Afrolic Volume 3
Afrolic Volume 3
Afrolic Volume 3
Tânia Lima
Carmen Tindó Secco editora
Sávio Freitas
Ǔorgs.ǔ
Rosilda Alves Bezerra
Tânia Lima
Carmen Tindó Secco
Sávio Freitas
(orgs.)
AFROLIC
Literatura Desigualdade Ensino
Volume III
editora
Natal, 2022
VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022
2022. Rosilda Alves Bezerra - Tânia Lima – Carmen Tindó Secco – Sávio Freitas (orgs.).
Reservam-se os direitos e responsabilidades do conteúdo desta edição aos autores.
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A258
Afrolic: literatura desigualdade ensino / Rosilda Alves Bezerra... [et al.]. – Natal: Caule de
Papiro, 2022.
265 p. : il.
Volume III.
Vários organizadores.
aqui
estou eu fora de mim
[...]
fora de tudo
[...]
este sem lugar do ser é o imenso
silêncio
para lá desse ponto desordem e
trevas
e noutros sítios também caindo da
altura de um tempo anterior
4
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SUMÁRIO
A MEMÓRIA DAS ILHAS EM ALDA ESPÍRITO SANTO & CONCEIÇÃO LIMA ................. 167
Nathalia Oliveira Silvestre (UFRN)
Tânia Lima (UFRN – Profartes - UDESC)
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É de opinião geral, nos estudos filosóficos, que um dos primeiros problemas acessados
pela mente humana foi o problema cosmogônico. Pelas inquietações existentes até agora em
relação ao para onde vamos e o que viemos fazer aqui, intui-se que perguntas sobre as origens e
destino das coisas e dos entes, começaram a surgir no primeiro momento em que o ser humano
adquiriu o poder da reflexão.
A busca das revelações sobre os segredos do Universo levou pessoas, culturas e
gerações inteiras a um incessante perguntar, a uma criação desvairada de meios e métodos, bem
como, escritos e ‘garatujas’ que pudessem acalmar a ânsia de apreender o real em sua totalidade e
compreender as diversas realidades em que se situa e se contextualiza o todo.
Para justificar, fundamentar e explicar os acontecimentos e atividades que tiveram lugar
num tempo primordial, tempo esse parido pelo sagrado - o ‘pai mãe’ do real e do talvez
verdadeiro – aquele que ganhou o lugar de provado e comprovado, visto que, ‘até hoje o mundo
existe’, surgiram os mitos. “Tudo o que sabemos acerca das recordações míticas do ‘Paraíso’
mostra-nos, pelo contrário, a imagem de uma humanidade ideal [...]” (ELIADE, 1969, p.105).
Daí vermos como o ser humano, diante de contextos aleatórios e frustrantes, apela
para uma relação transcendental, procurando uma segurança e uma identificação mais firmes: se
integra em grupos organizados na tentativa de se reencontrar e atingir metas valorizadas e
definidas pela comunidade e aceitas por ela. Assim, a história humana e suas contingências vão
sendo feitas a partir das “circunstâncias, ambientes, recursos e interações [...], porém a história
não se constitui apenas de eventos, ela é o próprio desenrolar dos processos”(FOURSHEY,
2019, p.22).
E, uma vez que o começo da história da humanidade tem sua origem ligada ao
continente africano, neste texto, sem querer desconhecer o sagrado na visão de outros povos,
trataremos das relações e símbolos, com esse teor, dentro das comunidades africanas trazidas
para o Brasil por contingências escravocratas, uma vez que continuam a fazer parte de nosso
inconsciente coletivo, embora tenham travado, nos últimos tempos, uma luta ferrenha para
continuarem sobrevivendo, apesar de alguns generosos acadêmicos afirmarem que “diversas
tradições e linguagens religiosas sempre conviveram no Brasil, país que parece ser terra fértil
para o surgimento de novas expressões religiosas e para releitura de antigas tradições de fé”
(MAGALHÃES, 2008, p.8).
Entretanto, no recente governo brasileiro, os famosos ‘istas’, há muito tempo em
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surdina e na espreita, foram legitimados pelos discursos da instância maior do País. Entre eles os
rac’istas’ que, apesar de se comportarem como admiradores paisag’istas’, dentro e fora das
instituições sociais e da academia, passaram a colocar as ‘unhas de fora’, atuando como:
‘papagaios de piratas’, admiradores do que descaracteriza sua terra e, até alguns
afrodescendentes, reavivaram a chamas dos ‘capitães do mato’, há muito adormecidas em seus
corações lacaios, para começarem a ser porta-vozes do eco colonizador, através do brandir da
espada da insurgência contra as ‘práticas e os ritos ancestrais’ de povos dos quais eles próprios
descendem, junto ao exército dos ‘não negros’ de várias denominações religiosas e/ou credos
espirituais, abominando o sagrado que não tiver uma euroautorização.
Mas o legado, mesmo trazido à força, embora ressignificado, por aqui tomou volume e,
apesar da riqueza e da pompa dos credos coloniais e da perseguição, a cosmovisão negroafricana
que aqui chegou, nem sonha em desaparecer e, ultimamente, com o avanço dos movimentos
sociais, principalmente do Movimento Negro, o número de estudos e estudiosos desse assunto
cresce a cada dia.
O professor Fábio Leite (2008) foi um dos grandes estudiosos da questão ancestral,
desaparecido em 2020 de nosso convívio terreno, fez no final dos anos 1970, uma das mais
significativas pesquisas na África, sobre ‘a questão ancestral’, inclusive observando “a dimensão
ancestral como dotada de concretude histórica”(LEITE, 2008, p.13). Não acho viável
aprofundar tal assunto por aqui neste momento, mas como estou tratando de fatos relacionados
à memória e historicidade brasileira inspirada no sagrado, decidi tocar no assunto, visto que
existe uma relação de muito estreitamento entre a problemática da ancestralidade e as várias
instâncias do social, sem necessariamente se tratar de uma questão religiosa.
Daí, em relação a alguns termos como: ‘tradição’, que por não achar adequado para as
práticas sociais negroafricanas [preferiu] designá-las por ‘práticas ancestrais’; e as ações atinentes
à espiritualidade - para ele -“ficariam melhor explicitadas sob a designação de ritos ancestrais”
(LEITE, 2008, p.XVIII), uma vez que seria um ‘perigoso engano’ transformar os cultos aos
ancestrais – e a reverência às forças da Natureza 1 - em ‘religião africana’. Não por uma questão
preconceituosa em relação ao termo ou coisa semelhante, mas porque o termo ‘religião’, parece
“ter adquirido o sentido mais imediatista e comum de injunção formal submetida a crenças em
poderes celestiais e sublimação da condição humana” (op.cit., p. XVIII), fazendo que, igual ao
pensamento religioso europeu, o ser humano parta em constante elevação na rota do Criador,
como um tipo de esforço humano para se divinizar, coisa que foi propalada na África Negra,
1 Culto aos Vodu, Orisá e Nkise – (elementos sagrados dos povos Ewe, Yorubá e Kongo-Angola)
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pelas ‘missões civilizatórias’, com intuito de dominar. Entretanto, “os valores originários [...]
propõem, ao contrário: [...] a ‘humanização dos deuses’ ”(op.cit., p.XIX).
Em razão das práticas sociais ancestrais terem uma abrangência muito maior e nos
vários níveis das relações de parceria entre a natureza interior e exterior das convivências
humanas no planeta, nessa minha convivência com ritos ancestrais de origem africana, noto que
quando é permitida, principalmente aos pesquisadores e curiosos alheios aos cultos, a
participação em atos mais fechados (esotéricos), quase sempre são ocasionadas visões e
interpretações limitadas, principalmente, da parte dos portadores de pontos de vista e
conhecimentos referentes aos dogmas euroamericocêntrico.
Embora o pesquisador seja sério, tomar como simplesmente um ato religioso as
práticas socioespirituais que envolvem os ‘que fazeres’ de um Babá L’Osayin 2
em busca de
folhas para fazer uma consagração, ou uma ‘lavagem de cabeça’, com seu amontoado de passos
e fases, apenas pelo que se pôde ter acesso em um momento, é ter um trabalho de observação
‘periférica’, ou do popular ‘visto por cima’, interpretado desde fora.
Existem vários trabalhos, mesmo de ‘grandes’ pesquisadores, que não citarei por
questões éticas, cheios de equívocos, embora bem escritos academicamente, pois as
bibliografias e sujeitos que fornecem as informações falam, muitas vezes, desde um pensar
estranho ao meio em que foi ‘pesquisado’. Enunciam de um pedestal fora dos cultos que,
logicamente, diminui o valor de alguns sujeitos protagonistas da realidade prática ritual, devido
aos preconceitos intelectuais em relação aos não escolarizados.
Esses comentários não são mais profundos e melhores do que os de outros que têm
escrito sobre esse assunto, mas algumas coisas sobre as quais escrevo fazem parte da minha
experiência, da minha vivência quotidiana. Vários aprendizados me foram conferidos pelos
chamados ‘arquivos do saber’, alguns mais velhos e velhas, cheias de conhecimentos vindos de
outros velhos mais antigos, minimizados por sua falta de instrução escolar, mas que
contribuíram, em muito, para que o pouco que aprendi dentro dos ritos ancestrais, pudessem
fortalecer minha relação com o sagrado, minha identidade e orgulho de meu pertencimento
étnico. 3
Nas culturas africanas, pelo menos as que conheço, o sagrado ocupa um lugar,
diferente daquele que, costumeiramente no Ocidente, assim foi denominado. Para esses, o
sagrado tem um quê de assustador, de intocável; as Divindades estão sempre distantes, ou
orientando de longe. Enquanto isso, o que ocupa esse lugar nas culturas indígenas e/ou
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africanas se amálgama aos atos e vivências daqueles que o evocam, ou se entregam aos seus
cuidados como guias ou guardiões, ficando tão perto que, às vezes, são confundidos com seus
próprios adoradores.
Nessas relações o amor é possessão e não posse, as pessoas se tornam uma com e
como o Orixá, o Vodu ou o Nkise, o Mestre, o Caboclo ou o Encantado. É um grande prazer,
ver o elemento do qual a pessoa é filha, filho, ou afilhado(a) incorporado em outra pessoa e se
poder cumprimentar, falar, abraçar e não se ter ciúmes, por saber que no corpo em que aquele
elemento sagrado atuar, ou no lugar onde se manifestar, continua lhe amando e lhe protegendo,
aconselhando individualmente, ao mesmo tempo em que faz parte de um todo comunitário.
Nas comunidades originárias o individual nunca deixa de ser uma parte do corpo
coletivo. Por isso, aqueles ou aquelas que estão ou vivem à frente das Comunidades Terreiros,
pelo menos, nos tempos mais antigos, foram devidamente preparados(as) para exercerem seus
papeis de comando do grupo, fazendo com que os locais funcionassem, tanto como reduto de
tratamentos espirituais e físicos quanto lugar de resistência contra a extinção dos ensinamento e
regras ancestrais - como dizia a minha avó – ‘do bom viver’. Isso, desde o comportamento
político para que se tomasse cuidado com os pactos a se fazer com os que chegassem pedindo
favores ou oferecendo benesses em troca de votos; ou em relação ao comportamento moral
dentro da sociedade à qual pertencesse. Principalmente, não se deixando influenciar pela
aquisição fácil, porém ilegal, tornando-se uma má referência para os mais jovens do grupo.
Ser o Sagrado enquanto Ser é cuidar bem do próprio corpo lhe conferindo saúde
através da limpeza feita com os banhos das ervas, o resguardo durante as funções rituais, a roupa
sem sujeiras: não emprestar, nem vestir roupas alheias, nem calçados. Coisas que previnem
desde a ‘sovaqueira’ até o não envolvimento com energias inadequadas, transportadas por outros
corpos que as vestem, através do suor. Aos olhos dos verdadeiros praticantes, é preciso amar o
corpo e equilibrar a mente ouvindo a ancestralidade. Não é um mero estar por estar. Será que é
simbólico apenas para determinado grupo? Não sei. Os mais velhos ensinam assim. Aprenderam
de seus mais velhos.
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Logo ao se incorporar
Tira primeiro uma loa
Dessa que eu vou lhes mostrar:
“Mas eu sou preto, e bem preto
Não sou queimado do “Só”
Já diz o velho ditado
Quanto mais preto é milhó” 4
4 Poema de Lepê Correia, 2009, com enxerto de uma toada do Mestre José Felintro, ouvida em 1982, na
Comunidade Terreiro Ogun Toperiná (ã), no Jatobá, em Olinda.
5 Termo Kimbundo(Angola) – Medicina, arte de curar, ciência médica; em Umbundo, designa o médico
tradicional, o curandeiro (LOPES, Nei, Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, 2004, p. 663) (apelo
para a escrita original do termo, visto que, no Brasil, quando se escreve, na maioria das vezes, em línguas
estrangeiras se faz questão de manter o original: “hot dog”, “coach”, etc. Por que não em línguas africanas
também?)
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Quando a Senhora diz que as religiões afro não são religião e sim seita, eu como
uma iyalorixa do Candomblé, uma mulher negra muito feliz; pois eu tenho
dignidade, o amor e humildade, digo que não. Quando dizem que o Candomblé é
seita por que cultua satanás. E nós não cultuamos satanás. Cultuamos Olorum,
Obatalá, Ododuá e Exú, que é o grande dinamizador. Cultuamos os inquices e os
vodun que são deuses como Javé, Jeová. Cultuamos deuses de energia da natureza
que é a coisa mais suprema que pode existir. Por que somos natureza, filhos da
natureza, ao qual a Senhora terá um grande compromisso de preservar essa natureza
que pede socorro, pelo descaso de pessoas inconsequentes (http://
www.geledes.org.br/... em17/09/2014).
E completando o trecho citado, Mãe Beata se investe do poder das Ayabá, 6 quando
diz: “eu me julgo uma mãe do mundo porque sou de Iyemojá, Orisá que dos seios brota a água
suprema [...].” Logo após afirma, politicamente, sua identidade de negra brasileira e assume o
lendário poder das Candaces, ‘as rainhas mães’ do Reino de Kush7 enunciando:
Eu sou uma cidadã de fato, sou mulher negra de candomblé e não tenho a pretensão
de ser política. Faço política. Nesse momento estou fazendo política com a Senhora.
Eu sou Beatriz Moreira Costa, Mãe Beata, mulher negra como a Senhora. Hoje
tenho 83 anos e nasci no Recôncavo Baiano, às margens do rio Cachoeira do
Paraguaçu (op.cit... em 17/09/2014).
Mãe Beata, imbuída do poder que lhe confere sua identidade junto ao sagrado, não
apenas como instância espiritual, mas também política, se apropria do espaço, como território
cidadão e exige da pretensa presidente, respeito e compromisso com sua possível missão, visto
que parece não conhecer as raízes socioculturais de seu povo.
Então pergunto, como pode alguém comandar, com sucesso, um território no qual só
se identifica com uma parte? Como ser parte do corpo coletivo sem considerar as origens que
fazem de si mesma um ser individual ligado a esse corpo?
“A ideia de território coloca, de fato, a questão da identidade, por referir-se à
demarcação de um espaço na diferença com outros. [...] É o território que [...] traça limites,
especifica o lugar e cria características que irão dar corpo à ação do sujeito” (SODRÉ, 1988,
p.23). Nesse embate, observando o lugar de onde cada uma falava, se fôssemos todos videntes,
presumiríamos o que a história estaria a nos reservar, uma vez que, “a história opera sempre
com o que está dito, com o que é colocado ‘para e pela’ sociedade, em algum momento, em
algum lugar”(MONTENEGRO, 1994, p.19), e observaríamos que, mesmo depois de tanto
tempo, os ideais das mentes escravocratas ainda ecoam pais afora e não conseguem abrir mão
da lenda do ‘céu’, para continuar impondo aos que chamam de ‘o outro’, a responsabilidade
pela existência do ‘inferno’. Desconfio que, por isso, Mãe Beata, apesar da elegância na fala, foi
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tão incisiva.
Parodiando um ‘irmão estrangeiro’ direi que: o pior é que, verdadeiramente, eles
duvidam da existência de um e de outro – céu e inferno - pois, se assim não fosse, teriam seu
livro sagrado guardado a sete chaves. Como bons capitalistas: um território de verdadeiro
lucro, não se oferece a toda hora, nem a qualquer ‘macumbeiro’, como o fazem, ao dizerem
que eu estou precisando de salvação. É uma maneira de tomar, além das terras dos
colonizados, se apropriar, também, das consciências, objetivando fazê-las mais racionais,
dentro de uma verdade global imposta pela catequese.
Diante disso, determinados comportamentos em um país construído sob o modo de
produção escravista, maneiras e tratamentos ancorados nessa realidade continuarem se
reproduzindo, como foi o fato da fala da candidata Marina, ‘pano para as mangas’ para
jornalistas, adversários e historiadores construírem seus pontos de vistas e um leque de
perguntas que os ajudem a construir suas narrativas, uma vez que já possuem um arcabouço
construído pelos acontecimentos conservados pela memória.
“A reação ou a resultante do impacto da realidade sobre o indivíduo ou o grupo
constituirá a marca que o caracteriza. Dessa maneira, a memória tem como característica
fundante o processo reativo que a realidade provoca no sujeito”(MONTENEGRO, 1994,
p.19). Surgem agora duas alternativas para a memória: mudar ou conservar e, uma vez que ela
atua “como um elemento permanente do vivido”(op.cit. p.19), a memória dos subalternizados,
operando a partir de mais um impacto, entre tantos ao longo de séculos, evoca, do seu
imaginário, o que existe como referência de luta e enfrentamento, como fez Mãe Beata, dessa
feita reelaborando as ações, atendendo a um processo de mudança. Com isso, transformou a
si mesma, a visão de sua gente com sua reação, fazendo vir à tona o desejo de responder de
pronto e a coragem, submersos em seu peito e em sua coletividade.
Essa evocação da memória me conduz a outro tempo mais atrás, sendo dessa feita, a
memória da memória, ou seja, a escuta da narrativa de um velho, sobre as façanhas de sua
mãe, em conversas de terreiro. Fez com que eu lembrasse de Vovó Fortunata, como
protagonista em um dos fatos dos anos 1940 e, como Beata, também muito inquieta em
matéria de enfrentamento desses desaforos políticos.
O velho Paulo Preto contava que durante o Estado Novo, em Pernambuco,
Agamenon Magalhães, como um governador muito obediente ao Presidente Getúlio Vargas e
seu ‘fiel escudeiro’, decidiu fechar todos os terreiros de Candomblé, principalmente do Recife.
Lá no bairro do Pina, próximo à Campina do Bode, estava o terreiro de Dona Fortunata,
conhecida como a Baiana do Pina. Muito respeitada porque não dava mole quando se tratava
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combustível serviu mesmo para ele: a profecia foi cumprida. Segundo o Velho Paulo, em
conversa no terreiro, pela enésima vez, aproximadamente, o Ex-Governador, dias depois de
levar uma ‘saraivada’ de tomates e ovos podres, no Bairro de Santo Amaro, Recife, durante um
comício, às 11 da noite dirigiu-se à casa da Velha Fortunata, no Pina. Pelo que nos foi
narrado, a cena foi hilária.
- Ô murica ...! Muriquinha! – Gritou a velha – Meu fio, vá vê quem tá batendo aí, a essa
hora... Deve sê um ‘tabiexí’, 10 pra batê parma em casa de conbombé e a essa hora. Vá vê!
O molequinho vai correndo até o portão e vê alguns homens de paletó e, entre eles,
um rosto meio conhecido. Antes que falasse, ouviu a pergunta:
- Ei menino, cadê sua mãe? – Falou um deles – Diga a ela que o ‘interventor’ está aqui
e quer falar com ela.
O menino volta ofegante e dá o recado: - mãe, ele disse que é o teventô e quer falar
com a Senhora. – Acentua ainda, que tem um carro preto parado e uns homens grandes.
- Teventô? ... - levanta a cabeça como se procurasse algo no ar e cai na risada – a ah ah
ah é o China Gôdo, muriquinha. Mim num dixe que ele vinha? Mande entá e ficá xentado lá
no xalão.
O salão era a sala do terreiro, onde se faziam as festas dos Orisá e se recebiam as
visitas. Depois de demorar um pouco ela saiu e perguntou o que ele queria. Ele ficou meio
sem jeito porque a criança estava presente e pediu para retirá-la. A velha se recusou:
- Tu num tá cum teus cacho.... , qué dizê, cum tuas odenança. Essa muriquinha aqui é a
minha odenança tamém. Se quijé fala cum mim, é cum ele aqui.
Ele ficou vermelho, olhou pra seus pares, respirou fundo e começou a falar, contando
o incidente do comício em Santo Amaro e disse, que, como ele soube que ela poderia fazer
alguma coisa por ele, a procurou e queria que ela ‘jogasse’ os búzios.
- Fajê arguma coija, como axim? - A velha perguntou.
- Quero que a Sra. me ajude a ganhar as eleições. Eu sou candidato a governador.
Foram, ela e ele lá para dentro. Ela ‘jogou’, olhou pra ele concluiu:
- Mixê tem condixão de ganha. De xentá de novo naquela cadêra. Mas vai saí de pé pa
fente... qué?
- Eu quero ser governador de Pernambuco, nem que seja por um dia. Mas quero
mostrar ao povo de Santo Amaro que eu sou AGAMENOM MAGALHÃES! – Disse o
candidato, com semblante entre felicidade e indignação.
10 Do Yorubá – tabi esín (o que escoiceia) – cavalo, mulo; tabiexí – expressão usada nos terreiros para chamar
alguém de jumento.
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Considerações Finais
Neste escrito, tentando fazer uma reflexão acerca da tomada de consciência do ser
humano dentro do mundo, descubro que o que fiz foi uma viagem muito pessoal dentro da
pergunta que sempre me faço sobre o estar ou não, neste planeta, em passeio. Sem esperar
pela resposta, eu entro sempre num bocado de conversas sobre o paradeiro das coisas que
passaram um dia e sobre a maneira de construir uma melhor recepção para as coisas e seres
que virão. Acabo esbarrando no mito, no sagrado, no que penso desses primos próximos e
irmãos distantes, pois um, presumo que seja filho da fertilidade da imaginação e o outro da
essência cósmica que criou o Universo, da própria imaginação universal, por isso se fez
representar por tantos Deuses e Deusas, inclusive colocando nos seres humanos,
sorrateiramente, o poder de sublocação das forças dessas entidades, mas com os contratos
todos em escritas simbólicas. Por isso, só a tenacidade e a disposição interessada é capaz de
fazer essas patotas felizardas, portadoras de mágicas e feitiçarias.
Mas não pensem que estou viajando na mostarda ou bancando o filósofo engraçado.
Minha vida foi sempre ficar junto aos mais velhos ouvindo anedotas, lendas, mitos e histórias
que eles viveram. Posso até dizer que minha vida foi viver de boca aberta engolindo memórias.
E o sagrado, pra mim, sempre foi tão profano que passei a não acreditar em pecado e sempre
que posso, dou uma cochilada no altar para sonhar que sou sacerdote: morto de inveja de Mãe
Beata e de Dona Fortunata. Por que? Ora porque...
Como vimos, nas duas narrativas, o ‘sagrado’ é incorporado pelas duas sacerdotisas,
que, como se estivessem imantadas por ele, como instrumento de poder, disputam junto às
autoridades constituídas o espaço, tanto de conservação da memória individual e coletiva
como de manutenção das suas autoridades, como portadoras das chaves dos espaços que se
interpenetram – o visível e o invisível - sem perderem a identificação com a função sagrada de
dirigentes, a elas confiada.
Os discursos dão a impressão de que estão solicitando que cada um ocupe seu lugar e
exerça seu papel da melhor maneira que puderem, como fazem as duas, sem apelarem para a
invasão de domínios. Não demonstram nenhuma atitude de vingança, mas exigem que
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Referências
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11 Também conhecido como Ensino Mútuo ou Monitorial, teve como objetivo ensinar um maior número de
alunos, usando pouco recurso, em pouco tempo e com qualidade. Ele surge na Inglaterra do final do século
XVIII, tendo sido desenvolvido por Quaker Joseph Lancaster (1778–1838) influenciado pelo trabalho do
pastor anglicano Andrew Bell.
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estudantes da África Negra na França (FEANF), ganharam destaque nos anos a partir de
1954. Tornaram-se poderosos suportes de mobilização política e instrumento de difusão da
luta dos povos africanos e, também, de experiências para outros movimentos revolucionários
contemporâneos. Essa dinâmica foi consolidada pela emergência consciência patriótica que
soube ultrapassar os antagonismos e as outras dificuldades consecutivas à luta (SOW 1993).
No primeiro momento, essas ações impulsionaram o reflorescimento cultural,
seguida pela revalorização dessa mesma cultura, enfatizando as resistências à penetração
colonial e a história das culturas africanas. É nesse contexto que jovens pesquisadores, como
Cheikh Anta Diop, 12 ganham destaque (SOW, 1993). Do encontro dos estudantes africanos
e os da diáspora (sem esquecer outros movimentos) no Ocidente, nasce o movimento da
negritude em 1932-1934 (SENGHOR, 1967), encabeçado por Aimé Césaire, das Antilhas;
por Léopold Sédar Senghor, do Senegal, e Léon-Gontran Damas, da Guiana.
O movimento da negritude e o do pan-africanismo surge por volta de 1900
(OUÉDRAOGO, 2009), com os africanos Kwamé Nkrumah, do Gana; Haîlé Sélassié, da
Etiópia, e Gamal Abdoul Nasser, do Egito: todos eles líderes fundamentais das lutas
anticoloniais. Nessa conjuntura de luta pela independência, os intelectuais e homens políticos
de destaque em Burkina Faso (conhecida antigamente por Alto-Volta), entre outros, foram:
Nazi Boni, Daniel Ouezzin Coulibaly, Philippe Zinda Kaboré e Maurice Yaméogo.
A África independente e pós-independente tem investido em programas de
treinamento no sentido de infundir o desenvolvimento econômico e social, lutando, ainda
que com muitas ambiguidades e conflitos renovados, para por fim à dependência cultural e
intelectual herdada da colonização. Assim, as universidades e outras instituições de formação
tornam-se referências de estímulo do desenvolvimento esperado pela juventude do processo
de descolonização.
Por conseguinte, no centro de uma nova concepção da sociedade e de
desenvolvimento, surge uma juventude estudantil marcada pela ambiguidade de seu estatuto.
Com efeito, seu lugar no sistema socioeconômico e político iria permanecer problemático.
Desfavorecidos, visto que a maior parte pertence a sociedades adotava formas diferentes da
Europa de compreender, tanto a vida econômica como as trocas sociais, levando os
estudantes a representarem os antagonismos sociais (MBEMBE, 1985) de maneira às vezes
dramática. Desenvolvem-se, assim, de um lado, um sentimento de grande desconfiança das
elites dirigentes em relação à juventude e, de outro lado, as críticas por parte daqueles que
12 Historiador e antropólogo senegalês que estudou as origens da raça humana e das culturas
africanas(http://www.cheikhantadiop.net/)
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haviam também lutado juntos pelas independências, guardando, ao mesmo tempo, o sabor
amargo de sua decepção e sentimento de traição.
No entanto, deve-se salientar que, apesar das difíceis condições de inserção
socioprofissionais ao concluir os estudos, a possibilidade de ascensão social através do
diploma e o prestígio relativo permaneceria marcando a visão sobre o estudante na sociedade
burkinabê. Isso reflete o fato de que:
13 As típicas são as que passam todos os membros de uma sociedade dada e a atípica é relativa a saberes
específicos como a formação dos caçadores, ferreiros, mestres da palavra e, também, religiosos.
14 Toda pessoa precisa conhecer e por em ação os códigos geracionais próprios a seus espaços que são bem
diferenciados daqueles dos adultos e dos idosos. Sobre o conceito de juventude, ver Bonneval (2011).
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Referências
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Intróito 18
A batalha pela África pode ter acabado, mas a luta
pela história, a arte, a literatura e os filhos deste
continente cresce em intensidade (J. Nozipo Maraire,
Zimbabue).
15 Nós não vamos esquecer" foi extraído da "Revista no 2/3, ano 1 (1983), editada pelo Centro de Estudos
Eduardo Mondlane, o Boletim Informativo da Oficina de Historia", conforme situaremos mais adiante.
16 Profa. Titular, docente do quadro permanente do mestrado e do doutorado da UNEB/Pós-Crítica. Líder do
Grupo de Pesquisa Iraci Gama: Identidades, Letramentos e Formação docente para as relações étnico-raciais.
E-mail: [email protected]
17 Mestra em Crítica Cultural (Pós-Graduação em Crítica Cultural/ Pós-Crítica-UNEB), membro do grupo de
a prof Dra Rosilda Alves Bezerra (UEPB), à sua sobrinha, a doce Gabi (Gabriela) e todas as pessoas que
tiveram os fios da vida ceifados precocemente por uma política genocida diante da Pandemia (Covid-19),
NÓS NÃO VAMOS ESQUECER! As mais de 620 mil vítimas dessa Pandemia! A nós que seguimos a
caminhada árdua, cabe os desafias de seguir em frente mesmo quando a “vida diz não”, como poetizado na
voz da cantora baiana Maria Bethânia. Que, apesar do vazio que invade nos dias fugidios, reaprendamos a
sonhar. Por quem se foi, por quem ainda irá partir no porvir, Kabiessilê!
19 Organizado por Silvio de Almeida Carvalho Filho e Washington Santos Nascimento (2018).
20 Esse perigo é também muito problematizado em um estudo sobre a representação do negro na Bíbilia em
Negritude & fé: o resgate da auto-estima, de Edilson Marques da Silva (1998)
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estudos precedentes, também nos detivemos sobre tal problema e seguimos, inclusive, nos
dias atuais, investindo na constituição de arquivos (levantamento de acervos) que não
favoreçam a idealização, mas a ressignificação das literaturas e das culturas
negras/afrobrasileiras e africanas.
Em estudos recentes, Ailton Pereira (2020), ao questionar o ‘Livro didático de
História, de qual África ele fala?’, tomou como objeto de análise um dos exemplares do 9º
ano. No processo de seleção se deparou com uma África estereotipada, inferiorizada, na
ilustração e no plano do discurso verbal nas páginas dos livros.
Instigado com a pergunta, Ailton Pereira seguiu a busca e, por fim, identificou em
uma das coleções de História (Ensino Fundamental), alguns poucos capítulos contendo
lideranças negras africanas, seus feitos, fatos ocorridos e as lutas empreendidas, além de
imagens fotográficas, trechos de obras literárias delineadas em poucas páginas de um extenso
livro. Quer dizer, questionar a África nos suportes didáticos, teóricos, literários, dentre
outros é muito importante, ainda, mas para conseguir identificar, analisar e tecer uma visão
crítica do que encontramos continua a ser desafiante, haja vista o predomínio do ‘racismo
epistêmico’ (SOUZA & LIMA, 2019).
Considerando o exposto até então, justificamos um dos porquês de termos resolvido
adentrar essa seara: a carência de estudos persiste. Mas estudar com base em quem? Sem
desconsiderar as pesquisas empreendidas por nós, filhos e filhas das terras ancestrais,
obviamente, às quais recorremos como fontes de reflexões, também partimos da
contribuição crítica de Carlos Morre (2007, p. 133; 140) em ‘A África que incomoda’,
sobretudo, por endossar suas ideias quando ele se refere à importância das abordagens dos
próprios africanos para o “ensino da história dos povos e das civilizações da África”
(MOORE, 2007, p. 137).
Entendendo se tratar de um aprendizado desafiante para ambas as populações (no
caso da africana e brasileira), o crivo fundamental para re/ler África na diáspora implica
saber identificar se a produção (teórica, histórica, literária, artística e outras) endossa ou
rasura visões racistas, eurocêntricas, depreciativas, em se tratando dos legados africanos
re/editados nas terras de lá e lado de cá, na diáspora (HALL, 2003). Nessa empreitada
seguimos, há certo tempo, e estamos sempre aprendendo nas travessias. Para o presente
diálogo, no entanto, delimitamos uma das produções editadas lado de lá, Moçambique, vale
destacar como referência o ‘Boletim Informativo da Oficina de História’, 21 uma Revista
21 Sobre uma das cenas descritas na referida Revista e, em específico, a fotografia e o caso do jovem pastor
identificamos o artigo de Márcia Bandeira de Brito (2016).
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30 Sobre tal contexto, Eduardo Mondlane (1975) apresenta ampla reflexão. Mais adiante, a ele nos referiremos
com certa brevidade.
31 Conforme consta da contracapa da aludida Revista.
32 Partindo dos procedimentos que visam à hegemonia da ordem do discurso, Foucault discorre sobre tais
procedimentos (exterior e interior; de exclusão e de ordenação), detendo-se sobre alguns grupos sociais, suas
limitações e validações, com vistas à legitimar seus valores e os perpetuar; daí falar-se em ‘vontade de
verdade’. Logo, associa os discursos ao um ‘jogo de escritura’, de ‘leitura’, e ‘de troca’, pois resulta da relação
de poder, de uma ação de violência face às coisas, “inscrevendo-se na ordem do significante” (FOUCAULT,
2006, p. 17;49; 53)
33 Correlação feita pelo prof. Reinaldo Marques na UNEB, por ocasião de um curso resultante da parceria
entre os programas de Pós Graduação Pós-Lit/UFMG e Pós-Crítica/UNEB (2014).
34 Vejam-se tais noções em Foucault (2006)
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poder, instituído a denunciar seu patrão, correndo o risco de receber outras punições e,
inclusive, de perder a vida. Temos, desse modo, a imagem do ‘poder soberano’, o poder
‘disciplinar’, e seus métodos de repressão 35 sob o prisma do patrão.
A marca na testa, simbologia/linguagem das atrocidades a serem interpretadas,
associadas aos ‘letramentos’ da reexistência negra a reverberar e ecoar lado de cá, a diáspora.
Temos, sob esse prisma, ‘ferro em brasa’, do campo linguístico, o eco de outras vozes das
margens: ‘Nós não vamos esquecer’.
Virando a página da mesma Revista, como se procurando novos capítulos da história,
nos deparamos com uma entrevista, na qual se delineiam as faces de uma senhora negra,
com olhar altivo, cabelos crespos de carapinha, embranquecidos pelo passar do tempo.
Também os insultos do patrão, branco, colonizador.
Sua história é relatada, o papel das mulheres, as ameaças, agressões, as horas de
trabalho, exaustão, as condições precárias, as tensões, superações e tantas outras. Em um,
entre tantos enfrentamentos contra o opressor, ela, dona Felismina, se orgulha ao dizer: “Eu
bati [...] Bateram-me. Eu disse: Não há problemas, também bati.” E, prossegue: “Esse
branco foi-se embora sem me chatear [...]. Quando ele me dizia ‘filha da puta’ [...] Rachava-o
mesmo! [...] lutávamos” (BOLETIM INFORMATIVO, 1983, p.20).
Dona Felismina relata, ainda, que o branco, quando a via, se distanciava, receoso de
ela agredi-lo. Ela, uma senhora, idosa. Logo, a alcunha de ‘velha louca’, para desqualificá-la.
Do campo discursivo/linguístico é possível estabelecer a seguinte relação: africana, negra,
serviçal, colonizada = louca e, o oposto: em se tratando do colonizador: europeu, branco,
patrão = lúcido.
Partindo dos procedimentos que visam à hegemonia da ordem do discurso, Foucault
(2006) discorre sobre tais procedimentos (exterior e interior; de exclusão e de ordenação),
detendo-se sobre alguns grupos sociais, suas limitações e validações, com vistas à legitimação
de seus valores, para fazê-los perpetuarem-se; daí falar-se em ‘vontade de verdade’ dos
grupos hegemônicos. Logo, associa os discursos ao ‘jogo de escritura’, de ‘leitura’ e ‘de
troca’, por resultar de uma ação de violência face às coisas, “inscrevendo-se na ordem do
significante” (FOUCAULT, 2006, p. 17; 49; 53).
O fazer/dizer de dona Felismina se opõe à ordem do discurso instituído, à ‘vontade
de verdade’ imposta: obedecer, ceder e se deixar violentar e, assim, ela não deixa de,
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simbolicamente, estilhaçar as máscaras brancas daquela conjuntura social. Ela reage, briga,
bate, não se deixa dominar.
O sujeito do discurso aqui é um ‘eu’ que se anuncia, se impõe (‘eu bati’) e resiste à
coerção (‘rachava-o mesmo!’). E assim consegue, mesmo em situações díspares, enfrentar e
fazer afugentar o colonizador que, em sua arrogância e para disfarçar, inclusive, a
inferioridade diante dela, a alcunhava de ‘louca’ e outros termos depreciativos.
Em suma, da revista emergem vozes da resistência negra. Contudo, essas vozes
seguem invisibilizadas, excluídas dos arquivos, (re)produzidas na diáspora, no caso do Brasil,
via ‘poder soberano, disciplinar e/ou o biopoder’ para salvaguardar o discurso da ordem que
é, reiteramos, eurocêntrico, configurando o racismo ‘epistémico’, a despeito das diferenças
que são enredadas, preservadas, visibilizadas e/ou silenciadas sob a ótica de quem as
expressa, registra e, portanto, ‘(des)arquiva’.
Derrida (2001, p. 43) pontua que “Arquivo é somente uma noção, uma impressão
associada a uma palavra e para a qual Freud e nós não temos nenhum conceito.” Tal noção,
complementa, constitui-se de um “sentimento instável de uma figura móbil, de um esquema
ou de um processo infinito ou indefinido” (idem), se instável, mutável, aberta às
possibilidades interpretativas, questionamentos e reformulações.
Arquivo, reiteramos, não visa à verdade inquestionável, mas, tão somente, a um
modo de ver, expressar, sem preterir a subjetividade nesse processo de articular o pensar, o
conhecimento impresso ou expresso no suporte escrito, virtual, no qual as informações são
reunidas, condensadas, disponibilizadas, consignadas.
Um processo que resulta de campos de disputa (abordagens históricas, políticas,
epistemológicas) quando se escolhe o que interessa preservar e o que se almeja destruir. Daí
a assertiva de Chiamanda Adiche (2009), reiteremos: ‘Muitas histórias importam’. Dentre
elas, a ‘África que incomoda’ (MOORE, 2007) 36 ao requerer estudos, incursões,
problematização e, sabemos, ampliação de fontes e frentes de lutas em distintas áreas do
conhecimento.
