Revista Psicologia, Saúde & Doenças Vol. 24, Nº. 3, 1019-1030, 2023 Sociedade Portuguesa de Psicologia Da Saúde ISSN 2182-8407 WWW - Sp-Ps - PT
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Programa de Pós-graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
2
Curso de Terapia Ocupacional, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil
3
Departamento de Terapia Ocupacional, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil
Resumo: Pais de crianças pequenas, especialmente com deficiências, estiveram expostos a novos
estressores resultantes da pandemia da COVID-19, com impactos para sua saúde mental, sua
relação pais-filhos e seu senso de competência parental, que se relaciona à autoestima e bem-estar
nas práticas educativas parentais. O objetivo deste estudo foi investigar o senso de competência
parental de pais de crianças com e sem deficiência auditiva durante o período pandêmico. Uma
amostra não probabilística com 74 pais e mães organizados em dois grupos (37 crianças com e 37
sem deficiência) responderam à Escala de Senso de Competência Parental via Google form.
Análises descritivas e inferenciais foram usadas para descrever e analisar o senso de competência
parental comparando os grupos. Observaram-se diferenças significativas entre os grupos, quando
pais de crianças com deficiência mostraram menores escores de senso de competência parental.
Evidências científicas sobre os desfechos negativos da pandemia sobre o senso de competência
parental de pais de crianças com deficiência auditiva pode dar suporte ao atendimento a essa
população.
Palavras-Chave: Parentalidade, Deficiência auditiva, COVID-19
Abstract: Parents of young children, especially with disabilities, were exposed to new stressors
resulting from the COVID-19 pandemic, with impacts on their mental health, their parent-child
relationship and their sense of parenting competence, which relates to self-esteem and well-being in
parental educational practices. The aim of this study was to investigate the parenting sense of
competence of parents of children with and without hearing impairment during the pandemic
period. A non-probabilistic sample with 74 parents organized into two groups (37 children with and
37 without disability) answered the Parenting Sense of Competence Scale via Google form.
Descriptive and inferential analyzes were used to describe and analyze the sense of parental
competence by comparing groups. Significant differences were observed between the groups, when
parents of children with disabilities showed lower scores on the sense of parental competence.
Scientific evidence on the negative outcomes of the pandemic on the sense of parental competence
of parents of children with hearing impairment can support the care of this population.
Keywords: Parenting, Hearing impairment, COVID-19
†
Autor de Correspondência: Karolina Albuquerque ([email protected])
Submetido: 17 de fevereiro de 2023
Aceite: 05 de dezembro de 2023
Carolline Lopes, Ana Cunha, Julia Campos, & Karolina Albuquerque
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Competência parental durante Pandemia da COVID-19
se sentem mais eficazes e satisfeitos no seu exercício parental apresentam práticas parentais mais
efetivas. Sentimentos de autoeficácia e satisfação dos pais compõem o construto senso de
competência parental, que pode ser analisado por medidas de avaliação psicológica, como a Escala
de Sentido de Competência Parental, originalmente Parental Sense of Competence Scale (PSOC),
construída por Gibaud-Wallston e Wandersman (1978) e validada no Brasil por Moura et al. (2020).
A Escala PSOC fornece indicadores para o estudo da parentalidade baseada no senso de
competência parental, avaliado em duas dimensões: eficácia e satisfação. Enquanto a satisfação é
uma dimensão de caráter afetiva, que reflete ora a frustração e ansiedade dos pais, a motivação para
o papel parental; a eficácia é caracterizada como uma dimensão instrumental, traduzindo o grau em
que os pais se sentem capazes de resolver problemas e estão familiarizados com a parentalidade
(Johnston & Mash, 1989). Essa escala tem sido usada para avaliar pais de crianças sem deficiências
(Freitas, 2019; Tomás, 2019) em diferentes países como Portugal (Nunes et al., 2016), Austrália
(Santiago et al., 2022), China (Gao et al., 2014) e Canadá (Bedford, 2020), com raros estudos com
populações infantis com deficiências (Afsaneh et al., 2019; Martins, 2013; Osmančević Katkić et
al., 2017). Destaca-se que nenhum estudo usando a PSOC com pais de crianças com DA foi
encontrado, o que confere relevância científica para este trabalho.
