meio são solidários na própria fisionomia. O habitante e o habi-
tado modelam-se mutuamente, a ponto de o observador não descortinar onde
começa o perfil de um e acaba o rosto do outro" (Torga 1950: 109). É um vínculo
que fica para a vida: “Era bom e eu não sabia que nunca mais se repetiria aquele
acordo com a casa, o campo, o rio, os cheiros, os sons e os ritmos do tempo
que devagar corria em Alma […]. Nesse Verão Ainda me banhei nas águas do
Alma […]. Senti um aperto na garganta ao passar a ponte. Olhei o rio, a nora,
os salgueiros, os campos. Alma, dizia eu. Como quando era pequeno e dizia
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA: A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS ESCRITORES
55
Rui Jacinto
mãe” (Manuel Alegre 1995: 217, 224, 225). A Geografia e o espírito do lugar
que envolve Águeda, no caso de Manuel Alegre, são comuns aos sentimentos
nutridos pelo torrão natal, como Cortesão (1987 [1964]): 133) também expressa
relativamente a Ançã: “Por detrás duma dobra do relevo coimbrão sumiam-se as
terras ásperas onde fui nado e as mais amenas dos campos do Mondego, onde
me criei. A meus pés desdobrava-se o teatro da minha adolescência; do fundo
vale via subir, como uma névoa, os meus primeiros sonhos”.
Esta identificação assumida com os lugares de infância é mais do que o
pagamento duma dívida de gratidão pois representa, para muitos, um modo de
estar na vida e no mundo e a opção por uma literatura comprometida. Carlos
de Oliveira em O Aprendiz de Feiticeiro (1995) adianta que “Não concebo uma
literatura intemporal nem fora de certo espaço geográfico, social, linguístico;
quer dizer, não a vejo inteiramente desligada das condições de tempo, de lu-
gar”. É comum o sentimento de fidelidade e enraizamento ao chão ao ponto de
se admitir que "este local faz parte de uma Lisboa que é a minha Geografia pri-
vada e ao mesmo tempo a minha Geografia literária. O curioso é que, à medida
que fui avançando na minha vida de escritor, isso foi-se tornando mais claro",
disse José Cardoso Pires, em entrevista de 1984 (Mauperin 1984). O mesmo
estado de espírito expressa J. C. Ary dos Santos de forma poética e irreve-
rente: “A terra donde venho é onde moro/ o lugar de que sou é estar aqui/ […]
Aqui ninguém me põe a pata em cima/ porque é de baixo que me vem acima/
a força do lugar que for meu” (Soneto Presente in Resumo 1972). Noutras cir-
cunstâncias, como naquela “literatura em que o espaço passa despercebido”,
é reconhecido, como diz Alçada Baptista (1998: 170) a propósito da escrita de
Rubem Fonseca, que se "mantém uma certa coincidência entre os ritmos do
‘espaço’ e do ‘sistema’ ou, por outras palavras, entre a Geografia e a cultura.
As diferentes situações sociais coexistem no mesmo ‘espaço’ como elementos
integrantes e dinamizadores do mesmo ‘sistema’ subordinar às mesmas re-
gras. Nessa literatura, o exótico é necessariamente longínquo".
A importância das origens e a omnipresença da Beira são assíduas entre os
escritores mais comprometidos com a corrente que ficou conhecida por neorrea-
lismo, como nos dizem, nos seus estilos peculiares, dois pilares deste grupo: “Mas
tornam-se mais fundas / as raízes da casa, / mais densa / a terra sobre a infância”
(Carlos de Oliveira, Trabalho Poético. Turismo, Infância, s/d [1942]: 6); ou “Este
convívio de hoje tem por pretexto a jornada de um escritor e o facto de essa jorna-
da, a bem dizer, ter tido aqui, numa casinha do Largo Artur Barreto, o seu começo.
Com efeito, o escritor em causa nasceu nesta vila de solares, brasões e plebeus,
filho de gente imigrada de uma aldeia serrana. Foram muitos, na época, esses
imigrantes humildes, e Condeixa, a Condeixa senhoril, deve-lhes mais do que su-
põe, tanto pelo que criaram, num desafio que os excedia, como pelos horizontes
que abriram a seus filhos” (Fernando Namora, Sentados na relva, 1986: 193-194).
56 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
À luz dos pressupostos que se têm enunciado e dos lugares onde nasceram
os escritores, é possível adiantar um primeiro esboço duma Rota dos Escritores
da Beira. A região incorpora os seus roteiros como, no dizer de Namora (Casa da
Malta, 1945 [9º ed., 1975]: 19), cada escritor foi desenhando o seu: “Os meus li-
vros representam quase um itinerário de Geografia humana, por mim percorrido;
as andanças do homem explicam as do escritor”. Os múltiplos itinerários que se
podem traçar com base nas várias referências materiais e intangíveis sugerem
e são propícios a gerar viagens. Estes percursos, que podem seguir Geografias
variáveis, têm impulsionado o turismo literário, segmento emergente com poten-
cial para desenvolver um nicho de mercado. Estas rotas, apoiadas em elementos
físicos dispersos no território (bibliotecas, casas-museu, toponímia, arte pública,
etc.), podem incluir referências mais desmaterializadas, desde um romance a
paisagens, naturais e humanas, passíveis de serem contempladas localmente.
As coordenadas estruturantes concretas seguintes mostram como estas rotas
se podem definir a várias escalas, quer a nível regional quer no âmbito local ou
urbano.
O estilo e a maneira de cada autor nos guiar pelos respetivos territórios é bem
percetível na descrição “De Viseu rumo ao norte”, a entrada nas Terras do Demo
feita por Aquilino Ribeiro no início da sua Geografia sentimental: “silva romântica
de lugares, seres é coisas que, na Beira, onde tenho umas árvores para gozar a
sombra, ouvem os dobres do campanário local. Não é, contudo, trabalho regio-
nalista no sentido rigoroso, embora a mim próprio se afigure o desenvolvimento
parafrástico das Terras do Demo, ou, com vénia pela pedantaria, a sua paralipo-
mena. Poderia dizer para o definir melhor: a minha pena foi até onde chegam as
ondas sonoras do tal sino rachado. Por essa razão ainda chamei sentimental ao
roteiro, com mil perdões desta feita de nossa mãe Eva”. (Ribeiro 1951: 8).
A parcela da região de cada escritor acaba por emergir, em dado momen-
to e por qualquer razão, em algum fragmento da respetiva obra. Neste sentido
haverá uma descrição dos autores que temos vindo a citar representativa do
modo como viveram, leram, interpretaram e sonharam a Beira. As várias Rotas
de escritores que é possível desenhar a partir dos respetivos lugares e espaços
sub-regionais faculta-nos uma Geografia literária da Beira que é, antes de mais,
um contributo fundamental para, a partir do passado, ensaiar uma (re)leitura
propetiva da região.
REFERÊNCIAS
Alegre M. (1996 [1995]). Alma. Lisboa: D. Quixote.
Andrade E. de (1971). Memórias de Alegria (antologia de verso e prosa sobre Coim-
bra no Centenário da Geração de 70). Organizada e prefaciada por Eugénio de
Andrade. Porto: Editorial Inova.
Andrade E. de (1992 [6ª ed., 1995]). Sem abrigo para tanto amor. In Rosto Precário.
Porto: Fundação Eugénio de Andrade.
Andrade E. de (1992). Poesia: terra de minha mãe. Porto: Asa.
Bachelard G. (1957 [2005]). A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes.
Baptista A. A. (1998). A pesca à linha. Algumas memórias. Lisboa: Editorial Presença.
Cortesão J. (1987 [1964]). Portugal – A terra e o homem. Lisboa: INCM.
Dias de Almeida, A. J. (2004). Guarda Livros ― textos e contextos. Guarda: Câmara
Municipal da Guarda.
Frémont A. (1976; 1980). Região, espaço vivido. Coimbra: Livraria Almedina.
Gaspar J. (1982). Regionalização. Uma perspetiva sócio-geográfica. In Problemas de
Regionalização. Lisboa: Sociedade de Geografia de Lisboa, pp. 96-112.
Gaspar J. (2002). A Região Centro. Coimbra: CCDRC.
Girão A. de A. (1951), “Uma Velha Descrição Geográfica do Centro de Portugal” (Ge-
rardo Augusto Perry 1860). Boletim do Centro de Estudos Geográficos da Facul-
dade de Letras da Universidade de Coimbra, n.º 2/3, pp. 2-34.
GEOGRAFIA LITERÁRIA DA BEIRA: A REGIÃO SEGUNDO OS SEUS ESCRITORES
61
Rui Jacinto
*
Universidade de Coimbra.
64 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
autor, por um lado, e pela alusão filológica à Grécia antiga, por outro). Podemos
estranhar que a palavra kitsch não tenha aparecido na pena do escritor pois
que é bem disso que se trata: Coimbra sofre do mau gosto dos estereótipos que
acabam por ocultar a sua incontestável beleza (“Coimbra é uma linda cidade”).
Esta contrafação vergonhosa, este erotismo de bazar roça – a palavra pode sur-
preender – a “pornografia”:
E será talvez necessário um terramoto, uma erupção, uma bomba atómica para
fazer o saneamento desta pornografia.
Estamos na ordem dos signos, mais do que na das coisas: é, pois, mais do
que a própria cidade, o discurso sobre a cidade (“Sim, Coimbra é uma linda ci-
dade”, repete o texto) que é preciso mudar, limpar da banalidade vulgar dos
seus lugares-comuns. Em suma, Coimbra é vítima da sua má literatura, onde
infelizmente se compraz o seu narcisismo de “houri de seios ao sol”. Haverá mais
grave censura por parte de um grande escritor?
A este primeiro pesar, o autor acrescenta dois outros, em relação não já ao
corpo, mas ao espírito da cidade. Sem se referir à história, Miguel Torga denuncia a
sabedoria sem sabor de que Coimbra parece orgulhar-se. Situada no centro, entre
Lisboa a marítima e o Porto a telúrica, ela “representa uma neutralidade vigilan-
te” fechada “a todas as aventuras do mundo”. Modelo de medida e de equilíbrio,
testemunha os “limites da nossa capacidade criadora, a solidão da nossa alma”,
exibindo “uma modesta mediania risonha, rasgada aqui, cosida além, de chita es-
tampada”. Podemos lamentar que o escritor não tenha pensado em procurar do
lado do epicurismo horaciano e da sua “aurea mediocritas” uma das principais
fontes do culto conimbricense da quietude contemplativa e do “locus amoenus”.
Dito de outra forma, é de Coimbra que vem o mal português. Traindo a sua
vocação, a Universidade embalou os espíritos no encantamento da sua “luz se-
dativa” e do seu “ópio sentimentalista”. Podendo ser uma “colline inspirée” (títu-
lo de um romance de Maurice Barrès), ela mais não fez senão dormitar num “ba-
nho-maria nostálgico que, sendo uma realidade física local, é simultaneamente a
atmosfera mental do português.” Ao escrever estas duras palavras, não estaria o
escritor a convidar os seus compatriotas, vinte e cinco anos antes da revolução,
a sair da passividade conservadora tão propícia à conservação das ditaduras?
Ter-se-ia Miguel Torga sentido mais em casa em Salamanca ou em Oxford, em
Paris ou Nova Iorque? É pouco provável. Talvez lhe fosse preciso também a ele
um meio contra o qual se afirmar na sua diferença. O capítulo “Coimbra” do seu
livro Portugal está com certeza “fora de prazo”, mas vale ainda a pena lê-lo e me-
ditá-lo, lê-lo pelo seu mérito literário, meditá-lo pela sua virtude regeneradora.
30 de Outubro de 2023
ROTEIRO LITERÁRIO VERGÍLIO FERREIRA
CATARINA SANTOS*
*
Biblioteca Municipal Vergílio Ferreira.
72 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Por uma manhã de Julho, cheia de matéria solar, rumámos à Póvoa de Ata-
laia e acolhemo-nos, num primeiro passo, ao peso da sombra da tília frondosa,
à beira da antiga escola primária, onde está aberta aos olhares de quem queira
uma exposição sobre a obra de Eugénio de Andrade. Íamos em busca de uma
particular geografia sentimental do poeta, a sua Terra Mãe, Matéria Matriz, para
utilizar a expressão de Arnaldo Saraiva no texto com que prefaciou Poesia: Terra
de Minha Mãe.
A jornada, promovida pelo Centro de Estudos Ibéricos, no âmbito do conhe-
cimento do Território dos seus Cursos de Verão, tinha um traço de união, uma
circunstância comum, a celebração dos centenários de Eugénio de Andrade e
Eduardo Lourenço: dois amigos que iluminaram, cada um à sua maneira, a cul-
tura e a poesia portuguesas – Eduardo expoente do ensaísmo e que tanto nos
ensinou a pensar Portugal e Eugénio aquele que Herberto Hélder, a propósito
de Poesia, considerou em 2000 não haver nenhum poeta que pudesse ombrear
com ele nesse meio século.
No adeus a Eugénio, o autor de O Labirinto da Saudade escreveu que “a
última morada devia ter a forma de um navio vogando silente entre as conste-
lações – os seus poemas – em busca do que nunca perdeu, o gosto da terra,
metáfora materna do seu inacabável nascimento”. Num outro texto, Lourenço
assinala certeiramente que “Eugénio de Andrade associa espontaneamente o
nascimento da sua poesia à música” lembrando: “Poesia ouvida no canto ime-
morial de mulher beirã, música iluminando de solidão o seu jovem corpo à escuta
de um harmónio na noite”.
(Obras Completas de Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia)
*
Jornalista e Escritor.
74 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
abertos à poeira dos rebanhos; foi importante ter sentido o ardor do vento e o cheiro
da cal fresca; foi importante ter ouvido na noite a música do harmónio, o som do
malho na bigorna no pino do Verão, o chiar dos carros carregados de feno ao fim
do dia; foi importante colher as maçãs das árvores e mordê-las e deitá-las fora, ou
mergulhar os pés na água até ficarem de vidro.
(Poesia e Prosa).
30 de Setembro de 2023
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS
DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
RUI JACINTO*
*
CEGOT, Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Ibéricos (CEI)
78 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
1
O Colóquio “Eduardo Lourenço: as paisagens matriciais e os tempos de Coimbra” (Coimbra, 26 de abril de
2012), organizado pelo CEI, teve uma intervenção de Eduardo Lourenço que intitulou Tempos de Coimbra.
Ver: Eduardo Lourenço (2013; 2023).
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
79
Rui Jacinto
e ficar para sempre no círculo encantado desta cidade universitária, na altura única.
É claro que a gente sabe que a mitologia coimbrã tem o seu ponto mais alto, sobre-
tudo pelo estatuto literário, no famoso texto de Eça de Queirós dedicado a memória
de Antero de Quental, onde toda a mitologia moderna do lugar cultural e também
de vocação ideológica da academia de Coimbra é invocada como qualquer coisa de
representativa de uma nova leitura do passado cultural deste país”.
vivo, como outros camaradas daquela época que partilhavam um certo ponto de
vista ideológico, bem como de outros que representavam uma outra tradição nossa”.
Não sem conflito interior nem litígio com os seus amigos mais diletos foi à
sombra da Universidade de Coimbra que Lourenço concebeu a sua “Heterodo-
xia” estruturando um modo de pensar e de ler o mundo que deixará plasmado
na sua longa e multifacetada obra. O significado do imaginário coimbrão e a
perenidade desta influência deixou assim expresso: “cada tempo recomeça a
totalidade do passado que está atrás dele e de outra maneira. O inevitável
Pessoa disse esta coisa maravilhosa ´cada época lega a outra aquilo que ela
não foi´”.
O facto de ter sido na cidade que definiu o seu modo de pensar obriga-nos
a reter que estamos perante a lacuna de ainda não existir um trabalho que
analise a influência do período coimbrão no pensamento e na obra de Eduar-
do Lourenço: “Portanto o tempo, esse tempo mítico de Coimbra em que nós
vivemos está encerrado numa espécie de cápsula temporal em que as oposi-
ções e as contradições faziam sistema. O passado tem que se compreender
em função de uma coisa irrepetível e única que cada presente significa. (…)
Naquele tempo era o tempo da revelação e cada época que vem é aquele
tempo, que é o emblema de um dos livros mais populares da mitologia coim-
brã, “In ilo tempore”. É o tempo de uma geração. O resto ou é morto, ou puro
sonho”.
Eduardo Lourenço esteve atento desde cedo à produção literária de Namo-
ra como atesta a recensão publicada na Vértice, em 1946, suscitada pela Casa
da Malta, obra publicada por Namora meses antes (1945), escrita de supetão
quando deixou Coimbra e abandonou definitivamente Condeixa para exercer
medicina na Beira Baixa (Tinalhas, depois Monsanto). Casa da Malta inicia uma
sequência de romances que marcarão o ciclo rural que representam uma par-
cela importante do legado de Namora (Lourenço, 1946). Ainda mais elucidativo
desta atenção de Lourenço é o importante ensaio que escreveu em 1969 a
propósito dum outro livro de Namora, Diálogo em Setembro (1966), obra de
charneira no percurso do romancista, publicado originalmente por Eduardo
Lourenço em O Comércio do Porto (9 e 23 de Abril de 1969), a que deu o título
de Psicanálise de Portugal (À Margem de Diálogo em Setembro). Esta longa
crónica de Fernando Namora, o livro mais longo que escreveu, serviu de ca-
talisador, estamos em crer, da reflexão que Lourenço andava a amadurecer:
o emblemático O Labirinto da Saudade (1978) que receber como subtítulo,
precisamente, Psicanálise mítica do destino português.
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
81
Rui Jacinto
Algumas dedicatórias de Fernando Namora escolhidas entre os livros doados por Eduardo
Lourenço à Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (BMEL, Fundo Eduardo Lourenço)
português transporta com uma obsessão e um temor sagrados nos seus con-
frontos com espelhos alheios. O encontro com os outros é o verdadeiro encontro
connosco. Fernando Namora no seu encontro com a Suíça, como romancista
avisado que é, descobrirá nela uma Suíça invisível para suíços, mas acima de
tudo descobrirá nela e por causa dela um Portugal invisível dentro de muros
caseiros. É uma autêntica aventura terapêutica, uma psicanálise de Portugal e
do comportamento português que confere a Diálogo em Setembro um inegável e
raro interesse. Não é de estranhar o sucesso que parece ter suscitado, nem será
de mais a atenção séria que se lhe dedicar. Fernando Namora oferece-nos um
espelho incomum para nos vermos. Debrucemo-nos nele.”
A admiração mútua não parou de crescer desde Coimbra se observarmos
as dedicatórias de Namora aos livros que ofereceu a Lourenço, ao número de
2
ensaios dedicados às suas obras ou os prefácios a alguns romances . Atentemos
em algumas frases dispersas nestes prefácios que reforçam esta ideia:
“Adolescente, cheio de energia e de sonhos de compensação social, Fernando Na-
mora escolhera-se já como «homem de escrita» para poder trazer à superfície a sua
realidade invisível, ou negada pelos outros, a fim de obter deles o reconhecimento”;
“Muito jovem, Fernando Namora foi sensível à teatralidade inerente as relações hu-
manas na sociedade provincial da pequena burguesia ávida e poupada a que ele
mesmo pertence. Era um pequeno mundo, apavorado com a ideia de cair no «inferno
do povo de que acabava apenas de se extrair, um pequeno mundo deslumbrado
pelas luzes apenas entrevistas da «gente de cima»”; “A harmonia consigo mesmo e
a paisagem de que mal se distingue, conferem ao homem do campo português uma
solidez que impressiona a criança. Namora, deixando nele uma memória durável e
uma necessidade de identificação aos seus valores, efectivos ou sonhados, sempre
presente na sua obra. Não podendo ser um desses camponeses, embora próximo
deles pelos laços de sangue e enraizamento aldeão, Fernando Namora inventa-se ou
escolhe-se camponês, ou antes, terrantes, homem da terra. Não foi decerto por um
snobismo às avessas que, ainda estudante, entrou no movimento literário ao qual o
seu nome ficará ligado, com uma recolha de poemas intitulada Terra”; “Desta procu-
ra de si mesmo, o ofício de médico foi durante muito tempo a condição exterior e o
universo do sofrimento humano a matéria inesgotável. (…) Através do espelho falsa-
mente imóvel que a escrita de Fernando Namora nos oferece, vemos acaso melhor,
numa transparência de sonho, as pulsações de um coração de um homem vibrando
em uníssono com as dores do mundo”.
Namora era para Lourenço “um autor exemplar da fusão, sempre almejada,
da literatura e da vida”. Em outro momento e noutras passagens, fosse na hora
2
Prefácios de Eduardo Lourenço a obras de Namora: (i) Leitura de uma época e sinal precursor (Feu dans la
Nuit, 1971); (ii) O Trigo e o Joio ou a outra face do sonho (1974); (iii) Ecriture et maladie chez Fernando Namora
(Les journées d’un Médecin, 1974); (iv) Les Clandestins (1975).
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
83
Rui Jacinto
como, além do diálogo convergente, íntimo e cúmplice, dão a conhecer esta arte
3
menos conhecida cultivada pelo escritor . Enquanto se explora a fronteira, frágil
e instável, entre realidade e ficção na tentativa de se encontrar uma poética do
espaço através da geografia poética contida na obra de Fernando Namora rein-
ventamos uma nova e frágil poética da geografia.
O Roteiro de Fernando Namora visa resgatar a memória do homem de cultura
e do cidadão empenhado, tentar subtrair do esquecimento um dos escritores
que marcou a literatura portuguesa do seculo XX, autor que em dado momento
mais longe projetou as letras portuguesas. Pretende-se, assim, situar o homem
no espaço e no tempo, contextualizar uma obra, vasta e multifacetada, tecida
com tenaz labor ao longo dum largo período que coincidiu, em boa parte, com
uma fase negra da história do país.
Roteiro de Fernando Namora: uma peregrinação pelas paisagens literárias
3
A recolha da pintura de Fernando Namora foi feita por Miguel Pessoa que a deu a conhecer em Fernando
Namora: nome para uma vida (Rui Jacinto, et al 1998), reutilizada para ilustrar o livro O itinerário de Fernando
Namora e a Geografia da sua obra (Rui Jacinto, coord. 2019). Jacinto Rui (2019; Coord.). Fernando Namora:
Itinerário de uma Vida, Geografia de uma Obra. Câmara Municipal de Condeixa.
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
85
Rui Jacinto
“Quem vem de longe, das terras frescas do litoral, onde o verde salpica os olhos e se
debruça nas estradas, e após a transição das ravinas do Zêzere, encontra uma paisa-
gem que passo a passo se atormenta: a Beira Baixa. Aí, transposta que é a charneca
com a sua cabeleira rala, nos cômoros a ferida aberta das ribeiras que descem ao
Tejo por entre sobressaltos de xisto, ou ainda o dourado da campanha da Idanha, a
querer-se alentejana sem o ser ― aí, senhores, já a tristeza começa a espessar-se,
a montanha crepita tendo por detrás relances de horizontes fundos, e as coisas se
tornam graves. Ei-lo, um mundo de soledade, sobre que pesam crimes, mesmo se as
frondes e as ramadas lhe escondem as dores do exílio” (A Nave de Pedra).
“Os homens, da dureza do rio e da serra e da atitude lírica do vale, temperaram a sua
personalidade de contrastes: sensíveis, contemplativos; ásperos e independentes. O
rio bravo serviria para fosso e as suas margens para alicerces de muralhas. E, assim
protegida, ergueu-se uma cidade de colunas, lagos, jardins. Quando? Os historia-
dores discutem datas, muitos anos antes de Cristo. Mas o que importa é saber que
bárbaros a destruíram; o tempo, depois, esboroou pedra e tijolo, sedimentou frescos
e palácios. E da remota Conimbriga restam hoje, apenas, relíquias desmanteladas,
que o homem, de novo, carinhosamente, liberta das camadas de rocha e terra” (Rio
de Mouros, in Vértice).
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
89
Rui Jacinto
Paisagem. Vale Florido. Aguarela. 1935. Paisagem. Vale Florido. Aguarela. 1935.
Col. Arminda Namora Col. Arminda Namora
“Do alto das furnas, via-se o burgo dormindo; uma névoa de primavera, fria, enge-
lhava as casas e o arvoredo. Era dia santo, com feira no Salgueiral. Tinha de se partir
cedo, dando tempo à mula para arrastar a velhice e vencer os solavancos do cami-
nho, a subida da serra escalvada, onde a urze e os corvos vigiam a solidão. (…) Na
sua terra, se o pão faltava, os homens tinham o Alentejo, a Bairrada, ou as vendas da
vila, ou o Brasil. (…) Partiram num crepúsculo de Outono, à hora em que as galinhas
e os rebanhos descem o baldio e os sinos condensam a melancolia das charnecas.
Ela ainda olhou para trás, para esse cinzento da hora triste, derramado por casas e
arvoredos. Havia de voltar e rica. (…) Foram-se chegando à Ribeira Pouca. A serra do
Zambujo era uma negrura soturna e indefinida” (Casa da Malta).
“Às vezes persiste só um odor: resinas, urze, o chamuscar do porco na bárbara ma-
tança ritual, os refogados impregnando quanta vizinhança havia, à hora da ceia — a
ceia do par de velhos cujo conduto para a broa era uma cebola apurada na frigideira.
Tudo cheiros medulares e sugestivos. Às vezes um som: o vento nas ramarias, os
sinos perdidos na charneca, os estalidos na madeira do tecto, o estrondo no casta-
nheiro do fundo do quintal naquela noite de raios e coriscos, o piar nocturno de uma
ave. Tudo sons que davam mistério às coisas” (Autobiografia, 1987: 10).
90 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
“A vila fica numa cova. Uma cova onde o Inverno descansa e se espreguiça, deixan
do rugas de lodo, humidade, velhice. As águas vão alastrando até Abril, os campos
melancólicos e o céu pardo olham-se, soturnos, antes que a Primavera desfaça o pe-
sadelo, renovando a vida, como rapariga sacudindo cabelos ensopados. Das lamas,
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
91
Rui Jacinto
germinam flores amarelas e lilases ― que Leónidas aproveita para os seus quadros”
(Cidade Solitária, 1959: 281).
Retrato do Alfaiate Gabriel. Óleo.1936. Retrato de Artur Varela. Óleo. Anos 40.
Col. Arminda Namora Col. Família Varela
a greve. Havia moleza nos gestos, no tempo, na atmosfera estagnada. Mas por detrás
da calmaria, demasiado ostensiva para ser verdadeira, adivinhava-se uma tormenta
obscura, prenhe de rugidos que teriam de explodir” (Fogo na Noite Escura: 81; 442).
«Os contrabandistas estavam na serra havia dois dias. A guarda afastava-se por lon-
gas horas, fazia negaças, para voltar de improviso, empurrando-os para um círculo
estreito logo que os homens se movimentavam. Os guardas revolviam todos os covis
das ravinas e dos matagais, e aquela insistência apenas se compreendia pela cer-
teza que teriam de encontrar contrabando em qualquer parte. (…) Raia de Espanha.
Serranias azuis e violetas que amaciam subitamente em olivais, campinas de trigo,
planaltos de terra vermelha. Caminhos de estevas, de fragas, onde o perigo sai dos
barrancos e dos muros ou caminhos melancolicamente guarnecidos de plátanos
abrindo clareiras na mata de pinheiros mansos, de um verde calmo e opulento. […]
Mas antes de os ganhões desempregados e os contrabandistas de profissão che-
garem a essas terras têm de atravessar os baldios do seu país. Para cá das faldas
desabrigadas, com o rio Erges esmagado entre muralhas de granito, o casario nasce
dos moinhos afogados nas enxurradas, sobe penosamente as margens das ribeiras,
agacha-se à sombra das rochas e espraia-se por fim em aldeolas mesquinhas” (A
Noite e a Madrugada, 1950).
“A solidão é uma noite fechada: o ramal que vem da cidade, liso e negro, adivinha-
-se pelo halo de poeira acumulada nas margens; os outeiros apagam-se nas som-
bras, os contornos dissolvem-se nos longes espessos. O homem, porém, conhece
esses sítios, mesmo que a noite os desfigure: de olhos vendados diria o limite de
cada estrema, o seu dono, a espécie de semente grelada à flor do solo; conhece-os
através do fogo dos Estios ou dos embaciados lodaçais do Inverno. A sua carne foi
curtida tanto nas invernias, pelo tempo da azeitona, como nas ceifas esbraseadas
pela soalheira; os seus pés decoraram ainda essa terra nos caminhos da aventura ou
quando da migração dos gados, em que se correm léguas para encontrar um casebre
ou um campo de feno. (Minas de San Francisco: 12).
“A vila é uma rua. Vem do alto dos eucaliptos pedindo licença à planície para lhe
interromper o sono, atra vessa uma encruzilhada de estradas por onde corre o aceno
de Espanha ou do mar e, bruscamente, num ímpeto de ousadia, trepa ao planalto ao
encontro de uma igreja que foi coito de moiros e abades, e ali se fica, arrogante, a
desafiar o pasmo da campina. À volta da igreja, as casinhas brancas, com altas cha-
minés que lhes furam o dorso atarracado, fecham-se num reduto que a voracidade
calma do trigo não consegue romper. As mulheres vêm ansiosas ás portas saber
quem chegou, caçar uma novidade em primeira mão ou inventá-la, se for preciso; os
homens vestem samarrões de pele de ovelha e falam e caminham lentos, austeros;
os garotos correm aos sítios em que a bolota cai das árvores no regaço do mato, pela
graça de Deus. Ao longo da rua há tabernas, onde o rumor brando da vida se encres-
pa, às vezes, em redemoinhos. Muitas tabernas. (O trigo e o joio).
Paisagem. Mora. Óleo. Anos 50. Vista de Pavia. Óleo. Anos 50.
Col. Câmara Municipal de Moura. Col. Casa Museu Fernando Namora.
alentejanos seguem com ressentimento essa frágil e tenaz vaga de gente, que atra-
vessa províncias para encontrar quem lhe compre o esforço; chegam maiorais que
guiam rebanhos e trazem canções dolentes do Baixo Alentejo; chegam ambulantes
e gente de acaso. São eles que animam as tabernas. Falam, repetem loas, façanhas
e desgraças” (O trigo e o joio).
“Os ranchos demoravam-se no pátio, a modos que a prolongar os dias em que toda
a família tivera trabalho e comida assegurados. Os ranchos do Norte, esses, rece-
biam o salário e partiam logo, como se receassem um assalto. Sentiam-se inseguros,
deslocados, entre tais companheiros solitários e taciturnos. Partiam para lutar noutro
lugar qualquer, até que o Verão os chamasse de novo para a charneca, cumprindo
um ciclo migratório de aves laboriosas. Os do Sul viviam toda a vida na profundeza da
planície. Viviam como uma árvore, uma pedra, que, de tão integradas na paisagem,
não pudessem deslocar a sua raiz” (O trigo e o joio).
“Quem disse que a charneca é árida e a azinheira triste? Quem associa a planura de
trigos e montados à melancolia dos olhos que pedem viço, euforia, garridice, e não
os encontram? A esses, escapa-lhes o fascínio alentejano, a solitude que se fez ca-
rácter, o torpor que é solenidade, o orgulho que não admite a posse sem uma dádiva
mútua” (Sentados na Relva).
“Gostaria de vos contar coisas dessa gente. Coisas da vila, do Alentejo cálido e bár-
baro e dos heróis que lhe dão nervos ou moleza, risos ou tragédia. Apetece-me abrir
ao acaso páginas do passado e recolher, entre outros, o Loas adivinho do futuro;
o Vieirinha, que rasgou o Amazonas e é homem para enjoar se, na sua frente, um
parceiro sobejo mergulhar os dedos numa panela de molhangada” (O trigo e o joio).
98 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
“Lisboa, pois, era uma pasmaceira enclausurada, de aldeões bem comportados, que
iam ao cinema aos sábados, com as famílias, e aos domingos atravessavam o rio para
comer mariscos nos restaurantes da Outra Banda. E os rapazes, rebentos tristes desses
campónios vestidos de burgueses, eram uns fedelhos que se julgavam tesos e livres
só porque começavam a desleixar os vincos das calças, bebiam uns copos e tinham
uma chave da porta da rua. Tinham a chave, é certo, mas ao chegarem à rua pareciam
galinhas a escapar-se, estonteadas, da buzina de um automóvel” (Cidade Solitária).
Paisagem. Óleo. 1977. Col. Arminda Namora Guindaste no Porto de Lisboa. Óleo.
1967. Col. Casa Museu Fernando Namora.
“O encontro foi marcado para um local da Baixa, à esquina de uma camisaria muito
afamada, precisa mente onde sempre fantasiei que um dia esperaria a amante que
nunca tive. // «No Rossio», disse ela./ «Pode ser.» / «Por volta das cinco, junto da
Camisaria Saraiva.» / «De acordo. Estarei um pouco antes.» // No Rossio, boa ideia.
É que, apesar de passar ali meio mundo e, por isso mesmo, ninguém ser visto por
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
99
Rui Jacinto
“Nunca se regressa a parte alguma. A certeza disso, todavia, não impede o crescente
fascínio do regresso. Mas regressar a quê, regressar aonde? A um lugar que, afinal,
nunca existiu. A uma vivência que, afinal, nunca foi vida. Porém, nem existindo nem
tendo sido vida, essa abstração não deixa de ser um abrigo, um conforto, uma refe-
rência” (Jornal sem Data).
género, como é sabido, algumas das obras-primas da nossa história literária. (…)
Tudo isso, em suma, é o nosso cerne e, ao mesmo tempo, o estigma de uma quase
singularidade relativamente à noção de «território», hoje muito estudada através do
comportamento dos homens e dos bichos, tanto no seu quotidiano repetitivo como
nos lanches extraordinários. De facto, e para além do ingrediente ibérico da errân-
cia, a história apresenta o homem português atraído pela ultrapassagem dos limites
físicos e psicológicos do seu «território», realizando longe o que não se tenta por
realizar perto. Nesse «longe» ele mostra até potencialidades ignoradas e mostra-as,
frequentemente, tanto mais quanto o «território» lhe é adverso” (Encontros).
“Todo o homem traz consigo um destino de cigano. Por mais que os vínculos o pren-
dam ao seu agro, como raízes que precisam de chão familiar para dar corpo à árvore,
o certo é que a inquietude, ou seja lá o que for de nome mais inspirado, tal os braços
da mesma árvore, procura o espaço sem estremas, ao alto e ao largo, até onde puder
chegar. (…) Pertence à condição humana essa fome do ir além, que ora se exprime
em odisseia ou em aventura, e quanto mais o viver se consciencializa, menos ela se
satisfaz ou se conforma” (A nave de pedra).
“O passado é a âncora, o futuro o leme. Sem eles o presente não tem margens”
(Jornal sem Data).
102 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
REFERÊNCIAS
Obras de Fernando Namora:
Relevos (Coimbra, 1938), Poesia
Terra (Coimbra, 1940), Poesia
Mar de Sargaços (Coimbra, 1940), Poesia
As Frias Madrugadas (Lisboa, 1959), Poesia
Nome para uma casa (1984). Poesia
Marketing (Lisboa, 1969). Poesia
As Sete Partidas do Mundo (Coimbra, 1938), Romance
Fogo na Noite Escura (Coimbra, 1943), Romance
Casa da Malta (Coimbra, 1945), Novela
Minas de San Francisco (Coimbra, 1946), Romance
A noite e a madrugada (Lisboa, 1950), Romance
O Trigo e o Joio (Lisboa, 1954), Romance
Retalhos da Vida de um Médico (1ª série em Lisboa, 1949) Narrativas
Deuses e demónios da Medicina (1952) Biografias romanceadas
Retalhos da Vida de um Médico (2ª série em Lisboa, 1963), Narrativas
Deuses e demónios da Medicina (segunda versão, 2 volumes; Lisboa, 1963) Biografias
romanceadas
O Homem Disfarçado (Lisboa, 1957), Romance
Cidade Solitária (Lisboa, 1959), Romance
Domingo à Tarde (Lisboa, 1961), Romance
Diálogo em Setembro (Lisboa, 1966), Crónica romanceada
Um Sino na Montanha (Lisboa, 1968), Cadernos de um escritor
A Nave de Pedra (Lisboa, 1975), Cadernos de um escritor
Sentados na Relva (Lisboa, 1986). Cadernos de um escritor
Jornal sem data (1988). Cadernos de um escritor
Os Adoradores do Sol (Lisboa, 1971), Cadernos de um escritor
Cavalgada Cinzenta (Lisboa, 1977), Narrativa
URSS Mal Amada, Bem Amada (1986). Crónica
Os Clandestinos (Lisboa, 1972), Romance
Resposta a Matilde (Lisboa, 1980), Divertimento
O Rio Triste (Lisboa, 1982), Romance
Estamos no Vento (Lisboa, 1974), Narrativa literário-sociologica
Encontros (Porto, 1979). Entrevistas
Dispersos (2 volumes; Lisboa, 1999)
ROTEIRO FERNANDO NAMORA: RETALHOS DUMA VIDA, MEANDROS DUMA OBRA
103
Rui Jacinto
AQUILINO MACHADO*
*
TERRITUR, CEG, UL - IGOT.
106 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Ora, uma das formas mais interessantes de conciliar uma estratégia de-
senvolvimento territorial alicerçada na exploração de paisagens literárias,
é aquela que decorre do aproveitamento das casas-museus de escritores.
Correlativamente ao que é desenvolvido para a generalidade dos paí-
ses europeus, elas enunciam-se através de um tratamento turístico que
conseguindo aproveitar um conjunto de ações culturalmente polivalentes
O TURISMO LITERÁRIO NAS TERRAS DO DEMO, UMA VIAGEM COROGRÁFICA PELA FICÇÃO DE AQUILINO RIBEIRO
107
Aquilino Machado
grau: Vila Nova de Paiva, Aguiar da Beira, Satão, Moimenta da Beira, Pene-
dono, Sernancelhe, Meda e Trancoso.
O que é certo é que esta expressão geográfica se colou à mundividência
aquiliniana, ao lograr-se no centro vital da sua visão do cosmos, usando
uma bela expressão de Alfredo Margarido (1985). O ethos é naturalmen-
te a aldeia montesina, que Eduardo Lourenço assinala como um mundo
bárbaro e agreste, numa paisagem de imobilismo que só dialogava com o
longínquo através dos almocreves como mensageiros “ou os aedos incons-
cientes” (1985: 18). Um isolamento que se ceifava primordialmente pela
desfaçatez dos caminhos. Isto mesmo se pode verificar a dado passo em
“Aldeia: Terra, Gente e Bichos”:
A aldeia estava sequestrada do mundo por montes e fraguedos intransitáveis,
quando não bosques compactos. O único meio de relacionação consistia nas ve-
redas tenebrosas, tortas e estreitas como barbantes, onde depois do Sol posto se
passava com o credo nos lábios. Quando o vento e os lobos rompiam a ulular pe-
los oiteirinhos, jornadear acarretava sério risco. Barrancos, atoleiros, charcos de
água eram acidades ordinários, superáveis no normal. (AR, “Aldeia: Terra, Gente
e Bichos”, 1946)
Fig. 3. Aquilino Ribeiro, mulher e filho mais novo, na biblioteca de Soutosa (1944).
[Arquivo de Aquilino Ribeiro]
O TURISMO LITERÁRIO NAS TERRAS DO DEMO, UMA VIAGEM COROGRÁFICA PELA FICÇÃO DE AQUILINO RIBEIRO
111
Aquilino Machado
Rota de Vila Nova O Malhadinhas Os Alhais, lugar de baptismo de Igreja Matriz dos
de Paiva Aquilino Ribeiro Alhais
A Feira de Barrelas, lugar de O Convento de
peregrinação quinzenal de São Francisco da
Aquilino Caria
Por fim: um sopro para nada concluir, e tudo deixar em aberto, no que
respeita a uma estratégia integrada de Turismo Literário nas Terras do
Demo. A primeira nota que importa reter prende-se com a dimensão lite-
rária das Terras do Demo, e o modo como facilmente conseguimos captar
a narrativa secreta e mágica que continua subjacente na atmosfera deste
Lugar de criação da escrita.
118 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
“A História falará de nós nas obras que deixarmos”, afirma Agustina Bes-
sa Luís. É essa atmosfera que permanece bem viva para todos aqueles que
visitam esta paisagem de Aquilino.
No fundo, ao pormos todo o realce no património material e imaterial,
estamos a concorrer para uma reinvenção da identidade paisagística das
Terras do Demo. E a preservar uma paisagem literária que, como “dizia um
velho clássico grego, constitui uma riqueza arrecadada para todo o nosso
sempre” (Lopes 1999).
REFERÊNCIAS
Correia A. (2003). Viajar com Aquilino Ribeiro. Vila Nova de Gaia: Delegação Re-
gional da Cultura do Norte.
Domingues Á. (2017). O Rebelde Crónico. Prefácio da edição “O Homem da Nave”.
Lisboa: Bertrand Editora.
Domingues Á. (2011). Vida no Campo. Porto: Dafne Editora.
Ferreira D-M. (1985). “Notas sobre a “continentalidade” de Aquilino”, Revista Co-
lóquio Letras, Número 85, Maio de 1985, pp. 73-80. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian.
Herbert D. (1996). “Artistic and Literary Places in France as Tourist Attractions”, in
Tourism Management, Vol. 17, nº 2, pp. 77-85.
Machado A. (2019). “Um zelador de uma paisagem como lugar de criação da es-
crita”. Prefácio inserido em Aquilino Ribeiro e as Terras do Demo, de Paulo
Pereira Pinto, Viseu: Edições Esgotadas.
Margarido A. (1985). “A aldeia, centro vital da visão do mundo de Aquilino Ri-
beiro”. Revista Colóquio Letras, Número 85, Maio de 1985, pp. 32-43. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian.
Medeiros C. A. (1985). “Terras do Demo. Aspectos Geográficos”. Beira Alta. Volume
XLIV. Fascículo 3, pp. 369-388. Viseu: Assembleia Distrital de Viseu.
Neto P. (2022). “Andando, Andando Estrada de Santiago fora”, Introdução à Edição
Estrada de Santiago, pp. 7-20. Lisboa: Bertrand Editora.
Lopes Ó. (1999). “Um lugar de nome Aquilino”. in 5 motivos de Meditação. Campo
das Letras.
O TURISMO LITERÁRIO NAS TERRAS DO DEMO, UMA VIAGEM COROGRÁFICA PELA FICÇÃO DE AQUILINO RIBEIRO
119
Aquilino Machado
*
Centro de Estudos Ibéricos. Universidade de Coimbra.
122 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Legenda
PAULA SOUSA*
*
Chefe de Divisão do Património Histórico, Cultural e Documental da Câmara Municipal de Almeida.
126 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Eduardo Lourenço em S. Pedro do Rio Seco, quer para o dar a conhecer a uma
geração de jovens estudantes do território do concelho de Almeida.
Propusemo-nos por isso, conhecer o lugar para podermos ampliar o leque
de ofertas do território. Era necessário captar o espírito do sítio, aquele que terá
encantado o Pensador, ultrapassando a dimensão dos seus múltiplos Tempos.
Monumento a Eduardo Lourenço de autoria do escultor Leonel Moura, inaugurado a 6 de Agosto de 2011 em
cerimónia promovida pela Associação rio Vivo e pelo CEI; Vista aerea de S. Pedro do Rio Seco.
RODRIGO, ANA, LILIANA, ÍRIS, LARA, SOLANGE, SIMÃO, AFONSO, EVA, BEA-
TRIZ, IARA, OS ALUNOS LEITORES
“É muito bonita a perspetiva de conhecermos uma aldeia pelos olhos de um escritor.”
“Gostei da experiência, foi mais do que uma leitura.” “Uma oportunidade de conhe-
cer um pouco sobre Eduardo Lourenço e sobre a aldeia de S. Pedro do Rio Seco.”
“Uma atividade interessante com textos profundos, nada fáceis, mas que no fim se
compreendem.”
Ler Eduardo Loureço no largo da capela, junto ao Chafariz e na antiga escola (atual Junta de Freguesia)
SÃO PEDRO DO RIO SECO: ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO
131
Paula Sousa
Pela Rua da Igreja, chegamos à Igreja de S. Pedro (VI). O mais singular dos
edifícios do núcleo urbano, estaria, para o autor, vazio (a partir da Páscoa no ano
em que teria 16 anos). O senhor de todos os tempos teria, provavelmente, fugido
de automóvel, e ainda que fosse muita a vontade dele na obtenção de uma Gra-
ça que tornasse crível a existência de Deus e fizesse feliz a sua mãe, ela não veio
e os anjos desistiram dele, abandonando-o.
132 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Descemos para a Rua do Ribeiro, paramos num muro (VIII) de ancestral apa-
relho construtivo ainda modelado com a mestria de outros tempos, no meio há
uma picota parada e perante este “quadro”, ainda tão vulgar nos “centros me-
nores raianos” somos remetidos para a leitura sobre tempo sem tempo, onde o
seu avô lavrava e rezava como se ambas as tarefas fossem uma única coisa, que
uma vez aprendida, assim seria para sempre.
