Afrolic Livro Afrolic2
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Afrolic Livro Afrolic2
Tânia Lima
Carmen Tindó Secco editora
Sávio Freitas
Ǔorgs.ǔ
Rosilda Alves Bezerra
Tânia Lima
Carmen Tindó Secco
Sávio Freitas
(orgs.)
AFROLIC
Literatura Desigualdade Ensino
Volume II
editora
Natal, 2022
VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
2022. Rosilda Alves Bezerra - Tânia Lima – Carmen Tindó Secco – Sávio Freitas (orgs.).
Reservam-se os direitos e responsabilidades do conteúdo desta edição aos autores. A
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editora
©2022. Rosilda Alves Bezerra, Tânia Lima, Carmen Tindó Secco, Sávio Freitas (orgs.). Reservam-se os direitos e responsabilidades do conteúdo desta edição aos autores.
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa dos autores e dos organizadores. A violação dos direitos do autor (Lei n.
9610/1998) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Lei Nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004.
A258
Afrolic: literatura desigualdade ensino / Rosilda Alves Bezerra... [et al.]. – Natal: Caule de
Papiro, 2022.
322 p. : il.
Volume II.
Vários organizadores.
Sônia Sultuane
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SUMÁRIO
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Walter Benjamin (1987), na obra ‘Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura’, traz-nos a imagem de uma tela de Klee que se intitula ‘Angelus
novus’. Segundo o pesquisador, ele “representa um anjo que parece querer afastar-se de algo
que ele encara fixamente. Seus olhos escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. Tal
deve ser o aspecto do anjo da história” (BENJAMIN, 1987, p. 226). O referido anjo é
representado com o olhar dirigido para o passado, onde há uma catástrofe “que acumula
incansavelmente ruína sobre ruína e as joga aos seus pés.” Ele gostaria de poder intervir, mas
“uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode
mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele dá as
costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu” (1987, p. 226).
Consoante o pesquisador, coube ao materialismo histórico fixar uma imagem do
passado tal como ela apresenta-se ao sujeito histórico; assim, contemplam-se outras versões
ademais da dita ‘oficial’, de forma que a história dos vencidos possa vir a dialogar com a dos
vencedores. Diferentemente da visão tradicional de história que se pretende única, Benjamim
(op. cit.) compreende que se deve articular historicamente o passado com o presente, o que
significa não conhecê-lo integralmente, mas apreendê-lo em suas sutilezas e variantes que, não
raro, passam despercebidas em uma abordagem historicista. Benjamin (op. cit.) propõe, então,
uma reconstrução do passado, não resgatando os eventos ocorridos como foram, mas sim como são
vistos a partir do momento presente. Avesso à pretensa unicidade da abordagem historicista, o
pensador adverte que a história tem de ser revista:
1 Pós-Doutora em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa. Professora Adjunta da Universidade Federal
da Paraíba (UFPB), onde atua desde 2012 na graduação e na pós-graduação. E-mail:
[email protected] Link para o currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8345360905892527
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1992, p. 209). Desse modo, ao contrário do historiador que busca representar o passado ‘tal
qual ele foi’, o materialista histórico busca confrontar a ordem estabelecida pelo apagamento
ou controle do passado por questões políticas ou ideológicas.
Podemos inferir, através da alegoria de Benjamin (op. cit.), que ainda havendo a
vontade de se aproximar do passado e até interferir em seus fatos, o futuro surge como um
fenômeno inevitável que o arrasta para diante. Entretanto, o olhar do anjo da história
permanece fixo nos eventos de outrora, que o hipnotizam com uma força centrípeta. A
compreensão dos eventos atuais passa, portanto, por um desvelar do passado revisitado,
através de suas versões possíveis. A ficção, ao dialogar com acontecimentos históricos que
tornam possível trazer à tona memórias esquecidas, possibilita ‘despertar no passado as
centelhas da esperança’, impedindo que os mortos sejam esquecidos.
Himba, no início da narrativa, é uma adolescente de apenas treze anos que perdeu sua
família ao tentar fugir da guerra, num ataque na estrada. Ela passa então a viver como menina
de rua e passa por privações e violências as mais diversas. Também é nesse período que ela
conhece aquele que vem a ser seu melhor amigo e a quem registra como irmão, Kassule,
(rebatizado Diego). E é esse personagem que vai ser o responsável pelo desvelar da mudança
sofrida pela personagem a partir do estresse pós-traumático ocasionado pelas violências
sofridas.
É plausível dizer que essa obra pode ser pensada como uma releitura ficcional de
eventos históricos recentes. Seguindo a reflexão benjaminiana, considerando o passado com
vistas no presente, percebe-se, no romance, uma estreita ligação entre o passado e o presente,
através da representação estética dos acontecimentos ocorridos nos últimos vinte anos em
Angola. Destarte, a obra impele-nos a refletir acerca de aspectos políticos e sociais da
sociedade atual – como o lugar da mulher negra e subalternizada em África.
A violência, instrumento de manifestação de poder, segundo acepção de Arendt
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Como ia arranjar comida? Nos contentores do lixo, como vira outros fazerem?
Sentia repugnância. Antes dormir com a fome, não seria a primeira vez.
Escureceu completamente. Alguns miúdos desenrolavam cartões que tinha,
escondido algures e se deitavam neles. Iam dormir ali? Depressa se convenceu,
estavam tão perdidos quanto ela, ficavam pelas ruas, sem casa nem família, talvez
também fugindo da guerra.[...]. Alguns rapazes fumavam tabaco ou liamba, ela sabia
distinguir os odores. Outros dormiam. E havia também os que cheiravam panos
embebidos em gasolina, droga mais comum para menores de catorze anos. O
cansaço venceu e ela dormiu mesmo no cimento (PEPETELA, 2017, p.32-33).
2 Conceito de Agamben (2002) que se refere à banição e ao estado de ilegalidade de quem é submetido a viver
em estado de exceção
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violência simbólica.
Situação pior de violência simbólica ocorre quando Himba, Kassule e outros meninos
vão à espera dos restos de comida na porta de um restaurante e o funcionário do local
humilha-os utilizando sua prerrogativa de trabalhador assalariado:
A porta de trás se abriu, um rapaz grande e forte trouxe dois baldes, despejou
imediatamente para o contentor. Olhou para os miúdos, disse:
- Lutem então para eu ver.
Os quatro já estavam de pé, hesitando. O grandalhão disse para o trabalhador do
restaurante:
- Tu nos viste à espera. Podias ter deixado a gente catar aí mesmo nos baldes.
Atiraste lá para dentro por maldade.
- Vai bumbar mas é, seu inútil [...].
- Vou trabalhar aonde? Me dás teu lugar aí dentro? Eu aceito. (PEPETELA, 2017,
p. 65–66).
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violência antes de sua consumação propriamente dita; segundo o pesquisador, “a violência não
é apenas objetiva-física, ela é também atmosférica” (FANON, 1968, p. 53). Em uma breve
passagem, Fanon (op. cit.) discorre que a violência atmosférica é “a violência à flor da pele.”
Podemos inferir que esse tipo de violência é a iminência da própria violência. Ao fazer
uma reflexão sobre os tipos de violência que ocorrem na nossa sociedade (subjetiva, objetiva e
simbólica), o filósofo esloveno Slavoj Zizek (2014, p. 24) reafirma a existência de “formas
mais sutis de coerção que sustentam as relações de dominação e de exploração, incluindo a
ameaça de violência” e/o “mal imaginado.” O mal imaginado aparece na advertência de Madia
e soa como tragédia anunciada: “De chama violação, violência doméstica ou quê...Tu vais ver,
quando te apanharem...” (PEPETELA, 2017, p. 80). E esse dia chegou.“Tudo lhe doía mas o
pior não era a dor física. Sentia-se roubada, violentada no mais íntimo, como se deixasse
de haver qualquer tipo de segurança no mundo” (PEPETELA, 2017, p. 89, grifos
nossos).
A violência sexual, aliada à carga simbólica do acontecimento e à falta de qualquer
amparo estatal, faz da personagem vítima do estado de exceção do qual nos fala Agamben
(2002; 2004). Sob o mesmo viés epistemológico, autor angolano Ondjaki (2010), em conto
intitulado ‘Madrugada’, relata-nos a vivência de uma mulher nas ruas, sujeita a humilhações
diversas (violência simbólica), violações e maus-tratos (violência objetiva) e privações de toda
a ordem (violência subjetiva). No texto de Ondjaki (op. cit.), a mulher encontra-se em uma
grande cidade em condições de mendicância e é molestada sexualmente sem ter condições de
defesa, pessoa que a ajude, policial a quem prestar queixa, casa para onde ir tomar um banho,
cama onde dormir. As mulheres que estão nessa condição de vulnerabilidade social
encontram-se sujeitas a todos os tipos de violência; a invisibilidade e o desamparo pesam-lhe
ainda mais pela condição feminina. São, igualmente, o outro do outro, o corpo subalterno
disponível para o invisibilizado usufruir.
Nesse sentido, podemos afirmar que os conflitos são ampliados: não se trata apenas de
violência objetiva, consumada pelo sexo forçado; refere-se, também, à violência sistêmica,
exercida pela prática ou omissão de agentes sociais e/ou a existência de aparelhos repressivos
disciplinadores. De acordo ainda com estudo Étienne Balibar mencionado por Zizek (2014), a
violência sistêmica também pode ser chamada de ‘ultraobjetiva'. É ela própria, juntamente às
condições sociais do capitalismo global, que implica na imediata invibilização social de
indivíduos considerados dispensáveis (dos sem-teto aos desempregados).
Tanto a personagem de Ondjaki quanto a de Pepetela são sujeitas a todas as práticas
coercitivas possíveis. Himba ainda mais, por se tratar de uma menina que nem chegou ainda à
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idade adulta. Com apenas treze anos, a personagem perde a família e o lar, sofre humilhações,
privações, violência simbólica, sistêmica, física, sexual. Ela não pode fazer registro policial do
ocorrido nem cobrar providências das autoridades, visto que ela não tem existência legal. Não
tem documentos, sua família está morta, não tem a quem recorrer. A personagem não faz
parte da nação, está destituída de qualquer valor político. Entretanto ela existe, fisicamente
falando, e sofre as sequelas do estado de exceção a que está sujeita por estar fora do sistema e,
ao mesmo tempo, pertencer a ele (AGAMBEN, 2014). Ao mesmo tempo, esse ‘dentro-fora’
também pode ser capaz de tornar inevitável a prática do revanchismo como forma de legítima
defesa. Embasaria, assim, a violência atávica a que seria inerente à humanidade, conforme
acepção do historiador francês René Girard (1990), que concebe a violência a partir de uma
perspectiva daimônica, ou seja, inevitável ao destino do ser humano.
A consumação da vingança contra os estupradores de Himba ocorreria meses depois,
praticada por outro abusador que a tomara como mulher e que constituiu com ela uma relação
de protecionismo 3 autoritário. A vingança realizada, embora sem a interferência da menina,
contou com sua conivência. “Himba não queria vingança, apenas esquecer [...]. Era merecida,
de qualquer forma [...]. Não era assim a justiça dos grupos?” (PEPETELA, 2017, p. 195). A
ação, entretanto, desencadeia sequelas: revanche contra o rapaz que protegera Himba, que
acaba assassinado; fora isso, alguns integrantes do bando atacado violentam novamente a
personagem 4 e o ciclo 5 da violência continua duplamente legitimado: afinal, se não se pode
contar com a proteção das instituições estatais, recorre-se à defesa por meio do ataque.
Nesse sentido, amparamo-nos nas palavras de Hegel (1993, p. 586), ao analisar o
caráter cruel do herói épico: “Os acontecimentos que se realizam parecem depender
absolutamente do seu caráter e dos fins pretendidos, e o que nos interessa antes de tudo é a
legitimidade ou ilegitimidade da ação no quadro das situações dadas e dos conflitos que dela
resultam.” De acordo com o filósofo citado, não existe dilema moral no ato violento
propriamente dito; o julgamento dá-se através dos princípios norteadores que embasaram essa
prática.
3 “- Te juro, minha deusa linda, vou te proteger de todos os perigos. A tua família também, passa a ser minha
família” (PEPETELA, 2017, p. 174).
4 “Como iria saber nessa mesma noite Kassule, dois ou três ainda tiveram tempo de a violar, mas aproveitaram
também para lhe avançar com umas chapadas. Himba chorava suavemente e sangrava pelo nariz.”
(PEPETELA, 2017, P. 231).
5 “Ela seria alvo do bando de Jonas e de outras gangues, as violações se sucederiam. Mesmo se naquele momento
havia muitos miúdos que estavam furiosos com o Jonas e sobretudo com a violação de uma menina tão nova,
no dia seguinte começariam a pensar, porque só eles e não eu?” (2017, p. 233).
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Adorno (1985), por sua vez, ao analisar o contexto pós-guerra, pontua que - apesar de
notoriamente existir uma tensão que prescinde os conflitos – a violência não se legitima sob
nenhuma justificativa. O fato, entretanto, é que o ambiente violento presente na narrativa –
não só pela situação precarizada dos personagens, mas também pelo contexto de guerra civil 6
6 “Há pouco tempo, como sabem, se deu a batalha do Cuíto. Uma parte da cidade, a maior, com os rebeldes, a
mais pequena, ligada ao Cunje, com os nossos, totalmente cercados. Meses, muitos meses. Os cadáveres eram
enterrados nos quintais das casas ou nas ruas.” (PEPETELA, 2017, p. 277).
“[...] ela só disse a guerra separou todas as famílias, o que em parte é verdade, nunca mais soube nada dos meus
irmãos e primos, perdidos pelo Bié em tempos, sei lá agora onde estão. Certamente mortos, enterrados de
qualquer maneira porque aquela guerra foi a pior de todas as guerras...” (PEPETELA, 2017, p. 185).
7 De acordo com a acepção de Butler (2017).
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[...] são seres sociais cujas identidades são moldadas pelas práticas, relações e
narrativas comuns da sociedade em que estão imersos.[...] o self é construído por
fins que ele não escolhe, mas que descobre em função de sua existência incorporada
em contextos culturais compartilhados. Trata-se, portanto, de buscar desvendar os
nexos existentes entre a experiência do reconhecimento [...] e a formação da
identidade, apresentando duas formas interligadas do discurso do reconhecimento: a
esfera íntima [...] e a esfera pública – e a interpretação de que a identidade se
constitui num diálogo aberto (VIEIRA, 2009, p. 39).
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deficiente mental de Ester, sob o pretexto de protegê-lo; após, interna-lo numa clínica 8, não
sem antes conseguir o alvará do restaurante, com seu nome como única proprietária, através
de jogo de interesses e insinuações de natureza sexual com o diretor da administração do
governo da província. Ao ser interpelada sobre essa mudança de proprietário do restaurante,
dá-se o embate entre Diego e Sofia. A narração da personagem expõe a diferença ontológica
existente entre eles:
8 “Abriu uma conta conjunta no banco em nome de Ezequiel e dela, preencheu os papéis e fê-lo imitar a
assinatura que um dia escrevera no bilhete de identidade [...]. E foi ao banco entregar uma ordem de
transferência mensal para o lar de acolhimento. Era caro, dadas as condições da instituição, as mínimas
aceitáveis [...]. No lar ficaram com o número de telemóvel dele e de Diego, para alguma emergência. E
recomendação de não aceitarem visitas para Ezequiel de mais ninguém senão os dois, para despistar alguma
tentativa da moça ou algum familiar ressuscitado das cinzas.” (PEPETELA, 2017, p. 268).
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foram resolvidos. “Eu vi te transformares e não fiz nada. Também tenho culpa”
(PEPETELA, 2017, p. 352).
A interação com Diego refaz-se 9 para logo a seguir dissolver-se 10 por completo, em um
movimento que ensaia avançar para, em seguida, recuar por completo. Dessa forma,
concordamos com a acepção de Adorno (1985) de que a gênese social do indivíduo pode
revelar-se como o poder que o aniquila. “Sofia continuou calada. As lágrimas corriam dos
olhos. [...] Por que não me destes chapadas e dissestes o que eu devia ouvir? Só agora. Tarde
demais” (PEPETELA, 2017, p. 354).
O reflexo do contexto de guerra, perdas e agressões sofridas pela protagonista
manifesta-se, em última instância, como violência herdada e transfigurada em falta ética
legitimada: “Eu sou o que fizeram de mim. O teu país” (PEPETELA, 2017, p. 355).
Com a saída do irmão de casa e o rompimento do vínculo que os unia, Sofia volta os
olhos para Himba de seu passado. A fim de tentar redescobrir-se, busca-se em um desenho 11
seu feito pelo irmão há muitos anos e na ilha onde viveu quando estava nas ruas com Kassule.
Mas não encontra consolo.
Sermos desfeitos pelo outro é uma necessidade primária, uma angústia, sem dúvida,
mas também uma oportunidade de sermos interpelados, reivindicados, vinculados
ao que não somos, mas também de sermos movidos, impelidos a agir, interpelarmos
a nós mesmos em outro lugar e, assim, abandonarmos o eu autossuficiente como
um tipo de posse (BUTLER, 2017, p. 171).
Despossuída de si, Sofia já não encontra Himba nem vestígios de quem era. Na ilha
pela qual perambulou há tantos anos como indigente, ela fica a observar o mar. “Viu os
novelos de ondas no mar. Os novelos também estavam escuros, oleosos, restos derramados
de petróleo, ameaçadores. Diego disse mesmo, é esse o nosso futuro, a ditadura da ganância?”
(PEPETELA, 2017, p. 356).
Tentando reencontrar o passado, Sofia encontrou o futuro. “Minha asa está pronta
para o voo altivo:/se pudesse, voltaria,/pois ainda que ficasse tempo vivo,/pouca sorte teria”
(SCHOLEM apud BENJAMIN, 2012, p. 11). O futuro, entretanto, revela-se igualmente
incontornável e devastador. 12 Tal qual o anjo da história da tela de Klee.
9 “Ela concordou com a cabeça. Agora estavam em sintonia, como antes, como durante tantos anos.”
(PEPETELA, 2017, p. 353).
10 “- Não posso mais morar contigo. Vou arrumar minhas coisas e deixar essa casa. [...]. Não vou ser um escravo
desta ditadura de ganância, que parece ser o nosso destino. Outros sejam escravos. Eu sou diferente.”
(PEPETELA, 2017, p. 354, grifos nossos).
11 “Chorou por cima do retrato, porque ele lhe dizia coisas que ela não queria ouvir. Diego sabia como ela era.”
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Referências
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Este foi o último que artigo que escrevi com minha querida Rô. Em um tempo
enlutado, podemos aqui render uma breve homenagem, embargado pelo monstruoso
sentimento de perda e pesar, se faz premente que este texto, em sua publicação, fique em
honra de sua lembrança e uma singela despedida. Ao longo de sua vida acadêmica, com todos
os títulos que construiu Brasil a fora, debruçou seus lindos e amáveis olhos com ternura e
amor sobre o ambiente acadêmico. A enorme força humana da professora e pesquisadora
Rosilda foi singularmente ímpar, ficamos todos com um vazio sem nome. Nestes tempos de
abismo no Brasil, tempos duros e absurdamente com mentalidade colonial, Rô nos foi
subtraída de forma violenta por uma necropolítica que se abateu durante a pandemia do vírus
Covid 2019. Rosilda Alves Bezerra – Presente!! In memoriam – (03/07/1966 – 21/02/2020)
‘O vendedor de Passados’ (2004), romance do autor angolano José Eduardo Agualusa,
tem como narrador uma osga (lagartixa), de nome Eulálio, que conta a história de Félix
Ventura, um negro albino que vende passados para indivíduos ansiosos por uma nova
identidade e uma recriação de sua árvore genealógica. O narrador acompanha o trabalho de
comerciante de passados ou de memórias, contando sobre como constrói e organiza os
passados que vende, além de apresentar detalhes sobre a vida dos clientes e sobre a própria
vida do recriador de memórias. O objetivo deste trabalho é apresentar de que forma as
subjetividades são reconstruídas por esse vendedor, podendo funcionar como uma retomada
às questões voltadas para a reelaboração identitária da própria nação e do povo angolano no
período pós-colonial.
No ritmo lento, por vezes caudaloso de um rio de nossa vida terrena, - o que foi
esquecido faz-se necessário lembrar, ser rememorado, o rio Lete 13 faz e a figura de
Mnemosyne 14, desfaz a divindade da memória, responsável por unir as pontas que constituem
13 A respeito da deusa que representa a memória, na mitologia grega: “Os gregos da época arcaica fizeram da
memória uma deusa, Mnemosyne. É a mãe das nove musas, que ela procriou no decurso de nove noites passadas
com Zeus. Lembra aos homens a recordação dos heróis e de seus altos feitos, preside a poesia lírica. O poeta é,
pois, um homem possuído pela memória, o aedo é um adivinho do passado, como o adivinho o é do futuro”
(LE GOFF, 2008, p. 433).
14 O papel da memória na perspectiva mitológica: “Mnemosyne, revelando ao poeta os segredos do passado, o
introduz nos mistérios do Além. A memória aparece então como um dom para iniciados, a anamnesis, a
reminiscência, como uma técnica ascética e mística. Também a memória joga um papel de primeiro plano nas
doutrinas órficas e pitagóricas. Ela o antídoto do Esquecimento. No inferno órfico, o morto deve evitar a fonte
do esquecimento, não deve beber no Letes, mas, ao contrário, nutrir-se da fonte da Memória, que é uma fonte
da imortalidade” (LE GOFF, 2008, p. 434).
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aquilo que somos e aquilo que seremos, como diz Alcméon de Crotona, “Os homens morrem
porque não são capazes de juntar o começo ao fim” (CANDAU, 2011, p.59).
A memória é ‘uma ilha de edição’, epigrama ‘recitado-cantado’ pelo poeta baiano Waly
Salomão, a capacidade de humano de modificar a si e ao mundo por intermédio de suas
construções simbólicas e imaginárias, memórias que têm um papel fundante nessa seara, cujos
caminhos do bosque da História se bifurcam abrindo as portas da recepção de uma narrativa,
muitas vezes mal contada, enviesada pelos poderes hegemônicos, pela voz do vencedor; então,
como fica a voz do moleiro, do(a) retirante ou do(a) assistente de assuntos gerais; a lavandeira
que se abala até o riacho, ou mesmo a voz do poeta, do aedo. Escolhemos nossas memórias e
elas são escolhidas. Ao aludirmos ao poeta, faz-se jus ao que nos assevera Le Goff,
A poesia, identificada com a memória, faz desta um saber e mesmo uma sabedoria,
uma Sophia. O poeta tem o seu lugar entre os ‘mestres da verdade’ [...] e, nas origens
da poética grega, a palavra poética é uma inscrição viva que se grava na memória
como no mármore [...]. Disse-se que, para Homero, versejar era lembrar (LE
GOFF, 2008, p. 434).
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época da independência do país em relação a Portugal e contou com mais de 500.000 soldados
e civis mortos. A população acabou por padecer aos nefastos efeitos daquela que foi
classificada como a mais funesta e longínqua guerra civil africana.
Após a revolução de 25 de Abril de 1974, Portugal conferiu a independência a todas as
colônias. Angola ergueu a sua bandeira a 11 de novembro de 1975, depois da assinatura do
Acordo de Alvor. Foi depois dessa autorização, que as forças conjuntas do Movimento
Popular para a Libertação de Angola (MPLA), a Frente Nacional de Libertação de Angola
(FNLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) formaram um
governo transitório. Em menos de um ano, esse governo fragmentou-se e, com a ajuda da
União Russa Socialista Soviética (URSS) e dos militares cubanos, o MPLA passou a dominar
grande parte de Angola, com José dos Santos assumindo a liderança do Movimento Popular.
De forma indireta, o Governo dos Estados Unidos da América, do Brasil e de África do Sul
decidiram financiar a Independência Total de Angola (UNITA) fornecendo armas, munições,
relatórios de inteligência e mercenários.
A luta estendeu-se até 1991, até um pacto intermitente ser lançado, conhecido como
‘Acordos de Bicesse’. O referido acordo tinha como principal objetivo cessar-fogo de imediato
e dispersar todas as tropas cubanas e sulafricanas e designou um novo governo nacional e
respetivo exército, juntamente com as primeiras eleições multipartidárias de Angola. Após um
ano, o candidato do MPLA, José dos Santos, obteve 49% dos votos, contra o Dr. Jonas
Savimbi, que obteve apenas 40% dos votos da população. Por contestar o resultado, Savimbi,
com o apoio da UNITA, recobra a continuidade da guerra contra o MPLA.
Angola retorna a se afundar numa guerra civil agressiva até a assinatura do ‘Protocolo
de Lusaca’, em novembro de 1994. Esse protocolo objetivava determinar a paz, entretanto,
esta se assegurou por pouco tempo. Os combates militares cessaram somente em 2002, com a
morte do líder da UNITA, Jonas Savimbi e de milhares de civis e militares mortos e cerca de
um milhão de refugiados disseminados pelas fronteiras e regiões dos países vizinhos.
A economia em Angola, assim como integralmente a população, suportou os efeitos
truculentos da guerra civil, porém, com o fim da batalha, o governo angolano resolveu investir
em proveito dos recursos naturais mais relevantes que existem em seu domínio,
principalmente o petróleo e diamantes, além de outras áreas. No entanto, por causa do alto
índice de corrupção e desigualdade social incomensurável, Angola prossegue na lista dos
países com um baixo índice de desenvolvimento humano (PESTANA, 2006).
Em entrevista no Brasil, no ano de 2017, Agualusa explica o fato de que “Com o
tempo, as gerações mais antigas acabaram se conformando com a realidade de Angola, ou até
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pior, se corromperam. Os regimes totalitários fazem isso, destroem a alma das pessoas." Essa
crítica política e social é um tema recorrente nos livros do autor, principalmente, no romance
analisado neste artigo, ‘O vendedor de passados’, publicado em 2004. Nessa narrativa,
descreve-se o passado como exemplo para rememorar na repreensão com o presente e o
desejo de futuro, uma vez que: “passado não está simplesmente ali na memória, mas tem de se
articular para se transformar em memória” (MATA 2006, p. 30).
No caso da narrativa de ‘O vendedor de passados’, de Agualusa, publicado em 2004, a
investigação se envereda sob a perspectiva da memória e do esquecimento. Para Chaves (2000,
p. 245), “Profundamente marcada pela História, a literatura de países africanos de língua
portuguesa, traz a dimensão do passado como uma de suas matrizes de significado.” E é nesse
contexto do passado, que está inserido ‘O vendedor de passados’, conta a história de um
homem que criava passados falsos para clientes ricos e, portanto, produzia identidades novas.
Nessa narrativa existe um conjunto de personagens, que são esquecidos ou querem ser
esquecidos e é através desse esquecimento que muitos almejam assumir outra alteridade, no
sentido de uma identidade inacabada, um porvir.
A narrativa inicia com o personagem Félix Ventura, um angolano albino que possui o
ofício de vender passados falsos. Nesse caso, os clientes são promissores empresários,
generais, políticos, enfim, são os novos ricos angolanos, os emergentes de uma nova
burguesia, que procuram por Ventura, para garantir um passado de sucesso, uma vez que já
lhe é garantido um futuro próspero. Félix Ventura assumiu uma peculiar forma de trabalho
que é o de vender passados falsos, fictícios: “Ele vende-lhes um passado novo em folha.
Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as fotografias dos avós e bisavós, cavalheiros de fina
estampa, senhoras do tempo antigo” (AGUALUSA, 2004, p. 29). Os clientes são
diversificados: “Eram empresários, ministros, fazendeiros, camanguistas, generais, gente,
enfim, com o futuro assegurado. Falta a essas pessoas um bom passado, ancestrais ilustres,
pergaminhos” (AGUALUSA, 2004, p. 29).
A narração do romance é feita por uma osga 15 que, ao se deparar com uma memória
15 De acordo com o dicionário: ‘Osga’, a lagartixa, em Portugal – (zoologia) designação comum, extensiva a
diferentes espécies de pequenos sáurios insectívoros, da família dos Geconídeos, algumas das quais vulgares nas
regiões mais quentes do país, que apresentam as extremidades dos dedos alargadas em formações discóides,
próprias para a locomoção em paredes, muros; (Tarentola mauritanica) pequeno sáurio pode atingir cerca de 15
centímetros e apresenta corpo achatado com cabeça destacada e de formato triangular, cauda fina e comprida e
pele rugosa de coloração variável, geralmente parda ou olivácea, por vezes com manchas no dorso (Disponível
em: <https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa-aao/osga>). No Brasil, o nome também varia
conforme a região do país: é conhecido como osga no Norte e como briba no Nordeste; e na fala popular tem
o sentido de: má vontade, ódio, aversão. (in: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa –
<https://dicionario.priberam.org/osga> [consultado em 01-10-2020].
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diferenciada, especialmente inventada, toma forma e realidade para quem a assimila. Nesse
sentido, o passado precipita-se e se torna elaboração diária:
Podem argumentar que todos estamos em constante mutação. Sim, também eu não
sou o mesmo de ontem. A única coisa que em mim não muda é o meu passado: a
memória do meu passado humano. O passado costuma ser estável, está sempre lá,
belo ou terrível, ele ficará para sempre. (Eu acreditava nisto antes de conhecer Félix
Ventura) (AGUALUSA, 2004, p. 75).
Explicou que pretendia fixar-se no país. Queria mais do que um passado decente,
do que uma família numerosa, tios e tias, primos e primas, sobrinhos e sobrinhas,
avós e avôs, inclusive duas ou três bessanganas, embora já todos mortos,
naturalmente, ou a viverem no exílio, queria mais do que retratos e relatos
(AGUALUSA, 2004, p. 31).
Dessa forma, nesse estranho ofício, Félix cria uma genealogia de ostentação e
memórias agradáveis “[...] gostariam de ter um avô com o porte ilustre de um Machado de
Assis, de um Cruz e Souza, de um Alexandre Dumas, e ele vende-lhes esse sonho singelo”
(AGUALUSA, 2004, p. 29). O enredo fica cada vez mais misterioso, por causa de uma visita
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Na realidade, o que tomamos por espaço vazio era apenas uma zona um tanto
indecisa, da qual nosso pensamento desviava porque aí encontrava muito poucos
vestígios. No presente, se nos indicarem com precisão o caminho que seguimos,
esses vestígios se destacam, nós os ligamos uns aos outros, eles se aprofundam e se
reúnem por si mesmos. Eles existiam, mas estavam mais acentuados na memória
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dos outros do que em nós. Claro, nós reconstruímos, mas essa reconstrução
funciona segundo linhas já marcadas e planejadas por nossas outras lembranças ou
por lembranças de outros. As novas imagens são atraídas ao que permaneceria
indeciso e inexplicável sem essas outras lembranças, mas nem por isso são menos
reais (HALBWACHS, 2003, p.98).
José Buchmann investiga o seu novo passado e, na medida em que é recriado por
Félix Ventura, a convergência com algumas circunstâncias deslumbram com a capacidade da
coexistência com o despropósito. O rastreio de sua hipotética mãe, a aquarelista
norteamericana Eva Mullher, a exibição do corredor cheio de espelhos e de seu isolamento no
apartamento em Nova Iorque, a aquarela descoberta e o anúncio de seu falecimento na Cidade
do Cabo, são detalhes que preenchem a sua nova identidade. A forma como Buchmann
encarnava a sua nova vida deixa o Félix Ventura completamente impressionado com o
resultado da sua criação:
Olhando para o passado, contemplando-o daqui, como contemplaria uma larga tela
colocada à minha frente, vejo que José Buchmann não é José Buchmann, e sim um
estrangeiro a imitar José Buchmann. Porém, se fechar os olhos para o passado, se o
vir agora, como se nunca o tivesse visto antes, não há como não acreditar nele —
aquele homem foi José Buchmann a vida inteira (AGUALUSA, 2004, p. 81- 82).
Era filha única, ela, ou, pelo contrário, crescera cercado de irmãos? E os pais, o que
faziam? Ângela teve um gesto de enfado. Levantou-se. Voltou a sentar-se. Fora filha
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única durante quatro anos. Depois vieram duas irmãs e um irmão. O pai era
arquiteto, a mãe aeromoça. O pai não era alcoólico, nem sequer bebia álcool, e não,
jamais a molestara sexualmente (AGUALUSA, 2004, p. 149).
A escrita de Félix Ventura permite abrir espaço para o esquecimento que seus
clientes fazem questão de praticar, comprando passados novos, assegurados por um presente
vigente. Ou seja, no romance citado, a escrita elaborada pelas personagens centrais parece
concordar com a reconstrução de uma nova história, não somente para reescrever a nova vida
das personagens, como também a criação de novos enredos para Angola pós-libertação.
Assim como nessa tentativa de tornar crível o passado reconstruído, o passado-simulacro
funciona tal qual uma fonte histórica,
Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte
oral permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas de memória, cavar
fundo em suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta (THOMPSOM,
1998, p. 197).
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Referências
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com a história das culturas africanas e afrobrasileiras não deve ser diferente. Nesse sentido,
medidas que tentam diminuir o racismo e reforçar práticas antirracistas foram deliberadas pelo
Governo Federal, a partir da Lei 11.645/08 (BRASIL, 2008), 19 anteriormente 10.639/03
(BRASIL, 2003), que propõe uma cuidadosa atenção na implementação da diversidade
etnicorracial da sociedade brasileira nas práticas escolares. Essas leis não são apenas
instrumentos de orientação para o combate à discriminação, elas reconhecem a escola como
um lugar de formação cidadã, como também afirmam a relevância de promover a valorização
necessária das raízes culturais que fizeram do Brasil um país múltiplo e plural.
Durante longo período, essa multiplicidade foi marginalizada também na Literatura.
Aos negros e negras, foi negado o direito de exercer qualquer papel de protagonista ou
mesmo, de personagem secundário na Literatura Brasileira, que não fosse submisso à
dominação branca. Segundo Oliveira (2009), quando se atribui um papel ao negro em algumas
obras literárias infantis ele é mais do que subalternizado, é também desqualificado e chega até
a ser animalizado. Esses fatores são responsáveis por desestabilizar as personagens, suas
personalidades e subjetividades, fazendo com que a literatura reflita o que de mais negativo há
na sociedade: a discriminação e o desrespeito com o segmento negro. Sendo assim, as
atribuições dadas às personagens negras na literatura não só reforçam estereótipos, como
também, não contribuem em nada com ações antirracistas e com a valorização das
características africanas e afrobrasileiras, que incluem suas tradições, crenças e, sobretudo, suas
cores e seus traços, o que corrobora o que está contido nas produções infantis de Kiusam de
Oliveira.
Nesse sentido, refletiremos como o processo de construção das identidades se dá nas
narrativas ‘Omo-ba: histórias de princesas’ e ‘O mundo no black power de Tayó’, a partir das
protagonistas das obras: princesas afrobrasileiras, poderosas, determinadas, inteligentes, entre
outras qualidades, e uma garota de 6 anos que possui um enorme, lindo e cheiroso cabelo,
estilo black power, onde carrega a herança ancestral de um povo forte e corajoso, como é
retratado não só nessa obra, mas em todas as produções da autora.
A forma como as personagens são retratadas nas narrativas demonstram preocupação
com responder, de forma positiva, aos construtos sociais do contexto atual, sob o largo manto
do racismo e das cicatrizes de um colonialismo intelectual que perpassa gerações. Não se fala
aqui somente da beleza feminina negra, mas atribuem-se características fascinantes às garotas.
Já no início de ‘O mundo no black power de Tayó’, destacamos a escolha de um léxico
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Com efeito, o cabelo crespo figura, na sociedade racista, como um estigma negativo da
mistura racial, por isso é tratado com um grau intenso de inferioridade. Estruturalmente, as
pessoas que possuem tal característica são desvalorizadas e ensinadas, desde cedo, a não
valorizarem essa estética, assim como outras que não se enquadram no padrão de beleza da
branquitude constituído, principalmente, no Brasil. Sendo assim, mulheres e crianças só veem
aquilo que o racismo coloca a sua frente. Nilma Lino Gomes (2019), autora de ‘Sem perder a
raíz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra’, explica que:
O cabelo do negro, visto como ‘ruim’, é expressão do racismo e da desigualdade
racial que recai sobre esse sujeito. Ver o cabelo do negro com ‘ruim’ e o do branco
como ‘bom’ expressa um conflito. Por isso, mudar o cabelo pode significar a
tentativa do negro de sair do lugar da inferioridade ou a introjeção dele. Pode ainda
representar um sentimento de autonomia, expresso nas formas ousadas e criativas
de usar o cabelo. Estamos, portanto, em uma zona de tensão. No Brasil, esse
padrão ideal é branco, mas o real é negro e mestiço. [...] A consciência ou o
encobrimento desse conflito, vivido na estética do corpo negro, marca a vida e a
trajetória dos sujeitos. Por isso, para o negro, a intervenção no cabelo e no corpo é
mais do que uma questão de vaidade ou de tratamento estético. É identitária
(GOMES, 2019, p. 29).
Dessa forma, na obra analisada, a protagonista expressa, através do seu black power, a
construção positiva de uma identidade não conflitante com os padrões de branquitude.
Embora, seus colegas de escola tenham ainda essa visão preconceituosa sobre seu cabelo,
Tayó é totalmente descomprometida com o que suscita o mercado global. A menina, apesar
de, explicitamente, não demonstrar, se entende e se quer como negra, mesmo que a sociedade
tente diferenciá-la por sua cor e seus traços. O que está de acordo com a experiência e a
perspectiva de Neusa Santos Souza (1983), quando infere que “saber-se negra é viver a
experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas,
submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também e, sobretudo, a
experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades”
(SOUZA, 1983, p. 17-18).
Diante disso, Castells (2008) aponta que é a partir da ação e da preservação da
memória coletiva que as comunidades locais são construídas e constituem fontes específicas
de identidades, que lutam constantemente contra as condições impostas pelo ritmo
incontrolável da sociedade global. Logo, outro ponto forte difundido na obra infantil de
Kiusam de Oliveira são os traços socioculturais que desencadeiam ações importantes dentro
das narrativas de ‘Omo-Oba: histórias de princesas’ (2009).
Nessa obra, notamos como as crenças e as heranças culturais advindas de povos
africanos e afrobrasileiros são apresentadas aos leitores de forma simples e didática. Dividido
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em pauta, também, a necessidade de direito de resposta ao que, por muito tempo, foi e ainda é
suscitado pelo mercado global. No momento em que vivemos, muitos movimentos, sejam eles
virtuais ou presenciais, objetivam lançar a este mundo falocêntrico e racista, contestações aos
modelos eurocêntricos de beleza. Em vista disso, os espaços virtuais têm sido um cordão de
apoio recíproco para a reeducação de práticas discursivas, estéticas, sociais e políticas
sustentadas pelos efeitos do colonialismo e do padrão de branqueamento que vem sendo
construído:
No contexto atual, as jovens negras se organizam por meio das redes sociais e têm
construído espaços virtuais e presenciais de apoio mútuo. [...]. As plataformas
virtuais com essa temática são acessadas por um número enorme de seguidoras.
Páginas da web norte-americanas e de outros países com objetivos semelhantes
também são acionadas, construindo-se assim uma rede de contatos internacionais
entre essa juventude negra, ajudando no aprendizado e na compreensão de novos
idiomas e criando relacionamentos pessoais em uma sociedade que tende cada vez
mais a uma vida mediada pela tecnologia, pelas novas mídias e suas estratégias.
Essas estratégias tecnológicas também dialogam com o mercado e, muitas vezes,
atuam como espaço de propaganda de produtos étnicos de marcas brasileiras e
estrangeiras, terminando por se transformar em fontes de renda não formal em um
contexto no qual o trabalho formal tem estado cada vez mais escasso e sofrido
todas as investidas capitalistas para a sua precarização (GOMES, 2019, p. 21).
Esse tipo de atitude manifesta o desejo de mudança social que o mundo precisa para
reparar os danos incalculáveis e indiscutíveis que repercutem, até os dias atuais, em todo o
globo, principalmente, porque estamos tratando de práticas que simbolizam um grande
impacto na construção identitária, sobretudo, feminina, o que nos faz refletir junto com a
escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie que: “a cultura não faz as pessoas. As pessoas
fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então
temos que mudar nossa cultura” (ADICHIE, 2017, p. 57). Sendo assim, ‘Omo-ba: histórias de
princesas’, é um livro que transforma a perspectiva das leitoras e dos leitores, pois quebra as
expectativas criadas, há muito tempo, sobre o ideal de princesas. Nos contos, as garotas negras
se salvam por conta própria e possuem poderes e vozes, o que faz delas independentes e
autoconfiantes. Além disso, cada uma é representada com características pessoais, elucidadas
por uma estética distante dos estereótipos que, infelizmente, se impuseram na sociedade e na
literatura por muito tempo.
Como exemplo disso, no capítulo 5 intitulado ‘Ajê Xalugá e o seu brilho intenso’,
notamos como as descrições da princesa configuram forte empoderamento: “desde criança,
Ajê Xalugá tinha como atributos a beleza, a vaidade, a impetuosidade, a curiosidade, o
empoderamento, o orgulho, a determinação e a coragem. Nadava como ninguém e dominava
a força de todas as ondas e das marés” (OLIVEIRA, 2009, p. 35). Além de possuir beleza
única, a personagem conseguia controlar as ondas e as marés, demonstrando ser o tipo de
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Oiá era uma linda princesa menina, muito conhecida ela sua determinação. Gostava
muito de usar seu adê, isto é, sua coroa de palha da costa enfeitada com búzios.
Também levava sempre em sua mãe esquerda seu erukerê, seu cetro de princesa, que
também servia para espantar os mosquitos e alguns espíritos. (OLIVEIRA, 2009, p.
11, grifos nossos)
É importante ressaltar, também, que é urgente reconhecer a diversidade sociocultural e
política presente no Brasil e advinda do continente Africano que, por tantas vezes, foi
conceituado comedidamente, além de ter sua imagem distorcida e, da mesma forma, uma
cultura limitada, sempre que mencionada, daí a necessidade e a importância das Leis
10.639/03 (BRASIL, 2003) e 11.645/08 (BRASIL, 2008). A promulgação destas leis foi
resultado do empenho dos movimentos negros na busca pela igualdade racial, através da
educação e da política de ações afirmativas. Certamente, o direito de negros e negras em se
fazerem presentes, tanto na educação básica, por terem suas histórias conhecidas de forma
não realista, sob o olhar do branco, como na literatura, por ocuparem papéis secundários de
submissão, são resultado de muitas lutas diárias, para não falar do direito de existir em outros
espaços sociais, visto que no Brasil, a violência, sobretudo contra mulheres negras, apresenta
níveis inacreditavelmente elevados.
A produção infantil de Kiusam de Oliveira é, sem dúvidas, um caro exemplo de
resistência e de luta antirracista. Temáticas como a beleza negra, o empoderamento feminino,
a valorização das culturas, das crenças e, sobretudo do corpo, são de máxima importância para
países como o Brasil. As discussões que se estendem sobre o cabelo, forte símbolo identitário
negro, nos fazem refletir sobre a complexidade da estética feminina em um contexto que não
diz respeito somente à estética, mas à forma de se encaixar em uma sociedade excludente e,
principalmente, preconceituosa. Desse modo, as discussões nos encaminham para um debate
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sociopolítico. Por isso, é imprescindível analisar obras que tratem dessas questões como uma
luta diária, para que a reeducação de práticas e discursos antirracistas possam aumentar, cada
vez mais, pois como explicita Bell Hooks (2019):
Apesar das lutas pelos direitos civis, do movimento black power [poder negro] nos
anos 1960 e de slogans poderosos como black is beautiful [negro é lindo], multidões
de pessoas negras continuam a ser socializadas via mídia de massa e sistemas
educacionais não progressistas para internalizar pensamentos e valores da
supremacia branca. Sem uma luta de resistência contínua e movimentos
progressistas de libertação dos negros pela autodefinição, massas de pessoas negras
(e de todas as outras pessoas) não têm uma visão de mundo alternativa que afirme e
celebre a negritude (HOOKS, 2019, p. 60).
Considerações finais
Podemos constatar que os discursos encontrados nas obras analisadas apresentam, de
maneira positiva, as características físicas, os comportamentos, as tradições, a cultura e o
reconhecimento do ‘eu’ em todo o universo multifacetado e plural em que se encontram as
personagens principais das obras. Além disso, a autora utiliza uma criticidade política
necessária à sociedade, quando propõe compor protagonistas independentes, poderosas e
livres. Independentes porque não precisam de ninguém mais, além delas mesmas, para
resolverem as situações, sejam elas do dia a dia na escola, como em ‘O mundo no black power
de Tayó’, ou no mundo de fantasia, onde nasce a princesa Ajê Xalungá que, com seu poder,
pode controlar o mar, sua calmaria ou sua fúria. Poderosas e livres, pois podem ter qualquer
poder e, mesmo assim, escolher não usá-lo, se dedicando a outra atividade qualquer.
Partindo da assertiva de que a literatura pode assumir um papel norteador na
construção reflexiva do indivíduo social, pois pode despertar uma postura crítica dos
ambientes ideológicos nos quais estamos inseridos, afirmamos novamente a necessidade de
observar obras que protagonizem questões identitárias e, sobretudo, obras que alimentem a
valorização dessas questões. Em meio ao acesso de informações que se pode ter atualmente, é
fundamental que leitores mirins conheçam histórias que fundamentem posturas igualitárias na
sociedade e que promovam o respeito a diversidade de culturas existentes no mundo.
Por fim, é importante ressaltar que a escola, assim como outras instituições
formadoras da inserção social, têm sido palco em que as diferenças entre brancos e negros são
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vistas, acentuadas e reforçadas e, por essa razão, o papel da literatura torna-se ainda mais
imprescindível quando, através de obras como ‘Omo-oba: histórias de princesas’ e ‘O mundo
no black power de Tayó’, podemos refletir sobre a consciência e o respeito a características
individuais e coletivas.
Referências
ADICHIE, C. N. Sejamos todos feministas. Trad. Christina Baum. São Paulo: Companhia
das Letras, 2017.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
CASTELLS, Manuel. O poder da Identidade. Volume II. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
CUTI (Luiz Silva). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo negro, 2010.
DUARTE, Eduardo Assis. Literatura Afro-brasileira: um conceito em construção. In
AFOLABI, Niyi; BARBOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Orgs.) A mente afro-
brasileira. Trenton-NJ, EUA / Asmara, Eritréia: África World Press, 2007, p. 103-112.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade
negra. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora
UFJF, 2005.
HAMPATÉ BÂ, A. Tradição Viva In. História geral da África: Metodologia e pré-história
da África / editado por Joseph Ki –Zerbo.2.ed. rev. – Brasília: UNESCO, 2010.
OLIVEIRA, Kiusam de. O mar que banha a ilha de Goré. São Paulo: Peirópolis, Fundação
Biblioteca Nacional, 2014.
OLIVEIRA, Kiusam de. Omo-Oba: histórias de princesas. Belo Horizonte: Mazza Edições,
2009.
OLIVEIRA, Kiusam de. O mundo no black power de Tayó. São Paulo: Peirópolis, 2013.
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A ideia de território, de uma identidade pela região surge com o Estado Nação
Ocidental, passando pela revolução industrial. No entanto, esse entendimento de
pertencimento foi fundamentado por meio de dois pilares: a autoidentificação dos sujeitos e a
dominação estatal. Em contrapartida, a mobilidade de pessoas, ideias, produtos e a
reafirmação identitária fazem com que tais conceitos sejam questionados e revistos. Nos países
onde ocorreu a colonização, pertencer a algo se faz de maneira mais complexa e conflituosa,
principalmente na África colonial.
Segundo Moraes (1991), os países que se estabelecem em meio à configuração da
periferia ultramarina ou do capitalismo hipertardio e de formação colonial, compreendem com
maior ênfase a problemática da formação identitária. Isso se dá, como um reflexo da ruptura
dos laços tradicionais com a dominação imposta pelas colônias que implicou na construção de
um Estado novo. Ainda segundo o autor citado, mesmo que tais processos sejam advindos de
modernizações conservadoras, isso prevalecendo na maioria das vezes, não é capaz de
diminuir a necessidade de serem construídas novas formas de legitimar a unidade ‘nacional’.
Por outro lado, deve-se pensar que esses países também conhecem tal sociabilidade, e por
assim serem, é que justifica suas origens resultantes dos processos de expansão territorial e
ocupação de espaços.
A definição de um conceito para território tem sido alvo de muitos debates que geram
posições epistemológicas diferentes. Para Haesbaert (2013), alguns autores confundem a
noção de território com a de espaço, como no caso de Milton Santos (1978, p.122), para quem
“o espaço é um verdadeiro campo de forças cuja formação é desigual. Eis a razão pela qual a
evolução espacial não se apresenta de igual forma em todos os lugares.” Disso resulta que o
conceito de espaço seja compreendido como um conjunto de formas representativas que
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Nesse contexto, o território faz parte das relações de dominação e/ou de apropriação
entre sociedade e espaço, não se resumindo apenas a estas, pois está diretamente ligada a
dominação politicoeconômica, partindo da concepção de base mais concreta e funcional até
uma apropriação de caráter mais subjetivo. Dessa forma, é interessante pensar que o território
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simbólico surge como um elemento que invade e refaz a ideia de funcionalidade dos territórios
(ligado diretamente à dominação), tornando-se, também, simbólica, porém tal transformação
não surge apenas do espaço vivido, pois ela é fruto da reconstrução identitária em função dos
interesses dos sujeitos que vivenciam as transformações sociais rotineiramente.
É necessário entender que “os objetivos do controle social através de sua
territorialização variam conforme a sociedade ou cultura, o grupo e, muitas vezes, com o
próprio individuo” (HAESBAERT, 2007, p.22). Isso, portanto, equivale às diferentes formas
de construção dos territórios que versam diferentemente, podendo ser através de indivíduos,
Estado, empresas, instituições, grupos sociais e outros. Nesse contexto, fica claro que as
relações de poder são cruciais para a constituição na definição de território, visto que ele é
construído e desconstruído dentro das mais heterogêneas escalas temporais possíveis, que
pode ter caráter permanente como também periódica.
Partindo dessa direção, Saquet (2006) argumenta que território significa
heterogeneidade, isso leva a uma concepção de traços mais comuns e estabelece sua ligação
com as ideias de apropriação e dominação já arraigada historicamente. Além de ser, segundo o
autor, um produto e condição histórica formada por múltiplas variáveis. “É espaço de
moradia, de produção de serviços, de mobilidade, de desorganização, de arte, de sonhos,
enfim, de vidas (Objetiva e subjetivamente)” (SAQUET, 2006, p.83). Para ele, o território é,
portanto, processual e relacional, de característica tanto material como imaterial, formado por
diversidades e unidades.
Milton Santos (1999), em seus escritos, traz reflexões acerca da concepção de
território. Para ele:
(...) o território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de
coisas superpostas. O território tem que ser entendido como o território usado, não
o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o
sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do
trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da
vida (SANTOS, 1999, p. 08).
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Partindo da ideia de Glissant (op. cit.), o território pode ser entendido, tanto como um
espaço vivido como um sistema percebido do qual um sujeito se sente ‘em casa’. Nesse
sentido, não existe território sem uma possibilidade e o processo de saída do homem de um
território gera o que Haesbaert classifica como desterritorialização. O movimento de
deslocamento de um lugar para o outro produz a retorritorialização, seja ela consciente ou
não. O Território pode, então, ser entendido como um agenciamento, sendo possível ser
territorializado e desterritorializado. Dessa forma, um agenciamento compreende, segundo
Deleuze e Guattari (2011), um crescimento de dimensões pautado em uma multiplicidade que
muda de natureza na medida em que ela aumenta suas conexões. Diferente do que se
consegue encontrar em uma estrutura, numa árvore ou em uma raiz, o rizoma não possui
pontos, só linhas.