A ‘África’ (que incomoda) tem história. Melhor dizendo, histórias e legados que
remetem a reinados, à resistência, às civilizações milenares, às lutas, perdas, força, fragilidade,
superações. Às crenças, contestações e complexidades. A nós educadores/as, cabe a
responsabilidade de, à direção crítica de Carlos Moore (2010, p.137), “demolir os
estereótipos e preconceitos que povoam as abordagens” concernentes à história da África e
36 Nela, pessoas anônimas, lideranças negras que resistiram ao poder instituído, sob o poder e a interferência
das grandes potências econômicas (MOORE, 2007).
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Considerações (in)conclusivas
Inicialmente, explicitamos que tomaríamos como ponto de reflexão uma revista e
outras vozes das margens (des)arquivadas, com o propósito de contribuir para a
ressignificação de conteúdos na área em questão, em consonância ao tema central do Afrolic,
a saber: ‘Literatura, Desigualdade, Ensino’.
O ensino da história e culturas afrobrasileiras e africanas a perpassar diversas áreas
do conhecimento, a História, a Literatura, as Artes em geral e respectivas fundamentações
teóricas. Áfricas enredadas em cenas, temas, tramas. A ser ensinada, problematizada,
re/conhecida, ressignificada, como orientam as ‘Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino da História e Cultura Afrobrasileira e Africana’ (BRASIL, 2004) e demais marcos
legais.
Áfricas, no plural, para se posicionar contária à recorrente generalização. Uma dessas
Áfricas procuramos re/visitar e re/dimensionar sob o crivo da crítica cultural em interface
com outras áreas do conhecimento, a fazer emergir as linguagens/vozes das margens. Para
tanto, os letramentos (a foto, o fato, texto, o contexto, as fontes para abordá-la), com vistas a
contribuir com a ação de re/erguer as vozes outrora silenciadas e/ou deturpadas (dona
Felismina e o jovem pastor).
Recorremos a uma abordagem ‘multidisciplinar’ e priorizamos ‘experiências
concretas’ e lutas que “sujeitos anônimos travaram em uma sociedade desigual” (SANTOS,
2919, p. 2). Quais foram esses sujeitos? Pessoas anônimas, uma senhora e um jovem. Ambos
negros, em situações díspares que, mesmo assim, resistiram à opressão local e, mais ainda,
‘reexistiram’, se associados ao campo da Linguística Aplicada (letramentos), nas palavras de
Ana Lucia Souza (2011). Talvez por isso nos impactaram tanto. Então, reiteramos: ‘nós não
vamos esquecer’ (BOLETIM INFORMATIVO, 1983).
Não vamos esquecer a força pungente de dona Felismina e do jovem apenas aludido
como ‘Oito’, em Lourenço Marques, atual Maputo, capital moçambicana. Não vamos
esquecer duas vozes distintas que se aproximam em uma mesma direção: Stuart Hall (2003,
p. 31) e Amilcar Cabral (1974), a rasurar estereótipos negativos acerca daqueles espaços
ancestrais africanos, na contramão de alguns arquivos e, nesse caso, entenda-se: livros
didáticos, literários, teóricos e, em outras palavras, ‘letramentos’.
Dona Felismina e o jovem pastor, ‘Oito’ rasuram certas visões simplistas erigidas
através do ‘racismo epistémico’ sobre o continente africano, as suas nuances, complexidades
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Referências
ADICHIE, Chimamanda N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
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‘Stress’ é o primeiro conto da coletânea ‘Os olhos da cobra verde’ (1997), terceiro
livro da escritora moçambicana Lília Momplé. Anteriormente, a autora havia publicado as
obras Ninguém matou Suhura, antologia de contos lançada em 1988, e o romance ‘Neighbours’
(1995). ‘Stress’ é um texto que nos apresenta uma multidão de rostos sem nomes. Os
personagens do conto, vivendo num ambiente extremamente violento, são invadidos por
uma profunda melancolia e tentam sobreviver em meio a um horizonte sem perspectivas.
Esse aspecto das narrativas de Momplé (op. cit.) é acentuado em consideração do pesquisador
Anselmo Alós, quando observa:
37 Uma versão semelhante desse artigo foi publicada na Revista Abril – NEPA / UFF, v. 10, n. 21, p. 181-192,
dec. 2018.
38 Professora Adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). Doutora em Letras - Literaturas de Língua Portuguesa - pela PUC Minas (2018).
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O ato, que pode ser considerado uma espécie de ritual, repete-se todos os domingos,
quando, depois de se maquiar e se vestir, a mulher vai para a varanda que dá para a rua e
observa fixamente o vizinho que nunca olha para ela. O ritual de embelezamento da
personagem é descrito com minúcias pelo narrador do conto, que apresenta um discurso
nada imparcial. Ao contar a história, a voz narrativa de ‘Stress’ opina e julga o
comportamento das personagens. Esse aspecto do texto é comentado por Anselmo Peres
Alós (2011, p. 1005-1006), quando observa que, em todos os seus contos, Lília Momplé
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A partir das explicações dadas pelo narrador, descobrimos que a amante do major-
general vive em um imóvel que recebeu de presente do militar, situado num dos bairros mais
tradicionais da cidade, “segregado por prédios e vivendas construídos, ainda no tempo
colonial, por empreiteiros portugueses, com muito dinheiro e duvidoso gosto” (MOMPLÉ,
1997, p.11). A sala da residência é o espaço em que a amante do major-general se sente como
uma rainha. O local é o seu reino particular e todos os objetos que o compõem foram
escolhidos por ela. A ostentação do espaço que provoca tanto incômodo a alguns visitantes,
talvez se deva ao fato da riqueza do ambiente contrastar com a extrema pobreza que assola
grande parte da população, sobretudo, das comunidades rurais de Moçambique, que sofre
com os efeitos da sangrenta guerra civil. 40 O flat, símbolo de ascensão social da amante do
major-general, é também representação do fracasso de “um casal de funcionários públicos
que, estrangulado pelo constante aumento do custo de vida, resolveu regressar à sua
suburbana Mafalala” (MOMPLÉ, 1997, p.12).
A sensação sufocante, que se apresenta nos primeiros parágrafos do conto, vai
crescendo na medida em que os acontecimentos se desencadeiam e a violência se instaura.
As ações da amante do major-general, de certo modo, são movidas pela melancolia que a
envolve, perpassando o ambiente em que ela vive. Esse aspecto da narrativa de Momplé
também é apontado pelo pesquisador Anselmo Alós (op. cit.), que afirma:
A melancolia que atinge os personagens do conto pode ser uma síntese da melancolia
que atingia os moçambicanos, vítimas da guerra civil. Essa sensação, de algum modo,
40 A guerra civil moçambicana, iniciada pouco tempo após a guerra de independência, levaria o país à beira de
do colapso pela destruição que ela iria provocar. Ela seria fruto de uma mescla de fatores internos e externos,
sendo incentivadas principalmente pela reação às políticas do governo e pela situação que se configurava no
sul da África ao final dos anos 1970. Para entender como a situação moçambicana chegou a tal ponto é
preciso analisar as ações do governo desde que assumiu o poder, assim como as relações estabelecidas com
outros países, em especial a Rodésia e a África do Sul [...]. Além da complexa situação interna do país, os
acontecimentos nos países vizinhos viriam a influenciar a guerra civil moçambicana, principalmente pela
postura adotada pela Frelimo em relação à política interna dos dois regimes racistas. [...] Desde o primeiro
momento, o presidente Samora Machel havia declarado seu apoio ao estabelecimento de governos de maioria
negra nesses países, então governados por uma minoria branca. Isso levou a Rodésia e a África do Sul a
apoiarem o grupo oposicionista Renamo, que enfrentaria a Frelimo numa sangrenta e brutal guerra civil.
(VISENTINI, 2012, p. 98-99).
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A contradição apontada por Rex (op. cit.) reforça o nosso ponto de vista sobre a
mulher como ornamento. A personagem é, de certo modo, um objeto de uso (pessoal e
irrestrito) do major-general. Ela pertence ao amante, mas vive tão presa à realidade que criou
para si, tão presa à sua própria vaidade, que não tem consciência do quanto é escrava de seus
próprios desejos. Inebriada pela sensação de que tudo o que vê à sua volta lhe pertence, ao
vislumbrar o professor de feição macambúzia, sentado à varanda, a amante do major-general
decidiu que ele também lhe pertenceria, assim como os ornamentos que enfeitavam a sua
sala melancólica. Fechado em seu mundo particular, o professor não nota a presença da
mulher, que quanto mais se sente rejeitada, mais deseja possui-lo:
40
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41 A guerra civil moçambicana, iniciada pouco tempo após a guerra de independência, levaria o país à beira de
do colapso pela destruição que ela iria provocar. Ela seria fruto de uma mescla de fatores internos e externos,
sendo incentivadas principalmente pela reação às políticas do governo e pela situação que se configurava no
sul da África ao final dos anos 1970. Para entender como a situação moçambicana chegou a tal ponto é
preciso analisar as ações do governo desde que assumiu o poder, assim como as relações estabelecidas com
outros países, em especial a Rodésia e a África do Sul [...]. Além da complexa situação interna do país, os
acontecimentos nos países vizinhos viriam a influenciar a guerra civil moçambicana, principalmente pela
postura adotada pela Frelimo em relação à política interna dos dois regimes racistas. [...] Desde o primeiro
momento, o presidente Samora Machel havia declarado seu apoio ao estabelecimento de governos de maioria
negra nesses países, então governados por uma minoria branca. Isso levou a Rodésia e a África do Sul a
apoiarem o grupo oposicionista Renamo, que enfrentaria a Frelimo numa sangrenta e brutal guerra civil.
(VISENTINI, 2012, p. 98-99).
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sendo dominado pela “ânsia desenfreada de usufruir tudo o que na vida lhe dá prazer”
(MOMPLÉ, 1997, p.14), mesmo que esses prazeres sejam frutos da miséria em que vive
grande parte da população, sobretudo, o grupo atingido diretamente pela guerra.
O modo como a voz narrativa descreve o major e o professor é relevante para
entendermos o processo de construção dessas duas personagens. O ex–guerrilheiro da
FRELIMO é descrito pelo narrador como uma figura em processo de deformação. O
homem, antes idealista, se transforma e a sua imagem se deforma. Cego pelo poder, o major
vai ficando cada vez mais desfigurado, na medida em que vai acumulando mais riquezas e
abandonando os seus ideais. O excerto do conto, exposto a seguir, nos mostra esse processo
de deformação do corpo do major:
O major general é um quarentão pequeno e nervoso que conserva ainda
resquícios do aprumo dos seus tempos de guerrilheiro da FRELIMO. [...]
Atualmente, não só o aprumo, mas os próprios ideais que o nortearam durante a
luta de libertação, e pelos quais estaria disposto a sacrificar a própria vida, foram
se diluindo. [...] Não admira, pois, que o ventre, atufalhado de boa comida e farta
bebida, se apresente agora volumoso e flácido, projetando-se o corpo como uma
caricata gravidez. E que o rosto, outrora de contornos quase ascéticos, esteja
agora deformado pela camada de gordura que, ao longo dos últimos anos, se vem
instalando sob a pele macerada. E que o próprio olhar tenha adquirido a baça
frieza da maioria dos abastados deste mundo. (MOMPLÉ, 1997, p.14-15).
Observemos que a voz narrativa não economiza qualificativos para descrever a figura
grandiosa do professor. Trabalhador, honesto, incorruptível e generoso, o homem é
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apresentado como um exemplo de dignidade, num contexto em que os homens que lutaram
pela independência do país, considerados heróis pela população, vão sendo corrompidos
pelo dinheiro e pelo poder, como é o caso do major-general.
Feitas essas observações a respeito de duas personagens masculinas tão diferentes, e
que consideramos relevantes para compreendermos as estratégias narrativas utilizadas por
Lília Momplé (op. cit.), voltemos à questão que é o foco principal de nossa análise: o ódio da
amante do major-general pelo seu vizinho. Esse ódio moverá as ações da protagonista, sendo
o professor a sua principal vítima. Certa do seu poder de sedução, a amante do major-general
não aceita passar despercebida, tentando buscar no homem que lhe é indiferente “a
confirmação da sua feminilidade e beleza” (MOMPLÉ, 1997, p.13).
A ação, mesmo que inconsciente do professor ignorar a vizinha que tanto o deseja,
vai fortalecendo o ódio dela. De tal modo,
Radiosa no seu vestido verde mar, ao vê-lo todo entregue à bebida e ao Xirico, a
amante do major-general continua a fixá-lo com um olhar branco de rancor. O
mesmo olhar que um dia, num futuro não muito distante, sentado no banco dos
réus, ele irá captar e o levará a interrogar-se, cheio de perplexidade, ’porque me
odeia tanto esta mulher que mal conheço?’ Com efeito, terá dela apenas uma ideia
vaga e imprecisa, de alguém que, casualmente, se avista de relance (MOMPLÉ,
1997, p.13).
A estratégia narrativa, assumida por Lília Momplé (op. cit.), de trazer para o tempo
presente pistas dos acontecimentos que marcarão o futuro das personagens, chama-se
flashforward e, além deste, a autora também recorre, muitas vezes, ao uso do flashback. Nesse
caso, fatos do passado são trazidos à tona para dar sentido a acontecimentos ocorridos no
presente das personagens.
Na citação destacada anteriormente, vimos que a amante do major-general e o
professor vão estar frente a frente, no momento em o homem estará sentado no banco dos
réus, perplexo com o ódio que desperta na mulher que mal conhece. Logo, a voz narrativa
nos revela o motivo deste encontro. O fato é que, num momento de desespero, o professor
acaba assassinando a sua esposa. Ninguém presencia o crime. A amante do major-general, no
entanto, ao saber da tragédia, faz questão de se apresentar como testemunha de acusação:
Nesse dia, a amante do major-general será a única testemunha de acusação. Nem
mesmo os familiares da esposa do réu se prestarão a depor contra ele, porque,
apesar de campónios analfabetos, carregam em si uma sabedoria antiga que lhes
permite distinguir um criminoso de um homem acuado pelo desespero. A amante
do major-general, porém, logo que tiver conhecimento da tragédia, ousando
mesmo contrariar o amante, apresentar-se-á como testemunha de acusação,
aproveitando-se da privilegiada situação de vizinha do réu. E, nessa hora de
vingança, incriminará o professor com afirmações temerárias e falsas.
(MOMPLÉ, 1997, p.13-14).
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Ela abster-se-á de emitir opiniões pessoais, mas continuará a fixar o réu com os
olhos brancos de rancor. Rancor que dará lugar a um brilho de triunfo quando,
apesar de todas as atenuantes, for lida a pesada sentença de quinze anos de prisão
(MOMPLÉ, 1997, p.13-14).
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A personagem feminina é o elo mais fraco da relação e não tendo poder para
violentar o poderoso homem, acaba por despejar a sua fúria no professor. Na opinião de
John Rex, ao escolher o vizinho como alvo de seu ódio, a mulher procura descarregar a sua
ira “salvando e preservando o seu mundo ir(real), e certamente a sua saúde emocional”
(REX, 2007, p. 446). Presa a uma realidade que a torna infeliz, a amante do major-general
transforma-se em pessoa egoísta que só valoriza aquilo que o dinheiro pode comprar. Se
pudesse, compraria o professor para incluí-lo na coleção de objetos que enfeitam a sua casa.
Arriscamo-nos a afirmar que encher a mansão de móveis caros e luxuosos é uma maneira da
mulher tentar preencher o vazio de sua existência.
É interessante observarmos as estratégias narrativas utilizadas por Lília Momplé (op.
cit.) para construir as personagens principais que praticam algum tipo de violência. A amante
do major-general, como vimos, é representada como alguém que age de maneira temerária.
Ela é vítima de violência, mas reproduz essa prática contra quem considera mais fraco,
apenas para se vingar. Todas as qualificações que se referem à mulher a colocam num espaço
de vilania. Por outro lado, mesmo quando assassina a esposa, o professor não perde a sua
áurea heroica. Depois de cometer o crime, ele vai se entregar à polícia. Nesse momento,
ocorre uma virada na construção formal do texto, que reforça a tentativa do narrador tentar
justificar o crime praticado pelo personagem com o qual muito se identifica. Nessa cena,
diferente do que acontece no decorrer do conto, o professor assume a enunciação e se
pronuncia num discurso direto e livre:
- Venho entregar-me. Matei a minha mulher.
-Matou a sua mulher? – pergunta o policial, atônito, pois não consegue relacionar
aquele homem de aspecto tão pacífico com um crime de morte.
-Sim, matei – murmura de novo, o professor.
-E por´quê? Qual foi o móbil do crime? - Insiste o policial, num tom mais
profissional, mas ainda incrédulo.
-Não sei. Acabo de a matar.
- Não sabe? Então acaba de matar a mulher e não...
- Não sei... talvez porque eu próprio já não consiga viver – responde o professor,
tirando do bolso um velho lenço, com o qual tenta ocultar as lágrimas que,
teimosamente, lhe brotam dos olhos (MOMPLÉ, 1997, p.19).
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aproximação entre nós, leitoras e leitores e o personagem. A confissão do crime coloca, mais
uma vez, o professor no espaço de celebração, coloca-o no lugar de herói que não foge às
suas responsabilidades. Afinal, ele comete o erro, mas admite-o.
Se formos pensar nos personagens como alegorias, podemos dizer que o major-
general representaria os indivíduos responsáveis pela perpetuação da guerra, recebendo
benefícios diretos. A sua amante seria uma alegoria do grupo que se beneficia indiretamente
do conflito. De certa forma, nos móveis luxuosos que enfeitam a mansão da mulher respinga
o sangue das moçambicanas e dos moçambicanos mortos em consequência dos conflitos.
Por não se deixar corromper e manter firmes os seus ideais, num contexto em que as
pessoas vão sendo pervertidas pelo poder, o professor, em sua luta incansável pela
sobrevivência, pode ser lido, no conto, como uma alegoria do povo moçambicano sofrido.
Um defensor de valores e tradições do país que, aos poucos, vão sendo destruídos pela
guerra que se estende infinitamente.
Podemos considerar, então, que a violência internalizada pela amante do major-
general, se apresenta na vida de todas as personagens do conto, em maior ou menor escala.
A narrativa de Momplé é, portanto, marcada por uma áurea violenta. Ninguém consegue
ficar imune a ela. A relação de violência que a personagem feminina estabelece com o major
é reproduzida, por ela, contra o vizinho. Do mesmo modo, quando o professor assassina a
sua mulher, ele pratica contra a esposa a violência do sistema que enfrenta cotidianamente.
O conto ‘Stress’, como grande parte das narrativas de Lília Momplé (op. cit.), não tem
happy end. Ciente da realidade brutal que invade o contexto enfocado pelo conto, a autora vai
criando estratégias de ficcionalização da violência, deixando manifesta a sua crítica àqueles
que, como o major-general e sua amante, se beneficiam das mazelas provocadas pela guerra e
pela corrupção dos ideais defendidos pelas lutas de libertação.
Referências
DUARTE, Zuleide. Lilia Momplé: estórias de uma história contada com lágrimas. Maputo,
Rev. Literatas. v.43, n.2, p. 05-07. Ago.2012. Disponível em: <http://macua.blogs.com
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MOMPLÉ, Lília. Entrevista: “se não escrever mais nada não me importo”. Maputo, Rev.
Literatas. v.43, n.2, p. 09-13. Ago. 2012. Disponível em: <http://macua.blogs.com
/files/especial-lilia-momple.pdf. Acesso em: 26 ago. 2017.
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Correr para alcançar a árdua condução, após um penoso dia de trabalho, correr para
garantir um bom lugar na fila do hospital para tratar do filho doente; correr da fome, da
tortura, da polícia, das adversidades, driblando as diferentes formas de opressão, tem sido a
realidade do povo preto no Brasil, ao longo de mais de quatro séculos. A narrativa da canção
‘Crime bárbaro’ de Rincon Sapiência relata a saga de Galanga, personagem fictício, em fuga
após matar seu opressor, o Senhor de Engenho. A fuga evidenciada nessa poesia do rapper
paulistano dialoga, comparativamente, com a realidade do afrobrasileiro da atualidade; os
personagens reais de uma vida dura, vítimas das violências que marcaram e continuam a
marcar, da pior forma possível, a história do povo preto no Brasil.
‘Crime bárbaro’ de Rincon Sapiência, de autoria do próprio rapper em parceria com
Tom Zé e Valdez, é embalada por um riff de guitarra sampleado da música ‘Jimmy, renda-se’
de Tom Zé, que confere uma sensação de movimento acelerado, ao passo que narra a saga
do escravo Galanga em fuga, após assassinar o principal responsável por toda a opressão,
injustiças e maus-tratos sofridos pelo seu povo: o Senhor de Engenho.
Este trabalho foi desenvolvido com a intenção de despertar nos descendentes da
diáspora africana o desejo de serem protagonistas de suas próprias histórias, traçando suas
rotas de fuga por meio de sua arte, suas vivências, raízes culturais, crenças e lutas. Por isso,
escolheu-se a letra de ‘Crime bárbaro’, do rapper Rincon Sapiência como objeto de análise,
pois retrata uma fuga da opressão. Para tanto, o artigo apoia-se em obras de autores como
Antônio Candido (2004), Ferréz (2005), Stuart Hall (2003), João José Reis (1996), dentre
outros, como também, em canções de rappers como Emicida e Sabotage.
O negro em fuga
Rincon Sapiência, por meio de letras que retratam as lutas dos indivíduos periféricos,
como é o caso da canção ‘A volta pra casa’, exalta a criatividade, a história, irreverência e
qualidades do povo preto, como na dançante ‘Ponta de lança’ (Verso livre). O rapper traz à
42 Wellington A. dos Santos é Mestre em Letras no campo das Teorias Literárias pela Universidade federal do
Espírito Santo, UFES.
43 Jurema Oliveira é Pós-Doutora Pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem
(PNPD/Capes/UFRN), Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa Africanidades e Brasilidades -
NAFRICAB/UFES, Pesquisadora da Fundação de Apoio a Pesquisa e Inovação do Espírito Santo – Fapes e
Professora da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.
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modo, toda a luta do povo negro para derrubar o sistema escravagista ficou ofuscada,
entrando num processo de apagamento.
Em entrevista para uma matéria publicada no dia 11 de maio de 2018 no ‘Jornal
Século Diário’, Thaís Souto Amorim, coordenadora do Museu do Negro no Espírito Santo
(MUCANE), afirma que vivemos uma abolição inacabada e que também, o efeito de um
papel assinado por uma princesa branca não nos libertou (TAVEIRA, 2018):
45 https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/rincon-sapiencia-e-os-130-anos-da-abolicao-que-ainda-
nao-veio.
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No verso: ‘Sim senhor, não senhor, não satisfaz’, fica evidente o desejo do
protagonista do enredo, até então oprimido, obediente e cabisbaixo, de revelar que tem sua
própria voz, após promover sua revolução. Já no refrão de ‘Crime bárbaro’, no verso ‘Canela
fina é pra correr’, Rincon Sapiência, aparentemente, brinca com a tradição das elites dizerem
que os negros com canelas finas são mais astutos, mais resistentes. Não obstante, há relatos
de que quando um navio negreiro aqui chegava, os escravos eram perfilados para serem
comprados e aqueles com as canelas finas eram escolhidos para trabalhos mais pesados, nos
quais se exigia mais resistência e habilidade.
A fala ‘Escravos agora fazem canções’, presente em ‘Crime bárbaro’, aparentemente,
relaciona-se ao fato do negro, mesmo sendo empurrado para as margens da sociedade,
sofrendo as consequências de uma abolição de escravatura inacabada, ter presença marcante
no processo de produção cultural brasileiro. O agravante aqui é que, embora contundente e
crucial na formação da nossa sociedade, a participação dos negros nessa construção é
invisibilizada pelas elites dominantes.
Para Ligia Leite (1992), o construto cultural no Brasil, deu-se a partir da valorização
da produção das elites e vulgarização das criações das massas que, mesmo inferiorizadas,
permeiam e influenciam o cotidiano da cultura elitista:
Os versos: ‘Meu crime a ele eu culpo / Bateu em criança, cometeu estupro’ de ‘Crime
bárbaro’, deixam evidente o pensamento do herói da narrativa do rap de Rincon Sapiência,
acerca da culpabilidade de seu ‘ato bárbaro’. Para ele, os atos degradantes do senhor de
engenho o levaram a cometer o assassinato que desperta em seu ser uma sensação de
heroísmo, como é possível notar na fala: ‘Me sinto como um herói e isso me faz bem’.
O verso: ‘Proibiu a dança e a religião’, elencado na denúncia do protagonista como
um dos elementos causadores da sua investida contra seu opressor, evidencia a
desvalorização dos costumes e crenças do povo preto por parte da elite branca brasileira. As
religiões de origem africana sempre foram desqualificadas no Brasil, em detrimento das
religiões seguidas pelos brancos.
Seguindo essa mesma lógica, Karl Marx e Friedrich Engels (1974), na obra ‘Sobre
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literatura e arte’, afirmam que as classes dominantes são detentoras da produção intelectual e
espiritual de cada época:
As ideias da classe dominante são também as ideias dominantes de cada época.
Ou, por outras palavras, a classe que é a potência ‘material’ dominante da
sociedade é também a potência espiritual dominante. A classe que dispõe dos
meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção
intelectual, de maneira que, em média, as ideias daqueles a quem são recusados os
meios de produção intelectual estão desde logo submetidas a essa classe
dominante (MARX; ENGELS, 1974, p. 22).
Desse modo, quem detém o poder, normatiza o tipo de produção cultural que lhe
convém. De acordo com Robyn J. Whitaker (2019), o branqueamento da imagem de Jesus
Cristo, como exemplo, também serviu de elemento de legitimação do preconceito contra
negros:
Da mesma forma, a afirmação teológica de que os seres humanos foram criados à
imagem e semelhança de Deus tem consequências: se Deus é sempre é sempre
representado como um homem, por padrão os homens serão brancos, uma ideia
subjacente a um racismo latente (WHITAKER, 2019). 46
46 https://www.bbc.com/portuguese/geral-47985039.
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A canção ‘Crime bárbaro’, como todo rap, que comumente narra vivências do povo
preto em todas as suas nuances, aponta o lugar da literatura na oralidade. Não obstante, a
prática de poesia oral serviu de base histórica para o desenvolvimento literário vigente.
Rincon Sapiência, por ser um indivíduo de origem periférica, podendo ter vivenciado os
acontecimentos narrados nos versos de suas músicas, nessa lógica de construção literária,
pode ser considerado o poeta ideal do povo que representa em seus modos de falar e em seu
comportamento. Assim, o artista estabelece um diálogo direto e objetivo com um povo em
busca de esclarecimentos para as complexidades enfrentadas.
Embora a elite defensora do cânone relute por reconhecer a importância de canções
rap como ‘Crime bárbaro’, em termos de literatura, vale ressaltar que essa forma de poesia de
origem negra, desenvolvida nas periferias das grandes cidades do Brasil, inspirada nos negros
americanos e jamaicanos, caminha a passos largos, ocupando lugares de destaque, mesmo em
ambientes acadêmicos, como foi o caso do álbum ‘Sobrevivendo no inferno’, do grupo de
rap paulistano, Racionais MC’s, escolhido para compor a lista de obras de leituras
obrigatórias do vestibular da UNICAMP, para aqueles que buscaram uma vaga na
Universidade em 2020, como é possível ver nesse fragmento da matéria de Camilo Rocha
(2018) no ‘Nexo Jornal’, sobre o assunto:
Os Racionais MC’s entraram para a academia. Pelo menos na Unicamp
(Universidade Estadual de Campinas), candidatos a uma vaga na instituição em
2020 terão de estar familiarizados com as letras do álbum ‘Sobrevivendo no
inferno’, de 1997.
A universidade colocou o álbum do grupo na lista de leituras obrigatórias para seu
vestibular. O disco, que contém músicas como ‘Diário de um detento’ e ‘Jorge da
Capadócia’, está na categoria ‘Poesia’, junto com ‘A teus pés’, da escritora Ana
Cristina Cesar, e de ‘Sonetos’ de Luís de Camões (ROCHA, 2018). 47
A mesma matéria de Camilo Rocha traz ainda uma importante fala, em defesa do rap
como literatura, do crítico literário americano Adam Bradley, doutor em língua inglesa pela
Universidade de Harvard:
Essa literatura oral das canções de rap, defendida por Adam Bradley, é quase sempre
desferida em forma de protesto contra a ação opressora das elites que tentam impor seus
47https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/05/24/Quais-as-conex%C3%B5es-do-rap-com-a-
literatura-e-a-poesia.
48https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/05/24/Quais-as-conex%C3%B5es-do-rap-com-a-
literatura-e-a-poesia.
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costumes e valores como sendo os ideais. Todo homem deve ser livre para decidir quais
valores lhe são aprazíveis, portanto, valores não podem ser impostos. Os únicos valores que
servem para se formar uma sociedade sólida e equilibrada, a saber: são o conhecimento e a
justiça social.
O ato do protagonista da narrativa de ‘Crime bárbaro’ de Rincon Sapiência
representa o desejo do povo preto diante de toda a violência sofrida desde sua chegada ao
Brasil. Não é de se admirar que a produção cultural do negro por aqui seja desqualificada,
visto que vivemos numa sociedade que só valoriza quem se encaixa nos padrões defendidos
por quem detém o poder. Quem não se ajusta a essa lógica, como é o caso dos negros que,
em sua maioria, formam as populações periféricas do país, é massacrado todos os dias, de
todas as formas, tendo negado todos os acessos de busca de vida digna.
Para Antonio Candido (2004), a aquisição de conhecimento pode ser um valor
transformador na construção de uma sociedade equilibrada, sendo,
[...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais,
como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o
próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da
vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o
cultivo do amor (CANDIDO, 2004, p. 180).
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Referências
CANDIDO, Antônio. Vários escritos. Rio de Janeiro/São Paulo: Ouro Sobre Azul/Duas
Cidades, 2004.
FERRÉZ. Terrorismo literário. In: FERRÉZ (org.) Literatura marginal: talentos da escrita
periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 9-14.
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Brasília:
Representação da UNESCO no Brasil, UFMG, 2003.
LEITE, Ligia. O desviolado. In: ECO: Publicação da Pós-graduação em Comunicação da
UFRJ, n.4. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Sobre literatura e arte. Lisboa: Estampa, 1974.
REIS, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. In: Revista USP, n. 28, p. 15-39.
São Paulo: USP, 1996.
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DISCOGRAFIA
EMICIDA. Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa.... São Paulo: Laboratório
Fantasma, 2015.
FERREIRA, Bia. Bia Ferreira no Estúdio Show livre (Ao Vivo) – Disponível no Spotify
Premium. São Paulo: Estúdio Show livre, 2018.
SABOTAGE. Rap é compromisso. São Paulo: Cosa Nostra Fonográfica, 2000.
SAPIÊNCIA, Rincon. Galanga livre. São Paulo: Boia Fria Produções, 2017.
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Considerações Iniciais
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mais especificamente, da protagonista trançando o cabelo num salão de beleza nos Estados
Unidos.
Durante o tempo de permanência no salão, emergem as memórias e lembranças
sobre os episódios da vida de Ifemelu desde a época em que estivera na Nigéria e sua estada
nos Estados Unidos. Nesse fluxo da memória e dos pensamentos da protagonista o leitor
conhece a pessoa que Ifemelu foi se tornando no decorrer de novas experiências e fases da
vida, que vão se sucedendo do começo da narrativa ao trançar dos tempos e das histórias.
No decorrer das 516 páginas do livro, que está dividido em sete partes e 56 capítulos,
o leitor também conhece a família, os namorados, os amigos de Ifemelu e acompanha o
processo de descobertas e amadurecimento da heroína nos Estados Unidos e a criação do
seu blog. A partir do percurso de Ifemelu, o exercício de reflexão aqui desenvolvido parte da
investigação do protagonismo de Ifemelu no romance Americanah. Assim, a abordagem da
presente análise romanesca busca lançar luz sobre a relação da personagem protagonista,
uma mulher negra em diáspora, e seus escritos para um blog de expressiva repercussão entre
os leitores jovens estadunidenses, cujas relações se fundamentam nos conceitos de
Empoderamento e Escrevivência.
Na noite em que surge a ideia de criação do blog de Ifemelu, ela escreve um e-mail
para sua amiga Wambui, falando como algumas questões referentes a gênero e ‘raça’
afetavam tanto o relacionamento com o seu então namorado, Curt, um homem branco,
estadunidense e rico. Ifemelu escreveu “um e-mail longo, que inquiria, questionava e
revirava. Wambui respondeu dizendo: Tudo isso é tão cru e verdadeiro. Mais pessoas
deveriam ler. Você deveria fazer um blog” (ADICHIE, 2014, p.320).
Apesar de Ifemelu ser uma personagem autônoma, articulada, inteligente, implicada e
sensível o suficiente para ter a ideia sobre o blog sozinha, Adichie situa a criação do blog no
contexto de uma relação de amizade entre duas mulheres negras, vindas de países africanos
(Wambui é do Quênia). O episódio de criação do blog reforça assim, uma relação que não é
baseada na subalternização de uma das partes. Wambui valoriza a importância da história e
das leituras sobre o mundo de Ifemelu e, além disso, acreditando na relevância coletiva do
relato de Ifemelu, sugere uma estratégia para que a amiga possa falar sobre o que lhe afeta,
materializando, assim, o princípio ‘erguer-nos enquanto subimos’ tão bem proposto e
trabalhado por Angela Davis (2017).
As relações de amizade de Ifemelu com mulheres em Americanah desempenham uma
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Segundo Angela Davis, mulheres negras estão preocupadas com salários, habitação,
educação, violência policial e melhoria da qualidade de vida. A abordagem de problemas de
ordem cotidiana na concepção de empoderamento apontada por Angela Davis (op. cit.) ajuda
na leitura e análise literária de Americanah na medida em que propõe a problematização de
uma realidade que é comum para a população negra dos EUA e com a qual Ifemelu teve que
lidar através das suas experiências, assim como através das experiências de seus amigos e
familiares.
Joice Berth (2018) aborda o empoderamento a partir de Paulo Freire e do resgate (e
ressignificação) que as feministas negras da década de 1980, como Bell Hooks, propuseram
sobre esse conceito. A autora citada, assim como Angela Davis, aponta a contribuição
histórica de mulheres negras como fundamental para compreender do que se trata o
empoderamento. Segundo Berth (op. cit.):
Mulheres negras, em toda diáspora, sentindo-se vitimadas pelas técnicas de
atuação do racismo intercalado a lógica patriarcal solidificada e naturalizada,
saíram e saem ainda hoje, em busca de modos sobrevivência, de fortalecimento
mútuo e instrumentalização prática das lutas diárias, seja no âmbito familiar,
profissional ou afetivo (BERTH, 2018, p.105).
Berth explica que falar em empoderamento não se trata de discutir o que uma pessoa
pode ou não fazer, mas sobre o que um grupo social consegue, ou não consegue fazer, em
uma sociedade estruturada em opressões etnicorraciais, de gênero e classe. Não se trata de
um desenvolvimento exclusivamente individual, mas de um processo coletivo, ou seja,
“empoderamos a nós mesmos e amparamos outros indivíduos em seus processos,
conscientes de que a conclusão só se dará pela simbiose do processo individual com o
coletivo” (BERTH, 2018, p.130).
A filósofa Djamila Ribeiro (2018) alerta que o termo empoderamento tem sido mal
interpretado e usado de maneira a ressaltar somente uma perspectiva individualista, que
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uma dupla condição, que a sociedade teima em querer inferiorizada, mulher e negra”
(EVARISTO, 2005, p.204).
Em Americanah, a narrativa de si é consubstanciada na experiência pessoal e do
grupo, o romance transita na ‘entre-fronteira’ do relato de testemunho autobiográfico
coletivo e da ficção, permeando o sentimento de pertença, de falar de dentro da experiência
da autora, que se ficcionaliza na personagem Ifemelu. Conceição Evaristo (op. cit.) nomeia
esse tipo de relação de pertença e autorreconhecimento da negritude e do sujeito/mulher de
‘escrevivência’.
Nesse sentido, utilizamos o conceito de Evaristo porque dialoga com a constituição
do protagonismo da personagem apresentada neste trabalho. Sobre escrevivência, Conceição
Evaristo explica:
Bom, a Escrevivência, a primeira coisa que eu poderia dizer, sem retomar o
processo histórico que me faz pensar nesse termo escrevivência [...] é uma
literatura que é profundamente, que tem por inspiração, tem como motivo de
escrita a própria vivência e quando eu digo a própria vivência é não somente a
minha vivência particular, eu tenho dito que as personagens que eu crio não têm
condições de eu ser cada uma daquelas personagens [...], então cada personagem
criada não traz necessariamente, e muitas nem trazem, a minha experiência
pessoal, mas todas elas trazem uma experiência do grupo, da coletividade
(Informação verbal). 52
O pai disse: “Você deve se abster de sua propensão natural à provocação, Ifemelu. Já
é conhecida por insubordinação na escola, o que maculou seu singular currículo acadêmico.
Não há necessidade de criar um padrão similar na igreja” (ADICHIE, 2014, p.61).
Obinze riu e Ifemelu, sem interesse em continuar a falar de poesia, perguntou:
“Então, o que foi que Kayode disse sobre mim? [...]Ele disse: ‘Ifemelu é linda, mas dá
trabalho demais. Sabe discutir. Sabe falar. Nunca concorda com ninguém. [...].” [Ifemelu]
52 Conceição Evaristo no Encontro de Associados da TAG Experiências Literárias em Paraty, Rio de Janeiro,
em 28 de julho. 2018.
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“Gostava dessa imagem de si mesma como sendo alguém que dava trabalho, que era
diferente, e às vezes encarava aquilo como uma carapaça que a mantinha segura”
(ADICHIE, 2014, p.69). Mais à frente, confidencia “Blaine: É uma opinião bem forte.
Ifemelu: Não sei como ter opiniões de outro tipo” (ADICHIE, 2014, p.195).
Identificamos e, assim pretendemos analisar, a construção do protagonismo de
Ifemelu na narrativa de Americanah a partir de dois eixos: ‘Ifemelu na Nigéria’ e ‘Ifemelu nos
Estados Unidos’. No primeiro eixo, as questões de gênero estão em primeiro plano na vida
de Ifemelu e na narrativa. Os conflitos que movimentam o enredo estão relacionados a essas
problemáticas, além de questões referentes ao contexto político da Nigéria. Já no segundo
eixo, as questões etnicorraciais estão mais destacadas, o processo de descobrir-se negra é um
importante marcador da experiência de Ifemelu nos EUA e, portanto, no desenvolvimento
da narrativa e a criação do blog de Ifemelu deflagra o impacto dessa experiência.
