Afrolic Volume 3

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Rosilda Alves Bezerra

Tânia Lima
Carmen Tindó Secco editora
Sávio Freitas
Ǔorgs.ǔ
Rosilda Alves Bezerra
Tânia Lima
Carmen Tindó Secco
Sávio Freitas
(orgs.)

AFROLIC
Literatura Desigualdade Ensino

Volume III

editora

Natal, 2022
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

2022. Rosilda Alves Bezerra - Tânia Lima – Carmen Tindó Secco – Sávio Freitas (orgs.).
Reservam-se os direitos e responsabilidades do conteúdo desta edição aos autores.
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sem a prévia autorização dos autores, desde que citada a fonte. A violação dos direitos do
autor (Lei n. 9610/1998) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

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Ana Paula Tavares (Portugal); Abdoul Savadogo (Burkina Faso); Alberto Mathe
(Moçambique); Ana Claudia Gualberto Félix (PB); Ana Mafalda Leite (Portugal);
Anória Oliveira (BA); Assunção Sousa (PI); Carlos Negreiros (RN); Carmen Secco (RJ);
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte


Idealização do projeto gráfico: Tânia Lima
Diagramação: Rosângela Trajano
Desenho da capa e contracapa: Laro Silva
Capista: Jonathan Gomes
Revisão: Ivanice Montezuma
editora

©2022. Rosilda Alves Bezerra, Tânia Lima, Carmen Tindó Secco, Sávio Freitas (orgs.). Reservam-se os direitos e responsabilidades do conteúdo desta edição aos autores.
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Editora Rejane Andréa Matias Alvares Bay

Conselho editorial Francisco Fransualdo de Azevedo


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Márcia da Silva
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Márcio Adriano de Azevedo
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Helder Alexandre Medeiros de Macedo
Júlio César Rosa de Araújo
Samuel Lima
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Dilma Felizardo

Catalogação da Publicação na Fonte.


Bibliotecária/Documentalista:
Rosa Milena dos Santos – CRB 15/ 847.

A258

Afrolic: literatura desigualdade ensino / Rosilda Alves Bezerra... [et al.]. – Natal: Caule de
Papiro, 2022.

265 p. : il.

Volume III.

Vários organizadores.

ISBN 978-65-86643-86-2 - LIVRO VIRTUAL

1. Literatura africana. 2. Cultura africana. 3. Negros. 4. Literatura brasileira. 5. Universidade


Federal do Rio Grande do Norte. I. Bezerra, Rosilda Alves. II. Lima, Tânia. III. Secco, Carmen
Tindó. IV. Fonseca, Sávio Freitas. V. Título.
RN CDU 821.134.3(6

Caule de Papiro gráfica e editora


Rua Serra do Mel, 7989, Cidade Satélite
Pitimbu | 59.068-170 | Natal/RN | Brasil
Telefone: 84 3218 4626
www.cauledepapiro.com.br
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Dedicamos este terceiro tomo à Rosilda


Alves Bezerra e às mais de 600 mil vítimas
da pandemia Covid-19 no Brasil.
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

aqui
estou eu fora de mim
[...]
fora de tudo
[...]
este sem lugar do ser é o imenso
silêncio
para lá desse ponto desordem e
trevas
e noutros sítios também caindo da
altura de um tempo anterior

Ana Mafalda Leite

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

SUMÁRIO

LITERATURA, DESIGUALDADE E ENSINO ................................................................................... 7

O SER, O SAGRADO E A MEMÓRIA ..................................................................................................... 8


Severino Lepê Corrreia (Escritor)

DO COLONIAL À PÓS-COLÔNIA EM ÁFRICA: CRÔNICA DE UMA JUVENTUDE DE


LUTAS .................................................................................................................................................................19
Dr. Pingréwaoga Béma Abdoul Hadi Savadogo Socioantropólogo

LINGUAGENS DAS MARGENS (DES)ARQUIVADAS): NÓS NÃO VAMOS ESQUECER! ...26


Maria Anória de Jesus Oliveira
Barbara Maria de Jesus Oliveira

MARCAS DA VIOLÊNCIA NO CONTO ‘STRESS’, DE LÍLIA MOMPLÉ FEATURES OF


VIOLENCE IN ‘STRESS’ BY LILIA MOMPLÉ.......................................................................................37
Franciane Conceição da Silva

RESISTÊNCIA E FUGA EM ‘CRIME BÁRBARO’ DE RINCON SAPIÊNCIA .............................48


Wellington A. dos Santos (UFES)
Jurema Oliveira (UFES)

O PROTAGONISMO DE IFEMELU E ESCREVIVÊNCIA NO ROMANCE AMERICANAH,


DE CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE ..................................................................................................58
Milaynne Christina Barros do Nascimento (NEPA/ UESPI)
Elio Ferreira de Souza (NEPA / UESPI)

ORALIDADE E ANCESTRALIDADE: UMA ANÁLISE DE ‘HISTÓRIAS DE LEVES


ENGANOS E PARECENÇAS’, DE CONCEIÇÃO EVARISTO.........................................................71
Wilany Alves Barros do Carmo
Orientador: Elio Ferreira de Souza

A URGÊNCIA DE LER A ESCRITA FEMININA EM ÁFRICA ..................................................81

DESPERTAR DAS VOZES FEMININAS EM NIKETCHE: UMA HISTÓRIA DE


POLIGAMIA, DE PAULINA CHIZIANE ................................................................................................82
Fernanda Oliveira da Silva (UFRJ)

PAULINA CHIZIANE: NIKETCHE: UMA HISTÓRIA DE POLIGAMIA: MULHER,


CULTURA E INSUBORDINAÇÃO............................................................................................................92
Maria das Dores Freire da Silva (FACESA)

O FANTÁSTICO EM ‘O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO’, DE MIA COUTO......................... 100


Marinete Luzia Francisca de Souza
Kátria Fagundes

A ESCRITA FEMININA NO BENIM: GISÈLE HOUNTONDJI, SOPHIE ADONON E


CARMEN TOUDONOU............................................................................................................................. 109
Maysa Morais da Silva Vieira (UFPB)

O NARRADOR BENJAMINIANO NA OBRA DE PEPETELA: ESTUDO COMPARATIVO


COM AS OBRAS DE CONDÉ E LAYE ................................................................................................. 120
Renato José Galdino (UFRN)
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TERCEIRA MARGEM DE UMA VOZ INSUBMISSA .................................................................. 131

MEMÓRIAS CRIOULAS: A VOZ CONTADEIRA QUE VEIO DO MAR ................................... 132


Tânia Lima (UFRN- Profartes – UDESC)

OXUMARÊ E O ‘ARCO DA VELHA’: NARRATIVAS IORUBÁS EM DIÁRIO DE BITITA,


DE CAROLINA MARIA DE JESUS ........................................................................................................ 146
Júlio César de Araújo Cadó
Tânia Lima

DA MEMÓRIA ANCESTRAL EM ‘O SÉTIMO JURAMENTO’, DE PAULINA CHIZIANE 156


Victhória Cristhiêne da Silva Nascimento (UFRN)
Tânia Lima (UFRN/ Profartes - UDESC)

A MEMÓRIA DAS ILHAS EM ALDA ESPÍRITO SANTO & CONCEIÇÃO LIMA ................. 167
Nathalia Oliveira Silvestre (UFRN)
Tânia Lima (UFRN – Profartes - UDESC)

LITERATURA, INSULARIDADE E EMIGRAÇÃO EM CABO VERDE..................................... 176


Geni Brito (UNILAB)
Simone Caputo Gomes (USP)
Tânia Lima ( UFRN)

ESCRITURAS ANDAM EM CÍRCULOS: À VOLTA DO TEU PESCOÇO .................................. 186


Thayane Morais
Tânia Lima

A NATUREZA DO CORPO PERFORMÁTICO EM ‘BALADA DE AMOR AO VENTO’, DE


PAULINA CHIZIANE ................................................................................................................................. 197
Larissa Sarmento de Almeida Celestino (UFRN)
Tânia Lima (UFRN - Profartes - UDESC)

O CORPO É POSSÍVEL: POESIA E EROTISMO EM PAULA TAVARES ................................. 206


Canniggia de Carvalho Gomes (UFRN)
Tânia Lima (UFRN/ Profartes – UDESC).

SE EU PUDESSE DEDICAR ESSA HISTÓRIA... ................................................................................ 216


Ângela de Santa Rita (UFRN)
Tânia Lima (UFRN Profartes - UDESC

UMA ABORDAGEM ANTIRRACISTA NO AMBIENTE ESCOLAR ........................................... 228


Thaises Carla Guedes Fernandes Dutra
Tânia Lima (UFRN -Profartes - UDESC)

LITERATURA AFROBRASILEIRA DE AUTORIA FEMININA EM SALA DE AULA: UM


PROJETO DE INTERVENÇÃO .............................................................................................................. 242
Mariana Eufrasino do Nascimento (UFRN)
Tânia Lima (UFRN /Profartes - UDESC)

A TRAVESTI NEGRA NO ROMANCE HISTÓRICO AFROBRASILEIRO DE ELIANA


ALVES CRUZ ................................................................................................................................................. 255
Jade Mariam Carvalho Silva Vaccari
Sávio Roberto Fonseca de Freitas
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

LITERATURA, DESIGUALDADE E ENSINO

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

O SER, O SAGRADO E A MEMÓRIA


Severino Lepê Corrreia (Escritor)

É de opinião geral, nos estudos filosóficos, que um dos primeiros problemas acessados
pela mente humana foi o problema cosmogônico. Pelas inquietações existentes até agora em
relação ao para onde vamos e o que viemos fazer aqui, intui-se que perguntas sobre as origens e
destino das coisas e dos entes, começaram a surgir no primeiro momento em que o ser humano
adquiriu o poder da reflexão.
A busca das revelações sobre os segredos do Universo levou pessoas, culturas e
gerações inteiras a um incessante perguntar, a uma criação desvairada de meios e métodos, bem
como, escritos e ‘garatujas’ que pudessem acalmar a ânsia de apreender o real em sua totalidade e
compreender as diversas realidades em que se situa e se contextualiza o todo.
Para justificar, fundamentar e explicar os acontecimentos e atividades que tiveram lugar
num tempo primordial, tempo esse parido pelo sagrado - o ‘pai mãe’ do real e do talvez
verdadeiro – aquele que ganhou o lugar de provado e comprovado, visto que, ‘até hoje o mundo
existe’, surgiram os mitos. “Tudo o que sabemos acerca das recordações míticas do ‘Paraíso’
mostra-nos, pelo contrário, a imagem de uma humanidade ideal [...]” (ELIADE, 1969, p.105).
Daí vermos como o ser humano, diante de contextos aleatórios e frustrantes, apela
para uma relação transcendental, procurando uma segurança e uma identificação mais firmes: se
integra em grupos organizados na tentativa de se reencontrar e atingir metas valorizadas e
definidas pela comunidade e aceitas por ela. Assim, a história humana e suas contingências vão
sendo feitas a partir das “circunstâncias, ambientes, recursos e interações [...], porém a história
não se constitui apenas de eventos, ela é o próprio desenrolar dos processos”(FOURSHEY,
2019, p.22).
E, uma vez que o começo da história da humanidade tem sua origem ligada ao
continente africano, neste texto, sem querer desconhecer o sagrado na visão de outros povos,
trataremos das relações e símbolos, com esse teor, dentro das comunidades africanas trazidas
para o Brasil por contingências escravocratas, uma vez que continuam a fazer parte de nosso
inconsciente coletivo, embora tenham travado, nos últimos tempos, uma luta ferrenha para
continuarem sobrevivendo, apesar de alguns generosos acadêmicos afirmarem que “diversas
tradições e linguagens religiosas sempre conviveram no Brasil, país que parece ser terra fértil
para o surgimento de novas expressões religiosas e para releitura de antigas tradições de fé”
(MAGALHÃES, 2008, p.8).
Entretanto, no recente governo brasileiro, os famosos ‘istas’, há muito tempo em

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surdina e na espreita, foram legitimados pelos discursos da instância maior do País. Entre eles os
rac’istas’ que, apesar de se comportarem como admiradores paisag’istas’, dentro e fora das
instituições sociais e da academia, passaram a colocar as ‘unhas de fora’, atuando como:
‘papagaios de piratas’, admiradores do que descaracteriza sua terra e, até alguns
afrodescendentes, reavivaram a chamas dos ‘capitães do mato’, há muito adormecidas em seus
corações lacaios, para começarem a ser porta-vozes do eco colonizador, através do brandir da
espada da insurgência contra as ‘práticas e os ritos ancestrais’ de povos dos quais eles próprios
descendem, junto ao exército dos ‘não negros’ de várias denominações religiosas e/ou credos
espirituais, abominando o sagrado que não tiver uma euroautorização.
Mas o legado, mesmo trazido à força, embora ressignificado, por aqui tomou volume e,
apesar da riqueza e da pompa dos credos coloniais e da perseguição, a cosmovisão negroafricana
que aqui chegou, nem sonha em desaparecer e, ultimamente, com o avanço dos movimentos
sociais, principalmente do Movimento Negro, o número de estudos e estudiosos desse assunto
cresce a cada dia.
O professor Fábio Leite (2008) foi um dos grandes estudiosos da questão ancestral,
desaparecido em 2020 de nosso convívio terreno, fez no final dos anos 1970, uma das mais
significativas pesquisas na África, sobre ‘a questão ancestral’, inclusive observando “a dimensão
ancestral como dotada de concretude histórica”(LEITE, 2008, p.13). Não acho viável
aprofundar tal assunto por aqui neste momento, mas como estou tratando de fatos relacionados
à memória e historicidade brasileira inspirada no sagrado, decidi tocar no assunto, visto que
existe uma relação de muito estreitamento entre a problemática da ancestralidade e as várias
instâncias do social, sem necessariamente se tratar de uma questão religiosa.
Daí, em relação a alguns termos como: ‘tradição’, que por não achar adequado para as
práticas sociais negroafricanas [preferiu] designá-las por ‘práticas ancestrais’; e as ações atinentes
à espiritualidade - para ele -“ficariam melhor explicitadas sob a designação de ritos ancestrais”
(LEITE, 2008, p.XVIII), uma vez que seria um ‘perigoso engano’ transformar os cultos aos
ancestrais – e a reverência às forças da Natureza 1 - em ‘religião africana’. Não por uma questão
preconceituosa em relação ao termo ou coisa semelhante, mas porque o termo ‘religião’, parece
“ter adquirido o sentido mais imediatista e comum de injunção formal submetida a crenças em
poderes celestiais e sublimação da condição humana” (op.cit., p. XVIII), fazendo que, igual ao
pensamento religioso europeu, o ser humano parta em constante elevação na rota do Criador,
como um tipo de esforço humano para se divinizar, coisa que foi propalada na África Negra,

1 Culto aos Vodu, Orisá e Nkise – (elementos sagrados dos povos Ewe, Yorubá e Kongo-Angola)

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pelas ‘missões civilizatórias’, com intuito de dominar. Entretanto, “os valores originários [...]
propõem, ao contrário: [...] a ‘humanização dos deuses’ ”(op.cit., p.XIX).
Em razão das práticas sociais ancestrais terem uma abrangência muito maior e nos
vários níveis das relações de parceria entre a natureza interior e exterior das convivências
humanas no planeta, nessa minha convivência com ritos ancestrais de origem africana, noto que
quando é permitida, principalmente aos pesquisadores e curiosos alheios aos cultos, a
participação em atos mais fechados (esotéricos), quase sempre são ocasionadas visões e
interpretações limitadas, principalmente, da parte dos portadores de pontos de vista e
conhecimentos referentes aos dogmas euroamericocêntrico.
Embora o pesquisador seja sério, tomar como simplesmente um ato religioso as
práticas socioespirituais que envolvem os ‘que fazeres’ de um Babá L’Osayin 2
em busca de
folhas para fazer uma consagração, ou uma ‘lavagem de cabeça’, com seu amontoado de passos
e fases, apenas pelo que se pôde ter acesso em um momento, é ter um trabalho de observação
‘periférica’, ou do popular ‘visto por cima’, interpretado desde fora.
Existem vários trabalhos, mesmo de ‘grandes’ pesquisadores, que não citarei por
questões éticas, cheios de equívocos, embora bem escritos academicamente, pois as
bibliografias e sujeitos que fornecem as informações falam, muitas vezes, desde um pensar
estranho ao meio em que foi ‘pesquisado’. Enunciam de um pedestal fora dos cultos que,
logicamente, diminui o valor de alguns sujeitos protagonistas da realidade prática ritual, devido
aos preconceitos intelectuais em relação aos não escolarizados.
Esses comentários não são mais profundos e melhores do que os de outros que têm
escrito sobre esse assunto, mas algumas coisas sobre as quais escrevo fazem parte da minha
experiência, da minha vivência quotidiana. Vários aprendizados me foram conferidos pelos
chamados ‘arquivos do saber’, alguns mais velhos e velhas, cheias de conhecimentos vindos de
outros velhos mais antigos, minimizados por sua falta de instrução escolar, mas que
contribuíram, em muito, para que o pouco que aprendi dentro dos ritos ancestrais, pudessem
fortalecer minha relação com o sagrado, minha identidade e orgulho de meu pertencimento
étnico. 3
Nas culturas africanas, pelo menos as que conheço, o sagrado ocupa um lugar,
diferente daquele que, costumeiramente no Ocidente, assim foi denominado. Para esses, o
sagrado tem um quê de assustador, de intocável; as Divindades estão sempre distantes, ou
orientando de longe. Enquanto isso, o que ocupa esse lugar nas culturas indígenas e/ou

2 O que conhece e colhe as ervas sagradas


3 Meu pai pertencia ao povo Lyele, da Burkina Faso.

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africanas se amálgama aos atos e vivências daqueles que o evocam, ou se entregam aos seus
cuidados como guias ou guardiões, ficando tão perto que, às vezes, são confundidos com seus
próprios adoradores.
Nessas relações o amor é possessão e não posse, as pessoas se tornam uma com e
como o Orixá, o Vodu ou o Nkise, o Mestre, o Caboclo ou o Encantado. É um grande prazer,
ver o elemento do qual a pessoa é filha, filho, ou afilhado(a) incorporado em outra pessoa e se
poder cumprimentar, falar, abraçar e não se ter ciúmes, por saber que no corpo em que aquele
elemento sagrado atuar, ou no lugar onde se manifestar, continua lhe amando e lhe protegendo,
aconselhando individualmente, ao mesmo tempo em que faz parte de um todo comunitário.
Nas comunidades originárias o individual nunca deixa de ser uma parte do corpo
coletivo. Por isso, aqueles ou aquelas que estão ou vivem à frente das Comunidades Terreiros,
pelo menos, nos tempos mais antigos, foram devidamente preparados(as) para exercerem seus
papeis de comando do grupo, fazendo com que os locais funcionassem, tanto como reduto de
tratamentos espirituais e físicos quanto lugar de resistência contra a extinção dos ensinamento e
regras ancestrais - como dizia a minha avó – ‘do bom viver’. Isso, desde o comportamento
político para que se tomasse cuidado com os pactos a se fazer com os que chegassem pedindo
favores ou oferecendo benesses em troca de votos; ou em relação ao comportamento moral
dentro da sociedade à qual pertencesse. Principalmente, não se deixando influenciar pela
aquisição fácil, porém ilegal, tornando-se uma má referência para os mais jovens do grupo.
Ser o Sagrado enquanto Ser é cuidar bem do próprio corpo lhe conferindo saúde
através da limpeza feita com os banhos das ervas, o resguardo durante as funções rituais, a roupa
sem sujeiras: não emprestar, nem vestir roupas alheias, nem calçados. Coisas que previnem
desde a ‘sovaqueira’ até o não envolvimento com energias inadequadas, transportadas por outros
corpos que as vestem, através do suor. Aos olhos dos verdadeiros praticantes, é preciso amar o
corpo e equilibrar a mente ouvindo a ancestralidade. Não é um mero estar por estar. Será que é
simbólico apenas para determinado grupo? Não sei. Os mais velhos ensinam assim. Aprenderam
de seus mais velhos.

JÁ DIZ O VELHO DITADO


O corpo que deus me deu
Foi feito pra vadear
Na ginga falo do mundo
Do de lá e do de cá
Meu corpo negro é uma arma
Que muito prazer me dá
Melanina é meu escudo
O meu protetor solar
Por isso meu Mestre Zé

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Logo ao se incorporar
Tira primeiro uma loa
Dessa que eu vou lhes mostrar:
“Mas eu sou preto, e bem preto
Não sou queimado do “Só”
Já diz o velho ditado
Quanto mais preto é milhó” 4

Imaginemos uma criança negra de periferia, desrespeitada pelo racismo, como a


maioria das crianças negras deste país, cuja família frequenta um terreiro de Mbanda, 5 depois
de uma semana de achincalhamento na rua, ou mesmo na escola, ouve uma exaltação à sua
cor, ao seu povo, partindo da boca de uma figura paterna poderosa, como um Mestre da
Jurema? É fascinante ver os olhos de todos brilhando no terreiro, a força com que cantam se
afirmando ‘pretos’, reabilitando suas autoestimas. É uma aula de ‘Psicologia do
Fortalecimento e da Autoafirmação Identitária’, sem rodeios e teorias cansativas. Em suas
frentes: só um símbolo de poder.
O Brasil está repleto de personagens que não arredam o pé – também de carne e
osso - quando se trata de defender o patrimônio simbólico negrobrasileiro, reconhecendo o
sagrado como grande artífice nesse ato de amor.
Aproveitando o dito já referido, citarei uma façanha de uma figura de muita
influência no movimento negro brasileiro: Mãe Beata de Iyemojá. Aos 85 anos, essa
incansável mulher que se incumbiu da missão de preservar as histórias sagradas, lembrando
as divindades femininas guerreiras, costumava não deixar passar nada que pudesse vilipendiar
a existência dos ritos ancestrais africanos e afrobrasileiros por este país.
No ano de 2014, a candidata a Presidente do Brasil, Marina Silva, teve a infelicidade
de, em uma de suas falas, verbalizar que os cultos aos Orixás não tinham status de religião,
era uma seita. Mãe Beata não teve dúvidas: escreveu-lhe uma carta ‘chamando-a à razão’ e
ainda publicando nas redes sociais, para que a comunidade pudesse tomar tal missiva como
registro. Como documento histórico.
Num dos trechos da carta de Mãe Beata de Iyemojá (2014) à pretensa candidata à
presidência da República Brasileira, Marina Silva, a Iyalorixá não se dobrou diante do cargo
político e se postou como quem tem conhecimento de causa, tanto das práticas como dos
ritos ancestrais, além de seus direitos de cidadã, retrucando:

4 Poema de Lepê Correia, 2009, com enxerto de uma toada do Mestre José Felintro, ouvida em 1982, na
Comunidade Terreiro Ogun Toperiná (ã), no Jatobá, em Olinda.
5 Termo Kimbundo(Angola) – Medicina, arte de curar, ciência médica; em Umbundo, designa o médico
tradicional, o curandeiro (LOPES, Nei, Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, 2004, p. 663) (apelo
para a escrita original do termo, visto que, no Brasil, quando se escreve, na maioria das vezes, em línguas
estrangeiras se faz questão de manter o original: “hot dog”, “coach”, etc. Por que não em línguas africanas
também?)

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Quando a Senhora diz que as religiões afro não são religião e sim seita, eu como
uma iyalorixa do Candomblé, uma mulher negra muito feliz; pois eu tenho
dignidade, o amor e humildade, digo que não. Quando dizem que o Candomblé é
seita por que cultua satanás. E nós não cultuamos satanás. Cultuamos Olorum,
Obatalá, Ododuá e Exú, que é o grande dinamizador. Cultuamos os inquices e os
vodun que são deuses como Javé, Jeová. Cultuamos deuses de energia da natureza
que é a coisa mais suprema que pode existir. Por que somos natureza, filhos da
natureza, ao qual a Senhora terá um grande compromisso de preservar essa natureza
que pede socorro, pelo descaso de pessoas inconsequentes (http://
www.geledes.org.br/... em17/09/2014).

E completando o trecho citado, Mãe Beata se investe do poder das Ayabá, 6 quando
diz: “eu me julgo uma mãe do mundo porque sou de Iyemojá, Orisá que dos seios brota a água
suprema [...].” Logo após afirma, politicamente, sua identidade de negra brasileira e assume o
lendário poder das Candaces, ‘as rainhas mães’ do Reino de Kush7 enunciando:

Eu sou uma cidadã de fato, sou mulher negra de candomblé e não tenho a pretensão
de ser política. Faço política. Nesse momento estou fazendo política com a Senhora.
Eu sou Beatriz Moreira Costa, Mãe Beata, mulher negra como a Senhora. Hoje
tenho 83 anos e nasci no Recôncavo Baiano, às margens do rio Cachoeira do
Paraguaçu (op.cit... em 17/09/2014).

Mãe Beata, imbuída do poder que lhe confere sua identidade junto ao sagrado, não
apenas como instância espiritual, mas também política, se apropria do espaço, como território
cidadão e exige da pretensa presidente, respeito e compromisso com sua possível missão, visto
que parece não conhecer as raízes socioculturais de seu povo.
Então pergunto, como pode alguém comandar, com sucesso, um território no qual só
se identifica com uma parte? Como ser parte do corpo coletivo sem considerar as origens que
fazem de si mesma um ser individual ligado a esse corpo?
“A ideia de território coloca, de fato, a questão da identidade, por referir-se à
demarcação de um espaço na diferença com outros. [...] É o território que [...] traça limites,
especifica o lugar e cria características que irão dar corpo à ação do sujeito” (SODRÉ, 1988,
p.23). Nesse embate, observando o lugar de onde cada uma falava, se fôssemos todos videntes,
presumiríamos o que a história estaria a nos reservar, uma vez que, “a história opera sempre
com o que está dito, com o que é colocado ‘para e pela’ sociedade, em algum momento, em
algum lugar”(MONTENEGRO, 1994, p.19), e observaríamos que, mesmo depois de tanto
tempo, os ideais das mentes escravocratas ainda ecoam pais afora e não conseguem abrir mão
da lenda do ‘céu’, para continuar impondo aos que chamam de ‘o outro’, a responsabilidade
pela existência do ‘inferno’. Desconfio que, por isso, Mãe Beata, apesar da elegância na fala, foi

6 Yorubá – Rainha, termo designativo para divindades femininas.


7 Kush (cuxe), “Mais ou menos 700 anos a.C. existia na África (como) um grande Reino [...] e ficava a sudeste
do antigo Egito, onde hoje está a República do Sudão e da Etiópia”(LOPES, Nei, 2007, p.11) e que por
muito tempo foi comandado por mulheres, quando a capital sai de Napata para Méroe.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

tão incisiva.
Parodiando um ‘irmão estrangeiro’ direi que: o pior é que, verdadeiramente, eles
duvidam da existência de um e de outro – céu e inferno - pois, se assim não fosse, teriam seu
livro sagrado guardado a sete chaves. Como bons capitalistas: um território de verdadeiro
lucro, não se oferece a toda hora, nem a qualquer ‘macumbeiro’, como o fazem, ao dizerem
que eu estou precisando de salvação. É uma maneira de tomar, além das terras dos
colonizados, se apropriar, também, das consciências, objetivando fazê-las mais racionais,
dentro de uma verdade global imposta pela catequese.
Diante disso, determinados comportamentos em um país construído sob o modo de
produção escravista, maneiras e tratamentos ancorados nessa realidade continuarem se
reproduzindo, como foi o fato da fala da candidata Marina, ‘pano para as mangas’ para
jornalistas, adversários e historiadores construírem seus pontos de vistas e um leque de
perguntas que os ajudem a construir suas narrativas, uma vez que já possuem um arcabouço
construído pelos acontecimentos conservados pela memória.
“A reação ou a resultante do impacto da realidade sobre o indivíduo ou o grupo
constituirá a marca que o caracteriza. Dessa maneira, a memória tem como característica
fundante o processo reativo que a realidade provoca no sujeito”(MONTENEGRO, 1994,
p.19). Surgem agora duas alternativas para a memória: mudar ou conservar e, uma vez que ela
atua “como um elemento permanente do vivido”(op.cit. p.19), a memória dos subalternizados,
operando a partir de mais um impacto, entre tantos ao longo de séculos, evoca, do seu
imaginário, o que existe como referência de luta e enfrentamento, como fez Mãe Beata, dessa
feita reelaborando as ações, atendendo a um processo de mudança. Com isso, transformou a
si mesma, a visão de sua gente com sua reação, fazendo vir à tona o desejo de responder de
pronto e a coragem, submersos em seu peito e em sua coletividade.
Essa evocação da memória me conduz a outro tempo mais atrás, sendo dessa feita, a
memória da memória, ou seja, a escuta da narrativa de um velho, sobre as façanhas de sua
mãe, em conversas de terreiro. Fez com que eu lembrasse de Vovó Fortunata, como
protagonista em um dos fatos dos anos 1940 e, como Beata, também muito inquieta em
matéria de enfrentamento desses desaforos políticos.
O velho Paulo Preto contava que durante o Estado Novo, em Pernambuco,
Agamenon Magalhães, como um governador muito obediente ao Presidente Getúlio Vargas e
seu ‘fiel escudeiro’, decidiu fechar todos os terreiros de Candomblé, principalmente do Recife.
Lá no bairro do Pina, próximo à Campina do Bode, estava o terreiro de Dona Fortunata,
conhecida como a Baiana do Pina. Muito respeitada porque não dava mole quando se tratava

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de mexer com sua crença, ou testar a sua competência ‘mágica’.


O Governador mandou chamá-la ao Palácio do Campo das Princesas, para comunicar
que ela não poderia mais tocar candomblé, porque o Presidente não queria mais esses tipos de
coisas acontecendo por aqui. Ela só escutava balançando as pernas e olhando para ele:
- Minha Velha, se a Senhora quiser eu lhe mando pra África. Lá a Senhora poderá fazer
o que quiser – disse o Agamenon, depois de comunicar que ela deveria parar de ‘tocar bombo’
- E quem dixe que mim qué ir pra lá? De lá eu já vim – disse a velha.
O velho Paulo ao contar, afinava a voz e falava do jeitinho que a ‘veia’ – como ele se
referia a ela – falava.
- Então, aguente as consequências quando a polícia chegar por lá – disse ele.
A velha então levantou-se, ajeitou o asó 8, botou as mãos nos quartos e disse:
- China Gôdo, Vosmixê é muito ativido. Huuum!
O Governador ficou vermelho, feito um camarão, ao vê-la chamá-lo por um apelido
que os seus adversários puseram nele, devido a sua estatura, sua barriga e os olhos puxados.
- Mixê tem lêta e veia aqui – batendo no peito – tem sabedoria. Manda teus cachorro
me buscar, e se eles mincontá, manda cotá minha cabeça como fez cá de Lampião. Mas se
num mincontá, mim vai tocá até morrê, vice?
- Mas minha velha, eu estou cumprindo ordens.
- Vambora murica 9 – dá um muxoxo, pega o menino Paulo pela mão, olha pra
Agamenom e diz – mim vai ximbora.
Dá meia volta e o deixa só, olhando enquanto ela desce as escadas. Quando ela chega
ao pátio do palácio, ele de cima, no caramanchão, a chama:
- Minha velha... espere que eu vou mandar um jeep lhe levar pra casa.
Ela olha pra cima, bate nas cochas e diz:
- Mim tem duas perna. Num pixiza. Garda teu cumbustíviu pa condo tu pixizá de veia
aqui (aponta para o peito), e tu i lá na minha cajá. Vambora muriquinha, ah ah ah! – e sai
puxando o menino.
E saíram os dois caminhando. A distância, calculando hoje, era de uns cinco
quilômetros, uma vez que teriam que atravessar todo o Recife Antigo, a ponte do pina e
caminharem mais um pouco até chegarem em casa. A essa altura, ela beirava a idade de 113
anos. Era o ano de1944.
O tempo passou, a perseguição aos terreiros continuou, chga o ano de 1949, e o

8 Yorubá - Asó (axó): roupa, vestido.


9 Corruptela de mu-léeke (kikongo – menino, criança) ´LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da Diáspora
Africana, 2004, p.444.

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combustível serviu mesmo para ele: a profecia foi cumprida. Segundo o Velho Paulo, em
conversa no terreiro, pela enésima vez, aproximadamente, o Ex-Governador, dias depois de
levar uma ‘saraivada’ de tomates e ovos podres, no Bairro de Santo Amaro, Recife, durante um
comício, às 11 da noite dirigiu-se à casa da Velha Fortunata, no Pina. Pelo que nos foi
narrado, a cena foi hilária.
- Ô murica ...! Muriquinha! – Gritou a velha – Meu fio, vá vê quem tá batendo aí, a essa
hora... Deve sê um ‘tabiexí’, 10 pra batê parma em casa de conbombé e a essa hora. Vá vê!
O molequinho vai correndo até o portão e vê alguns homens de paletó e, entre eles,
um rosto meio conhecido. Antes que falasse, ouviu a pergunta:
- Ei menino, cadê sua mãe? – Falou um deles – Diga a ela que o ‘interventor’ está aqui
e quer falar com ela.
O menino volta ofegante e dá o recado: - mãe, ele disse que é o teventô e quer falar
com a Senhora. – Acentua ainda, que tem um carro preto parado e uns homens grandes.
- Teventô? ... - levanta a cabeça como se procurasse algo no ar e cai na risada – a ah ah
ah é o China Gôdo, muriquinha. Mim num dixe que ele vinha? Mande entá e ficá xentado lá
no xalão.
O salão era a sala do terreiro, onde se faziam as festas dos Orisá e se recebiam as
visitas. Depois de demorar um pouco ela saiu e perguntou o que ele queria. Ele ficou meio
sem jeito porque a criança estava presente e pediu para retirá-la. A velha se recusou:
- Tu num tá cum teus cacho.... , qué dizê, cum tuas odenança. Essa muriquinha aqui é a
minha odenança tamém. Se quijé fala cum mim, é cum ele aqui.
Ele ficou vermelho, olhou pra seus pares, respirou fundo e começou a falar, contando
o incidente do comício em Santo Amaro e disse, que, como ele soube que ela poderia fazer
alguma coisa por ele, a procurou e queria que ela ‘jogasse’ os búzios.
- Fajê arguma coija, como axim? - A velha perguntou.
- Quero que a Sra. me ajude a ganhar as eleições. Eu sou candidato a governador.
Foram, ela e ele lá para dentro. Ela ‘jogou’, olhou pra ele concluiu:
- Mixê tem condixão de ganha. De xentá de novo naquela cadêra. Mas vai saí de pé pa
fente... qué?
- Eu quero ser governador de Pernambuco, nem que seja por um dia. Mas quero
mostrar ao povo de Santo Amaro que eu sou AGAMENOM MAGALHÃES! – Disse o
candidato, com semblante entre felicidade e indignação.

10 Do Yorubá – tabi esín (o que escoiceia) – cavalo, mulo; tabiexí – expressão usada nos terreiros para chamar
alguém de jumento.

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- Tá bom. Si Vosmicê qué axim, vamo pa fente! Vamo povidenxiá o que fô de


nixixidade, cum fé in Deus e nos Orixá e levante a cabexa. Pronto!
E ganhou a eleição de 1950 sim. Contra João Cleofas. Mas como ela disse, só governou
um ano. Em agosto de 1951, ela morreu aos 120 anos; em 24 de agosto de 1952, subitamente,
ele morre também. A profecia, mais uma vez, estava cumprida: “saiu de pé pra frente,” como
saem de casa todos os defuntos.

Considerações Finais
Neste escrito, tentando fazer uma reflexão acerca da tomada de consciência do ser
humano dentro do mundo, descubro que o que fiz foi uma viagem muito pessoal dentro da
pergunta que sempre me faço sobre o estar ou não, neste planeta, em passeio. Sem esperar
pela resposta, eu entro sempre num bocado de conversas sobre o paradeiro das coisas que
passaram um dia e sobre a maneira de construir uma melhor recepção para as coisas e seres
que virão. Acabo esbarrando no mito, no sagrado, no que penso desses primos próximos e
irmãos distantes, pois um, presumo que seja filho da fertilidade da imaginação e o outro da
essência cósmica que criou o Universo, da própria imaginação universal, por isso se fez
representar por tantos Deuses e Deusas, inclusive colocando nos seres humanos,
sorrateiramente, o poder de sublocação das forças dessas entidades, mas com os contratos
todos em escritas simbólicas. Por isso, só a tenacidade e a disposição interessada é capaz de
fazer essas patotas felizardas, portadoras de mágicas e feitiçarias.
Mas não pensem que estou viajando na mostarda ou bancando o filósofo engraçado.
Minha vida foi sempre ficar junto aos mais velhos ouvindo anedotas, lendas, mitos e histórias
que eles viveram. Posso até dizer que minha vida foi viver de boca aberta engolindo memórias.
E o sagrado, pra mim, sempre foi tão profano que passei a não acreditar em pecado e sempre
que posso, dou uma cochilada no altar para sonhar que sou sacerdote: morto de inveja de Mãe
Beata e de Dona Fortunata. Por que? Ora porque...
Como vimos, nas duas narrativas, o ‘sagrado’ é incorporado pelas duas sacerdotisas,
que, como se estivessem imantadas por ele, como instrumento de poder, disputam junto às
autoridades constituídas o espaço, tanto de conservação da memória individual e coletiva
como de manutenção das suas autoridades, como portadoras das chaves dos espaços que se
interpenetram – o visível e o invisível - sem perderem a identificação com a função sagrada de
dirigentes, a elas confiada.
Os discursos dão a impressão de que estão solicitando que cada um ocupe seu lugar e
exerça seu papel da melhor maneira que puderem, como fazem as duas, sem apelarem para a
invasão de domínios. Não demonstram nenhuma atitude de vingança, mas exigem que

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respeitem as ancestralidades, quando evocam as divindades, lançam augúrios e sorrateiramente


escrevem as histórias de suas passagens, sem demonstração de medo ou vontade de recuar.

Referências

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FOURSHEY, Catherine Cymone. África Bantu: de 3500 a.C. até o presente. Petrópolis:
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MONTENEGRO, Antônio Torres. História Oral e Memória: a cultura popular revisitada,
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Janeiro: Pallas, 2011.
SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a Cidade: A forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes,
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http://www.geledes.org.br /...carta de mãe Beata de Yemonjá /17/09/2014; consulta em: 18
jul.2021.

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DO COLONIAL À PÓS-COLÔNIA EM ÁFRICA: CRÔNICA DE UMA


JUVENTUDE DE LUTAS
Dr. Pingréwaoga Béma Abdoul Hadi Savadogo
Socioantropólogo / Casa das Áfricas - Amanar
Pesquisador Associado I - Instituto de Estudos
da África IEAf-UFPE
E-mail: [email protected]

Logo após a colonização, a necessidade de assegurar a perenidade da dominação


francesa sobre as colônias levou a França a pensar na formação dos colonizados. Assim, no
dia 7 de março de 1817, em São Luís do Senegal, foi inaugurada a primeira escola na qual se
propôs a trabalhar com base no método Bell e Lancaster 11
a fim de promover o ensino
mútuo. Em 1841, diante da crise do ensino, os notáveis de São Luís e o Governador
acabaram por entregá-lo nas mãos dos religiosos. Solicitados para dar um ensino profano, os
religiosos instalam o processo de ensino baseado no Cristianismo. Enfim, surge o conflito,
visto que a região é majoritariamente muçulmana (SALL, 1996).
Cabe ressaltar que a administração colonial tinha uma atitude ambivalente quanto ao
Islã (SALL, 1996). A prática de ensino com presença de um mestre e disciplina de estudo
encontra-se já presente nos contextos muçulmanos, sendo assim percebidos pela
administração colonial como capaz de favorecer as atitudes e a aceitação da constituição de
escolas coloniais. Entretanto, ela pode favorecer a organização de resistências ao
colonialismo francês. Compreendem-se, assim, os motivos da adoção por parte da
administração colonial de uma política estrategicamente pró-islâmica, mas ambígua por ser
capaz de reprimir os muçulmanos, quando entenderem que seus atos sinalizam situações de
ameaça.
Em reação ao conflito religioso entre a base cristã e islâmica que se torna mais e mais
importante, o então Governador Louis Faidherbe cria, em 1856, a chamada ‘Escola dos
Reféns’ (l’École des Otages), cujo objetivo central era contribuir para consolidar o colonialismo
através da dominação cultural, assimilando os colonizados. Em 1871, ela foi fechada para ser
reaberta em 1894 designada, então, como ‘Escola dos Filhos de Chefes’ (l’École des Fils de
Chefs), voltada naquele momento para a formação de uma elite colonial local com base nas
antigas elites locais (SALL, 1996; SOW, 2004).

11 Também conhecido como Ensino Mútuo ou Monitorial, teve como objetivo ensinar um maior número de
alunos, usando pouco recurso, em pouco tempo e com qualidade. Ele surge na Inglaterra do final do século
XVIII, tendo sido desenvolvido por Quaker Joseph Lancaster (1778–1838) influenciado pelo trabalho do
pastor anglicano Andrew Bell.

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As necessidades da administração dos territórios conquistados pela França forçam as


autoridades a estabelecer um sistema escolar. O Senegal, que tinha Dakar como residência do
Governador Geral e era a capital da África Ocidental Francesa (AOF), assumiu uma posição
central em relação às outras possessões do oeste africano. O sistema escolar foi fundado para
formar quadros subalternos para a administração (comissões e intérpretes) a partir do
Senegal, favorecendo a criação de infraestruturas como o estabelecimento progressivo de
empresas e o fortalecimento do comércio. Formavam-se, assim, as condições para que
emergisse uma elite local vinculada ao modo de vida, formas de pensamento e, sobretudo,
aos interesses franceses.
A evolução do sistema escolar permitiu a uma minoria africana seguir os estudos nas
universidades e faculdades de renome da África do Norte e da Europa (principalmente da
França no caso do Burquina Faso). O encontro com estudantes de outras regiões
colonizadas do mundo (entre outros fatores históricos como as Guerras da Europa) iria
favorecer o surgimento de um lado, dos movimentos de independência e de solidariedade
entre os estudantes do país e de outro, do perfil intelectual e filosófico das suas lideranças.
Assim, a participação ativa dos africanos nas duas guerras mundiais pela liberdade, de quem
os priva deste mesmo direito, nutriu contestações, seguidas de reivindicações. O papel da
juventude nesses movimentos de luta pela independência teve grande alcance e repercussões
duradouras. (SOW, 1993). Podemos considerar que este é o contexto da emergência do
próprio conceito de juventude em África.
Pela predisposição e o compromisso para ações inovadoras, nota-se que a juventude
africana passa pela construção de uma identidade sedenta de autoafirmação e de afirmação
política. Diante das inúmeras críticas em relação à ordem social em vigor, suas ações, no
contexto socioeconômico, político e histórico, mantêm-se determinantes nos principais
processos de mudança social. Das lutas anticoloniais, retém-se a imagem da juventude
estudantil engajada nos combates políticos em nome da recusa da servidão. E, por isso, a luta
revolucionária contra o imperialismo e seus agentes permitiriam a reivindicação de um
melhor estatuto político e cultural (MBEMBE, 1985; MONGA, 2010; IROBI, 2012).
Após os anos 1930, formaram-se grupos de estudos comunistas secretos, dando
origem a um espaço de formação política de base (BÂ, 1975 apud SOW 1993). Nesse
contexto histórico, os movimentos de estudantes uniram-se para denunciar as políticas
coloniais que negaram e desprezaram as diferenças culturais africanas, e saquearam suas
riquezas. O jornal estudantil ‘Dakar-Étudiant’, órgão da União Geral dos Estudantes da
África Ocidental (UGEAO), assim como o jornal ‘L’étudiant d’Afrique noire’ da Federação dos

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

estudantes da África Negra na França (FEANF), ganharam destaque nos anos a partir de
1954. Tornaram-se poderosos suportes de mobilização política e instrumento de difusão da
luta dos povos africanos e, também, de experiências para outros movimentos revolucionários
contemporâneos. Essa dinâmica foi consolidada pela emergência consciência patriótica que
soube ultrapassar os antagonismos e as outras dificuldades consecutivas à luta (SOW 1993).
No primeiro momento, essas ações impulsionaram o reflorescimento cultural,
seguida pela revalorização dessa mesma cultura, enfatizando as resistências à penetração
colonial e a história das culturas africanas. É nesse contexto que jovens pesquisadores, como
Cheikh Anta Diop, 12 ganham destaque (SOW, 1993). Do encontro dos estudantes africanos
e os da diáspora (sem esquecer outros movimentos) no Ocidente, nasce o movimento da
negritude em 1932-1934 (SENGHOR, 1967), encabeçado por Aimé Césaire, das Antilhas;
por Léopold Sédar Senghor, do Senegal, e Léon-Gontran Damas, da Guiana.
O movimento da negritude e o do pan-africanismo surge por volta de 1900
(OUÉDRAOGO, 2009), com os africanos Kwamé Nkrumah, do Gana; Haîlé Sélassié, da
Etiópia, e Gamal Abdoul Nasser, do Egito: todos eles líderes fundamentais das lutas
anticoloniais. Nessa conjuntura de luta pela independência, os intelectuais e homens políticos
de destaque em Burkina Faso (conhecida antigamente por Alto-Volta), entre outros, foram:
Nazi Boni, Daniel Ouezzin Coulibaly, Philippe Zinda Kaboré e Maurice Yaméogo.
A África independente e pós-independente tem investido em programas de
treinamento no sentido de infundir o desenvolvimento econômico e social, lutando, ainda
que com muitas ambiguidades e conflitos renovados, para por fim à dependência cultural e
intelectual herdada da colonização. Assim, as universidades e outras instituições de formação
tornam-se referências de estímulo do desenvolvimento esperado pela juventude do processo
de descolonização.
Por conseguinte, no centro de uma nova concepção da sociedade e de
desenvolvimento, surge uma juventude estudantil marcada pela ambiguidade de seu estatuto.
Com efeito, seu lugar no sistema socioeconômico e político iria permanecer problemático.
Desfavorecidos, visto que a maior parte pertence a sociedades adotava formas diferentes da
Europa de compreender, tanto a vida econômica como as trocas sociais, levando os
estudantes a representarem os antagonismos sociais (MBEMBE, 1985) de maneira às vezes
dramática. Desenvolvem-se, assim, de um lado, um sentimento de grande desconfiança das
elites dirigentes em relação à juventude e, de outro lado, as críticas por parte daqueles que

12 Historiador e antropólogo senegalês que estudou as origens da raça humana e das culturas
africanas(http://www.cheikhantadiop.net/)

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

haviam também lutado juntos pelas independências, guardando, ao mesmo tempo, o sabor
amargo de sua decepção e sentimento de traição.
No entanto, deve-se salientar que, apesar das difíceis condições de inserção
socioprofissionais ao concluir os estudos, a possibilidade de ascensão social através do
diploma e o prestígio relativo permaneceria marcando a visão sobre o estudante na sociedade
burkinabê. Isso reflete o fato de que:

O estudante é considerado aquele destinado a assumir as funções administrativas


e políticas. Aquelas funções lhe abrem portas da maestria da autoridade e do
poder, assim como as de acumulação de riquezas e de privilégios. Já que a
conclusão da escola e da universidade está relacionada ao alcance da fortuna.
(MBEMBE, 1985, p.51).

Se é possível afirmar que a juventude, principalmente estudantil, contribuiu


significativamente para as lutas anticolonialistas, é preciso dizer também que ela alinhou-se,
muitas vezes, aos colonizadores do passado, no exercício da subalternização da população
(MONGÁ, 2010; IROBI, 2012). Com efeito, ao estudar nas universidades ocidentais, a nova
elite dirigente africana, substituindo ‘seus mestres’ depois da independência, acabou por
reproduzir os esquemas anteriores de dominação.
Os trabalhos de Trung (1992) sobre o Senegal, um dos polos de excelência do ensino
na África Ocidental, mostram bem a que ponto o sistema escolar e universitário está em crise
na sub-região. Essa crise, cujas origens remontam à fase seguinte à independência, alcança o
estado crítico por volta dos anos 1980-1990. Diante de um sistema sem esperança, as
numerosas greves traduzem o difícil diálogo entre os jovens, de um lado, e as autoridade
públicas e escolares, do outro, sendo que estes últimos fazem pouco caso das reivindicações
dos estudantes.
Com efeito, embora útil ao poder devido às necessidades deste último ou à realidade
do momento, a juventude está esvaziada de importância social e econômica desde meados
dos anos 1980. Em testemunho à negligência dos poderes, que por sua vez julgam as
contestações e outras reivindicações escolares e estudantis como infantis, os jovens perderam
sua voz. Assim, sem respeitar os compromissos assumidos nas negociações, vê-se
imediatamente, nesses movimentos, um caráter político visando desestabilizar o poder dos
Estados africanos, como ressalta Mbembe (1985), e sem hesitar por usar a violência policial
como meio de repressão.
A juventude foi alvo continuado e intenso de ações e de políticas da África após a
descolonização e as independências. Tais políticas assumem, muitas vezes, um caráter
‘intervencionista’, segundo a expressão de Mbembe (1895). Trata-se, sobretudo, de manter o
controle sobre essa camada da sociedade para os novos Estados incapazes de encarar as
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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

questões sociais de maneira consistente e aprofundada, construindo, por isso, abordagens


que flagram uma preocupação permanente com a ameaça dos regimes no poder. Entretanto,
há situações em que os Estados também elaboraram o que chamam de políticas de
participação no desenvolvimento, pelas quais circunscreveram as ações da juventude, de
acordo com os objetivos definidos previamente (MBEMBE, 1985). Acreditamos como o
autor que a motivação fundamental dos Estados tem sido calcada em uma escolha
econômica, um tipo de desenvolvimento e uma proposta de produção social que assegure a
hegemonia constituída e os compromissos com as agências internacionais.
Ao se elaborar políticas de emprego dirigidas aos jovens, privilegia-se o menor risco
ou o menor perigo para o regime e para o grupo no poder. Regulamentada pela Lei 18 AL,
de 15 de agosto de 1959, a juventude burkinabê, através de diferentes associações, passou a
ser mobilizada para fins políticos. De 1982 a 1991, o objetivo final das políticas da juventude
foi a mobilização e a organização para servir à revolução pelas formações militar e
ideológica.
Em muitas sociedades africanas, como a burkinabê, a formação da pessoa pauta-se
no estabelecimento de espaços e lugares sociais bem definidos, que se produzem ligados ao
estatuto social (que seguem idade, geração, gênero, tipos de socialização – típica ou atípica 13 -
papel na divisão social do conhecimento e do trabalho) e a posição da pessoa na família e da
família na organização histórica e social de cada sociedade que hoje compõe o país Burquina
Faso. Assim, a noção do ‘bom jovem’ é percebida no senso comum como caracterizado pelo
respeito, pela obediência e pela disciplina.
Embora importante mudança social tenha sido provocada pela colonização e que os
valores culturais europeus tenham ampliado a já grande complexidade nas formas de
ordenação social, ainda nos dias atuais a consciência coletiva permanece guiada por valores
locais que seguem ordenando as relações entre as gerações. 14 Os primogênitos e os mais
idosos se investem de autoridade para assumir as tarefas políticas, religiosas e quotidianas.
De 1980 a 2000, a África ocidental foi marcada pela crise econômica e política.
Diante da crise, os diferentes governos multiplicaram as medidas de liberalismo econômico,
apesar do surgimento de movimentos de contestação e ruptura política: revolução
democrática e popular de Thomas Sankara em Burkina Faso, queda de Moussa Traoré no
Mali, motins urbanos contra a renovação do mandato do presidente Abdou Diouf no

13 As típicas são as que passam todos os membros de uma sociedade dada e a atípica é relativa a saberes
específicos como a formação dos caçadores, ferreiros, mestres da palavra e, também, religiosos.
14 Toda pessoa precisa conhecer e por em ação os códigos geracionais próprios a seus espaços que são bem
diferenciados daqueles dos adultos e dos idosos. Sobre o conceito de juventude, ver Bonneval (2011).

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Sénégal, contestações regionais de estudantes de diferentes países (LEBLANC; GOMEZ-


PEREZ, 2007).
No bojo da crise econômica desenhou-se, igualmente, a crise de autoridade política
seguida da exclusão, tanto política como da economia. Surgem nessa conjuntura, espaços
múltiplos e paralelos ao do Estado com a finalidade de reivindicar, denunciar o fechamento
político para negociar ou reafirmar suas identidades sociais, culturais e religiosas além das
suas dinâmicas de trocas e economia. São tais realidades que circunscrevem o conceito de
’espaço público’. Nesse âmbito, instalam-se dissonâncias e disputas além de fazer emergir o
clientelismo existente entre a política e o religioso conforme discutido nos textos de Saint-
Lary (2011) e Saint-Lary e Samson (2011).
Os autores citados enfatizam a apropriação da política pelo religioso e sua ocupação
cada vez mais marcada do espaço público, afirmando sua participação nas políticas públicas,
nas questões sociais, assim como no dinamismo do âmbito de desenvolvimento. Define
como espaço público, nomeado ‘espaço público religioso’, através de duas características: de
um espaço de difusão de valores morais e de um espaço a partir do qual o religioso mantém
relações singulares com o poder público, que se dão de formas diferentes (colaboração,
distanciamento, clientelismo, substituição).

Referências

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politique et contestation au Burquina Faso. 2011. 493 f. [Tese de Doutorado em Ciência
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IROBI, E. O que eles trouxeram consigo: carnaval e persistência da performance estética


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SAINT-LARY, M. Le Coran en cours du soir. La formation comme outil de
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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

SAINT-LARY, M. ; SAMSON, F. Pour une anthropologie des modes de réislamisation.


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25
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

LINGUAGENS DAS MARGENS (DES)ARQUIVADAS): NÓS NÃO VAMOS


ESQUECER! 15

Maria Anória de Jesus Oliveira 16


Barbara Maria de Jesus Oliveira 17

Intróito 18
A batalha pela África pode ter acabado, mas a luta
pela história, a arte, a literatura e os filhos deste
continente cresce em intensidade (J. Nozipo Maraire,
Zimbabue).

Esse branco foi-se embora sem me chatear [...].


Quando ele me dizia ‘filha da puta’ [...] Rachava-o
mesmo! [...] lutávamos [...] (Dona Filismina).

O III Encontro da Associação Internacional de Estudos Culturais e Literários


Africanos (AFROLIC), com o tema ‘Literatura, Desigualdade, Ensino’, amplia debates na
área em questão, ao sociabilizar conhecimentos marginalizados em nossa sociedade.
Referimo-nos ao complexo campo da história e cultura africana, em específico, sem
preterir legados socioculturais da negra diáspora. Nessa direção, estudiosos/as de distintas
áreas do saber têm contribuído para destacar a relevância de perspectivas antirracistas (Lei
Federal 10.639/03 e LDBEN 9.394/96). É o que propomos aqui, na breve explanação,
mediante a pesquisa bibliográfica e referenciais teóricos do campo das Ciências Humanas,
Sociais e áreas afins.
O filósofo Renato Nogueira, 19 por exemplo, ao prefaciar o livro ‘Intelectuais das
Áfricas’, evidencia a relevância de ‘perspectivas’ que possibilitam ‘a visibilidade de
abordagens africanas’. Por sua vez, Chimamanda N. Adichie (2019) critica a imposição do
viés europeu nas histórias que marcaram sua infância, na Nigéria e apontou o impacto de tais
histórias ainda na tenra idade. Teceu, portanto, o ‘perigo de uma história única’. 20 Em

15 Nós não vamos esquecer" foi extraído da "Revista no 2/3, ano 1 (1983), editada pelo Centro de Estudos
Eduardo Mondlane, o Boletim Informativo da Oficina de Historia", conforme situaremos mais adiante.
16 Profa. Titular, docente do quadro permanente do mestrado e do doutorado da UNEB/Pós-Crítica. Líder do

Grupo de Pesquisa Iraci Gama: Identidades, Letramentos e Formação docente para as relações étnico-raciais.
E-mail: [email protected]
17 Mestra em Crítica Cultural (Pós-Graduação em Crítica Cultural/ Pós-Crítica-UNEB), membro do grupo de

Pesquisa Iraci Gama (Pós-Crítica/UNEB). E-mail: [email protected]


18 As autoras deste texto dedicam cada página desta produção à inesquecível pesquisadora e amiga em comum,

a prof Dra Rosilda Alves Bezerra (UEPB), à sua sobrinha, a doce Gabi (Gabriela) e todas as pessoas que
tiveram os fios da vida ceifados precocemente por uma política genocida diante da Pandemia (Covid-19),
NÓS NÃO VAMOS ESQUECER! As mais de 620 mil vítimas dessa Pandemia! A nós que seguimos a
caminhada árdua, cabe os desafias de seguir em frente mesmo quando a “vida diz não”, como poetizado na
voz da cantora baiana Maria Bethânia. Que, apesar do vazio que invade nos dias fugidios, reaprendamos a
sonhar. Por quem se foi, por quem ainda irá partir no porvir, Kabiessilê!
19 Organizado por Silvio de Almeida Carvalho Filho e Washington Santos Nascimento (2018).

20 Esse perigo é também muito problematizado em um estudo sobre a representação do negro na Bíbilia em
Negritude & fé: o resgate da auto-estima, de Edilson Marques da Silva (1998)

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estudos precedentes, também nos detivemos sobre tal problema e seguimos, inclusive, nos
dias atuais, investindo na constituição de arquivos (levantamento de acervos) que não
favoreçam a idealização, mas a ressignificação das literaturas e das culturas
negras/afrobrasileiras e africanas.
Em estudos recentes, Ailton Pereira (2020), ao questionar o ‘Livro didático de
História, de qual África ele fala?’, tomou como objeto de análise um dos exemplares do 9º
ano. No processo de seleção se deparou com uma África estereotipada, inferiorizada, na
ilustração e no plano do discurso verbal nas páginas dos livros.
Instigado com a pergunta, Ailton Pereira seguiu a busca e, por fim, identificou em
uma das coleções de História (Ensino Fundamental), alguns poucos capítulos contendo
lideranças negras africanas, seus feitos, fatos ocorridos e as lutas empreendidas, além de
imagens fotográficas, trechos de obras literárias delineadas em poucas páginas de um extenso
livro. Quer dizer, questionar a África nos suportes didáticos, teóricos, literários, dentre
outros é muito importante, ainda, mas para conseguir identificar, analisar e tecer uma visão
crítica do que encontramos continua a ser desafiante, haja vista o predomínio do ‘racismo
epistêmico’ (SOUZA & LIMA, 2019).
Considerando o exposto até então, justificamos um dos porquês de termos resolvido
adentrar essa seara: a carência de estudos persiste. Mas estudar com base em quem? Sem
desconsiderar as pesquisas empreendidas por nós, filhos e filhas das terras ancestrais,
obviamente, às quais recorremos como fontes de reflexões, também partimos da
contribuição crítica de Carlos Morre (2007, p. 133; 140) em ‘A África que incomoda’,
sobretudo, por endossar suas ideias quando ele se refere à importância das abordagens dos
próprios africanos para o “ensino da história dos povos e das civilizações da África”
(MOORE, 2007, p. 137).
Entendendo se tratar de um aprendizado desafiante para ambas as populações (no
caso da africana e brasileira), o crivo fundamental para re/ler África na diáspora implica
saber identificar se a produção (teórica, histórica, literária, artística e outras) endossa ou
rasura visões racistas, eurocêntricas, depreciativas, em se tratando dos legados africanos
re/editados nas terras de lá e lado de cá, na diáspora (HALL, 2003). Nessa empreitada
seguimos, há certo tempo, e estamos sempre aprendendo nas travessias. Para o presente
diálogo, no entanto, delimitamos uma das produções editadas lado de lá, Moçambique, vale
destacar como referência o ‘Boletim Informativo da Oficina de História’, 21 uma Revista

21 Sobre uma das cenas descritas na referida Revista e, em específico, a fotografia e o caso do jovem pastor
identificamos o artigo de Márcia Bandeira de Brito (2016).

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

moçambicana, editada pelo Centro de Estudos Eduardo Mondlane, datada de 1983, no


período pós-independência, sob o julgo do colonizador em algumas províncias. Diante desse
corpus, surge outro questionamento: a qual abordagem recorrer para pautar as reflexões, se
nos interessa o conteúdo, a imagem que emerge acerca do espaço social africano e das
pessoas nele delineado?
Optamos por uma das variantes do campo literário, a crítica cultural, levando-se em
conta uma interface com outras áreas do saber, a exemplo da Filosofia, para desvelar a noção
de discurso, arquivo, necropolítica, a Linguística Aplicada, a situar a acepção de linguagem,
letramento, dentre as demais áreas, Ciências Humanas e Sociais, para problematizar o
racismo e o impacto na produção do conhecimento.
A escolha da citada revista tem a ver com a possibilidade de re/visitarmos a África na
negra diáspora, quando descortinamos arquivos escritos, ilustrados, imaginados, estudados.
Mas, por que aquela Revista? Porque, dentre as demais histórias, nos detivemos sobre uma
senhora, dona Felismina e um jovem pastor com seus olhos opacos a nos instigar, fazendo
emergir enlaces antigos e seus perigos? Por que a revista e não outras produções literárias
africanas? Talvez pelo desafio de reler outras Áfricas desconhecidas do lado de cá. Talvez
pela empatia por dona Felismina e o jovem pastor e para expressar a sensação diante das
páginas envelhecidas de uma revista antiga, repleta de pontinhos pretos, a se fazer ecoar do
lado de cá, a Bahia, a ‘mini África’, para onde milhares de filhos e filhas das terras ancestrais
resistiram ao tumbeiro e se fizeram reexistir. Deles e delas descenderam. Tratam-se,
portanto, de linguagens das margens a serem (des)arquivadas.

Linguagens das margens, o crivo da crítica cultural


Sendo o objeto de reflexão do campo da literatura, podemos estudá-lo sob o crivo da
linguagem dentro das suas abordagens e perspectivas distintas. Algumas delas foram
estudadas por Terry Eagleton (1983) e, mais recentemente, por Antonie Compagnon (2001)
para citar, por hora, duas grandes referências da área.
No campo de disputa das perspectivas teóricas, históricas e, enfim, epistemológicas,
para além das antigas querelas da ‘arte pela arte’, enclausurada em sua especificidade
(intrínseca), certas vertentes foram colocadas em xeque, conforme apontam esses dois
últimos estudiosos, por exemplo. Um deles, Osmar Moreira Santos (2019), em linhas gerais,
problematiza certas dicotomias na área. Apresenta, para tanto, a arqueologia dos signos
‘linguísticos e literários’ e destaca a emergência de seus crivos epistemológicos.
Ao se deter sobre o resultado de estudos em andamento sobre ‘língua, literatura e

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crítica cultural’, partindo de alguns programas de pós-graduação e do Pós-Crítica, 22 assim


como de fontes teóricas nas áreas em questão, Osmar Moreira Santos (2019) se detém sobre
três tópicos centrais, a saber: a) crítica literária; b) estudos culturais, e; c) crítica cultural.
(SANTOS, 2919, p. 1-3) Esta última é a que nos interessa enfocar.
A crítica cultural, segundo Santos, corresponde a uma zona de fronteiras
epistemológicas entre o campo linguisticoliterário e prima por uma abordagem
‘multidisciplinar’, fazendo emergir as linguagens das margens como ‘ato político e de
emergência do sujeito da história’, sua “experiência concreta em suas lutas por mais
democracia e cidadania cultural” (MOREIRA, 2019, p. 12-19).
Situada como ‘zona fronteiriça’ a crítica cultural, do ponto de vista de Santos (op. cit.)
possibilita: a articulação entre a língua e a literatura ‘na interface com outros signos’ e a
articulação entre a crítica literária e os estudos culturais. Viabiliza, desse modo, a ‘arqueologia
do signo e sua reverberação pelas ciências humanas” (SANTOS, 2919, p.2-3), sem incorrer
nas antigas querelas da ‘rivalidade’ com as demais áreas do conhecimento.
Se pensarmos na linha propositiva e multidisciplinar, conforme o referido
pesquisador, superaremos certas limitações dicotômicas na área de Letras, tendo-se não só a
literatura, mas também, a linguística (em articulação com a literatura) a re/configurarem as
linguagens das margens como “aparato científico menor e lateral capaz de fazer falar o
silenciado” (SANTOS, 2919, p. 1). Da Linguística Aplicada, por exemplo, nos interessa a
noção de ‘letramentos’ como “práticas socioculturais mediadas pelas linguagens verbais
(escritas e oralidades) e extraverbais (sons, cores, imagens visuais, performances, cenas, etc)”
(SOUZA & LIMA, 2019, p.28).
O crivo cultural, para nós, abrange as linguagens das margens e seus sujeitos: a
Revista, a cena enredada, a quem ela se reporta, a informação contida e, enfim, a
‘materialização discursiva’ e outras. São linguagens de distintas regiões que fazem emergir
modalidades e materializações discursivas distintas. 23 Desafiam-nos à imersão, à reflexão, a
recorrer a “crivos interpretativos” no combate às “formas de colonização epistemológicas”
(SANTOS, 2919, p. 1-4) e, sob nosso ponto de vista, ao “racismo epistémico.” 24
Contra o racismo, 25 Cuti (2010) sugere um ‘antídoto’, a literatura. Reiteramos sua
proposição. Incluiríamos, no entanto, outras linguagens e respectivos letramentos. Nessa

22 Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural/UNEB.


23 A noção de ‘linguagem’, aqui, está ancorada na perspectiva de Fiorin (1988, p. 6), que a concebe enquanto
‘instituição social’, funcionando como “[...] o veículo de ideologias, o instrumento de mediação entre os
homens e a natureza, os homens e os outros homens."
24 Como problematizado por Ana Lucia da Silva e Souza (2011)
25 Carlos Moore (2008), em Racismo & sociedade apresenta amplo e profundo estudo sobre o racismo, para
ele histórico e estrutural, em diversos e distintos contextos sociais.

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direção, seguimos. Antes, um questionamento se insurge: qual África a cena suscita?


Podemos, ainda, nos perguntar: qual a importância dessa África para nós que nos situamos
na negra diáspora? 26 Vejamos a seguir.

Dona Felismina, Oito: nós não vamos esquecer!


Ao tecer os fios da memória diante do primeiro contato com uma das pessoas que
fez parte da sua pesquisa, Reinaldo Marques (2016, p. 133-144) evidencia, com base em
Foucault, a “impossibilidade de descrever nosso próprio arquivo [...] em sua totalidade.” Em
diálogo com Derrida (2001), afirma que o “arquivo pressupõe impressão e exterioridade
[...].” Em acordo, complementamos: a ação de arquivar (selecionar, re/organizar) implica
empatia, conjecturas, constatação, contestação, fissuras e fiações imaginárias a engendrar
releituras.
Da cena vivida, ‘a impressão, a exterioridade’ (MARQUES, 2016, p.133), a descrição,
supressões, a viagem: uma banca de revistas, vários livros, o impacto: novembro de 2012,
Maputo. Lá estávamos folheando alguns livros expostos à venda no saguão da Universidade
Eduardo Mondlane. 27 Entre tantos, os olhos se fixaram em uma revista devido ao impacto
da imagem: a foto de um jovem negro com uma cicatriz na testa, uma das marcas da
violência sofrida na era colonial em Moçambique. A qual África essa revista nos leva,
questionamos?
Acima da foto havia uma frase em caixa alta realçada com a cor vermelha instigando
à leitura. O que se passava, afinal? Nesse intercurso, como se adentrando as antigas tragédias
clássicas, outra instigação interna: Decifra-me, ou devoro-te, 28 ‘pensamos’, ao ler a frase
descrita no Boletim Informativo da Oficina de História (1983): ‘NÓS NÃO VAMOS
ESQUECER!’ 29
A esfinge: esquecer o quê, de fato? A qual das cenas se referia aquela imagem, se não
se vivenciava mais no período escravocrata do século XIX? Quais chagas suscitavam aquela
foto exposta? O jovem, de olhar opaco, cabelos carapinhas, curtos, lábios carnudos, expressa
tensão, dissabores. Nossos olhos se cruzam. Em sua testa, um sinal: ferro em brasa quente
sob a testa, como se marcavam os cavalos!
Impactadas, tempo depois, retornamos ao país de origem e às demandas. As revistas,

26 Diáspora, aqui, abrange o viés dos Estudos Culturais (HALL, 2003).


27 Esse relato é de uma das autoras, a vivência.
28 Ver a tragédia grega de Sófocles, a trilogia: ‘Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona’. Trata-se do enigma que
se popularizou, de certa forma, na atualidade, de uma cena que consta da referida tragédia em um momento
que Édipo é desafiado pela esfinge, em uma das suas visões imaginárias e, no entanto, repleta de sugestões
reflexivas, por exemplo: decifrar, vencer os próprios monstros imaginários, dominar-se, ou não, etc.
29 Revista no 2/3, ano 1 (1983), editada pelo Centro de Estudos Eduardo Mondlane, o Boletim Informativo da
Oficina de Historia

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pois compramos dois exemplares, permaneceram guardadas, arquivadas, mas os olhos do


pastor estampados na capa, não esquecemos! Páginas folheadas posteriormente. Nelas, as
linguagens das margens ecoam, incomodam, instigam; chamam a atenção: o espaço social, as
pessoas fotografadas, todas negras, a impressão suscitada na memória. Mesmo assim,
preterimos, guardamos (arquivamos). Ruminações outras na posterioridade a fazê-las
emergir.
Quanto ao fato descrito, a fotografia se referia a um acontecimento ocorrido em
1969, período colonial e aos sucessivos conflitos entre a população africana e os
colonizadores. 30 Conta-se (no verso da capa da revista) que o jovem pastor foi marcado por
um criador de gado, seu ‘patrão’, como punição para uma falha cometida. Houve denuncia
de ‘alguns advogados progressistas’; na ocasião, o tal senhor foi ‘julgado e sentenciado a uma
pena de prisão’, 31 mas ele apelou com a alegação de que havia perdido a razão, livrando-se da
penalidade pela brutalidade cometida. Esse fato, se associado às reflexões de Foucault deixa
entrever que,
[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certos procedimentos que tem por
função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,
esquivar sua [...] materialidade. 32

O ‘acontecimento’, a violência que incidiu sobre o jovem evidencia a conjuração de


‘poderes’ dos grupos hegemônicos, ao privilegiar e não julgar o colonizador. Ao dispor, as
instituições e, no caso arrolado, o judiciário. Eis um pequeno exemplo do que é notório
naquela arena do saber: ‘discurso e poder estão juntos, casadinhos’. 33 E, como assevera
Foucault (2006, p.12): “Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de
verdade, isso é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros [...].”
A foto do jovem pastor nos remeteu ao pensamento foucaultiano:
‘poder/disciplina/controle/imposição/instituição (FOUCAULT, 2006). 34 Ou seja, a imagem
fotografada materializava uma ação recorrente no período colonial, a opressão, a brutalidade
e, também, a resistência negra, visto que o jovem se insurgiu, posicionou-se contrário ao

30 Sobre tal contexto, Eduardo Mondlane (1975) apresenta ampla reflexão. Mais adiante, a ele nos referiremos
com certa brevidade.
31 Conforme consta da contracapa da aludida Revista.
32 Partindo dos procedimentos que visam à hegemonia da ordem do discurso, Foucault discorre sobre tais
procedimentos (exterior e interior; de exclusão e de ordenação), detendo-se sobre alguns grupos sociais, suas
limitações e validações, com vistas à legitimar seus valores e os perpetuar; daí falar-se em ‘vontade de
verdade’. Logo, associa os discursos ao um ‘jogo de escritura’, de ‘leitura’, e ‘de troca’, pois resulta da relação
de poder, de uma ação de violência face às coisas, “inscrevendo-se na ordem do significante” (FOUCAULT,
2006, p. 17;49; 53)
33 Correlação feita pelo prof. Reinaldo Marques na UNEB, por ocasião de um curso resultante da parceria
entre os programas de Pós Graduação Pós-Lit/UFMG e Pós-Crítica/UNEB (2014).
34 Vejam-se tais noções em Foucault (2006)

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

poder, instituído a denunciar seu patrão, correndo o risco de receber outras punições e,
inclusive, de perder a vida. Temos, desse modo, a imagem do ‘poder soberano’, o poder
‘disciplinar’, e seus métodos de repressão 35 sob o prisma do patrão.
A marca na testa, simbologia/linguagem das atrocidades a serem interpretadas,
associadas aos ‘letramentos’ da reexistência negra a reverberar e ecoar lado de cá, a diáspora.
Temos, sob esse prisma, ‘ferro em brasa’, do campo linguístico, o eco de outras vozes das
margens: ‘Nós não vamos esquecer’.
Virando a página da mesma Revista, como se procurando novos capítulos da história,
nos deparamos com uma entrevista, na qual se delineiam as faces de uma senhora negra,
com olhar altivo, cabelos crespos de carapinha, embranquecidos pelo passar do tempo.
Também os insultos do patrão, branco, colonizador.
Sua história é relatada, o papel das mulheres, as ameaças, agressões, as horas de
trabalho, exaustão, as condições precárias, as tensões, superações e tantas outras. Em um,
entre tantos enfrentamentos contra o opressor, ela, dona Felismina, se orgulha ao dizer: “Eu
bati [...] Bateram-me. Eu disse: Não há problemas, também bati.” E, prossegue: “Esse
branco foi-se embora sem me chatear [...]. Quando ele me dizia ‘filha da puta’ [...] Rachava-o
mesmo! [...] lutávamos” (BOLETIM INFORMATIVO, 1983, p.20).
Dona Felismina relata, ainda, que o branco, quando a via, se distanciava, receoso de
ela agredi-lo. Ela, uma senhora, idosa. Logo, a alcunha de ‘velha louca’, para desqualificá-la.
Do campo discursivo/linguístico é possível estabelecer a seguinte relação: africana, negra,
serviçal, colonizada = louca e, o oposto: em se tratando do colonizador: europeu, branco,
patrão = lúcido.
Partindo dos procedimentos que visam à hegemonia da ordem do discurso, Foucault
(2006) discorre sobre tais procedimentos (exterior e interior; de exclusão e de ordenação),
detendo-se sobre alguns grupos sociais, suas limitações e validações, com vistas à legitimação
de seus valores, para fazê-los perpetuarem-se; daí falar-se em ‘vontade de verdade’ dos
grupos hegemônicos. Logo, associa os discursos ao ‘jogo de escritura’, de ‘leitura’ e ‘de
troca’, por resultar de uma ação de violência face às coisas, “inscrevendo-se na ordem do
significante” (FOUCAULT, 2006, p. 17; 49; 53).
O fazer/dizer de dona Felismina se opõe à ordem do discurso instituído, à ‘vontade
de verdade’ imposta: obedecer, ceder e se deixar violentar e, assim, ela não deixa de,

35 Trata-se de um poder re/discutido, problematizado e redimensionado por Achille Mbemebe (2019),


conforme referido anteriormente.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

simbolicamente, estilhaçar as máscaras brancas daquela conjuntura social. Ela reage, briga,
bate, não se deixa dominar.
O sujeito do discurso aqui é um ‘eu’ que se anuncia, se impõe (‘eu bati’) e resiste à
coerção (‘rachava-o mesmo!’). E assim consegue, mesmo em situações díspares, enfrentar e
fazer afugentar o colonizador que, em sua arrogância e para disfarçar, inclusive, a
inferioridade diante dela, a alcunhava de ‘louca’ e outros termos depreciativos.
Em suma, da revista emergem vozes da resistência negra. Contudo, essas vozes
seguem invisibilizadas, excluídas dos arquivos, (re)produzidas na diáspora, no caso do Brasil,
via ‘poder soberano, disciplinar e/ou o biopoder’ para salvaguardar o discurso da ordem que
é, reiteramos, eurocêntrico, configurando o racismo ‘epistémico’, a despeito das diferenças
que são enredadas, preservadas, visibilizadas e/ou silenciadas sob a ótica de quem as
expressa, registra e, portanto, ‘(des)arquiva’.
Derrida (2001, p. 43) pontua que “Arquivo é somente uma noção, uma impressão
associada a uma palavra e para a qual Freud e nós não temos nenhum conceito.” Tal noção,
complementa, constitui-se de um “sentimento instável de uma figura móbil, de um esquema
ou de um processo infinito ou indefinido” (idem), se instável, mutável, aberta às
possibilidades interpretativas, questionamentos e reformulações.
Arquivo, reiteramos, não visa à verdade inquestionável, mas, tão somente, a um
modo de ver, expressar, sem preterir a subjetividade nesse processo de articular o pensar, o
conhecimento impresso ou expresso no suporte escrito, virtual, no qual as informações são
reunidas, condensadas, disponibilizadas, consignadas.
Um processo que resulta de campos de disputa (abordagens históricas, políticas,
epistemológicas) quando se escolhe o que interessa preservar e o que se almeja destruir. Daí
a assertiva de Chiamanda Adiche (2009), reiteremos: ‘Muitas histórias importam’. Dentre
elas, a ‘África que incomoda’ (MOORE, 2007) 36 ao requerer estudos, incursões,
problematização e, sabemos, ampliação de fontes e frentes de lutas em distintas áreas do
conhecimento.
A ‘África’ (que incomoda) tem história. Melhor dizendo, histórias e legados que
remetem a reinados, à resistência, às civilizações milenares, às lutas, perdas, força, fragilidade,
superações. Às crenças, contestações e complexidades. A nós educadores/as, cabe a
responsabilidade de, à direção crítica de Carlos Moore (2010, p.137), “demolir os
estereótipos e preconceitos que povoam as abordagens” concernentes à história da África e

36 Nela, pessoas anônimas, lideranças negras que resistiram ao poder instituído, sob o poder e a interferência
das grandes potências econômicas (MOORE, 2007).

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

ao campo das relações étnico-raciais, obviamente.

Considerações (in)conclusivas
Inicialmente, explicitamos que tomaríamos como ponto de reflexão uma revista e
outras vozes das margens (des)arquivadas, com o propósito de contribuir para a
ressignificação de conteúdos na área em questão, em consonância ao tema central do Afrolic,
a saber: ‘Literatura, Desigualdade, Ensino’.
O ensino da história e culturas afrobrasileiras e africanas a perpassar diversas áreas
do conhecimento, a História, a Literatura, as Artes em geral e respectivas fundamentações
teóricas. Áfricas enredadas em cenas, temas, tramas. A ser ensinada, problematizada,
re/conhecida, ressignificada, como orientam as ‘Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino da História e Cultura Afrobrasileira e Africana’ (BRASIL, 2004) e demais marcos
legais.
Áfricas, no plural, para se posicionar contária à recorrente generalização. Uma dessas
Áfricas procuramos re/visitar e re/dimensionar sob o crivo da crítica cultural em interface
com outras áreas do conhecimento, a fazer emergir as linguagens/vozes das margens. Para
tanto, os letramentos (a foto, o fato, texto, o contexto, as fontes para abordá-la), com vistas a
contribuir com a ação de re/erguer as vozes outrora silenciadas e/ou deturpadas (dona
Felismina e o jovem pastor).
Recorremos a uma abordagem ‘multidisciplinar’ e priorizamos ‘experiências
concretas’ e lutas que “sujeitos anônimos travaram em uma sociedade desigual” (SANTOS,
2919, p. 2). Quais foram esses sujeitos? Pessoas anônimas, uma senhora e um jovem. Ambos
negros, em situações díspares que, mesmo assim, resistiram à opressão local e, mais ainda,
‘reexistiram’, se associados ao campo da Linguística Aplicada (letramentos), nas palavras de
Ana Lucia Souza (2011). Talvez por isso nos impactaram tanto. Então, reiteramos: ‘nós não
vamos esquecer’ (BOLETIM INFORMATIVO, 1983).
Não vamos esquecer a força pungente de dona Felismina e do jovem apenas aludido
como ‘Oito’, em Lourenço Marques, atual Maputo, capital moçambicana. Não vamos
esquecer duas vozes distintas que se aproximam em uma mesma direção: Stuart Hall (2003,
p. 31) e Amilcar Cabral (1974), a rasurar estereótipos negativos acerca daqueles espaços
ancestrais africanos, na contramão de alguns arquivos e, nesse caso, entenda-se: livros
didáticos, literários, teóricos e, em outras palavras, ‘letramentos’.
Dona Felismina e o jovem pastor, ‘Oito’ rasuram certas visões simplistas erigidas
através do ‘racismo epistémico’ sobre o continente africano, as suas nuances, complexidades

34
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

e aprendizagens que precisamos conhecer em nossas travessias educacionais. Mas, como


fomos (de)formados por perspectivas educacionais eurocêntricas, trata-se de um caminho
desafiante, necessário, urgente, como evidencia Carlos Moore (2007; 2010) e diversos (as)
estudiosos e estudiosas que compõem o presente livro. Afinal, empreendemos uma luta
antiga e cheia de perigos. Que tais narrativas instiguem olhares mais críticos sobre as Áfricas
estudadas, enredadas, re/criadas na negra diáspora através dos suportes que utilizamos para
o ensino na área. Eis um dos caminhos para adentrarmos arquivos outros evitando-se, assim,
O ‘perigo de uma história única’, como adverte Chimamanda Adichie (2019).
Recorremos, por fim, a uma das epígrafes iniciais para entrelaçar os fios da memória
e, de certo modo, a instigar a re/leitura de um dos livros africanos que mais nos impactou:
‘Zenzelê, uma carta para a minha filha’, da escritora do Zimbabue, J. Nozipo Maraire (1996,
p. 102): a “batalha pela África pode ter acabado, mas a luta pela história, a arte, a literatura e
os filhos deste continente cresce em intensidade.” ‘Nós não vamos esquecer’, reiteramos.