Dessa forma, o sujeito descentrado, é fruto não só dos fatos, mas também dos
conflitos históricos que se manifestam em meio à construção (desconstrução) social. As
manifestações das práticas no cotidiano social e cultural explicitam a necessidade de (não)
pertencimento, constituído por intermédio das crises sociais e dificuldade de enraizamentos,
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Pascoal sofria com o calor, suava o dia inteiro debaixo do sol, mas pela primeira vez
ao fim de muitos anos sentia-se feliz. Assim vestido, com um saco na mão, ele
oferecia prendas às criancinhas (preservativos doados por uma organização não
governamental sueca ao Ministério da Saúde) e convidava os pais a entrar na loja.
‘Sou o pai Natal cambulador’, explicou ao General.
Cambulador foi o ofício em Angola até à primeira metade deste século: gente
contratada para aliciar clientes à porta dos estabelecimentos comerciais. Cada dia
Pascoal gostava mais daquele trabalho. As crianças corriam para ele de braços
abertos. As mulheres riam-se, cúmplices, piscavam-lhe o olho (nunca mulher lhe
tinha sorrido); os homens cumprimentam-no com deferência:
— Boa tarde, Pai Natal! Este ano como é que estamos de prendas (AGUALUSA,
2009, p. 114-115, grifos do autor).
Pascoal vai vivenciando várias intemperies que, ora o deixam sem um rumo definido
em um entrelugar, ora lhe possibilitam ser reconhecido, mesmo que seja transfigurado em uma
personagem tradicional. Os agenciamentos que interpelam o personagem não acontecem sem
dores, sem conflitos, pois é na exposição direta com os elementos extracorporais que aumenta
a potencialidade do corpo. Nesse sentido, Brito (2012, p.22) argumenta que
É na altura do mais sutil, do mais baixo, que pode estar presente a fortaleza do
corpo sem órgãos, assim, dizem Deleuze e Guattari, o corpo sem órgãos ‘Não é
uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas. Ao
Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a
ele, é um limite’ (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 2006, p.9). Ele é um exercício de
força, de interação com o mundo, e só pode exercitar a sua potência quando deseja
a vitalidade.
Ao fim da segunda semana, quando a loja fechou, pascoal decidiu não tirar o
disfarce e foi naquele escândalo para a cervejaria. O General viu-se e não disse nada.
Serviu-lhe a sopa em silêncio.
— Faz muita miséria neste país — queixou-se o velho enquanto sorvia a sopa -, o
crime compensa.
Nessa noite não sonhou com a piscina. Viu uma senhora muito bonita a descer do
céu e pousar na beira da mesa de bilhar. A senhora usava um vestido comprido com
pedrinhas brilhantes e uma coroa dourada na cabeça. A luz saltava-lhe da pele como
se fosse um candeeiro.
— Tu és o Pai Natal — disse-lhe a senhora. — Mandei-te aqui para ajudar os
meninos despardalados. Vai à loja, guarda os brinquedos no saco e distribui-os pelas
crianças.
O velho acordou estremunhado. Na noite densa, em redor da mesa de bilhar,
flutuava uma poeira incandescente. Voltou a enrolar-se no cobertor, mas não
conseguiu adormecer. Levantou-se, vestiu-se de Pai Natal, pegou no saco e saiu
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para a rua. Em pouco tempo chegou à Mutamba. A loja brilhava, enorme na praça
deserta, como um disco voador. As Barbies ocupavam a montra principal, cada uma
no seu vestido, mas todas com o mesmo sorriso entediado. Na outra montra
estavam os monstros mecânicos, as pistolas de plástico, os carrinhos eléctricos.
Pascoal sabia que se partisse o vidro dessa montra, conseguiria passar a mão através
das grades e abrir a porta. Pegou numa pedra e partiu o vidro. Já estava a sair, com
o saco completamente cheio, quando apareceu um polícia. No mesmo instante,
atrás dele, acendeu-se uma acácia, na esquina, e Pascoal viu a senhora a sorrir para
ele, flutuando sobre o lume das flores. O polícia não pareceu dar por nada.
— Velho sem vergonha — gritou ele. — Vais dizer-me o que levas no saco?
Pascoal sentiu que a sua boca se abria, sem que fosse essa a sua vontade, e ouviu-se
a dizer:
— São rosas, senhor.
O polícia olhou-o, confuso:
— Rosas? O velho está cacimbado…
Deu-lhe uma chapada com as costas da mão. Tirou a pistola do coldre, apontou-a à
cabeça dele e gritou:
— São rosas? Então mostra-me lá essas rosas!
O velho hesitou um momento. Depois voltou a olhar para a acácia em flor e viu
outra vez a senhora sorrindo para ele, belíssima, toda ela uma festa de luz. Pegou no
saco e despejou-o aos pés do guarda. Eram rosas, realmente — de plástico.
Mas eram rosas (AGUALUSA, 1999, p. 112-113).
Referências
SANTOS, Milton. Por Uma Nova Geografia. São Paulo: Hucitec, 1978.
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Itamara Almeida 22
Rosilda Alves Bezerra (UEPB/PPGLI)
Introdução
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É diante desse cenário que escritoras como Conceição Evaristo têm conquistado a
crítica literária e leitores e leitoras pelo país e fora dele, pois vale ressaltar que os livros de da
citada escritora já foram publicados em diversas línguas, entre elas o inglês. Nesse sentido, este
texto resulta de uma pesquisa de cunho bibliográfico e de natureza interpretativa, logo,
qualitativa. Configura-se nos estudos dos aspectos temáticos dos textos selecionados do livro
‘A escrevivência em poemas’, buscando compreender as relações entre os lugares étnicos,
sociais e de gênero em diálogo com a memória ancestral, presentes nos poemas selecionados.
Rodeada por uma família extensa e de muitas mulheres, Conceição Evaristo, mulher
negra, de família humilde que cunha um termo com intuito de designar a situação do negro no
Brasil (OLIVEIRA, 2009), a ‘escrevivência’, ou seja, a escrita pela vivência, de uma condição
de pobreza, de classe social, de gênero e de etnia, não nega esse lugar social como
condicionantes de sua escrita. Conceição Evaristo tem consciência da luta de classe, ao
afirmar, em uma entrevista para o Jornal O Globo em 2016, de que a pobreza só pode
significar aprendizagem “[...] quando você a vence. Se não, é o lugar da revolta, da impotência,
da incompreensão.” Sua obra é, portanto, marcada por uma ficção-realidade, memórias que se
entrelaçam entre o vivido e o ficcional, ou seja, carrega um cunho autobiográfico que, como
nos lembra Diana Klinger (2006, p. 17), é “o núcleo do narrável na autobiografia e nas
memórias – a experiência – equivale à transformação do indivíduo.”
Outra marca comum em sua obra é a memória da coletividade, embora esteja falando
de si, em obras ficcionais, entendendo que a ‘escrita de si’ pode ser compreendia aqui como
diz Klinger (citando Ítalo Mariconi), a presença da autobiografia do autor em textos que, na
verdade, são de ficção (KLINGER, 2006, p. 11), mesmo que no decorrer de sua análise ela
problematize essa própria noção de Mariconi e afirme não está tão estabelecido assim o
“binarismo entre ‘fato’ e ‘ficção’.”
No livro ‘Beco da memória’ (2006), por exemplo, escrito ainda no fim dos anos de
1970 e que só foi publicada em 2006, a autora nos dá rastro acerca de sua inserção biográfica
na personagem Maria-Nova, ao mesmo tempo, proporciona uma solidariedade com todos os
sujeitos marginalizados (ficcionalizados ou não), que permeiam essa obra; “Homens,
mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos
de minha favela” (EVARISTO, 2006, p. 21).
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Velho ao Jovem’ e ‘A noite não adormece nos olhos das mulheres’, que não estarão dispostos
de modo linear quanto à ordem das páginas, mas pelo modo como foi possível fazer relações
entre eles.
Em ‘Para a menina’, poema que a autora dedica para meninos e meninas com ou sem
tranças nos cabelos, entendendo o elemento ‘trança’ como marca identitária do povo negro,
desresponsabiliza apenas esse povo, quando afirma ser dedicado para menino e meninas com
ou sem tranças, logo, deixando entender que a luta, a resistência e a esperança de dias
melhores é responsabilidade de todos.
Visto a menina
e aos meus olhos
a cor de sua veste
insiste e se confunde
com o sangue que escorre
do corpo-solo de um povo.
Temos, neste poema, um eu-lírico que segue a saga bastante recorrente nos poemas
aqui escolhidos, iniciando-se com as memórias de um passado doído, notado logo na primeira
estrofe em ‘medo nos caminhos’, recordando os antepassados e, na segunda estrofe, pode-se
confirmar com a passagem “dores nas marcas-lembranças/ de um chicote traiçoeiro.” No
entanto, no decorrer do poema, percebemos uma característica bastante marcante, que torna
Conceição Evaristo uma voz que ecoa sem vitimização e, na última estrofe quando o eu-lírico
‘sonha’ os dias da menina, “a vida surge grata” “e o sangue se estanca.”
Nota-se, também, que nos gestos concretos como desmanchar as tranças da menina,
na primeira estrofe, lavar o corpo da menina, na segunda e vestir a menina na terceira estrofe,
todos trazem memórias dos antepassados, memórias de dor e sofrimento, apenas quando se
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sonha os dias da menina é que há um caminho de esperança; além disso, quem sonha é quem
recorda quem recorda é quem deseja dias melhores para a nova geração, ‘para a menina’.
Já no poema ‘Vozes mulheres’, talvez o poema mais forte deste livro, o eu-lírico marca
e revisita em suas seis estrofes a condição do povo negro durante vários séculos,
especialmente das mulheres, da resistência das mulheres negras que perpassa de geração em
geração, começando pela bisavó:
A voz da minha bisavó
Ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
Arrancada de suas terras africanas, a voz da bisavó pode ser considerada o primeiro
momento em que os povos de África foram levados em navios negreiros para outros lugares, e
nisso: “ecoou lamentos/ de uma infância perdida.” Ao ponto que na segunda estrofe é o
tempo de escravidão no qual os brancos, “donos de tudo”, faz com que a voz da avó ecoe
obediência, servidão.
Na voz da mãe, pós-escravidão, ainda ecoa a servidão aos brancos, mas já se ouve
“baixinho revolta.” Aqui, e na estrofe seguinte notamos a relação mais nítida com a vida da
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autora, pois a mãe vai com “as roupagens sujas dos brancos [...]/ rumo à favela” e, como
sabemos da biografia da autora a mesma morou na favela do ‘Pendura Saia’ em Belo
Horizonte e as mulheres de sua família eram cozinheiras, faxineiras, lavandeiras. Já na estrofe
do presente, ou seja, aquela em que se coloca, em que faz ecoar a sua própria voz, ainda há
“versos perplexos/ com rimas de sangue/ e/ fome.” Notamos a denúncia de uma realidade
atual, que ainda não mudou para o povo negro e notamos a marca autobiográfica de um eu-
lírico que escreve, assim como a autora.
E, por fim, nas últimas estrofes, seguindo a estrutura recorrente de seus poemas,
temos a voz do futuro, a voz da nova geração, “a voz da minha filha”, que são, embebida das
memórias ancestrais de todas as gerações, de todas as mulheres que vieram antes, silenciadas,
mas que lutaram, resistiram para que continuassem vivas as memórias de um povo,
coletivamente. No poema ‘Do Velho ao Jovem’, percebemos o desejo de, através da memória,
burlar “o que os livros escondem”, entendendo que, como diz Le Goff (1996, p. 33):
A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças
sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das
grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas.
Contudo, em um movimento inverso àquilo que pensa Le Goff (op. cit.), a memória
coletiva do povo negro é instrumento de resistência desde o velho com suas rugas que,
certamente, trazem incontáveis histórias (estórias) ao jovem, ao rap sem ponto final.
Na face do velho
as rugas são letras,
palavras escritas na carne,
abecedário do viver.
Na face do jovem
o frescor da pele
e o brilho dos olhos
são dúvidas.
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O poema contém quatro estrofes e em três delas há a repetição da mesma frase logo
no início das estrofes: “a noite não adormece/ nos olhos das mulheres”, demarcando que elas
registram a própria história, que enxergam todo o sofrimento por serem mulheres. E na
primeira estrofe ainda vemos o cuidado na passagem, “em vigília atenta vigia/ a nossa
memória,” como modo de registrar e agir com a memória histórica.
Na segunda estrofe temos a imagem do choro silenciado na passagem “lágrimas
suspensas,” além da imagem das “molhadas lembranças” que aqui, podem simbolizar as
lágrimas do passado. Na terceira estrofe, a autora ressignifica as mulheres que representam
resistência e luta como a Nzingas, rainha que impedia que portugueses entrassem na África.
Lembra-se do sofrimento dessas mulheres de “vaginas abertas”, mas que podem trazer
“outras meninas luas” para que seja possível ter outra história, outra realidade.
A veemência com que o eu-lírico marca a frase ‘adormecera jamais’, mudando a
estrutura repetida das demais estrofes, é uma estratégia de se inserir, com mais ênfase, na
resistência dessas mulheres cuja ‘noite não adormece’ e, ainda, não há tranquilidade de sono,
mas haverá e junto com as demais mulheres o eu-lírico (ou será a própria escritora?),
“pacientemente cose a rede/ de nossa milenar resistência.”
Considerações finais
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Referências
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. ed. anotada por Étennie
Bloch. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Trad. Adelaine
La Guardia Resende ...[et al]. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
NORA, Pierre (Org.). Les lieux de mémoire: La République. Paris: Gallimard, 1984.
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O exilado sabe que, num mundo secular e contingente, as pátrias são sempre
provisórias. Fronteiras e barreiras, que nos fecham na segurança de um território
familiar, também podem se tornar prisões e são, com frequência, defendidas para
além da razão ou da necessidade. O exilado atravessa fronteiras, rompe barreiras do
pensamento e da experiência (SAID, 2003, p. 58).
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Como retornam aqueles exilados que perderam muito de suas identidades e imagens
do lugar ao qual pertenciam? Retornam presos ao trauma a que foram submetidos por não
reencontrarem o território ao menos parecido com aquele que conheceram o que já é um
desconforto suficiente. No caso das personagens, mulheres de um ex-imperador o
desconforto é duplo, por não se reintegrarem e não saberem a que lugar pertencem, sentindo-
se totalmente perdidas numa cidade que não mais conhecem:
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O discurso pós-colonial tão acirrado na atualidade pode passar a ideia de uma política
do pós-colônia já resolvido e unificado. Para a ex-colônia e nação independente, o pós-
colonial ocorreu de uma maneira diferente, a ponto de que, em algum desses lugares, essa
terminologia possa não ter significado político algum e que ainda estejamos no limiar de novas
independências e, principalmente, da libertação das ideias coloniais que infelizmente ainda
podem ser vistas nas melhores das intenções dos novos lugares e governantes das nações
libertas.
Esse comportamento anteriormente descrito é uma constante nas Literaturas
Africanas de Língua Portuguesa. Quando os autores passam a recriar personagens e situações
que transfiguram o mundo colonial e pós-colonial com as mesmas representações, e isso leva
ao pensamento de que ainda somos muito incipientes em um mundo e posturas pós-coloniais:
Com vínculos tão fortes com a História, a literatura funciona como um espelho
dinâmico das convulsões vividas por esses povos. Nela refletem-se de maneira
impressionante os grandes dilemas que mobilizam a atenção de quem tem a África
como objeto de preocupação: relação entre a unidade e diversidade, entre o nacional
e o estrangeiro, entre o passado e o presente, entre a tradição e a modernidade
(CHAVES, 2005, p. 221).
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À medida que o navio África se desembaraçava dos passageiros, que à época tinham
registros nos jornais, as mulheres do imperador davam-se conta de que ninguém lhe
ligava. O imediato, que por acaso as viu, entreolhavam-se com alguma ansiedade,
disse, em tom seco:
- Juntem as vossas trouxas e saiam do navio!
Há muito que se haviam habituado a tais tratamentos. De princípio, Já em terras de
São Tomé, e por entre os pretos em maioria, ainda acalentaram a esperança de
poderem recuperar a dignidade de rainhas derrotadas. Mas tal não aconteceu, e, para
cúmulo,viram-se,pela primeira vez nas suas vidas de exiladas forçadas a sentir as
dores do trabalho braçal quando, fora das previsões oficiais, lhes fora destinado a
Roça Água-Izé,depois de muito deambularem pelos corredores do Hospital Civil
Militar, servindo de amázias,algumas,e lavadeiras,outras.Duas ainda se mantiveram,
A Muzamussi e Dabondi, às portas do palácio oficial do governador de São Tomé,
mas com idêntico esforço físico, pois coube-lhes a fatigante tarefa de lavadeiras e
passadeiras (KHOSA, 2018, p.121).
Um ser humano tem raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de
uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos
pressentimentos de futuro. Participação natural, ou seja, ocasionada
automaticamente pelo lugar, nascimento, profissão, meio. Cada ser humano precisa
ter múltiplas raízes. Precisa receber a quase totalidade de sua vida moral, intelectual,
espiritual, por intermédio dos meios dos quais faz parte naturalmente (WEIL, 2001,
p. 43).
[...] é aquele que define a sua existência a partir de ausências. Ele está ausente no
passado que ele não conseguiu viver, está ausente no presente porque vive neste
adivinhar o que poderia ter acontecido como sua vida se ele tivesse ficado. [...] o
exilado é alguém que vive entre versatilidade e indeterminação, é um sujeito que
vive no ‘intermédio’, não pertence ‘aqui’ nem ‘lá’. A única certeza que temos é que o
exílio é uma experiência irreversível, da que não há volta atrás. Ele vive em meio a
uma ambiguidade trágica entre a sua situação e a esperança de retorno (VILLORO,
2013, p. 5).
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onde se dirigem suas expectativas? Para o nada e para a queda social. Retorna-se, volta para
‘lugar nenhum’ e não há, para quem sofreu o exílio, nenhuma outra experiência mais
traumática do que se sentir parte de lugar nenhum e também pertencente a grupo social
algum.
Ao longo de três décadas e com uma dezena de títulos publicados entre crônicas,
contos e romances, Ungulani Ba Ka Khosa se consolida como uma das vozes mais
importantes da literatura contemporânea de Moçambique. Em 2018, a publicação
de Gungunhana1 parece fechar um ciclo que se iniciara em 1987, ano do
lançamento de Ualalapi, em Maputo, celebrado livro que representou sua
incontornável estreia na seara literária, cuja repercussão positiva de crítica e público
lhe rendeu o nome na lista dos cem melhores autores africanos do século XX.
Deste modo, o passado e o presente literário do escritor moçambicano se
amalgamam em Gungunhana, uma vez que tal obra é composta pelo texto integral
de Ualalapi – aurora e ocaso da conhecida história do último imperador de Gaza –
além de uma segunda seção na qual encontramos a narrativa inédita de As Mulheres
do Imperador, reconstrução ficcional do silenciado universo feminino em que suas
personagens, estigmatizadas durante os quinze anos de desolado exílio, têm de
enfrentar não apenas o retorno ao solo pátrio, mas também a premência de
ressignificar suas vidas (FRANZIN, 2019, p.2).
O dano que pode causar a quem retorna às origens e apenas ruínas encontra no lugar
que lhe era caro traz consequências irreparáveis. A relação que se estabelece a partir dessa
premissa é um estranhamento e angústia por ver arruinados sonhos, ideias, monumentos e um
reino, como no caso das viúvas do imperador. Tratadas como cidadãs de segunda categoria, as
viúvas são qualquer coisa para quem está no poder naquele momento histórico:
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Quando soube, por via do telégrafo, que a bordo do paquete Àfrica chegariam
quatro mulheres do falecido imperador das terras de Gaza, o famigerado
Ngunhgunhane, acompanhada de Oxaca e Debeza, estas mulheres de Zilhalha,
cofiou os bastos bigodes e, vagarosamente, como era de hábito em momentos de
curta reflexão, fez pequenas torções nas pontas dos fios do bigode, e disse:
- Que se arranjem. As pretas não têm a dignidade de rainhas. Aliás, faz quase um
ano que instauramos a República.Nada lhes devemos. Não houve comentários à
decisão do governador. E este não mais se referiu ao assunto, por estar preocupado
com o andamento do ramal da linha férrea, ligando a antiga central dos Caminhos
de Ferro à Praia da Polana, num trecho a circundar a ribanceira da Ponta Vermelha,
e a ser inaugurado em outubro, por ocasião do primeiro aniversário da República
(KHOSA, 2018, p.126).
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A figura feminina na cidade colonial é vista sob o olhar masculino que a subalterniza
seja por feiticeira, prostituta ou destituída de algum estatuto que antes portara:
[...] Não veem que elas estão sozinhas? Ninguém as esperou! É verdade! Se fossem
feiticeiras não entrariam no navio dos brancos, opinavam outros. Tens razão, os
brancos são mais feiticeiros que nós, eles não podiam viajar com as pretas. Nada de
feitiço, homens, essas mulheres foram mandadas embora por não servirem com
intenso fervor ao leito dos brancos. Eles gostam das ninfetas, as pretas ainda com
os seios palpitantes, vigorosos [...]. Há quem diga que elas foram mulheres de um rei
destronado, um rei preto. Que rei permitiria que as suas mulheres fossem pasto para
qualquer desejo? É isso, as mulheres de um rei nunca viram putas, homem! Elas
gozariam do respeito comum dos homens, fossem brancos, pretos ou amarelos. Um
rei transporta a dignidade, e quem não a transporta cai por terra. Ser rei é ter a
moral por cima. Falaste homem, e isso estende-se à família. Estas pretas não podem
ter sido mulheres de um rei, assim desleixadas, com trouxas e sacos sem valia! E
descalças! E com filhos de outros leitos! São indignas de serem chamadas mulheres
de um rei (KHOSA, 2018, p.133).
São mulheres que passam a ser ofendidas e postas em dúvida pelos homens daquela
comunidade. A subalternização da figura mulher é uma empreitada que impõe estereótipos e
se estende a todas as categorias sócias que a mulher possa ocupar. São consideradas feiticeiras
e prostitutas ou não podem ocupar e praticar a prostituição por não serem mais jovens e
passam a ser vistas como ‘nada’, ‘descalças’ pelas ruas, aquelas que ocuparam outrora o
estatuto de rainhas ou mulheres de um imperador. Subalternizadas e perdidas na cidade
colonial não têm poder de fala para reclamar por seus direitos já cassados pelo exílio:
O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à mulher como um item
respeitoso nas listas de prioridade global. A representação não definhou. A mulher
intelectual como intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar
com um floreio (SPIVAK, 2010, p. 126).
Referências
BALANDIER, George. Preface. In: SMOUTS, Marie-Claude(Org). La situations
postcoloniale: les postcolonial Studies dans le debate français. Paris: Les Press de
Science.Po.2017.
CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. Cotia.
São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.
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rebela contra a condição em que se encontra e termina por se deixar levar pela promessa de
liberdade, suportando os maus tratos e satisfazendo-se com a presença do ‘patrão-amante’,
ainda que ele tivesse por ela apenas repugnância. Outro exemplo dessa situação é Rita Baiana,
a personificação da beleza, da sensualidade da negra brasileira, que se relaciona com homens
casados e traz consigo o ideal de rebeldia, extravagância e, até mesmo, de irresponsabilidade.
Mesmo o Brasil sendo um país extenso e com contribuições culturais de diferentes
grupos étnicos, foi necessário surgir em sua literatura, outra ramificação: a literatura
afrobrasileira, que colocou em evidência a configuração identitária dos negros e, não somente
da elite, passando a questionar os discursos oficiais sobre o nosso país. Com isso, temos então
Conceição Evaristo como uma das autoras que vêm questionando as noções de Brasil e
brasilidade enaltecidas ao longo dos séculos por políticos e escritores que tinham como função
perpassar um ideal de comunidade imaginada, colocando como temáticas centrais de suas
narrativas aquilo não ‘manchasse’ a reputação do país, não fazendo referência às questões
como racismo e cultura negra.
Se aprofundarmos a questão, a raça será sempre um complexo perverso, gerador de
medos e tormentos, de problemas de pensamento e de terror, mas sobretudo de
infinitos sofrimentos e, eventualmente, de catástrofes. Na sua dimensão
fantasmagórica é uma figura da neurose fóbica, obsessiva e, por ventura, histérica
(MBEMBE, 2014, p. 25).
Atualmente, muitos dos nossos escritores revelam através de suas produções o quanto
o ideal de democracia racial é apenas uma teoria, uma ‘caricatura’ para não deixarem o mundo
perceber o quanto a sociedade brasileira é excludente e considera raça como classe.
A literatura negra brasileira, na qual a crítica literária aloca Evaristo, busca
desnaturalizar essas concepções estratificadas que envolvem a figura da mulher negra e, para
tal, utiliza a memória histórica em seus textos e, sobretudo, “a fala de um corpo que não é
somente descrito, mas antes de tudo vivido” (EVARISTO, 2012, p.6). Segundo Hall (2009), a
cultura é uma importante prática social, de modo que através dela as sociedades refletem suas
experiências comuns, contudo tal prática também está relacionada a espaços de poder. Nesse
sentido, existem grupos privilegiados que utilizam a produção cultural como meio de
dominação das massas. A literatura brasileira evidencia e categoriza os espaços dessa ‘massa’,
sendo os pobres, negros, empregadas domésticas, entre outras pessoas não situadas nos
espaços de poder, de forma que suas vozes são silenciadas pelos setores públicos, pela
sociedade e, inclusive, pela literatura.
No conto ‘Quantos filhos Natalina teve’ (2016), a personagem protagonista, durante a
narrativa, engravida quatro vezes e a maioria de suas gestações é sinônima de vergonha, dor e
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ódio. A primeira delas ocorre quando ela é uma adolescente de quatorze anos e está
descobrindo o corpo junto com o ‘namoradinho’ Bilico. Soma-se à pouca idade o desespero
de uma gravidez na adolescência. A mãe tenta levá-la à Sá Praxedes (uma senhora que realiza
abortos clandestinos), mas ela foge, mesmo levando consigo a repugnância pelas sensações
provocadas por aquela gravidez em seu corpo: “não aguentava se ver estufando, estufando,
pesada, inchada e aquele troço, aquela coisa mexendo dentro dela. Ficava com o coração cheio
de ódio” (EVARISTO, 2016, p.27). Ela deu à luz um filho que doou para uma enfermeira.
A fuga de Natalina é justificada pelo temor da personagem por sua saúde, em razão da
mãe querer induzi-la a realizar procedimentos de intervenção em sua gravidez, uma vez que o
índice de mulheres negras, que morrem nesses processos cirúrgicos é maior, justamente pela
maioria não ter condições de procurar profissionais qualificados, como as pesquisadoras
Greice Menezes e Estela Aquino evidenciam na pesquisa ‘Aborto no Brasil: avanços e desafios
para o campo da saúde coletiva’, realizada em 2009. Segundo as autoras citadas, a maioria das
mulheres que morrem em decorrência do aborto é constituída por jovens, negras, residentes
em locais periféricos e, assim, como Natalina, vivem em situações sociais e econômicas pouco
privilegiadas.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) salienta a importância dos cuidados com a
mulher gestante, através de um manual intitulado ‘Recomendações da OMS’ que refere a
necessidade dos cuidados pré-natais para uma experiência positiva na gravidez. Como o título
adianta, o documento evidencia que as mulheres devem seguir uma lista de recomendações,
como uma alimentação saudável, atividade física durante a gravidez, um suplemento oral
diário de ferro e ácido fólico, avaliação do feto com frequência e, obviamente, as futuras mães
devem evitar o excesso de atividades. Tais recomendações em um contexto atual estão
dirigidas às populações de todas as nações, por fazer parte da Organização das Nações Unidas
(ONU); contudo, historicamente os estudos nos mostram que a maternidade para a mulher
branca está, majoritariamente, cercada por cuidados, pois culminaria em herdeiros, enquanto
para as negras era, por vezes, resultante de estupros.
Na obra ‘Não sou eu uma mulher: Mulheres Negras e Feminismo’, Hooks (2014, p.19)
mostra relatos de ex-escravas que viveram e viram outras mulheres negras sofrerem em
cativeiro: “a escravatura foi terrível para os homens, mas foi muito mais terrível para as
mulheres. Superando a opressão comum a todos, elas tinham danos, sofrimentos e
mortificações peculiarmente próprias.” A maternidade forçada seria, certamente, um dos
principais danos durante o processo de escravidão, a mulher escrava era assaltada e
brutalizada, tendo seu corpo explorado como forma de produção de capital para seus
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respectivos proprietários e seus filhos não eram considerados seus, pois os vínculos não
deveriam ser estabelecidos de forma alguma.
A terceira gravidez de Natalina corrobora as lembranças desse passado violento e
repleto de imposições envolvendo o corpo da mulher negra, sendo um receptáculo para
atender aos desejos dos patrões:
Enquanto a gestação para as mulheres negras escravizadas era uma tortura à parte, não
sendo elas poupadas dos trabalhos braçais, das exigências das cotas diárias e tampouco dos
castigos físicos: “as mulheres são sujeitas a esses castigos tão rigorosamente como os homens:
nem mesmo a gravidez as isentava, nesse caso antes de amarrá-las a uma estaca, era feito um
buraco no chão para acomodar a forma alargada da vítima” (HOOKS, 2014, p.28). Para
Natalina, esse terceiro período gestacional foi cercado de cuidados médicos e lazer, contudo
nada disso fez com que ela deixasse de se ressentir pelo filho que carregava, tendo até náuseas,
provocadas, não somente pelo estado em que se encontrava, mas sobretudo, por ter que
carregar um ‘estorvo’, a criança que faria a alegria de seus patrões, visto que ambos queriam
um filho biológico, mas não conseguiam.
Durante o regime de escravidão, a criança filha de mãe negra herdava a condição de
escrava da mãe, tendo ainda a ausência do pai como uma realidade, uma vez que o sistema
escravocrata queria apenas que as mulheres negras engravidassem, não importando de que
maneira, fosse consentida ou forçada, se de escravos, de brancos, pois não importava a
paternidade, a escravidão seria hereditária de qualquer forma.
O conto mostra duas situações que nos induzem a refletir sobre as assertivas
anteriormente citadas: a primeira refere-se à segunda gravidez da personagem que, ao
engravidar pela segunda vez, continua a rejeitar a maternidade:
Ela, envergonhada, contou-lhe que estava esperando um filho. Que ele a perdoasse.
Que ela havia tomado uns chás. Que ela conhecia uma tal de Sá Praxedes [...].
Quando acabou a falação e olhou para Tonho, o moço chorava e ria. Abraçou
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Natalina e repetia feliz que ia ter um filho. Que formariam uma família. Natalina
ganhou preocupação nova. Ela não queria ficar com ninguém. Não queria família
alguma. Não queria filho (EVARISTO, 2016, p.28).
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Embora tal violência, obviamente, tenha causado dor e pavor na personagem, foi a
única gravidez que ela quis levar adiante, afinal o filho seria só dela, tendo em vista que ela
matou o homem que a violentou, conseguindo o direito à defesa em meio ao sofrimento. A
maternidade dessa quarta gravidez da personagem já não lhe causava repulsa, pelo contrário,
ela ansiava pela chegada do rebento, pois ele seria livre, não seria de ninguém além dela:
“estava ansiosa para olhar aquele filho e não ver a marca de ninguém, talvez nem dela.”
Para fazer a leitura dessa narrativa sob tal perspectiva, é necessário partirmos do
entendimento de que aqueles que defendem que a manutenção do poder deve continuar sob o
domínio masculino, dificilmente irão aceitar mulheres que ajam e pensem como a protagonista
dessa narrativa, mas sabemos que os feminismos são essenciais para a criação de
conhecimentos emancipatórios, que permitiram a libertação de grupos oprimidos, embora seja
uma luta contínua para que os direitos adquiridos prevaleçam.
Convivemos sob o julgo da ‘necropolítica’, ou seja, “a recomendação de agir sobre a
população estabelecendo uma política de morte” (NOGUERA, 2018, p.66). Sendo essa
eliminação e confinamento em massa uma prática que provavelmente não recebia esse nome
nos séculos XVII e XVIII, mas que podemos citar a escravidão como um grande exemplo, já
que nos porões dos navios as populações foram induzidas através de violências físicas e
psicológicas a perderem o senso de humanidade. E no período pós-escravidão, nos subúrbios,
está ocorrendo o extermínio dos negros travestido de ‘erro’ ou ‘confusão’. É o que Mbembe
(2017) denomina de biopoder, sem deixar de mencionar a necropolítica.
A noção de biopoder será suficiente para designar as práticas contemporâneas
mediante as quais o político, sob a máscara da guerra, da resistência ou da luta
contra o terror, opta pela aniquilação do inimigo como objetivo prioritário e
absoluto? A guerra, não constitui apenas um meio para obter a soberania, mas
também um modo de exercer o direito de matar. Se imaginarmos a política como
uma forma, devemos interrogar-nos: qual é o lugar reservado à vida, à morte e ao
corpo humano (em particular o corpo ferido ou assassinado)? Que lugar ocupa
dentro da ordem do poder (MBEMBE, 2017, p. 108).
A cruel e conturbada história dos negros no Brasil, data de meados do século XVII,
um sistema de escravidão cujo fim se deu em meio a uma luta, tanto ideológica quanto
corporal. Os escravos se rebelavam contra seus senhores, fugiam, formavam quilombos e
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
invadiam outras fazendas em busca de libertar seus irmãos do cativeiro. Enquanto a luta dos
desafortunados acontecia e era reprimida pelas autoridades imperiais e pelos capitães do mato,
no outro extremo estavam aqueles que tinham em mãos uma forte ferramenta para erigirem
seu discurso, os intelectuais abolicionistas: a escrita, que causava incômodo para uma
sociedade marcadamente escravocrata e latifundiária que, de maneira nenhuma, queria se
abster de uma mão de obra barata como a que tinha até então.
Surge, assim, uma leva de escritores brasileiros tais como Luís Gama que, além da
escrita, fazia uso de sua profissão de advogado para libertar os escravos e Castro Alves, que
utilizava seus textos para propagar a vida miserável que os negros levavam, não tendo direito a
uma boa alimentação, amontoados em espaços lúgubres – as chamadas senzalas –, sem poder
nenhum de escolha. As mulheres eram, por vezes, vítimas de abusos sexuais por parte dos
seus senhores e quando engravidavam, muitas vezes, eram separadas de suas proles,
consideradas uma mercadoria, que nada tinha a ver com as mães, sendo propriedade dos
coroneis.
A maternidade para as mães negras se dava a partir de uma relação de amor, dor, medo
e restrição. Elas não tinham tempo, nem o direito de cuidar adequadamente de seus filhos,
tendo, inclusive em certas circunstâncias, que deixar de dar o leite materno aos seus próprios
filhos em favor dos rebentos do senhorio.
O corpo da mulher negra, por estar imposto ao regime escravagista, era
impossibilitado de influenciar as relações sociais entre grupos econômicos poderosos, como
ocorria frequentemente com a mulher branca. Deveriam, assim, realizar tarefas entendidas
como indignas para as suas senhoras, como cuidar da casa e amamentar os filhos dos patrões,
tornando-se ‘amas de leite’ e /ou ‘mucamas’. A amamentação não era considerada elegante
para ser realizada por uma dama, pois causava infortúnios à esposa, deixando seus seios
flácidos, e ao marido que era impedido de manter relações sociais e até mesmo sexuais,
costumes que eram mantidos pela aristocracia colonial e, nesse sentido, ter amas de leite era
sinônimo de poder, status como assevera Barbieri-Couto (2012, p.64-65) “eram privilégio de
poucas famílias, da aristocracia e da alta burguesia que, por um valor mais caro, permitiam aos
pais ficarem mais próximos de seu filho, monitorar seus cuidados sem, entretanto atrapalhar
seus ofícios e suas vidas sociais e conjugais.”
Mesmo a abolição da escravidão em 1888, através da Lei Áurea, não foi suficiente para
acabar com o resultado de séculos de injustiças sociais, de preconceito e intolerância, que se
tornaram estigmas na vida dos negros no país, uma vez que não se pensou no devir, no que
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milhões de pessoas recém libertadas, sem casa e sem instrução que lhes permitisse um
emprego digno, iriam fazer para sobreviver em sociedade.
O poder necropolítico opera por um gênero de reversão entre vida e morte, como
se a vida não fosse o médium da morte. Procura sempre abolir a distinção entre os
meios e os fins. Daí a sua indiferença aos sinais objetivos de crueldade. Aos seus
olhos, o crime é parte fundamental da revelação, e a morte de seus inimigos, em
princípio não possui qualquer simbolismo. Este tipo de morte nada tem de trágico
e, por isso, o poder necropolítico pode multiplicá-lo infinitamente, quer em
pequenas doses (o mundo celular e molecular), quer por surtos espasmódicos – a
estratégia dos pequenos massacres do dia-a-dia, segundo uma implacável lógica de
separação, como se pode ver em todos os teatros contemporâneos do terror e do
contraterror (MBEMBE, 2017, p. 65).
Nesse sentido, mais uma vez, a literatura cumpre o seu papel de ultrapassar os limites
impostos pela hierarquia do patriarcado e, através de escritores como Conceição Evaristo, nos
faz refletir acerca das vivências do sujeito negro e das violências que ele continua a sofrer no
mundo contemporâneo, pois o tempo não foi suficiente para apagar as suas dores.
Com base na relação entre literatura e maternidade, entendemos a negritude, como
uma urgência, pois, discutir temáticas que abordam questões fundamentais ao ser humano tais
como preconceito racial, respeito às diferenças ou a escravidão contemporânea, é uma
necessidade em uma sociedade como a vigente, que perpetua a discriminação à população
negra, desrespeita as pessoas com base em uma hierarquia racial injusta e busca transgredir o
acúmulo de direitos.
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Referências
HOOKS, Bell. Não Sou eu uma mulher. Mulheres negras e feminismos. Rio de Janeiro:
Tradução Plataforma Gueto, 2014.
IRACI, N., & WERNECK, J. (Coords.). A situação dos direitos humanos das mulheres
negras no Brasil: Violência e violações. [S. l.]: Geledés Instituto da Mulher Negra, Criola
Organização de Mulheres Negras. 2016.
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Introdução
O processo de globalização, que teve seu apogeu nas últimas décadas, aproximou
diversos povos de vários países e etnias. As pessoas, atualmente, estão interligadas graças ao
poder da tecnologia que facilita o contato entre os povos. Essa prática de consumo, atingiu
também as comunidades indígenas as quais passaram a utilizar as mídias (entre outras funções)
para denunciar e dar visibilidade aos problemas vivenciados por eles. A esse processo de
apropriação midiático (se é que podemos chamar assim de apropriação) a antropologia nomeia
como aculturação. Na aculturação, hábitos e culturas são envolvidos um pelo outro,
ressignificando-os. Por isso, perguntamo-nos: Índio usa internet? Tem celular? Sabe manusear
um computador? Por que não usariam determinados objetos? Quem disse que esses objetos
são de propriedade privada de uma etnia?
Ora, ninguém perde identidade cultural nem pessoal caso faça uso de instrumentos
acessível ao seu processo de comunicação. Afinal, quando ‘você’ se desloca de um espaço
geográfico para outro, ou utiliza objetos de outro país, deixa de ser você? Assim, são os
nativos. Eles não se descaracterizam por utilizar objetos de ‘outros povos’, pelo contrário, isso
os fortalece em suas ações comunicativas e sociais.
Esse processo de aculturação não transforma a comunidade indígena, mas torna-a
interligada com outras culturas e hábitos que podem, mutuamente, conviver como referência e
intercâmbio, gerando assim novos processos de convivência que apresentam hábitos tanto da
cultura inicial (do indígena) como da cultura absorvida (imposta pelos colonizadores). Assim
aconteceu com o rap do indígena Werá Jeguaka Mirim, mais conhecido como Kunumi Mc. O
rapper utiliza o gênero para denunciar os problemas com os quais o seu povo da aldeia
Kurukutu, em São Paulo convive, bem como os Guaranis Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.
25 Mestranda do PROFLETRAS-CAPES, na UEPB Campus III em Guarabira com o projeto de pesquisa: Uma
proposta para o letramento literário através do rap indígena de Kunumi Mc. [email protected]
26 Coautora e Orientadora. Docente do quadro permanente do PROFLETRAS – Universidade Estadual da
Paraíba – Centro de Humanidades – Campus III - E-mail: [email protected]
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Quando comecei, muita gente me criticava, falava que o rap não é da nossa cultura,
que a gente estava roubando essa cultura. Hoje mostrei pra muita gente que o rap é
uma forma de defesa, de luta, para tentar salvar nosso povo através da escrita, pela
música. Muita gente ouviu meu rap e gostou.
27 https://escoladeativismo.org.br/wp-content/uploads/2019/02/Tuira01_WEB.pdf
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O rap surge como um canto de obstinação, clamor e denúncia que, por meio da
linguagem, subverte a escrita para dar vez e voz aos excluídos socialmente, desde sua
originalidade nas ruas americanas, até nossas ruas e aldeias. O rap busca, na sua essência, o
grito de rebeldia de uma população, geralmente jovens, abandonada pelos sistemas
governamentais, pelas leis vigentes, mas que têm dentro de si um anseio de também ser
ouvida, valorizada e incluída socialmente. No rap ‘Guarani Kaiowá’, Kunumi Mc aponta e
nomeia quem verdadeiramente é o culpado – Jurua Kuery – conhecido entre nós, como o
homem branco, vejamos:
A luta pela terra não acaba por aqui/ Só vai acabar quando nós conseguir/ Guarani
Kaiowa pra vocês que estão ai lutando pelas terras sem miséria sem fim/ A vida é
sofrida, a culpa é dos Juruá kuery/ que mata os indígenas./ Só pode ser maluco/
Querendo as terras para fazer fazendas./ Mais nós, os indígenas, rezamos por Deus
que salve os Guarani Kaiowa.
1.2 Demarcações de terra: um impasse secular dos povos indígenas pelo seu torrão
O território indígena, há muito tempo, é pauta de ações governamentais. A
Constituição Federal (BRASIL, 1988) designou algumas laudas para a demarcação de terras
indígenas. Conforme alguns estudiosos, esse foi o maior avanço constitucional para os nativos.
Antes disso, muitas leis foram criadas, mas poucas realmente tiveram eficácia na vida dos
indígenas. A invisibilidade, tanto física como social desses povos sempre foi notória, porém
alguns antropólogos e sociólogos, ao longo dos anos, contestaram, principalmente, os
conflitos fundiários, visto que, originalmente, os nativos são os verdadeiros donos da terra. A
demarcação de terras indígenas é regida pelo artigo 231 da Constituição Federal
(BRASIL,1988), pela lei 6.001/73 (BRASIL, 1973) e pelo Estatuto do Índio regulamentado
pelo decreto 1.775/96 (BRASIL, 1996). Conforme Cavalcante (1980, p. 8) a demarcação deve
seguir as seguintes etapas:
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A demora pela demarcação das terras indígenas perdura por algumas décadas, temos
uma imensa cratera entre o Governo e os nativos. São anos de descasos e punições para
devolver as terras que lhes pertencem. Pelo espaço demarcado muito sangue já foi derramado,
muitas vidas pereceram. É inviável tanta tortura e sofrimento. Em um dos trechos da carta da
Comissão ‘Guarani’ (2019) eles afirmam uma verdade: “No Brasil, todo mundo tem sangue
indígena: alguns nas veias, outros nas mãos. Por isso, convocamos a sociedade brasileira a nos
apoiar nesta luta.” A convocação para somar forças é solicitada pelos nativos como um pedido
de socorro e resistência.
A aplicação deste trabalho foi pautada na sequência básica de Cosson (2016), adaptada
para a aplicação do conteúdo. Inicialmente, propomos a leitura dos raps ‘Guarani kawaia’, 29
‘Kunumi Chegou’ e ‘Demarcação já’, em forma de poema para leitura individual e depois
partilhada. Em seguida, pedimos aos aprendizes que citassem os versos que mais despertaram
interesses neles. Na etapa seguinte, apresentamos os raps em vídeos no youtube para assistirmos
e discutirmos as reivindicações feitas pelo rapper. Na sequência, lemos a Carta aberta da 8ª
Assembleia da Comissão Guarani Yvyrupa escrita no dia 24 de maio de 2019, das terras indigenas Morro dos
Cavalos em Palhoça/SC. Nesse conteúdo, os povos nativos reforçam a necessidade de apoio da população
para continuar existindo. Para finalizar a sequência, solicitamos a escrita de um artigo de opinião sobre a
demarcação de terras aos aprendizes.
No rap ‘Guarani Kaiowa’, do primeiro álbum ‘Meu sangue é vermelho’, do Kunumi
Mc, os alunos enfatizaram o verso “Vamos lutar todo mundo, porque aquele ato que o
Xondoro faz, nunca irá cair, com cada força de vocês, preservamos a cultura e a natureza.”
Neste verso os alunos viram a importância do invasor não ocupar o território indígena para
preservar, principalmente, os animais em extinção. Ainda na mesma letra foi destacados versos
como: ‘Somos todos Guarani Kaiowa’, ou ‘a culpa é dos Juruá kuery que mata os indígenas’.
Os alunos assinalaram no rap ‘Demarcação já’, os seguintes versos: “Sou sobrevivente,
guerreiro, rimando um rap de ativismo.” Neste trecho, os alunos passaram a admirar o rapper
pela coragem e determinação de denunciar seus destruidores. Vejamos outro fragmento da
canção: “Na poesia, eu declamo que Cabral nos enganou/ Nos massacrou, muitas coisas ele
roubou/E as coisas patenteou ô, ô, ô”, aqui eles sublinharam e marcaram o quanto os índios
foram submetidos à cultura e à invasão dos portugueses.
Em seguida, expomos os vídeos no canal do youtube para que os aprendizes pudessem
assistir às mídias dos raps do Kunumi Mc. Esse foi um momento de muita concentração entre
29 https://www.youtube.com/watch?v=qf93m-on65w
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os estudantes, uma vez que os raps são discursos de resistências e o juízo de valor dado
fortificou a proposta defendida pelo rapper Kunumi Mc. Para reforçar ainda mais, lemos a carta
aberta da 8ª Assembleia da Comissão Guarani Yvyrupa, escrita no dia 24 de maio de 2019 das
terras indígenas Morro dos Cavalos em Palhoça/S para que os aprendizes tivessem acesso a
outro gênero discursivo de resistência além do rap. Os aprendizes observaram a força e o
impacto dado ao ativismo, trecho que podemos comprovar na escrita do aluno A, quando diz:
“O povo indígena tem sofrido, são roubados, torturados e mortos. Não podemos deixar essa
injustiça acontecer, devemos ser ativistas também nessa causa.”
O aluno B afirma: “Precisamos ajudar aos povos indígenas a conquistar de uma vez o
seu espaço. Vamos às ruas nos manifestarmos e mostrar que índio também é um cidadão com
direitos.” Já o aluno C, declara: “Venha você também fazer sua parte. Índio é gente, não
animal. Vamos fazer nossa parte, demarcando já.” O aluno D comprova o quanto é necessário
o apoio da população e das ações governamentais nesse processo de proteção indígena,
vejamos:
Medidas governamentais devem ser tomadas para, assim, abolir essa desigualdade
que ronda os preceitos culturais e constitucionais, como, a proibição mais rígida às
empresas e pessoas físicas que, tentem continuar invadindo as terras e agredindo os
índios, deveria, também, implantar sistemas de monitoramento nas matas, para que
a exploração florestal clandestina seja finalizada e regulamentada, garantindo, assim,
à saúde da floresta e a segurança aos povos originais do Brasil.
O aluno E mostra: “Os nativos também são afetados pelo preconceito da sociedade e,
principalmente, pelas constantes disputas territoriais pela demarcação entre os agricultores e
indígenas. Com isso, os indígenas têm enormes dificuldades para sobreviver de acordo com
seus costumes e cultura.”
Para o aluno F, “a humanidade, a cada dia, está crescendo e se desenvolvendo de
forma errada, ao invés de defendermos as origens como os índios, fazemo-nos de vítimas,
enquanto tribos estão sendo atingidas por nossos preconceitos, lutamos apenas por nós e
nossos direitos.”
O enlace dos alunos com a temática indígena pode ser comprovado pelos fragmentos
expostos anteriormente, que demonstraram uma rica experiência em que os aprendizes narram
o quanto foram beneficiados com as leituras e interpretações desses textos, tornando-se,
assim, leitores mais críticos e alertas em relação à situação social e cultural que envolve o povo
indígena.
Compreendemos que é necessária a presença desses textos em salas de aula para que
os alunos conheçam a sua formação étnica e enriqueçam seu aparato literário e, acima de tudo,
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
possam eliminar qualquer forma de preconceito que exista ainda contra esses povos.
Considerações finais
Referências
CALEFFI, Paula. O que é ser índio hoje?: a questão indígena na América Latina/Brasil no
início do século XXI. In: SIDEKUM, Antônio (Org.). Alteridade e multiculturalismo. Ijuí:
UNIJUÍ, 2003. p. 175-204.
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LUCIANO, Gersem S. O índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos
indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade/LACED/Museu Nacional, 2006.
MIRIM, Werá Jeguaka. Quando uma pessoa se torna ativista: Werá Jeguaka Mirim, o rapper
Kunumi MC. In: Escola de ativismo. Revista Tuíra 01_WEB/pdf, jan. 2019.
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Introdução
Produzido a partir de inquietações ocasionadas pela realidade social brasileira, o
presente artigo visa colaborar com a percepção, irrestrita, do contexto vivenciado, a partir da
aplicabilidade da Lei 10.639/03, sancionada em março de 2003. Entretanto, se no âmbito legal
o foco é a diversidade etnicorracial, neste estudo, ampliamos a abordagem, a fim de verificar a
situação das mulheres e das pessoas em situação de vulnerabilidade social no país.
Assim, além de observar a aplicação da Lei que dispõe sobre a obrigatoriedade do
ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana, através da análise dos três volumes que
compõem a coleção ‘Português contemporâneo: diálogo, reflexão e uso’, distribuídos pela
Editora Saraiva por intermédio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD); reflete-se a
uma ação complementar que traz à tona um cenário de violência e miserabilidade, a saber, o
‘Projeto Pedagógico Conhecendo a História e a Cultura por meio da Literatura: Brasil e
Moçambique entre Fato e Ficção’.
Objetivou-se, com tal estratégia, propiciar a compreensão da “Literatura como
recriação de realidade”, conforme propõem Cereja, Dias Vianna e Damien (2016, p. 19), no
volume 1; observando seu vínculo com a História do Brasil e de Moçambique, com vistas a
desenvolver habilidades referentes à leitura e à produção de textos, bem como à compreensão
de diversos contextos.
Dentre as funções da Literatura, salientadas pelos autores supracitados, destacamos a
ficcionalização da história por seu potencial para o letramento, uma vez que é capaz de revelar
questões subjacentes a sistemas de poder, exigindo do leitor perspicácia para relacionar o
narrado ao vivido. Desse modo, aqueles que consideram como único valor da literatura “[...] o
reforço das habilidades linguísticas” (COSSON, 2009, p. 11).