Dentro desses dois eixos existem categorias que ajudam a compreender o
desenvolvimento de Ifemelu. Seguindo o percurso da protagonista na Nigéria, podemos
perceber que o desenvolvimento do protagonismo de Ifemelu está muito ligado às suas
‘relações sociais, comunitárias e familiares’ (Ifemelu na Escola, Igreja, Família e
Universidade), destacando nesses contextos, ‘o relacionamento de Ifemelu com mulheres
com quem convive’: Tia Uju, sua mãe, mãe de Obinze, além do ‘seu relacionamento
amoroso com Obinze’.
Essas dimensões, dentro do eixo primeiro, ajudam a identificar como se constrói o
protagonismo de Ifemelu na narrativa, quando as vivências da personagem estão
concentradas no período que ela vive na Nigéria. Quanto às categorias que pertencem ao
eixo ‘Ifemelu nos Estados Unidos’, podemos afirmar que continua a dimensão ‘relações com
mulheres com quem convive’: Ginika, Wambui, Tia Uju, a dimensão ‘relacionamento
amoroso’ (tensionada pelas diferenças raciais e de nacionalidade) e a dimensão nova que esse
eixo traz e que resume a descoberta de Ifemelu de sua negritude nos Estados Unidos: ‘o
trabalho como escritora do blog’, sendo esta última dimensão a que destacamos no presente
artigo.
O início da narrativa de Americanah apresenta ao leitor a Ifemelu bem sucedida e já
vivendo financeiramente à custa do seu trabalho como escritora de um blog, mas que está se
organizando para voltar à Nigéria. Nas primeiras páginas, essa apresentação da personagem
acontece juntamente o com a apresentação de sua ocupação. Conhecemos, então, uma
contadora de histórias que caminha pelo mundo procurando histórias em potencial,
querendo ouvir as vozes que povoam os EUA e que vivificam as contradições desse país.
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pertencem ao seu tempo, mas também enxergando suas potencialidades, ainda que
longínquas” (MORAIS, 2018, p.69).
Como já falamos, Ifemelu é uma estudante universitária nigeriana que se mudou para
os Estados Unidos para estudar e anos depois se torna uma blogueira, que discute sobre
questões etnicorraciais, sendo através desse trabalho que conseguiu sua estabilidade
financeira. Um dos contrapontos mais importantes que a representação dessa personagem
apresenta para o leitor é o quanto seu trabalho e empenho intelectual são valorizados, o que
fratura e questiona os estereótipos exaustivamente utilizados na representação de mulheres
negras no discurso literário. Por isso, a dimensão da vida de Ifemelu (de quem ela é/está
sendo) que pretendemos destacar neste trabalho é a Ifemelu escritora, a contadora de
histórias.
Por que abordar Ifemelu como escritora? Ao chegar aos EUA, Ifemelu é confrontada
com uma série de informações e vivências que movimentaram a maneira como ela se
pensava e se definia até então, quando o exercício de sua escrita desempenha um papel
fundamental no modo como se reorganiza e elabora sua relação com o contexto social e
político em que está inserida. Ao responder às indagações de uma mulher ao afirmar que a
questão racial nos EUA não é um problema, Ifemelu relata como se descobriu negra nos
Estados Unidos e o que significa ser negra nesse país:
O único motivo pelo qual você diz que a raça nunca foi um problema é porque
queria que não fosse. Nós todos queríamos que não fosse. Mas isso é uma
mentira. ‘Eu sou de um país onde a raça não é um problema; eu não pensava em
mim mesma como negra e só me tornei negra quando vim para os Estados
Unidos’ (ADICHIE, 2014, p.315, grifos nossos).
Sobre se descobrir como pessoa negra nos Estados Unidos, Ifemelu também tratou
dessa problemática no texto ‘Para outros Negros Não Americanos: Nos Estados Unidos
você é negro, baby’ de seu blog:
‘Querido Negro Não Americano, quando você escolhe vir para os Estados
Unidos, vira negro’. Pare de argumentar. Pare de dizer que é jamaicano ou
ganense. A América não liga. E daí se você não era negro no seu país? [...] Ao
descrever as mulheres negras que você admira, sempre use a palavra forte, porque,
nos Estados Unidos, é isso que as mulheres negras devem ser. Se você for mulher,
por favor, não fale o que pensa como está acostumada a fazer em seu país.
Porque, nos Estados Unidos, mulheres negras de personalidade forte dão medo.
E, se você for homem, seja supertranquilo, nunca se irrite demais, ou alguém vai
achar que está prestes a sacar uma arma[...] Os negros não devem ter raiva do
racismo. Se tiverem, ninguém vai sentir pena deles (ADICHIE, 2014, p. 239-240,
grifos nossos).
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diaspóricos que estão presentes nos Estados Unidos e que servem para ampliar concepções a
respeito de ser uma pessoa negra nesse contexto. No texto anteriormente mencionado,
Ifemelu se dirige aos ‘negros não americanos’ para falar de uma série de comportamentos
que adquirem significados diferentes, quando se é uma pessoa negra nos EUA. Ao mesmo
tempo, nesse exercício de escrita, Ifemelu escancara as posturas racistas que afetam
cotidianamente o modo como homens e mulheres negros se relacionam.
Os textos de Ifemelu intitulados ‘Entendendo a América para o Negro Não
Americano: o tribalismo americano’, ‘Para outros Negros Não Americanos: Nos Estados
Unidos você é negro, baby’ e ‘Entendendo a América para o Negro Não Americano:
Explicações sobre o que algumas frases realmente querem dizer’ também são exemplos de
como a protagonista constantemente tenta estabelecer diálogos com as pessoas negras da
diáspora africana e, ao mesmo tempo, mostrar sua leitura sobre como as questões
etnicorraciais se manifestam no seio de relações cotidianas nos EUA.
Outra peculiaridade a ser destacada sobre os textos de Ifemelu se refere ao modo
como ela os utiliza para comunicar às pessoas brancas sobre a condição social da população
negra e sobre racismo. Nesses textos, a blogueira subverte a noção de prescrição de
comportamento para instruir, para ‘educar’ pessoas brancas sobre a condição da pessoa
negra na sociedade estadunidense. O trecho a seguir do texto ‘Dicas amigáveis para o Não
Negro Americano: como reagir a um Negro Americano falando sobre Negritude’,
exemplifica essa ideia:
‘Querido Americano Não Negro, caso um Americano Negro estiver te falando
sobre a experiência de ser negro, por favor, não se anime e dê exemplos de sua
própria vida’. [...] Finalmente, não use aquele tom de Vamos Ser Justos e diga:
‘Mas os negros são racistas também’. Porque é claro que todos nós temos
preconceitos, mas o racismo tem a ver com o poder de um grupo de pessoas e,
nos Estados Unidos, são os brancos que têm esse poder (ADICHIE, 2014, p.353,
grifos nossos).
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participaram da história que ela relata, essas pequenas ficcionalizações corroboram com
Ifemelu na função de contadora de histórias e afirmam a tradição africana de narrar as
experiências e memórias do grupo de geração a geração, herança que se evidencia na escrita
oralizada de Ifemelu (SOUZA, 2017).
A protagonista cria o lugar de observadora e debatedora do modo de vida
estadunidenses. Em seus textos não são os EUA que estão construindo narrativas sobre o
outro, mas é esse outro que está produzindo narrativas sobre os EUA. Sendo assim, os posts
de Ifemelu e Americanah são textos subvertedores de hegemonias por deslocarem a lógica
consolidada de produção de conhecimento e de narrativas, questionando, assim, a
hierarquização dos saberes.
Nesses textos, o homem branco (ou a nação mais poderosa) não está falando sobre
alguém, produzindo narrativas sobre alguém, faz-se o contrário, é uma mulher negra que
tornou ‘o modelo’ como objeto sobre o qual vai falar na sua própria narrativa. Por que
ressaltamos isso? Porque mulheres negras enfrentam e tentam superar questionamentos
como: - pode a mulher negra falar? Pode a mulher negra falar sobre isso? Pode a mulher
negra falar desse modo?
Grada Kilomba, artista plástica portuguesa, analisa que as mulheres negras ocupam
uma posição problemática na sociedade supremacista branca e, assim, representam uma
dupla carência, dupla alteridade, pois são a antítese da masculinidade e da branquitude e
assim mulheres negras não sendo nem brancas e nem homens “exercem a função de outro
do outro” (KILOMBA, 2010, p.118).
Para a autora citada anteriormente, não se trata de hierarquizar estruturas de
opressões ao ponto de mulheres negras terem que escolher entre solidariedade com homens
negros ou mulheres brancas, mas sim tornar visível suas experiências. Ifemelu ao tomar o
poder da escrita e assim localizar de outro modo a ‘antítese branquitude e masculinidade’ 53
Considerações Finais
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publicados por grandes casas editoriais, que sub-representam a pessoa negra, reforçando
visões estereotipadas desse grupo social, como ressalta o estudo ‘Personagens do romance
brasileiro contemporâneo: 1990-2004’, coordenado por Regina Dalcastagné, professora da
Universidade de Brasília.
Essa pesquisa se debruça sobre os romances brasileiros publicados de 1990 a 2004
pelas três editoras de maior destaque no mercado editorial brasileiro: Rocco, Record e
Companhia das Letras, sendo esta última a editora que publica os livros de Adichie no Brasil.
Uma das principais constatações da pesquisa é que existe uma ausência da pessoa negra nos
romances brasileiros abordados, tanto de escritores e escritoras quanto de personagens.
Na maioria dos livros sob a investigação do estudo ocorreu a predominância de
personagens do sexo masculino: homens brancos adultos, heterossexuais, escritores. As
personagens negras aparecem poucas vezes nos romances estudados e são majoritariamente
representadas como bandidos/contraventores, empregada doméstica, profissional do sexo
ou dona de casa e, só em 5,8% do corpus pesquisado, os negros são protagonistas e em 2,7%
narradores (DALCASTAGNÉ, 2011).
Apresentamos esses dados para ressaltar que “[...] a ausência de personagens negras
na literatura não é apenas um problema político, mas também um problema estético, uma
vez que implica a redução da gama de possibilidades de representação” (DALCASTAGNÉ,
2011, p.322). Por isso, faz-se necessário, também, para o contexto brasileiro o maior contato
com narrativas que desconstruam esse lugar de ‘mais do mesmo’ destinado às minorias
étnicas e para formar leitores literários que possam constituir o seu imaginário com outras
imagens a respeito das pessoas negras.
A criação do blog de Ifemelu e o contexto em que isso acontece implicam novas
possibilidades, que não serão só boas, ou só ruins. Nessa empreitada, a personagem constrói
novos caminhos e novos lugares a partir do encontro entre as histórias que irão povoar seu
blog e suas ‘Observações Curiosas de uma Negra Não Americana sobre a Questão da
Negritude nos Estados Unidos’. O nome do blog está marcado, assim como Ifemelu, por
dimensões importantes da sua vida que a ajudam a reconhecer a si mesma e o lugar de onde
vai partir para se tornar quem ela luta para ser.
Dessa maneira, o romance de Adichie corrobora simbolicamente com a
desestabilização importante e necessária: a mulher negra em diáspora protagonizando
discussões e processos de produção de conhecimento nos Estados Unidos. Chimamanda
Adichie cria, portanto, uma personagem que, mesmo ocupando um lugar de estrangeira
vinda da África (e todos os estereótipos que estão ligados a esse lugar), não está limitada ao
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Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Americanah. Tradução Júlia Romeu. São Paulo:
Companhia das Letras, 2014.
DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. Tradução Heci Regina Candiani. São Paulo:
Boitempo, 2017.
54 'Gosto de dizer ainda que a escrita é para mim o movimento de dança-canto que o meu corpo não executa, é
a senha pela qual eu acesso o mundo.” (EVARISTO, 2005, p.202).
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RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das
Letras, 2018.
SOUZA, Elio Ferreira de. Poesia negra: Solano Trindade e Langston Hughes. Curitiba:
Appris, 2017.
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Considerações iniciais
Desde o sequestro do africano e o seu consequente deslocamento para as terras das
Américas, a literatura tem construído caminhos os quais evidenciam uma representação da
cultura negra e sua afirmação dentro do sistema cultural brasileiro. Dessa forma, esta
pesquisa se nutre da literatura de autoria negra, afrobrasileira, ou ainda, afrodescendente
como representação dos lugares sociais, políticos e raciais habitados pelo negro e suas
manifestações culturais.
A representação da memória individual e coletiva se constitui ferramentas para os
escritores e escritoras negros, cujas pautas artísticas, culturais e políticas têm como norte a
valorização de todo um conjunto de elementos envolvendo o negro, bem como,
denunciando a discriminação, o preconceito e, sobretudo, o racismo. No Brasil, a literatura
negra, nos seus aspectos narrativos e no trato com a linguagem, é marcada pela forte
presença da oralidade que, muitas vezes, resulta dos contatos com os cantos e canções
populares de origens afrobrasileiras e afrodescendentes (SOUZA, 2017).
No que tange à literatura escrita por negros e negras no Brasil, temos como uma das
principais representantes a escritora Conceição Evaristo. Suas obras, bem como a linguagem
adotada é marcada por enredos envolvendo histórias oriundas dos espaços sociais
esquecidos pela elite, assim como pelos representes políticos. Em sua produção poética
discute as forças da ancestralidade e da oralidade tendo como parâmetro o lugar e a
subjetividade do negro, em geral, e da mulher negra, em particular. Sua escrita tematiza as
narrativas e relatos de personagens que vivem às margens da sociedade, em confronto com
as forças centrípetas das classes sociais e suas táticas de apagamentos das identidades e das
culturas dos negros e seus descendentes. No que concerne ao espaço geocultural, essas
personagens se debatem com questões de deslocamentos geográficos, busca de identidade,
representação cultural e política, reconquista física e religiosa, além de recomposição
psicológica.
Como declara Édouard Glissant, o negro, apesar de todas as forças contrárias,
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travando uma relação a partir da qual se pode vislumbrar uma crioulização não só das
culturas, mas principalmente, do mundo, “o mundo se criouliza. [...] Isso é: as culturas do
mundo colocadas em contato umas com as outras” (GLISSANT, 2013, p. 17) projetam uma
tendência como parte de uma transformação consciente das identidades culturais. O exílio
do africano nas Américas constitui a base desse processo. A caracterização mais significativa
disso tudo pode ser a projeção circular de uma herança residual transportada pelas hidrovias
do Atlântico para fertilizar as culturas do mundo.
Em ‘Histórias de leves enganos e parecenças’, Conceição Evaristo se lança a um
projeto narrativo voltado para o realismo animista. O livro é composto por doze contos e
uma novela. Na obra, a autora transita entre os mistérios e o imprevisível. Nesse universo de
interpretação, ‘Histórias de leves enganos e parecenças’ nos apresenta uma narradora que fala
de dentro do lugar vivido, sob a ótica da subjetividade da mulher negra. Todos os doze
contos e a novela ‘Sabela’ são narrados por uma reunião de vozes-mulheres. Tal percurso é
reiterado pela professora Assunção de Maria Sousa e Silva.
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e ela surgiu para me guiar” (EVARISTO, 2016, p. 35). Nessa narrativa, a oralidade se
manifesta nas repetições de pronomes (eu, ela, me), fazendo com que o texto se aproxime do
leitor por meio das pausas, as quais são marcadas pelas vírgulas e frases curtas.
Para Ana Mafalda Leite (2014, p. 45) as estratégias da oralidade são “[...] um conjunto
de processos retóricos, que obsessivamente se repetem, como a personificação, a hipálage, a
animalização, a metáfora, a comparação.” Mafalda ainda ressalta que “os provérbios, as
sentenças, as frases feitas são portadoras de significação didaticofilosófica” (Idem). Esses
elementos se materializam na escrita de Conceição, formando um texto híbrido típico de
narrativas originadas da oralidade. Em ‘Nossa Senhora das Luminescências’, a narrativa se
desenrola com uma mãe angustiada, pois seu filho se engasgou com uma espinha de peixe.
Ao recorre à Nossa Senhora das Luminescências ela apareceu e ajudou com sua cuia,
iluminando a boca da criança.
Dias desses, me contaram que uma criança no afã de comer um peixe, ainda
quente da fritura, além de queimar a língua, ficou sufocada com um espinho
agarrado na garganta. Nem chorar a criança conseguia, apenas gemia. A senhora
das Luminescências surgiu de repente trazendo alívio. Apanhou o pequenino e, na
escuridão do entorno, com sua cuia plena de luzes iluminou a boca da criança. Lá
dentro, quem estava perto, viu uma enorme espinha de peixe, furando a garganta
do menino. A mãe das Luminescências somente fez isto: três vezes esquentou a
mão livre nas velas e friccionou suavemente na garganta do menino. E no final da
terceira repetição do gesto, a criança, que se encontrava prostradinha no colo de
sua mãe, ergueu o corpo tossindo, e o motivo do engasgo foi expelido
repentinamente (EVARISTO, 2016, p. 35-36).
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2014, p. 36).
Conceição Evaristo busca na tradição uma episteme narrativa marcada por metáforas
que envolvem a natureza (o sol, o mar, o canto dos passarinhos) o que nos faz lembrar a
herança dos contadores de história da tradição oral, cujas vozes vão repercutir nas narrativas
de ‘Histórias de leves enganos e parecenças’. Nos contos e na novela, são evocadas a
memória e a oralidade a partir das recuperações dos valores da cultura ancestral como as
danças, cantos e passos ritmados e ressignificados na diáspora.
Considerações finais
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Referências
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2001.
BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.
BROOKSHAW, David. Raça & cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado
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EVARISTO, Conceição. Gênero e Etnia: uma escre(vivência) da dupla face. In: EVARISTO,
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mundo, etnia marginalidade e diáspora. João Pessoa; Ideia, 2005.
EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe; um dos lugares de nascimento de
minha escrita. In: Alexandre, Marcos Antônio (Org.). Representações performáticas
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EVARISTO, Conceição. Histórias de leves enganos e parecenças. Rio de Janeiro: Malê,
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GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce do
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Universidade de Javeriana, Instituto de Estudos Peruanos, Universidade Andina Simón
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57 Projeto de pesquisa sobre angústia e transformação nas obras de Paulina Chiziane. Mestranda em Literatura
Africanas de Língua Portuguesa e integrante do Grupo de Pesquisa e Estudo Escritas do Corpo Feminino,
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. [email protected]
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Ler ‘Niketche: uma história de poligamia’ é ouvir as vozes das mulheres que, por
muito tempo, foram abafadas pela sociedade patriarcal. Paulina Chiziane inaugura esse
espaço de fala feminina, não apenas por apresentar uma mulher a narrar e a protagonizar o
romance, mas também, por usar a oralidade de forma recorrente como elemento aliado para
promover a visibilidade das vozes das mulheres moçambicanas.
Em um breve relato para sintetizar a obra, a história é narrada e protagonizada por
Rami, uma mulher do Sul de Moçambique, que tem um nível social elevado em comparação
ao das outras mulheres do país. Tony, com quem é casada há vinte anos, exerce um cargo
importante na polícia local. Ao estranhar as ausências de seu marido, Rami vai à busca de
uma explicação e descobre que Tony tinha relacionamentos extraconjungais com quatro
mulheres - Julieta, Luísa, Saly e Mauá Saulé – e passa a ter conhecimento da existência dos
outros filhos de Tony. Para surpresa do leitor, a protagonista se solidariza pela condição
inferior em que essas mulheres e seus filhos vivem e começa a conviver com elas até se
tornarem companheiras.
Antes de ampliarmos a discussão desse estudo, é interessante saber que Paulina
Chiziane é de origem chope, uma das etnias do sul de Moçambique, em que a musicalidade é
um aspecto significativo. Isso explicaria a herança da palavra oral e da musicalidade bem
presentes em suas obras. Assim, no trecho “Titubeio uma canção antiga daquelas que
arrastam as lágrimas à superfície. Nessa coisa de cantar, tenho minhas raízes. Sou de um
povo cantador” (CHIZIANE, 2004, p. 15). A oralidade em forma de canção aparece para a
personagem como característica de suas origens.
É incontestável a importância da oralidade nas culturas africanas, pois a palavra dita
existiu e foi responsável pela transmissão de conhecimento antes da palavra escrita. A
palavra oral representa a tradição, “difunde as vozes ancestrais, procura manter a lei do
grupo, fazendo-se, por isso, um exercício de sabedoria” (PADILHA, 2007, p. 35). Assim
como aparece em outras obras literárias africanas, a oralidade é uma das principais
características da obra de Chiziane, porém de uma maneira reinventada. Os elementos orais
não estão conectados apenas com a tradição, visto que estes nos levam a conhecer a real
posição que a mulher moçambicana ocupa na sociedade.
Ao iniciar a leitura de ‘Niketche’, acredita-se que a trama se desenvolverá em torno
apenas da vida da protagonista, pois ela está voltada para dentro de si, levantando
questionamentos sobre sua posição e tentando entender quem ela é. Porém, ao buscar
respostas para suas indagações, Rami sai do ambiente privado, sua casa, para o externo e, a
partir do contato com outras mulheres, leva à narrativa, situações diversas contadas pelas
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Houve pessoas que pensaram que tive sucesso por acaso. Alguns escritores
consideraram que eu estava escrevendo sobre o feminino porque era moda. Mas
eu segui com muita força e determinação. [...] O fato é que sou uma mulher e
escrevo sobre temas que me tocam nessa minha condição.
Logo, podemos afirmar que o romance será uma forma de reivindicar um lugar de
fala para as vozes femininas. Não basta trazer temáticas sobre mulheres, há a necessidade de
que as histórias sejam contadas por elas. Mais uma vez, outra fala de Paulina corrobora nossa
perspectiva: “Gosto muito dos poetas de meu país, mas nunca encontrei na literatura que os
homens escrevem o perfil de uma mulher inteira. É sempre a boca, as pernas, um único
aspecto. Nunca a sabedoria infinita que provém das mulheres” (CHIZIANE, 2013, p. 358).
Por isso, no decorrer de todo o romance, aparecem histórias, mitos e lendas
contados por mulheres. Isso mostra a sabedoria sendo transmitida por elas, por meio da
oralidade, como, por exemplo, a passagem referida no texto a seguir, em que a tia de Rami
explica como funcionava a prática da poligamia.
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— Era uma vez uma princesa. Nasceu da nobreza, mas tinha o coração de
pobreza. Às mulheres sempre se impôs a obrigação de obedecer aos homens. É a
natureza. Esta princesa desobedecia ao pai e ao marido e só fazia o que queria.
Quando o marido repreendia ela respondia. Quando lhe espancava, retribuía.
Quando cozinhava galinha, comia moelas e comia coxas, servia ao marido o que
lhe apetecia. Quando a primeira filha fez um ano, o marido disse: vamos
desmamar a menina, e fazer outro filho. Ela disse que não. Queria que a filha
mamasse dois anos como os rapazes, para que crescesse forte como ela. Recusava-
se a servi-lo de joelhos e a aparar-lhe os pentelhos. O marido, cansado da
insubmissão, apelou à justiça do rei, pai dela. O rei, magoado, ordenou ao dragão
para lhe dar um castigo. Num dia de trovão, o dragão levou-a para o céu e a
estampou na lua, para dar um exemplo de castigo ao mundo inteiro. Quando a lua
cresce e incha, há uma mulher que se vê no meio da lua, de trouxa na cabeça e
bebé nas costas. É Vuyazi, a princesa insubmissa estampada na lua. É a Vuyazi,
estátua de sal petrificada no alto dos céus, num inferno de gelo. É por isso que as
mulheres do mundo inteiro, uma vez por mês, apodrecem o corpo em chagas e
ficam impuras, choram lágrimas de sangue, castigadas pela insubmissão de Vuyazi
(CHIZIANE, 2004, p. 157).
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Olhar atentamente a participação das mulheres que compõem a narrativa nos leva a
reafirmar que ‘Niketche’ é um espaço em que as vozes das mulheres demarcam um lugar
para suas falas. Através da insatisfação de Rami com a sua vida, temos indagações que nos
levam a pensar na condição do ser feminino na sociedade. Ao mesmo tempo em que
‘escutamos’ suas vozes, sabemos que elas são deixadas de lado, principalmente, em espaços
públicos. Assim, Chiziane consegue preencher com a oralidade o vazio causado pelo
silenciamento imposto. Vejamos, a seguir, a cena em que as personagens tentam argumentar
em uma reunião de família e, após não terem sucesso, um dos pensamentos da personagem
principal denuncia a situação:
Cerramos as nossas bocas e as nossas almas. Por acaso temos direito à palavra? E
por mais que a tivéssemos, de que valeria? Voz de mulher não merece crédito.
Aqui no sul, os jovens iniciados aprendem a lição: confiar em mulher é vender a
tua alma. Mulher tem língua comprida, de serpente. Mulher deve ouvir, cumprir,
obedecer (CHIZIANE, 2004, p. 154).
Mas eu sou um galo, tenho a cabeça no alto, eu canto, eu tenho dotes para
grandes cantos. Pois saibam que o vosso destino é cacarejar, desovar, chocar,
olhar para a terra e esgaravatar para ganhar uma minhoca e farelo de grão. Por
mais poder que venham a ter, não passarão de uma raça cacarejante mendigando
eternamente o abraço supremo de um galo como eu, para se firmarem na vida.
Vocês são morcegos na noite piando tristezas, e as vozes eternos gemidos
(CHIZIANE, 2004, p. 166-167).
Ribeiro (op.cit.) ressalta, nas páginas iniciais de sua obra, a importância das mulheres
negras deixarem a condição de passividade em relação à produção de seus textos:
“colocando-as na situação de sujeitos e seres ativos que, historicamente, vêm pensando em
resistências e reexistências” (RIBEIRO, 2017, p. 15). Vemos a escrita de Chiziane como um
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ato de perseverança ao tratar sobre assuntos polêmicos e escrever fora dos padrões.
Antes de definir o que é o lugar de fala, a pesquisadora irá nos mostrar que é preciso
reivindicá-lo: “A reflexão fundamental a ser feita é perceber que, quando pessoas negras
estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida”
(RIBEIRO, 2017, p. 43). A necessidade de reconquistar esse direito pode ser notada quando
Rami começa a sentir a necessidade de se libertar, falar e, assim, passar a ‘existir’: “Quero
libertar a raiva de todos os anos de silêncio. Quero explodir com o vento e trazer de volta o
fogo para o meu leito, hoje quero existir” (CHIZIANE, 2004, p. 19).
No livro ‘O que é lugar de fala?’, Djamila Ribeiro também constata a importância de
delimitar e delinear o espaço de fala: “essa marcação se torna necessária para entendermos
realidades que foram consideradas implícitas dentro da normatização hegemônica”
(RIBEIRO, 2017, p. 60).
Um ponto importante levantado pela autora aqui citada é a criatividade como
estratégia para que a mulher use o lugar de subalternidade de uma forma que a favoreça e
ligue seus pensamentos à prática para externar sua realidade. Mais uma vez, vemos um duplo
acontecer entre a autora e sua personagem. Assim como Chiziane utiliza suas obras para
revelar o que acontece na condição que a cerca, Rami usa sua angústia para mudar sua
situação e, igualmente, a das outras esposas. Podemos justificar com a seguinte fala de Lu:
“O Tony, colector de mulheres, e tu, colectora de sentimentos. Congregaste à tua volta
mulheres amadas e desprezadas. És brava, Rami. Semeaste amor onde só o ódio reinava. Tu
és uma fonte inesgotável de poder. Transformaste o mundo. O nosso mundo” (CHIZIANE,
2004, p. 254-255).
A forma desigual como as pessoas ocupam determinados espaços sociais resultará na
conquista ou perda do lugar de fala:
[...] não poder estar de forma justa nas universidades, meios de comunicação,
política institucional, por exemplo, impossibilita que as vozes dos indivíduos
desses grupos sejam catalogadas, ouvidas [...]. O falar não se restringe ao ato de
emitir palavras, mas de poder existir (RIBEIRO, 2017, p. 64).
É a nós que a sociedade não dá oportunidade para ganhar com dignidade o nosso
próprio pão. [...] Enquanto isso, os homens vão para a escola do pão. Enquanto
eles aprendem a escrever a palavra vida no mapa do mundo, nós vamos pela
madrugada fora, atrás das nossas mães, espantar os pássaros nos campos de arroz
(CHIZIANE, 2004, p. 291).
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Ser limitada em seus espaços na sociedade faz com que a mulher não tenha, desde a
infância, um espaço para se expressar com as palavras, o que é prejudicial, não apenas ao
feminino, mas a qualquer indivíduo, uma vez que a voz é a marca de uma existência digna.
O não ouvir acontece também e será uma prática recorrente quando a mulher reivindicar seu
direito de fala, pois, para quem sempre obteve o poder de fala, estar em sua posição é
confortável e cômodo. Tudo isso acaba desestimulando a mulher que esteve silenciada de
tentar ter o seu lugar, como, por exemplo, quando Rami, mesmo sabendo que estava certa,
tinha certeza de que não a ouviriam: “Mas quem iria me ouvir? Alguma vez tive voz nesta
casa? Alguma vez me deste autoridade para decidir sobre as coisas mais insignificantes da
nossa vida?” (CHIZIANE, 2004, p. 228).
Ao final do romance, nos deparamos com uma Rami bem diferente do início da
história. Agora, ela não sente mais medo de falar, como demonstra na seguinte passagem:
“Falo com muito prazer e ele sente a dor [...]. No meu peito explodem aplausos.”
(CHIZIANE, 2004, p. 227) E, algumas páginas depois, Rami continua a falar o que por
muito tempo ficou guardado: “A minha linguagem é mais dura que uma rajada de granizo.
Chicoteia. Eu dizia tudo sem rodeios” (CHIZIANE, 2004, p. 229).
‘Niketche’ nos instiga a refletir sobre o lugar de fala e a pensar nele como uma forma
de quebrar o silêncio imposto para a mulher, “um movimento no sentido de romper com a
hierarquia, muito bem classificada [...] como violenta” (RIBEIRO, 2017, p. 90).
Paulina Chiziane cria uma nova proposta literária, na medida em que faz de
‘Niketche’ uma obra de contestação, ao dar voz às mulheres moçambicanas a partir de suas
personagens e, ao mesmo tempo, abrir um espaço para abordar os assuntos silenciados na
sociedade.
Até chegar à reivindicação do lugar de fala, foi preciso existir algo que impulsionasse,
tanto a escritora quanto a personagem Rami. Nesse aspecto, interessou-nos examinar a
angústia que ambas sentiram ao perceber que algo precisava ser feito para mudar a situação
da mulher, tanto no universo literário quando no real. Por isso, reivindicar o direito de ter
voz é primordial para conquistar a libertação.
Referências
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[...] o sistema educativo nos países africanos, de modo geral, tende a fazer da
menina uma pessoa menos importante que o menino. Alguns pais, com medo de
fazer de suas filhas mais ‘marginais e marginalizadas’ que se revoltam contra a
ordem estabelecida, limitam a sua educação ao nível da escola primária. A mulher
intelectual, por exemplo, é às vezes vista pelos depositários das tradições africanas
como uma ameaça ao bom funcionamento da sociedade tradicional (ROBERT,
2010, p.14).
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Podemos dizer que a narrativa de Paulina Chiziane possui um fio condutor que se
apresenta como painel recorrente às suas personagens. É a fronteira entre os
valores tradicionais e a nova condição social carreada ora pela máquina colonial,
ora pela nova organização política do país após a independência. A partir dessa
perspectiva, as personagens experienciam variados confrontos e os mais
frequentes são aqueles que se referem à religiosidade. Divididas entre ritos
tradicionais e referências bíblicas e cristãs, as personagens geralmente se deparam
com situações em que tem de escolher qual caminho seguir. São exemplos, entre
outros, Vera, a narradora de O sétimo juramento, os quatro cavaleiros apocalípticos,
em Ventos do apocalipse, Rami, a protagonista de Niketche – uma história de poligamia.
Rami é católica e teve a sua união abençoada pelo sacramento cristão, mas
somente conseguirá encontrar o caminho da conciliação da intrincada situação
entre as esposas de seu marido Toni, quando se volta aos princípios da poligamia
(DAVI, 2010.p.144-145).
Rami, ao descobrir que seu esposo tem outras esposas, se encontra num descaminho,
sem prosseguir e respeitar o peso da tradição, ou rebelar-se contra um sistema forte e
mantenedor de outras formas de abuso e apagamento da mulher. Se, por um lado, o
casamento com Tony a mantém em posição de respeito frente à sua comunidade, o fato de
ter que dividir seu esposo com outras mulheres frustra Rami em sua conversação com o
espelho, se perguntando qual a causa de tanto sofrimento e abandono, se ela também é
bonita e cumpre com ‘os deveres e os afazeres’ de uma esposa?
Souza (2012, p.78) informa sobre o destino das muitas mulheres africanas sob a égide
colonial e patriarcal no que tange ao casamento como única forma de sobrevivência:
A personagem Rami representa esse grupo de mulheres que, pelo casamento e sendo
loboladas, vivem sem poder questionar ou desejar outros caminhos e aponta sua insatisfação,
assim como reconhece o culpado, seu marido Tony, como representação do poder
masculino que se impõe e também utiliza a mulher como objeto que deve ser colonizado:
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acredito nele. Mas os passos dos homens são rasto de caracol, não se escondem.
Sei muito bem por onde anda (CHIZIANE,2004, p.6).
Criar sozinha os filhos, com esposo ausente e fracionado para as outras esposas é
essa a realidade de Rami. Autêntica representante das mulheres que pela poligamia são
desprestigiadas e mesmo que o esposo tente agradar a todas da mesma maneira, não
conseguirá ser justo com todas, restando o sofrimento e a pouca representatividade na
comunidade e na própria casa.
Niketche, retrata a história da vida amorosa e conjugal de Rami (Maria Rosa), mãe
de cinco filhos e casada, oficialmente, há vinte anos com Tony (António Tomás),
Comandante da Polícia. Rami, nascida no Sul de Moçambique, foi educada
segundo as regras do Cristianismo, deixando de lado toda a cultura de origem
bantu. Ela era apaixonada pelo marido, cumpria religiosamente com o seu papel
de esposa obediente e fazia-lhe todas as vontades, chegando a sacrificar muitos
dos seus sonhos. Tony, também nascido no Sul de Moçambique, pertencente ao
grupo étnico Changana, era mulherengo e tinha várias mulheres e filhos
espalhados pela cidade de Maputo. Rami raramente via seu marido e tinha que
educar os filhos, praticamente sozinha, o que a deixava bastante desgostosa
(SILVA, 2012, p.14).
[...] cerramos as nossas bocas e as nossas almas. Por acaso temos direito à palavra?
E por mais que a tivéssemos, de que valeria? Voz de mulher serve para embalar as
crianças ao anoitecer [...] Mulher deve ouvir, cumprir, obedecer (CHIZIANE,
2004, p. 154).
O poder patriarcal e colonial diminui a presença da mulher e a põe como a terra que
deve ser explorada e colonizada. Silenciada em um casamento poligâmico, Rami se vê presa à
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rede da tradição e sair dessa situação não é algo que se faça com facilidade. Sente que não
suporta mais o esposo e suas mentiras e pelo fato de insubordinar-se a essa situação já torna
a personagem uma representação da mulher moçambicana da atualidade já imersa e
‘contaminada’ pela influência do Ocidente e não aceita mais viver sob a égide da tradição e
poder do homem.
Tony, arrogante no estatuto de macho, decide por Rami o seu destino, como o fazem
todos os homens, herdeiros da tradição e mantenedores da cultura falocêntrica na cidade
colonial:
- Rami! - Diz! - Tomei uma decisão. Vamos divorciar-nos. .... – Por que o divórcio
agora? - Quero assegurar-te de uma coisa: não é por falta de amor. É punição.
Quero colocar-te ao nível das outras mulheres. A tua conduta nos últimos tempos
não é digna de uma esposa. Já que estás registada nos meus documentos julgas
que és alguma rainha. No lugar de educares as outras esposas, instigas a atitudes
maldosas. Tenho que acabar com isso... o advogado vai procurar-te dentro de
alguns dias (CHIZIANE, 2004, p. 165).
A fala do homem é uma ordem a ser cumprida. Rami torna-se uma ameaça a Tony,
pelo fato de instigar nas outras esposas a insubordinação a poligamia e o desejo de terem
seus espaços e até ganharem seu sustento sem depender daquela situação que as aprisiona e
favorece ao marido. Arrogante e detentor da razão colonial, Tony arremata:
As chances de sobreviver a esse sistema e às outras são mínimas para Rami. O tom
da insubordinação frente a tudo o que tem vivido e desejando livrar-se do constrangimento e
sofrimento de ter que educar os filhos enquanto o esposo vive a frequentar o leito das outras
esposas gerando filhos e dificuldades para manter todas as esposas. Porém, o desejo e a
coragem para enfrentar o esposo polígamo impinge a personagem em uma rede de dor e
descaso:
Ele fala e fala. Não o escuto. Estou no futuro, estou na Lua. Estou no mundo que
me espera quando o divórcio se consumar. Serei uma mancha de lama no lençol
imaculado da família materna. Serei nódoa de caju, absolutamente indelével, na
camisa branca do meu pai. A sociedade olhar-me-á com desprezo piedade,
maldade, como as aves que rapinam na noite. Serei enxotada a pau e pedra, como
serpente [...] (CHIZIANE, 2004, p. 165-166).
Rami está consciente de sua subalternização, processo que lentamente vai sendo
imposto à mulher desde a educação familiar preparando-a para o casamento e para agradar
ao esposo. Quando ela diz “Ele fala e fala não o escuto” (CHIZIANE, 2004, p.165-166) é um
ato de insubordinação ao sistema patriarcal e colonizador. Rami não aceita mais ter um
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dono, e mesmo com um destino tão miserável não desiste de si e enfrenta Tony com um
comportamento não esperado pelos ditames da poligamia.
A personagem reclama a Deus e quer compreender o que se passa consigo.
Consideramos, também, a partir dessa fala de Rami, mais um gesto de quem se insubordina e
não mais aceita a vida e destino a ela imposto:
Se o sujeito subalterno não pode falar, Rami vai na contramão do sistema e fala de
sua insatisfação. É um sujeito que ali se encontra na sociedade colonial, mas não consegue
mais viver sob essa perspectiva. Temos em Rami uma mulher que vai contra a poligamia e,
por isso, paga um alto preço por assim se comportar em uma sociedade que a quer submissa.