Referências

ADICHIE, Chimamanda N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.

BOLETIM Informativo da Oficina de História, no 2/3, ano 1, Moçambique: Centro de


Estudos Africanos – Universidade Eduardo Mondlane, dezembro, 1983, p. 14 a 21.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana, Brasília:
SECAD/MEC, 2005.
CABRAL, Amilcar. Análise de alguns tipos de resistência. Lisboa: Seara Nova, 1974.
CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida e Nascimento, W. Santos (Org). Intelectuais das
Áfricas. Campinas: 2018, p.9-15.
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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

MARCAS DA VIOLÊNCIA NO CONTO ‘STRESS’, DE LÍLIA MOMPLÉ 37


FEATURES OF VIOLENCE IN ‘STRESS’ BY LILIA MOMPLÉ

Franciane Conceição da Silva 38

‘Stress’ é o primeiro conto da coletânea ‘Os olhos da cobra verde’ (1997), terceiro
livro da escritora moçambicana Lília Momplé. Anteriormente, a autora havia publicado as
obras Ninguém matou Suhura, antologia de contos lançada em 1988, e o romance ‘Neighbours’
(1995). ‘Stress’ é um texto que nos apresenta uma multidão de rostos sem nomes. Os
personagens do conto, vivendo num ambiente extremamente violento, são invadidos por
uma profunda melancolia e tentam sobreviver em meio a um horizonte sem perspectivas.
Esse aspecto das narrativas de Momplé (op. cit.) é acentuado em consideração do pesquisador
Anselmo Alós, quando observa:

Lília Momplé, através de seus contos, resgata os dilemas da nação moçambicana


através das experiências de sujeitos subalternizados, dos cidadãos de segunda
categoria, daqueles que dificilmente teriam suas histórias contadas, e isso
redimensiona a compreensão que o leitor tem da realidade pós-colonial
moçambicana (ALÓS, 2013, p.401).

O conto ‘Stress’ encena a história de uma personagem feminina não


nomeada, descrita pelo narrador onisciente, de acordo com a função que ocupa: ‘amante do
major-general’. A história desta se desenrola, simultaneamente, com a de um professor que
leva uma vida miserável, trabalhando incansavelmente para sustentar a família. As ações das
personagens são assumidas por uma voz narrativa que tudo sabe, tudo vê, inclusive,
adiantando episódios que acontecerão no futuro, despertando, com essa estratégia, a
curiosidade do/da leitor/a.
O mote da história e o desfecho inesperado da trama se dão em consequência da
obsessão que a protagonista do conto, a amante do major-general, cria em relação ao
professor, o seu vizinho. O homem, consumido pela dificuldade de equilibrar os muitos
compromissos com a família ao precário salário que recebe no magistério, sequer conhece a
vizinha. A mulher, extremamente vaidosa e certa do seu poder de sedução, não se conforma
em não ser notada pelo vizinho que insiste, na percepção dela, em resistir aos seus encantos.
O trecho a seguir exemplifica essa situação:

37 Uma versão semelhante desse artigo foi publicada na Revista Abril – NEPA / UFF, v. 10, n. 21, p. 181-192,
dec. 2018.
38 Professora Adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). Doutora em Letras - Literaturas de Língua Portuguesa - pela PUC Minas (2018).

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

A amante do major-general crava os olhos no homem que está sentado na


varanda do 2º andar mesmo em frente e sibila, indignada: ‘bêbado’. [...] O homem
vai bebericando a cerveja com uma sofreguidão mal contida, a atenção centrada
no copo e no Xirico 39. Por um instante, por um brevíssimo instante, a amante do
major-general supõe que ele dá pela sua presença, mas logo se apercebe que,
como sempre, aquele olhar resvalante a exclui do seu campo de visão,
inteiramente preenchido pelo Xirico e pelo copo de cerveja (MOMPLÉ, 1997, p.
9).

O ato, que pode ser considerado uma espécie de ritual, repete-se todos os domingos,
quando, depois de se maquiar e se vestir, a mulher vai para a varanda que dá para a rua e
observa fixamente o vizinho que nunca olha para ela. O ritual de embelezamento da
personagem é descrito com minúcias pelo narrador do conto, que apresenta um discurso
nada imparcial. Ao contar a história, a voz narrativa de ‘Stress’ opina e julga o
comportamento das personagens. Esse aspecto do texto é comentado por Anselmo Peres
Alós (2011, p. 1005-1006), quando observa que, em todos os seus contos, Lília Momplé

Adota um narrador em terceira pessoa e onisciente, e a focalização narrativa oscila


entre a focalização interna (na qual a voz narrativa tem acesso aos pensamentos e
ao universo interior das personagens) e a narrativa externa (na qual, a partir de um
locus exterior ao universo diegético instaurado pelos eventos narrados, a voz
narrativa emite seus juízos e comentários acerca dos eventos que vão sendo
apresentados ao leitor).

Em determinado momento do conto, a voz narrativa faz o seguinte comentário


sobre o ritual de beleza da amante do major-general: “Ela se entrega com o zelo das
mulheres que vivem sós e procuram, com a sua aparência cuidada, compensar a solidão,
provocando, nos outros, admiração, invejas e secretos desejos” (MOMPLÉ, 1997, p.10). A
partir desse comentário, apreendemos que, ao mesmo tempo em que a voz narrativa
condena o comportamento da amante do major-general, deixa escapar o fascínio que a
personagem lhe exerce. O narrador também pode ser considerado um desses ‘outros’ a quem
a mulher provoca ‘admiração’, ‘invejas’ e ‘secretos desejos’. Talvez numa tentativa de
esquivar-se dos encantos que a exuberante figura feminina lhe causa, o narrador começa a
ressaltar as muitas qualificações negativas da personagem.
Dessa forma, ao descrever o espaço habitado pela vizinha do professor, a voz
narrativa, ironicamente, se manifesta:
A sala é, na verdade, um lugar que suscita, nos visitantes de espírito mais sensível,
uma melancolia insidiosa e funda que, por vezes, no meio de uma conversa, os
leva a despedir-se, acossados de pressa, como se, de súbito, lhes falte o ar, naquele
ambiente, onde o luxo, aliado a um notório mau gosto, produz um efeito de
extrema opressão. E os próprios visitantes se espantam com a urgência que os
move a demandar a rua, pois ignoram que a melancolia acumulada assim,
inconscientemente, chega a ser mais insuportável que a própria dor (MOMPLÉ,
1997, p.9).

39 Em Angola e Moçambique a palavra xirico se refere a um aparelho portátil receptor de rádio.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

A partir das explicações dadas pelo narrador, descobrimos que a amante do major-
general vive em um imóvel que recebeu de presente do militar, situado num dos bairros mais
tradicionais da cidade, “segregado por prédios e vivendas construídos, ainda no tempo
colonial, por empreiteiros portugueses, com muito dinheiro e duvidoso gosto” (MOMPLÉ,
1997, p.11). A sala da residência é o espaço em que a amante do major-general se sente como
uma rainha. O local é o seu reino particular e todos os objetos que o compõem foram
escolhidos por ela. A ostentação do espaço que provoca tanto incômodo a alguns visitantes,
talvez se deva ao fato da riqueza do ambiente contrastar com a extrema pobreza que assola
grande parte da população, sobretudo, das comunidades rurais de Moçambique, que sofre
com os efeitos da sangrenta guerra civil. 40 O flat, símbolo de ascensão social da amante do
major-general, é também representação do fracasso de “um casal de funcionários públicos
que, estrangulado pelo constante aumento do custo de vida, resolveu regressar à sua
suburbana Mafalala” (MOMPLÉ, 1997, p.12).
A sensação sufocante, que se apresenta nos primeiros parágrafos do conto, vai
crescendo na medida em que os acontecimentos se desencadeiam e a violência se instaura.
As ações da amante do major-general, de certo modo, são movidas pela melancolia que a
envolve, perpassando o ambiente em que ela vive. Esse aspecto da narrativa de Momplé
também é apontado pelo pesquisador Anselmo Alós (op. cit.), que afirma:

No projeto ficcional de Lília Momplé, torna-se evidente um esforço de vencer a


amnésia social, com vistas a manter vivas as recordações das violências e das
arbitrariedades colonialistas. A beleza de seus contos é diametralmente
proporcional à crueza da violência descrita ao longo das páginas [...]. É recorrente,
em suas narrativas, a presença de uma melancolia histórica, provocada pelo
apagamento das agruras da luta pela independência das ex-colônias africanas, e de
um atento olhar para os desfavorecidos que mais sofreram durante a história
moçambicana ao longo do século XX (ALÓS, 2011, p. 1008).

A melancolia que atinge os personagens do conto pode ser uma síntese da melancolia
que atingia os moçambicanos, vítimas da guerra civil. Essa sensação, de algum modo,

40 A guerra civil moçambicana, iniciada pouco tempo após a guerra de independência, levaria o país à beira de
do colapso pela destruição que ela iria provocar. Ela seria fruto de uma mescla de fatores internos e externos,
sendo incentivadas principalmente pela reação às políticas do governo e pela situação que se configurava no
sul da África ao final dos anos 1970. Para entender como a situação moçambicana chegou a tal ponto é
preciso analisar as ações do governo desde que assumiu o poder, assim como as relações estabelecidas com
outros países, em especial a Rodésia e a África do Sul [...]. Além da complexa situação interna do país, os
acontecimentos nos países vizinhos viriam a influenciar a guerra civil moçambicana, principalmente pela
postura adotada pela Frelimo em relação à política interna dos dois regimes racistas. [...] Desde o primeiro
momento, o presidente Samora Machel havia declarado seu apoio ao estabelecimento de governos de maioria
negra nesses países, então governados por uma minoria branca. Isso levou a Rodésia e a África do Sul a
apoiarem o grupo oposicionista Renamo, que enfrentaria a Frelimo numa sangrenta e brutal guerra civil.
(VISENTINI, 2012, p. 98-99).

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

também alcança os leitores e leitoras. Tornamo-nos prisioneiras do espaço tedioso


construído por Lília Momplé. Assim como a poeira que se agita querendo se libertar da sala
luxuosa, mas melancólica, agitamo-nos para saber o que vai acontecer no desenvolvimento
da história. Dessa forma, num compasso lento e tedioso, vislumbramos a amante do major-
general, embriagada pela “sensação que sempre lhe provoca o fato de constatar que tudo
quanto os seus olhos abarcam lhe pertence” (MOMPLÉ, 1997, p.10 – grifo nosso).
Pertencer é um verbo que muito diz sobre a personagem e que move muitas das
ações praticadas por ela. De algum modo, a mulher se sente bem no ambiente que tanto
incomoda aos seus visitantes, porque ela é apenas mais um elemento que compõe esse
cenário. Ela é apenas mais um enfeite da sala luxuosa, onde até “mesmo a poeira parece
circular agitadamente, ansiosa por se libertar de tamanha ostentação” (MOMPLÉ, 1997, p.9).
A personagem envaidecida pelo luxo que o major-general lhe proporciona, contenta-
se em ser um ornamento que enfeita a vida do ex-militar, apenas aos domingos. Nos outros
dias da semana, a amante solitária permanece presa ao seu castelo ilusório, acreditando ser
uma rainha. De acordo com o professor John Rex (2007, p.445), em estudo realizado sobre
o conto ‘Stress’:
Certamente, a cor das paredes, o tipo e a disposição da mobília, a adequação do
espaço às necessidades do(s) ocupante(s) podem afetar o astral deste(s), mas a
verdadeira fonte dessa solidão e acompanhante melancolia é a relação entre o
homem (o major-general) e a mulher (a amante). Percebe-se uma polarização
homem-mulher, traduzida na enorme clivagem de interesses e atitudes entre os
dois: contra o capricho, a elegância (no vestir, na maquiagem, nos cuidados do
corpo e na etiqueta geral) e a sensualidade da amante, o descaso, a grosseria e a
falta de prumo do major-general.

A contradição apontada por Rex (op. cit.) reforça o nosso ponto de vista sobre a
mulher como ornamento. A personagem é, de certo modo, um objeto de uso (pessoal e
irrestrito) do major-general. Ela pertence ao amante, mas vive tão presa à realidade que criou
para si, tão presa à sua própria vaidade, que não tem consciência do quanto é escrava de seus
próprios desejos. Inebriada pela sensação de que tudo o que vê à sua volta lhe pertence, ao
vislumbrar o professor de feição macambúzia, sentado à varanda, a amante do major-general
decidiu que ele também lhe pertenceria, assim como os ornamentos que enfeitavam a sua
sala melancólica. Fechado em seu mundo particular, o professor não nota a presença da
mulher, que quanto mais se sente rejeitada, mais deseja possui-lo:

Não fosse o homem sentado na varanda em frente, [a amante do major-general] já


se teria retirado para a macieza dos seus sofás de veludo e aí esperaria o amante
que não tarda a chegar. Mas algo mais forte do que ela a retém de pé, travando
esta luta surda e inglória que se arrasta desde o primeiro domingo em que depois
do solitário almoço, ela se vestiu, maquiou, perfumou e veio para a varanda. Nesse
primeiro domingo, já lá estava o homem, sentado na cadeira de napa encardida,
absorto no Xirico e na cerveja que, ao longo da tarde, iria bebendo. [...] O

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

homem, porém, ignorou a presença daquela mulher que, da sua varanda o


observava, toda oferecida e convicta do seu poder de sedução. E continua a
ignorá-la, todos os domingos, ao longo de dois anos (MOMPLÉ, 1997, p.12-13).

No trecho em destaque, consideramos relevante nos atentarmos para a focalização


dos detalhes que configuram o espaço físico descrito pela voz narrativa. Observemos que a
mulher do major-general, enfeitada com as melhores maquiagens e com o seu vestido de
seda, aconchegava-se na ‘macieza dos seus sofás de veludo’. Em contraste com a imagem
exuberante da mulher, a voz narrativa nos descreve o professor como um homem de ‘rosto
grave e melancólico’, de ‘mãos ossudas e nervosas’, sentado em sua ‘cadeira de napa
encardida’.
Temos assim a representação de dois cenários distintos: de um lado, o ambiente rico
e luxuoso em que habitava a amante do major-general; do outro, o mundo cheio de
privações em que viviam o professor e os seus familiares. Ao analisarmos esses dois espaços,
podemos observar marcas da violência sistêmica. Uma violência instaurada, estruturada e
institucionalizada. Em estudo sobre ‘Stress’, a professora Zuleide Duarte (op. cit.) assim se
posiciona a respeito do contraste social apresentado no conto:
O contraste entre a ninfa da varanda e o torturado torcedor, espectador do Xirico,
diversão de domingo, com um inseparável e único copo de cerveja, revela uma
nova discriminação, oriunda não mais da ação direta do português colonizador,
mas do produto de uma luta que teve seus princípios nacionalistas desvirtuados,
reduzindo-se a um mero jogo de gerir os próprios interesses. Um retrato duro dos
que ganharam com a guerra em contraponto com os que perderam e continuam,
não importando de quem vem o ataque: do invasor ou do estômago faminto.
(DUARTE, 2012, p.6).

O responsável por manter o luxo e ostentação que cercam a mulher é o major-


general, um ex-guerrilheiro da FRELIMO. 41 Embevecido pelo poder, o major “se entrega
aos seus ínfimos instintos, rumo a um hedonismo patológico, e aproveita a sua posição de
alto oficial do exército para ‘escravizar’ a mulher, exigindo gratidão e respeito” (REX, 2007,
p. 445).
Desfrutando as benesses dos postos cada vez mais elevados que assume, na medida
em que a guerra civil vai se prolongando, o homem que lutara pela libertação do país vai

41 A guerra civil moçambicana, iniciada pouco tempo após a guerra de independência, levaria o país à beira de
do colapso pela destruição que ela iria provocar. Ela seria fruto de uma mescla de fatores internos e externos,
sendo incentivadas principalmente pela reação às políticas do governo e pela situação que se configurava no
sul da África ao final dos anos 1970. Para entender como a situação moçambicana chegou a tal ponto é
preciso analisar as ações do governo desde que assumiu o poder, assim como as relações estabelecidas com
outros países, em especial a Rodésia e a África do Sul [...]. Além da complexa situação interna do país, os
acontecimentos nos países vizinhos viriam a influenciar a guerra civil moçambicana, principalmente pela
postura adotada pela Frelimo em relação à política interna dos dois regimes racistas. [...] Desde o primeiro
momento, o presidente Samora Machel havia declarado seu apoio ao estabelecimento de governos de maioria
negra nesses países, então governados por uma minoria branca. Isso levou a Rodésia e a África do Sul a
apoiarem o grupo oposicionista Renamo, que enfrentaria a Frelimo numa sangrenta e brutal guerra civil.
(VISENTINI, 2012, p. 98-99).

41
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

sendo dominado pela “ânsia desenfreada de usufruir tudo o que na vida lhe dá prazer”
(MOMPLÉ, 1997, p.14), mesmo que esses prazeres sejam frutos da miséria em que vive
grande parte da população, sobretudo, o grupo atingido diretamente pela guerra.
O modo como a voz narrativa descreve o major e o professor é relevante para
entendermos o processo de construção dessas duas personagens. O ex–guerrilheiro da
FRELIMO é descrito pelo narrador como uma figura em processo de deformação. O
homem, antes idealista, se transforma e a sua imagem se deforma. Cego pelo poder, o major
vai ficando cada vez mais desfigurado, na medida em que vai acumulando mais riquezas e
abandonando os seus ideais. O excerto do conto, exposto a seguir, nos mostra esse processo
de deformação do corpo do major:
O major general é um quarentão pequeno e nervoso que conserva ainda
resquícios do aprumo dos seus tempos de guerrilheiro da FRELIMO. [...]
Atualmente, não só o aprumo, mas os próprios ideais que o nortearam durante a
luta de libertação, e pelos quais estaria disposto a sacrificar a própria vida, foram
se diluindo. [...] Não admira, pois, que o ventre, atufalhado de boa comida e farta
bebida, se apresente agora volumoso e flácido, projetando-se o corpo como uma
caricata gravidez. E que o rosto, outrora de contornos quase ascéticos, esteja
agora deformado pela camada de gordura que, ao longo dos últimos anos, se vem
instalando sob a pele macerada. E que o próprio olhar tenha adquirido a baça
frieza da maioria dos abastados deste mundo. (MOMPLÉ, 1997, p.14-15).

Já mencionamos anteriormente que a voz narrativa dos contos de Momplé não é


imparcial. De tal modo, sem o menor temor em tomar partido e fazer julgamentos em
relação aos personagens, o narrador demonstra o seu sentimento de repulsa em relação ao
major. Todas as expressões que utiliza para descrever o ex-guerrilheiro trazem uma carga
pejorativa: ‘ventre volumoso e flácido’, ‘caricata gravidez’, ‘rosto deformado pela camada de
gordura’, ‘pele macerada’, ‘olhar de baça frieza’. As características físicas e psicológicas do
major são ressaltadas com a intenção de representá-lo como uma figura decadente. Em
oposição a essa representação caricata do major-general, a voz narrativa apresenta o
professor, destacando as muitas qualidades do homem que lhe conferem uma áurea de
dignidade. De acordo com o narrador:
[O professor] desperta sempre com a sensação de que já está atrasado, arranja-se a
correr e a correr engole a chávena de chá quase amargo (o açúcar é caro) e o
pedaço de pão seco. [...] E a corrida recomeça, manhã à noite, inglória corrida que
mal dá para a família não morrer de fome, estranha recompensa para tamanho
esforço e tantos anos de estudo. Ah! Ultimamente tem havido algumas surpresas.
São os familiares fugidos da guerra, que encontram abrigo certo em casa do
professor, porquanto este bebeu no leite materno o espírito de hospitalidade que
o leva a acolhê-los e a repartir com eles o pouco que possui (MOMPLÉ, 1997, p.
16).

Observemos que a voz narrativa não economiza qualificativos para descrever a figura
grandiosa do professor. Trabalhador, honesto, incorruptível e generoso, o homem é

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apresentado como um exemplo de dignidade, num contexto em que os homens que lutaram
pela independência do país, considerados heróis pela população, vão sendo corrompidos
pelo dinheiro e pelo poder, como é o caso do major-general.
Feitas essas observações a respeito de duas personagens masculinas tão diferentes, e
que consideramos relevantes para compreendermos as estratégias narrativas utilizadas por
Lília Momplé (op. cit.), voltemos à questão que é o foco principal de nossa análise: o ódio da
amante do major-general pelo seu vizinho. Esse ódio moverá as ações da protagonista, sendo
o professor a sua principal vítima. Certa do seu poder de sedução, a amante do major-general
não aceita passar despercebida, tentando buscar no homem que lhe é indiferente “a
confirmação da sua feminilidade e beleza” (MOMPLÉ, 1997, p.13).
A ação, mesmo que inconsciente do professor ignorar a vizinha que tanto o deseja,
vai fortalecendo o ódio dela. De tal modo,
Radiosa no seu vestido verde mar, ao vê-lo todo entregue à bebida e ao Xirico, a
amante do major-general continua a fixá-lo com um olhar branco de rancor. O
mesmo olhar que um dia, num futuro não muito distante, sentado no banco dos
réus, ele irá captar e o levará a interrogar-se, cheio de perplexidade, ’porque me
odeia tanto esta mulher que mal conheço?’ Com efeito, terá dela apenas uma ideia
vaga e imprecisa, de alguém que, casualmente, se avista de relance (MOMPLÉ,
1997, p.13).

A estratégia narrativa, assumida por Lília Momplé (op. cit.), de trazer para o tempo
presente pistas dos acontecimentos que marcarão o futuro das personagens, chama-se
flashforward e, além deste, a autora também recorre, muitas vezes, ao uso do flashback. Nesse
caso, fatos do passado são trazidos à tona para dar sentido a acontecimentos ocorridos no
presente das personagens.
Na citação destacada anteriormente, vimos que a amante do major-general e o
professor vão estar frente a frente, no momento em o homem estará sentado no banco dos
réus, perplexo com o ódio que desperta na mulher que mal conhece. Logo, a voz narrativa
nos revela o motivo deste encontro. O fato é que, num momento de desespero, o professor
acaba assassinando a sua esposa. Ninguém presencia o crime. A amante do major-general, no
entanto, ao saber da tragédia, faz questão de se apresentar como testemunha de acusação:
Nesse dia, a amante do major-general será a única testemunha de acusação. Nem
mesmo os familiares da esposa do réu se prestarão a depor contra ele, porque,
apesar de campónios analfabetos, carregam em si uma sabedoria antiga que lhes
permite distinguir um criminoso de um homem acuado pelo desespero. A amante
do major-general, porém, logo que tiver conhecimento da tragédia, ousando
mesmo contrariar o amante, apresentar-se-á como testemunha de acusação,
aproveitando-se da privilegiada situação de vizinha do réu. E, nessa hora de
vingança, incriminará o professor com afirmações temerárias e falsas.
(MOMPLÉ, 1997, p.13-14).

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Mais do que a vingança, a disposição da mulher para ser testemunha de acusação de


um crime, que nem sequer presenciou, pode ser vista como uma maneira de conseguir
movimentar sua rotina entediante. No momento em que presta o seu testemunho contra o
professor, quando o juiz a proíbe de emitir opiniões pessoais sobre o réu e, logo após, dá a
sentença do crime, assim é descrita a reação da mulher:

Ela abster-se-á de emitir opiniões pessoais, mas continuará a fixar o réu com os
olhos brancos de rancor. Rancor que dará lugar a um brilho de triunfo quando,
apesar de todas as atenuantes, for lida a pesada sentença de quinze anos de prisão
(MOMPLÉ, 1997, p.13-14).

Como já mencionamos, a perspectiva na qual a história é narrada aponta, todo o


tempo, para a construção de algumas personagens que são colocadas como vítimas e outras
como culpadas pela violência que sofrem e/ou praticam. É perceptível a estratégia narrativa
de focalizar, sobretudo, a violência assumida pela amante do major-general. A mulher que é
beneficiária direta do homem que lucra com a desgraça do povo provoca antipatia no
narrador, que não se exime de apontar todas as suas características negativas. A personagem
feminina é descrita como fria, oportunista, rancorosa, vingativa, de natureza perversa e que
se regozija com a miséria alheia. Vê-se que na figura da mulher exibem-se traços da
representação crítica da burguesia egoísta e insensível de Moçambique que, mergulhada em
sua ambição e na ânsia desenfreada pelo poder, não consegue enxergar - ou prefere não ver -
a situação lastimável em que vive grande parte da população que sofre com os efeitos
maléficos da guerra.
Contudo, por mais que a voz narrativa descreva a personagem de maneira tão
negativa, nos arriscamos a dizer que ela também é uma vítima. Saindo de um contexto de
privações, vindo de uma família pobre, a mulher encontrou no major-general a possibilidade
de ter uma vida melhor. Temendo ser descartada pelo amante, a mulher faz de tudo para
agradá-lo: vai recebê-lo à porta de casa, como ele gosta, serve-lhe a bebida, como ele exige, e
contenta-se em receber a visita do homem apenas uma vez por semana. Aliás, considera
“muito lisonjeiro que este lhe reserve as tardes e as noites de domingo, pois, só em ocasiões
excepcionais, ele as passa com a esposa e os filhos” (MOMPLÉ, 1997, p. 15).
Acreditamos que a personagem se mantém presa à relação com o major-general
porque se beneficia dela, mas, mesmo que quisesse sair desse relacionamento, seria bem
difícil obter êxito. O major, sendo um homem poderoso, dificilmente aceitaria que a mulher
o deixasse, cabendo só a ele tomar essa decisão. É possível dizer que o major-general e a sua
amante são “separados em duas categorias: uma dominante, outra dominada” (SAFFIOTI;
ALMEIDA, 1995, p.23).

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A personagem feminina é o elo mais fraco da relação e não tendo poder para
violentar o poderoso homem, acaba por despejar a sua fúria no professor. Na opinião de
John Rex, ao escolher o vizinho como alvo de seu ódio, a mulher procura descarregar a sua
ira “salvando e preservando o seu mundo ir(real), e certamente a sua saúde emocional”
(REX, 2007, p. 446). Presa a uma realidade que a torna infeliz, a amante do major-general
transforma-se em pessoa egoísta que só valoriza aquilo que o dinheiro pode comprar. Se
pudesse, compraria o professor para incluí-lo na coleção de objetos que enfeitam a sua casa.
Arriscamo-nos a afirmar que encher a mansão de móveis caros e luxuosos é uma maneira da
mulher tentar preencher o vazio de sua existência.
É interessante observarmos as estratégias narrativas utilizadas por Lília Momplé (op.
cit.) para construir as personagens principais que praticam algum tipo de violência. A amante
do major-general, como vimos, é representada como alguém que age de maneira temerária.
Ela é vítima de violência, mas reproduz essa prática contra quem considera mais fraco,
apenas para se vingar. Todas as qualificações que se referem à mulher a colocam num espaço
de vilania. Por outro lado, mesmo quando assassina a esposa, o professor não perde a sua
áurea heroica. Depois de cometer o crime, ele vai se entregar à polícia. Nesse momento,
ocorre uma virada na construção formal do texto, que reforça a tentativa do narrador tentar
justificar o crime praticado pelo personagem com o qual muito se identifica. Nessa cena,
diferente do que acontece no decorrer do conto, o professor assume a enunciação e se
pronuncia num discurso direto e livre:
- Venho entregar-me. Matei a minha mulher.
-Matou a sua mulher? – pergunta o policial, atônito, pois não consegue relacionar
aquele homem de aspecto tão pacífico com um crime de morte.
-Sim, matei – murmura de novo, o professor.
-E por´quê? Qual foi o móbil do crime? - Insiste o policial, num tom mais
profissional, mas ainda incrédulo.
-Não sei. Acabo de a matar.
- Não sabe? Então acaba de matar a mulher e não...
- Não sei... talvez porque eu próprio já não consiga viver – responde o professor,
tirando do bolso um velho lenço, com o qual tenta ocultar as lágrimas que,
teimosamente, lhe brotam dos olhos (MOMPLÉ, 1997, p.19).

Nesse diálogo final, em que prevalece a enunciação do professor, as poucas


intervenções feitas pela voz narrativa são para reforçar o caráter dócil e inofensivo do pobre
homem. De tal forma, o professor é encenado, antes, como vítima de uma série de forças
desses ‘tempos modernos’, mas que ele não consegue gerir. “E acaba vitimando, de maneira
fatal, a normalmente compreensiva mulher que também é sujeita a semelhante dificuldade”
(REX, 2007, p. 447). O modo como é narrada a confissão do homicida pode ser
compreendido como uma estratégia utilizada por Momplé (op. cit.) para criar uma maior

45
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

aproximação entre nós, leitoras e leitores e o personagem. A confissão do crime coloca, mais
uma vez, o professor no espaço de celebração, coloca-o no lugar de herói que não foge às
suas responsabilidades. Afinal, ele comete o erro, mas admite-o.
Se formos pensar nos personagens como alegorias, podemos dizer que o major-
general representaria os indivíduos responsáveis pela perpetuação da guerra, recebendo
benefícios diretos. A sua amante seria uma alegoria do grupo que se beneficia indiretamente
do conflito. De certa forma, nos móveis luxuosos que enfeitam a mansão da mulher respinga
o sangue das moçambicanas e dos moçambicanos mortos em consequência dos conflitos.
Por não se deixar corromper e manter firmes os seus ideais, num contexto em que as
pessoas vão sendo pervertidas pelo poder, o professor, em sua luta incansável pela
sobrevivência, pode ser lido, no conto, como uma alegoria do povo moçambicano sofrido.
Um defensor de valores e tradições do país que, aos poucos, vão sendo destruídos pela
guerra que se estende infinitamente.
Podemos considerar, então, que a violência internalizada pela amante do major-
general, se apresenta na vida de todas as personagens do conto, em maior ou menor escala.
A narrativa de Momplé é, portanto, marcada por uma áurea violenta. Ninguém consegue
ficar imune a ela. A relação de violência que a personagem feminina estabelece com o major
é reproduzida, por ela, contra o vizinho. Do mesmo modo, quando o professor assassina a
sua mulher, ele pratica contra a esposa a violência do sistema que enfrenta cotidianamente.
O conto ‘Stress’, como grande parte das narrativas de Lília Momplé (op. cit.), não tem
happy end. Ciente da realidade brutal que invade o contexto enfocado pelo conto, a autora vai
criando estratégias de ficcionalização da violência, deixando manifesta a sua crítica àqueles
que, como o major-general e sua amante, se beneficiam das mazelas provocadas pela guerra e
pela corrupção dos ideais defendidos pelas lutas de libertação.

Referências

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Momplé. Florianópolis, Rev. Estud. Fem. v.19, n. 3, p.1005-1007, dez.2011. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2011000300018.
Acesso em: 25 ago. 2017.

ALÓS, Anselmo Peres. Uma leitura a contrapelo do colonialismo em terras


moçambicanas. Florianópolis, Rev. Estud. Fem. v.21, n. 1, p. 398-402, Abr.
2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2013000100021&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 25 ago. 2017.

DUARTE, Zuleide. Lilia Momplé: estórias de uma história contada com lágrimas. Maputo,
Rev. Literatas. v.43, n.2, p. 05-07. Ago.2012. Disponível em: <http://macua.blogs.com

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

/files/especial-lilia-momple.pdf.>. Acesso em: 26 ago. 2017.

MOMPLÉ, Lília. Os olhos da cobra verde. Maputo: Associação dos escritores


moçambicanos, 1997.

MOMPLÉ, Lília. Entrevista: “se não escrever mais nada não me importo”. Maputo, Rev.
Literatas. v.43, n.2, p. 09-13. Ago. 2012. Disponível em: <http://macua.blogs.com
/files/especial-lilia-momple.pdf. Acesso em: 26 ago. 2017.

REX, John. A oralidade escrita, ou a voz continuadora da matriarca africana em Lília


Momplé e Ama Atta Aidoo. In: MATA, Inocência; PADILHA, Laura Cavalcante. A mulher
em África: vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Colibri/Centro de Tempo e
Espaços Africanos, 2007.

SAFFIOTI, Heleieth; ALMEIDA, Suely Souza de. Violência de Gênero: poder e


impotência. Rio de Janeiro: Revinter, 1995.

VISENTINI, Paulo Fagundes. A revolução moçambicana. In: As revoluções africanas:


Angola, Moçambique e Etiópia. São Paulo: UNESP, 2012.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

RESISTÊNCIA E FUGA EM ‘CRIME BÁRBARO’ DE RINCON SAPIÊNCIA

Wellington A. dos Santos (UFES) 42


Jurema Oliveira (UFES) 43
Introdução

Correr para alcançar a árdua condução, após um penoso dia de trabalho, correr para
garantir um bom lugar na fila do hospital para tratar do filho doente; correr da fome, da
tortura, da polícia, das adversidades, driblando as diferentes formas de opressão, tem sido a
realidade do povo preto no Brasil, ao longo de mais de quatro séculos. A narrativa da canção
‘Crime bárbaro’ de Rincon Sapiência relata a saga de Galanga, personagem fictício, em fuga
após matar seu opressor, o Senhor de Engenho. A fuga evidenciada nessa poesia do rapper
paulistano dialoga, comparativamente, com a realidade do afrobrasileiro da atualidade; os
personagens reais de uma vida dura, vítimas das violências que marcaram e continuam a
marcar, da pior forma possível, a história do povo preto no Brasil.
‘Crime bárbaro’ de Rincon Sapiência, de autoria do próprio rapper em parceria com
Tom Zé e Valdez, é embalada por um riff de guitarra sampleado da música ‘Jimmy, renda-se’
de Tom Zé, que confere uma sensação de movimento acelerado, ao passo que narra a saga
do escravo Galanga em fuga, após assassinar o principal responsável por toda a opressão,
injustiças e maus-tratos sofridos pelo seu povo: o Senhor de Engenho.
Este trabalho foi desenvolvido com a intenção de despertar nos descendentes da
diáspora africana o desejo de serem protagonistas de suas próprias histórias, traçando suas
rotas de fuga por meio de sua arte, suas vivências, raízes culturais, crenças e lutas. Por isso,
escolheu-se a letra de ‘Crime bárbaro’, do rapper Rincon Sapiência como objeto de análise,
pois retrata uma fuga da opressão. Para tanto, o artigo apoia-se em obras de autores como
Antônio Candido (2004), Ferréz (2005), Stuart Hall (2003), João José Reis (1996), dentre
outros, como também, em canções de rappers como Emicida e Sabotage.
O negro em fuga
Rincon Sapiência, por meio de letras que retratam as lutas dos indivíduos periféricos,
como é o caso da canção ‘A volta pra casa’, exalta a criatividade, a história, irreverência e
qualidades do povo preto, como na dançante ‘Ponta de lança’ (Verso livre). O rapper traz à

42 Wellington A. dos Santos é Mestre em Letras no campo das Teorias Literárias pela Universidade federal do
Espírito Santo, UFES.
43 Jurema Oliveira é Pós-Doutora Pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem
(PNPD/Capes/UFRN), Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa Africanidades e Brasilidades -
NAFRICAB/UFES, Pesquisadora da Fundação de Apoio a Pesquisa e Inovação do Espírito Santo – Fapes e
Professora da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

tona um discurso engajado em defesa da resistência do negro no enfrentamento a uma


escravidão que, mesmo com mais de um século da assinatura de sua abolição, continua
propagando seus sintomas na atualidade, sentindo-se ainda as suas consequências todos os
dias. São os efeitos da escravidão moderna.
O primeiro verso do rap ‘Crime bárbaro’: ‘Capangas armados estão à procura’,
apontam para a figura do capitão do mato, que eram sujeitos responsáveis por perseguir e
capturar escravos foragidos. Esses capangas, na maioria das vezes, eram indivíduos negros
que lamentavelmente, recebiam determinados cargos em troca de sua liberdade, estando
entre suas atribuições torturar e perseguir seus próprios semelhantes. Os capitães do mato
ficaram reconhecidos também pela participação em milícias especializadas em procurar e
destruir os quilombos 44 (REIS, 1996).
Como era de se esperar de caçadores de gente, os capitães-do-mato não figuravam
entre as pessoas mais íntegras da Colônia, sendo frequentemente acusados dos
maiores desmandos, entre os quais se contava o de roubar escravos, usar
indevidamente seu trabalho e prender e até matar cativos inocentes para obter
recompensas (REIS, 1996, P. 17).

Versos da canção ‘Mandume’ do rapper Emicida (2015) podem ser tratados


comparativamente com o enredo de ‘Crime bárbaro’ de Sapiência, quanto ao sentimento do
protagonista da narrativa, após alcançar sua liberdade: “Com a mente a milhão, livre como
Kunta Kinte, eu vou ser o que eu quiser / Tá pra nascer playboy pra entender o que foi ter
as correntes no pé” (EMICIDA, 2015, faixa 12).
Em ‘Crime bárbaro’, fica evidente a tentativa de voltar o foco da abolição da
escravatura no Brasil para os próprios negros que, em atos de bravura, mesmo com tantas
adversidades, engendravam suas lutas contra a barbárie sofrida. Nomes como Zumbi dos
Palmares, Zacimba Gaba, Constança de Angola, Benedito Meia-Légua, Luiz Gama, José do
Patrocínio, que foram impactantes em suas ações contra a escravidão, dentre tantos outros,
seguindo a ideia da música de Sapiência, são os verdadeiros heróis no combate aos senhores
de engenho, em detrimento da assinatura de um documento por uma princesa branca no dia
13 de maio de 1888, garantindo a liberdade do povo preto, que naquele momento, já contava
com cerca de noventa e cinco por cento de sua população vivendo em liberdade, graças às
suas próprias investidas de rupturas e enfrentamentos, sem reconhecimento.
Ao assinar a Lei Áurea, abolindo, simbolicamente, a escravidão no Brasil, a princesa
Isabel (branca e com status de nobreza) é transformada numa espécie de heroína. Desse

44 Comunidades construídas por escravos foragidos.

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modo, toda a luta do povo negro para derrubar o sistema escravagista ficou ofuscada,
entrando num processo de apagamento.
Em entrevista para uma matéria publicada no dia 11 de maio de 2018 no ‘Jornal
Século Diário’, Thaís Souto Amorim, coordenadora do Museu do Negro no Espírito Santo
(MUCANE), afirma que vivemos uma abolição inacabada e que também, o efeito de um
papel assinado por uma princesa branca não nos libertou (TAVEIRA, 2018):

Para o Mucane, como um espaço público de resistência, como comemorar 25


anos de existência sem comemorar os 130 da Lei Áurea? ‘Temos sempre o
cuidado de quando falar do aniversário do museu pontuar que não estamos
comemorando uma abolição inacabada, pois a assinatura de um papel não nos
libertou’, diz Thaís Souto Amorim, coordenadora do Mucane. Queremos mostrar
a importância da manutenção deste espaço. Para demarcar, vamos fechar a rua
com aquilo que é nosso alimento, com nosso tambor, nossa forma de nos
relacionar, levando às ruas o que acontece dentro das paredes do local todos os
dias (TAVEIRA, 2018). 45

Seguindo esse pensamento, em contraposição à valorização histórica apenas de


personagens brancos no nosso país, o dia 20 de novembro, dia da consciência negra, que
homenageia o herói Zumbi dos Palmares, tem maior representatividade para os negros.
Zumbi foi morto em combate, defendendo seu povo e seu quilombo contra a escravidão em
20 de novembro de 1695.
Rincon Sapiência, na narrativa de ‘Crime bárbaro’, faz referência à correria do negro
em busca de liberdade desde os tempos de Zumbi até os dias atuais, aos que fazem suas
‘correrias’ para resistir às agressões desferidas contra si, seu povo e seus quilombos
modernos: ‘Fugindo eu tô correndo pela mata / Na pele eu levo a marca da tortura’
(SAPIÊNCIA, 2017).
Nos versos: ‘Por mim estaria tudo em paz / Minha terra, meu povo e ninguém mais’
de ‘Crime bárbaro’, fica evidente que, no imaginário do personagem, em fuga por matar o
Senhor de Engenho, o desequilíbrio é causado quando seu povo é subtraído de sua terra
natal, destituído de sua liberdade e trazido para uma nação distante, condenado a um terrível
processo de trabalho forçado. A fala ‘(Nossa Senhora, Neguin passou a mil)’ que antecede o
refrão da música, aparecendo sempre que o refrão é repetido, é sampleada da canção ‘Eu sou
157’ dos Racionais MC’s. O referido rap do grupo paulistano narra uma trágica tentativa de
assalto a banco por um grupo composto, em sua maioria, por indivíduos negros periféricos e
‘passar a mil’, significa correr. Mesmo após mais de um século passado da abolição da
escravatura no Brasil, o povo preto continua ‘passando a mil’ para fugir dos estigmas, da
dominação, do preconceito, da culpa e do trabalho exploratório.

45 https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/rincon-sapiencia-e-os-130-anos-da-abolicao-que-ainda-
nao-veio.

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No verso: ‘Sim senhor, não senhor, não satisfaz’, fica evidente o desejo do
protagonista do enredo, até então oprimido, obediente e cabisbaixo, de revelar que tem sua
própria voz, após promover sua revolução. Já no refrão de ‘Crime bárbaro’, no verso ‘Canela
fina é pra correr’, Rincon Sapiência, aparentemente, brinca com a tradição das elites dizerem
que os negros com canelas finas são mais astutos, mais resistentes. Não obstante, há relatos
de que quando um navio negreiro aqui chegava, os escravos eram perfilados para serem
comprados e aqueles com as canelas finas eram escolhidos para trabalhos mais pesados, nos
quais se exigia mais resistência e habilidade.
A fala ‘Escravos agora fazem canções’, presente em ‘Crime bárbaro’, aparentemente,
relaciona-se ao fato do negro, mesmo sendo empurrado para as margens da sociedade,
sofrendo as consequências de uma abolição de escravatura inacabada, ter presença marcante
no processo de produção cultural brasileiro. O agravante aqui é que, embora contundente e
crucial na formação da nossa sociedade, a participação dos negros nessa construção é
invisibilizada pelas elites dominantes.
Para Ligia Leite (1992), o construto cultural no Brasil, deu-se a partir da valorização
da produção das elites e vulgarização das criações das massas que, mesmo inferiorizadas,
permeiam e influenciam o cotidiano da cultura elitista:

Na construção de um imaginário social coletivo, a partir de um código excludente,


definiu-se o Brasil como portador de uma cultura superior ou ‘correta’ de raízes
aristocráticas, calcada em exemplos de países europeus. As demais são chamadas,
com ‘naturalidade’, de cultura de massas, e são colocadas simplesmente em
oposição à ‘cultura superior’. São culturas definidas como vulgares, inferiores,
popularescas, acientíficas, etc., e que constituem a própria realização de 80% da
população brasileira, a partir de outra ordem grupal, e que, mesmo sem
consentimento, interferem no cotidiano da cultura de elite (LEITE, 1992, p.
102).

Os versos: ‘Meu crime a ele eu culpo / Bateu em criança, cometeu estupro’ de ‘Crime
bárbaro’, deixam evidente o pensamento do herói da narrativa do rap de Rincon Sapiência,
acerca da culpabilidade de seu ‘ato bárbaro’. Para ele, os atos degradantes do senhor de
engenho o levaram a cometer o assassinato que desperta em seu ser uma sensação de
heroísmo, como é possível notar na fala: ‘Me sinto como um herói e isso me faz bem’.
O verso: ‘Proibiu a dança e a religião’, elencado na denúncia do protagonista como
um dos elementos causadores da sua investida contra seu opressor, evidencia a
desvalorização dos costumes e crenças do povo preto por parte da elite branca brasileira. As
religiões de origem africana sempre foram desqualificadas no Brasil, em detrimento das
religiões seguidas pelos brancos.
Seguindo essa mesma lógica, Karl Marx e Friedrich Engels (1974), na obra ‘Sobre

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

literatura e arte’, afirmam que as classes dominantes são detentoras da produção intelectual e
espiritual de cada época:
As ideias da classe dominante são também as ideias dominantes de cada época.
Ou, por outras palavras, a classe que é a potência ‘material’ dominante da
sociedade é também a potência espiritual dominante. A classe que dispõe dos
meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção
intelectual, de maneira que, em média, as ideias daqueles a quem são recusados os
meios de produção intelectual estão desde logo submetidas a essa classe
dominante (MARX; ENGELS, 1974, p. 22).

Desse modo, quem detém o poder, normatiza o tipo de produção cultural que lhe
convém. De acordo com Robyn J. Whitaker (2019), o branqueamento da imagem de Jesus
Cristo, como exemplo, também serviu de elemento de legitimação do preconceito contra
negros:
Da mesma forma, a afirmação teológica de que os seres humanos foram criados à
imagem e semelhança de Deus tem consequências: se Deus é sempre é sempre
representado como um homem, por padrão os homens serão brancos, uma ideia
subjacente a um racismo latente (WHITAKER, 2019). 46

Uma fala conferida ao Senhor de Engenho, na narrativa de ‘Crime bárbaro’, presente


no verso: ‘(Ah!) Ele diz: esse nego é o cão’, é uma expressão que pode parecer um elogio,
utilizada ainda nos dias atuais pelos brancos, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste do
Brasil. Porém, dizer que um negro é o ‘cão’ é inseri-lo num processo de demonização da sua
figura e, nesse mesmo bojo, são abarcados seus costumes e suas crenças.
No que tange às manifestações artisticoculturais, mesmo desqualificadas pela elite
dominante, as manifestações de cultura do negro foram e são cruciais para a formação
cultural no nosso país. As rebeliões dos negros, em fuga das senzalas modernas, resistindo
com sua poesia, seus tambores, sua dança e tantas outras expressões culturais, continuam a
incomodar os senhores de engenho e a fortalecer a autoestima dos descendentes da diáspora
africana.
De acordo com Stuart Hall (2003), em sua obra ‘Da diáspora’, independentemente de
como as tradições do negro, sobretudo sua voz musical, são representadas pelo discurso
hegemônico, o que fica evidente nessas manifestações, são os elementos de um discurso
diferente, de outras variadas representações.
A voz hegemônica que desqualifica a cultura negra entra, portanto, em contradição
quando faz expropriação de muitos elementos dessa tradição para construir seus dispositivos
culturais, atribuindo os créditos dessas produções apenas à elite que, no Brasil, é
historicamente composta pelo homem branco com origens na Europa.

46 https://www.bbc.com/portuguese/geral-47985039.

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A canção ‘Crime bárbaro’, como todo rap, que comumente narra vivências do povo
preto em todas as suas nuances, aponta o lugar da literatura na oralidade. Não obstante, a
prática de poesia oral serviu de base histórica para o desenvolvimento literário vigente.
Rincon Sapiência, por ser um indivíduo de origem periférica, podendo ter vivenciado os
acontecimentos narrados nos versos de suas músicas, nessa lógica de construção literária,
pode ser considerado o poeta ideal do povo que representa em seus modos de falar e em seu
comportamento. Assim, o artista estabelece um diálogo direto e objetivo com um povo em
busca de esclarecimentos para as complexidades enfrentadas.
Embora a elite defensora do cânone relute por reconhecer a importância de canções
rap como ‘Crime bárbaro’, em termos de literatura, vale ressaltar que essa forma de poesia de
origem negra, desenvolvida nas periferias das grandes cidades do Brasil, inspirada nos negros
americanos e jamaicanos, caminha a passos largos, ocupando lugares de destaque, mesmo em
ambientes acadêmicos, como foi o caso do álbum ‘Sobrevivendo no inferno’, do grupo de
rap paulistano, Racionais MC’s, escolhido para compor a lista de obras de leituras
obrigatórias do vestibular da UNICAMP, para aqueles que buscaram uma vaga na
Universidade em 2020, como é possível ver nesse fragmento da matéria de Camilo Rocha
(2018) no ‘Nexo Jornal’, sobre o assunto:
Os Racionais MC’s entraram para a academia. Pelo menos na Unicamp
(Universidade Estadual de Campinas), candidatos a uma vaga na instituição em
2020 terão de estar familiarizados com as letras do álbum ‘Sobrevivendo no
inferno’, de 1997.
A universidade colocou o álbum do grupo na lista de leituras obrigatórias para seu
vestibular. O disco, que contém músicas como ‘Diário de um detento’ e ‘Jorge da
Capadócia’, está na categoria ‘Poesia’, junto com ‘A teus pés’, da escritora Ana
Cristina Cesar, e de ‘Sonetos’ de Luís de Camões (ROCHA, 2018). 47

A mesma matéria de Camilo Rocha traz ainda uma importante fala, em defesa do rap
como literatura, do crítico literário americano Adam Bradley, doutor em língua inglesa pela
Universidade de Harvard:

‘Toda canção de rap é um poema esperando para ser apresentado’, argumenta o


americano Adam Bradley, crítico literário e doutor em língua inglesa pela
universidade de Harvard, no livro Book of Rhymes: The Poetics of Hip Hop’, lançado
em 2009. Para ele, numa era em que a poesia se tornou uma expressão de nicho,
‘os rappers são talvez nossos maiores poetas públicos, estendendo uma tradição
lírica que abrangem continentes e existe há milhares de anos’ (ROCHA, 2018). 48

Essa literatura oral das canções de rap, defendida por Adam Bradley, é quase sempre
desferida em forma de protesto contra a ação opressora das elites que tentam impor seus

47https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/05/24/Quais-as-conex%C3%B5es-do-rap-com-a-
literatura-e-a-poesia.
48https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/05/24/Quais-as-conex%C3%B5es-do-rap-com-a-
literatura-e-a-poesia.

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costumes e valores como sendo os ideais. Todo homem deve ser livre para decidir quais
valores lhe são aprazíveis, portanto, valores não podem ser impostos. Os únicos valores que
servem para se formar uma sociedade sólida e equilibrada, a saber: são o conhecimento e a
justiça social.
O ato do protagonista da narrativa de ‘Crime bárbaro’ de Rincon Sapiência
representa o desejo do povo preto diante de toda a violência sofrida desde sua chegada ao
Brasil. Não é de se admirar que a produção cultural do negro por aqui seja desqualificada,
visto que vivemos numa sociedade que só valoriza quem se encaixa nos padrões defendidos
por quem detém o poder. Quem não se ajusta a essa lógica, como é o caso dos negros que,
em sua maioria, formam as populações periféricas do país, é massacrado todos os dias, de
todas as formas, tendo negado todos os acessos de busca de vida digna.
Para Antonio Candido (2004), a aquisição de conhecimento pode ser um valor
transformador na construção de uma sociedade equilibrada, sendo,
[...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais,
como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o
próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da
vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o
cultivo do amor (CANDIDO, 2004, p. 180).

É possível afirmar que reside em muitas narrativas poéticas do rap, os traços


propostos por Antonio Candido (op. cit.) na citação anteriormente apresentada, no tocante à
transmissão e aquisição de esclarecimentos.
Para aqueles que acusam o protesto do negro de ‘vitimismo’ e classificam as letras de
rap como disseminação do ódio, a cantora e compositora Bia Ferreira dá uma resposta
emblemática em versos de sua esclarecedora composição ‘Cota não é esmola’: “Experimenta
nascer pobre e preto na comunidade / Você vai ver como são diferentes as oportunidades /
E nem venha me dizer que isso é vitimismo / Não bota a culpa em mim pra encobrir seu
Ra-cis-mo!” (FERREIRA, 2018, faixa 3).
Para que haja resistência, é necessário que o negro brasileiro tenha consciência do
impacto do tortuoso processo de diáspora imposto aos seus antepassados e da
representatividade ancestral de suas raízes, como demonstra o rapper ‘Sabotage’ (2000) na
canção ‘Cantando pro santo’: “Um descendente dos palmares, é, você sabe / Pro manos do
outro lado da muralha, aquele salve / Pra quem sabe, na próxima visita a liberdade”
(SABOTAGE, 2000, faixa 11). A ancestralidade, a condição de encarceramento imposta
contra os descendentes da diáspora africana no Brasil, bem como a busca por liberdade, são
marcantes nesses versos de Sabotage.

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Resistindo pelos ‘corres’


Se ‘correr’ é um reflexo da vida do povo preto, sobretudo dos inseridos de maneira
vil em países colonizados, como foi o caso específico do Brasil, esses ‘corres’, pretendidos
invisíveis pelas camadas sociais controladoras das produções culturais, econômicas e dos
lugares de destaque, são evidenciados na literatura e em diferentes expressões artísticas de
maneira representativa, como forma de resistência. Culminados pelos processos que
moldaram a trajetória do negro na história do país, como também ocorreu em outros países,
os ‘corres’, antes, vistos apenas como algo pejorativo e degradante, atualmente, representa o
modo pelo qual os marginalizados têm planejado e concretizado sua fuga das padronizações,
condições e discursos preconceituosos que os inferiorizam.
Essa resistência é percebida na literatura, com obras que narram enredos lastreados a
partir da subjetividade do negro, pautados na ancestralidade do seu povo, na sua própria
história e religiosidade, como é o caso do romance ‘Jubiabá’ de Jorge Amado. Isso é notado,
também, em letras e clipes de canções, como This is America do rapper Childish Gambino,
pseudônimo do ator e músico americano Donald Glover.
A narrativa de ‘Crime bárbaro’ de Rincon Sapiência, nesse sentido, pode ser
comparada com This is America de Gambino. A canção do rapper norteamericano, lançada em
2018, no mês de maio, além de conter versos que denunciam o modo como o sistema
estadunidense trata e sempre tratou o povo negro, menosprezando suas tradições culturais e
invizibilizando suas lutas, tornando-os alvo de toda sorte de discriminação, conta também
com um clipe que virou fenômeno de visualizações na Internet, já na primeira semana do seu
lançamento.
No videoclipe, a atuação de Childish Gambino traz à baila, em seus gestuais e ações,
representações de episódios históricos e recentes, que por conta do preconceito, vitimaram
indivíduos negros nos Estados Unidos. O ‘corre’ aqui, é evidenciado de maneira mais
explícita na parte final do clipe, quando ele, o rapper, após fazer todas as suas denúncias,
encerra numa corrida desesperada, sendo perseguido por um grande número de pessoas.
Nessa perspectiva, diversas manifestações artísticas desenvolvidas nos guetos
brasileiros têm proporcionado ‘corres’ importantes para as camadas periféricas da nossa
sociedade. A literatura e o rap se tornou campo fértil nesse sentido. “Literatura de rua com
sentido, sim, com um princípio, sim, e com um ideal, sim, trazer melhoras para o povo que
constrói esse país, mas não recebe sua parte” (FERRÉZ, 2005, p. 10).
Jogando contra a massificação que domina e aliena cada vez mais os assim
chamados por eles de ‘excluídos sociais’, e para nos certificar de que o povo da
periferia/favela/gueto tenha sua colocação na história, e que não fique mais
quinhentos anos jogando no limbo cultural de um país que tem nojo de sua

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própria cultura, a literatura marginal se faz presente para representar a cultura de


um povo, composto de minorias, mas em seu toda uma maioria (FERRÉZ, 2005,
p. 11).

Nessa seara, estão inscritas produções impactantes de autores periféricos


reconhecidos pelo engajamento na luta de resistência do povo marginalizado. Obras como
‘Colecionador de pedras’ de Sérgio Vaz, ‘Capão pecado’ do próprio Ferréz, ‘Graduado em
marginalidade’ de Sacolinha e ‘Da cabula’ de Allan da Rosa, podem ser consideradas como
‘corres’ precisos de indivíduos em busca de justiça para seu povo.
É possível fazer comparação intertextual entre a narrativa da canção ‘Crime
bárbaro’ com o premiado filme ‘Corra’ de 2017, que tem como protagonista o ator Daniel
Kaluuya. No enredo do filme, o personagem vivido por Kaluuya, um homem negro, cai
numa armadilha de uma família branca e é submetido a um obscuro processo de perda de
identidade, sendo necessário assassinar todos os integrantes daquele grupo familiar que o
oprimiam, para conquistar sua liberdade.
O negro em fuga, de o ‘Crime bárbaro’ de Rincón Sapiência, é o retrato da realidade
do negro no Brasil. Vítima de uma perseguição contínua, o povo preto, empurrado para as
margens da sociedade e para tudo o que é degradante, corre para resistir e não importa para
onde corra, sempre surgem obstáculos intrincados bloqueando suas rotas de fuga, o que se
assemelha à lógica de emparedamento presente no poema de Cruz e Souza chamado
‘Emparedado’ (SOUZA, 1961).
Embora o rap, como os de Rincon Sapiência, tenha derrubado muitas ‘paredes’, a
pergunta que fica é: - até quando o negro precisará correr para saltar os muros da culpa, do
preconceito, da ignorância e do abandono que o cercam, na tentativa de viver com um
mínimo de dignidade em nosso país?

Referências
CANDIDO, Antônio. Vários escritos. Rio de Janeiro/São Paulo: Ouro Sobre Azul/Duas
Cidades, 2004.
FERRÉZ. Terrorismo literário. In: FERRÉZ (org.) Literatura marginal: talentos da escrita
periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 9-14.
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Brasília:
Representação da UNESCO no Brasil, UFMG, 2003.
LEITE, Ligia. O desviolado. In: ECO: Publicação da Pós-graduação em Comunicação da
UFRJ, n.4. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Sobre literatura e arte. Lisboa: Estampa, 1974.
REIS, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. In: Revista USP, n. 28, p. 15-39.
São Paulo: USP, 1996.

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ROCHA, Camilo. Quais as conexões do rap com a literatura e a poesia. Publicação: 24


de maio, 2018. Disponível em: www.nexojornal.com.br. Acesso: 16/12/2018.
SOUZA, Cruz. Poemas escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1961.
TAVEIRA, Vitor. Rincon Sapiência e os 130 anos da abolição que ainda não veio.
Disponível em: <https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/rincon-sapiencia-e-os-
130-anos-da-abolicao-que-ainda-nao-veio.>. Acesso em: 26 jan.2019.
WHITAKER, Robyn J. Ponto de vista: por que é importante saber que Jesus não era
branco. – Artigo BBC News-Brasil, 2019. – Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/geral-47985039.>. Acesso em: 22 abr.2019.

DISCOGRAFIA
EMICIDA. Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa.... São Paulo: Laboratório
Fantasma, 2015.
FERREIRA, Bia. Bia Ferreira no Estúdio Show livre (Ao Vivo) – Disponível no Spotify
Premium. São Paulo: Estúdio Show livre, 2018.
SABOTAGE. Rap é compromisso. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica, 2000.
SAPIÊNCIA, Rincon. Galanga livre. São Paulo: Boia Fria Produções, 2017.

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O PROTAGONISMO DE IFEMELU E ESCREVIVÊNCIA NO ROMANCE


AMERICANAH , DE CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE

Milaynne Christina Barros do Nascimento (NEPA/ UESPI) 49


Elio Ferreira de Souza (NEPA / UESPI) 50

Considerações Iniciais

Americanah, o terceiro romance de Chimamanda Ngozi Adichie, 51 traz muito da


história da própria autora quando morou nos EUA. Foi publicado no Brasil em 2014 e narra
a história de Ifemelu, uma jovem mulher natural da Nigéria que se muda para os Estados
Unidos, para estudar, motivada pelas greves que atingem as universidades nigerianas. Por
conseguinte, Ramos (2017) explica que “a trajetória intelectual de Adichie é marcada por
trânsitos geográficos ao ponto que localizamos o seu trabalho num espaço fronteiriço que
dialoga questões nigerianas com demais questões globais” (RAMOS, 2017, p.10).
O romance atualiza discussões sobre gênero, etnia, identidade, imigração e trabalho
ao destacar a perspectiva de uma personagem, mulher negra, nascida em um país no
continente africano que se encontra com o modo de vida norteamericano. Nesse processo
de convivência, na sociedade estadunidense, Ifemelu se descobre negra e a partir dessa
experiência diaspórica começa a escrever em um blog intitulado Raceteenth ou ‘Observações
Curiosas de uma Negra não americana sobre a questão da Negritude nos Estados Unidos’
(ADICHIE, 2014, p.321).
O desenvolvimento da história transita por Lagos na Nigéria, Estados Unidos e
Inglaterra; no último país também vivera Obinze, o namorado de adolescência de Ifemelu,
depois que migra da Nigéria. Narrado em terceira pessoa, Americanah se constrói no
entrelaçamento da história de vida de Ifemelu e de Obinze. O eixo temporal de referência a
partir do qual a narrativa começa e se desenvolve é o regresso de Ifemelu para a Nigéria e,

49 Mestranda do Programa de Mestrado Acadêmico em Letras da Universidade Estadual do Piauí (UESPI).


Desenvolvendo atualmente o projeto intitulado ‘Diáspora Africana e Feminismo Negro: A mulher a caminho
em Americanah de Chimamanda Ngozi Adichie’, sob orientação do professor Dr. Élio Ferreira de Souza. E-
mail: [email protected]
50 Doutor em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Coordenador do Núcleo de Estudos
e Pesquisas AFRO da UESPI. Professor da graduação e do Mestrado em Letras – UESPI. E-mail:
[email protected]
51 Chimamanda Ngozi Adichie é uma escritora nigeriana nascida no dia 15 de setembro de 1977 em Enugu.
Pertencente a uma família de etnia igbo, Chimamanda cresceu na cidade universitária de Nsukka e é a quinta
filha de Grace Ifeoma e James Nwoye Adichie. Atualmente, a escritora vive entre os Estados Unidos e a
Nigéria, é casada com um médico nigeriano, Ivara Esege, e tem uma filha. Aos 19 anos Adichie ganhou uma
bolsa de estudos para estudar nos Estados Unidos e morou no país por sete anos. Considerada uma das
principais representantes da nova geração de escritores do seu país, a escritora tem formação em
Comunicação e Ciência Política pela Universidade Estadual de Connecticut, mestrado em Escrita Criativa
(Universidade John Hopinks) e em Estudos Africanos (Universidade de Yale).

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mais especificamente, da protagonista trançando o cabelo num salão de beleza nos Estados
Unidos.
Durante o tempo de permanência no salão, emergem as memórias e lembranças
sobre os episódios da vida de Ifemelu desde a época em que estivera na Nigéria e sua estada
nos Estados Unidos. Nesse fluxo da memória e dos pensamentos da protagonista o leitor
conhece a pessoa que Ifemelu foi se tornando no decorrer de novas experiências e fases da
vida, que vão se sucedendo do começo da narrativa ao trançar dos tempos e das histórias.
No decorrer das 516 páginas do livro, que está dividido em sete partes e 56 capítulos,
o leitor também conhece a família, os namorados, os amigos de Ifemelu e acompanha o
processo de descobertas e amadurecimento da heroína nos Estados Unidos e a criação do
seu blog. A partir do percurso de Ifemelu, o exercício de reflexão aqui desenvolvido parte da
investigação do protagonismo de Ifemelu no romance Americanah. Assim, a abordagem da
presente análise romanesca busca lançar luz sobre a relação da personagem protagonista,
uma mulher negra em diáspora, e seus escritos para um blog de expressiva repercussão entre
os leitores jovens estadunidenses, cujas relações se fundamentam nos conceitos de
Empoderamento e Escrevivência.

Sobre Empoderamento e Escrevivências

Na noite em que surge a ideia de criação do blog de Ifemelu, ela escreve um e-mail
para sua amiga Wambui, falando como algumas questões referentes a gênero e ‘raça’
afetavam tanto o relacionamento com o seu então namorado, Curt, um homem branco,
estadunidense e rico. Ifemelu escreveu “um e-mail longo, que inquiria, questionava e
revirava. Wambui respondeu dizendo: Tudo isso é tão cru e verdadeiro. Mais pessoas
deveriam ler. Você deveria fazer um blog” (ADICHIE, 2014, p.320).
Apesar de Ifemelu ser uma personagem autônoma, articulada, inteligente, implicada e
sensível o suficiente para ter a ideia sobre o blog sozinha, Adichie situa a criação do blog no
contexto de uma relação de amizade entre duas mulheres negras, vindas de países africanos
(Wambui é do Quênia). O episódio de criação do blog reforça assim, uma relação que não é
baseada na subalternização de uma das partes. Wambui valoriza a importância da história e
das leituras sobre o mundo de Ifemelu e, além disso, acreditando na relevância coletiva do
relato de Ifemelu, sugere uma estratégia para que a amiga possa falar sobre o que lhe afeta,
materializando, assim, o princípio ‘erguer-nos enquanto subimos’ tão bem proposto e
trabalhado por Angela Davis (2017).
As relações de amizade de Ifemelu com mulheres em Americanah desempenham uma

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função importante no que diz respeito ao ritmo da narrativa e à ampliação de novas


possibilidades. A conversa como as personagens movimenta a narrativa romanesca e o
processo de reflexão de Ifemelu sobre si mesma. Sendo assim, ressaltamos que esse é um
aspecto importante do romance, que nos ajuda a refletir acerca do desenvolvimento de
Ifemelu como protagonista e a dinâmica da narrativa. Isso também evoca a assertiva de
Angela Davis no que se refere ao empoderamento:

O conceito de empoderamento não é novo para as mulheres afro-americanas. Por


quase um século, temos nos organizado em grupos voltados a desenvolver
coletivamente estratégias que iluminem o caminho rumo ao poder econômico e
político para nós mesmas e nossa comunidade (DAVIS, 2017. p.15).

Segundo Angela Davis, mulheres negras estão preocupadas com salários, habitação,
educação, violência policial e melhoria da qualidade de vida. A abordagem de problemas de
ordem cotidiana na concepção de empoderamento apontada por Angela Davis (op. cit.) ajuda
na leitura e análise literária de Americanah na medida em que propõe a problematização de
uma realidade que é comum para a população negra dos EUA e com a qual Ifemelu teve que
lidar através das suas experiências, assim como através das experiências de seus amigos e
familiares.
Joice Berth (2018) aborda o empoderamento a partir de Paulo Freire e do resgate (e
ressignificação) que as feministas negras da década de 1980, como Bell Hooks, propuseram
sobre esse conceito. A autora citada, assim como Angela Davis, aponta a contribuição
histórica de mulheres negras como fundamental para compreender do que se trata o
empoderamento. Segundo Berth (op. cit.):
Mulheres negras, em toda diáspora, sentindo-se vitimadas pelas técnicas de
atuação do racismo intercalado a lógica patriarcal solidificada e naturalizada,
saíram e saem ainda hoje, em busca de modos sobrevivência, de fortalecimento
mútuo e instrumentalização prática das lutas diárias, seja no âmbito familiar,
profissional ou afetivo (BERTH, 2018, p.105).

Berth explica que falar em empoderamento não se trata de discutir o que uma pessoa
pode ou não fazer, mas sobre o que um grupo social consegue, ou não consegue fazer, em
uma sociedade estruturada em opressões etnicorraciais, de gênero e classe. Não se trata de
um desenvolvimento exclusivamente individual, mas de um processo coletivo, ou seja,
“empoderamos a nós mesmos e amparamos outros indivíduos em seus processos,
conscientes de que a conclusão só se dará pela simbiose do processo individual com o
coletivo” (BERTH, 2018, p.130).
A filósofa Djamila Ribeiro (2018) alerta que o termo empoderamento tem sido mal
interpretado e usado de maneira a ressaltar somente uma perspectiva individualista, que

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transmite a noção equivocada de reclamar poder para reproduzir e perpetuar opressões.


Ribeiro (2018), considerando as contribuições do feminismo negro, afirma que o
empoderamento diz respeito a um significado coletivo que entenda e valorize mulheres
negras como sujeitos ativos de mudança. Para essa estudiosa, “empoderamento significa
comprometimento com a luta pela equidade. Não é a causa de um indivíduo de forma
isolada, mas como ele promove o fortalecimento de si e de outros com o objetivo de
alcançar uma sociedade mais justa para as mulheres” (RIBEIRO, 2018, p.135).
A partir das conceituações apresentadas pelas autoras anteriormente citadas, a criação
do blog de Ifemelu pode ser considerada uma dimensão do seu processo de empoderamento
enquanto mulher negra ‘não americana’, morando nos Estados Unidos. A motivação para
que Ifemelu comece a escrever veio de suas experiências pessoais, mas a ideia de escrever
está atravessada por uma necessidade de se comunicar com a experiência coletiva de ser uma
pessoa negra nos Estados Unidos. A citação a seguir ilustra as preocupações e o intuito de
Ifemelu ao criar o blog:
Os blogs eram algo novo, não familiar para Ifemelu. Mas dizer a Wambui o que
tinha acontecido não fora satisfatório o suficiente; ela ansiava por ouvintes e
ansiava por ouvir as histórias alheias. Quantas outras pessoas escolhiam o
silêncio? Quantas tinham se tornado negras nos Estados Unidos? Quantas
sentiam que seu mundo era envolto em gaze? Ifemelu terminou com Curt
algumas semanas depois, fez um cadastro no WordPress e criou seu blog. Mais
tarde ela mudaria o nome, mas no início ele chamava Raceteenth, ou Observações
Curiosas de uma Negra Não Americana sobre a Questão da Negritude nos
Estados Unidos (ADICHIE, 2014, p.320).

A manifestação da necessidade pessoal e coletiva marca o processo de criação do blog


e continua presente nas motivações de Ifemelu com o passar dos anos, pois mesmo depois
de voltar para Lagos, a vontade e a necessidade de Ifemelu por se aprofundar em histórias
continua e ela começa um novo blog em seu país de origem: ‘As pequenas redenções de
Lagos’ (The small redemptions of Lagos).
Ifemelu se empenha na atividade de escrita impulsionada pela necessidade de falar
sobre o que a aflige e também pelo interesse por criar meios de comunicar-se com quem
conhece as aflições com as quais costuma lidar. Dessa maneira, através do poder de escrita,
questiona relações de poder que limitam os canais de expressão para grupos considerados
minorias étnicas.
Nesse sentido, o conceito de escrevivência é um operador analítico potente para
analisar a relação entre a escrita e o desenvolvimento de Ifemelu como protagonista de um
romance e representação de uma mulher negra. Para Conceição Evaristo (op. cit.), “a
escre(vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as desventuras de quem conhece

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

uma dupla condição, que a sociedade teima em querer inferiorizada, mulher e negra”
(EVARISTO, 2005, p.204).
Em Americanah, a narrativa de si é consubstanciada na experiência pessoal e do
grupo, o romance transita na ‘entre-fronteira’ do relato de testemunho autobiográfico
coletivo e da ficção, permeando o sentimento de pertença, de falar de dentro da experiência
da autora, que se ficcionaliza na personagem Ifemelu. Conceição Evaristo (op. cit.) nomeia
esse tipo de relação de pertença e autorreconhecimento da negritude e do sujeito/mulher de
‘escrevivência’.
Nesse sentido, utilizamos o conceito de Evaristo porque dialoga com a constituição
do protagonismo da personagem apresentada neste trabalho. Sobre escrevivência, Conceição
Evaristo explica:
Bom, a Escrevivência, a primeira coisa que eu poderia dizer, sem retomar o
processo histórico que me faz pensar nesse termo escrevivência [...] é uma
literatura que é profundamente, que tem por inspiração, tem como motivo de
escrita a própria vivência e quando eu digo a própria vivência é não somente a
minha vivência particular, eu tenho dito que as personagens que eu crio não têm
condições de eu ser cada uma daquelas personagens [...], então cada personagem
criada não traz necessariamente, e muitas nem trazem, a minha experiência
pessoal, mas todas elas trazem uma experiência do grupo, da coletividade
(Informação verbal). 52

Os argumentamos dos escritos de Ifemelu (e do romance Americanah) são textos que


“para além de um sentido estético, buscam a semantizar um outro movimento, aquele que
abriga todas as suas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se toma o
lugar da vida” (EVARISTO, 2005, p.206). O conceito de escrevivência que valoriza o
encontro entre vivências pessoais e coletivas, assim como a perspectiva de empoderamento
aqui trabalhada, torna-se, portanto, estratégico à reflexão sobre o desenvolvimento de
Ifemelu como protagonista.

Analisando o protagonismo de Ifemelu

O pai disse: “Você deve se abster de sua propensão natural à provocação, Ifemelu. Já
é conhecida por insubordinação na escola, o que maculou seu singular currículo acadêmico.
Não há necessidade de criar um padrão similar na igreja” (ADICHIE, 2014, p.61).
Obinze riu e Ifemelu, sem interesse em continuar a falar de poesia, perguntou:
“Então, o que foi que Kayode disse sobre mim? [...]Ele disse: ‘Ifemelu é linda, mas dá
trabalho demais. Sabe discutir. Sabe falar. Nunca concorda com ninguém. [...].” [Ifemelu]

52 Conceição Evaristo no Encontro de Associados da TAG Experiências Literárias em Paraty, Rio de Janeiro,
em 28 de julho. 2018.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

“Gostava dessa imagem de si mesma como sendo alguém que dava trabalho, que era
diferente, e às vezes encarava aquilo como uma carapaça que a mantinha segura”
(ADICHIE, 2014, p.69). Mais à frente, confidencia “Blaine: É uma opinião bem forte.
Ifemelu: Não sei como ter opiniões de outro tipo” (ADICHIE, 2014, p.195).
Identificamos e, assim pretendemos analisar, a construção do protagonismo de
Ifemelu na narrativa de Americanah a partir de dois eixos: ‘Ifemelu na Nigéria’ e ‘Ifemelu nos
Estados Unidos’. No primeiro eixo, as questões de gênero estão em primeiro plano na vida
de Ifemelu e na narrativa. Os conflitos que movimentam o enredo estão relacionados a essas
problemáticas, além de questões referentes ao contexto político da Nigéria. Já no segundo
eixo, as questões etnicorraciais estão mais destacadas, o processo de descobrir-se negra é um
importante marcador da experiência de Ifemelu nos EUA e, portanto, no desenvolvimento
da narrativa e a criação do blog de Ifemelu deflagra o impacto dessa experiência.
Dentro desses dois eixos existem categorias que ajudam a compreender o
desenvolvimento de Ifemelu. Seguindo o percurso da protagonista na Nigéria, podemos
perceber que o desenvolvimento do protagonismo de Ifemelu está muito ligado às suas
‘relações sociais, comunitárias e familiares’ (Ifemelu na Escola, Igreja, Família e
Universidade), destacando nesses contextos, ‘o relacionamento de Ifemelu com mulheres
com quem convive’: Tia Uju, sua mãe, mãe de Obinze, além do ‘seu relacionamento
amoroso com Obinze’.
Essas dimensões, dentro do eixo primeiro, ajudam a identificar como se constrói o
protagonismo de Ifemelu na narrativa, quando as vivências da personagem estão
concentradas no período que ela vive na Nigéria. Quanto às categorias que pertencem ao
eixo ‘Ifemelu nos Estados Unidos’, podemos afirmar que continua a dimensão ‘relações com
mulheres com quem convive’: Ginika, Wambui, Tia Uju, a dimensão ‘relacionamento
amoroso’ (tensionada pelas diferenças raciais e de nacionalidade) e a dimensão nova que esse
eixo traz e que resume a descoberta de Ifemelu de sua negritude nos Estados Unidos: ‘o
trabalho como escritora do blog’, sendo esta última dimensão a que destacamos no presente
artigo.
O início da narrativa de Americanah apresenta ao leitor a Ifemelu bem sucedida e já
vivendo financeiramente à custa do seu trabalho como escritora de um blog, mas que está se
organizando para voltar à Nigéria. Nas primeiras páginas, essa apresentação da personagem
acontece juntamente o com a apresentação de sua ocupação. Conhecemos, então, uma
contadora de histórias que caminha pelo mundo procurando histórias em potencial,
querendo ouvir as vozes que povoam os EUA e que vivificam as contradições desse país.

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Esse começo da narrativa já representa um processo de transição, de movimento e a


análise aqui proposta toma a cena narrativa do início (Ifemelu em uma estação de trem)
como uma representação da ideia de uma mulher a caminho, na diáspora, em processo de
tornar-se uma mulher buscando o caminho de volta para a terra natal, o caminho para novas
histórias, para refletir outras possibilidades de ser. Nem Ifemelu, nem os Estados Unidos,
nem a Nigéria são mais os mesmos depois das experiências que ela viveu como mulher negra
em diáspora.
As citações que abrem esse tópico do artigo ajudam a conhecer melhor essa
protagonista, destacam a trajetória, experiências e ações de Ifemelu que estão presentes,
tanto no período em que mora na Nigéria como nos EUA. Assim, Chimamanda Adichie
constrói uma personagem audaz, inteligente, contestadora, independente, complexa e,
principalmente, não idealizável.
Ifemelu não cabe em reducionismos maniqueístas, pois não encarna a concepção
romântica da protagonista ‘mocinha’ doce, apaziguadora incapaz de alguma atitude
reprovável, inalcançável em um pedestal de perfeição absoluta. Há momentos em que ela se
mostra admirável e sensível, mas em outros suas atitudes e posicionamentos podem ser
questionados. Além disso, como bem resume Cavalcante (2017, p.82):

Ifemelu é uma personagem que, acima de tudo, demonstra agenciamento e


autonomia. A sociedade ocidental enxerga os emigrantes e refugiados desprovidos
dessas características, são vistos como pessoas em constante estado de
dependência, cerceados por discursos de preconceito e estereótipo, são
humilhados nas fronteiras, impedidos de trabalhar, de ser produtivos. Uma
personagem como Ifemelu desautoriza essas interpretações e demonstra a
capacidade de agência do sujeito diaspórico.

Ifemelu é, portanto, uma personagem que dialoga não só com as projeções


conscientes e inconscientes de quem lê Americanah ou confronta as expectativas de quem está
habituada (o) a outros tipos de personagens protagonistas. Trata-se de uma personagem que
consegue dialogar com o contexto atual, em que a internet e seus influenciadores digitais
ocupam boa parte do tempo e do cenário da vida de todos. Se observarmos a realidade
brasileira, já podemos identificar mulheres negras jovens que, assim como Ifemelu, estão
construindo e fortalecendo espaços de debate sobre a questão etnicorracial brasileira e a
internet, bem como a forma pela qual tem se tornado um instrumento nessa empreitada.
Utilizando uma denominação que Morais (2018) atribui às personagens da ficção de
Conceição Evaristo, podemos sentenciar que Ifemelu é um sujeito contemporâneo. Nas
palavras da pesquisadora, isso significa que: “o sujeito contemporâneo, esse que está no
presente, percorre caminhos de consciência diaspórica, vendo as obscuridades que

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pertencem ao seu tempo, mas também enxergando suas potencialidades, ainda que
longínquas” (MORAIS, 2018, p.69).
Como já falamos, Ifemelu é uma estudante universitária nigeriana que se mudou para
os Estados Unidos para estudar e anos depois se torna uma blogueira, que discute sobre
questões etnicorraciais, sendo através desse trabalho que conseguiu sua estabilidade
financeira. Um dos contrapontos mais importantes que a representação dessa personagem
apresenta para o leitor é o quanto seu trabalho e empenho intelectual são valorizados, o que
fratura e questiona os estereótipos exaustivamente utilizados na representação de mulheres
negras no discurso literário. Por isso, a dimensão da vida de Ifemelu (de quem ela é/está
sendo) que pretendemos destacar neste trabalho é a Ifemelu escritora, a contadora de
histórias.
Por que abordar Ifemelu como escritora? Ao chegar aos EUA, Ifemelu é confrontada
com uma série de informações e vivências que movimentaram a maneira como ela se
pensava e se definia até então, quando o exercício de sua escrita desempenha um papel
fundamental no modo como se reorganiza e elabora sua relação com o contexto social e
político em que está inserida. Ao responder às indagações de uma mulher ao afirmar que a
questão racial nos EUA não é um problema, Ifemelu relata como se descobriu negra nos
Estados Unidos e o que significa ser negra nesse país:

O único motivo pelo qual você diz que a raça nunca foi um problema é porque
queria que não fosse. Nós todos queríamos que não fosse. Mas isso é uma
mentira. ‘Eu sou de um país onde a raça não é um problema; eu não pensava em
mim mesma como negra e só me tornei negra quando vim para os Estados
Unidos’ (ADICHIE, 2014, p.315, grifos nossos).