Destarte, motivou a idealização do projeto, além da opressão dirigida, cotidianamente
a pessoas pobres e negras, sobretudo, do sexo feminino, a constatação de que o analfabetismo
30 Desenvolve projeto de tese intitulado: “Mulheres (in)submissas: a multiplicidade de perfis na obra de Lília
Momplé”, no PPGLI (Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade – UEPB), sob orientação
da Professora Dr.ª Rosilda Alves Bezerra. – E-mail: [email protected]
31 Professora do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade – PPGLI, na UEPB, Campus I.
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funcional alcançou índices alarmantes em nosso país. Segundo reportagem do Jornal Nacional,
exibida em 07/03/2018, menos de um quarto dos brasileiros, 23%, são considerados sem
qualquer limitação, ou seja, apresentam aptidão para leitura de diversos gêneros textuais. Dos
77% restantes, 4% são analfabetos, 23% conseguem ler mensagens simples e 42% apresentam
habilidade para entender apenas um texto básico.
Por isso, com o intuito de conscientizar os/as discentes sobre a opressão racial,
econômica e de gênero, propomo-nos a relacionar Literatura, História e Cultura na perspectiva
do Letramento Literário. Para tanto, dedicamo-nos a aprimorar habilidades voltadas à leitura e
à compreensão textual; incentivar a produção de textos dissertativos, diante da sistematização
de argumentos e a necessidade de preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM), assim como para combater a violência contra a mulher.
Conhecer estratégias de neocolonização por meio de críticas sociais, implícitas em
manifestações culturais, a exemplo do Carnaval, constituiu-se um meio de observar como
situações cotidianas podem ser reveladoras, desde que tenhamos um olhar acurado para
compreender o contexto, pois conhecer a realidade é fator primordial para modificá-la. Logo,
é importante analisar as práticas educacionais que incentivam a conscientização, a partir das
orientações legais, pois estas estimulam a ação e, consequente, a transformação.
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fronteiras deveriam ser protegidas para que o colonizador dispusesse dos privilégios
econômicos: o territorial e o social. Dessa forma, a administração colonial focou sua atuação
no controle da terra e dos colonizados: “[...] Os dois pilares que sustentaram todas as formas
de colonialismo em África foram, pois, a questão econômica e a questão indígena”
(CABAÇO, 2009, p. 40).
Dessa maneira, a economia e o indigenato fundamentaram uma sociedade dual. Os
exploradores adotaram o princípio separatista a fim de estigmatizar aqueles que desejavam
dominar. Logo, as oposições: branco x negro, civilizado x primitivo, tradição x modernidade,
oralidade x escrita e cristianismo x paganismos ampararam o segregacionismo e impuseram o
servilismo ao povo moçambicano. Nesse contexto, o alvo do preconceito não é o homem
isolado, mas uma coletividade que habita a África, conforme adverte Fanon (1968, p. 28) ao
afirmar que os ‘intermediários’ do poder levavam a violência “[...] à casa e ao cérebro dos
colonizados.”
A literatura, arte da palavra, não fica alheia às questões sociais. Por isso, propõe
reflexões acerca do modo de ser, pensar e agir de um povo. Lília Momplé, atenta às questões
que imprimem um histórico de dor e humilhação aos seus compatriotas, ficcionalizando os
desmandos das autoridades portuguesas na coletânea de contos ‘Ninguém matou Suhura’,
título que sugere a impunidade dos detentores do poder, conforme verificado no conto
homônimo, o qual foi lido, coletivamente, em aulas distintas, tendo em vista a sua extensão e
subdivisão: ‘O dia do Senhor Administrador’; ‘O dia de Suhura’; ‘O fim do dia’.
A voz narrativa informa a subalternização indígena por meio do relato das aventuras
sexuais do Administrador do Distrito que era, simultaneamente, Presidente da Câmara,
homem de meia idade responsável pela violação de jovens e adolescentes habitantes da Ilha de
Moçambique, como a personagem Suhura. Era conivente com a situação “[...] o Sipaio
Abdulrazaque, conhecido e temido em toda a ponta da Ilha” (MOMPLÉ, 2009, p. 81),
responsável por promover os abusos.
No que toca à questão econômica, esta foi posta em discussão por meio do conto
‘Aconteceu em Saua-Saua’, cujo enredo foi transmitido oralmente na Oficina Somos Todos
Griots. Os mestres contadores de histórias foram evocados pelo fato de acreditar-se que “[...] a
omniscência e a polivalência do griot das sociedades tradicionais sobrevivem nos escritores,
preocupados em desvelar, através da sua escrita, o mundo, a liberdade e a autonomia dos
cidadãos” (AFONSO, 2004, p. 120).
Assim, abordamos “[...] temas relativos: – ao papel dos anciãos e dos griots como
guardiões da memória histórica [...]” (BRASIL, 2004, p. 21-22). Por meio da oralidade foi
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apresentada a trajetória de Mussa Racua, camponês que não conseguira cultivar a quantidade
de arroz, determinada pela administração colonial, devido às condições climáticas, motivo pelo
qual seria enviado às plantações de sisal, segundo determinava a Lei do Chibalo, “[...] que
impunha que todos os indígenas, isto é, os africanos, fossem obrigados a trabalhar”
(AFONSO, 2004, p. 23).
Ao longo da antologia, diversas situações de opressão são denunciadas por meio da
ficção, porém, para fins do projeto pedagógico, foram abordados os contos
supramencionados, com o intuito de propiciar a percepção do racismo, opressão de gênero e
preconceito social, através das atividades propostas aos discentes da 3ª série do Ensino Médio,
destacando a permanência de estratégias de neocolonização postas em prática, cotidianamente,
no mundo.
Entretanto, enfatizou-se, sobretudo, a misoginia e as questões econômicas no Brasil.
Ao conhecerem as narrativas, os/as discentes foram estimulados/as a produzir textos
dissertativos sobre a subalternização feminina na sociedade brasileira, a partir de dados acerca
da violência doméstica e do feminicídio; bem como a refletir sobre a situação dos funcionários
públicos e privados no país, nesse período que colocava em pauta a Reforma da Previdência.
A perda de direitos trabalhistas e a degradação de trabalhadores braçais que atuam em
regime de semiescravidão no Brasil foram analisadas a partir do desfile protesto da Escola de
Samba carioca ‘Paraíso do Tuiuti’ que surpreendeu ao questionar “Meu Deus, Meu Deus, está
extinta a escravidão?” e implorou pela libertação do cativeiro social.
Após a observação da realidade e o conhecimento dos textos ficcionais os/as
estudantes ressignificavam os fatos reais e fictícios, por meio de argumentos em defesa de um
ponto de vista expostos nos textos produzidos. Tal prática metodológica foi pensada a partir
de dados apresentados pelo Indicador de Analfabetismo Funcional (IAF), em 2018, os quais
evidenciaram ser o letramento e a compreensão textual mais urgentes que a aprendizagem
gramatical rigorosa.
Considerações finais
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conscientização acerca do sexismo, problemas sociais e racismo que perduram no Brasil, além
de propostas de intervenção exequíveis e comprometidas com o bem estar da coletividade.
Pelo exposto, consideramos oportuno estimular os/as educandos/as a ressignificarem
as narrativas literárias, pois tal metodologia permite compreender as entrelinhas de discursos
opressores, ao mesmo tempo em que contribui com a reversão do cenário apontado pelo
Indicador de Analfabetismo Funcional. Tal processo de análise, fundamental ao
desenvolvimento cognitivo, é também essencial a uma atuação autônoma na sociedade. Por
isso, observar o cotidiano e vinculá-lo aos conteúdos programáticos é uma estratégia que
reafirma a necessidade de aprendizagem e o desenvolvimento de competências.
Dessa forma, entendemos que a educação precisa atuar com vistas a desenvolver a
compreensão e, não apenas, a decodificação. A literatura, por meio da linguagem conotativa,
que a caracteriza, instiga reflexão e interpretação acerca do ‘não dito’, mas sugerido, assim
como a respeito da ‘realidade na ficção’. Nesse sentido, a prática da leitura, sua compreensão e
escrita são fundamentais, pois permitem o conhecimento, meditação e ressignificação.
Ressalte-se, também, a possibilidade de abordar valores fundamentais para a formação
cidadã. Conscientes da subalternização racial, econômica e de gênero, uma vez que as vítimas
desses sistemas de opressão estarão aptas a exigir os direitos que lhes são garantidos na
Legislação Nacional, pois o letramento lhes permitirá: “viver no mundo da escrita, dominar os
discursos da escrita, ter condições de operar com os modos de pensar e produzir da escrita”
(BRITTO, 2005, p. 13).
Referências
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
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JORNAL NACIONAL. Profissionais de chefia nem sempre dominam escrita e leitura,
diz estudo: quatro em cada dez falham no português na hora de ler e escrever. E a maioria dos
candidatos a emprego tem no máximo nota 6 no teste. Disponível em:
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dominam-escrita-e-leitura-diz-estudo.html>. Acesso em 08 de mar. de 2018.
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MOMPLÉ, Lilia. Ninguém matou Suhura: estórias que ilustram a história. Maputo: AEMO,
2009.
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Ao longo dos séculos, a violência, nas suas mais diversas formas de expressão, esteve
presente no cotidiano da mulher, atuando como prática institucionalizada pela dominação
masculina. No contexto atual, verifica-se que temas ligados a questões de violência e
marginalidade para com a figura feminina têm permanecido, cada vez mais, presentes em
diversos espaços da sociedade, instigados, certamente, pela recorrência de casos nos mais
diversos espaços sociais.
Ainda que, muitas vezes, silenciado ao longo da história, aos poucos, o debate sobre os
direitos das mulheres como direitos humanos têm conquistado espaço. Nesse contexto,
adquiriu-se um maior foco para questões de interesses específicos da mulher deixados de lado
em função de um discurso responsável pela opressão e subalternidade da grande maioria das
mulheres no mundo, de forma que alguns importantes aspectos da vida da mulher, desde os
biológicos até os culturais que acabaram sendo negligenciados, tendem a se tornar presentes
no intuito de que essa lacuna seja superada, fomentando a sua legitimidade em diversos
discursos.
Para este estudo, partimos da compreensão de que, dentre o leque de gêneros
discursivos, a literatura pode ser uma ferramenta importante para a reflexão acerca das
relações sociais e da realidade, na medida em que refletem contextos de sofrimento humano e
pode problematizá-los. Assim, este estudo foi estruturado sob a hipótese de que o contexto
histórico e social em que cada sujeito se encontra influencia, de maneira significativa, o
posicionamento deste, na sociedade. Nessa perspectiva, destacamos a diversidade de ponto de
vista com que as questões de gênero são abordadas na escrita literária feminina.
Em função disso, o interesse esteve em verificar poemas contemporâneos da literatura
popular de autoria feminina negra, com temas que veiculassem questões de violência e
marginalidade à mulher no contexto social, com foco para abordagens como padrão de beleza,
machismo, assédio sexual e aborto. Compreender que a obra literária é uma forma de
manifestação artística capaz de aglutinar diversos aspectos da realidade que representa é alça-la
à sua função social, marcada por valores sociohistóricos, que se efetiva na interação texto,
autor e leitor. O conceito de representação aponta significações múltiplas, entre elas está o ato
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Pensar o ensino da literatura nos dias atuais é, de certo modo, compreender acerca do
poder da leitura para o sujeito atuar em sociedade, uma vez que, por meio da leitura o
indivíduo tem contato com situações que, muitas vezes, se aproximam da sua realidade,
instigando-o a refletir sobre seu cotidiano. Com efeito,
O texto é uma unidade que instiga o seu leitor a pensar sobre experiências possíveis, o
que tende a por a literatura sob o status de uma função formadora, uma vez que esta apresenta
modelos de comportamento às vezes até possíveis de serem seguidos, ou não. Em termos de
aprendizagem, não podemos esquecer a função pedagógica da linguagem que se faz presente
em nossa vida muito antes da escola, pois somos letrados pelos discursos, imagens, e outros
meios, construindo um repertório a dar forma ao nosso imaginário.
Na sua condição textual, a literatura costuma ser definida como linguagem com uma
construção discursiva marcada pela finalidade estética. Com efeito, o confronto dialético entre
a leitura fictícia realizada na sua relação com a realidade vivida instiga o leitor a pensar
criticamente sobre sua realidade e agir sobre ela. A linguagem literária tende, portanto, a
proporcionar a quem lhe tem acesso, a experiência da humanização, aspecto apontado por
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Candido (2004, 2002), pesquisador dos direitos humanos que defendeu a tese do direito à
literatura, ao afirmar que a leitura do texto literário:
Corresponderia a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de
mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do
mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza. Negar a
fruição da literatura é mutilar nossa humanidade (CANDIDO, 2004, p.186).
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Em torno da Literatura de Cordel como fonte histórica, social e cultural, ficou nítida a
invisibilidade feminina na produção de escritos literários, ao longo da história, pois o discurso
masculino fez com que coubesse à mulher apenas o lugar de seu silêncio. Falar sobre
literatura, ler e produzir literatura passou a ser visto como algo voltado principalmente aos
homens; assim, ao longo do tempo, as escritoras mulheres foram sistematicamente excluídas
do cânone literário (BLOOM, 1995), em nome de uma supremacia da autoria masculina que
acabou alimentando um contexto comum de uma mulher no ambiente intelectual não ser bem
vista pelos olhos conservadores da sociedade.
Historicamente, o século XX vem representar um marco quanto à abertura de portas
para as escritoras brasileiras. A experiência feminina no campo literário e cultural vem
justificar o surgimento de ações no sentido de conscientizar a sociedade da necessidade de
desconstruir as práticas de opressão e marginalização da mulher em evidência ao longo da
história. Muito dessa conquista se deve às ações do Feminismo, movimento político, social e
filosófico que pregava a igualdade social entre os sexos, com o intento de eliminar qualquer
dominação sexista e de transformar a sociedade (BONNICI, 2007). Isso fez com que, nas
últimas décadas, o número de autoras tenha crescido consideravelmente nos catálogos das
grandes, médias e pequenas editoras do país.
A literatura traz consigo o poder de questionar a sociedade. Assim, na atualidade, as
produções literárias de autoria feminina surgem em um contexto social no qual as mulheres
passaram a representar um expressivo avanço, em função de diversas manifestações, discursos
de empoderamento, diálogos sobre o feminino, temáticas voltadas para a constituição de seus
direitos. Após sucessivos episódios de demérito e luta as mulheres adentraram no universo
literário com oportunidade de serem portadoras de sua própria voz, capazes de escrever e falar
sobre quem são e sobre suas vivências, de modo que a mulher tem conquistado uma maior
autonomia, buscando representações que visam a sua legitimidade pra que possa se sentir
sujeito de si.
Tem-se verificado que a poesia popular apresenta-se, neste contexto, como um aliado
à construção de um novo olhar para os temas que ainda são considerados tabus ou
problemáticos. Um exemplo disso se verifica nos textos de cordéis de autoria da cordelista
Jarid Arraes, cordelista nascida em Juazeiro do Norte, cidade da região do Cariri, no Ceará.
Abordando temas polêmicos e/ou marginalizados pela sociedade, a referida cordelista é autora
de diversos folhetos com narrativas voltadas para as vivências do dia a dia, com foco para a
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realidade social. Assim, alimentando um imaginário via estética do cordel, a autora possibilita a
disseminação de uma literatura marcada por um discurso de resistência com ênfase na
representação do feminino.
Dentre a sua poesia, encontramos títulos como ‘Aborto’, ‘Nêga Braba’, ‘Informação
contra o machismo’, ‘Dora, a Negra e Feminista’, ‘Chega de fiu fiu’, ‘Chica Gosta é de
Mulher’, ‘A Luta da Mulher Contra o Lobisomem’, ‘A Menina que não queria ser princesa’, ‘A
mulher que não queria ser mãe’, ‘Miss Catrevagem’, ‘A guerreira do sertão’.
Do ponto de vista dos significados, é possível listar um discurso problematizador em
torno de diversos temas, a exemplo do machismo, da ignorância, da violência, da submissão,
do silêncio, do padrão de beleza. De uma forma simples e direta, pautada na estética do
cordel, tem-se a formação de um discurso chamando a atenção para aspectos como a lei da
informação, a politização, o combate ao preconceito, o empoderamento, a quebra de silêncios,
denúncias, a luta por direitos, libertação e cidadania da mulher.
Um exemplo disso está no folheto, ‘A Guerreira do Sertão’, no qual a autora consegue
pautar a trajetória da protagonista deixando explícito que, em meio a muitas adversidades que
a vida e a sociedade lhe impõem, ela detém firmemente o poder sobre seu corpo e sua vida.
Assim, uma das principais mensagens do poema se efetiva na ideia da representação de um
feminino que se impõe, sem ser caricatural, em nome função de um ideal: posicionar-se
contrariamente ao machismo:
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Pela produção literária, a poetisa Arraes além de dialogar com toda uma formação
histórica dada ao feminino na sociedade marcada pela violência e desigualdade, veicula à figura
feminina os traços de resistência. A narrativa poética em questão põe em foco uma reflexão ao
leitor quanto a essa representação que desconstrói a concepção de mulher frágil, submissa,
inferior, conforme sempre fora vista na sociedade. O reconhecimento de seu valor tende a
associar a superação dessa tradição patriarcal, colocando a figura feminina no espaço público e
afirmando sua identidade de forma plena, isso é, sem as amarras do pudor imposto por
estereótipos tradicionais de fragilidade feminina. Tais atributos negativos contribuem para
Gerar uma relação de opressão onde, a partir do olhar da maioria, o ‘outro’
(minoria) se apresenta com uma conotação negativa, e a ‘maioria’, uma positiva. As
pessoas não podem ser como querem; têm que ser como a maioria [...] ou serão
consideradas desviantes, inadaptadas ou marginais. Nessa relação de opressão, os
estereótipos surgem e se cristalizam (ROSO et al, 2002, p. 78).
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Fazendo uso de uma linguagem de traços cômicos, o folheto faz repensar o valor da
beleza e o que de fato ela exige. Assim, questiona a estética alimentada pela sociedade
capitalista e mostra como a mulher deve se impor em face desse cenário que não deixa de ser
excludente. A problemática posta em evidência no poema se encontra na crítica feita à grande
mídia do mercado que lucra com a dor da mulher e faz com que ela esqueça sua identidade e
utilize processos estéticos para chegar ao ideal de beleza, o ideal do desejo masculino. Um
aspecto em destaque está relacionado ao modo capitalista do lucro com ênfase na
romantização de sacríficos em prol da manutenção de um padrão de beleza, impondo à
mulher submeter-se a “dietas restritas e medicamentos, além de outros artifícios como
cirurgias plásticas, ginásticas e cosméticos” (FREITAS, p. 27, 2002). Assim, quem busca se
adequar a esse padrão restringe seu corpo ao negócio da indústria cultural.
O poema tende a lembrar de que não há espaço de aceitação para a pluralidade
existente nos corpos, assim, a indústria cultural, criadora do conceito da mulher perfeita,
ganha a nomenclatura ‘excludente’, pois nega todo um aparato cultural, ancestral de um povo
nascido dentro de uma multiplicidade cultural e genética:
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O poema de cordel intitulado ‘Aborto’ retrata o que está por trás da criminalização
dessa prática ainda muito recorrente, pontuando como a religião e a ignorância são (e sempre
foram) os inimigos das mulheres, principalmente quando se trata da legalização do aborto
partindo do pressuposto da saúde pública e social.
O texto aponta para a necessidade de discussões em torno dessa problemática já que o
grande problema do aborto é a sua clandestinidade e a diferenciação dos valores, quando se
volta para as realidades das classes sociais e regionais. Isso porque para além do direito da
mulher de decidir sobre o seu corpo, estão as implicações sofridas por ela ao procurar outros
métodos que, por vezes, são muito piores do que ser atendida na clandestinidade, sem
cuidados e sem o acompanhamento devido.
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Considerações finais
Referências
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Metodologia
O processo de estudo durante a pesquisa se deu através de leitura e análise dos
folhetos de cordel com foco na sua problemática central, verificando o que o discurso
articulado esteticamente propôs apontar, reafirmar ou criticar, no sentido de desconstruir,
sobretudo, os preconceitos ligados à mulher, ao feminismo, destacando o seu
empoderamento.
A metodologia utilizada foi de caráter bibliográfico, teve por base pressupostos
teóricos da Teoria Literária, Literatura de Cordel e estudos sobre a representação da mulher a
partir da história cultural e da literatura brasileira, tendo como foco os estudos que
problematizam as relações entre literatura, sociedade e gênero, a exemplo de Candido (2006),
Bosi (1994, 2002), Freitas (2002), Alves (2002), dentre outros. O foco esteve em dar ênfase a
outro olhar sobre as questões em torno da mulher representada na matéria literária em
estudo.
Por esse ângulo, foi relevante destacar a relação entre literatura e sociedade, com foco
na relação com os Direitos Humanos, evidenciando sua real necessidade em um contexto
social em que se requerem tantos sacrifícios para quem não se encontra dentro do modelo
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Resultados e Discussões
No decorrer da história, a mulher tem sofrido diversos tipos de exclusão, tanto na vida
social, quanto particular, em função da prioridade masculina. No contexto da literatura, sua
representação sempre fora moldada em torno dos homens, sob o estigma dado pela criação do
modelo de mulher perfeita, aquela que necessita ser resgatada, por ser um objeto de pura
fragilidade. Esses moldes patriarcais, aos quais as mulheres eram submetidas, foram se
enaltecendo com a criação de mitos como a inferioridade física, mental e financeira, que
tinham por finalidade controlar o comportamento da mulher (ALVES, 2002).
Do ponto de vista da produção literária, considerando o cânone estabelecido dentro
do cenário literário, a mulher sofreu retaliações, tanto em atribuições de papeis do âmbito
privado, quanto por diversos tipos de personificações, refletindo em uma desconstrução dos
seus valores como ser humano e com direitos. Atualmente, após ações advindas das
manifestações feministas, falar, produzir e, até mesmo, estudar a autoria feminina tende a ser
um ato afirmativo de resistência e reinvindicação à voz da mulher dentro dos escritos literários
(VASCONCELOS, 2014).
Os estudos sobre a Literatura Contemporânea, no que se refere à arte de resistência,
dão conta de um significativo aumento de produções femininas. No Nordeste, a quantidade
de escritoras, poetisas, e principalmente, cordelistas vem aumentando consideravelmente. O
uso da cultura popular na resistência de grupos marginalizados ganhou uma expressiva força
quando eles começaram a utilizar modelos de produção já existentes no debate sobre
machismo, misoginia, direitos humanos, exclusão, locais de fala, violências e tantos outros
temas que a mulher, agora letrada, pode e deve tornar realidade. Essa visibilidade é uma
necessária para uma sociedade em que o homem escritor, branco e burguês tentou
deslegitimar da história. Em função disso,
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Torna-se visível, portanto, que a isenção de novas temáticas por parte das cordelistas
contemporâneas, a exemplo da Jarid Arraes, nos traz um aparato de vivências e percepções de
mundo, evidenciando as opressões sofridas por mulheres dentro de um contexto no qual
podem ser utilizados diversos tipos de aparelhos linguísticos para iniciar debates sobre a
presença da mulher na contemporaneidade, principalmente, a mulher vista como senhora de si
(BARROS, 2014).
Podemos destacar também, os Direitos Humanos e a Constituição Federal
(BRASIL, 1988), como fundamentais não só para a mulher, mas para toda a conjuntura social,
pois o grande foco dessas novas manifestações literárias e culturais está na equidade dos
gêneros, no respeito e no compromisso com o outro, respeitando as diversidades e, acima de
tudo, o direito à vida.
Dentro desse novo campo de criação literária, a mulher é vista como ela realmente é,
pois além de ler literatura, passou a produzi-la. É valido salientar que a existência da mulher no
campo literário se tornou algo totalmente marcante para nossa sociedade e que, dentre tantas
vozes da expressão feminina, escolhemos a escritora Jarid Arraes, cuja produção literária abre
espaços para discussões acerca da cidadania, machismo, direitos humanos, diversidade e
gênero.
Jarid Arraes é cordelista da cidade de Juazeiro do Norte, no interior do Ceará. Pode-se
dizer que essa escritora nasceu em um berço literário, pois desde muito cedo o seu contato
com o mundo dos cordeis se deu, graças à forte influência do seu pai e do seu avô, que eram
cordelistas e xilogravadores. Foi leitora de grandes poetas como Carlos Drummond de
Andrade, Manuel Bandeira e Ferreira Gullar. Além disso, nasceu entre manifestações da
cultura nordestina. Na medida em que foi atingindo sua maturidade, percebeu que o seu
contato com a literatura feminina era extremamente pequeno, fato que a fez pesquisar e
estudar história de mulheres que marcaram nossa história, sociedade e cultura, principalmente
as mulheres negras.
Jarid Arraes começa sua vida como escritora aos 20 anos de idade. Produziu para
diversos blogs, cordeis como ‘Mulher Dialética’, ‘Blogueiras Feministas’ e ‘Blogueiras Negras’.
Entretanto, foi no ano de 2013 que a cordelista ganhou maior destaque ao se tornar colunista
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na ‘Revista Fórum’, na qual atuou como jornalista escrevendo diversas matérias sobre as
ramificações dos Direitos Humanos, como o feminismo, movimentos de luta e resistência
conta o racismo, direitos LGBTQI+, entre outros. O leitor das obras de Arraes tende a se
deparar, em seus textos, com um aglomerado de vivências e percepções as mais variadas
possíveis. Em versos de fácil assimilação, com ritmos e gírias nordestinas com foco no social,
a poetisa expressa uma nova proposta de literatura capaz de dialogar com toda a estrutura
social.
Quanto à representação de gênero, destacamos duas obras de Jarid Arraes: ‘A
Guerreira do Sertão’ e ‘Miss Catrevagem’. Juntos, estes poemas tornam-se uma fonte de
conhecimento que nos fazem compreender a posição da mulher na sociedade. Personificando
alguns estigmas, traçando a história de uma mulher forte e evidenciando um discurso repleto
de desconstrução, as produções literárias ressignificam, ao mesmo tempo em que acenam para
as lutas históricas da mulher, em busca da concretização dos seus direitos.
No folheto ‘A Guerreira do Sertão’, a cordelista discorre sobre a trajetória da
protagonista Rosa Rubra, deixando compreensível que a mulher, mesmo enfrentando todas as
adversidades, conflitos internos e externos, além de seus traumas, detém poder sobre seu
corpo, suas escolhas e, principalmente, sobre o seu destino. O homem, neste cordel, é
trabalhado dentro de uma dualidade: o primeiro é capaz de lutar ao seu lado, persegue junto a
Rosa Rubra os mesmos objetivos, visando crescer juntos em busca de um ideal, enquanto o
segundo é arraigado a conceitos ultrapassados, estereotipados, por acreditar ser o portador de
toda razão, poder e força. A partir dessas representações, a mensagem principal do cordel é
feita no sentido de mostrar, de fato, o valor feminino, e como a sociedade pode viver dentro
do conceito de equidade, sem se aprofundar em fundamentalismos ou até mesmo caricaturar
os personagens.
Nesse sentido, Freitas (2002, p. 116), em ‘A Literatura de Autoria Feminina’, explicita
que “o papel do feminino vem mudando gradativamente, sem que o papel masculino fosse
fundamentalmente tocado.” Contudo, a vivência feminina representada na poesia de Jarid
acaba por pontuar um novo aspecto. O folheto evidencia um crescimento de maturidade na
personagem após sua fuga de casa, espaço onde ela era subjugada e violentada. Como mostra
os versos de Jarid Arraes:
Inda tinha oito anos
Quando de casa fugiu.
Apanhava do padrasto
Sem a mãe que lhe pariu
Todo dia ela chorava
Toda mole e entronchada
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Por meio de uma linguagem simples, Arraes questiona e nos faz pensar sobre o real
sentido e imagem do que é ser belo, de como conseguiremos essa tal beleza. Além disso,
podemos observar que a poetiza põe em foco uma mensagem de otimismo e resistência, ao
destacar que a mulher deve se impor sobre a padronização dessa estética de beleza, criada pela
sociedade burguesa apenas para gerar lucro, fator que não deixa de ser totalmente machista e
excludente.
De acordo com Freitas (2002, p. 25), “em particular, sobre o corpo da mulher, a
escultura revestida de falta de excesso de peso, abdômen magro e ossatura evidente, torna-se
parte do mercado.” Temos aqui um quadro ligado ao desejo masculino, às formas como os
homens enxergam a mulher e uma forma de movimentar o mercado da estética, ao criar um
modelo de mulher perfeita que está longe de ser a reprodução da mulher real, pois a todo o
momento a mídia escancara em nossos rostos a mulher como objeto, produto, de forma a
afrontar essa lógica do mundo capitalista e machista, que Arraes pontua:
É por isso que eu lanço
Um concurso diferente
Que não tem competição
Muito menos entre a gente
O nome é Mis Catrevagem
Pra romper com a fuleragem
Do machismo excludente
(ARRAES, 2017, p. 3)
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A problemática central do cordel concentra-se na crítica feita à grande mídia que lucra
com a dor da mulher, com seu sentimento de autoestima, principalmente as jovens que são
ensinadas, desde a infância, a forma correta de se maquiar, de como se vestir, de como se
portar, de ser a mulher/mãe perfeita, fazendo com que a mesma esqueça a sua subjetividade e
sua identidade, fazendo com que ela utilize, até mesmo, processos estéticos para tentar
alcançar esse modelo de beleza e desejo masculino. Corroborando todas as discussões postas
no poema em questão, tem-se o foco em problemáticas acerca das relações de poder de um
mundo consumista/capitalista, principalmente sobre o corpo feminino, o poder para decidir
qual será sua estética e como a sociedade irá reagir com suas próprias escolhas, ou não:
De fato, é principalmente sobre o corpo feminino que se dá a interação entre o
mercado e os valores culturais. Com isso, a mulher sofre pressões sociais para ter
seu corpo reconfigurado e, desse regulamento, ela joga com intencionalidade os
sacrifícios de digerir dietas restritas e medicamentos, além de outros artifícios como
cirurgias plásticas, ginásticas e cosméticos (FREITAS, 2002, p. 27).
Conclusão
Com base nos poemas citados de autoria da escritora contemporânea Jarid Arraes,
quanto à representação da figura feminina, verifica-se a presença da luta histórica que as
mulheres travaram na busca pela concretização dos seus direitos. A trajetória de opressão é
identificada nos versos do cordel ‘A Guerreira do Sertão’, evidenciando-se a analogia entre a
ficção e a realidade, através das vivências da personagem feminina até sua emancipação e
autodeclarar-se como guerreira. Desse modo o fictício e o real se misturam, trazendo consigo
formas imagéticas marcadas de efeito e sentido, por meio da estética da arte popular de cordel,
transmitindo uma nova percepção de relações sociais entre homem e mulheres.
Marcando um contraponto de discurso está o poema ‘Miss Catrevagem’ ao representar
a imagem da mulher que luta pela sua emancipação corporal, por ser dona do seu corpo e se
ver livre dos anseios e exigências estéticas. O poema acaba por, não somente, possibilitar ao
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leitor uma reflexão, como também fazer uma crítica à sociedade altamente misógina, machista
e patriarcal. A linguagem põe em destaque que a mulher pode ir muito além, transmitindo com
bom humor a mensagem explícita de que ela pode ser o que quiser.
As produções literárias, objeto de estudo desta pesquisa, surgem em um contexto
social no qual as mulheres ganharam um expressivo avanço, em função de diversas
manifestações em torno das questões de gênero e de discursos de empoderamento, pautando,
assim, sobre a concretização de seus direitos. Os versos exprimem a história das lutas das
mulheres, as opressões sofridas cotidianamente, além de exporem a vontade delas de serem
donas dos seus próprios corpos e de suas vidas. A literatura poética, nesse caso, possibilitou
uma leitura a respeito de temas em torno da mulher, fazendo com que ela seja reconhecida e
seus feitos estudados.
Em síntese, os folhetos de cordel analisados apresentam uma crítica à ideologia da
supremacia do ser masculino em detrimento do feminino. Eles possibilitam uma leitura contra
os estereótipos e discursos preconceituosos, principalmente acerca da mulher, além disso,
levanta-se um questionamento em torno da liberdade do cidadão e seus direitos, em um
contexto onde muitas vozes ainda não são ouvidas, mas nem por isso, devem ser silenciadas.
Por fim, a poesia de escritora afrobrasileira Jarid Arraes, vem confirmar que “[...] a
literatura tem a potencialidades de nos tornar melhores e de permitir uma maior reflexão sobre
a cidadania em seu conteúdo político e social, contribuindo para a formação intelectual e
cultural” (COSTA, 2016, p. 55). Sendo assim, ela é de suma importância para o
desenvolvimento humano, pois apresenta fatos que fazem parte da vivência dos indivíduos.
Referências
ALVES, Ivia. Imagens da Mulher na Literatura, na Modernidade e Contemporaneidade. In:
FERREIRA, Lúcia Silvia; NASCIMENTO, Enilda Rosendo do (org). Imagens da mulher
na cultura contemporânea. Salvador: Neim/UFBA, 2002, p. 85-98.
ARRAES, Jarid. A Guerreira do Sertão [Folheto]. Rio Grande do Norte, 2017.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
117
VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
BLOOM, Harold. Elegia para o cânone. In: BLOOM, HAROLD. O cânone ocidental. São
Paulo: Objetiva, 1995.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. p.
147-175.
FREITAS, Zilda de Oliveira. A Literatura de Autoria Feminina. In: FERREIRA, Lúcia Silvia;
NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. (org). Imagens da mulher na cultura
contemporânea. Salvador: Neim/UFBA, 2002, p. 115-123.
FREITAS, Maria do Carmo Soares de. Mulher Ligth: Corpo, Dieta e Repressão. In:
FERREIRA, Lúcia Silvia; NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. (org). Imagens da mulher
na cultura contemporânea. Salvador: Neim/UFBA, 2002, p. 23-34.
VASCONCELOS, Vania Maria Ferreira. No colo das Iabás: raça e gênero em escritoras
afrobrasileiras contemporâneas. [Tese de doutorado]. Programa de Pós-Graduação em
Literatura. Universidade de Brasília, 2014.
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Introdução
O ensino de Literatura busca traçar caminhos que levem professor e aluno a irem além
do que, tradicionalmente, já encontramos na escola: o historicismo e o pretexto para aulas
gramaticais, por exemplo. Essas situações levam a um trabalho de descrédito, considerando
que o texto literário está além do tradicionalismo que, há muito tempo, lhe direcionam.
Verifica-se, contudo, que mais restritamente, quando esse ensino é direcionado a
produções de cunho africano ou afrobrasileiro, a literatura ainda está aquém do esperado.
Muitas vezes não é abordada na formação inicial de muitos professores, o ensino da cultura e
da tradição africanas levantam questões que giram em torno da representação do negro ao
longo da construção identitária do Brasil e no próprio continente africano. Quando se
direcionam, por sua vez, essas questões, ao trabalho com textos literários na escola, para
produções de autoria feminina, percebe-se que a situação é ainda mais frágil.
Este trabalho visa destacar como alunos de uma turma de 3º ano do Ensino Médio, da
Escola Cidadã Integral Severino Cabral, recepcionaram textos moçambicanos e afrobrasileiros
produzidos por mulheres, desconstruindo, através de leitura de contos, os estereótipos que,
geralmente, são associados às mulheres negras e evidenciando as outras faces sociais que essas
mulheres conseguiram ao longo da história. Para isso, trabalhou-se com contos das obras
‘Ninguém matou Suhura’ e ‘Olhos d’Água’, de Conceição Evaristo. 35
Textos africanos e afrobrasileiros de autoria feminina na sala de aula, nos dias atuais,
ainda fazem parte das discussões sociais, principalmente associando-os aos saberes de Tardif
(2007) ao referir que é necessário investir na formação docente para que os alunos também
possam ser agraciados com os conhecimentos que serão repassados. As produções de autoria
33 Mestre em Linguagem & Ensino (Estudos Literários) pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
Este trabalho é fruto de sua pesquisa de mestrado, intitulada ‘’A percepção da condição feminina moçambicana
e afro-brasileira: uma leitura de contos de Lília Momplé e Conceição Evaristo na sala de aula’’. E-mail: nunnes-
[email protected]
34 Doutora em Teoria da Literatura pela UNICAMP. É professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa,
na graduação e na pós-graduação, na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail:
[email protected]
35 Todos os dados transcritos, neste trabalho, estão de acordo com a aprovação pelo Comitê de Ética da
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), devidamente registrados na Plataforma Brasil sob o parecer
número 3.021.200.
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feminina, mesmo ganhando espaço nos últimos anos, ainda se encontram fragilizadas pelo
pouco espaço que a escola lhes proporciona. Diante disso, faz-se importante que os textos de
autoria feminina sejam trabalhados e ressignificados, promovendo, assim, uma junção de
conhecimentos.
Ao apresentar as múltiplas condições das mulheres em textos de Lília Momplé e
Conceição Evaristo para os adolescentes que compuseram o 3° ano B, o processo de
construção de identidades ocorreu, bem como as novas visões, em torno do lugar da mulher
africana e afrodescendente na trajetória desses estudantes. Ao debater sobre a condição
feminina na sala de aula, percebeu-se um novo olhar para as questões em torno do feminino,
destacando, portanto, o respeito que é essencial para o convívio entre as diferenças.
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Essa realidade em torno do feminino encabeça uma questão chave, principalmente por
se tratar de autoras negras com descendência africana, que é buscar alternativas que busquem
evidenciar a produção dessas autoras na escola, espaço em que os textos literários são
apresentados, muitas vezes, aos alunos por meio de leituras e debates.
2.1 Esse conto rasgou foi meu coração!: ‘O baile de Celina’, pelos olhos dos alunos
Primeiro encontro com um texto de Lília Momplé. Após a leitura e os debates que
envolveram o poema ‘Negra’, um dos alunos, PLS, diz que está animado por conhecer um
conto de uma escritora africana. ‘’Se for afrontoso como o da aula passada, professor, já estou
adorando!,’’ diz ao mediador antes de organizarmos a sala em círculo e cada aluno receber a
sua cópia de ‘O baile de Celina’, a leitura programada para aquele encontro. Dos vinte e dois
estudantes, apenas treze compareceram. O que não impediu que a aula acontecesse de modo
prazeroso.
Muitos se dispõem a ler. Combinamos que, a cada virada da história, um novo aluno
daria continuidade. Na medida em que vão lendo, marcam as partes que, segundo a turma,
merecem destaque. ‘’É meio extenso’’, setencia o aluno DS. Mas prossegue acompanhando a
leitura e, em determinado momento, assume a condução do texto, lendo-o até o final.
Realizada a leitura, a aluna EAM, questiona: ‘’Por que o texto começa com um local e
uma data?’’ Diante desse questionamento, o mediador retruca: ‘’Você consegue ver algum
elemento no conto que possa ajudar a entender o por quê?’’ ‘’No texto, fala muito de Portugal,
dos brancos enricarem por explorar os negros, fala de colônia... então... acredito que esse local
e essa data se referem ao período em que a história se passa, né?’’
A visão da aluna acerca desse primeiro aspecto chamou a atenção por perceber, de
imediato, que a escritora Lília Momplé encontrou uma forma de contextualizar o drama de
Celina e dos demais personagens que compõem a narrativa. A partir da percepção exposta
pela aluna, outros alunos passaram a expor suas visões a respeito da narrativa:
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PLS: Na verdade, professor, é uma história muito triste. A mãe de Celina é muito
caprichosa, uma mãezona, que fez tudo pela filha, mas o preconceito, o racismo é
tão forte em Moçambique, né? Por isso Celina fez o que fez!
MEDIADOR: E esse ‘fez o que fez’ (tom enfático por parte do mediador), PLS,
significa o quê?
PLS: Significa que o racismo é tão forte e tão presente que ela já sabia da sua
inferioridade naquela escola cheia de brancos. Isso deixa claro o quanto precisa
mudar essa visão tão ultrapassada de que brancos estão acima dos outros. Celina é o
diferencial, mas teve a infelicidade de ser vítima de uma sociedade racista!
Percebe-se que, por meio da leitura atenciosa do texto, os alunos puderam confirmar
as suas impressões acerca das questões raciais presentes no conto. Além disso, os fatos de eles
se dispuserem a marcar as partes que lhes chamaram a atenção merece ser mencionado.
Quando se destaca, na fala de PLS, o fato de Moçambique ser colônia portuguesa, levando em
consideração a contextualização de escrita do conto, corrobora a visão de Maria Nazareth
Fonseca (2015) ao destacar que, muitas vezes, para se compreender textos das Literaturas
africanas de língua portuguesa, é necessário aliar a visão que se apreende do texto com
elementos da História da África.
Ao finalizar seu comentário a respeito da questão racial expressa no início do conto, a
aluna EAM relembra que, nas aulas de história sobre o continente africano, alguns pontos são
bem parecidos, conforme se vê na transcrição apresentada a seguir:
EAM: A gente viu, professor, nas aulas de história, a professora explicou sobre
África, que houve muita exploração, muita perseguição, muito apagamento cultural.
O que o personagem sugere para o outro é muito disso.
MEDIADOR: Diga pra gente, então, EAM, que sugestão é essa?
EAM: Deixa eu ver... [a aluna recorre ao texto]. Aqui, ó: quando eles se envolvem
com negras só para satisfazer as vontades deles e depois trocam elas por outras!
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Brancas, só pra constar! Eu mesma, não sei os demais, fiquei com ódio dessa Maria
Claudina!
[TODOS RIEM]
MEDIADOR: Por que, filha? Que atitude dela te deixou com raiva dela?
EAM: Professor! Ela sabia que o embuste se juntou a ela só por interesse e ainda
por cima aguenta muita coisa calada! Eu não vou dizer nunca, mas acredito que não
faria isso!
ENS: 1975? E a história se passa em 1950? A autora foi muito corajosa, viu?
MEDIADOR: Como você interpreta a coragem dela?
ENS: Vou tentar explicar! Se Moçambique ainda era colônia de Portugal, ela está
criticando o racismo no país dela. Fora as violências que as mulheres sofrem, pois
nós sabemos que isso ocorre em todo o mundo!
MEDIADOR: Quais violências você vê, ENS?
ENS: Abandono, são enganadas, iludidas, trocadas... A própria Celina, no final da
história, é agredida [o aluno faz o gesto com as mãos] com palavras, pelo diretor da
escola!
Essa percepção do aluno acerca da condição feminina destaca o olhar que a autora
direciona para sua localidade e também faz com que se perceba o quanto houve uma
sensibilidade para o texto literário. Esse tom humanizador com que se referem, é ainda mais
centrado quando os alunos passam a mencionar os momentos finais da história, quando há
uma apresentação mais contundente do cotidiano de Celina.
A narrativa evidencia todo o zelo de D. Violante para organizar o baile em que
culminaria a formação da filha no 7º ano. Apesar de poucos alunos estarem participando desse
primeiro encontro, a contribuição da turma foi crucial para que houvesse uma boa
comunicação entre o mediador e os alunos. A seguir, transcreve-se a visão dos estudantes a
respeito do tão esperado baile de formatura:
EAM: É tão triste ter que ler um texto como esse, viu? A gente passa a se olhar
diferente, porque Celina não realizou o seu tão esperado sonho, por ser negra. É
muito triste mesmo!
MEDIADOR: Como o texto contribuiu para que você tivesse essa visão, EAM?
EAM: Uma mãe tão zelosa, professor! As oportunidades que ela não teve, lutou
para que Celina tivesse e é muito triste ter que reparar que Moçambique era uma
sociedade segregacionista, como o Apartheid que Nelson Mandela combateu. Na
escola mesmo, só ela e outro menino são de cor.
MEDIADOR: É isso que, de certa forma, te faz ficar triste e reflexiva?
EAM: Também! E as falas da mãe dela! São muito pesadas!
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O tom melancólico da fala de EAM reflete o quanto se sentiu tocada pela forma como
Celina é tratada e, de certa forma, cobrada para que, assim, seja reconhecida e ganhe algum
destaque na sociedade moçambicana. Essa percepção acaba trazendo o poder de
transformação que o texto literário promove no leitor. Como já dito, há uma visão
humanizadora por parte dos alunos a partir da leitura realizada em sala, do conto em questão,
fato que pode ser comprovado pelas recorrentes voltas ao texto e capacidade de destacarem
suas visões sobre as personagens, em diálogo com o conhecimento de mundo que esses
alunos já possuiam.
Devido ao tempo de aula, foi solicitado que destacassem aspectos da parte final da
narrativa, já que o primeiro encontro estava prestes a encerrar. Nesse momento, o aluno PLS,
de forma bem intempestiva, levanta o braço e, conforme transcrição a apresentada a seguir,
expõe o que o epílogo da narrativa causou em si:
PLS: Professor, eu posso falar?
MEDIADOR: Pode, sim!
PLS: Esse conto rasgou foi o meu coração!
MEDIADOR: Por que?
PLS: Porque o que Celina ouviu ninguém merece ouvir. Após tanto sacrifício foi
barrada e não participou do baile de formatura. É injusto e cruel! Rasgou algo
dentro de mim, assim como ela rasgou seu vestido. Se foi por raiva, decepção ou
algo do tipo, não sei. Só sei que a revolta dela é compreensível. Mostra o quanto o
racismo pode machucar alguém. Isso tem que acabar!
Todos silenciam. O que o aluno expôs foi tocante e traz para a discussão o papel do
negro na sociedade. Além disso, a forma como PLS deixa clara sua percepção faz com que se
perceba a importância de se debater temas relacionados à questão racial. A aula acaba. Os
alunos PLS e EAM, muito próximos em sala, questionam o mediador sobre a próxima aula.
‘’Retorno amanhã, mas com um novo texto, uma nova escritora’’, responde-lhes. ‘’Então,
aguardamos o senhor! É muito bom ler textos depois de tantas aulas de Gramática!.’’ A aluna
EAM sorri.
Privilegiando aulas em torno de regras gramaticais, a professora CRM não participa do
encontro. Mesmo assim, a sensação é de que, à primeira vista, o gosto pela leitura ficou
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evidente. A maioria preferiu apenas ler e guardou para si as impressões deixadas pelo texto. Os
demais, em menor número, expuseram e relataram suas concepções acerca de Celina e de
outros elementos do conto. Encerrou-se o primeiro dia, mas a vontade de conhecer outros
textos ficou evidente pelo contato desses jovens estudantes com a narrativa de Lília Momplé.
2.2 Tão triste e ao mesmo tempo tão esperançoso!: os olhares para ‘Duzu-Querença’,
de Conceição Evaristo
O encontro propiciou os alunos a conhecerem o texto em prosa de Conceição
Evaristo, especificamente o conto ‘Duzu-Querença’. Agora, com vinte e um alunos em sala, a
leitura foi realizada por boa parte dos participantes, contendo a participação de outros alunos
ao decorrer das discussões.
Da narrativa, destaca-se o tom poético da linguagem da autora, frisado pelo aluno DS,
que relembrou o poema ’Vozes-mulheres’, lido anteriormente:
DS: Esse texto parece poesia, pois a autora fala de um modo tão bonito sobre a
vida dessa mulher que sofreu tanto!
MEDIADOR: Por que você o enxerga como poesia, DS?
DS: Porque eu me lembrei do poema que a gente leu dela. Lá, ela também fala de
sofrimento, mas de uma forma tão bonita... parece até que a gente esquece que é de
sofrimento, de dor, que ela está falando!
Ao relacionar os textos, o aluno pôde captar as marcas que o poema deixou em si,
destacando o tom de ‘sofrimento’ que ambos os textos possuem. Nessa perspectiva, para
comprovar as imagens que construiu, o mediador solicitou que ele explanasse melhor e
dissesse para a turma que elementos estão correlatos entre o poema e o conto. Ao cumprir
essa tarefa, outros alunos puderam apresentar suas comparações para a turma:
MEDIADOR: Já que você recordou o poema ‘Vozes-mulheres’, nos mostre que
comparações você enxerga entre ambos, DS!
DS: No poema, professor, a autora apresenta uma família negra, sua descendência,
né? Fala da bisavó, da mãe, acho que dela mesma [A AUTORA] e da filha. No
conto que a gente leu agorinha, fala da avó, dos netos e tantos outros familiares,
todos pobres, vivendo na miséria.
MEDIADOR: E por que você acha que a autora decidiu retratar esses personagens
dessa forma?
DS: Pra mostrar pra gente que a maioria dos negros vivem assim, que é algo bem
antigo, tipo... uma herança da escravidão, entendeu?
PLS: Sem falar que, lá no poema, são vozes. Acho que essas vozes representam
todos que sofrem, até hoje, com as diferenças sociais. Eu entendi que, no poema, a
filha representa a mudança dessas gerações, da mulher que não se encaixa nesses
padrões.
EAM: E no conto essa mudança é vista na neta de Duzu...
PLS: Eu ia dizer isso! No texto de hoje é a neta que vai mudar a história dessas
pessoas tão pobres e com poucas oportunidades.
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MEDIADOR: Como vocês veem esse desejo do pai de Duzu? De enviá-la para a
cidade e, assim, poder trabalhar, estudar?
AVB: Eu acho que o grande desejo desse pai é que a filha não passe dificuldades
como ele, talvez, tenha passado. Sei lá! Achei tão triste e ao mesmo tempo tão
esperançoso... não queria que a personagem tivesse sido enganada e caído na
prostituição, mas foi a forma como ela encontrou para se sustentar, né?!
MEDIADOR: Explique melhor, AVB! Como uma forma de sustentar? O que
vocês acham?
PLS: Assim, eu acho que ela virou prostituta porque viu que ganhava dinheiro, coisa
que ela mal teve na vida. Acredito que ela não tinha consciência do que estava
fazendo e, sim, aproveitando que tem uma forma de ganhar dinheiro.
AVB: Ela começa o texto como mendiga, aí depois começa a falar do passado dela
e mostra a dura realidade que ela vivia, aí mostra outras coisas da vida dela, como a
dor de perder os netos, de voltar a morar no morro, de viver nas ruas. É uma vida
dura a dela.
PLS: E tem também, professor, a vontade do pai dela de que Duzu estude. Lembrei
de Celina. Elas têm destinos diferentes, é óbvio! Mas uma não estudou porque foi
enganada e a outra barrada de concretizar uma grande vontade da mãe.
MEDIADOR: Hum... Então, para você, Celina e Duzu são parecidas?
PLS: Sim! Cada uma com sua história, mas com muitos pontos em comum, como
terem e não terem acesso à escola.
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MEDIADOR: Você pode falar da sua experiência, então? Quais proximidades você
vê entre o conto e a sua vida no Rio de Janeiro?
TTM: Posso sim, tá ligado?! Assim, professor, a vida é cheia de altos e baixos, tá
ligado? Tipo, luta para não faltar nada, sonha com uma vida melhor. O amor dela
pelos netos me fez lembrar de voinha.
MEDIADOR: Como a personagem se aproxima da sua avó, TTM?
TTM: A pobreza, a luta diária... minha avó só não fez se... se... como é que se diz?
Não foi prostituta, tá ligado?!
EAM: Eu não sabia dessa história! Muito tocante, cara!
TTM: Não gosto de falar, pois é muito triste, assim como essa história que a gente
leu da Ceição Eva... Eva o quê? [o aluno pega o texto para conferir o nome da
autora] Evaristo.
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atenção dos alunos, especificamente da aluna EAM. Para ela, Querença se torna ‘’a nova
forma de enxergar a mudança de que tanto se fala no texto.’’ Ao atentar para o nome da
personagem, a aluna o correlacionou aos verbos ‘querer’ e ‘desejar’, dando a entender que, ao
aproximar essas visões do seu repertório linguístico, ela consegue selecionar as suas visões a
respeito do tom de esperança que o final do texto apresenta, como se constata na transcrição a
seguir:
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Com uma participação mais ativa, percebeu-se que, nas aulas seguintes, questões em
torno da condição feminina, do contexto histórico e das experiências individuais dos alunos a
respeito das denúncias expostas pelas autoras, permitiram múltiplas dimensões a respeito dos
contos lidos. Nesses momentos, houve uma ampliação das percepções expostas anteriormente
e, agora, com os novos contos lidos em sala.