ALMEIDA
Como escreveu António Machado, Presidente da Câmara Municipal de Al-
meida, por ocasião da inauguração do Memorial a Eduardo Loureço, em 2021
em Almeida, “Eduardo voltou à sua origem, prendendo-se à terra de onde partiu
para mais tarde voltar, cumprindo-se o desígnio português de sermos habitantes
do mundo”.
Terminamos este apontamento com a formulação de um desejo: eternizar
Eduardo Lourenço, no seu S. Pedro do Rio Seco através da estruturação de um
passeio literário, tornando assim possível salvaguardar os lugares-monumento
de que ele nos falou e sobre os quais pensou enquanto importantes símbolos de
identidade e memória. Para isso contamos com os parceiros do costume, porque
só assim será possível continuarmos a fazer o caminho.
Este passeio literário pode ser complementado com outros lugares. Formula-
mos o convite para visitar a Praça-Forte de Almeida, deixar-se seduzir pelo sin-
gular monumento da fortaleza e admirar mais um Memorial a Eduardo Lourenço,
cuja sobriedade e simplicidade se conjuga harmoniosamente com a retilinearida-
de do desenho urbanístico da Praça. Esta peça, com desenho e pintura azulejar
de Graça Morais remete-nos para as várias dimensões e fases do Pensador e
pode ser contemplada no Largo ao qual se deu o seu nome.
Memorial de Homenagem a Eduardo Lourenço da Pintora Graça Morais, inaugurado a 23 de Maio de 2022
134 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
1. Chafariz; 2. Casa grande; 3. Casa onde nasceu Eduardo Lourenço; 4. Escola; 5. Muro; 6. Igreja;
7. Calvário; 8. Cemitério
(I) Chafariz “O que eu aprendi aqui foi a vida anterior às letras. A vida, o que se vê o
que se sente, os únicos momentos em que uma pessoa tem um sentimento de que
existe verdadeiramente e não por procuração, e não ao segundo ou terceiro grau
em que eu sou verdadeiramente especialista. Não, eram coisas simples. Um tanque
que era uma espécie de silêncio em vez de ser um volume de água. Os pássaros que
enchiam a Aldeia. Os estorninhos que nos eclipsam os crepúsculos violentos, quase
tropicais de certos dias. O cuco que pontuava como um relógio. Este ar transparente
que nos cerca. As nuvens, as nuvens sobretudo, que eram de cinema divino, um cine-
ma sem autor onde nós podíamos escrever, todas as revelações, todos os fantasmas
que se podem ter numa vida de criança.” (EL: Iberografias 2018, nº 34, p. 138)
(II) Casa Grande “(...) Na verdade, além desse encontro com a literatura na minha
infância, que foi realmente decisivo para mim, foi também decisivo ter visto aqui o
primeiro filme, que ainda era de cinema sonoro, na adega desta casa que está aqui,
que era a casa nobre cá do sítio, a casa da família Afonso. Havia uma adega por fora,
parecia um daqueles ambulantes que tinham os pequenos filmes, que passavam ain-
da no tempo do sonoro. Lembro-me desse primeiro filme, como se fosse hoje. Trata-
va-se da vida de Cristo, eu penso que devia ser de um do Cecil B. De Mille, qualquer
SÃO PEDRO DO RIO SECO: ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO
135
Paula Sousa
coisa desse género. Eu sei que o filme era projectado num lençol que já estava muito
riscado. Eu pensei que tinha chovido durante toda a vida de Cristo e tinha muita
compaixão, além da paixão, além da comiseração pelas dores, e por aquela tragédia
divina, tinha uma compaixão particular porque era tanta chuva sobre Nosso Senhor
Jesus Cristo, que era a pessoa mais importante da minha terra e mesmo do mundo.”
(EL: Iberografias 2018, nº34, p. 138)
(III) Casa de Eduardo Lourenço “… S. Pedro – julho, 1946. Em minha casa cada qual
arrasta a sua ternura familiar numa solidão perfeita. E começo a dar-me conta que
ninguém virá em nosso socorro. Um pudor total consome-nos os gestos antes de nas-
cerem. Por isso demonstramos um estilo irónico, uma maneira de fazer de conta que a
ternura não existe, que vai até à agressividade. Por maior que seja a minha aplicação,
meu pai nunca me deu a entender que está satisfeito comigo. Emprega circunlóquios
divertidos de uma brevidade cortante para significar no máximo que não está descon-
tente. E pelo meu lado um gesto tão natural como de beijar o meu pai ou a minha mãe,
não vai nunca sem uma tentativa premeditada de o passar em claro. Não sei como isto
começou. Creio que meus pais não puderam nunca vencer a reserva camponesa do
mundo da sua infância. Ou então que não chegaram a ter tempo, tão dura a vida se
lhes tornou pelo número de filhos. Mas a verdade é que passei o tempo a estender
braços inúteis para o silêncio deles. “(um (e)terno olhar: 2008, p. 72)
“Na família em que nasci, na casa que foi minha, a nossa, não havia outro Senhor,
literalmente falando, que Jesus Cristo. Tudo esteve ordenado em sua honra, o temor,
e o louvor, os gestos e a horas. Mais tarde compreendi ― com a cabeça nunca com
o coração ― que vivi nessa casa sem horas datadas de há muito séculos. Noutras
terras outros relógios das torres marcavam outro tempo. O nosso era um tempo sem
tempo, alegoria de uma eternidade onde tudo quanto importava já tinha acontecido”.
(Publico Magazine, 21 abril 1996)
(IV) Escola “Todos temos a nossa mala, não é só Pessoa, eu também tenho a minha
malita, ou antes a malinha do meu pai. E nessa malinha havia o tesouro dos tesouros,
de toda a infância: um livro. Apesar de tudo, apesar desse encontro, apesar dessa
paixão pela leitura eu nunca serei nunca fui outra coisa na minha vida que um leitor,
um leitor de tudo (...). Mas, talvez por ser realmente esse leitor eu não fui outra coisa,
que provavelmente tinha gostado de ser. Ser alguém que deu a esta terra alguma
coisa que ela não tinha, um suplemento do imaginário, como só os poetas ou os ro-
mancistas são capazes de dar.EL, Regresso sem fim (Iberografias 2018, nº 34, p. 137)
“Mas na verdade, o que eu aprendi aqui, fora das letras, foi muito mais importante
que tudo o que eu podia aprender nas letras. O que eu aprendi aqui foi a vida anterior
às letras.” (EL: Iberografias 2018, nº34, p. 138)
(V) Muro “Um dia um automóvel, um simples automóvel atravessou a minha aldeia.
Era a primeira vez. Ninguém deu conta, mas alguma coisa de novo acontecera. Al-
guma coisa de terrível. Cristo fugira de automóvel. Quando o carro atravessou a pe-
quena aldeia ele dividira o tempo em dois. Os homens clarividentes deviam ter visto
que era pelo meio dum quadrante eterno que ele passava. O tempo sagrado estava
136 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
morto. Pelo menos não era já o tempo único. Tinha de dividir as atenções dos ho-
mens com o tempo profano, o tempo do simples automóvel. É verdade que durante
centenas de anos o tempo sagrado teve de sofrer menos transigências. Os cuidados
do pão e da vinha, a música e a dança eram subtis degradações da viagem perfeita
neste mundo. Mas tudo voltava à ordem logo que um filho estava para nascer, ou
mesmo uma simples vitela, e para ninguém se podia apelar senão para o Senhor que
por distração os abandonara. E a doença e a seca e a chuva interminável eram avisos
precisos do Senhor. E finalmente essa certa morte que como uma foice monótona
juntava periodicamente a aldeia inteira à volta de um parente de todos, de um irmão.
Mas agora era diferente. A história de Cristo não falava e automóvel. Havia alguma
coisa que não pertencia a essa sabedoria secular. (...) Sem eles saberem uma grande
luta se renovava no meio deles e muitos não podiam pensar ao mesmo tempo em
Nosso Senhor e no automóvel sem experimentar uma impressão esquisita. Seriam
inimigos?” (O outro lado da lua: a Ibéria segundo EL/ed. e entrevista Maria Manual
Baptista 2005, pp. 92 e 94)
“Meu avô – depois fiquei sabendo que era um personagem algo singular – não era
diferente de um monge do século XIII. Ele lavrava a terra como quem reza – eu
vi – e rezava como quem lavra a terra. De uma e outra coisa fui testemunha e nem
sequer testemunha admirada. A sua real “imitação de Cristo” – tão humilde que
nem lhe passava pela ideia que o fosse – tem pouco a ver com qualquer imitação
do Mestre (...) Havia simplesmente um exemplo herdado um estilo de viver e de
morrer que vinha da fundura compacta dos tempos.” (Publico Magazine, 21 abril
1996)
(VI) Igreja “Aos dezasseis anos era uma afirmação pretensiosa a de ter perdido fé.
Chego a achar isto tão ridículo que não tive ainda a coragem de o confessar a nin-
guém. Mas é um facto. A corrente centenária de uma vocação familiar partiu-se mis-
teriosamente nesta miséria que leva o meu nome. Na última Páscoa levei a cabo toda
uma comédia para falhar pela primeira vez um ato que cumprido como desejaria
minha mãe seria o sacrilégio mais raro. Foi o último ato duma existência hipócrita,
envenenado por um amor monstruoso incapaz de ferir o rosto. Meu pai está longe e
como todos os homens acarreta uma solidão uma solidão pessoal que lhe vela a dos
outros. Mas minha mãe que me observa e me conhece como ninguém mais, suspeita
sem poder acreditar a minha frieza religiosa. Infelizmente considera-a sem nenhuma
espécie de simpatia. O seu amor por mim é tão cego que não pode crer a sério que o
seu filho não creia em Deus. O que é espantoso é que ao mesmo tempo que endure-
ce uma tal fé em mim, torna-se funda ainda na consciência da minha amargura e por
amor dela não só desejo que uma graça volte de novo como chego a crer que não me
tenha abandonado de todo.” (um (e)terno olhar: 2008, pp. 72, 74)
“Realmente vivo, tão maravilhoso que nem mesmo nos parecia maravilhoso, era so-
mente o Cristo, modelo dos nossos jogos porque era da nossa idade, senhor das
searas e das vinhas, porque ele mesmo era pão e vinho, e também da vida e sobretu-
do da morte, porque era da idade de toda a gente e incomparavelmente mais velho
que toda a gente. Ele era mesmo o criador do Céu e da Terra e a primeira manhã
do mundo já o encontrara e Ele a pé. Pouco sabíamos uns dos outros ou jamais se
SÃO PEDRO DO RIO SECO: ROTEIRO EDUARDO LOURENÇO
137
Paula Sousa
falava disso – que a história não existia ainda – mas cada qual sabia a história inteira
de Nosso Senhor Jesus Cristo. Era a única história da família. Era a única história da
história pois todos os acontecimentos eram ainda história sagrada. Como as espigas
e os frutos voltavam cada ano e eram sempre espigas e frutos, ninguém achava mis-
tério algum na história espantosa. Ele era o menino que nascia todos os anos quando
a neve e o vento de Espanha punham nos campos uma branca desolação dispersa
e todos os anos ia crescendo até que os homens o crucificavam e crucificado o le-
vavam pelas ruas onde um suave vento de primavera espalhava as flores amarelas
mimosas. E ao terceiro dia ressurgia de entre os mortos e era pela aldeia toda uma
alegria como não há outra, pelo grande Senhor tão conhecido de todos que sozinho
voltara da morada da morte.” (O outro lado da lua: a Ibéria segundo EL/ed. e entre-
vista Maria Manual Baptista 2005, p. 95).
(VII) Calvário "Cristo não disse que vinha salvar a humanidade como um mágico, mas
veio convencido de que a humanidade se salvaria através do amor que ele portava
em si mesmo. Tenho na referência crística a referência fundamental da minha educa-
ção e da minha maneira de ser." (Diário de Notícias 2003).
A tragédia já é, em si, nós não podermos escapar aquilo que nos espera, seria uma
injustiça para todas as outras pessoas, que eram os nossos e que já morreram, que
nós não fossemos capazes de suportar aquilo que eles suportaram quando chegou
o fim deles. E ir para a morte como se todos aqueles que nos conheceram e nós
amámos estivessem connosco.
(VIII) Cemitério “Não enterramos os mortos. Sejamos mais humildes, são os outros
que se enterram em nós. Uma certa noite, o sentimento nauseante de desamparo em
que chegaríamos a procurar um certo conforto porque ele nos fazia único e era um
argumento implacável contra esse pedido de contos que alguém parece apostar em
exigir, abandona-nos como uma sombra e na manhã seguinte regressamos à velha
pele do Adão sem mortos, à superficialidade incolor das horas quotidianas.” (um (e)
terno olhar: 2008, pp. 74, 75).
Tu habitaste um planeta desaparecido. Não podias adivinhar que o que te cercava
era mais estranho que a face escondida da lua. Se tivesses sabido que o granito tris-
te, as mãos terrosas, as camisas encardidas da tua gente, seus gestos, suas palavras
já haviam morrida há séculos e te batiam no rosto como a luz das estrelas há muito
extintas, terias sido mais atento. Assim tudo te passou como água entre os dedos.
Mais tarde podias ter registado essas vozes, o diálogo entre fantasmas que elas não
sabiam ser, mas ninguém te preparava para Óscar Lewis da tua própria gente. Tu
habitaste entre gente medieva, medievo tu mesmo. E foi o melhor que te aconteceu.
(J.L., 8 de maio de 1996, p. 47)
Foi quase anteontem que fui eterno. Sei que ninguém pode acreditar nisso. Nem eu.
A verdade é que nesse tempo ignorava a morte e a morte me ignorava. Os mortos
desse tempo não eram a morte (...) tudo era natural como as estações. Não podia
imaginar que nesse planalto varrido de vento tinha um limite, que era um exíguo
jardim onde um dia eu mesmo cairia como uma maçã apodrecida. Sempre me re-
cordara do céu atormentado e sem fim. Sempre conhecera o seu rio de pouca água
onde nunca nadei. Sempre viajara nesse vento onde ainda não distinguia o rumor
138 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
invisível das falas de ninguém. Sempre pudera caminhar para onde queria nesta ter-
ra escura e triste e nunca vira ninguém a achá-la particularmente triste. As manhãs
tinham o rosto ocre das amoras verdes e à noitinha o horizonte debruado de violeta
e sombra não fazia lembrar senão outros crepúsculos. Tudo era sempre nas coisas e
nas almas.” (O outro lado da lua: a Ibéria segundo EL/ed. e entrevista Maria Manual
Baptista 2005, p. 95).
REFERÊNCIAS
Batista M. M. (2005). O outro lado da lua: a Ibéria segundo EL. Ed. e entrevista Maria
Manuel Baptista, 1.ª Ed. Publicação; Porto: Campo das Letras, pp. 91,92,94 e 95.
Batista M. M., Cruzeiro M. M., Castro F., (2023). Tempos de Eduardo Lourenço –
Fotobiografia; Maia; Contraponto Editores. pp. 32-47.
Isidro A., Almeida A. J. D. de, Ferreira J. C., Romana, J. M. M. da; Jacinto R., Bento
V. (2008). Um (e)terno olhar – Eduardo Lourenço, Virgílio Ferreira e a Guarda,
Edição Centros de Estudos Ibéricos, pp. 72,74, 75 e 284.
Jacinto R., Cabero V. (2018). Andanças e Reflexões Transfronteiriças: Roteiro Miguel
de Unamuno – Eduardo Lourenço, 1.ª Ed. – Guarda: Centro de Estudos Ibéricos;
Lisboa Ancora 2018, Iberografias; 34, pp. 137 e 138.
Podcast "A Beleza das Pequenas Coisas", Expresso, 2016.
J.L. – Jornal de Letras, Artes e Ideias, 8 de maio de 1996 (1995/9/10)
WEBGRAFIA
Jornal de Notícias, in www.jn.pt/artes/eduardo-lourenco-em-40-frases-13095805.
html
https://www.publico.pt/2023/03/04/fugas/reportagem/piccolo-mondo-antico-sao-
-pedro-rio-seco-aldeiamundo-eduardo-lourenco-2041036
https://www.jornalaguarda.com/index.php/atualidade/o-homem-e-por-essencia-al-
guem-que-vive-dos-sonhos-maiores-do-que-ele
https://www.publico.pt/2017/07/31/culturaipsilon/noticia/eduardo-lourenco-a-terra-
-nao-merece-este-genero-de-sonhos-mal-sonhados-1780705
https://www.pensador.com/frase/MjkyNTkxMQ/
https://www.paroquiaqueijas.net/portal/igreja-e-noticia/opiniao/864-eduardo-lou-
renco-em-40-frases
PALMILHANDO A GUARDA DE
EDUARDO LOURENÇO
PREÂMBULO
No ano das comemorações do centenário do nascimento de Eduardo Louren-
ço de Faria (1923-2020), impunha-se rever o lugar que o reputado ensaísta ocu-
pa na mais alta cidade lusa que conheceu na infância e na adolescência e da qual
1
lhe ficaram gratas memórias, apesar do «frio quase mítico» que aí experimentou
e de se ter apercebido, anos mais tarde, que, naquele tempo, «quem dominava a
2
cidade, quer a nível simbólico, quer a nível político, eram os padres» .
Nela viveu em curtos intervalos de tempo. O seu percurso escolar e formativo
teve início em São Pedro do Rio Seco, a aldeia natal, passou por Lisboa, onde
estudou em regime de internato no Colégio Militar, e concluiu-se na Universida-
de de Coimbra, onde se afirmou como intelectual «heterodoxo», para depois se
tornar num cidadão do mundo. Nesse processo de formação e aprendizagens
da vida, a Guarda foi o cenário da sua primeira experiência de paisagem urbana,
3
com a descoberta da luz elétrica nas casas , do primeiro ano do Liceu, das visi-
tas à família nas férias grandes e no Natal, tendo sido no quartel dessa capital
de distrito que cumpriu o serviço militar, ou seja, foi a sua «cidadezinha» onde
viveu intermitentemente até à idade adulta. Habitar (n)a Guarda não deixou de
ser uma espécie de avant-goût dos anos que passou em Coimbra, sendo esta
4
a «pátria da [sua] iniciação cultural» . Depois de se mudar para o estrangeiro, a
Guarda tornou-se para Eduardo Lourenço um mero local de passagem quando
5
se deslocava entre França e Portugal. A «cidade de alturas» passou a fazer parte
*
Técnico superior do Município da Guarda | Museu da Guarda.
1
Eduardo Lourenço, «Ares da Guarda», In RODRIGUES, Américo (coord.). ar livro. Guarda: Núcleo de Animação
Cultural / Câmara Municipal da Guarda, 2004. (2 pp.)
2
Entrevista a Eduardo Lourenço de José Manuel Mota da Romana, «Esta cidade era a mais clerical do país»,
Terras da Beira, 2-5-1996, Guarda, p. 5.
3
Entrevista a Eduardo Lourenço de Luís Baptista-Martins e Nuno Amaral Jerónimo, publicada em O Interior
em agosto de 2011 e republicada no mesmo jornal, na sua edição de 26 de maio de 2023. Disponível em:
«Estamos na Europa e é nela que temos que encontrar a solução para a crise» - Jornal o Interior.
4
Eduardo Lourenço, «Lembrança espectral da Guarda». In RODRIGUES, Américo (coord.) Praça Velha – revista
de Cultura da Cidade da Guarda. 1. Guarda: Câmara Municipal da Guarda (pp. 91-97), 1997, p. 95.
5
Eduardo Lourenço, «Oito séculos de altiva solidão», In JACINTO, Rui & CABERO, Valentín (coord.). Iberografias.
34. Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço. CEI - Âncora
Editora (pp. 99-103), 2018, p. 102.
140 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
dos seus espaços míticos, tal como a aldeia natal, a zona raiana, a Beira, onde o
seu imaginário podia captar de quando em vez energia interior para sustentar a
sua dinâmica mental.
Mal sabendo um do outro durante décadas, a Guarda reata ligação com
Eduardo Lourenço a partir de meados dos anos 90 e desde aí estreitaram rela-
ções, criando uma cumplicidade benéfica para ambas as partes, sobretudo para
a Guarda. A perceção, memória e visão que o Professor tem da cidade vai evoluir
6
nesse processo de reaproximação . Se, em 1977, Eduardo Lourenço se referia,
7
numa carta endereçada a Jorge de Sena , à Guarda como «essa capital de neve
e de reaccionarismo pátrio, onde rapei um frio que ainda hoje sinto e que é para
mim apenas uma cidade de fantasmas. (…). Ou com mais verdade e modéstia,
eu o fantasma dela» (Sena 1991: 110), em 2008, opera-se uma mudança na visão
que tinha do lugar e o seu discurso adota outro tom. À ideia da estranheza e do
frio sucede a da familiaridade e do calor humano: «nesta cidade (…) a quem me
ligam tantos laços afectivos» (Lourenço 2008: 5). Enquanto a cidade cresce e
se renova, requalificando várias áreas do seu tecido urbano e construindo no-
vas infraestruturas, com novos polos culturais, o ensaísta passa a colaborar com
8
algumas iniciativas editoriais locais . Em 1999, na conferência que proferiu na
sessão solene das Comemorações dois Oitocentos Anos da Guarda, lança a ideia
da criação de uma instituição que refletisse, culturalmente falando, sobre os dois
lados da fronteira e em 2000 é criado formalmente o Centro de Estudos Ibéricos
(CEI), cuja instalação, arranque e programação de atividades passa a acompa-
nhar com especial atenção. Em 2004 institui-se o Prémio Eduardo Lourenço para
distinguir personalidades e instituições de relevo de Portugal e Espanha. A partir
daí, vem todos os anos à Guarda até 2018 presidir à entrega do galardão. Em
2005, é inaugurado a sede do CEI, na Quinta do Alarcão (hoje Campus Interna-
cional de Escultura Contemporânea). Em 2008, o Município distingue Eduardo
Lourenço, atribuindo à nova biblioteca municipal o seu nome. O homenageado
doa à recém-criada instituição cerca de 3000 volumes da sua biblioteca particu-
lar. No domínio que toca à arte pública, duas obras perenizam-no na cidade: o
memorial a Eduardo Lourenço, executado por Florencio Maíllo, erguido, em 2017,
no Campus Internacional de Escultura Contemporânea, e, em 2023, no âmbito
das comemorações do centenário do seu nascimento, é instalado no Jardim José
6
Sobre essa reaproximação, reconheceu Eduardo Lourenço, em 2011, que a ela se deve em boa parte àquele
convite recebido do Município da Guarda para proferir a oração de sapiência, em 1999, na sessão solene dos
Oitocentos Anos do Foral que D. Sancho I atribuiu à Guarda, em «Quem vê o seu povo vê o mundo todo»»,
In JACINTO, Rui & CABERO, Valentín (coord.). Iberografias. 34. Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro
Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço. CEI - Âncora Editora (pp. 131-139), 2018, p. 133: «Provavelmente
sem aquela cerimónia da Guarda, nada disto, nada desta espécie de coisas teria, realmente, acontecido».
7
A carta é datada de 23 de maio de 1977.
8
Foi, por exemplo, entre outras colaborações, cronista regular do jornal O Interior, da Guarda, entre 2000 e
2006.
PALMILHANDO A GUARDA DE EDUARDO LOURENÇO
141
Thierry Proença dos Santos
9
Ver o desdobrável «Roteiro Lourenciano – Uma volta pela Guarda com Eduardo Lourenço». Câmara Municipal
da Guarda / Museu da Guarda, 2023. (Col. «Percursos Temáticos, 5»)
10
Ver Anabela Matias, «A Guarda de Vergílio Ferreira e Tomás Ribeiro, Contributos para um Roteiro Literário».
In SANTOS, Thierry & PEREIRA, Vitor (coord.). Praça Velha – Revista Cultural da cidade da Guarda. 44. Guarda:
Câmara Municipal da Guarda, 2023, pp. 127-147.
11
Entrevista a Eduardo Lourenço de Dina Gusmão, «Recordar Vergílio Ferreira», publicada no Correio da Manhã,
Lisboa, na sua edição de 9 março de 2004: «Tinha com Vergílio Ferreira uma relação de longa amizade,
142 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
12
de Montemor , leitor informado de Miguel de Unamuno, conhecedor de alguns
poemas de Augusto Gil, é provável que Eduardo Lourenço não viesse a estranhar
tal convívio ditado mais pela geografia do que por afinidades eletivas.
Na verdade, é com Miguel de Unamuno e Vergílio Ferreira que teve maior
proximidade, visto terem em comum determinados interesses literários e filo-
sóficos. Em relação ao primeiro, refira-se que, na sua carreira de professor uni-
versitário em Nice, Eduardo Lourenço deu «cursos sobre Unamuno» e, bem mais
tarde, chegou mesmo a dar uma conferência sobre o seu pensamento e obra, na
Universidade de Salamanca, onde Unamuno lecionou e foi nomeado por duas
13
vezes Reitor . Quanto à voz literária virgiliana, além de a ter analisada em várias
ocasiões, como não evocar, na sua conferência intitulada «Lembrança espectral
da Guarda» proferida nessa mesma urbe em 1995, as sombras de Estrela Polar,
designadamente através do termo «espectral» que o título da mesma retoma,
sendo esse um termo recorrente no referido romance? Além da menção direta a
Estrela Polar enunciada no seu discurso, Lourenço parece revisitar nessa confe-
rência as suas memórias da Guarda ainda impregnado pela atmosfera «sideral»
e algo lúgubre, como num filme «noir», dessa paisagem urbana (embora aí desig-
14
nada como Penalva) recriada pela voz narrativa de Adalberto Nogueira .
«-âmbulo»
A modalidade do circuito literário temático pressupõe um périplo numa deter-
minada área geográfica com base numa obra literária que a evoca, descrevendo-
-a, ou então, num ilustre escritor que a vivenciou ou que nela residiu.
Na prática, do ponto de vista de quem delineia e dinamiza o percurso literá-
rio, a sua elaboração apresenta-se como um exercício que obriga a interrogar
iniciada nos anos 50 e que durou até à sua morte. Do homem, retenho a seriedade com que encarava o
mundo e a exigência para com tudo o que o cercava, até para com os amigos a quem ouvia tanto quanto
julgava. Não era um homem fácil e muito menos tranquilo». Em 1949, Eduardo Lourenço escreve o prefácio
do romance Mudança. Ao longo da sua vida, trouxe a lume alguns estudos sobre a obra de Vergílio Ferreira.
12
Eduardo Lourenço, «Lembrança espectral da Guarda». In RODRIGUES, Américo (coord.) Praça Velha – revista
de Cultura da Cidade da Guarda. 1. Guarda: Câmara Municipal da Guarda (pp. 91-97), p. 95: «Menos conhecia
os seus poetas, com exceção do autor de Luar de Janeiro, Augusto Gil, um António Nobre sem pose, mas
também sem o seu génio, que andava, a justo título, nas seletas com a celebérrima «Balada da neve», que
parece ter deixado traços num famoso poema de Pessoa. Dos vivos, vi passar na rua, envolto em soturnidade,
Nuno de Montemor, a caminho do lactário desta cidade, um autor da nossa província profunda que evocava
para um largo público católico do país, dramas e paixões do mundo eclesiástico».
13
Entrevista a Eduardo Lourenço de Luís Miguel Queirós, «Retrato de um pensador errante», publicada no
Público (Caderno de domingo - Pública), na sua edição de 13 de maio de 2007.
14
A esse respeito, escreveu Cristina Robalo Cordeiro, em «De Guarda à Literatura – com Vergílio Ferreira e
Eduardo Lourenço». In ISIDRO, A.; ALMEIDA, A J. D. de; FERREIRA, J. C.; ROMANA, J. M. M. da; JACINTO, R. & BENTO,
V. (coord.). Um (e)terno olhar – Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a Guarda. Guarda: CEI (pp. 25-28), 2008,
p. 25: «é curioso constatar que Vergílio Ferreira e Eduardo Lourenço, sem se terem conhecido na época,
partilham uma mesma experiência de juventude na Guarda. Se seis anos apenas separam as suas datas de
nascimento (e uma tal distância, nessa idade, equivale à diferença de geração), uma visão comum da cidade
reúne as memórias de ambos a ponto de tornar as suas notações quase intermutáveis, acontecendo mesmo
que Eduardo Lourenço recorra às evocações de Vergílio (…) para confirmar as suas próprias impressões».
PALMILHANDO A GUARDA DE EDUARDO LOURENÇO
143
Thierry Proença dos Santos
Quer isto dizer que a literatura mantém com lugares reais uma relação dialéti-
ca: há lugares que inspiram uma obra literária e há obras literárias que conferem
valor a um determinado lugar.
Para além disso, é particularmente vantajoso para um território municipal do
Interior, que tende a sofrer de uma fraca atratividade turística, identificar, valo-
rizar e explorar a memória de personalidades literárias que nele praticaram ou
imaginaram uma espécie de geografia sentimental, assim como registar outros
sítios literários com potencial para se tornarem um bem cultural (suscitando a
motivação educativa) ou até uma atração turística (suscitando a motivação de
entretenimento). Entendemos por «sítio literário», com Anabela Sardo (2008:
85), locais como a casa de escritor, paisagens, o café-tertúlia, um teatro, uma
biblioteca, um centro de documentação ou um museu dedicado a uma ou várias
personalidades literárias, um espaço ficcionado por um autor num cenário real e,
ainda, um lugar onde um vulto das letras viveu temporariamente e do qual houve
ressonâncias na sua obra.
Neste sentido, o roteiro pode ser considerado como um recurso para o de-
senvolvimento cultural, social e turístico do território, pois tal contributo ajuda a
qualificá-lo. Como refere Bouvet (2019: 113), o passeio literário pode visar vários
propósitos, a saber, o de natureza económica (atrair turistas), o de cariz político
(afirmar uma identidade local e/ou regional) e o de carácter cultural (divulgar
conhecimento sobre o património local).
Assim sucede com uma cidade como a Guarda. Os lugares de memória literá-
ria espalhados pela urbe contribuem para a reputação cultural da mesma, para
que esta conquiste notoriedade e reconhecimento e promova o orgulho que os
seus cidadãos devem ter nela.
Tendo em conta o prestígio do ensaísta e conferencista, como não valorizar a
relação de Eduardo Lourenço com a Guarda? Como não aproveitar o pensamen-
to e a visão que elaborou para essa cidade? Como não reconhecer as vantagens,
quer no campo do simbólico, quer no campo da produção de conhecimento, que
o exemplo deste Professor e da sua obra trouxe para a vida cultural guardense?
A elaboração do «roteiro lourenciano» assentou nas seguintes fontes: textos
de Eduardo Lourenço que versam sobre a Guarda, entrevistas que cedeu ao
PALMILHANDO A GUARDA DE EDUARDO LOURENÇO
145
Thierry Proença dos Santos
15
Ver JACINTO, Rui & CABERO, Valentín (coord) (2018). Iberografias. 34. Guarda: CEI-Âncora Editora.
146 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
PÓS-ÂMBULO
Ao palmilhar um itinerário balizado por topoï associados a uma personalida-
de ilustre das letras, é como se os passos do itinerante literário convergissem
para lugares que valem a pena ser conhecidos, quiçá recordados tal como os
terá vivido o Autor que serve de fio condutor. Tal percurso pode fascinar o iti-
nerante pela sua dimensão espiritual, no sentido em que lhe será possível por
momentos relacionar a sua experiência do lugar com o imaginário geográfico
que o Escritor transpôs para a sua escrita. Entre emoções e sensações físicas, na
sua busca do espírito dos lugares, o itinerante poderá fruir o passeio como uma
viagem interior, à medida que a área percorrida se lhe revela.
O «roteiro lourenciano» em papel (para já apenas em português) é uma ini-
ciativa do Município da Guarda, através do seu Museu, imbuída com o propósito
148 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
REFERÊNCIAS
Ensaios, entrevistas e correspondência:
Lourenço E. (1997). Lembrança espectral da Guarda. In Rodrigues A. (coord.) Praça
Velha – revista de Cultura da Cidade da Guarda. 1. Guarda: Câmara Municipal da
Guarda, pp. 91-97.
Lourenço E. (2018). Oito séculos de altiva solidão. In Jacinto, Rui & Cabero, Valentín
(coord.). Iberografias. 34. Andanças e reflexões transfronteiriças: Roteiro Miguel
de Unamuno – Eduardo Lourenço. CEI - Âncora Editora, pp. 99-103.
Lourenço E. (2004). Ares da Guarda. In Rodrigues A. (coord.). ar livro. Guarda: Nú-
cleo de Animação Cultural / Câmara Municipal da Guarda. (2 pp.)
Lourenço E. (2008). Um dom com memória futura. In Bento V. (org.). Leituras de
Eduardo Lourenço, um labirinto de saudades, um legado com futuro. Guarda:
CEI/ Câmara Municipal da Guarda.
Lourenço E. (entrevista de José Manuel Mota da Romana) (1996). Esta cidade era a
mais clerical do país. Terras da Beira. Guarda. 2-5-1996.
PALMILHANDO A GUARDA DE EDUARDO LOURENÇO
149
Thierry Proença dos Santos
Bibliografia crítica:
Bonniot-Mirloup A. & Blasquiet H. (2016). De l’œuvre aux lieux: la maison d’écri-
vain pour passerelle (France). Territoire en mouvement. Revue de Géographie et
d’Aménagement. Géographie, Littérature, Territoires. 31, pp. 1-19.
Bouvet R. (2019). La promenade littéraire, un dispositif pour des lecteurs en mou-
vement. Enjeux et société. 6 (2), pp. 109-140. https://doi.org/10.7202/1066695ar.
Carvalho I. & Baptista M. M. (2015). Perspetivas sobre Turismo Literário em Portugal.
Revista Turismo & Desenvolvimento. 24, pp. 55-68.
Cordeiro C. R.(2008). De Guarda à Literatura – com Vergílio Ferreira e Eduardo Lou-
renço. In Isidro A.; Almeida A. J. D. de; Ferreira J. C.; Romana J. M. M. da; Jacin-
ta R. & Bento V. (coord.). Um (e)terno olhar – Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira
e a Guarda. Guarda: CEI, pp. 25-28.
Cruzeiro M. M. & Baptista M. M. (org.) (2003). Tempos de Eduardo Lourenço – Foto-
biografia. Porto: Campo das Letras.
Jacinto R. & Cabero V. (coord.) (2018). Iberografias. 34. Andanças e reflexões trans-
fronteiriças: Roteiro Miguel de Unamuno – Eduardo Lourenço. CEI, Âncora Edi-
tora.
Jacinto R. (2020). Eduardo Lourenço e a sua heterodoxa (des)Geo(a)grafia. Cader-
nos de Geografia. 42. Coimbra: FLUC, pp. 127-137.
Jacinto R. (2020). Tributo a Eduardo Lourenço nos vinte anos do Centro de Estudos
Ibéricos. In Jacinto R. & Isidro A. (coord.). Iberografias. 16. Guarda: CEI, pp. 9-14.
Jacinto R. (2021). Esboço de ensaio sobre o ensaísta: Eduardo Lourenço, a Guarda e
o seu labor na construção do centro de Estudos Ibéricos, na secção Homenagem
a Eduardo Lourenço. In Jacinto R. & Isidro A. (coord.). Iberografias. 17. Guarda:
CEI, pp. 321-342.
Sardo A. N. (2008). Turismo Literário: uma forma de valorização do património e da
cultura locais. Egitania Sciencia. pp. 75-96.
COIMBRA LITERÁRIA. UM ROTEIRO
1
VICENTE G., Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente, Introdução e normalização do texto de Maria Leonor
Carvalhão Buescu, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, [Inova / Artes Gráficas. Porto. 1984]. 2 vols.
COIMBRA LITERÁRIA: UM ROTEIRO
153
Divisão de Turismo da Câmara Municipal de Coimbra
2
QUEIROZ E., O Francesismo, Editorial Nova Ática, Lisboa, 42007.
154 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Antero foi, sem dúvida, o grande mestre de toda uma nova geração, que no
meio literário, ficou conhecida como a Geração de 70. Geração irreverente, com
novas ideias e ideais e muito vontade de mudar o estabelecido. É esta geração
que acaba, na pessoa de Antero de Quental, protagoniza a polémica literária
conhecida por Questão Coimbrã, na da troca de epístolas entre Feliciano de
Castilho e Antero Quental ficou célebre o panfleto Bom Senso e Bom Gosto.
Carta ao Excelentíssimo Senhor António Feliciano de Castilho. Antero defende
que a literatura portuguesa que deve acompanhar «o pensamento moderno […],
as tendências da ciência […] a nova escola histórica […] e a renovação filosófica
4
[…]» .
E é esta rebeldia característica das novas gerações que irá também pautar as
gerações vindouras século após século, como por exemplo no século XX, com
novas “revoluções” literárias, com nomes como Vitorino Nemésio, Miguel Torga,
Branquinho da Fonseca, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, Afonso Duarte,
José Régio, entre muitos outros que habitaram a Alta da cidade de Coimbra. To-
me-se como exemplo, e deixando o Largo da Feira dos Estudantes e avançando
para a Couraça dos Apóstolos e Rua das Flores, onde encontramos a casa onde
morou Carlos de Oliveira, grande amigo e companheiro de Eduardo Lourenço,
apesar de algumas grandes divergências; ou, já na rua das Flores, n.º 37, local da
primeira redação da Revista Presença e onde morava José Régio:
«Coimbra, 19 de outubro de 1924
3
Anthero de Quental. In Memorium, Mathieu Lugan Editor, Porto, 1896
4
QUENTAL A., Bom Senso e Bom Gosto. Carta ao Excelentíssimo Senhor António Feliciano de Castilho, Imprensa
da Universidade, Coimbra, 1865
COIMBRA LITERÁRIA: UM ROTEIRO
155
Divisão de Turismo da Câmara Municipal de Coimbra
5
RÉGIO J., Páginas do Diário Íntimo, Círculo de Leitores, Lisboa, 1994
6
NOBRE A., Só, Introdução por Maria Ema Tarracha Ferreira, Editora Ulisseia [Tilgráfica – Sociedade Gráfica
Lda. Braga. 1998]
156 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
7
RÉGIO, J., Fado – Versos, Arménio Amado Editor, Coimbra, 1941.
8
RÉGIO J., Páginas do Diário Íntimo, Círculo de Leitores, Lisboa, 1994.
9
Notas biográficas em documento dactiloscrito acrescentado à mão, publicado em ROCHA C., Miguel Torga
– Fotobiografia, Publicações Dom Quixote, Porto, 2000.
COIMBRA LITERÁRIA: UM ROTEIRO
157
Divisão de Turismo da Câmara Municipal de Coimbra
10
TORGA, M., Poesia Completa, Publicações Dom Quixote, Porto, 2000.
leituras
de eduardo lourenço:
nos como futuro
*
Departamento de Linguística e Literaturas da Universidade de Évora.
164 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Pues bien, creo que si pretendemos analizar con rigor nuestro papel en el
futuro, en el área de los Estudios Ibéricos, deberemos estar atentos a una nueva
realidad coyuntural que nos haga abrir bien los ojos ante la necesidad palpable
de soñar con una relación cultural ibérica cada vez más abierta, plural y rizomá-
tica, que admita la posibilidad de un trazado geocultural en el que la diversidad
lingüística sea un valor añadido y en nada despreciable. De la posibilidad de
entender el diálogo Portugal-España apenas como un diálogo Lisboa-Madrid, de
centros de poder, debemos tender paulatinamente al entendimiento de la Penín-
sula como un espacio poliforme, como una auténtica constelación de elementos
culturales con colores diversos pero con raíces comunes. Una vez trazadas las
claves fundamentales de las relaciones entre los centros hegemónicos de poder
cultural, con sus evidentes consecuencias en las diversas formas del canon, se
hace necesario abrir el diálogo a las hasta hace poco consideradas culturas peri-
féricas, que dotan a la tierra ibérica de una situación privilegiada desde el punto
de vista cultural. La cultura, sin duda, debe ayudarnos a aprender a conjugar la
pluralidad con la singularidad, compatibilizando el marco común de cada Estado
con el proyecto compartido de convivencia democrática. Los Estudios Ibéricos,
como disciplina académica, creo que tienen la responsabilidad y el deber ético
de adentrarse por esos caminos, de analizar y dar a conocer la verdadera di-
mensión de la pluralidad de la Península, y de hacerlo sin considerar culturas
grandes y pequeñas, sino, en todo caso, autores y obras grandes y pequeños
independientemente de la lengua en que se expresen.
En tiempos como los que vivimos, de exasperación de los nacionalismos, los
Estudios Ibéricos se constituyen en un campo firme para el desarrollo académico
de un conocimiento basado en el respeto al otro, a sus principios y convicciones.
Solo el conocimiento pleno y profundo de esas diferentes formas de ser nos
proporcionará el retrato fiel y completo de quiénes somos, hijos de una Iberia
que Fernando Pessoa soñó como la potencia futura de una nueva forma de impe-
rialismo, pero de un imperialismo no económico ni político, sino cultural, basado
en la energía proyectada por la convivencia activa de las tres culturas que se
asentaron históricamente en la Península. Una fórmula que también Teixeira de
Pascoaes soñó como una mezcla maravillosa y algo fantasmagórica de Quijotis-
mo y Saudade, pero a la que era también necesario añadir los ecos del catalán
Joan Maragall y de la gallega Rosalía de Castro, para completar el coro armónico
de voces ibéricas.
Por todo ello, me parece imprescindible trabajar en el asentamiento de esta
área de estudios en el contexto ibérico, haciéndonos eco de la importante pre-
sencia que va adquiriendo en otros contextos, como el anglosajón. Es importante
trabajar para construir un imaginario cultural ibérico entrelazado, con dinámicas
propias e historias tantas veces comunes. Y creo, también, que este desafío que
se nos impone como materia de futuro debe responder a otros dos principios
166 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Já outras vezes escrevi que Eduardo Lourenço foi uma espécie de sol que
irradiou luz, uma luz fecunda, iluminadora do nosso pensamento e da nossa vida
coletiva. É a essa luz solar que a sua obra se abre em cada página, convocando-
-nos sempre à leitura do prazer da descoberta, à inovadora análise da realidade,
ao labirinto das ideias que fazem o caminho da nossa relação com o mundo.
Sábio que foi, sem nunca se mostrar como tal, menos oráculo e mais homem co-
mum, ele decifrava pacientemente, à conversa ou à escrita, o labiríntico universo
da cultura, mostrando que o chão nosso do mundo é um processo de persistente
aprendizagem, que todos os dias recomeça nos desafios que a sociedade coloca
no meio do caminho, como a pedra do poema de Drummond.
O universo de Eduardo Lourenço é feito de matéria de sonho, construído pela
força criadora da sua palavra, numa incessante afirmação de que, como queria
Malraux, «a cultura fosse a herança da qualidade do mundo».
Eu gosto de olhar e frequentar os milhares de páginas das suas Obras Com-
pletas, ainda em publicação, e tenho sempre a impressão de que estou a con-
templar uma pátria de palavras a respirar futuro. Esse chão verbal, que é a bio-
grafia de Eduardo, foi a forma que ele encontrou, com «empenho do coração»,
de ficar e falar connosco, como memória viva e fecunda do tempo. Mestre do
pensamento e da pedagogia da esperança, cidadão do imaginário, é assim que
eu continuo a vê-lo, de cada vez que a voz das suas palavras questiona velhos
arcaísmos ideológicos da sociedade portuguesa, define os mitos que povoam as
fronteiras «entre o Portugal real e o Portugal sonhado», ou convoca a consciência
crítica à invenção de uma nova humanidade. Num país virado para o efémero,
o pensamento de Eduardo Lourenço foi sempre de horizonte temporal de longa
duração, o que lhe permitiu tratar tão profunda e insistentemente a problemati-
zação da nossa identidade cultural.
Das coisas boas que me aconteceram na vida foi conhecer Eduardo Lourenço
e ser seu amigo. Pude partilhar momentos singulares à sua roda. Às vezes, era o
nó de terra originário, S. Pedro de Rio Seco (o seu “Paris-Texas”, como escreveu
um dia nas páginas de um diário desaparecido), outras a memória da Guarda
“sideral” e “crepuscular” na metáfora de um “navio de pedra ao alto de uma
*
Jornalista e Escritor.
168 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
CARLOS REIS*
*
Centro de Literatura Portuguesa/Univ. de Coimbra.
172 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
de 1986, está inscrita no arco temporal que vai de 1984 a 1988, em que se situam
os ensaios de Lourenço, coligidos em Nós e a Europa ou as duas razões.
Depois de 1986, ano da integração dos países ibéricos na CEE, a temática do
iberismo, mais as suas perceções e imagens, mudaram consideravelmente – e
nem de outra forma poderia ter acontecido, naquele novo contexto geopolítico.