Sobre se descobrir como pessoa negra nos Estados Unidos, Ifemelu também tratou
dessa problemática no texto ‘Para outros Negros Não Americanos: Nos Estados Unidos
você é negro, baby’ de seu blog:

‘Querido Negro Não Americano, quando você escolhe vir para os Estados
Unidos, vira negro’. Pare de argumentar. Pare de dizer que é jamaicano ou
ganense. A América não liga. E daí se você não era negro no seu país? [...] Ao
descrever as mulheres negras que você admira, sempre use a palavra forte, porque,
nos Estados Unidos, é isso que as mulheres negras devem ser. Se você for mulher,
por favor, não fale o que pensa como está acostumada a fazer em seu país.
Porque, nos Estados Unidos, mulheres negras de personalidade forte dão medo.
E, se você for homem, seja supertranquilo, nunca se irrite demais, ou alguém vai
achar que está prestes a sacar uma arma[...] Os negros não devem ter raiva do
racismo. Se tiverem, ninguém vai sentir pena deles (ADICHIE, 2014, p. 239-240,
grifos nossos).

Os textos de Ifemelu no blog, constantemente interpelam ou falam sobre as


experiências de pessoas negras vindas de outros países destacando assim os vários percursos

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diaspóricos que estão presentes nos Estados Unidos e que servem para ampliar concepções a
respeito de ser uma pessoa negra nesse contexto. No texto anteriormente mencionado,
Ifemelu se dirige aos ‘negros não americanos’ para falar de uma série de comportamentos
que adquirem significados diferentes, quando se é uma pessoa negra nos EUA. Ao mesmo
tempo, nesse exercício de escrita, Ifemelu escancara as posturas racistas que afetam
cotidianamente o modo como homens e mulheres negros se relacionam.
Os textos de Ifemelu intitulados ‘Entendendo a América para o Negro Não
Americano: o tribalismo americano’, ‘Para outros Negros Não Americanos: Nos Estados
Unidos você é negro, baby’ e ‘Entendendo a América para o Negro Não Americano:
Explicações sobre o que algumas frases realmente querem dizer’ também são exemplos de
como a protagonista constantemente tenta estabelecer diálogos com as pessoas negras da
diáspora africana e, ao mesmo tempo, mostrar sua leitura sobre como as questões
etnicorraciais se manifestam no seio de relações cotidianas nos EUA.
Outra peculiaridade a ser destacada sobre os textos de Ifemelu se refere ao modo
como ela os utiliza para comunicar às pessoas brancas sobre a condição social da população
negra e sobre racismo. Nesses textos, a blogueira subverte a noção de prescrição de
comportamento para instruir, para ‘educar’ pessoas brancas sobre a condição da pessoa
negra na sociedade estadunidense. O trecho a seguir do texto ‘Dicas amigáveis para o Não
Negro Americano: como reagir a um Negro Americano falando sobre Negritude’,
exemplifica essa ideia:
‘Querido Americano Não Negro, caso um Americano Negro estiver te falando
sobre a experiência de ser negro, por favor, não se anime e dê exemplos de sua
própria vida’. [...] Finalmente, não use aquele tom de Vamos Ser Justos e diga:
‘Mas os negros são racistas também’. Porque é claro que todos nós temos
preconceitos, mas o racismo tem a ver com o poder de um grupo de pessoas e,
nos Estados Unidos, são os brancos que têm esse poder (ADICHIE, 2014, p.353,
grifos nossos).

É importante observar nos textos de Ifemelu, o uso de vocativos (‘Querido


americano não negro’, ‘Querido negro não americano’), o tom coloquial para falar de
assuntos complexos, como questões etnicorraciais e de gênero e o uso da ironia como
recorrências que demarcam certa oralidade, os quais remetem à própria Chimamanda
Adichie em suas entrevistas e palestras. Nesse contexto, faz-se importante evidenciar que
nos textos da tradição afrodescendente o relato de experiência, a memória e a oralidade são
dimensões fundamentais.
Nos posts do blog, Ifemelu conta histórias e a partir dessas narrativas ou relatos discute
as suas observações sobre a negritude nos EUA. Em alguns desses posts a protagonista troca
informações, atribui ou deixa de atribuir identificações e semelhanças às pessoas que

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participaram da história que ela relata, essas pequenas ficcionalizações corroboram com
Ifemelu na função de contadora de histórias e afirmam a tradição africana de narrar as
experiências e memórias do grupo de geração a geração, herança que se evidencia na escrita
oralizada de Ifemelu (SOUZA, 2017).
A protagonista cria o lugar de observadora e debatedora do modo de vida
estadunidenses. Em seus textos não são os EUA que estão construindo narrativas sobre o
outro, mas é esse outro que está produzindo narrativas sobre os EUA. Sendo assim, os posts
de Ifemelu e Americanah são textos subvertedores de hegemonias por deslocarem a lógica
consolidada de produção de conhecimento e de narrativas, questionando, assim, a
hierarquização dos saberes.
Nesses textos, o homem branco (ou a nação mais poderosa) não está falando sobre
alguém, produzindo narrativas sobre alguém, faz-se o contrário, é uma mulher negra que
tornou ‘o modelo’ como objeto sobre o qual vai falar na sua própria narrativa. Por que
ressaltamos isso? Porque mulheres negras enfrentam e tentam superar questionamentos
como: - pode a mulher negra falar? Pode a mulher negra falar sobre isso? Pode a mulher
negra falar desse modo?
Grada Kilomba, artista plástica portuguesa, analisa que as mulheres negras ocupam
uma posição problemática na sociedade supremacista branca e, assim, representam uma
dupla carência, dupla alteridade, pois são a antítese da masculinidade e da branquitude e
assim mulheres negras não sendo nem brancas e nem homens “exercem a função de outro
do outro” (KILOMBA, 2010, p.118).
Para a autora citada anteriormente, não se trata de hierarquizar estruturas de
opressões ao ponto de mulheres negras terem que escolher entre solidariedade com homens
negros ou mulheres brancas, mas sim tornar visível suas experiências. Ifemelu ao tomar o
poder da escrita e assim localizar de outro modo a ‘antítese branquitude e masculinidade’ 53

(KILOMBA, 2010, p.117) desestabiliza lugares e modos de saber e poder consolidados.

Considerações Finais

O modo como a personagem Ifemelu é construída na trama, impõe rupturas às ideias


universais de mulher (branca e dócil) através da protagonista negra do romance. Lembrando
que as palavras ‘protagonista’ e ‘negra’ estão na mesma frase, fato que indica algo raro,
também, para boa parte do público leitor brasileiro, em que os romances no Brasil são

53 Tradução de Djamila Ribeiro (2018).

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publicados por grandes casas editoriais, que sub-representam a pessoa negra, reforçando
visões estereotipadas desse grupo social, como ressalta o estudo ‘Personagens do romance
brasileiro contemporâneo: 1990-2004’, coordenado por Regina Dalcastagné, professora da
Universidade de Brasília.
Essa pesquisa se debruça sobre os romances brasileiros publicados de 1990 a 2004
pelas três editoras de maior destaque no mercado editorial brasileiro: Rocco, Record e
Companhia das Letras, sendo esta última a editora que publica os livros de Adichie no Brasil.
Uma das principais constatações da pesquisa é que existe uma ausência da pessoa negra nos
romances brasileiros abordados, tanto de escritores e escritoras quanto de personagens.
Na maioria dos livros sob a investigação do estudo ocorreu a predominância de
personagens do sexo masculino: homens brancos adultos, heterossexuais, escritores. As
personagens negras aparecem poucas vezes nos romances estudados e são majoritariamente
representadas como bandidos/contraventores, empregada doméstica, profissional do sexo
ou dona de casa e, só em 5,8% do corpus pesquisado, os negros são protagonistas e em 2,7%
narradores (DALCASTAGNÉ, 2011).
Apresentamos esses dados para ressaltar que “[...] a ausência de personagens negras
na literatura não é apenas um problema político, mas também um problema estético, uma
vez que implica a redução da gama de possibilidades de representação” (DALCASTAGNÉ,
2011, p.322). Por isso, faz-se necessário, também, para o contexto brasileiro o maior contato
com narrativas que desconstruam esse lugar de ‘mais do mesmo’ destinado às minorias
étnicas e para formar leitores literários que possam constituir o seu imaginário com outras
imagens a respeito das pessoas negras.
A criação do blog de Ifemelu e o contexto em que isso acontece implicam novas
possibilidades, que não serão só boas, ou só ruins. Nessa empreitada, a personagem constrói
novos caminhos e novos lugares a partir do encontro entre as histórias que irão povoar seu
blog e suas ‘Observações Curiosas de uma Negra Não Americana sobre a Questão da
Negritude nos Estados Unidos’. O nome do blog está marcado, assim como Ifemelu, por
dimensões importantes da sua vida que a ajudam a reconhecer a si mesma e o lugar de onde
vai partir para se tornar quem ela luta para ser.
Dessa maneira, o romance de Adichie corrobora simbolicamente com a
desestabilização importante e necessária: a mulher negra em diáspora protagonizando
discussões e processos de produção de conhecimento nos Estados Unidos. Chimamanda
Adichie cria, portanto, uma personagem que, mesmo ocupando um lugar de estrangeira
vinda da África (e todos os estereótipos que estão ligados a esse lugar), não está limitada ao

68
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perfil em que sempre tentam encerrar as representações das mulheres negras.


Criar uma protagonista conectada com uma atividade de escrita é uma estratégia para
valorizar a dimensão subjetiva da personagem, é um recurso que destaca o modo como a
personagem vivencia, se relaciona, interage, ou tenta transformar a realidade em que convive,
o meio no qual está inserida. A escrita deflagra a capacidade intelectual, de apreensão crítica
da realidade e de agenciamento de Ifemelu e, por isso, merece destaque em nossa discussão
teórica que aborda também o conceito de empoderamento.
No encontro entre Ifemelu e Estados Unidos, a escrita se torna uma possibilidade de
resistência e de elaboração da sua condição social e política. Somente quando Ifemelu chega
aos EUA se descobre negra e o que isso significa, a partir de então, ela cria outras formas de
nomear a experiência de ser ela mesma e, nesse processo, a escrita desempenha um papel
necessário e potente, assim como a música e a literatura têm sido para os negros americanos,
sobretudo nos dois últimos séculos.
Ifemelu é a mulher a caminho, que está construindo, através das suas palavras, rotas
para encontrar sua voz, seu lugar e sua marca no mundo. A escrita faz parte desse processo
como sua estratégia para abrir caminhos, ou seja, a senha pela qual, parafraseando Conceição
Evaristo (2005), 54 Ifemelu acessará o mundo ou um país, que pode ser a Nigéria, os EUA ou
um novo que ela vai conhecer/construir a partir de suas escrevivências.

Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Americanah. Tradução Júlia Romeu. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014.

BERTH, Joice. O que é empoderamento?. Belo Horizonte: Letramento, 2018.

CAVALCANTE, Edilma. Um percurso de leitura de ‘Americanah’: a experiência que


empodera?. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2017. 86p. [Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Pernambuco],
Recife, 2017.

DALCASTAGNÉ, Regina. A personagem negra na literatura brasileira contemporânea. In


DUARTE, Eduardo Assis (org). Literatura e afrodescendência no Brasil: Antologia
Crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. Tradução Heci Regina Candiani. São Paulo:
Boitempo, 2017.

54 'Gosto de dizer ainda que a escrita é para mim o movimento de dança-canto que o meu corpo não executa, é
a senha pela qual eu acesso o mundo.” (EVARISTO, 2005, p.202).

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EVARISTO, Conceição. Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In MOREIRA,


Nadilza Martins de Barros; SCHNEIDER, Liane. (org). Mulheres no mundo: etnia,
marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia/ Universitária, 2005.

KILOMBA, Grada. Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast


Verlag, 2010.

MORAIS, Juliana Borges Oliveira de. Espaços e sujeitos contemporâneos: Trânsitos e


percursos. In DUARTE, Constância Lima; CÔRTES, Cristiane; PEREIRA, Maria do
Rosário A. (orgs). Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição
Evaristo. Belo Horizonte: Editora Idea. 2018.

RAMOS, Neila Roberta Carvalho. Uma história sobre as muitas histórias de


Chimamanda Ngozi Adichie. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2017. 113p.
[Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura], Salvador,
Universidade Federal da Bahia, 2017.

RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das
Letras, 2018.

SOUZA, Elio Ferreira de. Poesia negra: Solano Trindade e Langston Hughes. Curitiba:
Appris, 2017.

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ORALIDADE E ANCESTRALIDADE: UMA ANÁLISE DE ‘HISTÓRIAS DE


LEVES ENGANOS E PARECENÇAS’, DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Wilany Alves Barros do Carmo55


Orientador: Elio Ferreira de Souza 56

Considerações iniciais
Desde o sequestro do africano e o seu consequente deslocamento para as terras das
Américas, a literatura tem construído caminhos os quais evidenciam uma representação da
cultura negra e sua afirmação dentro do sistema cultural brasileiro. Dessa forma, esta
pesquisa se nutre da literatura de autoria negra, afrobrasileira, ou ainda, afrodescendente
como representação dos lugares sociais, políticos e raciais habitados pelo negro e suas
manifestações culturais.
A representação da memória individual e coletiva se constitui ferramentas para os
escritores e escritoras negros, cujas pautas artísticas, culturais e políticas têm como norte a
valorização de todo um conjunto de elementos envolvendo o negro, bem como,
denunciando a discriminação, o preconceito e, sobretudo, o racismo. No Brasil, a literatura
negra, nos seus aspectos narrativos e no trato com a linguagem, é marcada pela forte
presença da oralidade que, muitas vezes, resulta dos contatos com os cantos e canções
populares de origens afrobrasileiras e afrodescendentes (SOUZA, 2017).
No que tange à literatura escrita por negros e negras no Brasil, temos como uma das
principais representantes a escritora Conceição Evaristo. Suas obras, bem como a linguagem
adotada é marcada por enredos envolvendo histórias oriundas dos espaços sociais
esquecidos pela elite, assim como pelos representes políticos. Em sua produção poética
discute as forças da ancestralidade e da oralidade tendo como parâmetro o lugar e a
subjetividade do negro, em geral, e da mulher negra, em particular. Sua escrita tematiza as
narrativas e relatos de personagens que vivem às margens da sociedade, em confronto com
as forças centrípetas das classes sociais e suas táticas de apagamentos das identidades e das
culturas dos negros e seus descendentes. No que concerne ao espaço geocultural, essas
personagens se debatem com questões de deslocamentos geográficos, busca de identidade,
representação cultural e política, reconquista física e religiosa, além de recomposição
psicológica.
Como declara Édouard Glissant, o negro, apesar de todas as forças contrárias,

55 Mestre em Literatura, Memória e Cultura – UESPI. [email protected]


56 Professor do Mestrado Acadêmico em Letras e do Curso de Graduação em Letras/Português da
Universidade Estadual do Piauí/UESPI.

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conseguiu através do “pensamento do rastro/resíduo” (GLISSANT, 2013), se opor ao


‘pensamento de sistema’ e, até mesmo na hora do desembarque, deixar suas pegadas nas
Américas. Tsumbe Maria Mussundza (2018, p. 27), poeta performático moçambicano, afirma
que é necessário preservarmos nossa ancestralidade a partir de nossas pegadas: “Meu filho,
por onde andar não deixe sua boca, deixe suas pegadas.” No Brasil, as pegadas dos negros
podem ser vistas na dança, na culinária, na religiosidade, nas edificações, na economia e,
também na literatura. Nessa forma de expressão, Conceição Evaristo afirma que: “O desejo
de construção de uma África-mãe nos textos afrobrasileiros se confunde e se mescla com o
desejo de construção de uma identidade afrobrasileira. Portanto, temos o sujeito poético que
amalgama África e Brasil” (2011, p. 23).
Essas considerações são importantes para entendermos a literatura afrobrasileira.
Essas histórias contadas são como estratégias de luta para afirmar um sentimento positivo da
cultura dos ancestrais africanos. Os poemas e narrativas dos afrobrasileiros dialogam com a
tradição africana, transitam entre a escrita e a oralidade. A obra de Conceição Evaristo vem
revelando uma ancestralidade intimamente ligada às culturas de matrizes africanas, além de
indicar uma memória em resistência e em processo de transculturação no Brasil.
A herança oral é uma tradição dos povos africanos, os quais transmitem seus saberes
de geração em geração, através da palavra falada. Os Domas ou Griots são “[...] os grandes
depositários da herança oral, são os chamados ‘tradicionalistas’ e, também, o Guardião dos
segredos da Gênese com sua memória prodigiosa” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 174). A fala,
para as sociedades africanas é poderosa e de grande valor, por isso os griots são importantes,
pois carregam todo um acervo de saberes que é guardado na memória como forma de
preservação da ancestralidade.
Nesse sentido, a oralidade tem como uma de suas manifestações a magia poderosa
do encantamento pelo qual a oralidade tem o poder de preservar, difundir e ensinar, como
forma de ligar o passado vivido ao presente. Segundo Hampâté Bâ “[...] a fala é, portanto,
considerada como materialização, ou a exteriorização das vibrações das forças” (2010, p.
172). A palavra no campo da experiência africana e, por conseguinte, afrodescendente
carrega poder, tem força e é divina. Assim, a pessoa que a utiliza deve saber quais são seus
fundamentos, bem como as consequências de sua utilização.
A prática da oralidade requer certa adequação ao seu uso, pois se ocorrer de quebrar
os seus princípios e a pessoa faltar com a verdade, para as sociedades orais, é preferível que
ela morra, visto que a mentira é abominável. Dessa forma, Hampâté Bâ (op. cit.) chama a
atenção para o fato de que a palavra carrega um poder divino.

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Agora podemos compreender melhor em que contexto mágico-religioso e social


se situa o respeito pela palavra nas sociedades da tradição oral, especialmente
quando se trata de transmitir as palavras herdadas de ancestrais ou de pessoas
idosas. O que a África tradicional mais preza é a herança ancestral. O apego
religioso ao patrimônio transmitido exprime-se em frases como: ‘Aprendi com
meu Mestre’, ‘Aprendi com meu pai’, ‘Foi o que suguei no seio da minha mãe’
(HAMPATÈ BÂ, 2010, p. 174).
As sociedades fundamentadas na oralidade valorizam a cultura da palavra falada, pois
os ensinamentos vêm de seus antepassados, dos ancestrais – dos avós, pais, tias e tios.
Nessas comunidades, a memória se torna uma ferramenta de fundamental importância no
processo de transposição de imagens e lembranças. Com esse recurso, o passado e o
presente se conectam para transformar o tempo do hoje numa experiência da vivência no
vivido. Os poetas orais são importantes para a movimentação da cultura, da qual um povo
faz parte. As culturas dos povos negros têm uma relevância na construção e reconstrução
das histórias em diáspora. Em pleno século XXI, com o maior uso da escrita e das novas
tecnologias, a figura do griot tem sido redimensionada como forma de ancoragem das
sociedades africanas num mundo em transformação.
O escritor afrodescendente tem na oralidade um instrumento fundamental para a
construção de uma identidade que foi fragmentada ao longo dos séculos. O povo negro teve
sua memória violentada pela cultura eurocêntrica. Por vários séculos, as narrativas e a cultura
desses povos foram consideradas irrelevantes para a história da civilização ocidental. Por isso
que os escritores, poetas e críticos literários da literatura afrobrasileira montam um novo
limiar, dando visibilidade positiva aos textos afros, inserindo os mitos, lendas, músicas e a
religiosidade como correção de uma história que foi forjada pela hegemonia da cultura
europeia no Brasil. É dessa forma que a cultura negra se afirma na literatura brasileira,
através de ‘rastros-resíduos’ (GLISSANT, 2013) da cultura africana, à luz de narrativas
contadas por seus antepassados como uma ‘Tradição Viva’ (HAMPÂTÉ BÂ, 2010).
Na África, o respeito à ancestralidade é sagrado. A família é a base de sustentação
desse código social. No caso da condição atual das culturas, a evocação aos antepassados,
pelos povos negros em diáspora, constitui uma das estratégias mais fortes de interpretação,
leitura e organização do homem no mundo em transformação.
A memória dos ancestrais é um quebra-cabeça. As peças do jogo foram lançadas
no rio de histórias fragmentadas pela travessia. O poeta negro mergulha nas águas
profundas desse rio, engendrando na forja e bigorna da oficina o laborioso ofício
de refundir o elo da memória, que se rompeu em pedaços no curso da escravidão
(SOUZA, 2017, p. 79).
Nessa busca por organização social, catar os fragmentos da cultura, os flagelos, os
rastros e resíduos deixados pela travessia do Atlântico parece fazer parte de um processo que
vai além dos movimentos das culturas. Conforme Édouard Glissant (op. cit.), as culturas estão
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travando uma relação a partir da qual se pode vislumbrar uma crioulização não só das
culturas, mas principalmente, do mundo, “o mundo se criouliza. [...] Isso é: as culturas do
mundo colocadas em contato umas com as outras” (GLISSANT, 2013, p. 17) projetam uma
tendência como parte de uma transformação consciente das identidades culturais. O exílio
do africano nas Américas constitui a base desse processo. A caracterização mais significativa
disso tudo pode ser a projeção circular de uma herança residual transportada pelas hidrovias
do Atlântico para fertilizar as culturas do mundo.
Em ‘Histórias de leves enganos e parecenças’, Conceição Evaristo se lança a um
projeto narrativo voltado para o realismo animista. O livro é composto por doze contos e
uma novela. Na obra, a autora transita entre os mistérios e o imprevisível. Nesse universo de
interpretação, ‘Histórias de leves enganos e parecenças’ nos apresenta uma narradora que fala
de dentro do lugar vivido, sob a ótica da subjetividade da mulher negra. Todos os doze
contos e a novela ‘Sabela’ são narrados por uma reunião de vozes-mulheres. Tal percurso é
reiterado pela professora Assunção de Maria Sousa e Silva.

Nessa comunhão de vozes-mulheres que percorrem a obra de Conceição, numa


dimensão que agora tende para o ‘realismo animista’, as figuras feministas dão o
tom da feitura do universo criado. Elas estão despertas e, ao contarem suas
histórias de leves enganos, fazem ressoar parecenças. Nesse ato que não há espaço
para emudecimento, contrapondo-se à violência de todos os modos, multiplicam
forças e revigoram a existência na tessitura da solidariedade e da resistência
(SILVA, 2016, p. 14).
Essas ‘vozes-mulheres’ fazem com que o leitor se envolva na trama e, algumas vezes,
se reconheça como parte da narrativa. Silva (op. cit.) afirma que ‘Histórias de leves enganos e
parecenças’ “[...] é um livro inovador no limiar de suas obras, pois percorre a seara do
estranho, do ‘mágico’ e do imprevisível que caracteriza um pensamento animista” (SILVA,
2016, p.8). Para Harry Garuba (2012), o realismo animista é um persistente reencantamento
do mundo.

Ao empregar a expressão ‘reencantamento do mundo’, portanto, desejo chamar a


atenção para o inverso do que Weber descreve: um processo segundo o qual
‘elementos mágicos do pensamento’ não são deslocados, mas ao contrário,
constantemente assimilam novos desenvolvimentos na ciência, tecnologia e a
organização do mundo dentro de uma cosmovisão basicamente ‘mágica’. Em vez
de ‘desencantamento’, um persistente reencantamento ocorre, portanto, o racional
e o científico são apropriados e transformados no místico e no mágico
(GARUBA, 2012, p. 239).

O animismo é utilizado nos contos africanos como forma de crença, ou seja, a


natureza é viva e possui alma, agindo de forma intencional como punição ou redenção das
pessoas (GARUBA, 2012). As narrativas do livro são construídas através da memória afetiva
da escritora e nos apresentam uma cosmovisão da ancestralidade negra a partir da

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representação das personagens e episódios protagonizados na obra.


Na coletânea de contos ‘Histórias de leves enganos e parecenças’, têm-se histórias de
pouca extensão. Nesse livro, a escritora insere a proposta animista que é a “valorização da
cultura tradicional africana, a presença acentuada do imaginário ancestral” (WITTIMAN
apud PARADISO, 2015, p. 272). Essas narrativas provocam uma sensação de
estranhamento, mas aos poucos elas vão dando ao leitor um aprofundamento de sensações e
reflexões sobre a realidade, apresentando-lhe histórias cheias de encantamentos e mistérios.
Outro ponto revigorante é a presença marcante da oralidade e ancestralidade. Na
textualidade, incluem-se as problemáticas da sociedade contemporânea, valorizando a cultura
e a religiosidade afro-brasileiras.
Nós iremos analisar dois contos da obra ‘Histórias de leves enganos e parecenças’, de
Conceição Evaristo. O primeiro conto 'Rosa Maria Rosa’ relata em apenas um parágrafo, a
história de uma personagem que mantinha os braços cruzados, de mãos fechadas e de
postura ereta. Seu jeito de ser, não assustava as pessoas que conviviam com ela, muito pelo
contrário, elas se sentiam atraídas pelo carisma e pelo perfume que Rosa exalava por onde
passava. Porém, um dia de intensa alegria ‘Rosa Maria Rosa’ se distraiu e abriu os braços
com vontade de acolher o mundo e “[...] a cada gota de suor que pingava das axilas de Rosa,
pétalas de flores voavam ao vento. Foi descoberto seu segredo” (EVARISTO, 2016, p. 18).
Esse conto tematiza a solidariedade e a esperança da personagem por espalhar o
amor às pessoas que estavam tristes. Nele, podemos perceber a presença do insólito, pois o
perfume que Rosa Maria Rosa exalava de suas axilas se misturava ao ar e provocava uma
sensação de amorosidade. Dessa forma, os contos de Conceição Evaristo vêm como “[...]
movimento de reanimar mitos e ritos próprios, fazendo com que o local da cultura se
projete” (PADILHA, 2007, p. 450). A escritora mineira insere em seus contos elementos do
realismo animista, originados da literatura africana e com o objetivo de valorizar as culturas
dos ancestrais africanos.
O realismo animista é evidenciado em contos como “Nossa Senhora das
Luminescências.” Em sua leitura, percebemos a evocação à tradição religiosa hibridizada,
quando a personagem narradora obteve uma graça por intercessão de uma santa. Quando a
piedosa é solicitada, esta aparece com uma cuia e uma infinidade de velas que nunca se
apagam para ajudar e trazer o alívio aos que estão oprimidos. Numa noite, a protagonista
perde a visão e não consegue encontrar o caminho de casa e clama por Nossa Senhora das
Luminescências e tem seu pedido atendido. “Certa noite, estava eu buscando a direção da
minha casa, em cegueira que às vezes me ataca, quando clamei pela dona das Luminescências

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e ela surgiu para me guiar” (EVARISTO, 2016, p. 35). Nessa narrativa, a oralidade se
manifesta nas repetições de pronomes (eu, ela, me), fazendo com que o texto se aproxime do
leitor por meio das pausas, as quais são marcadas pelas vírgulas e frases curtas.
Para Ana Mafalda Leite (2014, p. 45) as estratégias da oralidade são “[...] um conjunto
de processos retóricos, que obsessivamente se repetem, como a personificação, a hipálage, a
animalização, a metáfora, a comparação.” Mafalda ainda ressalta que “os provérbios, as
sentenças, as frases feitas são portadoras de significação didaticofilosófica” (Idem). Esses
elementos se materializam na escrita de Conceição, formando um texto híbrido típico de
narrativas originadas da oralidade. Em ‘Nossa Senhora das Luminescências’, a narrativa se
desenrola com uma mãe angustiada, pois seu filho se engasgou com uma espinha de peixe.
Ao recorre à Nossa Senhora das Luminescências ela apareceu e ajudou com sua cuia,
iluminando a boca da criança.
Dias desses, me contaram que uma criança no afã de comer um peixe, ainda
quente da fritura, além de queimar a língua, ficou sufocada com um espinho
agarrado na garganta. Nem chorar a criança conseguia, apenas gemia. A senhora
das Luminescências surgiu de repente trazendo alívio. Apanhou o pequenino e, na
escuridão do entorno, com sua cuia plena de luzes iluminou a boca da criança. Lá
dentro, quem estava perto, viu uma enorme espinha de peixe, furando a garganta
do menino. A mãe das Luminescências somente fez isto: três vezes esquentou a
mão livre nas velas e friccionou suavemente na garganta do menino. E no final da
terceira repetição do gesto, a criança, que se encontrava prostradinha no colo de
sua mãe, ergueu o corpo tossindo, e o motivo do engasgo foi expelido
repentinamente (EVARISTO, 2016, p. 35-36).

Os elementos da oralidade são evidenciados quando a narradora dá a impressão de


que está contando uma história, aproximando personagem e leitor. Essa peculiaridade está
diretamente relacionada aos contadores de história da África, os griots. Conceição Evaristo
assume a função de contadora de histórias dos afrodescendentes em diáspora. Em ‘Nossa
Senhora das Luminescências’, podemos perceber o envolvimento da narradora buscando
evidenciar o ‘mágico’ através da interferência de forças da natureza e entidades espirituais ou
divindades, que transcendem à lógica cartesiana e cientifica ocidental. Ainda no conto em
análise, a santa opera outros milagres, quando salva a vida de uma mãe grávida de trigêmeas
e, no momento de conceber o terceiro filho, a criança se negava a nascer preferindo
continuar em sua primeira morada.
Outra presteza da Dona das Luminescências foi no parto dos trigêmeos de
Assunção. O primeiro e o segundo bebê nasceram rapidamente, escorregando
ligeiros do útero da mãe. Entretanto o terceiro, talvez amedrontado com os
sofrimentos que rondam o mundo, parou no meio do nascimento. A cabecinha
despontava e, quando a parteira estendia as mãos para amparar o bebê, o rebento
recuava para sua primeira moradia. Mas foi só Nossa Senhora das Luminescências
chegar ao quarto e iluminar o interior da parturiente, que o terceiro rebento
perdeu a covardia diante do mundo que o esperava. Destemidamente encontrou o
caminho da saída e se juntou aos seus (EVARISTO, 2016, p. 36).

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No movimento de sua escrita, Conceição Evaristo abre espaços para a criação de


histórias que estão no imaginário coletivo do povo negro. Ana Mafalda Leite (2003) afirma
que é na oralidade que estão as raízes da literatura e, mesmo depois da literatura escrita ter se
desenvolvido, a oralidade continuou a ser elemento importante e a exercer influência no
imaginário popular. Dessa forma, o realismo animista penetra nos contos e na novela
‘Sabela’ como forma de instaurar as forças da natureza dentro da cultura afrodescendente.
Em seu ensaio ‘Explorações no realismo animista: notas sobre a leitura e a escrita da
literatura, cultura e sociedade africana’ (2012), o pesquisador Harry Garuba faz um panorama
do pensamento animista, relacionando suas reflexões a outros conceitos. Para o pesquisador,
“[...] a cultura animista abre, portanto, um mundo completamente novo de grandes
possibilidades, influenciando o futuro, por assim dizer, pela reinvindicação daquilo que no
presente ainda está para ser inventado” (GARUBA, 2012, p. 242).
Hampâté Bâ (2010) diz que “[...] o respeito pela palavra nas sociedades da tradição
oral, especialmente quando se trata de transmitir as palavras herdadas de ancestrais ou de
pessoas idosas” são importantes para ressignificar as histórias dos afrodescendentes em
terras das Américas. Glissant (2013) diz que o poeta ou escritor passa por duas
problemáticas, atreladas à uma angústia criativa quando passa para o papel sua narrativa.
A questão sobre a escrita e a oralidade gera, nos dias de hoje, uma situação de
angústia vivificante para o poeta, o escritor. Estes necessitam enfrentar duas
problemáticas que estão interligadas: a primeira é a expressão de sua comunidade
dentro de uma relação com a totalidade-mundo, e a segunda é a expressão de sua
comunidade dentro de uma busca de absoluto e de não-absoluto, ou de escrita e
de oralidade, ao mesmo tempo. O poeta necessita realizar a síntese de tudo isso, e
é o que considero como exaltante e complexo no panorama atual e das línguas e
das literaturas do mundo (GLISSANT, 2013, p. 43).

Conceição Evaristo é a síntese do pensamento glissantiano no momento em que


estabelece relação com a ‘totalidade mundo’, apropriando-se em seus poemas e narrativas de
elementos da herança ancestral africana. Glissant (op. cit.) aborda o conceito de ‘totalidade
mundo’ para esclarecer a imprevisibilidade das línguas e culturas entre si, gerando a
crioulização. Desse modo, “[...] estamos em sintonia com a ‘totalidade mundo’, estamos
dentro dela, pois ela deixou de ser um sonho” (GLISSANT, 2013, p. 40).
Através da hibridização da língua, os escritores africanos e afrobrasileiros tiveram
apropriação da textualidade oral por meio da “[...] recriação sintática e lexical e de
recombinações linguísticas, provenientes, por vezes, mas nem sempre, de mais do que uma
língua” (LEITE, 2014, p. 36). Assim, criando um diálogo “[...] uma espécie de
‘interseccionismo’ linguístico, em que prolongamentos de frases, ou partes de frases se
prolongam em diferentes línguas, alternando ou imprimindo ritmos diversificados” (LEITE,

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2014, p. 36).
Conceição Evaristo busca na tradição uma episteme narrativa marcada por metáforas
que envolvem a natureza (o sol, o mar, o canto dos passarinhos) o que nos faz lembrar a
herança dos contadores de história da tradição oral, cujas vozes vão repercutir nas narrativas
de ‘Histórias de leves enganos e parecenças’. Nos contos e na novela, são evocadas a
memória e a oralidade a partir das recuperações dos valores da cultura ancestral como as
danças, cantos e passos ritmados e ressignificados na diáspora.

Os africanos não chegaram às Américas como um saco vazio, completamente


desprovido de suas memórias, como é visível entre nós a presença de narrativas,
canções populares, cantos religiosos, religiões, lendas e mitos africanos. [...] No
Novo Mundo, os negros se reinventaram num novo Ser negro, fundindo o mito,
o imaginário, o que lhes restara dos fragmentos da consciência africana com o
novo aprendizado, este adquirido na terra do cativeiro (SOUZA, 2016, p. 86).

Nesse sentido, Evaristo restabelece, na sua obra, uma cosmogônica através da


estratégia de narrar as histórias dos ancestrais negros. Esse comportamento narrativo tem
como objetivo ressignificar os lugares de fala da cultura e identidades afrodescendentes. Ou
seja, o texto literário se transforma numa ‘seara’ literária, que representa, em particular, um
valor estético da tradição narrativa, escrita por homens e mulheres negras de literatura
afrobrasileira (SOUZA, 2017).

Considerações finais

‘Histórias de leves enganos e parecenças’ é uma coletânea de narrativas que aborda


manifestações do imaginário afrobrasileiro a partir da tradição e do contemporâneo. Os
contos vão mostrando como os homens e mulheres negras foram e são tratados na
sociedade e como a herança escravocrata deixou marcas irreparáveis na vida e na história do
povo negro. Conceição Evaristo, ao escrever, se utiliza a ‘prosa poética’, com uma pitadinha
de imprevisibilidade, dos ‘mistérios’ e das significações da oralidade e da ancestralidade
afrodescendente. A escritora recorre à simbologia, às metáforas, morfologia, à uma sintaxe
repleta de entonações e imagens poéticas. Todo esse processo de formação da narrativa e do
texto nos ajuda a compreender suas personagens e suas lutas diárias.
Conceição Evaristo cria novos espaços de reflexão para compreendermos os vários
fluxos culturais e seus embates de fronteiras na geografia da literatura brasileira. Sua obra
segue a tendência em direção ao protagonismo negro, à reconstrução da identidade brasileira
como forma de enfrentar as várias formas de sobrevivências do racismo e do preconceito
acerca da cultura negra no Brasil. Por fim, as identidades culturais estão sendo (re)escritas, e
postas no contexto de uma nova compreensão sobre suas formações e seus papeis dentro do

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

contínuo da história brasileira. A obra de Conceição Evaristo é um dos meios para


elaboração, reflexão e denúncia da condição humana no contexto do século XXI.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

A URGÊNCIA DE LER A ESCRITA FEMININA EM ÁFRICA

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

DESPERTAR DAS VOZES FEMININAS EM NIKETCHE: UMA HISTÓRIA DE


POLIGAMIA, DE PAULINA CHIZIANE

Fernanda Oliveira da Silva (UFRJ) 57

A primeira mulher a publicar romance em Moçambique, Paulina Chiziane marcou


presença na conquista pela independência nacional como militante. A referida autora faz da
sua escrita um meio para contar ao mundo temas relacionados à tradição e à modernidade de
seu país. É essa escritora que, com sua prosa, entra em um universo que antes era composto
apenas por homens.
Chiziane, nascida em 1955, em Majancaze, Moçambique, é autora de cinco romances:
o primeiro deles, ‘Balada de amor ao vento’, publicado em 1990; depois, ‘Ventos do
apocalipse’, em 1993; ‘O sétimo juramento’, em 2000; ‘Niketche: uma história de poligamia’,
em 2002, que deu à escritora o Prêmio José Craveirinha, em 2003, e por último, ‘O alegre
canto da perdiz’, em 2008. Recentemente, em 2013 publicou o livro de contos ‘As
andorinhas’ e, em 2018, lançou seu primeiro livro de poemas, ‘O canto dos escravizados’. Os
livros ‘Quero ser alguém’ (2010), ‘Nas mãos de Deus’ (2012), ‘Por quem vibram os tambores
do além’ (2014) e ‘Ngoma Uethu’ (2015) também fazem parte de sua produção literária.
As obras de Chiziane vêm chamando a atenção do público em diversos países. Sua
escrita atrai a atenção dos leitores, pois, além da potência inovadora, traz assuntos polêmicos
relacionados às mulheres de Moçambique. Tal atitude corajosa levanta muitas críticas.
Contudo, isso não impede que a escritora abra mão de expor os tabus sobre o universo
feminino moçambicano.
As histórias narradas sensibilizam-nos e levam-nos a viajar pela cultura
moçambicana, apresentando-nos as tradições, os costumes levados pelos colonizadores, a
história do país e, especialmente, as desigualdades que as mulheres sofrem em seu cotidiano.
Aprendemos que não há possibilidade de falar sobre a questão feminina sem considerar as
culturas patriarcais enraizadas no país, principalmente no sul. Assim, entramos em contato
com diversos hábitos e discursos que corroboram a opressão da mulher.
O texto de Paulina Chiziane denuncia a situação da mulher colonizada, marginalizada
e subalternizada, evidenciando, dessa forma, uma luta pelo reconhecimento próprio do ser
feminino como mulher, como cidadã e como ser humano. A reivindicação dos direitos, dos
sonhos e desejos da mulher, de alcançar seu espaço e, desse modo, poder (re)escrever sua
história, são características das obras da escritora.

57 Projeto de pesquisa sobre angústia e transformação nas obras de Paulina Chiziane. Mestranda em Literatura
Africanas de Língua Portuguesa e integrante do Grupo de Pesquisa e Estudo Escritas do Corpo Feminino,
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected]

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Ler ‘Niketche: uma história de poligamia’ é ouvir as vozes das mulheres que, por
muito tempo, foram abafadas pela sociedade patriarcal. Paulina Chiziane inaugura esse
espaço de fala feminina, não apenas por apresentar uma mulher a narrar e a protagonizar o
romance, mas também, por usar a oralidade de forma recorrente como elemento aliado para
promover a visibilidade das vozes das mulheres moçambicanas.
Em um breve relato para sintetizar a obra, a história é narrada e protagonizada por
Rami, uma mulher do Sul de Moçambique, que tem um nível social elevado em comparação
ao das outras mulheres do país. Tony, com quem é casada há vinte anos, exerce um cargo
importante na polícia local. Ao estranhar as ausências de seu marido, Rami vai à busca de
uma explicação e descobre que Tony tinha relacionamentos extraconjungais com quatro
mulheres - Julieta, Luísa, Saly e Mauá Saulé – e passa a ter conhecimento da existência dos
outros filhos de Tony. Para surpresa do leitor, a protagonista se solidariza pela condição
inferior em que essas mulheres e seus filhos vivem e começa a conviver com elas até se
tornarem companheiras.
Antes de ampliarmos a discussão desse estudo, é interessante saber que Paulina
Chiziane é de origem chope, uma das etnias do sul de Moçambique, em que a musicalidade é
um aspecto significativo. Isso explicaria a herança da palavra oral e da musicalidade bem
presentes em suas obras. Assim, no trecho “Titubeio uma canção antiga daquelas que
arrastam as lágrimas à superfície. Nessa coisa de cantar, tenho minhas raízes. Sou de um
povo cantador” (CHIZIANE, 2004, p. 15). A oralidade em forma de canção aparece para a
personagem como característica de suas origens.
É incontestável a importância da oralidade nas culturas africanas, pois a palavra dita
existiu e foi responsável pela transmissão de conhecimento antes da palavra escrita. A
palavra oral representa a tradição, “difunde as vozes ancestrais, procura manter a lei do
grupo, fazendo-se, por isso, um exercício de sabedoria” (PADILHA, 2007, p. 35). Assim
como aparece em outras obras literárias africanas, a oralidade é uma das principais
características da obra de Chiziane, porém de uma maneira reinventada. Os elementos orais
não estão conectados apenas com a tradição, visto que estes nos levam a conhecer a real
posição que a mulher moçambicana ocupa na sociedade.
Ao iniciar a leitura de ‘Niketche’, acredita-se que a trama se desenvolverá em torno
apenas da vida da protagonista, pois ela está voltada para dentro de si, levantando
questionamentos sobre sua posição e tentando entender quem ela é. Porém, ao buscar
respostas para suas indagações, Rami sai do ambiente privado, sua casa, para o externo e, a
partir do contato com outras mulheres, leva à narrativa, situações diversas contadas pelas

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

vozes de mulheres de distintas partes do país.


Os diálogos que Rami tem, ao longo do romance, com outras mulheres trazem à
tona a situação de subalternidade em que as mesmas se encontram na sociedade. Torna-se
perceptível que uma das intenções da narrativa é denunciar a realidade do ser feminino de
Moçambique e, através das conversas entre as personagens, possibilitar o protagonismo
dessas vozes silenciadas. Defendemos essa visão, pois Chiziane, em uma entrevista feita por
Rosália Diogo, na ‘Revista Scripta’, quando confessa: “Tentei fazer uma espécie de
provocação, mostrando que o feminino também tem vez.”
Trazer o lugar de fala e de escuta para a mulher é permitir que seja livre da única
condição que o cenário comandado pelo homem proporciona a ela: a de inferioridade, de
subserviência. Em alguns momentos do romance, nota-se que Rami percebe que lhe é
negado o direito de ter voz ativa e de ser ouvida: “Será que não tenho direito de ser ouvida
pelo menos uma vez na vida? Estou cansada de ser mulher. De suportar cada capricho. Ser
estrangeira na minha própria casa. Estou cansada de ser sombra” (CHIZIANE, 2004, p.
203).
Pensar no conceito de ‘lugar de fala’ nos remete à escritora indiana Spivak, em
especial, no livro ‘Pode o subalterno falar?’, no qual a autora levanta reflexões importantes
sobre o silêncio imposto para aqueles que foram colonizados. A crítica acredita que esses
grupos oprimidos podem e devem ultrapassar essa barreira.
Spivak nota, dentro do grupo de subalternos, a diferença entre homens e mulheres:

No contexto do itinerário obliterado do sujeito subalterno, o caminho da


diferença sexual é duplamente obliterado. A questão não é a da participação
feminina na insurgência ou das regras básicas da divisão sexual do trabalho, pois,
em ambos os casos, há ‘evidência’. É mais uma questão de que, apesar de ambos
serem objetos da historiografia colonialista e sujeitos da insurgência, a construção
ideológica de gênero mantém a dominação masculina. Se, no contexto da
produção colonial, o sujeito não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno
feminino está ainda mais profundamente na obscuridade (SPIVAK, 2010, p. 66 -
67).

O trecho anteriormente citado contribui para entendermos que não é apenas no


universo literário que a mulher é tida como inferior e que sua palavra não é ouvida. Podemos
considerar que, através de Rami além das vozes ficcionais, a voz de Chiziane é exposta e sua
“narrativa [...], ao confrontar passado, presente e futuro, termina por trazer à tona práticas
culturais, hipocritamente disfarçadas e clandestinas, porém bastante arraigadas na sociedade
moçambicana” (SALGADO, 2004, p. 302).
O pesquisador Victor Azevedo (op.cit.) analisa essa questão e percebe que mesmo
com a “preocupação de distinguir o sujeito empírico daquele que fala de si nos relatos

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

autobiográficos, na perspectiva da narratologia, no senso comum ainda perdura uma certa


confusão entre narrador e autor, sobretudo nas narrativas em primeira pessoa”
(AZEVEDO, 2016, p. 102). O romance denuncia, portanto, a realidade da mulher
moçambicana e, conforme afirma Francisco Noa (2015, p.257), “a literatura implicando
criação de mundos imaginários, não deixa de, contudo, estabelecer relações com o mundo a
qual pertencemos.”
Ainda que Paulina Chiziane (op.cit., p.203) tenha preocupação com esclarecer que a
narradora protagonista e as outras personagens são fictícias e diferentes dela, a escritora
declara: “vou confessar uma coisa em relação a esse livro: tenho comigo algo que chamo de
livro do autor. Escrevi o livro de uma forma bem pessoal, escrevi a minha versão.”
Importante para esse capítulo é a afirmação que Chiziane (op.cit.) faz, frequentemente,
ao ser chamada de romancista:
O meu ponto de partida é a oralidade, e todos os meus trabalhos até hoje são
baseados na tradição oral, daí que eu não gosto de dizer que fiz um romance, uma
novela, ou seja, o que for. Eu conto uma história e, ao contá-la, acrescento um
ponto. E ela pode ser grande ou pequena (CHIZIANE,2004 apud
AZEVEDO, 2016, p. 4).

A insistência de Paulina em querer ser reconhecida como contadora de histórias e


não, como uma romancista, nos leva a fazer uma pausa no estudo de ‘Niketche’ para analisar
o comportamento da mulher escritora. Não resta dúvida de que essas declarações atestam o
desejo de Chiziane (op. cit.) de reivindicar um “legado de oralidade que a infância rural lhe
proporcionou”, como afirma Leite (2013, p. 29). Tal estratégia indicaria, ainda, continua
Leite (op.cit., p. 29), uma intencionalidade autoral de sentido moralizador, isto é, pedagógico,
comprometido com a formação de valores éticos e comportamentais.
Ainda que tais observações sejam pertinentes, cabem aqui, também, algumas
considerações referentes à questão da autoria feminina levantadas pelas teóricas Gilbert e
Gubar (2017), no artigo ‘Infecção na sentença: a escritora e a ansiedade de autoria’. Nesse
texto, as pesquisadoras analisam como o processo de escrita entre homens e mulheres
diverge. No caso dos escritores, percebem que a psicologia da história literária - ansiedades e
tensões - é ligada aos predecessores. Enquanto o escritor tenta se distanciar dos textos
anteriores, o que será nomeado de ‘ansiedade de influência’, a mulher, a princípio, tem sua
presença marcada na literatura como personagens estereotipadas, o que influenciaria a sua
escrita. A escritora sofreria, assim, de ‘ansiedade de autoria’.
Diferente do homem que sente medo de não ser original, a mulher teria medo “de
não poder criar, porque ela nunca poderá vir a ser uma ‘precursora’, o ato de escrever irá
isolá-la ou destruí-la” (GILBERT, GUBAR, 2017, p. 193). Assim, essa ansiedade seria

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

intensificada pelo temor de combater os predecessores homens, resultando na


experimentação de sua própria identidade e na busca por um modelo feminino para se
autenticar no espaço literário.
Interessa-nos esclarecer que, em todo esse processo comum em uma sociedade
dominada por homens, a escritora vai passar por ‘fenômenos de inferiorização’ e,
consequentemente, vai experimentar “seu gênero como um obstáculo doloroso, ou, mesmo,
como uma inadequação debilitante” (GILBERT, GUBAR, 2017, p. 194).
Sendo assim, podemos ver semelhanças entre a fala de Chiziane, quando diz não
querer ser chamada de romancista, com as ideias de Gilbert e Gubar (op.cit.), pois mesmo
sendo a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, Chiziane opta pela
categoria de contadora de histórias, o que indicaria, simultaneamente, um movimento de
afirmação do lugar de oralidade, mas também de autoproteção, evitando assim possíveis
comparações de sua obra com a de autores. A escritora vai deixar transparecer em algumas
de suas falas alguns dos motivos que a levaram a escrever ‘Niketche’: o incômodo ao
identificar a ausência de mulheres que escrevem sobre mulheres e a inquietação ao fazer
parte de uma realidade desigual. Ao ser questionada por Rosália Diogo sobre a literatura de
seu país, Chiziane (2013, p. 362-363) relata que:

Houve pessoas que pensaram que tive sucesso por acaso. Alguns escritores
consideraram que eu estava escrevendo sobre o feminino porque era moda. Mas
eu segui com muita força e determinação. [...] O fato é que sou uma mulher e
escrevo sobre temas que me tocam nessa minha condição.

Logo, podemos afirmar que o romance será uma forma de reivindicar um lugar de
fala para as vozes femininas. Não basta trazer temáticas sobre mulheres, há a necessidade de
que as histórias sejam contadas por elas. Mais uma vez, outra fala de Paulina corrobora nossa
perspectiva: “Gosto muito dos poetas de meu país, mas nunca encontrei na literatura que os
homens escrevem o perfil de uma mulher inteira. É sempre a boca, as pernas, um único
aspecto. Nunca a sabedoria infinita que provém das mulheres” (CHIZIANE, 2013, p. 358).
Por isso, no decorrer de todo o romance, aparecem histórias, mitos e lendas
contados por mulheres. Isso mostra a sabedoria sendo transmitida por elas, por meio da
oralidade, como, por exemplo, a passagem referida no texto a seguir, em que a tia de Rami
explica como funcionava a prática da poligamia.

— No nosso mundo não havia haréns — explica-me ela. — eram famílias


verdadeiras, onde havia democracia social. Cada mulher tinha sua casa, seus filhos
e suas propriedades. Tínhamos o nosso órgão — assembleia das esposas do rei —
onde discutíamos a divisão de trabalho, decidíamos quem iria cozinhas as papas
matinais do soberano, quem ia preparar os banhos e esfregar os pés, cortar as

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

unhas, massajar a coluna, aparar a barba, pentear-lhe o cabelo e outros cuidados.


Participávamos na feitura da escala matrimonial de Sua Majestade, que consistia
numa noite para cada uma, mas tudo igual, igualzinho. E ele cumpria à risca. Ele
tinha que dar um exemplo de Estado, um modelo de família. Se o rei cometesse a
imprudência de dar primazia a uma mulher em especial, tinha que suportar as
reuniões de crítica dos conselheiros e anciões (CHIZIANE, 2004, p. 71).

No trecho aqui apresentado, é através da voz de tia Maria que a personagem


principal e nós, leitores, temos a explicação de como funcionava uma das práticas culturais
de Moçambique. Interessante é o cuidado de Chiziane, não apenas com o falar sobre, mas
com apresentar e esclarecer ao leitor costumes tradicionais.
Ditos populares, saberes orais e provérbios também são alguns recursos que vão
contribuir para o registro da oralidade no romance. Como por exemplo: “A voz popular diz
que a mulher do vizinho é sempre melhor que a minha” (CHIZIANE, 2004, p. 37). Da
mesma forma, o resgate da memória aparecerá como uma maneira de trazer os saberes orais.
Em alguns momentos, Rami reconhece que existe um passado que não é apenas seu, se
refere às tradições de seu povo: “Esta é a minha certeza, o meu subconsciente, resgatando
ditados e saberes mais escondidos em minha memória” (CHIZIANE, 2004, p. 172).
Interessante é analisarmos a lenda da princesa Vuyazi que aparece em ‘Niketche’.
Assim como a história da poligamia contada por tia Maria, essa lenda é narrada por uma
mulher, que explica como surgiu a menstruação e ensina que as mulheres insubmissas são
castigadas. Ou seja, tem um efeito moralizante para Rami e as outras esposas. Ana Mafalda
Leite (2013) reconhecerá no romance esse caráter moralizador e verifica que “As histórias
ilustram tal saber, efabulam a tradição, percorrem uma temporalidade específica, uma vez
que se trata da reapropriação de uma voz e conhecimento seculares, retomada e resposta em
atitude griótica de pedagogia crítica” (LEITE, 2013, p. 30).

— Era uma vez uma princesa. Nasceu da nobreza, mas tinha o coração de
pobreza. Às mulheres sempre se impôs a obrigação de obedecer aos homens. É a
natureza. Esta princesa desobedecia ao pai e ao marido e só fazia o que queria.
Quando o marido repreendia ela respondia. Quando lhe espancava, retribuía.
Quando cozinhava galinha, comia moelas e comia coxas, servia ao marido o que
lhe apetecia. Quando a primeira filha fez um ano, o marido disse: vamos
desmamar a menina, e fazer outro filho. Ela disse que não. Queria que a filha
mamasse dois anos como os rapazes, para que crescesse forte como ela. Recusava-
se a servi-lo de joelhos e a aparar-lhe os pentelhos. O marido, cansado da
insubmissão, apelou à justiça do rei, pai dela. O rei, magoado, ordenou ao dragão
para lhe dar um castigo. Num dia de trovão, o dragão levou-a para o céu e a
estampou na lua, para dar um exemplo de castigo ao mundo inteiro. Quando a lua
cresce e incha, há uma mulher que se vê no meio da lua, de trouxa na cabeça e
bebé nas costas. É Vuyazi, a princesa insubmissa estampada na lua. É a Vuyazi,
estátua de sal petrificada no alto dos céus, num inferno de gelo. É por isso que as
mulheres do mundo inteiro, uma vez por mês, apodrecem o corpo em chagas e
ficam impuras, choram lágrimas de sangue, castigadas pela insubmissão de Vuyazi
(CHIZIANE, 2004, p. 157).

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Olhar atentamente a participação das mulheres que compõem a narrativa nos leva a
reafirmar que ‘Niketche’ é um espaço em que as vozes das mulheres demarcam um lugar
para suas falas. Através da insatisfação de Rami com a sua vida, temos indagações que nos
levam a pensar na condição do ser feminino na sociedade. Ao mesmo tempo em que
‘escutamos’ suas vozes, sabemos que elas são deixadas de lado, principalmente, em espaços
públicos. Assim, Chiziane consegue preencher com a oralidade o vazio causado pelo
silenciamento imposto. Vejamos, a seguir, a cena em que as personagens tentam argumentar
em uma reunião de família e, após não terem sucesso, um dos pensamentos da personagem
principal denuncia a situação:

Cerramos as nossas bocas e as nossas almas. Por acaso temos direito à palavra? E
por mais que a tivéssemos, de que valeria? Voz de mulher não merece crédito.
Aqui no sul, os jovens iniciados aprendem a lição: confiar em mulher é vender a
tua alma. Mulher tem língua comprida, de serpente. Mulher deve ouvir, cumprir,
obedecer (CHIZIANE, 2004, p. 154).

Nesse sentido, acreditamos que o enfoque de Djamila Ribeiro (2017), em ‘O que é


lugar de fala?’ pode complementar nossas reflexões sobre o papel da oralidade em
‘Niketche’. Com uma linguagem simples e didática a fim de explicar a importância de um
espaço de fala para os grupos oprimidos pela colonização, a pesquisadora, mestre em
filosofia, faz um levantamento de mulheres negras que foram caladas. E, com isso,
deparamo-nos com nomes importantes de distintas áreas de conhecimento que já tratavam
sobre o conceito ‘lugar de fala’. Alguns exemplos são: Linda Alcoff, Michel Foucault e
Patricia Hill Collins.
Ao relacionar a teoria de Ribeiro (op.cit.) com o romance, há partes que vão
demonstrar o incômodo de Tony ao perceber que as esposas, antes em total estado de
alienação e subserviência, não aceitam mais o que ele tenta impor a elas e começam a colocar
em evidência suas insatisfações e a contrapor as ordens do marido.

Mas eu sou um galo, tenho a cabeça no alto, eu canto, eu tenho dotes para
grandes cantos. Pois saibam que o vosso destino é cacarejar, desovar, chocar,
olhar para a terra e esgaravatar para ganhar uma minhoca e farelo de grão. Por
mais poder que venham a ter, não passarão de uma raça cacarejante mendigando
eternamente o abraço supremo de um galo como eu, para se firmarem na vida.
Vocês são morcegos na noite piando tristezas, e as vozes eternos gemidos
(CHIZIANE, 2004, p. 166-167).

Ribeiro (op.cit.) ressalta, nas páginas iniciais de sua obra, a importância das mulheres
negras deixarem a condição de passividade em relação à produção de seus textos:
“colocando-as na situação de sujeitos e seres ativos que, historicamente, vêm pensando em
resistências e reexistências” (RIBEIRO, 2017, p. 15). Vemos a escrita de Chiziane como um

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ato de perseverança ao tratar sobre assuntos polêmicos e escrever fora dos padrões.
Antes de definir o que é o lugar de fala, a pesquisadora irá nos mostrar que é preciso
reivindicá-lo: “A reflexão fundamental a ser feita é perceber que, quando pessoas negras
estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida”
(RIBEIRO, 2017, p. 43). A necessidade de reconquistar esse direito pode ser notada quando
Rami começa a sentir a necessidade de se libertar, falar e, assim, passar a ‘existir’: “Quero
libertar a raiva de todos os anos de silêncio. Quero explodir com o vento e trazer de volta o
fogo para o meu leito, hoje quero existir” (CHIZIANE, 2004, p. 19).
No livro ‘O que é lugar de fala?’, Djamila Ribeiro também constata a importância de
delimitar e delinear o espaço de fala: “essa marcação se torna necessária para entendermos
realidades que foram consideradas implícitas dentro da normatização hegemônica”
(RIBEIRO, 2017, p. 60).
Um ponto importante levantado pela autora aqui citada é a criatividade como
estratégia para que a mulher use o lugar de subalternidade de uma forma que a favoreça e
ligue seus pensamentos à prática para externar sua realidade. Mais uma vez, vemos um duplo
acontecer entre a autora e sua personagem. Assim como Chiziane utiliza suas obras para
revelar o que acontece na condição que a cerca, Rami usa sua angústia para mudar sua
situação e, igualmente, a das outras esposas. Podemos justificar com a seguinte fala de Lu:
“O Tony, colector de mulheres, e tu, colectora de sentimentos. Congregaste à tua volta
mulheres amadas e desprezadas. És brava, Rami. Semeaste amor onde só o ódio reinava. Tu
és uma fonte inesgotável de poder. Transformaste o mundo. O nosso mundo” (CHIZIANE,
2004, p. 254-255).
A forma desigual como as pessoas ocupam determinados espaços sociais resultará na
conquista ou perda do lugar de fala:

[...] não poder estar de forma justa nas universidades, meios de comunicação,
política institucional, por exemplo, impossibilita que as vozes dos indivíduos
desses grupos sejam catalogadas, ouvidas [...]. O falar não se restringe ao ato de
emitir palavras, mas de poder existir (RIBEIRO, 2017, p. 64).

Em ‘Niketche’, as personagens se dão conta de que deveriam ter estudado, mas, ao


invés de serem incentivadas, foram colocadas para atividades relacionadas ao casamento e às
tarefas domésticas. Não ter frequentado esses lugares interfere na vida adulta, tornando-as
dependentes do marido e até sendo representadas pela voz dele.

É a nós que a sociedade não dá oportunidade para ganhar com dignidade o nosso
próprio pão. [...] Enquanto isso, os homens vão para a escola do pão. Enquanto
eles aprendem a escrever a palavra vida no mapa do mundo, nós vamos pela
madrugada fora, atrás das nossas mães, espantar os pássaros nos campos de arroz
(CHIZIANE, 2004, p. 291).

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Ser limitada em seus espaços na sociedade faz com que a mulher não tenha, desde a
infância, um espaço para se expressar com as palavras, o que é prejudicial, não apenas ao
feminino, mas a qualquer indivíduo, uma vez que a voz é a marca de uma existência digna.
O não ouvir acontece também e será uma prática recorrente quando a mulher reivindicar seu
direito de fala, pois, para quem sempre obteve o poder de fala, estar em sua posição é
confortável e cômodo. Tudo isso acaba desestimulando a mulher que esteve silenciada de
tentar ter o seu lugar, como, por exemplo, quando Rami, mesmo sabendo que estava certa,
tinha certeza de que não a ouviriam: “Mas quem iria me ouvir? Alguma vez tive voz nesta
casa? Alguma vez me deste autoridade para decidir sobre as coisas mais insignificantes da
nossa vida?” (CHIZIANE, 2004, p. 228).
Ao final do romance, nos deparamos com uma Rami bem diferente do início da
história. Agora, ela não sente mais medo de falar, como demonstra na seguinte passagem:
“Falo com muito prazer e ele sente a dor [...]. No meu peito explodem aplausos.”
(CHIZIANE, 2004, p. 227) E, algumas páginas depois, Rami continua a falar o que por
muito tempo ficou guardado: “A minha linguagem é mais dura que uma rajada de granizo.
Chicoteia. Eu dizia tudo sem rodeios” (CHIZIANE, 2004, p. 229).
‘Niketche’ nos instiga a refletir sobre o lugar de fala e a pensar nele como uma forma
de quebrar o silêncio imposto para a mulher, “um movimento no sentido de romper com a
hierarquia, muito bem classificada [...] como violenta” (RIBEIRO, 2017, p. 90).
Paulina Chiziane cria uma nova proposta literária, na medida em que faz de
‘Niketche’ uma obra de contestação, ao dar voz às mulheres moçambicanas a partir de suas
personagens e, ao mesmo tempo, abrir um espaço para abordar os assuntos silenciados na
sociedade.
Até chegar à reivindicação do lugar de fala, foi preciso existir algo que impulsionasse,
tanto a escritora quanto a personagem Rami. Nesse aspecto, interessou-nos examinar a
angústia que ambas sentiram ao perceber que algo precisava ser feito para mudar a situação
da mulher, tanto no universo literário quando no real. Por isso, reivindicar o direito de ter
voz é primordial para conquistar a libertação.

Referências

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Moçambique: uma refexão a partir de Niketche, de Paulina Chiziane. Evidência, v. 11, n 11,
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Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
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PAULINA CHIZIANE: NIKETCHE: UMA HISTÓRIA DE POLIGAMIA:


MULHER, CULTURA E INSUBORDINAÇÃO

Maria das Dores Freire da Silva (FACESA)


[email protected]

1 Apontamentos sobre a mulher em contexto africano e moçambicano


Ao discutir a problemática das relações família, tradição, mulher e poligamia na
ficção de Paulina Chiziane, escritora moçambicana que tem pontuado em suas obras a
presença da mulher e a subalternização da mesma pelos costumes da tradição, sem esquecer
também o aspecto do colonizador que ali se impôs e manteve também a mulher presa na teia
do que se conhece por cultura patriarcal, em ‘Niketche: uma história de poligamia’(2004),
temos Rami que se opõe a esse sistema de subalternização da figura feminina e segue em
marcha para conhecer as outras esposas de Tony, seu esposo e responsável pela sua situação
de subalterna da qual Rami tenta se esquivar e, mesmo sem lograr resultados, representa a
mulher que não se vê mais nessa condição e insubordina-se apresentando, por assim dizer,
outro discurso, ao não aceitar a vivência de um casamento poligâmico e as consequências
que ele acarreta.
Para compreender o processo educativo e cultural em África, refletimos a partir de que:

[...] o sistema educativo nos países africanos, de modo geral, tende a fazer da
menina uma pessoa menos importante que o menino. Alguns pais, com medo de
fazer de suas filhas mais ‘marginais e marginalizadas’ que se revoltam contra a
ordem estabelecida, limitam a sua educação ao nível da escola primária. A mulher
intelectual, por exemplo, é às vezes vista pelos depositários das tradições africanas
como uma ameaça ao bom funcionamento da sociedade tradicional (ROBERT,
2010, p.14).

Desse ponto de vista a narrativa de ‘Niketche: uma história de poligamia’ (2004),


passa também a representar esse quadro de subordinação e apagamento da figura mulher em
algumas sociedades africanas como no caso de Moçambique, o qual responde por uma
tradição de suas várias tribos e ainda a colonização portuguesa que infiltrou no país a religião
cristã e a fé católica, também responsáveis pelo pouco protagonismo da mulher na sua
tradição.
Não podemos nos furtar a ficcionalização da vida e das escolhas nas quais a mulher
moçambicana passa a ser representada pela escrita de Paulina Chiziane carregam em suas
composições:

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Podemos dizer que a narrativa de Paulina Chiziane possui um fio condutor que se
apresenta como painel recorrente às suas personagens. É a fronteira entre os
valores tradicionais e a nova condição social carreada ora pela máquina colonial,
ora pela nova organização política do país após a independência. A partir dessa
perspectiva, as personagens experienciam variados confrontos e os mais
frequentes são aqueles que se referem à religiosidade. Divididas entre ritos
tradicionais e referências bíblicas e cristãs, as personagens geralmente se deparam
com situações em que tem de escolher qual caminho seguir. São exemplos, entre
outros, Vera, a narradora de O sétimo juramento, os quatro cavaleiros apocalípticos,
em Ventos do apocalipse, Rami, a protagonista de Niketche – uma história de poligamia.
Rami é católica e teve a sua união abençoada pelo sacramento cristão, mas
somente conseguirá encontrar o caminho da conciliação da intrincada situação
entre as esposas de seu marido Toni, quando se volta aos princípios da poligamia
(DAVI, 2010.p.144-145).

Rami, ao descobrir que seu esposo tem outras esposas, se encontra num descaminho,
sem prosseguir e respeitar o peso da tradição, ou rebelar-se contra um sistema forte e
mantenedor de outras formas de abuso e apagamento da mulher. Se, por um lado, o
casamento com Tony a mantém em posição de respeito frente à sua comunidade, o fato de
ter que dividir seu esposo com outras mulheres frustra Rami em sua conversação com o
espelho, se perguntando qual a causa de tanto sofrimento e abandono, se ela também é
bonita e cumpre com ‘os deveres e os afazeres’ de uma esposa?
Souza (2012, p.78) informa sobre o destino das muitas mulheres africanas sob a égide
colonial e patriarcal no que tange ao casamento como única forma de sobrevivência:

Violadas ou conduzidas pelos pais ao leito do branco, mulheres africanas


venderam as primícias do seu corpo jovem a homens que, por representarem o
poder e a possibilidade de sobrevivência, usavam-nas como escravas de cama e
mesa. A necessidade econômica crucial, a impotência face à violência colonial e
por irônico que possa parecer, a crença ingênua de ombrear-se aos brancos pelos
favores sexuais e pelas benesses materiais advindas dessa imolação da identidade,
empurraram não só moças solteiras, com os pais para sustentar, como mulheres
casadas que dividiam a cama com o marido e o patrão, gerando filhos ora negros,
ora mulatos, criando a discriminação no seio da própria família. Filhos mulatos
representavam, equivocadamente, uma porta para o mundo branqueado, de
necessidades materiais cada vez maiores, aprendidas com o processo de
ocidentalização implantado por colonizadores.

A personagem Rami representa esse grupo de mulheres que, pelo casamento e sendo
loboladas, vivem sem poder questionar ou desejar outros caminhos e aponta sua insatisfação,
assim como reconhece o culpado, seu marido Tony, como representação do poder
masculino que se impõe e também utiliza a mulher como objeto que deve ser colonizado:

Um desfile de mulheres vem ao meu encontro. Consolam-me. Dona Rami, as


crianças são assim. Elas falam das crianças e do vidro partido. E falam também
dos maridos ausentes que nem cuidam dos filhos. —Esta falta de ordem é falta de
homem nesta casa— desabafo. — O Tony é o culpado de tudo isso. Sempre
ausente. Primeiro foi uma noite de ausência, depois outra e mais outra. Tornou-se
hábito. Ele diz-me que faz turnos à noite. Que supervisa o trabalho de todos os
polícias pois é quando a noite cai que os ladrões atacam. Faço de contas que

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acredito nele. Mas os passos dos homens são rasto de caracol, não se escondem.
Sei muito bem por onde anda (CHIZIANE,2004, p.6).

Criar sozinha os filhos, com esposo ausente e fracionado para as outras esposas é
essa a realidade de Rami. Autêntica representante das mulheres que pela poligamia são
desprestigiadas e mesmo que o esposo tente agradar a todas da mesma maneira, não
conseguirá ser justo com todas, restando o sofrimento e a pouca representatividade na
comunidade e na própria casa.

2.Insubordinação nas falas de Rami: uma mulher que se impõe


Ao apresentar o romance da Paulina Chiziane, ‘Niketche: uma história de poligamia’
2004), temos em Rami a personificação da mulher cansada das mentiras e traições do
marido, do pouco prestígio que ele lhe dispensava, sem esquecer os costumes e tradições que
não podem mais responder pela ideia de cultura em toda a África:

Niketche, retrata a história da vida amorosa e conjugal de Rami (Maria Rosa), mãe
de cinco filhos e casada, oficialmente, há vinte anos com Tony (António Tomás),
Comandante da Polícia. Rami, nascida no Sul de Moçambique, foi educada
segundo as regras do Cristianismo, deixando de lado toda a cultura de origem
bantu. Ela era apaixonada pelo marido, cumpria religiosamente com o seu papel
de esposa obediente e fazia-lhe todas as vontades, chegando a sacrificar muitos
dos seus sonhos. Tony, também nascido no Sul de Moçambique, pertencente ao
grupo étnico Changana, era mulherengo e tinha várias mulheres e filhos
espalhados pela cidade de Maputo. Rami raramente via seu marido e tinha que
educar os filhos, praticamente sozinha, o que a deixava bastante desgostosa
(SILVA, 2012, p.14).

A ficção de Paulina Chiziane retrata o quadro da tradição em Moçambique, no


aspecto dos casamentos poligâmicos, sendo visível que, na contemporaneidade, esse traço
cultural não poderá mais ser considerado um benefício ao manter a mulher protegida pelo
casamento. Rami em face ao comportamento poligâmico, não poderá mais responder por
um discurso único e que traria não aceita mais essa condição e parte para conhecer as outras
esposas em um primeiro momento para vingar-se, mas, depois acaba se responsabilizando
pelo destino e sobrevivência das outras esposas.
E sobre o poder de fala, Rami, expõe:

[...] cerramos as nossas bocas e as nossas almas. Por acaso temos direito à palavra?
E por mais que a tivéssemos, de que valeria? Voz de mulher serve para embalar as
crianças ao anoitecer [...] Mulher deve ouvir, cumprir, obedecer (CHIZIANE,
2004, p. 154).

O poder patriarcal e colonial diminui a presença da mulher e a põe como a terra que
deve ser explorada e colonizada. Silenciada em um casamento poligâmico, Rami se vê presa à

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rede da tradição e sair dessa situação não é algo que se faça com facilidade. Sente que não
suporta mais o esposo e suas mentiras e pelo fato de insubordinar-se a essa situação já torna
a personagem uma representação da mulher moçambicana da atualidade já imersa e
‘contaminada’ pela influência do Ocidente e não aceita mais viver sob a égide da tradição e
poder do homem.
Tony, arrogante no estatuto de macho, decide por Rami o seu destino, como o fazem
todos os homens, herdeiros da tradição e mantenedores da cultura falocêntrica na cidade
colonial:
- Rami! - Diz! - Tomei uma decisão. Vamos divorciar-nos. .... – Por que o divórcio
agora? - Quero assegurar-te de uma coisa: não é por falta de amor. É punição.
Quero colocar-te ao nível das outras mulheres. A tua conduta nos últimos tempos
não é digna de uma esposa. Já que estás registada nos meus documentos julgas
que és alguma rainha. No lugar de educares as outras esposas, instigas a atitudes
maldosas. Tenho que acabar com isso... o advogado vai procurar-te dentro de
alguns dias (CHIZIANE, 2004, p. 165).

A fala do homem é uma ordem a ser cumprida. Rami torna-se uma ameaça a Tony,
pelo fato de instigar nas outras esposas a insubordinação a poligamia e o desejo de terem
seus espaços e até ganharem seu sustento sem depender daquela situação que as aprisiona e
favorece ao marido. Arrogante e detentor da razão colonial, Tony arremata:

Fiz-vos um grande favor, registrem isso. Dei-vos o estatuto. Fiz de vocês


mulheres decentes, será que não entendem? São menos cinco a vender o corpo e a
mendigar amor pela estrada fora. Cada uma de vocês tem um lar e dignidade
graças a mim. Agora querem controlar-me? (CHIZIANE, 2004, p. 141).

As chances de sobreviver a esse sistema e às outras são mínimas para Rami. O tom
da insubordinação frente a tudo o que tem vivido e desejando livrar-se do constrangimento e
sofrimento de ter que educar os filhos enquanto o esposo vive a frequentar o leito das outras
esposas gerando filhos e dificuldades para manter todas as esposas. Porém, o desejo e a
coragem para enfrentar o esposo polígamo impinge a personagem em uma rede de dor e
descaso:

Ele fala e fala. Não o escuto. Estou no futuro, estou na Lua. Estou no mundo que
me espera quando o divórcio se consumar. Serei uma mancha de lama no lençol
imaculado da família materna. Serei nódoa de caju, absolutamente indelével, na
camisa branca do meu pai. A sociedade olhar-me-á com desprezo piedade,
maldade, como as aves que rapinam na noite. Serei enxotada a pau e pedra, como
serpente [...] (CHIZIANE, 2004, p. 165-166).

Rami está consciente de sua subalternização, processo que lentamente vai sendo
imposto à mulher desde a educação familiar preparando-a para o casamento e para agradar
ao esposo. Quando ela diz “Ele fala e fala não o escuto” (CHIZIANE, 2004, p.165-166) é um
ato de insubordinação ao sistema patriarcal e colonizador. Rami não aceita mais ter um

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dono, e mesmo com um destino tão miserável não desiste de si e enfrenta Tony com um
comportamento não esperado pelos ditames da poligamia.
A personagem reclama a Deus e quer compreender o que se passa consigo.
Consideramos, também, a partir dessa fala de Rami, mais um gesto de quem se insubordina e
não mais aceita a vida e destino a ela imposto:

Deus meu, socorre-me. Aconselha-me. Protege-me. Diz-me o que é o amor


segundo a tua doutrina. Deus meu, o amor deste mundo não é matemática. Não
tem fórmulas estáticas, nem mágicas. O amor é caprichoso como o tempo. Num
dia frio. Noutro quente, noutro ainda, chuva e vento. No amor, a solução de um
dia não serve para outro dia. Os conselhos dos amigos de nada servem, para o
meu caso. A urgência de transformar este amor atrai-me perigosamente para
caminhos nunca dantes pisados. Eu, mulher casada há vinte anos, mãe de cinco
filhos, experiente, andei de boca em boca, de ouvido em ouvido, auscultando de
toda a gente a forma mais certa de segurar marido. A minha mãe faz discursos de
lamentos. As minhas tias velhotas repetem ladainhas antigas. (CHIZIANE,2004,
p.15)

Não há nessas expressões de Rami a consciência de quem aceita ser subordinada. Há


aqui uma preocupação com a vida que tem e a insatisfação veemente de quem está no
sistema que a mantém como objeto também a ser colonizado, mas não aceita. Mesmo que
subordinada aos desejos e mandos do esposo, Rami apresenta as características de quem
abomina a poligamia e a vê como prática cultural superada e ultrapassada.
Sobre o sujeito subalterno, é importante destacar:
O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à mulher como um
item respeitoso nas listas de prioridade global. A representação não definhou. A
mulher intelectual como intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve
rejeitar com um floreio (SPIVAK, 2010, p. 126).

Se o sujeito subalterno não pode falar, Rami vai na contramão do sistema e fala de
sua insatisfação. É um sujeito que ali se encontra na sociedade colonial, mas não consegue
mais viver sob essa perspectiva. Temos em Rami uma mulher que vai contra a poligamia e,
por isso, paga um alto preço por assim se comportar em uma sociedade que a quer submissa.
Sobre o poder masculino, importa dizer, a partir de Pierre Bourdieu (1999, p.10):
Nos deparamos com um novo paradoxo, capaz de obrigar a uma completa
revolução na maneira de abordar o que já se tentou estudar sob forma de “a
história das mulheres”: será que as invariáveis que se mantêm, acima de todas as
mudanças visíveis da condição feminina, e que são ainda observadas nas relações
de dominação entre os sexos, não obrigam a tomar como objeto privilegiado os
mecanismos e as instituições históricas que, no decurso da história, não cessaram
de arrancar dessa mesma história tais invariáveis?

Alguns costumes mais tradicionais acabam justificando os abusos contra aqueles que
historicamente são marginalizados. É o caso das mulheres que, pelas poucas oportunidades
de acesso à educação, mercado de trabalho e condições dignas de vida se sujeitam à
poligamia e outros aspectos que não trazem nenhum tipo de benefício à posição da mulher

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nessas sociedades. Paulina Chiziane valendo-se da sua escrita aponta, em diversas obras, a
posição da mulher em uma sociedade herdeira da colonização e onde impera o
patriarcalismo:
Desde o seu primeiro romance, ‘Balada de amor ao vento’, que a autora vem
desvelando a responsabilidade da mulher no estado de sua condição. Neste
contexto, a obra de Paulina Chiziane atualiza um discurso que inclui o
questionamento e a denúncia, dando voz e criando espaços de reflexão ao sujeito
que é ‘silenciado’, tendo como intuito apelar à mulher moçambicana para uma
mudança consciencializada. Esta estratégia, que começa a ser formatada em
Ventos do Apocalipse, adquire dimensão actancial em ‘O sétimo juramento’,
quando as mulheres (mulher, amante e mãe) de David se aliam para se salvarem e
à família; ou pelas mulheres de Tony, em Niketche, que, apanhadas na voragem de
uma relação poligâmica feita à medida do polígamo, o obrigam a respeitar a
instituição nos seus deveres, direitos e obrigações – isto, segundo a ética da
instituição. Para tal, há recorrência à diversidade do legado cultural moçambicano,
atualizando em fórmulas, rituais, hábitos, gestos, comportamentos. Por este
esquema se elabora um percurso pelas diferenças, semelhanças, desejos,
sentimentos e aspirações de diferentes mulheres moçambicanas, nos diferentes
âmbitos de intervenção quotidiana, como em Niketche, romance feito de
polarizações [...] (MATA, 2006, p. 437-438).

Bezerra (2015), sobre a literatura de Paulina Chiziane, diz que a figura da mulher
permanece aprisionada dentro dos territórios patriarcais e delimitados pelo poder tradicional.
No entanto, percebemos na voz da personagem Rami uma ruptura com esse poder
patriarcal. Se consciente e nada satisfeita com a vida de esposa de um polígamo passa a
questionar e discorre sobre os males que essa prática traz à educação dos filhos, essa mulher
passa a apresentar um comportamento de insubordinação.
Nessa perspectiva, passamos a ler o romance da Paulina Chiziane, ‘Niketche: uma
história de poligamia’(2004) e esperamos contribuir com a compreensão do universo
feminino em África e com especial olhar a Moçambique.
A linguagem do ventre é a mais expressiva, porque se pode ler, na multiplicação
da vida. A linguagem das mãos e dos braços é também visível. Segurando um
recém-nascido. Segurando um bouquet de flores no dia do casamento. Segurando
uma coroa de antúrios na hora do funeral do seu amor. E a linguagem do
coração? Ausente muralha de diamante. Silêncio de sepultura. Ausência
impenetrável. E a linguagem da...? Se a... pudesse falar que mensagem nos diria?
De certeza ela contaria belos poemas de dor e de saudade. Cantaria cantigas de
amor e de abandono. Da violência. Da violação. Da castração. Da manipulação.
Ela nos diria por que chora lágrimas de sangue em cada ciclo. Dir-nos-ia a história
da primeira vez. No leito nupcial. Na mata. Em baixo dos cajueiros. No banco de
trás do carro. No gabinete do Senhor Diretor, à beira-mar. Nos lugares mais
incríveis do planeta. Ah, se as.... pudessem falar! Contar-nos-iam histórias
extraordinárias do licabo, o canivete da castidade. O que nos contariam as...
medievais que conheceram o cinto da castidade? O que nos dirão as excisadas? O
que nos dizem as que celebram as orgias xi-maconde, xi-sena, xi-nyanja? As.. que
desafiaram o licabo estão em silêncio, morreram com os seus segredos. As.. xi-
ronga e xi-changana contam histórias de espantar, dos bacanais do canho,
afrodisíaco divino, nas festas da fertilidade. Muthiana orera, onroa vayi?, pergunto
[...] (CHIZIANE, 2004, p. 185-186).

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Há muitas Áfricas e muitas maneiras de interpelar, ler e reler os conteúdos e os


modos de atuar em um complexo de culturas como Moçambique, no entanto, optamos por
essa leitura de Rami como uma mulher que apresenta comportamento subversivo e
insubordinado ao trazer para o debate a questão da poligamia como uma prática que não
pode ser mais tolerada em função das novas mulheres e novos comportamentos dentro do
universo feminino tão bem representados na ficção de outra mulher, Paulina Chiziane que
torna visíveis as várias formas de conduzir e apresentar a mulher moçambicana pela sua
ficção.