Considerações finais
A leitura ganha sua devida importância com os procedimentos anteriormente
mencionados. Os contos levados para a sala de aula auxiliaram os alunos na construção de
seus saberes, atendendo, dessa forma, aos seus horizontes de expectativas, visto que, durante
os debates em sala de aula, muitos deles perceberam o caráter de denúncia que as narrativas
possuem.
Diante disso, o Método Recepcional tornou-se uma metodologia eficaz para atender as
expectativas dos alunos e do mediador, tais como atender aos objetivos traçados para a
aplicação da pesquisa. Em contrapartida, enquanto os alunos foram atendendo a essas
expectativas, outras possibilidades de leituras surgiram: o diálogo com situações extraclasse, a
semelhança entre os contos, à questão da educação da mulher e os fatores históricos que
permeiam as estórias/histórias.
Referências
BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Método Recepcional. In: A
Formação do Leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. p. 81-
102.
EVARISTO, Conceição. ‘’Duzu-Querença. In: Olhos d’Água. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.
JAUSS, Hans Robert. O prazer estético e as experiências de poiesis, aisthesis e katharsis. In:
LIMA, Luiz Costa (org.). A literatura e o leitor: textos da estética da recepção. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 63-82.
MOMPLÉ, Lília. O baile de Celina. In: Ninguém matou Suhura. Moçambique: Autora,
2009. p. 39-55.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2005.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 8. ed. Petrópolis: Vozes,
2007.
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36Este artigo é produto das pesquisas desenvolvidas no projeto Moçambique no feminino: a poesia de Sónia Sultuane, o
qual vem sendo desenvolvido na UFPB.
37Doutor em Literatura e Cultura pela UFPB. Professor de Literaturas de Língua Portuguesa no Departamento
e pintor português.
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A coletânea de poemas ‘Roda das Encarnações’ (2017) é o quarto livro de poesia Sónia
Sultuane. Nesta antologia de poemas, percebemos que a escritora moçambicana completa um
ciclo de existência poética que se lança no mundo para encarnar em outros corpos artísticos. A
exposição sobre Pancho Guedes é uma das encarnações poéticas da roda movente do lirismo
proposto pela poetisa da Lua.
O futurista
(DIAS; SULTUANE, 2018, p.)
O poema homônimo abre a coletânea como uma chave de permissão de entrada dos
leitores no universo místico proposto pelo ‘eu-poético’. O verbo ser perpassa toda a viagem
poética sugerida pelo poema. O movimento circular da roda se mostra no poema a partir do
eco em ‘s’ presente em nove dos doze versos que compõem a estrofe única do poema. Um
corpo se ergue sob o comando da voz poética: olhos, boca, mãos e dedos garantem a sensação
de domínio cosmogônico sugerido pelo poema.
O universo é cúmplice da tradição de ir e vir que é evocada pelos semas da
encarnação. A natureza corrobora o movimento circular de rotação e translação do giro
existencial, tal como podemos observar na peça O futurista, uma figura andrógena, de forma
fálica, cheia de pontas e círculos que vão acolhendo a ideia de futuro. O futurismo fica
personificado por meio das tantas vanguardas estéticas propostas pela peça. A cabeça tem
olhos, chifre e não boca. A voz se faz presente pelas brechas circulares que acolhem como um
portal o lirismo movente proposto pelo ‘eu-poético’ que encarna no referido erguendo a peça
como um edifício de sugestões e metáforas metamórficas para a compreensão do mundo.
A peça ‘O futurista’ ainda incute a formação imagética de uma árvore sombria e
mística que recepciona a claridade circular proposta pela poesia, quando atentamos para olhar
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frontal fixo do rosto que se forma neste edifício plástico. A roda da encarnação se conjuga
com o futurismo como uma forma de gerar círculos claros e escuros, tão bem harmonizados
pelos possíveis frutos em preto e dourado.
A palavra poética consagra sua imortalidade cosmogônica quando o corpo poético
preenche os espaços do corpo plástico, quando ambas as manifestações de linguagem se
misturam sob a autorização da poesia. A poesia se move pelo lirismo moderno insatisfeito
com as incompletudes dos espaços existenciais bem sugeridos pela encarnação e pelo olhar
futurista seduzido pelas palavras movidas circularmente nas duas manifestações de linguagem
em tela, comprovando que o poema não é mais o território hegemônico da poesia. A voz
poética se mostra um espírito que brinca com as de existir por meio da linguagem.
Vocabulário
Expresso Oriente
(DIAS; SULTUANE, 2018, p.12)
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O poema apresentado nos remete, mais uma vez, à ideia de mobilidade lírica. O título
do poema traz a ideia de conjunto de palavras, as quais personificam o poder de transição do
eu-poético. Os pés sinestesiam as sensações vocabulares de movimento registradas pelas
ações: pisar, povoar, caminhar e viajar. A identidade do eu-poético se manifesta pela geografia
natural: lugares agrestes e sagrados, savanas, florestas e montanhas. Em sequência
enumerativa o verbo rezar sacraliza a palavra em um verso extremamente ecumênico
convidativo à cosmogonia humanitária “rezo as palavras das mais diversas religiões.” As
palavras se movem para que o canto do universo se espalhe pelo mundo.
A escultura ‘Expresso Oriente’ metaforiza as mais diversas viagens sugeridas no
poema, como se o eu-poético olhasse o mundo por cada janela impressa na plasticidade da
peça. São quatro vagões edificados em forma ereta, propondo uma viagem para o cosmos. As
janelas, todas do lado esquerdo, sinalizam um olhar para o mundo que se faz pela ordem do
Oriente. As rodas no lado direito dão movimento à peça e também abertura à possibilidade da
rotatividade da palavra. Rodas moventes de tantos lirismos embarcados em vagões que têm o
céu como destino, de modo que a poesia seja um elemento lúdico na construção artística dessa
linguagem híbrida e metamórfica, mística e cosmogônica.
O guardião
(DIAS; SULTUANE, 2018, p.12)
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possui olhos e boca bem arregalados como sensores hiperbólicos da manifestação da palavra
que se move e ultrapassa o portal sugerido pelo guardião: o vigilante da manifestação da
poesia. O poema e a escultura se casam com a plasticidade da palavra que aqui exercita o dito
e o não dito. A roda movente do lirismo se faz presente no olhar do guardião que observa o
poema construído em versos materializados em solilóquios relutantes ao exercício bélico entre
o dizer e o calar.
Fases da lua
Anjo Negro
(DIAS; SULTUANE, 2018)
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Últimas considerações
A escrita poética e plástica de Sónia Sultuane constrói um corpo místico comandado
por vozes sensoriais que nos levam a uma catarse efêmera e transitória de deslocamentos
provocados pela espiritualidade, pelas sinestesias, pelas metáforas, pela metapoesia, pelos
astros, pelos loci amoeni, a ponto de concluirmos provisoriamente que a escolha da movência
lírica e plástica das palavras é um caminho para desenvolvermos novas leituras da poesia de
autoria feminina em Moçambique. Sónia Sultuane nos promove com a roda movente dos
lirismos uma percepção da incompletude da poesia e de suas plasticidades poéticas, ao ponto
de, provisoriamente, pensarmos que a poesia na contemporaneidade não cabe mais só no
poema; é preciso procurar a poesia nas mais diversas manifestações da linguagem: na pintura,
na fotografia, nas artes plásticas, na arquitetura, ou seja, nas mais diversas formas estéticas e
ideológicas em que seja possível encontrar o poético.
Referências
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A estética configura-se como um dos modos encontrados pelo povo negro africano e
da diáspora para resistir e valorizar sua existência. Por vários anos, a estética negra – pele de
cor escura, nariz largo, cabelo cacheado/crespo e lábios grossos – foi alvo de desvalorização
por não pertencer ao padrão de beleza ocidental que vigorou (e de certa forma ainda vigora)
desde o século XX. Ainda que, nos dias atuais, haja uma flexibilidade no que é considerado
belo e no engajamento dos movimentos das minorias, no que diz respeito aos padrões de
beleza, ainda é comum a submissão – muitas vezes inconsciente e forçada – de pessoas negras,
tanto os de pele clara quanto os retintos, aos traços eurocêntricos e ainda valorizados pela
mídia, principal criadora, que difundiu o padrão branco, e pelas sociedades do ocidente.
Essa situação ainda negativiza o negro e, consequentemente, reforça a ideia de um
corpo inferior e de menor valor, que faz com que tantos homens e mulheres submetam-se a
procedimentos estéticos, na tentativa de pertencer a um padrão inatingível. Dessa forma, os
corpos negros se encaixam no conceito de corpos abjetos apresentando por Butler (2000).
Corpos abjetos são aqueles que não correspondem às regras e aos moldes financeiros,
estéticos, de gênero, de etnia, de orientação sexual, entre outros, determinados pela
supremacia branca e, por esse motivo, são subjugados e considerados inferiores.
Como aponta Nilma Lino Gomes (2008, p. 234),
Se concordarmos que o corpo carrega muitas e diferentes mensagens, podemos
concluir também que o entendimento da simbologia do corpo negro e os sentidos
da manipulação de suas diferentes partes, entre elas, o cabelo, pode ser um dos
caminhos para a compreensão da identidade negra em nossa sociedade.
Além disso, o preconceito racial é fortalecido por essas atitudes, uma vez que ainda há
uma forma de beleza sendo privilegiada em detrimento de outras. Se tal ação não chega a
produzir, totalmente, a ideia do embranquecimento e negação das características naturais,
contribuem para a errônea ideia de supremacia da estética branca sobre a negra.
Considerando o que foi posto, este trabalho tem como objetivo proporcionar
reflexões acerca das representações do corpo da mulher negra, por meio da estética do cabelo,
considerando aspectos como a invisibilidade da estética negra nos espaços narrativos e a
característica capilar como elemento ativo no processo de construção das identidades das
39 Desenvolve o projeto “Relações de gênero e realismo animista em Conceição Evaristo”, no Programa de Pós-
Graduação em Letras, da Universidade Federal da Paraíba, sob orientação da Professora Doutora Luciana
Eleonora de Freitas Calado Deplagne. Pesquisa financiada pela Capes. E-mail: [email protected]
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protagonistas, bem como refletir de que forma a estética negra, a partir das diferentes formas
de se usar o cabelo cacheado/crespo, colabora para o processo de identificação das pessoas,
nesse caso, de mulheres negras do Brasil e de Angola.
Para isso, analisaremos duas narrativas: a primeira é ‘Esse cabelo: a tragicomédia de um
cabelo crespo que cruza a história de Portugal e Angola’ (2015), ensaio literário da escritora
angola Djaimilia Pereira de Almeida. No texto, vemos que a protagonista, Mila, nasceu em
Angola, porém passou a morar em Portugal desde os 3 anos de idade.
Narrado em 1ª pessoa, o texto mostra que, na medida em que a personagem crescia, o
seu cabelo começou a ocupar papel de destaque em sua vida, passando por diversas
transformações, incitando-a à busca incansável por si mesma, pela cultura a que pertencia e
com a qual se identificava: se à cultura portuguesa, ocidental, do colonizador da qual a família
do seu pai faz parte ou se à cultura angolana, seu país de origem, local de nascimento de sua
mãe e colonizado por portugueses. Nessa procura, Mila se depara com histórias de sua família
e as apresenta em forma de momentos fragmentados, como retratos, dos dois países que se
entrelaçaram. Para isso, ela conta a história do seu cabelo como símbolo dessa miscigenação à
qual pertence.
O outro texto é um conto escrito por Cristiane Sobral. Em ‘Pixaim’, texto presente no
livro ‘O tapete voador’ (2016), Cristiane Sobral narra a história de uma menina que, devido ao
seu cabelo crespo, é chamada constantemente de ‘Pixaim’. A protagonista narra a história das
mudanças a que seu cabelo foi submetido, por imposição de sua mãe que não sabia lidar com
o fato dele ser crespo. A partir das transformações, a menina foi percebendo as diferenças
entre ela e as demais pessoas, o que colaborou com seu processo de identificação e afirmação
como mulher negra.
Nessas duas narrativas, analisaremos semelhanças e diferenças no relacionamento das
personagens com seus cabelos, os grupos sociais que influenciaram as mudanças capilares e as
auxiliaram, ou não, no processo de aceitação e valorização das características que as três
protagonistas negras apresentam. Afirmamos a ideia de que a análise comparativa é válida por
revelar “processos de apropriação criativa, favorecendo não só o conhecimento das
peculiaridades dos textos, mas também a compreensão dos procedimentos da produção
literária” (CARVALHAL, 2003, p. 20).
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Woodward comenta de que forma diferentes instituições atuam na formação das identidades.
Ela explica que
[...] participamos dessas instituições ou ‘campos sociais’, exercendo graus variados
de escolha e autonomia, mas cada um deles tem um contexto material e, na verdade,
um espaço e um lugar, bem como um conjunto de recursos simbólicos. Por
exemplo, a casa é o espaço no qual muitas pessoas vivem suas identidades
familiares. A casa é também um dos lugares nos quais somos espectadores das
representações pelas quais a mídia produz determinados tipos de identidades – por
exemplo, por meio da narrativa das telenovelas, dos anúncios e das técnicas de
venda (WOODWARD, 2014, p. 30-31).
Ampliando o que diz a teórica, a família como instituição exerce influências a partir
dos papeis hierárquicos desempenhados por cada membro, a ponto de determinar quem
pratica as ações e quem apenas as recebe. Nos textos escolhidos, podemos perceber que as
mudanças estéticas às quais as protagonistas se sujeitaram foram incentivadas e
proporcionadas por um membro de destaque na família. Nos textos, as mães são as
responsáveis por cabelos crespos/cacheados se tornarem lisos; no ensaio literário, a mãe de
Mila também a inicia nos procedimentos capilares e, posteriormente, a avó paterna, com quem
a menina morava, assume esse papel.
Em ‘Pixaim’, a narradora apresenta seu processo de mudança iniciado quando ela tinha
10 anos de idade. A menina era julgada por ter ‘cabelo ruim’ e ‘carapinha dura’. A mãe sempre
tentava arrumar o cabelo da criança da forma que achava conveniente e, por isso, cedeu à
solução mostrada por uma vizinha, que tinha conhecimento da ‘luta’ diária para deixar a
menina como as outras. Tal situação é evidenciada em um trecho no qual a narradora diz que
“uma vizinha disse à minha mãe, que todos os dias lutava para me pentear e me deixar
bonitinha como as outras crianças, que tinha uma solução para amolecer a minha ‘carapinha
dura’ ” (SOBRAL, 2016, p. 37).
Em ‘Esse cabelo’, Djaimilia Pereira de Almeida apresenta o que ela chama de ‘história
do cabelo’. Nessa narrativa, Mila conta como os elementos necessários para que ela estivesse
ligada a uma nação, cultura e, assim, pudesse criar uma identidade, estão totalmente voltados
ao seu cabelo. Além disso, narra como todas as idas aos salões de beleza, desde criança até
adulta, influenciaram o seu comportamento e as suas escolhas. No segundo capítulo, ela conta
a primeira ida ao salão de beleza, em Portugal, com sua mãe:
O primeiro salão da minha vida escondia-se numa rua íngreme, em Sapadores, que
viria a reencontrar por acaso, numa mudança de bairro, vinte anos depois. Andámos
muito para lá chegar, eu e a minha mãe, que então gozava as férias de Verão em
Oeiras, hospedada em casa da avó Lúcia e do avô Manuel (os meus avós paternos),
com quem passei a infância. [...] (ALMEIDA, 2015, p. 10).
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familiar na mudança capilar dessas meninas. Os textos ‘Pixaim’ e ‘Esse cabelo’ abordam, de
forma ampla, tal envolvimento familiar. A mãe, no texto de Cristiane Sobral, sente raiva pelo
fato de o cabelo da filha voltar ao natural em um dia de chuva: o ódio pelas características
negras da menina é o que a conduz pelo caminho de embranquecê-la. Já para a criança, o seu
cabelo representa força e resistência, por isso a vontade de mantê-lo natural.
Na narrativa angolana, há, assim como apresenta a narradora, um cuidado disfarçado
de preconceito. O interesse da família portuguesa pelo cabelo de Mila não se dá, apenas, pela
vontade de fazer com que a menina se sinta bem esteticamente, mas mostra como ela deveria
aparecer fisicamente no país do colonizador, local onde residia, para que pudesse ser
socialmente aceita. Lúcia, sua avó paterna, foi quem continuou ‘incentivando’ a protagonista a
procurar salões de beleza que fizessem tratamentos e penteados capazes de alisar o cabelo de
Mila.
Vemos, portanto, que a família atua como agente de manutenção de uma estrutura
social que caracteriza o corpo negro como inferior, sendo, portanto, submisso aos padrões
ocidentais determinados pelos brancos. No caso de Mila, não só o cabelo como quaisquer
outras referências à cultura negra de Angola eram determinantemente reprimidas, como é o
caso do trecho mostrado a seguir, no qual a personagem faz uso de uma argola: “Acossam-me
ao espelho quando me arranjo para sair, fazendo-me crer étnico, e por isso vulgar, um par de
argolas douradas que acabo sempre por não usar” (ALMEIDA, 2015, p. 46).
Isso nos leva a pensar, não somente, na capacidade da família de modificar a estética,
mas também de invadir a concepção/construção de identidade do sujeito. Em muitos casos,
mexer no cabelo é sinônimo de mexer nas raízes capilares e étnicas, não no sentido de tocá-
las, mas de transformá-las, modificá-las, o que causa, muitas vezes, um sentimento de não
pertencimento a um espaço. Em várias situações o procedimento estético forçado – seja pela
família, pela mídia, emprego ou qualquer outra instituição social – é uma das formas de
embranquecimento pelas quais passam o negro, no Brasil, em Portugal e em outras regiões do
mundo.
Outro detalhe importante a se salientar neste estudo sobre o cabelo é a afirmação feita
pela personagem do texto de Djaimilia Almeida, quando ela afirma que, tanto a narrativa
quanto os penteados e tratamentos são fugazes. Nota-se em ‘Esse cabelo’ uma narrativa que
apresenta episódios variados das pessoas que fazem parte do convívio da protagonista e que
estão entrelaçados às suas raízes.
Ao narrar momentos e tentativas frustradas dos procedimentos, Mila nos mostra os
detalhes de sua trajetória em busca de sua identidade, de seu lugar de pertença. Ela, filha de pai
141
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português e mãe angolana, nascida em Angola, mas criada em Portugal, pertencia a qual lugar?
Onde estavam suas raízes? Os poucos fios de cabelo liso que lhe sobraram da infância, antes
do primeiro corte de cabelo feito pela mãe, momento em que seu cabelo nasceu crespo, eram
reminiscências de um passado apenas seu ou de uma história que mistura dois continentes em
que um representa o colonizador e outro o colonizado, ou seja, suas raízes brancas e negras?
São essas indagações que norteiam Mila e servem como motivadoras para que ela se
encontrasse, se conhecesse e se permitisse vivenciar novas experiências relacionadas ao seu
cabelo, à cultura e à sua forma de entender a vida. Um trecho no qual Mila relata a
preocupação de sua mãe acerca de seu cabelo, confirma a ideia de que identidade e relação
estética caminham juntas:
A distância que me separou da minha mãe era o único indício perceptível de a
minha cabeça ter sido jogada para longe. Era disso que ela me falava ao telefone nos
anos decapitados em que pouco nos vimos, ao perguntar-me pelo cabelo, como se
de uma forma indireta me fosse dado a ouvir nessas perguntas que ela sondava se
eu já me encontrara (ALMEIDA, 2015, p. 33).
O não despertar para o pertencimento negro ainda é uma questão pertinente em uma
sociedade a qual busca embranquecê-los, seja de forma velada, utilizando termos e expressões
genéricas e racistas como ‘morena’, ‘negra, mas bonita’ e ‘exótica’, por exemplo, ou agressiva,
como ‘cabelo ruim’.
Kabengele Munanga (2009, p. 38) diz que “o embranquecimento do negro realizar-se-
á, principalmente, pela assimilação dos valores culturais do branco. Assim, o negro vai vestir-
se como europeu e consumirá alimentação estrangeira, tão cara em relação a seu salário.” Mais
que isso: o negro vai usar procedimentos que mudem seu cabelo, seu nariz, seu corpo para
assemelhar-se ao branco.
Para que esse processo não aconteça, é necessário um incessante projeto de
valorização da estética negra e, de forma mais abrangente, de todas as culturas e etnias não
brancas, de forma que mais pessoas se sintam representadas. Os ataques às raízes capilares
etnicorraciais e culturais de Mila e da protagonista de ‘Pixaim’ começaram cedo. Tal situação
não permitia que essas duas meninas-mulheres se defendessem. Consequentemente, elas
cederam aos ataques por uma parte do tempo, o que levou as personagens de ‘Esse cabelo’ e
‘Pixaim’ a uma busca por si e por indagar o porquê daqueles procedimentos:
Eu já não resistia e comecei a acreditar no que diziam. Todos os dias eram tristes e
eu tinha a certeza de que apesar do cabelo circunstancialmente ‘bom’, eu jamais
seria branca. Foi aí que eu tive a inesperada luz. Minha mãe queria me
embranquecer para que eu sobrevivesse a cruel discriminação de ser o tempo todo
rejeitada por ser diferente. Percebi subitamente que ela jamais pensara na
dificuldade de ter uma criança negra, mesmo tendo casado com um homem negro,
porque ela e meu pai tiveram três filhos mestiços que não demonstravam a menor
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necessidade de serem negros. Eu era a ovelha mais negra, rebelde por excelência, a
mais escura e a que tinha o cabelo ‘pior’. Às vezes eu acreditava mesmo que o meu
nome verdadeiro era pixaim (SOBRAL, 2016, p. 40).
Como apresenta a narradora, o motivo para a atitude de sua mãe foi o não saber lidar
com a ideia de uma filha negra em uma sociedade que a tratava como diferente. No entanto,
era justamente nessa diferença que a protagonista reconhecia sua força para entender que ela
nunca pertenceria à cultura branca, muito menos seria considerada branca por alguém. De
acordo com a própria personagem,
O meu cabelo era a carapaça das minhas ideias, o invólucro dos meus sonhos, a
moldura dos meus pensamentos mais coloridos. Foi a partir do meu pixaim que
percebi todo um conjunto de posturas que apontavam para a necessidade que a
sociedade tinha de me enquadrar num padrão de beleza, de pensamento e opção de
vida (SOBRAL, 2016, p. 40-41).
Por difícil que seja admiti-lo, o desejável ambiente de igualdade no qual tive a
felicidade de ser educada em Portugal afastou-me de alguma coisa importante de
que procuro recordar-me: de uma nação clara das diferenças que me separam das
pessoas entre as quais me aconteceu crescer, que foram, aliás, quem me ensinou a
perceber a importância das diferenças de que sinto falta (ALMEIDA, 2015, p. 36).
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impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias;
elas são disputadas” (SILVA, 2014, p. 81). É nessa disputa entre suas particularidades (mulher,
negra, angolana) e o que lhe é imposto que Mila inicia a construção de sua identidade.
Visto da forma como aponta Silva (op. cit.), é na dicotomia colonizador x colonizado
que surge a falsa ideia da supremacia da cultura e das características do primeiro e
desvalorização dos costumes do segundo. Munanga (2009, p. 33) afirma que:
A tal vizinha apareceu lá em casa dizendo que viajaria por uns dias, mas que quando
voltasse traria um produto para dar jeito no meu rebelde [...]. O henê era um creme
preto muito usado pelas negras no subúrbio do Rio de Janeiro, que alisava e tingia
os crespos. [...]. Só que o efeito do produto não era eterno, logo que crescesse um
cabelinho novo, era necessário reaplicar o creme, dormir com bobies, fazer touca, e
outras ações destinadas a converter o cabelo “ruim”, em “bom”. O produto era
passado na cabeça bem quente e mole, mas quando esfriava endurecia. Uma hora
depois, a cabeça era lavada com água fria em abundância até a sua total eliminação
(SOBRAL, 2016, p. 38).
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Conclusão
Este artigo tentou oportunizar uma reflexão acerca dos processos de
embranquecimento impostos por vários grupos sociais e, posteriormente, como as mulheres
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negras se distanciam desses grupos e se aproximam de outros que contribuem com a aceitação
de suas características e consequente valorização. Resistir, identificar-se, encontrar-se,
pertencer, valorizar são alguns verbos que estão intimamente ligados às pessoas negras dentro
e fora de África. As tentativas de apagamento das histórias e da cultura dos países africanos
encontraram na ideia do branqueamento uma oportunidade para enfraquecer, dentre outras
coisas, a cor e os traços negros de milhões de pessoas africanas e afrodescendentes.
Juntamente com a pele, o cabelo é uma das características mais latentes no que diz
respeito a identificar uma pessoa como negra. Nesse momento, é importante que nós, como
pessoas negras, estejamos conscientes de nossos papeis nas sociedades e dos nossos
comportamentos nos diferentes grupos, sejamos nós negros de pele clara ou retintos, com
cabelo liso ou cacheado/crespo.
Nas narrativas lidas e analisadas, o cabelo é o símbolo da existência e resistência negra.
Ele é, também, um meio de identificação interna e externa. Em um primeiro momento,
auxiliadas por uma visão alheia, as personagens veem o cabelo como inimigo, um vilão, alvo
de mudanças, de ataque, de corte. Porém, com os questionamentos feitos pelas próprias
personagens, sobre quem elas são e por que são assim, o cenário é modificado e o cabelo se
torna um amigo, um aliado nessa busca pelas raízes, de encontro do lugar de onde vieram. O
cabelo cresce e vai crescendo nelas – restritamente, as personagens de ‘Esse cabelo’ e ‘Pixaim’
– a vontade de estarem mais próximas aos povos que contribuíram com a sua origem. É um
processo de conhecimento, reconhecimento, identificação e valorização.
Referências
ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza
a história de Portugal e Angola. Portugal: Teorema, 2015.
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’. In: LOURO,
Guacira Lopes. (org). Pedagogias da sexualidade. Traduções: Tomaz Tadeu da Silva. 2.ed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
CARVALHAL, Tania Franco. O próprio e o alheio: ensaios de literatura comparada. São
Leopoldo: Unisinos, 2003.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade
negra. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. SILVA, Tomaz
Tadeu da. (org). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 15.ed.
Petrópolis: Vozes, 2014.
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SOBRAL, Cristiane. Pixaim. In: O tapete voador. Rio de Janeiro: Malê, 2016.
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A literatura tem alcançado, a cada dia, mais espaço no meio acadêmico e não
acadêmico como possibilidade metodológica de diálogos voltados para as discussões do
sujeito negro, registrando-se, assim, as proporções e o alcance que, tanto as literaturas
africanas, quanto as afrobrasileiras têm alcançado na contemporaneidade. De acordo com
Santiago (2012), “memórias lembradas e ficcionalizadas por escritoras negras, e produções
literárias tecidas por elas, em meio às relações de poder e de saber, autointerpretam e
modificam a depreciação de suas identidades” (SANTIAGO, 2012, p.18).
Nessa perspectiva, é válido considerar que a poesia afrobrasileira produzida por
mulheres vem se destacando no quesito da autorrepresentação, trazendo ao pódio das
representatividades sociais, históricas e culturais, aquelas que falam de si, por si, sobre si e
sobre seus pares, manifestando desejos de insubordinação física e intelectual, expondo temas
caros a tais grupos, a exemplo das representações dos corpos e que outrora eram raramente
abordados.
Vale lembrar que as questões de gênero, os feminismos – o negro aqui em foco __, as
críticas feministas e as produções artísticos culturais – as literárias (poéticas) em particular –,
têm aberto caminhos de possibilidades teórico-discursivas, a exemplo da ‘interseccionalidade’
discutida por Crenshaw (2002) e por Akotirene (2017), sem que nos esqueçamos do quanto o
assunto contém formas diferenciadas de opressão contra as mulheres negras e seus corpos,
considerando-se que, “ideias racistas devem ser combatidas, e não relativizadas e entendida
como mera opinião, ideologia, imaginário, arte, ponto de vista diferente, divergência teórica.
Ideias racistas devem ser reprimidas, e não elogiadas e justificadas” (RIBEIRO, 2018, p. 39).
Para tanto, realizou-se uma leitura de abordagem ‘interseccional’ dos poemas Lua
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Nova Demais e Mulata Exportação (1999) de Elisa Lucinda, em diálogo fluídico iluminado
pelas demais teorias supramencionadas, a fim de contribuir e ampliar, academicamente, com as
abordagens e perspectivas de autorrepresentatividade do corpo feminino negro, a partir da
poética contemporânea.
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vulnerabilidade.
“Dorme tensa a pequena, sozinha como que suspensa no céu, ‘Vira mulher sem
saber’ 41, sem brinco, sem pulseira, sem anel sem espelho, sem conselho, laço de cabelo,
bambolê, Sem mãe perto, sem pai certo, sem cama certa, sem coberta.” Em versos livres o
poema traz uma menina que, além de ser Lua nova demais, implicando na presença de um
sujeito indefeso, um corpo infante vulnerável, preso a realidade social da sobrevivência na rua,
realidade que se constata sobre um grande número de pessoas em nosso país, sobretudo, entre
pessoas negras. A estrofe em questão é apresentada por um ‘eu lírico’ que expõe a trajetória de
uma menina de rua que ‘vira mulher sem saber’, que ‘vira mulher com medo’, que ‘vira
mulher sempre cedo’, o que nos leva a reavivar, em nossa memória, a aclamada pergunta
sobre ‘O que é uma mulher?’ (FUNCK, 2017).
De acordo com a referida autora:
Uma mulher é um ser humano concreto, entendido culturalmente como feminino
em certo momento ou lugar, e que precisa negociar sua experiência dentro de
construções discursivas que podem ou não comprometer seu completo
desenvolvimento como indivíduo (FUNCK, 2011, p.360).
Mas, bem cá entre nós, tentar responder a esta pergunta continua sendo um desafio a
uma parcela gigantesca de nós mulheres país e mundo a fora. Assim, a primeira estrofe do
poema, carregada nas rimas e nas ênfases das ausências enfrentadas pela menina, traz a
repetição da preposição ‘sem’ que, aparecendo dez vezes seguidas, marca um percurso de
sobrevida completamente desprovida das condições humanas básicas para a vida humana, a
exemplo de se ter casa e comida assegurada, e assim, tem-se uma menina na rua “sem mãe
perto, sem pai certo”, mas que, pelas circunstâncias de vida está fadada a “virar mulher com
medo, virar mulher sempre cedo”, sem nem ao menos saber o que isso significa. No entanto,
caso seja ela negra, embora não tenha consciência disso, experimentará “a dupla condição, que
a sociedade teima em querer inferiorizar, mulher e negra” (EVARISTO, 2005, p.205).
Na segunda estrofe tem-se um eu lírico que, se apresenta, simultaneamente, como
onipresente e onisciente, o que tudo vê, tudo sabe e a tudo testemunha, pois, quando
reconhece o fato de tratar-se de uma “menina de enredo triste, dedo em riste, contra o que
não sabe, quanto ao que ninguém lhe disse.”, ou sabe ou tem clara ciência sobre de qual
sujeito se trata, alguém que, neste contexto, seria a representação das agruras vividas pelas
meninas de rua onde “A malandragem, a molequice se misturam aos peitinhos novos
furando a roupa de garoto que lhe dão.” E assim, tem-se uma menina que vivência toda sorte
41 As partes destacadas por negrito seja nas citações, ou nas estrofes dos poemas utilizados ao longo do texto
representam os grifos nossos.
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de “coisas” que desconhece, a exemplo do fato de não saber, ao certo, se é menina ou menino,
mas que está “sempre com a mesma calcinha, dentro da qual menstruará, sem absorvente, sem
escova de dente, sem pano quente, sem OB. Tudo é nojo, medo, misturação de ‘cadês’,”
momento este que talvez seja aquele que acentuará, ainda mais, para si, o fato de, só agora,
saber-se menina, possuidora de “um corpo incerto” (ORTEGA, 2008).
E assim, para aquela menina que sobrevive alimentando o desejo de manter-se viva a
cada segundo, por viver exposta, a menstruação que marca sua condição indiscutível de ter
nascido menina, passa a ser mais um, dentre os tantos itens de complexidade e de dor para
alguém que se encontra nessa situação de vida. Alguém para quem, ainda mais, a partir de
agora “tudo é nojo, medo, misturação de ‘cadês’,” em que se observa a ausência de quase tudo,
das condições materiais, as de ordem subjetivas, as presenças necessárias à situação. E assim,
e a cólica, a dor de cabeça de quem agora se vê ‘menina-mulher’, “é sempre a mesma
merda, a mesma dor, de não ter colo”, de estar sempre ‘sem’, de saber-se tendo, apenas, um
corpo que comporta dores e as estrelas do céu por cobertor a lhe aquecer a alma.
No entanto, é preciso considerar que, como desejar que alguém saiba que identidade
tem e ou à qual está vinculada, se esse ser nem ao menos, em virtude de tanta falta das coisas
básicas em sua vida, possui força ou animo para descobrir-se enquanto tenta se reconhecer,
ao menos, como pessoa? Para alguém assim, o que significaria mesmo é ser gente/humano?
O que significa ser mulher? O que significaria ser um sujeito? Definitivamente, essa não é
tarefa fácil de precisar, sobretudo, quando inserida em contextos de tamanha complexidade,
como é a condição de alguém que vive em situação de rua. Portanto, embora se considere que,
de acordo com uma Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil, realizada por
Natalino (2016), a partir do Censo realizado pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS,
2015):
Estima-se que existam 101.854 pessoas em situação de rua no Brasil. Deste total,
estima-se que dois quintos (40,1%) habitam municípios com mais de 900 mil
habitantes e mais de três quartos (77,02%) habitam em municípios de grande porte,
com mais de 100 mil habitantes. Por sua vez, estima-se que nos 3919 municípios
com até 10 mil habitantes habitem 6.757 pessoas em situação de rua, (6,63% do
total). Ou seja, a população em situação de rua se concentra fortemente em
municípios maiores (NATALINO, 2016, p. 22).
E assim, constata-se que, dentre a estimativa que, nem de longe reflete o número real,
nem a verdadeira situação dos sujeitos em situação de rua em nosso país, encontram-se as
peculiaridades em que se pese ser criança, ser mulher e ser negra nesse universo natural de
desumanidades. E assim, “Ela lua pequenininha não tem batom, planeta, caneta, diário,
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hemisfério, sem entender seu mistério, ela luta até dormir, mas é menina ainda; chupa o dedo
e tem medo de ser estuprada pelos bêbados, mendigos do aterro, tem medo de ser
machucada, medo.” A menina que era ‘lua pequenina’, por ser criança desprovida das
condições de ser e de agir como criança, que já convivia com sua imensidão de medos, após a
menstruação, passa agora a conviver com medos específicos: medo de ser estuprada; medo se
ser machucada, medo de ser engravidada, dentre outros tantos que sempre a acompanharam
ao longo dos dias. E assim, a menstruação que marcaria sua marca de mulher na passagem do
tempo, se apresenta como aquilo que traz a acumulação de, ainda mais medos, sobretudo o
medo consciente e inconsciente de ter seu corpo transformado em um “corpo-objeto”
(ORTEGA, 2008).
Mas na continuação dos medos da pequena está o fato de que ela “tem medo do pai
desse filho ser preso, tem medo, medo”, mas, especialmente o medo gerado pelo fato de que
“ela que nunca pode ser ela direito, ela que nem ensaiou o jeito com a boneca vai ter que
ser mãe depressa na calçada,” ou seja, ela que nunca pôde ser criança, sem querer e sem
pedir, vai “ter filho sem pensar, ter filho por azar, ser mãe e vítima. Ter filho pra doer, pra
bater, pra abandonar” e virará mulher, antes mesmo de ter podido ser menina, engrossará a
grande fileira das estimativas da gravidez na adolescência, se tiver ‘a sorte’ de, ao menos, ser
percebida como alguém que existe e que está grávida, num corpo infantojuvenil, ainda em
formação, que será adultizado pela maternidade precoce.
Assim, a percepção de Lauretis (2019, p. 125) “gênero representa não um indivíduo,
mas uma relação, uma relação social; em outras palavras, representa um indivíduo por meio de
uma classe”, o que implica, desde a própria percepção do sujeito em questão, ter ciência de si,
para só depois, saber-se inclusa no que quer que seja. Por isso mesmo, é a menina de rua que,
mesmo não sabendo o que é, nem quem é, menos ainda o que poderá vir a ser, que terá de dar
conta de si mesma e dos que dela vierem, que porá no mundo cujo destino será reproduzir a
mesma ‘Vida Severina’ que teve durante seus poucos anos de existência. A mesma que porá
no mundo os filhos que serão vítimas da perseguição da polícia que os julga e condena pela
aparência e do abandono social que os invisibiliza, “corpos destituídos de subjetividade”
(ORTEGA, 2008).
“Se dorme, dorme nada, é o corpo que se larga, que se rende ao cansaço da fome, da
miséria, da mágoa deslavada”, a rua aqui é apresenta como o lugar aonde a miséria humana se
reflete por meio da injustiça social, onde a menina “dorme de boca fechada, olhos abertos,
vagina trancada. Ser ela assim na rua é estar sempre por ser atropelada pelo pau sem dono
dos outros ‘meninos homens’ sofridos, do louco varrido”, onde dormir parece privilégio, uma
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vez que terá de vigiar e zelar por sua própria vida, revelando, em alguma medida, que ser
mulher na rua é, sem dúvida, expor-se a um maior nível de vulnerabilidade.
De acordo com o camaronês Mbembe, citado por Akotirene (2019) “enquanto as
mulheres brancas têm medo de que seus filhos possam crescer e serem cooptados pelo
patriarcado, as mulheres negras temem enterrar seus filhos vitimados pelas necropolíticas, que
[...] matam e deixam morrer” (MBEMBE apud AKOTIRENE, 2019, p.22). Logo, sem que
aqui haja intenção de lavrar destinos, nesse contexto, é bem provável que a pequenina de rua
passe ainda, muito tempo, ‘se tiver sorte de viver’, acreditando que ser ‘menina mulher’ seja:
vestir calcinha; usar o absorvente do qual nem dispõe, ficar na mira dos meninos, menstruar, e
parir filhos para penar vida a fora, filhos que serão perseguidos ‘pela polícia mascarada’.
No entanto, nessa penúltima estrofe do poema, o “fosse ela cuidada, tivesse abrigo
onde dormir, caminho onde ir, roupa lavada, escola, manicure, máquina de costura, bordado,
pintura, teatro, abraço, casaco de lã”, não traz apenas o a 1ª pessoa do verbo ser, conjugado no
modo subjuntivo, do pretérito imperfeito, mas a possibilidade de mudar de vida. Para tanto,
isso só aconteceria se a menina em questão, semelhante às demais crianças, que não vivem em
situação de rua, tivesse acesso a tudo aquilo que corresponde os Direitos da Criança e do
Adolescente (1990) que, embora prescritos por lei, nem sempre são executados, seria, nesse
caso, o que asseguraria o cumprimento do ‘desejo sonho’ onde “podia borralheira acordar um
dia cidadã.”
Sonha, portanto, com quem cante pra ela: “Se essa Lua, se essa Lua fosse minha...”,
misturando o universo do imaginário cultural da criança que brinca de roda, com aquele que,
em primeira instância, “sonha em ser amada, ter Natal, filhos felizes, marido, vestido, pagode
sábado no quintal”, deseja, especialmente, ter quem a ame e quem a cuide. Isso posto, tem-se
aqui, dentre outras questões, um aparente processo de construção identitária que se dá em
meio às ausências, às dores e aos sofrimentos, mas sobremaneira, em meio à inconsciência de
si, do próprio sujeito.
Essa última estrofe do poema revela que, a menina que sonhava em pertencer a
alguém quando embalada pela cantiga de roda é a mesma que, “sonha e acorda mal porque
menina na rua, é muito nova, é lua pequena demais” e, dentre outras tantas desventuras, “é
ser só cratera, só buracos, sem pele, desprotegida, destratada pela vida crua”, o que equivaleria
a ser um ‘corpo carne’ acessível a qualquer um e, além de tudo, “é estar sozinha, cheia de
perguntas sem respostas sempre exposta, pobre lua,” ainda “é ser ‘menina mulher’ com
frio, mas sempre nua,” ou seja, é conhecer uma única existência de tempo, o presente, o
momento no qual se suspira por sonhos quase sempre irrealizáveis, embora sejam sonhos com
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aquilo que denominamos de coisas básicas e ou essenciais como: morar, comer, brincar,
dormir, amar.
Por fim, os corpos e as vidas, independentemente da cor: Vidas Negras, conforme a
Campanha veiculada pela ONU/Brasil (2017) e ou vidas brancas, mas ‘Vidas’ deveriam, de
fato, ter mais importância em toda parte do mundo. No entanto, a ‘menina mulher’ de rua
aqui apresentada, que transita do estágio de quem não tinha nada do que precisava para viver,
ao estágio de quem passou a ter, não o que precisava, mas aquilo que as circunstâncias de uma
sobrevida de indignidade, desprezo e injustiça social impôs a si e ao seu corpo, na realidade,
sintetiza a representatividade simbólica das tantas mini Marias que vivem na rua, que têm,
unicamente, o céu por cobertor, mas que, acima de tudo, alimenta a expectativa, o sonho de
serem notadas como ‘Seres Humanos’ semelhantes aos corpos adultos das mulatas, como se
verá.
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Nessa perspectiva, o poema ‘Mulata exportação’, do livro ‘O semelhante’ (1999), grosso modo,
traz consigo a ampla ideia de uma resposta dada por uma mulata à mentalidade patriarcalista,
machista, sexista e racista que imperou e ainda impera em nosso país, na América Latina e,
quiçá, no mundo a fora. Eis que se inicia o discurso a partir de um eu lírico que se reveste da
imitação da voz do opressor “mas que nega linda e de olho verde ainda, olho de veneno e
açúcar! Vem nega, vem ser minha desculpa” e continua “Vem que aqui dentro ainda te cabe
Vem ser meu álibi, minha bela conduta Vem, nega exportação, vem meu pão de açúcar!
(Monto casa procê, mas ninguém pode saber, entendeu meu dendê?),” que inicia o poema pela
adversativa ‘mas’, em um claro tom de quem está lidando com algo com quem só pode se
relacionar na surdina, em uma clara deixa preconceituosa e machista de que a ideia do
concubinato de outrora e o ainda existente pensamento machista de que corpo de mulher
negra é lugar de disponibilidade descompromissada.
Lembrando o que disse Ribeiro (2018, p.39), “algumas pessoas pensam que ser racista
é somente matar, destratar com gravidade uma pessoa negra. Racismo é um sistema de
opressão que visa negar direitos a um grupo, que cria uma ideologia de opressão a ele.” E
ainda continua o convite descarado “vem nega, sem eu ter que fazer nada. Vem sem ter que
me mexer, em mim tu esqueces tarefas, favelas, senzalas, nada mais vai doer. Sinto cheiro
docê, meu maculelê, vem nega, me ama, me colore, Vem ser meu folclore, vem ser minha tese
sobre nego malê. Vem, nega, vem me arrasar, depois te levo pra gente sambar”, ainda
segundo a autora, “fingir-se de bom moço e não ouvir o que as mulheres negras estão dizendo
para corroborar com o lugar que o racismo e o machismo criaram para a mulher negra é ser
racista” (RIBEIRO, 2018, p. 39).
A voz desqualificada de uma mulher negra que é considerada o outro do outro
(KILOMBA, 2019) começa a ecoar e o eu lírico agora é o da mulata, “Imaginem: ouvi tudo
isso sem calma e sem dor. Já preso esse ex-feitor, eu disse: “Seu delegado…” E o delegado
piscou. Falei com o juiz, o juiz se insinuou e decretou pequena pena com cela especial por
ser esse branco intelectual… Eu disse: “Seu Juiz, não adianta! Opressão, Barbaridade,
Genocídio nada disso se cura trepando com uma escura!” E assim, vê-se que o machismo é
descarado, insinuoso e desrespeitoso e olha para o corpo negro feminino com se fosse uma
instituição pública de acesso permitido a quem assim o desejar.
E a mulata continua a desfiar seu rosário “Ó minha máxima lei, deixai de asneira Não
vai ser um branco mal resolvido que vai libertar uma negra: Esse branco ardido está fadado
porque não é com lábia de pseudo-oprimido que vai aliviar seu passado”, em monólogo
reflexivo o ‘eu lírico’ da mulata exportação deixa clara sua consciência sobre quem, de fato,
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pode libertá-la, que ao que nos parece, tem-se aqui uma mulher negra que, montada no
empoderamento (BERTH, 2019), demonstra ter ciência de si, do que e do quanto pode. “Olha
aqui meu senhor: Eu me lembro da senzala e tu te lembras da Casa Grande e vamos
juntos escrever sinceramente outra história,” e segue erguendo a voz aquela que não mais
pergunta quem pode falar, mas que fala (HOOKS, 2019) e segue apontando o dedo diante das
autoridades brancas.
“Digo, repito e não minto: vamos passar essa verdade a limpo porque não é dançando
samba que eu te redimo ou te acredito: vê se te afasta, não invista, não insista! Meu nojo! Meu engodo
cultural! Minha lavagem de lata!” E assim, essa nova postura da mulher negra, na condição do sujeito
que fala enquanto reconstituí um novo devir de imagens positivadas da mulher negra na poética
contemporânea. Dantas (2005) pressupõe que, embora os eixos de subordinação do masculino ao
feminino negro sejam múltiplos, há uma verdade que não para de ecoar aos nossos ouvidos, a voz da
certeza de que resistir é o caminho e (re)inventar-se é aquela atitude assertiva de sucesso, pois é
preciso “produzir ruídos e rachaduras na narrativa hegemônica e [...] lutar contra a violência do silêncio
imposto” (RIBEIRO, 2017, p.87).
Afinal, é válido lembrarmos o fato de que: “o pensamento sexista nos fez julgar sem
compaixão e punir duramente umas às outras,” e em postura contrária, “o pensamento
feminista nos ajudou a desaprender o auto-ódio feminino”, tem (Re)direcionado nossa
atenção, mas sobretudo, “ele nos permitiu que nos libertássemos dos controle de pensamento
patriarcal sobre nossa consciência” (HOOKS, 2019, p35). Por fim, que aqui se registre o que
bem nos afirmou Hooks (2019, p.35) de que “não nos juntamos para ficar contra os homens;
juntamo-nos para proteger nossos interesses de mulher,” no entanto, embora haja, ainda,
muito perdão a ser dado ao masculino, como libertação de nossas próprias mentes por todos
os danos causados a tantos homens e mulheres mundo a fora, materializado das formas mais
variadas e, portanto interseccional, lembremo-nos do modo como o ‘eu lírico’ (a voz da
mulata) finaliza o poema soltando uma quase verdade universal ao afirmar: “Porque deixar
de ser racista, meu amor, não é comer uma mulata!”.
O que falam/ecoam os corpos infantis e adultos.
Felizmente, a poesia ‘Lucindiana’ quando expõe, denuncia e chama a atenção do
público leitor para questões tão humanamente complexas, como é o caso da situação da
menina de rua, do poema analisado, cumpre aqui, as múltiplas funções, apresentadas por
Candido (1999), que vão da humanização dos sujeitos à consciência de sua existência como
produto sociocultural, defendido pelo autor, como algo que deveria ser semelhante aos outros,
considerados como detentores dos direitos humanos. Por outro lado, os poemas aqui
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Referências
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FUNCK, Susana Bórnio. O que é uma mulher? XIV Seminário Nacional e V Seminário
Internacional Mulher e Literatura. Universidade de Brasília, de 4 a 6 de agosto de 2011. p. 349-
365
HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução Ana
Luiza Libâneo. 4. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.
HOOKS, Bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Trad. Cátia
Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.
LAURETIS, Teresa et al. A tecnologia do gênero. In.: HOLLANDA, Heloisa Buarque (Org.).
Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019,
p.121-155.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Cia das Letras,
2018.
SANTIAGO, Ana Rita. Vozes literárias de escritoras negras. Cruz das Almas: BA; UFRB,
2012.
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mail: [email protected].
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45 Apropriação do termo teorizado por, entre outras, Djamila Ribeiro, no livro de título homônimo. Segundo ela,
o lugar de fala pode ser mais bem entendido quando se visita as teorias e metodologias da comunicação, mas
que pode ser considerado como “lugar social que as mulheres negras ocupam e o modo pelo qual é possível
tirar proveito disso” (2019, p. 54), sem necessitar do ‘regime de autorização discursiva’ (2019, p. 55), para
exercer mecanismos de controle sobre as suas vozes. (Cf. referências).
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Considerarmos que o texto literário, de alguma maneira, pode usar seu espaço de
circulação para ressignificar a história e a memória do povo negrobrasileiro, evitando alguns
dilemas sociais que circundam o problema da “invisibilidade da autoria feminina do século
XIX” (SCHMIDT, 2019, p.65) e problematizando os anseios e resistências ao discurso
hegemônico da mentalidade racista e machista. Assim, concordamos com Neuza Souza
(1983), quando ela diz que há a recriação da potencialidade negra, pois através do texto
literário afrobrasileiro há a realização de um discurso coletivo.
A produção literária afrobrasileira inicia-se documentalmente com a escritora Maria
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Firmina dos Reis, escrevendo o romance histórico abolicionista ‘Úrsula’ (1859) que, segundo
Eduardo de Assis Duarte (2005, p.74, grifos nossos), é um romance da “literatura
antiescravagista mais conhecido, que desconstrói a primazia do abolicionismo branco,
masculino e senhorial”, sendo Firmina considerada a primeira romancista brasileira. Com toda
mentalidade colonial e opressão do regime escravagista ainda vigente no Brasil, ousou
escrever, sob o pseudônimo de ‘uma maranhense’, uma narrativa que coloca uma protagonista
negra no cenário da ficção historiográfica brasileira.
Segundo Liliane Nogueira Monteiro (2016), Maria Firmina dos Reis representa uma
amostra bem pequena na história de nossa literatura, 46 uma vez que os textos literários
produzidos por mulheres, principalmente negras, quase não apareciam no século XIX.
Infelizmente, segundo Maria Helena Toledo Machado (2018, p.7), 47 na introdução ao romance
‘Úrsula’, apenas em 1970 a narrativa passa a ser reconhecida academicamente e ter uma
fortuna crítica, após mais de um século de publicação.
No século XX, surgiu no cenário literário brasileiro a escritora negra Carolina Maria de
Jesus, com uma de suas obras mais conhecidas, ‘Quarto de Despejo: diário de uma favelada’
(1960), obra que, segundo Ferreira e Migliozzi (2016), apresenta-se com uma escrita de
desespero em relação à situação de desigualdades sociais, racismo e miséria de uma mulher
negra que estava inserida na vivência de um espaço de experiências e memórias de uma favela,
na década de 1960. Assim, os relatos, as escritas literárias em teor subjetivo de diário de
Carolina de Jesus funcionavam como um constante exercício político contra os obstáculos
sociais e a subalternização dos corpos negros, conforme vemos:
Escrever para Carolina era uma necessidade vital. Não uma fuga da realidade, cujo
lado mais cru ela descreve e enfrenta com galhardia, mas um refúgio, um amparo.
Como se pudesse, por um momento tornar-se independente da favela. Escrever é,
ainda, meio de se conciliar consigo mesma e talvez entender melhor o que lhe vai na
alma. Manter emoções à distância e melhor dominá-las. Para afrontar a
discriminação e a fome, a escrita, salto criativo, oferecia um bálsamo [...]. Escrever
para superar a fome, escrever para suportar a opressão e a indignidade. Escrever
para tentar sair da imobilidade [...] (CASTRO e MACHADO, 2007, p. 108).