Frente ao diagnóstico de uma DA, como a surdez, muitas decisões precisam ser tomadas e
esforços são mobilizados com a finalidade de garantir o melhor desenvolvimento infantil (Narigão,
2019). Com isso, identificar o senso de competência parental de pais de crianças com DA auxilia
numa melhor compreensão sobre a construção da parentalidade e das práticas parentais no contexto
dessa deficiência, em especial no momento em que vivemos pós pandemia da COVID-19. Dessa
forma, o presente estudo tem como objetivo investigar o senso de competência parental de pais de
crianças pequenas durante a pandemia de COVID-19, comparando-se pais de crianças com e sem
deficiência auditiva.
MÉTODO
Participantes
Participaram do estudo 74 pais e seus filhos, sendo 37 deles com deficiência auditiva (DA),
incluídos de acordo com os seguintes critérios: a) pais de crianças com DA (grupo DA) ou pais
crianças sem deficiência ou transtornos diagnosticados (grupo controle); b) crianças com idades
entre três e seis anos. Foram excluídos pais que estiveram reclusos no sistema prisional durante a
pandemia ou aqueles que declararam que faziam uso de substâncias psicoativas com impactos sobre
a família. Ressalta-se que o grupo controle foi composto por seleção aleatória (sorteio) dos 37 pais
de crianças sem deficiências. A idade média dos pais era de 35 anos (DP= 6,53), e as crianças
tinham idade média de 4 anos (DP=1,58) durante o período da coleta.
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Material
Protocolo de dados gerais: elaborado especificamente para coletar dados sócio demográficos,
psicossociais e clínicos dos pais e suas crianças, bem como sobre a rotina familiar durante a
pandemia da COVID-19. Tais dados foram coletados a fim de identificar as alterações na dinâmica,
relacional e contextual das famílias, face às medidas de controle da pandemia.
Escala de Sentido de Competência Parental (PSOC): foi usada a versão brasileira (Moura et al.,
2020) para avaliar a autopercepção de competência parental. Trata-se de uma medida de autorrelato
composta por 17 afirmações que se distribuem em duas dimensões do constructo: 1) Satisfação
Parental (itens 2, 3, 5, 7, 8, 9, 12, 14 e 15); e 2) Eficácia Parental (itens 1, 4, 6, 10, 11, 13 e 16).
Após inversão dos itens negativos, os escores são obtidos pelo somatório das respostas em uma
escala do tipo Likert de seis pontos, que variam entre "Concordo totalmente" e "Discordo
totalmente". O senso de competência parental é diretamente proporcional aos valores da pontuação,
ou seja, quanto mais alta a pontuação, maior é o senso de competência parental. A versão brasileira
da PSOC obteve propriedades psicométricas satisfatórias, com valores do alfa de Cronbach de 0,75
para o fator Satisfação, 0,70 para o fator Eficácia e 0,80 para o total (Moura et al., 2020).
Procedimentos
RESULTADOS
A idade dos pais variou de 25 a 47 anos (M=35; DP= 6,53 anos). Nota-se um predomínio de
mulheres, ou seja, de mães (91,8%), que, além do cuidado com os filhos, exerciam algum tipo de
trabalho remunerado (64,86 %). A maior parte da amostra possuía, no mínimo, ensino superior
completo (68,91%). Os dados descritivos dos participantes, comparando-se pais com e sem DA,
estão sumarizados no Quadro 1.
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O Quadro 2 apresenta os dados clínicos das crianças com DA, ou seja, informações sobre seu
acompanhamento terapêutico especializado a fim de se avaliar as mudanças no tratamento da
criança devido às alterações do contexto familiar pela pandemia da COVID-19.
Quadro 2. Dados do tratamento terapêutico das crianças com DA durante a pandemia (n=37)
Crianças com DA
Variáveis
N %
Realiza tratamentos especializados
Não faz 1 2,70
Um 19 51,35
Dois 8 21,62
Três ou mais 9 24,33
Tratamento especializado suspenso pela pandemia
Sim 27 72,97
Não 10 27,03
Quantos?
Todos 20 56,76
Pelo menos um 7 18,92
Não se aplica 10 24,32
Tratamento especializado no formato remoto (online) durante a
pandemia
Sim 20 54,05
Não 7 18,91
Manteve atendimento presencial 10 27,02
Foi solicitado a realizar os tratamentos da criança em casa?
Sim 26 70,27
Não 11 29,73
Quais?