3 Considerações finais

Pensar sobre a presença feminina na ficção de Paulina Chiziane encaminha o leitor a


repensar sobre o papel da mulher representante do norte e do sul de Moçambique com
maneiras diferentes de vivenciarem as suas culturas.
O texto ficcional ‘Niketche: uma história de poligamia’ (2004), informa e discute
questões seminais da cultura moçambicana seja pela ficcionalização dos traumas e
descaminhos da poligamia, da mulher subalternizada e vítima do sistema patriarcal e da
cultura do colonizador, restando-lhe pouco ou nenhum protagonismo dentro de sua
comunidade.
Nessa direção se manteve esse ensaio que apresentou uma leitura de Rami,
personagem central do romance em estudo de Chiziane (2004) e teceu reflexões a partir do
conceito de subalternidade como condição imposta a mulher na sua cultura na intenção de
privilegiar o sistema patriarcal mantendo a mulher presa a uma situação de apagamento e
também mantenedora desse sistema obsoleto à medida que ao gerar e criar seus filhos acaba
por educá-los no mesmo sistema que a aprisiona.
Em Rami observa-se um comportamento diferenciado do que se esperava de uma
mulher que vivia um casamento poligâmico e ao questionar seu espaço e lugar de fala, a
personagem sai em procura das outras esposas na intenção de que Tony seu esposo assuma
com maior responsabilidade o destino de todas as outras mulheres prejudicadas pela
poligamia.
Temos em Rami a insubordinação e uma mulher que mesmo herdeira de sua cultura,
aponta para os novos caminhos que a mulher moçambicana deverá trilhar e ocupar um lugar
de protagonismo a partir de sua fala contra o sistema que a possa oprimir.

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Referências
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SOUZA, Francisca Zuleide Duarte de. De fomes e máculas. In :Revista Guará.Goiânia.v.2,
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99
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

O FANTÁSTICO EM ‘O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO’, DE MIA COUTO

Marinete Luzia Francisca de Souza 58


(Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem – UFMT)
Kátria Fagundes

Em entrevista ao Jornal Português ‘Público’, em outubro de 2015, Mia Couto admite


que sua escrita tende ao realismo mágico, ao afirmar: "quem é que não tem um pouco de
realismo mágico?" Antes, porém, o autor se opõe às classificações apressadas e afirma ainda
que muito de sua forma de escrita provém da visão holística do mundo, segundo ele
existente na África. Por outro, lado a proximidade entre sua escrita e a dos escritores que
praticariam o Realismo Mágico latinoamericano proviria do muito que a América Latina tem
de África teriam de comum. Talvez caiba acrescentar que esse pensamento proviria do fato
de que ambos os espaços aqui mencionados apresentem pensamentos de origem indígena.
Por outro lado, não se pode negar que o insólito e o fantasmagórico estão presentes
nas obras de Mia Couto. É o caso, de acontecimentos como um homem que se desossa e
põe os ossos a secar, depois os realoca em seu corpo. Também está presente na obra de Mia
Couto releituras histórias de processos como a colonização, oscilando, portanto, entre o
verossímil e o inverossímil, o que lhe aproxima do que conhecemos como Real Maravilhoso.
Levando em consideração a entrevista anteriormente citada, pode-se notar em ‘O
Último voo do Flamingo’, a presença de fatos insólitos e, nesse texto, investigamos se eles
podem ser considerados como fantásticos ou reais maravilhosos. Na obra, Couto (op.cit.)
coloca em foco o impacto que um estrangeiro, funcionário da Organização das Nações
Unidas (ONU), Massimo Risi, causa no vilarejo de Tizangara, sendo recebido no local de
forma pomposa, mas com desconfiança, perante os cidadãos locais. Ele foi convocado para
fazer parte de uma investigação sobre recentes explosões das quais foram encontrados,
apenas, os pênis dos ‘bonés azuis’ como eram chamados os combatentes das Nações Unidas
durante uma guerra alusiva à Guerra Civil Moçambicana.
Durante sua investigação se depara com personagens e fatos que se encontram no
limite entre o real o insólito. O “insólito carrega consigo e desperta no leitor o sentimento do
inverossímil, incômodo, infame, incongruente, impossível, infinito, incorrigível, incrível,
inaudito, inusitado, informal...” (COVIZZI, 1978, p. 26). Apesar de haverem distinções entre
maravilho e fantástico, aqui os tomaremos por sinônimo, conforme Ceserani (2006, p. 70)
indica: na literatura fantástica, “as palavras são elementos neutros que devem nos enviar o

58 Líder do Grupo de Pesquisa Africanidades e Descolonização. Projeto de Pesquisa Literaturas Africanas de


Língua Portuguesa: africanidades e descolonização, financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado
de Mato Grosso – FAPEMAT.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

mais fielmente possível à realidade,” e que na concepção simbolista, “as palavras não devem
nos enviar a nada mais do que a elas próprias” (idem), mas à possibilidade de criação de uma
nova realidade a partir dessa linguagem. Na obra, o autor citado transita entre real e
imaginário, sem interrupções. O estranhamento do leitor em relação ao fantástico é
metaforizado na personagem estrangeira (Massimo Risi), que representa o Ocidente,
conforme o fragmento a seguir:

[...] Podia uma velha com tamanha idade inspirar desejos num homem em plenas
faculdades? Massimo Risi se apressou a sair. De passagem pela recepção,
aproveitou para recolher informações sobre a idosa mulher.
_Ah, essa é Temporina, ela só anda no corredor, vive no escuro, desde há séculos.
_Nunca sai?
_Sair?!Temporada?! (COUTO, 2005, p. 39).

Massimo Risi é designado para fazer uma investigação sobre as explosões dos
soldados na aldeia de Tizangara. A princípio, estranha os fatos anteriormente apresentados,
todavia, na medida em que o curso da investigação desemboca em acontecimentos
sobrenaturais e põe em cheque o pensamento racional de Risi, com o decorrer do tempo, ele
os entende por via da emoção. Como já foi dito, Risi se encontra em Tizangara, uma
pequena e misteriosa vila fictícia situada no interior da África, mais precisamente em
Moçambique. Ali acontecimentos estranhos faziam parte da realidade.
A obra possui fio narrativo característico da literatura fantástica porque a presença de
elementos e fatos sobrenaturais cria uma aura de mistério, instaurando a dúvida entre real e
irreal. Dessa forma, o fantástico é visualizado em um tipo de narrativa na qual o enredo traz
um fenômeno que não pode ser explicado pela razão.
Com uma estratégia narrativa de representação do irreal, o autor citado afirma, no
início da obra, que a pequena vila é rodeada de mistério, como vemos no fragmento: “em
Tizangara só os fatos são sobrenaturais” (COUTO, 2005, p.15). Trata-se de uma vila
bastante peculiar e singular. “Para agravar, em Tizangara tudo ocorria de passagem. Quem
aqui vinha nunca era pra ficar. Por isso, quando chegaram, esses soldados das Nações Unidas
foram chamados de gafanhotos” (COUTO, 2005, p. 105).
Apesar do desaparecimento de Tizangara fazer dela um local insólito, é através das
personagens que o narrador conduz o leitor às vivências diversas de experiências
maravilhosas, pois a história é construída envolta das personagens. Existem quatro
personagens que apresentam caraterísticas sobrenaturais: Hortênsia, Temporina, Zeca
Andorinho e Suplício. Em relação à primeira personagem, Hortênsia, que apesar de morta,
desempenha ações na narrativa: "Na vila, todos sabíamos era Hortênsia quem continuava

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cuidando do sobrinho. Todas as manhãs sobre a mesa ressurge o prato, com refeição
destinada" (COUTO, 2005, p. 66-67). A categoria da personagem, a partir da ausência de
corpo, motiva a sua essência fantástica.
Temporina também pode ser considerada como uma personagem fantástica por sua
condição de jovem com aparência de velha. Simplício, pai do narrador/tradutor também
pode ser considerado como personagem fantástico. O velho se desossa sem nenhuma
explicação. Esse fato inusitado rompe radicalmente os princípios da lógica. Zeca Andorinho
é um feiticeiro local e se adapta às caraterísticas de personagem fantástica porque foi o
responsável por fazer com que os soldados estrangeiros explodissem. Diante do inexplicável,
o leitor é conduzido a perceber que Zeca Andorinho possui poderes sobrenaturais, segundo
explica a personagem e comenta o narrador:

‘Foi esse feitiço que usei contra esses gafanhotos’. [...] Afinal, aquele feitiço
começava onde todo homem começa _ no namoro. Á medida que ia avançando
ficava quente e o seu corpo se desconformava. O enfeitiçado inchava, sem dar
conta. Crescia como o sapo face a seu próprio medo. Até que, no preciso
momento do orgasmo, explodia (COUTO, p.146-147).

A oscilação entre o real e o imaginário ocorre em toda a narrativa, dando a entender


que, para aquela população, os acontecimentos fantásticos fazem parte do cotidiano da
população. Segundo Felipe Furtado (1980, p.36):

De facto, a essência do fantástico reside na sua capacidade de expressar o


sobrenatural de uma forma convincente de manter uma constante e nunca
resolvida dialética entre ele e o mundo natural em que irrompe, sem que o texto
alguma vez explicite se aceita ou exclui inteiramente a existência de qualquer deles.

O insólito merece destaque quando há união entre o real e o imaginário. O


estranhamento do leitor em relação ao fantástico é metaforizado na personagem estrangeira
(Massimo Risi) que pode ser tido como representante do Ocidente, que foi enviado para
investigar as explosões dos soldados da ONU. Para ele, aquela pequena vila representa ‘outro
mundo’. É como se a personagem tivesse que passar por um percurso formativo em relação
à cultura africana.
Ao se deparar com elementos do fantástico (animismo, a convivência com os
mortos, respeito aos antepassados, inseparabilidade entre vida e morte e feitiçaria) e da
realidade (corrupção, prostituição, campos minados, traumas pós-guerra), Massimo Risi
questiona sua presença naquele lugar, pois estaria pouco preparado para compreender
fenômenos tão estranhos à sua cultura de origem. Alguns acontecimentos como a existência
da personagem Temporina o assombram:
[...] Podia uma velha com tamanha idade inspirar desejos num homem em plenas
faculdades? Massimo Risi se apressou a sair. De passagem pela recepção,
aproveitou para recolher informações sobre a idosa mulher.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

‘_ Ah, essa é Temporina. Ela só anda no corredor, vive no escuro, desde há


séculos’ (COUTO, 2005, p.39).

É impensável compreender a história de Risi e Temporina sem a tentativa de


familiarização com a situação daquele local: o contexto do hotel, os acontecimentos que se
abateram sobre Temporina desde a morte de sua tia Hortênsia. Mesmo sendo alvo de
desconfiança de todos, os fatos irreais atravessavam as crenças do europeu, e
paulatinamente, um traço do universo fantástico se abria para Massimo Risi, um mundo
fantamasgórico que se descortinava para o italiano.
A transição entre os dois mundos apresenta-se como um processo natural. A
desmistificação daquele corpo atemporal de Temporina acontece através dos supostos
sonhos de Risi. Mas a constatação do ato vem em seguida, no despertar do italiano, assim
que ele se depara com a personagem, como afirma Todorov (1993, p. 19):
Há relatos que contêm elementos sobrenaturais sem que o leitor chegue a
interrogar-se nunca sobre sua natureza, porque bem sabe que não deve tomá-los
ao pé da letra. Se os animais falarem, não temos nenhuma dúvida: sabemos que as
palavras do texto devem ser tomadas em outro sentido, que denominamos
alegórico.

Não se pode ler a obra esperando verossimilhanças externas apenas, mas estar aberto
aos caminhos que ao verossímil interno. A expectativa do leitor, parece assemelhar-se às
expectativas de Risi, como se ele representasse o narratário em relação ao narrador/tradutor.
Ele demonstra sentir dúvidas sobre sua sanidade, questiona constantemente aquilo que está
vivendo: “_ Estou ficando maluco, não aguento mais” (COUTO, 2005, p.83).
As personagens exercem cada uma o seu papel universalizante. Juntas, compõe o
universo fantástico e dão equilíbrio à narrativa. O tradutor é o bom filho que à casa torna.
Faz ponderações e críticas, tanto ao seu povo quanto ao estrangeiro, aquilo que vem de fora
do universo africano. As explicações para o estranho acontecimento são dadas por meio dos
conhecimentos orais locais. Ao se deparar com uma realidade tão distinta da sua, o italiano
Massimo Risi não consegue transpor as fronteiras culturais entre o mundo africano e o
ocidental.
Você quem é?
-Sou seu tradutor.
-Eu posso falar e entender. Problema não é a língua. O que não entendo é este
mundo daqui (COUTO, 2005, p. 40).

O tradutor parece representar o entendimento do local sobre o qual o estrangeiro


nada sabe. Além da tradução linguística, ele também explica, exemplifica e demonstra dados
da cultura local moçambicana ao estrangeiro. A realidade demonstrada é filtrada por
elementos míticos e fantásticos. A exemplo disso, Zéca Andorinho, o feiticeiro, consultado
por Massimo Risi, comenta a respeito das explosões: “Não sei, não lhe posso explicar. Teria

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que falar na minha língua. E é coisa que nem este moço não pode traduzir” (COUTO, 2005,
p. 153). Mesmo com a possível tradução cultural sugerida pelo tradutor/narrador é como se,
em alguns casos, prevalecesse a impossibilidade de traduzi-los. A tradução é aqui entendida
do ponto de vista cultural. Para Ribeiro (2005. p. 78-79):
Pode-se dizer sem qualquer reserva que a tradução se tornou uma palavra-chave
da nossa contemporaneidade, uma metáfora central do nosso tempo
potencialmente, toda a situação em que se preocupa fazer sentido a partir de um
relacionamento com a diferença pode ser descrita como uma situação translatória.
Nesta acepção ampla, o conceito de tradução aponta para forma como não apenas
línguas diferentes, mas também culturas diferentes e diferentes contextos e
práticas políticos e sociais podem ser postos em contato de forma a que se tornem
mutualmente inteligíveis, sem que com isso tenha que se sacrificar a diferença em
nome de um princípio de assimilação.

O tradutor de ‘O Último voo do Flamingo’ tem essa função de traduzir a cultura para
Massimo, pois Tizangara mantém viva tradições antigas e, para o Italiano, seria impraticável
compreendê-las sozinho. Massimo Risi sai de uma convicção imparcial de mundo
europeizado em direção a “territórios que não tinham sido ainda pisados pelo pé do
homem” (HENRIQUES, 2004. p.107). Esse ‘homem’ aqui personificado é representado
pelo italiano, que descobre, em sua descrença, a vontade de saber sobre a cultura tizangarês,
tão irreal para si. Ele coloca seus pés, desnudos, numa terra que conquistou seu respeito e
afeto, seja pelas pessoas que o acolheram, seja pelo lado místico, seja pelos crimes que veio
desvendar.
Por outro lado, Tizangara é uma sociedade na qual a oralidade tem um peso maior
que a escrita. No mundo de Risi, não basta apenas contar o que aconteceu, devem-se
documentar os fatos históricos, portanto, sua tarefa é recolher e enviar provas dos
acontecimentos que teriam conduzido às explosões dos soldados da ONU, porém suas
anotações somem misteriosamente:
Na cama do italiano, papéis revolvidos se acumulavam. Massimo, em desespero,
revirava as papeladas.
_Veja! [...]
_Não está nada escrito aqui.
_Exatamente. E veja as fotos!
Eram papeis de fotografia, mas em branco. Era esse o mistério _ aqueles papeis e
aquelas imagens não eram virgens. Até ali estavam maculados por letras, por
imagens gravadas. Aqueles eram as provas, os materiais que o italiano acumulava
para mostrar aos seus chefes (COUTO, 2005, p. 144).

Não há explicação sobre como as anotações e as fotografias da investigação foram


apagadas. Há duas possibilidades para esclarecer o ocorrido: a) obra dos antepassados
(realmente ocorreu um fato fantástico); b) o administrador da cidade fez com que escritos
fossem trocados por papeis em branco, para que as autoridades não descobrissem sua gestão
corrupta (real).

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A linguagem coutiana mescla essas duas possibilidades, pois narra, posteriormente,


cenas que demonstram os interesses do administrador da cidade, mas também mantém uma
espécie de reticências ao fazer com que o pai do tradutor se negue a dar certas informações
ao agente da ONU. Uma supressão que diz da intraduzibilidade da cultura, mas que também
serve à manutenção do mistério e à proteção da identidade cultural daquele povo.
O italiano ainda protagoniza outro momento fantástico.
‘_Pare, Massimo, esse caminho está minado!’
Massimo demorou a entender. Quando parou já ele se enfiara pelo atalho
perigoso. Restou o pétreo silêncio. Tudo estancado. Nós de um lado, Temporina
do outro. Ali, no invisível do chão, jazia que o faria jazer. O estrangeiro congelado
em meio de paisagem, pernas tremendo ante a fatalidade do chão. Ninguém sabia
o que fazer. Ele já havia penetrado fundo no terreno. Para trás seria tão perigoso
quanto para a frente. Salva-lo _ como podia alguém? De repente, Temporina
soltou a estranha ordem.
‘_Venha, Massimo. Venha ter comigo! [...]’
‘_Não lembra que lhe ensinei como pisar o chão? Pois venha, caminhe como lhe
ensinei’.
Massimo demorou-se. Mas depois_ seria crença?_ele começou a caminhar, o pé e
o antepé, passo sem pegada. E perante nosso assombro, Massimo Rissi passou
pelo terreno minado como Jesus se deslocou sobre as águas (COUTO, 2005,
p.200).

A narração do acontecimento é marcada por uma elipse, a falta de explicação para tal
fato e, em nenhum momento, esse fenômeno é comentado nas páginas seguintes, suscitando
a dúvida típica do fato maravilhoso.
O autor citado apenas sugere algumas hipóteses para que se possa encontrar uma
explicação para o fato inusitado. Massimo teria conseguido passar por cima das minas devido
às aulas que tivera com Temporina ou algum elemento fantástico que o teria feito flutuar ou,
por fim, seria Temporina uma feiticeira. O autor recorre, ainda, à intertextualidade bíblica
para dialogar com o leitor que, possivelmente, se recordará da passagem na qual Jesus Cristo
anda sobre as águas.
Ao escolher uma das hipóteses, o milagre (como ocorreu com Cristo), o narrador
deixa subentendida que a ‘dúvida’ estaria resolvida e, consequentemente, isso excluiria o
elemento fantástico. Contudo, no início do fragmento menciona as lições que Temporina
dera ao italiano. Assim, se ambas as escolhas são viáveis, a ambiguidade típica do fantástico
permanece. O leitor se depara com um fato que não pode ser explicado pelas leis naturais.
Aqui, o fantástico produz o efeito da incerteza, pois como lembra Felipe Furtado (1980. p.
36-37): “O discurso fantástico tem, assim, de multiplicar esforços no sentido de apoiar o
desenvolvimento constante desse debate que a razão trava consigo própria sobre o real e a
possibilidade simultânea da sua subversão.”
Não há um questionamento da parte de Risi quando ele caminha sobre as minas. No
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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

decorrer da narrativa, aos poucos, Massimo adere à cultura moçambicana sendo que, no
desfecho da trama, quando o narrador profere as seguintes palavras: “Massimo sorria, em
rito de infância. Me sentei, a seu lado. Pela primeira vez, senti o italiano como um irmão
nascido na mesma terra. Ele me olhou, parecendo ler por dentro, adivinhando meus receios”
(COUTO, 2005, p. 220).
Por outro lado, nota-se aversão a essa proximidade na voz do pai do
tradutor/narrado, sulpício, que se recusava a aceitar a intervenção recorrente da Europa em
seu território, estendendo-se ao receio de que seu filho fosse constrangido a aceitar a
interferência do italiano, ser cúmplice, de alguma forma, daquilo que não era inerente ao
povo africano. As guerras moçambicanas (de Libertação e Civil) deixaram marcas naqueles
que a vivenciaram de perto.
Como afirma Margarida Calafate Ribeiro (op.cit.), era necessária uma ruptura com
essas marcas, que seriam visíveis “ora nos corpos mortos, gangrenados, mutilados,
amputados e esfacelados de homens de homens de vinte anos” – no caso dos boinas azuis
que estavam desaparecidos, nos órgãos que explodiam e voavam pelo vilarejo – “ora nos
estados de cansaço, enlouquecimento, embriaguez, neurose, solidão e desistência de muitas
personagens que povoam esta literatura” (RIBEIRO, 2004, p. 28) – a solidão, na forma de
Sulpício, a loucura na forma do administrador, o cansaço na cena de espancamento de Ana
Deusqueira.
Como já demonstrado, Risi insere-se na cultura local, contudo, ao longo da narrativa,
a população local representa o estranho, o ‘Outro’; já para a comunidade, Massimo é o
estrangeiro que recorda outros forasteiros que passaram por Moçambique, quase sempre
invasores ou colonizadores. Ele é o europeu, o branco e o agente de uma instituição externa
no país, a Organização das Nações Unidas.
Ele é guiado pelo narrador e secundariamente por Temporina que o introduzem ao
universo mítico e fantástico local. O narrador é um tradutor ambivalente que permite ao
estrangeiro a vivencia de fatos que potencializam a compreensão e a apreensão da cultural de
Tizangara. O tradutor o conduz à aldeia dos seus familiares na qual ele conhece seu pai,
Suplício, e se aproxima dos costumes locais. O desfecho da história ocorre na segunda visita
de Massimo à aldeia do intérprete. Nesse momento, a região é engolida pelo abismo restando
apenas três personagens: o senhor Suplício, o narrador/tradutor e Risi. Instantes depois,
aparece misteriosamente um barco no qual Suplício entra, e convida o italiano, que não vai.
O narrador insiste para embarcar com seu pai, porém este diz-lhe que fique:
_Você fique, meu filho.
_Mas, pai...

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_Fica, já disse. Para contar aos outros o que aconteceu com nosso mundo. Não
quero que seja esse de fora, a falar desta nossa estória. (COUTO, 2005. p. 218)

Nesse diálogo entre o narrador e seu pai fica evidente a resistência aos estrangeiros.
O tom imperativo utilizado pelo idoso indica que, em primeiro lugar, está o desejo de que a
história seja contada pelo prisma daqueles que conheçam e respeitem as tradições locais. Risi
participa de outro mundo no qual a escrita e a comprovação dos fatos são tidas como
elementos que depõem contra o que é imaginário e, diante do desparecimento de
Tinzangara, afirma: “Escrevo, Excelência, quase por via oral. As coisas que vou narrar,
passadas aqui na localidade, são demais admirosas que nem cabem num relatório” (COUTO,
2005, p. 73). O mundo da escrita é contraposto ao da oralidade. A dificuldade é saber se é
possível conceder à oralidade a mesma confiança que se outorga à escrita quando se trata do
testemunho de fatos passados. De acordo com Hampaté Ba (1982:181):

Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à


tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos
africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de
toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo,
ao longo dos séculos.

Cumpre lembrar que, na relação entre tradutor e o representante da ONU, estão


presentes questões coloniais. O povo de Tizangara, já independente de seus colonizadores,
apresenta, ainda assim, certo medo de uma submissão forçada à investigação externa, a
princípio: “Por que o nosso país carecia de inspetores de fora? O que tanto nos desacreditara
aos olhos do Mundo?” (COUTO, 2005, p. 73).
Submissões passadas mantêm feridas abertas, mesmo depois de tanto tempo. A
menção do tradutor ao fato de a investigação não chegar a lugar algum transmite ao leitor a
mágoa de uma nação em relação ao mundo, aqui personificado em letra maiúscula pela
ONU, alegorizada na figura do funcionário Risi. Apesar de estar sempre ao lado do italiano,
a confiança entre Risi e o tradutor surge após algum tempo de convivência, a partir de
experiências pessoais e fantásticas, vivenciadas por eles.
O mistério das explosões dos soldados da ONU é, parcialmente, solucionado. Ana
Deusqueira descreve o que aconteceu quando o zambiano explodiu, o que comprovaria o
motivo das explosões. Os homens estrangeiros explodiriam exatamente no momento do
orgasmo, que é o momento em que o prazer da excitação sexual atinge o grau máximo de
intensidade, o que pode ser comparado à intensidade de uma explosão. Não de compreende,
porém, o que provocaria as explosões.
Personagens e espaços constituem elementos dinamizadores nos quais se sustenta a
intriga. A narrativa do Maravilhoso instala seu universo irreal sem provocar qualquer

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

questionamento ou espanto no narratário, pois mesmo não estabelecendo nenhuma conexão


entre o universo convencionalmente conhecido como real e sua contradição absoluta, o
irreal é internamente verossímil. É criado outro mundo. Começa-se pelo trânsito entre os
dois planos e termina por ser fantástico.
Comprovou-se também que, em Tinzangara, vivos e mortos convivem no mesmo
espaço. Eles se contrapõem ao poder dos novos administradores e estrangeiros que se
instalaram no local e que concorrem com as autoridades da cultura e da religião (feiticeiros,
idosos etc).
O estudo da obra ‘O Último voo do Flamingo’ demonstra que Mia Couto faz do
desaparecimento prodigioso de Tizangara, metáfora do ressurgimento do país e da
reinvenção de sua identidade, visto que o autor parece entender as personagens fantásticas
como extraídas da cultura local e se opõe a classificações apressadas de sua obra, como
tributária das tradições literárias da mesma forma que as da literatura fantástica e do Real
Maravilho (praticado por escritores latinoamericanos). Apesar disso, há nela, a exemplo do
romance estudado, proximidade com tais tradições literárias, pois o evento sobrenatural
surge em meio a um cenário familiar, cotidiano e verossímil. Como no Real Maravilhoso,
seus personagens demonstram aceitação ao sobrenatural.

REFERÊNCIAS
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COUTO, Mia. Mia Couto: Quem é que não tem um pouco de realismo mágico?. Entrevista
a Luís Miguel Queirós. Público. em 30 de outubro de 2015. Acesso em: 01 maio.2020.
FURTADO, Felipe. A construção do fantástico na narrativa. Belo Horizonte: Livros
Horizonte, 1980.
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RIBEIRO, Margarida Calafate. Uma história de regressos: Império, Guerra Colonial e


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TODOROV, Tzevetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

A ESCRITA FEMININA NO BENIM: GISÈLE HOUNTONDJI, SOPHIE


ADONON E CARMEN TOUDONOU

Maysa Morais da Silva Vieira (UFPB) 59

Primeiras Considerações

A escrita deste artigo surgiu como parte de um trabalho de Tese de doutorado que
está sendo desenvolvido a partir de estudos sobre a literatura feminina do Benim, país
localizado na costa ocidental da África. Neste artigo, buscamos discorrer sobre a escrita
feminina de Gisèle Hountondji, Sophie Adonon e Carmen Toudonou, três importantes
nomes na literatura beninense e de como as personagens femininas se entrelaçam a partir
dos contextos sociais nos quais estão inseridas, como também nas relações interpessoais que
tecem as narrativas das referidas autoras.
Gisèle Hountondji nasceu em 1954, em Cotonou. Ela frequentou a Escola
Secundária Sainte Jeanne d'Arc, em Abomey, antes de deixar Benin, aos 18 anos, para
continuar seus estudos na Universidade de Sorbonne, na França. Publicou seu primeiro
romance, ‘Une Citronnelle dans la neige’, em 1986. Atualmente, vive em Cotonou, Benim.
Por sua vez, Sophie Adonon nasceu em Abomey, em 1964. Em 1983, foi enviada
para a França por seu pai, onde estudou direito e concluiu o Mestrado em Direito Privado
em 1990. A romancista foi a primeira beninense a criar uma série policial e a primeira, cujo
livro foi colocado no programa didático das escolas do Ensino Fundamental e Médio do
Benim.
Já Carmen Toudonou, a mais jovem entre elas, é poetisa, romancista e repórter-
apresentadora do ‘Escritório de Rádio e Televisão de Benin’ (ORTB). Possui poemas
publicados na ‘Antologia da poesia feminina do Benim’, organizada pelo escritor Daté
Atavito Barnabé-Akayi, em 2013. Além do romance ‘Presqu’une Vie’, publicou em 2015, pela
‘Les Éditions du Flamboyant’, a coletânea poética ‘Noire Venus’, cuja temática exprime o
feminino e o erótico.
Este artigo foi subdividido em três tópicos, sendo o primeiro responsável por trazer
um breve panorama sobre a escrita feminina em África e de seu processo de consolidação no
cenário literário do continente. No segundo tópico, estabelecemos um diálogo entre as

59 Doutoranda na área de Literatura, Cultura e Tradução. Tem desenvolvido sua pesquisa de doutorado no
âmbito dos estudos das Literaturas Africanas de Língua Francesa, com ênfase nas produções literárias de
Carmen Toudonou e Sophie Adonon, ambas escritoras do Benin, sob a orientação da professora Luciana
Eleonora de Freitas Calado Deplagne (UFPB), inserida na linha de Estudos Culturais e de Gênero, do
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba. E-mail:
[email protected].

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epistemes de teóricas feministas africanas e afrodiaspóricas e os papeis sociais


desempenhados pelas mulheres nas diferentes sociedades africanas, com ênfase no contexto
social e no poder historicossocial de resistência que constroem o arquétipo contemporâneo
das beninenses apresentado nos romances. No terceiro tópico, apontamos as principais
discussões trazidas pelas narrativas das autoras aqui estudadas, analisando as personagens
femininas dos romances e suas relações com o racismo, xenofobia, casamento, maternidade
e religiosidade.

A escrita feminina em África: desafios e perspectivas


A escrita feminina no continente africano surgiu tardiamente, como um instrumento
com o qual as mulheres poderiam escrever sobre si mesmas. Havia em África uma literatura
marcada pelo olhar masculino, seus primeiros escritos retratavam, em geral, as descobertas
dos colonizadores nas novas terras, ao passo que estendiam às produções literárias a
estratificação social de colonizadores versus colonizados e a consequente inferiorização desses
últimos. Nos textos dos escritores brancos coloniais, podemos encontrar traços do exotismo
com o qual os nativos eram vistos, a comumente objetificação e animalização dos sujeitos
africanos, bem como a valorização dos costumes e línguas europeias, em detrimento da
cultura local.
Na primeira metade do século XX, algumas modificações começaram a impulsionar e
a expandir a literatura escrita pelos próprios africanos. A popularização de máquinas
tipográficas, que possibilitaram a publicação de diversos jornais e revistas, nas quais havia
espaço para a publicação de textos literários e, ainda, os eventos diaspóricos de afirmação
indenitárias, como o ‘Harlem Renaissence’ (1920/ EUA) e o ‘Movimento de Negritude’
(1935/França), responsáveis por um crescente número de publicações literárias em diversos
países africanos.
Os ideais da ‘Negritude e do Harlem Renaissence’ começam a repercutir no seio dos
intelectuais africanos e da diáspora negra. As colônias africanas, que começavam a se
organizar contra o sistema colonial, veem nas discussões que ecoam dos negros na diáspora
um apoio fraterno de impulso e força para que eles se desprendam do jugo dos
colonizadores. O termo ‘Africanidade’ começa a ser usado e discutido em todas as camadas
intelectuais e a literatura também se consolida como um meio político.
Para o crítico congolês Georges Ngal, em seu livro ‘Création et Rupture en Littérature
Africaine’ (1994), esse novo cenário da literatura africana consistia em:

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Um espaço organizado, onde o escritor negro recusa se inserir em um mundo


construído por outros, mas sim, onde ele o deveria inventar; uma visão do mundo
tendo suas formas ocorrendo em um universo que quer se separar, espalhado em
uma temporalidade, reivindicando uma identidade, um reconhecimento e fingindo
seguir as normas específicas de sua arte (NGAL, p. 19, 1994). 60

Sendo assim, os primeiros textos literários são marcados pela estética da chamada
‘Literatura Combate’, na qual os textos de muitos escritores e escritoras emergiram como
armas políticas e instrumentos de conscientização de que era necessária a libertação das
nações africanas do domínio europeu e, ao mesmo tempo, resgatar os valores tradicionais
perdidos com o longo processo de exploração colonial.
Cabe ressaltar a escassez de textos escritos por mulheres nesse período, no entanto,
entre as décadas 1970 e 1980, anos que se seguiram ao período de independência na maioria
dos países africanos, verificamos um crescente número de publicações de autoria feminina
no continente, como nos aponta Fernanda Murad Machado (2001, p.1), no seu artigo
‘Personagens Femininas e Escritoras na Literatura francófona da África Subsaariana’:

Os anos que se seguiram às independências foram marcados igualmente pelo


surgimento das primeiras escritoras africanas no campo da francofonia. O início
tardio da produção literária das mulheres, com décadas de defasagem em relação à
dos homens, está diretamente relacionado ao acesso desigual ao ensino e à
alfabetização. Fenômeno ainda pouco estudado, a escolarização feminina
desenvolveu-se lentamente e de modo irregular durante o período colonial.

As desigualdades entre homens e mulheres nas sociedades africanas, aprofundadas


pela subalternização do feminino no período colonial, justificam a inserção tardia das
mulheres no universo literário. É importante trazer para esta discussão o apontamento de
Gayatri Spivak, no livro ‘Pode o subalterno falar?’ (2010): “Se, no contexto de produção
colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino
está ainda mais profundamente na obscuridade” (SPIVAK, 2010, p. 67). Além de serem
colonizadas, as mulheres são, de modo geral, submetidas às diversas explorações resultantes
de uma sociedade patriarcal, na qual a mulher é reduzida a mero objeto de domínio
masculino.
Os resquícios coloniais de estratificação social baseada no gênero, perduram e
agravam as condições da mulher em África, reservando a elas baixo ou nenhum acesso à
educação, casamento e maternidade precoces, além de diversos tipos de violências físicas e
mentais. Assim, a presença feminina no contexto de produção literária limita-se a um grupo
feminino restrito.
A literatura de autoria feminina rompe com estereótipos sobre o universo feminino

60 Tradução nossa.

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que é recorrente nas produções literárias de autoria masculina. Nessas produções, a


marginalização, assim como a objetificação de seus corpos, configura-se como verdades até a
chegada de textos de autoria feminina que procuram ressoar vozes antes silenciadas, como
nos aponta Odile Cazenave, em ‘Femmes Rebelles: Naissance d'un nouveu roman africain au féminin’
(1996, p. 180):
Com a afirmação da presença de escritoras africanas francófonas no cenário
literário africano, os corpos ganham nos anos 80 uma importância significativa.
Sua inscrição renova o quadro tradicional de corpos-objeto para tornar-se também
uma manifestação de problemas psicossomáticos, expressão de desejo feminino e
criação de um espaço próprio à mulher. 61

Nos últimos anos, têm ocorrido importantes mudanças no que se refere à produção
literária de autoria feminina. Nomes femininos de destaque têm surgido no seio da literatura
africana, o que tem acarretado em estudos cada vez mais significativos sobre as condições
dos sujeitos femininos nas diversas sociedades africanas, bem como atentado nossos olhares
para novas epistemes que possibilitam fundamentar discussões específicas acerca das
relações de gênero e do protagonismo da mulher africana no seu contexto de inserção.

Pensar o Feminismo em África - Legado ancestral e resistência


É comum pensamos em condição de subjugação quando pensamos no contexto
social da mulher em África. No entanto, é importante salientar que as sociedades africanas
são muito diversas e possuíam, até a chegada dos colonizadores europeus, regimes de
estratificação sociais bastante diversos. Esses regimes podiam ser organizados de modo
patrilinear, matrilinear ou até mesmo relações sociais organizadas independentes da condição
do sexo biológico dos indivíduos, como observamos no estudo da nigeriana Oyèrónkẹ́
Oyewùmí sobre a sociedade Iorubá pré-colonial. Em seus estudos, Oyewùmí (op.cit.) nos
aponta que tal sociedade era organiza sob um modelo gerontocrático, ou seja, uma sociedade
na qual o poder se estabelece a partir das pessoas mais velhas da comunidade, independente
do seu sexo biológico:
A família Iorubá tradicional pode ser descrita como uma família não-generificada.
É não-generificada porque papéis de parentesco e categorias não são
diferenciados por gênero. Então, significativamente, os centros de poder dentro
da família são difusos e não são especificados pelo gênero. Porque o princípio
organizador fundamental no seio da família é antiguidade baseada na idade
relativa, e não de gênero, as categorias de parentesco codificam antiguidade, e não
gênero. Antiguidade é a classificação das pessoas com base em suas idades
cronológicas (OYEWÙMÍ, 2004, p. 06).

A respeito da sociedade beninense, temos personagens femininas que ajudaram a

61 Tradução nossa.

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compor a história do país e que são destaques na luta de resistência anticolonial. O Benim
possuía um dos reinos mais fortes e importantes da África, o Reino do Daomé que, no
século XVIII, teve como regente Tassi Hangbè, a primeira e única mulher a ocupar o trono
real de Abomey (capital histórica do Benim). Ela era filha do rei Houégbadja e irmã gêmea
de Akaba, sucessor do pai no reinado. 62
Com a morte de seu irmão Akaba em combate, em 1708, e com os sobrinhos ainda
crianças, Tassi Hangbè decide assumir o trono que era seu por direito. Tal fato causou
impacto na sociedade daomeniana, pois nenhuma mulher havia ocupado esse posto real. A
destreza com a qual a rainha guerreava e sua competência na resolução dos conflitos reais,
fizeram com que ela ganhasse apoio e respeito de seus súditos. Foi Tassi Hangbè, durante
seu histórico reinado, que criou o grupo das ‘Ahosi’, exército formado por amazonas,
devidamente treinadas para combater os inimigos do reino, entre eles os colonizadores
franceses. As ‘Ahosi’ são personagens importantes na história do Benim, estiveram na linha
de frente da defesa de seu território e cumpriram com êxito as atividades que até então eram
atribuídas aos homens.
Em, 1711, três anos após o início de seu reinado, Tassi Hangbè deixou o trono, após
grande pressão e mobilização por parte dos homens, não acostumados a ter uma figura
feminina no poder. Hangbé renunciou e teve como sucessor seu irmão mais novo Dossou,
posteriormente chamado de Agadja. A história de seu reinado foi quase toda apagada da
história real do Benim, porém seu palácio ainda continua preservado na cidade de Abomey e
seus descendentes continuam a perpetuar o seu legado.
Com a história da rainha Tassi Hangbè queremos elucidar alguns pontos importantes
das discussões sobre gênero e os papeis exercidos pelas mulheres nas sociedades africanas. O
primeiro deles é de que, antes mesmo da denominação de Feminismo, as mulheres africanas
ocupavam e reivindicavam lugares de poder nas organizações sociais de seus territórios.
Quando mulheres brancas reivindicavam o direito à educação na primeira onda feminista,
mulheres africanas já comandavam exércitos e lideravam nações.
Um segundo ponto, é pensar que, enquanto eram lideranças fortes, as mulheres
africanas também eram colonizadas e escravizadas por nações brancas, criando uma grande
disparidade no que concerne às condições humanas entre mulheres negras e brancas. Era
difícil para algumas mulheres africanas pensarem em reivindicar o acesso à educação ou ao
voto, quando elas precisavam sobreviver à escravização, às violências sexuais, ao cruzamento
do Atlântico sob condições não humanas. Elas precisavam, antes de tudo, sobreviver! Nessa

62 Disponível em: https://beninespoir.com/histoire-tassi-hangbe-la-reine-de-danhome-oubliee/.

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travessia, é fundamental pensarmos em um feminismo que realize intersecções entre o


gênero e outros elementos, como a raça para fortalecer suas discussões, de acordo com a
afirmação de Oyèrónkẹ́ Oyewùmí (2004, p. 03):

Talvez a crítica mais importante de articulações feministas de gênero é aquela feita


por uma série de estudiosas afro-americanas que insistem que nos Estados Unidos
de forma alguma o gênero pode ser considerado fora da raça e da classe. Esta
posição levou à insistência sobre as diferenças entre as mulheres e a necessidade
de teorizar múltiplas formas de opressão, particularmente sobre as quais as
desigualdades de raça, gênero e as desigualdades de classe são evidentes.

Pensadoras africanas e afrodiaspóricas têm debruçado seus estudos para uma


compreensão de que há inúmeras particularidades que distanciam as mulheres negras das
mulheres brancas, fazendo-se necessárias epistemes que contemplem esses distanciamentos e
que promovam discussões sobre equidade, respeitando as especificidades das mulheres
dentro de suas múltiplas realidades sociais.
Escritoras africanas de Língua Francesa adotaram outras terminologias paralelas ao
termo feminista, a exemplo de ‘Féminitude’ adotado por Calixthe Beyala, no ensaio ‘Lettre d'une
Africaine française à ses compatriotes’ (1985), e o ‘Misovire’, proposto por Werewere Liking, no seu
romance ‘Elle será de jespe e de corail’ (1983). Nos Estados Unidos, Alice Walker adota o termo
‘Womanism’ (1983), como nos aponta Maria Elizabeth Peregrino Souto Maior Mendes, na sua
Tese ‘O corpo materno em Without a Name e Butterfly Burning, de Yvonne Vera: Tensões, Transgressões
e Resistências’:

Na escrita womanista de Walker, portanto, está presente busca por igualdade de


direitos para homens e mulheres negras, incluindo demandas pragmáticas de
reconhecimento e representação da raça negra em vários níveis do governo, a fim
de alcançar paridade de oportunidades socioeconômicas perante o homem branco
(MENDES, 2017, p. 38).

Sendo assim, é importante sabermos que o Feminismo não está centrado em uma
discussão única sobre gênero, mas que outros fatores de desigualdades, como a raça e a
classe, lugares de origem e suas particularidades locais, precisam ser inseridas na esfera global
desse movimento. No que concerne aos estudos literários de autoria feminina em África, é
fundamental que estejamos atentos a essas especificidades e assim teremos uma
compreensão melhor das obras e das inquietações apontadas pelas autoras em seus escritos.

O que aprendemos com as Ahosi - Entrelaçando a escrita feminina beninense


Neste tópico, procuraremos analisar as personagens femininas nos romances ‘Une
Citronnelle dans la neige’, de Gisèle Hountondji, ‘Pour une poignée des gombos’, de Sophie Adonon,
e ‘Presqu'une Vie’, de Carmen Toudonou e apontar como essas personagens possuem
similitudes entre as discussões de identidade, condição feminina na sociedade beninense e os
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papéis designados às mulheres, no que se refere ao casamento e à maternidade.


Em ‘Une Citronnelle dans la neige’, de Gisèle Hountondji, temos uma escrita
autobiográfica que conta a história de imigração da própria Gisèle, quando é mandada por
seu pai para estudar na França, aos 18 anos de idade:
Quando toquei na porta deles no dia seguinte, na hora indicada, eles demoraram
um pouco para me abrir; Atrás da porta, ouvi sussurrando: - ‘Não temos ideia,
hein, uma negra! Você percebe?... eles nos mandaram uma negona! Eles não
foram feitos para cá... Pessoas que estão acostumadas com o mato... !’. Uma voz
feminina continua: - ‘Mas então abra... Você nunca sabe...’. A porta se abriu
finalmente – ‘Era você que ligou ontem?’ – ‘Sim senhor’. – ‘Ah, nos desculpe...
pois, esta manhã alguém ligou que estava com pressa e muito interessado, e
deixamos o quarto para ele. Lamentamos, mas não poderíamos ter feito o
contrário. Com licença.’ ... ‘Se somente meu pai soubesse! Ele que estava
convencido de que eu seria feliz na França, terra de boas vindas, terra de asilo...
feliz entre os franceses, pessoas que, segundo ele, não seriam capazes de
prejudicar um ser humano, são tão educados, inteligentes... civilizados...
(HOUNTONDJI, 1986, p. 12). 63

O romance é construído a partir das expectativas e frustrações de Gisèle diante da


sociedade francesa e retrata o enfrentamento de inúmeros africanos aos preconceitos com os
quais se deparam ao migrarem para Europa, seja para estudar ou trabalhar. Como podemos
observar nesse outro trecho do romance:

[...] ela me fez mudar de lugar, me colocou nesse caso na última fila. Assim ela
poderia deixar de me corrigir, sem que as outras meninas percebessem... Por que
eu especificamente? Para esta pergunta, nunca soube a resposta... Até o dia em
que a ouvi dizer: ‘Respire fundo... sopre... Tire o ar do peito e fique em pé bem
reto... Mostre que você é linda... Muito linda!’ Eu entendi. Ah! A sentença! A
famosa frase: ‘Mostre que você é linda!’ Anteriormente, e como sempre, ela não
tinha corrigido nenhum dos meus movimentos. Então era porque eu não era
bonita e não merecia ser dançarina. Ah, desgraça! Como eu poderia ser bonita
para ela? Uma negra linda é uma contradição! [...] (HOUNTONDJI, 1986, p. 55).

A escrita de Gisèle Hountondji consegue trazer diversas nuances do racismo e


xenofobia, além da mente colonial que ainda está intrínseca nas sociedades europeias: "[...]
Os Negros, em geral, e os amarelos, os asiáticos, também têm um odor muito forte, pois dá
para perceber que vocês têm uma pele que transpira muito [...]” (HOUNTONDJI, 1986, p.
156). A personagem autobiográfica mostra ainda uma visão assimilada de seu pai, pois ele
cria em seu imaginário uma sociedade francesa ideal, exemplo de desenvolvimento e
civilidade, em contraste com o Benim. Em ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’, Frantz Fanon
destaca: “Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado
escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será”
(2008, p. 34).
Na sociedade colonial, o assimilado é aquele que renega seus valores tradicionais para

63 Os trechos dos romances, aqui citados, estão escritos em francês e possuem uma tradução livre para este
artigo.

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assimilar aqueles que são impostos pelos colonizadores, passando, assim também, a subjugar
os seus pares. O conceito de assimilação cultural perdura mesmo nas sociedades pós-
coloniais, em que as nações colonizadoras deixam um modelo eurocêntrico que visa
normatizar os costumes das ex-colônias.
Por outro lado, são o casamento e a maternidade que norteiam as personagens
Julienne, Régisette, Bäi, Séréna e Dansi, em ‘Pour une poignée des gombos’, de Sophie Adonon, e
de Abluimadji, em ‘Presqu'une Vie’, de Carmen Toudonou. Julienne é mandada por sua mãe
Bäi ao campo para colher quiabos e no caminho encontra Tony, os dois se apaixonam e
casam logo em seguida despertando o ciúme de sua irmã Régisette, pois ela era mais velha e
o esperado pela sociedade é que ela se casasse primeiro. Após o casamento, os noivos se
mudam do vilarejo para a capital Cotonou.
Por ser a irmã mais velha, Régisette os acompanha e tem relacionamento com o
cunhado Tony, que acarretará uma gravidez e fuga da casa da irmã para que ela não
descobrisse o ocorrido. Régisette dá à luz a Éros e o abandona no templo de Dan (Vodoun
patrono do Benim, representado pela serpente), por sua vez, o bebê é encontrado por Dansi
(nome homônimo ao da divindade Dansi, a serpente feminina irmã de Dan). Por ser uma
mulher estéril, Dansi já havia feito diversas oferendas aos deuses para engravidar:
Inspirada pela experiência de sua genitora, Dansi foi consultar Dannon, o
sacrificador de Dan. O santuário desse sábio se encontrava no bairro
Adandokpodji, em Abomey. Dannon lhe prescreveu uma longa lista de objetos
para o sacrifício. Era o preço a se pagar para receber novamente as graças de seu
Deus, e a maneira de se cumprir seu desejo mais querido (ADONON, 2016, p.
63).

Acreditando ser uma resposta dos deuses aos seus pedidos, Dansi cria a criança até
por volta de seus 20 anos, quando Éros irá se apaixonar por Séréna, filha de Julienne e do
seu pai Tony, que não sabem de sua existência:

Quanto à Séréna, ela estava desmaiada há muito tempo; desde o exato momento
em que ela sentiu o laço apertando o seu amor, para sempre poluído pelas
proibições terrenas, modestamente chamadas de leis, ‘impedimento do
casamento’. O parentesco direto era um obstáculo para o casamento entre Séréna
e Éros. Sendo irmão e irmã, eles nunca poderiam se casar (ADONON, 2016, p.
168).

Em ‘Presqu'une Vie’, temos a ‘narradora personagem’ Abluimadji, a única filha entre


os seus irmãos, sua vinda ao mundo foi uma imposição dos vodouns à sua mãe:

Como ditava a tradição, era necessário dar a vida rapidamente a outra criança,
para não correr o risco de atrair a raiva dos deuses. Nisso, Yèyimin não ousou
fazer nenhum desejo. E ela deu à luz a uma criança que nenhuma jovem poderia
dar à luz no mundo, Abluimadji (TOUDONOUN, 2014, p. 26).

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A personagem é ainda criança iniciada ao culto aos vodouns e, na adolescência,


Abluimadji interrompe os estudos, mesmo sendo uma aluna premiada na escola, para
cumprir o destino de todas as outras meninas na sua idade: o casamento.

- Fizemos o que é certo para você. Henri é um homem sério e desfruta de uma
situação financeira e social estável. Além disso, de todos os seus pretendentes, ele
é o único que não é casado. O que pedir a mais? A galinha é feita para o galo e o
curral para ambos. Achamos que ele pode te fazer muito feliz. E o amor com
isso? O que eles estavam fazendo, do amor? (TOUDONOU, 2014, p. 115).

As histórias se dividem entre o ambiente rural e urbano e sob os costumes


tradicionais e cosmopolitas do Benim. Destacamos ainda a importância dos cultos religiosos
tradicionais do Benim, em especial, o culto aos Vodouns, que são responsáveis por guiar as
ações das personagens em diversos momentos das narrativas: "Eu vi claramente o meu
Vodoun e compreendi" (TOUDONOU, 2014, p. 95), dispara Abluimadji antes de sua
iniciação ao culto ancestral de sua família. Esse ritmo de passagem era imposto por sua
família e, a princípio, não bem quisto pela personagem, porém no decorrer da narrativa, tal
fato será fundamental para o empoderamento da personagem.
Em ‘Pour une poignée des gombos e Presqu'une Vie’, o casamento é o eixo central que guia
as narrativas. As autoras reforçam a importância desse acontecimento e como são vistas
aquelas mulheres que não são preteridas por algum homem, como é mostrado o destino de
má sorte de Régisette. Por outro lado, são abordadas as infelicidades dos casamentos
arranjados, bem com os comportamentos patriarcais dos homens, propensos à infidelidade
ou mesmo à poligamia, legitimada nos espaços sociais onde se passam as narrativas.
Observarmos, na escrita de Sophie Adonon e Carmen Toudonou, que ambas as
autoras abordam a temática da maternidade de modo bastante relevante, levando-nos a
desconstruir alguns olhares ocidentais sobre o maternar da mulher no Benim. Cabe aqui
apontar o conceito de ‘other-mothering e mothering of the mind’, sugerido pela estadunidense
Patrícia Hill-Collins (2000), que diz respeito a uma interrelação entre raça, classe e gênero e
coloca a maternidade afrodiaspórica como sendo herança africana, pela qual o ato de
maternar seria responsabilidade de toda a comunidade e, não apenas, da mãe biológica. A
nigeriana Oyèrónké Oyěwùmí (op.cit.) reforça o apontamento de Patrícia e afirma que:

Mães são, antes de tudo, esposas. Esta é a única explicação para a popularidade do
seguinte paradoxo: mãe solteira. A partir de uma perspectiva africana e como uma
questão de fato, mães por definição não podem ser solteiras. Na maioria das
culturas, a maternidade é definida como uma relação de descendência, não como
uma relação sexual com um homem (OYEWÙMÍ, 2004, p. 05).

Desse modo, compreendemos que a maternidade, tida pelo feminismo ocidental


como um ponto chave da opressão patriarcal, ganha outros sentidos quando observamos o

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lugar da mulher em África. O maternar é ato comunitário e não, exclusivo da mulher que
gesta, sendo importante que todos à sua volta assegurem o bem estar da criança. Além disso,
a maternagem revela a força ancestral da ‘matripotência’, trabalhada pela feminista Carla
Akotirene, que define o corpo feminino como detentor da potência ancestral de gerar outras
vidas não podendo, jamais, ser colocado à margem.
A maternidade também é tratada de modo realista e mostra como as mulheres
podem agir de modo desesperador diante das cobranças e medos que o gestar outro ser
humano pode causar. Tanto em ‘Pour une poignée des gombos’, como em ‘Presqu'une Vie’, as
personagens enfrentam a angústia de abandonar seus filhos. Permite-nos lembrar dum itan
de Osùn, orixá feminino das águas doces e da fertilidade, muito difundido nas religiões
afrodiaspóricas que, quando se banhava no rio e se mirava no espelho, distraída, não percebe
que seu filho, o príncipe Logun Edé, caiu nas águas turbulentas do rio.
Iansã, orixá feminino dos ventos e raios, passava por perto e ao ver a criança se
afogando, a salva e a leva para seu palácio, sem entender como uma mãe poderia deixar isso
acontecer com seu filho. Algum tempo depois, Osùn descobre onde seu filho se encontra e
vai a sua procura, Logun Edé estava forte e saudável e aprendera com Iansã muitas táticas de
guerra. Osùn agradece imensamente a Iansã por ter salvo seu filho e cuidado dele. Logun
Edé, passou então a ter os cuidados maternos das duas divindades. Compreende-se aqui, o
ato comunitário de maternagem à luz matripotente africana.

Últimas Considerações
Assim como a história de África se desenha a partir da luta de mulheres, que desde
os tempos remotos, lideravam reinos e guerreavam para defender seus territórios, a escrita
feminina na literatura africana vem galgando espaços e se impondo como importante
instrumento de compreensão das relações de gênero nas diversas nações do continente.
Surge de uma necessidade das mulheres escreverem suas próprias histórias e se consolida
como uma ‘escrita arma’ que se faz necessária na contemporaneidade, abordando temáticas
relevantes que ampliam e interseccionam as discussões do Feminismo.
Estudando a literatura do Benim, percebemos temáticas recorrentes, trabalhadas
pelas autoras na construção das personagens femininas em suas obras que, em geral,
denunciam violências, contestam lugares sociais previamente impostos e apontam caminhos
de resistência e empoderamento. Os ritos de passagem iniciáticos dos cultos aos vodouns,
representam o começo de uma nova vida guiada pela ancestralidade e promove, ao mesmo
tempo, um (re)nascimento para as personagens que, adquirindo o poder deixado pelas que as

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antecederam, incorporam as forças matripotentes que as desvencilham das amarras


opressoras.

REFERÊNCIAS
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CAZENAVE, Odile. Femmes Rebelles: Naissance d’un nouveu roman africain au féminin.
L’Harmattan, Paris, 1996.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução de Renato da Silveira.
EDUFBA, Salvador, 2008.
HILL-COLLINS, Patricia. Learning from the outsider-within: the sociological significance
of Black feminist thought. Social Problems, Vol. 33, Nº. 6, Special Theory Issue, 2000.
HOUNTONDJI, Gisèle. Une Citronnelle dans la neige. Les Nouvelles Editions
Africaines, Lomé, 1986.
MACHADO, Fernanda Murad. Personagens Femininas e Escritoras na Literatura
Francófona da África Subsaariana. In: Revista Letras Raras, V 5, Ano 5, Nº 2 – 2016,
p.48-58. Disponível em: http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/article/view/
671/414. Acesso realizado em 26 de Agosto de 2019.
NGAL, Georges. Création et rupture en littérrature africaine. Paris: L’Harmattan, 1994.
OYEWUMI, Oyeronke. The Invention of Women: Making an African Sense of Western.
Gender Discourses. University of Minnesota Press, Minneapolis, 1997.
OYEWUMI, Oyeronke. Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos
conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. Traduzido por Juliana Araújo
Lopes para uso didático de Conceptualizing Gender: The Eurocentric Foundations of
Feminist Concepts and the challenge of African Epistemologies. African Gender
Scholarship: Concepts, Methodologies and Paradigms. Codesria Gender Series. Volume 1, p.
1-8, Dakar, 2004.
TOUDONOU, Carmen. Presqu’une vie. Editora plumes Soleil, Cotonou, 2014.

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O NARRADOR BENJAMINIANO NA OBRA DE PEPETELA: ESTUDO


COMPARATIVO COM AS OBRAS DE CONDÉ E LAYE

Renato José Galdino (UFRN) 64


1 Introdução
Muitos autores já pensaram em como a narrativa funciona ou deveria funcionar
desde que se começou a pensar a literatura. Um dos autores mais célebres nesse sentido é o
filósofo grego Aristóteles que, já no século III a.C., em sua ‘Poética’, discorre sobre como
uma boa história – nesse caso, mais especificamente a ‘Tragédia’ – deve ser contada. De
forma menos prescritiva, vários autores, principalmente diante das inovações criativas dos
séculos XIX e XX, desenvolveram suas próprias teorias e maneiras de ver o ‘fazer literário’.
Entre estes autores está o alemão Walter Benjamin, em seus textos críticos sobre a literatura,
e mesmo a leitura moderna, evoca a ideia de ‘narrador’.
A ideia do narrador das obras de ficção sempre foi um dos pontos chave da crítica
literária e já teve muitas visões bastante distantes e mesmo contraditórias e a de Benjamin
não foge à regra dessa polêmica. Entretanto, em seu ensaio ‘O Narrador: Considerações
sobre a obra de Nikolai Leskov’, ao analisar a obra do russo Nikolai Leskov, Benjamin
acrescenta ao pensamento europeu de sua época a ideia de narrativa tradicional distinguindo,
assim, o romancista e o narrador.
Este trabalho tem como objetivo, observar até que ponto as ideias benjaminianas
sobre o narrador são cabíveis, tendo em vista as produções literárias pós-coloniais e, para
tanto, serão observadas suas características dentro da obra ‘O Desejo de Kianda’, do escritor
angolano Pepetela.
Além disso, a obra angolana será posta em relação, a partir da perspectiva de
Benjamin, com outros dois romances, ‘Moi, Tituba… Sorcière’, de Maryse Condé e ‘L’Enfant
Noire’, de Camara Laye. Essa leitura conjunta auxiliará a percepção dos limites e da
pertinência da ideia de narrador benjaminiano em relação ao romancista.
Este trabalho é dividido, pois, em cinco partes. Inicialmente, será apresentado o
autor principal a ser lido neste artigo, Pepetela, comentando paralelamente sua relação com a
tradição oral e a história de seu país. Em seguida, serão apresentadas de forma mais
pormenorizada as ideias de Benjamin acerca da narrativa e do romancista e como ele as
pensou a partir da obra de Leskov. A parte seguinte, por sua vez, apresentará de forma
sucinta Condé e Laye e suas relações com a tradição e o romance. Finalmente, as ideias de

64 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL) da UFRN na linha de


pesquisa sobre Leitura do Texto Literário e Ensino. E-mail: [email protected]

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Benjamin serão aplicadas a essas obras, observando até onde o pensamento ocidental,
mesmo que pensando as tradições, pode caber, ou não, ao se analisar a produção pós-
colonial, o que será comentado na última parte deste trabalho, as conclusões. Dessa maneira,
espera-se que se conheça mais sobre as obras desses grandes escritores e, além disso, renovar
a crítica sobre suas obras e observar a complexidade impressionante da produção africana
após suas independências.

2. Pepetela e a tradição oral


Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido pelo pseudônimo de
Pepetela, é um escritor angolano de descendência portuguesa e é considerado por muitos
como um dos mais importantes do período revolucionário e pós-independência de Angola.
A obra de Pepetela se inicia, assim como a de muitos de seus contemporâneos angolanos,
ainda sob a dominação colonial de Portugal. Nascido em uma família relativamente abastada
para os padrões da época, Pepetela vai estudar na Europa, como era o comum para os mais
ricos da época, onde começa a se interessar mais por literatura e política. Em sua terra natal,
a escrita de Pepetela se torna uma importante arma na guerra Colonial. Pepetela se torna um
guerrilheiro do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e luta, de fato, contra
o domínio colonial, época em que ganha seu nome de guerra ‘Pepetela’, que continua
usando.
Durante o período em que duraram as guerras de libertação de Angola, Pepetela
escreveu ‘As Aventuras de Ngunga’, 65 obra que narra a evolução de um jovem guerrilheiro
do MPLA perante a dura realidade da guerra que conta, de forma bastante didática, como
seria a conduta de um bom soldado. Essa obra foi utilizada como cartilha pelos guerrilheiros
que estudavam durante a guerra. Outra importante obra escrita durante esse período foi,
talvez, sua obra mais conhecida, ‘Mayombe’ em que são narradas as vidas cotidianas de
muitos dos envolvidos na guerra, população, dirigentes, inimigos e, é claro, os próprios
guerrilheiros.
Essa obra foi baseada em relatos oficiais reais da guerra que Pepetela tratou de recriar
na forma de um romance. Devido a seu teor crítico em relação ao exército e à guerra em si,
‘Mayombe’ só seria publicado anos depois do fim da guerra, pois o autor acreditava que a
visão negativa dos guerrilheiros cometendo delitos, mesmo que ao lado de vários atos
heroicos, por mais que os humanizasse, poderia ser recebido negativamente pela população
civil angolana.

65 ‘As Venturas de Ngunga’, apesar de escrito durante a guerra, só veio a público anos mais tarde, em 1972.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Após a independência de Angola, Pepetela passa a fazer parte do governo durante


algum tempo. No entanto, por haver críticas pessoais em relação a decisões governamentais,
a denúncias de corrupção dos novos dirigentes e por alegar que a vida política acabava por
lhe deixar sem tempo para escrever, Pepetela deixa o governo para dedicar-se exclusivamente
à literatura. Dessa época, vem uma de suas obras mais emblemáticas: ‘O Desejo de Kianda’,
em que Pepetela mescla elementos históricos reais com elementos da cultura e tradição
popular locais.
Nesta obra, são narradas duas histórias de certa forma distintas, mas que se
comunicam e se completam. De um lado, tem-se a história do casal José Evangelista e
Carminha Cara de Cu (também chamada de CCC). João Evangelista é um homem pacato
vindo de uma tradicional família cristã, enquanto Carmina é uma jovem e ambiciosa líder
política em ascensão no país. Em meio a vários acontecimentos reais da história recente de
Angola, João Evangelista e Carmina vão tentando ascender socialmente, mais ainda, em suas
vidas. A história desse casal se passa paralelamente à história de uma criança chamada
Kassandra e de um velho chamado Kalumbo.
No dia do casamento de João Evangelista e Carmina, um prédio do largo da lagoa do
Kinaxixi, no centro de Luanda, desaba se tornando pó, sem ferir ninguém. Kassandra e
Kalumbo descobrem que quem está fazendo com que os prédios caiam é Kianda, deusa da
lagoa, que está desgostosa com o que as pessoas estão fazendo ao redor de seu lar (poluição
da terra e água, crescimento desenfreado dos prédios e outros maus à natureza). No local em
que os prédios caem, os moradores sem teto iniciam um tipo de seita que atrai curiosos de
vários locais, inclusive velhos amigos de João Evangelista e de Carmina, que não gosta do
que está ocorrendo, acreditando sempre ser uma conspiração americana.
Os prédios ao redor do Kinaxixi vão sendo derrubados até que eles alcançam o
prédio em que Carmina e João Evangelista vivem, igualando ao fim os dirigentes do país aos
demais angolanos que tanto perderam por causa do ‘progresso’. Desse modo, a história
angolana e sua tradição oral se aliam na pena de Pepetela aliados através da ficção. Um autor
que comenta esta relação entre o fazer literário e a tradição popular é o alemão Walter
Benjamin.

3 Benjamin e a narrativa
Em seu importante ensaio ‘O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov’, Benjamin discorre sobre o fazer literário do russo Nikolai Leskov e, ao fazê-lo,
acaba criando um conceito muito interessante para se pensar a crítica de várias obras
recentes. Benjamin foi um crítico, filósofo, tradutor e sociólogo de origem judia comumente

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

relacionado à Escola de Frankfurt e muito influente em diversas áreas do conhecimento.


Para Benjamin, o último narrador europeu de narrativas, segundo sua própria ideia de
narrativa, foi Leskov (BENJAMIN, 1987). Isso se explica pelo fato de Benjamin diferenciar
o narrador, que narra na tradição, e o romancista.
O narrador e a narrativa teriam, desse modo, algumas características que lhe seriam
próprias e incontornáveis, diferindo, assim, do romancista e do romance. Para Benjamin, de
forma esquemática, o narrador possui três características incontornáveis. O narrador possui
um senso de necessidade e precisão muito elevado se apegando apenas a elementos
necessários à trama contada. Esse senso de necessidade é importante, pois as narrativas são
experiências passadas que devem ser contadas sem que o auditor ou leitor se perca no que
não é necessário.
Essas experiências não foram necessariamente vividas pelo narrador, podendo ter-lhe
sido passadas por narradores anteriores. Desse modo, a narrativa se alimenta e alimenta uma
tradição, pondo-se como um elo dessa mesma tradição. Essa tradição tem uma função
relativamente ‘prática’, ela transmite uma vivência, uma sabedoria, um conhecimento que
deverá ajudar o auditor/leitor de alguma forma. Esse conhecimento apresentado não precisa
ser explicitado como no caso das fábulas. Esse é um ponto muito importante, pois por mais
que certa sabedoria deva ser transmitida adiante, ela não deve ser ‘informada’ ou ‘explicada’,
como ocorre com as ‘morais da história’: é a própria narrativa que ensina.
Desse modo, o conselho a ser depreendido da narrativa deve ser apresentado apenas
pelo desenvolvimento dos personagens envolvidos na história e tendo o auditor/leitor que
fazer sua própria leitura do que fora contado. Esse narrador também pode se apresentar de
duas maneiras distintas, como um narrador sedentário ou como um narrador viajante. Nas
palavras do próprio autor sobre esta distinção:
‘Quem viaja tem muito o que contar’, diz o povo, e com isso imagina um narrador
que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou
honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e
tradições. Se quisermos concretizar estes dois grupos através de seus
representantes arcaicos, podemos dizer que um é representado pelo camponês
sedentário, e outro pelo marinheiro viajante (BENJAMIN, 1987. p. 197-198).

Sendo assim, os dois narradores benjaminianos se apresentam de formas bem


distintas, dependendo de como suas narrativas se estruturam. Para exemplificar esses dois
tipos de narradores, pode-se pensar em ‘O livro das Maravilhas’, de Marco Polo e em ‘A
Ilíada’, de Homero. Ao viajar pelo oriente, Marco Polo traz uma série de histórias que
serviram, durante anos, como fonte de maravilhamento e surpresa para os vários países da
Europa onde sua obra foi traduzida. ‘A Ilíada’, por sua vez, narra os diversos mitos próprios

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

da cultura grega e foram organizados oficialmente por Homero em volta do personagem


mitológico de Aquiles. ‘O Livro das Maravilhas’ é um ótimo caso do narrador que vem de
longe e que conta histórias exóticas, ou seja, o ‘marinheiro viajante’, enquanto ‘A Ilíada’, por
sua vez, é um exemplo do narrador que ganhou suas histórias em sua própria terra, como um
‘camponês sedentário’.
Porém, esse não é um fenômeno exclusivo da produção literária estrangeira de
séculos passados. No campo literatura realizada no Brasil, podemos citar as figuras de
Euclides da Cunha, em seu livro ‘Os Sertões’, história que narra fatos longínquos para o
narrador e seu público, como a Guerra de Canudos, cujo narrador é um viajante e o
‘Romance d'A Pedra do Reino’ e o ‘Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta’, de Ariano Suassuna,
que representa momentos singulares da história mítica, mistica e real do sertão nordestino.
Resumidamente, a narrativa é uma história concisa que, através das experiências da tradição,
transmite certa sabedoria, sendo esta de sua própria terra ou de além.
Vale lembrar que Benjamin não intentava criar, de forma alguma, um novo elemento
para a teoria literária, apenas estava pensando de forma crítica a obra de um dado autor que,
por sinal, vale apresentar rapiadamente. Nikolai Semyonovich Leskov foi um escritor russo
que viveu no século XIX, cuja obra não goza de muito reconhecimento, apesar de sua
grande produção. Leskov teve muitos problemas pessoais em sua vida, que o levaram a ter
que seguir as mais diversas carreiras de trabalho, às quais Leskov sempre aliou a sua
produção literária. O emprego que mais o influenciou, segundo o ensaio de Benjamin, foi o
de caixeiro viajante, pois por causa dele Leskov pôde visitar toda a Rússia e, também, alguns
outros países do continente europeu. Benjamin acredita que esse conhecimento influenciou
decisivamente sua obra, aproximando-o da tradição popular e oral e afastando-o do que seria
o romancista.
O romancista benjaminiano possui características diametralmente opostas às do
narrador. Por mais que um romance possa ser sucinto, como ‘O Estrangeiro’, de Albert
Camus que contém algumas dezenas de páginas, essa não é uma característica comum do
romance moderno, havendo constantemente detalhes que não auxiliam a intriga, ou mesmo,
as falsas informações que dificultam a compreensão da narrativa, como em romances
policiais, por exemplo. A segunda característica talvez seja a mais sensível a Benjamin, os
romancistas, mesmo os modernos em geral, que não gostam de suas experiências.
O autor defende seu ponto de vista evocando todos os traumas vividos na Europa
no início do século XX, devido às várias guerras que o continente viveu, principalmente, a
Primeira Guerra. Os homens que voltam da guerra voltam mais mudos do que foram, sem

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

experiências para compartilhar. Por fim, o romancista não transmite própria ou


necessariamente uma sabedoria. O heroi romântico é, muitas vezes mesmo, uma pessoa
reprovável, como no já citado romance de Camus. Benjamin cita em seu ensaio que, quanto
mais o romance se aproxima de algo ‘didático’, mais ele se afasta do próprio gênero
romanesco, caindo em subgêneros, ou mesmo gêneros distintos, como é o caso dos
romances de tese, para subgênero, e da obra ‘As Aventuras de Ngunga’, de Pepetela que,
mais se aproxima de uma cartilha do que de um romance propriamente dito.
O romance burguês, por ter se desenvolvido em um determinado ambiente em que
certa tradição não era mais valorizada e cujas experiências eram, muitas vezes, traumáticas
demais para serem ficcionalizadas, acabou tendo um desenvolvimento oposto às narrativas
anteriores.
Entretanto, devido à morte precoce do autor, o pensamento benjaminiano não levou
em conta a importante produção pós-colonial dos diversos países recém-independentes da
África e Ásia, principalmente, além dos países latinoamericanos, cuja literatura era ainda
pouco conhecida na Europa, situação que infelizmente ainda não mudou muito. Entre as
produções mais recentes, tem-se, como já dito, a africana da qual se pode citar a obra do
angolano Pepetela, que será comentada agora sob o ponto de vista de Benjamin.

4 A narrativa de Pepetela
As bases da história contada no romance ‘O Desejo de Kianda’ já foram
mencionados neste trabalho, sem grande desenvolvimento da trama. Essa é apenas uma obra
que pode ser lida com esse olhar e, mesmo ‘Mayombe’ pode apresentar características típicas
do narrador de Benjamin. Provavelmente, ‘O Desejo de Kianda’ seja a obra em que elas se
destacam de forma mais marcante. Com essa leitura pretende-se, pois, observar quais as
proximidades e afastamentos entre as ideias de Benjamim e a produção de Pepetela (assim
como de outros autores que também se insiram nessa tradição, como se verá mais a frente de
forma mais resumida).
Vale lembrar, de forma esquemática e resumida, que o narrador é alguém que se atém
ao que é necessário à sua história, tendo bom senso sobre a necessidade de transmitir uma
experiência. Além disso, ele deve utilizar as várias experiências passadas e repassadas pela
tradição, atualizando-a e acrescentando a essa tradição, a sua própria experiência. Por fim,
essa experiência deve conter algum tipo de sabedoria, conhecimento e/ou conselho a ser
transmitido através da narrativa. É importante que essa sabedoria não seja transmitida
através de uma explicação ou de maneira informativa, como em uma reportagem ou em uma

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

receita. A própria experiência deve transmitir ao auditor e/ou leitor da obra o conselho
dado, seja o narrador e a narrativa próprios de sua terra ou de uma terra mais distante,
mesmo que não necessariamente exótica.
A isso tudo se oporia o romance burguês moderno. Isolado em sua publicação, pois
ele não se inclui na tradição de experiências compartilhadas coletivamente, sendo restrito à
experiência de um ser acima da média, o heroi do romance. Embora um romance possa se
comunicar tematicamente com outros, fazer parte de uma série, caso da série ‘Harry Potter’,
de J. K. Rowling, ou de obras que se ligam umas às outras por algum elemento em comum,
como em ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’ e ‘Quincas Borba’ de Machado de Assis.
Apesar de essas obras se conectarem de alguma forma com outras, elas se bastam em
si mesmas não dependendo, necessariamente, umas das outras. Além disso, elas não se
relacionam realmente com uma tradição como um elo em meio a outros tantos. Por mais
que ‘Harry Potter’ possa ser visto como uma história da tradição de mitos sobre bruxaria e
que Rowling tenha de fato se apropriado de vários mitos e lendas antigos, ela não os atualiza,
apenas os emprega em sua obra. O que, deixe-se claro, não é, de forma alguma, um demérito
da autora, sendo seus usos perfeitamente adequados à sua história, mas funcionando mais
como fonte de inspiração do que como motor narrativo.
Em ‘O Desejo de Kianda’, tem-se um romance com várias características clássicas do
chamado romance burguês. No entanto juntamente a eles, há importantes elementos que o
distanciam deste tipo de construção romanesca aproximando-o do que seria a narrativa para
Benjamin. Inicialmente, pode-se citar que sua história se encerra em si mesma, após a
conclusão de uma experiência narrada, com começo-meio-fim (mesmo que seu fim dê
margens para entendê-lo em aberto, pois em certo momento o livro acaba), o que é uma
característica do narrador romanesco benjaminiano.
De fato, a obra se isola em si nesse sentido, porém, a trama que ali é contada é
alimentada pela tradição oral local, resgatando as narrativas tradicionais sobre Kianda e as
atualizando em sua própria narração, dando-lhe novos contornos e nuances. Esse ‘resgate’,
além de inserir a obra em uma tradição maior (como o caso já citado de ‘Harry Potter’),
também acrescenta uma nova visão ao mito já existente, auxiliando sua manutenção e, em
certa medida, mesmo a renovação de sua própria mitologia.
Seus dois personagens principais, Carminha e João Evangelista, não podem, de modo
algum, ser considerados exemplares. No entanto, a partir de suas experiências, juntamente às
vivenciadas no núcleo diretamente ligado a Kianda e ao lago Kinaxixi, há claramente uma
sabedoria apresentada no texto através das experiências dos vários personagens ali presentes.

126
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Essa sabedoria, ou mesmo conselho, não é explicitada na história, cabendo a quem a ler, ou
ouvir, entendê-la, ou não. Essa sabedoria também inclui ‘O Desejo de Kianda’ de forma
mais próxima à narrativa tradicional. Outro ponto importante refere-se ao que se aprende
com a história, não apenas através de informação (explicações, moral da história e outras
explicações), mas por meio da interpretação de quem se depara com sua leitura ou audição.
Apesar de curto, é sempre relativo discutir se há, ou não, elementos que seriam
realmente necessários à narrativa. O tamanho, algumas dezenas de páginas, poderia
corroborar a ideia de necessidade e praticidade, mas essa seria uma análise subjetiva demais.
No entanto, uma característica que fica clara na obra de Pepetela é de onde vem o narrador.
Os fatos narrados em ‘O Desejo de Kianda’, como já citado anteriormente, referem-se a
história, mitos e lendas de Angola. Desse modo, ao se referir a momentos precisos da
história de Angola, como a Guerra Civil, ou a reabertura econômica do início da década de
1990, assim como a presença da própria personagem de Kianda, deusa guardiã das águas nas
religiões de origem kimbundu, tem-se uma história narrada por um narrador sedentário, que
‘ganhou’ sua história na própria terra.
‘O Desejo de Kianda’ é, apenas, um exemplo da grande produção pós-colonial atual,
que apresenta as características próprias do narrador benjaminiano, assim como elementos
da narrativa romanesca burguesa contemporânea. Esses elementos aliados uns aos outros, o
tradicional e o moderno, ajudam a mostrar as contradições existentes, tanto em Angola
quanto em outros países recém-independentes, assim como demonstra a riqueza de suas
literaturas. Essa riqueza também pode ser observada nas produções literárias de outros
países, assim como em outras línguas.

5. Condé, Laye e suas narrativas.


A literatura pós-colonial vem se desenvolvendo bastante pelo mundo inteiro e em
diversas línguas, como já apresentado em português. Outra língua importante para essa
produção literária é o francês, tanto em países e regiões da América quanto da África.
Dentre os nomes que se destacam nessa língua, podem-se citar a guadalupense Maryse
Conde e o guineense Camara Laye. Condé, apesar de ser oficialmente cidadã francesa, posto
que Guadalupe ainda é, atualmente, uma região pertencente à França, e muito relacionada à
literatura e aos estudos africanos, assim como os caribenhos. Uma de suas obras mais
conhecidas é ‘Moi, Tituba, sorcière… Noire de Salem’, 66 romance que mescla os mitos e fatos dos
horrores ocorridos na cidade de Salem contra suas ‘bruxas’. Já Camara Laye é escritor

66 A obra foi publicada em 1986 e recebeu o título em português de Eu, Tituba Bruxa: Negra de Salem.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

nascido em Guiné e cuja obra mais conhecida e importante é sem dúvidas ‘L’Enfant Noir’. 67

Laye narra nesse romance de formação, a história de uma criança africana que vive em um
meio tradicional até chegar à maturidade, passando por provas iniciáticas e rituais
tradicionais, até o momento em que deixa sua terra para ir estudar na França. Ambas as
obras e ambos os autores se envolvem muito nas tradições sobre as quais escrevem, sendo
que nos dois exemplos é possível encontrar elementos que os aproximem da ideia de
narrativa de Benjamin.
Como é sempre bom lembrar, Benjamin considera que o gênero romance necessita
que a obra se encerre em si mesma e se baste a si mesma para que possa ser considerada
como um todo. Nesse sentido, Tanto a obra de Condé quanto a de Laye se encaixam como
romances, tal como o que ocorreu em Pepetela. No entanto, como no exemplo de O Desejo
de Kianda, as obras vão além disso dialogando com suas tradições, porém em graus diferentes.
‘Moi Tituba…’ conta a história de uma figura meio real meio mítica que foi escravizada
durante anos, teve vários donos ao longo da vida e foi uma das vítimas dos julgamentos
ocorridos no século XVII, conseguindo sair viva de lá acaba se relacionando com
quilombolas em especial o seu líder.
Condé, além de narrar a história da personagem Tituba inserindo no texto, tanto seus
mitos como seus poderes mágicos ou extra-humanos e, além dos vários fatos documentais
da época, atualiza o mito e se insere nessa tradição. Laye faz algo parecido, no entanto
misturando o mágico extraordinário, como a cobra e o crocodilo, animal guia de seu pai e
mãe, com o real, os rituais e provas iniciáticos em que ‘o mágico’ cede lugar às explicações
racionais dos ocorridos. Enquanto Condé joga com a relação ‘mito-fato’, pondo-os em um
mesmo patamar, Laye os põe também em relação, mas em uma busca por conhecimento,
tentando desvendar seus próprios mitos. Diferentemente de Condé, Laye se apropria da
tradição para criar sua obra, sem se inserir, necessariamente, nessa tradição (do mesmo modo
que se explicitou, anteriormente, sobre Rowling).
Embora ‘L’Enfant noir’ não seja um elo dentro da tradição da qual ele se alimenta –
lembra-se que é necessário, para Benjamin, se alimentar dela e alimentá-la –, a obra de Laye
apresenta uma das características fundamentais da narrativa benjaminiana: o ensinamento.
Benjamin observa que, de fato, o romance de formação tende a apresentar. de uma forma ou
de outra. algum tipo de conhecimento, no entanto,

67 A obra foi publicada em 1953, cinco anos antes da independência da França, e recebeu o título em
português de O Menino Negro.

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[o] romance de formação (Bindungsroman) […], não se afasta absolutamente da


estrutura fundamental do romance. Ao integrar o processo de vida social na vida
de uma pessoa, ele justifica de modo extremamente frágil as leis que determinam
tal processo. A legitimação dessas leis nada tem a ver com sua realidade. No
romance de formação, é essa insuficiência que está na base da ação (BENJAMIN,
1987. p. 202).