46 Vale destacar que Maria Firmina dos Reis foi, apesar do seu pioneirismo abolicionista, uma dentre muitas
outras vozes literárias femininas do século XIX, sendo contemporânea de outras mulheres que escreveram
literatura no Brasil, mesmo com interesses e experiências sociais distintos, mas que abordavam as temáticas
feministas, valendo-se da expansão da imprensa, como por exemplo: Ana Eurídice Eufrosina de Barandas, com
o livro A Philosofia do Amor (1845), que segundo Constância Lima Duarte (2019, p.30), continha contos, poemas
e uma peça teatral de reivindicação feminista; Cf. DUARTE, Constância Lima. Feminismo: uma história a ser
contada. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. O Pensamento Feminista Brasileiro: Formação e Contexto.
Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 30-47.
47 Cf. REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. 1ª ed. Estabelecimento do texto e introdução por Maria Helena Toledo
Machado e cronologia de Flávio dos Santos Gomes. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
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48 Além de ‘Quarto de Despejo: o diário de uma favelada’ (1960), Carolina Maria de Jesus escreveu outros textos
literários, mas que não é possível abordá-los aqui, como: Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963),
Provérbios (1963) e Diário de Bitita (1984, publicado postumamente). Ressaltamos, ainda, que a voz literária de
Carolina não ecoou sozinha nesse período, sendo acompanhada por varias outras vozes femininas negras,
como por exemplo: Anajá Caetano, escritora mineira que escreveu o romance Negra Efigência, paixão do
senhor branco (1966), sendo ela mesma a considerar-se romancista negra, segundo consta em sua biografia no
Portal Literafro/UFMG. Disponível em: <http://www.letras.ufmg. br/literafro/autoras/547-anaja-caetano>.
Acesso em: 28 de Jan. 2020.
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Cordel ‘Feminismo Negro’ (2015): notas sobre a Escrita de Jarid Arraes e o Movimento
Feminista Negro
[...] a forma dos programas de estudos de mulheres são estabelecidos com toda
faculdade branca de ensinar Literatura quase exclusivamente por mulheres brancas
sobre mulheres brancas e frequentemente com perspectivas racistas; a forma de
mulheres brancas escreverem livros que dão sentido à experiência da mulher
americana quando de fato concentram apenas a experiência da mulher branca e
finalmente a forma do debate interminável se o racismo é ou não uma questão
feminista (HOOKS, 2014, p. 88).
Nesse ambiente de resistência das mulheres negras, com uma produção literária ligada
às nuances do Feminismo Negro, surge Jarid Arraes, nascida e criada em Juazeiro do Norte,
no Estado do Ceará, em 12 de Fevereiro de 1991. Assim, quando a escritora aborda sobre o
Feminismo Negro em sua produção de cordel, ela está diretamente enfatizando a necessidade
de não se ocultar esse eixo temático que abrange a identidade e as experiências que partem do
lugar de fala das mulheres negras. Mesmo que no cerne do movimento feminista haja a
preconização do protagonismo social, as valorizações dos papeis e do lugar da mulher ficavam
implícitas quando as discussões discorriam acerca dessas ideias com relação às feministas
negras. O conceito de Feminismo e o objetivo do movimento são apresentados por Jarid
Arraes, na segunda estrofe do cordel:
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Lá pras banda de 70
Já bastante pro final
Se ergueu um movimento
No seu tempo germinal
Foi o feminismo Negro
Para Luta Social
(ARRAES, 2015, p. 1).
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Feminismo Negro e conseguiram, mediante seu ativismo, dar visibilidade, tanto no nível
nacional quanto internacional, às temáticas e particularidades que cercam as mulheres negras
no Brasil (DAMASCO et al., 2016) e, inclusive Jarid nos mostra alguns desses nomes
relevantes são movimento no cordel:
49 Jarid Arraes escreveu cordéis temáticos que problematizavam questões como racismo, aborto e LGBTfobia,
como por exemplo: ‘Dora: a negra e feminista’, ‘Não me chame de mulata’, ‘Nêga Braba’ , ‘Corpo Escuro’ e
outros; além disso, a escritora já publicou em antologias – e, recentemente, publicou a sua, ‘Um buraco com
meu nome’ (2018) – bem como narrativas, como o livro de contos ‘Redemoinho em Dia Quente’ (2019).
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Só tinha um problema
Complicado de enfrentar
Pois o tal de Feminismo
Teimava em representar
Só as brancas estudadas
Sem do racismo lembrar.
(ARRAES, 2015, p. 1)
Há um protesto aqui nessa estrofe, porque não é uma luta pelo protagonismo
feminino apenas, mas uma luta contra qualquer forma de agressão aos direitos de igualdade
entre os sexos; é uma forma de reivindicar a não aceitação das mulheres negras pelas próprias
feministas racistas, que ignoravam a militância, representatividade e visibilidade das mulheres
negras. Conforme a pesquisadora da Universidade de São Paulo, Vera Soares (1995), o
Feminismo Negro surge para quebrar os preconceitos contra as mulheres negras e promover a
ligação social entre igualdade de gênero e raça, uma vez que as mulheres já enfrentavam outras
opressões e não tinha cabimento elas terem de enfrentar (além daquilo) o racismo do
Feminismo. Então, Jarid encerra seu cordel enfatizando a necessidade do movimento
feminista ter dialogado internamente sobre as intersecções entre gênero e raça, com o
Movimento Feminista Negro:
Considerações Finais
Segundo Djamila Ribeiro (2018, p. 7-8, grifos nossos), o Feminismo Negro não é
apenas uma luta identitária, mas sim um movimento de resistência, sem a qual não existiria
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memória histórica e subjetiva da população negra; a filósofa afirma que, em suas aulas de
História, ficava muito tensa quando os professores se remetiam aos escravos africanos como
personagens que, coletivamente, não havia empreendido formas de resistência.
Conforme afirma Jurema Werneck, “nossos passos vêm de longe.” 50
Não há como a
história oficial querer ocultar a milenar resistência das mulheres negras que, em muitas
ocasiões, resistem pela escrita, como é o caso de Jarid Arraes e muitas outras vozes literárias
femininas da literatura contemporânea, conforme nos diz a poetisa Conceição Evaristo, no
poema ‘A noite não adormece nos olhos das mulheres’ 51:
50 WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de Mulheres Negras e Estratégias Políticas
contra o sexismo e o racismo. In: Vents d’Est vent d’Quest: Mouvements de Femmes et Féminismes
Anticolonaux. Genève: Graduate Intitute Publications, 2009. Disponível em: <hppt://books.
openedition.org/iheid/6316>. Acesso em: 19 de Abr. 2019.
51 EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2017,
p. 26-27.
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como às novas escritoras da Literatura Afrobrasileira que enfrentam o silenciamento a que são
postas através da escrita literária ou teórica.
Referências
1 Introdução
No contato de crianças e jovens com a literatura, é imprescindível para nós
professores de língua portuguesa, estarmos atentos no que se refere à abordagem etnicorracial
dos livros destinados à infância e à juventude para a não perpetuação de estereótipos e visões
pejorativas do outro e de sua cultura. A literatura pode se constituir uma importante
ferramenta para esse ensino, estimulando a construção de identidades de diversos grupos e,
tratando-se do contexto brasileiro, promovendo a valorização da história e cultura africana,
afrobrasileira e indígena.
A abordagem etnicorracial, afrobrasileira e indígena na educação brasileira, atualmente,
perpassa pela Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003), posteriormente alterada pela Lei 11.645/08
(BRASIL, 2008). São leis que tornaram obrigatório o estudo da história e da cultura
afrobrasileira, africana e indígena nas escolas brasileiras, sendo seus conteúdos ministrados no
âmbito de todo o currículo escolar, em especial, entre outras áreas, em literatura. Sendo assim,
é direito de todos os educandos descobrirem, ler e debater textos produzidos pelos povos das
diversas etnias indígenas e africanas que contribuíram com a formação do povo brasileiro,
favorecendo, assim, o reconhecimento de outras visões estéticas, temáticas e culturais.
Como diz Thiél (2013), a pluralidade da literatura deve-se ao fato dela ser formada pela
literatura de muitos povos. Isso significa que quando falamos de literatura brasileira, referimo-
nos a literaturas, culturas, vozes de vários povos – e não apenas às portuguesas, como
tradicionalmente a escola tende a privilegiar, mas também as nativas e africanas. São textos
que devem ser apresentados a todas as crianças e jovens como forma de conhecimento,
inclusão, formação crítica e valorização de matrizes literárias além do cânone europeu,
contribuindo, assim, com a formação do ‘aluno leitor’.
Dessa forma, as narrativas destinadas à infância e à juventude podem contribuir
171
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humanos em sua diversidade cultural, social, étnica-racial, como afirma Araújo (2018) é, sem
dúvida, um dos elementos mais significativos. Por isso, a obra literária infantojuvenil merece
atenção quanto aos conteúdos que veicula em especial os que se referem aos de origem
africana e indígenas, para não gerar informações e representações reprodutoras de estigmas e
estereótipos que, historicamente, são geradores de discriminação e racismo que atingem
grande parte dos brasileiros pertencentes a esses grupos.
Ao olhar a história da literatura infatojuvenil no Brasil, conforme Araújo (2018),
podemos demarcar três grandes fases: a primera fase, chamada de precursora ou pré-lobatiana,
que vai de 1808 a 1919; a segunda, denominada moderna ou período lobatiano, que vai de
1920 a 1970 e a fase pós-moderna ou período lobatiano, que se inicia em 1970 até os nossos
dias.
Ao olhar a representação do indígena e africano nessas fases, percebe-se uma
tendência cristalizada, historicamente construída, em perpetuar esterótipos e depreciações –
mesmo em obras mais recentes, ainda é perceptível tais representações, mesmo de forma sutil.
Ao analisar a primeira e a segunda fase da literatura infantojuvenil no país, nota-se que
seu primeiro ‘avanço’ deu-se com a presença de personagens negras nas obras, pois nos
primórdios desse gênero não havia sequer tais representações. É um avanço entre aspas pelo
fato de acontecer envolta de estereótipos, depreciações e inferiorização ao afrodescendente, ao
lado da permanente valoração do grupo branco. Um exemplo disso é a tendência em retratar a
população negra apenas relacionada ao passado de escravidão.
Segundo Oliveira (2010, p. 53),
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55 Segundo Thiél (2013), obras indigenistas são produções feitas por não índios que tratam de temas ou
reproduzem narrativas indígenas. A perspectiva ocidental característica destas narrativas pode ser evidenciada
pela vinculação dos textos nativos a gêneros literários ocidentais (por exemplo, as lendas). Já a produção
indígena é realizada pelos próprios índios segundo as modalidades discursivas que lhe são peculiares, voltadas
para qualquer público.
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3.1 Motivação
Essa primeira etapa teve como finalidade preparar os alunos para a leitura do texto
literário. Para isso, propomos uma atividade que envolveu leitura, escrita e oralidade, em
uma hora-aula: iniciamos com um debate sobre a importância das lendas, suas origens e o
seu papel na preservação dos costumes e crenças. Depois, listamos no quadro nomes de
seres lendários da cultura popular brasileira conhecidos pelos alunos e finalizamos
solicitando aos alunos a produção de um pequeno texto sobre um dos seres listados,
escolhidos por eles, que poderia ser ilustrado, ou não. Com essas atividades, notamos que os
seres lendários mais conhecidos pelos alunos eram ‘Cumade Fulozinha’, ‘Saci Pererê’,
‘Lobisomem’ e ‘Boto cor-de-rosa’. Desses, ‘Cumade Fulozinha’ gerou um maior número de
textos, por ser a lenda mais conhecida pelo grupo. Esses registros foram importantes por
resgatar as histórias desses seres, tradicionalmente transmitidas oralmente, das quais
destacamos a seguinte, produzida pelos alunos A, B e C:
Imagem 1
3.2 Introdução
Inicialmente, apresentamos o autor e a obra de forma breve, porque o papel dessa
introdução é apenas despertar o interesse do aluno para a leitura da obra e não determinar
sua interpretação ou leitura, como orienta Cosson (2016). Aconteceu em uma hora-aula,
iniciando com a apresentação das cenas iniciais do filme ‘Kiriku e a feiticeira’ 56. Com essa
56 Kiriku é um personagem lendário africano, um recém-nascido superdotado que sabe falar, andar e correr, e é o
salvador de sua aldeia, ameaçada pela feiticeira Karabá. O vídeio apresentado se encontra disponível no
endereço https://www.youtube.com/watch?v=duDByEwf1x0.
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3.3 Leitura
A etapa de leitura da obra aconteceu no período de cinco horas-aula, em sala de
aula. Para esse momento, conforme orienta Cosson (2016), houve um intervalo de leitura,
momento de acompanhamento e de apresentação dos resultados da leitura já realizada pelos
alunos, com a possibilidade de outras leituras que possam dialogar com a leitura da obra
principal.
Nesse intervalo, foi solicitado aos alunos, em atividade extraclasse, que buscassem
ler um texto que narrasse a criação do universo. Na aula seguinte, fizemos uma leitura
coletiva das duas lendas da obra, cuja temática é a criação do universo: ‘A cantiga do
universo’, lenda indígena guarani, e ‘Mbumba e a dor de barriga’, lenda africana da etnia
Bushongo. Após a leitura, disponibilizamos as seguintes questões aos alunos, para serem
respondidas em duplas.As duas lendas do livro possuem a mesma temática: a criação do
universo. Além dessa semelhança, que outros aspectos em comum vocês percebem haver
entre elas? E em quais aspectos elas se diferenciam? Explique.
A lenda ‘Guarani e Mbumba’ possuem semelhanças com as narrativas pesquisadas
sobre a criação do universo? Comente. O que mais chamou a sua atenção nessas duas
lendas do livro ‘Encontros de histórias: do arco-íris à lua, do Brasil à África’?
Para a questão 1, explicamos: -as duas lendas do livro possuem a mesma temática: a
criação do universo. Além dessa semelhança, que outros aspectos em comum vocês percebem
haver entre elas? A essa indagação, a maioria dos alunos citicou, principalmente, a presença de
um ser criador, como se percebe nessas respostas:
Alunos A e B: sim, o grande Deus criador. No princípio do universo não existia nada.
Alunos C e D: sim, a criação das duas histórias começa com uma pessoa que criou
tudo.
177
VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Alunos E e F: percebi que no começo das histórias, no início não havia nada, Mbumba
vomitou a lua e as estrelas e de Ñande saíram sete notas musicais depois criaram casais, e cada
um criou outro. 57
Na questão ‘E em quais aspectos elas se diferenciam? Explique’, quase todos os alunos
apontaram como principal diferença a forma com que cada ser criou os elementos no
universo. Essas questões iniciais tiveram a finalidade de levar o aluno a refletir que, mesmo
narrando as mesmas situações, cada povo narra os acontecimentos de forma peculiar.
Ao questionarmos ‘A lenda Guarani e Mbumba possuem semelhanças com as
narrativas pesquisadas sobre a criação do universo? Comente’, buscávamos promover, entre
os alunos o diálogo sobre as lendas e a narrativa pesquisada. A maioria dos alunos percebeu a
relação entre os textos e a narrativa bíblica, texto mais pesquisado pelos discentes, enquanto
outros, como os alunos G e H, responderam que não e escreveram: “não, porque a história
que eu conheço é a da Bíblia em que Deus só de falar criava todas as coisas.”
A última questão apresentada foi: ‘O que mais chamou a sua atenção nessas duas
lendas do livro ‘Encontros de histórias: do arco-íris à lua, do Brasil à África?’ As respostas
apontaram, prioritariamente, a forma como cada ser criou o universo. Um destaque nessas
respostas foi dado ao deus Bushongo Mbumba que, em cada dor de barriga, vomitava a sua
criação, como se percebe nas seguintes respostas:
Alunos A e B: a forma que as coisas foram criadas, o extinto que cada Deus criava os
animais, a lua, o céu etc, essas coisas que chamaram nossa atenção e, também, a dor de barriga
de Mbumba.
Alunos C e D: na lenda Guarani ele criou quatro casais um em cada canto do universo.
Na lenda bushongo chamou mais a atenção na forma que tudo foi criado, que o criador
vomitou tudo.
Alunos I e J: sobre a criação do universo que Mbumba fez o universo vomitando.
Ao analisarmos as respostas, achamos interessante a construção de uma roda de
conversa a fim de que os alunos expressaram demais impressões sobre as lendas lidas,
principalmente aqueles que não relacionaram os textos da criação do universo com a
narrativa bíblica. Perpassavam o posicionamento desses discentes a presença da ideia sacra
do texto cristão, gerando-lhe um grau de valor que ‘impossibilita’ ser semelhante a outras
narrativas. Esse momento foi importante para refletirmos sobre esses posicionamentos,
além da construção de relações de alteridade e respeito em relação ao outro. Após o
178
VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
3.4 Interpretação
As atividades da interpretação, conforme diz Cosson (2016), devem ter como
princípio a externalização da leitura. Esse momento deve fomentar a possibilidade de
reflexão sobre a obra lida e externalizar essa reflexão entre os leitores da comunidade
escolar. Essa etapa ocorreu em três horas-aulas e, inicialmente, propomos aos alunos a
produção de reescrita de uma lenda que lhes chamou a sua atenção, com possibilidades de
alteração do espaço e a inclusão de outros personagens. As reescritas foram produzidas em
equipes, entre as quais destacamos a seguinte:
Imagem 2
Esse texto, produzido pelos alunos C, D, I e J, faz uma reeleitura da lenda ‘Mbumba
e a dor de barriga’, a mais utilizada na reescrita dos alunos. Nela, percebemos a nova história
criada para Mbumba, que passa a ser um robô do seu criador, Maa Ngala. A reescrita
preserva as características do protagonista Mbumba, porém, ao sentir as dores de barriga, na
visão dos alunos autores, ele passa a vomitar objetos da contemporaneidade como telefone,
computador e tablet.
A etapa de interpretação atendeu satisfatoriamente às nossas expectativas, sendo
encerrada com uma exposição das produções e ilustrações produzidas para os demais alunos
da escola, promovendo a circulação social dos textos no ambiente escolar, valorando essas
escritas e promovendo o conhecimento dessas lendas conforme a visão de cada aluno-autor.
Considerações finais
Os pressupostos discutidos neste artigo levam-nos a refletir sobre o quanto se faz
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Referências
CLARO, Regina. Encontros de histórias: do arco-íris à lua, do Brasil à África. São Paulo:
Cereja, 2014.
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COSSON, Rido. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016.
COSTA, Anna Maria Ribeiro; COENGA, Rosemar Eurico. A literatura infantil e juvenil
indígena brasileira contemporânea: uma leitura da obra Irakisu: o menino criador, de Renê
Kithãulu. Vitória, Contexto, n. 28, p. 50-70, 2015/2.
MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo:
Global, 2006.
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Introdução
A literatura infantojuvenil contemporânea nos proporciona uma reflexão acerca do
papel dos sujeitos na sociedade, sobretudo quando nos referimos aos sujeitos negros e negras,
pois ela abandona a tendência de representação da subalternidade e avança em um cenário de
representação da identidade negra e da valorização da cultura desse povo.
Na atualidade, crianças e jovens têm acesso a uma imensa produção literária voltada
para a sua realidade. Obras dos mais variados gêneros e formas de circulação, tanto na cultura
impressa (livros) quanto na cibercultura. A literatura é muito importante para a compreensão
de uma sociedade, pois ela reflete sobre a sua realidade e transmite os valores e normas que
nela circulam. E por esse poder influenciador, ela pode contribuir com a manutenção de
preconceitos e estereótipos em torno de determinado grupo social.
Por isso, faz-se necessária uma análise crítica da produção literária, buscando
compreender o contexto histórico no qual ela está inserida, bem como as mensagens contidas
nas entrelinhas do texto, pois a ausência ou a presença de uma representação inferiorizada dos
negros pode causar, como outrora causou, danos e prejuízos à construção da identidade social
de crianças e jovens brasileiros.
Este trabalho tem como objetivo analisar como a discriminação racial e o preconceito
a ela atrelado são tratados nas obras, da literatura infantojuvenil brasileira, ‘Pretinha, eu?’ e ‘Na
cor da pele’, de Júlio Emilio Braz, tendo em vista que as referidas obras abordam a questão
racial e, os conflitos vivenciados pelos protagonistas negros e evidenciam uma ressignificação
das personagens negras na literatura voltada para o público infanto-juvenil.
Partimos do pressuposto de que as obras pertencentes a esse gênero literário, na
atualidade, possibilitam uma reflexão acerca de ideologias, metaforicamente, representadas na
construção das personagens. Tal relação permite ponderações acerca da abordagem literária no
Ensino Fundamental, especificamente, no que toca a um trabalho voltado às relações étnico-
raciais no âmbito da educação formal. A pesquisa, de cunho bibliográfico, fundamenta-se nas
58 Professor da Educação Básica, graduado em Letras e Pedagogia pela Universidade Estadual da Paraíba,
Especialista em Ensino de Língua e Linguística, Mestre em Literatura e Interculturalidade, pesquisa a
representação do negro na Literatura infanto-juvenil brasileira e o Afrofuturismo. – [email protected]
59 Graduada em Letras Português/Inglês e Especialista em Ensino de Língua e Linguística pela Universidade
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
proposições de Gomes (2007 e 2013), Munanga (2005), os quais tratam da questão racial no
ambiente escolar; Coelho (2000), Lajolo e Zilberman (2006) que abordam aspectos da
literatura para crianças no Brasil e Rosemberg (1985) e Castilho (2004), as quais refletem sobre
a representação do negro, nesse gênero literário.
No início, a produção literária para o público infantil era muito pequena e, na sua
maioria, seguia os moldes da literatura europeia. As crianças brasileiras tinham acesso a
traduções de textos clássicos ou adaptações deles. Zilberman (2003) destaca que Carlos Jansen,
João Ribeiro e Olavo Bilac marcaram o início da produção literária brasileira com a tradução
de inúmeros textos que encantaram a infância de nossas crianças. Mas um sentimento de
nacionalização começou a ganhar espaço no cenário literário brasileiro e esse sentimento
coincidiu com a abolição da escravatura. Surgiram, então, programas voltados para o
desenvolvimento da imprensa e da editoração de livros, dentre eles, os dedicados ao público
mais jovem (ZILBERMAN 2003). Segundo Silva e Silva (2011),
Esses fatos são concomitantes com o progressivo prestígio das camadas urbanas, as
quais se direcionavam a produção de livros naquela época. As cidades brasileiras
cresciam, contando, também, com uma grande concentração de imigrantes. Os
autores nacionais tiveram, pois, de se adequar a essa nova paisagem (SILVA;
SILVA, 2011, p. 3).
183
VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Zilberman (2003: p.207) segue a mesma linha de pensamento das autoras anteriormente
referidas ao afirmar:
É no âmbito da ascensão de um pensamento burguês e familista que surge a
literatura infantil brasileira, repetindo-se aqui o processo ocorrido na Europa um
século antes, e como no Velho Mundo, o texto literário preenche uma função
pedagógica, associando-se muitas vezes à própria escola, seja por semelhança
(convertendo-se no livro didático empregado em sala de aula) ou contiguidade (o
livro de ficção que exerce em casa a missão do professor, como nas narrativas de
cunho histórico de Viriato Correia e Érico Veríssimo, ou informativo, em Monteiro
Lobato).
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inteligência, a força de trabalho e sabedoria popular dos povos africanos e seus descendentes:
Os africanos e seus descendentes foram agentes históricos, que ajudaram a construir
o Brasil, não só com a força de seus braços, mas, principalmente, com sua
inteligência, sensibilidade e capacidade de luta e de articulação. Os africanos
deixaram fortes influências na religião, na história, nas tradições, no modo de ver o
mundo e de agir perante ele, nas formas das artes, nas técnicas de trabalho,
fabricação e utilização de objetos, nos modos de falar, de vestir, na medicina caseira
e em muitos outros aspectos socioculturais da nossa sociedade (SILVA FILHO,
2009, p. 1).
E a literatura nos ajuda a levar essa imagem por meio da ressignificação das imagens de
representação do negro nas obras atuais a exemplo de ‘Pretinha, eu?’ e ‘Na cor da pele’ de
Júlio Emílio Braz, cujos aspectos de ressignificação e representação passaremos a analisar.
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Dessa forma, não podemos permitir que o direito à aprendizagem seja negado a quem
quer que seja devido a sua ascendência étnica. A literatura pode ser uma forte aliada nesse
trabalho, pois toda criança e adolescente busca referenciais que ajudem na construção de sua
identidade.
As histórias com protagonistas negros possibilitam a visualização das crianças para a
igualdade de tratamento que os sujeitos merecem e à qual têm direitos. O trabalho
de leitura em sala de aula ou em ‘horas do conto’ com obras que trazem o negro
como agente no contexto pode tornar-se situações de aprendizagem das diferenças
etnicorraciais de formação populacional e cultural do nosso país (FREITAG;
WINKLER, 2013, p. 112).
Ao ter contato com textos que apresentam o negro como protagonista, a criança ou
adolescente negro passa a se identificar com aquela personagem e a tê-la como referência e,
em muitos casos, essa referência influencia o seu comportamento. Além do mais,
O trabalho com a literatura infantojuvenil na sala de aula pode abrir caminhos para
discussões de temas que permeiam a sociedade, inclusive sobre a discriminação e preconceito
racial e sobre a desigualdade histórica entre negros e brancos e as consequências desta na
sociedade.
No livro ‘Pretinha, eu?’ presenciamos o drama de uma menina negra que, por seus
méritos consegue uma bolsa de estudos em uma escola de elite. A vida da menina muda da
noite para o dia, não por conta da oportunidade que recebe, mas pelo tratamento
discriminatório e preconceituoso que passa a receber. Vânia, a protagonista da história, passa a
ser alvo de ataques verbais e pressão psicológica por parte das companheiras de turma.
Apelidos pejorativos, gestos e difamações passam a fazer parte do cotidiano da menina negra.
O cenário na trama é uma escola e todo o enredo se passa nesse ambiente, sendo ele
um lugar de interação social que passa, também, a ser o lugar principal no qual as relações
sociais acontecem. Sabemos que a identidade é construída na interação entre os sujeitos e que
sofre influências do ambiente em que este está inserido (HALL, 2012). Sendo a escola um
espaço de interação, podemos afirmar que identidades são ali formadas e as influências que ali
ocorrem, podem provocar consequências positivas ou negativas na vida dos sujeitos.
186
VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
No caso de Vânia, as influências eram negativas, conforme podemos ver nos trechos a
seguir, pois desde a sua chegada à escola não foi acolhida com receptividade:
Aquilo não podia estar acontecendo no Colégio Harmonia. Por quê? Porque, em
cem anos de tradição, jamais alguém como Vânia entrara lá. Pelo menos, não como
aluna. Por quê? Porque ela era... era... era... era preta, pretinha, pretinha, pretinha de
parecer azul. O impacto foi tão grande que a primeira reação das pessoas, pais e
alguns professores – foi de espanto. E dos grandes. Era algo surpreendente. Em
seguida vieram os risinhos debochados. As brincadeiras sem graça. A implicância.
(BRAZ, 2008, p. 3).
Vânia tinha o cabelo duro preso num monte de trancinhas como aqueles cantores
de reggae que a gente vê na televisão. Os lábios eram grossos e vermelhos. Nariz de
batata. Os olhos, grandes e brancos. Os dentes iluminavam um sorriso enorme e
brilhante como o sol (BRAZ, 2008, p. 8).
187
VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
entanto, de acordo com Brookshaw (1983, p.10) “é importante lembrar, contudo, que o jogo
de estereótipos é um jogo de oposições. Implícito na mente de quem estereotipa está o
estereótipo que ele faz de si mesmo e de sua categoria.”
O grupo que discrimina Vânia é composto por meninas brancas de traços fenotípicos
que seguem os padrões de beleza herdados dos colonos europeus. A narradora da história é
Bel, filha de mãe loira e pai negro e, por esse motivo, não se considerava negra, mas morena
clara. A discriminação da menina pode ser analisada sob uma ótica de anulação de sua própria
condição.
Carmita era a líder do grupo, uma menina de personalidade forte arquetípica da
sociedade de elite e discriminatória. Na narrativa, ela faz de tudo para tornar a vida de Vãnia
um inferno. Em resposta a menina (Vânia) ignora as ações do grupo, embora se sinta
intimamente ferida com todos os ataques. Vânia tira as melhores notas, não se intimidava com
as brincadeiras e sua inteligência era singular, sendo um traço que torna positiva a atitude do
autor ao enveredar seu enredo sob um viés contrário ao que costumamos nos deparar:
narrativas com personagens negras, mas que se vitimizam ou se demonstram subalternas às
personagens brancas. Vânia é consciente de sua condição e, em momento algum, a nega ou se
sente inferior por conta dela. Toller (2007) afirma que
O discurso cultural afrobrasileiro, tanto no sentido amplo do termo quanto
especificamente nas manifestações escritas aqui enfocadas, nunca perdeu de vista a
questão da exclusão e da marginalidade - exercendo aquilo que, em outro momento,
chamamos a inscrição do excluído (TOLLER, 2007, p. 34).
A protagonista de Júlio Emílio Braz foge a essa condição de exclusão, ela é excluída,
mas não se exclui por conta de sua condição social e nem por conta de suas raízes étnicas. Bel,
ao contrário de Vânia, se exime de assumir a sua afrodescendência. Ao se descrever ela afirma:
Eu era morena. Não tão preta quanto a Vânia, ou com o cabelo ‘ruim’ e os lábios
grossos, mas eu era morena clara. Tinha os olhos negros. Os cabelos curtos,
também pretos, também menos lisos do que gostaria que fossem, mas bem
melhores do que os dela. Sei lá, Vânia me assustava. Eu nem sequer gostava de ficar
muito perto dela. Era medo de que me notassem a semelhança há tanto tempo
ignorada ou simplesmente despercebida. Talvez fosse por causa desse medo que eu
mexia com ela como as outras meninas gostavam de mexer. Era assustador admitir
que nós duas possuíamos alguma coisa em comum. Apesar de Vânia ser mais
pretinha do que eu (BRAZ, 2008, p. 11).
No trabalho em sala de aula, este trecho pode servir como tema para discussão sobre a
negação da identidade que predomina na nossa sociedade ‘mestiça’. Nosso país, em sua grande
maioria, é formado por descendentes de negros africanos ou de indígenas, grupo que também
é discriminado na nossa sociedade. Na sala de aula, com certeza, temos crianças e adolescentes
negros (retintos) como também temos os considerados pardos (morenos, morenos claros)
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
É uma narrativa curta, mas que oferece muitas possibilidades de trabalho na sala de
aula com o tema racismo, sobretudo, quando trata do racismo do negro para consigo mesmo.
O protagonista também é um adolescente negro, filho de mãe branca com pai negro e
demonstra não ter simpatia com a cor de sua pele. Na verdade, ele é um rapaz assustado por
perceber que é negro em uma sociedade hostil com os negros e, talvez por isso, sente
dificuldade com se aceitar. Em oposição a Bel, pois em sua família não há preconceitos, há até
um tio que usa dreads e difunde a cultura afro.
A mãe da Bel, menina narradora de ‘Pretinha, eu?’ se demonstra preconceituosa com
Vânia e qualquer outro negro e esse ato provoca as dúvidas na menina e a recusa de sua
identidade. A mãe sempre foge dos questionamentos da filha e esta não compreende o fato da
mãe odiar negros e ter se casado com um negro. Ao observar o álbum de família, a menina
também nota a ausência de alguns parentes e ao indagar o porquê, não obtém respostas. Mais
tarde ela descobre que é porque eles eram negros. Isso provoca um conflito na mente da
menina que busca uma resposta para essa negação “penso que meu pai tinha dinheiro e minha
mãe, não. Que o pai de minha mãe estava sem um tostão e nem pôde pagar meu pai para
defendê-lo num julgamento de sei lá-o-quê... Não, não é nada disso.” (BRAZ, 2008, p. 38).
As obras abrem um leque de possibilidade para se trabalhar a temática na sala de aula e
motivam a discussão acerca de um tema muito presente na nossa sociedade que é a
discriminação para com negros, inclusive no ambiente escolar.
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Considerações finais
Este trabalho teve como objetivo analisar como a discriminação racial e o preconceito
a ela atrelado são tratados nas obras da literatura infantojuvenil brasileira, constituindo-se em
um estudo de textos dedicados ao público infantojuvenil, que abordem os conteúdos exigidos
pela lei 10.639/03 (BRASIL, 2003), que obriga o ensino da diversidade étnica e cultural
afrobrasileira e africana, nas escolas de Ensino Fundamental e Médio das redes pública e
privada de todo Brasil.
Discorrer sobre literatura afrobrasileira ou africana ainda é um tema muito novo para o
ensino no Brasil. Apesar do crescente aumento da discussão sobre essa temática, ainda há uma
forte recusa, pois não trata apenas do ensino de literatura, mas da valorização de toda uma
cultura, de forma que, facilitar o acesso das crianças e jovens aos textos sobre a diversidade
cultural de seu país é condição fundamental para assegurar o conhecimento da pluralidade
cultural, da qual a literatura faz parte. Nessa perspectiva, o ambiente escolar tem o dever de
promover esse acesso aos adolescentes levando-os, através da literatura, ao distanciamento de
preconceitos baseados em estereótipos que ainda estão presentes na sociedade atual.
Nossa experiência de trabalho com as obras citadas neste trabalho surtiu resultados
positivos. A partir delas foi possível discutir temas importantes tais como a escolarização da
população negra, discriminação e desigualdade racial, preconceito e bullying. Os temas foram
debatidos e as obras literárias serviram como pano de fundo para que os estudantes pudessem
pesquisar e comparar os resultados de suas pesquisas com as situações vivenciadas pelas
personagens das obras e, ao final, pudessem tirar suas próprias conclusões acerca das
consequências da desigualdade racial e do preconceito contra os negros e negras da nossa
sociedade.
É fato, entretanto, que a literatura não é e não deve ser tratada como instrumento
pedagógico, no entanto, consideramos que a leitura é uma ferramenta de aquisição de
conhecimento e dela fizemos uso para trabalhar a formação do senso crítico nos nossos
alunos, bem como a autoestima dos adolescentes e jovens negros, alimentando seu ego e
mostrando exemplos, embora ficcionais, de ‘pessoas’ que superaram o preconceito. Não
devemos, porém, esquecer-se de comparar esses exemplos da ficção com os casos da vida real
que cotidianamente estão estampados na mídia.
‘Pretinha, eu?’ e ‘Na cor da pele’ são exemplos de obras literárias que retratam aspectos
da vida social cotidiana. Tendo como cenário o ambiente escolar e a convivência familiar, as
obras trazem à tona os conflitos e dilemas vividos por jovens negros e as consequências do
preconceito em suas vidas. A primeira revela a personalidade de duas meninas negras, uma
190
VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
que se reconhece e se aceita como tal e a outra que nega suas raízes, mas que se descobre no
decorrer da trama; a segunda história refere-se a um jovem negro que não se aceita e nega suas
origens, mas que também se descobre com o tempo. Ambas nos fizeram refletir sobre a
importância de se trabalhar as questões raciais na escola, tanto no que se refere a sua
contribuição para a formação integral de nossas crianças, adolescentes e jovens, papel dessa
instituição, quanto como sinal de resistência às imposições de um sistema opressor que tenta
calar a voz de ‘minorias’. Literatura é resistência, é representação, é expressão da vida e da luta
que abraçamos. Literatura é voz e a voz não pode ser calada.
Referências
BRASIL. Lei 10.639/03.Brasília: Senado Federal, 2003.
CASTILHO, Suely Dulce. O Ser Negro e a Literatura Infantojuvenil. Cadernos Negros, São
Paulo: Quilombhoje, v.27, 2004a.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil. 7. ed. São Paulo: Moderna, 2000.
OLIVEIRA, Maria Rosa, D.; PALO, Maria José. Literatura infantil: voz de criança. 4. ed.
São Paulo: Ática, 2006.
SILVA, Lucina Cunha; SILVA, Katia Gomes de. O negro na literatura infantojuvenil
brasileira. Revista Thema, vol. 8, número especial, p.1 - 13, 2011.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil brasileira. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 11. ed. São Paulo: Global, 2003.
191
VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Introdução
Apesar de todo o retrocesso para o qual o Brasil se encaminha nos últimos anos,
especialmente no que diz respeito aos avanços no campo da diversidade, ainda ecoam os
resultados das políticas da Secretaria de Educação Continuada Alfabetização, Diversidade e
Inclusão (SECADI/MEC), extinta em 2019. A SECADI desenvolvia, desde sua criação em
2004, ações em diversos setores, entre eles Educação do Campo, Indígena e Quilombola e
Educação para as Relações Etnicorraciais. Entretanto, sem um governo que invista nessas
políticas, os esforços das instituições democráticas, como as universidades e os que têm
atuado nessas frentes, são ainda mais necessários e também mais homéricos, pois sem o apoio
governamental é mais difícil promover uma educação inclusiva.
Nesse contexto, um evento que aborde a literatura africana e afrobrasileira na
perspectiva do ensino, bem como a publicação da produção gerada pelo evento, é um modo
de dizer que não será possível apagar o que foi realizado até aqui. As conquistas em termos de
leis, formação docente, pesquisa e material didático foram incorporadas às práticas
educacionais. Não são poucos os que estão dispostos a manter a rede de reflexão e de
implementação de propostas didáticas com vistas à visibilidade histórica, cultural e literária de
grupos marginalizados. Nessa direção, abordaremos, neste texto, a produção literária de duas
escritoras do Estado do Rio Grande do Norte - RN, uma negra e outra indígena,
respectivamente, Sol Saldanha, de Currais Novos e Graça Graúna, de São José do Campestre.
A escolha por essas autoras se deve à constatação de que o livro didático não inclui a
literatura potiguar, muito menos a literatura produzida por negros e indígenas do Estado, o
que dificulta o acesso de professores e estudantes à produção local desses segmentos. O
conhecimento de obras e autores da região, certamente, favorece atividades como rodas de
conversa com o autor, entre outras ações, o que é um incentivo para a leitura e a produção de
texto dos alunos.
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
formação acerca da condição feminina nas relações de gênero, compreendendo que a opressão
das mulheres não se dá apenas no âmbito do gênero. As formas de opressão variam também
de acordo com outros marcadores como a cor da pele, a classe social, o lugar de origem, entre
outros.
O pensamento feminista interseccional surge a partir da contribuição das mulheres
negras que identificaram formas de opressão internas ao próprio movimento feminista. Sobre
isso, Bell Hooks (2015, p. 207), esclarece:
Em termos gerais, as feministas privilegiadas têm sido incapazes de falar a, com e
pelos diversos grupos de mulheres, porque não compreendem plenamente a inter-
relação entre opressão de sexo, raça e classe ou se recusam a levar a sério essa
interrelação. As análises feministas sobre a sina da mulher tendem a se concentrar
exclusivamente no gênero e não proporcionam uma base sólida sobre a qual
construir a teoria feminista. Elas refletem a tendência, predominante nas mentes
patriarcais ocidentais, a mistificar a realidade da mulher, insistindo em que o gênero
é o único determinante do destino da mulher. Certamente, tem sido mais fácil para
as mulheres que não vivenciam opressão de raça ou classe se concentrar
exclusivamente no gênero.
Para a autora citada, que assina com todas as letras minúsculas, o feminismo, por sua
tradição branca e do alto dos seus privilégios, não reconhece que outros marcadores de
diferença como cor e classe, também contribuem com a opressão da mulher. O feminismo
negro, portanto, traz outra contribuição para pensar a mulher. Para Moritz (2017), "pensar as
intersecções é desafiar as estruturas de poder e lutar contra o silenciamento de vozes."
Nessa perspectiva interseccional, cabe também pensar a mulher sob a ótica dos países
colonizados, numa visão decolonial que teve origem no Grupo Latinoamericano de Estudos
Subalternos, criado nos Estados Unidos, na década de 1990. Mignolo (2003), um expoente do
grupo, questionou o locus de enunciação dos discursos teóricos da subalternidade, que seriam
eurocêntricos, isso é, pensavam as colônias a partir do centro colonizador. O decolonialismo
reconhece o fim da colonização, mas não da colonialidade que marca as relações modernas e
se espalha por toda a existência humana, seja no trabalho ou no sexo, na subjetividade e na
autoridade. No currículo escolar "se articula a vários tipos de hierarquias: étnicas, raciais,
sexuais, gênero, conhecimento, de linguagem, religiosa" (ALMEIDA & SILVA, 2015, p.8).
O feminismo decolonial encontra na vinculação entre vários marcadores de
diferença “uma forma de compreender a opressão das mulheres subalternizadas através de
processos combinados de racialização, colonização, exploração capitalista e
heterossexualismo” (LUGONES, 2014, p. 940-941). O feminismo decolonial propõe pensar o
gênero a partir da diferença colonial, como resistência à colonialidade de gênero que transpõe
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
para outros mundos o pensamento do colonialista que hierarquiza saberes. Sem essa
percepção, o risco é sempre de apagar a diferença.
De acordo com Lugones (2014, 948), "a tarefa da feminista descolonial inicia-se com
ela vendo a diferença colonial e enfaticamente resistindo ao seu próprio hábito epistemológico
de apagá-la." Conhecermos umas e outras, por meio de referências comunitárias locais,
identificando as hierarquias e as dicotomias transpostas pelos processos de colonialidade como
mecanismos de resistência.
Seguindo essa proposição, é possível adotar uma pedagogia feminista interseccional e
decolonial, cujas bases se desenvolvem com referenciais filosóficos educacionais que
consideram os saberes das diferentes mulheres, entre elas, as negras e as indígenas.
Referenciais produzidos na forma escrita ou oral, fundadas na ancestralidade e nas
experiências cotidianas daquelas mulheres, gerando contranarrativas ao saber hegemônico.
Desse modo, é possível interrogar os cânones e descolonizar as práticas pedagógicas.
Quando entra em cena a literatura afrobrasileira e indígena, surge uma questão: - que
especificidades teriam as literaturas afrobrasileira e indígena para que fossem tratadas de forma
distinta do conjunto da literatura nacional, conhecida como literatura brasileira?
Vejamos primeiro o caso da literatura afrobrasileira. Duarte (2008) elenca cinco
aspectos: a temática, a autoria, o ponto de vista, a linguagem e público leitor. O tema deve
abordar o sujeito negro; a escrita deve ser proveniente de autor(a) afrobrasileiro(a); o ponto
de vista precisa estar identificado com a história, a cultura e toda a problemática do povo
negro; a discursividade precisa ser marcada pelos elementos de práticas linguísticas de origem
africana que ressignifiquem a linguagem com a qual foi tratada o negro na literatura; por
último, o sistema literário negro há de ter um público leitor afrodescendente, que seja alvo da
intencionalidade da produção literária que objetiva construir outros padrões de afirmação
identitária. Duarte (op. cit.) complementa:
Não basta ser negro ou abordar a temática negra para se dizer pertencente à literatura
afrobrasileira, ou ainda, aproximar-se do ponto de vista identitário da cultura negra, mas não
ter experimentado na pele o que é ser negro. A interação desses elementos é que definem a
literatura afrobrasileira. Talvez esses elementos, ou parte deles, pudessem servir para pensar a
literatura indígena, trocando-se o sujeito, mas seguirei outro caminho.
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No caso da literatura indígena, o uso dessa expressão, de acordo com Novais (2014)
não é uma expressão consensual; outras, embora menos usuais, também procuram denominar
esse campo da literatura. São tentativas de caracterizar a produção dos povos originários,
sendo as mais comuns: literatura nativa, literatura das origens, literatura ameríndia e literatura
indígena de tradição oral. Essas denominações diferem da chamada literatura indianista, que se
popularizou por abordar a temática indígena na literatura romântica do século XIX.
Ainda de acordo com Novais (2014), a Literatura indígena pode ser vista em sentido
amplo e restrito. No amplo, a produção cultural abarca textos criativos (orais ou escritos)
vinculados aos mais variados grupos indígenas, incluindo também textos não editados, ainda
que sem uma intenção esteticoliterária na origem, como as narrativas, os grafismos e os cantos
em contextos próprios, ritualísticos e cerimoniais. Em sentido restrito, a expressão literatura
indígena refere-se aos textos editados e reconhecidos pelo sistema literário como sendo de
autoria indígena. A literatura indígena contemporânea pode ser compreendida, segundo
Graúna (2013, p. 15), como “um lugar utópico (de sobrevivência), uma variante do épico
tecido pela oralidade; um lugar de confluência de vozes silenciadas e exiladas (escritas).” A
autora percebe a literatura de autoria indígena escrita como um lugar de encontro das vozes
silenciadas:
Gerando a sua própria teoria, a literatura escrita dos povos indígenas no Brasil pede
que se leiam as várias faces de sua transversalidade, a começar pela estreita relação
que mantém com a literatura de tradição oral, com a história de outras nações
excluídas (as nações africanas, por exemplo), com a mescla cultural e outros
aspectos fronteiriços que se manifestam na literatura estrangeira e, acentuadamente,
no cenário da literatura nacional (GRAÚNA, 2013, p. 19).
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60 Os dados biográficos da autora, bem como os poemas, foram enviados para mim por email, pela autora, após
minha solicitação por whatsapp.
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O poema segue uma direção oral e coloquial, acentuada pelas rimas e pelo discurso
direto. O sujeito poético sobe o tom, principalmente, quando usa letras garrafais, sugerindo o
grito e quando, ao final, manda o sujeito masculino, a quem se dirige, “tomar no centro do
cu”. Não há lirismo, não há comedimento, não há meias palavras. A expressão ‘arroto’, que
intitula o poema, já é um indicativo de que o leitor não deve esperar bons modos. O que
interessa à autora da poesia não é uma imagem de mulher bem comportada, que aceita o papel
social que a tradição lhe impôs, mas ao contrário, a mulher que solta a voz no poema é solar,
isso é, não se esconde, se expõe para denunciar o machismo com o qual os corpos são
tratados: aos homens o direito à liberdade e à mulher, a obrigação de cobrir-se. Ou isso ou a
condição de vítima da violência masculina, caso não aceite o lugar que o patriarcado lhe
determina. Nesse poema, além de falar a outras mulheres, Sol fala diretamente aos homens,
cobra-lhes, aos gritos, o respeito.
Talvez o poema, pelo tom nada submisso e por incluir expressões de baixo calão,
ainda mais na voz de uma mulher, seja evitado na escola, principalmente, em tempos de
patrulhamento da atividade docente. Entretanto, a linguagem é acessível à juventude porque é
assim que grande parte dela se expressa. Escolher um texto como esse de Sol para a leitura
escolar é seguir na direção do que prega Ponciano: "Devemos ampliar o currículo com textos
que exaltem a importância de correntes críticas que questionem os paradigmas patriarcais,
além disso, que trabalhem com uma imagem mais autônoma da mulher, desconstruindo as
relações de poder engendradas nos discursos sexistas" (PONCIANO, 2015, p.131). No poema
de Sol, a mulher é apresentada com essa autonomia e questiona as relações.
A consciência de Sol é forjada no feminismo de viés intersecional que considera outros
marcadores de diferença que não apenas o gênero. Em ‘Artesã da casa grande’, o gênero, a cor
e a condição social (dela decorrente) são marcadores evidentes:
Nesse poema, a autora costura a cena da escravidão real com a cena do espetáculo em
que personagens são moldadas no silêncio. Mas a arte encenada pela mulher escravizada é
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obrigada e anônima, sem aplausos, porque estes vão para o senhor da casa grande. A casa
grande, no fim das contas, só existe porque a artesã a sustenta e a modela com o próprio
corpo, ainda que este saia sempre de cena pela coxia. Esse poema, que aborda o silenciamento
da mulher negra, lido em conjunto com ‘Arroto’, de autoria de uma mulher negra, como é Sol,
sugere a reflexão em torno do que afirma Bel Hooks em ‘Erguer a voz’ (2019):
Para nós, a fala verdadeira não é somente uma expressão do poder criativo; é um ato
de resistência, um gesto político que desafia políticas de dominação que nos
conservam anônimos e mudos. Sendo assim, é um ato de coragem — e, como tal,
representa uma ameaça (HOOKS, 2019 p. 36).
A autora chama a atenção para a fala da mulher negra como ato de coragem e resistência, ao
mesmo tempo em que alerta para o fato de que essa voz corajosa pode significar para os outros uma
ameaça. Portanto, tomar a voz, assumir o protagonismo é desafiador sendo, muitas vezes, motivo de
discórdia. No prefácio do livro ‘Erguer a voz’, Hooks (2019) coloca em evidência a censura contra o
dizer da mulher, especialmente da mulher negra. Ao falar do significado do livro, ela informa que
aquela obra
Tem a ver com punição — com todos aqueles anos da infância em diante, quando
me machucaram por eu dizer verdades, por falar do ultrajante, falar do meu jeito
chocante, indomável e sagaz, ou com “temos que ir tão fundo assim?” como às
vezes questionam os amigos (HOOKS, 2019, p.24).
Assumir a voz, não sucumbir aos padrões determinados, gritar se for preciso, ultrajar a
língua, tudo isso vemos nos dois poemas de Sol, que não parece temer a punição. O
silenciamento é a punição. Veremos como Graça Graúna trata essa questão.
Graça Graúna ou Maria das Graças Ferreira, escritora, crítica literária e professora na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) é também Graça Graúna, mestiça de
ascendência Potiguar, nascida em 1948, em São José do Campestre - Rio Grande do
Norte. Apesar de viver em um centro urbano, a autora assume o nome Graúna, nome de uma
ave de referência indígena para marcar sua relação com as origens: “Viver na cidade grande
não nos faz menos indígenas"(GRAÚNA, 2012, p. 268).
Com formação em Letras, publicou vários livros de poesia, infantil e de crítica literária,
além de participar de várias antologias poéticas no Brasil e no Exterior e de colaborar com
jornais e revistas, tendo uma atuação importante nas causas indígenas. Intelectual, moradora
de um centro urbano, mas de origem indígena, a autora ocupa um espaço interseccional,
tecido por culturas diversas. Nesse lugar, ela situa a literatura indígena e, consequentemente,
sua própria expressão literária. No poema ‘Entre-lugar’ (GRAÚNA, 2007, p.11), essa ideia é
explorada:
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De um lado
a palavra
do outro
o silêncio
estreando realidades conhecidas.
A pá lavra o abismo
que vai de mim
ao outro
De um lado, a palavra, que pode ser entendida como o mundo dos que não tiveram
sua voz negada; do outro, o silêncio que, ao contrário, representa o mundo dos silenciados. É
nesse lugar ‘entre’ que a autora se encontra. Ela, uma mulher letrada, professora universitária,
com uma história de origem em que seu povo foi expropriado também no território da
linguagem, tem na poesia o lugar em que esses contextos se entrecruzam. Na leitura de Rita
Olivieri-Godet,
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Para encerrar
Neste texto, analisei a poesia de duas autoras, uma negra e uma de ascendência
indígena, seguindo o marcador de diferença gênero em intersecção com raça e etnia. Também
busquei destacar o lugar de origem, pois as autoras são de um Estado periférico, o Rio Grande
do Norte; uma delas é ainda mais periférica, pois mora no interior do Estado e não teve
oportunidade de publicar seus poemas.
Os poemas indicaram uma autoria enraizada na literatura de pertencimento,
afrobrasileira e indígena, buscando nos elementos culturais próprios os fundamentos para uma
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Referências
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DIFEL, 2010.