Sobre o poder masculino, importa dizer, a partir de Pierre Bourdieu (1999, p.10):
Nos deparamos com um novo paradoxo, capaz de obrigar a uma completa
revolução na maneira de abordar o que já se tentou estudar sob forma de “a
história das mulheres”: será que as invariáveis que se mantêm, acima de todas as
mudanças visíveis da condição feminina, e que são ainda observadas nas relações
de dominação entre os sexos, não obrigam a tomar como objeto privilegiado os
mecanismos e as instituições históricas que, no decurso da história, não cessaram
de arrancar dessa mesma história tais invariáveis?
Alguns costumes mais tradicionais acabam justificando os abusos contra aqueles que
historicamente são marginalizados. É o caso das mulheres que, pelas poucas oportunidades
de acesso à educação, mercado de trabalho e condições dignas de vida se sujeitam à
poligamia e outros aspectos que não trazem nenhum tipo de benefício à posição da mulher
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nessas sociedades. Paulina Chiziane valendo-se da sua escrita aponta, em diversas obras, a
posição da mulher em uma sociedade herdeira da colonização e onde impera o
patriarcalismo:
Desde o seu primeiro romance, ‘Balada de amor ao vento’, que a autora vem
desvelando a responsabilidade da mulher no estado de sua condição. Neste
contexto, a obra de Paulina Chiziane atualiza um discurso que inclui o
questionamento e a denúncia, dando voz e criando espaços de reflexão ao sujeito
que é ‘silenciado’, tendo como intuito apelar à mulher moçambicana para uma
mudança consciencializada. Esta estratégia, que começa a ser formatada em
Ventos do Apocalipse, adquire dimensão actancial em ‘O sétimo juramento’,
quando as mulheres (mulher, amante e mãe) de David se aliam para se salvarem e
à família; ou pelas mulheres de Tony, em Niketche, que, apanhadas na voragem de
uma relação poligâmica feita à medida do polígamo, o obrigam a respeitar a
instituição nos seus deveres, direitos e obrigações – isto, segundo a ética da
instituição. Para tal, há recorrência à diversidade do legado cultural moçambicano,
atualizando em fórmulas, rituais, hábitos, gestos, comportamentos. Por este
esquema se elabora um percurso pelas diferenças, semelhanças, desejos,
sentimentos e aspirações de diferentes mulheres moçambicanas, nos diferentes
âmbitos de intervenção quotidiana, como em Niketche, romance feito de
polarizações [...] (MATA, 2006, p. 437-438).
Bezerra (2015), sobre a literatura de Paulina Chiziane, diz que a figura da mulher
permanece aprisionada dentro dos territórios patriarcais e delimitados pelo poder tradicional.
No entanto, percebemos na voz da personagem Rami uma ruptura com esse poder
patriarcal. Se consciente e nada satisfeita com a vida de esposa de um polígamo passa a
questionar e discorre sobre os males que essa prática traz à educação dos filhos, essa mulher
passa a apresentar um comportamento de insubordinação.
Nessa perspectiva, passamos a ler o romance da Paulina Chiziane, ‘Niketche: uma
história de poligamia’(2004) e esperamos contribuir com a compreensão do universo
feminino em África e com especial olhar a Moçambique.
A linguagem do ventre é a mais expressiva, porque se pode ler, na multiplicação
da vida. A linguagem das mãos e dos braços é também visível. Segurando um
recém-nascido. Segurando um bouquet de flores no dia do casamento. Segurando
uma coroa de antúrios na hora do funeral do seu amor. E a linguagem do
coração? Ausente muralha de diamante. Silêncio de sepultura. Ausência
impenetrável. E a linguagem da...? Se a... pudesse falar que mensagem nos diria?
De certeza ela contaria belos poemas de dor e de saudade. Cantaria cantigas de
amor e de abandono. Da violência. Da violação. Da castração. Da manipulação.
Ela nos diria por que chora lágrimas de sangue em cada ciclo. Dir-nos-ia a história
da primeira vez. No leito nupcial. Na mata. Em baixo dos cajueiros. No banco de
trás do carro. No gabinete do Senhor Diretor, à beira-mar. Nos lugares mais
incríveis do planeta. Ah, se as.... pudessem falar! Contar-nos-iam histórias
extraordinárias do licabo, o canivete da castidade. O que nos contariam as...
medievais que conheceram o cinto da castidade? O que nos dirão as excisadas? O
que nos dizem as que celebram as orgias xi-maconde, xi-sena, xi-nyanja? As.. que
desafiaram o licabo estão em silêncio, morreram com os seus segredos. As.. xi-
ronga e xi-changana contam histórias de espantar, dos bacanais do canho,
afrodisíaco divino, nas festas da fertilidade. Muthiana orera, onroa vayi?, pergunto
[...] (CHIZIANE, 2004, p. 185-186).
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3 Considerações finais
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Referências
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro:Bertrand,1999.
BEZERRA, Rosilda Alves. O sentido social do lobolo na ficção de Paulina Chiziane.In:
Revista de Estudos Literários- Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. 2017.
CHIZIANE, Paulina. Niketche-uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das
Letras,2004.
DAVI, Débora Leite. O desencanto utópico ou o juízo final: um estudo comparado entre
a costa dos murmúrios, de Lídia Jorge, e Ventos do Apocalipse, de Paulina Chiziane. [Tese
de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo].São Paulo: USP 2010.
MATA, Inocência. Mulheres de África no espaço da escrita: a inscrição da mulher na sua
diferença. In: PADILHA, Laura Cavalcante; MATA, Inocência (Org). A mulher em África:
vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Colibri: Centro de Estudos Africanos –
FLUL, 2006. p. 421-440.
ROBERT, B.K.A consciência da subalternidade: trajetória da personagem Rami em
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Literaturas de Língua Portuguesa]. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas das
USP.2010.
SILVA, Lourdes Rodrigues da. Questões de gênero e cidadania no romance Niketche, de
Paulina Chiziane.In: POIÉSIS. Revista do Programa de Pós-graduação em Educação
(Mestrado) da Universidade do Sul de Santa Catarina. Simpof. Número especial. jul.-
dez.2012.
SPIVAK, Gaiatri C. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Goulart Almeida,
Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
SOUZA, Francisca Zuleide Duarte de. De fomes e máculas. In :Revista Guará.Goiânia.v.2,
n.1, p.77-86, jan-jun.2012.
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mais fielmente possível à realidade,” e que na concepção simbolista, “as palavras não devem
nos enviar a nada mais do que a elas próprias” (idem), mas à possibilidade de criação de uma
nova realidade a partir dessa linguagem. Na obra, o autor citado transita entre real e
imaginário, sem interrupções. O estranhamento do leitor em relação ao fantástico é
metaforizado na personagem estrangeira (Massimo Risi), que representa o Ocidente,
conforme o fragmento a seguir:
[...] Podia uma velha com tamanha idade inspirar desejos num homem em plenas
faculdades? Massimo Risi se apressou a sair. De passagem pela recepção,
aproveitou para recolher informações sobre a idosa mulher.
_Ah, essa é Temporina, ela só anda no corredor, vive no escuro, desde há séculos.
_Nunca sai?
_Sair?!Temporada?! (COUTO, 2005, p. 39).
Massimo Risi é designado para fazer uma investigação sobre as explosões dos
soldados na aldeia de Tizangara. A princípio, estranha os fatos anteriormente apresentados,
todavia, na medida em que o curso da investigação desemboca em acontecimentos
sobrenaturais e põe em cheque o pensamento racional de Risi, com o decorrer do tempo, ele
os entende por via da emoção. Como já foi dito, Risi se encontra em Tizangara, uma
pequena e misteriosa vila fictícia situada no interior da África, mais precisamente em
Moçambique. Ali acontecimentos estranhos faziam parte da realidade.
A obra possui fio narrativo característico da literatura fantástica porque a presença de
elementos e fatos sobrenaturais cria uma aura de mistério, instaurando a dúvida entre real e
irreal. Dessa forma, o fantástico é visualizado em um tipo de narrativa na qual o enredo traz
um fenômeno que não pode ser explicado pela razão.
Com uma estratégia narrativa de representação do irreal, o autor citado afirma, no
início da obra, que a pequena vila é rodeada de mistério, como vemos no fragmento: “em
Tizangara só os fatos são sobrenaturais” (COUTO, 2005, p.15). Trata-se de uma vila
bastante peculiar e singular. “Para agravar, em Tizangara tudo ocorria de passagem. Quem
aqui vinha nunca era pra ficar. Por isso, quando chegaram, esses soldados das Nações Unidas
foram chamados de gafanhotos” (COUTO, 2005, p. 105).
Apesar do desaparecimento de Tizangara fazer dela um local insólito, é através das
personagens que o narrador conduz o leitor às vivências diversas de experiências
maravilhosas, pois a história é construída envolta das personagens. Existem quatro
personagens que apresentam caraterísticas sobrenaturais: Hortênsia, Temporina, Zeca
Andorinho e Suplício. Em relação à primeira personagem, Hortênsia, que apesar de morta,
desempenha ações na narrativa: "Na vila, todos sabíamos era Hortênsia quem continuava
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cuidando do sobrinho. Todas as manhãs sobre a mesa ressurge o prato, com refeição
destinada" (COUTO, 2005, p. 66-67). A categoria da personagem, a partir da ausência de
corpo, motiva a sua essência fantástica.
Temporina também pode ser considerada como uma personagem fantástica por sua
condição de jovem com aparência de velha. Simplício, pai do narrador/tradutor também
pode ser considerado como personagem fantástico. O velho se desossa sem nenhuma
explicação. Esse fato inusitado rompe radicalmente os princípios da lógica. Zeca Andorinho
é um feiticeiro local e se adapta às caraterísticas de personagem fantástica porque foi o
responsável por fazer com que os soldados estrangeiros explodissem. Diante do inexplicável,
o leitor é conduzido a perceber que Zeca Andorinho possui poderes sobrenaturais, segundo
explica a personagem e comenta o narrador:
‘Foi esse feitiço que usei contra esses gafanhotos’. [...] Afinal, aquele feitiço
começava onde todo homem começa _ no namoro. Á medida que ia avançando
ficava quente e o seu corpo se desconformava. O enfeitiçado inchava, sem dar
conta. Crescia como o sapo face a seu próprio medo. Até que, no preciso
momento do orgasmo, explodia (COUTO, p.146-147).
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Não se pode ler a obra esperando verossimilhanças externas apenas, mas estar aberto
aos caminhos que ao verossímil interno. A expectativa do leitor, parece assemelhar-se às
expectativas de Risi, como se ele representasse o narratário em relação ao narrador/tradutor.
Ele demonstra sentir dúvidas sobre sua sanidade, questiona constantemente aquilo que está
vivendo: “_ Estou ficando maluco, não aguento mais” (COUTO, 2005, p.83).
As personagens exercem cada uma o seu papel universalizante. Juntas, compõe o
universo fantástico e dão equilíbrio à narrativa. O tradutor é o bom filho que à casa torna.
Faz ponderações e críticas, tanto ao seu povo quanto ao estrangeiro, aquilo que vem de fora
do universo africano. As explicações para o estranho acontecimento são dadas por meio dos
conhecimentos orais locais. Ao se deparar com uma realidade tão distinta da sua, o italiano
Massimo Risi não consegue transpor as fronteiras culturais entre o mundo africano e o
ocidental.
Você quem é?
-Sou seu tradutor.
-Eu posso falar e entender. Problema não é a língua. O que não entendo é este
mundo daqui (COUTO, 2005, p. 40).
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que falar na minha língua. E é coisa que nem este moço não pode traduzir” (COUTO, 2005,
p. 153). Mesmo com a possível tradução cultural sugerida pelo tradutor/narrador é como se,
em alguns casos, prevalecesse a impossibilidade de traduzi-los. A tradução é aqui entendida
do ponto de vista cultural. Para Ribeiro (2005. p. 78-79):
Pode-se dizer sem qualquer reserva que a tradução se tornou uma palavra-chave
da nossa contemporaneidade, uma metáfora central do nosso tempo
potencialmente, toda a situação em que se preocupa fazer sentido a partir de um
relacionamento com a diferença pode ser descrita como uma situação translatória.
Nesta acepção ampla, o conceito de tradução aponta para forma como não apenas
línguas diferentes, mas também culturas diferentes e diferentes contextos e
práticas políticos e sociais podem ser postos em contato de forma a que se tornem
mutualmente inteligíveis, sem que com isso tenha que se sacrificar a diferença em
nome de um princípio de assimilação.
O tradutor de ‘O Último voo do Flamingo’ tem essa função de traduzir a cultura para
Massimo, pois Tizangara mantém viva tradições antigas e, para o Italiano, seria impraticável
compreendê-las sozinho. Massimo Risi sai de uma convicção imparcial de mundo
europeizado em direção a “territórios que não tinham sido ainda pisados pelo pé do
homem” (HENRIQUES, 2004. p.107). Esse ‘homem’ aqui personificado é representado
pelo italiano, que descobre, em sua descrença, a vontade de saber sobre a cultura tizangarês,
tão irreal para si. Ele coloca seus pés, desnudos, numa terra que conquistou seu respeito e
afeto, seja pelas pessoas que o acolheram, seja pelo lado místico, seja pelos crimes que veio
desvendar.
Por outro lado, Tizangara é uma sociedade na qual a oralidade tem um peso maior
que a escrita. No mundo de Risi, não basta apenas contar o que aconteceu, devem-se
documentar os fatos históricos, portanto, sua tarefa é recolher e enviar provas dos
acontecimentos que teriam conduzido às explosões dos soldados da ONU, porém suas
anotações somem misteriosamente:
Na cama do italiano, papéis revolvidos se acumulavam. Massimo, em desespero,
revirava as papeladas.
_Veja! [...]
_Não está nada escrito aqui.
_Exatamente. E veja as fotos!
Eram papeis de fotografia, mas em branco. Era esse o mistério _ aqueles papeis e
aquelas imagens não eram virgens. Até ali estavam maculados por letras, por
imagens gravadas. Aqueles eram as provas, os materiais que o italiano acumulava
para mostrar aos seus chefes (COUTO, 2005, p. 144).
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A narração do acontecimento é marcada por uma elipse, a falta de explicação para tal
fato e, em nenhum momento, esse fenômeno é comentado nas páginas seguintes, suscitando
a dúvida típica do fato maravilhoso.
O autor citado apenas sugere algumas hipóteses para que se possa encontrar uma
explicação para o fato inusitado. Massimo teria conseguido passar por cima das minas devido
às aulas que tivera com Temporina ou algum elemento fantástico que o teria feito flutuar ou,
por fim, seria Temporina uma feiticeira. O autor recorre, ainda, à intertextualidade bíblica
para dialogar com o leitor que, possivelmente, se recordará da passagem na qual Jesus Cristo
anda sobre as águas.
Ao escolher uma das hipóteses, o milagre (como ocorreu com Cristo), o narrador
deixa subentendida que a ‘dúvida’ estaria resolvida e, consequentemente, isso excluiria o
elemento fantástico. Contudo, no início do fragmento menciona as lições que Temporina
dera ao italiano. Assim, se ambas as escolhas são viáveis, a ambiguidade típica do fantástico
permanece. O leitor se depara com um fato que não pode ser explicado pelas leis naturais.
Aqui, o fantástico produz o efeito da incerteza, pois como lembra Felipe Furtado (1980. p.
36-37): “O discurso fantástico tem, assim, de multiplicar esforços no sentido de apoiar o
desenvolvimento constante desse debate que a razão trava consigo própria sobre o real e a
possibilidade simultânea da sua subversão.”
Não há um questionamento da parte de Risi quando ele caminha sobre as minas. No
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decorrer da narrativa, aos poucos, Massimo adere à cultura moçambicana sendo que, no
desfecho da trama, quando o narrador profere as seguintes palavras: “Massimo sorria, em
rito de infância. Me sentei, a seu lado. Pela primeira vez, senti o italiano como um irmão
nascido na mesma terra. Ele me olhou, parecendo ler por dentro, adivinhando meus receios”
(COUTO, 2005, p. 220).
Por outro lado, nota-se aversão a essa proximidade na voz do pai do
tradutor/narrado, sulpício, que se recusava a aceitar a intervenção recorrente da Europa em
seu território, estendendo-se ao receio de que seu filho fosse constrangido a aceitar a
interferência do italiano, ser cúmplice, de alguma forma, daquilo que não era inerente ao
povo africano. As guerras moçambicanas (de Libertação e Civil) deixaram marcas naqueles
que a vivenciaram de perto.
Como afirma Margarida Calafate Ribeiro (op.cit.), era necessária uma ruptura com
essas marcas, que seriam visíveis “ora nos corpos mortos, gangrenados, mutilados,
amputados e esfacelados de homens de homens de vinte anos” – no caso dos boinas azuis
que estavam desaparecidos, nos órgãos que explodiam e voavam pelo vilarejo – “ora nos
estados de cansaço, enlouquecimento, embriaguez, neurose, solidão e desistência de muitas
personagens que povoam esta literatura” (RIBEIRO, 2004, p. 28) – a solidão, na forma de
Sulpício, a loucura na forma do administrador, o cansaço na cena de espancamento de Ana
Deusqueira.
Como já demonstrado, Risi insere-se na cultura local, contudo, ao longo da narrativa,
a população local representa o estranho, o ‘Outro’; já para a comunidade, Massimo é o
estrangeiro que recorda outros forasteiros que passaram por Moçambique, quase sempre
invasores ou colonizadores. Ele é o europeu, o branco e o agente de uma instituição externa
no país, a Organização das Nações Unidas.
Ele é guiado pelo narrador e secundariamente por Temporina que o introduzem ao
universo mítico e fantástico local. O narrador é um tradutor ambivalente que permite ao
estrangeiro a vivencia de fatos que potencializam a compreensão e a apreensão da cultural de
Tizangara. O tradutor o conduz à aldeia dos seus familiares na qual ele conhece seu pai,
Suplício, e se aproxima dos costumes locais. O desfecho da história ocorre na segunda visita
de Massimo à aldeia do intérprete. Nesse momento, a região é engolida pelo abismo restando
apenas três personagens: o senhor Suplício, o narrador/tradutor e Risi. Instantes depois,
aparece misteriosamente um barco no qual Suplício entra, e convida o italiano, que não vai.
O narrador insiste para embarcar com seu pai, porém este diz-lhe que fique:
_Você fique, meu filho.
_Mas, pai...
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_Fica, já disse. Para contar aos outros o que aconteceu com nosso mundo. Não
quero que seja esse de fora, a falar desta nossa estória. (COUTO, 2005. p. 218)
Nesse diálogo entre o narrador e seu pai fica evidente a resistência aos estrangeiros.
O tom imperativo utilizado pelo idoso indica que, em primeiro lugar, está o desejo de que a
história seja contada pelo prisma daqueles que conheçam e respeitem as tradições locais. Risi
participa de outro mundo no qual a escrita e a comprovação dos fatos são tidas como
elementos que depõem contra o que é imaginário e, diante do desparecimento de
Tinzangara, afirma: “Escrevo, Excelência, quase por via oral. As coisas que vou narrar,
passadas aqui na localidade, são demais admirosas que nem cabem num relatório” (COUTO,
2005, p. 73). O mundo da escrita é contraposto ao da oralidade. A dificuldade é saber se é
possível conceder à oralidade a mesma confiança que se outorga à escrita quando se trata do
testemunho de fatos passados. De acordo com Hampaté Ba (1982:181):
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REFERÊNCIAS
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/2008/03/tradio-viva.html?m=1 Acesso em: 25 de setembro de 2019.
CESERANI, Remo. O Fantástico (tradução de Nilton Cezar Tripadili). Curitiba: UFPR,
2006.
COUTO, Mia. O Último Voo do Flamingo. São Paulo: Companhia das letras, 2005.
COUTO, Mia. Mia Couto: Quem é que não tem um pouco de realismo mágico?. Entrevista
a Luís Miguel Queirós. Público. em 30 de outubro de 2015. Acesso em: 01 maio.2020.
FURTADO, Felipe. A construção do fantástico na narrativa. Belo Horizonte: Livros
Horizonte, 1980.
HENRIQUES. Isabel Castro. Os pilares da diferença. Relações Portugal-África. Séculos
XV-XX. Caleidoscópio, 2004.
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Primeiras Considerações
A escrita deste artigo surgiu como parte de um trabalho de Tese de doutorado que
está sendo desenvolvido a partir de estudos sobre a literatura feminina do Benim, país
localizado na costa ocidental da África. Neste artigo, buscamos discorrer sobre a escrita
feminina de Gisèle Hountondji, Sophie Adonon e Carmen Toudonou, três importantes
nomes na literatura beninense e de como as personagens femininas se entrelaçam a partir
dos contextos sociais nos quais estão inseridas, como também nas relações interpessoais que
tecem as narrativas das referidas autoras.
Gisèle Hountondji nasceu em 1954, em Cotonou. Ela frequentou a Escola
Secundária Sainte Jeanne d'Arc, em Abomey, antes de deixar Benin, aos 18 anos, para
continuar seus estudos na Universidade de Sorbonne, na França. Publicou seu primeiro
romance, ‘Une Citronnelle dans la neige’, em 1986. Atualmente, vive em Cotonou, Benim.
Por sua vez, Sophie Adonon nasceu em Abomey, em 1964. Em 1983, foi enviada
para a França por seu pai, onde estudou direito e concluiu o Mestrado em Direito Privado
em 1990. A romancista foi a primeira beninense a criar uma série policial e a primeira, cujo
livro foi colocado no programa didático das escolas do Ensino Fundamental e Médio do
Benim.
Já Carmen Toudonou, a mais jovem entre elas, é poetisa, romancista e repórter-
apresentadora do ‘Escritório de Rádio e Televisão de Benin’ (ORTB). Possui poemas
publicados na ‘Antologia da poesia feminina do Benim’, organizada pelo escritor Daté
Atavito Barnabé-Akayi, em 2013. Além do romance ‘Presqu’une Vie’, publicou em 2015, pela
‘Les Éditions du Flamboyant’, a coletânea poética ‘Noire Venus’, cuja temática exprime o
feminino e o erótico.
Este artigo foi subdividido em três tópicos, sendo o primeiro responsável por trazer
um breve panorama sobre a escrita feminina em África e de seu processo de consolidação no
cenário literário do continente. No segundo tópico, estabelecemos um diálogo entre as
59 Doutoranda na área de Literatura, Cultura e Tradução. Tem desenvolvido sua pesquisa de doutorado no
âmbito dos estudos das Literaturas Africanas de Língua Francesa, com ênfase nas produções literárias de
Carmen Toudonou e Sophie Adonon, ambas escritoras do Benin, sob a orientação da professora Luciana
Eleonora de Freitas Calado Deplagne (UFPB), inserida na linha de Estudos Culturais e de Gênero, do
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba. E-mail:
[email protected].
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Sendo assim, os primeiros textos literários são marcados pela estética da chamada
‘Literatura Combate’, na qual os textos de muitos escritores e escritoras emergiram como
armas políticas e instrumentos de conscientização de que era necessária a libertação das
nações africanas do domínio europeu e, ao mesmo tempo, resgatar os valores tradicionais
perdidos com o longo processo de exploração colonial.
Cabe ressaltar a escassez de textos escritos por mulheres nesse período, no entanto,
entre as décadas 1970 e 1980, anos que se seguiram ao período de independência na maioria
dos países africanos, verificamos um crescente número de publicações de autoria feminina
no continente, como nos aponta Fernanda Murad Machado (2001, p.1), no seu artigo
‘Personagens Femininas e Escritoras na Literatura francófona da África Subsaariana’:
60 Tradução nossa.
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Nos últimos anos, têm ocorrido importantes mudanças no que se refere à produção
literária de autoria feminina. Nomes femininos de destaque têm surgido no seio da literatura
africana, o que tem acarretado em estudos cada vez mais significativos sobre as condições
dos sujeitos femininos nas diversas sociedades africanas, bem como atentado nossos olhares
para novas epistemes que possibilitam fundamentar discussões específicas acerca das
relações de gênero e do protagonismo da mulher africana no seu contexto de inserção.
61 Tradução nossa.
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compor a história do país e que são destaques na luta de resistência anticolonial. O Benim
possuía um dos reinos mais fortes e importantes da África, o Reino do Daomé que, no
século XVIII, teve como regente Tassi Hangbè, a primeira e única mulher a ocupar o trono
real de Abomey (capital histórica do Benim). Ela era filha do rei Houégbadja e irmã gêmea
de Akaba, sucessor do pai no reinado. 62
Com a morte de seu irmão Akaba em combate, em 1708, e com os sobrinhos ainda
crianças, Tassi Hangbè decide assumir o trono que era seu por direito. Tal fato causou
impacto na sociedade daomeniana, pois nenhuma mulher havia ocupado esse posto real. A
destreza com a qual a rainha guerreava e sua competência na resolução dos conflitos reais,
fizeram com que ela ganhasse apoio e respeito de seus súditos. Foi Tassi Hangbè, durante
seu histórico reinado, que criou o grupo das ‘Ahosi’, exército formado por amazonas,
devidamente treinadas para combater os inimigos do reino, entre eles os colonizadores
franceses. As ‘Ahosi’ são personagens importantes na história do Benim, estiveram na linha
de frente da defesa de seu território e cumpriram com êxito as atividades que até então eram
atribuídas aos homens.
Em, 1711, três anos após o início de seu reinado, Tassi Hangbè deixou o trono, após
grande pressão e mobilização por parte dos homens, não acostumados a ter uma figura
feminina no poder. Hangbé renunciou e teve como sucessor seu irmão mais novo Dossou,
posteriormente chamado de Agadja. A história de seu reinado foi quase toda apagada da
história real do Benim, porém seu palácio ainda continua preservado na cidade de Abomey e
seus descendentes continuam a perpetuar o seu legado.
Com a história da rainha Tassi Hangbè queremos elucidar alguns pontos importantes
das discussões sobre gênero e os papeis exercidos pelas mulheres nas sociedades africanas. O
primeiro deles é de que, antes mesmo da denominação de Feminismo, as mulheres africanas
ocupavam e reivindicavam lugares de poder nas organizações sociais de seus territórios.
Quando mulheres brancas reivindicavam o direito à educação na primeira onda feminista,
mulheres africanas já comandavam exércitos e lideravam nações.
Um segundo ponto, é pensar que, enquanto eram lideranças fortes, as mulheres
africanas também eram colonizadas e escravizadas por nações brancas, criando uma grande
disparidade no que concerne às condições humanas entre mulheres negras e brancas. Era
difícil para algumas mulheres africanas pensarem em reivindicar o acesso à educação ou ao
voto, quando elas precisavam sobreviver à escravização, às violências sexuais, ao cruzamento
do Atlântico sob condições não humanas. Elas precisavam, antes de tudo, sobreviver! Nessa
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Sendo assim, é importante sabermos que o Feminismo não está centrado em uma
discussão única sobre gênero, mas que outros fatores de desigualdades, como a raça e a
classe, lugares de origem e suas particularidades locais, precisam ser inseridas na esfera global
desse movimento. No que concerne aos estudos literários de autoria feminina em África, é
fundamental que estejamos atentos a essas especificidades e assim teremos uma
compreensão melhor das obras e das inquietações apontadas pelas autoras em seus escritos.
[...] ela me fez mudar de lugar, me colocou nesse caso na última fila. Assim ela
poderia deixar de me corrigir, sem que as outras meninas percebessem... Por que
eu especificamente? Para esta pergunta, nunca soube a resposta... Até o dia em
que a ouvi dizer: ‘Respire fundo... sopre... Tire o ar do peito e fique em pé bem
reto... Mostre que você é linda... Muito linda!’ Eu entendi. Ah! A sentença! A
famosa frase: ‘Mostre que você é linda!’ Anteriormente, e como sempre, ela não
tinha corrigido nenhum dos meus movimentos. Então era porque eu não era
bonita e não merecia ser dançarina. Ah, desgraça! Como eu poderia ser bonita
para ela? Uma negra linda é uma contradição! [...] (HOUNTONDJI, 1986, p. 55).
63 Os trechos dos romances, aqui citados, estão escritos em francês e possuem uma tradução livre para este
artigo.
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assimilar aqueles que são impostos pelos colonizadores, passando, assim também, a subjugar
os seus pares. O conceito de assimilação cultural perdura mesmo nas sociedades pós-
coloniais, em que as nações colonizadoras deixam um modelo eurocêntrico que visa
normatizar os costumes das ex-colônias.
Por outro lado, são o casamento e a maternidade que norteiam as personagens
Julienne, Régisette, Bäi, Séréna e Dansi, em ‘Pour une poignée des gombos’, de Sophie Adonon, e
de Abluimadji, em ‘Presqu'une Vie’, de Carmen Toudonou. Julienne é mandada por sua mãe
Bäi ao campo para colher quiabos e no caminho encontra Tony, os dois se apaixonam e
casam logo em seguida despertando o ciúme de sua irmã Régisette, pois ela era mais velha e
o esperado pela sociedade é que ela se casasse primeiro. Após o casamento, os noivos se
mudam do vilarejo para a capital Cotonou.
Por ser a irmã mais velha, Régisette os acompanha e tem relacionamento com o
cunhado Tony, que acarretará uma gravidez e fuga da casa da irmã para que ela não
descobrisse o ocorrido. Régisette dá à luz a Éros e o abandona no templo de Dan (Vodoun
patrono do Benim, representado pela serpente), por sua vez, o bebê é encontrado por Dansi
(nome homônimo ao da divindade Dansi, a serpente feminina irmã de Dan). Por ser uma
mulher estéril, Dansi já havia feito diversas oferendas aos deuses para engravidar:
Inspirada pela experiência de sua genitora, Dansi foi consultar Dannon, o
sacrificador de Dan. O santuário desse sábio se encontrava no bairro
Adandokpodji, em Abomey. Dannon lhe prescreveu uma longa lista de objetos
para o sacrifício. Era o preço a se pagar para receber novamente as graças de seu
Deus, e a maneira de se cumprir seu desejo mais querido (ADONON, 2016, p.
63).
Acreditando ser uma resposta dos deuses aos seus pedidos, Dansi cria a criança até
por volta de seus 20 anos, quando Éros irá se apaixonar por Séréna, filha de Julienne e do
seu pai Tony, que não sabem de sua existência:
Quanto à Séréna, ela estava desmaiada há muito tempo; desde o exato momento
em que ela sentiu o laço apertando o seu amor, para sempre poluído pelas
proibições terrenas, modestamente chamadas de leis, ‘impedimento do
casamento’. O parentesco direto era um obstáculo para o casamento entre Séréna
e Éros. Sendo irmão e irmã, eles nunca poderiam se casar (ADONON, 2016, p.
168).
Como ditava a tradição, era necessário dar a vida rapidamente a outra criança,
para não correr o risco de atrair a raiva dos deuses. Nisso, Yèyimin não ousou
fazer nenhum desejo. E ela deu à luz a uma criança que nenhuma jovem poderia
dar à luz no mundo, Abluimadji (TOUDONOUN, 2014, p. 26).
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- Fizemos o que é certo para você. Henri é um homem sério e desfruta de uma
situação financeira e social estável. Além disso, de todos os seus pretendentes, ele
é o único que não é casado. O que pedir a mais? A galinha é feita para o galo e o
curral para ambos. Achamos que ele pode te fazer muito feliz. E o amor com
isso? O que eles estavam fazendo, do amor? (TOUDONOU, 2014, p. 115).
Mães são, antes de tudo, esposas. Esta é a única explicação para a popularidade do
seguinte paradoxo: mãe solteira. A partir de uma perspectiva africana e como uma
questão de fato, mães por definição não podem ser solteiras. Na maioria das
culturas, a maternidade é definida como uma relação de descendência, não como
uma relação sexual com um homem (OYEWÙMÍ, 2004, p. 05).
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lugar da mulher em África. O maternar é ato comunitário e não, exclusivo da mulher que
gesta, sendo importante que todos à sua volta assegurem o bem estar da criança. Além disso,
a maternagem revela a força ancestral da ‘matripotência’, trabalhada pela feminista Carla
Akotirene, que define o corpo feminino como detentor da potência ancestral de gerar outras
vidas não podendo, jamais, ser colocado à margem.
A maternidade também é tratada de modo realista e mostra como as mulheres
podem agir de modo desesperador diante das cobranças e medos que o gestar outro ser
humano pode causar. Tanto em ‘Pour une poignée des gombos’, como em ‘Presqu'une Vie’, as
personagens enfrentam a angústia de abandonar seus filhos. Permite-nos lembrar dum itan
de Osùn, orixá feminino das águas doces e da fertilidade, muito difundido nas religiões
afrodiaspóricas que, quando se banhava no rio e se mirava no espelho, distraída, não percebe
que seu filho, o príncipe Logun Edé, caiu nas águas turbulentas do rio.
Iansã, orixá feminino dos ventos e raios, passava por perto e ao ver a criança se
afogando, a salva e a leva para seu palácio, sem entender como uma mãe poderia deixar isso
acontecer com seu filho. Algum tempo depois, Osùn descobre onde seu filho se encontra e
vai a sua procura, Logun Edé estava forte e saudável e aprendera com Iansã muitas táticas de
guerra. Osùn agradece imensamente a Iansã por ter salvo seu filho e cuidado dele. Logun
Edé, passou então a ter os cuidados maternos das duas divindades. Compreende-se aqui, o
ato comunitário de maternagem à luz matripotente africana.
Últimas Considerações
Assim como a história de África se desenha a partir da luta de mulheres, que desde
os tempos remotos, lideravam reinos e guerreavam para defender seus territórios, a escrita
feminina na literatura africana vem galgando espaços e se impondo como importante
instrumento de compreensão das relações de gênero nas diversas nações do continente.
Surge de uma necessidade das mulheres escreverem suas próprias histórias e se consolida
como uma ‘escrita arma’ que se faz necessária na contemporaneidade, abordando temáticas
relevantes que ampliam e interseccionam as discussões do Feminismo.
Estudando a literatura do Benim, percebemos temáticas recorrentes, trabalhadas
pelas autoras na construção das personagens femininas em suas obras que, em geral,
denunciam violências, contestam lugares sociais previamente impostos e apontam caminhos
de resistência e empoderamento. Os ritos de passagem iniciáticos dos cultos aos vodouns,
representam o começo de uma nova vida guiada pela ancestralidade e promove, ao mesmo
tempo, um (re)nascimento para as personagens que, adquirindo o poder deixado pelas que as
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REFERÊNCIAS
ADONON, Sophie. Pour une poignée de gombos. Editions GG, Cotonou, 2016.
CAZENAVE, Odile. Femmes Rebelles: Naissance d’un nouveu roman africain au féminin.
L’Harmattan, Paris, 1996.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução de Renato da Silveira.
EDUFBA, Salvador, 2008.
HILL-COLLINS, Patricia. Learning from the outsider-within: the sociological significance
of Black feminist thought. Social Problems, Vol. 33, Nº. 6, Special Theory Issue, 2000.
HOUNTONDJI, Gisèle. Une Citronnelle dans la neige. Les Nouvelles Editions
Africaines, Lomé, 1986.
MACHADO, Fernanda Murad. Personagens Femininas e Escritoras na Literatura
Francófona da África Subsaariana. In: Revista Letras Raras, V 5, Ano 5, Nº 2 – 2016,
p.48-58. Disponível em: http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/article/view/
671/414. Acesso realizado em 26 de Agosto de 2019.
NGAL, Georges. Création et rupture en littérrature africaine. Paris: L’Harmattan, 1994.
OYEWUMI, Oyeronke. The Invention of Women: Making an African Sense of Western.
Gender Discourses. University of Minnesota Press, Minneapolis, 1997.
OYEWUMI, Oyeronke. Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos
conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. Traduzido por Juliana Araújo
Lopes para uso didático de Conceptualizing Gender: The Eurocentric Foundations of
Feminist Concepts and the challenge of African Epistemologies. African Gender
Scholarship: Concepts, Methodologies and Paradigms. Codesria Gender Series. Volume 1, p.
1-8, Dakar, 2004.
TOUDONOU, Carmen. Presqu’une vie. Editora plumes Soleil, Cotonou, 2014.
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Benjamin serão aplicadas a essas obras, observando até onde o pensamento ocidental,
mesmo que pensando as tradições, pode caber, ou não, ao se analisar a produção pós-
colonial, o que será comentado na última parte deste trabalho, as conclusões. Dessa maneira,
espera-se que se conheça mais sobre as obras desses grandes escritores e, além disso, renovar
a crítica sobre suas obras e observar a complexidade impressionante da produção africana
após suas independências.
65 ‘As Venturas de Ngunga’, apesar de escrito durante a guerra, só veio a público anos mais tarde, em 1972.
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3 Benjamin e a narrativa
Em seu importante ensaio ‘O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov’, Benjamin discorre sobre o fazer literário do russo Nikolai Leskov e, ao fazê-lo,
acaba criando um conceito muito interessante para se pensar a crítica de várias obras
recentes. Benjamin foi um crítico, filósofo, tradutor e sociólogo de origem judia comumente
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4 A narrativa de Pepetela
As bases da história contada no romance ‘O Desejo de Kianda’ já foram
mencionados neste trabalho, sem grande desenvolvimento da trama. Essa é apenas uma obra
que pode ser lida com esse olhar e, mesmo ‘Mayombe’ pode apresentar características típicas
do narrador de Benjamin. Provavelmente, ‘O Desejo de Kianda’ seja a obra em que elas se
destacam de forma mais marcante. Com essa leitura pretende-se, pois, observar quais as
proximidades e afastamentos entre as ideias de Benjamim e a produção de Pepetela (assim
como de outros autores que também se insiram nessa tradição, como se verá mais a frente de
forma mais resumida).
Vale lembrar, de forma esquemática e resumida, que o narrador é alguém que se atém
ao que é necessário à sua história, tendo bom senso sobre a necessidade de transmitir uma
experiência. Além disso, ele deve utilizar as várias experiências passadas e repassadas pela
tradição, atualizando-a e acrescentando a essa tradição, a sua própria experiência. Por fim,
essa experiência deve conter algum tipo de sabedoria, conhecimento e/ou conselho a ser
transmitido através da narrativa. É importante que essa sabedoria não seja transmitida
através de uma explicação ou de maneira informativa, como em uma reportagem ou em uma
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receita. A própria experiência deve transmitir ao auditor e/ou leitor da obra o conselho
dado, seja o narrador e a narrativa próprios de sua terra ou de uma terra mais distante,
mesmo que não necessariamente exótica.