Entretanto, diferente do romance de formação clássico em que as decisões e ações


são justificadas pelo mundo, desse modo possuindo uma sabedoria meramente ‘explicada’ e
com uma história ilustrativa, na obra de Laye não há nenhum conhecimento exposto,
embora haja ocultamente, tendo o leitor que depreendê-lo da narrativa. Com ‘Tituba…’ essa
relação de sabedoria fica bastante clara, porém, devido à própria inteligência com a qual
personagem se relaciona com os mundos à sua volta, muitos conselhos acabam sendo
explicitados.
Ambos os autores narram histórias próximas de si e, assim como Pepetela, apesar de
não escreverem especificamente sobre si mesmos, acabam sendo muito próximos dos
personagens apresentados de forma habitual, utilizando as histórias de suas próprias regiões,
caracterizando-os como narradores sedentários. Nesse sentido ‘Tituba…’ se diferencia um
pouco pelas viagens narradas na obra, porém a ‘naturalidade’ com a qual são apresentadas
acaba não deixando forte a ideia de distanciamento ou estranhamento (ou mesmo de
dépaysement, como se diria em francês), o que caracterizaria o narrador viajante.

6 Narrações e conclusões
As ideias de Benjamin sobre o narrador e a narrativa, apesar de terem sido pensadas
na primeira metade do século passado, ainda são bastante atuais e, como visto, podendo ser
aplicadas em diversas obras. Pepetela não é o único, mas em sua obra o uso da tradição oral
o aproxima muito do que Benjamin considerou como um narrador, distanciando-o do
romancista moderno. Apesar de considerar que as experiências traumáticas do século XX
acabariam por interromper as narrativas, Pepetela mostra como, mesmo com os traumas do
passado, ainda se pode contar uma história.
Além de Pepetela, as obras de Condé e Laye apresentam muitos dos elementos
apresentados no ensaio ‘O Narrador’ como próprios da narrativa tradicional. Apesar de
todos não estarem presentes, da mesma maneiras, nas obras comentadas aqui, percebe-se
como a tradição ainda é importante fonte de influência nas produções literárias recentes,
principalmente nas chamadas produções pós-coloniais.
Além das poucas obras citadas neste trabalho, há muitas outras que acabam sendo
deixadas de lado pela crítica, por não se encaixarem nos conceitos de romance modernos,

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

sendo exatamente estes os elementos destoantes que dão autenticidade e originalidades às


obras. Sendo assim, é muito importante que outros pesquisadores joguem um olhar novo em
outros romances ou em autores pouco estudados nas universidades ou pela crítica. A
tradição e suas narrativas foram imprescindíveis para o desenvolvimento da literatura atual e
continuam sendo, como se pode notar pelos autores que produziram e ainda produzem
literatura nos mais diversos países e línguas.

REFERÊNCIAS

BENJAMIM, Walter. O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:


BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. Brasília:
Brasiliense, 1987.

CONDÉ, Maryse. Moi, Tituba, sorcière… Noire de Salem. Paris: Folio, 1988.

LAYE, Camara. L’Enfant noir. Paris: Plon, 1965.

PEPETELA. O Desejo de Kianda. Alfragide: Dom Quixote, 1995.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

TERCEIRA MARGEM DE UMA VOZ INSUBMISSA

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

MEMÓRIAS CRIOULAS: A VOZ CONTADEIRA QUE VEIO DO MAR


Tânia Lima (UFRN- Profartes – UDESC)

ESTA VIAGEM

Esta viagem não responde à minhas perguntas.


Trespassei o aço das certezas.
Herança, devorei-as.
A etapa seguinte rasga a prévia cartografia
Toda fronteira é uma apelo à renuncia
Prescrutei mares cidades sinas nas pedras papiros
Ao encontro da linguagem da tribo azul
Cada passo me afasta de um rito sagrado
Esta caminhada decreta um tráfico sem remissão:
a fortaleza do sonho pela metamorfose das feridas
Vítima da memória, nenhum deus me acolhe à
chegada.
(CONCEIÇÃO LIMA, 2011, p.71)

Em travessia pelo atlântico negro, as contações de história revisitam o que foi


apagado na cartografia da língua oral, por isso, existe uma procura pelos desvios linguísticos
de uma linguagem oral africana. Nas Ilhas, “mar escuta música/ nas conchas” (LIMA 2015,
p.79). Não muito distante, ouvem-se histórias sobre a natureza de contar memórias, alguns
moradores das comunidades ribeirinhas aconselhavam a pedir proteção à mãe do mar. Sem a
proteção de entidades, ficaria difícil reencontrar o caminho de volta à ‘casa-África’. No mar,
quem conta estórias são as memórias da imaginação. O mar é quem abre o caminho para se
falar da memória ancestral das águas.
Em muitos lugares da África Ocidental, o mar está associado às práticas míticas e
místicas que, em geral, são relatadas por mitos que simbolizam novas resistências, celebram
um culto ao mistério. A ética dos contadores é que rege a essência. A palavra nasce do fogo,
faz nascer a guerra e a paz. A escrita é, para Hampaté-Bâ (2010), uma espécie de fotografia
do saber, mas não é o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem, por isso que, ao
longo da história, as contações de estórias são crenças sagradas.
Há, nas comunidades de contadores, uma mistura de espiritualidade com vários
relatos de fé. A encruzilhada religiosa religa os mitos de matrizes africanas, mitos indígenas,
aos mitos das lendas populares. “Existe, ainda, São Bartolomeu, conhecido no candomblé
como Oxumaré, divindade protetora dos ambientes onde ocorre a mistura das águas doce e
salgada. Venerado por católicos e praticantes do candomblé, o santo garante proteção às
regiões estuarinas” (SCHAEFFER-NOVELLI et al, 2004, p.24).
Protegida pelo mar da memória, em um ‘tempo sem datas’, saímos de uma ilha onde
havia uma das maiores variedades de contadoras de histórias do Nordeste brasileiro. No

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

arquipélago do Maranhão, devido à latitude e à conformação do litoral próximo à linha do


Equador, “a variação da maré pode chegar a até 7,5 metros” (ALVES, 2004, p.131), lugar
onde se vivia do sal e do sol. Ao contrário de alguns lugares nordestinos, precisávamos do
mar para tirar o sustento de nossa gente. Quando vinha o inverno, os safritas ficavam
desembarcados; a chuva trazia a benção dos orixás. O mar trazia uma maternidade com
escamas de uma sereia sagrada. O mar sempre foi a primeira pele do mundo. Até que um dia
o mar levou tudo e a ilha desapareceu do mapa. O mar sempre esteve perto de nossa pobre
gente. No dezembro, carregávamos as palavras e devolvíamos ao mar. Por isso que o mar de
antigamente era tão anil, porque estava cheio de palavras feitas de sal.
Na Ilha de Igoronhon-MA, dona Marovira nos contava, à beira do mar, estórias sem
pé nem cabeça. A contadeira usava uns vestidos compridos, turbante branco amarrando as
ideias da cabeça; de asas para cima, amuletos com penas de passarinho; beiços enrolados
faziam um bemol redondo e faceiro para soletrar esquisitices. No arrastar de um par de
tamancos, soavam ritmos gigantes que subiam no toc-toc das onomatopeias. Longe, as
veredas de um mundo rendado de bichos e gente. A vista não alcançava o silêncio
testemunhando a música das palavras. A viagem era regida pela imaginação de histórias de
‘homens-florestas’.
Naquele tempo, a voz contadeira vinha de canoa. Marovira com seus beiços largos
soletrava com um ‘cacimbo’ na boca: - ‘Você me espere que depois eu vou ‘le’ contar uma
estória crioula feita de mar’, pois o mundo carece de contadoras de memórias. Por muito
tempo, vivemos em um lugar onde se ouvia de longe os tambores de crioula e as matracas
acompanhando quadrilhas de São João. Avistávamos o mar, de longe; era o templo sagrado
de estórias afroindígenas.
Atualmente, boa parte dessas memórias se perderam ou ficaram sequestradas no
esquecimento. A ilha que o mar varreu no ‘vai e vem’ das marés, tombou do atlas. Pouco a
pouco, a lembrança de uma memória repartida vem à deriva; no terreiro, a espada de São
Jorge cortando todo o mal, ao lado do povo guerreiro, aquilo que foi dito ou desdito nunca
será esquecido, um breve sopro de vida fala por todas as épocas, como descreve Conceição
Lima (2011, p. 50); “Ogum não sabia/ algures alguém dormia./Valsavam palácios em
Kampala e Alexandria.”
O mar é uma palavra feita de mutação, surge das águas profundas, mas é alimentado
pelo fogo do mundo para receber o movimento das ondas. O mar traduz as incompletudes
da vida animal, vegetal, mineral e mítica. Falar do mar é falar de contação de estórias
sentenciadas ao silêncio marulhado. Quando se fala do mar, utilizamos a memória diaspórica

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que o mar levou, séculos adentro. Humanizamos o mar, tornando-o uma entidade com a
qual é possível um diálogo com o sagrado, lugar de despachos, territórios onde perambulam
os espíritos ‘desencarnados’.
O mar é a segunda escola de estórias. A primeira escola de contadores sempre foi o
chão. A poética do mar é aprendizagem movente; “símbolo de luz e areia/alquimia do
barro/alicerces úmidos” (LIMA, 2003, p.21). No balanço da voz contadeira, a oralidade vem
pelo avesso, embaralhada pelo lado agramatical do ‘indioma’ das margens. Conceição Lima
(2011, p.44) descreve no poema ‘Fronteira’, algo que se locomove em palavras marítimas:
“Trespassar é sina dos que amam o mar”. Entendemos que todos nós, indígenas, pretos,
caboclos, trespassamos a linha tênue do mar da diáspora, tornamo-nos, ao longo do
massacre da história, bastante desconfiados de um sistema ainda sob o comando de uma
mentalidade colonial. Das certezas lineares, estigmatizadas em nome do ‘mercado’, nasceram
os mandamentos dos que vieram colonizar África-Brasil-Américas. Sem titubeios, o
‘indioma’ das margens sempre desconfiou das grandes certezas do mito do ‘progresso’:
“grave é caviar o mar” (LIMA, 2015, p.72).
No Candomblé, existe uma divindade da lama, conhecida por Nanã Buruku, Orixá
que entregou uma porção de lama a Oxalá. Nanã deu a matéria do começo à Oxalá que
modelou o barro e criou a mulher e o homem. “Nanã Buruku, mãe de Omulu e Oxumaré,
que se transformou em cobra para escapar do assédio de Xangô” (PRANDI, 2001, p. 196-
197). Nanã é também conhecida como Vovó da lama. Sua imagem está associada à proteção
dos ‘estuários’. Senhora das várzeas úmidas, Nanã protege marisqueiras contadeiras.
As estórias das contadeiras também atravessam as fronteiras da africanidade e
assemelham-se aos encantos da rainha do mar, Iemanjá que, com seus cabelos de algas
marinhas, além de ser protetora das águas, faz parte do inconsciente mítico ritualístico das
feitiçarias. Em verdade, os mitos alcançam uma camada que alimenta o imaginário da cultura
popular. Para os pescadores do mar, o mito de Mãe D’água indica caminho para o mistério,
mas também a trilha da pesca e da proteção aos que sobrevivem do mar.
Na mitologia ameríndia, o mito de Yara adentra as puçangas lendária de Mãe d’Água,
do Boto e de Cobra Norato. O mar é uma sereia líquida. O mito de Yara também atravessa
as fronteiras indígenas e assemelha-se aos encantos da rainha do mar, Iemanjá, que com seus
cabelos de algas marinhas, além de protetora das águas, faz parte do inconsciente mítico
ritualístico do candomblé. Em verdade, os mitos alcançam as encruzilhadas culturais que
banham as lendas populares.
Na ilha de São Luís, corre a lenda segundo a qual, embaixo da ilha dorme uma

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grande serpente, uma espécie de Oxumaré. Comentam também que, se algum dia o rabo da
cobra encontrar-se com a cabeça do mito, toda a cidade de São Luís desaparecerá do mapa,
enquanto o mar inteiro se desagregará, o universo explodirá, os dias se tornarão
descontínuos, como se a humanidade inteira estivesse condenada a espatifar.
Talvez uma das funções mais importante do mito esteja em fundar modelos para
todas as atividades significativas do ser humano: educação ambiental, iguarias, relação
familiar, cultura, sexualidade e outas. “Comportando-se como um ser humano plenamente
responsável, o ser humano imita os gestos exemplares dos deuses, repete as ações deles, quer
se trate de uma simples função fisiológica, como a alimentação, quer de uma atividade social,
econômica, cultural, militar” (ELIADE, 2001, p.87).
Em sintonia com o mistério que abriga a natureza, Unger Nancy Mangabeira (2001,
p.98) esclarece que os seres míticos sinalizam para um mistério, um elo de equilíbrio da ‘mãe-
natureza’, na medida em que são entidades que, não somente preservam, mas zelam pelos
elementos ambientais. “Os mitos são signos que mantêm elos ecológicos.” Na visão de
Unger, os mitos promovem mudanças profundas, quando fornecem um senso de medida
aos seres humanos.
Por outro lado, alerta a estudiosa que o poder dos mitos habita apenas o inconsciente
dos povos em que a natureza mantém o mistério e o brilho, pois essas entidades são o brilho
e o mistério da Natureza. Quando o lugar que abriga o encanto é invadido por pessoas e
máquinas que mexem muito com o lago ou com a floresta, essas forças se retiram, como
quem desaparece para o fundo das águas profundas, em tom de contação. Olinda Beja
(2007, p.21), no livro ‘Água Crioula’, decanta:

A UM PASSO DO CAIS

Conta-me histórias pescador conta-me histórias


dos barcos que passarem neste caís...
que marinheiros traziam
que gentes que recados
donde vinham para onde iam
[....]
Conta-me dos barcos que aportaram nestas ilhas
trazendo escravos estrangeiros contratados
quem ficou quem regressou
[...].

Os mitos demarcam em torno de nós uma falta que abriga as incompletudes da


origem, da vida e da morte. “ Quando eu morrer voltarei para buscar/os instantes que não
vivi junto ao mar” (ANDRESEN, 2018, p.468). O universo marítimo é o próprio corpo das
estórias contadas; quem conta as estórias é o mar, mas quem reconta as raízes da memória é

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a montanha. “O cosmo é um organismo vivo que se renova periodicamente” (ELIADE,


2001, p.123). Por seus múltiplos modos de ser, o cosmos nos diz sobre o mistério da
natureza da vida. A natureza que se conta, em lendas e fábulas, é nossa própria raiz
biográfica. Talvez por isso, quando contamos histórias, cantamos a fim de recuperar a
memória perdida do mundo, o grande massacre dos que foram historicamente explorados,
A escritora Paulina Chiziane (2018, p.53), conhecedora de uma memória ancestral das antigas
contadeiras, em ‘O canto dos escravizados’, denuncia as explorações feitas no calabouço da
história.

SEREI NEGRA

Sou serei negra e renasci das ondas


Morri acorrentada no navio e não fui escrava
Danço eternamente no dorso do oceano
Sou sereia livre cavalgando o mar
O mar, gêmeo da alma africana, é a minha morada
Sempre a dançar e a cantar abominando o infortúnio
Sempre a vibrar ao sabor dos ventos e das marés
Sou sereia bela na dança da eternidade.
Como uma boa negra danço em cada instante
Na celebração da vida seja de dor ou de alegria
Agradeço a Deus e nem lamento a vida que perdi
Antes morta e livre do que viva e escravizada
Sou atração fatal e ninguém resiste ao meu canto
Mato de amor piratas, marinheiros, vagabundos do mar
Por isso me querem violar com a força dos canhões
Para acabar com a minha virgindade num só golpe
Faço balançar os navios em dias da tormenta
Divirto-me com as batucadas no alto mar
Entre dois continentes eu bailo eternamente
Numa maré estou em África e noutra na América
Sou azul como o céu e tenho a beleza dos corais
Do fundo do mar trago a triunfante mensagem dos búzios
Que anunciam a paz de Deus o fim do sofrimento
E o nascer de uma África que será a luz do mundo.

São as histórias que movem os círculos dos séculos, mas são os mitos que exercem a
função de recriação dos elementos culturais de uma nação. Os mitos ancestrais vivificam as
origens, nossa raízes, e recortam a fala de nossos primórdios. Mas também servem como
instrumentos para reforçar a opressão em torno de uma cultura imposta de cima para baixo.
Nessa perspectiva, o contador expande a visão do mundo pela ótica metafórica das
imagens. O poder das metáforas se nutre de analogias para recriar os diversos mundos de
fora ao conhecer os fascinantes mundos de dentro.
A estória é a pontuação de uma pergunta que se faz narrativa. Toda historia é uma
espécie de intervalo entre a dúvida e o espanto. O que faz o homem atravessar o ‘litoral da
palavra’ é a busca infinda de si e dos outros que se revelam no traço mais ilegível e inaudível

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da sugestão poética. O contador é o inaudito porque é o que inaugura o dizer do mundo.


No ritual da tradição de histórias orais, saber ouvir é essencial. “A tradição oral
conduz o homem à sua totalidade e, em virtude disso, pode-se dizer que contribui para criar
um tipo de homem particular, para esculpir a alma africana,” como bem observa Amadou
Hampaté Bâ (2010, p.169). Na ação de ouvir, silenciar significa aprender junto ao exercício
de escutar a voz de outros mundos espirituais. Na tradição oral, a espiritualidade e
materialidade não estão distantes, muito menos dissociados, estão em relação de irmandade.
Importante observar que “nenhum narrador poderia mudar os fatos, pois a sua volta haveria
sempre companheiros ou anciãos que, imediatamente, apontariam o erro, fazendo-lhe a séria
acusação de mentiroso” (BÂ, 2010, p.207).
A palavra oral, quando nasce, não é agrafa, a palavra é instituída em outra instância,
por isso, conta um valor sagrado de uma tradição. Sem titubeio, a voz negra, glossário de
cortesia, musicada pela poesia, tona o contar e o recortar, em terras do mar, histórias que não
acabam mais. As lembranças são fotografias do mundo da memória. O prazer pueril de ouvir
histórias consiste igualmente na espera de repetições.
Com sua voz de narrador, Walter Benjamim (1974, p.64) chama a atenção: “A
experiência transmitida oralmente é a fonte de que hauriram todos os narradores. E, entre os
que transcreveram as estórias, sobressaem aqueles cuja transcrição pouco se destaca dos
relatos orais dos muitos narradores desconhecidos.” Na leitura de Benjamim (1974, p. 65),
vê-se que “o narrador é uma espécie de conselheiro do seu ouvinte.” É certo, segundo o
pensador, que essa expressão ‘conselheiro’, em nossos dias, venha carregada de um sotaque
antiquado. Mesmo assim, afirma que isso se dá porque “diminuiu muito a habilidade de
transmitir oralmente, ou por escrito, alguma experiência” [ibidem]. Para se indicar conselhos
faz-se necessário saber a arte de narrar. Além disso, o autor citado aponta que, para ser
receptivo a um conselho, é importante manter-se aberto à exposição de uma situação.
No mundo da fantasia, contar é sabedoria, principalmente, quando requisita da
imaginação um repensar a existência acontecida. A contação de estórias requer a missão de
transmiti-la. Algumas histórias são apagadas quando se veem guardadas pelo esquecimento.
A atividade de contar é perseguida por aquilo que se quer compartilhar. Ao ouvir as
memórias, quem escuta também conta. E isso acontece de tal maneira que lhe será natural a
maneira de transmiti-la depois. “Assim é construída a rede que acomoda o dom de narrar e é
dessa forma que ela vem se desfazendo hoje em todos os lados, depois de ter sido atada há
milênios, no âmbito dos ofícios mais antigos” (BENJAMIM, 1974, p. 66).
Interessante, pois, seria contar mais histórias, somente assim a mágica não se

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quebraria, a memória seria preservada e as histórias não teriam fim. Se “quem presta a
atenção a uma história, está em companhia do narrador” (BENJAMIM, 1974, p.75), melhor
acreditar que as lendas são eternas companheiras da poesia e que os mitos despertam no
homem sensações que lhe são desconhecidos.
Muitas histórias vivem sagradas dentro da poesia. Talvez, por não terem fim, as
histórias são passadas de uma tradição a outra. Nas contações de histórias, a memória
empresta voz ao narrador para ouvir o que a vida um dia esqueceu. Como esclarece Augusto
Massi (1998, p. 33): “O bom contador de histórias abafa sua voz pessoal, reencena o vivo
diálogo diante de nossos olhos.” Em um assalto à memória, a voz da contadora carrega a
oralidade dos ancestrais africanos e, de vez em quando, nos aparece para nos lembrar as
lendas que agora reencontramos pelo viés da canção enigmática, quando o poema é memória
carregando o ritmo das coisas moribundas.
A trama das histórias mitológicas entrelaça-se às memórias das águas. Esses ritos das
águas também recobrem o imaginário popular. Os ritos das águas acompanham as histórias
de caráter mitológico. Poseidon, deus grego, figura representativa de Netuno, deus romano
que tem o mar como moradia, ocasionando as mais terríveis tormentas, até as ondas mais
violentas e pacíficas. As histórias de Netuno, na linha do poema narrativo, muitas vezes,
suspendem o poema, com um significado que toca na espinha dorsal em defesa das coisas do
mundo, do devir-natureza, que aparece, reaparece e desaparece um pouco por toda a parte,
em uma espécie de cosmogônia, onde todos os continentes são separados por águas míticas
e místicas. Na cosmogônia dos orixás, o mito das águas aparece na maternidade de Iemanjá:

IEMANJÁ

Logo no princípio do mundo,


Iemanjá já teve motivos para desgostar da humanidade
Pois desde cedo os homens e as mulheres jogavam no mar
tudo o que a eles não servia.
Os seres humanos sujavam suas águas com lixo
Com tudo o que não mais prestava, velho ou estragado
Até mesmo cuspiam em Iemanjá
quando não faziam coisas muito pior
Iemanjá foi queixar-se a Odolumaré
Assim, não dava para continuar
Iemanjá vivia suja
sua casa sempre cheia de porcarias
Olodumare ouviu seus reclamos
e deu-lhe o dom de devolver à praia
tudo o que os humanos jogassem de ruim em suas águas
Desde então as ondas surgiram do mar
As ondas trazem para a terra o que não é do mar (PRANDI, 2001, p.392).

Se o mundo transforma a cada dia o excesso de luxo em lixo mar afora, é preciso

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conscientizar via contação de estórias. Guattari (2004, p.7-8), no livro ‘As três ecologias’,
alerta que o planeta sofre um processo de intensa mudança tecnicocientífica e recebe como
contrapeso um desequilíbrio ambiental que, se não for repensado com ações concretas e
firmes, a vida sofrerá as consequências que se observam em nossos dias, como o
esquentamento do planeta e a deterioração das relações entre pessoas, sendo gangrenada pela
mídia onde “a vida conjugal e familiar se encontra frequentemente ‘ossificada’ por uma
espécie de padronização de comportamentos e as relações de vizinhanças estão geralmente
reduzidas a sua mais pobre expressão.”
Resgatar o rito, o mito das águas, é pôr em evidência essas práticas coletivas da
humanidade que se passou in illo tempore, “a narração daquilo que os deuses ou os seres
divinos fizeram no começo do tempo” (ELIADE, 2001, p.84). Dizer um mito é anunciar o
que se passou além das origens. Uma vez narrado, ou melhor, revelado, o mito funda uma
memória que se diz verdadeira.
Não deveríamos ignorar o fundo de realidade subjacente à fantasia indígena e à ilusão
etnológica, como lembra Augé (2001, p.50): “a organização do espaço e a constituição dos
lugares são, no interior de um mesmo grupo social, uma das motivações e uma das
modalidades das práticas coletivas e individuais.” As histórias do mar são sínteses, imagens
condensadas, de uma antiga tradição oral nas observações de inúmeras pessoas que viviam
como parte de seu pertencimento e precisavam ter um conhecimento ancestral do mundo
para sobreviver.
Algumas histórias são contadas em tom baixo, por respeito aos espíritos protetores
da natureza. As fábulas míticas permitem ao ser humano explorar com respeito o meio
ambiente e protegê-lo dos perigos da dizimação. Como se observa nas exemplificações sobre
o mito da água são costumeiros os cultos às árvores. As oferendas ritualmente são oferecidas
às árvores mais velhas, que não são derrubadas, para servir como exemplo ou evidenciar a
necessidade de respeitar as ‘árvores-mãe’.
Nas estórias declamadas, os ritos, os mitos, as desavenças, as transgressões
representam a manifestação do ritmo universal. Atualmente, a imagem do mundo multiplica-
se, o espaço também; o ano transforma-se numa linearidade sem fim; os astros deixam de ser
a imagem da harmonia cósmica. Desloca-se o eixo da Terra. Perdemos o segredo do infinito
poema cósmico. O caos enrijece o homem. Inventamos novas leis que regem a ordem dos
des-mundos. Sem mitologias, fundamos o mundo da técnica em um mundo desprovido de
mistério. Sozinhos, nem a campainha nos faz companhia. Fica-se com as insinuações, com as
impessoalidades extremamente formais e, com isso, o vazio que essas representam, muitas

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vezes, traduz o eco de se alcançar apenas na superfície breves perguntas sem respostas.
Estampa-se, a cada dia, o aspecto catártico e destrutivo no planeta. Crimes
ambientais acontecem à luz de esgotos. Discussão de armamentos nucleares atravessa
campos minados. O genocídio de nossos irmãos pretos e de povos originários acontece em
campos de concentração da pandemia COVID-19.
Esquentando-se a camada de ozônio, degelamos a Antártica. Ecologicamente, o
planeta não anda bem das esferas respiratórias Entre o peso do viver e os sonhos, tocamos
com as mãos o destino do mundo. E uma nova consciência ambiental vem surgindo
lentamente com seus passos lentos. O regresso a um completo equilíbrio ambiental não
dependerá de uma revolução do cosmos, mas de uma transformação da mentalidade
humana. “O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre esse planeta, no
contexto da aceleração, das mutações técnico-científicas e do considerável crescimento
demográfico” (GUATTARI, 2004, p. 8).
A voz da humanidade conhece, em nossa atualidade, não propriamente a dor, mas o
terror, contudo ainda acredita na sua capacidade de ser bem-sucedida. Em toda parte, como
alerta no livro ‘Tudo que é sólido desmancha no ar - a aventura da modernidade’, de
Marshall Berman (1987, p.22-23): “graves perigos estão em toda parte e podem eclodir a
qualquer momento, porém nem o ferimento mais profundo pode deter o fluxo e refluxo de
sua energia.”
No ato de contar, o ser humano se fragmenta muito mais ainda, frente às
fragilidades de um sistema embrutecido. À luz das ordens de um legado opressor, a voz da
alteridade instaura-se, via contação de estória, como ferramenta contra seu próprio
apagamento. Assim, entre a pluralidade e a correspondência analógica, as identidades
afroameríndias estão em nossos dias em processo de desaparecimento.
A voz contadora coisifica a natureza para nomear a humanidade do mundo.
Levando-se em conta que a linguagem indica e a definição, por sua vez, apreende a realidade
no conceito, o contador não limita o poder de alcance da palavra, mas sugere uma abertura à
diversidade lírica do ‘eu poético’ que, ao falar do mundo, toca no simples gesto de resistir ao
caos. Vê-se que o contador faz conta das coisas mais simples para dar conta do processo
criativo. Sua sala de aula é a própria natureza, uma espécie de depósito de ‘inventança’ que
anda forjada para o aprendizado da educação tradicional afroamerindia.
Quando os índios acordam a aldeia ao som de flautas, o totem permanece como
poesia.. Os tambores, os batuques, as batidas de memória, que sonorizam o ganzá lírico, são
poesias: O negro bateu o violão como se fosse um tambor, e fez nascer outra escala musical.

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A crioulização musical, ao ecoar canções em reverência aos orixás, cria formas


míticas de um conto que também canta. A fala que canta dá voz ao som reprimido das
margens. Ao sotaque da voz caseira, carregam-se, dentro dos beiços, outras maneiras de
dizer que ainda não tiveram registro nos compêndios da língua, mas no sabor da voz
humana. Observa-se aí que os erros maduros do escritor não são uma exceção, mas uma
regra do idioma. O contador aproveita-se dos achados verbais, pega a rota dos desvios, em
plena viagem, para se encontrar com a memória individual e coletiva.
Toda estória colonial é remorso, sob o signo do trauma, uma luta constante
atravessou e atravessa o mar da diáspora. Quando se contam histórias, a vida não se distancia
da vista; o tempo ancestral é relembrado; a história não oficial revisita o que foi silenciado
pelas viagens dentro e fora da gente. Ao convocar o tempo ancestral, realiza-se uma travessia
por mundos jamais alcançados pela linha do olhar. O tempo da contação leva a um despertar
da consciência. Sem o ato de contar, olhando para trás e também para frente, talvez não
tivéssemos uma autonomia do processo criativo na teia da oralidade.
Glissant (1992, p.97-98), escritor e pensador caribenho, observa bem o mundo
universal da mesmice cultural e o paradigma da diversidade fragmentada. Na visão do
escritor citado, a diversidade representa uma tentativa da alma humana efetuar uma relação
‘intercultural, sem transcendência’. Enquanto a mesmice busca a profundidade, o absoluto
do ser, a diversidade retoma a proposta pré-socrática de estar no mundo em perpétuo
processo de mudança transformação. “Ele não é ser, mas sendo é que todo sendo muda [...]
Um dia vamos admitir que não somos uma entidade absoluta, mas sim um sendo mutável”
(GLISSANT, 2005, p. 33).
Na mesmice, a diferença é sublimada enquanto na diversidade a diferença é
singularmente aceita, a partir de elementos heterogêneos. O que a diversidade propõe é uma
poética da relação, um enraizamento de relacionamento com o outro, com o mundo, com o
cosmos. A mesmice é ilha de privilégio para alguns, discriminação, isolamento, genocídio
para outros. O maior dos preconceitos ainda é o preconceito ao preto, ao índígena, ao
pobre.
Para Glissant (2005, p.123): “não se pode lutar - fisicamente – contra as
multinacionais. (Apenas de maneira factual, quando elas se tornam visíveis, como, por
exemplo, diante de uma ameaça ecológica)... Por outro lado, também não devemos preservar
nossos antigos reflexos”.
Respeitar o outro envolve também a natureza. Transgredir a natureza é violar nossos
vários ‘eus’ identitários. Abrigar diálogos sobre a cultura do mar exige uma aprendizagem de

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desconstrução, consequentemente, de desconfiança das raízes identitárias simples e unas.


“As culturas comportam-se como madeira verde e jamais constituem totalidades acabadas
(por ocasião extrínseca e intrínseca); e os indivíduos, tão simples quanto os imaginamos,
nunca são o suficiente para não situar em relação à ordem que lhe atribui um lugar” (AUGÉ,
2001, p.26).
Em sintonia com a proteção da ‘biodiversidade’, os mitos são histórias que fazem os
povos manter certo respeito por todos os seres da natureza. “De repente, alarga-se a
percepção também das sugestões e influxos mágicos das vozes indecifradas, dos elementos
de uma realidade que não pode ser interpretada segundo a ótica racionalista” (OLIVEIRA,
2002:255).
Aquele que se esmera por dizimar a natureza, jogar lixo, serrar madeira, ou dinamitar
o estuário, destruindo tudo que é natureza, desse tipo a Vovó da lama se rebela, dificultando-
lhe o caminho de retorno a casa. Não é tão simples ou fácil encontrar a Vovó Nanã, uma vez
que a maré apaga as marcas do andar dessa figura mitológica (SCHAEFFER-NOVELLI et
al. 2004, p.23). Na Bahia, existe uma entidade, a orixá Nanã, personificada por uma mulher
de idade. Vinculada à fertilidade das espécies animais que vivem associadas ao estuário, é a
senhora da lama e das terras úmidas. Protetora dos pescadores e da lama, a anciã, chamada
carinhosamente de Nanã Buruku, pede aos protegidos cachaça, dente de alho, fumo de corda
e rapé, para se distrair enquanto observa o vai e vém diário das marés.
Sem a proteção da mitologia dos Orixás, entidades protetoras da natureza como um
todo, o universo inteiro se desagrega; os dias se tornam descontínuos; e os homens
desfazem-se em pedaços, como se a humanidade inteira estivesse condenada a espatifar. O
mundo transforma a cada dia o excesso de luxo em lixo ambiental.
Guattari (2004, p.7-8), no livro ‘As três ecologias’, alerta que o planeta sofre um
processo de intensa mudança tecnicocientífica e recebe como contrapeso, um desequilíbrio
ambiental que, se não for repensado com ações concretas e firmes, a vida sofrerá as
consequências que se observam em nossos dias, como o esquentamento do planeta e a
deterioração das relações entre pessoas, sendo gangrenada pela mídia onde “a vida conjugal e
familiar se encontra frequentemente ‘ossificada’ por uma espécie de padronização de
comportamentos e as relações de vizinhanças estão geralmente reduzidas a sua mais pobre
expressão.”
Em sintonia com o mistério que abriga a natureza, esclarece Unger Nancy
Mangabeira (2001, p.98), os seres míticos sinalizam para um mistério, um elo de equilíbrio da
mãe-natureza, na medida em que são entidades que, não somente, preservam, mas zelam os

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elementos ambientais. “Os mitos são signos que mantêm elos ecológicos.” Na visão de
Unger, os mitos promovem mudanças profundas, quando fornecem um senso de medida
aos seres humanos. Por outro lado, alerta a estudiosa citada que o poder dos mitos habita
apenas o inconsciente dos povos onde a natureza mantém o mistério e o brilho, pois essas
entidades são o brilho e o mistério da Natureza. “Quando o lugar que abriga o encanto é
invadido por pessoas e máquinas que mexem muito com o lago ou com a floresta, essas
forças se retiram.”
São as histórias que movem os séculos, mas são os mitos que exercem a função de
fundar os elementos culturais de uma nação. Os mitos fundadores vivificam as origens,
nossa raízes e recortam a fala de nossos primórdios, mas também servem como
instrumentos para reforçar a opressão em torno de uma cultura imposta de cima para baixo.
O contador coisifica a natureza para nomear a humanidade do mundo. Levando-se
em conta que a linguagem indica, e a definição, por sua vez, apreende a realidade no
conceito, o que conta não limita o poder de alcance da palavra, mas sugere uma abertura à
diversidade lírica do ‘eu’ que narra ao falar do mundo em sintonia com um ‘eco-lógico’. Vê-
se que aquele que conta faz conta das coisas mais simples para dar conta do processo
criativo. Sua sala de aula é a própria natureza, uma espécie de depósito de ‘inventança’ que
anda forjada para o aprendizado da educação tradicional ao voltar o olhar para as coisas do
chão. Observa-se aí que os sons do chão são sabençãos na voz do contador. Sabenção é
sabedoria abençoada, não são uma exceção, mas uma regra do ‘indioma’ popular. O
contador aproveita-se dos provérbios populares, pega a rota dos desvios para se encontrar
com a língua popular africana.
A arte de contar estórias é um legado de resistência, mas principalmente uma
mensageira de sonho e utopia que se reinventa a cada época. “A utopia não é o sonho. É o
que nos falta. Eis o que ela é: aquilo que nos falta no mundo. A função da literatura e da arte
é, antes de tudo, inventar um povo que falta” (GLISSANT, 2014, p.26).
Na esperança de que as pessoas do amanhã, ou do dia depois de amanhã, possam
sanar as feridas e encontrar a cura para problemas que afligem a desumanidade do mundo
atual, em tempos de irônica e contraditória mudança antidemocrática. A vida denuncia os
valores bizarros que a própria sociedade inventou, “quando tomba um caminho/Os
meninos de meu país desenham colinas sobre ondas” ( LIMA, 2011, p.32).

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REFERÊNCIAS

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

OXUMARÊ E O ‘ARCO DA VELHA’: NARRATIVAS IORUBÁS EM DIÁRIO


DE BITITA, DE CAROLINA MARIA DE JESUS

Júlio César de Araújo Cadó1


Tânia Lima2
Diário de Carolina

Neste artigo, objetivamos analisar a presença das narrativas iorubás na literatura


brasileira a partir do possível diálogo entre as histórias que cercam o orixá Oxumarê e o livro
‘Diário de Bitita’, de Carolina Maria de Jesus. Analisamos, assim, a crença da menina Bitita,
narradora e protagonista das memórias contidas no texto. A princípio, apresentamos
conceitos concernentes ao Candomblé, religião brasileira originária das diferentes crenças
trazidas do continente africano, enfatizando aspectos vinculados à cultura Iorubá.
Em seguida, investigamos os mitos nos quais Oxumarê desempenha o papel
principal, procurando identificar características atribuídas a este orixá; para isso, utilizamos
como fonte das narrativas a compilação organizada por Prandi (2001). Por fim, analisamos o
diário, a partir das reflexões de Gonzales (1984), Ribeiro (1996) e Souza (2016), destacando
aspectos que manifestam a repressão sofrida pela narradora, elementos motivadores para o
desejo de tornar-se homem.
A escritora mineira, Carolina Maria de Jesus, foi considerada um fenômeno do
mercado editorial brasileiro após a publicação de ‘Quarto de despejo: diário de uma
favelada’, em 1960. Encontrada pelo jornalista Audálio Dantas enquanto ele realizava uma
reportagem na comunidade do Canindé, às margens do Rio Tietê, na cidade de São Paulo,
Carolina de Jesus vivenciou a transformação de catadora de papel a sucesso nacional.
Entretanto, após a efervescência do primeiro livro, a autora foi retirada do centro de
discussões no meio editorial. Para Raffaella Fernandez (2006, p. 202),

Suas obras seguintes passaram a ser criticadas por critérios sofisticados, estranhos
àquela favelada que ousou escrever e entrar no seleto grupo de homens e
mulheres letrados da época. A crítica exigiu de Carolina justamente aquilo que ela
não poderia oferecer: um domínio da arte literária padronizada e uma coerência
ideológica impensáveis para alguém cuja preocupação cotidiana era saber se iria ou
não comer.

As peculiaridades na trajetória de suas publicações não se restringiram ao primeiro


romance. ‘Diário de Bitita’, obra póstuma publicada no Brasil em 1986 (quase uma década
após sua morte), também percorreu um caminho cheio de percalços. Inicialmente, a obra foi
editada em francês, em 1982, por algumas jornalistas que receberam os relatos da autora. O
período narrado nas páginas do diário corresponde ao retorno da Narradora Carolina às suas
memórias de infância em Sacramento, cidade do interior de Minas Gerais.

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Inserida em uma sociedade machista, misógina e racista, Bitita recorre ao


maravilhoso como forma de contornar as imposições que cerceiam sua vida, em especial, a
falta de liberdade. Sob a legitimidade do olhar de criança, o arco-íris desponta como
elemento possível de reverter tal paradigma. Fenômeno natural que despertou a curiosidade
e a imaginação de diferentes culturas, o arco-íris na cosmovisão Iorubá, uma das matrizes
étnico-linguísticas presentes na formação do Candomblé brasileiro é manifestação de
Oxumarê, divindade vinculada à fertilidade e à renovação.
Assim, neste artigo, procuramos estabelecer um diálogo entre o romance de Carolina
Maria de Jesus e as narrativas míticas iorubás, nomeadamente, aquelas nas quais Oxumarê
desempenha papel de destaque, a partir das versões registradas por Reginaldo Prandi (2001).
Para isso, o trabalho foi seccionado em três seções: na primeira, exploramos elementos
concernentes ao Candomblé, especificamente à matriz Iorubá; em seguida, voltamos nossa
análise para os mitos que cercam Oxumarê, desde seu nascimento até as múltiplas versões
sobre sua chegada ao céu na forma de arco-íris; por fim, estudamos o Diário, destacando os
intercruzamentos entre as memórias de Carolina e as narrativas iorubás.

Candomblé, Narrativas Iorubás e Orixás


O Candomblé é uma religião que teve seu desenvolvimento relacionado às crenças
trazidas para o continente americano pelos povos africanos submetidos à escravidão. A
constituição de seu panteão resultou do contato entre diferentes grupos étnico-linguísticos,
interligados mediante o processo diaspórico. Tanto divindades quanto mitos sofreram
modificações; alguns se perderam na travessia do Atlântico, outros ganharam novas feições
ao desembarcarem no continente. Devido à pluralidade cultural na formação do Candomblé,
utilizaremos como fonte para nossas discussões as narrativas de origem Iorubá.
Para Ribeiro (1996), a cosmovisão Iorubá enxerga o universo empírico, em diálogo
com o universo das divindades que, por sua vez, podem encontrar-se relacionadas à estrutura
da natureza (orixás) ou à sociedade (eguns), definindo, respectivamente, o papel do ser
humano na teia cósmica e no grupo social. Dessa forma, podemos identificar um “princípio
ancestral” que percola diferentes espaços na teia social desses grupos incluindo,

[...] além dos ancestrais nascidos do homem — os ancestrais históricos —


também as divindades e até mesmo o preexistente, pois que os dados de realidade
indicam que todos esses seres estão indissoluvelmente ligados à explicação do
mundo e à organização [sic] da realidade, não obstante as diferenças de substância.
(LEITE, 1997, p. 110)

Nesse contexto, a morte desponta como acontecimento marcado por uma série de
ritos fúnebres aos quais se vincula uma dupla simbologia: ao mesmo tempo em que

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representa transição para outro plano, a morte configura o elo de permanência,


correspondendo ao processo de gênese dos ancestrais (LEITE, 1997).
Neste artigo utilizamos, para a análise, os mitos que envolvem as entidades da
natureza, os orixás. É justamente por uma dessas narrativas que somos apresentados a uma
possível etimologia para a palavra orixá, resultado da contração de Ohun-ti-a-ri-sa, que
significa “foi encontrado e reagrupado.” Essa narrativa está em consonância com a
concepção dessas divindades apontada por Awolalu e Dopamu (1979 apud RIBEIRO, 1996),
para quem os orixás são “Emanações do Ser Supremo, dele possuem atributos, qualidades e
características e têm por propósito servir à vontade divina no governo do mundo” (p. 61).
Dentre os elementos valorizados na cultura Iorubá, está a palavra em sua
manifestação oral (LEITE, 1997), entendida como expressão de um poder divino capaz de
provocar ações com resultados imprevisíveis. De acordo com Prandi (2001), originalmente,
as narrativas dos orixás compunham um conjuntos de textos do domínio oral com caráter
divinatório, os odus, visto que “é pelo mito que se alcança o passado e se explica a origem de
tudo, é pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e na outra vida”
(PRANDI, 2001, p. 24). Dessa forma, a narrativa descortina as vivências dos antepassados
como resposta para as aflições do presente. No Brasil, segundo o autor, ocorreu a paulatina
desvinculação dos mitos de sua função oracular; apesar disso, as histórias foram mantidas
como substrato para uma série de elementos presentes na ritualística do Candomblé, como
nos “atributos dos orixás, na justificativa religiosa dos tabus [...], no sentido das danças
rituais etc” (PRANDI, 2001, p. 19).
As divindades iorubás apresentam características semelhantes aos humanos, inclusive
no que se refere ao comportamento sexual. Diferente da representação eurocêntrica, baseada
em uma tradição judaico-cristã, não há, na cosmovisão Iorubá, uma dicotomia entre
masculino e feminino. A valorização dessas perspectivas corrobora o reconhecimento de
outras “cosmogonias e geografias da razão” (RIBEIRO, 2018, p. 22), que contestam o
padrão eurocêntrico institucionalizado.
De acordo com Souza (2016), ao invés da relação binária de gênero, encontramos
uma distribuição quaternária segmentada em: aborô, iyabá, metá-metá e laí ibalopô. A
primeira e a segunda categorias correspondem, respectivamente, aos aspectos masculino e
feminino. Já a categoria metá-metá é representada por seres que transitam pelos dois
aspectos anteriores. Por fim, a última categoria diz respeito àqueles que se enquadram “para
fora e além de qualquer perspectiva sexual e de gênero” (SOUZA, 2016, p. 151).

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Entre a serpente e o arco-íris

Culturas espalhadas por diferentes contextos históricos desenvolveram mitos para


explicar os diversos fenômenos externos e internos ao homem. A aparição de um feixe
multicolorido após enxurradas torrenciais foi um dos fenômenos que despertou a
curiosidade e a imaginação dos homens. Segundo a cosmovisão Iorubá, o arco-íris é a
manifestação de Oxumarê, divindade relacionada à dinâmica do mundo, ao ciclo de
renovações norteador da vida. De acordo com o Babalorixá Cido de Oxum Eyin ( 2014, p.
94),
Esse orixá domina o dinamismo, o movimento e os ciclos. A energia de Oxumarê
está relacionada às dualidades e às impermanências necessárias ao planeta. É
preciso que haja dia e noite, sol e chuva, as estações do ano e até mesmo os
movimentos de rotação e translação da Terra. As mudanças são necessárias o
tempo todo.

Filho de Nanã Burucu, orixá que forneceu a lama para a criação dos seres humanos,
Oxumarê é irmão de Omulu. A narrativa ‘Nanã esconde o filho feio e exibe o filho belo’
conta o tratamento diferenciado que a mãe deu aos dois filhos devido à aparência de cada
um deles. Retratado como ‘um rapaz muito bonito e invejado’, cujas “roupas tinham todas as
cores do arco-íris e suas joias de ouro e bronze faiscavam de longe” (PRANDI, 2001, p.
226), Oxumarê foi alçado ao céu por sua mãe para que todos pudessem contemplar sua
beleza. Em contrapartida, Omulu foi coberto por palha como forma de esconder as feridas
sobre seu corpo.
Outros mitos narram diferentes razões para o surgimento do fenômeno. Em um
deles, Oxumarê costumava utilizar sua faca de bronze para produzir o arco-íris e, assim,
estancar os temporais. Um dia, convocado por Olodumare (Senhor Supremo na tradição
iorubá) para curar sua cegueira, Oxumarê foi proibido de retornar à Terra, permanecendo no
Orun. A partir desse momento, seu retorno só poderia ser temporário na forma do arco-íris,
como está narrado neste trecho de ‘Oxumaré desenha o arco-íris no céu para estancar a
chuva’:
Para ter Oxumarê por perto, [Olodumare] determinou que morasse com ele.
e que só de vez em quando viesse à Terra em visita, mas só em visita.
Enquanto Oxumarê não vem à Terra,
todos podem vê-lo no céu com sua faca de bronze,
sempre se fazendo no arco-íris para estancar a Chuva. (PRANDI, 2001, p. 224)

Uma terceira narrativa relaciona o fenômeno natural com a morte do orixá. Xangô e
Oxumarê iniciam uma batalha por ciúmes de Oxum, o que acaba resultando na morte do
Arco-Íris. O pranto de Nanã, sua mãe, comoveu Olodumare, que foi convencido a elevar o
corpo de Oxumarê, tornando-o ‘rei dos astros’, vivo no céu.

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Geralmente, o arco-íris é considerado um símbolo de ligação. Em seu dicionário de


símbolos, Chevalier e Gheerbrant (1982, p. 70, tradução nossa) identificam o arco-íris como
“caminho e intermédio entre o acima e o abaixo.” Nesse sentido, esse elemento constitui a
ligação entre o mundo dos homens e o mundo divino, ou, na concepção Iorubá, a ponte
entre Orun (domínio dos orixás) e Aiyê (terra). O vínculo entre religião e natureza presente
no Candomblé também pode ser identificado nessa relação, uma vez que Oxumarê é o
responsável por levar a água da Terra para a morada dos orixás, como descreve-se no
excerto: “Quando Oxumarê e Xangô foram feitos Orixás, Oxumarê foi encarregado de
levar água da Terra para o palácio de Xangô no Orum [...]” (PRANDI, 2001, p. 227) .
Contudo, o arco-íris não é o único símbolo atribuído a esse orixá. Segundo Eyin
(2014, p. 94), Oxumarê é associado a elementos alongados, como “as palmeiras, o cordão
umbilical e a serpente.” Segundo os mitos, esse animal corresponde à parte da natureza de
Oxumarê, sendo uma das formas assumidas pelo orixá. Se o arco-íris desponta no céu após a
chuva, a transição entre as condições climáticas; a serpente representa a dinâmica das
renovações, o animal cuja pele é renovada de tempos em tempos.
Nas narrativas Iorubás, percebemos as diferentes formas de representação de
Oxumarê. Além das mudanças entre arco-íris e serpente, quando em forma humana, o orixá
flui entre um aspecto masculino e um aspecto feminino, sendo considerado um metá-metá,
“tinha a beleza do homem e tinha a beleza da mulher” (PRANDI, 2001, p. 197). Podemos
perceber essa dualidade nos termos utilizados como referência ao orixá; por vezes, referem-
se a ele com termos masculinos (‘filho’, ‘homem’, ‘rapaz’), outras vezes, é descrito com
termos femininos (‘mulher’, ‘ela’). Deve-se ressaltar que a fluidez na forma de tratamento é
verificada tanto em narrativas diferentes como também no decorrer de uma mesma narrativa
caso exemplificado por essa passagem de ‘Oxumarê usurpa a coroa de sua mãe Nanã’:

Oxumarê era filho de Nanã.


No seu destino estava inscrito que ele deveria ser
seis meses um monstro e seis meses uma linda mulher.
Aos poucos, a mulher Oxumarê revoltou-se com a mãe,
pois não conseguia nunca uma relação de amor estável.
Quando estava tudo bem com ela e seu amante,
ela virava o monstro e afastava o companheiro (PRANDI, 2001, p. 128, grifo
nosso).

Além da metamorfose entre ser humano e monstro, a serpente, também verificamos


a variação na forma de tratamento. Inicialmente, o trecho o apresenta como ‘filho de Nanã’,
utilizando os pronomes masculinos; em seguida, a mudança ocorre (‘a mulher Oxumarê’) e
passa a utilizar os pronomes femininos.

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Memórias de Bitita e o arco da velha

Segundo Pereira (2019), a produção literária de Carolina Maria de Jesus é


caracterizada por um alto teor memorialístico, com lembranças a percolar o conteúdo dos
textos. Embora o título da obra analisada, ‘Diário de Bitita’, retome o gênero textual
homônimo, a escrita de Carolina expressa rupturas com a estrutura composicional do diário.
Os capítulos, entendidos como frações das memórias da narradora, não apresentam
elementos como vocativo, datação e despedida (PIMENTEL, 2011), utilizados pelos
escritores de diários para, respectivamente, iniciar o registro (os diversos ‘queridos diários’),
delimitar o momento sobre o qual está escrevendo e dar por encerradas as sessões de escrita.
Se em ‘Quarto de despejo’ a narradora relata o cotidiano de mulher, negra, pobre e
periférica no Brasil dos anos 1950, em luta constante com a mortalha amarela da fome, a dor
de não ter com o que alimentar seus filhos e suas desventuras amorosas; em ‘Diário de
Bitita’, embarcamos em uma viagem no ‘espaço-tempo’ até a infância da escritora em
Sacramento, cidade do interior de Minas Gerais.
Nesse sentido, o distanciamento temporal também marca diferenças com relação ao
gênero diário, uma vez que, segundo Pimental (2011), ele é caracterizado pela proximidade
entre a vivência da ação e seu registro. Enquanto a narradora mergulha em suas lembranças,
podemos identificar a fusão entre a perspectiva da Carolina adulta e as memórias da menina
Bitita, formando um amálgama no qual são entrelaçados os horizontes infantis e adultos,
marcado pela inserção de reflexões acerca dos acontecimentos narrados.
Nesse processo, torna-se peculiar a maneira como a nomeação e o
autorreconhecimento interagem na formação da perspectiva da narradora. Inicialmente, ela
identifica-se como Bitita, passando a responder pelo nome Carolina Maria de Jesus após
ingressar na escola, como é narrado nesse trecho do diário:

[...] — A senhora está ficando mocinha, tem que aprender a ler e escrever, e não
vai ter tempo disponível para mandar porque necessita preparar as lições. Eu
gosto de ser obedecida. Está ouvindo-me, dona Carolina Maria de Jesus!
Fiquei furiosa e respondi com insolência:
— O meu nome é Bitita.
— O teu nome é Carolina Maria de Jesus.
Era a primeira vez que eu ouvia pronunciar o meu nome. (JESUS, 2014, p. 127)

Ainda nos primeiros capítulos do livro, Bitita depara-se com um lenhador, um


homem que trabalha agindo sobre o ambiente, transformando o mundo que o cerca. Essa
imagem vincula-se ao estereótipo de força bruta, fazendo com que a menina expresse seu
desejo de ser forte, o que em sua perspectiva significa tornar-se homem: “No mato eu vi um

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homem cortar uma árvore. Fiquei com inveja e decidi ser homem para ter forças” (JESUS,
2014, p. 16).
Sem ter conhecido o pai, Bitita foi cuidada pela mãe, cercada pelos demais membros
da família materna, tema amplamente abordado em diversos capítulos do livro, seja pela
admiração por alguns familiares, seja pelos casos de violência doméstica, alcoolismo e
racismo vivenciados. Dentre os vários rostos familiares à narradora, seu carinho é
fortemente direcionado ao avô, Benedito José da Silva que, nas palavras da neta, “foi o preto
mais bonito que já vi até hoje” (JESUS, 2014, p. 13). Embora seja relembrado
afetuosamente, o avô também protagonizou atos de violência contra sua esposa, siá Maruca.
O motivo da agressão foi a tentativa empreendida pela mulher de conseguir mais dinheiro
para as despesas da casa, o que desagradou seu marido.
Também estão presentes no livro outras reflexões acerca do tratamento direcionado
às mulheres que, assim como Bitita e sua mãe, eram empregadas domésticas. Além dos casos
de violência praticados por parentes ou companheiros, também identificamos relatos de
abuso e assédio nos espaços de trabalho. Esses casos estendem-se para os demais membros
das famílias das trabalhadoras, especialmente, suas filhas:

Se o patrão espancasse o filho da cozinheira, ela não podia reclamar para não
perder o emprego. Mas se a cozinheira tinha filha, pobre negrinha. O filho da
patroa a utilizaria para o seu noviciado sexual. Meninas que ainda estavam
pensando nas bonecas, nas cirandas e cirandinhas eram brutalizadas pelos filhos
do senhor Pereira, Moreira, Oliveira, e outros porqueiras que vieram de além-mar.
(JESUS, 2014, p. 38).

Gonzales (1984) atenta para as representações da mulher negra na cultura brasileira.


Ao lado da figura da ‘mulata’, hipersexualizada no período do Carnaval, a mulher negra
também assume a figura cotidiana da empregada, ou, nas palavras da autora, “o outro lado
do endeusamento” (GONZALES, 1984, p. 228), “a mucama permitida, a da prestação de
bens e serviços, ou seja, o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas costas”
(GONZALES, 1984, p. 230). Mulheres que, além da opressão nas casas de seus patrões,
vivem a apreensão de ter seus filhos e filhas vitimados pelo racismo.
A violência aliada à repressão provoca em Bitita a vontade de não mais ser mulher,
visto que, tornar-se homem representaria o caminho para subverter a dominação sofrida. Ao
contar para mãe seu desejo, ela é aconselhada a dormir, pois uma noite de sono provocaria a
transformação. Porém, nada acontece e, diante disso, Bitita continua buscando maneiras para
transformar-se em homem, recebendo a seguinte resposta:
— Quando você vir o arco-íris, você passa por baixo dele para você virar homem.
— Eu não sei o que é o arco-íris, mamãe!

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— É o arco da velha.
— Ah! Sim… (JESUS, 2014, p. 17).

A partir do conselho da mãe, Bitita atribui um aspecto mágico ao arco-íris, conhecido


pela menina como ‘arco da velha’, passando a considerá-lo ferramenta que possibilita sua
transformação. Recorrente no folclore lusitano e em algumas regiões do Brasil, a expressão
‘arco da velha’ teria sua origem vinculada à forma de ‘corcova’, ‘corcunda’, comum ao arco-
íris como também a pessoas mais velhas (RIBEIRO, 2009).
Com a leitura do ‘Diário de Bitita’, percebemos passagens nas quais estão presentes
elementos da religiosidade. Algumas personagens da memória da narradora são espíritas,
como os patrões de sua mãe, responsáveis por incentivar a entrada de Bitita na escola
(fundada, também, por um senhor espírita). Entretanto, a religião com maior menção no
livro é o catolicismo, principalmente por metonímia de alguns santos católicos, como a festa
de São Benedito e a fé em Santa Luzia. Na narrativa, relata-se, inclusive, a segregação racial
presente nos cultos católicos, uma vez que grupos sociais diferentes costumavam frequentar
a igreja em horários diferentes:
Aos domingos, os habitantes da cidade eram obrigados a assistir aos ofícios
religiosos. As religiões predominantes eram a católica e a espírita. Os católicos
eram maioria. Os espíritas minoria. Havia discriminações: os pobres e os pretos
assistiam à missa das seis. As madames ricas e casadas assistiam à missa das oito.
E as mocinhas assistiam à missa das dez, iam com os namorados. (JESUS, 2017,
p. 103)

Embora não ocorra menção a elementos das religiões de matriz africana, como é o
caso do Candomblé, ao sobrepor os escritos de Carolina Maria de Jesus e as narrativas
iorubás, podemos estabelecer relações, especificamente, relacionadas ao arco-íris. Na
tradição Iorubá, esse fenômeno natural é considerado símbolo de Oxumarê. Da mesma
forma que o orixá possui uma representação dual, transitando entre um aspecto masculino e
outro feminino, ao seu símbolo, o arco-íris, é atribuída a capacidade de transformar a
narradora do romance em homem.
Dessa forma, o símbolo de Oxumarê ganha espaço nas memórias de Bitita,
representando a possibilidade de a narradora adquirir outra identidade, semelhante ao que
ocorre com a divindade. Apesar disso, ao confrontar os ângulos tortuosos da realidade, Bitita
questiona suas crenças: “Quando percebi que nem São Benedito, nem o arco-íris, nem as
cruzes não faziam eu virar homem, fui me resignando e me conformando: eu deveria ser
sempre mulher” (JESUS, 2014, p. 97).

Considerações finais
A abertura para outras lentes através das quais podemos enxergar o mundo

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possibilita, entre outros aspectos, questionar visões hegemônicas. No que toca à distinção de
gênero, o pensamento judaico-cristão, predominante na sociedade ocidental, restringe as
existências ao masculino e ao feminino, porém, o mesmo não é identificado em outras
culturas. Na perspectiva Iorubá, o gênero extrapola o homem e a mulher, tipificando outras
subjetividades. Nesse sentido, as narrativas míticas emergem como justificativas para essa
cosmovisão ao estabelecer correspondências entre o plano dos orixás e o plano da vida dos
homens.
Elementos de diferentes discursos religiosos são apresentados na obra de Carolina
Maria de Jesus, como a segregação vivida nos templos, as festas populares em homenagem
aos santos, além de personagens religiosas, predominantemente espíritas e católicas. Ainda
que não mencione diretamente as religiões de matriz africana, é possível verificar um diálogo
entre o texto carolineano e as narrativas Iorubás.
A partir da fala de sua mãe, a menina busca, incessantemente, maneiras para alcançar
o objetivo de transformar-se em homem. A falha na primeira tentativa faz com que ela passe
a atribuir ao arco-íris a capacidade de proporcionar tal realização. O corpo multicolorido de
Oxumarê representa a oportunidade para que o desejo se concretize, aproximando a vivência
da menina daquela experienciada pelo orixá.
Dentro da cultura Iorubá, a manifestação oral da palavra é considerada aspecto
estruturante, uma vez que é capaz de agir sobre o mundo, modificando-o. De forma
semelhante, ao descrever o primeiro encontro com Carolina de Jesus, o jornalista Audálio
Dantas evidencia a força presente na fala da escritora que, por meio da palavra, confrontava
alguns homens que estavam depredando um espaço de lazer infantil. Carolina enfrentava-os
dizendo que acrescentaria seus nomes em um diário.
Dessa forma, a escrita apresenta-se como mecanismo pelo qual a escritora materializa
a força de seu discurso. Tendo em vista que o arco-íris não permite a transformação, é pela
linguagem que Carolina de Jesus, Bitita crescida, subverte a realidade ao utilizar os feixes de
Oxumarê como fios para a tessitura de sua obra.

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Pós-graduação em Educação. São Carlos, Universidade Federal de São Carlos, 2016.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

DA MEMÓRIA ANCESTRAL EM ‘O SÉTIMO JURAMENTO’, DE PAULINA


CHIZIANE

Victhória Cristhiêne da Silva Nascimento (UFRN) 68


Tânia Lima (UFRN/ Profartes - UDESC)69

“Eu não nasci rodeada de livros, e sim rodeada de palavras”


Conceição Evaristo

Encontrando-se em um espaço de constante reconstrução e restituição, como afirma


Francisco Noa, a memória da comunidade africana emerge diariamente, não somente das
atividades cotidianas, mas também das produções literárias, as quais celebram a identidade
cultural e coletiva do povo por meio da reprodução de memórias modeladas pela dinâmica
do indivíduo e de seu passado. Nessa perspectiva, e tendo como ponto de análise a obra ‘O
sétimo juramento’, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, veremos como a tradição e a
mundivivência se manifestam na narrativa, enaltecendo como a linguagem promove a
construção de memórias, e como o passado se torna presente no cotidiano diegético da
obra.
O presente artigo propõe trazer como plano principal a reconstrução da memória
ancestral na obra ‘O sétimo juramento’, da ‘contadora-escritora’ Paulina Chiziane, que
reporta no romance moçambicano um resgate à magia e à mística que compõem a tradição
viva das comunidades africanas em suas manifestações culturais. Em meio a um espaço da
urbe que segrega e desvaloriza as memórias e costumes, Chiziane ressignifica as raízes
constituintes da identidade moçambicana e as enaltece por intermédio da mulher que, como
casa do ser e provedora da força e da resistência dos povos, mesmo em um ambiente de
opressão que a sentencia ao silêncio, se debruça em um processo de reconhecimento e de
autodefinição de si.
Entre as tantas leituras críticas da literatura moçambicana, há uma pluralidade
significativa de textos sobre Chiziane, que proporciona aos olhos do leitor auspicioso uma
possibilidade de tatear profundamente os terrenos afetivos da narrativa. Nessa travessia, os
momentos tecidos no ‘espaço-tempo’ da estória promovem a restituição e a manutenção da

68 Graduanda de letras-língua portuguesa na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)


E-mail para contato: [email protected]
69 Professora Permanente do Mestrado Profissional em Artes - Profartes - UFRN/ UDESC e orientadora do
presente artigo. E-mail: [email protected]

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tradição por meio do contato com laços de memória dos personagens. Além disso, ao
conhecer e compreender a geografia espacial da obra, observa-se que ela é permeada por
afetos, os quais ganham ênfase nas manifestações intempestivas da natureza mística dos
acontecimentos, enaltecendo as sabenças e trazendo à tona a memória, agente que alimenta
a identidade, como afirma Candau (2012, p. 16).
Utilizando uma linguagem simbólica, Chiziane revela, na prosa literária, a assimilação
das tradições do colonizador na voracidade do processo colonial. O exemplo máximo disso,
na obra, está disposto na postura do personagem David, que coloca as concepções
incorporadas e praticadas pelo homem branco acima de suas origens, transformando-o num
opressor tal qual os que o oprimiram. Os eventos que ocorrem como personagem no
decorrer da narrativa revelam os resultados da subalternação do sujeito negro à presença de
um sujeito branco que o aliena, o que serve de gancho para um repensar a identidade,
demonstrando que a perda de tradições e de costumes afeta as relações comunitárias e causa
a fragmentação e/ou a destruição de complexas organizações culturais.
Francisco Noa, professor pesquisador em literaturas africanas, ao observar os
espaços de escrita e os dilemas e reflexos da colonização no pensar das culturas africanas em
geral, põe em xeque o ‘fazer literatura’ em um contexto de exclusão, uma vez que o africano,
como sujeito continental, ainda está validado sob o olhar mundial (e aqui, tal olhar entende-
se como a possível verdade produzida pelo colonizador em seus discursos colonialistas e de
opressão) no papel de um outro, do diferente, colocação feita com o intuito de inferiorizar
sua conjuntura como indivíduo de ser e de práticas culturais.
No entanto, Noa (2015, p. 79) coloca que “as literaturas africanas encerram, em si,
um dilema estruturante, isso é, colocam em questionamento os fundamentos que
concorreram para a sua própria constituição,” sendo elas [as literaturas feitas por africanos] a
representação de um novo diálogo entre as tradições do durante e do depois da presença
colonial em África, enfatizando, em muitas narrativas, os valores da tradição viva, segundo a
qual, conhecer o passado serve como base para a promoção de saberes e de continuidades
das sabenças do povo, ou como simplesmente afirma Amadou Hampâté Bâ (2010, p. 209):
“o passado se torna presente.”
O sujeito colonizado, híbrido da natureza colonial e da tradição que o formam como
ser identitário e pertencente a uma cultura, passa por processos constantes de redefinição de
cultura, pois seus espaços de vivência constituem um papel estruturante das experiências:

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fruto de diversos processos, o indivíduo abriga em sua memória imagens de sua


mundivivência, ou seja, de sua experimentação do espaço e do mundo, de forma que esses
ambientes compartilhados de significação atuam como reconstituintes e reconstrutores da
memória comunitária.
Homi Bhabha, filósofo indiano e um dos maiores pensadores dos estudos pós-
coloniais na contemporaneidade, reconhece em seu livro ‘O local da cultura’ a importância
da afirmação das tradições culturais dos povos como meio de resistência às alienações
coloniais, além de serem essenciais à recuperação e ao cuidado da memória, por meio das
histórias transmitidas. Nesse sentido, o autor citado coloca:

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não seja
parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato
insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como
causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como
um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O
‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver
(BHABHA, 1998, p. 27).

Em ‘O sétimo juramento’, Chiziane abriga tais questões e os reflexos da colonização


no pensar das culturas africanas, demonstrando como cada esfera social reage aos efeitos
desse processo. Ela utiliza a significação de suas vivências e as de seu povo, para reclamar a
necessidade de conhecer o passado em prol de um ‘re-existir' comum, de forma a garantir a
permanência da tradição cultural na contemporaneidade e abarcar o elo espiritual e físico,
auxiliando na restituição e no reconhecimento das sabenças populares.
No discurso de Chiziane, a espiritualidade reconecta o homem às suas origens, de
forma que ele encontre um equilíbrio metafísico na poética de relações com a humanidade.
Aprendemos que ‘os outros somos nós’, e que a essência que emana do coletivo é que
sustenta, em verdade, o indivíduo.
Dessa forma, como mulher proveniente de uma tradição que procurar preservar e
valorizar as mundivivências dos indivíduos, a ‘escritora-contadora’ permeia entre duas partes
de uma mesma história: ela que é conhecedora e vivente dos diversos acontecimentos na
Moçambique, que lutava por independência, também vislumbrou e participou da
reorganização estrutural da sociedade após esse período.
Na obra aqui abordada, a ‘contadora-escritora’ trabalha aspectos como memória,
enfatizando a necessidade, principalmente, da memória ancestral, oralidade e misticismo, os
quais são imprescindíveis para a manutenção da tradição.
Como bem observa Hampate Bâ (op. cit.), a oralidade se faz valiosa para preservar
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viva a herança da tradição; ou seja: apesar dos traumas do sujeito colonizado, as tradições de
caráter místico e religioso se valem da fidedignidade da transmissão oral, de forma que afeta
todos os setores - religiosos e sociais e outros - da comunidade africana e reforça a
necessidade de afirmação desse ser de tradição no contexto local. No livro ‘O sétimo
juramento’, Chiziane constrói uma narrativa que parte do núcleo familiar e perpassa por
tantos outros espaços, a fim de demonstrar a perda dessa tradição oral e da herança mística
em várias instâncias da sociedade, de forma a colocar, posteriormente, as consequências
dessa negação cultural para a vida de todas as personagens.
A autora expõe, em sua tessitura ficcional, que os acontecimentos do passado são
pontos de partida e de chegada para a constituição de fatos que acontecem no presente e
interferem no futuro. A memória local é permeada por um tempo extemporâneo que nos
convida a relembrar sem jamais esquecer. A narrativa nos apresenta David, homem, filho,
marido e pai que, apesar dessas denominações desvaloriza escrachadamente a família e atua
em uma empresa como chefe totalitário, esquecendo seu passado como revolucionário e
defensor dos direitos trabalhistas, além de negar, de forma veemente, a magia de
ancestralidade que o levou até ali.
Nesse sentido, observamos em primeira instância um dos espaços de significação da
narrativa que é a fábrica, o mundo da técnica: berço econômico da cidade e meio de vida de
muitos dos habitantes, o ambiente é um potencializador de opressões, no qual os
trabalhadores exercem suas atividades exaustivamente por um ex-companheiro de luta de
libertação africana, o que nos rememora a famosa premissa do educador e escritor Paulo
Freire (1983) de que “o sonho do oprimido é se tornar opressor”, que sintetiza a forma de
regência de David:

Ativismo de primeira linha. Ódio à classe dominante do antigo sistema. Hoje ele
é patrão e sente que vai ser escorraçado do poder tal como fez aos próprios
colonos, pelas mesmas ações. Com os mesmos cantos e gritos. Com os mesmos
slogans e palavras de ordem. Com a mesma fúria do povo oprimido.
(CHIZIANE, 2012, p. 36)

Intimidado pela possibilidade de uma greve entre seus empregados, David começa a
embriagar-se em suas memórias como ativista, que estava na mesma posição dos que
naquele momento se voltavam contra ele e assim, o personagem segue durante a narrativa:
ele transita entre o seu ‘antigo eu’, imerso na tradição do povo e que lutava com eles em
busca de direitos e oportunidades, e o seu ‘atual eu’, que se encontra em constantes surtos
de identidade ao permear entre a extrema opressão, desmoralização de valores, e a

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rememoração de raízes ancestrais, em um movimento cíclico e pendular de memórias.


Podemos, portanto, nos valer da colocação de Hall (2005, p. 12), acerca do sujeito
fragmentado, “composto, não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias ou não resolvidas,” o que caracteriza de maneira concisa a figura de David,
que não volta à tradição de seu povo, nem consegue ser tão poderoso e dono de si quanto
imagina se tornar.
O caráter demonstrado por David aproxima-se da realidade no tocante à busca do
personagem por outra realidade para si, na qual ele acaba se afastando de sua essência
primeira, de forma que assume um conflito em razão da dualidade que o habita, como é
possível verificar no cotidiano diegético da obra no que compete ao tempo da narrativa.
Compartilha essa mesma situação psicológica, o protagonista Ralph Singh, do romance ‘Os
mímicos’, cujo autor é o trinitário-tobagense Naipaul, que descreve a frustração do
colonizado ao ver que, por não conseguir imitar ou chegar ao mesmo ‘nível’ de
reconhecimento do homem branco, encontra-se perdido em si próprio:

Eu tentara construir uma personalidade para mim mesmo. Era algo que eu já
tinha tentado fazer mais de uma vez, e eu esperava ver a resposta nos olhos dos
outros. Agora, no entanto, não sabia mais quem eu era; a ambição tornou-se
confusa e depois murchou; e quando dei por mim tinha saudades das certezas
que tinha no tempo em que vivia na ilha de Isabella, certezas que eu havia
desprezado, rotulando-as de naufrágio (NAIPAUL, 1987, p.23).

Apesar dos diferentes lugares de enunciação, o trecho de Naipaul deixa evidente o


desapego e o desprezo do protagonista às tradições em razão de uma possibilidade de
ascensão e até de imitação (o que demonstra a crítica velada no título da obra: ‘Os mímicos’)
da natureza aparentemente poderosa do branco opressor, assim como o personagem de
Chiziane. Dessa maneira conclui-se que David, como sujeito colonizado, passa por uma
crise identitária na qual tenta lutar para assimilar a cultura do colonizador e enaltecê-la frente
aos seus semelhantes para posicionar-se como poderoso.
A obra de Chiziane aborda diferentes aspectos dos diversos grupos, que constituem
as sociedades colonizadas, dentre eles, as mulheres, as quais, além de terem sido violentadas
pelos colonizadores, ainda são obrigadas a viverem à sombra do marido, reforçando os
valores de uma sociedade extremamente patriarcal que as coloca em uma posição ainda mais
subalterna que os homens ou grupos da conjuntura social.
A socióloga indiana Gayatri Spivak, no livro ‘Pode o subalterno falar?’ afirma: “Se,
no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o

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sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade” (SPIVAK,


2014, p.85), enfatizando a posição da mulher como sujeito subserviente a todas as demais
categorias sociais.
Nessa perspectiva, observamos, na obra de Chiziane, inúmeras representações da
mulher, cada qual em seu lugar de subalterna, mas que, posteriormente, ganham resiliência e
se rebelam contra o sistema de opressões. Em observação ao núcleo familiar, tão presente
na ficção de Paulina Chiziane, temos duas figuras que diferem quanto à personalidade, mas
tornam-se próximas dadas às situações que enfrentam: Vera, esposa de David; Inês, mãe de
David, sogra de Vera e avó dos meninos.
Sendo aquela apresentada, inicialmente, como uma mulher que se encaixa na mesma
linha de classificação do marido – fútil. Por esse ângulo, Vera apresenta-se como
desrespeitosa quanto às tradições e aparentemente vitoriosa sobre as mulheres de seu
próprio povo, por estar em outro patamar financeiro. Observa-se que desde o início da
narrativa a personagem, aqui mencionada, apresenta características interna e psicológica
semelhantes às do marido, que é de uma personalidade emblemática:

Correm-lhe na mente memórias da infância. [...]Do seu pedestal solta o espírito e


deixa a mente vadiar na pobreza que desfila na estrada grande. Como um anjo da
guarda, abraça cada alma que passa e sente o desconforto da desigualdade.
[...] O que me deu hoje, para me preocupar com os problemas dessa gentalha?
censura-se. Nasci da pobreza, mas não tenho a sina da miséria (CHIZIANE,
2012, p. 18).
Se analisarmos mais atentamente, veremos que, mesmo retornando ao seu passado
através de imagens da memória, Vera prefere continuar com a velha obsessão de se tornar
uma mulher superior às demais, aproximando-se das mulheres brancas e poderosas que
estavam no poder das famílias colonialistas.
Na outra margem da narrativa, encontra-se a Vó Inês que, por sua vez, apresenta-se
como uma mulher crítica, um pouco menos dura e extremamente ligada às tradições, sendo
símbolo do combate aos discursos coloniais. É certo que, por não viver na sombra do medo
de algum homem ou das múltiplas esferas sociais, representa a figura sábia, a voz da
ancestralidade. O dizer evoca estórias e fábulas. Embala-o. Diz que a vida é como a água,
nunca esquece seu caminho. A água vai para o céu, mas volta a cair na terra. Vai para o
subterrâneo, mas volta à superfície. A vida é um eterno ir e voltar. O corpo é apenas uma
carcaça onde a alma constrói a sua mora. Depois conta as mais belas histórias de
encarnação (CHIZIANE, 2012, p. 29, grifo nosso).

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Percebe-se, até aqui, que Vó Inês atuará como uma ponte que liga o passado e o
presente, de forma que auxiliará Clemente na descoberta da sina e do destino, o qual ajudará
a família em um momento de máxima tensão, em que o menino se revelará grandioso na
forma como lida com a magia, auxiliando o processo de descolonização interna dos entes
familiares. Essa revolução causada pela avó no núcleo familiar se mostra necessária para que
a família se reconecte à sua tradição e supere as atribulações do passado, a fim de consertar
o presente e evitar outras tempestades desse tipo no futuro.
Dessa maneira, podemos assumir a casa como outro espaço de significação da
narrativa, por ser palco de inúmeras manifestações do místico na obra, além de ser o lugar
em que ocorre o abalo das estruturas sociais, quando se observa que a movimentação das
mulheres e das crianças é que salva o homem e também reconstrói as bases familiares no
resgate das memórias culturais. Em retomada ao livro já citado de G. Spivak, mas agora sob
a ótica da artista e psicóloga portuguesa Grada Kilomba, observa-se que, no capítulo dois do
livro ‘Memórias da plantação’, Grada discute sobre a articulação da mulher subalterna no
“regime repressivo do colonialismo e do racismo” (KILOMBA, 2019, p.47). De igual modo,
Kilomba observa, também, o quanto parte das mulheres passa a se tornar ‘invisibilizada’
dentro de um sistema de exploração e repressão.
Não muito distante de tudo isso, Pauline Chiziane no livro ‘Sétimo Juramento’
descreve, a partir de outro prisma cultural, a exploração do corpo feminino nas fronteiras do
continente africano. Vimos que além de Vera e Inês, as personagens Cláudia e Mimi
compartilham a submissão da dor como elementos comuns na sociedade patriarcal, apesar
das diferenças quanto às suas representações imagéticas na obra, como afirma Chiziane:
“No mundo do poder masculino, a mulher é escrava do homem e o homem escravo da
sociedade. A existência da mulher é insulto, insignificância” (CHIZIANE, 2012, p. 39).
No entanto, apesar dessa sina quase determinada, as mulheres em ‘O sétimo
juramento’ conseguem, aos poucos, libertarem-se e começam a ganhar voz de
empoderamento na narrativa africana, sem estarem subordinadas ao círculo construído pelo
legado do patriarcado. Além de trabalhar questões como o patriarcado e o silenciamento
feminino, em Moçambique, Paulina Chiziane também traz ao tecido ficcional questões
como o lobolo e a poligamia, que é uma prática muito comum nas comunidades africanas.
O tema do lobolo e da poligamia é elemento central no livro ‘Niketche’, de Paulina
Chiziane.

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O lobolo é uma prática em que a mulher é comprada em um casamento arranjado, o


que alimenta a filosofia do patriarcado na reflexão do texto literário. Apesar dessas questões
não serem o cerne de nossas análises neste trabalho, não se pode esquecer de tocar, mesmo
que de forma resumida, no lobolo, na poligamia e também no aborto que, comumente
levanta grandes debates por ser não somente um tabu como também, quando permitido,
uma forma de afirmação da mulher quanto ao seu próprio corpo, levando em consideração
que lhe concede poder sobre si mesma, sem ser dominada pela vigilância do patriarcado.
No decorrer da narrativa de Chiziane, ao compreender que David envolveu-se no
passado com espíritos das trevas para conseguir poder, os quais agora cobram do
personagem o preço por suas escolhas e querem sua filha como sacrifício, podemos ver
como os elementos da mística africana se articulam na diegese do texto literário,
principalmente, quando os vislumbramos a partir do ‘escrevivenciamos’ o caráter que
envolve as entidades e as experiências e espaços sensoriais que compõem o imaginário e as
vivências místicas que observamos ao apresentar a personagem Inês na apresentação das
figuras femininas. A mágia chega a ser o pano de fundo e, ao mesmo tempo o fogo central
para os acontecimentos da contação de história que, além de ser o motor das atitudes das
personagens, é responsável por resgatar a memória e a tradição:
A memória recua. Recorda lendas, fábulas, histórias de feitiçaria. Makhulu
Mamba é o nome de um personagem das lendas de terror do universo mítico dos
tsongas, que remetem as crianças às noites de delírio e pesadelos. Makhulu
Mamba é uma personagem lendária ou real? (CHIZIANE, 2012, p. 139)

Voltando-nos mais uma vez à figura de David, observamos a força com que seu
passado retorna, fazendo-o rememorar as práticas ancestrais africanas, em principal ao
espírito de Makhulu Mamba, com o qual ele já teve experiências não muito agradáveis.
Desse momento em diante, ocorre a separação dialética da magia, que se caracteriza como
uma prática benéfica, auxiliando as comunidades a encontrarem respostas e se tornarem
sábias pelo caminho mais humilde. A magia também representa o ponto de vista do bem e
da feitiçaria que, ao ser utilizada para práticas do mal, causa destruição e representa o lado
obscuro da mística.
No livro de Chiziane, quando David e sua família mostram-se devotos católicos em
uma tentativa dele apagar seu passado místico, a vida deles torna-se um caos, uma vez que
se baseia em mentiras, desestruturando as forças espirituais da família, como esclarece
Hampâté Bâ (2010, p.177): “Não nos esqueçamos de que todos os sistemas mágico-

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religiosos africanos tendem a preservar ou restabelecer o equilíbrio das forças, do qual


depende a harmonia do mundo material e espiritual,” ou seja, somente quando resgatamos
as tradições possivelmente perdidas ou esquecidas nos cantos da memória, os
acontecimentos tendem a tomar um novo rumo, em busca de harmonia entre nosso ‘mundo
real’, físico, e o plano espiritual e mais profundo.
Enquanto David, em sua juventude, preferiu dar ouvidos às vozes das trevas, seu
filho Clemente, guiado pela avó que o ajuda a compreender suas visões, além de direcioná-lo
ao caminho da boa magia, representa a bondade que há nos rituais de feitiçaria, no que se
dispõe a, não apenas salvar sua família, mas também, a resgatar os saberes tradicionais de
seu povo:

Quero aprender todos os segredos da magia, do antifeitiço. Faço-o por mim, por
ti, por toda a família.
[...] A magia negra impera. Por todo o lado há crimes rituais, incesto, mutilações,
mortes, desespero. Gente de todos os estratos sociais busca alicerces na magia
negra, para subir na vida sacrificando os parentes, os amigos e até desconhecidos.
[...] Ser curandeiro é viver coisas do tempo que o vento levou (CHIZIANE, 2012,
p. 241).