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Após sua origem, o termo passou, de forma mais ampla, e ser utilizado para descrever
situações descobertas ao acaso. Nota-se, contudo que, para que tais descobertas se
caracterizem, de fato, como serendipidade é preciso haver atenção, a fim de que o momento
de serendipidade não passe despercebido. Logo, a existência ou o êxito do conceito é possível,
apenas, quando realmente houver consciência da descoberta. Se o processo de conscientização
é primordial para que percebamos alguns momentos, na realidade ou na ficção, em que o
acaso traz descobertas inesperadas, vale marcar, aqui, outra circunstância fundamental na
serendipidade: a circunstância da felicidade, embora nem sempre essa consciência de
felicidade, em uma descoberta casual, seja clara no primeiro momento. Afinal, como afirma
61 Doutoranda em Literaturas Africanas, integrante do grupo de pesquisa escritas do corpo feminino, bolsista
CNPQ,
62Joseph Henry Nascimento (Albany 17/12/ 1797 a 13/05/1878 (80 anos) foi um cientista Estadunidense.
63 A pintura valiosa tratava-se de um presente que Walpole recebera de seu amigo Horace Mann. Tal obra de arte,
pintada por Vasari, trazia o retrato da Duquesa Bianca Capello, uma cortesã do século XVI amante de François
Médicis, Duque da Toscana. Esta mulher fez o Duque acreditar que tiveram um filho antes dele se casar, em
1759. Ao observar cada detalhe do quadro, Walpole confirmou a relação entre as duas famílias, pois verificou
que havia ao fundo do retrato dois armários: um com o brasão da família Médicis e outro com o dos Capellos.
Foi, então, que ele contou ao amigo à faculdade que possuía de descobrir coisas em seu entorno, mesmo que
não estivesse a procurar (CATTELIN, p. 24).
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64A vida de Samuel Johnson LL.D. (1791) é uma biografia do Dr. Samuel Johnson escrita por James Boswell. O
trabalho foi um sucesso crítico quando publicado pela primeira vez, considerado como uma etapa importante
no desenvolvimento do gênero moderno de biografia. Há questionamentos no que diz respeito à legitimidade
da biografia. Mesmo assim, os biógrafos modernos consideraram a biografia de Boswell uma importante fonte
de informação sobre Johnson e sua época.
65 Fleming realizou duas descobertas, ocorridas nos anos 1920. Ainda que tenham sido acidentais, demonstram a
grande capacidade de observação e intuição deste médico britânico. A descoberta da lisozima ocorreu depois
que o muco de seu nariz, procedente de um espirro, caísse sobre uma placa de Petri onde cresciam colônias
bacterianas. Alguns dias mais tarde, notou que as bactérias haviam sido destruídas no local onde se havia
depositado o fluido nasal. Ele chegou à segunda descoberta, da penicilina e de suas propriedades antibióticas,
ao observar uma cultura de bactérias do tipo estafilococo e o desenvolvimento do mofo a seu redor, onde as
bactérias circulavam livres. A desarrumação constante de seu laboratório facilitou a descoberta, tendo em vista
que só encontrara o penicilium notatum numa placa de Petri esquecida e que estava a ponto de descartá-la.
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de muitas situações inesperadas, uma espécie de rascunho, aparecido casualmente nas mãos de
uma criança, que se revelou, na verdade, um documento histórico que terminou influenciando,
enormemente, nos rumos e na montagem de sua narrativa.
O prefácio dessa escritora norteou a seleção do corpus ficcional do presente artigo: o
livro ‘Insubmissas lágrimas das mulheres’, da brasileira Conceição Evaristo e ‘Niketche’, da
moçambicana Paulina Chiziane. No livro ‘Insubmissas lágrimas das mulheres’, de Conceição
Evaristo (2016), algumas personagens femininas passam por grandes descobertas promovidas
pelo acaso. Cito como exemplo a personagem ‘Isaltina Campo Belo’, cujo conto leva seu
nome. Isaltina nasceu em um ambiente onde sempre se sentira estranha, apesar de ser de uma
família considerada abastada e respeitada na cidade. A mãe dela gostava de deixar clara a luta
de seus antecedentes para serem alforriados. Já seu pai relatava as batalhas de sua família para
que ele fosse o primeiro a completar os estudos. Esses relatos enchiam-na de dignidade e
poderiam até ter-lhe proporcionado uma infância feliz, não fosse uma dúvida que a perseguia:
ela se sentia como um menino e ficava chateada por ninguém atentar para sua inclinação.
Alguns acontecimentos como uma crise de apendicite, a chegada de sua menstruação e
a ausência de uma vida amorosa a fizeram sentir-se cada vez mais deslocada da família. E por
crescer inibindo seu desejo por outras mulheres, ao fazer vinte anos, buscou trabalhar como
enfermeira fora da cidade. Assim, encontrou um lugar em que a privacidade dela era mais
respeitada, porém ainda com sua sexualidade contida e pouco questionada, até que, mais tarde,
resolveu assumir sua opção sexual diante de um colega que estava interessado por ela.
Contudo, ele a enganou e estuprou, coadjuvado por seus colegas em uma festa.
A gravidez indesejada só foi percebida quando ela já estava no sétimo mês de gestação.
Apesar de desconhecer o nome do pai, Isaltina criou a criança com muito amor e afeto,
levando-a para outra cidade. Eis que a vida das duas deu uma grande reviravolta, quando a
protagonista constatou que “o menino que havia nela” tinha reaparecido e ela estava pronta
para uma grande descoberta: “E quem me trouxe o vento da bonança foi ela, minha filha”
(EVARISTO, p.66).
Essa reflexão diante de uma grande descoberta está relacionada ao dia em que Isaltina
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encontra o grande amor de sua vida - Miríades, a professora de sua filha. Embora em um
primeiro momento a protagonista comente que um menino reaparecera nela, confirmando seu
desejo por outras mulheres, logo depois ela constata que tal desejo não a tornava menos
mulher.
A descoberta pode ser atribuída à serendipidade, uma vez que, nesse momento
proporcionado pelo acaso, a protagonista se dá conta de sua história, de seu corpo e de seu
desejo, por meio de uma série de vivências do passado que vêm à tona, proporcionando-lhe
uma nova compreensão de si própria e um olhar plural sobre a condição de mulher. O nome
de sua amada - Miríades - confirma essa ideia, pois a palavra aponta para a pluralidade, para a
abertura, para múltiplas possibilidades de ser.
Paulina Chiziane (2004) traz em seu romance ‘Niketche: uma história de poligamia’
uma protagonista que vê sua vida transformada num dia aparentemente comum em seu
vilarejo. Após ouvir um grande estrondo e se assustar, ‘Rami’ é alertada pelas vizinhas de que
seu filho quebrara o vidro do carro de um homem rico. No momento em que se viu
totalmente indefesa e desprotegida, Rami começa a se dar conta da contradição em que vive:
sua dependência total de um marido que está sempre ausente. Começa então a se perguntar o
porquê desse distanciamento e, durante esse autoquestionamento, percebe que foi desprezada
na maior parte dos vinte anos de seu casamento com o Tony.
Desencadeia-se, então, um processo de reflexão, no qual se dá conta da baixa
autoestima, enquanto se indaga sobre os motivos das constantes ausências de Tony. Assim, a
partir de uma situação aparentemente corriqueira, acompanhamos uma radical transformação
na vida de Rami. Tal transformação é vista aqui como resultante da serendipidade, sobretudo,
em função do processo de conscientização detonado pelo acaso na vida da personagem. Ela
sai de casa para conhecer as mulheres com quem seu marido mantinha relacionamento
extraconjugal e, numa outra situação inesperada, termina unindo-se às suas rivais e apoiando-
as.
Outro momento de serendipidade se dá após uma das rivais decidir fazer uma
exposição de todas as mulheres nuas diante de Tony. Nessa ocasião, Rami se dá conta da
fraqueza dele diante dos corpos nus e se a visão de seu próprio corpo nu torna Rami, a
princípio, desgostosa. Logo adiante, em mais uma circunstância de consciência e argúcia,
percebe que sua força maior não está na sedução sensual, mas no conhecimento de suas
potencialidades.
Atentemos para o momento em que Rami inicia seu processo de conscientização e
transformação: “Toda esta revolução começou com a história de Betinho. Vidro quebrado é
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66 A origem da palavra sororidade está no latim sóror, que significa “irmãs”. Este termo pode ser considerado a
versão feminina da fraternidade, que se originou a partir do prefixo frater, que quer dizer “irmão”. A sororidade
consiste, ainda, na inviabilidade de julgamento prévio entre as próprias mulheres, evitando que se fortaleçam
estereótipos preconceituosos criados por uma sociedade machista e patriarcal.
(https://www.significados.com.br/sororidade)
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Eduardo Agualusa. Segundo ele, as mulheres são mais sensíveis para captar o que acontece ao
acaso e as descobertas incríveis que podem advir daí. Ao dissertar sobre a mulher, a poesia e a
vida empresarial, durante um encontro realizado em Maputo (10/04/2018), o ficcionista
angolano declarou que “a serendipidade não resulta do acaso, implica um talento particular,
um talento que por alguma razão parece estar particularmente desenvolvido nas mulheres.” O
escritor acredita que as mulheres são mais sensíveis à serendipidade. Por isso, seguindo sua
pista, serão problematizadas suas considerações em relação à importância da sensibilidade
feminina, para o que ele chama de talento particular para a serendipidade.
Entendendo a serendipidade
Ao iniciar a pesquisa sobre serendipidade, identificamos a sua presença, inicialmente,
em textos científicos e jurídicos. No que se refere à área das ciências biológicas, não há dúvida
de que a já citada experiência de Flemming, vista a partir da serendipidade, gerou uma
valorização e interesse em torno do conceito. O campo jurídico, na verdade, pode ser
facilmente visto em interlocução com o da medicina. Acredita-se que ambos reservam, cada
vez mais, um papel importante para a surpresa, o espanto e a imaginação na formação das
ideias. Afinal, como observa Bacon, 67 a investigação científica pode ser comparada a uma
caçada - seja ela a um animal ou a um criminoso - e a presa pode se apresentar quando é
procurada e também quando não é.
Já no campo das ciências humanas, destaca-se o nome de Robert K. Merton, um dos
principais sociólogos do século XX. Com a colaboração de Elinor Barber, publicou o livro
‘The Travels and Adventures of Serendipity: A Study in Sociological Semantics and the Sociology of Science’
(2004), traçando a história da palavra serendipidade desde sua cunhagem, de 1754 até o século
XX. A obra propõe um projeto extremamente abrangente, investigando os muitos campos e
aspectos da serendipidade. Nela, o estudioso aponta as principais condições para a sua
existência e, portanto, para a sistematização do conceito.
De acordo com Merton, para a compreensão e utilização da palavra serendipidade, faz-
se necessário ter uma mente preparada e com alto poder de percepção sobre o que acontece
no entorno. Caso não se tenha essa capacidade, acaba-se limitando a julgar a palavra como um
clichê que significa uma descoberta feliz. Esse julgamento equivocado e uma mente ‘módica’
não favorecem a compreensão da profundidade de seu significado. Afinal, serendipidade é,
sem dúvida, uma descoberta feliz, mas não se limita a isso. A palavra é resistente a
67 Francis Bacon foi um filósofo, político inglês e um dos fundadores do método indutivo de investigação
científica, o qual estava baseado no Empirismo. Seus estudos contribuíram para a história da ciência moderna.
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interpretações precisas e, por isso, revela seu aspecto social iminente, que a torna uma palavra
vidente e clarividente, buscando sobreviver e clamar pelo seu lugar, a um público que precisa
ser preparado e convencido a recebê-la. Além disso, é importante atrelar a cunhagem dessa
palavra às questões que envolvem acaso, sagacidade e descoberta.
Para análise dos livros selecionados, de Paulina Chiziane e Conceição Evaristo, serão
utilizadas, a princípio, além da produção de Merton, obras teóricas que tematizem os
conceitos envolvidos na pesquisa proposta, para além da fortuna crítica sobre as autoras.
Nesse sentido, seguiremos o viés do conceito de serendipidade, pilar principal de nossa
pesquisa, também apoiados na pesquisadora francesa Sylvie Catellin, em ‘Serendipité: du conte au
concept’ (2014), pensando o caminho percorrido pela autora para evidenciar a transformação da
palavra serendipidade em um conceito.
De acordo com a pesquisadora citada, podemos caracterizar serendipidade como uma
palavra nômade, ao levarmos em consideração o caminho trilhado por ela, desde o momento
de sua criação, em 1754. A difusão da ideia expressa por essa palavra passou a surgir em
versões hebraicas, árabes e persas até chegar a Europa no século XIX. O marco dessa chegada
é o conto ‘Zadig’, de Voltaire, texto inspirado pelo termo antes mesmo de ser cunhado por
Walpole.
Assim como Merton, Cattelin também acredita que, da mesma forma que a palavra se
desdobra em vários campos de pesquisa, ela também precisa ser pensada no ponto de vista
cultural e político. O surgimento do termo e seu sucesso associado ao acaso ganha visibilidade
em meados do século XVIII. Nesse período, há uma mutação cultural que fomenta o livre
arbítrio, o que leva Walpole a se apropriar do momento, em que se estimulava o
questionamento, a investigação e a experiência como formas de conhecimento da natureza, da
sociedade, da política, da economia e do ser humano, para criar a palavra em estudo. Somente
no século XIX, quando há a dissociação da ciência e literatura, a separação do saber natureza,
do homem e sua consciência, as reflexões se ampliam no campo da psicanálise, com Freud,
por exemplo. Então, torna-se possível questionar a serendipidade e seus efeitos: acaso,
intuição ou destino?
O acaso não está relacionado à serendipidade a não ser pelo encontro com a origem da
surpresa, da busca pelas causas e da afirmação da necessidade de uma liberdade para a busca.
Catellin, então, entende que a palavra acaso é ‘mot-écran’, isto é, uma palavra exposta em relevo
como se fosse uma pintura. Esse pensamento se associa a Merton, quando ele afirma que a
serendipidade é uma palavra que ultrapassa a moldura que o tempo da pesquisa oferece.
Segundo o pensamento de Catellin, pode-se definir serendipidade, também, como uma
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Referências
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Carmen Tindó, SEPÚLVEDA, Maria do Carmo e SALGADO, Maria Teresa, (Orgs.). África
& Brasil: letras em laços. Vol. 2. São Caetano do Sul, SP: Yendis Editora, 2010.
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Introdução
Este trabalho desdobrou-se da pesquisa de pós-doutorado que atualmente realizo no
Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
sob surpervisão do Professor Dr. Nazir Can. Devo, aqui, agradecer ao programa e ao
supervisor pelo acolhimento da pesquisa; ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) que financiou o trabalho, com a concessão da bolsa de pós-
doutorado Jr.; ao colegiado do Curso de Letras da Universidade da Integração Internacional
da Lusofonia Afrobrasileira (UNILAB), campus dos Malês, por oportunizar a minha saída para
a realização desses estudos; à equipe da organização do III Congresso Internacional
AFROLIC pela realização de um evento importante e necessário à literatura; à professora
Carolina dos Santos Bezerra pelo diálogo e companheirismo na idealização, proposição e
coordenação de nosso simpósio ‘Ancestralidade, oralidade e memória: desafios da lusofonia
nos países africanos de língua portuguesa e na diáspora africana no Brasil’.
A ideia da lusofonia teve origem com o advento da expansão marítima portuguesa,
inicialmente um projeto mítico que Padre Antonio Vieira chamaria, no século XVII, de
‘Quinto Império’, anunciado e prometido pela Cristandade. Mais tarde, Fernando Pessoa daria
uma nova significação ao ‘Quinto Império’ entendendo-o como um patrimônio cultural dos
povos que compartilham a língua portuguesa. Ainda no início do século XX, o imaginário
lusófono agregava povos culturalmente diversos que, em comum tinham, basicamente a língua
portuguesa. Após as independências políticas das antigas colônias de Portugal em África, fez-
se necessário repensar o conceito de lusofonia a partir de uma perspectiva descolonizadora.
Entre os estudos literários, esse sentido conceitual não aponta para a hegemonia da
língua portuguesa, nem para um modelo literário português. A tábua de ressignificação da
lusofonia nas antigas colônias orienta-se, ao sul, como estratégia libertária.
68Professora
adjunta de Literaturas de língua portuguesa da UNILAB. Atualmente desenvolve seu projeto de pós-
doutorado, intitulado Lusofonia e literaturas africanas de língua portuguesa: redes de representações, na
UFRJ com bolsa de PDJ do CNPQ (2019/2020).
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69De acordo com Gramiro de Matos (1996), os cadernos surgiram em 1851, sob título Almanach de lembranças luzo-
brasileiras e, posteriormente, receberam o adjetivo “novo”, precedendo o título. Esses cadernos perduraram com
novas publicações até o ano de 1932.
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simbolicamente, um espectro intervalar, entidade que está ali para marcar a diferença e, ao
mesmo tempo, unir a um só nome.
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literatura do Brasil teriam incidido certa moção no que concerne à consciência nacional dos
escritores dos cinco países africanos que estavam em condição lusocolonial, sobretudo após a
Semana de Arte Moderna de 1922:
O A.L.L.B., por sua vez, gozou desde a sua fundação de grande popularidade, tendo
sido uma das primeiras tiragens (1853), de 16.000 exemplares, a maioria vendidos na
África e no Brasil, de onde vinham a maior parte das colaborações. Este órgão de
comunicação foi, na verdade, o principal divulgador das criações portuguesas,
africanas e brasileiras – actualmente só existe semelhante a revista África (1978), de
Portugal […]. Como temos procurado demonstrar e continuaremos a fazê-lo
quando abordamos as literaturas angolana, santomense, moçambicana, guineense e
cabo-verdiana, as influências brasileiras são profundas sempre no sentido da luta
pela afirmação nacional e conscientização política, tendo o M.M. 70, saído da Semana
de Arte Moderna (1922) […] um inegável papel de liderança, tanto na formação da
consciência nacional dos grandes movimentos culturais negros, como na
modernização da expressão temática das literaturas africanas de língua comum
(MATOS, 1996, p.133).
Reparemos que a lusofonia que se desprende dessa relação entre o Brasil e os cinco
países africanos que jazem colônias portuguesas (chamamos relações ‘lusofônicas’, para pensar
no diálogo sul-sul e lusófonas para o sentido ordinário – embora complexo – do termo)
estabelece-se a partir da influência proeminente de certa resistência colonial. Nesse sentido, se
a lusofonia foi, outrora, pautada na partilha da língua e da colonização portuguesa, essa mesma
língua incidirá, revendo a tese de Gramiro, acerca da influência revolucionária da literatura
brasileira sobre a africana em L.P. –, mais como código condutor de ideias que existem em
lugares remotos em comunhão de experiências de resistências e vivências coloniais, partilhadas
através da literatura. Essa literatura é em língua portuguesa. O diálogo ‘lusofônico’ é mais
amplo que o código linguístico da lusofonia.
Lembremos que a língua portuguesa foi entendida como o arauto da lusofonia,
sobretudo no decurso do século XX. Bernardo Soares transformou essa língua em uma só
pátria numa das passagens do ‘Livro do Desassossego’, entendendo-a, não apenas, como
prerrogativa e mérito português, mas como um patrimônio cultural compartilhado pelos
povos que expressam sua sintaxe através da língua portuguesa:
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um
alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que
invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente.
Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto não quem escreve mal
português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia
simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como
gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja
independentemente de quem o cuspisse (PESSOA, 2010, p.260).
70Movimento Modernista
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Para Eduardo Lourenço (2001), a ideia da língua como nação foi perpetuada a partir
de um erro de interpretação das palavras de Fernando Pessoa, passando a justificar o status da
lusofonia. Isso é: a língua portuguesa tornou-se o principal e único elo entre Portugal e suas
antigas colônias:
Há vários anos, uma frase de Pessoa a respeito a respeito de sua relação individual
com a língua em que se tornou célebre tornou-se citação obrigatória. Por sua vez, a
mesma citação converteu-se numa litania repetida através do espaço da língua
portuguesa, ao mesmo tempo como prova de assimilação de ‘língua’ e ‘pátria’ e
como sacralização desse laço indissolúvel. (LOURENÇO, 2001, p.125).
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Manuel Ferreira foi dos primeiros estudiosos a sistematizar as literaturas nos PALOP.
Segundo ele, seria a partir da primeira metade do século XIX que haveriam de se formar os
germes de uma consciência crítica da realidade, passando paulatinamente para uma literatura
de enfrentamento. Essa virada de paradigma ocorreria durante a formação de uma elite
intelectual ligada à imprensa e ao jornalismo, sobretudo em Cabo Verde e Angola. Ao dividir
essas águas, Ferreira fala em dois grandes momentos: 1. da literatura como colonial e 2. na
condição de literatura de língua portuguesa:
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de ‘lusofonia’, para se referir a quaisquer que fossem as nações, poderia se caracterizar como
uma forma de perpetuar o colonialismo português e sua hegemonia que se traduz, sobretudo,
com a adoção da língua portuguesa como oficial, mesmo no âmbito do pós-independência, de
1975 em diante. Se o idioma colonial é potencialmente um elemento de coesão nos países
africanos, ele também pode se tornar um mecanismo de subalternização das línguas africanas
que convivem em plurilinguismo, sobretudo em Moçambique e Angola, que não
desenvolveram o crioulo, como ocorreu em Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe.
Conforme explica Inocência Mata acerca da posição de Alfredo Margarido, para ele a
consolidação do termo lusofonia replicaria um comportamento colonial:
Se a lusofonia, seja como termo, ou como conceito, gera certo receio por colocar a
língua portuguesa em lugar central em relação às demais línguas e etnias africanas, mais
adequado seria repensá-la sob o viés descolonial, isso é, a partir das relações que, apesar de
advirem de um processo de colonização, elaboraram um processo dialógico na vanguarda e
nos decursos libertários. Esse diálogo se processou, em língua portuguesa, entre o Brasil e os
cinco países africanos.
Nesse sentido, ao revisitarmos a tese de Gramiro de Matos, ‘Influências da literatura
brasileira nas literaturas africanas de língua portuguesa’, encontramos um olhar atento do
escritor a essa troca internacional, a partir dos movimentos de resistência e conscientização
acerca do colonialismo. O mérito maior do autor está em sua pesquisa sobre o quanto a
literatura brasileira foi importante como potência influenciadora de um pensamento
transgressor para a realização desse diálogo de resistência entre o Brasil e os países africanos:
As manifestações literárias no Brasil, desde o período colonial e dos poetas da
Inconfidência, passando pelo Romantismo, Modernismo e o romance crítico e
social até a música popular dos nossos dias, comprovam a vocação de resistência, a
qualidade artística e a capacidade de transformação de uma estética do realismo
complexo, que se inseriu no processo de transformação do mundo, principalmente
em África (MATOS, 1996, p,35).
Pensar a lusofonia é também lembrar que sua existência implica todas as possibilidades
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Referências
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Este texto objetiva discutir sobre a importância dos contos populares e da pedagogia
tradicional para práticas escolares contemporâneas. Compreende-se, para tanto, que o
reconhecimento da oralidade como marcador cultural das sociedades africanas, em geral, e
Bissau-Guineense, em particular, é fundamental para a construção de uma sociedade que se
quer livre do legado colonial e pronta para novos caminhos de desenvolvimento.
É importante ressaltar que “o direito à educação é um direito fundamental e as
tradições culturais africanas esforçam-se por torná-lo efetivo. Ele consiste em ensinar à criança
os valores que constituem o patrimônio cultural da sociedade” (HOUNTONDJI, 2012, p.
311). O grande desafio colocado para países que atravessaram processos recentes de
independência é assegurar, na reconstrução de sua nacionalidade, a preservação de patrimônio
cultural que reconhece o legado dos seus ancestrais, unindo a realidade contemporânea aos
conhecimentos que passam de geração em geração.
A cultura africana, diferente das outras culturas, está intrinsecamente ligada à oralidade
e os conhecimentos tradicionais são transmitidos a partir do contato com as experiências dos
mais velhos, em práticas que acontecem fora da sala de aula, com os anciões. Nesse modo de
transmissão de saberes, a escrita não tem prioridade, não existem bibliotecas físicas de saberes
tradicionais, cujo acervo se concentra nas memórias dos mais velhos, que repassam os seus
ensinamentos para os mais novos sem precisar consultar uma biblioteca ou sentar entre as
paredes dos blocos escolares para que seus ensinamentos tenham autoridade. Segundo
Hampate Bá, (2010, p. 168). “os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro
dos homens.”
A educação tradicional africana consiste na formação da criança desde os seus anos
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iniciais no âmbito familiar até a fase adulta, e a pessoa passa cada fase da vida por um novo
aprendizado, adquirindo conhecimentos que lhe transformem numa pessoa de boa conduta,
que merece todo o respeito da sociedade por conta do seu entendimento sobre as tradições
orais. Nessa pedagogia, as pessoas transitam de etapa em etapa, como acontece no âmbito
escolar, porém nesse aprendizado não fazem provas para serem avaliadas, mas são observadas
através das suas ações e de como se comportam fora daquele lugar de doutrina. As lições
incluem aspectos morais de conduta, mas também aspectos práticos, passando pela medicina
tradicional até as questões políticas e religiosas. Como parte do conhecimento das regras
socioculturais da comunidade, o respeito às pessoas mais velhas é elemento definidor do
caráter de uma pessoa.
Em Guiné-Bissau, esse modelo de educação é muito frequente. Em uma família, não
são os pais os únicos responsáveis pela formação de uma pessoa, mas cada membro familiar
pode interferir na sua educação. Se a pessoa começar a se ‘desviar’ 73 dos seus deveres, se os
pais não conseguem mantê-la na linha, pedem ajuda a um parente ou aos irmãos mais velhos
para fazê-la voltar à conduta esperada e os irmãos e irmãs mais velhos/as, a quem se deve um
respeito absoluto, têm sobre a criança um ‘direito’ de correção (HOUNTONDJI, 2012, p.
311). Se esse alinhamento de conduta moral não acontecer, o julgamento social à família a
desqualifica, considerando que ela não educa os seus filhos dignamente.
Na sociedade guineense ainda se preserva uma clara delimitação do papel da família e
da escola no processo formativo de uma criança: os valores familiares/comunitários e os
saberes tradicionais são de responsabilidade da família, enquanto a escola deve se ocupar dos
conhecimentos científicos. Devido à grande diversidade cultural, cada grupo prioriza a
educação tradicional da sua da etnia o que fortifica a ligação dos seus filhos com seus
ancestrais e esse elo é o que torna a ancestralidade presente.
Por isso, os anciões insistem que toda criança precisa passar pelas etapas de orientação
familiar, porque é ela que ensinará os saberes mais profundos. Os valores tradicionais
passaram a ser objeto de interesse dos estudos acadêmicos e os relatos orais foram inseridos,
ainda que timidamente, como literatura nas escolas onde “a literatura não passou a fazer parte
do currículo escolar sob a sua identidade original. Primeiramente, integrou o trivium (primeira
parte do ensino universitário), dissolvendo-se entre a Gramática, a Lógica e a Retórica, quando
a renascença privilegiou o ensino da cultura clássica” (ZILBERMAN & THEODORO, 2014,
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p. 19). Os gêneros literários que eram ensinados em casa passaram a ser objetos dos estudos
nas escolas, ganhando um novo espaço.
Apesar disso, na Guiné-Bissau, as orientações do sistema de ensino ainda não
priorizaram os contos e histórias nacionais nas escolas, os conteúdos apresentados às crianças
ainda se baseiam nas histórias europeias, com ênfase nas Grandes Guerras mundiais, mas sem
a informação necessária sobre as lutas nacionais pela libertação e reconstrução do país. A
cultura nacional não é objeto de estudo no Ensino Fundamental e Médio e fica relegado ao
espaço familiar, desconsiderando sua importância como instrumento pedagógico.
É como se aquele conhecimento transmitido oralmente em círculos, em que o ancião
fica entre os aprendizes à noite ensinando o que sabe à luz da fogueira, ficasse cristalizado no
tempo. De algum modo, é como se ainda houvesse um entendimento de que os saberes
tradicionais e os saberes científicos são concorrentes, quando a aliança entre o tradicional e o
contemporâneo podem se tornar um potente método pedagógico.
Além disso, a valorização dos saberes tradicionais no espaço escolar dirime o legado
colonial que incita as pessoas a acreditar que sua cultura é inferior e que os valores
eurocêntricos são melhores. Desconsiderar a tradição corrobora a predominância
das outras culturas e molda uma realidade que não se encaixa na sociedade
guineense. Ao considerar que os contos populares não merecem ser estudados os
contos populares são um acervo histórico da pedagogia social endógena e servirão
sempre, em todas as sociedades do mundo, como instrumento pedagógico
privilegiado de transmissão inter e intergeracional dos valores tradicionais
mais profundo da comunidade referente. A narrativa solta, em imaginárias
aventuras era contada pelos mais velhos, na “boca note”, intercalada de provérbios,
adágios, adivinhas e ditados que permitiram a moldagem de atitudes e
comportamentos de verticalidade e correção social unindo antípodas, na perfeita
destrinça do bem e do mal, do yin e do yang, do certo e do errado (MARQUES,
2012, p. 06).
Os contos populares servem para induzir a pessoa a pensar para além da sua visão do
mundo, de modo que, ao escutar esses contos a pessoa passa a ter nova percepção das coisas
ao seu redor, ampliando a capacidade de apreciar os pequenos detalhes do cotidiano e
incorporar essas experiências e conhecimentos passados de boca a boca, levando-os consigo
como bagagem cultural. Por essa razão, os mais velhos não deixam que os seus descendentes
percam essa oportunidade de adquirir os ensinamentos passados por eles.
A tradição africana considera uma pessoa idosa como ‘biblioteca de saberes’, a quem
se deve consultar frequentemente, quando precisar, de modo que existe um ditado guineense
que diz, “garandi ika Deus, ma i tarda na vivi djuntu ku Deus” (a pessoa velha não é Deus, mas
conviveu há muito tempo com Deus, pois desconhece poucas coisas no nosso dia a dia),
esses ensinamentos acontecem frequentemente na sociedade guineense e, até para a
interpretação dos sonhos e pesadelos, também são consultados os mais velhos.
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Gonçalves (2009) apud Tavares (2017) escreveu sobre o diálogo entre a oralidade e a
escrita e como a oralidade apresenta-se de maneira singular na literatura africana, preservando
a história oral e as tradições dos povos:
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transmissão do saber científico e ancorada no texto escrito, de modo que, mesmo quando os
relatos orais são incluídos como conteúdo, aparecem distanciados da performance e moldado
ao padrão de ciência ocidental. A oralidade perdeu a função de ferramenta de ensino e as suas
marcas se perderam, assumindo outas características, adaptadas às novas realidades sociais.
Como afirma Hampaté Bá (2014, p. 182), “nada prova a priori que a escrita resulta em um
relato da realidade mais fidedigno do que testemunho oral transmitido de geração a geração.”
A escrita apenas afirma o que a fala solta, o que não a torna melhor, mas apenas a concretiza.
A oralidade é um método explícito, que promove reação imediata, mas também
contínua, na medida em que os ensinamentos perduram no tempo, transmitido através de
gerações. Os mais velhos usam essa forma de educar as pessoas, através das palavras faladas,
de modo que a sociedade africana respeita muito a fala, visto que é através desse modelo
pedagógico que os anciões apresentam as memórias individuais e coletivas da forma que os
educandos possam ter consciência do que é uma boa conduta na sociedade.
Os anciãos trazem contos e histórias que, algumas vezes, são colhidos na própria
experiência e outros, no mundo ficcional já consolidado e transmitido pelos seus
antepassados. Alguns relatos são baseados em fatos reais, com lições valorosas, que orientam
como lidar com o próximo como estar em sintonia interior. A “cultura oral produz
fenômenos notáveis, que ficam obscuros numa cultura escriturária,” diz Hountondji (2012).
Ouvir histórias ou contos inclui, portanto, um exercício imaginativo sobre os personagens, o
local do acontecimento, período tempo e espaço. Hountondji (2012) ressalta que, “o conto
não anexa apenas o terreno do imaginário para fazer sonhar, ele afirma os valores e os
antivalores do grupo social, no desvio do processo pelo qual se constitui o arquivo na
memória do povo.” Os povos africanos, em sua maioria, consagram essas memórias como um
patrimônio cultural, visto que é a partir delas que existe uma ligação com os seus ancestrais e
suas raízes.
Para representar o que vem se discutindo até aqui, será apresentado um conto popular
que apresenta reflexões profundas para a comunidade, partindo do mundo surreal para o
mundo real. Segundo a tradição, trata-se de uma história baseada em fatos reais e traz lições
importantes para a vida das pessoas pertencentes à etnia Biafada que se encontra em Guiné-
Bissau.
Aqui, assumo a primeira pessoa para relatar como esse conto que me foi apresentado
oralmente na infância e compõe parte significativa do acervo das memórias coletivas da minha
comunidade, mas impactam, também, na minha constituição como sujeito. Na comunidade
Biafada, os mais velhos apresentam contos para despertar os nossos pensamentos sobre o
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mundo, uma vez que, quando crianças, nossa percepção do real se limitava ao visto e
escutado. A estratégia dos mais velhos era de expandir nosso modo restrito de enxergar o
mundo, quando nos induziam a pensar sobre nosso cotidiano a partir das histórias
tradicionais, como a que apresentamos a seguir, transcritos a partir da nossa memória.
Sirá e Nima
Era uma vez, numa tabanca (roça) bem distante, uma família com duas filhas. A
primogênita se chamava Sirá, ela e a irmã mais nova não eram tão amigas, pois a mais nova
morria de inveja de Sirá. Certo dia, Sirá foi lavar roupa na beira do mar, enquanto ela lavava,
cantava para se distrair, como tinha o hábito de fazer toda vez que ia lavar roupas. Um dia
desses, ela foi lavar roupa no mesmo lugar e começou a cantar para se animar, quando
apareceu um peixe búzio e a cumprimentou. Ela, assustada, mal conseguiu responder ao peixe
por conta do susto que levou, pois nunca tinha visto um peixe falar e, ainda por cima, falava a
sua língua.
O peixe disse: - Não tenha medo! Não vou lhe fazer mal algum. Ela ficou sem ter o
que dizer e tremendo de medo, então, o peixe disse:
- O meu nome é Nima, vejo você sempre aqui sozinha, escuto suas cantigas cada
vez que vens, gosto das suas cantigas, por isso que decidi sair hoje, como é o seu
nome?
Ela respondeu gaguejando:
- O meu nome é Sirá.
Ela citou o nome com a fala toda tremida, o peixe búzio percebeu que ela estava
muito assustada e resolveu não chegar perto dela.
- Gosto de você, quero ser o seu amigo.
Ao escutar isso de um peixe, ela ficou um pouco mais aliviada, percebeu que o
Nima não queria lhe fazer mal algum.
A Sirá respondeu: - Sim, podemos ser amigos.
A partir daquele dia, a Sirá passou a visitar o Nima quando ia lavar roupas. Os dois
se apaixonaram e começaram a namorar, e cada dia que a Sirá ia visitar o Nima
levava farinha de arroz no cabaz. Quando chegava, tinha a forma como lhe
chamava:
- Nima, Nima, Nima...
Ele aparecia, comia a farinha, se divertiam um pouco e ela voltava para casa ao pôr do sol.
A irmã apreciava o comportamento da Sirá todos os dias. Certo dia, ela disse a Sirá que
queria ir com ela para o mar, com a intenção de descobrir o que ela fazia todos os dias lá, só
que a Sirá a conhecia e sabia que se ela descobrisse, ia querer fazer algum maldade contra o
Nima. Falou não, mas a irmã insistiu até que a Sirá bateu nela, só para lhe fazer desistir no
caminho, ela resolveu fingir que voltou para casa. Mas, a Sirá não sabia que a sua irmã tinha
poder de se transformar em um inseto, e se transformou numa mosca, voou e foi pousar em
cima do cabaz de Sirá que, inocente, estava muito apressada porque a irmã lhe atrasou um
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pouco no caminho. Na beira do mar havia uma árvore, quando chegaram, a irmã levantou, foi
pousar numa folha da árvore de onde podia assistir tudo.
Ela pegou na comida, tirou a tampa, deu de cara com a cabeça do peixe e suspeitou
logo, pois aquela cabeça era parecida com a do Nima. Ela, porém, não tinha certeza, botou a
tampa de volta e foi direto para Bemba, pegou arroz botou de molho machucou no ‘pilão’
(machucador), fez farinha saiu correndo para o mar, e a mãe foi atrás dela. Chegou, e começou
a chamar.
- Nima, Nima, Nima! Nima, Nima, Nima...
O Nima não apareceu, chamou de novo, só apareciam outros peixes, começou a
chorar e a cantar ao mesmo tempo.
- Nima lé, fi dinmi Nima lé, té bu dinma fum... 75
A mãe dizia:- Sirá, óh gã nalé n’doba lé n’doba gã n’bambol...
74 ‘Bemba’ é uma espécie de baú usam para conservar arroz e outros produtos na tabanca (roça).
75 Esse conto foi contado na minha língua étnica biafada, e foi traduzida para o guineense (crioulo), mas as suas
marcas de oralidade se situam nessa cantiga, pois não foi traduzida, nem para crioulo guineense nem para o
português. O conto sofreu duas alterações, estava em biafada, sofreu todo esse processo do guineense para o
português. “A “canção trata de desespero, pois, quando a menina soube da morte do namorado, ela dizia que”
ia para onde o namorado foi”. E a mãe a tentava acalmar.
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Enquanto cantava ela estava descendo a beira mar e a mãe estava lhe consolando e
chamando para voltar para casa, mas ela não escutava. Ela desceu no mar cantando essa
cantiga até desaparecer na água. Uns dizem que ela se transformou num peixe búzio, que
odeia ser pescado. Para ser capturado, o pescador tem que ser muito experiente, pois ele se
defende e sua característica física é um pouco comum a de ser humano, pois as fêmeas têm
órgãos genitais e seios.
Esse conto apresenta lições importantes dentro do quadro de valores da comunidade
Biafada, pois ensina sobre as consequências da falta de união entre pessoas da mesma família
e da inveja. Os mais velhos usam esse tipo de narrativas como um exemplo da nossa vida
cotidiana para chamar a atenção das pessoas para a necessidade conviver com as diferenças,
demonstrando que não há pessoa melhor do que a outra. A sociedade africana consagra muito
a família, portanto, cada membro tem o direito à proteção dos demais, o que não aconteceu
nessa história, culminando com a morte de Sirá.
O fato de a história oral ser largamente praticado fora do mundo acadêmico, entre
grupos e comunidades interessados em recuperar e construir sua própria memória, tem
gerado tensões na sociedade. A importância dada à educação cientifica eleva a depreciação da
educação tradicional, desconsiderando que a oralidade é o que dá um sentido à escrita,
enquanto a escrita neutraliza a fala. A escrita está ligada à lei e ao regramento normativo da
gramática, enquanto a fala tem uma ligação com o ouvinte estreitada pela ‘performance’, não
passando por essa função de fiscalização, nem da exigência de uma norma ou estilo da escrita
para relatar sobre um determinado assunto.
Cristiane Velasco (2018) ressalta que as histórias podem ser lidas ou contadas “de
boca”, sendo importante deixar claro que ler não é melhor que contar, mas contar não é
melhor que ler; os dois métodos de aprendizado são valorosos para a formação de um
indivíduo, são duas formas diferentes de trabalho com a linguagem e cada uma delas guarda
qualidades próprias e ambas pode dar ação ao educador. Não é que a cultura guineense ache a
oralidade melhor que a escrita, mas pela falta de acesso aos conteúdos escritos, que faz com
que a oralidade tenha mais espaço na sociedade, exceto nas escolas, que têm pouco acesso do
público.
Considerações finais
Essas reflexões, ainda em desenvolvimento, sobre a necessidade de valorização da
oralidade como instrumento didático do sistema formal de ensino guineense, apontam para o
seguinte questionamento: - por que estudar as histórias que vêm de fora, se podemos recontar
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nossa própria história? Uns diriam que uma proposta de reestruturação dessa natureza levaria
a mudanças do plano curricular nacional, o que desequilibraria o ensino fundamental e médio.
Outros diriam que a aliança entre ensino formal e saberes tradicionais favorecem o
reconhecimento da cultura nacional e a valorização da tradição oral.
Considerando a importância que a oralidade tem na sociedade guineense, priorizar os
contos locais seria uma forma de resgate e atualização das memórias dos nossos ancestrais.
Pensar um sistema de educação comprometido com o exercício decolonial de valorização da
sua cultura é reconhecer a identidade de um povo, é trabalhar para a reconstrução e o
desenvolvimento nacional a partir de novas epistemologias.
Referências
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Metodologia e pré-história da África. 2. ed. rev. – Brasília: UNESCO, 2010.
TAVARES, Paula. Amargos como os frutos - Poesia reunida. Rio de Janeiro: Pelas, 2011.
ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel Theodoro da. Literatura e pedagogia: ponto &
contraponto. 2. ed.. São Paulo: Global, 2014. (Coleção Leitura e formação).
232
VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
Inserido nas Américas a partir de uma diáspora impulsionada pelo projeto colonial
europeu, o negro tem seu acesso aos meios privilegiados de produção e difusão do
conhecimento restrito pela normatização social baseada nessa mesma matriz de pensamento
eurocentrada. Da mesma forma, é tomado como objeto discursivo por lentes que o captam e
o narram a partir dessa colonialidade dos saberes. 77 É nesse fenômeno, que figuras como
Fabião Hermenegildo Ferreira da Rocha, nascido na condição de escravo em 1848, no Estado
do Rio Grande do Norte, é estudado, narrado por discursos etnográficos que se constroem
em consonância com a teoria luso-tropicalista e o ‘mito’ da democracia racial.
Como cantador, poeta eminentemente oral, Fabião das Queimadas transitava por esses
circuitos da oralidade. A difusão de seu nome, experiência de vida e parte da obra 78 deu-se pela
via oral e mnemônica, além da gráfica nas recolhas etnográficas dos folcloristas. A despeito
desses últimos, pertencentes a grupos de elite, tem papel influenciador decisivo em suas
produções um projeto nacional, legatário de um projeto colonial,
76 Desenvolve projeto de doutorado sobre a obra de Fabião das Queimadas no âmbito do programa de Pós-
Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, sob orientação da profª. Edilene Dias
Matos. E-mail: [email protected]
77 Ver Daniel Mato (2005).
78 Alguns pesquisadores apontam que cerca de 80% de sua obra teria se perdido.
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O que faz com que os intelectuais das classes dominantes reproduzam, em níveis
diferenciados, uma exigência histórica que transparece claramente no interior do
discurso ideológico elaborado (ORTIZ, 2005, p.35).
79 Comunicação apresentada no “Encontro Perfil da Literatura Negra”. São Paulo, Brasil, 23, 05, 1985.
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É com essa lente freyriana que Cascudo observa, capta e narra Fabião das Queimadas,
eliminando as especificidades étnicas e sociais inerentes à vida e obra do cantador negro ex-
escravo:
Não é de somenos os dados folclóricos sobe o estado do Negro no Brasil.
Não tivemos repulsa por ele e o sexualismo português foi um elemento
clarificador, em pleno aceleramento. Ninguém se lembrou de vetar ao negro
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No Brasil, na virada do século XIX para o XX, intelectuais trabalhavam para construir
uma identidade nacional, buscando no ‘folclore’ elementos de uma essencialidade brasileira. É
no bojo desse projeto identitário que se manipulam narrativas etnográficas acerca do negro
cantador, a exemplo de Fabião das Queimadas, o qual enfrenta sérias barreiras étnicas e sociais
para se inserir em determinadas esferas da sociedade. Luís da Câmara Cascudo assim descreve
seu contato com o cantador negro ex-cativo na Natal da primeira metade do século XX:
Viver de cantoria era subalternidade e opróbrio. Era com lamentos que a família de
Hugolino do Teixeira (Hugolino Nunes da Costa, 1832-1895), branco e que sabia
latim e fora estudante em Olinda, o via de viola na mão, batendo-se me desafio. Um
Inácio da Catingueira, negro, escravo, batedor de pandeiro, vá, mas um rapaz de
sangue bom, que podia ser Doutor, meu Deus! Que castigo! Gente de sociedade
alta não ia ouvir cantador e mesmo cantador não vinha às cidades. Para ouvir o
grande Preto Limão, aí por volta de 1908, fugi de casa, e ganhei castigo. Comentou-
se rudemente o governador Ferreira Chaves, em 1917, creio, ter convidado amigos
para ouvirem o cantador Fabião das Queimadas, escravo que se alforriara cantando.
A ideia fora do poeta Henrique Castriciano (1874-1947), muito criticado também.
De 1923 em diante Fabião era meu hóspede e eu alvo de zombarias. Perguntava-se
a meu pai por que consentia que sua casa hospedasse um negro vadio, tocador de
rabeca, cantador de toadas. Posso, evidentemente, dar o meu testemunho e
antiguidade de simpatia porque me criara no alto sertão, ouvindo e aplaudindo
cantadores. Numa capital era apenas, na melhor expressão, esquisitice,
excentricidade, tolice (CASCUDO In: MOTA, 1976, p. XLVIII).
Câmara Cascudo vai construir um estudo no qual o negro aparece como contribuinte
do folclore/identidade nacional, em vias de desaparecer, como registra no livro Viajando o
Sertão:
Uma surpresa no Sertão é o quase desaparecimento do Negro. Raros os negros-
fulos e ainda mais o retinto. Este, não o vi nos 1.307 quilômetros viajados.
Assimilado nos cruzamentos, o Negro não viverá dois decênios em massa que
mereça saliência. Regiões inteiras corremos sem um herdeiro dos velhos
trabalhadores escravos. A lenda da ‘mestiçagem nordestina’ está pedindo uma
verificação para desmentido completo (CASCUDO, p. 31, 2009).
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críticas ao cantador potiguar, que mereceram defesa por parte de outro pesquisador da cultura,
Deífilo Gurgel, para quem:
Luís da Câmara Cascudo, por duas vezes, em ‘Vaqueiros e Cantadores’, faz restrições à
poesia de Fabião das Queimadas. “Era poeta medíocre e suas quadrinhas (‘versos’, como ele
chamava), nunca chegaram ao lirismo feliz da que o Dr. Eloi de Souza encontrou.” A
quadrinha referida é a que canta o amor e a velhice:
Fabião das Queimadas, por seu turno, contrapõe tal narrativa ao se colocar como
personagens de suas peças poéticas, de seus romances, ocasiões nas quais se autoconfere
muito valor. Ao descrever uma vaquejada na localidade Potengí Pequeno, numa verdadeira
crônica dos eventos que marcavam aquela sociedade agropastoril, Fabião insere os indivíduos
ilustres – fazendeiros, políticos... – e também a si mesmo na narrativa, não apenas se igualando
em importância, mas se destacando entre eles:
Estava dois home ilustrado,
Home de muito valô,
Moradô na capitá,
Manos do Gunvernador...
Estava também Fabião,
Qu’é poeta glosado...
[...]
Esteve home ilustrdo,
Doutores e capitão,
Onde estava seu Vigaro
Junto com o sacristão...
Porém nenhum deles faz
O que faz o Fabião!...
(In: CASCUDO, s/d, p. 84)
Na estrofe final do romance do ‘Boi Mão de Pau’, Fabião compara sua habilidade em
fazer versos à agilidade, quase insuperável, do boi:
Já morreu, já se acabou,
Está fechada a questão,
Foi s’embora desta terra
O dito Boi valentão.
Pra corrê só Mão de Pau,
Pra verso só Fabião!...
(In: CASCUDO, s/d, 93)
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Do canto de Fabião das Queimadas emergem discursos que tocam na sua condição
étnica e social. É claro o posicionamento do cantador no que diz respeito à escravidão,
situação aviltadora iluminada pela alforria, ao seu papel decisivo na conquista da liberdade, na
sua relação com membros de outros grupos sociais, na sua percepção individual em meio a
esse cenário, na consciência que tem da influência da componente étnica na condição social,
elementos esses invizibilizados na narrativa etnográfica.
Fabião, dessa forma, pinta e propaga uma imagem de si distinta da dos folcloristas, que
delineavam uma figura ingênua, tosca e maltrapilha para os poetas da oralidade. Lança mão
dos recursos de que dispõe para angariar liberdade legal, mobilidade social, terras, prestígio,
dinheiro, família... Tal constatação não corrobora o pensamento de autores como Orígenes
Lessa, que, em plena década de oitenta do século XX e seguindo a mesma linha do discurso
cascudiano, aponta para o fato de que:
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Tanto Inácio 80 como Fabião das Queimadas e os outros, forros ou não, viam na
escravidão apenas um caso pessoal, que eventualmente se resolveria com a
poupança, hoje tão em voga como solução de todos os problemas da família, a
acreditar na respectiva propaganda. Não deixaram indícios de pensar no problema
coletivo, na injustiça geral. Eram escravos, não gostavam de ser. Ponto. Não
deixaram transparecer, pelo menos nos textos que nos chegaram, o que pensavam
dos homens, das autoridades, das instituições que os exploravam (LESSA, 1982, p.
7).
Referências
CASCUDO, Luís da Câmara. Viajando o sertão. 4 ed. São Paulo: Global, 2009.
CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
CASTRO, Alex. Prefácio. In: MANZANO, Juan Francisco. A Autobiografia do Poeta-
Escravo. Tradução: Alex Castro. São Paulo: Hedra, 2015, p. 13 a 17.
HALL, Stuart. Notas sobre a Desconstrução do Popular. In: Da Diáspora: identidades e
meditações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2013.
80 Inácio da Catingueira, negro escravizado contemporâneo de Fabião, nascido na Paraíba. Cantador que usava
como suporte para suas performances poéticas um pandeiro.
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LESSA, Orígenes. Inácio da Catingueira e Luís Gama: dois poetas negros contra o racismo
dos mestiços. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1982.
MATO, Daniel. Interculturalidad, peoducción de conocimiento y prácticas socioeducativas.
ALCEU, v. 6, n. 11 – jul.-dez. 2005, p. 120 a 138.
MEDEIROS, Irani. Fabião das Queimadas, de Vaqueiro a Cantador. Natal: CJA, 2017.
MOTA, Leonardo. Cantadores. 4 ed. Brasília. Editora Cátedra, 1976.
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 2005.
SALINAS PORTUGAL, Francisco. Entre Próspero e Calibán – Literaturas africanas de
língua portuguesa. Galiza: Edicións Laiovento, 1999.
VENÂNCIO, José Carlos. Colonialismo, Antropologia e Lusofonias. Lisboa: Vega, 1996.
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[...] Então, já que não é por técnica que eles fazem e dizem muitas e belas coisas
sobre os acontecimentos, como tu sobre Homero, mas por parte divina; cada qual
é capaz de compor de maneira bela só naquele gênero para o qual a Musa o
precipitou [...] (PLATÃO, 2007).
No caso de Íon ele só sabia cantar bem os poemas Homéricos. Mas desejo chamar a
atenção para a interpretação. Interpretar o que foi escrito por outro. Interpretar bem. Possuir
o dom da interpretação. Espectador, rapsodo e ator estão todos numa cadeia de aneis que
Platão chama ‘divina’. Considero divina a arte de contar histórias, pois cabe ao contador fazer
seu público deleitar-se e maravilhar-se diante das palavras interpretadas.
Diferentemente do rapsodo Íon, o contador de histórias sabe contar muitas, histórias
de diversos autores, até mesmo as suas. Mas, sinto ser ele inspirado por um poder divino a
partir do momento em que entra em estado de êxtase quando as palavras saem da sua boca
lentamente, produzindo sons, desenhando paisagens na nossa mente, vestindo personagens,
fazendo-nos chegar ao mundo do ‘faz-de-conta’.