Dois aspetos dessa mudança: emerge, pelo menos em Portugal, uma consciên-
cia de pertença europeia que, amenizando complexos de marginalidade muito
antigos, está harmonizada com mutações históricas decisivas, como a normali-
zação da vida democrática e o desaparecimento do império colonial. Por outro
lado, o aprofundamento do chamado projeto europeu favoreceu a eliminação
de fronteiras entre os países europeus que aderiram à chamada Convenção de
Schengen. E também, evidentemente, entre os dois vizinhos, que assinaram
aquela convenção em 1991.
Estas não foram mudanças pacíficas nem inconsequentes. Cito um testemu-
nho de desconforto, por Miguel Torga. Sendo insuspeito de saudosismo em rela-
ção ao passado anterior a 1974, Torga, sintonizado com o iberismo idealista dos
Poemas Ibéricos (de 1965), entra em choque com uma realidade que quase o
ofende. Uma página do diário de 1988:
Verín, 13 de setembro de 1988 – A Espanha sempres amada e sempre temida. Aqui
ando, mais uma vez, maravilhado e aterrado, a vê-la progredir, progredir, e aproxi-
mar-se ameaçadora da fronteira. O meu iberismo é um sonho platónico de harmonia
peninsular de nações. Todas irmãs e todas independentes. Mas é também uma pai-
xão escabreada, que arrefece mal se desenha no horizonte qualquer sinal de hege-
monia política, económica ou cultural. Que exige reciprocidade na sua boa fé e nos
seus arroubos. Que quer apenas comungar fraternamente num mais largo espaço de
espiritualidade (Torga 1990: 133).
nos Poemas Ibéricos. Isto não impede que se fale de uma receção produtiva de
Miguel Torga por parte de Saramago, o que justifica esta afirmação: “A Ibéria
proposta por Saramago nasce do ideário torguiano” (Grossegesse 2009: 111).
É verdade que são muito reduzidas as referências de Saramago ao autor dos
Poemas Ibéricos (veja-se uma página do terceiro volume dos Cadernos de Lan-
zarote, quando da morte de Torga, a 17 de janeiro de 1995). Mas também parece
aceitável “interpretar o silêncio de Saramago acerca de Torga como indício de
uma autoafirmação que prescinde da mão de um autor português contemporâ-
neo, bem conhecido na vida literária portuguesa pelo seu Iberismo” (Grosse-
gesse 2009: 115). Saramago desejaria “beber diretamente nas fontes da cultura
e literatura hispânicas e chegar a um conceito ibérico original” (Grossegesse
2009: 115).
Em todo o caso, Saramago vai além do plano mítico-simbólico que domina a
coletânea torguiana, bem como da caracterização psicoantropológica daquela
diversidade, tal como ela se manifestara em Oliveira Martins, de forma mais in-
1
tuitiva do que objetivamente científica.
Ibérica da Europa. Começa então uma viagem aparentemente sem rota defini-
da, cujos grandes significados assumem a feição da alegoria, um dispositivo de
representação que ressurge em obras subsequentes de José Saramago (duas
delas: Todos os Nomes e O Homem Duplicado). No caso d’A Jangada de Pedra,
a viagem é protagonizada por cinco personagens-viajantes que, provindas de
vários lugares da Ibéria, se juntam na aventura comum da navegação. Recordo
os seus nomes: Joana Carda, de Ereira, perto de Coimbra, Joaquim Sassa, de
uma praia do norte de Portugal, Pedro Orce, habitante de uma aldeia homónima
do seu apelido, na província de Granada, José Anaíço, que vive perto do rio Tejo,
e Maria Guavaira, uma viúva natural da Galiza. Mas não só. A estas personagens
junta-se um cão, animal muito da preferência do autor, com o nome de Constan-
te, e os dois cavalos (Pig e Al) que puxam a carroça que serve o grupo.
Com a jangada à deriva pelo oceano, sobrevém uma interrogação inevitável
que vem dar uma nova orientação à causa iberista: onde terminará a viagem?
A imagem da deriva que usei não é fortuita; ela sugere uma deambulação ou,
talvez melhor, uma deslocação sem porto de chegada previsto, como que em
busca de um destino ainda por definir. Com uma única certeza: a Europa fica
cada vez mais longe.
Introduz-se aqui um outro sentido: o sentido do afastamento, mais aquilo que
ele implica. Cito A Jangada de Pedra:
Este foi o dia assinalado em que a já distante Europa, segundo as últimas medições
conhecidas ia em cerca de duzentos quilómetros o afastamento, se viu sacudida, dos
alicerces ao telhado, por uma convulsão de natureza psicológica e social que drama-
ticamente pôs em mortal perigo a sua identidade, negada, nesse decisivo momento,
em seus fundamentos particulares e intrínsecos, as nacionalidades, tão laboriosa-
mente formadas ao longo de séculos e séculos (Saramago 1986: 160).
Há, então, uma identidade em perigo, tendo nos seus alicerces as naciona-
lidades e o seu longo trajeto histórico. Mais adiante, fala-se disso, ou seja, “da
séria crise de identidade com que se debateram [os países da Europa] quando
milhões de europeus resolveram declarar-se ibéricos” (Saramago 1986: 213).
Assim mesmo: “declarar-se ibéricos”, como se antes da insólita separação esti-
vesse cancelada a solidariedade dos europeus para com uma condição ibérica
agora descoberta como motivo e bússola para a viagem.
Neste que é um dos romances de José Saramago com mais evidente propó-
sito político, fica clara uma ideia: a denúncia de uma distância aparentemente
inultrapassável entre a Península Ibérica, como espaço periférico e até marginal,
e o poder da Europa central e centralizadora. E também uma segunda ideia,
que em José Saramago transcende o mundo narrativo d’A Jangada de Pedra:
o conhecimento de Espanha por quem repensa o iberismo exige o respeito pe-
las nacionalidades ibéricas e pelas suas diversidades, interditando uma visão
176 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
homogeneizadora do país vizinho; para mais, esse vizinho foi olhado, do lado
português e ao longo de séculos, como inimigo. Em vez disso (terceira ideia) pa-
rece conveniente que Portugal e Espanha cultivem um processo de descoberta
mútua e repensem a sua posição geoestratégica, relativamente à América Latina
e também à África.
A crítica ao chamamento europeísta passa por aí e abre uma via própria de
reflexão acerca do iberismo. Fica claro que uma parte importante daquela des-
coberta recíproca implica a desmistificação de imposições culturais provindas de
um “comportamento aberrante que consiste numa Europa eurocêntrica em rela-
ção a si própria” (Saramago 2018a: 258). É isto que Saramago afirma, numa con-
ferência de 1998, com o título “Descubramo-nos uns aos outros”. De certa forma,
a ofensa eurocêntrica, reforçada pelo contexto político dos anos 80, explica A
Jangada de Pedra, romance que, no conjunto da produção saramaguiana, não
é dos mais valorizados pela crítica. Uma das lacunas (ou talvez, a lacuna…) que
nele se aponta é a indefinição de um porto de chegada, como se a navegação da
jangada não tivesse um rumo determinado.
REFERÊNCIAS
Baltrusch B. (2014). “A nova Mensagem do trans-iberismo – sobre alguns aspetos
utópicos e metanarrativos do discurso saramaguiano”, en Burghard Baltrusch
(ed.), O que transforma o mundo é a necessidade e não a utopia. Estudos sobre
utopia e ficção em José Saramago. Berlin: Frank & Timme, pp. 53-72.
Gómez Aguilera F. (ed.) (2010). José Saramago nas suas palavras. Madrid: Alfagua-
ra.
Grossegesse O. (2009). “Torga em Saramago. Dos Poemas Ibéricos à Jangada de
Pedra”, in Veredas, 11, pp. 109-130.
Lourenço E. (1988). Nós e a Europa ou as duas razões. 2ª ed. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda.
Martins J. P. O. (1885). História da Civilização Ibérica. 3ª ed. Lisboa: Liv. Bertrand.
Sáez Delgado A. e Pérez Isasi S. (2018). De Espaldas Abiertas. Relaciones literarias
y culturales ibéricas. Albolote: Editorial Colmares.
Sáez Delgado A. (2020). “José Saramago, transiberiste”, in C. Reis (org.), José Sara-
mago. Nascido para isto. Lisboa: Fundação José Saramago, pp. 47-61.
Saramago J. (1986). A Jangada de Pedra. Lisboa: Caminho.
178 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Saramago J. (1990). “Mi iberismo”. Prólogo a César António Molina, Sobre el ibe-
rismo y otros escritos de literatura portuguesa. Madrid: Ediciones Akal, pp. 5-9.
Saramago J. (2018a). Último Caderno de Lanzarote. Porto: Porto Editora.
Saramago J. (2018b). O Caderno. Porto: Porto Editora.
TODO ES FUTURO
Con Eduardo Lourenço todo era futuro y esta no es una frase de efecto, quie-
nes le conocían, tantas personas aquí, sabían que nuestro patrono, el hombre
al que nos acogemos en este Premio y en este lugar, era así, un ser humano de
futuros que iba desvelando paso a paso, usando su portentosa imaginación y la
cultura viva que le mantuvo y nos mantuvo. Aclaro la frase inicial: era un hombre
de futuro porque era, y de qué manera, un hombre de papeles perdidos: jamás
encontraba el texto que acababa de escribir, el diario en el que había anotado
ideas necesarias, el libro que iba comentar. Lo pasado y tangible desaparecía
de sus manos, era como si lo concreto le fuera esquivo, por tanto necesitaba de
tiempo por delante para reconstruir pensamiento e historias, necesitaba tardes y
noches sin límites para recuperar los pasos dados, ahora lo haría, cada vez más,
con otra seguridad, con mayor dominio del andar, con una humanidad todavía
más desbordada. Eduardo Lorenzo no vivía para recordar, usaba el tiempo para
seguir diciéndose y diciéndonos quienes somos y cual es nuestro poder. El de los
hombres y mujeres que somos, personas levantadas, nunca rendidas, construc-
toras de tiempo y de nuevas historias. Siempre con curiosidad, alertas al prodigio
que puede producirse dentro o fuera de nosotros y a veces se produce, si se ha
sabido mantener la esperanza.
Queremos a Eduardo Lorenço. En Elegía a Ramón Sijé el poeta español Mi-
guel Hernández le dice al amigo muerto “compañero del alma, tan temprano”.
Pues eso, casi un siglo después de su nacimiento, poco después de su partida,
apetece decir aquí, en Guarda, que el apetito que de él teníamos no se colma,
que era temprano de más, que su humana sabiduría sigue siendo necesaria. Se
fue pronto, sin encontrar las agendas o los diarios perdidos, sin haber viajado
a Belem de Pará para visitar a la hermana y sin asistir a la temporada completa
de la Gulbenkian, esos conciertos donde él dirigía la orquesta con suavidad, sin
que nadie diera por eso, solo la música acudía a su cabeza y se instalaba como
la base sobre la que el maestro Lourenço seguiría edificando nuestro tiempo.
Y luego la cena, Lulas a Matos muy tiernas, masticas con observaciones de las
múltiples lecturas que estaba haciendo y con la mala conciencia por el prólogo
que ya debería de haber entregado y no había escrito. O la presentación de
*
Presidenta de la Fundación José Saramago.
180 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
día hicieron un viaje decisivo a Estocolmo, cuando uno de ellos iba a recibir el
Premio Nobel y el otro, decía, iba de “fiel escudero” y su presencia era un premio
mayor para el galardonado.
Estocolmo 1998, Gran Hotel. Eduardo y Annie formaban parte del grupo de
portugueses que invadieron la ciudad y, de alguna manera, la conquistaron.
Ocurre que cada premiado tiene derecho a invitar a diez personas a la ceremonia
del Premio y José Saramago decidió que sus lugares serían ocupados por per-
sonas que trabajaban la cultura portuguesa y la engrandecían. Con Eduardo for-
maban parte del grupo Carlos Reis, Maria Alcira Seixo, Baptista-Bastos, Luis Pinto
Coelho, Eduardo Prado Coelho, el presidente del Camoes y sus editores, a los
que se sumaron otros amigos y familiares que viajaron a Suecia para acompañar
y celebrar, pudieran entrar o no en las ceremonias. Eduardo Lourenço llevaba,
como casi todos, un frac alquilado que, como a casi todos, le sentaba regular,
pero él se veía principesco, hasta el punto de desfilar una y otra vez como si su
misión en la vida fuera la pasarela, de aquí a allí por los salones portando humor
y comentarios jocosos: “Nunca pensé estar aquí, que nací de Sao Pedro de Rio
Seco”, coqueteaba cercado de oropeles. En aquellos días de Estocolmo, que lue-
go decía recordar envueltos en bruma, recorrió la ciudad nevada, visitó museos,
se acercó a ver El Vasa, el navío de guerra que naufragó en su viaje inaugural,
y con Annie, que era hispanista y sabía, por razones familiares, lo que era el
internacionalismo, fue a ver la estatua de las manos unidas en homenaje a los
brigadistas suecos que acudieron como voluntarios la guerra civil de España en
apoyo de la legalidad republicana. Eduardo Lourenço departió con emigrantes
portugueses en aquellos días en que también ellos, expatriados, eran el centro
del mundo, hubo encuentros con los embajadores, tan amigos, visitas a librerías
y todo era un cuento de hadas para el filosofo, que lo vivía sin contradicción al-
guna, como incorporaba a su experiencia la terquedad de la larga noche sueca o
las luces de colores de las calles que pretendían combatir la soledad.
Las mesas del banquete del Nobel, en el fastuoso espacio de la cámara, es-
taban adornadas con chocolatinas que semejaban la medalla que los galardona-
dos acababan de recibir. A la mañana siguiente le pregunté, goloso como era,
si se había quedado con alguna. “¿Alguna? Fui recogiendo las que quedaron en
todas las mesas”, me dijo con la alegría del héroe.
El héroe que es, que hoy nos tiene aquí, sentados en Guarda, su Guarda,
sin saudades y con mucha alegría porque él nos sigue reuniendo y es capaz de
extraer de nosotros lo mejor que somos y tenemos. Empieza su Centenerio, su
otro futuro: Estaremos con él quienes con él “tanto quisimos,” por citar otra vez al
poeta español Miguel Hernández. Seguiremos leyendo a Eduardo Lourenço para
tratar de entender quienes somos. Ahora que, definitivamente, todo es futuro.
EDUARDO LOURENÇO:
VIDA E OBRA DE UM
heterodoxO
Quisiera, en primer lugar, dar las gracias al Centro de Estudios Ibéricos y a las
instituciones y personas que lo hacen posible, así como a los organizadores de
estas Conversaciones sobre Heterodoxias que forman parte de los actos de con-
memoración en el Centenario de Eduardo Lourenço. Para mí es un honor estar
aquí, por lo que que, de nuevo, muchísimas gracias, también a los compañeros
de la mesa y a todos ustedes, con los que será realmente un placer compartir el
diálogo. Que no nos falte ese diálogo: de hecho, si nos faltara, no tendría mucho
sentido hablar, ahora, aquí, de Eduardo Lourenço. Las alusiones, ya, al inicio,
son obvias: «El diálogo que nos falta», sí, pero también la completa «voluntad de
2
diálogo» (102) que tanto seguimos necesitando. Gracias por permitirme formar
parte de ello y participar en la conmemoración del centenario.
De hecho, este año de 2023 está repleto de centenarios. Por ejemplo, para
los que nos dedicamos en parte al ámbito de los estudios sobre José Ortega
y Gasset y su época, es un año importante, porque también se cumplen cien
años de un libro fundamental, El tema de nuestro tiempo, y de una de las más
importantes empresas orteguianas, la Revista de Occidente. En un autor como
Lourenço, donde es más que palpable la presencia de temas que también fueron
fundamentales para el filósofo madrileño — la idea de Europa, la frontera y el
límite, los problemas patrios, la superación de restos del siglo XIX, el tema del
tiempo, la idea de cultura, etc.—, no oculto que he estado tentado de preparar
mi intervención analizando ese vínculo, el de Lourenço y Ortega. Pero no sería
justo, y no lo sería sobre todo por dos razones: una, porque la conexión, pienso,
es sobre todo epocal; y otra, más importante, porque sería ya algo, de inicio, que
restaría protagonismo a Eduardo Lourenço y, obviamente, no es el momento, ni
tampoco el caso. Aquí el tema principal es Heterodoxia, el primer libro de Lou-
renço, y, aunque no sé si podremos evitarlo, más que nada porque es difícil no
extender hacia la actualidad algunas de las tesis que ahí se defienden, conven-
dría mantenernos en él. Yo, de hecho, querría mantenerme en él, así que dejaré
Universidad de Salamanca.
1
Este artículo forma parte de los resultados del Grupo de Investigación Reconocido de Estética y Teoría de
las Artes (GEsTA), adscrito al Instituto de Iberoamérica de la Universidad de Salamanca.
2
Introduciré constantes citas de Heterodoxia, señaladas únicamente con el número de página en el cuerpo del
texto, a partir de la edición: Eduardo Lourenço, Heterodoxia, I e II. Lisboa, Assirio & Alvim, 1987. La traducción
es mía.
188 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
los prólogos posteriores (91), es decir, que ya desde la forma, esa metafísica asu-
me una esencia puramente fronteriza, limítrofe, como la de todo ensayo, y, por
ello, dialéctica. Ahora bien, ¿qué dialéctica es ésa? No hay que ir muy lejos: es
la del primer párrafo del libro, sin duda, la de las primeras líneas del prólogo de
1949, la que acompaña a la imagen de la serpiente que muerde su propia cola,
ese Ouroboros que Lourenço percibe desde la mitología nórdica, Midgard. En tal
imagen ya se encuentran el tiempo, la vida y la muerte y, cito, también destaca
«la dialéctica viva suscitadora simultáneamente de bien y mal, de señor y siervo,
uno y otro unidos como el cuerpo a su sombra» (3). Dialéctica, sí, pero viva. Por
ello, el significado de este mito, si lo entendemos desde esa dialéctica viva y lo
percibimos como esencia de la realidad, «llámase heterodoxia», el «completo
movimiento de morder y ser mordido, la pasión circular de la vida por sí misma»
(3). Un círculo de pasión y vida, de eso se trataba.
Dialéctica viva, ensayo, movimiento, respeto por esa realidad dividida que
llamamos ser humano (6), pura libertad... en fin, heterodoxia. A estas alturas, ni
Hegel ni la metafísica nos asustan ya. Más cuando sabemos que hablamos de
un libro terriblemente personal y maravillosamente circunstancial. Una época,
un país, un jovencísimo aprendiz de filósofo... Cómo se transforma el libro cuan-
do se leen los distintos prólogos y Lourenço nos permite el acceso a su mirada
autobiográfica sobre él, el acceso a cuáles eran realmente las ortodoxias a las
que se enfrentaba, el acceso a los procesos de autocrítica y a la metamorfosis
de las continuaciones, incluso a la sensación de derrota. El libro como «opción
existencial», vaya (XIV). La metafísica, entonces, se percibe ya desde una vida
en sentido explícito. Pura dialéctica viva, en efecto. Pero pienso que, sin leer
tales prólogos, sin acudir a tales presencias externas del autor, incluso sin aludir
demasiado a las circunstancias personales y epocales que permiten entender
el libro, también es posible acceder a todo eso que luego reclamará Eduardo
Lourenço de un modo mucho más concreto.
Aunque sea muy brevemente, es a ello a lo que querría aludir para terminar:
a eso que ya se ve, aunque luego sea re-examinado en parte por el propio autor,
en el libro de 1949. Por eso permaneceré en Heterodoxia I, por eso la alusión
a Hegel y la metafísica, por eso la referencia a la dialéctica. Si el espíritu de la
ortodoxia, para Lourenço, es la expresión de «una espiritualidad penetrada de
voluntad de dominio temporal» (101), veamos, entonces, algunas rupturas ini-
ciales de tal dominio, las configuradas en torno a esa «humildad de espíritu» (6)
que es la heterodoxia.
Así, de un modo muy rápido y casi sin comentario, únicamente me limitaré
a recordar que la cultura que faltaba en «Europa o el diálogo que nos falta» era
aquella que «implica la continuidad de un esfuerzo espiritual que se supera pro-
fundizándose» (8) y, de este modo, asumía que «la vida auténtica del espíritu es
lucha, esfuerzo permanente para resolver dificultades». Por ello, la necesidad del
nietzscheano deseo de «no ceder a lo aparentemente definitivo e irremediable»
190 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
(10); por ello la clave de aquella cultura europea que buscaba Lourenço era la
de los conflictos y contradicciones para entrar en diálogo con ellos. Las formas
de actuación, en consecuencia, son muy claras, con unos efectos inmediatos:
inquietud universal, renuncia a lo estático, desprecio a la «perfección en la muer-
te» (11). Las cartas estaban echadas. De ahí se desprendía la necesidad de exi-
gir la renuncia expresa de toda ideología, que, asimismo, implicaba un requisito
previo, el más fundamental: el de libertad para rechazar o discutir. En fin, puro
humanismo, ése que percibe a Europa como diálogo. Tal lectura de base explica
también que a Hegel se vaya desde Croce, es decir, desde alguien que situaba
la Aufhebung, la asunción hegeliana, en un proceso de inclusión (24) que implica
la «pluralidad innumerable de conciencias» (25) y donde nada se supera y olvida,
es decir, donde la «continua permanencia» es fundamental si realmente quere-
mos vivir en un tiempo humano.
Entendido esto así, no ha de extrañar, entonces, que en el artículo sobre la
dialéctica interese el significado existencial del asunto y que Lourenço insista en
que tanto el idealismo como el materialismo dialéctico, es decir, Hegel y Marx,
los dos, sean la doble cara de una misma y peligrosísima tentación: «la tenta-
ción de lo absoluto» (37). La existencia humana «está entre» la inmediatez y la
trascendencia, leemos ahí, por lo que todo ideal «se anula al convertirse en exis-
tente» (40). Estar entre: asumir límites, limitaciones y fronteras, asumir el «estar
de paso». A Eugenio Trías también le hubiese gustado esto. En la breve historia
de la dialéctica que narra Lourenço lo principal, así, es la idealidad de lo finito,
la negación del aislamiento para las determinaciones, el carácter ilusorio de la
dialéctica cuando se la toma como «imagen de lo absoluto» (82). Frente a ello, la
«inagotabilidad de lo concreto» (82): ésa es la clave, eso es lo que salvamos de
la dialéctica y que no satisface del todo, dice Lourenço, en el sistema hegeliano.
No, no satisface del todo. Lo impide la mencionada tentación de absoluto.
Pero, si lo pensamos bien, sólo de estos extractos que acabo de recordar, tan
rápidamente y a vuelapluma, puede desprenderse el sentido de las alusiones
a Hegel, aunque no satisfaga y, en general, la presencia de la dialéctica en el
sentido de lo publicado en 1949. Y es que, de lo que hemos hablado es de 1) es-
fuerzo para resolver dificultades, 2) renuncia a lo detenido y estático, 3) continua
permanencia, 4) idealidad de lo finito y 5) trabajo en y con las fronteras, los lími-
tes y las mediaciones. Es un hegelianismo sin final, es una especie de dialéctica
negativa sin el poso marxista ni el exceso de tradición hegeliana: es, aunque sea
sólo en ciernes, una filosofía de frontera. En este sentido, ya ahí, podría decirse,
se colocaban las primeras piedras, y pienso que muy sólidas, de esa «filosofía
de la modestia» (220), la de la verdad como presencia eternamente ausente,
que algunos años después solicitaría el mismo Lourenço en lugar de los que él
consideraba ímpetus juveniles.
Muchas gracias.
REFLEXIONES SOBRE UN PEREGRINAR
HETERODOXO
1
ANTONIO NOTARIO RUIZ
Quiero comenzar con los agradecimientos por haber contado conmigo para
este Seminario: agradecimiento al Centro de Estudios Ibéricos, así como a las
instituciones que lo respaldan. Pero agradecimiento muy especial a las personas
que tanto esfuerzo y empeño han dedicado y dedican al cuidado y mantenimien-
to del legado de Eduardo Lourenço en general y a los del CEI en particular. Des-
pués de haber compartido dos días en el mes de Mayo pasado, en Guarda, en el
Congreso Leituras de Eduardo Lourenço, y de haber asistido a la inauguración
de la exposición del Servicio de Actividades de la Universidad de Salamanca en
la Hospedería Fonseca hace una hora, me siento todavía más honrado por la
invitación que me hicieron llegar para participar en este Seminario. Además, tan-
to el reencuentro con algunos de ustedes, como la oportunidad de encuentros
nuevos abren siempre otras posibilidades académicas y personales de diálogo y
de construcción de conocimiento.
Para iniciar mi presentación, que les advierto que será breve, quiero comen-
zar con tres confesiones. En primer lugar, no puedo dejar de informarles de que
no soy un especialista en la obra de Eduardo Lourenço. Y no crean que es una
declaración de falsa modestia o una forma de capatatio benevolentiae. No: no
soy más que un lector apasionado de Lourenço. He leído todo lo que he podi-
do escrito por él y sigo leyendo. He escuchado muchas de sus entrevistas que
se pueden encontrar en Internet. Pero no alcanzo ningún nivel de especializa-
ción. Les confieso también que he llegado a la cultura portuguesa en general y
a Lourenço en particular de la mano de Ángel Crespo. Efectivamente, el poeta y
traductor manchego fue un excelente embajador de la cultura portuguesa y ver
ahora en la exposición salmantina uno de sus libros dedicados a Eduardo Lou-
renço, – Poesía, invención y metafísica (1970) – me ha devuelto a mis primeras
lecturas de Pessoa. Por último, les confieso también que lo que conozco ya de
Lourenço me desborda y creo que es difícilmente abarcable por una sola per-
sona. Su erudición, su conocimiento profundo de la tradición literaria y poética
portuguesa, pero también de la española y de tantos y tantos autores de filosofía
Universidad de Salamanca.
1
Este artículo forma parte de los resultados del Grupo de Investigación Reconocido de Estética y Teoría de
las Artes (GEsTA), adscrito al Instituto de Iberoamérica de la Universidad de Salamanca.
192 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
2
«Escrita e norte», en Eduardo Lourenço, Heterodoxia, I e II. Lisboa, Assirio & Alvim, 1987, p. XIV.
3
Eduardo Lourenço, Portugal como destino. Lisboa, Gradiva, 1999.
REFLEXIONES SOBRE UN PEREGRINAR HETERODOXO
193
Antonio Notario Ruiz
de una orientación ibérica, aunque sin caer en los tópicos del iberismo. Eleván-
dose por la historia, la literatura y el pensamiento de ambos lados de la frontera,
Lourenço ejerce en muchas ocasiones como un intelectual ibérico. Por eso no
es extraño leerle citando a Calderón, Cervantes, Ortega o Unamuno de forma
tan atinada en un discurso que no se puede leer ni como portugués ni como
español sino ciertamente ibérico. Nivel casi imposible éste porque no parece ser
escuchado ni por unos ni por otros.
¿Quiénes somos? ¿Dónde estamos? ¿A dónde nos dirigimos? ¿No son esas las
preguntas que motivan esas heterodoxias, esas imposibilidades de conformarse
con unos u otros prejuicios? ¿No hay una insatisfacción inicial, una profunda insa-
tisfacción que empuja a Eduardo Lourenço a peregrinar en busca de un territorio,
de un marco de ideas y sentimientos, de un tesoro de palabras y conceptos que
ya no será de unos o de otros? ¿No es Iberia un bello sueño, una Ítaca peculiar
para algunos de un lado y otro de la frontera?
Tal vez echen de menos un cuarto nivel: el de ese otro bello sueño que ha sido
Europa. Europa como un destino que era obligado para portugueses y españoles
en los oscuros años de las dictaduras y que parecía poder conjugar las ansias
de libertad, de universalidad, de todo lo que no se podía vivir más acá de los
Pirineos. Pero Lourenço vivió con profundo pesar el despertar de ese sueño, el
desgarro de ese aterrizaje forzoso en otra realidad política después de la guerra
de Yugoslavia, despertar abrupto que ha devuelto a la ciudadanía portuguesa – y
también a la española – a la periferia, a la excentricidad y a una desnaturalizada
apariencia exótica y folclórica que nada tiene que ver con lo que parecía poder
4
llegar a ser . No somos lo que fuimos – si me permiten hablar en primera persona
del plural –. No somos lo que pudimos llegar a ser, lo que pareció posible ser
durante unos cuantos – pocos – años, entre los primeros setenta y los primeros
noventa del siglo pasado.
Por eso hoy, tanto o más que en sus primeros textos, nos queda solo el ca-
mino de las heterodoxias frente a unos y otros, los que, de la mano del capi-
tal, de la(s) ideología(s) y de la nueva inquisición obstaculizan el pensamiento
libre, el diálogo sereno y la concordia de los opuestos. Heterodoxias frente a
autoritarismos, cancelaciones, totalitarismos y toda la no pequeña colección de
enemigos acérrimos de la racionalidad y de la mejor sentimentalidad. Pensemos
en compañía de Lourenço, peregrinemos con él, aunque el peregrinar mismo se
convierta en un fin y no en un medio.
Muchas gracias.
4
Eduardo Lourenço, Nós e a Europa ou as Duas Razões. Lisboa, INCM, 1994.
MANUAL DE UM HETERODOXO À LA
RECHERCHE DE SON IDENTITÉ
1
FILIPA SOARES
Quisemos ser europeus, esquecendo, muitas vezes, que somos parte da es-
trutura vertebral da Europa. Assumimos que a europeização portuguesa só era
possível, despojando-nos de todos aqueles elementos que nos definem enquan-
to portugueses.
Habitámos com anterioridade a «teia imprevista do destino» (Lourenço 2013:
9) da Europa e perdemos ou, quiçá, ocultámos, num registo permanente de au
tocomplacência constrangida, as referências fundacionais da nossa identidade,
olvidámos “que esse modo intrinsecamente nosso de entender a vida é […] só
uma [mais] maneira cultural de ser europeus” (Soares 2021: 55).
À semelhança de Garrett, Alexandre Herculano ou da própria Geração de 70,
Eduardo Lourenço situou Portugal no cerne da cultura europeia, instituindo um
diálogo paritário e em igualdade de condições, ausente da subalternidade, por
nós e por terceiros, instaurada.
Hoje, numa Europa em crise, refém de si própria, despojada dos seus refe-
rentes fundacionais, urge reivindicar o pensamento de Eduardo Lourenço.
Assumir a diversidade cultural e civilizacional europeia é a única forma de
combater o sentimento de resignação e de espaço à deriva num mundo global.
A Europa é, hoje, uma "nostalgia de si mesma, e museu para sonhos exóticos
do mundo inteiro que há muito deixou de sonhar como fabricadora de um futuro
virtualmente universal" (Lourenço 2013: 10).
Compreender que a essência identitária europeia passa por se assumir, sem
preconceitos, nem complexos, na existência de duas (ou mais) realidades euro-
peias diferenciadas, é a única via provável para sairmos do impasse em que nos
encontramos.
REFERÊNCIAS
Lourenço E. (2001a). Europa y Nosotros. 1a ed.; Madrid: Huerga y Fierro editores.
Lourenço E. (2001b). A Europa Desencantada. 4a ed, Lisboa: Gradiva.
Lourenço E. (2011). Heterodoxias, Obras Completas, vol. I. Lisboa, Fundação Calous-
te Gulbenkian.
Lourenço E. (2013). "A Europa em Risco de Morte", Finisterra — Revista de Reflexão
e Crítica, pp. 78-79: 9-10
Martins Guilherme d’Oliveira (s.d.). "A Europa ou a Caixa de Pandora", Finisterra —
Revista de Reflexão Crítica, pp. 78-79: 11-18.
Piedade A. N. (2015). Em diálogo com Eduardo Lourenço. 2ªed., Lisboa: Gradiva.
Soares F. (2021). “Ao redor de Nós e a Europa ou as Duas Razões – Reflexões sobre
a construção de um imaginário identitário”. A raia na água. Eduardo Lourenço
e o mundo hispânico (Coord. Antonio Sáez Delgado e João Tiago Lima). Editora
Documenta; pp. 53-57.
RURAL MOVE ― ATRAIR PESSOAS, DINAMIZAR COMUNIDADES
199
João Almeida
ALGUMAS LEITURAS
DA EUROPA EM
eduardo lourenço
I.
Iremos elaborar uma breve leitura de alguns ensaios de Eduardo Lourenço
sobre “nós e a Europa”, com especial incidência em dois que consideramos
marcantes na sua bibliografia e pensamento sobre o diálogo ou não-diálogo de
Portugal e, em parte, da Espanha, com a outra Europa ou Europa além-Pirenéus.
Estes ensaios são: “Europa ou o diálogo que nos falta”, inserto no seu livro de
estreia Heterodoxia I (1949), e “Nós e a Europa ou as duas razões”, incluído no
livro com o título homónimo (1988). De facto, apesar de o segundo rematar, de
certo modo, as “expressas reservas metodológicas” (1987: 215) ao primeiro que
o autor já havia apresentado, como veremos, noutros textos, a verdade é que na-
quele ensaio inaugural era, porém, como salientou, incontornável o “sentimento
de uma inegável fraqueza cultural” (ib.) das “nossas coisas” (José Régio) e de
um “‘colonialismo cultural’” (1987: 215) perante o que se criava e importava da
Europa não-Ibérica, nomeadamente da França, metamorfoseada em obsessivo
modelo da nossa cultura.
Por isso, sem surpresa, Eduardo Lourenço assinala, num texto publicado em
1991, “Portugal e a Europa: a nova mitologia cultural”:
Há cem anos, talvez mesmo há vinte, a Europa era para a consciência cultural por-
tuguesa uma referência modelo não apenas pelo seu nível de vida, o seu bem-estar,
a sua maior organização, o funcionamento das suas instituições, mas também pela
*
ILCML . Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa.
204 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
sua cultura: a superioridade das suas escolas, as performances das suas invenções,
os sucessos da sua tecnologia – refiro-me naturalmente à Europa-Europa, à Europa
tecnológica mais avançada e socialmente mais organizada – não oferecia dúvidas. O
domínio das criações artísticas ou literárias, sendo de ordem mais subjectiva, podia
suscitar controvérsia mas o dinamismo das culturas francesa, inglesa, alemã, italiana
as suas grandes tradições, a influência dos seus autores junto de outras áreas, a
irradiação das suas revistas, dos seus programas televisivos, também tornavam essa
Europa num lugar de privilégio e de fascínio. (1991: 12)
Abertura que ecoa, afinal, o incipit de Causas da Decadência dos Povos Pe-
ninsulares nos Últimos Três Séculos de Antero de Quental:
A decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais
incontestáveis, mais evidentes da nossa história: pode até dizer-se que essa deca-
dência, seguindo-se quase sem transição um período de força gloriosa e de rica
originalidade, é o único grande facto evidente e incontestável que nessa história
aparece aos olhos do historiador filósofo. (Quental 2008: 35)
Note-se que, para Eduardo Lourenço não são, como para Antero de Quental,
os “povos peninsulares” que vêm arrastando uma “existência crepuscular” nos
últimos séculos, mas sim a ilha ou a nave-nação em que se transmuda Portugal.
Na realidade, exclui a cultura espanhola desse crepúsculo, citando, para o efeito,
Unamuno que, em oposição a Ortega y Gasset, não imiscui ou coloca em diálogo
a hispanidade com a outra Europa. Segundo o autor de Heterodoxia I, o país
vizinho possui, nesses séculos da decadência portuguesa, uma galeria universal
de grandes criadores, pelo que qualquer adolescente espanhol pode “ascender
através da sua meditação e aprofundamento até às raízes mesmas da cultura
do ocidente e travar com eles o diálogo necessário à progressão do espírito”
(1987: 10). Eduardo Lourenço contrariava, assim, a visão de Ortega y Gasset, em
España Invertebrada – Bosquejo de Algunos Pensamientos Históricos (1921), que
considerava a história espanhola, de 1580 até 1900, como uma história de deca-
dência e desintegração, relevando as várias fases da desintegração do império
espanhol, sendo o referido ano de 1900 aquele em que “el cuerpo español ha
vuelto a su nativa desnudez peninsular” (Gasset 1966: 67).
Em “Europa ou o diálogo que nos falta”, o jovem ensaísta propugna, igual-
mente com laivos polémicos, por uma cultura de raiz aristocrática, logo sem ce-
dências ao gosto popular. Daqui parte para a crítica desassombrada aos intelec-
tuais que adulavam as massas e, em concreto, à geração neorrealista dos seus
companheiros de Coimbra que, contrariamente aos esforços levados a cabo
pela Seara Nova e pela Presença, renunciava ao diálogo com o espírito euro-
peu, direcionando-o antes para o realismo social norte-americano e brasileiro.
Ora, apesar de cultivar essencialmente o romance, onde melhor se realizou a
geração neorrealista foi, porém, para Eduardo Lourenço, na poesia, porque mais
comprometida com a “violência individualista interior” (1987: 17) e menos com
as questões sociais. O estudo que publica em 1968, Sentido e Forma da Poesia
Neo-realista, disso nos dará, na nossa opinião, melhor testemunho.
Uma parte das reflexões de “Prólogo sobre o espírito da heterodoxia” e
“Europa ou o diálogo que nos falta” serão, como salientámos, reformuladas
ou mesmo contestadas pelo autor em ensaios posteriores, não ao jeito da pa-
linódia, mas interrogando-se e buscando novos caminhos para o seu ensaísmo
e para as suas reflexões sobre “nós e a Europa”. Para Maria Manuel Baptista,
206 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
as principais conceções de “Europa ou o diálogo que nos falta” que “irão ser
objecto de análise e elaboração, no seu todo ou em parte, pelo próprio Eduar-
do Lourenço” (Baptista 2003: 36), são o “humanismo ocidental” (ib.), “um certo
etnocentrismo” (ib.), “bem como a concepção elitista e neoplatónica da cultura”
(id.: 37). Sobre este ensaio inicial, o autor considerará, pelo seu lado, que nele
fez repercutir alguns “tópicos sergistas” (2004: 147) que contrariavam o discurso
nacionalista dos ideólogos e historiógrafos do Estado Novo. Facto que, acres-
centamos nós, associado à contestação das ortodoxias marxista e católica e ao
apelo à liberdade para que se concretizasse o nosso diálogo com o espírito eu-
ropeu, transformavam Heterodoxia I num sério candidato ao grande silêncio das
atapetadas censuras ortodoxas, o que virá a suceder durante anos. Na verdade,
excetuando Vitorino Nemésio, supomos que mais ninguém debateu criticamente
Heterodoxia I, no período que se seguiu à sua publicação. Nem sequer o lápis
azul se terá dado, por certo, ao trabalho de ler este livro com um título esdrúxulo,
mas que ousadamente não transigia na defesa da liberdade para que se ultrapas-
sasse a barreira da ausência de diálogo com a Europa mais desenvolvida e livre.
II.
Editado na revista Unicórnio de maio de 1951, “Ideia de uma historiografia
existencial do pensamento português” será o primeiro dos ensaios em que Eduar-
do Lourenço reformula, então, algumas das reflexões enunciadas em “Europa ou
o diálogo que nos falta”. Para o efeito, traça o diagnóstico da “descontinuidade
da nossa evolução espiritual” (2011: 147), a qual, inversamente ao “pensamento
francês, alemão ou inglês” (ib.), remete para o facto de os nossos pensadores
descontínuos não terem verdadeiros precursores nacionais. Ora, para a cultura
nacional tornava-se premente encontrar uma unidade que a fundamentasse e
que não estivesse intrinsecamente relacionada com um valor, mas com o ser des-
sa cultura, afastando, assim, de igual modo, a ideia de universalidade como “fun-
damento dos juízos sobre a cultura europeia em geral e sobre a nossa em particu-
lar” (id.: 152). E encerrava este ensaio destrinçando o tempo histórico português
do europeu, esse tempo em que viveram os nossos pensadores descontínuos
imiscuídos na “historiografia existencial” do título deste trabalho, historiografia
que pressupõe igualmente uma “psicanálise existencial” (id.: 154), onde a “cada
momento somos tão reais no que afirmamos como no que deixamos no silêncio”
(id.: 155). Mais tarde, observará que fomos, afinal, um povo feliz durante os sécu-
los XVII e XVIII, porque alheio às convulsões e inquietações do conhecimento e da
ciência que se desenrolavam na Europa transpirenaica desse período.
Num texto de 1957, “Cultura e realidade nacional ou uma querela sem sen-
tido”, Eduardo Lourenço volta, de algum modo, a reformular o exposto no seu
ensaio inaugural sobre a Europa, nomeadamente ao expor a ideia de valorização
EDUARDO LOURENÇO – “NÓS E A EUROPA” OU AS METAMORFOSES DE UM DIÁLOGO
207
Jorge Costa Lopes
III.
Em “Nós e a Europa ou as duas razões”, ensaio de 1988 inserto no livro de
título homónimo, editado nesse mesmo ano, Eduardo Lourenço regressa às suas
reflexões sobre o diálogo ou não-diálogo de Portugal e da Espanha com a Europa
não-ibérica. Espécie de remate do texto publicado em 1949, diremos, contudo,
que estas duas Europas estão, neste final de século, num tempo outro que inver-
teu praticamente o relacionamento entre a Europa Ibérica, outrora marginal, e a
não-Ibérica, outrora centro do mundo desenvolvido. De qualquer modo:
esta nova figura da cultura ibérica, nas suas manifestações mais gritantes – em parti-
cular as que ocupam o espaço televisivo – não depende tanto de qualquer alteração
substancial da nossa maneira de ‘ser europeus’, ou das formas de não-diálogo que
tem caracterizado a nossa relação com a Europa do que do contacto ou da imersão
num mais vasto oceano cujo epicentro já não é a Europa, mas o que pode chamar-se
a cultura ‘americano-ocidental’. (1994: 54)
208 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Qualquer que tenha sido o lugar privilegiado da sua eclosão ou predomínio, as ‘duas
razões’ disseminaram-se no vasto espaço europeu – e fora dele –, conheceram
metamorfoses imprevisíveis a ponto de fazer esquecer aquela quase metafísica,
o seu papel, na sua autodefinição da própria Europa como realidade cultural dife-
rente da do resto do mundo. Mas é bom que nós, Portugueses e Espanhóis, que
estivemos séculos dentro e fora do espaço onde se jogava ou se cria jogar a própria
ideia de universalidade, como se a ela se devesse sacrificar a da particularidade,
nos lembremos do que foi vivido pelos espíritos mais brilhantes das nossas culturas
como uma espécie de travessia do deserto. A nossa ‘nova identidade’ dentro da
Europa não pode prescindir dessa experiência. Faz parte da nossa memória e nós
dela. (1994: 65)
REFERÊNCIAS
Baptista M. M. (2003). A Paixão de Compreender. Porto: Edições Asa.
Gasset O. y (1967). Obras Completas – Tomo III (1917-1928), 6.ª ed. Madrid: Revista
do Ocidente.
Lourenço E. (1984). Ocasionais I. Lisboa: A Regra do Jogo.
Lourenço E. (1987). Heterodoxia I & II. Lisboa: Assírio & Alvim.
Lourenço E. (1991). “Portugal e a Europa: a nova mitologia cultural”, in Jornal de
Letras, Artes e Ideias, n.º 479, 10.09.1991: 12-13.
Lourenço E. (1994). Nós e a Europa ou as Duas Razões, 4.ªed. aumentada, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda.
Lourenço E. (2004). Destroços – O Gibão de Mestre Gil e Outros Destroços. Lisboa:
Gradiva.
Lourenço E. (2011). Heterodoxias, Obras Completas de Eduardo Lourenço I. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian.
Lourenço E. (2008). “Revisitação da mitologia anteriana”, in Quental A. de, Causas
da Decadência dos Povos Peninsulares nos Três Últimos Séculos, Lisboa, Tinta
da China: 9-29.
Lourenço E. (2023). O Labirinto da Saudade e Outros Ensaios sobre a Cultura Portu-
guesa – Obras Completas de Eduardo Lourenço XIII. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian.
Quental A. de (2008). Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Três Últi-
mos Séculos. Lisboa: Tinta da China.
DA RÚSSIA, COM A PAIXÃO EUROPEIA
DE EDUARDO LOURENÇO
― OU DE COMO CAEM AINDA PEDRAS DO MURO
DULCE MARTINHO*
Ainda antes de vos lermos a(s) epígrafe(s) escolhida(s) para encimar o texto desta
nossa comunicação, gostaríamos de iniciar a mesma (re)contando a pequena his-
tória real, com a devida vénia ao Professor Onésimo Teotónio de Almeida, através
de quem a conhecemos originalmente, de acordo com a qual, certa vez, convidado
para uma festa de Halloween de uma universidade americana, onde é tradição
ir-se fantasiado, Eduardo Lourenço se apresentou quotidianamente vestido e,
quando inquirido sobre a falta de indumentária adequada à ocasião, contestou
1
declarando-se mascarado de... “europeu” .