A isso tudo se oporia o romance burguês moderno. Isolado em sua publicação, pois
ele não se inclui na tradição de experiências compartilhadas coletivamente, sendo restrito à
experiência de um ser acima da média, o heroi do romance. Embora um romance possa se
comunicar tematicamente com outros, fazer parte de uma série, caso da série ‘Harry Potter’,
de J. K. Rowling, ou de obras que se ligam umas às outras por algum elemento em comum,
como em ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’ e ‘Quincas Borba’ de Machado de Assis.
Apesar de essas obras se conectarem de alguma forma com outras, elas se bastam em
si mesmas não dependendo, necessariamente, umas das outras. Além disso, elas não se
relacionam realmente com uma tradição como um elo em meio a outros tantos. Por mais
que ‘Harry Potter’ possa ser visto como uma história da tradição de mitos sobre bruxaria e
que Rowling tenha de fato se apropriado de vários mitos e lendas antigos, ela não os atualiza,
apenas os emprega em sua obra. O que, deixe-se claro, não é, de forma alguma, um demérito
da autora, sendo seus usos perfeitamente adequados à sua história, mas funcionando mais
como fonte de inspiração do que como motor narrativo.
Em ‘O Desejo de Kianda’, tem-se um romance com várias características clássicas do
chamado romance burguês. No entanto juntamente a eles, há importantes elementos que o
distanciam deste tipo de construção romanesca aproximando-o do que seria a narrativa para
Benjamin. Inicialmente, pode-se citar que sua história se encerra em si mesma, após a
conclusão de uma experiência narrada, com começo-meio-fim (mesmo que seu fim dê
margens para entendê-lo em aberto, pois em certo momento o livro acaba), o que é uma
característica do narrador romanesco benjaminiano.
De fato, a obra se isola em si nesse sentido, porém, a trama que ali é contada é
alimentada pela tradição oral local, resgatando as narrativas tradicionais sobre Kianda e as
atualizando em sua própria narração, dando-lhe novos contornos e nuances. Esse ‘resgate’,
além de inserir a obra em uma tradição maior (como o caso já citado de ‘Harry Potter’),
também acrescenta uma nova visão ao mito já existente, auxiliando sua manutenção e, em
certa medida, mesmo a renovação de sua própria mitologia.
Seus dois personagens principais, Carminha e João Evangelista, não podem, de modo
algum, ser considerados exemplares. No entanto, a partir de suas experiências, juntamente às
vivenciadas no núcleo diretamente ligado a Kianda e ao lago Kinaxixi, há claramente uma
sabedoria apresentada no texto através das experiências dos vários personagens ali presentes.
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Essa sabedoria, ou mesmo conselho, não é explicitada na história, cabendo a quem a ler, ou
ouvir, entendê-la, ou não. Essa sabedoria também inclui ‘O Desejo de Kianda’ de forma
mais próxima à narrativa tradicional. Outro ponto importante refere-se ao que se aprende
com a história, não apenas através de informação (explicações, moral da história e outras
explicações), mas por meio da interpretação de quem se depara com sua leitura ou audição.
Apesar de curto, é sempre relativo discutir se há, ou não, elementos que seriam
realmente necessários à narrativa. O tamanho, algumas dezenas de páginas, poderia
corroborar a ideia de necessidade e praticidade, mas essa seria uma análise subjetiva demais.
No entanto, uma característica que fica clara na obra de Pepetela é de onde vem o narrador.
Os fatos narrados em ‘O Desejo de Kianda’, como já citado anteriormente, referem-se a
história, mitos e lendas de Angola. Desse modo, ao se referir a momentos precisos da
história de Angola, como a Guerra Civil, ou a reabertura econômica do início da década de
1990, assim como a presença da própria personagem de Kianda, deusa guardiã das águas nas
religiões de origem kimbundu, tem-se uma história narrada por um narrador sedentário, que
‘ganhou’ sua história na própria terra.
‘O Desejo de Kianda’ é, apenas, um exemplo da grande produção pós-colonial atual,
que apresenta as características próprias do narrador benjaminiano, assim como elementos
da narrativa romanesca burguesa contemporânea. Esses elementos aliados uns aos outros, o
tradicional e o moderno, ajudam a mostrar as contradições existentes, tanto em Angola
quanto em outros países recém-independentes, assim como demonstra a riqueza de suas
literaturas. Essa riqueza também pode ser observada nas produções literárias de outros
países, assim como em outras línguas.
66 A obra foi publicada em 1986 e recebeu o título em português de Eu, Tituba Bruxa: Negra de Salem.
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nascido em Guiné e cuja obra mais conhecida e importante é sem dúvidas ‘L’Enfant Noir’. 67
Laye narra nesse romance de formação, a história de uma criança africana que vive em um
meio tradicional até chegar à maturidade, passando por provas iniciáticas e rituais
tradicionais, até o momento em que deixa sua terra para ir estudar na França. Ambas as
obras e ambos os autores se envolvem muito nas tradições sobre as quais escrevem, sendo
que nos dois exemplos é possível encontrar elementos que os aproximem da ideia de
narrativa de Benjamin.
Como é sempre bom lembrar, Benjamin considera que o gênero romance necessita
que a obra se encerre em si mesma e se baste a si mesma para que possa ser considerada
como um todo. Nesse sentido, Tanto a obra de Condé quanto a de Laye se encaixam como
romances, tal como o que ocorreu em Pepetela. No entanto, como no exemplo de O Desejo
de Kianda, as obras vão além disso dialogando com suas tradições, porém em graus diferentes.
‘Moi Tituba…’ conta a história de uma figura meio real meio mítica que foi escravizada
durante anos, teve vários donos ao longo da vida e foi uma das vítimas dos julgamentos
ocorridos no século XVII, conseguindo sair viva de lá acaba se relacionando com
quilombolas em especial o seu líder.
Condé, além de narrar a história da personagem Tituba inserindo no texto, tanto seus
mitos como seus poderes mágicos ou extra-humanos e, além dos vários fatos documentais
da época, atualiza o mito e se insere nessa tradição. Laye faz algo parecido, no entanto
misturando o mágico extraordinário, como a cobra e o crocodilo, animal guia de seu pai e
mãe, com o real, os rituais e provas iniciáticos em que ‘o mágico’ cede lugar às explicações
racionais dos ocorridos. Enquanto Condé joga com a relação ‘mito-fato’, pondo-os em um
mesmo patamar, Laye os põe também em relação, mas em uma busca por conhecimento,
tentando desvendar seus próprios mitos. Diferentemente de Condé, Laye se apropria da
tradição para criar sua obra, sem se inserir, necessariamente, nessa tradição (do mesmo modo
que se explicitou, anteriormente, sobre Rowling).
Embora ‘L’Enfant noir’ não seja um elo dentro da tradição da qual ele se alimenta –
lembra-se que é necessário, para Benjamin, se alimentar dela e alimentá-la –, a obra de Laye
apresenta uma das características fundamentais da narrativa benjaminiana: o ensinamento.
Benjamin observa que, de fato, o romance de formação tende a apresentar. de uma forma ou
de outra. algum tipo de conhecimento, no entanto,
67 A obra foi publicada em 1953, cinco anos antes da independência da França, e recebeu o título em
português de O Menino Negro.
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6 Narrações e conclusões
As ideias de Benjamin sobre o narrador e a narrativa, apesar de terem sido pensadas
na primeira metade do século passado, ainda são bastante atuais e, como visto, podendo ser
aplicadas em diversas obras. Pepetela não é o único, mas em sua obra o uso da tradição oral
o aproxima muito do que Benjamin considerou como um narrador, distanciando-o do
romancista moderno. Apesar de considerar que as experiências traumáticas do século XX
acabariam por interromper as narrativas, Pepetela mostra como, mesmo com os traumas do
passado, ainda se pode contar uma história.
Além de Pepetela, as obras de Condé e Laye apresentam muitos dos elementos
apresentados no ensaio ‘O Narrador’ como próprios da narrativa tradicional. Apesar de
todos não estarem presentes, da mesma maneiras, nas obras comentadas aqui, percebe-se
como a tradição ainda é importante fonte de influência nas produções literárias recentes,
principalmente nas chamadas produções pós-coloniais.
Além das poucas obras citadas neste trabalho, há muitas outras que acabam sendo
deixadas de lado pela crítica, por não se encaixarem nos conceitos de romance modernos,
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REFERÊNCIAS
CONDÉ, Maryse. Moi, Tituba, sorcière… Noire de Salem. Paris: Folio, 1988.
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ESTA VIAGEM
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que o mar levou, séculos adentro. Humanizamos o mar, tornando-o uma entidade com a
qual é possível um diálogo com o sagrado, lugar de despachos, territórios onde perambulam
os espíritos ‘desencarnados’.
O mar é a segunda escola de estórias. A primeira escola de contadores sempre foi o
chão. A poética do mar é aprendizagem movente; “símbolo de luz e areia/alquimia do
barro/alicerces úmidos” (LIMA, 2003, p.21). No balanço da voz contadeira, a oralidade vem
pelo avesso, embaralhada pelo lado agramatical do ‘indioma’ das margens. Conceição Lima
(2011, p.44) descreve no poema ‘Fronteira’, algo que se locomove em palavras marítimas:
“Trespassar é sina dos que amam o mar”. Entendemos que todos nós, indígenas, pretos,
caboclos, trespassamos a linha tênue do mar da diáspora, tornamo-nos, ao longo do
massacre da história, bastante desconfiados de um sistema ainda sob o comando de uma
mentalidade colonial. Das certezas lineares, estigmatizadas em nome do ‘mercado’, nasceram
os mandamentos dos que vieram colonizar África-Brasil-Américas. Sem titubeios, o
‘indioma’ das margens sempre desconfiou das grandes certezas do mito do ‘progresso’:
“grave é caviar o mar” (LIMA, 2015, p.72).
No Candomblé, existe uma divindade da lama, conhecida por Nanã Buruku, Orixá
que entregou uma porção de lama a Oxalá. Nanã deu a matéria do começo à Oxalá que
modelou o barro e criou a mulher e o homem. “Nanã Buruku, mãe de Omulu e Oxumaré,
que se transformou em cobra para escapar do assédio de Xangô” (PRANDI, 2001, p. 196-
197). Nanã é também conhecida como Vovó da lama. Sua imagem está associada à proteção
dos ‘estuários’. Senhora das várzeas úmidas, Nanã protege marisqueiras contadeiras.
As estórias das contadeiras também atravessam as fronteiras da africanidade e
assemelham-se aos encantos da rainha do mar, Iemanjá que, com seus cabelos de algas
marinhas, além de ser protetora das águas, faz parte do inconsciente mítico ritualístico das
feitiçarias. Em verdade, os mitos alcançam uma camada que alimenta o imaginário da cultura
popular. Para os pescadores do mar, o mito de Mãe D’água indica caminho para o mistério,
mas também a trilha da pesca e da proteção aos que sobrevivem do mar.
Na mitologia ameríndia, o mito de Yara adentra as puçangas lendária de Mãe d’Água,
do Boto e de Cobra Norato. O mar é uma sereia líquida. O mito de Yara também atravessa
as fronteiras indígenas e assemelha-se aos encantos da rainha do mar, Iemanjá, que com seus
cabelos de algas marinhas, além de protetora das águas, faz parte do inconsciente mítico
ritualístico do candomblé. Em verdade, os mitos alcançam as encruzilhadas culturais que
banham as lendas populares.
Na ilha de São Luís, corre a lenda segundo a qual, embaixo da ilha dorme uma
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grande serpente, uma espécie de Oxumaré. Comentam também que, se algum dia o rabo da
cobra encontrar-se com a cabeça do mito, toda a cidade de São Luís desaparecerá do mapa,
enquanto o mar inteiro se desagregará, o universo explodirá, os dias se tornarão
descontínuos, como se a humanidade inteira estivesse condenada a espatifar.
Talvez uma das funções mais importante do mito esteja em fundar modelos para
todas as atividades significativas do ser humano: educação ambiental, iguarias, relação
familiar, cultura, sexualidade e outas. “Comportando-se como um ser humano plenamente
responsável, o ser humano imita os gestos exemplares dos deuses, repete as ações deles, quer
se trate de uma simples função fisiológica, como a alimentação, quer de uma atividade social,
econômica, cultural, militar” (ELIADE, 2001, p.87).
Em sintonia com o mistério que abriga a natureza, Unger Nancy Mangabeira (2001,
p.98) esclarece que os seres míticos sinalizam para um mistério, um elo de equilíbrio da ‘mãe-
natureza’, na medida em que são entidades que, não somente preservam, mas zelam pelos
elementos ambientais. “Os mitos são signos que mantêm elos ecológicos.” Na visão de
Unger, os mitos promovem mudanças profundas, quando fornecem um senso de medida
aos seres humanos.
Por outro lado, alerta a estudiosa que o poder dos mitos habita apenas o inconsciente
dos povos em que a natureza mantém o mistério e o brilho, pois essas entidades são o brilho
e o mistério da Natureza. Quando o lugar que abriga o encanto é invadido por pessoas e
máquinas que mexem muito com o lago ou com a floresta, essas forças se retiram, como
quem desaparece para o fundo das águas profundas, em tom de contação. Olinda Beja
(2007, p.21), no livro ‘Água Crioula’, decanta:
A UM PASSO DO CAIS
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SEREI NEGRA
São as histórias que movem os círculos dos séculos, mas são os mitos que exercem a
função de recriação dos elementos culturais de uma nação. Os mitos ancestrais vivificam as
origens, nossa raízes, e recortam a fala de nossos primórdios. Mas também servem como
instrumentos para reforçar a opressão em torno de uma cultura imposta de cima para baixo.
Nessa perspectiva, o contador expande a visão do mundo pela ótica metafórica das
imagens. O poder das metáforas se nutre de analogias para recriar os diversos mundos de
fora ao conhecer os fascinantes mundos de dentro.
A estória é a pontuação de uma pergunta que se faz narrativa. Toda historia é uma
espécie de intervalo entre a dúvida e o espanto. O que faz o homem atravessar o ‘litoral da
palavra’ é a busca infinda de si e dos outros que se revelam no traço mais ilegível e inaudível
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quebraria, a memória seria preservada e as histórias não teriam fim. Se “quem presta a
atenção a uma história, está em companhia do narrador” (BENJAMIM, 1974, p.75), melhor
acreditar que as lendas são eternas companheiras da poesia e que os mitos despertam no
homem sensações que lhe são desconhecidos.
Muitas histórias vivem sagradas dentro da poesia. Talvez, por não terem fim, as
histórias são passadas de uma tradição a outra. Nas contações de histórias, a memória
empresta voz ao narrador para ouvir o que a vida um dia esqueceu. Como esclarece Augusto
Massi (1998, p. 33): “O bom contador de histórias abafa sua voz pessoal, reencena o vivo
diálogo diante de nossos olhos.” Em um assalto à memória, a voz da contadora carrega a
oralidade dos ancestrais africanos e, de vez em quando, nos aparece para nos lembrar as
lendas que agora reencontramos pelo viés da canção enigmática, quando o poema é memória
carregando o ritmo das coisas moribundas.
A trama das histórias mitológicas entrelaça-se às memórias das águas. Esses ritos das
águas também recobrem o imaginário popular. Os ritos das águas acompanham as histórias
de caráter mitológico. Poseidon, deus grego, figura representativa de Netuno, deus romano
que tem o mar como moradia, ocasionando as mais terríveis tormentas, até as ondas mais
violentas e pacíficas. As histórias de Netuno, na linha do poema narrativo, muitas vezes,
suspendem o poema, com um significado que toca na espinha dorsal em defesa das coisas do
mundo, do devir-natureza, que aparece, reaparece e desaparece um pouco por toda a parte,
em uma espécie de cosmogônia, onde todos os continentes são separados por águas míticas
e místicas. Na cosmogônia dos orixás, o mito das águas aparece na maternidade de Iemanjá:
IEMANJÁ
Se o mundo transforma a cada dia o excesso de luxo em lixo mar afora, é preciso
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conscientizar via contação de estórias. Guattari (2004, p.7-8), no livro ‘As três ecologias’,
alerta que o planeta sofre um processo de intensa mudança tecnicocientífica e recebe como
contrapeso um desequilíbrio ambiental que, se não for repensado com ações concretas e
firmes, a vida sofrerá as consequências que se observam em nossos dias, como o
esquentamento do planeta e a deterioração das relações entre pessoas, sendo gangrenada pela
mídia onde “a vida conjugal e familiar se encontra frequentemente ‘ossificada’ por uma
espécie de padronização de comportamentos e as relações de vizinhanças estão geralmente
reduzidas a sua mais pobre expressão.”
Resgatar o rito, o mito das águas, é pôr em evidência essas práticas coletivas da
humanidade que se passou in illo tempore, “a narração daquilo que os deuses ou os seres
divinos fizeram no começo do tempo” (ELIADE, 2001, p.84). Dizer um mito é anunciar o
que se passou além das origens. Uma vez narrado, ou melhor, revelado, o mito funda uma
memória que se diz verdadeira.
Não deveríamos ignorar o fundo de realidade subjacente à fantasia indígena e à ilusão
etnológica, como lembra Augé (2001, p.50): “a organização do espaço e a constituição dos
lugares são, no interior de um mesmo grupo social, uma das motivações e uma das
modalidades das práticas coletivas e individuais.” As histórias do mar são sínteses, imagens
condensadas, de uma antiga tradição oral nas observações de inúmeras pessoas que viviam
como parte de seu pertencimento e precisavam ter um conhecimento ancestral do mundo
para sobreviver.
Algumas histórias são contadas em tom baixo, por respeito aos espíritos protetores
da natureza. As fábulas míticas permitem ao ser humano explorar com respeito o meio
ambiente e protegê-lo dos perigos da dizimação. Como se observa nas exemplificações sobre
o mito da água são costumeiros os cultos às árvores. As oferendas ritualmente são oferecidas
às árvores mais velhas, que não são derrubadas, para servir como exemplo ou evidenciar a
necessidade de respeitar as ‘árvores-mãe’.
Nas estórias declamadas, os ritos, os mitos, as desavenças, as transgressões
representam a manifestação do ritmo universal. Atualmente, a imagem do mundo multiplica-
se, o espaço também; o ano transforma-se numa linearidade sem fim; os astros deixam de ser
a imagem da harmonia cósmica. Desloca-se o eixo da Terra. Perdemos o segredo do infinito
poema cósmico. O caos enrijece o homem. Inventamos novas leis que regem a ordem dos
des-mundos. Sem mitologias, fundamos o mundo da técnica em um mundo desprovido de
mistério. Sozinhos, nem a campainha nos faz companhia. Fica-se com as insinuações, com as
impessoalidades extremamente formais e, com isso, o vazio que essas representam, muitas
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vezes, traduz o eco de se alcançar apenas na superfície breves perguntas sem respostas.
Estampa-se, a cada dia, o aspecto catártico e destrutivo no planeta. Crimes
ambientais acontecem à luz de esgotos. Discussão de armamentos nucleares atravessa
campos minados. O genocídio de nossos irmãos pretos e de povos originários acontece em
campos de concentração da pandemia COVID-19.
Esquentando-se a camada de ozônio, degelamos a Antártica. Ecologicamente, o
planeta não anda bem das esferas respiratórias Entre o peso do viver e os sonhos, tocamos
com as mãos o destino do mundo. E uma nova consciência ambiental vem surgindo
lentamente com seus passos lentos. O regresso a um completo equilíbrio ambiental não
dependerá de uma revolução do cosmos, mas de uma transformação da mentalidade
humana. “O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre esse planeta, no
contexto da aceleração, das mutações técnico-científicas e do considerável crescimento
demográfico” (GUATTARI, 2004, p. 8).
A voz da humanidade conhece, em nossa atualidade, não propriamente a dor, mas o
terror, contudo ainda acredita na sua capacidade de ser bem-sucedida. Em toda parte, como
alerta no livro ‘Tudo que é sólido desmancha no ar - a aventura da modernidade’, de
Marshall Berman (1987, p.22-23): “graves perigos estão em toda parte e podem eclodir a
qualquer momento, porém nem o ferimento mais profundo pode deter o fluxo e refluxo de
sua energia.”
No ato de contar, o ser humano se fragmenta muito mais ainda, frente às
fragilidades de um sistema embrutecido. À luz das ordens de um legado opressor, a voz da
alteridade instaura-se, via contação de estória, como ferramenta contra seu próprio
apagamento. Assim, entre a pluralidade e a correspondência analógica, as identidades
afroameríndias estão em nossos dias em processo de desaparecimento.
A voz contadora coisifica a natureza para nomear a humanidade do mundo.
Levando-se em conta que a linguagem indica e a definição, por sua vez, apreende a realidade
no conceito, o contador não limita o poder de alcance da palavra, mas sugere uma abertura à
diversidade lírica do ‘eu poético’ que, ao falar do mundo, toca no simples gesto de resistir ao
caos. Vê-se que o contador faz conta das coisas mais simples para dar conta do processo
criativo. Sua sala de aula é a própria natureza, uma espécie de depósito de ‘inventança’ que
anda forjada para o aprendizado da educação tradicional afroamerindia.
Quando os índios acordam a aldeia ao som de flautas, o totem permanece como
poesia.. Os tambores, os batuques, as batidas de memória, que sonorizam o ganzá lírico, são
poesias: O negro bateu o violão como se fosse um tambor, e fez nascer outra escala musical.
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elementos ambientais. “Os mitos são signos que mantêm elos ecológicos.” Na visão de
Unger, os mitos promovem mudanças profundas, quando fornecem um senso de medida
aos seres humanos. Por outro lado, alerta a estudiosa citada que o poder dos mitos habita
apenas o inconsciente dos povos onde a natureza mantém o mistério e o brilho, pois essas
entidades são o brilho e o mistério da Natureza. “Quando o lugar que abriga o encanto é
invadido por pessoas e máquinas que mexem muito com o lago ou com a floresta, essas
forças se retiram.”
São as histórias que movem os séculos, mas são os mitos que exercem a função de
fundar os elementos culturais de uma nação. Os mitos fundadores vivificam as origens,
nossa raízes e recortam a fala de nossos primórdios, mas também servem como
instrumentos para reforçar a opressão em torno de uma cultura imposta de cima para baixo.
O contador coisifica a natureza para nomear a humanidade do mundo. Levando-se
em conta que a linguagem indica, e a definição, por sua vez, apreende a realidade no
conceito, o que conta não limita o poder de alcance da palavra, mas sugere uma abertura à
diversidade lírica do ‘eu’ que narra ao falar do mundo em sintonia com um ‘eco-lógico’. Vê-
se que aquele que conta faz conta das coisas mais simples para dar conta do processo
criativo. Sua sala de aula é a própria natureza, uma espécie de depósito de ‘inventança’ que
anda forjada para o aprendizado da educação tradicional ao voltar o olhar para as coisas do
chão. Observa-se aí que os sons do chão são sabençãos na voz do contador. Sabenção é
sabedoria abençoada, não são uma exceção, mas uma regra do ‘indioma’ popular. O
contador aproveita-se dos provérbios populares, pega a rota dos desvios para se encontrar
com a língua popular africana.
A arte de contar estórias é um legado de resistência, mas principalmente uma
mensageira de sonho e utopia que se reinventa a cada época. “A utopia não é o sonho. É o
que nos falta. Eis o que ela é: aquilo que nos falta no mundo. A função da literatura e da arte
é, antes de tudo, inventar um povo que falta” (GLISSANT, 2014, p.26).
Na esperança de que as pessoas do amanhã, ou do dia depois de amanhã, possam
sanar as feridas e encontrar a cura para problemas que afligem a desumanidade do mundo
atual, em tempos de irônica e contraditória mudança antidemocrática. A vida denuncia os
valores bizarros que a própria sociedade inventou, “quando tomba um caminho/Os
meninos de meu país desenham colinas sobre ondas” ( LIMA, 2011, p.32).
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REFERÊNCIAS
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BÂ, Amadou Hampâté. Amkoullel. O menino fula. São Paulo: Palas Athena, Acervo África,
2013.
BÂ, Amadou Hampaté, A. Tradição Viva In. História geral da África, I: Metodologia e
pré-história da África/editado por Joseph Ki -Zerbo. – 2.ed. rev. – Brasília: UNESCO, 2010.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Adriano Caldas. Rio de Janeiro:
Fator, 1983.
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Elnice C.
Albergaria Rocha. Juiz de Fora: UFJF, 2005.
GLISSANT, Édouard. O pensamento do tremor: La cohée du lamentin. Trad. Enilce C. A.
Rocha, Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Gallimard/UFJF, 2014.
LIMA, Conceição. Quando florirem salambás no tecto do Pico. São Tomé e Príncipe:
Edição da Autora, 2015. (Impressão e acabamento: Lexonics. Tiragem de 100 exemplares.
LIMA, Conceição. O país de Akendenguê. Portugal: Caminho, 2011.
LIMA, Tânia. Brenhas. Fortaleza: Mangue & Letras, 2003.
LIMA, Tânia. Berimbau de Lata – maracatu palavras. Natal: Sebo Vermelho, 2015.
LIMA, Tânia. Boletim de Ocorrência. In: Espantologia poética – Marielle em nossas vozes.
São Paulo: Edição Me Pario Revolução – Mulherio das Letras, 2018.
MASSI, Augusto. A forma plástica de Bopp. In: MASSI, Augusto (org.). Poesia completa
de Raul Bopp. Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: EDUSP, 1998, pág. 18-25.
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OLIVEIRA, Vera Lúcia de. Poesia, mito e história no modernismo brasileiro. São
Paulo: UNESP, 2002.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
UNGER, Nancy Mangabeira. Da foz à nascente: o recado do rio. São Paulo: Cortez,
Campinas: UNICAMP, 2001.
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Suas obras seguintes passaram a ser criticadas por critérios sofisticados, estranhos
àquela favelada que ousou escrever e entrar no seleto grupo de homens e
mulheres letrados da época. A crítica exigiu de Carolina justamente aquilo que ela
não poderia oferecer: um domínio da arte literária padronizada e uma coerência
ideológica impensáveis para alguém cuja preocupação cotidiana era saber se iria ou
não comer.
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Nesse contexto, a morte desponta como acontecimento marcado por uma série de
ritos fúnebres aos quais se vincula uma dupla simbologia: ao mesmo tempo em que
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Filho de Nanã Burucu, orixá que forneceu a lama para a criação dos seres humanos,
Oxumarê é irmão de Omulu. A narrativa ‘Nanã esconde o filho feio e exibe o filho belo’
conta o tratamento diferenciado que a mãe deu aos dois filhos devido à aparência de cada
um deles. Retratado como ‘um rapaz muito bonito e invejado’, cujas “roupas tinham todas as
cores do arco-íris e suas joias de ouro e bronze faiscavam de longe” (PRANDI, 2001, p.
226), Oxumarê foi alçado ao céu por sua mãe para que todos pudessem contemplar sua
beleza. Em contrapartida, Omulu foi coberto por palha como forma de esconder as feridas
sobre seu corpo.
Outros mitos narram diferentes razões para o surgimento do fenômeno. Em um
deles, Oxumarê costumava utilizar sua faca de bronze para produzir o arco-íris e, assim,
estancar os temporais. Um dia, convocado por Olodumare (Senhor Supremo na tradição
iorubá) para curar sua cegueira, Oxumarê foi proibido de retornar à Terra, permanecendo no
Orun. A partir desse momento, seu retorno só poderia ser temporário na forma do arco-íris,
como está narrado neste trecho de ‘Oxumaré desenha o arco-íris no céu para estancar a
chuva’:
Para ter Oxumarê por perto, [Olodumare] determinou que morasse com ele.
e que só de vez em quando viesse à Terra em visita, mas só em visita.
Enquanto Oxumarê não vem à Terra,
todos podem vê-lo no céu com sua faca de bronze,
sempre se fazendo no arco-íris para estancar a Chuva. (PRANDI, 2001, p. 224)
Uma terceira narrativa relaciona o fenômeno natural com a morte do orixá. Xangô e
Oxumarê iniciam uma batalha por ciúmes de Oxum, o que acaba resultando na morte do
Arco-Íris. O pranto de Nanã, sua mãe, comoveu Olodumare, que foi convencido a elevar o
corpo de Oxumarê, tornando-o ‘rei dos astros’, vivo no céu.
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[...] — A senhora está ficando mocinha, tem que aprender a ler e escrever, e não
vai ter tempo disponível para mandar porque necessita preparar as lições. Eu
gosto de ser obedecida. Está ouvindo-me, dona Carolina Maria de Jesus!
Fiquei furiosa e respondi com insolência:
— O meu nome é Bitita.
— O teu nome é Carolina Maria de Jesus.
Era a primeira vez que eu ouvia pronunciar o meu nome. (JESUS, 2014, p. 127)
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homem cortar uma árvore. Fiquei com inveja e decidi ser homem para ter forças” (JESUS,
2014, p. 16).
Sem ter conhecido o pai, Bitita foi cuidada pela mãe, cercada pelos demais membros
da família materna, tema amplamente abordado em diversos capítulos do livro, seja pela
admiração por alguns familiares, seja pelos casos de violência doméstica, alcoolismo e
racismo vivenciados. Dentre os vários rostos familiares à narradora, seu carinho é
fortemente direcionado ao avô, Benedito José da Silva que, nas palavras da neta, “foi o preto
mais bonito que já vi até hoje” (JESUS, 2014, p. 13). Embora seja relembrado
afetuosamente, o avô também protagonizou atos de violência contra sua esposa, siá Maruca.
O motivo da agressão foi a tentativa empreendida pela mulher de conseguir mais dinheiro
para as despesas da casa, o que desagradou seu marido.
Também estão presentes no livro outras reflexões acerca do tratamento direcionado
às mulheres que, assim como Bitita e sua mãe, eram empregadas domésticas. Além dos casos
de violência praticados por parentes ou companheiros, também identificamos relatos de
abuso e assédio nos espaços de trabalho. Esses casos estendem-se para os demais membros
das famílias das trabalhadoras, especialmente, suas filhas:
Se o patrão espancasse o filho da cozinheira, ela não podia reclamar para não
perder o emprego. Mas se a cozinheira tinha filha, pobre negrinha. O filho da
patroa a utilizaria para o seu noviciado sexual. Meninas que ainda estavam
pensando nas bonecas, nas cirandas e cirandinhas eram brutalizadas pelos filhos
do senhor Pereira, Moreira, Oliveira, e outros porqueiras que vieram de além-mar.
(JESUS, 2014, p. 38).
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— É o arco da velha.
— Ah! Sim… (JESUS, 2014, p. 17).
Embora não ocorra menção a elementos das religiões de matriz africana, como é o
caso do Candomblé, ao sobrepor os escritos de Carolina Maria de Jesus e as narrativas
iorubás, podemos estabelecer relações, especificamente, relacionadas ao arco-íris. Na
tradição Iorubá, esse fenômeno natural é considerado símbolo de Oxumarê. Da mesma
forma que o orixá possui uma representação dual, transitando entre um aspecto masculino e
outro feminino, ao seu símbolo, o arco-íris, é atribuída a capacidade de transformar a
narradora do romance em homem.
Dessa forma, o símbolo de Oxumarê ganha espaço nas memórias de Bitita,
representando a possibilidade de a narradora adquirir outra identidade, semelhante ao que
ocorre com a divindade. Apesar disso, ao confrontar os ângulos tortuosos da realidade, Bitita
questiona suas crenças: “Quando percebi que nem São Benedito, nem o arco-íris, nem as
cruzes não faziam eu virar homem, fui me resignando e me conformando: eu deveria ser
sempre mulher” (JESUS, 2014, p. 97).
Considerações finais
A abertura para outras lentes através das quais podemos enxergar o mundo
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possibilita, entre outros aspectos, questionar visões hegemônicas. No que toca à distinção de
gênero, o pensamento judaico-cristão, predominante na sociedade ocidental, restringe as
existências ao masculino e ao feminino, porém, o mesmo não é identificado em outras
culturas. Na perspectiva Iorubá, o gênero extrapola o homem e a mulher, tipificando outras
subjetividades. Nesse sentido, as narrativas míticas emergem como justificativas para essa
cosmovisão ao estabelecer correspondências entre o plano dos orixás e o plano da vida dos
homens.
Elementos de diferentes discursos religiosos são apresentados na obra de Carolina
Maria de Jesus, como a segregação vivida nos templos, as festas populares em homenagem
aos santos, além de personagens religiosas, predominantemente espíritas e católicas. Ainda
que não mencione diretamente as religiões de matriz africana, é possível verificar um diálogo
entre o texto carolineano e as narrativas Iorubás.
A partir da fala de sua mãe, a menina busca, incessantemente, maneiras para alcançar
o objetivo de transformar-se em homem. A falha na primeira tentativa faz com que ela passe
a atribuir ao arco-íris a capacidade de proporcionar tal realização. O corpo multicolorido de
Oxumarê representa a oportunidade para que o desejo se concretize, aproximando a vivência
da menina daquela experienciada pelo orixá.
Dentro da cultura Iorubá, a manifestação oral da palavra é considerada aspecto
estruturante, uma vez que é capaz de agir sobre o mundo, modificando-o. De forma
semelhante, ao descrever o primeiro encontro com Carolina de Jesus, o jornalista Audálio
Dantas evidencia a força presente na fala da escritora que, por meio da palavra, confrontava
alguns homens que estavam depredando um espaço de lazer infantil. Carolina enfrentava-os
dizendo que acrescentaria seus nomes em um diário.
Dessa forma, a escrita apresenta-se como mecanismo pelo qual a escritora materializa
a força de seu discurso. Tendo em vista que o arco-íris não permite a transformação, é pela
linguagem que Carolina de Jesus, Bitita crescida, subverte a realidade ao utilizar os feixes de
Oxumarê como fios para a tessitura de sua obra.
REFERÊNCIAS
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire des symboles. Paris: Éditions
Robert Laffont S.A.; Éditions Jupiter, 1982.
EYIN, Pai Cido de Oxum. Okutá: A Pedra Sagrada que Encanta Orixá. São Paulo:
Alfabeto, 2014.
FARIAS, Tom. Carolina: uma biografia. Rio de Janeiro: Malê, 2018.
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tradição por meio do contato com laços de memória dos personagens. Além disso, ao
conhecer e compreender a geografia espacial da obra, observa-se que ela é permeada por
afetos, os quais ganham ênfase nas manifestações intempestivas da natureza mística dos
acontecimentos, enaltecendo as sabenças e trazendo à tona a memória, agente que alimenta
a identidade, como afirma Candau (2012, p. 16).
Utilizando uma linguagem simbólica, Chiziane revela, na prosa literária, a assimilação
das tradições do colonizador na voracidade do processo colonial. O exemplo máximo disso,
na obra, está disposto na postura do personagem David, que coloca as concepções
incorporadas e praticadas pelo homem branco acima de suas origens, transformando-o num
opressor tal qual os que o oprimiram. Os eventos que ocorrem como personagem no
decorrer da narrativa revelam os resultados da subalternação do sujeito negro à presença de
um sujeito branco que o aliena, o que serve de gancho para um repensar a identidade,
demonstrando que a perda de tradições e de costumes afeta as relações comunitárias e causa
a fragmentação e/ou a destruição de complexas organizações culturais.
Francisco Noa, professor pesquisador em literaturas africanas, ao observar os
espaços de escrita e os dilemas e reflexos da colonização no pensar das culturas africanas em
geral, põe em xeque o ‘fazer literatura’ em um contexto de exclusão, uma vez que o africano,
como sujeito continental, ainda está validado sob o olhar mundial (e aqui, tal olhar entende-
se como a possível verdade produzida pelo colonizador em seus discursos colonialistas e de
opressão) no papel de um outro, do diferente, colocação feita com o intuito de inferiorizar
sua conjuntura como indivíduo de ser e de práticas culturais.
No entanto, Noa (2015, p. 79) coloca que “as literaturas africanas encerram, em si,
um dilema estruturante, isso é, colocam em questionamento os fundamentos que
concorreram para a sua própria constituição,” sendo elas [as literaturas feitas por africanos] a
representação de um novo diálogo entre as tradições do durante e do depois da presença
colonial em África, enfatizando, em muitas narrativas, os valores da tradição viva, segundo a
qual, conhecer o passado serve como base para a promoção de saberes e de continuidades
das sabenças do povo, ou como simplesmente afirma Amadou Hampâté Bâ (2010, p. 209):
“o passado se torna presente.”
O sujeito colonizado, híbrido da natureza colonial e da tradição que o formam como
ser identitário e pertencente a uma cultura, passa por processos constantes de redefinição de
cultura, pois seus espaços de vivência constituem um papel estruturante das experiências:
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O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não seja
parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato
insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como
causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como
um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O
‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver
(BHABHA, 1998, p. 27).
viva a herança da tradição; ou seja: apesar dos traumas do sujeito colonizado, as tradições de
caráter místico e religioso se valem da fidedignidade da transmissão oral, de forma que afeta
todos os setores - religiosos e sociais e outros - da comunidade africana e reforça a
necessidade de afirmação desse ser de tradição no contexto local. No livro ‘O sétimo
juramento’, Chiziane constrói uma narrativa que parte do núcleo familiar e perpassa por
tantos outros espaços, a fim de demonstrar a perda dessa tradição oral e da herança mística
em várias instâncias da sociedade, de forma a colocar, posteriormente, as consequências
dessa negação cultural para a vida de todas as personagens.
A autora expõe, em sua tessitura ficcional, que os acontecimentos do passado são
pontos de partida e de chegada para a constituição de fatos que acontecem no presente e
interferem no futuro. A memória local é permeada por um tempo extemporâneo que nos
convida a relembrar sem jamais esquecer. A narrativa nos apresenta David, homem, filho,
marido e pai que, apesar dessas denominações desvaloriza escrachadamente a família e atua
em uma empresa como chefe totalitário, esquecendo seu passado como revolucionário e
defensor dos direitos trabalhistas, além de negar, de forma veemente, a magia de
ancestralidade que o levou até ali.
Nesse sentido, observamos em primeira instância um dos espaços de significação da
narrativa que é a fábrica, o mundo da técnica: berço econômico da cidade e meio de vida de
muitos dos habitantes, o ambiente é um potencializador de opressões, no qual os
trabalhadores exercem suas atividades exaustivamente por um ex-companheiro de luta de
libertação africana, o que nos rememora a famosa premissa do educador e escritor Paulo
Freire (1983) de que “o sonho do oprimido é se tornar opressor”, que sintetiza a forma de
regência de David:
Ativismo de primeira linha. Ódio à classe dominante do antigo sistema. Hoje ele
é patrão e sente que vai ser escorraçado do poder tal como fez aos próprios
colonos, pelas mesmas ações. Com os mesmos cantos e gritos. Com os mesmos
slogans e palavras de ordem. Com a mesma fúria do povo oprimido.