Nesse momento percebo o contador ser tomado por uma inspiração divina, pois ele
parece ter sido levado ao mundo onde se passa a história contando tudo com detalhes
surpreendentes. O espectador também entra em estado de êxtase, atento a todos os gestos e
palavras do contador. Forma-se, assim, a cadeia de aneis: contador, espectador e autor, criada
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[...] designa o ato de passar algo para outra pessoa, ou de passar de uma geração a
outra geração. Em segundo lugar, os dicionaristas referem a relação do verbo tradire
com o conhecimento oral e escrito. Isso quer dizer que através da tradição, algo é
dito e o dito é entregue de geração a geração. [...] Assim, através do elemento dito
ou escrito algo é entregue, passa de geração em geração, e isso constitui a tradição
– e nos constitui (BORNHEIM, 1987, pp. 18-19).
No conceito de Bornheim (op. cit.) encontramos dois elementos a mais, que fazem
parte essencial da formação da nossa tradição: o material escrito e aquilo que nos constitui. Se
a tradição faz parte da nossa constituição, isso demonstra a sua especial necessidade para a
nossa formação. O contador de histórias se vale do elemento oral e escrito para chegar até o
seu ouvinte. O conceito de Bornheim ganha uma amplitude maior e mais próxima dos nossos
dias. A oralidade era o elemento da tradição antes da invenção da imprensa. Após o
surgimento dos livros a escrita passou a fazer parte da tradição. O contador de histórias tanto
ouve quanto lê para memorizar e repassar o que sabe. O que é entregue ao outro é a arte do
contador de histórias de dar vida aos personagens e as palavras.
A tradição consiste num significado diferente envolvendo novos elementos, assim
sendo:
A tradição é a soma de saberes acumulados pela coletividade a partir de
acontecimentos e princípios fundadores. Exprime uma visão do mundo e uma
forma específica de presença no mundo (BALANDIER, 1997, p. 95).
Os dois novos elementos são visão e forma. A tradição consiste na visão daqueles que
estão presentes no mundo, ou seja, daquilo que pode ser visto e memorizado porque
despertou curiosidade e vontade de guardar para si. A tradição necessita que a forma do
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
indivíduo presente no mundo vá além do próprio sentido da visão, considerando, assim, uma
visão aquém do sentido e além das lembranças, mas protetora dos princípios e acontecimento
geradores de uma lembrança a ser memorizada. A visão e a forma nada mais são do que os
elementos subjetivos os quais o homem buscará para gerar essas lembranças no futuro.
Em Balandier (1997, p.95) vemos ainda uma espécie de segredo na tradição. É como
se ele quisesse dizer que a tradição, para se manter viva, esconde algo: “É o segredo que
atribui à tradição antigas funções, sua capacidade de proteger a arte, o saber e a habilidade.”
Apesar dessa tradição se manter num segredo, em certos aspectos ela pode ser apresentada e
passada para outros indivíduos. Esse segredo de que fala Balandier (op. cit.) compreendo como
se fosse uma espécie de protetor da tradição, permitindo assim o ensinamento unicamente das
técnicas. Por outro lado, faço-me objeto do mundo real e percebo estar rodeada de segredos
da natureza, da vida e da morte. O segredo, na tradição, está na visão e na forma como os
homens estão presentes no mundo, como comunicam esse mundo às novas gerações. A
interpretação exige, além da arte e da técnica, o segredo de ser um bom intérprete ou contador
de histórias.
Estamos diante de uma sociedade contemporânea em que muitas coisas tomaram
novas formas e significados diferentes. A tradição de alguns costumes vai se perdendo com o
passar do tempo. Mas contar histórias é uma tradição que continua viva e, apesar de ter
ganhado novos elementos necessários à nossa época, guarda a sua essência exatamente como
começou, ou seja, transmitindo conhecimentos, saberes, lendas, mitos de geração em geração.
Os pais nunca deixaram de contar histórias aos filhos, nem os professores, nem as amas de
leite, nem os avós, nem os tios e tantos outros. As crianças nunca deixarão de querer ouvir
histórias. Há sempre alguém a contar uma história.
Seguindo esse pensamento, encontro em Hosbawn (1997, p. 16) um forte argumento
sobre manter viva a tradição de contar histórias: “Não é necessário recuperar nem inventar
tradições quando os velhos usos ainda se conservam.” E os velhos usos ainda se fazem
presentes na nossa sociedade desde procurar a curandeira para tirar o ‘mau olhado’ até o
hábito de dormir em redes, esse último herdado dos nossos índios.
Vivemos uma época em que a informação deve ser transmitida rapidamente. Um fato
ocorrido do outro lado do mundo é imediatamente conhecido por todos nós. Diversos
profissionais especializados transmitem a informação, não é mais um agora são muitos.
Estamos diante de uma nova forma de tradição? Benjamin (1994, p. 197) afirma: “É a
experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas
que sabem narrar devidamente.” Muitos querem contar histórias, mas bem poucos conseguem
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contar com maestria. O segredo, a arte de saber contar, permanece escondido naqueles que
não sabem narrar.
Após a invenção da escrita, a narrativa tomou novas formas. Os homens acreditam
não ser mais necessário memorizar as coisas e se valem dos livros para recordar algo. Os
narradores guardam, agora, em lugares seguros suas narrativas com medo de esquecerem. A
internet tornou-se um grande banco de dados. É por isso que, no mito da invenção da escrita,
Platão relata o que achou Tamuz da invenção de Thoth:
[...] Tu, como pai da escrita, esperas dela com o teu entusiasmo precisamente o
contrário do que ela pode fazer. Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois
deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se
lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos.
Logo, tu não inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação.
[...] (PLATÃO, 2001, p.119)
A escrita não domina todos os recursos da oralidade. Quando se escreve algo, sempre
se deixa escapar alguma coisa essencial que é colocada na oralidade. Narrar oralmente é uma
arte mais valorizada e mais rica, pois exige do seu narrador o saber transmitir. Não há regras
na oralidade. O narrador simplesmente narra do seu jeito. Zumthor (1997, p. 14) acredita que
escrevendo consegue-se dizer mais do que falando: “Grafada, a língua parece escapar, mais do
que quando é pronunciada, ao jugo de uma mnemotecnia coletiva.”
A língua escapa porque o narrador está sozinho, logo não há interferências externas. O
narrador pode dar intervalos, reescrever o texto, fazer revisões, quando quiser. Falar parece ser
mais fácil do que escrever, mas não é. O narrador oral tem sempre ao seu redor um ouvinte
que pode interrompê-lo, recorre-se com maior velocidade à memória, não se tem tempo para
selecionar as melhores palavras.
Diferente dos antigos narradores que desconheciam a escrita e guardavam tudo na
memória, atualmente, os narradores se valem dos diversos recursos oferecidos para escrever o
que sabem, na tentativa de manter vivo o saber. As histórias são reeditadas e não mais
recontadas. Passam de pais para filhos as bibliotecas. Eis que surge a importância primordial
do contador de histórias que traz o leitor solitário para as rodas de contação de histórias.
Assim os mitos, as lendas, as fábulas, as parábolas, os contos de fadas e as histórias realistas
permanecem vivos na oralidade e na escrita.
Penso estarmos perdendo os nossos maravilhosos contadores de histórias em razão
das mudanças do mundo contemporâneo. É fato comprovado o pequeno número de pessoas
que sabe narrar um fato ou acontecimento com desenvoltura. O tempo é inimigo de quem fala
e ouve. O tempo é o buraco negro na camada da nossa sociedade contemporânea. A arte de
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ouvir está quase morta. Fala-se por falar. Quem escuta, não dá importância à maior parte. A
arte de contar ainda perdura e não se sabe até quando.
[...] Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa
utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática,
seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é
um homem que sabe dar conselhos. [...] Aconselhar é menos responder a uma
pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está
sendo narrada. (BENJAMIN, 1994, p. 200)
Os conselhos que dou às crianças sempre dão asas à criação de uma nova narrativa.
Muitas vezes, preciso criar uma narrativa fictícia para atender às dúvidas e aos anseios das
crianças. Pode parecer meio esquisito dar conselhos num encontro de contação de histórias,
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mas os frutos desses conselhos ajudam essas crianças, vítimas de uma realidade marginal, a
viverem de forma mais encantadora e maravilhosa. Os conselhos vêm em forma de perguntas
e vivências das personagens das histórias narradas, que vivem situações parecidas com as das
nossas crianças.
De repente, as histórias estão entrelaçadas e o netinho traz a avó, a avó traz o
professor de matemática, o professor de matemática traz o padre, o padre traz o gato, o gato
traz a fada e assim por diante. O essencial é que a experiência das minhas conversas com
crianças e adultos de culturas e lugares diferentes possa fazer parte dessas narrativas.
Considerações finais
Quem narra sempre coloca um pouco de si na narrativa. A narrativa nunca está
sozinha. Ela vem sempre acompanhada pela vontade de narrar, pela experiência, pelo amor,
pela habilidade e, principalmente, pelo segredo da tradição que cada narrador possui para
temperar a sua narrativa e aquecer os corações dos ouvintes. Os narradores experientes de que
trata Benjamin no seu ensaio ‘O narrador’ nada mais são do que aqueles que se infiltraram no
seio do seu povo e colheram as suas histórias para mais tarde contá-las de acordo com a sua
sabedoria. O saber do narrador se mistura à narrativa criando metáforas encantadoras e
maravilhosas capazes de vislumbrar a alma do ouvinte.
A minha bisavó me contava muitas histórias. No embalo da minha rede, ou embaixo
do meu cajueiro, lá estávamos nós (eu e meus irmãos) a ouvir as suas histórias maravilhosas.
Ela contava de um jeito bonito, seus ‘Era uma vez’ e ‘Faz de conta’ eram ressaltados com
ênfase. Ela plantava a história em mim. Cada vez que repetia uma história eu prestava atenção
ao seu jeito diferente de contar. Eu me lembrava de cada detalhe que ela acrescentava ou
tirava. Dentro de mim cresceu uma floresta de histórias contadas pela minha bisavó. Histórias
que conto hoje às crianças e que um dia, desejo, possam elas contar a outras crianças.
É a experiência o fio que tece a arte do contador de histórias. É preciso que conte uma
história e reconte-a tantas vezes quantas forem necessárias. Contar retirando das profundezas
da alma a repetição das palavras. Contando é que se chega ao aprimoramento. Uma história
deve e precisa ser contada sempre. O bom contador de histórias haverá de tirar de si sempre
algo mais para que não se torne cansativo o ouvir novamente. As histórias precisam ser
conservadas. Conto histórias antigas e novas. Mas, sempre as repito. Nas repetições percebi
que há sempre algo de novo, seja na forma de contar, na noite estrelada ou nublada, nas novas
crianças, nas diferentes perguntas surgidas e tantos outros fatores. O importante é o valor da
repetição da história, porque repetir ajuda a manter viva a experiência.
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Referências
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BORNHEIM, Gerd Alberto. O conceito de tradição. In: Cultura Brasileira: tradição,
contradição. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
HOLANDA, Aurélio Buarque. Novo Aurélio Século XXI. São Paulo: Nova Fronteira, 1991
HOSBAWN, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In: BALANDIER, Georges (Org.). A
desordem: elogio do movimento. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997.
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Considerações iniciais
Na tradição oral dos povos africanos, os griots e as griottes são responsáveis por
preservar e transmitir as histórias, mitos e tradições do seu povo, assumindo, ao longo de suas
vidas, a importante tarefa de serem testemunhas do passado e guardiães do futuro. A nigeriana
e escritora feminista Chimamanda Ngozi Adichie, assim como os guardiões da memória,
acredita que todas as histórias são importantes e, por isso, merecem ser ouvidas para que os
engolidos pelo silêncio da colonização tenham a oportunidade de serem protagonistas de suas
próprias narrativas e, através delas, consigam humanizar e restaurar a dignidade de seu povo.
No livro, ‘O Perigo da História Única’, Adichie (2019) usou experiências pessoais para
exemplificar como pode ser nefasto termos apenas uma versão das muitas narrativas
existentes sobre pessoas e lugares espalhados pelo mundo, pois, para ela:
Assim como o mundo econômico e político, as histórias também são definidas pelo
princípio do nkali 84: como elas são contadas, quem as conta, quando são contadas e
quantas são contadas depende muito do poder. O poder é a habilidade não apenas
de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja a sua história
definitiva. [...] Comece a história com as flechas dos indígenas americanos, e não
com a chegada dos britânicos, e a história será completamente diferente. Comece a
história com o fracasso do Estado Africano, e não com a criação colonial do Estado
Africano, e a história será completamente diferente (ADICHIE, 2019, p. 23-24).
De acordo com Chimamanda, as histórias que ouvimos, muitas das quais tomamos
como verdadeiras, estão diretamente alinhadas aos interesses do mundo político e econômico
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das ‘grandes nações’ que são responsáveis pelo apagamento de povos e culturas, uma vez que
o poder exercido por elas, através das instâncias do colonialismo, tem a capacidade de criar
não só a ‘história oficial e definitiva’ de um povo, continente ou país, mas também o de
cunhar estereótipos baseados na ideia de subalternização e superioridade, dificultando a
ruptura do pensamento e das práticas colonialistas na sociedade moderna.
O extermínio e a colonização da cultura e dos povos negros são tratados, também,
pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, reconhecido pelas publicações de ‘Necropolítica’
(2018) e ‘Crítica da Razão Negra’ (2018). Segundo ele, “a soberania reside, em grande medida,
no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (MBEMBE, 2018, p.
05).
Por isso, ainda para o autor citado, a história da humanidade é uma espécie de conflito
entre a vida e a morte, em virtude do sistema de necropolítica 85 do estado, que criou
instrumentos de poder para instaurar o terror e submeter determinados grupos à submissão
com o objetivo de resguardar o lugar mítico da Europa como suposto berço da modernidade e
expandir seus territórios sob a influência do capitalismo, tendo como pano de fundo as
matanças dos ‘invisíveis’ e a história do colonizador como absoluta.
Mas, entre vencedores e vencidos, quem haverá de cortar o silêncio, tratar a ferida do
colonialismo e contar ‘a história que a história não conta’, como fez na Sapucaí o samba
enredo da Estação Primeira de Mangueira no carnaval de 2019? Quem contará às histórias que
muitos de nós queremos esquecer?
A escritora francoruandesa Scholastique Mukasonga, sobrevivente do genocídio de
Ruanda ocorrido entre os meses de abril e julho de 1994, período que marca a execução de
mais de oitocentos mil tutsis por hutus 86, reconheceu na literatura um campo fecundo e
inventivo para o desenvolvimento do projeto identitário de nação e de discussão dos
problemas inerentes à realidade do seu país natal, que sofreu com o processo de colonização,
genocídio, luta pela libertação e, ainda nos dias atuais, busca sua independência e reparação
pelos crimes de ódio cometidos contra seu povo. Em razão disso, para a autora, escrever a
história de seu povo é, antes de tudo, um dever de memória.
85 A necropolítica é uma forma dos Estados exercerem a soberania pela decisão de escolher quem deve morrer e
quem deve viver na sociedade. Este conceito ficou conhecido graças à recente publicação de Achille (2018),
usado para discutir as relações de poder violentas no mundo contemporâneo.
86 Durante a colonização do país pela Bélgica, os líderes apontados pela metrópole foram sempre tutsis, num
contexto de rivalidade étnica que se acentuou com o tempo, dada a escassez de terras e a fraca economia
nacional, sustentada pela exportação de café. Após a independência, em 1962, os hutus tomaram o poder e
começaram a marginalizar os tutsis. O conflito entre os dois maiores grupos étnicos do país, os hutus (grupo
majoritário) e os tutsis (grupo minoritário) resultou, em seu ápice no ano de 1994, no massacre que matou cerca
de 800 mil pessoas em, aproximadamente, cem dias de conflito.
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Mães, mulheres. Invisíveis, mas presentes. Sopro de silêncio que dá a luz ao mundo.
Estrelas brilhando no céu, ofuscadas por nuvens malditas. Almas sofrendo na
sombra do céu. O baú lacrado, escondido neste velho coração, hoje se abriu um
pouco, para revelar o canto das gerações. Mulheres de ontem, de hoje e de amanhã,
cantando a mesma sinfonia, sem esperança de mudanças (CHIZIANE, 2004, p.
101).
A tal máscara foi uma peça muito concreta, um instrumento real que se tornou
parte do projeto colonial europeu por mais de trezentos anos. [...] sua principal
função era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um
lugar de silenciamento e de tortura. Neste sentido, a máscara representa o
colonialismo como um todo. Ela simboliza políticas sádicas de conquista e
dominação e seus regimes brutais de silenciamento.
Desse modo, podemos dizer que a máscara é uma metáfora real das estruturas
violentas do colonialismo, que tem como herança além da segregação racial e o apagamento
das narrativas, o processo de negação, segundo o qual o colonizador nega seu projeto de
colonização e impõe ao colonizado o lugar de subalternidade até a atualidade. Entretanto, para
a escritora e filósofa brasileira Djamila Ribeiro (2017), só há uma forma de quebrar o silêncio
da história do colonizado: produzir conhecimento científico. Deixar aqueles que sempre
tiveram suas histórias narradas por outros assumirem o seu lugar de fala e serem os ‘porta-
vozes’ do conhecimento. Ainda de acordo com a autora, o povo negro precisa ser
87 Anastácia era uma jovem negra, conhecedora das ervas medicinais que ajudava os negros doentes. Ficou
conhecida no imaginário popular pelo castigo que recebeu por se negar a ir para a cama com “seu senhor”,
dono da fazenda. Anastácia foi levada ao tronco, apanhou durante dias e, como castigo pela recusa, foi
sentenciada a usar uma máscara de ferro por toda sua vida. Nos registros oficiais, a máscara de ferro que era
instalada entre a língua e o maxilar, fixada por detrás da cabeça com tiras de ferro e arrame, foi usada por mais
de trezentos para evitar que os escravos/as comessem cana-de-açúcar e cacau, enquanto trabalhava.
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Logo, é possível constatar que ser ‘mulher negra’ e escritora é um desafio gigantesco,
tendo em vista das violências de gênero oriundas do patriarcado, mas principalmente, do
sistema racista do imaginário ‘branco colonial’, que coloca as mulheres negras como
subcategorias; pois são duplamente subalternizadas em sociedade. Por isso, Scholastique
Mukasonga, escrevivente exilada de seu país, assim como a maioria das escritoras e escritores
do continente africano, subsequente aos períodos pós–independentistas e de estabelecimento
das democracias, faz da literatura um caminho para exigir que vozes e histórias, antes
silenciadas, não mais sejam emudecidas.
A frase que dá título a esta seção é um trecho do conto ‘A gente combinamos de não
morrer’, da escritora brasileira Conceição Evaristo, publicado no livro ‘Olhos D’água’. O título
escolhido justifica-se pelo fato de, nesta seção, discutirmos como a memória de testemunho
de Scholastique Mukasonga, combinada à escrita e ao seu ativismo, foi capaz de salvá-la da
loucura que foi acompanhar de longe, em seu exílio forçado na França, todos os seus
familiares morrerem na tragédia genocida de Ruanda.
Scholastique Mukasonga, nascida em 1956, conviveu desde a infância com a violência
e a discriminação oriundas dos conflitos étnicos em Ruanda. Por essa razão, no ano de 1960,
sua família foi forçada a mudar-se para Bugeresa, uma das regiões mais pobre de seu país
natal. Anos depois, foi pressionada a deixar a Escola de Serviço Social em Butare e viver em
Burundi, fugindo da perseguição ao seu povo, os tutsis.
Com a intensificação dos conflitos, dois anos antes do massacre genocida que dizimou
mais de 800 mil tutsis em Ruanda, Mukasonga, por ser a única de sua família a conhecer outra
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língua, foi preparada pela sua mãe Stefania para viver o exílio na França, onde se encontra até
hoje. Essa foi uma forma de salvar, ao menos um dos seus, daquele massacre violento em que
viviam. Dez anos após o genocídio em Ruanda, Mukasonga retorna à sua terra natal, Nyamata,
e ao chegar à França, sente a necessidade de escrever sobre os horrores do massacre genocida
como dever de memória, para que a comunidade internacional reconheça sua parcela de culpa
na morte de milhões de inocentes, transformando sua escrita num ‘túmulo de papel’ para os
seus familiares.
A escritora marcou sua entrada na literatura em 2006, quando publicou o livro
autobiográfico ‘Inyenzi ou Les Cafards’. 88 Foram lançados, na sequência, ‘La femme aux Pieds
Nus’, 89 em 2008; ‘L’Iguifou’, 90 em 2010; e ‘Notre-Dame du Nil’, 91
em 2012. No Brasil, a Editora
Noz traduziu, recentemente, os romances ‘A mulher dos pés descalços’, ‘Nossa Senhora do
Nilo’ e ‘Baratas’, marcando a estreia da autora no mercado literário brasileiro. É a primeira vez
que seus textos são editados em língua portuguesa e, especificamente, em português brasileiro,
desenhando uma importante correspondência, no campo da linguagem, entre duas nações que
sofreram com processos ardilosos e violentos de colonização.
O trabalho arqueológico de escavação da memória empregado por Scholastique
Mukasonga é uma marca de relevo da sua prosa de testemunho e, possivelmente, uma das
principais razões que fizeram dela uma das vozes emergentes das literaturas africanas
diaspóricas mais aclamadas. Um elemento que merece atenção na sua história de incursão por
este gênero literário é a convergência de sua trajetória de autora com a de mulher ruandesa,
que se apresenta por meio de diversos fatos, dentre os quais a ausência dela no rito de
sepultamento dos corpos de seus familiares, especialmente de sua mãe. Em narrativas urdidas
com várias vozes, Scholastique Mukasonga confere imagens e traços identitários, o seu
testemunho literário opera como principal força para tornar sujeitos invisíveis em sujeitos que
(re)existem por meio de narrativas que afrontam invisibilidades atravessadas pelo tempo, pela
memória e pela história. Segundo Mukasonga, a literatura a salvou e, por isso, busca pela
escrita conceder voz aos que já não dispõem dela para lutar contra o esquecimento que, para
eles, seria como uma segunda morte.
88 As Baratas (2006).
89 A Mulher dos Pés Descalços (2008, edição francesa).
90 O nome deste livro faz referência ao memorial das vítimas do genocídio em Ruanda, na cidade de Nyamata, no
sudeste de Ruanda. O título do livro é uma versão francesa para o termo Nyamata, sem tradução literal para o
português, até este momento.
91 Nossa Senhora do Nilo (2012, edição francesa).
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conflitos na África, uma vez que a autora “nem é testemunha direta, nem testemunha dos
traços, mas vítima testemunha.” Seu discurso também se baseia em uma “postura enunciativa
do interior, ao mesmo tempo em que se estabelece uma tensão entre o interno e o externo.”
Podemos observar esse traço de ‘vítima testemunha’ nos primeiros parágrafos do romance ‘A
mulher de Pés Descalços’, quando Mukasonga conta que não sabe dizer:
Minha mãe, nunca relaxava. Ela aumentava o cuidado à noite, na hora do jantar.
Realmente, era nesse horário, ao anoitecer, ou às vezes de madrugada, que os
soldados entravam nas casas para saquear tudo e aterrorizar os moradores. Por isso,
mamãe não se deixava distrair por um prato de feijão ou banana. Stefania nunca
comia com a gente. Durante o jantar, ela corria de um lado para o outro da
plantação, no limite da savana, e ficava observando o emaranhado de espinhos,
prestando atenção em todos os barulhos. Se ela avistava as roupas camufladas de
militares em patrulha, voltava correndo para casa e dizia: ‘twajwemo – não estamos
sozinhos’. A gente tinha de ficar quieto, sem se mexer, todo mundo pronto para ir
para o esconderijo, esperando, ao menos essa noite, ser poupado (MUKASONGA,
2017, p. 19).
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os soldados do exército hutu e, a partir daí, organiza estratégias de luta e sobrevivência na terra
em que foram deixados para morrer, uma vez que a região de Bugeresa é considerada infértil e
de difícil acesso à água.
De acordo com Márcio Seligmann-Silva (2008, p. 71), a literatura de autoria
testemunhal tem como função “resgatar um evento latente na memória tentando
incessantemente, representar o irrepresentável,” por isso o projeto literário de Scholastique é
tão forte e importante, visto que a autora firma um compromisso com o não esquecimento.
Além do compromisso com o direito à memória, a narrativa de Mukasonga destaca a
importância da função social da terra e do território ruandês. Notamos essa relação de
afetividade e respeito no capítulo quatro, intitulado de ‘O sorgo’. 92 Nesse capítulo, Mukasonga
descreve a importância do grão para um legítimo ruandês:
O sorgo era o rei das nossas plantações. Para ser cultivado para consumo, ele exigia
um cerimonial, uma serie de ritos que Stefania cumpria com piedade escrupulosa,
pois era uma planta de bom augúrio: uma bela plantação de sorgo era um talismã
contra a fome e contra as calamidades, era um sinal de fertilidade e de abundância
(MUKASONGA, 2017, p. 43).
A escritora lembra, também, que o ritual do sorgo era um dos poucos momentos em
que os ‘desterrados’ celebravam e as mães e crianças tutsis expressavam felicidade, pois tinham
comida e poderiam brincar nas plantações. De acordo com Fanon (1979, p. 33), isso acontece
porque “para a população colonizada, o valor mais essencial, por ser o mais concreto é, em
primeiro lugar, a terra que deve assegurar o pão e, evidentemente, a dignidade.”
Nos capítulos sete e oito, intitulados, respectivamente de ‘A beleza e os casamentos’ e
‘O casamento de Antonie’, Mukasonga descreve como esse acontecimento deixou sua família
feliz, sobretudo sua mãe, conhecida em Nyamata por ser uma das melhores casamenteiras. O
casamento e a morte eram os ritos de passagem mais importantes na vida de um ruandês.
Quando chegava a idade do casamento, o destino de meninos e meninas era entregue nas
mãos das casamenteiras. Como na tradição ruandesa o pedido de casamento exigia várias
etapas, Stefania andava ansiosa pela concretização do casamento de um de seus filhos,
Antonie. A união permitiria a vinda de um neto e, assim, a certeza de que sobreviveria através
de sua descendência.
No último capítulo do livro, intitulado ‘História de mulheres’, Mukasonga relata como
as matriarcas de Nyamata faziam para driblar a fome e a escassez de comida no exílio e
conseguir alimento para os seus filhos. Nesse capítulo, a escritora narra a peregrinação diária
92 Sorgo é um tipo de cereal semelhante ao milho, cultivado pelos ‘desterrados’ de Nyamata, na região de
Bugeresa.
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Considerações finais
A escrita de testemunho de Scholastique Mukasonga apresenta-se como um
cruzamento das formas e modelos da literatura africana de língua francesa. Ela aborda os
processos da história do sobrevivente, da história da infância, da literatura, da autoescrita
etnográfica da novela de colonização e da novela de ditadura e da narrativa de vocação. Em
uma escrita híbrida e transgênera que também destrói os limites entre referencialidade e ficção,
Mukasonga constrói um modelo de literatura que afronta o esquecimento condicionado e
exuma as lembranças de dor e perda. Scholastique escreve numa “busca intemporal a fim de
recuperar e reconstruir a família, a memória e a identidade” (DUARTE, 2006, p. 306), o que
ela toma para si como um dever, ocupando o espaço de narradora da própria história e da
história dos seus, a partir de uma perspectiva eminentemente feminina.
Assim, a narrativa do gênero romance é uma das estratégias discursivas pós-coloniais
que pressupõe implícita e explicitamente um diálogo crítico com a atividade narratória,
majoritariamente centralizada numa tradição masculina. Por outro lado, permite um
alargamento temático, tratado a partir de dentro, criando uma abertura no cânone literário
africano em formação (LEITE, 2004, p. 98-99).
A autora ainda pondera que a necessidade de legitimação de um espaço próprio das
literaturas africanas, em oposição às literaturas europeias, leva ao estudo da oralidade como
um instrumento de detecção da africanidade textual, aspecto que a própria Scholastique
assume ao tratar sua escrita como a produção de histórias que não estão em papéis (LEITE,
2012, p. 16).
Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia da
Letras, 2019.
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CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004, p. 101.
DUARTE, Eduardo de Assis. Memória viva. Estado de Minas Belo Horizonte, Caderno
Pensar 2006.
LEITE, Ana Mafalda. Oralidade na produção e na crítica literárias africanas. In: Oralidades &
escritas pós-coloniais: estudos sobre literaturas africanas. Rio de Janeiro: UERJ, 2012.
MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. São Paulo: Editora Nós, 2017.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
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Apresentação
Expressão maior da poesia social de cunho abolicionista, ‘Os escravos’, de Castro
Alves, constitui já de há muito objeto de estudo pela crítica literária acadêmica. A obra
publicada post mortem em 1876 atraiu a atenção da imprensa periódica brasileira em seu tempo,
não demorando muito a tornar-se um clássico da literatura romântica nacional. Impregnado de
intertextos de contemporâneos e autores célebres do romantismo local e estrangeiro, dispersos
em epígrafes, traduções e paráfrases, o livro carreia para si o status literário de uma produção
artística engajada já iniciada precocemente em 1863, quando o poeta postulava nos
preparatórios uma vaga nos bancos da Faculdade de Direito no Recife.
Como toda a obra de Castro Alves, ‘Os escravos’ apresenta uma natureza ligeiramente
difusa e fragmentária da compilação de seu espólio em razão de sua publicação póstuma.
Apesar de planejada ainda em vida pelo escritor, o livro ganhou formas variadas nas sucessivas
edições que seguiram à morte do poeta, reunindo desde alguns esparsos publicados outrora
em jornais do tempo, assim como versões dispostas em folhetos, até a conhecida edição
revisada e comentada por Afrânio Peixoto em 1921, 95 na qual se vê ‘A cachoeira de Paulo
Afonso’ integrada, conjuntamente aos poemas abolicionistas, à estrutura do livro. Já em 1870,
a ‘Imprensa Acadêmica’, órgão dos estudantes de direito de São Paulo, noticiava a subscrição
de ‘Espumas Flutuantes’ – que viria a ser publicada no mesmo ano na Bahia – estando o livro
de ‘Os escravos’ na ordem da fila do prelo das obras ainda inéditas do escritor baiano.
Vários dos poemas de ‘Os escravos’ saíram impressos em edições de ‘Espumas
Flutuantes’ no século XIX, atendendo o imediato interesse comercial. Os primeiros cuidados
com o texto para uma edição crítica surgem em 1883 pelo editor Serafim José Alves, quando
93 Marcos Vinícius Fernandes, doutor em Estudos da linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, é professor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, onde atua como docente de Língua
Portuguesa e Literatura Brasileira (IFRN-SC). E-mail: [email protected]
94 Karina Chianca Venâncio, Doutora em ″Literaturas e Civilizações Francesas e Comparadas″ pela Université de
introdução bibliográfica e anotações de Afrânio Peixoto. v. 2. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1921.
Disponível em: <https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4985>. Acesso em: 07 jan 2018.
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Múcio Teixeira estabelece a divisão da obra em duas partes, uma na qual se encontra a referida
‘A cachoeira de Paulo Afonso’ e a série de poemas antiescravagistas que respondiam
primitivamente pelo título ‘Manuscritos de Stênio’. É, porém, a partir daquilo que se
convencionou, no século XX, com Afrânio Peixoto, biógrafo ligado à família de Castro Alves,
que o livro ‘Os Escravos’ recebeu uma edição mais em acordo com os projetos de publicação
da obra poética pelo poeta baiano. A proposição do livro por este último crítico contava
também com uma estrutura em dois segmentos, alterando, contudo, a ordem de disposição
com ‘A cachoeira de Paulo Afonso’ fechando o poema, e acrescendo de diversas outras
composições ainda inéditas para compilação da primeira parte da obra.
A última grande edição consagrada a Castro Alves, ‘Obras Completas’ (1960), 96
realizada por Eugênio Gomes, segue, para a parte destinada a ‘Os escravos’, o modelo adotado
por Afrânio Peixoto, com ligeiras alterações como a incorporação do incompleto ‘Jesuítas e
Frades’, ausente neste segundo, e a exclusão do poema ‘O voluntário do sertão’, que se
integrava antes ao texto estabelecido por Peixoto em 1921. No geral, respeitando a fixação do
texto de Peixoto, amparada pela revisão crítica de Eugênio Gomes, a obra constaria de 33
composições.
Dessa compilação outorgada pelos dois respeitados críticos do poeta baiano,
destacamos dois poemas aos quais, até o presente momento, pouco receberam da devida
atenção da crítica especializada no escritor. 97 O primeiro, ‘O sibarita romano’, escrito em 7 de
setembro de 1865 no Recife e claramente integrado à seleta castroalvina, e o segundo, um
curioso transunto de um trabalho esboçado pelo poeta em 1870 e trazido à tona por Afrânio
Peixoto em 1921, ‘A República de Palmares’. Em ambos, uma identidade intertextual
compartilhada de uma leitura comum ao escritor e a serviço do engajamento político-literário,
mas que escapou à investigação mais arguta de seus respeitados críticos, o aclamado romance
católico oitocentista ‘Fabiola ou a igreja das catacumbas’, do Cardeal espanhol Nicholas
Patrick Wiseman. Quanto à página solta de ‘A República de Palmares’, ficam patentes também
indícios da leitura de Bug-Jargal, do poeta francês Victor Hugo, sendo este romance de ficção
96 ALVES, Castro. Obras completas. Organização, fixação do texto, cronologia, notas e estudo crítico por
Eugênio Gomes. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1960.
97 Escapam deste silenciamento nos estudos do escritor baiano dois trabalhos acadêmicos mais recentes: A
humanização da “coisa” em Os escravos, de Castro Alves (2014), dissertação de Éverton Luís Matos de
Campos, e Castro Alves, leitor de Hugo. Da luta social ao antiesclavagismo (2014), artigo de Amélia Maria
Correia, este último do qual nos ocuparemos logo à frente.
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mártires cristãos fica mais evidente através da exposição de cenas violentas, ora no circo em
que prisioneiros como Pancrácio são dilacerados pelas feras do Coliseu, ora no Palatino pela
brutalidade da guarda imperial ao matar, à paulada, o pretoriano convertido ao cristianismo
Sebastião. O conflito excede aos desdobramentos dos eventos sanguinolentos da trama, mas
se confirma também no plano psicológico com o quebrantamento do coração de Fabíola que
se deixa vencer à nova religião, após uma longa transformação moral em direção ao
virtuosismo cristão.
A terceira parte do livro contempla a completa transformação da heroína, momento
em que Fabíola recebe em contrição Ortêncio, o outrora perseguidor Fúlvio, irmão de Syra, a
quem tira a vida acidentalmente quando esta se interpusera entre a arma daquele e a ama
querida. Recém-convertido ao Cristianismo, recebe o perdão de Fabíola, sua antiga vítima,
mas ouve dela a confissão apaixonada de que também infligira o mal à escrava cristã ao
desferir um golpe de estilete àquela em um acesso de ira.
Como se vê a obra de Wiseman assume um caráter nitidamente doutrinário em
conformidade com a programática difusão do catolicismo na Inglaterra anglicana de meados
dos Oitocentos. Ainda que não se configure como um romance estritamente histórico,
‘Fabíola ou a igreja das catacumbas’ guarda um paralelo entre a perseguição sanguinolenta aos
cristãos emplacada pelo édito de 303 de Diocleciano e as dificuldades pelas quais o prelado
espanhol encontrou em sua missão de radicar a fé católica entre os ingleses de seu tempo. É,
portanto, com esse fundo histórico que Wiseman dá à luz a uma obra deliberadamente
interessada voltada à conversão da apostasia cristã ao catolicismo romano.
O romance moralizante, contudo, não apenas carrega consigo o estigma à religião
anglicana traduzida na trama pelo politeísmo romano como religião oficial do império,
asfixiando os focos de culto cristão resistentes ao édito romano implacável e com os quais o
catolicismo de Wiseman se identifica na condição de vítima das perseguições ao progresso da
conversão à fé católica entre os ingleses. Persiste também na obra do prelado espanhol a
negação a outras manifestações de religiosidade, a exemplo das religiões de matriz africana
tomadas como contrárias ao dogma católico da igreja de Roma, antevistas como símbolo de
bruxaria e perdição da alma. É o que se evidencia no rebaixamento moral das personagens
negras da obra, comumente atreladas ao imaginário herético da feitiçaria e da qual a escrava
Afra é a sua maior representante.
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vários índices de leitura modeladores do fazer poético do escritor baiano Castro Alves.
Encontrámo-lo mesmo presente como inspiração à produção lírica:
No poema ‘Fabíola’ da série ‘Os anjos da meia noite’ integrada a Espumas Flutuantes
(1870), destaca-se a personagem homônima do romance de Wiseman como uma das oito
sombras que perturba o sono de um malogrado amante. A referência à obra do prelado
espanhol se dá, porém, apenas exteriormente como uma sugestão literária sem qualquer
relação textual orgânica com a femme fatale do soneto castroalvino. Ainda que a protagonista de
‘Fabíola ou a igreja das catacumbas’ seja representada pelos traços do paganismo romano, não
há na diegese do romance de Wiseman episódios que pontuem inclinações para a liberalidade
sexual da prostituição, sendo tão somente o orgulho obstinado de Fabíola o vício que
postergará o caminho de sua redenção ao cristianismo.
Se a protagonista de Wiseman aparece quase que acidentalmente na lírica de Castro
Alves, não se pode dizer o mesmo de outra personagem daquele romance oitocentista
novamente solicitado como inspiração, agora, à poesia de cunho social do poeta baiano.
Personagem secundária na obra do Cardeal, Afra merece destaque em dois outros manuscritos
castroalvinos, ‘O sibarita romano’ e ‘A República de Palmares’. Em ‘Fabíola ou a igreja das
catacumbas’, essa personagem compunha juntamente a Graia, a grega, e a Sira, a oriental, as
escravas domésticas da casa de Fábio. Das servas de Fabíola, Afra cujo nome verdadeiro é
Jubala, a africana, é a que tem os traços da corrupção mais acentuados em conformidade com
o discurso neocolonialista europeu do século XIX, centrado no rebaixamento cultural e moral
da identidade dos povos africanos:
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A velha ama [Eufrosina, ama liberta de Fabíola] chegou à conclusão de que a charpa
havia desaparecido por algum processo, e dirigiu as suas desconfianças para a
escrava negra Afra, que sabia não suportar Sira, acusando-a de usar algum feitiço
para atormentar a pobre moça. Considerava a mourisca uma verdadeira Canídia
[Famosa feiticeira do tempo de Augusto, em nota do autor], obrigada que era a
deixá-la sair muitas vezes de noite, a pretexto de recolher ervas medicinais sob
indispensável claridade da lua cheia, mas, segundo desconfiava, a fim de preparar
mortíferos venenos. Na verdade Afra participava das horrendas orgias do feiticismo
com os da sua raça, ou antes dava consultas aos que buscavam a sua arte imaginária
(WISEMAN, 1963, p. 41).
98 É o caso de Álvares de Azevedo no Brasil e Alfred de Musset na França que corroboram com o estereótipo da
depravação moral do tipo feminino branco ao pôr heroínas louras como cortesãs artificias e venais em seus
romances. (Ibid, p. 22).
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Ao retratar o mundo romano com seus atos libidinosos e imorais frente à noção
cristã de virtude, o poeta denuncia o senhor de escravos, aqui no Brasil, que se
aproveita de seus cativos, não apenas do trabalho, mas que explora suas escravas
sexualmente. (CAMPOS, 2014, p. 124).
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O povo desceu para as ruas envergando os seus trajes mais brilhantes e ostentando
os mais ricos enfeites. As diversas correntes da multidão convergiam todas para o
anfiteatro Flaviano, mais conhecido em nossos dias pelo nome de Coliseu. (...) O
imperador veio presidir aos jogos cercado de toda a sua corte, com a pompa devida
de uma festa imperial, e ansiava tanto quanto o último dos seus súditos por
contemplar os horríveis divertimentos e repastar os olhos na carnagem. (...)
Sucederam-se diversas lutas, e mais de um gladiador, morto ou ferido, umedecera
com seu sangue a areia coruscante, quando o povo, desejoso de ver os combates
mais ferozes, começou a reclamar ou antes a rugir para que lhe servissem os cristãos
e as feras (WISEMAN, 1963, p. 206).
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outros escravos romanos como o infeliz jurado de morte pelo imperador e a sua irmã também
escrava, a grega Haideia, à condição de Afra e, por extensão, aos cativos brasileiros.
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rapto. Apenas nos capítulos finais do romance, a bondade do herói congo é revelada ao jovem
infeliz por salvá-lo das mãos da morte intentada pelo feiticeiro Habibrah, horrível escravo
anão, doméstico à casa de seu tio e responsável pelo assassinato do seu antigo amo.
Em que medida esta obra inaugural do romanesco romântico em Victor Hugo poderia
ainda manter influxo para além das composições de Tirana e ‘A canção do africano’, refratadas
da leitura de Castro Alves colhida na ‘Canção de Bug-Jargal’, de Gonçalves Dias, transposição
literária para o verso da conhecida passagem formulada originalmente em prosa pelo escritor
francês? Ao espreitarmos mais de perto um manuscrito aparentemente despretensioso de
autoria de Castro Alves, respondemos melhor a essa indagação:
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e trata de chamar as pessoas pelo seu verdadeiro nome. Eu já não sou Afra, a escrava; dentro
de algumas horas serei Jubala, esposa de Hifax, chefe dos arqueiros mauritanos” (WISEMAN,
1996, p, 222).
Empréstimos literários tomados em decisões conscientes, tendo em vista a atmosfera
de cada composição. Se, em ‘O sibarita romano’, despontam-se os arbítrios infligidos aos
escravos romanos, a solução encontrada é a adesão à condição da personagem como cativa da
casa imperial, tal como a Afra subserviente aos caprichos da patrícia Fabíola em Wiseman;
Entretanto, na gestação de um poema de resistência negra ao jugo opressor do homem branco
como ‘A República de Palmares’, nada mais justo que Castro Alves eleger Jubala sem o epíteto
degradante da escravidão e restituída a suas origens culturais com a identidade do território
africano, ainda que em solo americano.
Da escolha de Obi, o feiticeiro etíope, se demarca o ponto de inflexão da trama
castroalvina. Ora, antes de um nome próprio, obi é o título de bruxo designado pelos cativos
das plantações do tio de Léopold ao anão negro Habibrah, envolto numa atmosfera de
misticismo aterrador. 99 Os traços de vilania do criado monstrengo, rival de Léopold e de Bug-
Jargal no romance de Victor Hugo, denunciam o antagonismo à figura do escravo redentor da
causa negra no Brasil, Ismael ou o último Zumbi. Palmares é a antítese moral e fisionômica à
do anão feiticeiro inspirado em Hugo, seu estreitamento com o protagonista Bug-Jargal não
guardaria dúvida do espelhamento deste com aquele, sentido este reforçado pela intrusão de
outra personagem feminina, Branca, a virgem, em tácita alusão à Marie, recoberta dos valores
morais cristãos da castidade prometida a Léopold.
Até este ponto, as equivalências de perfis entre os personagens literários dos dois
escritores românticos não resultariam em grandes problemas para projeções de análise de
como seria ideado o esboço de ‘A República de Palmares’. Salvo, porém, os inconvenientes de
imagens estereotipadas do pensamento neocolonial ao homem negro que preenchem os
capítulos de ‘Bug-Jargal’ e ‘Fabíola’, as quais intentaria Castro Alves ter mitigado ou submetido
a deslocamento semântico em favor da identificação da causa abolicionista.
Conclusão
Mesmo escritores do nosso cânone literário são passíveis de ter a sua obra renovada
pelo trabalho empenhado da crítica literária acadêmica. Os estudos fomentados pelo
comparativismo textual através da leitura de impressos oitocentistas à margem da tradição
99 Victor Hugo põe isso mesmo em relevo ao trazer a observação da identidade do feiticeiro em nota comentada
(HUGO, 2016, p. 19).
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Referências
HADDAD, J. A. Revisão de Castro Alves: O problema das Influências Literárias. v.3. São
Paulo: Editora Saraiva, 1953.
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Introdução
Dany Laferrière nasceu em Porto Príncipe, capital do Haiti, em 1953, é formado em
jornalismo. Iniciou sua carreira profissional aos dezenove anos de idade, na ‘Radio Haïti Inter’
e no ‘L’hebdomadaire politicoculturel Le Petit Samedi soir’. Na mesma época, ele introduziu-se nas
artes como crítico de artes plásticas para o jornal Le nouvelliste. Devido ao assassinato de seu
amigo Gasner Raymond (1953-1976), o então jornalista viu-se obrigado a deixar Porto
Príncipe, no auge da ditadura de ‘Baby Doc’ Duvalier 102 em 1976, para se instalar na cidade de
Montreal (Québec). Nesse período de expatriação, fez-se também um leitor assíduo e foi
consagrado como escritor. Entre tantas ‘vozes’ de imigrantes no Quebec, a de Dany Laferrière
se destacou e alcançou o mundo, sendo nomeado como um dos grandes autores na Academia
Francesa de Letras.
Seu texto é constituído de muitos paradoxos, grandes rupturas, profundas discussões
sobre o campo cultural americano. A identidade paradoxal (PAULA, 2006) é o ‘carro chefe’ de
Laferrière, que ao recusar etiquetas consegue liberdade suficiente para problematizar tanto o
lugar de nascimento, quanto o ‘entre-lugar’. As dez principais obras do autor, nomeadas por
ele de ‘Autobiographie Américaine’ por causa do teor autobiográfico contido nelas, são divididas
em dois polos: o norteamericano e o haitiano. No primeiro concentram-se obras ambientadas
culturalmente entre o circuito Miami, Nova York e/ou o Sul dos Estados Unidos, enquanto
no segundo nos deparamos com romances voltados para o Haiti, contando com a retomada
dos mitos nacionais, a religião de matriz africana; o vodu e os eventos sobrenaturais. É neste
eixo que encontramos ‘País sem chapéu’ (2011).
100 Tarcyene Ellen Santos da Silva, mestre e doutoranda em “Estudos da Linguagem” pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, é pesquisadora na área
de Literatura Comparada e tem como objeto de estudo as produções literárias do escritor Dany Laferrière.
Desenvolve pesquisas acerca do diálogo entre o Fantástico e o Maravilhoso, nas obras deste autor.
101 Karina Chianca Venâncio, Doutora em ″Literaturas e Civilizações Francesas e Comparadas″ pela Université de
Duvalier (1957-1986). Fançois Duvalier, conhecido pela população como Papa Doc, foi um presidente eleito
em 1957. Após agradar a política internacional controlando as revoltas que aconteciam no país por causa da
revolução cubana que “perturbava” as autoridades do Caribe, ele se nomeou presidente vitalício. Antes de sua
morte conseguiu legalizar uma lei que nomeava seu filho, Jean-Claude Duvalier ou Baby Doc, como herdeiro
da sua posição presidencial (GRONDIN, 1985).
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modernidade 103 se anunciando e seu grito de guerra consistia em: “abaixo ao racionalismo e a
moral do consciente!” (NADEAU, 2008, p.27). Segundo Nadeau (2008), André Breton, que
também participava do grupo ‘Dada’, foi o precursor e grande influenciador desse movimento.
Foi ele quem redigiu os dois manifestos do Surrealismo, cujo conteúdo se voltava para a
definição desta nova expressão artística e filosófica. O movimento, inspirado nas produções
de Apollinaire – de onde saiu o termo surrealismo –, foi definido como: “[...] Automatismo
psíquico puro” (BRETON, 1978, s/p.). Assim sendo, a expressão do pensamento humano foi
o conteúdo e a regra característica do movimento. O inconsciente e a imaginação foram
declarados como matérias e, antes de tudo, as primazias das produções desta escola:
103Quanto à discussão sobre o início da modernidade, nos apoiamos em Maurice Nadeau (2008). Para saber mais
sobre o tema, indicamos sua obra História do surrealismo.
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movimentos artísticos fizeram. Dessa maneira, a produção estética se voltou para o ‘sentir’,
não apenas o pensar sistemático.
Nesse contexto, a escrita automática aparenta ser uma técnica bastante coerente com o
movimento surrealista. Gostaríamos de chamar a atenção para nosso objeto de estudo:
“Escrevo tudo que vejo, tudo que ouço, tudo que sinto. Um verdadeiro sismógrafo”
(LAFERRIÈRE, 2011, p.12). Essa passagem encontra-se no primeiro capítulo de ‘País sem
chapéu’, intitulado de ‘Um escritor primitivo’. No momento em que Velhos Ossos reflete
sobre sua atividade de escrita, enquanto autor, em pleno exercício da profissão, ele confessa ao
leitor que escreve apenas o que sente, com certo automatismo: “[...] Opa, um pássaro atravessa
meu campo de visão. Escrevo: pássaro. Uma manga cai. Escrevo: manga. As crianças jogam
bola na rua entre os carros. Escrevo: crianças, bola, carros” (LAFERRIÈRE, 2011, p.13).
O narrador-personagem nos revela uma composição desregrada e automática, próxima
às técnicas que destacamos anteriormente. Logo, essa passagem seria uma referência ao
movimento surrealista, produzida por Laferrière, na figura de Velhos Ossos? Na verdade, sim.
Existem diversas referências e críticas ao Surrealismo, em outros trabalhos do autor, como é o
caso da obra ‘La Chair du Maître’ (1997), onde o autor cita Breton.
compreende-se enquanto parte de seu povo, mas também nos mostra que sua pena se inspirou
em suas leituras surrealistas, 104 tanto francesas quanto conterrâneas. Essa atitude de voltar-se
para as origens culturais não quer dizer que não houve recepção do movimento surrealista.
Pelo contrário, foi ele quem colaborou como combustível para esse contexto. Entretanto, não
sejamos simplórios e aleguemos que nosso autor escreveu ‘País sem chapeu’ com o propósito
de reafirmar sua identidade. Laferrière propõe discussões profundas sobre o identitário, assim
como promove diversas rupturas. Logo, a influência surrealista em sua obra não é mais uma
manifestação do cultural do afrodescendente latino-americano. Sua proposta é, acima de tudo,
mostrar uma realidade cultural das Américas.
Nesse aspecto ele se aproxima de Alejo Carpentier e de Oswald de Andrade. De
acordo com Irlemar Chiampi (1980), por volta de 1940, Alejo Carpentier, citado entre os
autores 105 preferidos do escritor haitano-quebequense, foi um dos responsáveis por incitar
uma nova produção literária nas Américas com a sua proposta do ‘Realismo Maravilhoso’.
Nessa perspectiva, o estudioso acentua que Carpentier estimulou diversos escritores “[...]
latino-americanos a se voltarem para o mundo americano, cujo potencial de prodígios, garantia
o autor, sobrepujava em muito a fantasia e a imaginação europeias” (CHIAMPI, 1980, p.32).
Inicialmente, Alejo Carpentier procurava estabelecer uma supremacia do Surrealismo
americano em relação ao Surrealismo francês. Contudo, Chiampi (1980) comenta que o autor
cubano estava fortemente influenciado pelo movimento francês quando propôs, no prólogo
de uma de suas obras, as concepções sobre o ‘Realismo Maravilhoso’. Segundo o estudioso, ao
falar a respeito do texto maravilhoso, Carpentier pretendia questionar a definição de realidade
na literatura e nas artes como um todo:
A intenção evidente é deslocar a busca imaginário do maravilhoso e avançar uma
redefinição da sobre-realidade: esta deixa de ser um produto da fantasia – de um
“dépaysement” que os jogos surrealistas perseguiam – para constituir uma região
anexada à realidade ordinária e empírica, mas só apreensível por aquele que crê
(CHIAMPI, 1980, p.36).