*
[email protected].
1
Cf. Onésimo Teotónio de Almeida, “A magia de uma personalidade”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias,
14 de maio de 2003, p.22.
212 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
e da história ― mas, nas suas próprias palavras, mudado «sem armas e sem ba-
2
gagens para a literatura » e José Gil apresenta-no-lo como «um filósofo animado
3
pela literatura» ―, (quase) nada do que é da montainiana “humana condição”
escapava à sua reflexão política, literária e estética, ou não fora ele o «filósofo
da cultura» tomado pela «paixão de compreender» como lapidarmente concluiu
Maria Manuel Batista (2003).
Assim, assumindo a valia do aforismo de Wittgenstein segundo o qual nos
devemos calar sobre aquilo de que não podemos falar, limitaremos a nosssa
intervenção à muito restrita temática da reflexão europeia de Eduardo Lourenço
que tem sido o objeto da nossa particular atenção. Em outros contextos, dedicá-
mo-nos a estudar a sua afetuosamente crítica leitura da centralidade da França
nos avanços e recuos de uma Europa que teima em não se fazer, pelo menos nos
termos utópicos em que o Professor a sonhava e a que se referia, por exemplo,
como «a utopia mesma do paradoxal objeto histórico-cultural que vivemos e a
4
que chamamos Europa», essa que, várias vezes à beira do abismo, por longos
perídos, meio adormecida, «tem um passado que é como as asas longas do al-
5
batroz de Baudelaire: impede-a de marchar».
Hoje, mantendo como ponto de mira palavras de Eduardo Lourenço, desloca-
mos o nosso olhar para outros lugares da/na geopolítica europeia.
2
Eduardo Lourenço, “As confissões de um místico sem fé”, in Prelo – Revista da Imprensa Nacional Casa da
Moeda, Lisboa , número especial, maio de 1984 (entrevista de Diogo Pires Aurélio), p.10. Trinta anos depois,
Eduardo Lourenço corrigirá tais palavras – que classifica como uma blague – afirmando: «Eu passei para a
literatura, não, eu passei para a fruição da literatura, que é diferente.(...) Ou para a tentativa de compreender
a literatura, de me interessar pelo mundo literário». Eduardo Lourenço, in Ana Nascimento Piedade, Em
Diálogo com Eduardo Lourenço, Lisboa, Gradiva, 2015, p.227.
3
José Gil, “O ensaísmo trágico”, in José Gil e Fernando Catroga, O Ensaísmo Trágico de Eduardo Lourenço,
Lisboa, Relógio D’Água, 1996, p.21.
4
Eduardo Lourenço (2000) “Da identidade europeia como labirinto”, in Eduardo Lourenço, A Europa
Desencantada: Para uma mitologia europeia, 2001, Lisboa: Gradiva, p.234.
5
Eduardo Lourenço, “A cultura não é a resposta, é a questão”, in Expresso - Primeiro caderno, 9 de janeiro
de 2016, p.3.
6
Uma prova de que Eduardo Lourenço é uma referência no/sobre o pensamento europeu será com certeza o
facto de o seu nome estar entre o das oitenta e cinco figuras escolhidas para formar o Dicionário das Grandes
DA RÚSSIA, COM A PAIXÃO EUROPEIA DE EDUARDO LOURENÇO ― OU DE COMO CAEM AINDA PEDRAS DO MURO
213
Dulce Martinho
Figuras Europeias (2019), pontificando ao lado, por exemplo, de vultos dos séculos XIX e XX dedicados à
“ideia de Europa” como os “pais fundadores” da atual União Europeia ou “grandes Europeus“ da valia de
Kant, Victor Hugo, Nietzsche, Churchill, de Gaulle, Habermas, Jacques Delors, Simone Veil e os portugueses
Maria de Lourdes Pintasilgo e Mário Soares, só para citar alguns nomes maiores que todos conhecemos.
7
Basta lembrar como em 1949 Eduardo Lourenço reconhecia já na sua primeira obra ensaística Heterodoxia
I «o diálogo que nos falta(va)», a nós, Portugueses, com a Europa.
8
Vejam-se, por exemplo, as crónicas “Mitterrand ou as Duas Franças”, Visão, 11 de janeiro de 1996, p. 53 e
“Mitterrand: a palha e o grão da história”, Público, 9 de janeiro de 1996, p.6, ambas escritas aquando do
falecimento de F. Mitterrand ― «excecional jogador político», nas palavras de Eduardo Lourenço, e reconhecido
defensor de uma Europa federal ― sob o mote do «unanimismo emocional» que a morte do seu “tonton”
provocou entre os Franceses.
9
De que apenas serão exemplos acontecimentos como os Tratados de Maastrich (1992) e de Nice (2000-2003);
a chegada da “moeda única” (2002 ); o Tratado de Roma (2004) e a tentativa fracassada de uma Constituição
Europeia (2005) com o “não” da França e da Holanda; diferentes eleições para o Parlamento Europeu e,
naturalmente, bem antes, a adesão de Portugal à, então, Comunidade Económica Europeia (1985).
10
Eduardo Lourenço (2001), “PREFÁCIO: O Ocidente e a sua deriva final”, in Eduardo Lourenço, A morte de
Colombo: Metamorfose e Fim do Ocidente como Mito, 2005, Lisboa: Gradiva, p.11.
214 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
11
Em itálico no original.
12
Eduardo Lourenço (1992), “A Europa no imaginário português”, in A Europa Desencantada: Para uma
mitologia europeia, 2001, pp. 114-115.
13
Eduardo Lourenço, que se refere com frequência à Inglaterra como, desde Churchill, uma espécie de cavalo
de Tróia dos Americanos na Europa, nunca a sentiu verdadeiramente na/com a Europa: «Se a Inglaterra tivesse
jogado o jogo europeu... Mas nunca jogou, nem o fará agora. Inventou um modo de dividir para reinar e
manteve-se ao largo. (...) E neste momento estamos já numa Europa sem Inglaterra.» Eduardo Lourenço, “A
Europa está a desaparecer do mapa”, in Visão, 22 de dezembro de 2011, pp.14-15.
14
A negrito no original.
15
Eduardo Lourenço (2001), in Maria Manuela Cruzeiro, Maria Manuel Baptista, Tempos de Eduardo Lourenço
– Fotobiografia, 2003, Lisboa, Campo das Letras, p.155.
DA RÚSSIA, COM A PAIXÃO EUROPEIA DE EDUARDO LOURENÇO ― OU DE COMO CAEM AINDA PEDRAS DO MURO
215
Dulce Martinho
grandes causas, o nosso ensaísta confirmava a sua visão disfórica das conse-
quências destes acontecimentos surpreendentes:
«Quando o Muro de Berlim caiu – para mim o maior dos mistérios da história contem-
porânea –, pressenti que esse muro não caía só para um lado. O espaço soviético
modificava-se, mas a Europa ia sofrer efeitos que, nessa altura, ainda não sabia quais
eram. O mais visível é que a pulsão nacional das nações constituídas e consolidadas
não diminuiu e, facto novo, emergem fenómenos de regionalismo e de separatismo
16
que julgávamos arcaicos».
16
Eduardo Lourenço, “Ninguém morre por esta Europa”, in Diário de Notícias, 17 de maio de 2001 (entrevista
de António Rodrigues), p.12. Na mesma entrevista Eduardo Lourenço autointitula-se «um europeu velhinho
e tão europeísta como eu...».
17
Eduardo Lourenço (2011), “A Europa está a desaparecer do mapa”, in Visão, 22 de dezembro de 2011, p.15.
18
Eduardo Lourenço, “Portugal ainda espera muito que as soluções caiam do céu”, in Diário de Notícias,
Lisboa, 29 de dezembro de 2003 (entrevista de Maria Augusta Silva), p.3. Nesta mesma entrevista, Eduardo
216 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Aqui chegados, duas notas de reflexão para, primeiro, dar conta de que, ao
explanar o seu pensamento sobre esta questão da Rússia e da sua “falta” na
Europa – tal como a sente – e até na União Europeia, Eduardo Lourenço quase
sempre o faz por comparação com a possibilidade de a Turquia vir a integrar a
19
UE , polémico processo de adesão (sobretudo em França) que, como sabemos,
está há décadas “em processo” (datando de 1959! o seu início, uma candidatura
oficial foi apresentada em 1987 à, então, Comunidade Económica Europeia). E
neste paralelo comparativo fica claro o posicionamento de Eduardo Lourenço
que defende sem rodeios:
«(...) É lamentável e dramático que a Europa pense que está completa sem a Rússia.
Discute-se o problema de saber se a Turquia, que foi o inimigo tradicional desta Eu-
ropa, deve entrar na nossa União – e até há razões pelas quais se possa admitir que
o deva fazer –, e ignora-se a Rússia, que faz parte da Europa desde que nasceu, ou
desde que se converteu à fé ortodoxa. (...) A Rússia é o maior parceiro que a Europa
tem, mas andamos a pedir batatinhas, para o gás, para isto e para aquilo. É espanto-
20
so haver esta cegueira».
Lourenço refere-se a Vladimir Putin nestes termos: «Putin é isso, uma navegação entre a tradição autocrá-
tica e autoritária e a inscrição no horizonte da democracia que passou a ser paradigma mínimo na vivência
política das sociedades modernas».
19
Que, depois de uma recusa liminar inicial, o Professsor foi progressivamente aceitando, com reservas,
por comparação com a Rússia: «Esta Europa que agora não vai para lado nenhum mas se derrama. Até à
Turquia?» Eduardo Lourenço, «Tempo de Luto», Visão, 9 de janeiro de 2003, p. 114. Sobre o asunto, poderá
ver-se ainda, por exemplo, “Eduardo Lourenço, ensaísta, a `O Diabo`, O Diabo, 11 de setembro de 2007, p.13,
onde se lê: «Se admitirmos que até será bom a entrada Turquia na Europa, a Rússia, que é europeia, fica às
portas da Europa? A Rússia, a pátria de Dostoievsky, a pátria de Tolstoi, a pátria da revolução soviética – uma
revolução do tipo europeu, que é Marx, é o Iluminismo, é a revolução francesa (...) – como é que esta Rússia
europeia, (...) nos limites da definição mais tradicional da Europa que vai até aos Urais, fica à porta?».
20
Eduardo Lourenço, “Retrato de um pensador errante”, in Público (Caderno de domingo - Pública), 13 de
maio de 2007 (entrevista de Luís Miguel Queirós), p.46.
21
Eduardo Lourenço, “Professor Eduardo Lourenço – Um Europeu contra as ‘duas’ Europas”, in HOMEM
Magazine, nº 182, XVI, maio de 2004 (entrevista de Fernando Correia de Oliveira), p.21. Na circunstância,
DA RÚSSIA, COM A PAIXÃO EUROPEIA DE EDUARDO LOURENÇO ― OU DE COMO CAEM AINDA PEDRAS DO MURO
217
Dulce Martinho
22
Opinião que manteve e até reforçou, pois numa entrevista bem mais recen-
te (em 2015 e, portanto, já depois da invasão e anexação da Crimeia pela Rússia)
continuou a defender que a Europa não o é sem a Rússia, sustentando:
«E assistimos à crise da Ucrânia sem saber o que fazer. A Europa tem um problema,
desde que existe: não sabe lidar com o Outro, o não-europeu. Aconteceu no tempo
de Alexandre, e sobretudo quando surgiu outro fenómeno, que conquistou uma di-
mensão planetária: o islão. Vivemos séculos lado a lado, sem que os víssemos, ou
eles nos vissem a nós. O Império Turco foi, para a Europa, uma espécie de União So-
viética desde 1453. Agora toda essa massa emerge, fruto da descolonização, numa
espécie de sonambulismo histórico. Mas a Turquia europeizou-se e partes da Europa
islamizaram-se, ao ponto de ter surgido esta ideia de que a Turquia pode fazer parte
da coisa europeia. E como podemos imaginar a integração do islão, que representou
durante séculos a não-Europa, e não sabemos o que fazer com a Rússia? Como pode
a Turquia entrar na União Europeia e a pátria de Tolstói e Dostoiévski ficar de fora? A
23
Europa não é o nome, a Europa é a sua própria História».
Eduardo Lourenço refere-se, uma vez mais, à Turquia como, sem ser já a pátria do turco contra o qual se
apelava à cruzada, aquela que durante séculos foi «o inimigo institucional da Europa».
22
E em que não está certamente sozinho. Veja-se, por exemplo, o artigo de 2020 “A nova velha Guerra Fria
– ou como o Ocidente ‘perdeu’ a Rússia” em que o jornalista do Diário de Notícias, Carlos Santos Pereira,
especialista em assuntos da Europa de Leste, faz a história da imagem da Rússia/União Soviética e das
suas relações tensas no/com o Ocidente, para terminar defendendo nestes termos o “peso” da Rússia numa
Europa “cultural”: «O divórcio marginaliza profundamente a Rússia. Mas deixa também a Europa mais pobre,
e em vários domínios. De todas as dimensões em que se possa conceber a Europa, a identidade cultural
será decerto a mais fundadora. E, em rigor, será difícil conceber qualquer ideia de cultura sem o contributo
de Dostoievski, Diaguilev, Tchaikovski, Stravinski ou Tarkovski».
23
Eduardo Lourenço, “A infinita ilusão”, in LER, nº138, 2015 (entrevista de Paulo Moura), p.36.
24
Não importando aqui explanar em profundidade o pensamento de Eduardo Lourenço sobre as relações
geopolíticas e culturais entre o Velho Continente e os Estados Unidos de que se ocupou em inúmeros
ensaios (quase todos os de A Europa Desencantada:Para uma Mitologia Europeia e alguns de O Esplendor
do Caos) com constantes interpelações à Europa, que chegou a apelidar de Natolândia, deixamos apenas a
referência ao seu claro não “antiamericanismo primário”, rotundamente expresso, por exemplo, quando numa
entrevista em que se pronunciava, mais uma vez, sobre a mundialização da cultura americana, à pergunta
«Sente-se americano ou europeu?, respondeu sem rodeios: «Simplesmente europeu, por isso mesmo nada
antiamericano». Eduardo Lourenço,“Portugal ainda espera muito que as soluções caiam do céu”, Diário de
Notícias, Lisboa, 29 de dezembro de 2003, p.4 (entrevista de Maria Augusta Silva).
218 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
25
Eduardo Lourenço, “Um europeu desencantado”, in P2 – Público, 19 de maio de 2013 (entrevista de Teresa
de Sousa), p.14.
26
Nossa tradução. Eduardo Lourenço (1987), “L’Europe et nous”, in Nós e a Europa ou as duas razões, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, p.39.
27
Eduardo Lourenço, “Nós e a Europa: ressentimento e fascínio”, in Nós e a Europa ou as duas razões, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, p.25.
28
Eduardo Lourenço, “Nós como futuro” in A Nau de Ícaro, 1997, Lisboa, Gradiva, 2004, pp.65-66.
DA RÚSSIA, COM A PAIXÃO EUROPEIA DE EDUARDO LOURENÇO ― OU DE COMO CAEM AINDA PEDRAS DO MURO
219
Dulce Martinho
trágica que tem sido a história da Europa. Dito de outro modo, uma vez mais, nas
palavras de um ensaísta, autor de obra crítica analítica, banhada por um discurso
poético único como é o de Eduardo Lourenço, mesmo quando simples e espon-
taneamente falava connosco: «O Bem não é exprimível, é sempre qualquer coisa
que falta, n ós somos sensíveis às coisas que constituem para nós uma ameaça,
um princípio de desordem a que, nas suas diversas formas, chamamos o Mal.
Tentamos defender-nos dele, mas ao mesmo tempo somos fascinados por ele, é
29
um pouco o sal da vida».
Vida que Eduardo Lourenço viveu longa e “distraidamente”, como nos dizia
repetidas vezes, com a sua doce ironia. Sobre a Europa, sem catastrofismos, mas
absolutamente consciente do seu sentido histórico, por mais “desarrumada” e
sem líderes de têmpera que ela se nos vá apresentando, concluiu: «O que nos
trouxe até aqui foi a tradição europeia, essa coisa fáustica, de dominar o mun-
do. E que nos afasta da casa onde nascemos e vivemos conformados com um
destino que não inventámos, mas que nos inventou a nós. Não sabemos em que
30
ponto estamos da História do Homem». Essa que, sempre insistiu o Professor,
31
«é um combate sem fim».
Já ele, o Professor Eduardo Lourenço como nosso “mestre de pensar”, estará
certamente nas palavras luminosas de outro sábio sereno como é José Tolentino
de Mendonça, quando este escreve: «Sábio é aquele que se senta na penumbra,
olhando com ponderada distância para as ilusões de transparência que a luz e a
32
existência acendem».
E, a quem tão generosamente aos 85 anos se sentia ainda «em dívida para
33
com a Humanidade inteira», só podemos terminar com um OBRIGADA, Professor.
REFERÊNCIAS
Almeida O. T. de (2003), “A magia de uma personalidade”, in JL. Jornal de Letras,
Artes e Ideias, nº851, Lisboa, p. 22.
Baptista M. M. (2003). Eduardo Lourenço: A paixão de compreender. Porto: Edições
Asa.
Baptista M. M., Martinho D. (2019). “LOURENÇO, EDUARDO”, in Dicionário das Gran-
des Figuras Europeias, Coleção Parlamento. Lisboa: Assembleia da República-Di-
visão de Edições (coordenação de Isabel Baltazar e Alice Cunha), pp. 225-228.
29
Eduardo Lourenço, “Eduardo Lourenço”, in 25 Portugueses, Lisboa, Editorial Notícias, 27 de janeiro de 1999
(entrevista de Luís Osório), p.161.
30
Eduardo Lourenço, “Eduardo Lourenço ― A infinita ilusão”, in LER, nº138, 2015 (entrevista de Paulo Moura),
p.37.
31
Ibid. p.39.
32
José Tolentino Mendonça, Uma beleza que nos pertence, Lisboa, Quetzal Editores, 2019, p. 176
33
Eduardo Lourenço, “Estou em dívida para com a Humanidade inteira”, in LER, nº72, 2008 (entrevista de
Carlos Vaz Marques), p.38.
220 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Lourenço E. (2015). “Eduardo Lourenço – A infinita ilusão” in LER Livros & Leitores,
nº 138, Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, pp. 30-41 (entrevista de Paulo Mou-
ra)
Lourenço E. (2016). “A cultura não é a resposta, é a questão”, in Expresso-Primeiro
caderno, 9 de janeiro de 2016, pp.2-3
Mendonça J. T. (2019). Uma beleza que nos pertence. Lisboa: Quetzal Editores
Pereira C. S. (2020). “A nova velha Guerra Fria – ou como o Ocidente ‘perdeu’ a
Rússia”, in Diário de Notícias, 10 de outubro de 2020 (https://www.dn.pt/edicao-
-do-dia/11-out-2020/a-nova-velha-guerra-fria-ou-como-o-ocidente-perdeu-a-rus-
sia-12902920.html)
Piedade A. N. (2015). Em Diálogo com Eduardo Lourenço. Lisboa: Gradiva
Nota: O texto acima corresponde, no essencial, à intervenção (não escrita) da sua autora na
mesa-redonda “Algumas leituras da Europa em Eduardo Lourenço”, realizada, em junho de
2023, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (Guarda) no âmbito das comemorações do
Centenário de Eduardo Lourenço.
eduardo
lourenço:
um tempo brasileiro
breve mas duradouro
*
Osvaldo Manuel Silvestre é professor de Teoria da Literatura, Literatura Brasileira e Cinema na Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra. É coordenador do Instituto de Estudos Brasileiros e dirigiu no biénio de
2021-23 o Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas. É responsável científico pelo espólio de Carlos
de Oliveira no Museu do Neo-Realismo e prefaciou a reedição do romance Alcateia, em 2021. O seu último
livro publicado foi o volume, que coorganizou com Rita Patrício, Conferências do Cinquentenário da Teoria
da Literatura de Vítor Aguiar e Silva, Braga, UMinho Editora, 2020. Organizou, com Pedro Serra, o dossiê
temático do número 209 (2022) da Colóquio/Letras, com o título “A Voz na Literatura”.
228 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
1
Eduardo Lourenço, Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem. Ed. de Maria de Lourdes Soares, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 2018, p. 560. A partir daqui a obra será referida pela abreviação do título seguida do
número de página.
INTRODUÇÃO
229
Osvaldo Manuel Silvestre
e lhe instila a paixão pela obra de Vieira da Silva, sobre a qual virá a escrever
textos fundamentais. Por fim, é também no Brasil que se relaciona com os exila-
dos anti-salazaristas, muitos deles, nas suas palavras, pessoas “mais arcaicas do
que o Salazar ... completamente desfasados em relação às coisas portuguesas”
(TB: 567), personagens vivendo entre sonho e ilusão (o que, na sua descrição,
inclui gente tão diversa e distinta como Jaime Cortesão ou Jorge de Sena). É, por
fim, e decisivamente, no Brasil que Eduardo Lourenço se confronta com a ques-
tão colonial, já que em 1958-59 as descolonizações se sucedem em catadupa,
anunciando o fim de uma era. Nas suas palavras, em entrevista a Rui Moreira
Leite, “Foi aqui no Brasil que, paradoxalmente, comecei a interessar-me por este
tema do império, da colonização, e no fundo foi aqui que nasceu a ideia de que
não se podia ter uma leitura da história portuguesa, da cultura portuguesa, sem
se conhecer esta outra parte do que tinha sido o império português” (TB: 558).
Uma série de textos incluídos no volume Tempo Brasileiro, alguns deles apenas
esboços, dão conta da contundência da sua escrita, que elegerá como alvo prin-
cipal Gilberto Freyre e os equívocos do seu pensamento sobre a estrutura racial
da colonização.
Um episódio vai permitir a Lourenço exprimir o seu pensamento sobre a ques-
tão, um ano após o seu regresso à Europa, em 1960, em artigo assinado com
pseudónimo no Portugal Livre, jornal da oposição antissalazarista no Brasil. O ar-
tigo, com o título “Brasil – Caução do Colonialismo Português”, tem como alvo a
visita do presidente Kubitscheck a Portugal, no âmbito das Comemorações Henri-
quinas, comemorações que sem essa presença teriam estrondosamente falhado.
O equívoco do presidente brasileiro é duramente denunciado, nos termos de uma
“caução do colonialismo” português, tanto mais que, nas suas palavras, “O Brasil
era a última das Nações a poder participar sem se renegar na sua essência, no in-
sultante e louco festival do colonialismo que são as Comemorações Henriquinas”
(TB: 343). Como se isto não fosse bastante, Lourenço vira-se contra o próprio jor-
nal em que publica o artigo, chamando a atenção para o facto de o Portugal Livre
se ter indignado com o gesto de Kubitscheck, lendo-o como apoio à ditadura de
Salazar, deixando passar a caução colonial explícita nesse mesmo gesto. A dureza
das palavras de Lourenço, que visam também a oposição a Salazar, ainda hoje
surpreende: “A maior miséria do colonialismo é que ele coloniza os colonizadores.
Nenhum povo foi vítima disso no grau em que o são os portugueses” (TB: 345).
Receio bem que estas palavras, que à data muito poucos intelectuais portugueses
subscreveriam, sejam, ainda hoje, mais atuais do que desejaríamos.
Descobrir Portugal no Brasil foi, pois, para Lourenço descobrir a estrutu-
ra do colonialismo, bem como, em reverso, aquilo a que viria a chamar “O
mito da comunidade luso-brasileira”, tema que longamente explorou, já que
nele se manifestaria, com cristalina evidência, a irrealidade da autoimagem
que, na sua leitura, definiria a identidade portuguesa. Uma identidade para a
230 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
É nesse Brasil, cuja melhor metáfora seria o sertão, mas cujo espaço natural
é o da linguagem, que o tempo brasileiro de Eduardo Lourenço, celebrado neste
volume, não cessará tão cedo, como bem o demonstram os textos aqui reunidos.
Euclides”, Eduardo Lourenço afirma, logo a abrir: “Conheci tarde o livro de Eucli-
des. Por dever de ofício, primeiro, por paradoxal sedução, depois. Não creio que
tenha verdadeira leitura para quem não conheça o Brasil” (TB: 167). A afirmação,
que parece colocar-se do lado de uma longa tradição de empirismo literário e
cultural, é questionada na frase imediatamente seguinte: “Precisamente o Brasil
que Euclides inventa escrevendo-o por paixão de geógrafo e empenhamento
jornalístico e político” (id.). Não se trata em rigor de uma contradição, a que
reconhecemos entre a exigência de conhecer o Brasil como condição de possi-
bilidade para poder ler Os Sertões e a logo imediata afirmação de que o Brasil
dessa obra é inventado por Euclides, uma invenção produzida, de resto, entre
geografia e política, discursos à primeira vista mais do lado do conhecimento
que do da invenção. Nada disto é contraditório no pensamento de Lourenço e
contradição seria supor que conhecer empírica e positivamente o Brasil seria
para ele garantia do que quer que fosse em termos de um conhecimento pro-
fundo do mesmo Brasil. E, contudo, como vimos, Lourenço beneficiou desse co-
nhecimento, no período em que residiu na Bahia, um período marcado por uma
verdadeira revolução cultural na cidade, que depois alastraria para todo o Brasil,
quer por meio dos filmes de Glauber Rocha, quer por meio do Tropicalismo, que
teria numa plêiade de músicos baianos o seu fulcro, para não referir o teatro, a
arquitetura de Lina Bo Bardi, o design de Rogério Duarte ou a escrita de autores
como Waly Salomão ou Gramiro de Matos.
Nesse sentido, a leitura tardia de Os Sertões por Lourenço coaduna-se ple-
namente com um conhecimento do Brasil que, remontando à sua juventude, por
meio dos chamados romancistas de 30, viria a ser relançado pelo estímulo pro-
duzido por essa sua experiência baiana, tornando-se um projeto de toda a vida e
afetando toda a sua reflexão, da propriamente literária à identitária, nos diversos
planos em que ela se viria a desenrolar: antropológico, sociológico, histórico,
político, enfim, estético. Partindo sempre, porém, do pressuposto que percorre
toda a escrita de Lourenço: o de que só a literatura e a arte permitem conhecer
profundamente a realidade, na medida em que só elas a imaginam ou inventam
para lá da sua mera facticidade. Nas suas quase 700 páginas, o volume Tempo
Brasileiro: Fascínio e Miragem mostra bem como o seu conhecimento do Brasil
se foi aprofundando, à medida em que ia crescendo o seu conhecimento de toda
a reflexão produzida sobre esse país imenso, complexo, paradoxal e inesgotável
– mas também, e como o exemplo de Os Sertões demonstra, à medida em que
ia crescendo o seu conhecimento desse Brasil inventado na literatura e nas artes
e, por isso, infinitamente mais verdadeiro do que o mero Brasil histórico. Até
porque, como escreveu Carlos Drummond de Andrade em 1934, em palavras que
permanecem válidas para lá de qualquer contexto ou facticidade (e que a analíti-
ca de Lourenço permitiria transpor para Portugal), “Nosso Brasil é no outro mun-
do. Este não é o Brasil. / Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”
PENSAR EN LA PROVINCIA CON EDUARDO
LOURENÇO EN SU CENTENARIO
PEDRO SERRA*
Um inverno, em que a aldeia estava feita corte com homens de tanto preço
que a podiam fazer em qualquer parte, se juntava a maior deles em casa
dum antigo morador daquele lugar, que também o fora em outra idade da
casa dos reis, d’onde, com a mudança e experiência dos anos, fez eleição
dos montes para passar neles os que lhe ficavam da vida, grande acerto
de quem colhe este fruto maduro entre desenganos. Ali, ora em conver-
sação aprazível, ora em moderado e quieto jogo, se passava o tempo, se
gozavam as noites, se sentiam menos as importunas chuvas e ventos de
novembro, e se amparavam contra os frios rigorosos de janeiro.
Francisco Rodrigues Lobo
*
Pedro Serra é Professor Catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira na Universidade de Salamanca,
onde coordena a Cátedra de Estudos Portugueses IC/USAL e é responsável da Área de Filologia Galega
e Portuguesa. IP do GIR em Estudos Portugueses e Brasileiros – que integra o Colaboratório Europeu de
Estudos Brasileiros COLEEB –, é membro investigador do CLP (Coimbra), do grupo HELICOM (Autónoma de
Madrid) e do CRIMIC (Sorbonne). Dirige, no Departamento de Filologia Moderna, o mestrado em Estudos da
Ásia Oriental MELYCA.
236 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
1
Cito por una traducción de Francisco de Lara. Cf. Martin HEIDEGGER, “Paisaje creador: ¿Por qué permanecemos
en la provincia?”, en Experiencias del pensar (1910-1976), Francisco de Lara, trad., Madrid: Abada Editores,
2014, p. 16.
PENSAR EN L A PROVINCIA CON EDUARDO LOURENÇO EN SU CENTENARIO
239
Pedro Serra
2
Cf. István FÉHER, “Fundamental Ontology and Political Interlude: Heidegger as Rector of the University of
Freiburg”, in Christopher McCann, Heidegger. Critical Assessments, New York: Routledge, 1992, p. 176.
3
Id., ibid.: 181.
240 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
4
el mundo intelectual que una causa actual de esta experiencia”. Efectivamente,
toda la trayectoria de Heidegger está determinada por su relación francamente
ambivalente con el mundo intelectual. Vale la pena recordar su posición en el
campo cultural, en el campo del debate y confrontación de ideas que, acorde
con la hermenéutica de Bourdieu es una confrontación sobredeterminada por el
agon de la ascesis social.
5
Proveniente de la pequeña burguesía, de formación jesuítica – sale del se-
minario de Tivis, en el sur de Alemania, por cuestiones de salud, habiendo ape-
nas empezado el noviciado, en octubre de 1909 –, su antagonismo hacia la so-
ciedad intelectual cubría un amplio espectro. De hecho, para configurar su lugar
de autenticidad tiene de conformarlo como negación de toda la intelectualidad
considerada “desarraigada” y “errante”. Universidad moribunda, vida urbana in-
fectada y decadente. Para el “último hombre agrario” como se le ha llamado, el
combate es total. Como pone de manifiesto Bourdieu, neo-kantismo, neo-tomis-
mo o fenomenología – que definen el espacio de posibilidades filosóficas – son
opciones hermenéuticas que tienen vinculadas tendencias morales, opciones
políticas, incluso fisionomías concretas que determinan el sujeto en situación. En
este sentido, Heidegger procura la configuración de una posición que obligue a
todos los posibles situacionales a redefinirse en el campo de fuerzas, que es un
campo de distribución de poder.
¿Será verdaderamente una pregunta la que nos propone Heidegger en “¿Por
qué permanecemos en la provincia?” ¿Nos propone verdaderamente optar, o
supone el texto una opción por un estilo de vida que permite el pensamiento?
Leyendo una y otra vez la alocución radiofónica proferida en 1933 y que sería
publicada en marzo de 1934 en Der Alemanne, se va revelando progresivamente
la condición poética de muchos de sus loci textuales. Poética prosificada que
replica como una vulgata cierta retoricidad romántica: “Hace poco recibí la se-
gunda llamada a la Universidad de Berlín. En una ocasión semejante me retiro
de la ciudad a mi refugio. Escucho lo que dicen las montañas, los bosques y las
6
granjas”. Un cierto romanticismo, pero no ciertamente aquél, por ejemplo de un
Wordsworth, que sabe bien que las piedras – la naturaleza – sólo sermonean si
antes el poeta escondió el sermón debajo. El proprio campesino, incrustado en
el paisaje, es un silencio que habla: “Voy a lo de mi viejo amigo, un campesino
de 75 años. En los periódicos ha leído sobre el llamado a Berlín. ¿Qué irá a decir?
Lentamente desliza la segura mirada de sus ojos claros en los míos, mantiene los
4
Pierre BOURDIEU, L’Ontologie Politique de Martin Heidegger, Paris: Minuit, 1988, p. 51. Traducción de mi
responsabilidad.
5
En Hugo OTT, “Biographical Bases for Heidegger’s Mentality of Desunity”, in Tom ROCKMORE y Joseph MARGOLIS,
The Heidegger Case, 1992, se recoge un comentario sintomático de lo que vendrá a ser el declarado desprecio
por la orden: “Entre otras cosas, el Comunismo puede ser horrible, pero el asunto es claro: el Jesuitismo es
diabólico, si se me permite la expresión” (p. 102; traducción de mi responsabilidad).
6
Op. cit., ed. cit., p. 20.
PENSAR EN L A PROVINCIA CON EDUARDO LOURENÇO EN SU CENTENARIO
241
Pedro Serra
7
Id., ibid., p. 21.
242 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
los grandes temas de nuestro tiempo: ¿cómo viaja una teoría ya que la condición
de posibilidad de la teoría es el viaje?
El postulado básico de Said estriba en que la vinculación de la teoría no sólo
a su momento histórico como a su geografía: a su lugar, en suma. Si en el primer
ensayo, bajo influjo luckácsiano, Said concibe la necesaria vocación itinerante de
la teoría como una suerte de degradación de su energía o eficacia, en el segundo
estudio la valoración del imperativo desplazamiento de la teoría no es modulada
por un tan conspicuo pesimismo. El nuevo lance de gran calado interpretativo lo
plasma en una pequeña fórmula: “El movimiento [la itinerancia] sugiere la posi-
bilidad de que lugares, emplazamientos y situaciones sean activamente diferen-
8
tes para la teoría, sin universalismos fáciles ni totalizaciones generalizadoras”.
Tremenda frase que nos dice distintas cosas en pocas palabras: por un lado, las
condiciones de posibilidad de la teoría amplían su espacialidad; por otro la ecua-
ción local/universal es sometida a una auténtica tempestad. Nos aboca a pensar
lo que, por cierto, es lección de la antropología crítica. Cómo ha formulado el an-
tropólogo Clifford Geertz en un ensayo de referencia, “la verdadera oposición no
se establece entre un conocimiento ‘local’ y otro ‘universal’, y sí entre un tipo de
9
conocimiento local y otro. Geertz pone en duda incluso la necesidad de articular
semejante oposición.
Sea como fuere, volvamos al autor de Orientalismo y su teoría en estado de
perpetuum mobile. Teoría en exilio, que sale “fuera del lugar”, que sale “fuera del
tiempo” y que supone, también, una salida “fuera de sí”. Es ese el último desar-
rollo de la crítica secular que fue fraguando a lo largo de las décadas. Su último
libro, un libro póstumo, se intitula On Late Style. Music and Literature Against the
Grain (2006). La noción de “estilo tardío” es un avatar de la itinerancia de la teo-
ría. Ahí, Said amplía el desplazamiento del cuerpo en los espacios a una singular
10
alteración de conciencia. “Late style is in, and oddly apart from the present” ,
propone Said. Una suerte de escrita en trance, como la de un Adorno, “romántico
desilusionado que existe casi extáticamente separado de las nuevas y mons-
11
truosas formas modernas, pero en una especie de complicidad con ellas”. El
vocablo replica en el ensayo dedicado a Glenn Gould, donde se alude al interés,
por parte del pianista, de producir “un estado de libertad extática por y en su
12
performance”. En fin, aun una tercera fórmula por la cual se dice esa experien-
cia, una fórmula que insinúa una consciencia alterada: “Lo tardío es estar al final,
plenamente consciente, lleno de memoria, y también muy (incluso preternatural-
8
Edward SAID, Reflexions on Exile and Other Essays, Harvard: Harvard University Press, 2000, p. 441.
9
Cf. Clifford GEERTZ, Available Light. Anthropological Reflections on Philosophical Topics, Princeton: Princeton
University Press, 2000.
10
Edward Said, On Late Style. Music and Literature Against the Grain, London: Verso, 2007, p. 24.
11
Id., ibid., p. 23. Traducción de mi responsabilidad.
12
Id., ibid., p. 124.
PENSAR EN L A PROVINCIA CON EDUARDO LOURENÇO EN SU CENTENARIO
243
Pedro Serra
13
mente) consciente del presente”. El humano tardío es aquél que viene después,
“fuera de lugar, fuera de tiempo, fuera de sí”. Y esta pudiera ser una descripción
formal de la ‘provincia crítica’ en la que podemos y no podemos quedarnos. Pero
que necesita, imperativamente necesita, de espacios para pensar como el Cen-
tro de Estudos Ibéricos, y guías antecesores como Eduardo Lourenço.
REFERÊNCIAS
Bourdieu P. (1988). L’Ontologie Politique de Martin Heidegger, Paris: Minuit.
Fehér I. (1992). “Fundamental Ontology and Political Interlude: Heidegger as Rector
of the University of Freiburg”, in Christopher McCann, Heidegger. Critical Asses-
sments, New York: Routledge, pp. 159-197.
Geertz C. (2000). Available Light. Anthropological Reflections on Philosophical Topi-
cs, Princeton: Princeton University Press.
Heidegger M. (2014). “Paisaje creador: ¿Por qué permanecemos en la provincia?”,
en Experiencias del pensar (1910-1976), Francisco de Lara, trad., Madrid: Abada
Editores, pp. 15-19.
Ott H. (1992). “Biographical Bases for Heidegger’s Mentality of Desunity”, in Tom
Rockmore y Joseph Margolis, The Heidegger Case: On Philosophy and Politics,
Philadelphia: Temple University Press, pp. 92-113.
Safranski R. (1997). Un maestro de Alemania. Martin Heidegger y su tiempo, Raul
Galbás, trad., Barcelona: Tusquets.
Said E. (2000). Reflexions on Exile and Other Essays, Harvard: Harvard University
Press.
Said E. (2007). On Late Style. Music and Literature Against the Grain, London: Verso.
Sloterdijk P. (2007). Regras para o Parque Humano, Manuel Resende, trad., Luís
Quintais, pref., Coimbra: Angelus Novus.
13
Id., ibid., p. 14.
EDUARDO LOURENÇO, A CASA PERDIDA
E O BRASIL: UMA OUTRA SEMÂNTICA DO
TEMPO HISTÓRICO
ROBERTO VECCHI*
*
Roberto Vecchi é professor catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira e de História da cultura portuguesa
na Universidade de Bolonha. É, desde 2007, coordenador da Cátedra Eduardo Lourenço (Camões-UNIBO)
com Margarida Calafate Ribeiro. Em Portugal, é investigador associado do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra onde participou do Projeto “Memoirs. Filhos do império e pós-memórias europeias”.
Foi presidente, de 2014 a 2021 da AIL, a Associação Internacional de Lusitanistas. É Honorary Professor (2021-
2024) of Lusophone Studies na School of Cultures, Languages and Area Studies da University of Nottingham
(UK). Autor de uma bibliografia extensa sobre a teoria e a história das culturas de língua portuguesa, assina-
lam-se, em coautoria com Vincenzo Russo, o volume A literatura Portuguesa. Modos de ler (Lisboa, 2022) e
em coautoria com Margarida Calfate Ribeiro o volume Eduardo Lourenço: Uma geopolítica do pensamento
(Porto, 2023).
246 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
em Portugal ninguém queria realmente saber disso. Foi aqui no Brasil que, parado-
xalmente, comecei a interessar‑me por este tema do império, da colonização, e no
fundo foi aqui que nasceu a ideia de que não se podia ter uma leitura da história
portuguesa, da cultura portuguesa, sem conhecer esta outra parte do que tinha sido
o império português. Em última análise, portanto, todo o arrière plan do Labirinto da
1
Saudade tem a ver com a minha estadia na Bahia .
1
Rui MOREIRA LEITE, «A miragem brasileira», Colóquio/Letras, 171 (2009), p. 298.
2
Virgílio BENTO, Leituras de Eduardo Lourenço. Um labirinto de saudades, um legado com futuro. Guarda:
Centro de Estudos Ibéricos, 2008, pp.32-34.
EDUARDO LOURENÇO, A CASA PERDIDA E O BRASIL: UMA OUTRA SEMÂNTICA DO TEMPO HISTÓRICO
247
Roberto Vecchi
3
Eduardo LOURENÇO, Tempo brasileiro: fascínio e miragem, coordenação, introdução, notas e notícias bio-
bibliográficas de Maria de Lourdes Soares. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018, p. 265. A partir
daqui a obra será referida pela abreviação TB seguida do número de página.
248 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
4
Barnaba MAJ, Idea del tragico e coscienza storica nelle “fratture” del Moderno. Macerata: Quodlibet, 2003,
p.29.
5
Cfr. Eduardo LOURENÇO, O canto do signo. Existência e literatura (1957-1993). Lisboa: Gradiva, 2017, p.38.
6
Ibid. p.42.
EDUARDO LOURENÇO, A CASA PERDIDA E O BRASIL: UMA OUTRA SEMÂNTICA DO TEMPO HISTÓRICO
249
Roberto Vecchi
Temos uma perfeita colocação d’Os sertões tanto do ponto de vista morfoló-
gico como da interpretação das figuras opositivas que dominam o tecido textual
da obra de Euclides e correspondem ao desajuste da modernização de que Os
sertões são a monumentalização mais cortante.
Ainda assim, por linhas de continuidade, não é imediato entender, fora dos
biografismos idealísticos, o caráter seminal da estadia brasileira, complexa, in-
tensa, formativa. Se quiséssemos encontrar uma forma sintética, diríamos que
se coloca no eixo entre a heterodoxia que vem como iluminação precoce já des-
de 1949 quando da publicação do volume de estreia e onde se explica já muito
bem que o espírito da heterodoxia é não aceitar um só caminho nem de os re-
cusar a todos abrindo já ao pensamento trágico e o impensado que amadurece
com os dois grandes temas históricos por pensar, o Salazarismo e o colonialismo.
O Brasil inscreve-se no ponto de interseção das duas linhas. No entanto,
o que emerge dos muitos materiais, fragmentários e lucidíssimo do Brasil e
das suas consequências, é talvez um outro dispositivo que se forma um pouco
por acaso, mas que determina uma larga contrapartida teórica nas décadas
seguinte. Para apreciá-lo talvez se deva atingir das anotações íntimas, como
por exemplo a página do diário “A casa perdida”, datado na Bahia em 10 de
Setembro de 1958:
Se tivesse que nomear o mestre da vida secreta, aquela única voz que sem palavras
me ensinou o que homens e livros nunca puderam apagar nem ampliar, sem hesi-
tações eu designaria o primeiro companheiro da minha infância solitária e triste: o
vento. Mas o que a minha alma nele aprendeu ou o que essa voz poderosa aí tem
inscrito evoluiu com a passagem dos anos. Vinha por sobre a aberta fronteira para
me dar uma pátria num tempo e num espaço que jamais serão os meus. Sempre
soprou do mais antigo e imortal de mim para me arrancar à morte. Sempre veio di-
zer-me que devia levantar voo do chão estreitíssimo onde igualmente agonizo desde
o infinito tempo que me coube. Mas há trinta anos, fabuloso pequeno abismo que
jamais supus me viesse a separar de mim, essa voz inominada do grande deus cego
do meu planalto hispânico vinha aninhar-se como uma pomba em meu coração vazio
de futuro e enchê-lo de uma informe e tremente esperança. (TB: 463)
7
R. KOSELLECK, Futuro passato. Per una semantica dei tempi storici. Genova: Marietti, 2000, p.5.
8
E. LOURENÇO, Do colonialismo como nosso impensado. Org. Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi.
Lisboa: Gradiva, 2014, p.21
252 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
O grande rio da melancolia era transparente. A sua substância era o meu sonho e o
meu sonho estava diante de mim. A grande tristeza nascia da distância impossível
entre uma vida perdida entre pedras e alma ignorada do mundo e esse fabuloso
ignorado mundo, sempre do lado de lá de inacessíveis montanhas, mas real como o
paraíso. (...)
O rio da melancolia já não o distingo de mim. A sua transparência tem uma densidade
de chumbo. A voz do meu anjo é agora de fogo e respondem-lhe ainda as minhas
lágrimas. Mas agora são reais. (TB: 464)
REFERÊNCIAS
Bento V. (2008). Leituras de Eduardo Lourenço. Um labirinto de saudades, um lega-
do com futuro. Guarda, Centro de Estudos Ibéricos.
Koselleck R. (2000). Futuro passato. Per una semantica dei tempi storici. Genova,
Marietti.
Lourenço E. (2014). Do colonialismo como nosso impensado. Org. Margarida Calafa-
te Ribeiro e Roberto Vecchi. Lisboa, Gradiva.
Lourenço E. (2017). O canto do signo. Existência e literatura (1957-1993). Lisboa,
Gradiva.
Lourenço E. (2018). Tempo brasileiro: fascínio e miragem, coordenação, introdução,
notas e notícias biobibliográficas de Maria de Lourdes Soares. Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian.
Maj B. (2003). Idea del tragico e coscienza storica nelle “fratture” del Moderno.
Macerata, Quodlibet.
Moreira Leite R. (2009). «A miragem brasileira», Colóquio/Letras, 171, pp. 296-312.