É válido expressar aqui a diferença abordada por Santos e Przybylski quanto aos
rituais praticados por feiticeiros e por curandeiros:

A imagem do feiticeiro, diferente do curandeiro ou do xamã, é associada à figura


maléfica e como o nome indicia enfeitiça as pessoas a quem deseja, por alguma
razão, o mal. Ainda, sob o ponto de vista dos dois teóricos, o feiticeiro por
intermédio do pacto com o diabo obtinha bens materiais e vinganças pessoais,
contrariando as leis divinas. O curandeiro ao praticar a sua arte cura a pessoa de
algum mal, geralmente utilizando remédios naturais, a relação é apenas entre
aquele que cura e o outro que necessita ser curado – o doente.
Já no caso da feitiçaria ela envolve a prática ou celebração de rituais, orações ou
cultos com ou sem uso de amuletos ou talismãs, por parte de adeptos do
ocultismo com vista à obtenção de resultados, favores ou objetivos que, regra
geral, não são da vontade de terceiros. A feitiçaria, então, envolve um elemento a
mais – um terceiro ou terceiros, o qual será forçado sem vontade própria.
(SANTOS, PRZYBYLSKI, 2014, p. 38)

Tal diferenciação se faz necessária para explanar melhor a fala de Clemente para
com a sua mãe, uma vez que ele, para convê-la, busca demonstrar a bondade envolvida nos
rituais de magia sobre os quais ele deseja estudar e se ‘formar como curandeiro’, figura
responsável, não somente pela cura no sentido espiritual, mas também do físico, além de
abrigar consigo inúmeras sabenças da tradição de seu povo. Além disso, observa-se o caráter
atemporal desses saberes, os quais agora estão nas mãos de Clemente e de outros
curandeiros, que deverão dar continuidade, por meio da tradição oral e das práticas
ritualistas, reavivando a memória coletiva de seu povo:

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Vai, todos os espíritos estão contigo. Diz a todos os ímpios o que não gostam
de ouvir. Esfrega-lhe pimenta nos olhos e ensina-os a ver o que não sabem ver.
Muda o curso das suas vidas e mostra-lhes a razão e a sua face de cão, e de
traição. Os bons espíritos lutam pelo homem justo [...] (CHIZIANE, 2012, p.252).

Se nas práticas ritualísticas, as palavras andam e findam em um ciclo particular,


observa-se no encerramento da obra de Chiziane a exaltação dessa tradição que emerge das
raízes e alcança a vida de todos, reforçando a necessidade de um resgate à memória e às
significações de suas projeções, sendo elas essenciais para a reorganização dos povos,
principalmente, no tocante aos povos inseridos no discurso pós-colonial.
Em seu momento inicial, o texto apresenta os personagens como figuras
fragmentadas e entregues a um discurso colonial que eles, sem perceberam, alimentavam
causando-lhes destruição e fragmentação. No entanto, neste momento, aproveito para
rememorar um provérbio swahili que conheci na tese de Cabaço, que diz ‘Umoja ni nguvu,
utengano nu udhaifu’, ou simplesmente, “há força na unidade, mas fraqueza na divisão”
(CABAÇO, 2007, p.394), o que singulariza a narrativa aqui trabalhada, na qual foi necessária
a união de diversas forças para que houvesse o estabelecimento do bem, sintetizado no
retorno à espiritualidade e na exaltação da memória coletiva.

REFERÊNCIAS
BÂ, Hampaté. A tradição viva. In:. História geral da África I - Metodologia e pré-história
da África. 2.ed. Brasília: UNESCO, 2010.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

CABAÇO, José Luís de Oliveira. Moçambique: identidades, colonialismo e libertação.


475p. [Tese de doutorado apresentada ao departamento de antropologia]. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2007.

CANDAU, Jöel. Memória e identidade. ‘ ed. São Paulo: Contexto, 2012.

CHIZIANE, Paulina. O sétimo juramento. Maputo: Sociedade editorial Ndjira, 2012.

HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. São Paulo: DP&A, 2005.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

NAIPAUL, V. S. Os mímicos. São Paulo: Companhia das letras, 1987.

NEVES, Cleiton Ricardo das; ALMEIDA, Amélia Cardoso de. A identidade do ‘Outro’
colonizado à luz das reflexões dos estudos pós-coloniais. Revista Em tempo de histórias.
Brasília, Universidade de Brasília (UNB), nº.20, p.123-135, jan-jul. 2012.

165
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

NOA, Francisco. Perto do fragmento, a totalidade: olhares sobre a literatura e o mundo.


São Paulo: Kapulana, 2015.

SANTOS, Cristina Mielczarski dos; PRZYBYLSKI, Mauren Pavão. Memória e magia em ‘O


sétimo juramento’, de Paulina Chiziane. Revista Contexto. Vitória, UFES, n. 26, 22-40 p.,
2014/2.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? 2.reimp. Belo Horizonte: UFMG, 2014.

166
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

A MEMÓRIA DAS ILHAS EM ALDA ESPÍRITO SANTO & CONCEIÇÃO LIMA

Nathalia Oliveira Silvestre (UFRN)


Tânia Lima (UFRN – Profartes - UDESC)

Como é que faz pra lavar a roupa?


Vai na fonte, vai na fonte
Como é que faz pra raiar o dia?
No horizonte, no horizonte
Este lugar é uma maravilha
Mas como é que faz pra sair da ilha?
Pela ponte, pela ponte
Como é que faz pra sair da ilha?
Pela ponte, pela ponte
(LENINE)
São as Ilhas que nos iniciam
As literaturas africanas em Língua Portuguesa nasceram, em sua maioria, como
expressão de protesto e de lutas ao sistema colonial. A literatura foi, para os povos africanos,
parte de uma formação cultural e territorial, além de instrumento de revolta e de liberdade,
assim como uma maneira de expressar e de sentir, de invocar seus ancestrais, não só em
nome da sobrevivência, mas também, pela garantia de algum lugar ao sol. Assim como
afirma a professora Inocência (2014, p.89) em sua citação, as literaturas africanas nasceram
dessa conflitualidade, dessa dualidade entre expressão identitária de um povo e a necessidade
de protestar e lutar por sua liberdade, sempre honrando aqueles que deram a vida por sua
terra e por seu povo.
Essas manifestações literárias, principalmente a poesia, guardam em si memórias,
traços, vozes, cor, luta, gritos, que só essas culturas conseguem expressar por meio dos
versos líricos. Dessa maneira, as Ilhas de São Tomé e Príncipe também guardam, em sua
identidade literária, esse caráter de conflitude e é a partir dos traços poéticos insulares que
Dona Alda e Conceição Lima nos agraciam com seus versos ricos em história, beleza e
cultura.
A cartografia territorial de São Tomé e Príncipe lembra uma linha curva no meio do
atlântico que não corresponde à potência literária de suas produções insulares. Apesar da
imensidão literária na construção de sua própria história, não sabemos ao certo a gênese, ou
o que veio antes da chegada dos portugueses às ilhas, uma vez que não existem registros
históricos que comprovem se a região era habitada antes da chegada dos colonizadores.
De acordo com Carmen Tindó Secco (1990), alguns historiadores afirmam que no
final do século XV, etnias autóctones habitavam ao sul das ilhas, entretanto, os
colonizadores haviam ocupado inicialmente apenas o Norte. Com a descoberta das ilhas
pelos portugueses, o capitão Álvaro Caminha ficou responsável pelas terras e, com isso,

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

iniciou-se o processo de povoamento da região. Nos anos seguintes, as ilhas receberam as


mais diversas etnias para ‘compor sua nação’, o que gerou uma miscigenação intensa.
Entre os novos habitantes estavam degradados lusos, alguns espanhois em sua
maioria, genoveses, portugueses da Ilha da Madeira, crianças judias separadas dos pais e
escravos da Guiné-Bissau, do Gabão, do Benin e do Manicongo. De acordo com Bayer
(2012), o espaço insular representava, no imaginário português, o cenário do castigo, por isso
destinado aos que viviam à margem da sociedade portuguesa, a exemplo de degredados e de
judeus.
Assim como o período colonial brasileiro, São Tomé e Príncipe iniciou sua atividade
econômica na cultura da cana-de açúcar. Com a necessidade de mão de obra para trabalhar
nos engenhos e plantações de cana, a escravização dos povos negros serviu, de 1500 até o
século XIX, como fonte de renda para os cofres da coroa portuguesa. O país também serviu
como ponte de apoio comercial aos navios negreiros para comercializar escravos enviados da
África para a América. Dessa maneira, como boa parte da economia era alicerçada no
mercado negreiro, com o fim da escravidão no Brasil, em 1888, as ilhas passam por grande
instabilidade econômica (SECCO, 1999).
Para recuperar a perda econômica pelo fim desse comércio foi introduzido o cultivo
de café e de cacau para a exportação. Posteriormente, com a pressão inglesa sobre o fim da
escravidão, o país adotou o regime de contrato para substituir tal regime. Conforme Secco
(op. cit.), os forros, aqueles nascidos no processo de miscigenação, e os portugueses, que
compunham a elite do arquipélago, iniciaram o processo de importação de serviçais de
outras regiões africanas, entre elas colônias portuguesas, para trabalharem nas roças pelo
regime de contrato. Os contratados, como eram denominados, eram submetidos a trabalhos
exaustivos e baixos salários, o que os colocava em situação análoga à semiescravidão.
A partir do século XX, com os movimentos de valorização do negro, esse regime de
mão de obra passou a ser contestado e denunciado por estudantes africanos que viviam em
Lisboa e intelectuais africanos das colônias, a exemplo dos participantes da Casa dos
Estudantes do Império.
Após 500 anos de dominação, os movimentos pela independência das colônias
portuguesas na África ganharam força e, consequentemente, surgiu o Movimento de
Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP), um dos principais responsáveis pela
negociação da Independência, obtida em 1975, proclamado dia 12 de julho, na Praça do
Povo, capital do país. Após a queda do domínio português, o MLSTP assumiu o governo de

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

São Tomé e Príncipe, com representação presidencial de Manuel Pinto da Costa, eleito pela
Assembleia Nacional.

Chão Insular em Alda Espírito Santo


Em um contexto de formação histórica, algumas poetisas como Alda Espírito Santo
e Conceição Lima utilizam a matéria insular para subverter a produção literária são tomense.
Apesar do distanciamento temporal poético entre elas, ambas preconizam, em sua literatura
insular, a influência do colonizador sobre o colonizado nos contextos político, social,
histórico e cultural. “O que se agrega na poesia que tem como referencial a ilha de São Tomé
(e por extensão a do Príncipe) é a particularização do negro colonizado, uma vez que ele se
insere no mundo do trabalho, da dominação e exploração do sistema capitalista” (BAYER,
2012, p. 99).
Alda Espírito Santo (1926-2010) destacou-se por sua poesia de resistência contra os
opressores e pelo combate contra o fascismo e o colonialismo português. Participou
ativamente da luta pela independência de São Tomé e Príncipe, chegando a ser presa. Já a
sua contemporânea, Conceição Lima, escreveu sobre as marcas do colonialismo e da
exploração do sistema capitalista ainda vigente no imaginário dos que foram silenciados.
Nesse sentido, Lima, em sua poética líquida, ciente do que ocorreu após o processo
de luta libertária, tenta resgatar em sua poesia a memória de São Tomé antes da colonização
portuguesa. De acordo com Inocência Mata “[...] é preciso ter presente que o colonialismo é, em
última instância, uma situação social.” E o social abrange o político, o histórico, o econômico, o
ideológico e o cultural (o estético, o antropológico, enfim).
Assim, quando se fala em literatura, é inevitável falar-se do ideológico e do cultural,
sobretudo em África, onde as literaturas nasceram, historicamente, de uma conflitualidade,
para protestar contra uma situação de conflito entre duas culturas, a portuguesa e a outra
(2014, p. 89). Assim, mesmo após séculos de combate, a luta em nome dos que foram
aliados do capital ainda continua. Devido à forte influência da colonização portuguesa nas
manifestações culturais, linguísticas e religiosas, temos nesse contexto histórico o que
Bernard Mouralis (apud Inocência Mata, 2014, p.89) denomina ‘ideologia colonial’.
[...] a ideologia colonial condiciona todo um sistema civilizacional: a sua filosofia,
as suas manifestações folclóricas, o seu imaginário, o seu código moral e ético. E é
importante notar que é um sistema forjado: quero dizer, não se trata nem da
cultura do colonizador nem da cultura do colonizado: é um sistema marginal,
porque não é de ninguém, é artificial porque assenta em bases alheias à cultura.
[...] E a cultura colonial é a síntese de aspectos culturais com caráter de
instrumentalização ideológica; a ideologia colonial utiliza-a para a destruição de
uma civilização, a negro-africana, e a distorção da outra, a europeia - isso, no caso
do colonialismo europeu em África (MATA, 2014, p. 90).

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Não muito longe disso, a literatura foi capaz de resgatar as identidades e memórias
silenciadas, além de iniciar o processo de reconstrução da sua própria história. Apesar das
inúmeras dificuldades no período colonial, a poesia foi o gênero que mais contribuiu com os
primeiros registros literários do país. De acordo com Ferreira (1977), essa poesia era
“construída apenas por negros ou mestiços. Esse punhado de poetas balizou a área temática
no centro do universo da(s) sua(s) ilha(s) e organizou um signo cuja polissemia é de uma
África violentada, inchada de cólera, a esperança feita revolta.” Após a independência e em
um novo contexto social, as narrativas poéticas ganham novas perspectivas. A busca pela
reconstrução da identidade, da cultura, das línguas e a reescrita da própria história e da
memória estão presentes nas obras dos autores desses períodos.
Juntamente com essas temáticas, as construções narrativas são repletas de metáforas
que remetem ao imaginário insular, abordando em seus escritos essa essência pertencente ao
espaço da ilha. Ao optar por essas construções poéticas semanticometafóricas, valorizando
os elementos característicos das ilhas, os autores são-tomenses procuram simbolizar, através
da escrita, o resgate e o reconhecimento de suas raízes, valorizando o seu lugar de
pertencimento identitário e cultural, além de negar a cultura e influência europeia em sua
escrita.
Assim, de acordo com Glissant (2002, p. 22 apud CORDEIRO DE OLIVEIRA,
2017, p. 42), “em nossos países, atribulados pela História, quando as histórias das populações
enfim se encontram, as obras da natureza se convertem em verdadeiros monumentos
históricos.” Ou seja, ao enaltecer os elementos insulares em suas obras literárias, esses
autores buscam a ressignificação da história de seu país, que foi contada pelos colonizadores
europeus, construindo, assim, uma nova história e reafirmando a identidade de seu povo.
Alda Espírito Santo destacou-se por um tipo de poesia que traduz em verso livre
uma luta contra o fascismo e o colonialismo. Ainda nova, mudou-se com a família para o
norte de Portugal; tempos depois, iniciou os estudos universitários em Lisboa. Naquela
época, fez contatos importantes com diversos escritores e intelectuais, que se tornariam
futuros líderes dos movimentos de independência das colônias portuguesas de África.
A casa da poetisa era espaço para abrigar discussões intelectuais, consciência cultural
e política, acerca da Política, do assimilacionismo e em defesa do povo africano que vivia sob
a tutela da exploração econômica pelo sistema colonial. “Foi no convívio com esses jovens
intelectuais, que fizeram a diferença na história de Portugal e das colónias portuguesas de
África, numa altura em que a palavra podia ser um petardo demolidor do sistema, que Alda
Espírito Santo encontrou na literatura um veículo de contestação” (MATA, 2009, p.261).

170
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Nessa mesma época, Alda também frequentava com assiduidade a Casa dos
Estudantes do Império. Alguns anos depois, abandonou o curso universitário, por
motivações políticas e financeiras, retornando para São Tomé e Príncipe onde atua como
professora e jornalista. Com a independência de São Tomé e Príncipe, pela qual lutou
ativamente, em 1975, passou a ocupar altos cargos no governo são-tomense, como Ministra
da Educação e Cultura, Ministra da Informação e Cultura, Presidente da Assembleia
Nacional e Secretária Geral da União Nacional de Escritores e Artistas de São Tomé e
Príncipe. Dona Alda morreu aos 82 anos, em Luanda, por complicações de saúde.
Quando se adentra o livro ‘É nosso o solo sagrado da terra’ (1978), de Alda Espirito
Santo, percebe-se, no poema ‘Ilha nua’, o quanto a palavra traduz perigo em um ambiente de
exploração sob a tutela do sistema colonial. A tessitura do poético em Alda nos remete ao
momento colonial de São Tomé e Príncipe, quando a poetisa utiliza a voz insular para
comparar a vastidão da ilha com a vastidão dos sonhos são-tomenses: “Mar azul das ilhas
perdidas na conjuntura dos séculos/vegetação densa no horizonte imenso dos nossos
sonhos/verdura, oceano, calor tropical, gritando a sede imensa do salgado mar.” Na
movência das águas insulares, Alda Espírito Santo, com sua voz insular, anuncia, nas águas
da memória, destinos sem planuras:

Ilha Nua

Coqueiros e palmares da Terra Natal


Mar azul das ilhas perdidas na conjuntura dos séculos
Vegetação densa no horizonte imenso dos nossos sonhos.
Verdura, oceano, calor tropical
Gritando a sede imensa do salgado mar
No deserto paradoxal das praias humanas
Sedentas de espaço e devida
Nos cantos amargos do ossobô
Anunciando o cair das chuvas
Varrendo de rijo a terra calcinada
Saturada do calor ardente
Mas faminta da irradiação humana
Ilhas paradoxais do Sul do Sará
Os desertos humanos clamam
Na floresta virgem
Dos teus destinos sem planuras…
(ESPÍRITO SANTO, 1978, p.21).

Ainda no verso ‘Mar azul das ilhas perdidas na conjuntura dos séculos’, a poeta
utiliza o contexto geográfico insular para retomar a questão da colonização portuguesa no
país. Essas ilhas perdidas na conjuntura dos séculos também remetem ao apagamento
cultural causado pelos portugueses e como os são-tomenses foram perdendo, ao longo dos
tempos, o legado identitário.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Se olharmos, atentamente, as ilhas ficaram, de fato, perdidas e isoladas não apenas a


partir da distância cartográfica, mas sobretudo, a partir da maior distância social que
assombrava São Tomé e Príncipe, a grande desigualdade econômica. O povo insular
almejava e sonhava com a independência do colonizador que, além de escravizar, dominava
a terra, o comércio, a economia e a identidade. O colonizador não explorou apenas os
corpos dos contratados, mas principalmente, a essência do povo.
No entanto, havia anseios de encontrar saídas do sistema repressor, sonhos que
acalentavam o sentimento rebelde, o pensamento libertário. Pode-se observar no verso:
“Vegetação densa no horizonte imenso dos nossos sonhos,” a poetisa retratando que, apesar
das dificuldades apontadas ao longo da história colonial, havia também uma esperança em
reconquistar o lugar do povo são-tomense na história da África.
Em sintonia com tudo isso, Alda Espírito Santo utiliza a poesia de vocábulos
densos, brutais e violentos, para representar a chegada do colonizador à ilha. Com maestria
crítica, ela não suaviza nem o lado bucólico da paisagem: “No deserto paradoxal das praias
humanas.” Entre a ideologia e a cultura, as praias se veem repletas de vegetação e frutos, no
entanto, após a chegada do homem branco, a natureza passa a ser desértica de vida, de
liberdade e transforma-se em uma opressora paisagem humana e sem humanidade de fato:
“Os desertos humanos clamam/Na floresta virgem/Dos teus destinos sem planuras.”

A Memória de Micondó em Conceição Lima


A poetisa e jornalista Conceição Lima, nascida na ilha de Santana, em São Tomé, no
arquipélago de São Tomé Príncipe, pertence ao momento de uma literatura pós-
independência. O interesse pela poesia começou ainda criança, influenciada por seu pai, que
compunha canções para alegrar sua mãe. Ainda jovem, despede-se de sua cidade para estudar
no Liceu de São Tomé e Príncipe. Na juventude, muda-se para estudar jornalismo em
Portugal. Trabalhou como jornalista da British Broadcasting Corporation (BBC) em Londres.
Ao regressar a São Tomé e Príncipe, ocupou cargos em imprensa, rádio e televisão,
onde exerceu cargos de chefia e direção. Apesar de sua longa carreira jornalística, a poesia
sempre ocupou um espaço na sua vida. Desde então, publicou dezenas de poemas em
jornais, revistas e antologias em diversos países, além de ser autora de vários livros, entre eles
‘O Útero da casa’ (2004); ‘A Dolorosa Raiz de Micondó’ (2006); ‘O país de Akendenguê’
(2011); ‘Quando Florirem salambás no teto do pico’ (2015).
A poesia apresentada em ‘A Dolorosa Raiz de Micondó’ é de veemente imersão na
história das ilhas e do continente africano. Concomitantemente ao período pós-
independência, a obra convida o leitor a redescobrir as origens e os fatos históricos, através
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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

da representação lírica em meio a uma ancestralidade memorialista. A poetisa sugere, na linha


do verso, as consequências do sistema colonial no período histórico do pós-independência.
A poética é repleta de um arcabouço semântico que remete à paisagem natural de São Tomé
e Príncipe, como a plantação local, os canaviais, os coqueirais e o universo das ilhas,
simbolizando o mar, as ondas, o arquipélago e a costa. No poema, Conceição Lima
reconfigura o passado com um olhar crítico que se estende ao presente e ao futuro.

A Outra Paissagem

Da lisa extensão dos areais.


Da altiva ondulação dos coqueirais
Do infindo aroma do pomar
Do azul tão azul do mar
Das cintilações da luz do poente
Do ágil sono da semente
De tudo isto e do mais
a redonda lua, orquídeas mil, os canaviais —
de maravilhas tais
falareis vós.
Eu direi dos coágulos que mineram
a fibra da paisagem
do jazigo nos pilares da Cidade
e das palavras mortas, assassinadas
que sem cessar porém renascem
na impura voz do meu povo.
(LIMA, 2006, P.56).

Em ‘A outra passagem’, Conceição nos imerge na lírica de versos curtos da ilha-


poética de São Tomé e Príncipe, com um vocabulário que nos sugere o universo das ilhas,
como ‘extensão dos areais’, ‘ondulação dos coqueirais’, ‘aroma do pomar’, ‘azul do mar’,
‘cintilações da luz do poente’.
Além da própria disposição dos versos livres que acompanha a liberdade dos tempos,
por outro lado, o vai e vem das águas do mar nas ilhas traz de volta o eterno retorno de uma
paisagem densa que vem coagulada pelo trauma da colonização. O poema é uma clara
referência à memória das águas insulares e do que restou da colonização portuguesa,
referindo-se à ilha como um ‘jazigo nos pilares da cidade’. A poetisa utiliza a descrição da
paisagem da ilha para recriar a ambientação de uma paisagem antes da chegada dos
predadores da natureza e da alma humana. “Da lisa extensão dos areais/Da altiva ondulação
dos coqueirais/Do infindo aroma do pomar/Do azul tão azul do mar.”
A partir da décima primeira estrofe, temos uma ruptura nessa descrição da memória
insular antes da invasão. A partir desse ponto, a autora sinaliza um cenário insular violento,
sangrento e de destruição ecológica. A chegada de um sistema opressor adentra o coração da
ilha e inicia o processo de destruição da paisagem e da cultura local africana. “Eu direi dos
coágulos que mineram a fibra da paisagem/[...] e das palavras mortas, assassinadas, que
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cessar porém renascem na impura voz do meu povo.”

Ultimar
Estudar África e suas literaturas é sempre um imenso e gratificante desafio. É
descobrir, redescobrir e se identificar com textos tão próximos de nossas vivências, histórias
e origens. Dona Alda e Conceição Lima realizam esse resgate das origens africanas em suas
poesias, conseguindo capturar os mais ínfimos detalhes de toda uma cultura e protestar
contra aqueles que lhes tiraram a liberdade.
Como Mata afirma (2014, p.89), as literaturas em África nasceram, historicamente, de
uma conflitualidade entre sua cultura e a cultura do outro, do colonizador. Logo, apesar do
distanciamento temporal, Alda e Conceição Lima protestam, por meio de suas escritas, o
resgate das origens das ilhas, emergindo no espaço insular modificado pelo homem branco e
nos apresentando em suas poesias os impactos historicoculturais ocasionados pela violência
portuguesa.
Dona Alda, que participou ativamente na luta pela independência da ilha, canta em
seus poemas o grito de libertação do colonizador, denuncia as violências sofridas pelo seu
povo e os impactos negativos dessa interferência no espaço insular. Por outro lado,
Conceição Lima, contemporânea de Alda, reflete sobre o impacto do colonizador, mas
principalmente, sobre o espaço da ilha antes da chegada do branco. Assim, em suas poesias
de denúncia, essas mulheres de mãos corrosivas e versos líricos e afetivos retratam o espaço
insular de São Tomé e Príncipe, demonstrando a importância de suas vozes nas literaturas
africanas de língua portuguesa, uma vez que ainda são pouco representadas nos espaços das
literaturas e no mercado editorial.
REFERÊNCIAS
BAYER, Adriana Elisabete. Poesia Sãotomense: geografias em dispersão. Orientador: Luiz
Antonio de Assis Brasil. 2012. 205 f. [Tese de Doutorado em Teoria da Literatura]. Porto
Alegre, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2012.
CORDEIRO DE OLIVEIRA, Carlos André. Sobre cidades-ilhas: literatura e mediações
estéticas. Recife, Encontros de Vista. ano 1, n. 19, p. 39-47, 2017.
ESPÍRITO SANTO, Alda do. É nosso o solo sagrado da terra. Lisboa: Ulmeiro, 1978.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983
LIMA, Conceição. A dolorosa raiz do micondó. [S. l.]: Lexonics, 2012. 78 p.
LUCIA TINDÓ SECCO, Carmen. Três vozes guerreiras femininas de São Tomé e Príncipe:
D. Alda, Manuela Margarido, Conceição Lima. In: MATA, Inocência. Trajectórias
culturais e literárias das ilhas do Equador: Estudos sobre São Tomé e Príncipe.
Campinas: Pontes, 2018. p. 281-299.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

MATA, Inocência. O texto colonial: uma questão esteticoideológica. (Des)colonização na


literatura portuguesa contemporânea: breve antologia de textos literários e ensaísticos com
atividades, Brno, p. 89-93, 2014. Disponível em: <https://digilib.phil.muni.cz/handle/
11222.digilib/130521>. Acesso em: 5 nov. 2020.
MATA, Inocência. Uma tão singular figura. Via Atlântica, n. 16, p. 259-264, 24 dez. 2009.
SECCO, Carmen Lucia Tindó. [Org.]. Antologia do mar na poesia africana no século
XX: Moçambique. Rio: UFRJ/UERJ, 1999. vol. 3.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

LITERATURA, INSULARIDADE E EMIGRAÇÃO EM CABO


VERDE
Geni Brito (UNILAB)
Simone Caputo Gomes (USP)
Tânia Lima ( UFRN)

“Pensar a condição de ilhéu é também refletir sobre partidas e chegadas.”


(SALÚSTIO, 2017, p. 21)

Desde os tempos antigos, os espaços ilhéus sempre despertaram curiosidade nas


pessoas que, através de contadores de histórias, de relatos de viajantes aventureiros,
imaginavam os mais fantásticos e misteriosos acontecimentos. Dentre essas ilhas,
destacamos aqui, Cabo Verde, como sendo um objeto frequente de estudo, por possuir
particularidades próprias que o diferencia dos demais países de língua portuguesa. Uma
questão recorrente e conhecida é a insularidade como fator identitário do povo cabo
verdiano, que se manifesta tanto na música, como na poesia, ora na pintura ora na literatura.
A questão da insularidade revela-se como uma das vertentes temáticas mais presentes
no percurso cultural identitário do povo e da literatura cabo-verdianos. Para Elsa Rodrigues
dos Santos,
A insularidade nasce do relacionamento do sujeito com o espaço das ilhas, ou seja,
do sentimento de solidão, de nostalgia que o cabo-verdiano experimenta face ao
isolamento e os limites da fronteira líquida que o separa do mundo, criando no
ilhéu um estado de angústia e ansiedade. (SANTOS, 1989, p. 59).

Considerada além de um conceito físico (DELGADO, 2009, p. 168), a insularidade


constitui-se como núcleo fundador ideológico de uma estética poética (LABAN, 1986, p.
96). Conforme destaca Manuel Veiga, durante o longo caminhar de sua história, os cabo-
verdianos tiveram por companheira inseparável uma insularidade ‘madrasta’ que se manifesta
através de fatores geográficos, climáticos, antropológicos, sociais, econômicos e políticos
(VEIGA, 1998, p. 9). Os sentimentos do sujeito insular são reflexos do seu consciente, de
sua vivência íntima e coletiva dentro de um espaço e de um tempo. Nesse contexto, o fator
geográfico e climático do arquipélago e o confronto do sujeito com o mar marcam a
‘sentimentalidade e a maneira de estar’ do cabo-verdiano (SANTOS, 1989, p. 61).
Esse sentimento de solidão e de nostalgia que o cabo-verdiano experimenta face ao
isolamento imposto pelo mar que separa as ilhas do arquipélago do resto do mundo, provoca
no ilhéu um estado de angústia e de ansiedade que o leva a sonhar com outros horizontes
além-mar. Para o povo dessas ilhas, o mar está em tudo. É o que sugere o próprio Jorge

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Barbosa, em seu ‘Poema do Mar’, publicado em 1941, no livro de poesia intitulado


‘Ambiente’:

O Mar! Dentro de nós todos,


No canto da Morna,
No corpo das raparigas morenas,
Nas coxas ágeis das pretas,
No desejo da viagem que fica em sonhos de
Muita gente!
Este convite de toda a hora
Que o Mar nos faz para a evasão!
Este desespero de querer partir
E ter que ficar!
(BARBOSA, 1941, p. 30)

O mar mencionado na poesia de Jorge Barbosa é um símbolo que evoca uma das
características mais marcantes da sociedade e da cultura cabo-verdiana: a insularidade que,
numa primeira instância, conforme Maria Teresa Salgado (2009, p. 164), “pode ser
apreendida a partir do isolamento geográfico e existencial experimentado pelo ilhéu, da
solidão daí decorrente, que encontra ecos e desdobramentos na humana condição em
qualquer parte do globo.”
Pertencente ao oceano Atlântico e próximo à Costa Africana, Cabo Verde é um dos
estados africanos de língua portuguesa que “compartilha com outras nações do continente
uma característica insular” (PITA, 2017, p. 71), que marca a realidade cabo-verdiana na sua
globalidade. Nesse sentido, Fernando Cristóvão (2005, p. 373) pontua que:

A escala do continente a que pertence Cabo Verde, tal como outros países
insulares, apresenta significativa individualidade geográfica, onde cada ilha é um
pequeno microcosmo. Desabitadas aquando do seu achamento, as ilhas foram
modeladas por cinco séculos de colonização portuguesa que gerou paisagens
humanas originais, onde se reflete o efeito de uma luta constante e tenaz com a
natureza saeliana.

Devido ao seu posicionamento estratégico, em relação a outras nações do continente


africano, “Cabo Verde apresenta características específicas e privilegiadas, na rota da
circulação marítima, no âmbito do projeto de expansão europeia e na escala de navegação,
entre o continente africano, asiático, europeu e americano” (SEMEDO, 2016, p. 3).
Vale ressaltar que Cabo Verde despertou particular interesse da Coroa portuguesa
devido à sua posição geoestratégica próxima à Costa Africana (as ilhas de Cabo Verde
situam-se na margem do sul do Oceano Atlântico, a aproximadamente 600 km da costa da
África Ocidental), durante muito tempo, as ilhas serviram como entreposto de escravizados
retirados da África e enviados, posteriormente, para a América do Sul, constituindo, muito
cedo, uma população mestiça. Formou-se, logo, uma comunidade composta por várias

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tribos, com grande variedade étnica, surgindo o que Manuel Ferreira (1972) chamou de ‘terra
trazida’.
Conceituada como fator geográfico, a noção de insularidade está diretamente
relacionada com a definição de ilha e, consequentemente, desta com o ilhéu. Definida como
“trecho de terra rodeada de água por todos os lados” (FERREIRA, 2010, p. 408) “terra
menos extensa que os continentes de forma sustentável nas águas de um oceano, de um mar,
de um lago ou de um fluxo” (ROBERT, 1977, p. 541) ou, ainda, “aquilo que está isolado”
(DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2011); nessa acepção, o isolamento é uma
das expressões possíveis da insularidade que aporta consequências nas questões econômicas,
sociais e culturais.
O tema da insularidade é também recorrente nos estudos relacionados à história e à
economia, à literatura e à cultura, sendo aplicado em diferentes contextos e territórios,
incluindo aqueles que são geralmente classificados na categoria de espaços continentais. O
francês Jean-Luc Bonniol salienta o fato de que “l’insularité est toujours relative” (1998, p. 87)70.
Isso não significa ser um conceito vago, mal definido, mesmo se “les îles offrent une palette
inépuisable de cas particuliers” 71 (1998, p. 73).
Conforme Henriques (2009, p. 13-14), as certezas categóricas e definitivas sobre as
ilhas e a condição insular estão associadas a conceitos negativos, como isolamento e solidão,
separação e afastamento, fechamento e aprisionamento. Entretanto, essa visão nem sempre
corresponde à realidade, uma vez que o sentimento insular varia de pessoa para pessoa,
segundo realidades e contextos geográficos. Nesse caso, é importante conhecer os valores e
projetos individuais e coletivos de um território insular, o modo de vida do povo e suas
condições sociais.
O termo ‘insularidade’ no arquipélago de Cabo Verde, em um primeiro momento,
está relacionado à geografia física das ilhas, assim como às limitações que as atingem, uma
vez que “o desenvolvimento destas depende de fatores geográficos, sejam humanos ou
físicos; daí justifica-se uma abordagem dos aspectos geográficos de Cabo Verde para dar a
conhecer, em parte, a realidade cabo-verdiana” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2010, p. 12).
Um dos elementos ilustrativos da insularidade cabo-verdiana que apresenta grande
relevância para a população local é o isolamento geográfico das ilhas, a distância entre elas.
E, embora possuindo atributos especiais que as distinguem dos ambientes não insulares em
certas características, “a questão insular propicia reflexos na fauna, na flora e nas atividades

70 A insularidade é sempre relativa (tradução nossa).


71 As ilhas oferecem uma gama inesgotável de casos (tradução nossa).

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humanas, o que resulta em ecossistemas frágeis e vulnerabilidade política e social dos


habitantes das ilhas” (DOS SANTOS, 2011, p. 58).
Subjetivamente e no contexto cabo-verdiano, a insularidade é uma percepção do
espaço telúrico, da ‘terra-mãe’ e da consciência de uma identidade, “resultado da luta e dos
desafios nascidos do chão das ilhas” (VEIGA, 1998, p. 9). Muitas vezes, essa insularidade
está imbricada no sentimento desejoso de evasão, no conhecido dilema do querer ‘bipartido’,
do ‘ter que partir querendo ficar’ e ‘ter de ficar querendo partir’, cujos traços ganham forma e
conteúdo no confronto e reencontro “da água com a terra, do homem com o mar” (VEIGA,
1998, p. 9).
Conforme Elsa dos Santos (1989), a insularidade no contexto cabo-verdiano tem sua
origem, desde o processo de povoamento, quando o negro africano “lançado no espaço
insular e obrigado a adoptar a cultura e a língua do colonizador sofre [...] um
desenraizamento” (SANTOS, 1989, p. 62). Ao mesmo tempo em que essa autora questiona a
sentimentalidade insular cabo-verdiana, ela a justifica, nestes termos:

[...] a crioulização que conferiu ao cabo-verdiano a identidade, não o tornará, ao


mesmo tempo, num exilado, numa ilha dentro de outra ilha? Exilado em relação à
língua e à cultura que lhe é imposta em que sua própria língua de berço é proibida
na escola oficial, exilado, portanto, pelo não reconhecimento da parte da
autoridade portuguesa da sua cultura? (SANTOS, 1989, p. 62-63).

É importante ressaltar que o uso da língua cabo-verdiana – o crioulo - foi


severamente proibido pelas estruturas coloniais, nos diferentes meios de socialização,
começando pelas escolas, nas quais os professores eram obrigados a dar aulas em língua
portuguesa e, consequentemente, os alunos eram proibidos de falar em sua língua nativa,
dando espaço para o que se chamou de ‘contenção’ que, de forma direta, contribuiu com a
‘agudização da insularidade’, sentida e manifestada nas líricas e na prosa de ficção cabo-
verdiana.
Assim, desde a época colonial, no espaço geográfico das ilhas, a insularidade surge
como sentimento existencial, de solidão, de nostalgia e de injustiça, que o ilhéu experimenta
face à prisão. O cabo-verdiano não se conforma com os problemas sociais que deve suportar
e dos quais é vítima. A imagem do isolamento e da tragédia de uma pequena ilha sempre em
confronto com o mar, “agiganta no ilhéu os sonhos, agudiza a saudade do desconhecido e
do longe, sobretudo, na alma do poeta” (SANTOS, 1989, p. 61) ou dos vários poetas e das
suas “relações de amor com o cenário que eles percorrem” (SALÚSTIO, 1998, p. 35).
A escritora Dina Salústio afirma que “a literatura cabo-verdiana revela o cabo-
verdiano a ele próprio, que só se compreende na insularidade” (SALÚSTIO, 1998, p. 42).

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Esta dá origem a outras representações temáticas como “o medo, a insegurança, a


fragilidade, a saudade, sentimentos que acompanham o ilhéu, muitas vezes, limitado pelos
mares, pelos medos e pelos mitos” (SALÚSTIO, 1998, p. 42).
A questão da insularidade e da relação desta com a identidade do cabo-verdiano vai
mais além dos quilômetros e do isolamento físico que separa as ilhas das fronteiras terrestres
com outras nações. O sentimento de insularidade cabo-verdiana como isolamento é o
resultado das adversidades que as ilhas protagonizaram desde o período colonial (quando
foram duramente exploradas). Mesmo após sua independência em 1975, essas adversidades
não cessaram por não haver uma preparação que proporcionasse uma autonomia confortável
e promissora para os habitantes do arquipélago.
Para essa situação, Dina Salústio aponta a ‘viagem’ como solução, e questiona: “que
outro destino para as ilhas, para o ilhéu?" (SALÚSTIO, 1998, p. 40). A partir desse contexto,
surgem as razões que motivam o cabo-verdiano a deixar sua terra, sua ilha, em busca de
melhor qualidade de vida, em outros territórios, impulsionando a emigração, tão presente e
intensa na vida do cabo-verdiano.
Para além do contexto histórico, social, cultural e político que a insularidade gera aos
habitantes da ilha, ela além de enriquecer a literatura cabo-verdiana, contribui com a
afirmação da identidade do ilhéu, seja regional ou nacional. Para os cabo-verdianos que
emigraram para diferentes zonas continentais, sua relação com a terra natal, com seu
ambiente insular, nem sempre se perde ou se deteriora; pelo contrário, é reforçada pelos
laços culturais que os unem.
A insularidade, de modo geral, provoca emoções contraditórias em seus diferentes
atores, uma vez que está associada à ideia de vulnerabilidade, fraqueza, dependência. Porém,
apesar de engendrar sentimentos de isolamento e fragilidade, não deixa de potencializar,
igualmente, situações e oportunidades que, devidamente aproveitadas, podem servir de eixos
para promover o desenvolvimento econômico, social e cultural dessas nações insulares.
Justificada pela grande concentração de recursos naturais numa reduzida superfície, a
insularidade apresenta elevados níveis de vantagens comparativas, como o mar e suas
temperaturas elevadas, durante todo o ano, os recursos geológicos, as águas termais tão
solicitadas para a prática do turismo, os recursos biológicos, com sua vegetação exuberante e
singular (palmeiras, coqueiros, mangais) e uma fauna diversa, com suas aves marinhas, além
dos recursos culturais (música, dança, gastronomia, cultos religiosos, costumes, folclore e
outros) que, em muitos casos, podem ser vestígios de civilizações passadas. Acrescentam-se a
esses elementos a imaginação e a utopia que as ilhas proporcionam aos seus visitantes,

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

“dando-lhes a sensação de segurança e orientação, a ilusão de estar-se perante um mundo


completo e, ao mesmo tempo, complexo” (DOS SANTOS, 2011, p. 279-280).
A contrapartida do que se chama de insularidade como isolamento, em Cabo Verde,
é o fenômeno da emigração, que representa um dos traços marcantes da identidade cabo-
verdiana, como também um dos traços fundamentais na evolução econômica do
arquipélago. As dificuldades enfrentadas pelos cabo-verdianos, desde as condições climáticas
das ilhas agrícolas, com seus sucessivos períodos de secas e fome, à pouca oferta de trabalho,
dão causa à emigração, “fenômeno que marcou e marca de forma estrutural a história da
formação social cabo-verdiana” (FURTADO, 2013).
Na pesquisa intitulada “Mulheres imigrantes em Portugal: vivência e percursos
migratórios das mães solteiras cabo-verdianas” (2011), a pesquisadora Carla Suzana Silva
Lopes, nos aponta que:
A história da emigração cabo-verdiana é relativamente longa. Ela faz parte da
própria história do povo cabo-verdiano. Gois menciona (2006, p. 23), que ‘pode
afirmar-se que o cabo-verdiano já nasceu (e) migrante’, ou, dito de outro modo,
que a emigração é um dos fenómenos mais antigos e estáveis da sociedade cabo-
verdiana, antecedendo em muitas décadas a independência do país, que ocorreu
em 1975. Neste sentido, Cabo Verde é um exemplo, talvez único, de um Estado
que nasce já ‘transnacionalizado’. Como salienta Lobo (2007, p. 171) na vida de
qualquer cabo-verdiano é inevitável a ideia de emigração (LOPES, 2011, p. 30).

A emigração cabo-verdiana remonta o século XVII e início do século XVIII, quando


o mar era o meio principal e privilegiado para os que deixavam as ilhas. As primeiras
emigrações tinham como destino os Estados Unidos, onde os ilhéus eram recrutados para
trabalharem nos baleeiros. Com as prolongadas crises de seca e fome que assolaram o
arquipélago por longos anos, ocasionando centenas de mortes, os cabo-verdianos se viram
forçados a emigrar para trabalharem nas ‘roças de São Tomé e Príncipe’.
Em 1924, foi criada, nos Estados Unidos, a ‘Lei das Quotas’, que limitava a entrada
de estrangeiros em território norteamericano. Com essa medida, houve uma emigração em
massa para países da América Latina, como Brasil e Argentina, e para diferentes países da
África Ocidental, como Senegal e Angola, respectivamente, formando outra ‘diáspora’ cabo-
verdiana (SPÍNOLA, 2004; QUERIDO, 2011). Além de um deslocamento físico e
territorial, também houve um movimento de deslocamento identitário, cultural, político,
social e ideológico. De acordo com Antônio Carreira (1983, p. 99), o maior êxodo da história
do arquipélago em todos os tempos se deu nos anos de 1964, 1968 e 1969, com uma saída
significativa de cabo-verdianos das ilhas.
Devido às crises cíclicas de fome ocorrida nos anos 1930, 1940 e 1950 do século XX,
assim como a falta de trabalho nas ilhas de Cabo Verde, houve uma emigração forçada de

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milhares de cabo-verdianos, sozinhos ou em família, para pesados trabalhos braçais nas roças
de café e cacau nas ilhas de São Tomé e Príncipe (QUERIDO, 2011, p. 82-83).
Após a Segunda Guerra Mundial, fugindo da fome e da miséria que assolavam as
ilhas, uma nova onda de emigrantes procurou os países europeus, como França, Holanda,
Luxemburgo, Bélgica e Portugal, com destaque o país lusitano (52,9%) que formou, após os
Estados Unidos, a segunda maior comunidade de cabo-verdianos da diáspora. Conforme
João Lopes Filho, a Europa não constituía um destino tradicional dos emigrantes cabo-
verdianos, mas devido às devastações da II Guerra, que deixaram alguns países europeus
desprovidos de mão-de-obra para sua reconstrução, as correntes migratórias foram alteradas
com o objetivo de suprir as necessidades desses países (LOPES FILHO, 2010, p. 135).
Desse fluxo migratório, assim como desse momento de trânsito e de entrelaçamento
de valores, surgem novos sujeitos, reformados ou remoldados, que reproduzem seus valores
crioulos em terras estrangeiras, em um novo território, significando:

Um Cabo Verde fora do lugar, permitindo que ‘identidades cabo-verdianas’ sejam


reconstruídas em um novo espaço que não é o seu território de origem, que
pertence a outros Estados, mas efetivamente apropriados e reapropriados
quotidianamente pelos imigrantes cabo-verdianos e sua descendência, como um
‘chão’ cabo-verdiano (SAINT-MAURICE, 1997).

No contexto das sociedades africanas, o conceito de território não se limita apenas


aos espaços físicos e geográficos, mas é, sobretudo, o portador de uma história mítica que
liga povos, tradições culturais e ancestralidade. Cabo Verde é o exemplo concreto dessa
identidade que ultrapassa as fronteiras, os territórios, uma vez que o cabo-verdiano é
obrigado a reconstruir suas ilhas e a si mesmo nos novos territórios de acolhimento.
É nesse contexto que Cláudio Alves Furtado (2013, p. 4) afirma que “o território
comporta uma dimensão cultural e religiosa indiscutível que a colonização, pela sua
expropriação, laicizou e, por via disso, buscou formas de legitimar a ocupação e a reclamação
do direito de propriedade.” Assim, no contexto do continente africano pré-colonial:

O território define-se por isso, pela relação que sustenta com a história, e que se
exprime não só na presença dos espíritos dos antepassados, mas pela acumulação
de sinais e de marcadores, uns criados pela natureza e reinterpretados pelos
homens, os outros provindos do imaginário do indivíduo e da sua sociedade. Um
homem define a sua identidade por meio de alguns suportes: primeiro pelo facto
de pertencer a uma família, a qual está integrada num clã, numa comunidade,
numa nação. Esta aparente dependência do indivíduo e da família em relação às
unidades superiores, não deve, contudo, enganar-nos: é a soma das pequenas
identidades que autoriza a construção global da identidade, a qual está
historicamente ligada a um território (CASTRO, 2004, p. 5).

Do ponto de vista histórico, a ocupação das ilhas de Cabo Verde constitui, a um só


tempo, primeiro, um processo de construção de um território (considerando esse território
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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

como processo de historicização do espaço físico e simbólico); segundo, um processo de


desterritorialização, ou seja, o abandono forçado do território natal, implicando aqui, tanto
os escravizados africanos como os europeus, alguns considerados degredados, que foram
expropriados dos seus territórios de origem e, por último, um processo de reterritorialização
que, para Deleuze (DELEUZE; GUATTARI, 1992), significa a construção de um novo
território (enquanto espaço geográfico) e a reconstrução de si próprio em um novo território
(FURTADO, 2013, p. 5). O autor citado acrescenta, ainda, que:

Esse triplo processo de desterritorialização, territorialização e reterritorialização é


um fator de construção de uma identidade de fronteira na justa medida em que
impulsiona a necessidade de invenção de uma tradição identitária que deve estar
permanentemente ritualizada e reatualizada em espaços físicos, identitários e
étnicos extremamente fluidos (FURTADO, 2013, p. 5-6).
Esses processos são concomitantes e indissociáveis, de modo que a emigração
geográfica interfere na identidade humana. Tanto o nomadismo como a prática do
deslocamento geográfico geram discussões em torno da identidade e das mudanças que os
indivíduos sofrem quando migram, sobretudo, em suas posições sociais, chegando mesmo a
desenvolver, em muitos casos, crises existenciais.
Por isso, consideramos as palavras de João Lopes, que aborda a emigração cabo-
verdiana nesses termos: “a emigração está enraizada na própria origem e na formação da
sociedade cabo-verdiana, fazendo mesmo parte do seu imaginário, pois está também
presente na tradição oral, na música, na literatura, como característica marcante desse povo”
(LOPES FILHO, 2010, p. 135).
Frente aos fatores que compõem a identidade cultural cabo-verdiana, entende-se que
esta foi construída a partir da combinação de elementos socioculturais de características
africanas e de traços europeus. Do encontro direto entre essas duas culturas resultou um
processo de aculturação mútua: “uma europeização dos africanos, bem como uma
africanização dos europeus” (SEIBERTH, 2014, p. 41), dando origem a uma sociedade
crioula, com suas manifestações culturais próprias, suas realizações materiais e simbólicas.
As manifestações culturais cabo-verdianas surgiram a partir de um esforço de
sobrevivência e convivência entre europeus e africanos que, frente às dificuldades
encontradas no arquipélago, “misturaram-se, étnica e culturalmente, originando, assim, um
povo com uma personalidade e identidade definida, fruto de um trabalho lento de cinco
séculos de aculturação” (RAMOS, 2009, p. 34). Assim como os reflexos do colonialismo
português são visíveis nas ilhas cabo-verdianas, desde os séculos XV e XVI, as marcas das
culturas africanas e europeias são perfeitamente reconhecíveis nessa sociedade insular
crioula.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

ESCRITURAS ANDAM EM CÍRCULOS: À VOLTA DO TEU PESCOÇO


Thayane Morais 72
Tânia Lima 73

A dicção do texto literário de autoria feminina africana pode ser entendida como um
trabalho que proporciona a revisão dos papeis sociais. Isso porque a produção do texto
ficcional, que toma forma a partir das experiências cotidianas, tem o potencial de desnudar
aquilo que foge ao olhar desatento ao provocar reflexões em torno até mesmo daquilo que
parece banal e efêmero. No cenário da literatura contemporânea, a produção de escrituras
construídas sob o signo do trânsito geográfico e cultural é cada vez mais numerosa e traz
consigo a reflexão acerca das formas diversas de constituição do sujeito em nosso tempo.
Nesse contexto, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie chama a atenção
para o que fica nas entrelinhas dos discursos do silenciamento. A produção literária da
nigeriana faz parte de uma lista de escritoras africanas consagradas, não só na Nigéria ou nos
países africanos, mas mundo afora. Adichie conta, atualmente, com traduções de todos os
seus livros em vários idiomas, considerando, também, que a crítica acadêmica a respeito da
dicção feminina da autora nigeriana vem aumentado substancialmente.
Em ‘A coisa a volta do teu pescoço’ (2012), se observa o agrupamento de narrativas
ancoradas na lida diária dos sujeitos nigerianos juntamente com as construções que
priorizam a experiência de transitar não apenas entre cartografias, mas principalmente o
exercício de saber que é pertencente à diáspora entre culturas.
Em travessia pelo legado de uma escritura diaspórica, é possível identificar nos
contos de Adichie a inscrição do dia a dia em mulheres e homens africanos, nigerianos, que
compartilham as complexidades subjetivas e as conjunturas mais diversas. Ancorada na
percepção de elementos culturais que se reconstroem pela ação crítica dos sujeitos, a
composição estética dos contos também aponta para a possibilidade de transformação do
pensar humano na sociedade.
O uso da linguagem como militância feminista é elaborado através do recurso da
ironia, o que se observa pela presença laboriosa dos recursos estéticos na articulação dos
elementos ficcionais. O processo de criação de Adichie traduz um tipo de revolta com as
palavras no registro irônico que está visível nas camadas da linguagem dicionarizada.

72 Mestra em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (UFRN) onde defendeu
dissertação de mestrado sobre Chimamanda Adichie com orientação da profa. Tania Lima.
73 Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Editora da Revista de arte Mangues
& Letras. Professora Permanente do Mestrado Profissional em Artes UFRN/UDESC

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Nas histórias que dão escopo à arte de contar, apontamos o uso criativo de
ferramentas literárias consagradas pela tradição oral ao lado de uma estética narrativa que
contempla o experimentalismo. No exercício da escritura, a autora citada mistura vários
gêneros literários como quem escreve com missangas os segredos que perfazem a tessitura
verbal. Percebemos com isso que o conto, a crônica, o diário, a matéria ensaística, o assunto
do blog, tudo isso gera um contra discurso que demarca um estilo próprio que faz da
escritora nigeriana uma obra de arte.
No prelúdio do livro ‘A coisa à volta do teu pescoço’ (2012), destaca-se a ligação
intrínseca das personagens principais, inseridas no ambiente da casa, no espaço da rua, nas
cartografias transnacionais, não-lugares da hipermodernidade. O conto é criado como um
roteiro cinematográfico onde as cenas abismais movimentam-se ao redor de um cotidiano
recortado pelo tempo, recordado pela memória. No traço descritivo da narrativas,
personagem e espaço misturam-se não somente em uma demonstração do apego emocional,
o que acontece em alguns casos exemplificados no conto ‘Fantasmas’ em que se percebe
uma necessidade inevitável de materializar aquilo que é íntimo de determinado protagonista,
recriando cenas nítidas do campo psicológico.
No conto ‘Fantasmas’, o clima e a paisagem local são solicitados a todo instante em
meio aos relatos pessoais de James Nwoye. A narrativa, que chama atenção também pelo
manejo da espiritualidade e das crenças locais, acontece em um epílogo bastante
característico da Nigéria e também dos demais países que compõem a região subsaariana do
continente, como aponta a personagem: “Estamos quase em março, mas a época do
harmatão ainda por cá está: os ventos secos, a eletricidade estática nas minhas roupas, a
poeira fina nas pestanas” 74 (ADICHIE, 2012, p. 65).
No enlaço da ‘contação’, com um tipo de narrativa em primeira pessoa, são os
elementos naturais que encabeçam a descrição do estado psicológico de Nwoye. O encontro
com o velho amigo Ikenna Okoro, antigo professor do campus de Nsukka, faz ressurgir
assuntos difíceis de tocar na carne do verbo. Como falar, por exemplo, sobre as
consequências da guerra civil no círculo universitário? Muitas perguntas sem respostas foram
abafadas pelo tempo, mas que emergem na dolorosa tarefa de cuidar das feridas não
cicatrizadas. No decorrer dos diálogos travados pelas personagens, um clima constrangedor
se estabelece diante da possibilidade de Okoro ter se recusado a lutar, quando Nsukka foi
invadida. Depois de uma colocação um tanto embaraçosa, James Nwoye diz:

74 Harmatão, como é referenciado “o vento seco e frio, carregado de uma areia muito fina, que sopra do
deserto do Saara sobre as savanas, os cerrados e as florestas da África Ocidental”, disponível no glossário Em
O mundo se despedaça (2009).

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Eu não queria que Ikenna interpretasse mal a minha intenção e perguntei-me se


deveria pedir-lhe desculpa. Um redemoinho de poeira estava a levantar-se do
outro lado da estrada. Os pinheiros sibilantes acima de nós balouçavam e o vento
soltava as folhas secas das árvores mais distantes (ADICHIE, 2012, p. 71).

A construção que vemos no texto citado anteriormente faz parte de um estilo de


Chimamanda Adichie que se apresenta poético no trato com o lado imagético do conto. As
reflexões íntimas diretas são suspensas em nome da descrição de um estado geral do
ambiente que, no fim das contas, atua como uma colocação indireta dos próprios
sentimentos daquelas personagens. A descrição do espaço que aparece em meio ao momento
de tensão entre Nwoye e Okoro esboça o estado de braveza da personagem principal que,
internamente, vê-se tomada por um turbilhão de sentimentos chegando de forma inesperada
e com a potencialidade de um redemoinho acaba por modificar rapidamente a paisagem
inteira ao redor do espaço criado.
No pensamento de James Nwoye, o passado produz tantos ruídos quanto os
pinheiros inquietos. O vento tem a força de movimentar tudo aquilo que está em repouso.
Símbolo da instabilidade e da inconstância, o vento torna visíveis ‘as folhas secas das árvores
mais distantes’ da memória do narrador/personagem, fazendo com que ele visite as
recordações suscitadas pelo sopro do instante, pelo encontro com o velho amigo que ele
acreditava estar morto. O excerto descreve um cenário natural comum nos meses do
harmatão ao mesmo tempo em que caracteriza sentimentos e sensações do referido
personagem.
Na escritura de Adichie, a exemplo do que acontece no conto ‘Fantasmas’ em relação
à paisagem, os materiais artísticos dos antepassados nigerianos também se transformam em
artifícios metafóricos. Os artefatos históricos, ou a réplica destes, indicam questões
particulares das personagens como se percebe no uso de metáfora em momentos
importantes da narrativa de Nkem, exemplificado no conto ‘Imitação’. No início do conto
mencionado, as particularidades de uma réplica são apresentadas como características do
espírito curioso da personagem central, uma vez que ela tenta imaginar as histórias ao redor
do objeto original.
Ao olhar mais atentamente para a máscara de Benim, a personagem é acometida pela
apatia que a obra de arte transmite, como indica o trecho apresentado a seguir:
Nkem passa a mão pelo metal arredondado do nariz da máscara de Benim. Uma
das melhores imitações, dissera Obiora quando a tinha comprado, alguns anos
antes [...].
Nkem pega na máscara e encosta o seu rosto a ela; ela é fria, pesada, sem vida. No
entanto, quando Obiora fala sobre ela – e sobre todos os outros objetos – faz
com que pareçam respirar, possuir calor (ADICHIE, 2012, p. 32).

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A imitação da obra de arte estabelece uma relação com as inseguranças e desilusões


de Nkem com o casamento e a ausência do marido. A personagem principal demonstra
entender a vida de casada da mesma maneira com que encara as réplicas trazidas por Obiora,
pondo em destaque a falsidade de ambas. Por mais parecidas que sejam as réplicas, não
passam de imitações esvaziadas de sentido, são peças decorativas, diferentes dos artefatos
reais, aqueles que detêm significado e história. A frieza e o peso sentidos por Nkem ao tocar
a máscara, estão também presentes em suas reflexões ao pensar no relacionamento com o
marido. Ela própria se assemelha a um objeto decorativo à espera de Obiora na casa
suburbana do casal, nos Estados Unidos. Assim como as peças de arte, Nkem e sua casa
voltam a ‘possuir calor’ com a chegada do esposo nos poucos meses em que este convive de
fato com a família.
Nas páginas iniciais de ‘Imitação’, as inferências de Nkem a respeito dos objetos de
arte revelam os sentimentos conflitantes sobre sua vida enquanto imigrante, submissa às
escolhas do marido e diante de um casamento que julgava estar em desacordo com suas
expectativas sobre como deve ser a relação do casal. Esse contexto intensificou-se de modo
que a ansiedade pela chegada de uma nova peça se confunde com o retorno de Obiora, na
ânsia de imaginar aquilo que as imitações não podiam oferecer.
Pergunta-se o que ele trará na próxima semana; passou a sentir expectativa
perante a chegada das peças de arte, poder tocar-lhes, imaginar os originais,
imaginar as vidas por detrás deles. Na próxima semana, quando os seus filhos
disserem mais uma vez ‘Papá’ a alguém real, não a uma voz ao telefone; quando
ela acordar à noite e ouvir ressonar a seu lado; quando vir outra toalha usada no
quarto de banho (ADICHIE, 2012, p. 33).

Ao final da narrativa, quando Nkem é impelida a abandonar o lugar de espectadora


da própria vida, e toma a decisão de mudar a dinâmica de seu casamento, um original é
adquirido pela família. Esse fato marca a mudança de comportamento da personagem e a
adoção do que ela acredita ser uma decisão verdadeiramente sua, além de reafirmar a relação
metafórica das obras com a vida da personagem: “Depois do jantar, Nkem senta-se na cama
e examina a cabeça de Ife em bronze que Obiora disse ser, de fato, latão. É colorida, de
tamanho natural, com um turbante. É o primeiro original que Obiora compra” (ADICHIE,
2012, p. 45).
Para percebemos os tipos de composições dos contos de Adichie, devemos refletir
sobre a própria constituição do gênero literário escolhido por ela. O gênero conto, como
aponta Ítalo Ogliari (2012, p. 63), passou por diversas reformulações desde a sua
concretização na forma escrita, em tempos modernos, até o momento contemporâneo. O
trabalho criativo com a linguagem e as escolhas estéticas da escritora nigeriana parecem estar

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comprometidos com o que Ogliari (2012, p. 61) afirma ser o papel do gênero conto por
excelência, o “simples ato de reunir as pessoas e de contar algo: do simples ato de contar
histórias.” Uma das características mais expressivas desse gênero literário, na atualidade, está
exatamente na diversidade que a sua forma permite, uma vez que a escrita do conto está
fortemente ligada à maleabilidade da contação de história que já nasce próxima da
espiritualidade ancestral.
Segundo Ogliari, tal gênero pode ser encarado pelo viés moderno em uma
modalização mais rígida, como postulada por Edgar Poe ou Anton Tchekhov, ou visto pela
volatilidade de um gênero textual que se molda a partir da necessidade narrativa, o que abre
as portas para a experimentação no ato de contar. Esse último ponto é o que encontramos
na análise dos contos produzidos por Adichie.
Dito isso, entendemos que as histórias curtas apresentadas em ‘A coisa à volta do teu
pescoço’ (2012) são coerentes com a visão contemporânea do conto, uma vez que não tem
seu conteúdo limitado a uma fórmula específica do gênero. O conto nasce, então, daquilo
que pulsa na vida cotidiana, tendo como resultado a brevidade da prosa literária. A fim de
perceber como se desenvolve a expressividade literária nos contos de Adichie, é importante
atentar para os elementos estruturais que costuram as narrativas e que demonstram um peso
significativo na composição das histórias em sua totalidade.
O conto, por ser uma ficção curta, está comprometido com um momento específico
de uma narração particular ou coletiva, de modo que o detalhamento, a construção de
imagens minuciosas sobre o espaço narrativo, ou mesmo o perfil psicológico de determinada
personagem, proporcionem ao enredo o aprofundamento necessário em tempo reduzido.

As cabanas tinham todas telhados de colmo. Nomes como Baboon Lodge e


Porcupine Place estavam pintados à mão ao lado das portas de madeira que
davam para caminhos empedrados, e as janelas eram deixadas abertas para os
hóspedes acordarem com o restolhar das folhas de jacarandás e a rebentação
ritmada e calmante das ondas do mar. No tabuleiro de verguinha havia uma
seleção de chás especiais (ADICHIE, 2012, p. 103).

A exemplo disso, no fragmento apresentado anteriormente, retira-se das linhas


iniciais de ‘Jumping monkey hill’ uma pequena descrição da instância turística que resume, de
forma significativa, o ambiente aconchegante. Ao longo da contação da história, todo o
conforto e tranquilidade serão questionados em profundidade pela personagem Ujunwa. Em
poucas palavras, tem-se um panorama que dará suporte a uma das principais críticas de
Ujunwa: a rotulação daquilo que é, ou não, ‘genuinamente’ africano.
Mesmo diante dos dados pormenorizados dessa descrição inicial, o rumo que o
conto tomará ainda é incerto. Como afirma Ricardo Piglia, em ‘Formas breves’: “Parece

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

impossível que esse novo corpo, inutilmente sensível, como que mutilado e sem forma,
possa manter-se vivo” (2004, p.97), necessitando, assim, de um elemento estruturante que
entrelace todos os pontos do enredo que começa a ser construído. Nesse ponto,
evidenciamos a composição orquestrada pela memória como um recurso que possibilita a
ruptura temporal, estratégia bastante utilizada por Adichie para dividir as seções no interior
do conto. Essa partição abre caminho para a inserção de novos elementos narrativos que
asseguram a concatenação de ideias e o aprofundamento temático.
Em ‘Jumping monkey hill’, a própria memória é a matéria prima de Ujunwa, que
utiliza as lembranças pessoais, em uma relação metalinguística, para dar corpo ao conto que
produz. Nesse caso, as divisões marcam as passagens entre os acontecimentos no tempo
presente, aquilo que acontece no decorrer da semana da oficina de escrita literária:

Depois do pequeno-almoço, Ujunwa telefonou à mãe e falou-lhe da estância


turística e de Isabel e ficou satisfeita quando a mãe se riu. Depois de desligar,
sentou-se em frente do portátil e pensou há quanto tempo sua mãe não se ria.
Ficou ali sentada durante muito tempo, a deslocar o rato de um lado para o outro,
tentando decidir se daria à sua personagem um nome vulgar, como Chioma, ou
algo exótico, como Ibari (ADICHIE, 2012, p. 108).

E as lembranças da personagem, transfiguradas de forma ficcional: “Chioma vive


com a sua mãe em Lagos. Tem uma licenciatura em Economia pela Universidade de Nsukka,
terminou recentemente o seu Serviço Nacional da Juventude [...]” (ADICHIE, 2012, p. 108).
Em um primeiro momento, a relação entre as ações da personagem no presente e a história
que ela escreve para a oficina não transparece.
De fato, as reflexões de Ujunwa a respeito do teor de sua escrita levam exatamente
na direção contrária à ideia de uma ficção baseada em acontecimentos pessoais: “– Vais
escrever sobre o teu pai? – perguntou o queniano, e Ujunwa respondeu com um NÃO
enfático, porque nunca tinha acreditado na ficção como terapia” (ADICHIE, 2012, p. 111).
Nessa travessia, a discussão sobre as motivações da escrita se amplia no exercício de
contar a verdade invencionada. O que Ujunwa desenvolve como contista não versará acerca
de uma experiência própria. Tal expectativa é desfeita ao final, quando ela mesma revela que
o enredo é, na verdade, ficção fabricada a partir das memórias. No conto ‘A historiadora
obstinada’, a narrativa se inicia de forma fragmentada, mas sem grandes lacunas.
A escritora vai tecendo um tipo de narrativa que prima pela forma linear de contar as
lembranças de Nwamgba. No conto em questão, não se identifica a quebra no tocante às
idas e vindas ao tempo presente, passado e futuro. Contudo, a exceção da reviravolta
narrativa que interrompe o episódio do leito de morte de Nwamgba para adentrar em

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acontecimentos futuros da vida de Grace. 75


Tudo o que queria era ver Afamefuna antes de ir ter com os antepassados [...].
Nwamgba ouviu o ranger da sua porta a abrir-se e ali estava Afamefuna, a sua neta
que tinha vindo sozinha de Onicha, porque já não conseguia dormir há dias, o seu
espírito inquieto impelia-a para casa (ADICHIE, 2012, p. 221).

Esse tipo de construção na arte da contar interrompe a narração no tempo presente e


retoma no encerramento do conto uma espécie de lembrança que retrata os momentos
derradeiros da primeira personagem, vistos agora pela perspectiva de sua neta: “Mas naquele
dia em que se sentou junto à cama de sua avó à luz evanescente do fim da tarde, Grace não
estava a comtemplar o seu futuro. Simplesmente tinha na sua mão a da sua avó, a palma
áspera de anos a fazer potes de barro” (ADICHIE, 2012, p. 224).
No tecido temporal que abarca acontecimentos importantes da vida de Nwamgba,
desde o primeiro encontro com o futuro marido até o último momento com Grace,
diferente do sucedido em ‘Jumping monkey hill’, a partição das seções não é feita pela
inserção de memórias, mas por um avanço no tempo, como se pode ver ao fim de uma
subdivisão, quando do nascimento de Anikwenwa, filho de Nwamgba: “[...] e meses depois
lá estava ela em cima de um monte de folhas de bananeira acabadas de lavar por trás da sua
cubata, a fazer força e a puxar até o bebé deslizar para fora” (ADICHIE, 2012, p. 208) e no
início da seguinte, em que este já é retratado como uma criança desenvolvida:

Chamaram-lhe Anikwenwa: o deus da terra, Ani, tinha-lhes finalmente concedido


um filho. Era escuro e robusto e tinha a curiosidade alegre de Obierika. Obierika
levava-o a colher ervas medicinais, a ir buscar barro para a olaria de Nwamgba, a
torcer trepadeiras de inhame na horta (ADICHIE, 2012, p. 209).

Desse modo, se apresenta uma elipse temporal a cada seção, o que permite à
escritora agregar um montante de características e fatos sobre Nwamgba e sua família em
poucas páginas, sem que haja lacunas imensas na história, dando a impressão de que,
terminada a leitura do conto, se conhece a fundo a vida de cada personagem. A cisão do
tempo narrativo justifica a passagem do tempo cronológico. Com isso, além de desenvolver
uma função circunstancial na dicção ficcional, a divisão justifica a organização da narrativa
que conta com um grande número de personagens e uma teia de relatos em narrativas
secundárias semelhantes às que se encontram no gênero romanesco.
Com um tipo de prosa breve, quem conta encolhe o dizer como quem nomeia em
micronarrativa a estruturação da menor história do mundo. No ciclo da memória individual

75 Esta personagem no conto é também nomeada Afamefuna. Mas, a título de não confundir o leitor, ao longo
a análise, foi feito o uso do nome Grace, salvo os fragmentos da obra que indicam o segundo nome, aquele
de origem Igbo dado a ela por sua Avó.

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das personagens centrais, as possibilidades oferecidas pela quebra, pausa ou corte temporal
proporcionam no texto de Adichie o resgate da densidade necessária à temática. Nesse
sentido, um bom exemplo é o conto ‘Imitação’, citado nas páginas iniciais deste trabalho,
cujos limites nas subdivisões da prosa poética são orquestrados pelas averiguações acerca do
passado de Nkem. Para a inserção de detalhes relevantes na trama, a construção da
personagem no tempo presente vem quase sempre inacabada. Como uma fenda no meio do
conto, a trama vem sempre sincopada. Percebe-se em Adichie uma recorrência na arte de
contar que se apropria dos vestígios memorialistas bem como do uso pertinente da quebra
espacial e temporal na estrutura formal da prosa.
Na primeira seção, têm-se a descrição de Nkem em sua casa nos Estados Unidos:

Nkem está a olhar fixamente para os olhos esbugalhados e em bico da máscara de


Benim por cima da lareira da sala quando fica a saber da namorada do seu marido.
– Ela é muito nova. Vinte e um anos por aí – está a dizer ao telefone a sua amiga
Ijemamaka (ADICHIE, 2012, p. 29).

Na segunda seção, se conhece claramente os acontecimentos que levaram a


personagem a esse país: “Ela estava grávida quando veio pela primeira vez para a América
com Obiora. A casa que Obiora arrendou e mais tarde viria a comprar cheirava a fresco,
como chá verde, e o acesso curto até a garagem estava atapetado com cascalho” (ADICHIE,
2012, p. 31). Ao longo de toda narrativa, avistamos o movimento que revela, inclusive, as
motivações que impeliram Nkem a ser ‘amante’ de homens casados. Além disso, transparece
o peso psicológico em torno da imagem de ‘mulher bem-sucedida’ em seu meio
sociocultural.
Dadas as reflexões acerca da memória e do jogo temporal como elementos
fundamentais aos contos citados, é relevante marcar o teor psicológico dos contos, posto
que o narrador assume o ponto de vista das personagens centrais, dispondo todo o enredo a
partir das reflexões e questionamentos feitos por elas. Há aqui uma composição que aborda
dois elementos estéticos distintos, mas numa intenção de complementariedade. De um lado,
as temáticas, os fios condutores das histórias apontam para um realismo que pretende tornar
objeto de discussão as problemáticas sociais e culturais da Nigéria e dos Estados Unidos; de
outro lado, essa concepção estética que impõe objetividade ao texto literário é desconstruída
pela escolha da voz narrativa.
A subjetividade que confere a proposição psicológica está interligada ao grau de
impacto que as demandas socioculturais surtem na vida das mulheres e homens apresentados
de maneira particularizada, tudo isso narrado em terceira pessoa. Dessa maneira, o narrador
está imerso na intimidade da personagem, narrando os fatos de forma interna, algo que se
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espera da narração em primeira pessoa, posto que a centralidade reside, entendemos, nos
sentimentos e ações das protagonistas diante das demandas externas. Como se pode ver em
‘A historiadora obstinada’, no tocante à imposição imperialista e religiosa ocidental na vida
de Nwamgba e Grace. Esse tema presente no cotidiano dos sujeitos africanos é discutido por
meio da reação de Nwamgba sobre a conservação dos preceitos culturais:
Ficou deitada na cama a respirar com dificuldade, enquanto Anikwenwa lhe
suplicava que se deixasse batizar e que recebesse a extrema-unção para ele poder
fazer-lhe um funeral cristão, porque ele não poderia participar numa cerimónia
pagã. Nwamgba disse-lhe que se ele se atrevesse a trazer alguém para esfregar um
óleo imundo nela, ela esbofetearia essa pessoa com as suas últimas forças
(ADICHIE, 2012, p. 221).

Ou mesmo, por intermédio da surpresa de Grace ao descobrir que ela e sua família
eram consideradas ‘selvagens’ aos olhos da administração inglesa:

Grace pousou a pasta da escola, dentro da qual estava o seu livro de estudo com
um capítulo intitulado ‘A Pacificação das Tribos Primitivas do Sul da Nigéria’ [...].
Foi Grace quem leu sobre estes selvagens, intrigada pelos seus costumes curiosos
e sem sentido, não os relacionando consigo própria [...] (ADICHIE, 2012, p. 221).

O que se obtém através dos relatos feminino é uma fabulação que salta da vida e se
transforma em algo inédito nas páginas do conto. As impressões acerca das mulheres e das
coisas traduzem as vicissitudes de se perceber o ser feminino como sujeito do espaço que
habita. Nesses contos, muito mais do que contar, a voz ‘contadeira’ em terceira pessoa
transporta aquele que lê para a história privada das personagens aqui apresentadas. O ser
silenciado começa a ter voz. A mulher passa a nomear o que sente.
Na coletânea de contos, como um todo, resguarda-se o caráter psicológico em
conflito e tensão permanente. O íntimo feminino está à beira de um patriarcado que se
apresenta como abismal. E, como é próprio do espaço experimental proporcionado pelo
gênero conto, Adichie utiliza a linguagem expressa na escritura para denunciar e acrescentar
um novo olhar sobre o modo de vida que extrapola as linhas existentes entre o leitor e o
texto literário.
Em ‘A coisa à volta do teu pescoço’, o conto que dá nome a coletânea descreve as
vivências de Akunna num país estrangeiro. Perto das mãos de quem conta, as memórias da
juventude na Nigéria são apresentadas por uma narradora em segunda pessoa.

Por vezes, ficavas sentada no colchão aos altos da tua cama de solteiro e pensavas
na tua terra – nas tuas tias que vendiam peixe seco e bananas-da-terra [...]; nos
teus tios, que bebiam gin de produção local e atafulhavam a família e a vida num
único quarto; nos teus amigos, que tinham vindo despedir-se de ti antes de
partires [...]; nos teus pais, que muitas vezes iam de mãos dadas para a igreja ao
domingo de manhã, com os vizinhos do quarto ao lado a rirem e troçarem deles
[...] (ADICHIE, 2012, p. 125-126).

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A travessia diaspórica do o enredo parece fluir no ritmo de uma conversa em


movimento constante. Aquela que conta conduz, por meio dos relatos no passado, a
personagem ao papel de espectadora da sua própria vida. Em verdade, paira no conto uma
sensação de apagamento da figura da personagem como uma pessoa definida. O nome
Akunna só é apresentado uma única vez: “Ele perguntou-te o nome e disse que Akunna era
bonito. Ainda bem que não perguntou o que queria dizer, porque tu estavas farta de ouvir as
pessoas dizerem – 'Riqueza de pai'? Quer dizer, tipo, o seu pai vai vendê-la a um marido?”
(ADICHIE, 2012, p. 128).
As informações da personagem Akunna vêm tecidas por cortes, lacunas elipses. Falta
uma imagem mais nítida da personagem aqui destacada, conforme se pode observar em
outros contos de Adichie seja por meio da riqueza de detalhes, seja pelo tipo de descrições
minuciosas das personagens. Contudo, sabemos quem é o sujeito da narração, na maioria
das vezes, pela variedade pronominal que substitui o nome próprio pelo verbo conjugado em
segunda pessoa, completando a dificuldade de definição da personagem. Na tessitura do jogo
narrativo, a contista acaba por levar aquele que lê a ocupar também o lugar de personagem
na história; esse recurso utilizado por Adichie emerge com um sotaque diaspórico que ecoa
como um contra discurso, endereçado a uma pessoa oculta no tecido narrativo: o tu.

No entanto, semanas depois, apetecia-te escrever, porque tinhas histórias para


contar. Apetecia-te escrever sobre a franqueza surpreendente das pessoas na
América, sobre como te falavam impulsivamente sobre a mãe que estava a lutar
contra um cancro, sobre o bebé prematuro da cunhada, o tipo de coisas que se
deveriam esconder ou revelar só a pessoas da família que nos queriam bem
(ADICHIE, 2012, p. 126).

Se a narração em terceira pessoa dos contos adichieanos causa uma sensibilização,


uma aproximação, uma revolta, nesse tipo de construto a intenção é a de imersão total pela
aglutinação dos papéis leitor/personagem. Leitor e personagem se tornam a mesma pessoa,
compartilhando a jornada da leitura pelo confronto entre três mundos distintos: o vivido, o
imaginado, o rebelado. Nesse ponto, a elaboração do gênero literário conto se confunde
com a construção feminina de gênero. Na medida em que Adichie apresenta as diversas faces
do ato de contar, articula efeitos à própria construção subjetiva das mulheres, realçando os
conflitos pessoais que dão vazão à reflexão acerca do caráter processual e transitório das
demandas femininas.
O experimentalismo estilístico é inconclusivo em Chimamanda Adichie. Há coisas
em volta do pescoço que proporcionam um tipo de vivência do enfrentamento frente ao
silêncio oferecido às mulheres ao longo dos séculos. O que está escrito no mundo ao redor
das mulheres, além da domesticação delicada, comportada, silenciada, mas sobretudo

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

carregada de violência por todos os lados? O que se reconstrói no ato da leitura, quando se
tem nas mãos um livro de Adichie? O que sugere ser efeito significativo na tentativa de
externar a intimidade feminina da personagem, acometida de modo visceral pelas
complexidades do trânsito territorial e cultural, ainda tão pouco discutido sob o ponto de
vista da mulher? Quantas perguntas? Quantas respostas a produção literária pode oferecer ao
mundo, cara (o) leitora(o)?

REFERÊNCIAS
ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. Tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

ADICHIE, Chimamanda Ngozi, A coisa à volta do teu pescoço. Tradução: Ana Saldanha.
Alfragide: Dom Quixote, 2012.

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. The thing around your neck. London: Fourth Estate,
2009.

OGLIARI, ítalo. A poética do conto pós-moderno: a situação do gênero no Brasil. Rio de


Janeiro, 7Letras, 2012.

PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Tradução: José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.