(CHIZIANE, 2012, p. 36)
Intimidado pela possibilidade de uma greve entre seus empregados, David começa a
embriagar-se em suas memórias como ativista, que estava na mesma posição dos que
naquele momento se voltavam contra ele e assim, o personagem segue durante a narrativa:
ele transita entre o seu ‘antigo eu’, imerso na tradição do povo e que lutava com eles em
busca de direitos e oportunidades, e o seu ‘atual eu’, que se encontra em constantes surtos
de identidade ao permear entre a extrema opressão, desmoralização de valores, e a
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Eu tentara construir uma personalidade para mim mesmo. Era algo que eu já
tinha tentado fazer mais de uma vez, e eu esperava ver a resposta nos olhos dos
outros. Agora, no entanto, não sabia mais quem eu era; a ambição tornou-se
confusa e depois murchou; e quando dei por mim tinha saudades das certezas
que tinha no tempo em que vivia na ilha de Isabella, certezas que eu havia
desprezado, rotulando-as de naufrágio (NAIPAUL, 1987, p.23).
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Percebe-se, até aqui, que Vó Inês atuará como uma ponte que liga o passado e o
presente, de forma que auxiliará Clemente na descoberta da sina e do destino, o qual ajudará
a família em um momento de máxima tensão, em que o menino se revelará grandioso na
forma como lida com a magia, auxiliando o processo de descolonização interna dos entes
familiares. Essa revolução causada pela avó no núcleo familiar se mostra necessária para que
a família se reconecte à sua tradição e supere as atribulações do passado, a fim de consertar
o presente e evitar outras tempestades desse tipo no futuro.
Dessa maneira, podemos assumir a casa como outro espaço de significação da
narrativa, por ser palco de inúmeras manifestações do místico na obra, além de ser o lugar
em que ocorre o abalo das estruturas sociais, quando se observa que a movimentação das
mulheres e das crianças é que salva o homem e também reconstrói as bases familiares no
resgate das memórias culturais. Em retomada ao livro já citado de G. Spivak, mas agora sob
a ótica da artista e psicóloga portuguesa Grada Kilomba, observa-se que, no capítulo dois do
livro ‘Memórias da plantação’, Grada discute sobre a articulação da mulher subalterna no
“regime repressivo do colonialismo e do racismo” (KILOMBA, 2019, p.47). De igual modo,
Kilomba observa, também, o quanto parte das mulheres passa a se tornar ‘invisibilizada’
dentro de um sistema de exploração e repressão.
Não muito distante de tudo isso, Pauline Chiziane no livro ‘Sétimo Juramento’
descreve, a partir de outro prisma cultural, a exploração do corpo feminino nas fronteiras do
continente africano. Vimos que além de Vera e Inês, as personagens Cláudia e Mimi
compartilham a submissão da dor como elementos comuns na sociedade patriarcal, apesar
das diferenças quanto às suas representações imagéticas na obra, como afirma Chiziane:
“No mundo do poder masculino, a mulher é escrava do homem e o homem escravo da
sociedade. A existência da mulher é insulto, insignificância” (CHIZIANE, 2012, p. 39).
No entanto, apesar dessa sina quase determinada, as mulheres em ‘O sétimo
juramento’ conseguem, aos poucos, libertarem-se e começam a ganhar voz de
empoderamento na narrativa africana, sem estarem subordinadas ao círculo construído pelo
legado do patriarcado. Além de trabalhar questões como o patriarcado e o silenciamento
feminino, em Moçambique, Paulina Chiziane também traz ao tecido ficcional questões
como o lobolo e a poligamia, que é uma prática muito comum nas comunidades africanas.
O tema do lobolo e da poligamia é elemento central no livro ‘Niketche’, de Paulina
Chiziane.
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Voltando-nos mais uma vez à figura de David, observamos a força com que seu
passado retorna, fazendo-o rememorar as práticas ancestrais africanas, em principal ao
espírito de Makhulu Mamba, com o qual ele já teve experiências não muito agradáveis.
Desse momento em diante, ocorre a separação dialética da magia, que se caracteriza como
uma prática benéfica, auxiliando as comunidades a encontrarem respostas e se tornarem
sábias pelo caminho mais humilde. A magia também representa o ponto de vista do bem e
da feitiçaria que, ao ser utilizada para práticas do mal, causa destruição e representa o lado
obscuro da mística.
No livro de Chiziane, quando David e sua família mostram-se devotos católicos em
uma tentativa dele apagar seu passado místico, a vida deles torna-se um caos, uma vez que
se baseia em mentiras, desestruturando as forças espirituais da família, como esclarece
Hampâté Bâ (2010, p.177): “Não nos esqueçamos de que todos os sistemas mágico-
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Quero aprender todos os segredos da magia, do antifeitiço. Faço-o por mim, por
ti, por toda a família.
[...] A magia negra impera. Por todo o lado há crimes rituais, incesto, mutilações,
mortes, desespero. Gente de todos os estratos sociais busca alicerces na magia
negra, para subir na vida sacrificando os parentes, os amigos e até desconhecidos.
[...] Ser curandeiro é viver coisas do tempo que o vento levou (CHIZIANE, 2012,
p. 241).
É válido expressar aqui a diferença abordada por Santos e Przybylski quanto aos
rituais praticados por feiticeiros e por curandeiros:
Tal diferenciação se faz necessária para explanar melhor a fala de Clemente para
com a sua mãe, uma vez que ele, para convê-la, busca demonstrar a bondade envolvida nos
rituais de magia sobre os quais ele deseja estudar e se ‘formar como curandeiro’, figura
responsável, não somente pela cura no sentido espiritual, mas também do físico, além de
abrigar consigo inúmeras sabenças da tradição de seu povo. Além disso, observa-se o caráter
atemporal desses saberes, os quais agora estão nas mãos de Clemente e de outros
curandeiros, que deverão dar continuidade, por meio da tradição oral e das práticas
ritualistas, reavivando a memória coletiva de seu povo:
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Vai, todos os espíritos estão contigo. Diz a todos os ímpios o que não gostam
de ouvir. Esfrega-lhe pimenta nos olhos e ensina-os a ver o que não sabem ver.
Muda o curso das suas vidas e mostra-lhes a razão e a sua face de cão, e de
traição. Os bons espíritos lutam pelo homem justo [...] (CHIZIANE, 2012, p.252).
REFERÊNCIAS
BÂ, Hampaté. A tradição viva. In:. História geral da África I - Metodologia e pré-história
da África. 2.ed. Brasília: UNESCO, 2010.
NEVES, Cleiton Ricardo das; ALMEIDA, Amélia Cardoso de. A identidade do ‘Outro’
colonizado à luz das reflexões dos estudos pós-coloniais. Revista Em tempo de histórias.
Brasília, Universidade de Brasília (UNB), nº.20, p.123-135, jan-jul. 2012.
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SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? 2.reimp. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
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São Tomé e Príncipe, com representação presidencial de Manuel Pinto da Costa, eleito pela
Assembleia Nacional.
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Não muito longe disso, a literatura foi capaz de resgatar as identidades e memórias
silenciadas, além de iniciar o processo de reconstrução da sua própria história. Apesar das
inúmeras dificuldades no período colonial, a poesia foi o gênero que mais contribuiu com os
primeiros registros literários do país. De acordo com Ferreira (1977), essa poesia era
“construída apenas por negros ou mestiços. Esse punhado de poetas balizou a área temática
no centro do universo da(s) sua(s) ilha(s) e organizou um signo cuja polissemia é de uma
África violentada, inchada de cólera, a esperança feita revolta.” Após a independência e em
um novo contexto social, as narrativas poéticas ganham novas perspectivas. A busca pela
reconstrução da identidade, da cultura, das línguas e a reescrita da própria história e da
memória estão presentes nas obras dos autores desses períodos.
Juntamente com essas temáticas, as construções narrativas são repletas de metáforas
que remetem ao imaginário insular, abordando em seus escritos essa essência pertencente ao
espaço da ilha. Ao optar por essas construções poéticas semanticometafóricas, valorizando
os elementos característicos das ilhas, os autores são-tomenses procuram simbolizar, através
da escrita, o resgate e o reconhecimento de suas raízes, valorizando o seu lugar de
pertencimento identitário e cultural, além de negar a cultura e influência europeia em sua
escrita.
Assim, de acordo com Glissant (2002, p. 22 apud CORDEIRO DE OLIVEIRA,
2017, p. 42), “em nossos países, atribulados pela História, quando as histórias das populações
enfim se encontram, as obras da natureza se convertem em verdadeiros monumentos
históricos.” Ou seja, ao enaltecer os elementos insulares em suas obras literárias, esses
autores buscam a ressignificação da história de seu país, que foi contada pelos colonizadores
europeus, construindo, assim, uma nova história e reafirmando a identidade de seu povo.
Alda Espírito Santo destacou-se por um tipo de poesia que traduz em verso livre
uma luta contra o fascismo e o colonialismo. Ainda nova, mudou-se com a família para o
norte de Portugal; tempos depois, iniciou os estudos universitários em Lisboa. Naquela
época, fez contatos importantes com diversos escritores e intelectuais, que se tornariam
futuros líderes dos movimentos de independência das colônias portuguesas de África.
A casa da poetisa era espaço para abrigar discussões intelectuais, consciência cultural
e política, acerca da Política, do assimilacionismo e em defesa do povo africano que vivia sob
a tutela da exploração econômica pelo sistema colonial. “Foi no convívio com esses jovens
intelectuais, que fizeram a diferença na história de Portugal e das colónias portuguesas de
África, numa altura em que a palavra podia ser um petardo demolidor do sistema, que Alda
Espírito Santo encontrou na literatura um veículo de contestação” (MATA, 2009, p.261).
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Nessa mesma época, Alda também frequentava com assiduidade a Casa dos
Estudantes do Império. Alguns anos depois, abandonou o curso universitário, por
motivações políticas e financeiras, retornando para São Tomé e Príncipe onde atua como
professora e jornalista. Com a independência de São Tomé e Príncipe, pela qual lutou
ativamente, em 1975, passou a ocupar altos cargos no governo são-tomense, como Ministra
da Educação e Cultura, Ministra da Informação e Cultura, Presidente da Assembleia
Nacional e Secretária Geral da União Nacional de Escritores e Artistas de São Tomé e
Príncipe. Dona Alda morreu aos 82 anos, em Luanda, por complicações de saúde.
Quando se adentra o livro ‘É nosso o solo sagrado da terra’ (1978), de Alda Espirito
Santo, percebe-se, no poema ‘Ilha nua’, o quanto a palavra traduz perigo em um ambiente de
exploração sob a tutela do sistema colonial. A tessitura do poético em Alda nos remete ao
momento colonial de São Tomé e Príncipe, quando a poetisa utiliza a voz insular para
comparar a vastidão da ilha com a vastidão dos sonhos são-tomenses: “Mar azul das ilhas
perdidas na conjuntura dos séculos/vegetação densa no horizonte imenso dos nossos
sonhos/verdura, oceano, calor tropical, gritando a sede imensa do salgado mar.” Na
movência das águas insulares, Alda Espírito Santo, com sua voz insular, anuncia, nas águas
da memória, destinos sem planuras:
Ilha Nua
Ainda no verso ‘Mar azul das ilhas perdidas na conjuntura dos séculos’, a poeta
utiliza o contexto geográfico insular para retomar a questão da colonização portuguesa no
país. Essas ilhas perdidas na conjuntura dos séculos também remetem ao apagamento
cultural causado pelos portugueses e como os são-tomenses foram perdendo, ao longo dos
tempos, o legado identitário.
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A Outra Paissagem
Ultimar
Estudar África e suas literaturas é sempre um imenso e gratificante desafio. É
descobrir, redescobrir e se identificar com textos tão próximos de nossas vivências, histórias
e origens. Dona Alda e Conceição Lima realizam esse resgate das origens africanas em suas
poesias, conseguindo capturar os mais ínfimos detalhes de toda uma cultura e protestar
contra aqueles que lhes tiraram a liberdade.
Como Mata afirma (2014, p.89), as literaturas em África nasceram, historicamente, de
uma conflitualidade entre sua cultura e a cultura do outro, do colonizador. Logo, apesar do
distanciamento temporal, Alda e Conceição Lima protestam, por meio de suas escritas, o
resgate das origens das ilhas, emergindo no espaço insular modificado pelo homem branco e
nos apresentando em suas poesias os impactos historicoculturais ocasionados pela violência
portuguesa.
Dona Alda, que participou ativamente na luta pela independência da ilha, canta em
seus poemas o grito de libertação do colonizador, denuncia as violências sofridas pelo seu
povo e os impactos negativos dessa interferência no espaço insular. Por outro lado,
Conceição Lima, contemporânea de Alda, reflete sobre o impacto do colonizador, mas
principalmente, sobre o espaço da ilha antes da chegada do branco. Assim, em suas poesias
de denúncia, essas mulheres de mãos corrosivas e versos líricos e afetivos retratam o espaço
insular de São Tomé e Príncipe, demonstrando a importância de suas vozes nas literaturas
africanas de língua portuguesa, uma vez que ainda são pouco representadas nos espaços das
literaturas e no mercado editorial.
REFERÊNCIAS
BAYER, Adriana Elisabete. Poesia Sãotomense: geografias em dispersão. Orientador: Luiz
Antonio de Assis Brasil. 2012. 205 f. [Tese de Doutorado em Teoria da Literatura]. Porto
Alegre, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2012.
CORDEIRO DE OLIVEIRA, Carlos André. Sobre cidades-ilhas: literatura e mediações
estéticas. Recife, Encontros de Vista. ano 1, n. 19, p. 39-47, 2017.
ESPÍRITO SANTO, Alda do. É nosso o solo sagrado da terra. Lisboa: Ulmeiro, 1978.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983
LIMA, Conceição. A dolorosa raiz do micondó. [S. l.]: Lexonics, 2012. 78 p.
LUCIA TINDÓ SECCO, Carmen. Três vozes guerreiras femininas de São Tomé e Príncipe:
D. Alda, Manuela Margarido, Conceição Lima. In: MATA, Inocência. Trajectórias
culturais e literárias das ilhas do Equador: Estudos sobre São Tomé e Príncipe.
Campinas: Pontes, 2018. p. 281-299.
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O mar mencionado na poesia de Jorge Barbosa é um símbolo que evoca uma das
características mais marcantes da sociedade e da cultura cabo-verdiana: a insularidade que,
numa primeira instância, conforme Maria Teresa Salgado (2009, p. 164), “pode ser
apreendida a partir do isolamento geográfico e existencial experimentado pelo ilhéu, da
solidão daí decorrente, que encontra ecos e desdobramentos na humana condição em
qualquer parte do globo.”
Pertencente ao oceano Atlântico e próximo à Costa Africana, Cabo Verde é um dos
estados africanos de língua portuguesa que “compartilha com outras nações do continente
uma característica insular” (PITA, 2017, p. 71), que marca a realidade cabo-verdiana na sua
globalidade. Nesse sentido, Fernando Cristóvão (2005, p. 373) pontua que:
A escala do continente a que pertence Cabo Verde, tal como outros países
insulares, apresenta significativa individualidade geográfica, onde cada ilha é um
pequeno microcosmo. Desabitadas aquando do seu achamento, as ilhas foram
modeladas por cinco séculos de colonização portuguesa que gerou paisagens
humanas originais, onde se reflete o efeito de uma luta constante e tenaz com a
natureza saeliana.
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tribos, com grande variedade étnica, surgindo o que Manuel Ferreira (1972) chamou de ‘terra
trazida’.
Conceituada como fator geográfico, a noção de insularidade está diretamente
relacionada com a definição de ilha e, consequentemente, desta com o ilhéu. Definida como
“trecho de terra rodeada de água por todos os lados” (FERREIRA, 2010, p. 408) “terra
menos extensa que os continentes de forma sustentável nas águas de um oceano, de um mar,
de um lago ou de um fluxo” (ROBERT, 1977, p. 541) ou, ainda, “aquilo que está isolado”
(DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2011); nessa acepção, o isolamento é uma
das expressões possíveis da insularidade que aporta consequências nas questões econômicas,
sociais e culturais.
O tema da insularidade é também recorrente nos estudos relacionados à história e à
economia, à literatura e à cultura, sendo aplicado em diferentes contextos e territórios,
incluindo aqueles que são geralmente classificados na categoria de espaços continentais. O
francês Jean-Luc Bonniol salienta o fato de que “l’insularité est toujours relative” (1998, p. 87)70.
Isso não significa ser um conceito vago, mal definido, mesmo se “les îles offrent une palette
inépuisable de cas particuliers” 71 (1998, p. 73).
Conforme Henriques (2009, p. 13-14), as certezas categóricas e definitivas sobre as
ilhas e a condição insular estão associadas a conceitos negativos, como isolamento e solidão,
separação e afastamento, fechamento e aprisionamento. Entretanto, essa visão nem sempre
corresponde à realidade, uma vez que o sentimento insular varia de pessoa para pessoa,
segundo realidades e contextos geográficos. Nesse caso, é importante conhecer os valores e
projetos individuais e coletivos de um território insular, o modo de vida do povo e suas
condições sociais.
O termo ‘insularidade’ no arquipélago de Cabo Verde, em um primeiro momento,
está relacionado à geografia física das ilhas, assim como às limitações que as atingem, uma
vez que “o desenvolvimento destas depende de fatores geográficos, sejam humanos ou
físicos; daí justifica-se uma abordagem dos aspectos geográficos de Cabo Verde para dar a
conhecer, em parte, a realidade cabo-verdiana” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2010, p. 12).
Um dos elementos ilustrativos da insularidade cabo-verdiana que apresenta grande
relevância para a população local é o isolamento geográfico das ilhas, a distância entre elas.
E, embora possuindo atributos especiais que as distinguem dos ambientes não insulares em
certas características, “a questão insular propicia reflexos na fauna, na flora e nas atividades
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milhares de cabo-verdianos, sozinhos ou em família, para pesados trabalhos braçais nas roças
de café e cacau nas ilhas de São Tomé e Príncipe (QUERIDO, 2011, p. 82-83).
Após a Segunda Guerra Mundial, fugindo da fome e da miséria que assolavam as
ilhas, uma nova onda de emigrantes procurou os países europeus, como França, Holanda,
Luxemburgo, Bélgica e Portugal, com destaque o país lusitano (52,9%) que formou, após os
Estados Unidos, a segunda maior comunidade de cabo-verdianos da diáspora. Conforme
João Lopes Filho, a Europa não constituía um destino tradicional dos emigrantes cabo-
verdianos, mas devido às devastações da II Guerra, que deixaram alguns países europeus
desprovidos de mão-de-obra para sua reconstrução, as correntes migratórias foram alteradas
com o objetivo de suprir as necessidades desses países (LOPES FILHO, 2010, p. 135).
Desse fluxo migratório, assim como desse momento de trânsito e de entrelaçamento
de valores, surgem novos sujeitos, reformados ou remoldados, que reproduzem seus valores
crioulos em terras estrangeiras, em um novo território, significando:
O território define-se por isso, pela relação que sustenta com a história, e que se
exprime não só na presença dos espíritos dos antepassados, mas pela acumulação
de sinais e de marcadores, uns criados pela natureza e reinterpretados pelos
homens, os outros provindos do imaginário do indivíduo e da sua sociedade. Um
homem define a sua identidade por meio de alguns suportes: primeiro pelo facto
de pertencer a uma família, a qual está integrada num clã, numa comunidade,
numa nação. Esta aparente dependência do indivíduo e da família em relação às
unidades superiores, não deve, contudo, enganar-nos: é a soma das pequenas
identidades que autoriza a construção global da identidade, a qual está
historicamente ligada a um território (CASTRO, 2004, p. 5).
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REFERÊNCIAS
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A dicção do texto literário de autoria feminina africana pode ser entendida como um
trabalho que proporciona a revisão dos papeis sociais. Isso porque a produção do texto
ficcional, que toma forma a partir das experiências cotidianas, tem o potencial de desnudar
aquilo que foge ao olhar desatento ao provocar reflexões em torno até mesmo daquilo que
parece banal e efêmero. No cenário da literatura contemporânea, a produção de escrituras
construídas sob o signo do trânsito geográfico e cultural é cada vez mais numerosa e traz
consigo a reflexão acerca das formas diversas de constituição do sujeito em nosso tempo.
Nesse contexto, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie chama a atenção
para o que fica nas entrelinhas dos discursos do silenciamento. A produção literária da
nigeriana faz parte de uma lista de escritoras africanas consagradas, não só na Nigéria ou nos
países africanos, mas mundo afora. Adichie conta, atualmente, com traduções de todos os
seus livros em vários idiomas, considerando, também, que a crítica acadêmica a respeito da
dicção feminina da autora nigeriana vem aumentado substancialmente.
Em ‘A coisa a volta do teu pescoço’ (2012), se observa o agrupamento de narrativas
ancoradas na lida diária dos sujeitos nigerianos juntamente com as construções que
priorizam a experiência de transitar não apenas entre cartografias, mas principalmente o
exercício de saber que é pertencente à diáspora entre culturas.
Em travessia pelo legado de uma escritura diaspórica, é possível identificar nos
contos de Adichie a inscrição do dia a dia em mulheres e homens africanos, nigerianos, que
compartilham as complexidades subjetivas e as conjunturas mais diversas. Ancorada na
percepção de elementos culturais que se reconstroem pela ação crítica dos sujeitos, a
composição estética dos contos também aponta para a possibilidade de transformação do
pensar humano na sociedade.
O uso da linguagem como militância feminista é elaborado através do recurso da
ironia, o que se observa pela presença laboriosa dos recursos estéticos na articulação dos
elementos ficcionais. O processo de criação de Adichie traduz um tipo de revolta com as
palavras no registro irônico que está visível nas camadas da linguagem dicionarizada.
72 Mestra em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (UFRN) onde defendeu
dissertação de mestrado sobre Chimamanda Adichie com orientação da profa. Tania Lima.
73 Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Editora da Revista de arte Mangues
& Letras. Professora Permanente do Mestrado Profissional em Artes UFRN/UDESC
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Nas histórias que dão escopo à arte de contar, apontamos o uso criativo de
ferramentas literárias consagradas pela tradição oral ao lado de uma estética narrativa que
contempla o experimentalismo. No exercício da escritura, a autora citada mistura vários
gêneros literários como quem escreve com missangas os segredos que perfazem a tessitura
verbal. Percebemos com isso que o conto, a crônica, o diário, a matéria ensaística, o assunto
do blog, tudo isso gera um contra discurso que demarca um estilo próprio que faz da
escritora nigeriana uma obra de arte.
No prelúdio do livro ‘A coisa à volta do teu pescoço’ (2012), destaca-se a ligação
intrínseca das personagens principais, inseridas no ambiente da casa, no espaço da rua, nas
cartografias transnacionais, não-lugares da hipermodernidade. O conto é criado como um
roteiro cinematográfico onde as cenas abismais movimentam-se ao redor de um cotidiano
recortado pelo tempo, recordado pela memória. No traço descritivo da narrativas,
personagem e espaço misturam-se não somente em uma demonstração do apego emocional,
o que acontece em alguns casos exemplificados no conto ‘Fantasmas’ em que se percebe
uma necessidade inevitável de materializar aquilo que é íntimo de determinado protagonista,
recriando cenas nítidas do campo psicológico.
No conto ‘Fantasmas’, o clima e a paisagem local são solicitados a todo instante em
meio aos relatos pessoais de James Nwoye. A narrativa, que chama atenção também pelo
manejo da espiritualidade e das crenças locais, acontece em um epílogo bastante
característico da Nigéria e também dos demais países que compõem a região subsaariana do
continente, como aponta a personagem: “Estamos quase em março, mas a época do
harmatão ainda por cá está: os ventos secos, a eletricidade estática nas minhas roupas, a
poeira fina nas pestanas” 74 (ADICHIE, 2012, p. 65).
No enlaço da ‘contação’, com um tipo de narrativa em primeira pessoa, são os
elementos naturais que encabeçam a descrição do estado psicológico de Nwoye. O encontro
com o velho amigo Ikenna Okoro, antigo professor do campus de Nsukka, faz ressurgir
assuntos difíceis de tocar na carne do verbo. Como falar, por exemplo, sobre as
consequências da guerra civil no círculo universitário? Muitas perguntas sem respostas foram
abafadas pelo tempo, mas que emergem na dolorosa tarefa de cuidar das feridas não
cicatrizadas. No decorrer dos diálogos travados pelas personagens, um clima constrangedor
se estabelece diante da possibilidade de Okoro ter se recusado a lutar, quando Nsukka foi
invadida. Depois de uma colocação um tanto embaraçosa, James Nwoye diz:
74 Harmatão, como é referenciado “o vento seco e frio, carregado de uma areia muito fina, que sopra do
deserto do Saara sobre as savanas, os cerrados e as florestas da África Ocidental”, disponível no glossário Em
O mundo se despedaça (2009).
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comprometidos com o que Ogliari (2012, p. 61) afirma ser o papel do gênero conto por
excelência, o “simples ato de reunir as pessoas e de contar algo: do simples ato de contar
histórias.” Uma das características mais expressivas desse gênero literário, na atualidade, está
exatamente na diversidade que a sua forma permite, uma vez que a escrita do conto está
fortemente ligada à maleabilidade da contação de história que já nasce próxima da
espiritualidade ancestral.
Segundo Ogliari, tal gênero pode ser encarado pelo viés moderno em uma
modalização mais rígida, como postulada por Edgar Poe ou Anton Tchekhov, ou visto pela
volatilidade de um gênero textual que se molda a partir da necessidade narrativa, o que abre
as portas para a experimentação no ato de contar. Esse último ponto é o que encontramos
na análise dos contos produzidos por Adichie.
Dito isso, entendemos que as histórias curtas apresentadas em ‘A coisa à volta do teu
pescoço’ (2012) são coerentes com a visão contemporânea do conto, uma vez que não tem
seu conteúdo limitado a uma fórmula específica do gênero. O conto nasce, então, daquilo
que pulsa na vida cotidiana, tendo como resultado a brevidade da prosa literária. A fim de
perceber como se desenvolve a expressividade literária nos contos de Adichie, é importante
atentar para os elementos estruturais que costuram as narrativas e que demonstram um peso
significativo na composição das histórias em sua totalidade.
O conto, por ser uma ficção curta, está comprometido com um momento específico
de uma narração particular ou coletiva, de modo que o detalhamento, a construção de
imagens minuciosas sobre o espaço narrativo, ou mesmo o perfil psicológico de determinada
personagem, proporcionem ao enredo o aprofundamento necessário em tempo reduzido.
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impossível que esse novo corpo, inutilmente sensível, como que mutilado e sem forma,
possa manter-se vivo” (2004, p.97), necessitando, assim, de um elemento estruturante que
entrelace todos os pontos do enredo que começa a ser construído. Nesse ponto,
evidenciamos a composição orquestrada pela memória como um recurso que possibilita a
ruptura temporal, estratégia bastante utilizada por Adichie para dividir as seções no interior
do conto. Essa partição abre caminho para a inserção de novos elementos narrativos que
asseguram a concatenação de ideias e o aprofundamento temático.
Em ‘Jumping monkey hill’, a própria memória é a matéria prima de Ujunwa, que
utiliza as lembranças pessoais, em uma relação metalinguística, para dar corpo ao conto que
produz. Nesse caso, as divisões marcam as passagens entre os acontecimentos no tempo
presente, aquilo que acontece no decorrer da semana da oficina de escrita literária:
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Desse modo, se apresenta uma elipse temporal a cada seção, o que permite à
escritora agregar um montante de características e fatos sobre Nwamgba e sua família em
poucas páginas, sem que haja lacunas imensas na história, dando a impressão de que,
terminada a leitura do conto, se conhece a fundo a vida de cada personagem. A cisão do
tempo narrativo justifica a passagem do tempo cronológico. Com isso, além de desenvolver
uma função circunstancial na dicção ficcional, a divisão justifica a organização da narrativa
que conta com um grande número de personagens e uma teia de relatos em narrativas
secundárias semelhantes às que se encontram no gênero romanesco.
Com um tipo de prosa breve, quem conta encolhe o dizer como quem nomeia em
micronarrativa a estruturação da menor história do mundo. No ciclo da memória individual
75 Esta personagem no conto é também nomeada Afamefuna. Mas, a título de não confundir o leitor, ao longo
a análise, foi feito o uso do nome Grace, salvo os fragmentos da obra que indicam o segundo nome, aquele
de origem Igbo dado a ela por sua Avó.
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das personagens centrais, as possibilidades oferecidas pela quebra, pausa ou corte temporal
proporcionam no texto de Adichie o resgate da densidade necessária à temática. Nesse
sentido, um bom exemplo é o conto ‘Imitação’, citado nas páginas iniciais deste trabalho,
cujos limites nas subdivisões da prosa poética são orquestrados pelas averiguações acerca do
passado de Nkem. Para a inserção de detalhes relevantes na trama, a construção da
personagem no tempo presente vem quase sempre inacabada. Como uma fenda no meio do
conto, a trama vem sempre sincopada. Percebe-se em Adichie uma recorrência na arte de
contar que se apropria dos vestígios memorialistas bem como do uso pertinente da quebra
espacial e temporal na estrutura formal da prosa.
Na primeira seção, têm-se a descrição de Nkem em sua casa nos Estados Unidos:
espera da narração em primeira pessoa, posto que a centralidade reside, entendemos, nos
sentimentos e ações das protagonistas diante das demandas externas. Como se pode ver em
‘A historiadora obstinada’, no tocante à imposição imperialista e religiosa ocidental na vida
de Nwamgba e Grace. Esse tema presente no cotidiano dos sujeitos africanos é discutido por
meio da reação de Nwamgba sobre a conservação dos preceitos culturais:
Ficou deitada na cama a respirar com dificuldade, enquanto Anikwenwa lhe
suplicava que se deixasse batizar e que recebesse a extrema-unção para ele poder
fazer-lhe um funeral cristão, porque ele não poderia participar numa cerimónia
pagã. Nwamgba disse-lhe que se ele se atrevesse a trazer alguém para esfregar um
óleo imundo nela, ela esbofetearia essa pessoa com as suas últimas forças
(ADICHIE, 2012, p. 221).
Ou mesmo, por intermédio da surpresa de Grace ao descobrir que ela e sua família
eram consideradas ‘selvagens’ aos olhos da administração inglesa:
Grace pousou a pasta da escola, dentro da qual estava o seu livro de estudo com
um capítulo intitulado ‘A Pacificação das Tribos Primitivas do Sul da Nigéria’ [...].
Foi Grace quem leu sobre estes selvagens, intrigada pelos seus costumes curiosos
e sem sentido, não os relacionando consigo própria [...] (ADICHIE, 2012, p. 221).
O que se obtém através dos relatos feminino é uma fabulação que salta da vida e se
transforma em algo inédito nas páginas do conto. As impressões acerca das mulheres e das
coisas traduzem as vicissitudes de se perceber o ser feminino como sujeito do espaço que
habita. Nesses contos, muito mais do que contar, a voz ‘contadeira’ em terceira pessoa
transporta aquele que lê para a história privada das personagens aqui apresentadas. O ser
silenciado começa a ter voz. A mulher passa a nomear o que sente.
Na coletânea de contos, como um todo, resguarda-se o caráter psicológico em
conflito e tensão permanente. O íntimo feminino está à beira de um patriarcado que se
apresenta como abismal. E, como é próprio do espaço experimental proporcionado pelo
gênero conto, Adichie utiliza a linguagem expressa na escritura para denunciar e acrescentar
um novo olhar sobre o modo de vida que extrapola as linhas existentes entre o leitor e o
texto literário.
Em ‘A coisa à volta do teu pescoço’, o conto que dá nome a coletânea descreve as
vivências de Akunna num país estrangeiro. Perto das mãos de quem conta, as memórias da
juventude na Nigéria são apresentadas por uma narradora em segunda pessoa.
Por vezes, ficavas sentada no colchão aos altos da tua cama de solteiro e pensavas
na tua terra – nas tuas tias que vendiam peixe seco e bananas-da-terra [...]; nos
teus tios, que bebiam gin de produção local e atafulhavam a família e a vida num
único quarto; nos teus amigos, que tinham vindo despedir-se de ti antes de
partires [...]; nos teus pais, que muitas vezes iam de mãos dadas para a igreja ao
domingo de manhã, com os vizinhos do quarto ao lado a rirem e troçarem deles
[...] (ADICHIE, 2012, p. 125-126).
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carregada de violência por todos os lados? O que se reconstrói no ato da leitura, quando se
tem nas mãos um livro de Adichie? O que sugere ser efeito significativo na tentativa de
externar a intimidade feminina da personagem, acometida de modo visceral pelas
complexidades do trânsito territorial e cultural, ainda tão pouco discutido sob o ponto de
vista da mulher? Quantas perguntas? Quantas respostas a produção literária pode oferecer ao
mundo, cara (o) leitora(o)?
REFERÊNCIAS
ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. Tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi, A coisa à volta do teu pescoço. Tradução: Ana Saldanha.
Alfragide: Dom Quixote, 2012.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. The thing around your neck. London: Fourth Estate,
2009.
PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Tradução: José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
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76Graduanda de Letras - Língua Portuguesa na Universidade federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Email: [email protected]
77 Professora Permanente do Mestrado Profissional em Artes UFRN/ UDESC. Professora do Departamento
de Letras - Universidade Federal do Rio Grande do Norte e orientadora do presente artigo
Email: [email protected]
78 Disponível em: <https://youtu.be/aYfnwXeHoVk>. Acesso em: 13 Jan. 2020
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explana sobre essas questões ao afirmar que “[…] na relação entre o homem e a natureza, o
indivíduo não é um sujeito abstrato, separado, independente das condições ecológicas da sua
existência. O indivíduo não está separado das condições genealógicas e de seus pressupostos
míticos, místicos, mágicos ou religiosos da terra." Contudo, observa-se nessa esteira
ficcional, que o homem e a natureza se integram ao universo, bem como a natureza consiste
em uma dimensão fundamental da espiritualidade.
Diante disso, a espiritualidade africana tradicional fundamenta-se na comunhão do
homem com a sua ancestralidade, com as entidades e com os elementos da natureza
(entendendo que cada ser constitutivo do universo apresenta uma potência energética). "A
curandeira, ajoelhada, farejava o meu corpo de ponta a ponta, varrendo suavemente os maus
espíritos com a penugem macia do rabo da hiena" (CHIZIANE, 2003, p.29).
Sarnau põe-se diante de um ritual de cura, após o rompimento do relacionamento
com Mwando. Nesse ritual, a natureza é representada pela ‘penugem macia do rabo da
hiena’, a qual exerce uma força espiritual sobre o corpo da moça, demandando, portanto,
uma potência enérgica, conforme explanado anteriormente.
Mais adiante Sarnau torna-se rainha e vive um relacionamento conflituoso e
polígamo, de forma que só na gravidez encontrou a solução para torná-lo temporariamente
mais harmônico. Ela narra seus sentimentos, mais uma vez, a partir de elementos presentes
na natureza, como o ‘sol’ e o ‘girassol’: “A felicidade, como a flor, abre-se deleitosa para
agradar o sol.” No zênite escalda, morrendo na ‘semiclaridade’ vesperal. Como o girassol, a
felicidade dura apenas um sol” (CHIZIANE, 2003, p.58). O ‘sol’ simboliza um ser
imponente e a ‘flor’ representa a imagem de Sarnau que busca a felicidade, mesmo que
momentânea.
Não obstante os exemplos que expõem a espiritualidade em relação performática ao
corpo de Sarnau, a narração da cerimônia de enterro demonstra, mais uma vez, a relação
entre corpo, natureza espiritualidade, isto porque, na medida em que o corpo é enterrado na
cova, a chuva surge com quedas maiores de água: “Quando o corpo poisou no fundo, a
chuva começou a cair miudinha. Quando se lançou a última pá de areia a chuva caiu em
catadupas” (CHIZIANE, 2003, p.76). Acrescenta-se que, de acordo com a crença africana,
quando um chefe de aldeia ou rei morre, a chuva, durante o seu enterro, é sinônimo de
prosperidade para a região.
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espiritualidade e a natureza. Para sistematizar esse ponto de vista, é essencial tomar como
princípio da discussão o conceito de ‘corpo e performance’ adotados neste estudo.
Elemento substancial para a contação de histórias, o corpo em ‘Balada de Amor ao
Vento’ é trajado da cultura africana. Consoante Padilha (2005), a presença do corpo se faz
cada vez mais presente nos romances contemporâneos africanos. Acerca dessas questões, a
pesquisadora pondera: "São romances nos quais as viagens, os deslocamentos, o entre cruzar
de várias fronteiras, as migrações, enfim, acabam por constituir o traçado imaginário
principal, ao mesmo tempo em que os mitos, ritos, crenças, costumes etc. sustentam, ainda
mais, o corpo diegético" (PADILHA, 2005, p. 34).
Ademais, consideramos também o olhar de Gonçalves (2017, p. 66) que aponta para
o corpo como "o lugar onde a transcendência do sujeito articula-se com o mundo." Nesse
sentido, em diálogo com as concepções da espiritualidade africana tradicional, entendemos o
corpo como um espaço que tem a capacidade de transcender a sua matéria e relaciona-se
com todas as outras múltiplas dimensões constitutivas do universo, como a natureza e o
plano espiritual. O corpo é, portanto, uma das partes do universo e tem a capacidade de
interagir em comunhão com as demais partes.
A ‘performance’ é o outro conceito norteador da análise. No entanto, dada a escassez
de estudos que contemplem o performático africano, analisamos as percepções de Zumthor
em ‘Performance, Percepção e Leitura’ (2002) e de Juliana Leal em ‘Literatura e
Performance’ (2012), a fim de adaptá-las ao universo deste trabalho e ampliar o campo de
referência.
Segundo Zumthor (2002), a experiência de leitura exige a presença de um corpo vivo
que ativa percepções sensoriais diante de um texto pulsante. Assim, o ato performático
ocorre através da narração da voz que pulsa junto com o corpo. Em outras palavras, o corpo
do leitor está em movimento com o corpo do texto:
O texto vibra; o leitor o estabiliza, integrando-o àquilo que é ele próprio. Então é
ele que vibra, de corpo e alma. Não há algo que a linguagem tenha criado nem
estrutura nem sistema completamente fechados; e as lacunas e os brancos que aí
necessariamente subsistem constituem um espaço de liberdade: ilusório pelo fato
de que só pode ser ocupado por um instante, por mim, por ti, leitores nômades
por vocação. Também assim, a ilusão é própria da arte. A fixação, o
preenchimento, o gozo da liberdade se produz na nudez de um face a face. Em
presença desse texto, no qual o sujeito está ali, mesmo quando indiscernível: nele
ressoa uma palavra pronunciada, imprecisa, obscurecida talvez pela dúvida que
carrega em si, nós, perturbados procuramos lhe encontrar um sentido.