A «RASURA DO TRÁGICO» COMO
OPERAÇÃO INFINITA
EDUARDO STERZI*
*
Eduardo Sterzi (Porto Alegre, Brasil, 1973) é professor de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp, Brasil) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Publicou, entre outros, Saudades do mundo: notícias da Antropofagia, Por que ler Dante e A prova dos
nove: alguma poesia moderna e a tarefa da alegria. É autor também dos livros de poesia Prosa, Aleijão e
Maus poemas e das peças teatrais reunidas em Cavalo sopa martelo. Como curador, participou das equipes
responsáveis pelas exposições Variações do corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo (Sesc
Ipiranga e Sesc Araraquara, no Brasil; Weltkulturenmuseum, na Alemanha; e Centro Internacional das Artes
José de Guimarães, em Portugal), Caixa-preta (Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre) e Desvairar 22 (Sesc
Pinheiros, São Paulo).
1
Eduardo LOURENÇO, «Mário de Andrade: o homem e o sistema» (1945) e «Novos romances brasileiros» (1945),
in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, org. Maria de Lourdes Soares, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2018,
pp. 97-101 e 103-106. O segundo texto já havia sido recuperado, antes, em Do Brasil: fascínio e miragem,
org. Maria de Lourdes Soares, Lisboa: Gradiva, 2015, pp. 43-49.
254 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
outra parte do que tinha sido o império português. Em última análise, portanto, todo
2
o arrière plan d’O labirinto da saudade tem a ver com a minha estada na Bahia.
2
Eduardo LOURENÇO, «A miragem brasileira (Entrevista por Rui Moreira Leite)» in Tempo brasileiro: fascínio e
miragem, org. Maria de Lourdes Soares, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2018, p. 558.
3
Eduardo LOURENÇO, «Crítica, obra e tempo» (1968), in O canto do signo. Existência e literatura (1957-1993),
Lisboa: Presença, 1994, p. 51.
A «RASURA DO TRÁGICO» COMO OPERAÇÃO INFINITA
255
Eduardo Sterzi
4
Eduardo LOURENÇO, «Da literatura brasileira como rasura do trágico» (1984), in Tempo brasileiro: fascínio e
miragem, org. Maria de Lourdes Soares, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2018, p. 148.
5
Eduardo LOURENÇO, «Da literatura brasileira como rasura do trágico» (1984), in Tempo brasileiro: fascínio e
miragem, p. 148. Grifo meu.
256 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
6
Eduardo LOURENÇO, «Da literatura brasileira como rasura do trágico», in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, id.
7
Eduardo LOURENÇO, «Da literatura brasileira como rasura do trágico», in Tempo brasileiro: fascínio e miragem,
ibid.
8
Aliás, essa leitura da lacuna ― isto é, da própria rasura como presença na escrita ― vale para o próprio ensaio
«Da literatura brasileira como rasura do trágico». Penso não nas alterações pontuais ao longo do texto, que têm
natureza mais cosmética, mas, sobretudo, na rasura da epígrafe de Clarice Lispector que se acha na publicação
primeira na revista Terceira Margem e depois desaparece na versão em livro: «Eu tenho, à medida que designo
― e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar».
Tal epígrafe apontava, ao que parece, para uma redução da aventura literária clariciana ao âmbito da linguagem,
justamente ali onde o corpo parece assomar: o conflito do semiótico com o semântico, que produz o trágico como
não-sentido, traz em si, embutido, um conflito entre o semântico e o somático.
A «RASURA DO TRÁGICO» COMO OPERAÇÃO INFINITA
257
Eduardo Sterzi
Vale lembrar, neste ponto, que, no ensaio teórico «Do trágico e da tragé-
dia», publicado originalmente em 1964 e recolhido depois em O canto do signo,
Lourenço não apenas já propunha que o trágico propriamente dito escapa às
definições intelectuais, como vislumbrava na própria forma inicialmente grega
da tragédia ― que consistiria na expressão e estetização de um «mistério» origi-
9
nalmente «inexpresso» ― já um «modo de abolição do trágico». Nesse quadro,
as experiências literárias dos últimos cento e poucos anos no Brasil, aquelas
que parecem se dirigir para uma rasura ou contorno do trágico, poderiam ser
vistas talvez como uma realização concentrada e exemplar, justamente porque
tardia, de um processo bem mais amplo, tanto no espaço quanto no tempo. Esse
nexo trans-histórico talvez se deva ao próprio modo como a cultura literária ― e
não só literária ― teve e tem de se constituir num país construído a partir da
experiência da colonização. A necessária busca de autonomia, não só da nação,
mas, sobretudo, daquilo que não cabe de todo na nação e nos seus discursos de
unidade ainda recendentes do processo colonial ― é o caso dos povos indígenas,
dos africanos escravizados, dos seus descendentes e de toda a imensa massa
cuja existência se dá, a um só tempo, sob o tacão brutal da história e fora da
história (trata-se, de fato, de uma fuga, ainda que restrita por vezes à imagina-
ção, seja esta poética ou religiosa, para o mato, para a aldeia, para o quilombo,
para o terreiro...), na experiência de um «tempo sem tempo», segundo expres-
são recorrente do próprio Eduardo Lourenço, que, por vezes se confunde com
o «mito», mas que é antes ou depois o próprio tempo da literatura «em estado
de emergência e de calamidade pública», como se lê neste grande momento da
autoconsciência crítico-criativa da história literária brasileira que é a «Dedicatória
do autor (Na verdade Clarice Lispector)» de A hora da estrela.
À luz da dialética do trágico subjacente ao intervalo histórico-literário exa-
minado por Eduardo Lourenço, não faz sentido interpretar Oswald de Andrade
como exceção a esse esquema de exceções, isto é, como o único exemplo, di-
gamos, puro da «rasura do trágico». De fato, dentre os autores abordados no
ensaio, é Oswald o único modernista com direito a ser nomeado; direito que
não se estende, porém, a nenhum título seu: em sua figura, mais até do que na
sua obra, Eduardo Lourenço parece ver sintetizada «a estrutura cultural eufórica
que caracteriza o Modernismo Brasileiro», que teria como base ― nas palavras
do próprio crítico, não do escritor ― a reatualização do «mito fundador do novo
mundo como paraíso, alheio ao bem e ao mal da tradição judaico-cristã do des-
cobridor», a que se acrescentam «algumas sugestões de Nietzsche e Marinetti
que iam no mesmo sentido». Porém (e a menção a Nietzsche, exegeta do «nas-
cimento da tragédia» e profeta do seu renascimento na modernidade, já deveria
servir de advertência interna ao próprio discurso do observador) esse juízo
9
Eduardo LOURENÇO, «Do trágico e da tragédia» (1964), in O canto do signo, p. 31.
258 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Como a maioria dos poemas do livro, este é bem mais ambivalente e sombrio
do que parece. A Ressurreição, que a Semana Santa reencena, é, em certa me-
dida, a antítese da tragédia ― e, portanto, um exemplo de «rasura do trágico» ― e
justifica a transformação imediata, no primeiro verso, da matraca, instrumento de
lamentação, em manifestação de alegria. O que complica essa interpretação é
que, a partir do quarto verso («O Brasil é onde o sangue corre»), e justamente
depois de nomeado o contorno, se não a rasura, do trágico («Diz que a Tragédia
passou longe»), o poema se revela, por meio da fusão imagética entre paisa-
gem (verde) e personagens (negros), um instantâneo do movimento interno ao
10
«O matriarcado tomba ante o voto de Minerva que absolve Orestes matricida. Com o matriarcado cai a propriedade
comum do solo e inicia-se dialeticamente o ‘progresso’ – a propriedade privada, fortalecida desde então pelo
direito paterno e pela herança.» (Oswald de Andrade, Os dentes do dragão, org. Maria Eugenia Boaventura, São
Paulo: Globo, 1990, pp. 122-3). «Estava aí assinalada a revolução que, na Grécia, destronava a mãe do seu poderio
incontestável. De ora em diante seria aceito na Hélade o direito paterno e suas consequências. Fundava-se assim
o instituto da herança patrilinear. Não quer isso dizer que o patriarcado tivesse sido uma invenção grega, mas
foram os gregos, através de Ésquilo, que definitivamente fixaram as transformações da era matriarcal para a do
poder paterno.» (Oswald de Andrade, «A crise da filosofia messiânica» [1950], in A utopia antropofágica, São
Paulo: Globo e Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p. 212)
11
Oswald de Andrade, Obra incompleta, ed. crítica Jorge Schwartz, São Paulo: Edusp, 2021, t. I, p. 112.
A «RASURA DO TRÁGICO» COMO OPERAÇÃO INFINITA
259
Eduardo Sterzi
próprio livro em que está situado: afinal, sua segunda seção, «Poemas da co-
lonização», não apenas intercepta o curso esboçado na primeira, «História do
Brasil», mudando em negatividade o que era, de início, positividade, mas tam-
bém projeta esse cariz negativo sobre as seções seguintes. Se há uma unidade
em Pau-Brasil, é aquela conferida pela colonização e pela escravidão ― e pelas
longas repercussões destas e pelas tentativas de responder ou resistir a elas.
Nos termos dos próprios modernistas, podemos dizer que o «claro riso dos
modernos», a que se referiu Ronald de Carvalho, extraía sua claridade, por
contraste, da contraface sombria do movimento, que era expressão transfigu-
radora justamente do seu sentimento da história como catástrofe, mais do que
de qualquer sensação de ausência de história. O «não-tempo» é, na verdade,
um outro tempo, e suas formas preferenciais podem ser, de fato, o mito, a
fábula, a estória. «A estória quer ser contra a História», o dictum de Guimarães
Rosa, é outra forma de dizer: «Contra as histórias do homem que começam no
Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado». Se Stephen Dedalus,
isto é, James Joyce, tenta despertar do pesadelo da História, aqui se trata de
dormir de novo para tentar outro sonho, isto é, outra história (aliás, como fez
também o irlandês, em alguma medida, na sua obra final, Finnegans Wake). A
Antropofagia de Oswald (e de Tarsila, de Raul Bopp, do Macunaíma) é uma ten-
tativa de dar a esse sonho a dimensão mais vasta possível, que não é, porém,
a de um universal indeterminado moldado a partir da expansão colonial (que,
se possível, alcancançará até as estrelas, apropriando-se do brilho delas como
último butim), mas a da comunidade radical, que tem como gesto decisivo
aquela incorporação do inimigo que é também, e sobretudo, desapropriação
de si, implicada nas cosmopolíticas ameríndias (e que tem a terra não apenas
como limite, mas como meta).
E não deixa de ser prova de inteligência crítica em permanente revisão que,
às primeiras críticas de Eduardo Lourenço à reivindicação por intelectuais e ar-
tistas brasileiros, do romantismo ao modernismo e depois, dos indígenas como
figuras de origem alternativas a Portugal, e, por isso mesmo, encerradas no pas-
sado, suceda uma constatação muito simples e ainda hoje, porém, espantosa
para muitos, e não só fora do Brasil, enunciada pelo próprio crítico: «aqui no Bra-
12
sil [...], há de facto índios». Lourenço atribui a constatação à leitura dos poemas
de Affonso Romano de Sant’Anna: «Aquela coisa de ser índio, eu considerava
isso como algo retórico e poético, mesmo virtual, mas enganava-me. Trata-se de
uma reivindicação de uma espécie de um tempo outro, e o tempo outro só pode
13
ser efectivamente anterior à colonização».
12
Eduardo LOURENÇO, «A miragem brasileira (Entrevista por Rui Moreira Leite)» in Tempo brasileiro: fascínio e
miragem, p. 570.
13
Eduardo LOURENÇO, «A miragem brasileira (Entrevista por Rui Moreira Leite)» in Tempo brasileiro: fascínio e
miragem, p. 570.
260 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
A passagem de 1928 a 1930, por esse ângulo, talvez não represente a ruptura
que, de um lado, Oswald e, de outro, os novos romancistas adivinharam, mas uma
continuidade dialética. E podemos revisitar esse quadro nos termos da reflexão,
14
ainda, de Eduardo Lourenço. Nos ensaios de 1945 sobre literatura brasileira, a
questão do trágico já estava presente, sobretudo naquele acerca dos romances
então recém-publicados de Jorge Amado (Terras do sem fim e São Jorge dos
Ilhéus) e José Lins do Rego (Fogo morto). O crítico frisa, de início, a «coerência»
― que, aliás, julga maior do que nos livros anteriores desses autores ― «entre a
15
realidade dos seus personagens e a verdade dos seus conflitos». E é significati-
vo que reconheça exatamente nessa coerência, ou, antes, na «consciência» sem-
pre «mais nítida» que esses escritores têm «dos seus processos, possibilidades
e limitações», uma força incapaz de alterar «aquilo que o crítico europeu» (assim
Eduardo Lourenço se figura no ensaio) «considera em geral como excessivo», isto
é, «o primitivismo anímico de tipos e o desbordamento emotivo e lírico em que se
16
movimentam». Pode-se mesmo cogitar que esse primitivismo e esse desborda-
mento, que atordoam «o crítico europeu», mais do que não serem afetados por
aquela consciência autoral ou escritural, talvez nasçam precisamente dela ― e da
busca de afinidade, que ela implica num caso como o da literatura brasileira, com
modos de pensamento não-ocidentais, afinidade, que, porém, o crítico despreza,
em outra circunstância, como «culto de um dionisismo bastardo, promovido e glo-
17
sado como compensação da miséria e da impotência histórica real».
É uma outra concepção de literatura que se afirma assim, na qual a dimen-
são política se reveste de uma imediatez corpórea, mas também espiritual (aqui,
onde, como bem disse Oswald, «o espírito recusa-se a conceber o espírito sem
18
corpo» ), impensável a partir dos modelos europeus, sejam aqueles institucio-
nais, sejam aqueles revolucionários: «A sub-humanidade de moleques, capan-
gas, jagunços, tropeiros ou trabalhadores de usina vive as realidades imediatas
da vida com uma violência e ingenuidade de que nós não nos podemos dar per-
19
feita conta, no nosso mundo mais complicado, mais regrado e menos original».
Não será uma distorção ver, nessa passagem de Lourenço, um correlato analí-
tico do magistral explicit do ensaio de Montaigne sobre os canibais, no qual o
filósofo, depois de reverenciar a sabedoria política, mas também poética, dos
14
E a data é ela mesma, nos planos brasileiro e mundial, de despertar e de ressonhar.
15
Na verdade, para ser exato, diz que os romances «testemunham uma maior fidelidade [...] à coerência» ― e
essa multiplicação de instâncias (fidelidade à coerência, quando apenas coerência já daria conta) pode ser
vista como sintomática de um anseio de mediação justamente diante de uma literatura em que as mediações,
como veremos, faltam (ou, pelo menos, não se apresentam como seriam de se esperar para um «crítico
europeu»). In Tempo brasileiro: fascínio e miragem, p. 103.
16
Eduardo LOURENÇO, «Novos romances brasileiros» (1945), in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, p. 103.
17
Eduardo Lourenço, «De um certo (e inevitável) antiportuguesismo da cultura brasileira. Para uma psicanálise
das relações entre o Brasil e Portugal», in Tempo brasileiro, p. 269.
18
Oswald de Andrade, «Manifesto antropófago» (1928), in A utopia antropofágica, p. 48.
19
Eduardo LOURENÇO, «Novos romances brasileiros» (1945), in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, p. 103.
A «RASURA DO TRÁGICO» COMO OPERAÇÃO INFINITA
261
Eduardo Sterzi
indígenas do Brasil, diz, numa tirada à altura do desfecho de Some like it hot
(«Nobody’s perfect»): «Tudo isso é, em verdade, interessante, mas, que diabo,
essa gente não usa calças!» («Tout cela ne va pas trop mal: mais quoy, ils ne por-
tent point de haut de chausses»). E, de fato, vale recordar, «moleques, capangas,
jagunços, tropeiros ou trabalhadores de usina» são ― de um ponto de vista cultu-
ral e político, mas também genético (que importa menos) ― índios, como bem viu
Eduardo Viveiros de Castro: «O homem livre da ordem escravocrata, para usar a
linguagem da Maria Sylvia de Carvalho Franco, é um índio. O caipira é um índio,
o caiçara é um índio, o caboclo é um índio, o camponês do interior do Nordeste
20
é um índio».
O que surpreende naquelas figuras ― naqueles sujeitos nunca de todo indi-
vidualizados, embora já extrapolando a representação tipológica convencional,
conforme já os encontrávamos nos Sertões de Euclides da Cunha ― é o contras-
te entre sua «humanidade sem futuro, perdida na pura fantasmagoria da fome
21
e do desespero» , e a esperança marxista que alimentava os escritores. Em
suma, a falta de um recorte mais ou menos nítido de classe, a que tampouco a
categoria acategórica (e caracteristicamente moderno-europeia) do lumpen dá
conta, exclui essas vidas tanto da pulsão futurista supostamente preponderante
no modernismo («os silenciosos retirantes de Vidas Secas, da mesma linhagem
22
dos sertanejos de Euclides, se dirigem para um futuro improvável» ), quanto da
própria utopia socialista. (O mesmo espanto ganha forma anedótica no relato
sobre Jorge Amado, comunista e «pai-de-santo» ― na verdade, obá de Xangô do
23
Ilê Axé Opô Afonjá. )
Tudo isso ganha peso maior, para a compreensão não apenas da literatura
brasileira, mas da própria perspectiva a partir da qual Eduardo Lourenço a mira,
quando se leva em conta sua proposição, em outra circunstância, de que Brasil
e Portugal são «os dois pólos de uma constelação cultural» ― uma constelação
«única no planeta, aquela que na Europa, na América do Sul, em África e na
Oceânia fala ou se ouve ainda em portuguesa língua, de todos os que a falam e
recriam e de ninguém» ―, mas também, mais concretamente ― isto é, passando,
de forma decisiva, pelo corpo, pela presença do corpo num determinado lugar,
que por essa presença mesma, em alguma medida, se indetermina ―, a partir da
visão de Salvador, ao fim da década de 50, na forma de «uma cidade como teria
20
Eduardo Viveiros de Castro, «“No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”» (2006), entrevista a Carlos
Dias Jr., Fany Ricardo, Lívia Chede Almendary, Renato Sztutman, Rogério Duarte do Pateo e Uirá Felippe
Garcia, in Eduardo Viveiros de Castro, org. Renato Sztutman, Rio de Janeiro: Azougue, 2008, p. 147.
21
Eduardo Lourenço, «Guimarães Rosa ou o terceiro sertão» (1997), in Tempo brasileiro: fascínio e miragem,
p. 159.
22
Idem.
23
Eduardo LOURENÇO, «A miragem brasileira (entrevista por Rui Moreira Leite)» (2000), p. 565. O esclareci-
mento sobre o real modo de inserção de Jorge Amado na estrutura do candomblé é oferecido, em nota,
pela organizadora do volume.
262 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
24
sido Lisboa sem o terremoto». Isto é, talvez possamos extrapolar, uma Lisboa
deslocada para a outra margem do Atlântico, sem uma catástrofe pontual em
que se consiga identificar o momento da destruição (que, no entanto, está lá),
mas também sem o iluminismo (que é sempre um ilusionismo) da reconstrução.
É no contato direto com essa cidade a um só tempo tão familiar e absoluta-
mente estranha para um intelectual português («Na Bahia nós temos a impressão
de que, de facto, é outro mundo») que, conforme Lourenço recorda na mesma
entrevista, descobriu o «ouvido absoluto» de Jorge Amado, a capacidade que o
escritor tinha de apreender e inscrever em seus textos as vozes das ruas: «ele
captava instintivamente aquele falar da Bahia e aqueles seus personagens já me
pareciam menos extraordinários do que antes, porque, de facto, os seus perso-
25
nagens andavam na rua» (eis um modo prévio de dizer, como depois disse, con-
forme já vimos, que «aqui no Brasil [...], há de facto índios»). Nesse movimento,
não apenas «a cultura» antes «apenas livresca» ― isto é, marcada decisivamente
26
pela forte presença da literatura brasileira dos anos 30 no Portugal dos anos 40
― se torna realmente, no sentido mais abrangente da palavra, cultura; a própria
literatura, aí, se revela uma operação intelectual complexa, que não separa as
letras das vozes, antes se abre às vozes para que estas abalem as letras. E é
curioso ― embora compreensível para quem, na mesma entrevista, se confessa
27
«horrorosamente europeu» ― que o crítico, vendo, ou ouvindo, as coisas ainda
um tanto de fora, prefira ressaltar, no «ouvido absoluto» de Jorge Amado, o ins-
tinto em vez do intelecto, quando se tratava, na verdade, de romper a barreira
entre um modo e outro de aproximação ao mundo ― e de aproximação à escrita.
Ainda que Glauber Rocha, um cineasta, desempenhe um papel fundamental
na formação brasileira de Eduardo Lourenço, tendo sido o responsável, confor-
me registra, pelas suas incursões nos sertões de Euclides da Cunha e de Guima-
28
rães Rosa , e ainda que o crítico tenha feito a experiência direta da sociedade e
da cultura brasileiras, no período em Salvador, ele, quando o assunto é o Brasil,
se mantém dentro dos limites da literatura ou, mais exatamente, da textualidade
(engloba também a história e a sociologia, que lê, porém, romanescamente).
24
Eduardo Lourenço, «Nostalgia atlântica. Sobre Portugal e o Brasil» (1996) e «A miragem brasileira (Entrevista
por Rui Moreira Leite)», in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, pp. 302 e 558.
25
Eduardo Lourenço, «A miragem brasileira (Entrevista por Rui Moreira Leite)», in Tempo brasileiro: fascínio
e miragem p. 558.
26
«Quando vim para o Brasil, a cultura era apenas livresca, isto é, feita através de leituras, e como toda a minha
geração ― e já vinha um pouco da geração anterior ― estava a par do que naquela altura era novidade: o
impacto da cultura brasileira. Da literatura brasileira, mais que da cultura, explico melhor: pertenço a uma
geração para a qual Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz eram presenças
muito vivas no contexto cultural português.» Eduardo Lourenço, «A miragem brasileira (Entrevista por Rui
Moreira Leite)» (2000), in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, p. 557.
27
Eduardo Lourenço, «A miragem brasileira (Entrevista por Rui Moreira Leite)», in Tempo brasileiro: fascínio
e miragem, p. 564.
28
Eduardo Lourenço, «Nós só existimos no espelho dos outros» (1995), in Tempo brasileiro: fascínio e miragem,
p. 222.
A «RASURA DO TRÁGICO» COMO OPERAÇÃO INFINITA
263
Eduardo Sterzi
E, ao permanecer nessa zona exclusivamente textual, não tem como dar o de-
vido peso à operação de Glauber Rocha ao recorrer à poesia popular cantada
e à música de Villa-Lobos em seus filmes: apontar justamente para um além da
literatura que seria constitutivo mesmo da cultura literária brasileira, um além
― uma superação dialética, que leva consigo a literatura suprimida ― que, em
seguida a Glauber, a Tropicália exploraria como nenhum outro movimento (e não
por acaso, nela, a literatura propriamente dita desempenha papel menor diante
das outras artes).
E, porém, é justamente na Tropicália, redescoberta e revelação do moder-
nismo a partir da inspiração glauberiana, que as questões que se revelariam
centrais para a interpretação do Brasil por Eduardo Lourenço ganham sua formu-
lação mais radical ― e, justamente por isso, mais inaceitáveis, pode-se depreen-
der, para «o crítico europeu», que nelas veria talvez a quintessência daquele
«dionisianismo» rejeitado. No entanto, tudo nos pressupostos das suas leituras
brasileiras também aponta para esse Dioniso redivivo: da sua noção de um trá-
gico inapreendido pela tragédia até sua análise de Clarice Lispector, na qual vê:
«A sua viagem far-se-á de abandono em abandono, de distanciamento voluntário
da face escrita da vida em direcção ao pura e indizivelmente material, descida
ou “subida” ao inferno do que existe, tão humildemente aceite como marca do
real que dessa descida resulte, enfim, o encontro com o neutro divino, o aquém-
29
-humano presente no coração do homem». O problema é que esse «material»,
esse «aquém-humano», não é, na verdade, um lugar de pureza, como as noções
de ascese e de neutro podem fazer supor, mas, conforme nota a própria Clari-
ce Lispector nos últimos momentos de seu percurso literário e vital, quando diz
que «também o que presta não presta» e que há também «a hora do lixo» (que
coincide, aliás, quase integralmente com a «hora da estrela» ― e, portanto, com a
morte), esse «coração selvagem» é essencialmente impuro, englobando de uma
só vez Spinoza e os «romance[s] lacrimogêneo[s] de cordel».
Macabéa ― tanto quanto Lindoneia, a personagem de Rubens Gerchman e
depois de Gilberto Gil e Caetano Veloso ― é uma heroína tropicalista, isto é, uma
heroína «de nossa gente», em sentido residualmente marioandradiano (embo-
ra «nossa gente» já não seja o que era), isto é, menos uma síntese de um povo
preexistente do que o flagrante de um povo outro, subterrâneo embora «à flor
da pele», que as ideias correntes de povo não abarcam, ou abarcam mal, assim
como figuração de um povo por vir, ainda que sob a forma da morte. Nesse sen-
tido, podemos depreender que comer a barata é tanto uma variante do beijo ao
30
leproso de São Francisco de Assis, como a interpreta Eduardo Lourenço , quanto
uma retomada extrema do tema da Antropofagia como «devoração universal», o
29
Eduardo Lourenço, «Da literatura brasileira como rasura do trágico», in Tempo brasileiro: fascínio e miragem,
p. 153.
30
Eduardo Lourenço, «Da literatura brasileira como rasura do trágico», in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, p. 153.
264 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
31
que ele não entrevê. A «plenitude do mínimo» ― em que eu e mundo coincidem
― só pode ser também esplendor barroco do máximo, e mesmo, utopicamente, do
todo, esse todo que, no entanto, jamais se computa completamente, do que resul-
ta que o monumento só possa ser, já de início, ruína. Há algo na Tropicália daquela
pretensão benjaminiana, que não por acaso tomou a forma de um bric-à-brac no
Trabalho das passagens, de abarcar, na visão da história, todos os momentos,
mesmo os mais esquecidos. Não por acaso, o Aleph é uma figura latino-ameri-
cana, e Eduardo Lourenço vê em Grande sertão: veredas uma «macromónada»
32
― «feito de miríades de mónadas, ou seja, de contos». Ou mais propriamente, de
estórias, de tragédias não propriamente rasuradas, mas em rasura.
REFERÊNCIAS
Andrade O. de (1990). Os dentes do dragão, org. Maria Eugenia Boaventura. São
Paulo, Globo.
Andrade O. de (1990). A utopia antropofágica. São Paulo, Globo e Secretaria de
Estado da Cultura.
Andrade O. de (2021). Obra incompleta, ed. crítica Jorge Schwartz. São Paulo:
Edusp, t. I.
Lourenço E. (1994). O canto do signo. Existência e literatura (1957-1993). Lisboa,
Presença.
Lourenço E. (2018). Tempo brasileiro: fascínio e miragem, org. Maria de Lourdes
Soares. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
Castro E. V. de (2008). Encontros. Eduardo Viveiros de Castro, org. Renato Sztut-
man. Rio de Janeiro: Azougue.
31
Idem.
32
Eduardo Lourenço, «Guimarães Rosa ou o terceiro sertão», in Tempo brasileiro: fascínio e miragem, p. 162.
OROPA, FRANÇA, BAHIA:
REGIONALISMO E PROVINCIANISMO
EM EDUARDO LOURENÇO
LUÍS BUENO*
1990, p. 53.
2
E. LOURENÇO, Nós e a Europa, p. 27.
OROPA, FRANÇA, BAHIA: REGIONALISMO E PROVINCIANISMO EM EDUARDO LOURENÇO
267
Luís Bueno
conhecimento da obra do poeta paulista e faz uma leitura muito atenta da cé-
lebre conferência O movimento modernista, publicada apenas três anos antes.
Nesse momento também é preciso destacar que a literatura brasileira servia de
referência em seus primeiros passos como crítico literário, mesmo quando trata
do romance português, como se vê nas resenhas a Alcateia, de Carlos de Oli-
3 4
veira e Casa da malta, de Fernando Namora , publicadas na revista Vértice em
maio de 1945 e fevereiro de 1946 respectivamente.
Essa identidade portuguesa ao mesmo tempo pouco e muito europeia, e sua
relação com Brasil, revela-se no plano mesmo pessoal em entrevista concedi-
da no ano 2000 a Rui Moreira Leite, que lhe pergunta como havia sentido sua
«iniciação à vida real na Bahia». Em sua resposta, Eduardo Lourenço rememora
a sensação de estranheza que teve ao chegar em Salvador em 1958 para um pe-
ríodo de um ano como professor de filosofia na Universidade da Bahia. Como se
trata de resposta longa, vamos examiná-la em três partes. Ele principia dizendo
isto:
Bom, antes de responder a essa pergunta, uma premissa... eu sou horrorosamente
europeu, não por ser português, mas porque em Portugal eu já era muito voltado
para a Europa, para a sua tradição cultural, mesmo não sendo muito racionalista.
Mas a verdade é que, mesmo tendo em conta a minha formação cultural, eu não tinha
armas, por mais abertura de espírito que houvesse, para, de forma muito positiva,
integrar estas coisas que ia conhecendo. A minha mulher é como se tivesse nascido
realmente em Angola, em Moçambique ou na Bahia, sendo francesa e da Bretanha.
5
Mas a mim aconteceu-me uma coisa extraordinária .
3
Eduardo LOURENÇO, «Alcateia por Carlos de Oliveira», Vértice, Coimbra, n. 12-16, mai. 1945. pp. 52-54.
4
Eduardo LOURENÇO, «Casa da malta de Fernando Namora», Vértice, Coimbra, n. 22-26, fev. 1946. pp. 27-29.
5
Eduardo LOURENÇO, Tempo brasileiro: fascínio e miragem. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2018, pp.
564-565.
268 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
6
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 565.
OROPA, FRANÇA, BAHIA: REGIONALISMO E PROVINCIANISMO EM EDUARDO LOURENÇO
269
Luís Bueno
que este homem esteja ao mesmo tempo de um lado e de outro...» E ele estava,
mais do outro do que daquele que eu pensava estar, o ocidental. E aí sim, embora
eu naquela altura não tivesse reflectido muito sobre isso, provavelmente a minha
atitude seria muito diferente se isso se passasse em São Paulo ou mesmo no Rio. Na
Bahia nós temos a impressão de que, de facto, é outro mundo. Já são outros padrões
7
culturais, outros códigos... E que é esse o Brasil, o Brasil profundo .
Tudo parece estar deslocado ali. O escritor brasileiro de esquerda por força
deveria participar de alguma modalidade da mesma racionalidade do intelectual
europeu, ou ocidental. No entanto, não só o brasileiro não foge ao transe como
8
mergulha nele, a ponto de ser entronizado como pai-de-santo . É o outro lado de
sua própria estupefação, que só pode se resolver, de forma bem pouco racional,
por meio de uma suposição tranquilizadora, a de que em outros lugares do Brasil
essa estranheza não teria acontecido. Suposição tranquilizadora mas frágil, que
precisa apelar para uma ideia como a de que há um «Brasil profundo» e que ele
se encontra em estado puro nalgum lugar do território e não noutros. Se há um
Brasil profundo, ele está em toda parte e em parte alguma. Os desníveis que
parecem insuportáveis a Eduardo Lourenço são perceptíveis mesmo nas grandes
cidades brasileiras como São Paulo e Rio, ainda hoje, e seria preciso um esforço
imenso de alienação para não testemunhá-los numa estadia de quase um ano
nessas cidades como foi a sua em Salvador. E isto fica claro nas impressões que
Lourenço deixou registradas sobre a inauguração da Faculdade de Filosofia de
Assis, no interior de São Paulo, que, na mesma entrevista caracterizaria como «o
faroeste», «mais extraordinário que Hegel na Bahia» e arrematando: «Assisti à
9
fundação de uma Universidade como se estivesse na Idade Média» .
Tudo isso dificulta a compreensão de que Jorge Amado estivesse de um lado
e de outro. Esse tema, aliás, pode nos remeter à crítica que em Portugal se fa-
zia do romance brasileiro. Ao ver incompatibilidades teóricas na vida empírica,
Eduardo Lourenço se aproxima um pouco de João Gaspar Simões, por exemplo,
para quem a literatura brasileira dos anos 30, que tanto interessara ao jovem
crítico em formação, estava fadada a se realizar no plano da objetividade e seria
incapaz de introspeção, que para o velho crítico só poderia existir na literatura de
países velhos, como se só houvesse psicologia no homem europeu.
Não é isso, todavia, que Lourenço expressa como crítico. Em texto inacaba-
do sobre Gabriela cravo e canela, escrito pouco depois de sua experiência na
Bahia, o poder encantatório da música é evocado e a distância em relação à
geração de Simões é sublinhada:
7
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 565.
8
Para sermos precisos, Maria de Lourdes Soares esclarece que na verdade Jorge Amado não foi entronizado
como pai-de-santo, mas recebeu naquela ocasião o título honorífico de Obá de Xangô do Axé Opô Afonjá.
9
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 566.
270 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Por altura dos anos 40, numa então jovem geração portuguesa, passava-se de mão
em mão como um disco um pequeno livro brasileiro cuja prosa tinha o privilégio de
«encantar» no sentido próprio do termo. Do seu balanceamento, da sua brutalidade
lírica, do para nós exótico universo que ele pintava menos que cantava, retínhamos
sobretudo a música e sua primária virtude encantatória. Chamava-se esse livrinho
Mar Morto. Para a geração mais velha o visível processo era um defeito, para nós
uma «descoberta» que nos libertava do analitismo caseiro sem cor a que estávamos
habituados para um mundo odorante, sangrento, bárbaro e lírico, rolando em sua
estranha esfera metafórica uma mesma obsessão rítmica em torno da paisagem fata-
lizada, sumptuosa e impassível ao mesmo tempo onde, mais do que a festa e o com-
10
bate de homens, eclodiam a festa e o combate do sexo, da morte e seus sortilégios .
10
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 107.
11
Ver Rubem BRAGA. «Luiz da Silva e Julião Tavares», Revista Acadêmica, Rio de Janeiro, n. 27, mai. 1937, pp.
3-4 e Graciliano RAMOS. «Decadência do Romance Brasileiro», Literatura, Rio de Janeiro, n. 1, set. 1946, pp.
20-24.
OROPA, FRANÇA, BAHIA: REGIONALISMO E PROVINCIANISMO EM EDUARDO LOURENÇO
271
Luís Bueno
Os dias passados na descoberta do Brasil foram momentos felizes – uma vez que
eu gostei sempre de descobrir outros mundos, pessoas diferentes – mas o Eduardo
sentiu-se completamente perdido nesta terra do Outro Mundo semiafricano, que ele
abordava com uma certa estupefacção traduzida por uma espécie de recusa deste
mundo colorido onde se juntava o melhor e o pior, modernismo e ‘magia’ primitiva...
eu achava que ele não se tinha ainda despojado de alguns ‘preconceitos’ de país
12
colonialista .
Não é difícil concluir do que dizem ambos, que a reação de Annie fora de
alguém cosmopolita, enquanto a de Lourenço fora ou «colonialista» como diz
ela e nega ele – ou ao menos provinciana. Aqui, consideraremos tanto a aceita-
ção imediata da contradição entre religião popular e marxismo em Jorge Amado
quanto sua recusa posterior como manifestações daquele provincianismo no
bom sentido. É que, no caso da forma como Lourenço olha para o Brasil, sua
postura radicalmente portuguesa, constitui um ponto de vista que lhe permite
ver a literatura brasileira de maneira muito rica e, supreendente mas não contra-
ditoriamente, cosmopolita.
Isso se nota particularmente na maneira com que ele tratará do regionalis-
mo, uma tendência da literatura brasileira que, no Brasil, gera grande confusão
e dá azo às mais diversas manifestações do pior provincianismo. Para discutir
essa questão, partamos de um ponto ainda exterior à literatura, para captar
uma disciplina de pensamento que ele utilizará para pensar o regionalismo.
Em texto de 1954 – escrito portanto entre o entusiasmo do jovem crítico com a
literatura brasileira e sua experiência de um ano no país –, «As faculdades de
filosofia no Brasil e o destino da sua cultura», seu tema é o desenvolvimento
13
daquilo que ele chama de «disciplinas do espírito» e da «rápida proliferação»
de faculdades de filosofia no país. O objetivo do ensaio é o de pensar em que
termos seria o desenvolvimento mais eficiente e mais enriquecedor dessas dis-
ciplinas nesse novo contexto. E seu ponto de partida é exatamente Portugal.
Ele começa tratando da tradição filosófica portuguesa e seu autodidatismo, que
ele vê como característica também do Brasil. Acentua que é preciso fazer, tan-
to num como noutro país, um esforço de erudição que passa pelo estudo dos
«textos originais dos filósofos» para se «descobrir ou talhar na nossa língua
uma terminologia adequada às necessidades actuais da expressão filosófica»,
já que as «oportunidades oferecidas ao pensamento brasileiro permitem-nos
pela primeira vez a esperança de realcançar para a filosofia em língua portu-
guesa aquela audiência universal que perdemos quando o latim deixou de ser
14
a língua comum dos filósofos» . Para isso, no entanto o pensamento brasileiro
12
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 564.
13
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 175.
14
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 177.
272 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
15
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 179.
16
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 181.
17
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 158.
18
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 159.
19
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 160.
20
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 160.
21
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 162.
OROPA, FRANÇA, BAHIA: REGIONALISMO E PROVINCIANISMO EM EDUARDO LOURENÇO
273
Luís Bueno
22
É curioso que, tendo conhecido Almeida Faria, tive a oportunidade de conversar com ele sobre Guimarães
Rosa, que, aliás, ele próprio trouxe para a conversa, contando que lera o primeiro volume do Corpo de baile
assim que foi publicado em Portugal, leitura que o impressionou, entre outras coisas, porque lá ele encontrara
palavras que ele tinha como de sua infância no Alentejo. Quando nos reencontramos dias depois, ele me
mostrou seu exemplar, todo anotado ainda no início dos anos 60.
23
Antonio CANDIDO. «Literatura e subdesenvolvimento». In: Antonio CANDIDO, A educação pela noite e outros
ensaios. São Paulo: Ática, 1987, pp. 140-162.
274 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
mais «universal» que qualquer quintinha do Minho ou fazenda de S. Paulo, gente que
jamais tomou a sério a infantil sugestão do catecismo de que «Deus está em toda a
parte». Para eles Deus, sobretudo da literatura e dos objectos dignos dela, encontra-
va-se em Paris, Londres ou Petrogrado. Mais tarde os mesmos descobriram-no em
casa, mas sob reserva de que se tratasse de temas universais, como se eles faltas-
24
sem em qualquer lugar da terra transfigurado pela nossa subversiva respiração .
O crítico chega a esse ponto olhando, mais uma vez, de Portugal ou, mais es-
pecificamente, da obra de Aquilino Ribeiro, que propõe ser pensada em conjunto
com a de Guimarães Rosa. E curiosamente partindo do pressuposto de que não
são obras semelhantes: «O que os aproxima é que nada os aproxima […]. As suas
obras têm o privilégio raro de não parecerem ligar-se a nada mais que à imedia-
ta necessidade de exprimir o singular, primordial e profundo mundo animal e
25
humano que os rodeia» . Fincadas em experiências específicas dos confins do
mundo, são obras que se fundam num universo mental que escapa à racionali-
dade. Sua qualidade não é a de instaurarem uma mitologia – como aliás o crítico
considera que Jorge Amado fizera – mas por se afastarem da reflexão: «No que
têm de único e valioso são eco e palavra de um mundo ainda não coberto por
26
uma explicação de si mesmo» .
Em suma, para Antonio Candido o regionalismo é provinciano. Sua visada so-
bre a literatura brasileira, nesse sentido, finca os pés na Europa, aquela Europa
da racionalidade hegemônica que seria cosmopolita digamos que por natureza.
A visão de Lourenço, por sua vez, seria em princípio provinciana, já que está
fundada em Portugal. Mas não se pode esquecer que Portugal é aquele espaço
e aquele tempo europeu, não-europeu e super-europeu ao mesmo tempo. Ao
contemplar o Brasil e seus confins, o que interessa a essa visão é a forma como,
evitando o perigo de ser americano, ou europeu, ou português (embora possa
ser e seja tudo isso) o regionalismo possa se constituir numa outra razão. Na
lição do Álvaro de Campos entediado de «Opiário»:
Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
27
E há só uma maneira de viver .
24
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, pp. 134-135.
25
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 134.
26
E. LOURENÇO. Tempo brasileiro, p. 139.
27
Fernando PESSOA. Obra poética, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, p. 303.
OROPA, FRANÇA, BAHIA: REGIONALISMO E PROVINCIANISMO EM EDUARDO LOURENÇO
275
Luís Bueno
REFERÊNCIAS
Braga R. (1937). «Luiz da Silva e Julião Tavares», Revista Acadêmica, Rio de Janeiro,
n. 27, mai., pp. 3-4.
Candido A. (1987). «Literatura e subdesenvolvimento». In: Antonio Candido, A edu-
cação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, pp. 140-162.
Ramos G. (1946). «Decadência do Romance Brasileiro», Literatura, Rio de Janeiro, n.
1, set., pp. 20-24.
Lourenço E. (1945). «Alcateia por Carlos de Oliveira», Vértice, Coimbra, n. 12-16,
mai., pp. 52-54.
Lourenço E. (1946). «Casa da malta de Fernando Namora», Vértice, Coimbra, n. 22-
26, fev., pp. 27-29.
Lourenço E. (1990). Nós e a Europa ou as duas razões. Lisboa, Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda, 3ª ed.
Lourenço E. (2018). Tempo brasileiro: fascínio e miragem. Lisboa, Fundação Calous-
te Gulbenkian.
LUSO, ILUSO, DESILUSÃO: O FIO DE
EDUARDO LOURENÇO NO «LABIRINTO DO
RESSENTIMENTO» LUSO-BRASILEIRO
TALLES FARIA*
A quase dois anos das efemérides que assinalariam os “cinco séculos brasi-
leiros”, sintetizadas na fórmula “Brasil 500 Anos”, uma imagem se destaca em
meio à Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, sobressaindo às campanhas elei-
torais daquele ano de 1998, e capta o olhar atencioso de Eduardo Lourenço,
hospedado de frente a ela:
Uma imagem do globo em forma de laranja azul, como a sonhou Paul Éluard e a vi-
ram, dos altos dos céus, Titov e Armstrong [...]. No centro da imagem, como é natural
aqui, está a América do Sul, por sua vez quase ocultada pela enorme mancha verde
do Brasil. [...] É o cartão de identidade do Brasil no limiar do terceiro milénio. A ima-
gem atlântica do globo com o Brasil no meio serve de quadrante ao relógio sobre o
1
qual deslizam os ponteiros das horas e dos segundos. (TB: 385).
Tempo brasileiro sempre apontado para o futuro. O relógio, bem como sua
inscrição, não era exatamente o modo pelo qual “o Brasil se deseja comemorar”,
como supõe o ensaísta que nele observa, com perspicácia, uma dupla rasura: a
amputação da cronologia indígena e do próprio evento que em 22 de abril de
2000 completava os seus quinhentos anos, o desembarque da armada cabralina
nas terras tupiniquins que viriam a ser o litoral baiano. Tratava-se, enredada ao
conjunto das ações do final do primeiro mandato do governo de Fernando Hen-
rique Cardoso, de veiculação ao encargo da Rede Globo de Televisão, assinada
pelo designer Hans Donner, nascido na Alemanha, criado na Áustria e emigrado
para o Brasil. Tratava-se não tanto do modo pelo qual “o Brasil se deseja co-
memorar”, mas do modo pelo qual a Rede Globo desejava comemorar o Brasil,
diferença significativa quando se tem em vista a observação machadiana de que,
*
Talles Faria é Doutor em Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas pela Universidade do
Minho, mestre em Estudos Literários e graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Atua nas áreas de literatura brasileira, teoria da literatura e filosofia, interessando-se também pelo ensaísmo
ibero-americano.
1
Usaremos a edição dos textos de temática brasileira de Eduardo Lourenço no volume IV das suas Obras
Completas, pela Fundação Calouste Gulbenkian: Tempo Brasileiro. Fascínio e Miragem, edição de Maria de
Lourdes Soares. Lisboa, 2018. O volume será referido pela abreviação TB, seguido do número de página.
278 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
2
Trata-se de crônica publicada no Diário do Rio de Janeiro, em 29 de dezembro de 1861, na coluna “Comentários
da semana”: “Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela
os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas
viagens cabe-nos perfeitamente. No que diz respeito à política, nada temos a invejar ao reino de Liliput”.
In Joaquim M. Machado de ASSIS, Crônicas, vol. I, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M. Jackson,
1942, p. 111.
3
Carlos Drummond de ANDRADE, Poesia e prosa, 6ª ed., Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988, pp. 430-431.