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A NATUREZA DO CORPO PERFORMÁTICO EM ‘BALADA DE


AMOR AO VENTO’, DE PAULINA CHIZIANE

Larissa Sarmento de Almeida Celestino (UFRN)76


Tânia Lima (UFRN - Profartes - UDESC)77

"Ah, a vida tem que ser


como o mar!!!"
(SÓNIA SULTUANE)

Paulina Chiziane é a primeira contadora moçambicana a publicar um Romance. O


primeiro livro da autora, que é o objeto do presente estudo, recebeu o título ‘Balada de amor
ao vento’ (1990). Em entrevista ao canal de YouTube ‘Justificando’, 78 a escritora nega o status
de romancista e se autodeclara contadora de histórias. Se olharmos a partir de outra
perspectiva, a negação dá lugar à afirmativa: Chiziane assume a Tradição Oral.
Tal posicionamento nos interessa, pois aponta o embate entre o sistema literário
eurocêntrico ocidentalizado e o sistema literário africano, de maneira que é essencial o
entendimento desse território conflituoso como ponto de partida de análise. As literaturas
africanas ocupam a periferia do sistema literário institucionalizado, sendo considerada pelas
instâncias de legitimação como uma literatura menor, subliteratura.
Essa ordenação, consoante Mata (1995), desconsidera o valor esteticoliterário, ao
focalizar na produção e na recepção do texto literário. Institui-se um cabo de guerra entre os
escritores africanos e o ideal literário europeu - inclui-se aqui o mercado editorial.
Objetivando publicar sua obra e ultrapassar as fronteiras geográficas, o escritor africano por
vezes molda-se aos cânones do literário europeu.
A constituição marginalizante do mercado editorial nos leva à fala de Antonio
Candido (2003, p.10): “Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela,
não outra, que nos exprime.” O excerto concerne à literatura brasileira, além de aludir ao
contexto africano. Ainda que não possa ser considerada uma grande potência mercadológica
compaável aos parâmetros europeus, a identidade literária africana vincula-se à construção da
identidade nacional.
Nesse sentido, as literaturas africanas descortinam o mundo criado pelo outro (o
colonizador) ao (re)escrever e (re)contar a(s) história(s), lançando luz sobre um universo, até

76Graduanda de Letras - Língua Portuguesa na Universidade federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Email: [email protected]
77 Professora Permanente do Mestrado Profissional em Artes UFRN/ UDESC. Professora do Departamento
de Letras - Universidade Federal do Rio Grande do Norte e orientadora do presente artigo
Email: [email protected]
78 Disponível em: <https://youtu.be/aYfnwXeHoVk>. Acesso em: 13 Jan. 2020

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

então desconhecido, através de contraimagens. A subversão estética e ideológica culmina,


portanto, no distanciamento do discurso padronizado, logo, na perifericidade das literaturas
africanas (MATA, 1995).
Em se tratando de literaturas africanas, faz-se basilar ao leitor-pesquisador das
literaturas africanas o desprendimento da lógica epistemológica ocidentalocêntrica, a partir
de um olhar atento e reflexivo às composições culturais do espaço periférico. Ou seja, é
necessário realizar o movimento de descolonização teórica. Transitando nessas questões,
Leite (2012) afirma que os estudos pós-coloniais preocupam-se com não avaliar as literaturas
africanas de língua portuguesa como prolongamento das literaturas europeias, bem como
não medir a originalidade dessas obras a partir de parâmetros ocidentais despreocupados.
Tais parâmetros embebedam-se da ausência de repertórios culturais africanos e/ou na
deslegitimação dessas experiências culturais, que são nomeadas a partir de signos do ex-
colonizador e recebem, portanto, o status de saber local, irrelevante para a tradição filosófica
ocidental, conforme aponta Mata (2014).
Assim, quando Chiziane se declara uma contadora de histórias, ela não apenas nega
os padrões literários ocidentais, como caminha na Tradição Oral, o alicerce da cultura
africana. Certamente, a oralidade protagoniza a palavra tornando-se uma ponte de acesso
para todas as dimensões culturais, sociais, políticas, históricas e espirituais. Tudo passa pela
palavra. Ela é um portal, inclusive, para o sagrado, interligando-se com a espiritualidade que,
por sua vez, projeta-se no homem e na natureza, como um grande sistema interdependente.
Nesse sentido, a linguagem não é minimizada à emissão, recepção, ou apenas a
estratégias de envolvimento. A palavra pulsa, é fogo. Acerca disso, Amadou Hampâté-Bâ
(2010, p. 169) explana: " [...] a palavra falada se empossava, além de um valor moral
fundamental, de um caráter sagrado vinculado à sua origem divina e às forças ocultas nela
depositadas. Agente mágico por excelência, grande vetor de ‘forças etéreas’, não era utilizada
sem prudência. "
Em ‘Balada de Amor ao vento’ a oralidade é tecida na própria narrativa, que se
manifesta na voz da protagonista, Sarnau, a qual, através das lembranças, oferece ao leitor
(não seria leitor-ouvinte?) um profundo relato da sua vida. O tempo presente mescla-se com
o passado e Sarnau se projeta nas próprias memórias, um monólogo interior. Em suma, a
protagonista apaixona-se por Mwando, um jovem seminarista que, mesmo comprometido
em submeter-se ao celibato, aproxima-se de Sarnau e cede à paixão. Após ser expulso do
seminário, o jovem propõe-se casar com ela. Contudo, o relacionamento é tensionado por
abandono e reviravoltas, assim como a própria vida de Sarnau.

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O enredo desenvolve-se, sobretudo, no sul de Moçambique, perpassando pelas


manifestações naturais da região. A descrição das paisagens e dos estados dos elementos
naturais revelam múltiplos sentidos ao texto, essencialmente, para a caracterização e
variações psicológicas da protagonista. Ademais, a obra lança luz a diversos aspectos
culturais africanos, em especial, a oralidade e espiritualidade, perpassando feitiçarias e rituais.
Aos olhos do leitor ocidental, desprendido da cultura moçambicana, as oralituras de Chiziane
podem ser considerada histórias fantásticas/maravilhosas.
Logo, diante do que foi explanado, objetivamos, neste trabalho, analisar a tessitura da
narrativa, fundamentando o estudo no conceito de performance, segundo uma releitura das
perspectivas de Leal (2012) e Zumthor (2002), atrelado à dimensão da corporeidade, da
espiritualidade e da natureza. Esse enfoque se justifica pela tradição mística-espiritual
africana de cultuar os elementos naturais do universo - a qual se faz tão forte na obra
supracitada, de maneira que o comportamento humano transcorre no meio em que o sujeito
está inserido. Como explana o historiador e contador malinês Amadou Hampâté Bâ, em
‘Tradição Viva’, os elementos visíveis são concebidos como indício de uma força mágica
(invisível e viva).

Corpo, espiritualidade e natureza: partilha de um devir


O livro ‘Balada de Amor ao Vento’ possui inúmeros excertos que ilustram a face da
tradição oral africana, tendo em vista que se trata de uma contação de história. É
significativo ressaltar que o corpo do(a) contador(a) com as suas gestualidades não se ausenta
da contação. Na escrita de Paulina Chiziane, isso não é diferente, ela constrói um corpo
feminino que narra e envolve o leitor com sua narrativa performática.
A oralidade, presente na obra, lança a luz na tradição africana e atua como
concatenadora de uma cadeia de múltiplos elementos culturais africanos que nos são
revelados gradativamente, ao longo da leitura, como a relação entre a espiritualidade, a
natureza e a corporeidade da narradora-personagem, aspecto que nos interessa para este
estudo analítico.
O início do texto já anuncia a contação por meio da voz de Sarnau: "Foi em
Mambone, saudosa terra residente nas margens do rio Save, que aprendi a amar a vida e os
homens" (CHIZIANE, 2003, p.11). Aqui, o leitor é situado acerca do ponto inicial da sua
história, bem como, delimita o espaço geográfico em que ela se desvela através do verbo ‘foi’
que representa um marcador linguístico convencional de início de histórias. Outras
passagens marcam linguisticamente a ação narrativa, a saber, “Deixem-me contar-vos como
isto aconteceu” (CHIZIANE, 2003, p.36). Neste exemplo, a narradora convida o leitor, de
199
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

forma incisiva, a se apossar da posição de ouvinte. Esse jogo linguístico imperativo


promove a aproximação do leitor com a história contada.
Ao decorrer da tessitura narrativa, Sarnau, a personagem protagonista, apresenta em
sua trajetória uma sequência de oscilações entre momentos de tensão e de felicidade. Essas
situações interferem no estado psíquico da personagem que, por sua vez, manifesta-se na
natureza e tangem na espiritualidade. Congruente ao percurso cronológico da narrativa
podem-se enumerar as seguintes passagens que remetem à associação entre o estado do
corpo da personagem e o estado da natureza:

O insólito acontece na floresta. Todos os seres escutam os segredos da natureza e


estão a operar maravilhas. [...] As hienas e as cabras abraçam-se, perdoam-se,
reconciliam-se, as aves vestem plumagens coloridas. A serpente, junto ao ninho,
fecha os olhos, discreta, não vá ela interromper os beijos dos pássaros que se
amam, crescem e se multiplicam. As ervas e as árvores avolumam-se num verde
ímpar, cobrindo-se de flores. Em todo o universo há um momento e reflexão, de
paz e confraternização: chegou a época do amor (CHIZIANE, 2003, p.27).

A citação anterior remete à circunstância em que Sarnau e Mwando iniciam com


concretude o relacionamento romântico, entendendo que eles constituem um casal
incompatível, pois vivem um amor proibido – o rapaz é seminarista, portanto, se abstém dos
prazeres amorosos – o jogo textual de desconstrução da incompatibilidade de pares de
animais dicotômicos, como ‘hienas’ e ‘cabras’, e da elaboração da imagem de equilíbrio
sinalizam não só a harmonia, mas personificam a própria quebra de oposição entre o casal.
Consequentemente, o estado de plenitude experienciado por Sarnau, reflete na natureza.
Em ‘contrapartida’, no excerto apresentado a seguir, Mwando abandona Sarnau
grávida, por decidir se casar com outra mulher, cuja família era financeiramente mais
próspera. Esse conflito conduz à mudança psicológica da moça, consequentemente, para o
desequilíbrio da natureza. Observa-se a presença de imagens como ‘trovoadas’, ‘relâmpagos’
e ‘dilúvio’, postos analogicamente ao corpo de Sarnau, de maneira a simbolizar destruição,
caos, e os sentimentos conflituosos enfrentados pela personagem.

Meu coração ribombava trovoadas, relâmpagos dourados rasgavam o céu do


cérebro, e a chuva dos olhos precipitava forte, prenunciando o dilúvio do meu ser.
Todos os sonhos de amor, num só instante foram destruídos pela força da
tempestade. Mergulhadas em ondas de sal, celebrei o baptismo de fel. Acuda-me
meu Deus. Semeei amor em terras sáfaras e no lugar de milho, produzi espinhos
(CHIZIANE, 2003, p. 29).

A cosmovisão tradicional africana, acerca da natureza, se faz presente nas passagens


antepostas, tendo em vista que, em África, o homem integra o universo, tal qual a natureza,
de maneira que todos os elementos visíveis (dimensão material) e invisíveis (dimensão
espiritual) entrelaçam-se em um nó impossível de ser desatado. Domingos (2011, p.8)
200
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

explana sobre essas questões ao afirmar que “[…] na relação entre o homem e a natureza, o
indivíduo não é um sujeito abstrato, separado, independente das condições ecológicas da sua
existência. O indivíduo não está separado das condições genealógicas e de seus pressupostos
míticos, místicos, mágicos ou religiosos da terra." Contudo, observa-se nessa esteira
ficcional, que o homem e a natureza se integram ao universo, bem como a natureza consiste
em uma dimensão fundamental da espiritualidade.
Diante disso, a espiritualidade africana tradicional fundamenta-se na comunhão do
homem com a sua ancestralidade, com as entidades e com os elementos da natureza
(entendendo que cada ser constitutivo do universo apresenta uma potência energética). "A
curandeira, ajoelhada, farejava o meu corpo de ponta a ponta, varrendo suavemente os maus
espíritos com a penugem macia do rabo da hiena" (CHIZIANE, 2003, p.29).
Sarnau põe-se diante de um ritual de cura, após o rompimento do relacionamento
com Mwando. Nesse ritual, a natureza é representada pela ‘penugem macia do rabo da
hiena’, a qual exerce uma força espiritual sobre o corpo da moça, demandando, portanto,
uma potência enérgica, conforme explanado anteriormente.
Mais adiante Sarnau torna-se rainha e vive um relacionamento conflituoso e
polígamo, de forma que só na gravidez encontrou a solução para torná-lo temporariamente
mais harmônico. Ela narra seus sentimentos, mais uma vez, a partir de elementos presentes
na natureza, como o ‘sol’ e o ‘girassol’: “A felicidade, como a flor, abre-se deleitosa para
agradar o sol.” No zênite escalda, morrendo na ‘semiclaridade’ vesperal. Como o girassol, a
felicidade dura apenas um sol” (CHIZIANE, 2003, p.58). O ‘sol’ simboliza um ser
imponente e a ‘flor’ representa a imagem de Sarnau que busca a felicidade, mesmo que
momentânea.
Não obstante os exemplos que expõem a espiritualidade em relação performática ao
corpo de Sarnau, a narração da cerimônia de enterro demonstra, mais uma vez, a relação
entre corpo, natureza espiritualidade, isto porque, na medida em que o corpo é enterrado na
cova, a chuva surge com quedas maiores de água: “Quando o corpo poisou no fundo, a
chuva começou a cair miudinha. Quando se lançou a última pá de areia a chuva caiu em
catadupas” (CHIZIANE, 2003, p.76). Acrescenta-se que, de acordo com a crença africana,
quando um chefe de aldeia ou rei morre, a chuva, durante o seu enterro, é sinônimo de
prosperidade para a região.

Dos corpos: dois movimentos performáticos


Frente às análises da sessão anterior, podemos inferir a existência de marcas de
movimentos performáticos envolvendo a corporiedade da contadora-protagonista, Sarnau, a

201
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

espiritualidade e a natureza. Para sistematizar esse ponto de vista, é essencial tomar como
princípio da discussão o conceito de ‘corpo e performance’ adotados neste estudo.
Elemento substancial para a contação de histórias, o corpo em ‘Balada de Amor ao
Vento’ é trajado da cultura africana. Consoante Padilha (2005), a presença do corpo se faz
cada vez mais presente nos romances contemporâneos africanos. Acerca dessas questões, a
pesquisadora pondera: "São romances nos quais as viagens, os deslocamentos, o entre cruzar
de várias fronteiras, as migrações, enfim, acabam por constituir o traçado imaginário
principal, ao mesmo tempo em que os mitos, ritos, crenças, costumes etc. sustentam, ainda
mais, o corpo diegético" (PADILHA, 2005, p. 34).
Ademais, consideramos também o olhar de Gonçalves (2017, p. 66) que aponta para
o corpo como "o lugar onde a transcendência do sujeito articula-se com o mundo." Nesse
sentido, em diálogo com as concepções da espiritualidade africana tradicional, entendemos o
corpo como um espaço que tem a capacidade de transcender a sua matéria e relaciona-se
com todas as outras múltiplas dimensões constitutivas do universo, como a natureza e o
plano espiritual. O corpo é, portanto, uma das partes do universo e tem a capacidade de
interagir em comunhão com as demais partes.
A ‘performance’ é o outro conceito norteador da análise. No entanto, dada a escassez
de estudos que contemplem o performático africano, analisamos as percepções de Zumthor
em ‘Performance, Percepção e Leitura’ (2002) e de Juliana Leal em ‘Literatura e
Performance’ (2012), a fim de adaptá-las ao universo deste trabalho e ampliar o campo de
referência.
Segundo Zumthor (2002), a experiência de leitura exige a presença de um corpo vivo
que ativa percepções sensoriais diante de um texto pulsante. Assim, o ato performático
ocorre através da narração da voz que pulsa junto com o corpo. Em outras palavras, o corpo
do leitor está em movimento com o corpo do texto:

O texto vibra; o leitor o estabiliza, integrando-o àquilo que é ele próprio. Então é
ele que vibra, de corpo e alma. Não há algo que a linguagem tenha criado nem
estrutura nem sistema completamente fechados; e as lacunas e os brancos que aí
necessariamente subsistem constituem um espaço de liberdade: ilusório pelo fato
de que só pode ser ocupado por um instante, por mim, por ti, leitores nômades
por vocação. Também assim, a ilusão é própria da arte. A fixação, o
preenchimento, o gozo da liberdade se produz na nudez de um face a face. Em
presença desse texto, no qual o sujeito está ali, mesmo quando indiscernível: nele
ressoa uma palavra pronunciada, imprecisa, obscurecida talvez pela dúvida que
carrega em si, nós, perturbados procuramos lhe encontrar um sentido.
(ZUMTHOR, 2002, 63)

Leal (2012, p.13), por sua vez, embebeda-se com outras áreas do conhecimento para
alcançar o entendimento sobre a escrita performática. A pesquisadora define, então, que o

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

narrador performático extrapola a função de elemento narrativo e encarna na instância


ficcional, sendo capaz de vivenciar a narração. Para ela, a ‘performance’ envolve a alteridade.
O narrador simultaneamente narra a si e ao outro, tendo em vista que o leitor passa a
integrar no tecido da obra. Nesse sentido, “Narrar performaticamente é narrar o si-mesmo
também a partir de um fora do outro, do exo e situado numa localidade propositiva, cuja
força reside nos meandros não delimitáveis do ‘mais além’ interposto pelo transgênero
performático” (LEAL, 2012, p.13).
Em ambos os conceitos, o ato de performar envolve dois corpos pulsantes: o corpo
do leitor e o corpo do texto. Inquestionavelmente, encontramos, em ‘Balada de amor ao
vento’, essa categoria de ‘performance’, tendo em vista que o leitor se insere no texto diante
da contação de histórias. No mais, na obra de Chiziane, a ação performática desenvolve-se,
também, na interioridade do tecido narrativo e se finda nele mesmo. Logo, seguindo o
raciocínio das leituras de Zumthor (2002) e de Leal (2012) e dialogando com a essência
conceitual de ‘performance’ encontrada nelas, temos que o texto é vivo e a performance
narrativa emerge a partir da alteridade (narrar a si através do outro).
Nesse contexto, Sarnau extrapola a sua matéria corpórea através de manifestações
extrínsecas a ela, ao desaguar a narrativa do seu ‘eu’ na natureza e na espiritualidade. Isso
significa, portanto, um movimento performático constante envolvendo o corpo da
personagem-protagonista e o corpo da natureza. A título de ilustração, temos o fragmento
do desfecho da narrativa, momento em que Sarnau reencontra Mwando. Nota-se, portanto,
que diferentemente do primeiro encontro concreto do casal, a natureza não é a
representação de um cosmo iluminado, a ‘chuva continua’, e as feridas dos abandonos não
foram saradas:
O vento sopra lá fora.
A chuva cai em catadupas.
As águas serpeteiam nas ruelas sinuosas.
Todos os animais recolheram aos antigos e nada resta. Há apenas o silêncio, o frio
e os soluços. Enfrenramo-nos no silêncio diluído na eternidade. As lágrimas
jorraram novamente.
- Sarnau!
Enterrei o passado. Puxei o candeeiro, soprei, apagou-se. Mergulhamos na
escuridão da paz, no silêncio da paz, no esquecimento de todas as coisas, naquela
ausência que encerra todas as maravilhas do mundo. A solidão desfez-se. O vento
espalha melodia em todo o universo. Continua a chover lá fora (CHIZIANE, p.
149, 2003).

Esse ato performático, por sua vez, desvela a dimensão da espiritualidade. Percebe-
se, então, que a ação performática citada extrapola os conceitos teóricos antepostos, que
delimitam a ‘performance’ ao envolvimento e à participação do leitor com o texto. Nessa
lógica analítica, quando os sentimentos e estados corpóreos de Sarnau se manifestarem nos

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elementos da natureza, como evidenciados nas citações da sessão anterior, não há apenas um
movimento performático, mas a revelação de uma das faces da espiritualidade africana.
Segundo Kalonga apud Kaly (2012), a espiritualidade africana não se encerra na esfera
humana. ela pode, portanto, manifestar-se em outras dimensões, como a natureza, por
exemplo: “[...] a espiritualidade africana só tem sentido em relação com Deus e com o
cosmo. Dessa forma, também a dimensão zoocêntrica surge como elemento fundamental da
espiritualidade" (KALONGA apud KALY, 2012, p.12).

Infinitude
Caminhar no universo ficcional construído por Paulina Chizianne é se deparar com
um tecido plurissignificativo, tal qual uma capulana. Chizianne apresenta em todos os fios
narrativos elementos empossados de africanidade e rompe com a tradição literária
eurocêntrica. Através da oralidade, a escritora costura, em sua teia textual, questões políticas,
sociais, culturais, espirituais e transporta o leitor para o território de Moçambique, fugindo de
descrições paisagísticas ocidentais. Além de inserir o corpo e a voz de uma mulher no
protagonismo, como ato de resistência aos discursos falocêntricos, ela relembra a sua fala
durante entrevista exibida no programa ‘Café Filosófico’, 79
ressaltando a importância de
romper os hiatos impostos à voz feminina na literatura, para que não tenhamos uma história
única e marginalizante.
Vê-se, assim, que a presença de um corpo e suas performances gestuais são exigidas
na contação de histórias. No livro em análise, a oralidade não é posta, apenas, em elementos
textuais, ela não se ausenta do corpo, lançando ao leitor uma nova categoria: o leitor torna-
se, também, um ouvinte de Sarnau. Isso ocorre porque o texto pulsa e vibra em fusão com
as percepções do leitor-ouvinte. No entanto, esse não é o único movimento performático
presente na obra. Há performance na relação do corpo da protagonista com o meio o qual
ela integra. ‘Performance’ movida, essencialmente, por influencias místicas e espirituais.
Nesse caminho, andamos pelo território da espiritualidade, focando na relação do
homem africano com o mundo a sua volta, incluindo-se, aqui, o mundo visível e não visível,
consoante o discorrido de Hampâté-Bâ em ‘Tradição Viva’:

[...] de maneira geral, todas as tradições africanas postulam uma visão religiosa do
mundo. O universo visível é concebido e sentido como o sinal, a concretização ou
o envoltório de um universo invisível e vivo, constituído de forças em perpétuo
movimento. No interior dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é
solidário, e o comportamento do homem em relação a si mesmo e em relação ao
mundo que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) será
objeto de uma regulamentação ritual muito precisa cuja forma pode variar
segundo as etnias ou regiões (HAMPÂTÉ-BÂ, 2010, p. 173).

79 Disponível em: <https://youtu.be/WiLijX_7dDk>. Acesso em: 10 maios 2020.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

A sessão intitulada ‘Corpo, espiritualidade e natureza: parte do mesmo universo’


propõe-se a analisar essas questões, voltando-se para a análise do constructo ficcional.
Em ‘Da natureza ao corpo: o movimento performático’ embasamos nosso olhar
analítico no conceito de performance, desconstruindo a concepção eurocêntrica e adaptando-a
para o performático africano. O movimento performático da protagonista de narrar a si
através das manifestações da natureza não é insignificante haja vista que o homem e o que
lhe é exterior consistem em fragmentos de uma mesma unidade cósmica.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. 7. ed. Belo Horizonte-Rio de


Janeiro: Editora Itatiaia, 1993.
CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.
CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.
DOMINGOS, Luis. A visão africana em relação à natureza. In: Revista brasileira de
história das religiões. Maringá, v. III, n. 9, jan/2011.
HAMPATÉ-Bâ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (coord.) Metodologia e Pré-
história da África, História Geral da África. Brasília: UNESCO, 2010. v.1.
KALY, Alain Pascal. Da espiritualidade à fé na África Ocidental: os ‘dilemas’ das
sociedades ‘animistas’ no mundo moderno). Disponível em: <http://www.revista
jesushistorico.ifcs.ufrj.br/arquivos9/ALAIN-artigo.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2019.
LEAL, Juliana Helena Gomes. Literatura e Performance. Belo Horizonte: Em Tese,v. 18, n.
2, p. 58-69, ago. 2012. ISSN 1982-0739. Disponível em: <http://www.periodicos.letras
ufmg.br/index.php/emtese/article/view/3808>. Acesso em: 15 jul. 2019.
LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & escritas pós-coloniais: estudos sobre literaturas
africanas. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012.
MATA, Inocência. A periferia da periferia: o estatuto periférico das literaturas africanas de
língua portuguesa e a dupla perifericidade das literaturas são-tomense e guineense. Coimbra,
Discursos, n.9, p.27-36, 1995.
MATA, Inocência. Estudos pós-coloniais: desconstruindo genealogias eurocêntricas. Porto
Alegre, Civitas, v. 14, n.1, p. 27-42, 2014.
PADILHA, Laura Cavalcante. A arte de vestir africanamente brancos manequins. Niterói,
Gragóata, n. 19, p. p. 29-43, 2005.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

O CORPO É POSSÍVEL: POESIA E EROTISMO EM PAULA


TAVARES
Canniggia de Carvalho Gomes (UFRN)
Tânia Lima (UFRN/ Profartes – UDESC).

“Um beijo com gosto de amoras/ a vida chamava-se agora.”


(GUILHERME DE ALMEIDA_

Pensar no corpo, em qualquer circunstância, é levantar o olhar para aquilo que, sendo
parte elementar das nossas vivências, é uma construção repleta de signos sociais, culturais e
políticos. Isso é, o corpo e sua maneira de apresentar-se para o outro é uma cartografia
constituída de rotas, imagens, símbolos, significados que sempre influenciam o processo de
constituir o que somos. Logo, as diferentes construções que se dão no plano do aspecto
corpóreo recebem diferentes significações à medida em que se aproximam do feminino ou
do masculino, por exemplo.
Octavio Paz já havia constatado, em 1914, em passagem de ‘A dupla chama: amor e
erotismo’, que “o que chamamos corpo é hoje algo muito mais complexo do que era para
Platão e sua época” (PAZ, 2014, p.46, grifos do autor).
Levando em conta o patriarcado, uma máquina organizacional que submete as
mulheres ao domínio dos homens, podemos dizer que se objetifica o corpo feminino porque
se instituiu que ele, sendo parte do que é construído em torno da mulher, deve ser
subjulgado assim como dizem os roteiros desse sistema e sua faceta mais misógina. A partir
portanto, dessa premissa, o elemento do feminino é explorado em meio a concepções
violentas e tolhedoras, corroborando as amarras machistas que estruturam todo esse campo
material-simbólico e que designam o tamanho e a força da opressão que recai sobre o
indivíduo que se acomoda, em todas as possibilidades, no ser mulher.
O que Paula Tavares nos apresenta é uma nova estética de se pensar o corpo como o
nosso universo mais próximo, a geografia pela qual e através da qual nós pertencemos ao
mundo. 80 Como se passasse a mão pelos espelhos embaçados das negações a limpá-los, a
poetisa faz refletir a mulher – essa estrangeira – e afirma que o corpo da mulher é possível.
Assim como o verso e a paixão nele inscrita, assim como a vida exposta e discutida, o corpo
é possível. Desde sua estreia na literatura em 1985, com a publicação de ‘Ritos de passagem’,
obra na qual encontramos, como carro-chefe, 'Cerimónia de passagem’ – o primeiro poema
– enxergamos de antemão o corpo feminino, o erótico, a sexualidade, a paixão com a qual se

80 Referência à citação da poetisa estadunidense Adrienne Rich: “Começar, assim, não por um continente, por
um país ou por uma casa, mas pela geografia mais próxima – o corpo”.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

inscreve no mundo o eu lírico do poema: a mulher. Tais temáticas parecem discutir e, até
mesmo, sugerir caminhos para a desorganização dos modelos vigentes que a marginalizam,
apresentando uma consciência nova, uma maneira nova de perceber seu gênero enquanto
representação social de existência. No poema ‘Tecidos’, diz:
Meu corpo
é um tear vertical
onde deixaste cruzadas
as cores da tua vida: duas faixas um losango
marcas da peste.
Meu corpo
é uma floresta fechada
onde escolheste o caminho
Depois de te perderes
guardaste a chave e o provérbio
(TAVARES, 2011, p.124).
É atando as linhas, realizando manobras, crescendo os fios para engendrar o tecido
que a poetisa legitima o corpo como vivente, enquanto percorre o caminho por onde se
passa. Traçar uma linha entre esses dois elementos, corpo e tear, é construir a metáfora que
aborda o tecer que, nesse caso, refere-se à esfera subjetiva. Pelo tear, chega-se ao tecido, um
conjunto de linhas enroscadas que aprontam e fazem surgir o pano. Pelo corpo, chega-se à
vivência própria permeada pelas demandas pessoais de cada sujeito. Esse, pois, é o próprio
tear uma vez que tem em si e traz para si as experiências, as marcas, os desejos e
desencantos, as parcelas dos quereres.
A imagem do corpo como tear vertical nos remete a um processo de experimentação
de si que perpassa a nossa participação do mundo, pois tal trabalho diz de uma natureza
inventiva, criativa. A partir dessa leitura, o sujeito que tece a partir do corpo é alguém que
busca, primeiramente em si, a substância para reinventar-se, isso é, reconhecer-se como
produtor e sujeito primeiro de sua história. Audre Lorde, em Sister outsider: essays and speeches
(1984), 81 já havia refletido sobre essa dinâmica que está ligada ao autoconhecimento da
mulher a partir de seu corpo e das interações que esse tem com o coletivo, o social. O
erótico é, pois, aquilo que ela coloca como fonte inesgotável de conhecimento de si.
Há vários tipos de poder, usados ou não usados, reconhecido ou não. O erótico é
um recurso dentro de cada um de nós que repousa em um profundo plano
feminino e espiritual, firmemente enraizado no poder de nosso não expressado ou
não reconhecido sentimento. A fim de se perpetuar, cada opressão deve
corromper ou distorcer essas várias fontes de poder dentro da cultura do
oprimido que podem prover energia para mudar. Para as mulheres, isso tem
significado a supressão do erótico como uma fonte considerável de poder e de
informação nas suas vidas (LORDE, 2007, p.53, tradução livre).

81 Para as referenciações feitas nesse texto, utilizaremos a data de 2007, a versão lida para embasar esse texto.
As citações vale ressaltar, foram todas feitas a partir de tradução livre da obra lida e referenciada.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

O erótico nos proporciona o encontro com o que há de mais profundo no nosso


corpo, na nossa existência. Vou além: o corpo é o nosso primeiro contato com o mundo, o
nosso marco geográfico e afetivo. E tratando-se de uma produção de mulher, esta analogia
também diz respeito à subversão da hierarquia hegemônica, pois é sabido que o corpo, em
suas diversas demandas, está interdito a ela. Quando Paula Tavares refere-se ao corpo
feminino, ela está, de todas as maneiras possíveis, transgredindo a ordem que a submete ao
olhar do homem, aquele que seria o único responsável por tal abordagem e que regularia as
imagens que são trazidas a público desse corpo.
É o que Audre Lorde propõe no seu texto, em que ela afirma sobre a maneira de
perpetuar as opressões desdizendo esse conhecimento e sabedoria que particulariza a mulher
como sujeito e aquela que pode descobrir, a fundo, veias de sua própria existência. Nesse
caso, as possibilidades e vislumbre dessa ação são interditas, para que as distorções não
percam seus sentidos e força dentro dessa dinâmica hegemônica e masculina.
Na cultura do oprimido, as energias criativas que rasuram as dominações são
anuladas. Assim é o erótico para as mulheres, aquilo que seria autoconhecimento e que é
vilificado.
Nós fomos ensinadas a suspeitarmos desse recurso, vilificado, abusado, e
desvalorizado na sociedade ocidental. Por um lado, o erótico superficial foi
estimulado como um sinal da inferioridade feminina; por outro, as mulheres
foram levadas a sofrerem e se sentirem desprezíveis e suspeitas pela força dessa
existência (LORDE, 2007, p.53, tradução livre).

A movimentação de transgredir essa ordem acaba por colocar no centro de sua


produção a mulher como dona de um corpo que fala e que é passível de sentimentos e
sensações, de rupturas, de angústias e de estigmas e que reivindica o espaço naturalizado
como próprio dos homens, faz com que os olhos se voltem para este ponto cego, 82 o corpo
feminino.
Até meados de 1985, no que se refere à produção de literatura em África, o corpo era
um território selvagem – estava lá, mas ninguém ousava trazê-lo de maneira mais subjetiva. 83
Para Elisabeth Grosz, em ‘Corpos reconfigurados’ (2000), o corpo continua a ser um ponto
cego no entendimento ocidental dominante e, quando abordado, o é a partir da relação
dicotômica corpo - negativo/mente – positivo – que prioriza um em detrimento do outro.
“Assim, o corpo é o que não é a mente, aquilo que é distinto do termo privilegiado e é outro.

82 Referência ao texto de Elisabeth Grosz, ‘O corpo reconfigurado’, em que discorre sobre o corpo, afirmando
que este é ainda um ponto cego no pensamento filosófico do ocidente.
83 Inocência Mata fala sobre essa questão no prefácio para a edição portuguesa de ‘Ritos de passagem’ (1985),
afirma que, até então, não havia lido produção africana que trabalhasse o corpo a partir dessa esfera mais
subjetiva.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

É o que a mente deve expulsar para manter sua ‘integridade’ ” (GROSZ, 2000, p.48, grifos
da autora).
O corpo é compreendido dentro da negatividade, “definido como desregrado,
disruptivo, necessitando de direção e julgamento,” como coloca Grosz (2000, p.48). Por
entender que os discursos sociais nos distanciam do entendimento e da experiência com o
mais íntimo de nós mesmos. Octavio Paz (1994, p. 46), retomando as preconizações de
Platão sobre essa questão, afirma que:

A severa condenação do prazer físico e a pregação da castidade como caminho


para a virtude e a beatitude são a consequência natural da separação platônica
entre o corpo e a alma. Para nós essa separação é muito forte. Este é um dos
traços que definem a época moderna: as fronteiras entre a alma e o corpo se
atenuaram.

À mulher restou, pois, esse terreno de negação, do impossível, do alijamento e do


distanciamento uma vez que o corpo é atribuído a ela. Anula-se o corpo, logo anula-se a
mulher. Submete-se o corpo, assim submete-se também a mulher. Distanciada de si, sendo o
próprio ponto cego, como propôs Grosz, ela está longe de seu corpo. Engendrando
discursos de enfrentamento, Paula Tavares sugere o embate à cegueira e, para isso, muda a
direção das luzes para auxiliar e não ofuscar a vista.

Deixa as mãos cegas


Aprender a ler o meu corpo
Que eu ofereço vales
curvas de rios
óleos
Deixa as mãos cegas
Descer o rio
Por montes e vales
(TAVARES, 2011, p.192).

Brincando com mãos cegas, chega-se ao corpo. Esse poema é uma afronta, é ruptura.
Quebra o silêncio e o silenciar das mulheres, revisa a história no correr dos séculos, desata o
nó ainda apertado na garganta e deixa que a voz se erga, contrariando os ensinamentos de
que não há terreno para o corpo. É um discurso de engendramento de uma escrita e de uma
vivência feminina que, a partir de simbolismos diversos, diz, em primeira pessoa, que o
corpo existe, apesar de não lido. Ao falar das ofertas, sugere que esse corpo é passível de
sensações. É vale, é curva de rio, é óleo, é caminho que deve ser percorrido.
Deixar que as mãos aprendam o corpo é retirar as vendas tão essenciais às
conjunturas do patriarcado e que afastam as mulheres de si, o que, consequentemente,
também as afastam de seus sentidos. O corpo deve ser lido porque ele discursa e é, nesse
ponto, que reside a violência do sistema, por querer anular esse discurso, disfarçá-lo,

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

violentá-lo. Ler um corpo de mulher é, sobretudo, ler as narrativas contadas pelo avesso e
entender a inversão da lógica homológica, a negação das negações. Esse corpo é, por si só,
uma denúncia.
A poetisa nos alerta: as mãos precisam estar cegas para que a leitura aconteça, sem
vícios, sem julgamentos precipitados/cristalizados, pois ela oferece vales. Chevalier e
Gheerbrant, no ‘Dicionário de símbolos’: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras,
cores, números, nos trazem algumas vias de análise para o vale, mas uma em especial
chamam a atenção, quando dizem que esse tipo de terreno “é e simboliza o lugar das
transformações fecundantes, onde a terra e a água do céu se unem para dar ricas colheitas”
(2015, p.929). Sugere-se, então, a novidade que vem com a ruptura, a reinvenção do
estabelecido.
O vale também nos revela uma vista para o próprio corpo feminino, “é uma
cavidade, um canal, para o qual necessariamente convergem as águas vindas das alturas que o
cercam” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p.929). Esse corpo nos oferece, também,
“curvas de rio / óleos” [...] (TAVARES, 2011, p.192). O rio, que simboliza a fertilidade, a
morte e a renovação, é aquele que não fica – passa – e, por isso, renova-se a todo instante.
Morre e renasce minuto a minuto, é volante.
O erótico surge através de elementos referentes à natureza, perpassado por esses
símbolos, pelo rio, pelo monte e pelo vale. Sobre esse ponto, em ‘Que corpo é esse? O
corpo no imaginário feminino’, Elódia Xavier (2007, p. 157), pensa o corpo erotizado como
aquele que “vive a sua sensualidade plenamente e que busca usufruir desse prazer, passando
ao leitor, através de um discurso pleno de sensações, a vivência de uma experiência erótica.”
Em tempo, a escrita tecida por Paula Tavares retoma tal experimentação, toca na
vivência dessa relação erótica em que o corpo feminino e seu gozo são colocados, em muitos
momentos, como fio condutor dessa imagem poética. A mulher se emancipa perante a sua
própria vivência, enquanto sujeito de seu corpo. Para Octavio Paz (1994, p.44), isso é parte
de um processo de entendimento, pois quando “avançamos, descobrimos novos aspectos do
amor, como alguém que, ao subir a colina, contempla a cada passo as mudanças do
panorama. Mas há uma parte escondida que não podemos ver com os olhos, e sim com o
entendimento.”
Em se tratando de escrita feminina, a experimentação do erótico vem calcar a
concepção de que as mulheres devem se ver e ser donas de seus corpos e de seus prazeres,
vivendo a si mesmas, em sua completude, o que se instaura a partir do contato com o
próprio corpo e do confronto com os pilares que erguem as premissas da dominação

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masculina. O afastamento, por sua vez, se dá numa tentativa de lograr a experimentação do


próprio corpo, o que significa, em linhas gerais, romper o silêncio imposto aos corpos
femininos e reivindicar o direito ao prazer (XAVIER, 2007, p. 155).
Deve-se, a essa altura, pensar no ato sexual fora de suas demandas biológicas ligadas
à reprodução, esse elemento, no poema, transcende a essas expectativas, quando induz o
olhar para a vivência entre os corpos dentro dessa relação. Segundo Bataille (2014), em suas
ponderações para ‘O erotismo’, 84 esse é uma experiência que se diferencia da experimentada
no sexo natural por não visar à reprodução, mas à procura psicológica do outro,
independente do fim.
A atividade sexual é comum ao homem e aos animais sexuados, porém, só o homem
é capaz de tornar a atividade sexual uma atividade erótica, uma vez que é um ser sensível ao
desejo que o faz buscar o outro para alcançar o prazer. O indivíduo procura o seu objeto de
desejo através do olhar, ‘por fora’, porém, esse objeto externo relaciona-se com a experiência
interior de cada indivíduo, ou seja, com a individualidade do desejo de cada um
(BATAILLE, 2014, p. 10).
Em outras palavras, a experiência do erótico recai sobre o ato sexual quando a busca
pelo desejo transcende à condição natural e reprodutiva do sexo, como colocado no poema
de Paula Tavares. Em ‘A dupla chama’, Octavio Paz (1994, p. 43) afirma que:

O desejo do melhor se alia ao de tê-la e de gozá-la para sempre. Todos os seres


vivos e não só os humanos participam dele: todos querem perpetuar-se. O desejo
de reprodução é outro dos elementos ou componentes do amor. Há duas formas
de geração: a do corpo e a da alma. Os homens e mulheres, apaixonados por sua
beleza, unem seus corpos para a reprodução. A geração, diz Platão, é algo divino
tanto entre os animais como entre os humanos. Quanto à outra forma de geração:
é superior, pois uma alma engendra em outras ideias e sentimentos
imperecíveis.

A experiência erótica está relacionada à emancipação feminina e a produção de Paula


Tavares se encontra nesse processo, uma vez que o cerne das questões que perpassam seus
versos está intimamente ligado ao corpo feminino. A experiência da mulher e o erótico na
literatura é uma transgressão das hierarquias falocêntricas.
Para Bataille (op. cit.), o erotismo é aquilo que coloca o ser em questão, uma
mobilidade interior complexa. Entretanto, vale ressaltar que a procura psicológica proposta
pelo autor aqui citado precisa ser lida no contexto de criação da poetisa, uma vez que, apesar
de haver nos poemas o contato com o outro, essa busca se dá da mulher para a mulher,
através do contato com o seu corpo, com a sua sexualidade, ela procura os caminhos que

84 A primeira publicação do livro se deu em 1957, mas aqui fixo a data de 2014, ano da publicação da edição
traduzida por Fernando Scheibe, lançada pela Autêntica.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

levarão a si mesma, pois ‘‘o objeto erótico é também uma consciência; através dela o objeto
se transforma em sujeito” (PAZ, p.46 e 47).
A poesia de Paula Tavares aponta para o corpo feminino frente a uma sociedade de
mordaças e negações que, há tempos, recusam a concepção de um sujeito mulher. Para
Audre Lorde, as mulheres são:
[...] criadas para temer o sim dentro de nós mesmas, nossas mais profundas ânsias.
Mas, uma vez reconhecido, esses que não realçam o nosso futuro perdem seus
poderes e podem ser modificados. O medo de nossos desejos os mantém
suspeitos e indiscriminadamente poderosos [...]. O medo de não podemos ir além
de qualquer distorção que acharmos em nós mesmas nos mantém dóceis, leais e
obedientes, externamente definidas, e nos conduz para aceitarmos qualquer faceta
da opressão que sofremos enquanto mulheres (LORDE, 2007, p.57 e 58, tradução
livre).

O corpo, para Elisabeth Grosz, é sempre organizado a partir de associações


tradicionalmente desvalorizadas. Além disso, é, de modo geral, analisado fora de um
contexto de valor histórico, social, cultural e político, ou seja, a partir do pensamento
dicotômico que o submete em relação à mente.

Esses termos funcionam implicitamente para definir o corpo em termos não-


históricos, naturalistas, organicistas, passivos, inertes, vendo-o como uma intrusão
ou interferência com a operação da mente, um dado bruto que requer superação,
uma conexão com a animalidade e a natureza que requer transcendência (GROSZ,
2000, p.49).

Se o corpo é visto a partir desses estigmas e é tido como um território da mulher,


podemos afirmar que não há barreiras entre um e outro, ou seja, são parte da mesma coisa e,
por isso, são submetidas aos homens que atuam com a mente, a parte positiva. De qualquer
modo, Paula Tavares enfrenta a visão maniqueísta instaurada na concepção entre os gêneros,
e transgride os ditames. Essa subversão nos leva a confrontar o lugar da crítica, cujo
interesse é contar a história alheia e não abrir os caminhos para que o alheio se pronuncie.
Em ‘Pode o subalterno falar?’, Spivak já havia comentado que há ainda, na produção crítica
do Ocidente, o desejo de mantê-lo como o sujeito, ou o ‘sujeito do Ocidente’, para que se
mantenha a soberania subjetiva (SPIVAK, 2014, p.25, grifos da autora).
Partindo do princípio filosófico de que o corpo é ileso de razão é que ele é
minimizado e submetido. Por isso, a filosofia buscou excluir a feminilidade e, sendo assim, a
mulher, pois ela é enxergada como a desrazão.

O mais relevante aqui é a correlação e associação da oposição mente/corpo com a


oposição entre macho e fêmea, na qual homem e mente, mulher e corpo, alinham-
se nas representações. Tal correlação não é contingente ou acidental, é central ao
modo pelo qual a filosofia se desenvolveu historicamente e ao modo como ela se
vê ainda hoje (GROSZ, 2000, p.49).

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

À mulher restou o lugar do pequeno, pois, nesses termos, o corpo não é entendido
como matéria importante dentro de uma concepção de papel formativo no que diz respeito à
produção de valores de qualquer esfera. Isso acontece porque a diversidade sexual não é
analisada como algo que, direta ou indiretamente, pode influenciar no conhecimento. A
mulher e seu corpo não são pensados.
As premissas que surgem da poética de Paula Tavares acerca do corpo e da mulher
são a contravenção de um pensamento que sobrevive desde Platão em que se notava o corpo
como traição da alma, da razão e da mente, discurso esse que é reproduzido a partir de
intuitos religiosos, políticos e culturais.

O pensamento misógino frequentemente encontrou uma autojustificativa


conveniente para a posição social secundárias das mulheres ao contê-las no
interior dos corpos que são representados, até construídos, como frágeis,
imperfeitos, desregrados, não confiáveis, sujeitos a várias intrusões que estão fora
do controle consciente. A sexualidade feminina e os poderes de reprodução das
mulheres são as características (culturais) definidoras das mulheres e, ao mesmo
tempo, essas funções tornam a mulher vulnerável, necessitando de proteção ou de
tratamento especial, conforme foi variadamente prescrito pelo patriarcado
(GROSZ, 2000, p.67).

Essas considerações, principalmente as que apontam para a fragilidade do gênero,


são o fermento que faz crescer o discurso que justifica a desigualdade social sofrida pela
mulher. Desse modo, tendo o seu campo de atuação restrito – pois, é o corpo, o que não
pensa –, a mulher é vista a partir de sua biologia apenas, deixando para o homem tudo o que
se refere à produção intelectual.
O corpo, então, é uma construção social repleta de crenças e valores que justificam a
subordinação feminina e a dominação por parte dos homens. Sobre essa questão, Grosz
(2000, p.84) afirma que o “corpo deve ser visto como um lugar de inscrições, produções ou
constituições sociais, políticas, culturais e geográficas.” Contrariando essas demandas, a
mulher que surge na poesia da angolana é contraventora, criadora de uma ordem inversa,
não canônica.
Não há sujeito sem a constituição de seu corpo, ele é o terreno mais chegado, assim
como foi pensado por Adrienne Rich, poetisa estadunidense, quando ela afirma que
devemos enxergar o corpo como a nossa geografia mais próxima. O corpo é parte de nossa
consciência, é um somatório de discursos empreendidos acerca dos costumes que abriga o
nosso movimento, é o resultado de expressões várias. Para além disso, ele precisa ser
transcendência, pois saber-se é emancipar-se. A história da humanidade nos mostra as
intervenções sofridas pelos corpos, principalmente o feminino – ou o que se aproxime dele,
por isso, reconhecer o corpo da mulher é também entender as possibilidades outrora

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cerceadas do mesmo. Apagaram-no e a sua sexualidade para, assim, apagar também a própria
mulher, guardá-la dentro de si, como mero objeto de obediência cega.
Segundo Elisabeth Grosz, precisamos encontrar um novo pensamento para lidar
com o corpo de maneira que ele transcenda e rasure os velhos ditames. Criar um movimento
para que novas concepções ganhem forma na busca de tentar entender o corpo fora das
fronteiras da biologia, do natural, pois ele vem de “uma série de discursos disparatados e não
simplesmente restrito aos modos de explicação naturalistas e científicos.” Para Grosz, (2000,
p.79-80), precisamos desenvolver análises que causem comoção na estrutura dos saberes
perpetuados para que as interações entre os dois sexos se reordenem.

Se o corpo funciona como a condição reprimida ou recusada de todos os saberes


(incluindo a biologia), oferecer novas bases para repensar o corpo pode dividir as
suposições não articuladas desses saberes. Outras formas de conhecimento,
outros modelos de saber que não os que atualmente prevalecem, terão de ser
criados. O que significa, entre outras coisas, não apenas a contestação da
dominação do corpo em termos biológicos, mas também a contestação dos
termos da própria biologia, em repensar a biologia, de modo que ela seja capaz de
ver o corpo em outros termos que os que desenvolveu até agora (GROSZ, 2000,
p.80).

É por essa razão que a poética de Paula Tavares desconstrói os discursos e mostra
um eu lírico feminino em encontro consigo mesmo: porque a mulher precisa se deslocar da
concepção passiva imposta a ela e estar no centro, debaixo de uma forte luz – a do
conhecimento. Remanejar esses lugares é também repensar as concepções que, durante os
séculos, foram cristalizadas.
A grande empreitada é conceber maneiras novas de se compreender a mulher e seu
corpo, colocando-a fora dos círculos que giram em torno das polarizações, pois são essas
relações que precisam ser revistas. A contestação das posições sociais do gênero precisa,
antes de tudo, partir do princípio de entender o que foi feito até então para que a mulher
esteja onde ela está agora. A especificidade histórica é fundamental nessa questão, pois nos
revela a construção de um modelo social homológico que não deixou de ser naturalizado.
A mulher necessita, pois, de espaços de atuação e representação para que, assim, se
pense em abranger os domínios voltados para esse pensamento. A poética de Paula Tavares,
em seu trabalho com o corpo e, consequentemente, com a sexualidade feminina, em muito
contribui para essa visibilidade, uma vez que, a partir de uma voz em primeira pessoa, desafia
a lógica fundamentada em discursos soberanos. Desvendando a mulher ela inicia novos
ciclos em que o feminino é apontado em suas diversas camadas, tira o véu do corpo e o
chama para o centro a afirmar: o corpo é possível.

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REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

GROSZ, Elisabeth. Corpos reconfigurados. In: Cadernos Pagu (14). Campinas:


UNICAMP, 2000.

LORDE, Audre. Uses of the erotic: the erotic as power. In: LORDE, Audre. Sister
outsider: essays and speeches. Estados Unidos: Ten Speed Press, 2007.

PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Ed. Siciliano, 1994.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.

TAVARES, Paula. Amargo como os frutos. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis:


2007.

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SE EU PUDESSE DEDICAR ESSA HISTÓRIA... 85

Ângela de Santa Rita (UFRN)


Tânia Lima (UFRN Profartes - UDESC)

A propositura desta pesquisa se encaminha, principalmente, a investigar, na poética


de Marilene Felinto, a discussão de identidade cultural e, a partir disso, a representação e
autorrepresentação feminina negra, sob o olhar literário da autora. Assim sendo, o nosso
estudo terá como foco exclusivo a personagem-narradora-protagonista Rísia, do livro ‘As
Mulheres de Tijucopapo’ (1992), 86 a qual narra o processo identitário que se afigura no texto.
Felinto traz nessa narrativa, de forma explícita, o reflexo da sociedade de sua época: as
mulheres e a busca de identidade no desconhecido viver feminino.
É nessa libertação, provocada pelo resgate de sua origem, que observamos, na
protagonista, a tentativa de (re)descoberta do seu eu feminino-subjetivo e notamos sua
necessidade de liberdade. Ao questionar o castigo do pai: “[...] por eu ter sucumbido ao meu
desejo de ser chuva [...]” (FELINTO, 1992, p. 44) e ao se perceber amando: “[...] Jonas era o
primeiro homem que eu amava [...]” (idem). Ao decidir “[...] largar-me pela estrada sozinha
onde vou” (op. cit., p. 79).
Questionamentos sobre a repressão e a opressão proporcionadas pelo pai. No
entanto, são feitos, internamente, de si para si, visto que: “O trauma é a ‘ferida aberta na
alma’, ou no corpo, por acontecimentos violentos, recalcados, ou não, mas que não
conseguem ser elaborados simbolicamente, em particular sob a forma de palavra, pelo
sujeito” (GAGNEBIN, 2006, p. 110, grifos no original). Não conseguir externar um
desabafo pela palavra, provoca a personagem a fazê-lo com atos que pudessem demonstrar o
seu grande desejo de voz: “[...] eu endoideci e fiz cem barcos que me levassem a... mamãe?
(FELINTO, 1992 p. 45).
Pretendemos, com a análise semiótica e estética desse livro, conduzir a uma visão
mais ampla sobre as convenções do que chamam de ‘pós-modernismo’, referido aqui como
um movimento intelectual de grande questionamento da modernidade, inclusive seus
conceitos e formas de representação.
“A experiência de viver uma tradição feminina, passada de uma mulher a outra
através de experiências comuns e rituais próprios e específicos [...]” (ALMEIDA, 2006, p. 2),
é representada pelo desejo de renovação Rísia. Ela figura, outrossim, o caráter das

85 Título em referência à dedicatória do livro As Mulheres de Tijucopapo e o quão questionador e injusto é o


silenciamento das mulheres na produção literária.

86 Ganhador do Prêmio Jabuti de Revelação de Autor – 1983.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

identidades subjetivas, a simbologia da influência da realidade exterior no processo formador


de identidade e a atual forma de encarar o espaço-tempo do sujeito deslocado. A
argumentação faz surgir questionamentos sobre a construção do sujeito da civilização
ocidental no contexto da sociedade do dos finais do século XX e iniciais do século XXI.
O cotidiano das minorias sociais é contado por alguém que não participa dos grupos
que fazem parte da representação hegemônica. Isso evidencia a inevitável necessidade de se
ampliar a diversidade das percepções da realidade e a singularidade das transformações
desencadeadas na sociedade pelas lutas.
O Brasil, por causa de sua formação histórica, carrega em si uma formação étnica, e,
por conseguinte, cultural bastante miscigenada da qual compartilham, no mesmo espaço,
diversas formas de economia que provocam gritantes diferenças entre classes. Dessa forma,
em nossa sociedade, as pessoas das regiões menos abastadas são obrigadas a buscarem
caminhos de fuga contra a fome e o desemprego alarmantes, provocados pela má
distribuição de renda, a construir, diasporicamente, um percurso identitário.
O resultado dessas contendas provocou inúmeras mudanças, sobretudo, na
identidade, pois ao se deslocar, o sujeito leva consigo uma visão, não do que poderia ser, mas
daquilo que o fazem pensar o que deveria ser. Outro fato é a peculiar relação entre
identidade e memória, que será usada para tentar compreender como esse encadeamento
coopera com a formação de uma identidade cultural individual e de uma tradição para uma
coletividade esquecida.
Na segunda metade do século XX, mais precisamente, a partir dos anos de 1960, ao
prosperar o conceito de identidade (individual) ao de identidade cultural (coletiva), acontece
nos estudos literários a consolidação de um projeto identitário que conduziria à
reterritorialização do sujeito definido pelas margens a reapropriar-se de um espaço
existencial que poderia ser chamado de seu. A reelaboração criticoliterária brasileira começa,
dessa maneira, a discutir a temática da identidade cultural.
Porém, a expressão do discurso literário, antes marcada pelo ‘eu’ individual, encara o
desaparecimento deste em detrimento do ‘eu’ coletivo. A literatura começa a produzir textos
com a voz da coletividade a criar e fixar um elo à questão da identidade ambivalentemente:
no discernimento de sua perda e na procura de sua reconstrução. Uma literatura que tenta
cultivar, pela narração, as culturas de resistência, mãe da identidade cultural.
Mostraremos, também, a figuração do sujeito detentor de uma consciência enraizada
numa cultura, mas capaz de interagir com outras culturas e outras tantas consciências. Com
isso, estudaremos a prevalência da pluralidade identitária sobre uma identidade individual e a

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colaboração desse processo no equilíbrio da vida contemporânea em meio às teias da


mundialização. Investigaremos, outrossim, a voz de Rísia e sua correlação com a questão
identitária, como ela se forma e as implicações dos diálogos, por vezes truncados, por vezes
silenciados, por vezes emudecidos ou perdidos num texto com expressão densa e poética.
Além disso, abordaremos as representações socioculturais retratadas em Rísia para
expor a sua trajetória de (re)descoberta de identidade feminina, ambas evocadas pela
necessidade de renovação que a narradora-personagem exige para a sua vida, após decidir
sair em uma caminhada de retorno às terras pernambucanas à procura de sua genealogia,
pois para ela em Tijucopapo estaria a sua origem desconhecida que precisava ser desvelada, e
só assim, ela poderia ter uma nova visão sobre si mesma, fato que a faz se perceber detentora
de um poder até então almejado, porém adormecido.
Tendo em vista as questões observadas, resolvemos analisar essa descoberta da
identidade feminina de Rísia perante os desafios encontrados por ela num ambiente
sociocultural e geopolítico no qual não existia um referencial feminino poderoso. Sendo a
subserviência de sua mãe relatada muitas vezes na narrativa, a redescoberta do feminino
aparece como etapa mais madura e experiente da personagem (Rísia), quando ela adquire
capacidade de enfrentar os obstáculos que desafiam sua potência e sua capacidade.
A partir desse questionamento, pesquisaremos na narrativa de voz feminina do livro
‘As Mulheres de Tijucopapo’, o que a qualifica como obra que rompe com os modelos da
hegemonia social, pela necessidade de reconstrução da narradora-personagem advinda de
suas relações de escrita entre silêncios e vozes, ambos de relevante importância para o
entendimento do percurso enveredado pela personagem. Além disso, analisamos o aspecto
psicanalítico desse relacionamento mais omisso do que amoroso entre Rísia e a mãe e a
influência desse vínculo no crescimento e amadurecimento da narradora.
A partir das observações tratadas até aqui, vemos afluir questões significativas que se
inserem no contexto da narrativa e que se afetam mutuamente: a tentativa de redescobrir-se,
repensar, criteriosamente, a busca da identidade que propiciou o projeto identitário e cultural
de um povo; as novas formas de deslocamento que emergiram com a história mais recente;
além de uma nova definição à visão feminina na literatura contemporânea.
Assim, para mergulhar na busca da identidade do eu feminino, a partir de uma
literatura que narra a opressão, o silenciamento e a perda, propomos o estudo do texto do
livro ‘As mulheres de Tijucopapo’ (1992), de Marilene Felinto. A pretensão de leitura e
mergulho no texto da autora surgiu pelo desejo de apreensão da particular linguagem
destemida de lutar pela coletividade em seu discurso narrativo-ficcional. A partir da

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experiência da leitura minuciosa do texto narrativo e do olhar criticoliterário, no panorama


do comparativismo que tecemos as tramas dessa pesquisa.
A principal motivação para a proposição desta pesquisa partiu do questionamento
sobre as narrativas de voz feminina em obras escritas por mulheres. Dessa contenda,
surgiram algumas perguntas: se a obra ‘As Mulheres de Tijucopapo’ foi premiada, por que há
tão poucas pesquisas sobre ela? Durante outra leitura do livro, novas inquietações surgiram,
como: Que sentimento de revolução é esse na personagem principal? De que modo se
configura o silenciamento que Rísia tão bem representa? Quem é essa nordestina que deixa
São Paulo e deseja procurar, em suas raízes, sua libertação e liberdade? Como as perdas
influenciaram no percurso de redescoberta de si mesma?
Marilene Felinto é uma mulher de poucas palavras que, apesar de se autointitular
como não sendo feminista, os seus textos e posturas, tanto escritas quanto faladas, sugerem
o contrário. ‘As Mulheres de Tijucopapo’ (1992), escrito por ela aos 23 anos e publicado pela
primeira vez em 1982, possui um tom de libertação e culmina em uma luta liderada por
mulheres. A personagem principal e narradora, Rísia, decide enfrentar a BR e, ao longo de
sua caminhada, comunicar-se em forma de carta ou telefonema, em língua brasileira com
desejo de língua estrangeira, visto que ela se sentia mal compreendida e, por vezes, emudecia
ou falava em outra língua, o que seria a única forma de protesto contra a sociedade que a
reprime e exclui.

Agora eu não gaguejo mais, agora eu emudeço de vez ou falo direto em língua
estrangeira. Ou vou-me embora. Mas, não poder falar, ser gaga, é um verdadeiro
corte, é o sinal mesmo da ruptura, é o espanto maior de todos. Ser gaga, então, me
calava muito. Eu já fui uma verdadeira muda (FELINTO, 1992, p. 40).

Desde a dedicatória, nos deparamos diante de uma dúvida. Ao dizer “Se eu pudesse
dedicar essa história...” (FELINTO, 1992, p. 11). A autora nos faz refletir sobre quais
motivos poderiam impedi-la de dedicar a sua história a alguém. A partir daí, surgem os
questionamentos feitos por Rísia sobre valores, vozes, posturas, conquistas, autoestima e
origem. Essa dúvida – se lhe era permitido a possibilidade de dedicar algo a alguém – aparece
como se o fato de escrever já tivesse sido o bastante. Como ousaria dedicar? Como uma
menina que teve seus sentimentos subjugados pelo pai e afogados pela mãe seria capaz, ou
melhor, digna dessa alta postura de escritora? O desejo move-a e é mais forte do que
qualquer preconceito, silenciamento, opressão ou repressão que pudesse paralisá-la.
A força da personagem Rísia, antes silenciada por qualquer violência ou olhar
repressor do pai, move o seu desejo de fazer revolução. Nesse processo, a submissão da mãe
ao pai parece incompatível com a imagem das mulheres de Tijucopapo (onde a mãe teria

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nascido), terra da revolução e das rosas vermelhas. Rísia recorre à imaginação para construir
um caminho alternativo, como quando ‘tornava-se’ barco flutuante nas águas e fugindo
daquele suplício que é viver sem voz, unicamente por ser mulher.
Isso pode ser observado em determinadas cenas: no passeio de bicicleta com o
personagem Jonas, evocam-se imagens alternativas de liberdade, como: chuva, bicicleta,
campina, primeiro amor. No entanto, esse desejo de liberdade é reprimido pelo pai, que já a
aguardava, após o passeio, para surrá-la, surra da qual a mãe não a poderia salvar, pois estava
no hospital parindo outro filho que nasceria morto.
Essa figura do pai extremamente opressor, violento, algoz de seu relacionamento
com sua mãe, chega ao fim quando Rísia resolve ir a Tijucopapo, após Jonas ter terminado o
relacionamento com ela. As dúvidas reaparecem sobre quem realmente seria ela e qual a sua
genealogia. A estrutura repressiva começa a ruir quando, ao chegar próximo a seu destino, as
tão esperadas terras de Pernambuco, onde ela, enfim, descobriria quem é.
Rísia se depara com as mulheres de Tijucopapo, após os nove meses de viagem com
o despertar de sua identidade feminina, que estava adormecido devido, provavelmente, a
tantas situações de perda, ódio, mágoa e orgulho perante as figuras masculinas. A simbologia
desse renascimento dá-se quando ela se sente em meio às “mulheres de cabelos grossos
como cordas arrastando pela crina do cavalo” (FELINTO, 1992, p. 130), aquelas que não
são como sua mãe, mas são as mulheres do lugar geográfico de sua mãe.
Ao encontrar um cavaleiro chamado Lampião, com quem ela pôde ter uma conversa,
após noves meses caminhando pela BR, numa diáspora reversa e silenciosa, ou seja, é no
retorno às suas origens que ela (re)descobre a força do feminino herdada de suas
conterrâneas, mulheres de revolução iguais a ela.
Partindo dessas problematizações e de diversas leituras, percebemos quão farto
material tínhamos para pesquisar, estudar, investigar e, ousadamente, contribuir com a
premente tarefa de criar um corpo de pensamento sobre o sujeito de identidades plurais.
A discussão parte justamente dessa morte para renascer, do esfacelamento para
ressuscitar, da fragmentação para completar-se, do gozo para entender-se como voz que grita
aos ventos a revolução provocada pela necessidade de redescoberta da identidade do
feminino que a todo instante o patriarcado quer silenciar. Mesmo diante dessa opressão, o
desejo de liberdade que é despertado na narradora impulsiona-a à busca de suas raízes, de
acordo com o que nos explicita Castello Branco no livro ‘A mulher escrita’(2004, p. 145):

Talvez a maneira menos agressiva de abordar a questão das relações entre o


feminino e a escrita seja também a maneira mais radical: aquela que envereda pelo
impossível do discurso, pelos silêncios do inominável, pelos absurdos de uma pré-

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linguagem que se quer além (ou aquém) do verbo, mas que se quer também
comunicação. Vê-se logo que, a partir de tal abordagem, somos irremediavelmente
lançados no território do insólito e do invulgar: aqui, exatamente aqui onde se dá a
singularidade, busca-se a generalização, a gramática de um discurso que se diz
feminino. E aí nesse território não há como ignorar o entrecruzamento das vozes
da psicanálise e da teoria literária – fala-se da morte, do esfacelamento, da
fragmentação, do gozo.

Essa voz que cansou de ser silenciada e passa a ser a voz da (re)descoberta do
autoconhecimento, isso é, o saber-se quem é, expressa-se na tentativa de compreender a
origem de sua mãe. Desse modo, percebe-se a necessidade de estabelecer um alívio para essa
ligação tensa e poderosa e compreender como os nove meses do percurso até Tijucopapo
parem uma mulher renovada e conhecedora de si, que se mostra com autonomia,
independência e renovação.
O desenvolvimento desta dissertação ambiciona demonstrar, como já nos referimos,
a narrativa de voz feminina de literatura brasileira, na valorização de gênero e, esperamos,
evidenciar o poder de escrita de uma mulher-escritora no cenário brasileiro. Esse interesse é
fortalecido pela existência de uma escrita feminina produzida em um Brasil preconceituoso,
patriarcal, omisso e incapaz de ouvir ou dar voz à comunidade feminina do nordeste do
Terceiro Mundo.
Além disso, é importante pensar como o direito à sua voz objetiva coloca a voz
masculina em segundo plano, tanto por sua força de superar o passado quanto pela
descoberta de si como sujeito, determinada sobre os objetivos e metas a serem alcançados.
O nosso objetivo geral projeta-se, com esta dissertação, investigando o romance ‘As
Mulheres de Tijucopapo’ (1992) sob o olhar analítico de (re)construção da identidade
feminina pela personagem-narradora Rísia, nos três espaços intersticiais que exercem
importante representação para o processo identitário e a percepção de rememoração na
narrativa: a casa, a escola e a rua.
Quanto aos objetivos específicos, com o intuito de expandir o objetivo geral
indicado, pretende-se investigar a busca por identidade cultural do sujeito deslocado; analisar
e fundamentar a relação mãe-filha de Rísia com sua genitora; explorar criticamente as vozes,
imagens, dizeres e ‘não-dizeres’ de Rísia; verificar os rastros do passado da mãe de Rísia na
reconstrução de seu eu na coletividade; examinar a relação entre as perdas e o desejo de
desvendar seu passado na afirmação de um futuro melhor; compreender as maneiras como o
texto literário da autora transporta a voz feminina para um espaço de silenciamento
sociocultural.
Quanto à metodologia, diante do que foi exposto até aqui, esta pesquisa se dispõe a
analisar a personagem Rísia, partindo da percepção inicial, após a leitura do romance ‘As

221
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Mulheres de Tijucopapo’ (1992), do qual ela é a personagem principal que representa a voz
feminina silenciada nas diversas esferas sociais, culturais, políticas e geográficas brasileiras.
No intuito de escolher um caminho para nos guiar, resolvemos optar por investigar a
necessidade de Rísia por buscar um referencial feminino, como mulher que luta pela
reconstrução de sua identidade cultural e por compreender a influência que as atitudes
submissas e subservientes da mãe tiveram sobre a construção de sua pessoa como ser social.
Entendemos que para Marilene Felinto o contexto social de mulher, negra, pobre,
retirante nordestina em que Rísia está inserida, além das implicações do machismo repressivo
e opressor do pai e o abandono do homem que ela ama, provocam nela um querer procurar
suas origens na terra natal da mãe.
Por essa razão, pretendemos analisar e compreender como a reconstrução do
feminino da personagem, feita num período de nove meses, representação de um parto de si
mesma, no percurso de retorno de São Paulo a Tijucopapo pode nos mostrar o quão
necessário foi para o empoderamento da personagem que procura por sua referência
feminina no passado, pois que não existe a menor identificação dela com a mãe.
A problematização da questão da identidade dilacerada pela mudança geográfica de
Recife para São Paulo onde o feminino perde seu direito de voz e provoca questionamentos
sobre as atitudes da mãe, podemos dizer, é também um viés para o entendimento da
necessidade de reconstrução identitária da personagem.
O despertar em Rísia de uma necessidade para reconstrução de sua identidade, nos
põe em frente às circunstâncias que nos permitem investigar os símbolos de uma cultura
omissa e opressora que silencia a voz feminina, fonte de expressão para a dignificação da
mulher como sujeito pertencente ao meio social.
Diante desse eterno fazer-se literário, afirmamos que nossa pesquisa partirá sempre
da literatura para analisar as temáticas aqui levantadas. Inicialmente, faremos a releitura do
livro ‘As Mulheres de Tijucopapo’, bem como dos demais textos ficcionais de Marilene
Felinto, como também textos teóricos que abordem a questão da voz feminina no cenário
literário.
Após tais procedimentos, iniciamos esta escrita, porém a revisão bibliográfica do
material teórico, crítico e literário a respeito de nosso objeto de estudo sempre se manteve
revisado quando necessário. Adotamos uma abordagem qualitativa e comparativa e
propomos uma análise interpretativa com base nos autores e referências dos Estudos
Culturais e da Crítica Feminista, ou ainda nas obras literárias que contribuíram com a
discussão.

222
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Fizemos análises fundamentadas nos artigos científicos, livros e revistas sobre o


assunto para a problematização com base em estudos sociológicos, culturais e psicanalíticos,
para analisar os comportamentos da protagonista e das demais personagens. Elaboramos
permanente investigação dos diversos recursos discursivos que teremos em mãos após a
pesquisa teórica e prática com embasamento criticoliterário.
Os procedimentos utilizados para a pesquisa incluíram: leitura e fichamento dos
textos teóricos, leituras e releituras críticas e investigativas do livro ‘As Mulheres de
Tijucopapo’ (1992), de Marilene Felinto, participação e discussão nas aulas oferecidas pela
orientadora da pesquisa sobre as temáticas do feminismo e dos Estudos Culturais,
apresentações em congressos e escrita de artigos acadêmicos. Os procedimentos incluíram
assistência e leitura de entrevistas com a autora Marilene Felinto.
Aqui, evidenciamos a questão da identidade, por procurarmos compreendê-la sob a
ótica da esfera sociológica. Como apoio teórico, mormente de Staurt Hall (1998, 2003), para
comparar no terreno literário à questão do sujeito deslocado, descentrado e sua
representação na narrativa de ficção, em que o sujeito é constituído de ‘identidades móveis’
que se mutacionam na medida das demandas do local sociocultural onde ele se encontra;
empreendo, também, a compreensão dessa estrutura no discurso da personagem Rísia de
Marilene Felinto.
A fundamentação teórica da nossa pesquisa parte, primordialmente, do
questionamento sobre o que vem a ser essa literatura de voz feminina surgida no cenário do
período pós-colonial e pós-feminista. Como falarmos de voz feminina num cenário em que
teoria e crítica se (con)fundem?
A nossa análise segue no campo das obras ‘A identidade cultural na pós-
modernidade’ (1998), ‘Da diáspora’ de Stuart Hall (2003), ‘Uma literatura nos trópicos’
(2000) de Silviano Santiago e ‘Locais da cultura’ (2003) de Homi Bhabha. Esse tipo de teoria
produz reflexão sobre a falta de identidade do sujeito descentrado nos espaços de movência
da cultura onde há forte influência da hegemonia sociocultural, em que as ideologias
patriarcais favorecem o silenciamento e a exclusão das bonificações do cotidiano para as
minorias.
No livro ‘A mulher escrita’, de Lucia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão
(2004), detivemo-nos para exprimir as dores e angústias da escrita de mulheres, pois essa
obra trabalha com a teoria que embasa nosso questionamento sobre a necessidade de uma
representação do poder da voz feminina na literatura brasileira. Também ela fez-nos pensar
que a mulher-escritora pode ser responsável por retratar e questionar os problemas sociais de

223
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

gênero. Desses escritos, mesclaremos o texto poético e o texto teórico para que a
visualização seja a mais clara possível.
Ana Lila Lejarraga em ‘Paixão e ternura: um estudo sobre a noção do amor na obra
freudiana’ (2002) e Malvine Zalcberg com o livro ‘A relação mãe e filha’ (2003),
esclareceremos a formação do amor entre mãe e filha e como, aos olhos psicanalíticos de
Freud, faz-se e desfaz-se esse laço maternal e eterno.
Guacira Lopes Louro em ‘Gênero, sexualidade e educação’ (1997) nos respaldou na
teoria sobre os espaços escolares e suas influências no crescimento social dos indivíduos. ‘Sol
negro’ (1989) de Julia Kristeva, ‘A dominação masculina’ (2012) de Pierre Bourdieu e ‘As
mulheres ou os silêncios da história’ (2005) de Michele Perrot nos fundamentaram no
quesito submissão, repressão, opressão e silenciamento feminino e sua pendência à
perpetuação dos estereótipos de exclusão.
Ainda nessa perspectiva, tivemos como fonte de pesquisas algumas dissertações e
teses, todas com o intuito de pesquisar a identidade feminina no contexto da literatura feita
por uma escritora mulher e negra. Nossa pioneira foi Vieira (2001), que concentrou sua
pesquisa na construção de identidade cultural da personagem Rísia, os questionamentos do
discurso hegemônico e as contradições da cultura multirracial na sociedade brasileira e a
classe pobre e nordestina excluída.
Em 2007, Silva nos fala sobre a representação do feminino por três vieses
identitários: gênero, etnicorracial e de classe problematizada pelo olhar feminista na
construção da identidade do feminino. Nascif (2008), parte do pressuposto de equivalência
entre a condição subalterna da mulher e do continente latinoamericano. Vemos a observação
das representações construídas acerca das relações do gênero feminino na literatura e a
problematização das personagens femininas na contemporaneidade que, mesmo após o
movimento feminista e a revolução sexual, ainda revela a continuação de uma extrema
dependência psíquica e afetiva em relação ao masculino, descrita na dissertação de Maia
(2010).
Rebelo (2010) nos auxilia a questionar o cânone literário, ao expor a pluralidade de
perspectivas na literatura contemporânea, o reconhecimento da literatura feminina negra
para além das ideias de permissão ou concessão na construção da identidade feminina, como
sujeito de participação ativa da sociedade brasileira na desconstrução dos estereótipos. Em
2011, Grigoleto analisa a tradução do livro ‘As Mulheres de Tijucopapo’ para o inglês, feita
pela tradutora Irene Matthews.
Silva (2012) pesquisa as alteridades polifônicas (das idades infantil, adulta e mítica) no

224
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

emaranhado discursivo de Marilene Felinto, a partir do ‘não lugar do passado’ que ganha
força no presente durativo dentro do relato memorialístico. Curiosamente, apenas mulheres
pesquisadoras se comprometeram com a seara da investigação da escrita feminina do espaço
intersticial de Marilene Felinto.
Reconhecemos também a necessidade de fazermos a ponte entre a autora do livro
literário desta pesquisa e outras autoras que possuam a mesma postura de discurso de
libertação da voz feminina através da liberdade autônoma do direito de falar, como vemos
em ‘Sejamos todos feministas’ (CHIMAMANDA, 2014) e o ‘Entre-olhares de Macabéa’
(LISPECTOR, 1998), ambas de maneira pincelada, posto que nosso estudo centra-se no
livro ‘As mulheres de Tijucopapo’ de Marilene Felinto.
O que nos interessa nesta pesquisa é investigar a exaltação da voz feminina, do lugar
do feminino na sociedade, não como força de trabalho, ou como mãe-genitora-
amamentadora, mas como força intelectual da sociedade em que (sob)(re)vive. Propomo-
nos, então, fazer o caminho inverso do patriarcado, ou seja, vamos – através do estudo
crítico, literário, teórico e poético – provocar a abertura de caminhos para as vozes
silenciadas das minorias e o combate à exclusão de gêneros pertencentes a essas classes
minoritárias.
Por sabermos que nenhuma pesquisa é feita sem fundamentos teóricos e/ou críticos,
procuramos atualizar-nos com relação aos referenciais bibliográficos e à leitura da obra
estudada. Usamos diversos livros, artigos, dissertações de mestrado, teses de doutorado para
fundamentar conceitos e explicações e em leitura complementar de autores que acreditamos
ter feito uma diferença significativa no que concerne à compreensão da literatura escrita na
segunda metade do século XX, como Clarice Lispector (1998), Chimamanda Adichie (2011,
2015), Toni Morrison (2003).
O filme ‘O céu de Suely’ (2006), pela abordagem fronteiriça identitária feminina e as
músicas ‘Sampa’ (1978) e ‘ABC do Sertão’ (1988), por trazerem na sua melodia poética traços
identificados no livro estudado. Essas representações culturais brasileiras-nordestinas foram
usadas somente como fonte de inspiração e, por conta disso, não houve aprofundamento
comparativo em relação a elas e o livro.
O cenário contemporâneo da década de 1980 nos oferece narrativas escritas por
mulheres, que geraram uma renovada re(a)presentação da voz feminina na sociedade da
época, provocando na escrita e, por conseguinte nas leituras, uma nova avaliação da
literatura, notadamente nas abordagens socioculturais e geopolíticas.
Nessa contextura, temos mulheres-escritoras que tornam a sua escrita o grito que

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

fora silenciado e nela expõem seus ideais de ser ativo em uma sociedade que a exclui, nega,
reprime e oprime, sem entender que “[...] uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo
seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção [...]” como diria Virginia Woolf (2014, p.
12). As identidades e identificações das mulheres não eram vistas ou percebidas na literatura,
porque mulheres não podiam escrever, só podiam ser escritas e, comumente, por escritores.

REFERÊNCIAS
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Companhia das Letras, 2011.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos
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2014. Disponível em: < http://feminismoaesquerda.com.br/wp-content/uploads/
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LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

226
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

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Felinto: o pluralismo na construção identitária latinoamericana. [[Tese de Doutorado em
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ZALCBERG, Malvine. A relação mãe e filha. São Paulo: Elsevier, 2003. 4. reimp.

227
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

UMA ABORDAGEM ANTIRRACISTA NO AMBIENTE ESCOLAR

Thaises Carla Guedes Fernandes Dutra 87


Tânia Lima (UFRN -Profartes - UDESC) 88

1 Introdução
A imagem da pessoa negra tem perpassado um caminho diacrônico bastante
espinhoso, tendo em vista que, mesmo estando inserido naquele discurso segundo o qual a
escravidão é algo do passado, cujas marcas históricas foram vivenciadas outrora e que os
afrodescendentes já conseguiram seu espaço na sociedade, ainda há muita luta pela frente,
sobretudo, ao se pensar na questão do preconceito que engloba não só a cor, mas a religião,
a cultura e tantos outros aspectos que caracterizam esse povo.
Desse modo, para que o povo negro fosse valorizado e suas raízes e culturas
apresentadas no ambiente escolar, foi necessária a implementação de leis inclusivas, a
exemplo da Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003), que foi propulsora de valiosas ações no que
concernem à história do povo negro e suas contribuições para a cultura. Além disso, essa Lei
refere que as metodologias precisaram ser repensadas e, para isso, o material didático
utilizado passou por adaptações que promoveram um ensino inclusivo e de valorização de
um povo que, há séculos, carrega o peso da injúria racial na História do Brasil. Mesmo em
meio a essas ações, ainda se nota, nos dias atuais, a insuficiência dessa implementação que
propõe o combate ao racismo.
Para justificar esse dizer, lança-se mão à pesquisa de Gomes (2012, p. 11) que propõe
responder a algumas indagações:

Quais são as práticas pedagógicas na perspectiva da Lei n.º 10.639/03 realizadas


pelas escolas indicadas pelos atores-chave? Quem as desenvolve? Elas têm
continuidade? Há participação da gestão do sistema e da gestão da escola no
desenvolvimento de tais práticas? Como fica a participação da comunidade nesse
processo? Há diálogo com os movimentos sociais e, principalmente, com o
Movimento Negro? Essas experiências se enraízam nas escolas passando a fazer
parte do Projeto Político Pedagógico a ponto de alcançar um grau de
sustentabilidade? Ou elas oscilam de acordo com a presença ou não dos sujeitos
que as desenvolvem? Quais são os avanços e os limites da Lei n.º 10.639/03 no
interior das escolas públicas?

87 Mestranda em Arte Visual (PROFARTES/UFRN, 2021-2023), Campus de Natal/RN. Graduada em Letras


pela Universidade Federal de Campina Grande: UFCG, 2015. Pós-Graduada Lato Sensu em Educação para as
relações etnicorraciais pela Universidade Federal de Campina Grande: UFCG, 2018. Graduada em Arte
Visual pela Universidade de Jales, UNIJALES, 2019. Professora de Arte do quadro permanente da Secretaria
de Educação do Estado da Paraíba e da Secretaria Municipal de Educação de Boqueirão-PB. E-mail:
[email protected]
88 Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), atuando na área de
Literatura Portuguesa do Departamento de Letras, contribuindo como professora permanente na Pós-
Graduação do Mestrado Profissional em Artes - UDESC.

228
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Por meio dessas indagações, nota-se que a insuficiência no ensino da cultura


afrobrasileira ainda persiste e que marca, por vezes, uma educação que se mostra presa a
estereótipos e que ainda é carente de profissionais capacitados, projetos direcionados e ações
inclusivistas que, não apenas tragam o aluno negro para o processo, mas que promovam, na
totalidade dos participantes, uma cultura antirracista.
Além dos motivos que apontam a distância que acontece entre teoria e prática, pode-
se recorrer à literatura como uma das possibilidades de ampliação do conhecimento do
discente para que ele tenha à sua disposição não apenas os cânones literários escritos por
poetas brancos que se autovalorizavam, mas também descrevam a imagem da pessoa negra
como personagem que reproduz retratos da mulata hiper-sexualizada, do negro malandro
e/ou vitimizado que só fornece uma margem de preconceitos e racismos enraizados.
No Brasil, os escritos relacionados à literatura afro começaram a surgir no século
XIX com o poeta Luiz Gama e a poetisa Maria Firmina dos Reis. Além desses, outros
marcados e renomados poetas da literatura negra foram Cruz e Sousa, Lima Barreto e
Machado de Assis que, independente dos tempos e das influências literárias, impunham em
seus escritos traços da literatura negra. Mas, com a implementação da Lei 10.639/03
(BRASIL, 2003) é que as escolas intensificaram a literatura afrobrasileira a fim de
promoverem a inclusão social e o processo de antirracismo nas abordagens educacionais.
A partir do que se descreveu, entende-se que os eventos culturais e literários podem
servir para abolir esse mal que teima por perdurar nos espaços internos das nossas escolas,
assim como na sociedade brasileira. Por isso, consciente do poder da escola em transformar
pessoas, a escola tem o compromisso de tratar esse tema, não só por força da Lei de 2003,
mas, antes disso, por um princípio ético, inclusive.
Com esse propósito, citam-se as performances literárias na consciência de que esses
eventos conseguem gerar, no espaço escolar, o estímulo a pesquisas, levantamentos de
hipóteses sobre os temas trabalhados e apropriação das falas transmitidas, processo que
contribui com o desenvolvimento do aprendizado dos educandos, acrescentando-lhes novos
conhecimentos e quebrando barreiras outrora existentes.
Referindo-se à performance como arte visual, pretende-se, por meio dela, levar o
indivíduo a reconhecer, na literatura, o papel integrador capaz de superar os abismos
existentes entre a arte e a vida apresentando testemunhos que registram as mudanças que se
operam no mundo por meio da imaginação artística. Desse modo, os alunos precisam ser
protagonistas do evento, de modo que tenham a oportunidade de interagir a partir daquilo
que leem, escrevem e analisam, além de tomarem nota, refletirem, criticarem e se

229
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

emocionarem.
Optar pela performance, nesse momento, indica um contato mais preciso com a arte,
de modo que, por meio dela, as experiências da leitura, da declamação e da dramaturgia
evoquem vivências pessoais e proporcionem a reflexão sobre a própria identidade, pois,
como diz Larrosa (2002) “a experiência é o que nos passa, nos toca, nos acontece.” Nesse
sentido, a proposta de uma performance como promotora da cultura antirracista traz um
sentido profundo para a construção pessoal dos discentes que, em alguns momentos, se
sente distante da inserção sociocultural e que, por intermédio da Literatura, poderá sair da
condição de sujeito oculto para se tornarem autores e protagonistas de suas experiências
artísticas.