104 Vale salientar que encontramos nas obras de Laferrière diversas passagens que fazem referência ao movimento
surrealista, tanto francês quanto americano. Indicamos como leitura duas crônicas de sua obra La Chair du
maître (2002), Un tableau naïf e Un mariage à la campagne. Nesta primeira, ele chega a citar um trecho do manifesto
surrealista de Breton (1924), enquanto na segunda ele cita diversos nomes de pintores e escritores do
Surrealismo latino.
105 Segundo o site da Academia Francesa de Letras (Académie Française), há uma lista de nomes de autores citados
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Impulsionados pelo elogio ao campo cultural, esses teóricos aparentam confiar que o
Surrealismo latino nunca chegou ao fim, em nosso território. Com efeito, eles relacionam o
sobrenatural presente nas literaturas de nosso continente como expressão de uma identidade
cultural. Ou seja, para Laplantine e Trindade (1997), o Realismo Maravilhoso e seus variantes
são sinônimos de Surrealismo, porque a cultura do povo americano seria proveniente de um
imaginário transcendental e também pretendido por Breton e seus amigos. Vale salientar que
muitos artistas surrealistas visitavam regulamente a África e as Américas, com o intuito de
buscar inspirações para as produções deles. A influência das ideias surrealistas se propaga na
literatura, até os dias atuais, por causa dessa estreita conexão entre a identidade cultural
americana e o empreendimento surrealista formulado, ainda, na Europa e propagado em
nosso continente.
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Sinto uma mão rugosa no meu pescoço. Tenho um sonho estranho e nesse sonho
me perseguem. Uma pequena multidão de pessoas furiosas quer me pegar. Corro.
Normalmente em situações parecidas, consigo sempre desaparecer no momento
crítico. Dessa vez, minhas pernas se recusam a mover-se. E a multidão se aproxima
perigosamente. Alguém acaba me pegando pelo pescoço. Uma mão rugosa
(LAFERRIÈRE, 2011, p. 196).
Notemos que o início e o fim dessa citação são marcados por um elemento “[...] Uma
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mão rugosa” (LAFERRIÈRE, 1997, p. 248). A impressão que temos é que Velhos Ossos está
nos relatando o sonho que teve naquela noite do capítulo anterior. Talvez um sonho aflito, no
qual pessoas o perseguiam e, do nada, ele se sente paralisado. Uma mão o salvaria. O diálogo e
a narração que ocorrem, em seguida, demonstram que há probabilidade desta mão pertencer a
Lucrèce, padrinho da tia de Velhos Ossos. Este personagem que guarda a barreira entre os
mundos, surge na narração para levar o escritor ao além.
A forma como Lucrèce aparece não é também muito clara. O narrador-personagem
apenas indica “O rosto enigmático de Lucrèce” (LAFERRIÈRE, 2011, p. 196) que surge do
nada, junto com a mão rugosa que destacamos anteriormente. A mão pertenceria mesmo ao
homem em questão? Velhos Ossos acordou ou ele continua sonhando? O desejo do narrador-
personagem é de se aprontar para sair, mas Lucrèce o impede e diz que para fazer uma viagem
como a que fariam ele deveria “[...] manter o cheiro do sono” (LAFERRIÈRE, 2011, p. 196).
O que seria essa condição? O leitor fica sem informações precisas do que aconteceu.
Isso pode ser explicado com a adoção do tempo psicológico, 106 na narração de ‘Velhos Ossos’.
Sem informações precisas de como e quando os eventos ocorrem, a Hesitação fantástica
mantém sua forma implícita. O narrador-personagem não oscila, não duvida daquilo que ele
está vivendo. Ele relata com naturalidade tudo o que acontece no além: seu encontro com os
deuses, a briga entre as famílias das divindades, e como é o mundo dos mortos. A hesitação
fantástica ‘se esconde’ na inacessibilidade da verdade, pois procuramos comprovar a
veracidade dos fatos junto ao narrador-personagem.
Embora os mistérios que se apresentam em nosso corpus recebam explicações
sobrenaturais, percebemos que a existência do Fantástico-Estranho é uma sugestão intrínseca
à percepção do leitor, que pode optar por ignorar as declarações de Velhos Ossos, voltando-se
à estranheza de sua narração. Assim, o leitor encontra motivos para acreditar que toda a
viagem do além não passa de uma invenção da mente do narrador-personagem. Nesse caso,
caberá ao leitor conferir a sobrenaturalidade ou a inexistência dela à viagem ao além. O que
acontece na narrativa? Por que o texto não garante a existência deste gênero ou a indicação do
Maravilhoso? A função interna, ou estética, do Fantástico-Estranho é desestabilizar o
sobrenatural com detalhes que racionalizam a condição dos eventos ‘miraculosos’. É
justamente o que esse gênero garante à obra. Ele se impõe como antagônico ao Maravilhoso e,
ao mesmo tempo, convive com este gênero, como um recurso ‘metaficcional’.
106Segundo Yves Reuter (2004), as indicações temporais na narrativa, quando são precisas e correspondentes às
nossas noções de tempo da realidade, podem garantir a concretização dos fatos na narrativa. Ela argumenta que
o tempo psicológico, por sua vez, garante a fragmentação temporal e se distancia da percepção real dos fatos na
narração.
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Considerações finais
Após nossa exposição, podemos afirmar que o gênero literário Realismo Maravilhoso
denota uma função cultural na obra. Sendo assim, o penúltimo capítulo de ‘País sem chapéu’
encontra-se como a expressão de uma identidade que recupera raízes e procura renovar os
laços familiares e culturais com o Haiti. O sonho que transporta ‘Velhos Ossos’ ao mundo dos
mortos nos impulsiona a observar a leitura do duplo significado que o referente linguístico
solicita: o sonho como um elemento estranho à cultura ocidental que desestabiliza o leitor, que
pode não compartilhar desta realidade religiosa, promove hesitações extremas, ao ponto de
não conseguirmos decidir entre uma coisa ou outra, pois ambas podem se estabelecer no
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texto. Ainda assim, tudo aquilo relatado pelo narrador-personagem pode ser parte de seu jogo
narrativo; facetas de uma obra meta-ficcional, onde o sonho é um evento sobrenatural de
comunicação com um universo a ser descoberto pelo leitor.
Esse é o resultado da soma de um imaginário haitiano ao norte-americano. Assim,
Laferrière nos propõe um texto transcultural 107
e, acima de tudo, Latino, onde “[...] mais do
que em outros lugares, as coisas parecem levadas ao extremo, tanto no esplêndido quanto no
horror. O luxo é mais ostentado. A riqueza e a pobreza são mais fortes” (LAPLANTINE &
TRINDADE, 1997, p.23).
O sonho de Velhos Ossos coloca-nos frente ao improvável e faz surgir um imaginário
miscigenado, tão próximo aos autores Alejo Carpentier e a Oswald de Andrade. Quando o
elemento denota a referência à ancestralidade religiosa do povo haitiano, Laferrière se
aproxima do artista cubano, mas quando o sonho oscila entre essa religiosidade e o sonho,
como atividade psíquica, o autor haitiano-quebequense mergulha na antropofagia oswaldiana.
Como deixar de notar a antropofagia de Dany Laferrière? Sua postura antropofágica é
evidente em nossas análises. Um autor que se expressa em língua francesa, mas que mora em
solo americano, com uma escrita mergulhada numa estética miscigenada e paradoxal, um
conhecedor das múltiplas realidades e que dá voz ao racional – herdado do europeu – mas
também às origens primitivas haitianas. Ele é um homem natural que assimila tudo em sua
volta, deglutina e rumina a poética latino-americana. Disso não temos dúvidas. Portanto, o
imaginário em Laferrière possui uma multiplicidade de leituras, configurações e funções.
Tanto no eixo crítico quanto no estético. As imagens dos mitos, por exemplo, se
aproximam cada vez mais de uma representação reconfigurada e transmutada. Basta que
analisemos as imagens dos deuses na narrativa, para que entendamos que não é apenas um
evento insólito ou somente elementos sobrenaturais fantasiosos, mas uma representação do
imaginário que busca uma soma complexa de conteúdos; resultado da imaginação secular
vivida pelos povos Latinos. Esse imaginário cultural aguçado, crítico e intenso, que busca se
pronunciar sobre as raízes e problematizar as identidades, nos permite compreender que o
sobrenatural faz parte da discursão sociocultural de uma gama de autores americanos, como
Alejo Carpentier e Oswald de Andrade, citados aqui.
107“Transferir, não é transportar, mas sobretudo metamorfosear, e o termo não se reduz a nenhum caso de
questão mal circunscrita e banal de trocas culturais” (ESPAGNE, 2013, p.1, Tradução nossa).
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Referências
ANDRADE, O. Manifesto antropófago. São Paulo: Penguin, 2017.
ALMEIDA, Maria Cândida Ferreira de Só a antropofagia nos une. In: Estudios y otras
prácticas intelectuales latino-americanas em cultura y poder. Caracas: Universidad Central de
Venezuela, 2002.
BRÉTON, A. Manifesto surrealista. In: CHIPP, Herschel B. Teorias da arte moderna. São
Paulo: Martins Fontes, 1978.
LAFERRIÈRE, D. País sem chapéu. Tradução de Heloisa Moreira. São Paulo: Editora 34,
2011.
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108Escritor. Doutor em Letras, UERN. Prof. Literatura, UFCG. Tradutor, revisor e ghostwriter. Coordena o
Círculo de Pesquisa em Literatura, Estudos Decoloniais, Identidade e Mestiçagem – CPLEDIM/
UFCG/CNPQ; Tem 25 livros publicados e vários Prêmios Literários nacionais.
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Desenvolvemos o texto sabendo das lacunas e limitações que o espaço para análise
suscitaria e temos ciência de que a visão que ora propomos é dissonante, em alguns
momentos, mas propositiva de complementação às visões já existentes. Nosso estudo
aproveitou a contribuição da teoria literária que transita entre a literatura e a sociedade
perfazendo um arcabouço teórico capaz de unir a literatura, a história, a filosofia, a sociologia
e outras possibilidades de interseção entre as ciências humanas e a arte. É evidente que a
interação destas ciências se deve ao fato de o tema Identidade provocar uma complexidade de
visões e possibilidades de conceitos.
Mesmo com a diversidade de textos sobre identidade, cultura e identidade nacional,
cremos que ‘A origem e o processo de uma literatura sem país’ terão espaço para os diálogos
convergentes e divergentes, visto se tratar de uma leitura com a contribuição de muitos e a
teimosia de um só.
Os estudos relativos à identidade e aos conceitos de nacionalismo e cultura nacional
estão no centro da pauta de discussões efetivadas atualmente pelo mundo. Guerras étnicas e
raciais se espalharam sob diversos condicionantes. A religião parece ser o pano de fundo de
muitos conflitos, embora saibamos que a questão religiosa num mundo de iguais se torna de
menor importância na construção da sua verdade. No fundo, o determinante dos conflitos que
envolvem religião é sempre o econômico que permeia a posse, inclusive do (D)deus
pretendido.
Embora discutir religiosidade seja um tema instigante, visto que abala estruturas
mentais de convicções forjadas em valores como a fé e não através do advento da razão e da
civilidade, não iremos trilhar esse caminho. Municiados pela educação e pelas manifestações
culturais, notadamente as artísticas, que lutam para estabelecer o domínio sobre o ego criador
e o ego trabalhado pela técnica, fazemos a leitura da relação arte/sociedade e como essa
relação estabelece um ponto de origem e de contato com a acepção de identidade móvel que é
imposta pelo sistema literário, político e social.
Se voltarmos nossa reflexão sobre o Brasil, com o duplo olhar que se aproxima de uma
vertente esteticofilosófica, vamos perceber que a história, a ordem, a sistematização dos
conceitos e das normas, incluindo aí a língua, o sistema político e jurídico, são sempre ditados
pelo elemento externo ao lugar. Ao índio, como elemento primitivo no processo evolutivo
racial, restaram-lhe os escombros, uma cerca que o comprime às suas reservas indígenas e a
uma cultura cada vez mais estrangulada pelo abandono oficial na manutenção de órgãos que
preservem as tradições indígenas. Quanto a nós, descendentes desse encontro marcado por
uns e acidental por outros, assimilamos o que o índio tinha de melhor. E nós, dominados por
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109 O livro de Naxara, Estrangeiro em sua própria terra – representações do brasileiro 1870/1920, traz uma discussão sobre
o papel do brasileiro na virada do século XIX para o século XX, principalmente a visão que se tinha dos pobres
e do imaginário sobre o papel que ocupava como desqualificado em sua própria terra. A referência completa
está no final.
110 Associado ao mal, Anhangá é o grande inimigo de Tupã, deus do trovão que criou o mundo.
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construção de uma ideia de identidade, de cultura e de nacionalismo que irá determinar nossas
escolhas na condução do nosso destino. A quem culpar pelos fracassos? A quem aplaudir
pelos acertos? Como tirar de nós a mancha encardida pela história do país que, ao longo
desses quinhentos e poucos anos, alterna colonialismo, revoltas controladas, subserviência
política, econômica e cultural e, mais recentemente, populismo de inspiração socialista e
capitalismo neoliberal num país sem educação? Talvez seja preciso ser mais incisivo e
determinar a única saída para o debate: a Educação em massa e em todos os níveis. Aí reside a
chave da liberdade de escolhas, mas enquanto não a temos massiva e estruturada, vamos
tentando dialogar com nossos pares a respeito das imposições teóricas de toda natureza,
principalmente àquelas que nos definem sem o nosso consentimento, sem a nossa participação
no debate e a nossa aprovação.
Elaboramos, o que se podia chamar de ‘Crítica da razão mestiça’, uma espécie de
‘identidade pelo avesso da ordem’, um contraponto ao establishment que definiu os conceitos
com os quais trabalhamos em literatura, geralmente aplicados por estrangeiros e aceitos
obedientemente pelos críticos brasileiros, como forma, muitas vezes, de aceitação desses, pelo
paradigma do ‘eu-centro’ e negação de sermos o(s) ‘outro(os)’, para quem o olho externo
sempre enxergou o primitivo, o bárbaro e a tábula rasa do conhecimento. Essa visão
estereotipada sobre o colonizado se constrói como uma determinação conceitual para aqueles
que se apropriam da visão do colonizador europeu, branco e cristão. O ‘eu-centro’ vai indicar
a base das escolhas do sistema político, social, cultural e artisticoliterário pelo qual guiamos
nossas estruturas mentais e representamos nosso pensamento. O ‘eu-centro’ é uma espécie de
roupa externa que vestimos para ir à festa com a nossa nudez conceitual.
Enquanto na Europa se acendiam as tochas do Renascimento, em nossas plagas os
religiosos usavam a retórica de convencimento num processo experimental de salvar uma raça
e servir a um Deus único. Em 250 anos de imposição religiosa, não educamos sequer a elite
que aqui enriquecia com o trabalho escravo. Enquanto a Europa acendia a lamparina do
Iluminismo, aqui devastávamos a floresta de pau-brasil e esgotávamos o solo com o cultivo da
cana de açúcar, pilhando ouro e pedras preciosas sob a égide da lei do chicote no lombo dos
escravos. Enfeitaram-se de ouro os castelos europeus e adornou-se de bijuteria uma elite local
de semianalfabetos.
Quando os países europeus definiram seu espaço nacional, consolidando suas etnias e
seu povo com as identidades marcadas pelas semelhanças, nós açoitávamos ainda mais os
escravos para aumentar o lucro. Esse processo civilizatório, como sugeriu Darcy Ribeiro,
requer o domínio de processos tecnológicos pelos quais as sociedades são transformadas,
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111 Quase de igual tamanho, os países da América do Sul que falam espanhol estão na mesma proporção de
tamanho do Brasil que fala português.
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2 A identidade fragmentada
O erro primordial das nossas elites, até agora, foi
aplicar ao Brasil, artificialmente, a lição europeia.
Estamos no momento da lição americana. Chegamos,
afinal, ao nosso momento.
Ronald de Carvalho
Todo povo tem a sua identidade caracterizada pelo seu modo de ser, de viver, de
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perceber o mundo sob a ótica de uma ideologia, de um sistema de valores. Nesse sentido,
forma-se a ideia de um povo pelas particularidades que a ele são inerentes, como raça, credo e
tradições populares que vão, aos poucos, definindo a sua cultura.
Na América Latina, a busca de uma identidade cultural passa, necessariamente, por
todo um processo de libertação histórica e pelo choque entre a cultura nativa e a cultura do
colonizador. Some-se a isso, todo um processo de miscigenação do índio com o branco, o
africano e outros povos, no decorrer da história. Esse choque/encontro no Brasil provocou,
ao longo da ocupação territorial do novo habitante, miscigenado ou filho de português, uma
identificação com a terra e a sua sobrevivência, em que predominava, na mistura dos povos, a
dominação portuguesa através de uma mentalidade colonialista.
Aos poucos, esses novos habitantes, não mais estrangeiros, adquiriram um sentimento
nativista que se aproximou da terra numa relação de aprendizagem e sobrevivência e se
transformou no esboço de nacionalismo durante a colonização do Brasil. O mesmo processo
ocorreu nos outros países americanos, embora se perceba uma ligação maior com o nativo do
que com o estrangeiro.
É ponto pacífico entre os historiadores da literatura que o nativismo brasileiro tinha
uma feição europeia. Havia um processo de acomodação à terra, mas não havia um veículo
para sua manifestação. O brasileiro não aprendeu tupi ou criou um dialeto alternativo à língua
portuguesa. Usou a língua do português como parâmetro para, simbolicamente, se afastar do
índio e se encostar no domínio do colonizador, adotando, sem resistência, a visão de posse e a
organização político-cultural do branco.
A força de dominação do colonizador sobre os povos indígenas e sobre o mestiço foi
tão grande que nenhum índio e pouquíssimos mestiços e negros tiveram lugar de destaque na
estrutura do Estado Colonial ou imperial brasileiro. Ao contrário disso, houve um discurso
conciliatório de que a mestiçagem era uma virtude da colonização portuguesa, como bem disse
Gilberto Freyre, tentando explicar a fusão das raças como o elemento agregador da unidade
portuguesa na América.
Diante disso, cabem duas perguntas: - por que os portugueses não praticaram a
mestiçagem como modo de conquista e exploração na África e na Ásia? Que herança cultural,
além da língua, prevalece nos países colonizados por Portugal além do Brasil?
Não seria, portanto, a mestiçagem no Brasil que criaria uma identidade nacional. A
mestiçagem foi usada como ponto de separação entre brancos e índios; brancos e negros. O
mestiço nada mais seria do que um elemento de transição entre o primitivo, o ‘bestial’, o ‘sem
alma’ e o civilizado.
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É evidente que não se pode impor um modelo de identidade com base apenas no
pensamento de uma elite intelectual e ilustrada. Sem os componentes ‘espirituais’ (afetos, a
presença do mito, rituais religiosos, cultura popular: folclore, oralidade...) de todos os que
participam do processo de miscigenação, não podemos determinar racionalmente quem
somos e o que fazer com isso. Não será qualquer tipo de ordenamento oficial que vai definir o
brasileiro, principalmente quando o povo não participa das decisões ou as propõe, como
práticas de suas vivências.
O que percebemos é que vamos, ao longo do tempo, costurando retalhos e formando
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um tecido de unidade fragmentada pela riqueza étnica das misturas e costurada pelo povo à
revelia dos governantes. Isso proporcionou uma fissura entre o poder e o povo. O governo da
matriz gerou o governo do Império, que mudou para o governo da República e que governa
com as elites até a atualidade. Os pobres eram compostos de uma mistura formada por:
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Marco Polo ao oriente, ao aportarem em terras que julgavam ser as Índias, os espanhois e os
portugueses denominaram de ‘índios’ os habitantes do novo mundo.
Ao se depararem com esse novo homem, de hábitos diferentes, os europeus se
defrontaram com um choque cultural e promoveram o maior processo de miscigenação da
história, assumindo para si o direito de domínio sobre as terras e os povos conquistados.
Podemos afirmar que todo contato de um civilizado com um nativo foi uma violação de uma
identidade.
Quando saíram ao mar em busca de terras para conquistar, os portugueses achavam
que podiam tornar-se donos de qualquer lugar que encontrassem, sem levar em
conta se eram povoados por outros homens, que, por direito, seriam os verdadeiros
proprietários (SCATAMACCHIA, 1994, p. 4).
Sem cairmos nos radicalismos da Leyenda Negra, que atribuía aos espanhóis as
maiores atrocidades na América, não se pode negar que o comportamento dos
conquistadores foi sempre violento: matou milhares de indígenas, saqueou suas
riquezas, explorou sua força de trabalho, desestruturou o mundo nativo mediante
uma conquista que não foi unicamente militar, mas também religiosa, econômica,
cultural e política (OSCAR, 2000, p.105).
112Filme dirigido por Ridley Scott, com o ator francês Gérard Depardieu no papel principal. O filme revela a saga
de Colombo em suas viagens ao Novo Mundo e uma visão de imposição de poder na base da violência e da
pilhagem como modo de conquista no processo de colonização da América.
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marca registrada na construção da cidade de São Luís. Com o tempo, restou à França a
pirataria e o lucro obtido em pequenos países subjugados nas Antilhas e na África. A Holanda
é que ainda tentou estabelecer em Pernambuco uma extensão do território holandês. As
pontes e os canais marcaram a arquitetura holandesa no Brasil. Fracassadas, portanto, as
tentativas dos concorrentes portugueses, Portugal se viu absoluto e passou a controlar
politicamente o seu domínio.
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A solução desse problema da construção de uma identidade foi difícil e tardia. Data
do século XX – mais precisamente, da década de 1920 e do período que se seguiu –,
quando começamos a nos libertar da massacrante influência da cultura europeia
mais etnocêntrica. O conceito de raça e determinismo geográfico se enfraquecem, a
noção de civilização se altera. Só então pudemos descobrir que nossa identidade e
nosso potencial civilizatório residiam justamente nesse descentramento étnico e
cultural, ao qual, aliás, se somava o descentramento regional, outra característica que
influenciou nossos rumos (BENJAMIN et al, 1998, p. 74).
Daí a nossa insistência em creditar às artes, em especial às que utilizam a língua como
veículo de expressão, a ruptura com o modelo europeu e a tessitura de uma expressão própria,
híbrida a princípio, enriquecida com “a contribuição milionária de todos os erros.” 115
A literatura é a melhor fonte para se descortinar o processo de formação da nossa
identidade nacional. É ela que reúne a expressão da língua, da arte e das particularidades do
povo, tornando-se um elã entre a observação da natureza, o ordenamento das ideias e a
conceituação dos sentimentos elaborados nesse processo criativo. A partir daí, temos uma
representação do que somos, pois aí residem a observação, o sentir e a expressão elaborada
pela linguagem artística, que define uma ideia de povo, portanto, uma identidade. A
construção de um sistema que abrigue as várias manifestações da arte dará a ideia final de
pertencimento. Mas, para chegar a tal complexidade, é preciso reconhecer quais ideias geraram
113 Há versões do Brasil de origem senhorial, burguesa, proletária, classe média, camponesa, sem-terra, paulista,
mineira, nordestina, gaúcha, negra, indígena, feminina, gay, imigrante, migrante, caipira, urbana, suburbana,
litorânea, sertaneja, oficial, marginal, militar, civil etc. A maioria delas ainda não foi formulada, pois o povo
brasileiro foi silenciado e não efetivamente representado na vida intelectual e política, ao longo dos seus cinco
séculos de vida. In: REIS, José Carlos. Vivas representações do Brasil. In: As identidades do Brasil 1: de Varnhagen
a FHC. 9 ed. ampliada. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
114 REIS, José Carlos. Vivas representações do Brasil. In: As identidades do Brasil 1: de Varnhagen a FHC. op. Cit.,
XVII.
115 Oswald de Andrade é outro defensor de uma cultura nacional forjada a partir do processo de aglutinação,
batizado por ele de Antropofagia. A frase citada do Manifesto da Poesia Pau-Brasil integra uma argumentação
de cunho filosófico-estético responsável pela consolidação de todo o pensamento modernizante no Brasil. O
ponto de partida desta modernização foi a Semana de Arte Moderna, que se inspirou exatamente no processo
de hibridização cultural e atualização do pensamento, tendo como base as Vanguardas Europeias, e na
antropofagia estética. A esse respeito, ver ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. São Paulo: Editora
Globo/ Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1990, (Coleção Obras completas de Oswald de
Andrade). A citação acima consta na página 42.
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116 ‘A Carta de Pero Vaz de Caminha’ está inserida em um conjunto de textos: Tratados, Histórias, Diálogos,
Sermões, que compõem a Literatura de Informações dos séculos XV e XVI. Edição consultada: CAMINHA,
Pero Vaz de. Carta a el Rey Dom Manuel. Versão moderna de Rubem Braga, Ilustrações de Carybé. Rio de
Janeiro: Record, 1981.
117 Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Publicado em 1986
pela editora Brasiliense, o livro de Chalhoub foi resultado da sua pesquisa de mestrado em História na
Universidade Federal Fluminense, em 1984.
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E o racismo passou a ser tão ou mais cruel do que a escravidão. Por não poder mais
açoitar, condenar à fome e à morte pela simples vontade do dono, o preconceito contra o
negro e a sua descendência mestiça determinou o nosso comportamento social. passamos a
refletir sobre a ideologia do senhor, do dono, do estrangeiro e de tudo o que se associe à
posse, embora camuflada pela relação de trabalho, progresso e civilização.
Havia uma clara predisposição por parte dos membros das classes dominantes em
pensar o negro como um mau trabalhador, e em reconhecer no imigrante um
agente capaz de acelerar a transição para a ordem capitalista. Em termos práticos,
isto significava que os indivíduos que tinham poder de gerar empregos tendiam a
exercer práticas discriminatórias contra os brasileiros de cor quando da contratação
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Governo do Estado de Sergipe, 1977.
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A escrita das autoras Chimamanda Adichie, Julia Alvarez e Conceição Evaristo aborda
histórias sobre suas vivências como meio de sobrevivência. O fazer literário de Adichie,
Alvarez e Evaristo expõe a condição da mulher, especialmente as mulheres de cor, em um
contexto social hegemônico fortemente marcado pelo manejo entre o patriarcalismo, as
questões socioeconômicas e etnicorraciais e as mulheres na contemporaneidade. Nesse
sentido, este trabalho, de caráter comparativo, visa discutir o papel das escritoras
contemporâneas Adichie, Alvarez e Evaristo, uma vez que elas passam por uma série de
transformações devido às suas trajetórias de descolamentos, dentre elas transformações
culturais, econômicas, sociais e identitárias.
A partir de suas movimentações geográficas, as escritoras Adichie, Alvarez e Evaristo
adquirem novas formas de (re)conhecimento(s) da condição diaspórica de suas trajetórias.
Avtar Brah afirma que a palavra diáspora “[...] embodies a notion of a centre, a locus, a ‘home’, from
where the dispersion occurs. It evokes images of multiple journeys” 121
(BRAH, 1996, p. 181, grifo no
original). Retratar as jornadas múltiplas experimentadas em alguns de seus romances parece ter
lugar, a fim de determinar a configuração da subjetividade feminina de suas personagens.
De acordo com Sandra Almeida (2011, p. 302), apesar de as mulheres em trânsito não
se estabelecerem coesamente em um grupo unificado, estes deslocamentos da
118 Doutor em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL) da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Fulbright Alumnus (Duke University/USA). Professor
Efetivo do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio Grande do Norte (IFRN). Artigo escrito a partir de um dos capítulos de minha tese de Doutorado
desenvolvida no PPgEL/UFRN. [email protected]. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8933-0927.
119 Histórias importam. Muitas histórias são importantes. Histórias têm sido usadas para desapropriar e difamar,
mas histórias também podem ser usadas para capacitar e humanizar. As histórias podem quebrar a dignidade de
um povo, mas as histórias também podem reparar essa dignidade quebrada. [...] [Quando rejeitamos a história
única, quando percebemos que nunca há uma única história sobre qualquer lugar, recuperamos uma espécie de
paraíso (ADICHIE, 2009, informação verbal, tradução nossa).
120 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=D9Ihs241zeg>. Acesso em: 21 mar. 2018.
121 [...] incorpora uma noção de um centro, um lócus, uma ‘casa’ de onde a dispersão ocorre. Evoca imagens de
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122 [...] Eu não acredito em uma literatura prescritiva. Eu não acho que os escritores devam escrever isso ou
escrever isso. Eles devem apenas escrever. Eu falo por mim mesma e estou interessada em apresentar as coisas
como elas são e em desafiar nossa hipocrisia coletiva. (ADICHIE, 2005 apud ANYA, 2005, não paginado,
tradução nossa).
123 [...] a Nigéria, claro, bem como nigerianos na diáspora. As sutilezas da raça, especialmente nos Estados
Unidos. O lugar, papel e escolhas das mulheres nigerianas. (ADICHIE, 2005 apud ANYA, 2005, não paginado,
tradução nossa).
124 Disponível em: https://imagejournal.org/article/conversation-chimamanda-ngozi-adichie/. Acesso em: 11
mai. 2018.
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definir como escritora, visto que, para ela, não se deve atrelar outros sentidos à sua própria
definição além de ser contadora de histórias. Contudo, depois de receber o prêmio “Orange
Price for fiction”, em 2007, mesmo com o incômodo inicial por ter sido considerada a primeira
pessoa africana a ser agraciada pela premiação, pois Adichie acreditava que, talvez, outros
africanos tivessem sido nomeados anteriormente, Adichie nota que rótulos passam a ter outras
perspectivas dependendo de seu contexto:
[...] I got so many emails from Africans, not just from Africans but Caribbean people as well, for
whom my win became personal. A Jamaican woman who lives in London wrote to tell me how she
had saved the clippings because she wanted to show them to her daughter when her daughter was
older. In that case, having people see me as a black African woman was a moving moment for me,
and a moment of pride. […] Sometimes someone will say feminist writer, and you can hear a sneer
in their voice. At other times someone will use the same words and you know they’re describing
your awareness of gender and justice, and they don’t think it’s necessarily a bad thing. It’s the same
when someone says African writer. Sometimes you know they consider it slightly less worthy sub-
genre of real literature, and then it becomes offensive. But at other times you realize they’re just
describing what you do. 125 (ADICHIE, 201- apud VANZANTEN, 201-, não paginado).
Ademais, sobre a maneira em que o gênero se relaciona com as questões de identidade,
Adichie afirma que sua escrita prioriza as experiências de mulheres, pois seu foco não se
estabelece em retratar apenas suas vivências, mas também as de suas irmãs, primas, amigas,
mulheres de modo geral. Para ela, o debate em torno das questões de identidades se centra,
primordialmente, em dependência ao local onde o sujeito se encontra:
[...] I’d read Roots and I was very moved by Kunta Kinte, but I never thought of myself as black. I
remember in Broklyn, after I had been in the U.S. maybe a month, an African-American man
referred to me as sister, and I thought, How offensive! I don’t want it! I had watched TV and I
knew that to be black was not a good thing, so I thought, no, don’t include me in your group. I am
not part of you. It took reading and asking questions and understanding African-American
history, which I didn’t have much of a sense of, to accept that identity, which I am completely happy
now 126 (ADICHIE, 201- apud VANZANTEN, 201-, não paginado).
Para Chimamanda Adichie, o fato de ser uma escritora diaspórica faz com que ela,
assim como outros sujeitos em trânsito, possuam identidades deslocáveis, pois, sua
125 [...] Eu recebi muitos e-mails de africanos, não apenas de africanos, mas também de caribenhos, para quem
minha vitória se tornou pessoal. Uma mulher jamaicana que mora em Londres escreveu para me contar que ela
guardou os recortes de jornais porque queria mostrá-los à filha quando ela ficasse mais velha. Nesse caso, ter
pessoas me vendo como uma mulher negra africana foi um momento comovente para mim e um momento de
orgulho. […] Às vezes alguém vai lhe chamar de escritora feminista e você escutará a ironia em sua voz. Em
outras situações, alguém usará as mesmas palavras e você sabe que eles estão descrevendo sua consciência de
gênero e justiça, e eles não acham que isso é necessariamente uma coisa ruim. É o mesmo quando alguém diz
escritor africano. Às vezes você sabe que eles o consideram um sub-gênero um pouco menos digno da
literatura real, e então se torna ofensivo. Mas outras vezes você percebe que eles estão apenas descrevendo o
que você faz. (ADICHIE, 201- apud VANZANTEN, 201-, não paginado, tradução nossa).
126 [...] eu tinha lido Roots e fiquei muito comovida com Kunta Kinte, mas nunca pensei em mim como negra.
Lembro-me em Broklyn, depois de estar nos EUA talvez por um mês, um homem afro-estadunidense se
referiu a mim como irmã e pensei: Que rude! Eu não quero isso! Eu tinha assistido à TV e sabia que ser negro
não era uma coisa boa, então eu pensei, não, não me inclua no seu grupo. Eu não faço parte de vocês. Foi
preciso ler e questionar e entender a história afro-estadunidense, da qual eu não tinha muita noção, para aceitar
essa identidade, e da qual eu estou completamente feliz em fazer parte agora. (ADICHIE, 201- apud
VANZANTEN, 201-, não paginado, tradução nossa).
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127 O povo Igbo é um dos maiores grupos étnicos da África, oriundo da região sudeste e centro-sul da Nigéria.
128 [...] A raça simplesmente não se faz lembrada por mim na Nigéria. Você se torna outra coisa, embora ainda
haja rótulos. Lá eu sou uma mulher Igbo, e há o estereótipo do Igbo como um povo pão-duro, então se eu
estou com um grupo de amigos de diferentes grupos étnicos em Lagos e eu digo algo como, oh, isso é muito
caro, eles dirão, oh, sua igbo. E então na minha cidade natal, eu não tenho isso porque a maioria das pessoas ao
meu redor é Igbo. Assim, a identidade muda. Estou particularmente interessada em como isso acontece quando
você sai de casa. Nos EUA você toma consciência da raça, mas a dinâmica de gênero também muda. Conheço
várias nigerianas que descobriram que podiam fazer coisas nos EUA que, na Nigéria, não achavam que
pudessem. Com sua família e amigos ao seu redor, você tem o peso da tradição, de como as coisas são feitas.
Mas então você se muda para um novo lugar e pensa: por que diabos não? Isso afeta o gênero […].
(ADICHIE, 201- apud VANZANTEN, 201-, não paginado, tradução nossa).
129 [...] é com uma ambivalência que muitos nigerianos a consideram […]; no ano passado, sua oficina terminou
com uma sessão de perguntas e respostas, durante a qual um jovem se levantou para fazer uma pergunta à
famosa romancista. “Eu costumava amar você”, ela se lembra dele dizendo. “Eu li todos os seus livros. Mas
desde que você começou toda essa coisa de feminismo e desde que você começou a falar sobre essa coisa de
gay, eu não tenho mais certeza em relação a você. Como você pretende manter o amor de pessoas como eu?
(BROCKES, 2017, não paginado, tradução nossa).
130 [...] [e]ssa ideia de feminismo como um grupo para o qual apenas poucas pessoas selecionadas entram: é por
isso que muitas mulheres, particularmente mulheres de cor, se sentem afastadas do feminismo acadêmico
ocidental dominante. Sabe por que, não queremos que seja abarcante? Para mim, o feminismo é um
movimento para o qual o objetivo final é torná-lo sem necessidade. Eu acho que esse feminismo acadêmico é
interessante, pois pode dar uma linguagem às coisas, mas eu não estou muito interessada no debate sobre
terminologias. (ADICHIE, 2017 apud BROCKES, 2017, não paginado, tradução nossa).
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(ADICHIE, 2017 apud BROCKES, 2017, não paginado); porém, presume que se necessita
exercer “[…] feminism often enough that it starts to lose all the stigma and becomes this inclusive, diverse
thing 132 (ADICHIE, 2017 apud BROCKES, 2017, não paginado).
Já a autora Julia Alvarez, em seu site oficial, deixa claras as razões de ter se tornado uma
escritora:
[...] When I'm asked what made me into a writer, I point to the watershed experience of coming to
this country. Not understanding the language, I had to pay close attention to each word -- great
training for a writer. I also discovered the welcoming world of the imagination and books. There, I
sunk my new roots. […]. As a kid, I loved stories, hearing them, telling them. Since ours was an
oral culture, stories were not written down. It took coming to this country for reading and writing to
become allied in my mind with storytelling 133. 134 (ALVAREZ, 2018, não paginado).
131 [...] as mulheres negras em particular resistem a essa palavra [feminismo] porque a história do feminismo tem
sido muito branca e assumiu que mulheres significavam mulheres brancas. (ADICHIE, 2017 apud BROCKES,
2017, não paginado, tradução nossa).
132 [...] o feminismo com freqüência suficiente para começar a perder todo o estigma e se tornar algo inclusivo e
diversificado. (ADICHIE, 2017 apud BROCKES, 2017, não paginado, tradução nossa).
133 [...] [q]uando me perguntam o que me transformou em escritora, aponto para a experiência divisora de águas
de ter vindo para este país. Por não entender a língua, tive que prestar muita atenção em cada palavra – um
ótimo treinamento para uma escritora. Eu também descobri o mundo acolhedor da imaginação e dos livros. Lá,
eu finquei minhas novas raízes. […]. Quando criança, adorava histórias, ouvi-las e contá-as. Como a nossa
cultura era oral, as histórias não eram escritas. Precisei vir para este país para que a leitura e a escrita se
tornassem aliados em minha mente junto com a contação de histórias. (ALVAREZ, 201-, não paginado,
tradução nossa).
134 Disponível em: <www.juliaalvarez.com/>. Acesso em: 15 mai. 2018.
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atividades políticas de seu pai contra a ditadura militar que assolava a ilha caribenha.
Compreender a língua inglesa aos dez anos se tornou uma necessidade de sobrevivência para a
escritora e, assim, a intelecção do funcionamento da linguagem e dos discursos em inglês,
naquela época, ainda sua língua estrangeira, impulsionou seus primeiros escritos. Segundo ela,
[...] my interest in language developed because of being suddenly transposed to this language, to this
place, and suddenly having to learn a language intentionally. It’s something that happens to all
writers even in their own language, but I was ten years old and listening to what people were saying,
wondering why they used one word instead of another, why they phrased something this way or that
way. And I also realized it was power. We–my family–just didn’t have the language. I saw how
important having a skill in language was. For instance, my father had a thick accent and couldn’t
be understood, my mother had an accent, too: it meant we were treated in a certain way 135. [...] I
saw that words were power, and that made me listen carefully to language and learn it in a very
deliberate way (ALVAREZ, 1997 apud ROSARIO-SIEVERT, 1997, p. 32).
A vivência diaspórica de Julia Alvarez afeta sua escrita, pois o agenciamento de sua
porção estadunidense e sua porção caribenha, em geral, colidem e criam conflitos que
transparecem em seus textos, mas, por ser o resultado desta mistura de mundos, Alvarez é
capaz de enxergar certas perspectivas culturais nem sempre compreendidas pela cultura
hegemônica. Sua escrita, então, resulta dessas negociações geográficas, linguísticas e culturais.
Logo, a escritora elucida que: “[...] I think a lot of the way I see the world has to do with [myself] being a
combination, feeling slightly marginal in each place. So the things I observe–my consciousness of class or
racecertainly come out of the fact that I’m the person that I am” 136
(ALVAREZ, 1997 apud ROSARIO-
SIEVERT, 1997, p. 36).
Ter se estabelecido como escritora, mesmo pertencendo a mundos tão conflitantes,
propicia a Alvarez um senso de sobrevivência. O reconhecimento, tanto dos leitores quanto
da crítica literária estadunidense, por meio dos prêmios recebidos por suas publicações, parece
atenuar seu esforço de uma possível adequação entre culturas. Tais esforços remetem a Julia
Alvarez os seguintes momentos:
135 [...] meu interesse pela linguagem se desenvolveu por ter sido repentinamente transposta para essa língua, para
esse lugar e, de repente, ter que aprender uma língua intencionalmente. É algo que acontece com todos os
escritores, mesmo em seu próprio idioma, mas eu tinha dez anos de idade, ouvia o que as pessoas estavam
dizendo, e ficava imaginando porque eles usavam uma palavra em vez de outra; porque eles expressavam algo
desse ou daquele jeito. E também percebi que era [uma questão de] poder. Nós, minha família, simplesmente
não sabíamos o idioma. Eu vi o quão importante era ser hábil na língua. Por exemplo, meu pai tinha um
sotaque forte e não era compreendido, minha mãe também tinha sotaque: isso significava que éramos tratados
de maneira diferenciada. [...] Eu percebi que as palavras tinham poder, e isso fez com que eu ouvisse a língua
atentamente para aprendê-la de forma cuidadosa. (ALVAREZ, 1997 apud ROSARIO-SIEVERT, 1997, p. 32,
tradução nossa).
136 [...] eu creio que muito do jeito que eu enxergo o mundo tem a ver por [eu] ser uma combinação, me sentindo
um pouco marginal em cada lugar. Então as coisas que eu observo–minha consciência de classe ou raça–
certamente ocorre porque eu sou a pessoa que sou. (ALVAREZ, 1997 apud ROSARIO-SIEVERT, 1997, p. 36,
tradução nossa).
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VOLUME II - AFROLIC – UFRN - 2022
[...] when the kids in the playground would make fun of something I said, I swore I would learn
their language so well, I would whup them with it. I remember teaching in a school, and a parent
called up to ask why a Spanish woman was teaching the kids English. That stoked the fire in me.
So I had a great sense of feeling affirmed 137 (ALVAREZ, 1997 apud ROSARIO-
SIEVERT, 1997, p. 37, grifo no original).
Com efeito, a escrita de Julia Alvarez se baseia em suas experiências como uma mulher
diaspórica e permeia o limiar entre o biográfico e o ficcional. Contudo, ela afirma que, apesar
de seu primeiro romance How the García Girls Lost their Accents (1991), possuir traços marcantes
de sua vivência de imigrante nos Estados Unidos, há também muita ficcionalização. Para
Alvarez, é a combinação, o exagero, a adição e a recriação dos elementos biográficos,
geralmente presentes, segundo a autora, na escrita de primeiros romances, que tornam uma
obra mais original do que autobiográfica (ALVAREZ, 1997 apud ROSARIO-SIEVERT, 1997,
p. 35). Acerca do caráter autobiográfico de algumas obras literárias, Alvarez (2000), em seu
ensaio intitulado “A Note on the Loosely Autobiographical,” observa que:
[...] al novels are loosely autobiographical, but some novels are more loosely autobiographical than
others. The fiction in some novels is more transparent than in others. We can see through it to the
life of the writer. […] [I]f we didn’t have this cult of the personality of the writer, we wouldn’t have
all this information about writers. Novels would be just novels, works that operate on their own art
– which they must do over time, anyhow, if they are to last. 138 (ALVAREZ, 2000, p. 165).
Aliás, ao construir seus textos vagamente autobiográficos, Alvarez (2000) lida com
territórios deslizantes e fantasiosos, repletos de mentiras, vidas e ficção. O desapontamento da
família da escritora em relação ao seu primeiro romance, How the García Girls Lost their Accents
(1991), trouxe o julgamento de seus familiares, uma vez que eles não a consideraram uma
escritora verdadeira por não ter produzido um livro em que os personagens não se
assemelhassem tanto com a sua própria história. Entretanto, segundo Julia Alvarez (2000), o
exercício de rememoração de uma vivência de sua família evidencia que a memória é
reconstruída por pequenos fragmentos, sem uma cronologia exata e nem uma constância. É
por meio deste mecanismo contraditório que os escritores diaspóricos constroem a sua
verdade, verdade possibilitada pelo uso de suas reminiscências.
Pelo fato de usarem suas memórias para restabelecer o que já foram e o que são, tais
autores se valem de sua verdade imaginativa (RUSHDIE, 1990, p. 10). escritores como Julia
137 [...] Q]uando as crianças no parquinho tiravam sarro de alguma coisa que eu dizia, eu jurava que aprenderia
muito bem a língua deles, e os socaria com ela. Lembro-me de ensinar em uma escola, e um pai ligou para
perguntar porque uma mulher espanhola ensinava inglês para as crianças. Isso alimentou o fogo em mim.
Portanto, eu possuia uma grande necessidade de me afirmar. (ALVAREZ, 1997 apud ROSARIO-SIEVERT,
1997, p. 37, grifo no original, tradução nossa).
138 [...] Todos os romances são vagamente autobiográficos, mas alguns romances são mais do que outros. A
ficção em alguns romances é mais transparente que em outros. Podemos ver a vida do escritor através dela. [...]
Se não tivéssemos esse culto à personalidade do escritor, não teríamos todas essas informações sobre escritores.
Romances seriam apenas romances, obras que operam em sua própria arte – algo que eles devem fazer com o
tempo, de qualquer forma, se quiserem durar (ALVAREZ, 2000, p. 165, tradução nossa).
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Alvarez são, portanto, conscientes de que não obterão uma verdade precisa de seu passado.
Na realidade, suas visões fragmentadas e memória falível permitirão que eles somente se
lembrem de fragmentos do que eles já foram, sem alcançar uma verdade universal.
A escritora Conceição Evaristo, por outro lado, obteve seus primeiros contatos com
histórias e narrativas por meio da contações de histórias marcadas pela ancestralidade, como
também pelas conversas escutadas de sua mãe, tias, e vizinhas, experiências que a escritora
define como ‘oralitura’, pois, segundo ela, “[...] cresci possuída pela oralidade, pela palavra. [...]
Tudo era narrado, tudo era motivo de prosa-poesia” (EVARISTO, 2005, não paginado). Do
mesmo modo, como ela pontua, “[...] não nasci rodeada de livros, mas rodeada de palavras.
Havia toda uma herança das culturas africanas de contação de histórias (EVARISTO, 2016
apud CAZES, 2016, não paginado). Assim sendo,
[...] creio que a gênese de minha escrita está no acúmulo de tudo que ouvi desde a
infância. O acúmulo das palavras, das histórias que habitavam em nossa casa e
adjacências. Dos fatos contados a meia-voz, dos relatos da noite, segredos, histórias
que as crianças não podiam ouvir. Eu fechava os olhos fingindo dormir e acordava
todos os meus sentidos. O meu corpo por inteiro recebia palavras, sons,
murmúrios, vozes entrecortadas de gozo ou dor dependendo do enredo das
histórias. De olhos cerrados eu construía as faces de minhas personagens reais e
falantes. Era um jogo de escrever no escuro. No corpo da noite. (EVARISTO,
2005, não paginado).
nos clubes de leitura da escola. Contudo, sua condição econômica de miséria não possibilitou
um aprendizado contínuo na esfera escolar, já que necessitou interromper seus estudos por
diversos momentos a fim de ajudar sua mãe no sustento de sua casa. Assim, “[...] trabalhou
como babá, faxineira, vendedora de revistas; [...] seguia o caminho das mulheres da família que
tinham vindo antes dela [...]” (CAZES, 2016, não paginado), mas não abandonou os estudos e
se formou no curso normal aos 25 anos de idade. Evaristo admite que aprender a ler e a
escrever a conscientizou sobre as restrições impostas a ela devido a sua condição social,
econômica, cultural, étnica e de gênero:
[...] ler foi também um exercício prazeroso, vital, um meio de suportar o mundo,
principalmente adolescência, quando percebi melhor os limites que me eram
impostos. Eu não me sentia simplesmente uma mocinha negra e pobre, mas alguém
que se percebia lesada em seus direitos fundamentais, assim como todos os meus
também, que há anos vinham acumulando somente trabalho e trabalho.
(EVARISTO, 2003, não paginado).
De fato, a escrita evaristana está marcada por temas ainda marginalizados pela cultura
hegemônica, assim como pelo cânone literário, ao abordar temas como a condição da mulher
negra, visto que, “[...] essa escrita minha parte muito daquilo que eu conheço das mulheres
negras, daquilo que eu sou” (EVARISTO, 2018 apud CANOFRE, 2018, não paginado). Tal
opção se apresenta de forma consciente, visto que, segundo Evaristo, “[...] escrever dessa
forma [...] me marca como cidadã e como escritora também” (EVARISTO, 2016 apud
CAZES, 2016, não paginado).
Além do retrato da condição da mulher negra brasileira, a escrita de Conceição
Evaristo também expressa a linguagem diária de grupos subalternizados, posicionados quase
sempre à margem do discurso hegemônico. Para ela, “[...] o falar brasileiro é tão misturado
com o falar africano, com o indígena. “[...] Temos uma literatura muito diversa, que tem que
ser reconhecida na sua potencializarem, no seu lugar de nascença.
O lugar de minha literatura é esse outro lugar” (EVARISTO, 2018 apud CANOFRE,
2018, não paginado). Seu fazer literário composto por outras compreensões, a partir da óptica
dos esquecidos e silenciados pela cultura hegemônica, pode concretizar a vontade de inserção
desses grupos para além da literatura oral:
[...] a partir do que eu vejo da minha família, a literatura é também um objeto de
desejo das classes populares. Numa sociedade como a nossa, que é uma sociedade
escrita, as pessoas têm consciência que aquele sujeito que sabe ler, que sabe
escrever, tem poder. Um sujeito analfabeto tem consciência do processo de
exclusão que sofre. Uma literatura que possa, de certa forma, traduzir, que traz no
texto literário essa dinâmica da linguagem popular (EVARISTO, 2018 apud
CANOFRE, 2018, não paginado).
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Com isso, o combate à coisificação do povo negro e, em especial, das mulheres negras,
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é promovido por meio da escrita evaristana, compondo as personagens negras de outra forma,
oposto à posição de objeto designadas a elas; com base em suas experiências e vivências
enquanto mulheres negras na sociedade brasileira. O escrever dessa vivência, ou como
Evaristo define, essa escrevivência a partir de uma perspectiva genuína acerca da condição dos
afrodescendentes brasileiros e não, sua construção estereotipada do discurso hegemônico,
obliterando-os, quase sempre, de sua representatividade na configuração do povo brasileiro.
O lugar da pobreza, há séculos. é historicamente reservado aos negros e negras do
Brasil, afinal, marca o lugar de escrita de Evaristo, uma vez que a propicia um olhar indagador
sobre o seu passado e uma conscientização para buscar alternativas para o presente a fim de
vislumbrar mudanças para o futuro. Conceição Evaristo, assim, faz de sua escrita uma
ferramenta de negociação e enfrentamento face à subalternização e marginalidade de sujeitos
negros e, de maneira primordial, mulheres negras entre os territórios de dominação do
discurso e da cultura hegemônica.
Por fim, o diálogo promovido entre as autoras Chimamanda Adichie, Julia Alvarez e
Conceição Evaristo objetivou investigar como tais escritoras lidam com sua condição
diaspórica e refletem, em seus escritos, conceitos a ela entrelaçados, tais como questões de
gênero, de identificação, assim como questões etnicorraciais, por meio de suas reflexões em
relação, tanto aos seus papeis de escritoras em deslocamentos quanto às configurações de tais
movimentos em seu fazer literário. Dessa forma, a escrita de narrativas ficcionais, ou não, de
Adichie, Alvarez e Evaristo oportuniza uma nova perspectiva de poder, ao abordar
sobrevivências de mulheres posicionadas em cenários fortemente marcados pelo machismo,
pela discriminação, assim como pelo racismo estrutural. Assim, por meio de suas histórias, as
autoras buscam quebrar as barreiras do silenciamento; superando a tradição do silêncio
imposta há anos às mulheres, em especial, às mulheres de cor.
Referências
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1 vídeo (19 min). Publicado pelo canal TED. Disponível em:
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4, p. 165-166, 2000.
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