LUSO, ILUSO, DESILUSÃO: O FIO DE EDUARDO LOURENÇO NO «LABIRINTO DO RESSENTIMENTO» LUSO-BRASILEIRO
279
Talles Faria
primeiro lhe foi imputada pelo trabalho de extração do pau-brasil, para ressigni-
ficá-la com um sentido novo que ainda não havia no mundo, a de ser brasileiro.
Se ainda vigora alguma antropofagia cultural no Brasil, a mais significativa é esta:
o apropriar-se para reinventar com outra conotação. Ao lado de Darcy Ribeiro
e de outros intelectuais que se dedicaram a pensar o Brasil, Eduardo Lourenço
parece ser uma das figuras que bem captaram essa ânsia de futuro, de ser em
devir, que dominou a maior parte do “tempo brasileiro”, desde os primórdios de
sua literatura colonial já instauradora de visagens e utopias, entre messianis-
mos e milenarismos. E, ainda que se sentisse excluído da festa, Lourenço teve
a generosidade de saudar “a actual nação-continente, construída penosamente
ao longo de cinco séculos” (TB: 385), ao contrário, por exemplo, da filósofa bra-
sileira Marilena Chauí que, na mesma oportunidade, encerrava o último capítulo
de uma das edições promovidas pelos “500 anos” com a afirmação taxativa de
4
que, afinal, na história do Brasil, “não há o que comemorar” , postura pouco
surpreendente em certo setor da academia brasileira.
Lourenço arremata o seu conciso balanço dos “500 anos” em tonalidades
positivas, mas sem resvalar, entretanto, para qualquer suposição de harmônicas
mitologias lusófonas:
As nossas contas com o Brasil estão saldadas desde sempre. São contas nossas. As
que o Brasil tem conosco são só dele e só ele as conhece. Esperemos, calmamente,
que o Brasil nos descubra. Descobrindo-se. Já não é sem tempo (TB: 386).
Este balanço deve levar em conta, por um lado, aquilo que Lourenço, a par-
tir de um comentário de Medeiros de Freitas acerca das recém-independentes
colônias africanas e as más relações que em 1976 se estabeleciam entre estas e
Portugal, destaca com sua sensibilidade costumeira: nas relações pós-indepen-
dência entre colônia e metrópole é não apenas natural, mas estratégico, que a
primeira expresse uma "má vontade concertada" (TB: 374), a qual não apenas
responde pelo natural ressentimento pela colonização, como serve também para
reposicionar o território e a população independentes no concerto das nações.
Por outro lado, é esta uma etapa transitória e que, apesar de seu natural res-
sentimento, não é suficiente para obliterar os efeitos culturais dos séculos de
domínio colonial e tampouco o deve procurar fazer de forma absoluta. Há perma-
nências, não apenas negativas, mas positivas, e não há por que não as conservar
– sugestão esta feita por Amílcar Cabral no contexto das independências das
5
antigas colônias portuguesas em África . Junto à influência indígena e africana,
4
Marilena CHAUÍ, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2000, p. 59.
5
“Um povo que se liberta do domínio estrangeiro não será culturalmente livre a não ser que, sem complexos
e sem subestimar a importância dos contributos positivos da cultura do opressor e de outras culturas, retome
os caminhos ascendentes da sua própria, cultura que se alimenta da realidade viva do meio e negue tanto
as influências nocivas como qualquer espécie de subordinação a culturas estrangeiras”. In Amílcar CABRAL,
280 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
país mestiço que é, a formação do Brasil só pode ser pensada levando-se tam-
bém em consideração a sua influência lusa, manifesta nas curvas do barroco
que, fazendo-se tropical, e, por vezes, oriental, traça uma espantosa linha de
continuidade, por exemplo, entre Minho e Minas (TB: 388); nas práticas culturais
e religiosas, nas violas do samba e da música caipira, nas pastorinhas, nas festi-
vidades da Semana Santa que são quase as mesmas entre Braga e Ouro Preto,
nos farricocos da Procissão do Fogaréu que chocam os espíritos assustadiços da
classe média das capitais que subvertem não apenas a cultura, mas a cronologia,
para inculcar numa tradição íbero-brasileira do século XVIII, católica, abstrusos
liames com a Ku Klux Klan fundada no século XIX e em franca oposição ao cato-
licismo. É este um Brasil que se perde e se desconhece, motivo pelo qual se há
de concordar aqui com Lourenço:
Pouco importa já que o Brasil não nos veja. Mais importante é saber que o Brasil não
se poderá ver a si mesmo sem nos ver. O progresso da sua autognose só pode ser o
do aprofundamento da sua substância lusíada. (TB: 252).
«Libertação nacional e cultura», in Manuela Ribeiro SANCHES, ed., Malhas que os impérios tecem. Lisboa:
Edições 70, 2011, p. 361.
6
Antônio CANDEIA, «Sou mais o samba», in Quatro grandes do samba, Sony Music Enterteinment Brazil LTDA,
1977.
LUSO, ILUSO, DESILUSÃO: O FIO DE EDUARDO LOURENÇO NO «LABIRINTO DO RESSENTIMENTO» LUSO-BRASILEIRO
281
Talles Faria
Maria Filipa de Oliveira na Guerra de Independência na Bahia [19 fev. 1822 - 7 jul.
1823] – o ressentimento era inevitável: daí se seguiram as contendas conhecidas
como “Mata-Maroto” na Bahia e “Mata-Galego” no Rio, entre 1831-1840, também
motivadas pela abdicação de D. Pedro I; os românticos brasileiros, a partir da pu-
blicação da Revista Nitheroy, em 1836, dão início literário ao lastro da identidade
7
brasileira instaurada no indígena ; ao longo do XIX, o domínio português dos
8
comércios e especialmente dos imóveis no Rio de Janeiro aumentam ainda mais
a tensão, ao ponto desta ser vetorizada na figura de João Romão, o proprietário
português d’ O cortiço, romance publicado por Aluísio de Azevedo em 1890; e,
ainda, a própria ideologia de “branqueamento”, política eugenista da nascente
república brasileira, associada a um discurso de “modernização” atravessado
pelas contradições urbanas suscitadas pela exclusão das camadas populares
brasileiras do direito à propriedade privada, privilegiava, inegavelmente, ao por-
tuguês em comparação com o pardo brasileiro e, mais ainda, com o negro, que
começam essa disputa em grande defasagem pelo escravismo vigente no perío-
do colonial, mantido pela monarquia e não de todo superado pela república. Em
suas memórias, o romancista mineiro Cyro dos Anjos relembra nestes termos o
antilusitanismo no Brasil já adentrada a segunda década do século XX:
Tinha-se medo de infringir o luso Figueiredo [António Pereira Cândido de, gramático,
filólogo, lexicógrafo], como uma beata de pecar contra os mandamentos. Isso trazia
uma raiva surda, um rancor só comparável ao que provocava a análise de trechos de
Os Lusíadas, catados a capricho, para massacrar o preparatoriano. Tudo contribuin-
9
do para fortalecer a birra aos irmãos d’além-mar.
7
O que é sempre renegá-la a outros grupos, inclusive dos próprios grupos indígenas, uma vez que o indígena
romântico é sempre o tupi, elemento dominante do que há de autocolonização na colonização/invenção do
Brasil. Machado de Assis, em pelo menos duas oportunidades, apontara ressalvas ao artifício indigenista
romântico. Numa crítica ao Uraguai de Basílio da Gama, publicada em 1858, é taxativo: “Sem trilhar a senda
seguida pelos outros, Gama escreveu um poema, se não puramente nacional, ao menos nada europeu. Não
era nacional, porque era indígena, e a poesia indígena, bárbara, a poesia do boré e do tupã, não é a poesia
nacional. O que temos nós com essa raça, com esses primitivos habitadores do país, se os seus costumes
não são a face característica da nossa sociedade?” (Joaquim M. Machado de ASSIS. Obra completa, vol. III.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 785). Avaliação que se prolonga, 15 anos depois, ao conhecido artigo
publicado nos EUA sobre o nosso instinto de nacionalidade: “É certo que a civilização brasileira não está
ligada ao elemento indiano [indígena], nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre
as tribos vencidas os títulos da nossa personalidade literária” (ibid., p. 802). Não se trata de um anti-indige-
nismo machadiano, mas, antes, da percepção da complexidade da formação social brasileira, irredutível a
quaisquer de suas matrizes proto-formadoras.
8
Cf. Gladys Sabina RIBEIRO, «“Por que você veio encher o pandulho aqui?” Os portugueses, o antilusitanismo
e a exploração das moradias populares no Rio de Janeiro da República Velha». Análise Social, v. 29 (1994),
pp. 631-654.
9
Cyro dos ANJOS, A menina do sobrado, Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Garnier, 1994, p. 320.
282 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
10
Eduardo LOURENÇO & Jorge de SENA, Correspondência, Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1991, p. 42.
11
Eduardo LOURENÇO & Jorge de SENA, Op. cit., p. 50.
12
Eduardo LOURENÇO & Jorge de SENA, Op. cit., p. 59.
284 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
para dele extirpar o que nele poderia haver de “reflexo de ressentido”. Num
artigo inconcluso dedicado ao livro de José Honório Rodrigues [1964], com da-
tação provável assinalada para o ano de 1969 por Maria de Lourdes Soares para
o quarto volume de suas Obras completas – este “Tempo brasileiro: Fascínio
e miragem” –, isto é, apenas dois anos depois da troca de missivas com Sena
há pouco mencionada, deparamo-nos com um comentário que discrepa do teor
confabulado com o amigo, o que dá mostras do relevo que concedeu e da cora-
gem com a qual enfrentou os complexos das relações luso-brasileiras, malgrado
quaisquer ressentimentos incapazes de se colocarem a par da estatura de nosso
ensaísta:
Que razões têm os brasileiros [que] ascendem [de] um sírio-libanês-brasileiro, um hún-
garo, um japonês, um alemão, até um italiano, para assumir, como o luso-brasileiro
ou seu descendente, toda uma tradição nossa que engloba desde Camões ao vinho
tinto? O milagre da vida e da cultura brasileira é que, por considerável que seja essa
miscigenação sociocultural, o impulso propriamente luso-brasileiro – quer dizer, em úl-
tima análise, o do europeu passado aos trópicos – caldeia as contradições e em certa
medida as reintegra nessa síntese a nenhuma outra parecida que é o Brasil (TB: 365).
Num intervalo de apenas dois anos da troca de cartas com Sena, Lourenço,
também ele, rasura o que dissera antes e decifra o que talvez seja o aspecto
mais relevante da cultura brasileira: ela não se compreende fundada num eth-
nos, mas supõe-se saída do nada existencial da “ninguendade” para fundar-se
a si mesma, numa partenogênese na qual os brasileiros aparecem “como se
fossem filhos de si mesmos” (TB: 276; grifos do A.). As matrizes formadoras dos
núcleos proto-brasileiros, ao se misturarem, engendraram variações – o mulato,
o curiboca, o cafuso – que, por sua vez, se misturaram entre elas e estabelece-
ram novas misturas com as outras origens que passaram a integrar a formação
social do Brasil –, e que passa ainda a demandar outras categorias culturais,
como “sertanejo”, “caboclo”, “gaúcho”, “caipira”, uma rede complexa nas quais
nós mesmos, brasileiros, nos perdemos e nos encontramos, e que nos consome
um pouco o tempo em que poderíamos estar a tratar de algo que não fosse “tão
Brasil”. Afinal, e a observação apurada é do ensaísta: “A cultura brasileira é um
amazônico tecido que os próprios brasileiros só com dificuldade dominam e es-
truturam” (TB: 268). Lourenço desarma a aparência de que o brasileiro comum
torna o luso iluso simplesmente por picardia ou por hipocrisia: não, o brasileiro
comum simplesmente ignora, desconhece e já não reconhece, o que seja luso.
O que é também desconhecer um pouco de nós mesmos, como aos farricocos
de Minas, de Goiás e de Braga. E nós, brasileiros, também não desconhecemos
tanto e tantos de nós?
Menos que o luso ou o iluso, Eduardo Lourenço vem nos lembrar de que
é preciso o abandono da ilusão e o posterior enfrentamento da desilusão que
LUSO, ILUSO, DESILUSÃO: O FIO DE EDUARDO LOURENÇO NO «LABIRINTO DO RESSENTIMENTO» LUSO-BRASILEIRO
285
Talles Faria
13
“A classe dirigente do novo Brasil, do Brasil cada vez mais ‘brasileiro’, mais multirracial e multicultural, não
podia fazer o processo da sua própria dominação, da continuidade ‘luso-colonial’ que nela se perpetua sem
se diminuir, sem destruir as bases e as referências que fundavam a sua superioridade económica, política e
cultural. A sua estratégia – consciente e inconsciente ao mesmo tempo – foi a de se ir esquecendo do seu
natural passado, de deslocar a sua atenção cultural para novas fontes de cultura” (TB: 278). Ainda em “O
Brasil e a África ou a ilusão materna dos portugueses”, Lourenço (TB: 369) observa que a pouca compreensão
e presença cultural portuguesa no "horizonte [brasileiro] de uma outra que nós pensamos herdeira nossa e
fraterna mas que, para infantilmente se pensar à parte e se branquear, enegrecer, se separa ou transfigura o
comprometedor passado que ela teria, se admitisse ser – como o foi e é –, pelo menos duzentos e cinquenta
anos de vida colonial portuguesa".
286 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
REFERÊNCIAS
Andrade C. D. (1988). Poesia e prosa, 6ª ed., Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
Anjos C. (1994). A menina do sobrado. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Garnier.
Assis J. M. M. (1942). Crônicas, vol. I. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W. M.
Jackson.
Assis J. M. M. (1997). Obra completa, vol. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
Bandeira M. (2006). Antologia. Lisboa: Relógio d’Água.
Cabral A. (2011). «Libertação nacional e cultura», in Manuela Ribeiro Sanches, ed.,
Malhas que os impérios tecem, Lisboa: Edições 70, pp. 355-375.
Candeia A. (1977). «Sou mais o samba», in Quatro grandes do samba, Sony Music
Enterteinment Brazil LTDA.
Chauí M. (2000). Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo.
Lourenço E. & Sena J. de (1991). Correspondência. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa
da Moeda.
Lourenço E. (2018). Obras completas, IV: Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem. Lis-
boa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Ribeiro G. S. (1994). «“Por que você veio encher o pandulho aqui?” Os portugueses,
o antilusitanismo e a exploração das moradias populares no Rio de Janeiro da
República Velha». Análise Social, v. 29, pp. 631-654.
Ribeiro D. (1995). O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, 2ª ed., São
Paulo: Companhia das Letras.
O INUMANO EM CLARICE, SEGUNDO
EDUARDO LOURENÇO
*
Annita Costa Malufe é investigadora da Universidad de Salamanca (Contrato María Zambrano), junto ao
Grupo de Investigación Reconocido Estudios Portugueses y Brasileños. No Brasil, é pesquisadora do CNPq e
docente do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP. É investigadora
colaboradora do ILCML (Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da Universidade do Porto). Doutora
em Teoria e História Literária pela UNICAMP, é autora dos livros de ensaios: Territórios dispersos: a poética de
Ana Cristina Cesar (2006) e Poéticas da imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar (2011), ambos com
financiamento FAPESP. Realizou duas pesquisas de pós-doutoramento: na USP, “Traços de Beckett na literatura
contemporânea” (bolsa CNPq), supervisionada por Fabio de Souza Andrade; e na PUC-SP, sob supervisão
de Peter Pál Pelbart, “Procedimentos literários em Gilles Deleuze” (bolsa FAPESP). É autora de sete livros de
poemas, dentre os quais Alguém que dorme na plateia vazia (7letras, 2021).
1
O texto foi publicado em três versões, a partir de 1998, com pequenas alterações; a que utilizo aqui é a mais
recente, que está nas Obras completas vol.3 – Tempo brasileiro, editada pela Calouste Gulbenkian em 2018.
288 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Aqui, ele localizaria essa “rasura do trágico”, que poderíamos traduzir por
uma supressão ou uma subtração do aspecto trágico, enquanto reflexo de um
certo modo de ser da cultura brasileira. Na literatura, tal traço apareceria expres-
so em diferentes procedimentos de escrita: a presença da ironia, da alegoria,
do humor, da construção de universos oníricos, mágicos, da fabulação de outros
mundos que de algum modo subtraem-se do mundo real em sua tragicidade, ou
apontam para outras formas, mais lúdicas, mais leves, alegres ou, ainda, despro-
vidas das questões humanas demasiado humanas, de questões psicológicas, por
exemplo. Nesse sentido, os exemplos privilegiados por Lourenço serão, cada um
a seu modo e com sua singularidade, Oswald de Andrade e Jorge Amado. Mas
também José Lins do Rego ou o Graciliano Ramos de Vidas secas (segundo ele,
não o de São Bernardo e Angústia) e, por fim, João Guimarães Rosa. Autores
cujas obras, mesmo tocando em questões fulcrais do sofrimento brasileiro, seus
dramas e catástrofes, confeririam – de diferentes formas, através do humor, da
ironia, ou na sua forma de construção de personagens ou cenários – um colorido
antitrágico para suas desgraças.
Interessante notar que, apesar de figurarem no subtítulo “De Machado de As-
sis a Clarice Lispector” (omitido na última versão do ensaio), esses escritores-ba-
lizas da análise aparecem quase como exceções à regra; ou, mais precisamente
como extremos em que a rasura do trágico não se daria de modo tão evidente.
O próprio ensaísta salienta soar paradoxal falar antitrágico tanto acerca de Ma-
chado quanto de Clarice, “autores que a título diverso, parecem desmentir, fron-
3
talmente, o nosso propósito’ . Logo no início, Lourenço afirma que Machado não
2
Eduardo LOURENÇO, Obras completas vol. 4. – Tempo brasileiro: fascínio e miragem, coord., intro. Maria de
Lourdes Soares, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018, p. 126.
3
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 126.
O INUMANO EM CLARICE, SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
289
Annita Costa Malufe
4
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 128.
5
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 128.
6
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 129.
7
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 129.
8
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 131.
9
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 131.
290 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
2. O TRÁGICO, O DESASSOSSEGO
Porém, se considerarmos o quanto o trágico configurou um conceito caro a
Eduardo Lourenço, ao longo de suas obras, intriga perceber o sentido mais exato
da proposição-chave que move o ensaio; quais suas implicações e consequên-
cias críticas e conceituais tanto para a visão de Lourenço sobre a literatura bra-
sileira quanto para o seu olhar para a obra de Clarice Lispector? Para começar,
o texto pouco nos traz de uma definição precisa do trágico. Lourenço parece aí
pressupor um leitor que partilhe de seu conceito de trágico ou, quem sabe, ar-
risca-se, deixando margens para que o termo seja compreendido em seu senso
mais amplo e comum. Mas o que ele entende exatamente por trágico? Por que in-
cluir o caso Clarice nessa linhagem antitrágica, à qual ela tanto parece destoar?
O que está em jogo é uma problemática de fundo, presente no pensamento
de Lourenço, que consiste, em primeiro lugar, na constatação de uma natureza
10
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 131.
11
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 131.
O INUMANO EM CLARICE, SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
291
Annita Costa Malufe
12
Eduardo LOURENÇO, Obras completas vol. 3. – Tempo e Poesia, coord., intro. Carlos Mendes de Souza, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, p. 94.
13
José GIL e Fernando CATROGA, O ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço, Lisboa: Relógio d’Água, 1996, p. 11.
14
Eduardo Lourenço recolhe a formulação da experiência trágica da existência de diversos pensadores; porém,
segundo José Gil, sua concepção se deve, em maior medida, a Kierkegaard.
15
J. GIL e F. CATROGA, O ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço, p. 14.
16
José GIL, Cansaço, tédio, desassossego, Lisboa: Relógio d'Água, 2013, p. 105.
292 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
17
J. GIL e F. CATROGA, O ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço, p. 12.
18
J. GIL e F. CATROGA, O ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço, p. 13.
19
Conforme salienta João Tiago Lima: “Compreender o homem na sua temporalidade, ou melhor, enquanto
temporalidade, constituiu, desde as reflexões mais jovens, preocupação fulcral no percurso filosófico de
Eduardo Lourenço”. (João Tiago Pedroso LIMA, Existência e Filosofia – O ensaísmo de Eduardo Lourenço,
Porto: Campo das Letras, 2008, p. 24.) O que Lourenço fará sobretudo a partir do diálogo com o pensamento
de Heidegger. O tempo, como o ensaísta declara em textos e entrevistas, constituiu a sua preocupação
central e, segundo ele, a sua tese jamais inteiramente realizada.
20
J. T. P. LIMA, Existência e Filosofia – O ensaísmo de Eduardo Lourenço, p. 105.
21
Eduardo LOURENÇO, O canto do signo – existência e literatura (1957-1993), Lisboa: Editorial Presença, 1994,
p. 32.
O INUMANO EM CLARICE, SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
293
Annita Costa Malufe
22
Eduardo LOURENÇO, Fernando, Rei da Nossa Baviera, Lisboa: IN-CM, 1986, p. 86.
23
Fernando PESSOA, Livro do desassossego, ed. Jerónimo Pizarro, Lisboa: Tinta-da-China, 2014, p. 477.
24
Benedito NUNES, “Clarice Lispector ou o naufrágio da introspecção”, Remate de Males, n. 9, 1989, p. 66.
Segundo Nunes, é a própria narrativa de Clarice que beira o inenarrável, em uma ‘impossível busca do
inexpressivo e do silêncio’ (p. 67).
25
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro p. 131.
26
Clarice LISPECTOR, A paixão segundo G.H., Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964, p. 102.
294 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
das idealizações humanas, o que, por outro lado, não implicará em se acomodar
puro dado empírico, mas dele partir para uma ascese que é antes uma queda, do
que uma subida aos céus. A tessitura das coisas é a marca do real que está para
aquém do humano, um: “neutro-divino, o aquém-humano presente no coração
27
do homem” . Daí ser essa uma ascese do corpo, das sensações, do contato
28
íntimo – e estranho, ou como o quer Nunes “uma intimidade exteriorizada”
– com o que de mais material possa haver, em todo seu horror, surpresa e
indecifração.
A cena do romance em que G. H. come a barata e toma contato com a subs-
tância informe e viscosa seria um instante-chave: “Saborear a barata é aceitar
29
o real no seu horror resplandecente” . Haveria nesse gesto uma aceitação e
uma incorporação do inumano e, mais do que isso, uma comunhão com ele.
Esse é o instante em que a personagem agrega a seu próprio corpo o elemen-
to inumano, que é ainda o “mal” e o Inexpresso, figurados pela barata, e dele
consegue extrair vida, abertura, continuidade. O êxtase então se dá e percorre
a narração enquanto uma espécie de alívio do despojamento do Eu, do humano
e suas transcendências.
Aqui, aproximamo-nos da rasura do trágico em que Lourenço localiza em Cla-
rice. Como se ela partisse da mesma “ausência radical” pressuposta pelo trágico
de Pessoa para, no entanto, transmutá-la num excesso de vida, que parece vazar
nos interstícios do mínimo, do mais minimamente material:
Eu, corpo inteiro da barata, eu com uma vida que finalmente não me escapa pois
enfim a vejo fora de mim – eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos,
sou o trechos e luz mais branca no reboco da parece – sou cada pedaço infernal de
mim – a vida em mim é tão insistente que se me partirem, como a uma lagartixa, os
30
pedaços continuarão estremecendo e se mexendo .
27
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 131.
28
Benedito NUNES, “Clarice Lispector ou o naufrágio da introspecção”, p. 68. Aqui cabe marcar a proximidade
da proposta de Nunes, ‘o naufrágio da introspecção’, com a ‘rasura do trágico’, de Lourenço. Em ambos
Clarice aparece como uma espécie de superação, de falha, de uma certa cultura humanista, romântica ou
mesmo metafísica. Contudo, Nunes dá maior relevância a uma ascese que se daria na própria materialidade
da linguagem.
29
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 132.
30
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 65.
O INUMANO EM CLARICE, SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
295
Annita Costa Malufe
Clarice viaja para o ponto nu onde o eu abdica da sua odisseia romântica em busca
de céus inexistentes, trocando-os pela plenitude do mínimo, da anulação que a res-
tabelece na realeza perdida de um eu que é mundo e de um mundo que é eu. Da
aceitação do inumano, substância de tudo quanto existe, nasce a paz para o que em
31
nós de humano se designa .
31
E. LOURENÇO, Obras completas vol. 4 – Tempo brasileiro, p. 132.
32
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 69.
33
“Mas só as sensações mínimas, e de coisas pequeníssimas, é que eu vivo intensamente”. (F. PESSOA, Livro
do desassossego, p. 110).
34
Não são poucos os momentos em que Lourenço se refere à ‘visão trágica e niilista’ de Pessoa. (Eduardo
LOURENÇO, Poesia e metafísica, Lisboa: Gradiva, 2002, p. 210).
35
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 100.
296 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Essa imersão poderia ser igualmente aquela do leitor (para) Lourenço, que
38
se vê apreendido pelo “inapreensível instante” , nessa conciliação em que, ele
mesmo, leitor, experimenta um devir-inumano. Daí ser essa uma suspensão do
humano demasiado humano, naquilo que, inclusive, dele depende a própria no-
ção de trágico. A rasura do trágico em Clarice advém, assim, do que em sua
escrita impossibilita a própria existência do humano. Do que ela opera de trans-
mutação na experiência do Homem, do sujeito, da interioridade, da essência.
Avatares de uma certa tradição metafísica que parecem naufragar nessa poética.
E assim, conclui Lourenço, se:
[...] nenhuma tragédia é possível neste deserto-oásis de Clarice, é porque não há
confronto entre “eu” e “vida”, não há cisão, mas somente coexistência, continuidade:
39
‘numa paixão de que o silêncio [...] é o resto, o que já nada significa .
36
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 98 e p. 100.
37
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 80.
38
Eduardo LOURENÇO, Obras completas vol. 3. – Tempo e Poesia, p. 76.
39
Eduardo LOURENÇO, Obras completas vol. 3. – Tempo e Poesia, p. 132.
40
Eduardo LOURENÇO, Obras completas vol. 3. – Tempo e Poesia, p. 132.
O INUMANO EM CLARICE, SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
297
Annita Costa Malufe
REFERÊNCIAS
Gil J. (2013). Cansaço, tédio, desassossego, Lisboa: Relógio d'Água.
Gil J. e Catroga F. (1996). O ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço, Lisboa: Relógio
d’Água.
Lima J. T. P. (2008). Existência e Filosofia – O ensaísmo de Eduardo Lourenço, Porto:
Campo das Letras.
Lima J. T. P. (2013). Falar sempre se outra coisa – Ensaios sobre Eduardo Lourenço,
col. Iberografias Guarda/ Lisboa: Centro de Estudos Ibéricos/ Âncora Editora.
Lispector C. (1964). A paixão segundo G.H., Rio de Janeiro: Edição do Autor.
Lourenço E. (1998). “Da literatura brasileira como rasura do trágico – de Machado
de Assis a Clarice Lispector”, Terceira Margem, Revista de Estudos Brasileiros,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n. 1.
41
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 178.
42
C. LISPECTOR, A paixão segundo G.H., p. 60.
298 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
PEDRO SERRA*
Também por motivos que não têm muito a ver com a mesma estética, se esta nobre
2
dama existe, foram eles [os «séculos malditos»], ou parte deles, reabilitados.
Eduardo Lourenço
5
Id., ibid., p. 15. As traduções levadas a cabo neste artigo são da minha responsabilidade.
6
Op. cit., ed. cit., p. 17. Eu sublinho.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
301
Pedro Serra
perspectivistas que daqui decorrem, estrutura, assim, é o nome para uma espé-
cie de ‘totalidade’ que é mais do que a soma de suas ‘partes’. Isto dista, eviden-
temente, dos atributos de sistematicidade, inconsciência e universalidade atri-
buídas à noção de «estrutura» por um Lévi-Strauss, por exemplo. Digamos, muito
sucintamente, que o momento subjectivo da epistemologia que insufla Maravall
não é subrogado.
Por outro lado, assinalo que as reflexões contidas em A Cultura do Barroco.
Análise de Uma Estrutura Histórica sobre a ala ocidental portuguesa da Penín-
sula Ibérica, e da sua geografia transcontinental coextensiva, primam pela sua
ausência, muito embora por vezes José Antonio Maravall aluda à necessidade
de incorporar, na «estrutura» que subtil e solidamente urde, casuística barroca
em língua portuguesa e, também, do espaço latino-americano. O objetivo do
ilustre historiador foi, em grande medida, o de situar e assentar o «caso» do
barroco espanhol no contexto da Europa. Mas, por exemplo, quando se refere
a Victor-Lucien Tapié, autor de Baroque et classicisme, de 1957, para nele assi-
nalar a ‘ausência’ do barroco espanhol, faz a seguinte precisão: «Observemos
que mesmo quando Tapié fez um livro que citámos sobre o barroco, se nas suas
páginas tratava de França, Itália, Europa Central e Brasil, não havia qualquer
referência a Espanha, embora o facto já fosse completamente injustificável na
7
altura em que a obra foi publicada». Não menciona especificamente o Reino de
Portugal, mas menciona a Colónia do Brasil, o que certamente se justifica pela
modulação próspera da «cultura barroca» que aí teve lugar. Ao tempo da historio-
grafia especializada a que Maravall se refere, o caso brasileiro é já inscrito como
emblemático do âmbito lusófono.
Cabe destacar, portanto, em José Antonio Maravall, o gesto de colocar o caso
do «barroco espanhol» no mapa dos estudos europeus – Alemanha, França, Itá-
lia, Inglaterra – sobre o barroco. O lance é significativo, diz respeito não só à
geografia político-social, literária ou artística desta «estrutura histórica», mas
também, afinal, à provocação e estímulo do necessário alargamento desta es-
trutura a geografias extraeuropeias, sendo um caso conspícuo o da produção
cultural de língua portuguesa, do Reino de Portugal e do Brasil Colónia, apesar
de tudo, em larga medida ausentes da obra. Em simultâneo, é também um facto
digno de nota que Maravall esboce com traço grosso uma matéria igualmente
relevante: o de a historiografia europeia sobre o barroco ter prestado atenção
ao «caso» brasileiro antes mesmo de contemplar o barroco espanhol, ou sequer
da península ibérica.
Ora propus-me avançar com algumas cláusulas, necessariamente provisó-
rias, sobre o rendimento e préstimo do vocábulo ‘barroco’ nos seguintes textos
vinculados ao ‘tempo brasileiro’ de Eduardo Lourenço. Neste sentido, as peças
7
Id., ibidem, p. 40.
302 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
8
Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., pp. 197-208, 191-194 e 387-388, respectivamente. Os primeiros dois
textos integram a segunda parte do volume, «Do filosofar e do educar: luminosas presenças» (págs. 173-
234); o terceiro, por seu turno, pertence à quinta parte, «A rasura da descoberta ou a morte de Cabral» (pp.
377-400).
9
Id., ibid., p. 558.
10
Id., ibid., p. 569.
11
Respigo aqui lugares da notável entrevista concedida por Lourenço a Rui Moreira LEITE, «A miragem brasileira»,
em Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., pp. 557-571.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
303
Pedro Serra
tem de ‘barroco’ no sentido mais forte do termo. A Bahia dessa época não era
precisamente a cosmopolita São Paulo. Contudo, a Bahia já tinha naquela altura
coisas que só acontecem no Brasil». A estada bahiana proporciona a Lourenço
presenças irredutíveis: «Por exemplo: lá estava o maestro Koellreutter, que ini-
ciara essa capital do barroco brasileiro e nosso na música mais vanguardista.
Imagine-se o que era um concerto de Schönberg ou Alban Berg na Reitoria da
12
Bahia para umas vinte pessoas. Era o mesmo que ‘ensinar’ Hegel...» Imiscui-se
aqui, desde já, a problemática do uso da palavra ‘barroco’ nos textos de Eduardo
Lourenço. Em 2009, «no sentido mais forte do termo», ‘barroco’ é atributo da
docência na Bahia, em 1958, da filosofia de Hegel. Implicitamente, por outro
lado, insinua-se que havendo um ‘sentido mais forte do termo’, pode também
ocorrer um ‘sentido mais fraco do termo’. Ao mesmo tempo, ponto importante,
Lourenço inscreve uma obviedade que, por ser dita, já o não é tanto: as suas
vivências foram bahianas e não paulistas. Mas mais ainda: num salto vertigino-
so, o exemplo que proporciona coloca em relação singular o «barroco brasileiro
e nosso» (eu sublinho) com a «música mais vanguardista», fazendo dela, ainda,
analogia. «Imagine-se», diz Eduardo Lourenço em 2009; mas, em rigor, Eduardo
Lourenço esteve lá. O ponto decisivo desta descrição é mesmo este: o ‘sentido
mais forte’ do «barroco», tanto na filosofia como na música, tem a sua condição
13
de possibilidade no estar lá ou no ter estado lá.
Como argumentarei, percutem nesta cena – que, insisto, tem valor esque-
mático – os termos do barroco de Eduardo Lourenço ou, em rigor, dos barro-
cos de Eduardo Lourenço, pois já se insinuou um uso de ‘sentido mais forte’ e
um uso de ‘sentido mais fraco’ da palavra. Pela singularidade desta pragmática
12
Id., ibid., p. 563.
13
Não é a Música, mas sim espécies de música, o que, em rigor, está em causa. Chamo a atenção para a
excusatio non petita das seguintes palavras de Eduardo Lourenço: «A minha atitude – não digo colonialista
porque não tem essa conotação – de estranheza mudou desde que assisti, pela primeira vez, a um can-
domblé. Foi muito impressionante. Começou aquela música e a certa altura eu tive de sair do recinto, não
porque me sentisse mal, mas porque aquele ritmo tinha uma influência mecânica, fisiológica sobre mim.
Era a mesma batida. Nós percebemos como aquele ritmo faz parte de uma preparação para a discussão em
que a pessoa fica num transe... (Devo dizer, não nasci muito para transe!...) Mas tive de sair, ir para fora, com
um certo medo. Tem realmente uma influência, um impacto...» (id., ibid., p. 565). Lourenço é consciente da
distinção que faz, pois, entre a ‘música’ de uma situação como a do candomblé e a ‘música’ avançada – isto
é, de vanguarda – a que também faz referência. Mas a distinção não é «colonialista». Por outras palavras,
a reacção – ‘medo’, ‘transe’, ‘sair do recinto’ – diz respeito à «influência mecânica, fisiológica». Por outras
palavras, é anterior à atribuição de um qualquer sentido: uma «conotação», digamos. ‘Sair do recinto’ não
supõe rejeição ao fenómeno da ‘batida’ e do ‘ritmo’. Eduardo Lourenço estaca antes do «transe» vivido
em primeira pessoa, em que se perde a primeira pessoa. Esta retracção não é assim tão importante para
poder, legitimamente, pensar sobre o «transe». Pode fazê-lo, por exemplo, lendo Santa Teresa de Ávila, ou
interpretando «O êxtase de Santa Teresa» de Bernini, sem que esta opção signifique preconceito cultural ou
civilizacional. De resto, o que apontar para o candomblé significa, por parte de Eduardo Lourenço, mesmo
com as ressalvas mencionadas da «estranheza» sentida, é atribuir-lhe o valor de ser pensado por alguém.
‘Batida’ e ‘ritmos’, tanto do candomblé como de uma peça de música erudita, detêm um valor estésico cuja
positividade – um «impacto» – não rasura uma sua eventual negação ao nível da atribuição de sentido.
Desde logo porque essa atribuição tem, precisamente, como atributo, o negativo.
304 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
14
Id., ibid., p. 203.
15
Como palestrante, Lourenço inscreve-se em três secções: «Literatura», «Belas Artes» e «Medicina». Cf.
Maria de Fátima Maia RIBEIRO, «IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros (1959) e estratégias
de interlocução e de silenciamentos, na construção de alteridades e relações culturais», in Márcio Ricardo
Coelho MUNIZ et alii, Anais do XXII Congresso da ABRAPLIP, Bahia: UFBA, 2009, pp. 689-699.
16
Na entrevista concedida a Rui Moreira Leite, publicada sob o título «A Miragem Brasileira», Eduardo Lourenço
faz referência a este facto. A entrevista integra o volume Tempo Brasileiro (op. cit., ed. cit., pp. 557-571).
17
Álvaro da Costa Pimpão, também participante no colóquio, gravaria um depoimento radiofónico emitido em
Portugal dando conta do acontecimento, mas ocultando parte do ocorrido. Costa Pimpão vai ao colóquio
como representante oficial do regime de Oliveira Salazar, facto que move firmes críticas de Adolfo Casais
Monteiro. No artigo «A Grande Hipocrisia da Comunidade», publicado no Jornal da Bahia de 15-16 de Agosto
(Caderno 2, pág. 4), escreve Casais Monteiro: «Pergunta-se compreensivelmente, como pode haver diálogo
entre um povo livre e um povo de bôca tapada» (apud Maria de Fátima Maia RIBEIRO, op. cit., ed. cit., p. 697).
Sobre o colóquio, veja-se a tese de doutoramento, incidindo sobre a documentação completa arquivada do
evento, de Maria de Fátima Maia RIBEIRO, IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros: relações
culturais, identidade, alteridade, Salvador: UFBA, 1999.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
305
Pedro Serra
retorno a Portugal. No meu artigo, este tema não é prioritário, muito embora
tenha a sua ressonância na análise e síntese que «Fenomenologia e História
da Arte – O Exemplo do Barroco – Breve Fenomenologia do Barroco» propõe,
como veremos. Emanando de vivências pessoais, e focalizando teoreticamente,
18
na conferência, a «supremacia do presente sobre o passado», o que talvez seja
de lamentar é o facto de Eduardo Lourenço não ter avançado de forma mais
insistente e constante na sua proposta de uma «fenomenologia da arte» e, mais
concretamente, de uma estética do barroco.
Em «Apoteose barroca», pequeno texto escrito aquando, e no contexto, da ex-
19
posição «Brasil Barroco – Entre Céu e Terra», realizada no Petit Palais em Paris,
20
por ocasião da efeméride dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, teremos
um Eduardo Lourenço já mais mobilizado pela contestação, algo desencantada
mas bem afiada, de «Um barroco que não veio de parte nenhuma, emanação ou
21
essência de uma ‘brasilidade’ naturalmente barroca». No fundo, uma efeméride
que repete, na diferença, aquela constatação referente à historiografia transpi-
renaica sobre o barroco que foi apontada por José Antonio Maravall, e a que o
historiador espanhol responde, em 1975, com La cultura del barroco. Análisis de
una estructura histórica. Em 1999 – o manuscrito de «Apoteose Barroca» data de
8 de Novembro desse ano –, Eduardo Lourenço faz o que pode, e é muito: «Ne-
22
nhum Paris nos consegue distinguir» referindo-se, claro está, a Portugal e ao
23
Brasil, aos brasileiros e aos portugueses, perante um barroco «luso-brasileiro».
Mas fá-lo reduzindo a questão do barroco à sua razão latamente identitária e co-
munitária, sem dúvida ponderosa e necessária, mas que fica aquém da reflexão
sobre o barroco proposta em 1959, reflexão importante, quero crer, para uma
qualquer história ou filosofia sua.
«Nenhum Paris nos consegue distinguir», formulou com contundência e preci-
são Eduardo Lourenço. Estabelecer ou não distinções é ainda uma forma de distin-
guir, isto é, de pensar. O trabalho intelectual de Eduardo Lourenço foi sempre movi-
do por esta libido sciendi. Cabe avançar lembrando, neste sentido, que o exercício
de uma intervenção na complexa e densa matéria do barroco peninsular ibérico
o mobilizou em diferentes outras oportunidades, nomeadamente incidindo sobre
18
Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., p. 203.
19
Redigido em Vence e publicado apenas 3 dias depois da cópia manuscrita que se conserva, concretamente
na revista Visão de 11 de Novembro de 1999.
20
Foram exibidas 350 obras. Entre outros de Frei Agostinho de Jesus, Manuel Menezes da Costa, Manuel da
Costa Ataíde, Mestre Valentim e, destacadamente, de António Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
21
Id., ibid., p. 387.
22
Id., ibid., p. 388.
23
Amplia Eduardo LOURENÇO: «Nos quinhentos anos de história brasileira, trezentos anos partilhados connosco,
nada há, em todos os sentidos, mais português que no chamado ‘barroco brasileiro’. E não será em Paris que
ele parecerá, a quem não é cego, menos ‘português’, o que em boa verdade e para o nosso comum século
barroco, quer dizer ‘luso-brasileiro’» (id., ibid., p. 388). Como articularei mais adiante, mesmo a questão
latamente política que aqui, necessariamente, reverbera advém, e é concebida por Eduardo Lourenço, em
função da noção de «essência contingente», aninhada nas suas reflexões fenomenológicas sobre o barroco.
306 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
24
o objecto literário. Matéria que retorna uma e outra vez, o que é certo que o
enfrentamento ao barroco começa por incidir sobre um ‘caso’ da arquitectura
colonial, a já mencionada Igreja de São Francisco da Bahia. No ‘tempo brasileiro’,
25
Eduardo Lourenço – pouco dado a «transes» –, averbou vivências de intensi-
dade qualificada. A pergunta que, neste sentido, se impõe é a de ponderar em
26
que sentido foram ‘profanas’ – isto é, críticas – semelhantes iluminações lou-
rencianas ou, se preferirmos, aludindo ao subtítulo da secção do volume Tempo
Brasileiro: Fascínio e Miragem onde foram coligidos, de «luminosa presença»?
Dilucidar esta matéria passa, desde logo, pelo campo de atracção semântico
da figura do «purgatório da linguagem» a que já aludi, sintagma cunhado para
significar a sua digressão fenomenológica sobre o ‘barroco’.
Deixemos de lado a modéstia ‘científica’ com que Lourenço revisitou, em
1987, o texto da conferência – até então inédito, mas que manteve intacto –,
24
Um caso exemplar têmo-lo em «Camões e Góngora», de 1980, cuja leitura se recomenda para calibrar
de que modo opera o close reading de Eduardo Lourenço. Aí, as figuras de Polifemo e do Adamastor, na
atracção delas que o ensaio de Eduardo Lourenço perfaz, cifram ou refractam o modelo de relação entre
ambos os poetas, predicada pela repetição da diferença. Isto é, determinada por uma tensão dialéctica em
que a concordância é a síntese de um processo de contrastes. É esta, no fundo, a proposta do ensaio – a de
um Camões como «elo» da linhagem peninsular que conduz dos ‘órfãos de Petrarca’ a Góngora: por outras
palavras, o «elo principal» é a introdução dessa tensão dialéctica na «paisagem literária hispânica», ou, se
quisermos, numa «Ilha de Páscoa», como lhe chama Lourenço, que desmanche a retórica do excepcionalismo
que anima muita da historiografia espanhola sobre o período. Ou por outras palavras ainda: é escrever um
ensaio como «Camões e Góngora» como resposta, e envio desafiante, à lição magistral de Dámaso Alonso
sobre o «barroquismo» do Polifemo, amostra maior de um «barroquismo» que é «uma enorme ‘coincidencia
oppositorum’» (Dámaso ALONSO, 2009: 248). A epígrafe do ensaio lourenciano é, aliás, precisamente uma
cláusula do muito admirado Dámaso Alonso: «Da montanha de imitações ovidianas emerge, joia intacta e
eterna, a Fábula de Polifemo, de Góngora» (Dámaso ALONSO, 2019: 145). Citar este lugar é tornar explícito
o retoque que Eduardo Lourenço reclama para o acto interpretativo específico que pretende levar a cabo.
Camões e Góngora, dispõe o título do ensaio de Eduardo Lourenço, sendo que o par é unido por um modelo
oximorónico de relação, aninhado na conjunção coordenativa «e» que concatena o par. O ensaio lourenciano
é a realização do título como sintagma em que palpita um oximoro. Camões e de Góngora são postos em
relação por Eduardo Lourenço relevando aquilo que ambos partilham de negação de uma metafísica do
processo poético, muito embora de modos diferenciados: trágica a do primeiro, melodramática – ou barroca
– a do segundo. Poesias que, no fundo, constituem, para Eduardo Lourenço, um princípio de corrosão de
uma «paisagem literária hispânica» em que a lógica da unidade – a de «uma estátua da ilha de Páscoa» –
prevaleça. Negação, decerto, de uma Península Metafísica, mas talvez, concomitantemente, afirmação de
uma Península Estética.
25
Veja-se, supra, a nota 13.