(ZUMTHOR, 2002, 63)
Leal (2012, p.13), por sua vez, embebeda-se com outras áreas do conhecimento para
alcançar o entendimento sobre a escrita performática. A pesquisadora define, então, que o
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Esse ato performático, por sua vez, desvela a dimensão da espiritualidade. Percebe-
se, então, que a ação performática citada extrapola os conceitos teóricos antepostos, que
delimitam a ‘performance’ ao envolvimento e à participação do leitor com o texto. Nessa
lógica analítica, quando os sentimentos e estados corpóreos de Sarnau se manifestarem nos
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elementos da natureza, como evidenciados nas citações da sessão anterior, não há apenas um
movimento performático, mas a revelação de uma das faces da espiritualidade africana.
Segundo Kalonga apud Kaly (2012), a espiritualidade africana não se encerra na esfera
humana. ela pode, portanto, manifestar-se em outras dimensões, como a natureza, por
exemplo: “[...] a espiritualidade africana só tem sentido em relação com Deus e com o
cosmo. Dessa forma, também a dimensão zoocêntrica surge como elemento fundamental da
espiritualidade" (KALONGA apud KALY, 2012, p.12).
Infinitude
Caminhar no universo ficcional construído por Paulina Chizianne é se deparar com
um tecido plurissignificativo, tal qual uma capulana. Chizianne apresenta em todos os fios
narrativos elementos empossados de africanidade e rompe com a tradição literária
eurocêntrica. Através da oralidade, a escritora costura, em sua teia textual, questões políticas,
sociais, culturais, espirituais e transporta o leitor para o território de Moçambique, fugindo de
descrições paisagísticas ocidentais. Além de inserir o corpo e a voz de uma mulher no
protagonismo, como ato de resistência aos discursos falocêntricos, ela relembra a sua fala
durante entrevista exibida no programa ‘Café Filosófico’, 79
ressaltando a importância de
romper os hiatos impostos à voz feminina na literatura, para que não tenhamos uma história
única e marginalizante.
Vê-se, assim, que a presença de um corpo e suas performances gestuais são exigidas
na contação de histórias. No livro em análise, a oralidade não é posta, apenas, em elementos
textuais, ela não se ausenta do corpo, lançando ao leitor uma nova categoria: o leitor torna-
se, também, um ouvinte de Sarnau. Isso ocorre porque o texto pulsa e vibra em fusão com
as percepções do leitor-ouvinte. No entanto, esse não é o único movimento performático
presente na obra. Há performance na relação do corpo da protagonista com o meio o qual
ela integra. ‘Performance’ movida, essencialmente, por influencias místicas e espirituais.
Nesse caminho, andamos pelo território da espiritualidade, focando na relação do
homem africano com o mundo a sua volta, incluindo-se, aqui, o mundo visível e não visível,
consoante o discorrido de Hampâté-Bâ em ‘Tradição Viva’:
[...] de maneira geral, todas as tradições africanas postulam uma visão religiosa do
mundo. O universo visível é concebido e sentido como o sinal, a concretização ou
o envoltório de um universo invisível e vivo, constituído de forças em perpétuo
movimento. No interior dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é
solidário, e o comportamento do homem em relação a si mesmo e em relação ao
mundo que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) será
objeto de uma regulamentação ritual muito precisa cuja forma pode variar
segundo as etnias ou regiões (HAMPÂTÉ-BÂ, 2010, p. 173).
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REFERÊNCIAS
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Pensar no corpo, em qualquer circunstância, é levantar o olhar para aquilo que, sendo
parte elementar das nossas vivências, é uma construção repleta de signos sociais, culturais e
políticos. Isso é, o corpo e sua maneira de apresentar-se para o outro é uma cartografia
constituída de rotas, imagens, símbolos, significados que sempre influenciam o processo de
constituir o que somos. Logo, as diferentes construções que se dão no plano do aspecto
corpóreo recebem diferentes significações à medida em que se aproximam do feminino ou
do masculino, por exemplo.
Octavio Paz já havia constatado, em 1914, em passagem de ‘A dupla chama: amor e
erotismo’, que “o que chamamos corpo é hoje algo muito mais complexo do que era para
Platão e sua época” (PAZ, 2014, p.46, grifos do autor).
Levando em conta o patriarcado, uma máquina organizacional que submete as
mulheres ao domínio dos homens, podemos dizer que se objetifica o corpo feminino porque
se instituiu que ele, sendo parte do que é construído em torno da mulher, deve ser
subjulgado assim como dizem os roteiros desse sistema e sua faceta mais misógina. A partir
portanto, dessa premissa, o elemento do feminino é explorado em meio a concepções
violentas e tolhedoras, corroborando as amarras machistas que estruturam todo esse campo
material-simbólico e que designam o tamanho e a força da opressão que recai sobre o
indivíduo que se acomoda, em todas as possibilidades, no ser mulher.
O que Paula Tavares nos apresenta é uma nova estética de se pensar o corpo como o
nosso universo mais próximo, a geografia pela qual e através da qual nós pertencemos ao
mundo. 80 Como se passasse a mão pelos espelhos embaçados das negações a limpá-los, a
poetisa faz refletir a mulher – essa estrangeira – e afirma que o corpo da mulher é possível.
Assim como o verso e a paixão nele inscrita, assim como a vida exposta e discutida, o corpo
é possível. Desde sua estreia na literatura em 1985, com a publicação de ‘Ritos de passagem’,
obra na qual encontramos, como carro-chefe, 'Cerimónia de passagem’ – o primeiro poema
– enxergamos de antemão o corpo feminino, o erótico, a sexualidade, a paixão com a qual se
80 Referência à citação da poetisa estadunidense Adrienne Rich: “Começar, assim, não por um continente, por
um país ou por uma casa, mas pela geografia mais próxima – o corpo”.
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inscreve no mundo o eu lírico do poema: a mulher. Tais temáticas parecem discutir e, até
mesmo, sugerir caminhos para a desorganização dos modelos vigentes que a marginalizam,
apresentando uma consciência nova, uma maneira nova de perceber seu gênero enquanto
representação social de existência. No poema ‘Tecidos’, diz:
Meu corpo
é um tear vertical
onde deixaste cruzadas
as cores da tua vida: duas faixas um losango
marcas da peste.
Meu corpo
é uma floresta fechada
onde escolheste o caminho
Depois de te perderes
guardaste a chave e o provérbio
(TAVARES, 2011, p.124).
É atando as linhas, realizando manobras, crescendo os fios para engendrar o tecido
que a poetisa legitima o corpo como vivente, enquanto percorre o caminho por onde se
passa. Traçar uma linha entre esses dois elementos, corpo e tear, é construir a metáfora que
aborda o tecer que, nesse caso, refere-se à esfera subjetiva. Pelo tear, chega-se ao tecido, um
conjunto de linhas enroscadas que aprontam e fazem surgir o pano. Pelo corpo, chega-se à
vivência própria permeada pelas demandas pessoais de cada sujeito. Esse, pois, é o próprio
tear uma vez que tem em si e traz para si as experiências, as marcas, os desejos e
desencantos, as parcelas dos quereres.
A imagem do corpo como tear vertical nos remete a um processo de experimentação
de si que perpassa a nossa participação do mundo, pois tal trabalho diz de uma natureza
inventiva, criativa. A partir dessa leitura, o sujeito que tece a partir do corpo é alguém que
busca, primeiramente em si, a substância para reinventar-se, isso é, reconhecer-se como
produtor e sujeito primeiro de sua história. Audre Lorde, em Sister outsider: essays and speeches
(1984), 81 já havia refletido sobre essa dinâmica que está ligada ao autoconhecimento da
mulher a partir de seu corpo e das interações que esse tem com o coletivo, o social. O
erótico é, pois, aquilo que ela coloca como fonte inesgotável de conhecimento de si.
Há vários tipos de poder, usados ou não usados, reconhecido ou não. O erótico é
um recurso dentro de cada um de nós que repousa em um profundo plano
feminino e espiritual, firmemente enraizado no poder de nosso não expressado ou
não reconhecido sentimento. A fim de se perpetuar, cada opressão deve
corromper ou distorcer essas várias fontes de poder dentro da cultura do
oprimido que podem prover energia para mudar. Para as mulheres, isso tem
significado a supressão do erótico como uma fonte considerável de poder e de
informação nas suas vidas (LORDE, 2007, p.53, tradução livre).
81 Para as referenciações feitas nesse texto, utilizaremos a data de 2007, a versão lida para embasar esse texto.
As citações vale ressaltar, foram todas feitas a partir de tradução livre da obra lida e referenciada.
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82 Referência ao texto de Elisabeth Grosz, ‘O corpo reconfigurado’, em que discorre sobre o corpo, afirmando
que este é ainda um ponto cego no pensamento filosófico do ocidente.
83 Inocência Mata fala sobre essa questão no prefácio para a edição portuguesa de ‘Ritos de passagem’ (1985),
afirma que, até então, não havia lido produção africana que trabalhasse o corpo a partir dessa esfera mais
subjetiva.
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É o que a mente deve expulsar para manter sua ‘integridade’ ” (GROSZ, 2000, p.48, grifos
da autora).
O corpo é compreendido dentro da negatividade, “definido como desregrado,
disruptivo, necessitando de direção e julgamento,” como coloca Grosz (2000, p.48). Por
entender que os discursos sociais nos distanciam do entendimento e da experiência com o
mais íntimo de nós mesmos. Octavio Paz (1994, p. 46), retomando as preconizações de
Platão sobre essa questão, afirma que:
Brincando com mãos cegas, chega-se ao corpo. Esse poema é uma afronta, é ruptura.
Quebra o silêncio e o silenciar das mulheres, revisa a história no correr dos séculos, desata o
nó ainda apertado na garganta e deixa que a voz se erga, contrariando os ensinamentos de
que não há terreno para o corpo. É um discurso de engendramento de uma escrita e de uma
vivência feminina que, a partir de simbolismos diversos, diz, em primeira pessoa, que o
corpo existe, apesar de não lido. Ao falar das ofertas, sugere que esse corpo é passível de
sensações. É vale, é curva de rio, é óleo, é caminho que deve ser percorrido.
Deixar que as mãos aprendam o corpo é retirar as vendas tão essenciais às
conjunturas do patriarcado e que afastam as mulheres de si, o que, consequentemente,
também as afastam de seus sentidos. O corpo deve ser lido porque ele discursa e é, nesse
ponto, que reside a violência do sistema, por querer anular esse discurso, disfarçá-lo,
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violentá-lo. Ler um corpo de mulher é, sobretudo, ler as narrativas contadas pelo avesso e
entender a inversão da lógica homológica, a negação das negações. Esse corpo é, por si só,
uma denúncia.
A poetisa nos alerta: as mãos precisam estar cegas para que a leitura aconteça, sem
vícios, sem julgamentos precipitados/cristalizados, pois ela oferece vales. Chevalier e
Gheerbrant, no ‘Dicionário de símbolos’: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras,
cores, números, nos trazem algumas vias de análise para o vale, mas uma em especial
chamam a atenção, quando dizem que esse tipo de terreno “é e simboliza o lugar das
transformações fecundantes, onde a terra e a água do céu se unem para dar ricas colheitas”
(2015, p.929). Sugere-se, então, a novidade que vem com a ruptura, a reinvenção do
estabelecido.
O vale também nos revela uma vista para o próprio corpo feminino, “é uma
cavidade, um canal, para o qual necessariamente convergem as águas vindas das alturas que o
cercam” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p.929). Esse corpo nos oferece, também,
“curvas de rio / óleos” [...] (TAVARES, 2011, p.192). O rio, que simboliza a fertilidade, a
morte e a renovação, é aquele que não fica – passa – e, por isso, renova-se a todo instante.
Morre e renasce minuto a minuto, é volante.
O erótico surge através de elementos referentes à natureza, perpassado por esses
símbolos, pelo rio, pelo monte e pelo vale. Sobre esse ponto, em ‘Que corpo é esse? O
corpo no imaginário feminino’, Elódia Xavier (2007, p. 157), pensa o corpo erotizado como
aquele que “vive a sua sensualidade plenamente e que busca usufruir desse prazer, passando
ao leitor, através de um discurso pleno de sensações, a vivência de uma experiência erótica.”
Em tempo, a escrita tecida por Paula Tavares retoma tal experimentação, toca na
vivência dessa relação erótica em que o corpo feminino e seu gozo são colocados, em muitos
momentos, como fio condutor dessa imagem poética. A mulher se emancipa perante a sua
própria vivência, enquanto sujeito de seu corpo. Para Octavio Paz (1994, p.44), isso é parte
de um processo de entendimento, pois quando “avançamos, descobrimos novos aspectos do
amor, como alguém que, ao subir a colina, contempla a cada passo as mudanças do
panorama. Mas há uma parte escondida que não podemos ver com os olhos, e sim com o
entendimento.”
Em se tratando de escrita feminina, a experimentação do erótico vem calcar a
concepção de que as mulheres devem se ver e ser donas de seus corpos e de seus prazeres,
vivendo a si mesmas, em sua completude, o que se instaura a partir do contato com o
próprio corpo e do confronto com os pilares que erguem as premissas da dominação
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84 A primeira publicação do livro se deu em 1957, mas aqui fixo a data de 2014, ano da publicação da edição
traduzida por Fernando Scheibe, lançada pela Autêntica.
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levarão a si mesma, pois ‘‘o objeto erótico é também uma consciência; através dela o objeto
se transforma em sujeito” (PAZ, p.46 e 47).
A poesia de Paula Tavares aponta para o corpo feminino frente a uma sociedade de
mordaças e negações que, há tempos, recusam a concepção de um sujeito mulher. Para
Audre Lorde, as mulheres são:
[...] criadas para temer o sim dentro de nós mesmas, nossas mais profundas ânsias.
Mas, uma vez reconhecido, esses que não realçam o nosso futuro perdem seus
poderes e podem ser modificados. O medo de nossos desejos os mantém
suspeitos e indiscriminadamente poderosos [...]. O medo de não podemos ir além
de qualquer distorção que acharmos em nós mesmas nos mantém dóceis, leais e
obedientes, externamente definidas, e nos conduz para aceitarmos qualquer faceta
da opressão que sofremos enquanto mulheres (LORDE, 2007, p.57 e 58, tradução
livre).
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À mulher restou o lugar do pequeno, pois, nesses termos, o corpo não é entendido
como matéria importante dentro de uma concepção de papel formativo no que diz respeito à
produção de valores de qualquer esfera. Isso acontece porque a diversidade sexual não é
analisada como algo que, direta ou indiretamente, pode influenciar no conhecimento. A
mulher e seu corpo não são pensados.
As premissas que surgem da poética de Paula Tavares acerca do corpo e da mulher
são a contravenção de um pensamento que sobrevive desde Platão em que se notava o corpo
como traição da alma, da razão e da mente, discurso esse que é reproduzido a partir de
intuitos religiosos, políticos e culturais.
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cerceadas do mesmo. Apagaram-no e a sua sexualidade para, assim, apagar também a própria
mulher, guardá-la dentro de si, como mero objeto de obediência cega.
Segundo Elisabeth Grosz, precisamos encontrar um novo pensamento para lidar
com o corpo de maneira que ele transcenda e rasure os velhos ditames. Criar um movimento
para que novas concepções ganhem forma na busca de tentar entender o corpo fora das
fronteiras da biologia, do natural, pois ele vem de “uma série de discursos disparatados e não
simplesmente restrito aos modos de explicação naturalistas e científicos.” Para Grosz, (2000,
p.79-80), precisamos desenvolver análises que causem comoção na estrutura dos saberes
perpetuados para que as interações entre os dois sexos se reordenem.
É por essa razão que a poética de Paula Tavares desconstrói os discursos e mostra
um eu lírico feminino em encontro consigo mesmo: porque a mulher precisa se deslocar da
concepção passiva imposta a ela e estar no centro, debaixo de uma forte luz – a do
conhecimento. Remanejar esses lugares é também repensar as concepções que, durante os
séculos, foram cristalizadas.
A grande empreitada é conceber maneiras novas de se compreender a mulher e seu
corpo, colocando-a fora dos círculos que giram em torno das polarizações, pois são essas
relações que precisam ser revistas. A contestação das posições sociais do gênero precisa,
antes de tudo, partir do princípio de entender o que foi feito até então para que a mulher
esteja onde ela está agora. A especificidade histórica é fundamental nessa questão, pois nos
revela a construção de um modelo social homológico que não deixou de ser naturalizado.
A mulher necessita, pois, de espaços de atuação e representação para que, assim, se
pense em abranger os domínios voltados para esse pensamento. A poética de Paula Tavares,
em seu trabalho com o corpo e, consequentemente, com a sexualidade feminina, em muito
contribui para essa visibilidade, uma vez que, a partir de uma voz em primeira pessoa, desafia
a lógica fundamentada em discursos soberanos. Desvendando a mulher ela inicia novos
ciclos em que o feminino é apontado em suas diversas camadas, tira o véu do corpo e o
chama para o centro a afirmar: o corpo é possível.
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REFERÊNCIAS
LORDE, Audre. Uses of the erotic: the erotic as power. In: LORDE, Audre. Sister
outsider: essays and speeches. Estados Unidos: Ten Speed Press, 2007.
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Ed. Siciliano, 1994.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
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Agora eu não gaguejo mais, agora eu emudeço de vez ou falo direto em língua
estrangeira. Ou vou-me embora. Mas, não poder falar, ser gaga, é um verdadeiro
corte, é o sinal mesmo da ruptura, é o espanto maior de todos. Ser gaga, então, me
calava muito. Eu já fui uma verdadeira muda (FELINTO, 1992, p. 40).
Desde a dedicatória, nos deparamos diante de uma dúvida. Ao dizer “Se eu pudesse
dedicar essa história...” (FELINTO, 1992, p. 11). A autora nos faz refletir sobre quais
motivos poderiam impedi-la de dedicar a sua história a alguém. A partir daí, surgem os
questionamentos feitos por Rísia sobre valores, vozes, posturas, conquistas, autoestima e
origem. Essa dúvida – se lhe era permitido a possibilidade de dedicar algo a alguém – aparece
como se o fato de escrever já tivesse sido o bastante. Como ousaria dedicar? Como uma
menina que teve seus sentimentos subjugados pelo pai e afogados pela mãe seria capaz, ou
melhor, digna dessa alta postura de escritora? O desejo move-a e é mais forte do que
qualquer preconceito, silenciamento, opressão ou repressão que pudesse paralisá-la.
A força da personagem Rísia, antes silenciada por qualquer violência ou olhar
repressor do pai, move o seu desejo de fazer revolução. Nesse processo, a submissão da mãe
ao pai parece incompatível com a imagem das mulheres de Tijucopapo (onde a mãe teria
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nascido), terra da revolução e das rosas vermelhas. Rísia recorre à imaginação para construir
um caminho alternativo, como quando ‘tornava-se’ barco flutuante nas águas e fugindo
daquele suplício que é viver sem voz, unicamente por ser mulher.
Isso pode ser observado em determinadas cenas: no passeio de bicicleta com o
personagem Jonas, evocam-se imagens alternativas de liberdade, como: chuva, bicicleta,
campina, primeiro amor. No entanto, esse desejo de liberdade é reprimido pelo pai, que já a
aguardava, após o passeio, para surrá-la, surra da qual a mãe não a poderia salvar, pois estava
no hospital parindo outro filho que nasceria morto.
Essa figura do pai extremamente opressor, violento, algoz de seu relacionamento
com sua mãe, chega ao fim quando Rísia resolve ir a Tijucopapo, após Jonas ter terminado o
relacionamento com ela. As dúvidas reaparecem sobre quem realmente seria ela e qual a sua
genealogia. A estrutura repressiva começa a ruir quando, ao chegar próximo a seu destino, as
tão esperadas terras de Pernambuco, onde ela, enfim, descobriria quem é.
Rísia se depara com as mulheres de Tijucopapo, após os nove meses de viagem com
o despertar de sua identidade feminina, que estava adormecido devido, provavelmente, a
tantas situações de perda, ódio, mágoa e orgulho perante as figuras masculinas. A simbologia
desse renascimento dá-se quando ela se sente em meio às “mulheres de cabelos grossos
como cordas arrastando pela crina do cavalo” (FELINTO, 1992, p. 130), aquelas que não
são como sua mãe, mas são as mulheres do lugar geográfico de sua mãe.
Ao encontrar um cavaleiro chamado Lampião, com quem ela pôde ter uma conversa,
após noves meses caminhando pela BR, numa diáspora reversa e silenciosa, ou seja, é no
retorno às suas origens que ela (re)descobre a força do feminino herdada de suas
conterrâneas, mulheres de revolução iguais a ela.
Partindo dessas problematizações e de diversas leituras, percebemos quão farto
material tínhamos para pesquisar, estudar, investigar e, ousadamente, contribuir com a
premente tarefa de criar um corpo de pensamento sobre o sujeito de identidades plurais.
A discussão parte justamente dessa morte para renascer, do esfacelamento para
ressuscitar, da fragmentação para completar-se, do gozo para entender-se como voz que grita
aos ventos a revolução provocada pela necessidade de redescoberta da identidade do
feminino que a todo instante o patriarcado quer silenciar. Mesmo diante dessa opressão, o
desejo de liberdade que é despertado na narradora impulsiona-a à busca de suas raízes, de
acordo com o que nos explicita Castello Branco no livro ‘A mulher escrita’(2004, p. 145):
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linguagem que se quer além (ou aquém) do verbo, mas que se quer também
comunicação. Vê-se logo que, a partir de tal abordagem, somos irremediavelmente
lançados no território do insólito e do invulgar: aqui, exatamente aqui onde se dá a
singularidade, busca-se a generalização, a gramática de um discurso que se diz
feminino. E aí nesse território não há como ignorar o entrecruzamento das vozes
da psicanálise e da teoria literária – fala-se da morte, do esfacelamento, da
fragmentação, do gozo.
Essa voz que cansou de ser silenciada e passa a ser a voz da (re)descoberta do
autoconhecimento, isso é, o saber-se quem é, expressa-se na tentativa de compreender a
origem de sua mãe. Desse modo, percebe-se a necessidade de estabelecer um alívio para essa
ligação tensa e poderosa e compreender como os nove meses do percurso até Tijucopapo
parem uma mulher renovada e conhecedora de si, que se mostra com autonomia,
independência e renovação.
O desenvolvimento desta dissertação ambiciona demonstrar, como já nos referimos,
a narrativa de voz feminina de literatura brasileira, na valorização de gênero e, esperamos,
evidenciar o poder de escrita de uma mulher-escritora no cenário brasileiro. Esse interesse é
fortalecido pela existência de uma escrita feminina produzida em um Brasil preconceituoso,
patriarcal, omisso e incapaz de ouvir ou dar voz à comunidade feminina do nordeste do
Terceiro Mundo.
Além disso, é importante pensar como o direito à sua voz objetiva coloca a voz
masculina em segundo plano, tanto por sua força de superar o passado quanto pela
descoberta de si como sujeito, determinada sobre os objetivos e metas a serem alcançados.
O nosso objetivo geral projeta-se, com esta dissertação, investigando o romance ‘As
Mulheres de Tijucopapo’ (1992) sob o olhar analítico de (re)construção da identidade
feminina pela personagem-narradora Rísia, nos três espaços intersticiais que exercem
importante representação para o processo identitário e a percepção de rememoração na
narrativa: a casa, a escola e a rua.
Quanto aos objetivos específicos, com o intuito de expandir o objetivo geral
indicado, pretende-se investigar a busca por identidade cultural do sujeito deslocado; analisar
e fundamentar a relação mãe-filha de Rísia com sua genitora; explorar criticamente as vozes,
imagens, dizeres e ‘não-dizeres’ de Rísia; verificar os rastros do passado da mãe de Rísia na
reconstrução de seu eu na coletividade; examinar a relação entre as perdas e o desejo de
desvendar seu passado na afirmação de um futuro melhor; compreender as maneiras como o
texto literário da autora transporta a voz feminina para um espaço de silenciamento
sociocultural.
Quanto à metodologia, diante do que foi exposto até aqui, esta pesquisa se dispõe a
analisar a personagem Rísia, partindo da percepção inicial, após a leitura do romance ‘As
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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022
Mulheres de Tijucopapo’ (1992), do qual ela é a personagem principal que representa a voz
feminina silenciada nas diversas esferas sociais, culturais, políticas e geográficas brasileiras.
No intuito de escolher um caminho para nos guiar, resolvemos optar por investigar a
necessidade de Rísia por buscar um referencial feminino, como mulher que luta pela
reconstrução de sua identidade cultural e por compreender a influência que as atitudes
submissas e subservientes da mãe tiveram sobre a construção de sua pessoa como ser social.
Entendemos que para Marilene Felinto o contexto social de mulher, negra, pobre,
retirante nordestina em que Rísia está inserida, além das implicações do machismo repressivo
e opressor do pai e o abandono do homem que ela ama, provocam nela um querer procurar
suas origens na terra natal da mãe.
Por essa razão, pretendemos analisar e compreender como a reconstrução do
feminino da personagem, feita num período de nove meses, representação de um parto de si
mesma, no percurso de retorno de São Paulo a Tijucopapo pode nos mostrar o quão
necessário foi para o empoderamento da personagem que procura por sua referência
feminina no passado, pois que não existe a menor identificação dela com a mãe.
A problematização da questão da identidade dilacerada pela mudança geográfica de
Recife para São Paulo onde o feminino perde seu direito de voz e provoca questionamentos
sobre as atitudes da mãe, podemos dizer, é também um viés para o entendimento da
necessidade de reconstrução identitária da personagem.
O despertar em Rísia de uma necessidade para reconstrução de sua identidade, nos
põe em frente às circunstâncias que nos permitem investigar os símbolos de uma cultura
omissa e opressora que silencia a voz feminina, fonte de expressão para a dignificação da
mulher como sujeito pertencente ao meio social.
Diante desse eterno fazer-se literário, afirmamos que nossa pesquisa partirá sempre
da literatura para analisar as temáticas aqui levantadas. Inicialmente, faremos a releitura do
livro ‘As Mulheres de Tijucopapo’, bem como dos demais textos ficcionais de Marilene
Felinto, como também textos teóricos que abordem a questão da voz feminina no cenário
literário.
Após tais procedimentos, iniciamos esta escrita, porém a revisão bibliográfica do
material teórico, crítico e literário a respeito de nosso objeto de estudo sempre se manteve
revisado quando necessário. Adotamos uma abordagem qualitativa e comparativa e
propomos uma análise interpretativa com base nos autores e referências dos Estudos
Culturais e da Crítica Feminista, ou ainda nas obras literárias que contribuíram com a
discussão.
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gênero. Desses escritos, mesclaremos o texto poético e o texto teórico para que a
visualização seja a mais clara possível.
Ana Lila Lejarraga em ‘Paixão e ternura: um estudo sobre a noção do amor na obra
freudiana’ (2002) e Malvine Zalcberg com o livro ‘A relação mãe e filha’ (2003),
esclareceremos a formação do amor entre mãe e filha e como, aos olhos psicanalíticos de
Freud, faz-se e desfaz-se esse laço maternal e eterno.
Guacira Lopes Louro em ‘Gênero, sexualidade e educação’ (1997) nos respaldou na
teoria sobre os espaços escolares e suas influências no crescimento social dos indivíduos. ‘Sol
negro’ (1989) de Julia Kristeva, ‘A dominação masculina’ (2012) de Pierre Bourdieu e ‘As
mulheres ou os silêncios da história’ (2005) de Michele Perrot nos fundamentaram no
quesito submissão, repressão, opressão e silenciamento feminino e sua pendência à
perpetuação dos estereótipos de exclusão.
Ainda nessa perspectiva, tivemos como fonte de pesquisas algumas dissertações e
teses, todas com o intuito de pesquisar a identidade feminina no contexto da literatura feita
por uma escritora mulher e negra. Nossa pioneira foi Vieira (2001), que concentrou sua
pesquisa na construção de identidade cultural da personagem Rísia, os questionamentos do
discurso hegemônico e as contradições da cultura multirracial na sociedade brasileira e a
classe pobre e nordestina excluída.
Em 2007, Silva nos fala sobre a representação do feminino por três vieses
identitários: gênero, etnicorracial e de classe problematizada pelo olhar feminista na
construção da identidade do feminino. Nascif (2008), parte do pressuposto de equivalência
entre a condição subalterna da mulher e do continente latinoamericano. Vemos a observação
das representações construídas acerca das relações do gênero feminino na literatura e a
problematização das personagens femininas na contemporaneidade que, mesmo após o
movimento feminista e a revolução sexual, ainda revela a continuação de uma extrema
dependência psíquica e afetiva em relação ao masculino, descrita na dissertação de Maia
(2010).
Rebelo (2010) nos auxilia a questionar o cânone literário, ao expor a pluralidade de
perspectivas na literatura contemporânea, o reconhecimento da literatura feminina negra
para além das ideias de permissão ou concessão na construção da identidade feminina, como
sujeito de participação ativa da sociedade brasileira na desconstrução dos estereótipos. Em
2011, Grigoleto analisa a tradução do livro ‘As Mulheres de Tijucopapo’ para o inglês, feita
pela tradutora Irene Matthews.
Silva (2012) pesquisa as alteridades polifônicas (das idades infantil, adulta e mítica) no
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emaranhado discursivo de Marilene Felinto, a partir do ‘não lugar do passado’ que ganha
força no presente durativo dentro do relato memorialístico. Curiosamente, apenas mulheres
pesquisadoras se comprometeram com a seara da investigação da escrita feminina do espaço
intersticial de Marilene Felinto.
Reconhecemos também a necessidade de fazermos a ponte entre a autora do livro
literário desta pesquisa e outras autoras que possuam a mesma postura de discurso de
libertação da voz feminina através da liberdade autônoma do direito de falar, como vemos
em ‘Sejamos todos feministas’ (CHIMAMANDA, 2014) e o ‘Entre-olhares de Macabéa’
(LISPECTOR, 1998), ambas de maneira pincelada, posto que nosso estudo centra-se no
livro ‘As mulheres de Tijucopapo’ de Marilene Felinto.
O que nos interessa nesta pesquisa é investigar a exaltação da voz feminina, do lugar
do feminino na sociedade, não como força de trabalho, ou como mãe-genitora-
amamentadora, mas como força intelectual da sociedade em que (sob)(re)vive. Propomo-
nos, então, fazer o caminho inverso do patriarcado, ou seja, vamos – através do estudo
crítico, literário, teórico e poético – provocar a abertura de caminhos para as vozes
silenciadas das minorias e o combate à exclusão de gêneros pertencentes a essas classes
minoritárias.
Por sabermos que nenhuma pesquisa é feita sem fundamentos teóricos e/ou críticos,
procuramos atualizar-nos com relação aos referenciais bibliográficos e à leitura da obra
estudada. Usamos diversos livros, artigos, dissertações de mestrado, teses de doutorado para
fundamentar conceitos e explicações e em leitura complementar de autores que acreditamos
ter feito uma diferença significativa no que concerne à compreensão da literatura escrita na
segunda metade do século XX, como Clarice Lispector (1998), Chimamanda Adichie (2011,
2015), Toni Morrison (2003).
O filme ‘O céu de Suely’ (2006), pela abordagem fronteiriça identitária feminina e as
músicas ‘Sampa’ (1978) e ‘ABC do Sertão’ (1988), por trazerem na sua melodia poética traços
identificados no livro estudado. Essas representações culturais brasileiras-nordestinas foram
usadas somente como fonte de inspiração e, por conta disso, não houve aprofundamento
comparativo em relação a elas e o livro.
O cenário contemporâneo da década de 1980 nos oferece narrativas escritas por
mulheres, que geraram uma renovada re(a)presentação da voz feminina na sociedade da
época, provocando na escrita e, por conseguinte nas leituras, uma nova avaliação da
literatura, notadamente nas abordagens socioculturais e geopolíticas.
Nessa contextura, temos mulheres-escritoras que tornam a sua escrita o grito que
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fora silenciado e nela expõem seus ideais de ser ativo em uma sociedade que a exclui, nega,
reprime e oprime, sem entender que “[...] uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo
seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção [...]” como diria Virginia Woolf (2014, p.
12). As identidades e identificações das mulheres não eram vistas ou percebidas na literatura,
porque mulheres não podiam escrever, só podiam ser escritas e, comumente, por escritores.
REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco roxo. Tradução por Julia Romeu. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos
feministas [livro eletrônico]. Trad. Cristina Braum. Rio de Janeiro: Companhia das Letras,
2014. Disponível em: < http://feminismoaesquerda.com.br/wp-content/uploads/
2015/03/247288220-Adichie-Sejamos-Todos-Feministas.pdf>. Acesso em: 29 nov 2015.
AINOUZ, Karim (Direção). O céu de Suely. Brasil, 2006. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=XOV1fFLvpwE.>; Acesso em 25 fev.2017.
ALMEIDA, Lélia. A solidão das mães-meninas-sem-mãe. Uma leitura de As Mulheres de
Tijucopapo de Marilene Felinto. Espéculo Revista de estudios literarios. Universidad
Complutense de Madrid. 2006. Disponível em <http://www.ucm.es/info/especulo/
numero33/.html.>. Acesso em 30 out 2015.
ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. Narrativas cosmopolitanas: a escritora
contemporânea na aldeia global. Disponível em: <www.gelbc.com.br/pdf_
revista/3201.pdf>. Acesso em: 30 out 2015.
CASTELLO BRANCO, Lucia; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de
Janeiro: Lamparina, 2004.
FELINTO, Marilene. As Mulheres de Tijucopapo. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
FELINTO, Marilene. Jornalisticamente incorreto. Rio de Janeiro: Record, 2000.
FELINTO, Marilene. Obsceno abandono. Rio de Janeiro: Record, 2002. Col. Amores
Extremos.
FELINTO, Marilene. O lago encantado do Grongonzo. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
FELINTO, Marilene. Postcard. São Paulo: Iluminuras, 1991.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.
LEJARRAGA, Ana Lila. Paixão e ternura: um estudo sobre a noção do amor na obra
freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará; FAPERJ, 2002.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
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1 Introdução
A imagem da pessoa negra tem perpassado um caminho diacrônico bastante
espinhoso, tendo em vista que, mesmo estando inserido naquele discurso segundo o qual a
escravidão é algo do passado, cujas marcas históricas foram vivenciadas outrora e que os
afrodescendentes já conseguiram seu espaço na sociedade, ainda há muita luta pela frente,
sobretudo, ao se pensar na questão do preconceito que engloba não só a cor, mas a religião,
a cultura e tantos outros aspectos que caracterizam esse povo.
Desse modo, para que o povo negro fosse valorizado e suas raízes e culturas
apresentadas no ambiente escolar, foi necessária a implementação de leis inclusivas, a
exemplo da Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003), que foi propulsora de valiosas ações no que
concernem à história do povo negro e suas contribuições para a cultura. Além disso, essa Lei
refere que as metodologias precisaram ser repensadas e, para isso, o material didático
utilizado passou por adaptações que promoveram um ensino inclusivo e de valorização de
um povo que, há séculos, carrega o peso da injúria racial na História do Brasil. Mesmo em
meio a essas ações, ainda se nota, nos dias atuais, a insuficiência dessa implementação que
propõe o combate ao racismo.
Para justificar esse dizer, lança-se mão à pesquisa de Gomes (2012, p. 11) que propõe
responder a algumas indagações:
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emocionarem.
Optar pela performance, nesse momento, indica um contato mais preciso com a arte,
de modo que, por meio dela, as experiências da leitura, da declamação e da dramaturgia
evoquem vivências pessoais e proporcionem a reflexão sobre a própria identidade, pois,
como diz Larrosa (2002) “a experiência é o que nos passa, nos toca, nos acontece.” Nesse
sentido, a proposta de uma performance como promotora da cultura antirracista traz um
sentido profundo para a construção pessoal dos discentes que, em alguns momentos, se
sente distante da inserção sociocultural e que, por intermédio da Literatura, poderá sair da
condição de sujeito oculto para se tornarem autores e protagonistas de suas experiências
artísticas.
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89 Dentro das áreas afins, citamos as que fazem parte das linguagens, conforme determinação da BNCC,
quando afirma que a abordagem das linguagens deve articular seis dimensões do conhecimento que, de forma
indissociável e simultânea, caracterizam a singularidade da experiência artística. Tais dimensões perpassam os
conhecimentos das Artes visuais, da Dança, da Música e do Teatro e as aprendizagens dos alunos em cada
contexto social e cultural (BRASIL, 2018, p. 192).
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2013, p. 23).
É importante frisar, ainda, que esse processo de inclusão multidisciplinar não pode
promover a desvalorização da disciplina, como se não tivéssemos um conteúdo ou um
percurso didático a seguir, mas tendo-o como subsídio para que o discente, principal
elemento do processo educativo, não seja privado de conhecimentos por causa de fatores
externos, tais como, carga horária da disciplina, limitação de recursos didáticos e
tecnológicos que poderiam ser usados no espaço escolar, além de tantos outros obstáculos
que são encontrados no ensino das artes. Isso, a nosso ver, fica ainda mais concreto quando
pensado através de um evento literário como uma performance artística e literária, como será
visto, a seguir.
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malandragens. É, portanto, a partir dessa imagem que a escola deve se curvar, reconstruindo-
a a fim de que as crianças não se cruzem com representações tão estereotipadas que causarão
vergonha, falta de aceitação e, até mesmo, medo do reconhecimento.
Mesmo com o uso de literaturas e leituras obrigatórias da poesia afro nos vestibulares
há algum tempo, é certo que, com a imposição de uso da Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) é
que a escola começou a priorizar com mais ênfase literaturas afrobrasileiras, seja através de
poemas, músicas ou obras infantis em seus currículos e planos de aula, principalmente, nas
disciplinas de linguagens e que, desse modo, a literatura e a arte constituirão a ponte para que
essa prática pedagógica ultrapasse as salas de aula, visto que, na maioria das vezes, as ações
racistas se originam no seio familiar, daí porque um evento como a performance literária
pode levar à reflexão, não apenas o alunado, mas, especialmente, a comunidade escolar, de
modo geral.
Nesse sentido, adere-se ao pensamento de Gomes (2012), que concebe a escola
como agente de luta contra os efeitos nocivos do preconceito racial. Para essa pesquisadora:
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explanação servirão de base para essas quebras de estereótipos e possível valorização, tudo
envolto nas possibilidades que a performance pode oferecer. A esse respeito, compactuam-se
as ideias de Vygotsky (1997), quando afirma que o sujeito aprende de forma mais
significativa por meio de interações e construções cooperativas com seus semelhantes.