2 Performance literária: para início de conversa


Após algum tempo de muita persistência e estudo, entende-se que a arte tem passado
por algumas modificações, sobretudo, no que diz respeito ao ensino, levando-se em
consideração que o ensino de arte sempre esteve à margem da estrutura educacional.
Barbosa (1986) destaca que, no Brasil, sua obrigatoriedade teve início na década de 1970,
embora, desde o século XIX já se buscasse tornar a arte como disciplina obrigatória nos
currículos, visto que, ainda na década de 1920, houve diversas tentativas de sua implantação
na escola. Contudo, mesmo havendo essas implementações e anseios, o ensino de arte no
Brasil esteve permeado por equívocos, desviando-se da natureza do objeto de seu estudo,
uma vez que se centrava em um produto e não em seu processo.
Não obstante, mesmo tendo sido incluída como área de conhecimento nos currículos
escolares, através dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) (BRASIL, 1997, p. 30) “o
ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da
educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos.”
Para além de todos esses percalços, ainda surge a questão do docente que, em sua
maioria, era um profissional sem conhecimento teórico da disciplina de Educação Artística,
nome dado no momento da inserção da disciplina ao currículo escolar, que só passou a
desenvolver conhecimento suficiente para um trabalho com a qualidade necessária a um
bom ensino das diversas linguagens das artes com os cursos de licenciatura nas diferentes
linguagens. Esse processo ocorreu, sobretudo, por causa da universalização da Educação
Básica que, quando adotada, necessitava de uma demanda maior de docentes. Com base
nessa necessidade, frente à implementação da Lei 5.692/71 (BRASIL, 1971), cursos
polivalentes de curta duração foram criados e professores foram formados para ensinar artes

230
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

(plásticas, cênicas e musical) na perspectiva das atividades a serem trabalhadas (BARBOSA,


1990).
Ainda que a questão da polivalência tenha sido revista através da definição das quatro
linguagens artísticas, a saber, artes visuais, artes cênicas, música e dança estabelecidas pela Lei
nº 13.278/16 (BRASIL, 2016), ainda há uma resistência a esse respeito nas realidades
escolares, uma vez que continua sendo comum professores de outras linguagens artísticas,
áreas afins 89
ou não afins assumirem as cargas horárias de arte, o que faz com que o
processo de polivalência nunca chegue ao fim.
Essa questão, de alguma forma, também atinge esta pesquisadora, cuja experiência na
multiplicidade das artes é muito abrangente, mas que não pode ser trabalhada na maioria das
escolas, sobretudo nas do setor público, por não haver aulas por área. Além disso, não há
professores para música, dança, teatro e artes visuais, mas apenas um profissional que precisa
abarcar todas essas áreas do conhecimento e levá-las ao aluno, ciente de que, possivelmente,
a escola seja o único e mais adequado espaço em que ele vai ter contato com essa
interdisciplinaridade artística, principalmente aqueles alunos que vivem à margem da
sociedade e distantes do acesso cultural e artístico. A esse respeito, lança-se mão das
contribuições de Guerson et al (2010, p.11), quando aponta que:

[...] os campos de conhecimento se desdobram entre si, por um natural diálogo


interdisciplinar; ligam-se na justificativa de algo maior do que suas delimitações,
ou seja, a existência humana, entre natureza, sociedade e cultura. O caráter
múltiplo das Artes decorre de suas diversificadas formas de manifestação ou
subáreas: Artes Visuais, Audiovisuais, Teatro, Dança, Música e Literatura, mas
cada qual possuindo conteúdos próprios, pois multiplicidade difere de
polivalência.

É na perspectiva de multiplicidade artística que se necessita, como professores de


arte, sempre buscar atualização e meios de alcançar o conhecimento, não só da
contemporaneidade artística, mas para além disso, conhecendo os fatores que influenciam
esse percurso, principalmente na busca de atender às necessidades dos discentes, dotados de
preferências e referências musicais, visuais e de movimento.
Destarte, não há como dissociar as áreas artísticas levando em consideração que uma
pode complementar a outra e construir o sentido que o educando, muitas vezes, procura,
visto que a arte é uma área da educação muito ampla e cheia de particularidades, “além de ser
integradora, não podendo se limitar a posturas e encaminhamentos fechados” (MACHADO,

89 Dentro das áreas afins, citamos as que fazem parte das linguagens, conforme determinação da BNCC,
quando afirma que a abordagem das linguagens deve articular seis dimensões do conhecimento que, de forma
indissociável e simultânea, caracterizam a singularidade da experiência artística. Tais dimensões perpassam os
conhecimentos das Artes visuais, da Dança, da Música e do Teatro e as aprendizagens dos alunos em cada
contexto social e cultural (BRASIL, 2018, p. 192).

231
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

2013, p. 23).
É importante frisar, ainda, que esse processo de inclusão multidisciplinar não pode
promover a desvalorização da disciplina, como se não tivéssemos um conteúdo ou um
percurso didático a seguir, mas tendo-o como subsídio para que o discente, principal
elemento do processo educativo, não seja privado de conhecimentos por causa de fatores
externos, tais como, carga horária da disciplina, limitação de recursos didáticos e
tecnológicos que poderiam ser usados no espaço escolar, além de tantos outros obstáculos
que são encontrados no ensino das artes. Isso, a nosso ver, fica ainda mais concreto quando
pensado através de um evento literário como uma performance artística e literária, como será
visto, a seguir.

3 A performance artística e literária e a inserção sociocultural dos alunos

A voz emana do corpo, mas sem corpo a voz não é nada


(ZUMTHOR, 2005, p. 89).

Há algum tempo, notam-se, no ambiente acadêmico, alguns estereótipos


relacionados ao ensino de arte nas escolas, a saber, falta de profissional qualificado, limitação
de material, restrição de carga horária, fatores que restringem e limitam o conhecimento
dessa área. Por meio da escola é possível notar uma democratização desse acesso, embora
ainda haja diversos obstáculos que impedem o discente de se deslumbrar com esse contato
por fatores estruturais, tais como livros didáticos que, muitas vezes, não se adequam à
realidade do educando, autores e obras europeias que se distanciam do letramento cultural de
determinados grupos, ausência de eventos e outros projetos que estimulem essas práticas,
como também a insegurança do docente que, às vezes, torna esse processo enfadonho e
desencantado.
Pensando nisso, faz-se necessário que os formadores e ‘arte educadores’, promovam
eventos que tirem o educando do anonimato, que o faça sair da condição de mero receptor
de informações, passando a dar vida e cor às suas habilidades artísticas, capazes de o fazer
perceber o mundo cultural que está disponível a sua volta. Nesse sentido, ter como
pressuposto a performance artística é o mesmo que ter voz e movimento em vida, é também
estar de acordo com a compreensão zumthoriana, segundo a qual “a intenção do locutor que
se dirige a mim não é apenas a de me comunicar uma informação, mas de consegui-lo, ao
provocar em mim o reconhecimento dessa intenção” (ZUMTHOR, 2010, p. 30).
Lançando mão do exposto, procura-se articular arte e literatura, áreas curriculares
que ora se encontram distintas e ora se unificam como sendo uma só para que, através de

232
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

uma performance literária, se possa dar ênfase ao desenvolvimento das competências


artísticas do discente, levando-o a uma prática artística prazerosa, com significado intelectual
e emocional, fazendo-os descobrir habilidades por meio do ensino formal e/ou informal.
Para a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018, p.195), essas áreas
encontram-se no subgrupo das artes integradas que explora as relações e articulações entre as
diferentes linguagens e suas práticas.
Destarte, é preciso que o educando se encontre no mundo da arte desenvolvendo
habilidades que estejam ligadas a essa área do conhecimento. Para tanto, apresenta-se uma
proposta que enfatiza o uso da performance, através da ligação que ela estabelece com a
poesia oral. No entanto, sabendo que a performance transita entre as artes visuais e cênicas,
não se tem a pretensão de estimular e aplicar a performance direcionada a uma linguagem
artística específica, mas sobretudo, para promover um efeito teatral semelhante ao mousikè,
que lhe confere a possibilidade de harmonizar, ao mesmo tempo, a dança, a música vocal e
instrumental, as estruturas métricas do poema e a prosódia da palavra (ZUMTHOR, 2005,
p.147).
Entende-se, com esse experimento que, por intermédio da voz e da performance a
mensagem chegará ao interlocutor de modo mais eficaz e concreto, fazendo com que aquilo
que for trabalhado ultrapasse o evento ou o momento da explanação e faça parte da vida
daqueles que receberam a mensagem. Assim, “tanto o locutor quanto o interlocutor serão
envolvidos pela dramatização implicada na performance, isto é, pela duração e pelo espaço
que lhe são próprios e que são apresentados como presentidade” (LOBO, 2015, p. 194).
Fazendo ponte com a atual realidade docente, sabe-se que, muitas vezes, se torna
desafiador concentrar a atenção do aprendiz para ouvir um determinado texto poético, mas
quando se imprimem sentimentos e gestos próprios da performance, nota-se que o discente,
ou qualquer indivíduo em condição de receptor, se sente convidado a degustar aquilo que
ouve através do que o olhar também capta, ultrapassando, conforme aponta Lobo (2015), a
mesmice do código de tradição linguística e a noção da leitura pré-programada pela noção do
início, meio e fim lineares, na medida em que a voz em performance dialoga com as mais
variadas formas de arte.
Essa é, sem dúvida, uma mistura de sentidos conferidos à arte da performance,
elucidada por Guattari (2008, p.114), como aquela que “tem o mérito de nos evidenciar a
gênese do ser e das formas antes que elas tomem seu lugar nas redundâncias dominantes
com a dos estilos, das escolas, das tradições da modernidade.”
Ademais, nosso objetivo com esta pesquisa é fomentar a educação artística por meio

233
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

da performance e com base na relação que há entre literatura e arte, recorrendo a


modalidades expressivas, como mecanismos de desenvolvimento, apropriação da linguagem
e da cultura de um povo, da aprendizagem e da criação de manifestações artísticas.
Conforme a abordagem de Ferreira (2013, p. 201), “inserida no patrimônio artístico da
humanidade está a literatura e que, sendo ela um valioso legado cultural, necessita ser
socializada e acessada pelas vias da educação escolar.”
Ainda com base em Ferreira (2013), a obra de arte reflete a realidade humana,
simultaneamente, assim como também envolve as relações com outros seres humanos e com
o mundo, de uma forma geral. É necessário, portanto, que haja uma ampliação e
permanência desses estímulos no ambiente escolar, visto que a subjetividade humana não se
desenvolve de forma espontânea, mas através da instrução. Para tanto, os conteúdos
literários devem ser entendidos em sua ‘peculiaridade formativa’, o que permite enriquecer
culturalmente o indivíduo.
Ademais, estimular o estudante por meio do contato com a arte e as experiências ‘na
e para a leitura’, levando-se em consideração que o aprendizado artístico faz surgir
experiências e vivências relacionadas aos acontecimentos do mundo vivenciado, além de
fazer com que cada indivíduo construa a sua interioridade, seus desejos, seus limites, suas
ousadias e medos, estabelecendo, assim, a principal ligação que as artes têm com o ser
humano.

4 Uma análise a partir da performance: por uma cultura antirracista


Para a abordagem dos temas transversais atualmente trabalhados nas escolas, como é
o caso do racismo, pode-se estabelecer uma ponte teórica entre história, arte e literatura,
relacionadas à poesia, ao teatro, à música ou a outras linguagens que concebem o fazer
artístico. Sendo assim, faz-se necessário, portanto, informar como ocorre o processo de
inclusão da literatura afrobrasileira, lançando mão dessa desmitificação da literatura arcaica,
racionalista e de aspectos de embranquecimento, dando lugar a novas tendências em que a
cultura, a história e a vida de um povo podem ser enfatizadas.
Decerto, as poesias que priorizam a temática afrobrasileira ainda passam por um
processo construtivo de conceitos e ideias, mas é possível afirmar que é através dessa prática
literária que a imagem da pessoa negra vai perpassar os estereótipos formados na história
folclórica, em que o personagem negro era aquele que, não obstante, sempre foi apresentado
à margem da sociedade e com características capazes de relacioná-los e/ou identificá-los
como as pessoas mais pobres, ausentes de caráter, sem inteligência e dotado de

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

malandragens. É, portanto, a partir dessa imagem que a escola deve se curvar, reconstruindo-
a a fim de que as crianças não se cruzem com representações tão estereotipadas que causarão
vergonha, falta de aceitação e, até mesmo, medo do reconhecimento.
Mesmo com o uso de literaturas e leituras obrigatórias da poesia afro nos vestibulares
há algum tempo, é certo que, com a imposição de uso da Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) é
que a escola começou a priorizar com mais ênfase literaturas afrobrasileiras, seja através de
poemas, músicas ou obras infantis em seus currículos e planos de aula, principalmente, nas
disciplinas de linguagens e que, desse modo, a literatura e a arte constituirão a ponte para que
essa prática pedagógica ultrapasse as salas de aula, visto que, na maioria das vezes, as ações
racistas se originam no seio familiar, daí porque um evento como a performance literária
pode levar à reflexão, não apenas o alunado, mas, especialmente, a comunidade escolar, de
modo geral.
Nesse sentido, adere-se ao pensamento de Gomes (2012), que concebe a escola
como agente de luta contra os efeitos nocivos do preconceito racial. Para essa pesquisadora:

Os movimentos sociais, as lutas da comunidade negra exigem da escola


posicionamento e a adoção de práticas pedagógicas que contribuam para a
superação do racismo e da discriminação [...] é necessário uma formação político-
pedagógica que subsidie um trabalho efetivo com a questão racial na instituição
escolar. Boa vontade não basta (GOMES, 2012, p.188-189).

A escola pode, assim, se encarregar de discutir e promover reflexões em relação à


superação de paradigmas e estereótipos que teimam em marginalizar o povo negro frente à
valorização de sua história, cultura e a disseminação de referências positivas que contribuam
com a construção de sua identidade. Reiteramos, ainda, que a proposta da performance pode
funcionar como reflexão social sobre essa inserção, cujas versões da linguagem, como é o
caso da literatura, podem ser vistas como uma poderosa forma de expressão do mundo
através da arte, fazendo relação entre ficção e realidade, quando une o que o outro escreveu
ao que está sendo vivenciado no cotidiano das pessoas.
Se pensarmos que, antes de reproduzir, devem-se, paulatinamente, construir
conhecimentos, para que se tenha segurança sobre aquilo que se fala. Assim, uma
performance literária poderá ser o primeiro contato de muitas pessoas com o mundo
artístico e literário, daí porque tudo aquilo que for reproduzido pode ser visto como verdade
absoluta para aqueles que estão ouvindo pela primeira vez e, possivelmente, não tenham
interesse por aprofundar e de realizar novas buscas. Um dos passos construtivos para a
organização do evento dá-se a partir do roteiro de apresentação, no qual a seleção das obras
que irão ser apresentadas em sala e suas possíveis contribuições reflexivas no momento da

235
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

explanação servirão de base para essas quebras de estereótipos e possível valorização, tudo
envolto nas possibilidades que a performance pode oferecer. A esse respeito, compactuam-se
as ideias de Vygotsky (1997), quando afirma que o sujeito aprende de forma mais
significativa por meio de interações e construções cooperativas com seus semelhantes.
É importante que poetas, poetisas e autores de obras literárias, em geral, sejam
selecionados para que possam fundamentar as reflexões sobre a vida do negro e o
preconceito por ele vivenciado historicamente. Para isso, pode-se lançar mão de poetas que
influenciaram a promoção da literatura afrobrasileira, como o ‘cânone’ Castro Alves.
Entretanto, fixar essa explanação apenas em poetas e obras que tenham um lugar de fala
mais concretizado não é o melhor caminho a seguir, levando-se em consideração, sobretudo,
que a literatura regionalizada pode estar mais presente na vida dos educandos com critérios
próximos à realidade dos mesmos.
Para tal, é importante que essa inserção não tenha o propósito de tomar o lugar da
literatura canonizada, mas que, diferente disso, estenda as possibilidades culturais que esse
acesso pode promover. A esse respeito, citam-se os apontamentos de Osakabe (2005),
quando afirma que o que se pretendia, na eliminação dessa literatura cânone dos currículos
escolares, não seria a substituição de um padrão por outro, mas uma ampliação do universo
cultural que deveria, necessariamente, contemplar as produções mais significativas da história
próxima.
Essa ideia de história próxima pode ser exemplificada através da poetisa Midria da
Silva Pereira que, através dos saraus, deu voz a sua ancestralidade e, com uma linguagem
simples e própria da poesia falada, por meio da performance, trouxe uma temática por vezes
tão robusta para o encontro da realidade vivida por tantas outras meninas pretas que hão de
se encontrar no poema ‘Eu sou a menina que nasceu sem cor’, conforme se pode ler a seguir:
Eu tenho um problema
meu ascendente é em áries
E eu tenho outro problema
É que eu sou a menina que nasceu sem cor.
Para alguns eu sou preta
Para outros eu sou preta
Para muitos e muitos eu sou parda
Ainda que eu sempre tenha ouvido
Dizerem por aí que
Parda é cor de papel
E a minha consciência racial quando me chamem de parda
Fique tão bamba
Quanto à autodeclaração
De artista pop como a Anitta quando
Pratica apropriação cultural
[...]
(Trecho do poema ‘Eu sou a menina que nasceu sem cor’ da poetisa Midria da
Silva Pereira, 2019).

236
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

A leitura desse trecho é um convite a apreciar uma poesia que trata de um assunto
tão complexo e necessário, que continua atingindo milhares de meninas pretas. O trato que a
poetisa dá ao tema vem permeado de uma ironia notada logo no primeiro verso do poema,
quando ela afirma que sua cor de pele é ainda vista como um ‘problema’ que impede a
inserção social de tantas pessoas. Não obstante, essa ironia é ainda mais observada na
declamação do poema, disponibilizada na plataforma digital youtube 90
quando, para além da
dor, a poetisa interioriza todo aquele silêncio que ela e tantas meninas pretas precisaram
manter.
Sendo assim, ter a performance poética como subsídio é objetivar o movimento do
corpo, não aquele usado pela dança, mas lançando mão de um movimento de gestos, vozes e
comunicações a fim de que o dizer poético seja valorizado e apreciado por quem ouve aquela
mensagem em dado momento, como algo que vai além do ensaio, mas que tem
personalidade e vida própria, de acordo com o tempo, o público e o momento, conforme as
ideias de Zumthor (1993, p.219).

Trata-se de tentar perceber o texto concretamente realizado por ela, uma


produção sonora: expressão e falas juntas, no bojo de uma situação transitória e
única. A informação transmite-se assim num campo dêictico particular, jamais
exatamente reproduzível, e segundo condições variáveis, dependendo do número
e quantidade dos elementos não linguísticos em jogo.

O jogo que a poetisa faz entre aquilo que ela escreveu e aquilo que ela pretende
repassar está intimamente ligado ao propósito do Slam - batalha de poesia falada - da qual a
artista participa no momento da gravação da apresentação. Esse gênero pode ser relacionado
à performance quando, mesmo não necessitando de poesias autorais, mas os apresentadores
precisam fazer com que a poesia não seja meramente lida, mas declamada por parte de quem
apresenta e vivenciada por parte de quem a escuta.
Além da performance utilizada pela poetiza citada, a relação que ela traz com nomes
e símbolos que fazem parte do cotidiano dos alunos pode ser um fator atrativo para que essa
literatura seja lida e apreciada. Através desse exemplo pode-se citar Anitta, artista pop que é
conhecida pelo alunado e que, provavelmente, despertará o ouvinte na observação dessa
poesia falada. Muitos outros poetas e poetisas, embora ainda anônimos, podem contribuir
com a elaboração da performance proposta, a exemplo de Solano Trindade; 91
Oliveira

90 https://www.youtube.com/watch?v=o6zEZP7pudQ
91 Francisco Solano Trindade nasceu em Recife, no bairro de São José, filho do sapateiro Manuel Abílio,
mestiço de negro com branca, e da quituteira Dona Emerenciana, descendente de negros e indígenas. Solano
foi o grande criador da poesia “assumidamente negra”, segundo muitos críticos. Faleceu em 20 de fevereiro
de 1974. (Disponível em: http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/hist%C3%B3ria-e-mem%C3%B3ria/
historia-e-memoria/2014/12/30/solano-trindade).

237
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Silveira, 92
Victoria Santa Cruz 93
e Midria Silva, 94
que abordam o tema antirracista em seus
escritos.
No tocante à música, abre-se um leque de opções, metodologias e formas variadas de
trabalho, levando-se em consideração que, além de uma composição formulada a partir de
um roteiro histórico, as formas de recepção e convivência com esse gênero é algo cotidiano e
próximo de qualquer classe, independente de sua condição intelectual, social e faixa etária.
Nesse sentido, pode-se lançar mão de algumas composições bastante conhecidas, a saber:
‘Protesto do Olodum’, ‘Ilê Pérola Negra’ e ‘Brilho de Negro’ além do ‘Canto das Três Raças’,
que é uma canção que pode ser considerada hino na representação dessa diversidade
pretendida por nós na execução dessa performance.
Desse modo, não é preciso que o sujeito esteja inserido no âmbito escolar para que
possa ter acesso à música e às mensagens sugeridas pela mesma, conforme citam Ongaro,
Silva e Ricci (2006, p.2) [...] “a música está presente na vida de todos os seres humanos e
também na escola, para dar vida ao ambiente escolar, além de despertar nos alunos o senso
crítico para o que ouvem e como isso se reflete em sua vida.”
Assim, convém ressaltar que a escola deve ser esse espaço de transmissão de
mensagens socialmente edificadas, ocupando-se com promover a imaginação dos jovens que
ouvem as músicas para que elas sejam mais bem compreendidas. Assim, pode-se inferir que
a performance, sobretudo como questionada neste trabalho, é um misto de inclusão e de
pertencimento, uma vez que trará para o debate a cor de nossos alunos, dos seus familiares e
da sua cultura que, muitas vezes, é apagada no ambiente escolar.
Acredita-se que através dessa intervenção as barreiras possam ser ultrapassadas e que
o negro artista ou o branco que valoriza essa história, além de apresentar-se como
protagonista imprima valores, emoções e desejos através da poesia na performance, já que,
numa sociedade racista como esta em que se vive atualmente, não bastando, apenas, não ser
racista, mas, sobretudo, sendo antirracista.

92 Nascido em 1941 na área rural de Rosário do Sul, Estado do Rio Grande do Sul, Oliveira Silveira, poeta
negro brasileiro, junto ao grupo dos Palmares, idealizou o 20 de novembro, data que resgata a resistência do
povo negro. Faleceu em 01 de janeiro de 2009. (Disponível em: https://www.ufrgs.br/oliveirasilveira/).
93 Victoria Eugenia Santa Cruz Gamarra foi uma poeta, coreógrafa, folclorista, estilista e ativista afro-peruana.
Junto com seu irmão, Nicomedes Santa Cruz, ela é considerada significativa em um renascimento da cultura
afro-peruana nos anos 1960 e 1970. Morreu aos 91 anos devido à idade avançada e limitação na saúde.
(Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Victoria_Santa_Cruz).
94 Poeta, estudante de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, educadora, slammer, slammaster do
Slam USPerifa e membra do Coletivo Sarau do Vale. Acredita na poesia enquanto forma de cura, espaço de
escuta, fala e transformação social. Em 2020 publica de maneira independente seu primeiro livro de poesias
"A menina que nasceu sem cor". (Disponível em: https://www.midria.com.br/).

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

É pensando nos aspectos inclusivos na construção de uma cultura antirracista nas


escolas que a literatura afrobrasileira se apresenta, para além de uma obrigação, mas
conservada em sala de aula como uma manifestação cultural que, mesmo nos tempos de
sofrimento, aprisionamentos e imposições eram mantidas pelo povo negro. Conforme
destaca Santos (2013, p. 80),

Há anos os afrodescendentes buscam seu espaço na cultura e na literatura no


Brasil. Não podemos abdicar de um legado que faz parte da história deste país e
que em meios às paredes das senzalas, à escuridão do porão e nos campos das
fazendas nossos negros africanos nunca deixaram morrer a arte de suas raízes.

Por fim, mesmo com a imposição da Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003), nota-se que
muitos professores ainda encontram barreiras para explorá-la nas salas de aula, visto que o
preconceito ainda está arraigado e o reconhecimento como pessoa negra encontra-se um
pouco distante do no alunado atual.

5 Considerações finais
A promoção de uma cultura antirracista não só para os alunos, mas para todas as
pessoas, professores e comunidade escolar em geral, faz parte do maior propósito desta
pesquisadora, em relação a esse evento, uma vez que os conhecimentos adquiridos são
importantes e indispensáveis para a construção pessoal, social e política.
Além da reflexão sugerida pela performance, o aluno também terá a oportunidade de
se tornar coparticipante do seu processo educacional, saindo do anonimato e ultrapassando
o espaço restrito à sua carteira. Ao contrário disso, a organização do evento, a seleção dos
textos e obras que serão apresentados, a atuação e o protagonismo farão parte da construção
social do aluno que certamente não mais se sentirá alheio a sua própria formação, mas seu
construtor ativo. Sobretudo, levando-se em consideração que a performance é um evento
interdisciplinar em que o discente poderá ter contato com o conhecimento de diversas áreas
do saber sem que haja um processo enfadonho e obrigatório nesse percurso.
Ainda é possível citar que a temática antirracista poderá envolver alunos das mais
diversas personalidades do ambiente escolar e poderá chamar a atenção do público que, nem
sempre, consegue se destacar em eventos desse tipo, talvez pela falta de pertencimento
daquilo que está sendo exposto, uma vez que a maioria dos alunos que se interessam em
participar de tais eventos são aqueles que já apresentam sinais artísticos e predisposição para
o protagonismo.
A partir dessa intervenção espera-se que haja a possibilidade de valorização da pessoa
negra, desmistificando estereótipos anteriormente firmados numa tentativa de reconhecê-los

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

como seres capazes de contribuir com a crença, a gastronomia, a cultura, de modo geral, e a
beleza, numa nação inteira que historicamente se apresenta miscigenada. Assim, também é o
intuito desse processo, fazer com que o aluno se alie à performance para trazer ao público a
mensagem que está sendo desenvolvida no evento artístico.
Para tanto, pretende-se formar indivíduos que reflitam e façam refletir para além das
propostas pedagógicas e avaliativas e que, sobretudo, concebam a escola como uma
incentivadora do pensamento, da ação e que instrua seu alunado para que possa exercer o
papel de cidadãos livres e ativos na sociedade em que vivem, fazendo uso da arte e da
literatura como uma possibilidade múltipla de conversação e prazeres, além de,
principalmente, gerar uma estratégia de inclusão e pertencimento fortalecendo os laços e
proporcionando um ambiente escolar acolhedor, solidário e produtivo.
Entende-se que a política de embranquecimento está bastante presente na sociedade
brasileira, fazendo com que, cada vez mais, as pessoas se envergonhem de dizer que são
negras, mas expressando orgulho no momento em que falam. Cabe aos professores,
independente da sua área de atuação, aproveitar-se a história do país, como fonte de inserção
cultural desses jovens por meio da literatura.

Referências

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241
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

LITERATURA AFROBRASILEIRA DE AUTORIA FEMININA EM SALA DE


AULA: UM PROJETO DE INTERVENÇÃO

Mariana Eufrasino do Nascimento (UFRN)95


Tânia Lima (UFRN /Profartes - UDESC)96
Devir de Classe
A lei n° 10.639/2003 (BRASIL, 2003) tornou obrigatório no Brasil o ensino da
história e da cultura afrobrasileira. No entanto, na realidade escolar, observa-se que,
geralmente, essa prática é inexistente ou limitada. Com o intuito de romper essa tendência,
foi realizado o projeto de intervenção ‘Literatura afrobrasileira de autoria feminina em sala de
aula’, que será apresentado neste breve artigo de forma reflexiva.
O projeto experimental foi efetuado em 2018, em uma turma do sétimo ano do
Ensino Fundamental da rede pública estadual de ensino de Natal/RN, durante estágio
obrigatório. No período de um estágio destinado ao diagnóstico da realidade escolar, em
uma atitude etnográfica e reflexiva, problematizou-se o fato de as leituras feitas pelos alunos
restringirem-se a textos de autoria masculina e branca. Para intervir nesse aspecto, o projeto
realizado teve como base a leitura de contos das autoras Conceição Evaristo, Cristiane Sobral
e Raquel Almeida.
Ressalta-se que a reflexão construída acerca do diagnóstico e do projeto de
intervenção fundamenta-se em uma perspectiva de ensino voltada à formação humana
integral e sob a concepção interacionista da linguagem. Ao fim do projeto, observou-se que
os temas levados para a turma, a partir da literatura, como a cultura negra, a ancestralidade, a
identidade racial e o racismo, possibilitou que os alunos desvelassem ressignificações das
narrativas ficcionais a partir de suas próprias vivências, aproximando-se do texto literário
como sujeitos.

Das Leis Transformadoras


Há quase duas décadas, a Lei n° 10.639/2003 (BRASIL, 2003) tornou obrigatório,
nas escolas brasileiras, o ensino da temática ‘História e Cultura Afrobrasileira’ (BRASIL,
2004, p. 36). Porém, no que se refere à escola pública, sabe-se que, muitas vezes, essa prática
é inexistente, esquecida ou mesmo silenciada. Durante a disciplina de Estágio

95 Mestranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
participou como bolsista de iniciação científica nos projetos de pesquisa “Silenciamento e voz da mulher na
Literatura Portuguesa de autoria feminina” e “’Narrar é resistir?’: Literatura Brasileira Contemporânea e
memória, uma análise preliminar”. E-mail: [email protected]
96 Professora Permanente do Mestrado Profissional em Artes Profartes - UFRN/UDESC e orientadora do
presente artigo. E-mail: [email protected]

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Supervisionado de Formação de Professores II (Português), ao entrarmos em contato com a


escola referente ao estágio, percebemos essa limitação.
Na parte da disciplina em campo, isso é, no ambiente escolar, nosso trabalho se
dividiu em três partes. Primeiramente, fomos solicitadas a realizar uma observação reflexiva
inicial da escola, tendo como foco uma turma específica, durante as aulas de Língua
Portuguesa, a partir da qual diagnosticamos um aspecto daquela realidade para intervir. Após
essa parte, com o aspecto selecionado em vista, realizamos a elaboração e o desenvolvimento
de um projeto de intervenção nessa realidade, a partir de nossas reflexões. Durante a
travessia do estágio, houve a construção de um relatório reflexivo sobre a experiência. Essas
três etapas subsidiaram a construção das pensamentações aqui descritas.
Ressaltamos, contudo, que uma mera intervenção, de caráter pontual, não é capaz de
solucionar os aspectos diagnosticados, de cunho estrutural. Porém, isso não diminui a
relevância de um projeto como este, na medida em que ele propicia um espaço de
experiências pedagógicas renovadoras para todos os envolvidos, inspirando mudanças
estruturais e/ou a criação de propostas pedagógicas com objetivos semelhantes aos aqui
propostos.
Em campo, o estágio foi realizado em 2018, totalizando aproximadamente 40 horas,
em uma escola estadual da rede pública da cidade de Natal-RN. O trabalho foi realizado com
uma turma do sétimo ano do Ensino Fundamental, constituída por 33 alunos, na faixa etária
de 11 a 16 anos. A equipe responsável pelo desenvolvimento do projeto de intervenção foi
constituída por cinco integrantes: Aline Setúbal da Silveira e Mariana Eufrasino do
Nascimento, como estagiárias; pelas professoras orientadoras da disciplina na Universidade,
a Professora Doutora Ana Santana Souza e a Professora Mestre Sheila Valéria Pereira da
Silva; e pela professora supervisora na escola, a Professora Especialista Elisabeth Barbosa
Barros Pereira.
Durante o período de observação, foram realizadas leituras de contos em sala de aula.
Percebemos que essa leitura se reduzia à decodificação do texto literário, de forma que a
atividade estava desconsiderando diversas dimensões da leitura literária. Além disso,
observamos, também, que os contos trabalhados foram escritos por homens brancos, e que
aspectos como autoria, obra e contexto de produção dos textos lidos não foram
considerados.
Com esse diagnóstico inicial, propusemos o projeto de intervenção ‘Literatura
afrobrasileira de autoria feminina em sala de aula’, que consistiu no desenvolvimento do
letramento da literatura afro-brasileira contemporânea no ambiente escolar, a partir da leitura

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

de contos das autoras Conceição Evaristo, Cristiane Sobral e Raquel Almeida. Para tal,
tivemos em vista as limitações observadas na escola com relação ao ensino da História e da
Cultura Afrobrasileira na disciplina de Língua Portuguesa. Destacamos, em nosso trabalho,
as temáticas que se apresentaram a partir dos textos, como identidade, racismo e
ancestralidade, em busca de romper com a atividade de leitura como mera decodificação.
Como metodologia de ensino, utilizou-se a sistematização sugerida por Rildo Cosson (2014),
porém não em sua completude, havendo destaque para a etapa de ‘motivação’.
Na medida em que nos aproximamos da realidade da escola, a partir de um olhar de
dentro do espaço, questionando as práticas de ensino naturalizadas no cotidiano escolar, em
um exercício de alteridade, tentamos nos apropriar do que Pimentel (2014, p. 50) denomina
de ‘atitude etnográfica’. Consideramos, ainda, em nossa prática pedagógica, a reflexão crítica
sobre a experiência de trabalho escolar como fundamento do saber docente, também
objetivo da disciplina, criando uma relação indissociável entre teoria e prática.
Essa atitude torna-se imprescindível para adotarmos um ‘practicum reflexivo’, no
sentido adotado por Schön (1992), diante das múltiplas vivências compartilhadas. Vivências
essas que têm como consequência, também, a possibilidade de renovação da prática da
professora supervisora, como constituinte dessa construção pedagógica coletiva.
Como atividade transformadora da sociedade, fundamentamo-nos em uma
perspectiva de ensino voltada à formação humana integral, ou seja, uma concepção de
formação humana para além dos aspectos cognitivos, envolvendo outras dimensões, como
ética, física, estética, social, afetiva, dentre outras (PESTANA, 2014). Na perspectiva de uma
educação humana integral, questionamos a concepção de linguagem a ser adotada. Ao
priorizarmos a ideia de que todo e qualquer texto é produzido na e pela interação, optamos
em nortear nossas práticas pedagógicas consoante uma concepção interacionista da
linguagem.
Sob esse viés, observamos que o sentido do texto não é proveniente, apenas, das
informações elencadas na superfície textual, uma vez que outros conhecimentos, como os
trazidos a priori pelo ‘aluno leitor’, serão ativados e irão interagir no decorrer do processo de
leitura (KLEIMAN, 2000). Assim, durante o desenvolvimento do projeto, procuramos
propiciar aos estudantes o desvelamento de ressignificações das narrativas de outrem, a partir
da aproximação deles com o texto literário como sujeitos, não se limitando ao que está dito
de forma explícita, pelo código; embora essa ressignificação não esteja dissociada das
escolhas empregadas pelo autor no texto, nem de objetivos e necessidades socialmente
determinados.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Intervenção Poética Já
Para definição e futura realização de nosso projeto de intervenção, anteriormente foi
imprescindível mergulharmos no ambiente escolar a fim de estruturarmos o diagnóstico
inicial mediante a realidade observada. Do contrário, a proposta de intervenção adquiriria um
caráter impositivo e dissociado do contexto de intervenção. Durante a observação,
constatamos que as atividades de ensino da leitura estiveram centradas na mera
decodificação da escrita, sob a proposta de leitura em voz alta, porém sem orientações para
isso, o que dificultou a compreensão do texto por parte dos alunos.
Diante das atividades sugeridas, dissociadas das múltiplas funções sociais da leitura e
observando que os contos trabalhados foram escritos por homens brancos, justificou-se
nossa proposta de trabalhar com contos afrobrasileiros de autoria feminina, em respeito à
pluralidade identitária e cultural e em diálogo com aspectos ideológicos vinculados aos textos
literários, visando à educação emancipadora e libertadora.
Salientamos que a proposta aqui referida se encontra em consonância com uma
perspectiva de ensino voltada à formação humana integral, a partir da qual nos pautamos,
além de estar em conformidade com a Lei n° 10.639/03 (BRASIL, 2003). Procuramos,
assim, contribuir com o conhecimento de contos afrobrasileiros de autoria feminina e de
outras visões de mundo, além das hegemônicas, inclusive auxiliando na compreensão de que
não há texto neutro.
Ao pesquisarmos o acervo literário constante na biblioteca da escola, constatamos
que havia uma única obra literária afrobrasileira, em exemplar único, o 30º volume da série
‘Cadernos Negros’. Dada a importância da série para o cenário brasileiro, organizada desde
1978 por escritores e escritoras negros(as) e brasileiros(as) e, em especial, para a divulgação
da literatura afrobrasileira e dos escritores que em parte a constituem, conforme abordado
por Duarte (2014), optamos por trabalhar com contos veiculados na antologia.
Assim, esse projeto de intervenção contemplou a leitura crítica dos contos ‘Lumbiá’,
de Conceição Evaristo, ‘Minha cor’, de Raquel Almeida, e ‘O tapete voador’, de Cristiane
Sobral, todos publicados na antologia literária ‘Cadernos Negros’. Objetivando a apropriação
literária, por parte dos alunos, em relação aos contos a serem trabalhados, sugerimos a
elaboração de roteiros para a apresentação de esquetes ao final do projeto de intervenção,
uma vez que a literatura e o teatro estão intimamente relacionados como formas de
manifestações artísticas e críticas do contexto social. A avaliação foi realizada de forma
contínua, ou seja, ao longo de todo o processo, como forma de possibilitar ajustes
necessários, consoante o desempenho e interesse dos alunos.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Cartilha do Sensível em Sala de Aula


Após a elaboração do projeto de intervenção e a aprovação das professoras,
orientadoras e supervisora, passamos ao seu desenvolvimento. Nosso projeto de intervenção
iniciou-se com a sua apresentação aos alunos, no entanto, antes de expormos a nossa
proposta e a fim de incentivarmos uma maior reflexão dos estudantes com relação aos seus
hábitos de leitura, questionamos quais eram as escritoras e os escritores ‘conhecidos’ por
eles, bem como as obras literárias que eles conseguiam recuperar. As respostas remeteram
aos escritores Maurício de Souza, Monteiro Lobato e Felipe Neto, à escritora Ruth Rocha e
às obras ‘Turma da Mônica’, os volumes do ‘Sítio do Pica-Pau Amarelo’, ‘Pinóquio’ e
‘Romeu e Julieta’.
Além de outros questionamentos, perguntamos se dentre as histórias lidas por eles
figurava algum personagem negro e eles remeteram à tia Nastácia das obras de Monteiro
Lobato. Assim, resgatamos em conjunto a caracterização dessa personagem, como
cozinheira e muito ocupada com as atividades domésticas. Perguntamos ainda se eles
conheciam algum(a) personagem negro(a) que figurasse como personagem principal da
história lida, mas ninguém conhecia. A partir do apresentado, constatamos que as respostas
já reforçavam a importância das diretrizes estabelecidas para o projeto.
Após os questionamentos suscitados, em que pudemos partir do que os alunos já
conheciam para aquilo que eles desconhecem (COSSON, 2014, p. 35), solicitamos que cada
aluno puxasse um papel, no qual constava o nome de uma escritora negra brasileira que se
encontra inserida na literatura afrobrasileira. Ressaltamos que essa informação, inicialmente,
não foi revelada. As escritoras previamente escolhidas por nós foram Conceição Evaristo,
Cristiane Sobral, Raquel Almeida, Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus,
Esmeralda Ribeiro, Lélia Gonzalez, Geni Guimarães, Alzira Rufino e Miriam Alves. Alguns
desses nomes encontravam-se repetidos. Uma vez que não fornecemos nenhuma pista
anteriormente, os alunos ficaram curiosos e interessados por saber acerca do propósito dos
papeis.
Após a distribuição dos papéis, lemos nome por nome, questionando a cada vez se
os alunos já tinham ouvido falar naquele nome ou se soava de alguma forma familiar. A
mesma negativa foi repetida todas as vezes. Em seguida, perguntamos aos alunos se eles
desconfiavam do que teria de semelhante entre as pessoas referidas. As seguintes respostas
foram fornecidas: ‘são mulheres’, ‘todas têm nome feio’, ‘são escritoras’. Informamos, após
isso que, além de serem escritoras mulheres, todas elas eram negras. A partir daí, começamos
a explicar a proposta do projeto a ser desenvolvido.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Optamos pela realização das atividades iniciais referidas antes da apresentação de


nosso projeto, no intuito de estimular uma postura criticorreflexiva dos alunos, para que eles,
por si mesmos, resgatassem a importância de se trabalhar com textos literários que possam
subverter as perspectivas das narrativas comumente veiculadas no âmbito escolar. Assim, ao
ajudarmos os alunos a refletirem sobre essas práticas discursivas escolhidas, procuramos
estimulá-los a pensarem acerca de suas próprias práticas discursivas.
Após explicarmos a proposta do projeto aos alunos, apresentamos, a partir de
recursos audiovisuais, informações sobre as três autoras dos contos a serem trabalhados,
bem como sobre seus contextos de inserção na literatura brasileira. Em seguida,
apresentamos o material suporte dos contos veiculados: a série ‘Cadernos Negros’.
Aproveitamos a ocasião para, também, divulgarmos o vídeo ‘O perigo de uma única
história’, da escritora nigeriana Chimamanda Adichie (2014). Ao final da exibição do vídeo,
retomamos algumas ideias discutidas pela escritora, que dialogaram com o discutido de
forma coletiva anteriormente em sala.
Esse primeiro momento foi imprescindível para possibilitar e enriquecer as etapas
subsequentes desenvolvidas ao longo do projeto, uma vez que a compreensão da
importância da temática e da leitura em perspectivas inovadoras permite o despertar de uma
curiosidade nos alunos em relação às futuras leituras, bem como aguça a percepção para
questões sociais inseridas, inclusive, em seu próprio cotidiano e que antes não estavam sendo
focalizadas.

Relatos em Chão de Giz


Os três encontros subsequentes foram destinados à leitura e discussão dos contos
‘Lumbiá’, de Conceição Evaristo, ‘Minha cor’, de Raquel Almeida, e ‘O tapete voador’, de
Cristiane Sobral. Apesar de não seguirmos toda a sistematização sugerida por Rildo Cosson
em sua obra ‘Letramento literário: teoria e prática’ (2014), justamente por nos apropriarmos
dela sem rigidez, fazendo as adaptações necessárias ao nosso contexto, elencamos a etapa de
‘motivação’ como essencial para trabalharmos com os textos literários, procurando
estabelecer traços estreitos com os textos que foram lidos a seguir, conforme Cosson.
Ressaltamos que, embora a motivação influencie de alguma forma as expectativas do ‘sujeito
leitor’, este não é silenciado, nem aquela determina sua leitura.
Dito isso, descrevemos a seguir as estratégias de motivação utilizadas anteriormente à
leitura dos contos trabalhados. No encontro destinado à leitura e discussão do conto
‘Lumbiá’, perguntamos aos alunos se eles conheciam a Constituição do nosso país, ao que

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

eles responderam que não, ou que apenas haviam ouvido falar sobre. Apresentamos, em
seguida, a Constituição Federal (BRASIL, 1988), falamos brevemente acerca da sua
importância e lemos e discutimos o caput do artigo 227, que trata de responsabilidades da
família, da sociedade e do Estado com relação às crianças e aos adolescentes.
Entre relatos de experiências, em um encontro destinado à leitura e discussão do
conto ‘Minha cor’, de Raquel Almeida, exibimos o vídeo ‘Caião quer conversar’, da escritora
e youtuber Julia Tolezano (2016). As discussões após a exibição do vídeo foram interessantes,
pois geraram indagações sobre a identidade racial no Brasil e o quanto o debate sobre o que
é ser negro, muitas vezes, limita-se a uma questão de cor, desconsiderando-se outras
características físicas bem como questões culturais.
Por fim, no encontro destinado à leitura e discussão do conto ‘O tapete voador’, de
Cristiane Sobral, exibimos os vídeos ‘A reafirmação da estética negra como resistência’, do
canal Diário de Pernambuco (2016), e ‘Gritaram-me negra’, apresentação do poema da
escritora e ativista Victoria Santa Cruz (2013).
Após a exibição dos vídeos, perguntamos aos alunos o que eles achavam que
constituía a identidade negra e fomos anotando no quadro as informações para posterior
retomada após a leitura e discussão do conto. Ressalta-se que as temáticas abordadas a partir
dos textos literários não foram previamente definidas, mas destacadas na etapa de motivação
por serem aquelas que se sobressaíram nos contos, de forma que o texto literário esteve no
centro do nosso direcionamento pedagógico.
Sucedendo às atividades iniciais, começamos a leituras dos contos, que foram
distribuídos aos alunos. No decorrer das leituras, foram dirimidas possíveis dúvidas em
termos de significação de vocábulos e também, feitas orientações quanto à leitura em voz
alta, quando esta foi solicitada, para a melhor leitura e compreensão dos textos.
Após a leitura do conto ‘Lumbiá’, questionamos se os alunos já haviam lido alguma
história sobre um menino que é vendedor de rua e eles responderam que não. Perguntamos
se era comum, no percurso até a escola, ou nas saídas com amigos, eles encontrarem crianças
ou adolescentes da faixa etária deles que, assim como o personagem Lumbiá, vendiam algo
em semáforos ou nas calçadas e eles responderam que sim. A seguir, indagamos acerca dos
motivos dessas crianças e adolescentes estarem trabalhando nas ruas e de ressaltarem a
necessidade de sustentar a família, a exemplo da personagem Lumbiá. Também discutimos
sobre as razões do protagonista do conto gostar tanto da imagem do presépio.
Em seguida, solicitamos que os alunos se dirigissem ao quadro, de forma voluntária,
e escrevessem algo que remetesse ao conto. Apesar de reforçamos durante a atividade que

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

eles não precisavam resgatar palavras do próprio texto, os alunos limitaram-se a selecionar
palavras que apareceram no texto lido. A fim de tentarmos superar a mera recuperação de
elementos explicitados na superfície textual, resgatamos algumas das palavras que foram
transcritas pelos alunos no quadro e buscamos construir relações dialógicas entre elas, bem
como com o desencadeamento final do conto, com a morte do personagem Lumbiá.
Foram resgatadas as seguintes palavras transcritas: pobreza, vazio, solidão, família,
pai, mãe, subúrbio, pivete, segurança e frágil. Assim, a partir desses dados apresentados pelos
alunos, construímos, de forma coletiva, a relação do desencadeamento do conto com o final
trágico de Lumbiá e os alunos reforçaram a ausência da família como um fator
desencadeador. Na ocasião, retomamos o artigo da CF/88 (BRASIL, 1988) apresentado
anteriormente à leitura do conto e destacamos a importância, não apenas da família, mas
também da sociedade e do Estado.
Após as discussões supracitadas, ao final da aula, a aluna E.C. relatou que o seu pai e
o seu tio, quando crianças, tiveram que trabalhar nas ruas, vendendo mercadorias nos
semáforos, para ajudar no sustento de casa. No entanto, diferentemente do fim trágico
sofrido por Lumbiá, atualmente, eles cursam licenciatura e, em breve, serão professores. A
aluna relacionou, assim, a vivência de seus parentes à vivência do protagonista do conto,
apontando algumas distinções que possibilitaram um desenrolar feliz, mesmo em meio às
dificuldades financeiras, e disse que, tanto o pai quanto o tio receberam incentivo para
estudarem.
Observamos, assim, o desvelar, por parte da aluna, de ressignificações da narrativa a
partir da aproximação do texto literário como sujeito, possibilitado a partir do diálogo da
temática trabalhada no conto com as narrativas orais que ela escutou de seus parentes. Ao
propiciar o diálogo entre a literatura e a vivência dos alunos fora da escola, rejeitamos o
reducionismo das atividades de leitura à mera decodificação ou seleção de informações, bem
como nos afastamos de práticas pedagógicas que reduzam o texto literário a pretexto.
Já após a leitura do segundo conto, ‘Minha cor’, perguntamos o que os alunos
achavam sobre a opinião da protagonista de que, na verdade, a cor ‘parda’ não existe e que,
portanto, as pessoas são necessariamente brancas ou negras, conclusão a que a protagonista
chega a partir de uma busca por suas raízes. Os alunos não deram uma resposta ao nosso
questionamento e seguiram discutindo a questão entre si.
Procuramos não impor uma resposta certa ou errada a uma questão tão delicada,
que suscita tantas reflexões. Ao término da aula, observamos que os alunos ainda estavam
discutindo entre si, perguntando-se de que cor realmente é o mundo. Alguns se definiam

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

como negros veementemente. Em um país em que a maior parte da população é negra e em


que a ancestralidade africana é renegada, tentando-se apagar tudo aquilo que diz respeito à
cultura negra, é de grande relevância que essas questões tenham lugar também no espaço
dedicado à literatura em sala de aula. Os estudantes relacionaram, assim, a vivência e a
experiência estética, tendo como um dos resultados indagações e afirmações sobre a sua
própria identidade.
Por fim, após a leitura do conto ‘Tapete voador’, em que o chefe da protagonista, em
um ato de cunho racista, ofende a sua identidade e ela pede demissão, perguntamos aos
alunos o que eles achavam da atitude da protagonista e o que eles fariam em seu lugar. A
essas indagações, os alunos responderam que o chefe foi racista e que eles fariam o mesmo
que ela; um dos alunos disse que, além de se demitir, processaria o chefe. Em seguida, os
estudantes deram depoimentos sobre atos racistas e/ou preconceitos que eles mesmos
haviam sofrido por serem negros, ou por seus traços. Isso só foi possível através da
construção de um ambiente confortável e afetivo o suficiente para tal, em que os alunos
foram considerados em suas diversas dimensões como sujeitos.

Das ‘Escrevivências’ às Escrivanhinhas


Após a parte do projeto explicitada anteriormente, dedicada à leitura e à discussão
dos contos, iniciou-se outra parte, focada no conhecimento e na produção do gênero roteiro,
para a posterior apresentação de esquetes. No primeiro encontro dessa parte, após perguntar
aos alunos o que eles sabiam sobre o gênero oral esquete, fizemos uma explanação acerca de
sua estrutura. Depois, dividimos a turma em seis grupos e solicitamos a primeira escrita do
roteiro de esquete, um por grupo, como escrita prévia, possibilitando o diagnóstico dos
conhecimentos dos alunos sobre esse gênero bem como suas possíveis dificuldades e
visando a estruturar a apresentação a ser realizada ao final do projeto. Os grupos foram
divididos de acordo com os contos lidos anteriormente, para que pudessem construir
roteiros de esquete a partir deles.
No encontro seguinte, a partir do que observamos na primeira escrita dos roteiros,
fizemos uma explicação sobre o gênero roteiro de esquete, chamando atenção para as suas
características principais e os aspectos que os alunos demonstraram mais dificuldade. Em
seguida, solicitamos a reescrita dos roteiros. Neste encontro, verificamos que os roteiros
escritos pelos alunos estavam mais adequados ao gênero, apresentando título, lista de
personagens, rubricas cênicas e marcação de falas. No encontro posterior, a princípio,
planejávamos realizar uma nova reescrita. Porém, o tempo acabou sendo utilizado para que

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

os alunos continuassem a primeira reescrita, pois eles não conseguiram finalizá-la no


encontro anterior.
Terminadas as etapas de introdução ao projeto, leitura dos contos e produção dos
roteiros de esquetes, chegamos ao último encontro, quando os alunos foram solicitados a
entregar a versão final dos roteiros e a apresentar a esquete pessoalmente ou em vídeo,
conforme optaram. Todos os seis grupos entregaram os roteiros com a estrutura apropriada,
possuindo título, lista de personagens, rubricas cênicas e marcação das falas das personagens.
Quanto ao conteúdo, alguns dos roteiros se prenderam mais aos limites do conto, porém
outros foram mais além. Houve, por exemplo, um roteiro sobre o bullying, em que os alunos
se inspiraram em suas próprias experiências e também outro sobre o racismo, em que os
estudantes colocaram seus próprios nomes como personagens, pois o estudante que
escolheu o papel de personagem principal se inspirou em suas próprias vivências como
jovem negro.
Com relação à atividade final proposta, não tivemos nenhuma apresentação de
esquete nem entrega de vídeo. As motivações alegadas para a não apresentação do trabalho
pelos demais estiveram centradas na timidez e por nem todos os componentes do grupo
demonstrarem interesse pela apresentação. No entanto, conversando com alguns alunos,
percebemos que apresentações orais à frente da sala eram evitadas, pois as zombarias por
parte dos colegas eram recorrentes. Além disso, ressaltamos que, ao longo do projeto, não
foi destinado nenhum dia para ensaio das enquetes, ponto que destacamos como possível
limitador do desenvolvimento da atividade final proposta. Com base no resultado
apresentado, acreditamos que o planejamento de oficinas e/ou dinâmicas corporais seria de
fundamental importância para incentivar a participação dos alunos nessa atividade.

Afinal sem final


Em nosso último encontro, além da entrega da versão final dos roteiros e da
apresentação do grupo, solicitamos aos alunos que respondessem, por escrito, cinco
questões de cunho subjetivo, para que eles pudessem avaliar o projeto de intervenção
realizado e também, se autoavaliar. Destacamos, a seguir, algumas dessas respostas que
foram interessantes para se pensar o nosso fazer poética em experimento pedagógico.
A aluna E.M. ressaltou, como ponto positivo do projeto, o seguinte: “o que eu mais
gostei foi que vocês deram liberdade para a gente falar o que pensa e o que achamos.” A
aluna E.C., na mesma direção, acrescentou na avaliação do nosso desempenho no projeto:
“elas souberam dar atenção para a gente.” Ressaltamos que essa prática adotada estabelece
relação com a concepção da linguagem à qual nos filiamos para o desenvolvimento das
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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

atividades.
As respostas dos alunos alimentaram nossa percepção, também, da importância da
escolha da temática. O aluno W.M, por exemplo, aponta que a ideia de escrita da narrativa
foi concebida a partir do que ele vivenciou. Torna-se claro, assim, que a relação com o
objeto estético ocorre, não apenas no âmbito da narrativa em si, mas também, no mundo das
vivências. Daí a importância de escolhermos uma temática que dialoga intimamente com o
cotidiano dos ‘sujeitos leitores’ e escritores de suas próprias narrativas.
Além da importância da escolha da temática, as respostas às proposições revelaram
também a importância da escolha dos gêneros a serem trabalhados. Destacamos, como
exemplo, a resposta de W.M. referente ao que ele mais gostou do projeto: ‘criar histórias’.
Assim, a escolha do gênero roteiro para esquete também se revelou de importância
fundamental para alimentar a construção da experiência literária, embora não tenha havido a
apresentação das ‘esquetes’.
Desse modo, observamos que a experiência literária foi construída de forma
enriquecedora, propiciando a experiência estética relacionada à experiência dos alunos como
sujeitos. Consideramos como relevantes, também, as marcas deixadas nos leitores pela
literatura que nós, como professoras, não pudemos identificar, aquelas que “agem de
maneira subterrânea” (ROUXEL, 2014, p. 25), têm um tempo próprio e, por vezes, ficam
apenas no plano do inconsciente, as marcas que não podem ser vistas, mas que também nos
formam como seres humanos.
A partir de nossa vivência no projeto ‘Literatura afrobrasileira de autoria feminina’
junto aos alunos da escola em que o estágio foi realizado, pudemos construir nossos
primeiros conhecimentos através da prática reflexiva em sala de aula, visto que essa foi nossa
primeira experiência nesse ambiente como professoras em formação. Esses conhecimentos
só foram possíveis por causa dos fundamentos teóricos que aprendemos durante nossos seis
semestres de graduação percorridos até aquele momento, que foram de grande importância
para que pudéssemos ter um olhar crítico no ambiente escolar.
Assim, a partir da prática reflexiva, percebemos a importância de se procurar dar o
máximo de atenção ao que os alunos têm a dizer, seus comentários, suas dúvidas, tratando-
os como sujeitos em suas diversas dimensões e não marginalizando nenhum deles,
independentemente de seu comportamento. Com essa atitude, conseguimos incentivar sua
participação nas atividades propostas e, como revelado na avaliação efetuada pelos
estudantes com relação ao projeto, esse foi um dos aspectos que mais se destacou para eles
em sua jornada de conhecimento conosco.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

Averiguamos, também, que os textos literários que trouxemos para a sala de aula,
constituídos por temas como a cultura negra, a ancestralidade, a identidade racial e o
racismo, com um aprofundamento além do superficial, possibilitaram o desabrochar de
construções e reconstruções dos sentidos das narrativas por parte dos alunos. Ademais,
percebemos que tais temáticas, com um olhar mais aprofundado, ainda são vistas como
atípicas na escola, o que reforça a relevância de discuti-las com os estudantes. É também
com essas discussões que se pode, na escola, provocar reflexões acerca da própria identidade
racial, por parte dos alunos, além de se incentivar a consciência sobre as questões de raça no
país, o que é, também, uma forma de se combater o racismo em sua origem - a ignorância
sobre o assunto.
Ao finalizarmos o estágio, percebemos, ainda, que ao se tratar de um tipo de
preconceito, e mais especificamente do racismo, os alunos acabam por refletir sobre os
diversos tipos de discriminações que atravessam vidas humanas à beira do Século XXI.
Assim, muitos de nossos alunos, especialmente aqueles que vivenciam cotidianamente na
pele o legado da intolerância, são incentivados a repudiar a prática racista e as demais
discriminações mundo adentro o que contribui de alguma maneira com a formação ética de
seres humanos mais conscientes e insubmissos. Marielle Presente!

Referências

ALMEIDA, Raquel. Minha cor. In: Cadernos Negros. 1 ed. São Paulo: Quilomboje, v. 30,
2007.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação


das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e
Africana. Brasília: MEC, out.2004.

COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2014.

DUARTE, E. A. Por um conceito de literatura afrobrasileira. Revista Rassegna Iberística,


v. 37, n. 102, p. 259-279, dez. 2014.

EVARISTO, Conceição. Lumbiá; SOBRAL, Cristiane. O tapete voador. In: Cadernos


Negros. 1 ed. São Paulo: Quilomboje, v. 34, 2011.

KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 7 ed. Campinas: Pontes, 2000.

PESTANA, S. F. P. Afinal, o que é educação integral? Revista Contemporânea de


Educação, Rio de Janeiro, v. 9, n. 17, p. 24-41, jan. - jun. 2014.

253
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

PIMENTEL, A. A atitude etnográfica na sala de aula: descolonizando os processos de


ensino. Realis, v. 4, n. 2, p. 49-71, 2014.

ROUXEL, Annie. Ensino da literatura: experiência estética e formação do leitor. In: ALVES,
José Hélder Pinheiro (org.). Memórias da Borborema 4 – Discutindo a literatura e seu
ensino. Campina Grande: Abralic, 2014.

SCHÖN, D. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÓVOA, A. (org.). Os


professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 77-92.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

A TRAVESTI NEGRA NO ROMANCE HISTÓRICO AFROBRASILEIRO DE


ELIANA ALVES CRUZ
Jade Mariam Carvalho Silva Vaccari 97
Sávio Roberto Fonseca de Freitas 98

1 Colocações Iniciais
O presente estudo busca evidenciar a vivência de uma travesti no Brasil Colônia
através da análise da obra ‘Nada digo de ti que em ti não veja’ da autora afrobrasileira Eliana
Alves Cruz. A pertinência desta obra escrita por uma autora afrobrasileira consiste em “olhar
para trás, entender como as coisas aconteceram e ousar pensar no amanhã” (CRUZ, 2020a),
conforme palavras da autora concedidas em entrevista. Além de refletir que, atualmente, a
literatura afrobrasileira está em evidência, pois autores afrobrasileiros contam sua própria
história, ou seja, a história do povo negro através de sua literatura, o que podemos
denominar escrevivência. Além disso, buscaremos abordar a representação da mulher trans na
literatura de Eliana Alves Cruz, tendo como foco o âmbito afetivo-sexual e o fato dos corpos
trans serem vistos como corpos abjetos em meio a uma sociedade heteronormativa. Para
compreender as questões de gênero inerentes à obra faz-se necessário o aporte teórico de
autoras como Judith Butler, entre outros.

2 Desenvolvimento
A sociedade baseia-se em um Cis-tema fundamentado na diferença sexual, no qual o
gênero, a sexualidade e o corpo seriam instâncias que se coadunam, não podendo ser
dissociadas, logo os corpos que se distanciam dos padrões de gênero podem ser chamados
corpos dissidentes, logo é como se tais corpos representassem uma quebra na ordem
estabelecida socialmente, conforme Bento (2006, p. 13). A terminologia Cis-tema tem o
objetivo de explanar o sistema cisgênero dominante. Ou seja, as normas da cisgeneridade
que ditam padrões de gênero, que subjugam corpos transgêneros que não enquadram de
modo simétrico nos seus ditames de sexo, identidade, orientação sexual e afetividade.
Vergueiro (2015) evidencia a importância da interseccionalidade como aspecto crítico
da cisnormatividade, a qual aponta o alinhamento de outros fatores normativos imbricados
nessa relação, destacando-se um cenário no qual atuam padrões como os que podemos
chamar de branquitude, cisgeneridade e cristianização. Conforme Santos (2019), o vocábulo
‘heteronormatividade’ é algo novo na língua portuguesa, porém corresponde a uma suposta
homogeneidade da sexualidade e gênero da população, que não pode ser deturpada por
‘Ideologias de Gênero’ que estariam perante o senso comum em voga atualmente, assim a

97 Mestranda em Estudos Culturais e de Gênero, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras – UFPB.


98 Professor de Literaturas de Língua Portuguesa do DL-CCAE e do PPGL/UFPB.

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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022

heteronormatividade distinguiria entre o normal e o anormal, no que concerne aos padrões


de gênero (SANTOS, 2019, p. 485). A heteronormatividade corresponde ao Cis-tema que
supervaloriza uma vivência em detrimento de todas as demais.

A protagonista trans em ‘Nada digo de ti que em ti não veja’


Vitória, a protagonista da obra literária, pode se dizer que se trata de uma mulher
trans negra que no início da história é escravizada, a narrativa se passa no século XVIII,
devido a sua astúcia ela consegue tornar-se uma travesti livre. Vitória, a negra forra e
prostituída vive um amor proibido com o fidalgo Felipe Gama, que seria sua perdição.
Porém, a trama nos faz refletir se o amor que os unia seria capaz de ser mais forte que as
imposições sociais.
Pensar nesta vivência é pensar numa vivência trans em um contexto em que a
sociedade não reconhecia tal vivência, porém a pessoa trans existia naquela sociedade do
Brasil Colônia setecentista, conforme os trechos “negro que se diz mulher” (CRUZ, 2020b,
p.34) e “o medonho africano metamorfoseado em mulher” (CRUZ, 2020b, p 148), tais
trechos revelam que Vitória pode ser lida conforme o que hoje denominamos travesti ou
mulher trans, pois assumia socialmente uma identidade feminina ainda que tal identidade não
tivesse reconhecimento por parte do Estado. Isso faz da personagem um ser errante, naquele
contexto dominado pela Coroa, pelos poderes do Clero, tais poderes que poderiam a
condenar Vitória à morte de sua identidade feminina, como também à sua morte física. Cruz
(2020) em sua poética traz à tona a reconstituição de uma época, o início do século XVIII.
Cruz investigou casos de ‘homens’ em documentos históricos que se apresentavam
como mulheres, assumiam socialmente uma identidade feminina, o que corrobora com Mott
“quando o chamam de homem, não gosta disso. Comumente o chamam de Vitória e só
queria que lhe chamassem de Vitória, e quem lhe chamava de negro, corria às pedradas”
(MOTT, 2005, p. 12). Logo, esse relato histórico que fala de uma outra Vitória, mulher trans
vamos denominá-la desse modo, que fora presa em 1556 em Lisboa, sob a acusação de
sodomia. Vitória, que era natural do Reino do Benin, se prostituía fazendo concorrência às
demais mulheres profissionais do sexo, até que foi descoberto o seu sexo biológico que era
masculino, sendo, portanto, condenada ao degredo, trabalhando de forma análoga à
escravidão nas galés de Algarve.
A trama da obra analisada se passa em São Sebastião do Rio de Janeiro e revela que a
sociedade é um tanto hipócrita em suas práticas, pois as famílias de escravocratas Gama e
Muniz antagonistas da trama possuem segredos que são revelados no decorrer da narrativa,
por exemplo, uma origem judaica que poderia resultar em uma acusação de lesa-majestade,

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punida com a morte por enforcamento ou fogueira. A trama dialoga com temas atuais do
contexto brasileiro, como o racismo estrutural, as fake news, os dogmas da Igreja, como
também uma possível redenção através da Delação Premiada diante do tribunal da
Inquisição, ou melhor, Santo Ofício como era conhecido no Brasil.
No desenrolar da história, as personagens de origem judaica são acusadas de bruxaria
juntamente com a travesti Vitória que se mostra como uma curandeira, ‘calunduzeira’, que
era procurada pelas pessoas para a realização de práticas como reza para tirar ‘mau olhado’,
tratamentos médicos, previsão do futuro, entre outras; a narrativa revela a associação entre
ser mulher e a bruxaria, conforme o trecho “vossa mercê pensa que não sei de vosso
intercâmbio com estas bruxas, de um lado tens as feiticeiras judaizantes” (CRUZ, 2020b, p.
148). O ponto forte da narrativa é a construção evidente da identidade de gênero feminina
de Vitória conforme o trecho “Não sou negro. Sou negra! Ne-gra” (CRUZ, 2020b, p. 184), o
que evidencia o sentimento de pertença da personagem a uma identidade feminina, o que
ocorre em diversos outros trechos da trama.
Um dos pontos principais da narrativa é a relação entre o jovem Felipe Gama estaria
fadada ao fracasso, pois seria impossível a relação entre um fidalgo e uma travesti negra (usar
tal termo pode gerar um anacronismo), porém seu uso se dá devido às evidências de que a
personagem de fato tinha uma identidade de gênero feminina assumida socialmente,
conforme o trecho “Ela sabia que o mundo em que viviam não nutria pessoas como ele para
que tivessem musculatura de espírito para viverem abertamente suas verdades” (CRUZ,
2020b, p. 183). A partir da narrativa vemos que seria inviável o personagem Felipe assumir
socialmente sua relação com uma pessoa lida socialmente como “um negro que se diz
mulher,” posto que tal relação trouxesse não somente consequências sociais, mas o risco
iminente da morte, para além do opróbrio em que cairia a família do fidalgo.
Porém o desenrolar da história revela reviravoltas como o desfecho em que diversos
personagens são acusados pelo tribunal do Santo Ofício por diversas acusações e, por isso,
um possível final feliz é vislumbrado para os amantes protagonistas da trama. Analisar essa
narrativa evidencia que a realidade brasileira carrega consigo o jugo de resquícios do
processo histórico de escravização, fazendo-nos refletir acerca de uma nova perspectiva de
enfrentamento à realidade, olhar para a África como um norte nesse processo decolonial.
Conforme:
A África é, atualmente, confrontada com os fenômenos neocoloniais do
capitalismo e do racismo globalizados, um fato que, mais do que nunca, sugere a
necessidade de um fortalecimento inventivo dos movimentos ao redor de políticas
centradas em um engajamento consciente com diferentes posições e histórias de
sofrimento (OSSOME, 2018, p. 57)

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A partir desta narrativa podemos refletir sobre o lugar de uma travesti negra na
sociedade, tendo em vista que até os dias atuais o Brasil representa o país que mais mata
travestis e transexuais, havendo grandes índices de transfeminicídio, ou seja, o extermínio
sistemático de corpos trans negros, o que revela uma verdadeira necropolítica, na qual os
corpos não importam em uma sociedade cis-heteronormativa. A partir dessa reflexão faz-se
necessário propor uma nova perspectiva de ver o mundo e defender os direitos de pessoas
trans negras, o conceito que pode ser entendido como um norte para tal enfrentamento pode
estar dentro da perspectiva mulherista, abraçando conceito do ‘mulherismo’, ou seja, uma
variação afroamericana do feminismo, que corresponde a abarcar pautas específicas das
mulheres negras, tendo como uma das estratégias de enfrentamento ao patriarcalismo
convidar os homens para a luta antimachista, com um olhar especial para o homem negro,
conforme Ebonoluwa (2009).
Em vista de que as mulheres negras trabalharam em condições sub-humanas devido
ao colonialismo, assim como os homens negros. E partindo do ponto de que o feminismo
surge de reivindicações de mulheres brancas europeias e estadunidenses por inclusão e
melhores condições de trabalho, não olhando para pautas como a cidadania da população
negra. Por esses pontos supracitados, o mulherismo defende um posicionamento não apenas
direcionado ao combate às opressões de gênero, mas direcionando o olhar ao combate as
opressões, tendo em vista as intersecções entre classe, raça e gênero (EBONOLUWA, 2009,
p. 04).

Compreendendo a teoria queer de Judith Butler


Na obra ‘Problemas de Gênero’, Butler faz referência a Foucault, ao dizer que "as
noções jurídicas de poder parecem regular a vida política por meio da limitação,
regulamentação, controle dos indivíduos relacionados àquela estrutura política" (2003, p. 18).
Quando falamos em padrões de gênero estamos falando em relações de poder, como
também vemos as evidências do poder imposto pela metrópole portuguesa à sua colônia
“Oprimes e esmagas com os pés outros pés iguais aos teus” (CRUZ, 2020, p. 198). Logo, a
obra analisada rememora, denuncia, evidencia o uso de corpos negros para o deleite da
Branquitude; assim, a subjugação de tais corpos corresponde a um recorte racial, porém tais
relações raciais estão imbricadas às classes sociais e ao gênero.

A noção binária de masculino/feminino constitui não só a estrutura exclusiva em


que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a especificidade
do feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada, analítica e
politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de
relações de poder, os quais tanto constituem a identidade quanto torna equívoca a
noção singular de identidade (BUTLER, 2003, p. 21).

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Entendemos que conforme a teoria queer não há uma identidade que abarque no
mesmo status todas as mulheres. Sendo assim, visando a construção de uma sociedade mais
igualitária não se pode dissociar gênero de outros fatores como raça, etnia, dentro das
relações de poder estabelecidas na sociedade. Tendo em vista a teoria queer, discutida por
Butler, é possível compreender a construção identitária de personagens travestis no âmbito
da literatura.
A teoria queer discorre acerca da ‘performatividade’ do gênero, logo o gênero é fluído,
é um conjunto de atos que são feitos. Porém indivíduos estão sujeitos a uma instituição
maior que rege os corpos, o Estado. O mesmo Estado que no aprisionou e buscou destruir a
vida da personagem Vitória, porém não foi capaz de detê-la, posto que “Felipe e
Vitória...estes misteriosamente desapareceram” (CRUZ, 2020, p. 196).
Atualmente, vemos emergir a literatura negra como um campo de resistência em prol
da decolonialidade, conforme Chisala, “eu destilo melanina e mel. Sou negra e não peço
desculpas por isso” (CHISALA, 2020, p. 09). Um campo de resistência no que concerne à
valorização da mulher negra enquanto sujeito capaz de produzir prosa, poesia, construindo
uma nova epistemologia, da “negra e mulher, e apaixonada por si mesma” (CHISALA, 2020,
p. 09). A autoria negra ascende em prol de desconstruir estereótipos de gênero e racialidade,
mostrando um tipo de autoria em que a mulher negra é a protagonista de sua própria
história, resgatando também determinadas personagens históricas negras como um
referencial.
No que consiste a essas lógicas no âmbito da educação e da ciência, a literatura é um
campo no qual se travam disputas. Cruz (2020), com sua obra ‘Nada digo de ti que em ti não
veja’, contempla essa construção ao evidenciar uma personagem trans negra inserida em um
contexto colonial. Ao ler esta obra o leitor é convidado a pensar sobre a realidade da travesti
negra naquele contexto colonial e quiçá atualmente, em vista que a obra pode ser lida com
um olhar atemporal devido as temáticas que evidencia, como o racismo, o controle do
Estado sobre a sexualidade da sociedade, o controle da Igreja sobre os corpos e mentes dos
cidadãos, julgamento pautado em valores morais, entre outros.

A Travesti negra enquanto autora literária


No que concerne à discussão sobre a erotização dos corpos, pode-se refletir acerca
do trecho do texto autoral de Jade Mariam Vaccari (2018), recitado no decorrer do II
Seminário Mulheres e Universidade: Juntas contra o racismo, o machismo e a LBTfobia.
Conforme Vaccari (2019), a mulher trans muitas vezes é vista como “apenas um corpo
destinado ao sexo, ao exotismo e à erotização. Uma mulher trans não é gente, é só um ser
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destinado ao prazer.” A poética de Vaccari evidencia o lugar de subalternidade na qual a


pessoa trans é relegada, fato frequente, tendo em vista que a sociedade está pautada em
valores heteronormativos e, por isso, determinadas relações sejam vividas apenas no ‘sigilo’,
pois a masculinidade dos homens cisgênero pode ser posta em cheque caso venham se
relacionar com uma travesti ou transexual.
Atualmente vemos o emergir de um protagonismo de pessoas trans na arte, trazendo
à tona questões como a realidade de ser mulher negra e trans, ser trans e periférica, entre
outros recortes sociais, conforme a poética de Ferreira "todo livro escrito por uma travesti
deveria ser saudado e encarado como um rasgo no tecido histórico" (FERREIRA, 2019, p.
9). Sendo assim, tais escritos representam um marco histórico ao desviar-se do cânone
literário que inclusive o âmbito acadêmico em geral aborda, mostrando que tais vozes são
importantes.
Destarte, o lugar de fala da mulher trans negra pode ser exposto em uma obra que
seja de sua autoria, expondo seu ponto de vista da realidade. Somasse a isso o fato de que a
sociedade está condicionada a valorizar a escrita de homens ou de mulheres cis, em sua
maioria branca e heterossexual, como afirma Ferreira, "sim, pra pele preta de signos
coloridos essas coisas são privilégios" (FERREIRA, 2019, p. 19).
A poética de Ferreira desperta a atenção para realidades como aquilo que podemos
chamar de o ‘privilégio cis’ da afetividade, que seria o fato de que para uma mulher trans o
vivenciar relacionamentos afetivo-sexuais está condicionado a diversos dilemas, como a
dificuldade de estar em uma relação heterossexual com um homem cis, pelo fato da mulher
trans ter sua identidade de gênero deslegitimada socialmente, não sendo vista enquanto
mulher. Além disso, a masculinidade do homem que se relaciona com uma mulher trans é
posta em cheque, como Ferreira reflete no trecho "voei pro sol demais e minhas asas
derreteram, eram apenas uma cis-ilusão" (FERREIRA, 2019, p. 32).
Sendo assim, para a poeta o fato de uma travesti negra se envolver afetivo-
sexualmente com um homem é comparável ao mito de Ícaro, em que suas ‘asas’ podem se
derreter a qualquer momento, ou seja, a relação se desvanecerá, logo a relação estaria fadada
ao olhar preconceituoso da sociedade, como se a afetividade fosse apenas um atributo
destinado às pessoas cis. A poética de Ferreira evidencia a abjeção dos corpos de pessoas
trans, enquanto corpos dissidentes, pois o senso comum lhes aponta como corpos que não
importam "corpo que é almejado dentro de um saco como se fosse a coisa mais nojenta"
(FERREIRA, 2019, p. 57).
Pode-se pensar que a literatura escrita por pessoas trans é um fenômeno recente,

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porém não é apenas contemporânea a representação de personagens trans na literatura, as


obras ‘Georgette’ (1956) e ‘Uma mulher diferente’ (1965), ambas de Cassandra Rios,
representa um marco histórico nesse debate, ainda que Cassandra fosse uma mulher cis
lésbica, representou um papel importante ao iniciar tais discussões em suas narrativas.
Contemporaneamente, autores trans têm tido visibilidade através de publicações, como a
obra Academia Transliterária (2019). Tal fator evidencia como pessoas trans estão galgando
seu reconhecimento através da literatura, música e área de digital. Um exemplo disso é como
os influencer ou como os youtubers muitas vezes usam de uma linguagem própria da população
LGBTQ+, o pajubá, "linguagem afro-centrada, como também a população trans tem sua
cultura própria" (JESUS, 2019, p. 16).

3 Últimas Considerações
A obra literária afrobrasileira ‘Nada digo de ti que em ti não veja’ evidencia a
existência de vivências de gênero dissidente e explana sobre a realidade de um corpo negro
prostituído em um Brasil Colônia, através dos aportes teóricos da Teoria Queer podemos
refletir sobre a construção social da mulher trans ao analisar a personagem Vitória, o que
corrobora com a narrativa de outras personagens trans. A literatura afrobrasileira nos
convida a compreender a realidade de uma mulher negra, trans, escravizada, prostituta.
O estudo dessa narrativa evidencia a importância de reconhecer as epistemologias
que se formam a partir do estudo de obras com personagens negros, de autoria negra. Logo,
pode-se entender que a literatura tem um papel de trazer à tona a reflexão sobre
determinadas vivências, quiçá possamos através do estudo deste tipo de literatura fomentar o
desenvolvimento de leitores críticos cientes do seu papel de cidadão em prol de uma
sociedade brasileira com mais equidade.

Referências
BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual.
Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução


de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CHISALA, Upile. Eu destilo melanina e mel. Tradução de Isabela Aleixo. São Paulo:
Leya, 2020.

CRUZ, Eliana Alves. Novo romance de Eliana Alves Cruz expõe o apartheid brasileiro.
[Entrevista concedida a Guilherme Augusto. Jornal Estado de Minas, 28 jun. 2020a.
Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/1354-eliana-alves-
cruz-nada-digo-de-ti-que-em-ti-nao-veja>. Acesso em: 15 dez. 2021.

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CRUZ, Eliana Alves. Nada digo de ti que em ti não veja. Rio de Janeiro: Pallas, 2020b.

EBUNOLOWA, Sotunsa Mobolanle. Feminismo por uma variação africana.Tradução para


uso didático de EBUNOLUWA, Sotunsa Mobolanle. Feminism: The Quest for an African Variant.
The Journal of Pan African Studies, vol.3, n.1, 2009, p. 227-234, por Luana Cristina Muñoz Roriz.
Disponível em: <https://filosofia-africana.weebly.com>. Acesso em 27 de dezembro de 2021, às
17:43.

FERREIRA, Luna de Souto. Mem (orais) poéticas de uma byxa travesty preta de
cortes. Bragança Paulista: Urutau, 2019.

GREGORI, Juciane; ZAMBONI, Marcela. Relações afetivas e violência: sentidos da


transfobia no contexto familiar e amoroso. João Pessoa: Editora UFPB, 2019.

JESUS, Jaqueline Gomes de. Coletânea TransLiterária. Belo Horizonte: Marginália, 2019.

MOTT, Luiz. Bahia: inquisição & sociedade/Luiz Mott. - Salvador : EDUFBA, 2010.

OSSOME, Lyn. Discursos pós-coloniais do ativismo queer e de classe na


África. Traduzindo a África queer. Salvador: Devires, 2018.

VACCARI, Jade Mariam. A Construção da Identidade de Gênero – Transexual: Errante


Corpo Abjeto. [Monografia de Graduação em Licenciatura em Filosofia]. João Pessoa:
Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, 2017.

VERGUEIRO, Viviane Simakawa. Transsexualidade: Reflexões sobre a mercantilização do


sexo desde uma perspectiva transgênera. Revista Periódicus, 1.ed., mai./out., 2014.
Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/revistape riodicus/article/viewFile/
10154/7258>. Acesso em: 10 dez. 2021.

VERGUEIRO, Viviane Simakawa. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de


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2015. [Dissertação de Mestrado]. Salvador: Instituto de Humanidades, Artes e Ciências
Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, 2015.

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Composto na pandemia da Covid-19 em 2021.


Fonte Garamond, tamanho 12.

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