26
Trato, aqui, de entrosar, na minha reflexão sobre os momentos de intensidade qualificada perscrutáveis nos
textos de Eduardo Lourenço, a espinhosa noção de iluminação profana de Walter Benjamin. Entre o elogio e
o fascínio, Benjamin atribui um ‘falho’ à iluminação surrealista, que carece da leitura e do pensamento para
ser verdadeiramente «profana». O surrealismo dispõe, sim, das «forças da embriaguez» para a revolução:
«Mas – aponta Benjamin –, colocar a tónica exclusivamente nela [entenda-se: nela, embriaguez] significaria
pospor completamente a preparação metódica e disciplinar da revolução em favor de uma praxis que oscila
entre o exercício e a véspera» (Walter BENJAMIN, «El surrealismo. Última instantânea de la inteligência euro-
pea», in Iluminaciones IV, trad. Roberto Blatt, Madrid: Taurus, 1998, p. 58; tradução do espanhol da minha
responsabilidade). Reiterando, e por outras palavras, Benjamin reserva a sua noção de iluminação profana
para, por exemplo, a leitura e o pensamento sobre a ‘embriaguez’, a ‘telepatia’ ou o ‘haxixe’. No seguimento
da nota anterior sobre a vivência do candomblé, não é o «transe» o que profanamente ilumina – um «transe»
não é dialético – mas sim o acto cognitivo que o traduz em compreensão e conhecimento. Num certo sentido,
é também o que significa um barroco no purgatório da linguagem.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
307
Pedro Serra
27
Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., p. 193.
28
A Igreja de São Francisco da Bahia que Eduardo Lourenço viu congrega formas e materialidades barrocas
e rococó. Sobre o rococó brasileiro, veja-se Myriam Andrade Ribeiro de OLIVEIRA, O Rococó Religioso no
Brasil e Seus Antecedentes Europeus, São Paulo: Cosac & Naify, 2003. Afirma a responsável deste excelente
livro: «Sínteses do barroco tardio e do rococó são frequëntes na arquitectura do período, particularmente
a de cunho religioso, levando muitas vezes os autores a não reconhecerem distinções nítidas entre os dois
estilos» (p. 43).
29
Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., p. 193.
30
Um estudo das ‘fontes’ de índole filosófica e historiográfica que percutem na conferência de Eduardo
Lourenço – estudo que excede o escopo e o desígnio do presente artigo – contaria com o generoso
espargimento de menções ao longo do texto. Referências, digamos, enxutas, que nos devolvem um «jovem
aprendiz de filosofia» que, como leitor, reduz o lido ao essencial. No que toca à filosofia e especificamente
a fenomenologia, de modo destacado, o Husserl do «voltar às coisas mesmas» (id., ibid., p. 200). Contudo,
Lourenço tempera a lição do idealismo que o insufla: «Nós preferimos seguir aqui a inspiração de Espinosa
e Hegel que reencontramos em Heidegger» (id., ibid., p. 201). Pascal, Kant, Karl Marx e Max Scheler são
igualmente conjurados. No que toca, mais concretamente, à estética do barroco, Croce, Menéndez Pelayo e
Wölfflin, são atraídos para o texto. Contudo, consequente e coerente com a sua perspectiva fenomenológica,
a seguinte afirmação é esclarecedora: «Deliberadamente alheios às leituras póstumas da História ou de
qualquer disciplina pseudocientífica, deixemos a Coisa mesma descobrir-se em nós na sua imediatidade ou
naquilo que para nós não comporta anterioridade. Não nos interessa abordar o barroco através de Croce
ou D’Ors ou Weisenbach» (id., ibid., p. 204).
308 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
assim, a Igreja de São Francisco da Bahia foi «exemplo do barroco», e como tal
31
«a tomei, como ser verá, certamente errada e erradamente certa». Vivências e
experiências são, aqui, talvez agudamente descritas como ‘erros’ que ‘acertam’.
Especulação e fervor modelizam uma conferência que, já o disse, se divide
em duas partes. A primeira delas tem por título «O exemplo do barroco», e a
segunda «Breve fenomenologia do barroco». Dois andamentos densamente en-
trosados que, contudo, manifestam uma relativa autonomia. Para debulhar uma
e outra nos seus conteúdos essenciais começo por notar a ocorrência em ambas
do verbo ‘penetrar’. Do latim penetrare – com o sentido de ‘entrar no interior de
algo’ ou ‘ingressar chegando até ao fundo’ –, a palavra tem a sua raiz nas formas
adverbiais penes – ‘dentro, no interior’ – e penitus – ‘até ao fundo, interna e pro-
fundamente’. Ainda, na origem destes advérbios, penus, penoris, com o sentido
de ‘despensa ou provisão de víveres essenciais à sobrevivência’, mas também
‘parte interna e profunda de uma morada’. Ora, na secção inicial «O exemplo do
barroco» é-nos dito do «desejo de penetrar o sentido, a significação de tal ou tal
32
obra ou de um conjunto de obras de arte». Pouco mais adiante, ainda, reincide
o vocábulo: «importa-nos muito mais penetrar a significação adstrita a essa for-
ma, o conteúdo intra-humano dessa forma, pois a isso se resumem significação e
33
sentido». Por seu turno, em «Breve fenomenologia do barroco» – em que temos
34
propriamente a «vivência arquitectónica» , como lhe chama o próprio Eduardo
Lourenço, da Igreja de São Francisco da Bahia –, podemos ler: «Se do exterior
penetrarmos no interior, uma segunda vivência nos espera que não é indepen-
35
dente da primeira». Como podemos constatar, ‘penetrar’ detém quer uma va-
lência hermenêutica – a atribuição de sentido ou significação é como uma pe-
netração –, quer um valor não-hermenêutico – ‘penetrar’ refere um movimento
espácio-temporal de trânsito entre o exterior e o interior, no caso, a passagem do
exterior para o interior de um templo. A libido sciendi lourenciana é integrada por
esta dupla ‘penetração’ estruturante. Começarei, então, por descrever sintetica-
mente os possíveis e limites epistémicos da «fenomenologia da arte» articulados
em «O exemplo do barroco» para, depois, num segundo andamento, ler a con-
trapelo – porque, como veremos, será necessário fazê-lo –, também com ânimo
sintético, a segunda parte da conferência, «Breve fenomenologia do barroco».
Começo por antecipar, contudo, que um dos grandes achados epistémicos
do constructo crítico lourenciano sobre o barroco é o que colocar, como a priori
da cognição, a fisicidade da obra de arte. Cito algo mais extensamente: «O fac-
to dessa contemporaneidade física da obra de arte, diante da qual os homens
desfilam como se tratasse de um museu, e o facto mais radical de cada leitura
31
Id., ibid., p. 193. Eu sublinho.
32
Id., ibid., p. 199.
33
Id., ibid.,
34
Id., ibid., p. 205.
35
Id., ibid.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
309
Pedro Serra
36
Id., ibid., pp. 199-200.
37
Id., ibid., p. 200.
38
Cf. id., ibid., p. 202.
39
Id., ibid., p. 198.
40
Id., ibid., p. 199.
41
Id., ibid.
310 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
43
Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., p. 205.
44
Id., ibid., p. 206.
45
Cf. Johanna DRUCKER, Speclab. Digital Aesthetics and Projects in Speculative Computing, Chicago y Londres:
University of Chicago Press, 2009, pp. 127 y passim.
46
Cf. Werner HAMACHER, «The Second of Inversion. The Movement of a Figure through Celan’s Poetry», Yale
French Studies, nº 69 Yale: Yale University Press, 1985, pp. 276-311.
47
Cf. Karl Heinz BOHRER, «Instants of diminishing representation. The Problem of Temporal Modalities», in
Heidrun Friese, ed., Time and Rupture in Modern Thought, Liverpool: Liverpool University Press, 2001, pp.
113-134.
48
Cf. Boris GROYS, «Sobre lo Nuevo», Artnodes. Intersection Between Arts, Sciences and Technologies, Barcelona:
Universidade Aberta da Catalunha, Dezembro de 2002, pp. 1-13 [Artigo online].
312 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
49
Uma entrada na problemática da génese do meio é-nos proporcionada por Friedrich Kittler, na contramão
de reflexões como as levadas a cabo por de John Guillory, este último um teórico que vincula essa génese
à invenção da tipografia de caracteres móveis, considerando que, anteriormente, não haveria consciência
medial. Cf. John GUILLORY, «Genesis of the Media Concept», Critical Inquiry, 36.2, 2010, pp. 321-362. Kittler
escreve: «No entanto, por surpreendente que pareça, os meios de comunicação em Aristóteles existem.
Não como parte de sua ontologia, mas como parte de sua teoria do homem psicofísico» (Friedrich KITTLER,
«Towards an Ontology of Media», Theory, Culture & Society, vol. 26, 2-3, Los Angeles, Londres, Nova Delhi e
Singapura: SAGE, 2009, pp. 23-31, p. 25). A mediação entendida nestes termos não replica o binómio natureza/
técnica. Desta forma, a mediação física do sensorium é tida em plena consideração: «No caso do sentido
auditivo, deve haver ar entre a coisa e o tímpano, bem como entre o tímpano e a cóclea. No caso da visão, a
questão é ainda mais complicada: entre a coisa e a íris humana – cujo belo nome aristotélico, aliás, significa
‘noiva’ – deve haver ar, enquanto entre a íris e a retina deve haver água» (ibidem). Para Kittler, o espinhoso da
matriz aristotélica para a problemática em questão reside no facto de ser também de Aristóteles a noção de
phoné semantiké; em suma, da voz como logos, uma distinção ainda não hegemónica no momento em que
o Estagirita a formula: especificamente, Kittler alude à discriminação entre phoné e graphé, voz e escrita,
distinção que implica que o sistema de signos é postulado como sendo subsidiário ao aural. Daí surge uma
metafísica que tem como condição de possibilidade o esquecimento do ambiente e da mediação tecnológica.
O «ser» é considerado aural, e a auralidade não é coextensiva com suporte técnico, assim como a lógica e
a física o são num outro nível. Para Kittler, em suma, o advento da tecnologia digital – impacto verberado
por Heidegger, que a considerava o fim da filosofia – será a oportunidade de pensar para além do binómio
matéria/forma.
50
Refiro-me, aqui, a um dos principais representantes da chamada nova filologia, Jerome MACGANN. Num robusto
livro dedicado aos desafios da arte filológica, The Textual Condition (Princeton: Princeton University Press,
1992), MacGann argumenta a favor da actualidade de uma filologia que cumpre o seu aggiornamento através
das novas tecnologias e, também, dos problemas levantados latu sensu pela «teoria» – termo que poderia
incluir, no início dos anos 1990, tanto a teoria literária quanto a teoria crítica. Numa cláusula mínima que é
especialmente cara a MacGann – «Não pode haver arte sem resistência nos materiais» – William Morris colou
tanto o objecto artístico como o acto artístico à sua condição «material». Nesse sentido, somos confrontados
com uma primeira ordem de problemas, que derivam da possibilidade de objetivar o que entendemos por
«materialidade» da arte literária. Por outro lado, as dificuldades aumentam quando a cláusula também define
a condição artística como uma «resistência nos materiais». Homóloga, talvez, da dificuldade de qualquer
leitura apontada por Nietzsche quando distinguiu uma leitura «pela» e «na» – em língua alemã: durch – inter-
pretação. Nietzsche formulou, numa conhecida passagem, que «ler filologicamente» significa confrontar a
leitura «teológica», isto é, significa ler de uma forma que não «falsifique» os textos pela «interpretação». E era
precisamente o que um «teólogo» – ou aquele cujo «sangue» de teólogo corre nas veias – não podia fazer:
«Outro sinal do teólogo», diz-nos Friedrich NIETZSCHE, «é a sua incapacidade para a filologia. Por filologia
entende-se aqui, num sentido muito geral, a arte de ler bem; saber interpretar os factos sem os distorcer com
interpretações; sem perder, por uma questão de compreensão, a prudência, a paciência e a finura. Filologia
como ephexis na interpretação, sejam livros ou notícias, jornais, do destino ou de dados meteorológicos»
(Kritische Gesamtansgabe, vol. VI (3), Giorgio COLLI e Mazzino MONTINARI (orgs.), Berlim: Walter de Gruyter
& Co., 1969, p. 231. Este «sentido muito geral» da leitura filológica segundo Nietzsche – que não era, como
sabemos, o único significado que o filósofo alemão atribuía ao termo «filologia» (cf. Rafael GUTIÉRREZ GIRARDOT,
Nietzsche y la filología clásica, Málaga: Analecta Malacitana/Universidad de Málaga, 1997) – pressupõe
também uma ética que fundamente a «boa leitura», que, não sendo uma ciência ou uma teologia, é uma
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
313
Pedro Serra
51
pelo modelo semiótico-discursivo da linguagem; ao mesmo tempo, a autorre-
flexividade perceptiva da ‘figuração linguística’ não compartilha com a ‘imagem
icónica’ a impossibilidade de autonegação, que lhe é vedada, e determina a sua
52
medialidade ; além do mais, e sobretudo, a condição medial da ‘figuração lin-
guística’ é desenrolada na dobra diabólica que supõe ser linguagem em regime
de auto-afecção – que podemos chamar tanto «filologia» quanto «poesia», ou
53
mesmo «poesia como prima filologia» – que não cessa de entrelaçar a per-
ceptividade visual e, intuitivamente, outra ordem de mediação, sem com ela se
confundir, nem podendo ser totalmente dela extirpada dela: a percepção aural.
Acrescente-se a estes regimes mediais discretos da visualidade e à auralidade,
54
pelo menos, e por último, a «tactilidade primordial».
Eduardo Lourenço começa a sua descrição pelo exterior do edifício, pela fa-
chada, atraindo, para tanto, a geometria – a abstracção – das «linhas horizontais
e verticais», por um lado, e de outro, da linha ou «motivo curvo». Se as primeiras
preponderam, as segundas manifestam-se discretamente. Começa, pois, pela
estrutura do templo, um arranque more geométrico. Sobrevém, imediatamente,
a penetração para o interior daquele «habitat humano». Prefigura já, em rigor,
na destrinça entre o horizontal/vertical e o curvo, é aqui que acontece o mo-
mento de intensidade qualificada que é figurado como «contraste» ou «desfa-
sagem» – são estas as palavras utilizadas por Lourenço: penetrar no templo,
em síntese, é passar do ‘abstracto’ para o ‘concreto’: se o continente era geo-
55
métrico, o conteúdo «apela a olhar para cada pormenor». A vista foi absorvida
pelo agonismo do desfasamento, que é a «nota dominante»: «Este contraste é
«Kunst», uma «arte» que implica exigências rigorosas. Vale ressaltar o duplo e divergente significado que
«interpretação» tem naquele lugar do Anticristo: (a) ler «pela interpretação» ou (b) ler «na interpretação».
Por outras palavras, (a) ler «teologicamente» é fazê-lo submetendo o objecto lido a uma interpretação a
priori que «falsifica», ou seja, na qual tudo é feito pela interpretação; (b) «ler filologicamente», por sua vez,
é provocar «boa leitura» na interpretação; a filologia de que fala Nietzsche aqui é a ephexis, termo do qual,
entre os diferentes significados recolhidos por Lidell-Scott-Jones (Henry George LIDDELL, Robert SCOTT, Henry
Stuart JONES, Roderick MCKENZIE, A Greek-English Lexicon, 9ª ed., Oxford/New York: Clarendon Press/Oxford
University Press, 1996), destaco os de «controlo», «cepticismo», «pausa», «contenção» ou «paragem». Ou seja,
a filologia como ephexis supõe um processo de confronto com o que é lido cujo ethos tem, como atributos,
a cautela, a paciência ou a delicadeza. Ler bem pressupõe, portanto, uma cadência, um movimento, uma
batida – uma espécie de travagem.
51
Cf. Dieter MERSCH, «Aesthetic Difference: On the ‘Wisdom’ of the Arts», in Irene Hediger y Jill Scott (orgs.),
Recomposing Art and Science: artists-in-labs, Berlín/Boston: De Gruyter, 2016, pp. 235-250.
52
Cf. Dieter MERSCH, «Aesthetic Thinking. Art as theoria», in Dieter MERSCH, Sylvia SASSE e Sandro ZANETTI,
Aesthetic Theory, Zurich: Diaphanes, 2019, pp. 219-236.
53
Cf. Werner HAMACHER, Para – la filología; 95 tesis sobre la filología, trad. Laura S. Carugati, Buenos Aires:
Miño Dávila Editores, 2011.
54
Mark Hansen, em Bodies in Code. Interfaces with Digital Media propõe, justamente, uma «tactilidade primordial»
como condição de possibilidade de toda a sensorialidade: «Thus, tactility is at once the most primitive sense
formation and the sensible–transcendental origin of the sensible per se; it must simultaneously instance two
divergent ontological formations and must also bridge the gap between them, forming some kind of passage
across the empirical – transcendental divide» (Mark HANSEN, 2006, p. 68). Este mesmo quadro especulativo,
do meu ponto de vista, pode servir para pensar produtivamente outras mediações.
55
Eduardo Lourenço, op. cit., ed. cit., p. 205.
314 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
a essência desta arquitectura barroca e nada tem a ver com a oposição entre
56
fundo e forma» , pois na verdade estamos perante dois fundos e duas formas
que, finalmente, não permitem articular a noção deste barroco arquitectónico
57
como um «estilo», ao carecer de unicidade. Dentro da igreja, «figuras», «talhas»
ou «colunas» perdem, e simultaneamente não perdem, a sua evidência. Estas
partículas elementares contaminam-se numa «imensa filigrana» ou «serpentino
58 59
bordado». O paroxismo que aí colapsa carreia «palpação e visão». O obser-
vador foi tocado pelo interior do templo, intensificado pela negação dele que o
exterior supõe: «frenesi sensível». É de tal ordem que aquele templo expulsa a
auralidade da música barroca ou a densidade do chiaroscuro da pintura barro-
ca. Especialmente notória, para Eduardo Lourenço, é a expulsão da escultura:
«a escultura aí aparece anulada em função de um movimento de volumes sem
60
descontinuidade». Numa outra descrição do mesmo movimento volumétrico –
este é o ponto chave: a rítmica inapelavelmente impressiva da contaminação das
formas – do interior do espaço, eis a formulação lourenciana: o «revestimento é
61
escultura e baixo-relevo que se autodestrói, mas para nenhum fim». Já tecerei
algumas considerações sobre este cancelamento da finalidade. Antes, porém,
gostaria de sublinhar que toda a descrição do templo está marcada por uma
substância: o ouro. Toda a descrição decorre da afecção agenciada pelo material
aurífero. O ouro, em primeira e última instância, põe do avesso a interioridade
62
do templo. Equivale a uma luz que «canta em vão» e é «forma de reflexo» num
excesso de hipervisibilidade que desmancha o agonismo do visto e do não visto.
Até aqui, então, a leitura a contrapelo da vivência estésica, ou melhor, das pa-
lavras e sintagmas que são catacrese dela. Avanço, agora, com a passagem da
estesia figurada para o domínio da sua simbólica ou da simbologia que Eduardo
Lourenço lhe atribui. Para tanto, começo por fazer uma citação de Boris Groys
que proponho como alavanca para sintetizar esse salto hermenêutico lourencia-
no. Um lugar, de resto, que pode ser produtivo para deslindar o ‘barroco’ «no
purgatório da linguagem», tal como formula a conferência bahiana. Devido à sua
relativa extensão, destaco o parágrafo de Groys com um corpo de letra diferente
ao do resto do meu artigo:
Enquanto Deus estava vivo, o design da alma era visto como garantia da dimensão
transtemporal e eterna do indivíduo humano. Acreditava-se que Deus era um es-
pectador da alma humana. Aos seus olhos, uma alma justa e eticamente correcta
era bela, isto é, simples, transparente, bem formada, harmoniosa, não desfigurada
56
Id., ibid.
57
Cf. id., ibid.
58
Id., ibid., p. 206.
59
Id., ibid., p. 207.
60
Id., ibid.
61
Id., ibid., pp. 207-208. Eu sublinho.
62
Id., ibid., p. 207.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
315
Pedro Serra
por vícios obscuros ou marcada por paixões terrenas. Muitas vezes esquece-se que,
dentro da tradição cristã, a ética sempre esteve subordinada à estética, isto é, ao
design da alma. Tanto as regras éticas quanto as do ascetismo espiritual (de prática
e exercícios espirituais) serviram basicamente para projetar a alma de tal forma que
ela fosse aceitável aos olhos de Deus, para que Ele a deixasse entrar no paraíso. O
projeto da alma individual sob o olhar de Deus é um tema recorrente nos tratados
teológicos, e representações medievais de almas que aguardam o Juízo Final foram
usadas para visualizar suas regras. O design da alma destinado ao olhar de Deus –
simples, ascético, minimalista – era claramente diferente da estética mundana da
alma, que desejava materiais sumptuosos, ornamentação complexa e riquezas fabu-
63
losas, e por isso estava localizada no inferno.
Para o caso de que aqui nos ocupamos, o ‘barroco’ não como «estilo» – Lou-
renço dixit – ou como «categoria genérica» – ibidem – de caução tardia român-
tica e pós-romântica – lição também de Hansen –, mas como design. Seria este
um nome, assim, para a estética da alma sob o ‘olhar’ do Outro absoluto: Deus,
um deus spectator. Ora, a síntese interpretativa ou hermenêutica de Eduardo
Lourenço, o salto da estética para a «realidade intra-humana» das formas e suas
marcações materiais – é na matéria, víamos mais acima, e não no espírito que
estriba, segundo Eduardo Lourenço, a historicidade da arte – que o autor beirão
propõe, é assaz singular, acidental e necessariamente vinculada às vivências
64
numa «terra hostil à Morte». Desde já, isto implica a tópica de uma «religião que
65
perdera o sentido do trágico», ou a pouca importância de saber se obedece
66
a uma «intenção teológica precisa». Deus já não olha a «espécie de Homem
[que] se configura nesta forma chamada barroca?», pergunta Eduardo Lourenço.
Ou o design do templo bahiano encarna uma «estética mundana da alma», como
distingue Boris Broys? Forma separada «do contacto profundo com as suas raí-
67 68
zes»? ‘Reflexo’, ‘máscara’, ‘aparência’ «para a nossa sensibilidade infantil» ?
69 70
Delirante «Paraíso de pacotilha» ou «céu de ópera»? Infernal expulsão de
Deus e do Homem? Indicação e revelação da sociedade do espectáculo? «Se
quisermos resumir – afirma Eduardo Lourenço – a vivência total do barroco, na
medida em que a igreja por nós escolhida lhe dá existência, diríamos que a sua
essência é uma dissociação real da totalidade expressa compensada pela apa-
rência de uma unidade espectacular, por seu turno corroída por uma manifesta
63
Boris GROYS, Devenir obra de arte, trad. Juan Madalini, Buenos Aires/Madrid: Caja Negra Editora, 2022, p.
16. A tradução do español é da minha responsabilidade.
64
Eduardo LOURENÇO, op. cit., ed. cit., p. 208.
65
Id., ibid., p. 207.
66
Id., ibid.
67
Id., ibid., p. 208.
68
Id., ibid.
69
Id., ibid., p. 207.
70
Id., ibid.
316 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
71
dissociação de fundo e forma». O sublinhado é do conferencista bahiano. É
72
símbolo, alegoria ou figura, a descriptio que Eduardo Lourenço leva a cabo?
Eis, pois, o enredo do barroco lourenciano no «purgatório da linguagem»: ar-
riscar uma resposta é distinguir ou colapsar a distinção entre o céu e o inferno,
algo em que talvez apenas nos reste a insistência de continuar a valer a pena.
Enfim, modestamente opto pela figuralidade da esquemática dos momentos de
intensidade qualificada que percorrem os textos de lourencianos vinculados ao
‘tempo brasileiro’. O olhar de Eduardo Lourenço foi prefigurado pelo olhar de
73
Pêro Andrade de Caminha, um olhar «espontaneamente estético».
REFERÊNCIAS
Aguiar e Silva V. M. de (2010). «A Poética da Alegoria e o Barroco», in Marta Teixeira
Anacleto, Sara Augusto e Zulmira Santos, coords., D. Francisco Manuel de Melo
e o Barroco Peninsular, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra/Edicio-
nes Universidad de Salamanca, pp. 95-117.
Benjamin W. (1998). «El surrealismo. Última instantánea de la inteligencia europea»,
in Iluminaciones IV, trad. Roberto Blatt, Madrid: Taurus.
Bohrer K. H. (2001). «Instants of diminishing representation. The Problem of Tem-
poral Modalities», in Heidrun Friese, ed., Time and Rupture in Modern Thought,
Liverpool: Liverpool University Press, pp. 113-134.
Campos H. de (1989). O Seqüestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira:
o caso de Gregório de Matos, Salvador/Bahia, Fundação Casa de Jorge Amado.
Drucker J. (2009). Speclab. Digital Aesthetics and Projects in Speculative Compu-
ting, Chicago e Londres: University of Chicago Press.
Groys B. (2002). «Sobre lo Nuevo», Artnodes. Intersection Between Arts, Sciences
and Technologies, Barcelona: Universidade Aberta da Catalunha, Dezembro de
2002, pp. 1-13 [Artigo online].
71
Id., ibid., p. 208.
72
A «riqueza da máscara» é uma fórmula poderosa de Eduardo Lourenço, em que redunda um pensamento
fenomenológico que vai avançando por erros que acertam. De algum modo, o que aqui se miniaturiza é a
alegoria como poética principal do barroco. Recordaria, neste sentido, que a despedida do barroco levada
a cabo, num encontro académico, em 2008, por Vitor Manuel de Aguiar e Silva (Universidade de Coimbra/
Universidade do Minho) teve por título e matéria, justamente, «A poética da alegoria e o barroco» (cf. Vítor
Manuel de AGUIAR e SILVA, «A Poética da Alegoria e o Barroco», in Marta Teixeira ANACLETO, Sara AUGUSTO
e Zulmira SANTOS, coords., D. Francisco Manuel de Melo e o Barroco Peninsular, Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra/Ediciones Universidad de Salamanca, 2010, pp. 95-117), revisão em chave benjami-
niana da matéria barroca que tanto lhe devemos. E não tem sido outra a lição dos estudos sobre o barroco
ibérico, mas na fase tardia também colonial (cf. Fernando R. DE LA FLOR, «El Barroco (Ultra) Peninsular», in in
Marta Teixeira ANACLETO, Sara AUGUSTO e Zulmira SANTOS, coords., D. Francisco Manuel de Melo e o Barroco
Peninsular, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra/Ediciones Universidad de Salamanca, 2010, pp.
17-41) – estudos igualmente marcados por Walter Benjamin –, de Fernando R. de la Flor (Universidade de
Salamanca).
73
Id., ibid., p. 397.
O BARROCO NO PURGATÓRIO DA LINGUAGEM
317
Pedro Serra
Groys B. (2023). Devenir obra de arte, trad. Juan Madalini, Buenos Aires/Madrid:
Caja Negra Editora.
Guillory, J. (2010). «Genesis of the Media Concept», Critical Inquiry, 36.2, pp. 321-362.
Gutiérrez Girardot R. (1997). Nietzsche y la filología clásica, Málaga: Analecta Ma-
lacitana/Universidad de Málaga.
Hamacher W. (1985). «The Second of Inversion. The Movement of a Figure through
Celan’s Poetry», Yale French Studies, nº 69 Yale: Yale University Press, pp. 276-
311.
Hamacher W. (2011). Para – la filología; 95 tesis sobre la filología, trad. Laura S. Ca-
rugati, Buenos Aires: Miño Dávila Editores.
Hansen J. A. (1997). «Notas sobre o ‘barroco’», Revista do Instituto de Filosofia, Artes
e Cultura, nº 4, Ouro Preto, Universidade Federal de Ouro Preto, Dezembro de
1997, pp. 11-20.
Hansen J. A. e Moreira M. (2013). Para que Todos Entendais. Poesia Atribuída a
Gregório de Matos. Letrados, Manuscritura, Retórica, Autoria, Obra e Público na
Bahia dos Séculos XVII e XVIII, vol. 5, São Paulo, Autêntica Editora.
Hansen M. (2006). Bodies in Code. Interfaces with Digital Media, New York: Routledge.
Kirk G. S. e Raven J. E. (1982). Os Filósofos Pré-Socráticos, trads.: Carlos Alberto Lou-
ro Fonseca, Beatriz Rodrigues Barbosa, Maria Adelaide Pegado, 2ª ed., Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian.
Kittler F. (2009). «Towards an Ontology of Media», Theory, Culture & Society, vol. 26,
2-3, Los Angeles, Londres, Nova Delhi e Singapura: SAGE, pp. 23-31.
Liddell H. G. e Scott R. (1996). Henry Stuart Jones, Roderick McKenzie, A Greek-En-
glish Lexicon, 9ª ed., Oxford/New York: Clarendon Press/Oxford University Press.
Lourenço E. (2018). Obras Completas, vol. IV, Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem,
coordenação, introdução, notas e notícias bibliográficas de Maria de Lourdes
Soares, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Macgann J. (1992). The Textual Condition, Princeton: Princeton University Press.
Maravall J. A. (1990). La cultura del barroco. Análisis de una estructura histórica,
Barcelona, Editorial Ariel, [1ª ed.: 1975].
Mersch D. (2016). «Aesthetic Difference: On the ‘Wisdom’ of the Arts», in Irene He-
diger y Jill Scott (orgs.), Recomposing Art and Science: artists-in-labs, Berlín/
Boston: De Gruyter, pp. 235-250.
Mersch D. (2019). «Aesthetic Thinking. Art as theoria», in Dieter Mersch, Sylvia Sasse
e Sandro Zanetti, Aesthetic Theory, Zurich: Diaphanes, pp. 219-236.
Nietzsche F. (1969). Kritische Gesamtansgabe, vol. VI (3), Giorgio Colli e Mazzino
Montinari (orgs.), Berlim: Walter de Gruyter & Co.
Oliveira M. A. R. de (2003). O Rococó Religioso no Brasil e Seus Antecedentes Euro-
peus, São Paulo: Cosac & Naify.
Pécora A. (2011). «Polémica sobre o barroco ficou datada e vã. [Recensão: O Seqües-
tro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira, de Haroldo de Campos]»,
Folha de São Paulo, 19 de Março de 2011.
318 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
ENCONTROS E ATRASOS
Eduardo Lourenço referiu em entrevista, com o cuidado colocado na recupe-
ração dos encontros decisivos, aquele momento em que o jovem Glauber Rocha,
seu aluno eventual de fenomenologia na Universidade da Bahia, um dia “entrou
na sala balançando um grosso livro e disse ‘Professor, para conhecer o Brasil, o
senhor precisa ler este livro!’ E mostrou a capa de Grande Sertão: Veredas” (TB:
624). Passava-se isto em 1958, Glauber andava pelos 19 anos, Lourenço pelos
35, e a relação que se estabeleceria entre ambos viria a justificar a presença
do casal Lourenço no casamento de Glauber com Helena Ignez, futura musa do
*
Osvaldo Manuel Silvestre é professor de Teoria da Literatura, Literatura Brasileira e Cinema na Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra. É coordenador do Instituto de Estudos Brasileiros e dirigiu no biénio de
2021-23 o Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas. É responsável científico pelo espólio de Carlos
de Oliveira no Museu do Neo-Realismo e prefaciou a reedição do romance Alcateia, em 2021. O seu último
livro publicado foi o volume, que coorganizou com Rita Patrício, Conferências do Cinquentenário da Teoria
da Literatura de Vítor Aguiar e Silva, Braga, UMinho Editora, 2020. Organizou, com Pedro Serra, o dossiê
temático do número 209 (2022) da Colóquio/Letras, com o título “A Voz na Literatura”.
1
Usarei a reunião dos textos de Eduardo Lourenço sobre o Brasil na edição das Obras pela Fundação Calouste
Gulbenkian, Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem, Obras Completas, vol. IV, Ed. de Maria de Lourdes Soares,
2018. O texto em causa é “O Cinema Novo e a Mitologia Cultural Brasileira”, p. 121. Em futuras referências,
será usada a abreviatura TB seguida do número de página.
320 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Ora, é justamente este papel secundário que o cinema novo visa pôr em cau-
sa, completando com esse gesto o programa multidisciplinar do Modernismo
de 1922, como se percebe em texto de Glauber de 1975, com o título “Palma de
Ouro 75”, incluído em Revolução do Cinema Novo:
Kynema Novo é a síntese da literatura, do teatro, da música, da pintura e da política
brasileira a partir das rupturas de 1922 que impuseram aos intelectuais e artistas o
3
repensar teórico e prática revolucionária.
2
Sylvie Pierre descreve a relação de Glauber Rocha com a leitura nestes termos: “Ele não pára de ler. Durante
toda sua vida foi um leitor voraz. E seu modo de ler é sempre orientado para uma rápida assimilação dos
elementos úteis a seu processo criador pessoal, um pouco como Godard. Mas a bibliofagia glauberiana,
diferente da de Jean-Luc Godard, praticamente não gera citações em seus filmes. Glauber Rocha, é bas-
tante perceptível no documento de Bauchau, lê sintética e globalmente, no sentido literal do termo: lê seu
lugar de brasileiro no mundo da cultura. Na primavera de 1981, muito preocupado com a literatura clássica
portuguesa, fica evidente que se dirige ao útero ou feto da civilização, à raiz lusitana de seu mundo”. Sylvie
Pierre, Glauber Rocha. Campinas, Papirus Editora, 1996, p. 94.
3
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo. São Paulo, CosacNaify, 2004, p. 285.
4
Glauber Rocha, Op. cit., p. 147.
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
321
Osvaldo Manuel Silvestre
10
uma técnica perfeita” , mas que um tal método não equivale a “aprimoramen-
11
to formal” , já que o típico (a eleição de uma personagem com potencial para
funcionar como típica entre quinhentos mil malandros) é mais forte do que o
detalhe pitoresco. O cinema enquanto cinema-verdade permitiria fechar o círcu-
lo iniciado pelo projeto modernista de auscultação da verdade da fala do povo,
conferindo-lhe a mais-valia da técnica do som direto – o que permitiria realizar
na prática esse desejo modernista de auscultação do corpo político brasileiro
ao vivo, o qual, pela sua pura e simples manifestação, destroçaria gramáticas e
linguagens e, na sua peculiar formulação, contribuiria “inclusive para a própria
literatura brasileira”. Nascida na literatura, o projeto de auscultar a fala errada
e verdadeira do povo conheceria no cinema-verdade o seu momento decisivo,
fornecendo à literatura um aluvião de materiais a que ela não teria capacidade
de acesso, por razões especificamente técnico-miméticas. Ora, se “A linguagem
12
é sempre um teatro colonial” , como afirma, em texto sobre Glauber Rocha, o
teórico e crítico argentino David Oubiña, o cinema-verdade seria a própria repre-
sentação expandida desse teatro.
10
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, id.
11
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, id.
12
David Oubiña, “Prometeo Furioso. Canibalismo y demolición en Glauber Rocha”, in Filmologia. Ensayos con
el cine. Buenos Aires, Manantial, 2015, p. 61.
13
Eduardo Lourenço, “Guimarães Rosa ou o terceiro sertão”, in Tempo Brasileiro, pp. 155-163.
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
323
Osvaldo Manuel Silvestre
claro está, ao da famosa ‘Semana de Arte Moderna’ de São Paulo, momento de auto-
consciência paroxística da cultura brasileira (TB: 155).
O operador crítico de que Lourenço aqui lança mão não é tanto, ou apenas,
o sertão, mas antes a longa duração que o define (o “relógio sem ponteiros do
sertão”), ao pé da qual todas as revoluções, provocatórias ou não, se tornam
irrelevantes – tanto mais que, ao contrário da temporalidade do sertão, a do
modernismo nem sequer seria apenas brasileira. Comentário bastante proble-
mático, diga-se, já que pressupõe uma contraposição (regime temporal brasileiro
vs regime temporal apenas parcialmente brasileiro) que reproduz uma discutível
ontologia da autenticidade cultural e permitindo abrir um debate sobre se algu-
ma cultura vive numa temporalidade só sua. A que se soma uma desvaloriza-
ção do modernismo enquanto provocação, algo de reconhecível na analítica de
Lourenço, que tende sempre a valorizar modalidades de uma fenomenologia da
redução ao essencial, o que não seria o caso sobretudo daquelas variantes do
moderno mais dadas a vanguardismos, por definição, para Lourenço, histriónicas
e superficiais, apesar das aparências em contrário (este modelo é igualmente
reconhecível na sua análise do caso português).
Em todo o caso, na proposta de Lourenço a “visão do Sertão Brasil proposta
por Euclides cumpre, pois, as funções de um mito” (TB: id.). Que depois remata,
em modo revisionista: “A sombra de Euclides paira sobre toda a literatura que
por seu formal ou indireto exemplo vai descobrir o Brasil no espelho do Brasil”
(TB: id.). Ora, este quadro é substancialmente diverso do dos textos de 1967 so-
bre Glauber Rocha e o seu então Magnum Opus, Deus e o diabo na terra do sol.
Nos textos de 1967, aquilo que no ensaio de 1997 será nomeado e discriminado
como os três sertões (o de Euclides, o do romance de 30, o de Guimarães Rosa),
surge anexado num bloco descritivo relativamente homogéneo, que funciona
como o pano de fundo e a inspiração do épico de Glauber Rocha. Vejamos uma
324 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Não é possível descortinar aqui uma diferença crítica entre os três sertões,
tanto mais que são apresentados como tendo ângulos diversos, mas comple-
mentares. A situação não muda substancialmente no texto seguinte, editado na
revista O Tempo e o Modo no mesmo ano de 1967 com o título “O Cinema Novo
15
e a Mitologia Cultural Brasileira” . É certo que se refere a “intuição de génio” de
Euclides, “elevando uma obscura e quase grotesca revolta mística afogada em
sangue a uma guerra de Tróia brasileira” (TB: 122), assim como se evidencia a
oposição do filme de Glauber, bem como dos dos seus camaradas, “ao sentido
e à inflexão que a mesma cultura brasileira assume atualmente em obras tão
representativas como as de Guimarães Rosa e de Jorge Amado” (TB: 127), uma
16
inflexão num sentido arcaizante, de que o cinema novo se distancia . Mas no
essencial a homogeneização dos três sertões é de regra, como se pode perceber
na frase em que se refere que o tema do filme de Glauber é “já mediado, como
dissemos, pela visão de Lins do Rego, de Euclides, de Guimarães Rosa” (id.: 123).
No texto de 1997, o recorte dos três sertões ganha um alcance quase onto-
lógico, já que o primeiro sertão, o de Euclides, é descrito como o momento de
produção do mito – não apenas o da imagem banalizada de “um Brasil em luta
consigo mesmo enquanto cultura de violência social incompreensível” (TB: 158-
9), mas sobretudo o da produção do Brasil espelho do Brasil; o segundo, do ro-
mance de 30, o sertão “banalmente épico, de uma violência inocente” (TB: 159),
14
Eduardo Lourenço, “Deus e o diabo na terra do sol. Um filme brasileiro excecional”, in Tempo Brasileiro,
pp. 111-115.
15
Eduardo Lourenço, “O Cinema Novo e a Mitologia Cultural Brasileira”, in Tempo Brasileiro, pp. 117-128.
16
A inflexão é detalhada em seguida, fazendo acompanhar o arcaísmo do seu folclore: “O caráter arcaizante
da grande obra de Guimarães Rosa é evidente e não menor é o pendor do último Jorge Amado (a partir de
Gabriela sobretudo) para nos mostrar o folclore baiano como visão do mundo redentora e resposta original
e positiva às contradições brasileiras. Ora, de certo modo, é esse arcaísmo e esse folclore que Glauber
Rocha e seus camaradas distanciam (embora enraizados nele) reenviando para o passado a epopeia dos
jagunços e dos taumaturgos primitivos e apelando para um povo liberto e redimido dos seus fantasmas pela
sua lucidez e esforço” (id.: 127). O primado negativo do folclore no imaginário é um a priori da leitura que
Lourenço produz do Brasil e de toda a América Latina, bem patente em formulações como “exterioridade
folclorizante” (p. 114), “fascinação meramente folclorizante” (115), o “elemento mais visivelmente folclórico”
(p. 119), tudo traços de que o Cinema Novo se emanciparia, como se torna dialeticamente visível na penúltima
frase do texto “O Cinema Novo e a Mitologia Cultural Brasileira”: “Esta obra violenta e lúcida na sua aparente
desordem que um jovem fez ‘explodir’ sobre o palco sereno e seleto do cinema mundial exorciza ao mesmo
tempo uma consciência cultural folclorizante, como é a latino-americana, e universaliza uma mitologia da
violência com quinhentos anos de tradição ao reenviar para a ilusão os falsos deuses e os eficazes demónios
que a teciam” (128).
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
325
Osvaldo Manuel Silvestre
17
No fundo, e para retomar as palavras de Lourenço, Euclides da Cunha realiza plenamente o projeto de
todo um século de produção da cartografia identitária do Brasil já independente: o de sonhar “a história, a
literatura, a sociologia, a própria geografia de um espaço que só pode ser descrito como um dos atributos
de Deus, o da imensidade” (TB, p. 156).
18
Num texto recente, Nuno Ramos desdobra este chão, que descreve como as “conquistas culturais” das quais
Glauber parte, em três componentes: “a) o chamado romance regionalista, que atravessa nossa literatura desde
o início dos anos 30, b) a literatura de cordel, com seu correlato cancioneiro e repentista, e c) a tragédia de
Canudos, popularizada no meio culto por Euclides e ainda ecoando na tradição oral popular” (Nuno Ramos,
“Trança (ainda Moebius). Glauber Rocha, Caetano Veloso e Tunga”, in Verifique se o mesmo. São Paulo,
Todavia, 2019, pp. 61-62). Não coincidindo com os três sertões de Lourenço, a sobreposição ou cruzamento
das duas análises é manifesta, com a particularidade de dar a ver, na eleição do cordel, o relacionamento
apenas pontual da analítica de Lourenço com esse nível mais popular ou, como tende a dizer, folclórico.
19
Recordo que o próprio Lourenço admite, em texto de 2002 publicado na Folha de São Paulo, com o título
“Sobre Euclides”, que a sua leitura do grande livro de Euclides da Cunha foi tardia.
326 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
entra no mundo de Guimarães Rosa em 1958 pela mão de Glauber Rocha; (ii)
entrando em Rosa, Lourenço recua em seguida até Euclides da Cunha; (iii) é o
filme Deus e o diabo na terra do sol que lhe transmite a perceção do alcance
crítico do “sertão” como instrumento para pensar, não apenas a literatura, mas
a mitologia cultural brasileira inteira, processo a que se entregará em regime
intermitente até ao ensaio de 1997. O que significa que do panorama dos três
sertões do ensaio de 1997 está ausente aquele que foi realmente instrumental
para Lourenço proceder a essa, tardia mas decisiva, discriminação histórico-lite-
rária e cultural: o sertão de Glauber Rocha, no qual o recuo a Euclides ganha o
poder de uma incisão em profundidade no corpo histórico-social, mas também
imaginário, do Brasil, por meio do refrão que atravessa o filme e o confronta com
a irrealização da dialética socio-histórica brasileira: “O sertão vai virá mar, o mar
vai virá sertão”.
Seja-me permitido aqui um breve excurso. No centenário dos eventos de Ca-
nudos, o fotógrafo brasileiro Evandro Teixeira deslocou-se ao local do massacre
e aí produziu um portfolio que, acompanhado de um texto de Ivana Bentes com
o título “O sertão de Canudos”, resultaria no livro Canudos. 100 Anos, editado em
1997, um clássico instantâneo da tradição do Photo Book no Brasil. O texto, que
oscila entre a reportagem e o trabalho histórico-etnográfico, tem um premedita-
do ponto alto na secção dedicada ao Monte Santo, local de romaria e milagre,
de acordo com a lenda de Antonio Conselheiro. Nesse ponto, as camadas da
história do sertão, e em particular de Canudos, ganham a sobreposição da ca-
mada peculiar dos trabalhos de rodagem de Glauber, em termos que vale a pena
recordar:
Depois da passagem do frade capuchinho no século XVIII, de Antonio Conselheiro,
no século XIX, e de milhares de fiéis ao longo destes séculos pelo calvário popular,
Dedega invoca outro personagem que iria entrar para a memória da cidade. O ci-
neasta Glauber Rocha que subiu o caminho da Santa Cruz, em 1963, com equipamen-
tos, câmera, centenas de figurantes e atores. Glauber faria ali a obra-prima Deus e o
Diabo na Terra do Sol. O sertão e o monte produziam mais uma transubstanciação,
da religião e da fome à estética.
20
Ivana Bentes, “O sertão de Canudos”, in Evandro Teixeira, Canudos 100 Anos. Rio de Janeiro, Editora Textual,
1997, pp. 115-6.
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
327
Osvaldo Manuel Silvestre
21
Recordo as palavras de Lourenço: “Literatura do Nordeste, literatura de Minas, literatura do Sul, não são
categorias do mundo literário” (TB: 159).
22
Antonio Candido, “Literatura e Subdesenvolvimento”, in A Educação pela Noite & outros ensaios. São Paulo,
Editora Ática, 1989, p. 159.
23
Antonio Candido, Op. cit, id.