Fonoterapia 11 24,32
Fonoterapia e outro 8 21,62
Outros 5 13,51
Não informado 1 2,7
Sentia-se preparado para realizar os tratamentos da criança em casa?
Um pouco 8 21,62
Mais ou menos 11 29,73
Muito 3 8,11
Nem um pouco 4 10,81
Com avaliou a frequência/quantidade dos tratamentos em casa?
Pouco 9 24,32
Adequada 17 45,95
Nota. ¹Frequência relativa (%)
No Quadro 3 observam-se as diferenças entre as médias dos escores da escala PSOC analisadas
pelo Teste T de Student, comparando os pais de crianças com e sem DA. Os resultados
demonstraram que os pais de crianças sem deficiência tiveram escores maiores (M= 46,40; DP =
8,58) do que pais de crianças com DA (M = 38,29; DP = 3,14; t(72) = -5,39, p < 0,05). O mesmo
ocorreu para os resultados das subescalas Satisfação (t(72) =-5,95, p<0,05) e Eficácia (t(72) =-4,21,
p < 0,05).
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Quadro 3. Diferenças das médias dos escores da PSOC entre os pais de crianças com e sem DA pelo Teste t
de Student (N=74).
Cuidadores de crianças Cuidadores de crianças
PSOC com DA (n=37) sem DA (n=37) t p-valor
M ± DP* M ± DP*
PSOC – geral 38,29 ± 3,14 46,40 ± 8,58 -5,39 0,00
Satisfação Parental 23,18 ± 2,17 28,94 ± 5,46 -5,95 0,00
Eficácia Parental 15,08 ± 1,67 18,10 ± 4,0 -4,21 0,00
Nota. *M=Média; DP=Desvio Padrão.
DISCUSSÃO
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al., 2019; Osmančević Katkić et al., 2017). Estudos como os de Polizzi et al (2022) e He et al.
(2021) apontam que as alterações no cotidiano causadas pela pandemia da COVID-19 podem ter
tido repercussões diferentes para as famílias de crianças com deficiências, podendo ocasionar, por
exemplo, o que se chama de burnout materno (Polizzi et al., 2022).
Com a saúde mental mundial afetada pelo medo de contágio da doença (OMS, 2020), os pais de
crianças pequenas se sentiram ainda mais inseguros, tanto pela sua saúde como a dos seus filhos, o
que repercutiu em sobrecarga emocional, com consequências para suas práticas parentais,
especialmente para os pais de crianças com DA, cujas famílias apresentam peculiaridades. Tais
peculiaridades precisam ser consideradas ao se estudar a parentalidade e as diferenças no senso de
competência parental entre as famílias do estudo. Pode-se observar, por exemplo, que as famílias
das crianças com DA tiveram que lidar com os impactos da pandemia na sua parentalidade, quando
tiveram, por exemplo, que adaptar suas práticas parentais para realizar os tratamentos
especializados das suas crianças de forma remota, mas sem o devido apoio ou preparação para
enfrentar mais essa dificuldade no seu cotidiano parental e familiar.
Considerando as dificuldades de comunicação entre pais e crianças com DA (Narigão, 2019),
estes impactos podem ter efeitos sobre seu senso de competência parental, como observado neste
estudo. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2021), 90% das crianças com DA nascem
de pais ouvintes. Pesquisas com estas famílias demonstram, ainda, que pais ouvintes têm
dificuldades em desenvolver uma comunicação significativa com filhos com perda auditiva, o que
impacta na gestão do comportamento da criança (Narigão, 2019). Neste estudo, a amostra de
famílias de crianças com DA era composta somente por pais ouvintes de crianças menores de seis
anos de idade, o que pode interferir sobremaneira na comunicação deles com seus filhos e,
consequentemente, na sua autopercepção da eficácia parental. Ademais, estudos recentes
verificaram significativa correlação entre a dificuldade na comunicação e/ou o comportamento das
crianças e o senso de competência parental (He et al., 2021; Tomás, 2019).