É importante que poetas, poetisas e autores de obras literárias, em geral, sejam
selecionados para que possam fundamentar as reflexões sobre a vida do negro e o
preconceito por ele vivenciado historicamente. Para isso, pode-se lançar mão de poetas que
influenciaram a promoção da literatura afrobrasileira, como o ‘cânone’ Castro Alves.
Entretanto, fixar essa explanação apenas em poetas e obras que tenham um lugar de fala
mais concretizado não é o melhor caminho a seguir, levando-se em consideração, sobretudo,
que a literatura regionalizada pode estar mais presente na vida dos educandos com critérios
próximos à realidade dos mesmos.
Para tal, é importante que essa inserção não tenha o propósito de tomar o lugar da
literatura canonizada, mas que, diferente disso, estenda as possibilidades culturais que esse
acesso pode promover. A esse respeito, citam-se os apontamentos de Osakabe (2005),
quando afirma que o que se pretendia, na eliminação dessa literatura cânone dos currículos
escolares, não seria a substituição de um padrão por outro, mas uma ampliação do universo
cultural que deveria, necessariamente, contemplar as produções mais significativas da história
próxima.
Essa ideia de história próxima pode ser exemplificada através da poetisa Midria da
Silva Pereira que, através dos saraus, deu voz a sua ancestralidade e, com uma linguagem
simples e própria da poesia falada, por meio da performance, trouxe uma temática por vezes
tão robusta para o encontro da realidade vivida por tantas outras meninas pretas que hão de
se encontrar no poema ‘Eu sou a menina que nasceu sem cor’, conforme se pode ler a seguir:
Eu tenho um problema
meu ascendente é em áries
E eu tenho outro problema
É que eu sou a menina que nasceu sem cor.
Para alguns eu sou preta
Para outros eu sou preta
Para muitos e muitos eu sou parda
Ainda que eu sempre tenha ouvido
Dizerem por aí que
Parda é cor de papel
E a minha consciência racial quando me chamem de parda
Fique tão bamba
Quanto à autodeclaração
De artista pop como a Anitta quando
Pratica apropriação cultural
[...]
(Trecho do poema ‘Eu sou a menina que nasceu sem cor’ da poetisa Midria da
Silva Pereira, 2019).
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A leitura desse trecho é um convite a apreciar uma poesia que trata de um assunto
tão complexo e necessário, que continua atingindo milhares de meninas pretas. O trato que a
poetisa dá ao tema vem permeado de uma ironia notada logo no primeiro verso do poema,
quando ela afirma que sua cor de pele é ainda vista como um ‘problema’ que impede a
inserção social de tantas pessoas. Não obstante, essa ironia é ainda mais observada na
declamação do poema, disponibilizada na plataforma digital youtube 90
quando, para além da
dor, a poetisa interioriza todo aquele silêncio que ela e tantas meninas pretas precisaram
manter.
Sendo assim, ter a performance poética como subsídio é objetivar o movimento do
corpo, não aquele usado pela dança, mas lançando mão de um movimento de gestos, vozes e
comunicações a fim de que o dizer poético seja valorizado e apreciado por quem ouve aquela
mensagem em dado momento, como algo que vai além do ensaio, mas que tem
personalidade e vida própria, de acordo com o tempo, o público e o momento, conforme as
ideias de Zumthor (1993, p.219).
O jogo que a poetisa faz entre aquilo que ela escreveu e aquilo que ela pretende
repassar está intimamente ligado ao propósito do Slam - batalha de poesia falada - da qual a
artista participa no momento da gravação da apresentação. Esse gênero pode ser relacionado
à performance quando, mesmo não necessitando de poesias autorais, mas os apresentadores
precisam fazer com que a poesia não seja meramente lida, mas declamada por parte de quem
apresenta e vivenciada por parte de quem a escuta.
Além da performance utilizada pela poetiza citada, a relação que ela traz com nomes
e símbolos que fazem parte do cotidiano dos alunos pode ser um fator atrativo para que essa
literatura seja lida e apreciada. Através desse exemplo pode-se citar Anitta, artista pop que é
conhecida pelo alunado e que, provavelmente, despertará o ouvinte na observação dessa
poesia falada. Muitos outros poetas e poetisas, embora ainda anônimos, podem contribuir
com a elaboração da performance proposta, a exemplo de Solano Trindade; 91
Oliveira
90 https://www.youtube.com/watch?v=o6zEZP7pudQ
91 Francisco Solano Trindade nasceu em Recife, no bairro de São José, filho do sapateiro Manuel Abílio,
mestiço de negro com branca, e da quituteira Dona Emerenciana, descendente de negros e indígenas. Solano
foi o grande criador da poesia “assumidamente negra”, segundo muitos críticos. Faleceu em 20 de fevereiro
de 1974. (Disponível em: http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/hist%C3%B3ria-e-mem%C3%B3ria/
historia-e-memoria/2014/12/30/solano-trindade).
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Silveira, 92
Victoria Santa Cruz 93
e Midria Silva, 94
que abordam o tema antirracista em seus
escritos.
No tocante à música, abre-se um leque de opções, metodologias e formas variadas de
trabalho, levando-se em consideração que, além de uma composição formulada a partir de
um roteiro histórico, as formas de recepção e convivência com esse gênero é algo cotidiano e
próximo de qualquer classe, independente de sua condição intelectual, social e faixa etária.
Nesse sentido, pode-se lançar mão de algumas composições bastante conhecidas, a saber:
‘Protesto do Olodum’, ‘Ilê Pérola Negra’ e ‘Brilho de Negro’ além do ‘Canto das Três Raças’,
que é uma canção que pode ser considerada hino na representação dessa diversidade
pretendida por nós na execução dessa performance.
Desse modo, não é preciso que o sujeito esteja inserido no âmbito escolar para que
possa ter acesso à música e às mensagens sugeridas pela mesma, conforme citam Ongaro,
Silva e Ricci (2006, p.2) [...] “a música está presente na vida de todos os seres humanos e
também na escola, para dar vida ao ambiente escolar, além de despertar nos alunos o senso
crítico para o que ouvem e como isso se reflete em sua vida.”
Assim, convém ressaltar que a escola deve ser esse espaço de transmissão de
mensagens socialmente edificadas, ocupando-se com promover a imaginação dos jovens que
ouvem as músicas para que elas sejam mais bem compreendidas. Assim, pode-se inferir que
a performance, sobretudo como questionada neste trabalho, é um misto de inclusão e de
pertencimento, uma vez que trará para o debate a cor de nossos alunos, dos seus familiares e
da sua cultura que, muitas vezes, é apagada no ambiente escolar.
Acredita-se que através dessa intervenção as barreiras possam ser ultrapassadas e que
o negro artista ou o branco que valoriza essa história, além de apresentar-se como
protagonista imprima valores, emoções e desejos através da poesia na performance, já que,
numa sociedade racista como esta em que se vive atualmente, não bastando, apenas, não ser
racista, mas, sobretudo, sendo antirracista.
92 Nascido em 1941 na área rural de Rosário do Sul, Estado do Rio Grande do Sul, Oliveira Silveira, poeta
negro brasileiro, junto ao grupo dos Palmares, idealizou o 20 de novembro, data que resgata a resistência do
povo negro. Faleceu em 01 de janeiro de 2009. (Disponível em: https://www.ufrgs.br/oliveirasilveira/).
93 Victoria Eugenia Santa Cruz Gamarra foi uma poeta, coreógrafa, folclorista, estilista e ativista afro-peruana.
Junto com seu irmão, Nicomedes Santa Cruz, ela é considerada significativa em um renascimento da cultura
afro-peruana nos anos 1960 e 1970. Morreu aos 91 anos devido à idade avançada e limitação na saúde.
(Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Victoria_Santa_Cruz).
94 Poeta, estudante de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, educadora, slammer, slammaster do
Slam USPerifa e membra do Coletivo Sarau do Vale. Acredita na poesia enquanto forma de cura, espaço de
escuta, fala e transformação social. Em 2020 publica de maneira independente seu primeiro livro de poesias
"A menina que nasceu sem cor". (Disponível em: https://www.midria.com.br/).
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Por fim, mesmo com a imposição da Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003), nota-se que
muitos professores ainda encontram barreiras para explorá-la nas salas de aula, visto que o
preconceito ainda está arraigado e o reconhecimento como pessoa negra encontra-se um
pouco distante do no alunado atual.
5 Considerações finais
A promoção de uma cultura antirracista não só para os alunos, mas para todas as
pessoas, professores e comunidade escolar em geral, faz parte do maior propósito desta
pesquisadora, em relação a esse evento, uma vez que os conhecimentos adquiridos são
importantes e indispensáveis para a construção pessoal, social e política.
Além da reflexão sugerida pela performance, o aluno também terá a oportunidade de
se tornar coparticipante do seu processo educacional, saindo do anonimato e ultrapassando
o espaço restrito à sua carteira. Ao contrário disso, a organização do evento, a seleção dos
textos e obras que serão apresentados, a atuação e o protagonismo farão parte da construção
social do aluno que certamente não mais se sentirá alheio a sua própria formação, mas seu
construtor ativo. Sobretudo, levando-se em consideração que a performance é um evento
interdisciplinar em que o discente poderá ter contato com o conhecimento de diversas áreas
do saber sem que haja um processo enfadonho e obrigatório nesse percurso.
Ainda é possível citar que a temática antirracista poderá envolver alunos das mais
diversas personalidades do ambiente escolar e poderá chamar a atenção do público que, nem
sempre, consegue se destacar em eventos desse tipo, talvez pela falta de pertencimento
daquilo que está sendo exposto, uma vez que a maioria dos alunos que se interessam em
participar de tais eventos são aqueles que já apresentam sinais artísticos e predisposição para
o protagonismo.
A partir dessa intervenção espera-se que haja a possibilidade de valorização da pessoa
negra, desmistificando estereótipos anteriormente firmados numa tentativa de reconhecê-los
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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022
como seres capazes de contribuir com a crença, a gastronomia, a cultura, de modo geral, e a
beleza, numa nação inteira que historicamente se apresenta miscigenada. Assim, também é o
intuito desse processo, fazer com que o aluno se alie à performance para trazer ao público a
mensagem que está sendo desenvolvida no evento artístico.
Para tanto, pretende-se formar indivíduos que reflitam e façam refletir para além das
propostas pedagógicas e avaliativas e que, sobretudo, concebam a escola como uma
incentivadora do pensamento, da ação e que instrua seu alunado para que possa exercer o
papel de cidadãos livres e ativos na sociedade em que vivem, fazendo uso da arte e da
literatura como uma possibilidade múltipla de conversação e prazeres, além de,
principalmente, gerar uma estratégia de inclusão e pertencimento fortalecendo os laços e
proporcionando um ambiente escolar acolhedor, solidário e produtivo.
Entende-se que a política de embranquecimento está bastante presente na sociedade
brasileira, fazendo com que, cada vez mais, as pessoas se envergonhem de dizer que são
negras, mas expressando orgulho no momento em que falam. Cabe aos professores,
independente da sua área de atuação, aproveitar-se a história do país, como fonte de inserção
cultural desses jovens por meio da literatura.
Referências
BRASIL. Lei 5.692/71. Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Brasília: MEC, 1971.
CRUZ, Victoria Santa. Gritaram-me negra. 2013. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=49-wQtOj7iI>. Acesso em 24 nov.2018.
PEREIRA, M.S. A menina que nasceu sem cor. Poesia Youtube, 2019.
SANTOS, V.J.R. O sincretismo na culinária afrobaiana: o acarajé das filhas de Iansã e
das Flhas de Jesus. Salvador: UFBA, 2013.
ZUMTHOR, P. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.
ZUMTHOR, P. Introdução à poesia oral. Trad. de Jerusa Pires Ferreira et al. Belo
Horizonte: Editora: UFMG, 2010.
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95 Mestranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),
participou como bolsista de iniciação científica nos projetos de pesquisa “Silenciamento e voz da mulher na
Literatura Portuguesa de autoria feminina” e “’Narrar é resistir?’: Literatura Brasileira Contemporânea e
memória, uma análise preliminar”. E-mail: [email protected]
96 Professora Permanente do Mestrado Profissional em Artes Profartes - UFRN/UDESC e orientadora do
presente artigo. E-mail: [email protected]
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de contos das autoras Conceição Evaristo, Cristiane Sobral e Raquel Almeida. Para tal,
tivemos em vista as limitações observadas na escola com relação ao ensino da História e da
Cultura Afrobrasileira na disciplina de Língua Portuguesa. Destacamos, em nosso trabalho,
as temáticas que se apresentaram a partir dos textos, como identidade, racismo e
ancestralidade, em busca de romper com a atividade de leitura como mera decodificação.
Como metodologia de ensino, utilizou-se a sistematização sugerida por Rildo Cosson (2014),
porém não em sua completude, havendo destaque para a etapa de ‘motivação’.
Na medida em que nos aproximamos da realidade da escola, a partir de um olhar de
dentro do espaço, questionando as práticas de ensino naturalizadas no cotidiano escolar, em
um exercício de alteridade, tentamos nos apropriar do que Pimentel (2014, p. 50) denomina
de ‘atitude etnográfica’. Consideramos, ainda, em nossa prática pedagógica, a reflexão crítica
sobre a experiência de trabalho escolar como fundamento do saber docente, também
objetivo da disciplina, criando uma relação indissociável entre teoria e prática.
Essa atitude torna-se imprescindível para adotarmos um ‘practicum reflexivo’, no
sentido adotado por Schön (1992), diante das múltiplas vivências compartilhadas. Vivências
essas que têm como consequência, também, a possibilidade de renovação da prática da
professora supervisora, como constituinte dessa construção pedagógica coletiva.
Como atividade transformadora da sociedade, fundamentamo-nos em uma
perspectiva de ensino voltada à formação humana integral, ou seja, uma concepção de
formação humana para além dos aspectos cognitivos, envolvendo outras dimensões, como
ética, física, estética, social, afetiva, dentre outras (PESTANA, 2014). Na perspectiva de uma
educação humana integral, questionamos a concepção de linguagem a ser adotada. Ao
priorizarmos a ideia de que todo e qualquer texto é produzido na e pela interação, optamos
em nortear nossas práticas pedagógicas consoante uma concepção interacionista da
linguagem.
Sob esse viés, observamos que o sentido do texto não é proveniente, apenas, das
informações elencadas na superfície textual, uma vez que outros conhecimentos, como os
trazidos a priori pelo ‘aluno leitor’, serão ativados e irão interagir no decorrer do processo de
leitura (KLEIMAN, 2000). Assim, durante o desenvolvimento do projeto, procuramos
propiciar aos estudantes o desvelamento de ressignificações das narrativas de outrem, a partir
da aproximação deles com o texto literário como sujeitos, não se limitando ao que está dito
de forma explícita, pelo código; embora essa ressignificação não esteja dissociada das
escolhas empregadas pelo autor no texto, nem de objetivos e necessidades socialmente
determinados.
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Intervenção Poética Já
Para definição e futura realização de nosso projeto de intervenção, anteriormente foi
imprescindível mergulharmos no ambiente escolar a fim de estruturarmos o diagnóstico
inicial mediante a realidade observada. Do contrário, a proposta de intervenção adquiriria um
caráter impositivo e dissociado do contexto de intervenção. Durante a observação,
constatamos que as atividades de ensino da leitura estiveram centradas na mera
decodificação da escrita, sob a proposta de leitura em voz alta, porém sem orientações para
isso, o que dificultou a compreensão do texto por parte dos alunos.
Diante das atividades sugeridas, dissociadas das múltiplas funções sociais da leitura e
observando que os contos trabalhados foram escritos por homens brancos, justificou-se
nossa proposta de trabalhar com contos afrobrasileiros de autoria feminina, em respeito à
pluralidade identitária e cultural e em diálogo com aspectos ideológicos vinculados aos textos
literários, visando à educação emancipadora e libertadora.
Salientamos que a proposta aqui referida se encontra em consonância com uma
perspectiva de ensino voltada à formação humana integral, a partir da qual nos pautamos,
além de estar em conformidade com a Lei n° 10.639/03 (BRASIL, 2003). Procuramos,
assim, contribuir com o conhecimento de contos afrobrasileiros de autoria feminina e de
outras visões de mundo, além das hegemônicas, inclusive auxiliando na compreensão de que
não há texto neutro.
Ao pesquisarmos o acervo literário constante na biblioteca da escola, constatamos
que havia uma única obra literária afrobrasileira, em exemplar único, o 30º volume da série
‘Cadernos Negros’. Dada a importância da série para o cenário brasileiro, organizada desde
1978 por escritores e escritoras negros(as) e brasileiros(as) e, em especial, para a divulgação
da literatura afrobrasileira e dos escritores que em parte a constituem, conforme abordado
por Duarte (2014), optamos por trabalhar com contos veiculados na antologia.
Assim, esse projeto de intervenção contemplou a leitura crítica dos contos ‘Lumbiá’,
de Conceição Evaristo, ‘Minha cor’, de Raquel Almeida, e ‘O tapete voador’, de Cristiane
Sobral, todos publicados na antologia literária ‘Cadernos Negros’. Objetivando a apropriação
literária, por parte dos alunos, em relação aos contos a serem trabalhados, sugerimos a
elaboração de roteiros para a apresentação de esquetes ao final do projeto de intervenção,
uma vez que a literatura e o teatro estão intimamente relacionados como formas de
manifestações artísticas e críticas do contexto social. A avaliação foi realizada de forma
contínua, ou seja, ao longo de todo o processo, como forma de possibilitar ajustes
necessários, consoante o desempenho e interesse dos alunos.
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eles responderam que não, ou que apenas haviam ouvido falar sobre. Apresentamos, em
seguida, a Constituição Federal (BRASIL, 1988), falamos brevemente acerca da sua
importância e lemos e discutimos o caput do artigo 227, que trata de responsabilidades da
família, da sociedade e do Estado com relação às crianças e aos adolescentes.
Entre relatos de experiências, em um encontro destinado à leitura e discussão do
conto ‘Minha cor’, de Raquel Almeida, exibimos o vídeo ‘Caião quer conversar’, da escritora
e youtuber Julia Tolezano (2016). As discussões após a exibição do vídeo foram interessantes,
pois geraram indagações sobre a identidade racial no Brasil e o quanto o debate sobre o que
é ser negro, muitas vezes, limita-se a uma questão de cor, desconsiderando-se outras
características físicas bem como questões culturais.
Por fim, no encontro destinado à leitura e discussão do conto ‘O tapete voador’, de
Cristiane Sobral, exibimos os vídeos ‘A reafirmação da estética negra como resistência’, do
canal Diário de Pernambuco (2016), e ‘Gritaram-me negra’, apresentação do poema da
escritora e ativista Victoria Santa Cruz (2013).
Após a exibição dos vídeos, perguntamos aos alunos o que eles achavam que
constituía a identidade negra e fomos anotando no quadro as informações para posterior
retomada após a leitura e discussão do conto. Ressalta-se que as temáticas abordadas a partir
dos textos literários não foram previamente definidas, mas destacadas na etapa de motivação
por serem aquelas que se sobressaíram nos contos, de forma que o texto literário esteve no
centro do nosso direcionamento pedagógico.
Sucedendo às atividades iniciais, começamos a leituras dos contos, que foram
distribuídos aos alunos. No decorrer das leituras, foram dirimidas possíveis dúvidas em
termos de significação de vocábulos e também, feitas orientações quanto à leitura em voz
alta, quando esta foi solicitada, para a melhor leitura e compreensão dos textos.
Após a leitura do conto ‘Lumbiá’, questionamos se os alunos já haviam lido alguma
história sobre um menino que é vendedor de rua e eles responderam que não. Perguntamos
se era comum, no percurso até a escola, ou nas saídas com amigos, eles encontrarem crianças
ou adolescentes da faixa etária deles que, assim como o personagem Lumbiá, vendiam algo
em semáforos ou nas calçadas e eles responderam que sim. A seguir, indagamos acerca dos
motivos dessas crianças e adolescentes estarem trabalhando nas ruas e de ressaltarem a
necessidade de sustentar a família, a exemplo da personagem Lumbiá. Também discutimos
sobre as razões do protagonista do conto gostar tanto da imagem do presépio.
Em seguida, solicitamos que os alunos se dirigissem ao quadro, de forma voluntária,
e escrevessem algo que remetesse ao conto. Apesar de reforçamos durante a atividade que
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eles não precisavam resgatar palavras do próprio texto, os alunos limitaram-se a selecionar
palavras que apareceram no texto lido. A fim de tentarmos superar a mera recuperação de
elementos explicitados na superfície textual, resgatamos algumas das palavras que foram
transcritas pelos alunos no quadro e buscamos construir relações dialógicas entre elas, bem
como com o desencadeamento final do conto, com a morte do personagem Lumbiá.
Foram resgatadas as seguintes palavras transcritas: pobreza, vazio, solidão, família,
pai, mãe, subúrbio, pivete, segurança e frágil. Assim, a partir desses dados apresentados pelos
alunos, construímos, de forma coletiva, a relação do desencadeamento do conto com o final
trágico de Lumbiá e os alunos reforçaram a ausência da família como um fator
desencadeador. Na ocasião, retomamos o artigo da CF/88 (BRASIL, 1988) apresentado
anteriormente à leitura do conto e destacamos a importância, não apenas da família, mas
também da sociedade e do Estado.
Após as discussões supracitadas, ao final da aula, a aluna E.C. relatou que o seu pai e
o seu tio, quando crianças, tiveram que trabalhar nas ruas, vendendo mercadorias nos
semáforos, para ajudar no sustento de casa. No entanto, diferentemente do fim trágico
sofrido por Lumbiá, atualmente, eles cursam licenciatura e, em breve, serão professores. A
aluna relacionou, assim, a vivência de seus parentes à vivência do protagonista do conto,
apontando algumas distinções que possibilitaram um desenrolar feliz, mesmo em meio às
dificuldades financeiras, e disse que, tanto o pai quanto o tio receberam incentivo para
estudarem.
Observamos, assim, o desvelar, por parte da aluna, de ressignificações da narrativa a
partir da aproximação do texto literário como sujeito, possibilitado a partir do diálogo da
temática trabalhada no conto com as narrativas orais que ela escutou de seus parentes. Ao
propiciar o diálogo entre a literatura e a vivência dos alunos fora da escola, rejeitamos o
reducionismo das atividades de leitura à mera decodificação ou seleção de informações, bem
como nos afastamos de práticas pedagógicas que reduzam o texto literário a pretexto.
Já após a leitura do segundo conto, ‘Minha cor’, perguntamos o que os alunos
achavam sobre a opinião da protagonista de que, na verdade, a cor ‘parda’ não existe e que,
portanto, as pessoas são necessariamente brancas ou negras, conclusão a que a protagonista
chega a partir de uma busca por suas raízes. Os alunos não deram uma resposta ao nosso
questionamento e seguiram discutindo a questão entre si.
Procuramos não impor uma resposta certa ou errada a uma questão tão delicada,
que suscita tantas reflexões. Ao término da aula, observamos que os alunos ainda estavam
discutindo entre si, perguntando-se de que cor realmente é o mundo. Alguns se definiam
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atividades.
As respostas dos alunos alimentaram nossa percepção, também, da importância da
escolha da temática. O aluno W.M, por exemplo, aponta que a ideia de escrita da narrativa
foi concebida a partir do que ele vivenciou. Torna-se claro, assim, que a relação com o
objeto estético ocorre, não apenas no âmbito da narrativa em si, mas também, no mundo das
vivências. Daí a importância de escolhermos uma temática que dialoga intimamente com o
cotidiano dos ‘sujeitos leitores’ e escritores de suas próprias narrativas.
Além da importância da escolha da temática, as respostas às proposições revelaram
também a importância da escolha dos gêneros a serem trabalhados. Destacamos, como
exemplo, a resposta de W.M. referente ao que ele mais gostou do projeto: ‘criar histórias’.
Assim, a escolha do gênero roteiro para esquete também se revelou de importância
fundamental para alimentar a construção da experiência literária, embora não tenha havido a
apresentação das ‘esquetes’.
Desse modo, observamos que a experiência literária foi construída de forma
enriquecedora, propiciando a experiência estética relacionada à experiência dos alunos como
sujeitos. Consideramos como relevantes, também, as marcas deixadas nos leitores pela
literatura que nós, como professoras, não pudemos identificar, aquelas que “agem de
maneira subterrânea” (ROUXEL, 2014, p. 25), têm um tempo próprio e, por vezes, ficam
apenas no plano do inconsciente, as marcas que não podem ser vistas, mas que também nos
formam como seres humanos.
A partir de nossa vivência no projeto ‘Literatura afrobrasileira de autoria feminina’
junto aos alunos da escola em que o estágio foi realizado, pudemos construir nossos
primeiros conhecimentos através da prática reflexiva em sala de aula, visto que essa foi nossa
primeira experiência nesse ambiente como professoras em formação. Esses conhecimentos
só foram possíveis por causa dos fundamentos teóricos que aprendemos durante nossos seis
semestres de graduação percorridos até aquele momento, que foram de grande importância
para que pudéssemos ter um olhar crítico no ambiente escolar.
Assim, a partir da prática reflexiva, percebemos a importância de se procurar dar o
máximo de atenção ao que os alunos têm a dizer, seus comentários, suas dúvidas, tratando-
os como sujeitos em suas diversas dimensões e não marginalizando nenhum deles,
independentemente de seu comportamento. Com essa atitude, conseguimos incentivar sua
participação nas atividades propostas e, como revelado na avaliação efetuada pelos
estudantes com relação ao projeto, esse foi um dos aspectos que mais se destacou para eles
em sua jornada de conhecimento conosco.
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Averiguamos, também, que os textos literários que trouxemos para a sala de aula,
constituídos por temas como a cultura negra, a ancestralidade, a identidade racial e o
racismo, com um aprofundamento além do superficial, possibilitaram o desabrochar de
construções e reconstruções dos sentidos das narrativas por parte dos alunos. Ademais,
percebemos que tais temáticas, com um olhar mais aprofundado, ainda são vistas como
atípicas na escola, o que reforça a relevância de discuti-las com os estudantes. É também
com essas discussões que se pode, na escola, provocar reflexões acerca da própria identidade
racial, por parte dos alunos, além de se incentivar a consciência sobre as questões de raça no
país, o que é, também, uma forma de se combater o racismo em sua origem - a ignorância
sobre o assunto.
Ao finalizarmos o estágio, percebemos, ainda, que ao se tratar de um tipo de
preconceito, e mais especificamente do racismo, os alunos acabam por refletir sobre os
diversos tipos de discriminações que atravessam vidas humanas à beira do Século XXI.
Assim, muitos de nossos alunos, especialmente aqueles que vivenciam cotidianamente na
pele o legado da intolerância, são incentivados a repudiar a prática racista e as demais
discriminações mundo adentro o que contribui de alguma maneira com a formação ética de
seres humanos mais conscientes e insubmissos. Marielle Presente!
Referências
ALMEIDA, Raquel. Minha cor. In: Cadernos Negros. 1 ed. São Paulo: Quilomboje, v. 30,
2007.
COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2014.
KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 7 ed. Campinas: Pontes, 2000.
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ROUXEL, Annie. Ensino da literatura: experiência estética e formação do leitor. In: ALVES,
José Hélder Pinheiro (org.). Memórias da Borborema 4 – Discutindo a literatura e seu
ensino. Campina Grande: Abralic, 2014.
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1 Colocações Iniciais
O presente estudo busca evidenciar a vivência de uma travesti no Brasil Colônia
através da análise da obra ‘Nada digo de ti que em ti não veja’ da autora afrobrasileira Eliana
Alves Cruz. A pertinência desta obra escrita por uma autora afrobrasileira consiste em “olhar
para trás, entender como as coisas aconteceram e ousar pensar no amanhã” (CRUZ, 2020a),
conforme palavras da autora concedidas em entrevista. Além de refletir que, atualmente, a
literatura afrobrasileira está em evidência, pois autores afrobrasileiros contam sua própria
história, ou seja, a história do povo negro através de sua literatura, o que podemos
denominar escrevivência. Além disso, buscaremos abordar a representação da mulher trans na
literatura de Eliana Alves Cruz, tendo como foco o âmbito afetivo-sexual e o fato dos corpos
trans serem vistos como corpos abjetos em meio a uma sociedade heteronormativa. Para
compreender as questões de gênero inerentes à obra faz-se necessário o aporte teórico de
autoras como Judith Butler, entre outros.
2 Desenvolvimento
A sociedade baseia-se em um Cis-tema fundamentado na diferença sexual, no qual o
gênero, a sexualidade e o corpo seriam instâncias que se coadunam, não podendo ser
dissociadas, logo os corpos que se distanciam dos padrões de gênero podem ser chamados
corpos dissidentes, logo é como se tais corpos representassem uma quebra na ordem
estabelecida socialmente, conforme Bento (2006, p. 13). A terminologia Cis-tema tem o
objetivo de explanar o sistema cisgênero dominante. Ou seja, as normas da cisgeneridade
que ditam padrões de gênero, que subjugam corpos transgêneros que não enquadram de
modo simétrico nos seus ditames de sexo, identidade, orientação sexual e afetividade.
Vergueiro (2015) evidencia a importância da interseccionalidade como aspecto crítico
da cisnormatividade, a qual aponta o alinhamento de outros fatores normativos imbricados
nessa relação, destacando-se um cenário no qual atuam padrões como os que podemos
chamar de branquitude, cisgeneridade e cristianização. Conforme Santos (2019), o vocábulo
‘heteronormatividade’ é algo novo na língua portuguesa, porém corresponde a uma suposta
homogeneidade da sexualidade e gênero da população, que não pode ser deturpada por
‘Ideologias de Gênero’ que estariam perante o senso comum em voga atualmente, assim a
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punida com a morte por enforcamento ou fogueira. A trama dialoga com temas atuais do
contexto brasileiro, como o racismo estrutural, as fake news, os dogmas da Igreja, como
também uma possível redenção através da Delação Premiada diante do tribunal da
Inquisição, ou melhor, Santo Ofício como era conhecido no Brasil.
No desenrolar da história, as personagens de origem judaica são acusadas de bruxaria
juntamente com a travesti Vitória que se mostra como uma curandeira, ‘calunduzeira’, que
era procurada pelas pessoas para a realização de práticas como reza para tirar ‘mau olhado’,
tratamentos médicos, previsão do futuro, entre outras; a narrativa revela a associação entre
ser mulher e a bruxaria, conforme o trecho “vossa mercê pensa que não sei de vosso
intercâmbio com estas bruxas, de um lado tens as feiticeiras judaizantes” (CRUZ, 2020b, p.
148). O ponto forte da narrativa é a construção evidente da identidade de gênero feminina
de Vitória conforme o trecho “Não sou negro. Sou negra! Ne-gra” (CRUZ, 2020b, p. 184), o
que evidencia o sentimento de pertença da personagem a uma identidade feminina, o que
ocorre em diversos outros trechos da trama.
Um dos pontos principais da narrativa é a relação entre o jovem Felipe Gama estaria
fadada ao fracasso, pois seria impossível a relação entre um fidalgo e uma travesti negra (usar
tal termo pode gerar um anacronismo), porém seu uso se dá devido às evidências de que a
personagem de fato tinha uma identidade de gênero feminina assumida socialmente,
conforme o trecho “Ela sabia que o mundo em que viviam não nutria pessoas como ele para
que tivessem musculatura de espírito para viverem abertamente suas verdades” (CRUZ,
2020b, p. 183). A partir da narrativa vemos que seria inviável o personagem Felipe assumir
socialmente sua relação com uma pessoa lida socialmente como “um negro que se diz
mulher,” posto que tal relação trouxesse não somente consequências sociais, mas o risco
iminente da morte, para além do opróbrio em que cairia a família do fidalgo.
Porém o desenrolar da história revela reviravoltas como o desfecho em que diversos
personagens são acusados pelo tribunal do Santo Ofício por diversas acusações e, por isso,
um possível final feliz é vislumbrado para os amantes protagonistas da trama. Analisar essa
narrativa evidencia que a realidade brasileira carrega consigo o jugo de resquícios do
processo histórico de escravização, fazendo-nos refletir acerca de uma nova perspectiva de
enfrentamento à realidade, olhar para a África como um norte nesse processo decolonial.
Conforme:
A África é, atualmente, confrontada com os fenômenos neocoloniais do
capitalismo e do racismo globalizados, um fato que, mais do que nunca, sugere a
necessidade de um fortalecimento inventivo dos movimentos ao redor de políticas
centradas em um engajamento consciente com diferentes posições e histórias de
sofrimento (OSSOME, 2018, p. 57)
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VOLUME III - AFROLIC – UFRN - 2022
A partir desta narrativa podemos refletir sobre o lugar de uma travesti negra na
sociedade, tendo em vista que até os dias atuais o Brasil representa o país que mais mata
travestis e transexuais, havendo grandes índices de transfeminicídio, ou seja, o extermínio
sistemático de corpos trans negros, o que revela uma verdadeira necropolítica, na qual os
corpos não importam em uma sociedade cis-heteronormativa. A partir dessa reflexão faz-se
necessário propor uma nova perspectiva de ver o mundo e defender os direitos de pessoas
trans negras, o conceito que pode ser entendido como um norte para tal enfrentamento pode
estar dentro da perspectiva mulherista, abraçando conceito do ‘mulherismo’, ou seja, uma
variação afroamericana do feminismo, que corresponde a abarcar pautas específicas das
mulheres negras, tendo como uma das estratégias de enfrentamento ao patriarcalismo
convidar os homens para a luta antimachista, com um olhar especial para o homem negro,
conforme Ebonoluwa (2009).
Em vista de que as mulheres negras trabalharam em condições sub-humanas devido
ao colonialismo, assim como os homens negros. E partindo do ponto de que o feminismo
surge de reivindicações de mulheres brancas europeias e estadunidenses por inclusão e
melhores condições de trabalho, não olhando para pautas como a cidadania da população
negra. Por esses pontos supracitados, o mulherismo defende um posicionamento não apenas
direcionado ao combate às opressões de gênero, mas direcionando o olhar ao combate as
opressões, tendo em vista as intersecções entre classe, raça e gênero (EBONOLUWA, 2009,
p. 04).
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Entendemos que conforme a teoria queer não há uma identidade que abarque no
mesmo status todas as mulheres. Sendo assim, visando a construção de uma sociedade mais
igualitária não se pode dissociar gênero de outros fatores como raça, etnia, dentro das
relações de poder estabelecidas na sociedade. Tendo em vista a teoria queer, discutida por
Butler, é possível compreender a construção identitária de personagens travestis no âmbito
da literatura.
A teoria queer discorre acerca da ‘performatividade’ do gênero, logo o gênero é fluído,
é um conjunto de atos que são feitos. Porém indivíduos estão sujeitos a uma instituição
maior que rege os corpos, o Estado. O mesmo Estado que no aprisionou e buscou destruir a
vida da personagem Vitória, porém não foi capaz de detê-la, posto que “Felipe e
Vitória...estes misteriosamente desapareceram” (CRUZ, 2020, p. 196).
Atualmente, vemos emergir a literatura negra como um campo de resistência em prol
da decolonialidade, conforme Chisala, “eu destilo melanina e mel. Sou negra e não peço
desculpas por isso” (CHISALA, 2020, p. 09). Um campo de resistência no que concerne à
valorização da mulher negra enquanto sujeito capaz de produzir prosa, poesia, construindo
uma nova epistemologia, da “negra e mulher, e apaixonada por si mesma” (CHISALA, 2020,
p. 09). A autoria negra ascende em prol de desconstruir estereótipos de gênero e racialidade,
mostrando um tipo de autoria em que a mulher negra é a protagonista de sua própria
história, resgatando também determinadas personagens históricas negras como um
referencial.
No que consiste a essas lógicas no âmbito da educação e da ciência, a literatura é um
campo no qual se travam disputas. Cruz (2020), com sua obra ‘Nada digo de ti que em ti não
veja’, contempla essa construção ao evidenciar uma personagem trans negra inserida em um
contexto colonial. Ao ler esta obra o leitor é convidado a pensar sobre a realidade da travesti
negra naquele contexto colonial e quiçá atualmente, em vista que a obra pode ser lida com
um olhar atemporal devido as temáticas que evidencia, como o racismo, o controle do
Estado sobre a sexualidade da sociedade, o controle da Igreja sobre os corpos e mentes dos
cidadãos, julgamento pautado em valores morais, entre outros.
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3 Últimas Considerações
A obra literária afrobrasileira ‘Nada digo de ti que em ti não veja’ evidencia a
existência de vivências de gênero dissidente e explana sobre a realidade de um corpo negro
prostituído em um Brasil Colônia, através dos aportes teóricos da Teoria Queer podemos
refletir sobre a construção social da mulher trans ao analisar a personagem Vitória, o que
corrobora com a narrativa de outras personagens trans. A literatura afrobrasileira nos
convida a compreender a realidade de uma mulher negra, trans, escravizada, prostituta.
O estudo dessa narrativa evidencia a importância de reconhecer as epistemologias
que se formam a partir do estudo de obras com personagens negros, de autoria negra. Logo,
pode-se entender que a literatura tem um papel de trazer à tona a reflexão sobre
determinadas vivências, quiçá possamos através do estudo deste tipo de literatura fomentar o
desenvolvimento de leitores críticos cientes do seu papel de cidadão em prol de uma
sociedade brasileira com mais equidade.
Referências
BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual.
Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
CHISALA, Upile. Eu destilo melanina e mel. Tradução de Isabela Aleixo. São Paulo:
Leya, 2020.
CRUZ, Eliana Alves. Novo romance de Eliana Alves Cruz expõe o apartheid brasileiro.
[Entrevista concedida a Guilherme Augusto. Jornal Estado de Minas, 28 jun. 2020a.
Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/1354-eliana-alves-
cruz-nada-digo-de-ti-que-em-ti-nao-veja>. Acesso em: 15 dez. 2021.
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CRUZ, Eliana Alves. Nada digo de ti que em ti não veja. Rio de Janeiro: Pallas, 2020b.
FERREIRA, Luna de Souto. Mem (orais) poéticas de uma byxa travesty preta de
cortes. Bragança Paulista: Urutau, 2019.
JESUS, Jaqueline Gomes de. Coletânea TransLiterária. Belo Horizonte: Marginália, 2019.
MOTT, Luiz. Bahia: inquisição & sociedade/Luiz Mott. - Salvador : EDUFBA, 2010.
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