328 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
24
qual se transfigura “o próprio material daquilo que foi um dia o nativismo” , ou
seja, nos termos eleitos para Guimarães Rosa, obras “solidamente plantada[s] no
25
que poderia chamar de a universalidade da região” .
Ora, em Lourenço o sertão é essa “universalidade da região”, ou seja, uma
metacategoria que abarcaria a “pura fantasmagoria da fome e do desespero ...
de violência assumida, aquém da lei, humana ou divina” (TB: 159), à qual se opo-
ria o sonho “mais tenaz” do Brasil, o “de se pensar, imaginar e querer como uma
cultura da felicidade” (TB: id.). A explicação mais pregnante para essa ausência
do sertão de Glauber seria talvez a de que o ensaio de 1997 mostraria, na sua
discriminação dos três sertões, que Glauber herda uma tematização e um imagi-
nário ao qual não consegue acrescentar algo definível como um quarto sertão,
dada a cristalização dos anteriores. Glauber, digamos, produziria uma síntese
fílmica de um epos longamente trabalhado e herdado na literatura brasileira (o
que significaria que a literatura triunfaria sobre o cinema, na versão do crítico li-
terário Eduardo Lourenço). O que nos permite introduzir um dos temas decisivos
da escrita de Lourenço sobre o sertão e sobre Glauber: a epopeia, mais pura-
mente reconhecível em Euclides, oscilando depois entre “um filão inesgotável
de cenários épicos às avessas” (TB: 160), sobretudo no caso dos romancistas de
30, e o percurso que vai da epopeia à “elegia metafísica” (TB: 161) em Guimarães
Rosa. No primeiro ensaio sobre Deus e o diabo na terra do sol, é enfatizada a
“coerência estrutural de canto épico que nele tem lugar” (TB: 112), que “marcará
uma data na história cinematográfica do Brasil e até na sua história cultural” (TB:
id.). Esta questão é colocada, no segundo ensaio, ao serviço de uma pedagogia
crítica do imaginário brasileiro, quando se afirma, em tom algo irredentista, que
Neste sentido, Deus e o diabo na terra do sol, independentemente do dramatismo
que lhe é próprio enquanto filme, é um momento cultural dramático, pois é nele e
através dele que por fim adquire uma dimensão épica esse mesmo mundo de heróis
e frustes cuja fascinação impede justamente o povo brasileiro de se ver ao natural no
espelho que deve redimi-lo (TB: 127-8).
Notemos o “por fim”, que atribui ao trabalho de Glauber uma posição termi-
nal na dialética da épica do sertão, posição essa em relação à qual o Louren-
26
ço da maturidade parece recuar. Mas notemos também como essa dialética
24
Antonio Candido, Op. cit, p. 162.
25
Antonio Candido, Op. cit, id.
26
Notemos, contudo, que essa posição terminal do filme de Glauber é ainda declarada no mesmo ensaio
mais globalmente, em relação a todo o imaginário do sertão: “Como todas as obras originais – e Deus e o
Diabo na Terra do Sol é uma delas – o filme de Glauber Rocha resume, fecha e supera, definitivamente, a
temática nordestina ao esgotar-lhe a potencialidade mítica. Neste sentido, é obra sem amanhã” (TB: 122).
Esta posição poderia abrir o caminho a uma perspetiva como a de Fabio Akcelrud Durão, que em texto muito
recente sobre Carolina de Jesus, propõe a substituição, em sentido forte, do sertão pela favela no imaginário
literário e cultural brasileiro contemporâneo: “With the progression of urbanization and industrialization in
the country, the sertão lost much of its importance to another space of exclusion, that of the favela. One of
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
329
Osvaldo Manuel Silvestre
the very few Brazilian words to have entered the English language in the XXth century, it designates a locus
of settlement for those coming from other regions or who were being relocated from parts of the city they
could no longer inhabit; it is also a place in which the poor are concentrated in the most outraging living
conditions. If in the sertão people and place were closely associated, in the favela the latter determines
the former: if the sertanejo is a being, the favelado is a state. Or not.” “A Spatial Curse: Carolina Maria de
Jesus and the Favela”, in Alfred J. López and Ricardo Quintana-Vallejo (eds.), The Routledge Companion to
Literature and the Global South. London-NY, Routledge, 2023.
330 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
Estas palavras, já agora, podiam ter sido ditas pelo Jean-Luc Godard da épo-
ca, sem mais. Como a distância crítica em relação a Eisenstein, declarada na
mesma entrevista: “Não se pode negar que a sombra de Einsenstein está presen-
te nesse filme, sobretudo na primeira parte. Eu gosto muito de Eisenstein, mas
eu vivo numa realidade que não é uma epopeia no estilo de Alexandre Nevski,
28
nem um drama histórico estilo Ivan, o terrível” . Num livro de referência já citado
a crítica francesa Sylvie Pierre abordou esta questão com grande pertinência:
“Glauber Rocha é um dramaturgo épico cuja obsessão é inscrever a tragédia na
29
história, é fazer o palco do mundo encontrar-se com o palco da representação” .
Tal encontro, como já se percebeu, segue sempre aquele perfil desenhado, entre
outros (incluindo o próprio Glauber), por David Oubiña quando responde à sua
própria pergunta: “Com que se parece um filme de Rocha? Poderia dizer-se: a
30
épica de Eisenstein arrasada pelo vandalismo de Godard” . Num longo texto de
1968 que já aqui referi, “O cinema novo e a aventura da criação”, Glauber Rocha
trata ele mesmo a questão da épica do sertão, recuando à cena primitiva da re-
presentação do Brasil (a “Carta” de Caminha), e colocando a sua indagação sob
o espectro alargado de uma crítica cultural:
O mesmo se passa com o folclore: qualquer trabalho das velhas gerações é esteti-
zante e o exemplo de Euclides da Cunha é exaltado muito mais pelo fragor do estilo
do que pela tragicidade do documento. A épica dos impotentes – eis o ideal da cul-
tura brasileira dominante, e nesta onda entra grande parte da esquerda.
O cinema novo, sabendo que o herói não tem caráter, foi às fontes da “epopeia” e
lá descobriu a corrosão original, mistificada, que começa nos tempos da carta de
31
Caminha.
27
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, p. 124.
28
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, p. 112-3.
29
Sylvie Pierre, Op. cit., p. 94.
30
David Oubiña, Op. cit., p. 60.
31
Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, p. 147.
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
331
Osvaldo Manuel Silvestre
Esta questão levar-nos-ia longe, mas devo terminar. Regresso para isso a um
ponto problemático do segundo ensaio de Lourenço: aquele em que, após dese-
nhar o quadro de um cinema (o dos cinemas novos) produzido por cineastas-críti-
cos, ou seja, o quadro alargado em que “A criação, no cinema como na literatura
(para seu bem ou seu mal), passa agora quase fatalmente pela escolaridade, o
que não era o caso da grande época hollywoodiana” (TB: 120), Lourenço cons-
tata que no caso brasileiro os efeitos perniciosos dessa situação não ocorrem,
apesar de também eles serem “filhos do cinema”. Para propor em seguida, como
explicação, que tal não ocorre “porque neles é por demasia aguda a consciência
37
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 95.
38
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 94.
39
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 96.
40
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., id.
41
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 99.
42
Glauber Rocha, apud Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 98.
43
Jean-Claude Bernardet, Op. cit., p. 99.
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
333
Osvaldo Manuel Silvestre
44
Glauber Rocha, apud Eduardo Lourenço, “O Cinema Novo e a Mitologia Cultural Brasileira”, in Tempo
Brasileiro, p. 120.
45
Glauber Rocha, apud Eduardo Lourenço, Op. cit., id.
46
Glauber Rocha, apud Eduardo Lourenço, Op. cit., id.
334 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
O que surpreende, pois, é que o seu discurso permaneça ainda assim tão
próximo da lógica e da estratégia de Glauber Rocha, que em mais de uma dimen-
são reproduz a lógica e estratégia do modernismo de 1922, na sua fundamental
articulação entre prática artística e interrogação identitária – que noutras oca-
siões, mais tardias, o mesmo Lourenço não deixará de questionar. A culpa deste
deslize, obviamente, é de Glauber Rocha, de quem haveria de ser?
REFERÊNCIAS
Bentes I. (1997). “O sertão de Canudos”, in Evandro Teixeira, Canudos 100 Anos. Rio
de Janeiro, Editora Textual, 1997, pp. 16-135.
Bernardet J.-C. (2007). Brasil em tempo de cinema. Ensaio sobre o Cinema Brasilei-
ro de 1958 a 1966. São Paulo, Companhia das Letras.
Candido A. (1989). “Literatura e Subdesenvolvimento”, in A Educação pela Noite &
outros ensaios. São Paulo, Editora Ática, pp. 140-162.
Gomes P. E. S. (2007). “Prefácio da 1ª edição”, in Brasil em tempo de cinema. Ensaio so-
bre o Cinema Brasileiro de 1958 a 1966. São Paulo, Companhia das Letras, pp. 17-18.
47
Paulo Emílio Salles Gomes, “Prefácio da 1ª edição”, in Brasil em tempo de cinema, p. 18.
O «FULGOR BÁRBARO» DE DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA SEGUNDO EDUARDO LOURENÇO
335
Osvaldo Manuel Silvestre
Lourenço E. (2018). Tempo Brasileiro: Fascínio e Miragem. Obras Completas, vol. IV.
Ed. de Maria de Lourdes Soares. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
Oubiña D. (2015). “Prometeo Furioso. Canibalismo y demolición en Glauber Rocha”,
in Filmologia. Ensayos con el cine. Buenos Aires, Manantial, pp. 59-64.
Pierre S. (1996). Glauber Rocha. Textos e Entrevistas com Glauber Rocha. Campinas,
Papirus Editora.
Ramos N. (2019) “Trança (ainda Moebius). Glauber Rocha, Caetano Veloso e Tunga”,
in Verifique se o mesmo. São Paulo, Todavia, pp. 61-113.
Rocha G. (2003). Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo, CosacNaify.
Rocha G. (2004). Revolução do Cinema Novo. São Paulo, CosacNaify.
Xavier I. (2004). “Prefácio” a Revolução do Cinema Novo. São Paulo, CosacNaify,
pp. 13-27.
PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA: O INTERCÂMBIO A PARTIR DA GEOGRAFIA
337
José Borzacchiello da Silva
eduardo
lourenço:
PREMIO e
centenário
premio
eduardo
lourenço
GALERIA DE PREMIADOS
2023
LÍDIA JORGE
Escritora
Fotografia de Alfredo Cunha
LÍDIA JORGE
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO 2023
A ocasião que nos junta aqui hoje, a entrega do Prémio Eduardo Lourenço ao
Professor Valentín Cabero Diéguez, espelha a verdadeira cooperação e a genuí-
na amizade ibérica.
E é a melhor homenagem que podemos fazer ao Fundador e Patrono do Centro
de Estudos Ibéricos – sonho de Eduardo Lourenço, materializado por pessoas que,
ao longo de mais de duas décadas, entregaram o seu saber a este grande projeto.
Seja bem-vindo, estimado Professor Valentín, a esta casa que é sua.
No ano em que assinalamos o Centenário do Nascimento de Eduardo Lou-
renço, entregamos o Prémio com o nome do nosso ensaísta maior a um iberista
convicto como o Professor Valentín Cabero.
O desafio foi bem acolhido pelas instituições que corporizam hoje o Centro
de Estudos Ibéricos: a Câmara Municipal da Guarda, a Universidade de Coim-
bra, a Universidade de Salamanca e o Instituto Politécnico da Guarda, a cujos
representantes aqui presentes reitero o agradecimento pelo compromisso par-
tilhado ao longo dos últimos 20 anos – que, estou certo, durará muitas mais
décadas.
Apesar de já não estar entre nós, nunca deixará de ser recordado pelo seu
enorme legado intelectual e, principalmente, porque sempre defendeu que Por-
tugal não era um país isolado e marginalizado da Europa, colocando-se na linha
da frente da defesa da cultura portuguesa e a sua importância no contexto
europeu.
Contribuiu deste modo para o fim do estereótipo do “orgulhosamente
sós” que atormentou Portugal durante alguns anos, recordando-nos o valor
e a influência da cultura portuguesa e espanhola no cenário europeu e mun-
dial.
Deixou-nos com a ideia da afirmação da Civilização Ibérica e a sua importân-
cia europeia e global.
A nossa história entrelaçada de presença muçulmana, a nossa tradição da
filosofia medieval e que tanto, mas tanto em comum, o demonstram.
Mas porque os projetos e as instituições têm rosto, apraz-me prestar público
agradecimento ao nosso querido Professor Valentín Cabero por ter acreditado
na ideia do Centro de Estudos Ibéricos, abraçado o desafio e tudo ter feito, junto
da sua secular Universidade, para que dali se olhasse para esta histórica cidade
de fronteira e para o potencial que o projeto poderia ter.
De facto, a Guarda não poderia ter encontrado melhor Embaixador! Se o Cen-
tro de Estudos Ibéricos é hoje uma realidade reconhecida nacional e internacio-
nalmente, muito o deve ao trabalho de Valentín Cabero. Em verdadeiro espírito
de equipa e congregação de vontades com todos os parceiros!
O próprio Eduardo Lourenço viria a confessar que, talvez pela primeira vez,
um pensamento, uma ideia sua, se tornava realidade. Lembrava, em 2010, na
comemoração do 10º aniversário do CEI, que “a sugestão de criar, numa antiga
cidade de fronteira, de velhos pergaminhos, um Centro de Estudos Ibéricos, caiu,
em todos os sentidos, na boa terra e nas mãos de boa gente”. E disse então que
o Centro não podia existir senão apoiado nos mestres, estudiosos e estudantes
das duas Universidades mais antigas da Península: o Professor Valentín Cabero
foi um desses mestres.
Num percurso de mais de duas décadas, Eduardo Lourenço manteve com
o CEI uma ligação de grande proximidade e envolvimento afetivo, a que sim-
bolicamente se referia como “uma simples sugestão que se converteu em vida
partilhada”.
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
351
2022
É para mim uma honra presidir a esta sessão e congratulo-me com a decisão
do Júri em atribuir o Prémio Eduardo Lourenço 2022 ao Professor Valentín Cabero.
Valentín Cabero corporiza o próprio espírito deste Prémio que visa distinguir
personalidades ou instituições com intervenção relevante no âmbito da cultura,
cidadania e cooperação ibéricas.
O júri reconheceu e entendeu distinguir o trabalho do Geógrafo, catedráti-
co jubilado da Universidade de Salamanca, a sua dedicação aos lugares e às
pessoas, às paisagens e aos valores patrimoniais bem como o seu conhecimen-
to rigoroso dos processos de transformação dos territórios mais vulneráveis da
fronteira luso-espanhola.
Profundo conhecedor de Portugal, dedicou muito do seu labor ao reconhe-
cimento da fronteira terrestre, linhas que foram feitas para separar, mas onde
ele sempre encontra o diálogo, a troca e a amizade. Um território de encontros
e desencontros que evoluiu para um novo espírito de fronteira marcado pela
inovação e cooperação.
Valentín Cabero acredita convictamente que, para vencer a ausência, para
superar as velhas e as novas fronteiras (reais ou simbólicas) e promover a coesão
das regiões periféricas, é fundamental criar solidariedades e promover a coope-
ração real entre pessoas e territórios.
A fronteira foi, pois, o cais de partida para uma viagem que acabou por ter
como porto de abrigo e lugar de destino a Guarda e o Centro de Estudos Ibéricos,
esta casa comum que se transformaria, também, numa causa igualmente comum.
Permitam-me que cite Fernando Paulouro, aqui presente, também ele já ga-
lardoado com este Prémio: “Valentín Cabero é um geógrafo que faz do rumor do
mundo uma grande paixão, elege a geografia (também) como fenómeno senti-
mental e de afetos e combina o local e o global numa articulação de densidade
humana e cultural, convocando-nos à descoberta das particularidades para po-
dermos perceber a condição humana na sua complexidade”.
Deixarei ao Excelentíssimo Alcalde Fernando Rubio a abordagem ao percurso
académico, cívico e social do nosso galardoado. Mas permitam-me que desta-
que o profundo conhecimento e amor que Valentín Cabero nutre pelo nosso país
e pela região raiana em particular.
Valentín Cabero, tal como Miguel de Unamuno, o velho reitor da sua univer-
sidade, tem Portugal no seu coração. Uma raiz afetiva que supera fronteiras e
se traduz num conhecimento concreto do território, dos lugares e das pessoas.
Os ensinamentos que sabe transmitir em palestras académicas ou nos traba-
lhos de campo de que tanta gosta, a sua simplicidade e a constante disponibili-
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
353
2022
Bem-haja!
354 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
DELFIM LEÃO
VICE-REITOR DA CULTURA, COMUNICAÇÃO E CIÊNCIA
ABERTA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
SUZANA MENEZES
DIRETORA REGIONAL DE CULTURA DO CENTRO
Junto-me, uma vez mais, a esta emblemática cerimónia em nome do Sr. Mi-
nistro da Cultura, Doutor Pedro Adão e Silva, mas, naturalmente, também, em
nome da Direção Regional de Cultura do Centro que assume, no contexto das
Comemorações do Centenário de Eduardo Lourenço, juntamente com um gran-
de leque de outras entidades, o papel de parceiro.
E de outro modo não poderia ser. É de facto, com muita alegria e orgulho
que nos associamos a estas comemorações e não apenas pelo facto de com
elas celebrarmos a vida e obra de Eduardo Lourenço como, sobretudo, porque
nos associamos a um programa de grande qualidade científica que, não tenho
dúvidas, irá marcar a paisagem cultural da nossa região com os seus quatro ei-
xos estruturantes - "aprofundar o conhecimento da obra", "ampliar o universo de
leitores", "expandir o legado de Eduardo Lourenço" e "territorializar um pensa-
mento desterrioterializado".
E estes são os eixos que, se me permitem, garantirão um objetivo maior de
política pública cultural: preservar, salvaguardar e valorizar o nosso património.
Por isso, e desde já, as minhas palavras são de felicitação à Câmara Muni-
cipal da Guarda e ao Centro de Estudos Ibéricos que assumem a coordenação
nacional da celebração do centenário do nascimento de Eduardo Lourenço e de
felicitação à incansável equipa responsável pela programação desta efeméride,
que conseguiu, com o seu entusiasmo, convocar uma larga rede de parceiros
nacionais e internacionais da maior relevância.
Finalmente, uma palavra especial sobre a edição de 2022 do Prémio Eduardo
Lourenço, começando por felicitar o Júri pela escolha do premiado, que não po-
dia ser nem mais acertada, nem mais atual, à luz de algumas das preocupações
e princípios estratégicos de política pública definidos para o nosso País, designa-
damente, a questão dos territórios fragilizados de baixa densidade e a questão
dos modelos de cooperação transfronteiriça Portugal-Espanha.
Aliás, como terão eventualmente presente, a Comissão Europeia aprovou, há
cerca de seis meses atrás, o maior programa de cooperação transfronteiriça da
360 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
MANUEL SALGADO
VICE-PRESIDENTE DO INSTITUTO POLITÉCNICO
DA GUARDA
Buenas tardes a todos los asistentes a este hermoso acto: un gran reconoci-
miento para una gran persona, que sin duda hace honor al nombre del premio.
haber dado el paso que nos ha traído hasta aquí y por la feliz unanimidad que ha
florecido en torno a una persona sencilla, sabia y querida por todos, seguramente
porque es, en esencia, una buena persona. Por todo ello, queremos responder con
nuestro agradecimiento profundo a las entidades que instituyen el Premio Eduardo
Lourenço y, cómo no, a los miembros del jurado.
Antes de continuar, Valentín e hijos, permitidme un recuerdo para Maritere, tu
querida esposa, vuestra querida madre, que tanto ayudó a forjar tantos momen-
tos que esta tarde parecen confluir de golpe en esta sala, que falta desde hace
ya demasiado tiempo. Valentín, llena la ausencia con poesía, que a menudo te
acompaña. Comprende, como Vicente Aleixandre, que hoy ella continúa siendo el
cuerpo feliz que fluye entre tus manos, el rostro amado donde contemplas el mun-
do, donde graciosos pájaros se copian fugitivos volando a la región donde nada
se olvida. Después, busca los árboles, descansa y piensa que te has sentado en
el centro del bosque a respirar, como escribió tu paisano y amigo Antonio Colinas.
Sería inabarcable y pretencioso mostrar una semblanza completa de Valentín
Cabero. Les ahorraré ese exceso, en la certeza de que omitiré gran parte de lo im-
portante. Me dispongo a resumir, sin embargo, que su trayectoria docente comien-
za recién concluida su licenciatura, en el año 1968, como becario de investigación
en la Universidad de Salamanca, la misma que 44 años después le entregará el
Premio María de Maeztu a la Excelencia Científica en su edición de 2012. Su jubila-
ción en el año 2013, tras haber alcanzado la cátedra de Geografía en el año 1984,
no supone un punto final en su carrera en modo alguno. A quien nace para lo que
hace nunca le abandona la vocación, y Valentín continúa enseñando, escribiendo
y mostrando al mundo su enorme pasión por la tierra, sus paisajes y los modos
de habitarla, siempre con la enorme carga ética que emana de su magisterio de
manera natural.
Formador de profesores, director de trabajos de investigación, tesinas, tesis
doctorales, miembro de numerosos comités científicos de congresos y editoriales,
partícipe en la dirección de prestigiosas revistas de Geografía, le acompaña una
extensa bibliografía, caracterizada por la profundidad de análisis y la calidad de
sus propuestas. Cabe destacar sus libros relacionados con los espacios de mon-
taña, los cambios regionales, el paisaje y la transformación de los usos del suelo,
la ordenación del territorio y los problemas territoriales en las áreas fronterizas o
periféricas.
En el apartado de la cooperación internacional, cuenta con estancias en dife-
rentes universidades de Francia, Rusia, Polonia, Colombia, Cabo Verde o Brasil, así
como colaboraciones con instituciones europeas. Ha ejercido como miembro del
Comité Científico y de Expertos de la Asociación de las Regiones Fronterizas de
Europa. Pero una de sus grandes pasiones, tal vez la mayor, ha sido y es la coope-
ración con Portugal, desde la dirección de tesis doctorales y cursos de formación
de profesores ligados hoy a universidades e Institutos politécnicos portugueses, a
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
365
2022
moldean con un carisma especial. Tal vez por ese espíritu libertario y fraternal, el
Profesor Cabero ha sufrido también desprecio, e incluso en algunos momentos la
persecución de algunos medios de comunicación y ámbitos de poder. En sus inicios
en la Universidad de Salamanca llegó a ser despojado de su docencia por rebelde.
Cualquiera puede imaginar a un joven Profesor Cabero contestando con argumen-
tos, sin perder nunca su amabilidad innata (con certeza, forjada en la niñez y refor-
zada en sus cientos de paseos solitarios). Al fin y al cabo, Valentín es un magnífico
rousseauniano, que no concibe el camino sin ensoñación, ni pérdida en el bosque
sin buscar la utopía del territorio.
Otro hito en su recorrido son los artículos en medios de comunicación, como
respuesta ante desastres en la gestión del territorio y en defensa del patrimonio
heredado. Son referencia ineludible en el ámbito del desarrollo rural. Es el caso de
sus escritos en defensa de las juntas vecinales y bienes comunales, sus denuncias
de la ley española (mal llamada) de racionalización y sostenibilidad de la adminis-
tración local, contemplada por el profesor como una desamortización encubierta
para los pueblos pequeños y el medio rural, o su clamor contra obras faraónicas,
más inspiradas por inclinaciones corruptas y megalómanas que por la búsqueda
del desarrollo sostenible de los pueblos y sus gentes. En la misma línea, su intensa
labor pionera en la consecución del Parque Natural de Sanabria, su trabajo necesa-
rio en la creación del Parque Nacional de la Sierra de Guadarrama, su defensa de
la naturaleza como miembro de la Reserva de la Biosfera de Ancares, o la firma de
la Declaración por un sistema alimentario basado en la agroecología y la soberanía
alimentaria, en enero de 2022. Ello, como una pequeña muestra de la amplia pro-
ducción social del Profesor.
En esta misma línea, ha prestado sus conocimientos, por ejemplo, a las Cortes
de Castilla y Léon en la Comisión de Asuntos Europeos y la Comisión sobre la Evo-
lución de la Población de Castilla y León, o a la Comisión especial de estudio sobre
las medidas a desarrollar para evitar la despoblación de las zonas de montaña, del
Senado de España.
Terminemos con otra de sus pasiones, ya aludida en su vertiente poética: la
literatura, donde siempre ha encontrado refugio y referencias.
Cuando Carlo Levi, en los años 30 del siglo pasado, es confinado por los fas-
cistas a Gagliano, en la Basilicata italiana, se encuentra con paisanos conscientes
de su condición de desheredados de la tierra. Se autodenominan “bestias”, por
haberlo oído así a algún terrateniente cercano. Dicen que Cristo no llegó hasta allí:
Cristo se paró en Éboli, o como mucho en Matera.
Herbert Luethy, en Francia contra sí misma habla de las zonas rurales como
lugares ajenos a cualquier suceso importante: es la “petite histoire”, la del tiempo
detenido y olvido asegurado. Julio Caro Baroja, en su análisis de lo que ya conside-
ra “éxodo rural” a mediados del siglo pasado, al analizar las tradiciones de España
la llama “la historia chica”, la que no se vive, se padece: allá donde los hombres
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
367
2022
nunca tuvieron nada que decir ni están en los libros. Una imagen similar del medio
rural proyecta su admirado John Berger en Puerca tierra, nuestro amigo común Ro-
gelio Blanco en su novela Dismundo o, de un modo aún más descarnado, Delibes
en Los Santos Inocentes, Buñuel en su documental Tierra sin pan o tantos otros
cronistas de los desheredados de la tierra y sus territorios.
Algo más de luz proyecta la novela La ciudad y las sierras. Eça de Queirós,
muy apreciado por el Profesor Cabero, muestra un París bullicioso (la ciudad) que
contrapone con el paisaje rural del Bajo Duero portugués (las sierras), adonde los
protagonistas deben regresar por asuntos familiares. La sola comparación de la
ciudad más dinámica y seductora con el entorno rural más detenido en el tiempo
resulta irónica. Sin embargo, el cosmopolita Jacinto encuentra junto al Duero una
inesperada felicidad: “La sierra toda se ofrecía en su belleza eterna y verdadera”,
y Eça de Queirós termina ofreciendo un canto a la “agreste y serena naturaleza”,
dicho con sus propias palabras.
En esa luz final de las sierras de Queirós encontramos más al Profesor Cabero.
Él ha elegido a las bestias, a los no cristianos de Levi, y se ha comprometido con la
historia chica de Caro Baroja, aquella que, por no suceder nada relevante para las
grandes crónicas, ni siquiera existe. Sin embargo, ésa es la historia del día a día,
la que construye y custodia el territorio, la que preserva los paisajes y defiende a
los paisanos, la que no merece el fatalismo ni la imagen sombría que a menudo se
le otorga, la que debe recuperar su autoestima para reivindicarse y luchar por sus
derechos.
La mirada de nuestro querido amigo Valentín Cabero confía en el territorio, en
sus pobladores más vulnerables, en su aprovechamiento sostenible y bien distri-
buido, en el paisaje. Valentín ha sembrado utopía y muchos a su lado hemos reco-
gido realidad. Al fin y al cabo, su buen amigo, el poeta Juan Carlos Mestre, ya se lo
dijo aquella emocionante tarde de primavera en Juzbado:
Tus antepasados inventaron la Vía Láctea,
dieron a esa intemperie el nombre de la necesidad,
al hambre le llamaron muralla del hambre,
a la pobreza le pusieron el nombre de todo lo que no es extraño a la pobreza.
Poco es, querido amigo Valentín, lo que puede hacer un hombre con el pensa-
miento del hambre,
apenas dibujar un pez en el polvo de los caminos,
apenas atravesar el mar en una cruz de palo."
Felicidades, familia.
Felicidades, Maritere, allá donde quiera que seas aire.
Felicidades, querido Valentín.
Gracias a todos.
368 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
VALENTÍN CABERO
GALARDOADO
Jabito, Victor y Susana) y mis nietos (Nayara, Daniel, Blanca, Arturo, Arotía y Gre-
ta), que me dan fuerzas para seguir en este camino de conocimiento y construc-
ción sensata de la península Ibérica, más allá de las fronteras.
Ibéricos (2000 / 2005) y la Biblioteca pública(2008) que ahora nos acoge y lleva
el nombre insigne de Eduardo Lourenço.
Al respecto, en un bello artículo de Eduardo Lourenço: “Do Portugal emigrante
ao Portugal europeu” (Paris-Vence, mayo de 1992) e incluido en el libro Um País
de Longínquas Fronteiras (2000), nos expone la peregrinación de los portugue-
ses en busca de un nuevo Eldorado en el continente europeo, particularmente en
Francia. Lo mismo podríamos decir de los españoles. Poco hemos reflexionado
sobre estos hechos migratorios que, en el pasado, desde el siglo XVI hasta la se-
gunda mitad del siglo XX, estuvieron ligados a los caminos de los descubridores
y a los países lusófonos e ibéricos y al continente americano. Es clave, pues, la
metamorfosis en las relaciones con Europa, con Francia para Portugal, y con las
propias patrias ibéricas de partida, incapaces entonces de mantener y retener a
sus hijos, acentuándose estos cambios con la adhesión oportuna de Portugal y
de España a la “grande Europa”. Y así, además de la adhesión formal, será sobre
todo la mudanza de los emigrantes la que nos integró en Europa: “foi o novo
portugués-europeu que, sem o querer, pelo simples facto de estar lá, no coração
da Europa, nos instalou verdadeiramente nela”, escribe Eduardo Lourenço. Con
la emigración portuguesa y española a Europa se cumplieron muchos sueños, sin
duda, y las mixturas culturales han creado nuevas formas de convivencia y tole-
rancia. Y a pesar de las asimetrías culturales existentes, cada vez más débiles,
dos figuras literarias tan representativas como Camões y Cervantes, se manifies-
tan desde Europa y la Península Ibérica con sentido universal y dan vida a dos
instituciones llenas de mensajes iberistas y lusófonos: el Instituto Cervantes y el
Instituto Camões.
Con un mensaje universal y a la vez con una percepción asentada en la pro-
ximidades vitales y culturales, Eduardo Lourenço nos invita y nos reta a repensar
nuestro futuro en Europa, en la península Ibérica y en los lugares en que vivi-
mos. El pensador regresa al espíritu del lugar, allí donde descubrió el mundo
desde una humilde aldea rayana; valora con perspectivas de futuro la posición
estratégica de Guarda y su función de encrucijada o bisagra urbana y cultural;
y afirma con visión integradora que todos nosotros somos ibéricos, reafirmando
así los fundamentos matriciales peninsulares, y abogando por los diálogos trans-
versales entre pueblos hermanados por la cultura y las raíces comunes; además,
enmarca sus miradas e ideas, más allá de las fronteras, en el contexto europeo
de la nueva Europa, tomando conciencia de nuestro significado peninsular y de
nuestras relaciones complejas con Europa; precisamente, por ello, y por nues-
tra relación histórica con otros continentes y territorios lejanos, colonizados y
conquistados durante quinientos años, debemos plantearnos una relectura de
nuestros sueños narcisistas e imperiales, estableciendo diálogos de manera na-
tural y abierta con los países de lengua portuguesa o española, e intercambiando
ideas y conocimientos en lugares de encuentro y de debate como el Centro de
PRÉMIO EDUARDO LOURENÇO
375
2022
Postfacio
Unos meses después de la lectura de este discurso, con motivo del Centenario de
Eduardo Lourenço (1923-2023), se publican sus ensayos, artículos o intervenciones orales
desde la creación del Centro de Estudios Ibéricos, principalmente; el libro coordinado por
Rui Jacinto lleva por título: Vida Partilhada. Todos nós ibéricos. Eduardo Lourenço, Ibero-
grafias, 44, CEI, Guarda, mayo de 2023, y se apoya en una publicación anterior, realizada
con motivo de la celebración de sus noventa años: Vida Partilhada. Eduardo Lourenço e
a coopreação cultural (CEI, 2013). La presente edición incorpora nuevos ensayos y escri-
tos (9) que amplían y refuerzan sus propuestas iberistas y de diálogo peninsular, europeo
y transibérico, tal como queda reflejado en el subtítulo: “Todos nós ibéricos”.
centenário
do nascimento
de eduardo
lourenço
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE
EDUARDO LOURENÇO (1923-2023)
A preparação do programa do
Centenário do Nascimento de
Eduardo Lourenço tem o envol-
vimento direto de instituições
com quem o ensaísta estabele-
ceu uma relação mais estreita
e que esboçam um possível Ro-
teiro Eduardo Lourenço. Importa
lembrar que, simbolicamente,
Eduardo Lourenço doou a sua
Biblioteca pessoal à Biblioteca
Municipal Eduardo Lourenço
(Guarda), à Biblioteca da Facul-
dade de Letras e à Biblioteca
Geral da Universidade de Coim-
bra, à Casa da Escrita (Câmara
de Coimbra), encontrando-se os seus manuscritos depositados na Biblioteca Na-
cional. Ainda em vida legou ao Centro de Estudos Ibéricos parte significativa do seu
espólio (prémios, condecorações, medalhas, etc.), material que foi parcialmente
usado para criar o Memorial Eduardo Lourenço, instalado na sede do CEI, inaugu-
rado no primeiro aniversário da sua morte.
São parceiros nas comemorações as câmaras municipais de Guarda, Almei-
da e Coimbra, as universidades de Coimbra e Salamanca (Espanha), o Instituto
Politécnico da Guarda, a Fundação Calouste Gulbenkian, a Biblioteca Nacional,
o Instituto Camões, o Centro Nacional de Cultura, a Direção Geral do Livro, dos
Arquivos e das Bibliotecas, a Rede de Bibliotecas Escolares, a Rede Intermunicipal
de Bibliotecas das Beiras e Serra da Estrela, a Direção Regional da Cultura do
Centro, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, o
Turismo Centro de Portugal, o Turismo de Portugal, a Fundação José Saramago
e a Casa Fernando Pessoa.
O grupo que coordena as Comemorações no CEI, constituído por António Pedro
Pita e Rui Jacinto (Universidade de Coimbra), Roberto Vecchi e Margarida Calafate
Ribeiro (Cátedra Eduardo Lourenço, Universidade de Bolonha), tem vindo a alargar
os contactos com diversas entidades, onde se incluem várias universidades, que já
382 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
3. Expandir o legado
A par do prosseguimento da edição das obras, prevê-se expandir o legado de
Eduardo Lourenço através de edições, exposições, concertos e ciclos de cinema.
sempre parecido com o Salazar! De repente, surge no estúdio a escritora Lídia Jorge, que
diz: "O Professor está tão elegante! Vamos fazer umas fotografias juntos." Foram feitas as
fotos e, quase a terminar, voltei a insistir... Ele olhou para mim e disse: "Você é um chato...
mas está bem. Contrariado, mas vou!" O resultado dos cinco minutos de sessão fotográfica
está aqui.”
Alfredo Cunha
LANÇAMENTO DE LIVROS
"A escrita de Eduardo Lourenço, a sua arte do pensamento, exige uma capa-
cidade de leitura não primária ou estereotipada, reivindica uma epistemologia
adequada. Não interessa de onde vem, mas tem de ser rigorosa. O paradoxo (ou
a dificuldade) é que a heterodoxia enquanto texto, mesmo que indisciplinada,
impõe uma disciplina de leitura sofisticada.
Com este pequeno contributo para a construção de uma “geopolítica do pen-
samento” de Eduardo Lourenço, queremos mostrar que a herança do ensaísta é
essa: ler a obra com o cuidado, com a inteligência, com o entendimento do jogo
subtil de deslocação dos sentidos, lê-la e, a partir dela, pensar." (Da Herança ―
introdução do livro).
16 junho
• "Luso, iluso, desilusão: o fio de Eduardo Lourenço no «Labirinto do Ressen-
timento» luso-brasileiro" – Talles Faria, Universidade de Coimbra, Portugal
• "Eduardo Lourenço, a casa perdida e o Brasil: uma outra semântica do tem-
po histórico" – Roberto Vecchi, Cátedra Eduardo Lourenço/Universidade de
Bolonha, Itália
ENSINO E FORMAÇÃO
XXIII CURSO DE VERÃO
NOVAS FRONTEIRAS, OUTROS DIÁLOGOS:
COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO
INVESTIGAÇÃO
TRANSVERSALIDADES
FOTOGRAFIA SEM FRONTEIRAS
PREMIADOS
MELHOR PORTFÓLIO
Arez Ghaderi (Alemanha)
Tema 1. Património natural, paisagens e biodiversidade
Vencedor: Son Duong Cong (Viet Nam)
Menções Honrosas:
. Gabriela Martinez Manosalva (Estados Unidos)
. Wahyu Budiyanto (Indonésia)
. Adra Pallón (Espanha)
406 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
ITINERÂNCIA DE EXPOSIÇÕES
15 de abril
(Mercado Municipal; Museu da Guarda; Biblioteca Municipal Eduardo Louren-
ço; Teatro Municipal da Guarda)
• A Terra e as Gentes, Coletiva do Fotoclube da Guarda (Inauguração de Ex-
posição)
• Memoria en la Raya, Victorino García Calderón (Inauguração de Exposição)
• Reflexões em Preto e Branco: A Jornada de um Cine Teatro no Tempo, Pe-
dro Carvalho (Inauguração de Exposição)
• A face dos livros, Associação Cultural Ephemera (Inauguração de Exposição)
• 100gentes, Pedro Baltazar (Inauguração de Exposição)
• Debate/Painel 3 ― Imagem e coesão territorial: ecos e memórias da frontei-
ra (Álvaro Domingues, María Isabel Jiménez, Helder Sequeira, Valentín Cabe-
ro, Moderação: Lúcio Cunha)
16 de abril
Maratona fotográfica “Imagem & Território” ― Aldeias do Vale do Mondego
A iniciativa, que contou com o apoio da Fujifilmxpt juntou cerca de 50 entu-
siastas da arte fotográfica que tiveram oportunidade de conhecer e fotogra-
far as freguesias da Faia e de Aldeia Viçosa e ainda a Festa da Sra. do Carmo,
que teve lugar nesse dia.
17 de abril
Ensiguarda ― Escola Profissional da Guarda; Escola Secundária Afonso de Al-
buquerque; Museu da Guarda)
• Oficina de fotografia Fujifilm, por Tiago Monteiro
• Sinais dum mundo em mudança, Coletiva dos Concorrentes do Concurso
Transversalidades (Inauguração de Exposição e Oficina de fotografia)
• Olhar a diversidade, compreender o mundo, Coletiva dos Concorrentes do
Concurso Transversalidades (Inauguração de Exposição)
• Visitas guiadas às exposições (orientadas pelo Serviço Educativo do Museu
da Guarda)
18 de abril
(Escola Secundária da Sé; Museu da Guarda)
• Geografias do olhar, Coletiva dos Concorrentes do Concurso Transversali-
dades (Inauguração de Exposição e Oficina de fotografia Fujifilm por Tiago
Monteiro)
412 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
19 de abril
(Museu da Guarda)
• Visitas guiadas às exposições orientadas pelo Serviço Educativo do Museu
da Guarda
20 de abril
(ULS Guarda – Hospital Sousa Martins; Museu da Guarda)
• Pessoas, Lugares, Outros Olhares, Coletiva dos Concorrentes do Concurso
Transversalidades
(Inauguração de Exposição)
• Visitas guiadas às exposições (orientadas pelo Serviço Educativo do Museu
da Guarda)
21 de abril
(Museu da Guarda; Estabelecimento Prisional da Guarda
• Visitas guiadas às exposições orientadas pelo Serviço Educativo do Museu
da Guarda
• Paisagens, Patrimónios, Culturas, Coletiva dos Concorrentes do Concurso
Transversalidades
(Inauguração de Exposição e Conversa/Debate)
• Debate/Painel 4 – Imagem e inclusão social: práticas e retratos (Aldeia SOS
Guarda, Projeto Tu decides + NDS, CERCIG, Clara Moura, José Manuel Si-
mões, Moderação: Amélia Fernandes)
22 de abril
• Roteiro Fotográfico – Passadiços do Mondego
• Debate/Painel 5 – Imagens sem fronteiras: diálogos lusófonos (Rosilene
Milliotti, Amosse Mucavele, Luísa Ferreira, Mário Macilau, Thandy Pinto, Ro-
berto Montemor, Karla Inajara e RaH BXD, Moderação: Rui Jacinto)
• “Imagem e coesão social”: Além das nossas fronteiras – Coletiva de Jo-
vens da Aldeia SOS da Guarda/Mentoria de Luísa Ferreira (Inauguração da
Exposição)
• Com Vivências – Imagens do Povo (Inauguração da Exposição)
• Cartografias (sub)urbanas: 5 olhares sobre Moçambique – Adiodato Go-
mes, Albino Mahumana, Mário Macilau, Thandy Pinto, Yassmin Forte (Inaugu-
ração da Exposição)
• Topografias da paisagem social, Luísa Ferreira (Inauguração da Exposição)
• Sessão de Encerramento
CEI ACTIVIDADES
413
2023
Debate "Imagem e memória: A face dos livros" – com José Pacheco Pereira
(Ephemera)
O Debate "A Face dos Livros" com José Pacheco Pereira encerrou o 6º En-
contro "Imagem & Território". A conversa versou em torno da exposição da Ephe-
mera que contempla diversas capas de livros ilustradas por autores portugueses
desde o início do século XX até à década de 70.
O Programa detalhado pode ser consultado em: https://www.cei.pt/.../vi-en-
contros-imagem-e-territorio.html
414 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
EXPOSIÇÕES PRINCIPAIS
Rumores do Mundo
Autores: Concorrentes do Concurso Transversalidades 2022
Curadoria: João Pedro Cochofel
Projeto Expositivo: Santiago Santos
Galeria Evelina Coelho ― Paço da Cultura | 14 de abril a 4 de junho de 2023
INTERIOR EMERGENTE
Autores: Ana Caroline Carmo; Ana Isabel Cerqueira; Ana Margarida Rocha; Ana Patrí-
cia D'Apresentação; Ana Teresa Marques; António Rodrigues; Carolina Costa; Catari-
na Silva; Eduardo Martins; Elisabete José; João Rodrigues; Leandro Figueira; Marcelo
Vitória; Maria Ribeiro; Marta Loureiro; Miriam Silva; Pavel Storchak; Pedro Gomes;
Salvador Fernandes; Severino Costa; Tatiana Lucas; Vinícius Machado (Alunos do Ins-
tituto Politécnico da Guarda).
Tutores: Anabela Sardo; Carla Ravasco; Catarina Carreto; Filipe Moreira; Florbela Ro-
drigues; Handerson Engrácio; Henrique Marques; Rosa Branca Figueiredo; Simone
dos Prazeres.
Espaço #4 ― Paço da Cultura | 14 de abril a 4 de junho de 2023
CEI ACTIVIDADES
415
2023
MEMORIA EN LA RAYA
Autor: Victorino García Calderón
Museu da Guarda | 15 de abril a 18 de junho de 2023
416 Iberografias Revista de Estudos Ibericos
100GENTES
Autores: Pedro Baltazar
Curadoria: Helder Sequeira
Café Concerto, Teatro Municipal da Guarda | 15 de abril a 30 de junho de 2023
COM VIVÊNCIAS
Autores: Imagens do Povo (Alexandre Silva, Allan Almeida, Diego Lopes, Felippinho21,
Gabriel Mothé, Guga Ferreira, Jean Barreto, João Teodoro, Jones, Karla Inajara, Monara
Barreto, Pedro Siqueira, RaH BXD, Selma Souza, Vicente Costa, Vitor Melo, Vitória Corrêa)
Curadoria: Rosilene Miliotti
Galeria de Arte, Teatro Municipal da Guarda | 22 de abril a 2 de junho de 2023
EDIÇÕES
REVISTA DE ESTUDOS IBÉRICOS
IBEROGRAFIAS 19 (2023)
O décimo nono número da “Iberografias ― Revista de
Estudos Ibéricos” contempla as múltiplas atividades
promovidas pelo CEI durante o ano de 2023, corpo-
rizando as referências estruturantes da sua missão
nas áreas do Conhecimento, da Cultura e da Coope-
ração.
Consultar livro em: https://www.cei.pt/revista
COLEÇÃO IBEROGRAFIAS*
CATÁLOGOS
TRANSVERSALIDADES:
FOTOGRAFIA SEM FRONTEIRAS
2023
Recorrendo à fotografia para abrir janelas
para o mundo, o “Transversalidades” con-
substancia o compromisso do Centro de Estu-
dos Ibéricos com a cooperação transfronteiri-
ça e os territórios mais excluídos e periféricos
e concorre para a sua missão de plataforma
de diálogo, encontro de culturas e centro de
transferência de conhecimentos.
Consultar catálogo em: https://www.cei.pt/catalogos/