Destaca-se que novos desafios foram enfrentados por pais de crianças com DA em relação ao
acompanhamento terapêutico infantil durante os períodos mais críticos da pandemia. Como
mencionado, 75,68% das crianças tiveram seus tratamentos suspensos, 54% receberam atendimento
de forma remota, 70,27% tiveram que realizar atividades de reabilitação em domicílio, sendo que
apenas 8,11% se sentiam bem preparados para realizar essas atividades. Lima et. al. (2019) apontam
que o acolhimento e as orientações às famílias, em especial de crianças com DA, são pontos-chave
para a adesão ao processo de intervenção terapêutica, salientando a importância da família no
acompanhamento infantil. Relatório Mundial sobre Audição da OMS (2021) afirma, ainda, que a
participação dos pais e suas famílias nos cuidados de uma criança surda é um forte preditor de
resultados positivos no tratamento infantil. Com isso, ressalta-se a importância das famílias estarem
envolvidas desde o início do tratamento e fazerem parte de toda tomada de decisões (OMS, 2021).
Por sua vez, este envolvimento da família se relaciona diretamente ao senso de competência
parental, tendo melhora desse indicador quando os pais participam de grupos de apoio (Tomás,
2019). Pesquisas recentes apontam, ainda, que a percepção dos pais sobre as dificuldades dos filhos
no cotidiano pode estar relacionada ao funcionamento familiar, ao estresse e ao senso de
competência parental em casos de pais de crianças com transtornos do neurodesenvolvimento
(Auriemma et. al., 2021; Schiltz et. al., 2022). Da mesma forma, as mudanças sentidas pelas
famílias de crianças pequenas com DA, e as dificuldades enfrentadas por estas durante a pandemia
da COVID-19, podem ter sido fatores que repercutiram negativamente na autopercepção de eficácia
e na satisfação parental daqueles pais.
Outro ponto observado pela OMS é que a tomada de decisão e o cuidado parental podem fazer
com que pais de crianças com DA geralmente experimentem níveis mais altos de tensão emocional
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e sobrecarga física, do que pais de crianças com desenvolvimento típico (OMS, 2021). Ademais, a
carreira profissional destes pais pode ficar comprometida pela sobrecarga de cuidados ao filho
surdo ou com DA, o qual exige dedicação em tempo integral e altera sua rotina pessoal, já que, às
vezes, eles precisam se mudar para próximo dos serviços necessários à criança (OMS, 2021). No
presente estudo, 49% dos pais de crianças com DA não exerciam trabalho remunerado, com apenas
24% do grupo controle sem trabalhar. Assim, as questões que envolvem esse tipo de trabalho
podem impactar o senso de competência parental, como já demonstrado em estudos como o de
Martins (2013).
Nossos achados confirmam que pais de crianças com DA apresentam menor senso de
competência parental quando comparado aos pais de crianças sem deficiências, em especial durante
a pandemia de COVID-19. Todavia, é importante discutir algumas limitações do estudo, dentre elas
o tipo de público participante da pesquisa. Os participantes do estudo eram, em sua maioria, com
alta escolaridade, o que não retrata a realidade de muitas famílias brasileiras. Tal limitação é
frequente em pesquisas no formato online, que permitem apenas a participação de pessoas que têm
acesso à Internet, com um mínimo de experiência em tecnologias digitais e que possuem interesse
no tema da pesquisa (Brom et al, 2020). Embora tenha tido pouca representatividade amostral das
famílias de baixa renda e/ou com baixo nível de escolaridade, a pesquisa no formato online
possibilitou a realização do estudo com um grupo de risco, no caso famílias de crianças com DA,
mesmo durante o período de isolamento social.
Por fim, salienta-se a relevância científica e social do presente trabalho, visto que o bem-estar
dos pais, e sua forma de exercer a parentalidade, tem influência significativa em termos
audiológico, cognitivo e socioemocional para os desfechos desenvolvimentais da criança com perda
auditiva (OMS, 2021). Logo, o conhecimento dos prejuízos no senso de competência parental de
pais de crianças com DA durante a pandemia, objeto deste trabalho, pode auxiliar no melhor manejo
do atendimento à essa população, bem como na formulação de políticas públicas que possam
mitigar os prejuízos do contexto pandêmico para estas e outras populações da Primeira Infância,
período considerado uma “janela de oportunidades” para a prevenção aos riscos de atrasos no
desenvolvimento (Polo & Santos, 2018). Destaca-se, por fim, a necessidade de ampliar os estudos
sobre a parentalidade de pais de crianças com surdez, incluindo discutir como a língua promovida
pela família, quer seja, a fala, a língua de sinais e/ou o uso de tecnologias assistivas, têm impactos
para a parentalidade.
ORCID
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